Rumi e o Jardim Secreto Do Coracao PDF
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RESUMO
O presente artigo pretende traçar alguns aspectos con-
cernentes à importância do conceito de coração na místi-
ca Islâmica (sufismo), tendo como base a obra de Rumi,
intitulada Masnavi. O coração, como conceito técnico
no sufismo, possui uma gama vasta de significados que
compõem como que um mosaico para a apreensão do co-
nhecimento místico. Purificar o coração é torná-lo órgão
de recepção dos mistérios do Amado, é purgá-lo de tudo
aquilo que obscureça o conhecimento.
Palavras-chave: Masnavi; Rãm§; Coração; Teofania; Me-
taconhecimento; Mística islâmica; Sufis-
mo.
1
Vê-se imagem se- O presente texto aborda (fazendo uso primordialmente de uma
melhante em al-Gha-
z~l§ (1058-1111) obra de Rãm§, a saber, o Masnavi) a necessidade de se polir o
místico sufi que influ- espelho do coração. Para Rãm§, “O coração é um jardim secreto
enciou Rãm§. “O alvo
da disciplina moral é onde se ocultam árvores/ ele manifesta cem formas, mas não
purificar o coração da tem mais que uma só./ É um oceano imenso, sem limites e sem
ferrugem das paixões
e do ressentimento, rios/ Cem vagas aqui se quebram: vagas de cada alma”. (RâM¦,
até que, como um es- 1993, p. 42).1 O coração – “Dil”2 em persa, “Qalb” em árabe –
pelho claro, ele reflita
a luz de Deus” (GHA- que é um órgão de conhecimento místico e, portanto, de funda-
Z}L¦, 2001, p. 8). mental importância para Rãm§. Para o Ocidental, a noção exata
2
“(...) O órgão mais
querido por Rãm§ é o do que seja a sabedoria do coração, às vezes, se torna um tanto
coração, “dil”. Ele o refratária, ou, por outras, até apresenta uma tendência a que se
canta em muitos ver-
sos delicados e como- veja o termo coração como uma referência à conotação cristã.
ventes, empregando Não obstante possam existir semelhanças entre tais conceitos,
muitas vezes o termo
“dil” como rima re- este termo, em árabe e persa, resguarda ainda uma outra riqueza
corrente, e valeria a semântica tão vasta quanto seu significado para a espiritualidade
pena recolher todos
os versos nos quais mulçumana.
ele descreve esse co-
ração (...) O coração O coração é a morada da segurança, meus amigos;
é uma casa e um jar- Ele possui fontes e roseirais no seio dos roseirais.
dim, é uma mesquita, Voltem-se para o rumo do coração e sigam, ó viajantes da noite;
mesmo a “masjid al-
aqs~”, a ‘mais distan-
Lá se encontram árvores e riachos de água viva.
te mesquita’ em Jeru- (Masnavi, III, versos 515-516)
salém. É a Caaba, a
casa de Deus, é tam- O termo “qalb” ultrapassa a simples forma e vai se resseman-
bém o Trono de Deus
onde Ele-mesmo re- tizando a cada uso do vocábulo. Em um dado momento, seu sig-
ge” (SCHIMMEL, nificado é o de “flutuação”; gira-se, pois, pelos caminhos da pala-
1998, p. 136).
3
“O coração (“qalb”) vra e chega-se a outro sentido: “mudança perpétua”. Uma nova
dos seres humanos elocução e já se tem um novo significado: o que antes era mudan-
perfeitos experimenta
flutuações (“qalb”, ça, agora se exprime como “inversão”. Vê-se, portanto, que esta
“taqallub”) intermi- variedade semântica para o termo é também uma forma de demons-
náveis, já que consti-
tui o lugar no qual trar as muitas epifanias do Uno.3 Nesse sentido, o coração é como
percebem as revela- um cristal que, com grande sutileza, reflete matizes da Luz espar-
ções de Deus que ja-
mais se repetem” gidos em seu cerne. A grande importância dessa pluridimensio-
(CHITTICK, 2004, nalidade do termo “qalb”4 é, portanto, propiciar que o influxo da
p. 54). Para uma
apreensão mais de- multiplicidade, em seu âmago, seja total, de modo que, não se
talhada do termo cf. descurando de qualquer forma, venha-se a provar uma nonada
Kassis e Kobbervig
(1987, p. 412-414). do Maná.
4
“O coração, como
símbolo religioso Eu Estou contido, qual hóspede
Cristão, tem muito No coração do verdadeiro crente,
pouco a ver com sua Sem qualificação, definição ou descrição;
contrapartida Islâmi- A fim de que pela meditação do coração,
ca: é que, no árabe, o Todos os seres possam obter de Mim
vocábulo “qalb”, deri- Soberania e fortuna.
vado da raiz trilítera (Masnavi, VI, versos 3.072-3.073)
“q-l-b” significa tanto
O coração (usado como termo técnico da mística islâmica) ‘coração’ como ‘flu-
tuação’, ‘mudança
será o órgão de máxima importância no desenvolvimento espiri- perpétua’, inversão,
tual do Sufi, pois, por sua pluridimensionalidade, ele é capaz de entre outras acep-
ções. No contexto
acolher as múltiplas manifestações da Unidade.5 Ele jamais esgo- místico, (...) queda
ta sua capacidade de apreensão, bem como é despossuído de to- imediatamente asso-
ciado ao órgão sutil
da a fixidez formal. Pode, por conseguinte, efetivar a progressiva de percepção mística,
transposição das diversas moradas pelas quais o ser do amante entendido como re-
ceptáculo cristalino e
deverá caminhar em seu intento gradual de aproximação do Ama- protéico capaz de re-
do. Nesse sentido, o coração, como órgão de conhecimento, rece- fletir todas as epifa-
nias dos atributos de
be seu influxo do amor que é em si-mesmo uma gnose, no senti- Deus: a inacabada,
do de ser um princípio que age como revelador da consciência infinita manifestação
da Divindade na mo-
(Cf. RANDON, 1996, p. 136-138). Nas progressivas mudanças rada da União” (LO-
do coração, estão inscritas as verdades da Verdade. PÉZ-BARALT, 1999,
p. 36).
5
Ibn Arab§, (1165-
Que é este pedacinho de carne? 1240) um dos maio-
O coração do santo que vós poderíeis reconquistar res místicos e teó-
Por meio de boas ações e piedade. sofos Muçulmanos,
Se seu coração retornasse a vós, nascido em Múrcia,
Vós seríeis salvos do castigo divino; canta assim: “Meu
De outro modo estaríeis em desespero e morderíeis as mãos. coração tornou-se ca-
paz de todas as for-
(Masnavi, I, versos 2.532-2.533) mas:/ É pasto para as
gazelas e mosteiros
A polissemia para o termo coração deixa ver, de certa forma, para monges cristãos,
/ É templo para ído-
a idéia que rege este órgão enquanto lugar de domínio de uma los e a Caaba do pe-
experiência que, se percorrida com sucesso, objetiva o conheci- regrino muçulmano,/
E as tábuas da Tora e
mento místico – “ma'rifa” –, conhecimento de origem iluminada o livro do Alcorão./
– diferente daquele adquirido pelo processo intelectual – “'ilm” – Eu sigo a religião do
amor: qualquer dire-
ou melhor seria dizer, o metaconhecimento6 dos segredos incria- ção que tomarem os
dos a partir da visão das criaturas. camelos do Amor,/
Lá está minha religião
e minha fé” (IBN
Cada ar, cada átomo está ligado à visão de Deus. 'ARAB¦, 2002, p. 9).
6
Mas até que ela seja aberta, quem dirá: “Rãm§ fala de meta-
conhecimento ou mo-
“Lá embaixo se encontra uma porta”!
dos de certeza espiri-
A menos que o Observador abra a porta, tual. Conhecimento
Esta idéia não nasce no coração dos homens. (“'ilm”) situa-se em
(Masnavi, I, versos 3.766-3.767) uma posição interme-
diária, melhor que a
suposição (“zann”)
Uma das passagens do Masnavi, onde se vê este caráter po- mas inferior à certeza
lissêmico do coração (Cf. SCHIMMEL, 1998, p. 137; 1993, p. (“yaqin”). O conheci-
mento anseia pela
278), narra um concurso de pinturas entre Chineses e Bizanti- certeza e a certeza
nos (a presente versão é resumida): anseia pela visão de
Deus. Rãm§ não nos
oferece uma episte-
Os Chineses diziam: “Somos melhores artistas”. Os Bizantinos re- mologia rigidamente
plicavam: “É a nós que pertencem o poder e a perfeição”. construída, mas ao
Colocarei a prova esta querela – disse o sultão. (...) interpretar a Sura
CONCLUSÃO
ABSTRACT
The present article aims at tracing some aspects on the
importance of the concept of heart in Mystical Islamism
(Sufism), using as the foundation the work of Rãm§, en-
titled Masnavi. The heart, as a technical concept in Suf-
ism, possesses a vast range of meanings which compose it
as a mosaic to be apprehended in mystical knowledge.
Through the purification of the heart, it becomes the or-
gan for receiving the mysteries of the Loved One, and it is
purged of all that darkens knowledge.
Key words: Masnavi; Rãm§; Heart; Theophany; Aim
knowledge; Mystical islamism; Sufism.
Referências
'ATT}R,
.. F. Le livre des secrets. Paris: Les Deux Océans, 1985.
CHITTICK, Willian. Mundos imaginales: Ibn-Arabi y la diversidad de
las creencias. Sevilha: Alquitara, 2004.
CHITTICK, Willian. The sufi path of love: the spiritual teachings of
Rumi. Albany: Suny Press, 1983.
CORBIN, Henry. La imaginación creadora en el Sufismo de Ibn'Arabi.
Barcelona: Destino, 1993.
CORBIN, Henry. Islam Iranien: aspects spirituels et philosophiques.
Paris: Gallimard, 1991. t. 3.
CRUZ, São João. Obras completas. Petrópolis: Vozes, 1984.