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a Vinha e o Vinho no algarve

O renascer de uma velha tradição

Coordenação
João Pedro Bernardes
Luís Filipe Oliveira

Textos
João Luís Fontes
João Pedro Bernardes
Luís Filipe Oliveira
Miguel Godinho
Orlando Simões
a Vinha e o Vinho no algarve
O renascer de uma velha tradição

FICHA TÉCNICA
Edição
Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Algarve

Coordenação
João Pedro Bernardes
Luís Filipe Oliveira
do Centro de Estudos de Património da Universidade do Algarve

Textos
João Luís Fontes
João Pedro Bernardes
Luís Filipe Oliveira
Miguel Godinho
Orlando Simões

Colaboração
Aurora Neto Martins (Direcção Regional de Agricultura do Algarve)
Carlos Silva e Sousa (Confraria dos Enófilos e Gastronómica do Algarve)
Emanuel Sancho (Museu de S. Brás de Alportel)
Francisco Teixeira (Universidade do Algarve)
João Mariano (Direcção Regional de Agricultura do Algarve)
Manuel Romão (Adega Cooperativa de Lagoa)
Nuno Magalhães (Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro)

Fotos
F32-Fotografia
Karsti Stiege (Foto 39)
Museu Nacional de Arqueologia (fotos 4 e 5)
Instituto dos Arquivos Nacionais · Torre do Tombo (foto 27)
Estação Vitivinícola Nacional (castas 02, 05, 07)

Design gráfico
Planeta Tangerina

Pré-impressão e Impressão
Edições Afrontamento · Rainho & Neves Lda.

ISBN 972-99928-1-9 / 972-36-0843-X

Depósito Legal 246390/06

N.º de Exemplares 2000

Data de Edição Agosto de 2006

Autorizada a reprodução, excepto para fins comerciais, com indicação obrigatória da fonte
índice

09 Prefácio

11 Introdução

13 1. A “Descoberta” do Vinho
15 1.1 As primeiras produções
19 1.2 A produção e o consumo na época islâmica

25 2. A Expansão Medieval
25 2.1 Entre o mar e a serra: uma terra de vinhas e figueirais
31 2.2 Proprietários e cultivadores
39 2.3 Os trabalhos na vinha
46 2.4 “À boca do lagar”
47 2.5 Consumo e exportação

55 3. A Continuidade na Época Moderna


59 3.1 A circulação e o consumo
61 3.2 Os vinhos algarvios e o Marquês de Pombal
65 3.3 As enfermidades

69 4. As Alterações do Século XX
71 4.1 O Algarve na conjuntura vinícola do início do século
75 4.2 O movimento associativo
81 4.3 A demarcação da região
84 4.4 Centros vinhateiros e dinâmicas regionais
89 4.5 A vinha e o vinho no limiar do terceiro milénio – o renascer de uma velha tradição

96 Castas mais representativas actualmente no Algarve

100 Bibliografia
Prefácio

Com este livro, a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Algarve prossegue


uma linha editorial cujo objectivo é divulgar uma Região diversa e profunda, capaz de surpreender
muitos daqueles que a visitam.

Um Algarve que, tendo todos os atractivos do sol, do mar e das praias, tem também cultura,
património, tradições, gentes e saberes.

João Pedro Bernardes e Luís Filipe Oliveira, do Centro de Estudos do Património da Universidade do
Algarve, coordenaram uma vasta e competente equipa de colaboradores, que permitiu trazer à luz
do dia a histórica ligação do Algarve à produção de vinho.

Essa produção, que remonta ao período romano, conheceu fases de grande fulgor e notoriedade.

Presentemente, e após um forte declínio que atravessou as últimas décadas do século XX, assistimos
ao renascimento do vinho do Algarve.

Com novas tecnologias e novas castas, com outros sabores e aromas, mas sempre com profundo
carácter. Afinal, o carácter mediterrânico da própria Região, tão singular no contexto do país.

A magia do vinho algarvio renascido, feita de calor do sol, de saber dos homens e da sua longa
história, será certamente uma mais valia para a Região e para a sua projecção no mundo.

Julho, 2006
José Campos Correia
(Presidente da CCDR Algarve)
01 | Casta Alicante Bouschet
introdução
João Pedro Bernardes
Luís Filipe Oliveira

Quem ler as páginas que se seguem, ou simplesmente as folhear, não deixará de surpreender-se.
Nelas retrata-se, com efeito, uma realidade um pouco estranha nos dias de hoje, seja aos olhos
de um turista ocasional, seja aos olhos mais familiarizados de quem habita a região. Na paisagem
contemporânea, já pouco evoca, com efeito, a antiga presença da vinha nos campos do litoral e o
vinho nunca teve lugar cativo nos cartazes turísticos do Algarve. Ao lado do sol e da praia, apenas
as amendoeiras em flôr conseguiam alguns direitos de cidadania. Na vida económica, o cultivo da
vinha e a produção de vinho dificilmente podiam garantir os rendimentos do turismo. A partir de
meados do seculo XX, foram muitas as vinhas abandonadas e a produção de vinho na região não
tardou a cair em flecha. Algumas adegas cerraram portas e outras viram as suas produções diminuir,
ou perder as características que haviam dado fama aos seus vinhos. Em pouco mais de meio século,
o Algarve perdia, pois, a imagem de uma região produtora.

A vinha e o vinho pareciam ter, contudo, uma importância decisiva na história do Algarve. Qua-
se tudo o sugeria, desde a natureza dos solos e o clima da região às primeiras notícias do contacto
com tal bebida, reveladas por vestígios arqueológicos com mais de dois mil anos. Diversos textos,
de várias épocas, mencionavam, de resto, a fama das suas passas de uva e dos seus vinhos, ou o
papel que eles tinham no trato comercial com outros reinos e com outras gentes. Uma descrição
do Algarve feita no século XVI por um frade agostinho, que viveu alguns anos em Tavira, permitia
conhecer, por outro lado, a existência de tradições culturais próprias, quer no modo de amanhar as
vinhas, quer na maneira de fazer vinho. Até o arranque massivo de vinhas para dar lugar a inúmeros
empreendimentos turísticos, já no século XX, não deixava de mostrar, também, o lugar que esse
cultivo tivera na economia da região.

Como o Algarve perdera essa dimensão vinhateira, foram escassos os estímulos para que os
investigadores se interessassem pelo tema e procurassem os testemunhos dessa história esquecida.
Poucos são, na verdade, os estudos disponíveis. De certa forma, foi a vontade de resgatar esse silên-
cio que esteve por detrás da publicação que ora se apresenta. A lacuna não ficou preenchida, nem
tal seria possível sem um trabalho de investigação mais demorado pelos arquivos e pelas bibliote-
cas. Mas aqui se reuniram, pelo menos, os primeiros fragmentos dessa história, que se procuraram
integrar num panorama geral da evolução do cultivo da vinha e da produção de vinho no território
algarvio. Fica, pois, um primeiro esboço, à espera que outros o completem e aperfeiçoem.

A realização deste trabalho também mostra, por outro lado, que algo mudou nos últimos anos.
O desafio partiu de uma recente confraria de enófilos algarvios, naturalmente interessada na recu-
peração dos saberes e dos sabores vinhateiros da região, tendo sido favoravelmente acolhido pela

11
02 | Vinha abandonada

CCDR-Algarve, que contactou o Departamento de História, Arqueologia Por tímida que seja, a renovação das vinhas e das técnicas de pro-
e Património da Universidade do Algarve, através do seu Centro de dução de vinho, através do recurso a novos saberes e à introdução de
Estudos do Património. Definido o âmbito e a natureza da publicação, outras castas, permite hoje falar do “renascer de uma velha tradição”.
destinada ao público em geral, reuniu-se uma dezena de especialistas É certo que o vinho algarvio nunca primou pela qualidade. As caracte-
sob a coordenação dos signatários. A par de uma reconstituição das rísticas climáticas da região, com temperaturas médias anuais elevadas
principais linhas da história da vinha e do vinho na região, procurou- e invernos moderados, que permitiam produções bastante alcoólicas,
se oferecer outra informação de tipo mais técnico, ou mais específico, mas com baixo teor de taninos, acabavam por comprometer a conser-
através da inserção de várias caixas temáticas ao longo da publicação. vação do vinho nas melhores condições. Também as castas tradicionais,
Também houve a preocupação de acompanhar o texto com várias de- que privilegiavam a quantidade e não a qualidade, dificultaram por
zenas de fotografias, ilustrando as diversas fases do ciclo vegetativo muito tempo a qualificação da produção regional. Talvez a recente
da vinha e do processo de vinificação. Todas foram tiradas em vinhas introdução de novas castas, aliada a novas técnicas e a novos saberes,
e em adegas da região. Algumas dessas fotografias ajudam a perceber, permita hoje encarar as características de solo, e, sobretudo, do clima
por outro lado, a renovação que aquelas actividades têm conhecido nas mais como um factor favorável à excelência das produções, do que um
últimas décadas. problema para a sua conservação e longevidade.

12
1
a “descoberta” do Vinho
João Pedro Bernardes*
Luís Filipe Oliveira*

É incerta a data exacta em que a mítica bebida do Mediterrâneo – o vinho – teria chegado
ao Algarve. Foram, porém, os Fenícios ou os Gregos que, a partir do século VIII a.C., permitiram
os primeiros contactos da região com o vinho, uma bebida cara e de consumo muito restrito. O
líquido era importado por via marítima em ânforas, juntamente com outros recipientes, por vezes
de carácter ritual, utilizados no seu consumo em ocasiões especiais e no âmbito de determinadas
cerimónias. Era, então, um produto que fazia parte das trocas que os Fenícios transaccionavam
com os povos do Extremo Ocidente Peninsular e que estaria presente nos entrepostos comerciais ou
feitorias que se instalaram no sul do actual território português.

A importação de vinho grego na região está testemunhada em variadíssimos fragmentos de va-


sos gregos de verniz negro ou de figuras vermelhas que ocorrem em povoados algarvios nos séculos
V/IV a.C. (Alcoutim, Castro Marim, Faro, Cerro da Rocha Branca-Silves) e que se relacionam com o
consumo de vinho, como é o caso de Krateres e Kylikes (Arruda, 1997).1 Nesta altura, a importação
de vinho e de vasos relacionados com o seu consumo insere-se num comércio a longa distância
protagonizado pelas aristocracias indígenas que viam nessas importações e consumos símbolos de
poder e de manifestação do seu status social. Paralelamente iniciam-se as primeiras experiências de
cultivo da vinha na região. A videira selvagem crescia de forma espontânea em território português,
como é demonstrado por análises polínicas efectuadas no estuário do Tejo, mas só sob as influên-
cias de Fenícios e sobretudo Gregos se passará a fazer o seu cultivo a par do da oliveira.

A generalização do consumo e cultivo da vinha na região algarvia ocorrerá nos séculos seguin-
tes, com a chegada das legiões romanas. De acordo com o testemunho de Políbio (XXXIV, 8) para a
Lusitânia, dado a conhecer por Athenaeus de Naucratis (VIII, 330c), parece poder inferir-se que, em
meados do século II a.C., já existiriam vinhas no sul de Portugal que produziriam vinho suficiente
para manter um preço bastante acessível (Étienne e Mayet, 2000: 15-20).2 É preciso, todavia, olhar
estas informações com cautela, uma vez que o hábito do consumo de vinho ainda não estaria en-
raizado nos hábitos da maior parte da população mas apenas numa elite mais dada aos contactos
com os povos do Mediterrâneo e ao seu modo de vida. Aliás, no ano 18 depois de Cristo, Estrabão
refere-se à vida sóbria dos montanheses do interior da Lusitânia que bebiam geralmente água e
cerveja, estando o consumo de vinho destinado apenas a acontecimentos festivos (III, 3, 7). No
mesmo livro III da sua Geografia, depois de se referir a belos vinhedos na região de Santarém,
(III, 3, 1), Estrabão descreve a Turdetânia, onde inclui o actual Algarve, aludindo à abundância e
qualidade do vinho produzido (III, 2, 6).

* Departamento de História, Arqueologia e Património da Universidade do Algarve.


1
Os Krateres são grandes vasos com asas destinados a misturar água no vinho (os antigos Gregos e Romanos bebiam o vinho cortado com água; beber vinho puro era próprio
dos bárbaros). Os Kylikes são taças largas de pé alto, com duas asas horizontais, que serviam para beber vinho.
2
Uma medida de 39 litros custaria um drachma (= 1 denário) ao passo que um carneiro se vendia por dois e 26 Kgs de figos por meio drachma.

13
03 | Enxerto pronto

Entre o tempo de Políbio (meados do século II a.C.) e o de Estrabão O aumento da área de cultivo da vinha do Algarve não impediu de
(inícios do século I d.C.) a cultura da vinha e o hábito do consumo de se continuar a importar vinho. Todavia, se durante o século II a.C. e I
vinho expandem-se muito por toda a Lusitânia e também no Algarve, a.C. as importações eram oriundas de Itália, assiste-se a partir de mea-
fruto em grande parte das importações em larga escala destinadas dos do último daqueles séculos ao desaparecimento progressivo das
essencialmente a abastecer as legiões romanas. Estas importações de importações italianas que serão substituídas por importações de vinho
vinho itálico são bem testemunhadas pelos inúmeros fragmentos de da Bética (actual Andaluzia) e da Gália.3 A importação de vinho destas
ânforas onde era transportado, que ocorrem praticamente em todos duas regiões do império terá a ver essencialmente com a sua melhor
os sítios arqueológicos do período republicano na região (séculos II qualidade em relação ao algarvio, o que leva as elites locais a impor-
e I a.C.). Tais ânforas surgem associadas frequentemente a vasos des- tá-lo.4 A partir do século II, a especialização dos produtos vinários
tinados ao consumo de vinho, também eles produzidos em Itália e, gauleses suplanta os da andaluzia, agora especializada na produção de
por isso mesmo, conhecidos por cerâmica campaniense (da região da azeite, chegando as suas exportações a todo o mundo romano. Será por
Campânia). Não há dúvida que a constante presença de tropas romanas esta altura que a utilização da ânfora como contentor de transporte do
no território português a partir do século II a.C. e, sobretudo, a inte- vinho começa a ser substituído por barris e tonéis, que servirão igual-
gração nos seus efectivos de grandes contingentes recrutados entre as mente para o armazenar, rivalizando com as grandes talhas (Tchernia
comunidades indígenas, contribuiu decisivamente para a generalização e Brun, 1999). Tal explicará a fraca ocorrência de ânforas vinárias na
do consumo de vinho, o que estimulou a sua produção local. No caso região a partir do século II, aparecendo, por outro lado, as primeiras
concreto do Algarve – a primeira região do país a mediterranizar os representações de pipas, curiosamente ligadas ao mundo funerário.5
seus hábitos alimentares, com a adopção da trilogia cereais, vinho e
azeite – o consumo de vinho já estaria bem enraizado nos alvores da
nossa Era, na sequência dos contactos seculares com povos comercian-
tes consumidores de vinho: Fenícios, Gregos, Cartagineses e Romanos.

3
A importação de vinho italiano no Algarve é documentado pela presença de ânforas vinárias, sobretudo do tipo Dressel 1, em Monte Molião (Lagos), Vila Velha de Alvor, Foz
do rio Arade (Portimão), Cerro da Rocha Branca (Silves), Faro, Quinta de Marim (Olhão), Cerro do Cavaco (Tavira) e Castelo de Castro Marim (Arruda e Almeida, 1999: 330-331).
Testemunhos das ânforas do tipo Haltern 70 que testemunham as importações andaluzas nos século I a.C./I d.C., foram encontradas em Faro e no mar ao largo de Tavira/Cacela
e da Meia Praia (Lagos). Um panorama da história do vinho, sob o ponto de vista do consumo, na época romana do actual território português pode ser visto em Fabião, 1998.
4
São vários os autores antigos que se referem à excelência dos vinhos da Bética e da Gália.
5
No Algarve estas pipas ou cupae-barricas aparecem em Quinta do Marim (4 exemplares), em Faro e em Monte Velho (Mexilhoeira Grande). A presença destas lápides em forma de
barricas que cobriam as sepulturas, para além de testemunharem o enraizamento da cultura da vinha na região e a disseminação daqueles contentores em madeira, simbolizam
a presença mística do vinho junto ao defunto como bebida da eternidade (cf. Encarnação, 1984; Étienne e Mayet, 2000: 21 e ss.)

14
1.1
As Primeiras Produções

A vinha começa a marcar fortemente a paisagem algarvia logo nos Ainda que os dados sobre a produção de vinho no Algarve durante a
inícios da nossa Era com a instalação de grandes unidades de explora- Antiguidade sejam muito lacunares, sendo particularmente difícil dis-
ção agrária tipicamente mediterrânicas – as villae. Estas explorações tinguir os testemunhos da produção vitícola da oleícula, temos na villa
agrícolas, fundadas por colonos romanos ou sob a sua influência, tra- romana de Milreu, alguns testemunhos inequívocos dessa produção. Ali
zem para aqui o modelo de produção existente em Itália, onde se inclui existiu, a par de um grande lagar de azeite, um de vinho, cujas ruínas
o cultivo da vinha bem como as técnicas de vinificação. Conhecem-se se vêem hoje sob os alicerces da casa rural musealizada. O lagar, de
alguns testemunhos, ainda que a maior parte das vezes lacónicos e vara, era constituído por uma prensa cuja base de espremedura condu-
lacunares, desse cultivo e dessas técnicas na região algarvia, constituí- zia o mosto, através de canais escavados nas lajes que a constituíam,
dos por documentos iconográficos e arqueológicos (cf. mapa 1). É o até um grande tanque situado a um nível inferior e com 0,8 m de altura
caso da presença de pesos de prensa (ainda que raramente se consiga por 4 m de comprimento e 2,1 m de largura. Neste tanque fazia-se o
determinar se serão de lagares de vinho ou de azeite), de lagares ou esmagamento dos cachos através do pisoteio, correndo o líquido para
pias de lagar,6 de grandes talhas ou dolia (onde se armazenava o vi- um tanque mais pequeno situado a um nível inferior onde se recolhia o
nho) e de elementos escultóricos ligados à vinha e ao vinho, onde se mosto. Os engaços e bagulho, ou cachos esmagados pela pisa, a fim de
incluem as lápides funerárias em forma de barricas. libertarem todo o seu líquido, eram então amontoados sobre a base da
prensa para se fazer o pé do lagar que seria espremido fazendo baixar a
trave que tinha uma das extremidades encastrada na parede, enquanto
a outra estava presa a um contra-peso. A vara ao baixar, rodando um
fuso ou sarilho, comprimia o pé de lagar, ou seja o “bolo” feito com
os cachos previamente pisados. O líquido resultante da espremedura
corria para o tanque da pisa, agora liberto de cachos, e deste para a
cuba ou tanque mais pequeno onde se recolhia o mosto. As escava-
ções identificaram a algumas dezenas de metros deste lagar algumas
grandes talhas semi-enterradas que parece terem servido para ali se
guardar o vinho. Este lagar e respectiva adega teria sido sacrificado no
século III para se expandir a parte residencial da villa, construindo-se
então novo lagar a alguns metros para leste (Hanel, 1989; Hauschild
e Teichner, 2002).

Pelas dimensões do tanque poderemos ter uma noção aproximada


da produção vitivinícola da villa de Milreu durante os séculos II e III.
O tanque da pisa de uva teria uma capacidade superior aos 60 hectoli-
tros. Tendo em conta que por ano de safra se fariam no mínimo 2 ou 3
04 | Cupa-barrica (Mértola, mármore, séc. II-III d.C.)
pisas, facilmente se admite que a produção de vinho da villa de Milreu
se poderia aproximar dos 150 ou mesmo 200 hectolitros/ano.7

6
Apesar de se contabilizarem vária lagaretas nos concelhos de Portimão e Lagos (cf base de dados Endovélico – www.ipa.min-cultura.pt), só tivemos em conta os lagares cuja
informação é susceptível de se lhes atribuir cronologia romana.
7
As villae italianas da época tinham capacidades de vinificação que variavam entre os 100 hl a 1100 hl e as da Gália poderiam atingir os 3000 hl, correspondendo a mais de meia
centena de hectares de vinha (Brun, 1997). Face a estes valores, não seria mesmo de espantar que a produção vinícola de Milreu superasse largamente as cifras que estimamos
para a sua produção. Na villa de Torre de Palma (Monforte), há indícios de que a produção tenha atingido os 1700 hl/ano (Brun, 1997).

15
Aplicando-se no Algarve as estimativas de rentabilidade dos vinhe-
dos de outras regiões romanas que calculam uma produção entre 35 hl
a 60 hl por cada hectare, poderíamos imaginar uma extensão de pelo
menos 5 hectares de vinhas em torno de Estoi há cerca de 1800 anos.
A importância da vitivinicultura na economia desta grande unidade de
exploração romana não deixa dúvidas, de tal forma que entre as várias
esculturas ali encontradas aparece um busto de Dioniso (divindade
ligada ao vinho) com grinalda de parras e cachos de uvas a emol-
durarem-lhe a cabeça e pescoço (Souza, 1990). O cenário, estimado
por defeito, para a extensão dos vinhedos da villa romana de Milreu
repetir-se-ia, certamente, em muitas outras partes do Algarve onde se
encontram villae romanas.

As técnicas de vinificação utilizadas no Algarve não seriam muito


diferentes das da vizinha Andaluzia, que conhecemos pormenorizada-
mente pela descrição que Columela faz a partir do processo utiliza-
do num lagar que o seu tio possuía na região de Cádiz, de onde era
natural.8 Diz-nos o agrónomo, nascido igualmente em Cádiz, que se
adicionava ao mosto 1/48 de defrutum (espécie de vinho abafado ou
moscatel) obtido pela redução a 1/3, por ebulição, de uma porção de
mosto, com o objectivo de aumentar o teor alcolólico e contribuir para
a conservação do vinho. Acrescentavam-se ainda pequenas porções de
ervas aromáticas que, para além de apaladar o vinho, tinham função
anti-séptica. O sal, numa proporção de 0,7 gr. por litro, permitia, se-
gundo os antigos, acentuar o gosto e cor do vinho levando ainda à sua
clarificação. Finalmente, acrescentava-se, na mesma proporção do sal,
gesso que tinha a função que hoje tem o ácido tartárico, essencial à
conservação do vinho, sobretudo em climas quentes onde a percenta-
gem de acidez das uvas é reduzida.

Apesar destes tratamentos, a conservação do vinho era o principal


problema da produção há cerca de 2.000 anos. Ora, é lícito aceitar
que estes mesmos problemas de conservação afectariam seriamente
a qualidade do vinho algarvio, dificultando, consequentemente, a sua
exportação.

As vinhas terão continuado a marcar acentuadamente a região do


Algarve pelo menos até ao século V, altura em que as unidades de
exploração agrária em larga escala entram, com a queda do Império
romano, em colapso. Dos séculos seguintes pouco ou nada se sabe.
Sabe-se, porém, que boa parte dos sítios romanos continuarão a ser
ocupados e muitas das tradições rurais prosseguidas, pelo que é natu-
ral que a vinha se tenha mantido presente na paisagem ainda que de 05 | Dioniso – deus do vinho
forma menos marcante. – ornamentado com grinalda de
parras e uvas (Milreu, mármore,
séc. II d.C.)

8
Columella, De re rustica, XII, 21. Columela é um agrónomo romano do século I d.C. que conhecia bem a região do sudoeste peninsular. Note-se que o Algarve era o prolonga-
mento natural e cultural da Andaluzia na época romana, pelo que é plausível admitir que as técnicas de vinificação não seriam muito diferentes.

16
O Processo de Vinificação há 2.000 anos segundo Columela

1.
Far-se-à ferver, até se reduzir ao terço, o mosto mais doce, que, assim
reduzido, toma o nome de defrutum. Depois de arrefecer, transvasa-se
para outros recipientes e guarda-se para se utilizar ao fim de um ano.
Pode-se, todavia, acrescentar ao vinho novo, nove dias após ter ar-
refecido, mas é melhor após um ano de repouso. Acrescenta-se um
sextarius (0,55l) deste defrutum a duas urnas (26,3l) de mosto, caso
provenha de vinhas de encosta, mas três heminas (0,82l) se o mosto
provém de vinhas de planície.
2.
Tirado da cuva, deixa-se dois dias o mosto fermentar e purgar; ao
terceiro dia acrescenta-se o defrutum, e dois dias depois, quando este
mosto estiver a fermentar com o defrutum, purga-se, e, neste estado,
acrescenta-se nas duas urnas uma boa colherada ou a medida duma
meia onça (13,6g) de sal […].
3.
Faz-se, além disso, macerar durante 3 dias feno-grego em vinho velho;
retira-se e seca-se ao forno ou ao sol, após o que se tritura. Uma vez
triturado , depois de ter salgado o mosto, deita-se nas duas urnas uma
boa colherada ou um cadinho do mesmo conteúdo, ou seja um quarto
de ciato (0,011l); após o mosto ter terminado a sua fermentação e
estiver em repouso, mistura-se tanto gêsso quanto se pôs de sal e no
dia seguinte purga-se a talha, tapa-se o vinho tratado e sela-se.

Columela, De re rustica, XII, 21

Mapa 1 | Indícios da produção


de vinho durante a época romana

5
3
1
4

6 7
9
8
Lagar
Peso de lagar
Cupa-barrica

1. Bensafrim (1 lagar)
06 | Início da rebentação 2. Monchique (1 lagar escavado na rocha)
3. Mexilhoeira Grande (1 lagar escavado na rocha e 1 cupa-barrica)
4. Vale da Arrancada – Portimão (1 lagar escavado na rocha)
5. Vila Fria – Silves (1 peso de lagar)
6. Loulé Velho – Quarteira (3 pesos de lagar)
7. Milreu – Estói (1 lagar e várias talhas de vinho)
8. Faro (1 cupa-barrica)
9. Quinta do Marim – Olhão (4 cupas-barrica)
07 e 08 | Casta Castelão
(Periquita) – cachos separados

18
1.2
a Produção e o Consumo
na Época Islâmica

Após a desagregação da unidade política do império, nada indica de referências textuais (70), muito distantes das tâmaras (31) e dos
que o cultivo da vinha tenha desaparecido das paisagens algarvias. A figos (23), de acordo com os índices elaborados por H. Bresc e por A.
instabilidade social desse período não parece ter obstado a que algu- Nef (1999).9 Também a arqueologia tem demonstrado a vulgaridade
mas villae, melhor organizadas, ou mais protegidas, tivessem mantido do cultivo da vinha nas paisagens do Sul: nas amostras recolhidas na
as produções agrícolas tradicionais e que os géneros cultivados con- alcáçova de Mértola (Macias, 1996: 177), as vides encontram-se entre
tinuassem a afluir aos mercados urbanos da região. Na falta de outros as espécies vegetais mais comuns desde finais do século XI e há muito
dados, a vitalidade dessas explorações agrícolas pode comprovar-se, que Santos Rocha (1895: 209-212) identificou os restos de um lagar
de forma indirecta, através da manutenção da vida urbana em cidades de fábrica islâmica em Bensafrim, no actual concelho de Lagos, talvez
como Balsa e Ossonoba, que está atestada por alguns vestígios arqueo- dedicado à produção de vinho.
lógicos dos séculos VI e VII (Maciel, 2003; Viegas, 2004). Na verdade,
as importações só com dificuldade atingiam a dimensão e a diversidade Os tratados agronómicos que foram elaborados no al-Andaluz, seja
de outros tempos, pelo que o abastecimento regular dos mercados con- em Toledo durante o século XI, seja em Sevilha por finais desse século
tava, cada vez mais, com os produtos cultivados nas villae espalhadas e na centúria seguinte, confirmam aquelas observações. Para o mais
pelo termo da cidade. As áreas dedicadas ao cultivo dos cereais, da conhecido e o mais original desses agrónomos, Ibn Bassal, cuja obra
vinha e da oliveira, que eram a base da dieta alimentar mediterrânica, foi traduzida para castelhano durante o século XIII (Bolens 1994: 39-
não devem ter sofrido, portanto, um recuo muito acentuado. No que 41), a videira figurava entre as quatro espécies arbóreas mais impor-
respeita à vinha, pode mesmo admitir-se algum incremento do seu tantes, a par da figueira, da oliveira e da amendoeira. No conjunto,
cultivo, sobretudo nos aros urbanos, devido à gradual cristianização aqueles tratados de agronomia revelam uma grande preocupação com o
das populações. Nada disto é, porém, muito seguro e faltam os dados amanho das vinhas, quer com as particularidades da sua rega, quer com
para que se possa reconstituir, com algum rigor, o lugar que a vinha e a qualidade e a composição do estrume que lhes devia ser ministrado.
o vinho tinham na alimentação das populações urbanas e rurais. A este respeito, não ignoravam os ensinamentos dos autores antigos,
nem dos agrónomos árabes do Oriente (Bolens, 1994: 219-221), que
O terreno apresenta-se um pouco mais firme durante a época islâ- recomendavam a confecção de um adubo próprio para as vides, com-
mica, no decurso da qual se devem ter reforçado os componentes medi- posto por dejectos humanos e de pomba, sarmentos verdes, cinzas de
terrânicos da dieta alimentar das populações. Em meados do século X, vide e lodo de rio, entre outros. Mais fiéis às observações de Columela
o Calendário de Córdoba demonstra a importância do cultivo da vinha e e, por certo, às suas próprias, lembravam alguma prudência na hora de
dos cereais, sendo neles que incidia boa parte da carga fiscal do Cali- estrumar a vinha, de modo a que as plantas não fossem prejudicadas e
fado (Bolens, 1994: 24). Um autor contemporâneo, al-Râzî, dava conta o vinho não perdesse a sua virtude e o seu sabor.
das vinhas da Egitânia e das frutas boas e claras de Ossónoba, opinião
partilhada por outro geógrafo árabe pouco posterior, que não se es- A experiência e a competência dos muçulmanos no cultivo das vi-
queceu das vinhas de Coimbra, nem das passas e dos figos produzidos nhas não eram desconhecidas pelos seus opositores cristãos. Na se-
nos arredores de Faro (Coelho, 1972: I, 42, 44, 50 e 55). No século gunda metade do século XIII, quando a Coroa reorganizou as terras
XII, graças às descrições geográficas de Idrisi, que tornou a citar os algarvias recentemente conquistadas, Afonso III aproveitou esse saber
figos e as passas de Faro (IV, 1), pode atestar-se a divulgação da vinha e responsabilizou os mouros pelo cultivo das suas vinhas na região
por todo o Mediterrâneo. Entre as menções da sua obra aos frutos co- (Barros, 2004: 112-113, 526-530). De acordo com o foral de Loulé
mestíveis, são as uvas que monopolizam, com efeito, o maior número (1266), foram-lhes confiadas 40 arençadas, quer dizer, entre 14 a 17

9
Das 70 menções a vinhas que aí se encontram, apenas 23 provêm das regiões correspondentes aos climas VI e VII de Idrisi, quer dizer, dos países do Ocidente medieval
cristão.

19
hectares de vinha.10 Nas restantes cartas de foral, não se encontram ou a abundância com que ele corria em Sevilha. Entre aqueles que o
indicações do mesmo tipo, embora aí se mencione a obrigação de ama- consumiam em público, ou o bebiam em privado, nem todos seriam
nhar as vinhas do rei, recordada, também, pelo foral dos mouros forros muçulmanos, pois havia diversos judeus e cristãos entre os habitantes
do Algarve (1269). Graças a um diploma pouco posterior (1282), sabe- daquelas cidades. Aqueles que o apreciavam não o ingeriam, contudo,
-se, no entanto, que cabia aos mouros de Tavira o cultivo de um terreno com a moderação aconselhada por Abd Allah, o rei de Granada no sécu-
de figueiral e vinha com 346 arençadas no reguengo da vila, o que lo XI, como sugere a historieta (in Diaz Plaja, 1995: 126) que este diz
significa que cuidavam de figueiras e de vides distribuídas por cerca de ter recolhido junto do vulgo:
150 hectares. O panorama pouco diferia noutros lugares, embora as no-
tícias disponíveis sejam, em regra, mais tardias. Por meados da década Consultei o mestre Hipócrates,
de trinta do século XV, segundo os procuradores do concelho de Faro, porque Hipócrates tem inteligência,
era do cultivo de vinhas e de figueirais que se sustentavam os setenta um mérito que não tem par
mouros residentes na vila (Barros, 2004: 550). No reguengo de Loubi- e uma ciência incomparável.
te, situado no termo de Silves, a comunidade de mouros forros estava «Gosto do vinho», disse-lhe.
do mesmo modo associada à produção de figos e de passas de uva, ao E respondeu-me: «Mas beber muito mata»
contrário do que sucedia com os foreiros cristãos. De acordo com o Livro Insisti: «Diz-me qual a quantidade.»
do Almoxarifado de Silves (1984: 61-69), que foi elaborado em 1474, E com toda a clareza me retorquiu:
estavam entregues a vários mouros perto de 40 courelas de vinha e de «Reconheço quatro humores
figueiral, quase sempre avaliadas pelas seiras de passa e pelos quintais que são a base da saúde.
de figo que produziam.11 Portanto, quatro por quatro:
para cada humor, um litro.»
Como alguns destes dados parecem sugerir, uma boa parte das vi-
nhas cultivadas em época islâmica devia destinar-se, portanto, à pro- Não era apenas a gente vulgar que se encontrava entre os apre-
dução e à comercialização de passas de uva. A sua importância nas ciadores de vinho e a cronística árabe oferece, aliás, diversas notícias
produções agrícolas e nas actividades comerciais não escapou, de resto, do consumo e da produção de vinho no palácio dos emires de Córdoba
à observação de autores como Idrisi e Al-Himyari, sendo as uvas e os (Coelho, 1972: II, 82, 131, 283). Entre os mais cultos e letrados, os
figos os únicos frutos citados nas suas descrições de Santa Maria de tratados de medicina ajudavam a reforçar as vantagens de um consumo
Faro. Um texto mais tardio, redigido por um autor magrebino de finais moderado de vinho, pois receitavam-no como um estimulante anímico
da época medieval (Rei, 2004: 33) e dedicado à descrição das regiões e aconselhavam-no na convalescença de enfermos e na recuperação de
do al-Andalus, confirma a venda em passa de muitas das uvas de Silves. pessoas debilitadas. Mesmo nas mesas mais requintadas, o vinho devia
Segundo as notícias desse texto, as transacções faziam-se ao longo de ter, portanto, um lugar cativo e é provável que o seu consumo fosse
todo o ano e cada quintal de passas, com cerca de 60 Kgs, valia, em visto como um hábito próprio de gente civilizada, como já foi sugerido
média, dois dirhams. O apreço pelo consumo regular de passas de uva (Castro, 1996). De certa forma, o refinamento que se associava ao con-
não se limitava, contudo, às populações muçulmanas e depressa entrou sumo de vinho pode ser medido, de modo algo paradoxal, pelo facto de
nos hábitos alimentares dos colonos vindos das terras do norte, após um dos mais importantes tratados de engenharia árabe, escrito por Ibn
as batalhas da reconquista. Como se sabe, a palavra “acepipe”, que al-Jazarî em inícios do século XIII, ter o seu segundo capítulo inteira-
hoje significa petisco, ou iguaria, tem origem no termo árabe com que mente consagrado à descrição de distribuidores automáticos de vinho
outrora se nomeava a passa de uva. (Hill, 1991: 176). O conforto de uma máquina destas dificilmente es-
Nem todos os cachos de uva se destinavam, no entanto, à produção taria ao alcance de muitos, mas a mera concepção de um aparelho com
de passas. Ao lado dos que eram consumidos em fresco na época das aquela função basta para mostrar, também, a banalidade do consumo
colheitas, muitos outros eram transformados em vinho. Como se viu, de vinho entre os fiéis do Islão.
os agrónomos do al-Andalus, que tinham lido Columela, não ignoravam
os problemas ligados ao processo de vinificação e não faltam textos O interdito corânico sobre o consumo de bebidas alcoólicas, como
que assinalem a venda e o consumo de vinho em diversas cidades. Em outra qualquer norma religiosa, tinha um sentido dialógico e não pode
Almeria, segundo Idrisi (IV, 1), havia perto de mil estalagens onde se ser tomada à letra. As palavras do Profeta não iam, de resto, num único
vendia vinho e outros autores, como al-Saqundi, não deixam de assina- sentido: se ele aconselhara os fiéis a evitarem o vinho e a não se da-
lar a qualidade do vinho que se produzia em Málaga (Arié, 1990: 412), rem à oração quando se encontrassem ébrios, não ignorava as virtudes

10
A “arenzada” é uma medida de superfície variável: de acordo com o Dicionário da Real Academia de Espanha (http://buscon.rae.es/diccionario/drae.htm), equivalia a 3672 m2
em Córdova, e, em Castela, a 4472 m2.
11
No Livro do Almoxarifado de Silves (1984: 43-53), descrevem-se outros prédios aforados a mouros, mas os seus foros estavam remidos a dinheiro e não em géneros.

20
09 | Vinha em sequeiro – sistema
de condução tradicional
10 | Vinha aramada com rega
gota-a-gota

21
dessa bebida, a qual era vista como uma oferta de Deus para deleite “Quando percebeu que eu proibira os muçulmanos de beberem vinho e
dos homens, na Sura que descreveu o Paraíso prometido aos crentes. As permitia que eles tivessem escravas concubinas, além de quatro esposas
diversas escolas jurídicas também não se entendiam quanto ao signifi- legítimas, disse-me: «Isso não é razoável, porque o vinho dá força ao cor-
cado exacto das suas palavras e se a maior parte expulsou o vinho do po, e, pelo contrário, a abundância de mulheres debilita o corpo e a vista.
grupo das bebidas lícitas, houve algumas que aceitaram a legitimidade A religião do Islão não está de acordo com a razão». Eu disse então ao
do seu consumo (Castro, 1996). De um modo geral, as regras corânicas intérprete: «Diz ao rei: A lei religiosa dos muçulmanos não é como a dos
davam espaço a diversas soluções de compromisso. cristãos. Em vez de água, o cristão bebe vinho quando come, sem se dar
à embriaguez, e isso aumenta as suas forças. Em contrapartida, o muçul-
mano que bebe vinho não procura senão embriagar-se, perde a razão, fica
louco, comete adúltério, diz e faz coisas impías, sem fazer nada de bom,
entrega as suas armas e o seu cavalo e dilapida quanto tem, apenas para
buscar o prazer (…). No que respeita às escravas concubinas e às mulheres
O Alcorão e o Vinho legítimas, aos muçulmanos convém a poligamia por causa do ardor do seu
1. temperamento. Além do mais, já que eles formam o teu exército, quantos
Numa das primeiras revelações, o vinho surge como uma oferta de mais filhos tiverem mais soldados terás.”
Deus, sendo identificado como um dos deleites do Paraíso: “Eis aqui
uma descrição do paraíso, que foi prometido aos tementes: Lá há rios
de água impoluível; rios de leite de sabor inálterável; rios de vinho Era esta visão catastrófica dos malefícios da embriaguez que justi-
deleitante para os que o bebem; e rios de mel purificado; ali terão ficava, em boa parte, as medidas restritivas da venda e do consumo de
toda a classe de frutos, com a indulgência do seu Senhor” (Alcorão,
XLVII, 15).
vinho que se adoptaram nalguns períodos da história do Islão peninsu-
lar. Mesmo numa época mais preocupada com o respeito dos preceitos
2. religiosos, e, por isso, mais repressiva, como foi o período almôada,
Ainda que não se esqueçam os deleites do vinho, as revelações pos-
teriores acentuam sobretudo os seus malefícios: “Interrogam-te a res- era a evocação de perturbações daquele género que legitimava a con-
peito da bebida inebriante e do jogo de azar; dize-lhes: Em ambos há denação dos governantes que se davam à bebida (Castro, 1996, Quadro
benefícios e malefícios para o homem; porém, os seus malefícios são 1). Para os cronistas dessa época, eram eles os principais responsáveis
maiores do que os seus benefícios” (Alcorão, II, 219). Era apenas pela
perda das faculdades racionais, que o ébrio não deveria entregar-se à pela generalização do caos a toda a ordem política e social. A obser-
oração: “Ó fiéis, não vos deis à oração, quando vos achardes ébrios, até vação escrupulosa do princípio da abstinência surgia assim, aos seus
que saibais o que dizeis” (Alcorão, IV, 43). olhos, como a única forma capaz de manter a ordem das coisas e até
3. de regenerar o mundo e os homens. Talvez sem grande sucesso, e, por
A associação com os jogos de azar reforçaria, no entanto, a visão do certo, sem a graça e sem a beleza com que um poeta contemporâneo,
vinho como um dos instrumento de Satanás: “Satanás só ambiciona
Ibn Asside de Silves (Coelho, 1975: 379), conseguia recordar o lugar
infundir-vos a inimizade e o rancor mediante as bebidas inebriantes
e os jogos de azar, bem como afastar-vos da recordação de Deus e da do vinho numa noite de luar, junto da mulher amada:
oração” (Alcorão, V, 91). Como tal, os fiéis eram aconselhados a evitá-
-lo: “Ó fiéis, as bebidas inebriantes, os jogos de azar e as adivinhações
“Quantas noites rasgaste o véu das trevas
com setas, são manobras abomináveis de Satanás. Evitai-as, pois, para
que prospereis” (Alcorão, V, 90) com um vinho resplandecente como um astro!
Servia-te um copeiro deligente de voz melodiosa
e alguém disse que o licor era feito das suas faces
e da fresca saliva da sua boca.
Vinho e copeiro eram duas luas cheias:
uma, que tu não receavas ver deitar-se,
O modo ambivalente como o vinho era olhado permite compreen- servia diligentemente; a outra
der, por outro lado, a tolerância que os juízes mostravam para com os estava inteiramente disposta a inclinar-se
ébrios e os foliões, desde que a sua conduta não suscitasse qualquer para uma boca como para se deitar.
desacato. Diversos testemunhos o comprovam, ainda que al-Jusani, um Quando bebias deliciosamente
jurista, justificasse a benevolência dos juízes pela inexistência de uma os lábios da lua que se deitava
pena específica com que se castigassem os ébrios (Diaz Plaja, 1995: gozavas ao mesmo tempo dum beijo
91). A insistência particular de alguns autores nos efeitos provocados daquela que se não deitava.”
pelo consumo de vinho em excesso tem, por certo, o mesmo sentido.
Mais do que a bebida, era a embriaguez que se condenava, como se
observa no relato da conversa que o granadino Abu Hamid (in Castro,
1996) manteve com o rei dos húngaros, em pleno século XII:

22
11 | Solo típico da vinha algarvia

23
12 | Cachos visíveis
2
a Expansão Medieval
João Luís Inglês Fontes*

2.1
Entre o mar e a serra:
uma terra de vinhas e figueirais

Évora, 1447. Nas Cortes aí reunidas pelo rei Afonso V, os procuradores da cidade de Tavira apre-
sentaram, juntamente com outros concelhos, os seus agravos e pedidos ao monarca. À cabeça, o
requerimento para que o monarca proibisse, durante um certo período, a venda de sal para exporta-
ção aos mercadores estrangeiros que, frequentemente e em elevado número, afluíam ao porto dessa
vila. O motivo: proteger a rendosa comercialização da fruta e dos vinhos algarvios que, desde muito
cedo, rumavam para os portos do Norte da Europa, em troca sobretudo dos preciosos cereais de que
o Algarve tanto carecia, mas também de tecidos ou de metais. A razão invocada pelo concelho é
lapidar: porque «esta terra he toda fundada sobre fruita e vinhos que as Jemtes em ellas nam tem
outra cousa per que vivam» (Iria, 1990: 231-235).

O panorama traçado em 1447 pelos enviados da vila de Tavira não andava, de facto, longe da
verdade. Mesmo tendo em conta o contexto específico de tais afirmações, visando convencer o
monarca a eliminar a possível concorrência desenvolvida pelo comércio do seu sal sobre a exporta-
ção das frutas e vinhos, o facto é que esta última constituía uma dos eixos fundamentais da vida
económica algarvia nestes finais da Idade Média. Separado do vasto além-Tejo por um conjunto
montanhoso de difícil transposição e, por isso, voltado definitivamente para o mar, o “Reino do
Algarve” estabeleceria desde cedo uma forte complementaridade entre a cultura da vinha e das
espécies frutícolas, beneficiada por condições naturais excelentes para a sua expansão, e um apro-
veitamento intensivo dos seus portos e da sua situação geográfica, na saída do Mediterrâneo, inte-
grando-se nas rotas comerciais que, desde cedo, o ligaram às principais cidades do reino português
e ao Norte da Europa. A vinha entrava, neste contexto, como uma fonte essencial de recursos que
podiam ser direccionados para o comércio de grande trato. Dela advinha, naturalmente, o vinho,
mas também as passas que, juntamente sobretudo com os figos, integravam os contingentes, por
vezes bastante avultados, de frutos secos passíveis de suportar viagens mais demoradas sem perder
a sua qualidade.

Deste modo, a paisagem algarvia medieval deixaria transparecer, desde cedo, a presença maciça
da vinha, numa mancha que se estendia por toda a faixa litoral, subindo inclusive o barrocal, para
se deter apenas nas imediações da Serra algarvia. Bem adaptada a solos mais difíceis e pobres,
como as terras calcárias e pedregosas do barrocal, e capaz de resistir com vantagem ao clima al-
garvio, de invernos temperados e verões prolongados, quentes e secos, a vinha pontuaria, por isso,
em toda a região, ora mais isolada, ora integrando extensas plantações de sequeiro, sozinha ou
consociada com outras culturas (Ribeiro, 1991; Feio, 1983; Cavaco, 1976: I, 15-21).

*
Instituto de Estudos Medievais (Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa). Doutorando em História Medieval e bolseiro da Fundação para a
Ciência e a Tecnologia ao abrigo do Programa PRAXIS XXI.

25
Contudo, a cartografia obtida testemunha também a estreita re- Tais factores justificam ainda a recorrente consociação da vinha
lação existente entre a cultura vinícola e o povoamento, com o aglo- com a figueira, dado os cuidados exigidos aos cultivadores por ambas
merar dos vinhedos em torno dos principais núcleos populacionais, as espécies, a fácil adaptação das mesmas às condições climáticas al-
ou em locais que permitiam um fácil e rápido acesso aos mesmos. garvias e à pobreza dos seus solos e, ainda, os crescentes estímulos à
No caso algarvio, o povoamento tendeu, desde cedo, a concentrar-se sua produção face ao aumento gradual da sua procura pelos mercadores
sobretudo ao longo do litoral, ou em locais do interior com acesso ao estrangeiros, mas também por uma população em crescimento, saben-
mar por meio de portos só mais tarde desaparecidos em virtude do seu do-se como o figo poderia substituir o pão em épocas de maior carestia
crescente assoreamento, como Loulé, Silves e Aljezur. Tal panorama, (Magalhães, 1970: 133-134). Por isso, não raras vezes as referências a
bem presente a menos de um século volvido sobre a conquista cristã “vinhas” ou “figueirais” encobriam uma realidade mais complexa, mar-
do território, por ocasião do arrolamento e avaliação das igrejas do cada pela coabitação das duas culturas que só ocasionalmente se dei-
reino elaborada pelos oficiais de D. Dinis em 1321 (Catálogo, 133), xava descobrir, denunciada pela natureza do foro a entregar pela sua
acentuar-se-ia ao longo das centúrias seguintes. Em 1527, por ocasião exploração, ou pelas mais raras estimativas, dadas pela documenta-
do primeiro numeramento conhecido da população portuguesa (Dias, ção, sobre a produção delas esperada. Daí que quaisquer tentativas de
1996), a maioria da população algarvia encontrava-se, de facto, nas quantificação ou de representação cartográfica da distribuição da vi-
vilas do litoral e, à excepção de Loulé, as restantes povoações do in- nha algarvia, já de si vitimadas pela precariedade dos acervos documen-
terior reduziam-se quase a aldeias com meras funções administrativas, tais disponíveis, devam ser necessariamente encaradas como uma mera
com uma população maioritariamente dispersa pelos respectivos ter- aproximação à realidade, deixando antever uma difusão muito maior da
mos, permitindo por vezes a emergência de alguns lugarejos que, em vinha, ainda que dentro dos condicionalismos atrás apontados.
regra, não ultrapassavam as duas dezenas de fogos (Magalhães, 1970:
35-37). Mais raramente, a vinha partilhava o seu espaço com parcelas con-
sagradas ao cultivo dos cereais, dada a muito menor abundância de
A vinha acompanharia obrigatoriamente esta tendência: os perma- terras aptas para o seu cultivo. Mas não eram, por esse facto, menos
nentes cuidados ligados ao seu cultivo e conservação, as dificuldades apreciadas ou economicamente menos rentáveis. Com efeito, o escoa-
inerentes ao transporte do vinho e a necessidade de prover ao seu mento do pão aí recolhido era sempre certo, num Algarve que, durante
rápido escoamento, sentida de forma particular nos tempos medievos, a Idade Média e após ela, se mostrou sempre deficitário em cereais
em que o vinho se mostrava mais facilmente deteriorável, implicavam (Marques, 1978: 80).
a proximidade e fácil acesso aos núcleos habitados por parte das terras
dedicadas ao seu cultivo (Gonçalves, 1989: 83-84; Viana, 1998: 15). Ainda assim, a vinha não deixou de ter um espaço próprio, reivin-
A estreita ligação, desde cedo estabelecida no Algarve, entre produ- dicando frequentemente a totalidade das terras disponíveis para o seu
ção vinícola e comércio externo, viria acentuar de forma ainda mais cultivo.
marcada a concentração das vinhas em torno dos centros portuários
comummente frequentados pelos mercadores estrangeiros, ou das po-
voações que a eles tinham mais fácil acesso. O crescimento dos prin-
cipais aglomerados populacionais algarvios também fazia deles, por si
só, importantes centros de consumo, tendo em conta, como veremos, o
grande relevo que o vinho assumia na alimentação medieval.

26
13 | Cachos visíveis
Mapa 2 | Distribuição das vinhas
(1450-1518)12

Alcoutim

Aljezur

Castro Marim

Silves

Loulé

Tavira
Albufeira
Lagos
N
vinhas
O L Faro serra
barrocal
0 50 Km S litoral

Em vão procuraremos, contudo, informações mais sistemáticas sobre 145, 147, 149, 150). A variabilidade inerente a esta forma de avaliação
a configuração e dimensão das terras ocupadas pelas valorizadas cepas. das vinhas, o reduzido número de casos por ela abrangidos e a falta de
A documentação disponível, particularmente pobre no que respeita a outros elementos de medição impedem, contudo, qualquer aproveita-
tombos de propriedades, é praticamente omissa no que respeita a estes mento mais rigoroso destes dados.
domínios. É certo que encontramos alguns, ainda que raros, indicado-
res sobre a extensão assumida, em locais específicos, pela cultura da As terras de vinha podiam ainda ser descritas em função do número
vinha. Assim, alguns vinhedos são-nos referidos em função da área que de cepas que comportavam, ou da produção delas resultante. No pri-
ocupam, avaliada em arençadas, medida que equivalia a algo entre os meiro caso, a contagem era feita em números arredondados, por milha-
3672 e 4472 m2 (cf. nota 10). Tal acontece com as terras detidas pelo res de unidades («milheiros»), encontrando-se documentada em ape-
rei no termo de Tavira em 1282, onde figueirais e vinhas se misturavam nas três ocasiões (IAN/TT, L.N., Odiana, lv. 3, fl. 76v e lv. 6, fl. 74-74v;
ao longo de 346 arençadas de terreno (Barros, 2004: 420-421), ou em N.A. 564, fl. 16). No segundo caso, os dados restringem-se novamente
Loulé, onde o respectivo foral outorgado por Afonso III em 1266 esti- às já referidas vinhas de Silves em posse de mouros, cuja produção é
mava em 40 arençadas a área das vinhas demarcadas como pertença do invariavelmente avaliada em seiras ou peças de passas (L.A.S.: 62-68).
monarca (Martins, 1985). Outras vinhas são descritas em função dos Apenas num caso, o de uma vinha detida pela Ordem de Santiago em
homens necessários para a sua cava («homens de cavadura»), como Aljezur, nos são facultadas as exactas medidas da propriedade, dadas
ocorre com as vinhas de Silves que, em 1474, se encontravam entre- em varas,13 permitindo-nos descobrir uma terra onde as cepas se ha-
gues ao cultivo de mouros, obrigadas ao pagamento da dízima ao rei viam estendido – dado que a vinha fora entretanto abandonada – por
(L.A.S.: 62-68), ou ainda os vinhedos que, já em 1509, integravam a 6621,12 m2 (Visitação: 72), pouco mais de meio hectare.
comenda de Castro Marim, pertença da Ordem de Cristo (T.C.M.: 144,

12
A cronologia escolhida justifica-se pela existência, nesse intervalo de tempo, de alguma documentação passível de uma abordagem mais sistemática, nomeadamente o Livro
do Almoxarifado de Silves (1474), o tombo da comenda de Castro Marim, pertencente à Ordem de Cristo (1509) e as actas das visitações da milícia santiaguista às suas comendas
do Algarve (1517-18). Aproveitámos ainda, para o mesmo período, todas as informações facultadas pelas chancelarias régias e outra documentação avulsa disponível.
13
Equivalente a 1,1 m (Viana, 1999).

28
14 | Vinha tradicional em sequeiro

29
15 | Vinha juvenil aramada com rega gota-a-gota

30
2.2
Proprietários e cultivadores

Intensamente implantadas, a par com os figueirais, ao longo da mar. Adoptando o modelo do foral atribuído a uma outra cidade por-
estreita faixa de terras planas do litoral e espalhadas também pelo tuária, a de Lisboa, o monarca contemplava assim a cidade de Silves e
barrocal, as vinhas denunciavam, contudo, o cruzamento de diferentes as vilas de Faro, Loulé e Tavira com um diploma que, em larga medida,
interesses no domínio dos seus recursos, indissociáveis de um novo afirmava o seu poder sobre as mesmas e no qual definia, entre outros
status quo inaugurado pela conquista cristã do Algarve, com os con- aspectos, os direitos que lhe eram devidos, os bens que reservava para
flitos políticos pela posse do seu território, a gradual expansão do si e os impostos que recaíam sobre as populações desses concelhos
povoamento para além dos centros fortificados, a estruturação dos (Forais de Silves: 213-216).
seus concelhos ou o incremento da sua vida económica, cada vez mais
dependente da florescente actividade mercantil. O património que nesses forais o monarca reserva para si é reve-
lador da importância assumida pela vinha na economia algarvia e da
A documentação disponível deixa-nos perceber, de forma mais cla- extensão que a sua cultura tomava, algumas décadas volvidas sobre
ra, sobretudo as estratégias desenvolvidas pelos reis portugueses no a conquista cristã do território, no conjunto das terras agricultadas
sentido da afirmação do seu poder sobre os concelhos algarvios e a sua que se estendiam, a partir dos centros urbanos, pelos respectivos ar-
intervenção com vista a estimular o povoamento da região, quer pela rabaldes. Com efeito, quer em Loulé, quer nas vilas litorais de Tavira
fixação da população pré-existente, nomeadamente a muçulmana, quer e Faro, Afonso III reivindicava a posse de vinhas e figueirais, cons-
pela atracção de povoadores cristãos. Aproveitando ainda os recursos tituídas como seus reguengos, ainda que nada diga, em quase todos
disponibilizados por um território recém-conquistado, os monarcas de- os casos, sobre a sua localização e extensão. No entanto, para Loulé,
pressa definiriam os direitos e regalias que lhes eram devidos, ou os sabemos que as vinhas tomadas pelo rei estendiam-se por «quarenta
bens que deveriam passar a integrar o património fundiário da Coroa, arençadas», em local que documentação posterior situaria em Betunes
que importava rentabilizar, assegurando a sua conveniente exploração. (Martins, 1985; IAN/TT, Ch. D. Fernando, lv. 2, fls. 40-40v). Em Tavira,
as terras reguengas tendiam a concentrar-se nos terrenos mais férteis
Com efeito, embora os conflitos entre os reis Afonso III e Afonso X, a ocidente da vila e ao longo das várzeas que ladeavam a Ribeira da
o Sábio, pela posse do Algarve se prolonguem por quase três décadas Asseca, permitindo a presença, com as vinhas e figueirais, de parcelas
após a conquista cristã do território, resolvidos apenas com o Tratado dedicadas à horticultura.
de Badajoz (1267), já anteriormente encontramos diversas doações de
propriedades no Algarve, feitas pelo monarca português a alguns dos Em Silves, o foral de 1266 é omisso sobre a existência de vinhas
seus principais colaboradores, onde a vinha marcava já a sua presen- nos reguengos reivindicados por Afonso III. Contudo, a carta dada aos
ça: em 1250, era o seu chanceler, Estêvão Eanes, o destinatário das mouros forros da cidade, volvidos apenas três anos, é clara sobre a sua
propriedades pertencentes a um certo Abozale, mouro, localizadas em presença entre as culturas neles implantadas. O diploma agia, aliás,
Santa Maria de Faro, onde se incluíam casas, vinhas, almuinhas, oli- no sentido de garantir a sua conveniente exploração, ao vincular a
vais e figueirais, salinas e marinhas (IAN/TT, Ch. D. Afonso III, lv. 1, comunidade muçulmana ao seu cultivo (Forais de Silves: 29), intenção
fl. 106v); quinze anos depois, o mesmo monarca doava a João Peres que levaria o mesmo monarca, em 1277, a determinar o aforamento
de Aboim, seu mordomo, os bens que Domingos Rodrigues detivera paritário do seu reguengo de Silves entre cristãos e mouros (Machado,
do rei de Castela em Tavira e no seu termo, incluindo casas, vinhas, 1982: 277). Bastante mais tarde, o Livro do Almoxarifado de Silves
figueirais, hortas, moinhos e terras de pão (LBJP, n.º LXXIII). À doação (1474) registava, no termo da cidade, a quase exclusiva concentração
de significativos conjuntos patrimoniais a alguns dos seus mais fiéis dos vinhedos do rei nas terras de Lobite, que incluía as povoações de
servidores, Afonso III aliaria, ainda antes de 1267, a outorga de cartas Lobite e Alcaria, com algumas outras terras de vinha no reguengo de
de foral às quatro mais importantes vilas algarvias, situadas junto ao Vale Travesso (L.A.S.; Botão, 1992: 68).
litoral, ou servidas de portos que lhes permitiam um fácil acesso ao

31
A constituição do património vinhateiro do monarca a partir das vinho obtido pela cobrança do dízimo (a décima parte da produção) a
terras conquistadas na primeira metade do século XIII verificar-se-ia, que estavam obrigados todos os fiéis cristãos e, aparentemente, tam-
ainda, em outros núcleos urbanos do Algarve. Com efeito, no foral bém os judeus e, em alguns períodos, os mouros. Das ordens militares
dado a Castro Marim em 1277, ultrapassada a contenda com a Ordem sediadas em terras algarvias, os dados disponíveis apontam para um
de Santiago sobre o senhorio da vila, Afonso III voltava a mencionar escasso número de vinhas aí detidas por estas milícias. A Ordem de
os reguengos que aí detinha, entre os quais se compreendiam também Avis restringia a sua presença à comenda de Albufeira, onde a docu-
terras de vinha (P.M.H. Leges, 734-735; retomado no foral de 1282: mentação deixa perceber a posse de diversas vinhas no termo da vila,
IAN/TT, Ch. D. Dinis, lv. 1, fls. 44v-46). Em Lagos, outrora termo de nomeadamente em Mosqueira e Vale de Navio, onde compartilhavam
Silves mas desanexado deste ainda no século XIV, o monarca detinha o seu espaço com figueirais e algumas terras de pão (IAN/TT, O.A./
grande parte das terras incultas que se estendiam ao longo do respec- S.B.A., mç. 4, n.º 428; mç. 5, n.º 492; mç. 8, n.º 746, 753, 757, 759;
tivo paúl, gradualmente conquistadas para cultivo a partir da segunda mç. 9, n.º 797). Em Castro Marim, a sua congénere de Cristo reunia um
metade do século XV, fruto da pressão demográfica e do aumento de significativo património fundiário, onde imperavam extensos figuei-
importância do porto lacobricense. As chancelarias régias não deixa- rais, concentrados em torno da vila ou no lugar de Monte Gordo. Neste
riam de registar, nos finais de Quatrocentos, inúmeros emprazamentos último, o tombo de 1509 refere a existência, nos mesmos figueirais, de
de moinhos, que continuavam a aproveitar a força das águas da Ribeira quatro parcelas dedicadas ao cultivo da vinha, na sua maioria pouco
de Bensafrim, a que se juntavam agora terras de pão, hortas, assenta- extensas, pois três delas exigiam apenas o trabalho de 3 a 4 homens
mentos de casas e as indispensáveis vinhas (Magalhães, 1970: 46-47, “de cavadura” (T.C.M.: 144, 145, 147, 149, 150).
52-53; para as vinhas, IAN/TT, Ch. D. Afonso V, lv. 16, fl. 126v; Ch. D.
Manuel, lv. 16, fls. 49v-50, 86v-87v; lv. 24, fl. 105v; lv. 39, fl. 13v; Da Ordem de Santiago, as visitações de 1517-1518 recolhem tam-
L.N., Odiana, lv. 2, fls. 91v-92v, 200v-201v, 202-204; lv. 5, fls. 101v- bém poucas referências a vinhas detidas no Algarve: duas em Aljezur,
102v; lv. 7, fls. 34-35). uma delas entretanto substituída por outra cultura, e quatro em Loulé
(Visitação: 105). Contudo, em virtude do direitos de padroado que de-
Outros mecanismos permitiriam aos monarcas engrossar paulatina- tinha sobre a esmagadora maioria das igrejas paroquiais algarvias e,
mente os vinhedos que detinham em terras algarvias. Sem excluir even- por extensão, sobre as ermidas e capelas incluídas sob a sua jurisdi-
tuais aquisições por meio de compras, das quais não nos chegou qual- ção, a Ordem beneficiava dos foros de muitas outras vinhas, fruto da
quer vestígio, diversas vinhas entraram na posse da Coroa por outros maior ou menor capacidade de atracção destes templos sobre os fiéis,
meios, desde o seu confisco por dívidas (IAN/TT, Ch. D. Fernando, lv. que ofertavam os seus bens ou os respectivos foros por devoção, ou
2, fls. 26, 45, 58v-59; L.N., Od., lv. 6, fls. 288-288v, 288v-290v, 291- com vista a assegurar os sufrágios por suas almas ou pelas dos seus
291v) à posse, permitida pelas ordenações do reino, de terras aban- familiares.
donadas por mouros entretanto fugidos do reino sem licença dos mo-
narcas (Barros, 2004: 429-431). A infracção das regras estabelecidas Não deixa de ser significativo que, entre todas as igrejas algarvias
pelo Direito sobre as alienações ou aquisições de bens, nomeadamente do padroado santiaguista, seja a paroquial de Santa Maria de Faro
por parte de clérigos e entidades eclesiásticas ou por oficiais régios, aquela que possuía um património mais avultado. Se é certo que o
justificaria igualmente o confisco de diversos bens, entre os quais se termo de Faro, apesar de reduzido, se espraiava sobretudo pelo litoral e
contavam, naturalmente, terras de vinha (IAN/TT, Ch. D. Afonso V, lv. pelo barrocal – zonas de grande crescimento demográfico e de intensa
31, fl. 45; Ch. D. João II, lv. 8, fl. 59v, e lv. 12, fls. 20v-21; L.N., Odia- ocupação agrícola – é também segura a fama de que o templo gozava
na, lv. 2, fls. 88v-89). entre os fiéis como centro de peregrinação concorrido desde os tempos
da ocupação islâmica e local propiciador de benesses divinas, mani-
Aos vinhedos do rei juntavam-se certamente muitos outros, nas festadas pela abundância de milagres aí operados pela Virgem, facto
mãos, quer de entidades eclesiásticas, quer de leigos, de riqueza e que valeria a inclusão de alguns destes prodígios entre as composições
estatuto social variáveis. Faltam-nos, contudo, elementos documentais trovadorescas de Afonso X. No início do séc. XVI, a colegiada contava
que nos permitam avaliar, com segurança, o peso efectivo do seu patri- assim, entre os bens e foros que lhe haviam sido doados, mais de meia
mónio no conjunto das terras dedicadas à actividade vinícola. centena de terras de vinha espalhadas pelo termo de Faro (Visitação:
120-148). À distância, apenas a ermida de Nossa Senhora da Conceição
Assim, desconhecemos, por completo, o património detido pelo de Alcoutim e a colegiada de Santa Maria de Tavira se destacavam pelo
bispo e cabido de Silves e, embora saibamos que, em 1474, o prelado seu património vinhateiro, que não excedia, ainda assim, para cada
detinha adegas próprias no interior da cidade, junto ao adro da Sé uma delas, a dezenas de propriedades (Visitação: 188-196, 237-238).
(L.A.S.: 20), estas serviriam também, em larga medida, para recolher o

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16 | Casas ou cepas...
Dos proprietários leigos, para além dos monarcas, é pouca a infor- mato «como nunca foy em nosso tempo» (Barros, 2004: 421-422). O
mação disponível. Só ocasionalmente a documentação os menciona, mesmo problema se detectava, volvido quase um século (1379), em
ora entre as confrontações de propriedades régias ou eclesiásticas, Loulé, cujos mouros invocavam o facto de serem «tam poucos e tam
ora envolvidos em alguma contenda. No entanto, o seu número seria pobres» para justificarem a sua dificuldade em assegurar, ao mesmo
necessariamente elevado, com tendência para aumentar à medida que tempo, o cultivo da vinha e chão do rei, situados em Betunes, e as
caminhamos para os finais da Idade Média. Com efeito, a próspera suas próprias terras, de que pagavam ao monarca a respectiva dízima.
actividade mercantil e o aumento demográfico devem ter acentuado a Daí que D. Fernando aceite, face à instabilidade das novidades obtidas
procura de terras com vista a responder às crescentes necessidades de desse seu reguengo, a remissão do antigo encargo por uma renda anual,
consumo da população e às encomendas dos mercadores. Bem ilustra- em dinheiro, fixada pelo rei em 300 libras, a pagar pela comuna dos
tivo deste facto é o livro de pagamento da fruta de Loulé, produzido mouros da vila, com a possibilidade de o monarca dispor dessas terras
cerca de 1480 (Ferreira, 2003), que regista o nome de 242 proprie- como entendesse, aforando-as ou emprazando-as a novos cultivadores
tários que contribuíram com as novidades das suas terras para que o (IAN/TT, Ch. D. Fernando, lv. 2, fls. 40-40v). O mesmo ocorreria com os
concelho pudesse cumprir uma avulta encomenda de passas e figos mouros de Faro, que obtêm igual privilégio do monarca nessa precisa
(Iria, 1988: II/2, 449-476). Destes, 215 possuíam terras onde a vinha data, também em troca de uma contribuição anual, aqui orçada em 130
era cultivada, dadas as menções às peças de passas por eles entregues libras (IAN/TT, Ch. D. Fernando, lv. 2, fls. 45-45v).
aos oficiais concelhios. É certo que a grande maioria delas seria de
pequenas dimensões, não permitindo a produção de grandes exceden- O processo de libertação, por parte das comunas muçulmanas algar-
tes, pois mais de metade dos produtores (114) não ultrapassa, na sua vias, da obrigatoriedade do trabalho nas vinhas régias, acaba também
contribuição, as cinco peças de passa (110 kgs). É ainda possível que, por demonstrar a posse crescente, por parte desses mouros, de terras
entre estes, se contassem proprietários de outros concelhos, saben- próprias dedicadas à cultura da vinha, quer as tivessem adquirido por
do-se como as diversas edilidades podiam estabelecer acordos entre compra ou obtido o respectivo usufruto por meio de contratos de lo-
si sempre que as encomendas feitas pelos mercadores ultrapassassem cação. O Livro do Almoxarifado de Silves (1474) é um testemunho
as suas capacidades de suprir o montante solicitado (V.L. II: 54-55). eloquente de ambas as situações, apresentando os mouros ora como
Mesmo que fosse este o caso – embora nada seja dito neste sentido –, foreiros de terras régias, ora enquanto proprietários das suas próprias
é significativo o número de proprietários que concorrem para o cumpri- parcelas, ainda que obrigados, em ambos os casos, à tradicional impo-
mento do contrato, demonstrando uma efectiva proliferação de terras sição da dízima devida ao monarca.
de vinha, associadas ou não com figueirais, nas mãos de pequenos e
médios produtores. Os monarcas preocuparam-se também, desde cedo, em atrair po-
voadores cristãos para as vilas algarvias e para o cultivo das respe-
O mesmo livro permite igualmente atestar a posse de vinhas tanto ctivas terras, concedendo, por isso, diversos privilégios aos que aí se
por parte de cristãos como de mouros e, embora em menor número, de instalassem. Deste modo, dois anos volvidos sobre a outorga dos forais
judeus. Os segundos desde cedo se encontraram ligados ao cultivo da a Silves, Loulé, Faro e Tavira, Afonso III quitava a todas estas vilas,
vinha por meio da obrigação, imposta logo após a conquista cristã do bem como a Paderne e Aljezur, o pagamento dos oitavos de vinho e
território algarvio, de assegurarem o trabalho das terras régias. Com linho estabelecidos nos respectivos forais como satisfação pela jugada
efeito, o rei Afonso III, na carta dada em 1269 aos mouros-forros de (IAN/TT, Ch. D. Afonso III, lv. 1, fl. 86v; Ch. D. João II, lv. 19, fls. 2-
Silves, Loulé, Faro e Tavira, procurara fixar e enquadrar as comunidades 2v). Do mesmo modo, os primeiros monarcas optariam por uma forma
muçulmanas que haviam permanecido no Algarve, submetendo-as à específica de contratos de locação, os aforamentos, estabelecidos a
sua protecção e, ao mesmo tempo, definindo-lhes um estatuto próprio, título perpétuo com os respectivos foreiros, como forma de atrair no-
que passava, não só por um conjunto específico de tributos e encargos vos cultivadores para as suas terras (Viana, 1998: 57, 69-71), em regra
que por estas lhes eram devidos, como também pela sua vinculação, contra a entrega anual de uma parte da produção, oscilando entre o
enquanto comunidade, ao trabalho nas vinhas reservadas ao monarca terço, o quarto ou, mais raramente, o oitavo do vinho aí arrecadado.
(Forais de Silves: 29; Barros, 2004: 37-38, 107-108, 114-115). Contu- Muitos contratos enunciavam, de forma explícita, a obrigação de os
do, este recurso depressa revelaria as suas dificuldades práticas: em respectivos foreiros “chantarem” (plantarem) vinha na propriedade que
1282, grande parte dos vinhedos e figueirais que o rei detinha em então lhes era aforada, corroborando a intenção de assim se favorecer
Tavira, entregues aos cuidados dos mouros, encontrava-se por cultivar, a expansão da área cultivada.
denunciando-se mesmo a existência de diversas terras tomadas pelo

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Em sentido horário:
17 | Aragonez
18 | Touriga nacional
19 | Crato Branco
20 | Alicante Bouschet

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21 e 22 | As vésperas da vindima:
Negra Mole e Touriga Nacional

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Só a partir da segunda metade do século XIV começaremos a assistir
a uma inversão nesta tendência, com o emprazamento das vinhas por
períodos mais curtos (em regra, por três vidas) e a gradual substitui-
ção do foro parciário por pagamentos em metal sonante, sinal de uma
maior procura de terras para cultivo e, logo, de uma maior facilidade
em assegurar a respectiva exploração, permitindo aos monarcas um
mais fácil controlo sobre as suas terras que obviasse a uma definitiva
alienação das mesmas (Viana, 1998: 61).

Por último, também os judeus participavam no mercado fundiá-


rio, adquirindo ou aforando propriedades onde as cepas marcavam a
sua presença. As chancelarias régias atestam a cedência a judeus, por
parte dos monarcas, de diversas vinhas no Algarve (IAN/TT, Ch. D. Fer-
nando, lv. 1, fls. 185; Ch. D. João I, lv. 3, fls. 197v-198) e, em algumas
vilas, a produção de vinho pelas respectivas comunas adquiria a impor-
tância suficiente para que, junto do rei, estas se pudessem agravar das
tentativas de restrição à sua venda impostas pela comunidade cristã.
Assim acontecia em Tavira, a cujas autoridades ordenava D. Fernando,
em 1382, que respeitassem os privilégios outorgados à comunidade
judaica nessa matéria (Ferro, 1970: 252-255).

Para o cultivo das vinhas, os diversos proprietários poderiam con-


tar, caso fosse necessário, com o recurso a assalariados, homens pa-
gos à soldada ou à jorna. Aparentemente, mesmo os judeus recorriam
a assalariados cristãos, o que não deixou de suscitar a contestação
da maioria cristã junto dos monarcas (Tavares, 1982-1985: I, 279).
Em contrapartida, deparamo-nos com diversos abusos perpetrados por
proprietários cristãos sobre os mouros, forçando-os a trabalhar nas
suas terras contra a vontade destes, procedimento que os monarcas,
face às queixas das comunas, depressa interditariam (Hist. Florestal: I,
165-168).

Encontramos igualmente atestado o emprego de mão-de-obra servil


no trabalho das vinhas: escravos brancos e negros, alguns deles muçul-
manos. Conforme estudou Filomena Barros, embora o termo “guineu”
fosse aplicado a muitos destes servos, tal não implicava necessaria-
mente que proviessem das regiões mais meridionais do continente afri-
cano, designando-se sob este epíteto, indistintamente, os escravos de
cor negra, numa associação tornada mais recorrente com o avançar da
colonização portuguesa em terras africanas (Barros, 2004: 175-176).
Numa carta de perdão emitida por D. Afonso V em 1471, referia-se um
destes “guineus”, Aljuma, escravo de uma Maria Afonso, moradora em
Lagos, que ameaçara um vizinho desse mesmo lugar com a sua enxada,
enquanto trabalhava na vinha da sua dona (Azevedo, 1903: 299-300).

37
23 | Vindima

38
2.3
trabalhos na vinha

Frágil e de curto tempo de vida, a vinha mostrava-se uma cultura


extremamente exigente de trabalhos, prendendo o agricultor à cepa
os trabalhos da vinha
durante grande parte do ano (Ribeiro, 1991: 72). Num aforamento
feito por D. Fernando a João Afonso, vizinho e morador de Loulé, em
1379, estipulavam-se criteriosamente as tarefas a desenvolver no chão “Dua gran vinha que ten en Valada
Álvar Rodríguiz non pod’aver prol
e vinha que o monarca possuía em Betunes, anteriormente entregues
vedes por que: ca el non cura sol
ao cuidado dos mouros da vila: que «escavem e podem e amergulhem de a querer per seu tempo cavar;
e empem e cauem e a Remdem beem e fielmente em cada huu anno e a mais dela jaz por adubar,
a dita vinha e a seus tempos» (IAN/TT, Ch. D. Fernando, lv. 2, fls. pero que ten a mourisca podada.
El entende que a ten adubada,
39v-40; L.N., Odiana, lv. 6, fls. 287-287v). Nada mais distante das pois lha podaron, e ten sen razon:
afirmações de Fr. João de S. José que, em 1577, dissertava sobre os ca tan menguado ficou o torçon
poucos cuidados dispensados pelos algarvios às vinhas, em contraste que a cepa non pode deitar,
ca en tal tempo a mandou podar
com os múltiplos trabalhos com que, pelo contrário, eram rodeados os que sempre ela lhe ficou decepada.
figueirais (Fr. João de S. José, Corografia : 118). Se enton de cabo non for rechantada,
nen un proveito non pod´ end’ aver,
ca per ali per u a fez reer,
Não temos motivos para supor que os trabalhos exigidos pela vinha
já end’ o nembr’ está pera secar;
não se efectuassem. Com efeito, além das recorrentes prescrições dos e mais valria já pera queimar
contratos sobre esta matéria, são, por outro lado, escassas as referên- que de jazer, como jaz, mal parada.”
cias a vinhas velhas ou em mortório que possam indiciar uma efectiva
negligência no cuidado das vinhas (IAN/TT, Ch. D. Fernando, lv. 2, fl. Revelando bom conhecimento dos trabalhos a que se sujeitava a vinha
68; L.N., Odiana, lv. 6, fls. 74-74v, 87-87v), pressupondo a realização (a cava, a redra e a poda), a cantiga (Lapa, 1970, n.º 100) evoca
das tarefas indispensáveis ao bom desenvolvimento das novidades e à sobretudo os efeitos nefastos de uma poda agressiva e, talvez, fora
de tempo, feita numa vinha mourisca da região de Valada, junto a
renovação das cepas.14 Santarém. Na opinião do trovador, as cepas não estavam em condições
de frutificarem, pelo que melhor seria queimá-las e replantar a vinha
Estas implicavam, após as vindimas e entre o Inverno e princípios a deixá-la como estava, sem proveito. Através da conotação sexual de
certos termos, o trovador não deixa de evocar e de joguetear, também,
da Primavera, a cava e escava da terra, com vista a permitir o areja-
com a impotência que padeceria o proprietário daquela vinha, Álvaro
mento dos terrenos e o máximo aproveitamento das chuvas, tão impor- Rodrigues, o qual pode ser identificado com o monteiro-mor do rei
tantes nos temperados invernos algarvios, que convinha regassem bem Dinis.
as raízes das cepas. A importância deste trabalho justificava, como O trovador, Estêvão da Guarda, devia conhecer aquele personagem,
pois também ele serviu o mesmo monarca, primeiro como escrivão, e,
vimos, o hábito de avaliar as vinhas em função do número de «homens depois, como seu escanção-mor (Resende, 1994: 329-330). Devido a
de cavadura» de que necessitavam. Revolvida a terra, seguiam-se, nos essas funções, estaria certamente bem informado de tudo aquilo que
primeiros três meses do ano, a poda, a esvidigagem e a empa, liber- respeitava ao consumo de vinho, embora seja provável que estivesse
igualmente atento ao cultivo da vinha, sabendo-se que tinha bens em
tando as cepas dos sarmentos em excesso, e amparando a planta e os Valada e uma adega em Santarém (Martins, 1999: 35, 41).
futuros frutos. A ligagem, complementar a estas tarefas, era também
feita por esta altura: prática generalizada em todo o país, também o Luís Filipe Oliveira

era no Algarve, como se infere das referências às «vinhas de varas»,

14
Não tomámos aqui em conta as diversas referências feitas em 1474 pelo Livro do Almoxarifado de Silves a terras de vinha abandonadas ou em mato, dado que estas decorrem
de outros factores, relacionados com o êxodo da população muçulmana (Botão, 1992: 68, 123).

39
sem que saibamos se estas não se reportariam eventualmente a vinhas depressa se recuaria para o fim da escava e empa, quando começava
mais altas, de latada (Fr. João de S. José, Corografia: 118). A arrenda a floração (Março), até se estender a todo o ano. Contudo, as coimas
ou redra, feita por altura do S. João (Junho), libertando as cepas da impostas pelo concelho reforçavam-se sobre os animais descobertos
presença das ervas daninhas que se tivessem entretanto disseminado nas vinhas após o mês de Março, altura em que constituíam um perigo
pela vinha, completava os trabalhos de manutenção a desenvolver pe- maior para os seus frutos (V.L. I: 129, 148, 152, 159, 177-188).
los cultivadores (Gonçalves, 1989: 229-232; Viana, 1998: 107-113).
Esta imposição era ainda estendida pelas posturas concelhias a
A estas tarefas poderiam acrescer ainda a mergulhia e o plantio, outros animais que pudessem de algum modo prejudicar as culturas:
destinados a assegurar a renovação e expansão das vinhas (Viana, cavalos e outras bestas muares ou asnais (V.L. I: 71-72, 94, 178-179);
1998: 113-116). Igualmente referidos no diploma acima citado, a sua os cães que vagueavam pela cidade e caminhos, ou que eram utili-
prática permitia a constituição de bacelos que, ocasionalmente, são zados na caça, obrigando os respectivos donos a trazerem-nos presos
mencionados pela documentação por nós recenseada (Ch.J, I/1, 51- ou a pagar coima se não o fizessem, podendo os lavradores matar os
52; Ch.D., I/2, 423-424; IAN/TT, O.A./S.B.A., mç. 5, n.º 492; O.S./ animais sem dono conhecido (V.L. I: 54-55); os porcos (V.L. I: 106-
C.P., mç. 43, n.º 4006; Ch. D. Manuel, lv. 15, fl. 16). 107, 182); as abelhas, cujas colmeias eram remetidas para uma légua
de distância da vila e proibidas de se implantarem próximo das vinhas
Em zonas de maior abundância de água, os viticultores viam-se (V.L. I: 187); e mesmo aves de capoeira, particularmente danosas
ainda obrigados a abrir valas com vista a drenar a água em excesso, na época de maturação dos frutos (V.L. I: 186). Do mesmo modo se
de modo a evitar o apodrecimento das raízes das cepas (Viana, 1998: procurava obviar às diversas depredações de que a vinha podia ser
118-119). Assim acontecia, por exemplo, no paúl de Lagos, arroteado alvo: a colheita de talhos, agraços ou uvas, ou mesmo de vides ou de
ao longo das últimas décadas de Quatrocentos (Magalhães, 1970: 46- erva por estranhos; os danos inculcados nos valados ou vedações pela
47, 52-53). Do mesmo modo, e com vista a proteger as culturas, já de intromissão indevida em vinha alheia; o roubo das novidades, levando
si frágeis, da voragem do gado, ou dos animais selvagens, e a evitar alcofa ou alforge, mesmo após o tempo das colheitas, tolerando-se
intromissões indevidas de gente em busca das novidades alheias, as apenas, neste último caso, quem o fizesse para se alimentar sem de-
vinhas eram ainda “tapadas”, ou seja, convenientemente cercadas e monstrar qualquer intenção de levar quaisquer frutos consigo (V.L. I:
vedadas (Gonçalves, 1989: 98; Viana, 1998: 120). Embora nos faltem 182-183, 186). Aos chamiceiros, que recolhiam lenha para os fornos,
maiores especificações sobre os recursos utilizados para o “tapigo” ou impunha o concelho de Loulé que requeressem alvará da edilidade
“bardar” das vinhas, a sua importância foi, desde cedo, reconhecida, para a apanha de vides, de modo a evitar quaisquer roubos ou danos
nomeando-o a carta dada por Afonso III aos mouros forros do Algarve, nas vinhas e nas respectivas cercas e valados (V.L. I: 193). Em 1498,
em 1269, entre as obrigações que lhes eram impostas no cuidado das o concelho de Lagos procurava do monarca permissão para se poderem
vinhas régias (Forais de Silves: 29). castigar publicamente os escravos e escravas que causassem danos
«em uvas e fructas das vinhas» (C.P.M.: 421).
A esta atenção em proteger as vinhas aliavam-se os concelhos,
conscientes da crescente importância da fruticultura e da produção vi- Terminado o tempo de maturação das uvas, chegava a estação da
nícola, tendendo a endurecer as suas posturas com vista a afastar das apanha dos frutos: o alacil. Dada a muito frequente associação das
vinhas todos os elementos que pudessem fazer perigar as novidades. vinhas com figueirais, o lavrador desde o final de Julho que se encon-
Conforme já notou Romero Magalhães, rapidamente se caminharia trava nas suas terras, colhendo os figos, tarefa que se prolongava até
para uma clara submissão da criação de gado aos interesses frutícolas ao início de Setembro (Magalhães, 1970: 127), altura em que as uvas
(Magalhães, 1970: 94-124; Magalhães, 1988). Com efeito, as medi- estavam prontas para a vindima. Assim se compreende a solicitação,
das mais recorrentes tomadas pelos concelhos direccionam-se, desde feita em vereação, pelos oficiais e homens-bons de Loulé, ainda em
cedo, para a imposição de limites claros à presença do gado nas terras 1394, para que pudessem usufruir de suas férias entre Agosto e S. Mi-
cultivadas, criando a adua concelhia, a boiada destinada aos pastos guel de Setembro, para «apanharem suas novidades e que os figos se
comunais, guardada por oficiais próprios. Nela se incluíam os bois de colherem e as pasas se querem deytar» (V.L. I: 58-59). Os contratos
arado e algumas vacas, necessários aos trabalhos da terra, sendo as de locação estabeleciam precisamente diversas festas litúrgicas, to-
restantes rezes, juntamente com todo o gado miúdo, obrigadas a mi- das nos finais de Setembro, para a entrega do vinho estipulado pelos
grar para a serra entre o S. João e Santa Iria de Setembro (Magalhães, senhorios: Santa Iria, S. Miguel, S. Cipriano. Este teria que ser, neces-
1988). As vereações de Loulé testemunham o gradual prolongamento sariamente, recolhido “no lagar”, permitindo assim ao proprietário da
do interdito de entrada do gado nas parcelas cultivadas: do período terra obter o vinho sem qualquer adulteração.
entre a maturação das uvas (Santiago, 25 de Julho) e as vindimas,

40
24, 25 e 26 | Na vindima
A vindima do mundo no Apocalipse de Lorvão

A fotografia mostra uma imagem de um manuscrito que pertenceu ao


antigo Mosteiro de Lorvão, a Norte de Coimbra, depositada desde o sé-
culo XIX no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa. Possuindo
cerca de setenta imagens, este manuscrito constitui um dos melhores
manuscritos com iluminuras existente em Portugal, sendo vulgarmente
conhecido como o Apocalipse de Lorvão, por constituir uma cópia do
texto bíblico do Apocalipse de S. João. Para além das qualidades e das
particularidades que as suas iluminuras apresentam, no contexto do
espaço peninsular, este manuscrito tem o especial interesse de se en-
contrar assinado e datado pelo monge copista, Egas de seu nome, que
o copiou em 1189. A imagem interpreta visualmente o parágrafo 14.º
do Apocalipse em que se revela o sexto sinal : “ O filho do homem pre-
side à colheita e à vindima do mundo”. Encontra-se estruturada em 3
partes, através de bandas horizontais, nas quais o contraste da cor por
meio do vermelho se apresenta visualmente eficaz. No entanto, as três
partes articulam-se entre si, pelo uso do amarelo para a representação
de um espaço abstracto, em que as personagens parecem flutuar, que-
rendo assim exprimir o facto de estarmos perante um espaço sagrado,
próprio de uma revelação.

Como a larga maioria das imagens produzidas no século XII, a leitura


da imagem deve processar-se de cima para baixo, de modo a seguir a
sequência dos acontecimentos referidos no texto sagrado. Esta ima-
gem mostra, também, como essa separação não é rígida, quebrando-se
por vezes a sequência por razões de reorganização das personagens e
com o fim de tornar mais expressiva a imagem. Assim, a hora da ceifa
(“mete a tua foice e sega, porque é chegada a hora de segar, pois a
seara da terra está seca”) surge na imagem junto à parte final do texto
relativa à vindima do mundo (“vindima os cachos da vinha da terra,
porque as suas uvas estão maduras”) e à actividade do lagar (“no gran-
de lagar da ira de Deus”).

É na parte inferior da imagem que nos aparece a representaçao de duas


actividades fundamentais do trabalho da vinha: a vindima e a espre-
medura da uva. Esta representação exemplifica um facto relevante para
a história das técnicas no Ocidente medieval: até por volta do século
27 | Apocalipse de Lorvão
XIII, o mundo das técnicas aparece quase exclusivamente, na arte e
na literatura, sob a forma de símbolos. Tal facto não invalida o inte-
resse da representação de utensílios e de instrumentos. Ao contrário
do que acontece com a representação humana, que é esquemática sob
vários aspectos e que procura mostrar essencialmente tipos sociais
e hierarquias celestes, mais do que personagens individualizadas, o
mundo dos objectos, como a própria imagem igualmente testemunha,
é representado com bastante naturalismo. Veja-se a prensa de madeira,
derivada da prensa romana, em que com todo o cuidado se representa
o parafuso e os diversos elementos seus constituintes. O mesmo cui-
dado figurativo é encontrado na representação da cestaria utilizada
na vindima para recolher os cachos, constituindo um utensílio com
ampla utilização no mundo mediterrânico, como mostra a iluminura
medieval da península ibérica e do actual terrritório italiano. É parti-
cularmente interessante a representação dos cestos na medida em que,
possuindo todos a mesma morfologia, uma calote esférica, e idêntica
asa curva, parecem representar diferenças quanto ao material de que
seriam feitos. Pela sua qualidade plástica e comunicativa esta imagem
é bem expressiva de que uma imagem nunca é uma mera ilustração de
um texto, mas reveladora do mundo dos objectos, das crenças e das
diferentes práticas sociais.

Francisco Teixeira
28 | Aragonez, vindima

A documentação não nos faculta muitas informações sobre as cas- passas de boa qualidade, e a «passa vermelha», da qual nada mais é
tas cultivadas e, logo, sobre o tipo de uvas utilizadas na confecção dito (Lencastre, 1953: 144).15 Devia-se ainda cultivar – embora em
do vinho e na produção das passas. De algumas, restam-nos apenas o menor quantidade, segundo o referido frade quinhentista (Fr. João de
nome, sem que seja possível, de acordo com os conhecimentos actuais, S. José, Corografia: 118) – alguma “uva tinta”, cujo sumo era nor-
fazer qualquer identificação mais segura. Assim acontece com a vinha malmente misturado com o mosto de outras uvas para obtenção dos
«capellis», que se cultivava em 1282 nas terras que o rei detinha no vinhos vermelhos, cujo consumo encontramos documentado em Loulé
termo de Tavira, e que Alberto Iria propôs, numa hipótese não con- durante esta época (Gonçalves, 1996a: 205).
sensual, tratar-se de um vinho judengo, generoso (Iria, 1983; Maltez,
1993: 95). Pelo contrário, outras castas são melhor conhecidas, como Dos vinhos produzidos, encontramos notícia, em Fr. João de S.
a mourisca, ainda hoje presente no Algarve e no Alentejo, utilizada José, da existência de vinhos bastardos, mais doces, cujo teor alcoóli-
na produção de vinho branco (Costa, 1900: 422). Segundo Fr. João de co era elevado graças a um processo de exposição das uvas ao sol em
S. José, o vinho dela obtido conseguia, no Algarve, resistir à rápida terreiros junto às vinhas (almeixal), logo após a colheita, rociando-as
deterioração que se documenta, para a mesma casta, em outras regiões com água para que aquecessem e apodrecessem. Só passados 12 a 13
do país (Fr. João de S. José, Corografia: 118; Viana, 1998: 154). Outras dias os cachos dariam a sua entrada no lagar ou nas tinas. No mesmo
uvas parecem ter sido utilizadas sobretudo na produção de passas: a almeixal eram também secadas as uvas destinadas à produção de pas-
«açaria», que um diploma de 1468 refere como passível de facultar sas (Fr. João de S. José, Corografia: 118).

15
Não tomámos em consideração a referência a vinho «cimprez», tomado por Teresa Rebelo da Silva como sinónimo de uma casta (Maltez, 1993: 95). À falta da indicação da fonte de
onde recenseou a referência, fica-nos a dúvida se este termo não se reportará a “vinho puro”, ou seja, ao sumo fermentado da uva sem adição de água (Viana, 1998: 157).

43
Mapa 3 | Lagares e adegas
no Algarve durante
a Idade Média (1266-1533)

Alcoutim

Aljezur

Castro Marim
Silves
Loulé

Tavira
Albufeira
Lagos
N Faro

O L adegas
lagares
0 50 Km S Rei
Bispo
Particulares
Ordem de Avis
Ordem de Cristo

O pisar da uva era feito, muitas vezes, em estruturas de madeira, de excluir que os lagares de azeite fossem também utilizados para a
facilmente transportáveis, que permitiam que esta operação se rea- produção do vinho, como o atesta Fr. João de S. José em 1577 (Fr.
lizasse junto das vinhas (Idem, ibidem: 116). Contudo, a pequena João de S. José, Corografia: 118-119), ou que as adegas comportas-
capacidade destes mecanismos obrigaria certamente ao recurso a la- sem, por vezes, estas estruturas de transformação do vinho, sem que a
gares para as vinhas de maiores dimensões. Não encontrámos muitas documentação o especificasse.
referências a estas infraestruturas, que, nos casos documentados, se
situavam, na sua maioria, no interior das vilas ou, quando muito, nas O vinho produzido era recolhido em vasilhame próprio, de capaci-
suas imediações. Parte destes lagares pertencia ao rei, como grande dade e materiais diversos consoante o volume e destino da produção.
proprietário vinhateiro, que deles dispunha em praticamente todas as De maior capacidade, as cubas, tonéis e tinas, de madeira, eram nor-
principais vilas algarvias. Outros estavam nas mãos de particulares, malmente armazenadas em adegas, que a documentação situa prefe-
sem que saibamos a eventual relação entre a existência dos mesmos e rencialmente no interior das vilas, em locais de fácil acesso e que
o volume do património vinícola detido pelos seus possuidores. Apenas permitiriam o rápido escoamento da produção. Para o vinho guardado
em um dos casos, o lagar nos surge junto às estruturas de habitação, em casa, os reservatórios referidos são de mais fácil utilização, alguns
na proximidade das vinhas (Mosqueira, termo de Albufeira – IAN/TT, deles em loiça: potes, talhas e jarras ou jarros (Maltez, 1993: 99).
O.A./S.B.A., mç. 9, n.º 797). Outros haveria certamente, como era o A importância da produção vinícola na economia algarvia levou os
caso do lagar que o rei D. Pedro mandava que se construísse na Ribeira monarcas a isentarem os vizinhos dos diversos concelhos algarvios do
da Asseca, junto a uma sua herdade que, em 1361, aforava a Lourenço pagamento da dízima sobre a madeira que importassem para a sua
Eanes, escrivão do almoxarifado de Tavira (Ch.P.: 277-279). Não será confecção – «pera fazerem suas cubas e tonees ou tinas ou outra louça

44
29 | As uvas

pera colherem seus vinhos». O privilégio, concedido aos habitantes paroquiais, dispondo-se, nestes casos, que marido e mulher pudessem
de Loulé logo em 1357 (Ch.P.: 37-38), depressa seria estendido por alternar entre si as idas às celebrações litúrgicas (Visitação: 21).
D. João I, em 1387, aos concelhos de Castro Marim, Tavira, Lagos e
Silves e possivelmente também ao de Faro (IAN/TT, Ch. D. João I, lv. Distinta era a relação com as minorias judaica e muçulmana, que,
1, fls. 196-196v; lv. 2, fls. 29-29v, 96v; L.N., Odiana, lv. 1, fls. 43-43v; sobretudo no século XV, assistiriam ao agravar das medidas discrimina-
lv. 6, fl. 249; Iria, 1990, 202-204). tórias tomadas pela maioria cristã, à imposição do regresso às comunas
até ao fim do dia e o seu encerramento nas mesmas durante a noite
O trabalho nas vinhas, distribuído ao longo de todo o ano, era (O.A., lv. II, tit. CXII, pp. 552-553) – o que levantaria a objecção, por
necessariamente pautado pelo ritmo dos calendários litúrgicos das di- exemplo, da comuna judaica de Tavira, face à necessidade do regresso
versas comunidades religiosas. O que nem sempre era respeitado. Com mais tardio das suas vinhas, dispersas pelo arrabalde e termo da vila
efeito, nas determinações gerais relativas às visitações feitas pela Or- (IAN/TT, Ch. D. João II, lv. 8, fls. 148-148v) – acrescentaria a exigên-
dem de Santiago às suas comendas em 1517-18, incluía-se precisamen- cia, estranha ao seu sistema religioso, de também eles respeitarem o
te a recomendação de que se fizesse respeitar o descanso prescrito nos descanso cristão nos dias prescritos pela Igreja até ao terminar das
Domingos e festas de guarda, pelo menos até à hora de tércia (meio suas celebrações. Assim tentara fazer a vila de Faro, em 1403, com os
da manhã), quando terminavam as missas. O texto não deixa, contudo, mouros aí residentes, esbarrando, contudo, com a oposição do monar-
de demonstrar alguma tolerância, sobretudo para com aqueles que, ca, ouvidos os agravos da comuna da cidade (Barros, 2004: 332-335).
habitando no termo das vilas, estavam sujeitos a deslocações mais lon- Em 1492, seria Loulé a impor tal prescrição aos judeus da vila, confor-
gas e por vezes não isentas de dificuldades até às respectivas igrejas me o testemunho das vereações (V.L. II,: 43).

45
2.4
“À boca do lagar”

Assim se referiam muitos contratos régios de cedência de explora- lagar, mas no momento da vindima, a partir dos cachos colhidos das
ção das vinhas dos monarcas ao estabelecerem o pagamento do foro, cepas (Visitação: 19-20).
quando este era cobrado em vinho, quer numa quantidade definida,
quer numa parte sobre a totalidade da produção. Pisadas as uvas e A presença de outras minorias étnico-religiosas no território levaria
recolhido o mosto, deste era colectada, pelos seus oficiais, a parte de- também ao perpetrar de diversas iniciativas, por parte do prelado al-
vida ao monarca, evitando a adulteração do vinho, nomeadamente com garvio, com vista a estender sobre estas a cobrança do dízimo, obten-
água. Nas vinhas detidas pelos mouros, o monarca recebia também do-o, ao que parece, não só para os judeus (Ferro, 1970: 121; Tavares,
a décima parte das suas novidades, em sinal do reconhecimento da 1982-1985: 193), como também para os mouros. Com efeito, em 1377,
sua soberania sobre as comunas muçulmanas e da dependência destas D. Fernando determinava que todos os mouros pagassem ao bispo de
face ao rei. Mesmo quando as suas terras eram vendidas a cristãos, Silves a dízima devida pelas suas propriedades, independentemente de
o pagamento desta dízima era mantida, facto que originou repetidas uma anterior posse das mesmas por cristãos (IAN/TT, Ch. D. João II,
queixas junto dos monarcas, nomeadamente do concelho de Silves, por lv. 8, fl. 184). No entanto, esta determinação seria revogada por D.
implicar, para os novos proprietários, uma dupla tributação (Barros, João I logo em 1385, reconhecendo o seu carácter danoso, por levar
2004: 427, 436-443). ao abandono, por parte dos mouros, de muitas das suas terras (IAN/TT,
Ch. D. João I, lv. 1, fl. 161). O mesmo monarca voltaria a legislar sobre
Com efeito, a Igreja exigia também aos seus fiéis a décima parte este assunto, em 1431, estabelecendo apenas a obrigatoriedade do
dos frutos por estes retirados das suas terras. Assim o fazia o prelado pagamento do dízimo à Igreja sobre as propriedades adquiridas pelos
de Silves, não deixando, quando necessário, de apelar aos monarcas mouros que estivessem anteriormente na posse de cristãos, mantendo,
para que sancionassem, com a sua autoridade, a obrigatoriedade do em oposição, um duplo dízimo, pago a si e à Igreja, para as terras de
cumprimento de tal dever por parte dos seus diocesanos (IAN/TT, Ch. mouros compradas por cristãos (IAN/TT, L.N., D.R., lv. 1, fls. 242v-
D. João II, lv. 8, fl. 182v; lv. 22, fl. 34v). A ordem de Santiago fazia 243v; Barros, 2004: 436-443). Contudo, a maior crispação nas relações
valer o mesmo direito sobre os paroquianos das igrejas algarvias de entre os fiéis dos dois credos sentida em finais de Quatrocentos levaria
que era padroeira. No caso do vinho, o seu cálculo era feito, segundo o ao retomar das decisões fernandinas, confirmadas por D. João II em
testemunho das visitações de 1517-18, não sobre o líquido obtido do 1486 (IAN/TT, Ch. D. João II, lv. 8, fl. 184).

30 e 31 | Lagos,
recepção da uva

46
2.5
Consumo e exportação

Terminado o ciclo produtivo e cumpridos os pagamentos de foros


e dízimos, os frutos da vinha estavam disponíveis para entrar no mer-
cado. Entre estes, destacavam-se, evidentemente, as passas e o vinho,
alimento de um florescente comércio que, sobretudo a partir da 2.ª
metade de Trezentos, ligava os portos algarvios a importantes cidades
do reino mas que se estendia para além delas, alcançando os centros
mercantis do Norte da Europa. No entanto, importa também recordar
que nem todo o vinho saía do Algarve. A conhecida importância que
este assumia na alimentação medieval, como bebida básica e sempre
presente em qualquer refeição, implicava necessariamente o seu alar-
gado consumo também por parte das gentes algarvias. As necessidades
de abastecimento interno tenderiam, aliás, a aumentar, em tempos de
crescimento demográfico, como foram os dos finais da Idade Média no
Algarve.

Sem outros concorrentes – o hidromel ou a cerveja pontuavam em


outras latitudes –, o vinho era a bebida por excelência, consumido,
aliás, pelo homem medieval, em elevadas quantidades: a ração média
diária rondava normalmente entre 1,5 e 2 litros, valores que com faci-
lidade eram ultrapassados quando o trabalho se tornava mais violento,
ou importava empreender longas viagens (Coelho, 1990; Gonçalves,
1988; Marques, 1987: 7, 14-16; Viana, 1998: 179-181). Retemperador
de energias e viático eficaz para a sede, o vinho podia ser consumido
puro ou misturado com água, para lhe cortar a fortaleza, ao jantar
(almoço) e à ceia, ou em refeições mais ligeiras, a acompanhar a fruta.
Era o que aconselhava o rei Duarte no seu Leal Conselheiro e se pratica-
va, por exemplo, em Loulé, nos convites oferecidos pelo concelho, em
1450-51, aos representantes dos restantes municípios algarvios que
aí se haviam reunido (Gonçalves, 1996a: 205). A mesma vila regista o
pagamento de rações de trigo e de vinho, pela mesma altura, aos tra-
balhadores que trazia no almargem de Bilhes, incluindo vinhos tintos
(“vermelhos”) e brancos, num total de 11 almudes diários, entre 154
e 196 litros (Gonçalves, 1996a: 201 e nota 54). De pão e vinho eram
também os mantimentos que Loulé pagava aos oficiais enviados a tra-
tar de negócios do seu interesse (Iria, 1988: II/1, 316, nota 3).

32 | Fermentação em ânfora argelina

47
Para as instituições eclesiásticas, que não escapavam ao consumo
abundante de vinho, este mostrava-se ainda imprescindível para a li-
turgia, nomeadamente a eucarística, integrando, juntamente com o
pão, as espécies destinadas, pela repetição da fórmula ritual, a trans-
formar-se no corpo e sangue do próprio Cristo. Por isso, as visitações
da Ordem de Santiago, ao nomear as rações anualmente entregues aos
priores, raçoeiros e capelães encarregues do serviço litúrgico nas igre-
jas e ermidas do padroado da milícia, não se esqueciam de incluir
entre o seu mantimento o indispensável vinho (Visitação: 76-77, 107-
109, 179-180, 235). Diversos documentos testemunham o hábito de
os priores da Ordem ofertarem vinho e fruta na véspera da festa de S.
Tiago (IAN/TT, O.S./C.P., mç. 2, n.º 61, fl. 3v; Visitação: 21), bem como
a dispensa de vinho, com outros víveres, por ocasião das celebrações
de sufrágio pelos defuntos, em continuidade com a longa tradição,
anterior ao Cristianismo, das refeições rituais tomadas em honra dos
mortos. A regularidade destes sufrágios implicaria uma significativa
despesa, pelo que os visitadores de 1517-18 determinaram que tais
ofertas só se realizassem se tal tivesse sido expressamente requerido
pelo defunto no seu testamento e a este encargo tivesse anexado bens
suficientes para suprir os gastos que acarretavam (Visitação: 52). Abaixo:
33 | Fermentação em ânforas argelinas
As solicitações e oportunidades para o gasto do vinho eram, assim, Ao lado, da esquerda para direita:
34, 35 e 36 | Limpeza do depósito
diversificadas. Tal era, aliás, bem expresso num dos capítulos apre-
37 | Prensa
sentados pelos concelhos do Algarve às Cortes reunidas em Santarém
em 1451: «aquelles que teem os dictos vinhos delles despendem em
adubio de ssuas herdades e delles bebem em suas cassas E delles fazem
serviços a sseus amigos E pollo semelhante quando vem alguu ssocorro
a çepta E alguuas armadas que fazem a que muytos por vosso serviço
vaaom levam delles pera sseus mantiimentos» (IAN/TT, Supl. Cortes,
mç. 4, n.º 47).

A importância do vinho no quotidiano das gentes algarvias e a sua


recorrente procura tornavam, por isso, a sua venda extremamente ren-
tável, mas, por isso mesmo, carente de uma contínua vigilância e de
estreita regulamentação. A abundância da oferta registada em quase
todo o espaço algarvio, à exclusão das zonas serranas, aliás pouco
povoadas, exigia também a estruturação de mecanismos que permitis-
sem um rápido e eficaz escoamento dos quantitativos acumulados nas
adegas e casas dos produtores.

Aqui, o monarca tomava a dianteira, reservando para si, pelo di-


reito do relego, os três primeiros meses do ano para a venda do seu
vinho, com vista a evitar a rápida deterioração de que era alvo o vinho
medieval. Tal direito fora, logo após a conquista cristã do Algarve, con-
signado nos forais outorgados por Afonso III em 1266 e repetido nos
diplomas do mesmo teor posteriormente emitidos para todas as outras
vilas algarvias. Acumulado nas adegas régias, o vinho do monarca era
aí vendido, beneficiando da localização das mesmas, em regra no inte-
rior das vilas e em ruas de maior circulação de gentes.

48
49
De modo a salvaguardar os seus direitos, os forais das vilas algar- para os vendedores abrangidos pelo termo do relego, baixando para 25
vias estipulavam pesadas coimas para aqueles que quisessem vender o soldos por tonel o pagamento imposto aos de fora do termo do relego
seu vinho durante o referido período, chegando-se a determinar, para (V.L. I: 25-26). Em 1377, é de novo o concelho de Tavira que reclama
os mais refractários, o derrame de todo o seu vinho e a quebra das suas junto de D. Fernando o respeito pela cessação da venda do vinho régio
cubas e tonéis. Ainda assim, era possível aos vizinhos dos concelhos após o tempo do relego, que o monarca manda que se cumpra (IAN/TT,
venderem o seu vinho durante o relego, em troca de um imposto, a re- Ch. D. Fernando, lv. 2, fl. 20).
legagem, ou negociar com os oficiais régios as condições para a venda
do vinho durante o relego (Gonçalves, 1990 e 1990a; Gonçalves, 1989: No entanto, este direito régio, como muitos outros, seria alvo de
466-470; Viana, 1998: 174-175). Em 1384, o concelho de Faro obtinha uma gestão que passaria, a partir de finais do século XIV, pela sua
do Mestre de Avis, regedor do reino, que pagasse de relegagem o mes- entrega aos concelhos em troca de uma renda fixa em moeda, ou pela
mo que em Tavira, quer dizer, a décima parte do vinho vendido (Ch.J.: alienação dos seus proventos a vassalos do rei. É assim que, em 1385,
I/1, 24). Em Silves, o concelho refere ser norma os vinhos encubados os rendimentos do relego se encontravam, em Loulé, arrendados ao
fora do termo do relego pagarem por relegagem um almude por carga concelho, que não deixava de os utilizar para cobrir as mais diversas
cavalar e meio almude por carga asnal (Iria, 1982: 114-115). despesas (V.L. I: 25-26, 36, 37). Contudo, a tendência seguida após
esta altura iria no sentido da entrega destes rendimentos a servidores
Com vista a possibilitar a correcta aplicação do relego, D. Dinis dos monarcas, assim acontecendo, logo em 1384, com o relego de Ta-
ordenaria a delimitação da área por ele abrangida em cada um dos vira, doado a Fernando Álvares Pereira, seguindo-se, em data anterior
concelhos. Tal como noutros lugares do reino (Rodrigues, 2001: 181), a 1433, o relego de Loulé, cedido a Maria de Resende, viúva do comen-
o espaço demarcado não alcançava todo o termo, mas sim as zonas dador-mor de Santiago e, em 1464, o de Silves, dado como mercê a
mais próximas da sede concelhia, possivelmente as mais cultivadas, ou Henrique Correia (Ch.J.: I/1, 181-182; Ch.D.: I/1, 176-178; Ch.D.: III,
de mais fácil acesso à vila. Assim acontecia com o termo definido em 139; IAN/TT, Ch. D. João I, lv. 1, fls. 83-84; Ch. D. Afonso V, lv. 8, fl.
1290 para o relego de Faro, e, no ano seguinte, para o de Loulé, des- 93 e lv. 16, fl. 26; L.N., Odiana, lv. 5, fls. 114-114v).
conhecendo-se os limites do de Tavira, que sabemos terem sido fixados
pela mesma altura (IAN/TT, Ch. D. Dinis, lv. 1, fls. 270v-271; lv. 2, fls. A crescente monetarização dos foros cobrados pelo monarca sobre
19-19v doc. 25). Segundo um diploma de 1398, o termo do relego de a exploração das suas vinhas, a conversão de muitos dos seus direi-
Silves seguia a mesma norma, submetendo à vigência deste direito os tos em pagamentos em metal sonante, o abandono da imposição do
vinhos «que se custumam encubar em stombar e alvor e no buçom e cultivo dos vinhedos dos seus reguengos às comunas muçulmanas e,
nos outros logares fora da dicta Çidade» (Iria, 1982: 114-115). Assim por último, a expulsão compulsiva dos seguidores do Islão em 1497,
se percebe que Lagos invoque, em 1377, depois da sua desanexação de com a cessação da entrega aos monarcas do dízimo das suas vinhas,
Silves, que nunca fora abrangido pelo relego régio enquanto aldeia do contribuiriam para reduzir, de forma gradual, os quantitativos vinícolas
dito termo, para solicitar ao monarca que não o impusesse nesse lugar que chegavam às adegas régias e, com eles, os proventos decorrentes
(IAN/TT, Ch. D. João II, lv. 21, fls. 102-102v). do relego. Daí que, à excepção de Tavira, que manteria, grosso modo,
a antiga legislação relativa ao relego, as restantes vilas assistam a um
Segundo um artigo aprovado nas Cortes de Santarém de 1331, que aliviar do exercício deste direito. Atingido o século XVI, os forais novos
acabaria por passar para as ordenações do reino, os relegueiros esta- outorgados por D. Manuel a Silves, Vila Nova de Portimão, Lagos, Faro
vam proibidos de comprar ou negociar qualquer vinho com vista à sua e Castro Marim já não incluem o relego entre os direitos devidos ao
venda durante o relego, devendo os mesmos limitar-se ao escoamento monarca. Em Loulé e Albufeira, mantém-se em vigor a reserva dos três
do vinho recolhido nas adegas. Este deveria ser vendido nesse mesmo meses de relego, mas salvaguarda-se a possibilidade de encurtar esse
lugar e não em outros locais das vilas ou nos seus termos, determi- prazo, caso o vinho existente nas adegas do monarca se escoasse antes
nando-se ainda que, passado o relego, o vinho em excesso não fosse do fim de Março (Forais Manuelinos: 20, 24-26; Foral de Loulé: 102).
vendido (C.P.A: 37-38; O.D.:. 413-414; O.A., lv. II, tit. LV, 331-332).
Contudo, a documentação régia atesta as múltiplas e repetidas quei- Em Aljezur, a Ordem de Santiago detinha, juntamente com o senho-
xas dos concelhos sobre abusos perpetrados pelos relegueiros régios, rio da vila, o respectivo relego, durante o qual vendia o vinho obtido
também atestados para o Algarve. Com efeito, em 1338, o concelho de da vinha que a milícia aí detinha e o restante proveniente dos dízimos
Tavira agravava-se ao monarca da quantia exagerada cobrada sobre os (IAN/TT, O.S./C.P., mç. 2, n.º 61, fl. 8), embora seja de suspeitar um
tonéis de vinho daqueles que pretendiam vender o seu vinho «ao ta- igual decréscimo dos respectivos proventos. O mesmo acontecia em
pom» durante o tempo do relego, determinando o monarca que os que Castro Marim, onde a Ordem de Cristo detinha o direito de relego. Mas,
fossem autorizados a vender o seu vinho durante esse tempo pagassem em 1509, afirma-se que «de tempos a caa a hordem nom usa o dito
apenas a dízima do dinheiro obtido com a respectiva venda, e não mais Relego por nom teer vinho pera vender nelle» (T.C.M.: 140).
(Ch.A., II, 231-232). Em 1385, aplicava-se o mesmo sistema em Loulé

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No tempo do relego, sob pagamento da relegagem e, sobretudo, por reentrâncias que estendiam o acesso ao mar a vilas mais interiores,
fora dele, abria-se caminho para a venda do vinho dos restantes pro- como Silves ou Loulé, ou com restingas de areia, junto à costa, que
prietários, quer para consumo local, quer para exportação. A pressão permitiam a existência de canais navegáveis por embarcações de me-
com vista ao seu escoamento, face à rápida deterioração de que era nor porte, como era o caso da ligação que unia Faro a Tavira (Ribeiro,
alvo, justifica a emergência de atitudes claramente proteccionistas por 1961: 115; Magalhães, 1970: 16).
parte dos concelhos, levantando múltiplos entraves à entrada de vinhos
oriundos de fora dos respectivos termos. Assim o afirmava o concelho Esclarecedor desta estratégia é o acordo estabelecido precisamen-
de Lagos, nas Cortes de 1498: «Outrossy Senhor ssaberaa vossa alteza te entre aquelas duas vilas em 1382 sobre o comércio marítimo de
que antiguamemte este Comcelho teve e tem por hordenamça por tam- exportação da fruta, figos, passas e vinhos. O texto supõe o hábito
to tempo usada que a memoria dos homeems nom he em comtrairo dos mercadores carregarem num porto, mas, sugere que, em batéis e
que nemhuuas pessoas nom metam nem possam meter por maar nem noutras embarcações, também iam a locais próximos, por via fluvial,
por terra em esta villa nem em seu termo nemhuu vinho que de fora para comprarem as mercadorias de que necessitavam, bem como o mo-
queiram trazeer so çerta penna E mays lhe ser vertido e emtornado vimento inverso dos produtores para entregarem as suas novidades no
todo o vinho que assy meterem, Esto Senhor porque nesta villa nõm ha local da carregação. Há, contudo, o cuidado de impedir qualquer hipó-
outra nouidade de que todos viuem soomemte por vinhas, e metemdo tese de venda a retalho, vista como intromissão no espaço concelhio.
sse aquy vinho de fora seriam nossas novidades tam abatidas que nom O diploma di-lo expressamente, ao determinar que «nenhu vezinho de
tirariamos delas nemhuu porveito, [sic] E esta mesma hordenamça tem Tavira nem de seu termo nem poção vir nem venhão por si nem por ou-
todollos lugares deste Regno do algarve» (C.P.M.: 420-421). trem fazer venda de figos E paças E vinhos no dito logo de faro nem os
de faro ao dito logo de Tauira salvo os ditos mercadores que poção hir
O problema era antigo. Já em 1329 os concelhos de Albufeira e comprar trazer de hu lugar o outro sem nenhuus enbargos». De modo
de Silves se agravavam junto do monarca da proibição colocada pela a evitar fraudes, a fruta que viesse para o local de embarque deveria
edilidade louletana aos seus vizinhos sobre a venda do seu vinho na estar marcada com o sinal dos mercadores a cujos navios se destinava,
dita vila e seu termo, determinando então o rei Afonso IV que tal certamente como forma de travar a possibilidade de se fazerem outras
proibição não valesse e que os vizinhos dos ditos concelhos pudessem vendas ao abrigo de tal pretexto (Iria, 1988: II/2, 422-425).
vender o seu vinho em Loulé entre os meses de Abril e Agosto (IAN/
TT, Ch. D. João II, lv. 8, fls. 199v-200; Iria, 1982: 93-94). A solução Loulé teria, aqui, um estatuto especial na relação com Faro. A
encontrada pelo monarca, mesmo obrigando Loulé a assistir à venda, documentação deixa perceber uma gradual tomada de consciência da
no seu território, de vinhos oriundos de outros concelhos, adiava essa interdependência que unia os dois concelhos no assegurar do abaste-
possibilidade para uma época em que muito do vinho louletano já cimento das suas populações e na satisfação da crescente procura do
havia sido escoado, tal como aquele que se armazenava nas adegas do vinho e frutas algarvios por parte dos mercadores estrangeiros. Apesar
rei, vendido precisamente até ao fim de Março. das diversas contendas que se registaram entre ambas as vilas ao longo
dos séculos XIV e XV relativamente a esta matéria, Loulé conseguiria
A guarda ciosa, pelas edilidades algarvias, da exclusividade da ven- ver reconhecida, desde cedo (1347 – IAN/TT, Ch. D. João II, lv. 8, fls.
da do vinho a retalho dentro dos seus concelhos obrigava a que só com 180v-181; Iria, 1988: II/2, 432-437), por parte dos monarcas e das
licença camarária outros pudessem aí fazê-lo. Assim, é em reunião da autoridades de Faro, a sua pretensão de aí poder levar, para venda,
vereação e dos homens-bons, que Loulé decide conceder a Lopo Este- as frutas e o vinho produzidos no seu vasto termo. Do mesmo modo,
ves, em 1468, a devida autorização para que pudesse vender nessa vila aproveitaria, de forma crescente, os portos de Pereiras, junto a Ludo,
os 35 almudes de vinho de uma vinha que possuía no termo de Faro já utilizado em 1332 (Iria, 1988: II/2, 415-417), e de Farrobilhas,
(V.L. I: 209). como via de acesso ao mais largo porto de Faro para escoar muita da
sua produção. Apesar das queixas das autoridades ossonubenses, era a
Com a mesma questão se relacionariam, aliás, outras contendas complementaridade com Loulé que lhes permitia suprir a estreiteza do
sobre o acesso às zonas portuárias onde os mercadores estrangeiros seu termo e, ao mesmo tempo, evitar aliar-se com outros portos con-
adquiriam o vinho e a fruta algarvios, ou onde a faziam embarcar nos correntes, nomeadamente o de Tavira. Bem ilustrativo deste facto é o
navios aí estacionados. Com efeito, uma das preocupações evidencia- acordo estabelecido entre os dois concelhos, em 1492, para o cumpri-
das nestas contendas é a de restringir a acção dos vendedores vindos mento de uma encomenda de 2.000 peças de figos feita a Faro por mer-
de fora do concelho, limitando a sua presença nos portos ao período cadores flamengos, mas que exigiria o recurso a Loulé para a obtenção
exclusivamente necessário para o embarque. Com isso procurava-se do volume de fruta contratado (V.L. II: 53-55). Ainda assim, volvidos
evitar a todo o custo que as suas mercadorias aí afluíssem por terra, seis anos, o município louletano voltava a queixar-se dos abusos per-
ou que estacionassem nos espaços junto ao porto, em bancas ou lojas, petrados pelo concelho de Faro, acusando-o de rebocar os navios que
de modo a impedir que fossem vendidas a retalho. Tais pretensões vinham carregar ao seu porto de Farrobilhas com a pretensão de que
jogavam ainda com as condições do próprio litoral algarvio, recortado apenas o deviam fazer no porto ossonubense... (C.P.M.: 443).

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O proteccionismo concelhio não deixava também de agir sobre Da venda de vinho em estalagens e tabernas, poucas são as in-
aqueles que, fora da maioria cristã, com esta concorriam na venda formações facultadas pela documentação compulsada. Sabemos que
do vinho, fosse esta feita a grosso ou a retalho. Assim acontecia, existia uma estalagem em Loulé, que em 1402 era arrendada pelo con-
por exemplo, em Tavira, onde os judeus reclamam, em 1382, contra celho, por dez anos, a Afonso Gomes, sendo-lhe permitido comprar e
as proibições levantadas pelo concelho à venda do seu vinho fora da vender pão, vinho, carne, pescado e panos (V.L. I: 102-103), e outras
judiaria, ou à sua comercialização a grosso com os mercadores (Ferro, aparecem atestadas por diversa documentação em Lagos, Albufeira,
1970: 252-255). Faro e Tavira (Gonçalves, 1988a: 150). Das tabernas, a sua existência
é-nos indiciada pelas normas concelhias ou emanadas pela autoridade
À preocupação com o escoamento da produção frutícola e vinícola régia, com vista a regular o comércio nelas efectuado, a definir quem
aliava-se uma estreita fiscalização, por parte dos concelhos, sobre a lhes tinha acesso ou a reprimir alguns comportamentos moralmente
qualidade dos produtos vendidos, o cumprimento dos preços e dos reprováveis que aí com frequência ocorriam (Castro, 2000).
pesos e medidas a aplicar pelos agentes envolvidos na sua comercia-
lização e o estabelecimento das normas tidas como necessárias para Estas poderiam existir, quer nos bairros cristãos, quer nas judiarias,
um equilibrado enquadramento social do seu consumo. Desde logo, determinando as Ordenações Afonsinas, nos casos em que tal aconte-
na venda a retalho e no consumo interno, desenvolvidos por vários cesse, que os judeus fossem impedidos de beber «na taverna Christen-
indivíduos, fossem os próprios produtores ou intermediários, como as ga», sob pena de 50 reais brancos, a reverter para o alcaide-mor do
regateiras, os regatões e as taberneiras, ou, realizada ainda, em espa- lugar (O.A., lv. II, tit. XCI, pp. 509-510; Tavares, 1982-1985: 164). Aí
ços públicos como as estalagens e as tabernas. se vendia pão, vinho, carne e pescado, segundo as vereações de Loulé
que, em 1403, interditavam tal actividade até ao fim das missas da
Já as Ordenações de D. Duarte guardavam memória da legislação Tércia aos domingos e dias santos, para que os fiéis pudessem cumprir
que, em tempo de D. Afonso IV, relembrava o encargo dos almotacés os seus deveres religiosos (V.L. I: 128). Também aí se confecciona-
em fazerem respeitar os preços e medidas, incluindo as regateiras e vam refeições, podendo os víveres utilizados ser adquiridos pelos seus
taberneiras entre as mulheres que, vendendo a retalho, nem sempre frequentadores em outros lugares. Tal se depreende dos apontamen-
seguiam as determinações concelhias neste domínio (O.D.: 351). Uma tos enviados por esta vila ao corregedor, em 1492, onde se refere o
outra lei, aprovada nas cortes de Lisboa de 1352, determinava a neces- hábito dos escravos, brancos e negros, comprarem fessuras, tripas e
sidade dos concelhos controlarem a actividade dos regatões na venda carne nas carniçarias, fazendo «grandes comerees e banquetes e be-
do pão e do vinho, de modo a não inflaccionarem o seu preço (C.D.A.: beretees de taverna em taverna». Tais apontamentos são, aliás, muito
133; O.D.: 671-672). Às regateiras exigiam ainda as vereações de Loulé críticos sobre o comportamento destes escravos, e, à imitação do que
honestidade na obtenção dos produtos que vendiam, incluindo também conhecemos para outros locais do país (L.P.A.: 214-215; Viana, 1998:
«fruta e figos e ouvas ou outra fruta», devendo informar as justiças 183-184), visam proibir-lhes o consumo de vinho nas tabernas, por tal
do concelho caso os adquirissem de alguém que suspeitassem tê-los estar na origem de bebedeiras, rixas e mesmo assassinatos, ou até dos
obtido por furto (V.L. I: 185). roubos que se diz fazerem aos seus senhores para poderem pagar os
gastos aí efectuados. Com vista a travar tal situação, propunha ainda
a edilidade que os rendeiros da almotaçaria fizessem inquirição para
saber quem lhes vende vinho e aceita as coisas roubadas como paga-
mento (V.L. II: 75-77).
“Receita” para evitar o pecado da gula na bebida

As vereações louletanas testemunham também o cuidado posto


pela edilidade na fiscalização de pesos e medidas: em 1403, deter-
“E deve ter na vontade firme propósito que por doença, idade, muda-
mento de compleição não beba muito vinho, nem pouco aguado, mas minava-se que o vinho vendido a retalho, «atavernado por canadas
que por outras guisas suas infirmidades se possam curar e ele ser tra- meas canadas e cortilhos», fosse sempre medido por funil, de modo a
zido a bom esforço e ledice e saúde, mas nunca por remédio de vinho, evitar eventuais fraudes (V.L. I: 138); cinco anos depois, o município
ao qual ponha regra de que se não parta, salvo se for por grande ne-
cessidade. E isto poucas vezes e poucos dias. E nesta tenção rijamente
definia rigorosamente a capacidade das seiras em que «almocreves ou
se poderá ter considerando quantas mulheres e mouros bebem água em outra pessoa que trouxher bestas aa guanho ou por gornal» faziam
esta terra, e com ela passam dores e vêm a muita velhice, em geral o transporte das uvas, passas e figos, de acordo com o tipo de carga
tanto e mais sãos dos que bebem vinho.“
(muar ou asnal), impondo pesadas multas aos infractores, incluindo os
D. Duarte, Leal Conselheiro, cap. XXXII costureiros que as fizessem mais pequenas (V.L. I: 180).

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Os monarcas assumiam, neste campo, um duplo papel, quer como modalidades da venda (a retalho ou a grosso), impondo-se, para os
parte interessada, quer como árbitros nos conflitos entre os concelhos compradores, sobretudo os mercadores estrangeiros, o pagamento da
ou entre as suas populações cristãs e as minorias moura e judaica. dízima sobre todo o vinho que saísse por mar (D.P.: I, 10-11; Forais
Manuelinos: 9, 11-12).
Assim, a Coroa procurou, desde cedo, apoiar e estimular a acti-
vidade comercial algarvia, ciente, aliás, da íntima relação entre esta De modo a evitar sobrepagamentos, D. João I ordenara, segundo
e uma mais fácil dinamização do povoamento e da exploração dos lei conservada nas Ordenações Afonsinas (O.A., lv. II, tit. LVII, pp.
recursos agrícolas. Já foi notado como o rei Afonso III, ao conceder os 334-335), que os mercadores que no Reino do Algarve carregassem
primeiros forais às vilas algarvias, com base no modelo utilizado para os seus vinhos que pagassem a dízima no porto onde primeiramente
Lisboa, também ela uma urbe portuária, introduziu uma importante al- o carregavam, pois «mandam-os d’huu porto pera outro em barcas,
teração, ao penalizar a saída de vinho dos concelhos por terra contra a levando-os ao longo dos Rios pera os carregarem nos Navios, que teem
isenção da portagem para os vizinhos que fizerem sair o seu vinho por nos ditos portos», não a devendo voltar a pagar caso entrassem em
mar (Forais de Silves: 221, nota 50). Em 1395, D. João I permitia aos outros portos com o dito vinho. Também o foral da portagem de Lisboa
mercadores estrangeiros a aquisição de fruta, vinho e sal nos portos determinava que os mercadores que entrassem na cidade com vinhos
de Tavira, Faro e Silves e a venda, nesses locais, dos «panos ou outras vindos do Algarve fossem dispensados do pagamento da dízima, se
mercadorias» que traziam, desde que o fizessem «em gros e a peças esta já tivesse sido paga nos portos onde os carregaram ou compraram
enteiras» como em Lisboa (D.P.: I, 204-205). Como vimos, também (D.P.: supl. ao vol. I, 54).
o rei Afonso V acabaria por ceder ao pedido apresentado em 1447
pelo concelho de Tavira para que interditasse a exportação do seu sal À dízima alfandegária acrescia ainda a sisa, um imposto de origem
durante vários meses em cada ano, de modo a não afectar a venda da concelhia que, a partir de finais do século XIV, acabaria por entrar na
fruta e do vinho. Na sua resposta, o monarca restringia este período a esfera régia, e que incidia sobre todas as compras, vendas e trocas,
três meses (entre 1 de Setembro a 1 de Dezembro), «porque em este pago pelo comprador e pelo vendedor (Gonçalves, 1999: 105). Aí se
tempo nos pareçe que he carreguaçom de fruita e avemos por mais incluíam, obviamente, a venda de vinho e de fruta, independentemen-
comvenhauel que o que nos Requereees» (Iria, 1990: 231-235). E não te da modalidade que assumisse (Iria, 1988: II/1, 317, nota 1; 332,
andava longe da verdade, pois também a cidade de Lisboa, em 1478, notas 1 e 4; IAN/TT, Supl. Cortes, mç. 4, n.º 55).
ao definir o valor das peças de «figos e uvas pasadas que do algarve e
doutras partes vierem a esta çidade», fazia vigorar esta postura entre o Os proventos daqui obtidos não terão deixado de aumentar, dada a
mês de Setembro e o fim de Janeiro, o tempo de maior entrada destes intensificação das relações comerciais que, sobretudo a partir do século
frutos no seu porto (L.P.A.: 153-154). XIV, ligariam os portos algarvios às restantes cidades do reino e a todo
o Norte da Europa. A crescente mercantilização da economia algarvia
O monarca não deixava, no entanto, de definir muito bem os direi- permitiria às suas gentes suprir as carências de cereal ou ainda adquirir
tos que lhe cabiam sobre as transacções de fruta ou de vinho, fossem os apreciados tecidos da Flandres, cada vez mais presentes nos inven-
estas para consumo interno ou para exportação. Reservando, desde tários da paramentaria das igrejas algarvias dados pelas visitações, ou
logo, um tempo bem delimitado para o escoamento do seu próprio a madeira que tantas vezes os concelhos referiam como necessária para
vinho, através do relego, o rei chamava a si diversos impostos que as suas casas e adegas (Fonseca e Pizarro, 1987; Marques, 1980: 183-
recaíam sobre a entrada e saída de vinho e frutas, ou mesmo sobre 185; Marques, 1993: 73-78). A vinha, essa, continuaria a alastrar-se
outros produtos dele derivados, como o vinagre, numa plêiade de im- por todo o barrocal ou mais junto ao mar, em aliança frequente com
posições que variavam, para os vendedores, consoante as modalidades as figueiras, numa mancha crescente dessa “mata de frutos” que, mais
de transporte utilizadas (por mar ou por terra, em bestas de carga de cinco séculos passados, continuaria a marcar, de forma indelével, a
maior ou menor), os seus agentes (se vizinhos ou gente de fora) e as paisagem algarvia (Ribeiro, 1991: 74).

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38 | Lagoa: o adegueiro
3
A Continuidade
na Época Moderna
Miguel Godinho*

“É pois o caso que todos os Algaravios, pera fazer seu azeite e vinho, já têm em suas casas um ou dous
lagares de pau, feitos de duas ou três tábuas grossas, pesadas, muito juntas sobre uas travessas com suas
bordaduras ou torno, as quais assim juntas fazem cinco, seis palmos em largo e oito, nove em comprido,
à maneira de tabuleiro, e a isto chamam eles lagar”.
Frei João de S. José, Corografia: 115-116

A facilidade no transporte do vinho para as zonas de consumo e de saída do mesmo para expor-
tação explica, em boa parte, a localização dos vinhedos e dos olivais algarvios. É junto das povoa-
ções que os vemos frequentemente surgir, durante todo o século XVI e XVII, em zonas onde existe
mão-de-obra capaz de se ocupar do seu tratamento e onde o armazenamento se pode efectuar
mais facilmente. A propagação de espaços concedidos ao cultivo da vinha, que alteram significa-
tivamente a paisagem desde o século XVI, altura em que o crescimento populacional se começa a
fazer notar de uma forma mais evidente, torna necessário a delimitação das áreas que constituem
as vinhas. Ou seja: ao mesmo tempo que aumentam os terrenos concedidos a este tipo de cultura,
aumentam as terras vedadas/cercadas. Adivinha-se porquê: é necessário perceber as extensões dos
terrenos, ao mesmo tempo que é imprescindível protegê-las de entradas de estranhos, sejam eles
pessoas ou animais. Como tal, só o facto de estas serem cerradas pode originar posturas que as
possam proteger.

As terras de vinho, assim como as que se destinam à criação de árvores de fruto, quase todas
situadas na orla marítima, são, pela sua localização, bastante cobiçadas pelos criadores de gado.
Esta “oposição” entre uns e outros é de há muito tempo e percorre toda a Idade Moderna. À parti-
da, a criação de gado deve estar concentrada na serra e a criação de árvores de fruto na orla. Mas
esta constatação não passa disso mesmo. Variadíssimas vezes tiveram de ser os municípios e as
posturas por estes emitidas a evitar a pressão dos criadores de gado. A tentação dos terrenos do
litoral era evidente.

No século XVII (mais concretamente em 1680) já se verifica a preocupação com a defesa das
vinhas, mas o século XVIII é aquele em que as posturas camarárias saem com mais frequência,
certamente não na tentativa de afastar os gados da orla litoral mas simplesmente de proteger os
terrenos das árvores de fruto e/ou das vinhas, essenciais que eram na economia algarvia. Como bem
refere Romero Magalhães (1993: 156), o gado, especialmente o de lã, estava sempre a ser objecto
de medidas de afastamento mas obviamente que não interessava afastá-lo radicalmente uma vez
que este era absolutamente necessário à estrumação das terras.

* Licenciado em Património Cultural.


55
Assim sendo, durante o século XVIII, vemos a cidade de Faro pu-
blicar inúmeras posturas camarárias no sentido de proteger as vinhas.
Em 1716 estabelece-se uma zona de protecção com afastamento de A produção de vinho no século XVI
gado miúdo, à semelhança, certamente, do que se passaria no restante
litoral algarvio. Muitas vezes observam-se posturas nas quais se dá «A cada pipa de vinho, em especial ao mourisco, se deita na mesma
liberdade de matar porcos que se encontrem perdidos em vinhas ou pipa, antes de começar a ferver, um grande cântaro de água ou dous
meãos pera lhe quebrar a fortidão; e, se isto se lhe não faz, corre ris-
soltos pelas ruas (Magalhães, 1993:156).
co de se tornar vinagre. Alguns costumam deitar-lhe gesso nas uvas,
quando as pisam ou as põem em monte ou também na pipa e isto
Em 1728, os jornaleiros são proibidos de trazer cães consigo para aprenderam dos Castelhanos vizinhos, o qual conserva e aclara muito o
as vinhas onde vão trabalhar à jorna, pelos estragos que estes lhes vinho, mas aos que o não costumam beber desta maneira, não é nada
proveitoso ao estâmago nem tem bom sabor.»
podem infligir (Posturas de Faro: fl.92vº). Na realidade, existe mesmo
um título nas posturas camarárias do concelho de Faro, daquele ano, Frei João de S. José, Corografia: 119
que trata especificamente o problema referente a cães em tempo de
uvas (Posturas de Faro: fl.92vº).

No que toca às castas existentes no Algarve, aquelas que mais


frequentemente aparecem mencionadas, conforme o relatório apresen-
tado à junta Geral do Distrito de Faro na sessão ordinária de 1873, são: Em algumas das zonas de produção, nota-se a frequente adição de
para as brancas, Assario, Manteúdo, Boal, Tamarez e Olho de lebre; elementos no vinho, com o fim de ajudar a acelerar o processo de fer-
para as tintas, as mais frequentemente conhecidas são a Negra Mole, mentação. Para além da junção de diferentes tipos de uvas (como atrás
Pau-ferro, Alicante Pexem, Monvedro e Tamarez. Esta última era tal- se descreveu), seria usual a mistura de aditivos que descaracterizavam
vez das mais apreciadas conforme recorda um velho provérbio popular: por completo os lotes produzidos. Ainda durante o século XIX se afir-
“Uva tamarês, não a vendas nem a dês, porque p’ra vinho Deus a fez” mava que, na “fabricação de vinhos brancos demorava o mosto menos
(Oliveira, 1971). Segundo aquele relatório, “as castas mais generali- dias com (a adição de) o bagaço”(Idem, ibidem: 38).
zadas, as brancas são de melhor qualidade que entre as tintas, apesar
de estas predominarem e ser tinto quase todo o vinho que se fabrica.” Seria também comum pensar-se que seria correcto adicionar-se
(Beires, 1873: 32-33) De qualquer forma, aponta-se a necessidade de água aos mostos a fim de corrigir a sua excessiva força alcoólica e a
ir apurando as castas, “quer por enxertia, quer por substituição das sua extrema riqueza em açúcar. Daí que, anos mais tarde, no final do
cepas” facto que se considera ser bastante proveitoso para a melhoria século XIX, se comece a afirmar que, talvez estes processos “à moda
da produção. antiga” não fossem os mais correctos. Temos o caso do conhecido
Os processos de vinificação variavam consoante as zonas do Al- agrónomo algarvio, Alexandre de Sousa Figueiredo e Mello, que nos
garve, sendo que o mais vulgar, que provirá concerteza de tempos seus “Estudos práticos de Vinificação no Sul de Portugal” de 1895,
longínquos, passa pela recolha de todas as castas de uva, quer estejam afirma que ”a redução dos mostos com água é um gravíssimo erro”, uma
sazonadas quer não, conforme se reproduz em seguida: vez que “a agua, que reduz a força alcoólica do vinho, reduz egualmente
todas as outras forças”. Por isso mesmo, é levado este a declarar que “o
“A uva, não sendo escolhida nem separada, a que está podre meio único e racional de reduzir os mostos, será a escolha das castas,
ou verde, é transportada para armazéns ladrilhados ou lageados correcção das podas, deixando á videira maior numero de olhos fructi-
e ahi se conserva oito e mais dias até apodrecer. N’esta occasião feros, e educando-a mais alta, e por fim temos a adubação do terreno”
a uva perde muito mosto, que não é aproveitado por ter muito (Mello, 1895: 13).
máo gosto a podre. Depois é conduzida para a lagariça, onde é
mettida em saccos, e espremida a pés, torcendo-se depois os sa- Numa região “temperada quente, propícia à boa maturação da uva
cos até sahir todo o mosto, que é logo envasilhado, junctando-se e à naturalização das castas preciosas que exigem maior grau de colo-
mais tarde a cada pipa, uma parte da lavagem do bagaço. É ali ração no fruto” (Amaral, 1995:388,) é possível perceber-se que, desde
que se estabelece a fermentação, e o liquido que resulta, ali se há muito, o principal problema é o da fermentação e conservação do
conserva até se consumir”. vinho. Por isso, e como se depreende dos dizeres da Corographia de Frei
João de S. José, pelo menos no século XVI, a junção de gesso seria uma
O processo que acabou de se transcrever diz respeito à Comissão constante, procedimento este que, como se relata, terá sido aprendido
«filial de Albufeira» da Sociedade Agrícola Concelhia, sendo que nas com os castelhanos. Os problemas que daí advinham para a saúde são
restantes zonas se passará o mesmo, o que deixa adivinhar que o pro- difíceis de apreender, mas ao que se sabe, esta prática também terá
cesso aqui referido é utilizado desde há muito tempo, uma vez que “a chegado às ilhas, sendo frequentemente utilizada na feitura do tão
maior parte das outras comissões” afirmaram “que – «o processo é o célebre vinho da Madeira.
antigo» – ou – «o processo é péssimo»” (Idem, ibidem: 37).
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Todas estas técnicas de produção conhecem a sua génese num perí-
odo bastante remoto, seguindo de alguma forma a tradição que passa-
ria de geração em geração. As tentativas de melhoramento pertencem
na sua maioria ao século XIX (pelo menos os registos), mas deve refe-
rir-se a afirmação curiosa proferida pelo agrónomo Alexandre de Sousa
de Figueiredo e Mello e que ilustra as dificuldades em alterar hábitos
antigos: “É certo que ainda hoje se fazem muitos vinhos n’aquellas
deploráveis condições; mesmo os bons vinificadores, que conhecem os
segredos da arte, não abandonaram de todo as antigas práticas, porque
teem de satisfazer ao paladar de muitos consumidores, que o preferem
assim” (Beires, 1877: 48).

Conclusivamente e em relação à produção, aquilo que se pode dizer


é que de uma maneira geral e para a Idade Moderna, o Algarve passou
não raras vezes por dificuldades produtivas. Existe uma grande dispa-
ridade em relação às quantidades produzidas, comparando concelhos.
Exceptuando algumas localidades, as que se especializaram nos últimos
39 | A “Burra” ou “Queijeira”
dois séculos na produção de vinhos são as que possuem alguma tradi-
ção vinícola. Analisando as descrições, as corografias e os estudos das
Os lagares da serra
comissões de protecção contra a Filoxera do século XIX, pode afirmar-
-se (ainda que com alguma cautela) que Lagoa, Vila Nova de Portimão,
Loulé, Fuzeta, Tavira e possivelmente Vila Real de Santo António (des- Até há cerca de uma dezena de anos atrás, em alguns sítios da
freguesia de Cachopo, era ainda possível assistirmos, com alguma na-
de a sua criação) são os concelhos que mantêm mais ou menos uma turalidade, ao fabrico de vinho pela maneira antiga. Talvez ainda hoje
coerência em termos produtivos, durante os séculos XVIII e XIX. o seja, nalgum lugar ainda mais recôndito.
Das vinhas, sempre plantadas nos corgos mais fundos e frescos,
a uva era transportada encosta acima em grandes baldes, acomoda-
Monchique parece ser durante aqueles séculos, conforme nos relata dos nas cangalhas do burro. Em casa, quase sempre à sombra de um
Silva Lopes na sua Corografia, o concelho que se ocupava da produção alpendre, as mulheres haviam preparado o necessário: recipientes de
e tratamento do vasilhame das adegas – profissão conhecida pelo nome vários tamanhos, baldes, algumas sacas de serapilheira e um garrocho
de apertar cargas. A um canto, em lugar recatado, estava a pipa vazia,
de tanoeiro. Assim sendo, seria frequente os tanoeiros de Monchique,
lavada e pronta a receber o produto de tanto trabalho. No meio, estava
deslocarem-se às restantes localidades algarvias a fim de se ocuparem a burra – denominação tradicional para uma robusta mesa de madeira
daquelas tarefas. de azinho, com pouco mais de 50 cm de altura, cuja superfície havia
sido escavada em alguns centímetros, tendo-se-lhe deixado apenas um
rebordo alteado. Os quatro grossos pés, fabricados da mesma madei-
Temos dados que referem a existência de alguns lagares em zonas ra, tinham alturas ligeiramente diferentes de modo a provocarem uma
que muitas vezes não são as que possuem os números de produção ligeira inclinação no sentido de uma abertura – o bico – existente no
mais elevados, o que se pode explicar por, na sua maioria, estarem li- lado mais baixo.
Dentro da serapilheira deitavam-se alguns quilos de uva, logo
gados em primeira-mão ao azeite e não ao vinho. Ainda que o processo apertada com o garrocho em movimentos concêntricos até o conteúdo
de produção não fosse exactamente o mesmo, seria muito semelhante começar a verter o precioso líquido. Com gestos de lavadeira, iniciava-
e, como tal, os lagares variadíssimas vezes serviam os dois fins. No -se então o processo de esmagamento do fruto que, dentro do saco, era
esfregado vigorosamente sobre o tampo de madeira. Pelo bico da burra
entanto, os lagares no Algarve parecem nunca ter existido em número
corria abundante o sumo da uva para os baldes. Em gestos repetidos,
suficiente. Algumas afirmações do século XVIII parecem mostrar isso o homem apertava o saco a golpes de garrocho e espremia a uva em
mesmo, servindo de exemplo o caso de Lacerda Lobo, um estudioso movimentos ondulantes. No fim, restava no fundo do saco uma massa
transmontano que, aquando de uma visita ao Algarve setecentista, terá espessa composta de engaços, peles e graínhas que era jogada às ga-
linhas nos dias seguintes. E o processo repetia-se.
apontado: “As máquinas precisas para espremer o azeite e vinho erão À semelhança do forno – o do povo – a burra era um bem comuni-
pouco conhecidas no Algarve, quando eu lá estive, segundo as infor- tário que transitava de casa em casa, ao sabor das necessidades. Talvez
mações, que então me derão. Em Alcoutim mettião as uvas em saccos, por pejo da rudeza do vocábulo – burra – as pessoas da serra preferem
hoje chamar-lhe ‘queijeira’, pois essa era também outra das utilizações
que depois pisavão com os pés para dellas tirar o mosto, e por falta de que se lhe dava – a da produção do queijo. Em época mais recuada, era
hum aparelho competente perdião huma boa parte delle, que se podia ainda na burra que se fazia o azeite. O processo era semelhante ao do
aproveitar espremendo o bagaço” (Lobo, 1812: 232). vinho, embora o esforço humano exigido fosse muito superior.

Emanuel Sancho

57
40 | Lagoa, cave de estágio

58
3.1
A circulação e o consumo

Um dos principais problemas algarvios (e não só) durante toda a No comércio com o reino, o principal mercado para os produtos
Idade Média e Moderna era a falta de segurança, facto que em conjunto algarvios (não só o vinho) é, como não poderia deixar de ser, Lisboa.
com a dificuldade na mobilidade devido à falta de vias de comunicação É para aí que se efectua de facto a grande exportação algarvia e será
e aos deficientes meios de locomoção (que até inícios, senão meados também daí que posteriormente os produtos serão reexportados.
do século XIX, não passariam de meros burros de carga) justificou a
existência de lagares caseiros, especialmente em quintas e pequenas A exportação dos vinhos algarvios efectuava-se durante a Idade
propriedades onde as vinhas e adegas surgem mais frequentemente. Moderna a partir dos portos que ainda hoje são os mais conhecidos e
Aquele problema não se põe tanto em zonas urbanas, onde se co- que correspondem naturalmente aos principais centros urbanos, aos
meça a notar a existência de um maior número de lagares públicos a par principais centros produtores, ou aos portos de escoamento dos pro-
de um crescente interesse e expansão da cultura da vinha a partir do dutos. Faro, Tavira, Vila Nova de Portimão, Lagoa, Fuzeta e Vila Real
século XVI, particularmente nas zonas entre Lagos e Faro (Magalhães, de Santo António (depois da sua criação) são os principais portos
1993: 162). Nas palavras do historiador algarvio J. Romero Magalhães, de embarque do Algarve. Muitos dos comerciantes que residiam nas
“gente de todas as posições sociais, do nobre ao sapateiro, o tabelião, principais zonas portuárias algarvias (principalmente os ingleses) ex-
o carpinteiro, o pescador, procura ter o seu figueiral, a sua vinha” plorariam os principais produtos algarvios, dos quais se destacam os
(Magalhães, 1970: 163). A procura de azeite e de vinho nos mercados frutos e, particularmente, a uva para produzir vinho e/ou passas. O
urbanos aumenta, motivada pelo crescimento urbano quinhentista e problema é que esses comerciantes raramente se fixavam e, uma vez
pelo incremento do tráfego neste mesmo século, levando a que “merca- enriquecidos, levavam o dinheiro acumulado para os seus países de
dores e homens de negócios passem a adquirir terras junto de centros origem (Magalhães, 1989).
urbanos onde exercem as suas actividades” (Magalhães, 1993: 163).
São estes homens, mercadores e ao mesmo tempo produtores, que irão
incentivar a economia algarvia, uma vez que conhecem os “canais de
comercialização e dispõem dos capitais indispensáveis à conversão”
(Magalhães, 1993: 164).
O Vinho da Fuzeta
Durante os séculos XVI e XVII, à semelhança de outras épocas, a
produção no Algarve destinava-se em primeira-mão ao consumo local, É o fenómeno da exportação que explica o facto do vinho algarvio ter
estando a “extracção para fora, sempre condicionada ao provimento ganho durante a primeira metade do século XX a denominação genérica
de “Vinho da Fuzeta”, da mesma forma que o Vinho do Porto designa
da terra” (Magalhães, 1993: 164). Até porque os impostos sobre a todo o vinho que é produzido na região do Douro. Aquela designação
circulação de vinho eram extremamente elevados, não se justificando deve-se essencialmente ao facto da Fuzeta ser durante a Idade Mo-
na maioria das vezes o pagamento desses pesados encargos e tributos, derna não só um dos principais centros produtores do Algarve mas
também por ser um dos principais portos de embarque (especialmente)
em que “só o dízimo eclesiástico absorvia 10% da produção agrícola do vinho algarvio. Sabe-se no entanto que grande parte do vinho da
bruta (...) para além dos impostos sobre a venda, como o real do vinho Fuzeta tinha origem em vinhas que existiam em diferentes áreas, tais
e o subsídio literário” (Paula, 2001: 40). No caso de Lagos, “o real do como Moncarapacho, Olhão e Quelfes. Simplesmente, “como todo o
vinho saía pela barra da Fuzeta, e parte dele era fabricado nessa povo-
vinho e da carne revertia para o partido do médico da cidade”, sendo
ação, passou a designar-se por vinho da Fuzeta, vinho com certeza já
este imposto “proporcional à colheita de cada um dos moradores desta anteriormente muito apreciado pela sua excelente qualidade.”
cidade e do seu termo” (Idem, ibidem:40). Daí que, por isso, se suben-
(Mascarenhas, 1954: 7)
tenda que muitas vezes também este comércio se efectuasse de forma
menos legal, ou seja, um género de contrabando escondido por uma
suposta pirataria, com o conluio da população (Magalhães, 1970: 46).
No entanto, existem algumas notícias da saída de vinho algarvio a fim
de satisfazer o comércio do reino e o comércio internacional.

59
Quanto ao comércio internacional, a Inglaterra é um dos países para a esta cidade do reyno de Castella, e ainda das mais cidades deste reino
onde se carrega vinho já em 1468 (Magalhães, 1970: 141). Em 1549 por nellas melitar a mesma razão e prejuízo, e aver nesta Cidade fru-
“determina-se oficialmente que não se farão represálias em quaisquer tos do sobredito genero em abundancia»” (Idem, ibidem). Percebe-se
navios que entrarem em Faro a carregar os produtos da terra – fruta, daqui duas coisas: que existe por estes anos nesta cidade vinho em
azeite e vinho” (Magalhães, 1970: 142), o que deixa perceber que o abundância e que seria frequente a entrada de vinhos castelhanos no
vinho seria certamente carregado. Ainda na década de 50 de mil e qui- Algarve, pelo menos através deste porto de Lagos.
nhentos verifica-se a existência de um documento francês em que se
nota a importação de mercadorias entre as quais figuram géneros tais O assunto da inserção de vinhos estrangeiros no Algarve, nomea-
como vinhos (Idem, ibidem: 143). Para Itália, as referências levam a damente de vinhos castelhanos, começa a ser tratado de uma forma
crer que a exportação fosse muito reduzida. Por aqui se percebe o papel mais séria nos anos 70 do século XVII, década “crucial na conjuntura
de relevo que o vinho desempenhou nas trocas comerciais da Idade de radicação da vinha na economia agrária algarvia” (Idem, ibidem).
Média e nos princípios da Idade Moderna, deixando de alguma forma É por esta altura que, para além de um novo crescimento da vinha no
obscuro o percurso das exportações quando caminhamos pelo século Algarve e em Portugal, se verifica uma recuperação económica geral. A
XVII e XVIII adentro. viticultura começa a crescer no mundo mediterrânico e a concorrência,
De qualquer forma, e de uma maneira geral, parecem existir dois principalmente dos reinos que nos são vizinhos, faz-se notar em força.
períodos que marcam as exportações durante a Idade Moderna. O pri- Ao que parece, o costume de importação nacional de vinhos caste-
meiro estende-se até ao período referente às medidas do Marquês de lhanos e catalães viria a provocar que várias provisões régias fossem
Pombal (em relação à contenção dos terrenos reservados a vinhedos) emitidas no sentido de evitar isso mesmo. Vemos em 12 de Maio de
onde a produção e as exportações se realizam com os seus respectivos 1685, 5 de Maio de 1703, em 20 de Setembro de 1710 e em 4 de Março
altos e baixos. O segundo refere-se ao período posterior, em que a pro- de 1712 (Magalhães, 1993: 166) a formalização de posturas que vão
dução é travada e, como tal, também as exportações. A afirmação, de ao encontro do que se acabou de dizer. No entanto, no Algarve – re-
1774, referente a Lagos (zona de clara especialização da vinha) atesta gião assumidamente periférica desde há muito – seria decerto difícil
claramente o panorama referente a esse segundo momento. Nesta de- fazer cumprir essas obrigações. A questão do relego concelhio (Idem,
clara-se que se produziram cerca de 1000 pipas nesse ano e “que todo ibidem: 166) e das infracções a que este dava lugar também compli-
se vende por miudo aos moradores desta cidade ordinariamente a preço cariam muito a imposição destas leis já que se tornava “apetecível”
de 30, e quarenta reis a canada, sem ter comercio, e extracção para recorrer a vinhos mais baratos (de fora), quando a lei impunha que se
fora” (Magalhães, 1993: 168). consumissem primeiramente os locais. O facto de muitas vezes não se
poder trazer ou vender vinho de fora por um preço menor do que o da
cidade (medida que vinha na senda do antigo “Relego” medieval) leva-
“(...) a Agricultura estava na maior parte reduzida aos termos de ser
va a incumprimentos, fazendo com que posturas como as que atrás se
hum impossivel: Porque sendo na Arithemetica Politica hum Axioma referiu fossem facilmente quebradas. A protecção aduaneira era muitas
certo que nos Payses mais felices, e prósperos he so de cem pessoas vezes a solução imposta.
huma a que tem meios para viver em abundancia; se achava a Lavou-
O período de expansão dos vinhedos culmina antes de meados do
ra do Algarve necessariamente reduzida a estas centessimas pessoas
abastadas.” século XVII (Magalhães, 1993: 151).
Verifica-se também, após a leitura das posturas da Câmara Munici-
Biblioteca da Ajuda, 51-IX-33, fls.35 vº-37 – “Quarta inspecção sobre o pal de Faro, alguma preocupação com a qualidade, ainda que bastante
Comércio Nacional”- Manuscrito do tempo do Marquês de Pombal in Iria,1976
incipiente e relativa, quer na venda de vinho, quer na defesa dos com-
pradores. Observa-se para o ano de 1728 a obrigação dos taberneiros
“que venderem vinho pelo miúdo sejam obrigados a ter a cada vez co-
No que toca às importações, e como se referiu atrás, estas de uma bertos por cima com madeira ou pano de linho e a ter o funil com suas
maneira geral não se justificavam, facto que nem sempre se verificou, raspas ou ralo e as medidas necessárias, boas e aferidas, concordantes
como ilustram as queixas de 1683, em relação aos vinhos de fora, com os padrões (em uso)” (Posturas de Faro: fl.27vº). Tal como se veri-
proferidas pelos mesteres de Faro, uma vez que as vinhas “eram as ficava há bem pouco tempo atrás, o vinho seria um produto que certa-
fazendas que só avia nos moradores” (Idem, ibidem:165), e como tal, mente seria adquirido diariamente, à semelhança do que se fazia com
a produção local era mais que suficiente para abastecer a população. o azeite, com o pão, com as frutas e as hortaliças (Magalhães, 1993:
Muitas vezes por isso, e em anos de muita produção, observam-se as 242), quando as pessoas se deslocavam às «tabernas» para adquirir a
Câmaras a oporem-se à entrada de vinho, como aconteceu em Lagos em quantidade necessária para o consumo diário, quando não o bebiam no
1682, quando a vereação desta cidade proibiu que neste ano “entrasse local, ao entardecer, entre alguma conversa.
mais vinho, nem cozido nem em mosto, de fora desta cidade e do seu Nas localidades da serra algarvia, seria mais frequente os moradores
termo” (Idem, ibidem:166). Segundo Romero Magalhães, nesta mesma irem abastecer-se de vinho ao Alentejo do que descer ao litoral, servin-
cidade, já em “1678, uma provisão régia proibira «trazer o dito genero do de exemplo o caso de Martinlongo.

60
3.2
Os vinhos algarvios e o Marquês de Pombal

Devido às características do vinho algarvio, constantemente ape-


lidado de inferior, servindo muitas vezes como jeropigas que se em-
pregavam na base da produção de vinhos do Porto de baixo preço
(Cabreira, 1920: 109), seria decerto habitual que a região fornecesse
algumas quantidades para regiões como o Douro, a fim de servir de
base à preparação de vinhos que eram exportados como vinho do Por-
to (Gonçalves, 1983: 165). Como tal, nesta região sentia-se por esta
altura a necessidade de preservar a qualidade dos vinhos, livrando-o
de adulterações indesejadas. Verificava-se, por isso, a necessidade de
perseguir judicialmente todos os “falsificadores de vinho” (Cabreira,
1918: 281).

Teria sido também devido a este facto, a par de toda a problemá-


tica em relação à falta de “terras de pão” (problema este que viria a
ser equacionado provavelmente já desde o século XVII) e à questão da
subordinação nacional à Grã-Bretanha, que o Marquês de Pombal viria
a tomar as medidas referentes à criação da Real Companhia de Vinhos
do Alto Douro, em virtude da tentativa de preservação da qualidade dos
vinhos desta região. Vemos surgir então, a par destas medidas, todo
um rol legislativo. Senão, repare-se no preâmbulo da criação da Real
Companhia dos Vinhos do Douro, em que se refere a ”necessidade” de
controlar o frequente adulteração da bebida com o intuito de vender
mais (Macedo, 1989: 68).

O crescimento do interesse pela vinha, que parecia manifestar-se


um pouco por todo o país desde o século XVI, e embora passando por
algumas vicissitudes nos séculos XVII e XVIII (Magalhães, 1993: 163),
denotava agora no Algarve um período que traduzia algum desinte-
resse, ao contrário do que se tinha passado anteriormente. A cultu-
ra vitivinícola enfrentava obstáculos que dificultavam a sua venda e,
ao mesmo tempo, a sua produção. “A limitação da região vinícola do
Douro, e outras circunstâncias que surgiram, tornaram essas jeropigas
invendáveis e o resultado foi o cultivo da vinha começar a decair,
juntando-se depois, a esta a causa da depreciação da viticultura, a
invasão filoxérica” (Cabreira, 1920: 109).

41 | Prensa hidráulica

61
A resolução do problema do contrabando terá sido outra das prio- Este problema da falta de terras de pão devido ao excesso de vi-
ridades na Criação da Real Companhia do Vinhos, uma vez que fre- nhas, encontra provavelmente a sua afirmação aquando da eleição in-
quentemente se exportavam “vinhos doutras regiões como se fossem glesa em relação aos vinhos portugueses, em detrimento dos franceses.
vinhos do Douro, misturando e selando esse vinho como se fosse vinho As rivalidades políticas entre a Inglaterra e a França durante o século
do Porto” (Macedo, 1989:70). E para o Algarve essa situação não foi XVII, levaram a que a primeira tivesse gradualmente optado pelos vi-
decerto indiferente, uma vez que esta região, como se deixa adivinhar, nhos portugueses, os quais inicialmente eram usados para lotar os
sempre esteve ligada “ao tráfico marítimo à distância, na continuidade vinhos de França (Azevedo 1929:418). Desta procura crescente viria a
da civilização de cidades do Islame” (Magalhães, 1988: 84). nascer o interesse dos lavradores do reino em alargarem as culturas.
Posteriormente, “a este inconveniente, se o era, veio a pôr termo Pom-
É por esta altura que se observa em Lisboa o surgimento da proibi- bal (...) mandando arrancar as plantações onde as achou supérfluas, e
ção de entrada de “vinhos inferiores e avinagrados do Algarve (assim delimitando a zona destinada à produção” (Idem, ibidem: 418). Num
como de outras regiões) – (Magalhães, 1993: 169). Mais uma razão que período de exaltação do poder régio, como recordou Romero de Maga-
viria reforçar a tendência para o desinteresse pela cultura da vinha e de lhães, dificilmente se ofereceu muita resistência aos ditames de Lisboa
certeza mais uma medida que provinha da influência e das pretensões e tudo indica que eles foram postos em prática nalgumas zonas algar-
do Marquês. A vinha algarvia sofria bastante com isso, uma vez que vias, tendo sido cumpridos estritamente em Silves e de Faro.
Lisboa era o “principal mercado para a produção do Algarve” (Idem,
ibidem). O tratado de Methuen, firmado em 1703, terá não só desenvolvido
a cultura da vinha na zona do Douro, como também nas áreas ribate-
O aumento populacional que se manifesta desde o século XVI e se janas, como mostrou o historiador Borges de Macedo, sendo bastante
acentua nos seguintes começa a transmitir a sensação da escassez das evidente que também por estas alturas (quase toda a 1.ª metade do
áreas disponíveis de cultivo, nomeadamente para a produção cerealífe- século XVIII) a cultura se desenvolveu bastante no Algarve, uma vez
ra, uma vez que “a expansão da vinha ter-se-á processado muitas vezes que só por volta dos anos quarenta do século em questão se começam
em detrimento da cultura de cereais” (Idem, ibidem: 167). Observando a notar quebras nas rendas dos vinhos, sendo de relacionar este facto
os dados fornecidos pelos quadros dos Prédios Rústicos do concelho “com o crescente atractivo pelos cereais, cujos preços sobem muito
de Faro, podemos verificar que a vinha ocupa cerca de 68% do tipo de a partir de 1757” (Magalhães, 1993: 168). Existe de facto uma falta
propriedade, durante o século XVIII (Idem, ibidem: 19). de produção de cereais bastante grave e, por isso, por esta altura “o
trigo apetece a quem queira aumentar os seus rendimentos” (Idem,
ibidem).

42 | Bagaço prensado

62
É assim que Romero Magalhães afirma que a expansão da vinha se
processou “à custa dos maninhos e dos logradouros concelhios” (Maga-
A vinha e a Serra lhães, 1993: 167). Já as Ordenações Filipinas (livro I, título 66º) faci-
litaram a passagem dos terrenos baldios para a propriedade concelhia
e desta para a propriedade individual. Esta transmissão (chamemos-lhe
«Uma vez que a serra de Tavira estava toda inculta e desocupada,
D. João I “concedeu de sesmaria aos povos adjacentes para que a apropriação nalguns casos) parece ter-se efectivado nos finais do sé-
rompessem, cultivassem, e povoassem; mas não produzindo os efeitos culo XVII e os princípios do século XVIII. Estas terras que pertenciam
desejados, a mandou devassar a todos os que a quisessem romper e agora aos concelhos, foram posteriormente demarcadas de novo para
povoar. Esta mesma providência foi inútil até que el-rei D. Manuel a
fez julgar pertencente à Câmara de Tavira por sentença proferida em
passarem a ser cultivadas. No entanto, ainda durante o tempo de Pom-
Lisboa no ano de 1502. Foi a mesma câmara concedendo terrenos para bal, se notava que eram inúmeras as terras aptas à cultura da vinha e
lavrar, e edificar, impondo aos pretendentes o encargo de pagarem que estavam completamente desaproveitadas. Até meados do século
um alqueire por cada 15 de trigo, milho ou centeio que recolhessem.
XIX a serra algarvia estava completamente coberta de mato e durante
Assim foi crescendo o número de povoadores na extensão de muitas
léguas de serra. Neste estado se conservava quando a câmara, com ma- esse mesmo século XIX persistiram “as charnecas densas e baldias”
nifesta lesão dos bens comuns, fez uma amplíssima doação da serra ao (Bastos, 1993: 23).
capitão-mor Manuel Godinho de Castelo Branco em 1645 (…) doação
que (…) foi confirmada por el-rei D. João IV. A requerimento destes
povos, atormentados por estes vexames do novo donatário Manuel Vaz No entanto, no relatório apresentado pelo Governador José de Bei-
Velho, anulou el-rei D. José por alvará de 13 de Março de 1772 aquela res à Junta Geral do distrito de Faro, na sessão ordinária de 1877, o
doação, e alvará de confirmação, mandando que a cada um dos mo- agrónomo Alexandre de Sousa de Figueiredo e Mello viria a apontar:
radores da serra ficasse pertencendo dali em diante o pleno domínio
e posse dos prédios por eles habitados e cultivados, como próprios,
“De quasi todos os concelhos do Algarve tenho ultimamente recebido
sem pensão ou encargo algum. Começaram desde então estes povos noticias de que a plantação de vinhedos tem tomado um desenvolvi-
a respirar, passando de simples colonos, que até ali eram, a perfeitos mento considerável; especialmente nos concelhos de Portimão, Lagos,
proprietários; e a cultura foi levada a tal incremento, que ao presente
Olhão e Castromarim teem-se ultimamente feito grandes plantações. A
está em grande parte povoada de vinhas, figueiras, oliveiras, amendo-
eiras, e alfarrobeiras…”» produção vinícola n’estes concelhos deverá dentro de cinco annos su-
bir ao dobro do que é actualmente isto sem prejuízo de outras culturas,
Lopes, 1841 (=1988): 364-365
pois que geralmente os terrenos plantados eram ainda ha pouco mattos
incultos”.16 Parece que nestes últimos anos, pelo menos nas áreas re-
feridas, a situação terá conhecido mudanças significativas. Com isto,
aspirava-se certamente a uma mudança de pensamento assente na es-
tabelecida máxima que afirmava que a agricultura não gerava mais
As medidas do Marquês em relação à necessidade de substitui- proveitos. Certamente teria também alguma ligação com as Sociedades
ção de vinhedos por terras de pão não são impostas exclusivamente Agrícolas Concelhias que começavam a nascer e tentavam dar a volta à
em Portugal, já que são uma preocupação conjunta dos governos do situação de decadência. Estas afirmavam anos antes que “o estado da
Mediterrâneo ocidental (Idem, ibidem: 169). Assim, e já em 1750, o viticultura no distrito estava muito longe de ser florescente” (Beires,
mesmo terá “referido a necessidade de se mandarem «regular as vinhas 1873: 29).
que neste reino se tem plantado com excesso, arrancando-se huma parte
dellas para se produzir pam»”, para depois firmar de vez, através da le-
gislação de 20 de Outubro de 1765 e de 18 de Fevereiro de 1766, a ne-
cessidade de evitar a “diminuição na lavoura de terras de pão” (Idem,
Preços do vinho - Loulé
ibidem). Será possivelmente do conjunto destas medidas que nascerá
“a tentativa de harmonização de vinhas em latadas ou ramadas. Pão e 1605 – 20 réis
vinho num mesmo espaço para contrariar a alternativa pão ou vinho” 1653 – 60 réis
1705 – 40 réis
(Idem, ibidem), nas palavras do mesmo. 1724 – 40 réis
1725 – 60 réis
A falta de terras de pão era agravada pelo problema de múltiplas 1726 – 40 réis
1729 – 40 réis
propriedades, desprezadas e incultas, de senhores donatários que não
as amanhavam. Extraído de Magalhães, 1993: 168

16
Ver gráficos 1 e 2.

63
Colheita do vinho - 1874

Vila Real de Santo António


Vila Nova de Portimão
Vila do Bispo
Tavira
Silves
Olhão
Monchique
Loulé
Lagos
Lagoa
Faro
Castro Marim
Aljezur
Alcoutim
Albufeira

0 10 20 30 40 50 60 70
milhares de decalitros

Colheita do vinho - 1875

Vila Real de Santo António


Vila Nova de Portimão
Vila do Bispo
Tavira
Silves
Olhão
Monchique
Loulé
Lagos
Lagoa
Faro
Castro Marim
Aljezur
Alcoutim
Albufeira

0 10 20 30 40

milhares de decalitros
Gráfico 1 | Colheita do vinho, 1874
Gráfico 2 | Colheita do vinho, 1875
3.3
as enfermidades

A região do Algarve também sofreu bastante com as doenças que A doença seria causada (segundo as palavras do agrónomo atrás
frequentemente lesavam os vinhedos. Se antes do século XIX se torna referido) pela “presença de alguns insectos da ordem dos coleópteros,
difícil perceber que tipo de enfermidade afectava as vinhas, a partir de cor verde escura, de cinco a seis millímetros de comprimento, que me
dessa época torna-se efectivamente mais fácil detectar as moléstias pareceram ser os mesmos a que no Douro dão o nome de pedrolho, que
que frequentemente arrasavam as culturas de vides. Temos, no entan- julgo ser a que os francezes chamam altise (altica oleracea)” (Beires,
to, algumas referências, como para a cidade de Loulé, em 1574, onde 1877: 47).
se “obrigam os vizinhos a tirar, ou mandar tirar duas vezes por semana
o pulgão das vinhas” (Magalhães, 1970: 133). Se anteriormente se pensava que só as vinhas fracas seriam ataca-
das por esta doença, ou que seria o processo natural de envelhecimen-
A partir do século XIX, não só os estudos práticos de vinificação, to que as levaria à morte, é nesta altura que se descobre que, afinal, a
como as publicações nacionais, que saíam de uma forma mais regular causa da sua maleita era a Filoxera. A experiência mostrou que existiam
(tratando de questões relacionadas com tentativas de melhoramento e apenas cinco formas de tratar as vides atacadas. Empregado no Douro
correcção na fabricação de vinhos, assim como relatórios relativos a desde 1879, o tratamento recorrendo ao Sulfureto de carboneo, seria
processos de produção) tornavam mais fácil o seu tratamento. As edi- um método contudo não muito eficaz. Este insecticida não conservaria
ções estrangeiras também se mostram vitais na compreensão de novos as vinhas já muito afectadas. O segundo método assentaria no recurso
modos de tratamento mais eficazes, indispensáveis na correcção de a outro insecticida, o Sulfo-carbonato de potássio, ministrando à plan-
moléstias como a Filoxera, doença que provavelmente mais danos terá ta uma boa dose de potassa, indispensável na restauração das vinhas
infligido nas vinhas, como bem ilustra o agrónomo algarvio Alexandre fracas. O terceiro método recorria à submersão contínua da vinha numa
de Sousa de Figueiredo e Mello (atrás referido), que se destacou nesta camada de água com 20 a 25 centímetros de altura, durante quarenta
altura, pelas suas constantes comunicações e aturados estudos. De a cinquenta dias. O quarto método referia a importância no recurso à
qualquer forma, mesmo nestas análises, o modo de investigação ainda plantação de videiras americanas, as quais cicatrizavam rapidamen-
se baseava de alguma forma num empirismo assumido, como mostra a te quando atacadas pela Filoxera, pela sua diferente constituição ra-
afirmação deste agrónomo, num dos seus estudos: “Por informação dos dicular. Finalmente, o método que parecia melhor (porque assentava
nossos agentes consulares e pelo que temos ouvido a alguns viajantes num sentido mais preventivo), citava a importância das plantações em
que tem percorrido a América e a Africa, o typo de vinho de pasto mais areias, o que de certa forma estaria facilitado no Algarve. Ao que se
apreciado deverá ter uma força alcoólica nunca superior a 14º, agulha apurava, as vinhas plantadas em areias possuidoras de uma certa quan-
e viveza, uma cor de rubim, perfeitamente límpido e brilhante, flavor e tidade de elementos nutritivos, não seriam afectadas pela Filoxera, que
aroma suave, e sobre tudo de certa e segura conservação” (Mello, 1895: não se conseguia desenvolver em meios deste tipo.
12-13). Aquilo que se “ouve” ainda tem papel relevante nos estudos
efectuados… A organização/funcionamento da Comissão Anti-Phylloxerica do Sul
do Reino de 1882-85 não correu da melhor forma, conforme se deduz da
Para o tratamento do problema da Filoxera, que terá arruinado inú- própria auto-avaliação da comissão. Muitas vezes, quando se suspeita-
meras culturas a partir de finais do século XIX, nomeadamente nas va da existência de filoxera em qualquer terreno, exigia-se a presença
regiões de Lagoa, Portimão e Lagos, terão sido criadas comissões re- de um “pesquizador” concelhio, que examinava anualmente as vinhas.
gionais para o seu estudo e tratamento. Neste sentido existem por esta Contudo, nem sempre existia disponibilidade financeira para suportar
altura (e não só no Algarve), postos de tratamento e viveiros distritais essa peritagem e, quando havia, a capacidade técnica dos “peritos”
de cepas americanas, a fim de serem transplantadas caso exista neces- nem sempre era a adequada. Afirmação no mínimo curiosa, mas que
sidade.

65
43, 44 e 45 | O abandono das vinhas

parece de alguma forma estar ligada a uma mentalidade portuguesa imediata consequência, uma alta no preço até então nunca visto, nem
não tão distante no tempo, é aquela que essa mesma comissão no posteriormente” (Idem, ibidem: 7). Daqui se pode concluir que por
ano de 1884 ano revela: “o serviço de inspecção, pela fórma porque foi esta altura aparecem alguns proprietários que são ao mesmo tempo in-
montado este anno não dá resultado algum: umas vezes porque os indi- vestigadores, publicando as suas observações. Serve ainda de exemplo,
víduos escolhidos pelas câmaras para os pesquizadores, não reuniam as e para ilustrar o que se acabou de dizer, o caso do olhanense Mathias
condições necessárias para o bom desempenho das obrigações que com- de Sousa Guita “que é o dito viticultor, o qual tem ido ao Douro e ao
petem a esses empregados; outras vezes porque aquellas corporações, Ribatejo, de proposito para estudar a viticultura em varias localidades
com fundamento na falta de meios, mas talvez antes pela convicção destas grandes regiões” (Portugal, 1883-1886: 199).
infundada em que estão de que o mal ainda vem longe, se recusarem às
necessárias despezas” (Portugal, 1883-1886). Também por volta destes anos, e nos concelhos de Lagoa, Portimão
e Lagos, ter-se-á evidenciado uma outra enfermidade que ficou conhe-
Muitas outras doenças ter-se-ão conhecido por esta altura no Al- cida pelo nome de amarella, (designação que deriva da cor que as fo-
garve, (sendo que muitas não deveriam ser recentes) como é o caso lhas da videira apresentam quando sofrem da doença em causa). O pro-
do Míldio, “doença vulgar das vinhas, conhecido por uma forma posi- blema seria causado, possivelmente, pela falta de ferro nos terrenos.
tiva desde 1834 na América do Norte, pela primeira vez observada na Mais uma vez, o agrónomo Alexandre de Sousa de Figueiredo e Mello
Europa, em França, em 1878, pelo professor Planchon, e em Portu- apresentaria uma explicação para o problema: “Os seus estragos, com
gal, na Régua, em Maio de 1881, pelo falecido engenheiro agrónomo quanto sejam de alguma importância, não são aterradores. As cepas e
Rodrigues de Moriais” (Júdice, 1916: 5). Este fungo terá levado, no sarmentos apresentam-se debilitados, as folhas amarellas, conservando
ano de 1893, a que a colheita no sítio de Bemparece, freguesia de comtudo a sua frescura; os fructos apparecem em pequena quantidade e
Lagoa (em propriedade do autor dos escritos de onde se retirou esta desenvolvem-se mal. As raízes não apresentam signal algum de estrago”
informação) tivesse “uma redução de mais de 50% em relação ao ano (Beires, 1877: 47).
anterior, ficando comprometida a colheita do ano seguinte; e, como

66
67
46 | A renovação
4
As Alterações do Século XX
Orlando Simões*

No rescaldo das crises do oídio, do míldio e, sobretudo, da filoxera, chegamos ao início do séc.
XX com o mercado nacional de vinho saturado e com problemas de escoamento nos anos de maior
produção.17 De facto, o apoio estatal ao processo de reconversão das vinhas e o incentivo gerado
pelas grandes exportações de vinho comum para França na década de 1880 conduziram a um au-
mento significativo da produção nacional.18

É neste contexto que se abre um conflito concorrencial entre os vinhos do Douro e os vinhos do
Sul, isto é, todos os que se produziam a sul daquela região, com particular destaque para os do Riba-
tejo e Oeste. Este conflito advinha da prática de se lotar vinhos do Sul com vinhos do Douro para a
exportação de vinho do Porto e da importação sistemática de álcool industrial para o mesmo fim.

A solução da crise vinícola de 1900 contemplou vários aspectos: separação da esfera da produ-
ção do vinho do Porto da dos restantes vinhos portugueses, com a demarcação da região do Douro
e a regulamentação da produção e comércio dos seus vinhos; por extensão, criação e regulamenta-
ção de novas regiões demarcadas; definição por via legislativa do conceito de vinho e das praticas
gerais autorizadas na sua fabricação; criação e implementação de um sistema de fiscalização de
vinhos e outros produtos agrícolas, penalizando todas as práticas não conformes com o regulamen-
tado; apoio estatal à organização do sector, através da criação de um sistema de crédito, adegas
sociais e companhias vitícolas.

A crise vinícola do virar do século marcou uma rotura estrutural entre um mercado com elevada
liberdade de actuação dos agentes económicos, característico da segunda metade do séc. XIX, e
um mercado progressivamente mais condicionado e regulado. Para uma verdadeira regulação do
mercado seria necessário a existência de infra-estruturas adequadas e mecanismos de controlo
efectivo, a saber: controlo do acesso à produção (licenças de plantio); protecção das denominações
de origem, vulgo regiões demarcadas; criação de capacidade de armazenagem; implementação de
estruturas associativas representativas; disponibilização de fundos para investimento; criação de
organismos de regulação e intervenção dos mercados. A criação destes mecanismos foi um processo
lento, por etapas, que ocupou grande parte do percurso da viticultura portuguesa ao longo de todo
o séc. XX. Todavia, a linha orientadora foi definida no início do século, configurando desse modo a
estruturação da economia vitícola contemporânea.

*
Centro de Estudos de Recursos Naturais, Ambiente e Sociedade, Escola Superior Agrária, Instituto Politécnico de Coimbra
17
O autor agradece a todos quantos contribuíram com informação para a elaboração do presente texto, muito particularmente os Engenheiros Rolando Faustino, Manuel Romão e
António Lacerda.
18
Para uma caracterização detalhada da conjuntura vinícola do início do séc. XX veja-se o capítulo 1 de Simões (2006).
69
Foi neste contexto que evoluiu a viticultura algarvia no séc. XX. Nos pontos seguintes analisa-
-se separadamente os aspectos considerados mais marcantes na viticultura regional seguindo-se,
contudo, uma sequência temporal. Assim, começa-se por analisar a participação do Algarve na con-
juntura vinícola de 1900, procedendo-se a uma caracterização da viticultura nas primeiras décadas
do século. Aborda-se seguidamente o fomento cooperativo e a demarcação da região, dois aspectos
com alguns pontos em comum e, simultaneamente, fundamentais para a viticultura actual. Passa-se
depois para uma análise mais quantitativa, procurando encontrar as principais linhas de orientação
da dinâmica regional e que estiveram na base das mutações ocorridas nos principais centros vinha-
teiros algarvios. Finalmente, numa abordagem mais empresarial, caracteriza-se a viticultura hoje
praticada no Algarve, perspectivando algumas linhas de rumo para o próximo futuro.

47 | Novas plantações
4.1
O Algarve na conjuntura vinícola do início do século

No plano estrutural, a análise vitivinícola deve ser considerada a 190), percentagem esta muito influenciada pelo concelho de Lagoa
vários níveis: a produção da uva, a sua transformação em vinho, o onde chegava aos 37%.21
acondicionamento, a comercialização ou distribuição e, finalmente, o A maioria dos autores da época aponta, como castas mais cultiva-
consumo. No período agora analisado, a produção das uvas e a sua das no Algarve, as tintas crato preto, pau-ferro e negra mole e, para
transformação operava-se ao nível das explorações agrícolas, em explo- as brancas, o crato branco. As duas primeiras castas eram geralmente
rações de pequena ou muito pequena dimensão, onde o autoconsumo apontadas como percursoras de bons vinhos, ao contrário da negra
tinha um peso determinante. Para as explorações de maior dimensão mole, geralmente associada a vinhos com pouca cor e aroma. Todavia,
abundava o recurso a mão-de-obra assalariada. Em alternativa, alguns devido ao seu menor teor em açúcares, era tida como importante no
proprietários recorriam à exploração das suas vinhas na forma de par- equilíbrio dos lotes com as castas produtoras de vinhos mais alcoólicos.
ceria, em que o “parceiro” fornecia o trabalho e com o qual repartiam Para além destas castas, muitas outras são frequentemente referidas,
o produto final. muitas delas comuns a outras regiões do país: alicante, arinto, assario,
bastardo, boal, diagalves, malvasia, manteúdo, monvedro, moreto, pe-
A vinha aparecia inserida em sistemas de produção policulturais, xem, perrum, terrantez, etc.22
mesmo nas zonas de maior especialização vitícola. Predominavam as Ao nível da produção do vinho, o nível tecnológico continuava a
consociações com árvores de fruto, onde abundavam figueiras, olivei- ser rudimentar, mantendo-se o sistema tradicional de produção dos
ras, alfarrobeiras e amendoeiras (Pereira, 1932: 52). Aliás, foi esta ca- vinhos mais frequentes na região: tintos, brancos e jeropigas. As vasi-
racterística, aliada aos solos arenosos predominantes em largas zonas, lhas de “barro pezgado” eram ainda frequentes, se bem que proscritas
que retardou a progressão da filoxera na região. pelos enólogos da altura. O tinto era largamente predominante sobre o
Os efeitos desta praga foram aqui menos drásticos quando compa- branco, sendo a jeropiga produzida em grande quantidade até finais da
rados com outras regiões do país com maior especialização vitícola, primeira década do século.23
quer em extensão dos danos quer no ritmo de progressão.19 De tal sorte
que, em 1915, “muitos agricultores algarvios ainda constituem os seus O comércio de vinho sempre foi pouco desenvolvido no Algarve,
vinhedos utilisando a cepa europea, e bem poucos são os que d´ella se quando comparado com as principais regiões produtoras do país. O
divorciaram aproveitando a vinha americana” (Fortes, 1915: 23).20 Esta acondicionamento, pela via do engarrafamento, praticamente não exis-
perspectiva continuou a ser válida nos anos 40, onde predominavam tia. O vinho era comercializado a granel, acondicionado em garrafões
ainda as vinhas de pé franco, ou seja, não enxertadas, e deixou marcas ou barris de madeira. Ao nível regional predominavam os circuitos cur-
até aos nossos dias. Por exemplo, no cadastro vitícola do Algarve rea- tos, com a intervenção de um único agente, ou a venda directa, isto é,
lizado no início dos anos 80, cerca de 19% da área cadastrada era ocu- do produtor aos estabelecimentos de venda a retalho predominantes,
pada por videiras que vegetavam ainda de pé franco (Faustino, 1996: as tabernas.

19
A região do Algarve foi a última a ser afectada pela filoxera. Detectada primeiramente no Douro em finais da década de 1860, a praga progrediu para sul e ilhas adjacentes nas
décadas de 70 e 80, começando sempre por atacar as zonas de maior especialização vitícola: Dão, Bairrada, Ribatejo e Oeste. A filoxera só foi detectada no Baixo Alentejo em 1889
(Ferreira do Alentejo) e Faro era, em 1894, o único distrito ainda indemne (Moraes, 1894a: 953). Apenas na viragem do século a filoxera começou a causar os primeiros danos no
Algarve.
20
Isto apesar de, já na década de 1880, terem existido na região (Faro e Loulé) dois viveiros oficiais de videiras americanas, no âmbito das acções da luta anti-filoxera a nível nacional
(Moraes, 1894a: 946 e 948).
21
No concelho de Lagoa, só na década de 60 é que a plantação do bacelo americano R99 suplantou a plantação de vinha de pé franco (IGEF e DRAAL, 1984-86).
22
Ver, por exemplo, Moutinho (1890: 97), Weinholtz (1891: 92), Mello (1895), Costa (1900), Cabreira (1918: 106) ou Pereira (1932: 53). Devido a questões de sinonímia, o crato
preto (ou crato negro) é hoje apelidado de trincadeira ou tinta-amarela, enquanto o crato branco recebe o nome, pouco feliz, aliás, de síria (Quadro 2).
23
Por exemplo, na colheita de 1903, para uma produção total estimada em 160 mil hl, apenas cerca de 6 mil hl eram de vinho branco (Cabreira, 1918: 108). Para recomendações
sobre os cuidados a ter na confecção dos vinhos algarvios ver, por exemplo, Figueiredo (1873).

71
48 | Novas castas (Alicante Bouschet)
49 | Novas técnicas: determinação da data da vindima

Em muitos casos, em algumas zonas maioritariamente, a primeira Quanto ao comércio inter-regional, podemos distinguir duas fases
venda não se fazia sob a forma de vinho, mas sim de uvas. Os tabernei- distintas. Numa primeira fase, na última década do século XIX e até à
ros, conhecidos na região por “encubadores” quando assim procediam, demarcação do Douro de 1907, era frequente a exportação de vinhos e
compravam as uvas, vinificavam, e vendiam directamente ao públi- jeropiga em direcção a Vila Nova de Gaia. De facto, “no Algarve houve
co. Em outros casos, mais raros, os “encubadores” eram comercian- um periodo de grande enthusiasmo pela plantação das vinhas, empre-
tes intermediários que vinificavam e vendiam depois aos retalhistas gando-se o vinho, em virtude do seu elevado grau alcoolico, no fabrico
(Assunção, 1946: 6-8). Esta especialização desenvolveu-se no Algarve de geropigas destinadas a fazer vinhos do Porto de baixo preço” (Ca-
devido a factores regionais particulares: dispersão e baixo volume das breira, 1918: 109). Aliás, durante muitos anos, manteve-se na estação
produções familiares; dificuldades de controlo dos processos fermenta- de caminhos-de-ferro de Lagoa a grua utilizada no carregamento das pi-
tivos, tendo em conta as altas temperaturas na época das vindimas e o pas destes vinhos em direcção ao Norte (Oliveira e Fonseca, 1973: 7).
natural desequilíbrio dos mostos. Este circuito comercial tradicional só
viria a desaparecer com o desenvolvimento das adegas cooperativas.

72
Depois deste período, só muito raramente o vinho algarvio era ex- Estas apreciações devem no entanto ser relativizadas para o con-
portado e, quando o era, envolvia pequenas quantidades. O vinho da texto da época. De facto, apesar dos técnicos considerarem maus os
Fuzeta era o único conhecido fora da região, podendo entrar nos circui- vinhos algarvios, estes eram, ainda assim, melhores que a generalidade
tos comerciais ao lado de outros vinhos conhecidos, como os Verdes, dos vinhos Alentejanos, onde os de Cuba e Vidigueira aram apresen-
Bairrada, Colares ou Dão (Pereira, 1932: 121). tados como excepção (Pereira, 1932: 46-54). Aliás, numa apreciação
geral da viticultura nacional, este autor defende claramente que a vi-
Sob o ponto de vista técnico, o principal problema da produção do ticultura do Algarve era na altura superior à do Alentejo, quer pela
vinho algarvio era o excesso de temperatura, típico dos climas quentes. qualidade das cepas quer pelo cuidado no tratamento da cultura.24
Este problema, comum ao Alentejo e às regiões do norte de África, é
assim sintetizado num manual de viticultura da época: “...a uva cria Esta preferência pelo vinho regional era substantiva, levando mes-
grande quantidade de assucar; o seu mosto é denso, tem pouca agua mo os comerciantes-retalhistas locais a lotarem os vinhos algarvios
em relação ao assucar, e é falho de ácidos. ...a temperatura da fermen- com vinhos do Norte (todo o vinho produzido fora da província), mais
tação rapidamente se eleva acima de 30º, chegando aos 35º e mais, baratos, a fim de os adaptarem ao gosto dos seus clientes (Assunção,
temperatura que abafa as boas leveduras, para dar logar ás fermenta- 1946: 7).
ções láctica e butyrica causadoras de doenças” (Moraes, 1909).
As apreciações negativas acerca dos vinhos de pasto algarvios refe-
O problema assim identificado acarreta diferentes consequências riam-se ao grosso dos vinhos produzidos na região. Isso não invalidava
conforme o tipo de vinho em causa. Os vinhos de pasto, como então que existissem excepções, comprovadas por referências elogiosas em
se designavam os vinhos comuns, “são despojados de ácidos, excessi- diversas exposições internacionais onde estes vinhos estiverem pre-
vamente alcoólicos, de paladar chato, e sem aroma”, o que, aliado às sentes. É o caso das exposições de Londres em 1873 (Aguiar, 1876) e
dificuldades de correcção e controlo do processo fermentativo típicas de Berlim (A Vinha Portugueza, 1889: 151). Já na primeira daquelas
deste período, dá “origem a vinhos muito susceptíveis de se alterar” exposições os vinhos algarvios apresentaram características idênticas
(Fortes, 1915: 25). O problema já vinha de longe, uma vez que estes às que ainda hoje lhes são reconhecidas: “não deixam ficar a boca
vinhos estavam “condemnados desde a sua origem ás estreitezas do arrependida, como sucede aos da Bairrada; não embotam os dentes,
consumo interno, são quasi desconhecidos fóra da região que os pro- e possuem delicadeza e suavidade que raramente se encontram nos
duz, pois em razão do systema adoptado geralmente no seu fabrico, vinhos novos de Portugal. Não pecam pela superabundância de sais e
saem mal organisados, sujeitos a muitas doenças e alterações, não tanino...” (Aguiar, 1876)
supportam as viagens, não podem por isso procurar os grandes centros
commerciaes” (Figueiredo, 1873: 3). No caso dos vinhos generosos, a opinião dos técnicos era diferente.
Frequentemente se reconhecia que o Algarve apresentava boas condi-
Era esta, na generalidade, a opinião dos técnicos que visitavam ções para a produção deste tipo de vinhos, “género Malaga”, região
a região. Porém, os mesmos técnicos reconheciam as razões des- com que frequentemente era comparada (por exemplo, Cabreira, 1918:
te procedimento: “é porque o consumo local, o da taberna, assim o 107). Esta aptidão foi moderadamente aproveitada ao longo do tempo,
pede”(Fortes, 1915: 25); ou então, “a causa primordial do atraso no chegando aos nossos dias excelentes vinhos generosos, mas sem gran-
preparo vinícola do Algarve está no gosto do seu mercado consumidor” de expressão fora dos limites da região.
(Moutinho, 1890: 91). Em resumo, trata-se de “um vinho sem tanino,
sem côr, sem bouquet, sem corpo, mas ainda assim agradável a muitos Uma outra actividade muito defendida pelos técnicos da altura era
paladares; e tanto que por lá o bebem com muito prazer; especialmen- a produção de uva de mesa e de uva passa. Largamente reconhecida
te os apreciadores de vinho alcoólico (ibidem: 90). Verifica-se assim como uma das principais potencialidades da região no campo vitícola,
uma coincidência entre o nível de desenvolvimento das estruturas da quer para o mercado interno quer para a exportação, esta actividade
produção e os padrões de consumo prevalecentes na região, ou seja, não encontrou eco nos produtores da região. As castas usadas para
o gosto do consumidor algarvio. De facto, de uma maneira geral, os consumo em fresco eram castas de dupla utilização, sendo as mais
vinhos bem curtidos e encorpados de outras regiões apresentavam “um vulgarizadas a boal e moscatel. Outras castas, reconhecidas na altura
corpo, travo e adstringência, a que o gosto vulgar do Algarve, não está como de grande interesse para este tipo de utilizações, como os vários
habituado...” (Figueiredo, 1873: 5). chasselas, frakental, malvasia, bastardinho, etc., eram localmente mui-
to pouco conhecidas (Fortes, 1915: 27).

24
Recorde-se que o sucesso da viticultura alentejana é um fenómeno recente, com a produção a subir exponencialmente a partir do início dos anos 80. De facto, enquanto nas décadas
de 60 e 70 eram equivalentes as produções do Alentejo e do Algarve, a primeira destas regiões produz hoje 30 vezes mais que a segunda.

73
50 | Adega Cooperativa de Lagoa: cave

74
4.2
O movimento associativo

O associativismo com interesse para a viticultura iniciou-se em Por- Quanto às adegas sociais, a primeira legislação data de 30 de Se-
tugal em finais do séc. XIX, revestindo diversas formas conforme os tembro de 1892 e previa a constituição de 8 adegas a nível nacional,
interesses em jogo: sindicatos agrícolas, adegas sociais e associações uma das quais no Algarve.26 Em 1903 estavam já criadas as adegas
diversas (Santos, 1904: 38-41). regionais de Entre-Douro-e-Minho (Braga), Entre-Douro-e-Liz (Coim-
bra), Torreana (Torres Vedras) e Alentejo (Évora). Faltavam ainda as do
Organizados pelo decreto de 5 de Julho de 1894, e mais tarde Douro, da Beira, do Ribatejo e Algarbiense (RACAP, 1903).
pela carta de lei de 3 de Abril de 1896, os sindicatos agrícolas eram
associações profissionais locais de agricultores, tendo por fim estudar, Esta legislação não chegou a ter nenhum impacto no Algarve, não
defender e promover tudo quanto importe aos interesses agrícolas ge- chegando portanto a ser criada a adega para aí prevista. O objectivo
rais e aos particulares dos associados.25 Esta nova forma de associação destas adegas era fundir em grandes massas vínicas a produção dos
agrícola, inspirada no Syndicat Agricole francês, pretendia reunir sob a seus sócios, adequando-as ao consumo interno ou exportação. Tratava-
mesma associação todas as pessoas ligadas à terra, grandes e pequenos -se portanto de adegas mais voltadas para a comercialização do vinho
proprietários, rendeiros ou simples trabalhadores agrícolas. Na prática e não tanto para a transformação das uvas. De facto, a grande maioria
apenas os médios e grandes agricultores aderiram. destas adegas só recebia nos seus armazéns “vinhos já inteiramente
feitos e fabricados nas diferentes Adegas dos seus sócios, mas sob
Numa primeira fase, até à viragem do século, a implantação dos determinada direcção e indicação technica para a melhor unificação do
sindicatos agrícolas foi paralela ao desenrolar da crise vinícola. De typo regional e fixação das suas marcas” (Santos, 1904). Ora, não sen-
facto, foi nas regiões vinhateiras de maior expansão onde primeira- do no Algarve o escoamento de vinho um problema grave no início do
mente se criaram mais sindicatos. Foi nesta fase criado o Syndicato século, fácil se torna compreender a não adesão da viticultura regional
Agricola de Faro, a 1 de Setembro de 1899, assim como o Syndicato a esta primeira fase do movimento cooperativo vitivinícola.
Agricola Lagoense, em Lagoa, a 19 de Julho de 1901 (Santos, 1904: 39
e 40). Em 1908 estavam também criados e a funcionar os sindicatos Sob o impulso da Junta Nacional do Vinho, deu-se início nos anos
de Lagos e Tavira (Graça, 1992: 153). Mais tarde, com o incentivo das 40 a uma segunda fase de criação de adegas cooperativas em Portugal,
leis proteccionistas à produção do trigo, foi no Alentejo e no Ribatejo agora em moldes idênticos aos actuais, ou seja, para vinificação, ar-
que mais progrediu a actividade sindical. O aumento dos sindicatos foi mazenamento e comercialização dos vinhos regionais. Uma vez que os
então paralelo ao aumento dos inputs agrícolas, sobretudo depois de principais problemas da viticultura algarvia se situavam precisamente
1915, ultrapassando as três centenas até 1920 (Roncon, 1922). ao nível da tecnologia de fabrico, a região posicionou-se na primeira
Em termos de funções comerciais os sindicatos agrícolas foram os linha deste movimento. De facto, logo a seguir às duas primeiras ade-
percursores dos grémios da lavoura, que mantiveram a mesma filosofia gas deste tipo criadas em Portugal em 1942, Muge e Almeirim, foram
interclassista, mas agora com uma maior intervenção estatal. Nos anos criadas as adegas de Lagoa, em 1945, Lagos em 1946, seguindo-se
50 funcionavam na região 11 grémios deste tipo, um por cada conce- depois muitas outras, num total de 15 adegas até 1951 (Miguel e
lho, com excepção dos de Lagos, Castro Marim e Faro que abrangiam Oliveira, 1952a).27
também concelhos limítrofes (Brito, 1982: 8).

25
Veja-se a implantação do sindicalismo agrícola em Portugal em Graça (1992), o seu desenvolvimento em Roncon (1922) e filosofia de funcionamento em Santos (1904).
26
Perante a fraca implementação deste decreto e as reclamações do Congresso Vinícola de 1900, a lei de fomento vitícola de 14 de Junho de 1901 criou incentivos para a
implementação daquelas adegas, viabilizando assim, na prática, a sua constituição.
27
Em 1931 já tinha sido criada a Adega Regional de Colares, mas ainda na lógica da legislação do início do século. Em 1934 esta adega foi integrada na organização corporativa, como
Grémio de Viticultores, e só em 1941 passaria a adega cooperativa, com funções idênticas às restantes, mas com subordinação directa à JNV (Decreto nº 31540, de 29 de Setembro
de 1941).
75
Iniciando a laboração com apenas 9 sócios e uma produção de 186 garrafa de um depósito de cristais muito finos que turvava o vinho ao
pipas, ainda em instalações para o efeito alugadas, a adega de Lagoa mais leve movimento (Salgado, 1962: 139-145). Um pouco mais tarde
passou para instalações próprias em 1947, ano em que contava já 39 foi adquirido um equipamento específico de frio para a adega, o qual
sócios e pouco mais de 500 pipas de produção (Santos, 2002: 176). se encontra ainda em funcionamento.
Daí por diante, ao tornar-se o maior produtor de vinhos do Algarve, a
Adega Cooperativa de Lagoa acompanhou as vicissitudes da produção Se as adegas cooperativas foram inovadoras no período da sua
algarvia, sendo o reflexo das grandezas e do declínio da viticultura da construção, quando introduziram na região a “tecnologia do cimen-
região. to”, o mesmo não se pode dizer da adopção da moderna “tecnologia
do aço”. Esta nova tecnologia traduz não só a utilização de cubas em
Na década 50 foram elaborados planos para a criação de uma rede aço inoxidável (inox) em substituição das cubas de cimento, tanto nos
de adegas cooperativas a nível nacional, quer para a zona de influência processos fermentativos como na própria armazenagem, como todo um
da Junta Nacional do Vinho (JNV), à qual o Algarve pertencia, quer para conjunto tecnológico com elas associado ou implementado na mesma
a área das grandes regiões demarcadas, Vinhos Verdes, Douro e Dão. altura: a vidragem interna das cubas de cimento com resinas apropria-
No caso do Algarve, e para além das adegas já em funcionamento, não das, sistemas de controlo de temperatura, remontagem automática,
foi reconhecida premência na criação de outras adegas. Todavia, foram etc. Neste particular, apenas a adega de Lagoa recorre hoje parcial-
recomendados estudos pormenorizados para análise da viabilidade de mente a esta nova tecnologia, fundamental para a produção de vinhos
outras adegas a criar nas zonas de Albufeira-Boliqueime, Olhão e Vila de qualidade.28
Real de Sto António (Miguel e Oliveira, 1952: 342). Em concreto, foram
mais tarde criadas as adegas cooperativas de Portimão e Tavira. Durante os anos 80, quando começou o declínio da produção de
vinhos no Algarve (Figura 1), as adegas cooperativas, em particular a
As adegas cooperativas foram importantes a vários níveis. Numa de Lagoa, viram-se confrontadas com a diminuição da matéria-prima
primeira fase, elas contribuíram de forma decisiva para a melhoria da para laborarem, ao mesmo tempo que se mantinha ainda uma certa
qualidade média dos vinhos produzidos. Numa altura em que a tecnolo- procura do vinho produzido em moldes tradicionais.29 Este desfasa-
gia tradicional de fabrico era muito deficiente, as cooperativas vieram mento teve efeitos perversos a médio prazo, sobretudo porque não
não só evitar que muitos vinhos fossem parar às caldeiras de destila- produziu incentivos à modernização tecnológica e melhoria da quali-
ção, como permitiram uma certa tipificação e uniformização do produ- dade do vinho produzido, retardando ou inviabilizando a reconversão
to final. Mais tarde, ao laborarem cerca de 80% do vinho produzido na das adegas. Desta forma, no decorrer dos anos 90, quando o mercado
região, estas adegas foram decisivas na definição, fixação e manuten- se tornou mais exigente e mais propenso aos vinhos de qualidade su-
ção do tipo de vinho regional produzido nas suas áreas de influência. O perior, as adegas cooperativas acrescentaram à falta de matéria-prima
seu papel de relevo é bem patente na evolução da produção de vinho (que continuava a diminuir) as dificuldades de escoamento dos seus
na região, sendo muito provavelmente devido à sua influência que se vinhos tradicionais. Como resultado, as adegas cooperativas de Tavira
relançou a produção algarvia a partir dos anos 50 (Gráfico 3). Por outro e Portimão não chegaram a dobrar o milénio, encerrando em 1992 e
lado, ao nível do comércio, e para além da concentração da produção 1997, respectivamente, enquanto as de Lagos e Lagoa, embora por
de muitas centenas de pequenos produtores, as adegas vieram também razões diferentes, passam hoje por sérias dificuldades. A primeira, pela
acabar, a prazo, com os tradicionais “encubadores”, melhorando e ra- sua reduzida dimensão (cerca de 50 sócios entregaram em média 300
cionalizando os circuitos comerciais regionais. toneladas de uvas nos últimos 5 anos), graves problemas financeiros
(esteve na eminência de ser encerrada em 2004, por acumulação de
Como exemplo do seu papel inovador na região, pode citar-se a pri- dívidas) e falta de infra-estruturas adequadas (à cerca de 5 anos que
meira utilização do frio no Algarve para clarificação de vinhos brancos, se discute a criação de novas instalações) (AG, 2005). Quanto à adega
usado pela adega de Lagoa no início dos anos 60. Por não ter a adega de Lagoa, as dificuldades situam-se no seu enorme peso na produção
instalações adequadas ao efeito, foram utilizadas as câmaras frigorífi- regional, má imagem do seu produto no mercado regional e, conse-
cas construídas pela Junta Nacional dos Produtos Pecuários, proprieda- quentemente, dificuldades de escoamento. Vejamos mais detalhada-
de da Câmara Municipal de Lagos, para fazer o tratamento de 18 cascos mente este caso.
de 500 litros de vinho Afonso III, evitando assim o aparecimento em

28
Em 1998 foi aprovado um projecto na ordem dos 70 mil contos para a adega de Lagoa, tendo sido adquiridas 20 cubas autovidantes de remontagem automática com temperatura
controlada e uma linha de engarrafamento. Ficou assim reconvertida a fermentação dos vinhos brancos e parte da fermentação dos tintos.
29
Através de uma empresa privada subsidiária que assegura a distribuição dos seus vinhos (sociedade anónima propriedade dos próprios sócios da cooperativa), a adega de Lagoa
chegou a importar vinho nos anos 80 para manter o seu fluxo de vendas. Este, na sua maior parte, era constituído por vendas a granel para armazenistas locais e da região de Lisboa.
Ainda hoje, os vinhos com denominação de origem e regional desta Adega representam, conforme os anos, entre 20 e 40% da sua produção total, o que está francamente abaixo do
peso destes vinhos em todo o Algarve: cerca de 60%, em média, entre 2000 a 2004.

76
51 | Tapete de escolha
52 | Desengaçador

77
Dos anos 50 até meados da década de 90, a adega de Lagoa pro-
duziu cerca de 50% do vinho algarvio, percentagem esta que se apro-
ximou dos 80% nos últimos quatro anos. Este peso esmagador torna a
adega incontornável em qualquer perspectiva de desenvolvimento da
viticultura algarvia. Contudo, a sua situação tem passado por momen-
tos de grande dificuldade, sobretudo quando comparada com as muito
mais dinâmicas adegas alentejanas, suas principais concorrentes no
mercado algarvio: dificuldades financeiras, infra-estruturas de labora-
ção antigas e inadequadas à produção de qualidade, falta de quadros
técnicos, fraca propensão à inovação, falta de fidelidade cooperativa
por parte dos associados, etc. (Vaz e Vieira, 1998).
Quanto à má imagem do vinho de Lagoa, representativo do vinho
algarvio, ela ficou patente num conjunto de inquéritos realizados em
1998 no âmbito de um estudo sobre o mercado do vinho algarvio (Vaz
e Vieira, 1998): os consumidores domésticos deste vinho procuram nele
uma certa nostalgia dos vinhos de outros tempos, cujas características,
sobretudo ligadas à cor e ao aroma, julgam ter-se perdido; 72% deste
tipo de consumidores evitam beber vinhos de elevada graduação alco-
ólica, uma das características tradicionais dos vinhos algarvios, hoje
apenas admitida em vinhos de qualidade superior e de reconhecido
mérito; os consumidores domésticos, apesar de conhecerem, obvia-
mente, o vinho algarvio (70%), não o solicitam na restauração; neste
segmento, frequentado sobretudo por turistas, metade dos consumi-
dores nunca ouviu falar no vinho algarvio e apenas 11% o solicita;
apenas 30% dos restaurantes inquiridos compram vinho do Algarve,
sobretudo para satisfazer a clientela que o solicita; as principais razões
para o desinteresse da restauração por este tipo de vinho prende-se,
por comparação aos vinhos alentejanos, seus concorrentes directos,
com a percepção de uma baixa relação qualidade-preço, fraca procura
pelos clientes, inexistência de uma adequada rede de distribuição e
pouca agressividade comercial ou mesmo negligência dos fornecedores
locais (produtores ou distribuidores); para a restauração, sobretudo a
de gama alta, o preço do produto não constitui limitação, uma vez que
estão mais preocupados com a facilidade de abastecimento, a quali-
dade do produto e a sua ligação ao conceito de produtos regionais de
qualidade.
Para finalizar este ponto, uma breve referência à Comissão Vitivi-
nícola Regional Algarvia (CVRAL). Estatutariamente responsável pela
garantia da genuinidade e qualidade dos vinhos da região, bem como
pela promoção e divulgação dos seus vinhos, este organismo interpro-
fissional não tem, actualmente, capacidade para desempenhar cabal-
mente nenhuma destas tarefas. Num passado recente, esta instituição
ainda desempenhou um importante papel na elaboração dos projectos 53 | Adega Cooperativa de Lagos: cave
para a reestruturação da vinha no quadro das ajudas comunitárias, por 54 | Adega particular: estágio em cascos de carvalho
onde conseguiu angariar alguns recursos financeiros, assim como na
proposta dos mais recentes diplomas legais relativos à região. Hoje,
porém, ela está exclusivamente dependente das parcas receitas prove-
nientes dos selos de garantia apostos aos vinhos engarrafados, DOC e
regionais, as quais pouco mais pagam que os salários do seu presidente
e de uma funcionária administrativa. A questão da dimensão do merca-
do é, neste caso, um factor deveras limitante.

78
79
55 | O vinho da região

80
4.3
a demarcação da região

De uma forma geral, a demarcação de uma região vitivinícola pre- Uma das principais razões porque não vingou esta primeira demar-
tende proteger uma determinada denominação de origem, a qual se cação prende-se com o entendimento que se fazia na altura acerca de
traduz pela designação de uma região ou localidade que serve para uma região demarcada e a utilidade prática que daí advinha. Como era
designar os produtos daí originários, cujas características são devi- previsto na própria legislação, o principal objectivo da demarcação era
das essencialmente ao meio geográfico, incluindo os factores naturais “...reconhecer juridicamente e garantir, à viticultura das respectivas
e humanos. No caso dos vinhos mais conhecidos, as respectivas de- regiões, a propriedade dos nomes commerciaes dos vinhos regionaes”
nominações basearam-se numa tradição de reputação. Esta, por sua (Preâmbulo do projecto-lei n.º 2, 16.01.1907). Uma das medidas para
vez, gera com o tempo uma renda económica diferenciada, a qual se esta garantia era a proibição da entrada nas regiões demarcadas de
pretende perpetuar através da institucionalização da respectiva deno- vinhos de outras proveniências, salvo se engarrafados, de forma a po-
minação, ou seja, evitar imitações pela regulamentação da produção derem aí ser lotados com os vinhos locais. Na prática, esta proibição
e comércio dos seus vinhos. Foi assim com o Porto e com os grandes protegeu largamente o mercado local destas regiões, como aconteceu
vinhos de fama nacional e internacional. no Douro, Dão e, mais tarde, nos Vinhos Verdes.

A primeira referência ao Algarve como região demarcada data de De nada serviam ao Algarve os objectivos assinalados. Em primeiro
1907 (Decreto n.º 1, de 10 de Maio) e refere-se à criação da Fuzeta lugar, não havia na região vinhos de renome susceptíveis de serem
como região produtora de vinhos de pasto.30 Apesar da legislação de imitados. Pelo contrário, como vimos, foram os seus vinhos usados na
1907 ter sido concebida para solucionar o problema dos vinhos do fabricação de vinhos comercializados com a designação Porto. Depois,
Douro, onde se verificava um forte movimento social em favor de uma não havia um mercado local significativo a proteger, uma vez que, no
nova demarcação, ela acabou por criar condições para a demarcação início do século, a região não era ainda deficitária, não recorrendo, por
de outras regiões no país. De facto, durante a discussão parlamentar isso, à importação de vinhos de outras regiões.
que antecedeu a publicação daquele decreto, foi proposto por vários Na lei de fomento vitícola de 1930 (Decreto n.º 19253, de 17 de
deputados a criação no país de 4 regiões produtoras de vinho generoso Dezembro), ainda se preconizava a demarcação da Fuzeta.32 Todavia,
e 14 regiões de vinho de pasto, entre as quais a Fuzeta.31 esta região estava já em franco declínio em termos produtivos, de
A regulamentação destas regiões passava essencialmente pela cria- forma que, mais uma vez, não se reuniram ao nível local as condições
ção de um organismo regulador, na altura uma comissão de viticultura necessárias para uma efectiva demarcação.
regional, e pela regulamentação oficial do respectivo comércio viní-
cola. Ora, foi apenas nas regiões onde se encontrava mais ou menos Volvidos mais de 30 anos, numa nova definição da política vitiviní-
organizado um movimento social ligado ao vinho, com forte poder rei- cola nacional (Despacho de 16 de Novembro de 1966), foi abandonada
vindicativo junto do poder político, que se efectivou a referida demar- definitivamente qualquer referência à região da Fuzeta, para passar a
cação e regulamentação. Por falta desta força organizativa gorou-se, ser Lagoa a região eleita para demarcação no Algarve.33 É a confirma-
no Algarve e nas restantes regiões propostas, a primeira possibilidade ção legal das mutações entretanto ocorridas na região.
de demarcação.

30
Os vinhos da Fuzeta correspondiam aos vinhos produzidos em várias freguesias do concelho de Olhão, nomeadamente Fuzeta, Quelfes e Moncarapacho.
31
De todas as regiões propostas, apenas foram regulamentadas na altura as do Douro (1908) e da Madeira (1909) para vinhos generosos, e as do Dão (1910), Bucelas e Colares (1911)
para vinhos de pasto. Só bem mais tarde seriam regulamentadas as regiões dos Vinhos Verdes (1926), Carcavelos e Moscatel de Setúbal (1934), constituindo o conjunto das 8 regiões
demarcadas em Portugal até aos anos 80 (Simões, 1994).
32
Foi na sequência desta legislação que se criou a Adega Regional de Colares em 1931 e foram regulamentadas pela primeira vez as regiões de Carcavelos e Moscatel de Setúbal,
ambas em 1934.
33
Neste despacho preconiza-se “a demarcação daquelas zonas que o consenso geral considera já como regiões demarcadas. Estarão neste caso as regiões da Bairrada, do Cartaxo, de
Lagoa e ainda a zona produtora alentejana de Borba, Reguengos de Monsaraz e Vidigueira”.

81
Pela primeira vez, esta nova orientação política encontrou na re- diversidade relativa dos vinhos produzidos nas adegas cooperativas da
gião uma estrutura organizativa capaz de lhe dar seguimento, a saber, região. Esta pequena diversidade, largamente ampliada pelo sistema
as adegas cooperativas, já então em pleno funcionamento. Consequen- organizativo e pelos volumes comercializados pelas diferentes adegas,
temente, foram as adegas de Lagoa primeiro, e Tavira e Lagos de- com particular realce para a de Lagoa, conduziram a diferentes reputa-
pois, que expressamente solicitaram à Junta Nacional do Vinho (JNV) ções dos produtos finais, as quais foi necessário acautelar no processo
a demarcação das suas áreas de produção para obtenção do direito de de demarcação (Oliveira e Fonseca, 1973: 47-48). “Respeita-se assim
denominação de origem. a realidade que as cooperativas vinícolas representam, tanto mais que
Foi esta solicitação, aliada à orientação geral definida em 1966, elas estão na base da criação das condições relacionadas com a vinifi-
que deram origem a um estudo técnico de viabilização da demarca- cação e ulterior afinamento do produto que, apoiando-se nos factores
ção do Algarve, elaborado em 1973 pelo gabinete de estudos da JNV naturais da região, conduziram à evidenciação do tipo de vinho e à sua
(Oliveira e Fonseca, 1973). Porém, devido às alterações de política expansão” (ibidem: 49). A importância das adegas cooperativas na de-
económica ocorridas depois de 1974, estes estudos não tiveram uma marcação foi tal, que a designação das sub-regiões foi coincidente com
aplicação imediata. Foi preciso esperar por um novo enquadramento os nomes das adegas (Lagoa, Lagos, Portimão e Tavira), assim como
para a demarcação e regulamentação de novas regiões, D-L n.º 519- foram coincidentes os limites geográficos das primeiras com as áreas
D/79, de 28 de Dezembro, já no contexto das negociações para a ade- de influência das segundas. Em resumo, foi a actuação das adegas co-
são à Comunidade Económica Europeia, para serem criadas as regiões operativas que criou tipos de vinho diferenciados no Algarve, os quais,
da Bairrada, do Algarve e do Douro. por razões essencialmente comerciais, deram origem às diferentes sub-
Tal como tinha sido preconizado no estudo acima referido, a região regiões algarvias. Estas, por sua vez, viriam mais tarde a transformar-se
vitícola do Algarve foi dividida em quatro sub-regiões, Lagoa, Lagos, nas actuais denominações de origem da região.
Portimão e Tavira, englobando 14 dos 16 concelhos do distrito de Faro, Na sequência do processo de adesão às comunidades, a política
apenas com excepção dos concelhos serranos de Monchique e Alcoutim agrícola comum impôs a criação de novas estruturas reguladoras da
(Quadro 1). Na falta de um organismo próprio de regulação, a região fileira vitivinícola nacional. As principais alterações daí decorrentes
ficou na dependência da acção da JNV, tal como tinha sucedido, aliás, dizem respeito à substituição da Junta Nacional do Vinho pelo Ins-
até então. tituto da Vinha e do Vinho (IVV), o incremento na criação de novas
A esta divisão geográfica não foi alheia a acção já consolidada das regiões demarcadas e a adopção de um modelo único para a gestão
adegas cooperativas da região, uma vez que não são significativas as das diferentes denominações de origem, traduzido pela constituição
diferenças nas condições de produção das respectivas zonas. De facto, de comissões vitivinícolas regionais (CVR) abrangendo uma ou mais de-
sendo insignificantes as diferenças climáticas e pouco diversificados nominações de origem (Lei n.º 8/85, de 4 de Julho).34 No essencial,
os solos onde as vinhas estão inseridas, foram algumas discrepâncias trata-se de associações interprofissionais de direito privado e a ele
nas castas utilizadas e nos processos de fabrico, que conduziram à exclusivamente subordinado.35

Quadro 1 | Delimitações da região vitivinícola do Algarve

REGIÕES Delimitação de 1980 Delimitação de 1990


Lagoa Concelhos de Albufeira, Lagoa, Os Municípios de Albufeira e Lagoa;
Loulé e Silves. Do Município de Loulé, as freguesias de Almansil, Boliqueime, Quarteira, São Clemente e São Sebastião e parte das
freguesias de Alte, Querença e Salir;
Do Município de Silves, as freguesias de Alcantarilha, Armação de Pêra e Pêra e parte das freguesias de São
Bartolomeu de Messines e Silves;

Lagos Concelhos de Alzejur, Lagos e Do Município de Aljezur, parte das freguesias do mesmo nome, Bordeira e Odeceixe;
Vila do Bispo. Do Município de Vila do Bispo, as freguesias de Raposeira, Sagres e Vila do Bispo e parte das freguesias de São Miguel
e Budens;
Do Município de Lagos, as freguesias de Luz, Santa Maria e São Sebastião e parte das freguesias de Barão de São
João, Bensafrim e Odiáxere;

Portimão Concelho de Portimão Do Município de Portimão, a freguesia de Alvor e parte das freguesias de Mexilhoeira Grande e Portimão;

Tavira Concelhos de Castro Marim, Os Municípios de Faro e Olhão;


Faro, Olhão, S. Brás de Do Município de São Brás de Alportel, parte da freguesia do mesmo nome;
Alportel, Tavira, V.R.S. Do Município de Castro Marim, parte da freguesia do mesmo nome;
António. Do Município de Tavira, as freguesias de Luz e Santiago e parte das freguesias de Conceição, Santa Catarina, Santa
Maria e Santo Estêvão;
Do Município de Vila Real de Santo António, a freguesia do mesmo nome e parte de freguesia de Vila Nova de Cacela.

Fonte: Portaria n.º 207/80, de 26 de Abril e Decreto-Lei nº 299/90, de 24 de Setembro.

82
Com este novo enquadramento, a região demarcada do Algarve foi organizativa foi constituída em 1991 a Comissão Vitivinícola Regional
reestruturada pelo D-L n.º 299/90, de 24 de Setembro. Na sua essên- Algarvia (CVRAL), já anteriormente referida, a qual entraria em funções
cia, este diploma transforma as anteriores sub-regiões algarvias em apenas em 1994.
quatro novas denominações de origem controlada (DOC), com a mesma Para além dos vinhos com denominação de origem controlada, o
designação. Os limites geográficos destas novas regiões são definidos Algarve tem também regulamentado, sob a forma de indicação geográ-
de uma forma mais precisa (Quadro 1), são alteradas as castas aptas fica “Algarve”, a produção de vinhos regionais tintos, brancos e rosés,
a produzir vinho de qualidade (Quadro 2), assim como outras caracte- assim como a produção de vinhos licorosos (Portaria n.º 364/2001, de
rísticas dos vinhos produzidos. Para dar cumprimento à nova estrutura 9 de Abril).

Quadro 2 | Evolução das castas utilizadas na produção de vinho com denominação de origem no Algarve

REGIÕES 1980 1990 2003


Lagoa RECOMENDADAS RECOMENDADAS Tintas: Alicante-Bouschet, Aragonez,
Tintas: Negra-Mole (mínimo 60%), Periquita ou Tintas: Negra-Mole, Monvedro e Periquita, no Cabernet-Sauvignon, Castelão, Monvedro,
Trincadeira (mínimo 15%); conjunto ou separadamente com um mínimo de Moreto, Negra-Mole*, Syrah, Touriga-Franca,
Brancas: Crato-branco (mínimo 15%) 75% do encepamento; Touriga-Nacional, Trincadeira*;
Brancas: Crato-Branco, com um mínimo de 75% Brancas: Arinto*, Manteúdo, Moscatel-Graúdo,
AUTORIZADAS do encepamento; Perrum, Rabo-de-Ovelha, Sauvignon, Síria*;
Tintas: Crato-Preto, Monvedro, Péxem, Pau-Ferro
e Moreto; AUTORIZADAS
Brancas: Manteúdo, Perrum, Boal, Sabro, Tintas: Crato-Preto, Moreto, Pau-Ferro, e Péxem;
Moscatel e Diagalves; Brancas: Manteúdo, Arinto, Moscatel, Perrum e
Rabo-de-ovelha;

Lagos RECOMENDADAS RECOMENDADAS Tintas: Alicante-Bouschet, Aragonez, Bastardo,


Tintas: Negra-Mole (mínimo 50%) Periquita ou Tintas: Negra-Mole e Periquita, no conjunto ou Cabernet-Sauvignon, Castelão*, Monvedro,
Trincadeira (mínimo 20%); separadamente, com um mínimo de 70% Negra-Mole*, Touriga-Nacional, Trincadeira*;
Brancas: Crato-Branco (mínimo 15%) Brancas: Boal-Branco, com um mínimo de 60%; Brancas: Arinto*,
Malvasia Fina*, Manteúdo, Moscatel-Graúdo,
AUTORIZADAS AUTORIZADAS Perrum, Síria*;
Tintas: Crato-Preto, Bastardinho, e Monvedro Tintas: Bastardinho, Crato-Preto e Monvedro;
Brancas: Manteúdo, Perrum, e Moscatel; Brancas: Manteúdo, Moscatel e Perrum;

Portimão RECOMENDADAS RECOMENDADAS Tintas: Alicante-Bouschet, Aragonez,


Tintas: Periquita ou Trincadeira (mínimo 30%) e Tintas: Negra-Mole e Periquita, no conjunto ou Cabernet-Sauvignon, Castelão*, Monvedro,
Negra-Mole (mínimo 20%) separadamente com um mínimo de 70%; Negra-Mole*, Syrah, Touriga-Nacional,
Brancas: Boal-Branco (mínimo 50%) Brancas: Crato-Branco, com um mínimo de 70%; Trincadeira*;
Brancas: Arinto*, Manteúdo, Moscatel-Graúdo,
AUTORIZADAS AUTORIZADAS Perrum, Rabo-de-Ovelha, Síria* e Tamarez;
Tintas: Crato-Preto, Monvedro, Pexém, Pau-Ferro Tintas: Crato-preto, Monvedro, Moreto, Pau-
e Moreto; Ferro e Pexém;
Brancas: Manteúdo, Perrum, Boal, Sabro, Brancas: Diagalves, Manteúdo, Moscatel e
Moscatel e Diagalves; Perrum;

Tavira RECOMENDADAS RECOMENDADAS Tintas: Alicante-Bouschet, Aragonez,


Tintas: Negra-Mole (mínimo 60%) Periquita ou Tintas:Negra-mole e Periquita, em conjunto ou Cabernet-Sauvignon, Castelão*, Negra-Mole*,
Trincadeira (mínimo 15%) separadamente com um mínimo de 75%; Syrah, Touriga-Nacional, Trincadeira*;
Brancas: Crato-Branco (mínimo 15%); Brancas: Crato-Branco, com um mínimo de 75%; Brancas: Arinto*, Diagalves, Manteúdo,
Moscatel-Graúdo, Síria*;
AUTORIZADAS AUTORIZADAS
Tintas: Crato-Preto, Pau-Ferro e Moreto; Tintas: Crato-Preto e Pau-Ferro;
Brancas: Tamarês, Manteúdo, Beba, Moscatel e Brancas: Diagalves, Manteúdo e Tamarês;
Diagalves.

* Castas que devem, em conjunto ou separadamente, representar um mínimo de 70% do encepamento.


Fonte: Portaria n.º 207/80, de 26 de Abril; Decreto-Lei n.º 299/90, de 24 de Setembro; Decreto-Lei n.º 318/2003, de 20 de Dezembro.
Sinonímia: Arinto = Pedernã; Crato-Branco = Síria = Roupeiro; Aragonez = Tinta-Roriz; Castelão = Periquita; Crato-Preto = Trincadeira = Tinta–Amarela.

34
Das 11 regiões demarcadas à data existentes em Portugal, 8 desde o início do século e 3 desde o início dos anos 80, vieram juntar-se mais 34 novas regiões. Daqui resultaram,
depois de vários processos de fusão, as actuais 33 denominações de origem existentes no território nacional.
35
A organização institucional do sector vitivinícola em Portugal foi recentemente alterada pelo D-L n.º 212/2004, de 23 de Agosto. Encontrando-se em fase de implementação,
este diploma não teve ainda efeitos práticos. No essencial, pretende-se racionalizar o número de organismos certificadores do país, assim como retirar o Estado da sua estrutura. A
anterior gestão tripartida, Estado, lavoura e comércio, passa exclusivamente para a esfera privada, com uma composição paritária da lavoura e do comércio, remetendo-se o Estado
à sua função reguladora.

83
4.4
centros vinhateiros e dinâmicas regionais

A tradicional divisão do Algarve em Barlavento e Sotavento, sig- qualificarem e reputarem os produtos obtidos. E é com base na combi-
nificando, respectivamente, de onde e para onde sopra o vento, teve nação destes elementos que se deve buscar a dinâmica da evolução dos
claramente origem nas populações ribeirinhas e nas fainas do mar. Esta centros vinhateiros algarvios ao longo do séc. XX, isto é, a evolução da
divisão tem sido frequentemente posta em causa quando se pretende importância relativa dos principais centros regionais de produção.
analisar a região sob o ponto de vista agrário, sendo mais frequente a
divisão que delimita a Serra (do Caldeirão e de Monchique), o Barrocal As estimativas existentes para a área de vinha no Algarve por volta
e o Litoral.36 Levando em consideração os aspectos geográficos em ge- de 1900 apontam para valores muito discrepantes. Por exemplo: 6539
ral e o tipo de solos em particular, esta divisão coaduna-se mais com ha apurados em 1893 pela comissão de inquérito presidida por Paulo
as aptidões ecológicas e o aproveitamento agro-florestal que se tem de Moraes (Moraes, 1894: 868) (Quadro 3); 15651,82 ha (sublinhe-se o
vindo a fazer da região. No caso particular da viticultura, é no Litoral pormenor dos 0,82!) pela carta agrícola de 1902 (Cabreira, 1918: 105 e
que se encontram a grande maioria dos terrenos com particular aptidão 108). É certo que poderíamos argumentar que, enquanto as comissões
para a vinha, com destaque para os solos de areias e arenitos (Oliveira de inquérito (e houve várias) avaliavam a área com base num balanço
e Fonseca, 1973: 18). entre a produção total e a produtividade média por ha (20 hl por ha no
A explicação para a geografia do vinho, seja a nível mundial, na- Algarve em 1893), configurando o resultado obtido um valor próximo
cional ou regional, depende sempre de uma feliz combinação entre da área ocupada por vinha contínua, a carta agrícola registava num
as condições de solo e clima dos locais de produção, as actividades mapa a área ocupada por vinha englobando, consequentemente, a área
humanas aí desenvolvidas e a possibilidade de outros conhecerem, afecta às culturas com ela consociadas.

Quadro 3 | Evolução da superfície


cultivada com vinha no Algarve (ha) 1893 1985 2000

SUB-REGIÃO CONCELHO TOTAL UVA DE MESA UVA P/ VINHO TOTAL UVA DE MESA UVA P/ VINHO TOTAL

Lagos Aljezur 15 13 603 616 – 169 169


Lagos 395 90 120 210 – 6 6
V. do Bispo 24 4 51 56 54 87 142

Portimão Portimão 1219 80 123 203 8 105 113

Lagoa Albufeira 40 125 223 348 37 228 265


Lagoa 1457 67 1207 1275 11 385 396
Loulé 153 89 114 203 11 123 134
Silves 1003 244 573 817 52 553 605

Tavira C. Marim – 136 35 170 45 208 254


Faro 348 192 31 223 21 94 115
Olhão 1043 119 18 137 44 54 98
S.B. Alportel – 5 5 10 1 17 18
Tavira 755 601 50 651 253 174 428
V.R.S. António 87 156 40 195 65 96 161

Total 6539 1921 3191 5112 604 2298 2902

Fonte: Moraes (1894) e IVV (Cadastro Vitícola de 1985 e 2000).

36
Já em 1951, numa análise detalhadas dos ventos dominantes na região, se provou não fazer sentido aquela divisão sob o ponto de vista climatológico, uma vez que não se verifica
uma coincidência entre o preceituado por aquela divisão e o registo dos ventos dominantes em cada um dos concelho do Litoral algarvio (Brito, 1982: 12)
84
Quadro 4 | Estimativas da produção média de vinho no Algarve no início e no final do séc. XX

SUB-REGIÃO CONCELHO 1891 1893 1915-19 1920-24 1999-2003

Lagos Aljezur 0,5 0,2 0,7 0,8 –


Lagos 11,0 8,5 3,0 6,8 3,7
V. do Bispo 0,2 0,3 0,5 3,2 –

Portimão Portimão 20,0 27,8 8,4 6,6 0,9

Lagoa Albufeira 4,5 0,6 0,8 2,6 15,4


Lagoa 34,0 47,0 20,6 20,7 –
Loulé 5,0 3,0 0,5 2,2 –
Silves 18,5 26,0 7,4 12,6 –

Tavira C. Marim 5,1 – 7,5 1,9 0,3


Faro 9,0 6,0 5,7 13,2
Olhão 19,5 24,2 18,3 20,1
S.B. Alportel – – 0,3 0,8
Tavira 25,0 14,8 1,2 6,9
V.R.S. António 12,5 1,5 1,1 2,5

Total 164,8 159,9 75,9 100,9 20,4

Unidades: milhares de hl; Fonte: Weinholtz (1891), Moraes (1984), Anuário Estatístico de Portugal (1915-24), Estatísticas Agrícolas (1999-2003); Os valores
médios de 1999-2003 referem-se às produções declaradas nas regiões demarcadas e não à produção da totalidade dos respectivos concelhos, da qual não existe
informação.

Idêntica discrepância pode ser encontrada nas estimativas da pro- Esta evolução da produção teve efeitos evidentes no grau de auto-
dução de vinho, mesmo tendo em consideração, neste caso, as natu- -aprovisionamento da região. Assim, enquanto na viragem do século
rais variações anuais em resultado das condições climatéricas. Assim, se constatava que “o vinho sobeja do consumo da província, e que se
enquanto Cincinato da Costa (1900) advoga 90 mil hl como produção torna indispensável crear novos mercados” (Weinholtz, 1891: 92), por
média do Algarve neste período, muitos outros registos apontam valo- alturas da II Grande Guerra “o Algarve produz apenas cerca de 3/5 do
res muito superiores, na ordem dos 160 mil hl, registos estes que vão vinho de que necessita” (Assunção, 1946: 1). Este abandono relativo
desde a década de 1880, até 1911 (Weinholtz, 1891: 90; Pereira, 1915: do interesse pela viticultura na região deve-se, como vimos, à diminui-
131) (Quadro 4). ção da procura dos vinhos algarvios e, por outro lado, à diversificação
das actividades económicas: outras culturas agrícolas, pesca e indús-
Seja qual for o critério adoptado e mesmo tendo em atenção as tria conserveira. Em particular estas duas ultimas actividades, ao as-
reservas que nos merecem estas estimativas, uma conclusão parece segurarem um rendimento mais regular, passaram a ocupar a primazia
evidente: a produção de vinho no Algarve atingiu o seu auge na vira- na ocupação da mão-de-obra disponível dos algarvios. Este fenómeno
gem para o século XX (Gráfico 3). Logo a seguir, os efeitos da filoxera teve particular incidência na região de Olhão, onde o anteriormente
por um lado e a restrição imposta pela regulamentação do comércio famoso vinho da Fuzeta entrava em declínio irreversível.37
do vinho do Porto por outro, conduziram a uma quebra drástica da
produção na década de 1910. Apesar de uma ligeira recuperação nos Depois da entrada em funcionamento das adegas cooperativas, a
anos 20, por efeito das primeiras replantações pós filoxera, o declínio produção ainda recuperou nas décadas de 60 e 70, em sintonia com
da produção continuou até ao início dos anos 50. Curiosamente, este os máximos históricos da produção nacional de vinho (Figura 1). Es-
declínio encontra-se perfeitamente em contra ciclo com a produção távamos então no auge da produção e consumo de vinho em Portugal,
nacional, passando o peso relativo da região na produção do Continen- fazendo-se coincidir um modelo de produção de massa, consubstancia-
te de valores na ordem dos 3-4 % em finais do séc. XIX, para valores do pela acção da Junta Nacional do Vinho, e um modelo de consumo
inferiores a 0,5% nos anos 40 e 50. assente em produtos indiferenciados e de baixa qualidade.

37
Neste período, muito do vinho consumido no Algarve era distribuído pela firma João Pires & Filhos Lda, fundada em Faro pelo Sr. João Pires em 1922. A falta de vinhos na região
levou esta firma a fazer importações da zona de Palmela, onde acabou por construir uma adega em Pinhal Novo, no ano de 1940. Por morte do seu fundador, a empresa terminaria a sua
actividade no Algarve em 1966, passando para as mãos da José Maria da Fonseca, Succs. A empresa prosseguiu as suas actividades na península de Setúbal, tomando sucessivamente
as designações de João Pires, Vinhos, SA, JP Vinhos, SA e, muito recentemente, Bacalhôa Vinhos de Portugal, todas empresas de referência no panorama vitivinícola nacional.

85
Gráfico 3 | Evolução da produção de vinho no Continente e no Algarve (médias móveis de 2 anos)

Continente: milhares de hl

Algarve: milhares de hl
15000 350
Continente
Algarve
300

250
10000

200

150

5000
100

50

0 0
1884-88
1911

1917
1920
1923
1926
1929
1932
1935
1938
1941
1944
1947
1950
1953
1956
1959
1962
1965
1968
1971
1974
1977
1980
1983
1986
1989
1992
1995
1998
2001
2004
Fonte: Para 1884-88, 1893, 1908 e 1911, Pereira (1915: 131). De 1915 a 2005, Direcção Geral de Estatística Agrícola, Anuário Estatístico de Portugal e Estatísticas Agrícolas. Lains (1995:
198-200) estima valores inferiores para a produção do Continente no início do século, o que realçaria ainda mais o peso relativo da produção algarvia. Na produção do Continente não foram
considerados os anos de 1943 e 1944 por se considerar que as estatísticas oficiais, na ordem dos 14 milhões de hl, estão sobrevalorizadas. Isto porque, durante a II Grande Guerra, o racio-
namento de sulfato de cobre para tratamento do míldio teve por base a produção manifestada, daí a sua sobrevalorização (FVD, 1945). No Algarve esta questão não se coloca devido à menor
incidência do míldio (ver a este propósito Júdice, 1916).

A partir do início dos anos 80 entra-se num novo ciclo de declínio não só a produção de vinho foi afectada, mas também a produção de
da produção algarvia, em consonância com o verificado no Continente, uva de mesa sofreu quebras enormes. Em 2000, a área afecta à cultura
período esse que perdura até praticamente aos nossos dias. Para além de uva de mesa no Algarve representava apenas 1/3 da área existente
da conjuntura nacional, modelada pela adopção de um novo modelo em 1985. Isto no espaço de apenas 15 anos (Quadro 3)!
de consumo a que adiante se fará referência, este novo ciclo é decla-
radamente influenciado no Algarve pela explosão do fenómeno turís- Apenas os mais recentes investimentos efectuados no âmbito da re-
tico. Com influência directa na política do ordenamento do território, conversão da vinha, já no quadro dos incentivos comunitários, parece
a especulação imobiliária passou a exercer uma enorme pressão sobre fazer inflectir o declínio da produção neste limiar do terceiro milénio.
a terra, particularmente no Litoral onde se encontrava a maioria da
vinha. Também o trabalho agrícola perdeu importância no contexto da Passando para uma análise mais territorial, vejamos como evoluíram
“terciarização” da economia, desaparecendo assim muitas produções os diferentes centros vinhateiros algarvios. Uma carta vinícola elabora-
agrícolas tradicionais incapazes de competir com os rendimentos au- da sob a direcção de Cincinato da Costa, em 1900, define claramente os
feridos no sector do turismo. Por outro lado ainda, a política agrícola principais centros vinhateiros da região (mapa 4). A existência destes
seguida na região, em grande medida orientada pela Direcção Regional centros é confirmada pelos dados quantitativos disponíveis, quer ao
de Agricultura do Algarve, privilegiou outras culturas agrícolas, parti- nível da área afecta à cultura da vinha (Quadro 3), quer ao nível das
cularmente a horticultura intensiva e, sobretudo, a produção de citri- produções médias obtidas (Quadro 4).
nos, relegando a vinha para uma posição marginal. Nesta orientação,

86
56 e 57 | Novos saberes

87
Mapa 4 | Excerto da Carta Vitícola de Portugal de 1900 (Costa, 1900)
e Mapa de distribuição da vinha no Algarve, com base no cadastro
vitícola de 2000 (amavelmente cedido pelo IVV/DSEV/DCV)

N DESTINO DA PRODUÇÃO
Uva de Mesa
O L Uva Passa
Vinhas Mães de Porta-enxertos
S Vinho
Desconhecido

O primeiro centro vinhateiro identificado, mais a ocidente, centra- Lagos para a produção de vinho, transferindo-se esta importância para
va-se no concelho de Lagos, onde se cultivavam cerca de 400 ha de o concelho de Aljezur. Este, sem qualquer peso no início do século, é
videiras. Porém, a maior concentração de vinha situava-se no triângulo hoje o principal concelho produtor da zona de Lagos. Portimão per-
Portimão, Silves, Lagoa, concelhos que totalizavam, no seu conjunto, deu substancialmente a sua importância ao longo do tempo. Por seu
mais de 3600 ha. No Sotavento situava-se uma outra mancha, centrada turno, Lagoa, juntamente com o litoral do concelho de Silves, é hoje
no concelho de Olhão, com ramificações para os concelhos limítrofes destacadamente o principal centro produtor de vinho no Algarve, pro-
de Faro e, sobretudo, Tavira. Fora destes centros, apenas uma pequena longando-se ainda pelo concelho de Albufeira. Finalmente, o concelho
mancha se registava na zona de Castro Marim. de Olhão, antigamente famoso pelos vinhos da Fuzeta, foi praticamen-
te riscado do mapa vitícola algarvio. A área de produção desta zona
Ao longo do séc. XX estes centros vinhateiros irão sofrer profun- centra-se agora no litoral do concelho de Tavira, onde é também muito
das mutações, na sua composição e importância relativa, configurando importante a produção de uva de mesa, e no concelho de Castro Marim,
as quatro zonas vitícolas hoje existentes na região. Continuando a em grande medida já fora da delimitação da respectiva denominação
acompanhar os números do Quadro 3 em conjugação com o Mapa 4, de origem.
podemos constatar a perda de importância relativa do concelho de

88
4.5
A vinha e o vinho no limiar do terceiro milénio
o renascer de uma velha tradição

A vitivinicultura portuguesa foi marcada nas últimas décadas por todos os dias) tendem a diminuir, aumentando concomitantemente os
alterações profundas ao nível da produção, distribuição e consumo de não consumidores e os consumidores ocasionais (os que consomem no
vinho. Por aí se ter centrado a dinâmica das alterações verificadas, máximo uma ou duas vezes por semana). Estes, mais sedentarizados
vejamos com mais pormenor as alterações ao nível do consumo. e provavelmente com mais recursos, preferem vinhos de qualidade, de
onde uma tendência para o aumento do consumo relativo deste tipo
Enquanto o vinho foi predominantemente um produto de grande de vinho.
consumo e utilizado como complemento alimentar, o consumo per
capita foi aumentando em termos médios, dependendo sobretudo do Foi a este novo modelo de consumo que a produção nacional pro-
aumento do rendimento disponível das famílias. Neste modelo de con- curou dar resposta a partir de meados dos anos 80, com uma aposta
sumo tradicional, o vinho era bebido em grandes quantidades, nas re- clara na produção de vinhos de qualidade.38 Para isso foi implementa-
feições ou fora delas, nas horas de trabalho, nas adegas familiares ou do um programa específico de reestruturação e reconversão da vinha
nas tabernas. Como factor de socialização, o vinho era um elemento de portuguesa, o qual contemplou o abandono definitivo de vinhas sem
afirmação da virilidade, sendo os jovens iniciados cedo no seu consumo aptidões específicas, assim como a replantação e a plantação de novas
e a embriagues tolerada ou mesmo incentivada. vinhas para a produção de vinhos de qualidade. Paralelamente, foram
feitos avultados investimentos ao nível da transformação, apetrechan-
Esta forma de beber é agora tida como vulgar e de mau gosto, do-se as adegas cooperativas e empresas privadas com as modernas
sendo hoje o vinho um produto de distinção, sinónimo de requinte, de tecnologias de produção.39 De todo este processo resultou uma profun-
conhecimento e “boas maneiras”, caracterizador de um determinado da modificação dos vinhos colocados no mercado, quer no tocante às
status social. Trata-se de substituir o muito pelo bom e é nesta linha suas características intrínsecas, quer na sua apresentação visual.
que se insere o aumento da produção de vinhos de qualidade que se
tem registado ultimamente. A ajudar vieram alguns resultados de es- Todas estas alterações foram marcantes na região algarvia. Até
tudos médicos veiculados pela comunicação social, que atribuem ao 1997, calcula-se que foram reestruturados no Algarve 178 ha ao abrigo
consumo regular e moderado de vinho a diminuição da incidência de dos programas específicos para o melhoramento das estruturas vitiviní-
doenças do foro cardiovascular. Estes estudos vieram amenizar as cam- colas portuguesas e mais 108 ha ao abrigo dos programas de apoio às
panhas anti-alcoólicas em geral e anti-vínicas em particular, as quais explorações agrícolas em geral.40 A estas áreas deverão ser acrescidos
têm percorrido toda a história do vinho do séc. XX, com particular 438 ha, reestruturados entre 1998 e 2002, a maioria deles já no âmbito
incidência nas últimas décadas. do programa Vitis (CVRAL, 2005). Deste modo, teriam sido plantados
nos últimos anos com ajudas comunitárias um total de 715 ha de vi-
Este novo modelo é caracterizado por uma diminuição geral do nha, o que perfaz um pouco mais de 30% da área estimada em 2000
consumo de vinho, verificando-se a sua substituição por diversas be- para produção de vinho no Algarve (Quadro 3). A estas plantações
bidas conforme as ocasiões: sobretudo água nas refeições no domi- correspondeu um investimento global na ordem dos 1,3 milhões de
cílio; cerveja e outras bebidas não alcoólicas fora das refeições e na contos, com taxas de subsídio a fundo perdido que ultrapassaram, em
restauração. Os consumidores regulares (os que bebem praticamente alguns casos, os 70%.

38
Foram muitos e variados os programas de apoio à viticultura portuguesa, uns de carácter horizontal, comuns a toda a agricultura, como por exemplo o programa Agro, outros
específicos para o sector vitivinícola, como o programa Vitis, só para citar os programas ainda em vigor.
39
Ao nível da transformação foram efectuados investimentos no âmbito de programas referentes ao sector agrícola, como o PAMAF, por exemplo, e outros efectuados no âmbito de
programas do sector industrial, como o PEDIP.
40
Para uma análise detalhada dos investimentos efectuados na viticultura algarvia até 1997 comparativamente ao todo nacional, quer ao nível da produção quer ao nível da
transformação, veja-se o capítulo 5 de Simões (2006).

89
58 e 59 | Técnicas novas

Paralelamente, até 1996 foram abandonados 841 ha de vinha, mais a vinha recorrendo a ajudas comunitárias.41 Ainda assim, esta área mé-
que a totalidade da vinha reestruturada e muitíssimo mais do que os dia foi menor que a área média da vinha reestruturada, a qual se situou
150 ha inicialmente previstos. Num total de 313 projectos, este aban- na ordem dos 4 ha por exploração.
dono custou na altura cerca de 600 mil contos de prémios de arranque,
o que corresponde a mais de 700 contos por ha. Curiosamente, arran- Ao nível da transformação, e para além do investimento já referido
cou-se mais vinha no Algarve que em toda a região de Entre-Douro-e- na adega cooperativa de Lagoa, vários particulares fizeram investi-
-Minho, onde a área de vinha é dez vezes maior. Por outro lado, os 2,7 mentos em novas adegas e, em alguns casos, também em linhas de
ha de área média da vinha arrancada por produtor, foi a maior de todo engarrafamento, configurando a actual oferta de vinhos algarvios de
o país (apenas com a excepção do Ribatejo e Oeste e Alentejo), o que qualidade.
significa que não foram as explorações mais pequenas que abandonaram

41
Segundo o Recenseamento Geral Agrícola (RGA) de 1999, a área média de vinha por exploração era, no Algarve, apenas 0,71 ha, número este muito influenciado por pequenas
produções familiares.

90
O resultado final de todo este processo de reestruturação é a pre- tanto mais que já existem vontades expressas para consertar esfor-
sença no mercado de um reduzido número de agentes económicos, onde ços e sair do actual statu quo. Este papel terá de ser desempenhado
se destaca, pelo volume de produção atingido, a adega cooperativa de pelo organismo interprofissional que agrega a produção e o comércio
Lagoa, secundada pela adega cooperativa de Lagos (Quadro 5). A par dos vinhos algarvios, a actual CVRAL ou outro organismo que a venha
destes actores, já com longa tradição na região, surgiu recentemente substituir, o qual terá de mobilizar a concertação de todos os agentes
um pequeno número de produtores dispostos a apostar na viticultura económicos e os organismos oficiais interessados no relançamento da
algarvia, em moldes empresariais, sob a forma de vitivinicultor-en- actividade.
garrafador. São estas empresas, produtoras dos chamados vinhos de
quinta, que têm marcado o ressurgimento da viticultura algarvia nos Apesar da tendência depressiva da viticultura algarvia nos últimos
últimos anos. As relativamente pequenas quantidades produzidas e o anos, e parafraseando um antigo professor de agricultura e agrónomo
seu posicionamento no mercado com produtos de gama média-alta, do distrito de Faro, “o Algarve é uma das regiões mais favorecidas
muito vocacionados para a restauração regional e em casos pontuais pela Providencia, para a producção e commercio dos melhores e mais
para exportação, relevam de algum optimismo para estas iniciativas preciosos vinhos do mundo” (Figueiredo, 1873: 3). De facto, a região
empresariais.42 Em grande parte devido a estes novos produtores, o tem potencialidades intrínsecas para se afirmar na nova viticultura na-
peso relativo dos vinhos com denominação de origem controlada (DOC) cional. Tem solo, clima, castas e, sobretudo, uma grande imagem de
e os vinhos regionais subiu consideravelmente nos últimos anos no marca a explorar, o Algarve.44 Numa região que é visitada anualmente
Algarve. Assim, os vinhos DOC passaram de uma média de 35% do total por vários milhões de turistas, nacionais e estrangeiros, uma aposta
de vinho produzido entre 1992-96, para 46%, em média, entre 2000 e nos produtos regionais de qualidade tem, à partida, imensas possibili-
2004. Por sua vez, os vinhos regionais, largamente representados pelos dades de sucesso.
novos produtores, obtiveram recentemente um crescimento exponen-
cial, passando de 5% da produção total em 2000, para 23% em 2004. Nos últimos 30 anos, o Algarve viu a sua economia de base regional
especializar-se na multiplicação da oferta turística, no crescimento e
A indústria vitícola, motor da renovação do sector em muitas ou- diversificação dos serviços ligados ao turismo e no reforço das activi-
tras regiões do país, não se faz notar nesta região. Desta forma, o dades de promoção imobiliária.45 Esta concentração dos recursos no
quadro comercial fica completo com a introdução de algumas (poucas) turismo conduziu à perda de competitividade das actividades e dos
empresas de distribuição com funções de cash and carry, de que são produtos tradicionais, não tendo sido acautelada a sua preservação e
exemplo a Vial, M Silva Caetano, Recheio e Macro.43 viabilidade produtiva.

Ao nível institucional, a década de 90 ficou marcada por um mani- Algumas vozes se têm levantado contra o modelo de desenvol-
festo desinteresse pela viticultura regional, quer no âmbito do sector vimento seguido pela região, havendo hoje sinais claros de tentati-
agrícola, quer no âmbito de outros sectores da actividade económica. vas de diversificação da actividade turística, “especialmente quando
Neste período, o desinteresse manifestou-se em decisões estratégicas, o incremento excessivo da sua oferta tem questionado a sua própria
como a opção pelo desenvolvimento da citricultura, como vimos, ou capacidade atractiva” (Silva e Vaz, 1998: 187). É neste contexto de
mesmo em situações simbólicas, como a ausência de vinhos algarvios diversificação e de complementaridade que tem sido reconhecida a im-
em acções de promoção turística da região, jantares oficiais de na- portância de actividades de turismo alternativo ao “sol, praia e golfe”,
tureza institucional, etc. Neste particular, o que mais surpreende é a de que são exemplo as apostas no turismo em espaço rural (Coelho et
desarticulação que tem reinado entre empresas privadas, organismos al., 2001; DREAL, 2005), a preocupação na criação de condições para
públicos regionais e associações diversas ligadas ao sector. A falta de o licenciamento de actividades relacionadas com o desenvolvimento de
uma estrutura institucional dotada de capacidade e dinamismo para produtos tradicionais de qualidade, como por exemplo a aguardente de
conceber e implementar uma estratégia global para o sector, parece medronho (DREAL, 2005a) ou os queijos regionais (DREAL, 2005b) e
ser a pedra de toque dos problemas actuais da vitivinicultura algarvia, ainda, no que mais aqui interessa, o enoturismo.46

42
Os novos vinhos algarvios têm-se afastado um pouco das características tradicionais desta região, para partilharem mais dos atributos genericamente reconhecidos aos actuais
vinhos de qualidade. Prova destas transformações é a evolução das castas autorizadas para a produção de vinhos com denominação de origem (Quadro 2) e dos vinhos regionais
(Portarias n.ºs 364/2001, de 9 de Abril, e 159/03, de 11 de Fevereiro).
43
Fora dos circuitos comerciais, persiste ainda alguma produção doméstica de vinho. Neste campo, ainda se podem encontrar algumas curiosidades regionais, de que é exemplo a
produção de vinho fortemente aromatizado durante a fermentação, utilizando funcho, alfarroba e marmelo.
44
Com os actuais níveis de produção, não existe hoje nenhuma razão plausível para se manterem quatro denominações de origem no Algarve. Esta designação deveria ser reservada
aos vinhos DOC, à semelhança de que fez o Alentejo, por exemplo, estudando-se uma designação conveniente para os vinhos regionais. Por exemplo, “vinho regional algarvio”.
45
Acerca dos efeitos do turismo na região algarvia e o seu impacte no ordenamento do território, ver CCRA (1990).
46
Para uma interpretação conceptual do turismo em espaços rurais e naturais e para uma análise de experiências desenvolvidas nesta área, veja-se Simões e Cristóvão (2003).

91
Quadro 5 | Produtores de vinhos certificados no Algarve

PRODUTOR E PRODUÇÃO MÉDIA ESTIMADA (hl) TIPO DE VINHO MARCAS COMERCIAIS

Adega Cooperativa de Lagoa, CRL DOC Lagoa Lagoa (reserva tinto e branco, colheita seleccionada tinto e branco, estagiado tinto e
(15000) branco e garrafeira tinto)

V. Reg. Alg. Porche´s (tinto e branco), Salira (tinto, tinto Syrah e branco), Monte da Aranha
(tinto), Reguengo (tinto) Vale da Parra (tinto e branco)

V. Lic. Alg. Algar doce (tinto) Algar Seco (branco), Afonso III (branco seco especial)

Adega Cooperativa de Lagos DOC Lagos Lagos (tinto e branco)


(4000)
V. Reg. Alg. Gil Eanes (tinto e branco)

V. Lic. Alg. Terras do Infante (branco doce e branco seco)

Quinta do Morgado da Torre, Lda DOC Portimão Tapada da Torre (tinto e branco)
(1000)
V. Reg. Alg. Foral de Albufeira (tinto reserva e tinto); Alvor (tinto e branco)

Adega do Cantor (1000) V. Reg. Alg. Vida Nova (tinto reserva, tinto e rosé)

Quinta dos Vales, Agricultura e Turismo, SA DOC Lagoa Estombar dos Vales (tinto reserva e tinto)
(600)
V. Reg. Alg. Porta dos Vales (tinto e branco)

J. Lopes, Lda (400) DOC Lagos Quinta dos Lopes (tinto e branco)

V. Reg. Alg. Catalão (tinto e branco)

V. Lic. Alg. Muska (branco doce e branco seco)

Soc. Agro-Ind. Monte das Laranjeiras (250) V. Reg. Alg. Monte das Laranjeiras (tinto)

Carlos Eduardo Silva e Sousa (200) DOC Tavira Terras da Luz (tinto reserva e tinto)

V. Reg. Alg. Fuzeta (tinto colheita seleccionada); Balsa (tinto)

Rui Manuel Coelho Virgínia (200) V. Reg. Alg. Barranco Longo (tinto touriga nacional, tinto reserva, tinto e rosé seco)

Algra - Soc. Agropecuária (150) V. Reg. Alg. Monte Escola (tinto), Foral de Silves (tinto), Xelb (tinto)

Guillaume Cristiam Ehlers (50) V. Reg. Alg. Monte da Casteleja (tinto e branco)

Cruz Alta Agricultura Lda (50) V. Reg. Alg. Em fase de lançamento

Helwig Ehlers (20) V. Reg. Alg. Quinta Velha (tinto e branco)

Notas: Tipos de vinho considerados: Denominação de Origem Controlada (DOC), Vinho Regional Algarve e Vinho Licoroso Algarve. Para além destes produtores, existem outras manifestações de interesse
na certificação de vinhos para o ano de 2006. Fonte: CVRAL, Dezembro de 2005.

92
Por iniciativa da Região de Turismo do Algarve está actualmente desde o Minho e Trás-os-Montes até ao Vale do Tejo e Península de
a ser desenvolvida a rota do vinho desta região, a qual se virá juntar Setúbal. Arredados dos grandes circuitos comerciais nacionais e inter-
às onze rotas em funcionamento no país (Simões, 2003: 441). Englo- nacionais, o Alentejo e o Algarve apresentavam pequenas manchas de
bando previsivelmente a adega cooperativa de Lagoa e pouco mais de vinha, voltada sobretudo para o autoconsumo e para o mercado regio-
meia dúzia dos novos produtores da região, a rota irá envolver também nal. Constituíam excepções o vinho da Fuzeta, único conhecido fora da
algumas unidades de restauração dispostas a aceitar um conjunto de região, e os vinhos licorosos usado em lotação com os vinhos do Douro
condições prévias, nomeadamente a apresentação de uma carta de vi- para o fabrico de vinho do Porto. Foi esta prática, juntamente com o
nhos algarvios. tardio aparecimento da filoxera na região, que possibilitou o período
áureo da viticultura algarvia, ou seja, das ultimas décadas do século
Considerando o contexto de forte concorrência nacional e interna- XIX até à regulamentação do comércio do vinho do Porto em 1907.
cional que os vinhos algarvios enfrentam, quer ao nível da qualidade
percebida quer ao nível dos preços praticados, continua válida a aposta Apesar de progressos significativos ao nível organizativo e institu-
estratégica definida em Vaz e Vieira (1998), toda ela voltada para a cional, nomeadamente a criação de uma rede de adegas cooperativas
produção de vinhos de qualidade vocacionados para o mercado inter- sob a égide da Junta Nacional do Vinho e a demarcação da região
no regional. Porém, a nova imagem dos vinhos algarvios, veiculada para a produção de vinhos com denominação de origem, a condição
pelos novos produtores, não será suficiente para escoar o grosso da de subalternidade da viticultura algarvia manter-se-á durante todo o
produção da região, centrada na adega cooperativa de Lagoa. Aliado à séc. XX.
necessidade de melhoria constante dos seus produtos de qualidade, de
que são exemplo maior os seus famosos vinhos licorosos Algar seco ou Na actualidade, a adopção de modelos de consumo que privilegiam
Afonso III, esta adega terá ainda que encontrar saídas vantajosas para o consumo ocasional de vinhos de qualidade, colocou em causa o mo-
os seus produtos indiferenciados, onde a inovação deverá ter um papel delo de produção em massa prosseguido até muito tarde pela viticultu-
preponderante. Neste campo, e na tradição do vinho licoroso algarvio, ra algarvia. Mais recentemente, a reestruturação de parte significativa
foi já lançado no mercado um digestivo embalado em bag in box, de dos vinhedos e o aparecimento de novos viticultores, desenharam um
baixo custo, vocacionado para a restauração. Também o incremento da novo quadro para a imagem da viticultura da região. Paralelamente, de-
produção do vinho rosé parece estar em marcha e muitas outras solu- senham-se algumas iniciativas tendentes a aproximar o turismo destas
ções deverão ser encontradas. novas realidades empresariais, reconhecida que é a importância deste
sector na valorização do património histórico e cultural das regiões
A subjectividade inerente à degustação do vinho faz depender a onde se pratica e, consequentemente, na valorização dos produtos de
sua apreciação de um conjunto diversificado de factores, onde pesa qualidade aí produzidos.
largamente a imagem socialmente construída em torno dos diversos
produtos. Desta forma, a promoção do vinho do Algarve é fundamental
para dar a conhecer os novos vinhos da região e criar uma imagem
positiva junto dos potenciais consumidores (Quadro 6). Para isso de- Vinhos tintos
verão concorrer não só diligências técnicas na área do marketing, in- Com predominância da casta negra mole, ostentam uma cor rubi
bastante aberta, com tonalidades de morango e nuances de tijolo;
dividual e colectivo, como também um conjunto de acções no âmbito
aromas discretos, com notas de frutos silvestres; o sabor mostra
da “produção ideológica” do vinho algarvio.47 Neste campo, não é por taninos macios e delicados e uma estrutura fina e equilibrada.
demais sublinhar a importância da acção da Confraria dos Enófilos e
Gastronómica do Algarve, as festas regionais e locais relacionadas com Vinhos brancos
o vinho, a ligação do vinho às diferentes formas de arte, a ligação aos Cor carregada, aromas a frutos de polpa branca bem maduros, sabores
quentes e aveludados, com forte presença de álcool.
costumes, tradições e cultura popular e, finalmente, a importância da
produção de escritos diversos, sejam de natureza jornalística, sejam Vinhos licorosos
de natureza livreira, de que a presente obra pretende ser um exemplo Cor dourada profunda com nuances acobreadas; aromas fumados e
maior. a frutos secos; com sabores de grande complexidade e secura, são
excelentes como aperitivos.

Para um balanço geral da evolução da vinha e do vinho no Algarve Fonte: Adaptado de Loureiro (2004: 302)

do século XX, poderíamos recordar que, no início do século, a viticul-


tura nacional encontrava-se centrada em grandes manchas vinícolas,
Quadro 6 | Tendências gerais das notas de prova dos vinhos algarvios

47
Sobre produções ideológicas endógenas e exógenas à esfera vitícola, veja-se Bartoli e Boulet (1989: 755) ou, para uma síntese do conceito, Simões (2006: 220-224).

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60 | Paladares a descobrir

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A Confraria dos Enófilos e Gastronómica do Algarve foi constituída com algarvia ou localizadas em outras regiões do país ou do estrangeiro,
a natureza de associação, por escritura pública de 18-02-2003, tendo mas que sejam pertença de naturais da região, com vista à apresenta-
por fundadores o Instituto de Formação Turística, a Direcção Regional ção permanente da gastronomia algarvia, bem como dos seus vinhos,
de Agricultura do Algarve, a Comissão Vitivinícola Regional Algarvia e toalhas e louças regionais.
a Região de Turismo do Algarve. Para a consecução e desenvolvimento deste objecto a Confraria tem
duas divisões autónomas: Divisão Enófila e Divisão Gastronómica.
A CONFRARIA TEM POR OBJECTO:
a) Promover a investigação do património gastronómico nos seus múl- COM VISTA À REALIZAÇÃO DOS OBJECTIVOS ENUNCIADOS,
tiplos aspectos: receituário, arte e técnica da cozinha tradicional, seus A CONFRARIA PODERÁ:
produtos, evolução, cozinheiros famosos, relacionamento arte popular/ a) Editar livros, folhetos, cartazes e outro material de informação;
gastronomia, pesquisa das antigas casas de comida da região e outros b) Promover a publicação de artigos de investigação e divulgação na
aspectos que permitam fazer uma reconstrução histórica da cozinha imprensa, regional, nacional e internacional e premiar os melhores tra-
dos nossos antepassados e da sua evolução no tempo; balhos;
b) Defender e divulgar a autenticidade da verdadeira gastronomia al- c) Promover a realização de encontros báquicos e gastronómicos com
garvia, sem no entanto reprimir a sua evolução natural e adequada aos almoços, jantares, merendas e ceias de gastronomia da região de prefe-
processos da técnica; rência em restaurantes da região ou em restaurantes de outras regiões
c) Promover a nível regional, nacional e internacional a gastronomia nacionais e estrangeiras, adequadas às épocas do ano e à especificida-
algarvia, das formas tidas como adequadas; de dos eventos;
d) Elaborar uma carta de gastronomia da região incluindo sopas e en- d) Organizar concursos de gastronomia regional;
tradas, pratos de peixe, carne e sobremesas e patrocinar a publicação e) Promover a realização de Concursos e de Provas de Vinhos, quer no
periódica de um roteiro gastronómico da região; território nacional quer no estrangeiro;
e) Promover a elaboração de uma carta de vinhos algarvios, em cola- f) Promover junto das entidades competentes a divulgação dos princí-
boração com enófilos da região com vista à sua dignificação e divul- pios elementares da nossa gastronomia nas escolas dos diversos graus
gação; de ensino da nossa região;
f) Fomentar a recolha de utensilagem e quaisquer materiais ligados à g) Promover acções de formação e sensibilização;
cozinha e à gastronomia do Algarve, visando a criação de um museu; h) Colaborar com os órgãos locais, regionais e nacionais e internacio-
g) Eleger e premiar anualmente a melhor cozinheira/cozinheiro e o nais de turismo em todas as acções tendentes à divulgação e promoção
melhor restaurante especializado na cozinha regional algarvia e home- da gastronomia e dos nossos vinhos da região algarvia.
nagear os seus cozinheiros e entidades individuais e ou colectivas que
tenham contribuído de forma relevante para promover a gastronomia A Confraria tem por símbolos o distintivo, o estandarte e o traje.
da região; Os seus associados são denominados Confrades, que podem ser funda-
h) Promover o intercâmbio com outras agremiações congéneres, nacio- dores, efectivos, de honra, de mérito e correspondentes.
nais ou estrangeiras; Os órgãos da Confraria são a Assembleia Geral, a Direcção e o Conselho
i) Promover e apoiar todas as iniciativas conducentes à sensibilização Fiscal.
dos proprietários de unidades hoteleiras e dos restaurantes da região Carlos Silva e Sousa

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Castas mais representativas
actualmente no Algarve
por ordem de importância

TINTAS

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Negra Mole Castelão
Aurora Neto Martins João Mariano · Nuno Magalhães

Casta tradicional na região do Algarve, constituiu a base dos vinhos É uma casta recomendada para as regiões vitícolas Algarvias, e
tradicionais algarvios, desde há vários séculos, em conjunto com provavelmente a única da região, com potencialidades para pro-
outras castas tintas (Castelão = Periquita) e Trincadeira. duzir vinhos de qualidade interessante. É também comum a ou-
Com produções anuais regulares e bem adaptada às condições eda- tras regiões Portuguesas, em particular na Estremadura, Ribatejo,
fo-climáticas da região, continua ainda hoje a fazer parte de alguns Alentejo e Península de Setúbal. Na realidade é justamente nesta
encepamentos, em vinhas mais antigas. última região que em determinados solos mais pobres, esta casta
Actualmente tem vindo a ser substituída por castas oriundas de origina vinhos excelentes. No Algarve, serão também os solos de
outras regiões, consideradas mais nobres, devido à riqueza fenólica fertilidade moderada, e que proporcionem produções por planta re-
e antociânica que apresentam, já que a Negra Mole é uma casta de lativamente reduzida, aqueles que terão maior vocação para tirar o
cor rosada e que, vinificada isoladamente, tem fermentação muito melhor partido desta casta. Não é uma casta de grande intensida-
demorada. de corante, fazendo vinhos um pouco abertos na cor e quando de
Quando misturada com outras castas, tem um bom comportamento produções elevadas, podem entrar nas tonalidades castanhas com
enológico, contribuindo para tal, o elevado teor de açúcares que facilidade. Os seus aromas são de frutos vermelhos e acompotados
geralmente adquire durante a maturação. que é uma preocupação do enólogo que pretenda manter frescura
Só por si origina vinhos de cor rosada, ricos em álcool, com pouca nestes vinhos. O Castelão faz vinhos macios, de acidez baixa, de
acidez fixa e pobres em taninos, características estas que contri- corpo médio mas já com alguma estrutura no caso de alguns vinhos
buem para a sua reduzida longevidade. de Palmela onde, aqui também, tem uma boa evolução com aromas
A utilização de alguns clones desta casta, já seleccionados na re- de frutos empassados, couros e especiarias.
gião do Algarve, juntamente com outras castas tintas, pode contri-
buir para valorizar esta casta tradicional, ao utilizá-la para a pro-
dução de outros tipos de vinhos, nomeadamente para a produção
de vinhos rosés.

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03 04
Trincadeira Aragonez
João Mariano · Nuno Magalhães João Mariano · Nuno Magalhães

Casta exclusiva de Portugal, é tradicionalmente cultivada quer no Casta de origem Peninsular, com grande representatividade em vá-
Douro, sob o nome de Tinta Amarela, quer no sul do país, como rias regiões espanholas, onde toma designações distintas sendo
Trincadeira. Entra frequentemente em percentagem considerável a mais conhecida a Tempranillo na região de Rioja. Em Ribera del
nos lotes para vinho do Porto ou para alguns vinhos de consumo Duero, região também de renome mundial é designada por Tinto
Durienses, e tradicionalmente em quase todos os vinhos Alenteja- fino. Em Portugal é igualmente uma casta tradicional muito antiga
nos. É contudo uma casta que necessitando de solos secos e regiões e de grande valor qualitativo, originariamente na região demarcada
relativamente quentes, é muito sensível a excessos de calor estival, do Douro, chamada de Tinta Roriz e no Alentejo. É uma das castas
secando os bagos, com consequente perda de rendimento e quali- mais importantes para a produção de vinho do Porto, mas está tam-
dade. Também em zonas que promovam muito vigor e produção, a bém na base de grandes vinhos de consumo produzidos um pouco
qualidade vem diminuida. Embora seja uma casta com potenciali- por todo o país. É uma casta precoce, bem adaptada à região do
dades para produzir bons vinhos, de que são alguns Alentejanos, Algarve, onde é das primeiras a ser vindimada. A sua produtividade
nomeadamente da zona de Portalegre, requer cuidados especiais na é muito variável em função dos anos ou dos solos, mas os melhores
escolha dos terrenos e na correcta condução da vinha. E é assim, vinhos são sempre oriundos de produções por videira relativamente
dependente destas condições, que a Trincadeira poderá produzir modestas, pois que para produções elevadas os vinhos perdem cor,
vinhos com boa cor embora não a consiga preservar por muito tem- estrutura e aromas. Assim, com estas produções obtêm-se vinhos
po, caracteriza-se muito pelos aromas herbáceos e algumas notas de cor profunda e intensidade aromática intensa, caracterizada pe-
balsâmicas e frutos vermelhos do tipo ameixa. Os seus taninos são los frutos vermelhos do tipo de amora silvestre ou cassis em zonas
suaves, medianamente encorpado tornando-o num vinho elegante e anos mais quentes, ou framboesa ou morango quando a matura-
para ser consumido jovem. ção não é tão forte; é uma casta rica em taninos mas macios dando
vinhos com bom corpo, equilibrados com um álcool sempre médio
alto e com uma boa afinidade com a madeira. Não sendo uma casta
de grande complexidade, pela sua textura é obrigatória num lote de
vinho de qualidade.

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05 06
Cabernet Sauvignon Touriga Nacional
João Mariano · Nuno Magalhães João Mariano · Nuno Magalhães

Casta base em todos os vinhos da região de Bordeaux, em asso- É com certeza a casta tinta Portuguesa de mais elevada qualida-
ciação com o Merlot e Cabernet franc, expandiu-se rapidamente de, e uma das melhores a nível mundial. Com origem remota nas
por todo o mundo vitícola, em especial para os países do chamado regiões do Douro e Dão, expandiu-se nos últimos anos para todas
Novo Mundo (América, Chile, Argentina, África do Sul, Austrália), as regiões vitícolas do país, onde tem revelado uma grande adap-
onde é responsável pela produção de vinhos de elevadíssimo va- tação e sempre grande qualidade. Também começa a ser plantada
lor qualitativo. Em Portugal, a sua introdução é recente, em parte noutros países, nomeadamente na Austrália, estimando-se que a
devido ao facto da existência de um já muito elevado número de sua expansão venha a ter brevemente grande representatividade.
castas bem adaptadas ás respectivas regiões vitícolas. Contudo, Actualmente está na base não só de alguns Porto Vintage, mas
naquelas onde as castas recomendadas tradicionais têm qualidade também de grandes vinhos, quer em associação com outras castas,
média, a Cabernet Sauvignon vem desempenhando um papel muito quer monovarietais, já que é uma casta com características muito
importante como casta melhoradora. Em particular no Algarve, os completas, podendo garantir por si só os melhores níveis de cor,
ainda poucos vinhos elaborados com a sua participação, mostram sabor, complexidade aromática, estrutura e harmonia. Os melhores
indiscutível valor qualitativo, o que atesta bem a sua boa adapta- vinhos produzidos recentemente no Algarve têm geralmente esta
ção a esta região. De facto, esta sua boa adaptação aos vários tipos casta como uma das dominantes. Estando, naturalmente, sujeita
de solos e climas onde é plantada, além de produzir vinhos sempre à influência do “terroir” onde está inserida, do ponto de vista or-
de boa qualidade, mantém as suas características particulares. A ganoléptico, é uma casta que mantem sempre a sua identidade.
sua cor pode variar entre o rubi e o grenat, o aroma pelo qual a Apresenta-se sempre com bastante cor e reflexos violáceos que se
casta é identificado é pelo aroma a mirtílios. Nos vinhos novos será mantêm ao longo de alguns anos, principalmente na região do Dou-
o aroma a ameixa preta ou amora e quando ligeiramente evoluídos, ro. Aromaticamente complexo, quando novo, o vinho tem aromas
caracteriza-se pelos aromas do tipo de apara de lápis e caixa de herbáceos como folhas de chá ou mangerico, florais, sendo a viole-
charutos. Mas uma característica forte e que os enólogos tentam ta o mais evidente, e todos os frutos vermelhos que podem ir desde
evitar é o aroma verde dos pimentos que aparece mais evidente os frutos de bosque mais maduros aos mais suaves de ameixa ou
de uvas com pouca maturação. Em determinadas zonas, nomea- cereja dependendo da maturação a que for sujeita. Tem uma acidez
damente Califórnia ou Chile, são os aromas a eucalipto e hortelã equilibrada, taninos fortes, bem constituídos, dá origem a vinhos
que se podem notar melhor. O Cabernet Sauvignon pode produzir encorpados e com grande capacidade de envelhecimento.
vinhos bem encorpados de acidez equilibrada, taninos secos e fruta
de grande complexidade. São vinhos equilibrados, de certo modo
fáceis de beber tornando-a na casta tinta mais popular a nível do
consumidor.

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BRANCAS

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Syrah Crato Branco
João Mariano · Nuno Magalhães Manuel Romão

Oriunda da região francesa de Côtes du Rhône, onde produz vinhos Uma das castas de maior prestígio na região de Lagoa pela sua qua-
afamados e cada vez mais importantes nas regiões de Provence e do lidade e versatilidade tem um lugar especial entre as castas brancas
Languedoc-Roussillon, tem-se expandido nas últimas décadas, para nacionais, sendo uma das que ocupa maior área de cultivo e que
outros países, muito em particular na Austrália adoptando aqui o está presente em quase todas as regiões vitícolas.
nome de Shiraz. Também em Portugal chegou recentemente, no Alia uma elevada resistência a doenças e pragas com uma produção
sul do país, tendo revelado uma boa adaptação e qualidade. Sendo regular. O cacho, de tamanho médio, é compacto e os bagos estão
uma casta tipicamente de regiões quentes, prevê-se que tenha no bem fixos.
Algarve enormes potencialidades, as quais se vêm revelando por O mosto alia uma acidez fixa elevada, difícil de obter em regiões
alguns vinhos a partir dela produzidos. Produz vinhos com bastante quentes como o Algarve, a um pH baixo e a um elevado potencial
cor mas é a sua riqueza aromática que tem conquistado tantos con- alcoólico atingindo na maturação enológica valores de 13% po-
sumidores. Pode ter aromas a cravos e violetas, o fumado, o torrado tenciais.
e os frutos silvestre da zona do Hermitage ou os aromas mais a Em sobrematuração, que atinge com alguma facilidade, pode che-
chocolate, fruta preta e especiarias dos vinhos Australianos. Produz gar aos 16% ou mais. Esta característica tem sido aproveitada para
vinhos encorpados com taninos maduros e geralmente graduações a produção de vinhos licorosos secos que são excelente aperitivo.
elevadas. Com o seu envelhecimento ganha aromas a caça, couro Os vinhos de mesa, de cor palha, são encorpados com aroma de
e tabaco. intensidade média e boa persistência na boca. A sua evolução em
garrafa é positiva, dando lugar a aromas e sabores onde se notam
aromas a frutos secos tipo noz, avelã e também a rebuçado.

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