Angustia-Graciliano Ramos - SP - V2 PDF

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ANGÚSTIA (1936)

Graciliano Ramos (1892 - 1953)


LIVROS DO VESTIBULAR FUVEST
ESTUDO POR JAIRO J. B. SOARES

Cinzas, 1895, Edward Munch

´
Laboratorio
de Literatura
Jairo Soares
By Adriano Chan
1- APRESENTAÇÃO E SINOPSE
Angústia, de Graciliano Ramos, foi publicado em 1936, inserindo-se historicamente
na chamada Segunda Fase do Modernismo brasileiro (1930-1945). A prosa deste período
literário se desenvolve, basicamente, em duas vertentes que não raro se cruzam. De um
lado, a literatura engajada, preocupada com os graves problemas históricos e sociais do
Brasil, caracterizada principalmente pelo chamado Ciclo Regionalista Nordestino. De outro
lado, a chamada literatura de análise psicológica, bem menos privilegiada pela crítica e pelo
público da época, bem como pelos materiais didáticos das escolas brasileiras, mas nem
por isso menos relevante. Apesar de esquematicamente catalogado entre os chamados
autores sociais nordestinos, Graciliano Ramos vai muito além, como esclareceram os crí-
ticos Antonio Candido e Aderaldo Castelo: “É importante considerar, na obra de Graciliano
Ramos, que o social não prevalece sobre o psicológico, embora não saia diminuído. O que
ela investiga é o homem nas suas ligações com uma determinada matriz regional, mas
focalizado principalmente no drama irreproduzível de cada destino”.
É bem o caso do livro que vamos estudar. Angústia, a obra-prima de “investigação
psicológica” do autor, é, de fato, um brilhante mergulho na interioridade do protagonista
narrador, mas não deixa de considerar o peso das pressões históricas e sociais sobre a
psique humana. O livro narra de modo magistral a história de Luís da Silva, descendente
de uma família decadente de senhores de engenho, que luta para vencer a miséria e con-
seguir uma medíocre estabilidade econômica. O frágil equilíbrio dos seus mundos interior
e exterior é desfeito após se enredar em um triângulo amoroso envolvendo uma vizinha,
Marina, moça fútil e interesseira, e Julião Tavares, rapaz rico e sedutor. A partir daí, Luís da
Silva é arrastado tragicamente para um desfecho que o coloca em uma situação de extrema
angústia. Contar a sua história é a maneira que ele encontra de entender o ato que cometeu
e de tentar purgar-se dele.

2- RESUMO DA OBRA
Levantei-me há trinta dias, mas algumas sombras de visões ainda me perseguem.
Os vagabundos na rua me amedrontam. Nas livrarias, julgo ver expostos os rostos dos
autores no lugar dos livros, como se estivessem se prostituindo. Minhas mãos tremem. Na
repartição, não consigo trabalhar; a cara balofa de Julião Tavares está sempre por cima
dos originais na máquina de datilografar. Em casa, tento escrever um artigo para o jornal
enquanto Vitória resmunga na cozinha, mas o tempo passa e só faço rabiscar o nome de
Marina e combinações de letras do seu nome: mar, rima, arma, ira. Traço rabiscos pelo
papel enquanto divago. Penso nos políticos e comerciantes ricos, gente besta que me faz
encolher. Não consigo pagar o aluguel ao monstro do Dr. Gouveia, nem as outras dívidas.
E sempre a imagem daquela coisa amarela, balofa, que é a cara de Julião Tavares. Enfim,
tudo se mistura de repente, minha mão se imobiliza sobre o papel, a tinta da caneta faz um
borrão, e as imagens desaparecem, fico vazio.
Não agüento mais esta vida monótona da repartição. Quando chega minha hora,
tomo o bonde e a imaginação viaja. Penso no meu cadáver amarelo, magérrimo, no meu
enterro. Tais imagens sempre lembram Julião Tavares. Olho para a rua; do lado direito,
casas de gente rica, do esquerdo, mar e navios. Há quinze anos, morava na pensão de
estudantes de D. Aurora, o meu quarto cheirava a gás, meu companheiro Dagoberto espa-
lhava os ossos sobre a cama para estudar anatomia. No fim da linha, o bonde topa com a

2 “Angústia” - Graciliano Ramos


miséria. Na volta, os fundos do Tesouro, onde trabalho, vida de sururu, ordenado mixo. Rua
do Comércio, reconheço pessoas que me conhecem, muitos me desgostam. O bonde roda
para oeste, sinto-me voltando para o interior de onde vim.
Meu avô Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva decaía, esclerosado. Zanzava
quase em roupas de baixo pela vila, bebia e jogava até ser socorrido por um ex-escravo de res-
peito, mestre Domingos. Nos últimos tempos, chamava sempre pela minha avó morta, Sinhá
Germana, que terminou seus dias xingando escravas que não existiam. Meu pai, Camilo Pereira
Silva, manzanzando na rede, picava fumo, lia o Carlos Magno e sonhava com vitória na política.
O vaqueiro Amaro, a cachorra Moqueca, Quitéria na cozinha, e eu brincava sozinho. Sempre
brinquei sozinho, mesmo quando meu avô morreu e fomos morar na vila. Na escola, aprendi o
catecismo e os verbos. O tempo passava devagar, quando acabava a aula, eu brincava sozinho.
Enquanto emendo um artigo que Pimentel me obrigou a escrever, uma chuva
azucrinante, espécie de neblina pegajosa, me arrasta de novo ao passado. Quando eu era
pequeno, esperava ansioso a chuva, gostava de ver tudo desaparecer sobre a água. Imagino
Marina se banhando ali no quintal vizinho, a idéia do seu corpo nu, arrepiado, bole comigo.
Eu gostava de me lavar na chuva; montava no cavalo e ia mergulhar no poço da Pedra.
Meu pai gostava de me jogar no fundo e puxar quando me sentia afogar. Penso em fazer o
mesmo com Marina, sufocá-la aos poucos por um dia inteiro dentro da água. As lembran-
ças começam a se confundir na minha cabeça, vagos indícios que a imaginação completa:
os sermões de Padre Inácio, Seu Evaristo enforcado, Mestre Justino e a escola triste, três
velhas formiguinhas do outro lado da rua, cuidando de suas roseiras. A primeira vez que
vi Marina, ela também cuidava das suas plantas, suada, cabelos pegando fogo. Lá estão
novamente gritando os meus desejos. Um arrepio percorre minha espinha. Meu pai cochi-
lava no balcão, eu sentia um silêncio enorme, de repente ouvia vozes que não sabia de onde
vinham. Vozes monótonas, um queixume, um clamor que tomava conta do mundo, saindo
das paredes, dos móveis. De onde viriam? Vou misturando coisas atuais a antigas.
Meu pai morreu quando eu tinha 14 anos. Cheguei da escola e encontrei a casa
tomada: Padre Inácio, cabo José da Luz, o velho Acrísio, Rosenda lavadeira. Ninguém me disse
nada. Passei o dia zanzando, pela casa e quintal, pensando no que tinha sido e seria minha
vida, sentia frio e pena de mim mesmo. E fome. Adormeci encostado ao muro do quintal.
Rosenda me acordou com uma xícara de café, quando o corpo de meu pai estava saindo para
o cemitério. Comecei a chorar, não pelo meu pai, mas pela xícara de café. Até hoje, que me
lembre, nada me sensibilizou tanto como aquele braço estirado, aquela fala mansa de Rosenda
que me despertava. No dia seguinte, os credores foram entrando sem cerimônia. Fiquei sozi-
nho, com medo, pensando no cadáver do meu pai, inchado, verde, com pedaços ficando pretos.
Seu Ivo vem me visitar, fica conversando com Vitória na cozinha. Refugio-me no quarto,
no passado, mas não sou o mesmo daquele tempo. Sou um molambo estragado pela cidade.
Enquanto fumo, as figuras vêm: o barbeiro André Laerte e o negociante Filipe Benigno discutindo.
Seu Batista passeia na calçada. D. Conceição, mulher de Teotoninho Sabiá. Carcará gargalhando.
O Doutor Juiz de Direito contando casos ao Vigário. Cabo José da Luz cantando tristezas à porta
do quartel. O sino da Igrejinha. Não; é o relógio da sala de jantar batendo oito e meia. Apresso-me
para estar na repartição às nove. Paro sobressaltado, não tenho consciência dos meus movi-
mentos; está claro que meu desarranjo é interior. Por fora sou um cidadão comum: Luís da Silva,
pobre diabo que vai para o trabalho maçador. Sinto-me imóvel na rua como o cadáver do meu
pai apodrecendo debaixo da terra. D. Conceição e as meninas dela, D. Maria e Teresa, vinham me
consolar, oferecer-me comida. Agradecia e me retraía, como animal acuado. A alma do meu pai

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pagava as penas da preguiça no purgatório. Um dia, resolvi desertar para terras distantes, peguei
minha trouxa e os livros da escola. Começo a me apressar para não perder a hora do ponto. Luís
da Silva, a caminho da repartição, lesando, pensando em defuntos.
Este mês fiz um sacrifício e dei cem mil-réis ao Moisés. Precisava pagar ao judeu
uma parte da dívida pelos panos caros que comprei para Marina. É meu amigo, péssimo
cobrador, trabalha para o tio, este sim, judeu verdadeiro. Quando lhe dei o dinheiro, declarou
saldada a dívida. Agora podíamos nos sentar na mesa de entrada do café e conversar. Gosto
do café. Fico reparando nos grupos, médicos, advogados, comerciantes, funcionários públi-
cos, literatos, desembargadores. Meu olhar é para eles, enquanto escuto Moisés, inteligente,
comentar as notícias do jornal e pregar a revolução, até que entra o chefe de polícia e ele se
cala, acovardado. Quando aparece Dr. Gouveia, chamo Moisés para sair. Sentamo-nos num
banco da Praça Montepio. Sinto-me incomodado pelos casais que se esfregam nos bancos do
centro. Cachorrada! Meu amigo fala da perseguição aos judeus na Europa. Deve ser mentira,
conto-lhe da miséria aqui mesmo. Minha história: viajando de fazenda em fazenda, professor
cigano, ensinando as primeiras letras; depois a vida de caserna; tempos depois, os olhos
queimando em trabalhos de revisão. E coisas que não conto: a humilhação pedindo esmolas
como escritor, a peregrinação em busca de um pistolão em Maceió; enfim me encostaram
na repartição. Eu obedecia a tudo, ia roendo meu osso com ódio, tão diferente do meu avô,
que até enfrentara Doutor Juiz de Direito para libertar cangaceiro do bando de Cabo Preto.
Moisés não se interessa por esta história. A ele agrada falar sobre a seca, o sofrimento dos
sertanejos de onde vim. Tento me lembrar das secas, mas a verdade é que não sofríamos:
meu avô caducava, meu pai lia Carlos Magno, minha avó morrera, o resto do povo da fazenda
era bruto demais, insensível demais para sofrer, iam se virando. Minhas dores viriam depois.
A minha criada Vitória tem uns cinquenta anos. É feia que dói, tem pelancas no
pescoço, muitos pêlos no buço e verrugas escuras. É meio surda. Tenta ensinar o papa-
gaio mudo a falar. Diverte-se lendo no jornal as notícias dos navios que chegam e partem.
Quando chega a data do pagamento, excita-se, passa a esgaravatar o chão perto do canteiro
das alfaces, onde enterra seu dinheiro, fazendo contas intermináveis. Volta e meia, somem
alguns níqueis que deixo nos bolsos, até mesmo, uma vez, uma nota alta que estava na
carteira. Daí a pouco, reaparecem.
Em janeiro do ano passado, a vida corria bem. Quinhentos mil-réis de ordenado, sete-
centos, com uns bicos. Não devia a ninguém, os chefes me toleravam, os amigos apareciam de
vez em quando. Estava eu uma tarde lendo um livro ruim na espreguiçadeira do quintal quando
percebi um vulto se mexendo na cerca. Não era a senhora idosa que lá morava. Que teria acon-
tecido a ela? Morrera, disse-me Vitória mais tarde. O vulto era uma moça vermelhaça, olhos
azuis e cabelos amarelos que doíam. Muito poético, a lambisgoia que parecia estar em todos
os lugares do quintal ao mesmo tempo. Essas coisas de mulher não me interessavam. Tenho
trinta e cinco anos, sou tímido e muito feio. No passado, atracara-me com uma rapariga des-
bragadíssima do Cavalo-Morto, depois com uma alemãzinha bonita e jeitosa que encontrara
na rua, Berta. Mas a minha vida sempre fora alimentar o rato que me roía por dentro. Uma vez,
fizera a burrice de convidar D. Aurora e a neta para um cinema. Arrependi-me no caminho,
fazendo as contas do bonde, da entrada, do refresco depois. A moça abriu o leque das pernas
e botou a minha entre as dela, mas eu só fazia pensar no dinheiro desperdiçado.
À noite, não conseguia prestar atenção em Pimentel e Moisés. No dia seguinte,
sábado, a moça estava lá novamente, acompanhada de uma mais velha que parecia parenta,
atrapalhando a minha leitura. Perua, unhas pintadas, o pernão aparecendo. Vitória não

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sabia quem eram. Passei a noite imaginando cenas terríveis com ela. Levantei aperreado;
passei uma semana murcho, pensando em safadezas.
Moro na Rua da Macena, perto da usina elétrica. Cento e vinte mil-réis mensais de
aluguel. Mas, para minha história, o que interessa é o quintal. Lá, debaixo da mangueira, me
sentava todas as tardes para ler. À direita há um muro, a vizinha, D. Rosália, é antipática, ama-
rela e muito faladora. À esquerda há a cerca e o quintal onde vi Marina. Há nele um mamoeiro,
roseiras mesquinhas, um monte de lixo, água estagnada. Tornei-me amigo da rapariga, que
era definitivamente estúpida, imbecil, safada: unhas e beiços pintados, preguiçosa, admirava
os homens de smoking e D. Mercedes, uma espanhola vizinha que recebia o amante à noite,
só lia os romances comoventes da biblioteca das moças. Mesmo assim conversávamos, às
vezes, até a noite chegar. Vitória xingava-a pelos cantos: “Peruinha, cabritinha descarada,
franguinha assanhada!” Eu entrava e fica passeando pela casa, volta e meia chegava à janela
e olhava para a esquerda. Tinha três contos de economia no banco, dava para casar. Mas
Marina, sinceramente, era Rua da Lama total. Deixe de besteira, Seu Luís.
Por aquele tempo, apareceu-me Julião Tavares. Filho de um dos comerciantes de
Tavares & Cia., gente rica e influente. Esbarrei com ele em uma festa no Instituto Histórico;
era patriota ao extremo, reacionário e católico. Tentei fugir dele, mas foi se imiscuindo em
minha vida e me afastando dos amigos. Minha rotina era escrever. No passado, compusera
umas duzentas páginas de sonetos, quando métrica e rima valiam alguma coisa. Um dia,
vendi uma página a um colega de pensão, hoje elas são menos de cinquenta, e o preço bai-
xou de cinquenta para dez mil-réis. Trabalhava para um jornal, à noite, escrevendo artigos
de encomenda para chefes políticos do interior; artigos complicados, cheios de adjetivos
doces ou amargos que me enjoam. Pimentel, Moisés e Seu Ivo apareciam em casa, mas
não incomodavam, ficavam quietos no seu canto. Este é um mendigo mal educado, que
viaja pelo estado inteiro, entra na casa de todos, arranja comida e não agradece. Julião veio
bagunçar esta rotina; era impossível trabalhar com ele por perto.
Antes, éramos eu, Moisés, Pimentel, Seu Ivo e Vitória. Não havia discórdia em
nossas discussões, as expansões eram francas. Mas Julião Tavares era intragável: gordo,
bem vestido, perfumado e falador; uma amabilidade toda na casca. Tudo nele era postiço,
tudo dos outros. E passou a me perseguir durante semanas, na repartição, no cinema, no
jornal, no café. Ele e sua voz antipática louvando o Brasil, os fabulosos poetas alagoanos, a
perícia do pai em juntar dinheiro.
Agora eu conhecia D. Adélia, mãe, e Seu Ramalho, pai de Marina. Certo dia, conver-
sando com a velha sobre a carestia, ela me pediu que arranjasse um emprego para a filha,
coitado de mim! Seu Ramalho chegou e recriminou a mulher. Não gostava da filha; achava
que aquela não daria pra nada, quem se casasse com ela faria negócio ruim. Enquanto
conversávamos, passou rebolando Antônia, criada de D. Rosália. Volta e meia, a coitada
arrumava os trapos e seguia algum homem. Era uma ingênua, meio selvagem, tinha grande
necessidade de machos e sempre se estrepava. Mas a patroa a recebia de volta, porque as
crianças eram doidas por ela. Antônia trazia-me sentimentos bons.
O calor era grande. Abri uma janela, avistei uma mulher que lavava garrafas e
um homem triste que enchia pipas. Pensava em D. Mercedes e seu amante, um figurão
caloteiro, que vivia das aparências, arranjado no Estado. Aquilo me deu raiva. Peguei o
livro e fui me deitar na espreguiçadeira, debaixo da mangueira. Semicerrei os olhos, abor-
recido. Passei uma semana arranjando colocação para Marina, só consegui um emprego

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de cem mil-réis numa loja de fazendas. D. Adélia lavava roupa e tossia. E eu ali, esperando
minha franguinha aparecer. Devia estar se raspando, os sovacos, as sobrancelhas, ou então
pintando as unhas. De repente ela apareceu no meu campo de visão, com aquele risinho
cochichado, como um rato, “chi, chi, chi”. Ia e vinha pelo quintal, oferecia a bunda apertada
na saia justa, o pernão moldado pela meia de seda. E aquilo prestava?
Quando ela foi se aproximando da cerca, senti uma espécie de desmaio, o livro caiu,
sentei-me e ela riu. Espantei os pensamentos ruins da cabeça. Falei a Marina do emprego,
o seio querendo pular do decote. Ela fez muxoxo, mas agradeceu mesmo assim. Peguei-lhe
na mão, escurecia. Mordi-lhe a mão, o pulso, o braço, abracei, beijei-lhe a boca, minhas mãos
corriam pelo seu corpo, um peito escapou da roupa. Ela se recompôs, assustada. Expliquei
que lhe queria bem, que podíamos nos encontrar mais tarde. Seu Ramalho gritou pela filha.
Falei em casamento. Gostava dela. Era amarrar uma pedra no pescoço e mergulhar.
Uma família esquisita veio morar na nossa rua. Um velho barbudo e encolhido,
três moças amarelas e sujas, mal vestidas, ruivas e arrepiadas. Não se relacionavam com
ninguém. A vizinhança se alvoroçou. D. Mercedes garantiu que as moças eram filhas e aman-
tes do velho. Não havia provas, mas a história pegou. Passaram a chamá-lo de Lobisomem.
Aquela história me enervava. Nem mesmo nos meus encontros com Marina, à noite, estava
livre dos comentários. Além disso, me lembrava de um caso da vila, um cearense cheio de
feridas, saído da prisão, que foi pedir esmola na rua das putas. Um dia encontraram o homem
abrindo as pernas da filha, de onde corria sangue. Encheram o coitado de pancada e ele
confessou que havia desvirginado a menina. Foi condenado. Anos depois, os médicos des-
cobriram que a menina era virgem; o velho estava tentando curar um corrimento da filhinha
com remédios brutos da medicina sertaneja, quando o pegaram, confessou para não apanhar
mais. Julião Tavares achava a história “natural, a justiça não é infalível”.
Marina defendia com unhas e dentes a sua virgindade. Com o tempo, acabei por
aceitar os seus defeitos. Queria que eu lhe pedisse a mão, queria casar. Eu tinha boa vontade,
mas me aborrecia o discurso a Seu Ramalho, a ideia de decorar casa, fazer convites com
letras douradas, alugar carro, postar-me diante do juiz e do padre. Talvez os três contos
voassem. Eu queria arranjar tudo com simplicidade.
No outro dia, retirei quinhentos mil-réis do banco e entreguei a Marina para que
começasse a comprar os panos, a roupa branca. Saindo de casa, a primeira pessoa conhecida
que encontrei na rua foi Julião Tavares. Senti um estremecimento desagradável, fingi não vê-lo.
Depois da repartição, comprei um bilhete de loteria ao cego do café. Se tirasse uns cem contos,
faria uma casa no alto do Farol, com vista para a lagoa, as paredes enfeitadas com quadros a
óleo, o chão forrado de tapetes, a cama com colchão de paina, colcha de bordado fino.
Com o dinheiro, Marina comprou calças e camisas de seda, quase nada. Dei-lhe
mais, pedindo economia. Meu dinheiro no banco foi-se embora. De lembrança, comprei-lhe
um relógio-pulseira e um anel. Saí da joalheria falido, vinte mil-réis no bolso e uma satisfa-
ção maluca. Ao chegar em casa, recebi um choque: Julião Tavares, à janela da minha casa,
pregava os olhos em Marina do outro lado, e ela correspondia. Entrei uma fera em casa,
não ouvia sequer a fala mole e engordurada daquele sujeitinho. Comecei a andar pela sala,
olhando para o chão, como é de meu costume. Na fazenda, eu gostava de atirar pedras nas
cobras, até esmagá-las. Um dia, uma cascavel se enrolou no pescoço do velho Trajano. Na
rua, os calceteiros consertavam o calçamento. Lembrei-me de cruzes à beira das estradas,
por onde andara; sempre a mesma história: “um sujeito que namorou a noiva de outro”. Olhei

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para Julião, vi o seu pescoço estirar-se, os ossos se afastarem, os beiços se entreabrindo,
roxos, intumescidos, a língua escura, os dentinhos de rato. Julião levantou-se e saiu.
Bebi uns tragos de aguardente, não quis jantar. Saí, fui ao jornal, entrei para uma
sala de projeção, mas não via o filme. Quando a realidade me entra pelos olhos, o meu
pequeno mundo desaba. Encontrei Moisés à saída. Às onze horas, estava no Helvética,
bêbado. Chamei uma rapariga magra e feia para sentar-se comigo. Paguei-lhe o lanche e
fomos para a casa dela, na Rua da Lama. No quartinho sujo, pensava no dinheiro gasto, sen-
tia o veludo da caixinha de jóias nas minhas mãos dentro do bolso. A rapariga era mesmo
feia, acabada, uma infeliz. Como pudera me deixar enganar tanto? Melhor assim: perdera
o dinheiro, mas conservara a liberdade. A moça não quis receber, não tínhamos feito nada.
Insisti com raiva, dei-lhe dez mil-réis, só me sobraram quatro.
A princípio, Marina me convenceu de que eu não tinha razão, tinha era falta de
confiança. Não queria ser injusto, não tinha provas e as aparências enganam. Sufoquei o seu
choro com as jóias; ficou tão feliz que cheguei a estranhar a repentina mudança. Mas não
quis marcar o casamento, desculpava-se que ainda faltavam coisas. Fiz a lista, comprei do
mais barato, a prestação, com o tio de Moisés. Quando lhe levei os trapos, nem quis vê-los
direito, ficaram jogados sobre a cadeira. Ela, muda, sequer usava o relógio e o anel que lhe
dera na véspera. Provavelmente estava longe, pensando no homem que lhe daria tudo aquilo
que eu nunca poderia dar. Lembrei-me de cenas do meu passado miserável, da pobre mulher
da rua da lama. Prostituição pior era se casar por dinheiro. Levantei-me e fui embora.
Por que Marina não procedeu com franqueza? Eu teria sofrido despeito, mas não
seria esta miséria, recordação de coisas mesquinhas. De todo aquele romance, guardo na
memória o cisco, a água empapando a terra, urubus na mangueira farejando ratos mor-
tos no lixo amontoado no quintal. Tão morno, tão chato! Não se falou mais em casamento.
Marina foi se desembaraçando de mim aos poucos. À tarde, me embromava; pela manhã,
plantava-se na janela e se enxeria com Julião Tavares. Comentei o escândalo com D. Adélia,
para torturá-la, mas a velha era uma coitada. Eu devia era mudar de casa. Como trabalhar
com o barulho inconveniente dos ratos devorando o guarda-comidas e os meus livros? Eram
em número cada vez maior, uma chiadeira infernal, e cada vez mais atrevidos, vinham roer
minhas sandálias. À noite, havia também o barulho da rede de Marina rangendo, talvez ela
estivesse nua, por causa do calor. Nenhum romance conseguia me livrar do tormento. Ela
devia pensar nas banhas de Julião, inútil, preguiçoso, discursador.
Em um mês, éramos inimigos. Tentei reparar em outras mulheres na rua. Até
cheguei a me interessar por uma datilógrafa de olhos verdes de gato, com quem cruzava
sempre na rua, mas ela sumiu por uns tempos. Julião metera-se na casa, contra a vontade
de Seu Ramalho. À noite, levava presentes para as mulheres, embrulhos, latas, talheres. Eu
ouvia as risadas, as conversas, os discursos pastosos do canalha. A vizinhança já comentava.
Punha-me a passear pelo corredor, olhando para a biqueira dos sapatos e para um cano que
vazava, esticado como uma corda, rente à parede. A voz de toicinho cru de Julião Tavares atra-
vessava as paredes e me atormentava. Mas me concentrava era nos silêncios dos jantares;
que indecências não estariam praticando? Tentava pensar em outras coisas: os crimes depois
da revolução de 1930, Moisés desaparecido por causa da perseguição, Seu Ivo que me furtara
uns pratos, a datilógrafa de olhos verdes que sumira, a menina da Rua da Lama que fora parar
no hospital. Mas a voz oleosa me perseguia, a gordura se derramava pelas paredes. Era pre-
ciso dar cabo dela. Mexia-me, tossia. E olhava com insistência para o cano ao pé da parede,
capaz de rebentar a cabeça de um homem, mas aquele, estirado, mais parecia uma corda.

“Angústia” - Graciliano Ramos 7


Aos domingos, iam ao cinema, juntos, de braços dados. A vizinhança povoava
as janelas para vê-los e comentar o passeio. Meu pensamento ia junto com eles, Marina
e Julião Tavares se esfregando pelo caminho; na sala de espera, todos invejavam Julião
Tavares, Marina fazia água na boca dos homens. Escurecia, eu me debruçava na janela.
O vento gemia nos arames da companhia de eletricidade do Nordeste. Onde andaria a
datilógrafa de olhos agateados? Sonhava em encontrar e proteger aquela moça, constituir
família. Eu devia acabar com aquela maluqueira e ir para a farra. Seu Ramalho vinha puxar
conversa. Eu ouvia os arames e pensava em cordas. A literatura para políticos da roça
escasseava, eu precisava beber e me endividava cada vez mais. Mas em que eu pensava
mesmo era na miséria antiga. A fome, a humilhação, os devaneios. A noite passava, os
arames balançavam como cordas. Lembrava-me da pensão de D. Aurora. Àquela hora, o
Capitólio esvaziava, mas Julião Tavares e Marina demoravam, era tarde. Seu Ramalho bri-
gava com D. Adélia, que chorava e arrumava desculpas esfarrapadas para defender a filha.
Que diabos fazia eu ali, debruçado á janela, fumando?
O marido de D. Rosália era um caixeiro-viajante, moreno e calvo, que andava sem-
pre no interior. Quando chegava, Antônia vinha avisar, então era uma semana ou pouco mais
em que o casal vivia excitado. Era um amor ruidoso, indiscreto, que não me deixava dormir.
Antes da minha cabeçada com Marina, eu simplesmente me arrumava e saía. Mas agora não
conseguia arredar pé de casa. Passava o tempo pensando em me reconciliar com ela. Que
me importa que tivesse sido de outro? Aquilo tinha sido um erro, mas todos erram. Não se
faziam mais mulheres como Sinha Germana, que havia sido somente de Trajano Pereira de
Aquino Cavalcante e Silva, que a amava como um bruto. Se ela voltasse, esquecida de Julião
Tavares, poderíamos ser felizes. À noite, D. Rosália e o marido resfolegavam, atiravam-se
um sobre o outro no quarto paredes-meias com o meu. Eu não conseguia dormir, esfregava-
-me no colchão cheio de pulgas. Tentava pensar em várias coisas e em nenhuma ao mesmo
tempo. A guerra na Europa, Moisés se ocultando com medo da polícia, os discos novos que
D. Mercedes comprara, onde andaria Seu Ivo?, as botinas cambadas do Lobisomem. Tentava
relaxar, transformar-me em um espírito boiando, livre da matéria. Tapava os ouvidos, mordia
os lençóis. Tudo em vão. Um menino começava a chorar, urinava na cama, ouvia-se o som
das gotas no chão. D. Rosália ralhava, o homem respirava arquejante, esperando o corpo
da mulher se atirar de novo. Eu acendia mais um cigarro. Só um corpo boiando como o
espírito de Deus sobre as águas. Quantas horas duraria aquilo ainda? Resfolegavam como
porcos. Sentava-me na cama, queria chorar. Queria sufocar aquele homem que estertorava
no quarto ao lado. Queria apertar o seu pescoço, penetrar os meus dedos na sua carne, até
que ele se imobilizasse, depois das convulsões e estremecimentos. Não me lembrava de
Julião Tavares. Desejava apenas matar um homem que me roubava o sono.
À noite, Seu Luís e eu colocávamos as cadeiras na calçada e conversávamos. D.
Adélia já antipatizava comigo. O velho contava histórias do seu passado: a mulher bonita de
verdade no casamento, a primeira viagem no trem, que descarrilou no caminho, o sarampo
de Marina, antes tivesse morrido, não dava desgosto à família. Atacávamos então as mulhe-
res de hoje, estragadas pela falta de religião e pelos beijos de língua do cinema. Contávamos
causos horríveis de antigamente, vinganças medonhas por causa de mulher. A grande histó-
ria de Seu Luís era de um moleque de bagaceira que arrancara os tampos da filha do senhor
de engenho. O cabra fora amarrado e torturado de faca a noite toda. De madrugada, arran-
caram os quibas dele e enfiaram garganta abaixo, depois arrancaram seus beiços, então
cortaram-lhe a veia do pescoço. Enquanto Seu Luís contava, formava-se na minha mente a
visão de uma figura nua e preta no calçamento da rua, toda retalhada, sem beiços, o sangue

8 “Angústia” - Graciliano Ramos


escorrendo. Seu Luís partia para o seu turno na usina elétrica, a figura no calçamento ia
se tornando branca e balofa, o sangue estancava, as feridas saravam. Marina devia estar
descansando na rede que rangia, deitada de bruços, as pernas abertas por causa do calor.
Uma corda estava amarrada no pescoço branco da figura estendida na sarjeta, o laço ia se
apertando, ele arquejava, os olhos abotoados, a cara roxa, dentes à mostra.
Quando a companhia lírica chegou à cidade, eu estava arrasado de dívidas. Não me
sobrava ânimo para voltar às coisas do jornal, liquidar as contas, equilibrar a vida. Nunca
me interessei por música, mas no dia da estréia um rebuliço tomou conta da casa de Marina.
À noite, ela entrava em uma limousine onde estava Julião Tavares, o carro partia deixando
um cheiro de gasolina e perfumes. Durante cinco dias a cena se reproduziu. Eu saía de
casa, andava à toa, tomava chuva fina da Praça dos Martírios, subia a Ladeira Santa Cruz
e tentava me misturar aos vagabundos que tomavam cachaça. Inútil. Eu não era um deles
nem era aceito por eles. A literatura nos afastou: o que sei deles foi visto nos livros. Minhas
misérias ficaram no passado, agora eu era um parafuso insignificante na máquina do estado.
Recolhia-me ao canto mais escuro e ficava reparando nas figuras do boteco, então o passado
retornava: meu susto ao descobrir o tamanho das ruas da vila, as brincadeiras dos meus
companheiros, alunos de Mestre Antônio Justino, das quais eu não participava, porque meu
pai não deixava; eu não passava de um menino grande, besta e envergonhado. Levantava-me
meio bêbedo, desconfiado de tudo que me rodeava. Insuportável.
O último dia foi medonho. Quando a limousine saiu, minha falta de desejo mistu-
rou-se à carteira completamente vazia. A camisa de Julião Tavares brilhava e não amar-
rotava, ele era duro como um osso engessado, o espinhaço aprumado, olhava em frente
com segurança. Minha camisa estufava no peito; quando caminho, abaixo a cabeça, não há
jeito de minha espinha ficar direita. Mas sou um bípede! Que se danem os três meses de
aluguel atrasado ao Dr. Gouveia, se cruzar com ele, finjo não vê-lo; também não me cur-
varia ao Secretário ou ao Governador. Já comi toicinho com mais pelo! Que será do meu
futuro, quando a revolução proletária chegar? “Camarada Luís da Silva, você escreveu um
artigo defendendo o imperialismo. Você elogiava os políticos safados do interior, os prefeitos
ladrões. Onde está o dinheiro que essa gente lhe deu?” Sabia lá! Não tinha mais dinheiro.
E o que eu queria era poder ir também ao teatro. Mas precisava de um empréstimo. Por
que Moisés ou Pimentel não apareciam? O pagamento estava próximo. Julião Tavares seria
enforcado quando viesse a revolução. Marina iria trabalhar no Asilo das Órfãs. O que eu pre-
cisava era de vinte mil-réis. O espetáculo devia estar começando. Lembrei-me das nossas
entrevistas no quintal à noite, Marina quase sem roupa, curvada, cobrindo os peitos com as
mãos. Ali perto da raiz da mangueira, ao pé da cerca, Vitória escondia os seus cobres, sua
fortuna. Tempo sem fim à janela olhando os carros. Precisava de dinheiro. Vitória preparou o
café e foi deitar-se. A platéia devia estar quase cheia. Afinal Vitória enterrava o meu dinheiro,
que roubava, mas é certo que depois devolvia. Decidi-me a ir pisar a terra que Marina havia
pisado, encostar-me ao tronco da mangueira onde ela estivera nua, enrolada na escuri-
dão, torcendo-se por causa dos meus beijos por todo o seu corpo, o corpo todo coberto de
carocinhos miúdos como pontas de alfinetes. Eu rangia os dentes, pisava com força o chão
que escondia o tesouro de Vitória. os olhos de um gato brilhavam na escuridão, redondos
e fosforescentes. Uma ação indigna. Procurava afastar essa idéia do pensamento. Marina
se mostrava e mostrava a roupa e o lorgnon no teatro, provavelmente estaria amolada com
o espetáculo. As minhas mãos encontraram-se esgaravatando a terra, enquanto os olhos
do gato cresciam assustadoramente sobre mim. Que diabos, o dinheiro foi feito para circu-
lar. Depois eu devolveria tudo, em dobro. Sentia-me um estúpido, não parava de cavar, os

“Angústia” - Graciliano Ramos 9


olhos do gato cresciam. Tinha quase certeza de que, se fosse ao teatro, Marina voltaria para
mim. Estava decidido. Aprofundei a cova até topar com as moedas. Havia de todos os tipos.
Apanhei um punhado de mil-réis, vinte mil-réis e duas libras esterlinas. Um roubo, mas
devolveria tudo em dobro. Fui ao banheiro, lavei as mãos, saí para a rua secando-as no lenço,
as mãos cheirando a azinhavre, sujas de terra. Porcaria.
Levei o desespero a uma alma que vivia sossegada. Quando recebi o ordenado,
repus o dinheiro de Vitória, cento por cento, cinquenta e dois mil-réis e as duas libras ester-
linas. Paguei o salário dela. Como todos os meses, começou a agitação para enterrar as
suas moedas. Mas ela desconfiou, desenterrou tudo, passou a noite contando e recontando o
dinheiro; a diferença roubara-lhe o sono. Não conversava mais com o Currupaco. Estava mais
velha e muito bamba, as covas estavam revolvidas e mal cobertas. Seu céu havia sido violado.
As visitas de Julião Tavares foram escasseando e a alegria ruidosa de Marina aos
poucos desapareceu. Uma tarde, encontrei-a engulhando junto ao mamoeiro, feia, amarela,
torcendo-se, tentando vomitar, cuspindo à toa na roupa.
Um acidente dissipou a fumaça dos meus olhos. Caminho como um cego, sem
nada ver ou ouvir. Estou constantemente esbarrando em gente nas calçadas, quase sendo
atropelado por choferes na rua. Quando isso acontece, minha reação é de vergonha.
“Perdão! Perdão!” A multidão me é hostil e horrível, à noite, na cama, me assombra os
pensamentos confusos. Entre a Rua 1º de Março e a do Comércio, tive uma colisão feia, a
aba do meu chapéu feriu-lhe a testa ou olho. Afastei-me para deixá-la passar, mas o vulto
da mulher gorda, amarela, mal vestida, pés sujos e inchados, com uma barriga monstru-
osa, agressiva, não me saía da cabeça. A princípio, dei risada, era mesmo de espantar a
coragem da mulher, andar por ali com aquela criança pronta para nascer. Depois tive pena,
seria uma coitada de subúrbio, iria parir sem a ajuda de ninguém senão dos vizinhos que a
amaldiçoariam, o marido não se importaria, levantar-se-ia três dias depois e trabalharia o
tempo todo com a criança pendurada ao corpo. Aos poucos, o vulto da mulher foi se trans-
formando e a imagem de Marina formou-se nítida em minha cabeça, com a mesma barriga.
Se encontrasse Julião Tavares naquele dia, um de nós teria ficado estirado na rua.
De manhã, costumo ficar duas horas sentado no cimento do banheiro, nu, fumando.
Nestes momentos, dão-se grandes revoluções na minha vida: tomado de megalomania,
escrevo um livro notável, que provoca amor e ódio dos críticos, torno-me famoso. Isto me irrita,
pois passo o resto do dia com a cabeça no mundo da lua, sem fazer nada direito. O banheiro da
casa do Seu Ramalho é separado do meu por uma parede estreita. Posso distinguir com faci-
lidade as pessoas que se banham lá. Mesmo depois que Marina brigou comigo, nunca deixei
de esperar aquele momento e dedicar a ele uma atenção concentrada. Era capaz de distinguir
cada momento do seu banho ruidoso, alegre, estabanado. Agora estava reservada e silen-
ciosa. Cuspia, soluçava, chorava, lamentava-se, rogava a Deus e aos santos. Eu sentia raiva,
aborrecimento, piedade e nojo. Assim como a imagem da barriga crescendo, enorme, não
me saía da cabeça, ela também devia sentir os pés e os seios inchando, as formas da criança
comprimindo seu corpo. D. Adélia veio dar pancadas à porta, provavelmente já desconfiava,
mas não queria acreditar em infelicidade sem remédio. Marina pôs-se a lavar e cantar uma
cantiga rouca, estrangulada, medonha. Não adiantou, a mãe obrigou-a abrir. Ficaram as duas
cara a cara, depois de um silêncio, Marina pôs-se a chorar e entregou tudo. A velha lamentou,
mas a filha arremetia contra a mãe, arfando, despejando sobre ela sua infelicidade. D. Adélia
quis se impor: “Me respeite, Marina”. Mas como respeitar aquela coitada que um dia fora jovem
e bela, mas que a vida transformou numa bola de sinuca jogada pra lá e pra cá, escangalhada,

10 “Angústia” - Graciliano Ramos


uma desgraça que arrastava seus medos pelo mundo, que sofria pelo resto de dignidade que
possuía? As duas choravam, eu queria chorar também, pela sorte delas e pela minha.
Nem uma única vez elas aludiram a Julião Tavares: as duas mulheres eram fata-
listas e queixavam-se da sorte. Isto revoltava-me; era evidente que Julião Tavares devia
morrer, e esta idéia entrava-me na cabeça como um prego atravessando os miolos, dor
terrível inutilizando as minhas ideias. D. Adélia e Marina estavam, aos meus olhos, justifi-
cadas. Mas Julião Tavares merecia morrer. Os músculos de mestre Domingos eram do meu
avô, mesmo depois de 88. Muitos negros fortes rondavam a nossa casa, filhos dele com
as escravas que tinham se ido da casa, exceto Quitéria, que continuou a parir filhos que
interessavam ao meu avô, mesmo não sendo mais seus. Mesmo decadente, Trajano impu-
nha respeito aos cangaceiros e aos proprietários vizinhos. Lembrava-me disso e sentia
vergonha, os meus muques eram reduzidos, não tinha força nem ânimo, só sabia obedecer.
Pensei na cascavel que se enrolara no pescoço do velho Trajano. Quando ela se desenros-
cou, meu pai Camilo a matou, Quitéria jogou-a longe. Quitéria estava morta, os filhos dela
e de outras pretas começavam a desacatar os descendentes dos antigos, em bandos que
aterrorizavam o interior do Nordeste.
Seu Ivo apareceu aqui em casa, faminto, meio nu e meio bêbedo. Trouxe-me de
presente uma peça de corda que achou na rua. De início, achei aquilo um despropósito e
quis recusar o presente. Insultei mesmo Seu Ivo e fiquei zanzando pela casa, ou em volta
da mesa, enquanto ele comia. Eu estava perturbado, um desconchavo nos modos e nas
ideias. Seu Ivo comeu tudo e foi cochilar acocorado junto à parede, perto do cano d’água.
Recordei-me da morte de Fabrício, cangaceiro compadre de meu pai; fugi de casa e fui ver o
corpo na cadeia pública. Nunca um defunto me causaria tão viva impressão quanto aquele -
eu veria muitos depois. Marina balançava-se na rede, sentei-me à mesa e aproximei a mão
da corda. Na vila, eu vira muitos defuntos acabados a tiro e faca, trazidos para a delegacia.
O povo juntava pra ver o cortejo. Depois do morto, vinha o assassino, imobilizado, os braços
amarrados ao tronco, como um bicho, ventas franzidas, mordendo os beiços, dando puxões
na corda e grunhindo. Se fosse um ladrão de cavalos, um ladrão miúdo, apanharia com cipó
no lombo, até sangrar, mas um criminoso de morte merecia consideração e admiração.
Vitória tirou o prato, olhei de novo para a corda. Quando eu era pequeno, ficava trepado no
último pau da porteira, torcendo para as laçadas de Amaro, que sempre conseguia prender
o animal, com uma habilidade impressionante. Seu Evaristo era um homem muito velho,
tinha vivido em boas condições, mas aos setenta anos passava necessidades. Andando,
curvava-se de fraqueza, precisava abraçar-se à mulher para diminuir o frio à noite. Uma
comissão da vila arranjou-lhe uma subscrição. Ele, orgulhoso, plantou uma rocinha no quin-
tal e dispensou o dinheiro assim que terminou o inverno. Depois veio de novo a privação.
Um dia, sem conseguir trabalho, foi até Seu José Inácio pedir esmola. O dono da padaria
estava zangado naquele momento, tratou-o brutalmente, do que depois se arrependeu.
Seu Evaristo pegou o pão velho que Seu José Inácio lhe deu, levou-o para a sua velha roer.
Quando ela se deitou, passou a mão na corda. Seu corpo magro amanheceu pendurado em
um galho de carrapateira. Eu não consegui chegar muito perto, assustava-me aquele corpo
balançando, suspenso por uma corda fininha, como aquela sobre a mesa, ao alcance da
minha mão. Peguei-a, enrolei e botei no bolso. Fui acordar Seu Ivo e colocá-lo para fora.
Julião Tavares entrava no café. Eu afetava desprezo e ficava olhando sua cara
refletida no espelho, riscada pelas letras brancas nele pintadas. Tentava me distrair emba-
ralhando as letras e criando palavras novas, hábito de que não consigo me libertar. Depois

“Angústia” - Graciliano Ramos 11


que Julião Tavares desapareceu, passei a seguir Marina pelas ruas, tinha certeza de que
ela ia se encontrar com ele, mas isso não acontecia. Seguia-a sentindo-me seguido por
Julião. Minhas mãos apertavam a corda que ficara no meu bolso. O Doutor Chefe de Polícia
estava no café. Meu desejo era passar a corda pelo pescoço de Julião Tavares. Que me podia
acontecer? Medo da prisão? Minha vida lá não seria pior, exceto pela sujeira; tenho horror
à sujeira, às grades pretas e sujas, ao bolor e cheiro horríveis. Se me dessem água, tudo
poderia suportar. Medo de Julião Tavares? Não, ele estrebucharia um pouco, mas seu corpo
balofo ficaria roxo em cima do mármore da mesa, com a língua para fora. Medo da opinião
pública? Não há opinião pública, há pedaços de opinião contraditórios, manipulados por
jornalistas como Pimentel, como Luís da Silva. Mas com certeza temia tudo isso, estava no
meu sangue, que não preservara a força dos meus antepassados sertanejos. O guarda-civil
não me bateria, apitaria, pois é um covarde. Se o guarda-civil fosse corajoso, estaria pelo
interior combatendo os sertanejos que espalhavam a desordem e aterrorizavam. Se pre-
cisasse atirar contra grevistas, faria-o tremendo. Assim como eu sapeco minha literatura
de encomendas, constrangido, sabendo que pratico safadeza. Julião Tavares era um figura
importante demais, um sujeito que fazia receio matar.
Nas horas de serviço, conseguia distrair-me. Na repartição, movemo-nos como peças
de um relógio cansado. Tudo era vagaroso e sonolento. Na hora do almoço, saía para a rua e as
pessoas se esbarrando sugeriam-me que a cidade estava em cio. Aterrorizava-me pensando
no que podia ter acontecido durante aquelas três horas em que passara fechado no serviço. Ia
para casa, fingia comer alguma coisa, abalava para a rua. No café, sentava-me no meu lugar,
pedia uma maço de cigarros e conversava com Pimentel e Moisés, que vinha com a mesma
história da literatura como instrumento de propaganda política. Aquilo me enervava. Enfiava a
mão no bolso do paletó e encontrava a corda. Onde seu Ivo arranjara aquilo? Precisava jogá-la
fora. Pimentel não discordava de nada. Eu estava lesado, mas às vezes tinha ganas de enforcar
Moisés com a corda. A tranquilidade era pouco a pouco substituída por uma inquietação que
me tornava brutal com os companheiros. Instabilidade, ruína, o mundo perdido. Levantava-me,
ia até a Rua do Macena, entrava em casa, demorava-me até perceber sinais da presença de
Marina. Voltava ao café. Se não encontrava Julião Tavares, saía pelas ruas, a procurá-lo.
Marina caminhava depressa, voltava-se como se estivessem seguindo-na, escon-
dia-se; quase a perdi de vista. Entrou em um bairro que era uma desgraça, casas sujas, mato
nas calçadas e maloqueiros aqui e ali. “Proletários, uni-vos”, estava escrito em uma das casas,
sem vírgula ou traço, o que me irritou profundamente; se viesse a revolução, bárbaros que
escreviam assim acabariam comigo. Marina parou diante de uma casinha baixa, a placa dizia:
“Albertina de tal, parteira diplomada”. Entrei em uma bodega e esperei. Tentei puxar conversa
com o homem da venda sobre as pichações; de nada adiantou. A placa da casa era velha e
amassada. D. Albertina faria a operação para restabelecer as regras de Marina. Como seria
ela? Magra, pálida, correta, educada. Pensei na humanidade ficando pulha, nos meus paren-
tes, D. Adélia e Seu Ramalho gemendo a vida, brigando por causa da filha. D. Albertina podia
ser uma velha gorda, mole, sem diploma nem prática, mal educada, nojenta, resmungona,
machucava brutalmente o corpo de Marina com a mão de unhas sujas. Paguei a conta do bar e
comecei a explicar para o homem da venda o que queriam dizer as pichações, o filho de Marina
e Julião Tavares não nasceria, não viria ao mundo para sofrer como tantos outros.
A porta abriu-se e Marina saiu. Atravessei a rua e cheguei-me a ela. Estava calor,
a areia era muito fofa. “Faz favor?”, disse pela segunda vez e ela parou um instante. Tentei
conversar, mas ela apressou o passo; insultei-a: “Puta!”, disse várias vezes. Dizia-lhe o

12 “Angústia” - Graciliano Ramos


insulto, mas estava cheio de piedade. Não sentia cólera, o que sentia era desgosto. Insultei-a
ainda muitas vezes, incitava-a a caminhar mais depressa na areia fofa. Nada se fixava no
meu espírito. Imagens do passado, da minha rua, Marina nua. Insultei-a outras vezes, ela
me pediu que a deixasse. Imaginei-a sendo julgada pelos seus atos. Mas ela seria absol-
vida, seu caso não era importante, teriam pena dela. Entramos na cidade e separamo-nos.
Imaginei que ela se ia juntar com o amante.
Descobri por acaso que Julião Tavares tinha feito nova conquista. Imaginei exas-
perado que seria a datilógrafa de olhos verdes. Eu a via grávida, apelando aos serviços
de D. Albertina. Julião Tavares andava depressa, com espalhafato. Enraivecia-me com os
sorrisos que as pessoas, por subserviência, lhe distribuíam pelas ruas. Que fim teria levado
seu Ivo, sempre pedindo, furtando, bebendo pelos caminhos que corria em fazendas e povo-
ados. Eu apalpava a corda que me ele me dera, repousando no fundo do bolso do paletó.
Lembrava das noites que Julião Tavares me roubara com sua voz mole. Enfim descobri a
sua nova amante, uma criaturinha sardenta que trabalhava em uma loja de miudezas. Em
breve estaria de barriga, visitando D. Albertina. Julião lhe daria algum dinheiro para calar-
-se, e receberia um sermão de Tavares pai.
A casa era em Bebedouro, pequena, isolada. Julião Tavares chegava alta noite.
A ligação durou pouco, não chegou a despertar suspeitas. Julião saía e caminhava pelos
cantos escuros. Tinha um jeito de andar, de sentar-se no bonde, de falar que davam-me a
impressão de que tudo em roda era dele. Julgava-se superior por ter deflorado várias meni-
nas pobres, imaginava-se dono delas. Mas Marina não era dele, ela valia o que tinha valido
antes de engravidar. Inútil querer acreditar nisto. Ela tinha descido, caído, habituava-se a
esgueirar-se, pedir desculpa, no futuro seria um trapo como D. Adélia.
Fui até o fim da linha do bonde, parei com se não tivesse mais corda. Sentia-me
cansado, mas era como se uma vontade estranha me obrigasse a andar. Tomei o caminho
de volta, para espreitar a saída de Julião Tavares. Dei pela falta de cigarros, as bodegas
estavam fechadas, só a corda no meu bolso. Idiota! Besta! Seriam duas horas e neblinava.
Lembrava-me do cangaceiro Cirilo de Engrácia, cuja foto vira nos jornais, pendurado pelo
pescoço a um pau. Perto da casinha, vi um vulto tomar o caminho dos trilhos da estrada
de ferro. Via-o andando, Julião Tavares parecia um balão de São João perdido na poeira
de água. Lembrei-me das festas da minha infância na fazenda. Apressei-me para segui-lo,
em breve ele estaria na cidade, em lugares iluminados, em segurança. Meu cansaço desa-
parecera. Ele andava sossegado, com segurança. Eu sentia um desespero de fumar. Se me
encontrasse com Julião de dia, eu me encolheria e me afastaria como um bicho inferior.
Mas agora era diferente, minha raiva crescia, como a de um cangaceiro emboscado. Como
José Baía, cangaceiro amigo de meu avô que me contava histórias de onças no alpendre
de casa. Senti fraqueza e saudade. Onde estarás, José Baía? Queria gritar e avisar Julião
Tavares do perigo, mas não conseguia. Sua tranquilidade pelo caminho me encolerizava;
então eu não era nada? Eu era um homem! Por que ele não fugia? Em vez disso, parou e
acendeu um cigarro, aquilo me endoidecia. Não conseguia me livrar dos instintos ruins.
Pensei em José Baía preso por detrás de grades negras e pegajosas.
Retirei a corda do bolso e em alguns saltos silenciosos como os das onças de
José Baía, estava ao pé de Julião Tavares. Tudo isto é absurdo, é incrível, mas realizou-se
naturalmente. A corda enlaçou o pescoço do homem, ele debateu-se. O homenzinho da
repartição e do jornal não era eu. Uma alegria enorme encheu-me. Tudo em volta era
insignificante. Tinham-me enganado. Em trinta e cinco anos haviam me convencido de

“Angústia” - Graciliano Ramos 13


que só podia me mexer pela vontade dos outros; todo o meu passado virou fumaça. Julião
Tavares estrebuchava, caía nas folhas secas do chão. Eu tinha os braços doídos e as mãos
cortadas. Veio-me a lembrança de Seu Ivo. Larguei o corpo, que foi bater numa cerca.
Que horas seriam? Necessário continuar a marcha. Mas o que faria com o corpo? Agucei
o ouvido. Só o zunzum dos mosquitos. Queria ver o rosto do corpo. Era inconveniente
ficar ali. Devia ir me deitar, ouvir os urros do marido de D. Rosália, que estava em casa.
Quitéria dizia: “Matos têm olhos, paredes têm ouvidos”. Se viesse alguém? Como seria
meu julgamento? Sentia meu suor aumentar na friagem. Seu Evaristo, José da Baía, Cirilo
da Engrácia vinham-me à cabeça. Meus dentes batiam e faziam barulho. Comecei a cavar
com as mãos uma cova para Julião Tavares, mas a idéia me pareceu disparatada. Tive um
lampejo: amarraria a corda ao pescoço do morto e o deixaria pendurado em um galho,
como suicida. O trabalho de erguer o corpo foi penoso e enjoava-me. Os jornais dariam
tarjas grossas para falar no suicida. O enterro seria complicado e disputado. Haveria dis-
cursos complicados no cemitério. Colunas de mármore no túmulo. Apareceram vozes na
estrada ou eu estava tresvariando? As grades da cadeia são tão imundas que a gente não
pode tocar. Eu ofegava e falava alto, desesperado. Homens e mulheres se aproximavam,
vinham da farra. Alguém esbarrou no corpo de Julião, mal estirado no escuro, debaixo
da árvore, com os pés ainda no chão, e pediu desculpas. Eu puxava a corda com força,
minhas mãos feriam. Trinta anos de prisão. O corpo de Julião Tavares balançava como o
de Seu Ivo, quando bebia. Comecei a repetir para mim mesmo: “Não há perigo, nenhum
perigo”. Com um esforço desesperador, consegui suspender o corpo. Escorreguei pela
árvore arranhando-me no tronco. Caí sobre as folhas secas. A idéia do perigo que corria
me desesperou, comecei a chorar e soluçar. Onde colocara o meu chapéu? Saí dali ampa-
rando-me à cerca. Não conseguia correr. Estava certo de que homens e mulheres me
acompanhavam. Reuni forças para correr, uma carreira bamba e trôpega, a boca aberta,
contrações na carne enregelada. Corria e chorava. Meu chapéu tinha ficado pelo caminho?
Trinta anos de cadeia. Insuportáveis os zumbidos e as ferroadas das carapanãs. Tropecei
e parei. Para onde estava indo?
Topei com um vagabundo num bueiro. Não senti medo. Mendiguei um cigarro.
Queria chegar em casa e embriagar-me. Tentei conversar, mas o vagabundo ignorou-me.
Entrei na Rua do Apolo. Minha calça estava rasgada na altura do joelho, a roupa preta suja
de limo e terra, as mãos pretas de limo, terra e sangue. Marchava para casa, mas ela não
chegava. Se alguém me visse, alguma testemunha, estaria perdido. Um bom advogado
me salvaria, mas eu não tinha dinheiro para contratá-lo. Pensei em voltar todo o cami-
nho, aceitar as grades pretas e sujas. Tudo se sumiu quando cheguei em casa. Estava
sujo como um porco. Lavei as mãos lentamente, porque doíam muito. Bebi um gole de
aguardente e fui me lavar no tanque. Pisava como um gato. Precisava dormir, recompor-
-me. Continuei a beber, atordoado. O relógio bate, acho que três pancadas. Tudo que eu
avistava estava enevoado. Fechei os olhos, um rumor enchia-me os ouvidos. Impossível
dormir. Tentei limpar as unhas sujas de terra. Tentei encaminhar o pensamento para
outras coisas: minhas dívidas, um artigo que Pimentel me pedira. O Lobisomem de sapa-
tos novos. D. Rosália e o marido. Dar uns cobres do salário para Moisés. Bebi o resto de
aguardente. O estômago recusou. Encostei-me à mesa para não cair. Suava frio. Alguém
batia à porta. Quem poderia ser? O relógio bateu meia hora, depois quatro. Levantei-me,
arrastei-me até o quarto e tombei na cama, pesado, como um morto.
No dia seguinte, amanheci com febre. Mandei Vitória telefonar à repartição, levar
a roupa suja à lavadeira. Desfiei a gravata da noite anterior e joguei-a no quintal. Cortei

14 “Angústia” - Graciliano Ramos


as unhas e limpei as mãos feridas. Tudo corria como sempre na rua. Sentei-me à janela,
fechada, e pus-me a espiar o movimento da rua. Desejei ver Seu Ivo. A mulher das garrafas
e o homem que enchia dornas trabalhavam. Espiavam-me? Observava a rua pelas gretas
da janela. Sentia uma sede horrível, mas não tinha forças para ir até a moringa. As coisas
ferviam em minha cabeça. Biqueiras de sapatos apareciam na rua, viriam em direção à
minha porta? Fui escovar a calça rasgada e o paletó. Pensava no bacalhau que serviam
na prisão. Não precisariam me apertar muito para que eu confessasse. Na prisão, escre-
veria um livro, seria considerado. A rua agora estava tranquila, mas em outra rua havia
lágrimas, desespero e cabelos arrancados. Algumas pancadas na porta. Estava perdido.
Arrastei-me até ela, mas era apenas um mendigo, que enxotei irritado. Mendigos canalhas
e preguiçosos, safados. Voltei para a mesa. Aguardaria outras pancadas, até que chegasse
a polícia. Por que demoravam tanto? Por que me torturavam? Na prisão, escreveria um
livro. Como Vitória se demorava! Meu pescoço doía, a cabeça tombou num cochilo. Tinha
sede, arrastei-me até a moringa e bebi alguns copos de água. Rumor de carapanãs e tro-
pel de cavalos enchiam-me a cabeça. “Sou uma pessoa muito hábil”, repetia em voz alta.
Idiotice. Não passava de um homem que dizia “Perfeitamente” a tudo, toda a vida. Olhei
a garrafa de aguardente vazia. Da casa de Seu Ramalho, vinha um rebuliço. Mas eu não
tinha nada a ver com aquilo. Vitória voltou, mas isso não importava. Precisava me trancar,
enrolar-me nos lençóis, até a febre passar. As telhas dançavam. “Não fui eu”, gritei recu-
ando e tropeçando na cadeira. Um frio agudo percorreu-me a carne. Os braços e as mãos
doíam-me. Vitória cortava carne em cima da mesa preta da cozinha. A mesa do necrotério.
As minhas mãos em carne viva. “Vitória, vou deitar-me, estou sem fome. Dê a comida a
algum maloqueiro. Estou muito doente.”
Certamente fazia semanas que eu me estirava no colchão, longe de tudo. O tempo do
dia se via que passava pela réstia de sol que caminhava pelo quarto. À noite, eu escorregava
nos silêncios, mergulhava neles, afundava, boiava, tentava me manter à tona. O som de uma
vitrola me remetia às cantigas de ninar de minha mãe. De repente, eu me via uma lagartixa
desprecatando da parede. Lembrava-me de figuras irreconhecíveis curvadas sobre a cama.
Um homem sem rosto, sentado na cadeira, falava muito e me incomodava. Certamente eu
dizia coisas sem nexo. Caía em um buraco ao pé de uma cerca, descia e subia por ele flu-
tuando entre flores que choviam silenciosamente. Esforçava-me por abrir os olhos. Havia
um livro sobre o colchão. Chorava, batia com a cabeça no ferro da cama, minhas mãos com-
pridas e sujas cicatrizavam. Dagoberto, a sentinela do Palácio do Governo, Amaro vaqueiro,
cabo José da Luz - todos dançavam à minha frente. Provavelmente Moisés deixara aquele
livro sobre o colchão. O cego dos bilhetes de loteria, a mulher da Rua da Lama, o Lobisomem,
Antônia, Rosenda. Todos se confundiam. O livro era incompreensível, talvez escrito por um,
por vários chineses. A cadeira suja de poeira, a roupa suja de poeira. Queria levantar e
vestir-me. Um nome estranho. Quem o havia dito? Fernando Inguitai. Não queria comer, só
queria água. Ficava suando e arquejando debaixo das cobertas. O barulho do descaroçador
de algodão, da prensa. O corpo morto do meu pai, a batina de Padre Inácio, o capote do velho
Acrísio, o vestido vermelho de Rosenda, as carapanãs enchiam-me a cabeça. Onde tinha
ouvido aquele nome de Inguitai? Morria de sede. O contínuo velho da repartição, D. Adélia,
Albertina de tal. Os caibros engrossavam, havia letreiros velhos e novos. Onde estava a
minha roupa? Queria sair pelas ruas, ler jornais, beber cachaça. Seu Ivo viera me visitar.
Viera? O homem na sala esperava paciente que me restabelecesse. Tentava levantar-me.
Um estremecimento, uma queda. O espírito de Deus boiava sobre as águas. Os caibros
retorciam e desciam sobre mim como cobras. A vitrola cantava: “Fernando Inguitai”. Os

“Angústia” - Graciliano Ramos 15


reisados cantavam defronte a casa de Seu Batista, que não abria. O zumbido das carapanãs.
“Água, Vitória”. Seu Ivo se acocorava a um canto. Pimentel não aparecia? Os reisados reali-
zavam a função, depois iam arrastar enxada no eito. Quem se chamava Fernando Inguitai?
As cascáveis e jararacas do poço da Pedra e aquela que se enroscou no pescoço do meu
avô. Ria-me como um idiota. Encontrões na porta do Instituto Histórico e Geográfico. O cego
com o cajado gritava o número de loteria: 16.384. Moisés lia alguma coisa. Passavam chine-
ses armados à minha frente. Os ratos do armário roíam o disco da vitrola que dizia baixinho:
“Fernando Inguitai”. Moisés lia para mim, bom amigo. Eu dizia coisas sem nexo, arrepen-
dia-me. Ele me tomaria por criança. Mas por que esbugalhava os olhos para mim? Moisés
levantava-se, mas eu não queria que ele fosse embora. Acabaríamos rompendo. Eu batia os
dentes. As paredes estavam cobertas de letreiros de piche, as letras moviam-se. Ameaças
de greve, legendas subversivas incontáveis. Algumas como cobras de olhinhos miúdos e
chocalhos. A mulher que lavava garrafas e o homem que enchia dornas, a datilógrafa de
olhos esverdeados, as filhas do Lobisomem, Antônia, a mulher da Rua da Lama. Um choro
longo subia e descia: “Que será de mim? Valha-me Nossa Senhora”. Um moleque torturado
pelo senhor do engenho. O cego dos bilhetes: 16.384. Cirilo de Engrácia. Alguém pedindo
para afastar a cadeira. O paletó e a calça cor de piche. Um ventre enorme na parede. O dono
da bodega, triste. Uma rapariga pintada de vermelho espalhava um cheiro esquisito. Passos
na calçada. Quem ia entrar? Quem tinha negócio comigo àquela hora? Vitória devia fechar
as portas e despedir o hóspede que estava na sala. Mas Vitória contava moedas. Rosenda,
cabo José da Luz, Amaro vaqueiro, o reisado, vagabundos diversos, tudo estava na parede,
fazendo um zumbido de carapanãs. José Baía acenava-me de longe, sorrindo, chamando.
Começava uma marcha, no que era seguido pela multidão que fervilhava na parede, vinham
deitar-se na minha cama. Quitéria, sinhá Terta, o cego dos bilhetes, o contínuo, cangaceiros
e vagabundos. Fernando Inguitai vinha deitar-se na minha cama. “José Baía, há que tempo!”.
Crianças corriam em torno da barca, acomodavam-se todos. 16384. Um colchão de paina.
Milhares de figurinhas insignificantes. Eu era uma figurinha insignificante e não queria
molestar ninguém. Íamos descansar. Um colchão de paina.

3- PERSONAGENS: ENTRE A DECADÊNCIA DO PASSADO E A MISÉRIA DO PRESENTE


Luís Pereira da Silva - neto de um decadente senhor de engenho e filho de um pequeno
comerciante falido e prostrado; depois da morte do pai, vaga por fazendas do interior
ganhando a vida como alfabetizador, até chegar à cidade grande, onde sobrevive de esmo-
las e pequenos trabalhos como revisor; enfim, consegue um emprego público que lhe
garante uma renda mínima para sobreviver. Luís da Silva vive em um “mundo fechado”,
é um introvertido de personalidade marcada por recalques e complexos de inferioridade,
que fazem com que ele se subestime sempre; sente-se um fraco, impotente, vencido. A
autoanálise depreciativa faz com que ele vá se afastando de tudo e vivendo cada vez mais
do passado e da sua imaginação, principalmente do sonho impossível de ser um grande
literato; a evasão é uma forma de compensação da realidade que não consegue enca-
rar (“Sou uma besta. Quando a realidade me entra pelos olhos, o meu pequeno mundo
desaba.”). Sua narrativa é uma maneira de tentar amenizar a consciência culpada e angus-
tiada por um crime que cometeu (o assassinato de Julião Tavares), após se envolver com
uma vizinha (Marina); uma expiação do erro. Apresenta- nos a sua vida como um mosaico
cujos fragmentos justificariam de diversas maneiras o crime que cometeu. Como veremos
mais adiante, é como se ele estivesse submetido a um destino trágico, que determina sua

16 “Angústia” - Graciliano Ramos


maneira de ser e de agir; daí sua associação, ao final da narrativa, ao cangaceiro José Baía:
criminoso, violento, mas boa pessoa. O crime, apresentado como uma quase necessidade
em sua vida, não resolve a realidade que ele não consegue enfrentar, pelo contrário: só faz
potencializar a sensação de angústia.
Os demais personagens podem ser divididos em dois grandes grupos: os do presente e
os do passado. Observe que o número espantoso de personagens dá bem uma idéia da
riqueza da exploração do universo exterior e interior em que se desenvolve a existência
do narrador protagonista, Luís da Silva. A seguir, os personagens do presente que mais
aparecem na narrativa:
Marina - vizinha de Luís da Silva, moça pobre e fútil, que explora a fraqueza da mãe e a
incapacidade do pai de controlar as mulheres da casa. Namora Luís até que aparece em sua
vida Julião Tavares, que a seduz facilmente com os luxos que pode proporcionar. Depois de
engravidar, é abandonada pelo amante e faz aborto.
Dona Adélia - mãe de Marina, mulher que já fora bonita, agora reduzida a “um caco”, aca-
bada pelos serviços domésticos e pelos desgostos que a vida lhe traz; toma sempre o
partido da filha, incapaz de se lhe opor; acaba por assistir à decadência também da filha,
que ao final adota sua postura resignada, cabeça baixa, olhos sem vida.
Seu Ramalho - pai de Marina, trabalha na usina próxima à rua do Macena. Arrebentado pelo
trabalho, não consegue convencer a mulher e a filha da precariedade de suas condições e da
impossibilidade de lhes dar o luxo que a filha praticamente exige; é um conformado com a
miséria de sua existência.
Julião Tavares - filho de ricos comerciantes de Maceió, patriota fanático, de ideologia con-
servadora, é visto por Luís da Silva como uma figura quase asquerosa, com seu corpo
arredondado e bem vestido de burguês ocioso e sua voz pastosa. Praticamente invade a
vida de Luís, após um esbarrão numa noite de evento cultural. Com Marina, dedica-se a uma
de suas atividades favoritas: “desonrar” moças pobres e bonitas e, depois, abandoná-las,
sempre protegido pelo poder que o dinheiro do pai lhe confere.
Dr. Gouveia - proprietário da casa onde mora Luís da Silva; à medida que o destino do
protagonista se encaminha para a tragédia, torna-se uma fonte de preocupação, uma vez
que o locador não consegue arranjar dinheiro para saldar a dívida do aluguel. É um índice,
entre tantos outros, da miséria que vive a rondar o narrador.
Moisés - um dos poucos amigos de Luís da Silva; judeu que não nasceu para a exploração
comercial (prova disso é o fato de evitar o amigo para não ter de lhe cobrar uma dívida de
prestações), trabalha para um tio, vendendo fazendas (roupas e panos); comunista, é per-
seguido, a certa altura da narrativa, pela polícia política do governo Vargas.
Pimentel - Outro amigo, jornalista que trabalha para os poderosos da política, mudando
seus textos de acordo com os desejos deles; arranja para Luís alguns bicos com que ele
complementa seu salário, em geral, escrever textos de encomenda para coronéis do inte-
rior envolvidos em disputas políticas.
Vitória - empregada de Luís da Silva; é uma velha quase surda, cujo mundo se reduz a
conversas incompreensíveis com o papagaio da casa e à obsessão pelo salário que enterra
sempre ao pé da mangueira do quintal, onde guarda uma mísera e inútil fortuna.

“Angústia” - Graciliano Ramos 17


Seu Ivo - Mendigo viajante, aparece e desaparece das casas onde o recebem, dando-lhe
cachaça e comida. Tem o hábito de roubar coisas de uma casa para presentear outra. É ele
quem traz para Luís da Silva a corda com que o protagonista cometerá seu crime.
Dona Rosália - Vizinha, o marido viaja muito e aparece pouco; mas, quando isto acontece, o
casal se dedica a longas noites de atividade sexual, o que exaspera Luís da Silva.
Antônia - empregada de Dona Rosália, é uma morena sensual, sempre vítima de ilusões
amorosas, volta e meia deixa a casa da patroa para tentar a sorte com algum homem, que
a explora e espanca; quando abandonada ou cansada, volta ao trabalho.
Dona Mercedes - vizinha, espanhola que recebe, às vezes, em casa, um amante rico, o que
provoca a ira e a inveja de algumas mulheres da rua.
Lobisomem e suas filhas - vizinho velho, barbudo e encolhido, que muda-se para a rua do
Macena com três filhas ruivas, sujas e mal vestidas. Os hábitos reclusos da família levan-
tam suspeitas e atiçam a curiosidade da vizinhança.
A prostituta magra e doente do Helvética, a datilógrafa de olhos verdes - são tentativas
frustradas de Luís da Silva para afastar sua atenção de Marina.
A seguir, os personagens mais relevantes do passado. Os mais recorrentes nas lembranças
de Luís da Silva vêm destacados e/ou comentados.
Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva - avô de Luís da Silva. Senhor de engenho
que, apesar da decadência econômica causada, entre outros fatores, pela libertação dos
escravos, conservava certa autoridade moral sobre os habitantes de suas antigas posses-
sões. Muitas vezes o narrador se compara ao avô e percebe, amargurado, as diferenças que
havia entre a personalidade do velho (orgulhoso e corajoso em qualquer situação, apesar
da decadência) e ele (um fraco, incapaz de autoestima).
Sinhá Germana - avó, esposa de Trajano. Representa as mulheres resignadas e submissas
do mundo agrário do passado, em contraposição às mulheres mais independentes, pouco
submissas, como Marina.
Camilo Pereira da Silva - pai de Luís da Silva; nele a decadência é ainda mais visível que
no avô, não só no nome diminuído de imponência, mas também na incapacidade de agir
frente à vida. Morto Trajano, Camilo muda-se para a cidade e dedica-se ao comércio, em um
empório miserável. É um abatido pela preguiça: dedica-se à leitura repetida e interminável
das aventuras de Carlos Magno e seus cavaleiros.
Quitéria - cozinheira da casa da fazenda.
Moqueca - cachorra da fazenda.
Amaro - vaqueiro da fazenda, cuja destreza era admirada pelo menino Luís.
José Baía - cangaceiro que prestava serviços ao velho Trajano, divertia o menino Luís da
Silva com suas estórias; figura recorrente nos delírios finais do narrador.
D. Conceição, Seu Batista, D. Maria Teresa, Teotoninho Sabiá, Carcará, Doutor Juiz de
Direito, Padre Inácio, Seu Antônio Justino (professor), mestre Domingos, Seu Evaristo,
Joaquim Sabiá, as três velhas “formiguinhas” (que viviam a remexer a terra do seu jar-
dim cheio de roseiras), Rosenda Lavadeira, cabo José da Luz, velho Acrísio, André Laerte
(barbeiro), Filipe Benigno (comerciante) - galeria de personagens que aparecem volta e

18 “Angústia” - Graciliano Ramos


meia nas lembranças do narrador.
Dona Aurora - dona de uma pensão barata onde Luís da Silva viveu em tempos difíceis.
O protagonista foi assediado pela neta de Dona Aurora em uma ida ao cinema, mas não
conseguiu se entregar à sedução por não conseguir tirar da cabeça o dinheiro que gastava
na brincadeira estúpida de convidar a velha e a moça para o passeio.
Dagoberto - colega de quarto de Luís na pensão, estudante de medicina; a maneira intrometida
como ele tomava conta das camas para seus estudos de anatomia, exigindo a atenção de Luís, é
um exemplo da incapacidade do narrador de fazer frente às mínimas imposições em sua vida.

4- FOCO NARRATIVO: FLUXO DE (UMA) CONSCIÊNCIA (CULPADA)


O foco narrativo é em primeira pessoa, o narrador é personagem protagonista da
história, que se escreve na forma de um longo fluxo de consciência que recupera todo o
seu passado, das origens sertanejas, passando pelas dificuldades iniciais na cidade até a
colocação como funcionário público, seu envolvimento com Marina e Julião Tavares e, final-
mente, o desfecho trágico que não altera seu estado de angústia. O monólogo desenvolvido
pelo narrador se faz a partir de fragmentos do seu passado misturados aos acontecimentos
do presente, também apresentados de modo fragmentário. O resultado é um embaralha-
mento entre passado remoto e próximo na narrativa, como veremos mais adiante.
Como sabemos, o narrador em primeira pessoa coloca sempre o problema da
veracidade do que ele narra. O crítico Ivan Teixeira faz algumas considerações a este res-
peito (grifos nossos):

Angústia não conta propriamente uma história; antes, constrói uma personali-
dade estranha e singular, cujo desenho ocupa a atenção central do romancista. Sendo
personagem-narrador, a singularidade de Luís da Silva projeta-se toda no texto, atribuin-
do-lhe a condição de reflexo de uma ficção. Assim, o texto tanto pode ser pensado como
imagem virtual de uma psicologia imaginária quanto a configuração real de palavras de
onde emerge o desenho hipotético da mente que a teria gerado. Em outros termos, o nar-
rador do romance deixa-se interpretar como um escritor fictício cujo romance simula a
vida de quem o escreve.
Talvez se pudesse pensar também em Angústia como problematização ficcional
da noção de crime, pois o leitor não deseja a punição de Luís da Silva, embora o consi-
dere criminoso. Paralelamente, o romance inventa os mecanismos subjetivos que levam o
assassino a justificar intelectualmente o crime, pormenor que aproxima Angústia de sua
fonte internacional, Crime e Castigo, de Dostoievski. Perante a consciência do protagonista,
o assassinato impôs-se como espécie subjetiva de legítima defesa. Caso não agisse, é pos-
sível que morresse, pois o ódio acabaria por corroer seu sistema nervoso. Nesse sentido,
o crime o livrou da inércia que o conduziria à morte, impulsionando-o à realização de um
antigo sonho, escrever um livro. A conquista do ideal artístico acaba por garantir a simpatia
do leitor, entendido como categoria inclusa à ficcionalidade do romance.
Além disso, o narrador se apresenta como vítima de um grande amor interrom-
pido. Todavia, terminada a leitura, surge hipótese desfavorável a ele: não será um crimi-
noso vulgar, que, para legitimar o crime e obter a absolvição ideal do leitor, desclassifica o

“Angústia” - Graciliano Ramos 19


opositor, descrevendo-o em termos repulsivos? Do ponto de vista literário, o confronto das
duas hipóteses interpretativas sobre a posição de Luís da Silva fazem dele um narrador
não confiável, porque manipula os fatos de modo a despertar o afeto de repulsa contra o
antagonista e o de piedade para si, tal como se observa, por exemplo, em Dom Casmurro.
Atualmente, essa modalidade de narrador é considerada riquíssima, pois, além
de possibilitar a problematização das tópicas adotadas, não delimita com precisão os
contornos da própria história, gerando obra imprecisa e equívoca. Por essa perspectiva,
é possível duvidar das afirmações de Luís da Silva, até mesmo da veracidade do crime
que alega ter cometido. A posição dúbia do narrador admite a hipótese segundo a qual
a fábula de sua narrativa não contém senão os delírios de um solipsista alucinado por
desejos que não consegue realizar. Nesse sentido, até as personagens do romance
não passariam de projeção do universo psíquico do narrador, propenso a confundir a
realidade dos fatos com os delírios de seu cérebro doentio. Mas é exatamente essa a
essência da obra de ficção, que prescinde de matriz realista imediata, imitando antes
modelos ou estruturas da tradição literária do que situações empiricamente concebi-
das. Assim, a realidade de Angústia confunde-se com o registro das coisas no momento
mesmo em que são inventadas, como se os supostos acontecimentos brotassem da
pena do protagonista-escritor, que não só simula os fatos de sua fábula, mas também
encena a redação do livro que os inventa.

5- TEMPO: EMBARALHAMENTO DE PLANOS TEMPORAIS


Podemos dividir a narrativa em dois planos temporais: um passado que é recupe-
rado ao longo do fluxo de consciência do narrador e um presente que corresponde aos fatos
que deságuam no desfecho trágico da morte de Julião Tavares1.
Os fatos do passado dizem respeito a sua infância na fazenda do avô, sua mudança
para a vila com o pai, sua experiência como professor cigano pelas fazendas do interior, um
período no exército, o início da carreira de revisor e escritor mendicante na cidade grande,
morando na rua ou em pensões baratas, e, finalmente, a colocação como funcionário público,
que lhe dá uma estabilidade precária (com o perdão do oxímoro...). Observe que todas essas
lembranças, retomadas exaustiva e fragmentariamente ao longo da narrativa, são negativas.
Apesar disso, Luís da Silva escreve: “busco refúgio no passado”. Isto ocorre porque o passado,
aqui no sentido da vida da infância, ao lado do avô e do pai, corresponde a um momento de
certa segurança e estabilidade, completamente perdidas após os trágicos acontecimentos em
que deságua a sua história. O passado sofrido de Luís da Silva acaba funcionando também
como uma desculpa inconsciente para justificar o crime que ele cometeu.

1 Seria mais correto falar em passado remoto e passado próximo, uma vez que os fatos envolvendo Marina e Julião Tavares
iniciaram cerca de um ano antes do início da escritura da história por Luís Pereira da Silva. No início da narrativa, ele afirma:
“levantei-me há cerca de trinta dias”, uma referência óbvia à prostração que o leva ao delírio, narrada ao final do livro. Depois
das primeiras páginas introdutórias, quando começará a contar sua história trágica com Marina, ele declara: “Em janeiro do
ano passado, estava eu uma tarde no quintal, (...)”. Portanto as lembranças familiares do tempo de menino, suas andanças
pelas fazendas do interior, a miséria extrema na capital antes de arrumar emprego fixo pertenceriam ao passado remoto;
já a história com Marina e Julião pertenceria ao passado próximo. Mas preferimos aqui referir-nos a este último como
presente, já que os fatos dele narrados são ainda determinantes do estado de angústia em que permanece o narrador .

20 “Angústia” - Graciliano Ramos


Os fatos do presente dizem respeito à vida de “pobre diabo” de Luís Pereira da
Silva2, funcionário público que faz bicos para sobreviver, conformado com seu destino medí-
ocre. Esta vida é transformada negativamente pelo aparecimento de Marina e Julião Tavares,
que o arrastam para um turbilhão de angústia em que se potencializam todos os seus dramas
íntimos, e do qual ele não consegue se livrar. Pertencem a este presente também as relações
com os vizinhos da Rua da Macena, com os amigos Moisés e Pimentel, com os transeuntes
dos cafés e ruas frequentados pelo narrador.
Uma vez desestabilizado o universo do presente, Luís da Silva tenta reorganizar
seu mundo e compreender sua história, escrevendo-a. Esforço inútil, uma vez que ele será
arrastado pelas lembranças do passado e pela incapacidade de racionalizar os fatos que
ocorreram no presente (passado próximo). Este vai-e-vem entre passado e presente resulta
no chamado tempo psicológico, caracterizado pelo embaralhamento da matéria narrada.
Há o uso da técnica de flash-back para recuperar fragmentos do passado; essa fragmen-
tação serve para mostrar o estado de desorientação interior extrema em que se encontra
o narrador no momento em que conta sua história, momento este ainda bastante próximo
do desfecho trágico ocorrido (o assassinato de Julião Tavares). O auge deste embaralha-
mento entre passado e presente se dá, aliás, durante o delírio febril que ocupa as últimas dez
páginas do livro; quando a atemporalidade domina a narrativa, como afirma o próprio Luís da
Silva a respeito da sua percepção temporal naquele momento: “Mas no tempo não havia horas”.
É possível também quase precisar o momento histórico em que acontece o pre-
sente e o passado da narrativa. O momento do passado é o das primeiras décadas do
século 20. Ele está implícito na decadência de Trajano Silva, avô do narrador, típico senhor
de engenho falido em decorrência da libertação dos escravos e da sua incapacidade de
se modernizar. Já o presente se passa na década de 1930, época do governo ditatorial de
Vargas, o que está implícito na referência à perseguição do comunista Moisés pela polícia.
O conturbado ambiente político da época, marcado pela oposição radical entre esquerda
comunista e direita fascista, aparece também na consciência culpada de Luís da Silva pelo
seu trabalho de intelectual a serviço das oligarquias nordestinas do interior nordestino (os
artigos que ele escrevia de encomenda).

6- ESPAÇO: A DECOMPOSIÇÃO DA FORTUNA E DA VIDA


Também os espaços da narrativa se alternam entre os do presente e os do pas-
sado. Os espaços do passado são a casa de fazenda do avô, a vila sertaneja onde viveu da
morte do avô até a morte do pai, a pensão barata de Dona Aurora.
Os espaços do presente são as ruas e cafés de Maceió, a repartição pública onde
Luís da Silva se sente oprimido pelo trabalho, e principalmente, a sua casa na rua do Macena.
Este é um espaço minuciosamente descrito: a sala onde Luís trabalha e recebe os amigos e

2 Luís da Silva é um personagem típico da literatura brasileira, que o crítico e poeta José Paulo Paes definiu como o
“pobre diabo”: proveniente de uma família que teve alguma importância ou tradição, mas foi vitimada pela decadência,
agarrado ao serviço público como forma de evitar a pobreza proletária, sem capacidade de opor resistência interior à
força da realidade, mesmo quando tenta se ensimesmar para fugir do mundo, enfim, um fracassado. O escritor Mário de
Andrade observou, na geração a que pertenceu Graciliano Ramos, a recorrência desse herói “desfibrado, incompetente
para viver, e que não consegue opor elemento pessoal algum, nenhum traço de caráter, nenhum músculo como nenhum
ideal, contra a vida ambiente”. Outro exemplo de “pobre diabo”, talvez mais adequado que Luís da Silva, é o Belmiro Borba
de O amanuense Belmiro, livro de Cyro dos Anjos, uma vez que neste último personagem não há a força trágica que traz
interesse à história de Luís da Silva.

“Angústia” - Graciliano Ramos 21


visitas, o quarto onde se angustia com os barulhos vindos da casa vizinha, resultados das
noites de sexo ardente praticado pela vizinha Dona Rosália com seu marido inconstante, o
banheiro, onde se dedica a fantasias de glória literária e à espia e escuta dos longos banhos
de Marina, a princípio, depois, de sua revelação à mãe da gravidez desonrosa. Dentro da casa,
principalmente na sala, lugar de reflexão para o protagonista, habitam, escondidos pelos
armários e buracos das paredes, os ratos, corroendo aos poucos os livros de Luís, impedindo
cada vez mais o seu trabalho e o seu sono. Como a angústia, que vai corroendo sua tranqui-
lidade, sua estabilidade, destruindo sua dedicação à literatura como forma de sustento ou
lazer. Há também o velho cano enferrujado em um canto, uma entre tantas imagens a lhe
lembrar uma corda estirada que serve para enforcar, ou um porrete que serve para machucar
violentamente.
Merece destaque a descrição do cenário dos encontros entre Luís da Silva e
Marina: “De todo aquele romance as particularidades que melhor guardei na memória foram
os montes de cisco, a água empapando a terra, o cheiro dos munturos, urubus nos galhos da
mangueira farejando ratos em decomposição no lixo”. O lugar é descrito frequentemente
assim; sujo, malcheiroso, cheio de lixo e bichos asquerosos. Essa e outras descrições (não
só do quintal) beiram o expressionismo, distorcendo o real de modo que ele demonstre o
interior, as emoções profundas do indivíduo em estado de tensão. A descrição acima, por
exemplo, está impregnada da decadência interior de Luís da Silva e de sua visão negativa
do sexo, que vai se firmando ao longo da narrativa.
O contraste entre os espaços do passado (mundo rural) e do presente (mundo
urbano) sugerem também outra temática para o livro: a do sertanejo desarraigado, dese-
joso da estabilidade proporcionada pelo mundo agrário, incapaz de ser alcançada na cidade,
marcada pelo constante movimento, no qual Luís da Silva não consegue se acomodar.
Provas disto são a repetição obsessiva dos mesmos espaços nas memórias da infância (o
que contribui também para a sensação de monotonia presente no texto) e a tendência do
protagonista de se dirigir constantemente aos bairros mais periféricos da cidade, como a
demonstrar o desejo de voltar ao interior de onde veio.

7- A LINGUAGEM DA CONFISSÃO
A narrativa de Luís da Silva é apresentada ao leitor como uma confissão, uma
purgação com a intenção de reencontrar uma mínima segurança existencial, que parece
definitivamente perdida após o crime por ele cometido. O narrador conta sua história por
escrito porque lhe parece impossível uma comunicação direta satisfatória com outro ser
humano. Mesmo com seus amigos próximos (Moisés e Pimentel), o diálogo praticamente
inexiste, é entrecortado, previsível, às vezes chega a aborrecer. Qual a linguagem empre-
gada, então, por Luís da Silva, para ir desvendando ao leitor o seu atormentado mundo
interior, recuperando o seu passado, desenvolvendo a trágica história de sua ligação com
Marina até chegar ao clímax do assassinato de Julião Tavares?
É uma linguagem fragmentária, de períodos e frases curtas que vão se super-
pondo de maneira aparentemente caótica, de modo que fique patente para o leitor a con-
fusão psíquica em que ele vive e escreve. A linguagem empregada consegue dar conta
também de um interessante contraste: enquanto a ação propriamente dita do enredo é
lenta, cheia de detalhes e desvios, por conta da multiplicidade de registros da memória e
reflexões do narrador que vão sendo intercalados nos acontecimentos relatados, a ação

22 “Angústia” - Graciliano Ramos


interior e reflexiva de Luís da Silva é intensa, resultado da superposição ininterrupta des-
tes fragmentos. O crítico Ivan Teixeira analisou a maneira como se estrutura a obra a partir
do jogo de linguagem (grifos nossos):

“Como se percebe pela síntese da fábula, Angústia possui estrutura de autobiografia,


podendo também ser entendido como espécie de diário íntimo, com notável progressão no
andamento do assunto: origina-se na alucinação decorrente do ciúme e da idéia do crime,
passa pela reconstituição de seus motivos, até chegar, sempre por meio da memória afetiva, ao
crime propriamente dito. Essa ordem decorre da racionalização da leitura, que seleciona, corta,
ata, intercala e reata, porque vê tudo de fora, depois que tudo foi vivido e relatado pela perso-
nagem em desespero. Mas ela própria, que sentiu intensamente os acontecimentos que narra,
não consegue organizá-los de maneira coerente. Para ela, tudo é confuso e caótico, porque, ao
falar, ainda se encontra emocionada com o que fala. Cada pormenor assume uma importância
desmedida, até mesmo os olhos do gato que espia do muro, horas depois do crime. O livro é
organizado de modo a sugerir impressão de desarranjo e absurdo, pois procura representar
as categorias subterrâneas de um indivíduo atormentado pela mania da autoanálise.
Como convém aos romances voltados para a construção da intimidade, a ficcio-
nalização da memória é componente essencial à estrutura de Angústia. Como tudo é fluido
e contínuo na lembrança das pessoas, Angústia não apresenta divisão em capítulos e sim
pequenas lacunas entre grandes sequências de significado coeso, traço formal que pretende
insinuar a continuidade e fluidez da mente no processo de lembrar e recompor o vivido,
movimento que vem em ondas, interrompido apenas por breves intervalos. Por começar onde
termina, pode-se afirmar que o romance possui estrutura circular e ininterrupta, imitando o
estado psíquico de pessoa dominada por idéia fixa, em torno da qual flutuam uma infinidade
de outras idéias e imagens correlatas. Para produzir o efeito de fluidez mental, o autor lança
mão da técnica, então recente na literatura europeia, do fluxo de consciência, por meio da
qual se produz o monólogo interior da personagem, com suas infinitas cintilações, imagens,
lembranças e cenas do passado, interpondo-se continuamente às vivências do presente.”

Principalmente nas últimas páginas, quando é narrado o delírio febril de Luís da


Silva, auge de seu estado de confusão mental, é que podemos perceber a colagem caótica
de fragmentos que revelam a atormentada psique do personagem. Vejamos um exemplo:
(...) As letras tinham cara de gente e arregaçavam os beiços com ferocidade. A mulher
que lava garrafas e o homem que enche dornas agitavam-se na parede como borboletas espe-
tadas e formavam letreiros com outras pessoas que lavavam garrafas, enchiam dornas e
faziam coisas diferentes. A datilógrafa dos olhos agateados tossia, as filhas do Lobisomem
encolhiam-se por detrás das outras letras, Antônia arrastava as pernas grossas cobertas de
marcas de feridas, a mulher da Rua da Lama cruzava as mãos sobre o joelho magro e cur-
vava-se para esconder as pelancas da barriga escura. Um choro longo subia e descia: - “que
será de mim? Valha-me Nossa Senhora”. Um moleque morria devagar, mutilado, porque havia
arrancado os tampos da filha do patrão. Fazia um gorgolejo medonho e vertia piche das cha-
gas. 16.384. O cego dos bilhetes batia com o cajado na parede. - “Afastem esta cadeira.” Seu
Ivo estava de cócoras, misturado às outras letras. A calça rasgada e o paletó sujo eram cor de
piche. Cirilo da Engrácia, carregado de cartucheiras e punhais, encostava-se a uma árvore,
amarrado, os cabelos cobrindo o rosto, os pés com os dedos para baixo. A sentinela cochilava

“Angústia” - Graciliano Ramos 23


no portão do palácio. Um ventre enorme crescia na parede, uma criatura mal vestida passava
arrastando a filha pequena, um brilho de ódio no olho único. Sinha Terta gemia: “- Minha santa
Margarida...” O dono da bodega, triste, fincava os cotovelos no balcão engordurado. (...)
O crítico José Paulo Paes chamou a atenção para a maneira como se dá a transi-
ção entre a narrativa dos fatos do presente e o registro das memórias que vêm à tona:

A transição entre o agora e o outrora se faz o mais das vezes por meio da metonímia, como nas
fusões cinematográficas: um objeto, uma pessoa ou uma palavra que faça lembrar a Luís da
Silva determinada passagem da sua infância desencadeia de pronto o processo rememorativo.

8- BREVE ANÁLISE FINAL


I. O romance psicológico ...
Como já antecipamos na “Sinopse”, Angústia pode ser enquadrado na vertente do chamado
“romance de sondagem psicológica”, que teve muita força na literatura brasileira a partir
da segunda geração do modernismo brasileiro. Luís da Silva propõe-se a narrar sua angus-
tiante viagem interior em busca das raízes de sua história e de seus problemas. Seu estado
de desorientação psíquica o leva a construir um autorretrato como mosaico de fragmentos
confusos: sua história é contada embaralhando ideias, criando uma confusão entre a rea-
lidade palpável e o mundo da memória e da fantasia; o resultado é um caos cronológico e
ideológico que revela bem a inquietação do seu espírito.
Veja como o dicionário define “angústia”:

angústia. [Do lat. angustia.] S. f. 1. Estreiteza, limite, redução, restrição: angústia de espaço, angús-
tia de tempo. 2. Ansiedade ou aflição intensa; ânsia, agonia. 3. Sofrimento, tormento, tribulação:
A triste revelação acarretou o agravamento de suas angústias. 4. Hist. Filos. Segundo Kierkegaard
[v. kierkegaardiano], determinação que revela a condição espiritual do homem, caso se manifeste
psicologicamente de maneira ambígua e o desperte para a possibilidade de ser livre. 5. Hist. Filos.
Segundo Heidegger [v. heideggeriano], disposição afetiva pela qual se revela ao homem o nada
absoluto sobre o qual se configura a existência [q. v.]. [Cf. angustia, do v. angustiar.]

Deixemos de lado as definições técnicas (4 e 5) e nos fixemos nas genéricas. Em


qualquer um dos três primeiros casos, a definição assenta muito bem sobre o estado exis-
tencial de Luís da Silva ao nos contar sua história.
Um exemplo da narrativa que vem confirmar a propriedade do título é a frequência com
que Luís da Silva é assaltado por imagens que lembram afogamento (as brincadeiras com o pai
no poço da infância) ou sufocamento (a cascavel enrolada no pescoço do avô, o corpo enforcado
do velho da vila, o retrato do cangaceiro morto pela volante, o moleque sufocado com seus pró-
prios testículos pelo senhor de engenho, etc.)3. Cada vez mais acuada pelo sentimento do ciúme
e por um opressivo complexo de inferioridade construído ao longo de sua vida miserável, a

3 É claro que estas imagens revelam, também, a progressiva obsessão de Luís da Silva com a idéia de matar Julião Tavares,
mas isto não invalida o modo como interpretamos sua recorrência na narrativa.

24 “Angústia” - Graciliano Ramos


consciência do protagonista passa a deformar negativa e progressivamente o mundo a sua
volta.4 Desesperado, ele só enxerga uma maneira de se livrar do estado de angústia que ame-
aça assustadoramente seu sistema nervoso: matar Julião Tavares. Esta idéia fixa toma conta
de sua mente e ele acaba por colocá-la em prática, de maneira impulsiva e desorientada.
Mas a execução do crime não o livra dos seus fantasmas. Pelo contrário: a realidade
não melhora e ele agora precisa lidar com a consciência culpada pelo seu ato. Pode justificar-
-se apelando para o seu passado sofrido e para o fato do crime ter sido cometido, afinal de
contas, por amor. Como José Baía, o cangaceiro que lhe contava histórias na infância, e cuja
lembrança o assalta constantemente durante o ápice da sua história (principalmente durante
o delírio final), Luís da Silva se revela assassino, sim, mas “bom sujeito”. A violência que
suportou ao longo de sua vida marcada pela presença constante da miséria e da morte ele
descarrega agora em um momento de descontrole justificado. Enfim, ao fazermos a análise
da história de Luís da Silva e de sua personalidade, a partir de sua própria narrativa, vemos
emergir uma “psicologia do pessimismo” para explicar o ser humano.
2. ... e o romance social
Se atentarmos para as causas dos problemas que levam à situação-limite vivida
por Luís da Silva, veremos que elas podem ser resumidas à sensação de inferioridade
social e ao medo da privação das condições para sobreviver dignamente. O seu passado
miserável, a ameaça constante de dívidas a serem pagas ou que podem surgir a qualquer
momento, o rancor social por ser “vítima” da decadência de uma família outrora rica e
poderosa, tudo isto contribui para que ele se sinta sempre acossado, oprimido.
Julião Tavares, que lhe rouba a namorada graças à condição social privilegiada, apa-
rece como uma encarnação, concretização de todas as opressões sofridas no plano afetivo,
psicológico e social. A obsessão por eliminá-lo está, então, justificada. Não é por acaso que o
narrador afirma: “Julião Tavares era uma sensação”. A própria concretização da sensação de
angústia: um sujeito que incomoda Luís da Silva, que aparece em sua vida sem ser chamado,
que a desestrutura por completo. Matá-lo é vingar-se, é descarregar o seu ódio à sociedade,
resolver o seu complexo de inferioridade.5 Daí o crime ser praticado de forma repentina e
automática, como uma descarga de recalques e estigmas dos quais era preciso se livrar.
A temática social está presente sob outras formas no livro. Basta lembrar a cons-
ciência culpada de Luís da Silva por ser um intelectual que veio da miséria e que trai a sua
classe vendendo seus artigos para coronéis da política nordestina. Um dos seus dramas ínti-
mos é sentir-se um distanciado do povo, do qual já fez parte um dia. Há também o comunismo
palavrório de Moisés que, mesmo defendendo a “arte engajada” em favor da revolução, tem
entre seus amigos Pimentel e Luís da Silva, dois intelectuais “vendidos ao sistema”.

4 A este respeito, veja o comentário anterior que fizemos sobre o expressionismo empregado na descrição dos espaços,
o que é notável, também, na caracterização dos personagens. Como exemplo, a figura balofa e a voz pastosa de Julião
Tavares. Ou a mulher grávida que Luís da Silva quase atropela na rua.
5 Veja o que afirma o crítico Massaud Moisés: “Voltemos, pois, as nossas vistas para o panorama todo de sua vida, desde
a infância até ao conhecimento de Marina. O passado, com o cortejo de sensações que se fixam na alma da criança e
do adolescente em forma de recalques e complexos, vai estourar com o peso de enorme carga mais tarde, quando, já
adulto, o indivíduo reúne todas as suas energias para um ato decisivo. Nessa chamada aflitiva dos recursos potenciais
está, desgraçadamente, a fagulha que acende o estopim dos recalques e complexos. Despertos esses, de pronto o homem
perde o controle de suas faculdades e transforma-se em títere dessas forças imponderáveis. É o caso de Luís da Silva.

“Angústia” - Graciliano Ramos 25


3. Determinismo e tragédia
A trajetória de Luís da Silva aparece como resultado de um “determinismo trá-
gico”. Ele nos apresenta o seu crime como resultado de forças que o dominaram e o dirigi-
ram para um destino do qual seria impossível escapar.
O determinismo biológico está presente, por exemplo, na sua fixação por Marina: o
que sente por ela extrapola, desde o início, qualquer racionalidade ou controle, é, na verdade,
uma tara. Ao se referir ao seu sentimento de inferioridade social, Luís da Silva lança mão da
imagem do seu corpo de cabeça baixa e espinha curva. Para exemplificar a degradação que
vai tomando conta do seu ser, equipara-se a bichos (rato, sabiá, ratuina, sururu, coruja); é um
animal acuado, desesperado. Como afirmou a crítica Sonia Brayner: “A descrição fenomenoló-
gica de uma consciência que beira a anormalidade, emparedada em suas obsessões, retoma
a visão determinista do naturalismo agora em um novo espaço, o do inconsciente”.
O uso do determinismo pode ser fruto de um desarranjo psíquico ou de uma bem
construída justificativa do narrador para o seu crime. Aliado às imagens que perseguem Luís
da Silva (como as de pessoas enforcadas ou sufocadas, que comentamos anteriormente) e a
fatos que não lhe parecem ocorrer por coincidência (como a corda trazida por Seu Ivo de pre-
sente), esse determinismo encaminha a narrativa para sua dimensão trágica: o protagonista
age automaticamente, arrastado para o crime por forças maiores do que ele (mesmo as vozes
do passado parecem incitá-lo a agir, minando suas resistências a se encaminhar em dire-
ção ao ato que não quer praticar). Luís da Silva apresenta-se como um “doente da vontade”.
A narrativa vai num crescendo dramático até a morte de Julião Tavares, afinal ele
merecia, precisava morrer: o crime é uma “missão”, é catarse, purgação, destino: “Acervo
genético e ambiente se conjugam numa só força a impeli-lo para a frente, a ponto de nos
deixar a impressão de que o homem será a projeção da idéia obsedante; realizá-la, a qualquer
custo, eis aí sua missão, e assim o fará, conquanto sacrifique a própria personalidade, apa-
rentemente dessorada de seu conteúdo energético após a prática do ato.” (Massaud Moisés)
E qual a conseqüência da realização desta “missão”? “Liberto da energia, que era
a motivação dos seus caracteres, Luís da Silva será unicamente a lembrança do que foi e
do que fez, não só pela angústia aterradora, mas porque essa se produziu muito intensa-
mente numa camada profunda do seu ‘eu’, de forma a não lhe restar outra alternativa senão
viver a recordação dos minutos que culminam na apoteótica realização de suas faculdades
viris. Sua angústia é quase a consequência do complexo de culpa que o assalta, por sentir
o inócuo do esforço praticado. Se culpa tem de alguma cousa, ele se fez o próprio algoz,
visto outrem ignorar os motivos remotos de sua consciência na prática do crime inútil. O
desespero é mais causado pela sensação de inutilidade experimentada ante o que supunha
decisivo para sua vida interior.” (Massaud Moisés)

9- O AUTOR
Graciliano Ramos nasceu em Alagoas em 1892, descendente de uma família de
fazendeiros e de pai comerciante. Passou a infância pelo interior de Alagoas e Pernambuco.
Foi estudar em Maceió, mas deixou os estudos e mudou-se para Palmeira dos Índios. Após um
período em que tentou a sorte no Rio de Janeiro, retornou a esta cidade alagoana, onde che-
gou a ser prefeito; Palmeira dos Índios foi o cenário de seu primeiro romance, Caetés (1933).
Mais tarde, exerceu o cargo de diretor da Imprensa Oficial do Estado em Maceió (1933-1936),

26 “Angústia” - Graciliano Ramos


época em que trabalha nas suas primeiras grandes obras, os romances São Bernardo (1934) e
Angústia (1936). Passa uma temporada na cadeia, no Rio de Janeiro, acusado de envolvimento
com os comunistas, do que resulta a obra-prima Memórias do Cárcere, livro publicado postu-
mamente (1953). Depois da prisão, publicaria outro livro fundamental da história da literatura
brasileira, Vidas Secas (1938). Escreveu, ainda, além de outras obras de ficção e de memória,
livros infantis e de viagens. Morreu em 1953, no Rio de Janeiro. Hoje, é quase unanimidade
considerar que Graciliano Ramos foi o melhor escritor de sua geração.

10- BIBLIOGRAFIA
• BRAYNER, Sônia (org.). Graciliano Ramos - Coleção Fortuna Crítica - v. 2. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1978. (Em especial os ensaios “A gênese do crime em Angústia,
de Graciliano Ramos”, de Massaud Moisés; “Graciliano Ramos e o romance trágico”, de
Sonia Brayner.)
• CANDIDO, Antonio, e CASTELO, J. Aderaldo, Presença da Literatura Brasileira –
Modernismo. São Paulo, Rio de Janeiro: Difel, 1979.
• CARVALHO, Lúcia Helena. A ponta do novelo (uma interpretação de Angústia, de Graciliano
Ramos) - Coleção Ensaios. São Paulo: Ática, 1983.
• PAES, José Paulo. “O pobre diabo no romance brasileiro”, in Novos Estudos – CEBRAP – nº
20, São Paulo, março de 1998, pp. 38-53.
• RAMOS, Graciliano. Angústia. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 1979.
• TEIXEIRA, Ivan. “Angústia, uma teoria do romance de Graciliano”, in O Estado de S. Paulo,
Caderno 2 / Cultura, 10.09.2000.
• HOLANDA FERREIRA, Aurélio Buarque de. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

11- TRECHO PARA LEITURA


Leia, a seguir, o trecho do romance em que se narra o assassinato de Julião Tavares por
Luís da Silva.
Quanto tempo duraram as recordações e o enfraquecimento? Um minuto, ou menos. Novamente
as mãos se contraíram e as pernas se estiraram no caminho extenso. Desejei que Julião
Tavares fugisse e me livrasse daquele tormento. Se ele corresse pela estrada deserta, estaria
tudo acabado. Eu tentaria alcançá-lo. Inutilmente. Pensei em gritar, avisá-lo de que havia perigo,
mas o grito morreu-me na garganta. Não grito: habituei-me a falar baixinho na presença dos
chefes. Era preciso que alguma coisa prevenisse Julião Tavares e o afastasse dali. Ao mesmo
tempo encolerizei-me por ele estar pejando o caminho, a desafiar-me. Então eu não era nada?
Não bastavam as humilhações recebidas em público? No relógio oficial, nas ruas, nos cafés,
virava-me a.s costas. Eu era um cachorro, um ninguém. “É conveniente escrever um artigo, Seu
Luís.” Eu escrevia. E pronto, nem muito obrigado. Um Julião Tavares me voltava as costas e me
ignorava. Nas redações, na repartição, no bonde, eu era um trouxa, um infeliz, amarrado. Mas
ali, na estrada deserta, voltar-me as costas como a um cachorro sem dentes! Não. Donde vinha
aquela grandeza? Por que aquela segurança? Eu era um homem. Ali era um homem.
- Um homem, percebe? Um homem.

“Angústia” - Graciliano Ramos 27


Julião Tavares não ouviu e continuou a andar tranqüilamente.
- Corre, peste.
Por que era que o miserável não corria, não se livrava dos meus instintos ruins? Estaria
recordando as carícias da mocinha sardenta?
- Isso não vale nada, Julião Tavares. Marina, a mocinha sardenta, a datilógrafa dos olhos de
gato, não valem nada. O que vale é atua vida. Foge.
Julião Tavares parou e acendeu um cigarro. Por que parou naquele momento? Eu queria
que ele se afastasse de mim. Pelo menos que seguisse o seu caminho sem ofender-me.
Mas assim... Faltavam-me os cigarros, e aquela parada repentina, a luz do fósforo, a brasa
esmorecendo e avivando-se na escuridão, endoideciam-me. Fiz um esforço desesperado
para readquirir sentimentos humanos:
- José Baía, meu irmão...
José Baía não era meu irmão: era um estranho de cabelos brancos que apodrecia numa
cadeia imunda, cumprindo sentença por homicídio. -”Recebeu cópia do libelo?” José Baía
não soubera responder. Tinha recebido e não tinha. Que resposta devia dar àquela pergunta
incompreensível? O presidente se contentaria se ele dissesse que sim? Ou seria melhor
dizer que não? E José Baía balançava a cabeça, indeciso: tinha recebido e não tinha. Afinal
que me importava José Baía, estirado numa esteira por detrás das grades negras e pega-
josas? Que me importavam as grades negras e pegajosas?
Retirei a corda do bolso e em alguns saltos, silenciosos como os das onças de José Baía,
estava ao pé de Julião Tavares. Tudo isto é absurdo, é incrível, mas realizou-se naturalmente.
A corda enlaçou o pescoço do homem, e as minhas mãos apertadas afastaram-se. Houve urna
luta rápida, um gorgolejo, braços a debater-se. Exatamente o que eu havia imaginado. O corpo
de Julião Tavares ora tombava para a frente e ameaçava arrastar-me, ora se inclinava para
trás e queria cair em cima de mim. A obsessão ia desaparecer. Tive um deslumbramento. O
homenzinho da repartição e do jornal não era eu. Esta convicção afastou qualquer receio de
perigo. Uma alegria enorme encheu-me. Pessoas que aparecessem ali seriam figurinhas
insignificantes, todos os moradores da cidade eram figurinhas insignificantes. Tinham-me
enganado. Em trinta e cinco anos haviam-me convencido de que só me podia mexer pela von-
tade dos outros. Os mergulhos que meu pai me dava no poço da Pedra, a palmatória de Mestre
Antônio Justino, os berros do sargento, a grosseria do chefe da revisão, a impertinência macia
do diretor, tudo virou fumaça. Julião Tavares estrebuchava. Tanta empáfia, tanta lorota, tanto
adjetivo besta em discurso - e estava ali, amunhecando, vencido pelo próprio peso, esmore-
cendo, escorregando para o chão coberto de folhas secas, amortalhado na neblina. Ao ser
alcançado pela corda, tivera um arranco de bicho brabo. Aquietava-se, inclinava-se para a
frente, os joelhos dobravam-se, o corpo amolecia. Eu tinha os braços doídos e as mãos corta-
das. Enquanto Julião Tavares estivesse com a cabeça erguida, a minha responsabilidade não
seria tão grande como depois da queda. Quando bebia demais, Seu Ivo tinha aquele jeito de
arriar, não havia conversa que o levantasse. A lembrança de Seu Ivo enfureceu-me.
- Com os diabos!
E larguei o corpo, que foi bater numa cerca, por baixo de uns galhos de árvore que aumen-
tavam a escuridão.

28 “Angústia” - Graciliano Ramos


- Com os diabos!
Sentei-me ao pé da cerca, enxuguei o suor que me corria pela testa. Cansado. A mão direita
doía-me horrivelmente, mas continuei a apertar com ela a corda que a circulava. A mão
esquerda estava livre. Levei-a ao bolso à procura de cigarros, mas retirei-a logo. A figura de
Seu Ivo, bêbedo, encostado à parede, voltou. Que hora seriam? As estacas da cerca magoa-
vam-me as costas. Pareceu-me inconveniente permanecer ali, mas não me veio a idéia de
que houvesse perigo. Necessário continuar a marcha. Continuar a marcha, evidentemente.
Fiquei sentado e mudei de posição, porque as estacas da cerca me feriam os ombros. Como
conduzir Julião Tavares, tão pesado? Não compreendi que devia deixá-lo apodrecendo nas
folhas, debaixo da árvore. Precisava transportá-lo, isto não me saía da cabeça. Transportá-lo,
sem dúvida. Apesar de não sentir medo, percebia que era urgente retirar-me. Agucei o ouvido.
Apenas o zunzum dos mosquitos. A lagoa próxima fervilhava de carapanãs. Como estaria
Julião Tavares? Procurei distingui-lo, avancei a cabeça para o lugar onde supunha ter ele
ficado. Um vulto quase imperceptível na escuridão leitosa. O rosto encostado à terra, natural-
mente. Como estariam os olhos dele? Os de Seu Evaristo, que vi de longe, esbugalhavam-se.
E a boca se escancarava, mostrando a língua escura e grossa. Provavelmente Julião Tavares
tinha também os olhos muito abertos e o queixo desgovernado.
- Mas que diabo estou fazendo aqui?
Necessitava levantar-me, afastar-me depressa, entrar em casa, ‘dormir. Àquela hora o marido
de D. Rosália resfolegava, arranhava com a barba o couro amarelo de D. Rosália. O marido
de D. Rosália resfolegava como um bicho. E Julião Tavares parado. Minutos antes andava
na maciota, o cigarro acesso, o pensamento na cama da mocinha sardenta. Agora ali junto
da cerca, estirado. Inconveniente ficar ao lado dele. Inconveniente. As carapanãs zumbiam,
voavam perto da minha cara, picavam-me as orelhas e as mãos escalavradas. Inconveniente.
- Matos têm olhos, paredes têm ouvidos.
Quitéria, Rosenda e a prensa velha vieram-me à memória. Olhei os arredores, tentei varar
a escuridão. Tudo invisível. A lagoa, povoada de carapanãs, invisível. Uma grande fraqueza
abateu-me, suor abundante ensopou-me a camisa. Passei a mão na cara molhada, senti na
pele a dureza da corda. Se viesse alguém?
- Recebeu cópia do libelo?
Os amigos de Julião Tavares iriam julgar-me. Pimentel e Moisés não eram jurados. Que
diriam os jornais? De Seu Evaristo não tinham dito nada, dos homens que apareciam
mortos nos caminhos não diziam nada. Mas agora falariam muito. Quem foi? Por que foi?
Pimentel escreveria artigos horríveis. Pus-me a discutir com Pimentel, gesticulei, uma das
mãos bateu no corpo de Julião Tavares. Encolhi-me, o suor aumentou na friagem da noite.
José Baía, velho e manso, dormia na esteira de pipiri, por baixo das cortinas de pucumã. Seu
Evaristo balançava, pendurado num galho de carrapateira. Seu Evaristo era tão magro, tão
cheio de fome, que um galho de carrapateira podia sustentá-lo. Cirilo de Engrácia, morto,
em pé, amarrado a uma árvore, parecia vivo. Os cabelos compridos, caídos para a frente,
escureciam-lhe o rosto feroz. Só os pés estavam bem mortos, suspensos, os dedos para
baixo. O frio aumentava, comecei a bater os queixos como um cai ti tu. Se alguém surgisse
na estrada, eu não teria coragem de fugir. Haveria pessoas ali perto? Julguei perceber um
ruído esquisito, mas provavelmente era apenas o eco das pancadas dos meus dentes, que não

“Angústia” - Graciliano Ramos 29


descansavam. Tive a impressão de que os meus dentes estavam longe, fazendo um barulho
que se misturava ao zumbido irritante das carapanãs. Apertei os queixos, mas as castanholas
permaneceram, e veio-me a certeza de que me havia tornado velho e impotente.
- Inútil, tudo inútil.
Mordi a manga do paletó. Os dentes continuavam a entrechocar-se, mas produziam um som
abafado. Mastiguei o pano, desejei recolher-me. Beberia um copo de cachaça, os dentes se
calariam. Os relógios da vizinhança não me deixariam dormir. Certamente Julião Tavares devia
ficar ali deitado. Pensei em ocultá-lo, enterrá-lo debaixo de uma camada de folhas. A idéia
absurda de levá-lo comigo para a cidade tinha desaparecido. Bem. Pus-me a afastar as folhas
e a cavar a terra com as unhas. A tentativa de fazer com os dedos uma cova para enterrar
um homem era tão disparatada que me levantei, receoso de tornar-me idiota. Como estaria
a cara de Julião Tavares? A figura que me veio ao espírito foi a de Cirilo de Engrácia, terrível,
amarrado a um tronco, os cabelos compridos ensombrando o rosto, os pés suspensos, mortos.
Pensei também em Seu Evaristo, curvado sob a carrapateira, como se preparasse um salto.
Recuei precipitadamente e bati com os ombros na cerca. Julião Tavares podia ficar assim, pen-
durado a um galho, como um suicida. Acreditariam que ele fosse um suicida? Acreditariam?
Não acreditariam. Os jornais fariam escândalo, publicariam o retrato da mocinha sardenta. Um
rapaz desvairado, perfeitamente, rapaz desvairado. Desembaracei a mão direita e numa das
extremidades da corda fiz um laço. Vinha-me afinal uma resolução. Entrei a mexer-me, com
medo de perdê-la. Se os pensamentos se sumissem? Se voltasse aquele marasmo?
- Tudo inútil.
Os dentes já não batiam. Curvei-me, procurando a cabeça de Julião Tavares. Encontrei o
chapéu caído, um braço, que soltei arrepiado porque nunca havia tocado em cadáveres. A
idéia de que Julião Tavares era um cadáver estarreceu-me. Não tinha pensado nisto. Horrível
o corpo imóvel, esfriando. Lá estava a cabeça ainda morna. Enjoado, cuspindo muitas vezes,
erguia-a, passei o laço no pescoço. Prendi nos dentes a outra ponta da corda, subi à cerca, tre-
pei-me num galho da árvore. E comecei o trabalho de guindar o morto. A mão direita puxava a
corda, que se movia lenta por cima do ramo; do outro lado a mão esquerda agüentava o peso
do corpo. Moço desvairado. Duas tarjas grossas, uma no princípio, outra no fim da pagIna.
Qualidades, Juliao Tavares tinha muitas qualidades. A literatura dele reproduzida nas folhas,
em tipo graúdo. Comentários. Por que foi? Como foi? Enterro complicado, automóveis, todos
os automóveis da praça, bondes especiais. O discurso no cemitério, discurso empolado. E o
túmulo com uma coluna partida. Muitos túmulos com colunas partidas. Colunas de mármore,
colunas de cimento. Moço desvairado. Todos os mortos importantes eram colunas partidas.
Julião Tavares era, uma coluna de mármore, partida. O capitel no chão, esverdinhando-se.
O corpo subia. No princípio o esforço não era grande demais. A cada movimento passavam
no galho algumas polegadas da corda. Mas quando a massa obesa se elevou, as dificulda-
des foram enormes para correrem uns centímetros.
- Mais um pouco, mais um pouco.
Estas palavras não me deixavam. O corpo devia estar todo erguido, e os meus ossos esta-
lavam. O galho curvava-se. Ia quebrar-se, atirar-nos ao chão. Tudo perdido. A polícia, a
cadeia. Denunciar-me-ia no primeiro interrogatório. Segurei-me à corda, com o intuito de
amarrá-la. Desceria. Livre do meu peso, o galho se elevaria, os pés de Julião Tavares fica-
riam suspensos como os de Cirilo de Engrácia.

30 “Angústia” - Graciliano Ramos


- Bem.
Apareceram vozes na estrada. Vozes? Ou seria que eu estava tresvariando? Alucinação.
Não queria acreditar que pessoas normais se avizinhassem de mim sossegada-mente.
Agarrava-me com desespero à corda.
-Trinta anos de prisão, trinta anos de prisão.
As grades que a gente não pode tocar, tão nojentas são elas, as esteiras, as cortinas de
pucumã, os muros grossos, fome, sede, caldo de bacalhau, e nesta miséria José Baía fabri-
cando piteiras, pentes de tartaruga, objetos miúdos de casca de coco.
- Vão-se embora. Vão-se embora. Não venham, que se desgraçam. Um homem perdido não
respeita nada.
O homem perdido ofegava apavorado. As vozes cada vez mais distintas, grossas, finas.
Machos e fêmeas. Certamente iam para a farra. Mentira, tudo mentira. Eu não tinha trinta e
cinco anos: tinha dez e estudava a 1ição difícil na sala de nossa casa na vila. A sala enchia-
-se de rumores estranhos que vinham de fora e saíam das paredes. Provavelmente eram os
sapos do açude da Penha. Não eram sapos: eram homens e mulheres que se aproximavam.
As palavras tornaram-se claras. Alguém dizia:
-Deixa de luxo, minha filha. Será o que Deus quiser .
Não me 1embro de outra frase. Risos, falas truncadas. O grupo foi-se chegando, passou por
baixo da árvore. Uma pessoa bateu em Ju1ião Tavares e resmungou: -”Desculpe”. A corda
resvalou, recuou uns dez centímetros, com certeza Julião Tavares curvou-se um pouco na
escuridão. Eu repetia baixinho:
- Será o que Deus quiser.
Os meus dedos se imobilizavam, feridos, a corda mo1hada de suor ameaçava correr sobre
o galho, emborcar no chão úmido o corpo de Julião Tavares. Não o poderia 1evantar outra
vez, a polícia encontrá-lo-ia deitado nas folhas e iria farejar-me.
- Trinta anos de prisão. Trinta anos de prisão.
O riso de uma das mulheres que tinham passado sob a árvore estalou a alguns metros de dis-
tância. Estaria mangando de mim? mangando dos esforços que eu fazia para recuperar os dez
centímetros de corda? Senti que ia fraquejar, que a corda continuaria a escorregar na madeira.
Julião Tavares, inclinado para a frente, balançava. Seu lvo andava assim, zambeta, balançando,
os olhos vidrados, sem ver ninguém. Outras gargalhadas, longe. Seria a mulher que tinha rido?
Ou viriam outras pessoas falar debaixo da árvore, bater no ombro de Julião Tavares, pedir-lhe
desculpa? Não havia perigo, não havia perigo, entrei a repetir baixinho que não havia perigo.
Estava em segurança, escondido na folhagem, enrolado no nevoeiro. Podiam passar, parar,
tocar em Julião Tavares, que se afastaria duro como uma marionete pesada demais.
- Não há perigo, nenhum perigo. “
Não havia outra coisa. E pareceu-me falta de senso comum alguém rir naquele lugar
amaldiçoado. Por que amaldiçoado? Tanta importância! Eu e Julião Tavares éramos umas
excrescências miseráveis. As risadas zombeteiras extinguiam-se, distantes.
- Luís da Silva, Julião Tavares, isso não vale nada. Sujeitos úteis morrem de morte violenta ou aca-
bam-se nas prisões. Não faz mal que vocês desapareçam. Propriamente, vocês nunca viveram.

“Angústia” - Graciliano Ramos 31


Ia adormecer entre as folhas, com os braços estirados, afastando-me da árvore para fazer
contrapeso ao corpo de Julião Tavares. Apoiava-me à curva da perna direita, presa ao galho.
De quando em quando soltava acorda e ia pegá-la mais abaixo. A mão esquerda agüentava
o peso, os dedos estavam aponto de quebrar-se. Julião Tavares teria subido, ou a corda
mergulhara no pescoço balofo? Qualquer movimento à toa me faria perder o equilíbrio.
Abria os olhos desmedidamente, mas tinha medo de virar a cabeça para ver o corpo que
se alongava e emagrecia.
- Sobe, Julião Tavares. Para que serve essa resistência atrasada?
Uma lentidão de lesma. Subitamente notei que o corpo subia e balançava. Passei rápido a corda
pelo galho. Outra volta, outras voltas, um nó que me levou o resto da energia, e fiquei ali arque-
jando, desmanchando-me em suor. Desejaria achatar-me, confundir-me com as coisas moles
e úmidas que os meus dedos tinham esmagado sobre a casca da árvore. Agora os dedos segu-
ravam mal aquele suporte incômodo e oscilante. Enorme preguiça e enorme sono prendiam-
-me ao galho. Creio que dormi uns minutos. Seria bom cair: talvez a queda sacudisse o torpor
e me restituísse a vontade necessária para entrar em casa e embriagar-me. Embriagar-me,
naturalmente. Teria dormido? Meus parentes sertanejos dormiam montados, viajavam assim.
Equilibrava-me não sei como. -”Currupaco, papaco. A mulher do macaco. ..” Vitória sonhava com
as moedas escondidas em qualquer parte, depois que os canteiros tinham sido descobertos.
Como me seria possível alcançar outro ramo? Passando a outro ramo, estaria em segurança. Se
pudesse retirar-me dali. ..Tive a idéia extravagante de chegar à cidade andando sobre as árvores.
- Em segurança, em segurança.
Evidentemente era preciso descer, mas isto me apavorava. Lá embaixo numerosos inimigos
iam perseguir-me. Necessário descer. Soltar-me-ia, tombaria como um macaco ferido. Os
dedos inteiriçavam-se. Escancarei os olhos. O que vi foi o corpo de Julião Tavares deformado
pela escuridão. Balancei a cabeça, encolhi-me com um arrepio, o receio de na queda tocar o
corpo de Julião Tavares. Não cai. Escorreguei na madeira molhada, abracei-me a ela. Uma
pancada no joelho, as pernas estrepando-se na cerca de pau-a-pique, um rasgão nas calças.
Dei um salto para trás e caí sentado nas folhas secas. A idéia do perigo assaltou-me com tanta
intensidade que me pus a soluçar. Tentei levantar-me, as pernas vergaram. Arrastei-me cho-
rando, apalpando o chão, a procurar qualquer coisa. Procurava o chapéu, caído na luta, mas
não sabia o que procurava. As carapanãs esvoaçavam-me em torno da cabeça e picavam-me
a carne moída. Encontrei um chapéu, que não dava para mim, era pequeno demais. Atirei para
longe, cheio de repugnância, o chapéu de Julião Tavares. Continuei. a engatinhar, já agora
sabendo perfeitamente que procurava o meu chapéu. Achei-o, mas ficou-me a dúvida de que
fosse o mesmo experimentado minutos antes. Não se acomodava bem na minha cabeça.
Rastejei ao longo da cerca. Alguns metros que me afastasse representavam uma conquista.
Estava aborrecido com Moisés. Que me havia feito Moisés? Não me lembrava de nada,
mas era certo que o Judeu me pregara uma peça. Pareceu-me que ele rondava por ali,
mangando de mim. Rastejando como as cobras! Nova tentativa e consegui levantar-me,
lá fui caminhando lentamente, amparado à cerca. Faltou-me de repente o amparo, andei
como uma criança que ensaia os primeiros passos. Se pudesse correr... Evidentemente o
perigo crescia. Quantos metros teria percorrido? Estava certo de que homens e mulheres
me acompanhavam. Tinham passado por baixo da árvore, visto o homem enforcado, iam
encontrar-me e denunciar-me. A gargalhada e a frase da mulher atenazavam-me.

32 “Angústia” - Graciliano Ramos


- Será o que Deus quiser, sem dúvida.
Um, dois, um dois. Inútil. Não podia marchar. Um aleijado, um velho. Mais cem metros, e tal-
vez fosse a salvação. Horrível atravessar os espaços iluminados. Se alguém desembocasse
de uma travessa e me reconhecesse? Desejava olhar para trás. Impossível. Consegui reunir
uns restos de força e correr. Uma carreira bamba e trôpega, a boca aberta, contrações na
carne enregelada. Corria e chorava, certo de que o esforço era perdido, porque o meu cha-
péu tinha ficado à beira do caminho, sobre as moitas. No dia seguinte passaria de mão em
mão e chegaria à minha cabeça.
- Trinta anos de cadeia.
Que utilidade tinha aquela carreira desengonçada e trêmula? Se me vissem correndo e chorando
ali nos fundos dos quintais? Precisava parar, mas as pernas, levadas pelo medo, não quiseram
obedecer. Insuportáveis os zumbidos e as ferroadas das carapanãs. Um chapéu muito pequeno.
Dei um tropeção e estaquei. Para que lado me dirigia? Ia para a cidade ou voltava para Bebedouro?
Inteiramente desorientado. Teria de passar outra vez pela árvore onde Julião Tavares se balan-
çava? Vagar a noite inteira, como um judeu errante! Continuei a andar. Bem. Se me encaminhasse
a Bebedouro, voltaria pela rodagem, entraria em casa antes do amanhecer. Apareceram luzes, as
carolinas que enfeitam o canal, os eucaliptos da Levada. Avancei lentamente até o bueiro, sentei-
-me. Estava ali um vagabundo, que acordou com a minha chegada. Eu ia perseguido por criaturas
inexistentes, mas a presença daquele vagabundo não me produziu medo.

12- EXERCÍCIOS
(Fuvest-SP) Textos para as questões de 1 a 3:
1- (Unimep-SP) “Nas redações, na repartição, no bonde, eu era um trouxa, um infeliz, amarrado. Mas
ali, na estrada deserta,
Os textos (Julião
literários Tavares)
são obras voltar-me as costas
de discurso, a quecomo
falta aaum cachorro
imediata sem clientes! Não.
referencialidade da
Donde vinha aquela grandeza? Por que aquela segurança? Eu era um homem. Ali
linguagem corrente; poéticos, abolem, “destroem” o mundo circundante, cotidiano, eu era um graças
homem...
à
Afunção
obsessão ia desaparecer.”
irrealizante da imaginação que os constrói. E prendem-nos na teia de sua linguagem, a
que devem
Esse o poder
fragmento de apelodeestético
de Angústia, queRamos,
Graciliano nos enleia;
revelaseduz-nos
um traço ofundamental
mundo outro,
da irreal,
obra: neles
configurado (...). No entanto, da adesão a esse “mundo de papel”, quando retornamos ao real,
a) Luísexperiência,
nossa da Silva afirma-se através
ampliada da ideiapela
e renovada fixaexperiência
de destruir seu rival,àJulião
da obra, luz doTavares.
que nos revelou,
b) Luís da Silva tem a esperança de reconquistar Marina.
possibilita redescobri-lo, sentindo-o e pensando-o de maneira diferente e nova. A ilusão, a
c) Luís da
mentira, Silva revela-se
o fingimento em sua
da ficção, frustração
aclara o real agressiva.
ao desligar-se dele, transfigurando-o; e aclara-o
d) A personagem
já pelo insight que lamenta seu destino.
em nós provocou.
e) Sua obsessão por Marina ia desaparecer com aNunes,
Benedito morte do rival.e leitura”, de Crivo de Papel.
“Ética

2- (PUC-SP)
O que euOtto Maria Carpeaux,
precisava era ler um analisando o romance
romance fantástico, umde Graciliano
romance Ramos,
besta, afirma:
em que “Após
os homens
ter
e aslido
mulheres até o fim,
Angústiafossem é preciso
criações rever as
absurdas, primeiras
não andassempáginas, para compreendê-las”.
magoando-se, Isso se
traindo-se. Histórias
justifica porque
fáceis, sem almaso romance apresenta:
complicadas.Infelizmente essas leituras já não me comovem.
Graciliano Ramos, Angústia.
a) um mundo fechado em si mesmo, mas com linhas narrativas independentes e soltas.
b) estrutura circular em que início e fim se tocam em relação de causa e efeito.
Romance desagradável, abafado, ambiente sujo, povoado de ratos, cheio de podridões, de
c) relação temporal em que o passado e o presente se interpenetram, dando ao texto uma
lixo. Nenhuma concessão ao gosto do público. Solilóquio doido, enervante.
estrutura labiríntica.
Graciliano Ramos, Memórias do Cárcere, em nota a respeito de seu livro Angústia

“Angústia” - Graciliano Ramos 33


1- Onarração
d) argumento de Benedito
em terceira Nunes,
pessoa, em narrativa
com linha torno da ondulatória.
natureza artística da literatura, leva a
considerar
e) que
desordem naasequência
obra só assume função
narrativa comotransformadora
consequência dose
distúrbio mental que acometera a
personagem.
A) estabelece um contraponto entre a fantasia e o mundo.
3- (Unicamp-SP) O texto abaixo, extraído de Angústia, romance de Graciliano Ramos, descreve
B) utiliza a linguagem para informar sobre o mundo.
um encontro entre
C) instiga notrês personagens.
leitor uma atitude reflexiva diante do mundo.
D) oferece
Ao chegar à Ruaaodoleitor
Macenauma compensação
recebi anestesiante
um choque tremendo. Foi ado mundo.maior que já experi-
decepção
E) conduz
mentei. À janelaoda
leitor
minhaa ignorar o mundo
casa, caído real.
para fora, vermelho, papudo, Julião Tavares pregava os
olhos em Marina, que, da casa vizinha, se derretia para ele, tão embebida que não percebeu
2- Se aominha
discurso literário
chegada. “aclara
Empurrei o real
a porta ao desligar-se
brutalmente, dele,estalando
o coração transfigurando-o”, pode-se
de raiva, e fiquei de
dizer pé
que Luís da Silva, o narrador-protagonista de Angústia, já não se comove
diante de Julião Tavares, sentindo um desejo enorme de apertar-lhe as goelas. O homem com a
leituraperturbou-se,
de “históriassorriu
fáceis, sem almas
amare-lo, complicadas”
esgueirou-se para o porque
sofá, onde se abateu.
– Tem negócio comigo?
A) rejeita,
A cólera como jornalista,
engasgava-me. a escrita
Julião Tavares de ficção.
começou a falar e pouco a pouco serenou, mas não
B) prefere alienar-se com
compreendi o que ele disse. Canalha.narrativas épicas.
C) é indiferente às histórias de fundo sentimental.
a) Quem D)é oestá
narrador destana
engajado passagem?
militânciaQue vínculos existem entre o narrador, Marina e
política.
JuliãoE)
Tavares?
se afunda na negatividade própria do fracassado.
b) Transcreva expressões do trecho acima nas quais está caracterizada a reação emocional
do narrador
3- Para à conversa
Graciliano Ramos,que presencia.
Angústia não faz concessão ao gosto do público na medida em
c)
queDe que maneira
compõe essas expressões antecipam o desfecho do romance?
uma atmosfera

4- (Unicamp-SP) Leia o seguinte


A) dramática, trecho extraído
ao representar do romance
as tensões Angústia:
de seu tempo.
B) grotesca, ao eliminar a expressão individual.
Onde andariam os outros vagabundos daquele tempo? Naturalmente a fome antiga me enfra-
C) satírica, ao reduzir os eventos ao plano do riso.
queceu a memória. Lembro-me de vultos bisonhos que se arrastavam como bichos, remoendo
D) ingênua, ao simular o equilíbrio entre sujeito e mundo.
pragas. Que fim teriam levado? Mortos nos hospitais, nas cadeias, debaixo dos bondes, nos
E) alegórica, ao exaltar as imagens de sujeira.
rolos sangrentos das favelas. Alguns, raros, teriam conseguido, como eu, um emprego público,
seriam parafusos insignificantes na máquina do Estado e estariam visitando outras favelas,
4- (Unicamp-SP) Leia o seguinte trecho extraído do romance Angústia:
desajeitados, ignorando tudo, olhando com assombro as pessoas e as coisas. Teriam as suas
pequeninas almas de parafusos fazendo voltas num lugar só.
Onde andariam os outros vagabundos daquele tempo? Naturalmente a fome antiga
(Graciliano Ramos, Angústia. Rio de Janeiro: Ed. Record, 56ª- ed., 2003, p. 140-1).
me enfraqueceu a memória. Lembro-me de vultos bisonhos que se arrastavam como bichos,
remoendo
a) pragas.
No momento da Que fim teriam
narração, levado?
a posição socialMortos nos hospitais, nasdifere
do narrador-personagem cadeias, debaixo
de sua dos
condição
bondes, nos rolos
de origem? sangrentos
Responda sim oudas
nãofavelas. Alguns, raros, teriam conseguido, como eu, um
e justifique.
emprego
b) público,
Na citação seriam
anterior, parafusos
o termo insignificantes
‘parafusos’ remete ao na verbo
máquina do Estado
‘parafusar’ e estariam
que, além do visitando
outras favelas,mais
significado desajeitados, ignorando
conhecido, também tem tudo,o olhando
sentido decom assombro
‘pensar’, as pessoas
‘cismar’, ‘refletir’,e as coisas.
Teriam as suas
‘matutar’. pequeninas
Como almas
esses dois de parafusos
sentidos podem ser fazendo voltas num
relacionados lugarde
ao modo só.ser do
(Graciliano Ramos, Angústia.
narrador-personagem? Rio de Janeiro: Ed. Record, 56ª- ed., 2003, p. 140-1).
c) De que maneira o segundo sentido do verbo ‘parafusar’ está expresso na técnica narrativa
a) No momento da narração, a posição social do narrador-personagem difere de
de Angústia?
sua condição de origem? Responda sim ou não e justifique.
b) Na citação
5- Leia o trecho abaixo de anterior,
Angústia o termo ‘parafusos’
para responder remete ao verbo ‘parafusar’ que, além
as questões:
do significado mais conhecido, também tem o sentido de ‘pensar’, ‘cismar’,
Julião Tavares‘matutar’.
‘refletir’, seguia pela rodagem,
Como essesrente
dois aos jardinspodem
sentidos dos palacetes adormecidos.
ser relacionados ao Ou acom-
modo de
panhava a estrada
ser do de ferro, que atravessa a rua, ganha os fundos das casas. Ali era o silêncio,
narrador-personagem?
umac)sombra
De que que algumasolâmpadas,
maneira segundo muito distanciadas
sentido do verbo e‘parafusar’
os becos por onde
está espirra um
expresso na
pouco de luznarrativa
técnica interrompiam. A água do mangue apresentava manchas brancas entre as árvo-
de Angústia?
res. Aproximando-me, ouvia perfeitamente os passos do homem nas folhas secas. Por que

34 “Angústia” - Graciliano Ramos


5- (Fuvest-SP) Observe
era que aquele as seguintes
sem-vergonha capas que
caminhava o se
como artista Santa
estivesse emRosa
casa,desenhou
pisando nopara
chãoopago?
livro
Angústia, de Graciliano Ramos:
Em toda a parte era assim. Derramava-se no bonde, e se alguém lhe tocava as pernas, desen-
roscava-se com lentidão e lançava ao importuno um olhar duro. Eu encolhia-me, reduzia-me
e, em caso de necessidade, sentava-me com uma das nádegas. As viagens se tornavam hor-
rivelmente incômodas, mas havia-me habituado a elas, e ainda que o carro estivesse deserto,
não poderia espalhar-me como Julião Tavares: receava que me viessem empurrar e tomar,
sem pedir licença, algumas polegadas da tábua estreita.
a) Considerando toda a narrativa, de que maneira a descrição
da paisagem, no primeiro parágrafo, cria no leitor uma ansiedade para o que acontecerá a
seguir na história?
b) Pode-se afirmar que as diferenças de comportamento -
expostas no segundo parágrafo - entre Julião Tavares e o
narrador-protagonista revelam sua posição social e aspectos
da sua personalidade. Explique essa afirmação.

6- As questões são baseadas no seguinte trecho de Angústia:


Seu Ivo apareceu aqui em casa faminto, meio nu e meio bêbedo, como sempre. Enquanto
Vitória lhe preparava a comida, fez-me um presente:
- Está aqui, Seu Luisinho, que eu lhe trouxe.
E pôs em cima da mesa uma peça de corda.
- Para que me serve isso, Seu Ivo? Onde foi que você furtou isso?
- Não furtei, não, Seu Luisinho, achei na rua. Guarde para o senhor. É bonitinha.
E entregou-se ao prato que Vitória lhe ofereceu.
a) Comente o episódio figurado na capa de 1941, analisando a posição de Luís da
a) A cordaSilva na cena.
recebida de presente por Luís da Silva dá origem a um fluxo de imagens que -
b) eComente
já antes o episódio
posteriormente figurado
a esta cena - na
sãocapa de 1947,naanalisando
recorrentes narrativa earelacionam-se
posição de Luís da
Silva na cena.
indiretamente. De que tratam essas imagens? Exemplifique apresentando uma delas.
b) De que maneira a corda precipita o descontrole mental de Luís da Silva?
6-
c) As questões
E de são baseadas
que maneira ela se ligano
aoseguinte
desfechotrecho de Angústia:
da narrativa?

Seu Ivo apareceu aqui em casa faminto, meio nu e meio bêbedo, como sempre.
Enquanto
GABARITOVitória lhe preparava a comida, fez-me um presente:
- Está aqui, Seu Luisinho, que eu lhe trouxe.
E
1 pôs
A em cima dao mesa
Destruir uma peça
rival Julião de corda.
Tavares é a maneira que o protagonista, Luís da Silva, incons-
- Para que me serve isso,
cientemente, Seu Ivo?
encontra paraOnde foi que violentamente,
se libertar, você furtou isso?
das sensações de frustração e
- Não furtei, não, Seu que
sufocamento Luisinho, achei enaangustiam.
o oprimem rua. Guarde para o senhor. É bonitinha.
E
2 entregou-se
B O inícioaodeprato que narra
Angústia Vitóriao lhe ofereceu.
estado de desamparo e descontrole do qual está se recupe-
rando o narrador-protagonista, Luís da Silva. À medida que a narrativa avança, descobre-
a)que
-se A corda recebida
este estado de presente
de angústia por do
é efeito Luís da Silva dá
sentimento de origem a um fluxo
culpa provocado deassassi-
pelo imagens
que - já antes e posteriormente a esta cena - são recorrentes na narrativa
nato de Julião Tavares, que seduzira Marina, mulher por quem Luís estava apaixonado. e
relacionam-se indiretamente. De que tratam essas imagens? Exemplifique
O crime e o descontrole por ele gerado, causas da angústia presente desde o início, só
apresentando
são revelados ao uma
final delas.
da narrativa, criando a estrutura circular da obra: início e fim se
b) Deem
tocam que maneira
relação a corda
de causa precipita o descontrole mental de Luís da Silva?
e efeito.
c) E de que maneira ela se liga ao desfecho da narrativa?
3 a) O narrador é o protagonista de Angústia, Luís da Silva. Marina é o objeto de sua paixão,
fora sua noiva e o abandonara para ficar com Julião Tavares, sujeito que se metera em
sua vida, forçando a amizade, e de quem se torna rival no plano afetivo.

“Angústia” - Graciliano Ramos 35


GABARITO

1- C

2- E

3- E

4 - a) Sim. No momento da narração, quando escreve suas memórias, Luís da Silva é um


empregado público com um pequeno salário, que faz pequenos serviços para complmentar sua
renda, mas está distante da situação miserável do passado descrito no trecho, quando chegou a
dormir na rua e passar fome.
b) O primeiro sentido de “parafusos”, como se percebe pelo adjetivo a ele associado –
“insignificantes” –, é o de pessoas pobres, desqualificadas, sem qualquer projeção econômica ou
papel relevante na engrenagem social (assim como um parafuso é um objeto pequeno,
insignificante e, muitas vezes, sem importância decisiva em uma engrenagem mecânica);
também nesse sentido, são pessoas que, como os parafusos, vivem “apertadas”, isto é, em
constante situação de dificuldades econômicas ou psicológicas. Essas duas possibilidades de
sentido se aplicam a Luís da Silva. Também com o significado de “pensar”, “cismar”, “refletir”,
“matutar” a definição de “parafusar” se aplica ao personagem pois, em seu estado de angústia,
ele vive imerso em divagações sobre seu passado e sua situação no presente.
c) Na técnica narrativa de Angústia, destaca-se o acúmulo de fragmentos de lembranças, ideias
fixas, situações imaginadas, desejos etc do narrador que são registradas num monólogo interior
no qual o a consciência é registrada em um fluxo que dá voltas sobre si mesmo, como se girasse
em torno das obsessões do personagem.

5- a) O episódio figurado na ilustração de Santa Rosa para a capa de 1941 do romance é a


aproximação inicial entre Luís da Silva e Marina, que levaria a uma relação que degeneraria no
que o narrador-protagonista chamou de sua “desgraça”. Marina é retratada em uma posição de
sedução; Luís da Silva aparece levemente curvado, como que numa posição de submissão aos
encantos da moça. A cerca separa os dois personagens, figurando um obstáculo entre eles. Luís
da Silva esforça-se para superar todos os obstáculos que o separam de Marina, mas ela, depois
de seduzi-lo, irá abandoná-lo para ficar com Julião Tavares, o que desespera o
narrador-protagonista.
b) O episódio figurado por Santa Rosa para a capa da edição de 1947 do romance é o momento
em que Luís da Silva, movido por angústia, ressentimentos e descontrole emocional, assassina
Julião Tavares, enforcando-o, como forma de se livrar de suas obsessões e vingar-se de ter
perdido Marina para o rival. O enforcamento é também, simbolicamente, uma tentativa de Luís
da Silva de transferir para Julião Tavares o sentimento de sufocamento que perpassa toda sua
existência.

6- a) São imagens que se relacionam por tratarem todas de enforcamento ou sufocamento: as


brincadeiras que Luís da Silva sofria do pai no poço do engenho, a corda enrolada no pescoço de
seu avô, o velho que se enforcara na vila, etc.
b) O fato de seu Ivo aparecer fortuitamente com a corda passa a incomodar Luís da Silva como
um recado do destino de que seria inevitável que ele colocasse em prática as idéias
desorientadas que vinha tendo nos últimos dias e se resumiam ao seguinte: matar Julião
Tavares, esganando ou enforcando-o. Estas idéias desorientadas se tornam cada vez mais
obsessivas, arrastando o protagonista para o crime.
c) É com esta mesma corda que Luís da Silva enforcará Julião Tavares ao final da narrativa.

36 “Angústia” - Graciliano Ramos

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