A Filosofia Da Educação Moderna - Bacon e Descartes PDF

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A filosofia da

educação moderna:
Bacon e Descartes

filosofia da educação
1. Doutor em Educação. Professor do Departamento
de Educação da Unesp/Assis e do Programa de
Pós-Graduação em Educação da Unesp/Marília.
Alonso Bezerra de Carvalho1

Resumo: O texto tem por finalidade, a partir das contribuições de Bacon e de Descartes, indicar quais foram
os pilares fundamentais para a instauração da educação e da pedagogia moderna.

Palavras-chave: método experimental; ciência moderna; razão; conhecimento verdadeiro.

Introdução
Desde os gregos a filosofia se preocupou em desvendar o que era a natureza, o homem
e o mundo, instaurando um tipo de sabedoria que não estava mais ligada às lendas e mitos;
únicas explicações que predominavam. No entanto, para se chegar a essa sabedoria, o único
instrumento existente era a reflexão que buscava, por vias racionais, chegar a respostas que
explicasse a existência do ser humano e suas relações com o ambiente no qual ele vivia. Ser
filósofo era estar aberto, ser amante e desejoso de saber, formulando questões jamais feitas,
tais como: o que é? como é? por que é? Essa atitude dirige-se ao mundo que nos rodeia e às
relações que mantemos com ele, com o objetivo de conhecê-los. Assim, a filosofia indica a
disposição interior de quem estima o saber ou o estado de espírito da pessoa que deseja o
conhecimento, procura por ele e o respeita. Enfim,

[...] a Filosofia surgiu quando alguns gregos, admirados e espantados com


a realidade, insatisfeitos com as explicações que a tradição lhe dera, co-
meçaram a fazer perguntas e buscar respostas para elas, demonstrando
que o mundo e os seres humanos, os acontecimentos naturais e as coisas
da natureza, os acontecimentos humanos e as ações dos seres humanos
podem ser conhecidos pela razão humana, e que a própria razão é capaz de
conhecer-se a si mesma (CHAUÍ, 2003, p. 25).

Assim, as ideias, as teorias oriundas dessa atividade filosófica abordavam a realida-


de de maneira contemplativa. Não eram resultados de experimentos, em que teríamos um
conjunto de instrumentos técnicos que nos possibilitasse ter acesso às coisas, dominá-las e
conhecê-las. Dos pré-socráticos, passando por Sócrates, Platão, Aristóteles e outros gregos,

1
bem como pelo pensamento latino-cristão, medieval e renascentista, a filosofia, respeitando-
se as especificidades do jogo das ideias e do jogo político e religioso, estava fundada nessa
visão contemplativa.

Esse legado filosófico grego, que marcou e colaborou na construção de toda uma ci-
vilização – a Ocidental –, todavia, considerava o homem como um ser dotado de razão, em

filosofia da educação
que a verdade do mundo e dos humanos não era mais algo secreto e misterioso. Com efeito,
essa nova concepção fez com que pudéssemos aspirar ao conhecimento verdadeiro, pois so-
mos seres racionais; à justiça, pois dotados de vontade livre; e à felicidade, pois dotados de
emoções e desejos.

A partir daí, uma tradição estava formada. A busca da verdade, da justiça e da felici-
dade tornaram-se as forças motrizes de nossas ações, de nossas ideias e de nossos desejos.
Estavam instaladas três grandes esferas da atividade humana: a ciência, a política e a ética.
Ao longo de séculos, vemos os mais variados e distintos filósofos, cada um a sua maneira,
tratar dessa herança, edificando escolas e correntes que não perderam a sua atualidade, de
maneira que podem ajudar, inclusive, a pensar e compreender o nosso mundo atual.

Neste texto, vamos falar da era moderna, na qual se instaurou uma nova maneira de se
usar a razão que teve repercussão direta no campo da educação. Primeiramente, falaremos
de Francis Bacon, filósofo inglês e, em seguida, do filósofo francês, René Descartes.

Bacon: o Método Experimental


Adorno e Horkheimer, no livro Dialética do Esclarecimento (1985), em um texto in-
titulado O conceito de esclarecimento, partem da ideia de que Bacon é “o pai da filosofia
experimental”, querendo dizer com isso que, com ele, há uma ruptura com uma tradição que
ainda estava presa à superstição, à dúvida, à preguiça, a um “fetichismo verbal”, a conceitos
vãos e a experimentos erráticos. Segundo os filósofos da Escola de Frankfurt, Bacon teria
capturado bem a mentalidade de um modelo de ciência que nascia: a ciência moderna. Nela,
o entendimento, o intelecto ou razão estava disposto a vencer a superstição e dominar a
natureza para que o saber se tornasse senhor das coisas. Nesse “casamento feliz” entre en-
tendimento e natureza, a técnica torna-se a expressão de um método que a tudo quer e pode
dominar.

O saber que é poder não conhece nenhuma barreira [...] e o que os homens
querem aprender da natureza é como empregá-la para dominar completa-
mente a ela e aos homens [...] Poder e conhecimento são sinônimos [...] o
que importa não é aquela satisfação que, para os homens, se chama “ver-
dade”, mas a “operation”, o procedimento eficaz (ADORNO; HORKHEI-
MER, 1985, p. 20).

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Nesse trajeto, a esterilidade das filosofias anteriores foi ultrapassada e os “discursos
plausíveis e capazes de proporcionar deleite, de inspirar respeito ou de impressionar de uma
maneira qualquer” foram substituídos pela capacidade de trabalhar para descobrir particula-
ridades antes desconhecidas, de modo que essa capacidade pudesse prover e auxiliar a vida.
Dessa forma, “Os homens renunciaram ao sentido e substituíram o conceito pela fórmula, a

filosofia da educação
causa pela regra e pela probabilidade” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 21).

Polêmico e fonte de dissenso pelos seus intérpretes, Francis Bacon nasceu no dia 22
de janeiro de 1561, em Londres, e morreu no dia nove de abril de 1626. Viveu em uma época
efervescente do ponto vista político, econômico e social, e intuiu com sagacidade o verda-
deiro significado do que estava acontecendo à sua volta. Compreendeu que, em uma situação
como aquela, as forças decisivas do conflito eram as da inteligência e do saber. Desse modo,
erigiu a seguinte frase como máxima para exprimir o que observava: “saber é poder”. Como
já examinado pelos filósofos de Frankfurt, esse princípio lhe permitiu construir um vasto e
eficaz sistema de ideias, com a finalidade de fazer uma reforma total na ciência, denunciando
os procedimentos tradicionais e apontando novos rumos. Escreveu textos, tais como: Novum
Organum (1620), Sobre a dignidade e desenvolvimento das ciências (1623) Nova Atlântida
(publicado postumamente em 1627), entre outros, alguns inacabados.

Nos seus textos, sempre teve a preocupação de dar novos ares ao campo do saber, con-
siderando que os métodos anteriores eram estéreis, por não produzirem qualquer tipo de obra
que beneficiassem a vida do homem. Por ser inventor do método experimental e fundador
da ciência moderna, como alguns o classificam, Bacon é considerado o “filósofo da idade
industrial”. No conjunto de sua obra predomina a posição de que a finalidade da nova ciência
e da nova filosofia era dar ao homem o domínio da realidade.

O grande desafio que via em seu tempo era o da elaboração de uma atividade reflexiva
que possibilitasse conhecer a natureza e ter domínio sobre ela, cujo efeito seria a promoção
do bem-estar do homem:

Nem a mão nua nem o intelecto, deixados a si mesmos, logram muito.


Todos os feitos se cumprem com instrumentos e recursos auxiliares, de
que dependem, em igual medida, tanto o intelecto quanto as mãos. Assim
como os instrumentos mecânicos regulam e ampliam o movimento das
mãos, os da mente aguçam o intelecto e o precavêm [...]. Ciência e poder
do homem coincidem (BACON, 1988, p. 13).

Cumpre ao homem, portanto, elaborar meios para seguir a trajetória da natureza, exer-
cer o poder sobre ela, conhecendo-a e, assim, utilizá-la a seu favor. Se antes, ela era fonte de
admiração e exaltação de suas propriedades, agora, cabe acessá-la para encontrar elementos
que possam se tornar úteis aos nossos desejos. Se antes, a ciência restringia-se a fazer “be-
las meditações e especulações”, agora, é preciso construir um aparato tecnológico, isto é,

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“instrumentos e recursos” que auxiliem e ampliem o poder do intelecto e o “movimento das
mãos”.

Assim sendo, o método científico, proposto por Bacon, deveria ter como objetivo a
busca da verdade, porém não como um recurso que nos levasse às causas primeiras, ao
transcendente e à metafísica, como aparece nos escolásticos. Os procedimentos da ciên-

filosofia da educação
cia nascente deveriam voltar-se à experiência, ao imanente, para tanto, era preciso que nos
desfizéssemos ou corrigíssemos os erros e os fantasmas que nos dificultavam apreender a
realidade: os chamados ídolos.

a) ídolos da tribo: são os erros da raça humana, em que o intelecto baseia-


se nos sentidos para conhecer, sendo que os sentidos distorcem e corrom-
pem as coisas. Isso significa que muitos dos nossos enganos derivam da
tendência ao antropomorfismo, considerando verdadeiras as percepções
obtidas mediante os sentidos, generalizando-as;

b) ídolos da caverna: sãos os erros advindos de nossa leitura e interpreta-


ção dos dados da realidade, seja devido à natureza própria e singular de
cada um; seja devido à educação ou conversação com os outros, o que quer
dizer que cada pessoa possui sua própria caverna particular, que interpreta
e distorce a luz da natureza;

c) ídolos do foro: são os erros originários de nossas relações e discussões


com os outros, em que as palavras se vulgarizam, se impõem e se tornam
inapropriadas, ineptas, bloqueando o intelecto e arrastando os homens a
inúmeras e inúteis controvérsias e fantasias;

d) ídolos do teatro: são os erros oriundos de nossa aceitação e permissão


em ser conduzidos pelas teorias e escolas filosóficas que recorrem a uma
ordenação e elegância que mais retratam um mundo imaginário e cênico
do que a realidade.

Para combater esses ídolos, Bacon formula e propõe o método experimental que tem
a finalidade de descrever todas as circunstâncias em que um fenômeno ocorre e avaliando
aquelas em que ele não ocorre. O exame detalhado dos diversos casos particulares e a rela-
ção entre eles levam à conclusão geral, ou seja, ao conhecimento. Assim, desvendar o modo
como os fenômenos ocorrem significa conhecer as possibilidades de manipulá-los.

Enfim, desembaraçar desses enganos é a condição necessária para se edificar uma nova
atitude científica, segundo Bacon. E com isso, teríamos a possibilidade de instaurar o poder
e o domínio do gênero humano sobre o universo de maneira ambiciosa, sábia e nobre, isto é,
demonstraríamos que o império do homem sobre as coisas se apoiaria unicamente nas artes
e nas ciências. Conhecer as leis, os princípios e as causas que forma e organiza a natureza, é
a tarefa primordial das ciências. Livrar-se dos erros seria o primeiro passo para iniciarmos a
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construção de um novo saber, em que o homem passa de dominado a dominador da natureza,
conhecendo as suas leis por métodos comprovados. E essa visão é aprofundada por outro
pensador: René Descartes.

Descartes e a Filosofia Moderna

filosofia da educação
No filme Tempos Modernos, Charles Chaplin mostra-nos com uma acuidade peculiar
o espírito, a cultura, as características e as consequências de uma época da história humana.
A película focaliza a vida na sociedade industrial, caracterizada pela produção com base no
sistema de linha de montagem e especialização do trabalho. É uma crítica à modernidade e
ao capitalismo representado pelo modelo de industrialização, onde o operário é engolido pelo
poder do capital e pelo desejo de lucro. Homem e máquinas tornam-se meros objetos que
podem ser manipulados e administrados cientificamente.

O filósofo Descartes foi quem melhor sistematizou um conjunto de ideias que reper-
cutiu diretamente na formação de uma nova era, os novos tempos, que teve na ciência e na
tecnologia os seus pilares fundamentais. Como em Bacon, a ciência visa, agora, não só ao
conhecimento teórico, mas, sobretudo, à aplicação prática. Se em Bacon “saber é poder”, em
Descartes, “a ciência deve tornar-nos senhores da natureza”. Vinculada à ideia de intervir
nela, conhecê-la e dela se apropriar, os novos propósitos científicos não são apenas con-
templação da verdade, mas, sobretudo, o exercício do poderio humano. “Numa sociedade
em que o capitalismo está surgindo e, para acumular capital, deve ampliar a capacidade do
trabalho humano para modificar e explorar a natureza, a nova ciência será inseraparável da
técnica” (CHAUÍ, 2003, p. 222).

René Descartes era francês. Nascido em 1596, em La Haye, estudou no colégio jesuíta
de La Fléche, um dos mais célebres da Europa onde, segundo ele, pensava que deveriam
existir homens sábios, se eles existissem em algum lugar da Terra. Mas, após anos de estu-
dos, desencantou-se e decepcionou-se com os conhecimentos ali ensinados que exprimiam,
ainda segundo ele, uma cultura sem fundamentos racionalmente satisfatórios e vazia de inte-
resse para a vida. Embora nesse meio intelectual, o que o filósofo esperava era compreender
os desígnios do pensamento humano, por meio das letras e das humanidades. Contudo, o que
se conseguiu, ao fim de todo esse trajeto, foram mais dúvidas do que certezas. É óbvio que
ele não desprezou tudo o que aprendeu, mas, mesmo entre aquilo que parecia mais consis-
tente, não conseguiu encontrar algo que pudesse ser tão certo e verdadeiro e que não fosse
passível de ser colocado em dúvida. Para ele, a poesia e o estudo das línguas não traziam
frutos para o espírito, pois nenhum deles podia tornar as coisas claras e distintas. O mesmo
se poderia dizer acerca da retórica, que estaria mais inclinada para a arte da persuasão do
que para o estudo metódico de se buscar a verdade. A repetição e a erudição, como procedi-
mento pedagógico, na verdade, revelava a insegurança e a falta de utilidade prática de todos
aqueles saberes.

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Em 1618, foi para a Holanda e ingressou na vida militar que lhe proporcionou várias
viagens, visitando a Dinamarca e a Alemanha. Entretanto, dois anos depois, abandonou essa
vida. Em 1628, escreveu a obra Regras para a direção do espírito que foi seguida por Dis-
curso do método (1637), Meditações (1641), Princípio da filosofia (1644) e Paixões da alma
(1649). Morreu, no dia 11 de fevereiro de 1650, de pneumonia em Estocolmo.

filosofia da educação
Emergem da obra cartesiana algumas ideias e 2. Pitágoras foi um filósofo e matemático grego
que nasceu em Samos, entre cerca de 570 a.C.
concepções que vão caracterizar todo um período filo-
e 571 a.C., e morreu em Metaponto, entre cerca
sófico, sistematizando uma nova de maneira de pensar. de 496 a.C. ou 497 a.C. Foi o fundador de uma
Se as humanidades não mais lhe compraziam, Descar- escola de pensamento grega denominada em
tes foi seduzido pelas matemáticas, devido às certezas sua homenagem de pitagórica. Os pitagóricos
e à evidência de suas razões. As demonstrações, a so- interessavam-se pelo estudo das propriedades
dos números. Para eles, o número, sinônimo de
lidez e a clareza presentes nas matemáticas pareciam,
harmonia, constituído da soma de pares e ímpa-
segundo ele, ultrapassar as contingências de espaço e res - os números pares e ímpares expressando
tempo, nos levando à possibilidade de seguras e pere- as relações que se encontram em permanente
nes verdades. Dedicou-se, então, a pensar sobre isso, processo de mutação -, era considerado como

revivendo e atualizando o antigo ideal pitagórico2 de a essência das coisas, criando noções opostas
(limitado e ilimitado) e sendo a base da teoria da
desvelar a teia numérica que constitui a alma do mun- harmonia das esferas. Segundo os pitagóricos,
do, abrindo a via para o conhecimento claro e seguro o cosmo é regido por relações matemáticas.
de todas as coisas.

O filósofo tem como ponto de partida a busca de uma verdade primeira


que não possa ser posta em dúvida; por isso, converte a dúvida em método.
Começa duvidando de tudo, das afirmações do senso comum, dos argu-
mentos da autoridade, do testemunho dos sentidos, das informações da
consciência, das verdades deduzidas pelo raciocínio, da realidade do mun-
do exterior e da realidade de seu próprio corpo (ARANHA; MARTINS,
2003, p.131).

A partir daí, o empreendimento filosófico cartesiano voltou-se para a construção de


uma visão de mundo que nos tirasse da dúvida e nos levasse à certeza. De dúvida em dúvi-
da, chegou a uma primeira ideia: “se duvido, penso”. Assim, quanto mais se duvida, mais se
repete a máxima, reforçando a mesma experiência: se duvidar que duvido, só posso fazê-lo
pensando essa dúvida a respeito da própria dúvida inicial. Desse modo, não devemos aceitar
como certo nada que, antes, não tenha passado pelo crivo de nosso pensamento, o qual deve
ser criterioso, o que implica que não pode ter como fundamento crenças, seja de que tipo
forem; não pode se estabelecer sobre pré-julgamentos ou pré-conceitos; e, principalmente, o
resultado desse processo não deve ser passível de qualquer dúvida.

Assim ele começa as suas Meditações que sintetizam bem o seu percurso e seu objetivo:

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[...] há algum tempo eu me apercebi de que, desde os meus primeiros anos,
recebera muitas falsas opiniões como verdadeiras, e de que aquilo que depois
eu fundei em princípios tão mal assegurados não pode ser senão mui duvido-
so e incerto; de modo que me era necessário tentar seriamente, uma vez em
minha vida, desfazer-me de todas as opiniões a que até então dera crédito, e

filosofia da educação
começar tudo novamente desde os fundamentos, se quisesse estabelecer algo
de firme e de constante nas ciências (DESCARTES, 1987b, p. 17).

Essa ideia, já anunciada no texto Discurso do Método, exprime de maneira contunden-


te as proposições trazidas por Francis Bacon, de tal forma que o século XVII, marcado pela
doutrina cartesiana, costuma ser caracterizado como a “era do método” – o método científico
criado por René Descartes. Nesse sentido, a busca do conhecimento verdadeiro deve estar
fundada em um método e em bases sólidas que não o abalem. Essa base é o pensamento.
“Penso, logo existo”: é a primeira certeza inquestionável que se destaca em meio a tantas
dúvidas. O Cogito, ergo sum – penso, logo existo –, torna-se o modelo e o critério para outras
certezas que podemos eventualmente atingir:

Tendo notado que nada há no eu penso, logo existo que me assegure de que
digo a verdade, exceto que vejo muito claramente que, para pensar é preci-
so existir, julguei poder tomar por regra geral que as coisas que conhece-
mos mui clara e mui distintamente são todas verdadeiras (DESCARTES,
1987a, p. 47).

Percebe-se no percurso realizado por Descartes uma incontestável valorização da ra-


zão, do entendimento, do intelecto. Acentua-se o caráter absoluto e universal da razão que,
partindo do cogito, e só com suas próprias forças, descobre todas as verdades possíveis. Daí
a importância de um método de pensamento como garantia de que as imagens mentais, ou
representações da razão, correspondam aos objetos a que se referem e que são exteriores a
essa mesma razão (ARANHA; MARTINS, 2003, p.132). Portanto, aquilo que é apreendido
pelos órgãos dos sentidos revela-se como fonte de erro, pois esses sentidos, algumas vezes,
enganam-nos ou podem nos enganar. Dessa forma, os sentidos estão descartados como pos-
sibilidade de se chegar à verdade.

Ao escrever o Discurso do Método, Descartes está preocupado em criar um método no


qual possa se pautar para que sua razão não se perca em caminhos obscuros que o levem ao
engano, a exemplo daquilo que criticou nos saberes de seu tempo. Para ele, todos nascemos
com a mesma capacidade para pensar. Esse é um pressuposto de sua filosofia que deve ser
levado em conta. Todos os homens são munidos de uma qualidade que os distingue dos ou-
tros animais: a razão ou capacidade de raciocinar:

O bom senso [ou, a razão] é a coisa do mundo melhor partilhada, pois cada
qual pensa estar tão bem provido dele, que mesmo os que são mais difíceis

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de contentar em qualquer outra coisa não costumam desejar tê-lo mais que
o têm. E não é verossímil que todos se enganem a tal respeito; mas isso
antes testemunha que o poder de bem julgar e distinguir o verdadeiro do
falso, que é propriamente o que se denomina o bom senso ou a razão, é
naturalmente igual em todos os homens; e destarte, que a diversidade de

filosofia da educação
nossas opiniões não provém do fato de serem uns mais racionais do que
outros, mas somente de conduzirmos nossos pensamentos por vias diver-
sas e não considerarmos as mesmas coisas. (DESCARTES, 1987a, p. 29).

Como seres racionais temos capacidade de distinguir o verdadeiro do falso, se duvi-


damos, ao fazê-lo, mostramos que pensamos, ou seja, que somos dotados de pensamento.
Basta, então, criar mecanismos de acessar a realidade e dominá-la: criar um método. Ao
estilo dos matemáticos, que para chegar às suas demonstrações se servem de uma “cadeia
de razões”, ordenando as coisas das mais simples às mais complexas, a busca da verdade
também poderia seguir os mesmos procedimentos. Como exercício preparatório à ciência
universal, o estudo das matemáticas pode nos oferecer elementos importantes para esse em-
preendimento. Para tanto, Descartes elabora quatro preceitos que, tomados como regras do
método, favorecerem o ato de chegar à verdade. Essas regras, que fixam os procedimentos
a serem seguidos por todas investigações científicas, constituem o que Descartes chama de
mathesis universalis, isto é, um método científico que pretende alcançar e bem conduzir a
própria razão e procurar a verdade das coisas; um fundamento comum e único a todas as
ciências particulares. São eles:

[...] jamais acolher alguma coisa como verdadeira 3. A “precipitação” consis-


que eu não conhecesse evidentemente como tal; te em julgar antes de se ter
chegado à evidência e a “pre-
isto é, de evitar cuidadosamente a precipitação e a
venção”, na persistência dos
prevenção3, e de nada incluir em meus juízos que “prejuízos da infância” (nota
não se apresentasse tão clara e tão distintamente a do tradutor).
meu espírito, que eu não tivesse nenhuma ocasião
de pô-lo em dúvida; dividir cada uma das dificuldades que eu examinasse
em tantas parcelas quantas possíveis e quantas necessárias fossem para me-
lhor resolvê-las; conduzir por ordem meus pensamentos, começando pelos
objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir, pouco a pouco,
como por degraus, até o conhecimento dos mais compostos; e fazer em toda
parte enumerações tão completas e revisões tão gerais, que eu tivesse a cer-
teza de nada omitir (DESCARTES, 1987a, p. 37-38).

De posse da verdade, pode-se intervir no mundo, ou seja, conhecer as coisas implica


em estabelecer uma nova ordem que não exatamente aquela que os sentidos captam, mas a
que a razão impõe. Como seres pensantes (res cogitans), podemos e devemos transformar
as coisas (res extensa) em ideias, de tal modo que a cadeia de razões seja constituída pelo

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pensamento e as coisas pensadas. Esse processo nos conduz e converte as coisas em objetos
do conhecimento, evidenciando um domínio sobre elas. Estabelece-se uma relação em que,
de um lado, está o sujeito que conhece e, de outro, o objeto que é conhecido e representado.
O sujeito é o cogito, o ser que pensa.

A partir de um método, portanto, o sujeito – o cogito -, reduz o mundo à sua medida.

filosofia da educação
O homem torna-se sujeito, o “eu” que pensa, e o mundo, seu objeto. Ele já pode pensar a si
próprio como aquele que efetivamente reordena e reorganiza o mundo à sua maneira. A har-
monia e a identidade entre o homem e a natureza são rompidas. Enfim, o homem chega

[...] a conhecimentos que sejam muito úteis à vida, e que, em vez dessa
Filosofia especulativa que se ensina nas escolas, se pode encontrar uma
prática, pela qual, conhecendo a força e as ações do fogo, da água, do ar,
dos astros, dos céus e de todos os outros corpos que nos cercam [...]. pode-
ríamos empregá-los da mesma maneira em todos os usos para os quais são
próprios, e assim nos tornar como que senhores e possuidores da natureza
[...], não só para a invenção de uma infinidade de artifícios, que permiti-
riam gozar, sem qualquer custo, os frutos da terra e todas as comodidades
que nela se acham, mas principalmente também para a conservação da
saúde, que é sem dúvida o primeiro bem e o fundamento de todos os outros
bens desta vida (DESCARTES, 1987a, p. 63).

Assim, a ciência moderna se instaura e se consolida. A Lição de Anatomia do Dr.


Tulp, uma pintura a óleo sobre tela de Rembrandt, pintada em 1632, uma de suas obras mais
famosas e revolucionárias, retrata com nitidez esse processo de intervenção científica sobre
a natureza, em que o conhecimento sai de seu estado de mera especulação em direção a um
processo de tecnologização.

A ciência moderna exaltou e sistematizou a crença na capacidade do homem para


transformar a sociedade. A modernidade é o período do predomínio da ideia de que a ciência
e a técnica, com base na explicação mecânica e matemática do Universo e na invenção de
máquinas graças às experiências físicas e químicas, podem desvelar toda a realidade. Existe
também a certeza de que a razão humana é capaz de conhecer a origem, as causas e os efeitos
da subjetividade humana, suas paixões e emoções. Pela vontade orientada pelo intelecto, é
capaz também de governá-las e dominá-las.

O cartesianismo, portanto, coloca no hori- 4. Arquimedes foi um matemático, físico e inventor


zonte a conquista de uma terra firme, ou como ele grego. No campo da Física, ele contribuiu para a fun-
dação da Hidrostática, tendo feito, entre outras des-
mesmo chama nas Meditações, de um ponto arqui-
cobertas, o famoso princípio que leva o seu nome.
mediano4 que, fixo e seguro, nos levaria a obter um Ele descobriu ainda o princípio da alavanca e a ele
conhecimento certo e indubitável, submetendo os é atribuída a citação: “deem-me uma alavanca e um
dados passíveis de serem conhecidos a um proce- ponto de apoio e eu moverei o mundo”.

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dimento de análise, de tal maneira que todo o observável seja reduzido aos seus elementos
mais simples: “O mundo vivido é substituído pelo mundo representado: o objeto é reapresen-
tado à consciência em sua ausência e independentemente de sua exterioridade” (MATOS,
1997, p. 100).

filosofia da educação
Conclusão
As ideias trazidas para reflexão nesse texto tiveram a preocupação de contribuir um
pouco para a compreensão de quais foram os elementos centrais na constituição do espírito
moderno de fazer ciência, apontando um percurso que podemos utilizar para pensarmos as
questões educacionais. A educação também é uma ciência ou, pelo menos, adota procedi-
mentos próprios da atividade científica.

Nesse sentido, estudiosos sugerem que a expressão “Educação Tradicional” aplica-se


de um modo especial à metodologia pedagógica implementada, nomeadamente, a partir do
século XVII. Segundo eles, a definição dessa metodologia foi, especialmente, influenciada
pelas tentativas de elaboração, durante o século XVII, tanto do método científico, em que se
destacaram F. Bacon, como do método filosófico, em que sobressaiu Descartes. Esse último
não tinha o propósito de ensinar o método que cada qual devesse seguir para bem conduzir
sua razão, mas somente mostrar de que modo se esforçou para conduzir sua vida.

Embora não fosse intenção de Descartes fornecer contribuições efetivas para a educa-
ção, a forma pela qual pautou a sua vida e o relato dos exercícios que praticou para alcançar
algo de seguro e fixo para chegar às ciências acabaram por alertar a humanidade sobre a ne-
cessidade de um método como caminho seguro para a produção de conhecimentos seguros.

Como vimos, o método cartesiano partia da premissa “duvidar de tudo” e tinha quatro
regras principais:

1) só aceitar como verdadeiro o que está claro e não suscita dúvidas;

2) dividir cada problema em tantas partes quantas forem necessárias;

3) analisar cada parte com clareza e plenamente, acrescentando-a ao co-


nhecimento do todo;

4) não deixar de levar em conta nada que possa ser fonte de erro.

Em grande parte devido a esse 5. Jan Amos Komenski (1592-1670), filósofo tcheco, foi considerado o
método que enfatizava como sabe- primeiro grande nome da moderna história da educação. Combateu o
sistema medieval e defendeu o direito de todas as pessoas à educação.
mos o que sabemos e não o que é
Didática Magna, sua obra mais importante, marca o início da sistemati-
possível saber, geralmente, afirma- zação da pedagogia e da didática no Ocidente. Nessa obra, ele pretende
se que a filosofia moderna começou construir, bem ao estilo cartesiano, um método universal de ensinar

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Saiba Mais

com Descartes e, quiçá, a educação tudo a todos. E de ensinar com tal certeza que seja impossível não
conseguir bons resultados. Ainda, de ensinar rapidamente, ou seja, sem
moderna, como é possível vislum- Saiba Mais
enfado e aborrecimento, para os alunos e para os professores, mas, antes,
brar nas reflexões pedagógicas trazi- com sumo prazer para uns e para outros. E de ensinar solidamente, não
das por Comênio5, mas problemati- superficialmente e apenas com palavras, mas encaminhando os alunos
zadas por Rousseau. para uma verdadeira instrução, para os bons costumes e para a piedade
sincera.

filosofia da educação
Referências
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ARANHA, M.L.; MARTINS, M.H.P. Filosofando. Introdução à Filosofia. São Paulo: Moderna, 2003.

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CHAUÍ, M. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2003.

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Saiba Mais
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Saiba Mais
MATOS, O. Filosofia a polifonia da razão: filosofia e educação. São Paulo: Scipione, 1997.

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PAGNI, P. A.; SILVA, D. J. Introdução à Filosofia da Educação: temas contemporâneos e história. São
Paulo: Avercamp, 2007.

RODIA-LEWIS, G. Descartes e o racionalismo. Porto: Rés, s/d.

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Exercícios
I - Questões dissertativas sobre o conteúdo desenvolvido:

1. O que é o método experimental para Bacon?

filosofia da educação
2. Comente os quatro erros que Bacon considera como impeditivos para apreen-
dermos a realidade?

3. Explicite a sua compreensão sobre as duas figuras apresentadas no texto à luz


das ideias de Bacon e Descartes.

4. Como Descartes concebia o conhecimento verdadeiro?

5. Baseando-se nas reflexões contidas no texto, disserte sobre a suposta influên-


cia ou consequências das ideias de Bacon e Descartes na educação moderna.

II – Atividades complementares

Assista ao filme Tempos de Modernos de Charles Chaplin e relacione-o com o


texto apresentado nesta aula.

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