Analise Res Do Chão - Eu Baixei PDF
Analise Res Do Chão - Eu Baixei PDF
Analise Res Do Chão - Eu Baixei PDF
Introdução
“A vida ao rés-do-chão” foi o título do texto escrito por Antonio Candido para
prefaciar um dos volumes do livro “para gostar de ler”, com seleções de crônicas de
Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Rubem
Braga. Nesse pequeno texto, Antonio Candido descreve com maestria esse gênero que,
segundo ele, serve de caminho para a literatura por estar mais próximo de nós. Através
da simplicidade da linguagem, a crônica torna-se um texto sensível aos acontecimentos
do dia-a-dia e, em alguns casos, nota-se a profundidade de significados que podem levá-
la candidata à perfeição.
Neste trabalho, pretende-se apresentar os pensamentos do literato a respeito da
crônica e suas principais características, relacionando-os principalmente com as
crônicas do escritor Rubem Braga, considerado por Antonio Candido “o mais poeta dos
prosadores do modernismo”. Rubem Braga se destacou na literatura brasileira apenas
escrevendo crônicas, com textos carregados de lirismo, percebe-se a liberdade e
simplicidade descrita por Antonio Candido. Desse modo, trataremos de questões como
oralidade na escrita, o humor, a crítica social e o hibridismo do gênero.
No seu prefácio, Antonio Candido cita crônicas que são consideradas diálogos,
outras marcham rumo ao conto, algumas parecem anedotas e, em outras, temos uma
exposição poética ou biografia lírica. Assim, faremos um passeio sobre um dos textos
mais famosos para o estudo da crônica brasileira, auxiliados por exemplos de crônicas
do escritor Rubem Braga e utilizando também os pensamentos do estudioso Davi
Arrigucci Jr, com o texto “Braga de novo por aqui”, no qual expõe características
importantes do gênero que é considerado bem brasileiro e que não tinha inicialmente
pretensão de durar, mas que permanece até hoje nos encantando com a simplicidade e
brevidade das palavras dos que escrevem do simples rés-do-chão.
1
Antes de ser crônica propriamente dita foi “folhetim”, ou seja, um
artigo de rodapé sobre as questões do dia, - políticas, sociais,
artísticas, literárias. [...] Aos poucos o “folhetim” foi encurtando e
ganhando certa gratuidade, certo ar de quem está escrevendo à toa,
sem dar muita importância. Depois, entrou francamente pelo tom
ligeiro e encolheu de tamanho, até chegar ao que é hoje. (1984, p.7)
O primeiro significado do gênero com o rés-do-chão foi, como vimos acima, sua
posição no jornal, entretanto, ao longo dos anos ela se tornou bem íntima do leitor, com
uma linguagem coloquial e simples, parecia mesmo ser um gênero menor,
diferentemente dos grandes romances e poesias, cuja linguagem rebuscada e temas
complexos encantam o leitor. Por isso, o nosso literato afirma que: “A crônica não é um
‘gênero maior’. Não se imagina uma literatura feita de grandes cronistas, que lhe
dessem o brilho universal dos grandes romancistas, dramaturgos e poetas. [...] Portanto,
parece mesmo que a crônica é um gênero menor” (1984, p.5). E por isso, segundo
Candido, ela fica mais perto de nós e serve como caminho para a literatura.
Por ser filha do jornal e, dessa forma, não foi feita inicialmente para ser
publicada em livros, era um tipo de leitura que no dia seguinte seria descartada, jogada
fora ou era usada para “embrulhar um par de sapatos ou forrar o chão da cozinha”
(1984, p.6). Talvez por não ter pretensões em durar, o nosso crítico afirma que:
1
Termo usado por Davi Arrigucci Jr. no seu texto “Braga de novo por aqui”. In: BRAGA, Rubem.
Melhores contos. São Paulo: Global, 2001.
2
dando-lhe uma consistência literária que ela jamais tivera” (2001, p. 5). Utilizaremos os
textos desse cronista, que se destacou entre os demais por se dedicar quase que
exclusivamente ao gênero, para mostrar algumas características importantes da crônica
e que foram citadas por Antonio Candido no seu famoso prefácio.
3
— Virado há um ano.
— Canta?
— Uma beleza.
— Manso?
— Canta no dedo.
— O senhor vende?
— Vendo.
— Quanto?
— Dez contos.
Pausa. Depois volta:
— Só tem coleira?
— Tenho um melro e um curió.
— É melro mesmo ou é vira?
— É quase do tamanho de uma graúna.
— Deixa coçar a cabeça?
— Claro. Come na mão...
— E o curió?
— É muito bom curió.
— Por quanto o senhor vende?
— Dez contos.
Pausa.
— Deixa mais barato...
— Para você, seis contos.
— Com a gaiola?
— Sem a gaiola.
Pausa.
— E o melro?
— O melro eu não vendo.
— Como se chama?
— Brigitte.
— Uai, é fêmea?
— Não. Foi a empregada que botou nome. Quando ela fala com ele,
ele se arrepia todo, fica todo despenteado, então ela diz que é Brigitte.
Pausa.
— O coleira o senhor também deixa por seis contos?
— Deixo por oito contos.
— Com a gaiola?
— Sem a gaiola.
Longa pausa. Hesitação. A irmãzinha o chama. E, antes de sair
correndo, propõe, sem me encarar:
— O senhor não me dá um passarinho de presente, não?
(BRAGA, 2001, p. 43-44)2
2
Texto retirado do livro: BRAGA, Rubem. Melhores contos. São Paulo: Global, 2001.
4
coisas simples que acontecem no nosso dia-a-dia e que são captadas com detalhes pelo
cronista contador de histórias e são transformadas numa boa história. Outro ponto é a
presença da oralidade na narrativa, com a utilização da primeira pessoa e o diálogo entre
as personagens da história. O humor, característica citada por Candido em seu texto e
que trataremos mais adiante, também aparece nessa crônica. No final do texto o menino
faz uma proposta inesperada para o cronista, depois de uma intensa negociação, ele
acaba pedindo um passarinho de presente.
Além desses, a conversa com o leitor usando a primeira pessoa é outra
característica constante nas crônicas de Rubem Braga, isso é mais uma forma de
apresentar a oralidade na escrita que o cronista faz muito bem. Na crônica “Coração de
mãe” o narrador contará em primeira pessoa a história da desavença entre uma mãe,
dona de pensão e suas duas filhas de olhos azuis que uma noite chegam de madrugada
em casa um pouco “tontas”. Para explicar a situação narrada, ao longo da história o
cronista conversa com o leitor para explicar a confusão:
Além de falar com o leitor, ele aconselha como este deverá interpretar as
palavras da furiosa mãe, assim usa o conselho que também é típico do narrador
tradicional. O texto apresenta ainda partes com diálogos que são muito frequentes na
crônica e servem para representar a oralidade na escrita através das falas das
personagens. Então, a partir dessas duas crônicas de Rubem Braga confirmamos o que
Antonio Candido diz em seu texto e o que Davi Arrigucci Jr. também confirma:
Candido acredita que a união do fato miúdo com um toque de humor e poesia
representa a descrição da crônica moderna. Pode-se afirmar que os textos do nosso
mestre da crônica apresenta a união desses três, além disso, o humor é acompanhado
pela ironia, que tem presença marcante nos seus textos. Nas crônicas citadas acima,
“Negócio de menino” e “Coração de mãe”, percebe-se que o humor se faz presente, na
primeira ele revela-se no final do texto e, na segunda, aparece em quase todos os
momentos da história, acompanhado da ironia.
Vejamos como ele inicia a crônica “Coração de mãe”: “O nome da rua eu não
digo, e o das moças muito menos. Se me perguntarem se isso não aconteceu na Rua
Correia Dutra com certas jovens que mais tarde vieram a brilhar no rádio eu darei uma
desculpa qualquer e, com meu cinismo habitual, responderei que não” (BRAGA, 2001,
p. 45). O cronista já inicia a crônica com uma pitada de humor e ironia, a fim de revelar
as possíveis personagens da história. E continua:
[...] Uma senhora que é dona de pensão no Catete pode aceitar depois
indiferentemente um cargo de ministro da guerra da Turquia,
restauradora das finanças do Reich ou poeta português. A pensão da
mãe das moças era uma grande pensão, pululante de funcionários,
casais, estudantes, senhoras bastante desquitadas. E não devo dizer
mais nada: quanto menos se falar da mãe dos outros, melhor.
(BRAGA, 2001, p. 45)
Depois disso, fala sobre a confusão entre a mãe e as filhas, na qual estas
arrumam as coisas para irem embora de casa, e saem para a rua chorando. É neste
momento que aparecem vários homens “de bom coração” oferecendo apoio e moradia
para as moças dos olhos azuis: “De todos os lados apareceram os mais bondosos
6
homens – funcionários, militantes, estudantes, médicos, bacharéis, jornalistas,
comerciários, sanitaristas e atletas – fazendo os mais tocantes oferecimentos”.
(BRAGA, 2001, p. 48). Foi então que, diante de todos os agrados daqueles homens
querendo levá-las nos seus carros para as melhores hospedagens da cidade, a mãe sai e
as coloca pra dentro de casa novamente, e assim o cronista termina a crônica com um
toque de ironia, dizendo: “Eis o motivo pelo qual eu sempre digo: não há nada, neste
mundo, como o coração de mãe”. (BRAGA, 2001, p. 49).
Poderíamos citar aqui diversas crônicas de Rubem Braga que trazem o humor e a
ironia como recurso para descrever diversas situações do cotidiano. Entretanto,
citaremos aqui somente essa crônica para comprovar o que Candido fala em seu texto e
observar que, a utilização do humor como característica marcante da crônica, reforça
novamente o tom de leveza e simplicidade que lhe é atribuída. Isso não a torna
superficial, pelo contrário, de acordo com Candido (1984, p.11): “Na verdade, aprende-
se muito quando se diverte, e aqueles traços constitutivos da crônica são um veículo
privilegiado para mostrar de modo persuasivo muita coisa que, divertindo, atrai, inspira
e faz amadurecer a nossa visão das coisas”.
[...] Ano e meio casados, tanta aventura sonhada, e estavam tão mal
naquele quarto de pensão do Catete, muito barulhento: "Lutaremos
contra tudo" — havia dito — e ele pensou com amargor que estavam
lutando apenas contra as baratas, as horríveis baratas do velho
sobradão. Ela apenas com um gesto de susto e nojo se encolhia a um
canto ou saía para o corredor — ele, com repugnância, ia matar o
bicho; depois, com mais desgosto ainda, jogá-lo fora.
E havia as pulgas; havia a falta de água, e quando havia água, a fila
dos hóspedes no corredor, diante da porta do chuveiro. Havia as
instalações que sempre cheiravam mal, o papel da parede amarelado e
feio, as duas velhas gordas, pintadas, da mesinha ao lado, que lhe
tiravam o apetite para a mesquinha comida da pensão. Toda a tristeza,
toda a mediocridade, toda a feiura duma vida estreita onde o mau-
gosto atroz e pretensioso da classe média se juntava à minuciosa
ganância comercial — um ovo era "extraordinário", quando eles
pediam dois ovos a dona da pensão olhava com raiva, estavam
atrasados dias no pagamento. (BRAGA, 2001, p. 41)
7
Certo dia, esse jovem casal esperava o bonde que ou passava lotado ou insistia
em demorar, no meio de um sol escaldante. Depois de ela ter que voltar na pensão
porque havia esquecido a receita do médico, perdem mais um bonde, e este estava
vazio. Então, um grande carro conversível para no sinal:
Desse modo, percebe-se que a crônica é um gênero especial, que com a sua
simplicidade torna-se difícil de classificar e definir como detentora de determinadas
características. Por isso, possui vários meios para o leitor se achegar até ela, “é que a
crônica brasileira bem realizada participa de uma língua geral lírica, irônica, casual, ora
precisa e ora vaga, amparada por um diálogo rápido e certeiro, ou por uma espécie de
monólogo comunicativo” (CANDIDO, 1984, p.13). Assim, conclui-se que por meio da
sua despretensão, há sempre muita riqueza para o leitor explorar na crônica e, “por
serem leves e acessíveis talvez elas comuniquem mais do que um estudo intencional a
visão humana do homem na sua vida de todo dia”. (CANDIDO, 1984, p.11).
Referências bibliográficas
ARRIGUCCI JR., Davi. Braga de novo por aqui. In: Melhores contos – Rubem Braga.
São Paulo: Global, 2001. p. 5-27.
BRAGA, Rubem. Melhores contos – Rubem Braga. São Paulo: Global, 2001.