Celso Vieira - Anchieta PDF
Celso Vieira - Anchieta PDF
Celso Vieira - Anchieta PDF
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êlllLlôftCA PEOACOCICA B~ASILEl~A
Série 5.ª1 * BRASILIANA * Vol. 262
CELSO V.IEIRA
ANCHIE ·T A
TERÚEIRA EDIÇÃO DEFINITIVA
(JUIZOS CRÍTICOS)
1
ANCHIETA
AFONSO CELSO
ANCHIETA
JOSÉ DE ANCHIETA
'
É para fixar esse vulto estranho, e a natureza nova
destinada a servir-lhe de moldura, que o escultor grego
de Endimião borda a ouro, catolicamente, os trinta e seis
capítulos deste seu livro. Foi o sr. Celso Vieira, lembro-
-me bem, que me poz em contacto, hà dezoito anos, com
Paul de Saint-Victor, lendo-me alto, com entusiasmo e
devoção, algumas págipas do III volume de Les deux
masques, em que o estilista francês analisa a obra de
Shakespeare. O estilo em Anchieta ê, sensivelmente, uma
irradiação daquelas páginas magistrais, em que se encon-
tra, associados, o que hà de mais colorido em Ruskin e
de melhor desenhado em Flaubert. Elegante, gracioso,
musical, a arte é mantida á grande altura, do primeiro
capítuio ao último, preenchendo com .a beleza da palavra
os lugares em que falha o interesse do assunto. Colorista
minucioso, completa o autor com a imaginação as omissões
do desenho da História.
. . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .·. .. ......... .
'A descrição, que nos dá, do selvícola da época da
descoberta, é obra de estatuário a que se associasse um
pintor enamorado das cores fortes. . . É ainda com a
ANCHIETA 21
HUMBERTO DE CAMPOS
(Do livro "CRITICA" - 2.a série)
V
A RECONSTRUÇÃO DO APOSTOLADO
AZEVEDO AMARAL
VI
-
pitaram o "prelúdio da nossa vida cristã" com o "epílogo
do nosso mundo selvagem".
A obra é completa e definitiva. Alteia-se e rebrilha
entre os monumentos da nossa literatura histórica - mo-
numento que entre eles se realça pela transparência do
estilo, pela fluidez da língua, pela vernaculidade lapidar.
De ordinário, entre nós, a história enerva, em penú-
ria de atractivos na forma dos que lhe versam os temas e
analizam os episódios. Arrolam-se acontecimentos e cri-
ticam-se fenômenos com aridez e mazorrice, e a histórh,
mestra da vida, perde toda a fascinação, desencanta e en-
tedia.
Poucos hão de ser os que, por predicados opostos, se
evadam a essa contingência negativa da escrita sem sedu-
ção, áspera e rude, amortecendo a vivacidade anedótica,
amortalhando em bocejo e sono a graça, o interesse, a
alegria de tantas minúcias que, à margem das acções cul-
minantes, revelam, não raro, a exacta psi~ologia de figu·
ras singulares.
Publicista, cronista, ensaísta, conferencista, historió-
grafo, Celso Vieira é, em longos anos de actividade men·
tal, o mesmo uniforme perdulário da frase impecável no
idioma impecável.
ANCHIETA
ALVES DE SOUZA
DOIS EXCERPTOS
II
BENJAMIN LIMA
O PANORAMA E O HOMEM
ENRIQlJE DE GANDIA
* * *
"O aêadêmico correspondente da Academia da lín-
gua espanhola, sr. Luís Guimarães, ministro do Brasil,
ofereceu à douta corporação um livro célebre da litera-
tura brasileira, intitulado "Anchieta". Essa obra é a
história documentada do grande jesuita Joseph de An-
chieta, que foi para o Brasil em 1553, acompanhando o
governador Duarte da Costa, e ali morreu depois de qua-
renta e ci11co anos ele missão evangélica.
38 CELSO VIEIRA
* * ,;,
A Editorial Claridad, de Buenos Aires, fez recente-
mente aparecer, traduzido em espanhol, o "Anchieta", do
sr. Celso Vieira, incorporado, sob o n.0 17, à coleção -
"Hombres e Ideas," ( o pensamento e a ação postos ao
serviço de um mundo melhor) sob o título - " El
Padre Anchieta - La vida de um aposto[ en el Brasil
primitivo."
Apaixonando-se por ess'e livro, publicado no Rio em
1930, verteu-o para o castelhano oom esmero, e anotou-o
com erudição, o saudoso escritor argentino Benjamin de
Garay, que foi o tradutor ·perfeito dos Sertões, de Eucli-
des da Cunha, e um grande amigo do nosso país e das
nossas letras.
Mais valorizada surge a tradução, agora, pelo estudo
que fez da obra e do tema, com a profundeza e a intensi-
dade características dos seus trabalhos, o historiador En-
rique de Gandia, um dos nomes ilustres da bibliografia
ANCHIETA 39
* * *
"O Jesuíta canário José de Anchieta é uma das no-
bres figuras do apostolado católico em nossa América.
Tendo ido em 1553 para o Brasil, on<le faleceu em 1597.
1:onsagrou esses quarenta e quatJ;o anos a uma das mais
fecundas obras de catequese e progresso. Desde que
ANCHIETA 41
SIMÃO DE VASCONCELOS.
VOCAÇÃO
ANCHIE'l'A
Nascimento e infância de Anchieta. Os acua
estudos em Coimbra. Misticismo. O patriarca
lgnacio de Loiola, fundador da Companhia de
Jesus. Prestígio da Ordem. Ingresso de Anchieta
no Colégio doa Jesuítas.
* * *
Com a puberdade inquieta não tardaria a grande hora
mística de Anchieta. Devotamente, à proporção que vi-
nham brotando na metamorfose humana outros germe';,
sob outras flamas, o seu espírito buscava libertar-se do
tempo ilusório e da terra condenada, num desencanto sem
revolta. O anseio da eternidade consumia-lhe a própria
vicia. Predestinado, ele não tinha posto o desejo, como
os demais, no mundo yersicolor e efêmero dos sentidos,
na poeira estonteante das formas transitórias, no deleite
e no engano das vaidades. A fascinação do mundo inte-
rior subjugava-lhe a alma, que ainda não fôra iniciada,
já renunciava ao contacto do mal, com a videncia melan-
cólica de um anjo proscrito na selva dantesca.
Por vezes, roçando a obscura, incerta fronteira dêsses
mundos tão diferentes, passariam breves tentações:
a da carne, Afrodite, sob a espuma dos véus ondean-
tes e olorosos; a cio oi1ro, magnífica senhora de ga-
leões da índia e castelos de Espanha, todo o fausto
do Oriente no lar da cristandade, enriquecendo os
fortes homens ibericos; a da ciência, velha bruxa de-
cifradora de enigmas e leis, mais arrogante na sua
torre que Salomão no seu trono; a do poder como
um idolo voraz e de ferro, erguido sôbre o cativeirn
das multidões, que o alimentam e· adoram.
Mas a alma não se abandonava ao prestígio dessas
formas enleantes. Blindada pela fé contra a insídia
ou a volúpia elas tenta(loras, já. .descobria, com apa-
rências hnnanas. a realidade anti-cristã elos sete pe-
cados mortais; na carne insatisfeita a luxúria, a gula
~ t
nário, por alusão a esta ave, a quem as ilhas Canárias deram
" o nome, ou elas às ilhas, e a melodia do c·anto, e ·a estimação
cm que é tida."
ANCHIETA 53
* * *
Fogueiras de arraial, cantigas de tricanas, diver-
sões de estudantes, serenatas ao luar, nada mais o
atrai~. Ocupava-lhe a imaginação, despàticaniet'lte, o
vulto daquele fidalgo espanhol de Guipúzcoa, D. Iná-
cio de Loiola, que abandonara. a sua dama, em plena
mocidade, pelo ...,culto de Nossa Senhora. m~is tarde
pela regra da Companhiá de Jesus.
Como se folheas~e um poema, feito de aventura e gló
ria, êle via Inácio ainda criança, lindo pajem do rei Fer·
nando, o Católico, na côrte aragonesa. Via-o depois, es-
.belto cavaleiro, devoto de S. Pedro, na,turbulência do car-
naval de Guipúscoa, no heroismo dos recontros sónoro;;,
abrasado o coração pelo desejo da 'bela Germana de Foix.
Via-o, enfim, resistindo ao assalto francês, cair entre os
muros desfeitos da cidadela de Pamplona, coberto de
sangue e pó.
Entalando-lhe a perna direita, que fôra três ve-
zes fracturada, tantas outras recomposta, a cirurgia
condenára o valente ao repouso. Longas semanac;.
turvos meses de inércia e dor prenderam Inacio no
castelo de Loiola, em Azpeitia. Esgotados os deya-
neios, as remm1scências, êle tinha só dois compa-
nheiros silenciosos, dois livros, para vencer nessa
imobilidade a monotonia das horas infindáveis -
uma lenda espanhola de santos e uma Vida de Cristo,
do frade cartuxo Luclolf, o saxônio. Atra,vés da lei-
tura, .pouco e pouco, veiu-lhe a idéia de ser um gran
de santo, como Francisco de Assis ou Domingos de
Gusmão. C~rta noite, apareceu-lhe a Madona, tra-
zendo ao colo o menino Jesus. Era um apêlo do
céu. Inválido para o oficio da., armas, claudicante,
o herói de Pamplona decidiu fazer-se religioso.
ANCHIETA 55
* * *
A ESCOLA DE PIRATININGA
ANCHIETA
l
• *
·Duas vezes por dia,, em Piratininga, a sineta con-
vocava o gentio à igreja, e embora os caminhos fos-
sem íngremes, os ares frígidos, acorriam mulheres
em bandos ao toque de matinas oti de vésperas. Al-
gumas vinham nuas, como as suas irmãs da Baia,
,para as quais Manuel da Nobrega implorava a es-
mola de uma camisa ao padre-mestre Simão Rodri-
gues. Trazendo ao culto a virgindade agreste da al-
ma, o odor de planta selvagem do corpo bronzeado,
elas depunham mólhos de flores e folhas aromáticas
no santuário; ouviam atentamente a lição ou a missa
dos pagés brancos; rezavam no seu idioma gutural,
de joelhos, cruzadas as mãos sôbre o colo polpudo,
os seios pendentes; choravam nas confissões e comu-
nhões; diziam-se pecadoras em voz alta, rojando aos
pés do sacerdote, esguedelhadas e contritas, ou des-
fiando rosários polidos ao tôrno pelo irmão Diogo Ja-
come, sob a corôa de Nossa Senhora. Eram fieis na
ANCHIETA 105
• • •
Não repousava o demônio, salaz o destro, omní-
modamente corruptor. Pela bôca do gentio indomável,
sussurrava aos catecúmenos, ainda e sempre, que
era intento dos jesuítas, fechando-os na igreja, sub-
meter os conversos à escravlidão, os infieis à morte.
Ao mesmo tempo, os mamelucos de João Ramalho,
habitantes da vila de S. André da Borda do Campo, a
nove milhas de Piratininga1 e mercadores de escravos
indígenas, arrebanhados por todo o planalto, não to-
leravam os catequistas. Nos fundadores do colégio
descobriam rivais, cuja se<lução, congregando em suas
estâncias os índios, soberbas peças de resgate, lhes
prejudicava o negócio e a fortuna. Assim foi gerado
o primeiro antagonismo do comércio e <la catequese
no Brasil.
Os ramalhistas, como se diz nas crônicas da Or-
dem, procuravam excitar os conversos, lançando-lhes
em rosto a, cobardia da sujeição a forasteiros e degre-
dados - os padres. 1hse labéu, mais do que outro
qualquer, doera aos tupís belicosos. Se haviam de ter
senhores - gritavam os mamelucos, - antes fossem
êles, combatentes de arco e flechas, gu.a:rdando nas
veias o sangue e a fúria da ascendência brasílica. A
ousadia dos bandeirantes latejava na prole de João
Ramalho, que o padre Leonardo Nunes fizera sair da
igreja em 1549, não querendo celebrar o sacriHcio na
sua presença. Im;penitente e arrogante, o pecador
fô.ra <lepoi~ txco.mungado.
118 CELSO VIEIRA
• • •
O devotamento dos jesuítas conhecia todas as pro-
vas. Frequentemente, não tinham outros enfermeiros
as mulheres indígenas, mesmo as virgens, corroídas
pela tenacidade asquerosa e secreta de úlceras más.
Uma velha amiga <le português, doadora da igreja e do
colégio, tra·zia. nas vísceras um câncer. Impossível ten-
tar nesse caso o emprego de barro incandescente,
usado pelos selvicolas (144). Com o seu odor de putre-
facção estonteante progredira o mal, afugentara os es-
cravos e os filhos da mulher condenada. Sómente doi:;
jesuítas, o padre Afonso Braz e o irmão Gaspar Lou-
renço, vencendo a repugnância olfactiva, que era in-
vencível nos mais, ficaram de joelhos á cabeceira da
agonisante, velaram-lhe a última noite. Que importa-
va a exalação ·horrorosa d:i, sânie? Dessa impure7.a
talvez brotassem flores, amanhã, para o campo selva-
gem de Piratininga. E a alma redimida pel:i, crença,
(43) SIMÃO DE VASCONCELOS, Chronica àa Companhia
de JelfUf!, 2.• ed., liv. t, pag. 93. " . . . mandou-se perguntar a
questão a. Roma. a nosso Santo Patria.rcha Ignacio para suc·cessl.le
semelhantes: a resposta foi por estas palavras: "Quanto às
sangrias digo, que a tudo se estende o bojo da eharidade".
(44) ANCHIETA - Carta sobre as coisas n.aturais de S.
Viomite, 1560.
ANCHl!TA 125
• • •
Não rato, embocando a inúhia, um. cheifé tamoiô
soprava a discórdia, e ao encontro da turba-multa, que
se aproximava de Piratininga, saíam os catecúmenos.
Em uma dessas refregas, intimidados pela fôrça dos
contrários, já os cristãos desfalecem, quando a mulher
do capitão da aldeia, benzendo-se, exorta os seus à pe-
leje\' e recomenda o gesto simbólico. Ao sinal·da cruz,
foge o inimigo, salvando-se todos os guerreiros cris-
tãos, excepto dois, que não se haviam persignado. Nas
sombras da noite, porém, os vencidos tornam como as
hienas, desenterram os cadáveres, que êles supõem dos
venc_edores, largados no. campo de batalha, donde os ar-
rastam sofregamente para a sua taba. Farejando a
nudez terrosa dos corpos ainda sangrentos, bebem ,.
dançam. Mas através da neblina,, como através de um
sudái:io, transluz vagamente o dia; sob o palor da ma-
nhã funérea, com espanto, os canibais reconhecem na
lívida face dos mortos arrancados á sepultura os seui
próprios amigos ou parentes·... (46).
Outras vezes, inopinadamente, sobrevinha o reflu-
xo da alma colectiva, naquela estância devota, aos ape-
tites canibalescos e às práticas inumanas. Tendo apre-
sado, em guerra, um valente e polpudo guaianá, resol-
veram matá-lo e comê-lo os índios conversos de Pira-
tininga. Não tardaria o sacrifício, para o qual estava
• • •
Seria êle ·um dominicano renegado? ( 53) Ou acaso
lhe fôra prometida, entre os fieis de Guanabara, a
dignidade episcopal? (54) João -de Bolés afirmaria mais
tarde, ,perante o bispo da Baía, não hav'er ·professado,
(52) Epístola de Bolés a D. Pedro Leitã~, junta nos autos
do inquérito em 26 de agosto de 1561.
(53) VILLEGAGNON - R epanse aux libelles à'injure.,.
"On me reproche ung Jacobin nommé Cointat, leque!, ce dit-il,
&. trahi mon fort. ,O 'est un de ceux qui me vint trouver a.v ec
reux de Geneve, à moy recommandé non par Calvin msis par
anltre d 'uns même e·h aleur d 'affection, il cuseignoit la Confes-
sion d 'Augnst. Au moyen de quoy s 'ourdiront lcs débats qui
nons engendrercnt tant de troubles de rcligion".
(54) CRESPIN - Histoire des Martyrs, " . . . pretendia:. a
Superintendência do Episcopado, alegando que ci lugar lhe fora .
prometido em França (Trad. do tomo II, pag. 448-465 e 506-
519, por Domingos Ribeiro). ARTHUR HEULHARD - Ville-
gagnpn - Rol à' Am~riqu-e - pag~ 143: "Je ne sais ce qu 'on lui
avait promis à son départ de France : mais il se considérait com-
me superieur aux Ministres par une maniere d 'episcopat in par- ·
.tibus."
132 CELSO VIEIRA
(56) LERY, op. cit. " ... n fnt prié par enx de faire con-
fession de sa foy & abiura pnbliqnement lé papisme ... "
131 CELSO VIEIRA
• • •
Ouvido pelos inquisidores do Santo 0.ficio, em
Lisboa, insistiu João ele Bolés, a princ1p10, nas mes-
mas declarações de amor filial à Santa Madre Igreja.
Não tardou, entretanto, a confissão ;parcial <las anti-
gas culpas, seguida pela confissão de fé na v'erdade
infalível da Igreja Romana. O herege dizia-se autor
HO CELSO VIEIRA
paà,re Inádo, dt 1556: " .. . aquelas vacas, quo são dos meninos,
ficarem ao co1egio nosso, no qual nlio haverá <!á escandalo ne-
nhum ; porque, como se houveram por contemplação do nosso
irmão Pero O:itrea, todos as têm por dos i rmãos, mas, elas, na
verdade, delaa foram doadas com umas t erraa, assim mesmo do
Irmão Pero Correia."
(60) SIM.Aú DE V.!.SCONCELOS, Vida ào P. Anchieta,
livro I, cap. Vll.
144 CELSO VIEIRA
• • •
A poesia, o teatro, a oratória, a musica, a, orna-
mentação de altares e andores, a arte de ·curar, o po-
der sugestionante de predições fundadas na experiên-
cia, a própria mímica, tudo comunicava a esse apos-
tolado, sob formas rudimentares, eficácia e autori-
dade. Certo, biografando Joseph de Anchieta, não
ousaremos denominá-lo criador da literatura pátria ou fun-
dador do lirism,o no Brasil. Nenhuma dessas cousas re-
pontava ainda para a colônia. Era cedo. De qualquer
modo, porém, exímio em compor mistérios e diálogos,
tecer alpercatas ou disciplinas de canlo, sangrar en-
fermos com o único estilete que possuia, expelir da
alma pecadora tentações e demônios, foi êle em Pira-
tininga, ao mesmo tempo, comediógrafo e poeta, mé-
dico e artífice, oráculo e missionário, escriba e tau-
maturgo, mestre-escola e arquitecto. Foi o antepas-
sado maior das nossas letras na sua fase embrioná-
ria, a pe~sonalidade múltipla da ~ida colonial, o herói
benfazejo e necessário aos meios sociais ainda não
diferenciados como inteligência nem subdivididos
como trabalho.
VI
O POEMA DE IPEROIG
ANCHIETA
I
(75) ANCIITETA, carta ele jun110 de l{í61 até :u> mês 11.!-
;mnrço.
170 CELSO VIEIRA
'
vila de Piratininga, com tão grande estrondo <le gri-
tos, assovios, bater de pés e arcos ( como costumão)
que iparecia se vinha o mundo abaixo, e se arruinavão o.,
montes vizinhos (Chr., liv. II, n. 0 135)." Mas o Onç,1
brava logo morreu, asseteado, junto à horta dos padres,
q_uando investia o refúgio elas mulheres e dos meni-
nos - a igreja. Lá dentro, à noite, com as suas velas
acesas, mestiças devotas oravam diante do altar. Du-
ramente lanhavam com açoites indígenas a carne
bronzeada e nua, sem um tremor, sem um ai, deixan-
do retintos de sangue ·os muros e bancos do templo.
As disciplinas mortificadoras, no dizer ele Anchieta,
"pelejavam mais rijamente contra os inimigos do que
as flechas e arcabuzes."
Tão arrojada, tão imprevista foi nos seus contra-
golpes a defesa ele Piratininga, que os sitiantes, des -
coroçoados pela morte de J agoanhara, levantaram J
cerco ao segundo dia, e os sagitários da bandeira ca-
tólica ainda os perseguiram na: retirada. Dois pri-
sioneiros, caindo aos pés de Tibiriçá, bradando q11-::
eram cristãos, imploravam a graça elo herói, a clemên-
cia cios padres, mas o principal respondeu, inexorável:
"Para o vosso crime não há perdão." E alçando ;i
tangapema, herculeamente, floreou-a no ar, estilha-
çou a cabeça aos dois renegados.
Martin Afonso expirou, contr.ito, pouco depois
da vitória, "com tanto senso e madureza que nfto pa-
recia homem do Brasil", escreveu Joseph de _Anchieta
em sua carta a Diogo Lainez. Todos os cristãos dâ'
capitania lhe prantearam a morte. Sepulto na igreja;
como filho cliiêcto, o herói teve do sànto as orações e
os louvores, por êle foi proclamado não só ben,feito1\
[72 CELSO VIEIRA·
( 84) Ibcl. Íbd.: " ... ut 1tn11..s a1it duo moritrentur 1101nine$
pro populo."
II
(8'5) !bel. I bd. " • .. cierto que fue mucho siendo aquelh
gente La mais subtil, que aun oy enel mundo para invêtar men-
tiras, y facil para Las crer, poderia sufrir, t anto tiempo, que
nos nos hiziessen alguna cosa mouidos pr qualquiera y maxinn
por alguno su Jiechisero . . . "
( 86) "El vestido era mu~· vobrc, lo comü era, sotanns Cle
~anãmo tenidos de prieto q haziã de las velas de las naos de
la india que les ombia.vã. de límosna". Historia ele la f1indaci()fl, de :
Collegio àel Rio àe Henero y .ms residencia.s, c·ap. I .
(87) VARNH AGEN, H ist. Geral ào Brasil, t. 1, 2.11 ed.,
pag. 244: "Para a conversão dos columins, ou crianças gentias,
os meios que melhor se estrearam foram principalmente a musira ,
o canto e o aparato deslumbrador das cerimonias, que os enfei-
tiça, a."
180 CELSO VIEIRA
* * *
Seria esse o gigante do mundo selvagem? André
Thevet, na' sua C osmogmfia, universalizou Cunhambebe,
dando-lhe os traços colossais de um símbolo ameri-
cano, temível como os sombrios deuses aztecas. Re-
cortou-lhe o vulto disforme e sanguinário em claro-
escuro de lenda; pôs-lhe aos ombros massiços, como se
fossem reparos de artilheria, dois falcões vasados em
bronze, que ali mesmo troavam, fumegantes ...
Chefe de todos os chefes tamoios, aliados para a
vingança, ele reinava sobre as gent~s brasilicas, desd~
Cabo Frio a Bertioga; exércitos, flotilhas, os arcos <ln
confederação inquebrantável, ,pelejando sem tregua:;,
obedeciam ritmicamente a esse morubixaba de tor.va,;
feições, largos e ru<les membros, possantes armas,
em cuja feroz catadura havia a singular tristeza doc;
monstros.
Padrão e glória do can.ibalismo, a trovejar no
denso crepúsculo da raça, ele costumava dizer com
arogância, meneando o ta·cape, que havia saboreado
em festins retumbantes e sanguinolentos quase dez
mil prisioneiros. Sob uma pele raiada e retinta, nos
seus ócios, tinha bocejos de onça estirada ao sol, fa
rejando em volta a carnagem. Hans Staden, o preso
alemão de Bertioga, lançado pelos índios aos pés do
cacique, foi encontrá-lo diante de um alg·uidar, cheio
de carne humana. Em colunata erigida fttnebremente
pela sua vitória, assinalavam-lhe a porta do antro doze
postes, onde sangravam, espetadas como trofeus, doze
cabeças de inimigos. Remoendo, estracinhando uma
perna de homem, o carnívoro cios matagais rugia, de-
leitado: "Como é bom! Sou uma onça."
O eco dos seus bramidos regelava as almas, que
sentiam a penumbra da caverna, o frêmito ela vora-
gem, o ímpeto '10 jaguar nesse horreúdo filho da terra
198 CELSO VIFIRA
• • •
Em litania, sucedem-se agora os versos iterati-
vos: - como turíbulos de ouro, acesos para, a Madona,
trescalam os dísticos, vaporando incenso. Todo o ful-
gor nominal da Senliora, ampliado pelo celebrante ern
vocativos de ladainha, constela a ordem alfabetica,
reproduzindo ·o esmero torturante das composições
abecedárias de Sedulius. Uma após outra, desfilam a:,
imagens, rutilam as iniciais, desde Arbor, frutificando
em estrelas, até Virga, açoite das macerações eclesiás-
ticas, vara flexível com que se retalham, sob a qual
se retorcem ,os penitentes. . . Doloroso canto do ho -
mem vergastado pelo seu misticismo! Rainha e Já-
206 CELSO VIEIRA
• • •
Vencido o terror ela morte, com ele o demónio da
carne, Ant9hieta compunha na grande paz lumino,;;a
das altitudes os seus versos latinos. Esvoaçava-lhe
aos ombros nesses instantes, conforme a lenda; uma
avezinha multicor. Dístico por dístico, até à assun-
ção da Virgem, seria metrificado o poema entre os
bárbaros.
E é sempre na mesma incandescência, na mesma
exaltação, <1ue o poeta de Nossa-Senhora lhe segue,
como já foi escrito, os passos da vida e os passos da
morte, ascendendo com ela à sua glória. Os diálogos
do anjo e da Virgem, o misterioso noivado espiritual,
o nascimento feliz e a prece ao recemn~scido, a ofe.
renda simbólica dos magos, a purificação, a fuga para
ANCHIETA 207
(98) Ibd. Ibd.: " ..• nos fue necessario ha.blnr enparticular
cõ los prineipnles Authores daquPlla muerte, y. dizirles que nose
222 CELSO VIEIRA
• • •
Ele conheceu a tortura silenciosa da fom e, a dor
crucia nte de novas enfermidades, os cala frios e an-
• • •
Antônio, o homem que perdera mulher e filhos,
rebanhos e servos, adoeceu gravemente, para qu-:
tudo lhe fo sse arrancado, em tudo lhe fosse dada, a
228 CELSO VIEIRA
.ANCHIETA
Começo de nova guerra. O santo e a peste,
O apelo do capitão Estacio de Sá em 1S64, para
fundação do Rio de Janeiro. Nóbrega e Anchio•
ta em Guanabara, através da tormenta. Encontro
de herois e santo,. Rumo a S. Vicente.
• • •
Todo o mês de fevereiro é consumido nas dila-
ções, nos acidentes, nas intempéries de uma travessia
penosa em que não logramos fixar datas seguras
( 104). Lenta viagem por mares torves. . . Durante a
primeira quinzena, os navios pequenos e as canôas de
mamelu<:os e índios alcançam a ilha Grande, onde O!>
expedicionários ocupam uma al<leia de tamoios e
donde se transferem para, outro porto, rico de pe-ixe e
de caça. Entretanto, destacam-se da frota as canôas,
tripuladas pelo gentio impaciente, que vai esperar na~
ilhas fronteiras á barra do Rio de Janeiro, seguido
mais tarde pelos mamelucos, os navios da frota por
tuguesa.
Exasperados pela fome, pelo vagar da capitânia,
ora incerta e exposta aos ventos contrários, desarvo-
• • •
1
• • •
Enquanto o heroi Men de Sá reunia os ho-
mens e as armas disponíveis, acelerando a faina do:,,
estaleiros, Joseph de Anchieta, sem abandonar outros
deveres políticos, era iniciado nas ordens sacras pelo
bispo d. Pedro Leitão, que o amava desde os tempos
escolares. Sôbre o valor de Anchieta, preciosidade:
católica, esse arguto príncipe da Igreja Romana lapi-
daria mais tarde uma frase de joalheiro: "A Compa-
nhia é um anel de ouro e o padre Joseph a pedra pre-
ciosa".
ANCHIETA 261
• • •
A fundação urbana vencera, mas perecia ao bater
de asas da Vitória o f.undador, Estácio de Sá, intré-
pido e amável' como os seus primos Fernão e Salva-
dor, obstinado e religioso como o seu tio Men, heroi
da mais pura linhagem como qualquer dos três. Em
pleno triunfo, após dois anos de esforços redobrados
e pacientes, imobilisara-se a energia concentrada nes-
se homem· de tanto valor e tanta fé, que sustentara
o animo das tropas com autoridade e brandura,
entre perigos e provações. Havia nele a mocidade,
a nobreza, a devoção, o casto idealismo e a se·
rena altivez de um cavaleiro andante, perdido no
mundo selvagem. Flor da sua estirpe, glória da sua
raça, a urbs identifica-o, desde as origens, com o pa-
droeiro, também soldado e moço, ferido também por
uma horda çle sagitáºrios. Entre as nossas palmeiras,
Sebastião de Narbona teve um irmão lusiada - Es-
tácio de Sá, - o mesmo que lhe troux~ aos pés, com
o seu mólho de flechas simbólicas, a cidade infantil,
pequenina, asseteada como os dois no flanco e na face.
Os despojos do heroi, junto àos quais a Vitória pran-
ANCHIETA 271
• • •
Vencidos os franceses, subjugados os tamoios, di-
tas sobre o corpo de Estácio as últimas orações, em-·
barcat:am para S. Vicente, com o bispo d. Pedro Lei-
tão e a boa nova do triunfo, os padres Inácio de Aze-
vedo, Luiz da, Grã, Joseph de Anchieta e outros. Ma-
nuel da Nóbrega, envelhecido e alquebrado, mas ful-
gurante de santidade e heroísmo, abraçou com alegrin
os companheiros, bendisse a fortuna das nossas armas.
E todos seguiram, visitando escolas, aldeamentos, san-
tuários, até Piratininga, onde a gentilidade os acolheu,
festivamente, como se lhe trouxessem alguma divina
mensagem.
Nessa romaria a S. Vicente, depois do combate,
o nimbo das lendas evocadas pelos agíógrafos reco-
• • •
No ass,alto ao reduto do principal Uruçú-mirim,
em que tombara Estácio de Sá, mortalmente flecha-
do pelos tamoios, haviam sido capturados nove ou dez
combatentes franceses. Tão inflexível quanto valoro-
so, Men de Sá mandou executá-los (121). Seguida-
mente, foram cativados outros na ilha de Paranapecú;
ASCENSÃO
ANCHIETA
I
• • •
Novôs trabalhos intelectuais, não obstante, de-
viam alternar com os duros trabalhos religiosos. Adu ·
zido um biênio, sem funcções administrativas, ao sep-
tenario do reitor, contamos nove anos plácidos, fecun-
dos para Anchieta na pobreza marítima do núcleo vi--
centino. Evocando através do silêncio, a,penas quebra-
do pelo bater das ondas, porque o das tribos amorte-
ce·ra, longe, na conquista de Guanabara, ele teria en-·
cordoado a, lira diante do mar e composto os verso.;
do poema, sumido no tempo como no pélago um barco
- De rebus gestis M an de Sá. Teria lavrado e repolido
algo do Poema da Virgem, presumivelmente os Laiuf.es
Viryinis ordine alphabetico e as Horae Immaculatissimae
ANCHIETA 28:
• • •
Copiosamente, os biógrafos referem milagres on
dissertam sobre virtudes insignes do padre Joseph nes-
se período: o seu amor á pobreza e á castidade, ,10
cilício e à prece; o que havia nele de mansidão, paci-
ência- e renúncia ; como era caridoso para o próximo
em coisas temporais e espirituais; como revelava em
todos os actos da fé um zelo sobrehumano.
A genuflexão iilterminável deixava-lhe em san-
gue os joelhos, asperamente calejados na pedra ou no
barro. O seu oratório estava em toda a parte; a sua
oração, cada instante, ascendia para a divindade. Li -
dando, comendo, até mesmo dormindo, o santo falava
a Deus. Ao cafr da noite, pela noite dentro, nos ermos
e frios corredores do colégio de S. Victnte, descoberta
a cabc~a, os pés nús, ia e vinha, a rezar, ou ajoelhado
ANCHIETA 283
• • •
Poucos meses depois, em 18 de outubro de 1570,
expirava no colégio do Rio de Janeiro o fundador da
càtequese. Martuel da Nóbrega, jesuita primacial nas
origem católicas da história do Bra-iil, teve o seu epi-
táfio lavrado pela justiça de um protestante, Southey:
"Não ha ning,uém a cujos talentos ·deva o Brasil tantos
e tão perman_~ntes serviços" .
Dilectos amigos, Inácio de Azevedo e Manuel da
Nóbrega reviviam saudosamente no coração de An-
chieta, mais do que nunca resignado, entretanto, ·,
vontade de Deus. E eis que lhe surgem tristezas iguais
funebremente, do eclipse de velhas afeições: em 157l,
perece o governador Men de Sá, heroi do seu poema;
em 1573, o bistpo d. Pédro Leitão. Nesse ano, entre 2
e 4 de novembro, caiu em Piratinjnga um chuveiro de
tamanhas pedras que os viandantes lapidados pelo céu,
estarrecidos, bradavam de joelhos: Misericordia ! AI-
(128) Ibd. Ibd. " ... solos dos eseaparon ror Dlia Dios
para dax eierta informacion de Ia muerte de íiros heros ... "
ANCHIETA 297
* * *
Anchieta denominava a praia de Itanhaem, jovi-
alm~nte, o seu reino dos Incas, o seu Peru, transbor-
dante de almas nascidas para a cristandade, opulento
de conversões, baptismos e' alianças, como o outro,
inverosímil, de ouro e prata aos quintais, d~ pedraria
em toneis. Medindo oito léguas, com o templo erigi-
do á Nossa Senhora da Conceição pelos jesuítas, er:i.
esse o caminho habitual do missionaria nas infindáveis
peregrinações evangélicas. Por ioda a ourela ela praia
alvejavam ossos colossais, despojos de cetáceo, que
vinham boiando á flor das enchentes e afinal jazi;i,m
em seco, inertes, no refluxo das vasantes. Itanhaem,
ossuário imenso de baleias, antepunha ao choque das
ondas a rijeza ,do solo, em que as rodas chiantes dos
carros de bois, ajoujados e morosos, não deixava se-
quer vestígio.
O irmão Joseph, em 1563, baptizara nesse lugar
um índio centenário, que aiprendera as lições do cate-·
cismo, inesperadamente, quando mal podia ver
(132) P. GONZAGA CABRAL, Jesnitas no Brasil: "En-
contrei entre os Manuscritos inéditos, que estou cita11do, uma poe-
sia em c·astelhano, do próprio punho de ANCHIETA, dirigida ao
Bemaventurado (INACI0 DE AZEVEDO), na qual refere a con-
versão ao catolicismo de JACQUES S0URIE (Sore), o capitão
calvinista, que comandou a carnificina da nau Santi.a{Jo."
ANCHIETA 299
• • •
Não vinham só os conquistadQres e os corsários
brancos pelo M;ar Tenebroso. De outro hemisfério
vinham agora os negros. A' terra virgem, dramati-
zada pela escravidão ou ,pelo morticínio dos seus
filhos, chegavam as primeiras ondas de cativeiro das
(144) T'l'aballios dos primei.ros jesuitas no Brasii, Bib. Publ.
Eborense, eodice CXVI - publicado na Bev. ào Inst. Hi&t.
(145) Ibd. Ibd.
ANCHIETA 327
* * *
Os transportes e êxtases do padre eram divulga-
dos, nessa época, em toda a capitania,, de S. Vicente.
Quando trabalhava com outros irmãos na abertura
do caminho de S. Paulo a Santos, Joseph apartou-se
dos companheiros um dia, foi orar ao p~ de uma ár-
350 CELSO VIEIRA
* * *
O caso do índio Diogo, em Santos, é -culminante
na lenda taumatúrgica. Estando amortalhado o ca-
daver, aberta a sepultura, Diogo ressuscita e pede
á senhora da casa, Gracia Rodrigues, que lhe mande
afrouxar o sudário. Livre, começa a dizer : "Chamem
agora mesmo o padre Joseph para me baptizar". Im-
!)OSsivel, retrucam, porque há duas léguas da vilai de
1
• * *
Joseph acompanha em 1584, como celebrante e
confessor, o religioso Pedro Leitão, os serventes· da
casa e alguns indígenas, pescadores, á lagoa de Ma-
ricá, sete léguas distantes do Rio. Nessa pescaria
famosa revemos as modalidades principais da lenda
anchietana. Simão de Vasconcelos definiu-a: " .. . huma
c·omo comédia de toda a variedade de acçõens, e figura,,
ao divino".
Junto de um penedo, Itapoig, pouso nocturno dos
viandantes, o taumaturgo ,começa por alimentar duas
onças, dois carnívoros tr.emendos, servindo-lhes á por-
ta da choupana um dourado cacho de bananas! Depois,
á. margem da lagQa, orienta aos ._pescadores o lanço
352 CELSO VIEIRA
* * *
Repentinamente, qu.ando ele orava no silêncio da
noite, cobria-se toda a cela de fulgurações cambiantes
e magicas. Em 3 de outubro de 1602, inquirido pelo
rever-endo Martin Fernandes, vigário geral do Rio de
J aneiro, o depoente Afonso Gonçalves trouxe á for-
mação da lenda anchietana o esplendor de uma ak-
goria. Hospedado certa vez pelo capitão, sogro da
testemunha, no reduto de Bertioga, onde fora ter
com o padre Manuel Viegas, ao encontro dos mara-
momis, Anchieta preferiu dormir na capela de Nossa
Senhora, a trinta passos elo forte. Alta noite, des ·
pertando o marido, a mulher de Afonso Gonçalves se
g redou-lhe, comovidamente: "Senhor, acordai, e ou-
vireis uma coisa maravilhosa." Elect rizado pela cu-
riosidade, Afonso entreabriu a janela" do quarto, es
preitou, escutou... A' maneira de uma fonte encan-
tada, jorrando luz, toda a ermida resplandecia, e da
fonte corriam lágrimas sonoras, brotavam melodias
cascateantes, que ,não eram ela terra, mas ele outras
paragens celestes, onde voos repassam, vozes resso-
am á face de Deus. Maior ·que o deslumbramento foi
o espanto de Afonso Gonçalves e ela si.ta mulher. Ar-
r epiava-lhes os cabelos, impedia-lhes os passog um
temor sagrado. E dentro da noite a e rmida de Nossa
.~enhora, vibrando como as liras, ardendo como os
354 CELSO VIEIRA
* * *
Debuxado pela tradição oral, já existia entre os
8elvagens uma figura lendária de precursor ou inicia-
dor, Sum,é ou Zumé, o estrangeiro alvo de longa<;
barbas, que lhes revelara coisas sublimes e o uso da
mandioca, - figura convertida pelos jesuítas no
apóstolo S. Tomé. cujas pégadas eram ainda visíveis.
por toda a costa meridional do Brasil, impressas na
dureza de lages veneradas como objectos sagrados.
7.umé ou Sumé, em outras idades, fôra talvez um dos
* * *
Muitos casos anchietanos - vidência, telepatia,
intuição premunitória, adivinhação de pensamentos
etc. - seriam hoje vulga,res, depois da metapsi ·
quica, embora inexplicávei"s na esfera dos conheci-
mentos positivos (151). Fenômenos de outra espé-
cie, como transportes, êxtases, visões, teriam a sua
causalidade no sistema nervosu, afectado já pelo des-
vio da espinha dorsal, pela doenÇa eucarística dos
tempos de Coimbra, em que era ideia fixa do no-
viço rever na hostia o corpo de Jesu.s (152). Deri-
variam ainda certos fenômenos, talvez, dos exerci--
cios espirituais, do regime ascético e ela auto-hipno-
* * *
Ao catolicismo repugnam tais concepções. Na
sua doutrina, logicamente des<lobrada, humildade e
sacrififício, amor e renúncia, caridade e penitência ele-
vam ao plano celeste da criação o venerável Joseph
de Anchieta, remodelado em espírito á imagem e se-
melhança de Deus. Unindo-se a Deus, santificando-
se, é que ele ascende á categoria de profeta e de tau·
maturgo, sob um lampejo da Graça, mas também por
um acto supremo de livre arbítrio. Duzentos e oito
testemunhos antigos e graves nos processos informa-
tivos e apostólicos, feitos em S. Paulo, no Rio de
Janeiro, na Baía, em Olinda, em Evora e em Lisboa
para a sua canonização, autenticam-lhe as virtudes
e os milagres perante a Congregação dos Ritos.
Na crónica ·reli'giosa, moldura eclesiástica da len-
da, Anchieta é o novo taumaturgo, como o apelida
Eusébio de Nieremberg (Ideais de Varões claros) ou
Adão inocente, como prefere chamar-lhe Jacobo Damiam
(Sinopse). Adão do novo mundo é ele na biografia do
- padre Simão de Vasconcelos, que lhe atribui, exem-
plificando, os mesmos dons refulgentes do primeiro
homem, antes do peceado original: inocencia, enten-
dimento ilustrado, vontade recta, corpo impassível e o
domínio dos quatro elementos.
Tendo nascido para enlevo do Brasil no paraíso
das Ilhas Afortunadas, o nosso Adão segundo, obe-
diente a Deus,, impe~a também sobre o homem racio-
mal e os seus orgãos, sobre a vida e a saude, os bens
materiais e a própria ··alma. Daí a influência cura-
tiva, que era sentida- pelos enfermos na cabeça, nos
ANCHIETA 361
OCASO DE RERITIBA
ANCH IE'l'A
I
(157) PERO ROIZ, op. eit., llv. II, cap. II: "Nhua como-
nieação tinha o p ,e com os seus q criío ainda viuos ua i lha llc
Tanarife hua das Canarias, e dalldolhe hua carta de hua irmã
sua. leo o sobre esCTito e a.ntea de habrir dise o que uella se cou.
tinha , e com muita alegria dise que sua irmã estaua conform~
com a Tontnclo dcuiu::1, <.>m hua infirmidnde que padeçia".
ANCHIETA 367
,J. * *
O asceta foi habitar no declive ele um monte, ao
pé do rio, que os selvícolas chamavam lriritiba, por cor-
rupção Reritiba (158). Não mais lhe veremos a figu-
ra dramatizada pela história, batida pelas tormentas.
sobre o convés dos galeões ou a táboa frágil das ca-
noas. Desaparece elo cenário tumultuoso o apóstolo,
fundador de estâncias e colégios, defensor de igrejas
e cidades, ecliipsado pelo anacoreta, imerso na peni-
tência e na contemplação. Vai findar o ciclo anchie-
tano do Brasil meridional com a marcha das bandei-
ras paulistas. Mas a idade heroica do jesuitismo br:t-
sileiro, acabando nesse teatro invadido pelos mame-
lucos até á bacia do Prata, incendiado pela conquista
econômica e geográfica dos bandeirantes, continuará
pouco depois ao norte, desde a vila de Olinda a0
rio Amazonas, por incontávei~ léguas de costa e de
* * *
Joseph · de Anchieta, nesse período, segundo as
testemunhas do processo de canonização e os agiólo-
gos inacianos, continuava a manifestar entre religio-
sos e catecumenos a mesma vidência de Iluminado,
sondando espaços remotos, destinos vindouros, a 'pe-
numbra dos corações humanos. Ele prevê ao sacer-
dote João Fernandes Gato o conhecimento da língua
do Brasil, em ,pouco tempo, quando o aluno já desa·
nima na longa aprendizagem; certifica-lhe uma de-
mora imprevisível de quatro meses na vila do Esp1-
rito Santo; adivinha-lhe certo escrúpulo, antes da
confissão; anuncia-lhe, de repente, jornadeando pelas
fazendas dos moradores, o pe:r:igo criado á alma rle
um jesuíta, em lugar distante, e acode no momento
oportuno a essa fraqueza espiritual; outra vez, arrasta
o compa,nheiro a uma aldeia longínqua, dizendo-lhe que
era assini necessário, e ao chegar desarma com a sua pre-
sença um bando de assaltantes. A' mulher de 1\Ianuel
da Gaia, que ela julgava morto, duas vezes prediz o
regresso do maridp: primeiro, de uma viagem á Eu-
ropa; depois, de uma entrada nos sertões.
O experimentado sa,ber da sua yelhice, indulgente
e amorável, possuía todos os segredos da alma bra-
sí!ica. Ouvindo em confissão a uma índia que ela
fora tentada por um dos padres mais virtuosos da al-
ANCHIETA 371
* * *
Nos fins <le 1591 ou princípios de 1592 viaJou <lo
Espírito Santo á Baia, chamado á Congregação, em
que foi eleito procurador a Roma o padre Luis da
Fonseca, seu companheiro e amigo, para instruir o
geral. da Ordem sobre as coisas rr.ais relevantes da
Província. Enfermos os dois, esforçavam-se mais ·que:
os outros, sãos e vigorosos: - "Depois de sua elei-
ção até agora, escrevia Anchieta ao capitão Miguel
Azeredo, do Espírito Santo, nem ele nem eu temos
vida; ele com escrever e outros negócios, e eu com
escrever, para o que os dias me não bastam, nem des-
qmsarei, até que ele. . . se embarque''.
Após o embarque de Luis da Fonseca, houve quem
estranhasse o consentimento á escolha de um homem
exausto, semi-morto, indagando se o padre voltaria
ou não ao Brasil. Respondeu-lhe, porém, Anchieta:
- O padre Fons;eca vai aonde Deus o manda. Se
andava com pouca saude até á Con~re~ação, me-lho-
372 CELSO VIEIRA
* * *
Em 1593, deixando o colégio da Baía, fora servir
na casa do Espírito Santo com Anchieta, seu mestre,
o noviço João de Almeida, que nascera em Londres,
e vinha fadado á glória de rivalizar com o profeta
Ezequiel no gênero alimentício. Entre os horrores e
prodígios da vida ascética, narrada por Simão de
Vasconcelos, foi esse o caso mais violento de morti-
ficação no Brnsil, s·urpreendendo pelo requinte os
próprios inacianos. Porqueiro, veterinário, cavador
das hortas, varredor dos corredores, ajudante da co-
zinha e copeiro, João de Almeida tornou-se o escravü
mais vil dos seus irmãos. Sob os feixes de lenha, os
fardos que ele trazia ás costas por destino e deleite,
jovialmente, considerava-se um asno. Queria ser
para a Ordem, para os trabalhos jesuíticos, um sim-·
ples animal de carga. " ... porque o conceito de si --
escreve Simão de Vasconcelos - era de jumento, as-
sim se chamou ·por toda sua vida". No delírio da
penitência feria, a golpes de tesoura, as partes mais
sens~veis do corpo. Na vertigem do seu espiritualismo
desafiava a própria repulsão das coisas imundas. Sen-
do veterinário, e como lhe repugnasse tratar a chaga
cancerosa de um a,nimal, que fez João de A,lmeida?
Certo dia, segundo a ' narrativa do cronista da Or-
dem " ... ajuntou por vezes a matéria, e bichos mal-
cheirosos, que dela tirava,, e os meteu na boca, e le-
vou ao ventre, com valor .. .. "
378 CELSO VIEIRA
* * *
São inumeráveis os milagres com que se enflo-
rou na casa do Espírito Santo, lendariamente, o pri-
meiro superiorado anchietano. Joseph antevê os su-
cessos ocultos, adivinha o paradeiro dos objectos
perdidos, anuncia trabalhos e tormentos, desvenda os
pecados e erros mais secretos, a visa ao porteiro, sa
indo repentinamente do cubículo, que um homicida
em fuga lhe bate á porta, alcança o divino favor das
chuvas torrenciais em plena seca, extingue a·s dores
com a sua benção, dá voz a um mudo nas festas da
aldeia de S. João, faz remover, tocando-a só <lua:;
vezes, a pedra do engenho de Miguel de Azeredo, !age
desconforme sobre a qual sucumbira o vigor de toda
a gente dos arredores, manda tanger a rebate contra
os hereges e corsários franceses, que se avizinhavam
da barra, invisíveis na bruma. Foram notáveis as
suas predições durante a guerra declarada pelos mora-
dores do Espírito Santo aos goiatacazes, antropófa-
gos colossais, inexpugnáveis nas choças lacustre:s.
Amiu<lavam-sç,..as contemplações e os êxtases do san-
to. Obedeciam-lhe as aves ao gesto ou á palavra, de.,-
de o tuim, que o festejava no púlpito, à andorinha, que
lhe esvoaçava aos ombros. Por ele atraida e ensinada,
ANCHIETA
* * *
Os primeiros jesuitas são os telamones da Igreja
do Brasil, homens-colunas, talhados por Deus na
pedra ev;i.ngélica da fundação imperecível. O maior
desses gigantes espirituais é Manuel da Nóbrega, e
* * *
O espírito de mortificação e obediência ri
valizava com a sua heroicidade. Inexorável consigo
mesmo, tambem o era no trato dos subditos, em face
da Igreja e da Ordem. Na Baía fez apregoar pelo
missionário Vicente Rodrigues, em hasta pública, u,m
sacerdote de alta linhagem, o ,padre Manuel de Paiva,
experimentando-lhe a alma cristã. Sómente á última
hora, pouco antes do lanço definitivo, explicou ao go-
vernador que a venda fora simulada para sujeitar o
religioso á mais dura das provas. Em S. Vicente im-
poz a um mameluco transviado, aluno da Companhia,
o castigo romano (169), infligido ás vestais poluidas:
Seria enterrado vivo, ao dobrar dos sinos, após o ofí-
cio de defuntos, porque manchara no seu recolhimen-
to a pureza da Ordem. Acorreram fieis portuguêse5
e indios á -cerimônia. Então, celebrada missa de cor-
po presente, o pecador amortalha,do baixou á cova
aberta no próprio templo. Uma a uma, lentas e sur-
das rolavam as pás de terra sobre o corpo, envolto
no sudário, quando o irmão Pedro Correa caiu aos
pés de Manuel da Nóbrega, invocou a sua misericórdia.
(168) SIMÃO DE VASCONCELOS, Cr. liv. III, 11. 62.
(169) Ibd. ibd., liY. I, 11, 129.
ANCHIETA 389
* * *
Sentiam-lhe os irmãos, de onde em onde, 0
peso da autoridade inflexível. A um deles o mestre
<leterminara que fosse pelas ruas da cidade, em trajo
de ·penitente, açoitando as próprias costas; a 'outro
que emborcasse um vaso transbordante de azeite.
Obedeciam todos, mesmo na enfermidade, ,nesmo na
agonia, se a ordem era dada para não adoecer ou não
sucumbir ( 170).
Na sua rispidez e obstinação, na impetuosa ve
emência do.s gestos e brados, no trovejar da ira contra
os pecados mortais, Nóbrega remontava, biblicamer:-
te, á ascendência profética de Elias, de Isaías ou de
João Baptista, vultos ameaçadores, vozes tonitruantes.
Se a concupiscência de _um sacerdote o escandaliza.
ele corre á porta da ca:sa impura, com os seus anate-
mas, gri_ta á cidade inteira que ali estão crucificando
Jesns. Se um marinheiro, aferrando a vela do barco,
graceja com o poder de S. Lourenço na tormenta, ele
(170) Ibd. ibd., liv. IV, n.º 139: "Até na doença, e mortC'
fazia. provas de obediência; porque por esta mesma soubessem
adoecer e morrer os verdadeiros filhos da Companhia. Pare ::iqoi
vossa. doença", disse a Vieente Ro<lrigut•s: "Niío morraiq nUí
eu uão tornar", disee a Salv:idor Rodrigues: e obedeci·U hum e
outro".
390 CELSO VIEIRA
* * *
Só, na Baia, tendo mandado á catequese os de-
mais padres, ele decide fazer todo o serviço em duas
igrejas. Só, exercita em S. Vicente, de um a outro
povoado, todos os ministérios. A gaguez, travando·
lhe penosamente a língua, redobra o tempo das mis-
sas e dos sermões (172). Gago e trópego, oficia, pre-
ga, confessa, mantem no culto divino a solenidade pos-
sível de coros e alfaias. Entra nas selvas com a mú-
(177) Ibd., Ibd., ]tv. I, n. 68: " ... era tal o espírito, e
pressa, com que corria os lugares circumvizinhos, a pezar d"
frios, neves, e c'almns excessivas, que vieram .'.'l por.lhe por nome
da lingua do Brasil Abaré J]eblJ, que que1· dizer "Padre <lue voa"
ANCHIETA 39S
* * *
Um dos gigantes da Companhia, vergóntea da
casa Aspilcueta. nobilíssima esti rpe do reino de Na-
varra, que os genealogistas aparentam com a família
de Loiola, fundador da Ordem, e a de Francisco Xa-
vier, apóstolo do Oriente, foi o padre João· Aspikueta
Navarro.
Antes de outro qualquer, aprendeu o falar dos
índios, vertendo para uso deles orações e diálogos pie-
(178) lbd., ihd ., liv. I, n.º 169: " . . . foi ele, <lepoiM d,>
Padro Nóbrega, o pl"imeiro obreiro da missão do Braail, nm
vico-Nóbregn de lil. Viceute1 um .A.)?6stolo da1uel:is pa1·tes",
ANCHIETA 397
* * *
Assim desfilariam nos apontamentos ele Anchiet:1,
uma após outra, as efígies mais behts e mais graves.
Fixando-as, revemos os capitães á milícia eclesiástica,
sangrentamente disciplinada para o triunfo espiritual.
E assinalamos os seus atributos heroicos: A perse-
verança, o equilíbrio, a ciência das t oisas divinas em
Luis da Grã, reitor do colégio de Coimbra, que foi
colateral de Nóbrega no seu provincialato, em segui-
da provincial, e como Nóbrega se fez modelo de ca-
ridade através dos ciclones e das pestes, hierofante do
apostolado na costa e nos sertões, vencedor de here-
ges e feiticeiros, convertendo milhares de almas gen-
tílicas, orientando o nomadismo das tribos para as
aldeias cristãs; edificadas no seu itinerário. A elo-
quência em Pedro Correia, primeiro noviço do Brasil,
antigo caçador de índios, que se tornou a boca de ouro
da Ordem, pregando ao gentio cada noite, longamen-
te, sob as estrelas, e foi o enlevo das hordas sanguiná-
rias, antes de ser, pelo martírio, o das hostes ceies-
* * *
Ausente, respir'ando a morte na violência dos com-
bates ferozes e do clima africano, ele fôra traido
pela mulher, que a sua piedade cristã deixara sobre-
viver ao pecado. Vindo para o Brasil, acabou o guer-
reiro, exemplarmente, como religioso, a punir o corpo
no seu retiro (183), malhar o ferro na sua bigorna.
Saiam-lhe das mãos calosas para as dos índios, que o
adoravam por esses milagres de forjador, machados,
cunhas e fokes. Vulcanicamente, revelava Mateus
Nogueira o Brasil da idade de ferro ao Brasil da ida-
de ele pedra. E o ferreiro-atleta, reverenciado· como
um ídolo benfeitor, deslumbrava o gentio com o sen
poder siderotécn:ico, as suas dádivas de ferro, ensinan-
do-lhe o catecismo, atraindo-lhe os filhos ao seminá·-
rio. Manuel da Nóbrega disse uma vez de Mateus No-
gueira : " ... ferreiro de Jesus Cristo, o qual, posto
que com palavras não prega, fá-lo com obras e mar-
teladas" (184).
Talhado na robustez de um vasto arcabouço, ele
consumiu a rijeza do corpo e sublimou a· ardência da
aJma na forja, na devoção, no cilício. Venceu as ten-
tações da carne a poder de açoites e jejuns. Em doze
anos de esforço e penitência, :liundindo as horas de
trabalho e as horas de tormento nessa estrepitosa,
coru,scante obra sideral, Mateus liquidou a sua
fortaleza nativa. Quando já não podia ter-se de
. .
vidos aipostolicamente no Brasil.
~
LETRAS ANCHIETANAS
• e •
"Virginal cabeça
Pela fé cortada
Com vossa chegada
Já ninguem pereça.
Tambem padeirinha
Sois do vosso povo,
·Pois ·com vossa vinda
Lho dais trigo novo. (12)
O HEREGE DE GUANABARA
No capítulo V, livro II, •da Vida do Padre José de
Anchieta, cujo manuscrito, enviado ao geral Gáudio Aqua-
viva, em 1606, pelo provincial Fernão Cardim, serviu
de fonte a Beretário para a sua biografia anchietana,
Pero Roiz fornece a primeira notícia, colhida entre n
inacianos, sobre a, execução do herege anónimo de
Guanabara, que o santo convertera ao catolicismo em
vésperas do suplício:
"Conquistando o Governador Men de Sá, a segun-
da vez, o Rio de Janeiro, quis fazer justiça de um
herege muito pertinaz, que entre os soldados francL·ses to-
mara. Encarregou-se dele o padre José, teve dificuldade
em o reduzir, e pediu ma·is tempo: finalmente o r,;-
duziu com a divina graça e o fez confessar e aparelhar
para bem morrer; chegando ao ponto da execução, es-
tava o padecente mui afligido e impaciente pelo algoz
se embaraçar no ofício; repreendeu, então, o padre
ao algoz, e deu-lhe ordeni como o fizesse beni; contando o
padre dali a muitos anos este caso a um Irmão nosso,
lhe disse o Irmão: e V. R. não via que ficava regular
(1), se bem advertia nisso; respondeu o padre: po-
rém a minha irregularidade não era ofensa de Deus
e tinha remédio, mas aquele pobre não tinha outro re-
médio, porque sua salvação .tinha tempo limitado, e
• • •
As inexactidões pululam no texto de Beretário,
onde o bispo manda João de Bolés (Joanes Boullerius),
em 1567, da Bafa para o Rio, acabando o herege ás mãos
elo verdugo e aos olhos dos francêses, justiçado pela
crueza do seu amigo Men de Sá. Ora o bispo da Baía,
d. Pedro Leitão, veiu para o Rio nesse mesmo ano de
1567, na rota desse -mesmo governador geral, a quem
não lhe era possível, antes da sua volta, mandar o ré·
probo, mas a imposibilidade continua, admitida a hi-
pótese, porque o francês anónimo, supostamente exe-
cuta,do no Rio, foi tomado in loco, entre os soldados
428 CELSO VIEIRA
• • •
Sem discriminar antecedentes ou pormenores, afir-
ma Pero Roiz que o ipadre Anchieta se encarregara Ja
conversão do herege. No falso presuposto de ter sidc
este o helenista João de Bol,és, acrescenta Beretário,
entretanto, que o sacerdote fôra chamado de S. Vicen--
te (accercitus est Sancto Vicente Joseph), não dispondo a
Companhia, nesse momento e lugar, de outro latinistr.,
pois Inácio de Azevedo, visitador da Ordem, atendi:i.
a maiores ocupações. É como o traduz Paternina cm
espanhol: "Para ayudarle en tan riguroso trance, vino
desde S. Vicente el Padre Joseph de Anchieta, porq11c
el padre Azevedo attendia a occupaciones mayores en
el rio de Januario, donde se executava la justicia. ·•
Mais uma inexa-ctidão. Os padres Inácio de Azevedo e
Joseph de Anchieta, como o bispo <l. Pedro Leitão, o
provincial Luís da Grã e Manuel da Nóbrega, tor-
naram ao Rio, juntos, nos meados de 1567. E no Rio
permaneceu Anchieta, coadjuvando Nóbrega, especi-
almente na instrução dos índios aldeados em terras
do -c olégio (7). Retido por esses deveres, não consta
• • •
Em resumo: afora a passagem de Pero Roiz,
nada encontramos, historicamente, sobre a conversão
anchietana <lo herege :de Guanabara. Quer na corres-
pondência de Anchieta e de outros jesuitas, quer no
Instrumento de Men de Sá, nenhum vestígio lhe descobrt-
mos. Os documentos da época não referem seme-
lhante episódio.
Imprecisa e lacónka, a estranha versão de Pero
Roiz omite o nome da vitima, só inscrevendo á mar-
gem, na cópia existente em Lisboa, o género do su-
plício - o q. passou com. hum hereje q. enforcaram. Fal-
ta-lhe mesmo o elemento objectivo <le um testemunho cer
to, pois o caso, dali a muitos anos, teria sido contado ,por
Anchieta a um irmão, cujo nome "também não se de-
clara. Havendo folheado os processos de canoniza~ão
do venerável Anchieta, em Roma, o padre Américo de
Novais poude assegurar no apêndice á conferência
anchietana de 1897: " .... embora as testemunhas te-
nham afü;mado in genere que foram muitas as -conversões
ANCHIETA 433
RELÍQUIAS DE ANCHIETA
As relíquias de Anchieta, em parte, foram trans·
feridas para a igreja do Colégio da Baía, ,por deter-
minação de Cláudio Aquavíva, geral da Ordem, no ano
de 1611, ficando ao pé do a;ltar~mór, veneradas pelos
romeiros e devotos. Em 1625, porém, como o brevr.
pontifical de Urbano VIII, de non cultu, vedasse aos fieis
o culto dos não beatificados ou cano,iizados 1 passaram
a outro lugar. Uma delas, por esse tempo, foi enviad:i.
a Roma. (SIMÃO· DE VASCONCELOS, Vida dô"V.
Padre Joseph de Anchieta, liv. V, cap. XV). Expulsos do
Brasil os jesuítas, mandou o chanceler Thomaz. Roby
a d. José I, em 12 de abril de 1760, as relíquias anchie-
tanas do Colégio da Baia - tíbias e .peroneos, mais
duas túnicas - num cofre <le jacarandá, forrado a pra-
tà. (XAVIER MARQUES, Nova comunicação ao Ins-
tituto da Baía, 1914). Das que permaneceram no Espírito
Santo já não existem documentos comprobatórios· nem
sequer vestígios. Apenas, de um trabalho do Sr. PE-
REIRA DE VASCONCELOS (Ensáio sobre a história
e a estatística da Provincia do Espírito Santo) consta o
seguinte: "Na sessão do Instituto histórico · e· geográfico
brasileiro, celebrada em 17 <le agosto de 1855, foi apresen-
tada pelos Srs. Pereira Pinto e Norberto uma propos-
ta, para que se soli_cite do governo a entrega de um
fragmento dos despojos mortais ,do missionário An-
chieta, que se conserva em uma caixa com lavor de:
prata no tesouro público da Corte ou da Província do
ANCHIETA 435
DECRETO PONTIFICAL
Pags.
Prefácio (,Tnizos Críticos) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5
Ecce liber ..... . .. .. ... . .. . ,. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 42
LIVRO I
VOCAÇÃO
CAPITULO I - Nascimento e infância de Anchieta. Os
seus estudos em Coimbra. Mlsti-cismo. O patriarca
1ináeio de Loiola, fundador da Companl1la de Jesus.
Prestígio da Or<l'em. Ingresso de Anchieta no Colégio
dos Jesuítas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47
CAPiTULO II - O noviço. Primeiros exercícios espirituais.
Mistério da Eucaristia. Devoção e doença. Conselho
do padre mestre Simão Rodrigues. Vinda para o Brasil
na missão de 1553 . . . • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 50
CAPITULO III - Destmbnrque d.g Anchieta na Baía.
Indumentária do tuplnnmbá. O arquétipo selvagem.
Animismo e canibalismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 68
CAPiTULO IV - Ba rbaria colonial. Tomé de Souza.
União da Igrej a e do Estado. D. Duarte da Gosta e
d. Pero Fernandes Sardinha . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77
CAPITULO V - Visita da Orfeu. Anchieta segue de,.
Baía para São Vicente com outros religiosos. Tem-
pestade. Chegam os jesultas a S. Vi-cente. Em busca
de Piratlnlngn. Noiva.do de Anchieta e ela tE!rra do
Brasil . . . . . . . . . . . •. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . •. . . . 88
LIVRO II
A ESCOLA DE PIRATININGA
LIVRO III
O ·POE~IA DE IPEROIG
CAPITULO I - Assalto dos portuguêses ao forte Coligny
em 1560. Confederação dos tamoios. Defesa d~ Pi·
ANCHIETA -Hl
LIVRO IV
LIVRO V
ASCENSÃO
CAP1TULO I - Anchieta nomeado reito1· do colégio de
·s. Vicente. Os seus trabalhos nesse ·período. Exalta-
ção das suas virtud'es. Misticismo e renúncia. Gran-
deza e humildade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 279
·CAP!TULO II - Anchieta na tribuna sacra. O sermão
de 1568 sobre a conversão de Sa ulo. "Efeitos oratórios
e locais. O pecador do Brasil-colónia. Vau electionis.
Catequese dos maramomis. O amigo dos índios. Uma
bandeira cristã . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28G
CAPITULO III - Tragédia da nau Santiago. Mortos !lus-
tres. Paz e Força. Na praia de Itanhaem. Adão . . 294
CAPtTULO IV - Anchieta no colégio da Bafa. O novo
.p rovincial; o novo governador. Piedade e cavàlht!lrls-
mo. Fundações da provinda. Os subditos da Ordem 302
CAP1TULO V - Jornadas e viagens c'o provincial. Há-
bito de mansidão. Defesa do gentio. Ensino. Traba-
lhos e perigos da catequese. Estoicismo de Anchieta.
Casos de profecia. Valdez e a sua a rma da. Ortega e
Filds, emissários anchietanos. Vitória dos catecume-
nos 310
ANCHIETA H3
LIVRO VI
OCASO~ RERITfflA
CAPITULO I - DecUnio de Anchieta. Rerltiba. O ere-
mita. O vidente. última viagem à Bala. Volta à so-
lidão ..........•...••••..•.•• : . • • • • • • • . . . • • . • • • • 365
CAPíTULO II - Anchieta . na casa do Espírito Santo,
como superior. Pobr~a e ,perfeição. Um dlscipulo
Inglês do taumaturgo. Novos mllagres. Rimas de um
profeta • • • . • . • •• • . . . • • . . . . • • . • . . . . . . • . . . • • . . . • . . . 374
CAPtTULO III - Apontamentos de cronista e biógrafo.
Manuel da Nóbrega, o Fundador. Vida em Portugal;
vinda para o Brasil. Acção religiosa ,a social de
Nóbrega. Catollclsmo e nacionalismo. O apóstolo
severo. Zelo e santid'ade. Frases indeléveis. O mís-
tico • .• • . . . .• . • • • .• • . • • .. • • • . •. • • •• • • •• • • . • .. • • • • 380
CAPITULO IV - Galeria de santos: Leonardo Nunes, a
invicta fé; Asplkueta Na varro, a imaginação; Luis
da Grã, a sabedoria; Pedro Correa, a eloquencia;
4H INDICE
ELUdIDARIO:
l - Letras anchietanas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 413
II - O herege de Guanabara . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 423
III - Relíquias de Ancbletu . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 434
IV - Decreto pontifical . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 436
IndilsUiá Gt6J'ICll! ~1?'<) do 8o) Ltda.., tmpr1.mJu - 8 , Pllulo