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A Fala do Santo

1
Ruy do Carmo Póvoas

A Fala do Santo

Editora da UESC

Ilhéus - BA
2002
3
© 2002 by RUY DO C ARMO P ÓVOAS

Direitos desta edição reservados à


EDITUS - EDITORA DA UESC
Universidade Estadual de Santa Cruz
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

P881 Póvoas, Ruy do Carmo.


A fala do santo / Ruy do Carmo Póvoas. - Ilhéus : Editus,
[2002].
167. : il.

ISBN - 85-7455-046-9

1. Literatura folclórica brasileira. 2. Literatura folclórica


africana - Brasil. I. Título.
CDD - 398.20981

4
A Fala do Santo

É por isso que eu uso parábolas


para falar com eles:
porque eles olham e não vêem,
ouvem e não escutam nem entendem.
(Mateus: 13,13)

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À memória de

Mãe-Velha, Maria Gustavo de Jesus,


que me levou para Oxalá.

Meu Mestre,
Professor Manoel Simeão da Silva,
que me levou para a Universidade.

Minha outra mãe,


Juventina Marques de Jesus,
Doya Seçu,
que me levou pelo Caminho.

Minha Tia Jovanina,


que me levou pela vida
para eu ouvir a fala do santo.

Minha Velha Nanewá,


que me levou pelas memórias de Itabuna.

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Para os Póvoas,
os de ontem e os de agora,
meus parentes brancos.

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Sumário

13 A FALA DO OUTRO
17 ANTES DE CONTAR A FALA DO SANTO
23 OS CAMINHOS

29 A casa de Ariuô
33 A escolha do destino
37 A esperteza de Euá
41 A fama e o poder
45 A feiúra e a boniteza
51 A força do encanto
57 A grandeza e a obrigação
63 A jaca mole
67 A lonjura e a demora
71 A mudança e o coração
75 A orelha de Obá
81 A pele de búfalo
85 A resposta do coração
89 A riqueza da sabedoria
93 O chapéu de duas cores
97 O desejo de Gadamu
101 O fofoqueiro
105 O gato e a anta

11
109 O macaco e a cutia
113 O ovo anunciado
117 O preço da ingenuidade
121 O Quibungo
127 O saber e a sabedoria
131 O sapo invisível
135 O segredo do pote
139 O senhor de grande riqueza
143 DEPOIS DE TER CONTADO

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A FALA DO OUTRO

Madrid, outubro de 2001.

Querido amigo Ruy,


Estamos aqui, em uma Madrid que se lava nas chuvas de
outono. A música de Gal que suaviza o ambiente, o leve ruído
de quem passa nas ruas, a presença-ajuda de David, as conver-
sas entrecortadas, as lembranças do Brasil, uma pausa para as
leituras de e-mails dos amigos, Raimunda Alencar, Genebaldo
Pinto, Marquinhos Salviano, o cafezinho, a chegada de D´Ajuda
Alomba, mais uma uesquiana em terras espanholas. O ir, o vir,
o ler, o reler e o gostar.
Temos, nas mãos e no corpo, o seu A Fala do Santo, lê-lo é
refazer vários caminhos. O da infância, do gosto de ouvir histó-
rias e nos transportar para mundos que a imaginação não deli-
mita barreiras. É o andar pelas veredas da nossa cultura, é evocar
a memória de uma história ancestral que a história oficial não
conta. É o retorno ao terreiro e ao nosso encontro com o povo
do Ilê Axé Ijexá, nas rodas do contar, onde crianças e mais-velhos
se harmonizam numa mesma dimensão temporal.
As histórias que você conta não têm idade. Elas se atuali-
zam no momento do contar, também pelo trabalho com a

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linguagem que, em suas mãos, evoca o gosto de conversa, o
jeito brasileiro de reinventar o gesto, o calor, o sabor, o cheiro
da terra, nas expressões que você tão bem sabe dizer: “Ah, cria-
tura, nem te conto...”; “...tim-tim por tim-tim”; “foi a gota d´agua”;
“.. enfim, todo esse bolodório”; “ele não bate prego sem estopa”;
“...com sua língua de trapo”.
Sabe, Katulembá, ler suas histórias é estar com a sabedo-
ria dos orixás, a sagacidade e a esperteza de Exu, as previsões de
Ifá, a ligeireza de Oiá, a tenacidade de Oxóssi, a imensidão
materna de Iemanjá, a sedução da Oxum, a magia de Ossaim,
a coragem de Ogum, a compreensão do tempo em Iroko, a
justiça de Xangô, o silêncio de Oxalá... E tudo isso se revela na
Orelha de Obá, na Pele de Búfalo, no Chapéu de Duas Cores, na
Mudança e o Coração e nas tantas histórias que compõem o seu
livro. Bicho, gente, natureza falam da vida, dizem das coisas,
dizem de nós mesmos. Dos nossos encontros, incertezas, dúvi-
das, desejos, espertezas, temores, disfarces, poder,
autoconhecimento, percepção do tempo, encantamento, re-
conhecimento do outro, na alegria de viver e de aprender con-
tinuamente.
Você abre, na grandeza do narrar, a possibilidade de que
muitas das histórias que circulam na intimidade de uma casa-
de-santo, histórias que revelam princípios filosóficos, éticos e
estéticos, possam adentrar na intimidade da casa do outro, si-
nalizando outras formas de conviver, de pensar o mundo. A
Fala do Santo é a multiplicidade das vozes dos orixás, ecos da
senzala, da mistura étnico-cultural que convida o homem e a
mulher brasileiros a compartilhar um espaço de reconhecimento
das nossas marcas.
O seu livro é, portanto, um livro-convite para muitas coi-
sas: para o recordar, para o aprendizado da escuta, para inaugu-
rar novas formas de conhecer e para que circule, na escola, a
história da nossa História que ela ainda desconhece.

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Esta Fala do Outro que você quis que fossemos nós, não se
quer restrita a esta apresentação. A verdadeira fala do outro
serão os muitos outros leitores, meninos, moços e mais-velhos,
professores e alunos, artistas, poetas, gente de axé... que, em
diálogo com as histórias, multiplicarão suas vozes e lhe darão
mais e mais vida.
Ficamos aqui, em Madrid, com A Fala do Santo que nos
faz estar aí, com você.
Com um beijo e muita saudade. De nós.

Consuelo Oliveira e Marialda Silveira.

PS: Um afetuoso abraço a todos os nossos amigos do Káwè que, também,


com este livro, alcançam a concretização do nosso Projeto de divulgar e
discutir a cultura afro-brasileira.

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ANTES DE CONTAR
A FALA DO SANTO

Era uma vez... Não. Não era assim que meus mais-ve-
lhos começavam a contar histórias. Só nos livros e na Escola de
Dona Elvira, a contação tinha era uma vez... Lá em casa, as
histórias começavam assim: Contavam os mais-velhos que... E
eu me criei entre esses dois mundos, tão diferentes entre si. O
mundo de lá era o do meu pai, da escola, do catecismo de
Dona Amália, da cultura dos brancos. Enfim, da escrita. O de
cá era o da minha mãe, dos bate-papos em família, dos terrei-
ros de candomblé, da tradição oral afro-descendente.
Lá, os sabidos eram Dona Elvira e o meu pai com Bran-
ca de Neve, Chapeuzinho Vermelho, as fábulas de Esopo, os
contos de Monteiro Lobato. Cá, os sábios eram Tia Jovanina,
minha mãe e Compadre Roque com as histórias dos orixás.
Com os primeiros, aprendi Português, Matemática, História,
Geografia... Com os segundos, aprendi a vida.
Veja como são as coisas... Aqui, no Brasil, a gente termi-
nou colocando uma barreira entre mundos desses dois tipos,
os de lá e os de cá. Aí, ficou o espaço público de um lado e o
espaço privado de outro. Isso resultou num sistema de educa-
ção em que a vida, com todos os seus altos e baixos, é deixada

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de lado. E ensinam à gente tanta coisa que nunca vai servir
para nada. Enquanto isso, é negado um bocado de coisa, que
realmente faz parte da vida, quando não se diz: “coisa de gente
atrasada”. Então, você, eu, todo mundo tem passado por isso:
aprender de maneira dividida. Termina a Escola desconhecen-
do ou negando o saber de dentro de casa, o que é mais grave
ainda.
Por falar em casa, na minha casa, o pessoal gostava de
conversar. Após o almoço do domingo, todo mundo já sabia:
conversar, contar caso e dar risada. Às vezes, a domingada de-
morava tanto que emendava com o jantar. Foi nesse mundo de
cá, que eu aprendi os itans.
A minha mãe gostava de contar casos e tinha um dom
para isso. Não narrava simplesmente. Fazia muito mais: usava
recursos da mímica e da voz, além de ocupar o espaço para
representar, ao modo dela, os personagens que viviam a histó-
ria, o caso, o itan. Ela chamava essas histórias de Casos de
Trancoso. Enquanto isso, Tia Jovanina, a matriarca da família,
dizia que essas histórias eram a Fala do Santo. Hoje, eu sei que
a minha mãe agia assim, para driblar o preconceito que o meu
pai e a família dele tinham contra a cultura dos afro-descen-
dentes. Também sei que tia Jovanina disfarçava, chamando de
Santo o que, na verdade, ela conhecia como Orixá.
As histórias não eram contadas assim, sem mais nem
menos. Na conversa cotidiana, as pessoas davam notícias, lem-
bravam fatos, relatavam as novidades. E em meio a tudo isso,
as histórias eram contadas. Às vezes, os mais-velhos chamavam
as histórias de itan. E não perdiam oportunidade para contar
os itans. Bastava haver uma situação que demonstrasse ser pre-
ciso alguém aprender uma lição de vida. Havia uns itans que
não precisavam mais ser contados. Era suficiente que se disses-
se, por exemplo:
– Cuidado com o chapéu de duas cores!

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E todos já sabiam do princípio ético: As coisas nem sempre
são aquilo que parecem ser. Na conversa comum, normal, uma
pessoa perguntava por outra. A notícia dada, muitas vezes, en-
globava uma situação de vexame, doença, prejuízo, ou coisa
parecida. E era justamente aí, que os itans entravam como
ensinamento.
Mas não quer dizer que os itans só eram narrados na
roda familiar. Não; não era assim. Eles eram lembrados sempre
que alguém precisava aprender a vida. Como eu me lembro
tão bem das circunstâncias em que eu aprendi os mais diferen-
tes itans. Delas, duas permanecem em minha lembrança, como
se ainda estivessem acontecendo agora.
O Pontal de Ilhéus, lugar onde nasci e me criei, era terra
de pescadores. E havia um pescador chamado Duca Arame
Grosso. Tinha fama de valente e grosso. Um dia, eu estava à
porta de minha casa e notei um grande ajuntamento na porta
de Arame Grosso. Não contei conversa: rumei para lá. Na cu-
riosidade de meus seis anos, fui chegando e me esgueirando
entre os adultos, até que descobri do que se tratava: era um
balaio enorme, do tamanho do mundo, repleto de sardinha.
Na ânsia de chegar perto do balaio, pisei no pé de Arame
Grosso. Acontece que ele estava com uma ferida enorme no
pé. Foi um deus-nos-acuda. Arame Grosso, enlouquecido de
dor, quis me pegar para torcer o meu pescoço. A mulher dele
atiçava, dizendo:
– Pega ele, Duca! Mata e joga na maré!
Os adultos fizeram uma parede entre mim e Arame Gros-
so e eu, sem entender nada do que estava acontecendo, abri a
boca no mundo, gritando por minha mãe.
Não sei como foi aquilo, mas de repente, minha mãe es-
tava me segurando pela mão. A cena, nesse ponto, fica nubla-
da. Só sei que ela me levou para casa. Sentou-se comigo no
degrau de nossa porta, enxugou meus olhos e me disse com

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segurança:
– Vou te contar a história sobre O Quibungo...
Quando ela acabou de contar, eu fiquei com uma certeza:
se eu fosse do tamanho do Quibungo, Arame Grosso tinha
falado fino. Mas também não valia a pena eu ser nenhum dos
dois...
De outra vez, Tia Jovanina veio nos ver. Minha mãe quis
saber notícias de Prima Iuiuca. E Tia Jovanina explicou:
– Tá lá, querendo achar sapo em copa de arvoredo...
E eu, com muita curiosidade, perguntei:
- E o que é isso, tia? Esse negócio de sapo no arvoredo?
Ela me perguntou até num tom de reprovação:
– Ô, você não sabe ainda disso? É a história sobre O Sapo
Invisível... Senta aí, que vou te contar agorinha mesmo.
Aí, Tia Jovanina me contou o itan. E a frase final, dita
pela mãe da girafa, que Tia Jovanina repetiu com tanta ênfase,
ficou comigo para sempre. Terminei aprendendo como é im-
portante compreender o lugar que o outro ocupa em relação à
gente.
Ah, como me lembro das maneiras diversas com que as
pessoas contavam as histórias! Minha mãe, mestra na
teatralização. Tia Jovanina, centrada na lição resultante. Mãe-
Velha, abreviando a narrativa, para enfatizar o final. Olga não
narrava; cantava o itan com uma voz de ouro. Compadre Ro-
que preferia os itans sobre magia. De todos, Sinhanja era a
mais detalhista. E Mãe Mariinha? Ninguém igual a ela na arte
de contar: narrava, dançava, interpretava, fazia mímicas, imi-
tava qualquer bicho, qualquer pessoa, qualquer encantado: era
uma verdadeira atriz. Mas aí, eu virei um rapazola e, desde
então, me surgiu a idéia de pesquisar sobre os itans, contar a
sabedoria dos afro-descendentes na linguagem dos descenden-
tes da Ibéria.
Mal sabia que, ouvindo aquelas pessoas, eu estava come-

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çando uma trajetória que iria atingir seu ponto mais alto atra-
vés da pesquisa, na Universidade. Foi labutando com as coisas
do Imaginário e do Saber Popular que atinei para o verdadeiro
papel dos itans. Agora, saio juntando as coisas: estudos acadê-
micos, saber popular, escrita formal, oralidade, histórias con-
tadas, literatura, teoria, prática... Claro: com critério e com
uma certa dose de humor. E nessa intenção, aqui estou eu,
com esse livro, que faz parte de meus estudos sobre o Quarto
de Consulta. Esses estudos têm sido feitos ao longo da vida,
mas atingiram formalidade no Kàwé, que é o Núcleo de Estu-
dos Afro-Baianos Regionais, da Universidade Estadual de San-
ta Cruz. Lá adiante, depois dos itans, eu vou conversar sobre
isso e dizer mais algumas coisas a quem se interesse por um
pouco mais.
É possível que uma pessoa ou outra acuse as histórias de
ingênuas ou tendenciosas. Então, eu pergunto: Qual a mãe,
em relação a seus filhos, que não se identifica com a coruja do
itan A feiúra e a boniteza? Quem discordará da conclusão tira-
da por Iroco, no itan A lonjura e a preocupação? Mesmo que a
intenção aqui seja divulgar um dos traços da sabedoria milenar
do povo nagô que hoje fazem parte da cultura brasileira, é ne-
cessário não esquecer que os escravos trazidos das mais diversas
regiões africanas também trouxeram seu cabedal de histórias.
E no Brasil, eles também conservaram a memória de uma prá-
tica eficaz de narrar lendas e mitos, para ensinar e aprender
princípios de ética e de moral. Por isso eles viveram, na terra
do desterro, contando histórias, cujos personagens são bichos,
gente, plantas, lugares e até seres divinos.
Vale ressaltar que as histórias chamadas itan, material bá-
sico aqui em análise e amostra recriada, inicialmente, faziam
parte apenas do sistema de adivinhação. Depois, com altera-
ções, também passaram a ser contadas para ensinamentos de
princípios éticos e morais e foram se misturando à narrativa

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dos vários participantes do processo de colonização do Brasil,
concorrendo para a indeterminação das origens dos contos
populares brasileiros.
Bem verdade que uso o recurso da recriação literária aqui
e ali. Por isso é que a anta também tem oportunidade de apare-
cer. Mas conservo a essência: o tom de oralidade, a lição de
ética ou moral, os elementos básicos tomados do universo nagô.
As histórias, aqui apresentadas, aprendidas com os mais-ve-
lhos, também têm sido narradas por mim, nas mais diversas
ocasiões: palestras, seminários, oficinas, artigos para jornais ou
revistas, sessões de estudo no Kàwé, salas de aula, cotidiano do
terreiro, onde convivo com o povo-de-santo. E é por isso que
pode haver uma diferença no estilo do meu contar, de um itan
para outro. Afinal, para cada platéia, deve-se ter uma maneira
diferente para se comunicar. A princípio, pensei em fazer um
trabalho de nivelamento. Depois, cheguei à conclusão que se-
ria melhor deixar assim mesmo, pois a vida se faz com a pró-
pria diversidade. Por isso, conservei os vinte e seis itans, que
compõem este livro, no estilo em que eles foram contados,
conforme o público a quem eu me dirigia.
Não inventei nada. Apenas reproduzo o que ouvi pela
vida a fora. E terminei me dando conta de que isso se constitui
um dos aspectos mais importantes do que ocorre no quarto de
consulta. Lá, também se explica a saída para um problema atra-
vés de itans narrados no momento.
Aqui, junto pontas que estavam desatadas. Retomo os itans
e os apresento com um tratamento literário. Na passagem da
fala para a escrita, fui fazendo, aqui e ali, meu trabalho de lin-
guagem. Tento recuperar a memória de tão valioso tesouro. E
aí fui juntando as coisas que aprendi nos meus caminhos de
professor, contista, africanista e babalorixá. Também vou dan-
do conta de resultados alcançados nos meus estudos no Kàwé.
Lá adiante, eu volto a conversar sobre tal assunto. É por isso

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que este livro tem três partes: esta conversa, antes da contação;
um mostruário de vinte e seis histórias representativas e uma
outra conversa, depois dos itans. Viu? Igualzinho ao que acon-
tece no quarto de consulta...
Estes escritos não se constituem uma defesa à idéia da
hegemonia nagô. Não! Categoricamente, não se trata disso.
Apenas, meu saber não é tanto assim, a ponto de abarcar as
heranças e contribuições dos demais povos que foram trazidos
da África. Cabe a quem tiver tal conhecimento fazer seus escri-
tos também.
Para escrever esse livro, conversei com um bocado de gen-
te, discuti muito com os pesquisadores do Grupo Kàwé, li como
um desvalido, ouvi coisas do arco-da-velha. Mas quando falei
sobre o livro a Osmundinho Teixeira, ele foi categórico e disse:
- Vou ilustrar seu livro.
Aqui está o resultado: a beleza de sua criatividade. Ah,
criatura privilegiada, esse Osmundinho!
Mas uma coisa também é mais do que certa: eu não che-
garia até aqui sozinho. Ah, quanta gente boa encontrei pelo
caminho! E justamente por isso, é necessário agradecer:
A todos aqueles que contaram itans para mim,
Ao povo dos terreiros por onde andei, que me contou
itans e mais itans,
À Academia de Letras da Bahia, que um dia me premiou
por eu ter escrito o livro Itan dos Mais-Velhos, dando-me o in-
centivo para prosseguir no caminho,
Ao Grupo Kàwé, constituído de parceiros de pesquisa,
Às ialorixás que me ensinaram o segredo do jogo dos bú-
zios, Joana da Rodagem, Malungo Monaco e Maria Nativida-
de Conceição,
À Raimunda d’Alencar, pela leitura prévia dos originais,
À Maria Luiza Nora, pela revisão do texto,
À Consuelo de Oliveira Santos e Marialda Jovita Silveira

23
— companheiras sem as quais o Kàwé não seria criado, nem se
firmaria —, pela crítica sensata e sugestões de gente sabida,
A Osmundinho Teixeira, pela belíssima ilustração.
A todos, agradeço sinceramente.

Ruy Póvoas
Itabuna, BA, outubro de 2001

24
OS CAMINHOS

Porque todos devem conhecer sua origem e seu destino.


(Ensinamento do quinto itan do quinto odu, Oxetuá)

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27
A casa de Ariuô

Na casa de Ariuô, o povo não conversava; brigava. E a


discussão era tanta que terminava na porta da rua. Quando a
vizinhança perguntava a eles a causa do arerê, cada um dava
uma explicação diferente. E ninguém sabia, na verdade, por-
que aquela gente brigava tanto assim.
Um dia, a vizinhança foi se queixar ao Velho Afaradá, o
juiz da aldeia, e ele resolveu dar um ensinamento. Bem na
hora em que todos estavam falando de vez, no maior alarido,
ele mandou que um menino gritasse com todo fôlego, na por-
ta de Ariuô:
– Lá vem a onça aí, minha gente!
O menino foi lá e fez direitinho como Afaradá mandou.
Acontece que ninguém lá de dentro se incomodou com o ber-
ro do menino e a discussão continuou. Então Afaradá fez dife-
rente: mandou que os caçadores trouxessem uma onça viva,
amarrada, e soltasse na entrada da porta da casa de Ariuô, bem
na hora do arerê e ninguém avisasse nada.
Os caçadores cumpriram as ordens de Afaradá. E quan-
do a onça foi solta, saltou casa a dentro e aí ocorreu um alarido
que fazia dó e piedade. Por ordem de Afaradá, ninguém to-
mou providência alguma, ninguém entrou na casa para acudir

29
os moradores. De repente, fez um silêncio mortal lá por den-
tro. Os moradores ficaram sem saber o que Afaradá queria,
comprometendo a vida daquela gente. Terminou toda a famí-
lia de Ariuô vindo para a rua. Uns esfarrapados, outros arra-
nhados, outros mais capengando e outros ainda com ar de as-
sombro. Mas todos muito risonhos, unidos e felizes, exclaman-
do:
– Pegamos uma onça viva. E dentro de nossa casa!
Então Afaradá explicou:
– Vocês viram? Faltava eles aprenderem a conversar... Con-
versa que surte efeito é com boca e com ouvido!

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31
A escolha do destino

Um homem vivia em paz no meio de seu povo. Era um


excelente mercador, sua voz cristalina e sonora atraía multi-
dões. Todos os seus produtos eram vendidos rapidamente, de
forma que ele quase não dava conta do atendimento a quem
procurava suas mercadorias. Mas ele era inconformado com o
seu destino. Gostaria de ter nascido um grande cantor para
arrebatar as pessoas com a maravilha de sua voz. Ainda que sua
fama de mercador corresse o mundo, ele queria mesmo ter
nascido com outra sorte.
Um dia, ele resolveu consultar Ifá, para ver se poderia
mudar o seu destino. Ifá lhe recomendou um ebó a ser ofereci-
do no olho do dendezeiro e que ele dormisse ao pé da palmeira
por três noites consecutivas. Assim o homem fez. Terminado o
prazo do ebó, ele voltou para sua cidade, enquanto aguardava a
resposta dos divinos. Então, ele avistou uma grande caravana
que caminhava em sua direção. Imediatamente ele pensou em
se reabastecer de mercadorias, afinal estava precisando negoci-
ar. Quando chegou perto, o homem notou algo diferente. Não
se tratava de uma caravana de negociantes e sim de um Mago e
seus acompanhantes. Então o homem pensou em falar com o
Mago para tentar trocar seu destino.

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Feita a proposta, o Mago aceitou, mas impôs uma con-
dição: o homem não poderia desfazer a troca, depois que a
magia fosse realizada. Aceita a condição, o Mago lhe mostrou
inúmeras e inúmeras caixas fechadas que guardavam destinos
dos humanos. Ele teria que escolher uma delas pela aparência.
O homem pensou, pensou, olhou, olhou, examinou muitas e
muitas caixas. Por fim, uma delas atraiu sua atenção. Era leve,
forrada de pele de camelo, couro bem tratado, enfeitada de
fios de ouro e muitas pedras brilhantes. Havia até uma inscri-
ção: VOZ DE OURO, ENCANTADOR DE MULTIDÕES.
Era justamente isso que ele queria. E ele ficou tão encan-
tado, tão feliz que, diante de tanto contentamento, o Mago
resolveu lhe dar a caixa e fazer a troca de destino sem receber
pagamento nenhum. Quando o homem abriu a caixa, ansioso
pelo novo destino, lá dentro estava seu nome e, embaixo do
nome, a palavra MERCADOR.
Diante de seu espanto, o Mago se revelou:
– Eu sou Orumilá, Testemunha do Destino, Aquele que
Esculpe no Escuro. Este é o seu caminho e fique sabendo: O
espinho que tem de espetar desde pequeno traz a ponta.

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35
A esperteza de Euá

Um homem estava bem de seu, assim, sentado à porta


de sua casa, quando Icu, a Morte, apareceu de repente. Não
precisou nem identificar: o homem viu logo de quem se trata-
va... Icu se aproximou e foi logo avisando:
– Chegou o teu momento e eu vim te buscar.
O homem, que não queria morrer de forma alguma, deu
um pinote no meio da rua, saiu louco, desvairado, correndo
para escapar de Icu. Entra aqui e sai ali e Icu atrás dele. Pediu
socorro na casa do governador, na igreja, na escola, no hospi-
tal. Todos ficaram penalizados, mas disseram que não havia
como socorrer e que o jeito era ele ir com Icu.
O homem não desanimou e continuou em fuga, desespe-
rado, enlouquecido, correndo igual ao vento. Adiante, tomou
o leito de um rio raso e foi correndo por dentro dágua. Icu ia
atrás, ora próxima, ora distante, pega aqui, pega ali, pega acolá.
Depois de uma curva do rio, o homem se esbarrou com
um bando de mulheres lavando roupa. Sobre uma pedra, uma
formosa senhora, muito bem vestida, estava sendo penteada
por suas damas de companhia. Era Euá, a casta esposa de
Obaluaiê, o Dono do Mundo, temível guerreiro.
Com a alma saindo pela boca, o homem se dirigiu a Euá,

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pedindo que ela lhe socorresse pelo amor de Deus e lhe livrasse
de Icu. Euá levantou suas anáguas e mandou que o homem se
escondesse debaixo delas. Ele obedeceu e ficou ali, quietinho,
bem escondidinho.
Euá continuou o que estava fazendo, como se nada esti-
vesse acontecendo. Nisso chega Icu, enrolada no seu eterno
manto preto, porrete na mão, procurando pelo homem. Diri-
giu-se a Euá e fez uma saudação, perguntando:
– Salve, Senhora, Esposa do Grande Senhor da Terra!
Acaso, vistes um homem em desabalada carreira rio abaixo?
Euá sabia que a força de Icu devia ser respeitada também.
Mesmo, a ignorância é atrevida e quem deixa passar passa também.
E então, respondeu com firmeza na voz, educação e cortesia:
– Salve, Nobre Senhor das Sombras! O homem passou
por aqui, sim. Até entendeu de se esconder nas anáguas.
Então, Icu quis saber:
– E o que é anágua, Senhora?
Euá explicou:
– Intimidade feminina...
Icu, muito ignorante das coisas da vida, entendeu que o
homem se ousara com as mulheres.
A mucama de Euá acrescentou:
– Não se sabe que rumo ele tomou. Passou em desabalada
carreira e sumiu.
Nem mesmo Icu ia ter a ousadia de perturbar a esposa do
temível Dono do Mundo. Correu os olhos pelas margens, mi-
rou o rio que sumia muito lá adiante, resmungou qualquer coi-
sa, deu meia volta e desapareceu rio acima. Quando Icu sumiu,
Euá suspendeu as anáguas e o homem saiu debaixo delas. O
coitado, de tão surpreso com tudo, nem sabia como agradecer.
Mas Euá apenas confortou o homem com um conselho:
– Nesse mundo, tem tempo pra tudo, até mesmo para
escapar da morte. Mas nem sempre Euá está no caminho.

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A fama e o poder

Um dia, o rei de Keto quis dar uma festa e mandou con-


vite pra muita gente. Mas não quis chamar Iá Mi Oxorongá, a
grande feiticeira. Sabe como é... Para essas festas, assim, de gente
nobre, o dono da festa finge esquecer de convidar os que ele
não tem em tanta conta. Mas deixemos isso pra lá.
Bem na hora da festa, quando todo mundo estava nos
comes e bebes, um bicho monstruoso pousou na cumeeira do
palácio real. Era um bicho encantado, feitiço de Iá Mi
Oxorongá: uma vingança daquelas. Foi um deus-nos-acuda.
As asas do bicho eram tão grandes que impediam a luz do sol.
O reino ficou às escuras e o bicho ameaçava devorar todo mun-
do. O rei, mais do que depressa, convocou os mais famosos
caçadores de Keto. Era uma questão de vida ou morte que os
caçadores abatessem o bicho pavoroso.
O Primeiro Caçador atirou quatrocentas flechas e o bi-
cho nem se abalou do lugar. O único resultado foi que o bicho
ficou mais furioso ainda. O Segundo Caçador foi chamado e
disparou duzentas flechas. Foi pior o resultado. E assim todos
os famosos caçadores ficaram desmoralizados, enquanto a vida
de todo mundo corria perigo. E foi chegando caçador que não
acabava mais, até mesmo aqueles sem expressão nenhuma.

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Ninguém dava conta da empreitada.
Quando o rei não tinha mais para quem apelar, soube da
existência de um caçador solitário que vivia embrenhado nas
matas. Não se sabia ao certo quem era ele. Apenas corria um
boato de que ele tinha uma pontaria certeira, mas tão certeira
mesmo, que só precisava de uma única flecha. Então o rei
mandou buscar esse caçador com a maior urgência. Esse caça-
dor era Oxó.
Quando a mãe dele soube disso, correu e foi consultar
Ifá, o orixá da adivinhação. Ifá explicou a ela que aquele era
um bicho encantado e que era preciso fazer uns preceitos para
que Oxó pudesse matar o monstro. Que ele lavasse sua flecha
com água e folhas de jaqueira pisadas. A mãe de Oxó correu e
explicou tudo ao filho. Ele ouviu direitinho as recomendações
com respeito e atenção e fez tudo o que Ifá tinha mandado. A
mãe dele, Apaocá, a Senhora da Jaqueira, se prostrou em terra
e rezou pelo filho, horas a fio. Depois, com calma e segurança,
o caçador se dirigiu para a cidade, levando apenas uma flecha e
a crença de que tudo ia dar certo.
De longe Oxó ouviu o alarido na aldeia. Tudo estava mer-
gulhado numa sombra escura e o povo gritando por socorro.
Ele parou em frente ao palácio, mirou entre os olhos do bicho
e disparou sua única flecha. Acertou direto no ponto fraco do
monstro. Para espanto de todos, o bicho soltou um urro, se
estrebuchou e despencou lá de cima, num estrondo pavoroso.
Toda a multidão começou a gritar: Oxó uosi!, que quer dizer
Oxó pertence a seu povo! Com o tempo, esta saudação foi toma-
da por nome do Grande Caçador e ele ficou conhecido por
Oxóssi até hoje.
E é ele quem ensina: Enfrentar os monstros é para quem
aprendeu a ouvir.

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A feiúra e a boniteza

A coruja, antes de se casar, tinha feito uma consulta. Ela


queria saber das intenções do corujão, se ele realmente gostava
dela, essas coisas assim... Pois bem: foi dito a ela que tudo esta-
va em ordem, que ela não se preocupasse. Apenas prestasse
atenção no fato de que, nem tudo de que ela gostava, os outros
gostavam também.
Ela saiu muito satisfeita da consulta. De vez em quando,
se lembrava do conselho sobre o gostar, mas isso foi caindo no
esquecimento com o passar dos dias. E agora ela estava ali, feliz
da vida, já criando sua primeira ninhada. Os meninos já esta-
vam se empenando e logo, logo, estariam voando também.
Ah, mundo velho sem porteira... Pois não é que o urubu
chegou esbaforido para dar uma notícia ruim? A mãe da coruja
estava passando mal e queria ver sua única filha. A coruja se
entristeceu e ficou pensando como haveria de fazer para ir ver
a mãe. Os meninos ainda não podiam voar. Deixar aquelas
coisinhas tão bonitinhas, assim, sem proteção? Também não
podia deixar de atender ao chamado da mãe. Podia ser a última
vez. Depois de muito pensar, a coruja se lembrou e conversou
consigo mesma :

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– Ah, sim! Comadre Raposa... Gente fina está ali.
Prestativa, sutil, tem sempre um jeito pra tudo... Mesmo, basta
um voozinho de nada e posso passar na toca onde ela mora.
Logo a coruja alcançou a toca da raposa, cuja porta esta-
va sempre disfarçada. Chamou e a raposa atendeu. Contou
tudo, debaixo de aflição e agonia. Por fim, o pedido:
– Comadre da minhalma, me ajude pelo amor de Deus!
Vou e volto logo. Apenas queria que a senhora olhasse meus
lindos meninos... Tomasse conta deles até eu voltar...
A raposa não se fez de rogada:
– Faço isso, sim, comadre.... Mas como saber quais são
seus meninos, com tanto ninho espalhado por aqui? A senhora
sabe: eu vivo no chão e a senhora nos galhos...
A coruja deu as instruções necessárias:
– Tá vendo aquela árvore seca lá adiante? Pois é lá, no oco
mais baixo que eles estão. E é muito fácil a senhora saber quem
são eles. São os meninos mais bonitos de toda essa redondeza.
Olhe, eu passo horas a fio só olhando pra eles. Uma lindeza!...
Despediram-se. A coruja foi pelos ares, em busca da casa
da mãe. A raposa se dirigiu para a árvore seca, bem perto da sua
toca. Foi um alarido, quando a passarada viu a raposa se apro-
ximando. Gritos, bater de asas, vôos espalhafatosos, enfim, um
danor. Mas a raposa estava decidida: dessa vez não escaparia
nenhum menino feio. E foi passando de ninho em ninho, de-
vorando tudo.
Com poucas horas, a coruja voltou. Logo foi avistando a
comadre dormindo ao pé da árvore. Aquilo que era gente boa
e prestativa. Mas quando ela pousou no ninho, uma onda de
terror invadiu seu coração. Cadê os lindos meninos?! Tudo va-
zio. Desceu, acordou a raposa e, muito aflita, quis saber dos
filhotes. A raposa, então, ainda meio sonolenta e se lambendo,
explicou:
– Olhe, comadre, lhe garanto que seus lindos meninos

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estão em paz. Desde que a senhora saiu, eu vim logo para aqui.
Só devorei meninos feios. Naquele ninho ali, então, havia os
mais horrorosos deste lugar...
– Comadre, a senhora devorou meus lindos meninos!...
E a raposa, toda espantada, apenas comentou:
– Meu Deus! Comadre, a senhora não tem juízo mes-
mo... Nunca desconfiou disso? Pois saiba, comadre: A feiúra e
a boniteza estão nos olhos de quem vê.

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A força do encanto

Contam os mais-velhos que, um dia, Oxóssi chegou ao


ponto mais escondido da mata. Fazia tempos que ele vinha
seguindo o rastro da Cobra Encantada. De repente, ele avistou
uma palhoça bem escondida. Aproximou-se com cautela, pois
um bom caçador não denuncia sua presença. Oxóssi notou, ao
lado da palhoça, alguém mexendo uma grande panela que es-
tava fervendo no fogo. Imaginou que não tinha sido notado,
pois o vulto não se virou para trás.
De repente, o estranho falou assim, sem se virar.
– Você deve estar cansado de tanto procurar a Cobra
Encantada... Se sente que eu vou lhe servir uma bebida. Você
aceita?
– Com quem eu falo? Perguntou Oxóssi.
– Com Ossáin. Resmungou o outro.
– Ah, sim! O dono do segredo das folhas... Nem te reco-
nheci. — Explicou Oxóssi.
– É... Faz um bom tempo que não vejo ninguém. Aliás,
nenhum caçador esteve aqui antes. Sabe que você é corajoso?
— Ossáin disse isso, virando-se para o caçador.
– Já me disseram isso antes... — Respondeu Oxóssi cheio
de si mesmo.

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– Mas desta bebida, com certeza, você nunca provou
antes. — Ossáin disse isso, enquanto passava às mãos de Oxóssi
uma cumbuca fumegante.
Por um momento, Oxóssi se lembrou da Cobra Encan-
tada. Mas era costume seu não se encabular com nada. Mes-
mo, a teimosia sempre foi sua companheira. Ele só acreditava
depois que via e pegava. Por esse motivo, inúmeras vezes, pas-
sou por maus bocados, mas foi-se acostumando com isso. Sabe
como é esse povo teimoso: sempre duvida da intuição. Espe-
rou um tempinho para a beberagem esfriar um pouco e foi
bebericando em silêncio. E um sono pesado fechou seus olhos.
Era o dia da caça: ele caiu na armadilha...
Aí, as pessoas começaram a sentir falta de Oxóssi. Ogum,
o seu irmão, buscava notícias por todo canto. Iemanjá, a Gran-
de Mãe, contou a todos o que soube através de Ifá: Oxóssi
tinha sido encantado por Ossáin, no fundo da Mata. Ogum
juntou um grande grupo de caçadores e se embrenharam na
mata, dias e dias, procurando, até que encontraram.
Ossáin sentiu o cheiro de gente estranha, se escondeu na
touceira de taquari e ficou espiando por trás das folhas. Oxóssi
recebeu os caçadores, muito tranqüilo e feliz da vida. Ogum,
muito afoito e briguento, quis saber o que houve. E os dois
tiveram uma conversa:
– Meu irmão, o que aconteceu? Você desapareceu! O que
houve?
– Não houve nada! E não estou entendendo o porquê de
tanto alarido...
– Como não está entendendo? Você desapareceu, meu
irmão, e a gente veio à sua procura. E olhe que a gente tem
andado por dentro desta imensidão de mata...
– Eu não desapareci. Eu resolvi ficar uns tempos por
aqui mesmo...
– Com quem?

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– Com Ossáin...
– Já que é assim... Cada qual com seu igual!
Ogum chamou os outros caçadores e todos se retiraram.
Ossáin saiu do taquari, derramou sobre Oxóssi o pó do
bambuzeiro que faz as pessoas se envultarem e se confundirem
com as folhas. É por isso que até hoje se diz, quando alguém
resolve seguir outro: Quem foi amarrado porque bebeu da
cumbuca de Ossáin, nem a espada de Ogum corta este nó.

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A grandeza e a obrigação

Na criação do mundo, Olodumare deu a Oxum o privilé-


gio de atender aos mortais e responder às perguntas feitas por
eles no jogo de búzios. Ela nem queria isso, mas foi distinguida
com tal fidalguia. Com o tempo, sempre fazendo a mesma
coisa, Oxum estava ficando enfadada com a atividade de ter de
responder às perguntas dos humanos. Era tanta pergunta, uma
miudeza que não acabava mais. Gente que de nada entendia e
queria saber de tudo, perguntas sem cabimento, encabulações,
interesses descabidos, teimosias, mágoas, ódios, sede de poder,
inveja, ciúme... Olhe, senhor, tanta coisa... Enfim, todo esse
bolodório que só os humanos sabem viver.
Ela resolveu, então, deitar-se no remanso do rio e cochilar
um pouco para ver se encontrava uma solução. Quando estava
naquele soninho, vai mas não vai, um estalido chamou sua
atenção. Abriu os olhos... Quem estava ali? Ele, Exu, o que
gosta de ser grande em tudo. Todo galanteador, ele abriu a
boca e disse:
– Olá, Senhora dos Búzios, Dona da Beleza! Que faz as-
sim, toda largada nas águas?
– Eu?! Estou aqui, assim... Pensando em passar os direitos
de minha grandeza a quem queira ficar com eles...

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Muito interesseiro, Exu logo quis saber:
– Como assim?!
– É que eu tenho a grandeza e por isso sou eu quem res-
ponde às perguntas dos mortais, quando eles querem saber das
coisas no jogo de búzios. Papel importantíssimo, esse meu.
Exu se fingiu bajulador e disse assim:
– Pois é... Os grandes têm lá suas grandezas... E eu por
aqui, nesta pendanga de equilíbrio. É equilíbrio para aqui, equi-
líbrio para ali... Uma chatice...
Oxum percebeu que Exu estava começando a morder a
isca e se empenhou numa negociação. Cautelosamente, pois
ela sabia como Exu é malicioso, ardiloso e interesseiro. Enfim,
ele não bate prego sem estopa. E foi fundo numa proposta:
– Que tal a gente fazer assim? Eu te passo essa grandeza
que é só minha, toda minha, a de responder a tudo que os
mortais querem saber e, ainda de quebra, você fica com o pri-
vilégio de ser servido em primeiro lugar. Então eu vou ter tem-
po para lustrar minhas pulseiras e meus anéis, me mirar nos
meus espelhos, me enfeitar na hora em que eu bem quiser e
entender...
Claro que Exu aceitou. E aí os dois fizeram o pacto e um
ebó sacramentou a mudança de papéis entre eles dois. E mal
Exu deu as costas, feliz e sirigaiteiro, pela estrada a fora, Oxum
sumiu nas águas encantadas do rio.
Dias depois, Exu voltou, arrependido, à procura de Oxum
para desfazer o pacto. Mas a Senhora dos Búzios tinha se sumi-
do nas águas. E tanto procurou até que foi encontrar a Senho-
ra das Águas, toda sorridente, enfeitando-se numa cachoeira.
Queixou-se muito, mostrou as desvantagens da troca e o enor-
me prejuízo que estava tendo, mas Oxum nem quis saber de
conversa: mergulhou nas águas e sumiu.
Daí, Exu se apresentou a Olodumare e pediu para ele obri-
gar Oxum a desfazer o trato. O Controlador do Destino ouviu

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tudo e, depois, se pronunciou:
– O que está feito, está feito. Palavra dada, destino empe-
nhado. Agora é tarde... Afinal, você sempre quis ser considera-
do O Maior em tudo. Pois fique sabendo: Os grandes são es-
cravos de sua grandeza.

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A jaca mole

Oxalá amanheceu com vontade de viajar. Olhe que isso


é uma raridade acontecer. É tão raro, que os outros orixás aten-
deram, de imediato, ao chamado dele para participarem. Saí-
ram de madrugadinha. Oxalá é assim: só começa as coisas an-
tes do raiar do dia. E lá se foram, em fila indiana. Todo mundo
andando sem pressa, pois Oxalá é lento, vagaroso e só anda em
último lugar.
Iansan, acostumada com a agonia de sua tempestade, foi
ficando impaciente. Olhava para um canto, olhava para outro,
mirava o horizonte sem fim bem lá longe. E foi ficando cada
vez mais agoniada. Começou a pensar consigo mesma:
– Ah, se eu estivesse sozinha... Logo, logo, eu estava lá.
Se pelo menos Xangô, seu parceiro de agonia, resolvesse
lhe acompanhar... Mas que nada: Xangô hoje estava decidido
fazer companhia ao mais-velho... A agonia aumentou tanto,
que ela não suportou mais andar no passo de cágado. Aí, ela
rodopiou e seguiu em frente sozinha. Lá, bem adiante, parou.
Ficou embaixo de uma jaqueira, enquanto observava o grupo
que se arrastava lentamente, por causa de Oxalá. A essas altu-
ras, ela já estava pensando no que ia fazer depois que voltasse
da viagem. Assim, ela navegou nos pensamentos, fazendo mil

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projetos. E a ventania corria pelo mato, derrubando folhas ver-
des e maduras.
Quando ela estava assim, bem de seu, uma jaca-mole, bem
madura, despencou bem em cima de sua cabeça. Ela ficou ba-
nhada de visgo e melaço de jaca, da cabeça aos pés. Tomou um
susto enorme, deu um grito e ficou sem saber o que fazer. Aí,
ela se sentiu profundamente desamparada e resolveu voltar ao
encontro do grupo.
Todo mundo notou a melação, mas ninguém disse nada.
E ai de quem perguntasse qualquer coisa... De cabeça baixa,
ela passou por Oxalá e tomou o último lugar na fila, atrás dele.
Iansan apenas ouviu a última frase de uma conversa, que já
estava terminando, entre Oxalá e Omolu, os mais velhos entre
os mais-velhos:
– Pois é... Como o senhor bem sabe, esse povo assim,
agoniado, precisa aprender... Quem só anda às carreiras vai
ter que voltar muitas vezes, para vencer a agonia.

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A lonjura e a demora

Contavam os mais-velho que, tempos depois da criação


do mundo, Olorum andava querendo saber como os humanos
entendiam o espaço no tempo e o tempo no espaço. Tinha que
escolher um embaixador de tarimba: firme, decidido, pacien-
te, profundamente observador e, principalmente, que soubes-
se aguardar sem dar um vacilo. Ninguém melhor do que Iroco,
o Mestre do Tempo. Dito e feito: Olorum mandou e Iroco
veio ao Iluaiê, para descobrir o que Olorum queria saber.
Iroco recebeu ordens de procurar uma aldeia muito anti-
ga e conversar com Iroju, que era o morador mais velho do
lugar. Procura daqui, procura dali, e ele terminou tendo infor-
mações sobre a aldeia, onde ele podia encontrar Iroju, o mora-
dor mais velho entre os mais-velhos da Terra. Depois de dias
procurando, Iroco encontrou um homem que tinha uma boa
informação. Iroco chegou, bateu palmas e o homem veio aten-
der. Terminou dizendo assim:
– Ah, moço, eu estou muito contente hoje. Um filho meu
que está ausente há muito tempo vai chegar daqui a três dias.
Logo, logo, ele vai estar aqui e o tempo é muito curto para eu
tomar as providências que quero.

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O homem conversou muito e animou Iroco a prosseguir.
Disse que a casa do velho ficava perto dali e indicou a direção.
Iroco agradeceu e se despediu. Andou muito, até que pre-
cisou procurar outro informante. Terminou encontrando ou-
tro homem, que pouco conversou. Apenas disse o seguinte:
– Ah, moço, eu estou muito preocupado com a ausência
de um filho meu. Olhe, ele saiu tem uma hora e ainda não
voltou. Eu não agüento mais essa demora. Tanto que eu queria
saber em que lonjura ele está...
Iroco ficou por ali, olhando o mundo, esperando pacien-
temente, para colher mais alguma informação. Mas o homem
continuava amuado e não adiantou puxar conversa.
Para se ver logo livre da visita, o homem informou:
– Dizem que a casa do velho que o senhor procura fica
para as bandas de lá... Mas é muito longe. Mas muito longe
mesmo...
E apontou na direção a ser seguida. Iroco se despediu agra-
decido e se pôs a caminho. Para sua surpresa, logo depois da
primeira curva da estrada, avistou a casa do velho, embora ti-
vesse recebido a informação de que a casa ficava muito longe.
Andou só um pouquinho e foi logo chegando aonde queria.
Mas antes de se aproximar da casa de Iroju, Iroco resolveu
descansar um pouco para pensar. Sentou-se numa pedra, de-
baixo de um arvoredo e ficou pensando sobre tudo o que viu e
ouviu, naquela tão longa e, ao mesmo tempo, tão curta via-
gem. E ele terminou concluindo que nem precisava mais con-
versar com Iroju, pois já sabia a resposta para ser dada a Olorum:
A distância e o tempo têm o tamanho da preocupação.

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A mudança e o coração

Havia uma aldeia em que até os jovens viviam desiludi-


dos, porque ali não acontecia nada de novo. As pessoas conser-
vavam os mesmos hábitos desde muitas gerações. A pasmaceira
terminou tomando conta de tudo e de todo mundo. Então, o
chefe da aldeia resolveu fazer uma reunião com os seus conse-
lheiros. Depois de muito discutirem, e sem chegar a uma solu-
ção prática, todo o conselho decidiu que o melhor era consul-
tar Xangô.
Na consulta, Xangô aconselhou, sem muita conversa:
– Façam uma grande mudança em tudo.
Aí, o Conselho dos Mais-Velhos designou um grupo de
homens e mulheres para realizar as mudanças necessárias. O
povo foi convocado para participar ativamente. Queimaram as
palhoças e fizeram outras novas. Mudaram os roçados de lugar.
Até mesmo passaram a apanhar água de beber em outra fonte.
As mulheres teceram novas roupas, as crianças inventaram no-
vos brinquedos e todo mundo ficou contente.
Mas vai daí a algum tempo, eles foram notando que a
alegria estava se desfazendo. A rotina trouxe de volta o mesmo
desânimo de antes. A fonte nova, as novas palhoças, as brinca-

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deiras novas, nada adiantou. A tristeza tomou conta de todos.
O chefe convocou o Conselho novamente. Outra vez, resolve-
ram consultar Xangô.
Perante o orixá, tudo foi relatado miudamente e Xangô
ouviu a conversa com atenção. E ainda se queixaram de que a
solução apontada na primeira consulta não deu resultado. En-
tão Xangô quis saber:
– Que mudanças vocês fizeram lá dentro?
Ficaram sem entender a pergunta e pediram uma explica-
ção. Xangô explicou com a mesma severidade de costume:
– Ora! Dentro das pessoas, no modo de ver o mundo, a
vida, um ao outro... Dentro de vocês mesmos... Dentro do
coração...
Olharam um para o outro, cochicharam entre si. Termi-
naram por chegar à conclusão de que, na verdade, cada um
permanecia como era antes. Então Xangô disse:
– A verdadeira mudança tem que acontecer, primeiro,
dentro de cada um!

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A orelha de Obá

Já fazia tempo que Obá disputava com Oxum a prefe-


rência de Xangô. Acontece, porém, que Oxum era decidida,
cheia de iniciativas, envolvente e cativante. Enquanto isso, Obá
ficava ressentida com seus fracassos e tentava, a todo custo,
imitar Oxum. Ela ficava furiosa porque Oxum alcançava com
facilidade aquilo que ela não tinha. De tanto se ver imitada
pela outra, Oxum resolveu dar um basta. Ficou aguardando o
dia em que Obá viesse, outra vez, com aquele interrogatório
enjoado. E o dia chegou. Obá disse assim:
– Mas me diga... Me conte como você faz... Como você
consegue ser sempre a preferida? Eu preciso saber o segredo
para fazer o mesmo também...
Foi a gota dágua. Disfarçando sua ojeriza, Oxum expli-
cou:
– Ah, minha filha! Fácil, fácil... Aguarde com paciência
que amanhã eu vou te ensinar um grande segredo. Se acalme,
fique quieta e espere.
Oxum mandou que as cozinheiras preparassem um amalá,
o prato preferido de Xangô. Recomendou que fizessem no ca-
pricho: bastante camarão pilado, cebola ralada, gengibre e pi-

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menta-da-costa. O dendê tinha de ser daquele bem vermelho.
As rodelas de quiabo não deviam ser fininhas. Ah, sim: tudo
cozido em fogo brando. Mas houve, dessa vez, mais uma reco-
mendação muito especial, daquelas que são verdadeiros segre-
dos de pé de fogão. A cozinheira de maior confiança devia acres-
centar uma orelha-de-pau, daquelas bem parecidas com uma
orelha de gente...
Oxum se enfeitou toda, se perfumou, amarrou um boni-
to turbante na cabeça cobrindo a orelha esquerda todinha. Fi-
cou esperando bem na dela. As cozinheiras trouxeram o amalá
em frigideira de barro, bem quente, fumaçando. Nisso, chega
Obá que, havia horas estava reparando Oxum por baixo dos
olhos. Foi logo dizendo:
– E então, cadê o segredo? Você me prometeu...
Aí, Oxum, bem faceiramente, explicou:
– Ah, minha filha... Aqui está. Eis o segredo: este amalá
fumaçando ainda...
Louquinha para saber de tudo, Obá não deixou por me-
nos:
– E essa orelha bem por cima do amalá, o que é?
A outra respondeu:
– Ah, minha filha... Xangô adora uma orelha... Então eu
mandei preparar uma orelha para ele...
A curiosidade de Obá aumentou mais ainda:
– E por que seu turbante hoje está tão diferente assim,
cobrindo sua orelha?
Oxum não se fez de rogada:
– Foi porque eu cortei minha orelha esquerda para prepa-
rar o amalá... Sempre preparo comida para Xangô com pedaci-
nhos de mim. Hoje foi a vez da orelha...
Obá viu a orelha enfeitando o prato, deu-se por satisfeita
e ficou esperando a reação de Xangô. Gostava de fingir não
estar reparando nada, sentada num canto, olhando por baixo

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dos olhos. Viu Xangô comer o amalá, se deliciando e gabando
os dotes culinários de Oxum. Depois de se fartar, Xangô ainda
convidou Oxum para um belo passeio que durou o dia inteiro.
No outro dia, Xangô encontrou Obá com uma orelha
cortada, pano cobrindo a ferida e um amalá, contendo a pró-
pria orelha dela. Ele se repugnou, deu um estrondo e nunca
mais quis saber de Obá. Oxum, por trás da cortina, disse para
si mesma:
– O mal do invejoso é que ele, além de não ter, não quer
que o outro tenha.

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A pele de búfalo

Oiá andava farta da repetição e resolveu inovar. Ela gosta


muito de saber tudo, surpreender as pessoas com o seu sucesso.
De repente, teve um estalo: ia ao mercado da feira disfarçada.
Mas não ia usar um disfarce qualquer. Tinha de ser alguma
coisa que chamasse a atenção... Que tal uma magia bem forte?
Foi então que lhe ocorreu a idéia de vestir uma pele de búfalo.
Mas tinha de ser uma pele mágica.
Pois bem. Lá se foi ela, entrou na floresta e fez o encan-
to. Mais tarde, na feira, as pessoas todas viram aquele enorme
búfalo pra lá e pra cá, chamando a atenção de todo mundo.
Surgiram os mais diferentes comentários, um disse-me-disse
que não acabava nunca mais. De repente, o búfalo surgia do
nada e, sem mais nem menos, desaparecia sem ninguém saber
como. O búfalo virou assunto para qualquer ocasião, em todos
os lugares. E Oiá se babava de contente.
Acontece que, há tempos, Ogum andava meio tristonho.
Ele tinha sido atraído pela personalidade forte de Oiá e ela não
dava a mínima atenção para ele. Nos dias de mercado, lá estava
ele, esperando que ela aparecesse. Dias ela vinha, dias não vi-
nha. Ele começou a notar que o búfalo só aparecia na feira,

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durante a ausência de Oiá. Sabe como é: a pessoa apaixonada
observa tudo na outra, nos mínimos detalhes.
Depois de dias e dias observando, Ogum descobriu que
o animal saía direto da feira para a floresta. Um dia, ele resol-
veu seguir o bicho misterioso. Dentro do mato, escondido pe-
las folhagens, terminou descobrindo tudo. O búfalo se trans-
formava em Oiá. Naquele dia, ela saiu da pele do bicho e mer-
gulhou no rio, para um banho gostoso. Aí, Ogum correu, pe-
gou a pele encantada e escondeu bem escondida.
Quando Oiá saiu do banho, se deu conta de que a pele
mágica tinha sumido. Dentro da pele, estava guardado o seu
poder de encantamento, magia e axé. Ah, criatura, nem te con-
to... Oiá caiu em desespero. Tomada de ira, quis soltar a tem-
pestade, mas não funcionou. Seus poderes tinham ficado na
pele encantada.
Foi aí que Ogum apareceu e disse a ela:
– Só devolvo a pele, se você se tornar minha mulher...
Sem outra saída, desprovida de seus poderes mágicos, Oiá
não teve outro jeito, a não ser fazer o que Ogum queria. E lá se
foi ela, seguindo os passos dele.
Mas havia alguém escondido por trás da cachoeira: Oxum.
Ela, sem ser vista, assistiu a tudo, achando graça dos atropelos
de Oiá. Terminou repetindo para si mesma:
– Ao descuidado, come o rendido.

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A resposta do coração

Kirina estava bem do seu, arrumando os acaçás no tabu-


leiro, quando um barulho de passos apressados lhe chamou a
atenção. E seu cabelo ficou arrepiado com que estava vendo:
um batalhão caminhava em sua direção. Essas coisas, soldado,
exército, farda, sempre mexiam com sua natureza. O pensa-
mento deu mil voltas e ela ficou assim, meio atoleimada, sem
atinar na razão da presença de tantos soldados.
Diante do tabuleiro, por ordem do comandante, os sol-
dados pararam. Eta pedaço de homem, Kirina viu. Alto, de
bom corpo, olhos de gato, voz de touro. Kirina sentiu outro
arrepio mais forte ainda e parecia que o chão tremia debaixo
de seus pés.
– Bom dia, Dona!
– Bom dia Ioiô! Em que posso lhe servir?
– Meu batalhão está morrendo de fome. Estamos em dili-
gência de guerra e há dois dias a gente não come nada. A Dona
pode dar alguma coisa à gente para comer?
Kirina sentiu um baque no coração. A semana não tinha
sido lá essas coisas, a vendagem foi pouca. Ela estava justamen-
te contando com alguns trocados que entrassem hoje. E agora

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estava ali aquele comandante a lhe pedir seus quitutes de gra-
ça.... E lá se foi o pensamento de Kirina fazendo voltas. Viu os
filhos que ficaram em casa, esperando as providências, a mãe
paralítica que dependia dela. Mas seu coração bradou lá den-
tro, repleto de sentimento, mandando compartir. Quando con-
seguiu abriu a boca, Kirina não fez por menos:
– Olhe, Ioiô... Aranha vive do que tece, mas é Deus e
Ogum que deixam a aranha tecer. Mesmo, hoje por ti, amanhã
por mim... O que Deus dá é pra todo mundo e Ogum não vai
me faltar no dia de amanhã. Pode mandar os outros moços se
servir...
O comandante deu a ordem e ficou parado, ao lado de
Kirina, enquanto os soldados comiam. Num instante, o tabu-
leiro ficou vazio. Kirina ainda ofereceu água, que ela sempre
trazia num barril. Quando tudo acabou, os soldados se afasta-
ram e o comandante, todo faceiro e sorridente, disse:
– Bom... dinheiro, eu não trago. Mas tenho aqui umas
coisas ajuntadas na guerra. Chamou um dos soldados e deu
uma ordem. O ordenança, então, trouxe um enorme saco de
couro e entregou ao comandante. O oficial entregou o saco a
Kirina e disse:
– Abra. É seu...
Meio desconfiada, Kirina obedeceu. E quando abriu o
saco, quase dá um ataque. O surrão estava apinhado de coisas
de valor, moedas, coroas, ferramentas, um tesouro, enfim. E
ela ficou um tempo enorme, entretida, examinando as coisas
que estavam dentro do surrão. Quando levantou as vistas, o
batalhão não estava mais ali. Aí, Kirina caiu em si: aquilo era
coisa de Ogum, só podia ter sido ele... De longe, o comandan-
te apreciava Kirina sorrindo e, virando-se para seus soldados,
afirmou: Não se vence batalha apenas com espada na mão.
Também se vence com as armas do coração.

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A riqueza da sabedoria

Ifá sempre foi muito sabido. Por isso, todo mundo que-
ria fazer consulta com ele, para saber do destino. Ele era ajuda-
do por um empregado muito pobre, bom servidor e muito
atencioso. Esse atendente recebia as pessoas muito bem e in-
formava o que elas queriam saber. Por isso mesmo, tornou-se
também muito conhecido. Mas apesar de suas qualidades, ele
continuava em extrema pobreza.
Um dia, Ifá não pôde atender à clientela. Tinha se demo-
rado mais que o previsto em uma outra cidade, socorrendo
umas pessoas que precisavam de sua ajuda. Nisso, chegou um
homem desconhecido, mal vestido, com o rosto meio escon-
dido, querendo falar com Ifá. O empregado atendeu com toda
gentileza. Explicou a ausência de Ifá e garantiu que ele seria
atendido tão logo Ifá voltasse. Ele mesmo iria cuidar, para que
o homem ficasse no primeiro lugar da fila de atendimentos.
O homem insistiu com o atendente, para que lhe desse
uma orientação qualquer para o seu sofrimento. Não era possí-
vel esperar pela chegada de Ifá. Era uma emergência. O ho-
mem insistia e o atendente explicava:
– Eu sou apenas um pobre atendente. Quem sabe das coisas

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é Ifá...
Então, o homem tentou, mais uma vez, convencer o
atendente:
– Mas você já deve ter visto o seu senhor fazendo consul-
tas muitas vezes. Por que não tenta uma experiência para me
tirar desta tão grande aflição?
O empregado pensou, pensou e, com toda cautela, termi-
nou dizendo:
– Bom... Como estou vendo o senhor tão aflito, tão sofri-
do, eu vou tentar fazer alguma coisa. Mas isso fica em segredo
entre nós dois...
Entrou no quarto de consulta, jogou o opelé e respondeu
ao que o homem queria saber. Profundamente agradecido, o
visitante foi-se embora. Daí a três dias, Ifá estava atendendo a
sua clientela, quando a carruagem real parou na sua porta. O
próprio rei, em pessoa, procurava pelo empregado de Ifá. Foi
um deus-nos-acuda... Todos ficaram meio assustados. Mas o
empregado se conservou calmo, quieto no seu canto, esperando
que Ifá conversasse com o rei e esclarecesse o que fosse preciso.
Finalmente, chamaram o empregado lá dentro. O rei de-
clarou, então, que ele era aquele pobre homem, socorrido pelo
atendente, na ausência de Ifá. O rei elogiou Ifá por ter um
empregado tão honrado, tão sabido. Bateu palmas e os lacaios
do rei trouxeram um baú que depositaram aos pés do empre-
gado. E quando ele abriu o baú, lá dentro havia uma enorme
fortuna. O rei então sentenciou:
– Essa riqueza é sua, embora você já seja muito mais do que
rico. A sabedoria é a maior riqueza que se pode construir neste
mundo e a simplicidade é o último degrau da sabedoria.

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O chapéu de duas cores

Contavam os mais-velhos que, na Aldeia de Ajalá, havia


dois irmãos muito unidos. Eles jamais tinham brigado entre si.
Nunca tinham se aborrecido um com o outro. A fama daquela
amizade corria as aldeias e todo mundo comentava, fazendo
disso admiração geral.
Um dia, Exu andava por aquele lugar e ouviu comentá-
rios sobre a tão falada amizade dos dois irmãos. Então, ele re-
solveu fazer um teste sobre a fortaleza daquela amizade. Des-
cobriu os dois irmãos trabalhando num campo, que era dividi-
do ao meio por uma estrada estreita. E eles trabalhavam can-
tando, cortando o mato com facões bem amolados, conver-
sando sobre diversos assuntos. Aí, Exu pôs na cabeça um cha-
péu pintado de vermelho e preto, sendo que, de cada lado, só
se via uma única cor.
Então, Exu passou pela estrada, entre os dois irmãos,
fazendo uma saudação:
– Bom dia, irmãos unidos!
E os irmãos responderam a Exu, em uma só voz. Mas
Exu passou por entre eles, sempre olhando para frente e seguiu
adiante, até desaparecer na curva da estrada. Aí, um dos irmãos

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perguntou ao outro:
– Quem era aquele homem de chapéu vermelho?
Ao que o outro respondeu:
– Mentira sua! O homem usava um chapéu preto...
O irmão que viu o homem de chapéu vermelho se sen-
tiu ofendido e, pela primeira vez, mostrando-se aborrecido,
devolveu a ofensa. E o que tinha visto o homem de chapéu
preto ficou aborrecido também. Daí, eles começaram a discu-
tir, num desentendimento sem igual. A raiva cresceu tanto,
que eles terminaram se agredindo com palavras. As ofensas
trocadas se agravaram e eles terminaram avançando um sobre
o outro, armados de facão. Brigaram tanto que se mataram. E
porque eles não tinham herdeiros, o campo ficou entregue às
feras e às ervas daninhas.
É por isso que, até hoje, nas aldeias, os mais-velhos ain-
da avisam:
– Se lembre do chapéu de duas cores: As coisas nem
sempre são aquilo que parecem ser...

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O desejo de Gadamu

Um homem chamado Gadamu nasceu e se criou em


Aldeia Velha. Desde novinho ele vivia insatisfeito com tudo
que era de sua terra. Jurava todos os dias ir embora para Aldeia
Grande, a terra das novidades, onde pudesse aprender muitas
coisas para ser uma pessoa importante. O seu sonho era vencer
na vida e viver conforme ele entendia. Por isso, ele não dava
muita importância à sabedoria e ao conhecimento de seu povo.
Para ele, tudo aquilo era muito limitado e ali, ele jamais seria
um vencedor.
Quando os viajantes passavam por Aldeia Velha e davam
notícias de Aldeia Grande, Gadamu ficava amuado e zangado
com todo mundo. Mas Gadamu também sofria muito, pois
amava seus parentes e seus amigos. Seu coração doía, quando
ele pensava em deixar tudo e ir embora para longe. Um dia,
Gadamu criou coragem e partiu. Apenas se despediu dos mais
íntimos e muitas das suas coisas ficaram abandonadas porque,
para ele, eram coisas sem serventia. De tempos em tempos,
passavam viajantes por Aldeia Velha e informavam:
– Gadamu mandou dizer que não esquece de todos e
que um dia vai voltar, mas ainda está lutando para alcançar o
que deseja.

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Passou muito tempo e um dia Gadamu voltou. Agora
ele era um homem sabido, com muitos cestos e baús repletos
de muita novidade. Considerava-se um grande vitorioso na vida.
Mas Gadamu foi tomado de muitas surpresas: os avós e os pais
dele não existiam mais. As irmãs tinham se casado com ho-
mens de outras aldeias e foram embora com seus maridos. Ele
não conhecia mais os rapazes que tinham nascido depois de
sua partida. E os jovens de seu tempo agora não sabiam mais o
que conversar com ele. As velhas casas não existiam mais e os
antigos animais de estimação, há muito tempo, tinham desa-
parecido. Os cachorros estranhavam Gadamu e não queriam
saber de seus afagos. O terreno baldio, atrás de sua casa, agora
era uma mata e a grande gameleira-branca tinha sido queima-
da por um raio.
Aí, Gadamu se deu conta de que sua amada Aldeia Velha
não existia mais e a família, que era o seu maior tesouro, tinha
se acabado. Pensou em voltar para Aldeia Grande, mas con-
cluiu que também não tinha fincado raízes por lá. Afinal, ele
tinha labutado o tempo todo em Aldeia Grande, para ficar
sabido, garantir o futuro e voltar. Agora ele não sabia o que
fazer com tudo o que tinha aprendido, porque ele não tinha
mais quem sustentasse seus sentimentos.
E Gadamu ficou como exemplo: Quem pensa apenas
em si, mesmo coberto de glória, não tem com quem dividir.

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O fofoqueiro

Ninguém mais sabia o que fazer: havia uma fuxicada terrí-


vel, pois tudo o que se falava no palácio se espalhava pela cidade.
Oxalá, o mais-velho, irritado com a situação, ordenou que se
apurasse tudo, tim-tim por tim-tim. Principalmente que se ob-
servasse os freqüentadores mais assíduos, aqueles que tinham
trânsito livre. Ninguém deveria deixar de ser observado. De re-
pente, ficou bem visto que os mais assíduos freqüentadores eram
dois: Carneiro e Martim-pescador. Mas havia uma tremenda
diferença entre eles, pois enquanto Carneiro era calado, reserva-
do, manso, sempre de vistas baixas, Martim-Pescador era o cão
por dentro do mato. Se metia nas conversas, vivia de entra-e-sai,
dando notícia de tudo. Parecia uma tempestade.
Então foram dizer a Oxalá que já sabiam quem era o
falador. Quando anunciaram que era Martim-Pescador, Iansan,
a Mãe dos Ventos, agitada que só ela, tomou a palavra e pediu
tempo para provar a inocência de seu protegido. Oxalá deu o
tempo e Iansan saiu apressada como um raio. Daí, ela chamou
Martim-Pescador e Carneiro e disse assim:
– Vai ter uma festa no palácio de Oxalá...
Interrompeu o que estava dizendo, pôs as mãos na cintu-

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ra e percorreu os dois de alto a baixo, com olhares de autorida-
de, reprovação e cobrança. Depois, continuou:
– Oxalá vai premiar a quem aparecer com a melhor fan-
tasia vermelha. Mas isso é segredo. Ninguém deve saber disso.
Finjam que não sabem de nada e bico calado. Olhem lá, viu!
Principalmente o senhor, Seu Martim-Pescador, com sua lín-
gua de trapo....
Pois bem. No dia da festa, foi chegando bicho, foi che-
gando gente, foi chegando encantado e o salão ficou repleto. E
aí todo mundo viu: somente Carneiro e seus parentes estavam
fantasiados de vermelho. Oxalá tem ojeriza a cores fortes e já
estava sabendo de tudo, porque Iansan tinha contado a ele.
Mandou expulsar Carneiro e sua gente daquela festa. E todo
mundo ficou sabendo: era o manso e silencioso Carneiro o
fofoqueiro do palácio. Apenas Martim-Pescador ficou morrendo
de pena do Carneiro. Mas é isso: Não se deve julgar o bom
por bom, nem o mau por mau.

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O gato e a anta

O Gato queria aparecer. Tinha que conquistar a Anta,


pois estava cansado de namorar com as gatas do mato. Queria
namoro novo... Deu de cara com a Anta, numa manhã de sol e
de folhas verdinhas balançando com o vento brando. Comen-
do uma banana, a Anta fingiu nem sequer notar a presença do
pixane. Ele, todo galanteador, também resolveu encenar:
– Ah, que cheiro gostoso de banana! Que fruta maravi-
lhosa! Uma delícia!... Daria metade do meu reino para comer
uma banana saborosa juntamente com uma pessoa adorável.
Pessoas especiais gostam de comer bananas...
A Anta parou, cheirou o ar. Olhou para o Gato e soltou
um risinho cúmplice. Era o que faltava... E lá veio o Gato todo
fofo, todo macio, todo cheio de si mesmo. Tirou bocadas na
banana da Anta, mastigou, engoliu e se lambeu. Gabou a pre-
ferência da Anta, o tipo da banana, comparou com o gosto de
outras qualidades. Esta sim, era de primeira categoria... De-
pois, entre lambidas e saracoteios, se retirou agradecido, man-
sinho, mansinho. A Anta, embevecida, julgou-se bafejada pela
sorte. Mas quando o Gato dobrou a curva da estrada, ele olhou

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para os quatro cantos do mundo, não viu ninguém e botou
pra fora tudo o que tinha comido. Seguiu pra casa repugnado
e ficou o resto do dia indisposto.
Passou um dia, no outro, o Gato voltou e repetiu a cena.
E assim continuou fazendo, dia sim, dia não. Um dia para o
namoro e outro dia para se recuperar. A coisa estava tão boa,
que a Anta já estava até pensando em ficar noiva. Mas uma
certa tarde, o Gato exagerou. E não se agüentando mais, fez
feio diante da Anta: botou pra fora as três bananas que ele
tinha comido de uma só vez. Teve falta de ar, ficou tonto e caiu
no chão. Foi um vexame...
A Anta, coitada, muito aflita, agoniada, não sabia o que
fazer. Seria algum feitiço? Também podia ser mau-olhado.
Desde que começou o namoro com o Gato, era uma inveja
que não acabava mais. As colegas nem sequer lhe davam mais
um bom-dia, mortas de inveja. Esse povo é assim: nem tem,
nem quer que os outros tenham. Por qualquer coisinha, tome-
lhe olho-grosso... Ainda mais namorado bonito, a coisa que
mais desperta inveja neste mundo de hoje...
Mas quem estava acompanhando tudo aquilo, há dias,
em silêncio? A Paca, sua madrinha. O tanto que tinha de gorda
tinha de sabida. Eta velha experiente, aquela Paca Madrinha!
Calada, reservada, observando, pensando, só olhando... A Anta,
então, muito chorosa com o estado em que o Gato se encon-
trava, perguntou:
– Madrinha, o que será que deu nele?
A Velha Paca, que até então não tinha se metido em nada
daquele namoro, exclamou com sua voz segura e firme, como
se já estivesse pronta para dar o aviso, desde o princípio do
mundo:
– Ora, minha filha... Todo mundo sabe: Gato gosta mes-
mo é de carne, por mais que finja gostar de banana!

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O macaco e a cutia

O macaco tinha uma mania de olhar os defeitos dos outros


para criticar. Na falta do que fazer, cismou de perseguir a cutia,
botando os piores defeitos nela. Toda vez que passava pela porta
da cutia, gritava apelidos jocosos. E morria de prazer, porque a
cutia se danava, xingava, dizia coisas do arco-da-velha. E quanto
mais a cutia se danava, mais o macaco ficava feliz.
Um dia, o macaco soube que a cutia era cotó, isto é, não
tinha rabo. Aliás, ela nasceu com um rabo muito bonito e com-
prido, mas um dia, esquecida disso, sentou-se à beira da estra-
da, ficou distraída, olhando pro mato. Aí veio uma carroça e
decepou o rabo, ficando apenas o toco. O macaco ficou tão
contente, quando soube disso e resolveu pirraçar a cutia mais
ainda. E sabe o que ele fez? Sentou-se na beira da estrada, a
vida toda olhando para a toca da cutia. E passou a manhã in-
teira, de instante a instante, berrando:
– Camarada cutia, quem tem rabo sai do caminho!
A cutia, coitada, morta de raiva, nem saiu da toca para
beber água, envergonhada de tanta humilhação. Perto do meio-
dia, o macaco já nem se agüentava de tanto prazer, aos gritos,

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que nem viu uma carroça que se aproximava. Mas todos ouvi-
ram seu grito de horror e viram um enorme rabo decepado, se
bulindo na estrada.
Todos os bichos da redondeza vieram para saber do que se
tratava. E foi juntando bicho... Uns com pena, outros zom-
bando, outros espantados. O comentário era geral, cada um
dizendo o que achava. A cutia, então, tomou coragem e veio
também espiar. Foi chegando devagar, meio desconfiada. Esta-
va com os olhos vermelhos de tanto chorar por causa das pirraças
do macaco. Foi passando pelos outros bichos, até que chegou
na estrada.
E diante do que viu, também gritou:
– Ora, onde já se viu? Macaco não olha pro rabo!

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O ovo anunciado

A galinha estava assanhada. Queria descobrir um meio


de valorizar seu produto. Sem saber o que fazer, mal chegava a
madrugada e ela descia do poleiro, agoniada, nervosa, ciscando
tudo que encontrava. Uma comadre já bem idosa, vendo aquele
eterno entra-e-sai da galinha, deu um conselho:
– Olhe, por que a senhora não vai fazer uma consulta?
Senhora, se cuide... Em vez de ficar nessa agonia, vá a quem
pode lhe ajudar a encontrar as respostas...
A galinha, então, depois de muito pensar, venceu a inde-
cisão e foi fazer a consulta. E lhe foi aconselhado botar a boca
no mundo. E assim ela fez: ao botar um ovo, cacarejava a não
mais poder. Todo mundo ficava sabendo, de imediato, quando
a galinha desovava e queria obter o que ela produzia. Enquan-
to isso, a pata, quieta em seu canto, a tudo espiava, calada. E
resolveu também fazer uma consulta, mas nunca se soube o
que lhe foi revelado. Sabe como é: esse povo, assim, calado,
quieto no canto, jamais deixa que se saiba o que está realmente
acontecendo. Mas deixemos isso pra lá.
Acontece, porém, que surgiu um mal de asma nas crian-
ças da aldeia. As mães, aflitas, gastavam ovos e mais ovos de

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galinha para curar os filhos, mas a doença não cedia. Uma das
moradoras, já em desespero com o sofrimento do seu filho,
resolveu, então, experimentar um ovo de pata como remédio.
Usou, de início, apenas um ovo, até mesmo por medo de que
aquilo, realmente, não servisse pra nada. Sabe como é: esse
negócio, assim, não anunciado, ninguém conhece direito...
Aquela mãe bateu um ovo de pata com mel de abelhas e sumo
de mastruz. Mas não é que a asma cedeu?! A mãe bem sucedida
contou a outra mãe que contou a outra mãe e, assim, foi um
gastar de ovo de pata como nunca se viu antes.
As crianças ficaram curadas. As mães, no entanto, fica-
ram muito intrigadas com aquilo. Por que a pata nunca tinha
dito isso a ninguém? Seria por pura ruindade? Por trás daquele
silêncio tinha de haver uma explicação... A vizinha do pé da
ladeira, a mais bisbilhoteira de todas, tomou a iniciativa e foi
à casa da pata, assim, como quem não quer nada e querendo.
Chegou lá, conversou, conversou e conversou. E na volta, todo
mundo ficou sabendo do que a pata tinha dito: O que é bom
nem sempre é anunciado.

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O preço da ingenuidade

Um dia, o cágado tinha saído para passear. Sorrateiro, lá


se ia ele, vagaroso, pois tinha todo o tempo do mundo para
gastar naquele passeio. De repente, ao atravessar uma estrada
em busca de comer qualquer coisa, ele descobriu uma trilha de
formigas. Como estava mesmo sem fazer nada, resolveu fazer
uma perversidade com elas. Passou por cima da trilha e esma-
gou um bocado de formigas que estavam carregando comida.
Confiante na sua superioridade, seguiu em frente, con-
versando sozinho:
– Afinal, quem vai se incomodar com algumas centenas
de formigas esmagadas?
E lá se foi ele. Apressou o passo para sair daquele lugar,
mas pisou em falso, caiu de barriga pra cima e ficou se
esperneando, sem poder se desvirar. Caro lhe custou sair da-
quela posição. Depois de muito esforço, se desemborcou. Pas-
sou um tempo retomando o fôlego e seguiu adiante.
Já perfeitamente recuperado, o cágado ouviu uns gritos e
quis saber do que se tratava. E quando chegou ao lugar de
onde vinha o alarido, o cágado viu: era a onça segurando firme
o macaco pelo rabo. O prisioneiro se esperneava, rodava, guin-
chava e nada da onça soltar o rabo dele.

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O cágado tem lá suas qualidades, todos os bichos sabem
disso. E ele quis saber do que se tratava. Afinal, aquele escarcéu
estava tirando o sossego de todo mundo. O macaco, muito
aflito, resolveu contar, enquanto a onça também se sentou,
aguardando. A onça tinha caído numa armadilha e ficou presa
três dias, com fome, pedindo socorro. O macaco ouviu o alari-
do, procurou e descobriu a onça no fojo. Todo prestativo, re-
solveu ajudar da maneira que sabia. Providenciou um cipó,
mas o cipó era curto e não chegava até o fundo da armadilha.
Mas ele não ia de desistir tão fácil assim. Logo ele, tão gaba-
do por todo mundo, pela sua esperteza e sagacidade... Depen-
durou-se no cipó, estirou o rabo e mandou que a onça escalasse
a parede do fojo, agarrada ao rabo dele. Assim a onça fez e con-
seguiu sair da armadilha. Agora ela não queria soltar o rabo dele.
O cágado, então, disse ao macaco que seu depoimento
era maravilhoso. E que agora ele batesse palmas e limpasse as
mãos no chão, pois era assim que se devia proceder no final de
um depoimento. Assim o macaco fez. A onça assistiu a tudo,
muda, na certeza de que, agora, ia ter duas refeições... Pois
bem, o cágado disse para a onça que também queria ouvir o
depoimento dela. A onça disse que não ia mais largar o rabo
do macaco, porque ela estava com fome há três dias e macaco
era uma boa caça. Mesmo, não havia razão alguma para ela
soltar o rabo do macaco.
O cágado elogiou o depoimento da onça e disse que ela
procedesse do mesmo modo que o cágado fez: batesse palmas
e limpasse as mãos no chão. A onça fez o que o cágado man-
dou. Aí, o macaco aproveitou o vacilo da onça, escapuliu e
sumiu na copa das árvores. A onça, irada, deu um bote certei-
ro, pulou em cima do cágado, estraçalhou sua carapaça e devo-
rou o bicho num instante.
Pois é... A gente não paga apenas pelo mal que pratica.
Também paga muito caro pelas besteiras que comete.

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O Quibungo

Contavam os mais-velhos que, na Terra de São Nunca, o


povo vivia apavorado. Apareceu um monstro devorador, tão
pavoroso, que muitos morriam de susto antes de serem engoli-
dos. Quando Jão Valente soube disso, pintou e bordou. Ame-
açou de pinicar o bicho, quando ele aparecesse, como se corta
cebola para temperar panela. Jão era muito valente e não res-
peitava ninguém. Um dia, ele entrou na venda de Seu Galo. A
venda estava muito cheia e Seu Galo não notou a presença
dele. Jão se enfureceu, deu um tapa na primeira pessoa e o tapa
foi tão grande, tão grande, que todo mundo caiu de perna pro
ar. Jão obrigou Seu Galo a dar tudo o que ele queria, de graça,
pra Seu Galo aprender a enxergar Jão Valente até por trás de
todo mundo.
Mas havia uma outra pessoa: Zé Mofino. Coitado: ama-
relo, franzino, recolhido em casa, trancado no quarto, com
medo do Quibungo e de Jão Valente. Mas a lenha acabou e,
depois de três dias de fogo apagado, Zé Mofino foi empurrado
pela necessidade. Terminou saindo para buscar graveto no mato
que ficava pertinho de sua casa. E de repente, quem apareceu?
O Quibungo! Era um bicho enorme, daquele tamanho, todo

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cabeludo, da altura de dois homens. Os olhos eram duas fo-
gueiras e as mãos tão grandes, parecendo gamelas. Pegou Zé
Mofino pelo meio e suspendeu o coitado pro alto, para devo-
rar. Foi aí que Zé Mofino viu: a boca do Quibungo era no
meio das costas.
Tomado pelo desespero, o quase-morto gritou:
– Seu Quibungo, pelo amor de Deus!... Não me coma
porque eu sou um mofino. Coma Jão Valente que ele tem muita
carne pro Senhor se sustentar e ficar mais forte ainda!
Aí, aconteceu o milagre: o Quibungo soltou Zé Mofino e
disse assim:
– Me mostre onde está este tal de valente que lhe dou o
dinheiro das pessoas que já devorei. O dinheiro está aqui, no
meu bucho!
Zé Mofino foi na frente e o Quibungo atrás, até à porta
de Jão Valente. Pela greta das janelas o povo espiava a rua e
todo mundo se admirava da coragem de Zé: enfrentar o
Quibungo e Jão Valente... Os dois de vez?! Misericórdia! O
Quibungo bateu na porta de Jão e ele veio atender com gritos
e ameaças:
– Quem é este ousado, me incomodando a essas horas?
Espera aí que lhe dou o seu!
Abriu a porta de supetão, mas quando viu o Quibungo
deu uma tremedeira e se borrou todo. O Quibungo ficou com
nojo dele e fez a pior zombaria:
– Abre a boca, cagão, se tu é valente mesmo, pra tu ver se
não te como com casa e tudo! Só não faço isso agora mesmo,
para não estragar minhas tripas, devorando uma porcaria igual
a tu. Mas estou ordenando: desapareça daqui, pra sempre, se-
não eu volto e te como!
Jão Valente arrumou a trouxa na maior tremedeira e desa-
pareceu no mundo. O Quibungo também resolveu desapare-
cer dali. Mas antes, cumpriu com a palavra: deu um bocado de

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dinheiro a Zé, que agora não era mais Mofino. E ele passou a
ser considerado por todos como uma pessoa corajosa, além de
muito rico.
Viu? Quem arrota valentia termina encontrando alguém
de maior ousadia.

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O saber e a sabedoria

O tempo tinha mudado completamente e um inverno


rigoroso se abateu sobre a aldeia. A cada noite, o frio ficava
mais doloroso. Correu a notícia de que as coisas iam piorar
ainda mais. Estava vindo uma onda de frio muito mais perigo-
sa. Aquele povo só estava acostumado a viver em tempo de
calor. Até os invernos eram meio mornos. A notícia que se
espalhava estava deixando todo mundo com medo.
Todos foram logo cuidando de se preparar para o pior. A
grande frieza estava anunciada para a madrugada. Mas havia
um homem muito considerado por todos. Ele era muito sabi-
do e sempre estava ajudando aos outros. Dava conselhos, pro-
videnciava coisas, fazia favores. Todo mundo que precisasse de
favor apelava para aquele homem. Se alguém tinha uma dúvi-
da, o homem esclarecia.
Mas tinha uma coisa: de tanto resolver as coisas dos ou-
tros, ele só vivia se esquecendo de si próprio. Era tão desmaze-
lado de si mesmo, que sua casa não tinha porta. Apenas pos-
suía um couro de bicho sobre o qual ele dormia.
Então, algumas pessoas resolveram ajudar ao homem e
foram consultar Xangô, em busca de uma solução para o pro-

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blema de uma pessoa tão boa. E Xangô mandou que dessem
três esteiras de taboa para o homem. As pessoas voltaram e
deram as esteiras a ele. E não dava mais pra conversar, pois a
frieza estava insuportável.
A madrugada foi lenta, arrastada. Até os bichos emudece-
ram. Mas todo mundo sabe: não há bem que sempre dure,
nem mal que nunca se acabe. E o sol raiou, trazendo a alegria e
a vida de volta à aldeia. Aos poucos, as pessoas foram acordan-
do, se levantando, acendendo fogo, saindo de suas casas.
Para surpresa de todos, o homem tinha morrido de frio,
apesar das esteiras e do seu saber. Foi um espanto. Como é que
a solução dada por Xangô não tinha funcionado? Logo ele, o
Rei da Justiça? Onde estava a sabedoria do rei? Sabe como é
gente: qualquer coisinha, lá se vai a confiança... Era preciso
explicação. Resolveram consultar Xangô outra vez. Contaram
a novidade ao rei e ficaram esperando a resposta. Xangô quis
saber dos detalhes:
– Deram as esteiras a ele? O que ele fez com as esteiras?
Alguém explicou:
– Demos sim, as três, conforme foi ordenado. E ele estava
deitado em cima das três esteiras, quando foi encontrado morto...
Xangô, então, explicou:
– Com uma esteira, ele tapava a porta. Com a outra, ele
forrava o chão. A terceira era para ele se enrolar. Claro: junto a
uma boa fogueira, feita com os próprios esforços dele.
E indagou aos presentes:
– Ele fez isso?
Ficaram todos calados. Um deles se animou e disse que não.
Então, Xangô disse:
Tinha o saber, mas não tinha sabedoria. Esperava que lhe
acudissem em tudo. De nada vale o saber para quem não tem
a sabedoria.

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O sapo invisível

Contavam os mais-velhos que a girafa estava cansada da


mesmice de sua cidade. Queria andar, passear, conhecer gente
nova, ver as novidades do mundo. Andava se queixando todo
dia e a mãe dela sempre dizendo:
– É, minha filha, boa romaria faz quem em sua casa vive
em paz. Também o povo diz: Pé que não anda não dá topada.
Já outros afirmam: Pedra mudada não cria limo. Você mesma
é quem deve descobrir qual é o melhor para você...
A girafa ficava ainda mais desapontada com as palavras
da mãe. Terminou saindo uma tarde, para conversar com as
amigas. Talvez, assim, se animasse um pouco mais. E a conver-
sa foi boa. Ficou até sabendo que existia um bicho chamado
sapo. Uma amiga sua tinha visto um, em terras distantes e fi-
cou encantada. A amiga falou tanto sobre o sapo, que a girafa
ficou morrendo de vontade de conhecer um.
Quando voltou para casa, já estava decidida: tinha de
fazer uma consulta para se certificar das coisas. Pois bem. Na
consulta, disseram a ela que fosse ver o sapo de perto. Afinal,
agonia a gente mata de duas maneiras: ou deixa o motivo pra
lá, ou faz dele a razão maior da existência. Criatura, só vendo

131
como a girafa saiu da consulta feliz da vida. Já em casa, a mãe
ouviu os comentários em silêncio, principalmente porque a
girafa já tinha se decidido viajar. Tinha de conhecer outras ter-
ras. Tinha de ver um sapo. Era demais: viver naquele lugar que
nem sapo existia...
Na manhã seguinte, mal raiou o dia, a girafa pegou a sa-
cola, se despediu da mãe e saiu pelo mundo. Andou muito, viu
muitos lugares, conheceu muita gente, viu coisas do arco-da-
velha. Sempre olhando para cima, em busca de topar com um
sapo. E lá se foi ela pelo mundo. Pergunta aqui, pergunta ali,
terminou sabendo pra que lados ficava a terra de sapo. Tocou
para lá. Não ficou copa de árvore que a girafa não fizesse uma
pesquisa, procurando sapo.
Depois de dias, nem unzinho ela tinha encontrado. Foi
ficando triste, foi ficando triste, até que resolveu voltar para
sua terra. O retorno foi doloroso, cheio de decepção. E ela
chegou em casa, no maior desalento, pior do que antes de via-
jar. A mãe, coitada, vendo o estado em que a filha se encontra-
va, procurou animar uma conversa. Perguntou coisas, quis sa-
ber detalhes. Por fim, o assunto do sapo:
– E como foi isso? Você procurou bem procurado? Per-
guntou às pessoas?
– Procurei, mãe... Perguntei... E nada... Olhe, mãe, não
ficou copa de árvore que eu não revirasse... Sapo deve ser um
bicho invisível...
– Bicho invisível?! Copa de árvore?! Mas como, se o sapo
só vive de cócoras, é bicho do chão e mora na lagoa? Filha, tem
coisas que só são vistas, quando olhadas de perto e com muita
atenção. Por isso, minha filha, aprenda: Em terra de sapo, de
cócoras com ele...

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O segredo do pote

Olocun tinha uma filha meiga, maternal e extremamen-


te dedicada. Era Iemanjá, a Mãe dos Filhos Peixes. Prometida a
Olofim, Iemanjá casou-se com ele e foi-se em sua companhia,
para as terras que ficam bem distantes do Aiocá. No dia do
casamento, Olocun presenteou sua filha com um pote. Mas
avisou, com uma voz de quem sabia das coisas:
– Filha, guarda bem este pote. Se algum dia, você cair
num perigo grave, ou tiver uma extrema necessidade, não vaci-
le: quebre este pote e você será imediatamente socorrida. Mas
se lembre bem: só em último recurso...
Com o tempo, Olofim foi-se demonstrando ciumento,
possessivo e dominador. A vida de Iemanjá ficou restrita ape-
nas ao palácio real. Ninguém poderia lhe dirigir a palavra sem
autorização expressa do marido. E quando ele saía para guerras
de conquista, a mulher ficava trancada, em completo isola-
mento, até a sua volta. Foi então que Iemanjá sentiu necessida-
de de se libertar daquele cativeiro. A lembrança de seu tempo
de liberdade, vivido no reino de Olocun, aumentava ainda mais
a sua dor. Afinal, como é sabido, não há dor maior do que, no
tempo do cativeiro, recordar-se da liberdade.

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Pois bem: Iemanjá começou a pensar em fugir. Tentou
algumas vezes em vão, mas parecia que Olofim adivinhava seus
pensamentos e descobria a tempo qualquer coisa planejada.
Um dia, Olofim voltou coberto de glória de uma de suas con-
quistas e ofereceu um grande banquete a centenas de convida-
dos. Ele bebeu vinho de palma até se fartar e dormiu embria-
gado. Aproveitando-se disso, Iemanjá fugiu do palácio. Mas
como não conhecia os caminhos do deserto, terminou se per-
dendo. E quando o dia amanheceu, ela nem sequer sabia onde
estava. Nesse meio tempo, Olofim acordou, tomou conheci-
mento da fuga de Iemanjá e saiu à sua procura, com muitos
soldados. Desta vez, ela ia voltar como uma prisioneira.
Quando Iemanjá avistou o exército do marido se aproxi-
mando, deu-se conta da tragédia que ia lhe acontecer. Foi en-
tão que ela se lembrou do presente que recebeu de Olocum,
no dia do casamento. Abriu a bagagem e retirou o pote. E
quando Olofim mandou os soldados amarrarem a esposa, ela
palmeou o pote e arremessou no chão. E aí, deu-se o encanto:
de repente, o Oceano se avolumou, invadiu a Terra e o deserto
virou mar. Olofim e seu exército morreram afogados e Iemanjá
reinou absoluta sobre todas as águas do oceano.
Os tiranos terminam sempre se afogando na sua própria
tirania.

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O senhor de grande riqueza

Eram dezesseis irmãos, todos eles filhos de Ifá. Entre eles,


havia um que era grande caçador. O nome dele era Obará. Pois
bem: era um caçador muito pobre e simples, mas ele sabia que
seu destino lhe reservava grandes riquezas. E era justamente
por isso que ele não se abalava com nada. A pobreza não lhe
doía e a vida simples que levava era até motivo de alegria. En-
fim, ele vivia feliz consigo mesmo, com a vida e com os outros.
Um dia, seus irmãos se reuniram e foram visitar o pai, Ifá,
o orixá da adivinhação. Resolveram não chamar Obará, por-
que consideravam ele um matuto ridículo. Sentiam até vergo-
nha da companhia do irmão. Obará andava cheio de mochilas,
arcos e flechas, cordas e essas coisas todas que os caçadores car-
regam consigo.
Os quinze irmãos queriam melhorar a sorte. Aproveita-
ram a visita ao pai e pediram a ele que fizesse uma consulta
para saber como deveriam fazer a fim de melhorar a vida. Ifá
recomendou que eles fizessem um ebó de grande força e segre-
do. Eles almoçaram com o pai, conversaram muito e depois se
despediram.
Mas não é que eles terminaram se esquecendo do ebó?

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Sabe como é... Essa gente assim faz tudo sem profundidade...
Mas a Terra jurou a Deus que nada se fizesse que não se sou-
besse. A notícia terminou chegando aos ouvidos de Obará.
Então, ele fez seu ebó por conta própria, conforme Ifá tinha
recomendado aos outros irmãos.
Em um outro dia, os irmãos voltaram à casa de Ifá. Con-
forme sempre procediam, não convidaram Obará. Outra vez,
fizeram consultas e Ifá, novamente, ofereceu um almoço a eles.
Na saída, Ifá presenteou a cada um com uma abóbora e eles
foram embora muito contentes. Na volta, resolveram passar
pelo rancho de Obará, para uma visitinha rápida. Lá chegan-
do, encontraram o irmão na labuta com as caças. Estiveram
por ali, cada um puxando uma conversa, falando de coisas sem
importância.
Na saída, o dono do rancho lhes ofereceu várias caças.
Para retribuírem a gentileza, os irmãos lhe presentearam com
as abóboras que receberam de Ifá. Todos se despediram e fo-
ram embora satisfeitos. Obárá olhou aquele monte de abóbo-
ras e ficou pensando o que fazer com elas. Afinal, tinha sido
um presente dos irmãos e ele não seria ingrato a tal ponto de
ignorar o presente. Pensou em dividir com outros caçadores,
seus amigos. E resolveu cozinhar uma delas.
Quando Obará partiu uma das abóboras, ela estava re-
pleta de moedas de ouro e pedras preciosas. Partiu outra e mais
outra e mais outra... Enfim as quinze abóboras continham uma
imensa fortuna. Era a sabedoria de Ifá premiando o filho po-
bre, que era rejeitado pelos irmãos. A partir desse dia, Obará se
tornou senhor de grande riqueza como estava traçado no seu
destino. A quem Deus promete riqueza não oferece migalha
depois.

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DEPOIS DE TER CONTADO

Acabei. Gostou? Você agora pode até me fazer uma per-


gunta:
– Mas o que é mesmo um itan?
Pois muitos afro-descendentes poderão lhe responder as-
sim:
- Itan é uma história, qualquer história; um conto.
Mas alguém pode completar a informação, dizendo:
– De um modo muito específico, itans são histórias do
sistema nagô de consultas às divindades. Havia, e ainda há,
muitas pessoas dedicadas, em sua vida inteira, à aprendizagem
dos mistérios e da prática da adivinhação e do contato com os
seres divinos, no meio do povo nagô.
Você pode até fazer outra pergunta:
– E como é que isso acontece?
Eu respondo. Antigamente, isso apenas acontecia através
de um sacerdote adivinho, chamado babalaô. Ele fazia a con-
sulta a um orixá, chamado Orumilá Babá Ifá, por meio de um
objeto ritual, conhecido pelo nome de Opelé Ifá ou, simples-
mente, Ifá. É uma espécie de rosário aberto, mais ou menos
em forma de corrente, contendo quatro metades do coco de
dendezeiro de cada lado. Mas também eu não vou contar aqui

143
como se faz a consulta, não é? Isso é para quem quer se dedicar
de corpo e alma a tal conhecimento. Mesmo, de que adianta
você saber de todos os procedimentos, se você não vai ser um
babalaô? E ainda que você conheça todos os procedimentos,
isso não faz uma pessoa tornar-se babalaô. Por trás disso, existe
uma postura, uma rede de conhecimentos próprios da tradi-
ção nagô. Lembra-se do itan O saber e a sabedoria?
Há umas coisinhas, porém, que qualquer investigador
pode saber. Vou lhe dizer algumas. O povo nagô acreditava (e
os afro-descendentes continuam ainda acreditando) na possi-
bilidade de comunicação entre os humanos e os seres divinos,
os orixás. Uma dessas possibilidades acontece por meio do opelé
e o babalaô sabe como fazer isso. Ele domina um conhecimen-
to muito específico. É um especialista, portanto. Além do ins-
trumento, o opelé, também há um conjunto de dezesseis si-
nais, chamados odu. Cada sinal, chamado de odu, é como se
fosse o volume de um livro. Cada odu indica um caminho a
seguir. Mas esse caminho é mostrado através de um número
considerável de histórias. E essas histórias são os itans.
Os babalaôs sabem todas essas histórias de cor. E tem
mais: tudo isso, antigamente, era aprendido e ensinado ape-
nas através da fala, porque o povo nagô não conhecia a escrita.
O babalaô via o sinal, rememorava todas as histórias que com-
punham aquele odu e, entre todas, selecionava apenas uma,
que era perfeitamente adequada para responder à pergunta que
a pessoa tinha feito. E são tantas as histórias, que os babalaôs
faziam encontros anuais para trocar experiências entre si, atua-
lizar o repertório.
A importância da história era, e ainda é, justamente, a
de mostrar de que maneira, em um tempo muito antigo, o
mesmo problema que motivou a consulta tinha sido resolvido.
Essas histórias tinham sido vividas por pessoas, por bichos, por
plantas ou por divindades e são narradas com muita poesia e

144
simplicidade. A estrutura das histórias é interessante: o fato
narrado, um ritual recomendado e a interpretação do babalaô.
O itan, então, é uma espécie de lenda para ser contada (e às
vezes, narrada de modo cantado) pelos babalaôs e expressa a
fala de Orumilá Babá Ifá, o Orixá do Destino, da adivinhação.
Acontece que a fala de Ifá é muito simples. Afinal, a sim-
plicidade é o último degrau da sabedoria. Mas se o adivinho,
isto é, o babalaô, não tiver um bom preparo, um conhecimen-
to suficiente, ele pode até selecionar uma história errada. E se
ele fizer a recomendação errada, aí, então, bota a perder tudo o
que seu consulente queria alcançar. A interpretação, nem se
fala. Quando nós conversamos, até mesmo dentro de nossa
casa, uma pessoa diz uma coisa e outra pode entender outra.
Na consulta ao Ifá, também existe risco semelhante. Se o babalaô
se descuidar, pode acontecer um engano terrível. E para agra-
var, a fala de Ifá é uma parábola, isto é, uma narração que mos-
tra uma coisa para dar idéia de outra. Além disso, os seus ele-
mentos lembram outra realidade de ordem superior. Cabe ao
babalaô interpretar a parábola. Por isso, o itan é uma explica-
ção, sob forma de história, de como um problema semelhante
foi resolvido num passado muito, muito distante mesmo.
Um itan encerra lições de vida, de conhecimento, de sa-
bedoria, de experiência. É por isso que existe um número
incontável de itans, pois as dúvidas dos humanos são incontáveis
também. Então, você está vendo que um itan é mesmo um
exemplo. Por isso, muitos dizem: é uma história-exemplo. Isso
se baseia na crença de que o passado se repete no presente, que
é o mesmo entendimento contido na frase bíblica, tão conhe-
cida: Não há nada novo debaixo dos céus.
A escrita não fazia parte da vida do povo nagô. Para ser
babalaô, então, o homem tinha de ter uma memória privilegi-
ada. Mulher não podia ser babalaô: era uma função exclusiva-
mente exercida pelos homens. Cabia à mulher o papel de es-

145
posa ou ajudante do babalaô. Na maioria dos casos, ela exercia
os dois papéis. Normalmente, eram mulheres dedicadas ao culto
de Oxum, a divindade que sabia o segredo do jogo de búzios.
Por isso mesmo, elas também podiam consultar o jogo de bú-
zios, que não era, assim, de uso exclusivo do babalaô, tal qual
acontecia com o opelé.
Esse jogo era, e ainda é, constituído por um conjunto de
dezesseis búzios quebrados numa de suas faces. Então, o búzio
passa a conter dois lados: um aberto e outro fechado. E ao serem
jogados numa mesa para tal fim, os búzios formam um conjun-
to de tantos abertos e tantos fechados. É esse conjunto que é lido
e interpretado. Interessante é notar que a interpretação se baseia
nos mesmos odus de Ifá. Estava criada, então, a possibilidade de
uma substituição do jogo do opelé pelo jogo de búzios, confor-
me aconteceu no Brasil. Mas vamos com calma...
Você ainda poderá até fazer uma outra pergunta:
– Mas o que tem isso a ver com as histórias que acabei de
ler neste livro?
Vamos ver se eu consigo explicar. Quando os negros foram
trazidos da África para o Brasil pelo sistema de escravidão, trou-
xeram consigo também um conhecimento amplo. Afinal, todos
os povos, de todas as épocas, de todos os lugares, construíram
uma rede de conhecimentos e experiências, própria e particular,
a que nós denominamos de cultura. Entre os vários povos africa-
nos que foram trazidos à força para serem escravos no Brasil,
veio também muita gente nagô, homens e mulheres, jovens e
adultos. Em sua terra de origem, essas pessoas eram reis, rainhas,
príncipes, princesas, ministros, nobres, plebeus, caçadores, sa-
cerdotes, sacerdotisas, artistas. Enfim, exerciam um sem núme-
ro de atividades e papéis, tão próprios das sociedades livres.
O conhecimento que o nagô construiu na África, através
dos séculos, lhe permitiu sustentar as relações entre as pessoas
e possibilitou uma compreensão do universo e da vida muito

146
particulares. Mas esse modo de se relacionar e essa compreen-
são eram totalmente diferentes da cultura da Europa. Aqui, no
Brasil, os negros foram discriminados e isolados e lhes foi ne-
gado o acesso aos bens e serviços da cultura dominante. Tendo
os seus direitos humanos negados, os escravos e seus descen-
dentes criaram várias formas de salvaguardar seu conhecimen-
to, resistindo à opressão dos dominantes. Uma delas foi trans-
formar certos princípios em segredo religioso.
A construção do espaço dos terreiros de candomblé, con-
siderado pelo povo-de-santo como espaço do sagrado, foi uma
outra forma. E ali, os fiéis, adeptos e simpatizantes passaram a
exercer uma prática que, para os de fora, baseava-se no
sincretismo. Para os afro-descendentes, no entanto, a verdade
sempre foi outra. O sincretismo sempre foi apenas uma faixada.
Era por isso, por exemplo, que não bastava a missa ou a procis-
são para Santo Antônio. Era necessário que houvesse também
a roda de candomblé no terreiro, para receber Ogum, o orixá
da demanda, da batalha, da peleja, o dono do ferro, aquele que
abre os caminhos. Pouco importava se os de fora pensassem
que a roda era uma homenagem a Santo Antônio. E até mes-
mo era conveniente que continuassem a pensar assim. E o povo
de terreiro manteve, para com os de fora, a ilusão do sincretismo,
como uma defesa contra o preconceito.
A forma funcionou tão bem que os quinhentos anos de
rejeição não foram suficientes para apagar a força da cultura
dos afro-descendentes. Assim, os valores religiosos da cultura
nagô sobreviveram também no Brasil. Isso se deve em grande
parte ao fato de os negros nagôs não separarem a vida cotidia-
na das práticas de re-ligação com o divino. Também, nesse as-
pecto, eles sempre foram muito diferentes da população colo-
nial, de origem européia. Assim, os afro-descendentes conser-
varam, no Brasil, os inúmeros fenômenos da cultura nagô tra-
zidos da África. Exemplo disso é o sistema de adivinhação, de

147
leitura do destino, de consulta às divindades, que era de im-
portância fundamental. Isso foi uma decorrência natural da
prática de vida exercida por eles, que sempre se baseou na con-
vivência íntima com as suas divindades. Daí, a necessidade de
sempre procurar saber, através da consulta, quais as ordens,
conselhos, exigências, explicações e orientações dos seres con-
siderados divinos.
O sistema de escravidão brasileiro negou-se a reconhecer
os valores das várias culturas africanas, principalmente os valo-
res religiosos. Então, muitos dos costumes não sobreviveram.
Assim, também desapareceu a função de babalaô, o sacerdote
do culto a Orumilá Babá Ifá, aquele que sabia jogar o opelé e
ler o futuro. Esse foi um dos motivos que fizeram o jogo de
búzios substituir o jogo do opelé de Ifá e, aos poucos, alcançar
popularidade, conforme acontece nos dias de hoje. Então, os
itans, na condição de textos considerados sagrados, foram ca-
indo em desuso. Mas na África, a história teve um rumo com-
pletamente diferente e os itans continuaram sendo utilizados e
continuam sendo, até hoje, atualizados pelos babalaôs. Lá,
eles não desapareceram e continuam exercendo um papel im-
portante para as comunidades.
No Brasil, aconteceu uma coisa interessante: o itan passou
por um desgrudamento. Quer dizer: na medida em que ele foi
deixando de ser utilizado como texto sagrado pelos babalaôs,
também foi passando a ser contado, principalmente, como uma
história-exemplo, fora do momento exclusivo da consulta. Já
não era mais necessário interpretar a história, nem fornecer a
receita para um ritual religioso, isto é, um ebó para resolver a
situação. Assim, os mais-velhos começaram a divertir a criança-
da, contando, narrando, cantando histórias de gente, de bichos,
de plantas, de orixás, que encerravam princípios éticos e morais.
Isso, naturalmente, começou a acontecer na própria sen-
zala, onde todas as origens e culturas negras trazidas para o

148
Brasil se misturavam. Do interior da senzala, as histórias che-
garam ao terreiro da casa-grande dos engenhos. Daí aos alpen-
dres e varandas, à cozinha, ao quarto de dormir, ao berço. A
interpretação e a recomendação de um ritual foram deixadas
de lado. Enquanto isso, foi-se dando ênfase ao princípio ético
ou moral. E aos poucos, esse ensinamento foi tomando forma,
até mesmo nos itans em que isso não era tão evidente assim. E
com essa nova forma, lá se foram os itans, de boca a ouvido,
ganhando terreno.
O itan, desse modo, assumiu uma feição mais universal,
pois contar histórias para ensinar princípios éticos e morais é
próprio da cultura da maioria dos povos. Quer ver uma coisa?
Vá lá, na Bíblia... O que tem de histórias desse tipo nos Evan-
gelhos... Entre muitas, vou lembrar uma a você:

O PAGAMENTO DOS TRABALHADORES

Um fazendeiro levantou bem cedinho, para contratar traba-


lhadores. Contratou alguns, combinou com eles o preço de
dez reais por dia e mandou que eles fossem para a roça. Isso
era por volta de seis horas da manhã. Quando deu nove ho-
ras, ele tornou a sair e viu uns homens desempregados, baten-
do papo na praça. Se aproximou deles e disse assim:
– Eu tenho trabalho para vocês e pago um preço bom.
Os homens foram pra roça e o fazendeiro foi pra casa. Mas
por volta do meio-dia, ele saiu de novo e contratou outros
homens. O mesmo aconteceu lá pelas três horas da tarde. Como
se não bastasse, ele saiu outra vez, às cinco horas e encontrou
mais outros homens que estavam na praça sem fazer nada. O
fazendeiro perguntou a eles:
– Por que vocês estão aí, o dia inteiro desocupados?

149
Então, os homens disseram:
– Por que a gente não achou serviço.
E o fazendeiro nem pestanejou. Foi logo dizendo:
– Vão vocês também trabalhar na minha roça.
Quando já estava anoitecendo, o fazendeiro disse ao seu ad-
ministrador:
– Chame os trabalhadores e pague uma diária para todos.
Comece pelos últimos e termine pelos primeiros.
Chegaram primeiro os que tinham sido contratados já no
final da tarde e cada um recebeu dez reais. Por fim, chega-
ram os que foram contratados no comecinho da manhã. Eles
pensavam que iam receber mais. Mas cada um deles recebeu
também dez reais. Quando receberam o pagamento, começa-
ram a resmungar contra o fazendeiro e disseram:
– Esses últimos trabalharam apenas uma hora e o senhor pa-
gou a mesma coisa que pagou pra gente. A gente deu um
duro danado, o dia inteiro, debaixo do sol, num calor de
matar...
Aí, o fazendeiro disse assim:
– Ô gente, eu não fui injusto com vocês. Não combinamos
dez reais a diária? Pois então? Não foi isso que eu paguei a
vocês? Tomem o dinheiro que vocês ganharam e vão embora
pra casa. Mas eu quero pagar a esses últimos o mesmo que
paguei a vocês. Por acaso não tenho o direito de fazer o que
eu quiser com o meu dinheiro? Ou vocês estão com inveja
porque eu estou sendo generoso?
Pois é... Os últimos serão os primeiros e os primeiros serão
os últimos. (Mateus: 20, 1-16)

Pois é, digo eu... Esse e outros itans narrados nos Evan-


gelhos correram, e ainda correm, de boca em boca, entre a
humanidade. No Brasil, também são considerados portadores

150
de verdades e essa crença faz parte da cultura dominante. Mas
os outros itans, os dos afro-descendentes, do povo de terreiro,
foram taxados de “coisas de bruxaria”, “coisas do demônio”. E
agora, com essa onda de certas seitas que rodam por aí, os pre-
conceitos estão cada vez mais sendo cultuados. Isso não deixa
de ser preocupante, pois foi assim que foram acesas as foguei-
ras da Inquisição na Idade Média. É preciso não esquecer: exis-
tem grupos que, de tempos em tempos, acendem suas foguei-
ras. Alguns, para se aquecer e outros, para se comunicar. Mas
também existem aqueles que acendem fogueiras para queimar
o outro que pensa diferente.
E ainda tem mais uma coisa: é a questão da oralidade em
relação à construção do conhecimento oficial. A cultura oci-
dental tem sido construída através dos caminhos da exclusivi-
dade escrita. Então, o mecanismo tem funcionado assim: se é
coisa escrita tem valor; se é coisa falada, dizem até que o vento
carrega as palavras. Por isso, na nossa nação, o pensamento
escrito sempre teve força sobre o pensamento falado. A palavra
falada ficou, então, sendo usada para assuntos não oficiais, con-
siderados não tão legítimos. Mesmo, a Ciência sempre rejeitou
a oralidade. E aí, as coisas orais podem até ser consideradas
bonitas, lindas, mas não são levadas a sério.
Veja o tanto de mal que o preconceito pode fazer. Foi por
isso que os itans dos afro-descendentes nunca foram contados
na escola. Ultrapassar essa barreira de preconceito custa muito.
Ora, se um valor não é levado em consideração, o grupo social
que o cultiva também recebe o mesmo tratamento e vice-ver-
sa. E lá vamos nós escrevendo. Mas não é justamente isso que
eu estou fazendo agora? É porque não posso e não devo esque-
cer do itan sobre O sapo invisível. Tanto eu quanto você já sa-
bemos: Na terra de sapo, de cócoras com ele.
Mas vamos voltar à nossa conversa sobre o que aconte-
ceu com os itans, no Brasil. Com o surgimento dos terreiros de

151
candomblé, a consulta através do jogo de búzios foi se firman-
do como uma prática. Essa prática terminou por ser também
reconhecida por muitas pessoas que não fazem parte das co-
munidades de terreiro. Mas vale a pena lembrar que pessoas
ligadas aos terreiros, normalmente, têm uma forma de viver
baseada nos mitos. E o itan é a forma mais expressiva para
narrar a mítica do povo-de-santo.
Mais tarde, muito mais tarde mesmo, apareceram os estu-
diosos, os sociólogos, os antropólogos, isto é, o povo da ciên-
cia, e começaram a futucar as coisas. Busca daqui, busca dali e
foram achando os itans nos terreiros de candomblé mais anti-
gos da tradição nagô, nos cadernos de anotações de alguns ini-
ciados já idosos, na tradição oral recolhida entre o povo-de-
santo. Foram à África, compararam os achados de lá com os
daqui. E aí, terminaram publicando, em livros, um número
cada vez maior de itans recuperados.
Por falar nisso, me lembrei agora de uma história:

O ENGANO DO AMENDOIM

Contavam os mais velhos que o pé de amendoim não andava


nada satisfeito com a vida. Aquele negócio de ele botar se-
mente apenas na raiz, sem ninguém poder ver o quanto ele
era farto, deixava ele nervoso, aborrecido, contrariado. E ainda
tinha mais uma coisa: sua ramagem era pequena, quase nem
era notada. Logo ele, cujas sementes serviam para preparar
um delicioso prato para Oxóssi, o Grande Caçador... E os
homens mais idosos, ou os sem tenência, então... Esses eram
os mais beneficiados, quando comiam suas sementes. Com
tanta energia para oferecer aos humanos e estava ele ali, com
uma ramagem sem expressão e as sementes escondidas debai-
xo da terra. E quando os humanos faziam a colheita, meti-

152
am a mão nas suas intimidades, arrancavam suas vagens e
simplesmente deixavam suas ramas para secar em cima da
terra. Ah, era demais!
Seu vizinho, o pé de feijão, lhe aconselhou fazer uma con-
sulta. Assim fez o pé de amendoim. Disseram a ele que bem
seria melhor se ele prestasse atenção nas suas raízes. Era pró-
prio dele o axé correr todo para baixo. Era assim que sua raiz
podia sustentar tudo e produzir sementes. Mas em todo caso,
logo que ele queria inverter as coisas, juntasse as ramas secas
da última safra e se alimentasse com elas. E quando chegasse
o tempo de enramar, fosse botando brotos, brotos e mais bro-
tos e aguardasse o resultado.
E assim fez o pé de amendoim. Então, aconteceu a maravi-
lha: ele botou tanta rama, mas tanta rama, que invadiu os
quintais, os outros pés de planta, as cercas, os telhados, tudo.
E o povo ficou admirado com aquilo. O pé de amendoim se
transformou na mais feliz das plantas. Nem cabia em si de
tanta alegria: era motivo para olhares, elogios e até mesmo
invejas e ciumadas.
Pois bem. Chegou o tão esperado tempo da colheita. Acon-
tece que a Natureza não lhe concedeu a capacidade de botar
sementes na rama. E aí foi aquele desconforto. Não acharam
nenhuma semente nem nas suas ramas, nem na sua raiz. E
que fez o povo? Passou a não dar a menor atenção ao pé de
amendoim. Ao contrário, ele foi considerado um incômodo.
Aquelas ramas, sem serventia para nada, deviam ser corta-
das e queimadas. Afinal, havia plantas produtivas precisan-
do de espaço.
Nem é preciso dizer: o pé de amendoim entrou em outra crise,
pior do que a primeira. Noites sem dormir, dias sem comer,
queixas aos vizinhos, todo jururu, numa lamentação que fa-
zia dó. E lá se foi ele fazer nova consulta. Quando voltou de lá,
tinha uma nova decisão: ia deixar esse negócio de ramas para

153
lá e dar toda atenção às suas raízes. De que adiantava tanta
rama bonita se a serventia dele estava na raiz? Afinal, a apa-
rência, mesmo bonita, não substitui a essência.

Pois é. Olhe aí mais um itan acrescentado... Acrescentar


mais um é uma marca de quem vive uma existência nagô. É
um povo que deixa sempre um ponto de abertura, pois acredi-
ta que o Universo é um conjunto aberto. Aí, eu me lembro de
uma coisa interessante. Vou contar para você. Os antigos nagôs,
mas aqueles de um tempo muito antigo mesmo, usavam um
sistema de contar baseado no número de dedos das mãos e dos
pés. E você sabe: os humanos têm vinte dedos (embora eu ti-
vesse conhecido Seu Antônio Pisunha, que tinha vinte e um).
Aquilo que passasse de vinte era tido como numeroso, enor-
me, muito grande. E se chegasse a vinte vezes vinte, seria um
número infinito. E aí, para conservarem esse infinito também
aberto, acrescentavam mais uma unidade e chegavam ao nú-
mero 401. Isso significava uma quantidade que não podia ser
calculada nunca. Por isso, eles diziam, e os modernos ainda
dizem, que existem 400 divindades (os Irumalés) da direita e
200 da esquerda. A esse total de divindades, tanto da direita
quanto da esquerda, acrescentavam mais uma unidade. Assim,
o número 401 era considerado como infinito, naqueles tem-
pos. É divindade que não acaba nunca mais... Você já notou
que o brasileiro, até hoje, tem um costume de dizer “Tenho
1.001 coisas para fazer”? Olhe o acréscimo de mais um aí, tam-
bém... Pois é: um jeitinho nagô de falar.
Então eu fiz o mesmo. Elaborei um universo com um
número determinado de vinte e cinco histórias. Ficou um
mundo fechado. De repente, acrescentei mais uma, O engano
do amendoim, e o universo que eu criei se abriu. Mas você ti-
nha notado que estava faltando um itan sobre planta? Pois é.
Nada acontece por acaso.

154
Mas vamos voltar à nossa conversa anterior, sobre os itans
de Ifá recuperados pelos estudiosos, pesquisadores e religiosos
dos tempos de agora. Pois bem. Os textos recuperados, no en-
tanto, são os itan de Ifá, utilizados pelos babalaôs. Não são os
itans que eu acabei de contar. Esses que eu contei são origina-
dos dos textos sagrados, sim. Mas vieram das senzalas, dos ter-
reiros das casas-grandes, das mães-pretas, dos pretos-velhos e
também foram preservados dentro dos terreiros de candom-
blé. E esse modelo se tornou tão forte que terminou também
incluindo histórias de outras origens, tais como as histórias
trazidas pelos escravos de Angola e do Congo e até mesmo de
outras origens africanas. Foi até mais forte, a ponto de englo-
bar também histórias de origem européia e tantas outras cria-
das pelos próprios brasileiros. A forma de contar, agora, se
centrava na lição a ensinar e num modo africano-brasileiro de
narrar, no qual os valores do povo-de-santo e a oralidade con-
tinuavam sendo uma profunda marca de identificação.
São histórias para ensinar e aprender, mas sempre estive-
ram ausentes da sala de aula da escola tradicional. Faziam parte,
e ainda fazem, de um sistema de ensino paralelo. Não servem de
veículo ao ensino das matérias ou disciplinas curriculares, mas
ensinam a vida. Esses, sim, são os itans desse meu livro, A Fala
do Santo, sobre os quais também me debrucei nos meus estudos.
Isso eu tenho feito no Kàwé, onde desenvolvo pesquisas sobre o
quarto de consulta, que é o lugar onde o pai ou a mãe-de-santo
atende às pessoas. Esse espaço não é um quarto qualquer: é um
lugar destinado a ouvir quem queira se consultar e enviar suas
perguntas aos orixás. Na consulta com o opelé, a pergunta era
feita a Orumilá Babá Ifá, apenas pelo babalaô. Agora, no jogo de
búzios, pode ser feita a qualquer orixá, tanto por homens quan-
to por mulheres que ocupam o posto mais alto na hierarquia do
terreiro. Como podemos ver, aconteceu uma considerável de-
mocratização no sistema.

155
A consulta feita através do jogo de búzios revela a fala do
santo, isto é, a resposta do orixá. E isso tem a ver com uma
linguagem muito específica, ligada à linguagem dos odus de
Ifá. As histórias, isto é, os itans, fazem parte dessa linguagem.
São contadas constantemente, no quarto de consulta, para ser-
virem como exemplo da possibilidade de resolver a situação
exposta por quem se consulta. O olhador, isto é, a pessoa que
maneja os búzios, lê a resposta e interpreta a fala do santo. O
itan é contado, ou não, a depender da pergunta feita e das
intenções de quem perguntou. Depois, o pai ou mãe-de-santo
sugere, indica, recomenda, aconselha possibilidades de solu-
ção. Essas histórias narradas no quarto de consulta também
correm de boca em boca, entre o povo-de-santo. E isso aconte-
ce nas situações do dia-a-dia, a serviço do ensino e da aprendi-
zagem de princípios éticos e morais. Há muito tempo, elas
viraram patrimônio da nossa cultura afro-descendente. E os
itans são chamados simplesmente de histórias. Então, é muito
comum ouvir coisas do tipo:
– Você conhece a história de Oiá que fala que ela se trans-
formava em búfalo?
Esse é um jeito nagô, criado no Brasil, suprindo a ausên-
cia do babalaô, que desapareceu nas novas comunidades então
formadas.
Se esse é um tempo também da escrita, eu aproveito estar
nesse tempo e dou feição escrita a esses outros itans. Afinal,
eles se constituem a grande herança de um modo oral de ensi-
nar e aprender, com diversão. Herança que também a senzala e
o terreiro da casa-grande dos engenhos nos deixaram. E lá vou
eu, trabalhando a linguagem. Em alguns deles, passei da frase
ladainha do sistema original, para a frase narrativa mais elabo-
rada. Armo diálogos, lanço mão de construções típicas da
oralidade nordestina. Afinal, esse é meu patrimônio lingüístico.
É claro que é preciso considerar as questões de linguagem, no

156
tempo e no espaço. Por isso mesmo, faço atualizações. E aí,
cruzo caminhos que os ortodoxos consideram oponentes: uma
linguagem baseada na oralidade para registrar resultados de
pesquisa acadêmica. E não é só isso: acrescentei também uma
pitada de criatividade literária. Tem gente que vai invocar os
Irumalés da Esquerda... Paciência.
E o que quero com isso? Primeiro, também recuperar es-
ses itans, para que não se percam, pois são patrimônio da cul-
tura oral brasileira. Depois, é necessário que se saiba: no Brasil,
existem esses itans, além daqueles outros que compõem os odus
de Ifá. É bem verdade que os odus de Ifá são textos poéticos,
considerados sagrados. Ou como dizem os estudiosos, são mi-
tos que explicam o conjunto de divindades, cujo culto forma o
sistema religioso do povo nagô. Mas os itans para ensinar e
aprender ficaram sem merecer um olhar mais atencioso. Talvez
porque eles se parecem muito com o que a população costuma
chamar de causos. Ou talvez até porque nem foram vistos. Ou
se foram, a maioria dos pesquisadores não prestou a devida
atenção neles. Mesmo, é preciso reconhecer os méritos de um
povo que foi obrigado a atravessar o Atlântico, acorrentado em
porões de veleiros. E muito mais que isso: contribuiu para for-
mar uma nova nação, um novo povo. No percurso desta cons-
trução, esse mesmo povo negro e seus descendentes resistiram
para salvaguardar crença, religião, saber e visão particular do
universo e da vida. Graças a esse espírito de resistência, grande
parte do patrimônio cultural trazido da África pelos escravos
foi conservado. Mas também esse patrimônio se transformou,
criando novas linguagens, novas formas de expressão. E é jus-
tamente sobre uma dessas novas linguagens, isto é, uma recria-
ção dos afro-descendentes no Brasil, que eu me debruço aqui.
Se os itans dos odus de Ifá foram preservados aqui e ali e
se estão sendo recuperados pelo trabalho de pesquisadores e
religiosos, isto é simplesmente maravilhoso. Mas também é

157
muito importante reconhecer aquilo que o povo negro e seus
descendentes, baseados num modo nagô de existir, consegui-
ram recriar no Brasil. Essa recriação se constitui uma das mar-
cas profundas que fazem o povo brasileiro ser único na face da
Terra. E é uma pena que processos de rejeição ainda impeçam
que muitos brasileiros aceitem plenamente a beleza de sua
ancestralidade africana, de sua afro-descendência e de assumir
o que é legitimamente seu. Mas há um tempo para tudo debai-
xo dos céus.
Essas questões todas, que eu pensei e senti para escrever
este livro, chegam a um ponto que eu considero maior. É pare-
cido com um rio e seus afluentes, que terminam todos no mar:
um mar onde todas as coisas se juntam. Mas de que coisas
estou falando? Pois eu lhe digo: do espaço público e do espaço
privado; da ciência e do saber comum; da escola e da rua; do
escrito e do oral; da literatura e do escrito do povo; do europeu
e do nagô; do católico e do povo-de-santo; da pesquisa acadê-
mica e da informação popular; do projeto genoma e do quar-
to-de-consulta... Separar essas coisas, privilegiando uma e dis-
criminando outra, é criar uma cultura esquizofrênica.
A Ciência e a Academia sempre deram importância ape-
nas ao intelecto. É claro que a Razão é uma faca afiada para a
construção do conhecimento. Mas ela sozinha não consegue
responder a todos os anseios da alma humana. Por isso mes-
mo, é preciso dar valor também à Intuição, ao Sentimento e à
Sensação, nessa luta que a gente tem para se tornar inteiro.
Mesmo, a divisão do saber em pedaços, os que prestam e os
que não prestam, também gera uma sociedade doentia, repleta
de violência, preconceito e injustiça.
É por isso que procuro juntar aqui o que pareceu sempre,
na compreensão de muita gente que se diz sabida, coisas que
não poderiam ser juntadas. Podem ser juntadas, sim! E mais
que isso: devem ser juntadas. Afinal, basta lembrar a sabedoria

158
da Natureza. É juntando tudo que a beleza da Vida se faz. Para
isso, basta que tudo seja respeitado e reconhecido no seu real
valor. Mas para a gente fazer isso, é preciso, antes de tudo,
tentar compreender e aceitar algumas coisas. Por exemplo: a
sabedoria é a maior riqueza que se pode construir nesse mun-
do. Ainda: as coisas nem sempre são aquilo que parecem ser.
Também: de nada vale o saber para quem não tem sabedoria. E
por aí vai...
Bem... Aqui está uma pequena amostra dos itans que são
contados nos terreiros, na roda dos mais-velhos, no quarto de
consulta. Também são itans que meus mais-velhos me conta-
ram para que eu aprendesse a vida. E eu não queria cometer o
crime de levar de volta comigo esse patrimônio sem distribuir
com quem bem merece: VOCÊ.
Ainda tem mais uma coisinha só: informar onde você
poderá ler mais alguma coisa sobre essas questões. Não vou
falar aqui dos estrangeiros, nem dos livros mais antigos. Pri-
meiro, porque livro está pela hora da morte. Se os nacionais
são caros, imagine os estrangeiros... Depois, o pessoal que anda
escrevendo presentemente já assumiu e assimilou as informa-
ções que existem nos livros de antigamente, com muitas infor-
mações acrescentadas. Então, me acompanhe num breve pas-
seio, em que eu vou me lembrando informalmente de alguns
autores. Uns são famosos, outros são populares e outros mais
apenas conhecidos em alguns meios. Mas todos merecem ser
lembrados por sua dedicação e pelo conhecimento que demons-
tram possuir. É preciso juntar tudo. Lembra disso? E pelo amor
de Deus, os que não forem lembrados agora queiram me per-
doar. Já estou beirando os sessenta e, de vez em quando, olhe o
esquecimento aí... Mesmo, sou cabeça de Oxalá e, por isso,
acredito: o que não acontece hoje acontecerá amanhã. Quem
cá ficar verá. Ou ainda: quem kafkar verá...
Ah, sim, criatura! Todo livro tem sua arqueologia. Tam-

159
bém foi com base nos princípios que norteiam os escritos so-
bre A Fala do Santo que Consuelo Oliveira, Marialda Silveira e
eu nos reunimos para criar o Kàwé, com o propósito de divul-
gar e discutir a cultura afro-brasileira. Consuelo escreveu A
Dimensão Pedagógica do Mito e Marialda, A Educação pelo Si-
lêncio, resultantes de seus trabalhos em cursos de Mestrado. E
quando solicitei a elas que escrevessem a Apresentação deste
livro, Consuelo não mediu distância: viajou de Barcelona a
Madri, para encontrar-se com Marialda e, juntas, lerem os meus
originais. O resultado foi um conjunto de preciosas sugestões
e aquela carta tão repleta de sensibilidade: A Fala do Outro.
Formar grupo de pesquisa também pode dar nisso: construir
amizade sincera e fraterna. E nos dizeres de Jorge Amado, “a
amizade é o sal da vida.”
Mas vamos ao que prometi:

AGENOR MIRANDA ROCHA. Oluô respeitabilíssimo,


com mais de oitenta anos de iniciado. Desde 1928, tinha con-
sigo anotações sobre odus de Ifá que aprendeu com a famosa
Mãe Aninha, fundadora do Opô Afonjá. Essas anotações fo-
ram revistas por ele mesmo, setenta anos depois. Reginaldo
Prandi organizou e apresentou o material e o livro foi publica-
do pela Editora Pallas, em 1999, com o nome Caminhos de
Odu. Vale a pena a gente ler este belíssimo livro. Muito inte-
ressante mesmo: demonstra saber, persistência e fidelidade de
uma existência inteira.

ANTÔNIO OLINTO. Homem sabido, viajado, escritor


e iniciado no candomblé. Foi adido cultural do Brasil na
Nigéria. Tem vários livros publicados. A Casa da Água e O Rei
de Keto são dois romances seus de uma beleza sem igual. Do
primeiro, há uma terceira edição de 1978, publicada pela Difel.
O segundo é de 1980, publicado pela Editorial Nórdica. Esses

160
dois romances se constituem, sob forma de romance, uma
maravilhosa vitrine do pensamento nagô. Você terá oportuni-
dade de perceber, através da leitura atenta, quanta coisa existe
no Brasil que se constitui herança da cultura do povo nagô.
Coisas que as pessoas dizem, fazem, usam, pensam e vivem e
nem sequer desconfiam que estão simplesmente pondo em
prática uma vivência nagô.

FERNANDO CORREIA DA SILVA. Um livro gostoso


de se ler, o de Fernando, Contos Africanos. Bem verdade, não se
trata de uma obra sobre itans, Ifá, terreiros, nada disso. É uma
belíssima reunião de contos organizada e prefaciada pelo autor.
Sua importância se deve ao fato de que, através de histórias reco-
lhidas dos mais diversos povos da África, essa antologia oferece
um painel muito largo do pensamento africano, de um modo
geral. E isso é muito importante para que se possa entender cer-
tas características da nossa afro-descendência. É uma publicação
das Edições de Ouro, sem data. Leia, você vai gostar.

JUANA ELBEIN DOS SANTOS. De nacionalidade ar-


gentina, há muito tempo adotou o Brasil como sua segunda
terra. Andada por muitos países, pesquisadora incansável, sabida
e dedicada. Tudo o que ela faz leva a marca da paixão e da
profundidade. Tem inúmeros escritos publicados no Brasil e
no exterior. Sua obra mais famosa é Os Nagô e a Morte, resul-
tante do doutoramento em Etnologia, na Sorbone, em 1972.
Há uma nona edição de 1998, pela Editora Vozes. Esse livro
exige muito amadurecimento e uma boa dose de informações
prévias por parte do leitor. Não é uma leitura para distração.
Ela examina com muita propriedade como os mecanismos ri-
tuais do povo nagô foram elaborados no Brasil, comparando
com o que se faz na África, atualmente. Muitos itans aparecem
no livro, em iorubá e em português.

161
JÚLIO BRAGA. É um pesquisador acadêmico, mas tam-
bém é um iniciado no culto aos orixás. Tem inúmeros escrito
publicados, mas o seu livro O Jogo de Búzios: um estudo da
adivinhação no candomblé é o mais importante para o assunto
que eu venho mostrando até aqui. Ele narra inúmeros itans e
aborda as questões relativas à arte de ler o futuro, do ponto de
vista do povo-de-santo, com muita propriedade. Demonstra
um alto nível de investigação, exigindo leitura atenta e espírito
de observação. Foi publicado pela Editora Brasiliense, no ano
de 1988. Outro excelente livro dele é Contos afro-brasileiros,
um primor de coletânea de histórias-exemplos. Há uma se-
gunda edição, revista e ampliada, de 1989, publicada pela Fun-
dação Cultural do Estado da Bahia.

J. VIALE MOUTINHO. É organizador de um livro,


Contos Populares de Angola: folclore quimbundo. Creio que o
melhor é copiar as próprias palavras do autor, quando diz, na
apresentação do referido livro: “Este livro compreende contos
populares angolanos do folclore quimbundo, os quais foram
selecionados da mais vasta recolha até agora efetuada, a de Hélio
Chatelin, que a publicou em edição bilíngüe (quimbundo-in-
glês), em 1984, nos Estados Unidos.” Fica, então, evidente que
as histórias deram uma volta enorme para chegar ao Brasil. O
autor dá um tratamento culto à linguagem, o que deixa perce-
ber um certo tom de desencontro entre os personagens que
vivem as histórias e suas falas. Mas o livro vale pelo resgate da
memória e por possibilitar também o reconhecimento de cer-
tas sobrevivências da herança angolana no Brasil.

LAÚS E BONIK. A Editora Cátedra tem uma linha de


publicação chamada Coleção Cabala. O volume 11 é Ebós de
Odu, desses dois autores. Eles mesmos declaram: “Este livro
tem como principal objetivo esclarecer o público a respeito de

162
um assunto tratado com a maior seriedade. O tema desenvol-
vido com clareza é sobre Odu.” Na verdade, o objetivo é muito
pretensioso, tendo em vista o que eles escreveram. É um livri-
nho simples, de fácil leitura. Não tem lá essas profundidades,
mesmo porque os autores se prendem muito a uma linha de
receituário. Mas vale a pena tomar contato com algumas infor-
mações que eles fornecem.

MARIA APARECIDA SANTILLI. Seu livro, Estórias Afri-


canas, na verdade, é uma antologia. Reúne narrativas de Ango-
la, Cabo Verde e Moçambique escritas por africanos que labu-
tam e crêem nos movimentos de libertação. As estórias podem
revelar aspectos identificadores entre a nossa cultura e as cultu-
ras que geraram os textos que ela selecionou. É uma publica-
ção da Editora Ática, do ano de 1985. Quando você ler este
livro, certamente vai enxergar que nós temos muito mais do
africano do que realmente imaginamos.

MESTRE DIDI. É o nome de Deoscóredes Maximiliano


dos Santos, autor de vários escritos. Também é artista de reno-
me internacional, escultor de insígnias sacras com temas nagô.
Tem obras publicadas no Brasil e no exterior. Foi um dos pri-
meiros a passar para a escrita as histórias de nagô conservadas
na Bahia. Seus livros são de fácil leitura e merecedores de toda
atenção. Sem Mestre Didi, a Bahia teria perdido a memória de
muitas histórias. Tem publicado: Contos Negros da Bahia, de
1961, e Contos de Nagô, de 1963, ambos pelas Edições GRD;
Contos de Mestre Didi, de 1981, pela Editora Codecri e Contos
Crioulos da Bahia, de 1976, pela Editora Vozes, com prefácio
de Muniz Sodré e introdução de Juana Elbein. Ler seus contos
é tomar conhecimento do quanto o brasileiro, principalmente
o baiano, herdou do povo nagô.

163
MICHAEL DEMOLA ADESOJI. Professor, comercian-
te e escritor nigeriano. Estudou no Brasil e já tem vários livros
publicados. O seu trabalho é desligado dos costumes acadêmi-
cos, mas nem por isso deixa de ser muito interessante. Em 1991,
publicou, pela Editora Cátedra, um volume intitulado Ifá: a
Testemunha do Destino e o antigo oráculo da terra yorubá. Apre-
senta uma listagem com os nomes e desenhos configurativos
dos 256 odus de Ifá.

PIERRE VERGER. Fotógrafo francês que decidiu viver


na Bahia e dedicou toda a sua vida ao estudo da cultura afro-
baiana. Andou pelo mundo e viveu na África, durante algum
tempo, pesquisando a cultura iorubá. Tem muitos livros im-
portantíssimos publicados no Brasil e no exterior. Iniciado no
culto de Ifá, na África, era babalaô, com o nome de Fatumbi. A
respeito dos itans, publicou Lendas Africanas dos Orixás. Um
belo livro, com ilustrações de Carybé. A Editora Currupio já
publicou uma segunda edição deste maravilhoso livro em 1987.
São vinte e quatro itans, narrados com uma fidelidade maior.
É claro que Verger tinha alma nagô e, por isso mesmo, ele
acrescentou mais um itan. Não deixe de ler: vale a pena.

REGINALDO PRANDI. Sociólogo, professor e pesqui-


sador. É também um iniciado do candomblé, com alto posto
na hierarquia de terreiro. Tem vários livros e artigos publica-
dos. Em Herdeiras do Axé, de 1996, dedica um capítulo inteiro
ao oráculo afro-brasileiro. Foi editado pela Hucitec. Agora,
acaba de sair sua mais nova publicação, Mitologia dos Orixás. É
o livro de maior fôlego que já se publicou no Brasil sobre tal
assunto. Ele conseguiu a proeza de arrebanhar o fantástico
número de 301 itans de Ifá. Além dos itans, há uma espécie de
introdução, em que o autor dá conta, de forma primorosa, do
que existe de melhor, no mundo acadêmico, sobre o assunto.

164
Seus trabalhos levam o zelo, o cuidado e o rigor da pesquisa
acadêmica. Exigem, por isso mesmo, leitura mais cuidadosa.

RUY PÓVOAS. Apesar de saber que quem gaba o toco é a


coruja, eu seria um falso se não lhe dissesse que também já
escrevi outros textos sobre o assunto. Existem vários artigos
meus publicados em vários números do Jornal Tàkàdá, infor-
mativo da comunidade religiosa Ilê Axé Ijexá, Itabuna, Bahia;
na Revista Kàwé e na Especiaria-Revista da UESC, ambas as
publicações pela Editus — Editora da Universidade Estadual
de Santa Cruz, Ilhéus, BA. Uma outra publicação minha é A
Linguagem do Candomblé: níveis sociolingüísticos da integração
afro-portuguesa, pela José Olympio, de 1989, onde trato de
problemas relativos às variantes lingüísticas utilizadas pelos fa-
lantes das comunidades de terreiros. Em 1996, publiquei Itan
dos Mais-Velhos, pela Editora BDA, Salvador, Bahia. Esse livro
foi distinguido com o Prêmio Xavier Marques da Academia de
Letras da Bahia. Mas abordo o tema sob um prisma literário.
Afinal, também sou contista. Mas prefiro que você mesmo for-
me seu juízo a respeito do livro. Leia, você vai gostar. Princi-
palmente, vai dar gostosas risadas.

SUKIRU SALAMI. Nascido na Nigéria e residente no


Brasil, por mais de vinte anos. É pós-graduado em Ciências
Sociais e professor de Cultura Iorubá. Tem uma publicação em
dois volumes, A Mitologia dos Orixás Africanos. É uma obra
dedicada ao relato de rezas, saudações, evocações e cantigas
usadas na África e traduzidas para o português. Vale a pena ler,
até mesmo para se comparar com textos de igual conteúdo,
conservados no Brasil. Um verdadeiro achado para quem dese-
ja textos em iorubá, sem sair do Brasil.

165
WILLIAM BASCOM. Eu disse que não ia me referir aos
estrangeiros, mas este vale a pena. Se algum dia você tiver aces-
so a suas obras, não deixe de ler. Pena que não estão traduzidas.
A primeira delas, Ifa Divination: Communication between Gods
and Men in West Africa, continua sendo incomparável. Inteira-
mente dedicada a Ifá, traz um número considerável de itans,
comentados e traduzidos para o inglês. É uma publicação da
Indiana University Press, Bloomington e Londres. Em 1995,
esse livro já estava na nona edição.

ZECA LIGIÉRO. A Editora Record publica uma Coleção


Iniciação. Entre os volumes já publicados, A Iniciação ao Can-
domblé é de autoria de Zeca. Obra sintética que possibilita, de
imediato, uma primeira compreensão do que seja candomblé.
A parte III é dedicada ao Ifá. Leitura para uma primeira toma-
da de informação, rápida e resumida. Serve muito bem àqueles
que ainda não têm informação alguma sobre o assunto.

Consegui me lembrar de dezesseis nomes. Mas espere aí...


Gente, dezesseis é um número importante para o nagô. Ah,
meu Deus! Os odus de Ifá... Mas você se lembra? Sempre tem
mais um. E para não perder o costume, vamos a ele:

CARYBÉ. Não; não é um livro qualquer. É um livro enor-


me no tamanho e na qualidade artística. Mede 42cm de com-
primento por 32 de largura. E além disso, é pesado. Chama-se
Iconografia dos Deuses Africanos no Candomblé da Bahia. Tem
apresentação de Antônio Carlos Magalhães (que era Governa-
dor da Bahia), apresentação de Jorge Amado e textos antropo-
lógicos de Pierre Verger e Waladoir Rego. Na sua essência, o
livro é uma galeria de arte. Expõe, com exclusividade, 128 aqua-
relas de Carybé, todas voltadas para o universo do candomblé
da Bahia. É uma publicação da Fundação Cultural do Estado

166
da Bahia, juntamente com o Instituto Nacional do Livro e com
a Universidade Federal da Bahia. É um livro caro e raro. Por
isso mesmo, quando você for a uma boa biblioteca, não deixe
de ver, olhar e ler esta maravilha. Garanto: você vai ficar de
boca aberta.

Agora, vamos parar por aqui. Se comecei com agradeci-


mentos, termino por agradecer. Também agradeço a VOCÊ
que achou por bem ler este livro. Obrigado, mesmo! Depois, a
gente se fala. Um abraço nagô. Axé!

Ti-ti-ti, minha galinha branca,


ti-ti-ti, minha galinha pedrês...
Meu avô manda dizer:
“Agora, volte ao início
e releia os vinte e seis.”
E não esqueça:
tem mais um.1

1
P.S.: Se você souber de algum itan, não deixe de me avisar. Poderá entrar em contato
comigo, através de [email protected] ou [email protected]. Ou ainda, escrevendo para Rua
São Vicente de Paula, 257/904, 45.600-000 - Itabuna, BA. Eu ficarei agradecido. O tele-
fone do Kàwé é 0XX(73)680-5157.

167
168
Você abre, na grandeza do narrar, a possibilidade de que
muitas das histórias que circulam na intimidade de uma
casa-de-santo, histórias que revelam princípios filosóficos,
éticos e estéticos, possam adentrar na intimidade da casa do
outro, sinalizando outras formas de conviver, de pensar o
mundo. A Fala do Santo é a multiplicidade das vozes dos
orixás, ecos da senzala, da mistura étnico-cultural que
convida o homem e a mulher brasileiros a compartilhar um
espaço de reconhecimento das nossas marcas.

C. O. e M. S.

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