Celso Vieira - Anchieta PDF

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ANCHIETA

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7 u.,;
êlllLlôftCA PEOACOCICA B~ASILEl~A
Série 5.ª1 * BRASILIANA * Vol. 262

CELSO V.IEIRA

ANCHIE ·T A
TERÚEIRA EDIÇÃO DEFINITIVA

Vou falar de selvagens desumanos... eolono~


não menos crueis ... alguns caracteres nobres, cujo
renome não transpôs os limites· do seu idioma e do
seu credo. Há nisso, contudo, eerta vantagem: do
ignóbil guerrear e das empresas desses homens obs-
curos advieram consequências mais amplas e provà-
velmente mais duradouras que as produzidas pelas
conquistas de Alexandre e •Carlog Magma.
SOUTHEY - Hist6ria do Brasil

COMPANH~·A EDITORA NACIONAL


SÃO PAULO
1 9 4 9

IMPRESSO NOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL


Prillted in the Unlted Statet1 ot Brull
PREFÁCIO

(JUIZOS CRÍTICOS)
1

A FIGURA HISTÓRICA DE ANCHIETA

Já se chegou a dizer que sem a Companhia de Jesus


o Brasil não terfa existido ...
Por mim, prefiro que se exagere assim a obra dos
Jesuitas, a não entendê-la na sua grandeza.
A hiperbole é perfeitamente legítima.
O J esuita representa, em nossas história, pelo menos
dois entre os mais poderosos factores do nosso espírito
nacional.
Sem o seu esforço pela defesa da terra, e sem a sua
mediação entre as duas raças que se encontravam em tão
grande disparidade de cultura - não se saberia dizer
( e isto é que é cabal) se a nossa história teria tomado o
rumo e a orientação que tomou e portanto se o Brasil se-
ria hoje o que é. •
Penso que é assim que se hà de definir a função da
catequese na América Oriental, pois, do outro lado rhl
continente, deram-se os fatos de outro modo.
Até meiados do primeiro século sabe-se que os inten-
tos de colonização não tinham feito mais do que agravar
a solução do mais formidável entre os problemas que se
nos deparam no dia em que pusemos pé na terra. E foi
o Jesuíta que a tempo acudiu, e tornou pos,<;ível a obra
que empreendemos na América.
Não é, poisJ demais tudo o que se tem feito em rela-
ção a Joseph de Anchieta, desde o primeiro século, e o
que fazemos ainda hoje,
CELSO VIEIRA

Anchieta é a personificação de toda a gloriosa milí-


cia no Brasil. Desde os seus dias até os nossos tempos
vem-lhe a figura sendo desenhada, antes de tudo, pet0
seu próprio testemunho, pelos grandes lances da sua le-
genda, depois pelo testemunho dos seus próprios irmãos,
.pelo dos cronistas estranhos à ordem, pelo dos biógrafos,
pela coerência de todos os historiadores, em admirável
unanimidade, onde não se encontraria a mais vaga rese1·-
va acerca do mínimo detalhe sequer de vida tão extraor ·
dinária.
É assim que veiu avultando na consciência da poste-
ridade, até fixar.:se em nossa história, num perfeito relevo.
Agora ( com que ufania escrevo estas palavras !) veiu
o artista que devia esculpir-lhe a estátua. Reunindo toda
a justiça, toda a veneração e o entusiasmo de quatro
séculos, projectou-os num monumento, de cujas propor-
ções ressalta, nítida e brilhante, toda a grandeza do Após-
tolo. ·
Não é menos do que isso o que acaba de fazer Celso
Vieira no livro com que, da sua vida de silêncio recluso,
de meditação e discretQ labor, nos surpreende no meio
destes tumultos em que anda o mundo.
Este largo estudo Anchieta é na verdade tão integral
como história, tão perfeito como arte, tão sábio como
obra de pensamento, e tão sereno e decisivo como sen-
tença de juiz, que é preciso seja lido mais de uma vez
para que se logre, do conceito histórico, uma impressão
distinta; pois o fulgor -da forma chega a fascinar de tal
modo o espírito do leitor que este hà - de, em primeira
leitura, sacrificar alguma coisa da inteligência do texto.
Como adverte o autor nas poucas linhas pr.eliminares,
os seus predecessores têm cuidado mais do taumaturgo
que do apóstolo, do poeta e do herói ; e ~plica que, apro -
ximando-se o quarto centenário do natalício de Anchieta,
ANCHIETA

aproveita o ensejo de, fora do domínio das lendas, dar


uma vida do apóstolo em síntese documentada.
Aliás, nem por isso, excluiu de todo a parte lendária
Nem poderia fazê-lo. . i

Numa vida como esta, que é toda de maravilhas, a


lenda completa a história, e é por ela que a história entra
na imaginativa popular.
O que é essencial é sentir-se que o autor faz com
efeito mais história propriamente que apologética.
E é nessa altura que ele põe caracter magistral em
todo o trabalho.
Revela-se ainda Celso Vieira um grande pintor da
natureza. As suas descrições parece que são mais vivas
que as próprias paisagens ...
Vêm depois os grandes lances do nosso drama: a
fundação do Colégio S. Paulo; a vida do apóstolo, na
capela, na escola, na floresta; o martírio de Pedro Cor-
rea, talvez o maior milagre da Companhia no Brasil;
a epopéia de Iperoig; a capital do sul etc.
A psicologia de Anchieta ainda adolescente é inimi-
tavel.
Uma parte nova na legenda do taumaturgo é a em
que se refere a Anchieta como orador. É de lamentar
que se não possam coligir-lhe os sermões.
Em quase todo o texto, intercala o autor grande nú-
mero de episódios, anedotas, lendas e milagres.
Quando faz a síntese do homem, dá-nos um pobre-
sinho de Assis parece que ainda maior do que aquela
outra maravilha.
Em suma: não é possível sugerir idéia desta obra
sem escrever outro volume. A meu ver, o livro de Celso
Vieira aparece já clássico. ·
ROCHA POMBO
(Correio da Manhã, 26 dezembro 1929)
II

ANCHIETA

"Na bibliografia do assunto ocupará de agora em


diante lugar eminente o grande livro do Dr. Celso Vieira,
livro que, pelo elevado da concepção, concatenação das
matérias e primor da forma, bem pode ser qualificado
de composição epopéica.
"Define-se a epopeia: poema em que se descrevem
acções heróicas ; poema épico baseado em elementos his-
tóricos, entrelaçados com a lenda, o maravilhoso ou a
mitologia.
"A excepção do fator mitológico, tudo mai:,; se encon-
tra no Anchieta do Dr. Celso Vieira.
"É na verdade uma série de feitos extraordinários,
de esforços sobre-humanos, prodigiosos, tanto mais -sobre-
-humanos e prodigiosos quanto realizados com humildade
genuinamente evangélica, e escrupulosamente atestados
por testemunhos e documentos irrefragáveis.
"Impressionaram eles de tal sorte a imaginação e a
sensibilidade dos contemporâneos e seus sucessores, que
engendraram ~mitas amplificações lendárias, perpetuadas
ua tradição popular.
"Estudando a matéria com máximo cuidado, com o
carinhoso ardor de quem ama, venera, deseja enalteecr
sem deslise da exactidão o objecto do seu labor, o Dr.;
Celso Vieira produziu obra merecedora, por vários títu-1
los, de caloro.sos encómios e que lhe perpetuou altos forosJ
de conhecedor, registrador e narrador das coisas pátria~;
ANCHIETA 11

"Dignidades de homem de letras já as havia ele


adquirido, mediante consideráveis trabalhos anteriores.
"Destacara-se igualmente como jurista e crítico.
"Desta última aptidão é bela amostra a sua mono-
grafia sobre V arnhagen.
"Anchieta consoliç:lou-lhe e dilatou-lhe a nomeada.
"Admira-se, em primeiro lugar, nas centenas de far-
tas páginas do volume, a sólida e variada erudição do
autor, que recorreu para informar-se a todas as possíveis
fontes, assimilando, coordenando, unificando muitas vt!r-_
sões e textos esparsos.
"Admira-se, em seguida, a ordenação dos capítulos,
ou cânticos, em surto lwninoso, desde os prenúncios da
vocação do santo missionário até o seu trespasse tão siu-
gelo quanto tocante, e a sua apoteose.
"Admira-se ainda o burilado da linguagem, clara, ele-
gante, eloquente, recamada não raro de refulgências poé-
ticas.
"Sente-se que o escritor a traçou sinceramente como-
vido, sinceridade e comoção insupriveis nas lídimas obras
de arte.
"A par disso, fina dialéctica, no debate e elucidação
de certos episódios, como o referente ao aventureiro João
de Bolés, episódio na exposição do qual ficaram para
sempre destruidas falsas incriminações assacadas pela
ignorância ou má ~fé contra a infinita meiga bondade de
Anchieta.
"Tópicos há descritivos de cenas, costumes, paisa-
gens, apreciações de incidentes e caracteres, com direito
t figurar em selectas antológicas.
"Joseph, o taumaturgo - conclue o Dr. Celso Vieira
- exalçado por decreto de 10 de agosto de 1736, quan-
do o Papa Clemente XII lhe reconheceu, em grau he-
róico, as virtudes ,.teologais e cardiais, ainda não saiu do
12 CELSO VIEIRA

Vaticano para os altares, do processo de canonização para


a magnificência da liturgia e do calendário. A través dos
séculos, porém, vibra na mesma lenda selvagem, como
na mesma glória cristã, o culto de Anchieta, pobre e inú-
til Joseph, s,an:tificado pela consciência de um povo."
"Em suma: é conhecido o conceito de um prelado:
- a Companhia de Jesus é um anel de ouro, tendo An-
chieta como pedra preciosa.
"A essa gema conseguiu o Dr. Celso Vieira, realçan-
do-lhe as facetas, dar novas lindas cintilações.

AFONSO CELSO

(Jornal do Brasil, 12 novembro 1929)


II!

ANCHIETA

Dominando a confusão estrepitosa da Idade Média


Brasileira, acima do fragor dos combates e dos epílogos
dramáticos das capitanias feudais, uma figura de ascet-1
resplandece, já postada no altar da Pátria como um santo
canonizado pelo sentimento nacional. Pomba branca re-
voando sobre um mdndo bárbaro, Aochieta paira no
período inicial e tumultuoso da formação do Brasil com
o tríplice prestígio da santidade, da poesia e da acção.
Compleíção mística da mesma linhagem espiritual de
S. Francisco de Assis e de Santo António, Anchieta en-
contra-se indissoluvelmente associado aos acontecimentos
máximos, que determinaram em seus mais transcendentes
germes espiritualistas a implantação da nacionalidade. A
presença desta figura angélica nos pródromos tenebrosos
da História do Brasil, movendo-se entre as selvas de
ttm mundo virgem, constitue um dos contrastes mais im-
pressiouantemente empolgadores que a imaginação pode-
ria conceber. Nesse mundo de florestas em que imperam
os instintos l?elváticos e animais da Natureza, Anchieta
é a quintaessência do espírito liberado pela fé das suas
algemas terrestres: um santo de lenda"mística extravia-
do entre urna humanidade ainda em sua aterradora infân,.
eia nua e canibalesca.
A função distribuída a um missionário jesuíta, envia-
do a um mundo bárbaro, não podia circunscrever-se ape·
14 CELSO VtElRÂ

nas à esfera mística. Esses apóstolos eram conquistadores


desarmados e também, como Nóbrega, estadistas sem
alvará régio. Servido pelos arroubos de uma alma poé-
tica, e posto em contacto com aquela humanidade bárbara,
o misticismo de Anchieta fez dele uma espécie de Orfeu
cristão, encantador e domador de feras. Com ele o mito
órfico se renova, e o que perde em helénica beleza plás-
tica, ganha em formosura espiritual.
O pálido, o doentio, o corcovado evangelizador, de-
sembarcado com seus companheiros de catequese da flo-
tilha do governador D. Duarte da Costa, ia desempenhar
uma missão de predestinado, em confronto da qual empa-
lidecem as proezas de muitos herois.
O descrever essa vida beata quase importa em des-
crever a infância de uma nação: infância trágica e tru-
culenta, de que alguns historiadores destituídos de visão
não prescrutaram os apocalípticos aspectos. Essa infân-
cia acaba, finalmente) de ser narrada com sublime elo-
quência por um dos mais admiráveis ourives da nossa
lingua.' A biografia de Anchieta, composta por Celso
Vieira, é, antes de tudo, uma poderosa obra de historiadm
dramaturgo, decerto a mais opulenta de linguagem que até
nossos ,dias se incorpora na História nacional, porquanto
nem as figuras máximas de Varnhagen e Capistrano pos-
suíram o· condão, reservado aos artistas, de transfigurar
o verbo em beleza.
Até hoje, a bibliografia anchietana era principalmente
constituída com panegíricos exalçadores da vida sublime
do taumaturgo. ,Um historiador, no sentido objectivo e
erudito da palavra, não ensaiara ainda reconstituir em
seu realístico cenário histórico a existência <le Anchieta
e determinar a influência que ele tivera, como artífice,
na embriologia da nação, nem tão pouco fixar-lhe a posi-
ção culminante no nosso património espiritual.
ANCHIETA ts
O sr. Celso Vieira realizou essa obra arqui•difícil e
complexa, que exigia, além da cultura documentada e
investigadora de um historiador perspicaz, a sutilíssima
e quase anacrónica capacidade espiritual de compreensão
de um santo e os dotes requintadamente literários de um
ressuscitador de ambientes retrospectivos, dos mais difí•
ceis de fixar em literatura, em cujos cenários haveria a
movimentar a colisão do autoctone selvagem com os inva-
sores europeus. Um labirinto de selvas na posse dos
tapuias e dos tupis, onde um punhado de homens bran-
cos se empenhava em fundar o esboço de uma nação ; e
no fragor dessa peleja, que se prolongava desde os redu-
tos feudais do castelo de Olinda até aos planaltos de Pira-
tininga e às praias da Bertioga, um santo macerado pelas
disciplinas e os cilícios, uma alma com forma humana,
que esparge sobre a tragédia a mais diáfana luz espiri-
tual, - eis em resumo o que esse historiador tinha a
descrever, quando de posse de todos os subsídios e aqui-
sições de ordem histórica, religiosa, militar, étnica e
naturalista exigidos para a mise-en-scene de uma tal acção.
Se, enlevado pela fascinação que a sublime figura
exerce sobre as inteligências sensíveis que a contemplam,
o seu admirável biógrafo nela condensasse o mérito exclu-
sivo do prodígio operado, a história teria sofrido em sua
substancial verdade. Isto, porém, não sucede. O que o
Sr. Celso Vieira nos narra é a vitória da aliança entre
o Estado e a Igreja, entre o Governo e a Companhia de
Jesus, na formação do Brasil.
Tomé de Souza, Manuel da Nóbrega, Men de Sá
e Anchieta são as cariatides que sustentam o primeiro
pavimento do edifício. Em volta dessas figuras proemi
nentes move-se a .pleiade de cavaleiros e de padres que
constitue a élite construtora da nacionalidade. É dessa
aliança do arnez com a sotaina, da espada com o cruci-
16 CELSO VIEIRA

fixo, da lei com o evangelho, da autoridade com a fé, que


resultou o Brasil. Esta a história confortadora e verídica
que nos narra este livro magistral - verdadeiro e excep-
cional título académico, - em uma sucessão de quadros
onde nunca afrouxam e empalidecem as tintas rutilantes
da eloquência, e em cuja rigorosa composição descritiva
se aproveitaram todos os mananciais de informação his-
tórica.
Pode afirmar-se que não demorará que para as anto-
logias e selectas serão dentro de pouco transferidas como
modelos literários e lições de história pátria muitas da:,
páginas deste livro exemplar, que ocupa nos domínios
da história retrospectiva um lugar simétrico ao ocupado
pelos Sertões, de Euclides da Cunhà, na história côntem-
porânea.

CARLOS MALHEIRO DIAS


(O CRUZEIRO, 2 novembro 1929)
IV

JOSÉ DE ANCHIETA

Dono ,de um formoso estilo e de uma cultura acumu-


lada com silenciosa e beneditina paciência, o sr. Celso
Vieira considerou oportuno e necessário escrever, também,
o seu livro sobre Anchieta. Após a leitura de quanto
sobre ele se publicou durante quatro séculos, teve a ideia
de, como artista, e como estudioso, realizar obra nova · e
imprevista. E deu-nos este volume curioso, que faz lem-
brar certos altares das catedrais espanholas, em que as
imagens são vestidas de seda e enfeitadas de joias, mas
que, despidas da,:; suas alfaias sumptuosas, serão reconhe-
cidas como os mesmos íconos do agiológio católico. Eu
quero dizer com isso que, vestindo a figura de Anchieta
com as galas da fantasia própria e das que lhe forneceram
os cronistas imaginosos, não desfigurou o sr. Celso Vieira
a legítima. entidade histórica. Sob os ouropeis da sua
imaginação e da sua opulência estilística, movimenta-i>e
um vulto humano, esculpido conscienciosamente pel.a
pena de um historiador.
Esse milagre do talento e do estudo vem criar, toda-
via, para a crítica, uma dificuldade inopinada. O An-
chieta do sr. Celso Yieira é uma obra histórica admira-
velmente escrita ou um poema em prosa que ele ajustou
intimamente à história? Alguem dirá, talvez, que se trata
daquilo que se chama, hoje, uma biografia romanceada.
Mas isso seria praticar uma injustiça, imaginando que
18 CSLSô VIEtRA

um escritôr com a sua responsabilid:ide pudesse contert-


tar•se com imitações exóticas, no momento em que esse
gênerÇ> literário abriu falência nos países de origem. Ti-
vesse ou não Strachey aparecido na Inglaterra com a
renovação literária da biografia; e tivesse, ou não, o sr.
André Maurois se tornado o profeta da religião em que
o outro é Alá, e, estou certo, o sr. Celso Vieira teria
escrito, da mesma forma, este seu livro. Escreve-lo-ia
porque é modalidade específica do seu talento animar com
um alto sopro de beleza os motivos mais áridos, e porque
nunca lhe saiu da pena trecho de prosa em que não pu-
sesse, COJ1?.0 Flaubert, o seu cérebro, a sua carne e o seu
sangue.

Esteta por temperamento, nutriu sempre o sr. Celso


Vieira horror irreprimível ao escândalo e, mesmo, à no-
meada merecida. Escrevendo belas coisas desde 1900, só
em 1918 nos deu o seu primeiro livro, Endimião, cujo
título é toda uma confidência de artista. A semelhança
do neto de Júpiter, dormia ele o sono do seu silêncio na
asperidão do seu monte Látmos, onde a glória, nova
Diana, debalde o namorava. Em 1919 dava-nos ele
O Senieador, atirando nas urzes agressivas da nossa pla-
nície literária punhados de belas ideias. Em 1923 pu-
blicava um excelente estudo sobre Varnhagen. E, como
consequência, tirando de um assunto inspiração para outro,
este belo volume sobre Anchieta, aparecido em 1929 e,
já hoje, em segunda edição. _
O primeiro espanto de quem examina a vida e a
atividade do sr. Celso Vieira consiste na tranquilidade de
que ele as cerca. Numa época e num ambiente propícios
ao cabotinismo, em que os candidatos à glória despem os
loureiros das suas folhas para tecerem clandestinamente
ANCHIETA 19

às próprias coroas, ou se agridem na praça pública paia


as arrancarem uns à cabeça dos outros, ele é o trabalha-
dor sem pressa, consciente do seu valor, e pago do pró-
prio esforço com a íntima alegria de tê-lo feito. Conta
Fabre, relatando as suas experiência de entomologista,
ter aprisionado, certo dia, dois efipígeros, a que deu des-
tino diverso : um em lugar escuro, e outro sujeito à cla-
ridade. Este durou apenas quatro dias; o outro viveu
cmco. E o naturalista explica: o que ficou sob a acção
directa e constante da luz consumiu dia e noite a energia
orgânica em movimentos desnecessários, ao passo que o
outro a reservou, prudente, para a própria conservação.
O sr. Celso Vieira compreendeu cedo essa verdade, isto é,
a inconveniência de consumir-se na conquista de uma po ·
pularidade vã. "Triunfar tarde não é triunfar: é atingir
ao mesmo tempo a imortalidade e a morte", - pensava
Disraeli adolescente. · Mas a glória é um peso grande
demais para que o homem o carregue toda a vida, quando
começa a carregá-lo cedo. O homem de letras, que se
tornou popular aos vinte anos, pertence, já, ao passado,
quando atinge os quarenta. A boa glória é, pois, essa,
que a sua prudência e os seus talentos lhe conquistaram.
O seu nome não foi escrito na areia, como os versos de
Anchieta; mas ·g ravado na pedra, como o dístico do farol
de Rodes, zombando permanentemente da impertinência
do sol, <la força das águas e da marítima inconstância
dos ventos.
"O que me interessa mais vivamente no sr. Celso
Vieira, - escrevia eu hà doze anos quando ao apareci-
mento de Endimião; - o que me interessa mais viva-
mente no sr. Celso Vieira não é a soma de ideal que ele
põe nesse livro: .é o escritor mesmo, na complexidade
dos seus recursos". E no mesrno artigo: "Um escritor
estudioso não tem, jamais, uma feição definitiva. Defi-
20 CELSO VIEIRA

nir-se é estacionar. E estacionar é atingir a monotonia,


de que nasce o fastio. Eu não compreendo, nem com-
preenderia nunca, um espírito que procure energias no
vácuo. Escrever sem leituras é edificar sobre a areia.
E é porque o sr. Celso Vieira não se detem na absorção
de conhecimentos, que eu, admirando a beleza da sua
obra realisada, adivinho, maravilhado, o esplendor da sua
obra futura". Anchieta, com as suas qualidades de obra
de crítico e de esteta, confirmou, integralmente, aquela
previsão .
• 1 ••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••

'
É para fixar esse vulto estranho, e a natureza nova
destinada a servir-lhe de moldura, que o escultor grego
de Endimião borda a ouro, catolicamente, os trinta e seis
capítulos deste seu livro. Foi o sr. Celso Vieira, lembro-
-me bem, que me poz em contacto, hà dezoito anos, com
Paul de Saint-Victor, lendo-me alto, com entusiasmo e
devoção, algumas págipas do III volume de Les deux
masques, em que o estilista francês analisa a obra de
Shakespeare. O estilo em Anchieta ê, sensivelmente, uma
irradiação daquelas páginas magistrais, em que se encon-
tra, associados, o que hà de mais colorido em Ruskin e
de melhor desenhado em Flaubert. Elegante, gracioso,
musical, a arte é mantida á grande altura, do primeiro
capítuio ao último, preenchendo com .a beleza da palavra
os lugares em que falha o interesse do assunto. Colorista
minucioso, completa o autor com a imaginação as omissões
do desenho da História.
. . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .·. .. ......... .
'A descrição, que nos dá, do selvícola da época da
descoberta, é obra de estatuário a que se associasse um
pintor enamorado das cores fortes. . . É ainda com a
ANCHIETA 21

mesma pena molhada no arco-iris ou nas nuvens do poente


que nos .conta com alma virgiliana a marcha do cortejo
que con<luz o caixão mortuário de Anchieta, entre Reri-
tiba e Vitória ...
É possível, é provável !l1esmo, que todas estas cenas
tivessem ocorrido fie modo diverso, e que essas nuanças
de beleza provenham do talento do sr. Celso Vieira. O
índio que ele nos dá, magnífico e decorativo, não é o
selvagem comum que os portuguêses encontraram na plaga
americana, mas um ou outro chefe deles, preparado para
a guerra ou para as festas rituais da vitória. Da cola-
boração do seu espírito na ornamentação da narrativa,
dá-nos, aliás, ele próprio, o documento, quando descreve
e comenta a,luta da esquadra de Men de Sá para desalojar
os francêses e indígenas da ilha do Governador.

É certo que, aqui e ali, temos a impressão de depa-


rar um anacronismo no livro do sr. Celso Vieira. Este
é, porém, um escritor tão escrupuloso e bem informado,
que eu, em tais casos, prefiro atribuir a minha estranhesa
á minha própria ignorancia, a admitir que a falha seja
do autor. (*)
Trate-se, porém, de lapsos da pena do sr. Celso Vieira
ou de erros do meu julgamento, é incontestável que ele
nos deu um dos livros mais bem escritos porventura pu-
blicados no Brasil. A sua prosa realizou, nele, prodígios
de sonoridade. E lembra, em todos os seus capítulos, a
obra sinfónica de certos compositores italianos, desses que,
ao fim de cada partitura em que embalaram docemente

(*) Foram corrigidos nesta edição alguns lapsos, entre os


quais, dada a procedência do reparo, dois anacronismos indicados
por Humberto de Campos.
22 CELSO VIEIRA

o auditório, o levantam para o entusiasmo ou para as


emoções prolongadas, fazendo entrar em jogo, de súbito,
a massa coral de todos os violinos.

HUMBERTO DE CAMPOS
(Do livro "CRITICA" - 2.a série)
V

A RECONSTRUÇÃO DO APOSTOLADO

O historiador de uma _época necessita de um espírito


capaz de vibrar ao ritmo do ambiente, das instituições e
dos factos que recompõe; o biógrafo, que é o historiadm-
de herois, deve possuir no temperamento e nos traços
peculiares da mentalidade alguma coisa que seja o reflexo
da figura, por ele evocada, do mundo crepusctJ.lar das
sombras dos homens extintos.
Para dizer de Anchieta, ninguém, na nossa geração,
poderia disputar a Celso Vieira a missão predestinada de
erguer um monumento literário, que o Brasil devia ao
patriarca j esuita da civilização nesta terra. Se entre oi;
escritores da língua portuguesa, tanto actuais como passa-
dos, muitos não são 03 que podem ombrear com o nosso
grande artista da palavra no cinzelamento aprimorado do
vernáculo, nenhum dos ·que hoje fazem a literatura d,)
nosso idioma tem, como Celso Vieira, qualidades de tem-
peramento, sagacidade peculiar de estesia e tendências
características de espírito para sentir, compreender e re-
constituir em forma viva de presença o místico iniciador
do apostolado cristão no Brasil.
Dessa harmoniosa conjunção do autor e da matéria
da sua obra resulta, no grande livro que Celso Vieira
acaba de produzir, uma projecç¾' de luz sobre a persona-
lidade de Anchieta, que surge daquelas páginas com a
perfeição escultural completada pela irradiação do vibrante
dinamismo da sua alma intrépida de crente e de homem
24 CELSO VIEIRA

de acção. Durante quatro séculos, o 1mss10nano foi o


centro do culto discreto, formado em torno das ingénuas
e sinceras narrativas dos cronistas, que recolheram para
a glória da Companhia os feitos e as lendas daquela vida
de esforço, de beleza e de fé. Mas, tom a obra de Celso
Vieira. Anchieta ressurge corno primeiro marco dornin.t-
dor a assinalar, com as linhas austeras do seu perfil ele
asceta, o ponto ele partida do ciclo da brasilidade.
Era tempo de ser feita, como o destino permitiu,
por mão de mestre, essa ressbrreição do apóstolo e re-
construção do apostolado. As origens da nossa história
são pobres de tipos dignos de ocupar peanhas de urna
galeria carlyleana de herois. Sàrnente mais tarde, os
vultos robustos dos aventureiros paulistas nos proporcio-
nam, com um Fernão Dias, homens capazes de agitar a
imaginação com o sopro rijo da epopéia. Mas, até à
eclosão elas Bandeiras, a formação embrionária da nacio-
nalidade prossegue na mediocridade de personagens secun-
dários. Entre eles, o jesuíta da Nivaria Insula ergue-se
em uma preeminência quase super-humana, corno as ge-
leiras invernais do seu pico natal acima da topografia do
arquipélago canário. E o estudo de Anchieta não inte-
·ressa apenas pelas proporções da sua grandeza em relação
ao meio, onde viveu e agiu. O catequista é ainda, e por
outros motivos, a mais forte e fascinadora figura expo-
nencial da obra criadora, que o gênio da Europa, ainda
flarnbado pelo baptisrno de fogo da Renascença, veiu reali -
zar, imprimindo os valores da cultura mediterrânea na
matéria plástica da selvageria americana. As.;irn, a per-
sonalidade de Anchieta parece-me tornar-se a magnífica
altitude da qual ,podemos apreender, em uma visão pano-
râmica, as linhas imensas de um dos mais empolgantes
momentos históricos.
lt e e e e t 1 1 III•• 1 • o II• O t O O 1 1 I • 1 1 t 1 • o 1 1 • t 1 1 II t 11111 1 I t
ANCHIETA 25

No belo livro de Celso Vieira reaparecem, com a


intensidade dramática de uma evocação, as batalhas tra-
vadas em terras do Brasil pelos legionários de Calvino e
de Loiola, na disputa fremente de uma supremacia antar~
ctica. Essa é a significação mais profundamente interes-
sante do papel de Anchieta no lançamento dos alicerces
da nossa nacionalidade. Muito mais que a acção frágil
··dos donatários das capitanias e do governo geral estabe-
lecido mais tarde na Baía, a combatividade religiosa do
jesuíta contribuiu para o insuces.;;o das incursões eXÓti-
cas, que, entre os anos da década de cinquenta do sécuk,
XVI e a expulsão definitiva dos holandeses do Nordeste,
quase cem anos mais tarde, tentaram arrancar o Brasil
ao círculo da influência mediterrânea.
No desempenho do papel histórico, que o destino lhe
preparara, Anchieta sobrepuja todos os outros protago~
nistas desse drama de incalculável alcance nos destinos
do Brasil, por uma extraordinária combinação da força
propulsora do idealismo místico e de notáveis aptidões
práticas e executivas. No grande missionário transpare-
cem a mentalidade e a fisionomia moral dos paladinos da
teocracia, formados na escola de Loiola e na disciplina
de Calvino. O apóstolo do Brasil lembra, em alguns tra-
ços característicos da sua personalidade, as figuras repre-
sentativas do puritanismo, dos fundadores da Nova Ingla-
terra e dos grandes caudilhos parlamentares da luta contra
os Stuarts. n o mesmo conceito da síntese· do poder
politico e da autoridade religiosa, em que parece sob~-
viver a mentalidade bíblica dos juizes de Israel. O ho-
mem de quem Celso Vieira nos conta tantos feitos de-
monstrativos de energia organizadora, âe aptidão de co-
mando, de agilidade diplomática e de sabedoria política
é o mesmo iluminado, que atravessa o oceano impregnado
do ardor mí1,tico do autor da Epí1,tola ao• Hebreu,, ina.-
26 CELSO VIEIRA

balável na convicção de que da sua alma irradia, pela


graça divina, a força criadora da fé, que é "a substância
das coisas que estão para acontecer" nas terras virgens
do continente de Colombo. .
As vicissitudes do processo histórico não permitiram
que a visão do apóstolo se tornasse realidade. Mas as
parede.3 mestras do edifício por de fundado configuram
uma estrutura social, que não diverge completamente do
seu sonho. Lançando através das páginas de Celso Vieira
um golpe de vista retrospectivo -sobre aquela idade heróica
da gênese nacional, podemos talvez encontrar na deslum-
brante audácia dos homens de fé o estímulo compensador
da perturbadora agitação do cepticismo contemporâneo.
Em crentes, como Anchieta, denunciam-:;e potencialidades
ignotas da psiqué humana no conflito eterno com os enig-
mas esmagadores de um universo, que Bernard Shaw jul-
gou uma vez possível ter sido apenas uma tirada humo-
rística do Absoluto e que muitas vezes chega a tomar as
formas macabras de síntese estranha dos delírios cósmi-
cos de um manicómio de deuses.

(Excerpto do prefácio á 2.a edição)

AZEVEDO AMARAL
VI

PARA O GRANDE ANCHIETA


UM GRANDE HISTORIADOR

Apareceu, enfim, o livro máximo de Celso Vieira.


Explico-me sobre o qualificativo.
Anchieta absorveu cinco anos, em obstinada faina, ao
prosador de Endiniiã-o. Um quinquênio consumido em
pesquisas, em anotações, em exame do copioso material
acumulado, em identificação dos textos, em assentamento
do plano da obra, por fim, na composição desta, segundo
métodos rigorosos de crítica histórica - um quinquênio
assim esgotado em buscas, cortsultas, investigações, atra-
vés de fontes em maioria difíceis, omissas ou precárias,
e por um escritor cuja probidade mental é sabidamente
irreprochável, só poderia produzir a obra realmente forte,
realmente admirável, que qualifiquei de máxima, na rutilante
carreira literária de Celso Vleira.
Até então, Anchieta tivera biógrafos panegiristas da
sua taumaturgia. A comemoração do centenário da morte,
em 1897, cingiu-se a evocações esparsas dos seus feitos
místicos. Ficou por fazer a reconstituição da personali-
dade excepcional na realidade histórica, situando-a na sua
época e no seu elemento, maximamente como civilizador,
ou plasmador genial do nosso esboço de civilização no
primeiro século do descobrimento.
A esse comt.timento de múltiplas exigências foi que
se con~agrou Çelso Vieira, acompanhando o sulco terreno
28 CELSO VIEIRA

do Apóstolo desde a Vocação, transitando pela Escola


de Pitatininga, fulgindo no poema de Iperoig, exaltando-se
nas lutas da fundação do Rio <le Janeiro até à apoteose
da Ascensão e ao ocaso de Reritiba.
São 287 largas páginas de texto, apoiadas em mais
de 50 de notas, revelando a impressionante erudição desse
bandeirante <la história no encalço dos bandeirantes da
catequese, os campeadores da fé, sublimes de altruismo e
de estoicismo, Anchieta e seus irmãos jesuítas, que, bata-
lhando na brenha da terra e na brenha das almas, preci-

-
pitaram o "prelúdio da nossa vida cristã" com o "epílogo
do nosso mundo selvagem".
A obra é completa e definitiva. Alteia-se e rebrilha
entre os monumentos da nossa literatura histórica - mo-
numento que entre eles se realça pela transparência do
estilo, pela fluidez da língua, pela vernaculidade lapidar.
De ordinário, entre nós, a história enerva, em penú-
ria de atractivos na forma dos que lhe versam os temas e
analizam os episódios. Arrolam-se acontecimentos e cri-
ticam-se fenômenos com aridez e mazorrice, e a histórh,
mestra da vida, perde toda a fascinação, desencanta e en-
tedia.
Poucos hão de ser os que, por predicados opostos, se
evadam a essa contingência negativa da escrita sem sedu-
ção, áspera e rude, amortecendo a vivacidade anedótica,
amortalhando em bocejo e sono a graça, o interesse, a
alegria de tantas minúcias que, à margem das acções cul-
minantes, revelam, não raro, a exacta psi~ologia de figu·
ras singulares.
Publicista, cronista, ensaísta, conferencista, historió-
grafo, Celso Vieira é, em longos anos de actividade men·
tal, o mesmo uniforme perdulário da frase impecável no
idioma impecável.
ANCHIETA

Tudo que escreve não é transitório. Cuida a prosa


com o esmero de um cinzelador, mas sabe transmitir-lhe
uma sonoridade e uma claridade que a subtraem à con~
junctura do efêmero e do perecível.
Se.u estilo é uma permanente vibração harmónica dó
som e da luz. Provoca sempre as emoções mais altas de
que é capaz a sensibilidade de um artista enamorado dâ
beleza; e tal é o seu poder de transfigura<;ão dos episó~
dios menos seducentes em motivos de sensação e impre<i•
sionismo, aureolados pelos requintes da sua e.3tesia, que :i
sua obra é, toda ela, de uma homogeneidade perfeita como
sentimento, como pensamento e como arte.
Ao serviço da ressurreição histórica de Anchieta, o
santo, o evangelista, o poeta, o civilizador, poz. Celso Viei-
ra, neste livro inconfundível, todos aqueles atributos do ·
seu espírito criador, da sua idealidade "brasileira", da
sua luminosa virtuosidade estilística.
Eu saudo com entusiasmo esse poema de verdade,
de justiça, de exaltação heróica, como um património
que em 1934, quarto centenário do nascimento, será a
peanha mais sólida e mais bela sobre a qual o reconhe-
cimento de toda uma Pátria apresentará a imagem do
Apóstolo ao zelo e á prece da nossa veneração perene.

ALVES DE SOUZA

(O PA!S, 22 outubro 1929)


vn

DOIS EXCERPTOS

"Em seu espírito aproximam-se, aparentam-se as


obras primas de Ernest Renan e Celso Vieira. É que
em ambas se humanizou aquilo cuja sublimidade se evo-
• lava para o divino, se refugiara na mitologia. Tal qual
Celso Vieira nô-lo representa, é Anchieta, como foi
Cristo, no trabalho de Renan, uma síntese de toda a
possível perfeição humana. E eis porque esse evocador
vai tornar-se, conforme disse, do outro, Maurice Barres,
um cristianizador involuntário de seus contemporâneos e
pósteros ".

II

"Cabe a Celso Vieira, uma das mais perfeitas orga-


nizações de escritor até hoje produzidas por este país,
espírito que vive a transbordar não de erudição - simples
adubo .....:.. mas de cultura - maravilhosa florescência, mes-
tre de estilo como da arte de pensar, velho poeta incor-
rigível que procura, nas epopéias vividas heróica ou mis-
ticamente pela raça, os desejados motivos de exaltação;
a Celso Vieira cabe, dizia eu, a glória de haver inau-
gurado a luminosa galeria de catequistas, sem a qual o
ANCHIETA 31

estudo, a reconstituição da iluminada "bandeira" espm-


tual, em que se elaborõu a civilização brasileira, ficariam
fatalmente incompletas.
Desse livro (Anchieta) que veiu classificar definitiva·
mente Celso Vieira entre os primeiros escritores de sua
época, consolidar a reputação do historiógrafo, que a bro·
chura sobre Varnhagen revelara, quero destacar o capÍ·
tulo intitulado o Herege de Guanabara, um dos mais do·
cumentados e empolgantes do volume .. .

BENJAMIN LIMA

(d'O PAíS', 26 novembro e 19 dezembro 1929)


VIII

RECEPÇÃO DE CELSO VIEIRA NA


ACADEMIA BRASILEIRA DE
LETRAS

(Excerpto do discurso de Aloyaio de Castro,


em S maio 1934).

"Sois dos raros entre os nossos escritores em quem


se pode conhecer o estilo, o donaire da forma, a palavra
luzindo pela beleza de si mesma, nos mil valores que
exprime, de idéia, contorno e som. Mas o estilo, flm de
distinção e nobreza, dando ao artista a sua nota pessoal
e única, como ao músico, no tanger o instrumento, o
modo de desferir-lhe as cordas, o estilo reclama uma su- ·
tileza de sensibilidade que é verdadeiramente um dom de
eleitos.
Nos recamos da vossa prosa tudo é alinho e decoro ...
Vê-se que possuis a qualidade mestra do escritor, o
saber do idioma. Já parece coisa de espanto amar as
riquezas da "nossa lídima linguagem, quando hoje ela por
aí vai, desbotada, relaxada, desprezada, enquanto prosp<
ram as chulices da gíria e o falar enxacoco. Pos quetn
mais se atreve à paciência de a estudar por muitos anos
e ainda pela vida inteira? Isso de linguagem ninharias,
coisas de nonada. Se os erros gritam, vem por desculpa
o uso, o uso que faz lei. Cômodo e simples.
ANCHIETA H

1las que <'!-iplcndor c-s!'-a língua quando vasada corn


tão venusta forma e tão ricos matizes. como nas vig,
rosas páginas do vosso '' Anchieta'·, desse livro que há rk
<111 -ar. monumento da nossa literatura histórica.
Versando assunto copiosamente tratado ém quatro sé-
culos, por penas eruditas de cronistas, alcançastes fazer
contudo obra pessoal ,em que a figura do grande apóstolr,
. do Brasil se nimba como de um halo de beleza nova. .
Fostes fiel aos factos históricos. Tão fonnosa a vida
de Anchieta, dir-se-ia que porventura a esmaltastes com
a imaginação. Mas é .que a verdade nua, também pode
ser bela. E a mais belá verôade é sem dúvida uma bela
vida ...
Que esplendor e variedade de quadros e tons, aqd
e ali nos dais, com força de estilo ~omparável à cio Eucli-
des da Cunha, dos "Sertõef' ...
Magnificando as nossas letras com o vosso "Anchie-
ta", mostlil,ste-nos, sr. Celso Vieira, uma pena digna da
Legenda .>\urea ou de um Florário dos Santos. É um
livro edificante pelo fervor espii-itual e pela luz da fé,
que radiando lhe atravessa as páginas. Não hà nele exo,-
tações tonitruantes. A palavra é serena, mas cheia d·
unção, daquela força simples r1ue nos influi a verdade r-
comove e acende ainda as almas regélidas. Lendo-se um
livro assim, sente-se vivo o alento de Deus. E então é
peito por terra, para levantar a esperança ao Criador t·
subir-lhe os apelos de nossa alma, ao Criador, que do
pecado e da miséria nos ressuscita para a virtude e para
a glória.
Essa luminosa força de crença se sobredoira na obra
do poeta, porque o vosso livro é como um poema, eu
dissera outro "Evangelho nli's ~elvas" , capaz de irmanar-se
a,, portentoso canto de Varela.
IX

O PANORAMA E O HOMEM

Um ilustre acadêmico brasileiro - Celso Vieira -


compoz a biografia do Padre Anchieta. É uma vida bela
como um romance na evocação do Brasil primitivo. Mis-
tério, aparições de índios e anjos, constância, dor, e uma
obra imensa de civilização.
Historiadores, sabiamas do Padre Anchieta o que nos
diziam, repetindo-se, alguns documentos e algumas obras.
Com esta biografia, hoje, muda por completo a noticia
do grande missionário. Seguimos-lhe a história desde o
berço até à morte. Compreendemos-lhe os impulsos, que
lhe decidiram a vocação. Assim o vemos partir, chegar
ao Brasil e viver nas selvas. É todo um ambiente de
conquistadores, col0nos, aventureiros, índios e bandidos.
Celso Vieira, além de historiador e erudito eminente, é
um poeta nos sentimentos e na linguagem. A descrição
do Brasil, em que actuou o Padre Anchieta, foi magis-
tralmente elaborada. O leitor sente a angustiosa sensa-
ção de lhe percorrer as cidades recemnascidas e os bos-
ques palpitantes e encantados. Por vezes, parece-nos ler
uma novela fantástica, mas na realidade estudamos um
momento histórico e um ambiente social de ressurrição
insuperável. Costumes, religiões, lendas, músicas e can-
tos, eis aqui todo o mundo selvagem e todo o mundo
hispan')-português transplantado da Península para a
América. O trabalho de penetração de Celso Vieira na
ANCHIETA 35

história luso-brasileira não pode ser mais profundo. Trans-


mitem-lhe os documentos, em linhas ocultas, visões for-
mosas, dados reveladores, um colorido imprevisívrl. Ele
sabe, <:omo poucos, reconstruir com os documentos espar-
sos todo um panorama, que se extinguiu e renasce. A
verdadeira história, considerada ·como arte e como vida,
é precisamente essa ressurreição. E o jornadear do Padre
Anchieta é a linha central dessa amplíssima visualidade,
através das selvas. Depois do Brasil, da colónia, do am-
biente, vemos o herói, o santo, avançar na vida e na
imortali-dade, passo a passo, como quem vai deixando,
na história, um rastro imperecível ...
A conquista da América não foi una. Já o dissemos
infinitas vezes. Houve muitas conquistas na América,
porque houve muitos ambientes espirituais diversos. Para
cqmpreender a conquisté,I. de uma parte do Novo Mundo
é preciso conhe<:er as idéias dos seus habitantes. Os con-
quistadores do Paraguai, por exemplo, não foram os do
Panamá nem os do Chile nem os do Brasil. Todos eram
espanhois, mas eram as idéias que os agrupavam, os re-
partiam pela identidade dos seus desígnios e davam à his-
tória de cada região os seus mártires próprios. . . Celso
Vieira estuda a formação espiritual das primeiras gera-
ções que os missionários educaram. Vê nas suas caracte-
rísticas a herança do sangue primitivo com todos os seus
v1c10s. Não queremos negar totalmente a herança do
sangue, mas acreditamos na herança das ideias. Obter
sinceras conversões foi para os missionários um trabalho
aspérrimo. A luta da moral cristã com a indiferença de
alguns portuguêses e a incompreensão ou o ódio dos indí-
genas fez-se no Brasil intensa e dramática. A esse pro-
pósito, algo dissemos, ao descrever as primeiras expedi-
ções dos bandeirantes em nosso livro "As Missões J esuí-
ticas e os Bandeirante/ Paulistas". Cel:,o Vieira traz
36 CELSO VIEIRA

<kpoimcntos impre&sionantt's. É um arfr.,ta da evoca\ao


e um mago das biografias. Junto aos missionários agi-
tam-se hereges semi-enlouquecidos e aventureiros tene-
bro!;os: 11111 deles, extraordinário, passava por dominicano
renegado. .\s colónias francesas na costa do Brasil deram
maior colorido às cenas e ao ambiente cheio ele surpresas
e de sucessos fantásticos ...
Celso Vieira descreveu neste livro a vida de um santo
e a vida de um povo. Anchieta possui todos os dons e
atributos de um perfeito santo. Não vamos agora espe-
cificar o que é a santidade. •Já intentamos fazê-lo em
outras páginas e seria inútil reproduzí-lo. Santidade, con-
forme a entendemos, não é um conjunto de milagres. Os
milagres impressionaram outras épocas e muitos ainda
crêm neles, à maneira de outras pessoas, crentes do espi-
ritismo, da teosofia etc. O milagre como realização do
impossível não _vale hoje senª-o o mesmo que a fé com
os olhos cerrados. Mas o milagre como supremo esforço
de vontade, constância, amor, dentro do humano e do
sensível, ç admirável e pode comunicar o prestígio de um
santo a quem se eleva nesse rumo com o exemplo da
sua vida. Mais santo é um homem por toda uma exis-
tência de sofrimento, caridade, luta e espiritualismo que
pela mudança de espinhos em rosas. Mais pura, bela e
milagrosa nos parece a mesma transformação operada
num cérebro, em vez de o ser na realidade, se acaso fosse
possível. Não importa que estejam nos factos as gran-
des concepções, quando já existem na imaginação. Tudo
11as1.:e e brota do nosso cérebro. Tudo quanto existe, fora
da realidarle, é nossa concepção. Em lugar do homen1
feito à imagem ele Deus, bem o sabemos, fez-se Deus à
imagem do homem. Ocorre o mesmo com a santidade.
Não está fora do ser humano; não advem, como graça,
ao coração do eleito, mas residt no ser, do qual deriva
ANCHIETA 37

e chega à compreensão ou negação de outros homens.


·As-sim ocorreu com a vida de inúmeros santos: - reco-
•1hec.-idos uns pela Igreja. não reconhecidos outros, vive-
ram eles em regiões onde foram barbaramente .sacrifica-.
dos por seres de aparência humana e acharam entre os
seus coevos ou na posteridade a admiração de outros seres.
a consagração da máxima reverência. Anchieta foi um
desses exemplos. Viveu na miséria, no combate e na dor
incompreendida; viveu na iminência da 111orte em mil oca-
s10es. E nele reconheceu o futuro um santo, a maior
perfeição humana.
Neste livro, repetimos, vive também o Brasil. De
algum modo, é a biografia espiritual do' Brasil-colónia. Os
povos têm .uma vida sua como a têm os homens. Celso
Vieira soube uní-las, a do homem e a do povo, com a
harmonia e a perfeição de um panorama, que tem alma,
tem corpo, e revive ante os nossos olhos, para a nossa
emotividade.

ENRIQlJE DE GANDIA

(Excerpto do prefácio à tradução castelhana ,h


Benjamin dE.> Garay, El Padre .<lnl'hieta, publicada
-em Buenos Aires, 1945, pela Eo.itorial Claridad).

* * *
"O aêadêmico correspondente da Academia da lín-
gua espanhola, sr. Luís Guimarães, ministro do Brasil,
ofereceu à douta corporação um livro célebre da litera-
tura brasileira, intitulado "Anchieta". Essa obra é a
história documentada do grande jesuita Joseph de An-
chieta, que foi para o Brasil em 1553, acompanhando o
governador Duarte da Costa, e ali morreu depois de qua-
renta e ci11co anos ele missão evangélica.
38 CELSO VIEIRA

Anchieta foi ao mesmo tempo comediógrafo e poeta,


médico e artífice, oráculo e tawnaturgo, arquitecto e mis-
sionano. Foi o maior antepassado da literatura brasi-
leira na sua fase embrionária, a personalidade múltipla
da sua vida colonial, e o super-homem por excelência.
Para todos os brasileiros o not'ne de Anchieta é o de uni
ídolo e reprcsent:i um símbolo.
O livro de Celso Vieira, verdadeira obra prima de
uma das mais perfeitas mentalidades do Brasil, deve inte-
ressar à Acadetüia Espanhola, porquanto José de Anchieta
era espanhol de nascimento, natural de Tenerife e filho
de ilustre pai guipuzcoano.

( ABC', d.e Maclrirl - 1932)

* * ,;,
A Editorial Claridad, de Buenos Aires, fez recente-
mente aparecer, traduzido em espanhol, o "Anchieta", do
sr. Celso Vieira, incorporado, sob o n.0 17, à coleção -
"Hombres e Ideas," ( o pensamento e a ação postos ao
serviço de um mundo melhor) sob o título - " El
Padre Anchieta - La vida de um aposto[ en el Brasil
primitivo."
Apaixonando-se por ess'e livro, publicado no Rio em
1930, verteu-o para o castelhano oom esmero, e anotou-o
com erudição, o saudoso escritor argentino Benjamin de
Garay, que foi o tradutor ·perfeito dos Sertões, de Eucli-
des da Cunha, e um grande amigo do nosso país e das
nossas letras.
Mais valorizada surge a tradução, agora, pelo estudo
que fez da obra e do tema, com a profundeza e a intensi-
dade características dos seus trabalhos, o historiador En-
rique de Gandia, um dos nomes ilustres da bibliografia
ANCHIETA 39

hispano-americano. O seu longo prefácio de 40 pagmas,


dividido em três capítulos - "El Panorama y El H om-
bre; La e.1:pansion del cristianismo en las tierras nuevas.
"Historia de cuatro estrellas", - situa 11b mais alto plano
a obra do sr. Celso Vieira. Esse autor brasileiro é para
ele, textualmente: "um artista da evocação e um mago
das biografias"; esse livro é a síntese espiritual do Brasil-
colónia. - "Os povos, escreve o historiador argentino.
têm a sua vida como a têm os homens. Celso Vieira
soube uní-las, a do homem e a do povo, na harmonia e
perfeição de um panorama, que tem alma, tem corpo, e
revive ante os nossos olhos e a nossa emoção".
Acham-se esgotadas as duas primeiras edições, em
língua portuguesa, desse trabalho de ressurreição histó-
rica do nosso primeiro século e de evocação anchietana
do apostolado nas selvas, estudo consagrado, ao surgir
na literatura contemporânea, por eminentes :publicista:,,
como Rocha Pombo, Afonso Celso, Augusto de Lima,
Carlos Malheiro Dias, Medeiros e Albuquerque, Rodrigo
Octávio, Luís Guimarães Filho, Alves de Souza e Aze-
vedo Amaral, quando o saudaram como um livro clássico
é lhe predisseram ô êxito, que se renova e se alarga, quin-
ze anos depois, em toda a América do Sul.
Os próprios interesses da cultura nacional e da for-
mação educativa das novas gerações brasileiras indicam,
depois do exemplo dado pela Editorial Claridad, de Bue-
nos Aires, que se lance no Brasil a terceira edição do
''Anchieta", do sr. Celso Vieira.
No seu prefácio, o sr. Enrique de Gandia considera
o autor desse livro - "além de historiador e erudito emi-
nente, um poeta nos sentimentos e na linguag~m" -,
confirmando assim o juizo que em 1930, no Brasil, exter-
nou o insigne Rocha P8mbo:
CELSO VIEIRA

- "Anchieta é a personificação de toda a glorio:ii!


milícia no Brasil. Agora (com que ufânia escrevo estas
palavras) veiu o artista que devia esculpir-lhe a estátua ...
proje<:tou-o num· monumento, de cujas proporções ressalta
nitida e brilhante, toda a grandeza do apostolado. Este
largo estudo Anchieta é na verdade tão integral como
hist6ria, tão perfeito como arte, tão sábio çorno obra de
pensamento, e tão sereno e decisivo como sentença de
Juiz, que é preciso seja lido mais de uma vez para que
se logre, do conceito histór~co, uma impressão distint,1,
pois o fulgor da forma chega a fascinar de tal modo o
espírito do leitor que este ha - de, em primeira leitura.
sacrificar alguma coisa da inteligência po texto."
O livro do sr. Celso V,ieira constituiu uma elas fonte,,
a que se reportou em 1931 o curso efectuado na Academia
de Direito Internacional pelo Ministro Rodrigo Octávio,
em Haia, sobre a condição. jurídica das tribos selvagen,;
na América e especialmente no Brasil, como se vê de
referências e notas constantes da sua monografia Les
sauvagcs americains deva11t le Droit.
Ainda em 1932 a imprensa de Madrid exaltou-lhe a
.significação como "verdadeira obra prima". quancio o
então l\finistro .do Brasil na Espanha, sr. Luiz Guimarãe.,
Filho, ofereceu por iniciativa própria um exemplar cio
"Anchieta" à Academia da língt.Íà espanhola.

(,Jornal elo Comércio - Rio cfo .Janeiro 1946).

* * *
"O Jesuíta canário José de Anchieta é uma das no-
bres figuras do apostolado católico em nossa América.
Tendo ido em 1553 para o Brasil, on<le faleceu em 1597.
1:onsagrou esses quarenta e quatJ;o anos a uma das mais
fecundas obras de catequese e progresso. Desde que
ANCHIETA 41

pisou o solo da .'\mérica, sentiu-se por ela enfeítiçado,


como pelos seus habitantes ; estudou a flora e a fauna do
Brasil, os costumes e os idiomas dos aborígenes, que ele
conseguiu, após incalculáveis perigos e lutas sangrenta~,
copverter ao cristianismo, inculcando-lhes ainda rudimen-
tos culturais de poesia e de música, noções tram,figurado-
ras da sua alma e dos seus costumes.
"O acadêmico brasileiro Celso Vieira, autor do subs-
tancioso livro "() Padre Anchieta (vida de um apóstolo
no Brasil primitivo J ., descreve esse labor e essa existên-
cia minuciosamente com extraordiuário poder vital, revf.-
lando-se artista no mesmo nível do historiador. Parale~
lamente a essa biografia, delineia "a biografia espiritual
do Brasil-colónia". como bem o assinala no prólogo da
obra o historiador Enrique de Gandia.
"Em nossa América. foram escritos acerca da sua
História poucos livros de tão empolgante e proveitosa
leitura como "Anchieta'', síntese de uma época, de um
país imenso e de um homent dé alto relevo humano e
intelectual".

(LA PRENSA, ele Buenos Aires, fevereiro 1946).


ECCE LIBER
( da 1.~ edição)

Pero Roiz, Beretário, Simão de \fasconcelos, todos


os biógrafos-panegiristas de Anchieta, religiosos professos
da Sociedade de Jesus,, narram copiosamente os feitos do
taumaturgo, escassamente as obras do poeta e do heroi
civilizador. Nos seus livros orienta-se a vida anchieta.na
para o sobrenatural.
A lenda secular dos milagres, c01rstituindo nas bio-
grafias anteriores o núcleo vital do próprio tema, não
compõe nestas páginas senão o claro-escuro, em que se
projecta e se define a realidade histórica do homem, coli-
gida através das fontes mais veneráveis.
Em 1897 o terceiro centenário da morte de Anchieta
produziu algumas evocações fragmentárias, nove magis-
trais conferências, que exaltam a força mística do predes-
tinado, mas não logram situá-lo na sua época e no seu
elemento, como ,só um livro poderia fazê-lo.
Aproximando-se o quarto centenário do nascimento
( 19 de março de 1934) , a literatura histórica do Brasil
ainda requer, fora do agiológio e da tribuna, em síntese
documentada. uma biografia anchieta.na. ECCE LIBER.
FOI O PADRE JOSEPH DE .\NCHIETA D;_.__
ESTATURA MED10CRE, DIMINUTO EM CAR-
NES, EM VIGOR DE ESP1RITO ROBUSTO, E
ATUOSO, EM COR TRIGUEIRO, OS OLHOS
PARTE AZULADOS, TESTA LARGA, NARIZ COM-
PRIDO BARBA RARA, MAIS NO SEi\1BL:\~TE
INTEIRO, ALEGRE E AMAVEL.

SIMÃO DE VASCONCELOS.

Vida do Venerável Padre Joseph de Anehieta.


l \ l~ ()

VOCAÇÃO

... donde convém ser santo pnra Sl.'1" Irmão


da Companbia ...

ANCHIE'l'A
Nascimento e infância de Anchieta. Os acua
estudos em Coimbra. Misticismo. O patriarca
lgnacio de Loiola, fundador da Companhia de
Jesus. Prestígio da Ordem. Ingresso de Anchieta
no Colégio doa Jesuítas.

Joseph de Anchieta nasceu em 19 de março de 1534


( 1) na ilha de Teneriffe, princesa e pérola das Canárias,
a ilha branca dos antigos, Nívaria insula. Teve o berço
cm Laguna, outrora capital do arquipélago, cidade bucó-
lica de pomares e nascentes, a verdejar num plaino ata-
viado de giestas em flor. Cavaleiro e dona de pura linha,
gem foram seus pais, o imigrante Juan de Anchieta, espa
nhol de Guipúzcoa, e Meneia Diaz de Oavijo y Llarena,
doce beleza indígena.
Primeiro biógrafo e contemporâneo- ele Anchieta, o
padre Quiricio Caxa, em 1598, identifica-lhe as origens
de mameluco: - "Seu pai era biscainho, sua mãe pro-
(1) Compendio de la viàa del apostol del B1·asil (ed. ·l~
1677), por D. Baltazar de Anchieta . E' esse (19 de março de
~534) o dia exacto do nasoimcnto de Anchieta para o dr. Bra-
sílio :Machado - conferência denominada - Anc11ieta, narração
da sua vida no Centenário ão Venerável Joseph de Anchieta,
cd Aillaud & Cia., 1900. - E' essa a data comiignada nas
Ephemerides Brasileiras pelo Barão do Rio Branco (pãgs. 19tl
e 299, ed. de 1918). Charles Sainte-Foy, autor da V ie du Vc-
11erable Joseph de A nchieta, parece confundir no seu livro o dia
do nascimento com o do bapti.smo - 7 de abril de 1534, -
também especificado por d. Baltazar. Não particularizam dia
o mês os biógrafos portuguêses Pero Roiz e Simão de Vasoo.u.-
celo11, ambos da Companhia de Jesus, mas datam de 1533 o
18 CELSO VIEIRA

cedia dos gentios qttt' nela se acharam ( Ilha das Can:~ ·


rias). quando foi pelos Cristãos conquistada.''
Destarte, o canarino era um afro-castelhano, trazen-
do nas veias. embora cliluido, sangue remóto dos bérberes.
O sentimento religioso e fraternal, que o vincularia mais
tarde aos selvícolas brasileiros, oprimidos e exterminados
coino os zagais nativos das Canárias, os guanches, aflorava
cio próprio subconsciente, por misteriosas determinantes
hereditárias.
Placidamente, correu-lhe a vida em S. Cristovam da
Laguna, até aos quatorze anos ou talvez pouco me-
nos, à sombra dos palmares, das tamareiras, dos pi-·
nheirais, entre cêrros vulcânicos e .ondas azuis. Menino,
galgando o pico insular ele Teyde, como tantos outros,
viu Joseph algum dia, em sete côres, a projeção da sua
imagem na fluidez cambiante das nuvens, que refrangem
a luz solar. condensadas à base da montanha? (2) Não
nascimento de Anchieta, erro seguido pelos demais biógrafos,
mesmo no Granel Dictio1111aire de P. La,oussc. Posto que Ih:.,
omitias~ o ano elo naseimento, ao csrN'ver a Imagem, dQ, Virtude,
o paclro António Franco, jesuita, determina o ingresso do An -
ehieta na Companhia: "Tendo 17 anos de idade, nela. entrou
110 primeiro de maio de 1551". Parn t>ontar, feitos D()sse ano, 17
dt:' idade com que o admitiu a Ordem, - e 1ts8im depõem, ainda,
Pero Roiz e Simão de Vasconcelos - deveria ter Joseph c1<>
.Anel1ieta nascido em 1534, o que se- harmoniza inteirainenk
eom n data fixada por D. Baltn:tnr dr Anchieta: l9 de março
ele 1534.
(2) "Parmi lcs voleans, <'-ettc montnirn~ cst unique pll.T
sn haut-eur et son isolemont au miliru dn t•ratero primitif: li•
rebord do l 'ancienne bouche d 'cruption n 'cst plus maintenant,
en proportion du cône géant, qu 'un ourlet à faible rclief limitant
le pourtour de sa base. Le pie de Teydo est "um mont dressé sur
un mont". ELIS~E RECLUS, Geographie Universelle, t. XU,
L' .dfrique Owiàentale, png. 121. Nessa obra não se alude llt)
fenómeno de reflexão multicor, do qual nos dá notfow, antre.
tanto. o Gra11d Dictio·n11airP, .de P. Larousse:
ANCHIETA 49

u sabemu;;. É certo. poré!li, qnr essa infância já se espe-


lhava nos céus. Alvorando c-omo inteligência. florind,,
como honclacle, fazia o encanto dos pais e o enlêvo dos
mestres.
Torturada pelo fogo, a natureza da~ Canárias exibia
rudes vestígios de conflagrações ou esboroamentos geoló-
gicos: a igniscência extinta das~ ma::;sas desconformes, o
revôlto despenho dos fraguedos, a desolação dos barran-
cos. Crateras mudas e frias, de onde em onde, escanca-
radas sob a neve dos píncaros no mar morto <las lavas,
eram ainda reminisc-ências de vbragens tonitruantes, ma-
rés incandescentes. Mas a violência da chama se esvaira
na doçura do clima. Outeiros e vales abrigavam toda
uma flora edênica sob o louro e o mirto, com os seus
vinhedos, as suas messes. os seus laranjais, tufos apen-
doados de canas ou flabe)antes de palmas. A meninice
de Anchiet;i. brincava, fulgia à 111an~ira da luz pelos ver-
geis, pelas escarpa'l, nesse contraste do mundo plutônico
e do mundo paradisíaco, entre as doradilhas flavescentes
e as dragoeiras sanguíneas das ilhas afortunadas, terras
amaveis como noivas para o desejo <los antigos .. Varando
os espaços, rigidamente, o anuviado pico cio T eyde sim-
bolisava o Atlas de Homero. na Odisséa, o de Besiod0
na T eogonia (3) . E ao pé do vulto lendário crescia

"En montant an sonunet du pie, il arrivo quelques f q; _,


que, daus )e,$ nuages qni éouvrent le bas do la montagne, ou
voit un i nstaut un phrnomtlne que les voyl] geurs naturalistes ont
cu oc:casion c1 'obserwr plusieu rs fois daus ks hautcs moutagnes:
on ap<>rçoit ious les contours lle soli rorps dcssiués avee les bd-
lcs couleurs de l 'arr-('11-eiel sur Jcs nuages qui sont a u dessous
de soi, du coté opposé nu solei!. L ea ray ons solaires, qui SP
decomposent en passant sur Ia surface des corps, donnent une
explientfon fort simplo de ce brillant phenomàne".
( 3) O filólogo, cronologista e astrónomo alemão Luis Id,·-
lar romnnicon a H umboldt : " Em resumo, o A ti as el e Homer o e
50 CELSO VIEIRA

outra força espiritual ainda maior, o vimlourn ~\póstolo


cio Brasil, ~tlante fadado a suster o novo templo cristão.

No lar do piedoso cavaleiro Juan ele Anchieta mt1l-


tiplicava-se a prole. Terceiro dos seus filhos, Joseph
1~0 se destinava à carreira militar, consagrada pelo bra.-
zãó da familia. Em torno dele, alvoroçando os irmãos be
licosos, estrugiam longas de·. prata, ondeavam pendões de
seda no fumo dos combates irreais, no simulacro dos jogos
infantis. Ao estrépito das armas, pprem, Jos.eph preferia
o silêncio fecundante cios livros, a música interior das
idéias.
Ouvindo nos serões domésticos, por vezes, a narra-
ção da conquista espanhola de Teneriffe, só ultimada em
1497, à ferro e fogo, com o baptísmo dos reis autoctones,
o extermínio ou o cativeiro dos guanches, sentiria ele
uma onda de ternu1=à e piedade marejar-lhe o azul cios
olhos inocentes. Porque os mais idosos ainda recordavam
esses lindos pastores bérberes da terra natal, desnudo:,
ao sol, entre as rochas nuas, quando não vestiam apenas
um saiote de. ervas ou uma pele de cabra. Homens e
mulheres, tingindo-se de verde, rubro e amarelo, conforme
o seu estado de alma, davam às próprias afeições os ma-
tizes de uma voz cromática, modulavam nas côres a elo-
quência dos próprios sentimentos, Eram fortes e ágeis,
bravos e bons, querendo acima de tudo a liberdade. Ado-
ravam as tintas, os cantos, as flores, e no seu paganismo
sem fereza os gênios das montanhas umbro~as. dos ma-

do Hesiodo não pode ser outro senão o pico de Tenertfe, e é


preciso procurar na África septentrionul o dos geógrafos g1·egos
e romanos. Quadros ãa Natureza, por Alexandre Humboldt, ver-
são de Assis de Carvalho, ed. de 1884, Buenos Air~. livro I,
pág, 171.i,
ANCHIETA 51

11auc1a1s borbulhantes, dos arreboes instantâneos. Mas


nada restava desses zagais morenos, ern cujos olhos negros
ardia a pastoral ingênua e heróica da idade insular de
pedra.. Nada sobrevivera dos _seus costumes, da sua lin-
guagem, sàmente algmh traço maternal, indelevel, no se!11
biante da prole mestiça ( 4). Trucidados às mãos dos
piratas e dos conquistadores, vendidos como negros em
Sevilha e Cadiz, sucumbindo à modorra letárgica, peste
das Canárias, ou à prôpria amargura de viver, pelo sui-
cídio, haviam findado todos sem o amor e a prece de
um santo, que os redimisse. Não existiriam no mundo
- perguntava Joseph, talvez, a si mes1ilo - outros
guanches escravos ou enfermos, que ele pudesse livrar do
jugo e <la morte, quando fosse homem, vibrante de hu·
manídade fraternal ?
Seduzidos pela fama univ_ersitár.ia de Coimbra, os
pais decidiram enviá-lo a Portugal, e o adolescente deixou
a pátria, foi ali estudar, levando já princípios de gramá·
tica e latim. Com a sua feliz memória, o seu fácil enten·
dimento, sobresaiu desde logo, em prosa e verso, nos tra-
balhos da primeira classe, mais tarde nas aula& de filo-
sofia e dialética. Se lhe não davam orgulho esses triun-
fos, por um lado, não lhe atraiam, por outro, a inveja
dos condiscípulos. Todos o amavam. Era-lhe tão fasci-
nante a adolescêtkia, vagueando· entre os choupos do
Mondego, tão acariciadora á. palavra, no encantamento de
rouxinóis daqueles ares, que lhe puzeram o apelido de
canário, não só pela c6ua origem, como também pelo seu
gorgeio ( 5).

(4) ELISÉE RECLUS, op. cit


(5) PADRE ÂNTóNIO FRANCO, J7iàa do Admirá1:ci Po--
ilre José de Anchieta: "Tinha tal nr e nlma, tanto espirito · o
wenlHo e suavidade, que por nntonomasin lhe c:hnmavnm o C:i.
52 CELSO VIEIRA

* * *
Com a puberdade inquieta não tardaria a grande hora
mística de Anchieta. Devotamente, à proporção que vi-
nham brotando na metamorfose humana outros germe';,
sob outras flamas, o seu espírito buscava libertar-se do
tempo ilusório e da terra condenada, num desencanto sem
revolta. O anseio da eternidade consumia-lhe a própria
vicia. Predestinado, ele não tinha posto o desejo, como
os demais, no mundo yersicolor e efêmero dos sentidos,
na poeira estonteante das formas transitórias, no deleite
e no engano das vaidades. A fascinação do mundo inte-
rior subjugava-lhe a alma, que ainda não fôra iniciada,
já renunciava ao contacto do mal, com a videncia melan-
cólica de um anjo proscrito na selva dantesca.
Por vezes, roçando a obscura, incerta fronteira dêsses
mundos tão diferentes, passariam breves tentações:
a da carne, Afrodite, sob a espuma dos véus ondean-
tes e olorosos; a cio oi1ro, magnífica senhora de ga-
leões da índia e castelos de Espanha, todo o fausto
do Oriente no lar da cristandade, enriquecendo os
fortes homens ibericos; a da ciência, velha bruxa de-
cifradora de enigmas e leis, mais arrogante na sua
torre que Salomão no seu trono; a do poder como
um idolo voraz e de ferro, erguido sôbre o cativeirn
das multidões, que o alimentam e· adoram.
Mas a alma não se abandonava ao prestígio dessas
formas enleantes. Blindada pela fé contra a insídia
ou a volúpia elas tenta(loras, já. .descobria, com apa-
rências hnnanas. a realidade anti-cristã elos sete pe-
cados mortais; na carne insatisfeita a luxúria, a gula
~ t
nário, por alusão a esta ave, a quem as ilhas Canárias deram
" o nome, ou elas às ilhas, e a melodia do c·anto, e ·a estimação
cm que é tida."
ANCHIETA 53

e a preguiça; no demônio do ouro a hedionda ava


reza; nas ostentações do poder e nos antagonismos
da ciência o orgulho, a ira e a inveja. Toda a glória
e todo o gôso da vida eram pecado e morte. Bem-
aventurados os castos, os pobres, os simples. . . An·
siosamente, o espír:ito de Joseph pairava na suprema
visão cat~lica da eternidade: em baixe o inferno, a
raivar e rugir, tremendo sorvedouro ele abominações;
nos intermúndios astrais o purgatório, vibrante lugar
de suspiros e lágrimas; acima, o êeresplendor de san-
tos, virgens, profetas e arcanjos, o paraiso, donde se
inclinava para êle a Regina Coeli elas litanias, sorrin-
do e abençoando.
Tocado por essa foz eterna, o adolescente revia
no contôrno de Eva pecadora a ilusão escult4ral, que
aos olheis ainda maravilhados pelo seu encanto se
deforma ou se decompõe. Vedou os sentidos à pas-
sagem, ao gerfume da mulher. Detestou os amores
embebidos na terra como plantas venenosas. A bi-
perd ulia, culto de Maria, foi o seu grande e puro
amor, com êxtases, preces, arrebatamentos indizíveis
aos pés da ·senhora, erguida num altar da Sé ele
Coimbra. Misticamente, um dia, fez voto de perpét1,1 ,
castidade(6)

(6) " ... a primeirn destas plantas foy hu eficas dc,;cj,,,


da pureza dalma e corpo, com auorresimonto de todos os .virin.,.
e em particular dos .tQ_rpes e desonestos em signal do qual descj•'l
C"Staudo hft dia ua Sé do Coimbra de giolhos diante de h[1
altar em q estava híia imagem, de vulto dl' Nossa Sra. fes noto
de perpetua virgindade, em q Ds. Nosso Sõr. o conseruou por
toda a uida". Vida do Padre José de Anchieta pelo Padre Per,
Roiz, conforme a cópia existente na Biblioteca Naeional dP
Lisboa, Anais da Biblioteca Na.rion,al elo Rio de ,Taneiro, vol.
XXIX, pág. 197.
54 CELSO VIEIRA

* * *
Fogueiras de arraial, cantigas de tricanas, diver-
sões de estudantes, serenatas ao luar, nada mais o
atrai~. Ocupava-lhe a imaginação, despàticaniet'lte, o
vulto daquele fidalgo espanhol de Guipúzcoa, D. Iná-
cio de Loiola, que abandonara. a sua dama, em plena
mocidade, pelo ...,culto de Nossa Senhora. m~is tarde
pela regra da Companhiá de Jesus.
Como se folheas~e um poema, feito de aventura e gló
ria, êle via Inácio ainda criança, lindo pajem do rei Fer·
nando, o Católico, na côrte aragonesa. Via-o depois, es-
.belto cavaleiro, devoto de S. Pedro, na,turbulência do car-
naval de Guipúscoa, no heroismo dos recontros sónoro;;,
abrasado o coração pelo desejo da 'bela Germana de Foix.
Via-o, enfim, resistindo ao assalto francês, cair entre os
muros desfeitos da cidadela de Pamplona, coberto de
sangue e pó.
Entalando-lhe a perna direita, que fôra três ve-
zes fracturada, tantas outras recomposta, a cirurgia
condenára o valente ao repouso. Longas semanac;.
turvos meses de inércia e dor prenderam Inacio no
castelo de Loiola, em Azpeitia. Esgotados os deya-
neios, as remm1scências, êle tinha só dois compa-
nheiros silenciosos, dois livros, para vencer nessa
imobilidade a monotonia das horas infindáveis -
uma lenda espanhola de santos e uma Vida de Cristo,
do frade cartuxo Luclolf, o saxônio. Atra,vés da lei-
tura, .pouco e pouco, veiu-lhe a idéia de ser um gran
de santo, como Francisco de Assis ou Domingos de
Gusmão. C~rta noite, apareceu-lhe a Madona, tra-
zendo ao colo o menino Jesus. Era um apêlo do
céu. Inválido para o oficio da., armas, claudicante,
o herói de Pamplona decidiu fazer-se religioso.
ANCHIETA 55

Apenas convalescera, mandou arrear o seu mulo,


partiu, fechando no cor ação êsse alto desejo de san-
tidade, já experimentado por angústias e disciplinas
mortificantes. Num àlvorôço matinal, .entre ai-ornas
e côres, a primavera beijada pelo sol enflorava os
caminhos. E o único episódio, na jornada primave 0

rH, foi o encontro do mouro, que vinha blasfeman:clo


tontra a pureza de Nossa Senhora. O bravo chegou
a pensar num desafio ao incréu, num rijo combate
sob as oliveiras. Mas preferiu, largando a rédea,
que o próprio muar escolhesse o caminho ela guerra
ou da paz, e a besta levou prudentemente o cavaleiro
à porta elo santuário ele Mimtserrat, na Catalunha.
Inacio depôs no ailtar da Senhora a espada e o
punhal, vestiu o hábito ele peregrino, fez nm~ vigília
d'armas em • estilo rnedievo. Cavaleiro ela Virgem,
que ria seguir para a Terra. Santa, com o fim de cate-
. quisar os musulmanos, mas a peste de Barcelona e
a falta de transporte o retiveram quase um ano ~m
Manresa, no hospital de Santa Lucia. Recresceram-
•lhe aí os cabelos e as unhas, tornou-se-lhe fealdade
o abandono do corpo míseravel. Sob os andrajos,
de porta em porta, Inacio mendigava, apupado estri-
dentemente pelos garotos, como o pobresinho d' Assis.
Definhava no cilício e na penitência. Erguia-se á
meia noite, como um espectro, para desfiar o seu
rosano. Cada dia lhe impunha deveres mais árduos :
três visitas á igreja, sete horas, de prece. No campo
de miragens do seu extase, a aludnação visual, cria-
da 1pelo jejum, pela idéia fixa, pela tensão contínua
dos nervos, entrernostrava-lhe Jesus num disco dt
ouro celeste, o Espírito Santo a flamejar ou a Trin
dàde semelhante a uma esfera ígnea. Ele avistava
Delis e a Madona, claridades supremas; encarava na
56 CELSO VIEIRA

sombra, por vezes, uma prodigiosa multiplicação de


olhos acesos e perversos, que eram os olhos de Satan.
Contemplando a espumosa torrente cio Cardoner, ao
pé de uma cruz. sentiu que a sua razão, iluminada
e5tranhamente, decifrava os enigmas da ciência e da fé
1fas recaira logo depois, tudo esquecendo, na órbita cre:
puscular da inteligência humana.
Enfim. ao cabo de penosos trabalhos, havia che-
gado á Terra Santa, donde fôra despedido; qua,;,
rudemente, pelo bom provincial cios franciscanos, que
se arreceava ele perseguiçõ(;.b a outros missionário"
naquele país de turcos. Novas tormentas, novos pe-
rigos afrontou Inacio ele Loiola no seu regresso a
Barcelona. transpondo mares escapelados, temerosas
linhas de fogo espanholas e francesas. Aos trinta e
quatro anos, mais do que nunca resolut&, desejand,
por bem dos homens o sacerdócio, começou a estudar
teologia, com aferro, nas aulas de Barcelona, Alcalá
e Salamanca.
Mal findara um biênio escolar, porém, quando as
suas tentativas de confraria, as suas prédicas fasci-
nadoras entre as mulheres despertaram suspeitas à
Inquisição. Encarcerado a princípio como herético,
perseguido com interdições à ohra dos conventículos,
onde o ascetismo delirava, Inacio teve de :;eguir para
França. Aí reatou sem desânimo os estudos, que en-
cheriam ainda um septênio laborioso, na grande uni-
versidade católica de Paris, e o seu ideal, através da
teologia, era sempre a catequese dos maometanos.
outra invasão apostólica da Terra Santa. Como se-
dut<;>r de jovens, para missões evangélicas entre os
islamitas, fôra publicamente açoitado no Colégio
Montaigu. Que importavam açoites, porém, ao espi-
rito flagelador da própria carne? Em 1534, na ca-
ANCHIETA 57

pela subterrânea de Notre Dame• de Montmartre, com


alguns colegas, Inácio de Loiola fundava uma ass•J.
dação católica de estudantes, que seria em 1540, data
da bula· confirmatória de Paulo III - Regimi11i militanti.,
Ecclesiae - a Companhia de Jesus (7).
Quebrando a unidade eclesiástica de Roma, o
século XVI pluraliza em suas variantes doutrinárias d
idéia reformadora, esboçada como tendência, desde o
século XV, nos concílios de C<>nstança e de Basiléia;
precipita os antagonismos e as dissociações latente.;
na vida tumultuosa da Igreja; soergue em conflitos
religiosos a alma <?çidental, exploradora de novos
mares, conflagradora de velhos mundos. O gênio
rebelde, criador de cultos independentes, seitas indo-
máveis, chama-se outra. vez legião, evocado por Lu-
tero e Calvino, Zwingle e Farel. Mas a reacção do
catolicismo, vetusta mo~rquia espiritual, faz surgir
de imensas ruínas uq1 exército - a Ordem dos Jesuí-
tas -, ao apelo da grande alma estratégica e imperialista
de Loiola, cujas proporções e cujos trabalhos fixaria a
Igreja, matematicamente, na síntese de uma estátua colos-
sal, tendo aos pés o "lllonstro da ~eresia.
* * *
O adolescente Joseph de .\nchieta, como todas as vo-
cações religiosas do seu meio e da sua época, lembrava
de certo em Coimbra o iluminismo dessa vida gloriosa, a
energia desse coração ainda palpitante no seio. marmóreo
da Igreja. Tal o criador da nova Ordem. E a fundação
maravilhosa, con1eçando apenas com ~ saboiano Pierre
Faber, os espanhois Francisco Xavier, Lainez, Afonso Sal-

(7) Os dados sôbre a vitln de Inácio tle Loiola fo1·:m1 "º·


lhidos na obra - Les jes-tntes, por Boehmer, trad. frnnc.-esn Mo-
nod, ed, Colin, l!llO.
58 CELSO VIEIRA

meron, Nicolau Bohadilla, e o português Simão Rodrigues


de Azevedo, contava já em 1551 estabelecimentos e pro-
víncias. Humildemente, pela imitação dos teatinos; sacer-
dotes de caridade infatigável, os jesuítas haviam captado
o amor e a reverência das cidades italianas. Instruindo
os menores, confessando os adultos, reconquistavam para
Jesus as multidões, que o Anti-Cristo arredava dos tem-
plos. O seu prestígio conciliava desafeições no recesso dos
lares ; a sua piedade erigia orfanatos e asilos ; nas pestes
e nas fomes eram eles a providência elas turbas miseran··
das. Onde a regra episcopal ou monástica perdia o vigor,
não se desejava a presença de outros reformadores. Já em
Roma, Gandia, Messina, Palermo, ti'ivoli, lngolstadt, Ve-
neza e Coimbra, ao apelo do Vaticano ou dos príncipes,
avultava o professorado jesuítico em universidades, giná-
sios, colégios. Emissários do papa, os mais ilustr.es já
influíam nos concílios ou desempenhavam missões secretas.
Não tardaria que a. Ordem fosse o exército inumerável de
Jesus no mundo civilizado e no mundo selvagem, conver-
tendo os infieis, reprimindo os hereges, sustentando a Igre-
ja Romana - ad majorem Dei· glo'riam.
1\. esse toiue de alvorada cristã, sonorizando-lhe a
alma, em primeiro õe màio de 1551, mês de Maria e mês
das rosas, Joseph de Anchieta foi alistar-se, devotamente,
no Colégio dos Jesuítas de Coimbra, sob o novo estandarte
da Cruz. Tinha dezessete anos de idade (8). Como na
manhã gorgeante, em que Inácio de Loiola saira do seu
castelo, a primavera :beijada pelo sol reflorescia os ca.-
minltos ...
(8) Talvez por ln11s0 de revisão, ns Ephemaides Bra,•i-
leiras pelo Barão do Rio Branco, cd. do lnst. Hist., 1918 co,l-
signam, à p6g. 299, como data iie in~resso de Anchieta na' Com-
paul1iâ, o. de l.11 de 1iinio tlc 1553, dando-lhe, ass:~1. 19 :moA,
<'m lugar de 17, i<l:ulc eom quf.' o noviço entrou renlmi-ntr. n'.\
Ordem.
Il

O noviço. - Primeiros exercícios espirituais


Mistcrio da Eucaristia. Devoção e doença. Con-
selho do padre mestre Simão Rodrigues. Vinda
para o Brasil na missão de 1553.

O adolescente de olhos azuis e de alma lirica nãô era


mais o estudante ca11ário, bemfadado e bemquisto. Era
apenas Joseph, o noviço, que a tudo renunciara pelo isola-
mento e pela devoção do Colégio de Coimbra.
Nada mais possuia, nada mais desejava. Esquecen ·
do o nome da família, o brazão dos antepassados (9),
supu(lha-se o derradeiro dos servos de. Jesus. Reflectindo
na sua miséria, não ousava comparar-se ao pó erguido pelas
sandálias dos irmãos. Preferia com humildade a~;
tarefas silenciosas, obscuras e despreziveis. Ansiosamente
rastejava para a cruz, para a dor, para a morte. Chegava
à plenitude evangélica, desde o primeiro instante, com o
aniquilamento do próprio Eu, mas no silêncio e na solidão,
orando, conhecera os divinos efeitos da Graça.
Um por um, recompuzera inicialmente, em quatro :;e-
manas de noviciado, os temerosos aspectos chamejantes
dos Exercícios espirituais, de Loiola, que ao poder da ima-
ginação exaltada lhe encadeavam os cinco sentidos. Na
estreiteza de uma cela, ve11do a profundidade e a incan-
descência do báratro, ouvindo o tropel aos den~ônios e o
(9) Vide a gràvura das armas ua famili:i de Anchieta uo
Compendio ile la Vida del Apostol dtl Br11sil, de d: BALTAZAR
DE ANCHIETA, ou na obra: Ill Crntenâi·io <lo T'e'l! er1ítiel A•i.
;,Meta.
60 CELSO VIEIRA

clamor aos réprobos, que se estorciam nos borbotões da~


correntes de fogo, aspirando, em visita ao inferno, o odor
tresandante do enxofre, do fumo, do pez, da sanie, tacte-an-
do labaredas, sorvendo o sal de lágrimas inestancáveis, êlc
atravessara a Geena, todavia, com a serenidade melodiosa
de Orfeu. Tinha nas mãos uma lira invisível, cujos sons
aplacavam as fúrias. E ham1oniosa111ente subira a outroi
planos dos Exercícios espirituais, breviário alucinante, fo-
lha por folha, sentido por sentido, até ver num halo de
plenilúnio a Sagrada Família, ouvir pelas alturas o verbo
da Santíssima Trindade ou num horto nazareno o di;í.logo
vesperal de Maria e do anjo, haurir o perfuri1e, gostar a
presença do Senhor, tactear a veste e o rastro das figura.;
celestes.
Dest'arte, sentia-se levado para Deus através de suplí-
cios e êxtases, fulgurações e abismos, vertigens e nevoei-
ros. . . A ideação religiosa transpunha a humanidade.
atingia o supra-sensível no seu temperamento poético.
David, modulando salmos, Jesus, recitando parábolas,
tinham dado à poesia e à fé uma coessência imutável,
magnético eflúvio das origens cristãs. Para a cre11ça e
para o culto vinha agora o novo discípulo com essa f!ama
inextinguivel, a maior entre as luzes da alma e do templo.
Como que se reacendia no âmago do seu próprio ser,
transubstanc.iada místicamente. a natureza vulcânica do
::;o]o nativo, por igual trepidante e flórea. Desabotoavam-
-lhe as preces como os lírios, a:Uuiam-lhe os sonhos como
as lavas de Teneriffe. Mais uma vez se realisava a sín-
tese espiritual da terra e cio homem.
A bel~za humana desaparecera aos olhos do noviço,
amortalhada com a estrela d'alva no clilúculo de outra
existência, cujo brifho findara aos dezessete anos. Só a
beleza eterna lhe arrebatava o espírito; só o amor divino
lhe enchia o coração - amor suave, forte, pleno, - "que
ANCHIETA 61

JJúscc de Deus e em Det1s repousa", conforme a idéia claus-


tral da Idade Média.
Transfigurado pela meditação, absorto na penitência,
que o deixava macilento e exangue, Joseph sentiu êss~
amor como o sentiram no claustro os cenobitas medievais
Dêle poderia dizer com o mais fervoroso mi3ticismo da
Igreja Católica, a inspiração monástica de outras eras: -
aligeira todos os fardos, aclara todas as sombras, adoça
o fel de todas as ,provações, aperfeiçoa o homem. únicc,
amor que se desenleia das cousas materiais, se desata da·;
afeições terrenas, sobe na luz para Deus, tramubstancia-se
ardentemente em Deus com a certeza nupcial da Inl'itaçt•r
de Cristo: "sois todo em mim e eu todo em vós."
Mas nada lhe comunicava o sentimento dessa união
como o'l)rodígio da Eucaristia. Cada vez que o sacerdote
consagrava as espécies, corporificava-se Jesus Cristo para
sustentar e redimir a fragilidade humana. Ainda muito
jovem, não explicaria a transcendência dêsse mistério com
as razões aventuradas pelo Doutor angélico. Sob a im-
pressão delirante dos E.rercicios espirituais, dando-sr
todo ao enigma carnal da hóstia, ao milagre do vinh0
feito ;;angue, Joseph não dissociava, porventura, das reali-
dades imediatas a teofagia simbólica. É mesrrio passive!
c1ue êle, ao comungar, sentisse a divindade circulando-lhe
nas veias, batendo-lhe no coração. fulgindo no próprio azt1l
dos seus olhos.
Hipnotisado pelo dogna da presença real, o noviç('
ajudava "oito. ciez e mais missas", cada dia, como refere
o padre Quiricio Caxa. Orações, jejuns, cilícios, traba-
lhos, nada lhe bastava á piedade, num desejo violento ck
sacrifício.
Não tardou que adoecesse. O encurvamento da espi-
nha nas genuflexões intermináveis, diante do sacrário, ter-
62 CELSO VIEI!'<Ã.

-lhe-ia produzido uma cscoliose. Dizem certos biógrafo!'


t1ue ainda lhe caíra pesadamente uma escada sôbre a coluna
vertebral. Enérgico e sofredor, Joseph nfto interrompera
as suas devoções, o:; seus labores. Quando mais padecia,
mais apertava aos rins o hábito de noviço, até que a mo-
léstia, crescendo, lhe anuviou o espírito e o semblante.
Dolorido, já defonnado na linh~ anatômica dos ombros,
do torso, pela cruciante enfennidade, receava que o_ des-
pedissem, por inútil. Esperanças de sacerdócio, idéias de
apostolado; sonhos de martírio entre os infiéis, tudo se
desvanecera, sob o mal tortur:ante. Quantas lágrimas, ver-
tidas na penumbra da cela, não lhe teriam crestado a face
angelical?
O padre-mestre Simão Rodrigues, provincial da
Ordem, fleumático e experiente companheiro do grande
Inácio de Loiola, adivinhava-lhe a tragédia interior. C.erto
dia, em que o noviço baixava os olhos à .sua passagem,
cosido aos muros do claustro, dissera-lhe ·com ternura:
- Filho Joseph, deixai êsse cuidado com que andais,
porque Deus vos não quer com maior saúde.
Joseph compreendera a intenção religiosa do bom pro-
vincial: na obediência perfeita à vontade de Deus reside
toda a paz. Veiu-lhe de novo ao coração a paz beatífica
dos eleitos. Não marchava também com a sua deformidade,
apoiado a um bastão, para a glória canônica dos _altares,
o fundador sublime da Ordem? Esvaiu-se-lhe o· pesar,
como névoa desfeita aos raios do sol nascente.
Insidiosa, porém, a moléstia aprofundava raízes na
debilidade e na transparência dêsse corpo. Em 1549, par-
tira do reino Manuel ela Nóbrega para o trevoso ignoto
das selvas de Santa Cruz, na comitiva do primeiro gover-
nador _geral, Tomé de Souza, com os padres Leonardo
Nunes, Aspikueta Navarro, Antônio Pires e doi3 irmãos,
Diogo Jacome e Vicente kodrigues. Em 1550, por iní-
ANCHIETA 63

datiYa cio padre lVÚguel Torres, visitador da província de


Port11gal. segunda míssão vrera. ·- a dos padres Afonsu
Braz, Salvador Rodrigues. i\fa11uel de Paiva e Francisc,J
Pire.:;, trazendo os sete primeiros órfãos do colégio de m~-
ninos Domenech, em Lisboa. para o convívio e exemph
do:. meninos índios. Como pedissem de Lisboa. três anc,s
depois, outro soçorro da Ordem para o Brasil. decidira
o provincial, aconselhado pelos médicos, que o irmão Jo -
seph de Anchieta acompanhasse os missionários, incorpo-
rados ao séquito do novo governador, d. Duarte da Costa,
armeiro· mór do reino. Terra selvagem de copioso arv,1-
redo, bons ares, doces· águas correntes, esta remoçaria,
sem dúvida, a planta delicada e enfêrma, que os jesuítas -
viam desm:edrar, palidamente, na estufa de Coimbra.
Em oito de maio de 1553, conduzindo o novo gove.·-
nador e as duzentas e cincoenta pessoas da comitiva, sacu
do Tejo a flotilha., composta de três caravela,s e uma náu .
Vinham a bordo os padres jesuítas Luiz da Grã, supe-
rior, Braz Lourenço e Ambrosio Pires, mais quatro irmãos
.da Companhia, q1.1e eram Gregorio Serrão, Antonio Blas-
quez, João Gonçalves e Joseph de Anchieta (10).
Nessa viagem segura e plácida o canadno exerceu com
humildade, mesmo com alegria, o mistér de cosinheiro.
Piedosamente, no intervalo das suas ocupações, ensinava
aos marujos o catecismo. Em dois meses de travessia e
caridade, o neófito semeava nas almas· obscuras a doutrina
evangélica.
• Ao bafejo do oceano, como se o espírito de Deus
errasse ainda sôbre as águas, tudo rejuvenescendo e puri-
ficando, o mês de Maria trouxe-lhe o vigor de uma eflo-
rescência nova. Ao marulhar das ondas, voltou-lhP exu·

(10) ANT6NIO BLASQUEZ foi o autor ilustre das eartaa


1llbre o Rrnsil, e~1,ritns no cológio cln Bnln , i·ntrc 1556 !' 15íl!'i.
64 CELSO VIEIRA

hcrante a saúde, respirada nas emanaçõe.,; da própria força,


que lhe envolvera o brrço, lhe embalara o sono tranquilo
da primeira idade. E ultrapassadas as ilha<; africanas,
transposto· o Equador pelos mareantes, êle viu, certa noite,
arquear-se outro finnamento, resplandecer na magia das
constelações outro céu. Viu extaticamente fulgurar eütre
os sóis, feito de quatro estrêlas incomparáveis, e acima do
polo aústral, o signo da sua fé, o Cruzeiro do Sul, que os
lusitanos haviam descoberto ( 11), velejando por êsses ma-
res em busca de terra;; ocidentais. Dentro da noite emu-
decia a Bu:::ina polar; trombeta siclérea dos navegantes,
para os quais cessava o Regi11umto da, Estrêla do N orl'?.
Sôbre o caminho de outro hemisfério cintilava outro guia,
que era nas imensidades nebulosas o Cisne. em vez d::i
Ursa menor. Os pilotos marcavam as horas pela cruz ra-
diante de estrêlas, mediam por ela as alturas ínsondávefa.
E o noviço compreendeu que ali estava o regimento poh•:
do seu destino. ,Ajoelhou, bendisse a glória de Deus
~tre as vagas do Mar Tenebroso.
(11) LUCIANO PEREIRA DA SILVA, Astto-11nmia cfo,
L11si,aila., -Coimbrn, 1915: "Não pod<> lrnv<>r dúvida que n,>
Cruzeiro do Sul se refc>l'o o piloto Mestre ,João, na sua cnrta
de 1.o de maio de lií00, designando-o já rom o nome de Cruz.
Esta carta e o Ttatado ila Agulha elo ,Toão eh• Lisboa, de 15H,
no qual .se mastl'll o <'Onhr.dmrnto e,ompl<>to rio ~C'u uso náutico,
~ão os doeumentos 1111is autigos em que se mc>ueiona o Crl'-
zeiro."
O 1·econhccimento dn origem portuguPsa. dessa c'onstelação <'
do seu uso náutico, segundo o erudito e saudoso p1·ofcswr 11->
astronomia da, Universidade ele Coimbra, foi retardado pela ten-
dência a identificar o Cru:reiro rlo Sul onde quer que se men-
cionasse um grupo de qnah-o -t>Stl'c>lns, <'01110 nos ,c>rsos rb
Danté:
lo me rnlsi a mau destra e posi mente
AI! 'altro polo, e vldi quattro stelle
Non 'l'iste mai fuor che nlia prima gente.
ANCHIETA 65

Ed ogli a. me: "lo quattro ehiare stell.-


Che vedevi staman, son di lá, basso,
E quCEJto son salito ov 'eran quellc. ,,.

:Mas a ciência astronómicra, na opinião do sábio português,


não pode confundir as quatro stelle do poeta .com as do Cruzeir,J,
inridindo no erro de Américo Vespúcio, cuja mandorl-a assimi.
lada àquele é tão duvidosa quanto a própria autenticidade, sus.
peitissima, da carta diri~ida em 18 de junho de 1500 a. Lourenj_}?
de Medieis. Rizzaeasa foi o prim(>iro a. impugnar semelhant~
hipótese, levianamente aceita, ecm exame das posi(}Ões estelares
indieadas pelo florentino, o a demonstração de LUCIANO PE-
REIRA DA SILVA, neste sentido, consta do seu valioso tr:i.
balho  arte de 11,(],vegar dos portu.gueses, Hin. da Col. Port. iio
Bra.~il, vol. I, pgs. 70-72:
"As qu-att·ro stelle do poeta não podem tamb6m ser as do
Cruzeiro, que,. em 1300, estavam situadas entre 31 e 37 graus
de distância pofar. Quando Dante sai do Inferno <>Om Vorgílh,
eMontra..se na ilba do Purgatório, numa situação antipoda d~
,Terusalem, em 32º de latitude austral. Aproxima-se o rompN
d'al-ra, e o poeta contempla com prazer o azul da safir:i. em que
orilham as estrelas. No oriente sobe Venus, acompanhada dos
Peixes. As quatro chiara stelle vão a c1iega.r à sua culminação
superior.
"Basta tomar um globo celeste atual, colocá-lo numa posição
eorrespondente ao Purgatório, com o polo austral ele-rado do
32 graus, e trazer o ponto de Aries ao horizonte do lado do
orient<', para se verifiear logo quo o Cruzeiro desce no oeident.-
.iá muito longe do meridiano. O afastamento da culminação su.
pel'ior seria maior num globo do anuo 1300. Não 6 pois a est:1
constelação que o poeta faz referência.
"0 Sr. Angelitti, professor da Universidade de Palermo,
num estudo magistral de astronomia dantesca, publicado nos ano;
de 1912 o 1913 (Sugli accenni danteschi a,i segni, alle coatella-
rion'r ed al moto llel c-iclo stellato da occiàente in oriente, <li
un grado in c~to anni, in Rivista di Astronomia, Torino, tom.
VI, VII) eoncluiu, depoiS" do uma análise completa. e rigoros:.i,
qne as quatro estrelas, a que Dante por duas -rezes se refe10
no Pu.rgat6rio, são ns das Chama.~ da constelação da Ara, se não
são antes quatro astros ficticios, imaginados pelo poeta na ri,.
gião circumpolar austral, lnobservada polos astrónomos do Egiptf).
66 CELSO VIEIRA

a qual o eatâlogo de Ptolomeu deixava. vazia, Qualquer que


seja a hipótese explicativa, a ciência astronómica excluiu jã da
Divina Comédia a e'onstelação do Cruzeiro do Sul. Humboldt
entendia que as quatro estrelas simbolizavam as quatro virtudes
cardiais, que 110 Purgat6rio (XXXI, 106) dizem: Nós aqui so-
mos ninfas e no céu somos estrelas."
Certamente os antigos conheceram as estrelas do Cruzeiro do
Sul, visíveis em Alexandria no século II, mas não chegaram a
individuá-las num asteriSIJ'io próprio, fM)gundo a mesma lição.
Delas figuram três no catálogo de Ptolomeu como partes inte-
grantes do Centauro, 86 os pilotos de Portugal, muitos sé-
culos mais tarde, passando o equador e entrando na zona t6r-
rida, fizeram dessas estrelas um grupo distinto.
Quanto ao uso náutico do Cruzeiro do Sul, esereve ainda
Luciano Pereira da Silva: "Os navegadores portuguêses desco-
briram este grupo estelar, fruto da sua observação directa, reco-
nhecendo-o de precioso valor para a navegação, e fizeram dele
uma constelaçíto nova. Mestre João fala dela a d. Manuel, em
1500, como de asterismo já conhecido pelo nome àe OrW1; e o;;
pilotos João de Lisboa e Pero Anes. em 1506, estudam cuidado-
samente o Cruzeiro, em Cochim~ Foram os antepassados dos Bra-
sileiros que ensinaram aos naveg<>ntes de outras nações o Regi-
mento para se «lirigirem por esse brilhante fanal do novo hemis-
fério. A origem portuguesa do Cruzeiro do Sul é cantada nos
Lusíadas, V, 14:

Já dese'oberto tinhamos diante


Lá no novo Hemisfério, nova estrela,
Não vista de outra gente, que ignorante
Alguns tempos esteve incerta dela".

Contrariamente à opinião de Luciano Pereira da Silva, no


tr.rante no grupo estelar do· Purgat6rio, leh-se a terceira parte,
Hist6ria àe quatro elitrellas, do prólogo feito por Enrique de
G~ndia, notável historiador argentino, à edição castelhana de
Anchieta:
- "Algunos criticos han querido decir que estas estrellas
eon alegóricne. Se trata de un error. Dante habia leido en el
liuro II de la obra de Aristoteles, De Goelo, la existencia ·de la
Cruz del Sud y sabia muy bien que los primitivos habitantes
ANCHIETA 67

de Europa la habian visto cerca. dei Polo Nort.e. También


~abia, por fuentes musulmauas, que aquellas cuatro estrellas, sól,1
vistas por ln antigua. gente, se acercaban cada vez más ai otl'o
polo: el Sud. La identificaciou de estas euatro estrellas con lu
Cruz dei Sud ha sido negada por algunos autores. . . Los ilt-
vestigadores portugueses tienen espedal empeiío en negar que
Dante pudo eonocer la existencia de la Cruz dei Sud. Este
problema no es astronomieo, sino hiatorico. Basta saber que
Dante leyó textos en que la Cruz dei S'ud era mencionada para
no dudar que pu.do referir-se a ella y 110 a otras estrellas."
Mas o próprio Enrique de Gandia, no seu bC'lo estudo, rc-
eonheee que os navegadores portuguêses foram os primeiros a
descobrir neste Hemisfério a nova constelação:
- "Cristóbal Colón fué el primer hombre de Europa f[UJ
en el aiío 1500 reconoció haber heeho un viaje a "un nuevo eicl.>
y mundo." En el mismo aiío de 1500, el l de maio, el piloto
portugués, maestro Juan, dió en una carta al rey Manuel el
nombre de Cruz a la que seria mâs tarde Cruz dei Sud. . . Los
viajeros y poetas italianos fueron los primeros en cantar la Cruz
dei Sud. .Los portugueses, los primeros en deacubrirla después
dei
0
viaje de Colón."
Assim o Cruzeiro do Sul, podendo emergir dentre as · né-
voas da antiguidade, talvez, como signo de origens dant.eseas
na poesia, é em todo o esplendor da Renascença uma constelação
ele origens camonianas.
III

Desembarque de Anchieta na Baía, Indumen-


tária do tupinambá, O arquétipo selvagem. Ani-
mismo e canibalismo.

Enfim, a 13 de junho de 1553, bafejadas propicia-


mente as caravelas de d. Duarte da Costa, ancorava a flo-
tilha em plena baía de Todos os Santos. Haviam che-
gado os nautas à. região brasílica. das palmeiras agrestes
- Pindoraina - , formidável reino 'dos antropófagos. O
lagamar translúcido, móbil, semeado argenteamente de con-
chas e calhaus, ondeando ao sol por vinte léguas, deslum-
braria a alma poética e naturista de Anchieta. Verde-
jante e frondosa na espessura dos matagais, à esquerda,
Itaparica. ·defende e abriga a enseada. Por encostas e so-
ca:Icos, à direita, encurva-se o anfiteatro de colinas, onde
mal branquejava a urbs, desentranhada: pouco e pouco do
âmago da selva, que embebia na terra vermelha, cingida
pelo mar vibrante, os seus milhões ele raízes. Ao fundo,
vaporizam-se os montes como nuvens tranquilas, imóveis;
azulam-se cabeços pedregosos, sobre os quais se desatam
véus tecidos ·de névoa, bordados a ouro, desfeitos em chuva.
E todo o Reconcavo, além, desdobra o cenário multiforme
com o seu num.eroso arquipélago, o alvor das praias lon-
gínquas, o entrelaçamento dos mangues recobertos de os-
tras, a diáfana pureza dos ares, a fluidez murmurante das
águas correntias.
Fascinado pela terra imensa, virgem deslumbradora, o
1rmão Anchieta mal relanceava a minúscula e devota cidade,
que Tomé de Souza levantara na crista de um outeiro,
ANCHIETA 69

havia quatro anos, dando-lhe como brazão a ave da paz,


um voo sobre uma legenda : sic ilia a.d arcam reversa est.
Acima da muralha de taipa, erguida pelo fundador, vol•
tavam-se duas torres para o mar, quatro para a terra, vigi-
lante.;; e armadas. No casario disseminado entre roçac; e
ervais, á orla da floresta milenária, sobre os vales ainda
cobertos de tabas, eram manchas humildes a capela-matnz
da Ajuda, a casa dos governadores, o colégio dos padre3
jesuítas.
Desembarcando no séquito do novo governador, sau-
dado por tropas rigidamente alinhadas, berços e falcões
trovejantes, o irmão Anchieta galgou entre os seus com-
! anheiros, devagar, a ladeira obliqua e extensa, que subia
da praia à cidade. Branquejava nos ares tropicais a ban-
deira de Portugal, com o seu escudo d'armas sob a coroa
aberta: repicavam os sinos da Ajuda, inquieto.;; e festivos;
uniam-se vozes de trombetas e charamelas ao côro dos
in,trumentos selvagens - a inúbia, o toré, o maracá. Tu-
multuante em redor, brandindo am1as, primitivas, com e3-
.., · , o gentio semi-nú e glabro, vistosamente
pintado, acudia ao desembarque, num alarido, sob a plu -
magem rutila do manto e do cocar. Era o novo mundo,
-,elvático e adornado para a visita de Orfeu.
Longe dos mais, vencido o terrapleno da encosta, pou-
de Anchieta con.,iderar, pensativo, como já o fizera M:i.-
nuel da Nóbrega, em 1549, a imensidade aquática e o
fonnigueiro indígena da Baía. IJhotas, angras, restingas,
penhascos, mangues à flor das águas irisadas pelo sol, tudo
resplandecia. Densamente, por valC6 e colinas, a habita-
ção .numerosa dos índios mosqueava o horizonte. Milha-
res de almas broncas, ermas de toda a luz e toda a fé.
~,guardavam na sombra elas ocara.s o evangelista e a boa
nova . Como o padre Nóbrega, exultaria Anchieta, pre,;-
,;entindo a colheita oferecida a Jesus, com abundância, por
70 CELSO VIEIRA

essa humanidade escravizada ao instinto, sem idéia algu-


ma de Deus.
Mas no colégio da Baía os recem-vindos não acharam
senão o padre Salvador Rodrigues e doi.5 irmãos,
Vicente Rodrigues e Domingos Peco relia (ovelha), que
era assim chamado peta sua extrema candidez e em brew
morreria louco. Até ao mês de outubro, nessa residên-
cia, o irmão Anchieta ocupou os seus dias, po.5sivelmenk.
como discípulo e mestre, ora aprendendo a lingua indí-
gena, com os próprios neófitos, ora ensinando a estes o
alfabeto, segundo infonna o padre Simão de Vasconcelo.;.
Pretendem alguns que êle houvesse composto, desde
logo, a sua gramática da linguagem tupi-guaraní, conjectura
inadmissível, tão breve lhe foi a estadia, menos de um
trimestre, na cidade do Salvador.
Não podendo compor a Arte da Gramática, entre
jl.\lho e outubro dêsse ano, teve Joseph de Anchieta 11;1
Baía a noção primordial da língua, dos tipos e usos abo-
rígenes. Orfeu respira o ambiente feroz, ouve o caniba-
lismo das praias e das selvas. Como revelação, essa voz <l<'
animalidade guerreira e devoradora, impetuo3a e sensual,
teria dito à alma do noviço, entre os cajueiros frondosos,
alguma cousa semelhante ao índice da nossa pre-história.
Estava diante dêle o tupinambá, selvícola da Bah
( 12), contente nas sombras do labirinto - a flora - ,
nos elos do cativeiro - a fauna. Uma lasca de silex,
negrejando e reluzindo com aspereza cortante, dera-lhe L'
machado; outra de imbaúba ou de pau d'arco, irmão r.:> ·
busto e secular, a grande arma vitoriosa. O trovão era
o seu pavor : Tupan . . .

(12) Sôbrr os tupiuambás vide GABRIEL SOARES, Tra.


!<1clo Descriptit-o do Brasil cm 1587, ::l." eil., ,•npHulos OXLVIII
" seguiuteij,
ANCHIETA 71

Canibal da era neolítica, em pleno delírio cromático,


num país de fogo e de sangue, o índio traz o sexo apenaE
velado pela tanga, penas amarelas grudadas ao cocorut,J,
manilha'S de outras, polícroma.5, nos pulsos e nos tornoze-
los, ramais de búzios ao pescoço, tembetás de osso, de
âmbar ou de quartzo na beiçola, pingentes nas orelha.,,
adornos de barro cosido na face e3buracada. Sinuosa-
mente, por todo o corpo depilado, feitos a. tinta de geni-
papo ou de urucú, ondeiam lavores negros ou rubros; sob
a plumagem dos cocares, outras vezes, ostenta-se às ancas
uma roda de pena., cinzentas, largas penas de ema, balou-
çantes. Vagueia o tupinambá por brenhas, aldeias, rios,
à mão direita o arco, derribador de feras, à esquerda o
maracá, evocador de mortos, sepultos nas igaçabas com
os seus in.,trumentos de trabalho. Ressoam-lhe cascavéis
no andar, proezas no canto. Vaidoso e ameaçador, exibe
nas festas selvagens a tangapema dos sacríficios, colares
de três mil dentes - os dentes dos inimigos, onças ou·
homens ...
Absurdo e taramelante, impulsivo e rancoroso, vive
para nadar como os peixes no abismo, girar como os pá3-
saros sôbre rochas e boqueirões, lutar como as feras. N ô-
made, corre; homem-marinho, flutua; homem-felino, reta-
lha. O canibal tem a pele rija do tapir, a dissimulação
do tatú, rastejante no sub-.,olo, ou da cobra verde, enros-
cada nas folhas, o grito da arapouga e o salto do bugio.
Instintivamente, respira á distância o cheiro dé. caça, do
fogo, do mel. E a sua fome não espera; o seu ódio não
perdôa. Matando e ferindo, vive com alegria o tupi-
nambá. Se lhe desgosta viver, morre na solidão, comen-
do terra.
Quem lhe fôra o mestre das origens desvanecidas?
Sumé, o estrangeiro lendário de imensas barbas, ensina-
ra-lhe o uso da 'mandioca nutriz ; a natureza ensina-lhe
72 CELSO VIEIRA

o resto: flechar o veado e a cotia, o mutum e o bijupirá;


colorir os braços e o dorso";"' espremer- o'"-suÍnÔ-~ap1to.;o
elas frutas para a fermentação e a embriaguês. São livres
os apetites, comuns todas as cousas da tribo, em 'que os
amigos bebem o fumo da erva santa pela mesma cangoeira
em brasa. Violento néctar do guerreiro, o cattim efer-
vesce; cosida ou moqueada nos alguidares das bruxas, res-
cende a carne humana, o seu manjar de herói. Em pleno
terreiro, alvejante de ossadas, à hora sanguisedenta da
festa, sob o luar, dançando, bebendo, rugindo em volta do
prisioneiro atado á mussuarana, o antropófago recorda, no
bater dos pés, o das asas de um gavião real sôbre um
despôjo inerte.
Lavrador, o índio cultiva a mandioca, o milho e o
algodão nas suas aldeias; construtor, levanta o seu tecto
de pindoba no centro da3 caiçaras; artífice, produz com
esmero os seus utensílios de pedra, osso e barro, aprimora
em silêncio a moldagem dos vasos ou a tatuagem das fê
meas. Escava no tronco dos angelins e dos jequitibás ;1
canoa esbelta. Caçando, imita perto do fojo o grunhir ou
bufar das aiimarias e entre a ramaria o vozeio dos pássa-
ros. Navegando pelo Recôncavo, lança o apêlo misterioso
da -inúbia aos ventos ocultos ou dispersos.
Poligamicamente, o desejo das índias, esbraseantc
como o pêlo da tataúrana, requeima-lhe o sangue b,raviu.
:8Ie arrebanha, mas não escravisa as cunhãs, ora insen·
sível, ora implacável, se o atraiçôam. Cada noite, arde-
-lhe o instinto como o fogo aceso entre as rêdes, onde as
tem.irecôs se balançam, nuas, à espera do fecundador.
Adâmicamente, a curiosidade infantil da terra já o
levara a denominar plantas e bichos, lagôas e rios, monte,,
e grutas. De um poder sobrenatural, porém, não tinl11
êle senão uma idéia confusa, expressa num dissílabo -
Tupan, - o que ameayi, o que estrondeia? o que fulmit1<i..
ANCHIETA 73

Pouco e pouco, do sono e do medo havia brotàdo um ani-


mismo burlesco, informe, vago. A feitiçaria dos pagés do -
minava a selvageria loquaz, traduzindo-lhe os sonhos ingê-
nuos, predizendo-lhe as formas <lo bem e do mal. propi-
nando-lhe o suco das plantas, que envenenam ou enlou-
quecem, haurindo-lhe o morbo secreto, que adormenta e
aniquila. Contra os feiticeiros e encantadores, a virtude
mágica do sôpro e do gesto, clamariam mais de uma vez no
Brasil os apóstolos.
A cadência dos tamboris e das flautas, o índio era
sensível ao prestígio da música e do canto. Povoava de
espírito e lendas a floresta, donde nasciam os gênios do
mal, sobrepairantes ao nosso amanhecer: Jurupari, -mon:,-
tro dos pesadelos, Anhanga, veado branco e de olhos cha-
mejantes, Caapora, hirsuto e colossal, montando um javar-
do espinhoso, Urutagua, com o seu grito de coruja nos
tremedais, Corupira, demônio estridente e flagelante das
brenhas. Anchieta conheceu desde logo, na Baía, algum;
dêsses avejões infernais, espanto da nova terra e da gente
bruta. Não sabia êle, ainda, que o antropófago, na sn1
evolução natural, já buscava tambem divindades lumino-
sas, à maneira do sol r~iando entre nuvens, Coarací, ou
da lua revendo os mares, Jací. Outras imagen.; nasciam
dos ares transparentes, das águas borbulhantes : Perudá.
o a.mor que passa· na ventania, desfolhando os ipé., dou-
rados e as sapucáias floridas ; a Iara, desprendendo os
cabelos úmidos, entre as ninféias dos igarapés, na sua rêde
aquática. Pela curva tlas montanhas azuis, vaporosamen-
te, fugiam guerreiros espectrais. . . E o índio repetia len-
das graciosas, lendas grote.,ca.s. Ora falava <lo sip-sá, o
que trazia como um germe sideral, no bojo da cabaça, o
fulgor -de uma estrêfa : ora do saci-pererê,_vclando o sono
dos antros e das ocas. a cox,.ear, a capengar, com os jot·
lhos ,.ibcrtos em cha~a e o topete côr de pitanga,
74 CELSO VIEIRA

Voraz e caprino, bestial no amor e na .fome, o tupi-


nambá desafia com arrogância a morte. Sob o rodopiar
do tacape, que lhe vai romper a cabeça, entre uivos e
guinchos, êle repuxa a corda, prisioneiro, e arremete, pe-
leja, insulta os vencedores. O seu deleite maior não é
a dança ou o vinho, mas a caça ou a luta em que as
tribos se despedaçam, fatalmente desaparecem, como num
suicídio colectivo da .própria raça.
É a guerra que estala, de repente, sôbre as choças
dos antropófagos. Os tupís madrugam, aligeirados pelo
sonho da vitória. Cercando a taba inimiga, ululam, bra-
cejam, desvairam: ao soar das inúbias, tempesteiam os
ares incandescentes, varados por gritos de batalha, e vin-
gança, e terror. Chovem as setas, zunindo, com os seus
dentes de tubarão ( 12.a) ; caem feridos, bradando; uma
cobra de fogo rasteja nas palmas secas, desenàvela-s•c:
toda em labaredas. Vôa e revôa a morte, ao sibilo
das flechas, mas a grita das mulheres e ,das crian-
ças alegra os combatentes. Rompe-se a caiçara, e um1.
onda vem, outra flue, chocam-se as duas, espumantes e
sanguinolentas. O machado de pedra e ó tacape brutal
fendem cabeças; o pau ferro elas lanças rasga peitos r
ventres. Delícia feroz da carnagém ! Miolos, entranha,,
sangue a jorrar. . . Longe, propaga-se o nome assusta-
dor, entre os soldados cristãos e os missionários aflito-,:
Canibal!

* * *

(12.a) VARNHAGEN, Historia Geral ào Bra.-;il, 2. edição, tomo


I, secção, III pags. 33-34: - "Alguns iam até a nado arreme-
ter os tubarões eom um pau agudo que lhes encaixavam pelat,
guêlas; eom o que OI! a.fogavam, e os traziam a terra, e tinivam
\leles os dentt'!I para all frechas'',
ANCHIETA 75

Em torno dos selvagens, o malaventurado feudalismo


das capitanias deixara na costa brasileira, entre S. Vicente
e Pernambuco, quatorze ou quinze povoações, onde seriam
mais de dois mil os conquistadores brancos, tumultuaria-
mente esparsos no litoral, com os seus vícios, as suas pai-
xões, os seus crimes. Lidando e sofrendo, avultavam par-
celas de gentio escravizado às fadigas da lavoura e <lo
transporte. Havia começado, talvez em 1532, a incorpo-
ração do homem negro ,à vida americana. Com o ingre.,;so
no litoral e o encontro das raças quase terminar1 a funçãrJ
histórica dos capitães-móres.
Se as variantes extremas de caracter pululavam nas
alturas ou adjacências do escol, entre os senhores e os
nobres, a complexidade redobrava na peonagem branca e
mestiça. Degredados e contrabandistas, náufragos e .-Jc-
sertores iniciavam o cruzamento, do qual brotariam gera-
ções indomáveis de curibocas e mameluco.,;, •nas aldeias de
João Ramalho, ao sul, e Diogo Alvares, o Caramurú, ao
norte, dois símbolos erectos da poligamia ibero-americana,
modelos robustos dessa conjunção, extrava.,;ante de seiva
humana, que produziu mais um povo à face da terra. O
seio da índia, frutificando nesse amplexo, tinha a mesma
fertilidade exuberante do solo.
Entre os povoadores mais antigos, circulavam os gran-
des línguas da terra, intérpretes da civilisação e da selva-
geria, medianeiros tão preciosos á conquista sertaneja quan-
to os pilotos de Sagres à -navegação do Mar Tenebroso,
fortes ilhéus, montanhezes do reino, artífices ou pescado-
res, tipos rurais da vida agrária ou da vida pastoril. Abai-
xo, na flutuação do próprio destino, confundiam-se os mer-
cadores, os traficantes, os corsários, os aventureiros, per-
petuando com a sua rapacidade o estado de guerra. En-
fim, a torrente humana carreava na salsugem de outra~
impurezas a delinquência, transportada para os novofi lu
76 CELSO VIEIRA

gares de homízio e degredo. Borbotavam nela as forças


instintivas do mal, como nas origens de povos solares, o
grego e o romano, haviam coexistido a pirataria, o ban-
ditismo e o cativeiro.
Homem da idade neolítica, tapuia ou tupi, o aborígene
vagueava na dispersão, rugia no embate das hordas incon-
ciliáveis, sob o arco dos morubixabas e o maracá dos fei-
ticeiros. Os missionários avistavam não sabemos quantas
nações no pandemónio das tribos ·designadas por alcunhas
ilustrativas ou pejorativas de bandos da mesma raça, arti-
culadas pelo gentio na <lialectação do idioma geral, que 3e
expandia através das florestas, desde o Amazonas ao Uru·
guai, propiciando a conquista das terras aos sertanistas, a
catequese dos índios aos sacerdotes.
Um pouco mais decaidos os tapúias, refluindo para
os sertões, um pouco mais diferenciados os tupis, avan-
çando à beira-mar, não se definiam, sociologicamente, por
atributos diver3os do seu estádio: eram apenas cambiante~
próximos da mesma selvageria turbulenta e voraz.
IV

Barbaria colonial. Tomé de Souza. União da


Igreja e do Estado. D. Duarte da Costa e D. Pero
Fernandes Sardinha.

Nesse microcosmo social, o esptnto de aventura e a


predominância do estado de natureza, a febre da conquista
e o furor da ambição exasperavam os instintos mais bra-
vos e mais torvos. Eclipsara-se a idéia religiosa. ComJ
na embriaguês de fogo e sangue das guerras, a alma cristã
desaparecera, e a gentilidade assoberbava a cristandade,
em quase todos os núcleos.
Dir-se-ia que o europeu, vindo para a América, ins-
tantaneamente se barbarizava, descristianizado, sob as in-
fluências do meio fisico e da vida agreste. Por adaptação
violenta ao clima tropical, ao novo regime de alimentação,
de vestuário, de trabalho, de comércio, degradava-se até à
poligamia ostentosa e à carniceria hedionda, embrutecido
pelo convívio dos antropófagos, encadeado pelos braço~ ar-
dentes da flora e da fêmea. Sem o temor de poderes
inhibitórios ou compressivos, os malfeitores provocavam
não .;;ó a desordem no interior das capitanias, mas ainda
recíprocas hostilidades entre os feudos. Alguns del'!s vi-
viam na ignomínia de ajuntamentos sexuais quase inuma-
nos, vendendo os filhos como animai,; ou escravos.
Com a fúria dos apetites, a depravação de usos e
sentimentos, o egoísmo brutal dos móveis e dos actos, o
choque das raças inimigas, principiara talvez a derrocada.
Os aborígenes devastavam as capitanias; os corsários fran-
ceses da ::-.;-ormandia e da Bretanha já iam do Cabo de
78 CELSO VIEIRA

S. Agostinho ao Cabo Frio. Ousadamente, aparelhando


em algumas colônias os seus caravelões, a pirataria infes-
tava os nossos mares territoriais. Em 1547, Francisco
Pereira Coutinho, donatário da Baía, era devorado pelo~
tupinambás. Em 1548, anunciando a ruina do Brasil por-
tuguês, Luiz de Goes conseguira abalar o trono com a for-
ça dramatica de um apelo a d. João III : - " . . . Roubam
os portuguêses a terra e mais que os franceses, porque já
não ha capitania que ,não esteja roubada e alevantada por
êles, e por sua causa; e antes que se perca, socorra V. ~-
e tenha piedade de muitas almas çristãs ... "
Influíam para essa dissolução, da parte do branco, a
rapina., a luxúria, 'a desumanidade. Mercador, avezado ,1
extorsões ignóbeis, êle p.ratica nos aldeamentos, nas ma.lo-
cas, nas feiras, toda a sorte áe embustes. Caçador, trans-
viando-se do rastro das onças para o dos homens, apri-
.:;iona o índio no seu laço, escravisa-o à sua gleba. Sal-
teador, abatendo os flecheiros a golpes de espada e
a tiros de arcabuz, empolga mulheres. e crianças. Devas-
tador, arrasa: á própria miséria do incola o;, tectos de
palma, as roças de milho e mandioca. Incita a discórdia,
sugere a violência, propaga nas capitanias a guerra entre
os selvagens, para os acometer e apresar, divididos.
Quanto aos padres, não valem mais que os leigos.
Manuel da Nóbrega, em 1549, escreve aos irmãos ela pro-
víncia de Portugal: "Os clérigos desta terra têm mais
ofício de demônios que de clérigos ; porque, além do seu
mau exemplo, e costumes, querem contrariar a doutrina
de Cristo, e dizem publicamente aos homens que lhes é
lícito estar cm pecado com suas negras, pois que são suas
escravas, e que podem ter os salteados, pois que são
cães ... "
Por seu turho, o índio volta a ser íet'a, sedento de
vingança, cuja explosão II leva a morder o calhau, trope-
ANCHIETA 79

çando, ou a quebrar a flecha, que ainda vibrante lhe rasga


o peito. Dissimula o rancor, premeditando as ciladas aos
brancos. Desafia a morte, injuriando os verdugos no pró-
prio terreiro em que o abatem. Se é êle o algoz, escar-
nece o chôro da vítima, que se amedronta, de joelhos, sob
o tacape. Não concebe o herói sem a idéia religiosa da
vingança nem o heroismo sem a surpresa mongol do ata-
que. Ao estalar o grito de guerra contra os perós, nas
tabas e nas canôas, são morticínios as suas desforras. Em
represálias de faunos, se os colonos arrebanham as índias
para a luxúria fecundante dos serralhos, os índigenas raptam
as brancas, mergulhando com elas na floresta, como antro-
póides, e o canibalismo devora. bramindo, o que a libidi -
nagem conspurca.
Entre a deslocação da tribo americana e a fixidez da
colônia européa, o individualismo crescente desta e o co-
munismo errante daquela, estranho ao domínio singula1
dos bens, às modalidades jurídicas da posse, amiudavam-se
contrastes irredutíveis, conflitos inevitáveis. Não raro, a
instabilidade emocional do gentio mudava-lhe o afecto em
ódio, e os flibusteiros, os contrabandistas, os intrusos, acos-
sados nas reintrâncias do litoral, persuadiam continuamente
o selvagem a repelir ou abater os colonos. Precipitara-se
o desfêcho. Somente o velho Duarte Coelho, acastelado
na torre de Olinda, constituia excepção triunfante à nossa
ruina feudal.
Mas o cristianismo adveiu em 1549 com o prirqeiro
governador geral, Tomé de Souza, fundador da primeira
cidade, e o padre Manuel da Nóbrega, fundador da cate-
quese no Brasil.
Antes dos jésuitas, só alguns franciscanos haviam
estado no Brasil: em 1503 na Paraíba do Norte; pouco
antes de 1551, em Porto Seguro. Nenhum vestígio <k
80 CELSO VIEIRA

catequese-, entretanto. deixaram êles à hi,-;tória evangélica


da,; missões,
D. João 111 abria um período novo. ao dizer no Re-
gimento de I 7 de dezembro de 1548 : "Querendo el-rei
conservar e enobrecer as terras do Brasil, e dar ordem à
sua povoação, tanto para a exaltação da fé, coma para
proveito <lo reino ... há por bem nomear Tomé de Souza .
para governador geral. .. " O catequista Manuel da Nó-
hrega, por sua vez, consagrava hi.;;tàricamente nele as vir-
tudes próprias do governo, quase as do sacerdócio: " ... eu
. o tenho por tão virtuoso, e entende tão bem o espírito
da Companhia, que lhe falta pouco para ser dela ... ··
Nos dois vultos representativos do poder temporal e
do poder espiritual, Tomé de Souza e Manuel da Nóbrega,
um dêles envergando a armadura de capitão, outro a rqu-
peta de jesuita, observa-se a mesma religiosidade. O go-
vernador é ainda mais supersticio3o que o missionáriu.
Quando a expedição desembarca na Baía, as armas de
Portugal fazem séquito a uma grande cruz, erguida pelos
sacerdotes, que entoam preces e hinos durante a marcha.
Seiscentos guerreiros caminham processionalme"i-ite; o signo
da fraternidade avança ao encontro da .selvageria; o estado
de guerra pretende já difundir o estado de crença, e tudo
que era inumano, pelo combate, aspira nesse momento ao
divino, pela catequese.
Ao norte de Vila Velha, o patriarca Diogo Alvares,
Caramurú, acolhera em barracas e choças os expedicioná·
rios, que se apressaram devotamente em reerguer naquele
sítio a capelinha da Vitória, qua5e esboroada. Tomé de
Souza ideou a capital da América Portuguesa, ocupando
as eminências, donde avistava o mar. Então, os artífices
deram comêço à tarefa com alegria.
Maravilhoso instante da história colonial! lncolas e
reinóis, leigos e padres, mulheres e crianças, todos labo-
ANCHIETA 81

ram na construção da urbs, piedosamente, como se erigis-


sem o próprio santuário de uma raça nova, 3obranceir'l
às ondas, no âmago vir-gem da selva. Transforma-;;e o
arraial em município, a feitoria em govêrno, o acampa-
mento em cidade. Alvorece a grande metamorfose. Gol-
peadas no cerne, fundamente, baqueiam as árvores com
fragor; bandos de jornaleiros destocam e nivelam o campo;
da visinhança trazem os índios .serviçais, para a obra ence-
tada, madeira e barro, calhaus e fibras; a colectividade es-
cava os aliceres, levanta muros e tectos, delineia ruas e
praças; até o governador moureja nas fortificações, imita
os alvaneis, recalcando o barro dos taipais, carregando
vigas e troncos. Entre os artífices, Tomé de Souza é o
primeiro dêles, antevendo já o Brasil, não sumptuàriamen-
te, coberto de ouro e seda, no voluptuoso abandono das pos-
ses:sões asiáticas, mas profissionalmente, como terra e com,)
labor de operários, incessante esforço para mãos limpas e
destras. Ao seu lado, em vez de ministros e eunucos, pa-
ra.sitas e jograis, veem-se dois rijos construtores - Diogo
Peres, mestre pedreiro, Luiz Dias, mestre das obras da
fortaleza.
Enfim, alteia-se para os céus, rica de ares saudáveis
e águas perenes, a cidade do Salvador da Baía, acastelada
num outeiro, em quadrilátero, com os baluartes sôbre o
mar, outros vigiando a terra, N oss.a Senhora da Ajuda
na sua ennida, e como rebanho a descer pela encosta o
casario montez.
Aos nucleolos preexi.,tentes, esparsos e hostis, sobre-
põe-se agora o núcleo político e espiritual, onde se agre-
5am, indissolúveis, fôrças regidas por uma lei, subordina-
das a um pensamento. Fundando a cidade católica e mo-
nárquica, Tomé de Souza cumpre o Regimento de 17 de
dezembro de 1548, pelo qual se ordena o começo
da povoação, que "venha a ser cabeça ele tôdas as mais
82 CELSO VIEIRA

capitanias". Entre o ouvidor-geral, sentinela da justiça,


e o provedor-mór, claviculário do fisco, êle traz consigo
a Ordem magestática, revelando já o Estado na tendência
para a coesão e a unidade.
Detentor da autoridade régia no Brasil, terra imen-
surável por defender e crii,tianizar, Tomé de Souza inau-
gurou, com a cidade, uma tradição governativa. Edifi-
cada a itrbs, instituídas nela as primeiras formas ela viela
municipal, o governador concedeu lotes agrários, semeo11
vergeis nos arredores, decidiu que fossem abertos novos
caminhos, obteve que se fundassem novos engenhos, fez
vir das ilhas de Cabo Verde o gado, e rebanhos povoaram
os latifúndios, pôs na arquitectura naval todo o empenho,
e bergantins, caravelas, até mesmo galeões cindiram as
ondas.
* * *
Depois da cidade, o Recôncavo - a submissão dos
brasis ao poder lusitano e à fé católica. Religiosamente,
a cultura desses frutos selvagens começa a prosperar com
o ensino, a indústria, o apostolado, o martírio dos padre3
jesuítas. Politicamente, a visão e o tacto, a integridade
e o acerto de Tomé de Souza consolidam as bases morais
da catequese. Ajudado pelo Caramurú, êle atrai os chefes
indígenas ao comércio e à aliança, que pacificam no seu
govêrno o Recôncavo, fechando os aldeamentos à incur.:;ão
de traficantes odiosos, cujo mercantilismo operava sôbre
a liberdade humana.
A tolerância cristã do governador, porém, não obstou
a que êle reagisse duramente, por vezes, contra a selva-
geria das tribos indomáveis.
Nesse homem piedoso e severo, conciliador e benfa-
zejo, reaparecia, então, o cabo de guerra, formado na escola
do Oriente, e o revés da sua bondade apavorava. Como
as Instruções de 1548 lhe recgmendassem que, depois de
ANCHIETA 83

conhecer os selvage11s inimigos, saísse a destruir-lhes a:;


aldeia:;, "matando, cativando e expulsando o número ba5-
tante para castigo e exemplo", o administrador meticuloso
assim o fez com exactidão regimental. É certo que man-
dou atar um criminoso indígena a uma boca de fogo, dis-
pará-la com tôda a solenidade reboante, exemplificadora.
Mas não divergia do pomposo estilo sanguinário, cultivado
pelos heróis lusíadas: Pedro Alvares Cabral, em 1500,
aprisiona dez navios árabes na costa de Kalikõdu e passa
a fio de espada SOO tripulantes; Vasco da Gama, a um
gesto negativo do rajá nessa mesma cidade, envia-lhe um
barco atulhado de corpos sanguinolentos, escravos de guer-
ra, aos quais êle tinha feito decepar as orelhas e as mãos;
d. Francisco de Almeida, cujas vitórias navais ecoaram
terrificamente sôbre a morte do filho, sauda Kananor, de
regresso, atirando-lhe cabeças e membros de prisioneiros,
esfacelados, pela boca das bombardas vingadoras. O pri-
meiro governador do Brasil cursara a mesma escola.
Ainda no começo do govêrno, ele procura cJ -
nhecer e explorar os sertões a oeste, em busca de
pedraria e metais, como lhe insinua a côrte portuguesa,
ofuscada pela notícia das minas do Perú. As suas tenta-
tivas, desde o convite ao minerador espanhol Felipe de
Guillen até à expedição acompanhada pelo jesuíta Aspil-
cueta Navarro, um santo perdido entre caçadores de gemas
e canibais da selva, preludiam remotamente no Brasil-co-
lônia a idade terrível do ouro. Tomé de Souza vincula o
seu nome e a sua obra ao ciclo dos bandeirantes, cuja
filiação remonta 1às alturas nebulosas do século XVI.
Mas não esquece também a sorte das capitania:, inde-
fesas e incultas, que êle visita, inspeciona, ordena quanto
possível: em cada qual, reforça muralhas e tranqueiras,
provê de soldados e artilheria os baluartes, fortifica enge-
nhos e povoados, inaugura cadeias ou templos, faz erguer
84 C.ELSO VIEIRA

ao centro <las vilas o pelourinho. Com a notícia <lessa


peregrinação e as advertências pessoais do governador
a el-rei, fixamos os elementos orgânicos da nova fase co-
lonial.
Tomé de Sousa concluiu em 1553 uma obra simples,
mas forte, cuja sabedoria lograra, vencer desmando,;;
e erros do confuso período inicial. Daí por diante.
graças ao plano que ele concebera, nítido como dese-
nho, sólido como doutrina, a elaboração católica do
Brasil terá outro desenvolvimento, sob novas diretri -·
zes. , i i~ 1
Assenhoreando-se da colónia, o Estado e a Igreja
realizaram jesuiticamente a sua aliança, imperativa-
mente a sua unidade moral. Se havia baixado a pró-
pria religião ao nível <las grosseiras formas rituais,
quase do fetichi~mo em que vegetavam as almas pri-
mitivas ou supersticiosas, o apostolado veiu de novo
espiritualizá-la como idealismo sacro. No eyange-
lho dos missionarios, então, culminaria o sacerdócio,
defendendo e·catequisando os aborígenes, mas também
refundindo para os colonos, uma tpor uma, as táboas
da lei de Deus, quebradas nesse deserto americano,
entre a vileza do tráfico e os horrores da luta pela
existência, (13).

Unidos laboravam Tomé de Souza e Manuel da


Nóbrega, o Estado e a Igreja, com os mesmós objecti-
vos: humanisar o gentio, reprimir o colono insaciá··
vel. Bruscamente, porém, volt?ndo ao reino o primei-

(13) OLIVEIRA LIMA. .t1 Nova i .-usitania, om a Historia da


ooZon~ação portuguêsa 110 Brasil, vol. III, ca.p. VII.
ANCHIETA 85

ro governador, a consonância fez-se incompreensão e


discórdia, num período novo e grave.
Desde 1553, o esboço administrativo em cujas 1Í··
nhas se ,patenteava o espírito de outras formas sociais
aparece truncado, sob o governo de d. Duarte da Cos-
ta, armeiro-mór do reino, desavindo por causa do fi-
lho, d. Álvaro, com o primeiro bispo, d. Pero Fernan-·
des Sardinha. Como o litígio foi circunscrito às ra-
zões ou sem-razões dos litigantes, articuladas aos pés
d'el-rei, a História suspendeu o julgamento, conver-
tido há quatro séculos em diligência inútil. Não acha-
mos no processo dados seguros, testemunh·as idôneas.
Que informava o príncipe- da Igreja ao soberano
português? Desafiando na rua os -homens prudentes,
inquietando as mulheres honestas 110 lar, o moço d.
Álvaro, seguido por outros fidalgos e amigos, mais
tunantes que fidalgos, inquietava a polícia episcopal
de costumes. Urgia refrear os excessos ao turbulento,
os impulsos ao libertino. Mas d. Pero Sardinha falara
em vão a d. Duarte da Costa. O pai adorava o filho.
que servira na África, era bemquisto na corte, e ape-
nas vinha pagando, nessas aventuras baianas ou afri-
canas, o seu tributo de soldado moço à violência dos
climas adustos.
Então, do púlpito, o bispo letrado, porque fora aluno
da Universidade de Paris e mestre da Universidade de
Salamanca, reprovara em termos discretos, alusões
mais ou menos veladas, ao d. Juan colonial a impudi-
cícia, ao chefe do governo a indulgência. Do sermão
vingaram-se pai e filho, exasperados, hostilizando o
pregador.
No ambiente faccioso da colónia surgiram dois
partidos violentos - o do Governo e o da Sé. Houve
ameaças e· vexames à dignidade episcopal. D. Álvaro
8ó CELSO VIEIRA

instigou os cónegos da própria Jiocese contra o bii;pq.


que os remeteu à, prisão, di5riplinarmente, para ver
logo depois, com indizível assombro, desrespeitado à
porta da cadêia um acto da Mitra. Por ordem do go-
vernador, o carcereiro não quis aferrolhar os insubmi.s--
sos. Nesse mesmo cárcere, entretanto, fora trancado.
sob o peso de algemas, um cónego exemplar, fiel ao
prúncipe da Igreja. De tudo fez devassa o bispo, e en
viou-a com os seus lamentos ao rei.
Contra o venerável delator, porém, forjaria d. Du -
arte um libelo ainda mais escandaloso. O bispo calu-
niàra-lhe o filho. Quem era o bispo, caprichoso, iras-
cível, prepotente, avaro, odiento e cruel, perseguidor
de clérigos, ,protector de facínoras, dissessem outro~
a S. Altesa. Outros como Tomé de Souza, verídico e
austero, os padres da Companhia de Jesus, todos o~
padres, todos os diocesanos. Qualquer depoimento lh"'
confirmaria os maus antecedentes ele prnvisor e vigá-
rio geral das 1ndias, esboçaria o quadro vergonho~n
da sua diocese. Pregadas às portas das igrejas baia·
nas, lidas nas missas conventuais, não cessavam a~
cartas ele excomunhão, imposta aos adversários. a,>
próprio Ouvidor Geral pelo bispo, só porque o magi"-
trado não ia ouvir-lhe os sermões, colérico~ ou enfa-
donhos. Arbitrariamente, o pastor <la Baía de5tituin1
o deão. Simoniacamentc, revogara penas eclesiásti-
cas por <linheiro. Mandava esbor<loar os que lhe 11:in
eram simpáticos, havendo mesmo quem lhe atribuis,e
golpes de pugilista. Com a própria mão episcopal. u
próprio anel de ametista, feria nas discussões a fac· r
dos contraditares. Ordenara que fosse exposto na Sé.
à hora da missa, um bebedor de fimio, semi-nu, trazendo
a erva santa dependurada ao pescoço. Fnfan. 1..:1r~ d.
Duarte, seria mais fácil entendt>r-se com o diabo que atu-
ANCHIETA 87

rar o bispo : " ... c-om todo o homem me concertara, ainda


que fora o diabo, senão com êle . .. "
Pouco depois do libelo, entretanto, reconcilia-
vam-se aparentemente d. Duarte da Costa,, e d. Pero
Fernandes Sardinha, por mediação do padre António
Pires, jesuíta. El-rei chamou a Lisboa, mais tarde,
o príncipe da Igreja, e à desavença dos poderes colo-
niais sobreveiu um final de tragédia para o bispo.
Como sossobrasse a nau, que o levava, com outros
cem passageiros, nos baixos de d. Rodrigo, foram
todos eles abatidos pelos caetés, devorados pelos ca-
nibais.
Sob o tacape, de joelhos, imipassível o rosto, er-
guidos os olhos e as mãos para o céu, expirou à mar-
gem do rio S. Miguel d. Pero Fernandes Sardinha,
que era pessoa de grande autoridade e exemplo, gran-
de eloquência no púlpito, segundo fr. Vicente do Sal-
vador. Ao capucho da História do Brasil relataram cer-
tos viandantes daquela zona que o lugar onde foi morto
o príncipe da Igreja mmca mais se cobriit de erva.
No mesmo ano da reco111eiliação, 1555, d. Álvaro
exterminara ou submetera o gentio rebelde, que ha-
via salteado o engenho de Pirajá e as manadas de Gai--
cia d' Avila em Itapoan. Frechado pelos índios o seu
cavalo, depois de outras façanhas, regressou incólu-
me e triunfante o jovem capitão à cidade do Salvador.
Mas a própria vitória não o fez popular nem se tor-
nou com ela menos indesejável o governo do pai, d.
Duarte. Por fim, suplicando a el-rei o Senado da
Câmara, em nome do povo, que lhe mandasse outro
governador, pelas cinco chagas de Cristo, foi escolhido
um homem predestinado à glória das armas e dos fei-
tos cívicos, :Men de Sá, irmão do poeta Sá de Miranda.
Com ele recomeçaria a aliança da Igreja e· do Es-
tado no Brasil-colónia.
V

Vieita de Orfeu. Anchieta segue da Baía para


S. Vicente com outros religiosos. Tempestade.
Chegam os jesuitas a S. Vicente. Em busca de
Piratininga. Noivado de Anchieta e da terra do
Brasil.

Era à sombra dessa aliança que o espírito d~ Or-


feu, religioso e profundo, visitava os sertões. Desde .:
aurora da catequese, atraindo pela música e pelo can-
to a prole do gentio, N oprega fôra quasi um segundu
Orfeu, no dizer de Varnhagen. Recem-vindo, o irmão
Anchieta seria outro caso de orfismo brasileiro como
idealidade, fascinação, harmonioso destino, essencial-
mente católico, entre rochas e brutos.
Transfigurado pelas idéas cristãs, Orfeu sondava
a alma pre-histórica das tribos, o gênio da nossa idade
de pedra polida, instintivo, falando-lhe ao novo gê
nio melodioso e culto. Poderiam cristianisá-lo as ener-
.., da catequese? Deixaria lugar ao Evangelho o
mercantilismo dos chatins, que tudo amoedavam na
colônia? A rprópria fé apostólica do justo sentia-se,
às vezes, regelada sob uma dúvida, considerando nes-
sa imensidade o traficante lascivo à beira-mar, os bis-
pos, vigários e colonos indiferentes à salvação dos
hugres irracionais ( 1-t). e pelo:; sertões a dentro o
(14) ANCHIE'l'A, ln/. t7u Brasil I â, suas Nipitania,9s - 1581.
" .. ,BNU os Bispos fazem muito caso disso, pois com os índio,
livres. . . Sl' nfio fnz diligência nenhuma no que toca à sun sal.
, ac;ii.o, quaso eomo <le gente que não t'f'rn alma 1·ac:ional nem foi
,-l'iadn e r~i1nidn para a Gl6rin.",
ANCHIETA 89

nômade obtuso, que desconhecia a roda, o ferro, a


vela, o arado, saíra da lagoa para a selva e do antro
para a taba no deslumbramento inicial do fogo, sem re-
banhos, sem vestidos, sem humanidade. O mercador
não renunciava à mercância voraz, ainda mesmo sob-
o látego de Jesus. O canibal seria eternamente. .
canibal, se a fôrça o não domesticasse pelo temor.
únicos frutos da catequese, afirmaria Nobrega, de-
solado, eram poucas almas inocentes, que os apóstolos
mandavam aos ceus, baptizando-as à hora da morte.

Não obstante, a prole infantil dava esperanças


aos jesuítas: era dócil, quase dúctil.
Educadores, ·desdobrariam êles com inteligência
de psicólogos o seu plano escolar. Fundada a escol,.
baiana de ler e escrever, tendo por mestre o irmão
Vicente Rodrigues, como obter a frequência dos co-
lumins, inacessíveis nos ranchos elas aldeias impene-
tráveis?
Argutamente, sabiam os jesuitas que a própn,1
diferença dos idiomas e dos tipos, segregando os adul-
tos, não resiste à lei natural de atração da primeira
idade. Urgia levar os pequenos civilisados ao encon-
tro dos pequenos selvagens, como inicia·dores e com-
panheiros na mesma ·vida cristã, fazê-los todos ir-
mãos pela convivêncm e pela camaradagem. Recipro-
camente, uns e outros aprenderiam o português e o
tupí, sob a doutrina do mesmo educandário; tornan -
do-se amigos, quando se entendessem, uns ~ outro,
seriam mais tarde os acólitos elo templo e da selv:t
para os missionários.
Com a segunda expediçfto jesuítica vieram os sete
primeiros órfãos cio colégio de Jesus. cujo fondador, 0
90 CELSO VIEIRA

padre catalão P.ero Domenech, arrancava ao mais de-


gradante infortúnio esses vadios sem pais, menores
ladrões e maus, pervertidos na madraçaria da Ribeira
de Lisboa, transformados no ambiente educativo do
seu orfanato. A vadiagem criminal. para certos alu-
nos, já se mudara em vocação religiosa, e o embarque
dos sete órfãos destinados ao Brasil, como auxiliares
da catequese, foi solene e comovedor. Dir-se-ia que
as almas eclesiásticas ou infantis, quando os órfãos
modulavam as suas orações por despedidas, entre o~.
louvores e as lágrimas do povo, se ofereciam na mes-
ma religiosidade aos sacrifícios do apostolado.
Nóbrega revê na colónia os antigos vadios do
mercado de peixe, em Lisboa, agora pequenos operá-
rios da Companhia. Em 1551, por exemplo, informa a
d. João III que o principal exercício dos jesuítas e do-,
órfãos é ensinar os índios. Antes disso, textualmente,
escrevera aos ipadres <la província <le Portugal: - "O;
meninos órfãos, que nos mandaram de Lisboa, com
seus cantares atraem os filhos dos Gentios, e edificam
muito os Cristãos." HarmoniGamente, em visitas P.
canções, fraternizavam os menores lisboetas e os co-
lumins baianos; havia nas procissões. nos enterra-
mentos, o soar dos maracás e das flautas de taquaré1,
como o estrugir dos borés nas danças da tribo. Os
ódãos não queriam só instrumentos, mas também al-
guns instrumentistas elo reino: ... se vieram cá al-
guns taml0rileiros e gaiteiros, parece-119s que não
ficaria principal nenhum. que nos não desse o~ seus
filhos para os ensinar.''
Já se entremeavam os cantos de Pindorama às
vozes de Portugal. UnianFse os costumes, os senti
mentos,· os acordes <:m cerimônias indígenas, musicai,,_
e era grata ao,., jesuítas a conson.ânda dessa fraterni-
ANCHIETA 91

z:ação no· Evangelho e na música, ainda que o bispo


d. Pero Fernandes Sardinha, àsperamente, sem com-
preender o espírito da catequese, delatasse formas e
usos por ela introduzidos como. novos ritos gentíli-·
cos.
Desbravadores e catequistas, porem, avançavam
os jesuítas com os, piás instruídos até às aldeias remo-
tas, em peregrinações de sete a oito léguas. Veredas
e alagadiços intransitáveis. . . Ocaras semelhantes a
cloacas ... Fora, sob a nudez terrosa das índias aga-
chadas ao sol, zuniam mosquitos, enxames atraídos
por emanações. violentas do sexo. Dentro, na sordi-
dez nauseante <los tijupares, as redes úmidas tresan-
davam. E o cheiro das talhas de vinho, os odorçs
das tangas de penas, dos corpos besuntados de óleo
ou retintos de urucú entonteciam nesse ambiente sel-
vagem os padres, que vinham purificar-lhe as almas.
Só os columins, afeitos à exalação das redes mater-
nais, ,dos seus ninhos de folha de pindoba, corriam
para a oca e ensinavam aos pais, com alegria, os man--
damentos da lei de Deus em língua brasilica.

Mas o Brasil não aguardava unicamente do poder


~e Orfeu a humana transfiguração. Antes e depois
dele, com ele próprio, vinha a omnipotência de Eros,
amalgamando tres raças num só amplexo obscuro e
lascivo.
Em 1549, escrevia .:\fanttel da Nobrega a Simão
Rodrigues: - "Parece-me cousa muito conveniente
mandar Sua Alteza algumas mulheres que lá tem
pouco remédio de casamento a estas partes, ainda que
fossem erradas, porque casarão todas muito bem, E ,
92 CELSO VIEIRA

digo que todos casarão muito bem, porque é terra


muito grossa e larga, e uma, planta que se faz uma
vez dura dez anos." Posteriormente, em 1551, a ra-
inha d. Catarina e12viara ao governador Tom.é de
Souza uma partida ele noivas em que vinham açaf~-
tas da sua côrte e donzelas do Mosteiro das Orfãs.
Como rareassem mulheres virtuosas ou erradas,
emigrantes de Portugal, casavam-se às índias os po-
voadores, e em breve a poligamia assoberbante dav«
tantos frutos que se viu compelido Nobrega a de.;;--
viar do s.olo baiano a corrente nupcial, advertir el-rei
na sua carta de 1551: - "Para as outras capitanias
mande Vossa Alteza mulheres orfãs, porque toda s
casarão; nesta não são necessárias, por agora, por
haverem muitas filhas de homens brancos e de ín-
dias ... "
Genésicamente, irrompera a fecundação humana
e telúrica. Embora nômades, os escravos gentios la
vravam a terra, e o labor do negro da Guiné, estável ,
robusto e paciente, havia de florir no algodoeiro, viç,1. :·
nó gomo dos canaviais, arder nas cintilações de ouro
e diamante, joeirados pelos garimpos, entre as verde.;
e altas serras nevoentas. Com o trabalho, a riqueza.
a fecundidade, surgiria tambem o homem novo - la-
vrador, construtor, mestiço das pequenas cidades
atlânticas ou cios imensos planaltos ondulosos.

Retido pelos seus planos em S. Vicente, ,polo Sul


da catequese, Manuel da Nobrega determinou em agos-
to de 1553 ao padre Leonardo Nunes que visitasse po:·
êle as missões longínquas do Norte, lhe trouxesse da
Baía o socorro d<" outros irmãos, entre os quais An-
chieta.
ANCHIETA 93

Partiram daí os religiosos no mês de outubro, em


dois velhos barcos, que, após duzentos e quarenta lé-
guas de boa navegação, foram ter aos Abrolhos, pará -
gem de estreitos canáis e bancos de areia. Salteados
ambos pela tormenta, virou na costa um deles, onde
seguia o padre Leonardo, bateu nos arrecifes o outro,
em que viajava o irmão Anchieta·.
Sem leme, rôtas as velas, sacudido pelo furacão,
alagado pelos escarcéus, o barco de Anchieta desgar-
rava, mas afinal, "expostas as relíquias dos Santos ...
e lançado às ondas o Cordeiro de Deus ... ". conse-
guira o navio ancorar num pégo rodeado de cachopo,;
e cômoros, entreabrindo sómente, com avareza, uma
garganta á proa. Descera a noite sobre o repouso düs
navegantes, opressiva. Na mudez caliginosa, súbita-
mente, convulsionam-se as trevas, esfusiam os vento.-;
do sul, diluem-se as nuvens, desabam as ondas. iJ
navio frágil remergulha, rodopia no vórtice, e a faina
dos marujos não esgota o porão inundado. Sob o dilú-
vio, arfantes, êles rastejam no tombadilho, fendendo
mastros, lançando amarras. Vai-se pelos ares, partido
o cabo, a única lancha de bordo, e toda a salvação está
num fio ainda ligado à terra. É a morte inevitável, des-
feito o navio, de chofre, na aresta, dos escolhos. Já os
cristãos se arremessam aos pés dos sacerdotes, vários
a um tempo, confessando-se urgentemente, ansiosa-
mente, para a suprema viagem. Perdem-se orações e
gemidos através da noite, cada vez mais tempestuosa e
ululante. A impávida crença de Anchieta, porém, con-
fia-se ao relicário dos santos, ao favor celeste da Vir-
gem, e o navio deslisa na escuridão, sem governo, ar-
·rebatado pela violência da correnteza. Roçando baixios
e fraguedos, não se detem, e à luz do amanhecer, ven-
cida a tormenta, é conduzido à plaga de Caravelas,
CELSO VIEIRA

onde vai ser finalmente rccompoato, sob & proteção de


Maria, com os destroços de mastaréus e velame do ou-
tro, pedaços de nave recolhidos pelos marcantes (15).
Ao longo da praia deserta os náufragos temiam a
aspereza do venda vai, o suplício da fome, os antropó-
fagos, a vizinhança das matas povoadas de sussuara-
nas. Mas havia na selva, ao contrário, a doce exube-
rância dos frutos sazonados; borbulhavam nascente~
cla-ras; eram amigos os íncolas; e Anchieta bendisse
mais tarde O náufrágio, porque ai baptizaram os jesui-
tas, em dia de Santa Cecília, uma criançà a expirar.
O ·baptismo era a salvação, o paraíso aberto aos peque-
nos agonisantes, conforme a doutrina, e eles haviam.
desse modo, arrancado ao inferno essa alma gentil.
Com o mesmo denodo e a mesma devoção, aparelhada
a sua nave católica, cindiram outro vez a· onda, fize-
ram-se outra vez ao largo, para entrar na véspera de
Natal de 1553 em S. Vicente.
Manuel da,, Nóbrega, o fundador, acolheu com
imensa ternura os cinco religiosos principal-
mente Joseph de Anchieta, em cuja mocidade cristã a
sua clarividência adivinhava um predestinado. Certo,
a notícia de elevação do Brasil à província .autónom~
da Ordem redobrou-lhe o contentamento. E era ele
o provincial, constituído por Inácio de Loiola, tendo
nessa investidura um companheiro, Luís da Grã.
Assim estimulado, não pela dignidade hierárquica, mas
pela confiança do patriarca, Nóbrega resolveu acelerar
a fundação do colégio de Piratininga. Mui tas razõe:,
determinaram esse acto, segundo Anchieta, que lhe

(15) A descrição da t empestade vem na earta. latina, di-


rigida. por Anchieta ao pa dre geral, 1:m maio de 1560, sôbre ar.
coiaas naturais de 8. Vicentó.
ANCHIETA 95

.enumera as causas principais: em S. Vicente a falta. de


víveres e a escassez dos frutos apostólicos, no seu iní-
cio tão animadores; em Piratininga o caminho aberto
à conversão dos guaranis, á conquista espiritual das
missões. no Paraguai.
Treze ou quatorze religiosos, no começo de janei-
ro de 1554, marcharam de S. Vicente, ipela serrania
acima, ·em busca dos campos frmotos, onde se aninha-
vam os índios sem conta .. Dirigia-os o padre Manuel
de Paiva. Ia com eles Joseph de Anchieta, e os aspec-
tos da terra brasileira sugeriam-lhe acaso novas emo·
ções, novos pensamentos. Já o seu misticismo não era
um doloroso anseio eucarístko e sobrenatural, que-
brando-lhe as forças, descolorindo-lhe o sangue, des-
prendençlo-lhe o ser da realidade tangível para o abis-
mar entre visões de santuário. Pelos caminhos radi-
antes ou nevoentos do Brasil, como São Francisco de
Assis no Canticum fratris solis, teria ele glorificado o
Senhor com todas as suas criaturas, em todas as suas
obras: o-luzeiro solar - frate sole, - do qual ~ão lam-
padas inumeráveis os dias; a magnificênda da lua ves-
tida ele prata e "das estrelas diamantinas; o vento ami-
go e as nuvens ligeiras; a humilde corrente d'água,
sarar preciosa e casta; o fogo robusto a crepitar no si-
lêncio da noite; e o seio da madre-terra, inexaurível,
1ue produz tanto vigor ele flores, frutos e ervas.
Brumas anuviavam, cumes ·enegreciam os a-res.
Cada montanha vencida, porém, era um degrau na as--
censão prodigiosa: abaixo, descortinava-se a,, proíun-
desa, ampliada sempre, dos vales frementes de bos-
ques, fragrantes de veigas. Segredavam as fontes, de
pedra em pedra, como naiades brancas e frias a correr,
mtm desejo, para a ardência do sol. Vagamente, no es.:
pelho dos rios, a luz criava miragens de incéndio, O
96 CELSO VIEIRA

arvoredo ipunha sombras move<liças, duplicando a agi-


tação das copas. E através de penedos, chapadas, bo-
queirões, despenhadeiros abruptos, por onde se reto:-:-
ciam lianas, a formosura ela terra semelhava o desa--
fio de uma virgindade ameaçadora, mas irresistível.
ao domínio potente dos homens.
Dialogando com essa natureza. Anchieta sentia a
complexidade módica cio Todo e a unidade essencial
do Verbo. Quisera enlaçar .e entender a terra invio-
lada, possuir-lhe a graça na curva cios arroios, fixar-
lhe o crescimento bíblico à prole, que não cessa nem
cansa, indo e vindo, através do Genesis transbordante.
com os seus bilhões de asas e pés, antenas e 'barbatana-e,,
Enquanto não lhe sondava o reino vegetal e o rei-
no animal como naturalista, gozava-lhe as metamor-
foses comr poeta, cujo sentimento <la natureza se pa-
tentearia mais ta,rde nos dísticos do poema à Nossa
Senhora, abrangendo o oceano, os rios, as fontes, a~
serras, ou adorando nela a transfiguração ideal das ár-
vores e das colinas rescendentes (16). Ouase tres de-
çénios após, Fernão Cardim revelarié\- -com emotivi-
dade e colorido o encantamento desses ~eregrinos da
terra virgem: "Todo o Brasil é um jardim em fres-
cura e bosques e não se vê em todo ano árvore nem

(16) ANCHIETA - De corwepli<me Virgini8 Jfariae:


N ondum lati vagi rliffluxerat equoris unda,
N er vagus obliquis fluxerat amnis a quis;
N onclum faeeundo mannrant gurgite fontC's,
Nn· juga ,•onst.iterant ardua moll' graYi:

Ve ortu beatae Virgi11fa Mariae:


Tu sancta infantula vitae
Arbor es 'eterna fert-ilitatt• gravis ..
'fu tollis, stillat pi:ngu,s ubi sylva liquores,
l'urnque d,, mdri~ c·01·tiec• ocl0ru fluunt.
ANCHtetA

erva. seca. Os arvoredos se vão às nuvens de admi-


rável altura e grossura e variedade de espécies. Mui-
tos dão bons frutos e o que lhes dá graça é que h:i
neles muitos passarinhos de grande formosura e va-
riedade e em seu canto não dão vantagem aos rouxi-
nóis, pintasilgos, colorinos e canários de Portugal e
fazem uma harmonia quando um homem vai por este
caminho, que é para louvar ao Senhor, e os bosques são
tão frescos, que os lindos e artificiais de Portugal fi-
cam muito abaixo. Há muitas árvores de cedro, aquí-
la, sândalos e outros paus de bom olor e várias cores
e tantas diferenças de folhas e flores, que para a vist?
é granide recreação e pela muita variedade não se can-
sa de ver" (17).
Anchieta: seguia, mais enamorado que os outros da
paisagem brasileira. Em vez de aparições indefiníveis
ou irreais, surgiam-lhe agora imagens concretas, múl-
tiplas, coroadas de luz, e a beleza esparsa das coisas
enfeitiçava o apóstolo recem-v:indo. Sob a estrela d'
alva, num lusco-fusco de veus rorejantes, despertava do
encanto nocturno a serrania, coberta edenicamente de
folhagem, para a neblina e o gorgeio das manhãs. De-

(17) Trecho da "-Iuforma~ão ta P'r(?vineia do Brasil (em


15S3) para .nosso Padre", a qual foi atribuida inexactamente a
.Joseph de Anchieta pelo historiador Capistrano de Abreu, com
a data de 1585~ divulgada nos seus Materiais e Achegas. O ver-
dadeiro autor é Fernão Cardim, secretário do vizitador 'Cristovãl)
de Gouveia, que a subscreveu, conforme evidenciou o- P.e Sera-
fim Leite (Jornal do Comércio, 30 dezembro 1945). SILYIO RO-
MÉRO no Livro do Centenário, pág. 9: " . .. não é de todo certo
que no primeiro momento, no tempo de Anchieta, todos achas.
sem melancóliea a terra e tràtassem-na com desdem. O próprio
famoso jesuíta cantou mais de um ditirambo ds suas maravilhas,
e o mesmo fizeram Nóbrega,. Cardim e Gabriel Soares".
98 CELSO VXEíRA

pois, na estonteadora magia do 1fogo, baiiados de ha-


ras ígneas crepitavam; os dias recompunham, sinfo~
nicamente, a glória do mesmo andante luminoso; se-
guiam-se a,-cordes gradativos de violeta e nacar, efeitos
de ouro san.guíneo e de ·ouro dnéreo da tarde, melodi-
as finais do Angelus, desfeito em cores evanescentes,
nós torreões de nuvens do sol posto. Anoitecia, rebri-
lhavam mundbs ignotos sobre a face pulcra, o seio in-
tacto da terra adormecida.
Orfeu caminhava para o inferno selvagem <le Pira-
tininga, como num perfeito noivado, haurindo o eflú-
vio poderoso às montanhas. Sentia-se renascer. Mís-
ticamente, o semeador cristão- havia desposado a terra
virgem do Brasil. -
LIVRO II

A ESCOLA DE PIRATININGA

Siempre ~o eoge algO. fructo per la misericordb.1


del Seil.or ...

ANCHIETA
l

Fundação da casa de S. Paulo. Os religiosos.


Mulheres criatianiaadaa. Homens inconversíveia;
Antropofagia. Esperànça doa padres. Baptiamo
Socorro aos enfermos. Regímen da casa de Pirà-
tininga.

No dia que lhes recordava o caminho de Damasco


e a prodigiosa conversão, 25 de janeiro de 1554, os
jesuítas disseram a primeira missa num altar impro-
visado e humilde, fundaram a casa, de S. Paulo em Pi-
ratininga, núcleo da cidade ·opulenta. Mànuel da No-
brega sintetisara em duas palavra.,s o espirita do novo
apostolado: obediência, mortificação.
Erguido pelos índios, o pouso dos jesuítas era
uma cabana minúscula, feita de táipa, e coberta de
colmo, um tecto imperceptível na lomba do planalto.
que, entre os ribeiros Tamanduateí e Anhangabaú, se
configurava em cidadela triang ular, cujos bastiões
fossem escarpas. Do viso dessa acrópole, rude pre-
eminência de vinte e cinco a trinta metros, de svenda-
va-se t odo o horizonte, a várzea dilatada, o curso do
Tietê. Subindo e senpeat}do, as veredas transitáveis
não abriam mais de quatro portas à cidadela - duas
ao norte, duas ao sul, vigiadas as primeiras, no vér-
tice do triângulo, pela fôrça de Tibir içá (o pripcipal
Martin Affonso) , defendidas as segundas, na base,
pela gente de Caiubi, velho e fi el cacique. Olhos d'água
brotavam pelas encos tas, pelos ba rrancos de schisto e
grez; entre os morros contíguos, perdia-se o cabeço
dominante na espessura da .mata virg em, sob névoas;
102 CELSO VIEIRA

ao poente, verdejavam terras umbrosas de caça e fru-


to com os ,seus pinheirais, as sua,s colmeias, bandos
de garças róseas ou níveas à orla das lagoas (18).
O abrigo dos religipsos media quatorze passos de
comprimento por dez ou doze de largura: tinham êles
a·í, conjuntamente, igreja, escola, dormitório, enfer-
maria, refeitório, casinha e dispensa. Mas não inve-
javam a pompa dos castelos reais, lembrando que um
estábulo fôra bastante à divindade infantil de Jesus,
um crucifixo à redenção do mundo. Logo depois, com
auxílio dos irmãos e dos íncolas, o padre Afonso Braz
encetou, dirigiu a construção do colégio e do tem.pio,
arquitectura lavrada em pedra vermelha de limonito
(19). No dia de Todos os Santos, em 1556, os jesuítas
inauguraram processionalmente a ,s ua nova; igreja (20).
E à sombra do templo, confiantes, já se aglomeravam
as casas de táipa dos indígenas.
Durante a, noite, como se .abrigassem nessa estrei -
teza e penúria vinte homens ou mais, entrechocavam-
se as redes suspensas do travejamento. Sem agasalho,
os irmãos regelados tiritavam sob a inverni~ brava,
entorpecidos já pelo sono, ou se comprimiam, aque-
cendo-se uns aos outros, macilentos na sua roupeta,
derredor do braseiro escassamente nutrido. Lá fóra
estrondeava por vezes a tempestade. Um ciclone bra-
, 1
(18) THEODORO SAMPAIO - S. l'.a4Jlo M tempo de
A11chieta.
(19) Ibd. Ibd. "As pa redes mestras -da igreja, do colégio,
hft pouco demolida, oram feitas com esse material" (pedra dt:
limonito).
(20) ANCHIETA - Oarta de Pi<ratiminga, "O prim.ro de
Nouembro nos passamos. E entramos cõ pçiasão em nossa Igre-
ja. noua., feita com os trabalhos dos Irmãos m.a.yormente cõ auor
do p.e Afonso Braz.. (fim de dezembro de 1556);
ANCHIETA 103

mia, ululante, seguido por um chuveiro de pedras, aba-


lando casas, desfazendo tectos. Oravam os padres, co ·
movidos, entre os horrores da noite fragoro'sa·, mas a
alva renascia, c·om ela a esperança cristã dos missioná-
rios. E os ares da floresta, as boas raizes da, terra vir-
gem, as duras marchas pelos alcantis davam saúde aos
mais débeis.
Em certas horas do dia, era tanto o fumo Ra cho-
ça, escurecedor e asfixiante, que êles preferiam doutri-
nar sob a geada, reunindo ao ar livre os catecúmenos.
Alguns lidavam como artífices, outros como lenha-
dores, na sombra da mata visinha, ao entardecer; e a
melopéa das orações acoilllpanhava O ritmo do seu
trabalho.
Pobre e remendàdo traziam o ve-stido sôbre o es-
queleto, perpassando através da garôa t enuíssima, de;;-
calços, enquanto não souberam fazer de cardo bravio
as alpercatas. Como toalhas, usavam folhas de Bana-
neira, estendidas no chão, se o óbulo dos índios lhes
dava algum ,sustento: farinha torrada ou abóbora, er-
vas ou raízes, em dias venturosos uma febra de macaco
ou de tamanduá, um exíguo peixe de águ a doce. Por
vezes, nutriam-se apenas de legumes é folhas de mos-
t arda. Vinhateiros <lo Evangelho, compunham de mi-
lho cosido e mel silvestre o seu vinho. Eram sóbrios,
castos, joviais, e aspiravam todos à glorificação pelo
martírio (21). Ainda em 1556, o principal sustento
da casa de. Piratininga - declara Manuel da Nobrega
- "é o trabalho de um irmão ferreiro (Mateus No-
gueira), que por consertar as ferramentas dos índios

(21) Histo-ria de la fwn,d,a cion del Collegio àel Rio de H e.


nero, y 8'U8 resideneias, Cap. I. " .. . en todos si veya mueha
alegria en estos trabajo.s y .hJ1ID.bre y deseo de padecer otros mu-
(lho IDAjores."
IOf CELSO VIEIRA

lhe dão de seus mantimentos, e é a boa indústria de


1.1m homem leigo ... ", afóra a incerta esmola, d'el-
rei e a do povo. ·
Em tôrno dos missionários, por brenhas e vár-
zeas, brejos e lagoas, reverdejava infinitamente o ser-
tão desconhecido; além, por traz de muralhas e cris-
tas da serrania, encrespavam-se os mares do sul. Ao
longo <la costa reinavam os tamoios, os tupís, os guaia-
nazes, os carijós, os bigobebas, no seio da floresta
os abacús, os guanamunins, os tupiares, os ibigraia-
res, tambem chamados bilreiros. Terras misteriosas,
tribos indomadas. . . A catequese imergia no coração
dêsse mundo bárbaro.

• *
·Duas vezes por dia,, em Piratininga, a sineta con-
vocava o gentio à igreja, e embora os caminhos fos-
sem íngremes, os ares frígidos, acorriam mulheres
em bandos ao toque de matinas oti de vésperas. Al-
gumas vinham nuas, como as suas irmãs da Baia,
,para as quais Manuel da Nobrega implorava a es-
mola de uma camisa ao padre-mestre Simão Rodri-
gues. Trazendo ao culto a virgindade agreste da al-
ma, o odor de planta selvagem do corpo bronzeado,
elas depunham mólhos de flores e folhas aromáticas
no santuário; ouviam atentamente a lição ou a missa
dos pagés brancos; rezavam no seu idioma gutural,
de joelhos, cruzadas as mãos sôbre o colo polpudo,
os seios pendentes; choravam nas confissões e comu-
nhões; diziam-se pecadoras em voz alta, rojando aos
pés do sacerdote, esguedelhadas e contritas, ou des-
fiando rosários polidos ao tôrno pelo irmão Diogo Ja-
come, sob a corôa de Nossa Senhora. Eram fieis na
ANCHIETA 105

taba (22), submissas no templo. As mais devotas lo ..


gravam ser baptizadas, mesmo admitidas ao sacra-
mento da Eucaristia: as mais doentes pediam com
instância que as levassem aos padres. Se os remé-
dios vegetais ou as sangrias copiosas não debelavam
os males, era urn consôlo para o missionário dar-lhes
a ~trema-unção, ve-las morrer com serenidade, ou-
vir-lhes na agonia, evolando-se à flor dos lábios roxos
e frios, o nome de Jesus. Como nas origens do cris-
tianismo, a natureza feminina, receptiva por excelên-
cia, propiciava-se mais que a natureza máscula aos
germes da boa nova.
Rixentos e glutões, os homens tinham a piedade
menos fácil , entranhas mais duras que o âmago dos
pedrouços. Não buscavam na igreja senão remédio
pronto a mordeduras de cobra, úlceras nauseantes, fe-
bres devoradoras. Enfermos, prometiam seguir a lei
de Deus; recobrada a saúde, porém, ficavam arrogan-
tes e maus, inchando na torpe animalidade como ba-
tráquios,-1-'num pântano. Raros apareciam no templo,
aos domingos, com enfeites de osso e pluma, exigindo
o baptismo, negado pelo sacerdócio, enquanto fôsse
duvidosa a conversão, e nessas almas poucas semen-
tes germinavam da prédica em linguagem tupí, desen-
volvida após o ofertório. Mais que a índole bestial,
como testemunhava Joseph de. Anchieta, a malícia
fundamente arraigada empedernia-os para a meta-
morfose cristã, de modo tal que permaneciam devas-
sÇJs, antropófagos e turbulentos, inumanos. Guaia-
nazes, carijós e tupiniquins atormentavam os religio-
sos, papagueando com estridor, inquirindo se Deus

(22) NOBREGA - Informação das terra& ào Brasil: "São


castas as mulbercª a s~'\U maridos..
106 CELSO VIEIRA

tinha cabeça e corpo, era solteiro como os padres ou


era casado como êles, qual ·o seu alimento, e a côr
das plumas •de que se vestia na sua taba.
Vinham outros confessar-se humildemente, quan~
do se aprestavam para a guerta, e o zêlo dos missio-
nários ardentes recrescia, mas a dispersão das tribus
guerreiras <leixavta sem almros os padres.
• • •
Ainda em 1560, recomendava Anchieta o plano
dos vastos aldeamentos, executado na Baía por Men
de Sá. Porque os ~dultos não se aplicavam à d outri-
na; ds menores, depois de instruídos, seguiam na fio·
resta o nomadismo dos pais. Malevolamente, segre-
davam aos índios os feiticeiros que os padres corriam
as selvas para os atrair, fechar entre os muros da
igreja e vender como escravos aos portugueses.
Essa bruteza inconversível ou indomesticável de-
safiava seis anos de apostolado, o fervoroso gênio da
catequese. Revendo o labor e o tempo consumidos,
Anchieta significa-va o desalento da alma evangéli-
ca: ". . . Se escrever a Voss~ Paternidade que haja
muitos brasileiros convertidos, enganar-se-á a sua
esperança . . . " Enfermo, admoestado pelo catequista,
um deles retrucavla, obstinadamente, que o deixa-sse
primeiro sarar, tapando os ouvtdos, com a surdez da
impiedade, aos artigos de .fé e aos mandamentos de
Deus. Outro, já ""moribundo, aconselhado a tomar o
baptismo, cobria a face tostada com as mãos calosas
para morrer inimigo da Igreja. Ainda outros, depÔis
de evangelisados, se deixavam benzer e sugar pelos
feiticeiros.
Sacrifícios humanos atribulavam constantemente
os religiosos. A quatro milhas de Piratininga, desa-
ANCHIETA 107

tentos aos rogos de Anchieta, que lhes verberava se-


melhante cobardia, e os ameaçava com o Divino Jui-
zo, índios catequisados mataram na sua ausência,
bailando e bebendo como loucos, uma formosa crian-
ça de três anos, baptizada pelo missionário. Não a de-
voraram, entretanto, e era já uma alegria para os ca-
tequistas essa abstinên,cia, como o foi, mais tarde, no
sacrifício de um adolescente de quinze anos, trucida-
do pouco depois do baptismo. Figura católica de ma,r -
tir, o jovem repeliu nas últimas noites o amplexo da
índia, guardadora do prisioneiro condenado à morte.
E ex,pirou com a perfeita ·resignação, que se despren-
de, maravilhando-nos, da própria narrativa anchic-
tana:
- "V.indo a alva, c1uando a sua alma havia de
ser vestida dos esplendores do Sol da Justiça, o leva-
ram atado pela cintura ao terreiro, estando aí g rande
multidão. Segura por muitos índios uma pa·rte das
longas cordas, que o prendiam, livre e sôlta rojava a
outra no chão. Acercando-se dele o matador, usou
primeiro das cerimônias e dos ritos selvagens, com a
palavra fatídica - morrerás! Gritaram os irmãos à
vítima que se puzesse de joelhos, e assim o fez, er-
g uendo os olhos e as mãos para os Céus, chamando
pelo Santíssimo nome de Jesus. Entã'O, brandindo a
espada de pau, o sacrifica<lor fendeu-lhe a cabeça, e
a alma ditosa buscou a glória imortal dos Céus.
Praza ao Senhor que tal morte nos dê, sendo-nos quebrada
a cabeça por a-mor de Cristo. Ao morto os inimigos desa-
taram as ·cordas, na:da mais fizeram, e os frmãos trans-
portaram o corpo em uma rede, às costas, para Pira-
tininga, onde foi sepultado ná Igreja ... " (23).
• • •
(23) ANCHIETA, cairta de l de ju:r,,'fl.o de 1560. - Moder-
nizamos ·o rtoirafia. e aintrure para melhor compreensão do texto.
108 CELSO VIEIRA

Como na Baía, a esperança maior dos jesuítas era


a instrução dos meninos, filhos de colonos ou índios.
(24). :Êles anteviam nesses pimpolhos queimados ,pelo
sol, que os pais vinham trazer de motu-próprio ao co-
légio, toda uma flora cristã por desabotoar.
o ensino constava só de catecismo em diá-
logos, leitura e escrita, um pouco de aritmética, mú-
sica vocal e instrumental, ocupando no dia quatro ho-
ras: duas pela manhã, duas à tarde. Havia tambem
para os irmãos e para os catecúmenos mais instruídos
a aula de gramática, regida suavemente por Anchie-
ta. Depois ·da lição matinal, sempre com os mesmo;;
louvores entoados a Jesus e Maria, dispersavam-se
os colegiais, indo à caça ou à pesca (25).
Nada igualava, porém, o fervor com que êsses dis-
cípulos de Loiola baptizavam os prisioneiros destina-
dos ao sacrifício, os meninos agonisantes, as mulhe-
res grávidas em perigo. Baptizando um selvagem, á
hora da morte, supunham arrebatar-lhe a alma peca-
dora ou inocente ao demônio, e Anchieta pormeno-
risava no seu epistolário, com evidente ufania, os ca-
sos de baptismo da;; mulheres e das crianças in extreniis.
Em cada estertor dos pequeninos moribundos, sob o
orvalho bento da Igreja, o apóstolo sentia, radiante,

(24) Ibd. Letras quadrimiestres de setembro até o fim de


dezembro de 1556, Do Brasil de Janro até Mayo de 1557: -
" por q. como dos p•• ou nhíia, ou muy pequena esperança aja
(porq não faltá algu q queirão seguir os costumes dos xpãos tudo
se õurte em os fo•, dos quais algfts inoçentes se uão para o siior,
os outros q são mais grandes, se instruê e insinão sempre diligen-
temête em ha fee".
(25) Ibd. Litterae trimostres a majo ad aug. 1556, ex india
Brasilica. 1.• via.
ANCHIETA 10§

um frêmito de ás:ls impacientes, que buscavam o pa-


raisa. Guiados espiritualmente pelos novos anjos, bem
poderiam cristianisar-se os pais, e um deles jornadea-
ra cem léguas, enfêrmo, até Piratininga, onde se fez
baptizar por obediência ao filho morto, que assim o
determinara em sonhos.
Fóra dos casos extremos, os missionários sàmen-
te baptizavam adultos já instruídos, possuindo os arti-
tigos da fé, conhecendo os misterios ceÍebrados pela
Igreja Romana. Mas era infinita a sua caridade. O
cansaço e a moléstia não impediam que êles socorres-
sem os habitantes de povoações longínquas. Alque-
brndos e doloridos, andavam léguas penosas à chuva
e ao sol, erguiam-se à noite para ati"a vessar desfiladei-
ros, capoeirões, tremedais. Não raro, tombavam des-
falecidos à margem dos caminhos, na visinhança de
alguma tapera, onde agonisava o mais pobre dos po
bres, um escravo, ou gemia na sua rede a mais obs-
cura das mães, e a singeleza do estilo de Anchieta é
comovedora: " ... muitas vezes estamos mal dispos-
tos e fatigados de dores, desfalecemos no caminho
de maneira que apenas o podemos acabar ... Muitas
vezes nos levantamos do sono ora para os enfermos,
e os que morrem, -ora para as mulheres de parto, sô-
bre as quais pomos as relíquias dos Santos, e logo
parem ... " Não obstante, os missionários bemdiziam
essas vigílias cristãs. Pesava-lhes só a frieza com que
as índias brasílicas, odiando os senhores ou fugindo
aos trabalhos maternos, praticavam ,desumanamentt
.
o infanticídio e o abôrto (26) .

(26) Ibdã Carta de l.o de junho de 1560. O padre Antó-


nio Colbacchíni, da Missão Salesiana , registrou em 1919, no seu
livro A Tribu dos Bororós, essa mesma tendência da mulher
6elvagem para o aborto e o infantieídio.
110 cEtSó VlErnA

Parà êrisino e exemplo dá gentilidade, conseguhi


Anchieta que fossem remetidos à escola de Piratinin-
ga os alunos do seminário de S. Vicente, filhos de
índios localisa<los naquela paragem. Vinham já ins-
truídos os menores em doutrina cristã, leitura, es-
crita e canto. Oriundos embora da selva, os peque-
nos discípulos, que eram sagazes e dóceis, tornaram-
se os melhores agentes da catequese. Executavam
a música sacra dos ofícios, comovendo e alegrando
os pais; instruiam na escola os recém-vindos. A noi-
te, dispersando-se pelas c.hoças dos arredores, impu-
nham silêncio aos cantadores selvagens, modulavam
as canções da lavra de Anchieta, e alguns deles fazi-
am entrever as :penas do inferno ao pai ou à mãe, re-
nitentes em velhas torpezas e crueldades. Muitos aju-
davam os padres na sua investida contra os bebedores,
quebrando-lhes as talhas espumantes de vinho selva-
gem. Outros se furtavam ao carinho, mesmo ao con-
tacto dos ascendentes, não querendo viver senão para
o colégio e para a doutrina. Guardava-se o repouso
dominical entre os piás com escrúpulos de monasté-
rio; contrito, perante os outros, um deles queimara
o cesto, que havia urdroo num domingo (27). Todos
os dias entoavam na igreja as suas ladainhas. Pro-
cessionalmente, às sextas-feiras, saíam pela aldeia,
cantando os hínos, flagelanido-se como penitentes, até
.que o sangue lhes corresse dos ombros, manchasse o
látego feito de cardo bravo (28).

(27) ANCHIETA - Litterae trimestres, eit.


(28} Ibd. - Cartas q=drimensais de maio a setembro,
1554. " ... em eada sexta-feira, disciplinando-se c'om mma de-
voção, até fazerem sa.naut,, 111.em em proci11ão.''
ANéi-IIETA 111

Tudo não era, entretanto, ama.rgtirà e a.sceti-smo


ha Escola de Piratininga. O dom suave da música,
revelado pelos columins, solfistas de capela-mór, ins-
trumentistas de côro e procissão, maravilhava os pa-
dres. Vencendo rochas e feras, entre os aborigenes, a
consonância das suas vozes tinha o poder lendário do
canto sôbre, o mal. Dançando o cateretê, apropriado
nas composições anchietanas aos fins religiosos, ês,ses
alunos mazombos se convertiam, a pouco e pouco, em
arautos musicais do cristianismo, através das flores-
'tas, vagueadas por demônios brasílicos - o corupira,
·silvante e erradio, o ipttpiara das -torrentes e dos ma-
nanciais, o boitatá fulmíneo, desencadeado em lam-
pejos de meteóro.
Não olvidavam os padres, no enlêvo da sua obra,
que essa mocidade trazia comsigo, latente, a herança
do sangue primitivo: ebriez, concupiscência, instintos
carniceiros, impulsos ,destruidores. Estariam acaso
mortas ou só adormecidas tais inclinações? Fôra an-;-
quilado pela doutrina o· homem da caverna ou esprei-
tava só a adolescência para de novo bramir e reinar?
Quem poderia assegurar-lhes que a idade não divor-
ciasse da fé os catecúmenos, identificando o sentimen-
to da prole com o dos antepassados, no mesmo re-
fluxo para o antro, ou acendendo nela a mesma paixão
atávica da guerra? Tristeza e dúvida pairavam, nes-
ses momentos, sôbre a esperança jesuítica. De feito,
o nomadismo dos ~ais arrancava os filhos púberes aos
missionários, bruscamente, remergulhando com êles na
selva e no vício. Pelos fins de 1556, quasi ninguem
• acudiria ao apêlo da sineta católica, se os escravos
elos portugueses não buscassem ainda o templo (29).
(29) Ibd. - Carta esarita em o fim de dezembro, 1566.
" ... Esse muytas uezes não uiessem á Igreija. a.lgüs oscrauos de
CELSO V1B1RA

Levados à fereza das ocas, barbarisavam-se os peque-


nos índios, m,irravam os frutos do Evangelho. Pou-
cos morreriam exemplarmente, invocando Jesus, como
a guaianá ele doze anos, que ao expirar dissera: "Te-
nho agora bons e formosos vestidos". Aia invisível
da rainha dos céus, a Morte envolvera-lhe a alma em
púrpuras celestes.

Portugueses q aqm uee tocar sehia a campainha pr demais. Enão


11ueria nhu dos Indios q se ensinasse.''
11

O inferno selvagem de Piratininga. Concupis-


cência, uranismo e poligamia. Explosão do amor
livre. A luta pela castidade. Intrigas doa mame•
lucoa. Os demônios de S. André da Borda do
Campo. Um gigante amável, Caiubi. Epidemias
e flagelações. O cancer. Um episódio sinistro.
Regressão dos conversos à antropofagia. Holo-
cáusto ao gênio da tribo.

Depois do nomadismo, o orgasmo da sexuali-


dade, com a braveza de amplexos violentos como de-
flagrações, escandalisava o sacerdócio. Em cada
mulher, dentro de cada moita, havia a tentação dos
cabelos soltos, o ~pêlo dos gestos lânguidos, provo··
cando os faunos da redondeza ao assalto; vaidosos e
caprinos, os homens alardeavam proezas eróticas, in-'
-genuamente supunham atemorisar Venus selvagem
com a potência das suas exibições, a jactância dos
seus -desafios, ou praticavam no recesso das matas vir-
gens a homosexualidade, que os missionários haviam
já surpreendido na Baía, entre os ferozes tupinam-
bás (30).

(30) GABRIEL SOARES - Tratado Descriptivo do Brasil,


2. • ed. pãg. 287 - " ... e não eontcntes estes selvagens de an-
darem tão encarniçados ucste pecado, naturalmente cometido,
são mui afeiçoados ao peccado nefando, entre os quaes se não
tem por alronta: e o que serve de macho, se tem por valente,
e contam esta bestialidade por proeza: e nas suas aldêias pelo
sertão lia alguns que tem tenda publica a quantos os querem
como mulheres publicas." !Consulte-se ainda V ARNHAGEN,
114 CELSO V!E'.InA

Mestiços loquazes e árdegos, línguas da terra,


bons interpretes, fugiam doidamente dos colégios ao
primeiro aceno das índias, remordidos pelo antigo de-
sejo. ·Elas importunavam, cingiam com avidez os alu-
nos cristãos, enroscando-se molemente às rêdes, es-
tremecendo como noivas felizes nos seus braços (31).
Sensuais até à loucura, os índios aplicavam à própria
viirilidade, exácer-bando-a, pêlos de tataiúrana, larva pu-
bescente e cáustica de borboleta (32).
Em 1554, escrevendo a Inacio de Loiol~ por
mandado de N obrega, o irmão Joseph insinuava a
transferência de alguns seminaristas brasileiros para
outro colégio da Ordem na Espanha ou mesmo para
o de Coimbra. Só educados longe da 1floresta, na cas-
tidade exemplar do noviciado europeu, os mais reli-
giosos poderiam fazer-se grandes missionários (33).
A poligamia consternava igualmente os padres.
Multiplicando-se a; tribu pelo convívio familiar da
taba, na aliança entre selvícolas da mesma estirp·e, o
casamen,to monógamo e religioso era assim dificul-
tado pelo grau do parentesco. Anchieta pedia que se
abrandassem as leis da Igreja, vedando ao gentio, ape-
nas, o casamento incestuoso por linha recta ou em pri-

Hist6ria Geral do Brasil, tomo I, seeção II, 21-22.


(31) ANOIIIETA - Carta de julho de. 1554. p.a Nto. Pa-
dre M. Ignatio preposito _genernl da Compafiin. Jhesvs. " .•. aca,
onde las mugeres andam õ.esnudas y no se saben negar a niu-
guno, mas aun elln.s mesmas ae·ometen y importunen los hombrcs,
eehandose com ellos en lns redes porque tienen por honna dor-
mir com los Christianos."
(32) Ibd. - Carta escrita em S. Vicente M fim do mes de
Maio, 1560. GABRIEL SOARES, Tratado Descriptivo ão Bra-
sil, 2.a ed., p6.g. 287.
(33) ANCHIETA - Carta de Julho ãe 1554.
ANCt-ttt!TA 1t$

meiro grau da, linha transversal (34). De outra forma,


seria uma ambição irrealisável a mudança do concu-
binato em casamento, sem o qual não era dado às mu-
lheres já ·p ossuidas o baptismo. ·
Por vezes, o amor livre dos naturais enfeitiçava as
próprias mulheres cristãs. Uma delas, casada, teve por
amante um selvagem, foi com êle para o sertão. Indo
busca-la, em nome da Igreja, falou Anchieta aos dois
com eloqüência tão vibrante que, miraculosamente, no
dizer de um biógrafo, '' converteu a pecadora, e per-
suadiu os gentios a fazer pazes com os portugueses".
• Singular foi o caso de outro selvagem, polígamo,
a quem os jesuítas haviam negado, como esposa, certa
indigena baptizada. Atraido por alguma promessa ou
dadiva, o irmão entregou-a, mas a índia cristã fugiu,
obedecendo aos padres. Como o jaguar de que a presa
se desaferra, o tupi foi-lhe no rastro, alcançou-a.
Não logrou vencer-lhe, porém, a resistência carnal,
gélidamente inexpugnável, e enraivecido, brandindo
a faca, decepou-lhe as madeixas lustrosas; arran-
cando à fogueira um tição, queimou-lhe os seios,
o ventre, a-s coxas invioláveis como portas de bron-
ze. Em vão. Mais :forte que a dor, 1].lais pura
que o fogo, a crença deu à mulher bravia um halo de
mártir. No ádito do templo, sob a mão protectora de
Anchieta, o que era carne babujada pela C'Oncupiscên-
cia tornou-se flor intangível, e outra vez o sátiro, des-

(34) Ibd. Cartas quadr. de maio a setembro, 1554. "Por


isso, parece grandemente necessario que o direito positivo se
afrouxe nestas paragens de modo que, a nüo ser o parentesco
de ermão eom erman, possam em todos os graus eontrahir casa..
mento . . . ''
116 CSLSO VtElRA

fechando ameaças de morte contra o apóstolo, recaiu


na floresta insondável (35).
Era tremenda a luta pela castidade nessas origens
da vida brasileira. Doutrinada por Anchieta nô culto
da Virgem-Mãe, a devota do santuário de P:iratinin-
ga, braviamente incorruptível, desafiava a libidinagem
do homem primitivo - o selvícola - e a do homem
barbarisado - o colono. Açoite, murro, punhal, nada
lhe vencia ~ frialdade, a esquivança, a reação deses-
peradora. Não raro, a,os gritos de uma índia violada,
acudiam as companheiras, esbordoando o fauno teme-
rário, que elas deixavam inerte e sangrento, quasi
morto na Iama, entre folhas mortas como os seus
desejos. Guerra dos sexos, implacável, à sombra pie-
dosa da cruz. . . Lanhados pelas unhas, feridos pelos
dentes da índia, os machos abandonavam a fêmea ter-
rível para êles, como se estreitassem ao peito, -em vez
de mulher, uma onça a rugir e morder. - "Porque
não obedeces ao teu senhor? De quem és tu escra-
va?" dizia um colono, exasperado, a uma das suas
cativas formosas. E contundida pelo bruto, esbofe-
teada, replicava a mulher triunfante na pureza da car-
ne dolorosa: "Sou escra,,va de Deus. Fala com êle.
se alguma cousa queres de mim." Abomináveis no
seu materialismo, edificantes na sua ideação, tais ce-
nas reconstituíam selvaticamente para Anchieta, o
martirológio das primeiras virgens cristãs (36).

Num arremêsso de paladino baptizado em Jaraiba-


tiba, :por êsse tempo, um catecúmeno fiel retomava
(35) Ibd. Carta de Lo de junho de 1556; de janeiro a maio
1557.
(36) Ibd. Carta de 1.0 de Junho de 1560.
ANCHIETA 117

aos salteadores indígenas uma bela imagem de Nossa


Senhora, lutando, como se arrancasse o próprio sím-
bolo da castidade à selvageria,.

• • •
Não repousava o demônio, salaz o destro, omní-
modamente corruptor. Pela bôca do gentio indomável,
sussurrava aos catecúmenos, ainda e sempre, que
era intento dos jesuítas, fechando-os na igreja, sub-
meter os conversos à escravlidão, os infieis à morte.
Ao mesmo tempo, os mamelucos de João Ramalho,
habitantes da vila de S. André da Borda do Campo, a
nove milhas de Piratininga1 e mercadores de escravos
indígenas, arrebanhados por todo o planalto, não to-
leravam os catequistas. Nos fundadores do colégio
descobriam rivais, cuja se<lução, congregando em suas
estâncias os índios, soberbas peças de resgate, lhes
prejudicava o negócio e a fortuna. Assim foi gerado
o primeiro antagonismo do comércio e <la catequese
no Brasil.
Os ramalhistas, como se diz nas crônicas da Or-
dem, procuravam excitar os conversos, lançando-lhes
em rosto a, cobardia da sujeição a forasteiros e degre-
dados - os padres. 1hse labéu, mais do que outro
qualquer, doera aos tupís belicosos. Se haviam de ter
senhores - gritavam os mamelucos, - antes fossem
êles, combatentes de arco e flechas, gu.a:rdando nas
veias o sangue e a fúria da ascendência brasílica. A
ousadia dos bandeirantes latejava na prole de João
Ramalho, que o padre Leonardo Nunes fizera sair da
igreja em 1549, não querendo celebrar o sacriHcio na
sua presença. Im;penitente e arrogante, o pecador
fô.ra <lepoi~ txco.mungado.
118 CELSO VIEIRA

João Ramalho, o caminheiro hercúleo das origens


coloniais, grande língua da terra e grande aliado das
tribos, padrão inicial de cruzamentos luso-indígenas,
proliferava desde o comêço do século, entre as índias
do planalto. Deixara a esposa em Portugal e era um
padreador como Diogo Alvares, o Caraniwrií. Aman-
cebado com Isabel, filha do cacique Tibiriçá, velho se-
nhor dos campos de Piratininga, correra em 1532 ao
encontro de Martin Affonso, levando-lhe à Bertioga
o apôio de 300 arcos, que sustaram a onda selvagem
de tamoios,. já empolada contra o fortim de madeira
dos recem-vindos. Guiara com a mesma lealdade o chefe
branco até Piratininga, onde fôra nomeado capitão-mór do
campo. O seu povoado ínfimo, Borda do Campo, desen-
volveu-se tanto pela fecundidade e pela escravatura
num decênio, que Tomé de Souza, indo a S. Vicente,
deliberou fazer da aldeia uma vila. Com a trincheira,
os baluartes e o pelourinho, S. André ,da Borda do
Camipo, afinal, teve João Ramalho por alcaide-mór.
Então, supondo-se viuvo, queria êle casar com a
sua índia, e para indagar semelhante viuvez, a, possibi-
lidade eclesiástica <la licença matrimonial, houve uma
carta de Nobrega, em 1553, a um clérigo domiciliado
no reino. Quer de João Ramalho e Isabel, depois do
matrimônio, quer dos seus pró,prios filhos, Nobrega
esperava grande reforço para a conversão da gentili-
dade. Mas dêsse casamento não adveiu notícia aos pes·-
quizadores. Certo é que o pai dos mamelucos fôra ex-
comungado, antes de tudo isso, pelo vigário secular, e
ameaçara o padre Leonardo Nunes, que o expelira do
templo à hora da missa.
Ilusionistas da história do Brasil v:eem nessa fi-
gura, hipoteticamente, ora um derrredado
0
ora um náu-
1

frago; às vezes, um traficante po rtuguês ou ·espanhol,'


ANCHIETA 119

outras vezes, um dos grumetes deixados à terra vir-


gem pela frota de Pedro Alvares Cabral. Exumando-
lhe o duvidoso testamento, induziu alguem que êle pre-
cedera Colombo na descoberta da América (37). Um
historiógrafo já identificou em Ramalho o bacharel de
Cananéa (38); um erudito já lhe recompôs nas gara-
tujas da .firma o 'kaf, signo hebráico, delatando o ju-
deu (39). Mas tudo isso é fantasioso e con,traditório.
Positivamente, apurou-se que o ancestral dos mame-
lucos, alcaide-mor de S. André, vinha do mesmo tron-
co de Manuel de Paiva, sacerdote filho de nobres, e
que ainda em 1554, com a sua prole feroz de mestiços
apenas ·baptizados, guerreava.. os jesuítas, conforme a
denúncia epistolar de Anchieta: " ... uns certos ,cris-
tãos nascidos de pai português e de mãe brasileira, que
estão distantes de nÓts nove milhas, em uma povoação
de portuguêses, não cessam, juntamente com seu -pai
(Ramalho), de empregar contínuos esforços para der-
ribarem a obra que, ajudando-nos a graça de Deus, tra-
balhamos por .edificar ... - :Êste (Ramalho) atra ves-
sou por quasi cinqüenta anos esta região, tendo po,
manceba uma mulher brasílica, da qual procreou al-
guns filhos. . . - o padre Manuel de Paiva, cuidando
em atar e aproveitar-se utilmente do parentesco de
sangue, que conheceu existir entr e êle e o pai dos mesmos,
julgou por êsse modo fazer alguma cousa por êle. -
... observando que continuavam os maiores escânda-
los por causa do indecoroso e dissoluto modo de viver

(37) FR. GASPAR DE MADRE DE DEUS - NoU.


eia dos ooos em que se descobriu o Brasil.
(38) CANDIDO MENDES DE ALMEIDA - Notas para
a história pátria.
(39) HORACIO DE OARVALHO, eit. na HiBtória do
Braau. de Rocha Pombo, vQI. IlI, pagil, 63-64.
120 CELSO VIEIRA

não só do pai como dos filhos, qu,e se ajuntavam com


duas irmãs e parentas, começaram a exercer algum ri-
go·r e violência para com êles, expelindo-os sobretudCJ
da comunhão da Igreja ... - ... são de tal modo de-
pravados que nos perseguiram com o maior ódio, es-
forçando-se em fazer-nos mal por todos os meios e
modos, mas especialmente trabalhando por tornar nula
a doutrina com que instruímos e preparamos os índios
e movendo contra nós o ódio deles" (40).
Tal é a denúncia do j e suita,. Dando ouvidos aos
maldizentes, os índios de Maniçoba e de outras aldeias
tomaram armas, cresceram à face dos padres, rug1-

(40) ANCHIETA - Cartas quadrimen.sais de maio a se-


tembro de 1554.
Subsistiam nesse período as hostilidades eJJ,tre o jesuitismo
3 o ramalhismo, nada autorizando a seguinte conjectura de CA-
PIB'TRANO: "As coisas parece passaram pouco mais ou menos
assim: Leonardo Nunes teve atritos com João Ramalho mas
por fim do~·tinou-o... Quando Leonardo foi .à Baía busca;
os irmãos vindos com d. Duarte da !Costa, Nóbrega subiu a
serra em companhia de um filho de João R!lmalho, informa Po-
lanco, que fixa a data - degolação de S. João Baptista - 29
de agosto de 1553. Já as desavenças deviam ter cessado, senão
outro seria o proceder do filho." (Cit. por MADUREIRA, A
Liberdade dos índios, A Companhia de Jesus, Sua pedagogia e
seus resultados, vol. I, pags. 17-18). As desavenças não tinham
cessado; redobrariam m~smo de azedume e de violência em 1554.
Seis anos depois, em 1560, é que podemos dar eomo extinto -ou,
melhor, sopitado, até à época das bandeiras, o ódio dos mame-
lucos aos jesuitas: influenciados por estes, chegam aqueles, in-
vocando razões de segurança e de fé, a pedir transferência llo
foral de S. André para S. Paulo de Piratininga, c·omo obtiveram do
governador ~en de Sá. Veja-se a História Gerai do Brasil, de
VARNHAGEN, I, pg. 565, La ed.; Carta à Rainha dos Camaristas
Jorge Moreira e Joannes Alves, de Piratininga, em 20 de maio de
1561.
ANCHIETA 121

ram à guisa de onças libertas. Mas o Evangelho, de


novo, aplacou a selvageria e deteve a carnificina.
S. André, vila pecaminosa do amor livre, da fôrça
livre, continuando a tradição das cidades exterminada3
na Biblia, injuriava torpemente o ascetismo de Pira-
tinil).ga, em que depois se fundiu (41). Era o pande-
mônio da mestiçagem pugnaz, odienta e depravada.
Os moradores viviam no deleite carnal da poligamia
e do incesto. Gargalhavam diante dos padres, em res-
posta aos anátemas desferidos contra a sué!, libidi-
nagem; concítavam os índios a que volvessem ao pra-_
zer da chacina e do canibalismo. Repintados de urucú,
meneando a clava, êles próprios esfacelavam ao prisio-
neiro a cabeça, tomando-lhe o nome, e ofereciam ,aos
bugres o cadáver. Impenitentes na sua maldade, ar-
rogantes no seu gentilismo, nada temiam dos céus nem
da terra. Observando-se a um deles que os seus des-
mandos estavam a desafiar o juizo fulminante da In-
quisição, retrucara o mameluco:
- Acabarei com as Inquisições a flechadas (42).
Na altivez da réplica lampejava o orgulho avo-
engo dos tupís, que em plena tempestade, sob o fuzilar
dos coriscos, despediam flechas contra o céu. E assim
o vilarejo de S. André, núcleo terrivel das bandeiras,
oposto ao núcleo espiritual das reduções, desafiava o
colégio de Piratininga com assoberbante rivalidade,
enquanto não sobrevinha a concórdia aparente dos je-
suítas e dos mamelucos, em 1560, com a transferência.
para junto da· Casa de S. Paulo, como todos êles pedi-
ram a Men de Sá.
(41) Acto do Governador Men de Sá, mandando trana.
ferir da vila de S. Andr, o pelourinho para Piratinin.g a, em
1560.
(42) AN\OHIETA - Carta:s quaàr. de maio a setembro,
1554.
122 CELSO VIEIRA

Um biênio após, Ramalho exercia por eleição dos


munícipes o cargo de capitão-mór de S. Paulo de Pi-
ratinínga.

Os rebentos mais vigorosos da gentilidade O não


eram só anti-cristãos, indomáveis e carniceiros. Ha-
via bons gigantes em Piratininga, um deles Tibiriçá.
o que em 1562 salvou o colégio, outro Caubi, o princi-
pal Folha verde, secular e -submisso, potente e devoto.
Escravo de Jesus, amigo dos padres, saira das roças d(
Jaraibatiba -para a fundação apostólica. Viera bapti-
zado, com os filhos e netos maiores, formando todos
uma aldeia já repartida em casais honestos, acomoda-
dos no lugar que é hoje Tabatinguera. De atalaia, os
novos. cristãos guardavam o caminho de S. Vicente.
Por êsse caminho ·rústico e sinuoso, do espigão da
serra ao litornl, descendo pela várzea em picadas e
\eredas, meandros alpestres, Caubi marchava com a
ligeireza ·dos moços. Cem anos, mais de cerri anos con-
tados ao homem como ás árvores idosas do plana lto,
haviam-lhe forjado o vigor aos múscúlos e nervos, aos
rins de atleta e caminheiro, ao velho coração infatigá-
vel no peito hercúleo e brônzeo. O morubixaba fizera-
se patriarca. Folha verde exuberava em folhagem, como
à pau d'arco amarelo, na ramificação inumerável da
prole.
Ouvia missa todos os dias, obedecendo em tudo ao
sacerdócio, laborando para o colégio. Durante as obras
de fundação, era-lhe forçoso buscar o alimento dos tra-
balhadores em Jaraibatiba. Mas não partia o velho
i~dio sem pedir licença na igreja a Nosso Senhor; nã.:i
vinha daqueles matagais e perigos sem lhe render no
r.antuário as suas graças. Em vez do arco e dai fie-
ANCHIETA 123

chas, retomava nessas jornadas um bordão de peregri-


no, sôbre o qual fixara urna cruz.
Secularmente viveu, piedosamente findou, robu.s-
tecido pelo tempo, remoçado pela fôrça genésica da
terra, a mesma fôrça vital que em tôrno dele ramalha-
va e frondes-eia. - " . .. era, para maravilhar, diz An-
chieta, ver um homem de tanta idade, que se espanta-
vam todos como tanto vivia ... , tão rijo e são, cada ·vez
mais ma,ncebo." Com o verdor imutável dos gigan-
tes de cerne indestrutível, quando alvorece pelas ma-
tas e gorgeiam todos os pássaros, longevidade e mo-
cidade refulgiam à luz do 601, cada manhã, no
centenário alegre de Gaubi, o Folha verde.

Como se os flagelos naturais devessem agravar as


torpezas humanas, sobrevinham doenças mortíferas,
epidemias, que dizimavam os índios, mal adaptados ao
sistema dos aldeamentos jesuíticos, redobrando· com
espantosa virulência as infecções transmitidas pelos
brancos.
Nos primeiros anos a pleurisia devastou os arre-
dores e essa mortandade foi logo atribuida pelos fei-
ticeiros ao novo regíme católico, ao abandono da:'i
velhas crenças indígenas, ao desprêzo dos ritos e usos
selvag ens. Contra o diabo e a peste decidiram os je-
suitas, então, realisar nove p rocissões aos nove córos
de anjos. Homens e mulheres percorriam o triângulo
de Piratining a, em filas clamorosas, a rezar, a gemer,
a bramir, com os seus lumes d e cera erguidos e lacri-
mejantes; seguiam-se os escola res, verg ando ao pêso
de longas cruzes ou vertendo no delírio das flagela-
124 CELSO VIErRA

ções o próprio sangue. Uivos e preces, lamentos de


catastrofe ressoavam no ar nebuloso, encinzeirado.
Joseph e os seus discípulos guiavam os penitentes,
assistiam aos moribundos, sangravam os enfermos à
ponta: de canivete. Sob a invocação tutelar da caridade
cristã, o patriarca Inacio de Loiola tranquilisou mais
tarde os escrúpulos dos religiosos, autorisando as san-
grias eclesiásticas (43).

• • •
O devotamento dos jesuítas conhecia todas as pro-
vas. Frequentemente, não tinham outros enfermeiros
as mulheres indígenas, mesmo as virgens, corroídas
pela tenacidade asquerosa e secreta de úlceras más.
Uma velha amiga <le português, doadora da igreja e do
colégio, tra·zia. nas vísceras um câncer. Impossível ten-
tar nesse caso o emprego de barro incandescente,
usado pelos selvicolas (144). Com o seu odor de putre-
facção estonteante progredira o mal, afugentara os es-
cravos e os filhos da mulher condenada. Sómente doi:;
jesuítas, o padre Afonso Braz e o irmão Gaspar Lou-
renço, vencendo a repugnância olfactiva, que era in-
vencível nos mais, ficaram de joelhos á cabeceira da
agonisante, velaram-lhe a última noite. Que importa-
va a exalação ·horrorosa d:i, sânie? Dessa impure7.a
talvez brotassem flores, amanhã, para o campo selva-
gem de Piratininga. E a alma redimida pel:i, crença,
(43) SIMÃO DE VASCONCELOS, Chronica àa Companhia
de JelfUf!, 2.• ed., liv. t, pag. 93. " . . . mandou-se perguntar a
questão a. Roma. a nosso Santo Patria.rcha Ignacio para suc·cessl.le
semelhantes: a resposta foi por estas palavras: "Quanto às
sangrias digo, que a tudo se estende o bojo da eharidade".
(44) ANCHIETA - Carta sobre as coisas n.aturais de S.
Viomite, 1560.
ANCHl!TA 125

puriíicada nessa dor, seria talvez mais um lírio, tres•


calante e perfeito, desabotoando na glória invisível do
seu jardim pa,ra Deus (45).

• • •
Não rato, embocando a inúhia, um. cheifé tamoiô
soprava a discórdia, e ao encontro da turba-multa, que
se aproximava de Piratininga, saíam os catecúmenos.
Em uma dessas refregas, intimidados pela fôrça dos
contrários, já os cristãos desfalecem, quando a mulher
do capitão da aldeia, benzendo-se, exorta os seus à pe-
leje\' e recomenda o gesto simbólico. Ao sinal·da cruz,
foge o inimigo, salvando-se todos os guerreiros cris-
tãos, excepto dois, que não se haviam persignado. Nas
sombras da noite, porém, os vencidos tornam como as
hienas, desenterram os cadáveres, que êles supõem dos
venc_edores, largados no. campo de batalha, donde os ar-
rastam sofregamente para a sua taba. Farejando a
nudez terrosa dos corpos ainda sangrentos, bebem ,.
dançam. Mas através da neblina,, como através de um
sudái:io, transluz vagamente o dia; sob o palor da ma-
nhã funérea, com espanto, os canibais reconhecem na
lívida face dos mortos arrancados á sepultura os seui
próprios amigos ou parentes·... (46).
Outras vezes, inopinadamente, sobrevinha o reflu-
xo da alma colectiva, naquela estância devota, aos ape-
tites canibalescos e às práticas inumanas. Tendo apre-
sado, em guerra, um valente e polpudo guaianá, resol-
veram matá-lo e comê-lo os índios conversos de Pira-
tininga. Não tardaria o sacrifício, para o qual estava

(45) Ibd. Carta, de 1,o de junho de 1560.


(46) Ibd.Cartas quadr, de maio a setembro de 1554.
CÉLSO VIEIRA

já revestido e empenachado o sacrificador, quando sur-


giram no terreiro o pâ,<lre Nobrega e o irmão Anchieta,
despertados pela g rita dos catecúmenos em fest a. Mas
bradaram em vão contra o pecado mortal da antropo-
fagia, cometido à porta do templo: nada queria ouvir-
lhes o principal Martin Afonso, outra vez Tibiriçá, di-
rigindo os preparativos da cerimonia. Velhas necró -
fagas, desdentadas, amontoavam lenha para a fogueira:
derredor do guaianá, disposto a morrer corajosamente,
prosseguiam descantes, libações e rondas. Então, num
soberbo impulso de humanidade, Anchieta e Nobrega,
rompendo através do terreiro, desligaram o índio ca-
tivo, afugentaram as bruxas, extinguiram o fogo cre-
pitante, despedaçaram as panelas de barro e as talhas
de vinho. Tibiriçá, o principal, bateu o arco e os pés
no meio da horda. Seriam dalí expulsos os religiosos,
que assim perturbavam a desafronta dos guerreiros da
tribo. Mas venceu ainda nesse recontro <le evangelisa-
dores e carniceiros a eloquência do irmão Anchieta, do-
mando os instintos ferozes: no dia seguinte, arrepen-
dido, Tibiriçá, outra vez Martin Afonso, e todos os
seus índios violentos cairam de novo aos pés dos mis-
sionários (47).
• • •
De quando em quando, a tragédia relampeava sô-
·bre o ca,,tolicismo de Piratininga, dava aos jesuítas a
surpresa das emoções teatrais. Certo índio fôra con-
vidado pelo irmão a procurar com êle um grande pagé,
que em 1557 fazia o espanto dos sertões, arrebanhando
tribos ingênuas e medrosas. Sob o olhar do feiticeiro,

(47) SUUO DE VASCONCELOS, Vida ão P. Ânchieta,


ti..,. I, cap. VI.
ANCH1E1'Â

dardeJante como o de um fakir, os mai5 impetuosos na


guerra estremeciam; um rôlo de fumo, que lhe sais se
da bôca, transmitia o poder dos espíritos malfazejos.
:Êsse tremendo pagé, inimigo dos ,cristãos, amea,çava
Piratininga, e como O índio tentado pelo irmão já en-
trevisse a luz verdadeira, já escutasse os padres, não
aceitou o convite.
Ao anoitecer, tonto de vinho e ódio, o selvagem
repelido esfaqueia três vezes o outro. Cuidando que
houvessem rixado pela mulher do primeiro deles, a
sogra investe contra a nora. Mordem-se as duas como
feras. Do fundo escuro da taba precipita-se um moço,
·querendo aparta-las, mas a; velha enfurecida lhe era va
no estômago duas flechas. Tràgicamente, ao vê-lo
morto, foge para o negrume da selva, brandindo aceso
um tição, clamando. Volta pouco depois, sem gritos,
pede com humildade e tristeza que a matem, para não
atrair sôbre os filhos a vingança da parentela do mor-
to. Na manhã seguinte, à beira da sepultura, que êle
próprio rasgára, o seu primogênito enlaça e enforca
serenamente a velha índia, depõe os dois cadáveres na
mesma cova, abaixo o da, criminosa, acima o da vítima,
e o esquecimento cái sôbre os despojos, lúgubre, com
a mancheia final de ter,ra. É a paz entre vivos e mor-
tos, inquebrantável. Só então, satisfeito com o matri-
cidio, repousa CI gênio cruel e vingador da tribo.
itt

João de Boléa em S. Vi'Cente. Perfil do aven-


tureiro. Tragi-comédia religiosa da França An-
tarética. Villegagnon e Bolés. Expulsão de um
teólogo como bôca inútil. Desforra. Monaior de
Boléa, herege. Denúncia daa suas heresias. In-
quérito mandado com o réu à justiça eclesiástica
da Baía. Relações do herege e do governador
Boléa na tomada do Forte Coligny. Nova prisão,
novo processo avocado pelo Santo Ofício de Lis-
boa. Julgamento. Penitência no mosteiro de S.
Domingos. O aventureiro segue de Portugal para
a lndia e não torna maia ao Brasil.

No começo de 1558, em. Piratininga, o padre Luiz


da Grã recebeu, assinada por des Boulez, a mais ori-
ginal das epístolas, onde o signatário, pavoneando-se,
alardeava a magn~ficência· erudita das suas letras.Ado-
lescente - dizia êle, - tivera um mestre singular, do
qual muito aprendera: depois, cursara a escola das Pie-
rides ( 48), bebendo inefáveis arroios de sabedoria à fonte
cabalina; imergira· com os santos doutores na profun-
deza da Sacra T~ologia; guiado pelos Rabbis, homens
graves e puros, decifrara os textos hebráicos da Es-
critura, os livros mais veneráveis da Sinagoga. Como
estivesse agora, em S. Vicente, desejava praticar sôbrc
cousas divinas e humanas com Luiz da Grã, logo que
se avistassem. E a comunicação findava por um dís-

(48) Pierides são as princezas vencidas no torneio fabuloso


pelas Musas, que lhes tomam, por vezes, o nome. Livro V das
Metamorfoses, de Ovidio.
ANCHIETA 129

tico, arrogantemente lançado à humildade cristã dos


missionários de Piratininga. Anchieta resumiu-a na
sua comunicação ao padre geral (49).
Quem era des Boulez. signatário da estranha mis-
siva? Um recém-vindo de Guanabara, o francês Jean
Cointa: ou Cointac, acadêmico da Sorbonne e aventu-
rei"ro da França Antarctica. ~le aportara ao Brasil,
em 1556, com os demais forasteiros da expedição ca-
tólica e protestante de Bois-te-conte, sobrinho de Vil-
legagnon, rei da América, em pleno deserto e plena mi-
ragem. Inexplicavelmente, a bordo, Jean Cointac adop-
tara o·nome de Heitor (50). Passando á colonia de
S. Vicente, porém, o aventureiro preferiu chamar-se
des Boulez, nome do seu lugar de origem, incerto lugar
da antiga provincia de Champagne, e, em vez de M on-
sieur H ector, como era tratado pelos companheiros, foi
entre os portugueses M·onsior de Bolés, pessôa de bom
sangue, e gentilhomem francês, depois João de Bolés,
nome· com que entrou na história do Brasil, onde pro-
voca, ainda hoje tanta celeuma. Devemos relatar-lhe
paçientemente o caso pela sua influência, adulterado
como foi, sôbre a 1n.emória de Anchieta.

João de Bolés havia chegado à fortaleza de Ber-


tioga, em 1558, com a notícia da marcha de cinco ou
seis mil tamoios, instruitlos e acompanhados por ietc

( 49) Carta de l.P ile junho de 1560.


(50) LERY - Histoire d'un. voyage, fait en la terre tlu
Brésil, autremen,t dite A merique. " ... parce qu 'ils n 'auoyent pas
bonne opinion d 'un eertain Iean Cointa qui se faisoit appeler
Monsieur lleetor nutres fois doeteur de Sorbonne, leque) a.uoit
passé la mer av.ec nous ... " ehap. VI, pag. 67.
130 CELSO VIEIR,A

ou oito franceses, artilheiros, sôbre a,, capitania de


Martim Afonso, que Villegagnon determinara subme-
. ter ou arrasar. Expulso do forte Colign.y pelo almiran-
de como boca inutil, o aventureiro planeava a sua vín-
<licta, refugiado com outros franceses na aldeia de
Olaria. (51). O novo projecto de Villegagnon deu-
lhe oportunidade para a fuga e para a desforra.
Ao brado de guerra dos tamoios, simulando en-
tusiasmo, João de Bolés partiu na expedição orgam-
sada contra S. Vicente. Em caminho, porém, adian-
tou-se à onda, selvagem, iludiu os espias da vanguar-
da, com êles ,foi em canôa até aos muros de Bertioga.
Aí denunciou o perigo ao capitão, que poude recolher,
concentrar desde logo toda a gente esparsa nos cam-
pos, indefesa. Salvando-se a colônia, viram os ·seus
habitantes em João de Bolés o bemfeitor de S. Vicente.
Por êle, conheciam já o perigo da França Antarctica e
nele conheceriam, pouco depois, o da França• herética,
em luta com os jesuitas.
Era um homem jovial e .destemido, vaidoso e lo-
quaz, rixento e volúvel, tipo de fanfarrão, mercenário
e letrado, sem valor para nada ou apto para tudo, con-
forme o ambiente e as circunstâncias. Tinha o desa-
fio pronto, o discurso entremeado de anedotas ou iro-
nias, o argumento fácil dos contraditores habituais.
Servia-se ela espada com arrôjo, da pena com esmero,
da intriga 'Com astúcia, e uma ambição capaz de todas
as maldades, todas as ousadias, requeimava-lhe a alma

(51) A aldeia de Briqueterie (Olaria) fic'ava a meia lé-


gua do forte, segundo Crespin, Histoire àe8 Martyr8, João de
Bolés, porém, ao depor na casa do despacho da Santa Inquisição,
em Lisboa, a 16 de novembro de 1563, localiza o seu refúgio
no continente a duas léguas do forte Coligny.
ANCHIETA 131

sedenta de ouro e poder. Havia, qualquer cousa de en-


fático _e de cínico, ao mesmo tempo, na sua impetuosa,
mas inconstante personalidade.
Doutorado pela Sorbonne, o frances ensinava
as artes liberais, o latim, o grego e o hebráico; mane-
jando correctamente o espatí.hol, dava-se à oratória et1-
tre os colonos portugueses; conhecia os textos sagra-
dos e clássicos; possuía todo o curso de humanidades,
apanágio <lo século XVI, e todas as idéias políticas e
religiosas· da época. Na sua jactância não deixava de
ser fascina.dor, como Joseph de Anchieta reconhecia. O
vulgo maravilhava-se de tanto saber e tanta· eloqüên-
cia, dotes apregoados convictamente por Bólés (52).

• • •
Seria êle ·um dominicano renegado? ( 53) Ou acaso
lhe fôra prometida, entre os fieis de Guanabara, a
dignidade episcopal? (54) João -de Bolés afirmaria mais
tarde, ,perante o bispo da Baía, não hav'er ·professado,
(52) Epístola de Bolés a D. Pedro Leitã~, junta nos autos
do inquérito em 26 de agosto de 1561.
(53) VILLEGAGNON - R epanse aux libelles à'injure.,.
"On me reproche ung Jacobin nommé Cointat, leque!, ce dit-il,
&. trahi mon fort. ,O 'est un de ceux qui me vint trouver a.v ec
reux de Geneve, à moy recommandé non par Calvin msis par
anltre d 'uns même e·h aleur d 'affection, il cuseignoit la Confes-
sion d 'Augnst. Au moyen de quoy s 'ourdiront lcs débats qui
nons engendrercnt tant de troubles de rcligion".
(54) CRESPIN - Histoire des Martyrs, " . . . pretendia:. a
Superintendência do Episcopado, alegando que ci lugar lhe fora .
prometido em França (Trad. do tomo II, pag. 448-465 e 506-
519, por Domingos Ribeiro). ARTHUR HEULHARD - Ville-
gagnpn - Rol à' Am~riqu-e - pag~ 143: "Je ne sais ce qu 'on lui
avait promis à son départ de France : mais il se considérait com-
me superieur aux Ministres par une maniere d 'episcopat in par- ·
.tibus."
132 CELSO VIEIRA

ignorando, contudo, se lhe dera ordens eclesiásticas ç


cardeal de Bourbon, ao aismá-lo na igreja de Brune!,
ainda criança (55). De qualquer modo, a religião era
nele uma idéia fixa, o objecto dos seus discursos, o
elemento das suas aspirações. Vindo para a França
Antarctica, pretendera logo a superintendência do
episcopado e nunca perdoara o veto, oposto a essa can ·
didatura pelos <lois :pastores genebrinos, seus compa-
nheiros de viagem, Pedro Richier e Guilherme Cartier.
Ora o católicismo de Villegagnon, só eclipsado,
momentaneamente, por adesão ostentosa, mas insin-
cera, à Igreja de Genebra, não tardaria em hostilisar os
calvinistas. João de Bolés, ainda 'monsieur Hector ou
Jean Cointac, foi no conselho administrativo o demônio
sagaz e sutíl, rancoroso e persuasivo, multiforme e
implacável, que acendeu a discórdia entre os dois mi-
nistros de Calvino e o antigo cavaleiro de Malta, se-
duzido pela sua facúndia. Em pregações e debates, ê!c
revivia sob as palmeiras da França Antarctica as ho-
ras de controvérsia teológica e erudita da Sorbonnt.>.
Apoucava o saber de Pedro Richier e Guilherme Car-
tier, desdenhosamente, fascinando cada vez mais o al-
mirante, já inclinado às opiniões do soberbo contra-
ditor. Quando foi celebrada a Santa Ceia, pela primei-
ra vez, Bolés e Villegagnon queriam o uso <lo pão sem
fermento e do vinho com água, a velha iprática de Jus -
tino Martyr, Irineu, Tertuliano e Clemente, que fôra
amigo dos apóstolos. Desatendidos pelos genebrinos,
insistiram no seu proposito, lograram mesmo, às ocul-
tas, misturar um pouco de água ao vinho do ritual. Ma5
logo depois, a,parenterpente contritos, participaram da
Santa Ceia, tendo João de Bolés, antes da cerimonia,
(55) Processo de João de Bolés. Interrogatório na Baia.
ANCHIETA 133

abjurado o catolicismo em plena igreja, diante dos


pastores calvinistas (56).
O acôrdo ,foi momentâneo. Sentindo-se humilhado
'e confundido, o abjurante exdtou o orgulho de Vile-
gagnon, nos dias mais temerosos, contra a autoridad~
litúrgica e doutrinaria dos ministros evangélicos.
Abrasados pelo demônio da contradição, rebeldes ain-
da ao catolicismo ortodoxo, mas tambem ao calvinis-
mo integral, decidiram êles fundar a Igreja de Gua-
nabara, insubmissa à de Roma e à de Genebra, inde-
pendente de ambas, posto ·qu.e heterogênea, combinan-
do fórm1,1las de uma e de outra -no seu rito.
Como figurasse o baptismo com água e sal, óleo e
saliva, entre os artigos cio novo estatuto, Pedro Ri-
chier, discorrendo sôbre a matéria, considerou levia-
nos e falsários os corn1ptores do sacramento da Igre-
ja Primitiva. De insensatez e heresia, por seu turno,
os dissidentes acusaram os genebrinos. Irrompeu o
conflito.
Homem de vontade colérica. e de&l)Ótica, Ville-
gagnon injuriou os ministros perante a congregação,
aqorreceu-lhes a presença, deixou de comer com êles
e de orar no templo. A mediação de alguns co-
lonos influentes, porém, obteve dos beligerantes um
armistício, durante o qual seria levado às Igrejas Re-
formistas da França e da Alemanha o exame da con-
trovérsia :pelo ministro mais novo, Guilherme Cartier,
silenciando na ausência do companheiro o mais velho
sôbre os pontos litigiosos. O anunciado regresso da
flotilha de Bois-le-conte faciiitaria a viagem. .
Desta vez, ainda, não durou o acôrdo entre as
duas facções. Apena-s desferraram as velas, rumando

(56) LERY, op. cit. " ... n fnt prié par enx de faire con-
fession de sa foy & abiura pnbliqnement lé papisme ... "
131 CELSO VIEIRA

para a França, os navios da expedição Bois-le-conte,


disseram Bolés e Villegagnon aos genebrinos, cujo
emissário acabara de partir, que só aceitariam o jul-
gamento da Sorbonne. Bolés, pouco antes, desposara
uma órfã, que lhe trouxera como dote a herança do
pai, o mercador la Roquette de Rouen, cujo espólio,
inestimável no trato dos índios, se compunha de facas,
pentes, espelhos, anzóis, ~ outras bagatelas. Tudo lhe
era propício. Amor e ódio triunfavam no seu plano de
vingança e fortuna.
• • •
Entretanto, haviam começado as perseguições e
a1rocidades, cuja história deslustra o nome de Ville-
gagnon, Caim da A1nérica, segundo o anátema da Igreja
Reforma,da. João de Bolés intrigava e sorria, demo-
niacamente, no incêndio ateado por êle próprio. Mas
não tardou que o seu eclectjsm·o farfalhante desagra·
classe ao catolicismo renascente de Villega,gnon, de-
voto restaurador, já então, de vários artigos da Santa
Madre Igreja'- a eucaristia, o culto das imagens, as
orações pelos mortos, a crença no purgatório, a mis.,
sa. Com efeito, os acessos de cólera do almirante,
duas vezes apóstata, prenunciavam o martírio, a qul•
em breve seriam condenados os huguen·otes Jean de
Bourdel, Mathieu Verneuil e Pierre Bourdoil, preci-
pitados ao mar, pelo carrasco, do alto de um rochedo.
Imprevistamente, certo dia, Bolés foi expulso do forte
como bôca inútil.
Arremessado a uma aldeia longínqua, entre sel-
vagens, êle maldizia Villegagnon e ruminava a sua
vindicta: aniquilar o traidor pela traição. Ora o con-
tacto dos lusos, em· S. Vicente, lhe 1proporcionava a
desforra. Jean Cointac, tornando-se ~gora o pres-
ANCHIETA 135

t1g10so M ansiar de B olés ou apena:;; João de Bolés, in-


satisfeito ainda com o aviso que trouxera ao capitão
de Bertioga, queria ir na primeira monção à cidade do
Salvador, oferecer a Men de Sá, governador do Brasil
e guerreiro esforçado, todos os pormenores, todos os
ardis necessários ao assalto e à conquista do forte Co-
ligny. Antevendo as muralhas desfeitas, Villegagnon
enforcado na verga alta de um galeão português, o
aventureiro sentia dilatar-se-lhe a alma no orgulho
da sua desafronta.
Mas a contradição fundamental do espírito de
Bolés, em assuntos religiosos, não era menos impera-
tiva que o ódio. Entre os calvinistas do Rio, pendera
mais de uma vez para 3. ortodoxia católica; entre os
católicos de S. Vicente, a:pregoava os erros do papis-
mo e as glórias da Reforma. Fazia-o com. eloquência
tão persuasiva e perigosa, desviando os simples do
caminho real da Igreja, que a sua heresia, em 1560,
alarmou os jesuítas da casa de Piratininga, onde o c~s-
telhano Pero de la Cruz repetira ao padre Luiz da
Grã o que êle comunicar-a a outros, em S. André da
Borda do Campo, sôbre o herege francês.
Nesse depoimento, escrito por Anchieta, as pa-
lavras infernais do réprobo desafiavam a ira celeste.
Hereticamente, propalava Monsior de Bolés que a
Igreja de Roma valia tanto como a de Lisbôa ou de
Paris, tanto valia um bispo como o papa, homem cer-
cado de outros homens, impuros e á·vidos, submissos
ao poder da moeda. Tendo Nosso Senhor destinado
Pedro à conversão dos judeus e Paulo à dos gentios,
não seria Pedro tão desobediente que abandonasse a
tarefa de evangelisador pelo ofício de papa, durante
vinte e quatro anos. As bulas mentiam, as indulgên-
cias eram aictos de compra e venda, Toda a verdade
136 CELSO VIEIRA

estava na Bíblia e santos não havia senão os apósto-


los, nem havia purgatório, mas apenas céu e inferno.
Redimidos pelo sangue de Jesus, só pela sua paixão e
misericórdia nos salvaríamos, nada valendo para tal
fim as boas obras. Estado mais perfeito ,que o celi-
bato, impunha-se o ca,samento aos padres. A presen-
ça de Jesus na hóstia não passava de uma ficção e
a ceia luterana, evangelicamente, sobrepujava todas
as missa,·s. Esconjuras ou anátemas de padres não lhe
inspiravam senão gargalhadas, de sorte que, por um
ceitil, podia a Igreja Romana excomunga-lo quantas
vezes quizesse. Ninguem devia confessar-se aos clé-
rigos, tão imperfeitos como os outros pela sua
natureza humana, sem .,prestígio celeste para absol-
ver. Ninguem devia abster-se de carne às sextas-
feiras e aos sabados ou durante a quaresma,: o verda-
deiro cristão guardava só o domingo. Lutero e Cal-
vino eram dois homens superiores, e a preeminência
da Reforma, incontestável na França, não tardaria em
Castela e Portugal. Assim falava o herege às ovelhas
catqlicas dos jesuítas. '
Vindo-lhe a notícia dessas e outra,s heresias, Luiz
da Grã desceu de Piratininga á colônia, onde a ga
feira diabolica do francês lhe havia contaminado o re-
banho. João de Bolés, recebendo o sa·cerdote com in-
vectiva sonora, estranhou-lhe o ter desprezado, pela
catequese dos índios, a doutrinação dos colonos. Era
um germe de Satanaz, caído em terreno fértil; já os
antigos fiéis da colônia, seduzidos, aplaudiam o here-
ge, desertando a Igreja Católica. "Tanta autoridade,
de repente, conseguiu (Bolés) para com êles - in-
forma Joseph de Anchieta - que muito decresceu a
do padre." O catolicismo de S. Vicente e de Pirati-
ninga estremecia na,·s bases novas e frágeis, quasi a
ANCHIETA 137

ruir. Sofregamente, pediu Luiz da Grã ao vigário


Gonçalo Monteiro, então, que se opuzesse à dissidên-
cia dos católicos e admoestasse o povo em sermões,
acabando mesmo por denunciar Monsior de Bolés às
justiças eclesiásticas. Mas a influência do jesuíta de-
clinara: o seu libelo foi verberado como sinal de ran-
cor e despeito. Sumindo-se os autos do primeiro in-
quérito, Luiz da Grã teimou na denúncia, renovou-
se o processo. Anchieta depoz contra João de Bolés.
• • • .
O herege foi enviado ao bispo da Baía, mas não
era homem que se atemorizasse. Chegando à cidade,
procurou Men de Sá, relatou-lhe os planos de Villega-
gnon, deu-lhe as traças com que poderiam submete-lo
os portugueses. Fez-se hóspede e amigo do governa-
dor. Na primeira expedição contra Guanabara, em
1560, Men de Sá trouxe-o consigo, a bordo da mesma
nau em que trouxe o padre Manuel da N obrega, e é
certo que Monsior de Bolés combateu rudemente, in-
dustriou o governador na tomada do forte Coligny
(57). Acrescentaria êle em 1564, respondendo ao li-
belo, perante a Inquisição de Lisbôa, que fôra golpea-
do no Rio por flechas de tamoios e perdera mais de
tres mil cruzados da sua fazenda. Men de Sá estima-
va-lhe a traição e os jesuítas lamentavam que a polí ·
tica, nesse caso alarmante, sobrepujasse a piedade. O
próprio Anchieta sentia o menosprêzo inconfessável
dos cristãos à causa da Fé.
Após a batalha, em Guanabara, o francês supunha-
se credor de alviçaras do soberano por bons serviço:;

(57) Assim depôs na justificação requerida por Bolés o


governador Men de Sâ.
138 CELSO VIEIRA

de guerra. Ia veleja,r para a mdropole, deixando


as águas de Santos, pouso da frota, o galeão
comandado por Estácio. Nele partiu Bolés, mas a nau
arribou, forçada pelo temporal, à Bafa do Salvador, e
o bispo d. Pedro Leitão mandou, prende-lo a bordo,
leva-lo para a cadeia da cidade, em que êle permane·-
ceu, réu do juízo eclesiástico, até 1563, quando o en-
viaram à justiça dos inquisidores de Lisboa.
Turbulento e arrogante, enfurecido pela reclusão
imprevista, Bolés repetira no cár-cere as velhas here-
sias. Depois, arrependido, por oca-sião do primeiro
interrogatório, dissera que apenas costumava referir
opiniões alheias, ouvidas aos _genebrinos. Mas o he-
rege se -atraiçoava, imediatamente, fazendo restrições
à autoridade pontifícia, divergindo sõbre matéria de
eucaristia, jejum, adoração da cruz e das ima·gens, ce-
libato dos padres, resoluções dos ,concílios, sentenças
dos ,papas, conceitos emitidos pelos santos dO'U.tores,
ante as Escrituras. Sente-se que, em vez de uma con-
vicção dogmática, de uma fé tranquila ou ardente, .mas
profunda, havia nele uma sorte de eclectismo religioso,
entre o luteranismo e o catolicismo, a Igreja de Roma
e a da Grécia, tentando mesclar e fundir, sem resul-
tàdo, a exegese e a· tradição, a indiscipli.na e a auto-
ridade, o pensamento das novas ,seitas e o espírito do
Vaticano. Perante o bispo, no.segundo interrogatório,
demonstrou conhecer os dez mandamentos, os sete pe-
cados mortais e a doutrina cristã, o Credo, o Padre-
Nosso e a Ave-Maria, mas nãp soube dizer a Salve-
Rainha.
• • •
Como era filaucioso e impulsivo, comprometeu-se
ainda mais, escrevendo ao bispo d. Pedro Leitão, em
espanhol, uma, carta enfáti<Za e 5a,rdonica 1 meio <;\Ui-
ANCHIETA 139

xotesca, meio rescaldada. Proclamava-se aí descen-


dente de Júpiter de Creta, em linha indirecta, por Hér-
cules Tebano e pelos doze Ptolomeus do Egito. " ...
sendo menino - diz êle, - davam-me pão com uma
das mãos e açoite com outra, e agora, que sou raan··
cebo, trago sempre livro ou espada. Não aprendi as
letras para ganhar com o meu saber, mas estudei as
profanas ,por desenfado e as religiosas para descanso
à minha consciência. Entretanto, posso dizer a vossa
senhoria que andei ,por França, Espanha, !1'.ália, e não
achei meu rival ou semelhante, mesmo á distância de
uma legua, em metafísica, profundeza da escritura sa-
grada, especulativa profana e teologia prática". O
sabichão ainda se gabava de ter decorado todos os co-
mentários dos antigos doutores, hebráicos, gregos f'
latinos.
Queriam os jesuítas leva-lo à fogueira, sem ou-
tras dilações, mas veiu de repente uma ordem do cti.r-
deal-infante, d. Henrique, avocando o processo de Bolés
para a Inquisição de Lisboa. O réu seguiu a bordo da
nau "Barrileira", e em 28 de outubro de 1563, naquela
cidade, foi entregue a Pedro Fernandes, alcáide do
cárcere da Santa Inqüisição. Já em 1562, laconica-
mente, o padre Leonardo Valle informava na sua car-
ta anual: "O Monsior de Bolés deixa ,de ser queima-
do ,por estar remetido ao cardeal"

• • •
Ouvido pelos inquisidores do Santo 0.ficio, em
Lisboa, insistiu João ele Bolés, a princ1p10, nas mes-
mas declarações de amor filial à Santa Madre Igreja.
Não tardou, entretanto, a confissão ;parcial <las anti-
gas culpas, seguida pela confissão de fé na v'erdade
infalível da Igreja Romana. O herege dizia-se autor
HO CELSO VIEIRA

de um livro contra judeus e mouros, intitulado Colloquio


de João, senhor de Bolés, com Alchana de Farao, capitão
turco : antes disso, alegava ter composto no Rio uma disser-
tação contra Calvino e as suas obras.
M~s não se. contentaram os inquisidores, minu-
ciosos e terríveis. Outros interrogatórios, outras con-
fissões. Gradativamente, confessou o prisioneiro ao
Santo Ofício todas as heresias, que lhe haviam impu-
tado os católicos do Brasil. No seu libelo, por duas
vezes, o promotor fiscal pedira a condenação do re-
negado, e em 12 de agosto de 1564 surgiu, afinal, o
Acordam proferido pelos inquisidores ordinários e
dep'utados da Santa Inquisição. O réu tinha sido
herege luterano, incorrera em excomunhão maior
e nas outras penas estatuidas, mas, por haver
confessado as suas culpas, implorado perdão, aceita-
vam os juizes êsse acto reconciliatório, mediante ab-
juração dos "hereticos errores" e cumprimento da peni-
tência imposta".
Abjurados todos os erros, João de Bolés entrou
no mosteiro de S. Domingos como penitente: n'ão
decorridos três meses, porém, consentiu S. Alteza que
êle cumprisse o resto da penitência em liberdade. Os
dominicanos atesta·ram-lhe a conduta exemplar no
mosteiro.
Dois anos após a sentença, em 1566, foi editada pelo
impressor Marcos Borges, de Lisboa, a versão portu-
guesa de um opúsculo do fidalgo francês J. C ointha, senhor
j,e B oulez - "Paradoxo ou sentença filosófica contra a
opinião do vulgo: Que a na,tureza não faz o homem,
senão a indústria." . Com êsse opúsculo desapare-
ceu da circulação essa personalidade contraditória,
insubmissa e teatral.
ANCH·IETA 141

Anchieta ·não esqueceu em toda a sua vida o ho-


mem singular, que fôra o pesadelo da escola de Pi-
ratininga e do colégio de S. Vicente. Identificou-lhe
os vestígios, inquiriu-lhe o destino, e em 1584, na ve-
tusta Informação do Brasil e das s11as capitanias, que lhe
atribuem pesquisadores ilustres (58), resume para a
História o ca,so original de Bolés, deixando-nos en-
trever o obscuro epílogo na India misteriosa e lon-
gínqua:
"Um dos moradores desta torre era um J oannes
de Boles, homem douto nas letras latinas, gregas, he-
braicas, e mui lido na Escritura Sagrada, mas grande
herege. :Êste, com medo de Villegagnon, que preten-
dia, castigá-lo por sua heresia, fugiu com alguns ou-
tros para S. Vicente, nas canôas dos tamoios que iam
lá a guerra, com título de os ajudarem, e chegando à
fortaleza da Bertioga se meteu nela com os seus, e se
ficou em S. Vicente. Ali começou logo a vomitar a· pe-
çonha de suas heresias, ao qual resistiu o p. Luiz da
Grã e o fez mandar prêso à Baía, e daí foi mandado
pelo bispo d. Pedro Leitão a Portugal e de Portugal à
lndia, e nunca mais apareceu".
'

João de B olés nunca mais voltou ao Brasil,


..:onforme o testemunho do padre Anchieta. Não
obstante, por um êrro fatal dos panegiristas, como
veremos em outro lugar, propalou-se que êle fôra exe-
cutado no Rio de Janeiro em 1567 e que fôra Joseph
de Anchieta, evangelicamente, o redentor da· sua alma
e o instrutor do seu carrasco, ao pé da fôrca . . .

(58) VARNHAGEN, CANDIDO MENDES E CAPIS'TRA.


NO DE ABREU.
IV

Martírio dos ir.mãos Pedro Corrêa e João de


Souza. Comêço de uma limdL Brwcoe e padrea.
O taumahn-80-beluário.

Já o ,primeiro ano evangélico em Piratininga, 1554,


:lera ao Flos Sanctornm do Brasil dois mártires - 03
irmãos Pedro Corrêa e João de Sousa, coa<ljutor.
No dia de S. Bartolomeu, 24 de agosto, _haviam
êles p~·rtido com o irmão Fabiano, a mandado de Nó-
brega, para, descobrir a nação dos ibirajaras ou bilreí-
ros, índios monogamos, afamados pelo decôro e pela
brandura dos costumes; desempecer o caminho a uns
nobres espanhóis, que se arreceavam de antropófa-
gos, indo <:om as suas donas para Assunção do Pa-
raguai; finalmente, reconciliar os tupís e os carijós
de Patos em guerra. Pedro Corrêa, discípulo de An-
chieta e homem ·de boa linhagem, afeito ao idioma e
ao trato dos selvicolas, desde quando tinha por O\f ício
acomete-los e cativá-los, entrara na Companhia de
Jesus, em 1549, convertido por influência do padre
Leonardo Nunes. Fôra mesmo um dos fundadores
do colégio de S. Vicente, ao qual doara as suas terras,
como doara aos meninos o seu rebanho (59). Eloqüen-

(59) AZEVEDO MARQUES, citado na História do Brll8il


de Rocha Pombo, vol. III, parte IV, eap. VI: "Doou Pedro
Corrêa estas terras ao colégio da Companhia em S. Vicente, por
escritura. de vinte do março de 1553, na qual declarou que tinha
dído um dos fm,dadores do dito colégio". NOBREGA, Cc.rta ao
ANCHIETA 143

te, destemeroso, incansável, reunia os índios à meia


noite, pregando sob as estrelas, e só a, da manhã bri-
lhava, ao terminar a suá prédica. Depois de ser te-
mido como perseguidor das tribos, era amado como
apostolo dos sertões.
No pouso dos tupis, hoje Cananéa, a missão
foi uma duplcl! vitória : Pedro Corrêia assegu-
rou o trânsito dos <:astelhanos e obteve o compro-
misso da paz, até 1;nesmo a entrega de dois cativos.
atados para a ceva ·e para,· o festim. Aí deixou o irmão
Fabiano como enfermeiro de um deles, certo espa-
nhol aprisionado na última guerra pelos tupís, e par-
tiu em 5 de outubro com o irmão João de Souza, de-
mandando a, terra dos <:arijós. Tudo correu propicia-
mente aos dois enviados da fé e da paz, que só não
lograram a,cercar-se dos ibirajaras, cujas aldeias re-
motas, com o ala-rido e a surpresa da guerra nos ca -
minhos, eram por êsse tempo inacessíveis.
Então, decidiram voltar, mas o ódio lhes vinha nO
encalço. Um castelhano perverso e frascário, intér-
prete, que o padre Manuel ele Chaves ou o próprio ir-
mão Pedro Corrêa livra.ra da morte, (60) não perdoa-
va aos missioná rios a conversão de uma bela ín'<lia,
dele apartada pela Igreja. Tendo chegado com ou-
tro português à estância dos carijós em novembro,
denunciou-os como espiões do inimigo aos hospe-
deiros versáteis e crédulos. Sobreveiu o Natal, quan-

paà,re Inádo, dt 1556: " .. . aquelas vacas, quo são dos meninos,
ficarem ao co1egio nosso, no qual nlio haverá <!á escandalo ne-
nhum ; porque, como se houveram por contemplação do nosso
irmão Pero O:itrea, todos as têm por dos i rmãos, mas, elas, na
verdade, delaa foram doadas com umas t erraa, assim mesmo do
Irmão Pero Correia."
(60) SIM.Aú DE V.!.SCONCELOS, Vida ào P. Anchieta,
livro I, cap. Vll.
144 CELSO VIEIRA

do seguiram os hóspédes até á fronteira dos tupis,


acompanhados por 10 a 12 principais da tribo. Indo-
lhes á caça, os flecheiros da taba, donde haviam êles
partido, encontram os dois na planície, rezando, am-
parados aos seus bordões. Das matas irrompem vozes
atroadoras; zunem .flechas no ar. João de Souza, ajoe-
lhado, com um leve cesto de pinhões suspenso do bra-
ço, cái sob as primeiras setas, invocando os nomes de
Jesus e Maria. Pedro Corrêa implora, braceja, vendo
o companheir9 trucidado, mas logÕ o trespassam de-
zenas de flechas. Vasam-lhe os olhos, crivam-lhe o
flanco, rompem-lhe o coração. E asseteado pelos in-
dígenas, bendizendo o martírio como S. Sebastião de
Narbonna, entre os sagitários pagãos, sucumbe o maior
discípulo de Anchieta.
Quando a notícia chegou à Piratininga, sombria-
mente, os índios proromperam em lágrimas e clamo-
res. De porta em porta, lastimoso e inconsolável, desde
meia-noite ao alvorecer, bradava Tibiriçá, o principal
Martin Affonso, - "Morreu o senhor da linguagem,
aquele que nos dizia sempre a verdade e nos amava
com todo o seu coração, morreu o nosso pai, o nosso
irmão, o nosso amigo" - (61). Os jesuitas, porém,
não choravam, apenas diziam orações pelos dois már-
tires. Secretamente, recalcando a sua mágoa, todo;;
êles desejavam a mesma glória cristã: morrer pelo seu
ideal. Joseph de Anchieta escrevia: " ... muita conso-
lação nos causou essa morte e pedimos outra semelhan-
te ao Senhor, e agora cremos que êle quer fundar aqui
sua igreja, lavrando-lhe pedras tais para o fundamen-
to" (62).
• • •
(61) ANCHlRTA - Carta, a los padres y hermanos de la
compaiiia do Iesvs en Portugal.
(62) Ibd. Ibd.
ANCH 'l ETA H5

A igreja nascente de Piratininga, florescendo já


no martírio, produziria cedo o milagre, que é dádiva
necessária das igrejas à comunidade. Personalisando
~ssa tendência, de-v eria formar-se pouco e pouco, es-
pontaneamente criado pela fé, um centro de gravita-
ção espirit,ual - o adivinho, o oráculo, o taumaturg·o
- para o desejo colectivo de' outros bens mundanos e
outra vida celeste.
Com o seu voto de ipureza inquebrantável, a sua
caridade e a sua medicina, o saber das cousas naturais
e da língua tupí-guarani, o melodioso encanto de poeta-
a<lolescente, o realce de mestre-escola, ajnda tão moço,
dos índios e dos padres, Anchieta fascinava colonos 1!
selvagens, os próprios jesuítas. Raiando para a tene-
brosa ignorância do gentio, foi o herói-civilisador e o
curandeiro-mago; surgindo para o catolicismo penin-
sular dos brancos, visionários e supersticiosos foi o
apóstolo da nova Igreja. '
Nasceu-lhe do pó das sandálias o primeiro mila··
gre. Depois do padre Leonardo Nunes, q'lle os índios
chamavam Abaré-bebé, padre Voador, não havia como
êle outro andarilho, a distanciar os religiosos por me·
andros e escarpas. Anchieta era o grande escoteiro da
Ordem de Loiola e alguma dessas caminhadas prodi-
giosas deu início à lenda, em que o santo .fez trinta
léguas no breve espaço de uma noite, indo de S. Paulo
a S. Vicente, daí tornando com a Bula do Jubileu ipar:1
a festa do orago <le lbirapuera." Comenta o seu bió-
grafo Simã o de Vasconcelos: "Ou fôsse que neste
breve tempo andasse trinta léguas, que tantas havia
de ida e vinda, ou que algum Anjo lha ~dministrO'U no
caminho, qualquer que foss e, nã o pode ser senão mi-
lagre".
146 CELSO VIEIRA

Outras novas circularam, depois disso, atribuindo-


lhe faculdades maravilhosas, sempre contestada·s por
Anchieta. Divulgavam-se casos anchietanos de premu-
nição, vidência, êxtase: havia mesmo quem dissesse,
portas a dentro <lo colégio, que a, cela de Joseph, alta
noite, resplandecia como um lugar do paraiso. Seria,
talvez a fosforescência elos vagalumes, estrelejando
lhe o retiro aberto aos enxames (63). Tudo rodeav<1
de assombros, porém, a mentalidade primitiva, mais
dada que outra qualquer, no absoluto desconhecimento
das leis naturais, à confusa· germinação dos mitos e
das lendas. O animismo <lo selvagem, povoando-lhe 0
caos interior, manifestava-se duplamente pela imagina-
ção, actividade produtora de espírito, gênios, fant 1s-
mas, quasi sempre malignos, e pela cega obediência ao;;
feiticeiros, que traziam a alma indígena suspensa de
avisos, predições, ameaças, entre a esperança e o medo.
Essa mentalidade crepuscular não distingue do
feiticeiro o sacerdote, do bruxo o missionário, do pag-é
o abaré, senão para ver ou supor n·o religioso, intré-·
pido evangelista das brenhas, poderes mais eficazes so -
bre os ventos e as nuvens, os bichos e as sementes, a
vida e a morte dos homens. Travou-se o conflito, des-

(63) A iluminação da. cela -de Anchieta por mamoás ou


pirilampos não parece absurda, como hipótese, ao leitor do Tra-
tado Descriptivo, de Gabriel Soares, cap. CXVII: "Na Baía se
criam uns bichos, a que os índios chamam mrunoás, aos quais
chamam em Portugal lucernas, e outros, vagalumes, que andam
em noites escuras, assim om Portugal como na Baía, em enjcs
matos os há muito grandes; os quais entram ôe noite nal'l iasas
às eseurM, onde pntecem candeia~ muitos claras, porque alu-
miam uma casa toda, em tanto que às ve:r.es acorda uma pessoa
de súbito vendo s. casa. clara, deitando-se às escuras, do que 11e
eepa.nta cuidando ser outra coisa. ; dos quais bi,::hos há multa
qua.ntidade em lµi:area mal poToado,."
ANCHIETA 147

de o começo, entre soldados de Cristo e servos de


Anhanga, príncipe das trevas e dás matas, ao qual os
primeiros vinham arrancar o gentio ,escravo do
terror. Como libertá-lo, sem amoldar ao espíri-
to cristão, por vezes, práticas e fórmulas selvagens,
mas de certo as únicas eficientes ou empolgantes i'
Educadores e psicólogos, assim o compreenderam os
jesuitas, desde o início da catequese.
Oráculo, adivinho, ,curandeiro, intérprete de so-
nhos, tradutor de visões, o bruxo das ocas dera lugar
nos meados do séC'Ulo XVI, para a alma bravia do
índio, ao sacerdote mágico e perfeito, cujo ritual, com
outros símbolos, outras cerimônias, outros poderes,
havia ofuscado o prestígio dos maracás e dos nigro-
mantes, quando o padre Nobtega vencera, no íamos()
encontro de 1549, o maior feiticeiro dos sertões e oito-
centos adeptos da feitiçaria vermelha.
Em plena zoomorfia, os tupis viam na anta a ma-
dre soberba da raça, e o primitivismo dessas fabulosas
origens multiplicava as lendas anitnáis do jabuti, da
raposa, da onça e do gigante Caapora. Aos pés de ou-
tro gigante lendário, o Anchieta miraculoso, projectado
em sombras, reflectido em ecos na imaginação autóc-
tone, as estampas agiográficas deixariam mais tarde,
quieta e submissa, toda essa animalidade voraz, cor~
porificando os apetites e a fôrça inconsciente das tri-
bos. Desde logo, porém, cercado realmente de feras
deslumbradas pelo seu olhar fascinante, em Piratinin-
ga, é êle o taumaturg.o-beluário da catequese, domador
cristão e veloz dos grandes carnívoros da selva.
V

Trabalhos e vigílias de mestre-escola. An-


chieta catequista. Mistérios e autos. Diálogos e
cantos p~alarea. Cerimônias da Igreja de Pira-
tininga. O Auto da Pregação Universal. Anchie-
ta e a nuvem. Sugestão. O heroi da catequese.

Oprimido por novos trabalhos, salteado por nova:;


preocupações, Anchieta iniciava em Piratininga o ci-
clo espiritual da santidade. Como na Baía, a faina de
mestre-escola fôra o primeiro dos seus encargos no
colégio de S. Paulo~ cumpria-lhe reger, dividida em
três classes e desdobrada em humanidades, a aula de
gramática.
Nessa escola_ teve Joseph ,por discípulos, segundo
o padre Simão de Vasconcelos, doze religiosos da Com-
panhia, nomeadamente Pedro Corrêa, Manuel de Cha-
ves, ·Gregorio Serrão, Afonso Braz, Diogo Ja-come,
Leonardo do Valle, Gaspar Lourenço, Vicente Rodri-
gues, Braz Lourenço, João Gonçalves, Antonio Blas-
quez e Manuel de Paiv·a, afóra os seminaristas de S.
Vicente, os moços e meninos aborígenes, os mestiços
de reinais e índias, a prole analfabeta dos colonos.
Era tanta a frequência na aula de Anchieta que
Q dia já lhe não bastava, acrescida a tarefa do mestre
por deveres piedosos do crente. Faltando-lhe compên-
dios de a-rte latina, êle próprio, infatigável, traçava a
lição para cada neófito em longas noites -de vigília, pe-
nosamente escrevia, muitas vezes, até ao raiar da au-
rora, e os seus cadernos subs~ituiam os livros escolares.
Para a nossa tradição, e mais opulento dos pergami-
ANCHIETA 149

nhos não vale o mais ,pobre dêsses manuscritos. Com


efeito, a alma religiosa de Anchieta, cada manhã, dava
ao Brasil vindouro, sacrificando-lhe as horas do sono
e da prece, letras em que ,fulgiam destinos de outras
gerações, l;mmanisadas pelo verbo (64).
Ao mesmo tempo, ,com os seus discípulos selva-
gens, o missionário aprendia em seis meses o tupi,
aquisição fundamental para os desígnios da catequese.
Já em 1554, de S. Vicente, escrevia aos irmãos enfer-
mos de Coimbra: - "Quanto à língua eu estou adian-
tado, ain'1a que ,é mui pouco para o que soubera, sem.~
não ocupara em ler gramática; todavia tenho coligido
toda a maneira dela por arte, e pera mim tenho enten-
dido quasi todo o seu modo; não o ponho em arte por-
que não ha cá a quem aproveite" .
.Na incerteza da cronologia, recorremos a proba-
bilidades, notando que êle deve ter composto em Pi-
ratininga, neSSél/ ordem de conhecimentos filológicos, a
Arte de gramatica da língua mais usada na costa do Brasil,
o vocabulário e o catecismo, talvez uma sinopse de va-
lores comparativos entre o latim, o português, o espa-
nhol e o tupí, afora outros enumerados pelo seu bió-
grafo Quirício Caxa: Diálogos das coisas da fé, Confessio-
nário, Instrução para os que hão de ser baptizados, e para
ajudar os que estão para morrer, como tambem as suas

(64) SIMÃO DE VASCONCELO~, Vida ào V. P. Josep11


de Anchieta, L. I, cap.. V: "Ainda naquele tempo nam havia. copiri
de Livros, por onde podessem aprender os discipolos os pre-
ceitos da grammatica: Esta falta remedeava a charidade de
Joseph, a custa da seu suor, e trabalho, escrevendo por propria
mão tantos quadernos dos ditos prec"eitos, quantos eram os dis-
cipofos, que ensinava. E passando nisto as noites, sem dormir,
porque os dias occupava inteiros nas obrigações do offfoio, e
cõversam dos Indios. Acontecia, nam poucas vezes, romper a
manhãa e achar a Joseph cõ a penna na mão."
150 CELSO VIEIRA

Cantigas devotas, oferecidas aos moços indígenas ( 65).


Os instrumentos mais necessários à catequese, nesses
primórdios, seriam talhados assim por Joseph de An-
chieta.
• • •
Para as cerimônias eclesiásticas vinham dos arre·
dores, nas vésperas de Natal ou da Semana Santa, cate-
cúmenos e peregrinos, conversos ou curiosos em ban-
dos incontáveis. Festejava-se o nascimento do Messias
com exuberante alacridade, lutas e danças bárbaras à
porta da igreja reflorida; consagrava-se à Paixão de
Cristo o silêncio dos botocudos, tristonhos e peniten-
tes. Dramatisado o sermão pelo gesto, animada a ora-
tória pela mímica, era certo o poder teatral dos jesui -
tas sôbre a emotividade, o sentimento do homem pri-
mitivo, tão volúvel quanto impressionável. Ouvindo os
pregadores, enterneciam-se velhos canibais até às lá-
grimas. No ofício de Trevas, sem canto, soava três
vezes o miserere como final, três vezes caíam sibilantes
as disciplinas, aparelhadas por mãos de brutos guer-
.-eiros, sôbre a nudez retinta dos ombros, das costas,
dos rins, do~de ·borbotava o sangue terrível desses
ogres, antigos comedores de carne -humana, em face
do altar velado e negro. Com as suas ladainhas, os
seus luzeiros, as suas lanças e palmas, estolas do sacer-
dócio, auréolas das imagens,_ não eram menos edifican-
tes as procissões, em que se flagelavam padres e ín-
dios por amor de Jesus, novas dores ardiam, .para a

(65) Da lista bibliográfica de SOTIVEL : Àrs gramma.


tioa lin.guac bra.rilícae. Dictionarí,11,m. eusdem linguae brasil;oo.e.
Doctrina christian.a pleniorque catechismus eadem língua expli.
catus. In~titutio ad interrogandos inter Oonfessionem peniten-
tes. Syntagma monitorum adjuvandos moriõwndos. Dialogi d e.
Beligi-011/ÍS myste-riis scitu àignis.
ANCHIETA 151

nova terra cristã, sob um látego de ouro implacável -


o sol reverberante. ·
Essas e outras cerimônias davam oportunidade à
representação dos autos e mistérios de Anchieta•, ora
em Piratininga, ora em S. Vicente, onde substituiram
os actos profanos, que o padre N obrega expelira das igre-
jas, por indecorosos. Composições moldadas para a ca-
tequese, as mais das vezes em língua geral, tinham algo
dos vilanci-cos da Idade Média, como doutrina reli-
giosa, desferindo com agudeza, porém, a ,critica de
usos e tipos locais. O tema era sempre j dualidad<!
eterna do bem e do mal, corporificado este no pa-
ganismo das tribos, aquele no cristianismo das mis-
sões, radiante e vencedor. Joseph entremeava o tupí-
guaraní, o castelhano e o português na urdid'l.1.ra d'!
algumas !peças, mas fazia• sempre em vernáculo as
indicações de cenário e contra-regra (66).
Heterogeneamente, o estreito local de J estts na festa
de S. Lourenço - uma aldeia brasílica - encerra diabos
da mata e santos lidadores, vultos romanos e quime-
ras indígena·s, anjos e beleguins, recomendando o
anjo da, guarda aos gentios que abandonem feitiço5
e augúrios, deixem o rito dos pagés e o gôsto da
carnagem, não adorem a palmeira, não façam mal ao
próximo, não sejam vingativos, enredadores ou . in-
vejosos, não atirem flechas aos contrários, porque
só assim os justos escalam o céu, enquanto rolam no
braseiro infernal os demônios selvagens - Guaixara.
Aimbiré e Saravaia.
Escrito para os colonos de S. Vicente, destina-se o
Auto da Pregação Universal,. no dizer do padre Simão
de Vasconcelos, a "impedir as indecências que se co-
(66) P. GONZAGA CABRAL, Jes-u.itas no Br-~l, pag.
166-69.
152 CELSO VIEIRA

metiam em actos representados na Igreja". Dura


três longas horas, sob a cadência dos septasílabo~,
êsse modêlo pio do teatro colonial, e entre as figu.ras
satânicas ou paradisíacas se intercalavam dois mora-
dores de S. Vicente, o perverso Francisco Dias e o
lascivo Pero Guedes, que exibem as suas mazelas di-
ante de todas as almas da capitania.
Assim fala o primeiro deles :
A viagem está acabada,
A nau vai se alagando,
E desflt vida, em que ando,
Por tantas coisas errad-.i.,
Meus dias já não são nada,
Pois peco por tantaa vias.
Triste do Francisco Dias!
Não lhe sinto salvação,
Se vós, Mãe da Conceição,
Não pagais as avarias.

Geme aos pés da rainha do céu o outro pecador:


Virgem pura, sou quem vêdes,
Diante de vós me venho.
Tirai, vós peço, estas rêdes,
A ei,te pobre Pero Guedes,
E quantos pecados tenho:
Acho-me tão enredado,
Que hei medo da perdição.
Quero deixar o pe<:ado,
E ser devoto c·asado
Na vila da Co11ceição (67).

Foi sôore o recitativo e o arUditótio <la Pregação


Universal, junto ao adro da igreja, em S. Vi-
cente, que esteve suspensa por três horas a fio, re-
tendo no bojo a tempestade, uma nuvem maior que
0

(67) SDIÃO DE VASCONCELOS - Vida do P. Anchieta,


lfrro I, eap. IX.
ANCHIETA 153

todas as nuvens, descrita pelo· biógrafo Pero Roiz. Ao


ve-la, desconforme e gotejante, os espectadores qui-
zeram debandar, mas foram tranquilisados pela vidên-
cia meteorológica de Anchieta. - "Não -choverá, en-
quanto durar a representação" ; - dissera êle, asso-
mando a uma janela; e a nuvem ficou imovel nos
ares, como um toldo sombrio, até -que os ouvintes,
concluído o auto, se retiraram para as suas casas. Trê~
horas anchietanas haviam decorrido. Só então, des-
penhou-se a nuvem com estridor de lufadas e coriscos,
num tremendo aguaceiro.

• • •
A poesia, o teatro, a oratória, a musica, a, orna-
mentação de altares e andores, a arte de ·curar, o po-
der sugestionante de predições fundadas na experiên-
cia, a própria mímica, tudo comunicava a esse apos-
tolado, sob formas rudimentares, eficácia e autori-
dade. Certo, biografando Joseph de Anchieta, não
ousaremos denominá-lo criador da literatura pátria ou fun-
dador do lirism,o no Brasil. Nenhuma dessas cousas re-
pontava ainda para a colônia. Era cedo. De qualquer
modo, porém, exímio em compor mistérios e diálogos,
tecer alpercatas ou disciplinas de canlo, sangrar en-
fermos com o único estilete que possuia, expelir da
alma pecadora tentações e demônios, foi êle em Pira-
tininga, ao mesmo tempo, comediógrafo e poeta, mé-
dico e artífice, oráculo e missionário, escriba e tau-
maturgo, mestre-escola e arquitecto. Foi o antepas-
sado maior das nossas letras na sua fase embrioná-
ria, a pe~sonalidade múltipla da ~ida colonial, o herói
benfazejo e necessário aos meios sociais ainda não
diferenciados como inteligência nem subdivididos
como trabalho.
VI

Anchieta, o naturalista. Carta descritiva de


seres e couaaa d~ Braail, lnfluênciiaa meteo...-
lógicaa. Sinsularidadea da fauna. Virtudes e a&•
pectos da flora. A !Pedra elástica.

Agui·lhoado ;pela curiosidade insaciável, condu-


zido pela inteligência metódica e minudente, Joseph de
Anchieta, o naturalista, bosquej~via o primeiro capí-
tulo da história natural do Brasil em seis anos de Pi-
ratininga. Na permanência dêsse contacto as suas im-
pressões, tanta vez coloridas à mesma luz, coordena-
das no -mesmo ambiente, havia,m fixado a pletora, o
tumulto, a surpresa das formas vivas. Eram agora
dados evide11tes e exactos, dos quais surgiria, em 1560,
a carta descritiva de seres e cousas do Brasil: Epistola
quamiplurimarwm rerit11i naturalittm, qure S. Vincentii pro-
vinciam incolunt, sistens descriptionem.
Nessa misteriosa província, remirando-lhe as né-
voas douradas como nimbos, Anchieta não sabia· for-
mular precisamente o declínio -das sombras, o curs0
dos q;Stros, o rítmo das fases lunares. Mas pudera
contar as horas, uma por uma, entre o levante e o
poente, ao dia mais breve e ao dia mais longo dêsse
clima. Notara a passagem da;s estações mal definidas
com alternativas bruscas de claridade e penumbra, de
soalheira e dilúvio. Pedira aos céus o milagre -da,, re-
surreição vegetal: quando a sêca devastadora, emur-
checida e esfolhada a glória das frondes, apenas dei-
xava aos campos a nudez bracejante de imensos es-
ANCHIETA 155

queletos, arraigados à terra morta. E ora;ções ou lá-


grimas da sua piedade haviam tentado aplacar, mais
de uma vez, o fluxo torrentoso das enchentes, sob o
quql se afogavam as ,plantas, desmedraV'am raizes apo-
drecidas - as boas raizes de que se nutriam os ho-
mens·.
Ele -conhecera o inverno regelante de Piratininga
nos campos estiolados sob a garoa; o verão abrasa-
dor, mas torrencial; e desgrenhada pelos temporais
uma violenta primavera, que irr9mpia com os seus
trovões e relâmpagos nas manhãs de setembro.
Deslocando pedras, comovendo almas, reboavam
tempestades nas eminências, de súbito, por entre cla-
rões vertiginosos e ofuscadores. Erguia-se do sul,
crescia a noroeste o vendaval, e casas, montes, selvas,
tudo era contorcido ou arrasado. Tremulamente, os
padres fugiam das habitações vacilantes, invocavam
Nossa Senhora, desfiando o seu rosário, intercedendo
pelo seu ·rebanho, mas a natureza: ·conflagrada não
arrancava o gentio aos descantes habituaes. Filhos mais
novos de Tupan, nebuloso e trovejante, continuavam
os índios, destemerosos ou desatentos, a beber, a dan-
çar. Anchieta perguntaria a si mesmo, em tais momen-
tos, como infundir o temor de Deus nessas almas, feitas
para a violência, tão insensíveis quanto as pedras,
ainda ma·is inabaláveis que elas, sob a espantosa fúria
dos ventos· e dos raios.
Terra singular, por onde as calamidades perpas-
savam, mas a abundância de pesca e de caça perma ..
necia.. . Se os rios extravasavam, caudalosos, a en-
chente destruidora <las plantações deixava nas ervas,
fora do álveo profundo, reluzentes cardumes vindos
à margem para a desova, entontecidas pelo suco do
timbó, que os índios lançavam á água, e apanhados
156 CELSO VIEIRA

à' r,ede ou à mã.o na quadra fervilhánte da piracema ou


do pirá-iquê (68), Vendo as multidões repletas e con-
tentes, nutridas para a catequese, Anchieta: pensava
na multiplicação evangélica dos peixes, na fecundida-
de cristã da natureza, evocada por Deus, E havia
para deleite do ictiólogo, além dos cardumes espelhan-
tes e miudos, o iguaraguá, ·peixe-boi no Brasil, peixe-
mulher na África oriental, erbívoro dos rios, impre-
visto pela enormidade, pela côr de elefante, pela gran-
deza das barbatanas, pela configuração bo.vina· da ca-
beça. O ventre do peixe-boi, como o da baleia de
J onaS', poderia alojar um. profeta.
Ainda mais desconforme, vinha das águas clara,.
e frescas a sucuriuba, que aos olhos de um irmão da
Companhia semelhava, nadando, o escuro mastro de
um navio. Era a serpente constritora, sem igual pela
tenacidade, esmoendo nas roscas formidáveis, ou pela
voracidade, tragando inteiros, devagar, os veados t>
as antas. Lustrosa e farta, sonolenta, quedava-se de-
pois à margem. do rio. Propalavam os indios, mesmo
os colonos, que os urubús lhe rompiam nessa imobili-
dade o ventre, a bicadas famintas, e logo se recom-
ptJnha o monstro semidevorado, anatomicamente, par:i.
serpear outra• vez.
Joseph de Anchieta recordava a maldição do Eden,
considerando o ser-p entário infinito, qu.e era o Brasil
daqueles tempos, na sua variedade metalescente de
reino dos ofídios. Tantos os pa·ssos, tantas as cobras
em toda a espessura das matas inextricáveis, onde a
sotaina dos jesuítas roçava, por vezes, alguma ja-
raraca indolente e mortífera, estendida ou enovelada

(68) ANCHIETA, Carta àe S. Vicente, 1560: - "pirace-


m.a,, isto é, "a saí~a dos peixes" piraiq·uê, isto é, "entrada dos
peixes".
ANCHIETA 157

ao sol, Por entre as alpercatas dos evangelisadores,


frequentemente, deslisava a boicininga crepitante, me,
neando o cascavel furioso, trazendo com a ma-is leve
picada, em vinte e quatro horas, surdez e cegueira,
pa:ralisia e morte. A boiquatiara ardentemente colorid.i
e a ibibob6ca mais linda que um ramo de coral punham
nas fôlhas sêcas irisações de joias animadas; a boipebn
contrátil, patenteando ·a sua elasticidade, semelhava
uma espátula sob os golpes, sem perder o veneno; a
boiroiçanga, cobra de regelante mordedura, esfriava o
sangue nas veias. Por meandros e escarpas, rios e
grutas, clareiras e matagais, ondeavam serpentes ge-
latinosas e informes. Eram inevitáveis, pelo número,
indestrutíveis, pela fecundidade, e Anchieta vira sair'
do ventre de uma, ovovivipara, que êle matara com o
bastão, persignando-se antes de a golpear, nada menos
de onze filhotes, dos quai~ só não viviam dois. Alguem
contara no a-bdomen de outra quarenta reptis. Preci-
samente diria Jose.ph que os missionários, confiados
só em Jesus, andavam incólumes por cima das cobras.
Rondando as habitações, iam e vinham as onças
através da noite, calidamente ruivas ou belamente
pintadas. Fortes e ágeis, voracíssimas, abocavam jun-
to das fogueiras extintas os viandantes adormecidos;
crivadas embora de flechas, levavam a prêsa com o
mesmo vigor e a mesma fúria para o seu antro; ao pé
das árvores corpulentas, em cuja ramaria se agachava
o índio perseguido, quedaviam-se toda a noite, esprei-
tando e rugindo, sem largar um só instante a caça. O
terror da sua presença comunicava-se às tabas nume-
rosas, por elas dizimadas, e partiam às vezes quarenta
homens, ou mais, todos armados de escopetas, de tra-
bucos, de forquilhas, de arcos, para matar uma onça.
A lenda fez de Anchieta o melodioso encantador das
158 CELSO VIEIRA

cobras, o domador tranquilo. e paciente das feras noc-


tívagas.
~le observara meticulosamente a vida e a forma
de outros bichos: o jacaré, lagarto escamoso, voraz,
desmedido, rebuscado pelos índios, que lhe estimavam
a carne, o sabor e o cheiro de almíscar dos testículos;
a capivara domesticável, pastando nos ervaçais dos
rios e.dos lagos; a lontra inquieta, macia, revolvendo-
se com estridor e volúpia, a guinchar, na delícia de
um eterno banho. Depois dos anfíbios, havia estudado
ao longo das praias revôltas os crustáceos, variedades
inúmeras de caranguejos, alguns vermelhos e negros,
bicolores, outros azulados, hirsutos, e os guaiamus de
blindagem metalicamente azul, escavando moradas
subterrâneas.
Não lhe era menos familiar a praga dos insectos,
desde o escorpião, chamado pelos indígenas boiqui-b,i
( cobra de pés pequenos), até à larva oblonga e cáus-
tica da borboleta, cujo pêlo os índios aplicavam às
partes genitais, como excitante venéreo. Entre as
aranhas de todo o gênero, havia uma com que as ín-
dias, perfidament~, envenenavam bebidas na tribo.
Como ignorasse a lei de metamorfose dos insectos
Joseph de Anchieta supunha que o rahú - bicho de
taquara, narcotisante, doce alimento dos sonhos indí-
genas, - pudesse metamorfosear-se ern borboleta,
rato ou lagarto. Palmilhando os campos alagados, so-
frera com paciência a tortura infligida por nuvens de
mosquitos ferroantes, zumbidores, insaciáveis, que não
podiam voar sob o pêso do sangue haurido e só o fumo
dispersava·. O espinho animal do coandú, repontando
nas selvas em dois tons, lívido e negro, era utilisado
pelas mulheres como instrumento, que lhes perfurava
ANCH·IETA 159

o lóbulo das orelhas, sem dôr, para os enfeites selva-·


gens. Quasi imperceptíveis, mas inexoráveis, os ma-
riguis fervilhavam. "São êles tão pequenos - dizia
Anchieta:, - que mal podes percebe-los com a vista;
és mordido, e não vês quem te morde; és queimado, e
não ha fogo em parte alguma; ignoras donde te veiu
repentinamente semelhante mal; se te coças com as
unhas, maior dôr sentes; por dois ou três dias, renova-
s.e e cresce a ·ardência das ferroadas no corpo".
Aiegremente, o naturalista contara vinte gêne-
ros de abelhas úteis, que enxameavam pelos cortiços,
ora escavados na rijeza dos troncos, ora escondidos en-
tre as vergônteas, até mesmo debaixo da terra. Cm"'
êsse mel curavam os jesuitas quasi toda a sorte de
chagas; por vezes, só dêsse mel se nutriam; mas o
da abelha eiraquaietá, o mel de muitos furos, ,produzia,
vômitos e tremores. Precioso alimento das aves e
dos índios eram formigas aladas (içá), que se erguiam
do subsolo na primavera, enchendo os ares luminosos.
Anchieta saboreara, torradas ao fogo em panelas de
barro, essas formigas ruivas. "Quanto é saboroso
êste alimento e •como é saudavel, dizia êle, conhecemos
nós próprios, que o experimentámos" (69.).
Em tôrno da sua breve figura evangélica, do seu
halo espiritual, recrescia o tumulto da fauna brasi-
leira. Nas frondes altas cabriolavam os guaribas,

(69) ANCHIETA - Carta sobre as coisas naturaill de


B. Viaente. Notamos aqui fenómeno semelhante ao registrado
por Maeterlinck em La vie des termites, pags. 109-110: " ... Les
oiseaux notamment se gorgent à tel point qu 'ils ne peuvent plu1
fermer le bec; l 'homme même prend part á l 'a ubaine, il rit-
masse les victimes à la pelle, les mange frites ou grillées ou en
:fait des pâtisseries dont le goftt, parait-il, rapelle celui des g11.-
teau:x: d'amandes et, en e.er:ains pays, como en l 'ile de Java, lee
Yend sur le marché."
160 CELSO VIEIRA

outras variedades simiescas, e bandos de macacos,


através das copas viridentes, passavam de uma a ou-
tra árvore sôbre o corpo do guia, o maior deles, segu-
ro pela cauda e pelas mãos a dois galhos opostos. In-
vulneráveis e lentos sob a carapaça, os tatús solapa··
vam os campos em flor. Veados galheiros corriam
pelas brenhas, solitários; vteados brancos e lestos, aos
magotes, saltavam nas planícies ermas. O tamanduá
microcéfalo, extranho animai de pescoço afilado e bra-
ços terríveis no amplexo, revolvia os formigueiros com
a língua desmesurada. Por entre a ramagem, o pêlo
mosqueado e sedoso dos maracajás luzia ao sol. Cai-
tetús fossavam nos pântanos. Sariguéas em fuga le-
vavam na bolsa os filhos recemnascidos. Moras:.:.~
mente, com o focinho de velha, as unhas recurvas, iá-
se aferrando a preguiça ao tronco das imbaúbas para
subir, colher, trincar os renovas mais verdes. Bravi:i.
e maternal, como símbolo das t'."ibos guerreiras, vinha
com estridor pelas matas e pelas trevas a anta, que
era o tapir dos índios, nocturno, silvante, espêsso, e
lhes dava o couro dos broquéi~? inipeiictrávcis às flechas.
,No espaço fremente de vôos e cantos repassavam
as asas. Longe, desciam aves mar_inhas ao rés das
águas encrespadas; perto, oscilavam ramos sob o ade-
jo da estrepitosa pomba do mato ou o solo trepidava
sob as patas da ema corredora e gigantesca. Beija-
flores havia tão graciosos que, para Anchieta, se ali-
mentavam de orvalho; para os índios, nasciam Jendà-
riamente das borboletas. Mas a delicadeza do guainumbí
era um cambiante sutíl na violência dos instintos ala-
dos. Papagaios devastavam milharais num tremendo
côro ensurdecedor; gralhas armadas de esporões, be-
licamente, afugentavam as próprias matilhas; e sô-
bre as aves menores, com o ímpeto da sua fôrça, a
ANCHIF.TA !61

crueza do seu olhar, esvoaçavam pelas alturas ofus-


cantes os gaviões reais.
Como os tipos da fauna, rnnhecia Anchieta os da
flora, as virtudes essenciais de fôlhas e frutos, raiz;:~.
e caules. Esquadrínhavà o reino vegetal, surpreen·-
clendo e anotando os contrastes, desde o veneno da
mandioca, transformada pelos aborígenes em alimente•
primário, até ao veneno das sementes de jeticopé, que
fortalecia os pulmões. Outros aspectos maravilha-
vam .: aqui, tortuosos e ásperos, os mangues nos bra-·
ços do mar, com os seus entrelaçamentos e encurva-
duras chegando às marés, onde recaiam as lanças ver-
melhas e altas da canapaúba; além, a reflorescência de
trepadeiras eternamente viçosas ou a deiscência das
urnas ele castanhas das sapucai-as. Verdejavam no,:;
alcantis os pinheirais.
Nesse _labirinto da flora já o guiava ·a 1nedicina.
Orientado pelos selvagens, êle aprendeu a escolher na
invasão tropical de· ervas e de arbustos o remédi,.;
mais simples, mais fácil para 06 males, que lhe segui-
am os passos. E a sensitiva era a imagem da sua cas-
tidade, retraindo-se ao mais leve contacto, de repen-
te, sôbre pantanais ou abismos. E o símbolo da su~i
bondade, a frond escer no imenso arvoredo, como s~
fôra uma benção, era a prodigiosa copaíba, vertendo o
bálsamo infalível para todas as feridas humanas.
Sôbre o reino mineral já escrevia Anchi~ta, em·
1554, na Casa de S. Paulo, que se descobrira · uma
grande cópia de ouro, prata, ferro e outros metais,
perspectiva necessária à vinda de 1nuitos cristãos, que
submetessem os índios ao jugo de Cristo, obrigando··
os a fazer por fôrça o que não se resolviam a fazer
por amor. Quanto às pedras raras, de todas a mais
preciosa, assemelhada por ele ao couro, hiperbolica~
162 CELSO VIEIRA

mente, seria a pedra elástica ou flexível, em que os


soldados portugueses afiavam para 'outros golpes,
contra os hereges as suas espadas fiéis (70).

(iO) Notwias pa,ra a história e geografia elas nações ultra.


marinas. N. III. .dnnotationes: "Arenarius flexilis. Linu .
vulgo Pedra elástica: Certe flexilis, sed vere elasticus a me non-
clurn est visus, nec valde (neque ex omni parte evidenter) fb-
xilis. Et .dnchieta dum tractabilem manibus velut corium dicit,
hyperbolice dieit; is enim, quem magis flexilam vidi, nunc io
Reg. Academiae Museo collocatum, 16 tirciter poli. longum, et
4 lin. altum, 20. 0 arcum modo efficit."
LIVRO III

O POEMA DE IPEROIG

Tu mihi cum chara sis unica Prole voluptas,


1'u desiderium cordis, amorque mei.

ANCHIETA
I

Assalto doa porturuêsea ao forte Coligny em


I: 60. Confederação d s tamoios. Defe1a de Pira•
tininga. Tibiriçá, o lidador. Anchieta e Nóbrera,
emisaários da•paz, no quartel-general do inimigo.

Men de Sá, o governador justiceiro e bravo, láte ·


go dos hereges, amigo dos padres, abatera em 1560 o
reduto do Caim da América, Villegagnon -:- cavaleiro de
Malta e vice-almirante da Bret anha, que . renegara o
catolicismo ,pelo 'Calvinismo, desfraldando sobre as
ilhas de Guanabara o pavilhão da França Antárctica.
Desde 1559, ausentara-se do Brasil o corsário francês,
deixando em seu lugar o sobrinho, Bois-le-Conte.
Por terra e mar, fôra a batalha rudemente peleja-
da nos <lias 15 e 16 ,de março, contra· o parecer do ca. ·
pitão-mór Bartolomeu de Vasconcelos e dos outros
capitães ela pequena frota lusitana (71) , acrescida com
o socorro elos jesuítas de S. Vicente·: um bergantim
artilhado, canôas alígeras como gaivotas, combaten -
tes selvagens e mamelucos. Haviam troado de sol a
sol, nas estâncias de madeira, os canhões retirados
aos navios; espoucara incessante a fuzilaria dos mos-
quetes; rarefaziam-se nuvens de flechas sobre as on-

(71) MEN DE SA. Instrumento. "18. Detreminei de ldr


('111pessoa por mo sua alteza maudar e fuj com muy ' pcquen'.l.
armada e pouqua jento ao mouos do Reinno que não trazia majs
que j cnte do maar e 1w 111e.jo do dia combaty contra 'l)onta.àe do s
dc1rmm1a r1o reino e !lo seu capitão -moor e <los mais capitéie.s cc
fortal eza por todas as partes . . . ''
166 CELSO VIEIRA

das, sem que a sorte das armas se definisse. Consu-


mida toda a; polvora, disparados todos os pelouros, já
os nossos, que eram 120 portuguêses e 140 índios, al-
guns desarmados, começavam a recolher falcões e
berços, quando os tornou vencedores uma surpresa.
Inexplkavel, a despeito do número e da posição, d:L
força de homens e armas (72), debandavam num ala-
rido mais de mil francêses e tamoios, fugindo em ca-
nôas imensas, através da noite. O inimigo deixava
aos portuguêses sem munições a posse de uma forta-
leza invulnerada. E os lusos ocuparam Villegagnon,
por milagre, como sentiram Nóbrega e Anchieta (73).
No regozijo dessa fortuna imprevista arrecada-
ram peças de bronze e fei:ro coado, pólvora, barcos e
remos para a navegação costeira, mas o governador
geral, depois disso, abandonara toda a baía ao possí-
vel regresso dos fugitivos. Celebrada a missa entre

(72) Carta de MEN DE SÁ ao rei, S. Vicente, 16 de juui10


de 1560: "Ha:via nella ; 74 franceses ao tempo CJUe cheguei e
alguns escravos; depois entraram mais dt> 40 dos da. nau e
outros que andavam em terra e havia muito mais de mil homens
dos do gentio da terra, tudo gente escolhida e tão bons espin-
gardeiros como os franceses; e nós seriamos 120 homens portu-
guêses e 140 do gentio, os mais d~sarmados e l'Om pouca vontade
de pelejar; a armadn trazia 18 soldados mor.os que uunc·a viram
pelejar.
(73) NOBREGAa carta de 1.o de junho de 1560 ao Carde'!)
d. Holll'ique. "A segunda. maravilha de Nosso Senhor foi q11e
depois de combatida dois dias, e .iioo tendo já os nossos pólvora,
mais que a que tinham nas câmaras para atirar . . . mostrou
então Nosso· Senhor a sua misericórdia, o dou tão grande medo
nos franc&es e nos índios, que eom eles estavam, que se n<"o-
lheram da fortaleza e fugiram todos ... "
ANCHIETA, <"at·m de l.o de ju11l10 <le 1560: " ... é de crer
que mais fugiram eom espanto qut' lbt>s põe o Senhor do que
com for~as lmmnnris".
ANCHIETA 16i

os morros, demoliclas as fortificações e arrasadas va-


rias aldeias inimigas, a frota velejou para Santos. Ur-
gia reparar os navios, avariados pelas bombardas frau-
cêsas.
Hospedando o governador geral , Nóbrega sentiu
azado o momento à consecução de um velho plano,
que era a mudança do pelourinho, com os habitantes
de S. André, para S. Pau'1o, tirado assim a Ramalho
o carater de alcaide-mór, ao seu arraial o predicamento
de vila. Persuasivas foram as razões topográficas e
religiosas do fundador. Encravado no mato, S. André
não tinha defesa contra o gentio, que viesse de chô-
fre, nem sequer padres, que sacramentassem os mo-
radores. Tudo aconselhava a transferência para S.
Paulo, estrategicamente situado, com o sacerdócio ín:,-
tituido já pela Ordem.
Era pensamento do fundador , como jesuita.
absorver a impiedade ramalhista ele S. André na
religiosidade inaciana de S. Paulo e encaminhar o je-
suitismo, alargando-lhe o roteiro até aos campos do Pa-
raguai. Mas a fusão dessas vilas antagônicas, uma de
mercadores e guerreiros, outra de missionários e ca-
tecúmenos, teria consequências impreyisiveis, formi-
dáveis para o Brasil. Da várzea de Pira-tininga, do
mesmo ambiente consag.rado pelas vigílias cristãs de
Anchieta , irromperiam mais tarde os bandeirantes -:-
devastadores de reduções, ocupadores de territórios.
Prevaleceriam na fusão os germes do ,sangue mame-
luco e da braveza indomável contra as forças mística!">
da Companhia de Jesus.
Inclinado às razões do j esuita, Men ele Sá ordenou
que se mudasse 'Para S. Vicente o colégio de S. Paulo,
a vila de S. André para Piratininga, e se abrisse um
caminho novo, mais seguro, entre o planalto e a ma-
168 CELSO VIEIRA

rinha. Ao partir, julgava consolidada a paz cm toda


a capitania.
• • •
Mas o assalto ao forte Coligny não submeter1
nem .apaziguara o índio rebelde. Com efeito, vindos
da serra e da costa, os guerreiros tamoios pelejavam,
raptando mulheres, ,filhos e escravos aos colonos, di-
zimando-lhes o gado, queimando-lhes as plantações e
os engenhos. Parcela da grande família tupí, esse
gentio, que apenas considerava da sua linhagem 01.
tupinambás, hostilisara sempre as demais tribos. De
vorador de prisioneiros, índios ou brancos, não ex·
cluia da carnagem senão as mulheres, guardadas para
concubinas.
Instantemente acirrados pelos francêses, de uma
parte, gravemente ofendidos, de outra, pela cubiça dos
reinois, caçadores de escravos e assaltantes das ocas,
haviam determinado os tamoios, aliando-se, às ordens
de Cunhambebe e de Aimbiré, varrer da costa o lusía-
da. Atraídos por Villegagnon à escola da França An-
tárctica, muitos deles conheciam jit o próprio manejo da,:;
armas de fogo. Eram sagitários e arcabuzeiros, me-
neavam espadas de pau-ferro ou de aço com iguai
destreza. Sorria-lhes a fortuna cada vez mais nos re-
contros, e os tiros da confederação haviam suplanta-
do, em campo raso, a mosquetaria lusitana. Já os de-
sertores de Guanabara, exultantes, regressavam ao
núcleo da antiga miragem, a França Antárctica de Vil-
legagnon, e os portuguêses entreviam, desbaratado,;,
o· ocaso do seu poder (74).

(74) P. GALANTI. n;..,t. elo Brasil, tomo I. "Não satis-


feitos com a vingarn;a (os tamoios) , visavam a desarraigar do
pais os portuguêsns. Rruniram estes a for<::1 qn(I purlernm p ~ra
útac·á.Jos, o foram miseravelmente tforrotados".
ANCHIETA 169

Anchieta reflectia melancolicamente: " pare-


ce que a Divina Justiça tem atadas. as mãos aos por-
tuguêses para que não se defendam é permite lhes
venham estes castigos, já por outros pécados, já pelas
muitas sem-razões feita.s aos brasis, dantes nossos
amigos".
Ora a mentalidade primitiva dos índios não resis.-
tira à fascinação da vitória. Soprando fumo através dos
maracás, os feiticeiros prediziam, convulsivos, a
hora de libertaç'ão e vingança. Tribos ainda neutras,
mas aguerridas, incorporaram-se às hostes vencedo-
ras, e os tupis do sertão, no começo indecisos; larga-
ram afinal por essa nova aliança a: velha amizade por-
tuguêsa.
Nos meados de 1562, a gentilidade mais numerosa
das serras e das brenhas remotas, contada por milha-
res de arcos, dezenas .de nações, marchou em segredo,
vorazmente, sobre Piratininga. Ovelhas corritptas e
perdidas, guiando os lobo.s ao redil, vinham com ela
os catecúmenos fugitivos, aos quais eram familiares
todos os caminhos da vila. Mas um dêles, ainda fiel
aos padres, correndo por veredas mais breves e ga-
nhando cinco dias à marcha dos assaltantes, poude
avisar os religiosos. Sem esse aviso, dado a 3 de ju-
lho, teria sido fata·lmente surpreendida e arrasada .i.
vila cristã.
Piratininga era O celeiro e abrigo dos jesu_itas.
que ali permaneciam, desde novembro de 1561, fugin-
do á horrível penúria ele S. Vicente, onde não havia
·sequer farinha para os moradores (75). Em 1562 lá
estavam, sob a direção de Vicente Rodrigues, clez mis-

(75) ANCIITETA, carta ele jun110 de l{í61 até :u> mês 11.!-
;mnrço.
170 CELSO VIEIRA

sionários da Companhia, entre êles Joseph de Anchie-


ta, que testemunhou e descreveu os combates de 8 e
9 de julho (76). Se lhe atribuem façanhas de coman-
do, nesses episódios sanguinolentos, dois autores mo-
<lernõs (77), biógrafos mais antigos, Pero Roiz e Si -
mão de Vascortcelos, nada revelam á posteridade so-
bre a iniciativa do apóstolo-guerrei.ro.
O verdadeiro salvador de Piratininga foi Martin
Afonso, Tibiriça, o vigia da terra. Mobilizando 0
gentio de nove ou dez aldeias fieis, êle repelira os ofe-
recimentos do filho de Araraig, o seu feroz sobrinho
Jagoanhara (Onça brava) , que lhe propusera abandonar
a causa dos jesuítas. Vaforosamente, em resposta, o
grande Tibiriçá deteve na manhã ele 8 os inimigos com
a sua lealdade e o seu arrojo.
Anunciara-se a luta, pelo tremendo bater de arcos
e pés, entre silvos e urros. Velhas bruxas, à reta-
guarda, com alguidares monstruosos, já se apresta-
vam para cozer a carne dos vencidos, -quando se tra ·
vou a batalha, ao clarão sanguíneo da aurora. Milh3-
res de flechas dos agressores, coloridos e empenacha-
clós, caíam sobre Piratininga: centenas de outras voa
vam sobre os atacantes. Crescendo o furor e a grita
das hordas invasoras, os grandes alaridos, de que fala An ·
chieta, seriam mais tarde, para Simão de Vasconcelos,
como o ruir dos montes no estrondo e na poeira da
refrega: " ... dão os inimigos de improviso sobre a

(76) Ibd. Catt:l de. 16 <le abril de 1563.


(77) TEIXEIRA DE MELLO - An. da Bib. Nae., vol.
I, f. n.• 1: "Piratininga foi a.tacada; Anchiet a, porém, salvou
a todos com a mais denodada coragem, conseguindo repelir a
investida e arredar os assaltantes pa1·a. lougt'." J .•J. RIBEIRO,
Cronologia PatiUsta: ", . . animou Ancl1ictn. os mor:ulorcs dn. vi,.
la".
ANCHIETA 171

'
vila de Piratininga, com tão grande estrondo <le gri-
tos, assovios, bater de pés e arcos ( como costumão)
que iparecia se vinha o mundo abaixo, e se arruinavão o.,
montes vizinhos (Chr., liv. II, n. 0 135)." Mas o Onç,1
brava logo morreu, asseteado, junto à horta dos padres,
q_uando investia o refúgio elas mulheres e dos meni-
nos - a igreja. Lá dentro, à noite, com as suas velas
acesas, mestiças devotas oravam diante do altar. Du-
ramente lanhavam com açoites indígenas a carne
bronzeada e nua, sem um tremor, sem um ai, deixan-
do retintos de sangue ·os muros e bancos do templo.
As disciplinas mortificadoras, no dizer ele Anchieta,
"pelejavam mais rijamente contra os inimigos do que
as flechas e arcabuzes."
Tão arrojada, tão imprevista foi nos seus contra-
golpes a defesa ele Piratininga, que os sitiantes, des -
coroçoados pela morte de J agoanhara, levantaram J
cerco ao segundo dia, e os sagitários da bandeira ca-
tólica ainda os perseguiram na: retirada. Dois pri-
sioneiros, caindo aos pés de Tibiriçá, bradando q11-::
eram cristãos, imploravam a graça elo herói, a clemên-
cia cios padres, mas o principal respondeu, inexorável:
"Para o vosso crime não há perdão." E alçando ;i
tangapema, herculeamente, floreou-a no ar, estilha-
çou a cabeça aos dois renegados.
Martin Afonso expirou, contr.ito, pouco depois
da vitória, "com tanto senso e madureza que nfto pa-
recia homem do Brasil", escreveu Joseph de _Anchieta
em sua carta a Diogo Lainez. Todos os cristãos dâ'
capitania lhe prantearam a morte. Sepulto na igreja;
como filho cliiêcto, o herói teve do sànto as orações e
os louvores, por êle foi proclamado não só ben,feito1\
[72 CELSO VIEIRA·

mas ainda fundador e conservador da, casa de Pira-


tininga (78).
il ií

Xa quares~ua de 1563, em plena guerra dos ta-


moios contra os lusos, Anchieta visitou as povoaçÕ('S
de Santos e Itanhaem, confessando, instruindo, bapti-
zando, convertendo o gentio e os seus escravos. Utn
velho indígena ele cento e trinta anos foi então dou-
trinado, redimido pelo catequ.ista. Ao regressar para
S. Vicente, o apostolo encontrou Manuel da Nóbrega
inquieto pela sorte da capitania, onde haviam os dois
pregado aos colonos, desde o começo das hostilidades,
a mortificante eX!piação de culpas e vícios, contra os
quais se rebelavam os índios, outrora mansos. Não
bastavam, porém, cilícios e orações, penitências e ro-
marias, lâmpadas acesas junto à peanha das imagens,
lágrimas vertidas no recesso do santuário. Urgia
salvar a colónia por mediação religiosa - um ato de
heroicidade, talvez de .c.acrificio.
Nóbrega comunicou a Anchieta o plano, que lhe
acudira e amadurecera, de entabolar directamente a
paz com os tamoios de Iperoig, onde a visita dos pa-
dres era desejada (79). Levaria o irmão comó intér-
prete. Iriam os dois áquele bravio lugar de penhasc.:,s

(78) ANCHIETA, carta de 16 d(> abril de 1563.


(79) Historia de la f1rnclaci-On del Collegio del Rio de: He-
nero y 81.18 re.sidencia.s - An, de Bi'b, Na<!., vol. ~IX: " ... y assi
com preces de todo el pueblo fue en uuos navios com el pc J o-
seph a las Aldeas de los contrarios y dandoles algllll reacate cou-
certó com ellos las pazcR ... '' ANC'IIIETA, final dn <"arta do
16 de abril de 1563: " ... pelo que mostl'íio grancll's desejos d'}
nos ter eomsigo, para lhes ensinar os fllhos".
ANCHIETA 173

e tormentas, quartel-general das nações confederadas


para extermínio dos p0rtuguêses, numa elas barcas
de José Adorno, fidalgo g-enovês e amigo cios inacia-
nos.
Com êles seguiu o colono Antonio Luiz ou Dias
uma espécie de Jób, a quem os índios hqviam tirado
mulher, filhos, cunhados e servos (80) . Ajuntando
em S. Vicente os últimos bens, reunindo os últimos
escravos, tentaria nessa emergência, mais uma vez,
o resgate das criaturas amadas, que ainda vivessem,
por acaso, na taba de a,lgum cacique. Desiludido
continuamente, a jornadear com as suas feridas por
terras inhóspitas, sentia renascer-lhe agorn a espe-
rança. E em busca das sombras do seu lar, desfeito
pelos t ·amoios, esse homem, o mais infeliz dos ho-
mens, acompanhava Manuel da Nóbrega e Joseph de
Anchieta ao exilio.
Foram de S. Vicente a Bertioga em canôa, na
primeira oitava da Pascoa de 1564. Apenas desem-
barcados, trovejou a borrasca, enegrecendo, confla-
grando os ares, e nisso reconheceram o favor de
Deus, que a suspendera, enquanto navega'\am. Com<J
se antecipassem os dois religiosos aos navios de José

(80) PERO ROIZ, na V iàa do P. A nchieta, esel'eve: "Com


esta resoluçam se partiu o pe Manoel da Nobrcga eorn seu fit>I
companheiro o Irmão Jozé, e outro homem por nomr Antonio
Luiz, para a terra dos Tnmoyos .. , " Na sua H i.8 t6ria ào Bm:ti.l,
eoneluicla em 1627, iuforma tambem Frei Vieente do Salwdor
r1ue o Padre Nóbrega, decidindo apaziguar os bárbaros de
Iperoig, "tomou por seu companbeiro o Irmão Joseph de An-
<'hieta, e hum Antonio Luiz, homem secular." P osteriormente.
11a Ct·ónica da Co'll1panl1ía, Simão de Vasc·oneelos mudou o nome
d(, António Luis para António Dias, que os modernos autoreij
têm como verdadeiro. Anehieta não lhe dee.llll'a o nome na
carta de 1565 ao P. Dio,;o Lainez.
174 CELSO VIEIRA

.\,forno, e~peraram cinco dias, sob os muros da for-


taleza, a confessar moradores e escravos. Lenta·
mente aparelhados, vieram afinal os dois barcos,
que saíram co1:n êles de Bertioga em 23 de abril, de·
mandando lperoig (81).
Os missionários conheceram na travessia o pe-
rigo dos tufões e dos abrolhos, estiveram de passa-
gem numa ilha deserta e rude, S. Sebastião, covo
de feras, onde celebraram missa no dia de S. Felipe
e S. Tiago. El'\fim, rodeados de canoas dos indíge-
nas, que iam e vinham, suspeitosos, farejando algu-
ma cilada, algum estratagema, enquanto os dois refens
cedidos por tres ou quatro dos seus não os lograram
dissuadir, tranquilamente fundearam os navios, sol,
vento próspero, nas aguas de lperoig, praia situada
entre S. Sebastião e Ubahtba (82).
Reconhecidos pelos tamoios como padres, cau-
telosamente, porque de tudo, agora, desconfiavam os
índios assanhados contra os lttsos, Anchieta e Nó-

(81) Todos os episódios da viagem a Iperoig e do exílio


entre os selvagens constam de uma longa carta. dirigida por An-
chieta, em 8 de janeiro de 1S65, ao padr<> Diogo Lainez, ge-
ral da Ordem. Quem os levou a lpcroig não foi o capitão
Francisco Adorno, erro comum aos nossos hiRtoriaclores, procs-
denro da noticia dada por f,imão de Vasconc'l'los, C'r., liv. III n. 5.
Foi o capitão José Adorno, como se vê ela carta dl' An<"hieta
(1565) e da seguintl' p:lssagt>m de Pero Roiz, op. eit., liv. I,
l'a'p. VII: "levou.os no seu 11a1•io hii homem de muito respeito,
e vrrtudr, e gra.udr amigo do~ padrr$, por nome Jozé Adornb,
de naçam italiano, da principal nobrc-za de Genoua, tio do 11osso
pe Fran.co Adorno, ete..... "
(82) P . AMERIC'O l)E ~OV.AEH. Jl{todos de ensino e
catequese dos lndfos 11sa1los pelos JcS1J.itas e por Anehieta. •r.
SAMPAIO - O titpi na geografia nacional - Iperoig, corr.
Ypiru - yg., o rio ou água elo tubarão ... ( ... . ) Pode proceder
.tambE'm ele, ipC'l'ÓJIO, qu" ~<' tratluz - l'io das perobas."
ANCHIETA 175

brega desembarcaram uo terceiro dia. Em face do


mar e do céu, ajb~lhaclos, renderam graças à Di vin"
dade nessa hora incerta, cheia ele milagres e perigos.
Depois, em visita às duas aldeias da povoação, An-
chieta falou com evangélica ,doçura à braveza do
gentio, agachado na sombra das suas toca-s.
- Alegrai-vos com a nossa vinda e o nosso amor.
Queremos ficar entre vós, ensinar-vos as coisas de
Deus, para que êle vos dê farto alimento, boa saúde,
vitória sobre os vossos inimigos. (83)
Fascinados já pelo mi,ssioná1·io de olhos azuis, lin.
gua sonora ela catequese, os tamoios escancaravam a
mandíbula, compreendendo e rindo. . . Além do mais,
trazia-lhes o barco ele José Adorno, como resgate',
machados e missangas, espelhos e laçarotes, alfinetes
e outras bagatelas.
Nesse entendimento os abarés, os padres, soube-
ram deles as primeiras condições ela paz. Certo, não
a queriam os selvícolas por medo aos cristãos, sobre
os quais ainda pesavam as suas tangapemas vencedo-
ras, ou ,por necessidade, providos como eram pelo"
francêses, em excesso, ele arcabuzes e espadas, vestes
e ferramentas, poclenclo mesmo vender aos colonos o
quee lhes sobejava. Não. Queriam-na tão só para fle-
char e comer livremente os velhos inimigos, os tupi3,
que haviam triunfado mais de uma vez na guerra sel-
vagem, aliados aos portuguêses. Entretanto, como pa-
gavam êles o benefício? Com injúrias aos benfeitores.

(83) ANCHIETA, tarta c1o 8 de janeiro de 1565: " .. Vi-


sitamos ambas las aldeas y Entrellas yo hablando en uoz alta
pr sus casas como es su eostumbre, diziendoles q queriamoJ
quedar entre ellos y Ensinarles las cosas de Dios, para q el
les diesse abtmdansia de mantcnimiêtos, salud y viêtoria de sus
Enemigos y otras cosas semejantes ... "
176 CELSO VIEIRA

Que os portuguêses se uni:isem agora aos de Iperoig


para os combater, e assim firmariam a paz, coroada
pelo extermínio dos ingratos. Patenteando a sua cor·
dialidade, embora apetecessem a carne saborosa dos
tupi_s com furor, os tamoios obrigavam-se a poupar os
catecúmenos daquela origem, que permanecessem
fiei.s aos missionários em S. Vicente.
,p • •

Mensageiros ela paz, voltavam os dois navios


com essas condições preliminares. I•peroig, acolhendo
a proposta e aceitando os presentes dos vicentino:;,
guardava como refen.s da colônia os jesuítas,
mas eram leva-dos a S. Vicente, num daqueles barcos,
doze refens das aldeias, moços de que se orgulhavam
as tabas pela robustez e valentia. Cinco tamoios, além
dêles, seguiam para combinar as treguas com os mo-
rubixabas da tribo, aliados, então, aos francêses dt-
Guanabara.
Voluntariamente, ficara junto de Nóbrega e de
Anchieta, com os seus escravos e as SUflS fazendas, o
colono desventurado.
A hora da partida, sol'ttçavam os mareantes, que
haviam conduzido os religiosos: "Vós freais entre os
lobos." Eram esses, realmente, os gentios mais fe- ·
rozes de toda a costa brasileira, e tudo parecia fadar
os dois jesuitas à sorte do bispo D. Pero Sardinha, de-
iltorado no paíz dos caetés. Mas não os apavorava ::i
Morte, clavicularia da porta fulgurante do céu, ini-
ciadora de uma vida sobl'enatural. Imperturbáveis,
os dois mediadores da paz viram sumir-se, pouco e
pouco, mal branquejando nos ares opalescentes, sob a
ne~lina, o velame dos navios frágeis. E outra vez ajoe-
.ANCHIETA 177

lharam diante do mar, ergueram para Deus, no anseio


das mesmas súplicas, o mesmo coração alanceado e
bipartido.
A sua fé inquebrantável, desdenhando a viela, con-
fessava nas preces ardente e humildes o erro dos
brancos, que haviam exacerbado pela traição, pelo ca-
tiveiro, por toda a casta de abominações e atrocida-
des, os índios ela praia e <la; ser ta, carnívoros domes·
ticáveis, agora embravecidos cOtJJ.O as onças ela redon-
deza.
A ,sua caridade intrépida, mais que nunca flame-
jante, envolvia nessas orações os destinos obscuros de
tantos pecadores, colonos ou aborígenes, mercenários
ou antropófagos, homens inimigos do Homem-Deus.
sobre os quais pressentiam a fulminação da ira ce
leste.
A sua esperança invencível, renovada entre as
flores 'agrestes como seiva e perfume de outra floração
ideal, por miraculoso eflúvio, aguarelava confiante o
dia cio martírio, em que fossem transportados ao céu
nos braços resplandecentes e poderosos elos anjos, lo-
grando salvar com esse holocausto o Brasil - colônia
(84).

( 84) Ibcl. Íbd.: " ... ut 1tn11..s a1it duo moritrentur 1101nine$
pro populo."
II

Prüneiroa diaa de lperoig. Aula infantil de


·cat cismo. Guerra aos canibais. Missa. da pri•
mavera. Irreverência dos tamoios. Vex!IJlle; e
tentaç6ea.

Anchieta e Nóbrega viviam sob o tecto de um prin-


cipal daqueles arredores, Caoquira. Salteado pelos co-
lonos, outrora, e metido a bordo de um navio veleiro.
o índio lançara-se ao mar com os pés encadeados,
rompera os escarcéus, rojara depois na selva, tocLt
uma noite, volvendo à liberdade sob o \peso dos gri-
lhões. Mas o ódio se lhe c.,,mvertera em afecto aos pa-
dres, louvados por uma das suas mulheres, que haviJ.
conhecido, entre as penas do cativeiro, a bondade sa-
cerdotal. Desvelada e amorosa, ela servia os hospedes
com ternura, vinha dizer-lhes, em segredo, as perfí-
dias tramadas pelo gentio.
Os missionários estaV'am afeitos às contradições,
aos embustes, às variantes da alma brasílica, desnor-
tea.da sob impulsos naturais, mudáveis como os pró-
prios ventos, que soerguiam as ondas de Iperoig. No
instantâneo das emoções, opostas e fugazes, ela re-
flectia a cliversidacle amDiente das terras e dos ares, o
próprio nomadismo. Oscilava de um a outro polo
afectivo, entre a doçura e a braveza, entre a submissão
e o frenesi, entre a confiança e o ressentimento. Nada
mais inconstante· e erradio. Só o deleite da vaidade~
o espírito de vingança, o canibalismo, a embriaguez,
a luxúria, o prazer da mentira e a cega obediência aos
ANCHIETA 179

feiticeiros perduravam ne::,sa flutuação ele alma pri-


mitiva, ora impetuosa e louca, ora dissimulada e cruc-'
(85).
Macilentos, descalços, imateriais como espectro.~
na sotaina de canhamo, talvez farrapo de alguma vela
desmontada à carreira das índias (86), os dois jesuíta:,
vinham de longos traba·lhos <" duras mortificações para
o novo desterro. Já envelhecido e trôpego, arrimado
ao bordão, sem largar um só instante o breviário, Ma-
nuel <la Nóbrega sorria à mocidade virgem do compa-
nheiro. Tudo era neles cansaço, palidez, renúncia, ma-;
nos olhos negros do asceta, nos olhos azuis do sonha ·
dor, brilh.ava a santidade como força e poesia, mag-
netismo irradiante. Consagrado embora a Jesus, o
ideal religioso de ambos evocava mais uma vez, na
distância nebulosa dos mitos, as jornadas e os encan-
tos de Orfeu. . . (87)
Eles reuniram todos bs meninos das aldeias na
aula de catecismo, ao tilintar da: campainha, disseram
a criação do mundo e a vida de Jesus, como tinham
feito nos colégios da Baia, de Piratininga, de S. Vi-
cente. Foi-lhes quasi um enlevo, naquelas plagas,

(8'5) !bel. I bd. " • .. cierto que fue mucho siendo aquelh
gente La mais subtil, que aun oy enel mundo para invêtar men-
tiras, y facil para Las crer, poderia sufrir, t anto tiempo, que
nos nos hiziessen alguna cosa mouidos pr qualquiera y maxinn
por alguno su Jiechisero . . . "
( 86) "El vestido era mu~· vobrc, lo comü era, sotanns Cle
~anãmo tenidos de prieto q haziã de las velas de las naos de
la india que les ombia.vã. de límosna". Historia ele la f1indaci()fl, de :
Collegio àel Rio àe Henero y .ms residencia.s, c·ap. I .
(87) VARNH AGEN, H ist. Geral ào Brasil, t. 1, 2.11 ed.,
pag. 244: "Para a conversão dos columins, ou crianças gentias,
os meios que melhor se estrearam foram principalmente a musira ,
o canto e o aparato deslumbrador das cerimonias, que os enfei-
tiça, a."
180 CELSO VIEIRA

surpreender vislumbres de inteligência através da es-


pessa animalidade, para a qual se resumia tudo em
combater e devorar. Os pequenos discípulos apren-
diam sem esforço as primeiras noções do catecismo,
interessavam-se pelas figuras do Genesis e do Evanl.
gelho, sombrias ou resplendentes, cândidas ou gigan-
tescas, e os seus pensamentos adejavam, tocados de
luz cristã, por lendas ingênuas, sonhos castos, para-
bolas edificantes. O ensino religioso transmitia-lhes
o horror do canibalismo, a compaixão 'Pela sorte dos
antepassados, que esse pecado mortal condenara ao
eterno suplício.
Nenhuma consolação maior para os d"ois ilumina-
dos - peregrinos da mesma via tenebrosa, apóstolos
do mesmo reino selvagem. . . Compreendidos e ama-
dos pelas crianças, destacavam-se da hora presente,
como que anteviam o dilúculo dos novos tempos,
a alvorada já concebida pelo Verbo. No áspero 30lo
vingavam as boas sementes, ia repontar o trigo dou-
rado, promessa de hóstia para as almas. Com seis dias
de catecismo, tantos quantos .foram necessários à obra
universal, poderiam ser baptizadas as crianças de Ipe-
roig. O padre Nóbrega, encantado, recordava nesses
momentos o que dissera Jesus aos discípulos, uma
tarde, nos confins <la J udéa bárbara: - "Deixai que ve-
nham a mim os pequeninos.'' Anchieta completava-lhe
a reminiscência evangêlica: "Não entrará no reino
de Deus aquele que o não receber como se fosse uma
criança".
Eles fulminaram com eloquência, desfechada em
gritos coléricos, acesa em sarças de fogo, a prática
dos sacrifícios humanos, a gula de tamoios e tupis, re ..
talhando, remoendo a carne do semelhante nas suas
orgias. Como se a natureza selvagem quizesse entre-
ANCHIETA 181

mostrar-lhes algumas excepções, havia nessa tribo, de


onde em onde, moças ainda não contaminadas pelo
vício•execrando. V eram ente, sem a menor fereza nos
lindos olhos, nos dentes claros, diziam a repulsão, que
lhes causava o deleite dos antropófagos. Em véspe-
ras do festim, aiparelhado pela vingança da tribo, elas
ocultavam, longe, os seus utensílios, par<\- os conser·
ver impolutos. Sob a nécrofagia espantosa, lampejava
o amanhecer de outros sentimentos. Mas não se cor-
rigiam as velhas, obstinadas sacrificadoras, golpeando
com arte os cadáveres, embebendo as mãos ossudas e
ágeis, sofregamente, nos alguidares tran,sbordantes
de vísceras humanas. E os guerreiros mais acessíveis
à lição evangélica não eram menos da<:los á antropO'·
fagia. Quando muito, prometiam abandoná-la mais
tarde, emendar-se a pouco e pouco, depois de terem
comido algumas centenas ele tupis.
Eles disseram a primeira missa num domingo, 7
de maio, sob a ramada umbrosa e vernal do grande
bosque. Chalrava perto o riacho, limpidamente, a
gorgolejar nos pedrouços; era infindável a musica
dos sabiás pelas alturas, entre as palmas dos buritis.
Em volta, os índios espiavam, acercando-se mais e ma!s
da imagem de Cristo. As geuflexões, a s bençãos, os
transportes da Eucaristia, ao ar livre, tudo maravi-
lhava o gentio nesse ritual desconhecido e harmonio-
so. Trespassando a ramaria, arqueada como um dossel
verde-claro, vinha uma flecha do sol de maio bater ~
luzir no crucifixo, aureolar -os celebrantes, e o passa-
redo osquestrava, derredor, com alegria rufiante e so-
nora:, a missa da primavera.
Logo depois, como determinara um dos cinco
principais, que haviam seguido para o Rio, deram-lhes
casa mais espaçosa, onde foi instalado o santuário.
ló2 CELS'O VIEIRA

Antes da segunda missa dominical, celebrada em l-i-


de maio, eles aspergiram com água benta, purifica-
ram esse lugar de concupiscência e de morticínio. ~m
todas as orações, fervidamente, rogavam a Deus mai-,,
uma vitória sobre o demônio, a paz entre os índios e
os brancos, para segurança de tantos bens e salvaçãu
de tantas almas.
O seu tormento incomparável, à hora da missa,
era a inquietude, a irreverência com que os tamoios
cercavam o altar, movendo-se de um a outro lado,
comprimindo-se ao pé do oficiante, remirando o ca-
lix, a ·pátena, a imagem do Senhor. Como temessem
algum sacrilégio, combinaram os jesuítas madrugar
no ofício divino. A estrel~ d'alva não transluzia ainda
sobre os píncaros negros, quando êles se avizinhavam
do altar. Na pureza da antemarihã -o padre Nóbrega,
acolitado por Anchieta, murmurava as palavras sa-
cramentais: introibo ad altarem Dei. Mas não logravam
os dois, mesmo assim, refrear a bisbilhotice dos in-
trusos. Furtivamente, de rastos, introdµziam-se al-
guns no santuário, e havia sempre, voltadas para o
crucifixo, esbugalhando os olhos foscos, mas relampe·
antes de curiosidade, três ou quatro faces bestia"is.
A essas atribulações do sacerdócio vinham jun-
tar-se, agora, escândalos e vexames infligidos à sua
castidade. Sob os galhos em flor, nas águas da ribei-
ra, crescia o alvoroço do banho comum, em que mu-
lheres e homens guinchavam, revolvendo-se com hi-
laridade, no prazer das cócegas, dos arrepios, das mor-
deduras. Desdobrava-se, além, o quadro natural dos
amores selvagens, livremente, na doce alfombra das
ma,tas, como entre silvanos e oréadas, ou no leito are-
noso da praia, como se aí noivassem tritoes e andi-
nas. Por toda a parte, ouvia-se a linguagem cnía e
ANCHIETA 183

solta dos índios, que a todo o momento se gabavam de


proezas sexuaes, rinchavelhando à maneira dé fau-
nos ébrios.
Descia a noite, e os selvícolas de Iperoig não eram
menos insidiosos que os demônios da Tebajda. Ati-
çando o braseiro, sob o frouxel da rede macia, para
que eles não tiritassem com a friagem nocturna, vi-
nham sentar-se aos pés de Anchieta e de Nóbreg:i,
mandadas pelos tamoios, esbeltas moças núas, ii:-mãs
ou filhas dos maiorais. Havia nos corpos rorejantes
do último banho um frescor de planta orvalhada e
cheirosa. Negros olhos aveludados, submissos, lân--
guidos, procuravam magneticamente o olhar dos hós-
pedes, que despediam as visitantes, com abstracta ge-
lidez, fazendo o sinal da cruz. Adormecidos entre os
rumores da f~oresta, povoada de corujas e batráquios,
êles reviam, acaso, em sonhos maus, a tentação do.:;
eremitas no deserto. Como salamandras, enroscavam-
se aos justos, serpeandó, ávidas forml;l,s pecadoras. Vi-
nham outras ro<iar-lhes a face com os seios erectos, os
cabelos desnastrados, a respiração ofegante, num si-
lêncio mais per·turbadQr que um segredo voluptuoso. O
eflúvio da sua carne impregnava o sono dos velhos
anacoretas e dos noviços castos; insinuava-lhes no
sangue o veneno de uma lenta caricia, enervante e
abrasadora, misto de aroma e fogo. Despertando num
grito, os dois santos de Iperoig, com a sua prece, afu-
gentavam os súcubos, filhos do ermo e da noite.
Mas não podiam compreender os tamoios como
só Anchieta e Nóbrega repelissem o que todos os ho-
mens requestavam. Cabatan, nome de abelhà ao sol.
voando e luzindo, era melhor que mn favo na sua dou-
rada nudez. Bori, nome de palmeira ao vento, incli ·
nava-se para o amor com o sussurro e a graça dos
113-l GELSÓ VIEIRA

caules flexíveis. Amaitim, rescendente e saborosa,


clava; nos seus braços de mulher toda a volúpia da sel-
va pagã, a doida embriaguez dos vinhos fermentados
para as tribos em festa. Porque não as desejavam
êles, então, como desejariam o mel trescalante do,
favos, a umbela de palmas das ocas, a polpa dos fru-
-tos sazonados? Eles sorriam, explicavam aos índios
o voto de celibato, a força do jejum e do látego contra
os impulsos alucinadores como tarântulas secretas,
que levam as almas ao inferno. Manuel da Nóbrega,
envelhecido aos quarenta e seis anos, teria desvenda-
do as cicatrizes e os ansêios de outra idade, velho-,
desejos mortos, açoitados pela correia disciplinar, e:;-
talando na carne macerada. Joseph de Anchieta, moço,
teria exibido nos vergões ainda sangrentos das espá-
duas, lanhadas pelo azorrague, o suplício dos novos
desejos, ainda frementes sob o castigo. E apoderou-se
dos selvagens, poligamos incontentáveis, uma sorte
de temor sagrado ante os dois homens, que ven-
dam o prestigio carnal das mulheres com a flageh.-
ção da própria ,carne (88).

(88) ANCHIETA, carta de 8 de janeiro de 1565: " .. . fos


Indios haziã nos todo el buen tratameto possible a eu pobreza y
baxeza, y porq tiene pr grande honrra quando vão algunos xpia-
nos asus casas darles sus hijas y hermanas para que queden
por sus yernos y cunhados, quisierõ nos hazer la misma honrra,
offeec'iendonos 11us hijas, y repetiendolo muchas uezes, mas como
1e diessemos a. Entender q no solamente aquello qu era offensa
de Dios, aborret'.iamos, mas q aun nj eramos casados, ny tenia-
rnos mugeres, quedarõ ec,,pantados assi ellos com ellas, como era-
mos tan i;,ufridos j contlnientes, y te~mos mucho major credito,
y reuerêcia". . . " ... y sabiendo que no· teniamos Mugeres se
espanto mocho pregutandonos, ny las deseaes, quando ve,ys alguhae
hermosas. Nos otros pr Repuesta le mostramos las disciplinas,
rõ que se domaua la Carne, quando se desmandaua a semejantes
deeeos malos, hablandole trunbien ne los ayunos, ab~tinêt'ias, y
otros remedias ... "
III

As canoas. Hostilidades iniciais dos tamoios.


O Gran-Palma. Torna a lperoig o navio de José
Adorno. Um visitante feroz. Perigos e atribu-
lações. O francês luterano e a sua malícia. Os
francêses aaselvajados e a sua crueza.

Desde os fin.s de abril aos de maio, cada novo di,1


aumentava o sobressalto dos refens, agora vibrantes
de susto, à espreita das canoa·s, onde navegavam os
tamoios, e à idéia da morte provável, desfechada pelos
inimigos.
Rápida:, esguias, talhadas no cortex ou escava-
das·a fogo na medula das arvores mais altas, elas iam
e vinham sem ce&.Sar, entre Cabo Frio e as rochas de
Iperoig, salteando naves portugu.êsas, ·núcleos do li-
toral.
Se o marujo as divisava do cesto da gávea, espar-
sas, pontuando de negro as ondas tranquilas 'Otl revo,
tas, era um apelo de guerra o seu a viso à equipagem :
tamoios à vista! Os artilheiros- corriam para as bom-
bardas com o marrão acesso; enfileiravam-se os com-
batentes, às pressas, armados de escopetas, durinda-
nas, machadinhas; postas as mãos, ajoelhados, entre a
palidez e a agonia das mulheres transidas, os padres
oravam ·pela sorte da nau; reluzia a espada, retinia
o grito do capitão no convés.. Subitamente, nuvem;
de flechas caiam sobre o mastarétt, a cordoalha, a
amurada, rompendo as velas, ferindo os olhos, san-
grando os peitos, a sibilar como os ventos doidos pela
enxárcia, de proa à popa, na tempestade. Colubrinas
186 CELSO VIEIRA

e arcabuzes, em sucessivas ·descargas atroantes, de-


fendiam os galeões cl'el-rei contra as canoas da tribo
Mas não conjuravam de uma vez para sempre o
risco. Duzentas almadias velozes, quasi intangíveis,
rot!opianclo na crista das vagas por toda essa curva
atlântica, desvanecidas umas entre as névoas da am-
plidão ou entre as rugas da penedia, suspensas e er--
rantes outras, a esmo, sobre os torvelins, espreita-
vam ,as náus para a abordagem. Na penumbra dos
mares, uma noite, o cardume de lenhos flutuantes
arremetia. Pressentido, alvejado pelos arcabuzeiros <k
bordo, metamorfoseava-se num enxame feroz. Com
o zunir das flechas ervadas e· azoinantes, os seus fer-
rões, com o surdo bater dos remos, as suas antenas,
·perpassavam as canoas brasileiras, como •espas co-
lossaes, irritada·s, aguilhoantes, ora dispersas, ora
unidas, picando sempre o mesmo corpo boiante e es-
curo, que os índios vulnerava1n a 1i1achadadas, por
vezes, na própria linha dágua. Pelo dorso elo navio,
então, marinhavam os assaltantes como símios na
brenha, intumescidos os músculos, tensas as cordo-
veias, cerradtJs os dentes. .\talhando-'Ihes o passo, en-
furecida, a tripulação fendia crâneos e ventres, de-
cepava braços e pernas a cutelo, a montante, a ma -
chado. Na fúria da abordagem sanguinolenta, homem
por homem, arca por arca, entrechocavam-se espa -
dões e tacapes, foices e chuços; miolos espirravam,
branqueando- plumas e elmos; tingia-se de rubro o
convés trepidante. Sob o fulgor impassível das estre-
las, a ira humana bradava, a carne humana gemia·. De
repente, soava uma buzina misteriosa, e os tamoio ·,
desapareciam como espeetros de g-uerreiro-; lendários
na imensidade.
ANCHIETA 187

Aves de rapina e combate, em outra metamodo-


se instantânea, as canoas voavam com a sua presa,
riçando a plumagem dos cocares, dos maracás, dos fc:i-
xes de setas envenenadas. Que vela ou asa poderia se-
guí-las? Que força empolgante, cindindo o mar, po-
deria detê-las? Como. na sombra da tarde os gaivo-
tões, sumiam-~e ao longe, demandando o pouso final, e
um círculo de rochedos tenebrosos ocultava a direção
do seu vôo.
Eram ousadas, ligeiras, invencíveis. Airosamen-
te dançavam nas borrascas; lestamente fugiam ao·,
vendavais, arrastando cada qual, sobre o pélago, vin-
te a trinta ou mais guerrreiros tamoios. Dir-se-ia que
o giro macabro e nocturno era traçadi;> pelas ardentia.:;
fosforeantes. Se a mareta inundava a carcassa, os rê·
madores, nús e ágeis, nadando como delfins, esgota-
vam o casco, de novo o impeliam no seu rumo. Se o
macaréu despedaçava o harco, de encontro aos pene-
dos, eles ganhavam a nado, risonhamente, o coqueira1
da praia vizinha. E outras canoas surdiam, inumerá-
veis, de todas as angras, todas as brumas, todos os fo
lhos azuis da costa meridional do Brasil (89).

Ora as duas primeiras abordaram em 23 de


maio a lperoig, trazendo Pindobussú, vernacula-
(89) Ibd. Ibd. " ... son tau grandes q lleua cada una ·défü,s
•·einte y 2;;, y mas personas cõ sus armas y victuallas y alguna,
mas de 30 y pn.ssan ollas y mar.es tan brauas qul' es cosa csp,m-
tosa y que no se ,poue e.reer, uc imaginar sino le quiê Jove ... '
" ... eõ quasi ,-ien canoas, aeomctierõ una Náo, y uu bareo qu
veniii pi-r a ra, y pusierõ los entanto uprieto q úuo fupr[ La,
grandes olla•, que hazian, oujel'li los detomar, porq :1111 N:10 1·om .
l'ierõ por do~ pa1·trs cõ harhas ,Junto al1tgua, , . "
188 CELSO VIEIRA

mente Gran-Palma, chefe de tribo. e um irmão d•!


Caoquira, o hospedeiro ~usente de ;-Jóbrega e de An-
chieta. Era o consenhor do tecto dado aos jesuitas.
Nesse mesmo dia, ele ordenou aos padres que Ih<'
esvasiassem a casa. Anchieta desarmava o oratório,
quando chegou à porta um selvagem rancoroso e im-
pulsivo, genro do tamoio recem-vindo. • Empunhava
c_om arrogância uma espada: cravando o olhar naque-
le moço estrangeiro, que sorria candidamente à sua
braveza, inquiriu:
Quem é esse?
- Português, disse-lhe apenas o sogro.
- Aqui, um português! rugiu o outro, e o ódio
crescia-lhe na voz, a espada vibrava-lhe na mão.
Entre o ódio e a morte, Anchieta falou com sua-
vidade ao canibal:
- Sou o vosso amigo, vim para estar convosco
daqui em diante.
Mas o outro, colérico e soberbo, av_ançava contra
o missionário, bradando:
- Não quero a vossa companhia.
Desvairadas, fuzilavam-lhe agora as pupilas; v1-
11ha-lhe à boca espumante uma torrente crespa de in-
júrias; suspenso ela beiçola, o tembetá de pedra res-
saltava no escachoar dos apodos. Correram _da viz:-
nhança os índios, alarmados pelo escarcéu. A voz to-
nitruante e o gesto senhoril do Gran-Palma intimida-
ram o bruto.
Pindobussú era um amigo novo elos jesuítas, !1º,
quais só estranhava que não amassem a carne das
índias. Revelaram-lhe os dois missionários, então,
como sofriam e como sangravam, ora mordidos pelo
azorrague, ora descarnados pelos jejuns, combatendo
a volúpia; descreveram-lhe os tormentos do fogo eter-
ANCHIETA 189

no com que Deus castiga os luxuriosos; entreabriram·


lhe a porta da Bemaventuranc;a, lugar de resplendo-
res e delícias, {ruido só pelos justos. O cacique, ma-
ravilhado, seguia-os através dos círculos infernais e
da glória celeste, bebia com sofreguidão a verdade
católica.
Durante a mudança do santuário, fôra perversa-
mente escondida a sineta, que todas as manhãs res-
soava, chamando os piás à doutrina, como um apeio
sonoro do Evangelho. Nova atribulação para os dois
,lpostolos, enredados nessa artimanha, insuperável
sem os bons ofícios do chefe da tribo. Com efeito,
ninguem dava notícias da campana, diabolicamente
sonegada. Mas o Gran-Palma, de casa em cisa, tudo
esquadrinhando, ameaçava os ocultadores com as suas
razões trovejantes. Ou êles restituiriam a campa aos
missionários, grandes pagés dos cristãos, ou seriam
todos aniquilados sob a própria maldade. Se os fei-
ticeiros da selva já eram temíveis, lançando o fumo
através dos maracás, predizendo a morte aos valen-
tes, quanto mais os padres enraivecidos! O seu poder
não tardaria em castigos sobre os índios, se o objecto
sagracfo hão reaparecesse, e os castigos seriam caim- ·
bras de sangue, febres arrepiantes e convulsas, dores
atrozes de cabeça, enfermidades pavorosas. Amedron-
tado, o ocultador veiu trazer a sineta. Fôra o mesmo
selvagem hostil, que os desalojara da cabana. E outr.1
vez a campa de bronze, ecoando por monte e vale, reu-
niu as crianças em torno de Jesus.
Inopinadamente, em 27 de maio, uma flotilha ele
dez canoas varou a barra! logo depois, chegava o na-
vio do capitão José Adorno, que interrompera a via-
gem, a:visado de novos perigos naquelas alt11ras. Vi-
nha. na flotilha um principal, Aimbiré, carra"l1cudo ini-
190 CELSO VIEIRA

migo dos portugu~ses e sogro ele corsitrio francês, de-


terminado a matar e comer os dois refens católicos.
:Mas o próprio genro, comandante ele quatro canoas.
que se destinavam ao Rfo, defrontara na sua rota com
o barco ele José Adorno : como não fosse português o
capitão, demonstrou-lhe amizade. fê-lo retroceder,
mandando recados ao sogro, Aimbiré, para que não
turbasse vorazmente a paz ·iniciada. Ele mesmo in-
cumbiu-se ele levar aos francêses do Rio as cartas es-
critas pelo mareante e fidalgo genovês.
Entretanto, como a flotilha abicasse a Iperoig, o
principal foi ter com Anchieta e Nóbrega. cujos me-
lhores amigos, errando pelas matas, os haviam dei-
xado quasi sós·, indefesos naquela plaga. Aimbiré era
um índio de catadura sinistra, ossudo e gigantesco.
lendariamente -perverso. Dêle se contava nos arredo-
res que, traído por uma das suas vinte concubinas,
enlaçara a infiel nuqi tronco, e à ponta de espada lhe
fendera o corpo, desde o peito ao pubis. Lançara de-
pois ao fogo a mulher desventrada ...
Anchieta e Nóbrega saudaram, acolheram com
humildade o vrisitante feroz. cercado pelo seu bando
de feras, entre as quais um francês luterano. Todo
êle, porém, no' diálogo que se travou acerca da paz,
era incredulidade, secura, malevolência. Sombreava-
l'he a face empedernida uma tristeza mais densa que 0
nimbo das montstnhas de Iperoig. Envolto na longa
camisa, sentado á rede, ouvia os missionários d-!
Cristo, meneando o arco e as flechas, Suspeitava da!)
boas intenções coloniais de S. Vicente, não esquecia
os males, que aos índios haviam feito os perós. De um
navio português fugira êle próprio, arrastando cadei-
as, e à lembrança do seu cativeiro no mar, da sua
fuga ina-épida, arregaçava as mangas da camisa, bran-
ANCH!E í A 191

dindo a s flcd1as a~uçad.,!;. Por 1\1ifag re. nesse terífko


instante, alg-uns pa~sageiros do na,·io de José Ador-
no, íwlios co:1 fcrlerarlos, vieram noticiar-lhe as pazes
firmadas entre o genro e o capitão. Menos torvo e
mais triste, amortalhado como um fantasma na longa
camisa. o principal do:s tamoios retirou-se, prometen-
do voltar no dia seguinte.
Ora o dia seguinte, os outros dias fonm de tre-
rns e angústias para as almas cristãs ness'.! clegredo.
Tentaram os selvicolas, primeiro, exterminar de golpt·
. os vicentinºos, ocupando o navio e atraindo à terra o
capitão. mas um pressentimento de Anchieta, que o
reteve a bordo, enquanto não saíram daí os tamoios,
evitou a cilada. Depois, na conferência da paz bra
sílica, entre os emissários cristãos e os guerreiros mu ·
nidos de arcos e setas, adagas e punhais, o maiora1
truculento, vtst.indo um saio negro, com uma. espada
na mão, quizera abater e devorar o comandante ge-
novês, supondo que fosse de origem portuguesa. An-
chieta ouviu-lhe a pergunta em língua tupi-guarani
- "Português é esse? " Rapidamente avisou o c~ -
pitão. Solicitado por José Adorno, o francês Intera
no, companheiro do índio taciturno, desfês-lhe o equí-
voco, domou o bruto, que exigia agora, carram1uean-
do, a entrega dos caciques alcleados e doutrinados em
S. Vicente, para uma grande festa canibalesca, se o:s
perós desejavam reconciliar-se com os tamoios. Apo:-
ado pelo Gran-i'alma, respondeu-lhe o genovês que
iria consultar as aut.oridades portuguesas sobre o cas .
E velejou finalmente para Bertioga, levando instru-
ções pes$.Oais de Nóbrega e de .\nchieta por escrito
(90) . Os dois apóstolos rogavam aos colonos, de joc-

(90) Ibd. Ibd. : "Tornãdo-me agora al proposito começa~lo


d C'-npitan Jost>pb ndo1·no Jib1e de tã. gran<lt> Angustia , ln q lllld
192 CELSO VIEIRA

lh~s, que não aceitasse111 a proposta do canibal, pre-


ferindo mil vezes perder a vida, entre aqueles rochedo,:;,
a sacrificar por ela um fio de cabelo indígena.
Com agudeza, instinto malicioso de raça, o fran-
cês herético ainda torturava os jesuítas, narrando as
atribulações,"' _que haV'iam experimentado na França
Antárctica doze frades, possivelmente da Ordem de S.
Bernardo, entre os habitantes calvinistas. Odiados em
Guanabara, por dizerem missa, eles procuravam a be-
nevolência do gentio, ensinando-lhe as crianças, mas
0 andavam famintos, com o burel poido, sandálias ro-
tas, mendigando pelas tabas. Em dia de maior
fome, desconhecendo o veneno da mandioca, neu-
tralizável por maceração, extraíram do humus, assa-
ram nas brasas alguns tubérculos, sofregamente de-
vorados. O epílogo desse repasto foi uma tremenda
intoxicação para os bernardistas. Outra vez, no ama-
nho da roça, o fogo de uma queimada propagou-se-
lhes às choças, reduziu tudo a cinzas. Esfomeados e
desiludidos, sem pouso, sen1 altar, crs doze servos ele
Deus reembarcaram. Por um tamoio esperto, soube
depois Anchieta que haviam todos morrido - alguns
trucidados em viagem, outros chegando à França. E
os calvinistas, o francês luterano, os infieis de Gua-
nabara ainda estavam a rir, gostosamente, daquela
triste a ventura fradesca.
Para maior vexame da Santa Madre Igreja Ro-
mana, esses diabos franceses imergiam no mundo sel-
vagem como no próprio elemento. Despenhados da

aujia dado major afflieion q Laiira prorn-ia, se Embarco alqual


diximos, y assy lo eseriuiemos (assim o eserevemos) alos Regi.-
dores destas Villas q en Ninguna manra ee diesse uosolo alguno
de los Indiós iiíoeentes firos amigos, mas aun, nj alguno delos
Culpados ae.QJner, aunq a nos otn,s nos Custasse Lavida ... "
ANCHIETA 193

civilização, inoorporavam-se ás tribos com esponta-


neidade fraternal. Quasi nús, cingindo apenas um leve
calção, bebendo os mesmos vinhos tropicais dos in-
dios, cantando no giro monótono das mesma danças,
eram apelidados m.airs, os ruivos, sócios naturais de
orgias e guerras primitivas. Folgavam ou combatiam
á maneira ornamental dos aborígenes, .sob largas plu-
mas versicolores, encoberta a alvura <la raça pela tin-
ta, que os avermelhava ou enegrecia. Conforme o ri-
tual das carnificinas, em que se haviam familiarizado
com o manejo da ibiracema, quebrando a cabeça aos
prisioneiros, tomavam o nome á vítima, e dentre os
apetites bravios só não tinham o da carne humana.
Mestres do gentio no uso das armas brancas e das
armas de fogo, incitavam-no contra o português, aba-
lado pela sua revolta. No campo da visão ortodoxa de
Manuel da Nóbrega, do ,próprio Joseph de Anchieta,
esses demônios calvini.:;tas rondavam como inimigos
astutos e cruentos, mais perigosos, que era um dever
católico exterminar ou expelir com a graça de Deus
e a ira dôs justos.
IV

Anchieta e Nóbrega escapam ás flechas dos


tamoios. O Grão-Mar. Socorro imprevisto. Cu-
nhambebe.

À volta da floresta, os amigos selvagens de Nó-


brega e de Anchieta deploraram, com eles, os perigos
e traições, que haviam de repente sobrevindo na sua
ausência. Deslumbrados, porque de tanta maldad<:
viam incólum·es os dois, atribuíram-lhes cada vez mais
um poder sobrenatural, divinatorio. Aluno idoso dos
padres, quase devoto, o Gran-Palma inquiria os sagra-
dos mistérios, olhava as imagens da Bíblia com es-
panto, queixava-se das lições fatigantes para um velho
cacique. E tornava sempre ás mesmas perguntas in
findáveis, ao desejo de ouvir e saber.
Mas a nove de julho, vés·pera de Corpus Ghristi,
debuxava-se o quadro anterior : no ermo da aldeia va··
g ueavam os padres, sózinhos á beira-mar. E uma
canoa reponta, esguia, balouçada nos longes nevoen
tos pela onda turva. ·
O coração pressago dos jesuítas adivinhou nesse
barco a iminéncia de outros perigos. Cautelosament,~.
decidiram eles transpor a ribeira e montanha próxima.
acolher-se à taba do Gran-Palma, lea,I discípulo, en,
quanto não saltavam da canoa os índios ameaçadores.
Na praia deserta, porém, alquebrado pela, doença, por
todas as provações do exílio, mal podia correr o velho
Nóbrega ao lado de Anchieta, moço e ágil. Tropega-
mente, ainda a•s sim, e ofegando na sua lividez, semi-
ANCHIETA 195

morto, rhegott até á dwira, <1ue se alargava naqut>;"'


extremo arenoso ela praia, ligada por e1a ao monk.
em cujo vértice reinava o Gran-Palma. Urgia vaclea;-
<l corrente, mesmo com água pela cintura, antes que
~aissem os índios ela canoa, já embicada em terra.
O perigo não dava tempo a Nóbrega para tirar as
botas, despir a~ calças, qttc lhe envolviam as chaga.-;
supurantes e malignas de ambas as pernas, sob a ron-
peta. Levantando-o às costas, num supremo esfon~o
de músculos débeis, o companheiro tentou a fa,anhn
herculea ele S. Cristovão. Mas o peso mínimo <lo san-
to, quase 11111a pena sutil para ombros de atlt>ta, e:,-
magava a sua fragilidade. Já lhe era aflitiva a res
piração, já lhe doíam as costelas amolgadas e enfer ..
mas. De chofre, em meio ela ribeira, trambnlharam
os dois, encharcados, a tiritar. Nessa desolação, al-
cançando a margem oposta, meteram-se pela hrenha,
galgarain o morro. Às pressas, num recanto frondo ·
so, Manuel ela N:óhrega despiu-se, entrouxou a rott-
peta, as calças, as botas, e seguiu pela escarpa elo mon-
te, em fraldas, arrimando-se pe110same11te ao bordão,
através dos espinhos, com o vestuário gotejante às
costas. Imperativa. ao lado, a voz cie Anchieta seg!·e-
da va: "Correi, padre, correi, que aí vem os matado-
res". Da ribeira subiam já os gritos elos índios, o
seu clamor e tropel, como na perseguição de escravos
em fuga. Era tarde para chegar antes deles á aldeh
de Pindobussú. Instintivamente, brancos ele terro ·,
os dois jesuítas acharam na -espessura da mata um
esconderijo, donde ouviram o galopar de trinta ado-
lescentes, ferozes e nús, que lhes vinham no encalço.
Com uma espada tão nua quanto os selvagens, a re-
luzir, passou o chefe da horda, Paranábussu, o Grão-
l\lar, filho do Gran-Palma. Havia jurado matar os pa-
196 CELSO VIEIRA

<lres a cutiladas. Trémulos de susto, os fugitivos sai-


ram da moita, retrilharam a escarpa, na mesma ascen-
são para o martírio, ajudado Nóbrega por um índio,
forte peão da montanha, que a promessa de boa pag_a
seduzira.
Entrando na aldeia, exaustos, souberam com in
finito horror que estava ausente o Gran-Palma. Ocul
tos em uma das choças, a medo, haviam começado a
rezar o ofício da véspera, quando assomaram à porta
os guerreiros. Findas as orações, um deles veiu sen-
tar-se à rede, taciturno, empunhando a espada. Era
talvez aquele o verdugo, a remirar de soslaio os dois
eclesiasticos. Por traz dos índios aglomerados, sur-
giu a cabeça de Paranábussu, maligno e curioso, lo-
quaz, arreganhando os dentes. Nada fez contra os
religiosos, entretanto, depois de muito inquirir, muito
arengar. E à saída teria mais ou menos dito, por ou-
tras palavras:
- Vim para matar os padres, mas a sua presença
me desarmou. Falando-lhes, senti o coração enfra-
quecer, não pude ferí-los. Agora, de todos os que ve-
nham contra eles, nenhum há de matar esses homens.
Na linguagem do filho, o Grão-Mar, transpareciam
os mesmos sentimentos do pai, o Gran-Palma.
Em tudo isso os religiosos viam a misericordia
celeste. De regresso, os índios amigos, mas descui-
dados, que andavam a caçar na selva, lastimaram de
novo a sua imprevidência, o infortúnio do velho Nó-
brega, a correr e cair pelas veredas, entre os espi-
nhos. Alta noite, cortando vagas e trevas borrasco-
sas, uma canoa ainda não rematada veiu buscar os
jesuítas, oferecer-lhes a oca inviolável de outro caci ·
que tamoio. Soturnamente, à proa, negrejava a fi-
gura de Cunhambebe ...
ANCHIETA 197

* * *
Seria esse o gigante do mundo selvagem? André
Thevet, na' sua C osmogmfia, universalizou Cunhambebe,
dando-lhe os traços colossais de um símbolo ameri-
cano, temível como os sombrios deuses aztecas. Re-
cortou-lhe o vulto disforme e sanguinário em claro-
escuro de lenda; pôs-lhe aos ombros massiços, como se
fossem reparos de artilheria, dois falcões vasados em
bronze, que ali mesmo troavam, fumegantes ...
Chefe de todos os chefes tamoios, aliados para a
vingança, ele reinava sobre as gent~s brasilicas, desd~
Cabo Frio a Bertioga; exércitos, flotilhas, os arcos <ln
confederação inquebrantável, ,pelejando sem tregua:;,
obedeciam ritmicamente a esse morubixaba de tor.va,;
feições, largos e ru<les membros, possantes armas,
em cuja feroz catadura havia a singular tristeza doc;
monstros.
Padrão e glória do can.ibalismo, a trovejar no
denso crepúsculo da raça, ele costumava dizer com
arogância, meneando o ta·cape, que havia saboreado
em festins retumbantes e sanguinolentos quase dez
mil prisioneiros. Sob uma pele raiada e retinta, nos
seus ócios, tinha bocejos de onça estirada ao sol, fa
rejando em volta a carnagem. Hans Staden, o preso
alemão de Bertioga, lançado pelos índios aos pés do
cacique, foi encontrá-lo diante de um alg·uidar, cheio
de carne humana. Em colunata erigida fttnebremente
pela sua vitória, assinalavam-lhe a porta do antro doze
postes, onde sangravam, espetadas como trofeus, doze
cabeças de inimigos. Remoendo, estracinhando uma
perna de homem, o carnívoro cios matagais rugia, de-
leitado: "Como é bom! Sou uma onça."
O eco dos seus bramidos regelava as almas, que
sentiam a penumbra da caverna, o frêmito ela vora-
gem, o ímpeto '10 jaguar nesse horreúdo filho da terra
198 CELSO VIFIRA

misteriosa. Para alguns o nome soturno - Cm1hambebe


- signifícava o homem que fala baixo. Nome de fauna
lendário, no conceito de outros, exprimia um V'ago des-
tino de avejão - mulher que voa, signo errante da Morte.
Convulsionando os ares a guerra ou escurecendo-os
a noite, voava o tremendo poder com asas inumerá-
veis, flechas sibilantes e emplumadas, sobre o casario
dos brancos, as fortalezas d'el-rei, o velame cóncavo
das naus, a quietação das galés adormecidas no fun-
deaclouro. Vencia o morubixaba tr"ttculento. E a vai ..
dade inflava-lhe o peito bronzeo, acendia-lhe os olho.,
turvos, se lhe gabava as façanhas um homem de pele
branca.
Saboreando a lisonja, nesses momentos, Cunham-
bebe pa,.sseava diante dos guerreiros, trombudo e féro,
devagar, como se ostentasse a mais rica das açoiaba:.
(91). Outras vezes, erguido entre caveiras amontoa-
das na vizinhança da taba, imóvel sob o lavor da!.
joias bárbaras - os pingentes, o botoque e o vast'l
colar de 'búzios rematado em caramujo, - era como
um ídolo selvagem, pompeando no livor de um ossuá-
rio para o culto das tribos. Havia em sua aldeia sei~
canhões, arrebatados a duas caravelas, e as insígnias
de um cavaleiro de Cristo, devorado pelos canibais.
Tal seria o companheiro de Nóbrega e ele l\nchie-
ta, o mesmo que depois conduziu- a Bertioga o poeta
da Virgem, como supõe um dos nossos historiadores
(92. Mas para outro não era esse o amigo dos jesuí-
tas: em 1564 já não existia o grande Cunhambehe.

(91) .\1:oiaba -·- manto f<.'ito ele penas.


(92) UOf'HA POMBO. Hfaturit1 do Bra.~il, l.o cu., vol. IH,
pag. 39i: "Poii. bem, { <.'Rte mesmo outrora indómito aniiual,
-ei.te monstro abominíwt-1 <Jllf- vai, mnn...o r nf:rno, conduzir An-
f biata .a S. Vil'entl' ! "
ANCHIETA 199

terror dos colonos, dos piratas, dos íncolas, com as


suas proporções fabulosas, os ~eus apetites descomu-
nais, e duas peças de artilheria., nos ombros, asses·
tadas contr.a os portuguêses. Logo depois da chega-
da de Villegagnon, a peste vencera o gigante (93).

(93) CAPISTRANO DE ABREU - Notas á Historia Ge-


. ml do Brasil de V ARNHAGEN: "Ha mais de um Cunbambebe:
o de que fala Anchieta, quando descreve seus trabalhos em Ipe-
roig, uada tem com o de Thevet: este morreu de peste, logo
depois da chegada de Villegagnon. - HE:r.JLHARD, Villegagnon,
mi à'Amerique, 144. Tinha em sua aldeia seis canhões tomados
a duas caravelas e a vestimenta e a cruz de um cavaleiro de
Cdsto, que com muito fundamento Rio Brilllco julga pertencen-
tes n Rui Pinto, Le Brésil en, J 889. 142, Paris 1889",
V

Na aldeia do grande chefe. Antropofagia.


Nóbrega volta a S. Vicente. Promeua de An-
chieta á Noeaa Senhora. O poema da Virgem.

Com alvoroço e estrépito foram acolhidos os mis-


sionários na aldeia do grande chefe, que lhes manda
ra construir, ao centro do terreiro, um pequeno san-
tuário. Da redondeza afluiram os índios, aos quais
dissera Cunham~ebe, mostrando-lhes os dois visitan-
tes:
- Não lhes toqueis. Se me aborrecerdes, farei
convosco, amigos, o mesmo que fiz a um dos vossos.
E ordenara que lhe trouxessem a canela do morto,
destinada ao sopro dos guerreiros, como flauta, na s
marchas triunfais. Ao ve-la, dois sagitários gulosQs
bradaram, empolgando o osso ainda não ressecado:
- Se o mataste e comeste, vamos também .comê--
lo.
Pediram, então, farinha ás mulheres, e ambos
roeram a tíbia mal descarnada, por longo tempo, com
avidez canina.
Tudo acabou em demonstrações pueris e cordiai s.
Sobressaltados viviam os dois jesuítas nesses lugare.,
de bruta animalidade, não obstante a sua magrez:i. ·
diáfana e o poder selvagem de Cunhambebe. Matava-
se aí o semelhante, mesmo sem apetite, para aquisição
de outro nome, por desafront a ou por desfasti o. N'.!-
nhuma pena lidade re,freava os matado res impacieu -
tes. Quando muito, o sacrifício dos padrt>s cnstaria
ANCHIETA 201

ao verdugo tamoio uma palavra condenatória do


bando: Ruim! Só a mão de Deus tornara inviolável,
entre a flama dos incendios e o tropel das guerrilhas,
a existência de Nóbrega e de Anchieta.
Decorreram assim oito dias. Os flecheiros, que
tinham ido em canoa a Bertioga, na esteira de José
Adorno, maquinando hostilidades, voltavam amigos
dos colonos, trazendo um rebanho de tupis. Desde o
primeiro mômento, a linguagem dos refens, manda-
dos ao seu encontro pelo capitão da fortaleza, dissipa-
ra neles a lu.sofobia original. Haviam sido cordatos,
renunciando á entrega dos índios abrigados em ~-
Vicente. Os cristãos haviam festejado, por sua vez, a
moderação exemplar do gen.tio. E á última hora, SU·
blevando-se os tupis de Itanhaem, na fronteira, para
matar os refens tamoios, quebrar ferozmente as pa ..
zes· entaboladas, os portuguêses deram aos novos ami--
gos uma boa presa, com que se regalassem. Lança-
das ao mar pelo desejo ele outras vitimas, outras dá-
divas, todas as canoas recem-vindas de Guanabara, hoje
onze, amanhã dez, voavam celeremente a Bertioga.
Os dois apóstolos viam o canibalismo dessas paus
com evangêlica tristeza, quando surgiu à distância, em
20 de junho, luzindo ao sol nas águas claras, um ber-
gantim airoso e veleiro, que os ia buscar. Estava fin-
da a missão. Desconfiadamente, porém, não concor-
daram os tamoios no regresso de ambos : iria só <'
mais velho, ficando o mais novo como refem.
Banhado em lágrimas, á despedida, Nóbrega qu.:
ria partilhar até ao fim a sorte de Anchieta, viver ou
morrer com ele ás mãos·do gentio, mas o outro, im-
perturbável, com os olhos desanuviados de pranto
rogava ao superior que se fosse, (!rixando-lhe- a br11-
<:ão,
202 CELSO VIEIRA

Nóbrega partiu sózinho para S. Vicente. Anchie-


ta voltou à sua cabana, prisioneiro dos tamoios de
Iperoig.

Então, como lhe pesasse no espírito o isolamento,


e ardesse crepitante o desejo, soprado por um dos
três· inimigos da alma, a carne, Anchieta prometeu à
Nossa Senhora, em meio de tentações desnudas e bra-
vias, narrar-lhe a vida num poema, se lhe fosse dado
vencê-las. Com os objectos do culto, ele trouxera al-
guns livros religiosos, posto que os biógrafos, nota-
damente Pero Roiz e Simão de Vascopcelos, hajam
dito o contrário do que afirma o próprio jesuita, re-
latando os sucessos de Iperoig (94). Papel, tinta, pena.·
tudo isso o capitão José Adorno possuía a bordo.Te-
ria ele deixado material não só para as cartas an-
~hietanas aos Regedores de S. Vicente, mas aincb
para um esboço menemonico do poema de Iperoig, uma
siiiopse que fosse o itinerário a seguir depois ela pru-
messa de Anchi~ta.
Ou era mesmo impossível ao poeta, naquele âm-
bito de rochas, como supõem os biógrafos, a notação
dos versos melodiosos? Se lhe brotavam sonoros dís -
ticos ela alma criadora e musical, orficam~nte, não

(94) ANCRIETA," ea1·ta d(, 8 de janeiro de .1:'i65: " ... y


dexanr]o yo los libros ~õ algunas i·.ozillns eu la c-.a:xa, c:omo c-11-
prenrla dcm.i to1·11uun y dexauc1o la llauc> :urna MugC'r de piuclobuçu, q
110 me CJUC'ria menos q ahijo, me viue ai lugar de Cuuhambcba ... "
De <':J.rta.s escritas a bordo. sol,rr· a paz luso-tamoia, aos fr'ln-
eeses moradores no Riol, por Jos~ Adorno, fala o ·próprio An.
ehicta. M~sa mesma epístola.. E' inqul'Stiou:ível também, como
se Yê dn nota 90, qm• clt' e o seu compn.nltc-iro N6brcgn, escre1Jtc.
1'(11/l rnrtn~ c•111 lpC'l'oig nos vi~('ntfoo~,
ANCHIETA 203.

podia Orfeu, sem buril, gravá-los no tronco das pe--


robas ou na face dos penedos. Nasceriam, acaso, ins-
tantâneos e vãos como os efémeros? Onde o artifí-
cio, que os retivesse, a materia, que os preservasse:
Concebido no ermo, idealizado em versos latinos e elc--
gíacos, hexâmetros e pentâmetros, que se ajustam
aos. moldes ovidianos, ·o poema da Virgem, para so-
breviver ao instante genésico e fugaz, não teria senãü
a prodigiosa memória de Anchieta. E a lenda sobrt!
pujou a,s demais conjecturas. Lendariamente, como
papel destinado ao poeta, branquejava a areia molha-
da pelas ondas, batida pelos ventos (95).
Junto do mar, um dia, com o ramo de arbusto len-
dário, traçou Anchieta na fímbria espumante e are-
nosa o verso inicial elo poema:
Eloquar! an sileani, sanctissima A-fater Jcsu?
Falar ou emudecer? Vacilava. Se a hiperdulia
era o seu culto e a fé inspirava o seu canto, ele temia
proferir .o nome <la Senhora, eternamente puro, bri·
lhando sobre a impure;za ela lingua humana. Convi-
riam louvores profanos á excelsa beatitude, clausura-
da no seio do Omnipotente? Que fazer, pávido cora-
ção, língua encadeada pclo temor? Confiar-se à pie-
dade maternal da, Senhora, cuja força levanta as al-
mas inertes, acumula os bens paradisíacos. Se o não
tocasse a flama do céu e voz não tivesse a musa para
louvar Maria, é que o seu coração invicto, adusto co-
ração, vencera a própria rijeza do- sílex. do ferro, dô
bronze. do inquebrantável diamante. Mas não o sus-
tentava contra o pecado, a efígie tutelar ela Virgem·

(95) snrn.o T>E V.\SCONf'ELOS, Fi<la ,lo r. P. ,ltM!ºp11


·11,, ,hH"1,iFta, livro 11. ea1>. VJJ. - .. , " l'"ompunlm os ,·.-rsos, e logo
viJ·nntlo-os fi prain, f::tzi:i tlrl:i hra.Ju"O pnpd .. , "
204 CELSO VIEIRA

Mãe? Que ela, foss<!, pois, com o filho adorável nos


braços, o s-eu amor indivisível:
Tu mihi eum ehara sis uniea Prole voluptas,
Tu desiderium cordis, amorque mei.
Rematado assim o prelúdio, Anchieta desdobra
os motivos do primeiro canto - De Conceptione Virginis
Mariae. A concepção radiosa de Maria antecede ó le-
vante dos órbes, a moldagem da terra, porque fôra j:í.
concebido na inteligência eterna o seu vulto, predes-
tinado o .seu ventre a remir o pecado original. Per.f ei-
ta e dileta, como ttm antídoto ao v'eneno da serpente,
que ela esmagaria: sob o calcanhar, fôra prometida a
segunda mulher, glória da virgindade, reflorescendo
á luz das manhãs edénicas, turvadas pelo crime de
Eva, a mulher primitiva e pecadora.
Feminco expitvit versutus 11omine serpens,
Cujus capta fuit femina prima dolis.
Anunciada aos eleitos, aos profetas, que lhe adi-
vinham nos céus a claridade, na música "das vozes
celestes a doçura, nasce Maria á flor do primeiro can-
to. É a aurora, divina e humana da redenção, alegran-
do todo o firmamento. Rejubilam a terra e o mar.
Exulta o Criador. Só entristece o orco insaciável,
quando jaz no seu pélago a noite milenaria. Um sol
novo desponta; raia uma estrela virgem.
Devotamente, aos pés de Maria, o justo revê o
tesouro, (JUe é a sua esperança em Deus; ansiosa-
mente, o pecador confessa a ignomínia, espera em
lágrimas ter purificado nas chamas de outro desejo
o próprio coração, atraido, enfim, pelo santuário, pe·
los votos do sacerdócio.
E através do poema desabotoa a infância da Vir-
15e111-Mãe, propícia às lagrimas cios pecadores contn-
ANCHIETA 205

tos, acorrentados ao seu degredo. Pe(fttcnina, enb·a


no santuário como serva. Fiando a seda e a lã, tecen-
do veus e mantos, colorindo a,lfaias, incrusta rubis e
sardónicas nas mitras, como o poeta no lavor das es-
trofes; com a mesma diligencia traz o alimento ao~
pobres. Desce atarefada aos serviços humildes, e var-
re os aposentos, nutre as irmãs, lava-lhes os' pratos,
compõe-lhes as camas, trata as enfermas, graciosa-
mente faz nesse convívio tudo quanto fazia Anchieta
aos irmãos no Colegio. Humildade e castidade glori-
ficam-lhe a, presença aos olhos de Deus.
Servo dos homens, o fttturo sacerdote ainda reto-
ma em seus versos o peso da·s culpas humanas, arras-
ta-se como pec~dor imaginário sobre a virgindade per-
dida, os destroços -morais de tantas gerações impem-
tentes. Mas da confissão por todos nós, em que lhe
transparece a mocidade . inguieta sob os ardores tro-
picais, se reergue santificado, imitando a Rainha Uni-
versal, que o místico exalça na serie cios louvores ai
fabeticamente ordenados.

• • •
Em litania, sucedem-se agora os versos iterati-
vos: - como turíbulos de ouro, acesos para, a Madona,
trescalam os dísticos, vaporando incenso. Todo o ful-
gor nominal da Senliora, ampliado pelo celebrante ern
vocativos de ladainha, constela a ordem alfabetica,
reproduzindo ·o esmero torturante das composições
abecedárias de Sedulius. Uma após outra, desfilam a:,
imagens, rutilam as iniciais, desde Arbor, frutificando
em estrelas, até Virga, açoite das macerações eclesiás-
ticas, vara flexível com que se retalham, sob a qual
se retorcem ,os penitentes. . . Doloroso canto do ho -
mem vergastado pelo seu misticismo! Rainha e Já-
206 CELSO VIEIRA

tego dos céus, Virgo e Virga, fundem-se para ele na


mesma invocação terrível. Não se traduzem esses ge -
midos, esses brados, essas convulsões de anacoreta
aos pés da grande Mater flageladora. Quando muito,
a sua interpretação poderia dizer com alguma fide-
lidade:
Vergontea, que expeles o demonio da casa
mal possuida, brandamente castigas, docemente afagas
os que te amam. Vara piedosa, lacera-me noite e din
as. espaduas. E'um deleite sofrer das tuas mãos o
castigo, ó Virgem! Látego. não me poupes! Açoita-
me pelo que devo, cai! Sangrando, aligeiram-se as
culpas. Não temo findar sob a pena, que nos revita-
lisa. Só tu, vergontea, podes cair, sarando as nossas
feridas: só tu, caindo, saras o nosso mal. Com os
teus golpes renasce mais pura a vida já extinta.

• • •
Vencido o terror ela morte, com ele o demónio da
carne, Ant9hieta compunha na grande paz lumino,;;a
das altitudes os seus versos latinos. Esvoaçava-lhe
aos ombros nesses instantes, conforme a lenda; uma
avezinha multicor. Dístico por dístico, até à assun-
ção da Virgem, seria metrificado o poema entre os
bárbaros.
E é sempre na mesma incandescência, na mesma
exaltação, <1ue o poeta de Nossa-Senhora lhe segue,
como já foi escrito, os passos da vida e os passos da
morte, ascendendo com ela à sua glória. Os diálogos
do anjo e da Virgem, o misterioso noivado espiritual,
o nascimento feliz e a prece ao recemn~scido, a ofe.
renda simbólica dos magos, a purificação, a fuga para
ANCHIETA 207

o Egito, o regresso c!a familia sagrada a Israel-,


Jesus no templo aos doze anos, a humanidade sau-
grenta da mãe e do filho no drama do Calvário, todo
o seu esplendor na ressurreição, o transporte de Ma-
ria á bemaventurança e o triunfo em que ela sobre··
paira aos coros angelicais, harmoniosamente, consti-
tuem a acção poética, numa reflorescencia inesgotá-
vel das origens cristãs.
Entremeados a esses cânticos, mais de uma ve;,:,
perpassam os louvores místicos ao vulto de Maria, o-;
louvores candentes ao nome de Jesus. Na discordân ·
eia das almas e do Criador, porém, subitamente ir-
rompe um clangor de ofensiva. E os dardos sibilam.
os anatemas relampeiam sobre os nomes de Helvidio
e Calvino, deflagrações do ódio religioso contra os
que negam a virgindade perpétua de Nossa Senhora.
Helvidio, o heresiarca, discípulo ariano de Auxen-
cio, o lívido, o pérfido Helvidius, combatido no século
IV por S. Jeronimo, é fustigado novamente por An-
chieta, como por açoite~ um ladrador. Em contraste à
doçura ev~ngélica, reponta a violéncia. do tempera-
mento espanhol com os seus doestos: monstro, SUJO
animal, cobra venenosa, língua malvada, cão.
O austero Calvino, teólogo, jurisconsulto e huma-
nista, cuja sobriedade foi tão rígida quanto a sua dou-
trina, passa através da poesia anchietana como um
ébrio cambaleante, um sátiro calvo e tonto, que saísse
do banho das ninfas para a escola de Genebra. Na
cólera do santo explodia a mesma intolerância com
que o seu inimigo lançava os anti-calvinistas ao exílio,
á tortura, á morte pelo fogo. Era o séc'!llo da Saint-
Barthelemy, da Inquisição e dos autos de fé, entre os
católicos, mas também o da Rochela, do tribunal de
Genebra e do corso de Jacques Sore, entre os reformi ;-
208 CELSO VIEIRA

tas. Nada esclarece melhor semelhantes conflitos da


alma religiosa que a sátira de Anchieta sobre a in-
temperança e a concupiscéncia de Calvino. jejuador
sectário:
- Ca.\vino, trocaste a glória de Cristo pela insâ-
nia de Baco, e é esse o nume da tua linguagem, o ten
amor. Calvino, trocastl' a pureza de Maria pela itnp,1-
dicícia de Venus, e é para, essa que vives, e nessa é
que tens a tua mestra, ainda mais, a tua lei, ainda
mais, a tua deusa. São idolos próprios do nome e da
mente de tal criatura, erguidos no recesso do teu co-
ração. Deuses imutaveis, omnipresentes, Baco ins-
pira a tua língua; Venus impera sobre a tua vida.
Porque o nome te revela os costumes: para tal vida,
tais obras. Soando-me aos ouvidos, o nome de Cal-
vino faz-me pensar nos vinhos que têm a cor de VP.-
nus. Escalda-te o vinho, e ao seu calor inflama-se a
tua luxúria, de sorte que expeles, abrasado nessa dupla
chama, a torpeza do ser pela boca vinolenta. Ama·
nhece, entardece ou anoitece, e te revolves sempre no
esterquilínio, porco imundíssimo, execrável. No mesmo
lodo. como desejas, rebokam-se outros javardos da
mesma espécie. Calcas a pérola divina, porco, e ofendes
o recato da Virgem. Assim o fazes para que outrem não
guarde no exemplo dela os preceitos de uma vida cas-
ta, não te condene os vícios. Encharcado de vinho, de-
lirando, é natural que vociferes, Calvino temulento. O
vinho desenfrea-te a língua escandescida; mau grado o teu
querer, não poderias falar de outro modo. Ao lem-
brar o teu nome, a depravação dos teus hábitos, a ima-
gem da tua sordidez, revejo tantas figuras abominá-
veis quantos os vícios gerados nesse coração infecto.
Calvino, tens o nome da cal e do vinho, o duplo nome
da vida que levas. Alvadio á. maneira da cal, rebri-
ANCHIETA 209

lhante de falsa piedade, iludes o vulgo com a tua


aparente candidez. Mas o furor do vinho, em que todo
mergulhas, baforando, patenteia a ignomínia oculta
nesse abjecto ser. E agora sei porque te convém o
nome de Calvino, calvo, desornado entre os mais de
espirito e de fé.
Mas a colera passa, verberante ... Como os lírioi.
aos pés de Maria, desabotoam os - Laudes Virginis ordine
alphabetico; emana dos colóquios e dos rogos finais um
aroma votivo de caçoila e santuário. Enfim, transluzem
no epílogo a minúcia, a delicadeza e a arte preciosa de
vetustas joias: primeiro, a dedicatória do poema - Dedi-
catio operis; depois, as imaculadas horas marianas ; por
último, a linda e breve Recommendatio de Anchieta à Vir-
gem Mãe, que lhe convertera os pensamentos voh!-
ptuosos em ritmos sacros, lhe conservara intacta a
pureza do corpo e da alma (96).

Has preces fundo tibi, Virgo Mater,


Que care5t naevo speeiosa tota,
Ut mihi intacto tribuas pudicam
Corpore mentem
Amem.

Todo esse improviso dos longos passeios de Ipe-


roig, na solidão arenosa da praia, seria depois repo-
lido e rematado por Anchieta, com apuro beneditino,
desde o ofertório à encomendação, no colégio de S. Vi.
cente. Ainda em esboço, dera-lhe uma certeza de ab-
soluta invulnerabilidade aos golpes dos tamoios. Por
vezes, se o encontravam ·diante do mar, no enlevo das

(96) O poema em louvor de N. Senhora foi transcrito na


Tida do P. Anchieta o na Cr6nica da Companhia, por Simão ,le
Va.scoucelos.
210 CELSO VIEIRA

Jllanhãs ou das tardes luminosas, diziam-lhe os cani.-


bais:
- Farta-te de ver o sol, porque em breve te ha-
vemos de matar e comer.
Brandamente, porém, ele respondia aos antro-
pófagos:
- Não me haveis ele matar; ainda não chegou a
minha hora.
O indefinível sentimento do próprio destino, cria-
dor de beleza, afirmava-lhe que não morreria sem dei-
xar conduido e lapidado o seu poema.
VI

Marabá. O filho de Anchieta. Baptiamo dos


inocentes, Demónios do mar, Gesto sublime de
Anchieta. Um paladino cristão entre os selvagens,

Certa manhã, no oratório da aldeia de lperoig, es-


tando a rezar matinas, Anchieta ouviu um rumor de
terra escavada, ligeiros passos, vozes feminis. Tran-
quilamente, supondo que fossem ín,dias ocupadas em
lavores de cerâmica, perto, continuo~a folhear, a me-
ditar o breviário. Meia hora depois,\;indo ao encon-
tro do religioso uma delas, perguntou-lhe Anchieta a
causa desse ruido. Com a simplicidade, a espontanei-
dade jovial dos seres primitivos, res·pondeu-lhe a ín-
dia que havia dado á luz, momentos antes, uma bela
criança e que a sogra lhe enterrara o filho, ainda
vivo, conforme a lei da tribo.
No seu imenso espanto, porque não ouvira um
ai, um queixume, e Eva multiplicada sem dor, entre
os pa-lmares do Eden brasileiro, zombava da senten-·
ça bíblica, soube Anchieta que essa mulher, duas vezes
casada, trouxera já do primeiro conúbio a gravidez.
Ora o produto de mulher bínuba, assim concebido,
vinha fadado á sepultura imediata, por acreditarem os
índios que se mesclavam nele os germes de dois ho-
mens. Dessa confusão, para a tribo, nascia um
piá ou gur-i sem vigor <le seiva e de fibra, - marabá, - re-
pugnante pelas suas origens. Er~ dever da mãe, nes-
ses casos, enterrar com alegria o recem-nado .
212 CELSO VIEIRA

Transido o coração, turvado o semblante, ouvin-


do tais coisas, singulares e desumanas, o jesuíta pen-
sava: "Mais um inocente morto sem baptismo, presa
de Satanaz !" Correu para a água, molhou um pano,
saiu em direcção á cova. Sofregamente revolvida, a
terra fresca· e fofa entreabriu-se, deixando ver o mah
lindo rosto daquele mundo sinistro, um irmão peque-
nino e trigueiro dos anjos que circundam na - igreja,
loiros e niís, a assunção da Madona (97). O anhelito
sutil revelava uma vida bruxoleante. De joelhos,
inclinando-s·e para ,a formosa criança desnuda, Anchie-
ta baptizou-a. Salvara-lhe a alma, vencera o demónio.
E já se reerguia, sem es.perança maior, quando ouvm
a uma das índias, boçalmente agachadas em torno,
que muitas dessas crianças viviam no âmago da terra
um dia inteiro. Pressuroso, novamente ajoelhou á
beira da cova para tomar nos braços o menino sepul-
to, lembrando, talvez, a filha de J airo, ressuscitada
pelo Divino Mestre. Acorreram nisso outras mulhe-
res, precipitou-se com elas um índio cabriolante e
feroz, alçada a tangapema, querendo ali mesmo, ao,:;
gritos e saltos, esmigalhar o recem-nascido.
Joseph implorou, deteve o braço violento, nodo;o
como um tronco:
- Não o mates. Esse menino será meu filho.
Deixaram ao santo o filho adoptivo. Mas nenhu·
ma das mulheres tocou o leve corpo desenterrado,
palpitante á impressão luminosa do amanhecer. Ne-
nhuma quis lavá-lo e nntrí-lo, apezar de todas as sú-
plicas. Estalavam risadas curtas, pipocas de fogueira
selvagem; irrompiam facécias malignas:

(97) ANCfilETA, carta de 8 do janeiro de 1565 · " ... Y"l-


cabãdo de nascer della un niiio muy hermoso; vna vieja su suegra
lo entero bivu ... "
ANCHIETA 213

O padre já tem filho. Olha o filho do padre.


Era uma alusão á castidade invencível de· Anchie-
ta, que sorria, ao escárneo. Maternalmente, como se
o amor evangélico, esplendenclo acima da morte P
enfeixando a vida universal, compreendesse todos .:is
amores sagrados, o próprio amor de mãe, ele pouso:t
nos joelhos o menino, limpou-lhe a face manchada
de terra sepulcral, os olhitos entrefechados, o débii
corpo moreno. Afiada a lanceta, ia cortar.-lhe o um
bigo rente, mas uma das velhas bruxas acudiu a tem-
po de evitar o desastre, guiou-lhe a mão inesperta. E
o filho adoptivo de Anchieta, vestido .e beijado por ele
com o mesmo carinho maternal, foi entregue ás aias
da corte de Cunhambebe.
Durante quatro semanas, aleitado pelas índias, u
minúsculo ser floriu, iluminou a tristesa,, em que mer-
gulhara Joseph, depois da partida de Manuel ela Nó-
brega. Por vezes, remirando o menino, ele cuidav;-1.
!obrigar-lhe nas feições angelicais, oprobrio da selva-
geria, enlevada surpresa da alma cristã, o arrebol de
outra humanidade menos crua. Ha-via beleza e doçu-
ra nessa imagem, arrancada pelas mãos benfeitoras
ao ventre ela terra. E apoderava-se dele, flagelador
da ·própria carne, sofredor longamente endurecido no
jejum, na penitência, no trabalho, nas mortificações,
uma ternura de mãe, sonhando os mais belos sonhos
junto ao berço do filho. Retomava nos braços o seu
menino, adormecia-o, talvez, á cadência de alguma
velha canção indígena ou peninsular, deitava-o sobre
palmas viçosas, entre flores agrestes. E as clonas do
terreiro, índias cacarejantes, aprendiam na escola ele
Anchieta a delicadeza dos gestos maternais.
Bruscamente, porém, sob a ameaça dos feiticei-
rm ou o peso da tradição, essas nutrius robustas ne-
CELSO VIEIR.A

garam ao menino a esmola do seu leite. Desolado,


via-o Joseph de Anchieta fenecer, extinguir-se num
choro de fome lacerante. Em volta d o oratório, a
abundância dq; terra e do mar, plenitude soberba ;
dentro, a vida inocente e faminta, agonisando. 'J
apelo elo santo não comovia as índias, que amamenta
vam ao lado as suas pequenas feras . Uma a, uma, iam
e vinham, bronzeas, .rijas, moças, com o leite a en-
cher os úberes densos. E além desse, extravasante.
mas intangível, só havia o leite das onças prenhes nas
matas e nas furnas.
Morreu de fome, assím, condenado pelas mães da
tribo á inanição, o mais gentil dos seus filhos - o
filho espiritual de Anchieta. Sem lág rimas, retendo
no coração uma onda tormentosa de piedade, o santo
restituiu esse lindo corpo á terra insaciável. Escr r~ --
veria depois que o anjo fora bem avisado_, transmi -
grando para o céu, em vez de permanecer no degredo
inhumano das tribos. A mais adoravel Senhora, entre
os perfumes da rosa candida, não lhe negaria, certa--
mente, o leite da sua t ernura celeste, a comunhã o
da sua bendita graça ...
Entã o, a id éia católica de A nchieta era princi
paimente baptizar as crianças moribundas, arrancá-las
em pleno abismo ás garras do diabo. Com esse desíg -
nio religioso assistia ao parto de quasi todas as ín -
dias da aldeia. Com esse pensamento lustral baptizara
certa vez uma recemnascida, a expirar, t oda rubra d o
sang ue da maternidade, não despegada sequer das pa-
reas. Intimamente, ao partir, o missionario sentiu
deixa-la viva, entre a s fúrias daquele inferno, m as
pouco depois rejubilava , á notícia ela sua morte. O
apóstolo preferia que as a lJ11as do:; i11ocoltes, i or c-1,~
bl,lptizacla~, voassem cle:jc\e logo ao Par;i.i5o, .
ANCHIETA 215

Dias amargos, penosos dias sucederam ao exílio


de Anchieta, com atribulações e ameaças, evangelica-
mente sofridas. . . O seu ementário negreja, sob
duas terríveis datas: I. 0 de julho - chegam cinco
canoas do Rio: 6 de julho - chegam as de S. Vicente,
e do Rio mais dez. Que trazem esses lenhos arrojados
pelo vento a Iperoig, um após outro? Bandos de ma-
tadores, vozes de inimigos, o embuste ou a cólera
do gentio.
Na primeira flotilha haviam embarcado os pio-
res demónios da selva. Tais foram os visitantes de
Anchieta, exactamente quando a Igreja celebra a Visi-
tação de Nossa Senhora - 2 de julho. Eram grotes-
cos e ferozes, vinolentos e palradores; desamavam a
paz; queriam tactear os objectos enfardelados por
• Antonio, companheiro de Anchieta, subtrai-los ao res-
gate da mulher e da prole. Cercavam o jesuita, a
correr e grulhar como pernaltos ruidosos; depois,
cada qual vinha dizer-lhe monotonamente, infinda-
velmente, as origens, os nomes, as façanhas; imóve 1 ,
bem segura a flecha na corda retesa do arco, esperan-
do o sinal combinado, um sagitário vis·ava o apó;;-
tolo. De repente, em debandada, iam-se todos ao-,
pulos, aos gritos, na explosão da loquela infernal. Sos-
segavam os arredores no âmbito de ouro e cinza da
tarde, que lentamente cle~cia. Ao an_oitecer, porém,
voltavam os indios com as mesmas assuadas, hafo-
rando vinho, chocalhando facécias ou escárneos, e
havia enti·e eles os consoladores, que tinham palavras
untuosas para Anchieta e o companheiro, afagando-
lhes a cabeça: "Não vos assusteis, não hav<.>mos tlc·
comer os nossos amig-os. Pode+, en~or<lar "<'Jll rui1la ·
cios ..• "
216 CELSO VIEIRA

Assim escorria a linguagem dos consoladores, mc-


líflua, desm~ntida pelo arreganhar dos dentes luzi-
dios. E alta noite, como Anchieta erguesse os olhos
no intervalo das preces, viu á poda um guerreir.:,
sombrio, tendo na dextra a espada nua. Viu que pas-
sava e repassav.a, junto a ele, devagar e em silêncio.
Joseph encomendou-se a Deus, pressentindo e aben-
çoando a morte. Nisso, alguém chamou lá fóra o ver-
dugo, que ainda uma vez se deteve, a espiar o santo
genuflexo, mas afinal saiu para as trevas, cabisbaixo,
com o ferro desnudo na mão espessa.
A mentira e o pavor desorientavam ·a segunda
flotilha, composta de onze canoas, que haviam toma-
do o rumo de Bertioga, em junho, antes da escuna de
Nóbrega. Um escravo fugido aos colonos, em S.
Vicente, apregoara entre os refens e hospedes tamoios
que os brancos desejavam concentrá-los aí com o~
principais, nomeadamente Pindobussú e Cunhambebe,
para aniquilar todos eles sob o mesmo golpe. Dizia
mais que um flecheiro da hoste de Caoquira, ausente
desde muito, fora trucidado por Domingos Braga,
português, e entregue depois á gula dos tupis. Hou-
ve pânico entre os guerreiros tamoios, acampados
em S. Vicente, á espera de bonança, que lhes permitis-
se cair sobre os tupis vorazes, com alegria e reforço
<los colonos. Reembarcaram de chofre nas onze ca-
noas, arrastando Cunhambebe, e só em Bertioga é
que ele descobriu a mentira ignóbil, e~erimentou a
vergonha ela fuga, trovejantemente disse aos com-
panheiros amedrontados:
- Cunhambebe tião foge. Torna daqui a S. Vi-
cente, só, para morrer.
Fugiram os outros, porém, aturdidos no balouço
\,elas çanoas, acurvados sobre a pá dos rc,>mos, cle01a11-
ANCHIETA

dando Iperoig. Mal chegaram esses, o grande Cao·


quira foi ter com Anchieta:
- ó padr-e, exclamava o índio, - aqui estão os
guerreiros fugitivos, ameaçados de mode pelos teus !
Para isso é que mandaste a S. Vicente os chefes
tamoios ...
Anchieta protestou a sua. lealdade, a sua veraci-
dade. Perante Deus e perante os homens nunca men-
tira. Se os vicentinos, de feito, quisessem atraiçoar
os tamoios, ele pagaria com a vida essa traição. Re-
plicou-lhe ó selvagem que não falasse de morte, pois
vinha defendê-lo. com0 viriam mais tarde Cunham-
bebe e Pindobussú.
Nessa mesma data chegou a. Iperoig nova esqu:.-
drilha, a terceira, conduzida pela vingança. Um com-
panheir.o do principal sucumbira em guerra contra
os vicentinos e urgia a desafronta. Como os tripu-
lantes, que enchiam dez canoas, maldizendo a paz, re-
clamassem de Anchieta os índios mansos, agregado;
ao colégio de S. Viçente, o apostolo bradou, eredo e
impávido:
- Nenhum deles será entregue aos tamoios.
Aqui estou ás vossas ordens. Se me quereis tragar,
fazei-o, mas no sacrifício dos nossos não hei de con-
sentir.
O heroísmo vibrava, espa ntando os selvagens, 110
acento da voz dominadora. A horda recuou, intimi-
dada por esse verbo, lampejo de força -psíquica. Ma;:;
recrudesceram as hostilidades_, ap~nas dissinJuladas.
Rondavam-lhe o pouso cada noite. A sua passagem, ha
via semblant es carrancudos, olhares dardejant es, pala-: -
vras más. Propunha m alguns que se levasse a guerra
,com estrondo aos perós de S. Vicente. :Menos belicosos,
outros não queriam senão a mortt'! de Anchieta e elo se11
companhc-iro ou o esJmlho da fazenda amontoada num
218 CELSO VIEIRA

recanto da choça. Venturosamente, como se o


trouxesse a mão invisivel de Deus, chegou á aldeia, em
breve, o flecheiro da hoste de Caoquira, imolado por Do-
mingos Braga e devorado pelos tupis, segundo a versão
mentirosa do escravo. O medo tiranizara-lhe a alma,
desde o primeiro contacto d9s brancos, e ele havia
corrido sempre, ora através das matas, ora ao longo
das praias, durante um mês, fugindo como louco a
um espectro imaginário. Nessa evidência da mentira.
forjada pelo escravo, subitamente, Anchieta recupe-
rou a vassalagem de algumas feras amigas.
Pindobussú, o Gran-Palma, regressava de Bertiog.:i.
a Iperoig, mais que nunca devotado ao jesuita. A
insolência dos tamoios de Guanabara, que os outros
desejariam ver longe, no interesse da paz, não dei-
xa v.a o apóstolo em sossego. Veiu.-lhes o chefe ao
encontro, certo dia, com o seu espadagão de pau e ,1
sua voz reboante. Bateu os pés, bateu as mãos, em
som de guerra, e assim falou aos tamoios:
• - Pindobussú não quer tumultos na sua aldeia.
S'-' haveis de o ajudar contra inimigos, quando ele faz
pazes com os brancos, andais a pedir cabeças de cris-
tãos! Mas o braço de Pinclobussú é forte. Avançai.
Ninguém avançou. Os tamoios de Guanabara
emudeciam. acobardados. Ao estrépito das palmas e
elos gritos de Pindohussú, vinham dos arredores 03
selvagens, correndo, para gozar o duelo, que supunham
travado. Sob o valor elo chefe, a sua clurinclan~ rle
pau, encolhiam-se os mais arrogantes. Ele abaixou o
espa<lagão. teve um gesto de soberbo desdém, e ace-
nando ao principal da hoste. amigo seu, confiden-
ciou-lhe á ,parte sobre Anchieta:
- Íi ele que trata das coisas do Pai Tupan, e
verdadeiro mestre dos cristãos. Ou. terú o nos:;o rrc;,
peito ou ~l"renos ckstn1idos pela ira de Tupan,
ANCHIETA 219

A fé ingénua de Pindobussú, atribuindo ao mi:;


sionário tanto poder, vínculos sobrenaturais, criava
a lenda miraculosa de Anchieta no Brasil nascente.
Supunha o Gran-Palma com inabalável firmeza, depois
de ser doutrinado pelo jesuíta, que a existência deste.
• envolvia ·a da tribo, que os índios pereceriam fatal-
mente, um por um, se o molestassem. Anchieta não
lhe explica,va de outra forma a dedicação paternal.
Idoso, mas robusto, amando a longevidade, o Gran-
Palma dizia constantemente ao apóstolo:
- Filho Joseph, não tenhas medo. Ainda quP.
os brancos lhe matassem os parentes, longe, Pindo-
bussú havia de ser contrário á tua morte. Falas ver
<lade ao cacique dos tamoios, e a vingança dele seria
nos tel.ls, não em ti, pelos danos feitos á gente d;.
sua taba. Vês como Pindobussú te defende, ouves o
que diz a sua boca, em teu favor, aos principais de
canoas e aldeias. Reza por ele -a Tupan, consegue para
ele uma vida bem longa e farta.
VII

Sacrifício de um tupi. Anchieta em face da


Morte. Anchieta em face de Deus, através dos
. sonhos. Expansão da lenda nos rochedos de
lperoig. Prodígios da caridade anchietana. Um
prisioneiro indomável. Novas de.aventuras de An·
tonio, companheiro de Anchieta. O seu regresao
a Bertioga.

Nesse ergástulo cingido pelas montanhas, pelo


oceano, restava sómente ao irmão Anchieta a solidá-
ria tristeza de um companheiro, Antonio, o malaventu-
rado.
Ouviram os dois na sua cabana, um dia, o clamor
vinolento dos índios, que pretendiam matar ao com-
panheiro de Joseph um escravo tupi. Interrogado
pelo jesuita, simulara espanto e dúvida o principal de-
fensor dos hospedes, Caoquira: ninguém ousaria trans-
por o limiar da choça inviolável para matar o escra-
vo. Não obstante, os selvagens cantavam, ébrios
de vinho e ódio, batendo os pés, brandindo os arcos.
As suas melopéias ressoaram, cadenciadas pelo que-
brar elas ondas, até á hora elo sol posto. Lugubn:-
mente, a escuridade envolveu as penedias, e ao ~ai-.·
da noite; em algazarra, um bando feroz invadiu o ra:1-
cho. Fêmeas alucinadas como fúrias gritavam:
"mata! mata!" Outras pediam aos guerreiros, cin- ·
gindo-lhes os braços musculosos, as pernas robustas-,
vermelhejantes ela tatuagem: "Não o mateis, que os
nossos maridos e filhos pagarão pelo escravo em Ber-
tioga !" Anc-hieta <JllÍS interpôr-sc-, falar, mas doí:-.
ANCHIETA 221

índios leais o dissuadiram com o seu aviso: era a Mor·


te o que ele provocava,, tão assanhados vinham os ta-
moios. · De rojo, bestialmente, o escravo foi levado
para o terreiro, entre golpes e urros. Aí, estava já
um tupi, condenado a igual sorte. Duas vezes, sur-
damente, ouviu-se .o baque fulminante da tangapema,
estilhaçando os crâneos. Miolos extravasaram da:;
membranas rotas; dos corpos mutilados escorreu o
adipe; a, sangueira empoçou... Rodopiavam mulhe-
res, cantando, em vertiginosa coreia. Bailadeira~
nuas e trágicas vinham cravar lentamente as facas
ele madeira, aguçadas como punhais, no róseo das
vísceras esparsas. Outras besuntavam os dedos, re-
talhando os cadáveres; iam depois lambusar masca-
rões e bocarras, através da turba, com aJarido car-
navalesco. Uma delas, vamp1nca, esbraseados · os
olhos de loba pela sede nocturna, inclinou-se para
um dos mortos como para uma fonte, encharcou as
mãos no sangue derramado, lambeu-as com avidez.
Terminado o festim, e antes de raiar o dia, propa-
laram as índias alojadas perto da óca de Joseph, . en-
furecidas contra os matadores, •que não tardaria a vin-·
gança dos brancos. Funesta linguagem! Mal relam--
peou o boat o, armou-se de novo a tempestade. Era
mais uma razão, segundo a lógica dos selvagens, para
devorar também Anchieta, a quem muito custou des-
persuadí-los, apoucando os horrores da noite bárba ·
ra. Nada importava aos cólonos a morte de um es-
cravo, dizia ele, sorridente, ainda que a dor lhe aper·
tas se e enegrecesse o coração (98). Serenaram com
essas palavras os canibais.

(98) Ibd. Ibd.: " ..• nos fue necessario ha.blnr enparticular
cõ los prineipnles Authores daquPlla muerte, y. dizirles que nose
222 CELSO VIEIRA

Lucidamente, porém, compreendeu Anchieta que


a Morte, caçadora sinistra-, lhe andava 110 rastro, dia
e noite, por florestas e despenhadeiros. A dissimu-
lação, a hipocrisia, a maldade obliqua dos tamoios pre·
cipitariam o instante supremo. Todo o áspero mundo
circunvisinho com arvoredo e penedias, o mar bramin-
do em torno, a fereza dos homens, desvaneci.a-se par:i.
Anchi eta nos longes ela sua espiritualidade como um
floco de paina. A idéia do julgamento divino, ele con-
centrava nas orações todas as energias <lo ser, pedia á
infinita misericordia, ansiosamente, que lhe perdoas--
se os erros e desobecliéncias de outrora ror aquela sub-
missão aos designios elo alto. Nas longas horas de
prece, quando em lágrimas vinham as sílabas arden-
tes, requeimando-lhe a alma, desejava a morte com
sofreguidão. Os pensamentos iam-lhe para o céu, de ·
satando-se da t erra como asas impacientes; a vit:,.-
lidade em flor queria exalar o último eflúvio num
ocaso ele sangue. Revoltada, afligia-se a carne moça;
o terror do aniquilamento, aos trinta anos, crispava·
lhe os nervos doloridos, as fibras latejantes. Era a
viela terrena, ciosa do seu império, da sua forma, pren-
dendo-se a novas raizes, abrolhando novos desejos.
Mas a or ação borbulhava em pranto, a alma escuda-
da na fé vencia a carne, e outra., v ez, sobrepairante
ao medo, tocada pela graça, contemplava elas altura s,
num resplendor, toda a poeira humana.

• • •
Ele conheceu a tortura silenciosa da fom e, a dor
crucia nte de novas enfermidades, os cala frios e an-

Curassen de pa la.bras de Mugeres, que los urõs no auj:m de


hazer caso dela muerte dE> un oselauo, ete . .. ,"
ANCHIETA 223

gústias do medo, a omnipoténcia da mentira, incuba-


da por velhas e feiticeiros, sobre o espírito daquela
gente crédula, tão sutil no inventar e fácil no crer todo
o gênero de atoardas ou imposturas.
Passaram dias, semanas, e a longa ausência de
Cunhambebe e dos seus· arcos preocupava os guerrei-
ros inertes, as mulheres saudosas. Te-los-iam comido
os tupis de Itanhaem? Te--Ios-iam matado os cristãos
ele S. Vicente? Algum deles escaparia sem dúvida á
carnificina para trazer notícias. Mas não vinha, o
fugitivo das brenhas ou elas águas circundantes, evo-
cado pelo desejo dos tamoios, que se acotovelavam
derredor de Anchieta, oráculo das selvas, perguntan-
do com impaciência o que Deus lhe havia dito sobre
a demora de Cunhambebe, o seu destino, o ardil mais
engenhoso para acabar de vez com os inimigos. Etn
nome do próprio Cunhambebe, o Gran-Palma insisti:!.
para que ele alcançasse de Deus o extermínio dos tu-
pis. E uma noite, porque o não houvesse encontrack,
na choça, indagou do companheiro de Joseph:
- Onde está o padre? Já dorme?
O outro sorriu, apenas murmurou:
- Quem o vê dormir? Ele passa toda a noite fa-
lando com Deus. Só adormece a 0 vir da madrugada:
- E ainda não te disse o que sucedeu a Cunham-
bebe? Não perguntaste?
- Perguntei, mas o padre oculta o que sabe, C'
até hoje nada, quis dizer-me.
Esse mistério e essa linguagem fortaleciam no~
tamoios a: certeza de comunicações divinas, feitas em
sonho a Anchieta. Foi-lhe necessário dizer que não
acreditava nem deviam acreditar na magia nocturna
dos sonhos. Bem tratados pelos vicentinos eram os
seus irmãos, como veriam em breve. E sabendo que o
224 CELSO VIEIRA

padre Nóbrega, generoso para eles, quando inimigo;;,


não atraiçoaria de c;.erto a nova amizade, em S. Vi-
cente, retiravam-se as índios satisfeitos com a pala-
vra do oráculo.
A ilusão da clarividência de Anchieta era mani
festada nos próprios casos domésticos. Veill um índio
confessar-lhe que, por suspeita de infidelidade, acuti-
lara em vão uma das mulheres, vergando a ponta da
espada, ao primeiro golpe. Como Deus não tinha se-
gredos para Anchieta, o selvagem queria fazer-lhe duas
perguntas: "Era ela culpada ou inocente? Devia
matá-la ou não?". Com inefável doçura, lembrando o
perdão sua vis si mo de Jesus á mulher adúltera, só res-
pondeu Anchiet;i á ú1tima pergunta:
- Deus proibe matá-Ia. Se o fizesses, não te per-
doaria.
O tamoio saiu desanuviado, contente. Ao procurar
o missionário, bem sabia como Deus já lhe disser«
tudo.
Essa intimidade nocturna do jesuita e do sobre-
natural, começo da sua lenda, êm Piratininga, era om-
nimodamente aproveitada pelos índios. Um prisionei-
ro fugira, e o Gran-Palma rogava ao mestre que fala_.;-
se a Deus, para o extraviar nos caminhos da selva, o
restituir aos tamoios de Iperoig. Contra o feroz de-
sejo, pedia Anchieta nas suas orações o livramento
do índio, condenado á morte pelos antropófagos, mas
aconteceu que o fugitivo, sem coragem diante de bre-
nhas tão cerradas, fraguedos tão ásperos, na imensi~
dade hóstil daquela região, voltara espontaneamente
ao cativeiro. E os tamoios bradavam, jubilosos:
- O abaré falou a Tnpan, não dormiu toda a
noite. .\-s:-im iez voltar o inimigo para ser de nov,J
amarrado e comido.
ANCHIETA 22.S-

Entre os mais confiantes nessa virtude secretá,


}Íavia certo indio, a quem uma velha feiticeira desvia-
va das armadilhas a caça, porque lhe negara o caça-
dor, egoisticamente, um quinhão na sua presa. Depois
disso, nada mais tinha caçado, ra>stejando em vão
pelas moitas. Ave ou bicho da selva, nada podia ofe-
recer ao irmão Anchieta, que o visitava. Espírito cla-
ro e forte na: sua crença, detestando a selvageria e a
superstição, o jesuíta verberou. a fraqueza do índio:
- Até quando haveis de acreditar, pobres homens,
no engano dos vossos feiticeiros, como se eles tives-
. sem algum poder sobre as coisas do oéu e da terra:
Ouve-me bem, caçador infeliz! Poderoso é somente
Deus. Crê nas minhas palavras e ele te dará outra vez
uma rica presa nas matas de Iperoig.
- Tanto melhor! gritou o índio, visado pelo sor-
tilégio. Faze com que Deus mande para os meus
laços toda a caça dos montes, e haverá um banquete.
Foram armados de novo os mondéus, colhidas
pelo selvagem duas capivaras, entre as ervas den-
sas. Anchieta e o companheiro, que andavam peno-
samente em jejum, desde muitos dias, tiveram no ban-
quete uma, boa parção de farinha, alguns pedaços de
carne. O prestígio do santo miraculoso assoberbava
a feitiçaria diabólica da tribo.
Esse renome de oráculo e taumaturgo desabro-
chava a, seu pesar, contra a sua modéstia. Nunca se
arrogou Joseph de Anchieta semelhante poder, teve
sempre naqueles dias a explicação natural do bom
senso e da fé cristã, limpidamente, para todos os su·
cessos de Iperoig. Cren,do na força interior e SU'pre-
ma, da oração, nunca se exibiu o missionário, entre-
tanto, como adivinho, mago, confidente ou eleito de
Deus. Formou-se a lenda carregada de milagre~, .il,u~; :
226 CELSO VIEIRA

soriamente, a despeito da sua palavra singela e verí-


dica.
Toda a consciência de Anchieta resplandecia em
doutrina e caridade. O médico dos selvagens não re-
pousava, administrando infusões e drásticos, fazendo
sangrias e curativos. Diplomado só pela experiência,
no curso doloroso e universitário dos males de cada
ser, de cada dia, tinha p or laboratório a floresta, ~
uma lanceta como instrumental cirúrgico.
Foi com essa lanceta que ele operou a mão intur-
gescida e ,corrupta, meio gangrenada, ao seu inimigo
mais perverso, um tamoio do Rio, cujo sonho era
matá-lo. A inflamação alastrara, deformando-lhe o
braço, atingindo-lhe o ombro, e tão repelentes vinhat:i
as úlceras que todos fug iam dele, abandonado como
um lázaro á dor e á fome. Sp Anchieta e o compa-
nheiro, Antônio, velavam o enfermo repugnante. Não
querendo os índios alimentá-lo, nem ao menos bus-
car-lhe nas matas um pouco de mel, bom para tais fe-
ridas, Anchieta rasgou a própria camisa, fez-lhe com-
pressas de azeite. Depois, recalcando nas vísceras o
grito e o anseio da fome, deu-lhe o escasso alimento
do seu degredo, tirado á própria boca. P orque a do -
ença manietara infectamente o selvag e111, e'ra nu-
trido; agora, pela mão carinhosa de Anchieta, como
se fôra uma criança no regaço da aia. E o santo aind;i,
tentou iniciá-lo no Evangelho, mas o bruto, apenas
curado, partiu com a mesma bruteza e o mesmo ran-
cor.
Para a vida ou pé!,ra a morte, resistiam assim os
tamoios e tupis, muita vez, á influência da caridade
evang élica. Desafiando perigos, certo dia, Anchieta
desceu o monte para baptizar no terreiro de outra al-
deia um índio valoroso, predestinado a morrer sob o
ANCHIETA 227

t:icape. A gota <l'água do baptismo, porém, não logrou


·insinuar-se religiosamente naquela vontade, impermeá-
vel como um bloco de aço.
- Não quero ser cristão, dizia o selvícola com
arrogância, porque não morrem como valentes os que
vós baptizais, e eu prefiro a i'norte dos bra-vos.
Quatro jovens tamoios, atando-o solidamente
pela cintura, distenderam-lhe as cordas, em pleno ter-
reiro, lugar do sacrifício. Ele rugiu e pulou, à ma-
neira de um belo tigre acossado. Contraindo o pei-
toral de bronze massiço, reerguendo a cabeça firme
e a·mpla, com todo o orgulhÓ dos a vós guerreiros a
lampejar-lhe nos olhos, assanhava a tribo vingadora,
ufanava-se de ter devorado, só ele, o pai deste, o ir-
mão d~quele, o filho daquele outro. Era um demó-
nio em festa na sua flama, parecendo abr_asado pela
record~ção e pelo contentamento de tantos malefi.
cios. Chispavam-lhe as pupilas; saiam-lhe as palavras
certeiras e agudas como flechas mortais. A sua ale-·
gria de matador, condenado á morte, vinha toda e~-o
labéus, em chufas, em risos á cara dos inimigos, e tão
arrogante, que os outros não esperaram, sequer, a
presença, do algoz, sob o manto de penas rutilas, com
a ibiracema enfeitada <le cascas de ovos multicores
Na impaciência furiosa da vingança derribaram o
atleta, com estridor de a,ssovios, palmas, gritos, a pe-
dradas e cutiladas. Raivosamente, deceparam-lhe a
cabeça, que ainda conservaria na boca exangue o mes-
mo rictus de força inexorável.

• • •
Antônio, o homem que perdera mulher e filhos,
rebanhos e servos, adoeceu gravemente, para qu-:
tudo lhe fo sse arrancado, em tudo lhe fosse dada, a
228 CELSO VIEIRA

sorte de J ob. Era aquele, sem dúvida, o perfeito


exemplar cristão ela alma sem ventura. Xão bastando
os males, cuja sombra lhe havia feito o deserto n!l
vida, enoitecendo-a, redobravam agora inquietações e
dissabores.
Curada por Anchieta a doença, irrompera s;ontra
o homem desafortunado, insolitamente, a aversão
dos selvagens, que não prezavam nem temiam senão
o jesuíta. Negavam-lhe comida, por maldade, nos
próprios dias fartos, exigiam-lhe rosários, foices, ma-
chados, todo o resgate da família cativa, empobre-
cendó-o cada vez mais, alega,-ndo que não tinham pelos
seus mortos indemnização alguma dos colonos de S.
Vicente.
Um azar misterioso, imutável como as leis natu-
rais, era ·o fadário de Antônio, o signo das suas horas,
e até o Gran-Palma, tão amigo de Anchi~ta, não Ih?
estimava o companheiro, ainda menos o protegia. Sen-
tindo-lhe a vida ameaçada, e estando já disposto a
sacrificar-se por ele, Joseph disse ao Gran-Palma:
- Esse homem, que aí vês, é construtor das
igrejas de Deus. É pedreiro. Se o molestarem, ficará
o Senhor tão irado, como se o mal fosse feito a mim
mesmo. Fala por ele aos teus. Defende-o.
Então, o Gran-Palma c'omeçou a tratá-lo com be-
nevolência, proibindo aos tamoios que lhe fendes-
sem, como desejavam, a cabeça malaventurada.
Não cessava, porém, a desolação de Anchieh,
quase estarrecido em face daquela animalidade oh.-;
cena e perversa. Dia e noite, sob o mesmo tecto, sob
os olhos do casto irmão Joseph, enevoados pela tris-
teza, rolava a insânia das orgias bramantes. Que-
brava-se a linha dos corpos vigorosos e nús em fle-
xões grotçscas ou macabras; rebc:ilcavam-se homens
e mulheres /4 embriaguez do cauim ou no espasmo do
ANCHIETA 229

coito; e vozes, gestos, movimentos, olhares .udo ex-


primia não só a loucura, mas tambem a .Jegradação
de seres humanos, convertidos em bestas ,por um deus
maligno. Ferido no seu pudor, na sua idealidade, An-
chieta, saia para o ermo da noite pluviosa, abrigava-
se ao pé de uma arvore espectral, fustigado pelo ven-
to, coberto de lágrimas pela oscilação dos ramos des-
folhados. Exposto ao flagelo da ventania, ao relento
ou á geada, por vezes á fúria diluviai dos águaceiro'),
encharcado e trêmulo, o jesuíta queda;v'a-se longas
horas, enquanto brama,va o cio feroz dos indios. Mas
a friagem nocturna, outra,s vezes, trespassando-lhe
os ossos, reconduzia-o glacialmente ao fogo da taba,
onde a sua castidade revia o mesmo delírio animal,
tripudia,nte. E os bebedores não lhe perdoavam esse
l•orror de místico à depravação dos costumes, ao de-
senfreamento dos instintos, mirando-o já de soslaio,
r'autorosos.
Felizmente, em 14 de ago:,to, vespera da Assun·
ção de Nossa Senhora, chegou o principal Cunham-
bebe, trazendo mais um tupi enlaçado n~ praia de
Itanhaem. Exultantes com a nova presa de guerra, os
índios viam agora em Joseph o emissario dos cristãos
de S. Vicente, amigos favoráveis á captura dos seu~
inimigos. Cunhambebe trazia, além do pns1oneiro,
noticia da reconciliação dos índios mansos, aldeados
entre os portugueses, e reunidos por influência de Nó-
brega, primeiro na igreja de Itanhaem, depois na de
Piratininga. Contentes, mas inflexíveis, os tamoios
aparelharam as canoas para tornar a S. Vicente, na
esperança de novas presas, que lhe seriam fáceis nessa
campanha, aliados aos vicentinos.
Propício era o momento, cuidava Anchieta, ao
regresso do companheiro sofredor. Ainda uma vez,
230 CELSO VIEIRA

porém, negrejou-lhe a má sorte: antes <lo embarque,


despedaçara-se á vis.ta de Iperoig a canoa utilizada
para transporte da fazenda, que ele. trouxera em vão.
Foi necessário aguardar um barco á vela, duranrc
quatro ou -cinco dias; foi preciso que Anchieta domi-
nasse as hesitações do Gran-Palma e de outros che-
fes, o sussurro das mulheres desconfiadas, vendo par-
tir .um refem dos tamoios, quando os maridos esta-
v'am ainda em poder dos colonos de S. Vicente.
Antônio partiu, afinal, com a sua desdita e uma
parcela do seu resgate em cinco de setembro. Não
podiam ser mais deploráveis as condições do navio.
pouco depois, levando Job a bordo.. Vento contrário,
leme partido. Os mantimentos rareavam; os tripu-
lantes indígenas queriam voltar ao porto de Iperoig.
Como tivessem desembarcado em uma ilha, de. pas-
sagem, o colono prometeu-lhes bom vento em nome
de Deu's; sózinho, consertou o leme avariado, enco-
mendou-se á Nossa Senhora da Conceição, e á meia-
noite fez um apelo aos índios, que dormiam sob o
arvoredo: "Naveguemos com a brisa de terra!" Len-
tamente navegaram, mas no dia seguinte, em meio da
viagem, foram surpreendidos pela calmariá. Nem um
sopro na vela murcha! Que fazer, ainda tão longe
da terra, sem água, sem comida? Esquife boiante,
quase imóvel na onda, plumbea, mal flutuava o navio
de Job... Sem vadiar na sua fé, Antônio mandou
içar o pano ao topo do mastro. Deus o enfunaria. E a
vela subiu, logo o vento soprou, rijamente, á popa da
escuna, cessando apenas em Bertioga, que era o fi-
nal da viagem. Outra vez na terra de Hus, sem mu-
lher, sem filhos, J ob desesperançado continuou a,, vi-
ver, entre as mesmas ruínas, para o seu luto infindá-
vel.
VIII

Conclusão da paz. Anchieta obtem de Cunham-


bebe a aua liberdade. Rixa de mulheres. Um ora-
tório em chamas. O regresso do santo na canoa
de Cunhambebe. Salva-se a colônia. Tristeza de
Anchieta.

Só, entre os penedos de Iperoig, vendo conduida


d paz de que fora emissário, Anchieta sentiu o desejo
primitivo da liberdade, a ânsia de rever os irmãos.
principalmente o velho Nóbrega•, que por ele definha-
,;'3., longe, e estivera quase a morrer, oprimido pela in-
certeza amarga do seu destino-. Falou a Cunham bebe:
- Estão feitas as pazes, como sabes, e prometes-
te ao padre Nóbrega, levar-me depois disso. Podemos
ir?
O morubixaba tergiversou. Com efeito, havia to·
mado esse compromisso, mas devia consultar os mo-
ços da aldeia, vinte moços ~stutos e bravos, antes
de uma resposta definitiva. Embora tremenda, a sua
autoridade procurava na guerra ou na paz a solidarie-
dade, manifestada pelas vozes da tribo. Sem maio•·
insistência, abandonando-se á vontade de Deus par.-i
o livramento ou o cativeiro, Anchieta desceu o monte.
pousou na aldeia do Gran-Palma, onde aguardaria a
decisão dos índios.
Não tardou a resposta favorável de Cunham-
bebe. Pressurosamente, o jesuíta, fechou os seus li.
vros, algumas ninharias mais na maleta, deu a chav,;
á mulher do Gran-Palma, que lhe votava um amor in ·
232 CELSO VIEIRA

trépido, quase maternal, e seguiu escoteiro, pela mon-


tanha, ao encontro do morubixaba_.
A ressaca do mar de Iperoig, estrondeando nas
praias, sob névoas que tudo a.:bafavam, tudo escureci-
am, ainda lhe deteve por oito dias a esperança fre -
mente, encadeada aos rochedos. Mais.- angustiosa c;s:,:
fez a espectativa, para Joseph, com a divergência das
:nulheres, o debate acerca da viagem, por umas aplau-
dida, por outras condenada.
- Levai-o, diziam as primeiras. Levai o abarf'.
conYosco, antes que venl)am os tamoios ruins de Gu:l-
nabara e lhe quebrem a cabeça.
- Não, clamavam as segundas, não o leveis a,in-
<la... Quando não o tivermos sob as mãos, para o
matar e comer, se os perós nos atraiçoarem, veremos
fuzilados por eles os nossos maridos.
O ódio retinia em cada grito, chamejava em cada
olhar. Nuas, esguedelhadas, ferozes, não podendo
imolar o santo, como desejariam, as tamoias lançaram
fogo ao oratório da aldeia do Gran-Palma. Repuxando-·
lhes os cabelos doidamente, clamavam nesse tumulto
as devotas de Anchieta:
- Queimai a oca dos abarés, a casa onde falavam
com Deus, e haveis de morrer desgraçadas.
Assim o destino de Orfeu melodioso, despeda·
çado pelas mulheres na Tracia, roçava mais uma ve.;
a sotaina de Anchieta. Como o perfeito amante, re-
pelira Joseph o amor lascivo, trazendo no coração
uma só imagem; como o poeta apolíneo, fora qua,se
espostejado pela fúria selvagem das bacantes, que ek
desdenhara, sob a ideafüaçã 0 do amor celeste. E ;t
sua cabeça órfica,. dilacerada a argila humana, rolaria
igualmente na onda perene, ele uma a outra idade,
ANCHIETA 233

murmurando em versos latinos, através do poem'.l


composto á Virgem, o nome da sua Eurídice cristã,
cheia de graça e de glória.
Finalmente, no dia em que as almas católicas me-
moram a exaltação- da Santa Cruz, partm . uma gran d e
canoa, talhada para vinte homens, levando Joseph,
que prometera voltar, brevemente, em busca da sua
maleta.
O demónio, pai da n1,entira, ainda quis impedir-lht
a viagem na primei-ra escala, a vila dos Porcos, onde
a tripulação de um barco do Rio, gente refalsa<la e
maliciosa, aconselhou Cunhambebe a voltar, calunian-
do os portugueses.
- "Acabam de matar um dos nossos em Pirati--
ninga - diziam os noveleiros, - e agora mesmo fu-
gimos aos bertioguenses, que nos perseguiram a fogo
de arcabuz."
Imperturbável, porém, alçando o remo, á guisa
de clava, respondeu Cunham bebe:
- Os cristãos de Bertioga e de Piratininga são
bons. Se vos trataram assim, fostes vós os provoca-
dores.
E no dia seguinte, ao compasso dos remos, des-
prendeu-se da ilha a canoa, fez-se de novo a,o largo.
Foram, então, quarenta e oito horas de travessia por
mares encapelados. Ao dobrar de um cabo, veiu a tor-
menta, empolando serras, castelos de água, sobre os
quais rodopiava o lenho dos índios. Joseph nunca
sentira a iminência da morte como nesse transe, aind~1
que às remadores o encorajassem com o seu destemor,
prometendo salvá-lo a nado, se a canoa fosse embor-
cada pela tempestade, e vogando através dos mares a
toda a força. Devotamente, confiante só no poder das
alturas inacessíveis ao escarceu, Anchieta rezava. Cu-
234 CELSO VIEIRA

nhambebe, o antropófago, ia dizendo á prôa, con-


quistado já pela fé:
- Padre Nosso, que estais no céu, Senhor Deus ,
amansa,i o mar.
Continuavam as águas embravecidas e espada-
nantes, mas a canôa passou, incólume, por onde não
passa·ria um grande navio sem grande risco. Da terra
:próxima, a que foram ter inundados, reembarcaram os
tamoios, vinte e quatro horas depois, em direção a
Bertioga. Ladeado por dois ou três peões, Anchiet.i
preferiu seguir entre Os cômoros da terra firme, tri-
lhar cansadamente a areia mole da <praia, com o rosto
a escorrer água do mar ,p elo caminho, sal nos cabelos
gotejantes, á boca um amargor de naufrágio, arras-
tando o peso das vestes encharcadas, sofrendo o jorro
diluviano em que se desfaziam sobre os campos, de
chofre, nuvens largas e plúmbeas. Vencida meia lé -
gua, cheg ou exausto á vila, súbito alvoroçada com a
presença do missionário, que todos imaginavam per-
dido. O seu regresso era quasç uma ressurreição.
Entre a,s boas vi~das, porém, nevoava-se a luz
do olhar de Anchieta. Núncio da paz, com o seu'he-
roismo salvara a colônia, prestes a ser destruída pela
confeder-a ção dos tamoios : poeta da Virgem, trazi.i
mais de cinco mil versos latiu.os, desabotoando em
segredo, como lírios intactos, na penumbra de um jar-
dim espiritual. Ao serviço da fé cristã e do nome
português, haviam triunfado o sentimento, a vontade
e a inteligência. Mas o irmão de Loiola sofria, inti ·
mamente, porque Deus não lhe concedera a glória
de verter o sangue ao pé da cruz, findar como um
apóstolo, visitante das novas terras, mensageiro dos
novos tempos, esfacel~do pelas eumênides selvagens.
ANCHIETA 235 ·

Nessa tristeza só o consolava a esperança do martírio,


a antevisão do holocausto em qu.e ele se transfiguras-
se um dia, ·perdoando o mal, bendizendo a morte, de-
pois de haver cumprido os seus votos na humildade
e n a dor,
LIVRO IV

FUNDAÇÃO DO RIO DE JANEIRO

.. . en todos estos enl!'ltí!tros aw~mos de andar en (,1


àelantera ...

.ANCHIETA
Começo de nova guerra. O santo e a peste,
O apelo do capitão Estacio de Sá em 1S64, para
fundação do Rio de Janeiro. Nóbrega e Anchio•
ta em Guanabara, através da tormenta. Encontro
de herois e santo,. Rumo a S. Vicente.

Feitas as pazes de Iperoig, comunicava Joseph dP


Anchieta a Diogo La-inez: " ... quero acabar de escre-
ver o fim desta paz, que verdadeiramente foi termo de
paz e começo de nova guerra,, como podia esperar-'Se
de gente tão bestial e carniceira, que vive sem lei nem
rei" (99). Não tinha ilusões pacifistas o santo. Por
um lado, ainda eram assustadoras as demonstrações de
forçai do gentio, ao longo da costa ; por outro, ainda
continuava estrangeira a baía de Guanabara, possuída
novamente pelos franceses, após a vitória efémera de
Men de Sá. 'Os próprios tamoios apaziguados, que ou-
trora vinham das alturas fluviais do Paraíba a S. Vi-
cente e a Piratininga, no desenfreamento <las suas in-
cursões, traziam notícias desagradáveis. Com efeito,
já o irmão Anchieta soubera no penhasco de lperoig
que os índios do Rio, animados e abastecidos pelos
intrusos, conservando em seu poder mulheres e filhos
de cristãos, aparelhavam duzentas canôas de grande
porte contra S. Vicente. Já por duas vezes, depois do
seu regresso, os antropofagos daquelas paragens ha--
via:m surpreendido os colonos, devorando-lhes alguns

(99) Ibd. lbd.


240 AI~ CHI ETA

escravos. Duas flotilhas indígenas haviam mesmo in-


quietado a colonia .
.Nóbrega afugentara os quarenta barcos da primei-
ra, sugerindo aos nossos que detivessem, como reféns,
os principais de várias canoas, dez ou onze, cuja vind1
fôra antecipada. Mas o núcleo de Bertioga sofrera as
hostilidades da segunda, houvera mortos e feridos.·
Embora trouxesse da batalha uma perna flechada,
logo depois ressequida, o guarda heróico da fortaleza,
contando os que êle derribara a golpes de montante.
dava por bem pago, ness~ recontro sanguinário, o dano
causado pelo inimigo.
Ante a bestialidade insaciável dos canibais, ::i
irmão Anchieta revia neles os monstros do salmo da-
vídico, as figuras do salmo XIII, modulado sôbre a
corrupção humana. Era certamente de homens incréus
e ferozes como êsses que o rei-poeta dizia: a sua gar-
ganta é um sepulcro aberto, as suas línguas movem-se
para urdir a mentira, os seus pés aligeiram-se para
verter o sangue, nenhum deles conhece o caminho da
paz, e são êles que tragam O meu povo, como se fôsse
um bocado de pão. Mais do que pão - clamava An-
chieta, - mais do que todo o manjar.
:Ê]e requintava por êsse tempo, como os outros
i_rmãos e padres de São Vicente, em sagrado herois-
ino e perfeita caridade. Súbito, quasi a findar o
ano de 1563, invadira a capitania uma peste ele varíola
con,fluente e gangrenosa, que alastrava por todo o cor-·
po, da cabeça aos pés, com a sua lepra mortal, semelhante
a cou,-o de cação. Vermelhejando em botões, amadurecen-
do em pústulas, a erupção abrasadora matava ao cabo
de três ou quatro dias. Como se fossem cadáveres,
ma:s deYorados pela febre pestilencial, os vivos apo-
dreciam, desfeita a carne em sânie, recoberta de môs-
CELSO VIEIRA 241

cas, fervilhante de vermes. Entre os niiasmas, desei:-


tranhavam-se as índias fecundadas, morria com ehs
o seu fruto silvestre. l\Ianclaclo a Piratininga, onde a
peste 1'ecrudescera, o irmão Anchieta confessava ou
baptizava o~ moribundos, sangrava os doentes á ponta
de canivete, retalhava porções de matéria -corrupta e
nauseante, lavando em água quente a carne viva, a
carne rubra, exasperada ,por dores infernais. Algum
variolosos, tentados pelo demônio, furtavam-se á_;
mãos do operador, supondo que a,, morte de tantos era
consequência_ das sangrias eclesiásticas. Preferiam
outros a cura pelo fogo em covas extensas e adustas,
braseiros faulhantes, sôbre os quais atravessavam
paus recamados de ervas. Nesse leito de brasas dei-
tavam-se os índios nÍts, ardendo em febre, torrados.
estalando como se fossem castanhas ao lume. . . Dêles
poude Anchieta livrar da peste e do fogo três, que as
suas mãos arrancaram ao suplicio da cova dantesca.

Ora em S. Vicente redobrava o anseio dos jesuí-


tas, porque, de um a outro momento, poderia vir o ca-
pitão Estacio de Sá, com as velas da pequena frota,
que a metropole enviara ao governador e êste decidir:t
empregar na• conquista e no povoamento do Rio, an-
tigo sonho do padre Manuel da Nobrega. Já em 1560,
ao ler a carta dirigida por Men de Sá, relatando-lhe u
feito contra, Villegagnon, a rainha D. Catarina estra-
nhara que êle houvesse apenas demolido o forte,
abandonando a terra ao domínio selvagem. Nobrega.
por seu turno, aconselhava ao cardeal d. Henrique a
fundação de uma cidade no Rio de Janeiro, como a da
Baía, que assegurasse as capitanias de S. Vicente e
Espírito Santo, demovesse das suas ambições coloni-
2-t2 ANCHIETA

&adoras o francês, permitisse a c-atequese do gentio


disperso e hostil ( 100).
Certo dia, na primeira quinzena de março de
1564, fundeou em S. Vicente um bergantim despacha-
do por Estacio de Sá: ia buscar o padre N obrega, a
quem rogava conselho o capitão, já entre os mor-
ros de Guanabara, desde o comêço de fevereiro.
Durante as primeiras semanas, o tamoio dissimu-
lara o ódio, que lhe causava, a expedição, composta de
seis caravelas, uma nau da carreira das índias, Santa Ma-
ria a Nova, que era a capitânia, o galeão S. Joiio. os bar-
cos aparelhados por Men de Sá, urgentemente, a ga-
leota de Paulo Dia.is Adornó, comendador de Santiago,
e o refôrço do Espírito Santo, donde vinham com Es-
tacio, acompanhado já pelo ouvidor geral Braz Fra-
goso, o capitão-provedor Belchior de Azeredo e Mar-
tin Afonso, Arariboía, formidável guerreiro temiminó
(101). Mas logo sobrevieram hostilidades do gentio.
Nem º!5 lusitanos, afinal, podiam assenhorear-se d1
terra com segurança nem os seus inimigos se deixa-
vam atrair para o mar. A situação era difícil, o con-
selho de Nobrega indispensável.
Ao apêlo do capitão-mór. o padre Nobrega partiu
com Anchieta, em 19 de março, para chegar ao Rio
na sexta-feira santa, à meia noite. De passagem, est<.-
ve o barco em Iperoig, onde os selvícolas, festejando a
visita dos missionários, antiga promessa de Joseph,
restituiram a êste os seus livros e mais objectos, pro-

(100) MANUEL DA NOBREGA, carta de 1.o de junl10


do lõ60 ao Cardeal D. Henrique: "Parece muito neccssario
povoar-~ o Rio de Janeiro, e fazer-se nelle outra. eidade como
a da Bahia ... "
(101) FR. VICENTE DO SALVADOR, Hi.çtoria do BrasU,
liv. III, eap. X.
CELSO VIEIRA 243

veram de mantimentos o bergantim, que transpoz Gua-


nabara, afinal, meio desnorteado, entre o nevoeiro e
a ressaca. Torvam ente, ululava na barra o sudoeste,
mudado em ciclone pelo ramalhar das palmeiras; lar-
gas nuvens caliginosas pairavam sôbre os morros es
pectrais; vagas bramiam n:u.m furor de leões espu-
mantes, açoitados pelo vento na sua jaula de pedra. E
os navegantes, com aflição, varando a baía revôlta e
êrma, trevas encapeladas como as ondas, não avista-
ram dentro os navios da frota portuguesa.
Que era feito de Estacio e dos seus barcos, de toda
a gente que ficara em Villegagnon, ao sair do Rio o
bergantim? Desembarcando na ilha, Nobrega e An-
chieta só encontraram cinzas de tectos, cabeças de
mortos, fendidas pela vingança dos tamoios, que os
haviam desenterrado, para saciar o velho ódfo.
Ao pressentimento de algum desastre, em que se
houvesse abismado a frota portuguesa, acrescentou-st·
o espanto do sacrilégio.
E a impressão regelante foi quasi lúgubre certe-
za, ao notarem os dois, no .palor da, madrugada, que
vinham boiando flechas, inúmeras flechas de taboca,
emplumadas, átona das águas foscas. Nesses vestígios
de batalha, prováveis sináis de carnificina e desastre
dos lusos, anteviram igual destino. Jaziam os recém-
vindos, agora, entre as ondas, como entre os muros
de um cárcere, fechado com estridor pe1o vento, ruidoso
claviculário: " .. . el viento que era mui grande nos tenja
cerrada la puerta, entrãdo por niedio de la barra, y enni-
guna manera podiamas salir". Assim prisioneiros, só es-
peravam ser ferozmente abatidos, devorados pelos tamoios.
E eis que uma vela branqueja, palpita nos longes ainda ne-
voentos; outras velas se enfunam, avançam, osten-
tando no claro-escuro do amanhecer a cruz vermelha
244 CELSO VIEIRA

de Malta; com o panejar dos caravelões, asas de ga-


lés, antenas de barcos ligeiros e miudos, reentra na.
baía a frota comandada: por Estacio ele Sá.
Dois dias antes, como tardasse o padre Nobrega,
e a armada; estivesse reduzida à inação em Guana-
bara, os pilotos haviam tomado rumo para S. Vicente,
onde o capitão desejava restaurar e abastecer os na-
vios. Fora,, da barra, entretanto, a armada não pudera
enfrentar os duros ventos ponteiros. Voltara.
Nessa travessia, a nau francesa incorporada á fro-
ta e o caravelão de Domingos Fernandes tinham sofri--
do um assa,lto de quasi cem canôas, Os índios com-
batentes, a machadadas, sob a fuzilaria dos arcabu
zes e os 1pelouros dos obuzeiros, chegaram a fender na
linha d'água os dois ba·rcos. Vários homens cairarn.
trespassados de flechas, e os guerreiros indígenas
abordaram o próprio caravelão, num espantoso ala-
rido. Eram tantos que o navio afundou. Só intimi ·
dados pela fúria das ondas, pelo grosso da armada
lusa, navegando a pouca distância, os tamolos deixa-
ram a nau malferida (102).
O regresso da armada no sábado de a,leluia foi a
salvação dos jesuítas, mais uma bênção do céu vito-
rioso á terra sofredora, em que a divindade ressusci-
tava e esplendia. Celebrada a missa de Páscoa em
Villegagnon, no domingo; aquietara'-se o mar. Esta-
do e Nobrega, considerando a escassez de provisões,
a urgência não só de reforços, mas tambem de repa-
ros, decidiram partir com toda a frota real para San·
tos.

(102 ANCfHIE'f A, carta do 8 de janeiro de 1565,


II

A es_q uadra no porto de Santos. Rumo a


Guanabara. Esquadrilha anchietana. Incidentes
da traveuia. Desembarque em t.0 de março de
1565. Fundação da cidade. Baía de Guanabara.
Primeiras escaramuças. Joseph de Anchieta e
Gonçalo de Oliveira entre os combatentes. Novas
agressões dos tamoios. Anchieta aegue para a
Baí11-.

Nas águas de Sall'tos a frota permaneceu quasi


dez meses, restaurada e acrescida pelo esfôrço dos
marujos, dos colonos, dos índios. Desde a cordoalh:,
ao cavertl'ame, desde o pano da·s velas ao bronze das
peças, todos os barcos deviam ser, meticulosamentc.
revistos e refeitos. Com o fragor de cada hora, em
cada navio, o porto reboava como um grande esta-
leiro, onde se martelasse uma esquadra. Acepilhavam-
se toros, breavam-se junturas, soldavam-se metais. O
alcatrão fervia espessamente nas caldeiras; mãos ca--
lejadas recosiam tra·pos de cânhamo, espiga·vam os
mastaréus, bruniam as armas negras. Iam e vinham
calafates, grumetes, forjadores, tisnados e rudes ar-
tífices de bordo, canoeiros selvagens ou mamelucos, e
Estacío de Sá, dirigindo a faina, reerguendo ou acele-
rando o vigor com que era aumentada a frota, perpas-
sava na multidão de operarios, entre duas sombras
tutelares - Nóbrega e· Anchieta.
Enfim, a, 22 de janeiro de 1565, abençoada peln,
2i6 CELSO VIEIRA

jesuitas, a capitania Santa Maria a Nova içou a âncora, 0


velame, tamgido por vento galerno, e chegou nesse mesmo
dia á ilha de S. Sebastião, onde foram ter, depois dela, cin-
co navios pequenos e ·o ito canôas (103, trazendo a
bordo o padre Gonçalo de Oliveira e o· irmão Joseph
de Anchieta. Somava 300 homens a tripulação dessa
esquadrilha. O galeão S. João e a nau francesa, cor-
roidos pelo guzano, quedavam-se ainda na barra de
S. Vicente, em consêrto, sob a vi~ilância de Br-az Fra-
goso.

• • •
Todo o mês de fevereiro é consumido nas dila-
ções, nos acidentes, nas intempéries de uma travessia
penosa em que não logramos fixar datas seguras
( 104). Lenta viagem por mares torves. . . Durante a
primeira quinzena, os navios pequenos e as canôas de
mamelu<:os e índios alcançam a ilha Grande, onde O!>
expedicionários ocupam uma al<leia de tamoios e
donde se transferem para, outro porto, rico de pe-ixe e
de caça. Entretanto, destacam-se da frota as canôas,
tripuladas pelo gentio impaciente, que vai esperar na~
ilhas fronteiras á barra do Rio de Janeiro, seguido
mais tarde pelos mamelucos, os navios da frota por
tuguesa.
Exasperados pela fome, pelo vagar da capitânia,
ora incerta e exposta aos ventos contrários, desarvo-

(103) Ibd. earta de 9 de julho de 156;,.


(104) CAPISTRANO DE ABREU, interpret ação da eart.~
a11ehieta11a de 9 de julho de 1565, á margem da Hist6ria Geral
do Brasil, de Varnhagen, 3.a edição, secção XIX, pags. 419 e
~eguintes, nota A: "Vai em seguido. úma, que diverge muito da
qúe o Autor preferiu I.' não passa <lc <'llsaio impedeito de e.fc-
meride". •
ANCHIETA 247

rada, ora quasi perdida nos baixios, os flecheiros .Jc


Arariboia querem transpor a barra ou ir-se para as
sua,s terras. Anchieta prevê o malôgro da expedição,
aparelhada com imensa dificuldade; aos guerreiros
famintos, então, conforme assegura a lenda jesuitica,
êle promete a vinda de mantimentos, antes que o sol
brilhe em. tal parte do céu, e logo branquejam no ho-
rizonte as velas dos três navios de João de Andrade,
que fôra mandado de S. Vicente ~bastecer-se ao nor-
te. Irrompe um clamor de jubilo e confiança entre
os selvagens, para, os quais Anchieta é cada vez mais
o pagé sem igual, mas o. próprio jesuita narra, com
simplicidade o caso, sem alusão a qualquer prognós-
tico: "A êste trabalho acudiu a Divina Providência,,
pois q•ue logo no mesmo dia vimos os navios que iam
de cá da Baía com socorro de mantimento ... "
Ao raiar da manhã seguinte, afortunadamente,
chega Estacio a bordo da capitânia, trazendo um navio
com ela desgarrado, e em l.º de março os conquista-
dores desembarcam no lugar denominado posteriormente
Vila Velha., para uns o da actual Praia Vermelha, para
outros o morro de S. João ( 105).

(105) VARNHAGEN, História Geral dq Bra.sil, 2.a ed., t. I.


s. XIX, pag. 302, n.• 1: " ... Junto a um altissimo penedo, que.
pela forma dele, se chamou Pão de Açucar, e outra penedia que
por outro Indo a cercava, diz a Cr. de D. Sebastião, p. 351, -
Portanto foi esse local, como sempre julgamos, na Praia Verme-
lha, e não no Morro de &'ão João. "P. RAPHAEL GALANTI.
História à~ Brasil, 2.• ed., t. I., pg. 291, nota 2: "Pare<-P
hoje certo ter sido no terreno da fortaleza de S. João, conforme
se acha muito bem demonstrado na "Revista Brasileira" pelo F!r.
Jayme Reis, ano III, tomo X, fascieulo 39, primeiro de junb,1
de. 1897, pgs, 296-316".
248 CELSO VIEIRA

Na ilhota contornada pelos dois braços do rio


Carioca e pelo mar, desde 1503 a 1506, teriam acas()
permanecido os expedicionarios da flotilha de Gonça-
lo Coelho, á sombra cios cajueiros, num acampamen-
to provisório, com~ deduziu de vetustos portulanos J'
pai da nossa,, história. Certo (106), Martin Afonso
mandou instalar a primeira forja, construir a primeira
casa de Guanabara - uma casa forte ao centro da pa-
lissada única de troncos ou semitroncos, sob a cober-
tura espêssa de tabatinga e sapé. Aí eram guardados
os mantimentos de que êle necessitava para um ano e
a ferraria com que se aparelhavam num pequeno es-
taleiro dois bergantins de quinze bancos. Enquanto
o navegador se fazia construtor, ele passagem, quatro
homens, quatro mergulhadores da selva brasileira,
venciam com intrepidez cento e quinze léguas, cor-
rendo planuras, galgando píncaros, donde chegara afi
na! com êles, ao cabo de dois meses, um grande rc•i,
senhor dos campos visinhos. O cacique teve hqnras e
dádivas do capitão, a quem trouxera muitos cristais
da serrania e boas novas de metal preciosQ no rio Pa-
raguai. Já os filões do ·Brasil subterrâneo desafiavam
a cubiça de Martin Afonso, que apenas se deteve no
Rio de Janeiro por três meses, velejando em seguida
para Cananéa.
Outros seriam, trinta e quatro anos depois, os
alvanéis da obra definita.
Portugueses, mamelucos e índios, sob o comando
de Estacio e a bênção de Anchieta, iniciam a funda-

(106) MORALES DE LOS RIOS, Subsid-ios para a hist6r-ia


da ciàade de 8. Sebastião do Bio de Janeiro: '' Ainda a.o cert'>
niío se sabo oudt> foi o Porto de Mart.in Afonso entre as nu.
merosissimns t'IlS<'9flM ela C'mbo!\adura e cln pc1·ifel'ia <la 11oss•1
baía,"
ANCHIETA 249

ção da cidade tropical, roçando o mato, abrindo fos-


sos, erguendo a tranqueira, depois o baluarte com
as suas guaritas, os falconetes, esperas e berços d..1
artilheria miuda, construindo no terrapleno batido, em
linhas paralela,s, os primeiros tijupares ou ranchos, as
primeiras casinholas de taipa e ele telha vã. Estag-
nada entre as penedias, a água da lagôa é impura e
salobra. Dois benfeitores, o genovês José Adorno •!
Pedro Martins Namorado, .procuram no subsolo a
água clara e doce, escavam aí uma cisterna, poço bap-
tismal da 11rbs recém-nascida. E o fundador pôe á ci-
dade entrincheirada o nome duplamente venerável de
S. Sebastião, lembrando o mais belo dos mártires e
o mais louco dos príncipes; dá-lhe por arma,s um feixe
de setas; marca-lhe um raio de seis léguas, para cada
lado, ao cresciinento secular; faz doação de terrenos
amplos, légua e meia, ao município vindouro.

• • •
1

Filha de heróis portugueses e americanos, conce-


bida entre as dqres e os lances da guerra, nasce
urbs meridional, que vai de um século a outro .flores-
cer, imperar sôbre a unidade brasileira. Como berço,
tem o acampamento erguido á beira-mar e sombreado
por um rochedo arqueano, ~b o Cruzeiro do Sul, pou-
co antes descoberto pelos nautas da sua linhagem.
Como espêlhÓ azul, que entremostrasse magicamente
o futuro, ela revê aos pés a ba,ía de Guanabara, O'utro
mediterrâneo a ondear na moldura sáxea da cordiuhei
ra, por vinte e cinco légua-s, dilatando-se para conter,
ainda hoje, todas as frotas do mundo. Já o impre-
visto contôrno, graças ao acaso das formações geoló-
gicas, antecipa em miniatura a imagem do Brasil ho·
250 CELSO VIEIRA

dierno e dêsse. Mediterrâneo tropical ressai um arqui ·


pélago, verdejando em oitentà ínsulas gentis, surpre-
sas do ocea119, resumos da floresta virgem. Aqui,
além, oblongos ou esféricos, lentamente brunidos pela
onda, emergem ,pedrouços e matacões solitários, c::i.-
beços esverdeados de limo, desnudos de erva. Dern,-
dor, cumiadas de serrania, alcantis e arestas, degraus
e nimbos, que sugerem lanços da mesma ascenção oro-
grafica, esplendentes ao sol ... Miragem de pedra su-
perposta à cidade infantil, decompõe-se a anatomia do
gigante deitado, sob o nevoeiro, em formas titânicai.
- braços que tumultuam, seios que repontam, gar-
gantas que se estreitam, - rodeando o minúsc·ulo
berço, vigiado contra o inimigo francês pelas armas
dos lusos e dos índios.
Largamente ondulada no álveo da baía, serpeia
em dezesete rios e ribeiros, flui dos mananciais, dor-
me nas lagôas, desfia-se pelas escarpas nuas, de que-
da em queda ressalt'a, cascateante, a água do maJ·, das
nuvens, das origens, a água que tudo banha e em tudo
brilha, no jôgo perene das sombras. e dos reflexo:,:.
Pródiga escultora de enseadas e esteiros, angra,s e ca-
lhetas, encurva, prateia, rendilha, insinuante e capri-
chosa, a orla da terra verde-negra. Embebida nesse
frescor de linfa, exubera . a germinação agreste dos
morros e das várzeas, frondejando em colossos, ex-·
pandindo-se logo em arbustos, contorcendo-se toda
em cipoal flexuoso. Pelo contraste á nudez violenta e
adusta dos cortes graníticos, desdobra no horizonte
o claro-escuro do reino vegetal, e a floração espalha,
derrama por assomadas e vertentes as côres de uma
festa, solar - ametista nas quaresmas, ouro e rubi
nos cachos sanguineos ou fulvos do pau d'arco.
ANCHIETA 251

Em outro reino, e outros ciclos, a mesma energb


povôa as águas de cardumes, vagueia. os ares no frê-
mito dos enxames; e a vida opulenta circula em
toda a ,fauna como assombrosa multiplicação de rep-
tis, pássaros, feras. Indomável, nú, encadeado a essa
animalidade, o homem passa através das formas na-
turais com apetites e adornos bravios, o· se.!1 terror
selvagem, as flechas do seu arco, a sua inumana crue ·
za.
Num desafio á inércia das rochas e da·s plantas,
ao instinto dos brutos, á inconstância dos seres e das
cousas, o espírito funda a cidade, hostilisada po:
bandos de sagitários e arcábuzeiros. É outra energia
consciente, religiosa, batalhadora, a que vem agora do
mar para a selva. Como que um sôpro de misticismo
criador levanta a alma ingênua, e guerreira aos novos
homens da Nova Lusitânia (107), devotos da confü-
são e da eucaristia. Asseteada pelos selvagens, bom-
bardeada pelos franceses, a cidade tropi-cal resiste, rt!
nasce, aferrando-se á tranqueira com as suas garras
leoninas. Por ela combate um herói modelar, nobre
reminiscência da cavalaria andante e formosa de ou-
tras eras - Estacio. Lidam e oram por ela Joseph
de Anchieta e Gonçalo de Oliveira. Emplumado e pos-
sante, Arariboia comanda os índios.

Com ·o mês de março principia a guerra, frouxa~


mente arrastada, longamente desenvolvida, até ao
(107) PERO ROIZ, Vida do P. Anchieta: 1. I, aap. XI:
"Veuião os homens como religiozos, confessandose e comun-
gando a miudo, peleijauão com grande animo e com a eonfiB.n~n
em Ds, ha sombra do seu Capitam ... " O. MALHEIRO DIAS
·- Introà, á Hi.!lt. da Col. port, no Brasil, pag. LX.
252 CELSO VIEIRA

comêço de 1567, em recontros, sortidas, escaranllt


ças. A 6, na primeira cilada, os tamoios apoderam-se
de um índio cristão, mas a ira da nossa gente os per-
segue e êles saltam em terra com a sua prêsa, fogem
pelo mato denso, largando canôas e armas. Entre l 1
e 12, uma flotilha ele quatro barcos, dirigida por Es ·
tacio de Sá,. intima á rendição uma natJ francesa, a vis·
tacla a légua e meia do baluarte. Na ausência do ca-
pitão-mór, 48 canôas inimigas abordam a tranqueira,
mas o herói, deixando três navios contra, a nau, in-
vestida e alarmada, prestamente acode na sua galé
aos defensores do arraial, que transpõem a cêrca, re ·
chassam os atacantes. Sob a vigilância dos três bar··
cos, entretanto, capitulara a grande nave, cujo retôr-
n~ á França com os mareantes católicos foi concedi-
do. Estacio de Sá manteve a promessa dos seus ca
pitães, depois de tomar canhões e pólvora. Oitent:t
"passageiros, que eram franceses ·luteranos, e temiam o
ódio religioso dos contrários, haviam-se lançado ao
mar, bons nadadores, procurando as aldeias elos ta-
moios, onde se refugiaram. Tanto melhor para o se11
extermínio em campanha.
Airtda no mês ele março, pouco antes da partida,
o navio francês ajudou portugueses e brasileiros ,rn
repulsa a vinte e sete canôas de guerra, que foram
pelos nossos, como as demais, repelidas a ferro ele
montante e ,fogo de arcabuz. Joseph de Anchieta ce-
lebra o esfôrço dos vencedores: " ... assim os foram
perseguindo por mar e por terra, até a meio caminho
ele suas aldeias, e tomaram-lhes canôas, e tornaram
com grande alegria. Glória seja dada ao Senhor"
(108).

(108') ANCHIETA, carta do 9 de julho de 1565.


ANCHIETA 253

l'ela urbs, contra os nômades, pela fé, contra º"


calvinistas, Anchieta expõe serenamente a vida em
todas essas. lutas. O seu gesto reacende o valor, a
sua palavra reanima a,. crença das hostes portuguesas,
como a palavra e o gesto de outro missionário, Gon-
çalo ele Oliveira. Ao partirem os dois, havia dito Nó-
brega, em face da comunidade: "O padre (Gonçalo
de Oliveira), por ser sacerdote, será superior; mas
lembrar-se-á, pois o irmão (Anchieta) foi seu mestre,
do respeito e obediência que se lhe deve ter e de to-
mar seus conselhos" (109). Quando não rezam ,\
Nossa Senhora da Vitória, o padre e o irmão instruem
os soldados' europeus no modo tomo pelejam os ta-
moios; encorajam os índios fieis, recordando-lhes
proezas dos antepassados ( 110), perfídia,s dos inimi-
gos.
Durante o mês de março, não esmorecera no
acampamento a acção dos fundadores da cidade. Ha-
viam feito roças, plantações ele leg,umes e inhame.
casas de madeira e barro, com tecto de palma, quatro
ou cinco guaritas em volta do baluarte poderoso, cons-
truido de taipa de pilão e erriçado de artilheria. Mou-
rejavam sem descanso. E para seu alimento, parJ.
sua lavoura, tinham já decidido alguns deles arrancar
aos tamoios, combatendo, ramas e tubérculos de man-
dioca, nutriz lendária dos selvagens.

(109) PERO ROIZ, Vida do P. Anchieta, 1. I, e:11-p. Xi:


" ... mandou com elles o pe Manuel da Nobrega ao pc Gonçallo
do Liueira e lio ll"mão Joze, sem cujo conselho ordenou que nõ.n
fizesse o pe na da ... "
(110) SIMÃO IJE VASCONCELOS, Or. liv. III, n. 75:
" .. . sobre tu~o lhes trazião á memoria os feitos valentes de seu<i
1Jntepassados; que he o mais fino da 1·ethorica para per!'uadir
esta aente."
254 CELSO VIEIRA

A chuva torrencial do primeiro dia matara a sede


ao exército. Logo depois, entre os fossos e as armas
do proprio arraial, construiram-lhe o bebedouro. E ha-
via també1u. segundo Anchieta, a brotar mais longe, ck
um penedo, cristalina e murmurante, "uma fontezinha
d'água muito boa, com que todos se alegravam ... "
l\J as a fome os preocupava e afligia. Vindos d~
outra-s parágens, outras capitanias remotas do Brasil,
muitos deles suspiravam pelos seus lares e campos.~
Anchieta formulara concisamente o dilema: " ... se os
não deixam vir, perdem-se-lhes suas fazendas; se o-;
deixam vir, fica a situação desamparada e com gran-·
de perigo de serem com idos os que -tá ficarem" ( 111) .
No entanto, crescia o poder agressivo dos tamoi-
os, que dispunham ele oitenta canoas armadas, reunidas
em Guanabara, e lançariam provavélmente cerca de
duzentas contra os baluartes de S. Sebastião. Post<1
que esse momento fosse desejado com ansiedade pe-
los nossos, avultava .o perigo, tanto mais quanto re-
começara, ostensivo, o intercâmbio das náus france-
sa•s e dos aborígenes, para os quais poderiam elas
transportar bocas de fogo e instrutores militares. Ut·-
gia levar notícias, pedir socorro a Men de Sá.
Devendo o irmão Anchieta, por esse tempo, re-
ceber as ordens sacras na Baía, o padre Nóbrega con-
fiou-lhe a grande tarefa política: ind·uzir o governa-
dor -ao reforço da expedição. Anchieta seguiu em 31
de março (112). Com o destino da França Antárti--
ca, ia ser decidido o nosso, entre o governador geral
e o apóstolo do Brasil.

(111)ANCHIETA, carta de 9 de julho de 1565,


Partiu com Anchietn, o fornecedor da esquadra, ;foi,.1
(112)
de Andrada, que fôra enviado por Estncio, mais uma vez, n
buscar mantimentos no norte.
III

O 1rovernador e o apóstolo. Perfil do herói


Men de Sá. A sua fé. O seu governo. Feitoa
de armas. Primeira missa de Anchieta.

Anchieta visitou no Espírito Santo, onde labora-


vam por esse tempo quatro missionários, as aulas de
leitura, escrita e catecismo, as duas igrejolas de S.
Tiago e S. João, as duas aldeias cristãs -de índios fia·
gelados pela última epidemia. Mais uma vez, socor-
reu os enfermos, consolou os aflitos, instruiu os ir-
mãos. Transportando-se de um a outro lugar, sem fa-
diga, sem desânimo, a sua caridade perfumava o am-
biente colonial.
Foi acolhido na Baía com afecto e devoção pelo
governador Me11 de Sá. Lucidamen.te, expoz-lhe a
situação dos nossos em Guanabara, os feitos prati-
cados, as dores sofridas com o mesmo valor inque-
brantável. Portuguêses, mamelucos e aborígenes,
eram todos robustos, pacientes, <lestemerosos, mas
ainda poucos diante do tamoio e do francês, reunido à
inteligência deste o número daquele. À medida que o
tempo decorresse para uns e outros, mais débeis se-
riam os nossos, talvez, no isolamento da sua tranqu.eirn,
mais fortes os inimigos, constantemente providos de
armas pelas náus, de homens pelas tribos. S. Vicente
dera á frota de Estácio o que lhe fôra possível dar;
chegara o momento da Ba ía, núcleo da conquista
portuguesa e séde episcopal. Fossem expedidos ou-
tros navios, equipadas outras milícias, e em vez rl~
256 CELSO VIEIRA

consumir tanto hero,smo nas ciladas, nas escaramu-


ças, nas provações da campanha infrutífera, poderiam
os nossos desbaratar o inimigo, de chofre, num rijo.
golpe, que fortalecesse ao mesmo tempo, nessas para-
gens tropicais, a cidade tão desejada por S. Alteza.
O governador pensava como o religioso. Havia
entre os dois concordância, ligada á mesma clariv:-
dência para os· fins da estratégia. Na prática de tan-
tas horas, na permuta familiar de tantos alvitres, o
poeta cristão Joseph de Anchieta reconhecia, em toda a
grandeza monumental, o heroi do seu poema vindouro
- De rebits gestis Meti de Sá. Profondamente, com a
intuição dos eleitos, sentir-a nele a exuberância mul-
tiplicadora de uma raça, a energia construtora de uni
ciclo, aberto no Brasil pelo mais virtuoso dos homens,
Tomé de Souza, aliado á experiência do padre Manuel
da Nóbrega. Sem essa directriz moral, o quatriênio
do seu antecessor Duarte da Costa ( 1553-57) resu-
mira-se quase todo em oligarquia, inacção, discordia.
Justo e crente, o novo emissário do rei, fidalgo
da sua casa e do seu conselho, voltou à primeira alian-
ça em que se fundiam governo e apostolado nos me~-
mos ideais. Chegado á Baía em fins de 1557. Men .te
Sá recolhera-se desde logo ao santuário com o padre
Nóbrega, passara oito dias absorto nos exercidos e,,-
pirituais de S. Inácio ele Loiola. Não fora outra a sua
vigília d'armas para a longa cruzada jesuítica do Brasil,
onde a Igreja Católica Romana lhe fecharia os olhQs
com amor quase maternal. Do oratório trouxera Men
de Sá inspiração e fort~leza, esclarecida pelo saber ad-
ministrativo e regional de Nóbrega a inteligência, es-
cudada pela fé a vontade. Assim viveria toda a sua
vida brasileira, ouvindo missa, de joelhos, cada manhã,
confessando-se e comungando, aos pés do sacerdote,
cada semana.
ANCHIETA 257

A religião moldava-lhe a conduta em preceito.~


iniludíveis. Sóbrio, sério, abominando .todas ais faces
cio pecado, todas as formas do vício, não perdoava a
usura, a vaidade, o alcoolismo, o jogo, a rapina. Es-
bulha<los num atrás regime de vendas a crédito, em
que aos tormentos da sua dívida acresciam as extor-
sões da cobrança judicial, os consumidores deixavam
ás garras ·da justiça e do comércio tudo o que possu-
íam. Men de Sá reprimiu a ganânci:1 implacável, su··
bordinando a propositura de novas acções ao seu con-
sentimento, e em breve, no fôro vasio como um ~rmo,
sem litígios, ecoavam as graças rendidas a Deus pelo
ouvidor Pero Borges.
Lidando o heroi para ver cristianisadas as rela-
ções dos brancos e dos índios, punha nos seus a ctos um
fervor de catequese. A'queles vedara as guerras in-
justas, os resgates inumanos, o cativeiro do gentio,
a perfídia com que acirravam, para ter peças á venua
no mercado, ódios e lutas de selvagens. A estes proi-
bira, sob penas intimidantes, o canibalismo da vitória
ou da vingança. Queria-os apaziguados, reunidos em
vastas aldeias, num circuito de oito a nove légua~,
para o trabalho, o ensino, a conversão. Restituía a
liberdade aos que eram, iniquamente, vendidos ou fer-
rados como bois. Ordenara a exist ência das tribos em
quatro povoações jesuíticas - S. Paulo, S. Joã o, S.
Tiago, Espírito Santo, - na,s quais se fundiam, agora.
as tabas miúdas e esparsa s da redondeza para o tra-
balho e a doutrina. Por instância dos jesuítas, esco-
lhia os capitães dos povoados entre os tupinambás, ini-
ciando-os na: escola da autoridade. Indiferente á ma-
lícia e á murmuração dos colonos (113), edificava a

(113) NOBREGA, carta de I.o de junho da 1560 ao C:ir-


ckal Infante D. Henrique : " . . . o certifico a V. A, que ne1t.1
258 CELSO VIEIRA

sociedade colonial, sugerindo ao governo da metró-


pole qq.e envia§se pa•ra o Brasil, com todas as honras
desejadas, os homens ricos da ilha africana de S. Tomé.
Administrador zeloso da,s rendas públicas, elevou-as
a seis mil cruzados, animando a, cultura do solo vir-
gem, o trabalho dos engenhos de açucar. Construtor,
finalizou as obras da Sé, da Igreja, da Santa Casa
de Misericordia, erigiu a capela do convento dos je-
suítas, onde lhe seriam guardados os despojos, ergueu
sólida, torre de pedra e cal, junto ao paço dos govet··
nadores.
O prudente homem de governo era um hoinem d'
armas denodado. Marchava dia e noite, surpreen ·
dendo, acossando os antropófagos com a celeridad~:
das hostes, o imprevisto dos golpes. Não raro, dos
próprios vencidos ele fazia novos aliados, cativando
os pela sua magnanimidade, e empolgara, dest'arte,
numerosos arcos de chefes insubmissos e vorazes,
como o Sapo-Bufador e o Boca-Torta. A clemência dos
fortes adoçava-lhe o triunfo, mas no aceso da refrega
o lidador não conhecia a piedade. Na capitania de
Ilhéus, onde os tupini.quins assediavam os cristãos fa-
mintos, reduzidos ás laranjas dos seus pomares, de-
pois de verem demolidas as casas, incendiados os en-
genhos, Men de Sá fôra terrível, deixando aldeias em
sangue e cinza, tudo vencendo pelo ferro ou pela fome.
Vasco Rodrigues de Caldas, o astuto e ousado capitão,
ajudara-o soberbamente nessa empresa. De volta,
como os tupiniquins lhe surgissem ainda á beira-mar,

terra, mais que nenhuma outra, não poderá hum Governador e


hum Bispo, e outras pessoas publico.s, contentar a Deos Nosso
Senhor, e aos homens; e o mais certo signal de não contentar a
Nosso Senhor he contentar a todos, por estar o mal mui intro-
duzido na terra por costume."
ANCHIETA 259

o ve11cedor a,-traiu e envolveu o gentio, fê-lo imergir


no oceano, em que outros índios nadadores, a se·1
mandado, o perseguiram, combateram, exterminaram,
quase por duas léguas de costa brava. "Lá no mar
pelejaram - diz o heroi, - de maneira que nenhum
tupiniquim .ficou vivo". (114) Tal foi a batalha dos
nadadores, ondula.~ão rubra de sangue, entre as on-
das glaucas dos Ilhéus. Estendidos ao longo da praia,
rigidamente, os mortos ocuparam cerca de uma légua.
Ainda em Ilhéus, pouco depois, chega-lhe a no-
tícia de um levante dos selvagens de Paraguassú e
Itap.arica, indomados <:orno sussuaranas, a despeito
das partidas anteriores de Vasco Rodrigues Caldas.
Então, comandando trezentos brancos e dois mil ín-
dios, o governador, que logo acudira á Baía, avança a
marchas forçadas, galga montes e brenhas, delineia e
executa, em ,vinte e quatro horas, um caminho de tres
léguas, aberto a machado e foice ,pelos seus peões,
investe e suplanta o inimigo, derribando-lhe a forta-
leza <le Tarajó, belicamente arrasa mais de cento e
trinta aldeias, compele o selvagem dizimado, espa-
vorido, á submissão e á paz. É na fúria desses recoit-
tros que a morte lhe enegrece, mas não lhe quebranta
a alma co1i1 o luto pelo filho moço - Fernão .de Sá,
vitimado no Espírito Santo, á margem do rio Crica-
ré, aonde .fôra submeter os índios, bravo e gentil

(114) MEN DE SA, Inst1·um.ento, n. 15: " ... e lhes foi


fo1·çado deitarem se a nado áo maar costa braua mandei outros
Jndios tra.s elles e gente sollta que os segirão perto de duas le-
guas e llaa no maar pelleja.rão de maneira que nenhum topene-
quim fiqou viuo e todos os trouxerão a terl'a e os posarão ao
longuo da prayn por ordem que t-Omavão hos corpos perto de
nmn legoa ... "
260 CELSO VIEIRA

como um heroi do fabulário medieval, capitaneando a


sua esquadrilha de seis velas.
Chefe da primeira expedição, em 1560, contra os
franceses de ViUegagnon, esse homem sizudo e pre-
catado, Men de Sá, não soubera fechar ao inimigo a
baía de Guanabara. Imprevidência guerreira e polí-
tica, verberada na própria corte. Outras pelejas, ou -
tros sucessos, notoriamente a guerra de Porto Seguro
contra os aimorés, brutos ferocíssimos, e a peste de
1563, que levou quase dois terços á população indí ·
gena, retardaram por quatro anos a segunda expc--
dição, confiada a Estácio de Sá. Ante o francês e o
tamoio, porém, não bastavam as forças mobilisadas.
Urgia evitar-lhe o malogro possível, arraa-
cando aos intrusos a mais linda joia do Brasil marí-
timo - Guanabara. Com esse p·ensamento viera ao
encontro do heroi o santo, que lhe havia de celebrar a
'vida num poema, abandonado á injúria do acaso ou
do te.mpo. E afinal chegara da metrópole a armada
do capitão-mór Cristovão de Barros, em 1566, trazen-
do o mandado ao governador para acudir ao Rio clf:'
Janeiro, desbaratar o inimigo franco-tamoio.

• • •
Enquanto o heroi Men de Sá reunia os ho-
mens e as armas disponíveis, acelerando a faina do:,,
estaleiros, Joseph de Anchieta, sem abandonar outros
deveres políticos, era iniciado nas ordens sacras pelo
bispo d. Pedro Leitão, que o amava desde os tempos
escolares. Sôbre o valor de Anchieta, preciosidade:
católica, esse arguto príncipe da Igreja Romana lapi-
daria mais tarde uma frase de joalheiro: "A Compa-
nhia é um anel de ouro e o padre Joseph a pedra pre-
ciosa".
ANCHIETA 261

Três lustros haviam passado, religiosamente,


após o ingresso no colégio de Coimbra. Dezessete
anos tinha o noviço; trinta e dois, agora, contava o
padre. Sulcara o Mar Tenebroso, por onde erravam ga-
leões desarvorados, sequiosos de ouro; sentira no sen
apostola,do a vertigem do mundo bárbaro, a pulsação
do mundo novo; amadurecera na crença e no saber. O
que era vocação tornar-a-se destino, a esplender sob
outras formas, para outras gentes; o que era ansie··
dade, sonho, misticismo inquieto e nevoento, erguera-·
se flamejante, coluna guiadora das tribos pelo deser-
to americano. E a própria visão eucarística do no-
viciado, aureolando-lhe o sacerdócio em 1566, resume
o holocausto da Fé cristã ao Deus dos exércitos, in-
v'ocado pelas nossas armas contra os hereges d<'
Guanabara.
Sqb o lavor da casula e a candiclez da alva, reve-
mos o padre Joseph de Anchieta diante do altar, cele-
brando a iprimeira missa.
Lumes, incenso, flores. . . No prelúdio, em que
dialogam a experiência do sacerdote e a esperança cl•l
neófito, ressoa a tristeza de longas idades caverno-
sas, penumbra semelhante á era neolítica do gentio;
no confiteor gemem os pecados da terra brasílica e sel-
vagem. Contrito, subindo já os degraus, beijando a
pedra simbólica do altar, lápide evocativa das cata-
cumbas, ele rev.ê o ossuário cristão de outros márti-
res, despedaçados pelos canibais ela floresta. Quase
soluçante, a invocação extrema irrompe do santuário
para as alturas: "Senhor, tende piedade de ,nós!"
Mas á dor tumultuosa do Kyrie Eleison sucede a
alegria universal, traduzida pelo Gloria in e.i:celsis, em
cuja ressonância vibra o n1iserere noúis, uma deprecaçf10
á infinita misericórdia pelos brasis, Liturgicamente, o es·
262 CELSO VIEIRA

pirito do celebrante ascende á Epístola, verbo de pre-


cursores do seu apostolado nas selvas; busca depois o
Evangelho, irrac.liação do verbo de Cristo, luz que as
trevas de Pindorama a.inda não compreendem. E nes-
sa luminosidade espiritual, transfigurado, Anchieta re-
cita o credo, lição da Igreja aos católicos, da Escola
de Piratininga aos mainelucos.
Agora as suas mãos descobrem o calix de ouro,
tomam o vinho e o pão, eucaristi<;amente, no gesto ri-
tual do ofertório. Purificando-as sobre o mar de san··
gue das tribos, que se guerreiam e se devoram, o sa-
cerdote arranca do próprio coração mortificado as pa-
lavras de angústia e de esperança cristã: "Lavm·ei minhas
mãos entre -inocentes. Oh! não queirais que se finem mews
dias entre os .que amam o sangue." Transpondo o limiar
do próprio .:;antuário, chegando ao recesso trevoso e ulu-
lante das matas, o seu Orate, frates impele os homens de-
g-radados á humanidade, atrai os selvagens á oraçiir,
Ele profere o louvor do Sanctus, irmanando vozes do
povo recemnascido aos coros de anjos, dominações, po-
testades. Terra e céus glorificam o Omnipotente. Pe-
los vivos, pelos mortos, o sacrificador impoluto ofere·
ce a Deus o sacrifício, consagra as espécies, unindo
parte da hóstia ao vinho, alteia o corpo e o sangue do
Redentor para o holocausto. Supremo lance eucarís-
tico e suprema glória da vida de An,chieta, exaltada
há quinze anos pela fascinação da Eucaristia: nas suas
mãos corporifica-se a divindade, Jesus aparece ao,-
fiei!i. . . Humilde, baixanc.lo a voz, o oficiante comun-
ga: Domine, non sum digni•s; com o acento dos predes-
tinados encerra no brilho da manhã a cerimônia. E
largamente abençoa o povo, que nasce, cristão, da
braveza indígena e do comércio lusíada,
ANCHIETJ\ 26J

Como na sua pátena de ouro a hóstia, sob um raio


de luz ,coado pela rosa dos vitrais, fulge no século
XVI, glorioso Missal jesuítico, a iluminura da primeir:i
missa de Anchieta.
IV

Segunda frota de Men de Sá. Dois anos he-


róicos. S. Sebastião e a cidade. Um conselho de
capitães e sacerdotes. Ataque ao forte de Uruçu-
-m1nm. Estácio de Sá. O embarque dos reli•
giosos para S. Vicente. Regresso. Mudança da
cidade. Execução de um here,re anônimo. O
aanto e a lenda.

Em 19 de janeiro de 1567, véspera de S. Sebastião.


estava diante da nova cidade, em Guanabara, a frota
aparelhada por Men de Sá.
Compunha-se de três galeões do reino, qonde saí-
ram capitaneados por Cristovão de Barros, seis cara-
velões e dois navios menores, tendo chegado enfermo
o go,vernador, seu comandante, que adoecera no Espí-
rito Santo. Vinham com ele alguns prelados insignes
- o bispo d. Pedro Leitão, o visitador Inácio de Aze-
vedo, o iprovincial Luis da Grã, o padre Juseph d<.!
Anchieta, mais alguns religiosos da Companhia. Desde
a partida, em outubro ou novembro, eram nutridos a
expensas do governador os passageiros e tripulantes.
os próprios homens d'armas, inclusive cem atiradore~
da hoste pernambucana.
• • •
Quase <loi;; anos ha"iam decorrido, incertos na es-
pectativa, infindos nas provações, entre a partida e ,,
regresso de Anchieta, o apelo elos herois e o socorro à
nova cidade. Todo esse biênio fôru de e:-;caramuças t'
embates,
ANCHIETA 265

São imprecisos os dados cronológicos, mas enu-


meráveis os factos principais : repulsa de franceses e
tamoios no assalto ás nossas trincheiras; uma bata-
lha em que três navios francese s e 30 canoas, vindo de
Cabo Frio, tiveram quebrado o poder ofensivo pelo
fogo dos artilheiros de Estácio; operações de aborda-
gem, comandadas pelo capitão-mór, seguindo-se à de-
fesa do seu reduto inexpugnável; arremetidas sober-
bas dos nossos a duas ou três aldeias, em uma das
quais a cifra de mortos e presos ascendeu a 300; vi -
tória de 14 das nossas canoas, apó,s renhida luta, con-
tra 64 dos tamoios; o feito do valente Belchior de Aze-
redo, provedor do Espírito Santo e capitão da galé
S. Tiago , que apenas com oito canoas desbaratou vinte
embarcações inimigas em julho de 1565, matando e!,:!
próprio seis guerreiros tamoios e da peleja trazendo
muitos cativos. O mar .ficara tinto de sangue na rota
do seu barco (115).
Um ano depois, em julho de 1566, os tamoios a,-
tutos dissimulam num esteiro, cerca de uma légua elo
arraial português, cento e oiten.ta canoas. Destacan-
do-se da frota, algumas delas manobram para trazer
os ocupantes á cilada, nesse braço de ma r. Com efei-
to, á vista do arraial, mais negaceando que investindo,.
ameaçam o barco do mordomo de S. Sebastião, Fran-
cisco Velho, que saíra em busca de madeira para a ca-
pela do martir - e é socorrido por Estácio com a su:1
gente, disposta em quetro canoas, apenas, porque as

(115) ESTAC'IO DE SA, fé d.e oficio datlu a Belchior <lc


Azeredo: " .. . e chegando ao lugar, ond~ foi a dita peleja, ventlo
ta11tos mortos, e o m-ar tão tinto em -~ang1ie, se puzeriío a npn --
11lutr e r,ir.ollle,· os mortos, <lrix:i 111]o il<' o st>guir". F.xtr. <1:i
Torre do To111l.Jo e pnbl. ilos .J.11tlis 11 0 ]rio ilr J a·11t·irü , 1. 1, c•.;1p.
II, § 35,
266 CELSO VIEIRA

outras andavam á pesca ou haviam já regressado ao


porto de S. Vicente. Industriados fogem os tamoios;
em seguimento deles voam os nossos, alheios ao pe-
rigo. De repente, dobrando o esteiro, são alvejados a
flechas, perseguidos a remo por cento e oitenta embar-
cações, milhares de atiradores, cujas vozes anunciam já
o triunfo. Mas deflagra por a-cidente a polvora de uma
das quatro canoas de Estácio; o terror do in(.êndio, ás
súbitas, desvaira a mulher do principal num barco ini-
migo. Ela braceja, dama, e a tudo mais se propaga a
loucura dos seus gestos, o espanto dos seus gritos.
Cento e oitenta canoas debandam, afugentadas por
uma labareda. Bradam os nossos: milagre! E o sc.i
deslumbramento religioso foi ainda maior, quando sou-
beram, pouco depois, que os ta,moios haviam fugidúc
não só ao darão do incêndio, mas também aos golpe~
de um belo e forte soldado, gentilhomem de armas
ofuscantes, que perpassava e feria, a saltar lesta-
mente de canoa em canoa. Irresistivel, como apre-
goaram logo os fieis, S. Sebastião pelejara entre
os nossos, e a festa anual da:, canoas rememorou daí
em diante o prodígio.
No alto relevo da história, entre flamas e setas, o
prodigioso guerreiro foi Estácio de Sá.

O estado de guerra não impedira a organização


dotrãbalho e da, justiça na colônia. Por um lado, o.:
carpinteiros falquejavam, os alvaneis construiam, er-
guendo novos baluartes de taipa de pilão, novas casas
indígenas de barro, sob o tecto de folhas; por outro,
es,avac1o na aréia o. poço, c1onde lhes vinha a água
ANCHIETA 267

para a sêde dos homens e das terras (116), os semea-


dores alargavam o plantio em volta das fortificações.
Pedro Martins Namorado, primeiro juiz da nova
cidade, lavrava as primeiras sentenças, e os ofícios
reais do fôro e do fisco eram normalmente providos
pelo governador geral ou pelo capitão-mór. Aos jo-
gadores de naipes, dados e bolas, depois do indulto
concedido em 1566, impunha-se a multa de cem mil reis
para a confraria de S. Sebastião.
Francisco Dias Pinto, nomeado alcaide-mór pelo
governador Men de Sá, tomou posse da cidade murada
e fechada em 13 de setembro de 1566. Chegado á
,.-t;deza com o juiz ordinário e o alcaide peq·ueno,
Estácio de Sá deteve-se fóra dos muros, enquanto <.·
novo claviculário da urbs transpunha o recinto, vedava
portas e postigos com aldrabas de ferro, por suas pró-
prias mãos. Em voz ressoante, depóis, o alcaide-mór
indagou do capitão-mór, através das muralhas, se
queria entrar, quem era ele, ao que respond~u Está-
cio de Sá:
- Quero entrar, e sou o capitão desta cidade ele
S. Sebastião, em nome d'El-Rei Nosso Senhor.
Foi-lhe aberta a porta, reconhecido o poder. E
assim o heroi português, vitorioso, entrou na cidade
do Rio e na história do Brasil, sob a mesma consagra -
ção (117).
• • •
O conselho de capitães e sacerdotes da esquadra
de_ Men de Sá, reunido logo depois da sua chegada,
fo1 breve e audaz. Na manhã seguinte, ao raiar da

(116) SILVA LISBOA - Anais do Rio de Ji:meiro, l. I.


.-.ap. II, § 3S - ",Tosó Ailorno e Pedro Mal'tins Namor:i<lo ...
:1lnfrru:n na ureia um po~o ... "
(117) ANAIS eit., t. I, cap. II, j llD,
268 CELSO VIEIRA

aurora, duas hostes de bravos infantes capitaneados


por Estácio, abençoados pelo bispo, galgando o outei-
ro da Glória sob o zunir das flechas, o troar dos ca-
nhões inimigos, assaltaram e reduziram o forte de
Uruçú-mirim (118), solidamente construido naquele
pincaro, talvez por Bois-te-Conte. Mortos ou feridos, n<t
ascensão e na refrega, caíram muitos dos nossos, mas
nenhum dos tamoios sobreviveu á peleja, e dos fran-
ceses morreram alguns em combate, acabando os ou-
tros, no.ve ou dez, suspensos da forca ou traspassados
a fio de espada. Do outeiro da Glória desceu o triun-
fador, Estácio, mal ferido no. rosto, para morrer ao
cabo de vinte e cinco a trinta dias. E em face da tran-
queira, num desafio de peito descoberto á chusma dos
incréus, sucumbira Gaspar Barbosa, devoto capitão,
que havia comungado por melhor combater, jurand.,
não dar costas ao herege no campo de batalha.
Mais porfiada e sangrenta: foi a luta na ilha do Go-
vernador, que os nossos tinham denominado ilha do
l\Iaracajá ou Gato Bravo, por habitar na espessura
cio arvoredo o chefe dos índios maracajás. Paranápe ·
cu, língua de mar, era o nome indígena da ilha, e pas-
sava de mil homens o exército ali entrincheirado com
artilheria. Renhidamente, durou três dias :i. acção.
Vozeavam pela enseada as bocas de fogo, os obuzes er-
guiam, ferindo a onda ou a pedra, colunas de água ou
de fumo no ar trepidante. Havia relâmpagos, cjue eram
descargas de mosquetes; réplicas sibilantes e veneno-
sas, que eram chuveiros <le flechas. Por esse tempo, já
se em botavam as flechas nas cotas d'armas, no forro de

(118) Urw·tt-mirin., couso:mte Varithageu, ou Yras~·1i11lt''-


1·in1., eomo &1 lê no Santuarlo Jfarimw, ou lb11n1guas.<m-111Iri111, ~,.,_
guuuo F1·. Vlcuut.c do Snlmc!or, ou binwaç1i-111irínL <·:om ontr1111 va.
ri:u)tes no Instrume11to <1!' Me11 de Sá,
ANCHIETA 269

algodão dos saios ou gibões talhados em seda. E o:;


flecheiros tamoios visavam de preferência os olhos
dos brancos.
Sitiados os maracajás, batidas as suas fortifica-
ções, de um a outro valado, de uma a outra cerca, pelo
fogo martelante çla esquadra, renderam-se os venci-
dos á conquista e ao cativeiro. O prestígio dessa vi-
tória foi tão grande que os defensores de outra for-
taleza maior, entre des muitos franceses, ocupando
baluartes, casas fortes, palissadas, juraram esponta-
neamente vassalagem ao rei de Portugal. Dois rápi-
dos feitos de armas consolidavam a fundação da ci-
dade. "Jamais uma guerra - escreve Southey, -r em
que tão pequenos esforços se fizessem, e tão pouca'i
forças se empregassem de parte a parte, foi tão fér-
til de importantes consequências. Tivesse sido Men-
de Sá menos. enérgico no cumprimento de seus deve-
res ou Nóbrega menos incansável, e esta cidade, que ~
hoje capital do Brasil, seria francesa agora".
Com a vitória dos capitães Men e Estácio de Sá,
dos jesuitas Nóbrega e Anchieta, findou o curto do·
mínio erigido por Villegagnon sobre a a,liança dos
aventureiros da sua patria e dos tamoios confedera·
dos.
Etnicamente, dos mairs da França Antárctica, de.,-·
sa nova infiltração européia no elemento indígena,
restavam só os mamelucos de origem normanda 011
bretã, asselvajados. Ao norte, prosseguirá o corso
das náus vindas de Honfleur e Dieppe no comércio d.e
pau brasil, algodão, pimenta e pãpagaios com a gen-
tilidade, trocados por ferramentas e bagatelas. Mas
á liga de co,sários e tupinambás ou à mescla de
potiguaras e flibusteiros, em outro ponto do quadran-
te, só achariamos vagos produtos mestiços, "que nas-
ceram, viveram e morreram como gentios'', uma des•
270 CELSO VIEIRA

cen<lência loira de curibocas ainda "niais bárbaros que


eles", no dizer de Gabriel Soares. En1 prindpios do
século XVII os luso-brasileiros expulsariam dó Ma-
ranhão os franceses e os índios de La Ravardiere,
como tinham vencido as tropas remanescentes da co-
lonia de Villegagnon e Bois-te-Conte em Guanabara
Historicamente, não perduram das tentativas ma-
logradas senão algun.s vestígiÇ>s impressos, algumas
crônicas remotas: da França Antarctica duas narra-
tivas, as de Lery e Thevet, da França Equinoxial duas
relações, as de Oaude <l'Abbeville e de lves d'Evreux.

• • •
A fundação urbana vencera, mas perecia ao bater
de asas da Vitória o f.undador, Estácio de Sá, intré-
pido e amável' como os seus primos Fernão e Salva-
dor, obstinado e religioso como o seu tio Men, heroi
da mais pura linhagem como qualquer dos três. Em
pleno triunfo, após dois anos de esforços redobrados
e pacientes, imobilisara-se a energia concentrada nes-
se homem· de tanto valor e tanta fé, que sustentara
o animo das tropas com autoridade e brandura,
entre perigos e provações. Havia nele a mocidade,
a nobreza, a devoção, o casto idealismo e a se·
rena altivez de um cavaleiro andante, perdido no
mundo selvagem. Flor da sua estirpe, glória da sua
raça, a urbs identifica-o, desde as origens, com o pa-
droeiro, também soldado e moço, ferido também por
uma horda çle sagitáºrios. Entre as nossas palmeiras,
Sebastião de Narbona teve um irmão lusiada - Es-
tácio de Sá, - o mesmo que lhe troux~ aos pés, com
o seu mólho de flechas simbólicas, a cidade infantil,
pequenina, asseteada como os dois no flanco e na face.
Os despojos do heroi, junto àos quais a Vitória pran-
ANCHIETA 271

teava, fechando as asas, foram guardados sob o altar


da capela humilde, levantada no arraial da praÍé:
de S. João, até que Salvador de Sá, dezesseis anos de-
pois, trasladando-lhe os 0 ossos para outro jazigo, o do
templo de S. Sebastião, mandou inscrever na lápide a
verdade histórica: "Aqui jaz Estácio de Sá, printeiro ca-
pitão e conquistador desta te"a e cidade . .. " ( 119).

• • •
Vencidos os franceses, subjugados os tamoios, di-
tas sobre o corpo de Estácio as últimas orações, em-·
barcat:am para S. Vicente, com o bispo d. Pedro Lei-
tão e a boa nova do triunfo, os padres Inácio de Aze-
vedo, Luiz da, Grã, Joseph de Anchieta e outros. Ma-
nuel da Nóbrega, envelhecido e alquebrado, mas ful-
gurante de santidade e heroísmo, abraçou com alegrin
os companheiros, bendisse a fortuna das nossas armas.
E todos seguiram, visitando escolas, aldeamentos, san-
tuários, até Piratininga, onde a gentilidade os acolheu,
festivamente, como se lhe trouxessem alguma divina
mensagem.
Nessa romaria a S. Vicente, depois do combate,
o nimbo das lendas evocadas pelos agíógrafos reco-

(119) Os despojos mortais de Estácio de Sá foram tras-


ta.dados, em 19 de janeiro de 1922, do morro do Castelo para .i
Capela dos Capuchinhos, á rua Conde de Bomfim.
Capistrauo de Abreu informa nas suas a.notações à Hist. Ger.
de Varnlmgen, pag. 434: "Em 1862 foi aberta o. sepultura. <l<'
Estácío do Sá por uma comissão do Instituto Histórico.
"Segundo esta, Estácio de Sá teria a altura aproxima.da do
l"', 741, pois a tíbia marcava 0,36; o corpo era regular, pois a
elavicula media 0,14 c·ent., o que inculca que o peito no. sua part,e
superior, de um extremo cla.v1cular a outro, oferec.e ria ma.is oli
menos 0,32 cent.; por outra que era um individuo de tipo portn-
auêa, de estatura reuular. Rev. Tri,m,,, 26, 301 o sell',"
272 CELSO VIEIRA

meça a envolver e enublar o perfil de Anchieta. Es-


miuçando-as, atribui-lhe Simão de Vasconcelos, cro-
nista da Ordem, primeiro, a notícia de uma vitória
distante e imprecisa, murmurada no silêncio da noite
a Manuel da Nóbrega: "Padre meu, dêmos graças a
Deus, que alcançaram os nossos agora uma vitória
dos inimigos". Depois, a visão do martírio de uma
índia, esposa cristã, que lhe trouxera pouco an.tcs,
pressentindo já esse final, duas velas de cer:\' para a sua
missa de martir, velas acesas por Anchieta no mesmo
dia em que ela, cativa de um bárbaro sensual, a trinta
léguas de S. Vicente, preferia ser trucidada a, ser po-
luída. Enfim, outra visão semelhante, a da morte de
um padre, antigo discípulo seu, longe, no colégio
de Nossa Senhora de Loreto, alma encomen-
dada pelo vidente a Deus no dia seguinte, que era
o de S. João Evangelista. Sem questionar sobre a ve-
racidade, notemos a possibilidade metagnómica desses
casos, o primeiro de clarividência, os dois outros de te-
lapatia, hoje comuns no domínio das inve:;tigações
psíquicas.
Regressaram os padres em julho de 1567. Como
lhe escasseassem os ventos á proa e emurchecessem as
velas, o navio fundeou algum tempo defronte de Ber-
tioga. Era véspera de S. Tiago; suspiravam os crentes
pelo conforto da missa. Não querendo mais retardá-
la, Inácio de Azevedo, Luis da Grã, Nóbrega e An-
chieta demandara~ a terra nunl batel, que em meio
do caminho foi abalroado por um cetáceo. Depois de
torcer a cauda sobre a popa, inundando o barco, de-
baixo do qual nadava>, a baleia não despediu o golpe,
já esperado pelos quatro missionários, todos eles de
joelhos, postas as mãos dia,nte da morte. Assim dei-
xaram de perecer num só naúfrágio as quatro figu-
ras dominantes da Companhia 110 Brasil. Simples
• ANCHIETA 273

acaso? · Talvez. De qualquer modo, novo prodígio,


esse, referido pelos jesuitas á influência apostólica de
Anchieta, que o atribui modestamente a outro: "Es-
tava o bispo, e os mais do navio a la mira, espe_ran<lo
o suces.so com grande temor, mas que não perigarião,
por ir ali o· Padre Ináçio com seus confiados compa-
nheiros" (12{)).
Chegando ao Rio de Janeiro, os religiosos encon-
traram o governador imensamente ocupado em trans-
ferir do nascedouro a cidade para o morro de S. Ja-
nuário, depois do Castelo, que sobranceava na espes-
sura dos matagais, então, o fundeadouro habitual das
naves. Era esse o alcantil mais estratégicó e re-
1comendável para assento da urbs, a juizo dos capitães
recem-vindos e dos velhos conhecedores da terra. Foi
necessário abater-lhe as árvores colossais, apropriar-
lhe o terreno ás edificações projecta.das. Com a sua
rede metálica e farpada, os sus muros e baluartes, a
potência da sua artilheria, branquejou a urbs, linda-
mente, na, culminância frondosa. Uma a uma, ressai-
ram as construções ordenadas por Men. de Sá, os ce-
leiros da fazenda de S. Alteza, i:Om espaçosas vant11-
das, a cadeia espreita·ndo o mar pelos renques de ja-
nelinhas gradeadas, o pouso da Câmara,. a Igreja e o
Colégio dos jesuítas, a erguida Sé de três naves. Tudo
pobre, claro, simples, mas fadado a crescer, durar, flo-
rir. O governo ajudava os moradores na sua laborio-
sa: nidificação de áves migratória-s; sob a vigilância
dos padr-es, mourejavam os índios nessas óbras humil-
des. E tendo feito doações de terra, em nome do rei.
á Companhia de Jesus eª.º índio Martim .J\fonso Ara-

(120) SIMÃO DE VASCONCELOS, Vida do P. Anc11ieto,


fü. II, cap. XIV.
274 CELSO VIEIRA

riboia, punido outra vez o gentio rebelde nas imedia-


ções de Guanabara, nomeado Salvador Correia de Sá,
em 4 de março de 1568, governador da cidade, Men
de Sá, o heroi, seguiu para o Espírito Santo, onde lo-
grou ainda vencer e domar, com intrépido esforço,
as tribos ferozmente sublevadas.
A segunda conquista do Rio de Jan('.!iro foi a co-
roação do Instrumento de Serviços, apresentado a El-Rei
por Men de Sá. O governador geral não sobreviveu
na Baía mais de quatro anos. Expirou num domingo,
dois de março de 1572, ás dez horas da manhã, enve-
lhecido e amargurado, saudoso da filha e do reino, a
que nunca mais poude voltar, não obstante as suas
deprecações ao soberano. Os padres da Companhia
recolheram-lhe os despojos á capela do templo e os
anais brasileiros guardaram-lhe o nome para a imor-
talidade. Com a mais formosa das terras, duas ve-
zes arrancada ao estrangeiro, deve-lhe o Brasil, quase
perdido entre os horrores do século XVI, a autono-
mia da,s origens econômicas, a segurança dos princí-
pios religiosos.

• • •
No ass,alto ao reduto do principal Uruçú-mirim,
em que tombara Estácio de Sá, mortalmente flecha-
do pelos tamoios, haviam sido capturados nove ou dez
combatentes franceses. Tão inflexível quanto valoro-
so, Men de Sá mandou executá-los (121). Seguida-
mente, foram cativados outros na ilha de Paranapecú;

(121) Depoimento ll.e João d'Araujo, fidalgo da casa d'el-


rei e testemunha arrolada por Men de Sá no Instrnmento de
serviços: " ... tomar.ão os fraueezes e os trouxerão ·ao dito go.
vernador dos quaes mandou fazer justiça",
ANCHIETA 275

ainda outros se renderam aos portugueses nos último~


ba-luartes e casas fortes de Guanabara. Muitos deles
teriam sofrido a mesma sorte dos primeiros, justiça-
dos por Men de Sá.
Em alguma dessas turmas, se é verda<leira a nar-
rativa do biógrafo Pero Roiz, havia um francês calvi··
nista, um herege, con<lenado pela justiça do governa-
dor ao suplício da,• forca e entregue aos cuidados espi-
tuais de Anchieta, que tudo fez para o converter ao
catolicismo. Não se lhe conhece o nome. Obstinando..
se o pecador no erro, conseguiu o sacerdote que fosse
adiada a execução. Anchieta queria salvá-lo, extin-
guir nesse rebelde a,, ·influênci,a de um réprobo, Calvino,
dragão do poema de Iperoig. Por ele convertido, af: ··
nal, o herege submeteu-se á confissão, aprestou-se
para morrer no seio da Igreja Católica.
A' hora extrema, porém, como a imperícia do ver ·
dugo redobrasse o tormento ao condenado,., homem
propenso á · colera, Anchieta sentiu-lhe o" desespero
iminente, afrontando os céus na explosão de alguma
blasfemia irreparável. Era a alma perdida para Deus,
fis gada por Sa.tanaz, e o jesuíta repreendeu o algoz, or-
denou-lhe que se apressasse: " .. . deu-lhe ordem como
o fizesse bem".
Volveram os tempos sobre a funda·ção da cidade,
a execução do hereje. Ouvindo ao padre Anchieta se·
melhante caso, muitos anos depois, lembrou-lhe um
irmão que as leis eclesiásticas proibem ao sacerdote
acelerar a morte, sob pena de se ver suspenso do seu
ofício. E a,, r esposta foi que essa irregularidade não
era ."ofensa de Deus" , podendo absolvê-lo a Igreja,
mas~ outro remédio não tinha aquele desventurado,
cuja salvação devia operar-se rrum prazo fota,,!: " -
Para salv~r uma alma, concluiu, vivera eu toda a vida.
276 CELSO VIEIRA

suspenso, dando o meu sacrifício por bem empregado"


(122).
Joseiph de Anchieta ficara no colégio do Rio, aju-
dll.ndo Manuel da Nóbrega, superiot do novo instituto
e das casas de S. Vicente, Santos, Piratininga e Espí-
rito Santo, com todas as aldeias anexas. Excessivo
trabalho para uma vida quase bruxoleante. Vende.o
pela enfermidade, Nóbrega morria docemente, e cada
vez mais pesava a tarefa sobre Anchieta, mestre do
gentio agregado ao colégio.
A criação oracular e taumatúrgica da lenda an-
chietana, começada em Piratininga, desenvolvida em
Iperoig e S. Vicente, prossegui~ no Rio de Janeir-;,
incorporando novos sucessos, tidos por miraculoso,;.
Eram predições, descobertas, avisos. No púlpito, em
dia de S. Vicente, Anchieta noticiara um lance feliz.
das nossas armas, ocorrido em Baía Formosa, naquele
mesmo instante, conforme o seu vaticínio; outra vez,
surpreende'ra um pecador com a revelação do impedi-
mento conjugal, que ele trazia oculto; anunciara mais
tarde o regresso dos maridos a damas supostamente
viuvas. Florescia no berço da própria cidade a lenda
coloniaJ de um santo guerreiro e doméstico.

(122) PERO ROIZ, op. cit., liv. II, cnp. V.


LIVRO V

ASCENSÃO

Maravilhas são estas que sabe fazer a suma bondado


ele Nosso Senhor com seus csc·oJhidos ...

ANCHIETA
I

Anchieta nomeado reitor do colégio de S. Vi-


cente. Os seus trabalhos neaae período. E:xalu-
ção das suas virtudes. Mistici111110 e renúncia,
Grandeza e humildade.

Entre 1569 e 1576, Anchieta governou a casa de


S. Vicente, onde residiam sete jesuitas, laboriosos e
mendicantes, que ensinavam leitura, escrita, música
e oração aos meninos, diziam no púlpito o Evange-
lho, confessavam portugueses e aborígenes, semeavam
nas terras bravias de Santos e Itanhaem a verdade
cristã. Dez ou doze léguas além, por aldeias remotas.
era-lhes necessário catequisar o gentio bronco e voraz.
Ia com eles o padre Anchieta, vencendo os caminhos
sinuosos tão rapidamente qu.e lhe adveiu do prodígio
dessa rapidez a fama lendária de caminheiro invisível.
Reitor do colégio de S. Vicente e das c,asas ane-
xas de S. Paulo e Santos, o jesuita não se despede ain-·
da, mas dia a dia se alonga do seu elemento selvático
e histórico. Paradoxalmente, quando aferrado á obe-
diência, em que se amortalha o Eu religioso, inerte,
semelhante a um cadaver, fôra o homem de acção
complexa na história do Brasil - missionário, diplo-
mata, político, fundador entre os fundadores de cida-
des. Hierarquicamente, subindo agora da obediência
á autoridade, primeiro como reitor, em 1569, depois
como provincial, em 1578, o heroi não tem já o relevo
dos fortes lances épicos. A escola de Piratininga, u
exílio de Iperoig, a missão da Baía, a tomada ele Gua-
280 CELSO VIEIRA

nabara, procelas e combates, esquadrilha-s de canoas,


bandos de flecheiros guiados pela fié, tudo se esvaece-
ra no turbilhão das guerras coloniais. Define-se para
ele, com o revestimento <la autoridade, a éra agioló-
gica das profecias, da-s revelações, dos milagres. Ao
lado mesmo do homem representativo, criação din::4·
mica <la vontade, sobrepairando á nossa primitiva e
formidável natureza, assoma o taumaturgo, nebulo;:,a
figura construida, linha a: linha, pela imaginativa bra-
sileira do munido colonial, feito de superstições e te-
mores, povoado de bruxedos e espectros. Da-í por di-
ante, a vida histórica de Anchieta será esfumada pelo
automatismo e anonimato da Regra ou pelo nevoeiro
da lenda jesuítica. · Não mais possuímos as observa-
ções, os aspectos, os dados originais do epistolário
com que logramos reconstituir-lhe o cenário e a acção.
Como que o naturalista se desinteressa da propria na-
tureza, o -catequista reentra, absorto. no santuário e
no silêncio.

• • •
Novôs trabalhos intelectuais, não obstante, de-
viam alternar com os duros trabalhos religiosos. Adu ·
zido um biênio, sem funcções administrativas, ao sep-
tenario do reitor, contamos nove anos plácidos, fecun-
dos para Anchieta na pobreza marítima do núcleo vi--
centino. Evocando através do silêncio, a,penas quebra-
do pelo bater das ondas, porque o das tribos amorte-
ce·ra, longe, na conquista de Guanabara, ele teria en-·
cordoado a, lira diante do mar e composto os verso.;
do poema, sumido no tempo como no pélago um barco
- De rebus gestis M an de Sá. Teria lavrado e repolido
algo do Poema da Virgem, presumivelmente os Laiuf.es
Viryinis ordine alphabetico e as Horae Immaculatissimae
ANCHIETA 28:

Conceptionis Virginis Mariae, que nos lembram joias ren


dilhadas, sobrepostas na mesma devoção infatigável
á urdidura poética do texto. O seu misticismo e a sua
inspiração produziriam, ornando o ambiente claustral.
novos autos e cantos piedosos, naturais como os bo-
tões de rosa e as cravinas, flores tratadas por sua.;
mãos, outrora, na cerca modesta de Piratininga.
Desses trabalhos de autor, que apenas conjectu-
ramos, não falam os biógrafos, mas um deles realça,
durante o septenio 1569-1576, o progresso da menta-
lida-de e o prodígio do saber 4e Joseph, autorisando a
nossa conjectura (123). Sem outros estudos, afora o
de humanidades, retórica e parte da filosofia, em Coim-
bra-, ele versava, com a mesma facilidade, nas disser-
tações da aula e nas resoluções do confessionário, a
teologia moral e especulativa, segundo informa o pa-
dre Simão de Vasconcelos. Maravilhando o clero pela
exegese das Sagradas Escrituras, no púlpito, "a sua
ciência parecia mais que humana", o seu estilo reme-
morava aos doutos o verbo de S. Jerónimo e de S.
Bernardo, acrescenta o panegirista. Um dos exercício,;
predilectos de Anchieta, a esse tempo, era compor vis-
tosos ramalhetes de frases bíblicas, sob a forma epis ·
tolar, sem uma palavra dele, mas logicamente urdido3,
solidamente ajustados, de modo que, revelando todo o
seu pensamento, levassem á mesma convicção o de.,-
tina tário. Ouvindo-lhe os sermões, diziam os fiei.,
que Deus lhe punha na boca tudo quanto havia <le pre-
gar. D. Pedro Leitão, bispo <la cidade do Salvador,
preferia o gorgeio desse canário a todo o bando soQoro
de pregadores da sua diocese. E o jesuita Gaspar

(123) SU.ilO 1,1-J VAS'(lON{'l<JLOS, T', ,lo P. ,fn,•hil/a, li,:,


III1 eaJ>, I,
282 CELSO VIEIRA

Sampêres jurou ter visto, quando pregava Joseph, em


dia do Espírito Santo, pousar-lhe no ombro esquerdo,
festivamente, uma sorte de canário, que os gestos do
orador não logravam afugentar. Como procurasse co-
nhecer o fundamento desse milagre, respondeu-lhe An-
chieta:
- Eu vos direi, Gasp~r, o que hà. Certo dia, na-
vegando, vi um pássaro marinho, que esvoaçava de um
a O'utro bordo. Estendi-lhe o braço para que nele des ·
cansasse, e no meu braço pousou, então, como pousa-
ria numa das vergas do navio.
Outra vez, relembrando alguem que os pássaros,
atraídos, lhe demoravam no braço, no bordão, no bre-
viário, como nos galhos viçosos da floresta, Anchieta
exclamou:
- Bom dito, grande mila-gre ! E não se põem
eles nos monturos e nas forcas?

• • •
Copiosamente, os biógrafos referem milagres on
dissertam sobre virtudes insignes do padre Joseph nes-
se período: o seu amor á pobreza e á castidade, ,10
cilício e à prece; o que havia nele de mansidão, paci-
ência- e renúncia ; como era caridoso para o próximo
em coisas temporais e espirituais; como revelava em
todos os actos da fé um zelo sobrehumano.
A genuflexão iilterminável deixava-lhe em san-
gue os joelhos, asperamente calejados na pedra ou no
barro. O seu oratório estava em toda a parte; a sua
oração, cada instante, ascendia para a divindade. Li -
dando, comendo, até mesmo dormindo, o santo falava
a Deus. Ao cafr da noite, pela noite dentro, nos ermos
e frios corredores do colégio de S. Victnte, descoberta
a cabc~a, os pés nús, ia e vinha, a rezar, ou ajoelhado
ANCHIETA 283

num canto da cela, imóvel sombra ele eterna penitên-


cia, desfiava o rosário. Postas as mãos, entrefechàdo,;;
os olhos, resplendente a face, desatando a alma em sus-
piros profundos, quedava-se horas e horas no ex-
tase da prece. Quase {!e madrugada, exausto, acer.
cava-se do leito, que era uma táboa ou um -feixe de sil--
vas agrestes. E a ressonância interior desse long-c
nocturno, agitando nervosamente o próprio somno,
enchia-lhe os sonhos de imagens e de anseios cristãos.
Mais pobre do que ele, mais devoto da santa e
casta pobreza não teria sido o Pobrezinho de Assis.
Bastava a Joseph de Anchieta, como fortuna, a mesma
visão radiante do sol, que o sentimento da natureza ha--
via cantado, pela voz do monge, quase cego, tres
e meio séculos antes dele, na cabana de S. Damião. Tod:t
a roupagem lhe era uma nesga de pano, todo o calça-
do um velho par de ligeiras alpercatas. Nem arc:i.
nem livros possuía Anchieta. S6 compunha alguma
coisa!, logo abandonava a outras mãos o que tinha es-
crito. Se lhe davam alguma coisa, logo restituia o
dom precioso ou singelo, agradecidamente, quando
não implorava que o dessem a outrém. O seu estoi-
cismo desdenhava todos os sofrimentos: - " ... não
deixo de ter, dizia, algumas relíquia•s das enfermida -
eles passadas, porém não faço mais conta delas que se
11ão ,fossem".
Depois da tentação demoníaca e da vitória celest 1~
de Iperoig, emudecera na carne, ainda não envelheci-
da, mas dia e noite mortificada, -a voz do secreto de-
sejo, inimigo de almas fortes e puras. Consumido pelo
jejum, castigado pelas disciplinas, sangrando e sor-
rindo, ele acorrentara a mocidade ao isolamento
glacial do seu voto. E os anos, pouco a pouco, extin-
guiam-lhe as pai~õçs, agora quietas I,! miidas. Já Jhe
284 CELSO VIEIRA

não era penosa a guerra dos maus pensamentos, como


dizia aos irmãos. Homem de armas esph:ituais, pug-
nara e vencera. Contra os desejos lascivos, abrasado-
res, eram tidos como relíquias os fragmentos da sua
roupeta.
A paciência, a doçura e a humildade igualavam
11ele o espírito de renúncia aos bens e gozos materiais
Reflectindo a alma impassível, não se lhe mudava '>
aspecto ,com a ventura ou a desventura. De injúrias e
desgostos retinha só a lembrança, evangelicamente,
para encomendar ao céu os que lhe amarguravam a
existência. E de um seu devedor impenitente dizia:
"Mais pecou ele contra Deus que contra mim: se
Deus o sofre, bem é que eu o sofra por amor de Deus."
Inteligência e erudição, poder e valor, nada lhe
era agradável patentear aos homens como grandezn
huma-na, vaidosa miragem do.s efémeros, e Anchieta
fazia tudo para encobrir os dons espirituais de predes-
tinado. Considerava o próprio eu com infinito despre-
zo, sentindo o horror da evidência, do realce, do man -
do. Pero Roiz, seu biógrafo, que tratara pes·soalmen-
te com ele, mal suspeitava das suas virtudes heroicas.
por saber ocultá-las aos demais, sob o véu da hu-
mildade e santa dissinmlaçã-o. Voluntariamente, o sacer-
dote desaparecia na quietude severa dos colégios,
abandonando o lugar decorativo a outrém; no tumul-
to bravio das ald-eias, se o convidavam para baptismo,;
e casamentos, deixava aos irmãos a pompa da celebra-
ção, dedicando-se á tarefa mais obscura: ensinar O '.;
bugres, converter os tigres. Alarmado por escrúpu-
los, rogava penitência, -de joelhos, ao superior. Ver-
gando aos sofrimentos do corpo, era o doce enfermo
paciente, que abafava os gemidos, á noite, para não
despertar o enfermeiro. Diogo Flores Va;Jdez, coman-
ANCHIETA 285

<lante da armada espanhola, qtte <CIU 1583, cleman<lan-


do o estreito de Magalhães, fundeou no Rio de Janeiro,
onde assistia o padre Anchieta corno provincial, resu-
miu-lhe a•ssim a grandeza oculta:
- Não queira Deus que eu deixe de fazer quanto
ele mandar, pois nunca se me representou pessoa tão
abjecta e desprezível, em nosso primeiro encontro.
mas depois, olhando-o bem, nunca me vi tão apoucado
em presença de qualquer outra majestade.
· Inimigo de toda, a maledicência e discórdia, ele
fechava os ouvidos, sistematicamente, á lingua mur-
muradora, que viesse acusar ou denegrir os ausentes;
reconciliando brutos e maus, a sua bondade oferecic1
ás próprias almas obtusas da selva uma consolação
inefável. Na vigília das enfermarias, adoecendo, o pa-
dre Anchieta circulava para aviar xaropes e drásticos,
temperar o ca'1do de otitros doentes; na solidão hi-
bernal dos caminhos, á noite, andava sutilmente por
baixo das redes, atiçando o braseiro aos índios ador-
mecidos, que o fogo crepitante mal resguardava da
geada.
II

Anchieta na tribuna sacra. O sermão de 1568


sobre a conversão de Saulo. Efeitos ore.tórios e
locais. O pecador do Brasil-colónia. Vas elec-
tionis. Catequese dos maramomis. . O amigo dos
índios. Uma bandeira cristã.

A eloquência de Anchieta, por esse tempo, ainda


ressoa no púlpito com ardor belicoso e fascinante.
Modelo de oratória entre selvagens e colonos, uma
das poucas folhas arrebatadas ao vento, que tantas
folhas iguais dispersou no côncavo das matas, é o ser-
mão recitado aos fieis de Piratininga, em 1568, sobre
a conversão de Saulo: imagens, conceitos e exorta-
ções,. bíblicamente sugeridos ou associados, tomam a
forma directa e objectiva, própria <lo seu estilo (124).
Nas cartas, nos poemas, nos sermões, o pensa-
mento. de Anchieta nunca se faz abstracto e difuso.
Ataviada embora, poucas vezes, com os recursos do
florilégio católico-g:imano ou acrescida, mais frequen-
temente, com excerptos latinos da. Escritura, a sua
forma revela uma tendência plástica, certo impulso
flagrante para a modelação, o contorno, a realidade
corpórea e tangível. Como se o amor patente da,,
coisas naturais lhe determinasse a expressão das coi-
sas místicas, Anchieta é um realista vigoroso, que ob-
serva com agudeza, incorpora com energia, usa a lin-·
guagem concreta e exacta, sem rodeios. Há um perío-
do feliz, recentemen~e divulgado, para comprovar o
(124) Rev. do Inst. Histórico, t. LIV.
ANCHIETA 287

objectivismo do sermonário anchietano, corporifican-


do as idéias do pregador, mesmo associadas em torno
á div'indade: "Outra causa, porque Deus Nosso Senhor
deixou de ir curar o filho do regulo, e se ofereceu tão
liberalmente para ir sarar o escravo, foi para condenar
a negligência de tantos, que no Brasil tão pouco ca-so
fazem dos seus escravos, que os deixam viver mal e
morrer ás vezes sem baptismo e sem confissão; e
para que saibam estimar as coisas segundo seu valor,
não olhando no escra-vo o que tem de boçal, ou o ter-
me custado o meu dinheiro, senão vendo nele repre-·
sentada a imagei:n de Cristo Nosso Senhor, que se fez
escravo trinta e tres anos, por me salvar a mim" (125).
Estranho ao artifício, quando pensa e compõe fora
da métrica religiosa, o orador não teme a violência do
epíteto ou da locução. Daí, entre a sua· espontaneidade
verbal e a rudeza instintiva dos nossos primeiros au-
ditórios, vergastados e seduzidos pelo catequista, essa
corrente contínua e magnética, feita de simpatia, de
enlevo, de temor. Nenhuma oratória mais adequada
ao entendimento, nen;hum prestígio mais forte e mais
grato á sensibilidade das almas primitivas, cuja im-
pressão era assim resumida pela devota ingênua: "O
Espírito Santo põe na boca do padre o que há de dizer
como a pomba na boca do filho o que há de comer".
Nesses agrupamentos coloniais e indígenas do sé-
culo XVI, pousos erguidos á beira-mar, ninhos sus- ·
pensos á borda do campo, o estado de guerra é o ne-
cessário estado social. Falando a guerreiros, Joseph
de Anchieta reveste a armadura da Igreja combatentf,

(125) Extr. de JeS1titas no Brasil, do P. GONZAGA CA-


BRAL.
288 CELSO VIEIRA

rebusca as alegoi·iàs e analogias em que se compraz a


índole batalhadora dos ouvintes. Sobre o motivo da
prédica de 1568 - vas electionis est mihi iste - "é esse
para °'1im um vaso escolhido'', como de Saulo dis-
se Jesus em Damasco, temos um simúlacro de batalha,
que entre os dois se fere: da parte de 1esus estão os
coros angélicos e os santos: da parte de Saulo os exér -
citos infernais dos diabos e dos fariseus; em torno,
folgando com esse desafio, os cristãos de Piratininga,
valentes lutadores, comandados por valentíssimo ca--
pitão das milícias eternas, Cristo, vencedor magnâni-
mo, que ao mesmo tempo derri.ba e deslumbra, su-
planta e exalta o inimigo.
Celebrando a conversão de Saulo e a vitória de
Jesus, o pregador gei1eralisa humanamente o episó-
dio, que é ·sempre o desafio dos pecadores a Cristo.
Assim deixamos a estra<la real de Damasco pelo ca
minho serpeante de Pirátininga. Cristo aceita o desa-
fio, não para aniquilar, mas para converter O pecador.
E então o converte de duas maneiras: ou instantânea.
como fez a Saulo, ou sucessiva·, amiudando os golpes
certeiros: ora a ideia da morte, ora um revez da for-
tuna; às vezes o terror do juizo e do inferno, outras
vezes a lembrança da bondade infinita; hoje, um exem-
plo virtuoso, amanhã, um conselho de amigo.
Sente-se a predestinação do apostolado no Brasil,
• quando Joseph de Anchieta brada ao colono, pecador
lançado á conquista da terra selvagem, repreendendo
lhe a barbaria ou a iniquidade: " . .. todas as vezes que
pecas, persegues a Cristo e pisas o seu precioso san 4

gue .... " Perseguidores ele Cristo são todos os mal-


dizentes ou prepotentes, concussionários ou chicanis--
tas, onzeneiros ou rapinantes, insensatos ou libidino
sos, qne injuriam, esbulham ou tiranisam o próximo,
ANCHIETA 289

bebem o sangue ás vitimas do foro e do fisco, arreba-


tam aos orfãos o espôlio, aos trabalhadores o salário,
aos casados a honra, violentam ou seduzem as moças
da tribo nas malocas.
Flagrantemente avultam no quadro social da co-
lônia todos, os seus vícios e males: discórdia,. injus·
tiça, usura, extorsão, rapina, a lascívia dos brancos e
dos mamelucos tripudiando sobre a carne das índias
bronzeadas - as negras. Que há de fazer o pecador,
advertido e ofuscado por De·us? Responde o missio-
nário: acolher-se á Igreja de S. Paulo, vas electionis,
vaso de ouro lavra-do e éoruscante pedraria, modelo
de outros vasos petfeitos, apóstolos, mártires e san-
tos, dispostos sobre a mesa de Cristo, para, sustento
e deleite· elas almas. Vasos também existem, de ma·-
téria diversa, afeiçoados em pau, cobre, diferentes
metais, que a poder de machado e martelo se esforçam
por guardar os mandamentos de Deus. E os pecado-
res contumazes? São ínfimos vasos- de barro, manu-
facturas do oleiro infernal, girando sempre na rod:i.
do ,pecél;do, ~'maus no princípio da vida como no cabo
dela, maus na velhice como na mocidade, sem nunca
acabarem de dar voltas nesta roda ... " Infunde-lhe!:>
Deus o óleo da misericórdia, mas logo o derramam,
jurando e perjurando, vivendo para a mentira, a có-
lera, a inveja, a e,vareza, o ódio, a luxúria, a ganân ..
eia, e é assim que se perde a antiga devoção da vila
de S. Paulo, enfeitiçada por broncos demónios: "Todo
o empenho do 'jesuíta é para que o fiel possa tornar-
se, como S. Paulo, vaso eleito de Deus, vas electi-onis.
Abrasado na sua fé, clama á impureza do homem d{'
Piratininga, encerrando a prédica fulminante: "Rom-
pe tu também, irmão, esse teu duro ·c oração para
que entre Cristo nele. . . Deixa-te vencer de Cristo,
290 CELSO VIStRA

s11jeitando-te a seus mandamentos, que poderoso ê


ele com sua graça,, para de vaso de barro que és fa-
zer-te vaso de ouro e de prata escolhido, e posto á
sua mesa celestial ... " Aos brasis dariam mais forte
impressão dessas imagens, por equivalência, os tra,·
balhos regionais da cerâmica, desenvolvida e aprimo-
rada nas suas aldeias.
Nem <le prata nem de ouro, lavrado amorosa-
mente pelo artífice, mas de ferro ou de cobre, rija-
mente fundido, o sermão de Anchieta afigura-se um
vaso religioso, sem orna tos, em cuja simplicidade ir-
rompem, de onde em onde, expressões cortantes ou
abruptas. Com essa veemência inculta de linguagem,
destacambs ali o mesmo Cristo, sob a forma de cor-
deiro esfolado e morto na cruz, Saulo a dar cowces co1,~
tra o aguilhão da divindade, o pecador desa.fiando Jesus
pelas más obras e fazendo-lhe tantas em, suas barbas, ou
metido na água das deleitações do mundo e da carne, uma
estocada do amor divino, as orelhas d' alma, o Salvador
feito bichinho pela redenção do homem, Deus infundindo
o licor da misericórdia pelo cano da castidade .e o pecador
extravasando-o pelo;:; bu,racos da luxúria ou da cobiça.
l\faterialisa-se a fé, asperamt>nte, para influir e actuar com
energia sobre a emotiv_idade ou a imaginação dos habi-
tantes de Piratininga.
* * *
Entre a-s naçõe.s tapuias da capitania, por esse
tempo, vagueavam os maramomis (126), caçadores
selvagens e amigos dos. portugueses. Não eram bo-
toc,udos nem antropófagos. Um deles, que o irmão
Anchieta havia conhecido e libertado em Piratininga,

(126) :M:oromomis, maramimis ou maramomis, segundo PE.


RO ROIZ, op. eit.
ANCHIETÀ

apãteceu com outros nas imediações de Bertioga.


Feita a sua visita ao reitor do colégio, despediram-se,
mas, poucos dias após, seduzidos pela bondade anchie-
tana, voltaram com QS demais da tribo - homens,
mulheres e meninos. A essa, notícia, o padre Anchie-
ta foi-lh11s ao encontro, deu-lhes as boas vindas err
nome de Jesus, distribuiu-lhes terras onde vivessem,
edificou-lhes a igreja, começou a doutriná-los, e ainda
conseguiu, mediante um intérprete, recolher o voca-
bulário, parcialmente compor, entre os seus afazeres,
uma ~rte da língua dos maramomis. Tudo isso em
quinze dias, findos os quais, tornando ás ocupações de
reitor, o apóstolo deixou a·catequese ao padre Manuel
Viegas, que tanto fez por essa obra em santuários e
aldeias.
Na instrução e defesa do gentio, clamando pela
sua liberdade contra as guerras injustas ou contra os
vexames dissimulados em resgates, lidava o jesuíta.
Recorrendo aos anatemas, se os avisos não lhe bas-
tavam, erguia-se a voz do pregador, colericamente,
sobre a ignomínia dos mercadores de escravos.
Aparelhados para esse comércio, na vila de San~
tos, iam largar dois navios, demandando a terra dos
carijós. Os capitães haviam ensurdecido ás precec;
dolorosas de Anchieta, que suplicara,, em vão pelos
índios; a justiça local, desonesta na sua indiferença.
não lhe ouvira também as queixas. Então, da tribuna
sacra, o apóstolo desfechou a ameaça profética dos
castigos de Deus, se os navios largassem naquele rumo.
Obstinadamente, os dois traficantes partiram. Certa
noite, em meio da viagem, um deles sonhou que se
despenhava de uma rocha no abismo e que o padre
Joseph, salvando-lhe a vida, reprovava em nome de
Deus a ganância. Despertando, o capitão arrependido
292 CELSO V!EIRA

volta a, proa do barco, regressa ao fundeadouro. Mas


o outro navio prossegue no roteiro e vai ter, desven•
turadarnente, á 1plaga -dos carijós, onde naufragam º"
mareantes, e sucumbem ás mãos dos antropófagos, ex-
cepto dois, feridos, que traz~]:11 a notícia, aos colonos
de Santos. Assim redobra, para Anchieta, a fama de
amigo dos índios e porta-voz do céu.

Em 1570, receosos da justiça e rebelados contra


o governo da capitania,, fogem para o sertão, com as
suas fa1J1ílias, dois homens truculentos e aventurei-
ros, ligando-se ao gentio inimigo. Dessa aliança não
surgirá 11,m poder, que em breve ameace e aniquile S.
Vicente? Inquieta-se o povo; impressionam-se as a!l-
toridades. Só a força espiritual não vacila. Rogando
e obtendo o perdão dos sublevados, espera Joseph ar-
rebatá-los á selvageria. Com o padre Vicente Rodri-
gues, certo Manuel Veloso, poucos homens fieis, or-
ganisa uma bandeira cristã. E parte em busca dos re-
beldes.
Oito dias correm de navegação em ubá, leve cano-a
talhada em casca de árvore, que rapidamente sosso-
bra, quando faz água. Tra.nspostos os rios mais a.m·
plos e fáceis, arquejam os remadores, imergem o,;
remos de pá no tumulto de um rio encachoeira:do. Sú-
bito, a violência da águ,a espumosa, na altura de qua-
tro ou cinco braças, inunda a ubá, santuário flutuante
de cortex, onde na v.egam dois padres, Vicente e Jo-
seph, rezando as horas de Nossa Senhora da Concei-
ção. O lenho desaparece, alagado, com ele se afunda
o padre Joseph, não sabendo nadar. . . Enquanto os
demais expedicionários, bons nadadores, se avizinham
da terra firme, um dos remeiros índios mergulha duas
ANCHJETA 29.3

vezes; longamente explora as ondas turvas, e afinal


descobre Anchieta, que ele traz para a margem com
as roupas gotejantes. Assim ficara o missionário poI
algum tempo, sob a correnteza, encomendando-se a
Deus e á Virgem Maria, não ten<lo bebido água (127).
Sem fogo, sem pão, sem, lar, caminham agora os
naufragos, arrastando na espessura dos matagais o
peso das vestes encharcadas. Anoitece. Lentamente,
sob a chuva torrencial, vagueiam sem roteiro. Zurzi-
dos pelo vento, desgarrados na treva, nenhuma espe-
rança têm mais de agasalho, quando vão dar, cega-
mente, á porta das choupanas, onde vivem os dois re--
beldes. No assombro dessa visita, a horas morta5,
através da tempestade, lançam-se os malfeitores aos
pés de Anchieta, em lágrimas: "ó' padre, os nossos
pecados haviam de molestar Vossa Rev'erendissima !,.
E o hospede maravilhoso, que assim leva o perdão aos
réprobos, temíveis como leões na furna, consegue tra-
zê-los pouco depois a S. Vicente, gratos e dóceis.

(127) Os biógrafos PERO ROIZ e SIMÃO DE V ASCON-


CELOS narram o facto com outras circunstâncias milagrosas.
Adoptamos a. versão mais breve e simples - História de la funda:
cion deZ CoZZegio deZ Rio de Hoocro y &us residenciai, cap. 6.
III

Tragédia da nau Santiago. Mortos ilustres.


Paz o Força. Na praia de ltanhaem. Adão.

Anchieta e os demais jesuitas esperavam, em


lSiO, o regresso do visitador Inácio de Azevedo, que
tornava da Europa, naquele ano, com os missionário-,
portugueses e cspanhois do V a,1 de Rosal.
Desabrochara entre rosas o espírito dessa missão.
Era uma pleiadc cristã de 70 religiosos, fascinados pela
selva americana. Os bons missionários, que o visi-
tador já instruira e escolhera em Vai de Rosal, nos
arredores de Lisboa, passaram à frota do novo gover-
nador nomeado para o Brasil, d. Luis de Vasconcelos.
Quarenta deles vmham com Inácio de Azevedo a bordo
da nau Santiago. .
Na ilha da .Madeira, destacando-se da armada, a
Santiago tomou rumo para as Canárias, desavisadamen-
te, afrontando a pirataria daqueles mares. Em 15 d.1.·
julho, fiOuco depois do amanhecer, defronte da ilha de
Palma, branquejaram velas distantes, que a voz do
gageiro anunciou no tope real. Purpureavam-se as
águas e os céus, feridos pelo clarão do sol nascente.
E eram velas hostis de corsário as que avançavam,
enfunadas ao sopro matinal, velas da esquadra de J ac-
ques Sore, almirante huguenote da Rochela. Um pe-
louro- cortou os ares. Intimada pelo galeão Príncipe
a que amainasse, respondeu a Santiago com outro dis-
:_)aro de artilheria. Foi a sua perda.
ANCHIETA 295

Os obuzes de cinco náus cairam-lhe á proa, rom-


peram-lhe os flancos, e entre as nuvens do bombãr-
deio, logo depois, o inimigo ferrou-lhe os dentes do har-·
péu, repuxou-a ,para a manobra da abordagem. Cii1-
quenta, soldados -ferozes e ágeis saltaram no convés.
Mas a audácia dos infantes ruivos de Sore topava,
com imprecações, o valor dos marujos trigueiros de
Portugal. Embebiam-se as lanças, de chofre, nos pei-
tos· musculosos e ofegantes; volteavam no ar, gol-
peàndo a esmo, terçados e machadinhas: troavam
os arcabuzes á queima-roup~; cingiam-se os cemba-
tentes; afogavam-se os gritos na mesma onda ru-
bra de sangue. Acutilado e aturdido, ao pé do mas-
tro grande, tombara Inácio de Azevedo, encorajan-
do os patrícios á htta. Religiosos eram precipitado&
no mar. Um deles, Manuel Alvares, cuja voz reboava
sobre o escarcéu, teve a face lanhada a cutelo, as tí-
bias quebradas pelo coice rijo das escopetas. A outro
irmão os hereges, batendo com o punho das espadas,
fenderam o crânio até aos miolos; a outro mutilaram
barbaramente o queixo e a língua. Enfim, morto na
refrega o capitão, flor dos valentes, r~ndeu-se a rfau.
e os padres foram levados á tarefa da bomba, porque ·
se afundava os poucos a Santiago, desarticulada pelo
fogo dos calvinistas.
Entre os vencidos, morreram decapitados alguns,
como Simão Costa, o mestre e o calafate do navio.
Olhando os jesuítas esfalfadq:; no trabalho da bomba,
sentenciou Jacques Sore: "Lançai os perros ao m a r'' .
Dispostos em dois pelotões, o de bombordo, o de es-
tibordo, e apunhalados os mais idosos pelos carras-
cos, impelidos todos eles como fardos, baquearam na;;
mesmas águas reverberantes, sobre as quais 'flutuava
o cadaver de Inácio de Azevedo, simbolicamente, com
296 CELSO VIEIRA

os braços abertos em cruz. Um tripulante moço, a


quem o visitador prometera o ingresso na Companhia,
não tendo sido martirizado com os inacianos, veste
uma roupeta manchada de sangue, corre ao lugar do
suplício, bradando: "Matai-me. Também eu sou je-
suíta!"
Apenas dois irmãos escapar;i.m á mortandade para.
narrar ao mundo a tragédia (128). Quarenta martires
haviam -conq·uistado o Paraisa, sob o estandarte de.·
Loiola. Todas as rosas cristãs do Val de Rosal san-
gravam nesse martírio, entre as rosas de fogo do sol
nascente.

• • •
Poucos meses depois, em 18 de outubro de 1570,
expirava no colégio do Rio de Janeiro o fundador da
càtequese. Martuel da Nóbrega, jesuita primacial nas
origem católicas da história do Bra-iil, teve o seu epi-
táfio lavrado pela justiça de um protestante, Southey:
"Não ha ning,uém a cujos talentos ·deva o Brasil tantos
e tão perman_~ntes serviços" .
Dilectos amigos, Inácio de Azevedo e Manuel da
Nóbrega reviviam saudosamente no coração de An-
chieta, mais do que nunca resignado, entretanto, ·,
vontade de Deus. E eis que lhe surgem tristezas iguais
funebremente, do eclipse de velhas afeições: em 157l,
perece o governador Men de Sá, heroi do seu poema;
em 1573, o bistpo d. Pédro Leitão. Nesse ano, entre 2
e 4 de novembro, caiu em Piratinjnga um chuveiro de
tamanhas pedras que os viandantes lapidados pelo céu,
estarrecidos, bradavam de joelhos: Misericordia ! AI-

(128) Ibd. Ibd. " ... solos dos eseaparon ror Dlia Dios
para dax eierta informacion de Ia muerte de íiros heros ... "
ANCHIETA 297

gumas rolavam como esferas de cristal, outras como


se fossem cruzes de gelo, e uma destas afigurou-se
aos jesuitas um vago ,crucifixo, recordando no seu
albor momentâneo a cristjanisação passageira dos
índios ( 129).
Mas a vida traz ao reitor Joseph de Anchieta,
por outro lado, novas esperanças e novos estimulos. O
governador Antônio Salema, reunindo aos seus ho·
mens d'armas os de S. Vicente, portugueses e natu-
rais, capitaneados por Jerónimo Leitão;" conseguira
expelir os franceses e naturais de Cabo Frio, apazi--
guar os tamoios de Paraiba do Sul. Anchieta não
acompanha os guerreiros ao campo de batalha, mas
rejubila com o advento da grande paz indígena:, pela
quàl tanto sofrera, ainda moço, no desterro de Ipe-
roig. Realizava-se destarte o que ele prêdissera em
1554:" ... nenhum ou certamente muito pouco fruto
se pode colher deles (os-índios), se a força e o auxi..
lio do braço secular não acudirem para os domar e
submeter ao jugo da obediência" (130).
Sobre a paz da colónia, imposta definitivamente
pela força, expandia-se a catequese sem perigo. Eram
mais fáceis os caminhos, mais dóceis os corações, ~
o jesuitismo louvava nessa conquista o favor dos
quarenta mártires da Santiago, padroeiros do Brasil.·
(131) Todas as rosas cristãs do Val de Rosal se en-
trelaçavam agora, no mesmo santuário, às orquídeas
da selva brasileira. E a musa anchietana deveria.

(129) Historia àe la fu1~dation àel Collegio àel Rio àe He-


nero y ~us reside'il-Cias.
(130) ANCHIETA - Cartas quaàrimensais de maio a a,e.
tembro, 1554.
(131) Historia à6 ¼ funàaoion del Callegia del Rio de H11.
nero y sus residenoias, cit.
298 CELSO VIEIRA

compor mais tarde o elogio sacro ao bem-aventurado


Inácio de Azevedo, testemunhando a conven;ão mira-
culosa cio protestante Jacques Sore na velhice:
A la fé, de corazou
so rcdujo en la vejcz,
porque tu, cou oruci011,
ganasto de Dios pardou
al -enomigo' francúz (132).

* * *
Anchieta denominava a praia de Itanhaem, jovi-
alm~nte, o seu reino dos Incas, o seu Peru, transbor-
dante de almas nascidas para a cristandade, opulento
de conversões, baptismos e' alianças, como o outro,
inverosímil, de ouro e prata aos quintais, d~ pedraria
em toneis. Medindo oito léguas, com o templo erigi-
do á Nossa Senhora da Conceição pelos jesuítas, er:i.
esse o caminho habitual do missionaria nas infindáveis
peregrinações evangélicas. Por ioda a ourela ela praia
alvejavam ossos colossais, despojos de cetáceo, que
vinham boiando á flor das enchentes e afinal jazi;i,m
em seco, inertes, no refluxo das vasantes. Itanhaem,
ossuário imenso de baleias, antepunha ao choque das
ondas a rijeza ,do solo, em que as rodas chiantes dos
carros de bois, ajoujados e morosos, não deixava se-
quer vestígio.
O irmão Joseph, em 1563, baptizara nesse lugar
um índio centenário, que aiprendera as lições do cate-·
cismo, inesperadamente, quando mal podia ver
(132) P. GONZAGA CABRAL, Jesnitas no Brasil: "En-
contrei entre os Manuscritos inéditos, que estou cita11do, uma poe-
sia em c·astelhano, do próprio punho de ANCHIETA, dirigida ao
Bemaventurado (INACI0 DE AZEVEDO), na qual refere a con-
versão ao catolicismo de JACQUES S0URIE (Sore), o capitão
calvinista, que comandou a carnificina da nau Santi.a{Jo."
ANCHIETA 299

e ouvir. Com. a pele enrugada sobre os os~os frá-


geis, quase surdo e cego, o macróbio teve ainda vigor
de coração e entendimento para se cristianizar. - " ...
o que a muita idade lhe negava, escreve Anchieta, Sll··
priu nele a grande vontade de -ser Cristão." Aos cento
e trinta anos de idade, temendo o inferno, desejando
o paraíso, aborrêceu os antigos pecados, compungiu-
se á lembrança das tortur~s, que sofriam os set1s
parentes selvagens, pecadores mortos, decorou os
mistérios rda Enc-arnação e da Ressurreição, os nomes
de Deus-Pai e Deus-Filho. Só não sabia articular o
do Espírito Santo, por intraduzível na lingua tupi.
Enfim, recebeu chorando o baptismo, e esperava des-
feito em lágrimas, depois de ser baptizado, a vida eter-
na e feliz.
Sobre a realidade anchietana os biógrafos Pero Roiz
e Simão de Vasconcelos expõem a metamorfose len-
dária:
Certo dia ( conta-nos a lenda), passando por aí
com o seu breviário, o seu bordão, sentiu-se Joseph
impelido por estranhil força a entrar na selva miste-
riosa. Sob a ramagem de uma das árvores, sentado,
avistou o padre um velho índio, tão velho como a pró-
pria árvore, que lhe estendia á velhice um pouco de
frescor e de sombra. Perto, corroicla já pelo tempo,
havia uma enxada de lavrador ou de coveiro, ao aban-
dono. O missionário deteve-se um pouco, entre as
suas reminiscências, ha surpresa de tal encontro.
Veiu-lhe á ideia outro pagãô secular e rugoso, con-
vertido e baptizado por ele, quando era apenas irmão,
nessa mesma praia lendária (133). Como se o es-
(133) ANCHIETA - Carta de 16 de abril de 1563: "En.
tre estes índios, de que falo, está um que creio passa de cent_~::
e tdnta anos ... '' ·. ·
300 CELSO VIEIRA

perasse com ansiedade, ao pé daquela ramaria, desde


milénios, o gentio venerável disse:
- Acaba de vir, padre, que há muito aqui estou
suspirando pela tua presença.
Então, acelerando os passos, inquiriu Joseph o seu
nome e o da sua aldeia, soube com espanto que ele
não era da Província do Brasil, más de terra estran-
geira, além mar, para as bandas do oriente, e compre-
endeu, maravilhado, que de tão longe o trazia uma
força invisível, sobrenatural.
Docemente, perguntou-lhe a causa da sua vinda
o que dele queria. Conhecer a lei de Deus e a vida
boa, respondeu-lhe o índio pre-histórico, derradeiro
exemplar de antiguidade selvagem, arquétipo moldadc
no bronze da raça americana.
Pensativq, quase transfigurado pelo sentimento
dessa predestinação, acolhendo-se á mesma fronde.
pousando sobre as mesmas raizes, o pegureiro de al-
mas confessou o nomade envelhecido nas jornadas e
nos combates da tribo. Ouviu com alegria que os seus
amores não tinham sido bestiais nem injustas as suas
guerras. Se havia nele a grande mácula do pecado
original, escurecendo-lhe os dias incontáveis, não ha--
via o secreto fogo do pecado infernal contra a natu-
reza humana. E o padre serenou a tormenta do velho
coração, que pulsava ingenuamente por Deus, avizi.
nhando-se da hora extrema.
Um por um, desvendou-lhe os mistérios da fé: á,
passagem de cada revelação, com a sua lampada acesa
entre os véus do santuário, explicava o iniciado como
já pressentira, mas não soubera dizer a verdade. Er.
guendo-se para o baptizar, Anchieta procurou, em vã0.
manancial ou ribeira naqueles arredores. Mas rom-
pia dentre os calhaus, perto, como trofeu de gládios
ANCHlgTA !01

Vêgêta.is, um lustroso cardo silvestre, cujas folhas


denteadas, ponteagudas, intumescida,·s, ainda ressum-
bravam água da última chuva.
E o· nome? Com que nome o baptizaria Anchieta?
Olhando em torno, viu que esse homem devia ser, nas
evocações genésicas do mundo, tão vetusto e sagrado
quanto as florestas, os fraguedos, os mares. Símbob
das primeiras idades humànas, semblante crepuscular
dos tempos idos, lentamente vergava ao peso das cul-
pas edênicas. Habitara com inocência o Paraiso, sob o
olhar ,carinho-só do·s anjos; mordera com avidez, nos
lábios crespos da tentadora, o fruto acidulado e proi-
bido. Era dos beijos de ambos que provinham os gê-
meos rivais, gerações impenitentes e orgulhosas, de-
!lafios ao céu, deleites da carne, impurezas e atrocida-
des, que eternisam o mal. Cµrvado e contrito, enfim,
sob aramaria dos jequitibás, ali estava aos pés de An-
.:hieta, reconciliando-se com Deus, o mais velho dos
homens. Vozes da selva e do mar dialogav:am. As-
pergindo a cabeça nevada, ritualm~nte, com água pu-
ríssima das nuvens, colhida ás folhas de um cacto bra-·
vio, deu Joseph ao macróbio o nome de baptismo,
Adão. E aos pés do sacerdote, enlevada a alma na
promessa •dos seus olhos azuis e tranquil-os, claros e
profundos, Adão expirou suàvemente, desceu á cova
aberta por Anchieta, quedou-se a dormir; para sempre,
nesse recanto de terra brasileira; junto ao cardo sil-
vestre. (134).

(134) PERO ROIZ - ob. cit., liv. II: SIMÃO DE V AS-


CONQELOS - Vida do P. Joseph ele Â11J.chieta, liv. III, cap. VII.
IV

Anchieta no 'colégio da Baía. O novo provin•


cial; o novo governador. Piedade e cavalheirismo.
Fundações da província. Os subditos da Ordem,

Um dia, na casa de S. Paulo de Piratininga, entre


dois irmã-os e tres padres, Anchieta me,ditavà. Era in-
verno. Fora, adensava-se a garoa; dentro, o fogo de
lenha crepitava. E ele disse profeticamente aos com-
. panheiros :
- Olhai o que dizem as velhas: é que hei de ser
provincial, e tenho boas costas para o cargo.
Sorriu, á ideia da 1própria corcova. Remirando as
brasas, pensativamente, acrescentou:
- Dizem mais que hei de ser nomeado reitor da
Baía, mas não servirei o cargo.
Ouviram-no os j esuitas com espa,nto, retendo as-
frase, a hora, o lugar dos seus vaticínios, confirma-
dos pelos sucessos de 1578.
Nesse ano, vindo ás terras de S. Vicente o padre
Inácio Tolosa, então provincial, com ele foi para a
Baía o padre Anchieta, que, a partir de 1576, vivia hu-
mildemente como subdito da Ordem.
Ao entrar Joseph no colégio de Salvador, com a
sotaina em farrapos, macilento, giboso, ínfimo, per-
guntou mentalmente um irmão, enquanto os demais
abraçavam o recem-vindo:
- Que vem isso cá fazer?
Penetrante leitor de almas, boas ou más, Anchie ·
ta adivinhou-lhe o pensamento no olhar, foi para ele
ANCH.tETA 303

tóin os braços abertos, ilum.inada a faée por um sor•


riso:
- Assim é, assim é, meu irmão, que entre tantos
sómente vós me conhecestes: a que venho eu aqui,
homem inútil, de nenhum proveito?
Confuso, o outro sentiu a veneraçãó instintivtt;
que os reveladores da vida interior despertam. Mas o
seu pensamento secreto, assim divulgado, era o de
toda a comunidade. Quando o geral Everardo Mer-
curiano, pouco depois, lhe manda a patente do novo
reitor, Joseph de Anchieta, o colégio protesta e repli-
ca. Não se compreendia que o reitorado mais ilustre,
mais erudito do Brasil fosse atdbuido á insignificân-
cia religiosa de um corcunda, tão alheio aos caracte-
res e ás condições da autoridade - hierarquia, vesti-
menta, cerimonial - para ludibrio dos inacianos.
Então, renunciando ao colégio, fez-se Anchieta o
missionário da ilha de Itaparica,. Aí conheceu, de cer-
to, os horrores já descritos pelo irmão Antônio Blas-
quez em 1556 :' a bestialidade voraz do gentio, á sordi-
dez nau,seante das habitações, que os piás doutrinados
comparavam ao purgatório, a eterna bebedice dos ve-
lhos e dos moços, o pecado irremissível dos maus cris-
tãos, diabolicamente perversos, não amando senão a
mercâ·ncia. e a mentira, não querendo senão o cati-
veiro e o extermínio cios aborígenes: " ... folgam e se
regosijam de os ver matar e comer, como se vissem
lebreus encarniçados e porcos montezes." (135)

Estava ele, certa vez, a ouvir de confissão uma


velha índia, agonisante na rede. Sentado perto do fo-
(135) ANTONIO BLASQUEZ, carta de 1:558' ao Pad•·e
Geral.
~04 CELSO VIEIRA

gão, sobre um toro, que ardia pelo extremo opõstd,


recusara mudar de assento.
- Antes que termine a confissão dessa mulher -
disse ao dono da casa, - hão de me trazer um assento
de menos gosto.
Não tardou, com efeito, a mensagem do padre
Inácio Tolosa, para que ele voltasse à Baía, onde o es-
perava a suma dignidade provincial. Transferindo-lht"
o cargo, diante de toda a comunidade, o seu anteces·
sor predicou aos irmãos, beijou-lhe os pés, debulhado
em pranto. No dia seguinte, depois ,da prática, fez
outro tanto Joseph de Anchieta, rogando a todos o au-
xílio espiritual da prece.
J Durou sete anos (136) o provincialato efetivo de
Anchieta, sobre o qual silenciam os biógrafos, rareiam
os documentos. Teria o novo provincial, mediank
relações ou iniciativas da sua autoridade, influído mais
poderosamente na formação histórica do Brasil? Não
(136) SIMÃO DE VASCONCELO~, V. do P. Anchiet<1,
liv. IV, cap. I: " ... no fim do mesmo ano iie 1578 foy trazido
Joseph pello Padre Provincial Ignacio de Toloza, que a.Ui ar-a-
baua de visitar, ao Collegio da Bahia ... " Ibd. ibd., cap. II:
"Entrou no ca1·go da Provincia 110 rumo do Senhor de 1578".
Ibd., ibd., liv. V, cap. I: " ... deixou o cargo do seu Prouinciala-
do no fim do am10 de 1585." Não sab.emo.s como Simão d~
Vasconcelos e A11t611io Fiauco, depois disso, podem •coutar oito
anos ao provincialato anc.hietano. O padre Serafim Leite, poi·
sua vez, informa que "ainda ficou (Anehieta) á freute da Pro-
víucia do Brasil por mais três auos, além dos sete que já le-
vava." Pe·ro Raiz, entretanto, detierminou-lhe clru-ameil1te a fase
de actividad-o real no provimcialato - um septennio: "Começou
(Anchieta) a gouernar a Provincia no anno de mil quinhent"s
Retenta e outo, e eontinuou pCN obra, de sete (fflnos, com muita
prudencia e inteireza". E antes dele já escrevera na sua "Brev~
relação da vida e morte do P. José de Anchieta 5. 0 Provincial,
que foi do Brasil, o padre Quiricio Caxa: - "Teve o carga
perto de 7 anos."
ANCHIETA 3ôS

o sabemos. Com ele se tl'ansmutaria, em Olttras base.,,


a grande acção política e moral de Nóbrega, o funda-
dor? Não o supomos, examinando-lhe os vestígios da
obra indefinível, por evanescente. Sem a mesma pre-
ponderância, talvez, é o mesmo sistema religioso de
conversão e defesa do gentio o que logramos induzi:·
ou entrever, folheando a crônica e a história, nesse pe
ríodo ihcerto do jesuitismo brasileiro.
Entretanto, assinala-se o ano da posse de Anchie-
ta, 1578,. por dois grandes sucessos: a batalha de Al ·
cacer-Kibír, ocaso da glória portuguesa, antecedendo
o longo domínio espanhol; a restauração <la unidade
administrativa do Brasil, cujo governo fora bipartido
pela carta régia de 1572, que entregara o norte a Luig
de Brito, o sul a Antônio Salema. No primeiro dia de
1578, com a sua guarda pessoal de doze homens, Lou.-
renço da Veiga começa a governar todo o Brasil. E
ainda nesse mesmo ano o prelado Bartolomeu Simõe~
Pereira, bacharel, é investido na jurisdicção eclesiás-
tica das capitanias do sul, movendo-se como pastor
de um rebanho inconfundível, num aprisco indepen-
dente da mitra baiana.
Ao novo governador não faltavam precedentes
heroicos. Ele servira na mocidade em Arzila e fora
mesmo ferido sob os muros de Tanger; combatera em
algumas esquadras,, como soldado; capitaneara outra-,
na rota de Guíné e das Inclias. Quando veiu para o
Brasil, aos quarenta e oito anos, tinha a sensibilidade
fácil, a devoção meticulosa e assídua. Todas as ma
nhãs ouvia missa, indo e vindo, a cavalo, sem apa rato
ou séquito. Em visita aos aldeamentos jesuíticos, se-
gtthdo Anchieta, derramava lágrimas, ao ver os ín-
dios ajoelhados para o catecismo ou a comunhão, en-
fileirados nas procissões, avergoados pelas disciplinas.
éEtSô VIE!RA
Com os olhos rasos d'água, ouvia na igreja os peque-
nos tocadores de orgão ou de ,flauta. Não tolerava
que os portuguêses oprimissem os aborígenes, mar-
cados a ferro candente nas espáduas, como reses, ou
na própria face amarela ou acobreada. Libertá-los
para o baptismo, sob a tutela dos padres, era o seu in-
tuito religioso. Patriota, honesto, sentimental, mor-
reu <le tristeza em 1581, com dnquenta e um anos de
idade, ao saber que Tristão Va,z da Veiga, seu irmão,
assediado por vinte e quatro canhões do senhor Du-
que de Alba, entregara aos castelhanos a torre de S.
Julião, com ela o próprio reino, apressando a queda
cio forte da Cabeça Seca e a derrota final de d. An-
tônio, prior do Crato.
No desditoso governador Lourenço da Veiga a
Companhia perdera um amigo devotado. ApÓ's a sua
morte, como não existissem vias de sucessão (137), im-
provisou-se um governo composto do bispo, do ouvi-
dor geral, Cosme Rangel, e da Câmara da Bahia.
Em breve, arredado o bispo, desfeita a câmara,
eleitos vereadores servis, copiada a instituição popular
e reinícola dos mesteres (138), dominou exclusivamen-
te o arbítrio de Cosme Rangel, homem virulent.o e
ambicioso. Não poderia estimá-lo a caridade jesuíti-
ca de Anchieta, irreconciliável, por temperamento e
doutrina, ·Com o regime de usurpação, intriga e
ódio, que subsistiu quase um ano. Só em 20 de maio
(137) VARNHAGEN, Hist6ria Geral do Brasil, t. I, secção
:XXI.
(138) P. GALANTI, llf.st6ria do BrCl8il, t. I: "Os Mes-
t éres eram quatro homens que no senado da. eama ra de Lisboa
serviam de prot'uradores dos 24 offieios meehanieos. .IÚoileor-
ria m com :i ·camara em dar regimt'nto aos offieios e tu:a ao5
preços da mão d'obra, cm feitios. Votavam C'Om os ministros
do senado e deviam i;or sempre c;,fficiaes meeha.11icos."
ANCHlE'I'A M7

de 1582 chegava á Baia o governador Teles Barreto,


com uma guarda de vinte homens, arautos da. nova
soberania espanhola, declarada por esse régio preposto
às capitanias brasileiras. Devia ter sido grata aos je-
suitas a sua nomeação, pois de Teles Barreto espera
mais tarde Anchieta, registrando-lhe a vinda, que
ajude a cristandade e favoreça a libertação dos indígenas.
Responsável pelos destinos da Ordem no Brasil,
como provincial, dividia ele todo o seu cuidado, mais
ardentemente que nunca, entre as missões e os
institutos da província, a formação dos alunos e a ca··
tequese dos índios. Semelhante ideal não era, ,,-:om-
preendido, muita vez, 1pelos di!gnitários <la própria
Igreja, onde o bispo d. Álvaro Barreiros, por exemplo,
tinha em desapreço a gentilidade tosca e boçal, visi-
tando-lhe raramente as aldeias, crismando-a sem fer-
vor.
Na provfocia de Anchieta 'culminavam tres fun-
dações - os colégios· de Pernambuco, da Baia, do Rio
de Janeiro, dotados por el-rei d. Sebastião, erigidos
num topo de monte, olhando para o nascente e para
o mar. Em todos eles, havia uma igreja pequena, mas
ornada, uma aula de casos, ·uma classe de gramática,
uma escola ele música e de primeiras letras, oficinas
modestas, laborando, e a vasta cerca murada com a
sua fonte, o seu poço, !eiras vicejantes de horta, copio-
so àrvoredo a frutificar e frondescer. Por léguas de
terra, em quadra, não muito longe da vila, cada qual
tinha os seus domínios, as suas pastagens, os seus re-
banhos. E o mais rico desses colégios era o da Bai::i.,
seminário da província, donde sairiam vigários e ca-
suistas, cônegos da igreja mór e teólogos pregadores.
No templo .coruscante de alfaias, entre as relíquias en-
castoadas em prata, exibiam-se tres cabeças das Onze
308 CELSO VIEIRA

Mil Virgens. Afora os colégios, a, Ordem possufa dl"l


Brasil as casas de Ilheus, Porto Seguro, Espírito San-
to, S. Vicente e Piratininga, situadas ao :Pé do mar ou
entre rios e serras - núcleolos da grande fé, alvéolo;;
da grande colmeia, em que as abelhas viviam de esmo-
las·, revoando sobre o alarido e a braveza famélica
das tribos.
Eram subditos ,de Anchieta, soldados que milita-
vam pela glória divina, 68 padres, 35 coadjutores e
37 estudantes, ao todo 140 religiosos, entre sacerdotes
e irmãos, além dos índios escravos da Companhia, ar-
tífices ou lavradores, carreiros ou boieiros, por cen--
tenas, e dos índios cristãos e livres, por milhares, nas
aldeias confiadas aos colégios ou ás residências. An-
chieta comandava as hostes evangélicas, por montes e
varzeas, desde o mar de Olinda ao Tieté.
Os clérigos estranhos á Ordem não sabiam a liu ·
gua da terra. Se baptizavam algum índio, automati ..
-camente, pouco significava o baptismo sem revelação.
Infecundos, não pregavam sequer aos portuguêses, de
que eram confessores os inacianos. Limitavam-se os
próprios vigários a quatro ou cinco formas rituais do
sacerdócio, entre os colonos: missa, eucaristia, ca-
samento, extrema-u.ncção e ofício dos mortos.
Assim, devorados pelos canibais de Porto Seguro
os primeiros missionários frandscanos, alijados ao
mar pelos franceses hereges, possivelmente, os sete
ou oito frades de hábitos bran.co"S, que Villegagnon, em
1560 ou 61, mandara da França ao Rio, só os jesuíta!>
apostolavam por esse tempo no Brasil. Pertence-lhes
.o reino espiritual do século XVI nestas paragen:.,
onde se vê o terreno da catequese, funda.mente la-
vrado por eles, irredutível ao c.ondominio. Mesmo
ANCHIETA 309

depois de 1584, os beneditinos, franciscanos e carmeli-


tas observantes, vindo para o Brasil, são monges pie-
dosos e sed·entários, amigos do claustro, devotos do
-livro. Não têm a mobilidade selvática e a finalidadr
histórica dos jesuitas.
V

Jornadas e viagens do provincial. Hábito de


mansidão. Defesa do gentio. Ensino. Trabalhos
e perigos da catequese. Estoicismo de Anchieta.
Casos de profecia. Valdez e a sua armada. Orte-
ga e Filds, emissários anchietanos. Vitória dos
catecumenos sobre os hereges.

Com espírito omnipresente, acção meticulosa, o


provincial reanima o apostolado, multiplica viagen.:;
apostólicas, entre o fausto mundano de Olinda e a nu-
dez ingênua de Piratininga. Nenhuma relação pos ·
suimos, entretanto, das visitas à capitania fundada
por Duarte Coelho.
J ornadeando pelos sertões, Anchieta não cavalga
nem se transport1 em rede, como os demais: é sem-
pre o mesmo andarilho descalço, levemente apoiado
ao bordão de pegureiro. Navega,ndo, apenas leva con-
sigo o breviário e papeis urgentes. O seu camarote é
o mais pobre, a sua roupeta é a mais velha, o seu ali-
mento é o mais escasso. Durante a viagem, o provin-
cial está sempre no convés, ao sol e á chuva, ao mor-
maço e á neblina, ajudando os marinheiros na faina
de bordo, acudindo ao leme e á bomba do navio. Ele
prevê os tempotaes, conhece os baixios e as corren-
tezas, aconselha os capitães, encoraja os tripulantes á
hora da procela, surpreende os pilotos mais adestra-
dos com os avisos da, sua experiência náutica. Vive
para os enfermos e os indígenas, para a doutrina e a
caridade. Não repousa um instante, no correr do dia;
quase não dorme, á noite; apenas o faz, ligeiramente,
ANCHIETA 311

encostado a um rolo ele corda, ao mastaréo do tra·


quete, á unha de ferro da âncora. Mas logo desperta,
em sobressalto, como se lhe fosse um dever a vigilia,
um descuido o sono, para imergir outra vez na ora-
ção, velar por outros destinos, flut'uantes e adorme-
cidos em pleno abismo. Só, na coberta, é o confidente
dos astros, o interlocutor das ondas, o olhar sereno do
homem feito á imagem de Deus, cosmicamente bom.

Discreto e benigno, o provincial nunca impõe aos


subditos da Ordem" "Fazei isso ou aquilo". Prefere
solicitar ou sugerir com acento de fr~ternidade: "Ir·
mão, podeis fazer? Convem que façais". Se lhe di-
zem que não deve tardar, como aviso, repreensão ou
penitência, a emenda hierárquica das faltas religiosM,
obtempera o sacerdote :" - E eu vos digo que o su-
perior não há de notar ao subdito a falta, sem que
primeiro a tenha chorado por duas ôu tres vezes, pe-
rante Deus. "Querendo saber do padre Afonso Gon-
çalves, ministro do colégio, porque fala com asperez:i
a um irmão, dele ouve Anchieta qtte é preciso, opor-
tunamente, exercitar a paciência dos subafternos. E
assim lhe responde: "Pois eu, in nomine Domini, vos
dispo e~se hábito de rigor e visto agora outro de man-
sidão com que nunca <leis, a subdito algum, ensejo de
paciência, mas antes a deis a toqos de amor e afabi-
lidade."
Certa vez, tendo ·p osto á cabeça o amicto, vestia a
alva de celebrante, para oficiar, quando vieram dizer-
lhe que Ó procu-ravam. Talvez fosse um necessitarlo.
- "Melhor é a misericórdia que o sacrifício", - diss..>.
o·provincial. Tirando o amicto, saiu para atender ao
312 CELSO VIEIRA

recem-vindo. E após o gesto de caridade, humana-


mente, é que volveu á celebração ,;la missa.
Revestindo esse hábito de mansidão, ele dirigia a
marcha do apostolado no Brasil, onde haviam sido ba-·
ptizados pelo jesuitas, desde 1549, mais de cem mil in-
díge.nas, lamentávelmente reduzidos, trinta: e cinco anos
depois, a· vinte mil cristãos, nominais, por enfermida-
des contagiosas e agravos dós colonos. O seu eterno
desgosto era a iniquidade portuguesa, contra a qual
pedia leis severas, que lhe não consentissem ferrar ou
vender o índio, submetê-lo á escravidão, arrebatar-
lhe mulher e filhos, determinando o éxodo selva-
gem, até duzentas ou trezentas léguas da costa, por
brenhas inacessiveis á doutrina. O seu único enlevo,
de quando em quando, era a submissão dos gentiot
mais domésticos aos padres, no abandono de usos de-
pravados, no entendimento dos artigos da fé, ou a in-
teligência vivaz dos meninos, aprendendo sem esfor-
ço, mesmo com alegria, português, solfejo e catecismo
Nos colégios, nas residências, nas aldeias, a Com-
panhia lidava pa·ra cristanisar o Brasil, vencendo peri-
gos e trabalhos. Quantos não foram conhecidos de
Anchieta, por Anchieta· descritos? Enumeremos con~
ele as cobras peçonhentas e onças esfaimadas; a sel-
y.ageria das tribos inimigas, emboscando-se para o
momento da presa e da carnagem; torvo nos horizon-
tes, bravo nas penedias, o mar elas procelas e dos nau-
frágios, estourando por toda a costa, ouriçada de abro-
lhos; inundações de rios caudalosos, vadeados com
água pela cinta, pelo torax, pela gorja; ás vezes, o
calor tropical, reverberante, a esbrasear o âmago das
rochas, calcinar o esqueleto das florestas; outras ve-
zes, o frio das terras do .c;ul, frio implacável de S.
Vicente, onde morriam no inverno os próprios selvi-
ANCHIETA 313

colas, regelados; àguaceiros estrepitosos ou nuvens de


mosquitos insaciáveis, azoinantes ao cair das trevas;
o crivo das geadas, que aos missionários cortavam o
sono, por ausência de fogo, ou crestavam as pernas,
por escassez de roupa; o desconsolo das noites bru-
mosas na solidão, em que os padres nús, tiritando, es-
tendiam as vestes molhados ao braseiro.
Ainda nos últimos dias do seu provincialato, não
sem amargor, o santo queixava-se dos homens indi-
ferentes ao martirologio da catequese: "nada disto
se estima e muitas vezes por acudir a baptízar ou con-
fessar o escravo de um português se andam seis e
sete léguas a pé, e ás vezes sem ,comer; fomes, sedes,
et alia hujus niodi; e finalmente, a nada disto se negam
os nossos, mas sem diferença de tempos, noites nem
dias, lhes acodem e muitas vezes sem ser chamados os
andam a buscar pelas fazendas ,de seus senhores, onde
estão desamparados. E quando há doenças gerais,
como houve cá, muitas vezes, de bexiga, priorizes, ta-·
bardilho, câmaras de sangue etc., não há descansar, e
nisto se gasta -cá a vida ,dos nossos, com que se tem ga··
nhado, em todo o Brasil, muitas almas ao Senhor".
,(139). Mais que todos os outros, conheceu Joseph d.!
Anchieta semelhante fadigas. - "O' quantas vezes o
v'imos (exclama o padre Quirício Caxa), sentado sobre
um tição pegado com a rede do indio doente e, às ve-
zes, de doenças que podiam causar horror, consolan-
do-o ... " Nesse momentos de caridade e .sacrifício,
como o sacerdote ainda relembra, não tinha ele menos
afecto, menos brandura, "do que uma mãe pode ter em
tal tempo com um .filho que muito ama!"
Heroicos e simples, alegravam-se os missioná-
rios, ao cabo de todos esses riscos, todas essas dores,
(139) fo/. do Brasil e de suas oapitaniM (1584).
314 CELSO VIEIRA

com as festas católicas e musicais do gentio, as dan ..


ças dos columins ou dos guerreiros empenachados,
quando soavam rusticamente flautas, violas e tambo-
ris no adro de um templo erguido pelas suas mãos ...
Anchieta era o mais alegre de todos. Defluíam-lhe a
serenidade e o contentamento 'da grande paz interior.
Socorrendo, instruindo, evangelizando, outrora moço
e lesto, agora encanecido e enrugado pelo tempo, ele
passava com a mesma alegria no olhar, no sorriso, na
voz - a perfeita alegria de S. Francisco de Assis.
* * *
Em 1583 chegou à Baía o visitador Cristovão
Gou,veia; com o secretário Fernão Cardim. Na sua vi-
sita ás casas de Ilheus e de Porto Seguro acompanhou-
º Joseph de Anchieta, precocemente envelhecido e al-·
quebrado, porque lhe voltara a doença da espinha.
Quando marchavam os religiosos, certo dia, ao
longo da praia de S. Mateus, requeimada pelo sol, bai-
xou do monte vizinho uma indígena seminua, que tra-
zia dessa·s alturas um prato de queijadinhas d'açucar
e um vaso d'água fria, como dádiva de um morador ao
provincial. Cristovão Gouveia e Fernfo Cardim toma-
ram-lhe das mãos a salva de porcelana da lndia com
os doces, mandaram levar ao padre Joseph o púcaro
d'água. Lentamente bebeu o padre sequioso. E a fi-
gura apostólica de Anchieta, ao relanceá-la nesse mo-
mento o secretário do visitador, é um dos instantâneos
mais vívidos e tocantes da Narrativa Epistolar:
- "Tomámos~ padre visitador e eu a salva, e o
mais dissemos desse ao padre J•oseph, que vinha de
tra,z com as abas na cinta, descalço, bem cansado: é
este padre um santo de grande exemplo e oração,
cheio de toda a perfeição, desprezador de si e do mun-
ANCHIETA 315

do; uma coluna grande. desta província, e tem feito


grande cristanda-de e conservado grande exemplo: de
ordinário, anda a pé, nem há retirá-lo de andar, sendo
enfermo. Enfim, -sua vida é vcre apostólica".

O mais puro estoicismo, conjugando-se à mais


pura modéstia em Joseph de Anchieta, dominava pela
vontade o sofrimento e a repugnância.
Adoecendo ele na Baía, veiu o irmão enfermeiro
trazer-lhe a dieta - um prato de abóbora cozida: ao
primeiro bocado, sentiu Anchieta que lhe serviam.
inconscientemente, uma espécie má de abóbora silve,,-
tre, amarga como fel. Depôs a colher no prato e olhou
o enfermeiro, ·sem dizer palavra. Cuidando ser de fasti,_,
esse gesto, o irmão insistiu com o provincial. Joseph
bebeu o caldo amargoso, comeu a abóbora intragável,
e ao cabo fez uma pergunta, sorrindo:
- Haverá outro doente, a quem reserveis a mes-
ma dieta?
- Sim, foi a resposta.
Enigmaticamente, sorriu de novo Joseph, apenas
disse:
- Não o façais, então, sem que lhe proveis o
sabor.
Impressionado por esse aviso, o enfermeiro teve
uma suspeita. Provou o sobejo do cal-do, sentiu-lhe
o amargor, compreendeu tudo:
- Ah! padre meu, que matei vossa Reverendís-
sima com o meu •des,cui-do.
Mas o santo lhe tornou com a mesma doçura:
Nã:o me matastes, irmão. Antes quis Nosso
Senhor dar-me saude, ministrando-me alguma cois2.
316 CELSO VIEIRA

semelhante à esponja de fel, que os seus lábios to-


caram por mim e por vós na; cruz.

Entre os herois da catequese, Anchieta governa


e profetisa. A tendência dos jesuitas, por ele gover-
nados, é fazer do provincial o profeta, da sua vida
uma lenda, como se vê dos tres casos seguintes, ex-
traidos á relação infindável das maravilhas anchie-
tanas:
I - Um dia, no campanário da igreja de Salva-
dor, o pedreiro João Fernandes, homem devoto e
casado, estava ·sàsinho a cunhar os sinos, quando pas-
sou por ali o provincial e em voz alta lhe disse: "João
Fernandes, cunhai bem os sinos, porque sereis o
primeiro irmão ela Companhia, por quem eles vão
dobrar".
Instado pelos religiosos, meses depois, Anchieta
seguiu para o norte, a ·contragosto, em visita ao co-
légio de Pernambuco. "Aqui devo estar - objecta-
va ele - no dia de Nossa Senhora. da Conceição".
Nesse dia, com efeito, arribou o .navio á barr;i de
Salvador, tangido por ventos contrários ao seu rumo.
Desembarcando, Joseph encaminhou-se para 'a
casa, onde se agasalhavam os operários do colégio,
tendo achado enfermo e viuvo João Fernandes. "Con-
so1ai-vos, a,migo, diz-lhe o ·santo, porque sois rece-
bido como nosso irmão e estareis daqui a sete dias
sob a graça da Virgem, perante a qual me recomen-
dareis". Em outra visita ao pedreiro, afirmou-lhe
que a sua companheira o esperava no céu. Daí a
sete dias, com efeito, sucumbiu o irmão, e entre os
demais religiosos, de pé, à cabeceira do morto, assim
falou o provincial :
ANCH!E'tA

Irmãos, a esse homem, que entregou o espí-


rito nas mãos ,de Deus, tendo sido pedreiro toda a
vida, e a mais dela casa-do, deu o Senhor, em sete
dias, o prêmio da· religião, e a vida religiosa, porque
se entregou a Deus de todo o coração para julgar com
ele e para confundir no Juizo, entre os que vejo neste
cubículo, alguns que nunca se entregaram completa-
mente a Deus, mesmo depois de muitos anos, e nunca
receberão, por isso mesmo, o prêmio devido aos bon3
religiosos.
Disse, e partiu da câmara ardente, onde se que-
daram todos perplexos. O tempo confin;nou-lhe a&
previsões no esmorecimento da vocação de algun:,
deles (140) .
II - Antes de uma viagem a Pernambuco, foi o
provincial despedir-se do grande jesuita Francisco
Pinto, <lesenganado, á enfermaria do colégio, no mo-
mento em que traziam os Santos óleos. Risonha -
mente, acercando-se do leito, Joseph exclamou:
- Ficai-vos aí, que eu levarei boas notícias á
vossa Mãe e aos vossos irmãos. Longa tibi restat via.
Tendes ainda muitos serviços que fazer a Deus na
Companhia e não haveis de entrar no céu por morte
folgada·. Levantai-vos, ide ao coro d a r graças ao
Santíssimo Sacramento, que vos deu sa·ude.
E voltando-se para o enfermeiro:
- Irmão, dai-lhe a roupeta.
O padre Francisco Pinto vestiu-se, foi rezar . no
coro da igreja, não tornou doente á enfermaria. Vinte
e quatro anos depois, em 11 de janeiro de 1608, como
lhe profetisara Anchieta, findou martirizado pelos

(140) PERO HOIZ, V . do P. Anchieta, liv. III, cap. VIL


~18 entso vuH~A
tapuias, ao sopé da serra de lbiapa;ba, na conquista
evangélica do nordeste (141).
III - Em março de 1582, estando no colégio do
Rio o provincial, apareceram c,J.efronte da barra~ mis-
teriosamente, dezessete naus de alto bordo. Como-
veram-se os habitantes, pressentindo um assalto, e
cacia qual rebuscava o melhor dos esconderijos· para
o seu tesouro. Já os próprios religiosos tratavam
de acautelar as .coisas sagradas, temendo o corsário
luterano ou calvinista, mas Anchieta dissipou o te·
mor cbm esse aviso: "Ninguém se pertur-be ;aque-
. la frota não é inimiga." E acercando-se de uma ja-
nela, donde se descobria a armada, concluiu: - "Uma
daquelas naus traz um homem, oficial carpinteiro,
que hà de entrar na Companhia, e prestará grandes
serviços á religião."
Com efeito, a armada era castelhana e deman-
dava o estreito de Magalhães, onde o general Diogo
Flores Valdez, comandante, deveria fundar um redu-
to e uma povoação, como lhe ordenara Filipe II. O
novo jesuita, anunciado por Joseph de Anchieta:, foi
o carpinteiro Francisco :Escalante, que, ao visitá-lo
após o desembarque, lhe ,~aiu de joelhos aos pés, em
silêncio; e pela sua mão teve ingresso na Companhia,
sem dizer palavra.
A esquadra invernou ~eis meses no Rio, ocupan-
do-se a maruja em fazer estacas e lavrar madeira
para a fortificação do estt eito. Não lograria alcan-
çá-lo, porém, Diogo Flor~s Val<lez, historicamente
fadado a construir nessa viagem outro reduto, o de
S. Felipe da Paraiba, quando voltasse -á Espanha.
Vinham a bordo, em 1582, mais ele tres mil es-
panhois, muitos dos quais enfermos ou necessitados,
socorrendo a todos Anl hieta com agasalho para os
(141) Ibd. Ibd., liv. IV-, cap. VI.
ANéHU~'rA
dõentés num hospício, germe da S. Casa de Mis~ri~
córdia do Rio de Janeiro (142), ·e alimentação para
os famintos na portaria do Colégio. Diogo Flore;
Valdez, amando' o provincial, visitava-o frequente;
mente e assim -lhe deferia os pedidos: "Faça-se como
o padre manda". Re-conhecendo nessa, figura exígua
(142) P. MADUREIRA, A OompaMia de Jes'IJ,8. Sua Pt,
ilagogia e seus resultados. À liberdade d-Os índios. - "Ao Ven
P. Anchieta é geralmente atribuida a fundação da S. Casa :111
Miseric6rdia. E' o que afirmam. entre outros escritores, BRA,
RILIO MAO"HADO, o BARÃO DE STUDART, JOSlil VIEIRA
FAZENDA e· FREI AGOSTINHO DE SANCTA MARIA: "Pelmt
,mos de 1582 ( diz o último) se entende teve principio a Cas:>
'1e Miseric6rdia do Rio de Janeiro, -ou poucos anos antes; porqul'
neste ano · chegou àquele porto uma armada de Castela... tlt
que era general Diogo Flores Baldez. Com os temporais padeceu
esta armada muyto, porque lhe adoeceu muyta. gent0 e assim
chegou ao Rio -de Janeiro bem nee.essitados (sic) de remédio e
de agasalho. Achava-so naquela cidade o veneravel P. Joseph de
Anchieta visitando o Colégio que ali tem a Companhia., fundado
no ano de 1567.
"Como o Ven. Padre Joseph de Anchieta era varão saneto,
levado da Caridade tomou muyto por sua conta a cura e remedio
de todos aqueles enfermos, - dando traça como se lhes asai-
nasse hwma casa, em que puclessem ser curados todos e assisti,,,
dos. . . en,tendenào 'm/U,ytos que então tivera prineipio a Casa, dq
Santa Misericodia, que hoje é nobilissima".
"Entretanto, apezar da afirmação eateg6rica de BRASILIO
Ãt.ACHADO de não 11aver hospital antes da Santa Casa, CAPIS-
'I'RANO DE ABREU vê nesses escritores a tendência a exagerar
os serviços de Anchieta "no Rio, onde parece s6 esteve àe pa2.
sagem, ao contrário do N6brcga, primeiro Reitor do Col6gio".
"E' muito provável, afirma CAPISTRANO, no Rio, com~
alhures, se fundasse Casa. de Misericórdia, - desde o começo "
não se esperasse qninze anos para começar. As palavras de
Fr. Agostinho de S. Maria - tomadas ao p4 da letra parec-em
corresponder melhor à realida"de." Em todo o easo /j Santa Oasa
do Rio de Janeiro está ligado o nome do P. Anchieta pelos cuida.
dos que aos doentes aí dispensou, ainda mesmo que a não t.i.-
vesse fundado, e é essa mai1J uma glória para o nome venerado
do apóstolo do Brasil."
326 éê'.t..Sà VIEl~A

sob um farrapo, a mais deslumbrante das majesta•


des, Diügo Flores Valdez, general de Espanha, sen-
tia-se pequeno diante do missionário das selvas.

D. Francisco Vitória, bispo de Tucuman, cagou


em 1584 a Joseph de Anchieta que lhe enviasse algun~
jesuítas para o serviço·da sua diocese. Foram d~ig·
nados, então, dois missionários portugueses - Ma-
nuel Ortega, Estevão de Grã, - dois italianos - Leo-
nardo Armínio, João Salônio, - e um escossês
Thomas Filds.
Mas o encontro desses jesuita·s com outros ir-
mãos, que vinham do Perú, não parece ter sido fra-
ternal. Prevendo já o dissídio á ex-pansão das con-
quistas portuguesas e castelhanas, até mesmo entre
religiosos, Leonardp Armínio e Estevão de·Grã volta-
ram ao Brasil. Os seus companheiros preferiram de-
morar na América espanhola.
Ortega e Filds tornaram-se catequistas, levando
a estranhas paragens, fervorosamente, o grandioso
espírito das missões anchietanas. Em 1589 desceram
o rio Paraguai e entraram na província de Guairá,
vasta região de pinheiros e cachoeiras, onde havia du-·
zentos mil índios aparelhados para o reino de Deus
Muitos anos durou, por brenhas e aldeias, a pe-
regrinação dos emissários de Anchieta. Conhecendo
mais de uma vez os horrores da peste e das inunda-
ções, eles desbravaram caminhos novos á milícia, que
viria depois estabelecer as reduções, invadidas e arra-
sadas ,no século XVII pelo tropel d;as bandeiras pau-
listas.
A sua caridade e o seu denodo foram inigualá-
veis. No quadro mais teatral, mais comovedor da
evangelização, aparece Manuel Ortega, como num
ANCHIETA 321

cenário .diluviano, sobre·um ramo nodoso de árvore,


cuja fronde oscila entre as águas tumultuantes da
cheia. Perto, seg,uro a outro ramo, está o acólito do
missionário, e ambos vêem nesse miradouro de ca-
tástrofe a imensa· planície avolumada em rio esca-
choa,nte, a ferver, subir, troar ,com a fúria das ondas
roleiras e bravias. VêeII1 com infinito assombro, de
repente, uma cobra desmesurada enroscar-se a um
braço da árvore, serpear ,na folhagem para o seu
la<lo. Ortega e o companheiro sentem-se abismados
naquela tauce tremenda. Mas o galho verga, estala,
quebra-se ao peso do monstro, sumido na voragem.
Dois dias, dois longos dias, passaram eles, t;a-
gicamente aferrados ao lenho solitário. Na segunda
noite de aguaceiro e trovoada, nadando sob relâm-
pagos, um índio aproxima-se de Ortega, diz-lhe que
seis guaranis, r efugia.dos além na espessura da flo-
resta, vão morrer sem baptismo. Deixando o com-
panheiro atado ao ramo por lianas inquebrantáveis,
o missionário não hesita. Forte nadador, com al-
gumas braçadas vigorosas acerca-se do outro refú-
gio, baptiza os moribundos, cinco dos quais, logo de-
pois, se despenham no torvelinho da enchente.
Não havia findado, porém, o ,d rama fluvial de
Ortega no Parag uai. Voltando ao cimo da árvore, a
nado, ele revê o acólito preso ao galho robusto, mas
imerso até ao pescoço na água, que em torno cres-
cera. E ainda lhe é necessário desprendê-lo, ajudá-
lo a galgar outro ramo, nadando incessantemente,
exaustos os pulmões, lacerada uma perna, a sangrar,
nos espinhos ocultos sob a violência das ortdas. Vinte
e dois anos após, não cicatrizara essa ferida.
Ortega recebeu o prêmio de tanta heroicidade, ao
ser m eti<lo no cárcere da Inquisição pela justiça ecle-
siástica de Lima. Um desafecto seu, habitante de
322 CELSO VIEIRA
Vila Rica, imputara-lhe falsamente haver publicado o
que ouvira em confissão. Só no leito de morte o
acusador se penitenciou da calúnia.
Em 1609, quando Mazeta e Ca,taldino transpu-
seram os bosques de cedros, atingiram a c·onfluência
do Pirapé, havia naquela região duzentas famílias
indigenas baptizadas por Filds e Ortega, mensageiros
do provincial Joseph de Anchieta. Não lhe~ foi pe·
quena a surpresa,, evangélica, Das sementes anchie-
tanas brotou em segui.da a redução de Loreto, pri-
meiro núcleo ,elo império jesuítico,. esfacelado peloc;
mamelucos no seu começo, em que as flechas nada va-
liam contra os arcabuzes e as couraças paulistas (143).
• • • •
No último ano do provincialato de Anchieta,
1585, tres anos depois do malogro de Fenton, em S.
Vicente, afugentado por Diogo Flores Valdez, a
Baia foi atacada pelos ingleses da expedição With-
rington. Os canhões inimigos troam, bombardeando
a cidade, e o apóstolo reza entre os muros do colé-
gio. Vergado pel.a doença, não pode mais Anchieta
mobilisar flotilha·s ou exércitos para a defesa. É o
padre Cristovão Gouvea, visitador dos jesuítas, quem
se opõe na cidade aos flibusteiros, guarnecendo-Ih<::
as imediações, valorosamente, com os milhares de
arcos das tribos aldea·das.
Em vão os ingleses tentaram a guerra predató-
ria no Recôncavo, durante seis semanas, e um assal-
to á ilha de Itaparica. Foram por toda, a iparte rc~
pelidos, afugentados pelo barcos de Sebastião de
Faria, pelas hostes de Cristovão de Barros. Suprema
alegria do provincial. . . O seu governo tinha um
epílogo ressoante nessa vitória dos catecumenos so-
bre os hereges da Gran.-Bretanpa.
(143) SOUTHEY, Hist6ria ão Brasil, dnp. XXIII.
VT

Éxodo e cativeiro do gentio. Aniquilamento


da raça indígena. Os negros.

A tragédia baiana da gentilidade começara em


1562, quando havia grandes povoações eclesiásticas,
onde o bispo d. Pedro Leitão, por vezes, baptizava
mais de mil indígenas. Deixando o concubinato e a
poligamia, então, casavam-se os índios baptizados
cm lei de graça. Espontaneamente, com a, fé, vinha aos
nómades o gosto do trabalho, que florescia em volta
das igrejas modestas, construidas perto do mar, para
se nutrirem das pescarias abundantes os fieis, ou per-
to das matas, donde os flecheiros lhes traziam a caça·.
Mas a ideia <la vingança obscurece a inteligên-·
eia e a piedade, mesmo num espírito iluminado, como
o do heroi Men <le Sá. Nesse próspero ano de 1562,
o seu erro administrativo, do qual se arrependeu tar-
diamente, foi a sentença proferida contra os caeté:s,
por haverem trucidado o bispo d. Pero Fernandes
Sardinha e quase cem companheiros de viagem.
Culpados ou inocentes, poderiam escravizá-los sem
distinção os colonos, que outro desejo não tinham.
Até nas povoações eclesiásticas, nos aldeamentos re-
ligiosos, poderiam ferrá-los e vendê-los. Espavori-
dos, em fuga, internavam-se pelas matas os brasis
de Paraguassú e Cirigipe. Uma por uma, despovoa-
vam-se as igrejas de Bom Jesus, S. Pedro, S. André
e S. Antônio, primitivos educandários, nos quais só
permaneceram mil catecumenos, tornando á selvagc-
324 CELSO VIEIRA

ria onze mil. Desolado e arrependido, Men de Sá


revogou o acto escravizador, mas não lograria impe-
dir o surto á ganância.
Era tarde. As ocas mais distantes, pelos ser-
tões, os mercadores de homens iam comprar os cae-
tés inocentes, alheios ao morticínio da plaga situada
entre o rio S. Francisco e o Cururipe, onde fôra viti-
mado o bispo. Inflexíveis, apartavam das mulheres os
maridos, e das mães os filhos. O éxodo cresceu. Não
o conseguiram atalhar outras medidas oficiais, proi-
bindo que se vendessem os índios das igrejas, determi-
nando que aos senhores .não fossem de novo entregues,
sem ordem do governador, escravos asilados nas
povoações eclesiásticas. Desta forma, pretendia o go-
vernador examinar-lhes, concretamente, a legitimi-
dade da posse. Mas afinal despediu, por inúteis, os
capitães nomeados para execução de tais providências,
e acabaram totalmente despovoadas as igrejas de Bom
Jesus, S. Pedro e Santa Cruz na Baia.
Dos sertões çle Itapucurú e Rio Real traziam os
saltea,dores, agora, bandos de escravos famélicos,
dizimados por enfermidades atrozes. Vindo no mes·
mo rebanho, sob os duros açoites, eram dados por
alimento os mais débeis aos seus contrários mais for·
tes, que os ,devoravam com alegria.
Terriveis senhores ainda queriam todos os brasis
repartidos, segundo a prática espanhola do Perú e
das Antilhas, como bestas de carga, em lotes. - Não,
sem o doutrinamento ! clamavam os jesuitas. - Não,
de qualquer modo! resolveu Men de Sá. Duas cartai;
régias estimulavam o apoio aos inacianos. Formal·
mente, d. Sebastião vedou a prática de resgates e ca-
tiveiros injustos. Mai; irrompeu a grita dos colonos,
usurpadores e escravistas; abqndonou-se a legislação
ANCHIETA 325

humanitária. Como negrejasse a fome elas tribos, os


pais vendiam os filhos ou a, própria liberdade por urna
cuia de farinha. E a própria Justiça, desvendando os
olhos, ·contemplava o horror desses actos ele compra
e venda para os legitimar nas decisões do Tribunal
ela Mesa ele Consciência.
Aberto na sua imensidade ao éxodo, recrescera o
deserto, por efeito ela peste. Exauria-se a vitalidade
no ambiente ela fauna, mesmo d;:t flora; em toda a re-
gião malsinada os indios rpereciam como as aves e as
plantas. Um hálito ele morte, envenenando a atmos-
fera, vinha -<las nuvens e das pragas ele um céu fla-
gelador.
* * *
Entristecia-se a alma cristã ele Anchieta, ao con-
siderar o aniquilamento fatal elo gentio, doutrinado
pelo verbo, redimido pelo sangue elos jesuítas. Alunos
da catequese ou alimarias no cativeiro, fixando-se
para o trabalho elas aldeias ou elos engenhos, os sel-
vicolas perdiam toda a robustez; o contacto elos
brancos e a mudança de regime provocavam molés-
tias, desconhecidas, O'Utrora, á plenitude alacre do
seu nomadismo. Só a peste dizimara em S. Vicente
e na Baia, entre 1561 e 1563, dois terços elos cate-
cumenos.
Tambem a fome assolava os sertões. E a
guerra das tribos, exacerbada vorazmente pela an-
tropofagia, instigada continuarpente pelos domin:i.-
clores p0rtuguêses, e a caça humana ele escra.v os, já
irreprimível nesse tormentoso prenúncio elas ban-
deiras, completavam a imensa destruição. Eram
onze os aldeamentos fundados na Baja por Men de
Sá, e alguns deles contavam ele cinco a seis mil tu':_
pinambás; eram quatorze as igrejas dos jesuita_s,;i
326 CELSO VIEIRA

congregando n;iais de quarenta mil neófitos. Ora em


1583, vinte anos depois, as igrejas estavam reduzi-
das a tres e os neófitos a tres mil. e quinhentos (144).
Por mais que o padre Gaspar Lourenço trouxesse
para as aldeias o gentio de Arab6, por mais que trou-
xessem cativos para as suas fazendas os colbnos, indo
procurá-los a duzentas e cinquenta ou trezentas léguas,
decrescia em umas .e outras o elemento selvagem.
Inadaptação? Fatalidade? Castigo de Deus? Os
jesuitas optavam por esta hipótese, e um deles escre-
via: "Vão ver agora os engenhos e fazendas da.
Baia, acha-los-ão ·cheios de negros de Guiné, e mui
poucos da terra, se perguntarem por tanta gente,
dirão que morreu, donde se bem mostra o grande
castigo de Deus <lado por tantos insultos como são
feitos, e se fazem a estes índios ... " (145).
A raça indígena morria nos braços de Anchieta
e dos seus irmãos, expropriada e vencida. SímbQlo
da catequese, erguia-se o cruzeiro de pedra nas al-
deias S'Obre a mortandade dos tupis, a desolação da
vasta família. tapuia. Mas no flanco da negra e d,1.
índia, pela fusão com o português, violentamente.,
germinavam para .outro ciclo novas estirpes de la-
vradores e guerreiros.

• • •
Não vinham só os conquistadQres e os corsários
brancos pelo M;ar Tenebroso. De outro hemisfério
vinham agora os negros. A' terra virgem, dramati-
zada pela escravidão ou ,pelo morticínio dos seus
filhos, chegavam as primeiras ondas de cativeiro das
(144) T'l'aballios dos primei.ros jesuitas no Brasii, Bib. Publ.
Eborense, eodice CXVI - publicado na Bev. ào Inst. Hi&t.
(145) Ibd. Ibd.
ANCHIETA 327

plagas africanas. Outras rebentariam nos séculos


vindouros por todo o litoral, encapeladas e enegre-
cidas, maiores, trazendo como despojos lamentáveis
os descendentes de Cham. Ressaca de maldições da
preamar negreira. . . Dor infinita e ululante de es-
cravos a·montoados no porão dos tuinbeiros, onde havia
danças macabras e lutas fer"ozes, sob as cadeias do
tráfico ...
Entre o português e o índio, forças genésicas do
nosso caos, veriamos o negro da Guiné, do Congo,
de Boa Esperança, de Moçambique, de toda a costa
da Mina, desnudo ao sol para o trabalho do eito, im-
pelido nas sombras para a fusão misteriosa de outros
elementos sexuais, amálgama das raças do Brasil ou
de Babel nas suas variantes indefiníveis.
Cham, réprobo lendário do Genesis, diversificado
sob os nomes das tribos, é quase sempre ·o arquétipo
de uma escravidão oposta á braveza indomável. É
o escravo paciente e perfeito, que as mais abjectas,
mais hediondas formas de ,cativeiro da Africa no:;
enviam .ás fazendas de aiação e aos engenhos de
açucar. Um escravo feliz, muitas vezes, sob o poder
tranquilo do senhor benevolente, após mutilações e
tormentos sofridos na côrte de régulos atrozes, fla-
gelos da sua raça. Insurgindo-se por excepção como
salteador ou escondendo-se como fugitivo, recai logo
depois aprisionado, jungido ao tronco pelos indios
mansos das aldeias jesuíticas.
Espiões e caçadores, os indigenas derribam a fle-
chadas certeiras "os macacos do chão", os pretos,
"e onde se achem negros de Guiné fugidos os tomam
e trazem a seus donos". Sem essa perseguição dos
aborígenes, que os espreitam e subjugam, fieis aos
brancos, o dono da terra, cultivada pelos africanos
328 CELSO VIEIRA

enorme pérola negra para o colar da Nigricia relu ·


zente - seria desde muito Cham.
índios e negros se odeiam. Hostilizam-se a
idade selvática de pedra e a idade bárbara de ferro,
malocas e aringas, os maracás do pagé e os orichas de
pai-de-terreiro. Desde o. início, repelem-se como elec-
tricidades do J\lesmo nome as duas formas selvagens
de feitiçaria, antes que se mesclem os sortilégios do
seu animismo impuro nas vozes e nos gestos rituais
da macumba.
Vencendo as náuseas do tráfico e a~ dores da sen-
zala, irrompe o africanismo, estrepitante, com a violên-
cia dos candomblés e o aparato das congadas. A' dança
mímica dos índios, escarvando o solo, tão insexual
que se entrelaçava ás festas religiosas, sem escân-
dalo dos jesuítas, ele quebrou a monotonia com o
saracoteio e a lascívia dos jongos ou dos sambas.
Fez do alvoroço um batuque, da lentidão a infinita
melopéia. Dissimulou a revolta e aligeirou o traba-
lho, cantando. Reteve a imensa nostalgia- do banzo,
a saudade negra do caçador de elefantes ou de hipo-
pótamos para as canções tropicais e plangentes.
Quando se aliaram as duas almas bárbaras nessa ten-
dência musical, pela mestiçagem, nasceu da floresta
a música do Guarani, desprendeu-se como volúpia,
tristeza e sonho a música brasileira.
O indígena será o defensor dos baluartes e dos
santuários coloniais, sempre que os não investir, alia,-
do ao francês. Será o guia das bandeiras na expan-
são territorial, o mestre da caça e da pesca, mas
nunca deixará de ser, lavrando a terra, descobrindo
o ouro, combatendo forças estrangeiras, o nómade
insatisfeito e indolente, e:~propriado pelos conquistadores.
No africano teremos um expatriado, um forasteiro, que se
ANCHIETA 329

adapta melhor ao novo estádio social e se faz o criador


da riqueza com os jalof'os e bijagós, mareantes, os ban-
cumbis e os libolos, pastores e semeadores, os ambuelas
e margraves, bons ferreiros, os guirn,bandos, pacíficos e
industriosos, os quissanias, os ambaquistas, os maquiocas,
os cabindas lestos e hábeis, quinze milhões de escravos cha-
mitas, em três séculos, para o caldeamento e para as me-
tamorfoses .da raça histórica.
Iniciara a metrópole, satirisado em Lisboa no5
versos de Garcia Resende, b conúbio afro-lusitano.
Com os mulatos, produtos originais dessa combina-
ção reatada no Brasil, os mamelucos ou curibocas, pro-
venientes da mestiçagem elo branco e do índio, os ca-
fusos, derivados de cruzamento do indio e do negro,
veríamos sub-produtéls inumeráveis, cambiantes no-
vos da escala antr'opológica. Só nos indígenas, porém,
Anchieta reconheceria os seus alunos, estranho corno
os demais jesµitas ao cativeiro legal e á proliferação
multicor do negro, diferen~iada p'elas condições geo-
gráficas e etnogênicas.
Dessa transfusão de germes, cada, vez mais per-
turbadora, advem outros valores étnicos, outros ca-
racteres, atributos e aptidões - a inteligência curio-·
sa e volúvel na instabilidade emocional dos mestiços,
o gosto das aparências, elas minúcias e dos ornatos, o
encanto de Eva morena, sob ·os cabelos densos e li-
sos, a ternura e a delicadeza, o vago sentimentalismc),
os estados de alma versáteis. Desse complexo bioló-
gico ainda se espera, hoje, um tipo abstracto, ignoto, o
homem brasileiro, oc-qlto nas possibilidades inclecifrá--
veis da sua nebulosa - o tempo.
Informações históricas. Desventura de llheu11,
Porto Seguro, Itamaracá. Opqlência de Pernam.;
buco e da .Saía. Começo do E~írito Santo e
do Rio de Janeiro. Infância de S. Paulo. Vae
victis ! Desejo de ouro e de poder, síntese das
forças do novo ciclo. Egoiamo e caridade.

Relanceando as capitanias, a terra, os aboríge-


nes de Santa Cruz, pouco sabida, conforme a linguagem
camoniana, o apóstolo do Brasil pode cont.i:mplar,
nessas alturas, a sua obra jesuítica-: está finalisada
com o vigor, serenamente hercúleo, que a desenvolve-
ra e sustentara por tres decênios de heroicidade e
sacrifício. As condições históricas da nossa evolução,
determinando já o extermínio de u,ma raça e o ca-
tiveiro de outra, que funda a riqueza nos e~genhos
para a supremacia dos brancos e dos mestiços, não
haviam propiciado á catequese o sonho do vasto im-
pério tupi-guarani, sujeito á Companhia de Jesus,
semelhante pela forma teocrática ao sistema das re-
duções paraguaias. Mas o espírito inaciano lançara.
as bases cristãs da sociedade brasileira. E o precur-
sor Joseph de Anchieta, que em breve será, pela
renúncia e pelo cilício, o ermitão do Espírito Santú,
envelhece aos pés da imagem de Nossa Senhora. Duas
informações históricas, escritas em 1583 e 1584, de-
lineiam o estado social das capitanias, onde o per-
sonalismo econômico impele o comunismo eclesiás-
tico á ruina, o esforço das bandeiras vai lançar o san
desafio á alma religiosa do sécul_o XVI (146).
ANCHIETA 331

1. 0 - Ilheus e Porto Seguro decaem, assolada!>


pela bruteza dos aimor-és, nómades sem aldeias, ro-
jando e dormindo sobre as folhas secas do mato, co-
lossos guturais, sem. pelo, terpendo só as águas cor-
rentes e profundas, caçadores famintos de carne hu-
mana, que em vinte e cinco anos, com arcos e flechas
de gigantes, haviam caçado mais de trezentos colonos
e tres mil escravos. Dos quatrocentos ou quinhentos
moradores brancos de Ilheus já não restam duzeR-
toi'i; dos ·canaviais abandonados já não vem cana para
os seis engenhos de açucar, improdutivos e desertos.
Porto Seguro é outra· ruína igual, quase erma, com
um só engenho, relíquia dos sete ou oito, que entre
as canções dos escravos moíam prosperamente, no
bom tempo do senhor d. João de.Alencastro, duque de.
Aveiro. Dizimou-lhe os rebanhos a herva mata-pasto;
sem domador, pelos campos, voam as éguas conten-
tes e lustrosas, ao relinchar dos jumentos bravos.
Itamaracá empobrece e agoniza, despovoando-se len-
tamente, como as suas irmãs. Joseph de Anchieta
medita sobre a desolação dos berços coloniais ...
2. 0 - Acima das vilas nascentes, como Piratinin-
ga, ou decrépitas, como Porto Seguro, propaga-se:
a fama de capitanias opulentas - Pernambuco e
Baía. No lavor das· pedras, nas alfaias dos temploc;,
na baixela das casas, no a.,parato das suas festas, na
indumentária dos seus habitantes, as pequenas cida-

(146) Com a ln.formação do Bra,9il e de suas capitania,,


que Yarnhagen e outros historiadores lhe atribuem, Joseph :)~
Anehieta, provincial, encera o provincinlato, instruindo o geral
da Ordem sobre ns coisas históricas, económicas e naturais ua
provincia em 1584. Nessa época, Fernão Cardim havia já. ela-
borado a "Informação da Pr01JÍncia do .Brasil para o nosso Pa-
dre", que é de 1583, e seguiu com assinatura do visitador Crh-
.toviio Gouveia,
332 CELSO VIEIRA

des de Olinda e Salvador transpõem o fausto da era


manuelina, resumid~mente, para a orla da selva ame·
ricana.
Pernambuco envia á metrópole, por ano, qua-
renta a cinquenta navios carregados de assucar, o
melhor, e de pau-brasil, o mais fino da costa. Essa
produção reflui para a -capitania em moedas de ouro.
Na classe dos fazendeiros, homens altivos e pródi-
gos, mais de cem haverá, tendo 'mil a cinco mil cru -
zados de renda; alguns possuem mesmo de oito a
dez mil. Desassombrado o sertão <le caetés, por cin-
quenta léguas, cada engenho é uma forte ,povoação.
Nesse trabalho, para essa riqueza, suam dez mil es-
cravos de Guiné e de Angola, dois mil indígenas,
dois mil colonos. Ao apelo da torre olindense de
Duarte, o velho, a capitania do filho, Jorge de Al-
buquerque Coelho, pode mobi_lizar oito mil homens de
armas, ,rijos e destros.
Ornamentando a vida, o luxo cios senhores desen-
volve os seus caprichos e as suas criaçõe?, magic:,.-
mente, a-cima das forças econômicas. Entre o culto e
a copa, tudo reflecte a paixão asiástica, renovi\ o an-
seio oriental do gozo e do fausto. Nas capelas ou
na matriz, formosa igreja de tres naves, os brocados
enroopam as imagens e as -devotas com a mesma
sumptuosidade. No interior das casas senhoriais fui-·
gemas pompas, que tornam lugares de maravilhas, em
Lisboa, o terreiro do Paço da Ribeira e a rua Nova
dos Mercadores: a;ulejos e cristais, louças e talhas,
colchas d~ índia, a argentária das baixelas maciças e
lavradas, a tapeçaria de couros sobredourados e pre-
ciosos, os contadores de ébano e marfim, os leitos de
damasco, franjados de ouro, que intimidam o padre
visitador Cristovão de Gouveia. Em palanquins e ser-
ANCHIETA 333

pentinas, ondulosamente, passam as damas, rutilan-


tes de joias, rescendentes a benjoim ou nardo. Os cava-
leiros, ajaezando os cavalos, põem nas selas e nos ar-
reios o brilho das vestimentas de seda, veludo e da-
masco. Escoam-se os dias em banquetes, jogos de
cana, do pato e da argolinha, corridas <le touros, caval-
gatas, e o luxo devora anualmente o seu milhão de
cruzados, o prazer amontoa dividas formidáveis. A
beleza, feminina e o gosto ornamental de Viana do
Castelo exalçam Pernambuco, senhoriado pelos via-
nezes (147). Como adverte o padre Fernão Cardim,
"em Pernaambuco se acha mais vaidades que em
Lisboa", os vinhos da Madeira e das Canárias acen ·
dem nas festas populares uma inquieta chama dioni-
sía,ca. E a nutrição do clero é magnificamente cus-
teada pelos devotos. Aos visitadores oferecem ele3
"grandes banquetes de extraordinárias iguarias" com
que nunca teriam sorthado, outrora, os ascetas da
Escola de Piratininga. Fugidia, através de todo esse
mundanismo, perpassa a humildade cristã de An-
chieta.
3.0 - Menos ri.ca, mas igualmente vaidosa, fa.
bricando cento e vinte mil arrobas ,de asucar por ano,
produzindo, ás vezes, quatro mil de gengibre, senho-
ra de mil e quatrocentas embarcações, muitos reba-
nhos, muitas alfaias, a Baía esplende aos olhos ~k
Joseph. Duas mil e oitocentas famílias povoam a
terra, sessenta e duas igrejas bendizem a, ·colônia pela
voz de br.onze dos sinos. Fitando o poente, sobre o
mar, a ddade m•urada e torreada, com a sua cate-
. dral, o se:u. pelourinho, a sua pra-ça de touros, abre

(147) FERNÃO CARDIM, Tratados da terra e gente do


Brasil~
334 CELSO VIEIRA

quatorze bocas de artilheria grossa, quarenta e qua•


tro de artilheria miuda, sem alcance as da barra, en-
tretanto, para destruir naus inimigas. Mas não lhe
-custa improvizar uma esquadra pitoresca de galeo·
tas e barcas dos engenhos, artilhadas, reunir com efi-
cácia, num exército original, dois mil brancos, entre
cavaleiros e infantes, quatro mil arcabuzeiros negros
de Guiné, seis mil flecheiros americanos (148). A
vida luxuos~ dos ricaços, mesmo dos peões e das suas
mulheres, trajando seda e veludo como gente fidalga ,
imita desde a cidade ao recôncavo os moldes orien-
tais da gente pernambucana. E a devoção dos baia-
nos, entre relíq_u ias e turíbulos, alvas e sobrepelizes,
tem igual colorido nas procissões ou nas capelas or-
nadas de alcatifas e guadamecins.
4.0 - Espírito Santo, lugar predestinado ao re-
pouso final do apóstolo, branqueja timidamente, sob a
ermida branca de Nossa Senhora da Penha, que lhe
a,pazigua os escarcéus, num píncaro negro da barra.
Foi-se-lhe a desventura com o espectro do fundador
Vasco Fernandes Coutinho. Os padres têm aí b9a
casa e boa igreja, u.m pomar de limeiras doces e .ca-
jueiros viçosos, fartura de cidras e laranjas. Pro-
duzindo o mel dos engenhos, cultivando a flor do al-
godão, ri.ca de cedro e balsamo, dona de pastagens e
rebanhos, a capitania labora, usufrui a paz de um re-
dil católico, entre os seus penedos, com as suas oito
aldeias, "por haver ainda muito gentio e não tão
escandalizado dos Portugueses". Vivem nesse redil
mais de cento e cinquenta famílias europeias, mais
de quatro mil índios aldeados e man-sos. Na quietude

(148) GABRIEL SOARES, Tratado deacripti110 do Brasil,


cap. XIV.
ANCHIETA 335

umbrosa das matas, como num oratório selvagem, o


missionário entrevê o retiro -crepusc-ula:r dos asce-
taSi, ..
5.0 - - Desabrochada no cabeço de ,um morro, de-
fendida por vários fortes, Joseph avista a cidade de
S. Sebastião do Rio de Janeiro, on<lé há cento e meio
de colonos, tres engenhos, fruta deliciosa, abundân-
cia de peixe. Semeia-se o trigo, poda-se a vinha. O
sândalo branco e fino res,cende na verdura das matas;
são talhados navios de lenho odorífero nos estaleiros,
preciosamente, como eram outrora na Judeia os ba-
laustres e as dtaras da casa de Salomão. Com o ar-
ratel de pescado a quatro reis, hortaliça e fruto da
cerca, melões e uvas, andam fartos os vinte e oito
padres e irmãos do colégio. "Duvi<lava ·eu - escreve
Fernão Cardim, louvando-lhe a fartura - qual era
melhor provido, se o refeitório de Coimbra, se este,
e não me sei determinar ... " Essa minúscula cidade
tropical -de hortelões e de pescadores semelha uma
flor perdida na curva das montanhas. Silente e vasio,
o anfiteatro colossal, traçado pelos morros, aguarda
o seu drama e a sua glória. Joseph de Anchieta-, um
dos herois - fundadores, exercita nesse ambiente e
nesse prelúdio a caridade, precursora da Santa Casa
de Misericórdia.
6. 0 - Exibindo aos navegantes a pobreza, senil de
tres vilas marítimas, S. Vicente desmedra. Só a quar-
ta, Piratininga, que ele fundara, com outros irmãos no
alto <la serrania, longe, rever<lece e frutifica, exube-
rante pomar, velado de névoa, em que se abrigam
cento e cinquenta casais portugueses. A benção dos
jesuitas fôra-lhe propícia, desde o nascedouro. A fu-
são de S. André no seu corpo infiltrara-lhe o sangue•
·dos mamelucos. Tecem-lhe agora uma coroa verna],
336 CELSO VIEIRA

de onde em onde, rosas e lírios alpestres. Os reba-


nhos avultam, referve o mosto nos lagares. Carne
e vinho com que se alimenta, a infância heroica de S.
Paulo ...
Fervorosamente, o apóstolo do Brasil inspeccio-
na escolas e residencias as casas de instrução prelimi-
nar, situadas em Ilheus, Porto Seguro, Espírito Santo,
S. Vicente, Piratininga, os colégios de Pernambuco, dl,
Rio de Janeiro e da Baia, onde ás classes de latim e
hamanidades acrescem as de filosofia e teologia,
baptiza e resgata, socorre os índios, semeia virtudes
cristãs, verbera os pecados mortais, compõe novas
rezas e novos autos, sermões ou hinos, cartas ou n9-
tas, através de todo esse comércio e toda essa volü-
pia. A magnificência da Baía e de Pernambuco -
bem o sabe Anchieta - nutre-se de sangue humano,
dor humana, como todo o apetite social dos ricos.
Não basta o carregamento africano dos navios negrei-
ros ás duas capitanias, soberbas e pródigas, instala-
das no seu domínio de plantações e moendas, como
num trono de ouro e ferro. Se as guerras, ao sul, re-
duzem os vencidos á escravidão, o final das entradas,
ao norte, em busca de pedras e metais preciosos, é sem-
pre o cativeiro do gentio, atrozmente zurzido e fer-
rado. Antônio Dias Adorno, o descobridor de esme-
raldas no Rio das Contas, Sebastião Alvares, que na-
vega o rio S. Francisco, tendo ao lado o morubixaha
Porquinho, vestido de escarlate, com uma vara na
mão, o belicoso Luis Alves Espinha, dos Ilheus, Gas-
pai; de Taide e Frandsco de Caldas, pernambucanos,
traidores e vitimas dos chefes tabajaras, ainda outros
sertanistas e aventureiros cativam milhares de sel-
vicolas.
ANCHIE1'A 337

O~ pregadores clamam, quebram. os púlpitos na sua


ira, segundo a expressão de frei Vicente do Salvador,
mas pregam num deserto. Com o morticínio ou o
cativeiro dos vencidos, por esse tempo, vai findar a
conquista da Paraíba ·do Norte, rapsódia: em que a
filha de Iniguassú, obscura Helena dos ranchos de
Copahoba, feiticeira e tentadora, selvagem, arrebatada
por mamelucos á tribo, foi a causa da guerra entre
os potiguaras e os brancos. Quatro anos depois, ocor-
rerá em batalhas sangrentas a conquista de Sergipe.
E os capitães do novo ciclo, Fernão da Silva e Frutuo-
so Barbosa, d. Filipe de Moura e Diogo Flores Valdez,
Martin Leitão e Francisco Barreto na primeira des-
sas expedições, Cristovão de Barros na, segunda, já
n~o obedecem como os he'rois de Guanabara aos di ·
tames da Companhia. Por toda a parte investem, pe-
1

lejam, conquistam, á revelia dos missionarias. En-


fim, os- bandeirantes alargarão a S'llpedície do Bra-
sil, sob o domínio espanhol, invadindo, através das
reduções jesuíticas, os territórios coloniais á Espanha,
quebrando pela força das armas a linha meridional
do tratado de Tordesilhas.
Como ·se fossem reis, prodigamente, os conquis-
tadores <listribuerii pelos soldados e filhos as terras,
subdividem capitanias em sesmarias. Pastoril ou
agrário, desdobra-se o latifúndio sobre o deserto. Ini-
cia-se a formação do tipo rural, nobre ou plebeu, se-
nhor do pasforeio e da lavoura; germina a expansão
da vida rural, núcleo de mestiçagem, de escravaria,
de trabalho e de riqueza. Já os escravos "são os pés
e as mãos dos senhores", vicentistas ou pernambu-·
canos. Já os mestiços defendem como zangões as
colméias do apiário colonial, ps engenhos. Desbrava-
se a màta, replanta-se o algodão ou a cana. Por "de:.-
338 CELSO VIEIRA

cimentos" e "entradas", arremessos de sertanistas


contra as malocas, vemos operar-se a conquista indí-
gena do escravo, odiosa ao padre, mas necessária- à
posse e ao labor dos feudo&, á opulência e ao prestí-
gio das grandes famílias senhoriais.
Os desbravadores não querem apenas o sangue
dos índios: sofregamente ambicionam pedras azuis
e verdes, rebuscam o ouro da nigromancia do Padre
Mágico, a prata dos tesouros evanescentes ·de Ro-
berio Dias, as esmeraldas e safiras do vago roteiro
de Gabriel Soares, o minerio de S. Vicente, o metal
das lavras auríferas, que -enleia o mais arguto e pru·
dente dos governadores, d. Francisco de Souza, por
alcunha d. Francisco das Manhas.
Certo, não poderia escapar o novo fenômeno da
luta pela, terra, pelo domínio dos homens e das
jazidas, sem cÓmpromissos religiosos, á clat"ividên-
cia de Anchieta. Se em 1585 a expansão da So--
ciedade de Jesus antecipava a Imago primi seculi, de-
buxada e colorida pomposamente em 1640, o sistema
brasileiro de Nóbrega e de Anchieta, declinando com
a existência dos fundadores, entrara no seu ocaso.
Bruxoleava o misticismo ; divorcia~m-se guerreiros
e sacerdotes; definiam-se com.o sinais do tempo a
s~branceria dos governadores, indiferentes á Ordem
de Loiola, o sentimento de ipoder e a cubiça de ourn
dos colonos, surdos á ira ou á queixa dos padres.
Esse violento desejo precipitará contra o jesuitismo
as bandeiras tumultuosas, fi.ndo o primeiro século, de
modo tal que, entre as cinzas dos aldeamentos incen-
diados pelos caçadores de homens, veremps extinguir-
se a flama do apostolado, transposto para o nordeste
brasileiro.
ANCHIETA 339

Anchieta previa de certo o epílogo ... Só o egois-


nio triunfa, por um lado, mas a caridade espontâne;i
dos moradores, por outro, ainda o reconforta. Em
quase todas as capitanias, venturosas ou malaventu-
radas, patenteando a mesma crença na diversidade
econômica, a fortuna e a pobreza levantam Casas de
Misericórdia, assistem aos doentes, amparam as
crianças, acolhem as viuvas, casam as orfãs, susten-
tam os padres. Assim o eterno contraste da natureza
humana, a entrelaçar nas origens sociais. o bem e o
mal, justifica a esperança com que o missionário ain-
da sorri aos homens, fechando o Livro de Horas,
cansadamente, na soledade crepuscular do seu último
dia.
VIII

No reino dos milagres. O sobrenatural divi-


dido em perágrafos: 1.0 , Anchieta, o Provedor;
2. 0 , Médico; 3.0 , Revelador; 4.0 , Como domina
a terra e os animais; 5. 0 , Como influi sobre
a água e o fogo; 6.0 , Como lhe obede·cem as aves.

Da,qui por diante falham os <lados cronológicos


ou biográficos sobre o reitor e o provincial. Chega-
mos à porta do santuário, Eleusis ou S. Vicente, em
que o oráculo desvenda o futuro aos homens ou o
tauJJJaturgo imprime ás leis naturais o selo divino
da sua lei. Minudente e copioso, um autor descreve
centenares de casos mara·vilhosos nesse período sa-
cro: revelações, profecias, descobertas, curas, êxtasei;
com ou sem levitação, domínio sobre as aves e as
feras, visões, prodígios de ubiquidade e celeridade.
Em vários momentos e aspectos sobrenaturais ou
subjectivos fixados á parte lendária da vida anchietana,
sem compromissos, ver-se-á neste livro como a sen-
sibilidade e a imaginativa dos grupos ,coloniais foram
taumaturgicamente impressionadas pelo missionário.
Sombra que o excede, mas acompanha, a criação popu -
lar e religiosa acentua o desenho histórico. Por abre-
viaturas ou instantâneos, salteadamente, vamos re-
constituí-la, em plena miragem colectiva do século
XVI, alvorecendo na escola de Piratininga, sobredou--
rando o ocaso de Reritiba.
1.0 - Anchiet;i é o provedor milagroso da sua
estância ou do seu redil nas horas escassas. Um dia,
ANCHIETA 341

em S. 'vicente, manda tanger a campa do refeitório.


- Só temos laranjas e farinha de guerra, informa o
dispenseiro. - Que fazer? O taumaturgo reza. Logo
depois, ouve-se tilintar a sineta da,, portaria. Corre ó
porteiro e acha um cesto de mantimentos oferecidos
por José Adorno, mareante genovês, bom amigo dos
padres.
Outra vez, no colégio da,, Baía, onde faltava peixe,
o provincial assomou á janela e disse ao lançador,
mostrando-lhe certo ponto da barra: "Ide lançar a
rede". Não estava propício o tempo, mas o cardume
afluiu, voltou a canoa transbordante. Re-de benzida
por Anchieta era a fortuna dos pescadores, mesmo
nas quadras tempestuosas ou nas zonas desfavorá--
V'eis. Expressivamente, os índios ,chamavam-lhe se-
nhor da pesca.
Segundo o estilo das bodas de Caná, ele mudou
para os seu's companheiros em vinho a água das ser-
ras. Por -milagre, ainda supriu a falta de vinho na
missa de Nátal, em San.tos, a de azeite no colégio de
S. Vicente, . a· de óleo para as tampadas no altar da
Virgem c:Íe Itanhaem. Assistindo a uín irmão, que
adoecera, converteu-lhe o xaréu em presunto, o vinho
ras~ante em vinho maduro. Valendo á trÚ;teza da.;
mulheres devotas, suspensas dos seus lábios, tornou
a:lvo e brando, com a sua benção, o pão requeimado
no forno.
2. 0 - Anchieta é o médico infalível do corpo e
da alma, o santo ela floresta e da família. Entrando
nos lares, modestamente, compõe a •s discórdias, adivi-
nha o paradeiro ás coisas perdidas ou ocultas, anun-
cia o regresso do filho á mãe inconsolável ou o do
marido à esposa enlutada:, previne casos de bigamia,
reveia ás mosas O próximo casamento, salVíl, •as Cil-
342 CELSO VIEIRA

ferroas, socorre as parturientes, baptiza as criancinhas.


abençoa os amores fecundos. Dizia-se que ele re&-
suscitara, em Santos, a filha de Oliveira Gago, amor-
talhada entre flores, no seu esquife. Se o padre, ás
vezes, prognostica doenças, mortes, incêndios, cas-
tigos ou ruínas, descortinando o lado sombrio á exis-
tência humana, é quase sempre uma voz de bom
agouro, o amável profeta dos caminhos em flor,- tra-
zendo consigo a mesma promessa de alegria-, chegan-
do e partindo na mesma claridade solar.
O sett contacto infunde saude e graça. Emen-
da.m-se os pecadores, advertidos; saram os enfermos,
tocados por um gesto da sua mão, o sinal da cruz,
ou por um escrito, um barrete, um crucifixo, um re-
lkário -com que se aproxima deles o taumaturgo.
Magnetisados, sentindo-lhe o poder, todos se levan··
tam e caminham, desde os mais ilustres sacerdotes --
Inácio Tolosa, Francisco Pinto, Fernão Cardim -
até ao índio rastejante, que se ergue da animalidade
para fitar os céus, humanisando-se, ao toque do seu
bordão.
Já em Piratininga, armado de lanceta e provido
de ervas, para infusões e sangria~, ele C'Urava,, os sel-
vagens. A lenda amplificou-lhe o renome, desdo-
brado em milhares de curas nessa medicina espiritual,
que vencia os males com exorcismos, fluidos,
aspersões, bençãos e missas, ora uma palavra em
nome de Deus, Qra uma gota de óléo do Santíssimo
Sacramento. Baptifado pelo taumaturgo, purifica-se
o leproso; á imposição das suas m,ãos, como num lance
do Evangelho, nada mais sofre a viuva epiléptica; e
o prestígio da sua voz afugenta o impaludismo. Não
falha nos ·casos de hemorragia, cefa,léa, asma, cobre-
ro, disenteria, engasgo e fastio a medicação anchie-
ANCHIETA 343

ta.na. Por vezes, reponta um efeito de humorismo na


sua clínica singular. Durante a festa da aldeia de S.
João, após a cav~lha<la, exigiam dois cavaleiros ·o prê-
mio, que era um pato, e Anchieta foi aclamado juiz
da contenda. Havia entre os circunstantes um menino
de cinco anos, mudo de nascença. Perguntou-lhe o
santo: "De quem é o pato?" E o menino sagaz re-
cobrou a fala para dizer: "-0 pato é meu. Quero
levá-lo à minha mãe."
3.0 - Anchiet~ é o revelador sem igual nos lares
e nas selvas, na terra e no mar. Óra prenuncia hos ·
tilidades iminentes - visita de corsários a Santos,
aproximação ele inimigos, assedio posto á nossa gente
-, ora ~ntevê suc.essos militares - rendição de al-
deias, vitória sobre os tamoios. Assegura o resgate
do preso aos canibais, e impede o sacrifício; aos ca-
noeiros o mantimento de guerra, e evita a deserção
da sua esquadrilha na conquista do Rio. Profetiza
com a mesma translucidez o risco de um navio ou a
morte de um homem, a queda de um pelouro ou o
im;êndio de uma casa, o desastre de um afogado O'U a
vinda deu.ma náu, o assalto do gentio ou a puniçãÔ
dos caçadores de escravos, o m~logro dos noviços na
Companhia, trabalhos e martírios de religiosos. Um
-di~, escavados em Guanabara os alicerces à fortaleza
da barra; hoje de· Santa Cruz, e erguidos os muros de
cantaria, disse ao capitão Gonçalo Correia dt"
Sá, em Iingua brasilica: "Amigo, baldado é o
vosso trabalho, porque o mar ~1á de comer a fortale-
za''. Traduzida em português, comunicou a profecia
ios demais circunstantes, que sorriram, incrédulo::.
Mas dali a poucos meses, concluída a, obra, o mar de-
vorou a fortaleza com a sua artilheria, sem que lhe
deixasse ao menos uma pedra.
344 CELSO VIEIRA

Essa misteriosa faculdade anchietana, manifes-


tada -como preciência, revelação ou segunda, vista,
compreende factos históricos - a primeira ida de d. Se-
bastião á Africa e a desventura, de Alcacer-Quibir, -
mas desce também aos mínimos factos da vida colo-
nial. Joseph prognostica a um viajante o dobro da
viagem, a um morador sequioso de vinho o recebi-
mento do tonel desejado, a um bando de alvaneis a
interrupção do seu trabalho. Joseph adivinha o con-
teudo ás cartas fechadas, assinala os frutos de pouca
duração ou longa resistência, ás mulheres gravida,;.
Acolhendo na sacristia um padre tentado por Evo.,
mas incólume, atalha ao reverendo Pedro a confi-
dência: "Et ego rogavi pro te, Petre, itt 1wn deficiat
fides tua" . Muito antes de qualquer notícia, às vezes no
mesmo dia· do óbito, celebra missa por alma de pes-
soas falecidas á distância, calculada em sessenta, du -
zentas, mil léguas, ainda mais longe, como quando
lhe morreu na Itália um condiscípulo amado, entre
os irmãos do colégio de Loreto. Segue através de
misérias e fraquezas humanas, detendo amigos ex·
traviados na brenha infernal <lo crime, acudindo ao!'i
jesuitas na penumbra das tentações carnais, afastan•
do escrúpulos vãos á consciência honesta ou dissi-
pando névoas á alma escurecida pela melancolia, pre-
dizendo ás moças donzelas o casamento na terra ou
no -céu, aos leigos a data do ingresso na Ordem, aos
fracos a dQ. seu desvio, aos perjuros o castigo, aos
perversos a ruina.
Quando resvala um pecador, no silencio da noite,
para a tentação criminosa, diz-lhe só Anchieta: -
" Recolhei-vos, Golaço". E assim o livra da morte.
Quand<;> um irmão se deixa vencer pelo demónio da
ira, ordena-lhe, de passagem: " - For~ com isso que
ANCHIETA 345

não presta". E assim expele da alma o obscuro


inimigo. Quando a uma devota enferma e honesta o
diabo, cerrando-lhe os ·dentes, impede a confissão do
pecado, que ein. silêncio guardara por trinta anos,
manda-lhe dizer ao ouvido o erro. E a pecadora sem
vo'z, recuperando-a, confessa o pecado ele tres decê-
nios para sobreviver na sua fé, tranquilamente, ab-
solvida e loquaz.
O inaciano revela os episódios mais encobertos,
sejam de bigamia ou de concubinato, decifra os pen-
samentos mais ocultos, sejam de vingança ou de Ju,
xúria. S;i.lva, com a gua oração quatro naus em pe-
rigo, com o seu aviso os caminhantes abrigados na
mata, com as suas palavras - "Dou'-te a Deus, cria-
tura!" - um menino de seis a sete meses, ao vê-lo
cair do alto de uma totre.
4. 0 - Anchieta é o domador dos quatro elemen-
tos, perfeito mago de Vera Cruz. Obedecem-lhe a
terra e os animais; a água do mar, das fontes, da
chuva, e os seres aquáticos; o ar e os seus habitan-
tes; o próprio fogo. Por influência do seu contacto e
da sua prece, vemos consolidar-se a terra movediça de
S. Jorge ou -dos Erasmos em S. Vicente, desprender-
se de um bloco inabalável a do Espírito Santo, res-
tituir criaturas já sepultadas a de Ibirapuera. Cobras
e onças rendiam-lhe a mesma vassalagem. Na fazen-
da de Magé o padre amansou ttm boi furioso, lançan-
do-lhe a benção. Fora da choupana, quando os mais
dormiam, orava ao luar, entre as feras, que espera-
vam dele a ração, agachadas e submissas. Por desen·-
fado, ás vezes, o taumaturgo compunha cenas hila-
riantes, como o funeral dos símios, através da flo-
resta de Maricá.
Lendariamente, surge-nos o padre com algo dos
encantadores orientais de setpes, ao recolher, afagar,
346 CELSO VIEIRA

despedir para outros caminhos uma jararaca, ensi-


nando ao gentio como os próprios réptis andam su ·
jeitos á vontade humana, que não transgride a.· lei de
Deus. Certa, vez, tendo um ofídio enovelado sob o
calcanhar, disse-lhe com energia: "Morde-me o pé,
vinga os agravos, que tenho feito ao Creador". Mas
a cobra, meneando a cabeça, não ousava morder, e o
santo deixou-a com essa advertência cristã: "Vai-te,
não faças mal a ninguem". O toque do seu boroão
imobilisava as serpentes, o eflúvio do seu gesto re-
primia os cetáceos.
5.0 - Ostenta-se o poder miraculoso na atmos-
fera, nos rios, no oceano. Basta evocar os lanços de
pescaria assombrosa; a nuvem que se vai romper, bo-
jando, prenhe de água, e fica suspensa por tres horas,
como o apóstolo deseja, sobre o auditório do seu dra -
ma em verso; as chuvas atraídas pela força pluvial
das orações, em plena seca fulgurantê; léguas de ca-
minho enxuto, para as suas vestes e os seus passos,
em meio do àguaceiro despenhado sobre as matas
circunvisinhas; tufões, que ele subjuga, nevoeiros, que.
ele desfaz na travessia, ao salvar os barcos, de joelhos,
invocando Nossa Senhora; enfim, a magia dessa rou-
peta esgarça<la, impermeável à própria enchente, que
tudo alaga e nivela, fragorosa, excepto a pedra situa-
da na confluência das vagas, onde o religioso descansa
e medita.
Se a água tempestuosa de Bertioga, da ilha de S.
Sebastiã:o, de Iperoig, dos Abrolhos, de Guanabara e
do Espírito Santo refluia ao mando de Joseph, também
o fogo lavrava sob o mesmo império. De alguns incên-
dios foram prevenidos os homens pelo taumaturgo, e o
milagre do pão, que se fez novamente branco e ten-
ro, depois "'Cle queimado no forno, deixou-lhe ainda em
relevo o poder sobre as chamas.
ANCHIETA 347

6.0• - Como no texto da vida de S. Francisco-de


Assis, obedeciam-lhe as aves com instintiva e alacre
doçura. Quando o poeta andava a escrever o seu poe-
ma na areia, junto ao mar de Iperoig, uma avesinha
graciosamente colorida esvoaçava, em torno, roçando-
lhe os ombros, as mãos, a cabeça. Durante a prega-
ção, em dia do Espírito Santo, um pássaro vinha pou-
sar-lhe com insistência no ombro esquerdo. As rolas
do refeitório, em S. Vicente, acudiam-lhe ao chama-
do. Ele próprio contou ao padre Gaspar de Sampê-
res como as aves marinhas se lhe quedavam no bra-
ço. Outra vez, em canoa, Anchieta recolheu um bando
de papagaios exaustos, que se haviam distanciado im-
prudentemente da terra, sem forças para a viagem,
e de novo os mandou á floresta natal. Costumava
falar aos passarinhos em língua brasílica, estendendo
a ponta do index: - Pousa aqui, louva a Deus, or-
denava o santo á ave preferida e obediente. Gorgeado
o louvor sobre o dedo imóvel, despedia cm tupi-gua-
rani o pa•ssarinho: - "Já louvaste o Senhor. Vai-te
embo"a". E as duas asas estremeciam na luz, des-
ferindo o voo.
Dizia-se que as andorinhas o festejavam, ao rom-
per da aurora, quando o padre vinha á janela na casa
do Espírito Santo; que aí também era servido e acom-
panhado, com surpresa de toda a gente, por duas lin-
das aves, o tuim e o caníndé; que a sua doutrina me-
lodiosa atraia os voos dispersos no ·azul. Se as gaivo-
tas importunavam os pescadores indígenas, por oca-
sião da salga, recomendava-lhes Joseph: - "Espe-
rai o vosso alimento, socegadas. A inquietação das
aves famélicas cessava.
348 CELSO VIEIRA

Em S. Vicente e no Rio de Janeiro, ao meio dia


torrido, sobre as ondas altas do mar, Joseph pediu
mais de uma vez aos guarás que viessem fazer-lhr>
sombra, distendendo as asas purpúreas; mais de uma
vez, a sua canoa evangélica perpassou á flor das ág11as
verdes, na costa do Brasil, sob o frêmito desse toldo
escarlate. vibrante de asas unidas contra o sol.
IX

Outros aspectos da lenda. txtas'es. Caso do


índio Diogo, o ressuscitado. Pescaria de Maricá.
Esplendor da capela de Bertioga.

Não bastam ainda os prodígios enumerados á len-


da anchietana. Invisivel, o missionário perpassa entre
os compa-nheiros de jornada ou aparece à mesma
hora ém S. Vicente e Piratininga, em S. Vicente e
Santos, na projeção radiante <la sua ubiquidade.
Transpõe oito léguas, espiritualmente, para alcançar
o breviário deixado em ca;sa; vence duas léguas, ins-
tantaneamente, para trazer as hóstias esquecidas no
carro. Onde se quebra a força dos selvícolas, triun-
fa o seu gesto, impelindo barcos ao mar; ". . . che-
gou-se ao costado - narra Simão de Vasconcelos, --
tocou ,c om o bordão, e começou a nau a c~rrer com
maravilha grande". Onde passa Joseph, nuncio da
primavera, gênio <la bondade, viceja-lhe sob os pés a
hortelã, dá figos maduros a figueira, uvas douradas
a videira. Crestado pela seca, todo o arvoredo espec-
tral se enfolha, reverdecendo, e a campina mais erma,
de súbito, ondula num vergel.

* * *
Os transportes e êxtases do padre eram divulga-
dos, nessa época, em toda a capitania,, de S. Vicente.
Quando trabalhava com outros irmãos na abertura
do caminho de S. Paulo a Santos, Joseph apartou-se
dos companheiros um dia, foi orar ao p~ de uma ár-
350 CELSO VIEIRA

vore distante. Sobreveiu a chuva, quedou-se o reli-


gioso no mesmo lugar, sendo ali encontrado inerte,
alheio ás bátegas de águas e ás vozes dos irmãos, que
por ele bra,davam. Houve quem o avistasse, dentro da
cela, ora em levitação, coisa de meio covado, ora trans-
figurado, entre resplendores divinos. Mais tarde, já
provincial," oficiando na capela interior do colégio da
Baía, desprendeu-se do chão, ficou suspenso e ex-
tático, por longo tempo. Chamado ,pelo acólito, veíu
o padre Tolosa á capela, repôs Anchieta nos degraus
do altar, e a missa continuou. Fenômenos iguais de
levitação foram testemunhados á hora da missa, em
Porto Seguro e no Espírito Santo. Adorando a ima-
gem de Cristo no colégio do Rio, perdeu Joseph os
sentidos; pendentes os braços, quase extintos os olhos,
arrimado o corpo a uma cadeira, parecia morto. O
irmão Francisco Escalante viu Anchieta po coro
da igreja, com asas de serafim, abrasado pelo fervor
da prece. Descendo por veludosos caminhos, a noite
cerca,va de fulgores e melodias os seus arrebatamen-
tos, como no templo de N. Senhora de Itanhaem ou
na capela do forte de Bertioga. ..

* * *
O caso do índio Diogo, em Santos, é -culminante
na lenda taumatúrgica. Estando amortalhado o ca-
daver, aberta a sepultura, Diogo ressuscita e pede
á senhora da casa, Gracia Rodrigues, que lhe mande
afrouxar o sudário. Livre, começa a dizer : "Chamem
agora mesmo o padre Joseph para me baptizar". Im-
!)OSsivel, retrucam, porque há duas léguas da vilai de
1

Santos a S. Vicente, residência do padre. Mas o res-


suscitado informa; "O padre está em Santos, veiu
até ao ribeiro -da vila em companhia do meu espírito
ANCHIETA 351

e mandou-m~ reentrar no corpo para ser baptizado".


Não tardando Joseph, avisado pelos mensageiros de
Grácia Rodrigues, pergunta-lhe o índio se trazia con-
sigo o relicário, que lhe mostrara tm caminho. "Sim,
responde o taumaturgo, mas, antes do baptismo, conta
o mistério da t,ua ressurreição". Diogo ressuscitado
exulta, e pôrmenorisa, então, o episódio maravilhoso.
Ao sair <lesta vida para outra, advertira-lhe uma voz,
a própria voz de Joseph, que ele não seguia a estrada
real do céu, •porque não entrara na Igreja de Deus
pelo haptistério. Urgia-lhe voltar ao corpo, e assim o
fez para ter das mãos do sacerdote o baptismo reden-
tor. Baptizado entre orações e lágrimas, Diogo pede -
á senhora da c::rsa que lhe faça rezar duas missas, lhe
ponha na mão uma vela de cera benta, lhe arrecade
os pobres vestidos para outra nudez ainda mais pobre,
e assistido por Joseph, impetrando licença á dona
Grácia Rodrigues, como bom servo, expira segunda
vez, transpõe o limiar da vida eterna.

• * *
Joseph acompanha em 1584, como celebrante e
confessor, o religioso Pedro Leitão, os serventes· da
casa e alguns indígenas, pescadores, á lagoa de Ma-
ricá, sete léguas distantes do Rio. Nessa pescaria
famosa revemos as modalidades principais da lenda
anchietana. Simão de Vasconcelos definiu-a: " .. . huma
c·omo comédia de toda a variedade de acçõens, e figura,,
ao divino".
Junto de um penedo, Itapoig, pouso nocturno dos
viandantes, o taumaturgo ,começa por alimentar duas
onças, dois carnívoros tr.emendos, servindo-lhes á por-
ta da choupana um dourado cacho de bananas! Depois,
á. margem da lagQa, orienta aos ._pescadores o lanço
352 CELSO VIEIRA

da,s redes, e· é tão abundante o peixe que o~ serventes


não podem salgá-lo todo, as aves de rapina,, em ban-
dos vorazes, dificultam esse fahor. Anchieta repre-
ende as gaivotas em língua brasílica, ordena que se
afastem daquela paragem, voltem depois da pescaria,
em busca do seu quinhão. Obedecem-lhe as aves, sub·
missas e confiantes.
Por mandado seu, duas esplendidas onças dei-
xam a floresta, acercam-se da,- ribeira, vem exibir-se
á curiosidade enlevada e tranquila dos que navegam
com ele em ,canoa. Outro dia, retirando-se Joseph,
em contemplação, a um ponto descoberto na va..sante,
sobreveiu a,- enchente, mas o deixou ileso, entre mu-
ralhas verdes e fluidas, coroadas de espuma. E á
noite, ceando com os ,pescadores, ele anteviu a che-
gada de um mensageiro, adivinhou o texto de uma
carta, deu saude a Aires Fernandes, ausente e em pe-
rigo de vida.
Ao termo da pescaria, avultando a carga, foi le-
vada primeiro á a•ldeia de S. Barnabé, dai conduzida
para o colégio do Rio com auxílio de novos índios.
Chovera toda a noite, e era penoso o caminho ao trans-
porte, como advertiu Pedro Leitão. Mas o taumatur-
go prometeu bom tempo e boa estrada á caravan'l.
Entre os charcos da terra inun.dada, intransitável,
desdobrou--se até ao colégio um suave caminho, aplai·
nado e enxuto.
Depondo a carga,,, em meio da jornada, um fle-
cheiro visou u.m grande mono barbudo e hostil, que
fazia esgares, do alto de um ramo nodoso, á passa-
gem dos homens. . . Ao tombar ferido o macaco, en-
tre guinchos e urros, vieram outros cercá-lo, e outras
flechas dizimaram o bando para deleite dos índios
esfomeados. Mançlando suspender os arcos,· porém,
ANCHIETA

Joseph consolou os monos sobreviventes: "Faze:i


vossas exéquias, qite eu vos asseguro o campo". E o
funeral dos símios, ordenado pelo taumaturgo, en-
cheu de lástimas e prantos 11a selva., Por fim, regres-
sando em canoa, Joseph e os companheiros foram
protegidos, mais -uma _vez, contra o sol dar·dejante,
pela sombra das asas dos guarás.

* * *
Repentinamente, qu.ando ele orava no silêncio da
noite, cobria-se toda a cela de fulgurações cambiantes
e magicas. Em 3 de outubro de 1602, inquirido pelo
rever-endo Martin Fernandes, vigário geral do Rio de
J aneiro, o depoente Afonso Gonçalves trouxe á for-
mação da lenda anchietana o esplendor de uma ak-
goria. Hospedado certa vez pelo capitão, sogro da
testemunha, no reduto de Bertioga, onde fora ter
com o padre Manuel Viegas, ao encontro dos mara-
momis, Anchieta preferiu dormir na capela de Nossa
Senhora, a trinta passos elo forte. Alta noite, des ·
pertando o marido, a mulher de Afonso Gonçalves se
g redou-lhe, comovidamente: "Senhor, acordai, e ou-
vireis uma coisa maravilhosa." Elect rizado pela cu-
riosidade, Afonso entreabriu a janela" do quarto, es
preitou, escutou... A' maneira de uma fonte encan-
tada, jorrando luz, toda a ermida resplandecia, e da
fonte corriam lágrimas sonoras, brotavam melodias
cascateantes, que ,não eram ela terra, mas ele outras
paragens celestes, onde voos repassam, vozes resso-
am á face de Deus. Maior ·que o deslumbramento foi
o espanto de Afonso Gonçalves e ela si.ta mulher. Ar-
r epiava-lhes os cabelos, impedia-lhes os passog um
temor sagrado. E dentro da noite a e rmida de Nossa
.~enhora, vibrando como as liras, ardendo como os
354 CELSO VIEIRA

astros, dava ás ondas, ás pedras, aos ramos,. ás almas


vigilantes um pouco do seu encantamento. Mas o
santo, na mánhã seguinte, como lhe falassem des3<.>
prodígio Afonso Gonçal:es e sua mulher, aos quais
não podia já encobrí-lo, recomendou que em segredo
o tivessem.
X

Ascensão lendária. Receptividade da alma


portuguesa e da alma indígena para o milagre.
Caracteres do feiticeiro. Zumé ou S. Tomé.
Entre o pisiquismo e a fisiologia. Definição t:a•
tólica do taumaturgo. O maior dos prodígios.

Ascensão na ordem jesuítica e na ordem espiri-


tual, dupla ascensão hierárquica e taumatúrgica, eis ?
facto que sobrepaira ao nevoento período anchietano,
entre 1569 e 1585. Primeiro como reitor do colégio
de S. Vicente e das casas anexas, depois como l)rovin-
cial cio Brasil, ascende Joseph qe Anchieta. Santifica
se. Volta á idade angélica de ouro, á criação imatu-
lada e paradisíaca, misto de força humana e glória
divina, em que o demiurgo situara o homem, acim;i.
de todos os seres e todas as coisas terrestres. Nele
revive Adão original, anterior ao erro e á queda.
unido pela substância e pela obediência a Deus. É
por essa únião que ele se torna profeta e se faz tau-
maturgo, no dizer dos panegiristas . .
Com extrema receptividade a fé primitiva dos ín-
dios e a fé quinhentista dos portuguêses acolheriam,
então, a catadupa desses milagres. Se a grandeza
selvática cio Brasil, cheia de assombros e mistérios
inviolados para a superstição indígena, compunha o
necessário lusco-fusco ao desabrochar do novo mito
ou da nova lenda, não era menos propício o estado
da alma portuguesa a semelhantes ideações. Os tres
decênios de atividade maior do taumaturgo coinci-
dem, c~pressivamente, com a fase delirante do cato-
356 CELSO VIEIRA

licismo peninsular. Era o tempo anunciado pelas e..,


tranhas ;iparições da Sé e do paço de Xabregas - t ·
ataúde em chamas. a dona coberta de luto, bando:;
de mouros a psalmear, levando tochas acesas, ...
Portugal esquecera a própria realidade pela quimer,l
doidejante - o sebastianismo, - quando as imagina-
ções voavam, como fogos fátuos, em redor de um
espectro vencido. Portugal criava a sua lenda messiâ-
nica, e o rei desejado, mas evanescente, abria lugar
aos dois reis efêmeros de Penamacor e da Ericeira,
aos profetas, aos inspirados, ao sapateiro-santo, ás ilu-
sões e esperanças místicas, sob o terrorismo asso
berbante. (149)
Essa onda psiquica de milagres, fluindo atravé~
do Mar Tenebroso, e das origens trazendo a alma lu-
sitana: rolou até ao Brasil catequisado pelos jesuitas
Não se desfez. Cresceu, mesclando-se á alma obs-
cura do gentio e á alma fetichista do negro, em que
havia o terror secreto das forças naturais, confusão
do sonho e da verdade, propensão á miragem.
No elemento virgem das suas ideias o aborigen,·
conservava os germes de outràs ficções: credulidade.
animismo, tendência para inventar mitos e nume.;;,
povoando a natureza de genios protectores ou malig;-
nos, ouvindo a cada passo os espíritos dos seus mor-
tos, vendo a cada momento o Anhanga, o Caapora, o
Corupira ou o Saci~erêrê demónios bravios da flo-
resta sul-americana. Em alguns episódios de mito-
zoologia - lendas do jabuti, da onça, do gavião, da
anta, dos macacos, ,do gambá, do sinimbú - dialoga-
vam os bichos, por vezes com os homens, e é curioso

(149) OLIVEIRA MABTJNS - Hi&t6ria de Portugal. -


"Como nos primeiros tempos cristãos, agora, na limitada arena
de Portugal, os prodigios o os milagres pululavam.''
ANCHIETA 357

notar que o Anchieta lendário fala aos an'imais em


língua brasílica, invariàvelmente, segundo os cronis-
tas da Ordem.
A concepção diabólica do feiticeiro (,pagé ou bari)
antecede e prepara entre os índios a concepção eclesi-
ástica do taumaturgo. O feiticeiro governa as almas,
faz predições, antevê o desfecho das guerras, localiza
as colmeias, sabe onde fervilha o peixe. revela o es-
conderijo da caça, interpreta os sonhos, adivinha tudo.
C_omunica-se familiarmente com entidades extra-na-
turais; cura por meio de infusões, sangrias, gestos.
Nas suas metamorfoses é pássaro, e voa dentro da
noite, é onça, e ruge dentro da mata. Nas suas in-
vocações aos espíritos, caindo em transe, perde os
sentidos, parece morto. E acerta quáse sempre, ante-
vendo s1ucessos próximos ou remotos, como teste-
munhou, escreveu em 1919 um missionário salesiano:
"Mais de uma vez verificamos a exactidão dos ditos
e profecias. Não se pode duvidar da influência do es-
pírito demoníaco, que fala e opera por meio dos seus
fieis mediuns, ·os Baris e Aroetoraris". (150)

* * *
Debuxado pela tradição oral, já existia entre os
8elvagens uma figura lendária de precursor ou inicia-
dor, Sum,é ou Zumé, o estrangeiro alvo de longa<;
barbas, que lhes revelara coisas sublimes e o uso da
mandioca, - figura convertida pelos jesuítas no
apóstolo S. Tomé. cujas pégadas eram ainda visíveis.
por toda a costa meridional do Brasil, impressas na
dureza de lages veneradas como objectos sagrados.
7.umé ou Sumé, em outras idades, fôra talvez um dos

(150) P. COLBAC'HINI, .d tribo dos boror6s.


:358 CELSO VIEIRA

guias e mestres da raça indígena. Eíige católica ele


heroi civilisador, Anchieta viu também formar-se a
lenda ~giográfica das suas maravilhas, dentro e fora
de casa, interiores e populares, sob a influência con-
junta dos inacianos, que se glorificavam no santo, e
do rebanho devoto, que lhe f.un.daria o culto bárbaro,
vedado em 1625 pela Santa Sé. Aliás, no dilúculo da
vida brasileira, alvorecendo. nessas emoções religio-
sas, a ciência imprevista de Anchieta sobre •ª terra e
o clima, a fauna e a flora, o homem e as suas arte~
era já uma forma de conhecimento supra-normal, ver-
dadeira fonte de milagres para o gentio e o colono.

* * *
Muitos casos anchietanos - vidência, telepatia,
intuição premunitória, adivinhação de pensamentos
etc. - seriam hoje vulga,res, depois da metapsi ·
quica, embora inexplicávei"s na esfera dos conheci-
mentos positivos (151). Fenômenos de outra espé-
cie, como transportes, êxtases, visões, teriam a sua
causalidade no sistema nervosu, afectado já pelo des-
vio da espinha dorsal, pela doenÇa eucarística dos
tempos de Coimbra, em que era ideia fixa do no-
viço rever na hostia o corpo de Jesu.s (152). Deri-
variam ainda certos fenômenos, talvez, dos exerci--
cios espirituais, do regime ascético e ela auto-hipno-

(151) CHARLES RIOHET, Traité de Metapsyohique, pa,J


16: "Dans presque toutes les religions, les miraeles ct les prn-
phéties o,nt joué un grand rôle. De vrais ph~nomenes meta.psv-
ehiques, tilekinéllies pour les inira.eles, prophêties pour les pré-
monitiohs, sont peut-être à ] 'origine ,fo. <'e.rtti lnes eroyan<'es
rcligieuses".
(152) ARARlPJ!) ,JUNIOR. A àoenç11 eucar,~tica rlo 'lll>-
1:i,o Joaé.
CELSO VIEIRA 359

se, práticas semelhantes ás que se observam, com


efei_tos prodigiosos, nos conventos lamaicos do Tibét.
Macerado pela castidade, retalhado pelos açoites,
consumido pelo jejum e pela insonia, absorto na con-
templação e na prece nocturna em solilóquios do
seu misticismo, estava Anchieta predisposto, neuri-
camente, segundo os psiquistas, á clarividência e á
medi unidade? Se a hipótese fosse admissível, essa
mediunidade seria em todos os casos a mais electri-
san te e dinâmica. Trazendo nas veias o cálido sangue
espanhol dos grandes Iluminados, que se chamaram
Inácio de Loiola e Tereza de Jesus, sentindo a mes-
ma paixão realizadora e actuando com o mesmo po-
der sobre as almas, Joseph de Anchieta não compre-
endia a imobilidade como princípio de beatitude nem
se abismava no mundo invisível como no seio de uma
nuvem glacial. Recolhia-se para melhor se exterio-
rizar, depois, em radiações de energia fisio-psiquica,
através do elemento selvagem. O contacto da nature-
za e o hábito da acção, equilibrando-lhe a vida es-
piritual pela correspondência, harmoniosa com o meio
brasílico, neutralizaram os germes da primeira doen-
ça, integraram as faculdades excepcionais - von-
tade heroica, intelecto admirável, pujante memó-
ria - no ritmo e na beleza do seu destino. "A bis
tória de todas as nações, como já se escreveu (153).
apresenta individualidades, que entre os contempo-
râneos se destacam pela sabedoria, pelo domí-
nio da natureza, pela fascinação empolgante. Deno-
minam-se profetas, mágicos, feiticeiros, em geral ma-
gos. São eles que provocam fenômenos, aparente-

(153) SOKOLOWSKI - Memória"publieada em L'etat actuel


de.s Rech.erches Paychiq:ues, ed. Paris, 1924, pag, 301-312.
360 CELSO VIEIRA

mente sobrenatµrais ... " Joseph de Anchieta foi um


desses predestinados.

* * *
Ao catolicismo repugnam tais concepções. Na
sua doutrina, logicamente des<lobrada, humildade e
sacrififício, amor e renúncia, caridade e penitência ele-
vam ao plano celeste da criação o venerável Joseph
de Anchieta, remodelado em espírito á imagem e se-
melhança de Deus. Unindo-se a Deus, santificando-
se, é que ele ascende á categoria de profeta e de tau·
maturgo, sob um lampejo da Graça, mas também por
um acto supremo de livre arbítrio. Duzentos e oito
testemunhos antigos e graves nos processos informa-
tivos e apostólicos, feitos em S. Paulo, no Rio de
Janeiro, na Baía, em Olinda, em Evora e em Lisboa
para a sua canonização, autenticam-lhe as virtudes
e os milagres perante a Congregação dos Ritos.
Na crónica ·reli'giosa, moldura eclesiástica da len-
da, Anchieta é o novo taumaturgo, como o apelida
Eusébio de Nieremberg (Ideais de Varões claros) ou
Adão inocente, como prefere chamar-lhe Jacobo Damiam
(Sinopse). Adão do novo mundo é ele na biografia do
- padre Simão de Vasconcelos, que lhe atribui, exem-
plificando, os mesmos dons refulgentes do primeiro
homem, antes do peceado original: inocencia, enten-
dimento ilustrado, vontade recta, corpo impassível e o
domínio dos quatro elementos.
Tendo nascido para enlevo do Brasil no paraíso
das Ilhas Afortunadas, o nosso Adão segundo, obe-
diente a Deus,, impe~a também sobre o homem racio-
mal e os seus orgãos, sobre a vida e a saude, os bens
materiais e a própria ··alma. Daí a influência cura-
tiva, que era sentida- pelos enfermos na cabeça, nos
ANCHIETA 361

olhos, na boca, nos dentes, na garganta, no peito,


nas costas, nas entranhas, nas mãos e nos pés. Daí o
poder sobre a vida humana, prolongada ou ressusci-
tada ,por Joseph, e a maravilhosa instantanei,clade com
que ele abastecia os homens. Daí o conhecimento
das almas pecadoras, a familiaridade com o céu, as
profecias, os êxtases. as revelações. Mais de uma
vez, Joseph-Adão triunfa do demónio ou converte os
segredos e poderes du Criador, generosamente, cm
dádivas a criaturas necessitadas. Quanto aos demais
atributos edênicos - pure2a, obediência, humildade,
amor espiritual, infinito saber. - o padre Simão de
Vasconcelos apenas sublinha uma diferença notável
entre os dois arquetipos : é que o primeiro Adão per-
deu logo a inocência. por mal cio mundo todo, en-
quanto o segundo a conservou para bem elo novo
mundo (54).
Formada pela turba e pelo clero, a lenda propor-
ciona-se, depois ele 1569, á imensidade geográfica do
Brasil: dentro e fora das casas jesuíticas não têm
mais conta as obras maravilhosas. Anchieta cami-
nha atravé _. do Fios Sa11ctonm1, cheias as mãos de ro-
sas e lírios, graças e dons, como um divino semeador.
Morto o apóstolo do Brasil, ainda operou cente-
nas de milagres em todas as capitanias, aparecendo
aos enfermos num sonho, acudindo ás invocações,
actuando por meio de relíquias, tornando-se advogado
infalível contra os 'partos e abcessos. febres e eu-
xaquecas • ( 155). Decorridos mais de ses·senta anos
:sobre a morte cio padre, venerava-se ainda na sacris-
tia de todos os colégios e casas dos j esuítas uma re-

(154) ,SIMÃO DE VASCONCELOS, .Rm>p-ilnçum. da Vilfo


<io .P, Joseph de Anchieta, liv. IV, intr.
(155) Ibd. Vida <lo P. Andhieta•, liv. VI.
362 CELSO VIEIRA

líquia dos seus ossos, engastada em prata, com que


eram benzidos os vasos de água para os doentes.
Anchieta sonhava morrer no ápice da sua carida-
de, em jornada cristã. por escar·p as nuas ou brejos
lutulentos. Não se lhe fez realidade a última as·p ira-
ção. Mas teria ele compreendido, ao findar na palho-
ça de uma aldeia bárbara, que atingira pelo amor o
extremo da perfeição religiosa, concedida a um ho-
mem no seu tempo e no seu meio. Fora da lenda tau-
matúrgica seria o mesmo Iluminado, criador de mila-
gres do pensament~ e da .acção, delimitados pelo ca-
tolicismo ortodoxo e beligerante. Ele foi bem o dis-
.ópulo d0 patriarca Inácio de Loiola, "o homem da
S'Ua Ordem", militando contra os hereges, mas foi
também, nesse quadro, um exemplar de rara humani-
dade altruísta. Como as virtudes heroicas do sacer-
dócio preocupam muito mais a Igreja que os mila-
gres (156), não diverge da concepção eclesiástica,
nesse ponto, o espírito moderno. E o mais ofuscante
dos prodígios, eclipsando todos os outros da lenda
jesuítica, espelho• ardente de coisas sobrenaturais.
mágico espelho de forças indefiníveis, foi o da pró-
pria natureza, humana, espiritualizada pela fé cristã -
ele próprio, Anchieta.

(156) CONEGO MANOEL VICENTE DA 81LVA, .4 su-


blimidade moral de A11,chieta: Análise do processo de sua ean'>-
nização.
O mesmo sacerdote escreve nesse trabalho : "Abalar a base
em que assenta o decreto de beatifiéação. do venerável Padre
Joseph de Anchieta é consentir na extinção completa de toda
a ciência histórica". Sobre a irradiação moral do evangelizador
consultem.se ainda O Jesuita José de Anehieta, monografia .ie
Accioli, e a Bif111,ifi.cação da obira de ÀM11ieta na História. dJ
Bra-'11, conferênei:~ ele Escragnolle Doria,
LIVRO VI

OCASO DE RERITIBA

Bucna ventum llanio una vida conservada en gracia


de Dios y una muerte que C'orresponda n tal vida.

ANCH IE'l'A
I

Declínio de Anchieta. Reritiba. O eremita,


O vidente. última viagem á Bilia. Volta á
solidão.

Com as fadigas do provincialato haviam recrudes-


cido os males de An·chieta, que em 8 de agosto de
1584 já escrevia ao geral da Ordem: - "Como 1.
minha doença começou há muitos anos e agora, com
a idade e os trabalhos, apertou mais, há poucas espe-
ranças de sande: e assim espero que o padre visita-
dor me tirará o cargo da Província-, se a morte não
tiver cuidado de o fazer antes.'' Ouviu-lhe os rogos,
.com efeito, o segundo visitador da Provincia, Cris-
tovão de Gouveia, no fim do ano de 1585.
Fôra-lhe um septénio de trabalhos constantes e
heroicos o provincialato a que os seus biógrafos mais
antigos, Quiricio Caxa e Pero Roiz, contam o mes-
mo prazo, sete anos. Como substituto de Anchieta,
só em 1588 chegou á Baia o padre Marça_l Beliarte.
Doente e exausto, depois de tanto lidar, passott
Anchieta, em 1586, a servir no colégio do Rio de Ja-
neiro, onde havia poucos sacerdotes. muitos afazeres,
e a despeito dos sofrimentos, por ele denominado$
mensageiros da morte, o missionário ajudava na ci-
dade e nas aldeias o padre Fernão Cardim, reitor.
Quebrantado pela moléstia e pelo trabalho, J o-
seph esteve prestes a sucumbir. .\!armou-se todo o
colégio, em pranto. Mas o elljfermo, reparand·o· no
choro dos irmãos desolados ao redor do catre, sere-
366 CELSO VIEIRA

namente disse-: "Não haja lágrimas, porque não hei


e!(' morrer desta vez, neste lugar: no Espírito Santo
acabarei os meus dias". E assim foi.
A ideia cristã da hora derradeira já lhe anelava
por esse tempo no espírito, voltado só para Jesus.
Um dos seus irmãos predilectos, António Ribeiro, sus·-
pirando no colégio de S. Paulo por viver com o após -
tolo elo Brasil, não o persuadiu a mandar buscá-lo.
· Dele apenas teve, em resposta, conselhos de obediên-
cia, castidade e oração. Joseph renunciara ao próprio
conforto das amizades humanas: " ... convem. que tra-
balhemos - escrevia ele em 1587 a Antônio Ribeiro
- de ter sempre por companheiro aquele que em to-
das as partes e em todo o tempo está comnosco. O
qual, ainda que nós, ás vezes, o enjeitemos, contudo
está batendo á porta do nosso coração, esperando que
lhe abramos para entrar, e fazer morada em nós, vindo
juntamente com ele o Padre e o Espírito Santo, para
qu.e nenhuma parte de nós fique que não seja cheia,
nem haja outro que em. nós possa ter quinhão, 11em 110
mai-s pequeno cantinho da nossa alma". Como que ele se
de~prendera ele todos os afectos, ou melhor. se desa-
tara da humanidade, transfigurado pelo ideal do amor
celeste. Já lhe era indiferente, desde muito, a sorte
da própria família (15'7).
Nesse mesmo ano ele 1587, éonce<leu-se ainda li-
cença ao enfermo para mnclar de ares, como e quando
lhe aprouvesse. Quarenta e dois anos votados á santa
obediência, porém, levavam o padre Anchieta a des-

(157) PERO ROIZ, op. eit., llv. II, cap. II: "Nhua como-
nieação tinha o p ,e com os seus q criío ainda viuos ua i lha llc
Tanarife hua das Canarias, e dalldolhe hua carta de hua irmã
sua. leo o sobre esCTito e a.ntea de habrir dise o que uella se cou.
tinha , e com muita alegria dise que sua irmã estaua conform~
com a Tontnclo dcuiu::1, <.>m hua infirmidnde que padeçia".
ANCHIETA 367

confiar jesuíticamente da liberdade, causa de humana


cegueira e de trânsito errado, no seu entender. Para
o eleito, definia-se a obediência como sujeição á v01~-
tade de Deus, interpretada pelos superiores, não sa-
bendo o homem escolher o que mais lhe convem. Ori-
entado por essa humilde certeza, pediu a Fernão Car-
dim que lhe traçasse o rumo, e foi mandado para a
aldeia de Reritiba, no Espírito Santo, com o padre
Diogo Fernandes, missionário. Desse lugar, confiàn-
temente, escreveria Anchieta a Inácio Tolosa: " ... a
disposição corporal é fraca, mas basta com a força
ela graça, que da parte de Deus não faltará ... "

,J. * *
O asceta foi habitar no declive ele um monte, ao
pé do rio, que os selvícolas chamavam lriritiba, por cor-
rupção Reritiba (158). Não mais lhe veremos a figu-
ra dramatizada pela história, batida pelas tormentas.
sobre o convés dos galeões ou a táboa frágil das ca-
noas. Desaparece elo cenário tumultuoso o apóstolo,
fundador de estâncias e colégios, defensor de igrejas
e cidades, ecliipsado pelo anacoreta, imerso na peni-
tência e na contemplação. Vai findar o ciclo anchie-
tano do Brasil meridional com a marcha das bandei-
ras paulistas. Mas a idade heroica do jesuitismo br:t-
sileiro, acabando nesse teatro invadido pelos mame-
lucos até á bacia do Prata, incendiado pela conquista
econômica e geográfica dos bandeirantes, continuará
pouco depois ao norte, desde a vila de Olinda a0
rio Amazonas, por incontávei~ léguas de costa e de

(158) Iriritib6 ou Beritigbá, mais tarde rio e Tila de Beue.


veute. (Cesar :11:forques, Zncwnário da Província ào Esr,írito Santl',
]878).
368 CELSO VIEIRA

sertão. As brenhas do Nordeste e do Equador, mu-


dado o ,polo á catequese, fascinam agora os inaciu.-
nos. E a terra virgem dos passos de Nóbrega e de
Anchieta será orvalhada, em breve, com o sangue
de Francisco Pinto, martirizado pelos cararijus, que
lhe despedaçam o crânio, levando aos feiticeiros a ba-
tina e o altar portátil, nas paragens de Ibiapaba.
·Devotamente, o anacoreta vivia á margem do Re-
ritiba os seus últimos dias, como um santo da lenda
bramânica á orla do Ganges, na solidão florida ele pre-
ces e lotos. O sentimento da perfeita quietude ori
ental, porém, não se casava nesse espírito fecundante
á renúncia e á piedade. Com efeito, o seu cuidado era
sempre a conversão <los índios, pelos quais havia
trans'Posto o oceano, entre os quais estava melhor ,lo
que entre os portuguêses (150). A sua derradeira es-
perança, perdido o sangrento ideal do martírio, era
alguma entrada nos sertões, para trazer novos fieis á
Igreja, ou a morte no declive de alguma das monta-
nhas, que se esfumavam á distância, vaporizadas, num
remoto plano fugaz de sombras e nimbos (160).
Se a natureza -lhe restituía momentaneamente a
saude, voltava o eremita a ser missionário, aventu-
rando-se por tremedais, boqueirõe~ e fraguedos, á caça
de almas para Deus? É temerário ou incerto nes,e
caso o depoimento dos biógrafos. Consumido o heroi
pela idade e pela doença, não lhe seria dado, talvez,
acompanhar Diogo Fernandes no itinerário selvagem

(159) ANCHIETA, carta ao Padre To~sa: "Pus-mo na,


mãos do Padre Fernão Cardim, e ordenou nosso Senhor que acom-
panhasse ao Padre Diogo Fernandes nesta aldeia de Reritibá, par.i
o ajudar n:i. doutrina dos índios, com os quais me dou melhor
que eom os Portuguêses, _porque aquelrs vim busear ao Brasil,
e nam a estes ... "
(160) Ibd., Ibd.
ANCHIETA 369

das missões, por sete ou oito vezes, como pretendi:!


~imã9 de Vasconcelos. Mas a presença elo tauma-
turgo concorreu, sem dúvida, pa-ra o estabeleci1nen-
to de várias tribos em Reritiba, núcleo social d~
Benevente e outras vilas do Espírito Santo. O exem-
plo da sua velhice animaria a prática de ações he-
roicas, semelhantes ás que lhe realçavam. o nome,
aureolado pela tradição dos campos de Piratininga,
das praias de Iperoig. Não duvidemos que ele, can-
• sadamente, ainda socorresse almas distantes, visitas-
se de quando em qua1;do, pelos arredores, º" seus ín-
dios amados. Ao irmão Jerónimo Soares, em algumas
dessas jornadas, indo a pé e descalços os dois por um
atascal, teria dito Joseph: "Irmão, uns desejam morrer
nas casas e outros nos colégios, ajudados de seus
irmãos, mas eu vos digo que não há coisa melhor qut
morrer num atoleiro destes por obediência e bem ela:,
almas".
Celebrava todos os dias, além de ouvir, genufle-
xo, as missas de quatro sacerdotes, que oficiavam na
aldeia. Ao redor do contemplativo, absorto em
Deus, passavam as coisas ilusórias com o mesmo sus-
surro das folhas, dos ventos e das ágúas, correndo
para o nada. Eram-lhe as noites cheias de suspiros, e
ais, e monólogos, em que vibrava o desejo cio céu. Os
índios chamavam-lhe pai, vinham narrar-lhe os seus
desgostos, pedir-lhe consolação e coragem ás suas
tristezas. E as dores humanas, recrescendo com .1
idade, não lhe anuviavam a paz, o luminoso contenta-
mento da vida interior.
Tudo era nele doçura, quietação, placidez cari-
nhosa e envolvente. No seu pôr de sol gorgeava a
música do amanhecer, no azul fascinante dos olhos,
já esmaecidos pela tarde, pelo tempo, lampejava uma
alegria celeste de estrela d'alva-, repontando sobre os
370 CELSO VIEIRA

corações atribulados ou inquietos. Após quatro decc-


nios, como que a íntima experiência da terra e da gen-
tee lhe identificara o ascetismo com a própria natureza
circundante, de que ele constituía um dos aspectos
grandiosos, o Homem no ápice da Fé, no esplendor da
bondade universal, no desenvolvimento supremo d,t
alma, entre colossos vegetais e píncaros de serrania.

* * *
Joseph · de Anchieta, nesse período, segundo as
testemunhas do processo de canonização e os agiólo-
gos inacianos, continuava a manifestar entre religio-
sos e catecumenos a mesma vidência de Iluminado,
sondando espaços remotos, destinos vindouros, a 'pe-
numbra dos corações humanos. Ele prevê ao sacer-
dote João Fernandes Gato o conhecimento da língua
do Brasil, em ,pouco tempo, quando o aluno já desa·
nima na longa aprendizagem; certifica-lhe uma de-
mora imprevisível de quatro meses na vila do Esp1-
rito Santo; adivinha-lhe certo escrúpulo, antes da
confissão; anuncia-lhe, de repente, jornadeando pelas
fazendas dos moradores, o pe:r:igo criado á alma rle
um jesuíta, em lugar distante, e acode no momento
oportuno a essa fraqueza espiritual; outra vez, arrasta
o compa,nheiro a uma aldeia longínqua, dizendo-lhe que
era assini necessário, e ao chegar desarma com a sua pre-
sença um bando de assaltantes. A' mulher de 1\Ianuel
da Gaia, que ela julgava morto, duas vezes prediz o
regresso do maridp: primeiro, de uma viagem á Eu-
ropa; depois, de uma entrada nos sertões.
O experimentado sa,ber da sua yelhice, indulgente
e amorável, possuía todos os segredos da alma bra-
sí!ica. Ouvindo em confissão a uma índia que ela
fora tentada por um dos padres mais virtuosos da al-
ANCHIETA 371

<leia, o confessor tomou-se de espanto e de tristeza.


Com essa dolorcrsa impressão foi rezar as horas canô ·
nicas, desolado, em companhia, de Anchieta. Fitando
nele os grandes olhos azuis, sem nada perguntar, Jo-
seph conheceu-lhe o desgosto, que o anuviava. Ri-
sonhamente disse:
- Padre meu, não se desconsole. Esse mesn)O
caso de confissão já o tive em Piratininga. Um;i. ín-
dia veiu acusar-se de pecado semelhante com outro
religioso. Esmiuçando, porém, as circunstâncias,
achei que tudo fora entre sonhos. Torne a examinar
o caso e verá como foi apenas sonhado. O nosso po-
bre gentio é tão rude que ainda não distingue da
verdade o sonho.

* * *
Nos fins <le 1591 ou princípios de 1592 viaJou <lo
Espírito Santo á Baia, chamado á Congregação, em
que foi eleito procurador a Roma o padre Luis da
Fonseca, seu companheiro e amigo, para instruir o
geral. da Ordem sobre as coisas rr.ais relevantes da
Província. Enfermos os dois, esforçavam-se mais ·que:
os outros, sãos e vigorosos: - "Depois de sua elei-
ção até agora, escrevia Anchieta ao capitão Miguel
Azeredo, do Espírito Santo, nem ele nem eu temos
vida; ele com escrever e outros negócios, e eu com
escrever, para o que os dias me não bastam, nem des-
qmsarei, até que ele. . . se embarque''.
Após o embarque de Luis da Fonseca, houve quem
estranhasse o consentimento á escolha de um homem
exausto, semi-morto, indagando se o padre voltaria
ou não ao Brasil. Respondeu-lhe, porém, Anchieta:
- O padre Fons;eca vai aonde Deus o manda. Se
andava com pouca saude até á Con~re~ação, me-lho-
372 CELSO VIEIRA

rou em viagem, nas alturas de Pernambuco, devendo


chegar, mesmo doente, a Roma. Dará conta do seu
trabalho com aplauso de todos e verá o fim de suas
jornadas em caminho, ao tornar, _como Deus lhe tem
assinalado." Luis da Fonseca desempenhou-se bri-
lhantemente do seu mandato religioso e expirou em
Madrid no ano de 1594.
Enquanto permaneceu ·na Baia, esfalfou-se o pa-
dre não só a escrever, mas tambem a demandar e con-
seguir provisões do Governador, exigidas pelos nego-
cios da capitania donde viera. Ortodoxamente, re-
gistrara a pen.a de galês, imposta ao sacrílego Rocha,
que, por dua,s vezes, á noite, desfechara o seu arcabuz
á janela do inquisidor, um capelão fidalgo d'el-rei.
Heitor Furtado de Mendonça: - " ... se os Padres ... ,
adjuntos do inquisidor, não trabalhavam muito nisso,
ele não escapava da morte de fogo, conforme a bula
do Papa". Nessa mesma cidade não escapara um
francês herege, queimado em 1573, como relapso. E
da Baía recomendava Anchieta ao capitão de orde-
nanças do Espírito Santo, ,prevendo assaltos marí-
timos dos infieis ou guerras dos indígenas, que lhe
poupasse as munições: - "Não há cá polvora, pou~
pem lá a que houver."
Voltando á Reritiba, mergulha novamente o ana-
coreta na solidão e na penitência. Até 159.3, não
lhe publicam da vida os biógrafos senão alguns ca-·
sos maravilhosos. Ele profetisa longevidade a um
índio agonísante, verificandoJSe a profecia comuni-
cada ao padre Jerónimo Rodrigues; estende o bor-
dão de peregrino a outro, disforme, que andava cen-
tenas de Ieguas á maneira dos quadrumanos, e o
aleijado caminha logo depois, humanamente, com os
olhos erguidos ao céu; enfim, pela virtude única do
ANCHIETA 373

gesto, lança s águas uma canoa desmesurada, que


a força de vários hércules não conseguira, deslocar.
Longe, seduzidos pelo demónio, os cristãos ' de
Piratininga extraiam vagamente ouro ás primeiras
jazidas abertas n.a serrania.
A ilusão das entra,das de Tourinho e Adorno
só descobrira nos sertões da Baia turmalirlas verdes e
azuis, em lugar de esmeraldas e safiras; a miragem
do Grifo dourado, urca flamenga, pnde Gabriel Soares
trouxera algumas centénas de homens á conquista
das minas, findara com a morte do capitão, lugubre-
mente, nas cabeceiras · do Paraguassú. Mas a in-
dústria do asucar brasileiro já exportava tres milhões
de arrobas por ano; o monopólio do ipau-brasil dava
cerca de 200.000 cruzados á coroa; florescia a lavou-
ra do algodão e do tabaco; aument~vam os rebanhos;
era grande a pesca. E o corso dos hereges inglêses,
de Cavendish, tendo surpreendido o povo de Santos
na igreja e recolhido como tributo algum ouro de Pi-
ratininga, incendiado as casas da Ilha Grande e lar-
. gado em outra, S. Sebastião, os enfermos de bordo,
vinha quebrar-se agora, impotente, contra o fortim
da barra- do Espírito Santo.
José de Anchieta rezava pela sorte do Brasil ca-
tólico e trabalhador, como rezara entre os montes de
Iperoig pelo Gran-Palma, que lhe pedia longevidade e
fartura.
Il

Anchieta na casa do Espírito Santo, e;omo supe-


rior. Pobreza e perfeição. Um discípulo in1rlêa
do taumaturgo. Novos milagree. Rimas de um
profeta.

Em 1593, andava Joseph com o padre João Fer-


nandes pelos arredores da sua aldeia, quando lhe
mandou recado o superior da casa do Espírito Santo
para, que fosse á vila. Pressentindo nesse convite a
imposição de maiores trabalhos, o apóstolo disse ao
companheiro:
- Padre João, sabe que é? Chamam-me para
superior: veja Vossa Reverência em que estado.
Não era outra, com efeito, a ordem do pro-
vincial Beliarte, por serviço de DeUIS e bem da Companhia.
Envelhecido e alquebrado, Joseph obedeceu. Tremen-
do encargo para a sua debilidade. . . O governo da
casa do Espírito Santo abrangia, então, quatro aldeias
- Reritiba, Guarapari, S. João e Reis, - onde
havia milhares de índios congregados pela catequese.
Mas a força espiritual reanimava ainda o corpo vaci -
lante e doente de Anchieta, ressurgia da invalidez. '
Vergavam-lhe os joelhos a cada passo, vinham-
lhe cada dia novos sófrimentos. Para não deixar sem
doutrina, sem conforto, ~ gentio de quatro aldeias
longínquas, ele consentiu, não obstante o seu desgos-
to de caminheiro da~ selvas, que o levassem pelos ser-
tões em rede. Se lhe perguntavam os fieis ou os ir-
mãos: - "Porque não cavalgais?'' - redarguia JO-
ANCHIETA° 375

vialmente com outra pergunta, aludindo á própria


deformidade: - "Que vos parece o efeito das minhas
costas, indo eu a cavalo?"
Superior da casa do Espírito Santo, era o mai-,
afável, o mais paciente, o melhor dos religiosos para
os seus irmãos ou para as suas ovelhas, de si mesmo
tão esquecido nas piores doenças quanto desvelado ao
pé de outros enfermos. Posto que viver já lhe fosse
penar, maltratava incessantemente o corpo dolorido
com abstinências·, vigílias, flagelações, cilícios. Dono
de uma veste poida e remendada, não se despia á noi-
te para dormir. Não usava lençol nem manta. Escri-
tor, sem uma pena, sequer, para escrever os seus apon-
tamentos, costumava pedi-la aos subditos da casa por
emprestimo. No seu cubkulo desguarnecido, mas
nunca, desolado, havia só um púcaro d'água, o breviá-
rio, instrumentos de flagelação e alguns trapos inser-
viveis á comunidade; entre os irmãos, no refeitório,
Joseph diàlogava mentalmente com Deus, como na
penumbra de um horto ou de uma cela.
Mais do que nunca, brilhava-lhe a alma perfeita.
submissa á regra, na exaltação daquela obediência,
traduzida pela carta anchietana de 1591 ao irmão Fran-
cisco Escalante. Nada exprimem longos colóquio:,
com a divindade, sem a voluntária sujei5ão moral,
disciplina do religioso obediente, que se faz operár10
ou lavrador. Por ele reza o trabalho. Deus converte
em suave exercício de orações o áspero labor das suas
mãos calejadas. ·
Assi_m eram glorificados os trabalhadores por
Anchieta, e a pobreza do sacerdote havia de ser, pen-
sava ele, como a indiferença escultural do mármore,
que se deixa inse11.'>ivelmente recobrir ou despojar de
vestes efêmeras. Modelo espiritual da humanidad~,
Joseph considerava-se o mais vil, o mais pecador, o
376 C E'L S O V I E IR A

mais ignorante dos homens. Na assinatura das car-


tas evitava o sobrenome fidalgo de Anchieta, escrevia
humildemente - pobre e inutil Joseph. Rogava aos ir-
mãos, de joelhos, que lhe arguissem as culpas, lhe
dessem penitência. Deparando com alg·um deles, nos
corredores, baixava os olhos, sumia-se todo na rou-
peta, colado ao muro. Elogios dos grandes da terra
- governa-d ores, bispos, g enerais, - como a reverên-
cia fanática dos pobres e dos simples, todas as hon-
ras deste mundo eram coisas vãs para Anchieta. Não
gostando que lhe atribuíssem o dom excelso da pro-
fecia, replicava o superior aos indiscretos: "Boas
costas são estas para lançardes sobre elas coisas tão
grandes; andai, andai , que nã o sabeis quem sou''.
Excepcionalmente, certa, vez, irritara-se contra
um vizin ho, cujo prédio, em construção, fechava o
horiz onte ás janelas d a casa dos jesuítas. O egoísmo
secular da propriedade tirava-lhe assim a derradeira
vista do céu. Exasperou-se. Mas logo se arrependeu
e se desculpou. A satisfação foi tal, refere um biógra-
fo, que o vizinho fronteiro , pouco antes irreligioso e
desafecto á Ordem, veiu lança r-se aos pés de Anchie-
ta, em confissão, tornando-se amigo e devoto da Com-
panhia. Não se lhe conhece outro momento de enfa-
do no seu declínio ...
Ele visitou ainda as capitanias do Rio ele J a neiro
e de S. Vicente, por determinação do provincial Beit-
arte, segundo a carta dirigida em 1594 ao geral Cláu-
dio Aquaviva.
Torna ndo a o Espírito Santo, observa ra que os
,portug ueses, ávidos de h onras e ofícios na sua inte rmi.'.:"
nável discórdia, hostilizavam sempre o:s jesuítas, por
se oporem com energia á escravatura dos índio s cris-
tãos naquelas p arag ens . - " . . . como est a g uerra é
antiga, escrevia ... , não se acaba r á senão com os mes-
ANCHIETA 377

mos 1ndios ... " Através da suai velhice, perpetua-


vam-se os labores e canseiras. - "Eu, ainda que ve-
lho e mal disposto, acrescentava, desenganado estou
de ter descanso nesta peregrina~ão ... "

* * *
Em 1593, deixando o colégio da Baía, fora servir
na casa do Espírito Santo com Anchieta, seu mestre,
o noviço João de Almeida, que nascera em Londres,
e vinha fadado á glória de rivalizar com o profeta
Ezequiel no gênero alimentício. Entre os horrores e
prodígios da vida ascética, narrada por Simão de
Vasconcelos, foi esse o caso mais violento de morti-
ficação no Brnsil, s·urpreendendo pelo requinte os
próprios inacianos. Porqueiro, veterinário, cavador
das hortas, varredor dos corredores, ajudante da co-
zinha e copeiro, João de Almeida tornou-se o escravü
mais vil dos seus irmãos. Sob os feixes de lenha, os
fardos que ele trazia ás costas por destino e deleite,
jovialmente, considerava-se um asno. Queria ser
para a Ordem, para os trabalhos jesuíticos, um sim-·
ples animal de carga. " ... porque o conceito de si --
escreve Simão de Vasconcelos - era de jumento, as-
sim se chamou ·por toda sua vida". No delírio da
penitência feria, a golpes de tesoura, as partes mais
sens~veis do corpo. Na vertigem do seu espiritualismo
desafiava a própria repulsão das coisas imundas. Sen-
do veterinário, e como lhe repugnasse tratar a chaga
cancerosa de um a,nimal, que fez João de A,lmeida?
Certo dia, segundo a ' narrativa do cronista da Or-
dem " ... ajuntou por vezes a matéria, e bichos mal-
cheirosos, que dela tirava,, e os meteu na boca, e le-
vou ao ventre, com valor .. .. "
378 CELSO VIEIRA

Tal foi o assombroso discípulo de An.chieta. Des-


te aprendeu C! comedor de vermes, acentua o cronis-
ta, a puresa de anjo sobre a rebeldia da carne mace-
rada; a arte de amar a Deus, chegando a fazer do
coração um tabernáculo; a arte mais complexa e di-
fícil de amar o próximo; o espírito de profecia; o
dom celestial dos milagres. E assim conclue Simão
de Vasconcelos, " ... quem ler a lenda deste venerá-
vel aprendiz, verá um retrato das maravilhas de seu
Mestre Joseph". '

* * *
São inumeráveis os milagres com que se enflo-
rou na casa do Espírito Santo, lendariamente, o pri-
meiro superiorado anchietano. Joseph antevê os su-
cessos ocultos, adivinha o paradeiro dos objectos
perdidos, anuncia trabalhos e tormentos, desvenda os
pecados e erros mais secretos, a visa ao porteiro, sa
indo repentinamente do cubículo, que um homicida
em fuga lhe bate á porta, alcança o divino favor das
chuvas torrenciais em plena seca, extingue a·s dores
com a sua benção, dá voz a um mudo nas festas da
aldeia de S. João, faz remover, tocando-a só <lua:;
vezes, a pedra do engenho de Miguel de Azeredo, !age
desconforme sobre a qual sucumbira o vigor de toda
a gente dos arredores, manda tanger a rebate contra
os hereges e corsários franceses, que se avizinhavam
da barra, invisíveis na bruma. Foram notáveis as
suas predições durante a guerra declarada pelos mora-
dores do Espírito Santo aos goiatacazes, antropófa-
gos colossais, inexpugnáveis nas choças lacustre:s.
Amiu<lavam-sç,..as contemplações e os êxtases do san-
to. Obedeciam-lhe as aves ao gesto ou á palavra, de.,-
de o tuim, que o festejava no púlpito, à andorinha, que
lhe esvoaçava aos ombros. Por ele atraida e ensinada,
ANCHIETA

certa mona bravia não tornou ás matas do engenho


de Miguel de Azeredo. Contava-se ainda que o seguiam
dois canindés por toda a parte, como dois pajens vis-
tosos e alados.
* * *
Quase vencido pelos achaques, pelas fadigas da
idade, A11chieta renunciou ao governo da casa do Es-
pírito ~anto, recolheu-se de novo at'l seu eremitério.
Em caminho para a aldeia, ergueu-se ela rede oscilan-
te, onde o levavam quatro índios, e outra vez cami-
nhou lestamente, como nos tempos de moço, á luz no
sol, pelo meandro folhoso das brenhas. Mas a antiga
seiva estancara, e os males recresciam, inexoráveis.
Agravada por ocupações e cilícios, a doença imobili-
zou-o na choupana de Reritiba, onde o padre J eróni-
mo Rodrigues lhe deixara ao lado, certo dia, um frag-
mento de espelho. Remirando nele a face engelhada,
escurecida, Anchieta notou, ainda assim, o rubor
contrastante dos lábios. Como entrasse o amigo, nes-
se momento, o poeta recitou-lhe a famosa décima,
improvisada com alegria:
"Padre Jerónimo,
Vi-me agora neste espelho,
E Mmecei a dizer :
Corcóz, toma bom conselho,
E faze bom aparelho,
Porque cedo has de morrer.
Mas, com juntamente ver
O beiço um pouco vermelho,
Disse: fraco estás, e velho,
Mas podo ser que Deus quer,
Qué vivas para conselho."
Pouco tempo depois, com efeito, Joseph de An-
chieta foi nomeado admonitor da casa do Espírito
Santo.'
I I I

Apontamento• de cronista e biógrafo. .Ma•


nuel da Nóbrega, o Fundador. Vida em Portugal;
vinda para o Brasil. Acção religiosa e eocial de
Nóbrega. Catolicismo e nacionalismo. O apóetolo
severo. Zelo e santidade. Fraees indeléveis. O
míetico.

,.No seu cubículo, em Reritiba, se a doença, o tra-


balho e a oração lhe deixavam alguns instantes va··
gos, Anchieta escrevia apontamentos sobre a histó-
ria da Ordem e a vida dos primeiros jesuitas manda-
dos ao Brasil (161). Falam desse manuscrito, cer-
tamente longo e rico de informações, tres· autores ina·
cianos - Pero Raiz, Simão de Vasconcelos e Antónic,
Franco, dando impressões ou excerptos. Valeram-
se dele os dois últimos com largueza no painel da-;
suas apologia~. Desconhecemos-lhe hoje o paradei--
ro, mas da galeria evocada por Anchiet3J conservamos
ainda nomes e traços, que nos permitem reviver figu-
ras inseparáveis, sob o prestígio da mesma evocação.

* * *
Os primeiros jesuitas são os telamones da Igreja
do Brasil, homens-colunas, talhados por Deus na
pedra ev;i.ngélica da fundação imperecível. O maior
desses gigantes espirituais é Manuel da Nóbrega, e

(161) Eaaa obra devia tor sido composta depois de no-


vembro de 1586. CAPISTR.ANO DE _..\BREU, Inf. e Frag. dn
:r.Joaepk de .A.nchieta.
ANCHIETA 381

todo:; eles compõem a .mesma unidade escultural no


plano da catequese. no bloco da Companhia de Jesus.
"Antes de tudo - escreveu Joaquim Nabuco em 1897
- como separar Anchieta de Nóbrega? Podeis com-
pree~der um sem _o outro, ver o jovem irmão sem
que o Fundador se mostre ao lado dele?"
Filho de ·um juiz, sobrinho <lo chancelcr-mór do
reino, o heroi da catequese americana veiu ao mundo,
para o fecundar com a sua espiritualidade, em 28 de
outubro de 1517. Estu<lante de humanidades em Sa-
lamanca, rematou na primeira dessas escolas, onde
já era notado, o curso teológico. Feito presbítero.
concorreu á vaga de uma colegiatura, mas o favoritis--
mo suplantou o ~erecimento, arrebatando-lhe a séde
universitária.
Sem essa decepção, Nóbrega teria sido, apenas,
um cônego pacato e erudito. A dor da vitória muti-
lada, em pleno ·voo, rasgou-lhe o caminho estelar
para a santidade. Irmão da Companhia aos vinte e
cinco anos, desenganado pela vicia, ele renunciou a to-
dos os bens materiais e a todas as honras eclesiásti-
cas. Fez-se mençlicante e missionáriJ.
Por aldeias e vilas, pregava ferrenhamente aos
campónios, repisando as sílabas, gaguejante, e o es-
forço da sua gaguez provocou a ternura de uns, a
zombaria de outros. Mas o padre gago, como o ape-
lidavam, era imperturbável. Com o seu bordão, o seu
breviário, os seus andrajos, ia de porta em porta, a
esmolar, induzir, converter. J ornacleando pelas estra·
das cobertas de neve ou batidas de sol, chegava mui-
tas vezes ás raias da Galiza ou de Castela.
Nessas peregrinações, entre Portugal e Espanha.
lidava o jesuíta pela salvação dos condenados á mor-
te, das pecadoras atormentadas por incubos, das pos-
. sessas, que haviam sido amantes de clérigos, irnersoa
382 CELSO VIEIRA

na concupiscência. Abrasado pelo amor ao próximo,


tomava sobre si, perante Deus, os pecados alheios. E
evangelicamente sofria a rudeza dos maus, a injúria
dos vinolentos, o desprezo dos blasfemadores, a vaia
dos obscenos, o ar de mofa dos plebeus chocarreiros,
a risota das galegas na praça pública, imitando a sua
gaguez.
Em 1549, opondo-se o rei. e o povo de Lisboa ao
embarque do padre mestre Simão Rodrigues para o
Brasil, veiu em seu l,ugar Manuel da Nóbrega, como
superior da primeira missão.
No próprio dia da chegada, subindo ao topo de
uma colina, donde avistava só estâncias indígenas.
palhoças incontáveis na espessura do arvoredo, tabas
de selvícolas por toda a linha azul do horizonte, Nó~
brega sentiu a enormidade apostólica da sua obra.
Mas não lhe intimidava o coração, ainda maior, a
grandeza continental de Pindorama. O missionário
exultou, o evangelista <leu começo á tarefa.
Ele planejava uma guerra de cem anos, ou mai.s,
somando as forças jesuí·ticas, revendo os objectivos
católicos. De um lado, era necessário combater o des-
leixo dos sacerdotes (162), a poligamia dos colonos
(163), o embuste e a crueza dos salteadores de escra-
vos, a ganância dos chatins, a inércia religiosa dos
cristãos velhos; de outro lado, vencendo pela doutrina e

(162) MANUEL DA NóBREGA, Cartu da Baia ao Padr~


Mestre Simão, 1540: "Cá ha Clerigos, mas l1e a escoria que de
lâ vem."
(163) Ibd., Carta da Baía ao Padre Mestre Simão Rodri.
gues, IX ragosto 1549: "Nesta te1Ta ha um grande pecado, que
be terem os homens quasi todos suas negras por mancebas, e
outras livres, q""e pedem aos neiro11 por mulhere11, aegundo o
costume da hrrr.t, que ·he terem muitas mulher•s."
ANCHIETA 383

pelo amor o canibal, submetê-lo ao império da Igrej;i


e da Lei.
Com o reforço de padres e irmãos, vindos em
1550, o jesuita organizou duas falanges: uma para
instrução do gentio, outra para socorro do branco e>
da sua prole. Desde o primeiro ao último dia do apos-
tólado, ergueu-se o fundador da Nova Igreja, peran-
te os poderes do céu e da terra, denunciando abomi-
nações e escândalos. Verberava nos clericais disso-
lutos a corrupção da obra encetada por mãos,for-tes <.
puras (164). Entre os colonos, a ira das suas mal-
dições punha o terror na alma dos increús, dos blas--
femadores, dos sensuais, dos traficantes. Repreen-
dendo os homens, proibindo o que eles mais estimà-
vam, opinando contra o que eles mais pretendiam, era
odiado e perseguido. Não se iludia sobre as paixões
suscitadas por essa intransigência: "Eu - dizÍit ele -
se houver de ser niartir, há de ser à mão dos nossos Por-
tuguêses cristãos e não dos Brasis."
Os m1migos premeditavam-lhe a morte, sem
que as suas maquinações, geralmente sabidas e fala-
das, lhe turbassem de leve a coragem. Afrontando-os
com impavidez, o primeiro abolicionista do Brasil
clamava a Estácio de Sá e aos tripulantes da armada,
que havia de co1_!$uistar Guanabara aos francêses: "Se
agora tomassem sete destes ladrões, que têm destruido os
pobres índios da Baía e de toda a costa, e os enforcassem,
Nosso Senhor se aplacaria e se nwstraria favorável ao qtU!
pretendemos ( 165). Todo o arrebatamento da alma evan-

(164) Ibd. Carta c1a Baía ao Padre Mestre Simão, 1549:


"Não se devitt embarcar Sacerdote sem ser sua vida muito ap10-
l!lda, porque esti;s destruem quanto se edifiea."
(165) SIMÃO DE VASCONCELOS, Cr., li'9'. IV, n . 12!l.
p11.1:. 128.
384 CELSO VIEIRA

gelizadora ck Nóbrega está nessas palavras,. em c1ue


a ideia do holocausto, comum ás religiões, assume
outra forma repressiva e justiceira. A divindade, como
a sociedade, não quer vitimas inocentes, mas peca-
doras.
Religioso e civico, entre a fereza dos índios e a
mercância dos lusos, o seu ideal supremo era a incor-
poração do gentio ao catolicismo e á lusitanidade. Exor-
tava na sua correspondência os irmãos de Portugal a
que viessem fundar com ele a nova Jerusalem. .\n-
tevendo a expansão da catequese, tanto conservou o
gado pertencente á Ordem, mesmo nas fases de ex-
trema necessidade, que assim poude multiplicar os re -
banhos, acudir ao sustento dos colégios da Baia e do
Rio. Imaginava o Brasil rapidamente evangelizado
pelo esforço e pelo número das a lmas de, Cristo. Em-
quanto não vioha o exército, porém. alguns batedo-
res, por ele conduzidos através dos sertões, desloca-
vam montanhas, e nunca foi mais inventivo o gênio ela
acção, mai"s criadora a fé, mais pródigo de resultados
o heroísmo. Varnhagen acentua como o fundador,
pela unidade da Companhia de Jesus, se rviu á pró-
pria unidade do Brasil. Com a doutrina e o exemplo
dos missionários. indo e vindo por toda a par te, om-
nipresentes, houve maior comunicação entre os povoa-
dos. melhor vizinhan~a entre os habitantes.
* * *
Duplamente, o ignoto da selva e do homem preo-
cupava Manuel da Nóbrega. Como possuir o idioma
brasileiro, que ele desconhecia, e aplacar o selvagem,
que os portuguêses, comprando, vendendo, traindo.
haviam exasperado? A' custa de afagos e dádivas, pa -
ternalmente, Nóbrega começou por domesticar os fi-
ANCHIETA 385

lhos menores dos índios. De sorte que os jesuita.s,


ensinando-lhes o alfabeto e o catecis'mo, aprendiam
com eles a língua geral, por meio del'es chegavam á
convivência e á compreensão dos índios. Curioso diá-
logo escolar. Assim o padre gago, reunindo os primeiros
neófitos bôçais, arregimentava desde logo os primei-
ros noviços militantes da Ordem,
Mais . de uma vez, irrompeu a sua heroicidade,
como a dos seus companheiros, no aldeamento dos
canibais em festa, e arrancou ás velhas sanguinárias,
cozinheiras de carne humana, o corpo destinado ao
banquete, e~pondo a sorte de uma cidade ao furor de
uma tribo. Em pleno terreiro, o doutor laureado em
canones lidava contra os 1pagés, sacerdotes de mara-
cá e feitiço, compelindo-os a morder o pó, achatados
sob a verdade esmagadora. Sabia perfeitament e que,
entre semelhantes criaturas, missionar é magnetizá-las
com o poder da vontade ou ser trucidado pela sua
fereza.
Tinha a cólera fácil, mas pronta a caridade, e no
horror nauseante da va,riola, transmitida pelos bran-
cos aos índios, passava dias inteiros a sangrar os do-
entes, sobrando-lhe ainda energia para confundir os
pag,es malignos, que atriquiam todos os males ao aba·
dono das tradições e á influência da água baptismai.
Era-lhe a vida um jornadear incessante pelas capi-
tanias, pelos núcleos esparsos da catequese. Ia e vi-
nha de Pernambuco a S. Vicente, por Ilheus, Porto
Seguro, Vila Nova do Espírito Santo, como se fosse
de umà a outra cela do mosteiro. Nas terras de Du-
arte Coelho mandara ensinar a doutrina, por inter-
pretes, a cein caetés adolescentes, que foram mais
tarde cem catequistas. Na Bafa edificara o seminá-
rio_, persuadira: o governador Men de Sá, entre mur-
.múrios hostis da colônia, a submeter o canibalismo,
386 CELSO VIEIRA

proibir as guerras injustas, congregar os tupinambás


em quatro poderosas aldeias cristãs. Promovera a
fundação religiosa de S. Vicente, confiada ao padre
Leonardo Nunes, e a do Espírito Santo, cometida ao
padre Atonso Braz. Em 1553, na primeira dessas ca-
pitanias, organizara a confraria do Menino Jesus, em
que deveriam fraternizar os orfãos de colonos e o:;
filhos de índios ou de brancos, errantes no sertão e
afundados no selvagismo, aprendendo estes o portu-
guês, aqueles o guarani. Ainda em S. Vicente, no mes-
mo ano, vencera quarenta léguas sertanejas a pé,
com o seu bordão, planalto adma, chegando á aldeia
de Maniçoba ou J apiuba, e nessas paragens erguera
um santuário, atalaia piedosa do Oeste. Em peregri-
nação a esse oratorio longínquo morreriam, sob tiros
de flechas e golpes de clava dos tupis, vários bandos
de carijós.
Manuel da Nóbrega, cuja fama voara além dos
nossos limites, erà chamado entre os paraguaios Bar-
caclué, o homem santo.
* * *
Com o título de superior, em 1549, o de vice-
provincial, desde 1550, Nóbrega comandava as opera-
ções da catequese. Depois, como Loiola fundasse a
,província jesuítica do Brasil, foi nomeado provincial,
ascendendo á profissão solene dos quatro votos, últi-
mo grau da Companhia. Não só no provincialato, mas
até á véspera da sua morte, no colégio do Rio, o ho-
mem santo detem o poder espiritual do Brasil nas-
cente, desde as coisas domésticas aos negócios políti
LOS. É conselheiro de governadores e capitães-móres;
confidente ~o rei d. João III, Qa rainha d. Catarina,
do cardeal-infante d. Henrique; árbitro das rixas co-
loniais; defensor per,petuo dos índios.
ANCHIETA 387

Na sua cronologia resplendem os feitos e as ideias.


Em 1549, o missionário escreve ao soberano, pa-
tenteando já o sentimento da unidade brasileira con·
tra o ~spírito feudal e separatista: ". . . a jurisdição
ele toda a costa devia de ser de V. A. (166)". Em
1554, inaugura a casa de Piratininga, germe cristão
da urbs magna, S. Paulo. Em 1558, com o aldeatnen-
to -dos índios na Baía, demonstra a força doutrinária
e civilizadora do seu próprio sistema. Inimigo de
protestantes e forasteiros, aconselha, em 1560, ao go-
vernador Men ·de Sá, contra os pareceres oficiais, a
expulsão dos francêses de Guanabara, e apezar dos
seus males, da sua debilidade agravada por hemopti-
ses (167), vem com ele ao Rio, prossegue até S. Vi-
cente, donde lhe manda reforço. Em 1563, ameaçado
pela confederação dos tamoios o domínio português,
delibera ir com Anchieta a Iperoig e alcança do gentio
a paz necessária aos colonos.
Logo depois, entre 1564 e 1567, é ele o verda-
deiro autor espiritual da fundação do Rio de Janeiro.
n ele quem aprovisiona e fortalece as esquadras portu-
guesas, cujos tripulantes o denominam pai dos necessita-
dos, quase tudo esperam da sua velhice alquebrada. O va-
lor de Nóorega, um doente, encorajava os próprios
cabos de guerra. Indeciso, na indecisão geral dos mo-
radores de S. Vicente, dos marujos da armada, rece-

(166) NõBREGA, carta de 1551, a El-Hei cl. João III.


(167) ANCHIETA, oarta de 1.o de ju111to ele 1560: "Com
o Governador veeiu o Padre Manuel da Nóbrega mui doente, ma.
gro~ eom os pés e e-ara inchada, pernas eheias de post.emns. e
~om outras muitas enfermidades." O irmão António Blasquez,
na sua correspondência, fala das contíuuas indísposii:ões de Nó-
brega. Eserevendo ao provincial de Portugal, o próprio Manuel
da Nóbrega informa: « •.. a mim devem-me já ter por morto,
porque ao presente fico deitando muito sangue pela boca."
388 CELSO VIEIRA

ando 111edir-se com o poder francês, dizia-lhe Está-


cio de Sá, em vésperas de largar para o Rio: "Que
contas, padre, darei a Deus, e ao rei, se todo este ar··
mamento se perder?" "Senhor - calmamente redar-
guiu o jesuíta, - de tudo darei contas a Deus, e, se
for necessário, irei tambem perante el-rei, responder
por vós ( 168)". Nessa mentalidade unitária, funda-
mentalmente portuguesa, o nacionalismo parece de-
Huir do próprio catolicismo.

* * *
O espírito de mortificação e obediência ri
valizava com a sua heroicidade. Inexorável consigo
mesmo, tambem o era no trato dos subditos, em face
da Igreja e da Ordem. Na Baía fez apregoar pelo
missionário Vicente Rodrigues, em hasta pública, u,m
sacerdote de alta linhagem, o ,padre Manuel de Paiva,
experimentando-lhe a alma cristã. Sómente á última
hora, pouco antes do lanço definitivo, explicou ao go-
vernador que a venda fora simulada para sujeitar o
religioso á mais dura das provas. Em S. Vicente im-
poz a um mameluco transviado, aluno da Companhia,
o castigo romano (169), infligido ás vestais poluidas:
Seria enterrado vivo, ao dobrar dos sinos, após o ofí-
cio de defuntos, porque manchara no seu recolhimen-
to a pureza da Ordem. Acorreram fieis portuguêse5
e indios á -cerimônia. Então, celebrada missa de cor-
po presente, o pecador amortalha,do baixou á cova
aberta no próprio templo. Uma a uma, lentas e sur-
das rolavam as pás de terra sobre o corpo, envolto
no sudário, quando o irmão Pedro Correa caiu aos
pés de Manuel da Nóbrega, invocou a sua misericórdia.
(168) SIMÃO DE VASCONCELOS, Cr. liv. III, 11. 62.
(169) Ibd. ibd., liY. I, 11, 129.
ANCHIETA 389

Era um lance teatral, combinado enfre os. dois. Ge-·


mendo e rogando, os fieis acompanharam a prece do
irmão. Nóbrega cedeu. O pecador foi retirado á se-
pultura pelos coveiros, despedido pela Companhia.
Daí em diante, vagueava nos caminhos de S. Vicente
como um espectro e como um exemplo, sob o nome
de Fulano da Cova.

* * *
Sentiam-lhe os irmãos, de onde em onde, 0
peso da autoridade inflexível. A um deles o mestre
<leterminara que fosse pelas ruas da cidade, em trajo
de ·penitente, açoitando as próprias costas; a 'outro
que emborcasse um vaso transbordante de azeite.
Obedeciam todos, mesmo na enfermidade, ,nesmo na
agonia, se a ordem era dada para não adoecer ou não
sucumbir ( 170).
Na sua rispidez e obstinação, na impetuosa ve
emência do.s gestos e brados, no trovejar da ira contra
os pecados mortais, Nóbrega remontava, biblicamer:-
te, á ascendência profética de Elias, de Isaías ou de
João Baptista, vultos ameaçadores, vozes tonitruantes.
Se a concupiscência de _um sacerdote o escandaliza.
ele corre á porta da ca:sa impura, com os seus anate-
mas, gri_ta á cidade inteira que ali estão crucificando
Jesns. Se um marinheiro, aferrando a vela do barco,
graceja com o poder de S. Lourenço na tormenta, ele

(170) Ibd. ibd., liv. IV, n.º 139: "Até na doença, e mortC'
fazia. provas de obediência; porque por esta mesma soubessem
adoecer e morrer os verdadeiros filhos da Companhia. Pare ::iqoi
vossa. doença", disse a Vieente Ro<lrigut•s: "Niío morraiq nUí
eu uão tornar", disee a Salv:idor Rodrigues: e obedeci·U hum e
outro".
390 CELSO VIEIRA

clama, de joelhos: "Bendito sejais vós, Senhor S.


Lourenço, ·rogai a Deus que não nos castigue pelas blas-
fêmias que disse contra vós e·sse mau homem". E
anacoreta não houve mais rigoroso. A sua castidade
lacerante, implacável, retalhava-lhe o dorso a golpe:;
de látego, assombro dos pagés. O seu amor á pobreza
não lhe permitia como enxoval, no dizer do cronista
ela Ordem, mais que um- breviário, umas contas. um
bordão, a disciplina, o cilício, a roupeta velha, alperca-
tas de couro ou botas enlameadas e roídas, quando
não andava descalço. Erva dos campos e farinha do;;
índios eram o seu alimento.
No primitivo colégio, durante as visitas do gover-
nador, trazia um lenço atado ao pescoço, resguar
dando-lhe a nudez, porque não tinha camisa, e cha-
mava. esse" resguardo, jovialmente, a sua hipocrisia.
Por vezes, diz um biógrafo, não podendo com o peso
da sotaina e para não ser levado ás costas alheias, ca-
minhava sem ela (171).

* * *
Só, na Baia, tendo mandado á catequese os de-
mais padres, ele decide fazer todo o serviço em duas
igrejas. Só, exercita em S. Vicente, de um a outro
povoado, todos os ministérios. A gaguez, travando·
lhe penosamente a língua, redobra o tempo das mis-
sas e dos sermões (172). Gago e trópego, oficia, pre-
ga, confessa, mantem no culto divino a solenidade pos-
sível de coros e alfaias. Entra nas selvas com a mú-

(171) ANTONIO FRANCO. ltnagem ela Virtude.


(172) Ibcl;, ibd. "Dizia sempre missa e como era muito gago,
gastava de ord~ndrio neln µma horn e nli se connn1icav;:i. muitn
Nosso Senllol·",
ANCHIETA 391

sica, em procissões, alteando a cruz vitoriosa, e o can-


to das ladainhas, entoado pelos catecumenos, atrai doce-
mente a alma bravia dos. selvagens ao cFistianismo
(173).
Humildade e caridade igualavam nele o fervor
do ritualista. Provincial, governando rigidamente a
sua província, Nóbrega queria:, entretanto, dois con-
fessores: um padre, que o absolvesse, um irmão, que o
advertisse. Ouvia a palavra do seu colateral no go-
verno, Luís da Grã, como se fosse a do patriarca Iná-
cio de Loiola. Não desdenhava o juizo mais obscuro.
Inclinando-se á vontade dos superiores, desistia de
empresas já iniciadas, revogava ordens já expedidas.
Orava pelos inimigos, sabendo ou supondo que erar..1
mortos. Fustigado pela tormenta, u,ma noite, impeliu
o companheiro á porta de um seu desafecto: "Ide.
vós adiante e dizei-lhe que estou aqui e faça ele o que
quizer'". Ganhava com essa intrepidez os corações
empedernidos ou assanhados pelo ódio. Cada vez mais,
orientavam-se os passos do velho sofredor para os
lugares de maior sofrimento: hospitais e enxovias.
* :f< *
Tão expressivas quanto os feitos são as frases de
Manuel da Nóbrega. Uma lhe patenteia a magnífica
intransigêncià, quando os simuladores mascaravam

(173) B. TELLEl:li, Crónica da Companhia ti, JeS1ts. CER-


NICCHIARO, Storia 1lella M'Mica nel Bra:,•ile, pag. 20: " ... Ma-
nuel da Nóbrega, saeerdoto cli grande virtú, iJ quale ad altro
uon pensa che alla religio110 e -alia. musica, massime questa,
necessaria agli indigeni, per renderne piú dolci i Mstumi; anzi,
cgli la considerava· como una secouda religione, tantoche, spess,1
eoleva. dire: "Colla music·a o 1'mmonin', io R.l'llisco a trnrre a llf.
tutti gl 'incligeni dell 'A}nericii",
CELSO VIEIRA

nas · transações o horror. da escravatura, vendendo· QS


serviços dos aborígenes em vez das pessoas. Com
e~?é!- _distini;ão cápciosa pretendiam os leguleios reme-
diar-lhes a fortuna. "Praza a De11,s, exclam'lva
Nóbrega, que, por assim remediar os hQmens, não nos
vamos com eles ao inferno." Outra lhe perpetúa o es-
pírito de mortificação, tendo-a ele traçado, em latim,
sobre a escolha do grau de professo ou de coadjutor:
"Quizera eu, não sabendo querer fosse o que fosse,
etn tudo querer a Cristo, e este crucificado" (174):
Outra lhe condensa toda a pureza de um voto inflexí
vel e uma vida intemerata: "Mal-aventurado será
aquele, por quem se quebrar o selo virginal da Com-
panhia". Outra, inspirada pelo receio da morte de
Anchieta, refem dos tamoios, em Iperoig', manifesta o
desejo fervente do sacrifício: "Ah! meu irmão, que
vos deixei só entre inimigos e não foi eu merecedor
de morrer convosco por amor de Cristo".
O apóstolo severo, afeiçoado em colégios e aldeias
ao regime do látego e <lo jejum para as crianças
(175), ora por disciplina, ora por devoção-, tinha o
dom perene das lágrimas, uma sensibilidade que se
desfazia em pranto nos actos religiosos, na lembrança
de afectos idos, no convivia de alheias dores, no en-
levo de horas musicais (176). Sentia a beleza natural
(174) SHUO DE VASCONCELOS, Cr., liv. IV, n. 141.
(175) ANTóNIO FRANCO, Imagem da Virtude: "Ao~
pequenos não faltavam disciplinas, quando era necessário, qur>
lhes mandava dar, as quais aceitavam com muita humildade, <'
rom ser muita a pobreza e o comer .muito fraco, fazia-os jejuar
os dia.<i que a Igreja manda e ronda toda a quares~a e para
tudo lhes dava força Nosso Senhor".
(176) SIMÃO DE VASCONCELOS, Cr., liv. IV, 11.0 135:
11
•• • era terníssimo nas lâgrimas: .qualquer sentimento do Céu.-
ou toca.r de viola, ou mti.sica devota, o oonstraugia a deei'azer-s!)
ll!!la,".
ANCHIETA 393

das nossas paisagens, eJCI)rÍmindo por analogias gra-


ciosas e originais a sua admiração: "Os montes se-
melham grandes jardins e pomares, que não me lem-
bra ter visto pano de raz tão belo." Aos cinquenta e
tres anos, quando expirou, tão definhado e consumi-
do estava pela sua cruz, pelo seu labor, que parecia
contar setenta de combate e amargura. Despedira-s~'
de toda a cidade, na ante-véspera da morte, respon-
dendo aos que indagavam, surpreendidos: para onde
partia ele: - "Para o céu, a, nossa pátria".
Como justo lidara, como santo vivera. A santi-
dade abreviava-lhe os dias, imortalizando mais de-
pressa Manuel da Nóbrega, o Fundador, na constela-
ção erguida pela fé sobre as origens do Brasil.
IV

Galeria de santos: Leonardo Nunes, a invicta


fé; Aspilcueta Navarro, a imaginaçã,o; Luis da
Grã, a sabedoria; Pedro Correa, a eloquência;
João de Souza, a humildade; Domingos Pe'corela,
a inocência; Salvador Rodrigues, a submissão;
Francisco Pires e Diogo Jacome, a candidez;
António Rodrigues, a predestinação; Mateus No-
gueira, soldado e forjador, síntese plebéia da
Ordem.

Em torno de Nóbrega, sustendo a mesma arquite-


ctura, perfilam-se outros atlantes, modelados biogra-
ficamente por Anchieta.
O primeiro deles é o padre voador (177), Leonar-
do Nunes, cuja celeridade por montes e brenhas dava
ao gentio a ilusão fremente do voo. Fundador espiri-
tual de S. Vicente, em 1549, reprime desde logo a sen-
sualidade e a impiedade, que manchavam a capitania.
Reacende a fé nas almas entenebrecidas; purifica ou
dissolve alianças inconfessáveis. Pregador e celebran-
te, exorta o pai cios mamelucos, Joã 0 Ramalho, polí-
gamo facinoroso e excomungado, a sair da igreja, onde
a sua presença constitui uma profanação. Munido df'
poderes cio governador, levanta-se contra o cativeiro
injusto dos índios, alcança de vários moradores que
os libertem. E a sua coragem desafia no púlpito,,dar-

(177) Ibd., Ibd., ]tv. I, n. 68: " ... era tal o espírito, e
pressa, com que corria os lugares circumvizinhos, a pezar d"
frios, neves, e c'almns excessivas, que vieram .'.'l por.lhe por nome
da lingua do Brasil Abaré J]eblJ, que que1· dizer "Padre <lue voa"
ANCHIETA 39S

dejando anátemas, o erotismo, a ganância, a dureza de


alma dos velhos colonos ou dos novos mestiços.
Tamoios e tupis, brutos irmãos pelos quais viera
de tão longe o missionário, vagavam nas serras nevo-
entas e distantes. . . 'Como trazê-los dos alcantis e
das furnas para o Evangelho semeado á orla do mar?
Leonardo Nunes converte á sua causa, empolga no seu
voo dois homens principais - o eloquente Pedro Cor-
rea, o valoroso Manuel Chaves, - exímios sabedores
do tupi-guarani, feitos agora noviços e intérpretes da
Ordem. Esses homens traduzem o catecismo para os
selvagens, propagam nas selvas a lição de Jesus.
Incorporam-se á Companhia alguns jovens mestiços, e!
em breve, sob o tecto do seminário, os orfãos vindo!;
de Portugal têm como seus -condiscípulos, fraternal-
mente, os pequenos filhos dos índios, que os entregam
aos jesuítas, com eles vem para a margem do oceano,
para a luz do Evangelho.
Se a crença dos missionários era grande, a sm,
casa era J>obre, ainda mais pobre que a terra inculta
dos colonos. Os óbulos não cobriam as necessidade~
do sustento. Leonardo Nunes, então. conjugando o
santuário e a oficina, fez da casa de Deus mna escohi
profissional, do religioso um óperário. Era a lei vital
de S. Paulo. Forjador incansável, este malhava a bi-
gorna candente. recurvando anzois, refundindo peças,
rebatendo cunhas e facas. Aquele, que nunca fora apren-
diz nos ofícios mecânicos, engenhara um torno de pé,
onde tornejava como um artífice destro, sem cessar,
produzindo incansàvelmente rosários e coroas de pau.
Outros irmãos teciam alparcas de caragoatá. Deles
havia um, depois sacerdote, que era carpinteiro por
instinto, acepilhava por vocação, tendo erigido belos
altares, sólidas igrejas. Na risonha pobreza da comu-
nidade primitiva, tecelões e alvaneis 1 mestres de- for-
396 CELSO VIEIRA

ja e de torno laboravam com a mesma alegria em S.


Vicente, em Piratininga, ritmado o esforço pela cadên-
cia dos hinos sacros.
Até 1554, ano da sua morte, o apóstolo de S. Vi-
cente (178) padeceu com resignação a maledicência
dos injustos, a mesquinhez dos ingratos. Duas vezes,
pecadores advertidos por ele decidiram matá-lo; duas
vezes, ajoelhado, o servo de Deus esperou tranquila-
mente os golpes, que só por milagre o não abateram.
Transpondo serranias, o seu valor poude restituir aos
colonos as esposas roubadas pelos ~amoios como pau-
de a sua caridade salvar na ilha dos Patos, á cem lé-
guas de S. Vicente, um bando de náufragos castelhanos,
ameaçados pelos carijós. Escolhido para informar o
padre geral sobre as coisas da província, nos meados
de 1554, Leonardo Nunes apartou-se cio Bràsil. Havia
chegado a sua hora. Com os destroços da nau perdida
no Mar Tenebroso desapareceu o voador, erguendo
o crucifixo em uma das mãos, na outra a disciplina, e
exalando a alma num brado á misericordia infinita :
Miserere mei Deus.

* * *
Um dos gigantes da Companhia, vergóntea da
casa Aspilcueta. nobilíssima esti rpe do reino de Na-
varra, que os genealogistas aparentam com a família
de Loiola, fundador da Ordem, e a de Francisco Xa-
vier, apóstolo do Oriente, foi o padre João· Aspikueta
Navarro.
Antes de outro qualquer, aprendeu o falar dos
índios, vertendo para uso deles orações e diálogos pie-
(178) lbd., ihd ., liv. I, n.º 169: " . . . foi ele, <lepoiM d,>
Padro Nóbrega, o pl"imeiro obreiro da missão do Braail, nm
vico-Nóbregn de lil. Viceute1 um .A.)?6stolo da1uel:is pa1·tes",
ANCHIETA 397

dosos; mais do que outro qualquer, defrontou a sanha


dos alarves, empolgando o corpo da vítima para a S<' -
pultura cristã. Movi<las pela sua eloquência, as pró-
prias velhas, sanguissedentas, abandonaram o cadaver,
que em postas de carne violácea começavam a repar-
tir.
Casavam-se espontaneamente ao fervor de Aspil-
cueta a imaginação e a astúcia. Na catequese do gen-
tio, ampliada por essa inventiva, os contemporâneos
viam mais um trofe.u da sua linhagem (179). Ousada
e fecunda, a inteligência apostólica do padre renova
os ardis contra o inimigo. Se a barbaria lhe proibé,
ameaçadora, o baptismo da presa humana, ele consegue
ba,ptizá-la secretamente, no horror da festa canibales-
ca, levando sob a roupeta um lenço gotejante de água
Se a degradação dos aborígenes envergonha a terra e
desafia o ceu, ele veste o saco de penitente, vai flage-
lar-se diante das tabas, de aldeia em aldeia, sangrando
no acto expiatório -pelos selvagens, até que lhes prc,,
metem, abalados e arrependidos, não pecar outra vez.
Se a mímica dos feiticeiros impressiona o gentio, ele
tenta apropriá-la ao ensino da lei cristã, desenvol-
vendo-lhe o prestígio como instrumento religioso. A'
noite, no terreiro das ocas, fazendo visagens, espal-
mando as mãos, desferindo assobios, pisando e repi-
sando á maneira dos pagés, Aspilcueta ,Navarro anun-
ciava o reino de Deus aos canibais. ( 180) .
( 179) Ibd., ibd., liv. I, n.o 92: " ... vierão commument?.
a diz.er delle, que paree.ia qu~ andava avinculada a conversão da
gentilidade na gente AspHcueta Navarro; aludindo à conversão
que o P a.dre Mestre Fra.ncisco Xavier no mesmo tempo fazia no
Oriente e comparando-a com a que o Padre fazia no ·Brasil,
ambos da gente Aspilcueta Navarro."
(180) Ibd. ibd., liv. I, n.o 90: " .. . este inconveniente
vencia o grande fervor de Aspilcueta. . . em começando a noito
a desenrolRr sPu manto, r.omeçava elle a despregar a torrente •h
ºJ98 CELSO VIEIRA

Só para converter os grandes pecadores,


empregava-se o nobre de Espanha como servo, prin-
cipalmente nas horas de enfermidade, suportando as
injúrias mais aviltantes, o peso dos maiores fardos,
enquanto não trazia novas almas aos pés de Jesus. As
flagelações do catequista ensanguentavam as pedras
da cidade, mesmo diante da porta do governador, e
nas aldeias, conforme a lenda, ruiam os tectos em cin-
za, violentamente incendiados, se lhe não era ouvido
o conselho. Em sangue e fogo, dest'arte, relampeia
nas trevas do nosso primeiro século a efígie de Aspil-
cueta Navarro.
Pouco mais de cinco anos durou na colonia a ful-
guração dessa vida apostólica. Mandado por Nóbrega
110s fins de 1553, o padre Navarro incorporou-se á expe-
dição do castelhano Bruxa de Espinhoso, que se aventu-
rava pelos sertões da Baia á cata de ouro. "Eles vão a
buscar ouro - escreve Anchieta, - e ele (o padre) vai
a buscar tesouro de almas, que naquelas partes há mais
copioso . .. " ( 181). Os brancos da expedição eram
doze, afeitos á língua dos naturais e ao trato das sel-
vas, acompanhadQs por muitos índios. Jornadeando
pelos sertões, ano e meio, os expedicionários vence-
ram quase trezentos e cinquenta léguas, desde Portli
Seguro, através de serranias fragosas, rios sem conta,
planícies que semelhavam pomares, terras pluviais,
sombreadas de árvores corpulen_tas, joazeiros sempre
moços, no verdor luzidio e eterno da sua fronde. Dor-·
miam ao relento, sob as estrelas ; sangravam-se de

sua cloqueneia, levantando a \"OZ, pregando-lhes os mysterios da


fé, andando em roda delles, batendo pé, espalmando mãos, fa-
zendo as mesmas pausas, quebras e espantes costumados entre
11eus pregadores, para mais os agrodar e persuadir."
(181) ANCHIETA, carta ele julho de 1554.
ANCHIETA 399

pé nas suas doenças; curavam as suas feridas com o


mel de abelhas; nutriam-se escassamente de água e
de farinha. Em torno deles, uma fauna bravia ou in-
sidiosa: gatos e porcos montezes, onças e casca veis.
símios e antas. Pássaros de toda a cor, de toda a casta,
revoavam no meandro e na verdura ela folhagem. De
onde em onde, manava do·s troncos uma resina, escura
e densa, com que os sertanistas calafetavam os bar-
cos, á margem dos rios.- Eles sentiram nos ermos cal-
cinados, por vezes, a angústia da fome e da sede, avis-
taram pelo caminho, galgando a serra, blocos de már-
more, alterosos, mas não descobriram nessas paragens
infinitas e agrestes o ouro desejado.
A desilusão do padre Navarro, caçador de almas,
foi maior que a deles. Nas aldeias horríveis dos ta-
puias e dos catiguçús, nações estranha s e carniceira,,
o jesuíta assistiu, perplexo, aos ritos singulares do
maracá, o Amabazorai, cabaça pintada á guiza de ca-
beça humana, em torno da qual bailavam os índios,
com outras cabeças iguais na mão, retorcendo a boca
espumante, gesticulando como doidos, uivando como
perros, a esperar que lhes brotassem do campo os
mantimentos, sem trabalho, e as flechas; por si mes-
mas, fossem á mata flechar os veados. Melancolica-
mente, o pregoeiro da lei divina assistiu a cerimónias
fúnebres ainda não vistas na matança dos inimigos. A'
porta da aldeia banhada pelo rjo Monail ergueu uma
cruz, uma capela, e foi por outras aldeias, baptizando,
instruindo os selvagens, forte na sua esperança e na
sua doutrina. Mas lidava infrutíferamente, porque os
bugres não lhe retinham as palavras, embora as ou-
vissem com a legria. Tudo esquecendo, logo depois
da sua partida, eles tornavam á delícia dos vinhos e
á crueza das guerras. Sem que fosse pelos cristãos
'100 CELSO VIEIRA

povoada, n~o via o missionário como redimir, cristia-


nizar a terra dos canibais (182).
Envelhecido e exangue, pouco sobreviveu Aspil-
cueta á fadiga herculea dessa jornada. Tão macilento
viera de caminhos tão áridos que aos irmãos pa-
recia a imagem da própria morte. Serenamente, em
1555, adormeceu para sempre o evangelisador, ban-
deirante espanhol da catequese.

* * *
Assim desfilariam nos apontamentos ele Anchiet:1,
uma após outra, as efígies mais behts e mais graves.
Fixando-as, revemos os capitães á milícia eclesiástica,
sangrentamente disciplinada para o triunfo espiritual.
E assinalamos os seus atributos heroicos: A perse-
verança, o equilíbrio, a ciência das t oisas divinas em
Luis da Grã, reitor do colégio de Coimbra, que foi
colateral de Nóbrega no seu provincialato, em segui-
da provincial, e como Nóbrega se fez modelo de ca-
ridade através dos ciclones e das pestes, hierofante do
apostolado na costa e nos sertões, vencedor de here-
ges e feiticeiros, convertendo milhares de almas gen-
tílicas, orientando o nomadismo das tribos para as
aldeias cristãs; edificadas no seu itinerário. A elo-
quência em Pedro Correia, primeiro noviço do Brasil,
antigo caçador de índios, que se tornou a boca de ouro
da Ordem, pregando ao gentio cada noite, longamen-
te, sob as estrelas, e foi o enlevo das hordas sanguiná-
rias, antes de ser, pelo martírio, o das hostes ceies-

(182)ASPILCUETA NAVARRO, carta de 1555 aos irmãos


àa Companhia: "O fructo solido desta terra parece que sorá
quando se for povoundo de christãos". Publicada na "Historia.
do Brasil", de Varnhagen, tomo I, 1.a ed., e na .Revista do Àr-
quivo Público Mineiro, ano VI, pngs. 1.159 a 1.162.
ANCHIETA 401

tiais. A humildade em João de Sousa, martir corno


Pedro Corrêa, e devotado aos mais baixos .oficios
para aniquilar no silêncio de uma perfeição rastejau-
te as vaidades do mundo. A impavidez e a resigna-
ção no padre Manuel de Paiva, que se deixava apre-
goar pelas ruas, sendo um fidalgo, como negro da
Ordem, posto á venda, com a mesma impassibilidade
ouvia ameaças e injúrias, sendo um atleta, e marcha-
va diante dos soldados portuguêses, em combate, al-
çando a cruz sob nuvens de flechas. A inocência em
Domingos Pecorela, servo dos próprios servos, irmão
do próprio jumento, que ele ornava e conduzia, reti-
rando-lhe metade da carga para os seus ombros. A
obediência no padre Salvador Rodrigues, agonisante,
que não ousava morrer, porque lh'o proibira Manuel
da Nóbrega, indo á capitania de S. Vicente, enquanto
desse lugar não voltasse ao leito do moribundo. A
candidez em Francisco Pires e Diogo Jacome, que fin-
daram rupós uma vida tormentosa, angelicamente, com
o sorriso da graça infantil nos lábios roxeados pela
morte. O e_scrúpulo, a suave e heroica diligência em
Gregório Serrão, padre reitor, padre cozinheiro, ma-
ravilha de paz e boa vontade nos trabalhos mais rudes,
nas doenças mais longas. A predestinação em Antô-
nio Rodrigues, homem d'armas, que venceu a pé du-
zentas léguas, desde o Rio da Prata a S. Vicente, sus-
pirando pelo regresso á Lisboa, e ali foi tocado por
um lampejo do céu, en.trou na Companhia, subiu de
noviço a padre, tendo vivido quatorze anos, como dou-
trinador de feras, construtor de templos. O domínio
implacável sobre os apetites rebeldes em Mateus No-
gueira, outrora soldado português na Africa, entre
os mouros e os leões, depois soldado e ferreiro no Es-
pírito Santo, afinal introduzido na casa de S. Vicente,
como noviço, por Leonardo Nunes.
402 CELSO VIEIRA

* * *
Ausente, respir'ando a morte na violência dos com-
bates ferozes e do clima africano, ele fôra traido
pela mulher, que a sua piedade cristã deixara sobre-
viver ao pecado. Vindo para o Brasil, acabou o guer-
reiro, exemplarmente, como religioso, a punir o corpo
no seu retiro (183), malhar o ferro na sua bigorna.
Saiam-lhe das mãos calosas para as dos índios, que o
adoravam por esses milagres de forjador, machados,
cunhas e fokes. Vulcanicamente, revelava Mateus
Nogueira o Brasil da idade de ferro ao Brasil da ida-
de ele pedra. E o ferreiro-atleta, reverenciado· como
um ídolo benfeitor, deslumbrava o gentio com o sen
poder siderotécn:ico, as suas dádivas de ferro, ensinan-
do-lhe o catecismo, atraindo-lhe os filhos ao seminá·-
rio. Manuel da Nóbrega disse uma vez de Mateus No-
gueira : " ... ferreiro de Jesus Cristo, o qual, posto
que com palavras não prega, fá-lo com obras e mar-
teladas" (184).
Talhado na robustez de um vasto arcabouço, ele
consumiu a rijeza do corpo e sublimou a· ardência da
aJma na forja, na devoção, no cilício. Venceu as ten-
tações da carne a poder de açoites e jejuns. Em doze
anos de esforço e penitência, :liundindo as horas de
trabalho e as horas de tormento nessa estrepitosa,
coru,scante obra sideral, Mateus liquidou a sua
fortaleza nativa. Quando já não podia ter-se de

(183) SIMÃO D'E VASCONCELOS, Cr., liv, II, nl 0 120:


" ... tomou por e:ioomplo a seu mestre Leonardo Nw1es1 especial-
mente na resolução eficaz de castigar o seu corpo, o qual tratava
como tratara um jumento de carga.
(184) Diálogo do padre N6brega sobre a conversão do gen•
tio: interloootores, Gonçalo Alves e Ma.theus Nogueira ..
ANCHIETA

pé nem estar mesmo de joelhos, amparava-se a uma


sorte de muletas, durante os exercícios religiosos,
trazendo ao pescoço um tiracolo para erguer na prece
as mãos regeladas, semi-mortas.
Por últitno, o ferreiro-espectro, quase extinto, era
a sombra inerte e dolorosa de uma vontade férrea, co-
lectiva, molclada em criaturas diversas pelo sangue,
pelo saber, pela hierarquia, mas igualmente invencí-
veis na militante unidade cristã do seu ideal, desde
Inácio de Azevedo, excelso visitador e martir, ao obs-
curo irmão Fabiano, desde Gonçalo de Oliveira, o ca-
tequista ilustre;!, a Gaspar Lourenço, o' inte11prete mes-
tiço, desde Antônio Blasquez, o epistológrafo, a Vi-
cente Rodrigues, o hortelão, e tantos outros ainda,
como Simão Gonçalves e Fernão Luís, Antônio Pire-,
e Braz Lourenço, Manuel Viegas e Manuel de Cha-
ves, artífices da obra prima de Loiola no século XVI,
forjadores do mesmo signo de humanidade, cultura e
fé para o Brasil.
V

última jornada á Vitória. O conselheiro da


casa do Espírito Santo. Despedida. Morte em
Reritiba. Funeral. Glorificação de Anchieta.

Joseph torQou ainda á Vitória, quase moribundo,


por obediência a um desejo do superior, conquanto os
padres de Reritiba e de Guarapari, ouvidos pelo en-·
fermo, lhe des.aprovassem a j9rnada, que supunham
fatal. "Padre Jerónimo, dizia ele a um dos compa-
nheiros, estou determinado em ir para a vila, porque
não quero deixar exemplo aos moços de pouca obedi-
ência, e que se diga que, sendo eu desta idade, deixei
exemplo menos bom". Como os índios chorassem á
despedida, pressentindo-lhe a morte, Joseph tranqui-
lisou os seus amigos selvagens: "Fiquem ai conten-
tes, que ainda nos hemos de tornar a ver nesta vida".
Conselheiro da casa do Espírito Santo, não tardou
que assumisse de n·ovo ·o governo, por escolha do pro-
vincial, aguardando o novo superior, Pedro Soares,
durante cinco ou seis meses. Anchieta previra o en-
cargo, aliás, na aldeia de Reritiba, como testemunhou
o padre Braz Lourenço. E a lenda contin.ua a envol-
ver-lhe amorosamente o perfil no mesmo nimbo. Com
o toque da sua mão ele salva o amigo João Soares;
profetiza a uma devota o regresso do marido, há oito
anos ausente; escrevendo a um padre da Companhia,
que lhe mandara da vila sumptuosa de Olinda, sem
nomear o doador, certa esmola destinada aos pobres
da casa do ~spírito Santo, adivinha o nome d? grande
ANCHIETA 405

esmoler, Cristovão Paes. A derradeira profecia, em


Vitória, foi a da entrada de um navio com o trigo e o
vinho, que faltavam aos moradores, até aos sacerdo-
tes para o holocausto da missa.
Enfim, chegando á Vitória .o novo superior, Pedro
Soares, voltou Anchieta a Reritiba pela última vez.
No adeus carinhoso a João Soares despediu-se do
mundo: "Filho meu, ficai-vos; jamais nos comunica-
remos nesta vida; ainda que vós me haveis de tornar
a ver neste mesmo sítio, será em tempo que vos não
·poderei falar."
O seu regresso á aldeia ·foi celebrado pelo chôro
dos índios, cujas lamentações ecoam na dor e no pra-
zer com a mesma retumbância. Durou-lhe tres sema-
nas, então, a vida bruxoleante, ainda sorridente á pró~
pria agonia, sem um queixume. Tan.to podia nele o
amor inefável do próximo, que uma noite se ergueu
do leito, espectralmente; seguiu até á cozinha, trôpe-
go e tacteante, para aviar o remédio a outro enfermo.
Os últimos passos nocturnos do santo eram de cari--
dade cristã. Exânime e frio, ele caiu de repente no
chão, como um lírio desfeito por uma rajada. Foi
para a cela em braços, pediu com ansiedade o Viático.
Cinco sacerdotes oravam, ajoelhados á cabeceira. E
na algidez crescente de todo o corpo a agonia quieta
e suave do bemaventurndo era como um celeste mur-
múrio, em que se exalavam com a própria, vida os
nomes de Jesus e de Maria. Assim expirou Joseph d1!
Anchieta num domingo, nove de junho de 1597, com
63 anos, de idade, sendo 46 de religião, e destes 44 vi-

. .
vidos aipostolicamente no Brasil.
~

Um brado reper-cutiria, propagando-se a notícia,


desde o planalto brumoso aos sertõts adustos, Os 111.-
-406 CELSO VIEIRA

mentas das tribos amigas, evangelizadas pelo missio-


rário em 44 anos de peregrinações, desvelos, sacrifí-
cios, combates, os seus prantos bárbaros como os seus
cantos de guerra encheriam as selvas. Caira o grão-
pagé dos cristãos, emudecera a grande voz, que havia
protestado nas origens brasileiras, em nome da liber-
dade, contra a velha opressão do homem pelo homem.
Alçada a cruz, processionalmente, os índios de
Reritiba levaram-lhe o corpo fechado em uma caixa
de cedro até á vila de Vitória, por toda uma distân-
cia agreste de 14 ou 15 léguas, marchando com eles
o padre João Fernandes, revestido de alva e estola.
Nesse pequeno féretro, leve como um berço, repousa-
va meio 6éculo de heroicidade cristã. Por intercolu-
nios, labirintos, arcarias, degraus tapetados de musgo,
através das florestas, ia descendo e ecoando o séquito.
Guerreiros bronzeos, carpideiras semi-nuas, piás in-
génuos lamentavam o eclipse da grande força miracu-
losa. Na câmara ardente do ocaso, longe, dir-se-ia que·
a hora vesperal gotejava sangue... Depois, ao anoi-
tecer, o cortejo seguia entre massas, que eram tron-
cos, 'fantasmas, que eram palmeiras, vultos colossais e
montanhosos, d enteadas bocas de caverna.. . Ouvia-
se a espaços o coaxar dos batraquios, um grito de ave
nocturna varando a solidão, o chôro de alguma fonte
oculta nas matas, sob o limo das pedras carcomidas
Penoso era o caminho de tantas léguas, mas não sen-
tiam fadiga ou sono os caminhantes. Ramos em flor
pendiam sobre o ataúde, exalando o perfume silve!>-
tre. A' passagem de um rio, em canoa, cessou a fúria
das ondas na presença do corpo de Anchieta, e sobre
o leve despojo, simbolicamente, resplandecia o Cru-
zeiro do Sul.
.. .. ..
ANCHIETA i07

Quando o féretro chegou à Vitória, houve muito ala-


rido cm todo o povo, no dizer dos cronistas. Yieram ao
porto recebê-lo o capitão da terra, Miguel de Azeredo,
o prelado administrador, Bartolomeu Simões Pereira,
o clero, os franciscanos, os irmãos da Misericórdia
com o aparato das suas andas, as confrarias de todas
as igrejas com os seus lumes erguidos. Aberto ao sol
o ataúde 1 por instâncias de João Soares, quatro dias
wpós o falecimento, nenhum odor se evolava do corpo
inanimado, mas incorrupto. Seguindo à procissão até á
porta do templo, construido pelos jesuítas, ai foi guar-
dado o féretro para as exéquias de tres nocturnos. Bar-
tolomeu Simões fez no dia.subsequente, depois da missa
cantada, o elogio sacro de Anchieta, dizendo-lhe a
vida, lembrando "o Missionário Santo, o Bemàventu-
rado, o Apóstolo do Brasil", e essas palavras reflores-
ceram no espírito das novas gerações.

Os religiosos deram sepultura ao catequista, en-


fim, junto á de Gregório Serrão, como ele predissera:
"vade, frater, non longa enini dies nos loco conj1mget.'
Pela última vez, na terra, encontravam-se os dois
amigos. Mais tarde, vasio das suas r.elíquias (185) o
túmulo de Anchieta, sobrepoz-lhe a piedade uma lá-
pide comemorativa (186).

(185) XAVIER :MARQUES, Conmnicações feitas ao lnstih1to


Historico da Baía.
(186) HIC IACVIT VENE
RAB P IOSEPHVS
DE ANCHIETA soe.
L BRASILIAE APOST
ET NOVI ORB NO
WS THAVM.ATVRO
OBIIT RE;IUTifü\.
408 CELSO VIEIRA

Joseph, o taumaturgo, exalçado por decreto de l O


de agosto de 1736, quando o papa Clemente XII lhe
reconheceu_, em grau heroico, as virtudes teologais e
cardiais, ainda não saiu do Vaticano para os altares,
do processo de canonização para a magnificência d:i
li~urgia e do calendário. Através dos séculos, porém,
vibra na mesma lenda, como na _mesma glória, o culto
de Anchieta, pobre e inútil Joseph, santificado pela cons-
ciência de um povo.
* * *
Realizações econômicas, científicas e militares
compõetn orgulhosos, mas precários sistemas nacio-
nais, frágeis colossos de egoismo e vaidade, pesando
efemeramente sobre a terra, se os não aviventa e con-
solida . a força moral. · Vinculando-se á formaçã . ..1
historica do po\fo brasileiro, o Evangelho perdura em
toda a sua idealidade, através do jesuitismo anchieta-
DIE IX IVNA N N
MDXCVII
Insc1içãp rnal, divergindo um pouco da que foi· comunicada
polo sr. Sá Benevides a Ramiz Galvão em 20 de dezembro
ele 1876. (An. da. Bib. Nao., v. II, f. I, pag. 126). Mais '1e
trinta e seis anos depois, transmitiu-a o sr. Lordello dos Santo.;,
cm agosto de 1913, a Xavier Marques (Comunicação feita
por este ao bistitu.to Histórico da. Baía), com algumas variantes
ortográficas. E' a mesma que o Sr. Pereira de V a.sc·oncelos im-
primiu no Ens~o sobre a h,istoria e estatística da. provincia ào
Espírito Santo, em 1858, ap.enas diferenciada, inexactamente, por
um tempo de verbo: jacet, em vez de jacuit.
Examinando fotografias, que nos foram envia~ reeente-
mente do Espirito Santo, vemos insculpidas 110 frontão do monu ..
men-to cívico, erigido em 7 de setembro de 1922 no Apóstolo do
Brasil, sobre o túmulo vasio, as datas do seu nascimento e da gua
morte: 1533-1597. Destas a. primeira é um erro crouo16gico e a
sUA correção impõe-se ao governo loca.!. Joseph de Anchieta
unaeeu em 19 do março d& 1534. OO'Ileulte-se a prillleire. nom
(pai, ~7)"
ANCHIETA 409

no, como se faz dinâmica social para os Estados Uni-


dos, através do puritanismo colonizador.
Irmanadas pela tradição, refulgem no mesmo san-
tuário as imagens apostólicas da selva. Fraternalmen-
te repassam. . . Joseph de Anchieta e Manuel da Nó-
brega, tantos outros nomes e lumes da Compa--
nhia de Jesus, perfis aureolados, clareiam o ápice da
vida colonial. Quanto mais se humilhava neles o pó,
mais a fé os engrandecia para o Brasil. Na consagra-
ção do heroismo e da humildade, atributos <lesses ir-
mãos, renasce ainda, por vezes, a flama espiritual
dos nossos dias.
Baixando ás plagas tropicais, onde se perpetua-
vam os sacrifícios humanos, a alma evangélica fundou
a urbs latino-americana para maior glória de Deus, ad
1najorem Dei gloriam, interpretada a legenda cósmica da
Ordem num alto e puro sentido. Ensinou a lei, trans-
mitiu a luz. Deu alicerces morais á família inculta, á
sociedade informe.
Os primeiros jesuitas foram acolhidos na, Baía
"á maneira de anjos vindos do céu", e o mesmo pres-
tígio celeste envolveu, depois disso, os que vieram nas
expediçõe~ de 1550 e 1553. É que eles traziam consi-
go as palavras candentes da fé, os dons luminosos do
saber e da arte. Com eles aprenderam os filhos da
terra a lavrar o solo, fundir os metais, erguer colunas
e altares, possuir letras e números; deles receberam
a água do baptismo e o fogo do espírito nos santuá-
rios, nas escolas, nas bficinas.
A transcendente ficção dos emissários ideados
pelo misticísmo nórdico, semeadores e arquitectos, an-
jos e mestres, foi com Anchieta e os seus irmãos uma
realidade social para as origens brasileiras no século
XVI - epílogo do nosso mundo selvagem, prelúdio
da nossa vida cristã, ·
ELUCIDARIO
I

LETRAS ANCHIETANAS

Copiosa e constante, sob vá_rias formas, a produ-


ção anchietana vai desde a mentalidade auroral dos
vinte anos, em Piratininga, até aos pensamentos e ás
v1soes crepusculares de Reritiba. Dispersando-3e
·quasi toda em folhas avulsas e instantaneas, ao desa-
brochar com a timidez religiosa da obediência, não
tinha senão raramente aquele interesse humano, que
eternisa as letras do passado. Muitas dessas poesias
arcaicas, inanimadas na frieza da sua correcção latina
ou vernácula, nada mais dizem hoje ao espírito e á
sensibilidade. Fatores ocasionais circunscreviam-lhe
já o destino á festa de uma aldeia, ao doutrinamento
de um principal ou á recepção de um visitador.
Materialmente, a bibliografia procura ainda hoje
recompô-las e coordena-las, esquadrinhando os arqui-
vos da Ordem. Quantas não se perderam ao acaso de
um sôpro, de uma flama, de um gesto, ou devoradas
pela traça dQs velhos manuscritos, como os seus
apontamentos sôbre os primeiros missionários da Com-
panhia de Jesus, vindos a,o Brasil? (1) .Quantos não

(1) SOTIVEL - Historio, et vita Clarorom Patr-i:m qui rn,


Brasília vixerunt. Referem-se aos Apontamentos, de Anchieta o pa-
dre Simão de Vasconcelos na sua Crônica da Conipanhia de Jesus ão
Eatado do Brasil, e o 'padre Antonio Franco, depois dele, na
Imagem da virtude em o noviciado <la Compa11l1ia de J r.rn.~ no
RMl CoUgio àe Coimbra.
CELSO VIEIRA

têm, hoje, impugnada a fidelidade da sua tradução


em português (2) ou não ressurgem como hipóteses
eruditas, algumas insubsistentes? (3) Uma edição
actual das obras completas de Anchieta, reunindo mesmo
os trabalhos duvidosos, seria na realidade a mais in-
completa das colectâneas. Até onde os inéditos exis-
tentes nos arquivos ela Ordem ou as descobertas elos
bibliófilos poderão modificar o nosso conceito não o
sabemos.
De qualquer modo, a variedade anchietana compre-
ende, além dos trabalhos didáticos, ora coligidos ou
apenas indicados pelos bibliógrafos, as cartas e os ser-
mões (4), os cantos (5), autos e mistérios (6), poesias
(2) BATISTA CAETANO DE ALMEIDA NOGUEIRA -
Canto8 do Padre Ànchieta. "Diário Oficial", de 11-15 dezembro
1882: "C'omo se vê, a tradução do padre João da Cunha será
tudo o que quizerem, mas não é, de modo nenhum, t_radução dos
versos do padre Anehieta, ainda fazendo de eonta que, em .conse-
quência dos erros de cópia, está muito alterado o texto; arran-
jem-se as palavras tupís como quizerem e sem sujeição nem ao
metro, nem à rima, e não é possivel. ainda assim, concordar tra-
du~ão e texto."
(3) Inlformações e fragmentos hist&ricos do Padre Joseph de
ÀMhieta (1584-1586), publicados por CAPISTlv\NO DE ABREU,
Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1886.
( 4) Cartas, informações, fragn1entos hist6ricos e sermões do
Padre Joseph, de Ànchieta, S. J. (1554-1594). Outras peças do
mesmo gênero devem existir, manuscritas, nos arquivos da Com-
panhia.
(5) ANTONIO FRANCO. Vida do A.dmirável Padre José
de Ànr11ieta: "Como era muito destro nas quatro linguas, Portu-
guesa, Castelhana, Latina e BrasHica, traduziu em todas elas em
romances pios e mui engraçados as cantigas profa:nas que anda·
vnm em uso."
(6) PERO ROIZ, Vida do P. Anchieta liv. I, cap. IX:
"Entre outras muitas fez uma obra. que se representou em
dlversaa partes com grande ap1auso ... " Simão de V a.sconeelos
fala de várias comédias. Sotivel consigna tambem na sua rela•
.;ão: Drama ad extirpanda Brasiliae i•itia.
ANCHIETA 41;

esparsas, um poema religioso (7), um poema heroico


(8), é as biografias constantes da lista de Sotivel.
No gênero epistolar dis,criminamos as cartas mera-
mente eclesiásticas, relatórios da catequese, e as que
foram escritas sôbre a natureza ou a formação do Brn--
sil colonial. Entre os documentos mais vetustos da
nossa história, sobreleva a sua autoridade com o pro··
veito de uma leitura singular. Medida, clareza e des-
pretensão caracteris,";m a linguagem; de onde em onde.
o estilo é forte, a narrativa fluida, a observação feliz.
Em harmonia com os ideais cristãos, evangelizados
ás tribus, resulta por vezes o poder mental do. homo
sapiens, transparece a paixão do conhecimento directo
e objectivo, testemunhado pelos sentidos, agudamente,
fixando nas impressões e nos conceitos uma tendên -
cia de naturalista, que a piedade não faz menos ar-
guto e exacto. Com a sua epístola sôbre os ares, as
plantas e os bichos de S. Vicente, a mais pitores,ca e
notável dentre as cartas já divulgadas, foi Joseph de
Anchieta, não obstante a ingenuida,de ou simpleza de
algumas reflexões, o precursor dos sábios europeus, que
nos ilustraram ou nos enriqueceram a história natu-
ral. Dela poude afirmar convictamente o prefaciador
á edição da Academia Real de Ciências de Lisbôa, em
· 1812: " ... He um monumento das Virtudes, como da
grande instrução daquelle ilustre J esuit-a ... " Mais
do que a terra, conheceu-lhe Anchieta o homem. Sen-
timentos e superstições, costumes e perfis indígenas
tiveram sagaz observador nesse místico, e as figuras,
os episódios selvagens da carta de Iperoig, por exem-

(7) Poema em louvor da Virgem Nossa Senhora, De Beata


Virgin11 Dei Matre Maria.
(8) De rebus gestfa Men tle Sá,
-il6 CELSO VIEIRA

pio, dão•lhc ainda hoje um relêvo st-111 par 110 episto-


lário -brasileiro do século XVI.

Duas modalidades inconfundíveis apresenta a poe-


sia anchie.tana : uma rústica e popular, série de canto~
em português, espanhol e tupí; outra clássica e era
dita, o poema em louvor <la Virgem, De Beata Virgine
Dei Mater Maria, imenso rosário constituido por mais
de cinco mil' pérolas cristãs do Lácio, colhidas á orla
<lo mar de Iperoig (9). Se o tivesse folheado, não es-
creveria certamente Remy de Gourmont que os der
radeiros acentos, os suspiros extremos da poesia ecle-
siástica, em ·iatim, haviam sido o Stabat Mater e o Dic,
lrae (10).
Anchieta retoma e desenvolve nos sonoros dísticos.
em que êle glorifica Nossa Senhora, o lirismo
dos monges-poetas, cuja inspiração medieval desfo-

(9) Desde o prelúdio ti. Recommenàatio, pudemos contar


exatamente 5.902 versos ou 2.951 dísticos, incluindo as Hora,-
Immac-ulatissimae Conceptionis Virginis Mariae, acresecuta<htR à
Deàicatio Operis na publicação feita pelo cronista Simão de Vas-
concelos. s,,m estas, o poema em louvor da Virgem eompõe-se
de 5.786 VNsos ou 2.893 dísticos. Rectifícamos assim a contagem
dos Padres Pero Roiz (5.732 versos ou 2.~66 distieos) e do
Padre Simão de Vasconcelos (4.172 versos ou 2.086 clístícos).
Em 1940, foi luxuosamente editado pelo Arquivo Nacional o
texto latino com a \'ersão de A. Cardoso K .T., que se- apreBt'nta
como tradutor de valores do poema no ritmo da sua linguagem.
- ". . . tradução valorisàda, escreve, é o~ nome que devemos dar
ao trabalho .. , não escolhemos nem o verso nem a prosa, mas
uma participação de ambos - o ritmo - harmonia de que já
uson Herculano na Voz ào Profeta e de que muitos· dos modernoR
tiraram efeitos ·surprepndentes como Nuno de Montem6r no C'ân.
t.íco da Dôr ( À.mor àe Deu..'l e da Terra)."
(10) REMY DE Gül'R~rü:N"T. Lc latin mystique..
ANCHIETA 417

lhou tantas açucenas aos pés de Maria ou lhe ergueu


a imagem sôbre os arrebóis, com a doçura da Ave.
preclara maris stella, a Alma Redemptoris ou a Salve
Regina, os louvores de S. Bernardo e as preces de S.
Hildegarda, o hinário de Anselmo, a·rcebispo de Can-
torberyt as estrofes musicais de Adam Saint-Victor ou
a Ave Mmidi spes, do Papa Inocencio UI. ~le continua
o ciclo anônimo da Virgem, renovando meta foras, sím -
bolos, antiteses, a própria composição artificial dos hi-
nos alfabéticos, deleite e requinte de Sedulius.
Como fato literário, a poesia anchietana, consubs-
tanciada em. versos elegíacos nesse trabalho, será jul-
gada pelos doutos uma obra considerável de latim
místico, emanação do ·c ulto da mãe de Deus, sobrevi-
vente ao espírito medieval, conquanto só tenha dele
o catolicismo, aspirando á energia e pureza dos clás-
sicos na sua religiosidade.

• e •

Sotithey, historiador e protestante, que foi tam-


bem o poeta, da escola inglesa do Lago, descobriu-lhe
"fulgores de poesia e pai.Tão". Religiosam~nte, o poe-
ma decorre da Bíblia e do Breviário. Esteticamente,
do humanismo enraizado no Lácio, renovando em seu:;
hexâmetros e pentâmetros a cadência das Elegias ovi-
dianas. Subjectivamente, dos pendores quasi medievais
dessa natureza ascético-mistica, embora dinâmica no
apostolado, para a clausura meditativa e o cilício mor-
tificante, a renúncia e o êxtase, a purificação do mun ·
do interior e o holocausto necessário á conquista da
Bemaventurança.
Anchieta reuniu, metrificando-lhe o tema, as aqm·
sições humanísticas e os preceitos católicos. É como
se as flores sacras do Antigo e do Novo Testamento,
418 CELSO VIEIRA

as próprias flores teolôgicas dos Santos Padres da


Igreja, lhe desabotoassem no culto de· Maria, á sombra
dos loureiros clássicos de Roma.
Em paráfrases, reminiscências, variantes modu-
ladas pelo seu estro, sob a guarda feroz dos tamoi•)S
de Iperoig, lacrimejam as fontes bíblicas, rumorejam
as fontes pagãs, umas e outras inesgotáveis, borbu-
lhando aos pés de Nossa Senhora. Virgílio e Ovídio,
Tibulo e Propércio, como Da,vid e Salomão, o Ecle-
siastes e os profetas, S. Paulo, S. Agostinho, S.
Bernardo, S. Boaventura, toda uma legião de _poetas,
e sábios, e santos, os magos e os mestres do seu es-
pírito, perpassam com estrofes ou versículos, cânti-
cos ou lamentos, epístolas ou reflexões, imagens ou
idéias, fecundando-lhe a Musa. Diriamos que a vetus
ta sabedoria das Escrituras, latinisada, reveste o man ·
to de púrpura e cinge o ramo de louro do classicismo.
ImperfeitQ o plano, excessi-V'o o ornato, quasi mo-
nótono o desdobramento dos estados de consciência,,
fulgura; o poema, entretanto, nos melhores trechos,
quer· pelos dons estilísticos de clareza, elegância e har-
monia, quer pela humanidade empolgante dos valores
subjectivos. Se através da cadência e da correcção o
humanista é admirável, na profundeza das suas reve ·
lações o asceta é comovedor. Elementos de tragédia
e lirismo, de poesia e paixão, vislumbrados por Sou-
. they, dominam a espaços os demais, len.dários ou des-
critivos.
Com a veemência dos seus afectos, das suas incli ·
nações, amando os castos, os crentes, os pobres, mal-
dizendo os ímpio& da Antiguidade e os heréticos da
Reforma, a idolatria sensual e a tirania orgulhosa,
identificamos, então, a Psiqué anchietana. De onde em
onde, intercala-se á narrativa um solilóquio. E a vida
interior, destacando-se dos episódios, recompõe o mun-
ANCHIETA 419

do secreto em que se deplora ou se desvenda a alma


de um anacoreta nas suas inquietações e nos seus con-
trastes.
Atormentado pela concupiscência, dominadora
dos mais fortes, como S. Jeronimo no deserto, Anchie-
ta personalisa a tentação universal. Por vezes, long:.>.·
mente, recordando as emoções, revivendo a insônia
e a tortura das noites cálidas em que Eros inflama-
va os desejos á adolescência, chora a queda huma-
na da alma, a perda humana da virgindade. Nada
mais angustioso que êsse remorso do homem no após-
tolo das selvas, êsse instante adamita do pecador no
missionário. A castidade é o tormento e a esperanç,,
elo seu coração, voltado para a fonte celeste, que o ba
nha e purifica:
Tu mihi cor vivis purificabis aquis.
Une-se á contrição o amor filial do canarino ext ·
lado e órfão, desde os 13 ou 14 anos de idade sem pai,
sem mãe, sem ipátria, vagueando por terras alheias ou
bárbaras, desprendido moralmente de todos os víncu ·
los do sangue e <lo solo. O sentimento de abandono
migratório, de ausência e expatriação do filho pródi-
go, geme nos versos cadenciados pelo metro das Ele-
gias:
Et procul aufugiens, pa:trem matremque reliqui,
Offendens factis teque Deumque meis.
Distante do la·r, terá êle na Virgem o novo ca-
rinho materno. Confidencia-lhe os êrros, quando cer-
tos actos se afiguram delitos de réprobo, exagerada-
mente, aos seus escrúpulos de noviço; defende-lhe o
nome e o dogma, irado pelas blasfêmias de Helvidio
e Calvino.
4iO CELSO VIEIRA

A hiperdulia reflorescendo em primavera, desde


muito. abre-lhe o -coração á presença vitoriosa do
Bem, ainda que o Mal nos avassale e escureça os dias,
ensanguente os berços, envenene os frutos da terra.
Se o lavor do ·poema lhe ,é um refúgio á castidade, o
culto da Mãe de Deus, visitadora dos enfermos, do-;
navegantes, dos presos, dos cativos nas suas algemas,
dos moribundos na sua agonia, dos pecadores arrepen-
didos, mas principalmente dos religiosos enclausurados,
bafeja-lhe o Canto da Visitação, ad1Ílirável trecho do
poema. Nossa Senhora infunde-lhe a graça do amor
materno com que o visitante de lperoig, buscando
em vão o martírio, adapta e embala no seu degredo o
marabá da tribu.
Então, uma· das suas maiores tristezas naquelas
,paragens foi o destino sem a aureola de mártir, glória
da eterna Bemaventurança. Queria êle fazer da vida
uma hóstia ao Senhor, e o exemplo do martirológio
é que o impele, o arrebata em jornadas lacerantes, som-
bras de eclipse, duras penas de cativeiro, medindo o::;
pressentimentos e sofrimentos da Virgem Mãe, até á
cruz do Golgota, aos cimos e aos versos doloroso,;
onde sangram dois corações - o de Jesus e o de Maria.
Simbolicamente varado pelas mesmas lanças, a sofre;-
e a brilhar, vemos-lhe o coração de poeta nas estro-
fes, irradiando sob os mesmos espinhos.
Assim, o poema reflecte e concentra, por vezes,
não só as imagens, mas tambem. os segredos e aspi-
rações da grande Psiqué anchietana, que em Iperoig
tanto desejou a morte concedida aos heróis, um final
semdhante ao dos Irmãos Pedro Correa e João
de Souza, trucidados pelos carijós.
A' crítica literária não pertencem, mas evidente-
mente á prática religiosa, os cantos ,populares de An-
ANCHIETA -i2I

chieta, originais ou transpostos-da lingua geral, como


O Pelote domingueiro. Escapa-lhe tambem o julgamento
de autos e mistérios, como Jesus nas festas de S. Louren-
ço, ou o da Pregação universal, em que os pecados indíge-
nas são escarnecidos para emendai moral dos pecado-
res. Tais produções quasi sempre monótonas e ingê-
nuas, apropriadas á mentalidade e ao sentimento do
auditório, têm no seu objeto a razão do seu estilo. Va-
riantes do catecismo, destinam-se umas á instrução do
gentio; impressões do antifonário, exalçam outras, de-
votamente, a gloria de S. Ursula ou S. Francisco de
Assis (11). Ora as delícias da eucaristia, ora os com-
bates imaginários de a,r-canjos e demônios passam m1
mesma linguagem desataviada e incolor, única lingua-
gem acessível aos catecúmenos boçais. Metrificando
sem intenções literárias, Anchieta só utilisaria a, ca-
dência ou a rima para· gravar na memória dos simples e
elos broncos a sua doutrina. O ritmo foi sempre nas
origens sociai-s um elemento de vitória da inteligência
e da fé sôbre o instinto. Quanto á idéia somente dou--
trinária ou litúrgi·ca das canções e dos autos, nada a es-
clarece melhor que o simples confronto da sua nudez
sem adornos, do seu primitivismo, com os dísticos do
poema néo-latino á Virgem, cuja decoração tem algo
de basilica, pompeando em rosáceas e capitéis, retá -
bulos e sa·crários.

(11) No volume Primeiras letras, publicação da Academia


Brasileira e -edição do .Anuário do Brasil, de 1923, foam colecio_
nados os remanescentes dos autos e poesia·s de Anchieta em ver-
náculo, tendo servido para essa publicação o "Apênàioe" ao
Curso de Literatura Brasileira, 2.a ed., Rio, 1882, de Mello Moraes
Filho, e dois manuscritos existentes nos arquivos do Instituto
Histórico, sob ns. 2 .105 e 2 .106.
-i22 CELSO VIEIRA

Todavia, de onde em onde, um lirismo suave de


pastoral bafeja a devoção das estrofes anchietana~.
entre a mirra e o incenso dos altares, como um eflúvio
da noite em que os lírios do campo desabotoam. Leíam-
se, por exemplo, os versos graciosos e tocantes, mo-
dulados á Santa Inês:

"Virginal cabeça
Pela fé cortada
Com vossa chegada
Já ninguem pereça.

Vinde mui depressa


Ajudar ao povo,
Pois com vossa vinda
Lhe dais lume novo.

Vós sois cordeirinha


De JeS11s ·formoso,
Mas o vosso esposo
Já vos fez rainha.

Tambem padeirinha
Sois do vosso povo,
·Pois ·com vossa vinda
Lho dais trigo novo. (12)

(12) Estrofes de uma poesia desc~berta em códice manus-


crito e divulgada pelo rev. FRANCISCO RODRIGUES no seu
livro - À formação ào Jesuita. Reproduziu-a toda o padre
GONZAQA CABRAL na sua monografia - Je$Uitas 110 Brasü.
II

O HEREGE DE GUANABARA
No capítulo V, livro II, •da Vida do Padre José de
Anchieta, cujo manuscrito, enviado ao geral Gáudio Aqua-
viva, em 1606, pelo provincial Fernão Cardim, serviu
de fonte a Beretário para a sua biografia anchietana,
Pero Roiz fornece a primeira notícia, colhida entre n
inacianos, sobre a, execução do herege anónimo de
Guanabara, que o santo convertera ao catolicismo em
vésperas do suplício:
"Conquistando o Governador Men de Sá, a segun-
da vez, o Rio de Janeiro, quis fazer justiça de um
herege muito pertinaz, que entre os soldados francL·ses to-
mara. Encarregou-se dele o padre José, teve dificuldade
em o reduzir, e pediu ma·is tempo: finalmente o r,;-
duziu com a divina graça e o fez confessar e aparelhar
para bem morrer; chegando ao ponto da execução, es-
tava o padecente mui afligido e impaciente pelo algoz
se embaraçar no ofício; repreendeu, então, o padre
ao algoz, e deu-lhe ordeni como o fizesse beni; contando o
padre dali a muitos anos este caso a um Irmão nosso,
lhe disse o Irmão: e V. R. não via que ficava regular
(1), se bem advertia nisso; respondeu o padre: po-
rém a minha irregularidade não era ofensa de Deus
e tinha remédio, mas aquele pobre não tinha outro re-
médio, porque sua salvação .tinha tempo limitado, e

(1) Erro provável de eó:pia. Deve ser lido - irregular,


i2i CELSO VIEIRA

por salvação de uma alma, ainda que ficara toda a vida


irregular, o dera por bem empregado" . (2)
Além desse caso herético, que trasladamos do liv.
II, cap. V, Pero Roiz particulari~a outro, o de João de
Bolés, no liv. I, cap. VI. Nada relaciona as <luas inscr;-
ções marginais: uma - O que passou com hum herejc
q. e.nforcaram; outra, que é talvez posterior e apocrifa -
João de Bolles calttenista. Nada aproxima os dois episó-
dios e as duas efigies no e.5paço e no tempo. Mas o jesuíta
Sebastião Beretário, autor de uma Vida do Padre Anchie-
ta, escrita em latim e publicada em 1617, vinculou as duac;
passagens independentes, refundiu numa só as duas pes-
soas distintas. Foi secundado no erro, inadvertidamente,
pelo tradutor espanhol, Paternina, e por vários escribas da
Companhia de Jesus, em vários idiomas. Confundiram to-
dos eles o herege de Guanabara, anónimo, com o famos.:,
aventureiro, cujo perfil traçámos no cap. III do liv. II
desta obra - A Escola de Piratininga.
• • •
Com o erro de identidade, porém, coexistem ou-
tros ainda mais deploráveis sobre o facto e as circuns-
tâncias. Em 1567, conforme a inexacta versão de Be
retário e Paternina, generalizada pelos seus repetido ..
res, Bolés teria sido enviado ao governador Men ele
Sá por d. Pedro Leitão, bispo da Baia, afim de sofrer
no Rio a pena capital, imposta por efeito de velhos ou
novos crimes. Herege de tantas letras reclamava um
sacerdote letrado, que o iluminasse, o convertesse. Nã•.)
podendo eximir-se a outTas ocupações, nesse momento,
o padre Inácio de Azevedo, notável como latinista e
como teólogo, foi chamado de S. Vicente o padre An-

(2) Modernizamos a ortografia e corrigimos a pontuação deS.ie


trecho.
ANCHIETA i25

-chieta, que afinal persuadira Bolés á conversão. Mas


no lugar do suplicio, á hora ultima, o verdugo, pouco
destro, fazia sofrer duplamente o condenado, prestes
a blasfemar. Vendo em risco a salvação dessa alma
Joseph de Anchieta não só repreendera o algoz, como
também o instruira no seu ofício. Assim o escreveu
Beretário: " ·c astiga tum carnificem monet ratione ex-
pedi te illo nu:mere de fungeretur". Assim o traduziu
Paternina: ... le industrió para qu,e hiciese prestamente su
oficio."
Do texto latino ou do texto espanhol, reproduzido
pelos demais escritores católicos, o erro passou, en-
tão, a circular impunemente na língua portuguesa. Fr.
Vicente ,do Salvador conta que Anchieta " ... repreen-
deu o algoz, e o industriou para que fizesse com pres-
teza o seu ofício". ·(3) Simão de Vasconcelos acen-
tua: " ... entrou em zelo, repreendeu. o algoz, e ins
truiu-o ele mesmo de como havia de fazer seu ofícic
com a brevidade desejada" (4) António Franco repete
a linguagem do cronista da Ordem: "Entrando o pa-
dre em zelo, repreendeu ao algoz, e o instruiu no seu
ofício, para que a morte se apressasse" (5).
No campo inimigo, acesa à polêmica em torno dü
centenário da morte de Anchieta, em 1897, pretendeu-
se apoucar-lhe a figura, obscurecer-lhe a memória,
sob a densa névoa de uma incompreensão originaL
Houve quem o denominasse mestre do algoz, substituind,J
João de Boi és pelo •calvinista André de Balleur (6),

(3) FR. VICENTE DO SALV~DOR - Hist6ria do Brasil,


liv. III, eap. XII.
(4) SIMÃO DE VASCONCELOS - Vida do V. Josep'fl
de Anchieta, liv. II, cap. XIV.
(5) ANTONIO FRANCO - Vida do Admirável Padre José
de Anchieta, eap. IX.
426 CELSO VIEIRA

uma inverdade por outra, como se lhe fora dado en-


sinar, tecnicamente, a um profissional do patíbulo, o
que ele nunca aprendera. E o caso tomou proporções
de fábula monstruosa no livro do Sr. Arthur Heulhard
- Villegagnon, Roí d'Amerique, pag. 171 : "Anchieta con-
seguira extorquir a Boulier uma confissão católica.
Falhando o golpe do carrasco, Boulier impacienta-se.
vai ·blasfemar. Anchieta, receioso de perder uma alma,
toma a espada ( !), e manejando ou ferindo, não o sa-
bemos, diz ao carrasco: "É assim que se faz". An-
éhieta decapitador <le Bolés ou Boulier, entre os histo-
riadores francêses, eis a consequência <lo erro inicial
de Sebastião Beretário. Converteu-se o próprio laç'J
da forca em fio de espada.
Mau grado a evidência resultante de contestaçõc-;
e documentos, subsiste a inverdade, tres e meio sécu-
los depois, na órbita dos estudos mais sérios. João
FranciS(."o Lisboa, divulgando-a, exclama nos A ponta-
mentos para a Historia do Maranhão : " . .. abominável fa
natismo que assim perverte e transforma um missionári·)
sublime em miserável ajuda do algoz!" ( Obras completas.
vol. II, pag. 400) Antônio Henrique Leal, autor de uma
História dos jesuítas 110 Brasil, escreve" "Uma vez logra-
do este intento foi o pobre Bolés relaxado ao braço se-
cular. Não era porém perito o algoz e fazia sofrer o
paciente. O padre Anchieta, que se doia deste erro ele
ofício, passou a ensinar ao inexperiente carrasco como
devia manobrar". E a professora Carlota Carvalho,
ainda em 1924, no seu livro O Sertão, pag. 104, citando
Henrique Leal e João Ribeiro, lança mais um doesto
á memória do· santo: "De uma só vez Joseph de An-
chieta, que "a apologia venal" qualificou "o apósto-
lo do gentio", praticou duas infâmias e a peor foi o

( 6) ALV ARO REIS - O martir Le Balléut,


ANCHIETA -t27

engano insidioso com que obteve a abjuração escrita


(?) a preço da vida e. uma vez de posse deste docu-
mento, traiu o infeliz e foi cinicamente ensinar o car-
rasco a matar sua vítima." Não cessou a repercussão
do erro de Beretário, agravada pelo sectarismo, na
própria mentalidade contemporânea.

Tudo isso é profundamente inverídico e injusto. O


herege francês João de Bolés, da França Antárctica,
foi enviado pelo bispo da Baía, não ao governador Men
de Sá, em 1567, com dêstino ao Rio, mas em 1563 á
Inquisição de Lisboa, onde abjurou todos os erros e
cumpriu a, sua penitência no convento de S. Domin-
gos. Ainda mais: um documento jesuítico, a lnfornwção,
atribuído ao próprio Joseph de Anchieta e escrito em
1584, dezessete anos depois da conqwista do Rio de Janeiro
e da execução do herege anónimo de Guanabara, con-
signa expressamente que o dito Bolés fôra mandado
da Baía a Portugal, de Portugal á índia, e nunca mais apa-
recera no Brasil.

• • •
As inexactidões pululam no texto de Beretário,
onde o bispo manda João de Bolés (Joanes Boullerius),
em 1567, da Bafa para o Rio, acabando o herege ás mãos
elo verdugo e aos olhos dos francêses, justiçado pela
crueza do seu amigo Men de Sá. Ora o bispo da Baía,
d. Pedro Leitão, veiu para o Rio nesse mesmo ano de
1567, na rota desse -mesmo governador geral, a quem
não lhe era possível, antes da sua volta, mandar o ré·
probo, mas a imposibilidade continua, admitida a hi-
pótese, porque o francês anónimo, supostamente exe-
cuta,do no Rio, foi tomado in loco, entre os soldados
428 CELSO VIEIRA

francêses, pelo governador. Não se trata de alguém,


que vi.esse da Baía ou que o Santo Ofício condenasse,
num processo moroso, a expirar entre as labaredas do
auto de fé: trata-se apenas de um soldado preso no
campo de batalha, no calor da acção. O juizo inquisi-
torial, vestindo ao h~rege um sambenito escarlate e
amarelo, te-lo-ia· mandado á fogueira; o espírito mili-
tar, porém, não vendo nele senão um combatente apri-
sionado, manda enforcá-lo na sua ,praça d'armas.

• • •
Sem discriminar antecedentes ou pormenores, afir-
ma Pero Roiz que o ipadre Anchieta se encarregara Ja
conversão do herege. No falso presuposto de ter sidc
este o helenista João de Bol,és, acrescenta Beretário,
entretanto, que o sacerdote fôra chamado de S. Vicen--
te (accercitus est Sancto Vicente Joseph), não dispondo a
Companhia, nesse momento e lugar, de outro latinistr.,
pois Inácio de Azevedo, visitador da Ordem, atendi:i.
a maiores ocupações. É como o traduz Paternina cm
espanhol: "Para ayudarle en tan riguroso trance, vino
desde S. Vicente el Padre Joseph de Anchieta, porq11c
el padre Azevedo attendia a occupaciones mayores en
el rio de Januario, donde se executava la justicia. ·•
Mais uma inexa-ctidão. Os padres Inácio de Azevedo e
Joseph de Anchieta, como o bispo <l. Pedro Leitão, o
provincial Luís da Grã e Manuel da Nóbrega, tor-
naram ao Rio, juntos, nos meados de 1567. E no Rio
permaneceu Anchieta, coadjuvando Nóbrega, especi-
almente na instrução dos índios aldeados em terras
do -c olégio (7). Retido por esses deveres, não consta

(7) SIMÃO DE VASCONCELOS - op. cit,, liv. II, eap.


XIV, n. 3,
ANCHIETA 429

que ele voltasse á capitania de S. Vicente em 1567. O


apelo do Rio a S. Vicente, do catolicismo ao padre
Anchieta para a conversão de Bolés, portanto, é
mais uma fábula cio imaginoso Beretário. Nem o tex-
to de Pero Roiz lhe autorizava a conjectura, ao dizer
simplesmente do herege e cio catequista: "Encarreg.ou-
se dele o padre José".

Se um herege foi executado ·n o Rio, em 1567, se


o padre Anchieta o converteu á fé católica e lhe assis-
tiu á morte, não era ele, portanto, João de Boi és, mas
um anónimo, capturado entre os soldados francêses.
E agora podemos reconstituir o episódio nas sLtas li··
nhas originais.
Por,que fosse o algoz pouco dest-ro, exacerbava-
se a angústia do padecente, e Anchieta sentiu que ia
perder-se a alma convertida pela sua força doutriná-
ria. Temendo a explosão infernal de uma blasfemia.
repreendeu o algoz, deu-lhe ordem como o fizesse be.m, se-
gundo a frase de Pero Roiz.
A conjuncção como, proveniente de mm ( quum) sig-
nifica por vezes que, em linguagem clássica, e desta
significação há exemplos vários:
" ... e veemdo como lhe nom vijnha acorro de Porttt-
gal. .. " FERNÃO LOPES, Cr. de D. Fernando.
"Vindo saber como seu pai quer casar ... " ANTÓ-
NIO FERREIRA, BRISTO.
"Deveis de ter sabido claramente
Como é dos Fados grandes certo intento
Que por ele se esqueçam os humanos ... " CAMÕES .
Lus., e. I, est. 24 (8).
(8) Há outros exemplos dos Livro8 de Linhagens, da Vida
de São Francisco Xavier, por Lucena. c dos próprios Lusiada.,,
citados no Grande Dícionário Português, de F r. Domingos Vieira.
430 CELSO VIEIRA

Tal se afigura, no texto de Pero Roiz, o valor da


locução - deu-lhe ordem conto. . . Não só para abreviar
um suplicio, mas notoriamente para impedir que se per-
desse uma alma, consoante a .sua fé, Anchieta repreendeu
o algoz, deu-lhe ordem como, por outas palavras, ordenou-
lhe que o fizesse bem.
Certo, o zelo da conversão desafiava, nesse tre-
mendo larice, as penas da Igreja, mas a caridade evan-
gélica teria suplantado em Joseph o escrúpulo reli-
gioso. Pela salvação eterna de uma alma, o padre
recentemente ordenado, que vivera, quinze anos para
o sonho dessa investidura, sacrificaria de boa vontade
o próprio uso das vestes eclesiásticas.
Desconhecendo, talvez, o sentido invulgar da pa-
lavra como, diferenciada em conjunção, Beretário tomou-a
por advérbio, oriundo de quo modo, traduziu em latim a
frase de Pero R.oiz - deu-lhe ordem como - por 11iont10,
verbo transitivo e cambiante nas ;,uas acepções : advertir,
lembrar, avisar, exortar, admoestar, instruir, ensinar, pre·
dizer, prognosticar, profetizar, repreender, castigar, punir,
excitar, estimular, avivar, animar.
Patemina, o esp·anhól, preferiu entender e traduzir o
verbo moneb, empregado por Beretário, não já por ensi-
nar ou instruir, mas tecnicamente por industriar - le in-
dustrió para que hiciese prestamente su officio. Ora in-
d1utriar significa adestrar, amestrar; industria equivale á
destreza, habilidade para fazer alguma coisa, para executar
um trabalho mamwl. Daí nasceu a lenda .,inistra, que fez
do padre Anchieta, admoestador de um verdugo mo-
roso, como vimos, o colaborador material do suplício.
Essa inverdade foi repetida, assoalhada pelos demais
cronistas ou biógrafos, reverendos escribas da Ordem.
A confusão adveiu, portanto, da Igreja para a
História. Os piores inimigos de Anchieta, expondo-
lhe o nome veneravel, tres e meio séculos depois, ao
ANCHIETA 431

libelo dos sectários, foram exactamente os inacianos.


que lhe apregoam a beatitude e lhe publicam os mila ·
gres. Aos panegiristas é que ele <leve o ter sido,
mais de uma vez, ma·tulada por semelhante falsidade
a sua glória cristã.
Divulgadas as peças irrecusáveis do processo de
Jean Cointha (des Boulez), a carta anual do padre
Leonardo Valle, a verídica Informação de 1584, concluí-
ram novos autores (9), depois disso, que não fôra uma
realidade a catástrofe de Bolés. Mas alguns deles se
equivocaram, por outro lado, atribuindo á mera in--
ventiva de Beretário, á sua fantasia clerical, todo esse
drama referente á conversão e execução de um he-
rege no Rio, em 1567: "Nada disso teria acontecido -
afirma um deles, entre 1897 e 1900 (10), se os autorr:s
que escrever.am a vida do venerável padre Anchieta,
em vez de andarem em busca de novidades, se tivessem
cingido escrupulosamente á biografia que dele escreveu o
padre Pedro Rodrigues, seu contemporâneo. N ella não se
diz ne verbum ne quidem da execução de Bolés".
Com efeito, nenhuma palavra se diz acerca da
execução irreal de Bolés, mas a do herege anónimo
só foi omitida no incompleto manuscrito da Vida do Padre
José de Anchieta pelo padre Pero Roiz, em 3 livros e 25
capítulos, pertencente á biblioteca de Evora. Na Iong.:i.
cópia da, Biblioteca Nacional de Lisboa, dividida em 4
livros e 43 capítulos, vem referido o caso do herege
francês e anonimo de 1567. Daí novas pesquisas, no-
vos trabalhos para identificação desse calvinista, exe-
cutado no Rio pela justiça do governador Men de

(9) Candido Mendes d 'Almeida, p. Américo Novais, Carlos


de Laet.
(10) P Américo Novais, sobre o <'-aso João de Bolés, apên-
dfoe à conferêneia anehietana de 1897.
432 CELSO VIEIRA

Sá. Fôra· ele o genebrino André Lafon ou o francês


Ja·cques Leballeur, modelos de calvinismo intransi-
gente, que Villegagnon, rei da América selvagem, con-
denara em fevereiro de 1558 á detenção perpétua,
quando eram precipitados ao mar, do alto de um ro-
chedo, por igual motivo, os seus companheiros Du-
bourdel, Ma;thieu Verneuil e Pierre Bourdon? As in-
dagações históricas só têm produzido vãs conjectura'>
nesse domínio. E há mesmo um trabalho erudito
pelos seus dados, mas inadmissível nas suas concltt-
sões, O MARTYR LE BALLEUR - que é um espe·
cimen de confusão protestante, sucedendo em 1917 á
dos autores católicos.

• • •
Em resumo: afora a passagem de Pero Roiz,
nada encontramos, historicamente, sobre a conversão
anchietana <lo herege :de Guanabara. Quer na corres-
pondência de Anchieta e de outros jesuitas, quer no
Instrumento de Men de Sá, nenhum vestígio lhe descobrt-
mos. Os documentos da época não referem seme-
lhante episódio.
Imprecisa e lacónka, a estranha versão de Pero
Roiz omite o nome da vitima, só inscrevendo á mar-
gem, na cópia existente em Lisboa, o género do su-
plício - o q. passou com. hum hereje q. enforcaram. Fal-
ta-lhe mesmo o elemento objectivo <le um testemunho cer
to, pois o caso, dali a muitos anos, teria sido contado ,por
Anchieta a um irmão, cujo nome "também não se de-
clara. Havendo folheado os processos de canoniza~ão
do venerável Anchieta, em Roma, o padre Américo de
Novais poude assegurar no apêndice á conferência
anchietana de 1897: " .... embora as testemunhas te-
nham afü;mado in genere que foram muitas as -conversões
ANCHIETA 433

operadas por Anchiéta, contudo, in specie, não atestam


senão a conversão de dois portuguêses que viviam en ·
tre os índios, como se não fossem cristãos."
Essa ausência de objectividade, traduzível por
nomes e datas, subtrai ao lance final da conversão de
um herege anónimo~ em Guanabara, todo o va,lor his-
tórico. Ainda que fosse documentado, porém, só ex-
primiria -novo requinte de caridade humana e sacerdo-
tal. Quantas vezes não desejamos, com efeito, que
se abreviem os sofrimentos de uma pessoa querida no
estertor da sua agonia? Comovendo-se á vista do su-
plicio e á ideia da perda de uma alma, possivelmente
exasperada até á blasfemia, teria dito Joseph de An-
chieta ao verdugo que se apressasse, fizesse bem o seu
oficio. Nada mais. E o próprio Anchieta salientou essa
intenção caridosa, ao frisar que a sua irregularidade niio
era ofensa de Deus.
III

RELÍQUIAS DE ANCHIETA
As relíquias de Anchieta, em parte, foram trans·
feridas para a igreja do Colégio da Baía, ,por deter-
minação de Cláudio Aquavíva, geral da Ordem, no ano
de 1611, ficando ao pé do a;ltar~mór, veneradas pelos
romeiros e devotos. Em 1625, porém, como o brevr.
pontifical de Urbano VIII, de non cultu, vedasse aos fieis
o culto dos não beatificados ou cano,iizados 1 passaram
a outro lugar. Uma delas, por esse tempo, foi enviad:i.
a Roma. (SIMÃO· DE VASCONCELOS, Vida dô"V.
Padre Joseph de Anchieta, liv. V, cap. XV). Expulsos do
Brasil os jesuítas, mandou o chanceler Thomaz. Roby
a d. José I, em 12 de abril de 1760, as relíquias anchie-
tanas do Colégio da Baia - tíbias e .peroneos, mais
duas túnicas - num cofre <le jacarandá, forrado a pra-
tà. (XAVIER MARQUES, Nova comunicação ao Ins-
tituto da Baía, 1914). Das que permaneceram no Espírito
Santo já não existem documentos comprobatórios· nem
sequer vestígios. Apenas, de um trabalho do Sr. PE-
REIRA DE VASCONCELOS (Ensáio sobre a história
e a estatística da Provincia do Espírito Santo) consta o
seguinte: "Na sessão do Instituto histórico · e· geográfico
brasileiro, celebrada em 17 <le agosto de 1855, foi apresen-
tada pelos Srs. Pereira Pinto e Norberto uma propos-
ta, para que se soli_cite do governo a entrega de um
fragmento dos despojos mortais ,do missionário An-
chieta, que se conserva em uma caixa com lavor de:
prata no tesouro público da Corte ou da Província do
ANCHIETA 435

Espírito Santo". Comentando essa informação, escre-


ve Teixeira de Melo: "O Tesouro Público de que fala
dubitativamente Vasconcelos seria de certo o da ca-
pital da Província do Espírito Santo, se não ·se soubesse
que se trata aqui da igreja dos J esuitas na capital da
Província do Espírito Santo, onde se acha vasia a lousa
tumular do santo varão apostólico, de cujos restos
mortais alguns presidentes da Província, com mais
cortezia para com os vivos do que veneração para com
os mortos, têm lançado mão para obsequiar a amigos ou
a altas personagens, que visitaram a igreja em que eles
jaziam". - JOSEPH DE ANCHIETA, An. da Bib.
Nas., v. II, f. I. O sr. Sá e Benevides, em 20 de dezem-
bro de 1876, informava ainda a Ramiz Galvão que
existiam na sacristia da igreja dos J esuitas, ao lado
do palácio do Governo da Vitória, duas caixas de prata,
contendo a primeira uma canela de Nóbrega e a se-
gunda um fragmento da canela de Anchieta. Em
suma, as relíquias do santo espalharam-se pelas capi-
tanias do Brasil, onde se alardeava o seu poder cura-
tivo, de norte a sul, havendo sempre uma na sacristia
de cada templo dos jesuítas, que benziam com ela os
vasos de água para os enfermos.
VI

DECRETO PONTIFICAL

Relativo á beatificação do venerável servo de


Deus, Joseph de Anchieta, sacerdote professo da
Sociedade de Jesus,

Aos 31 de julho do corrente ano de 1736, perante


o papa Clemente XII, nosso santo padre, reuniu-se a
congregação geral dos ritos, na qual o reverendís-
simo Senhor Cardial Imperiali propôs a causa da bea-
tificação e da canonização do venerável servo de Deus
Joseph de Anchieta, sacerdote professo da sociedad~
de Jesus. Nessa congregação fo'.i inquirido: "Se cons-
tam virtudes teologais e cardiais do venerável servo
de Deus, no caso e para o efeito de -que se tra.ta". S. San-
tidade, tendo ouvido os pareceres dos reverendíssimos
senhores cardiais, julgou mais acertado, conforme a
praxe, diferir a solução de tal dúvida, para invocar,
antecipadamente, por meio das suas orações, e demais
preces, o socorro e as luzes do Altíssimo. Feito o que
S. Santidade, chamando á sua presença o reverendo
padre Luís de Valentibus, promotor da fé, comigo se-
cretário, abaixo assinado, neste dia de S. Lourenço,
ordel}-OU a ,publicação de um~ re5tPostâ afirmativa sobr~
a dúvida proposta, declarando: "Constam das vir-
tudes do venerável servo de Deus, Joseph de Anchieta,
em grau heroico, no caso e para o efeito aludidos, tanto vir-
tudes teologais, a saber, fé, esperança e caridade, como
ANCHIETA 437

virtudes cardiais - prudência, justiça, força e tempe-


rança."
Feito aos 10 de agosto de 1736.
A. F. Card. ZONDADARI, Prefeito. T. Patriarca
de Jerusalém, secretário da sagrada Congregação dos
Ritos.
(Extr. da Vie du Venerable Joseph Anchieta, pot
Charl,es Sainte-Foy).
INDICE

Pags.
Prefácio (,Tnizos Críticos) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5
Ecce liber ..... . .. .. ... . .. . ,. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 42

LIVRO I

VOCAÇÃO
CAPITULO I - Nascimento e infância de Anchieta. Os
seus estudos em Coimbra. Mlsti-cismo. O patriarca
1ináeio de Loiola, fundador da Companl1la de Jesus.
Prestígio da Or<l'em. Ingresso de Anchieta no Colégio
dos Jesuítas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47
CAPiTULO II - O noviço. Primeiros exercícios espirituais.
Mistério da Eucaristia. Devoção e doença. Conselho
do padre mestre Simão Rodrigues. Vinda para o Brasil
na missão de 1553 . . . • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 50
CAPITULO III - Destmbnrque d.g Anchieta na Baía.
Indumentária do tuplnnmbá. O arquétipo selvagem.
Animismo e canibalismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 68
CAPiTULO IV - Ba rbaria colonial. Tomé de Souza.
União da Igrej a e do Estado. D. Duarte da Gosta e
d. Pero Fernandes Sardinha . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77
CAPITULO V - Visita da Orfeu. Anchieta segue de,.
Baía para São Vicente com outros religiosos. Tem-
pestade. Chegam os jesultas a S. Vi-cente. Em busca
de Piratlnlngn. Noiva.do de Anchieta e ela tE!rra do
Brasil . . . . . . . . . . . •. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . •. . . . 88
LIVRO II

A ESCOLA DE PIRATININGA

CAPiTULO I - Fundação da casa <te S. P aulo. - Os


religiosos. Mulheres cristianizadas. Homens incon-
440 INDICE

versíveis. Antropofagia. Esperança dos padres. Bap-


,tismo. Socorro aos enfermos. Regime da casa de
Piratlninga • . . . . . . • . . . . . . . . • . . . . • . . . . . . . . . . . . . . . . 101
CAP1TULO II - O infemo selvagem êle Pimtl-ninga. Con·
cuplsc~ncia, uranismo e poligamia. Explosão do amor
livre. A luta pela castidade. Intrigas dos mamelu-
cos. Os demónios de S. And'ré da Borda do Campo.
Um gigante amável, Caubi. Epidemias e flagelações.
O cancer. Um €'plsódio sinistro. Regresso dos con-
versos à antropofagia. Holocausto ao gênio da tribo 113
CAPITULO III - João de Bolés em S. Vicente. Perfil do
aventureiro. Tragi-comédla religiosa da França An-
tárctica. Vill<l!'gagnon e Bolés. Expulsão de um teó·
logo como boca inútil. Desforra. Monsior de Bolés,
herege. Denúncia das suas heresias. Inquérito man-
d'ado com o reu à justiça eclesiástica da Bafa. Re-
lações do herege e do gov~rnador. Bolés na tomada
do Forte Collgny. Nova prisão, novo processo, avo-
cado pelo Santo Ofício de Lisboa. ,Julgamento. Peni-
tência no mosteiro de S. Domingos. O aventureiro
segue de Portugal para a Inc!ia e não torna mais
ao Brasil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 128
CAP1TULO IV - 1\lartírio dos Irmãos Pedro Correa. e
João de Souza. Começo de uma lénda. Bruxos e
padres. O taumaturgo belunrio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 142
CAP1TULO V - Trabalhos e vigílias de mestrt-esroln.
Anchieta catequista. Mistérios e aut~. Diálogos e
cantos popu"ijlres. f".erimónias da Igreja de Plratinin-
ga. O AutÕda Pregação Universal. Anchieta e a nu-
vem. Sugestilo. O hero! da catequese . . . . . . . . . . . . . . 148
CAPITULO VI - Anchieta, o naturnllsta. Carta des·
critiva de seres e coisas doBrasil. Influências me-
teorólogil'as. Singularidades da fauna. Virtudes e as-
pectos da flora. A pedra elástira . . . . . . . . . . . . . . . . 151

LIVRO III

O ·POE~IA DE IPEROIG
CAPITULO I - Assalto dos portuguêses ao forte Coligny
em 1560. Confederação dos tamoios. Defesa d~ Pi·
ANCHIETA -Hl

ratininga. Tibiriçá, o lidad'or. Anchieta e Nóbrega,


em!ssârios da paz, no quartel-gene;ral do inimigo . . 165
CAPíTULO II - Primeiros dias de Iperolg. Aula infantil
de catecismo. Guerra aos canibais. Missa da prima-
vera. lrrever@oncia dos tamoios. Vexames e tentações 178
CAPiTULO III - As canôas. Hostilidades iniciais dos ta-
moios. O Gran-Palma. Torna a Iperolg o navio de
José Adorno. Um visitante feroz. Perigos e atribula-
ções. O francês luterano e a sua mallcla. Os fran-
cêses asselvajados e a sua crueza • • . . • . . • • . • • . . . . . • 185
CAPITULO IV - Anchieta e Nóbrega escapam às flechas
dos tamoios. O Grão-Mar. Socorro imprevisto. Cu-
nhambebe • . . . • • . . • . . • • . . • . • . . . • • . • • . . • • • • • • . . • • . • 104
CAPiTULO V - Na aldeia do grande chefe. Antropofa-
·gia. Nóbrega volta a S. Vicf!nte. Promessa de An-
chieta à Nossa Senhora. O poema da Virgem . . . . 200
CAPiTULO VI - Marabá. O filho de Anchieta. Baptls-
mo dos inocentes. Demónios do mar. Gesto subllm~
de Anchieta. Um paladino cristíio entre os selvagens 211
CAPi'l'ULO VII - Sacrifício de um tupi. An<:'hlc>ta c>m
face da Morte. Anchl~a em face de Deus, através
dos sonhos. Expansão da lenda nos rochedos de Ipe-
roig. Prod'fgios da caridade anchietana. Um prisio-
neiro indomâvel. Nov41s d$~turas de Anl'Onlo, com-
panheiro de Anchieta. O seu regresso a Bertioga . . 220
CAPITULO VIII - Conclusão da paz. Anchieta obtem
de Cunhambebe a sua liberdade. Rixa de mulheres.
Um oratório em chamas. O regresso do santo na
canoa de Cunhambebe. Salva-se a colónia. Tristeza
de Anchieta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . • . . . . . . . . . . . . . . . . 231

LIVRO IV

FUNDAÇÃO DO RIO DE JANEIRO


CAPITULO I - Começo de nova guerra. O santo e a
peste. O apelo <!o capitíio Estâcio de Sã, em 156i,
para fundação da cidade do Rio de Janeiro. Nóbrega
e Anchieta em Guanabara, através da tormenta. En-
contro de herois e santos. Rumo a S. Vicente . . . . . . 289
CAPITULO II - A esquadra no pôrto de Santos.
Rumo a Guanabara. Esquadrilha anchietana. Incl-
lNDICE

dentei da travessia. Desembarque em l.• de março de


1565. Fundação da cidade. Bafa de Gua nabara. Pri-
meiras escaramuças. Joseph de AnGhiéta e Gonçalo
de Oliveira entre os combatentes. Novas agressões
dos tamoios. Anchieta segue para a Bafa . . . . . . . . . . 245
CAP!TULO III - O governador e o apóstolo. Perfil do
herol Men de Sã. A. sua fé. O seu governo. Feitos
r!e armas. Primeira missa de Anchieta . . . . . . . . . . . . 255
CAP!TULO IV - Segunda frota de Men de Sã. Dois
anos heroicos. São Sebastião entre os nossos. Traba-
lho e justiça. O capitijo e a cidade. Um conselho c!e
capitães e sacerdotes. Ataque ao forte do Uruçu-
Mirim. Estãclo de Sá ferido. Combate nà ilha do
Governador. Morte c'e Está.elo de Sã. O embarque
dos religiosos para S. Vicente. Regresso. Mudança
da cidade. Execução de um herege anónimo. O santo
e a -lenda . . . .. ... .. . .... . ... : . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 264

LIVRO V

ASCENSÃO
CAP1TULO I - Anchieta nomeado reito1· do colégio de
·s. Vicente. Os seus trabalhos nesse ·período. Exalta-
ção das suas virtud'es. Misticismo e renúncia. Gran-
deza e humildade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 279
·CAP!TULO II - Anchieta na tribuna sacra. O sermão
de 1568 sobre a conversão de Sa ulo. "Efeitos oratórios
e locais. O pecador do Brasil-colónia. Vau electionis.
Catequese dos maramomis. O amigo dos índios. Uma
bandeira cristã . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28G
CAPITULO III - Tragédia da nau Santiago. Mortos !lus-
tres. Paz e Força. Na praia de Itanhaem. Adão . . 294
CAPtTULO IV - Anchieta no colégio da Bafa. O novo
.p rovincial; o novo governador. Piedade e cavàlht!lrls-
mo. Fundações da provinda. Os subditos da Ordem 302
CAP1TULO V - Jornadas e viagens c'o provincial. Há-
bito de mansidão. Defesa do gentio. Ensino. Traba-
lhos e perigos da catequese. Estoicismo de Anchieta.
Casos de profecia. Valdez e a sua a rma da. Ortega e
Filds, emissários anchietanos. Vitória dos catecume-
nos 310
ANCHIETA H3

CAPtTULO VI - Exodo e cativeiro do gentio. Anlqulla-


mento da raça lnd[gena. Os negros . . • . . . . . . • . • . • 328
CAPITULO VII - Informações históricas. Desventura
de Ilheus, Porto Seguro, Itamarat'â. Opulência dé
Pernambuco e da Bafa. Começo do Espfrioo $anto
"'do Rio de Janeiro. Infllncla de S. Paulo. Vae Vidis!
Desejo de ouro e de poder, sintese das forças do novo
ciclo. Egolsmo e caridade • . • . . . . . . . . . . . . . • . . . . • . 330
CAPITULO VIII - No reino dos milagres. O sobrena-
tural dividido em parAgrafos: V', Anchieta, o Pro-
vtdor; 2. 9 Médico; 3.•, Revélador; 4. 9 , Como domina
a terra e os -animais; 5.9 , Como Influi sobre a
água e o fogo; 6. 0 , Como lhe obedecem as aves . . . . 340
CAPITULO IX - Outros aspectos da lenda. Extases. Caso
do índio Diogo, o resuseltad'o. Pescaria de Marleâ.
Esplendor da capela de Bertloga . . . . . . . . . . . . . . . . • 340
CAPITULO X ' - Ascensão lendârla. Recept\vldade da
alma portuguesa e dn alma indígena pnr1t o milagre.
Caraclle!res do feiticeiro. Zumé ou S. Tomé. Entre o
psiquismo e a fisiologia. Definlçllo católica do tau-
maturgo. O maior dos prodígios . . . . . . . . . . . . . . . . . . 355

LIVRO VI

OCASO~ RERITfflA
CAPITULO I - DecUnio de Anchieta. Rerltiba. O ere-
mita. O vidente. última viagem à Bala. Volta à so-
lidão ..........•...••••..•.•• : . • • • • • • • . . . • • . • • • • 365
CAPíTULO II - Anchieta . na casa do Espírito Santo,
como superior. Pobr~a e ,perfeição. Um dlscipulo
Inglês do taumaturgo. Novos mllagres. Rimas de um
profeta • • • . • . • •• • . . . • • . . . . • • . • . . . . . . • . . . • • . . . • . . . 374
CAPtTULO III - Apontamentos de cronista e biógrafo.
Manuel da Nóbrega, o Fundador. Vida em Portugal;
vinda para o Brasil. Acção religiosa ,a social de
Nóbrega. Catollclsmo e nacionalismo. O apóstolo
severo. Zelo e santid'ade. Frases indeléveis. O mís-
tico • .• • . . . .• . • • • .• • . • • .. • • • . •. • • •• • • •• • • . • .. • • • • 380
CAPITULO IV - Galeria de santos: Leonardo Nunes, a
invicta fé; Asplkueta Na varro, a imaginação; Luis
da Grã, a sabedoria; Pedro Correa, a eloquencia;
4H INDICE

Joilo de Souza, a humlldai!'e; Domingos Pecorela,


a inocência; Salvador Rodrigues, a submissão; Fran-
cisco Pires e Diogo Jacome, a candidez; António
ltodrigues, a predestinação; Mateus Nogueira, soldatlo
e forjador, síntese plebeia da Ordem . . . . . . . . . . . . . . 304
CAPiTULO V - última jornada à Vitória. O conselhei-
ro da casa do Espírito Santo. l)elspedtda. Morte em
Rerltlba. Funeral. Glorificação de Anchi~!a 404

ELUdIDARIO:
l - Letras anchietanas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 413
II - O herege de Guanabara . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 423
III - Relíquias de Ancbletu . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 434
IV - Decreto pontifical . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 436
IndilsUiá Gt6J'ICll! ~1?'<) do 8o) Ltda.., tmpr1.mJu - 8 , Pllulo

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