Sergio Folha

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Em conto inédito, Sérgio Sant'Anna narra


as memórias de uma trave de futebol
Sérgio Sant’Anna
10-14 minutos

[RESUMO] Neste conto inédito, o escritor Sérgio Sant’Anna, que


morreu no domingo (10), aos 78 anos, narra um treino do Fluminense,
em 1955, da perspectiva de uma velha e melancólica trave de gol do
clube. O autor, em sua adolescência, acompanhava todos os jogos e
até alguns treinos do tricolor carioca.
Das memórias de uma trave de futebol em 1955
Para assistir a treinos só vêm mesmo os fanáticos, alguns sócios, a
garotada matando aula, alguns desocupados daqui de Laranjeiras. Meu
posto é privilegiado, não só pela posição que ocupo no gramado, como
pelo fato de estar defendendo a baliza defendida pelo Castilho, o maior
goleiro do Brasil. Isso nem se discute. Mas o Fluminense está tão bem
de goleiros, que o titular e o reserva, Castilho e Veludo, foram
convocados para a seleção na Copa de 54. Castilho treina entre os
reservas, para ser mais exigido pelo ataque titular. Nada menos que
Telê, Didi, Valdo, Átis e Escurinho. Mas Didi é meia armador e um
exímio cobrador de faltas, que bate com sua famosa folha seca.
A folha seca é assim: a bola vem pelo alto, mas perto do gol, perto de
mim, de repente perde a força e cai, tantas vezes na rede. Didi acaba
de bater uma falta dessas, só que a bola bateu na trave, eu, bem no
ângulo. Não sei se devo sentir orgulho ou decepção, acho que ambas
as coisas. Pois a cobrança foi perfeita, uma obra-prima, que assisti do
meu posto privilegiado, mas ao mesmo tempo me sinto defendendo o
gol do Castilho, meu irmão quase, eu diria. Mas Didi sorriu para dentro,
com seu jeito discreto, pois foi bonito e engraçado. Pode isso? Pode.
Mas outras bolas entraram, a primeira delas do Telê, que recebeu um
passe do Didi, na ponta direita, e emendou de primeira, com efeito, à
meia altura, uma pintura de gol, até aplaudido pelos poucos assistentes.

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As palmas num estádio vazio ecoam diferentes, um pouco


melancólicas, pois um gol desses devia ter sido feito no clássico de
domingo, no Maracanã, contra o Flamengo.
Ou a melancolia estará em mim?, pois sei que é chegado o meu fim, até
madeira empena sob o sol, de vez em quando é preciso trocar as
traves. Já vieram aqui e me examinaram, umas três vezes, como se
fossem médicos. “É, tem de trocar”, um dos funcionários do clube disse.
E debochou: “Pode até dar cupim”. O Fluminense é conhecido por sua
organização e vai trocar logo. Enquanto isso, cumpro a minha
obrigação. Quando a bola bate em mim, depois de um bom chute, como
a folha seca do Didi, sinto quase como mérito meu. Mas bolas entram e
tudo bem, é também parte do meu jogo particular.
E é meio foda, do outro lado está o grande centroavante Waldo,
artilheiro do time e do campeonato. Hoje já marcou dois, um deles um
de seus famosos gols espíritas, marcado com as costas, depois de um
centro perfeito do Telê. E olha que não foi falha do Castilho, nenhum
goleiro poderia prever que, no meio da área, entre os zagueiros, o
Waldo encontrasse um jeito de arrematar com as costas. O outro gol foi
normal, ele fez uma tabelinha com o Átis, entrou na área e, frente à
frente com o Castilho, tocou no canto e marcou.
O Átis é um grande cabeceador. Sobe mais do que todo mundo e testa
a bola no ângulo e com força. Hoje deu duas cabeçadas assim, mas o
Castilho buscou. Uma das coisas legais do Átis é que ele é um grande
gozador, brinca com tudo e com todos. Mas às vezes isso enfurece a
torcida, quando o time está perdendo ou empatando com um clube
pequeno, aqui nas Laranjeiras mesmo. Uma vez saiu de campo até
vaiado e riu assim mesmo. Dizem que não liga muito para o azar
porque vem de uma família rica de São Paulo e não precisa do futebol
profissional. Hoje ele riu também, e os poucos que estavam no estádio
aplaudiram, tanto as suas cabeçadas com grande estilo e as defesas do
Castilho idem. Também o Robson, do time reserva, baixinho mas
grande jogador, tem um senso de humor impressionante, e um outro
jogador nosso o chamou, numa entrevista, de uma piada ambulante.
Mas joga sério e é um grande driblador, se não fosse o Didi no time
seria o titular. Enquanto a característica do Didi é fazer a bola correr, a
do Robson é sair catando os adversários. Muito estimado pela torcida.
Já o Duque, zagueiro-central reserva, dotado de algumas qualidades,
não gosta de perder nem em treino e às vezes entra no time titular,
substituindo o Pinheiro, também da seleção. Aqui mesmo, hoje, fez um

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gol contra na minha baliza, mas um gol contra normal, pois foi cortar um
centro rasteiro e a bola deslocou, enganou, o Castilho e entrou. O
nosso goleiro teve de consolar o Duque, que estava quase chorando,
isso num reles treino.
Castilho é um grande profissional, ama tanto a profissão que fez com
que lhe amputassem um dedo da mão esquerda, que vivia inflamando.
E ali no tricolor ele não podia dar sopa, com a sombra do Veludo. A
amputação foi um ato heroico para a torcida tricolor, que idolatra o
nosso goleiro.
Mas nem todos são craques consumados, há o Escurinho na ponta-
esquerda, dotado de uma velocidade impressionante, foi comprado do
Vila Nova, de Minas, por causa disso, mas que muitas vezes centra alto
demais e a bola não chega nem perto de mim e muito menos do
Castilho. E às vezes é capaz de sair pela linha de fundo com bola e
tudo. Mas, com sua velocidade, puxa contra-ataques de uma rapidez
impressionante, que não raro terminam em gol nosso e às vezes dele
mesmo. Titular indiscutível.
Voltando ao time reserva, que hoje defendo, há outros jogadores muito
bons, pois o Fluminense atravessa uma boa fase. Tem gente que
aposta nele para ser campeão, embora o Flamengo esteja buscando o
tetra, com jogadores do quilate de um Rubens, um Evaristo, um Zagalo.
Fico sabendo deles pelos comentários dos que passam aqui perto do
gol, pois time grande só enfrenta o tricolor no Maracanã. Entre esses
nossos reservas há jogadores tão bons como o Emilson Peçanha,
apoiador, um negro bonito, do sul, cheio de categoria, que forma uma
dupla com o Ramiro, santista, outro craque.
Mas Zezé Moreira, o nosso técnico, é conhecido por sua obsessão
defensiva. No seu entender é uma “marcação por zona”. Mas no
pensamento de muitos é ferrolho mesmo. E a torcida arranca os
cabelos quando o Fluminense marca um gol num clássico e recua todo
para se defender, quase matando os torcedores do coração. E o Zezé
não está nada satisfeito com a gente hoje, pois já levamos quatro gols,
o último do Didi que, como se quisesse ir à forra da falta que bateu em
mim, quer dizer, na trave, chutou de efeito da entrada da área e
encobriu o Castilho, marcando o quinto gol.
O Castilho foi então substituído, não por que tivesse tido culpa nesses
gols, mas porque Seu Zezé, por psicologia, pelo menos eu penso
assim, queria poupar o goleiro da seleção de uma goleada homérica.

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Castilho deixou o campo e, para defender a baliza do outro lado, entrou


o Jairo, terceiro goleiro, mas também muito bom. O Fluminense é uma
fábrica de goleiros, se diz.
Mas quem veio defender a nossa trave foi o Veludo que, como já disse,
é o segundo goleiro do Flu e da seleção. Tem gente que acha até que
ele devia ser o titular. Mas eu tenho uma relação de afeto com o
Castilho, que saiu do juvenil do Olaria e veio para cá novinho e foi logo
ganhando a posição, para não sair mais, entrando no lugar do
Adalberto, um guarda-metas apenas mediano. Veludo é negro e, não
sei se por isso, o pessoal, a princípio, o encarou com desconfiança.
Tem uns que dizem que goleiro negro não se cria. De fato, há poucos
goleiros negros no futebol brasileiro, mas Veludo é uma bela exceção,
tanto é que na última Copa, em 54, depois que o Castilho levou quatro
gols dos húngaros, nenhum por culpa dele, apesar de o Castilho estar
nervoso, muito gente disse que se o Veludo tivesse sido o goleiro, ouvi,
a história do jogo teria sido outra. Pode ser, mas todo mundo sabe, até
eu, que os húngaros são a melhor seleção do mundo, atualmente. Tudo
pode ser. Mas o certo é que, ultimamente, seu Zezé vem revezando os
dois no time titular.
E seu Zezé então põe o Veludo para jogar a última meia-hora do treino
de uma hora. E o Veludo está jogando tão bem que parece justificar
aquela opinião. Pegou um tirambaço do Telê, mais uma cabeçada no
ângulo, do Átis, um arremate frente à frente do Valdo e uma porrada,
apesar de meio torta, do Escurinho. Tudo de tirar o chapéu.
Até que aconteceu aquele golaço do Clóvis. O Clóvis é centromédio,
mas chega muito bem na área adversária. E chegou na minha. Houve
um centro do Telê, sempre ele, o magrinho, sobre a área. O Clóvis
matou a bola no peito, e em vez dez pô-la no chão para arrematar,
encobriu o Veludo com o peito mesmo, e pegando a pelota ainda com o
peito, quase na linha da meta, entrou com bola e tudo no gol, entrou em
mim, e, confesso, fiquei feliz com aquele lance magistral.
O problema é que o treino logo terminou. É complicado isso, quando um
espetáculo termina, mesmo que um simples ensaio. Mas havia as
estrelas principais, os coadjuvantes, figurantes, espectadores. Todos,
no gramado e na assistência, vão conversando enquanto saem.
Comentam entre si o que assistiram, alguns, os torcedores mais
fanáticos, até empolgados. Mas aí, aos poucos, já começam a falar do
espetáculo principal de domingo, o Fla-Flu. Como eu gostaria de estar
lá para participar ou ver. Mas, pior do que isso, é que em breve meu

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tempo terá passado.


Ainda vejo um pôr do sol, meio cortado, porque a geral no piso superior,
do outro lado do campo, só me dá a visão até um ponto. Mas o
crepúsculo, embora essa palavra me cause arrepios, é sempre bonito.
Bonito e triste. Para piorar, volto a lembrar daquele cara que veio me
ver, ver as traves, em que deu dois chutinhos, e depois disse aquele
negócio de dar cupim. Mas isso acontece com todos o seres, animados
ou inanimados, me deu vontade de responder, se conseguisse. E a
noite logo vai cair. A noite também é bonita, mas seria muito mais se
fosse dia de jogo, o estádio iluminado. Mas não. Para mim, em breve,
será só escuridão.

Sérgio Sant'Anna, escritor, é autor do romance "Crime Delicado" e das


coletâneas de contos "O Concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro",
"O Monstro" e "O Homem-mulher", entre outros.

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