Pscanalise Depressão
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Depressão na atualidade: estrutura
psíquica ou metáfora do psiquismo? Um diálogo entre
Maria Rita Kehl e Pierre Fédida
Depression in current times: psychic structure or metaphor of
the psyche? A dialogue between Maria Rita Kehl and Pierre
Fédida
Carolina Villanova HegueduschI*; José Sterza JustoI**; José Artur MolinaII***
I
Universidade Estadual Paulista - UNESP Assis - Brasil
II
Universidade Estadual de Maringá - UEM - Brasil
RESUMO
Da loucura genial dos filósofos antigos à ação da bílis negra, da influência astral de
Saturno à acédia cristã, da criação à inibição, a melancolia sempre foi um tema que
instigou a curiosidade investigativa do homem. Assim, acontece com sua
sucedânea, a depressão, hoje bastante presente nos mais diferentes discursos. Este
artigo, longe da pretensão de definir um significado à depressão, busca manter vivo
o debate, ao pensá-la como um fenômeno complexo e desvelador das subjetivações
contemporâneas. Dessa forma, pretende-se costurar um diálogo entre os autores:
Maria Rita Kehl e Pierre Fédida, que dedicaram seus estudos à depressão,
movimentando o pensamento psicanalítico.
ABSTRACT
From the brilliant madness of the ancient philosophers to the action of black bile,
from the astral influence of Saturn to the Christian acedia, from the creation to the
inhibition, melancholy has been a subject which, since antiquity, instigated man's
investigative curiosity. The same happens now with its successor, depression, very
present nowadays in the most different discourses. This paper, far from the
pretension of defining a meaning to depression, seeks to keep the debate alive by
thinking it as a complex phenomenon that reveals the contemporary
subjectivations. So, it is intended here to sew a dialogue between the authors Maria
Rita Kehl and Pierre Fédida, who dedicated their studies to depression, agitating the
psychoanalytic thought.
Keywords: Depression, Current times, Psychoanalysis.
O quadro Melancolia, de Edvard Munch, pintado em 1894, reflete bem a imagem
que comumente se tem da melancolia: o sujeito com um olhar distante, cabeça
baixa, indiferente ao horizonte borrado, tão submerso, que está em seus
pensamentos e seu sofrer. Munch foi um artista conhecido por sua tristeza profunda
e pelo seu gosto em expressar os estados da alma em suas pinturas.
A questão que se coloca é que, a partir daí, o termo depressão passa a ser utilizado
amplamente e com uma variada significação. É empregado para designar um
estado afetivo comum, assim sendo uma tristeza profunda que nos arrebata,
quando vivemos algum acontecimento doloroso, alguma frustração no trabalho ou
na vida amorosa ou quando perdemos alguém a quem tínhamos muita estima. É
usado, também, para nomear um sintoma associado a diferentes quadros clínicos,
como esquizofrenia, alcoolismo, neurose. Assim como para indicar uma síndrome,
ou seja, uma patologia associada a sintomas específicos, que definem um quadro
clínico, ou mesmo indicar uma doença, podendo daí derivar diversas definições a
depender da corrente científica que lhe toma como objeto (TEIXEIRA, 2012).1
Dois grandes paradigmas
A questão mais complicada que se coloca é que, por aí, dilui-se ainda mais a frágil
barreira que separa os sofrimentos normais dos patológicos, já que esse
mecanismo maquínico de produção de saber diagnóstico extingue de vez essa
preocupação. Alarga-se o universo de comportamentos e emoções passíveis de
serem medicalizadas.
Emprestamos da autora uma comparação que, de certo modo, nos revela a lógica
insensata (porém, rentosa) que rege esse mecanismo de construção diagnóstica:
Uma prática clínica, que realmente esteja comprometida com a dimensão do sujeito
e com as implicações éticas, que daí derivam, não se encerra numa classificação
diagnóstica estática: é um processo incessante. Nas classificações diagnósticas, o
sujeito se torna dispensável e o trabalho terapêutico pode ser realizado à revelia
dele. Um diagnóstico, uma classificação, uma tipificação age no sujeito,
capturando-o, submetendo-o a uma alegoria de comportamento, a uma forma
típica de expressão de sentimento, dominando, por vezes, grande parte do que
ele é no encontro com o outro social. Por vezes, também, apossando-se de sua
reinvenção de si mesmo. Quando falamos do diagnóstico de depressão, podemos
pensar que essa condição se complica, já que essa se destaca nos discursos sociais
atuais. A depressão se coloca muito mais, hoje em dia, como um estado de ser, ou
uma produção identitária, do que um estar deprimido como um estado passageiro.
É Transtorno de humor ou tristeza?
É notável que o fato de que não se conheça a causa da depressão não impede que
se faça o diagnóstico e que se aplique uma terapêutica. A droga funciona, mostra
seus efeitos sobre a sintomatologia, é o que finalmente importa. E qualquer que
seja a causa, a conduta diante da uma determinada manifestação sintomática é
sempre a mesma: quimioterapia. Não seria a clínica dos medicamentos que viria,
em última instância, "justificar" o conceito diagnóstico de Distúrbios do Humor, que
reúne quadros que em outras épocas se diferenciavam ou que sequer eram
incluídos na classificação das doenças mentais? (RODRIGUES, 2000, p. 8).
Depressão na atualidade
A hipótese da depressão como estrutura
A questão do depressivo, justamente por isso, coloca-se como mais delicada. Esse
outro não é o pai imaginário, como nos outros neuróticos, mas a mãe. Essa posição
do fantasma se dá no ápice do complexo paterno (segundo tempo), nesse
momento em que a criança se coloca à mercê daquele que é a lei do desejo da
mãe, é com ele que ela rivaliza e no qual se espelha. Mas, o depressivo recuou
antes disso - mesmo assim não o considera boderline, porque não se situa entre a
neurose, a psicose e a perversão. A histérica e o obsessivo rivalizam, o depressivo
recua. Assim, ele também se mantém aquém dos ideais, não investe neles e nos
benefícios do narcisismo secundário. Ele se oferece como castrado à demanda do
Outro materno, não se seduz pelo falo, ou melhor, não disputa por ele; por isso,
também, tudo lhe parece tão desencantado (KEHL, 2009).
A hipótese da depressão como metáfora do psiquismo
A depressão seria, então, um estado durando o tempo necessário para que o vazio
inanimado do vivo se constitua como organização narcísica e retorna toda vez que
o psiquismo solicita uma restauração de seu narcisismo. Como este está
constantemente ameaçado, tanto por forças externas como internas, a depressão
está invariavelmente presente (BERLINCK; FÉDIDA, 2000, p. 15).
A tarefa de definir com exatidão significados e aspectos que Fédida poderia nos
trazer sobre a depressão em si, além de complicada, poderia também resultar em
prejuízos. Isso porque, além de ele não se preocupar em estabelecer barreiras
muito bem marcadas entre fenômenos próximos, como luto, depressão e
melancolia, sua escrita, quase poética, não se coloca refém de psicologismos. Em
seu estilo, teoria, manifestações clínicas, imagens vivas se misturam na criação de
um potente e vivo saber, da ordem do incapturável. Além também, de ele lidar com
o psíquico e, para ele, o aparelho psíquico da elaboração freudiana é
"metapsicológico, ou seja, obra de ficção". Se fosse "psicologizado", descrito e
dissecado, ele perderia esse seu "poder de ficção, de se oferecer como conceito de
funções" (FÉDIDA, 1999, p. 105). Portanto, ensaiaremos trabalhar, inspirados por
ele, buscando não aprisionar seus conceitos em definições puras para que sigam
operando como funções.
Impressos em seu estilo, esses traços impõem um certo esforço por parte do leitor
porque este gênero de pensamento jamais cede à coerência articulada de um
raciocínio, mas se abre constantemente para as imagens e para as figuras do vivido
das palavras que utiliza. Eis o modo da poesia e da fenomenologia entremearem o
tecido metapsicológico temperando o rigor com que o autor se fia às buscas e aos
questionamentos da feitiçaria freudiana (DELOUYA, 1999, p. 10).
Depressão sem culpabilidade nem objeto, também poder-se-ia dizer, para indicar o
vazio da tonalidade psíquica - somática - de uma morte psíquica aparente. [...] O
vazio não alimenta qualquer queixa, não se autodeprecia: ele é simplesmente nada.
[...]. Pelo vazio, estar protegido da efração traumática. Pelo trauma, sair do vazio.
São estas as primeiras violências do paradoxo (FÉDIDA, 1999, p. 74).
Esse agir é como que despregado de si. Num outro caso, ele diz que "o paciente irá
se lembrar de ter vivido a impressão senão de um desdobramento interno pelo
menos alguém, nele mesmo, silencioso, olhando-o agir freneticamente" (FÉDIDA,
1999, p. 21). Quem age aí é o ausente, que está demasiadamente presente. A
atividade depressiva comporta uma espécie de interioridade atenta, de terror
subjetivo, como se ela própria "ocupasse o lugar silencioso do ausente" (FÉDIDA,
1999, p. 21). Ainda sobre esse paciente, relata que "agia e se agitava numa forma
- corpo da ausência - que o 'carregava', enquanto uma vigilante imobilidade interior
o 'aterrorizava'" (FÉDIDA, 1999, p. 17).
Não há ausência, há uma presença excessiva do ausente. O agir maníaco é um agir
desse duplo, um agir alucinatório desse ausente, por isso alienado do sujeito, por
isso repetição.
Depois dessa fase atinada, esse paciente, por um golpe do destino, passa a sentir
essa forma esvaziada e vai perdendo ainda mais o interesse por tudo. Não sente
angústia, mas também não tem pensamentos, só vontade de dormir, "impressão
cotidiana sobre o tédio, onde aquilo que ele vê não lhe diz nada. [...] Espero, mas
não sei o que" (FÉDIDA, 1999, p. 19).
A impossibilidade de fazer o menor gesto, de agir o menor ato, o peso com que o
cotidiano é aqui sentido, a pesada lentidão de uma representação corporal
desenhando o limite de um recinto em sentinela [...] a sentinela imediatamente
impressionável de tudo o que se passa (FÉDIDA, 1999, p. 24).
Atos que marcam, a cada vez, a evolução de uma liberação - o que se encontra em
projeto numa elaboração consciente do agir no desejo de se libertar dessa ausência
que se tornou corpo invasor - imóvel - do outro excessivamente presente por ter
partido. Como se o ato - por mais banal que seja, como "lavar as meias",
"preencher um formulário", deslocar um objeto sobre a mesa, etc. - só se tornasse
possível no momento em que o homem reencontra a temporalidade de um projeto,
desde que nele silencie o interminável solilóquio com o ausente (FÉDIDA, 1999, p.
20).
Ausência, inibição e dor moral: diálogos possíveis
Fédida (1999) nos lembra da ânsia de atividade, que nos desperta diante da
imobilidade do deprimido, como se ele mobilizasse uma angústia no outro, seja na
prática clínica, na tentação de interpretação ativa, ou na ideia geral, que se tem de
tentar animar a pessoa no cotidiano comum. Para o autor, isso deriva da
dificuldade primordial que o analista (e não só ele) tem de lidar com o vazio. "O
vazio seria o protótipo da psique - órgão psíquico plenamente investido sem
representação. [...] caracteriza-se por um estado de conservação sem espera, de
equilíbrio inerte anulador das tensões, de suspensão psíquica" (FÉDIDA, 1999, p.
86). Portanto, mais uma vez, o vazio não é ausência, é a falta dela. A análise
acontece "não para substituir o ausente, nem para preencher o vazio de seu lugar,
mas para fundar a relação que ele desconhece: a da ausência" (FÉDIDA, 1999, p.
107). Daí, deriva a dificuldade do analista. Ele não poderá representar um
continente, nem atropelar (mais uma vez) o sujeito com sua atividade
interpretativa. O que importa aí é seu silêncio, "silêncio de fundo" (FÉDIDA, 1999,
p. 86). Esse silêncio que possibilitará o tempo necessário para a criação de um
tempo de projeto. "O vazio é reconhecido pelo analista em seu próprio silêncio: ele
é solicitado, a partir desse silêncio, a ser para o analisando o silêncio de sua fala. E
assim ela pode ser ouvida" (FÉDIDA, 1999, p. 77).
Kehl (2009), a seu modo, também nos fala do desafio da prática clínica diante da
lentidão do deprimido e do seu silêncio, da sua necessidade de reencontrar "modos
de dizer". Para ela, o saber do Outro que fala por ele, além de emudecê-lo mais
ainda, "atropela seu tempo psíquico", justamente o que não deveria ocorrer (KEHL,
2009, p. 222). "Para os depressivos, trata-se de buscar a duração de um tempo
necessário para que o sofrimento se converta em experiência [...] (que) confere
valor ao vivido" (KEHL, 2009, p. 224).
Para Kehl (2009), a questão que se soma é que essa dificuldade de simbolizar a
ausência, própria do deprimido, encontra-se na origem da depressão ou, podemos
até dizer, na origem da vida do deprimido. Como já vimos, diferentemente do que
mais comumente se lê nas teorias psicanalíticas, a violência ocorrida na vida do
deprimido não foi abandono ou falta, o que ocorreu foi a precipitação do Outro,
antes mesmo que o demandasse. O que há aqui é um "atropelamento do sujeito
pelo Outro", ou podemos dizer, pelo tempo do Outro (KEHL, 2009, p. 229).
Assim, num caminho inverso, na mesma medida em que o sujeito não pode viver
seu tempo próprio para lhe ativar um funcionamento psíquico suficiente, ele não
mais consegue usar desse funcionamento para atribuir sentido ao seu tempo, que
passa a ser vivido como uma eternidade insuportavelmente vazia. Um tempo que
não passa.
Outro traço peculiar do deprimido é a inibição, que está totalmente relacionada com
essa não simbolização da ausência. Kehl (1999) nos revela que o deprimido,
diferentemente dos outros neuróticos, defende-se mais pela inibição do que pela
produção de sintomas. Grande parte de seu sofrimento vem daí. A dificuldade em
representar, em narrar seu sofrimento ou mesmo suas histórias é bem aparente,
perto da novela toda com que se defendem os outros neuróticos. "Nos depressivos
a rede imaginária, invenção subjetiva que visa proteger o psiquismo do vazio
instaurado pela falta do objeto, é pouco consistente" (KEHL, 1999, p. 228). A
antecipação do Outro, antes que ele tivesse o tempo de espera para testar sua
potência e criatividade em lidar com o vazio, fê-lo desacreditar de si.
O deprimido, para Kehl (2009), faz o movimento que Lacan chama de ceder em
seu desejo. Assim como os outros neuróticos, ele também constrói seu fantasma,
ou seja, ele também procura tornar a ser, novamente, o objeto do gozo do Outro. A
diferença está em que o Outro, aqui, não é o pai, e sim a mãe. Esse recuo, frente à
rivalidade com o pai, faz com que ele tenha uma relação diferente com o Ideal de
eu, que, apesar de constituído, desperta uma reação de desistência, e não de
embate, como se ele já se aceitasse castrado porque sabe que a mãe o quer assim.
"Ele se faz indiferente ao falo para não perder a proteção materna" (KEHL, 2009, p.
255).
Fédida (1999), em certo ponto do seu livro, refere-se ao vazio como "aquilo de que
a metáfora é travessia" (p. 93). Sua ideia de metáfora é algo bastante complexo,
mas pode-se dizer que ela funciona como uma forma existencial que pode se
revelar na fala, para além da vida psíquica, mas carregando mesmo algo de uma
verdade maior. Por isso, ele diz que o vazio convoca uma estranha lucidez, como
uma verdade radical.
Referências
KEHL, Maria Rita. O tempo e o cão: a atualidade das depressões. São Paulo:
Boitempo, 2009. [ Links ]
MONTEIRO, Ana Cristina Cavalcante; LAGE, Ana Maria Vieira. Depressão - uma
"psicopatologia" classificada nos manuais de psiquiatria. Psicologia Ciência e
Profissão. v. 27, n. 1, p. 106-119, 2007. [ Links ]
Artigo recebido em: 21/04/2017
Aprovado para publicação em: 14/08/2017
*
Psicóloga/Universidade Estadual de Maringá (UEM), doutoranda no Programa de
Pós-Graduação da Faculdade de Ciências e Letras/Universidade Estadual Paulista
(UNESP-Assis).
**
Doutorado em Psicologia Social/Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP), docente do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Ciências e
Letras/Universidade Estadual Paulista (UNESP-Assis).
***
Doutorado em Psicologia e Sociedade/Universidade Estadual Paulista (UNESP-
Assis), pós-doutorado em Psicologia Social/Universitat Autonoma de Barcelona
(UAB), docente do Departamento de Psicologia/Universidade Estadual de Maringá
(UEM).
1
Sugiro a leitura da tese de doutorado de Teixeira (2012), intitulada Das neuroses
de transferência às neuroses narcísicas: contribuições aos fundamentos da teoria
freudiana da melancolia, em que este se dedica primorosamente nessa tarefa de
remontar toda a história dos termos melancolia e depressão. Faz ainda um amplo
apanhado das definições diagnósticas acerca da depressão.
2
ISRS ou Inibidores Seletivos de Recaptação de Serotonina é o nome da classe de
antidepressivos mais usada em todo o mundo: a fluoxetina. Age, como o nome
indica, inibindo a recaptação de serotonina permitindo um aumento dessa
substância no cérebro. Está entre os medicamentos considerados mais importantes
pela OMS. Sua primeira versão foi desenvolvida, na década de 70, sob o nome de
Prozac.