A Mágica Flor Azul - Imgart Grützmann
A Mágica Flor Azul - Imgart Grützmann
A Mágica Flor Azul - Imgart Grützmann
CONTINUIDADE NO GERMANISM0
Imgart Grützmann1
Resumo
Abstract
The term Germanism is used to designate an ideology with an ethnocentric and
conservationist tone that focused on the construction and consolidation of the German
identity. From the 1880s onward, the German language press in Rio Grande do Sul
was the place for discourse on the purpose and image of Germanism. This article
seeks to analyze some categories of Germanism put on action to construction and the
consolidation of the ethnic and cultural ties with Germany: songs, romanticism,
nostalgia, and continuity
Key-Words: Germanism, songs, Germaness
1
Doutora em Letras pela PUCRS. Pós-doutorado em História pela UNISINOS.
2
Neste trabalho não se analisa a imprensa em língua alemã de orientação católica.
3
„Vergangenheit, Gegenwart und Zukunft, Tat und Vorsatz fliessen ins Eins. Unsere Väter waren
deutsch. Wir wollen deutsch sein und wollen unsere Kinder deutsch sein lassen.“ A tradução desta
fonte em língua alemã, bem como das demais utilizadas no corpo do trabalho, foi efetuada pela
autora deste artigo.
industriais, editores, dirigentes de instituições e de associações, jornalistas, escritores
e pastores da Igreja Evangélica (hoje, IECLB). Este grupo estava em maior ou menor
proporção afinada com o germanismo, “uma ideologia de caráter etnocêntrico”
(Seyferth, 1989:126) e conservantista (Fritzsche, 1995), em grande parte, tributária
das premissas e das imagens ideologia étnica alemã (völkische Ideologie)4, difundida
na Alemanha com maior intensidade a partir do final do século XIX, cujos
pressupostos, por sua vez, originam-se principalmente do pensamento romântico-
nacionalista alemão e, posteriormente, das teorias raciais. Os defensores do
germanismo e de seu projeto de manutenção da germanidade são caracterizados por
Arno Phillipp (1924:5) como “uma minoria de pensadores de interesses gerais,
homens de disposição idealista, que, até certo ponto, influenciam e arrastam consigo
as massas indolentes, mas também nisso encontram os mais escandalosos
empecilhos.” 5 Os mentores do germanismo viam-se como portadores de cultura,
encarregados da nobre missão de formar os imigrantes e seus descendentes,
procurando padronizar seus integrantes a partir de um modelo único e imutável de
identidade – a germanidade, isto é, que “assim ressoe de geração em geração/ e ecoe
em mil anos: queremos permanecer o que somos/e permanecer o que fomos!/ ”6
(Cullmann, 1935: 43.) A veiculação do germanismo, no Rio Grande do Sul, constitui
um trabalho intencional e estratégico que pretende assegurar a sobrevivência de
interesses econômicos, de prestígio social e de poder de comando, especialmente no
campo cultural e religioso, bem como manter projetos de vida pessoal em que o
pensamento professado e a atividade desempenhada encontram-se entrelaçados,
posições estas colocadas em xeque por uma série de questões que, desde o final do
século XIX, estiveram na ordem do dia. No presente trabalho, pretende-se analisar
algumas categorias do germanismo que foram recorrentes neste ideário,
especialmente a partir da década de 1920, acionadas em almanaques, jornais e livros
4
As relações entre germanismo e völkische Ideologie foram explicitadas por PAIVA, César. Die
deutschsprachigen Schulen in Rio Grande do Sul und die Nationalisierungspolitik. (Doutorado
em Filosofia), Universidade de Hamburg, 1984; GRÜTZMANN, Imgart. A mágica flor azul: a
canção em língua alemã e o germanismo no Rio Grande do Sul. (Doutorado em Letras),
Faculdade de Letras, PUCRS, 1999; GRÜTZMANN, Imgart. „ Do que herdaste dos teus
antepassados, deves apropriar-te, a fim de possuí-lo“: o germanismo e suas especificidades.
Relatório de pesquisa recém-doutor apresentado à FAPERGS, Porto Alegre, 2001.
5
„ eine Minderheit gemeinnütziger Denkender, idealistischer veranlagter Männer, welche die trägen
Massen bis zu einem gewissen Grade beeinflussen und mitreissen, dabei aber auf die ärgesten
Hindernisse stossen.“
6
„ Drum schall’s von Kind zu Kindeskind/Und tön’s in tausend Jahren:/ wir wollen bleiben, was wir
sind,/und bleiben was wir waren.“
com o intuito de (re)construir os laços de pertencimento à Alemanha e afirmar a
germanidade.
De berços e lembranças
7
„ ‚Hier sind die starken Wurzeln deiner Kraft!’ Die Stammesheimat bleibt der unversiegbare
Mutterborn, aus dem wir die Kraft zum erfolgreichen Lebenskampfe in unserem Vaterland
schöpfen. Geistiges und lebendiges Blut brauchen wir! Nur so sind und bleiben wir stark und
können wir uns ganz für unser Vaterland einsetzen und unser wertvolles Teil zum Fortschritt und
Aufstieg des Landes beitragen.“ (G. A.)
conduta e as forças operacionais, tem, assim, por objetivo afirmar e determinar
categorias que os defensores do germanismo consideravam identificadores e
diferenciadores dos imigrantes e de seus descendentes, visando construir, deste modo,
um grupo diferenciado dos demais. No germanismo, a manutenção do vínculo com a
Heimat alemã é postulado como um dever a cumprir: “Nunca te envergonhes da
amada Heimat/Onde tua mãe te deu à luz/que foi o verde e grande berço/ de tua
venturosa infância.// Pensa orgulhosamente em seus carvalhos,/em seus vinhedos/ e
guarda fielmente no coração/a felicidade nela usufruída.” 8 (Deutsche Sprache…,
1925:44) Da mesma forma, seus defensores postulam o regresso constante ao passado
em busca das categorias definidoras dos alemães, notadamente as virtudes e a pureza
racial, celebradas principalmente na obra Germânia, de Tácito, retorno esse que se
concretiza na denominação atribuída aos alemães e a seus descendentes: “quem for de
estirpe alemã, escutai essas palavras:/lembrai-vos de que sois germanos!/ Recordai-
vos sempre em mundo estrangeiro do vosso sangue.”9 (Niemeyer, 1938:46) Por meio
deste olhar retrospectivo, voltado para e fixado no eterno ontem, os defensores do
germanismo pretendem estabelecer uma linha de continuidade entre os germanos e os
alemães da atualidade e, deste modo, (re)atualizar um conjunto de atributos
considerados identificadores e delimitadores dos alemães.
8
„Schäm’ dich nie der teuren Heimat/ Wo die Mutter dich gebar,/Die die grüne, grosse
Wiege/Deiner sel’gen Kindheit war./Denk mit Stolz an ihre Eichen./Ihre Reben stets zurück./Und
bewahre treu im Herzen/Das in ihr genoss’ne Glück.“
9
„ Wer deutsches Stammes, hör dies Wort:/Gedenkt, ihr seid Germanen!/ Lasst immer euch in
fremder Welt/An euer Blut gemahnen.“
10
„ Je mehr wir uns unserer Zusammengehörigkeit als Deutsche bewusst werden, und je mehr wir
uns bestreben, der ruhmreichen Geschichte des deutschen Stammes Ehre zu machen, desto mehr
werden wir durch unsere Mitarbeit den Staat heben, dessen Bürger wir zu sein uns freuen.“
semblante exibe um olhar direcionado ao passado e outro ao futuro, agregando em
uma única face o arcaico, ancorado nas raízes étnicas, e o moderno, simbolizado pelo
civismo e pelo trabalho também de base étnica, na medida em que a lealdade e a
diligência são consideradas, neste ideário, atributos morais dos alemães. São
estruturas de agregação e de exclusão, pois, ao mesmo tempo em que diferenciam
externamente os componentes do grupo, pretendem irmanar e firmar internamente os
seus vínculos. O retorno às origens efetuado pelo germanismo evidencia um trabalho
consciente e intencional de construção e de afirmação da germanidade, de uma
identidade especular e de “primeiro grau ou aquela que se constrói como unidade
discreta e circunscreve a realidade a um único quadro de referências” (G. A) (Bernd,
1992:14) que nega o outro, o novo, postulando a eterna repetição do mesmo a partir
da idéia de que “nos teus antepassados, tu reconhecerás a tua idêntica imagem; eles
vivem em ti.”11 (Götz-Böhringen, 1935:51) A intenção de criar uma identidade una e
monolítica também está presente na categoria étnica estabelecida pelo germanismo
para os imigrantes e de seus descendentes, denominados de alemães-brasileiros e/ou
teuto-brasileiros. Nesta denominação, a essência alemã precede a existência brasileira,
sendo essa sempre circunstancial e contingente, já que a permanência do substrato
alemão é determinante e responsável pela identidade, pela vida e ainda pela
procedência das forças do ser humano para o perfeito exercício da cidadania, pois
“quem esquecer a essência de seu povo/logo desaparecerá;/ a árvore sem raízes/Não
permanecerá de pé na tempestade !” 12 (Cullmann, 1935:42) A manutenção da
germanidade e o exercício da cidadania, normas de comportamento implícitas na
denominação alemã-brasileira, são executados a partir de uma base comum: a virtude
da fidelidade, considerada no germanismo a marca registrada dos alemães. Na ótica
de Friedrichs (1928:24)
11
„ In deinen Vätern erkennst du dein Ebenbild; sie leben in dir.“
12
„Wer seines Volkes Art vergisst,/wird bald zugrunde gehen;/Der Baum, der ohne Wurzeln ist,/wird
nicht im Sturm bestehen !“
alemão? 13
19
„ Er weiss jene geheimen Kräfte in uns nach Belieben zu erregen, und giebt uns durch Worte eine
unbekannte herrliche Welt zu vernehmen. Wie aus tiefen Höhlen steigen alte und künftige Zeiten,
unzählige Menschen, wunderbare Gegenden, und die seltsamsten Begebenheiten in uns herauf, und
entreissen uns der bekannten Gegenwart. Man hört fremde Wort und weiss doch, was sie bedeuten
sollen. Eine magische Gewalt üben die Sprüche des Dichters aus; auch die gewöhnlichen Worte
kommen in reizenden Klängen vor, und berauschen die festgebannten Zuhörer.“ (G. A.)
estabelece a partir do tipo de imagem refletida pelo texto poético, denominado de
Zauberbild (imagem encantadora). A designação Zauber remete a encanto e magia,
procedimentos que enfeitiçam e prendem quem entra em contato com eles, sendo,
portanto, elementos de ligação. A designação também permite a associação entre
espelho e magia, tornando-se a canção uma espécie de espelho mágico cuja função
“serve então para suscitar aparecimentos, devolvendo as imagens que aceitava no
passado, ou para anular distâncias, refletindo o que um dia esteve diante dele e agora
se encontra bem longe.“ (Cirlot, 1984:239) Nesse sentido, a simples pronúncia da
fórmula de encantamento, no caso a canção -“uma flor mágica, originária do profundo
e frutífero solo da índole alemã”20 (Boettner, 1925:19-20), invoca e restaura, num
passe de mágica, na superfície da lâmina, a germanidade intacta como nos primórdios.
A busca desses elementos do passado e da sua presentificação encontram-se também
expressas na coloração celeste da flor. O azul simboliza a cor do pensamento e integra
o rol das tonalidades frias e retrocedentes, portanto, associado a algo que reside num
tempo de outrora, passível de ser alcançado pelo processo de rememoração. (Cirlot,
1984:173) A Blaue Blume representa, desde a sua consagração pelo Romantismo
alemão, especialmente a partir da obra de Novalis, Heinrich von Opferdingen, o ponto
central de uma visão intuitiva do mundo, tornando-se o símbolo da busca do inefável
e do absoluto, da nostalgia romântica por excelência. (Daemmrich, 1995:76) A flor
azul também constitui um elo de ligação e de fidelidade. A exposição ao seu poder
abre as portas do coração e prende o ser humano pela sua magia, seduzindo-o para
sempre. No romance de Novalis, a flor azul é uma espécie de ópio que seduz e
aprisiona Heinrich, tomando de tal maneira os seus sentimentos e a sua vontade, de
modo que ele não se interessa por mais nada no mundo:
20
„eine Wunderblume, gewachsen auf dem tiefen, fruchtbaren Boden des deutschen Gemütes.“
íntimo movimento.21 (Novalis, 1997:11-12)
De uma maravilhosa flor falam as nossas sagas/que seduz o pobre coração humano
(...)/ Enquanto em nosso meio/ A palavra alemã valer como verdade, /A querida
melodia da língua materna/Dos lábios de nossos filhos brotar; /(....)Enquanto com
21
„ Nicht die Schätze sind es, die ein so unaussprechliches Verlangen in mir geweckt haben, (...) fern
ab liegt mir alle Habsucht: aber die blaue Blume sehn’ ich mich zu erblicken. Sie liegt mir
unaufhörlich im Sinne, und ich kann nichts anders dichten und denken. (...) Es ist mir oft so
entzückend wohl, und nur dann, wenn ich die Blume nicht recht gegenwärtig habe, befällt mich so
tiefes, inniges Treiben.“
seus sons/ A canção alemã nos puder alegrar/E nosso desejo pelo mais
formoso/Extasiado ao céu se elevar:/ Também em zonas distantes,/ Mesmo que
oculte nosso olhar, / Reinará brilhantemente em nosso meio/A encantadora
imagem da flor maravilhosa! 22(G. A) (Heinke, 1906:249-50)
22
„ Von einer Wunderblume sprechen unsere Sagen/Dass sie das arme Menschenherz betört
(...)/Solange noch in unserem Kreise/ das deutsche Wort als Wahrheit gilt,/Der Muttersprache traute
Weise/Von unser Kinder Lippen quilt,/ (...) Solang uns noch mit seinen Tönen/Erfreuen kann das
deutsche Lied/Und uns der Wunsch nach allem Schönen/Begeisternd auf zum Himmel zieht:/
Solang wird auch in fernsten Zonen,/Wenn unsern Blicken auch verhüllt,/In uns’re Mitte prangend
thronen/Der Wunderblume Zauberbild!“
concepções acerca de povo, poesia popular, nação cultural e caráter nacional
fundamentaram e impulsionaram o nacionalismo na Europa, e de autores do
pensamento romântico-nacionalista alemão, tributários das noções herderianas, entre
eles Ernst Moritz Arndt, Friedrich Ludwig Jahn e Johann Gottlieb Fichte,
notadamente as noções referentes à germanidade e idioma por eles elaboradas,
evidenciando, desse modo, uma das matrizes ideológicas do germanismo. Um outro
conjunto de intertextos procede de autores integrantes do Romantismo, entre eles
Friedrich Schiller, Johann Wolfgang Goethe, Novalis e os irmãos Grimm, que
demonstra a ligação do germanismo com este movimento e sua visão de mundo.
A citação e a paráfrase constituem-se, assim, em elementos que também
buscam prender o leitor ao contexto de sua cultura de origem, na medida em que a
intertextualidade é um elo de ligação com a memória cultural. Um texto, ao trazer um
intertexto dentro de si, (re)atualiza no ato de recepção o passado que lhe deu origem,
contribuindo para a formação de uma corrente ligada a uma arqueologia de textos,
responsável pela instauração de uma continuidade, já que “basta uma alusão para
introduzir no texto centralizador um sentido, uma representação, uma história, um
conjunto ideológico, sem ser preciso falá-los. O texto de origem está lá, virtualmente
presente, portador de todo o sentido, sem que seja necessário enunciá-lo.” (Jenny,
1979:22) Neste sentido, não apenas o conteúdo, mas a própria linguagem do
germanismo torna-se espelho para a inculcação de imagens, valores e normas,
visando, desse modo, garantir a permanência de uma concepção de mundo centrada
na (re)atualização de um paradigma romântico-nacionalista de construção e afirmação
da germanidade. Esta questão fica mais evidente no uso da paráfrase, a qual “mais do
que um efeito retórico e estilístico é um efeito ideológico de continuidade de um
pensamento, fé ou procedimento estético.” (Sant’Anna, 1985:22). Este propósito de
prender e dar continuidade à matriz também se verifica nas canções publicadas em
cancioneiros, almanaques, brochuras comemorativas e livros didáticos em língua
alemã, as quais, em sua maioria, procedem do século XIX, estando de uma ou de
outra forma vinculadas ao pensamento-romântico nacionalista alemão ou por ele
incorporados, entre eles os textos poéticos de Ernst Moritz Arndt, Hoffmann von
Fallersleben, Max von Schenkendorf e Heinrich Heine.
O emprego da intertextualidade pelo germanismo também se dá como atitude
de reverência e de sacralização. Na sua condição de elo de ligação, o recurso
intertextual redobra a virtude máxima postulada pelo germanismo - a fidelidade – e
traz ainda consigo uma conotação sagrada. Este propósito de prender os imigrantes e
seus descendentes à cultura de origem e de preservar a sua germanidade está
sintetizado no aforismo: “Do que tu herdaste dos teus antepassados, deves te
apropriar, a fim de desfrutá-lo” (Was du ererbt von deinen Vätern hast, erwirb es, um
es zu besitzen), oriunda do drama Fausto I, de Goethe, o qual sintetiza o projeto de
manutenção da germanidade encetado pelo germanismo. Este aforismo, reiteradas
vezes divulgado em diferentes suportes e épocas, especialmente como citação, impõe
ao leitor um mandamento a ser cumprido: honrar e dar continuidade à herança dos
antepassados e, por meio de sua perpetuação, gozar as benesses advindas de sua
posse. A força de persuasão e de coerção inerente a este aforismo procede do
intertexto a ele subjacente – o quarto mandamento: “Honra teu pai e tua mãe para que
se prolonguem os teus dias na terra que o Senhor, teu Deus, te dá”, inserindo, deste
modo, a preservação da germanidade na esfera do sagrado. O quarto mandamento não
está apenas presente ao nível do conteúdo, no aforismo de Goethe, mas também está
implícito na adoção de sua citação como autoridade, visto que poeta e pensador
alemão era considerado o clássico, o cânone, portanto, instância suprema de
identificação e de legitimação da cultura alemã. (Glaser, 1964) A posição de mentor
atribuída a Goethe também se externa na releitura que a personagem de Fausto
recebeu no nacionalismo alemão, sendo, a partir de 1870, “idealizado, assumindo
pouco a pouco a figura de um herói nacional, de encarnação típica da alma alemã”.
(Dabezies, 1997:337) Da mesma forma, a recorrência a citações e a paráfrases, bem
como a autores, são formas de sacralização e de reverência para com a autoridade: os
pais aí escondidos. Significativa desta prática é a retomada, pelo germanismo, da
Germânia de Tácito, cujo autor foi considerado pela ideologia étnica como pai da
identidade alemã.23 Além de traçar uma linha de continuidade entre os germanos e os
alemães, os defensores do germanismo também se valem da obra de Tácito em forma
de intertexto, especialmente a passagem em que o autor romano destaca a pureza
racial das tribos germânicas e a indissolubilidade do matrimônio, para reforçar
categorias identitárias, como evidencia o texto de Rotermund24 sobre a origem do
povo alemão:
23
Cf. POLIAKOV, Léon. O mito ariano. São Paulo: Perspectiva/EDUSP, 1974.
24
A parte retomada e citada por Rotermund encontra-se em TACITUS. Germania. Bericht über
Germanien. München: Dtv, 1991. p.17; 35.
Eu me declaro partidário da opinião de que as tribos
germânicas não estão manchadas por Volkstum
estrangeiro, por meio de casamentos mistos, mas que elas
formam uma raça inteiramente pura e singular, por isso,
também a sua fisionomia mantém-se igual em todo lugar,
apesar da grande quantidade de pessoas: orgulhosos
olhos azuis, cabelo louro e grande altura; o casamento é
lá considerado sagrado. A dissolução do matrimônio é
muito rara. Bons costumes, lá, valem mais do que, em
outros lugares, as leis.25 (Rotermund, 1922:237)
25
„Ich bekenne mich zu der Ansicht, dass die germanischen Stämme durch keinerlei Mischehen mit
fremden Volkstum befleckt sind, sondern eine durchaus reine, eigenartige Rasse für sich bilden,
daher ist auch ihre äussere Erscheinung trotz der grossen Menschenmenge, überall dieselbe: stolze
blaue Augen, blondes Haar und hoher Wuchs. Die Ehe wird dort sehr heilig gehalten. Ehebruch
kommt sehr selten vor. Gute Sitte gilt dort mehr als anderswo Gesetze.“
romperes a cadeia, se tu não fores ativo e prestativo em
relação a tua família e a teus compatriotas
(Volksgenossen). De ti depende o bem e o mal de tua
família e de teu povo. Isso não vale somente para a velha
Heimat, onde vive um povo amalgamado, mas também
para a nossa nova Heimat.26 (Götz-Böhringen, 1935:48-
49)
29
„Zu letztinstanzlicher Hochverbindlichkeit steigert und der Traditionsstrom ein für allemal
stillstellt. Von nun an darf nichts hinzugefügt, nichts weggenommen werden. Aus dem Vertrag wir
der Kanon.“
30
„Du wanderst in die Welt hinaus/auf dir noch fremden Wegen; (...) und nun, ein letzter Druck der
Hand/Und eine letzte Bitte:/ halt dich getreu im fremden Land/ zu deines Volkes Sitte!“
antepassados traz em si um elemento de estranhamento, pois estabelece uma
dicotomia entre o presente e o passado, ou seja, a herança dos antepassados é um
elemento sacralizado que não se deve ligar aos padrões vigentes na nova sociedade.
Contudo, é instituído, como nobre e reverente dever, mantê-lo intacto em
circunstâncias culturais e sociais diversas do contexto de procedência. Cabe, deste
modo, estender ao germanismo a observação de Jan Assmann (1991:346) sobre a
meta estabelecida no Deuteronômio para consolidar a identidade do povo judeu na
Terra Prometida: “isso quer dizer, permanecer estrangeiro na sua própria terra e no
seu próprio presente. Adaptação seria esquecimento, representaria o retorno ao Egito.
Apenas quem se lembra continuadamente de seu passado está protegido da
necessidade de repeti-lo.”31
O emprego da canção e da intertextualidade, complementado pelos símbolos
da ligadura a elas associadas, aponta para uma outra estrutura contida no projeto de
manutenção da germanidade encetado pelo germanismo: o mito político da unidade
que, conforme salienta Girardet (1987:155-56), tem por base “a imagem da harmonia,
de equilíbrio e de fusão: a de uma sociedade una, indivisível, homogênea, para
sempre protegida das perturbações e das discórdias – bloco sem fissuras, concedendo
por isso mesmo a todos aqueles que o compõem a apaziguadora certeza de uma total
reconciliação consigo mesmos.” Ao buscar uma comunidade imaginária, denominada
de povo e/ou comunidade étnica, formada de todos os imigrantes e de seus
descendentes no mundo, o germanismo pretende anular as diferenças entre os seus
integrantes, ligando-os pelos critérios étnicos e culturais, ou seja, “ser alemão
significa pertencer a uma comunidade cultural que abarca o mundo”32. (A., 1935:32)
Essa ênfase na unidade e na homogeneidade, que visa amalgamar todas as forças em
torno de um único ideal e de uma identidade, é, por outro lado, reveladora de uma
situação marcada pela descontinuidade e pela fratura. Para Girardet (1987:163-64)
Como quer que seja, em tudo o que mostra assim de
constante, de insistente e de repetitivo, essa exaltação do
tema da unidade tem, com toda evidência, valor de
exorcismo. Trata-se de assegurar para sempre a vitória
das forças centrífugas sobre os fatores contrários de
rompimento ou de divergência; de prevenir e de
rechaçar as ameaças sempre presentes de ruptura e de
31
„Das heisst, Fremdling bleiben im eigenen Land und in der eigenen Gegenwart. Anpassung wäre
Vergessenheit, wäre Rückkehr nach Ägypten. Nur wer seine Vergangenheit unablässig erinnert, ist
davor bewahrt, sie wiederholen zu müssen.“
32
„Deutsch sein, heisst einer Kulturgemeinschaft angehören, die die Welt umspannt.“
discórdia.
33
„Schwere Schatten legen sich auf unsere Seele: Der Stamm hat eine Todeswunde empfangen, und
in seinen Innern arbeitet zehrendes Gewürm.“
34
„Die Gefahr, im brasilianischen Völkerchaos zu versinken, droht vielmehr in der Hauptsache von
einer andere Seite. Wir selbst sind es, die aus mancherlei Gründen die Wurzeln des stolzen, starken
Eichenbaumes , unseres Volkstums, uns abgraben.“
nasceram não sabem ou não sabem direito o que fazer
com o conceito “Volkstum alemão” e, em segundo, não
têm consciência do significado do Deutschtum e de sua
conservação para si mesmos e para o Brasil.35 (G. A)
35
„ Oft sind es Gründe rein materieller Art, wie die Hoffnung auf besseres Fortkommen im Beruf
oder auf Anstellung im Staatsdienst, meist entspringt sie einer Charakterschwäche, aus einer
gewissen Bequemlichkeit, namentlich bei gemischten Ehen, oder dem uns Deutschen leider so
eigenen Narrentrieb, alles Undeutsche schöner und besser zu finden, zuweilen auch einer nicht zu
rechtfertigenden Furcht, sich offen zu seinem Stammestum zu bekennen. Wie denn auch sei, der
Kern des Uebels scheint mir im folgenden zu liegen: Erstens wissen die weitaus meisten der hier
Geborenen mit dem Begriff ‚deutsches Volkstum’ überhaupt nichts oder nicht Rechtes anzufangen,
und zweitens sind sie sich der Bedeutung des Deutschtums und seiner Erhaltung für sich selbst und
für Brasilien in keiner Weise bewusst.“ (G. A.)
36
„ Manche Kolonien, die wenig volkreich sind, liegen weit ab von allem Verkehr, der Zuzug aus der
alten Heimat stockt seit Jahren, die zuerst Eingewanderten sterben, die Kinder verlieren die
Erinnerung an die alte Heimat, die deutsche Sprache hat für sie nur noch Sinn als
Verständigungsmittel, diesen Zweck erfüllt sie aber, da die Kolonien oft ringsum von anderen
Sprachkolonien umgeben sind, nur unvollkommen; so nehmen sie portugiesische und italienische
Wörter auf, denen sie nicht selten deutsche Endungen geben, und es entsteht manchmal ein
Deutsch, von dem man wünschen möchte, es würde nicht gesprochen.“
Pois o isolamento de outrora das colônias alemãs em
grande parte extinguiu-se; a ampliação da malha
ferroviária e o trânsito intenso nas estradas das colônias
para a cidade levaram a um contato mais estreito entre
germanidade e brasilidade. A situação de que as
escolas públicas e as escolas privadas brasileiras são
freqüentadas em elevada proporção por crianças de
descendência alemã contribui consideravelmente para a
desgermanização da juventude. A germanidade nas
cidades está, por si só, cercada de um forte fluxo de
vida brasileira; a necessidade de se utilizar
constantemente a língua portuguesa nas relações
públicas e comerciais fortalece a tendência de lançar
mão do cômodo português também como linguagem
corrente; também isso eleva o perigo da
desgermanização.37 (Becker, 1924:15)
37
„ Denn die frühre Abgeschlossenheit der deutschen Kolonien ist grösstenteils dahin; der Ausbau
des Eisenbahnetzes und die lebhaftere Verkehr auf den Strassen von der Kolonie in Städte haben
das Deutschtum in engere Berührung mit dem Brasilianertum gebracht. Der Umstand, dass die
Regierungsschulen und brasilianischen Privatschulen in steigendem Masse von Kindern deutscher
Herkunft besucht werden, trägt nicht wenig zur Entdeutschung der Jugend bei. Das Deutschtum in
den Städten ist an sich schon von einem starken Strom brasilianischen Lebens umgeben; die
Notwendigkeit, die Landessprache im geschäftlichen und amtlichen Verkehr ständig brauchen zu
müssen, stärkt die Neigung, das bequeme Portugiesisch auch als Umgangssprache zu gebrauchen;
auch das erhöht die Gefahr der Entdeutschung.“
38
„Und es dauert nicht lange, so spricht der jüngere Teil der Familie nur noch portugiesisch. In
hunderten von Familien kann man es hören, dass die Eltern wohl ihre Kinder deutsch anreden, die
Kinder aber portugiesisch antworten. Und die Eltern geben nach und sprechen auch portugiesisch.“
familiar para a comunidade, assim também todas as
famílias devem, aqui e para além das fronteiras estatais,
em conjunto, educar para a comunidade étnica alemã
(Volksgemeinschaft).39 (Kopittke, 1937:11-12)
39
„Wo eine deutsche Volksgruppe lebt, gibt es auch ein deutsches Familienleben. Dieses
Familienleben ist die wichtigste Pflegestätte unseres Volkstums. Die Familie erzieht charakterfester
Menschen. Familie erzieht durch das Volkstum zum Volkstum; Familie erzieht durch gemeinsames
Erleben zur Gemeinschaft. Wie die Familie im häuslichen Kreise zur Gemeinschaft erzieht, so
sollen alle Familien gemeinsam im Lande und über die Landesgrenzen hinaus zur deutschen
Volksgemeinschaft erziehen.“
40
„ Es ist, als ob die Sprungflut des verflachenden und verödenden Materialismus, der Gier nach
blossem groben Genuss und nach Zusammenscharren von Geld auf kosten aller besseren und
feineren Seelenregungen, die im Gefolge der traurigen Nachkriegszeit über Europa dahingestürtz
ist, die Ausläufer ihrer Brandungswucht bis zu uns entsendet habe.“
linear e contínuo, a recusa da própria noção de modernidade. Ao rompimento das
velhas disciplinas comunitárias, à consagração do princípio da autonomia das pessoas,
à liberação das ambições individuais, a visão sempre presente de um grupo social
homogêneo, fortemente ordenado sobre si mesmo, dominado pelos valores de
convívio, de auxílio mútuo e de solidariedade. (Girardet, 1987:131)
Para assegurar este mundo ordenado, são convocadas as canções e a
intertextualidade, em forma de citações, aforismos, mandamentos e paráfrases,
categorias às quais se atribui a tarefa de restaurar e afirmar uma unidade e uma
realidade, no plano poético e da linguagem, as quais, fora dessas esferas, encontram-
se, na ótica do germanismo, fragmentadas. A partir de uma repetição exaustiva de um
paradigma agregador, centrado no legado dos antepassados, pretende-se travar
qualquer tipo de mudança, visando reconduzir os imigrantes e seus descendentes, por
meio desses mecanismos de controle, ao modelo original. Neste sentido, pode-se
aplicar ao germanismo as seguintes considerações de Flora Süssekind (1984:34-35)
acerca da linguagem e da literatura:
Quando se apresentam hiatos, abismos, diferenças entre
um “tal” e outro, exige-se da linguagem que funcione
como um tabulador. Entre o primeiro e o segundo tal,
não deve existir mais do que uma reduplicação. Da
linguagem espera-se que restabeleça simetrias, que crie
analogias, perfeitas, que desfaça rupturas e diferenças,
que se apague e funcione como mera transparência (...)
torna-se assim o texto mera denotação, transparência
cujo significado se encontra noutro lugar. Em possíveis
autoridades literárias, genealogias ou nacionalidades.
Funciona a literatura, nesse sentido, como simples canal,
objetivo, especular e fotográfico, para que num filho se
projete aquele que lhe deu o nome, numa obra quem a
escreveu, num texto a imagem do país de onde se
origina. Como se, ao tirar de cena a linguagem, entre um
tal e outro não houvesse repentinamente mais qualquer
abismo. Como se o literário fosse uma espécie de fissura
pelo qual circulam hereditariedades, autorias e
nacionalidades. Sem intervenções, refletir-se-á com
perfeição o modelo no seu correlato. O pai no herdeiro, o
autor na obra, a nação na sua literatura. (G. A)
45
„ ‚Windet zum Kranze die goldenen Aehren’. Aber, spricht weiter der Dichter, der ein braver
Lehrmeister des deutschen Volkes gewesen – ‚flechtet auch blaue Zyanen hinein’. Kornblumen
sind auf unserem Feld wenig gewachsen. Zuerst das Brot, hiess es mit Recht, bei den Vätern (...):
die Söhne aber haben es viel versäumt, die Lust an den Blumen, die jenen in der Sorge ums Brot
verloren gegangen, neu zu erwerben. Für sie ist Unkraut geblieben, was ihnen wieder Höheres
werden sollte. (...) Des Brot haben wir genüge. Lasst uns der Blumen warten! (...) Lasst uns der
Blumen warten! Wenn wir sie nicht pflegen, wenn auf dem platten Feld des Materialismus nicht
Raum sein kann für rankende Ideale, wird Stück für Stück von unserer mehr und mehr ins
Äusserliche sich kehrenden Eigenart abbröckeln und als letztes wird die Sprache hinterdreien
gehen. Dann ist deutsch deutsch in Rio Grande do Sul gewesen. „ (G. A.)
46
„Bauet jenseits blauer Meere/ Uns eine neue deutsche Welt.“
manutenção de vínculos outrora estabelecidos, e integrante da herança cultural, os
articuladores do germanismo pretendem tornar-se, de certo modo, senhores do tempo
e da história. Ao pautarem o presente e o futuro pelo modelo dos antepassados, ou
seja, “Germanus sum! (Der Verlag, 1916:34), desejam dominar e moldar o tempo. Na
sua análise do nacionalismo, François e Schulze (1998:29) afirmam que o refúgio na
história e a menção a exemplos do passado servem “para canalizar o futuro e impedir
que ele rompa os caminhos preestabelecidos. Em outras palavras: a conjuração do
tempo teria inicialmente a tarefa de neutralizá-lo.”47 Nesse quadro, voltado para a
continuidade de uma trajetória única, atribui-se à canção em língua alemã a tarefa de
assegurar a sobrevivência da descendência que, em última análise, seria a repetição
rejuvenescida dos pais, tornando-se os filhos aqueles que revigoram a origem e
refazem o caminho de volta. A flor azul é imbuída da tarefa de induzir os imigrantes e
seus descendentes a seguirem as pegadas dos antepassados, ou seja, “da literatura
espera-se que, como o filho pródigo, realize a viagem de retorno à casa paterna.”
(Süssekind, 1984:35), apresentando-se, essa caminhada, como a afirmação da
continuidade e do bem-estar, já que, em virtude da conotação religiosa presente no
germanismo, a (re)ligação ocorre em dois planos: o humano e o divino. Assim, na
ótica do germanismo, bastaria ressoar uma canção alemã para que, por intermédio da
sua coloração azulada e sedutora, se pudesse regressar constantemente para um reino
seu, ou seja, “o que há muito está desfeito e disperso/o que desapareceu com a
infância,/é em sonhos novamente tecido,/quando a canção alemã ao nosso redor
sussurra.” 48 (Nies, 1914:54). Desta forma, estaria assegurada a resposta às
inquietações dos defensores do germanismo, decorrentes das transformações sócio-
culturais em curso, da mesma maneira que, em Heinrich von Opferdingen, se encontra
a direção a ser tomada: “pois, para onde nós vamos? Sempre para casa.”49 (Novalis,
1997:198)
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47
„Die Zukunft zu kanalisieren und verhindern, dass sie aus den vorgegebenen Bahnen bricht. Mit
anderen Worten: die Beschwörung der Zeit hätte zuerst die Aufgabe, diese zu neutralisieren.“
48
„ Was längst zeronnen und zerstoben,/Was mit der Kindheit von uns schied,/ Es wird in Träumen
neu gewoben,/Wenn uns umrauscht das deutsche Lied.“
49
„Wo gehen wir denn hin? Immer nach Hause.“
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