Introdução À Psicanálise II

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ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PSICANÁLISE INSIGHT

CURSO DE FORMAÇÃO EM PSICANÁLISE CLÍNICA

JULIANA BRUNA SANT’ANA CAMPOS

INTRODUÇÃO À PSICANÁLISE II

São Paulo
2020
Introdução à Psicanálise II

Avaliação de aprendizagem apresentada


como requisito parcial para a formação no
Curso de Formação em Psicanálise pela
Associação Brasileira de Psicanálise
Insight ABRAPSI.
Coordenadora: Rosemeire Valéria

São Paulo - SP
2020
RESUMO

As teorias científicas surgem influenciadas pelas condições da vida social, nos seus
aspectos econômicos, políticos, culturais etc. São produtos históricos criados por
homens concretos, que vivem o seu tempo e contribuem ou alteram, radicalmente, o
desenvolvimento do conhecimento.
Sigmund Freud (1856-1939) foi um médico vienense que alterou, radicalmente, o
modo de pensar a vida psíquica. Sua contribuição é comparável à de Karl Marx na
compreensão dos processos históricos e sociais. Freud ousou colocar os “processos
misteriosos” do psiquismo, suas “regiões obscuras”, isto é, as fantasias, os sonhos,
os esquecimentos, a interioridade do homem, como problemas científicos. A
investigação sistemática desses problemas levou Freud à criação da Psicanálise.

INTRODUÇÃO

Psicanálise
O termo psicanálise é usado para se referir a uma teoria, a um método de
investigação e a uma prática profissional. Enquanto teoria, caracteriza-se por um
conjunto de conhecimentos sistematizados sobre o funcionamento da vida psíquica.
Freud publicou uma extensa obra, durante toda a sua vida, relatando suas
descobertas e formulando leis gerais sobre a estrutura e o funcionamento da psique
humana. A Psicanálise, enquanto método de investigação, caracteriza-se pelo
método interpretativo, que busca o significado oculto daquilo que é manifesto por
meio de ações e palavras ou pelas produções imaginárias, como os sonhos, os
delírios, as associações livres, os atos falhos. A prática profissional refere-se à forma
de tratamento “ a Análise” que busca o autoconhecimento ou a cura, que ocorre
através desse autoconhecimento. Atualmente, o exercício da Psicanálise ocorre de
muitas outras formas. Ou seja, é usada como base para psicoterapias,
aconselhamento, orientação; é aplicada no trabalho com grupos, instituições.
A Psicanálise também é um instrumento importante para a análise e compreensão
de fenômenos sociais relevantes: as novas formas de sofrimento psíquico, o
excesso de individualismo no mundo contemporâneo, a exacerbação da violência
etc.
Compreender a Psicanálise significa percorrer novamente o trajeto pessoal de
Freud, desde a origem dessa ciência e durante grande parte de seu
desenvolvimento. A relação entre autor e obra torna-se mais significativa quando
descobrimos que grande parte de sua produção foi baseada em experiências
pessoais, transcritas com rigor em várias de suas obras, como A interpretação dos
sonhos e A psicopatologia da vida cotidiana, dentre outras.
“não é uma aquisição definitiva da humanidade, mas tem que ser realizada de novo
por cada paciente e por cada psicanalista”

Nascimento da Psicanálise
Freud formou-se em Medicina na Universidade de Viena, em 1881, e especializou-
se em Psiquiatria. Trabalhou algum tempo em um laboratório de Fisiologia e deu
aulas de Neuropatologia no instituto onde trabalhava. Por dificuldades financeiras,
não pôde dedicar-se integralmente à vida acadêmica e de pesquisador. Começou,
então, a clinicar, atendendo pessoas acometidas de “problemas nervosos”. Obteve,
ao final da residência médica, uma bolsa de estudo para Paris, onde trabalhou com
Jean Charcot, psiquiatra francês que tratava as histerias com hipnose. Em 1886,
retornou a Viena e voltou a clinicar, e seu principal instrumento de trabalho na
eliminação dos sintomas dos distúrbios nervosos passou a ser a sugestão hipnótica .
Em Viena, o contato de Freud com Josef Breuer, médico e cientista, também foi
importante para a continuidade das investigações. Nesse sentido, o caso de uma
paciente de Breuer foi significativo. Ana O. apresentava um conjunto de sintomas
que a fazia sofrer: paralisia com contratura muscular, inibições e dificuldades de
pensamento. Esses sintomas tiveram origem na época em que ela cuidara do pai
enfermo. No período em que cumprira essa tarefa, ela havia tido pensamentos e
afetos que se referiam a um desejo de que o pai morresse. Estas idéias e
sentimentos foram reprimidos e substituídos pelos sintomas.
Em seu estado de vigília, Ana O. não era capaz de indicar a origem de seus
sintomas, mas, sob o efeito da hipnose, relatava a origem de cada um deles, que
estavam ligados a vivências anteriores da paciente, relacionadas com o episódio da
doença do pai. Com a rememoração destas cenas e vivências, os sintomas
desapareciam. Este desaparecimento não ocorria de forma “mágica”, mas devido à
liberação das reações emotivas associadas ao evento traumático “a doença do pai,
o desejo inconsciente da morte do pai enfermo.”
Breuer denominou método catártico o tratamento que possibilita a liberação de
afetos e emoções ligadas a acontecimentos traumáticos que não puderam ser
expressos na ocasião da vivência desagradável ou dolorosa. Esta liberação de
afetos leva à eliminação dos sintomas.
Freud, em sua Autobiografia, afirma que desde o início de sua prática médica usara
a hipnose, não só com objetivos de sugestão, mas também para obter a história da
origem dos sintomas.
Posteriormente, passou a utilizar o método catártico e, aos poucos, foi modificando a
técnica de Breuer: abandonou a hipnose, porque nem todos os pacientes se
prestavam a ser hipnotizados; desenvolveu a técnica de ‘concentração’, na qual a
rememoração sistemática era feita por meio da conversação normal; e por fim,
acatando a sugestão (de uma jovem) anônima, abandonou as perguntas ‘e com elas
a direção da sessão’ para se confiar por completo à fala desordenada do paciente.
A DESCOBERTA DO INCONSCIENTE
“Qual poderia ser a causa de os pacientes esquecerem tantos fatos de sua vida
interior e exterior...?” , perguntava-se Freud.
O esquecido era sempre algo penoso para o indivíduo, e era exatamente por isso
que havia sido esquecido e o penoso não significava, necessariamente, sempre algo
ruim, mas podia se referir a algo bom que se perdera ou que fora intensamente
desejado. Quando Freud abandonou as perguntas no trabalho terapêutico com os
pacientes e os deixou dar livre curso às suas idéias, observou que, muitas vezes,
eles ficavam embaraçados, envergonhados com algumas idéias ou imagens que
lhes ocorriam. A esta força psíquica que se opunha a tornar consciente, a revelar um
pensamento, Freud denominou resistência. E chamou de repressão o processo
psíquico que visa encobrir, fazer desaparecer da consciência, uma ideia ou
representação insuportável e dolorosa que está na origem do sintoma. Estes
conteúdos psíquicos “localizam-se” no inconsciente.
Tais descobertas constituíram a base principal da compreensão das neuroses e
impuseram uma modificação do trabalho terapêutico. Seu objetivo era descobrir as
repressões e suprimi-las através de um juízo que aceitasse ou condenasse
definitivamente o excluído pela repressão. Considerando este novo estado de
coisas, dei ao método de investigação e cura resultante o nome de psicanálise em
substituição ao de catártico” .

A PRIMEIRA TEORIA SOBRE


A ESTRUTURA DO APARELHO PSÍQUICO
Em 1900, no livro A interpretação dos sonhos, Freud apresenta a primeira
concepção sobre a estrutura e o funcionamento da personalidade. Essa teoria
refere-se à existência de três sistemas ou instâncias psíquicas: inconsciente, pré-
consciente e consciente.
• O inconsciente exprime o “conjunto dos conteúdos não presentes no campo
atual da consciência” . É constituído por conteúdos reprimidos, que não têm acesso
aos sistemas pré-consciente/consciente, pela ação de censuras internas. Estes
conteúdos podem ter sido conscientes, em algum momento, e ter sido reprimidos,
isto é, “foram” para o inconsciente, ou podem ser genuinamente inconscientes. O
inconsciente é um sistema do aparelho psíquico regido por leis próprias de
funcionamento. Por exemplo, é atemporal, não existem as noções de passado e
presente.
• O pré-consciente refere-se ao sistema onde permanecem aqueles conteúdos
acessíveis à consciência. É aquilo que não está na consciência, neste momento, e
no momento seguinte pode estar.
• O consciente é o sistema do aparelho psíquico que recebe ao mesmo tempo
as informações do mundo exterior e as do mundo interior. Na consciência, destaca-
se o fenômeno da percepção, principalmente a percepção do mundo exterior, a
atenção, o raciocínio.

A DESCOBERTA DA SEXUALIDADE INFANTIL

Freud, em suas investigações na prática clínica sobre as causas e o funcionamento


das neuroses, descobriu que a maioria de pensamentos e desejos reprimidos
referiam-se a conflitos de ordem sexual, localizados nos primeiros anos de vida dos
indivíduos, isto é, que na vida infantil estavam as experiências de caráter traumático,
reprimidas, que se configuravam como origem dos sintomas atuais, e confirmava-se,
desta forma, que as ocorrências deste período da vida deixam marcas profundas na
estruturação da pessoa. As descobertas colocam a sexualidade no centro da vida
psíquica, e é postulada a existência da sexualidade infantil. Estas afirmações
tiveram profundas repercussões na sociedade puritana da época, pela concepção
vigente da infância como “inocente”.
Os principais aspectos destas descobertas são:
• A função sexual existe desde o princípio da vida, logo após o nascimento, e
não só a partir da puberdade como afirmavam as idéias dominantes.
• O período de desenvolvimento da sexualidade é longo e complexo até chegar
à sexualidade adulta, onde as funções de reprodução e de obtenção do prazer
podem estar associadas, tanto no homem como na mulher. Esta afirmação
contrariava as idéias predominantes de que o sexo estava associado,
exclusivamente, à reprodução.
• A libido, nas palavras de Freud, é “a energia dos instintos sexuais e só deles”
No processo de desenvolvimento psicossexual, o indivíduo, nos primeiros tempos de
vida, tem a função sexual ligada à sobrevivência, e, portanto, o prazer é encontrado
no próprio corpo. O corpo é erotizado, isto é, as excitações sexuais estão
localizadas em partes do corpo, e há um desenvolvimento progressivo que levou
Freud a postular as fases do desenvolvimento sexual em: fase oral (a zona de
erotização é a boca), fase anal (a zona de erotização é o ânus), fase fálica (a
zona de erotização é o órgão sexual); em seguida vem um período de latência, que
se prolonga até a puberdade e se caracteriza por uma diminuição das atividades
sexuais, isto é, há um “intervalo” na evolução da sexualidade. E, finalmente, na
puberdade é atingida a última fase, isto é, a fase genital, quando o objeto de
erotização ou de desejo não está mais no próprio corpo, mas era um objeto externo
ao indivíduo “o outro.”
No decorrer dessas fases, vários processos e ocorrências sucedem-se. Desses
eventos, destaca-se o complexo de Édipo, pois é em torno dele que ocorre a
estruturação da personalidade do indivíduo. Acontece entre 3 e 5 anos, durante a
fase fálica. No complexo de Édipo, a mãe é o objeto de desejo do menino, e o pai é
o rival que impede seu acesso ao objeto desejado. Ele procura então ser o pai para
“ter” a mãe, escolhendo-o como modelo de comportamento, passando a internalizar
as regras e as normas sociais representadas e impostas pela autoridade paterna.
Posteriormente, por medo da perda do amor do pai, “desiste” da mãe, isto é, a mãe
é “trocada” pela riqueza do mundo social e cultural, e o garoto pode, então, participar
do mundo social, pois tem suas regras básicas internalizadas através da
identificação com o pai. Este processo também ocorre com as meninas, sendo
invertidas as figuras de desejo e de identificação. Freud fala em Édipo feminino.

CONCEITOS FREUDIANOS
Alguns conceitos nos permitem compreender de um modo dinâmico e sem
considerá-los processos mecânicos e compartimentados. Além disso, estes
aspectos também são postulações de Freud, e seu conhecimento é fundamental
para se compreender a continuidade do desenvolvimento de sua teoria.
1. No processo terapêutico e de postulação teórica, Freud, inicialmente,
entendia que todas as cenas relatadas pelos pacientes tinham de fato ocorrido.
Posteriormente, descobriu que poderiam ter sido imaginadas, mas com a mesma
força e consequências de uma situação real. Aquilo que, para o indivíduo, assume
valor de realidade é a realidade psíquica. E é isso o que importa, mesmo que não
corresponda à realidade objetiva.
2. O funcionamento psíquico é concebido a partir de três pontos de vista: o
econômico (existe uma quantidade de energia que “alimenta” os processos
psíquicos), o tópico (o aparelho psíquico é constituído de um número de sistemas
que são diferenciados quanto a sua natureza e modo de funcionamento, o que
permite considerá-lo como “lugar” psíquico) e o dinâmico (no interior do psiquismo
existem forças que entram em conflito e estão, permanentemente, ativas. A origem
dessas forças é a pulsão). Compreender os processos e fenômenos psíquicos é
considerar os três pontos de vista simultaneamente.
3. A pulsão refere-se a um estado de tensão que busca, através de um objeto, a
supressão deste estado. Eros é a pulsão de vida e abrange as pulsões sexuais e as
de auto conservação. Tanatos é a pulsão de morte, pode ser autodestrutiva ou estar
dirigida para fora e se manifestar como pulsão agressiva ou destrutiva.
4. Sintoma, na teoria psicanalítica, é uma produção “quer seja um
comportamento, quer seja um pensamento” resultante de um conflito psíquico entre
o desejo e os mecanismos de defesa. O sintoma, ao mesmo tempo que sinaliza,
busca encobrir um conflito, substituir a satisfação do desejo. Ele é ou pode ser o
ponto de partida da investigação psicanalítica na tentativa de descobrir os processos
psíquicos encobertos que determinam sua formação. Os sintomas de Ana O. eram a
paralisia e os distúrbios do pensamento; hoje, o sintoma da colega da sala de aula é
recusar-se a comer.
A SEGUNDA TEORIA DO APARELHO PSÍQUICO

Entre 1920 e 1923, Freud remodela a teoria do aparelho psíquico e introduz os


conceitos de id, ego e superego para referir-se aos três sistemas da personalidade.
O id constitui o reservatório da energia psíquica, é onde se “localizam” as pulsões: a
de vida e a de morte. As características atribuídas ao sistema inconsciente, na
primeira teoria, são, nesta teoria, atribuídas ao id. É regido pelo princípio do prazer.
O ego é o sistema que estabelece o equilíbrio entre as exigências do id, as
exigências da realidade e as “ordens” do superego. Procura “dar conta” dos
interesses da pessoa. É regido pelo princípio da realidade, que, com o princípio do
prazer, rege o funcionamento psíquico. É um regulador, na medida em que altera o
princípio do prazer para buscar a satisfação considerando as condições objetivas da
realidade. Neste sentido, a busca do prazer pode ser substituída pelo evitamento do
desprazer. As funções básicas do ego são: percepção, memória, sentimentos,
pensamento.
O superego origina-se com o complexo de Édipo, a partir da internalização das
proibições, dos limites e da autoridade. A moral, os ideais são funções do superego.
O conteúdo do superego refere-se a exigências sociais e culturais.
Para compreender a constituição desta instância “ o superego” é necessário
introduzir a ideia de sentimento de culpa. Neste estado, o indivíduo sente-se culpado
por alguma coisa errada que fez “o que parece óbvio” ou que não fez e desejou ter
feito, alguma coisa considerada má pelo ego mas não, necessariamente, perigosa
ou prejudicial; pode, pelo contrário, ter sido muito desejada. Por que, então, é
considerada má? Porque alguém importante para ele, como o pai, por exemplo,
pode puni-lo por isso. E a principal punição é a perda do amor e do cuidado desta
figura de autoridade.
Portanto, por medo dessa perda, deve-se evitar fazer ou desejar fazer a coisa má;
mas, o desejo continua e, por isso, existe a culpa.
Uma mudança importante acontece quando esta autoridade externa é internalizada
pelo indivíduo. Ninguém mais precisa lhe dizer “não”. É como se ele “ouvisse” esta
proibição dentro de si. Agora, não importa mais a ação para sentir-se culpado: o
pensamento, o desejo de fazer algo mau se encarregam disso. E não há como
esconder de si mesmo esse desejo pelo proibido. Com isso, o mal-estar instala-se
definitivamente no interior do indivíduo. A função de autoridade sobre o indivíduo
será realizada permanentemente pelo superego. É importante lembrar aqui que,
para a Psicanálise, o sentimento de culpa origina-se na passagem pelo Complexo
de Édipo.
O ego e, posteriormente, o superego são diferenciações do id, o que demonstra uma
interdependência entre esses três sistemas, retirando a ideia de sistemas
separados. O id refere-se ao inconsciente, mas o ego e o superego têm, também,
aspectos ou “partes” inconscientes.
E importante considerar que estes sistemas não existem enquanto uma estrutura
vazia, mas são sempre habitados pelo conjunto de experiências pessoais e
particulares de cada um, que se constitui como sujeito em sua relação com o outro e
em determinadas circunstâncias sociais. Isto significa que, para compreender
alguém, é necessário resgatar sua história pessoal, que está ligada à história de
seus grupos e da sociedade em que vive.

OS MECANISMOS DE DEFESA
A percepção de um acontecimento, do mundo externo ou do mundo interno, pode
ser algo muito constrangedor, doloroso, desorganizador. Para evitar este desprazer,
a pessoa “deforma” ou suprime a realidade deixa de registrar percepções externas,
afasta determinados conteúdos psíquicos, interfere no pensamento.
São vários os mecanismos que o indivíduo pode usar para realizar esta deformação
da realidade, chamados de mecanismos de defesa. São processos realizados pelo
ego e são inconscientes, isto é, ocorrem independentemente da vontade do
indivíduo.
Para Freud, defesa é a operação pela qual o ego exclui da consciência os conteúdos
indesejáveis, protegendo, desta forma, o aparelho psíquico. O ego “ uma instância a
serviço da realidade externa e sede dos processos defensivos” mobiliza estes
mecanismos, que suprimem ou dissimulam a percepção do perigo interno, em
função de perigos reais ou imaginários localizados no mundo exterior.
Estes mecanismos são:
• Recalque: o indivíduo “não vê”, “não ouve” o que ocorre. Existe a supressão
de uma parte da realidade. Este aspecto que não é percebido pelo indivíduo faz
parte de um todo e, ao ficar invisível, altera, deforma o sentido do todo. E como se,
ao ler esta página, uma palavra ou uma das linhas não estivesse impressa, e isto
impedisse a compreensão da frase ou desse outro sentido ao que está escrito. Um
exemplo é quando entendemos uma proibição como permissão porque não
“ouvimos” o “não”. O recalque, ao suprimir a percepção do que está acontecendo, é
o mais radical dos mecanismos de defesa. Os demais referem-se a deformações da
realidade.
• Formação reativa: o ego procura afastar o desejo que vai em determinada
direção, e, para isto, o indivíduo adota uma atitude oposta a este desejo. Um bom
exemplo são as atitudes exageradas “ ternura excessiva, superproteção” que
escondem o seu oposto, no caso, um desejo agressivo intenso. Aquilo que aparece
(a atitude) visa esconder do próprio indivíduo suas verdadeiras motivações (o
desejo), para preservá-lo de uma descoberta acerca de si mesmo que poderia ser
bastante dolorosa. É o caso da mãe que superprotege o filho, do qual tem muita
raiva porque atribui a ele muitas de suas dificuldades pessoais. Para muitas destas
mães, pode ser aterrador admitir essa agressividade em relação ao filho.
• Regressão: o indivíduo retorna a etapas anteriores de seu desenvolvimento;
é uma passagem para modos de expressão mais primitivos. Um exemplo é o da
pessoa que enfrenta situações difíceis com bastante ponderação e, ao ver uma
barata, sobe na mesa, aos berros. Com certeza, não é só a barata que ela vê na
barata.
• Projeção: é uma confluência de distorções do mundo externo e interno. O
indivíduo localiza (projeta) algo de si no mundo externo e não percebe aquilo que foi
projetado como algo seu que considera indesejável. É um mecanismo de uso
frequente e observável na vida cotidiana. Um exemplo é o jovem que critica os
colegas por serem extremamente competitivos e não se dá conta de que também o
é, às vezes até mais que os colegas.
• Racionalização: o indivíduo constrói uma argumentação intelectualmente
convincente e aceitável, que justifica os estados “deformados” da consciência. Isto é,
uma defesa que justifica as outras. Portanto, na racionalização, o ego coloca a razão
a serviço do irracional e utiliza para isto o material fornecido pela cultura, ou mesmo
pelo saber científico.
Dois exemplos: o pudor excessivo (formação reativa), justificado com argumentos
morais; e as justificativas ideológicas para os impulsos destrutivos que eclodem na
guerra, no preconceito e na defesa da pena de morte.
Além destes mecanismos de defesa do ego, existem outros: denegação,
identificação, isolamento, anulação retroativa, inversão e retorno sobre si mesmo.
Todos nós os utilizamos em nossa vida cotidiana, isto é, deformamos a realidade
para nos defender de perigos internos ou externos, reais ou imaginários. O uso
destes mecanismos não é, em si, patológico, contudo distorce a realidade, e só o
seu desvendamento pode nos fazer superar essa falsa consciência, ou melhor, ver a
realidade como ela é.

Conclusão
A característica essencial do trabalho psicanalítico é o deciframento do inconsciente
e a integração de seus conteúdos na consciência. Isto porque são estes conteúdos
desconhecidos e inconscientes que determinam, em grande parte, a conduta dos
homens e dos grupos, as dificuldades para viver, o mal-estar, o sofrimento. A
finalidade deste trabalho investigativo é o autoconhecimento, que possibilita lidar
com o sofrimento, criar mecanismos de superação das dificuldades, dos conflitos e
dos submetimentos em direção a uma produção humana mais autônoma, criativa e
gratificante de cada indivíduo, dos grupos, das instituições. Nesta tarefa, muitas
vezes bastante desejada pelo paciente, é necessário que o psicanalista ajude a
desmontar, pacientemente, as resistências inconscientes que obstaculizam a
passagem dos conteúdos inconscientes para a consciência.
A representação social (a ideia) da Psicanálise ainda é bastante estereotipada em
nosso meio. Associamos a Psicanálise com o divã, com o trabalho de consultório
excessivamente longo e só possível para as pessoas de alto poder aquisitivo. Esta
ideia correspondeu, durante muito tempo, à prática nesta área que se restringia,
exclusivamente, ao consultório.
Contudo, há várias décadas é possível constatar a contribuição da Psicanálise e dos
psicanalistas em várias áreas da saúde mental.
Historicamente, é importante lembrar a contribuição do psiquiatra e psicanalista D.
W. Winnicott, cujos programas radiofônicos transmitidos na Europa, durante a
Segunda Guerra Mundial, orientavam os pais na criação dos filhos, ou a contribuição
de Ana Freud para a Educação e, mais recentemente, as contribuições de Françoise
Dolto e Maud Mannoni para o trabalho com crianças e adolescentes em instituições
como hospitais, creches, abrigos.
Atualmente, e inclusive no Brasil, os psicanalistas estão debatendo o alcance social
da prática clínica visando torná-la acessível a amplos setores da sociedade. Eles
também estão voltados para a pesquisa e produção de conhecimentos que possam
ser úteis na compreensão de fenômenos sociais graves, como o aumento do
envolvimento do adolescente com a criminalidade, o surgimento de novas (antigas?)
formas de sofrimento produzidas pelo modo de existência no mundo
contemporâneo; as drogadições, a anorexia, a síndrome do pânico, a excessiva
medicalização do sofrimento, a sexualização da infância.
Enfim, eles procuram compreender os novos modos de subjetivação e de existir, as
novas expressões que o sofrimento psíquico assume. A partir desta compreensão e
de suas observações, os psicanalistas tentam criar modalidade de intervenção no
social que visam superar o mal-estar na civilização.
Aliás, o próprio Freud, em várias de suas obras “O mal-estar na civilização,
Reflexões para o tempo de guerra e morte” coloca questões sociais, e ainda atuais,
como objeto de reflexão, ou seja, nos faz pensar e ver o que mais nos incomoda: a
possibilidade constante de dissociação dos vínculos sociais.
O método psicanalítico usado para desvendar o real, compreender o sintoma
individual ou social e suas determinações, é o interpretativo.
No caso da análise individual, o material de trabalho do analista são os sonhos, as
associações livres, os atos falhos (os esquecimentos, as substituições de palavras
etc.). Em cada um desses caminhos de acesso ao inconsciente, o que vale é a
história pessoal. Cada palavra, cada símbolo tem um significado particular para cada
indivíduo, o qual só pode ser apreendido a partir de sua história, que é
absolutamente única e singular
Por isso é que se diz que, a cada nova situação, realiza-se novamente a experiência
inaugurada por Freud, no início do século 20 a experiência de tentar descobrir as
regiões obscuras da vida psíquica.

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