A Vinha e o Vinho No Algarve PDF
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Coordenação
João Pedro Bernardes
Luís Filipe Oliveira
Textos
João Luís Fontes
João Pedro Bernardes
Luís Filipe Oliveira
Miguel Godinho
Orlando Simões
a Vinha o Vinho no algarve
índice
O renascer de uma velha tradição
FICHA TÉCNICA
Edição
Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Algarve
Coordenação
João Pedro Bernardes
Luís Filipe Oliveira
do Centro de Estudos de Património da Universidade do Algarve 09 Prefácio
Textos 11 Introdução
João Luís Fontes
João Pedro Bernardes
Luís Filipe Oliveira 13 1. A “Descoberta” do Vinho
Miguel Godinho 15 1.1 As primeiras produções
Orlando Simões
19 1.2 A produção e o consumo na época islâmica
Colaboração
Aurora Neto Martins (Direcção Regional de Agricultura do Algarve) 25 2. A Expansão Medieval
Carlos Silva e Sousa (Confraria dos Enófilos e Gastronómica do Algarve)
25 2.1 Entre o mar e a serra: uma terra de vinhas e figueirais
Emanuel Sancho (Museu de S. Brás de Alportel)
Francisco Teixeira (Universidade do Algarve) 31 2.2 Proprietários e cultivadores
João Mariano (Direcção Regional de Agricultura do Algarve) 39 2.3 Os trabalhos na vinha
Manuel Romão (Adega Cooperativa de Lagoa) 46 2.4 “À boca do lagar”
Nuno Magalhães (Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro)
47 2.5 Consumo e exportação
Fotos
F32-Fotografia 55 3. A Continuidade na Época Moderna
Karsti Stiege (Foto 39)
Museu Nacional de Arqueologia (fotos 4 e 5)
59 3.1 A circulação e o consumo
Instituto dos Arquivos Nacionais · Torre do Tombo (foto 27) 61 3.2 Os vinhos algarvios e o Marquês de Pombal
Estação Vitivinícola Nacional (castas 02, 05, 07) 65 3.3 As enfermidades
Design gráfico
Planeta Tangerina 69 4. As Alterações do Século XX
71 4.1 O Algarve na conjuntura vinícola do início do século
Pré-impressão e Impressão 75 4.2 O movimento associativo
Edições Afrontamento · Rainho & Neves Lda.
81 4.3 A demarcação da região
ISBN 972-99928-1-9 / 972-36-0843-X 84 4.4 Centros vinhateiros e dinâmicas regionais
89 4.5 A vinha e o vinho no limiar do terceiro milénio – o renascer de uma velha tradição
Depósito Legal 246390/06
Autorizada a reprodução, excepto para fins comerciais, com indicação obrigatória da fonte
Universidade
do Algarve
Prefácio
Um Algarve que, tendo todos os atractivos do sol, do mar e das praias, tem também cultura,
património, tradições, gentes e saberes.
João Pedro Bernardes e Luís Filipe Oliveira, do Centro de Estudos do Património da Universidade do
Algarve, coordenaram uma vasta e competente equipa de colaboradores, que permitiu trazer à luz
do dia a histórica ligação do Algarve à produção de vinho.
Essa produção, que remonta ao período romano, conheceu fases de grande fulgor e notoriedade.
Presentemente, e após um forte declínio que atravessou as últimas décadas do século XX, assistimos
ao renascimento do vinho do Algarve.
Com novas tecnologias e novas castas, com outros sabores e aromas, mas sempre com profundo
carácter. Afinal, o carácter mediterrânico da própria Região, tão singular no contexto do país.
A magia do vinho algarvio renascido, feita de calor do sol, de saber dos homens e da sua longa
história, será certamente uma mais valia para a Região e para a sua projecção no mundo.
Julho, 2006
José Campos Correia
(Presidente da CCDR Algarve)
introdução
João Pedro Bernardes
Luís Filipe Oliveira
Quem ler as páginas que se seguem, ou simplesmente as folhear, não deixará de surpreender-se.
Nelas retrata-se, com efeito, uma realidade um pouco estranha nos dias de hoje, seja aos olhos
de um turista ocasional, seja aos olhos mais familiarizados de quem habita a região. Na paisagem
contemporânea, já pouco evoca, com efeito, a antiga presença da vinha nos campos do litoral e o
vinho nunca teve lugar cativo nos cartazes turísticos do Algarve. Ao lado do sol e da praia, apenas
as amendoeiras em flôr conseguiam alguns direitos de cidadania. Na vida económica, o cultivo da
vinha e a produção de vinho dificilmente podiam garantir os rendimentos do turismo. A partir de
meados do seculo XX, foram muitas as vinhas abandonadas e a produção de vinho na região não
tardou a cair em flecha. Algumas adegas cerraram portas e outras viram as suas produções diminuir,
ou perder as características que haviam dado fama aos seus vinhos. Em pouco mais de meio século,
o Algarve perdia, pois, a imagem de uma região produtora.
A vinha e o vinho pareciam ter, contudo, uma importância decisiva na história do Algarve. Qua-
se tudo o sugeria, desde a natureza dos solos e o clima da região às primeiras notícias do contacto
com tal bebida, reveladas por vestígios arqueológicos com mais de dois mil anos. Diversos textos,
de várias épocas, mencionavam, de resto, a fama das suas passas de uva e dos seus vinhos, ou o
papel que eles tinham no trato comercial com outros reinos e com outras gentes. Uma descrição
do Algarve feita no século XVI por um frade agostinho, que viveu alguns anos em Tavira, permitia
conhecer, por outro lado, a existência de tradições culturais próprias, quer no modo de amanhar as
vinhas, quer na maneira de fazer vinho. Até o arranque massivo de vinhas para dar lugar a inúmeros
empreendimentos turísticos, já no século XX, não deixava de mostrar, também, o lugar que esse
cultivo tivera na economia da região.
Como o Algarve perdera essa dimensão vinhateira, foram escassos os estímulos para que os
investigadores se interessassem pelo tema e procurassem os testemunhos dessa história esquecida.
Poucos são, na verdade, os estudos disponíveis. De certa forma, foi a vontade de resgatar esse silên-
cio que esteve por detrás da publicação que ora se apresenta. A lacuna não ficou preenchida, nem
tal seria possível sem um trabalho de investigação mais demorado pelos arquivos e pelas bibliote-
cas. Mas aqui se reuniram, pelo menos, os primeiros fragmentos dessa história, que se procuraram
integrar num panorama geral da evolução do cultivo da vinha e da produção de vinho no território
algarvio. Fica, pois, um primeiro esboço, à espera que outros o completem e aperfeiçoem.
A realização deste trabalho também mostra, por outro lado, que algo mudou nos últimos anos.
O desafio partiu de uma recente confraria de enófilos algarvios, naturalmente interessada na recu-
peração dos saberes e dos sabores vinhateiros da região, tendo sido favoravelmente acolhido pela
11
1
a “descoberta” do Vinho
João Pedro Bernardes*
Luís Filipe Oliveira*
É incerta a data exacta em que a mítica bebida do Mediterrâneo – o vinho – teria chegado
ao Algarve. Foram, porém, os Fenícios ou os Gregos que, a partir do século VIII a.C., permitiram
os primeiros contactos da região com o vinho, uma bebida cara e de consumo muito restrito. O
líquido era importado por via marítima em ânforas, juntamente com outros recipientes, por vezes
de carácter ritual, utilizados no seu consumo em ocasiões especiais e no âmbito de determinadas
cerimónias. Era, então, um produto que fazia parte das trocas que os Fenícios transaccionavam
com os povos do Extremo Ocidente Peninsular e que estaria presente nos entrepostos comerciais ou
feitorias que se instalaram no sul do actual território português.
A generalização do consumo e cultivo da vinha na região algarvia ocorrerá nos séculos seguin-
tes, com a chegada das legiões romanas. De acordo com o testemunho de Políbio (XXXIV, 8) para a
CCDR-Algarve, que contactou o Departamento de História, Arqueologia Por tímida que seja, a renovação das vinhas e das técnicas de pro- Lusitânia, dado a conhecer por Athenaeus de Naucratis (VIII, 330c), parece poder inferir-se que, em
e Património da Universidade do Algarve, através do seu Centro de dução de vinho, através do recurso a novos saberes e à introdução de meados do século II a.C., já existiriam vinhas no sul de Portugal que produziriam vinho suficiente
Estudos do Património. Definido o âmbito e a natureza da publicação, outras castas, permite hoje falar do “renascer de uma velha tradição”. para manter um preço bastante acessível (Étienne e Mayet, 2000: 15-20).2 É preciso, todavia, olhar
destinada ao público em geral, reuniu-se uma dezena de especialistas É certo que o vinho algarvio nunca primou pela qualidade. As caracte- estas informações com cautela, uma vez que o hábito do consumo de vinho ainda não estaria en-
sob a coordenação dos signatários. A par de uma reconstituição das rísticas climáticas da região, com temperaturas médias anuais elevadas raizado nos hábitos da maior parte da população mas apenas numa elite mais dada aos contactos
principais linhas da história da vinha e do vinho na região, procurou- e invernos moderados, que permitiam produções bastante alcoólicas, com os povos do Mediterrâneo e ao seu modo de vida. Aliás, no ano 18 depois de Cristo, Estrabão
se oferecer outra informação de tipo mais técnico, ou mais específico, mas com baixo teor de taninos, acabavam por comprometer a conser- refere-se à vida sóbria dos montanheses do interior da Lusitânia que bebiam geralmente água e
através da inserção de várias caixas temáticas ao longo da publicação. vação do vinho nas melhores condições. Também as castas tradicionais, cerveja, estando o consumo de vinho destinado apenas a acontecimentos festivos (III, 3, 7). No
Também houve a preocupação de acompanhar o texto com várias de- que privilegiavam a quantidade e não a qualidade, dificultaram por mesmo livro III da sua Geografia, depois de se referir a belos vinhedos na região de Santarém,
zenas de fotografias, ilustrando as diversas fases do ciclo vegetativo muito tempo a qualificação da produção regional. Talvez a recente (III, 3, 1), Estrabão descreve a Turdetânia, onde inclui o actual Algarve, aludindo à abundância e
da vinha e do processo de vinificação. Todas foram tiradas em vinhas introdução de novas castas, aliada a novas técnicas e a novos saberes, qualidade do vinho produzido (III, 2, 6).
e em adegas da região. Algumas dessas fotografias ajudam a perceber, permita hoje encarar as características de solo, e, sobretudo, do clima
por outro lado, a renovação que aquelas actividades têm conhecido nas mais como um factor favorável à excelência das produções, do que um
últimas décadas. problema para a sua conservação e longevidade.
* Departamento de História, Arqueologia e Património da Universidade do Algarve.
1
Os Krateres são grandes vasos com asas destinados a misturar água no vinho (os antigos Gregos e Romanos bebiam o vinho cortado com água; beber vinho puro era próprio
dos bárbaros). Os Kylikes são taças largas de pé alto, com duas asas horizontais, que serviam para beber vinho.
2
Uma medida de 39 litros custaria um drachma (= 1 denário) ao passo que um carneiro se vendia por dois e 26 Kgs de figos por meio drachma.
12 13
1.1
As Primeiras Produções
A vinha começa a marcar fortemente a paisagem algarvia logo nos Ainda que os dados sobre a produção de vinho no Algarve durante a
inícios da nossa Era com a instalação de grandes unidades de explora- Antiguidade sejam muito lacunares, sendo particularmente difícil dis-
ção agrária tipicamente mediterrânicas – as villae. Estas explorações tinguir os testemunhos da produção vitícola da oleícula, temos na villa
agrícolas, fundadas por colonos romanos ou sob a sua influência, tra- romana de Milreu, alguns testemunhos inequívocos dessa produção. Ali
zem para aqui o modelo de produção existente em Itália, onde se inclui existiu, a par de um grande lagar de azeite, um de vinho, cujas ruínas
o cultivo da vinha bem como as técnicas de vinificação. Conhecem-se se vêem hoje sob os alicerces da casa rural musealizada. O lagar, de
alguns testemunhos, ainda que a maior parte das vezes lacónicos e vara, era constituído por uma prensa cuja base de espremedura condu-
lacunares, desse cultivo e dessas técnicas na região algarvia, constituí- zia o mosto, através de canais escavados nas lajes que a constituíam,
03 | Enxerto pronto dos por documentos iconográficos e arqueológicos (cf. mapa 1). É o até um grande tanque situado a um nível inferior e com 0,8 m de altura
caso da presença de pesos de prensa (ainda que raramente se consiga por 4 m de comprimento e 2,1 m de largura. Neste tanque fazia-se o
determinar se serão de lagares de vinho ou de azeite), de lagares ou esmagamento dos cachos através do pisoteio, correndo o líquido para
Entre o tempo de Políbio (meados do século II a.C.) e o de Estrabão O aumento da área de cultivo da vinha do Algarve não impediu de pias de lagar,6 de grandes talhas ou dolia (onde se armazenava o vi- um tanque mais pequeno situado a um nível inferior onde se recolhia o
(inícios do século I d.C.) a cultura da vinha e o hábito do consumo de se continuar a importar vinho. Todavia, se durante o século II a.C. e I nho) e de elementos escultóricos ligados à vinha e ao vinho, onde se mosto. Os engaços e bagulho, ou cachos esmagados pela pisa, a fim de
vinho expandem-se muito por toda a Lusitânia e também no Algarve, a.C. as importações eram oriundas de Itália, assiste-se a partir de me- incluem as lápides funerárias em forma de barricas. libertarem todo o seu líquido, eram então amontoados sobre a base da
fruto em grande parte das importações em larga escala destinadas ados do último daqueles séculos ao desaparecimento progressivo das prensa para se fazer o pé do lagar que seria espremido fazendo baixar a
essencialmente a abastecer as legiões romanas. Estas importações de importações italianas que serão substituídas por importações de vinho trave que tinha uma das extremidades encastrada na parede, enquanto
vinho itálico são bem testemunhadas pelos inúmeros fragmentos de da Bética (actual Andaluzia) e da Gália.3 A importação de vinho destas a outra estava presa a um contra-peso. A vara ao baixar, rodando um
ânforas onde era transportado, que ocorrem praticamente em todos duas regiões do império terá a ver essencialmente com a sua melhor fuso ou sarilho, comprimia o pé de lagar, ou seja o “bolo” feito com
os sítios arqueológicos do período republicano na região (séculos II qualidade em relação ao algarvio, o que leva as elites locais a impor- os cachos previamente pisados. O líquido resultante da espremedura
e I a.C.). Tais ânforas surgem associadas frequentemente a vasos des- tá-lo.4 A partir do século II, a especialização dos produtos vinários corria para o tanque da pisa, agora liberto de cachos, e deste para a
tinados ao consumo de vinho, também eles produzidos em Itália e, gauleses suplanta os da andaluzia, agora especializada na produção de cuba ou tanque mais pequeno onde se recolhia o mosto. As escava-
por isso mesmo, conhecidos por cerâmica campaniense (da região da azeite, chegando as suas exportações a todo o mundo romano. Será por ções identificaram a algumas dezenas de metros deste lagar algumas
Campânia). Não há dúvida que a constante presença de tropas romanas esta altura que a utilização da ânfora como contentor de transporte do grandes talhas semi-enterradas que parece terem servido para ali se
no território português a partir do século II a.C. e, sobretudo, a inte- vinho começa a ser substituído por barris e tonéis, que servirão igual- guardar o vinho. Este lagar e respectiva adega teria sido sacrificado no
gração nos seus efectivos de grandes contingentes recrutados entre as mente para o armazenar, rivalizando com as grandes talhas (Tchernia século III para se expandir a parte residencial da villa, construindo-se
comunidades indígenas, contribuiu decisivamente para a generalização e Brun, 1999). Tal explicará a fraca ocorrência de ânforas vinárias na então novo lagar a alguns metros para leste (Hanel, 1989; Hauschild
do consumo de vinho, o que estimulou a sua produção local. No caso região a partir do século II, aparecendo, por outro lado, as primeiras e Teichner, 2002).
concreto do Algarve – a primeira região do país a mediterranizar os representações de pipas, curiosamente ligadas ao mundo funerário.5
seus hábitos alimentares, com a adopção da trilogia cereais, vinho e Pelas dimensões do tanque poderemos ter uma noção aproximada
azeite – o consumo de vinho já estaria bem enraizado nos alvores da da produção vitivinícola da villa de Milreu durante os séculos II e III.
nossa Era, na sequência dos contactos seculares com povos comercian- O tanque da pisa de uva teria uma capacidade superior aos 60 hectoli-
tes consumidores de vinho: Fenícios, Gregos, Cartagineses e Romanos. tros. Tendo em conta que por ano de safra se fariam no mínimo 2 ou 3
04 | Cupa-barrica (Mértola, mármore, séc. II-III d.C.)
pisas, facilmente se admite que a produção de vinho da villa de Milreu
se poderia aproximar dos 150 ou mesmo 200 hectolitros/ano.7
3
A importação de vinho italiano no Algarve é documentado pela presença de ânforas vinárias, sobretudo do tipo Dressel 1, em Monte Molião (Lagos), Vila Velha de Alvor, Foz
do rio Arade (Portimão), Cerro da Rocha Branca (Silves), Faro, Quinta de Marim (Olhão), Cerro do Cavaco (Tavira) e Castelo de Castro Marim (Arruda e Almeida, 1999: 330-331).
Testemunhos das ânforas do tipo Haltern 70 que testemunham as importações andaluzas nos século I a.C./I d.C., foram encontradas em Faro e no mar ao largo de Tavira/Cacela
e da Meia Praia (Lagos). Um panorama da história do vinho, sob o ponto de vista do consumo, na época romana do actual território português pode ser visto em Fabião, 1998. 6
Apesar de se contabilizarem vária lagaretas nos concelhos de Portimão e Lagos (cf base de dados Endovélico – www.ipa.min-cultura.pt), só tivemos em conta os lagares cuja
4
São vários os autores antigos que se referem à excelência dos vinhos da Bética e da Gália. informação é susceptível de se lhes atribuir cronologia romana.
5 7
No Algarve estas pipas ou cupae-barricas aparecem em Quinta do Marim (4 exemplares), em Faro e em Monte Velho (Mexilhoeira Grande). A presença destas lápides em forma de As villae italianas da época tinham capacidades de vinificação que variavam entre os 100 hl a 1100 hl e as da Gália poderiam atingir os 3000 hl, correspondendo a mais de meia
barricas que cobriam as sepulturas, para além de testemunharem o enraizamento da cultura da vinha na região e a disseminação daqueles contentores em madeira, simbolizam centena de hectares de vinha (Brun, 1997). Face a estes valores, não seria mesmo de espantar que a produção vinícola de Milreu superasse largamente as cifras que estimamos
a presença mística do vinho junto ao defunto como bebida da eternidade (cf. Encarnação, 1984; Étienne e Mayet, 2000: 21 e ss.) para a sua produção. Na villa de Torre de Palma (Monforte), há indícios de que a produção tenha atingido os 1700 hl/ano (Brun, 1997).
14 15
O Processo de Vinificação há 2.000 anos segundo Columela
Aplicando-se no Algarve as estimativas de rentabilidade dos vinhe-
1.
dos de outras regiões romanas que calculam uma produção entre 35 hl Far-se-à ferver, até se reduzir ao terço, o mosto mais doce, que, assim
a 60 hl por cada hectare, poderíamos imaginar uma extensão de pelo reduzido, toma o nome de defrutum. Depois de arrefecer, transvasa-se
menos 5 hectares de vinhas em torno de Estoi há cerca de 1800 anos. para outros recipientes e guarda-se para se utilizar ao fim de um ano.
Pode-se, todavia, acrescentar ao vinho novo, nove dias após ter ar-
A importância da vitivinicultura na economia desta grande unidade de refecido, mas é melhor após um ano de repouso. Acrescenta-se um
exploração romana não deixa dúvidas, de tal forma que entre as várias sextarius (0,55l) deste defrutum a duas urnas (26,3l) de mosto, caso
esculturas ali encontradas aparece um busto de Dioniso (divindade provenha de vinhas de encosta, mas três heminas (0,82l) se o mosto
provém de vinhas de planície.
ligada ao vinho) com grinalda de parras e cachos de uvas a emol- 2.
durarem-lhe a cabeça e pescoço (Souza, 1990). O cenário, estimado Tirado da cuva, deixa-se dois dias o mosto fermentar e purgar; ao
por defeito, para a extensão dos vinhedos da villa romana de Milreu terceiro dia acrescenta-se o defrutum, e dois dias depois, quando este
mosto estiver a fermentar com o defrutum, purga-se, e, neste estado,
repetir-se-ia, certamente, em muitas outras partes do Algarve onde se
acrescenta-se nas duas urnas uma boa colherada ou a medida duma
encontram villae romanas. meia onça (13,6g) de sal […].
3.
As técnicas de vinificação utilizadas no Algarve não seriam muito Faz-se, além disso, macerar durante 3 dias feno-grego em vinho velho;
retira-se e seca-se ao forno ou ao sol, após o que se tritura. Uma vez
diferentes das da vizinha Andaluzia, que conhecemos pormenorizada- triturado , depois de ter salgado o mosto, deita-se nas duas urnas uma
mente pela descrição que Columela faz a partir do processo utiliza- boa colherada ou um cadinho do mesmo conteúdo, ou seja um quarto
do num lagar que o seu tio possuía na região de Cádiz, de onde era de ciato (0,011l); após o mosto ter terminado a sua fermentação e
estiver em repouso, mistura-se tanto gêsso quanto se pôs de sal e no
natural.8 Diz-nos o agrónomo, nascido igualmente em Cádiz, que se dia seguinte purga-se a talha, tapa-se o vinho tratado e sela-se.
adicionava ao mosto 1/48 de defrutum (espécie de vinho abafado ou
moscatel) obtido pela redução a 1/3, por ebulição, de uma porção de Columela, De re rustica, XII, 21
gesso que tinha a função que hoje tem o ácido tartárico, essencial à
conservação do vinho, sobretudo em climas quentes onde a percenta-
gem de acidez das uvas é reduzida.
2
As vinhas terão continuado a marcar acentuadamente a região do
Algarve pelo menos até ao século V, altura em que as unidades de 5
3
exploração agrária em larga escala entram, com a queda do Império 1
4
romano, em colapso. Dos séculos seguintes pouco ou nada se sabe.
7
Sabe-se, porém, que boa parte dos sítios romanos continuarão a ser 6
9
ocupados e muitas das tradições rurais prosseguidas, pelo que é natu- Lagar
8
ral que a vinha se tenha mantido presente na paisagem ainda que de 05 | Dioniso – deus do vinho Peso de lagar
forma menos marcante. – ornamentado com grinalda de Cupa-barrica
parras e uvas (Milreu, mármore,
séc. II d.C.) 1. Bensafrim (1 lagar)
06 | Início da rebentação 2. Monchique (1 lagar escavado na rocha)
3. Mexilhoeira Grande (1 lagar escavado na rocha e 1 cupa-barrica)
4. Vale da Arrancada – Portimão (1 lagar escavado na rocha)
5. Vila Fria – Silves (1 peso de lagar)
6. Loulé Velho – Quarteira (3 pesos de lagar)
7. Milreu – Estói (1 lagar e várias talhas de vinho)
8
Columella, De re rustica, XII, 21. Columela é um agrónomo romano do século I d.C. que conhecia bem a região do sudoeste peninsular. Note-se que o Algarve era o prolonga- 8. Faro (1 cupa-barrica)
mento natural e cultural da Andaluzia na época romana, pelo que é plausível admitir que as técnicas de vinificação não seriam muito diferentes. 9. Quinta do Marim – Olhão (4 cupas-barrica)
16
1.2
a Produção e o Consumo
na Época Islâmica
Após a desagregação da unidade política do império, nada indica de referências textuais (70), muito distantes das tâmaras (31) e dos
que o cultivo da vinha tenha desaparecido das paisagens algarvias. A figos (23), de acordo com os índices elaborados por H. Bresc e por A.
instabilidade social desse período não parece ter obstado a que algu- Nef (1999).9 Também a arqueologia tem demonstrado a vulgaridade
mas villae, melhor organizadas, ou mais protegidas, tivessem mantido do cultivo da vinha nas paisagens do Sul: nas amostras recolhidas na
as produções agrícolas tradicionais e que os géneros cultivados con- alcáçova de Mértola (Macias, 1996: 177), as vides encontram-se entre
tinuassem a afluir aos mercados urbanos da região. Na falta de outros as espécies vegetais mais comuns desde finais do século XI e há muito
dados, a vitalidade dessas explorações agrícolas pode comprovar-se, que Santos Rocha (1895: 209-212) identificou os restos de um lagar
de forma indirecta, através da manutenção da vida urbana em cidades de fábrica islâmica em Bensafrim, no actual concelho de Lagos, talvez
como Balsa e Ossonoba, que está atestada por alguns vestígios arqueo- dedicado à produção de vinho.
lógicos dos séculos VI e VII (Maciel, 2003; Viegas, 2004). Na verdade,
as importações só com dificuldade atingiam a dimensão e a diversidade Os tratados agronómicos que foram elaborados no al-Andaluz, seja
de outros tempos, pelo que o abastecimento regular dos mercados con- em Toledo durante o século XI, seja em Sevilha por finais desse século
tava, cada vez mais, com os produtos cultivados nas villae espalhadas e na centúria seguinte, confirmam aquelas observações. Para o mais
pelo termo da cidade. As áreas dedicadas ao cultivo dos cereais, da conhecido e o mais original desses agrónomos, Ibn Bassal, cuja obra
vinha e da oliveira, que eram a base da dieta alimentar mediterrânica, foi traduzida para castelhano durante o século XIII (Bolens 1994: 39-
não devem ter sofrido, portanto, um recuo muito acentuado. No que 41), a videira figurava entre as quatro espécies arbóreas mais impor-
respeita à vinha, pode mesmo admitir-se algum incremento do seu tantes, a par da figueira, da oliveira e da amendoeira. No conjunto,
cultivo, sobretudo nos aros urbanos, devido à gradual cristianização aqueles tratados de agronomia revelam uma grande preocupação com o
das populações. Nada disto é, porém, muito seguro e faltam os dados amanho das vinhas, quer com as particularidades da sua rega, quer com
para que se possa reconstituir, com algum rigor, o lugar que a vinha e a qualidade e a composição do estrume que lhes devia ser ministrado.
o vinho tinham na alimentação das populações urbanas e rurais. A este respeito, não ignoravam os ensinamentos dos autores antigos,
nem dos agrónomos árabes do Oriente (Bolens, 1994: 219-221), que
O terreno apresenta-se um pouco mais firme durante a época islâ- recomendavam a confecção de um adubo próprio para as vides, com-
mica, no decurso da qual se devem ter reforçado os componentes medi- posto por dejectos humanos e de pomba, sarmentos verdes, cinzas de
terrânicos da dieta alimentar das populações. Em meados do século X, vide e lodo de rio, entre outros. Mais fiéis às observações de Columela
o Calendário de Córdoba demonstra a importância do cultivo da vinha e e, por certo, às suas próprias, lembravam alguma prudência na hora de
dos cereais, sendo neles que incidia boa parte da carga fiscal do Cali- estrumar a vinha, de modo a que as plantas não fossem prejudicadas e
fado (Bolens, 1994: 24). Um autor contemporâneo, al-Râzî, dava conta o vinho não perdesse a sua virtude e o seu sabor.
das vinhas da Egitânia e das frutas boas e claras de Ossónoba, opinião
partilhada por outro geógrafo árabe pouco posterior, que não se es- A experiência e a competência dos muçulmanos no cultivo das
queceu das vinhas de Coimbra, nem das passas e dos figos produzidos vinhas não eram desconhecidas pelos seus opositores cristãos. Na
nos arredores de Faro (Coelho, 1972: I, 42, 44, 50 e 55). No século segunda metade do século XIII, quando a Coroa reorganizou as ter-
XII, graças às descrições geográficas de Idrisi, que tornou a citar os ras algarvias recentemente conquistadas, Afonso III aproveitou esse
07 e 08 | Casta Castelão
figos e as passas de Faro (IV, 1), pode atestar-se a divulgação da vinha saber e responsabilizou os mouros pelo cultivo das suas vinhas na
(Periquita) – cachos separados por todo o Mediterrâneo. Entre as menções da sua obra aos frutos co- região (Barros, 2004: 112-113, 526-530). De acordo com o foral de
mestíveis, são as uvas que monopolizam, com efeito, o maior número Loulé (1266), foram-lhes confiadas 40 arençadas, quer dizer, entre 14
9
Das 70 menções a vinhas que aí se encontram, apenas 23 provêm das regiões correspondentes aos climas VI e VII de Idrisi, quer dizer, dos países do Ocidente medieval
cristão.
18 19
a 17 hectares de vinha.10 Nas restantes cartas de foral, não se encon- ou a abundância com que ele corria em Sevilha. Entre aqueles que o
tram indicações do mesmo tipo, embora aí se mencione a obrigação de consumiam em público, ou o bebiam em privado, nem todos seriam
amanhar as vinhas do rei, recordada, também, pelo foral dos mouros muçulmanos, pois havia diversos judeus e cristãos entre os habitantes
forros do Algarve (1269). Graças a um diploma pouco posterior (1282), daquelas cidades. Aqueles que o apreciavam não o ingeriam, contudo,
sabe-se, no entanto, que cabia aos mouros de Tavira o cultivo de um com a moderação aconselhada por Abd Allah, o rei de Granada no sécu-
terreno de figueiral e vinha com 346 arençadas no reguengo da vila, o lo XI, como sugere a historieta (in Diaz Plaja, 1995: 126) que este diz
que significa que cuidavam de figueiras e de vides distribuídas por cerca ter recolhido junto do vulgo:
de 150 hectares. O panorama pouco diferia noutros lugares, embora as
notícias disponíveis sejam, em regra, mais tardias. Por meados da déca- Consultei o mestre Hipócrates,
da de trinta do século XV, segundo os procuradores do concelho de Faro, porque Hipócrates tem inteligência,
era do cultivo de vinhas e de figueirais que se sustentavam os setenta um mérito que não tem par
mouros residentes na vila (Barros, 2004: 550). No reguengo de Loubi- e uma ciência incomparável.
te, situado no termo de Silves, a comunidade de mouros forros estava «Gosto do vinho», disse-lhe.
do mesmo modo associada à produção de figos e de passas de uva, ao E respondeu-me: «Mas beber muito mata»
contrário do que sucedia com os foreiros cristãos. De acordo com o Livro Insisti: «Diz-me qual a quantidade.»
do Almoxarifado de Silves (1984: 61-69), que foi elaborado em 1474, E com toda a clareza me retorquiu:
estavam entregues a vários mouros perto de 40 courelas de vinha e de «Reconheço quatro humores
figueiral, quase sempre avaliadas pelas seiras de passa e pelos quintais que são a base da saúde.
de figo que produziam.11 Portanto, quatro por quatro:
para cada humor, um litro.» 09 | Vinha em sequeiro – sistema
Como alguns destes dados parecem sugerir, uma boa parte das vi- de condução tradicional
nhas cultivadas em época islâmica devia destinar-se, portanto, à pro- Não era apenas a gente vulgar que se encontrava entre os apre- 10 | Vinha aramada com rega
dução e à comercialização de passas de uva. A sua importância nas ciadores de vinho e a cronística árabe oferece, aliás, diversas notícias gota-a-gota
produções agrícolas e nas actividades comerciais não escapou, de resto, do consumo e da produção de vinho no palácio dos emires de Córdoba
à observação de autores como Idrisi e Al-Himyari, sendo as uvas e os (Coelho, 1972: II, 82, 131, 283). Entre os mais cultos e letrados, os
figos os únicos frutos citados nas suas descrições de Santa Maria de tratados de medicina ajudavam a reforçar as vantagens de um consumo
Faro. Um texto mais tardio, redigido por um autor magrebino de finais moderado de vinho, pois receitavam-no como um estimulante anímico
da época medieval (Rei, 2004: 33) e dedicado à descrição das regiões e aconselhavam-no na convalescença de enfermos e na recuperação de
do al-Andalus, confirma a venda em passa de muitas das uvas de Silves. pessoas debilitadas. Mesmo nas mesas mais requintadas, o vinho devia
Segundo as notícias desse texto, as transacções faziam-se ao longo de ter, portanto, um lugar cativo e é provável que o seu consumo fosse
todo o ano e cada quintal de passas, com cerca de 60 Kgs, valia, em visto como um hábito próprio de gente civilizada, como já foi sugerido
média, dois dirhams. O apreço pelo consumo regular de passas de uva (Castro, 1996). De certa forma, o refinamento que se associava ao con-
não se limitava, contudo, às populações muçulmanas e depressa entrou sumo de vinho pode ser medido, de modo algo paradoxal, pelo facto de
nos hábitos alimentares dos colonos vindos das terras do norte, após um dos mais importantes tratados de engenharia árabe, escrito por Ibn
as batalhas da reconquista. Como se sabe, a palavra “acepipe”, que al-Jazarî em inícios do século XIII, ter o seu segundo capítulo inteira-
hoje significa petisco, ou iguaria, tem origem no termo árabe com que mente consagrado à descrição de distribuidores automáticos de vinho
outrora se nomeava a passa de uva. (Hill, 1991: 176). O conforto de uma máquina destas dificilmente es-
Nem todos os cachos de uva se destinavam, no entanto, à produção taria ao alcance de muitos, mas a mera concepção de um aparelho com
de passas. Ao lado dos que eram consumidos em fresco na época das aquela função basta para mostrar, também, a banalidade do consumo
colheitas, muitos outros eram transformados em vinho. Como se viu, de vinho entre os fiéis do Islão.
os agrónomos do al-Andalus, que tinham lido Columela, não ignoravam
os problemas ligados ao processo de vinificação e não faltam textos O interdito corânico sobre o consumo de bebidas alcoólicas, como
que assinalem a venda e o consumo de vinho em diversas cidades. Em outra qualquer norma religiosa, tinha um sentido dialógico e não pode
Almeria, segundo Idrisi (IV, 1), havia perto de mil estalagens onde se ser tomada à letra. As palavras do Profeta não iam, de resto, num único
vendia vinho e outros autores, como al-Saqundi, não deixam de assina- sentido: se ele aconselhara os fiéis a evitarem o vinho e a não se da-
lar a qualidade do vinho que se produzia em Málaga (Arié, 1990: 412), rem à oração quando se encontrassem ébrios, não ignorava as virtudes
10
A “arenzada” é uma medida de superfície variável: de acordo com o Dicionário da Real Academia de Espanha (http://buscon.rae.es/diccionario/drae.htm), equivalia a 3672 m2
em Córdova, e, em Castela, a 4472 m2.
11
No Livro do Almoxarifado de Silves (1984: 43-53), descrevem-se outros prédios aforados a mouros, mas os seus foros estavam remidos a dinheiro e não em géneros.
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dessa bebida, a qual era vista como uma oferta de Deus para deleite “Quando percebeu que eu proibira os muçulmanos de beberem vinho e
dos homens, na Sura que descreveu o Paraíso prometido aos crentes. As permitia que eles tivessem escravas concubinas, além de quatro esposas
diversas escolas jurídicas também não se entendiam quanto ao signifi- legítimas, disse-me: «Isso não é razoável, porque o vinho dá força ao cor-
cado exacto das suas palavras e se a maior parte expulsou o vinho do po, e, pelo contrário, a abundância de mulheres debilita o corpo e a vista.
grupo das bebidas lícitas, houve algumas que aceitaram a legitimidade A religião do Islão não está de acordo com a razão». Eu disse então ao
do seu consumo (Castro, 1996). De um modo geral, as regras corânicas intérprete: «Diz ao rei: A lei religiosa dos muçulmanos não é como a dos
davam espaço a diversas soluções de compromisso. cristãos. Em vez de água, o cristão bebe vinho quando come, sem se dar
à embriaguez, e isso aumenta as suas forças. Em contrapartida, o muçul-
mano que bebe vinho não procura senão embriagar-se, perde a razão, fica
louco, comete adúltério, diz e faz coisas impías, sem fazer nada de bom,
entrega as suas armas e o seu cavalo e dilapida quanto tem, apenas para
buscar o prazer (…). No que respeita às escravas concubinas e às mulheres
O Alcorão e o Vinho legítimas, aos muçulmanos convém a poligamia por causa do ardor do seu
1. temperamento. Além do mais, já que eles formam o teu exército, quantos
Numa das primeiras revelações, o vinho surge como uma oferta de mais filhos tiverem mais soldados terás.”
Deus, sendo identificado como um dos deleites do Paraíso: “Eis aqui
uma descrição do paraíso, que foi prometido aos tementes: Lá há rios
de água impoluível; rios de leite de sabor inálterável; rios de vinho Era esta visão catastrófica dos malefícios da embriaguez que justi-
deleitante para os que o bebem; e rios de mel purificado; ali terão ficava, em boa parte, as medidas restritivas da venda e do consumo de
toda a classe de frutos, com a indulgência do seu Senhor” (Alcorão,
XLVII, 15).
vinho que se adoptaram nalguns períodos da história do Islão peninsu-
lar. Mesmo numa época mais preocupada com o respeito dos preceitos
2. religiosos, e, por isso, mais repressiva, como foi o período almôada,
Ainda que não se esqueçam os deleites do vinho, as revelações pos-
teriores acentuam sobretudo os seus malefícios: “Interrogam-te a res- era a evocação de perturbações daquele género que legitimava a con-
peito da bebida inebriante e do jogo de azar; dize-lhes: Em ambos há denação dos governantes que se davam à bebida (Castro, 1996, Quadro
benefícios e malefícios para o homem; porém, os seus malefícios são 1). Para os cronistas dessa época, eram eles os principais responsáveis
maiores do que os seus benefícios” (Alcorão, II, 219). Era apenas pela
perda das faculdades racionais, que o ébrio não deveria entregar-se à pela generalização do caos a toda a ordem política e social. A obser-
oração: “Ó fiéis, não vos deis à oração, quando vos achardes ébrios, até vação escrupulosa do princípio da abstinência surgia assim, aos seus
que saibais o que dizeis” (Alcorão, IV, 43). olhos, como a única forma capaz de manter a ordem das coisas e até
3. de regenerar o mundo e os homens. Talvez sem grande sucesso, e, por
A associação com os jogos de azar reforçaria, no entanto, a visão do certo, sem a graça e sem a beleza com que um poeta contemporâneo,
vinho como um dos instrumento de Satanás: “Satanás só ambiciona
Ibn Asside de Silves (Coelho, 1975: 379), conseguia recordar o lugar
infundir-vos a inimizade e o rancor mediante as bebidas inebriantes
e os jogos de azar, bem como afastar-vos da recordação de Deus e da do vinho numa noite de luar, junto da mulher amada:
oração” (Alcorão, V, 91). Como tal, os fiéis eram aconselhados a evitá-
-lo: “Ó fiéis, as bebidas inebriantes, os jogos de azar e as adivinhações
“Quantas noites rasgaste o véu das trevas
com setas, são manobras abomináveis de Satanás. Evitai-as, pois, para
que prospereis” (Alcorão, V, 90) com um vinho resplandecente como um astro!
Servia-te um copeiro deligente de voz melodiosa
e alguém disse que o licor era feito das suas faces
e da fresca saliva da sua boca.
Vinho e copeiro eram duas luas cheias:
uma, que tu não receavas ver deitar-se,
O modo ambivalente como o vinho era olhado permite compreen- servia diligentemente; a outra
der, por outro lado, a tolerância que os juízes mostravam para com os estava inteiramente disposta a inclinar-se
ébrios e os foliões, desde que a sua conduta não suscitasse qualquer para uma boca como para se deitar.
desacato. Diversos testemunhos o comprovam, ainda que al-Jusani, um Quando bebias deliciosamente 11 | Solo típico da vinha algarvia
jurista, justificasse a benevolência dos juízes pela inexistência de uma os lábios da lua que se deitava
pena específica com que se castigassem os ébrios (Diaz Plaja, 1995: gozavas ao mesmo tempo dum beijo
91). A insistência particular de alguns autores nos efeitos provocados daquela que se não deitava.”
pelo consumo de vinho em excesso tem, por certo, o mesmo sentido.
Mais do que a bebida, era a embriaguez que se condenava, como se
observa no relato da conversa que o granadino Abu Hamid (in Castro,
1996) manteve com o rei dos húngaros, em pleno século XII:
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