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PROJETO CONEXÕES – www.conexoes.org.

br – todos os direitos reservados

TESEU
Cássio Pires

DIREITOS AUTORAIS
Este texto foi escrito especialmente para as escolas participantes do
Projeto Conexões Teatro Jovem
e fez parte do seu portfólio no ano de 2011.
Qualquer montagem fora do Projeto deverá ser
negociada com o autor ou seus agentes sobre os direitos autorais.

Cássio Pires: [email protected]

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Bárbara Clara, Daniel Rossi Garcia, Edemi Soares Jr., Fernanda Xavier, Gustavo de

Oliveira Azevedo, Heloisa Cardoso e Lucas Paconio, todos jovens atores, foram

interlocutores perenes para a construção dessa peça, escrita a partir do convite do

Projeto Conexões 2011. André Bizorão, Diego Albuquerque, Jaime Morales, May

Domar, Valderice Alves, Tamara Leite e Tânia Regina Costa contribuíram também

com depoimentos e opiniões que ajudaram a construir a trama, os personagens e os

questionamentos deste texto. Aos companheiros de viagem desta rica experiência de

criar uma peça a partir de uma interlocução virtual, agradeço imensamente.

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Personagens

Renato Dionísio, 40 anos

Silvia Medeiros, 20 anos

Pablo Fontes, 18 anos

Os atores de O Minotauro

Ana Carolina Ribeiro, 17 anos.

Catarina Figueiredo, 16 anos.

Davi Ricardo da Silva, 17 anos.

Felipe Fernandes Bueno, 18 anos.

Gabriela da Costa Cunha, 15 anos.

João “Lóqui” dos Reis, 17 anos.

Juliana Rosa Campos, 16 anos.

Miguel Dionísio, 19 anos.

Natália Tavares da Silva, 19 anos.

Pamela Cristina de Souza, 16 anos.

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CENA 1

Um velho teatro abandonado. No palco, há duas saídas pelas laterais. Uma dá acesso

aos camarins, outra, a uma área de bastidores onde está guardado um piano já há

muito sem utilidade.

Em cena Renato Dionísio, além de Natália, Felipe, João Lóqui, Davi Ricardo, Gabriela,

Pamela, Ana Carolina e Catarina. A última está sentada sobre um praticável, de olhos

fechados, com as pernas cruzadas e a coluna ereta, em posição de ioga.

1o NARRADOR. Nesta semana completo quarenta anos. Olho para frente e tenho a

certeza de que ainda tenho muitas coisas para viver. Olho para o espelho e vejo que

meus dias de juventude já vão longe. Nesses últimos tempos, resolvi começar a

encarar os fantasmas que me chamam na escuridão de minhas noites mal

dormidas. Nos últimos meses, eu, que sou pouco mais que um ator de comerciais,

um modesto filho de meu tempo, resolvi escrever uma peça sobre meu pai.

2o NARRADOR. O que mostro agora é o frágil resultado desta tentativa. Eu estou

em cena, sem estar, assim como meu pai está em mim, sem que eu jamais o tenha

conhecido. Quem me representa aqui, neste palco, são meninos da idade de meu

pai. Meninos capazes de representar não o que sou, mas o que fui e o que eu

poderia ter sido. Tudo começa e termina no ano de 2011, no ano em que nasci, no

verão em que fui feito.

1o NARRADOR. Naqueles dias, um grupo de meninos descobriu um velho teatro

no porão de um hotel e decidiu ocupá-lo para ali fazer as suas peças, viver suas

noites e enfrentar suas crises...

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Os narradores mantêm-se em cena, o que acontecerá até o final da peça.

Evidentemente, eles jamais serão percebidos pelos demais. Eles transitam livremente

pela cena. Aproximam-se e afastam-se de seus personagens e suas ações como que a

pontuar o que mais lhes interessa na trama.

FELIPE. Eu vou ser muito sincero com vocês... eu acho ele egóico. Dessas pessoas

que acham que o mundo começa e termina nelas mesmas. Também acho ele

mimado. Ele não sabe ceder, não sabe ouvir “não”. E para você fazer teatro, você

tem que saber ouvir o outro. Isso é o mínimo.

CATARINA. Eu queria saber o que a Valéria acharia disso.

FELIPE. A Valéria não está mais com a gente. Essa é a nossa nova realidade. Nós

não temos mais uma professora pra nos dizer o que fazer. Isso é ruim? Isso é bom?

Eu não sei. Eu sei que se a gente quiser sobreviver como um grupo, a gente tem que

saber tomar nossas decisões por nossa conta.

PAMELA. (ri com certo cinismo) Não sei, Felipe, estou pensando sobre o que você

disse. Você disse que o Miguel é mimado... Mimado por quem? Ele fugiu de casa já

faz um bom tempo. Ele mora sozinho. Ele se vira sozinho. Um mimado foge de

casa?

FELIPE. Esse é o problema, Pamela. Ele é sozinho. E ele não sabe ser de outro jeito

a não ser sozinho. E ele gosta de ser assim. Ele devia se concentrar em ser apenas

um poeta, e não um ator. Um poeta pode viver apenas dentro de seu próprio

mundo. Um ator, não.

NATÁLIA. Eu acho que ele é importante pra nós.

FELIPE. Eu não o que faz ele tão importante assim.

NATÁLIA. Foi ele quem escreveu metade dos textos da peça. Que tal? Ele escreveu

as cenas dele e escreveu várias cenas para os outros. A gente acha que o texto da

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peça é uma criação coletiva, mas talvez a gente devesse reconhecer que esta é uma

peça de Miguel Dionísio. Se não fosse ele, não sei como seria...

DAVI RICARDO. Eu acho um gesto de generosidade dele quando ele escreve para

nós.

FELIPE. Isso é vaidade, isso sim. “Olha só como eu sou bonzinho, eu passo minhas

noites escrevendo cenas para vocês...” Não cai nessa, Davi. Pra mim a coisa é

simples: ele já saiu do grupo uma vez. Agora, mudou de ideia, largou a faculdade e

resolveu voltar. Acho que as coisas não são assim.

DAVI RICARDO. A gente tem de saber perdoar, não é?

FELIPE. A gente tem que saber o que se pode perdoar, não é?

NATÁLIA. Gente, é sério, chega! Estamos há uma hora falando sobre isso. Eu acho

que essa discussão não vai levar a gente a lugar nenhum. Eu proponho uma

votação.

FELIPE. Uma votação... muito engraçado... uma votação...

NATÁLIA. Qual é o problema?

FELIPE. Votar é um jeito de não ouvir os melhores argumentos. Alguém tem

duvida de qual vai ser o resultado?

NATÁLIA. Eu tenho, tem gente aqui que ainda não se pronunciou.

FELIPE. (irônico) Hum, tá bom. Então vamos votar... estou curiosíssimo para saber

o resultado... não tenho a menor ideia do que vai acontecer...

NATÁLIA. Fora o Felipe, alguém é contra a gente votar?

(Silêncio)

NATÁLIA. Então, vamos começar. Felipe, você: contra ou a favor do pedido do

Miguel para retornar ao grupo?

FELIPE. Contra. É claro.

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NATÁLIA. Zero a um. Davi Ricardo...

DAVI RICARDO. Bem... Eu xinguei muito ele. Numa bela noite ele veio aqui e disse

que ia nos largar para fazer faculdade. Agora largou a faculdade e diz que quer

voltar. Pode ser que ele nos largue de novo porque voltou a querer fazer

faculdade... mas eu sou sempre pelo perdão, meu amor. Sempre. Eu sou a favor.

NATÁLIA. Um a um. Pamela...

DAVI RICARDO. A Pamela não vale, ela já “manteve relações” com o réu!!!

(Alguns riem)

PAMELA. Você, adequadamente, usou o verbo no passado, Davi. Eu voto a favor.

NATÁLIA. Dois a um. Ana Carolina...

DAVI RICARDO. Ih, essa daí também não...

ANA CAROLINA. Eu nunca tive nada com o Miguel.

DAVI RICARDO. Por enquanto...

ANA CAROLINA. Não sei de onde você tirou uma coisa dessas... ele não é meu tipo

de homem.

DAVI RICARDO. Sei...

NATÁLIA. Vota, Carol. Não temos a noite inteira pra resolver isso. Temos que

começar o ensaio.

ANA CAROLINA. Eu não tenho nada contra ele. Eu voto a favor.

NATÁLIA. Três a um. Catarina, você...

CATARINA. Eu acho que todo mundo tem direito de se perder pelo caminho. Eu

voto a favor.

NATÁLIA. Quatro a um. Gabriela.

DAVI RICARDO. Gabriela também não pode. Ela é menor de dezesseis. Tá muito

novinha pra votar.

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NATÁLIA. Chega de piada, Davi! Fala Gabriela...

GABRIELA. A favor.

NATÁLIA. Cinco a um. João.

JOÃO LÓQUI. Ele escreveu todas as minhas cenas... se ele não existisse, eu só faria

cenas mudas... A favor.

NATÁLIA. Acho que estamos decididos...

FELIPE. (irônico) Nossa, estou surpreso com o resultado...

NATÁLIA. Felipe, maioria absoluta. Podemos encerrar a discussão?

FELIPE. Crie corvos, e eles te arrancarão os olhos. Depois a gente vê no que isso vai

dar.

NATÁLIA. A gente precisa começar a ensaiar. Temos duas semanas até a gravação

da peça e não temos nem metade dela. Mais tarde eu ligo pro Miguel. Vamos

precisar dele aqui amanhã.

CENA 2

Enquanto Renato Dionísio narra, os atores de “O Minotauro” montam o cenário de “A

Tormenta”. Velas, garrafas vazias e pétalas de rosas são distribuídas sobre o chão. Há

também alguns cubos.

1 o NARRADOR. Meu nome é Renato Dionísio...

2o NARRADOR. ... A história deste grupo só me interessa por que ali se deram os

últimos capítulos que as pessoas conhecem sobre a história de meu pai.

1o NARRADOR. Poucas pessoas o conheceram.

2o NARRADOR. Se é que alguém, de fato, pode dizer que conhece alguém.

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1o NARRADOR. Durante os dias, alguns trabalhavam, outros estudavam. A noite,

no teatro, eles encontravam a chance de serem o que não podiam ser durante o dia.

Era assim também com meu pai.

2o NARRADOR. Quando ele voltou para o grupo, ele viveu dias de uma alegria que

talvez jamais tivesse sentido. Quando ele voltou para o grupo, ele reencontrou o

prazer de atuar. Quando ele voltou para o grupo, ele descobriu o que era se

apaixonar por alguém.

Catarina está sentada sobre um cubo. Ela medita com fones de um MP3 player no

ouvido. Gabriela está gravando João Lóqui com uma câmera amadora. Ele martela

um dos cubos do cenário e dá um depoimento.

JOÃO LÓQUI. Sinceramente? Eu não acho que tenho tanto a ver com teatro.

Quando eu estou em cena, eu me acho duro. Eu estou aqui por que eu gosto das

pessoas. E porque as vezes entra uma menina nova que vale investir. Ah, é claro, é

legal também quando as pessoas aplaudem a gente. Mas eu sei que um dia isso vai

acabar. Eu não quero ser, assim, um ator profissional. Eu acho que não teria a

menor chance. Eu quero trabalhar com informática. Eu estou estudando pra isso.

Tem muito trabalho nessa área. (Gabriela desliga a câmera.) Sabia que você fica

linda quando está gravando?

GABRIELA. Que é que vou fazer com isso, João? Isso é um documentário sobre o

grupo!

JOÃO LÓQUI. Ué, você não me pediu um depoimento sincero? Então, estou te

dando um depoimento sincero. Eu acho que a gente podia pegar um cinema, que é

que você acha?

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Gabriela vira as costas para João e faz uma tomada de Catarina, sem que essa a

perceba.

JOÃO LÓQUI. Seria legal, hein?

GABRIELA. O que?

JOÃO LÓQUI. Oras, um cineminha...

GABRIELA. Ai, João, que preguiça de você, viu?

Ela sai na direção do camarim. João continua martelando o cenário. Pouco depois,

Miguel entra pela porta da plateia. Traz uma mochila nas costas.

MIGUEL DIONISIO. João... João dos Reis! João “Lóqui” dos Reis! Que bela essa

cena: o homem, o martelo, a mulher surda ao fundo!

JOÃO LÓQUI. Fala, Miguel!

Miguel atravessa a plateia.

MIGUEL DIONISIO. Me dá um abraço aqui!

JOÃO LÓQUI. Meu Deus, quanta alegria. A noite de ontem deve ter sido longa!

MIGUEL DIONISIO. Eu estou feliz pelo ensaio de hoje. Estou animado como há

muito tempo eu não estava.

JOÃO LÓQUI. Com certeza, com certeza. Nada a ver com a noite de ontem, não é

mesmo?

MIGUEL DIONISIO. E ai, você leu?

JOÃO LÓQUI. O que?

MIGUEL DIONISIO. A cena nova.

JOÃO LÓQUI. Ah... Não. Me esqueci.

MIGUEL DIONISIO. Você não gosta, não é?

JOÃO LÓQUI. Como é que eu posso não gostar se eu nem li?

MIGUEL DIONISIO. Não é disso que eu tô falando. Você não gosta de ler, não é

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verdade?

JOÃO LÓQUI. Não é que eu não gosto. Eu gosto, sim. Mas, sei lá, vai me dando sono.

MIGUEL DIONISIO. Os olhos vão embaralhando, não é?

JOÃO LÓQUI. Você também me acha tosco, não acha?

MIGUEL DIONISIO. Tosco?

JOÃO LÓQUI. O Davi me disse isso hoje. Que ele me acha tosco. Que eu tenho muita

testosterona pra fazer teatro. Ainda bem que eu tenho senso de humor, senão eu

dava uns tapas nele.

MIGUEL DIONISIO. O Davi agora deu pra achar que nós somos dominados pelos

hormônios. Não dê bola pra ele. Temos muitos candidatos a poeta aqui dentro. Nós

precisamos da tua virilidade, João. Nós precisamos de gente pragmática aqui

dentro, de gente com os dois pés na terra. Vocês fazem bem para a gente!

JOÃO LÓQUI. (João volta a martelar) Vai me tirar, você também!

MIGUEL DIONISIO. Eu tô falando sério, cara. Se eu fosse uma menina, eu piscaria

um olho pra você.

JOÃO LÓQUI. Mas como você não é menina, você piscou para a Carol e daí vocês

foram dar uma voltinha ontem. E ai, como é que foi o fim da história?

MIGUEL DIONISIO. Digamos que o fim da história talvez esteja longe...

JOÃO LÓQUI. Ah, meu Deus! Miguel apaixonado! O lobo solitário foi picado pelo

deus do amor! Essa é nova!

MIGUEL DIONISIO. Eu estou apaixonado pelo teatro, isso sim. Meu trabalho é

insuportável. Passar seis horas por dia ouvindo reclamações de cliente não é vida

pra ninguém. Esses dois meses de faculdade foram um engano. Aquela gente é

muito cheia de certezas. Minha chance de ser feliz está aqui, meu amigo, no teatro,

na arte. Eu não sei o que me deu quando eu resolvi sair do grupo, eu descobri que

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está a minha única esperança de salvação! Deixa eu te ajudar com isso. (Começa a

martelar também)

JOÃO LÓQUI. Olha só como ele foge do assunto.

MIGUEL DIONISIO. Assunto? Que assunto? Nós estamos falando de alguma coisa?

JOÃO LÓQUI. Estamos sim, estamos falando de amor.

MIGUEL DIONISIO. Amor? O que é que é isso? Que cor ele tem? Quanto ele pesa?

Eu nunca vi isso que você está falando. Eu estou vendo um cenário que precisa

ficar pronto. Só isso.

Felipe entra pela plateia, declamando.

FELIPE. Escrever sobre amor

É fácil demais

Na mesma medida

Que é mentiroso

O difícil é te amar

Mais ainda é dizer meu amor

Impossível é te conjugar

Mesmo que sobrepujando a dor

E ai, o que é que vocês acham?

JOÃO LOQUI. Foi você quem escreveu?

FELIPE. Sim.

JOÃO LÓQUI. Você é um poeta, Felipe.

FELIPE. Pensei em colocar esse poema na minha cena.

JOÃO LÓQUI. Vai ficar legal.

FELIPE. Que é que você acha, Miguel?

MIGUEL DIONISIO. Eu? Eu acho um poema bonito.

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FELIPE. Será que ficaria bom na peça?

MIGUEL DIONISIO. Se eu dissesse que não, isso mudaria alguma coisa?

FELIPE. Você podia deixar suas agulhadas para depois do aquecimento. Com o

corpo mais quente, eu lidaria melhor com elas.

JOÃO LÓQUI. (imitando um gongo) Téééin!!! Fim do primeiro round! Chega de

briga, meninos!

FELIPE. (saindo em direção ao camarim, dirige-se à Catarina, que, evidentemente,

não o ouve nem o vê) Boa noite, Catarina. Um dia eu quero te comer.

Felipe sai. Pela porta da plateia, ouvimos Davi Ricardo, que entra carregando uma

mesa antiga, ajudado por Natália.

DAVI RICARDO (de fora). Abram espaço! Abram espaço ao cordeiro de Deus!

(entrando) Neste mês de fevereiro, um pobre desgraçado do grupo de teatro “O

Minotauro” é submetido a um ritual conhecido como a procissão da mesa. Nas

escadarias de um velho hotel desativado ele pode ser visto carregando nas costas

uma mesa de quase cem quilos... Cristo carregou a Cruz, Davi Ricardo, a mesa...

MIGUEL DIONISIO. Onde vocês conseguiram?

NATÁLIA. É a mesa da recepção do hotel. O seu Durval doou pra gente. É linda, não

é?

MIGUEL DIONISIO. Ela é incrível! Eu acho que a ela devia ficar embaixo de um

foco!

NATÁLIA. Sobe em cima dela, Davi. Vê se ela aguenta.

DAVI RICARDO. (subindo) Claro que ela aguenta. É uma mesa fortíssima. (dizendo

um trecho da peça) “Quem me ensinou a ter fé?”

NATÁLIA. Ótimo. Vamos terminar de arrumar o cenário. A gente precisa começar.

(todos se mobilizam nos últimos ajustes para a cena) O Felipe chegou?

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JOÃO LÓQUI. Sim. Ele tá lá no camarim.

NATÁLIA. E a Pamela?

JOÃO LÓQUI. Ainda não.

NATÁLIA. E a Carol?

DAVI RICARDO. Carol não vem. Ela avisou que tinha prova do curso de inglês,

lembra? I am a liar, You are a liar, he is a liar...

NATÁLIA. Tinha me esquecido. Bom, vamos começar o aquecimento.

DAVI RICARDO. Eu já tô fervendo, meu amor. Carregar essa mesinha me deixou

aquecido até dezembro. A Catarina, então, a pobrezinha já deve ter atingido a

iluminação, faz uma hora que ela está ai meditando... hoje ela vai fazer o ensaio

mais brilhante de todos os ensaios que já foram feitos desde a Grécia!

JOÃO LÓQUI. A gente não vai esperar a Pamela chegar?

NATÁLIA. A gente tem até a semana que vem para gravar o vídeo da peça pra

mandar pro festival... A peça tá um caos... Você acha que dá pra ficar esperando

quem tá atrasado?

DAVI RICARDO. (para fora) Felipe!!! Mamãe tá chamando pra começar o ensaio!

Alguém faz um sinal para Catarina, que abre os olhos e percebe que o aquecimento

vai começar. Felipe entra em cena.

FELIPE. Boa noite, senhores.

Todos formam uma roda, dão-se as mãos e fecham os olhos.

NATÁLIA. Então, tá. Hoje a gente vai fazer um aquecimento rápido pra gente poder

ter mais tempo pro ensaio. Vamos só relaxar o corpo e fazer um alongamento.

Vamos manter o silêncio e assim que a gente acabar cada um toma sua posição e

começamos a cena um, ok?

Todos seguem as instruções corporais de Natália.

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DAVI RICARDO. Esses alongamentos esticam o corpo, mas comprimem o espírito.

NATÁLIA. (tranqüila, de olhos fechados) Psiu... Vamos nos encontrando com o

silêncio... vamos encontrando uma pulsação comum...

A porta da platéia abre. Pamela entra afobada. Veste um tailleur típico de uma

representante de vendas ou algo semelhante.

PAMELA. Desculpa, gente.

CATARINA. Pedir desculpas todos os dias é fácil.

PAMELA. Fácil é passar o dia em casa fazendo yoga e fumando maconha, benzinho.

Tem gente que precisa trabalhar pra viver, sabia? Pergunta pro meu patrão se ele

tá preocupado com meu ensaio...

CATARINA. A gente tem que pensar direito quando não pode estar em dois lugares

ao mesmo tempo.

Pamela já se integrou à roda de aquecimento.

NATÁLIA. (olhos fechados) O silêncio... A pulsação comum...

CATARINA. É difícil achar essa pulsação com gente fazendo aquecimento de salto

alto.

NATÁLIA. (olhos fechados) Você pode ficar descalça, Pamela. Pode ficar a vontade,

agora. Vamos deixar a energia da rua lá fora... (Encontram o silêncio. Alongam-se

por mais uns instantes.) Agora, pouco a pouco, vocês podem tomar suas posições na

cena.

João, Davi, Miguel, Felipe, Pamela e Catarina distribuem-se pelo palco, nas posições

em que iniciam a peça. Natalia, com um caderno, senta-se numa extremidade do

palco, próxima à boca de cena. Gabriela posiciona-se com sua câmera.

FELIPE. (Coluna ereta, voz elevada, com um sino na mão) Quem somos nós? (toca o

sino) Senhoras e senhores, o Minotauro apresenta “A Tormenta”, uma história sem

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história, o sonho de um sonho, talvez... (toca o sino)

TODOS EM CENA. Cordeiro de Deus,

que tirais os pecados do mundo

Daí nos a paz, Daí nos a paz...

DAVI RICARDO. Quem me ensinou a ter fé?

Felipe toca o sino por três vezes.

JOÃO. Se todos pudessem,

Não seria bom se todos pudessem?

Mas muitos só querem muito, aqui, onde nem todos podem

Muitas vezes ignoramos, ou somos ignorados

Ou até somos impedidos ou impedimos com falas e ações

Mas uma coisa eles não podem impedir que você faça

Isso é sonhar e quando você sonha, adivinha?

Só você pode.. .( Poema de Lucas Paconio)

CATARINA. (Para Miguel) Vem, senta aqui do meu lado, e deixa o mundo girar...

jamais seremos tão jovens...(de “A Megera Domada”, de Shakespeare)

MIGUEL DIONISIO. “Eu não sei o que eu quero do mundo, mas eu sei que esse

mundo não é o que eu quero. Eu não sei o que eu quero do amor, mas eu sei que é

você quem eu amo.”

Felipe toca o sino.

NATÁLIA. (interrompendo) Cá... Tenta fazer a tua fala com um pouquinho mais de

emoção?

CATARINA. Mais?

NATÁLIA. Sim.

CATARINA. Tem certeza?

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NATÁLIA. Só para a gente experimentar.

CATARINA. (Ela fecha os olhos e se concentra) “Vem, senta aqui do meu lado, e

deixa o mundo girar... jamais seremos tão jovens...”

Pamela explode em uma crise de riso. Felipe a repreende com o olhar.

PAMELA. Desculpa. Desculpa. Foi mal.

NATÁLIA. (ignora Pamela e dirige-se a Catarina) Um pouquinho mais delicada,

talvez.

Catarina fecha os olhos. Concentra-se. E então, senta-se sobre um cubo e começa a

chorar.

CATARINA. Isso não é pra mim.

Os outros se aproximam dela.

NATÁLIA. Que foi, Cá?

CATARINA. Não é. Simplesmente não é. A gente tem que ter coragem de

reconhecer isso na vida. Isso simplesmente não é pra mim.

NATÁLIA. Que bobagem, menina. Vem. Tá ficando bom.

CATARINA. Não! Não está ficando bom! Está ficando cada vez pior. Eu estou cada

vez mais perdida! Quando eu falo esse texto parece que tem pedras na minha boca!

Eu sou pequena! Eu sou uma atriz pequena! Eu não sirvo pra isso! Eu desisto! Eu

definitivamente desisto disso! Talvez eu possa ajudar vocês nos figurinos, talvez eu

possa ajudar vocês na mesa de luz, mas aqui? Não! Aqui, não!!

Ela levanta-se e sai correndo pelas coxias. Os demais se entreolham. Natália decide ir

atrás dela. Os outros a seguem, à exceção de Pamela. Felipe é o último a sair.

FELIPE. Isso não se faz. Você foi escrota, Pamela. (sai)

Pamela pega seu tailleur, calça seus saltos e sai pela plateia. Miguel volta à cena. De

cabeça baixa, pega o sino de Felipe e senta-se sobre um dos cubos. Toca-o, bem leve.

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De repente, a porta da plateia se abre.

ANA CAROLINA. Miguel?

MIGUEL DIONISIO. Carol?

ANA CAROLINA. Oi.

MIGUEL DIONISIO. Você veio??

ANA CAROLINA. É o que parece, não é?

Ela chega ao palco. Eles se abraçam.

MIGUEL DIONISIO. Você está linda!

ANA CAROLINA. Você está brincando comigo... Você não está vendo o tamanho das

minhas olheiras... Dormi duas horas esta noite e trabalhei o dia inteiro.

MIGUEL DIONISIO. Eu estou muito feliz pra enxergar olheiras no rosto de alguém.

ANA CAROLINA. Aconteceu alguma coisa por aqui? A Pamela acabou de passar por

mim e nem me cumprimentou. Ela estava espumando.

MIGUEL DIONISIO. Uma briguinha. Uma bobagem. Logo passa.

ANA CAROLINA. Cadê todo mundo?

MIGUEL DIONISIO. Eles estão lá no camarim consolando a Catarina. Ela teve um

surto. Você fez a prova bem rápido... Foi bem?

ANA CAROLINA. Eu desisti da prova. Fiquei olhando para aquelas perguntas sem

ter a menor ideia do que fazer com aquilo. A minha cabeça está tão cheia. Então eu

resolvi entregar a prova em branco. (Ri)

MIGUEL DIONISIO. Ontem a noite foi lindo pra mim, sabia? Eu cheguei em casa e

fiquei escrevendo até o sol nascer. Não preguei os olhos, mas é como se eu não

precisasse mais dormir...

ANA CAROLINA. Mas você odiou a peça, não é?

MIGUEL DIONISIO. (sorrindo) Peça? A gente viu alguma peça?

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ANA CAROLINA. Uma peça e um debate sobre a peça.

MIGUEL DIONISIO. Só me lembro do que aconteceu depois disso. Eu e você juntos.

Só isso.

ANA CAROLINA. Você estava com uma cara péssima durante o debate.

MIGUEL DIONISIO. Acho que estou me lembrando do que aconteceu ontem. Eu

não vi uma peça. Eu vi duas. A primeira era uma peça ruim feita no palco. A

segunda começou quando sentamos para debater a primeira. Eu não entendo esses

debates. É um espetáculo de mentiras. Aquela gente se sentindo forçada a elogiar

uma coisa que evidentemente não interessou tanto a ninguém...

ANA CAROLINA. Eu sempre aprendo alguma coisa. Sempre sai alguma coisa boa. A

Valéria dizia isso para a gente: as pérolas nascem dentro das ostras, não é?

MIGUEL DIONISIO. Bom, eu acho que isso pode ser interpretado de várias

formas...

Ela sorri. Ele também.

MIGUEL DIONISIO. Ma você não veio até aqui pra debater o debate, não é?

Eles se olham por um tempo.

ANA CAROLINA. (sorrindo) Eu... eu senti a tua falta hoje.

Davi Ricardo entra.

DAVI RICARDO. Carol!!! How are you, darling?!? Gente, você perdeu o bafão!

Tivemos um episódio de bullying em pleno ensaio! A gente devia chamar o SPTV!

Eles adoram bullying! (percebe o clima romântico) Hum... eu acho que alguém tá

sobrando aqui dentro, não é? Davi Ricardo sai de cena. Ele também tem direito de

procurar um namorado. Tchau! (sai, cantando) “Cordeiro de Deus, que tirais os

pecados do mundo...”

MIGUEL DIONISIO. Você quer ir lá pra casa hoje?

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ANA CAROLINA. Tua casa?

MIGUEL DIONISIO. Você podia dormir lá, comigo.

ANA CAROLINA. Eu tô muito cansada. Amanhã eu preciso trabalhar.

MIGUEL DIONISIO. Vem. Te prometo que você vai ter bastante tempo pra dormir.

ANA CAROLINA. Um outro dia.

MIGUEL DIONISIO. Ontem pra mim não foi uma noite qualquer. (Ana Carolina não

responde) Você não vai falar nada?

ANA CAROLINA. Eu tô muito confusa.

MIGUEL DIONISIO. Eu também.

ANA CAROLINA. Eu não sei se a gente devia sair de novo. Ontem foi bom. Mas

talvez tenha sido só isso.

MIGUEL DIONISIO. Vem aqui. Eu sei que você está com a Pamela na cabeça. (Ela

se aproxima) Mas eu quero que você saiba que o que eu tive com a Pamela não foi

sério. Mas com você... com você eu não tô brincando.

ANA CAROLINA. Não tem a ver com a Pamela. Nós somos pessoas muito

diferentes, Miguel. Nós queremos coisas muito diferentes da vida.

MIGUEL DIONISIO. Por que é que você desistiu da tua prova e veio pra cá, Ana?

Porque?

Eles se beijam. João entra em cena e flagra os dois. Observa-os, sem ser percebido.

Então, faz o som de um beijo. O casal assusta-se e olha em sua direção.

JOÃO LÓQUI. Hum, que beijinho mais gostoso!!!

CENA 3

1o NARRADOR. Eles queriam que as pessoas gostassem de sua peça. E as pessoas

gostaram. Eles queriam participar do festival. E eles foram escolhidos.

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2O NARRADOR. Mas aqueles dias não foram só de alegrias. Catarina não

suportava mais ouvir a própria voz e deixou o elenco. Naquele tempo, era assim:

quando alguém saia, alguém precisava entrar e domingo virava dia de trabalho...

Num domingo, por volta das 13 horas. Juliana e Natália em cena.

NATÁLIA. Aqui está o texto, pode começar a decorar.

JULIANA. Obrigada.

NATÁLIA. Você vai ter de ser rápida. Nós só temos dez dias até a viagem para o

festival.

JULIANA. Eu vou conseguir.

NATÁLIA. Vai, sim. Eu sei que vai. Eu não queria que a Catarina saísse do elenco,

mas, por outro lado, isso foi bom, Juliana. Isso trouxe você para o nosso grupo. E eu

sempre quis que você estivesse com a gente. Eu acho que você vai ser importante

para nós.

JULIANA. Eu estou muito feliz de estar aqui, Natália. A peça é linda. Não é à toa que

vocês foram selecionados pro festival.

Davi Ricardo, Felipe, Gabriela, João Lóqui, Ana Carolina e Pamela entram pela porta

da plateia, carregando copos de refrigerante do Mac Donald´s. Catarina vem logo

atrás, trazendo consigo dois set lights de segunda categoria. Gabriela e Carol seguem

direto para o camarins.

DAVI RICARDO. Ai, que preguiça, meu Deus!!! Hoje é domingo, hoje é dia de

dormir, não é dia de ensaiar!!!

PAMELA. Fica na balada até as cinco, meu amor, agora aguenta.

DAVI RICARDO. Cinco... só se for cinco pras sete. Cheguei em casa com o pão,

minha filha! (todos riem, menos Pamela) Só a Pamela não ri das minhas piadas.

JOÃO LÓQUI. A Pámela não ri mais. Ela descobriu que sua risada tem o estranho

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poder de transformar as pessoas em técnicas de iluminação.

CATARINA.Vai cagar, João.

JOÃO LÓQUI. Boa idéia, gata.

João sai. Felipe e Pámela deitam-se no palco, distantes um do outro. Ana Carolina

segue para o camarim, enquanto Catarina começa a instalar os set lights no palco.

DAVI RICARDO. (olhando para Juliana) Gente, mas essa menina tem um corpo, não

é verdade, diretora?

NATÁLIA. Tem alguma diretora aqui dentro?

DAVI RICARDO. Olha, é bom que tenha, viu? Vai ter que ter alguém pra segurar

essa menina no grupo. Bonita desse jeito não vai demorar até que apareça alguém

para levar ela embora lá pro Projac, viu? (pensa) Se bem que, se isso acontecer, não

tem quem segure ela aqui, não é? (ri) Quanto tempo a gente tem antes de começar

o ensaio, general?

NATÁLIA. Vinte minutos.

Catarina, que trabalhava em segundo plano, sai.

DAVI RICARDO. Ai, que bom. Vou tirar um cochilinho. Esse sanduíche parece que

pesa vinte quilos. (sai)

NATÁLIA. (para Juliana) Vamos subir pra comer alguma coisa?

JULIANA. Vamos.

Elas saem.

PAMELA. Eu li a cena nova que o Miguel escreveu. Você leu?

FELIPE. Li. Eu acho uma bobagem. Eu não entendo muito bem qual é a desse cara.

Outro dia ele disse que a gente não se importa com o que a peça quer dizer e agora

aparece com uma cena de um pai conversando com um filho imaginário que não

tem

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relação com nada. Pra mim, pelo menos, aquilo não diz nada com nada.

NATÁLIA. Você acha? Eu não sei. Tem alguma coisa ali... uma força poética, talvez.

FELIPE. Força poética? Talvez... Talvez, um pouco. Mas só isso. Não sei se faz

sentido.

Davi Ricardo, carregando um pequeno travesseiro, atravessa o palco, em direção à

coxia oposta. Fala consigo mesmo.

DAVI RICARDO. Alguém consegue dormir em um camarim lotado de mulheres?

No dia em que terminarem de descobrir tudo o que se tem a descobrir sobre os

hormônios, o teatro não será mais necessário... Haverá um medicamento chamado

‘catarse’, que poderá ser comprado sem receita médica e que suprirá

completamente nossa sede de purgação. E então, vejam só que maravilha,

estaremos livres do barulho dessas aglomerações de exibicionistas chamadas

grupos de teatro... por ora, no entanto, meu destino é dormir debaixo do velho

piano... (sai)

PAMELA. (para Felipe) Eu acho que você está misturando as coisas... se você

gostasse do Miguel, você gostaria mais das coisas que ele escreve.

FELIPE. Isso também vale pra você, mas em chave invertida, não é, Pamela?

PAMELA. Oi?

FELIPE. Nada. Vou lá para o camarim.

Felipe sai. A porta da platéia se abre. Miguel entra.

PAMELA. Miguel?

MIGUEL DIONISIO. Oi, Pamela. (chega ao palco) O pessoal já voltou?

PAMELA. Já. Eles estão lá no camarim. E você, almoçou?

MIGUEL DIONISIO. Sim. Você sabe o que a gente ensaia agora a tarde?

PAMELA. A última cena. (Miguel deixa a mochila em um canto e começa a se

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aquecer) Miguel, posso te falar uma coisa?

MIGUEL DIONISIO. Claro, querida.

PAMELA. Eu não gosto de ver você triste desse jeito. Se você quiser desabafar,

você pode contar comigo. Eu sei como é essa história de gostar de alguém que não

quer a gente.

MIGUEL DIONISIO. Eu não tô triste. Eu tô concentrado pro nosso ensaio. Só isso.

PAMELA. Vai ter uma festinha lá em casa hoje a noite. Se você quiser ir...

MIGUEL DIONISIO. Na sua casa?

PAMELA. Sim.

MIGUEL DIONISIO. Eu quero terminar de ler um livro, mas pode ser que eu dê

uma passada por lá. (Pámela vai saindo) Onde você vai?

PAMELA. Vou pro camarim, Miguel.

Pamela sai. Miguel se aquece e diz um texto da peça.

MIGUEL DIONISIO. “E se o herói, ao entrar no labirinto, se apaixonasse por seus

corredores? E se o herói, ao se encontrar com o Minotauro, se apaixonasse por ele

e decidisse simplesmente recuar?”

Ana Carolina entra. Miguel tenta se fazer indiferente à sua entrada e segue

ensaiando.

ANA CAROLINA. Oi.

MIGUEL DIONISIO. Oi.

ANA CAROLINA. Ensaiando?

MIGUEL DIONISIO. Me aquecendo.

ANA CAROLINA. Você viu minha mochila?

MIGUEL DIONISIO. Não. Vê se ela não tá ali na coxia.

ANA CAROLINA. Eu não me lembro de ter deixado ela lá.

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MIGUEL DIONISIO. Você pensou no que eu te propus?

ANA CAROLINA. Miguel, você sabe que agora eu não tô mais sozinha.

MIGUEL DIONISIO. Sei?

ANA CAROLINA. Sabe. Eu já te disse isso. Dá licença, eu preciso achar minha

mochila.

MIGUEL DIONISIO. Fique a vontade. Você nem me conhece, não é mesmo?

Desculpe incomoda-la, senhorita.

ANA CAROLINA. Miguel, senta aqui. A gente está sendo infantil. Vamos conversar

um pouco. Pode ser?

MIGUEL DIONISIO. Eu não consigo parar de pensar em você. A gente teve duas

noites tão bonitas, Carol. Por que é que...

ANA CAROLINA. Sim, Miguel, elas foram lindas. Talvez as mais bonitas que eu já

tive...

MIGUEL DIONISIO. Então porque...

ANA CAROLINA. Miguel, olha pra mim. Eu preciso que você entenda isso: você é

um poeta. Eu olho pros seus olhos e vejo um brilho que é a arte. Mas eu não sou

nada disso. Eu só quero fazer um pouco de teatro pra fugir do inferno que eu vivo

dentro daquela empresa. Eu ponho um figurino pra tentar fugir da própria vida.

Mas você, quando coloca o seu, é ai que você encontra sua própria vida. Você é um

sonhador. Um lindo sonhador. Você questiona coisas que jamais pensei que

poderiam ser questionadas. E quando eu penso, eu vejo que você tem razão. E isso

me assusta. Pensar que as coisas poderiam ser tão diferentes me apavora. Eu

prefiro ficar onde eu estou. De alguma forma, quando eu não penso nessas coisas,

eu sou feliz com o que tenho.

MIGUEL DIONISIO. Por que você quer viver uma vida que você não gosta?

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ANA CAROLINA. Eu não tenho outra saída, Miguel. Eu preciso trabalhar. Eu quero

crescer. Eu quero virar uma mulher. Eu quero que as pessoas me respeitem. E eu

quero ter uma família com uma pessoa que pense da mesma forma que eu penso.

Eu quero ter segurança. E você não me dá segurança. Você me colocou na beira de

um abismo. Você sabe o quanto a gente arriscou naquelas noites. E isso foi

maravilhoso. Eu fiz coisas, eu falei coisas que não falaria pra ninguém. Mas eu não

quero mais viver isso. Quero que isso seja uma lembrança boa. Só isso.

MIGUEL DIONISIO. Você está ficando com esse cara pra fugir de mim.

ANA CAROLINA. Talvez eu esteja ficando com o Pablo pra fugir de mim, Miguel.

Você precisava ouvir isso? Então você ouviu. Acho que a gente não tem mais nada

pra conversar. Dá licença, eu preciso achar minha mochila, preciso pegar minhas

roupas e me trocar.

Carol sai. Natália e Juliana entram pela platéia.

NATÁLIA. Gente, tá na hora, vamos retomar o ensaio!!

Miguel, cabisbaixo, a ignora. Dos camarins, ouvimos a voz de uma das meninas que

diz “Já vai, diretora!” Davi, sonolento, entra em cena, com seu travesseiro. Todos

sentamse e começam a se alongar. Catarina atravessa o palco e vai para a cabine

técnica. Logo em seguida, Felipe, Gabriela, João Lóqui, Ana Carolina e Pamela

integram-se à cena. Gabriela aciona a câmera e começa a gravar o aquecimento.

MIGUEL DIONISIO. Você me dá dois minutos, Natália? Eu vou lavar o rosto e já

venho.

NATÁLIA. (complacente) Rápido, tudo bem? (Para os demais) A idéia agora é

trabalharmos a última cena da peça.

Todos começam a se alongar. Alguns fazem exercícios vocais.

FELIPE. Nem tudo está perdido, galera. Hoje a noite tem festa na casa da Pamela!

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JOÃO LÓQUI. João Lóqui vai baixar o disjuntor e ai ninguém é de ninguém!

Gritos alegres. A porta do teatro se abre. Entra Pablo. É um moço forte e aprumado,

daqueles que vestem camiseta justa, boné e deixam a mostra a chave do carro

pendurada na cintura. Ele carrega um buquê.

PABLO. Carol?

ANA CAROLINA. Pablo?

NATÁLIA. (contida) Carol, nós já vamos começar, tudo bem?

PABLO. (Para Carol) Desculpa atrapalhar o seu ensaio. Eu só vim aqui trazer essas

flores pra você...

As outras meninas entreolham-se e compartilham um sorriso cúmplice. Ana Carolina

permanece estática por um instante.

DAVI RICARDO. (fala alto) Ai, gente! Que meigo! (Para Pamela, em voz baixa)

Esses mocinhos arrumados gostam de marcar em cima!

CENA 4

1o NARRADOR. Quando Gabriela pediu para fazer parte do “Minotauro”, Natália e

Felipe pensaram que ela era jovem demais para entrar na peça. Então sugeriram

que ela fizesse um documentário sobre os ensaios da “Tormenta”. Foi um jeito que

eles encontraram de fazer ela pensar que fazia parte do grupo.

2o NARRADOR. Minha mãe nunca soube explicar porque os vídeos de Gabriela

foram parar num armário de nossa casa.

1o NARRADOR. É claro que eu não me baseei apenas naqueles vídeos para

escrever essa peça. Eu também procurei pelos colegas de meu pai. Hoje, em 2051,

todos aqueles meninos cheios de energia são senhores e senhoras muito

respeitáveis. Pedi a eles que

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contassem como entendiam meu pai. Nessa hora, os olhos de alguns brilharam, os

de outros, no entanto, prenunciaram a perplexidade de uma memória perdida no

decurso de quarenta anos... “Miguel? Quem era mesmo o Miguel?”

2o NARRADOR. O que vocês vão ver agora são as últimas imagens que existem de

meu pai. Numa cena à luz de velas, eu o vejo apenas numa penumbra... a sua última

imagem é como que o prenuncio do fantasma que ele se tornaria...

Felipe, Natália, Miguel Dioniso, João Lóqui, Gabriela, Davi Ricardo, Pamela, Juliana,

Ana Carolina e Catarina em cena.

CATARINA. To indo lá pra técnica, quando vocês me derem o ok, eu apago a luz

pra cena das velas.

Sobe para a técnica.

FELIPE. O nome dela é Beth Candeias. Ela já escreveu para a “Folha de São Paulo”.

Dizem que ela é uma repórter muito influente no meio cultural.

PAMELA. Sério?

FELIPE. É. Eu acho que na hora que ela chegar, as palavras vão desaparecer da

minha boca.

NATÁLIA. Que besteira, isso é só uma entrevista pro jornal do Festival. Não tem

nada demais.

DAVI RICARDO. Uhn, falou então, Fernanda Montenegro, é só mais uma entrevista,

não é?

NATÁLIA. Vamos continuar. Essa cena precisa evoluir muito. Ok, Catarina, pode

apagar.

Black-out no teatro. Atores em suas posições na cena. Natália em sua posição de

diretora.

GABRIELA. Gravar com essa luz vai ser difícil, hein?

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FELIPE. Psiu!

Juliana acende uma vela e diz.

JULIANA. O sol, em mim, nunca se põe,

Mas eu quero a noite, a lua, as estrelas.

Meu silêncio, minha escuridão.

Pamela repete a ação de Juliana.

PAMELA. Eu caminho pela rua

e não entendo os homens

Eles se movem por sexo,

eles se movem por dinheiro

E quando aquele ali sorri

Só posso ver em seu sorriso

As letras da palavra hipocrisia

Rabiscadas em seus dentes

Miguel também acende uma vela.

MIGUEL DIONISIO. Fuma lá fora

Beija no escuro

Engole esse choro

Beba com moderação:

Você tem que render

Você tem que dar conta.

Que a poesia seja breve

Que ela afirme a certeza

E ponto.

Amanhã eu trabalho, meu bem.

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Batidas na porta do teatro.

PAMELA. Uau! A Imprensa chegou!!!

FELIPE. Pode entrar!

A porta abre. Silvia entra.

FELIPE. (solicito) Olá!

SILVIA. Olá!

FELIPE. Tudo bem? Você é a Beth?

SILVIA. Não. Meu nome é Silvia. Eu sou estagiária do escritório da Beth. Ela teve

um outro compromisso e me pediu pra que eu viesse no lugar dela.

FELIPE. Ah, ta... legal... Cá, acende a luz pra gente, meu amor? (as luzes do teatro se

acendem) E ai, tudo bem?

SILVIA. Estou atrapalhando vocês, não é?

FELIPE. Imagina, a gente estava esperando pela entrevista.

SILVIA. Vocês me desculpem, viu? É um papo rápido, só pra gente poder ter

conteúdo pra um box que vamos publicar no informativo do Festival. Você é o

Felipe Bueno?

FELIPE. Sim. Muito prazer. Deixa eu te apresentar o pessoal... eles são Pamela,

Miguel, Ana Carolina, Davi, Natália, João, Gabriela e Juliana. E aquela cabecinha ali

na técnica é da Catarina. Guardou os nomes? (todos dão um riso cortês).

SILVIA. Eu me perdi bastante pra chegar aqui, mas este teatro é incrível.

NATÁLIA. É ótimo, não é?

SILVIA. Como é que vocês conseguiram esse lugar?

FELIPE. Bem, como é que eu posso te explicar...

NATÁLIA. ...Foi por acidente. Nós nos conhecemos em uma oficina de teatro...

SILVIA. ...Você se importa se eu gravar?

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NATÁLIA. Imagina, fica a vontade.

SILVIA. (gravando) Então, como é que vocês conseguiram esse teatro abandonado?

NATÁLIA. (idem) Então, como eu estava te dizendo, Silvia, foi por acidente. Nós

nos conhecemos em uma oficina de teatro. Depois que a oficina acabou, nós

resolvemos formar um grupo. A professora virou nossa diretora. Mas ai ela foi

chamada para fazer uma novela na TV e acabou tendo que nos deixar. Nós

estávamos quase desfazendo o grupo, quando o Davi encontrou esse hotel. Ele

adora entrar em lugares abandonados. Então ele desceu as escadas e descobriu

esse teatrinho no subsolo. Dizem que aqui funcionava um cabaré. Daí o velhinho

que fica lá na recepção falou que a gente poderia ensaiar aqui. E então a gente veio

pra cá. Isso foi importante pra nós. Esse espaço fortaleceu a gente. Nós

descobrimos que aqui nós poderíamos ser livres.

SILVIA. Legal. (fora do gravador) Como é seu nome mesmo?

NATÁLIA. Natália. Natália Tavares.

SILVIA. (gravando) Então, Natália, agora me conta um pouco sobre o espetáculo de

vocês.

NATÁLIA. Você não quer ir lá para o camarim? Lá tem cadeiras. É mais confortável

pra conversar.

SILVIA. Sim, claro, vamos para lá.

NATÁLIA. Quem quer ir com a gente? Acho que poderíamos ir todos nós, vocês não

acham?

Todos seguem Natália, à exceção de Miguel e Davi Ricardo.

DAVI RICARDO. O poder de um gravador... em um instante o nosso queixo fica a

noventa graus, não é?

Miguel não responde. Ele se deita sobre o palco.

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DAVI RICARDO. Tá tão quietinho hoje. Alguém bateu em você?

Depois de um tempo de silêncio.

MIGUEL DIONISIO. Eu acho que preciso dar uma volta. O ar desse teatro está me

sufocando. Acho que preciso de um pouco do ar sujo lá de fora.

DAVI RICARDO. Que é que foi?

MIGUEL DIONISIO. Eu acho que não tenho mais vontade de apresentar essa peça

pra ninguém.

DAVI RICARDO. Ué, cara, que é que te deu? Outro dia você morria de orgulho dela.

MIGUEL DIONISIO. Quanto melhor a gente faz a peça, mais a gente se afasta dela.

DAVI RICARDO. Você acha?

MIGUEL DIONISIO. O que a gente quer com essa peça?

DAVI RICARDO. A gente quer falar sobre a gente, cara. Sobre o que a gente pensa.

MIGUEL DIONISIO. Eu acho que as palavras da peça falam sobre o que a gente

pensa, mas eu não sei se a gente fala essas palavras acreditando nelas.

DAVI RICARDO. Não entendi.

MIGUEL DIONISIO. Se a gente falasse sobre o que a gente quer falar, talvez aqueles

velhos caretas não tivessem selecionado a gente pra nenhum festival. Parece que

agora a gente só pensa na gente e não no que a gente quer dizer, você entende?

DAVI RICARDO. Ai, que conversa cansativa...

MIGUEL DIONISIO. Que é que a gente tá fazendo aqui, cara? Sério, Davi. Eu amo

você profundamente. Eu amo estar aqui com você e com todo mundo, mas, me diz,

o que é que a gente tá fazendo aqui?

DAVI RICARDO. A gente tá aqui pra dizer que a gente pode estar aqui.

MIGUEL DIONISIO. O que é que significa isso?

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DAVI RICARDO. Eu vou falar por mim. Eu tô aqui pra dizer que eu quero estar

nesse mundo. É isso o que eu quero do teatro. E só isso já é o bastante pra tornar a

minha vida um inferno. O mundo inteiro está contra mim, Miguel. O mundo inteiro.

Meus pais me condenam porque eu sou gay. Minha escola inteira me xinga porque

eu sou gay. Eu quero estar aqui para existir, cara. Eu quero estar neste palco pra

poder dizer que eu tenho o direito de estar em cima deste palco, nem que seja pra

representar o papel de uma árvore na peça mais idiota do planeta.

MIGUEL DIONISIO. Isso é pouco, Davi. Isso é pouco. Ou a gente sabe o que a gente

diz, ou a gente não está fazendo nada aqui dentro.

DAVI RICARDO. Você quer contestar por contestar, Miguel. É isso. E isso não é

vontade de mudar o mundo, isso talvez seja só um pouquinho de vontade de

aparecer. Você é um pouco desse jeito, não é verdade?

Felipe entra, vindo do camarim.

FELIPE. Vocês não querem participar da entrevista?

DAVI RICARDO. Daqui a pouco a gente vai.

FELIPE. Que é que está acontecendo?

DAVI RICARDO. O Miguel tá em crise com a peça.

FELIPE. Bom. Eu acho isso bom. Agora talvez não seja o melhor momento, mas

acho bom estar em crise com o que a gente faz. Depois podemos falar sobre isso.

Agora acho que não, não é?

MIGUEL DIONISIO. (à Felipe) Se você tivesse que escolher entre ser livre e honrar

um compromisso com o aquilo que você amou um dia, o que você faria?

FELIPE. O que é que isso tem a ver com a discussão, Miguel?

MIGUEL DIONISIO. Eu preciso sair. Eu preciso subir essas escadas e ver o mundo

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fora. Eu preciso dar uma volta, Felipe. Eu realmente preciso caminhar um pouco.

Você... me desculpe.

Ele se levanta, pega sua mochila e vai deixando o teatro.

FELIPE. Miguel! Você vai me dar as costas desse jeito, Miguel!!

Miguel sai, batendo a porta.

DAVI RICARDO. Ele volta, Felipe. Você conhece o Miguel. Daqui a pouco ele volta.

Batidas na porta.

DAVI RICARDO. Viu só?

FELIPE. Entra, Miguel! Que história é essa de bater?

Entram Pablo, seu boné e a chave de seu carro.

PABLO. Opa, tudo bem? Eu vim buscar a Carol, o ensaio já acabou?

FELIPE. (Encara-o por um instante.) Não, Otelo de boné, o ensaio ainda não acabou!

O ensaio nem começou direito ainda!! A gente tá falando com a imprensa, ninguém

tá fazendo suruba aqui, viu? Que saco, viu! Vem comigo, Davi. Não faz sentido não

estar o grupo inteiro nesta entrevista. (Sai pela coxia.)

CENA 5

1o NARRADOR. Dizem que esperar por algo que se quer muito é melhor do que

viver o que tanto se quis....

2o NARRADOR. Talvez por isso ser jovem seja ser tanto...

1o NARRADOR. Talvez por isso o dia da viagem para o festival tenha começado

como o dia mais alegre que eles já tinham vivido juntos...

Em cena Natália, Felipe, Davi Ricardo, Juliana, Ana Carolina, Gabriela, João Lóqui e

Catarina. Malas, caixas com cenários e outros objetos de cena. Alguns trabalham,

outros correm e brincam pelo espaço. Gabriela grava tudo.

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NATÁLIA. Sacola com rosas vermelhas.

CATARINA. Tá aqui.

NATÁLIA. Pacote de velas.

CATARINA. Tá aqui.

NATÁLIA. Fósforos.

CATARINA. Tá aqui.

NATÁLIA. Gente, vamos ajudar! O motorista do ônibus acabou de me ligar. Ele

falou que está chegando daqui a vinte minutos.

GABRIELA. Uhu! Segura ai, gente, o Minotauro vai sair do labirinto e invadir o

interior!! (vira a câmera na direção de Juliana) Dá um alô pro nosso documentário,

vai!

JULIANA. (olhando para a câmera) Beijo, mãe, beijo, pai, amo vocês!

NATÁLIA. Alguém sabe da Pamela?

FELIPE. Tentei falar com ela, mas ela desligou o celular.

CATARINA. Eu não vou falar mais nada sobre essa menina.

NATÁLIA. E o Miguel?

FELIPE. Bom, poetas não tem celular, não é mesmo?

DAVI RICARDO. Os dois atrasados... hum, sei! Daqui a pouco eles chegam ai de

cabelinho molhado.

NATÁLIA. Gelatina âmbar.

CATARINA. TÁ aqui.

ANA CAROLINA. (Para Juliana) Eu acho que eu comi alguma coisa que não me fez

bem.

JULIANA. Eu também tô mal. To apavorada com essa apresentação. Parece que tem

um quilo de gelo na minha barriga.

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NATÁLIA. Gelatina congo blue.

CATARINA. Tá aqui.

NATÁLIA. Ok. Cenário e luz estão completos.

CATARINA. Gente, ninguém mexe nessas caixas, por favor.

NATÁLIA. Vamos começar a checar os figurinos.

DAVI RICARDO. Ai, meu Deus, esqueci minha cueca, general!!

GABRIELA. Vai, general, dá um depoimento pro nosso documentário.

NATÁLIA. Tira essa merda da minha frente, Gabi.

GABRIELA. Gente, temos aqui uma deputada de Brasília, fugindo da câmera. (vira a

câmera para seu próprio rosto) Gente, essa é a Natália. Queria que vocês soubessem

que ela é uma pessoa boa. Mão de ferro, mas um coração de ouro. Te amo, Natália!

João Lóqui enfia-se na frente da câmera.

JOÃO LÓQUI. A Gabriela vai dormir no mesmo quarto do João Lóqui lá no Festival!

GABRIELA. Sai, João! (para Davi Ricardo). Davi, dá um depoimento para o nosso

documentário. Qual é a sua expectativa em relação a apresentação no festival?

DAVI RICARDO. Eu vou cantar uma canção para você. Uma canção da nossa peça.

Ela diz tudo o que eu estou sentindo neste momento... (canta)

Prefiro não saber

O gosto de chegar

Que eu possa só viver

Pra sempre a te esperar

Os outros começam a cantar com ele.

NATÁLIA. Ai, meu Deus! Que gente desafinada! Meus tímpanos vão explodir!

Eles continuam cantando, agora mais alto. Eles riem e se divertem enquanto o fazem.

A porta da plateia se abre. Pámela entra, carregando sua mala de viagem.

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JULIANA. (em meio ao canto) Pamela! A gente achou que você não viria!

DAVI RICARDO. Cadê o Miguel? Cadê o cabelinho molhado?

Todos riem.

PAMELA. Gente, eu preciso falar uma coisa pra vocês.

JULIANA. (imitando a colega) “Gente, eu preciso falar uma coisa para vocês: eu vou

me casar com o Miguel”.

A música ainda ecoa pelo teatro.

PAMELA. Gente, é sério. O Miguel deixou uma carta. É uma coisa importante.

Todos silenciam.

PAMELA. Eu fui pra casa dele ontem. Daí a gente dormiu. Quando eu acordei, ele

tinha me deixado sozinha. Ele deixou essa carta em cima da cama. Eu acho que eu

preciso ler isso pra vocês. (começa a ler) “Pamela, Eu andei discutindo muito com

vocês nestes últimos dias. E talvez vocês tenham razão. Talvez o Davi esteja certo

quando diz que faz teatro pra ser aceito pelo mundo. Talvez você esteja certa

quando me disse ontem a noite que o que te mantém no grupo é simplesmente a

alegria de estar nesse grupo. Acho que o mesmo vale pra Natália e o Felipe. Eu acho

que vocês estão com a razão. Mas hoje eu descobri que as razões, mesmo as mais

verdadeiras, não servem para todos, e que as razões de vocês não são razões para

mim. Eu quero viver pra dizer que não concordo com o jeito que os homens vivem.

Então, eu descobri que não posso mais fazer essa peça. Eu preciso andar. Eu sei que

vocês vão encontrar um jeito de fazer essa peça sem mim. E eu sei que vocês vão

acabar entendendo que é melhor fazer essa peça sem mim. Eu tô indo embora. Pra

me encontrar. Talvez um dia eu volte, talvez um dia a razão de vocês passe a ser a

minha razão. Mas eu preciso caminhar pra descobrir quem eu sou. Caminhar no

teatro do mundo, no teatro da vida e não no nosso teatro. Diga ao grupo que eu

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amo todos vocês. E diga a Carol que eu percebi que ela tinha razão. Nós nunca

seriamos felizes juntos. Peço perdão por não dizer nada disso pessoalmente, mas

eu acho que em um dia como o de hoje, ir até o teatro seria pior. Fica em paz.

Miguel.”

Felipe levanta-se e dá um chute em uma das caixas do cenário da peça.

FELIPE. Eu avisei, eu não avisei?

CATARINA. Miguel, o cenário da peça!

FELIPE. Existe uma coisa na vida chamada “compromisso”. Existe uma coisa no

teatro chamada “compromisso”. (Silêncio) Quem vai resolver isso agora? Quem

votou a favor que resolva! Quem apoiou a volta desse canalha que resolva!

Miguel sai. Um longo silêncio domina o palco.

CATARINA. Outro dia eu quis parar de fazer teatro. Outro dia eu quis ir embora

daqui. Mas eu acho que as nossas crises tem que ser resolvidas aqui dentro. A

gente não pode desistir. A dor que nasce aqui tem que ser curada aqui dentro.

Silêncio.

JOÃO LÓQUI. Eu acho que ele tem um problema psicológico. Ele é legal com a

gente, mas não é legal com ele mesmo. No caso, ele precisaria fazer uma terapia.

Silêncio.

PAMELA. Eu entendo o Miguel. Eu entendo cada letra desta carta.

Silêncio.

ANA CAROLINA. Gente, eu não tô muito bem. Eu vou até o banheiro, vocês me

deem licença.

Ana Carolina sai. Silêncio.

GABRIELA. (baixo, para Davi Ricardo) Você acha melhor eu desligar a câmera?

DAVI RICARDO. (cabisbaixo) Faz uma endoscopia com ela.

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Gabriela desliga a câmera. Silêncio.

CATARINA. Eu vou entrar no lugar do Miguel. Eu sei a peça inteira de cor. Eu faço o

papel dele.

Silêncio.

NATÁLIA. Você faz?

Silêncio.

CATARINA. Faço.

Silêncio. Davi Ricardo sai na mesma direção de Ana Carolina.

NATÁLIA. Você faria a luz, Gabriela?

GABRIELA. Faço. Eu faço.

Toca o celular de Natália.

NATÁLIA. (ao telefone) Seu José? Sim, estamos prontos. Vamos subir. Até já.

(desliga) O ônibus está lá frente. A gente precisa subir.

Davi Ricardo entra em cena.

DAVI RICARDO. Gente, alguém sabe ressuscitar uma pessoa desmaiada?

NATÁLIA. Oi?

DAVI RICARDO. Eu acho que nós vamos precisar fazer isso com a Carol. Ela está

caída lá dentro do banheiro.

Todos saem na direção dos camarins.

1º NARRADOR. A peça aconteceu. Mesmo sob as condições mais adversas, as

peças sempre acontecem. Catarina fez bem seu papel. Naquele dia ela se

reconciliou com o palco e há décadas ela vem se dedicando à arte de ensinar jovens

a atuarem.

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2º NARRADOR. Natália deixou o grupo uma semana depois que voltaram de

viagem. Pamela fez o mesmo. E o grupo existiu até quando os outros puderam

conciliar o amor pela arte e a necessidade de sobrevivência.

1º NARRADOR. Depois, o Minotauro se desfez, assim como o velho teatrinho, que

foi derrubado junto com o Hotel. Davi Ricardo formou-se em biologia e integra um

núcleo de pesquisa sobre o genoma humano. Juliana assumiu a direção do grupo

no lugar de Natália, depois brilhou um ano na tevê e, por fim, reassumiu seu lugar

nas filas do anonimato. Quanto a Felipe, é hoje um ótimo professor de gramática.

Dizem que entre as frases que usa como exemplos estão alguns dos versos de meu

pai.

2º NARRADOR. Quanto a ele, meu pai... sumiu. Pra sempre. Ninguém sabe se ele

mudou de nome, de país, ou de opinião. Ninguém nunca mais ouviu falar dele.

Quanto à minha mãe, ela me criou sozinha e jamais encontrou a segurança que

tanto sonhou. Pablo podia engolir que ela fizesse teatro, mas não pôde aceitar

quando soube que ela estava grávida de outra pessoa. Minha mãe nunca falou

sobre meu pai, mas eu penso que também nunca o condenou. Ao contrário, me deu

seu segundo nome. Como se quisesse escrevê-lo em mim.

CENA FINAL

Em cena, Juliana, Gabriela, Davi Ricardo, João Lóqui, Felipe e Catarina.

JULIANA. Eu voto pela a gente continuar fazendo “A Tormenta”.

CATARINA. Pra mim, já deu. A gente ficou este ano inteiro apresentando a peça. Eu

acho que ela já deu tudo que tinha que dar.

DAVI RICARDO. Eu sou a favor da gente ler Shakespeare.

JOÃO LÓQUI. E sou mais por a gente uma montar uma peça sobre ecologia, sobre

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educação no trânsito, essas coisas. Eu ouvi dizer que elas são bem fáceis de vender.

DAVI RICARDO. Ai, que preguiça disso!

GABRIELA. Eu quero entrar no elenco da próxima peça. Só isso que eu tenho pra

dizer.

JULIANA. E você, Felipe? Você acha melhor continuar com “A Tormenta” ou

começar uma nova peça?

FELIPE. Eu não sei...

Toca o celular de Juliana.

DAVI RICARDO. A nossa diretora manda todo mundo desligar o celular no ensaio,

mas o dela pode ficar ligado.

JULIANA. (ignora-o e atende) Nasceu? Nasceu?!? (dirige-se aos outros) Gente! O

filho da Carol nasceu! Vamos lá para a Maternidade! (volta ao telefone) A gente tá

indo

pra ai, beijos! (desliga) Vamos, gente, vamos! (Euforia na sala)

GABRIELA. Como é que o menino chama mesmo?

JULIANA. Renato. Vem, vamos!

Todos saem, à exceção de Felipe. Ele permanece em silêncio por um instante, depois

olha na direção de um dos narradores.

FELIPE. Bem vindo, Renato. Bem vindo a este mundo, Renato.

Ele sai.

1º NARRADOR. Se qualquer outra pessoa fosse contar a história deste grupo,

talvez considerasse que Miguel seria um personagem secundário de sua trama. E

talvez ele tivesse razão. Mas eu não fiz uma peça sobre um grupo de teatro. Eu fiz

uma peça sobre meu pai.

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2º NARRADOR. Uma peça pra dizer pra ele, ainda que ele jamais me escute, que

um tanto de mim foi moldado pelas mãos invisíveis de um menino e sua ausência.

Eu padeci a sua falta, mas eu, depois de quarenta voltas ao redor do sol, agora eu o

entendo como a mensageira com quem ele dormiu: hoje eu entendo cada letra

dessa carta que por tanto tempo eu odiei. Eu te amo, pai. Eu te amo, nas infinitas

incertezas de tua eterna juventude.

FIM

Para Carlos e Michelle,

filhos de suas artes, de seu tempo, de seus pais.

Em São Paulo, abril e maio de 2011

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