Goldoni - Arlequim
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ARLEQUIM
1753
CARLO GOLDONI
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PERSONAGENS:
PANTALEÃO
CLARISSE, filha de Pantaleão
DOUTOR LOMBARDI
SÍLVIO, filho do Doutor Lombardi
BEATRIZ, de Turim, em traje de homem, sob o nome de Frederico Rasponi
FLORINDO ARETUSI, de Turim, noivo de Beatriz
BRIGUELA, hoteleiro
ESMERALDINA, criada de Clarisse
ARLEQUIM, servidor de Beatriz e de Florindo
UM CRIADO do hotel de Briguela
UM SERVIDOR de Pantaleão
DOIS CARREGADORES
Vários criados do hotel de Briguela que não falam.
CARLO GOLDONI. Arlequim - Cópia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e Pesquisa em Teatro Brasileiro /
UFSJ – Setembro/2017
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PRIMEIRO ATO
CENA I
Casa de PANTALEÃO
BRIGUELA – Com todo o prazer, amigo Pantaleão. Não é para me gabar, mas cozinha boa só há
uma... uma... uma: a do meu hotel!
PANTALEÃO – Bravo. (Ouve-se tocar à porta) Estão tocando. Esmeraldina, vai ver quem é.
ESMERALDINA – Sim, senhor. Já vou. (SAI)
PANTALEÃO (Vendo os noivinhos já muito agarrados) – Háháááááá.
CLARISSE – Senhor meu pai, se me dá licença. (Indica a saída)
PANTALEÃO – Espera. Já vamos sair todos juntos. Só quero saber quem é.
ISMERALDINA – Senhor Pantaleão, está lá fora o criado de um forasteiro...
DOUTOR – Fores... forásticu... foras... exitu...
ESMERALDINA – ... que deseja falar com o senhor. A mim não quis dizer nada. É só com o
patrão.
PANTALEÃO – Está bem. Manda entrar.
CLARISSE (Ao Pai) – Não acha melhor que nos retiremos, senhor meu pai?
PANTALEÃO – Para onde?
CLARISSE – Não sei. Talvez para a minha antecâmara.
PANTALEÃO (Distraído) – Sim, senhora... (Vendo-a sair junto com Silvio) Não, senhora!
Fiquem aqui! (Em voz baixa para o Doutor) Ainda é cedo para deixar estes pombinhos a sós.
DOUTOR (Baixo a Pantaleão) – “Sapientia et prudentia...”!
CENA II
Os mesmos, ARLEQUIM.
ARLEQUIM (Entrando) – Ora viva, minhas senhoras e meus senhores! Minhas homenagens a
todos. Oh, que linda companhia! (Olhando em volta) Oh, mas que bela conversação!
PANTALEÃO – Quem é você, amigo? Que deseja?
ARLEQUIM (Para Pantaleão, apontando Clarisse) – Quem é esta linda menina?
PANTALEÃO – Minha filha.
ARLEQUIM – Parabéns.
ESMERALDINA – Ela está noiva.
ARLEQUIM – Ótimo. E você, quem é?
ESMERALDINA – Sou a criada da menina.
ARLEQUIM – Ótimo, ótimo. Parabéns, parabéns.
PANTALEÃO – Vamos acabar logo com essas cerimônias. Quem é você? Que é que você quer?
Quem o mandou aqui?
ARLEQUIM – Calma, meu senhor, calma. Três perguntas de uma vez é muito para um pobre
rapaz como eu.
PANTALEÃO – Parece que está bêbado.
DOUTOR – Não. Deve ser algum brincador.
ARLEQUIM – Ah, então a senhorita e que é a noiva?
ESMERALDINA – Oh, não! (Suspirando) Não, senhor, eu não!
PANTALEÃO – Diga logo quem você ê, que nos temos mais que fazer.
ARLEQUIM – Bem, se o senhor quer saber mesmo quem eu sou, eu vou dizer imediatamente:
sou o criado do meu amo, pronto. (Voltando-se para Esmeraldina) Como eu ia dizendo...
PANTALEÃO – Mas quem é o seu amo?
ARLEQUIM (Para Pantaleão) – O meu amo é um forasteiro que quer falar com o senhor. (Para
Esmeraldina) Temos que conversar sobre esse assunto de noivado.
PANTALEÃO – Quem é esse forasteiro? Qual é o nome dele?
ARLEQUIM – Está bem. O meu patrão e o senhor Frederico Rasponi, chegou de Turim, é o meu
amo, que o saúda, que quer falar com o senhor, que me mandou anunciá-lo, que espera uma
resposta, que está lá em baixo. Satisfeito? Quer saber mais alguma coisa? (Para Esmeraldina)
Eu estava pensando...
PANTALEÃO – Por favor, venha cá, fale comigo. Que foi que você disse?
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ARLEQUIM – Se o senhor quer saber quem sou eu, pronto: sou Arlequim Bardalo, natural de
Bérgamo.
PANTALEÃO – Não me interessa. Quero que você repita o nome do seu patrão. Acho que não
ouvi bem.
ARLEQUIM – Coitado do velhinho. O senhor é um pouquinho surdo, não é? O meu patrão é o
senhor Frederico Rasponi, de Turim.
PANTALEÃO – Basta. Você é louco! Frederico Rasponi morreu.
ARLEQUIM – Morreu?
PANTALEÃO – Morreu, sim! Pobre homem.
ARLEQUIM – Será possível? Mas... não pode ser! Quando o deixei lá em baixo estava bem
vivo! O senhor não está brincando? Meu patrão está mesmo morto?
PANTALEÃO – Completamente morto!
DOUTOR – É verdade. Frederico Rasponi está indubitavelmente morto.
ARLEQUIM – Oh, coitado do meu patrão! Deve ter morrido de repente... dão licença?
PANTALEÃO – Era tudo o que você tinha para dizer?
ARLEQUIM – Uma vez que meu patrão morreu... é tudo, sim senhor! (À parte) Sempre quero
ver se ele morreu mesmo. (Sai)
PANTALEÃO – Que é que vocês acham deste folgazão? Será um trapaceiro ou um louco?
DOUTOR – Quanto a mim ele é um pouco isso e mais também?
BRIGUELA – Não, parece mais um burraldino.
ESMERALDINA (À parte) – Ah, ele é simpático... jeitoso.
PANTALEÃO – Será que ele conheceu mesmo Frederico Rasponi?
CLARISSE – Se esse homem estivesse vivo... seria a pior notícia pra mim.
PANTALEÃO – Que disparate. Frederico está morto. Você não leu as cartas?
SILVIO – Afinal, mesmo que estivesse vivo, não poderia pretender mais nada de você, meu
amor... agora é tarde, não é, meu pai?
DOUTOR – Certo.
ARLEQUIM: (Voltando) – Meus senhores. Oh. Quanto me decepcionam. Foi muito mal isso que
me fizeram! Muito mal. Não deviam tratar assim um gentil e pobre moço como eu. E muito
menos os forasteiros... isso não são maneiras de gente boa. E exijo satisfações.
PANTALEÃO – Que foi? Que é que te fizeram?
ARLEQUIM – Disseram-me que o senhor Frederico Rasponi estava morto...
PANTALEÃO – E então?
ARLEQUIM – E então, ele não está morto coisa nenhuma. Está vivo, alegre, de ótima saúde e
quer cumprimentar o senhor.
PANTALEÃO – O senhor Frederico?
ARLEQUIM – O senhor Frederico.
PANTALEÃO – Rasponi?
ARLEQUIM – Rasponi.
PANTALEÃO: De Turim?
ARLEQUIM – De Turim!
PANTALEÃO – Burraldino, vai para o hospício! Para o diabo!
ARLEQUIM – Com mil diabos. Estou dizendo que o meu patrão está vivo, que está aqui nesta
casa, ouviu?
PANTALEÃO – Tirem esse trapaceiro da minha vista, senão achato o nariz dele.
DOUTOR – Espere, senhor Pantaleão! Faça uma coisa mais simples: diga-lhe que mande entrar
esse tal Frederico Rasponi.
PANTALEÃO – Sempre quero ver! Mande entrar o morto ressuscitado!
ARLEQUIM – Bem, isso pode ser. Que tenha estado morto e agora ressuscitou não vejo mal
nenhum. Mas que agora está bem vivo, está. Os senhores vão ver! Vou chamá-lo. E o senhor
terá de aprender como se lida com pessoas distintas como eu! (Para Esmeraldina) Nós
precisamos ter uma conversinha muito particular. (Sai)
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CENA III
Os mesmos, BEATRIZ.
BEATRIZ (Entrando com traje de homem) – Senhor Pantaleão, não reconheci na sua recepção a
mesma amabilidade que costumava ter nas suas cartas. Mandei o meu criado para avisar da
minha chegada e o senhor me deixou esperar meia hora ao ar livre, como um sujeito
qualquer?
PANTALEÃO – Desculpe, mas quem é o senhor?
BEATRIZ – Frederico Rasponi, de Turim, para servi-lo.
TODOS – Ohhh!
BRIGUELA (À parte) – Mas não é Frederico, é D. Beatriz, a irmã dele. Vou ver aonde ela quer
chegar.
PANTALEÃO – Eu... eu estou muito contente em ver que o senhor está vivo e goza de boa
saúde. Nós tínhamos recebido a notícia da sua morte.
BEATRIZ – Eu sei. Disseram que eu tinha morrido vítima de uma agressão. Graças a Deus,
fiquei apenas ferido. Logo que sarei, decidi vir a Veneza e fazer aqui a visita há tanto tempo
prometida.
PANTALEÃO – O senhor parece sincero, mas deve compreender'. Eu tenho informações
seguras sobre a morte de Frederico Rasponi. Por tanto se o senhor não me dá uma prova em
contrário...
BEATRIZ – A sua dúvida e justíssima. Por isso mesmo, trouxe as provas comigo. Aqui estão
quatro cartas dos meus amigos de Turim. Aliás, uma delas foi escrita pelo diretor do nosso
banco. O senhor pode conferir as assinaturas.
CLARISSE – Ah, Silvio... estamos perdidos.
SILVIO – Antes de te perder, terei de perder a vida.
BEATRIZ (À parte) – Ai, ai, Briguela aqui... preciso comprá-lo. (Para Briguela) Amigo, acho
que o conheço...
BRIGUELA – Pois é, nós já nos conhecemos de Turim. Eu sou Briguela Cavicchio.
BEATRIZ – Ah, sim. Agora estou me lembrando. Que é que você faz em Veneza? (Em voz
baixa) Por amor de Deus, não diga quem sou. Depois explico.
BRIGUELA (Baixo, depois de receber uma bolsa que beatriz lhe deu rapidamente) – Confie em
mim. (Alto) Eu aqui sou dono de um hotel, às suas ordens.
BEATRIZ (Alto) – Ótimo. Estou justamente precisando de um bom hotel.
BRIGUELA – Será uma honra para mim ter o senhor como hóspede. (À parte) Que mistério.
PANTALEÃO – Já não posso duvidar. Essas cartas me apresentam o senhor como sendo
Frederico Rasponi. Foi o senhor quem trouxe as cartas... então, deve ser ele mesmo.
BEATRIZ – Para ficar ainda mais seguro, o senhor pode perguntar a Briguela. Ele me conhece
muito bem.
BRIGUELA – É, sim senhor. Este senhor é o próprio senhor Frederico Rasponi.
PANTALEÃO – Nesse caso, está certo. Então, meu caro amigo, queira perdoar as minhas
dúvidas...
CLARISSE – Ai, meu Deus!
SILVIO – Calma, minha querida. Eu te defenderei contra tudo e todos.
PANTALEÃO – O senhor acha que ele chegou a tempo?
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CENA IV
PANTALEÃO (Correndo atrás de Clarisse) – Como se atreve, menina?
BEATRIZ – Pare, senhor Pantaleão! Não é nada... compreendo muito bem... não é conveniente
tratá-la asperamente. Com o tempo espero conquistar as boas graças de minha noiva.
Entretanto, podemos ir examinar as nossas contas, pois essa foi uma das razões que me trouxe
a Veneza.
PANTALEÃO – As contas estão em perfeita ordem e o saldo pode receber quando quiser.
BEATRIZ – Muito bem, então se o senhor me permite, eu vou sair agora com Briguela, que
conhece bem a cidade, para tratar de alguns negócios imediatos.
PANTALEÃO – Como quiser. Se precisar de alguma coisa, estou às suas ordens.
BEATRIZ – Ah, gostaria que o senhor me adiantasse algum dinheiro sobre os nossos negócios.
PANTALEÃO – Sem dúvida. Assim que o meu caixa vier... o senhor vai se hospedar no hotel do
meu compadre Briguela, não é?
BEATRIZ – Sim, mas não se incomode; eu mando aqui o meu fiel criado buscar o dinheiro. É o
Arlequim. Podemos ter toda a confiança nele.
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ESMERALDINA (Entrando) – Está lá fora alguém que quer falar com o senhor, patrão.
PANTALEÃO – Quem é?
ESMERALDINA – Não sei. (Baixo) Confusões de dinheiro...
PANTALEÃO – Com licença, senhor Frederico. Queira desculpar. Caro Briguela... faça as
honras da casa...
BEATRIZ – Não se preocupe comigo.
PANTALEÃO – Preciso ir... com licença.
CENA V
BEATRIZ, BRIGUELA.
BRIGUELA – Dona Beatriz! Que história é essa?
BEATRIZ – Psiu! Cuidado! Eu já explico, Briguela: o meu irmão foi morto por Florindo
Aretusi, ou por algum companheiro dele. Você deve estar lembrado: Florindo estava
apaixonado por mim, e meu irmão se opunha a esse amor. Não sei como se passou a briga
entre eles... mas Frederico morreu, e Florindo, com receio da justiça, fugiu sem se despedir de
mim. Deus é testemunha da dor que senti pela morte do meu querido irmão. Mas agora não
adianta chorar... e por outro lado sinto bastante também que Florindo tenha desaparecido,
Quero reencontrá-lo. Como soube que ele veio para Veneza, vim à sua procura. Cheguei aqui
com roupas e documentos do meu irmão. Pantaleão está convencido que eu sou Frederico e
graças também ao seu testemunho, Briguela. Assim, tratarei dos negócios do meu irmão e
poderei receber o importante saldo das contas e, se for preciso, até ajudar Florindo, quem
sabe? Ai, amor, quanto nos fazes sofrer. Briguela, por favor, colabore comigo e será bem
recompensado.
BRIGUELA – Pode contar comigo. Mas o que eu não gostaria é que Pantaleão, depois de lhe
entregar o dinheiro, em boa fé, devido ao meu testemunho, descubra que foi enganado.
BEATRIZ – Enganado por quê? Meu irmão morreu, eu sou sua herdeira.
BRIGUELA – Mas então por que é que a senhora não revela a sua... o seu verdadeiro ser?
BEATRIZ – Não posso, Briguela. Como mulher, nunca conseguiria nada. Pantaleão se armaria
logo em meu protetor... todos achariam que não é conveniente para uma mulher sozinha tratar
pessoalmente da sua vida, dos seus interesses. Eu perderia a minha liberdade. Tenho que
pagar um preço alto, eu sei... toda esta representação; a contrariedade dos mocinhos, enfim!
Esta liberdade não durará muito, mas não faz mal, alguma coisa acontecerá de bom.
BRIGUELA – O fato é que a senhorita sempre foi muito decidida... independente. Pode contar
com a minha discrição.
BEATRIZ – Obrigada, Briguela. Agora vamos para o seu hotel.
BRIGUELA – Onde e que a senhora deixou o seu criado?
BEATRIZ – Está na rua, à minha espera.
BRIGUELA – Onde foi que encontrou aquele burraldino que nem sequer fala direito?
BEATRIZ – Eu o contratei para me acompanhar nesta viagem. Arlequim parece bobo às vezes,
mas não é, e é fiel como poucos.
BRIGUELA – Ah! D. Beatriz, que bela coisa a fi... a fi... a fidelidade.
BEATRIZ – Bela e rara. Vamos. Briguela. Ai, amor, quanto nos fazes sofrer! (Saem)
CENA VI
Uma rua de Veneza. Diante do hotel de BRIGUELA.
ARLEQUIM (Sozinho) – Ufa. Estou tão cansado de esperar que... não aguento mais. Com este
patrão, a gente come muito pouco. Há já meia hora que o badalo do sino tocou meio-dia e a
sina do meu... bandalho de estômago é estar esperando há duas mais horas. Nem sei onde é
que vamos pernoitar! Todo mundo quando chega a uma cidade, antes de mais nada, procura
logo um hotel, um restaurante... ele não! Ele deixou a mala na gôndola, foi fazer visitas e nem
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sequer se lembrou do coitado do criado! Como e que se pode servir bem a um amo que não
tem um pouco de consideração pelo estômago do criado? Isto aqui deve ser um hotel. Vou ver
se acho alguma coisa pra cheirar, morder e... entupir! E se o patrão chegar? Ora... não faz mal.
Tem que compreender. Ai, agora me lembrei de uma coisa muito importante. Estou sem um
níquel! Pobre Arlequim! Preciso largar esta maldita profissão! Antes ser... ou fazer... fazer o
quê? Ai, meu Deus, eu não sei fazer nada!
CENA VII
ARLEQUIM, FLORINDO ARETUSI, um carregador.
FLORINDO chegando de viagem com um carregador trazendo um baú as costas.
CARREGADOR – Ai, ai, não aguento mais. Ai que morro com tanto peso!
FLORINDO – Aqui está um hotel. Vamos entrar. Ou já não podes chegar até aqui?
CARREGADOR – O baú esta caindo.
FLORINDO – Eu bem te disse que não era trabalho para ti. És muito fraco! (Segura o baú nos
ombros do carregador)
ARLEQUIM (À parte) – Ali dá pra ganhar uns níqueis. (Para Florindo) Se o senhor acha que eu
posso ser útil...
FLORINDO – Ajuda a transportar esta mala ao hotel, meu bom rapaz.
ARLEQUIM – Deixe comigo, deixe comigo. Quer ver como é fácil? (Vai com o ombro debaixo
do baú, carrega-o inteiro nas costas e faz cair o carregador.)
FLORINDO – Bravíssimo!
ARLEQUIM – Não pesa nada. (Entra no hotel)
FLORINDO (Para o Carregador) – Viu como é?
CARREGADOR – Eu não podia mais, senhor. (Florindo faz menção de entrar no hotel) Meu
patrão!
FLORINDO – Que é?
CARREGADOR – O senhor tem que me pagar pelo carreto.
FLORINDO – Tenho que te pagar por dez passos?
CARREGADOR – Eu não conto os passos. O senhor tem que me pagar...
FLORINDO – Está bem! Aqui estão cinco...
CARREGADOR (Recebe e estende logo a outra mão) – O senhor tem que me pagar.
FLORINDO – Mais? Está bem. Toma lá mais cinco.
CARREGADOR (Idem) – O senhor tem que me pagar...
FLORINDO – Ah, e? Toma! (Dá-lhe um pontapé)
CARREGADOR – Agora estou pago! (Sai)
CENA VIII
FLORINDO, ARLEQUIM.
FLORINDO – Mas que explorador!
ARLEQUIM – (Saindo do hotel) Pronto, cavalheiro!
FLORINDO – Que espécie de hotel é este?
ARLEQUIM – Ééééé... é bom, senhor! Boas camas, bons espelhos, ótima cozinha, com um
cheirinho que até consola. Já preveni o maître. O senhor será tratado aqui como um príncipe.
FLORINDO – Qual é o seu trabalho aqui?
ARLEQUIM – Sou criado, senhor. Às suas ordens.
FLORINDO – Você é de Veneza?
ARLEQUIM – Não senhor, de Bérgamo.
FLORINDO – Neste momento, está servindo alguém? Quer dizer: tem algum patrão?
ARLEQUIM – Bem... neste momento... pra dizer a verdade... não! Não tenho patrão! Não
senhor, não tenho!
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CENA IX
ARLEQUIM, BEATRIZ, BRIGUELA.
ARLEQUIM (Sozinho) – Um paulo a mais por dia... dá 30 por mês. O outro patrão não me dava
um filipe... na verdade, ele só me paga 10 paulos. Pode ser que 10 paulos sejam mais que um
filipe, não tenho muita certeza. E por onde andará aquele patrão de Turim? Deve ser louco. É
um mocinho imberbe e sem juízo. E sem nenhuma humanidade, o rico amo que se esquece do
pobre criado. Ora... mas não adianta nada ficar aqui filosofando. Ele que se dane. Eu vou ao
correio pro novo patrão. Que espero seja melhor... me pague e me considere! (Já saindo
esbarra com Beatriz)
BEATRIZ – Ah, ótimo! É assim que você fica me esperando?
ARLEQUIM – Mas estou aqui, senhor. Não faço outra coisa senão esperar.
BEATRIZ – Por que aqui e não no lugar onde tínhamos combinado?
ARLEQUIM – Fui dar uma voltinha pra enganar o estômago.
BEATRIZ – Vai depressa apanhar as minhas malas e leva-as para o hotel do sr. Briguela.
ARLEQUIM (À parte) – Oh, diabo! O mesmo hotel do outro!
BEATRIZ – Já que vais buscar a bagagem, aproveita para ir ao correio e ver se chegaram cartas
para mim, ou melhor, pergunta se chegou correspondência para Frederico Rasponi e para
Beatriz Rasponi. Minha irmã estava para vir comigo a Veneza, mas na última hora ficou
doente e não pôde viajar. Pode ser que tenham escrito para ela também. Vai depressa, Fico a
tua espera no hotel. (Entra no hotel com Briguela)
CENA X
ARLEQUIM, SILVIO.
ARLEQUIM – Essa é ótima! Tanta gente que não consegue arranjar um patrão e eu arranjei
dois! Será ótimo se os dois não se esquecerem de me pagar e me tratarem como gente! Dois
patrões, vejam só! Mas como é que vou fazer? Não posso ser criados dos dois! Não posso?
Quem disse que não posso? Por acaso não seria um bom negócio ganhar dois ordenados?
Seria sim, se eles não souberem um do outro. E se descobrem? Ora, não faz mal. Se for
despedido por um fico com outro. Vou experimentar. Vou experimentar. Ânimo! Vamos ao
correio para ambos!
SILVIO (Entrando) – Homem!
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CENA XI
ARLEQUIM, FLORINDO, SILVIO.
ARLEQUIM entra no hotel. SILVIO anda nervoso pelo palco; quando vê sair alguém do hotel
vai para uma extremidade da cena.
ARLEQUIM (Saindo do hotel com Florindo) – Olhe, olhe... aquele cavalheiro cuspindo fogo por
todos os lados. Ele quer falar com o senhor. (Indica Silvio)
FLORINDO – Eu não o conheço. Nunca o vi. Que e que ele quer?
ARLEQUIM – Eu e que não sei. Com licença, estou indo ao correio. (Sai correndo)
FLORINDO (Para Silvio) – Desculpe, é o senhor que está me procurando?
SILVIO – Eu? Nunca tive a honra de o conhecer.
FLORINDO – O meu criado disse que o senhor queria falar comigo.
SILVIO (À parte) – O imbecil não entendeu. (Para Florindo) Eu disse que queria falar com o
patrão dele.
FLORINDO – Então é comigo. Eu sou o patrão de Arlequim.
SILVIO – O senhor?
FLORINDO – Nesse caso, queira me desculpar. Foi engano.
SILVIO – Com certeza. Talvez o seu criado seja muito parecido com um outro que conheço ou,
talvez, ele tenha dois patrões.
FLORINDO – O patrão sou eu. Não há outros.
SILVIO – Então peço desculpa outra vez.
FLORINDO – Não é nada. Qualquer um pode se enganar.
SILVIO – O senhor também é forasteiro?
FLORINDO – Sou de Turim, ao seu dispor!
SILVIO – Curioso, o cavalheiro com quem eu desejava falar também é de Turim.
FLORINDO – Então, sendo conterrâneo, talvez eu o conheça.
SILVIO – O senhor conhece Frederico Rasponi?
FLORINDO – Ah, bem... eu o conheci, sim.
SILVIO – Pois é... esse indivíduo pretende me roubar a noiva. É verdade que o pai dela tomou
um compromisso com ele, mas agora a filha está decidida a casar comigo.
FLORINDO – Não tema, meu amigo, Frederico Rasponi nunca poderá se casar! (Pausa) Ele
morreu!
SILVIO – Isso também eu e toda a gente pensava... mas hoje de manhã apareceu aqui em
Veneza... e bem vivo!
FLORINDO – Não é possível!
SILVIO – Por minha desgraça, é sim senhor!
FLORINDO – Frederico Rasponi está morto!
SILVIO – Posso assegurar que Frederico Rasponi está vivíssimo!
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CENA XII
FLORINDO.
FLORINDO (Sozinho) – Mas como e possível que uma espadeirada que o deixou em dois, não o
tenha morto? Eu vi com os meus próprios olhos ele tombar morto numa poça de sangue. Até
ouvi dizer que tinha morrido na hora. O fato e que eu ter fugido logo de Turim não me deu
tempo para ter a confirmação. Fugi... ora, todos me consideravam culpado! Nem pude
explicar tudo a Beatriz... mas... se ele não morreu... é melhor eu regressar logo a Turim para
ver Beatriz? Ela deve estar sofrendo com a minha ausência!
CENA XIII
ARLEQUIM, FLORINDO.
Aparece ARLEQUIM e mais um carregador trazendo às costas o baú de BEATRIZ. ARLEQUIM
dá pela presença de FLORINDO e temendo ser visto por este manda o carregador ficar
afastado.
ARLEQUIM (À parte) – Diabos! Lá está o outro patrão! Some companheiro e me espera ali.
FLORINDO (Pensando alto) – Ah, não tem dúvida. Regresso a Turim.
ARLEQUIM – Pronto. Cheguei, patrão.
FLORINDO – Arlequim, queres vir comigo a Turim?
ARLEQUIM – A Turim? Quando?
FLORINDO – Agora! Já!
ARLEQUIM – Sem almoçar?
FLORINDO – Não, antes almoçamos. E depois partimos.
ARLEQUIM – Ah, bem... durante o almoço eu vou pensar.
FLORINDO – Você foi ao correio?
ARLEQUIM – Fui, sim senhor.
FLORINDO – Havia cartas para mim?
ARLEQUIM – Havia, sim senhor.
FLORINDO – Onde estão?
ARLEQUIM – Estão aqui, senhor. (Tira do bolso três cartas. À parte) Ai, meu Deus! Misturei
as cartas e não sei ler...
FLORINDO – Então?
ARLEQUIM – É... senhor... é que... tenho aqui três cartas... mas não são todas para o senhor... é
que... encontrei um amigo meu na rua e... ele sabendo que eu ia ao correio... me pediu para
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pegar a correspondência do patrão dele. E sabe, não é...? Não se pode recusar um favor a um
velho colega. Agora, acontece... acho que... havia uma carta... mas já não sei qual é... não sei
mesmo...
FLORINDO – Deixa ver... dá aqui. (Lê os endereços. de repente, fica espantado.)
ARLEQUIM – O senhor já encontrou a carta do meu colega?
FLORINDO – Quem é esse colega?
ARLEQUIM – Ele é criado...
Florindo – Sim, mas como é o nome do...
ARLEQUIM – O nome?... Pascoal!
FLORINDO – Qual e nome do patrão do Pascoal?
ARLEQUIM – Eu não sei, senhor.
FLORINDO – Como?! Então ele te mandou buscar as cartas no correio e não te disse o nome?
ARLEQUIM – Bem... de fato, ele disse...
FLORINDO – Então, qual é?
ARLEQUIM – Esqueci... ele escreveu o nome num pedaço de papel...
FLORINDO: E onde está o papel?
ARLEQUIM: Dexei no correio.
FLORINDO – Onde mora o Pascoal?
ARLEQUIM – Não sei...
FLORINDO – Como é que vai entregar a carta se não sabe onde ele mora?
ARLEQUIM – Ele disse que... ia me esperar na praça! Aliás, é melhor o senhor me dar logo a
carta dele. Vou já correndo ver se encontro o Pascoal!
FLORINDO – Não! Eu preciso abrir esta carta.
ARLEQUIM – Não senhor! Não faça uma coisa dessas! Ai, ai, ai! (À parte) Se me safar desta,
será um milagre!
FLORINDO – Esta carta é do máximo interesse para mim. Tenho até direito de ler. (Abre a carta
e lê) – “Ilustríssima senhora patroa: a súbita partida de V. S. foi motivo de muito espanto
nesta cidade. Todos já sabem que se encontra em Veneza, procurando o senhor Florindo.
Autoridades daqui já foram para aí sabendo até que V. S. fugiu disfarçada com trajes de
homem. Para não despertar suspeitas, encarreguei um amigo de pôr esta carta no correio em
Gênova. Se houver alguma novidade importante, usarei o mesmo processo para me comunicar
com V. S. Seu mui humilde e fiel criado: Tonino delia Doira”. (Florindo lendo a carta fica
contentíssimo. Arlequim olha para o patrão com ar de censura.)
ARLEQUIM (À parte) – Muito bonito! Ler as cartas dos outros!
FLORINDO – Vai, meu querido Arlequim, trata de encontrar de qualquer forma o teu amigo
Pascoal. Procura saber se o patrão dele é homem ou mulher. Quero saber também onde ele
mora. Aliás, seria melhor você trazer aqui o seu amigo Pascoal. Vocês dois terão uma boa
recompensa.
ARLEQUIM – Então, me dê a carta, senhor, que eu vou já procurar o Pascoal.
FLORINDO – Toma. Vai e não esquece que é muito importante a missão que te confio.
ARLEQUIM – Mas... a carta está aberta!
FLORINDO – Inventa uma desculpa. Diz que foi um engano, um acidente, enfim... diz qualquer
coisa. Não sabes inventar uma história?
ARLEQUIM – Sei!
FLORINDO – Vai!
ARLEQUIM – Ah! E Turim? Já não vamos?
FLORINDO – Não, por ora, não. Vai, vai Arlequim. Vai à casa do Pascoal. (Volta para o hotel)
CENA XIV
ARLEQUIM sozinho. E depois o carregador com o baú.
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ARLEQUIM – Gostei da decisão dele. Já não vamos a Turim. Olha, sempre quero ver no que vai
dar este negócio de ter dois patrões. Quero experimentar as minhas habilidades. Agora o que
eu preciso é arranjar um meio para o patrão não perceber que a carta foi aberta. Tenho que
fechar. (Tenta fechá-la, mas sem resultado) O que eu preciso é colar isto. Mas, cadê cola?
Sem cola como fazer? Ah, me lembro que minha avó costumava colar as cartas com miolo de
pão. (Tira do bolso um pedacinho de pão, põe na boca para umedecer, mas não resiste à
tentação de engulir. Faz o mesmo três vezes. Afinal, com grande esforço consegue não
engulir o último miolo, fecha a carta, senta-se em cima da carta, etc) Pronto, acho que ficou
perfeita. Ah, a perfeição... “Eu não tolero senão o que é perfeito” Ui, me esqueci do
carregador. Ei! Homem. Companheiro. Camarada. Traz aqui o baú.
CARREGADOR (Aparece carregando o baú) – Onde é que vamos entregar isto?
ARLEQUIM – Ali naquele hotel. Vai indo que eu não demoro.
CARREGADOR – E quem e que vai pagar?
CENA XV
BEATRIZ, ARLEQUIM, CARREGADOR.
BEATRIZ (Saindo do hotel) – É esse o meu baú.
ARLEQUIM – É, sim senhor.
BEATRIZ – Leva logo para o meu quarto.
CARREGADOR – Qual é o número do seu quarto?
BEATRIZ – Pergunta ao criado do hotel.
CARREGADOR – O carreto são trinta vinténs.
BEATRIZ – Vai que depois eu te pago.
CARREGADOR – Eu queria já.
BEATRIZ – Ora, não me aborreça!
CARREGADOR – Já. Já. Senão... largo o baú aqui no meio da rua. (Recebe o dinheiro dela e
entra no hotel, empurrado por arlequim.)
ARLERQUIM (À parte) – Como... Isto é que é trabalhador! Não confia em patrão.
BEATRIZ – Você foi ao correio?
ARLEQUIM – Fui, sim senhor.
BEATRIZ – Havia cartas para mim?
ARLEQUIM – Havia só uma para a irmã do patrão.
BEATRIZ – Muito bem. Onde está?
ARLEQUIM – Está aqui. (Entrega a carta)
BEATRIZ – Esta carta foi aberta.
ARLEQUIM – Aberta? Ah, não pode ser.
BEATRIZ – Foi aberta e depois colada com pão.
ARLEQUIM – Ah, eu não sei nada disso.
BEATRIZ – Não sabes, hein? (Ameaça querer bater nele com um bambu) Fala!
ARLEQUIM – Ah, não! Pancada, não!
BEATRIZ: Vais levar mais do que pensas, se não fala já!
ARLEQUIM (Esquivando-se) – Espera aí! Castigos corporais? Tortura? Isso tá até proibido pela
constituição, que eu sei!
BEATRIZ – Chega de conversa! Quem abriu esta carta? Fala!
ARLEQUIM – Pera aí... todo mundo pode errar, não? Fique calmo, que eu vou explicar: lá no
correio havia uma carta para mim. Eu sei ler muito pouco. Então... abri a carta do patrão
pensando que fosse a minha...
BEATRIZ – Bem... se for verdade, não há grande mal nisso. Você leu a minha?
ARLEQUIM – Não senhor. Não entendo a letra...
BEATRIZ – Ninguém viu esta carta?
ARLEQUIM (Ofendido) – Oh, senhor!
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CENA XVI
ARLEQUIM, PANTALEÃO.
ARLEQUIM (Sozinho) – Peeela ma-dru-ga-da! Desta eu me saí bem! Melhor não podia ser.
Sujeito esperto tá aqui! Olha... eu não me dava o justo valor! Agora sei que valho muito
mais... pelo menos cem paulos mais do que eu próprio pensava!
PANTALEÃO (Entrando com uma capa que o torna diferente como o vimos no início) – Ei! O
teu patrão está em casa?
ARLEQUIM – Não senhor, não está.
PANTALEÃO – Sabe onde ele foi?
ARLEQUIM – Não sei, não senhor.
PANTALEÃO – Vai voltar para o almoço?
ARLEQUIM – Acho que sim.
PANTALEÃO – Então, presta atenção. Como não posso esperar, assim que o teu patrão chegar,
entrega-lhe esta bolsa com oitocentos paulos. Até logo. (Sai)
CENA XVII
ARLEQUIM, FLORINDO.
ARLEQUIM – Espere...! Escute...! Pare... olhe... veja! Boa viagem! Mas ele nem me disse a qual
dos meus patrões tenho que entregar este dinheiro!
FLORINDO (Entrando) – Então, Arlequim, encontraste o Pascoal?
ARLEQUIM – Não senhor, não encontrei o Pascoal... mas encontrei um sujeito que me entregou
uma bolsa com oitocentos paulos!
FLORINDO – Oitocentos paulos? Para fazer o que?
ARLEQUIM – Por favor, patrão, diga francamente: o senhor está esperando algum dinheiro?
FLORINDO – Estou.
ARLEQUIM – Então o dinheiro é seu.
FLORINDO – Mas o que disse o homem que entregou o dinheiro?
ARLEQUIM – Disse assim: “Entrega essa bolsa ao teu patrão”!
FLORINDO – Então, por que dúvidas? Claro que o dinheiro é para mim! Eu não sou o teu
patrão?
ARLEQUIM – Éééée, sim senhor.
FLORINDO – Você não sabe quem foi que te deu a bolsa?
ARLEQUIM – Não sei, não senhor. A cara dele não me e estranha, mas não consigo me lembrar
onde foi que já a vi antes.
FLORINDO – Deve ser o mercador a quem te recomendei.
ARLEQUIM – É isso mesmo! Deve ser.
FLORINDO – Não te esqueças do Pascoal!
ARLEQUIM – Depois do almoço, vou procurar por ele.
FIORINDO – Está bem, vamos almoçar. (Entra no hotel)
ARLEQUIM (Sozinho) – Safa! Ainda bem! Desta vez acertei. Entreguei o dinheiro à pessoa
certa. (Entra no hotel)
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SEGUNDO ATO
CENA I
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CENA II
Pátio em casa de PANTALEÃO.
SILVIO – Senhor meu pai, por favor, me deixe em paz!
DOUTOR – Por que estas aqui em frente da casa do Sr. Pantaleão?
SILVIO – Porque eu quero que ele cumpra a palavra dada, ou então terá que se haver comigo.
DOUTOR – Mas isso não e bom tratar aqui. O ódio não resolve nada!
SILVIO – Quem faz uma ofensa destas não merece respeito.
DOUTOR – Justíssimo, meu filho, mas nada de precipitações! Deixa comigo que eu falo com
ele. Pode ser que eu o... ilumine... eu lhe faço sentir o dever. É isso, o dever... dever!... Vai,
afasta-te daqui, para evitar cenas.
SILVIO – Mas eu...
DOUTOR – Mas eu... quero ser obedecido!
SILVIO – Está bem, fale com ele. Eu espero ali. Mas se o senhor Pantaleão insistir, tem que se
haver comigo. (Sai)
DOUTOR (Sozinho) – Meu pobre filho. Como te compreendo... Ah! Sr. Pantaleão... ah! Mas eu
não quero que o ódio me domine.
PANTALEÃO (Entrando, à parte) – Mas que faz o Doutor na minha casa?
DOUTOR – Oh! Sr. Pantaleão, as minhas homenagens!
PANTALEÃO – Seu servidor, Sr. Doutor! Ia justamente agora à sua procura e do seu filho.
DOUTOR – Sim? Bravo! Com certeza que o senhor vinha para confirmar o casamento de D.
Clarisse com meu filho.
PANTALEÃO (Com dificuldade para falar.) – Quer dizer, eu vinha para dizer...
DOUTOR – Não, não, não é preciso se justificar. Eu compreendo a situação em que se
encontrou, mas a minha amizade já perdoou isso. Águas passadas...
PANTALEÃO – O fato é que considerando a promessa feita ao Sr. Frederico...
DOUTOR – E quando o senhor foi tomado de surpresa, não pensou na afronta que isso
representaria para a nossa família.
PANTALEÃO – Não seria uma afronta quando um outro contrato precedia, quer dizer...
DOUTOR – Eu sei muito bem o que quer dizer. Pareceria ã primeira vista que a promessa feita a
Frederico fosse indissolúvel porque estipulada por contrato. Mas era um contrato feito entre o
senhor e ele, e o nosso é confirmado pela sua filha.
PANTALEÃO – É verdade, ma...
DOUTOR – E sabe muito bem que em matéria de matrimônios: “Non-sensus et non concubitus
facit virum”.
PANTALEÃO – Não sei latim, mas quer dizer...
DOUTOR – E os jovens não devem ser sacrificados.
PANTALEÃO – Tem algo mais a dizer?
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CENA III
Sala de hotel com duas portas laterais, uma de cada lado.
ARLEQUIM – Sou um desgraçado. Vejam bem: tenho dois amos e ainda nenhum deles apareceu
para o almoço. Meio dia já passou há duas horas e não se vê ninguém! Acabam por chegar na
mesma hora, e vai ser o diabo. Não posso servir os dois ao mesmo tempo, e vão descobrir que
sou comum de dois. Ah! Ah! Silêncio! Um deles vem aí... calma Arlequim!
FLORINDO – Então encontraste o Pascoal?
ARLEQUIM – Mas, meu senhor, não tínhamos combinado que eu ia procurá-lo depois do
almoço? O senhor me disse: “Vamos encomendar o almoço...” E, depois, sumiu... a comida a
estas horas já não deve estar muito boa.
FLORINDO – Não estou com vontade de comer.
ARLEQUIM – Nesta terra a gente precisa de comer. Quem não come adoece.
FLORINDO – Agora, não posso. Tenho de ir tratar de uns assuntos urgentes. Se eu voltar para o
almoço, bem. Do contrário, comerei à noite. Por teu lado, se estás com fome, pede comida.
ARLEQUIM – Bem, sendo assim, o senhor e quem manda. (À parte) Que belo patrão. (Vai
saindo)
FLORINDO – Ah, Arlequim, escuta aqui. Esta bolsa de dinheiro está pesada. Coloca no meu
baú. Toma a chave. (Dá-lhe a bolsa com o dinheiro)
ARLEQUIM – Trago já a chave.
FLORINDO – Não, não é preciso, não tenho tempo a perder, fica com ela. Se eu não voltar para
o almoço, me procure na praça. Esperarei lá, até chegares com o Pascoal. (Sai)
ARLEQUIM – Desta vez vou comer... por dois. (Vendo Beatriz) O outro...
BEATRIZ – Arlequim, o senhor Pantaleão não te deu uma bolsa com oitocentos paulos?
ARLEQUIM: Deu, sim, senhor.
BEATRIZ – E então?
ARLEQUIM – Mas esse dinheiro é para o senhor?
BEATRIZ – O que foi que ele te disse quando te deu a bolsa?
ARLEQUIM – Disse que devia entregá-la ao meu patrão.
BEATRIZ – E o teu patrão quem é?
ARLEQUIM – O senhor.
BEATRIZ – Então por que perguntas se a bolsa é minha?
ARLEQUIM – Então a bolsa e sua.
BEATRIZ – Onde é que está a bolsa?
ARLEQUIM – Está aqui. (Dá a bolsa)
BEATRIZ – Está certo?
ARLEQUIM – Eu nem tive tempo de contar.
BEATRIZ – Briguela está lá dentro?
ARLEQUIM – Está sim, senhor.
BEATRIZ – Vai lhe dizer que ponha mais um talher, porque convidei um amigo para o almoço.
ARLEQUIM – O que é que o senhor quer para almoçar? Quantos pratos?
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BEATRIZ – O senhor Pantaleão não é homem de abundância. Diz ao hoteleiro que prepare
qualquer coisa de especial para uns cinco ou seis pratos.
ARLEQUIM – O senhor confia em mim para a escolha?
BEATRIZ – Confio. Vou buscar o convidado e quando voltar quero tudo pronto.
ARLEQUIM – Vá descansado.
BEATRIZ – Ah, espera... toma este papel e põe no baú. Mas cuidado: é uma letra de quatro mil
escudos.
ARLEQUIM – Não tenha medo. Vou guardar, já, já.
BEATRIZ – Vai e não te esqueças: bom e rápido. (À parte) Coitado do Pantaleão, não ganhou
para o susto. Agora precisa de distração. (Sai)
ARLEQUIM (Sozinho) – Agora preciso me sair bem com este amo. A primeira vez que me
encomenda um almoço preciso mostrar que tenho bom paladar. Primeiro vou guardar este
papel no baú, e depois... não, e melhor não perder tempo. (Chamando) Senhor Briguela.
Senhor Briguela! (Para si) Um bom almoço, antes de mais nada, precisa ser muito bem
organizado. A ordem é uma coisa muito importante. É mais elogiada uma linda disposição do
que uma montanha de pratos.
BRIGUELA – Então, que manda, senhor Arlequim?
ARLEQUIM – O meu amo convidou um amigo para almoçar com ele e quer que o senhor tome
todas as providências agora, neste momento. Tem tudo o que preciso na cozinha?
BRIGUELA – Na minha cozinha há sempre o que é preciso para qualquer categoria e número de
hóspedes. Em meia hora posso preparar qualquer refeição.
ARLEQUIM – Muito bem! Então o que é que o senhor vai preparar?
BRIGUELA – Para duas pessoas, vamos fazer um almoço com dois menus, cada um de quatro
pratos, está bem?
ARLEQUIM – O meu amo disse cinco ou seis ou até oito. Que coisa põe nesses pratos?
BRIGUELA – O primeiro menu consistira de: sopa, omelete, carne cozida e um "fricandô".
ARLEQUIM – Que diabo é esse fricandô?
BRIGUELA – Ah, meu amigo! É uma especialidade francesa! Uma delícia!
ARLEQUIM – Ah! Ótimo!
BRIGUELA – O segundo menu consistirá de: carne assada, salada, picadinho e pudim.
ARLEQUIM – Que é esse pudim? Outro prato francês?
BRIGUELA – Não, este é inglês. Pudding. Mas muito bom.
ARLEQUIM – Está bem. E agora quero saber qual será a disposição dos pratos na mesa.
BRIGUELA – Isso é muito fácil. O criado já sabe como fazer.
ARLEQUIM – Ah, não, meu amigo. Eu quero saber como é que vai ser. Ordem e bom gosto.
BRIGUELA – Bem... poderemos colocar aqui a sopa, ali o assado, lá a carne cozida e o
“fricandô”. (Encena uma certa disposição)
ARLEQUIM – Não gostei. E no centro da mesa o que é que vai pôr?
BRIGUELA – Bem... no centro... só se fossem cinco pratos.
ARLEQUIM – Bem... está bem, cinco pratos.
BRIGUELA – Ótimo. Para o centro da mesa, vou fazer um molho especial.
ARLEQUIM – Ai o senhor não entende nada. Onde é que aprendeu a colocar molho no centro
da mesa? Nunca se viu uma coisa dessas! O centro da mesa é o lugar da sopa. Olhe bem!
Observe qual é a técnica de preparar uma mesa! (Ajoelha com um joelho) Faz de conta que
aqui está a mesa. Temos cinco pratos, não é verdade? Pois bem: aqui no centro a sopa. (Rasga
um pedaço da letra e coloca-a no lugar imaginário da sopa) Deste lado, a carne cozida.
(Rasga outro pedaço da letra) Aqui a carne assada. Aqui o molho, e neste lugar os tais pratos
franceses ou ingleses. Viu? Não acha que assim fica perfeito?
BRIGUELA – Está bem, mas o molho fica longe da carne cozida; assim não serve.
ARLEQUIM – Então vou estudar uma maneira de ficar mais perto.
BEATRIZ (Entrando) – Que estás fazendo aí no chão?
ARLEQUIM – Estava mostrando aqui ao Sr. Briguela...
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ARLEQUIM – Espera um pouquinho que eu venho já. (Apanha do chão o prato com os
croquetes e dirige-se a sala de Florindo)
CRIADO – Pera aí! Os croquetes são para o outro.
ARLEQUIM – Sim, sim, eu sei... mas o meu amo quer fazer um presente ao outro forasteiro.
Capisca? (Entra na sala de Florindo. Reaparece e aproxima-se do criado e caem-lhe os olhos
no pudim) Que é isso?
CRIADO – Pudim à inglesa.
ARLEQUIM – Para quem?
CRIADO – Para o teu patrão. (Sai)
ARLEQUIM – Que diabo é este pudim? Hum!... O cheiro é muito bom. Parece que está vivo! Se
fosse vivo me comia. Mas eu é que... (Tira um garfo do bolso e prova o pudim) Não sei se é
bicho ou lixo... o certo é que é muito bom. (Come) É melhor que croquetes. (Come)
BEATRIZ (De fora) – Arlequim!
ARLEQUIM (Com a boca cheia) – Já vou.
FLORINDO (De fora) – Arlequim!
ARLEQUIM (Idem) – Já vou. Ai, que coisa boa! Que maravilha esses ingleses. (Continua a
comer)
BEATRIZ (Saindo da sua sala e vendo Arlequim dá-lhe um pontapé) – Vem me servir, tratante.
(Volta para a sua sala)
ARLEQUIM (Põe o pudim no chão, esconde-o e entra na sala de Beatriz) – Tou indo!
FLORINDO (Saindo da sala) – Arlequim! Onde diabo se meteu ele?
ARLEQUIM (Saindo da sala de Beatriz) – Estou aqui, patrão.
FLORINDO – Pode-se saber por onde andas?
ARLEQUIM – Fui buscar uns pratos, patrão.
FLORINDO – Há mais alguma coisa para comer?
ARLEQUIM – Vou perguntar na cozinha.
FLORINDO – Então, depressa! Já disse que preciso ir descansar. (Volta para a sala)
ARLEQUIM – Sim, senhor. (Chama para fora) Criados! (À parte) Este pudim fica para mim.
(Esconde-o)
CRIADO (Entra com um prato) – A carne assada.
ARLEQUIM (Pega na carne) – Depressa, a fruta...
CRIADO – Que pressa, já vou. (Sai)
ARLEQUIM – Isto aqui vai para aquele que ainda está com fome. (Entra na sala de Florindo)
CRIADO (Com outro prato) – Ei. Aqui está a sobremesa! Onde é que estás?
ARLEQUIM (Saindo da sala de Florindo) – Aqui.
CRIADO (Dá-lhe a fruta) – Mais alguma coisa?
ARLEQUIM – Espera. (Leva a fruta a Beatriz)
CRIADO – Salta daqui, salta dali, parece um diabo.
ARLEQUIM (Saindo da sala de Beatriz) – Obrigado, não quero mais nada. Ninguém quer mais
nada. Acabou. Vai preparar a mesa para mim. (Criado sai) Pronto! Venci a prova Todos estão
contentes! Não querem mais nada! Foram servidos! Consegui servir dois amos, sem que um
soubesse do outro. Mas agora, depois de ter servido os dois, vou eu comer por quatro.
CENA IV
Rua em frente ao hotel.
ESMERALDINA – Ora vejam a discrição da minha patroa. Mandar uma moça como eu entregar
um bilhete num hotel! Ah! Servir uma menina apaixonada e a coisa pior que há. E é muito
estranha... não posso compreender que estando apaixonada pelo senhor Silvio, a ponto de se
debulhar em lágrimas por ele, me mande entregar bilhetes a um outro. Quem sabe ela quer ter
um para o inverno e outro para o verão. Eu naquele hotel é que não entro. Vou chamar daqui e
alguém há de responder. Ó de casa.
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ARLEQUIM (Esquivando-se) – Pera aí. Castigos corporais, não! Tá proibido pela Constituição,
que eu sei.
BEATRIZ – Vem aqui, já, seu moleque atrevido.
ARLEQUIM – Só se for para um papo legal. Eu sou pela Lei!
BEATRIZ – Está bem, mas vem aqui, já. Como eu mandei'.
FLORINDO (Aparece à janela do hotel e vê a cena) – Quem se atreve a bater no meu criado?
(Desaparece da janela)
ARLEQUIM – Socorro. Ai, ai, ai.
BEATRIZ – Toma que é para aprenderes a não abrir as cartas. (Atira o bastão para o chão e sai)
ARLEQUIM (Sozinho) – Coitado do Arlequim. Bater num menino como eu. Quando um criado
comete uma falta, não se bate nele, manda embora. Quando um patrão comete uma falta,
também não se bate nele... a gente é que vai embora.
FLORINDO (Aparece) – Que é que estás dizendo?
ARLEQUIM – Eu? Que não se deve bater nos criados dos outros desta maneira... é uma ofensa.
FLORINDO – A ofensa é para mim que sou teu amo. Quem é o homem que te bateu?
ARLEQUIM – Não sei, nunca vi mais gordo.
FLORINDO – E você se deixa agredir assim, sem reagir, por um sujeito desconhecido? Deixa
que ofendam o teu amo sem se mexer? Sem se defender? Burro. Idiota! (Apanha o bastão do
chão) Se gostas de apanhar, vais receber dobrado. (Bate-lhe e depois entra no hotel)
ARLEQUIM (Sozinho) – Agora posso dizer que sou servidor de dois amos. Recebi o salário de
ambos!
TERCEIRO ATO
CENA I
Sala do hotel de Briguela.
ARLEQUIM, sozinho, deitado em cima de um grande baú, outro baú do mesmo tipo no outro
extremo da cena.
ARLEQUIM – Bem, a dor das pancadas já sumiu: afinal almocei bem, jantei muito bem e se
tudo correr bem, vou cear melhor ainda; e, enquanto for possível, continuarei servindo dois
amos. Aquele ali está dormindo, o outro saiu. Vou aproveitar este momento para abrir os dois
baús e arejar as roupas. (Tira as chaves do bolso) Vou cuidar de tudo com muito jeito, sem
que ninguém me atrapalhe... qual será a chave deste baú? Ah! Acertei logo. Eu sou o maior do
mundo! Agora é melhor tirar tudo. Quem sabe se tem alguma coisa nos bolsos! Às vezes a
gente tem surpresas agradáveis... ai! Que bonito retrato! Que bela figura! De quem será este
retrato? Até parece que conheço... parece um pouco com o meu primeiro amo... não, ele não
se veste desta maneira... nem usa esta peruca...
FLORINDO (Chamando de fora) – Arlequim!
ARLEQUIM (Para si) – Já! Já acordou! Não me deixam em paz um momento! Se ele descobrir
o outro baú vai ser o diabo... vou fechar; se perguntar, direi que não sei de quem é. (Começa a
por a roupa na mala)
FLORINDO (De fora) – Arlequim!
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ARLEQUIM – Já vou... já não me lembro de que mala tirei esta roupa e estes papeis...
FLORINDO – Arlequim, vens ou queres apanhar mais?
ARLEQUIM – Já vou... (Atira as roupas confusamente para dentro das malas e fecha-as)
FLORINDO (Entrando) – Que estás fazendo?
ARLEQUIM – O senhor não me mandou cuidar das roupas? Era isso mesmo que eu ia fazer.
FLORINDO – De quem é aquele baú?
ARLEQUIM – Não sei não, senhor. Talvez seja dum outro forasteiro.
FLORINDO – Quero o meu traje preto.
ARLEQUIM – Sim, senhor. (Abre a mala de Florindo e tira o traje preto. Ajuda o amo a vestir-
se.)
FLORINDO (Encontrando um retrato no bolso) – Que é isto? Como e que este retrato veio parar
no meu bolso? Vamos, fala...
ARLEQUIM – Senhor... desculpe a liberdade que eu tomei... o retrato é meu, mas... para não
perdê-lo, escondi no bolso do senhor... por favor, meu senhor, perdoe!
FLORINDO – Quem te deu este retrato?
ARLEQUIM – Herdei do meu amo.
FLORINDO – Herdaste?
ARLEQUIM – Sim, senhor. Eu estive algum tempo ao serviço dum senhor. Quando ele morreu,
me deixou umas coisas que eu vendi. Este retrato eu guardei.
FLORINDO – Meu Deus... há quanto tempo morreu esse teu amo?
ARLEQUIM: Há uma semana, mais ou menos.
FLORINDO – E qual era o nome dele?
ARLEQUIM – Não sei, senhor. Ele vivia “incógnito”.
FLORINDO – Quanto tempo estiveste ao seu serviço?
ARLEQUIM – Muito pouco... dez ou doze dias...
FLORINDO – Escuta: era jovem esse teu amo?
ARLEQUIM – Sim senhor, muito jovem. Nem sequer tinha barba!
FLORINDO – Não tinha barba?
ARLEQUIM – Não tinha barba.
FLORINDO – Não era, por acaso, de Turim?
ARLEQUIM – Isso mesmo, sim senhor, de Turim.
FLORINDO – Como foi que ele morreu?
ARLEQUIM – Ah, foi assim, de repente...
FLORINDO – Onde foi enterrado?
ARLEQUIM: Ele não foi enterrado, não senhor. Um outro criado, que estava também ao seu
serviço, obteve licença de meter o corpo num caixão e mandou-o de volta para Turim.
FLORINDO – O outro criado era o mesmo que encontraste hoje de manhã, quando ias ao
correio?
ARLEQUIM – Era esse mesmo, sim senhor. Era o Pascoal.
FLORINDO (Sai chorando, voltando para o seu quarto e deixando Arlequim espantadíssimo) –
Ai de mim! Beatriz morreu. Pobre Beatriz, o desgosto te matou!
ARLEQUIM – Que encrenca é esta? Saiu chorando... descobriu o retrato e ficou esquisito...
hum... sei lá... não vou pensar mais nisso. Expliquei as coisas da melhor maneira possível...
agora preciso levar estes baús para os seus lugares para não dar mais confusão... ai, ai, lá vem
o outro.
BEATRIZ (Entrando e falando com Pantaleão) – Não, senhor Pantaleão... eu lhe asseguro que a
conta dos espelhos está errada...
PANTALEÃO – Talvez o contador tenha se enganado. Vamos conferir outra vez e ver onde está
o erro.
BEATRIZ – Podemos conferir com as contas que tenho comigo, não acha? Arlequim!...
ARLEQUIM – Patrão?!
BEATRIZ – Tens a chave do meu baú, não tens?
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CENA II
Rua em frente ao hotel de Briguela.
DOUTOR (Passeia nervoso) – Aquele desgraçado velho me tirou a paz e o sossego. Quanto
mais penso mais me esquento toda a cabeça.
PANTALEÃO (Saindo do hotel, muito alegre) – Caro Doutor, muito me alegra cumprimentá-lo!
DOUTOR – O senhor ainda se atreve a me cumprimentar?
PANTALEÃO – Quero lhe dar uma notícia. Saiba que...
DOUTOR – Se o senhor quer me anunciar o casamento de sua filha saiba que... que não me
aquece nem arrefece.
PANTALEÃO – Não é nada disso. Deixe-me falar...
DOUTOR – Fale, fale ou berre se quiser.
PANTALEÃO (À parte) – Estou com ganas de achatar este doutorzinho (Ao Doutor) Se o senhor
quiser, minha filha poderá casar com seu filho.
DOUTOR – Obrigadíssimo, não se incomode. Meu filho não tem estômago para isso. Pode casá-
la com o tal Frederico.
PANTALEÃO – Se soubesse quem era o tal Frederico, não falaria assim.
DOUTOR – Seja lá quem for. Sua filha já foi vista na rua com ele. “Et hoc sufficit”.
PANTALEÃO – Mas não é...
DOUTOR – Mas não é... não quero ouvir mais.
PANTALEÃO – Se não me ouvir, será pior.
DOUTOR – Pior? Veremos...
PANTALEÃO – A minha filha é uma donzela imaculada! E quem...
DOUTOR – Diabo que o carregue.
PANTALEÃO – Você! Pro fundo dos infernos!
DOUTOR – Você.
PANTALEÃO – Você.
DOUTOR – Chega! Velho sem palavra e sem reputação! (Sai)
PANTALEÃO (Sozinho e agitado) – É um asno vestido de gente! Olhem, e agora lá vem o filho
daquele burro para me encher os tímpanos.
SILVIO (Entrando. À parte) – Ah, senhor Pantaleão, sinto cócegas na palma da mão.
PANTALEÃO – Senhor Silvio, os meus cumprimentos. Quero lhe dar uma notícia, se se
dignasse deixar-me falar e não fazer como excelentíssimo senhor seu pai.
SILVIO – Fale.
PANTALEÃO – Saiba que o matrimônio de minha filha com o senhor Frederico foi por água
abaixo.
SILVIO – E verdade? Não me está enganando?
PANTALEÃO – É a pura verdade. E mais: se ainda tem as mesmas intenções, minha filha está
disposta a casar com o senhor.
SILVIO – Oh! Céus! O senhor me dá vida nova!
PANTALEÃO (À parte) – Ora, vá. Não parece tão burro como o seu pai.
SILVIO – Mas como poderei casar com uma menina que já foi noiva de outro?
PANTALEÃO – Escute, rapaz: Frederico Rasponi mudou de sexo.
SILVIO – Como?
PANTALEÃO – É mulher.
SILVIO – Mulher? De quem?
PANTALEÃO – Dela, isto é, dele. Não. O caso é assim: Frederico não é Rasponi. Quer dizer, é
Rasponi, mas não é Frederico, é Beatriz, a irmã dele.
SILVIO – A irmã de quem?
PANTALEÃO – A irmã de Rasponi.
SILVIO – Mas que Rasponi?
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PANTALEÃO – A irmã de Frederico, que não estava morto, mas que está mesmo morto.
SILVIO – Mas quem o matou?
PANTALEÃO – Morto estou eu, por aturar você. Aquele que se fazia passar por Frederico,
descobriu-se que era Beatriz.
SILVIO – Vestida de homem?
PANTALEÃO – Vestida de homem?
SILVIO – Bem, mas então...
PANTALEÃO – É inútil continuar; o importante é que ela é mulher e não pode casar com outra
mulher.
SILVIO – Confesso que não compreendi muito bem.
PANTALEÃO – Nem é preciso. Ela é mulher, entendeu?
SILVIO – Quase. Mas por que é que se fez passar por homem?
PANTALEÃO – Depois eu explico. Agora vamos já para casa contar tudo a Clarisse.
SILVIO – Vou sim, e ao mesmo tempo quero pedir perdão pelo que fiz... foi a paixão...
PANTALEÃO – Já esqueci tudo. Mas agora vamos, meu filho.
SILVIO – Ah! Sr. Pantaleão, meu coração transborda de felicidade.
CENA III
Beatriz e Florindo saem, cada um do seu quarto, decididos a se suicidar. Beatriz vem amparada
por Briguela e Florindo por um criado. Eles avançam de maneira a não se poderem ver um ao
outro
BRIGUELA (Procurando segurar a mão de Beatriz) – Não faça isso.
BEATRIZ (Querendo esquivar-se) – Deixe-me, por favor, me largue!
CRIADO (Segurando Florindo) – Mas é uma loucura...
FLORINDO (Livrando-se do criado) – Me largue; homem! Me largue!
BEATRIZ (Livra-se de Briguela) – Ninguém pode me impedir de... (Os dois avançam, decididos
a suicidar-se. De repente, chegam um à frente do outro e se reconhecem.)
FLORINDO – Que vejo!
BEATRIZ – Florindo!
FLORINDO – Beatriz!
BEATRIZ – Vivo!
FLORINDO – Viva! Meu amor! (Abraçam-se)
BRIGUELA (Aos criados, apontando as espadas no chão) – Limpem aquele sangue, que o
perigo já passou. (Sai. Briguela e o criado apanham as espadas e saem)
FLORINDO – Querida, que foi que te levou a tamanho desespero?
BEATRIZ – A falsa notícia da tua morte.
FLORINDO – Mas quem te deu essa notícia?
BEATRIZ – O meu criado.
FLORINDO – Também o meu me fez acreditar na tua morte. Daí a razão do meu gesto.
BEATRIZ (Pegando no livro) – Este livro foi a prova definitiva.
FLORINDO – Mas esse livro estava no meu baú. Como foi parar em tuas mãos? Deve ter sido
da mesma forma que eu encontrei o teu retrato num dos meus bolsos. Olha, aqui está ele.
BEATRIZ – Deve ter sido obra dos nossos criados eles foram a causa dos nossos sofrimentos.
FLORINDO – Onde estarão esses patifes?
BEATRIZ – Não se vê nem um nem outro.
FLORINDO – Precisamos descobrir a verdade. (Chamando) Olá!
BRIGUELA (Entrando) – O senhor chamou?
FLORINDO – Mande chamar os nossos criados. Precisamos falar com eles, já.
BRIGUELA – Eu só conheço um. Mas o meu pessoal deve conhecer os dois.
FLORINDO – Então vá depressa...
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BRIGUELA (Voltando-se já na saída) – Ah! Parabéns, por terem escolhido uma morte tão doce.
Porém aconselho-os a escolher outro lugar mais conveniente para o enterro. Criado de vossas
senhorias. (Sai)
FLORINDO – Também moras neste hotel?
BEATRIZ – Sim, meu amor. Cheguei esta manhã.
FLORINDO – E Frederico?...
BEATRIZ – Sim...
FLORINDO – Disseram-me que ele estava vivo... e aqui em Veneza.
BEATRIZ – Muita gente me toma por Frederico. Saí de Turim em traje de homem apenas para...
FLORINDO – ... te encontrares comigo. Já sabia disso por uma carta que te enviaram de Turim.
BEATRIZ – Como é que chegou as tuas mãos?
FLORINDO – Como o meu criado parece que é muito amigo do teu, me trouxe por engano.
Quando li o endereço com o teu nome, não resisti à tentação de abrir. Perdoas?
BEATRIZ – Sim, meu amor.
FLORINDO – Que é que os teus amigos de Turim vão pensar desta aventura?
BEATRIZ – Se eu voltar como tua esposa, tudo se esquecerá.
FLORINDO – Como é que eu posso voltar a Turim sendo acusado de homicídio?
BEATRIZ – O capital que eu consegui reunir aqui em Veneza, poderá servir para te defender dos
nossos inimigos.
(Arlequim entra empurrado por Briguela e um Criado)
FLORINDO – Aí vem um dos dois.
BEATRIZ – Hum... Desconfio que é aquele o culpado...
FLORINDO – Eu também. Sejamos muito amáveis com ele para que não se assuste e conte tudo.
(A Arlequim) Vem cá. Não tenhas medo.
BEATRIZ – Ninguém te fará mal.
ARLEQUIM (À parte) – Sim, mas eu ainda não esqueci as pauladas.
BRIGUELA – Até agora só encontramos um. Vamos procurar o outro. (Sai com o criado)
FLORINDO – Vem cá meu rapaz. (Arlequim treme) Agora conta como é que tu e aquele teu
amigo arranjaram a história do livro e do retrato.
ARLEQUIM (Pede silêncio a ambos com um gesto) – Calminha! Por favor... uma palavrinha
para cada um. (A Florindo, afastando Beatriz) Preciso falar em particular com o senhor. (A
Beatriz no momento em que se prepara para falar a Florindo) Depois conto tudo à senhora.
(Com Florindo) Saiba o senhor que eu não tenho culpa nenhuma nessa história. O causador
foi o Pascoal, criado daquela senhora. (Apontando discretamente para Beatriz) Foi ele quem
trocou os baús. Foi ele quem pôs a roupa de um no baú do outro, e depois me pediu para não
dizer nada. Tinha medo que a senhora o despedisse. Coitadinho. Seria terrível se ele perdesse
o emprego. Ele tem mulher e doze filhos, isto para não falar da mãe, velha e doente. Eu, como
o senhor sabe, tenho um coração de passarinho, e então inventei todas aquelas histórias para
salvar o Pascoal. Nunca imaginei, que senhor fosse sofrer tanto por causa do retrato. Acredite
no seu fiel criado.
BEATRIZ (À parte) – Que grande discurso. Estou ansiosa para descobrir o mistério.
FLORINDO (Baixo a Arlequim) – Quer dizer que o homem que te pediu para ires buscar a carta
no correio era o criado de D. Beatriz?
ARLEQUIM (Baixo) – Sim, senhor, era o Pascoal.
FLORINDO (Baixo) – Por que guardaste segredo quando eu te interroguei?
ARLEQUIM (Baixo) – Porque ele me pediu para não falar.
FLORINDO (Baixo) – Quem?
ARLEQUIM (Baixo) – O Pascoal.
FLORINDO (Baixo) – Por que não obedeceste ao teu patrão?
ARLEQUIM (Baixo) – Em favor do Pascoal.
BEATRIZ – Então já acabou a confissão?
FLORINDO – Ele está me contando...
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ARLEQUIM – Pelo amor de Deus, patrão, não denuncie o Pascoal. É melhor dizer que fui eu, do
que deixar na miséria os catorze filhos de Pascoal.
FLORINDO – Tu és muito amigo desse Pascoal!
ARLEQUIM – Como se fosse meu irmão. Agora vou falar com aquela senhora para dizer que fui
eu. Não faz mal que ela grite comigo ou me bata. O que é preciso é salvar o Pascoal. (Afasta-
se de Florindo e vai a Beatriz)
FLORINDO (À parte) – No fundo é um bom rapaz.
ARLEQUIM (A Beatriz) – Aqui estou eu minha senhora.
BEATRIZ (Baixo) – Que estivestes dizendo ao senhor Florindo?
ARLEQUIM (Baixo) – Saiba que aquele senhor tem um criado que se chama Pascoal, que é o
maior trapalhão do mundo; foi ele que arranjou todas as trapalhadas, e como pobre diabo
tinha medo que o patrão o despedisse eu arranjei aquela desculpa do livro, do patrão morto,
afogado, etc. E acabo de dizer ao senhor Florindo que fui eu o culpado de tudo.
BEATRIZ – Por que te acusas de uma falta que não cometeste?
ARLEQUIM – Em favor do Pascoal.
FLORINDO (À parte) – A explicação nunca mais acaba! Por favor, não diga que foi ele.
BEATRIZ – Quem?
ARLEQUIM – Pascoal.
BEATRIZ – Tu e Pascoal... que grandes trapalhões.
ARLEQUIM – Sou eu, só.
FLORINDO – Não investiguemos mais, Beatriz. Os nossos criados não fizeram por mal,
merecem um corretivo, mas eu acho que para celebrar a nossa felicidade podemos perdoá-los
por esta vez.
BEATRIZ – É verdade, mas o teu criado...
ARLEQUIM (Baixo) – Por favor, não diga Pascoal.
BEATRIZ – Bem, agora preciso ir à casa do senhor Pantaleão. Queres vir comigo, Florindo?
FLORINDO – Iria com todo o prazer, mas como estou esperando um banqueiro, irei lá mais
tarde.
BEATRIZ – Está bem, fico esperando.
FLORINDO – Mas eu não sei onde é a casa dele.
ARLEQUIM – Eu sei, meu senhor, posso acompanhá-lo.
BEATRIZ – Bem, vou ao meu quarto acabar de me vestir.
ARLEQUIM (Baixo a Beatriz) – Vá indo que eu vou em seguida (Beatriz sai. A Florindo:)
Patrão, Pascoal não está em casa, não seria melhor eu ir ajudá-la?
FLORINDO – Vai, Arlequim. Cuida dela como se fosse a tua patroa.
ARLEQUIM (Saindo em direção ao quarto de Beatriz) – Em imaginação, em prontidão, em
esperteza, desafio qualquer um. (Sai)
FLORINDO (Sozinho) – Grandes coisas aconteceram num só dia. Lágrimas, tristezas, mágoas...
e por último, a alegria. Passar do pranto ao riso é um doce salto que faz esquecer os revezes;
mas quando do prazer se passa à dor a mudança é mais sensível.
BEATRIZ (Entrando) – Já estou pronta.
FLORINDO – Quando é que mudas esses trajes, meu amor?
BEATRIZ – Não fico bem, vestida assim?
FLORINDO – A tua beleza não merece esses disfarces.
BEATRIZ – Bem... mas por agora... preciso ir. Eu te espero em casa do senhor Pantaleão.
FLORINDO – Até já, minha querida.
ARLEQUIM (Entrando. Baixo a Beatriz) – Quer que eu fique com o senhor Florindo?
BEATRIZ (Baixo a Arlequim) – Sim, acompanha-o até lá.
ARLEQUIM (Baixo) – Sim, senhora. A senhora sabe, o Pascoal ainda não apareceu...
BEATRIZ (Baixo) – Cuida dele como se fosse teu patrão. (Sai)
ARLEQUIM – Meu senhor, ouvi dizer que o senhor vai à casa do senhor Pantaleão.
FLORINDO – Vou sim, por quê?
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CENA IV
Casa de PANTALEÃO.
PANTALEÃO, DOUTOR, CLARISSE, SILVIO, ESMERALDINA.
PANTALEÃO – Vamos, Clarisse, não sejas tão severa! Silvio está arrependido e te pede perdão.
Se ele fez algumas tolices foi só porque estava apaixonado. Eu, já o perdoei. Agora é a tua
vez.
SILVIO – Perdão, Clarisse.
DOUTOR – Às súplicas do meu filho, deixa-me juntar as minhas. Dona Clarisse, perdoe o meu
filho.
ESMERALDINA – Então, minha menina, vá! Olhe, os homens, alguns mais, outros menos, são
todos cruéis pra gente! Afinal, a menina, seja com um, seja com outro, tem que se casar. Faça
como os bons doentes: quando precisam tomar um remédio tomam o mais depressa possível.
PANTALEÃO – Ouviste? Esmeraldina considera o casamento como um remédio. Não faças
com que este remédio se transforme em veneno... (Baixo ao Doutor) É preciso levá-la com
jeito.
DOUTOR – Não é nada disso. Nem remédio, nem veneno... o casamento é um doce, é um favo
de mel...
SILVIO – Clarisse, meu amor... nem uma palavra sai dos teus lábios? Eu sei que mereço
castigo... mas, por piedade, usa por armas as palavras, não o silêncio...
CLARISSE (Suspirando) – Cruel!
PANTALEÃO (Baixo ao Doutor) – Reparou no suspirozinho? É bom sinal!
DOUTOR (Baixo a Silvio) – Insiste no argumento.
SILVIO: Se eu soubesse que o sacrifício da minha vida vingaria aos teus olhos a minha suposta
crueldade, não hesitaria um momento. Mas, meu amor, em vez do sangue que corre nas
minhas veias prefira o sangue que escorre dos meus olhos! (Chora e ajoelha)
PANTALEÃO – Vamos, apertem as mãos outra vez: façam as pazes! Não chorem mais...
acalmem-se! Parem com isso... e que o céu os abençoe!
DOUTOR – “Aléa jacta est”.
SILVIO – Clarisse, por piedade...
CLARISSE – Ingrato...
SILVIO – Querida.
CLARISSE – Desumano!...
SILVIO – Minha alma...
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CLARISSE – Cão...
SILVIO – Meu ser!...
CLARISSE – Ah!
PANTALEÃO – Bom, ah, ah! Perdoa.
CLARISSE (Suspira) – Ah! Já perdoei!
DOUTOR – Vá, Silvio! Ela já te perdoou.
ESMERALDINA – O doente está disposto. Deem-lhe o remédio.
BRIGUELA – Com licença! Posso entrar? (Entra)
PANTALEÃO – Entre, senhor compadre Briguela. A propósito... foi você quem deu a entender
que o homem que se apresentou aqui era Frederico Rasponi?
BRIGUELA – Mas, senhor Pantaleão, qualquer um se teria enganado. Os dois irmãos eram tão
parecidos! E vestida de homem...
PANTALEÃO – Bom, não falemos mais nisso. O que há de novo?
BRIGUELA – A Dona Beatriz está lá fora e deseja cumprimentá-los.
PANTALEÃO – Faça-a entrar imediatamente.
CLARISSE – Pobre Beatriz! Espero que tudo tenha corrido bem para ela.
SILVIO – Tens pena dela?
CLARISSE – Sim, muitíssima.
SILVIO – E de mim?
CLARISSE – Ah, cruel!
PANTALEÃO (Ao Doutor) – Ouviu, que palavras doces?
DOUTOR – Meu filho tem um grande coração.
PANTALEÃO – A minha filha sim, é que tem bom coração.
ESMERALDINA – Ora, ambos têm o que têm. Pronto!
BEATRIZ (Entrando) – Meus senhores, aqui estou pedindo desculpas, já que por minha causa
tanta perturbação...
CLARISSE – De nada, minha amiga, venha cá, me dê um abraço. (Abraça-a)
SILVIO – O quê? (Mostrando desagrado por ver este abraço)
BEATRIZ – Como? Nem abraçar uma senhora?
SILVIO – Essa roupa me irrita.
PANTALEÃO – Olhe, Dona Beatriz, que a senhora, como mulher e jovem, demonstrou grande
coragem.
DOUTOR – Veemência, verve, vigor, viveza!
PANTALEÃO – Mas valeu a pena, hein? Já encontrou o seu noivo?
BEATRIZ – Ah, sim, por felicidade.
DOUTOR: Bela reputação que a senhora vai arranjar!
BEATRIZ – Isso é assunto que só a mim diz respeito.
SILVIO – Senhor meu pai, deixe que cada um faça como entende; não complique. Sou feliz e
gostaria que todos fossem também. Se há algum outro casamento a fazer, que se faça!
ESMERALDINA – Oh, senhor, o meu, por exemplo.
SILVIO – Com quem?
ESMERALDINA – Com o primeiro que aparecer.
SILVIO – Arranja um que eu te ajudo.
CLARISSE – Para fazer o quê?
SILVIO – Para ajudar ao dote.
CLARISSE – Não há necessidade.
ARLEQUIM (Entrando) – Minhas homenagens a todos.
BEATRIZ (A Arlequim) – O senhor Florindo, onde está?
ARLEQUIM – Está aqui fora, esperando ser recebido.
BEATRIZ – Permite, senhor Pantaleão, que o senhor Florindo entre?
PANTALEÃO – Por que não? Mande-o entrar.
BEATRIZ (A Arlequim) – Vai buscar o senhor Florindo.
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FIM
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