Jardel Lundi - A Confraria Do Crime, o Início de Tudo

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Sinopse

Trumble � uma pris�o de seguran�a m�nima, para criminosos de baixa


periculosidade- traficantes de drogas, ladr�es de banco, fals�rios,
sonegadores de impostos, escroques de Wall Street, um m�dico e, pelo
menos, cinco advogados. Entre os detentos, h� tr�s ex-ju�zes, membros de
um grupo autodenominado A Confraria.

Consultores jur�dicos para seus colegas prisioneiros, eles reveem


processos, redigem apela��es e resolvem pequenas disputas internas,
faturando pequenos honor�rios. Mas eles n�o est�o satisfeitos. Querem
muito mais. E assim come�am a aperfei�oar um golpe para extorquir
dinheiro de respeit�veis senhores ricos de meia-idade que t�m muito a
esconder da sociedade.

Longe de Trumble, o deputado Aaron Lake tamb�m faz parte de um plano,


mas muito diferente. A CIA quer coloc�-lo na Presid�ncia da Rep�blica.
Interesses em jogo na ind�stria da defesa desejam o retorno � guerra
fria e consequente reaquecimento do com�rcio de armas, e cabe a Aaron
Lake representar esses interesses no governo. O virtual futuro
presidente dos Estados Unidos, por�m, ver� seu destino ligado ao dos
tr�s ex-ju�zes encarcerados.

O Brasil est� � beira da loucura coletiva.

De um lado ainda existe indigna��o, mas de outro,


um poderoso estratagema de domina��o,
com apar�ncia de legalidade institucional,
imp�e repress�o generalizada goela abaixo.

E n�o h� o que fazer.

PR�LOGO

Arnoldo entrou esbaforido no apartamento, como se fugisse da morte.


Que aconteceu, homem? indaguei, sobressaltado, pois acabara de acordar com a
campainha insistente.
Arnoldo jogou-se no div�. Agitava as m�os no ar, pedindo calma para recuperar o
f�lego. Pegou uma revista da mesinha e ficou se abanando freneticamente, enquanto
me encarava com olhos esbugalhados. Em
Arnoldo tudo � encena��o, teatro puro. Nunca conheci uma pessoa t�o artificial
quanto ele.
Eu levantara �s pressas, embrulhado no len�ol, achando tratar-se de alguma
emerg�ncia, e disparei pelo longo corredor. Deixara minha companheira de noitada na
cama, igualmente nua, ressonando pesadamente.
Na situa��o inc�moda, esperei pacientemente, embora irritado, que Arnoldo se
recuperasse, o que me pareceu um tempo demasiado longo. Por fim, ergueu-se,
gesticulando descoordenadamente. As piruetas circenses
eram acompanhadas de caretas extravagantes, dava a impress�o de estar engasgado com
alguma coisa da qual n�o conseguia se desfazer. De s�bito, Arnoldo me lascou a
pergunta, como se cuspisse uma espinha
de peixe:
Quer escrever a biografia do maior mafioso brasileiro?
Pude pressentir a pe�a se movimentando no tabuleiro com enrodilhada mal�cia para me
dar o mate nos lances seguintes. Arnoldo me observava agora com uma esp�cie de
sorriso, que era na verdade um esgar de
superioridade, como se portasse um segredo de Estado ou um v�rus com poder de
erradicar a ra�a humana. Repassei mentalmente alguns nomes que poderiam ter algo a
ver, mas, como estava ausente do Brasil
havia mais de dez anos, n�o quis arriscar um palpite.
J� ouviu falar da ACC? me perguntou, mudando o olhar para indulgente.
N�o respondi.
A Confraria do Crime, ACC? Insistiu.
Nunca.
E de Jorge Duncan?
Muito menos.
A minha desinforma��o n�o s� o estimulou como o turbinou para o ataque. Espiou para
os lados para verificar se n�o est�vamos sendo observados: outro artif�cio para dar
realce � sua pantomima interpretativa.
Tudo o que vem de Arnoldo se reveste dessa redund�ncia, dessa bombasticidade, dessa
pirotecnia, a personifica��o de uma ambul�ncia em alta velocidade com a sirene
ligada, com o fim �bvio de chamar a aten��o
para si. O que seria desnecess�rio, pois sua figura gigantesca, angulosa,
sonorizada por uma potente voz cavernosa j� d� um relevo natural a essa conforma��o
grotesca.
A Confraria do Crime, ou ACC, como � mais conhecida vociferou ele , � a maior
organiza��o criminosa secreta do Brasil. Seu fundador e l�der, Jorge Duncan, est�
neste momento em Paris, inc�gnito.
Arnoldo apertou meu bra�o com suas manoplas ossudas e aproximou o rosto macilento
do meu antes de prosseguir:
Attention, mon cher! Veja bem, n�o v� trair a minha confian�a: sou fiel
deposit�rio desse sigilo absoluto! Tudo que vou falar para voc� n�o pode
ultrapassar este recinto. Jamais!
Me fez erguer a m�o num juramento solene. A formalidade do gesto pareceu t�-lo
tranquilizado. Arnoldo inspirou fundo e fechou os olhos, como o atleta ol�mpico que
se concentra momentos antes de tentar
bater um recorde. Nessa altura, eu j� podia prever com certeza absoluta que vinha
roj�o daquele quadrante. Estando, por�m, agora desperto e totalmente dispon�vel,
al�m de enfadado at� os ossos, acomodei-me
na outra extremidade do sof�, ainda embara�ado no len�ol, disposto a enfrentar mais
uma maratona verbal do meu ins�lito companheiro. Arnoldo, de profiss�o obscura,
amigo de muitos anos e conterr�neo, consegue,
no m�nimo, ser divertido. Eu n�o tinha a menor id�ia do que me esperava, mas podia
antecipar algo rocambolesco, pr�prio de seu estilo de folhetim, totalmente fora de
sintonia com a era tecnol�gica em que
vivemos. Fico no aguardo que Arnoldo prossiga, agora que se colocou novamente de p�
e anda de um lado para outro da sala, transpondo-a em duas ou tr�s passadas, olhos
ainda fechados, as m�os tran�adas
�s costas, a testa contra�da aparentando alta concentra��o, revestido por um terno
talvez folgado demais para o seu corpo. Por fim, det�m-se e fixa os olhos em mim:
Veja s�, quero falar sobre Dilvo, acho que j� o mencionei, n�o �?
Fiz um gesto reflexo com os ombros e as m�os significando que eu n�o tinha a m�nima
id�ia de quem pudesse ser.
Ele � um velho amigo meu h� mais de trinta anos. � o bra�o direito e conselheiro
do tal Chef�o, coisa que, para mim, mon cher Lundi, tamb�m n�o passa da mais
nov�ssima novidade.
Ficou me olhando, como se esperasse alguma rea��o minha, como n�o me movi, ele
prosseguiu.
Pois bem, Dilvo confidenciou-me que vinha insistindo para que o Chef�o botasse em
livro a sua vida e ideologia. O dito-cujo, cabe�a-dura como todo caporegime, se
recusava. Ultimamente, por�m, est� cedendo,
ou pelo menos mostrando-se mais flex�vel � id�ia, n�o importa. Aleluia! Dilvo n�o
quer perder a oportunidade, sob hip�tese nenhuma, e me sondou, sabedor que � da
minha penetra��o nos meios intelectuais
europeus, de algum escritor ou jornalista que fosse realmente capaz de levar
adiante essa empreitada. Tem que ser algu�m especial, sabe como �? De suma
confian�a e que tenha, digamos, uma afinidade com
o assunto. Algu�m capaz de manter sigilo sobre tudo aquilo do qual viesse a se
inteirar e que n�o pode ser revelado, mesmo depois de conclu�do o trabalho. Al�m de
ser um profissional competente, �bvio.
Eu continuava im�vel.
Falei pra ele adiantou-se Arnoldo, alteando a voz a ponto de fazer tremer as
vidra�as, enquanto gesticulava amplamente os bra�os como asas , que conhecia um
jornalista e literato que reunia todas
essas qualidades e que, ainda por cima, era brasileiro. Ele se interessou. Sendo
assim, mon cher, te indiquei, o que acha?
Conforme falava, Arnoldo ia arregalando os olhos, como a pontuar a frase com
exclama��es, indicando que estava me oferecendo a grande e �nica oportunidade da
minha vida. Como sequer pisquei, ele instou:
O que acha, amig�o?
Estamos a� disse eu, encolhendo os ombros.
Entrementes, eu tentava decifrar as inten��es por tr�s do discurso de Arnoldo. N�o
tinha d�vida de que ele estava querendo me aprontar alguma. A fama de Arnoldo n�o
permitia que ningu�m o levasse a s�rio,
de forma nenhuma, noventa e nove por cento do que dizia era puro besteirol. Vivia
de zoar os outros, �s vezes com muito mau gosto. O meu desinteresse proposital, no
entanto, pareceu choc�-lo.
O que � isso, meu chapa? Estou te trazendo de bandeja uma mat�ria que pode ser
transformada no maior evento liter�rio do final do s�culo e voc� fica a� desse
jeito, me esnobando? Ele acentuou a careta.
Sem essa, Arnoldo. retruquei.
Ah, n�o? Qualquer escrevinhador de primeir�ssima linha abra�aria a empreitada com
unhas e dentes, e voc�. mon dieu! disse isso abrindo os bra�os exageradamente.
Voc� faz cara de nojo!?
Corta essa, meu chapa atalhei , desembucha duma vez.
Arnoldo me dirigia a melhor express�o injusti�ada que conseguiu moldar na sua
carantonha.
T� bom, t� bom, vou fingir que n�o vi nem ouvi nada disse ele.
Aqui cabe um par�ntese: Arnoldo era conhecedor da minha esterilidade liter�ria dos
�ltimos tempos. Eu vinha lutando com uma novela havia cerca de cinco anos e n�o
conseguia expulsar o caro�o. Havia conquistado
relativo sucesso com um romance no final da d�cada de 1970 e me ausentara do Brasil
justo quando os outros exilados retornavam. O meu era um ex�lio volunt�rio e sem
motiva��o pol�tica. Jornalista desempregado,
eu n�o pretendia mexer uma palha para arranjar ocupa��o. Ainda tinha reservas para
queimar por mais um ou dois anos, vindas duma pequena heran�a familiar. Pretendia,
assim, manter minha independ�ncia at�
as �ltimas consequ�ncias. ou �ltimos tost�es, como queiram. Em nenhum momento,
entretanto, cheguei a cogitar que Arnoldo estivesse me levando aquela proposta por
benevol�ncia ou coisa que o valha. Devia
ter outra significa��o que ainda me escapava.
� o seguinte avan�ou Arnoldo, ainda com algum resqu�cio de impaci�ncia , c� entre
n�s, particular�ssimo, cheguei a conhecer o tal Chef�o numa soir�e, h� bem pouco
tempo, Dilvo nos apresentou.
Como se mudasse do vinho para a �gua, seu rosto se iluminou.
Mas baaahh, tch�, o cara � um barato!
Arnoldo explodiu num gorgolejo ridente, que poderia se assemelhar a uma gargalhada
humana caso n�o pudesse ser confundido com um relincho em golfadas, e que fazia
sacolejar seu esqueleto desengon�ado dentro
do terno esvoa�ante. Deixei-o botar para fora o seu �mpeto hil�rio � vontade, fazer
o qu�?
Ele continuou:
Jardel Lundi, sabe o que � uma figurinha dif�cil? � o pr�prio!
Minha intui��o me confirmava que Arnoldo tencionava me tirar para bobo. Fazendo-se
de aranha, ia soltando a sua baba, armando a teia para atrair a v�tima. Sua
empolga��o aumentava:
O velho � totalmente pirado, cara! Mas quando Dilvo me apresentou a ele, disse que
se tratava do representante de uma marca de tratores do Iowa, Estados Unidos. Tudo
muito formal. N�o me falou em absoluto
que era o tal Chef�o, tentou at� me convencer do contr�rio, frisando que este s�
chegaria mais tarde. Dilvo dava uma de anfitri�o, fazendo as apresenta��es em
ingl�s e tal, toda aquela farolagem, sabe
como �? O velhote falava um ingl�s impec�vel, o que j� me fez desconfiar dele a
partir da�. Onde se viu um picareta l� do interiorz�o do Iowa falar com aquela
emb�fia toda, sem sotaque nenhum? Voc� sabe
do meu talento para farejar tipos estranhos, n�o? N�o descobri voc�? Hehehehe! Pois
fiquei com o velho no meu bico, observando-o de longe, enquanto ele proseava com
outras pessoas da festa. O cara tinha
tanto tique nervoso, fazia tanta micagem, que dava a impress�o de ter sa�do dum
hospital psiqui�trico, reflexo condicionado das sucessivas sess�es de choque
el�trico. Ao mesmo tempo, resvaladi�o como um
peixe, a gente quer segurar, mas n�o consegue, sacom�?. Em dado momento, dei um
cutuc�o em Dilvo, apontando o velhote: � pirado ou n�o �? � o Chef�o, respondeu
Dilvo na minha lata. O meu queixo foi at�
o assoalho como um ioi�, Jardel. Aquilo era o Chef�o da ACC, a Maior Organiza��o
Criminosa Secreta Brasileira? � �bvio que n�o passei essa impress�o a Dilvo, pois
n�o sou bobo. Dilvo, por sua vez, me
explicou que ele costuma agir assim, nas raras ocasi�es em que se apresenta em
p�blico. Est� sempre caracterizado, interpretando um personagem, para que as
pessoas n�o tenham uma n�tida lembran�a da sua
fisionomia, uma precau��o dos velhos tempos, quando tinha que usar de todos os
recursos para livrar a pele. Ou seja, em tese, se utiliza desse expediente para
dificultar a possibilidade de um retrato falado,
e tamb�m para se divertir. � um ator consumado, conforme Dilvo.
Arnoldo falava ininterruptamente, quase sem respirar.
Ent�o, Jardel, como se interpretasse meus pensamentos, Dilvo me advertiu:
N�o o subestime, Arnoldo!
De jeito nenhum, amig�o! , me apressei em responder.
Dilvo ent�o me contou que o Chef�o procura parecer a pessoa mais comum do mundo,
insignificante at�, a regra � passar despercebido.
Claro, claro. Ah, essa � muito boa! , eu disse para ele. Passar despercebido
dando toda aquela bandeira, Jardel? Eu, hein? Mas fiquei na minha, n�o comentei
nada. A regra de mafioso � bico calado.
N�o abra o bico nunca, ele pode pensar que voc� � dedo-duro e, pra dedo-duro, todos
n�s sabemos o que est� reservado, n�o �? Jardel, na verdade, n�o consegui tirar
muito mais coisas de Dilvo, sen�o que,
na intimidade, o Chef�o � uma pessoa de dif�cil relacionamento, quase intrat�vel.
Al�m disso, n�o admite falhas, a m�nima. Seria, pois, necess�rio algu�m de muita
paci�ncia, muito equil�brio emocional,
para aturar suas excentricidades. Algu�m com saco de fil�, sacom�? J� essa
qualidade eu n�o sei se voc� tem, em todo o caso. Por outro lado, voc� pode ser
louco, mas n�o a ponto de rasgar dinheiro, n�o
� Jardel? Nem bobo o suficiente para se meter a besta com um cara desses, n�est ce
pas? Conhece esses tipos mafiosos, uh-la-la! Se vacilar, acaba boiando no Sena.
Arnoldo acompanhou sua �ltima frase com um gesto ondulat�rio da m�o.
Como voc� percebeu prosseguiu Arnoldo, dando a impress�o de que ia encerrar o
assunto, o que me causou certo al�vio, pois meus ouvidos estavam inchados com o
matraquear de sua metralhadora verbal ,
Dilvo me convidou para o sarau, sutilmente, na inten��o de que eu conhecesse a
fera, para que eu tirasse um perfil da figura, para depois, com certeza, transmitir
ao meu eleito, em off. Esse pessoal n�o
bota prego sem estopa. N�o precisou nem me pedir discri��o, apesar de todos esses
anos sem nos vermos, pois sabe que a minha boca � um t�mulo. Caras como eu e ele
n�o mudam nunca, apesar do tempo. Sabe
que eu falaria apenas o estritamente necess�rio, jamais algu�m vai ficar sabendo
algo sobre o Chef�o, no que me diz respeito.
A maneira como Arnoldo falava era capaz de convencer qualquer um, inclusive a mim,
caso n�o o conhecesse.
� isso a�, Jardel Lundi, a decis�o � sua, � pegar ou largar! Quer saber antes a
minha opini�o, mon cher? O ponto cr�tico da coisa � o cara ser de maus bofes. Esse
recado eu entendi. Dilvo volta e meia
retornava ao assunto: que o velho, por d� c� essa palha, toca fogo no coreto. O que
� compreens�vel, c� entre n�s, pra comandar essa corja das ruas, o cara tem que ter
pulso de a�o, sen�o arria. Mas, e
da�? Se o cara � brabo que engula o rabo. Al�m do mais, quem de n�s j� n�o engoliu
sapos? Uns a mais, uns a menos. O felizardo tem que ter jogo de cintura, fazer como
toureiro, dar a lateral pro bicho
cruzar bufando. Voc� tem que ter a vis�o voltada pro futuro. De modo que, vencida
essa espinhosa etapa, VOIL�!, a grande apoteose: aprontado o livro, mesmo tendo
engolido todos os sapos do mundo, voc�
vai ter nas m�os a maior bomba liter�ria do s�culo! � como vencer nos jogos
ol�mpicos, sacou? Voc� sai rengueando da arena, mas vitorioso. Vai ficar famoso e
rico num piscar de olhos! O livro vai virar
best-seller internacional, vender como lanche do McDonald�s.
A essa altura, quis interromper a diarr�ia mental de Arnoldo, mas n�o tive �xito.
Come�ar o dia dessa maneira, depois de uma noite da mais intensa trepa��o, quando
se quer s� dormir, � fogo.
Jardel Lundi, voc� est� a�, cheio de escr�pulos, sem saber o que est� perdendo.
Imagina um assunto desses nas m�os do velho Hemingway, caso estivesse vivo? N�o
quero p�r em d�vida a sua compet�ncia,
longe disso, quero dizer que � uma oportunidade que ningu�m despreza. O velho Hem
faria chover! Ganharia outro Nobel!
Matei a alfinetada no osso do peito, cruzando as pernas.
Est� lembrado da curiosidade do p�blico a respeito da Yakuza, quando o assunto
veio � tona? continuou Arnoldo, arrebatado, preparando uma nova saraivada
discursiva. Quem n�o queria saber dos dedos
cortados, das tatuagens e tudo mais, lembra? Um fil�o para a televis�o, jornais e
revistas do mundo todo. Foram escritos livros, feitos filmes, o diabo! Pois o meu
amigo Dilvo garante que a Yakuza, a Cosa
Nostra, o Comando Vermelho, os Cart�is, as Tr�ades, os Maras, a Ndrangheta e sei-
l�-mais-o-qu�, s�o fichinha perto da ACC. E o homem que a criou vale mais que Al
Capone, Jirocho e Carlos Escobar juntos.
Afirma que o Chef�o matou mais gente que o Rambo nos filmes do Stallone, e que tem
um talento magistral para neg�cios. Mais ainda, que o homem tem forma��o
universit�ria. S� n�o sei em que. Veja s�, que
chique, um mafioso formado em universidade! Justo no mundo do crime, onde a cultura
� considerada artigo de luxo, onde prevalece a for�a bruta, a viol�ncia. Um mafioso
universit�rio, justo no Brasil,
o pa�s do Carnaval, do futebol e dos analfabetos. E por a� segue, uma longa lista
de atividades: uma grande fatia do tr�fico de drogas do Brasil est� em suas m�os,
80% dos assaltos a bancos em �mbito
nacional s�o feitos pela organiza��o, grandes crimes de colarinho branco t�m o dedo
d�A Confraria do Crime por tr�s, al�m de falsifica��o, lavagem de dinheiro, jogo
clandestino, prostitui��o, tr�fico de
beb�s e de mulheres, pirataria em geral, extors�o, sequestro, outra especialidade
da organiza��o, estelionato em grande escala, o diabo. Dilvo garante que o Homem
tem mais tent�culos em Bras�lia que o
Amador Aguiar, Jos� Erm�nio de Morais e o Roberto Marinho juntos. Financiou
campanhas de senador a vereador. Tem ju�zes, desembargadores, promotores, delegados
de pol�cia, sem contar os cargos subalternos,
a seu soldo. Prefeitos, governadores, ministros, muita gente importante do alto
escal�o do governo, todos comendo pelas m�os dele. Infiltrada em v�rios �rg�os
p�blicos, a ACC est� a par de tudo que � decis�o
sigilosa do governo. N�o � raro a informa��o chegar para o Chef�o mesmo antes do
que para o titular de alguma pasta ministerial, que, pela ordem natural das coisas,
deveria receber o mandado em primeira
m�o. Mas, principalmente, nas secretarias de seguran�a, �mbito federal e estadual,
tem gente sua l� dentro, plantada, pronta para entrar em a��o e atender �s suas
ordens. Seus tent�culos se espalham como
uma epidemia. Mesmo assim, a PF brasileira, a CIA, a DEA e a INTERPOL pouco sabem
da ACC. E esse pouco conhecido j� est� totalmente defasado. A m�dia j� tentou
badalar alguma coisa, mas com dados t�o inconsistentes
que o assunto caiu no esquecimento. Tudo � abafado. Ou confundem a ACC com o
Comando Vermelho, cart�is ou com ramifica��es de m�fias coreanas, chinesas,
sicilianas, japonesas, o escambau, no per�metro
Rio-S�o Paulo. Na verdade, tudo n�o passa de suposi��o, de palp�vel mesmo, nadinha!
Continuam boiando em mar agitado de maionese. Um enorme ponto de interroga��o paira
sobre todas as cabe�as, e isso gra�as
ao desempenho desse homem dito genial.
Arnoldo olhou para mim longamente, depois seguiu adiante:
A ACC � uma empresa-gigante-fantasma, da qual apenas se pressup�e a exist�ncia,
estendida a v�rios estados brasileiros, administrada com metodologia cient�fica,
utilizando-se dos �ltimos recursos de
ponta da inform�tica, e voltada exclusivamente para o crime. Fatura centenas de
milh�es de d�lares anuais e, �bvio, n�o paga um tost�o de imposto de renda. Hehehe.
A organiza��o tem a sua identidade preservada
como um segredo guardado a sete chaves. Essa Oitava Maravilha do Mundo dos Neg�cios
foi bolada por um paranaense de quem ningu�m tem a menor informa��o. Agora, somente
agora, o Homem, embora relutasse
at� o �ltimo, resolveu se mostrar, fazer uma entrada triunfal no cen�rio da vida
p�blica. Quem resiste a ter toda essa fama e ficar inc�gnito? Que gra�a tem ningu�m
ficar sabendo de tanto poder? Dilvo
afirma que ele tem bons motivos para se mostrar, e voc� � o privilegiado que pode
ter esse homem em suas m�os, para apalp�-lo, vir�-lo do avesso, dissec�-lo e
revel�-lo ao mundo. VOC�, meu camaradinha!
E quem est� trazendo para voc� o mapa dessa mina de ouro? Quem? Quem? Eu, amig�o,
EU! Muito EU!
Arnoldo discursava com tanto entusiasmo e convic��o, emoldurado por gestos
ornamentais, que ficava dif�cil acreditar que estivesse blefando. Mas essa era a
caracter�stica de seu estilo antropof�gico, dar
veracidade a assuntos fr�volos. Eu, por�m, continuava com um p� atr�s, com a
prud�ncia dos que evitam se tornar a chacota de Paris pela boca ferina dum estroina
viral. Como se ele tivesse captado num lance
telep�tico o que eu acabava de pensar, acrescentou:
Ainda duvida da minha sinceridade, Lundi? Mais non! E eu fui me lembrar logo de
voc�!.
Ele voltou a suspirar um suspiro t�o longo que desarmou seu esqueleto. Quase tive
que pular para sustent�-lo. No segundo seguinte, por�m, inspirou fundo, exaltando a
fisionomia, numa demonstra��o clara
de estar visivelmente ofendido. Ou era apenas uma tomada de f�lego para nova
investida? Non, mon Dieu! Eu j� estava zonzo com as golfadas logorreicas de
Arnoldo, cuja matraca equivalia a uma Thompson fritando
os meus ouvidos.
Claro que topo! me apressei a responder, e acrescentei baixinho, como Galileu
Galilei: Desde que essa n�o seja mais uma arma��o sua.
Mas n�o t�o baixo a ponto de evitar que Arnoldo escutasse. Ou se n�o escutou, pelo
menos tentou interpretar o meu solil�quio labial. Isso o descontrolou. Executou uma
coreografia indignada, agitando bra�os
e pernas como se fosse um enorme moinho de vento. Por fim, segurando a cabe�a com
ambas as m�os, como se eu tivesse proferido a blasf�mia mais torpe:
Arma��o? Voc� murmurou arma��o? Tem coragem, Jardel Lundi? Puxa, voc� � fogo,
hein? S�o Tom� perto de toi n�o passa duma criancinha de colo. Olha a diferen�a!.
Aqui, pude confirmar, pela express�o que Arnoldo colou no rosto, o risorius
tremelicando, que ele estava realmente melindrado ou n�o passava aquilo de mais um
requinte da sua sofisticada arte de representar.
Olha a diferen�a entre n�s! Eu elejo voc� para uma miss�o especial�ssima.
Especial�ssima, uma ova, hiper-fant�stica-extraordin�ria! Justo quando tenho carta
branca para indicar a pessoa que bem quiser.
qualquer um entre dezenas. E olha que estou em Paris, mon cher, o centro cultural
do mundo, onde continuam se reunindo as cabe�as liter�rias mais brilhantes do
momento! Mas n�o, escolho voc�, LOGO VOC�!
E veja o que acontece! O que recebo em troca? Desconfian�a, desconfian�a,
desconfian�a. Sem a menor sombra de d�vida, a nossa amizade � uma pista de m�o
�nica, o sentido � sempre o seu eu megaloman�aco.
Realmente, estou desencantado, mon cher Lundi.
Ergui a m�o em protesto.
Pare de fazer teatro, Arnoldo, voc� n�o est� no palco do Op�ra, est� apenas na
sala de estar da minha modesta casa, j� disse que topo!
C�est vrai?
Oui, sim, claro, topo!, topo!, n�o entende mais o bom portugu�s?
Arnoldo esfregou as m�os uma na outra, um ru�do de lixas friccionando-se.
Bom, nesse caso, vamos ao ponto mais importante do nosso particular, acertar a
minha comiss�o, n�est ce pas?
Nesse momento, vendo a ansiedade em garantir sua parte no neg�cio, ficou
transparente que Arnoldo falara a verdade. A mais pura e cristalina verdade. N�o,
Arnoldo n�o inventaria nada, nem nunca brincaria
com um assunto que envolvesse dinheiro. Jamais!
Seguinte, �, meu disse ele, esfregando na palma esquerda a outra m�o de cutelo ,
fifty-fifty.
O resto do nosso di�logo virou uma discuss�o acirrada para estabelecermos o seu
percentual de participa��o no trabalho que eu iria desempenhar. Nada mais justo que
Arnoldo ganhasse pela indica��o, mas
fifty-fifty seria um disparate. No frigir dos ovos, o trabalho de carregar pedras
seria feito por quem?

Alguns dias depois, fui ao encontro arranjado por Arnoldo com seu camarada Dilvo, o
tal conselheiro do capo di tutti i capi do Crime Organizado do Brasil, desencavado
n�o sei de onde, pois tinha ainda
minhas d�vidas quanto � origem de tudo. Arnoldo me adiantou que Dilvo faria os
preparativos para o meu primeiro contato pessoal com o Chef�o. Eu havia revisado o
assunto e me vi assaltado por uma infinidade
de incertezas. Tudo o que vem de Arnoldo, como j� disse, l�ngua de trapo refinado,
adquire uma dimens�o nebulosa, sem a m�nima correspond�ncia com a realidade. Sair
do meu comodismo intelectual de interiores
e me lan�ar numa aventura barra-pesada, da mais completa informalidade, confundia
os meus princ�pios. Eu me sentia como caminhando num campo minado. O qu� Arnoldo me
aprontara desta vez? Procurei, no entanto,
extrair alguma razoabilidade da minha confus�o mental. Afinal, mesmo que o assunto
redundasse em nada, eu n�o teria a perder mais que um pouco de tempo. E tempo e
t�dio, como j� disse, era o que eu mais
tinha de sobra. Valia a pena arriscar. No m�nimo, eu faria contato com mafiosos de
verdade, fato in�dito na minha experi�ncia pessoal. J� havia lidado com pol�ticos
vorazes, com homens de neg�cios dur�es,
frios e selvagens, com espertalh�es inescrupulosos, e talvez Arnoldo pudesse ser
enquadrado na �ltima classifica��o dessa lista, mas com bandido desse tipo, em
carne e osso, seria mon d�but. E, caso tudo
n�o passasse de mais um blefe de Arnoldo, eu poderia, na pior das hip�teses, somar
este aos anteriores, e passar, ent�o, a ter motivos suficientes para, a partir
dali, n�o lhe dar jamais o menor cr�dito.
JAMAIS, JAMAIS!
S� que, desta vez, me enganei feio. O assunto n�o s� era quente como fui convocado
para iniciar o trabalho imediatamente. Trabalho, ali�s, que mudou de forma radical
o rumo de tudo aquilo que eu vinha
fazendo at� ent�o em termos de literatura. E, n�o s� isso, minha vida toda tamb�m
mudou daquele ponto em diante, um giro de cento e oitenta graus. N�o tive nem a
oportunidade de me penitenciar com Arnoldo,
pois ele viajou inopinadamente, sem deixar rastos, como era seu costume de tempos
em tempos.
De manh�, no hor�rio combinado, me encaminhei ao Hotel Ritz, na Place Vend�me,
endere�o que me havia sido passado por Arnoldo antes de seu sumi�o. Ao transpor o
umbral do hall que conduzia � su�te onde
eu estava sendo aguardado, dei de cara com um brutamontes mal-encarado, de terno
escuro e gravata, que, sem dizer palavra, me procedeu uma revista em regra.
Imediatamente percebi que lidava com profissionais,
ningu�m estava ali para brincadeiras. As apalpadelas bruscas de manzorras calejadas
em academias de muscula��o me deram certeza disso. Fui conduzido a uma saleta, onde
havia quatro homens vestindo os mesmos
ternos escuros e gravatas, o uniforme que caracteriza o pessoal do CO e advogados.

Um deles se destacou e apresentou-se como Dilvo, dispensando os acompanhantes com


um gesto de m�o. Dilvo era um cinquent�o de estatura mediana, compacta, muito calmo
e seguro de si. O rosto ovalado se
sobressa�a sob a testa alta. As acentuadas entradas nas t�mporas eram acompanhadas
de fios ralos e brancos, cuidadosamente penteados para tr�s. Um olhar de nuances
variadas, podendo atingir est�gios duma
algidez siberiana. No entanto, esfor�ou-se para ser simp�tico, gentil e deixar-me �
vontade. As coloca��es que Dilvo me fez como introito poderiam ser assustadoras
caso eu n�o estivesse preparado psicologicamente
para o encontro. Sem rodeios, repetiu um pouco daquilo que Arnoldo havia me exposto
no seu fogar�u verbal e real�ou o compromisso que eu estaria assumindo ao aceitar a
empreitada, ou seja, uma cl�usula
que n�o permitia retrocesso. Eu estaria atrelado a ela pelo resto da minha vida.
N�o poderia revelar nada do que ali me fosse narrado, exceto sob a forma de livro.
Jamais dar entrevistas ou comentar o
assunto, mesmo em car�ter privado. Uma esp�cie de voto eclesi�stico de sil�ncio,
que n�o permite revelar os segredos do confession�rio (na m�fia italiana, essa
postura era denominada omert�). Essa seria
a exig�ncia b�sica, a cl�usula de sigilo, que iria reger outras, j� de ordem mais
informal. No tocante �s minhas entrevistas com o Chef�o, o n�vel de confian�a � que
gerara aquele relacionamento, afian�ada
por uma antiga amizade, para a qual ele, Dilvo, devotava grande dose de respeito.
Nesse instante, me dei conta de que, apesar dos anos, conhecia Arnoldo muito
superficialmente, talvez o seu lado mais burlesco.
Dilvo acrescentou que o fato de Arnoldo ter me indicado era um aval ao meu talento
e � minha honorabilidade pessoal, o que me deixou meio encabulado, talvez por n�o
me ver com toda essa bola. O que Arnoldo
teria dito de mim? Dilvo mencionou tamb�m que havia tomado a liberdade de fazer uma
investiga��o sobre o meu passado, a partir do momento que passei a ser cogitado
para exercer o trabalho, e que eu tinha
passado no teste. Ressalvou, no entanto, que a contrata��o dependeria do resultado
do meu contato com o Chef�o. Ou seja, para que as coisas tivessem prosseguimento, a
palavra final seria dele, como era
em tudo, ali�s. Retornou � cl�usula da impossibilidade de retrata��o, o que
real�ava a import�ncia do detalhe, e me disponibilizou tempo suficiente para pensar
antes de tomar uma decis�o. Caso esta fosse
favor�vel, eu teria, no entanto, que me empenhar de corpo e alma na execu��o
rigorosa dos termos contratuais, sob pena de, na eventualidade de descumprimento,
sofrer graves consequ�ncias. N�o detalhou
o que representavam essas graves consequ�ncias, mas revi nitidamente o rio Sena e o
gesto ondulat�rio da m�o de Arnoldo. Apenas deixou subentendido que havia uma
sequencia nessa ordem de puni��es, o primeiro
seria Arnoldo, depois meus familiares, incluindo ascendentes e descendentes, e, por
fim, eu. N�o havia qualquer ind�cio de amea�a na sua voz, o coment�rio referia-se �
mera comina��o por inadimpl�ncia
de cl�usula contratual. Um entendimento franco que n�o permitia interpreta��es
d�bias, era preto no branco. Nossa conversa prosseguiu por mais uma hora. Sempre
Dilvo respondendo pacientemente �s muitas
quest�es que lhe formulei, as mais variadas e particularizadas. Por fim, lhe disse
que j� tinha uma resposta. Declarei-lhe. Ele levantou-se, ent�o, e, desculpando-se,
ausentou-se do recinto. Retornou,
ap�s alguns minutos, dizendo-me que estava tudo certo. Marcamos encontro para o dia
seguinte, quando eu seria apresentado ao Chef�o. Tudo precisava ser revestido de
uma certa urg�ncia, pois a estada do
Chef�o em Paris n�o seria muito prolongada. Que eu estivesse bem atento �s palavras
do Chef�o, pois n�o seria permitido nenhum tipo de material ou grava��o. Ele me
fez, ent�o, uma s�rie de novas e recorrentes
recomenda��es que eu deveria obedecer no decorrer desses encontros. Que nada
poderia ser divulgado ou publicado sem a expressa autoriza��o do Chef�o, ap�s sua
leitura minuciosa do texto final, o que entendi
ser alguma coisa parecida com o imprim�tur eclesi�stico. Que nada, absolutamente
nada, seria registrado se n�o tivesse correspond�ncia direta com a realidade
daquilo que me haveria de ser revelado, sendo
vedada qualquer infer�ncia subjetiva ou interpretativa da minha parte, mesmo que
tivesse a ver com o aspecto estrutural da obra. Que teria de condicionar nossos
encontros � agenda sempre abarrotada do
Chef�o, e isso seria um motivo de prolongamento quase indefinido ao t�rmino do
livro, o que exigiria uma dedica��o exclusiva do meu tempo �s suas raras
disponibilidades, independente de hora e lugar. Entendi
bem o sentido dessa �ltima recomenda��o: teria que ter n�o s� paci�ncia, mas saco
de fil� para ficar indefinidamente na sala de espera da Sua Santidade Toda
Poderos�ssima. Essas foram as regras de linhas
gerais, detalhes outros seriam acertados no desenvolvimento dos trabalhos, conforme
os ajustes se fizessem necess�rios. Tudo era definido tim-tim por tim-tim como se
f�ssemos rob�s programados. Acertados
esses pontos, Dilvo deu por encerrada as nossas quest�es preliminares.
A prop�sito disse ele, enquanto apert�vamos as m�os , o Chef�o era um daqueles
homens que estavam na sala quando voc� chegou. Queria conhec�-lo pessoalmente para
fazer a sua ficha. O Chef�o � capaz
de tirar a ficha de uma pessoa em poucos segundos, uma ficha mais completa que a do
Serasa. Aqui Dilvo soltou uma vigorosa gargalhada. Parab�ns! Voc� foi aprovado!
Na manh� seguinte, por�m, recebi um telefonema de Dilvo, desmarcando o compromisso
da tarde. Eu deveria manter-me a postos, no entanto, aguardando novo contato, que
poderia ocorrer a qualquer momento do
dia ou da noite. As tr�s semanas que se seguiram foram marcadas pelo compasso de
espera a que tive de me submeter resignadamente. Isso me irritou demais, pois meu
temperamento n�o consegue se conformar
a r�gidas regras de conduta. Ou quem sabe o Don Corleone caboclo tivesse desistido
do projeto? N�o tinha nem Arnoldo por perto, para poder desabafar ou pedir que
intercedesse junto ao seu camarada, Dilvo.
Sentia-me como um colegial esperando a chegada do mestre para dar fim ao castigo.
Meu sofrimento s� foi acabar vinte e dois dias ap�s a primeira data marcada! Sem a
menor explica��o pela demora, fui recebido no sal�o principal da su�te que o Chef�o
ocupava no hotel Ritz, onde se dariam
os nossos encontros dali em diante. O aparato de seguran�a era equivalente ao
montado para um importante Chefe de Estado. Novamente fui quase virado pelo avesso
por um troglodita de dois metros, o cabelo
preso em um rabo de cavalo, que me apalpou com as m�os peludas. Indicou-me um lugar
para que eu me sentasse. Fiquei, por mais de meia hora, aguardando em sil�ncio
constrangedor. Nesse �nterim, as pesadas
cortinas do sal�o foram corridas e uma lumin�ria, ligada. Desde a minha chegada,
contei oito homens circulando por ali, usavam gravatas e os indefect�veis ternos
escuros. Debaixo dos palet�s notava-se
um volume que devia ser o das armas. Estaria mais uma vez o Chef�o entre eles,
disfar�ado, me observando, como dizia-se que costumava fazer? Ningu�m ali dava um
pio, muito menos a m�nima import�ncia �
minha presen�a. Entravam e sa�am silenciosamente do compartimento onde eu me
encontrava, como se a profiss�o de sil�ncio fosse uma regra geral. Pareceu-me que
havia muitos votos por ali a serem cumpridos,
alguns, talvez, al�m da minha capacidade de submiss�o. J� estava come�ando a me
enervar quando, finalmente, Dilvo entrou apressado. Cumprimentando-me, disse: Ele
j� vem. Deu meia-volta e, antes de sair,
acenou da porta. No instante seguinte, algu�m entrou e ocupou lugar, diante de mim,
em uma cadeira de bra�os, estofada em tecido vermelho e de espaldar alto, id�ntica
� minha, ambas localizadas em um canto
do recinto, especialmente montado para o encontro. De permeio, uma pequena mesa,
baixa, com tampo de vidro. A �nica luminosidade do ambiente era despejada contra a
parede da direita por um spot, e se refletia
em n�s palidamente. O resto do aposento estava no escuro, ficando preservado o
nosso espa�o como uma cena destacada no palco de um teatro. Est�vamos iniciando a
primeira de uma s�rie de entrevistas que
resultaria neste livro.
O homem sentado � minha frente tinha cerca de 60 anos, apesar de aparentar bem
menos, era alto, esbelto e mostrava-se ainda bastante s�lido. O cabelo, quase todo
branco, era abundante e curto, o que lhe
dava uma apar�ncia de jovem envelhecido precocemente. Sua face esquerda destoava da
outra, indicando que tinha sido alvo de sucessivas pl�sticas, exibindo uma
assimetria que n�o chegava a causar repulsa;
seus l�bios se repuxavam um pouco na comissura desse mesmo lado do rosto, num esgar
desdenhoso. Vestia um elegante terno preto e camisa de linho escandalosamente
branca, gravata de seda bord�, certamente
italiana, sapatos de verniz preto. Com as pernas cruzadas, os cotovelos fincados
nos bra�os da cadeira, o tronco hirto, seu pesco�o se alongava projetando a cabe�a
para o alto, a pose t�pica de quem ensaia
para ser fotografado.
Arrog�ncia! Era isso! O conjunto daquele homem destilava uma arrog�ncia incr�vel,
uma perspectiva da sua personalidade tirada a partir da linha do l�bio e da qual eu
n�o tinha lembran�a de ter visto outra
parecida, exceto nas captadas de alguns flagrantes de Benito Mussolini durante a
Segunda Guerra. Os olhos, de um azul profundo, eram mi�dos, inquietos e
penetrantes, como dois raios pontiagudos de laser,
expressavam-se magnificamente e, ao me analisar, transmitiam zombaria. Embora se
mantivesse im�vel e calado desde quando sentara, demonstrava agita��o incomum, como
se um fluxo de lava substitu�sse-lhe
a corrente sangu�nea. Seu rosto contra�a-se em v�rios pontos como se travasse uma
luta interna. Interpretei isso como uma enorme dificuldade para falar de si, a
tortura de ter de confessar-se para um estranho.
Cheguei a pensar, n�o sem um certo toque de sadismo, a exemplo de um psicoterapeuta
calejado, que talvez tivesse de o estimular a desembuchar-se das suas neuroses
cabeludas. No entanto, nada me ocorria
para isso. Ele obstinava-se em permanecer hirto e mudo. Essa atitude me deixava
momentaneamente sem a��o e levemente agastado. Ent�o ele queria fazer o jogo do
perde-ganha? Pois tinha arranjado o parceiro
ideal. Ficamos nos encarando, como dois lutadores que se estudam, sem que nenhum,
no entanto, tomasse a iniciativa do primeiro golpe. Entrementes, naquele breve
exame superficial, pude inferir que estava
diante de um homem dur�ssimo, voluntarioso, de conclus�es implac�veis e
intelig�ncia superior, um surpreendente e perigoso manipulador, algu�m que pode
virar um animal feroz de um momento para outro, algu�m
que vai tentar nos dobrar como um junco � sua vontade e que n�o admite nunca ser
contrariado. Numa rea��o impulsiva, me pus mentalmente em posi��o de guarda. Para
meu desagrado, ele percebeu isso, de imediato.
Tomei novo f�lego e permaneci � espera que destravasse a sua maldita l�ngua, para
v�-lo sofrer remoendo suas trag�dias pessoais. Afinal, quem perdia tempo era ele,
eu estava ali para o que desse e viesse.
Em v�o ele permaneceu me observando, me submetendo ao crivo implac�vel do seu
Serasa introspectivo. Com a mesma obstina��o inicial, vasculhava-me com suas brocas
visuais, e eu conclu� que se divertia com
isso. Gracinha! Em contrapartida, fixei minha aten��o entre seus olhos, no topo do
nariz, sustentando aquele foco de potente microsc�pio eletr�nico. Mas n�o por muito
tempo, desviei o olhar. N�o me senti
melhor, por�m, que um micro-organismo, devassado daquela forma em minha
privacidade, e tive a inten��o de protestar no �rg�o de defesa dos meus direitos
naturais de antidisseca��o. Esse jogo absurdo come�ava
a me desequilibrar, causando-me irrita��o seguida de prurido, em v�rios pontos do
corpo, que eu evitava co�ar para n�o demonstrar fraqueza. Antevia um relacionamento
extremamente dif�cil refletido no seu
freio verbal e na sua postura megaloman�aca, o que talvez me fizesse lamentar
profundamente, qui�� pelo resto da vida, o fato de ter aceito aquela proposta. O
seu olhar zombeteiro, no entanto, desmentia
em parte o meu ju�zo severo e precipitado. Se usasse �culos escuros, entretanto, eu
n�o teria conseguido extrair mais nada da sua express�o facial, repentinamente
imobilizada e fria, bloqueando toda emo��o
que pudesse transparecer nela. Arnoldo tinha carradas de raz�o: o homem sofria
muta��es psicol�gicas simult�neas, que se refletiam ou n�o em seu semblante. Nessa
inc�moda posi��o, nessa esgrima de olhares,
nesse jogo interpretativo, passamos muitos e prolongados minutos. Suas fei��es
alteradas, caricaturais, bruxuleavam � p�lida luz projetada da parede que lhe
iluminava apenas uma das faces, deixando a outra
na penumbra. Nisso, seu olhar atingiu o cl�max do deboche e sua boca explodiu numa
gargalhada insana, como um espirro imposs�vel de conter. Seu corpo vergou para a
frente, com o fremir das risadas, e vi
seus olhos inundados de l�grimas. Levou a m�o ao bolso e tirou um len�o, rindo e
sacudindo o corpo o tempo todo. Enxugou os olhos e tentou conter o �mpeto ridente.
Encarou-me e teve novo acesso, fazendo
gargalhar com ele toda a sua ossada. Casquinava com a turbul�ncia e o estr�pito de
um trator agr�cola lavrando solo acidentado. Deixei cair o queixo, totalmente
abobalhado. �O qu� � isso, Deus meu?� Arnoldo
dissera certo: o cara era pirado total! Quando dei por conta, estava fazendo coro e
rindo desbragadamente. As nossas risadas tinham a resson�ncia do ruflar das asas de
um bando de p�ssaros enlouquecidos,
debatendo-se e chocando-se �s paredes silenciosas do aposento, como se, largados
subitamente l� dentro, tentassem desesperadamente achar uma sa�da. Rimos, rimos,
rimos, sem a menor compostura, at� n�o
mais poder. O meu ris�rio do�a da contra��o prolongada. Quando nos recompomos, n�o
sei quanto tempo depois, ele se botou a falar num franc�s fluente. Uma voz um tanto
�spera, met�lica, de aparelho desregulado,
passando, a seguir, para um ingl�s irretoc�vel e, por fim, tomando o portugu�s,
nossa l�ngua natal. Aquilo que achei tratar-se de descarado exibicionismo me foi
explicado mais tarde que n�o passava de
uma necessidade para derrubar a barreira das m�ltiplas nacionalidades, das
dificuldades de comunica��o entre as diversas organiza��es criminosas que se
espalhavam pelo mundo, e que ele praticamente eliminara.
Soube, tamb�m, que ele usava com razo�vel desembara�o o espanhol, o italiano, o
�rabe, o japon�s, al�m do alem�o e do russo. Em outra ocasi�o, fiquei sabendo que
ele tomava as primeiras aulas de mandarim
falado.
Eis suas primeiras palavras:
Aquele chav�o: jamais poderia imaginar que. se adapta perfeitamente a mim. Aos
quase 50 anos eu era uma pessoa comum, talvez at� demais. Em momento algum eu
pr�prio poderia supor, por um segundo
que fosse, que me tornaria o maior chef�o do crime organizado do Brasil. Ningu�m
sen�o um adivinho poderia prever isso. Apenas uma pessoa o fez, a certa altura,
logo no in�cio. Com base em qu�? At� hoje
n�o sei. At� porque eu n�o tinha nada em mim que indicasse uma pista,
principalmente se fosse avaliado pelo que eu fazia naquela �poca, baseado na minha
rotina di�ria: aposentado, frequentador de academias
de muscula��o, sempre correndo atr�s de mulheres. O tipo colecionador de calcinhas,
sacou? Um fauno acossando ninfas, para fazer uma compara��o mais ao gosto dos
franceses. (risinho ir�nico)
Aqui ele fez uma pausa, como se tivesse momentaneamente perdido o foco do que
pretendia dizer. Descruzou e cruzou novamente as pernas, mudando de posi��o. Sempre
me encarando firmemente, avan�ou:
Na verdade, eu n�o passava disso, um energ�meno debiloide que n�o pensava em outra
coisa a n�o ser nas xoxotas das menininhas. S� isso. Levava uma vida pacata
dedicada exclusivamente � pr�tica do fuque-fuque.
Paz e amor, bicho. Tanto que era f�cil prever o meu futuro, dali a dez anos, com um
enorme calo no cacete. (riu.) Nada mais que isso. S� que, em menos de um ano, a
partir desse ponto, como num passe
de m�gica, minha vida sofreu uma reviravolta t�o repentina como a do fun�mbulo que
erra o passo e se precipita no vazio. Por sorte, como um felino, eu consegui cair
de p�.
Enquanto ele falava, eu me surpreendia com a sua narrativa concisa, objetiva, quase
liter�ria. Nas repetidas vezes em que o interrompi, para acrescentar alguma
pergunta, n�o obtive resposta. Minutos depois,
todavia, Dilvo achegou-se e cochichou algo no ouvido do seu chefe. Este se ergueu,
sem hesitar, apertou a minha m�o e deu por encerrada a entrevista.
O Chef�o e Dilvo sa�ram, apressadamente, deixando-me s�. Retirei-me tamb�m,
bastante frustrado.

Nos encontros que se seguiram, no entanto, o l�der da m�fia brasileira, ou seja l�


do que fosse, mostrou-se bastante receptivo e bem-humorado. Deprimia-se um pouco,
por�m, escurecendo o azul dos olhos
como um c�u que se cobre de pesadas nuvens, quando a narrativa atingia momentos
cr�ticos de sua vida. No mais das vezes, entretanto, revelou-se um envolvente
comunicador, o que � pr�prio do l�der carism�tico
acostumado a comandar pessoas, sempre extraindo delas o m�ximo de rendimento.
A cada novo contato o nosso relacionamento se aproximava da camaradagem. Nos
subsequentes, embora sem regularidade, aproveitando as brechas de disponibilidades
em sua agenda lotada, o gelo foi quebrado
totalmente, e ele passou a me encarar como seu confidente, que � a melhor
caracter�stica de uma amizade. Nos depoimentos colhidos durante sete anos (!) ap�s
a nossa primeira entrevista, n�o havia mais
o m�nimo resguardo de sua parte. Admitiu toda sorte de perguntas e questionamentos,
confiando no prop�sito de meus objetivos. Ap�s cada entrevista, eu transpunha essas
informa��es para os arquivos no computador
e ia fazendo o trabalho de montagem tal qual um diretor de cinema. Juntava partes
de narrativas que tinham entre si intervalos de meses ou at� anos.
No entanto, quando o trabalho come�ou a se aproximar do final, percebi que muitos
trechos iam se encaixando, como se fizessem parte de um extenso quebra-cabe�a. Um
mosaico enorme onde se costurava a sua
vida individual com a hist�ria contempor�nea do Brasil. A ACC, no meu entendimento,
constru�ra-se dentro de um contexto que implicava v�rios �ngulos e est�gios, mas
principalmente quanto a rela��es pol�ticas,
que abarcavam quase tudo o que se refere ao jogo do poder. Um jogo que visava
ganhar muito dinheiro e influ�ncia, fora dos padr�es, visto que a organiza��o se
beneficiava das defici�ncias de uma na��o
mal composta nos moldes democr�ticos, envolvendo um povo contradit�rio, totalmente
perdido no torvelinho da banalidade e sem a consci�ncia de cidadania que marca as
fortes sociedades humanas.
Esse oportunismo transformou a ACC n�o s� numa grande for�a pol�tica paralela, mas
tamb�m econ�mica, da qual faremos exposi��o nas p�ginas deste livro. Estava assim
criado um cavalo de batalha que, pela
originalidade, oferecia novas perspectivas de mudan�as radicais no bojo de uma
na��o emergente, ainda marcada pelo atraso e multiplicidade de problemas.
Mudan�as, todavia, que teriam sempre o cond�o de concentrar cada vez mais o poder
nas m�os de poucos, muito poucos. Sendo assim, desse esfor�o artesanal, que me
custou perto de dez anos, resultou a hist�ria,
ou parte dela, da vida de um homem imprevis�vel que, ao ancorar na terceira idade,
repudia todo um estilo de membro da classe m�dia alta, com todas as prerrogativas
que esse status social lhe conferia,
para jogar-se de cabe�a no crime e na clandestinidade. Descarto a interpreta��o
psicol�gica para enfatizar um car�ter existencial que foge a qualquer controle,
pois ningu�m consegue deter a marcha dos
acontecimentos depois de desencadeados.
At� se poderia dizer que se trata de alguma coisa realmente de abismar e dif�cil de
acreditar, mas que passa a fazer parte do rol das hist�rias incr�veis e
extraordin�rias. S�o Francisco de Assis, S�o
Paulo e algumas exce��es menos santificadas n�o tiveram inicia��o semelhante,
baseadas em vis�es do imponder�vel? Mesmo sem essas vis�es prof�ticas, o Chef�o
sempre se achou um predestinado. No decorrer
dessa trama, o veremos citar os motivos que o levam a crer nisso, muito embora sem
muita clareza. Sem entrar no m�rito da quest�o de suas cren�as pessoais,
intencionalmente mantenho a neutralidade. Tudo
o que aqui est� expl�cito vem apenas dele mesmo, conforme se convencionou
anteriormente.
Ao longo desses anos todos tivemos tr�s baterias de entrevistas. A de Paris, em
1993, foi a de dura��o mais curta, dez dias ap�s termos reiniciado, os trabalhos
foram interrompidos. A de Buenos Aires,
em 1996, durou cerca de um m�s, com curtos intervalos. A �ltima e mais produtiva
foi a do Rio de Janeiro, em 2001, onde passo a conhecer os meandros da Confraria
mais a fundo. Durou tr�s meses, correspondendo
a quase cinquenta por cento dos contatos. No total, quarenta e tr�s entrevistas.
Desse acervo, muita coisa foi rejeitada pelo Chef�o durante a leitura dos
originais. Outros trechos eu suprimi ou resumi,
por serem repetitivos ou muito longos e cansativos, inexpressivos para o conjunto
da obra. Outros acr�scimos foram resultado de pesquisas e leituras pertinentes ao
assunto.
Todo o conte�do ideol�gico, filos�fico e pol�tico, no entanto, � do entrevistado.
Ele orientou-me tamb�m a fazer compila��es em jornais e revistas de diversas
�pocas, indicando-me os fatos em que a sua
organiza��o teve participa��o direta. Quando, mais recentemente, recebi dele alguns
disquetes de computador, tive acesso a registros de impress�es pessoais suas,
revelando segredos da organiza��o, suas
liga��es com o poder pol�tico e participa��o em negociatas e crimes de colarinho
branco envolvendo homens p�blicos desde meados da d�cada de 1980.
Trocamos, nesse �nterim, nos hiatos de cada encontro, muitos telefonemas, faxes, e-
mails. Ele foi um pouco mais longe, franqueando contatos com v�rios membros de sua
organiza��o, em v�rios estados brasileiros,
ampliando o meu leque de pesquisa.
Tive acesso ao Conselho Consultivo da Confraria, o CCC, �s depend�ncias da
Universidade do Crime, a UNICRIM, e a outros v�rios departamentos da organiza��o,
como a Creche de Recrutamento e Albergue de
Socorro, a CREABS, a Assist�ncia Judici�ria Emergencial e a Central Nacional de
Atendimento Jur�dico, as ASSIJUE e CENAJU, respectivamente, estas tr�s �ltimas
instaladas e disseminadas em pontos estrat�gicos
do territ�rio nacional.
Talvez por ser um homem de forma��o universit�ria, graduado em Economia, com
especializa��o em Administra��o de Empresas, deu um destaque especial ao
treinamento profissional de seus membros, a causa eficiente
que certamente fez a diferen�a, que queimou etapas e guindou a ACC ao patamar
elevado que ocupa no mundo do crime organizado tanto no Brasil quanto no exterior.

O Estatuto da Confraria, realmente o produto de um c�rebro privilegiado, � uma pe�a


corporativa abrangente que infelizmente n�o poder� ser publicada, pelo menos por
enquanto, por motivos �bvios. Conforme
tudo indica, pelos depoimentos colhidos, a sua paternidade � atribu�da quase que
exclusivamente a Jorge Duncan, o Chef�o. Apesar de o Estatuto ser guardado a sete
chaves, e somente os seus membros terem
acesso a ele estudam o documento desde o in�cio de sua forma��o criminal, e mesmo
a partir das CREABS, como se fosse um catecismo , consegui convencer o seu criador
a me permitir l�-lo. N�o foi tarefa
f�cil obter a libera��o de seu conte�do, mas valeu a pena o esfor�o. O peso da
minha alega��o foi decisivo: al�m de n�o comprometer em nada a Entidade e/ou seus
membros, aquele conhecimento me faria penetrar
mais a fundo no �mago da organiza��o, permitindo um melhor entendimento de sua
estrutura.
Quando, por fim, depois de longa espera, acessei a rel�quia manuscrita, tive a
sensa��o de estar manuseando os originais de A Arte da Guerra, de Sun Tzu, se � que
posso me valer de tal compara��o. A ordena��o
dos artigos tem o rigor dos dogmas b�blicos. Quem o contraria � punido severamente,
�s vezes at� com a morte. O que se destaca, no entanto, � o detalhamento de como
deve funcionar a Organiza��o, prevendo
situa��es das mais variadas, talvez at� quase imprevis�veis. Na Terceira Parte, o
Estatuto ter� seu devido destaque. Por extens�o, foi me permitido redigir um
ep�tome biogr�fico do criador da ACC.
Em que pese o volumoso material reunido ao longo de oito anos, fui for�ado a
dividir a extensa reportagem em 3 volumes, sendo este primeiro considerado o in�cio
de tudo. O depoimento dado em Paris, em
1993, quando o Chef�o Jorge Duncan estava com 63 anos, abrange o per�odo de 1978
at� determinado ponto em 1985. Jorge Duncan, dos 48 aos 55 anos, desponta numa
Curitiba cuja maior emo��o experimentada
at� ent�o tinha sido com o famoso vampiro de Dalton Trevisan, cen�rio que serviu de
lastro para a Primeira Parte da trilogia.
Na entrevista de Buenos Aires, em 1996, Jorge Duncan, na �poca com 66 anos,
acompanhando o ritmo abrasivo do tango, narra suas perip�cias na desenvolu��o da
ACC, ainda na Curitiba do final de 1985 at�
1988, quando tinha entre 55 e 58 anos. Nessa fase da narrativa, a Segunda Parte, a
Organiza��o � vista por dentro, j� sob novas perspectivas e em toda a sua
complexidade.
A Terceira Parte, s�ntese do nosso encontro no Rio de Janeiro, em 2001, compreende
a atualidade da ACC. Jorge Duncan, ent�o um senhor de 71 anos, relembra o breve
per�odo de 1989 a 1990, quando, onze anos
mais jovem, j� era um amadurecido l�der da ACC, e nos revela at� que ponto o
verdadeiro crime est� mais relacionado com as elites do que com a marginalidade
social do pa�s, numa despropor��o de valores
que torna a segunda insignificante se comparada com a primeira.
Na Terceira Parte foram tamb�m detalhadas as atividades de A Confraria do Crime na
�ltima d�cada, de 1990 a 2000. Jorge Duncan tirou de circula��o a pol�cia do Paran�
e as de outros estados brasileiros,
pois, conforme acreditava, estavam roubando espa�o do tr�fico de drogas a quem �de
direito�. Um golpe de mestre que caracteriza a destreza com que administra a
entidade.
A CPI do Narcotr�fico (2000) passa a ter uma dimens�o bem diferente da que era
informada pela m�dia o tempo todo. Outro momento interessante foi o da privatiza��o
das empresas p�blicas brasileiras e os
cambalachos que giraram em torno delas, com volumes espantosos de dinheiro sendo
trocados de m�os rapidamente. Praticamente toda a hist�ria pol�tica recente do pa�s
passa sob o crivo da an�lise sempre
percuciente do Chef�o da ACC, que d� a vers�o de quem viveu intensamente esse
per�odo de corrup��o galopante do Brasil envolvendo os grandes nomes na vanguarda
dos acontecimentos oficiais. Uma vis�o sem
retoques, dando nomes aos bois sem nenhum constrangimento ou temor.
Analisado sob o �ngulo das tramoias costuradas nas dobras do poder pol�tico e
econ�mico fica dif�cil acreditar nesse mundo subjacente que rola nas sombras duma
sociedade aparentemente s�ria. As tramas
palacianas, dissimuladas pela hipocrisia da m�dia e de todo um contexto que mais
serve para encobrir do que para revelar, passam a valer como o mais normal dos
procedimentos de troca socioambiental. Obviamente,
com o passar do tempo, a cada nova reedi��o da trilogia, pretende-se atualiza��es
incluindo novos acontecimentos e esc�ndalos.
Trazida � tona essa podrid�o moral de lobo em pele de cordeiro como pr�tica
corrente nos escaninhos do jogo do poder percebe-se, do ponto de vista popular, que
tem um bobo permanente nesse circo. Ficamos
perplexos com a grande incid�ncia dos malabarismos de interesses em praticamente
todos os segmentos de atividades. Parece que nada escapa a essa gula desmedida por
dinheiro e poder. Enquanto o lado ing�nuo
da sociedade se deslumbra com os valores morais ditos elevados, acreditando at� em
Papai Noel e coelhinho da p�scoa, uma guerra encarni�ada ocorre nos bastidores pela
posse de outros valores, os pecuni�rios,
doa a quem doer. Nesse vale-tudo de cupidez n�o existe nada que tenha mais
serventia que o dinheiro, cada vez mais e mais dinheiro.
Jorge Duncan, com seu humor c�nico e acidulado, n�o hesita em proclamar: Quando me
me�o com essa gente do governo, come�o a acreditar que estou virando santo. �
justamente isso que se percebe claramente
na competi��o pela divis�o do requisitad�ssimo bolus oeconomicus: n�o existe a
m�nima santidade em qualquer latitude humana, tudo est� contaminado.
Depois de avaliarmos a intromiss�o da ACC nos assuntos estatais, podemos afirmar,
com certeza, que ela existe mesmo ou n�o passa de uma lenda do submundo criminoso?
Ou, ainda, n�o � nada mais nada menos
do que o del�rio esquizofr�nico de um psicopata genial? A Confraria do Crime � real
ou faz parte apenas dos mitos da fantasia popular? Ou, sob um rigor mais
sociol�gico, j� participa duma conjuntura de
for�as pol�ticas institucionais e clandestinas imbricadas? A resposta pode ser
tanto positiva como negativa para quaisquer das hip�teses.
A resposta parece estar dilu�da numa bruma espessa que confunde a vis�o de quem
tenta decifr�-la. N�o se tem muito o que enxergar. Na verdade, n�o se pensa ainda
em ACC, mas em Comando Vermelho, a mais
conhecida, e outras organiza��es criminosas de menor express�o, embora mais
recentes. Motivado por essa confus�o � que Jorge Duncan resolveu mostrar a sua cara
e a da ACC, para identificar quem � quem,
e dizer para que veio. Eis, no entanto, um dado esclarecedor, que s� vim a tomar
conhecimento h� bem pouco tempo: A Confraria do Crime est� sendo exposta ao dom�nio
p�blico, em especial porque praticamente
noventa por cento da sua estrutura sofreu uma reengenharia definitiva, preparando-
se para os desafios do s�culo XXI.
Desse modo, tudo o que se ficar sabendo da sua estrutura e funcionamento
anteriores, est�o obsoletos e desprezados pelas novas t�cnicas de gerenciamento
adotadas, o que deve causar um espanto desesperador
e desesperan�ado nos �rg�os repressivos oficiais. Al�m do mais, a ACC tem objetivos
pol�ticos bem definidos. Pasmem, mas � isso mesmo, a ACC se arroga objetivos
pol�ticos! Jorge Duncan acha que, sob
certo aspecto, ficou muito vulner�vel � opini�o p�blica por n�o poder rebater muito
daquilo que a m�dia divulgou a seu respeito, mesmo sem o identificar, ou
pretensamente oriundo dele. Muitas alcunhas
lhe foram atribu�das, e com elas coisas que efetivamente n�o fez, ou foram feitas
por outrem, e que, em fun��o disso, omitem muitas das que realmente executou, que
ele qualifica com sentido bem mais profundo.
Este livro, pois, ter� o objetivo de corrigir essas distor��es. N�o foram inclu�das
fotografias nesta publica��o por motivos �bvios: preservar a identidade dos que s�o
mencionados no livro. A pseudon�mia,
outrossim, fez-se necess�ria, para manter inc�gnitas essas mesmas men��es.
Em momento algum, enquanto elaborava este livro, julguei os m�ritos ou erros de
Jorge Duncan. Procurei ser o mais isento poss�vel, deixando que ele conduzisse a
narrativa por si pr�prio. Garanto, sem falsa
mod�stia, que fui apenas um instrumento de execu��o, e n�o de cria��o. Cumpri a
minha tarefa, pura e t�o somente, limitando-me a transpor, como j� disse, para uma
linguagem liter�ria, com alguns poucos
reparos, as confiss�es de um homem insatisfeito com o seu destino, com a vida e o
mundo do jeito como est�o moldados. Posso assegurar, no entanto, que ele teve bons
motivos para assumir tal postura. Julgue,
no entanto, voc�, leitor(a), por si mesmo(a), e d� o veredicto que melhor lhe
apetecer.

Jardel Lundi
Curitiba, 2001.

A MORTE

�Quero contar-lhe n�o s� minhas desgra�as e sofrimentos,


mas tamb�m as minhas extravag�ncias e fraquezas vergonhosas.
Estou certo de que, condenando-me, n�o poder�, contudo,
deixar de me lastimar.�

Manon Lescaut Abade Pr�vost


Jardel Lundi Pois �, estamos aqui.
Jorge Duncan Vamos esclarecer uma coisa, meu chapa: eu n�o queria saber de
perguntas, ia contar o que sei e pronto, mas mudei de id�ia, pode perguntar �
vontade, tudo o que quiser, do jeito que bem entender.
Divirta-se. Vou tentar ser o mais franco poss�vel, pelo menos espero. Nunca falei
de mim pra ningu�m. Mas acho que vai ser um barato, uma aventura maravilhosa aos
confins do macabro e do sobrenatural.
� melhor voc� carregar um saco pl�stico, se passar mal vai ter onde vomitar. (riso)

JL Ent�o, para in�cio de conversa, o que vem a ser a ACC ou A Confraria do Crime?
JD Ah, A Confraria do Crime. N�o me fa�a falar da ACC, bicho, pois acabo virando
poeta. A ACC � um mundo, um sonho. A ACC � o sangue da humanidade derramado desde o
in�cio dos tempos. A ACC � uma
grande explos�o nuclear, a ACC � tudo ou quase nada, � sempre um come�o, uma
esperan�a. N�o, n�o, risca esperan�a, antipatizo com essa palavra. � a�ucarada
demais pro meu gosto, � aquela op��o que
o poder d� ao povo para que tenha perspectiva, para que se acalme. Quem tem
esperan�a ainda tem alguma coisa, � o rescaldo dos perdedores, de quem se conforma
em esperar. Quem n�o a tem, ao contr�rio,
n�o prorroga mais, resgata. A ACC � isso, uma proposta de resgate real, uma
retomada. Num sentido mais amplo, a ACC � uma sociedade secreta com objetivos
pol�ticos bem definidos.
JL Um momento, dar cunho pol�tico a uma sociedade criminosa n�o � for�ar a barra? O
crime.
JD Voc� � t�o transparente, meu chapa, que eu n�o tenho a m�nima dificuldade em
antecipar o que se passa na sua cabe�a, j� sei bem o que voc� vai dizer, para
voc�s, os caretas, o crime reflete uma postura
de exacerbado ego�smo, um processo de solu��o individual, caso possa ser chamado
assim. J� a pol�tica � uma a��o social e, se democr�tica, busca o benef�cio de
todos. A rigor tudo � pol�tica, cada gesto
humano � pol�tico. O titio Arist�, bem l� atr�s, j� dizia bostas desse tipo. Mas
entendi o que voc� quis dizer, cabr�o: quer revestir o assunto pol�tica com um halo
de pureza que ela absolutamente n�o
tem. Isso n�o existe, caralho. Pol�tica � um dos assuntos mais sujos de que se tem
not�cia na hist�ria da humanidade. No entanto, paci�ncia, n�o h� como fugir dele.
Se voc� solta um sonoro peido est� fazendo
pol�tica, n�o pode dizer que n�o. Agora, se cagar nas cal�as ser� uma pol�tica.
suja (riso). Por isso n�o vejo contradi��o nenhuma no que estou dizendo. N�o, n�o
h� contradi��o. Enxergo a coisa com outros
olhos, a verdade � essa. Pelo meu �ngulo, a ordem � vista pelo avesso, est� tudo
virado numa lixeira. N�o, n�o, n�o, estamos perdendo o foco, come�amos errado. A
coisa n�o tem a ver s� com pol�tica, a
coisa come�a antes com aquele animal feroz que � cada um de n�s, que est� escondido
bem l� dentro.
JL:Pelo que me consta, o homem � um animal, mas tamb�m tem uma qualidade
excepcional, � racional.
JD: Humm, olha s�, o bicho � racionalista. (riso). S� que tem o seguinte, cara, a
ferocidade do animal se sobrep�e a tudo, at� mesmo a essa pretensa racionalidade.
Por isso a pol�tica tem essa conota��o
de sujeira, de podrid�o, pois � a preval�ncia do animal sempre voraz sobre o resto
das suas qualidades, essas que voc� chama de racionais. E tem mais, nada funciona a
n�o ser pela for�a, viol�ncia, guerra.
Mas isso tamb�m � tudo muito velho e conden�vel pelos democratas, pelos
politicamente corretos.
JL:No seu entender, somente a for�a comanda o espet�culo? Esse n�o seria o discurso
de um guerreiro primitivo?
JD: Ah, sim, entendi, agora virei o guerreiro primitivo, o l�der desp�tico, o
ditador sanguin�rio? Sem essa do papo-furado de consenso pelo di�logo. � a lei do
mais forte, n�o existe outra, � a regra mais
ampla. Quando o oper�rio faz greve, a categoria n�o est� fortalecida pela uni�o?
Ent�o. N�o adianta chiar, voc� tem que soltar porrada, sen�o n�o leva. S� que os
oper�rios se uniram e tal, mas n�o levaram
grande coisa. Por qu�? Porque � uma for�a fict�cia, concedida, submetida, na
verdade a mais escrava de todas. Nunca se escravizou tanto como no s�culo XX. A
ACC, no entanto, � a prova de que gente fodida
como todos n�s, confrades, �ramos , uma vez organizada, pode se transformar num
poder popular cada vez mais consistente. Se n�o fosse a ACC, a maioria de n�s,
confrades, com certeza ainda andaria rolando
pelas sarjetas ou j� teria esticado as canelas. Agora, o buraco � mais embaixo.
Somos um poder paralelo dos mais fortes. Fica dif�cil para algu�m de fora avaliar a
nossa for�a. N�o a conhecem. Ela se d�
nas sombras, no anonimato. Estamos infiltrados em praticamente tudo o que �
atividade, seja oficial ou privada. E � essa nossa capacidade de nos mantermos
inc�gnitos, enquanto transgredimos a lei, e ao
mesmo tempo institucionalizados, quando usamos a fachada legal para fazer as nossas
falcatruas funcionarem, a causa de tanto sucesso. Se isso n�o � pol�tica, ent�o n�o
sei mais o que seja.
JL: De fato. S� que.
JD: Porra, Jardel, ser� que voc� vai me encher o saco o tempo todo com essas
baboseiras? Eu tratava desses assuntos quando era estudante, adolescente. Nunca
falei tanto em t�o pouco tempo, meu.
JL:Infelizmente, n�o h� como fugir.
JD: O que Dilvo foi me arranjar, Deus do c�u! Voc� j� t� me torrando o saco,
Jardel.
JL:Ent�o, fal�vamos de pol�tica.
JD: Pol�tica � guerra, meu. Quem pode mais, chora menos. Para a ACC, � aprontar e
ficar distante das malhas da lei, ponto. Desse jeito somos respeitados. Mas para
chegarmos a esse est�gio n�o foi mole.
JL:Ent�o o in�cio foi duro?
JD: Porra, claro que foi, meu, tem d�vida? O in�cio de algo majestoso � sempre
dur�ssimo e a ACC n�o fugiu � regra, principalmente quando se parte do zero como
foi o caso dela. Foi preciso muito planejamento,
ac�mulo de capital, trabalho s�rio, armamento pesado, o �ltimo grito da tecnologia
b�lica, para chegarmos aonde estamos. Ora, qualquer idiota sabe que sem dinheiro
n�o se faz nada, da� o crime, o caminho
mais r�pido para se chegar a ele. Imagina se f�ssemos dizer: �Ei! Esperem a�, a
gente vai trabalhar, juntar dinheiro, se organizar e, dentro de uma ou duas
gera��es, vamos estar em condi��es de come�ar
a aprontar, a exigir.� Portanto, vamos congelar a imagem e dar tempo ao tempo
(riso). Mas isso � exatamente o que acontece com as gera��es das gentes, ficam
postergando para os s�culos vindouros, por meio
dos netos, bisnetos, o cacete, e nada acontece. Essa � a tal da esperan�a, da f� em
coisas inexistentes, da f� na bondade alheia, coisas que nunca se realizar�o, isso
eu garanto. O que acontece vem da
a��o direta, geralmente violenta, sem a qual ficamos chuchando o dedinho,
esperan�ooooosos. (riso). Para ser mais preciso, esse tal do esperan�oso � um
fodido dum covard�o que tenta disfar�ar suas fraquezas
com virtude e racionalidade. T� satisfeito agora? Podemos dar por encerrada a nossa
entrevista? Tou com a agenda cheia, bicho. Esse tro�o de ficar de papo-furado n�o �
comigo.
JL:Infelizmente, ainda n�o, Chefe, rec�m come�amos. Quanto tempo demorou para
voc�s, saindo do zero, chegarem ao est�gio atual? Quem criou a ACC?
JD: Quem criou fui eu, �bvio, quem mais poderia ser? Sem mim a ACC n�o existiria,
essa � a verdade. Agora, se demorou? Demorou. A princ�pio pareceram s�culos, hoje,
no entanto, olhada daqui, da dist�ncia
de dez, doze anos depois, parece que foi tudo muito r�pido. N�o mais que doze anos
para chegar aonde estamos. Mais tarde, no decorrer da nossa conversa, voc� vai
ficar sabendo o porqu� de tanta rapidez.
JL:N�o d� pra ficar sabendo agora?
JD: At� d�. Mas vamos ter que ser rapidinho, ok? Atalhos. N�o me prendo a f�rmulas,
padr�es. Atalhos. Uso a t�tica que funciona. Em pol�tica, ou para voc� firmar o seu
poder de barganha, o tempo � ouro,
tem que utilizar o caminho mais pr�tico, logo, o mais curto. N�o tem outro jeito.
Sempre foi assim e sempre ser�. Para se atingir objetivos amplos, quando a
desvantagem � muita, se utilizam atalhos. �
uma lei de economia mais psicol�gica que pol�tica. � o que a ACC faz, usa atalhos,
muitos atalhos. Sou especialista nisso.
JL:A ACC � Jorge Duncan ou Jorge Duncan � a ACC?
JD: A ACC sou eu, como diria o nosso coleguinha daqui, o tal Flaubert. Na verdade,
estou cheio de ouvir baboseiras o tempo todo. Os intelectuais passam escrevendo
livros, mat�rias em revistas e jornais,
sobre os problemas que afligem a humanidade e suas respectivas solu��es. � utopia
que n�o acaba mais. Tudo j� foi pensado e solucionado. em livros, teorias, agora,
na pr�tica. est� tudo ainda por fazer.
� muito papo-furado pro meu gosto. Palavras e mais palavras. Parole, parole,
parole. (cantarola, riso). Enquanto eles protestam, escrevem, pensam, eu
simplesmente ajo. Corto o n� g�rdio como Alexandre.
A prop�sito, esse Alexandre era bom mesmo, um garot�o talentoso que aos 20 anos s�
faltou fazer chover. Pois ent�o, sou um homem de a��o, aquele que faz as coisas
acontecerem, um pouco parecidinho com
o conquistador maced�nio. Eu n�o reflito sobre a realidade, pois ela fala por si
mesma, eu mudo a realidade.
JL:Acha ent�o que intelectual � dispens�vel?
JD: Na sua grande maioria, �bvio. � isso a�. Eles falam, falam, dizem grandes e
bonitas verdades, mas e da�? Tudo continua na mesma. Discursos n�o adiantam.
Sabemos todos onde as coisas est�o erradas,
onde o sapato aperta o calo, qualquer um sabe, eu, voc�, qualquer arig� sabe, as
donas de casa tamb�m. Estas ent�o t�m um grande senso de economia pol�tica,
consulte uma dona de casa e voc� arruma um pa�s.
E quando as mudan�as certas acontecem, as pessoas entendem e aprovam. � um
entendimento que dispensa palavras. O problema � fazer as mudan�as. N�o tem manual
explicativo. A� � que a porca torce o rabo,
e � onde eu entro, mais uma miss�o para Jorge Duncan. (riso).
JL:Mas o senhor n�o pode negar que o mundo sofreu mudan�as importantes, muitas
mudan�as, em todas as �reas. gra�as a esses ditos intelectuais, t�o desprezados
pelo senhor. Cientistas tamb�m s�o intelectuais.
JD: Eu j� n�o tenho tanta paci�ncia, meu chapa. Para mim, as coisas t�m que
acontecer enquanto eu ainda estou vivo, pra ontem, entendeu? Sen�o n�o adianta, n�o
concorda comigo? At� porque os meus descendentes
de A Confraria do Crime contam com isso, n�est-ce pas? Enquanto voc� est� vivo,
ainda liga pras coisas, depois de morto, faz uma figa, morto j� era, n�o precisa de
nada. A vida e as coisas s� valem enquanto
voc� est� vivo, mas para o povo isso n�o funciona, pois eles est�o sempre por fora
da jogada, esperam que daqui a alguns s�culos as coisas aconte�am. S� que n�o
acontecem, e eles ficam esperando Godot,
s�culos afora, esperando sempre com muita esperan�a, com muita f�. (riso).
JL:Nunca pensou em fazer pol�tica partid�ria nos moldes convencionais?
JD: T� me gozando, Jardel? (pausa seguida de risinho artificial.) Mon Dieu, l� est�
voc� de novo querendo me meter nesse neg�cio de pol�tica, caralho.
JL:E ent�o?
JD: Jamais. Sou do tipo que imp�e as regras. Em todo lugar e sempre as minorias
dominaram as maiorias. N�o vou querer mudar as regras justamente agora quando
chegou a minha vez, n�o acha? Al�m do mais,
tanto em pol�tica como na guerra n�o se pode ter pudores. A gente pega o recurso
mais � m�o. Quando afirmo que a ACC tem objetivo pol�tico, � baseado nisso. Estou
sendo verdadeiro, nos batemos por uma
causa justa, estamos exigindo justi�a e igualdade para todos. os confrades. Um
confrade, via de regra, vive uma vida decente, dentro de padr�es humanos razo�veis,
tipo padr�o classe m�dia norte-americana.
Conforme vamos conquistando posi��es, o restante das pessoas, o pov�o, um dia
poder� at� ser beneficiado por extens�o, pois o n�mero de confrades aumenta a cada
ano. Talvez, com o tempo, uma boa parte
dessa gente acabe virando confrade, sei l� (riso).
JL:Um momento, estamos precipitando as coisas, vamos ser mais espec�ficos: um
confrade vive nos padr�es norte-americanos. cometendo crimes?
JD: � cara, voc� nasceu ing�nuo ou foi ficando bob�o com a idade? Me aponta quem
hoje em dia n�o faz uma trampa para sobreviver? A trampa � uma institui��o mundial.
A trampa e a hipocrisia, se n�o nasceram
com o capitalismo, se aperfei�oaram com ele. Tanto em pol�tica, seja de direita ou
esquerda, como em qualquer ramo de neg�cio, voc� encontra algum ind�cio de
cambalacho, por enorme ou pequeno que seja.
A verdade � essa. As pessoas est�o viciadas em corrup��o, � epid�mico. � uma
caracter�stica muito humana, bicho, associada que est� com aquele animal feroz do
qual j� falamos. � isso a�. Ou voc� � um cara
s�rio, Jardel? (riso)
JL:Pelo menos eu procuro ser honesto comigo mesmo.
JD: Ulal�, quem sabe voc� � um bicho raro, meu. Na verdade, o pov�o � o �nico que
tende a ser honesto na parada, vai ver se o arig� n�o paga as presta��es do
credi�rio bem certinho, todo o santo m�s. Attention:
eu disse tende a, mas tamb�m n�o � santo. O povo faz cambalacho quando pode, s� que
num n�vel insignificante, que n�o pesa no c�mputo geral. Logo, o princ�pio da
desonestidade vale para todo mundo, mesmo
para quem tende a, s� varia de intensidade, ressalve-se. Sendo assim, o poder
vigente, sempre metido a esperto, atribui as origens da marginalidade e da
viol�ncia ao pobrerio. Conversa pra boi dormir.
Coisa de esperto, desvia a aten��o para o outro, mete no cu dele. O pov�o � o �nico
pato da hist�ria, pois � o que paga a conta, em todas as circunst�ncias, mas j�
vimos que n�o � nenhum santo. O pov�o
� o que trabalha duro e nada tem em troca, esse � o �nico ponto que serve de
atenuante �s suas maracutaias de sobreviv�ncia. O pov�o paga imposto direto e
indireto, o pov�o paga d�zimo para as congrega��es
religiosas em geral e mant�m as suas mordomias, o pov�o devolve o dinheiro que
recebe a t�tulo de sal�rio para o com�rcio, consumindo, e por a� vai, como se sabe.
O pov�o � como o mar, vem a mar� alta
e ele devolve tudo � terra, eu disse tudo, n�o fica com nada. Por isso � que, para
o ramo de supermercados, por exemplo, nunca existe crise, o mar sempre traz de
volta. Al�m disso, e sobretudo, o pov�o
serve para eleger pol�ticos corruptos. O pov�o � como rabo de puta, todo mundo
manipula. N�o � santo, mas � �til. Est� a� a sua grande serventia. O pov�o elege os
caras que n�o t�o nem a� pra ele. Melhor
ainda, elege e n�o cobra nada. O poder emana do povo, mas n�o volta para ele. S�
sai dele. Para o pov�o, s� p�o e circo, essa � velha, todo mundo sabe, desde os
romanos. L� no Brasil, � p�o e tev�. O pov�o
� aquela m�ezona cheia de leite. Em todos os lugares � assim, o povo � o
sustent�culo da sociedade organizada, mas acaba sempre tomando no cu. Em fun��o
disso, o povo vira fic��o. N�o � nada, � um ser
fant�stico, o bicho raro. A pol�tica, capitalista ou socialista, usa e abusa do
povo e depois joga no lixo. Te cuida, Jardel (riso).
JL:Mas o senhor continua n�o respondendo � minha pergunta. Est� generalizando e
fugindo pela tangente. O confrade se mant�m como? Essencialmente da pr�tica de
crimes contra o patrim�nio como o um-cinco-sete?
JD: Corret�ssimo, o um-cinco-sete. Mas s� o um-cinco-sete? Claro que n�o. Bota a�
tamb�m o um-cinco-zero, o um-cinco-um, o um-cinco-cinco, um-cinco-oito, um-cinco-
nove, um-meia-um, um-meia-dois, um-meia-tr�s,
um-meia-oito, um-sete-um, um-oito-zero, um-nove-meia, dois-sete-tr�s, dois-oito-
nove, dois-nove-tr�s, dois-nove-meia e mais meio quilo de farofa, todos tendo a ver
duma forma ou de outra com manipula��o
do patrim�nio alheio.
JL:Se entendi bem o que senhor est� dizendo, a ordem � usurpar para corrigir o
mundo? O que se percebe, no entanto, � que estamos num contexto onde o justo paga
pelo pecador. Pelo que me consta, os mais
atingidos pelos crimes contra o patrim�nio s�o a classe m�dia e os pobres. As
elites, em fun��o de terem recursos para contratar servi�os e equipamentos de
seguran�a e prote��o, ficam praticamente imunes
� a��o dos bandidos. Estou certo ou errado?
JD: Voc� est� certo e errado. Em rela��o � ACC est� errado. A ACC n�o visa � pessoa
f�sica, exceto quando o cara � representante de um grande conglomerado empresarial.
Mas a ACC n�o pode se responsabilizar
pela a��o de pequenas gangues que agem por conta pr�pria ou de indiv�duos, nem por
pol�ticos e empres�rios corruptos que lesam os cofres p�blicos, o que � roubar dos
pobres indiretamente, at� porque a
ACC n�o monopoliza o crime, n�o pelo menos por enquanto. Via de regra, o comum dos
bandidos, tanto o grande como o pequeno, age de forma indiscriminada, sem crit�rio
de sele��o. O que cai na rede � peixe.
J� a ACC atua atendendo um plano previamente tra�ado. Temos o que se poderia chamar
de previs�o or�ament�ria anual, planejamento com receita e despesa. Nem o governo
federal faz um or�amento t�o criterioso
como o nosso. (riso).
JL:Sempre foi assim?
JD: Claro que n�o, Jardel.
JL:Podia explicar?
JD: Na verdade, come�amos na vala comum, n�o fugimos � regra, pois n�o nascemos
sabendo. No in�cio, tudo o que ca�a na rede era peixe, fosse rico, pobre ou
remediado. Fomos nos aperfei�oando com o tempo,
consequ�ncia de uma depura��o do nosso exerc�cio funcional, de uma dial�tica
ideologizada. Hoje s� visamos � pessoa jur�dica, � institui��o propriamente dita,
seja privada ou estatal. Dessa forma, estamos
perdoados a priori porque pessoa jur�dica n�o tem alma, � uma fic��o. Pessoa f�sica
nem pensar, n�o consta nos nossos planos, at� porque o retorno � muito baixo.
Descartar a pessoa f�sica foi quase que
uma consequ�ncia natural.
JL:Para Jorge Duncan, o lucro indiscriminado � sempre o melhor objetivo?
JD: Jardel, voc� j� percebeu que eu sou bem paciencioso, n�o? (Pausa.) Na verdade
eu nem ligo muito pra dinheiro, a ACC � que est� sempre precisando de caixa alto.
Mas pela tua cara acho que n�o respondi
� pergunta.
JL:Talvez eu tenha me expressado mal. Pelo visto, nada o impede de ser contra tudo
e contra todos, n�o �? As regras do mundo que se lixem. N�o � assim que funciona?
JD: Agora entendi, bicho, aonde voc� quer chegar, e � isso mesmo. Mal comparando,
Lundi, eu sou como o cara que saiu da caverna de Plat�o e foi l� fora ver o mundo.
Agora, ao falar da minha vis�o do outro
lado, sou considerado doid�o, o caralho. S� que, como a maioria das pessoas tem uma
experi�ncia limitada da vida e do mundo, como aqueles que s� viam sombras, tendem,
da mesma forma, a colocar em d�vida
as novidades que lhes trago. N�o, dizem, a vida n�o � t�o ruim como esse
despropositado afirma, nem o ser humano � t�o podre nem t�o terr�vel, ele est�
errado, precisa ser eliminado. Ent�o, eu pergunto:
por que o mundo e, consequentemente, as pessoas est�o implodindo por todos os
lados? Porque nada se sustenta, nem natureza, nem �tica, nem porra nenhuma, e est�
indo tudo pro belel�u?
JL:Discordo. Restam muitos valores importantes aos homens, ainda.
JD: Cite.
JL:Amor, solidariedade, bondade, fraternidade, igualdade, liberdade, �tica.
JD: Claro, claro, entendi, Lundi, seu manique�sta duma figa, na eterna luta entre o
Bem e o Mal, voc� n�o tem d�vida de que o Bem acabar� vencendo.
JL:Com certeza o senhor j� amou algu�m, isso n�o conta?
JD: S�o ilhas num mar de lama.
JL:Mas s�o ilhas que resistem � ressaca do mar. N�o podemos descartar que um lado
bom da vida ainda se mant�m.
JD: O fato de se amar algu�m n�o nos impede de odiar outros ou a pr�pria
humanidade. Hitler amava Eva Braun, mas odiava todos os judeus.
JL:Amor e �dio n�o se excluem, os objetos � que s�o diferentes, seria isso?
JD: N�o �, n�o. A �tica n�o admite ambiguidades, sen�o estaremos falseando. Ou
somos ou n�o somos �ticos, n�o existe meio termo. Ou melhor, at� existe, para os
c�nicos e sofistas, para eles o homem � mau,
mas tamb�m � bom. Mas, por outro �ngulo, n�o existe isso, estamos permanentemente
em conflito conosco mesmos, e isso nos corr�i at� os ossos. Fica dif�cil encontrar
coer�ncia nessa ambiguidade. A �nica
coisa que nos alivia a culpa � a liberdade de agir, pois interrompemos o conflito
entre o certo e o errado, prevalece a nossa decis�o.
JL:Nesse caso, a �tica vai para a cucuia, tudo � permitido.
JD: Ent�o.
JL:Ou tu coloca arreios e freio, abre m�o de tudo e se acomoda, nesse caso, bye
bye, liberdade.
JD: Eu j� fiz a minha escolha, Lundi, e voc� j� fez a sua?
JL:Com certeza, n�o estamos aqui?
JD: Mais alguma pergunta?
JL:O que o senhor acha do comunismo?
JD: Sem essa, cara. Assim vou acabar perdendo as estribeiras com voc�.
JL:Acredite que a pergunta faz sentido para aprofundarmos o nosso painel.
JD: Me parece que voc� est� se aproveitando de uma situa��o para mexer onde n�o
deve.
JL:Se quiser pular a pergunta.
JD: N�o, vou responder. De toda forma, vou ser r�pido. Bom, confesso que j� li
Marx. Quem tem um pouco de bom senso e cora��o amplo acaba simpatizando com o
socialismo marxista de merda, mas � mais uma
quest�o de fase, a fase juvenil de todos n�s, depois passa. O problema � aquele de
que j� falei: o papel em branco aceita tudo, na pr�tica � que s�o elas. A Uni�o
Sovi�tica, a grande tentativa de aplica��o
da tese, resultou num enorme e redondo fracasso.
JL:Qual foi a sua posi��o durante a ditadura no Brasil?
JD: Voc� quer o qu�? Que eu vire professor de sociologia? Pois saiba que nem tomei
conhecimento dessa tal ditadura. Me mantive � parte o tempo todo, at� porque nessa
�poca eu trabalhava para o governo
federal, era funcion�rio p�blico, se agisse de outra forma, seria despedido e/ou
iria mofar nos por�es do DOI-Codi. No entanto, achei uma baita ingenuidade a rea��o
de alguns pequenos grupos de esquerda.
Muita gente boa se fodeu gratuitamente s� defendendo id�ias, e n�o trincheiras. Os
militares deitaram e rolaram torturando e passando fogo em gente inocente que s�
exigia os seus direitos humanos. Temiam
os guerrilheiros das palavras e das letras, pois n�o passavam disso. Se tivessem me
escolhido para organizar o ex�rcito revolucion�rio, hoje eu seria mais um ditador
latino-americano, mod�stia � parte.
As for�as armadas do Brasil estavam exageradamente preparadas para enfrentar
idealistas amadores. O marketing do capitalismo conseguiu convencer a todos os
subdesenvolvidos do mundo que comunista comia
criancinha viva. Tinham aprendido com Hitler a fazer propaganda. Os milicos
brasileiros, na sua noia coletiva e atraso hist�rico, achavam estar defendendo a
p�tria e a soberania nacional das grandes for�as
do comunismo internacional infiltradas no pa�s. Viam monstros onde s� havia
desmilinguidos. Essa foi a maior tragicom�dia da hist�ria do pa�s. Os militares, em
contrapartida, ca�ram na armadilha dos neoliberais
em ascens�o e se endividaram para modernizar o Brasil, tamb�m por total
inexperi�ncia administrativa e pol�tica, apenas para imitar as id�ias dos gringos.
O capitalismo se fortaleceu assim em v�rias partes
do mundo emprestando dinheiro a pa�ses subdesenvolvidos, financiando a ideologia
capitalista. Se a Uni�o Sovi�tica tivesse dinheiro para fazer o mesmo e n�o tivesse
ru�do, ter�amos hoje muitos sat�lites
comunistas al�m de Cuba. Sem dinheiro, por�m, nada se sustenta. Talvez eu tenha
sido superficial para dizer que a direita do Brasil e da Am�rica Latina sempre foi
muito fr�gil e cheia de sentimento de
culpa. A coisa � bem mais complexa.
JL:Mas a vit�ria de Fidel n�o foi igual � de Pirro? Cuba s� teve express�o pol�tica
mundial enquanto a Uni�o Sovi�tica fazia enormes remessas de capital para l�.
Quando, por motivos que todos n�s conhecemos,
o fluxo se interrompeu, Cuba implodiu. O boicote internacional imposto pelos EUA a
mant�m num estado deplor�vel. De que adiantou tudo isso?
JD: N�o foi o que eu disse? Fidel � caricatural, virou personagem de hist�rias em
quadrinhos. Quando se passa a viver de discurso, a blefar e a vociferar aos quatro
ventos, perde-se o sentido da coisa
propriamente dita, voc� vira comediante. Voc� fica girando em torno de seu pr�prio
eixo indefinidamente, como o c�o atr�s do rabo, a repercuss�o � m�nima. Che, por
ser mais aut�ntico, foi at� o fim porque
morreu cedo, nada mais que isso. Claro, Cuba � um marco hist�rico, uma pulga na
camisola dos EUA, mas e da�? Cuba est� l�, � uma presen�a constante, inc�moda, mas,
ao mesmo tempo in�cua, pois jamais teve
resultado efetivo, � rid�cula, pode ser espremida a qualquer momento. Cuba paga o
pre�o do pensamento �nico, ou seja, Fidel pensa por todos. � como um nobre falido,
est� caindo aos peda�os, chocando sua
nobreza de prop�sitos, mas em farrapos. No entanto, mantendo erroneamente o
boicote, os EUA mant�m o mito. Cuba n�o passa disso: � um mito, um s�mbolo. � a
�ltima trincheira do comunismo. No entanto, s�mbolos,
mesmo os fracassados, podem reviver com muita for�a. O mundo n�o est� cheio de
neonazistas?
JL:N�o podemos dar o socialismo como um assunto encerrado?
JD: Sem d�vida que n�o. O socialismo � uma for�a viva no cora��o de muitas pessoas.
Enquanto houver injusti�as, os sonhos socialistas permanecer�o mais vivos do que
nunca. A pr�pria ACC tem fortes ra�zes
socialistas.
JL: Mesmo?N�o � contradit�ria essa afirma��o?
JD: Mesmo. Parece contradit�rio, mas n�o �. Ou at� pode ser, sei l�. Mas o homem
contempor�neo aceita cada vez menos as diferen�as de classes. N�o demora muito para
haver uma mudan�a dr�stica de cultura.
Pelo menos no Brasil vejo as coisas caminharem para esse lado. Para falar bem a
verdade, o capitalismo � um cataclismo para a humanidade. Um ter�o dela passa fome,
o outro mal sobrevive, sobra o terceiro
que se nutre dos outros dois. Esse terceiro est� no topo de uma pir�mide que �
reservado a um grupo seleto. Quer ind�cio mais evidente? Uma ideologia que
privilegia poucos e sacrifica muitos n�o � o que
todos esperam abra�ar, certo? S� que este pequeno grupo vai espernear um bocado e
gastar centenas de bilh�es de d�lares para se manter no topo. E sabemos que o poder
econ�mico pesa na balan�a.
JL:Alguma sugest�o?
JD: Quem viveu naqueles tempos esperaria ver o Imp�rio Romano acabado? E o poder da
Igreja, na idade m�dia, n�o parecia infinito como o pr�prio Deus?
JL:A pr�pria Uni�o Sovi�tica n�o parecia ter vindo para ficar?
JD: Correto. Parece que estamos afinando os instrumentos, n�o �, Jardel? (riso) N�o
se podia prever a sua implos�o t�o r�pida, n�est-ce pas? Esse � que � o problema, o
pensamento �nico n�o funciona, seja
de esquerda ou de direita. Por isso acho que o capitalismo vai ruir em seguida. O
ser humano � multifacetado, embora queiram reduzi-lo a uma �nica configura��o,
sempre para que sejam atendidos interesses
de grupos. Homo consumidor, homo fabris, homo da puta que pariu pode funcionar por
algum tempo, mas n�o funciona indefinidamente. Cada um que nasce quer ter o seu
lugar ao sol, ter o direito de ser feliz
ou chegar o mais pr�ximo que puder da felicidade. Seis bilh�es e l� vai bola de
seres humanos que querem ser felizes. Como solucionar isso? � foda. S� alguns
poucos milh�es de privilegiados conseguem.
Nesse momento � que o lema da ACC passa a fazer sentido: ouseje, ou se joga ou se
esculhamba. Se os confrades forem barrados na entrada do est�dio, v�o esculhambar,
o que significa que ningu�m vai desfrutar
do jogo com tranquilidade. At� pode desfrutar, momentaneamente, mas n�o vai saber
at� quando, um dia vai acabar, a casa cai, algu�m ou muitos v�o morrer e n�o ser�
de morte natural. Ser� antes uma morte
prematura. � o tal do olho por olho. Tudo se resume nisso. Atingimos um est�gio em
que n�o podemos mais esconder isso. O direito � de todos os confrades ou ningu�m
ter� direitos. � a chance que todo mundo
espera ter. Todo o mundo quer a mesma coisa, mas isso � invi�vel, ut�pico. A
maioria do todo sempre fica de fora das benesses da vida.
JL:E isso se reflete dentro da ACC?
JD: A Confraria tem uma hierarquia piramidal, disciplina r�gida, mas n�o �
desigual. Eu sou o Chefe, mas tem muito confrade vivendo em melhores condi��es do
que eu. Por princ�pio, eu me acomodo no padr�o
m�dio dos confrades.
JL:Mas pensar em termos de igualdade, nos moldes do lema da Revolu��o Francesa n�o
� fantasioso?
JD: � o que eu estou dizendo. O cara quer ter o seu emprego, poder tirar f�rias, ir
ao m�dico, ao dentista, estudar, viajar, curtir, quer casa pr�pria, carro, sexo,
comida, o escambau. Todos querem, mas
por que apenas poucos t�m? Esse � o fen�meno da humanidade desigual que ningu�m
conseguiu resolver at� hoje, seja intelectual, fil�sofo, pol�tico, religioso, a
puta que pariu.
JL: � um tru�smo?
JD: Sem d�vida que �. Antigamente, at� as pessoas se conformavam mais, eram mais
domesticadas, por outros motivos, porque n�o tinham muita informa��o. Hoje, mesmo
com a manipula��o da m�dia, as not�cias
circulam pela tev�, pela internet. N�o ficam mais restritas a c�rculos fechados,
isoladas. Ignorante � igual a cego, n�o enxerga nada, n�o consegue decodificar a
realidade, est� l� fechado na caverna vendo
apenas sombras. Hoje, entretanto, voc� fica mais a par da realidade, do que se
passa alhures, sempre flui alguma coisa, por m�nima que seja, alguma coisa sempre
escapa do controle da m�dia que � sempre
manipulada pelo governo de cada pa�s, pelas verbas de marketing, a tal da m�dia
chapa branca. No Brasil, que copia o que acontece no resto do mundo, como n�o podia
deixar de ser, isso acontece muito, a
coniv�ncia da m�dia com o poder. S� que.
JL:Mas o mercado, hoje, n�o seria o grande domador das pessoas comuns? Parece que
ningu�m se anima a contrariar o mercado, at� porque n�o sabe muito bem o que seja
isso.
JD: Jardel, voc� que vive fora do Brasil j� fala no poder do mercado. Mas l� o
fen�meno ainda est� para acontecer. Vai acontecer, mas vai demorar um pouco ainda.
N�o faz muito que se saiu da tal ditadura.
Depois dessa experi�ncia ningu�m mete o pau pra valer no governo, com medo de
reca�da, principalmente os intelectuais brasileiros que ficaram encaga�ados.
Reflexos da tal S�ndrome de Estocolmo, sabe como
� que �? Digo isso porque na ditadura a concentra��o de renda aumentou no Brasil.
Ainda tem muito res�duo do regime de exce��o. Haja visto que a bandeira liberdade
de imprensa sempre anda hasteada a meio
pau. A verdade � que os jornalistas gostam somente de alisar e os intelectuais
brasileiros est�o entediados ou desiludidos, ou ainda deprimidos, ningu�m mete a
boca no trombone com vontade. S� raramente
vemos algu�m bradando no deserto, alguma voz solit�ria que n�o encontra eco. quase
sempre boicotada.
JL:A sua, por exemplo?
JD: Negativo. Eu rec�m comecei e vai demorar muito at� a minha voz chegar ao
conhecimento do p�blico, talvez n�o menos ainda que dez anos. Eu me refiro ao
passado. Os grandes rebeldes n�o constam da hist�ria
oficial do Brasil sen�o en passant. Tudo o que representa rebeldia e protesto no
Brasil � escamoteado e mantido oculto nas trevas pela fina flor do poder legal, que
� sempre elitista, seja de esquerda
ou direita. Se o curr�culo escolar j� � prec�rio, a disciplina de hist�ria � mais
ainda. Eles n�o querem que as pessoas decodifiquem a realidade e se insurjam.
Querem a boiada sempre calma, nunca estourada.
(riso). Tanto que, para que os militares deixassem o poder, foi necess�rio fazer um
acord�o para que n�o houvesse repres�lias.
JL:N�o acha que a implos�o da Uni�o Sovi�tica brochou os intelectuais de esquerda
no mundo todo? E de Lula, o que o senhor acha de Lula?
JD: L� vem voc� de novo querendo estender o assunto, se aproveitando da minha boa
vontade, n�? Vamos encerrando por aqui.
JL:Pelo menos responde a essa, Chefe.
JD: O qu� que eu posso te dizer? A Uni�o Sovi�tica n�o s� brochou como capou muitos
deles. O problema � que a US desmoronou e se tornou um antro de corrup��o e
decad�ncia porque se aburguesou, contrariando
os princ�pios que a constru�ram. Consideraram o poder divino do dinheiro e da
propriedade como uma maldi��o, mas sucumbiram a ela, sabe como � que �? A velha
mufunfa e a realidade valem mais que teorias
que n�o se ajustam � natureza humana. A natureza se ajusta a muita coisa, menos a
teorias que atinjam o patrim�nio das pessoas. Antes � preciso que se fa�a uma troca
de valores. Se as pessoas n�o acreditam
que � melhor perder um pouco de grana do que a vida, a coisa fica empacada. Sem
vaselina a coisa n�o vai. Mao foi mais esperto, interpretou melhor Marx e
aconselhou os chineses a manterem-se na luta constantemente
renovada, a revolu��o que n�o podia acabar nunca, e assim eles v�o dan�ando
conforme a m�sica. Mas chegamos aqui ao bus�lis: a verdade, o problema maior � que
Marx cometeu um equ�voco capital. Elegeu os
oper�rios como a for�a libert�ria, revolucion�ria. Bakunin e Weitling at� chegaram
mais perto, entreviram no lumpemproletariado a sa�da para o impasse. Eu descobri
isso na pr�tica. N�o era o proletariado
a ant�tese para se chegar � s�ntese, mas o l�mpen, o extremo, a camada mais baixa
da sociedade, a ral�, a esc�ria. A ACC prova que o l�mpen � que � a for�a que vai
tirar o mundo dessa estagna��o. Um oper�rio
ainda tem medo de perder alguma coisa, o seu emprego. O l�mpen n�o teme nada, j�
est� no fundo do po�o, n�o tem nada a perder, pois tudo j� est� perdido. A partir
da�, tudo o que vier � lucro. Um confrade
sabe que � prefer�vel morrer do que retornar ao estado de antes da ACC. Como o
assunto � longo, vamos deixar esse por aqui.
JL:E quanto ao Lula?
JD: Nem me fala desse cu cagado. O que posso te dizer desse infeliz? Me parece mais
um vigarista travestido de sindicalista. Parece uma coisa, mas � outra bem
diferente. S� que sabe esconder bem. Dificilmente
me engano ao analisar as pessoas, at� porque se eu n�o for bom nisso, estou
ferrado. Esse n�o me engana, � um artista da Globo, com o tempo, por�m, a m�scara
dele vai cair. Ele caga e fede como todo o
mundo, n�o s� porque � oper�rio e analfabeto. Acho que t�o dando muita import�ncia
pra esse borra-botas. Mesmo assim gostaria de ter ele para assessorar o meu
departamento de estelionato e afins.
(riso). Ele tem um talento especial para enrolar que n�o se encontra t�o
facilmente.
JL:Parece que o Brasil todo pensa bem diferente do senhor.
JD: Ent�o, por que voc� n�o vai fazer uma enquete nas ruas do Brasil para ver o que
eles pensam desse bosta do Lula e n�o me enche mais o saco?
JL:Bem, n�o seria o caso, Chef�o. Mas e quanto � seguran�a da ACC? Os confrades n�o
esperam uma rea��o cada vez mais virulenta do lado contr�rio, ou seja, da pol�cia
comum, da pol�cia federal, talvez at�
do ex�rcito? As for�as repressoras dum governo democr�tico institucionalizado � um
poder que n�o pode ser menosprezado, n�o concorda comigo?
JD: Voc� vem com essas perguntinhas de cerca-louren�o, pensando que � muito
espertinho, n�o �? Pois vamos olhar a coisa por outro �ngulo. Ser� que existe um
interesse efetivo em acabar conosco, ou com
o crime em geral? Veja s�, Cristo, ao receber uma bofetada, ofereceu a outra face,
correto? Isso, na minha opini�o, � um est�mulo ao agressor. Algu�m que se arrisque
a me oferecer a outra face. (riso).
Hoje, a gente sabe que a inten��o era bem outra, psicol�gica, intimidar o agressor
pela resist�ncia passiva. Os
est�icos j� faziam isso na Gr�cia, trezentos anos antes dele: desista de me bater,
isso n�o
me afeta, a for�a bruta jamais vai fazer os meus princ�pios se curvarem, sou
indiferente tanto � dor quanto ao prazer, e mais meio quilo de farofa. J� Cristo
era mais radical: os valores reais est�o fora
desta vida e na outra vida eu sou mais eu. S� faltou dizer que l� tinha Pas�rgada.
(riso). Um outro iludido, Gandhi, fez o mesmo e os indianos continuam todos de mal
a pior. Tudo bobagem. Nietzsche �
que caiu matando: moral de escravos, moral de tuberculosos e leprosos, isso a�.
JL:Resist�ncia passiva nem pensar?
JD: Na verdade, isso n�o existe. Al�m disso, o Sistema, no correr dos s�culos, foi
mais inteligente e passou a utilizar o cristianismo e toda a sua passividade para
benef�cio pr�prio, cooptou os seus valores
nobres: Deus premia com riqueza os seus escolhidos. E n�s tamb�m. Quem se rebela,
est� errado e vai para o inferno. E n�s prendemos e damos pau. Deus gosta � dos
mansos e vai reservar um lugar no c�u pra
eles, mesmo que aqui sejam os sacrificados. Deus escreve certo por linhas tortas e
por a� vai. S� faltou canonizar a mais-valia. Am�n. doim (riso). Sob esse aspecto,
se sou eu o agressor, e o cara me
oferece a outra face para bater, arrebento-lhe as fu�as por ser hip�crita. Ou
melhor, lhe dou o merecido descanso com um teco na nuca. Toda a unanimidade �
burra, como disse o outro. S� se consegue obter
reconhecimento, respeito, quando a outra parte teme a contrapartida. Se sabe que
n�o tem troco, deita e rola. Agora, quando tem troco, e troco pesado, vai pensar
duas vezes, no m�nimo. Qualquer pivete
de rua sabe disso. Por isso ele � dur�o, n�o d� moleza. S� v�o vingar na pr�tica os
direitos humanos quando o Sistema souber que haver� cobran�a, que n�o tem blefe. E
que a san��o ser� muito dr�stica,
no caso de desrespeito. � o que a ACC come�a a fazer neste momento, vai mostrar ao
mundo, pelo livro que estamos elaborando, que tem for�a, que � capaz de enfrentar o
poder oficial, que vai aterrorizar
cada vez mais as pessoas de bem entre aspas se elas n�o abrirem m�o das suas
prerrogativas, n�o abrirem espa�o aos exclu�dos, que n�s representamos. Se elas s�o
de bem, n�o esque�a as aspas, por que n�o
agem como tais? Policial n�o tortura, n�o baga�a os presos nas delegacias, nos
pres�dios? Ent�o. Na rua vamos peg�-los, a eles e �s suas fam�lias. Vamos faz�-los
nos respeitar. Toma l�, d� c�, pois, antes
de serem policiais, eram gente sem poder, e se esqueceram disso. Bateu, levou. N�o
tem essa de deixa passar, de perdoar. Perd�o � pro trouxa do crist�o, pro humilde
do pobre coitado. Hoje, posso afirmar
com tranquilidade que competimos com o Sistema em p� de igualdade. E digo mais, at�
com certa vantagem. Temos dinheiro, poder, organiza��o impec�vel e uma malha de
informa��o eficient�ssima. J� somos uma
epidemia espalhada pelo mundo, um poder paralelo fort�ssimo e competitivo. Grande
parte dos capitais que circulam nas bolsas de valores do planeta tem a nossa
participa��o, e isso est� aumentando cada
ano que passa. Nossos contatos com os l�deres de outras organiza��es levam essa
proposta globalizadora de conscientiza��o pol�tica, voltada �s nossas origens, do
que representamos e do que somos compostos.
A pr�xis do crime � uma pr�xis pol�tica, sempre foi, s� que n�o � reconhecida. Quem
� da massa do crime sabe que n�s apenas estamos retomando o que nos pertence,
porque os nossos antepassados foram fracos
e cederam espa�o durante mil�nios. A forma com que fazemos isso pode parecer
discricion�ria para alguns, os privilegiados de agora, mas que � totalmente v�lida
para a maioria esmagadora dos que se foderam
l� atr�s e que continuam se fodendo agora. As regras do contrato social nunca foram
cumpridas, logo est�o abertos os precedentes para a transgress�o. A transgress�o e
a morte s�o necess�rias para que os
espa�os sejam abertos. Para mim, n�o existe crime, n�o no sentido que lhe querem
dar os juristas. As leis s�o feitas para proteger as castas das elites. Os
criminosos transgridem as regras estabelecidas
porque a sociedade � injusta com eles, � uma lei de m�o �nica. A massa do crime sai
da pobreza, da injusti�a e se gera unicamente na revolta permanente, sem a m�nima
concess�o. Sem essa de que criminoso
tem �ndole ruim cong�nita. Garanto que tem confrade que parece uma mo�a, de t�o
sens�vel (riso). � s�rio (risos). Na verdade, ruim todo mundo �, basta ser
estimulado, o animal est� sempre l�, esperando
a sua vez de dar o bote. A transgress�o, estimulada pela pobreza e pela injusti�a,
� uma necessidade moral. O orgulho de um homem n�o permite que ele fique de cabe�a
baixa. � um assunto vasto esse, pode
ocupar dias e dias sem se esgotar.
JL:Parece que tempo � o que n�o nos falta.
JD: Uma ova. Isso vale pra voc�, seu vagabundo, que vive das facilidades de
escrever. Comigo o buraco � mais embaixo (riso). Claro que o crime, como ato
jur�dico de per si, tem sentido bem amplo, mas eu
estou me referindo aos crimes contra o patrim�nio. Deixemos de lado os homic�dios e
outros delitos, se bem que na maioria dos casos est�o interligados ao patrim�nio e
ao dono do patrim�nio. Veja s�, vou
tentar ser sint�tico. Sem querer imitar o Homem, vou usar o recurso das par�bolas.
Vou contar uma hist�ria que, acho, exemplifica bem o nosso assunto, ou melhor, o
fundamenta (riso). Quando moleque.
JL:No fundo, Jorge Duncan � crist�o? Ou pelo menos simpatiza com Cristo? (risos)
JD: N�o se arrisque a me provocar, cara (risos). N�o, n�o sou crist�o, meu chapa,
se cito o Homem � porque � um exemplo f�cil, conhecido de todos. Mas n�o s� por
isso, Cristo foi um marginal na sua �poca.
Foi julgado e condenado como um criminoso comum, portanto foi um parceiro nosso. Se
fosse hoje, estaria na ACC, seria um confrade, n�o tenho d�vida disso. (risos) Quem
sabe, daqui a uns tempos eu tamb�m
n�o seja visto com outros olhos. (risos) Se li a B�blia, foi com curiosidade
hist�rica, n�o mais que isso. N�o a li, com certeza, como o fazem os evang�licos.
(mais risos) Mas, como estava querendo
dizer e voc� me interrompeu, nos meus idos de moleque, participava de peladas num
terreno baldio.
JL:� mesmo? Chegou a jogar futebol, como todo bom brasileiro? Por acaso teremos um
Garrincha adormecido dentro de Jorge Duncan? (Risos.)
JD: N�o, n�o (risos), nem pensar. Pior que n�o, bem que gostaria (risos), mas, n�o,
nunca tive a aptid�o da gurizada que bate bola nas ruas, que j� nasce feita, com
real talento futebol�stico. Eu era um
reserva vital�cio, apenas preenchia a vaga quando o goleiro titular se lesionava.
Por Deus que eu era um goleiro muito frangueiro (risos). O meu porte f�sico at�
ajudava, a simples presen�a j� cobria um
bom peda�o do gol, por isso me escalavam. Ali�s, a bem da verdade, s� me escalavam
quando n�o havia mais ningu�m por perto (risos). Se o time contr�rio tinha um
goleiro ruim como eu, at� que a partida
ficava mais equilibrada. (risos). Puxa, se al�m de mafioso eu tivesse sido um
jogador talentoso, seria a gl�ria (risos prolongados). Mas, como eu estava dizendo,
costumava jogar com a rapaziada. N�o
me olhe desse jeito, Jardel, encare apenas como jogar, o aspecto l�dico da coisa,
sabe como �? Sem levar muito a s�rio. (mais risos). Pois bem, frequentemente estava
l�, a turma se reunindo para bater
bola na cancha improvisada num terreno baldio, sem maiores pretens�es do que a de
divers�o, insisto em dizer. L� pelas tantas, num determinado dia, apareceram uns
negros. Eram de outras bandas, apenas
conhecidos de vista, raramente nos cruz�vamos. Al�m disso, eram mais velhos, mais
encorpados. Chegaram como quem n�o quer nada, sentaram na grama, ficaram assistindo
ao nosso joguinho mixo. Nisso, um deles
correu atr�s da bola e a reteve, botou ela debaixo do bra�o. Ficou l� parado no
centro do terreno, cheio de banca, desafiador, prendendo a bola sob o sovaco. Os
outros, sentados, rindo, esbanjando tranquilidade.
Um dos nossos, protestou. O pivet�o, cheio de manha, retrucou: seguinte, �, ou se
joga ou se esculhamba. A nossa turma, apesar da desvantagem f�sica, n�o se
intimidou. Est�vamos acostumados a quebrar o
pau com quem quer que fosse. Naquela �poca, alguns de n�s j� �ramos dur�es pra
caralho. Trocamos olhares do nosso lado e nos entendemos. Concordamos em jogar com
os negros, o nosso time contra o deles.
Jogamos, perdemos e ficamos amigos. Os negros eram boas-pra�as e jogavam um bol�o,
s� n�o tinham bola, viviam em malocas, estavam fodidos. Eu e a maioria dos nossos
t�nhamos nossas casas, frequent�vamos
escolas, n�o �ramos ricos, mas viv�amos razoavelmente. Os negros, n�o. Poucos deles
tinham pais, a maioria oper�rios. A m�e lavadeira, o pai servente de obra, ou
ladr�o de galinha, coisas assim, mal ganhavam
pra comer. Os pais de outros eram presidi�rios, prostitutas, bebuns. Outros, ainda,
j� estavam mortos precocemente. Moravam nos becos imundos das favelas do bairro.
Fediam. Alguns deles foram cedo pro
crime e morreram cedo tamb�m, ou na cadeia, ou em tiroteio com policiais, ou at�
por desentendimento com companheiros. Eu que passava grande parte do dia nas ruas,
atr�s de novidades, cheguei a manter
amizade com um daqueles negros por longo tempo, at� que morreu de cirrose, de tanto
beber. Era um cabra macho. Assisti-o brigar algumas vezes, uma delas com navalha.
Ele e o seu rival se lanharam bastante.
Ele ganhou uma cicatriz no ombro, o outro na barriga. Impunha muito respeito. Ao
mesmo tempo, tinha uma grande sensibilidade, compunha sambas e chorinhos, e era
muito conceituado numa escola de samba que
se formou por aquelas bandas. Arranjava umas neguinhas que j� tinham grande
experi�ncia com homens para a gente foder. Pois foi com aqueles garotos, rec�m-
sa�dos das fraldas, ignorantes, paup�rrimos, que
aprendi a minha primeira li��o de cidadania, ou se joga ou se esculhamba. Muitas
d�cadas adiante, essa frase espremida veio a tornar-se o lema da ACC: Ouseje � o
nosso brado de guerra. N�o � bonito isso?
JL:Ent�o podemos considerar que de uma pelada de rua saiu uma experi�ncia marcante?
Da real import�ncia do futebol na vida do brasileiro em geral e, principalmente, da
ACC? (risos)
JD: Pode-se dizer que sim. Isso � profundo, cara, sem brincadeira, me cutucou,
embora na �poca eu n�o tivesse a m�nima id�ia de que seria assim, de que ficaria
marcado por essa experi�ncia, de que ela
influiria em mim. Ela ficou congelada no meu subconsciente at� que, um dia, bem l�
adiante, muitas d�cadas depois, veio a derreter e tomar corpo. Essa frase mostra o
orgulho de um cabra. Ele n�o t� pedindo
permiss�o para participar, est� impondo, exigindo a sua vaga, o seu lugar. Pra mim,
liberdade, igualdade e fraternidade � isso: ou se joga ou se esculhamba. Veja s�:
palavras sa�das da boca dum pivete.
N�o sabia nada de Marx nem de Rousseau, nada de Montesquieu nem de Hobbes, nada de
direitos humanos nem de Revolu��o Francesa. Sua frase estava baseada no direito
natural, no direito instintivo das pessoas,
do direito que deve prevalecer sobre qualquer outro. O estatuto da ACC leva o
sentido dessa frase muito a s�rio tamb�m. Tem um artigo s� tratando dela, do seu
conte�do filos�fico, pol�tico. Eu tamb�m,
a priori, j� sabia disso, por isso me marcou. � o que eu digo: as pessoas sabem das
coisas, mesmo quando est�o totalmente por baixo. O tal do Lula a�, de quem voc�
gosta, n�o deblatera com os patr�es,
pedindo aumento de sal�rio? E o que entende aquele oper�rio e analfabeto de merda
sen�o daquilo que alguns intelectuais de meia-tigela meteram-lhe goela abaixo? No
entanto, ta� ele berrando, cheio de raz�o.
Fez do mesmo jeito que o neguinho das minhas mem�rias que verbalizou um sentimento
que eu guardava, inconscientemente, bem entendido, mas que estava vivo dentro de
mim, como uma semente maldita, o sentimento
de exclus�o e da minha oposi��o a ele. Quando a gente � pi�, tem muito tiroc�nio,
depois vai emburrando, at� que um dia, ou acorda de novo ou fica tapado para
sempre. Quando conto isso, at� me emociono.
Muitos pensam que estou brincando, ou inventei, para encher lingui�a, mas � a mais
genu�na das verdades. � uma das minhas par�bolas. (risos)
JL:Convenhamos, o senhor tem mais pinta de fil�sofo que de mafioso.
JD: Poxa, cara, para de me chamar de senhor, n�o sou t�o caqu�tico assim. N�o s�o
os ga�chos que costumam se tutear? Voc� n�o � ga�cho? Ent�o?
JL:Bom, nesse caso, tu tem mais pinta de fil�sofo que de mafioso, tch�.
JD: Melhorou. Gosto muito do tch� gauchesco. Claro, todo criminoso � um fil�sofo,
pois ele est� questionando as regras estabelecidas. N�o � o que os fil�sofos fazem,
o tempo todo, questionando tudo, at�
a pr�pria realidade? Outra coisa, quem � do crime, come�a cedo a pensar. Por ser um
longo aprendizado, quanto mais cedo voc� come�ar, melhor. Os reflexos s�o
estimulados, seu racioc�nio fica mais r�pido,
sua percep��o passa a se utilizar de atalhos. Ningu�m ingressa tarde no crime, ou
come�a cedo ou nem entra. �s vezes, o cara t� rec�m aprendendo e j� veste o pijama
de madeira. � tudo muito r�pido, a vida
passa em velocidade, � a f�rmula um da viv�ncia. Eu sou exce��o � regra, n�o uma
exce��o comum, mas uma exce��o significativa. � como naquele ditado, malandro bom
j� nasce pronto. Virei a casaca perto
das cinquenta primaveras, d� pra acreditar nisso? Pois � a mais cristalina das
verdades. Entrei pela porta dos fundos, meio enviesado, mas entrei, e, uma vez l�
dentro, n�o tive dificuldade para assimilar
tudo muito f�cil. Era como se eu tivesse vivido em ambiente de crime desde quando
nasci, ou fosse herdeiro gen�tico de pais criminosos. S� que o meu pai, na real,
era um bunda-mole daqueles, um coc� cumpridor
de regras. Outro detalhe a exce��o das exce��es � que nunca peguei cana. Na
pris�o � onde voc� se recicla, troca id�ias, amadurece, faz fama. Como nunca fiquei
em cana, sou um estranho no ninho. Muito
poucos podem se gabar disso. Nem sei como � a porra duma cadeia por dentro, talvez
voc�, como jornalista, saiba muito melhor do que eu. Nunca entrei num pres�dio, o
que conhe�o deles � o que li ou o que
vi no cinema ou na tev�. Esse � o fen�meno: come�ar tarde e nunca ter pego cana.
Para ser verdadeiro, devo revelar que ocorreram tamb�m algumas coisas estranhas na
minha vida.
JL:Por exemplo?
JD: Coisas misteriosas, sei l�. � como dizia aquele cabra: entre o c�u e a terra
tem coisas que a nossa v� filosofia n�o consegue explicar. S� que n�o acho oportuno
tratar disso agora. Como j� falei, tem
tanta coisa que � melhor seguir em frente, tratar apenas das mais importantes, do
contr�rio n�o vamos acabar nunca a nossa conversa. Al�m do mais, � um assunto meio
subjetivo, vindo da boca duma vidente.
Talvez a gente retome isso mais tarde.
JL:O patr�o que sabe. Tu fizeste v�rias cita��es, inclusive sobre os
est�icos, o que demonstra certa intimidade com a hist�ria, a filosofia. Tu descamba
para intelectual, mesmo contra a vontade, ou julguei
errado?
JD: E voc� insiste que insiste, querendo me transformar num her�i ou coisa
parecida, hein? Claro que n�o, cara. Como j� disse, n�o me julgo um intelectual,
por certo que n�o, o que n�o significa que eu
n�o seja capaz de pensar com minha pr�pria cabe�a, correto? Sem essa, sou um homem
de a��o, apenas. E que procura se manter bem-informado, s� isso. Sei bem onde piso.
Peguei essa dica da Igreja cat�lica.
A Igreja � um exemplo de organiza��o, de administra��o eficaz. Para formar um
padre, ela o faz estudar por anos a fio. Em geral, os padres s�o camaradas
educados, bem preparados intelectualmente quero
dizer. Um confrade tamb�m precisa estudar muito para atingir o n�vel ideal. Estudar
e praticar.
JL:E quanto a voc�, em particular, o que estuda ou l�?
JD: Atualmente, leio pouco, mas mesmo assim tenho sempre algum livro na minha mesa
de cabeceira. Anos atr�s, sim, li muito, coisa mais para o lado da psicologia,
filosofia, pol�tica, hist�ria e mesmo literatura.
Uma forma��o humanista, como se chamava na �poca. Mas nunca tive um plano de
leitura programado, a sele��o ficava por conta do acaso. �s vezes, quando o assunto
me empolgava, eu aprofundava. Por exemplo,
a obra de Freud, li toda, cole��o adquirida num sebo. Os Di�logos de Plat�o,
tamb�m. Mas, como j� disse, estou sempre lendo alguma coisa, hoje em dia, por�m, a
minha leitura � mais t�cnica, em fun��o da
minha atividade. Dedico-me mais ao estudo de idiomas, tamb�m por necessidade
profissional. Mas n�o nego que j� li muita poesia, muito romance, nos tempos de
jovem (risos). Ali�s, tive forma��o universit�ria,
me diplomei em Economia, com �nfase em Administra��o, aos 23 anos. Na �poca o curso
de Administra��o n�o existia ainda, era uma especializa��o do curso de Economia.
Cursei na Federal do Paran�. Em seguida
virei funcion�rio p�blico, viajava muito. Antes, aos 18, me casei, um tanto
precocemente.
JL:Pelo que d� para depreender, t�nhamos algu�m bem integrado no Sistema, n�o �
mesmo? O que o levou a uma mudan�a t�o brusca?
JD: Voc� ouviu bem, eu ocupava um cargo numa autarquia federal. Isso a partir de
1955, por a�, mas em 51 eu j� havia ingressado no servi�o p�blico, fiz concurso.
Primeiro numa vaga do governo estadual
do Paran�, depois dum r�pido per�odo passei para a prefeitura de Curitiba, ocupando
um cargo melhor. Sempre concursado, nunca de pistol�o ou coisa que o valha. At� que
finalmente me fixei no Minist�rio
do Interior, sendo esta uma cria administrativa da tal ditadura. Essa experi�ncia
no servi�o p�blico me foi muito �til para atrelar a ACC nas negociatas com
pol�ticos, uma ra�a que n�o me era nada estranha.
Foi nesse cargo do Minist�rio do Interior que me aposentei. Como v�, vivi o auge do
Milagre Brasileiro na Ditadura Militar como funcion�rio p�blico. Mais tarde
voltaremos a falar disso, demoradamente.
Mas n�o me considero nem um mafioso erudito nem ex-maraj�. (risos)
JL:Ent�o quem � Jorge Duncan e por que a mudan�a?
JD: Essa � uma boa pergunta. � o que tento responder a mim mesmo o tempo todo. E
voc�, sabe quem �? Dificilmente a gente sai dessa sinuca de bico. Sem querer ser
pedante, vou fazer mais uma cita��o, desta
vez Rosa, tirada do Grande Sert�o: o diabo na rua, no meio do redemunho. O que ele
queria dizer � que o processo foge ao nosso controle. Quando a gente se d� conta
est� metido no fervedor, ou seja, enterrado
na merda at� o pesco�o. (risos) � isso a�. Posso garantir, no entanto, que, nesses
prim�rdios, eu era um cara padr�o, talvez at� demais. Tudo nos conformes, fam�lia,
pai, m�e, eu era filho �nico. N�o
� uma ocorr�ncia muito rara, se procurar com calma vai achar muitos exemplos que se
assemelham ao meu. Fidel n�o era filho de fazendeiros? O Ch� tamb�m n�o vinha da
classe m�dia argentina? A Patty Hearst
n�o era filha de milion�rios e n�o virou terrorista depois de raptada pelo Ex�rcito
Simbion�s de Liberta��o, nos EUA?
JL:A alega��o � que Patty foi afetada com a S�ndrome de Estocolmo, tanto que foi
libertada antes de vencer a pena, indultada pelo presidente, Jimmy Carter se eu n�o
me engano.
JD: O av� dela era dono dum imp�rio jornal�stico e jamais permitiria que a neta
mofasse na cadeia, essa � a verdade. O fato de ela ter S�ndrome de Estocolmo
equivale ao filhinho de papai brasileiro que,
para escapar da cana, alega ser cleptoman�aco, uma grave doen�a. No caso de um
favelado, seria ladr�o mesmo. N�o me venha com essa, Lundi. Acorda, cara.
JL:No seu caso espec�fico, como aconteceu?
JD: Quanto a mim, virei bandido, sem nenhum trauma. Um ind�cio, se � que pode ser
tomado como base, � que desde cedo mostrei um temperamento voluntarioso, mand�o pra
cacete. Mas, como eu, milhares de crian�as
agem assim, especialmente sendo filho �nico, como era o meu caso, que sempre � mais
mimado do que os que t�m irm�os, que repartem as aten��es dos pais. Fora isso, nada
de excepcional. Hoje estou com sessenta
e poucos, mas � como se tivesse vivido apenas vinte e tantos, de vida �til quero
dizer. O resto do tempo foi um chafurdar constante na merda. Mas enterrado na merda
mesmo, at� o pesco�o, pra valer, n�o
� brincadeira, n�o. (risos) S� fui emergir da porcaria perto dos 50. Da inf�ncia,
melhor dito, da primeira inf�ncia, d� pra aproveitar coisa a� duns cinco anos,
talvez menos. Depois, at� aos 48, panela
de merda, com raras exce��es. Foi um desperd�cio, admito, passar um temp�o desses
jogando a vida fora, mas fazer o qu�? A maioria das pessoas vive assim, no panel�o
de merda, sem nunca conseguir sair.
Ao saltar para fora, minha vida deu um giro de cento e oitenta graus, foi uma
mudan�a brusca, entrei noutra dimens�o. Nunca me arrependi disso, muito pelo
contr�rio. E tem uns idiotas que acham que o cara
depois dos 40 t� fodido, acabado. Estou aqui pra contrariar. Realmente hibernei por
um bom tempo, mas quando acordei ainda tava com todo o g�s. O cara s� t� fodido,
naquela situa��o, quando somente chafurda
na merda e nunca sai do panel�o. Quando � bucha de canh�o, como diria o outro.. �
isso a�.
JL:Se tiv�ssemos que estabelecer uma data, dir�amos que tudo come�ou em.
JD: Podemos situar o ano de 1980 como o in�cio de tudo, ou melhor, da minha grande
virada, aos 50 anos de idade. Em 1974, aos 44 anos, eu j� estava aposentado. Com
18, eu j� tinha feito fam�lia, tava
na batalha. Quem come�a a trabalhar cedo se aposenta cedo.
JL:A virada se deu como aposentado, �?
JD: Correto, bem madurinho. Foi uma mudan�a da �gua pro vinho, muito r�pida. Mas
imagina o que eu fazia nessa �poca, 78, 79, para matar o tempo, pouquinho antes da
virada. De manh�, malhava numa academia
de muscula��o, at� pr�ximo do meio dia. � tarde, �s vezes at� um bom peda�o da
noite, me dedicava � fornica��o. Fazia isso todo santo dia. Malhava a manh� toda,
de segunda a sexta, aos s�bados e domingos,
corria nos parques. O resto do tempo, fornicava. Era o meu esquema, a minha id�ia
de estar em a��o. Tem coisa mais rid�cula? N�o que eu desgoste de esporte nem de
sexo, n�o � isso, era a maneira como eu
levava a coisa, de centrar a minha vida numa rotina daquele tipo, na cabe�a da pica
e nos m�sculos. Hoje, realmente, custo a me reconhecer naquele corpo e naquela
cabe�a. (risos), que eu pudesse ter
sido t�o imbecil como era naquela �poca. Aquele Jorge Duncan do passado n�o tem
nada a ver com o de hoje, somos pessoas totalmente diferentes, nada a ver mesmo.
Isso, sob certo aspecto, � bom sinal, pois
indica que as pessoas podem mudar. N�o digo todas, mas pelo menos algumas, aquelas
que realmente querem. Agora, quer saber de verdade qual era a minha �nica e secreta
ambi��o daqueles tempos?
JL:Sou todo ouvidos.
JD: Voc� n�o pode ter nem id�ia. Tch�-tch�-tch�-tch���. Entrar para o Guinness Book
como o maior fornicador do Brasil e do mundo. Jorge, o Garanh�o Paranaense, o Pica
de Ouro (risos). Como toda fantasia,
eu a acalentava com muito carinho, como se fosse um bicho de estima��o, o gatinho
do qual eu ficava alisando o lombo macio.
JL:Um projeto e tanto. (risos). J� tinha comido quantas mulheres at� ali?
JD: Eu j� andava perto das duas mil e achava essa uma marca consider�vel. Agora,
para ganhar a ta�a, n�o tinha nem id�ia de quantas mais precisaria comer. S� sabia
que tinha de comer, continuar comendo
e quanto mais comesse mais chances teria. Tem cabimento um tro�o desses? Como
qualificar? (risos)
JL:O qu� o Guinness marcava na �poca?
JD: E eu vou saber? Nunca me dera o trabalho de ver se tinha chance ou pelo menos
em saber a quantas andava o desempenho dos concorrentes. (risos)
JL:Visto por outro �ngulo, me parece a atitude t�pica de algu�m com excesso de
vigor f�sico, de muito tes�o. Para n�o explodir, botava pelo ladr�o. Bom, na
verdade os 63 de hoje transparecem mais uns 40
e poucos.
JD: Ah, �? Mas n�o vou agradecer por isso (risos). O pat�tico � que eu levava a
coisa t�o a s�rio que adotara um modus faciendi capaz de me fazer atingir um
recorde do qual eu continuava sem saber a marca.
Seria t�o simples comprar um exemplar do Guinness Book para ver as minhas reais
chances, ou pelo menos me situar na competi��o, mas ia postergando, o que talvez
indicasse o meu medo de uma grande decep��o.
E se o campe�o j� tivesse atingido a marca das cinco, dez mil? Ent�o eu abaixava a
cabe�a e ia � luta.
JL:Ou levantava, certo? (risos)
JD: Como eu dizia, era fazer por merecer a fama de garanh�o incans�vel. Al�m do
arrast�o que eu fazia por todo o lugar onde andava, ruas, lojas, parques,
supermercados, etc., arranjei ainda uma cafetina
para me ajudar a aumentar cada vez mais esse n�mero. Paralelamente, botava an�ncios
em revistas e jornais.
JL:Puxa. (risos)
JD: Verdade. Choviam cartas de todo lugar do pa�s. Dessa forma, eu conseguia comer,
em m�dia, duzentas mulheres por ano, �s vezes um pouco mais.
JL:Nossa, e eu que me achava um comedor razo�vel. (risos)
JD: Sempre fui muito organizado. (risos) Tanto que criei um fich�rio do tipo kardex
coisa bem antiga, n�o?, chegou a conhecer kardex? para controlar essa intensa
atividade fornicadora, com detalhes
de cada transa. Iniciei esse controle muito antes, quando tinha 28 anos, por a�,
acho, e j� comera um bocado de mulheres. Como d� pra ver, era um sonho bem antigo.
(risos) Mais tarde, j� aposentado,
adquiri um computador, um CP-500 antediluviano, e transferi esses registros para
ele, um arquivo com o nome sugestivo de F�meas. Foi um trabalho enorme de digita��o
que me comeu algumas semanas.
JL:Energia � que n�o faltava, n�? (risos)
JD: Bota energia nisso (risos). Mas eu esbanjava tempo nessa �poca, sim e
precisava ocup�-lo para n�o morrer de t�dio. Outro detalhe, montei uma cobertura,
finamente decorada, que seria o matadouro
onde eu faria o sacrif�cio das frangas.
JL:Se escutei bem, voc� disse que havia casado muito cedo. Mesmo assim aprontava um
monte, ou j� havia se separado?
JD: N�o, s� fui me separar bem mais tarde, perto da virada. Mas cavalo amarrado
tamb�m pasta, n�o �? (risos) Aos 18 resolvi casar com uma garota dois anos mais
mo�a. J� come�ou complicado porque tanto
eu quanto ela precisamos de autoriza��o judicial para casar. Os pais dela eram
contra, foi um rolo. Por fim cederam, e casamos. Tivemos dois filhos, um casal.
JL:O casamento se deu ent�o na d�cada de 1940? No final da d�cada? Estou na dire��o
certa?
JD: Por a�. Mas nessa �poca a que estou me referindo, 1978, eu continuava casado,
claro. Zilda, a primog�nita, j� estava com 23, e, Jonas, o ca�ula, com 21. �ramos
uma fam�lia legal, moderninha, cada um
na sua. Neur�ticos an�nimos, tabagistas e bebuns. Eu, no entanto, j� me preocupava
com o avan�o da idade e suas consequ�ncias, tinha largado o cigarro havia uns dez
anos, e a bebida, assim que me aposentei,
logo, quatro anos. Mas Judita, minha mulher, e os dois rebentos continuavam firmes
tanto na birita quanto no tabaco. Naquela �poca fumar era moda, e ainda n�o se
falava muito em c�ncer, etc. Judita e eu
j� est�vamos separados de corpos havia bastante tempo, como seria f�cil de prever.
Eu tinha o meu quarto, ela o dela, e assim �amos levando. � noite, fechado no meu
quarto, sentava diante da m�quina de
escrever el�trica, uma Ol�mpia supimpa antes do CP-500, e fazia os registros das
aventuras do dia. Esse di�rio, com abund�ncia de detalhes, era guardado a sete
chaves num arm�rio de a�o e seria o documento
que serviria de prova �s minhas proezas sexuais.
JL:De fato, era um grande sonho. (risos)
JD: Se era. Por certo que o registro n�o existe mais. Ao romper com o passado,
queimei tudo. Mas era assim mesmo, tudo catalogado. H�bito organizativo de cunho
profissional.
JL:Uma fam�lia situada na classe m�dia alta?
JD: Exato. Eu ganhava uma grana razo�vel, embora n�o fosse nenhum maraj�. (riso)
Dei um duro danado para conquistar o meu lugar ao sol. Mas o que ganhava dava para
sobreviver com dignidade. No final
do m�s, sempre havia um saldo positivo entre a receita e a despesa, que acabava na
poupan�a ou em algum investimento mais lucrativo. J�, do ponto de vista emocional,
a fam�lia era bem tumultuada, cheia
de grilos. Eu com as minhas mulheres, uma vida dupla repartida entre a cobertura e
a casa propriamente dita. Quanto � Judita, era uma freguesa de caderno de cl�nicas
psiqui�tricas. Volta e meia tinha um
surto de bobeira e l� ia ela passar uma temporada na casa de campo, como nos
refer�amos �s suas aus�ncias. Eu procurava levar na goza��o, para dar um aspecto
mais ameno � situa��o. Na verdade, era um casamento
em fase terminal. Eu relutava em me mandar, embora a novela j� tivesse um fim
previs�vel. Mas tamb�m, como toda a novela de tev�, o desfecho era prolongado
indefinidamente.
JL:Fim do amor, mas n�o do h�bito de conviver?
JD: � aquela coisa, Jardel, nada diferente do que rola por a�: �ramos pessoas
normais, t�nhamos casado, tido filhos, feito planos, nos amado e odiado, como
qualquer casal. As pessoas s�o assim, amam, casam,
separam, se fodem e. morrem. A vida � isso, essa chafurda, e a gente sempre l� no
meio do redemunho. A verdade � que, em determinado ponto do percurso, Judita
abilolou total, sem aviso pr�vio, mergulhando
para dentro de si mesma, mergulhos com retornos cada vez mais espa�ados.
JL:Com certeza foi nesse per�odo tu andou lendo Freud?
JD: Sinceramente n�o sei o que lhe causou a bobeira. Tinha duas ocorr�ncias na
fam�lia dela, que talvez se poderia considerar como heran�a gen�tica, uma tia e uma
prima, que foram saindo do ar aos poucos,
at� ratearem completamente. Era uma loucura passiva, serena, uma esp�cie de autismo
retardado. Nunca me interessei em ir a fundo na sua alma. Fomos criando um
desinteresse t�o grande um pelo outro que
acabamos ficando quase estranhos, embora compartilhando a mesma casa, os mesmos
h�bitos dom�sticos. Nas crises, ela sa�a do ar, literalmente. Esquecia do banho,
ficava jogada num canto, tipo um saco de
bosta. Ot�lia, a servi�al, cuidava dela como duma crian�a. Ela se refugiava no seu
mundo fantasmag�rico, e eu no meu, libidinoso. Eu s� me preocupava com o meu
prazer. Por for�a de profiss�o, tempos atr�s,
viajava muito, uma semana em casa, um, dois meses fora, e isso, para mim, era
�timo, eu podia me omitir, digamos, oficialmente, tinha uma boa justificativa para
isso. Jonas e Zilda cresceram com a minha
aus�ncia e a de Judita, que chegava a ficar v�rios meses por ano na casa de campo.
Assim, quase �rf�os, cada um achou o seu caminho como p�de. Zilda, formada em
jornalismo, era freelancer de porra nenhuma,
fazendo turismo-desemprego todo m�s, viajando dum lugar para outro at� quando
durasse o dinheiro da sua mesada. Jonas, estudante de direito, era chegado num
fuminho, que depois evoluiu para a branquinha.
Prometia ser um futuro frequentador de cl�nicas, como a m�e. Na verdade, eu tamb�m
n�o conhecia muito a fundo nenhum dos dois, ou talvez nem me interessasse em chegar
l�. Como cabe�a da fam�lia eu cumpria
com a minha obriga��o de maneira impec�vel. Nunca deixei faltar nada, educa��o,
alimenta��o, etc., arcando com todas as despesas de manuten��o, de modo que ningu�m
precisava se preocupar com a sobreviv�ncia.
Mesmo depois da maioridade, continuavam recebendo mesada. Agindo assim, eu sentia
ter cumprido o meu dever, portanto, pt sauda��es. Como um complemento, para
estimular ainda mais o nosso alheamento, t�nhamos
Ot�lia, uma mulher de 55 anos, nossa empregada h� 20. Fora ela, praticamente, quem
criara os filhos para Judita. Nesse contexto, como Quatro Mosqueteiros meio
enviesados, com cada um por si e Ot�lia por
todos, mant�nhamos a fam�lia em funcionamento. N�o pod�amos admitir, sob hip�tese
alguma, a vida sem Ot�lia. Enquanto eu bancasse e Ot�lia administrasse, o nosso
conv�vio dom�stico tornava-se at� satisfat�rio,
desde que a individualidade de cada um fosse preservada, bem entendido. Enquanto
cada um andava metido na sua toca ou quarto, resguardando a sua privacidade, tudo
ia �s mil maravilhas. Descobrimos logo,
logo que era de bom alvitre evitar as reuni�es de fam�lia, pois, via de regra,
Zilda e Jonas as acabavam bagun�ando. Ambos tinham uma maneira de se odiar,
convicta e persistentemente, que obrigava os nossos
encontros a ficarem cada vez mais espa�ados. Dessa forma, passamos a nos reunir
praticamente nunca, mesmo em datas como Natal ou coisa que o valha. E, quando isso
ocorria, era mais por acaso do que de
forma programada ou habitual no dia a dia. Sempre que insistimos em contrariar essa
regra, a coisa acabava mal.
JL:A solid�o em fam�lia � mais comum do que parece. Muitas fam�lias vivem de
apar�ncias. N�o est� querendo me dizer, entretanto, que foi isso que o levou �
criminalidade, certo?
JD: Judita e eu est�vamos juntos havia cerca de 30 anos. Durante esse tempo, embora
eu fosse apenas dois anos mais velho do que ela, ela passou a aparentar ter, no
m�nimo, vinte anos a mais do que eu.
Enquanto eu treinava de 4 a 5 horas por dia, adotava uma dieta balanceada e tal,
Judita n�o estava nem a�, os radicais livres a pegaram. No seu mundo fant�stico, a
televis�o lhe bastava. O fim de semana,
ent�o, era feito sob medida para ela. Do controle remoto do seu aparelho, ela
comandava o espet�culo, pulando dum canal para outro: Hebe, Chacrinha, Clube do
Bolinha, Faust�o, Silvio Santos, at� finalizar
com o Fant�stico. Quando n�o eram programas de audit�rio, eram novelas, de segunda
a s�bado. Ao telefone, o assunto dela com a m�e era tratar do futuro de cada
personagem, dos rolos em que estavam metidos.
Dispensavam horas penduradas no telefone com esse tipo de papo. Jonas, Ot�lia e eu
praticamente n�o toc�vamos no aparelho. Entretanto, Judita e Zilda, se tivessem a
op��o disso, ficariam na linha a vida
toda, ou a eternidade. Zilda, depois de assistir a um filme de terror cujas
personagens foram sepultadas vivas, exigia que, caso acontecesse qualquer coisa com
ela, e fosse dada como morta, a enterr�ssemos
com um radiotransmissor. Levava isso t�o a s�rio que vira e mexe l� vinha ela com o
assunto. Talvez tencionasse protestar, sei l�, l� de dentro do caix�o, alguma coisa
do tipo. Cada um tinha, � sua maneira,
um parafuso meio solto. Uma outra peculiaridade de que me lembro � que n�o t�nhamos
�lbum de fotografias. Dev�amos ter acumulado, nessas tr�s d�cadas, apenas uma meia
d�zia de instant�neos. Acidentes de
percurso. Zilda tinha uma maior quantidade por causa de suas viagens, mas eram
fotos dela na companhia de estranhos. �ramos, pois, uma fam�lia sem mem�ria. Isso
constitu�a uma assombra��o para Judita.
O fot�grafo queimou o filme at� do nosso casamento, por um acidente que ele n�o
conseguiu explicar bem. Dessa forma, n�o ficou nenhum registro, unzinho que fosse,
do enlace. Isso a apavorava. A m�e de
Judita interpretou o incidente como um mau press�gio. Passaram um bom tempo, ela e
Judita, consultando videntes e m�es de santo para desfazer o pretenso sortil�gio.
Pelo desfecho, n�o tiveram �xito, embora
tenham gasto uma fortuna com trabalhos e patu�s. (risos) Sinceramente, quando volto
a esse tempo, n�o consigo entender como consegui sair daquela meleca. S� posso
pensar que era um predestinado, embora
tenha dificuldade de aceitar uma interpreta��o desse tipo. Vou falar disso mais
tarde, dos sonhos prof�ticos, das premoni��es. Para chegar ao que sou, no entanto,
foi um processo t�o f�cil, t�o autom�tico,
que deve causar aos outros o mesmo espanto que causou em mim. Ou � porque estaria
tudo plantado no meu inconsciente durante todo esse tempo? N�o, n�o tenho d�vidas
de que sou um predestinado, embora continue
relutando em aceitar isso, em atribuir uma origem inexplic�vel � minha lideran�a
carism�tica.
JL:Se f�ssemos levar as coisas ao p� da letra, poder�amos atribuir a tudo um
car�ter meio casual ou misterioso. Acredito que a realidade concreta � irremov�vel,
definitiva. Ou mais ainda, o real, por si
s�, � enigm�tico. Se formos atribuir mais mist�rio ao que j� existe, ca�mos num
d�dalo inextric�vel. Na verdade, tu tens dificuldade de te aceitar ou � uma
desculpa para contornar o problema?
JD: N�o, Jardel, n�o. Simplesmente descobri, ainda a tempo, que temos capacidades
desconhecidas por n�s mesmos. Estamos aprisionados ao nosso corpo e � nossa mente,
mais especificamente ao que pensamos.
Ao romper com uma realidade indesejada, rompi com o meu destino, com o que as
regras sociais me impuseram. Ao fazer isso, mesmo sem saber inicialmente, comecei a
construir uma nova realidade. Uma realidade
onde eu podia me considerar o meu pr�prio criador, embora ainda dentro de algumas
limita��es.
JL:Nesse caso, porque voc� nunca conseguiu romper com uma fam�lia com a qual n�o
parecia ter o menor envolvimento emocional?
JD: Vou saltar a pergunta, fingir que n�o a escutei.
JL:N�o seria a dificuldade que todos n�s temos de resolver quest�es dom�sticas?
Ferir alguns �ntimos n�o � mais dif�cil do que atingir a humanidade inteira?
JD: Voc� � insistente, hein, cara? (pausa tensa)
JL:Ent�o, Chefe, a considerarmos esse per�odo, no mais das vezes era a ca�a �s
mulheres?
JD: Olha s�, minha rotina era essa: sa�a de casa de manh� e s� retornava � noite,
isso quando retornava. �s vezes, passava fora um temp�o, pau e pau nas xoxotas.
Recebia uma grande quantidade de cartas,
respostas dos an�ncios que eu publicava em jornais de v�rios estados e revistas de
circula��o nacional. Botava coisas como: fazendeiro, charmoso, porte atl�tico,
saud�vel, sens�vel, vai realizar todas
as suas fantasias, as mais loucas. M�dico, bem-dotado, tarado por ninfetas.
Empres�rio, de passagem por esta cidade, procura. Era divertido. De tempos em
tempos, eu selecionava algumas delas. Fazia
contatos telef�nicos, tomava um avi�o e ia para. Salvador, Bel�, Vit�ria, Rio,
Sampa, Floripa, Portalegre, Manaus e algumas cidades interioranas, desde que n�o se
afastassem muito do roteiro. Em certa
ocasi�o, fiquei ausente 26 dias, em cada cidade eu comia duas ou tr�s minas e
seguia em frente. Ao cabo dessa turn�, ao retornar a Curitiba, Judita, um baga�o,
estava internada. Foi uma das suas piores
crises, mas isso n�o me impressionou. Ot�lia me substitu�a nas visitas di�rias, das
quais eu tratava de me esquivar. O seu psiquiatra chegou a me ligar, pedindo a
minha presen�a, mas acabei n�o indo. Por
essa �poca, me envolvi com uma menina da academia e estava muito ocupado. Judita e
eu continu�vamos como turistas de casa.
JL Pelo visto, amigos e familiares eram poucos ou quase nenhum?
JD: Digamos que sim.

Dia de semana, em casa, ap�s o almo�o. Ot�lia retirando a mesa, Judita e eu


passando � sala. Eu, estirado no sof� maior, enquanto Judita, nervosa, esperava o
cafezinho para fumar. Ela dizia qualquer coisa,
mas eu n�o lhe prestava aten��o. Ergo a perna direita no ar enquanto sua voz segue
a mon�tona trilha sonora do meu filme dom�stico. Analiso o alto-relevo da
musculatura contra�da, o sart�rio, o vasto externo,
o extensor, o reto femoral, e flexiono a perna, acompanhando o trabalho dos
m�sculos distendendo-se, torno a estic�-la girando o p� para destacar o potente
tr�ceps sural, o compacto peroneiro longo, uma
s�lida base de macho saud�vel, colhudo. Recolho o membro, contidamente,
descansando-o sobre o outro, j� cedendo a uma indol�ncia incr�vel que faz as minhas
p�lpebras pesarem como halteres carregados de
anilhas. Ot�lia chegou com a bandeja e Judita se apressou em acender o cigarro.
Estava agitada, cada gole de caf� foi sucedido de alongadas e s�fregas tragadas.
Tentava controlar o fumo, a conselho m�dico,
mas, ap�s o almo�o, no ritual do cafezinho, isso era quase imposs�vel para suas
for�as. Em contrapartida, soltava a boiada. Acendia um cigarro na ponta do anterior
e s� diminu�a, meio ma�o depois, quando
se sentia momentaneamente saciada.
Olha a polui��o , eu disse, mas ela nem se deu por achada.
Judita olhava um ponto indefinido � sua frente, falando sempre. O tom monoc�rdio de
Judita me estrangulou. Quando acordei, Judita j� havia ido visitar a m�e e a casa
estava em sil�ncio. Subi os dois lances
de escada em quatro passadas, tomei uma ducha, enfiei a bermuda, camiseta, t�nis,
bon�, instalei uns �culos escuros na fachada e mirei o espelho encarando um lobo
voraz. Fui. A bordo do BMW preto, temperatura
ambiente a 18 graus, m�sica pop americana rodando, m�sculo card�aco nos sessenta
batimentos, eu botava testosterona pelo ladr�o. Os �culos de grife italiana eram
uma parab�lica sens�vel ao menor atrativo
feminino: p�, boca, cabelo, perna, bunda. Nada, por�m, foi suficientemente infernal
para me deter antes da rampa de acesso ao meu moc�. Acionei o controle remoto e
esperei com toda paci�ncia a porta
da garagem se erguer. Afrouxei o p� da embreagem e os pneus guincharam
desesperadamente. Meti o carro no box e subi para a cobertura. Liguei para Ilona.
J� estamos indo.
Ilona nunca rateou, sempre pontual. Trouxe consigo uma teteia de pezinhos perfeitos
postos a nu na sand�lia preta de tiras cruzadas. Era a mil�sima, noningent�sima,
vig�sima oitava.
Ilona me levava uma grana. Com um instituto de beleza no Xaxim, come�ou aliciando
as meninas das redondezas. Depois passou a arrebanh�-las em qualquer lugar, num
raio que se expandia por toda a cidade.
Me dava dedica��o quase exclusiva. Quando via uma mina com as caracter�sticas
exigidas, tratava de se aproximar dela e botar-lhe a coleira. Arrast�-la para o
moc�, o mais breve poss�vel, era uma consequ�ncia
natural. Eu lhe dava alguma liberdade de escolha para que pudesse fazer varia��es
em torno do tema p�s bonitos. Era esperta e fazia seu trabalho a contento. Usava
para todas a mesma hist�ria do primo rico,
fazendeiro, que pretendia se mudar para Curitiba, mostrando uma foto minha. As
garotas ca�am como patinhas, loucas para garantir o seu pr�ncipe encantado, mesmo
j� meio passado na idade. Uma �nica vez,
talvez porque fosse inverno e a oferta minguasse, Ilona alegou o risco cada vez
maior de peitar menores, praticamente abandonara o seu neg�cio para me atender,
queria tornar o seu peixe mais caro. Embora
ela me poupasse um trabalho enorme, eu lhe pagava cem d�lares por menina, pre�o
exorbitante para um mercado em que a oferta era sempre maior que a procura. Ora, se
pagava bem, e em d�lares, era para n�o
ter aporrinha��es, muito menos desse tipo, eram os cavacos do of�cio que ela tinha
de computar. Dependia mais dela do que de mim aumentar sua renda, visto que eu
absorvia qualquer quantidade trazida por
ela. Assim, demos o assunto por encerrado e mantivemos o nosso acordo por quase
tr�s anos seguidos. Nesse per�odo, ela me forneceu cerca de setecentas meninas. A
quantia resultante dessa convers�o jamais
seria atingida pelo seu prec�rio neg�cio, mesmo num espa�o de tempo tr�s vezes
maior.

Mais cenas dom�sticas. Ot�lia me trouxe os jornais no quarto pela manh�. Nada de
novo, lua minguante, conjun��es desfavor�veis, corrup��o no governo, estelionatos,
homic�dios, tr�s bancos assaltados, sequestro
de empres�rio, rebeli�o no pres�dio, �ndice elevado de acidentes de tr�nsito,
desemprego crescente, infla��o em alta. Tomei uma ducha, fiz o desjejum, dei uma
passada na academia. Minha colega n�o pintava
nas aulas de aer�bica havia duas semanas. Sempre que eu ligava, n�o atendia. Para
compensar, carregava os halteres e fazia s�ries de exerc�cios ultrapesadas. Acabava
o treino extenuado, como se tivesse
passado com a ausente uma tarde ativa no motel. Concentrei-me em Ilona. Nas semanas
que se seguiram, Ilona me apresentou umas meninas muito gostosas. Entrementes,
rolos dom�sticos, a panela de merda fervendo,
quanto mais se mexe mais fede. Meu cunhado, diretor da Caixa Econ�mica Federal, que
nunca me liga, ligou.
Tou preocupado com a mana.
Qu� que houve, Flavinho?
N�o sei, por isso estou ligando. Ela me visitou, ontem, achei ela muito caida�a,
super deprimida.
�, Flavinho, at� parece que voc� n�o conhece a mana que tem! � o estado normal
dela, cara, t� sempre achando que o mundo vai acabar a qualquer momento�
N�o, n�o, dessa vez � alguma coisa diferente. S� n�o tenho id�ia do que seja, n�o
consegui captar nada, tenho medo de que a depress�o a leve ao suic�dio.
Eu j� desisti, cansei de tentar mudar o astral dela, n�o tem jeito.
�Vai te foder, p�! Por acaso eu fico ligando pra dizer que a tua mulher te p�e
chifre e que tu n�o reclama?� O problema � que ela n�o se queixa, n�o se abre, n�o
d� uma pista continuou ele.
Fiquei silencioso, ele mudou de assunto:
E o Jonas, como est�? Talvez seja por causa dele. Esses seus filhos est�o sempre
aprontando.
Que nada! O Jonas t� numa boa. A Zilda tamb�m. �Qual �, seu panaca? Algu�m pediu
sua opini�o? Quer que eu v� a� e lhe arrebente a cara?� �, Flavinho querido, n�o
me leva a mal, mas acabei de sair
do banho, tou pelad�o aqui no meio da casa.
Tudo bem, tudo bem, desculpa o mau jeito, s� gostaria que voc� batesse um papo com
ela, que.
Judita entrou no quarto, aproximou o ouvido do fone, na tentativa de escutar.
Claro que dou, claro, tiau. Desliguei.
Era o Nilo? perguntou Judita, referindo-se ao seu psiquiatra. Era da Cl�nica?
N�o, respondi.
Se ligarem de l�, Jorge, pelo amor de Deus, diz que eu n�o estou. O Nilo quer me
internar de novo, tou sentindo, diz que � pro meu bem, n�o fala em outra coisa,
desta vez eu n�o vou, de jeito nenhum!
Terminei de me enxugar, penteei os cabelos. N�o disse que era o mano bund�o.
Decerto estava com medo de que a mana estivesse a fim de fazer um papagaio na sua
ag�ncia e queria garantir o meu aval, preparando
o terreno. A fodida da mana dele era uma sombra na sua pr�pria casa, cheia de
medos, cercada de fantasmas, ningu�m da fam�lia seria capaz de aturar. Para mim,
era como se ela j� estivesse morta, nem tomava
conhecimento da sua presen�a. A rec�proca, com certeza, devia ser v�lida.

De repente, aconteceu no domingo.


Sa� cedo, energ�tico, disposto a correr, no m�nimo, umas duas horas. Estava tomado
duma euforia explosiva, gratuita. Seria pela manh� ensolarada e de c�u limpo, pela
primavera colorida, pelos ru�dos e
cheiros, pelo clima de festa que enroscava o dia? L� estava eu desfilando com gana
a minha estampa de macho tesudo, fluindo pelas ruas com a naturalidade e a
eleg�ncia de um atleta ol�mpico. Puxava as
r�deas controlando a velocidade da marcha, acompanhando o compasso dos batimentos
card�acos e do ritmo respirat�rio: eu era uma m�quina bem regulada, metronomizada.
Possuidor ainda de um enorme vigor f�sico
que a idade n�o lograra quebrar, conseguia exagerar sem me desgastar. Na academia,
s� fazia programa de exerc�cios com carga m�xima, carregando os halteres no limite
das minhas for�as. O supino n�o baixava
de cem quilogramas. Poucas repeti��es e grandes pesos. Ap�s o esfor�o, os espelhos
refletiam a intumesc�ncia e a defini��o dos m�sculos. Isso escandalizava o
instrutor de plant�o. Chamou-me para um particular.
Na sua idade acentuou �idade� , o senhor devia dar �nfase a um programa dentro
dos limites de steady-state, de RLM em condi��es aer�bicas. Esperou a minha
rea��o, que n�o veio , a continuar treinando
dessa forma exagerada. Vai acabar prejudicando o sistema cardiovascular, a press�o
arterial vai parar nuvens, pode at� ter um enfarte fulminante a qualquer momento.
� mesmo?
Sem contar a amea�a dum s�rio comprometimento tendinoso.
Em suma, eu fazia tudo o que deveria evitar.
Na sua faixa et�ria real�ou �faixa et�ria� , o amigo tem que maneirar, baixar a
bola. A cabe�a continua jovem, mas o corpo sente.
Tentou at� ser filos�fico:
Idade n�o � pecado, � circunst�ncia.
Por um triz, n�o mandei ele tomar. Enquanto ele falava, eu grunhia, ah �?,
engasgado de �dio, contendo a porrada, de olho rubro no rabo das minas de malhas
colantes que desfilavam pra l� e pra c�. O puto,
sim, tinha conseguido fazer a minha press�o empinar a pipa.
Depois desse papo, nossa antipatia m�tua atingiu o auge. Odiei-o, tenazmente, a
partir desse momento. Um dia, depois de executar cargas descomunais, passei cinco
minutos alucinados no versaclimber, conseguindo
assim expurgar as �ltimas gordurinhas. O resultado ficou refletido nos grandes
espelhos, na massa vigorosa de m�sculos encorpados, el�sticos, lustrosos, com taxa
de gordura pr�xima de zero.
O bund�o, de longe, abanava a cabe�a, sorrisinho cretino. Atravessei o amplo sal�o,
abarrotado de aparelhos e gente em atividade, sem perd�-lo de vista. No
deslocamento, n�o podia deixar de admirar o monobloco
de concreto, desdobrando-se em imagens, metro e oitenta, setenta e oito quilos,
trinta e cinco anos, na realidade, quarenta e oito, na plenitude da sua capacidade
f�sica. O estado de gra�a de um bis�o
exibindo toda a sua testosterona vibr�til, capaz de, na hip�tese duma f�ria
repentina, causar uma devasta��o ao seu redor. Fui me aproximando, sem a m�nima
pressa, largando lentamente o peso no p� de apoio,
numa cad�ncia exasperadora, encarando o bund�o que fingia n�o me notar.
O impulso de lhe dar umas porradas era imenso, mantido em banho-maria por tempo
demais, era chegada a hora. Um coc� desses n�o pode imaginar que, com cinco
repeti��es duma rosca super pesada, eu estouro
os meus b�ceps para quarenta e cinco cent�metros, fa�o saltar um ovo no antebra�o e
o cora��o ribombar dentro do peito como um sino doido. Se eu tivesse a porra do
m�nimo problema cardiovascular, j� tinha
ido pras cucuias, h� s�culos! Muito menos sabia que o circuito anaer�bico tem um
sentido org�smico que o seu contr�rio n�o possui. A viola��o dos limites, o tinir
caracter�stico das anilhas se chocando
umas nas outras, sinfonia concretista de alta densidade, � que me davam o sabor da
insanidade dessa pr�tica. Destilando suor por todos os poros, forcejando no
extremo, a� reside o tes�o do peso, a virilidade
desse esporte, o desgaste m�ximo da for�a m�xima do peso m�ximo.
Um cagalh�o desses n�o entende nada disso. Esses carinhas sa�dos da faculdade de
Educa��o F�sica, com seus bicepsinhos de merda, gostam � da moleza da aer�bica, da
lei do menor esfor�o, a maioria bicharoca.
Eu me achegava e era como o elefante encostando na formiguinha. Ele ia ver o que
era um s�rio comprometimento tendinoso de verdade, o sistema cardiovascular
abalado, um direto na ponta do seu queixinho
de vidro, unzinho s�.
Ele n�o se arredou e virou o rosto para o lado oposto. Meu ombro retesado atingiu
seu peitoral mixuruca, arremessando-o alguns metros. Parei e fiquei olhando o
estrago. O cocozinho se aprumou, me olhou,
sorriu e se desculpou, veja s�, como se a causa do encontr�o fosse a pura distra��o
dele.
Juro que n�o tinha visto um cara de pau igual, o bicho era bom mesmo, saiu por
cima, educadamente. Que controle emocional! Eu percebi o terror nos seus olhinhos,
mas mesmo assim o bund�o me deu a volta.
Intuitivo, maneiro, esperto, sentiu a proximidade da morte e deu passagem,
simplesmente. Nunca vi igual! Nem Manolete teria sido t�o h�bil. Entortei a boca
num sorriso de desd�m e fui tomar uma chuveirada.
De vez em quando, um rabo de mulher me torcia o pesco�o. Fico, tamb�m, mais atento
no tr�nsito, que �quela altura j� come�ava a se agitar. N�o seria nada glorioso o
Apolo ser atropelado e morto por um
motorista de fim de semana que toca o carro para um lado e olha para outro. Dito e
feito, um puto acaba de guinchar os pneus nos meus calcanhares. Mostro o dedo do
meio para o cara de bunda.
Qual �, vai querer encarar?
Mas eles s�o espertos, desconhecem provoca��o, o debi acelera o carro, est� com
muita pressa, outro com instinto de conserva��o agu�ado. Essa, sim, � uma gelada,
morrer atropelado por um cara desses, que
�, no fundo, um assassino mais frio e calculista que o velhinho kamikaze dos meus
del�rios.
JD: Naquele domingo, enquanto corria, pensava em at� quando ia segurar a implos�o
do meu edif�cio corporal: id�ia fixa recorrente. Mesmo que mantivesse uma sa�de
est�vel, tinha, quando muito, mais 20 ou
30 anos de vida �til. Depois seria a decrepitude e a brochura aguda. Eu suportaria
uma velhice fodida? Conto essa passagem para exemplificar o que se passava na minha
cabe�a, naquela �poca. Eu n�o tinha
grandes perspectivas, como j� disse, nada. Via o futuro com olhos pessimistas,
praticamente sem expectativa. Enquanto avan�ava, ia pensando no que fazer quando
virasse macr�bio. Ia aumentar as estat�sticas
dos suicidas inconformados com a senilidade impotente? Possivelmente n�o. Suic�dio
passivo n�o era o meu estilo. Veja s�: a fantasia que me passava pela mente com
certa const�ncia era a de que, quando
estivesse chegando na reta final, na beira do precip�cio, iria aproveitar a energia
que ainda me restasse e fazer um rebu danado: seria o canto do cisne de um anci�o
agonizante, inconformado de botar o
p� na cova. Eu me imaginava num lugar com grande concentra��o de pessoas
restaurante, parque, est�dio de futebol, fila do SUS, sei l� fazendo uma farta
matan�a. De in�cio, come�aria eliminando a gente
que estivesse mais pr�xima o m�ximo que desse e, depois, entrincheirado,
esperaria a pol�cia. Tipo um samurai moderno, s� que no lugar do sabre, um fuzil
AR15, uma escopeta calibre 12, uma pistola
9 mil�metros. Quando os homens chegassem, ia meter chumbo neles pra valer. Ficaria
tiroteando at� a muni��o acabar ou ser atingido. Morrer peleando. Uma brava
despedida, cheia de �dio. Se a gente nascia
com sangue, devia morrer atolado nele. Retorno ao elemento meleca. Isso tudo com
muita m�dia em cima, fazendo a cobertura do evento, muito carnaval, seguindo as
dicas de Regis Debray. Ficava imaginando
a repercuss�o que a coisa teria: louco, homicida, sanguin�rio, terrorista, sei l�,
um bocado de manchete sensacionalista. Psic�logos, autoridades, o escambau, dando
m�ltiplas interpreta��es ao fato, gostam
de complicar. Seria dif�cil admitirem a simples irrever�ncia sanguin�ria de um
velhinho chateado com a proximidade do fim, de saco cheio de ser sempre bem
comportado. Pelo menos uma vez na vida ia botar
pra quebrar. No frigir dos ovos, tudo era mesmo uma grande merda, se tinha mais era
que esculhambar. Sem d�vida devia ser um enorme barato pontuar a vida desse jeito,
com uma baita esculhamba��o, deixando
a parentada, conhecidos, todo mundo embasbacado, sem nada entender: o finado era
t�o calmo, t�o regrado, como � que. (risos). Nessa arriscada peregrina��o
esportiva, vi v�rias bundas, pernas e bocas
apetitosas. Quase ganhei um torcicolo de tanto torcer o pesco�o, mas n�o me detive
em nenhum momento, preservar a sa�de gritou mais alto que a libido. Ia deixar para
sair � tarde de carro e descolar uma
trepada en passant.

De repente, no domingo, aconteceu.


Outra cena dom�stica, a �ltima reuni�o de fam�lia. Ao chegar em casa, fiz uns
alongamentos para esfriar e fui tomar banho. Quando desci, Ot�lia acabara de servir
o almo�o. Surpresa! Todos � mesa. Fiz uma
sauda��o animada e me sentei na cabeceira da mesa retangular de oito lugares. Peixe
grelhado, salada mista, arroz integral, suco de laranja e de abacaxi. Zilda, com o
seu mau humor cr�nico, que a recente
viagem de recreio n�o conseguira amainar, estava com a corda toda aquele dia,
come�ou repreendendo a Secret�ria do Lar:
P�, Ot�lia, s� porque o pai t� de dieta, voc� n�o muda essa bosta de card�pio?
Porque n�o faz um macarr�o, uma carne de panela com molho, um risoto de frango?
Voc� sabe que eu detesto essas folhinhas
verdes, esses suquinhos! N�o sou coelha, porra! Mandona, ordenou: Traz uma
cerveja, frita uns ovos e umas batatas.
Zilda falava r�pido, atropelando as palavras, como aqueles radialistas castelhanos
transmitindo partida de futebol. Eu ia retrucar: Olha o colesterol!, mas achei
melhor me manter neutro. Ot�lia olhou para
mim e para Judita sem receber nenhuma mensagem de volta. Judita, por seu lado, nem
tomara conhecimento das trovoadas, pren�ncios de tempestade, tal o seu estado de
alheamento, devia ter se entupido de
calmantes na noite anterior. Jonas me mirou, franzindo o sobrolho reprovativamente,
pedindo provid�ncias. Mantive neutralidade m�xima, olhando para o alto,
inspecionando o teto, fazendo biquinho de quem
assobia o hino nacional. Ot�lia retirou-se com um suspiro de impaci�ncia. Zilda
continuou resmungando, mas serviu-se de arroz e peixe para fazer uma boquinha. Com
meia d�zia de garfadas, dizimou a comida,
devia estar esfomeada. Como dizem as m�s-l�nguas: � magra de ruim. Servi-me de
salada e suco de abacaxi e comecei a comer morosamente, mastigando mil vezes,
bebendo o s�lido e mastigando o l�quido, como
receitam os macrobi�ticos. Jonas e Judita me seguiram na salada. Hummm, que charme,
uma pequena e m�rbida fam�lia reunida fazendo em paz a sua refei��o dominical.
Jonas, quando tudo parecia estar acomodado,
resolveu tomar as dores de Ot�lia:
Voc� devia baixar a bola com a velha disse em tom quase inaud�vel , ela fica
magoada com essas broncas desmotivadas.
Olha, pi�, n�o falei contigo, vai te foder.
Vai voc�, sua bundona.
Judita acordou:
Comam, crian�as, parem de discutir.
Mas Zilda estava muito irritada:
MAS QUE PORRA, OT�LIA, ESSA CERVEJA � PRA HOJE?
Ot�lia n�o tardou a entrar segurando uma garrafa pelo gargalo, para n�o empedrar o
conte�do.
Eu estou fritando os ovos e as batatas, Zilda, ia trazer tudo junto justificou-se
ela, contida, depositando a garrafa na frente de Zilda, uma poeira de gelo
revestindo o casco.
Servi-me de peixe. Zilda encheu o copo com colarinho alto. Jonas esticou o bra�o
para pegar a garrafa, mas Zilda foi mais r�pida.
Negativo, pede uma pra voc�, essa � minha e puxou a garrafa para o seu lado.
Jonas ia retrucar, mas engoliu a raiva, levantou-se e saiu da sala para pegar sua
cerveja. Ot�lia veio atr�s dele, uma travessa abarrotada de ovos estrelados e
batatas fritas. Zilda serviu-se imediatamente,
cortou os ovos, misturou com arroz, fritas e atacou com ferocidade o prato.
Mastigava energicamente, um ru�do de pato chapinhando no banhado.
Come direito, sua porca repreendeu Jonas.
Vai te foder, sua bicha louca.
Zilda, olha os modos! aparteou Judita. Pare com esses palavr�es.
Ent�o, mam�e, diz pro seu filhinho querido n�o se meter comigo, t�?
Jonas, n�o implica com sua irm�.
�Ai, meu saquinho�, rosnaram minhas tripas.
Ot�lia entrou:
Posso servir a sobremesa, Dr. Jorge?
Pode, Ot�lia, pode.
Zilda terminou de comer, foi servir-se de mais cerveja, mas a sua garrafa estava
vazia. Fez men��o de pegar a garrafa que Jonas trouxera, mas este a agarrou pelo
pulso.
De jeito nenhum.
Come�aram a lutar pela posse da garrafa. Judita tentou interferir, se engasgou e
come�ou a tossir. A garrafa escapou das m�os de Zilda e rolou pela mesa, vertendo
espuma sobre os pratos. Zilda estalou
uma bofetada em Jonas. Judita, no acesso de tosse, de bra�os erguidos, botou o
tronco entre os dois e recebeu o sopapo que Jonas dirigia a Zilda.
PAREM, SEUS PUTOS agora era eu, gritando e me erguendo, a cadeira caindo �s
minhas costas.
Sem que eu pudesse evitar, n�o consegui mesmo, por Deus, agarrei a borda da mesa,
era pesada, mas n�o para mim, dei um impulso, ergui-a e impeli-a para frente. A
mesa deu um meio mortal e bateu no ch�o.
Foi um rebu daqueles. Pratos, talheres, copos, comida, esparramou tudo para todo
lado. Mas o maior estrondo foi do estouro do tampo de vidro ao bater no ch�o,
espatifando-se. Um estouro maneiro. O velhinho
sanguin�rio que dominara minha mente boa parte da manh� estava ali, incorporado,
pronto para a guerra. Ot�lia, que nesse momento surgia na porta, com o susto, larga
o prato de pudim, que se esborracha
aos seus p�s, pontuando a bagun�a. Todos se paralisam.
SEUS BOSTAS, SEUS PUTOS minhas palavras soavam como estampidos, granadas.
Dou um giro e saio da sala, quase correndo, as caras de espanto deles fotografadas
pela minha retina. Na passagem, apanho as chaves e a carteira sobre o balc�o,
embarco no carro e voo para a rua, os pneus
guinchando, em minutos estou entrando na 277. Des�o a serra a mil, chego a
Paranagu� num passe de m�gica. Dirigir em alta velocidade me acalma. Reconheci logo
que foi mancada ter perdido o controle, mas
fazer o qu�? Vou segurando, segurando, at� que um dia a casa cai, ou a mesa. Ser�
que foi a maneira de Judita trat�-los como crian�as? Na cabe�a dela, eles deviam
ser nen�ns ainda. Explos�o do inconsciente,
sei l�. Ou o Professor Aloprado fazendo experi�ncias com elementos qu�micos
incompat�veis. acaba em bomba. Mal chegado a Paranagu�, retomei a estrada sentido
Curitiba, pisando fundo, deixando os outros
motoristas de cabelo em p�, fazendo curvas em duas rodas. J� de volta, fiquei
zanzando pela cidade, sem rumo, nenhuma mulher que valesse a pena. Continuava
engasgado, alguma coisa l� dentro me corroendo,
pensei em ir para o moc�, ficar l� uns dias, mas n�o me decidia.
Nisso, entrei numa rua onde havia um terreno baldio tomado pelo in�o. Um c�o
sarnento furungava no lixo. Parei o carro e fiquei olhando o bicho, o tamanho do
seu infort�nio. Era um p�ria, solit�rio, mas
tranquilo. Desci e me aproximei dele. Abanou o rabo e me esperou, talvez ganhasse
alguma migalha, um afago. Quando cheguei perto dele, rastejou em minha dire��o,
humilde. Acertei o chute na sua cabe�a.
Ele rodopiou e tentou se safar, mas estava grogue, as pernas n�o obedeceram. O
segundo chute nocauteou-o, outro, outro, outro, o t�nis se manchou de vermelho e o
corpo disforme do animal integrou-se ao
monturo. Descalcei os t�nis, voltei para o carro. Mais adiante, parei numa
mercearia e fiz umas compras. Meus p�s descal�os causavam estranheza nas pessoas,
eu estava me lixando para o que achavam de mim,
tinham sorte de eu n�o estar armado. Como seria o olhar delas � minha aproxima��o,
o fuzil em riste? Fazendo fogo logo a seguir. Iam arregalar os olhos como a turma
l� de casa? Tentar escapar como
o c�o?
Encontrei o apartamento impregnado de mofo, precisando de faxina. No banheiro,
liguei o chuveiro e deixei a �gua despejando sobre mim um temp�o. Com a toalha
enrolada na cintura, entrei na cozinha para
pegar copo, prato, talheres. Sentado no sof�, liguei o som com o controle remoto,
rasguei o saco de papel e fui me servindo de azeitonas e salamito, cortado em
rodelas. Frank Sinatra cantava New York,
New York. Abri a garrafa de u�sque e enchi o copo: estava quebrando uma abstin�ncia
de quatro anos.

Dois dias depois, apareci em casa. Ot�lia me trouxe o jornal e me tratou como se
nada tivesse acontecido. Depois, aos poucos, me fez o relat�rio do que se passou na
minha aus�ncia, Judita tinha ido passar
uns dias com a m�e, ficara muito abalada com. com., n�o terminou a frase, depois
foi piorando, piorando, at� que decidiram intern�-la, o irm�o providenciou tudo.
Quanto �s crian�as, estavam calmas,
chegadas da rua, metiam-se cada uma no seu quarto e n�o botavam a cabe�a para fora.
Na hora das refei��es, ela passava uma bandeja pela porta e vinha peg�-la depois, a
casa parecia um mausol�u.
Ot�lia me comunicou que a despensa estava quase vazia, tinha que pagar as
diaristas, apontou para a correspond�ncia, em cima da mesa, ao lado da Ol�mpia,
onde estavam misturadas as contas de �gua, luz
e telefone. Assinei dois cheques em branco, cruzei-os e os entreguei a ela com a
identidade, um para que providenciasse o rancho, outro para os pagamentos
restantes. Recomendei que inclu�sse u�sque, cerveja
e vinho nas compras.
Para quem? indagou arregalando os olhos.
Para o bispo, coloca tudo aqui no quarto.
Ela ia perguntar mais alguma coisa, mas percebeu que estava extrapolando e calou-
se. Retirou-se abanando a cabe�a, n�o estava conseguindo ficar neutra, queria meter
a colher, decerto previa mudan�as na
casa, para pior, e, quando as coisas pioravam, sempre sobrava para ela. Em seguida,
batidas na porta, Ot�lia.
Que quantidade eu compro dessas. dessas. n�o conseguia desembuchar a palavra
certa.
Meia d�zia de u�sque, dois engradados de cervejas, duas d�zias de garrafas de
vinho, metade branco, seco, outra metade, tinto detalhei as marcas. J� esqueceu?
Comprou isso a vida toda.
S�? ent�o ela riu.
S� respondi, rindo tamb�m.
Ela me encarou, segurando a ma�aneta da porta:
O patr�o vai voltar a beber?
Ot�lia, voc�.
N�o faz isso, patr�o, o senhor t� t�o bem.
Abri o jornal, j� alheado da sua presen�a e do seu coment�rio.
Eu sou sua amiga, patr�o, vai por mim, depois n�o diz que eu n�o avisei.
Tiau, Ot�lia.
Tiau, patr�o, depois eu deixo os comprovantes na sua mesa, caso o senhor sair.
Ok.
Continuou imobilizada, de costas para mim, ainda segurando a ma�aneta, como se
tivesse virado uma est�tua de sal. Desistiu de dizer o que pensava e saiu. O que
dera em Ot�lia? N�o era de abrir o bico.
Talvez estivesse assustada. Devia se lembrar dos tempos �ureos de bebedeiras e
loucuras de toda a fam�lia, do pandem�nio que era, iria voltar tudo aquilo? Se
agora, sem eu beber, j� fizera aquela estrepolia,
imagina bebendo! Devia estar apavorada, a pobre! Pensei em lhe aumentar o sal�rio.

Foram dias de questionamentos sobre o que faziam pessoas como n�s vivendo juntas,
n�o t�nhamos nada a ver uns com os outros, estranhos ligados por t�nues la�os de
consanguinidade e toneladas de comodismo,
eu continuava sem coragem de cair fora. Automatismo neur�tico de ficar chafurdando
na merda, eu era como todo mundo, bastava me imaginar sozinho lidando com roupa e
lou�a suja, preparando rango e tudo
o mais, que as lides dom�stica implicam para desistir da id�ia de partir. Por outro
lado, advogado, papelada, div�rcio, formaliza��es, eram os outros motivos para me
fazer recuar.
Ali, na pior das hip�teses, t�nhamos tudo � m�o e � hora, gra�as a Ot�lia, ela
organizava nossas vidas, nossas necessidades, era o nosso �tero. Ir embora, al�m
disso, tinha uma conota��o de sacanagem,
j� ficava com sentimento de culpa mesmo antes de qualquer decis�o, apesar de tudo,
�ramos e continu�vamos sendo uma fam�lia. Sei l�, autojustificativas n�o faltavam.
No entanto, eu tinha a sensa��o de
ter perdido o melhor da festa, de estar entrando na reta final do meu p�reo
existencial e que ia perder feio a corrida. No fundo, eu n�o passava dum comodista
fodido que adorava chafurdar na merda, essa
era a verdade. Servir uma talagada de u�sque e entornar dum golpe, no entanto, j�
deixava tudo ficar mais suave. E a�? Fazer o qu�?

Nunca trepei nem datilografei tanto como nos meses que se seguiram, abandonei os
treinos, era cama e cama, ferro e ferro. Ligava todo dia para a Ilona e cobrava
produ��o. Ela me veio com uma nova safra
de meninas na faixa dos 15 aos 18. Dentre elas, Marcinha. Ilona me advertiu:
Mercadoria de primeira, com essa o doutor vai ter que gastar um pouquinho mais.
Manda l�.
A menina pretende ser modelo. Precisa de algu�m que queira bancar o seu book.
A� eu entrava.
Quanto vai custar?
Coisa boa n�o sai barato.
Manda brasa, ent�o.
Na tarde seguinte, Ilona apareceu na cobertura com Marcinha. Marcinha foi especial.
Encontrei-a em S�o Paulo muitos anos depois, num restaurante do Bixiga, eu j� era
Chef�o da Confraria. Uma coincid�ncia
que me tirou de grandes apuros. Talvez, se n�o tivesse contado com a sua lealdade,
o meu futuro e o da organiza��o teriam ido para o brejo. Devo isso a ela, nunca vou
esquecer, � uma d�vida eterna.
Uma gra�a de menina, loira natural, olhos verdes, parecia t�mida, mas bastaram umas
bicadas no u�sque para se aprontar, o �lcool fazia uma devasta��o no seu superego,
soltou a franga, dezesseis primaveras,
quarenta e cinco quilos, metro e setenta e oito, pele de plumas brancas, um sinal
rente ao mamilo esquerdo que despontava pelo decote da camiseta.
Ilona, que sabia quebrar o gelo como ningu�m, contou a piada do papagaio e da
freira, e a menina riu para valer. Marcinha escolheu uma fita-cassete e botou a
rodar no aparelho de som. Ilona serviu-se de
cerveja gelad�ssima, e Marcinha me acompanhou no u�sque. Na terceira bicada, a
menina se p�s a dan�ar sozinha. Ilona disse que ia ao banco, depois passava para
apanh�-la. Nosso acordo a obrigava a levar
as meninas de volta.
Ok disse Marcinha , n�o tem pressa e riu. Isso me acendeu.
Marcinha tinha um molejo maneiro nos quadris, levantei-me e fui dan�ar com ela.
Beijinho pra c�, pra l�, excitado, botei pra fora. Marcinha n�o se impressionou.
Bem grande comentou.
Agachou-se e meteu-o na boca gelada dos cubos de gelo. Sabia fazer t�o bem que
gozei em seguida.
Goza, meu bem ela disse e engoliu.
Sentou-se no sof� e cruzou as pernas, tranquilona por ter passado no teste. Fitava-
me inclinando a cabe�a, como procurando um �ngulo favor�vel para me decifrar.
Voc� tem um corpo legal disse , deve malhar bastante.
Um pouco.
Ilona fez o seu cartaz, disse que voc� era legal pacas, mas eu n�o imaginava que
fosse encontrar esse hom�o todo.
� mesmo?
Ela disse que voc� � muito solit�rio, que est� pensando em se mudar para Curitiba.

� respondi.
Ela me falou de voc�, e eu me interessei logo, intui��o, sou muito intuitiva.
Agora quero te enfiar.
Desculpe? ela n�o havia entendido.
Enfiar, ele, nela.
J�? Ela espiou para conferir:
�pa! Ent�o enfia, bem.
Botei a camisinha enquanto ela tirava a roupa, tinha um corpo enxuto, de
musculatura rija, latejante.
Aqui mesmo?
Pode ser.
Ela se posicionou no sof�, enfiei e ela come�ou a falar. Falou, falou, falou.
Tirei, me ajoelhei, comecei a beijar-lhe os p�s, lamb�-los, um p� bem modelado,
dedos estofados, unhas pintadas, chupei o ded�o,
ela estranhava a minha fixa��o pelo p�.
Agora fica de quatro.
Ela ficou.
Fazendo gostoso assim, eu vou me enrabichar em voc�.
Voc� � que � gostosa.
Obrigada.
Vira de lado, ela virou.
Faz de mim o que voc� quiser, me vira do avesso.
Ela pediu um tempo e foi ao banheiro. Voltou enrolada na toalha. Resolvi dar uma de
produtor, mandando que desfilasse, se passasse no teste. Tinha classe, desfilava
desde os 13, fizera cursos em boas
escolas de modelos, ultimamente andava afastada das passarelas por motivos que n�o
podia revelar, pretendia retornar em grande estilo, s� precisava de um book feito
por um bom fot�grafo, real�ou o �bom�,
pois um book, sem que o fot�grafo saiba das coisas, n�o t� com nada. Acendi um
charuto, tornei a encher o copo, sentei-me na poltrona do canto. Ela se deslocava
de um lado a outro da sala, cheia de ademanes
e revoluteios como fazem as manecas na passarela, eu relembrava tudo o que ela
havia falado enquanto trep�vamos. Estava concentrada, acreditava naquilo, todas
aquelas idas e vindas eram uma brincadeira
muito excitante e me deixaram a ponto de bala, mas, antes que eu fizesse outra
ofensiva, a menina tropicou no carpete e voou na minha dire��o, espalhou copo e
charuto para todo o lado. Consegui ampar�-la
sem que se machucasse. Ficou chateada, desculpou-se, era por causa do trago, quando
desfilava n�o bebia, estava um pouco tonta.
N�o esquenta, voc� � �tima, com um book n�o vai faltar trabalho, voc� vai ser uma
top model de sucesso, voc� j� tem o principal, que � o talento.
Com essa salivada, ganhei a menina por inteiro. Ela foi atr�s da bolsa e voltou a
sentar-se na minha coxa. Escarafunchou l� dentro e retirou um envelope. Mostrou-me
uma montoeira de fotos, comentando uma
a uma. Eu fazia de conta estar maravilhado com tanta beleza, tanta roupa
estilizada, tanto desfile, a pica quase explodindo de tes�o pelo contato da pele da
sua coxa na minha, o cheiro adocicado, o som
macio da sua voz. Quando acabou, guardou tudo no envelope e enfiou na bolsa com o
mesmo cuidado que tirara, era a sua arca do tesouro. Olhou-me e sorriu tristemente.

� isso.
Voc� n�o tem apenas talento, princesa, tem experi�ncia, que tamb�m conta muito,
vamos providenciar logo esse book.
� mesmo?
Claro, pra que retardar mais? O mundo te espera.
Ela me abra�ou, deu um beijo na ponta do meu nariz.
Voc� � muito legal, sabia?
Eu puxei-a para mim, enfiando a l�ngua para dentro de sua boca, iniciando um embate
corporal s�frego. Ergui-a nos bra�os e a conduzi para a cama. Fodia como uma
profissional, submetendo-se a todas as minhas
vontades e extravag�ncias, esfor�ava-se para me agradar, tentava antecipar as
minhas inten��es, mostrando que a arte de amar n�o tinha segredos para ela. S�
paramos porque Ilona chegou, passei o envelope
para ela, incluindo mais mil d�lares.
Faz um belo book para a menina, ela merece.
Ilona n�o se mexeu do lugar.
Voc� vai, ela fica.
Ilona fez um gesto que podia significar tudo ou nada, at� a cobran�a de um
acr�scimo no cach�. Entendeu que se tratava de uma exce��o.
Desculpe a interrup��o, at� mais, doutor! disse, na surdina, e saiu, pisando na
ponta dos p�s.
Voltei para o quarto e encontrei Marcinha dormindo, enrodilhada, crian�a
desprotegida. N�o a acordei, liguei para uma pizzaria e fiz um pedido que inclu�a
cervejas. Acordou fam�lica e sedenta como eu.
Comemos vorazmente, disputando os �ltimos peda�os.
Cheguei a me arrepender de pedir pizza, achando que voc� n�o ia comer, dizem que
as modelos est�o sempre de regime.
Conversa pra boi dormir, ao contr�rio, estamos sempre esfomeadas, de tudo.
Disse isso e pulou sobre mim. Demos outra trepada, entre bandejas de papel�o e
latinhas de cerveja, a cama virou um chiqueiro. Fomos tomar banho. Ela trocou os
len��is e deitamos de novo. Entre uma foda
e outra, ela me contava sua vida atribulada. Aos 12, perdera a virgindade com o
padastro. Nunca contou para a m�e, embora ele merecesse que o entregasse, n�o valia
nada. S� revelava isso para pessoas muito
especiais, de cabe�as abertas, como era o meu caso, pois era o seu segredo. Tudo o
que sabia de sexo, aprendera com ele, depois s� aperfei�oara. A m�e era enfermeira
e tinha muitos plant�es noturnos, para
ganhar extras, o que facilitava o relacionamento deles. O pior � que ela gostava do
canalha e n�o sentia culpa. A m�e, coitada, era uma bobona, ele, um espertalh�o,
explorador, vagabundo, pegava todo o
sal�rio dela, que se matava trabalhando, sempre com semanas de sono em atraso. Ela,
Marcinha, na sua autocr�tica, tamb�m n�o prestava.
Sempre fui porra-louca, nunca consegui ser certinha.
Um dia ela flagrou a m�e e o padastro fodendo e resolveu ir embora. Sentiu que
estava sobrando. Tinha 13 anos.
Conheci muita gente bacana, e muita gente cretina tamb�m, mais cretina que bacana,
voc� � legal. e muito gostos�o.
Conhecera, logo que fugiu de casa, uma machorra, que era estilista e a introduziu
no m�tier.
Se n�o fosse ela, eu teria ca�do na prostitui��o. Os homens, mod�stia � parte, n�o
me davam folga e me enchiam de presentes. Eu n�o queria outra vida, s� que n�o
tinha paradeiro, um dia aqui, outro acol�,
quem sabe onde. Assim foi. Xenia � que me revelou os segredos do mundo da moda, o
mundo podre que se passa por baixo dos panos, onde as manecas t�m cota��o de
mercadorias de consumo. S� que tem o seguinte,
nesse n�vel faz bem pro ego, a grana compensa. Foi Xenia que me deu educa��o
profissional, pagou-me cursos gabaritados. Tudo o que sei, devo a ela, isso
reconhe�o, at� falar direito ela me ensinou, passava
corrigindo o meu portugu�s, que era bem ruim. Quando nos separamos, deca� muito,
mas n�o me arrependo, a nossa rela��o estava ficando pesada demais, ela tinha um
ci�me mortal de mim, amea�ava me matar,
o escambau. Ent�o resolvi cair fora. Agora, gra�as a voc�, vou me levantar de novo.

E em grande estilo, acrescentei.


Aquela garota n�o tinha apenas 16 anos, era velha como o mundo.

Eu reunia um catatau de folhas datilografadas, com os registros do arquivo F�meas.


Marcinha tinha sido a mil�sima, noningent�sima, septuag�sima nona. Dei 5 mil
d�lares para Ilona repassar a Marcinha assim
que a visse. As garotas eram o meu o�sis, o meu haxixe, o meu nirvana, a minha
medalha de ouro perdida nas olimp�adas. De vez em quando ainda corria, mas �
academia s� ia com o objetivo de encontrar a
garota da aer�bica. N�o me sa�a da cabe�a, se n�o a comesse de novo ia ter um
treco. A puta, no entanto, continuava n�o indo �s aulas nem atendendo o telefone.
Deixei v�rios recados desaforados na secret�ria.
Um dia me ligou dizendo que ia casar em breve e pediu que eu n�o a procurasse mais.
O noivo a proibira de frequentar a academia, estava desconfiado.
N�o vai ter despedida de solteira? Tou a mil.
N�o. Desligou.
Tive que tocar algumas punhetas para me acalmar. Achei numa revista mat�ria sobre
comedores compulsivos. Tinha um bocado de nego tarado espalhado por a�. Fora os
batidos Don Juan e Casanova, tinha caras
como George Simenon, escritor belga, que era um abismo, performance de milhares de
putas, s� comia puta. Charles Chaplin, outro grande garanh�o. Atores de Hollywood
engrossavam a lista. Marlon Brando era
outro terror. Certas profiss�es, sem d�vida, favorecem o fornicador ativo: atores,
cantores, atletas. Mas, porventura, haveria algum t�o organizado como eu? Os meus
registros continham minud�ncias anat�micas
que destacavam tra�os e sinais particulares, realce das idiossincrasias,
circunst�ncias dignas de nota, localiza��es e perman�ncias, breve relato das
conjun��es, se aditiva, adversativa, alternativa ou
apenas aproximativa, se causal, comparativa, concessiva ou mesmo conclusiva, se,
ainda, condicional, conformativa, consecutiva ou at� continuativa, se coordenativa
ou meramente copulativa, se correlativa,
disjuntiva, explicativa, ilativa ou apenas final, se inferior, dispens�vel, qui��
integrante, modal, peri�dica ou se, nem tanto, apenas proporcional, subordinativa
ou at� superior, esta quase nunca, se
temporal, todas, se transitiva, idem, al�m de impress�es de causa e efeito. N�o
inclu�ra, por�m, registro fotogr�fico, o que era lament�vel. Destarte, quando
folheava o catatau, al�m de ser um exerc�cio
de mem�ria, pois recordava casos de quinze, vinte anos atr�s, alguns j� totalmente
esquecidos, renascia a convic��o de que estava no caminho certo, me aproximando
cada vez mais da marca decisiva do Guinness.

Ot�lia ia todo santo dia ao hosp�cio e vinha de l� com novidades, isso me fazia
lembrar que Judita ainda estava hospitalizada. O irm�o de Judita a visitava com
frequ�ncia tamb�m. Quanto a mim, fui uma
ou duas vezes apenas, mais coagido, para efeitos legais, assinar pap�is,
autoriza��es, do que de moto pr�prio. Tudo muito r�pido, restrito � �rea
administrativa. Entrava e, minutos depois, sa�a. Sou al�rgico
a hospitais, cemit�rios e afins. Coincid�ncia ou n�o, por essa �poca come�aram os
sonhos. O mesmo sonho se repetiu quatro vezes numa semana, sem tirar nem p�r. Nele,
eu me encontrava deitado defronte a
uma janela cujo v�o tomava conta de quase toda a parede. A persiana, apesar de
corrida, conservava as l�minas na horizontal, deixando entrar intensa luz solar. A
luminosidade me feria as vistas, e eu n�o
tinha como me livrar dela. Sentia tamb�m muita dor espalhada pelo corpo. Ansiedade,
sentimento de perda indefinida, acordava angustiado, sufocado. S� isso. Naquele
cen�rio, que parecia de hospital, fora
eu, mais ningu�m. A luz irritante � que era xarope. Eu tinha at� a impress�o de
nunca sonhar, tal a falta de lembran�as on�ricas. Seria consequ�ncia da reca�da?
Curtos circuitos et�licos? A verdade � que,
fechado no quarto, eu tomava um litro ou mais de u�sque numa assentada. Ficava
datilografando e bebendo. Quando me dava conta, o litro estava vazio, descia para
pegar mais gelo e abria nova garrafa. Ou
simplesmente apagava na cadeira, sem conseguir chegar � cama, despertando com
torcicolo e dores lombares. Certa manh�, acordei com o p� inchado e com uma dor
terr�vel, o que me fez deduzir que tinha ca�do
da escada. Certeza mesmo n�o tinha. Um flash nebuloso da queda gerava mais d�vida
que certeza. Impedido de caminhar, fiquei uma semana de molho, afundado no u�sque.
Foi quando os sonhos se repetiram. Ot�lia
me trazia os jornais, que eram minha �nica distra��o, eu os consumia de cabo a
rabo. Nada de novo, tudo previs�vel. Os golpes de colarinho branco eram uma
constante, encadeados uns aos outros como elos
de uma corrente. Evit�-los seria salvar o pa�s da crise econ�mica. Quantos brasis
seriam constru�dos sem a corrup��o? As p�ginas de pol�tica eu pulava. A ditadura
era uma Lolita de 14 anos, bem avoada.
Para mim, pol�tica era a quintess�ncia da mesmice, apenas o caminho mais r�pido at�
o dinheiro e mordomias, al�m do poder puro e simples. Em certa ocasi�o, distra�do,
eu lera um jornal sem me dar conta
de que datava de tr�s anos atr�s. Mas nada parecia desatualizado, os mesmos
problemas de sempre, as mesmas promessas. S� mudavam as datas e as circunst�ncias.
Quem vive no Brasil tem essa sensa��o de perpetuidade,
ou seja, nada se resolve, os pobres continuam mais pobres, os ricos mais ricos,
assim mesmo. Considerava que era pura perda de tempo inteirar-me dessas coisas. O
que mais me interessava no jornal, para
ser franco, eram as cr�nicas policiais. Estava sempre sedento de sangue, como de
sexo. Incorporava-me do velhinho kamikaze e devorava as not�cias de assaltos,
latroc�nios, estelionatos, rixas, sequestros,
viol�ncia policial, rebeli�es em pres�dios, estupros, prostitui��o de menores, e
por a� afora. Eu me divertia comparando as fisionomias descontra�das e de bons
dentes dos colun�veis com as express�es duras
dos bandidos, retratados em flagrantes nas delegacias ou nas celas das pris�es. Na
catadura arrogante dos criminosos n�o havia lugar para amenidades, refletiam o
vale-tudo das suas vidas em urg�ncia urgent�ssima.
Enquanto os primeiros mostravam suas caras f�teis, no desfrute do �cio, o olhar
frio de um assassino revela que ele n�o est� para brincadeiras, seu bote est�
sempre armado, as orelhas sempre de p� em alerta
permanente. Um fil�sofo, para quem gosta do tipo, tal qual um bandido, tamb�m est�
sempre alerta, ligado em tudo. A velocidade com que a vida do bandido se esvai,
todavia, n�o lhe deixa muitas alternativas
para decidir. Sua op��o � sempre a do momento atual, que pode lhe escapar, por�m,
num descuido. Seus atos n�o admitem retrocesso, nem remendos, t�m que ser precisos,
definitivos. N�o pode retratar-se ou
desculpar-se, pois sua culpa � total, assumida. Os casos mais interessantes eu
recortava e guardava numa pasta de pl�stico duro, tamb�m fechada no arm�rio. Ia
criando uma esp�cie de banco de dados de crimes
e criminosos. Aproveitei ainda os dias de recesso para atualizar o arquivo F�meas.
Quando consegui pisar firme sem sentir dor, resolvi dar uma parada no trago e
retomar os treinos, mesmo que moderadamente.
Barbeei-me, banhei-me, botei roupa limpa e sa� da toca. Os sonhos finalmente haviam
cessado.

No segundo dia de academia, por�m, passei mal. No espelho, o meu rosto parecia um
tomate maduro de t�o vermelho, o cora��o querendo saltar pela boca. Sentei-me no
banco supino. Como n�o sentia melhora,
botei minhas coisas na mochila e sa� de fininho. N�o queria alertar o bund�o, que
teria tido um orgasmo de alegria. Fui direto para a emerg�ncia dum hospital. O
m�dico me examinou. Press�o arterial nas
nuvens, 25/18. Deu-me um comprimido e fez um eletrocardiograma, deixando-me
repousando na maca por mais de meia hora. Embora n�o constatasse nada de
preocupante, foram as palavras do m�dico, pois a press�o
baixou para 13/8, recomendou-me que suspendesse toda e qualquer atividade f�sica
exagerada. Fez-me algumas recomenda��es e prescreveu um check-up completo. Executei
o que ele mandou e levei o resultado
dos exames a um cardiologista. Tudo na mais perfeita ordem, a press�o normalizara,
mesmo sem medica��o, talvez a incid�ncia fosse o resultado de um pouco de estresse
ou excesso de birita. Mantive a inatividade
por mais duas semanas, ao cabo das quais eu deveria refazer os exames e voltar l�.
Quando regressei ao consult�rio, deu-me carta branca, liberou os treinos, mas,
malhar peso, somente com carga m�nima.
Tudo n�o passara de um susto, felizmente, nada de grave. Caso, por�m, sentisse
alguma coisa de anormal, parasse com tudo e corresse para l�. Nunca precisei
voltar. Pelo sim, pelo n�o, resolvi manter apenas
a corrida, quatro dias por semana, marcha moderada, e RLM aer�bica no quinto dia.
Correr j� seria suficiente para segurar a forma. Terceira idade, fugindo da morte.
Eu me sentia cada vez mais pr�ximo do
velhinho kamikaze. Ot�lia me participou que Judita estava cada vez pior, passava
sedada o tempo todo, num alheamento de fazer d�. O m�dico pedira a minha presen�a.
Determinei a Ot�lia que contatasse
com o irm�o de Judita e o encarregasse dessa tarefa. No dia seguinte, o psiquiatra
e o irm�o de Judita me ligaram e marcamos uma reuni�o. Acabei esquecendo o
compromisso e n�o compareci. Devem ter resolvido
o assunto, pois me largaram de m�o. Ilona tamb�m estava doente e impossibilitada de
sair. A bruxa andava solta. Fui � luta e descolei duas mulheres geniais na ronda
das lojas.
Por fim, encontrei Lize. Faltavam apenas quinze para chegar nas 2 mil. Recebi
correspond�ncia da imobili�ria que administrava os meus im�veis. Queriam tratar das
bostas de sempre, percentuais de reajustes,
expectativas de mudan�as previstas na nova Lei do Inquilinato, etc. Fui l�
conferir.
A minha renda, provinda da aposentadoria e da loca��o de uma d�zia de im�veis,
ficava em torno dos 20 mil d�lares mensais, dava para ir levando. A despesa tamb�m
era alta. N�o tinha, por�m, do que me queixar,
considerando a renda do brasileiro m�dio, era um privilegiado, localizado no topo
da pir�mide social. Embora tivesse feito carreira em �rg�o p�blico por mais de 25
anos, nunca fui al�m do terceiro escal�o.
O que melhorou os meus proventos foi uma promo��o pouco antes de me aposentar, mas
nada de excepcional. No entanto, nunca dei golpe ou roubei, como muitos colegas que
ficaram ricos. Posso at� afirmar,
sem falsa mod�stia, que fui um funcion�rio-padr�o. Dentro duma autocr�tica
flex�vel, reconhe�o que a aquisi��o de alguns dos im�veis foi facilitada pelo cargo
que eu ocupava, mas apenas na agiliza��o dos
tr�mites da papelada para os financiamentos, nada mais que isso. O que de certa
forma n�o representava porra nenhuma se comparado �s falcatruas praticadas no
servi�o p�blico pelo tr�fico de influ�ncia.
A minha maior preocupa��o era com as exig�ncias da pica, estando esta satisfeita, o
resto por extens�o tamb�m estava.
Na imobili�ria, a recepcionista, um monumento de mulher, me pediu para aguardar um
minuto. Sentei e peguei uma revista. Melhor observando, era uma garotinha, nova no
peda�o, cheia de vontade. O telefone
tocava, ela atendia toda sol�cita:
Lize falando, bom dia.
Uma vozinha para l� de dengosa. Enquanto fingia ler a revista, acompanhava seus
deslocamentos de idas e vindas. Cintura de vespa, bunda arrebitada, pernas
alongadas, peitos duros, cabelos crespos e castanhos
despencando pelas costas, olhos esverdeados, l�bios carnudos, nariz delicado, o meu
ideal de beleza feminina. A cal�a justa de malha preta real�ava as n�degas
estofadas, blusa cinza-floreada, saltos altos
pretos de verniz com fivela prateada, brincos de argolas, um metro e sessenta e
cinco, manequim quarenta, quarenta e oito quilos, entre 16 e 18, pisava firme, como
uma potranca no cio, �gil, decidida,
com todo o leite, ofereceu-me um cafezinho, gentil, desculpando-se da demora.
Enquanto servia, empinou a bundinha e eu gozei em seco. Deu um giro e sumiu l� para
dentro, regressou me pedindo novas desculpas,
eu teria de aguardar mais um pouco, um pouquinho mais de paci�ncia, e pontuou esse
momento sublime com um sorriso que me atingiu violentamente no saco. Comecei a
babar como o c�ozinho diante da del�cia
no prato, mas sem receber de Pavlov a ordem para comer.
N�o tem import�ncia eu disse, abanando o rabo, feliz , espero o tempo que for
necess�rio.
Ela voltou para sua mesa. Fez e refez uma liga��o que n�o se completava. Comecei a
passar mal. N�o podia conceber tanta mulher num corpo s� impune, eu j� a devia
estar estuprando. Est�vamos a s�s ali na
frescura do ar condicionado e da m�sica ambiente e eu, subjugado, n�o podia fazer
nada, nada, tolhido por mil�nios de civiliza��o. A minha impot�ncia passou a ser
uma equa��o metaf�sica insolucion�vel.
Ela tentou mais uma vez, mas s� depois de longa espera algu�m atendeu no outro
lado. Ela e n�o sei quem ficaram um temp�o de papo, o que me provocou um ci�me
desvairado. Escudado na revista pude entender,
ap�s os preliminares, que ela queria que o babaca fosse almo�ar com outro tal, de
nome Airton, e fizesse uma ponte para que ela e o tal Airton se encontrassem, se
poss�vel ainda aquela noite. O que ia
fazer a ponte falou, falou.
P�, cara, d� uma for�a.
Sim, era uma s�plica. Uma rainha suplicante, desesperada? O babaca falou, falou,
falou, falou.
T� bom, t� bom. Desculpe, voc� tem raz�o, eu tenho mais � que esquecer ele. Quando
n�o d�, n�o adianta for�ar a barra, n�o � mesmo? Obrigada, desculpe, tiau.
Descansou o fone e deixou fluir um choro silencioso, sentido. Uma rainha
choramingas, desprezada? Matei a charada, sexta-feira, ela tinha gasto o �ltimo
cartucho para programar a noite, o fim de semana,
mas fora tudo por �gua abaixo. Senti o seu drama, era hora do Super Comedor entrar
em a��o.
N�o vale a pena eu disse.
Oi?
N�o vale a pena chorar por ele, ele n�o vale isso, voc� sabia que cada l�grima de
amor � um diamante extra�do da jazida inesgot�vel do cora��o? N�o � assim que fala
o locutor de r�dio atendendo o seu
consult�rio sentimental na madrugada e mantendo em alta a audi�ncia? Quem vos fala
� o Professor A��car Mascavo, aconselhando cora��es atormentados.
Ela sorriu, triste, secando o rosto com um len�o de papel tirado da gaveta.
Das duas uma continuei , ou voc� parte pra outra ou muda de t�tica e faz ele
correr atr�s, como um totozinho na coleira da dona. Os casados, ent�o, s�o os mais
f�ceis de manipular. Se voc� quiser,
podemos jantar hoje e eu te dou umas dicas bem quentes.
Ela sorriu desanimada.
N�o vale a pena.
Meu m�todo tem seguro-desenlace, se n�o der certo, bom, eu choro junto.
Ela tornou a sorrir.
Sou expert no assunto, menina. Tenho at� um livro escrito: Como Manter Seu
Namorado na Gaiola em Tempo Integral em uma Li��o, n�o requer pr�tica nem
habilidade, e, depois, bonita como voc� �, vai ser
uma barbadinha, s� podemos perder as esperan�as se o rapaz for da ala gay.
Agora ela riu com gosto. Eu tinha sacado sutilmente o seu drama, inflado o seu ego,
bancado o palha�o, me dispunha a ajud�-la, tudo isso em fra��o de minutos, existe
pai melhor? Ela, por acaso, teria outra
oportunidade igual na vida?
A que horas voc� sai?
�s 18h, mas.
Ent�o eu passo aqui.
Olha, o senhor n�o leve a mal.
Senhor t� no c�u. �s 18h estou esperando voc� l� embaixo.
N�o, n�o, primeiro eu vou para casa, n�o vou sair assim.
Claro, queria tomar um banho, trocar de roupa, perfumar a pombinha.
Me pega l�, n�o tem problema para o senhor?
Nenhum, senhora.
Nisso algu�m abriu uma porta e chamou o meu nome. Na sa�da ela me passou um papel
com um endere�o rabiscado, 20 horas. Fiquei torcendo para que o tal Airton n�o
mudasse de id�ia e fosse procur�-la, para
que n�o sucedesse nenhum cataclismo ou coisa do g�nero. Quinze para as oito,
taquic�rdico, eu j� estava estacionado na frente da espelunca que era a rep�blica
de mo�as onde ela morava. Um pr�dio deprimente,
caindo aos peda�os, numa rua escura, no Rebou�as, boquinha entaipada. �s 19h55 ela
veio espiar na porta, para conferir, saindo em seguida. Magn�fica na minissaia. O
rostinho ainda levemente anuviado animou-se
um pouco mais ao se instalar ao meu lado (tentando esconder a surpresa pelo BMW, no
qual deu uma inspecionada rel�mpago, num microssegundo, fingindo n�o notar nada
daquilo que a envolvia como um �tero)
e receber o ramalhete de rosas vermelh�ssimas.
Obrigada disse contida, aproximando o nariz das flores , voc� n�o.
No seguimento, n�o demorou quase nada para que eu colocasse uma fita no possante
aparelho e a voz a�ucarada do Julio Iglesias come�asse a fazer cafun� nas suas
�ltimas resist�ncias de franguinha deslumbrada.
Cinco minutos depois estava rindo, feliz, o luxo, o poder, apazigua as mulheres, o
Pret�o era um iate singrando o mar das Noites Prazerosas rumo ao Continente dos
Orgasmos Intensos, percebeu que tinha
entrado noutra dimens�o, relaxou, s� faltava gozar, o tal Airton j� era, n�o
passava de um borr�o no seu passado falido. Levei-a a um dos restaurantes mais
sofisticados de Curitiba.
Quanto tempo, doutor, esteve viajando? perguntou o ma�tre, polido.
�Muit�ssimo ocupado com o tira-e-bota.�
Ocupamos uma mesa lateral, bem aconchegante, sugeri os pratos, vinho branco
acompanhando. Lize quis pedir suco de laranja. Eu me apressei em dizer:
N�o combina.
Nem em sonho ia permitir que ela corrompesse o momento. Muito franca, deixou vazar
que nunca estivera num lugar t�o chique antes.
Fica � vontade cochichei dentro do seu ouvidinho e senti ela se arrepiando toda ,
essa espelunca � que n�o t� acostumada com mulheres glamourosas como voc�.
Camaleoa, em seguida, por�m, assimilou o ambiente e descontraiu. O vinho e os meus
cochichos de orienta��o ajudaram, claro: bastava eu abrir a boca que ela aproximava
o ouvido, viciadinha que ficou no
bafo do le�o. Foi abrindo tudo, numa franqueza comovente. Era natural de Umuarama,
interior do Paran�, cidade onde o Darli mandaria matar, anos depois, um corretor de
im�veis antes de apagar o Chico Mendes.
Estava em Curitiba havia quatro meses apenas, e com o Airton, havia dois. Ele era
casado, tinha 38 anos.
Regula com voc�, s� que um pouquinho careca. Me escondera o tempo todo o fato de a
esposa estar gr�vida do terceiro filho. S� foi me contar h� coisa de uma semana,
quando a mulher passou a desconfiar
e o pressionou. A� ele resolveu romper, antes que a coisa complicasse para o lado
dele, eu n�o pesava na balan�a, nada mesmo.
Ele trabalhava no banco onde a imobili�ria tinha conta, falou com o gerente e
arranjou a vaga para Lize, onde iniciara havia quinze dias.
Muito gamada ainda?
Nem tanto, talvez seja mais amor pr�prio ferido, sabe, a gente nunca gosta de
receber um fora, voc� n�o acha? Voc� viu que eu tentei uma reaproxima��o, n�o viu?

Puxa, se vi. Foi o primeiro da lista?


N�o, foi o �ltimo riu. Ri, tamb�m.
Tinha 17 anos, queria fazer um curso de datilografia para conseguir melhor posi��o
na firma, precisava melhorar o sal�rio, como recepcionista ganhava uma mixaria.
Voc� n�o imagina como o meu sal�rio � baixo.
Deixara um noivo em Umuarama, o primeiro, caso complicado, o rapaz era filho dum
fazendeiro muito rico, a fam�lia dele, quando soube do namoro, foi contra, noivaram
escondido, como o rapaz era dependente
deles financeiramente, quando descobriram, mandaram-no estudar nos Estados Unidos,
um ano se passou, tr�s cartas apenas, ela cansou de esperar e mudou-se para
Curitiba, escreveu contando que ia morar com
uma amiga numa pens�o e trabalhar, a fam�lia dela tamb�m n�o ligava a m�nima para a
sua sorte, n�o teve mais contato nem not�cias do noivo, dava o caso por encerrado.
Ainda tinha a alian�a, abriu a bolsa,
procurou e me mostrou.
Mulher bonita sofre eu disse.
Ela deu de ombros, com a coragem que o �lcool desperta nos jovens.
Agora estou sozinha, mas tudo bem, n�o tem um ditado que diz que mais vale estar
s� do que mal acompanhada? Al�m do mais, j� estou acostumada com separa��es.
Em fun��o das circunst�ncias, acrescentei:
O meu conselho agora � que voc� deve partir pra outro, imediatamente. Vamos
brindar � sua emancipa��o.
Erguemos as ta�as, tim-tim.
E voc�? Me fala um pouco de voc� pediu, fixando o olhar em mim.
Recitei:
Andorinha l� fora est� dizendo:/�Passei o dia � toa, � toa!�/Andorinha, andorinha,
minha cantiga � mais triste!/Passei a vida � toa, � toa.
Ela bateu palmas.
Que lindo. Mas assim n�o vale, quero que me fale tudo sobre voc�. Minha vida �
muito triste e por hoje basta de tristeza.
Noutro dia eu conto a minha hist�ria, ok?
Promessa � d�vida, hein? Vou cobrar.
O vinho concluiu seu trabalho, e ela se tornou uma presa f�cil. Atirava-se para
cima de mim, agarrava minha m�o, pousava a m�o na minha coxa, encostava a cabe�a no
meu ombro, carente demais, a pobrezinha.
Fiquei sentimental como uma azeitona, fazia-lhe cafun�, experi�ncia nova ficar
naquele arreganho todo, o cacete babando, mas posto de lado, amorda�ado pela cueca,
a ternura que eu sentia por aquela menina
gritava mais alto, a sua solid�o e abandono estimulavam o meu instinto paternal. Eu
estava me apaixonando por aquela louca, t�o infeliz quanto eu. Tinha que lhe dar
uma for�a. O que ia ser dela sem mim?
Entramos no carro bocejando, foi o tempo de lev�-la at� a pens�o, dar-lhe um
beijinho na testa e deixar marcado o encontro do dia seguinte, fui para casa, dormi
como um anjo, a noite toda, obra do vinho
e nada mais.

Acordei cedo e fui correr, dia ensolarado e quente. Lize na cabe�a, corri uns dez
quil�metros, cheio de g�s, botando energia pelo ladr�o, euf�rico, a mil, como se
tivesse cheirado todas, parei, alonguei,
sentei debaixo de uma �rvore, e, sem qu� nem porqu� me flagrei chorando,
copiosamente. Coisa de O M�dico e o Monstro, um po�o de sentimentos desencontrados.
Pensava em ir para casa, banho, roupa limpa,
voar para a pens�o. Foi o que fiz. Enchi uma valise e disse a Ot�lia que ia viajar,
sine die de retorno.
Ah, a Lize. Desceu mais linda, mais iluminada, o cabelo molhado, shortinho, �culos
escuros, boca pintada de vermelho, reclamando de dor de cabe�a, parei num posto e
comprei aspirinas. Peguei a estrada,
sentido S�o Paulo, s� paramos em Registro para almo�ar numa churrascaria.
Flutu�vamos. Resolvi retornar a Curitiba, eu queria fugir com ela, mas estava
confuso, n�o sabia para onde, tomara a dire��o errada.
Num trecho da estrada, por�m, ficamos nos encarando, em sil�ncio, surdos ao som de
Julio Iglesias. Parei no acostamento e beijamo-nos, horas a fio. Nossos cora��es na
boca, no lugar das l�nguas, querendo
pular para fora. Voei para Curitiba, parei na frente da pens�o e ela pegou umas
coisas, �s pressas.
Desci para Florian�polis, pisando fundo. A estrada congestionada, entretanto,
acabou com a minha urg�ncia, chegamos somente ao escurecer. Instalamo-nos num hotel
quatro estrelas, no Centro, banhamo-nos,
trocamos de roupa e sa�mos, j� esfomeados . Em um restaurante agrad�vel em Jurer�,
comemos frutos do mar e tomamos vinho. Diz�amos qualquer coisa, r�amos, nos
bast�vamos um ao outro.
N�o quebr�vamos o contato f�sico em nenhum momento, fic�vamos de m�os dadas, ou
abra�ados, ou ro�ando as pernas enquanto com�amos, ou aos beijos. O toque era
fundamental, sem o que parec�amos em abandono,
n�o bastava a simples presen�a do outro, era preciso apalpar, sentir, um medo
s�bito e renovado da separa��o.
Onde estiv�ramos todo esse tempo? Como pudemos estar separados? Sentados na areia,
olh�vamos o mover das �guas, a lua, o c�u, as nuvens, as rochas, sufocados de
felicidade, a respira��o boca a boca tinha
a emerg�ncia de resgate, ressuscita��o. Escutamos o som de uma banda ao longe. Lize
se eri�ou:
Vamos dan�ar?
Tomamos o carro e encontramos o local j� cheio de gente. Nos misturamos � multid�o.
Lize tinha um diab�lico meneio de serpente. Eu ficava � sua merc�, passarinho
tr�mulo. Eu a queria s� para mim, por isso
a carreguei para fora, urg�ncia urgent�ssima.
Rumei para leste, passando por Canasvieiras, Ingleses, at� desembocar na praia do
Santinho. Invadi um terreno baldio, � borda do outeiro, juntando-me a outros carros
estacionados. Todos t�nhamos objetivos
em comum. A vista dali era magn�fica, o luar despejando sobre o mar e os rochedos.
Apoiados � lateral do carro, ficamos abra�ados, recebendo o bafejo da brisa
carregada de maresia, envoltos no sil�ncio,
curtindo o barato da noite.
Aos beijos, pression�vamos mutuamente os corpos, Lize sentiu meu volume e come�ou a
se esfregar nele, escorregou a m�o e ficou alisando, botei para fora, ela empunhou,
agachou-se e meteu-o na boca, seus
l�bios carnudos, encobrindo os dentes, tornavam a chupada perfeita, mostrou que
sabia fazer.
N�o goza pediu , quero te sentir.
Ergui-a gentilmente nos bra�os e a coloquei sobre o cap�, arranquei-lhe o shorts e
a calcinha, penetrei-a lentamente, invadindo-lhe a privacidade com total
consentimento, mergulhando em suas profundezas
e compartilhando a intimidade do seu �tero envolvente, como se o meu membro fosse
um feto muito querido, a espada e a bainha, eu me encaixava em seus desv�os com a
perfei��o das coisas compat�veis, �ramos
um s�, nossa sincronia de movimentos nos elevava do solo e atingimos um orgasmo
simult�neo, fulminante.
Eu te amo ela disse, precipitada, emocionada. Voc� � o homem da minha vida.
Eu tamb�m te amo me flagrei retrucando , voc� � a mulher da minha vida.
Como despertados de uma letargia moment�nea, entramos no carro e nos refugiamos num
hotel pr�ximo dali. As acomoda��es tinham vista para o mar. Ficamos enla�ados, na
sacada, numa simbiose de depend�ncia
eterna. Repet�amos �te amo, te amo� um para o outro, sem parar. Crescia o
sentimento m�tuo de que era imposs�vel suportar nova separa��o. J� madrugada,
carreguei-a nos bra�os para dentro e coloquei-a na
cama. Eu era o homem mais manso do mundo. Ficamos horas trocando car�cias, juras de
amor, quis erguer-me para ir ao banheiro, mas ela n�o permitiu.
N�o me deixa, nunca mais, quero voc� ao meu lado, para sempre.
Lize me acariciava o rosto, me beijava docemente as p�lpebras, nariz, boca, face,
mir�vamo-nos com olhos de mel.
Promete que nunca vai me deixar?
Prometo, jamais.
Promete que vai me amar para sempre?
Prometo.
Promete que vou ser a �nica?
Prometo, a �nica.
Quando vi voc� entrando na imobili�ria, senti um calafrio, sei l�, s� podia ser um
aviso. Fiquei alerta. Voc� l�, lendo a revista, nem me deu bola, a�.
A� voc� ficou t�o impressionada comigo que, em seguidinha, ligou para o amigo do
Airton.
N�o foi �timo? Imagina se n�o tivesse sido assim, voc� iria reparar em mim, por
acaso?
Ri, que maneira de abreviar as coisas.
Imposs�vel n�o reparar em voc�, princesa.
Ficou com peninha de mim, de verdade, ou n�o passou de onda?
Fiquei, juro, cuidava voc� o tempo todo por cima da revista, despindo-a com os
olhos, tirando pecinha por pecinha, tal como num striptease.
Seu tarado, fazia isso mesmo? Com aquela cara de santinho do pau oco, parecia t�o
inocente, t�o s�rio. Mas, como n�o sou boba, meu instinto me aconselhou: �Se cuida
com esse que por tr�s daquela pele
de cordeiro se esconde um lobo mau cheio de m�s inten��es�. A�, quando voc� falou
comigo, com essa voz de radialista da madrugada, senti de novo aquele arrepio. Voc�
parecia t�o �ntimo, t�o carinhoso.
Mas eu sou carinhoso.
Claro que �, demais. Me derreto toda por um carinho, me deixa mais gamadona, se �
que isso � poss�vel. Promete que vai ser sempre assim, que nunca vai me judiar?
Prometo, vou sempre tratar voc� com o m�ximo de carinho, ternura, amor, vou encher
voc� de dengues, voc� vai virar uma manteiga derretida.
Voc� acredita em Deus, amor?
N�o.
Pois eu acredito. Acho que foi Ele quem nos uniu, Ele que o conduziu at� a
imobili�ria aquele dia, para nos conhecermos, s� pode ser obra Dele a gente estar
aqui. Num dia eu estava t�o infeliz, no outro,
no para�so, s� Deus.
�, deve ser, voc� tem raz�o. Resolvi provocar Mas, e o Airton, j� esqueceu? Deus
a ajudou a esquec�-lo?
Quem � Airton? N�o conhe�o.
Ela me beijou, bloqueando a r�plica, depois continuou:
J� esqueci, sim, e n�o sou nenhuma leviana, n�o, o Airton � um boc�, uma crian�a
mimada que n�o sabe o que quer, preocupado com a esposa, que � quem ele realmente
ama, s� quis me usar, se aproveitar
de mim, boba fui eu que n�o percebi isso antes. S� posso dar gra�as a Deus, sen�o
eu n�o estaria aqui com voc�, ia estar perdendo tudo isso. Depois que voc� me
beijou, l� na estrada, e eu me apaixonei,
descobri que todos os outros homens s�o uns bobos comparados a voc�.
Voc� por acaso est� me chamando de Rei dos Bobos?
N�o, amor meu, voc� � o Rei dos Homens, o dono do meu cora��o, se voc� me deixar,
prefiro morrer.
Ora, garota, voc� me ama com o entusiasmo dos seus 17 anos, com a sa�de e a
energia da sua idade. Nessa fase, o amor � como fogo na palha, intenso, s� que se
esvai logo.
Ah, �? E voc�, com esse �mpeto todo? O seu amor � diferente?
N�o, mas eu te amo com a sabedoria dos meus 48, � um amor bem mais est�vel.
Voc� tem 48? N�o parece, eu lhe daria, no m�ximo, 30 e poucos. O Airton aparenta
ser mais velho que voc�, e s� tem 38, exatamente dez anos menos.
Obrigado, voc� � muito vaselina, isso sim.
Posso lhe dizer uma coisa, amor?
hum hum.
Promete que n�o vai ficar muito vaidoso?
Depende.
Para mim, voc� � o Homem Mais Lindo Do Mundo.
Puxa, n�o fala assim, voc� � que � a Mulher Mais Linda, Mais Gostosa, Mais Tesuda,
Mais Aduladora.
Aduladora, eu? Ent�o aprendi com voc�, voc� me elogia muito.
Ela silenciou, e eu n�o quis quebrar o encanto, ficamos mirando o teto, chocando a
nossa felicidade.
Amor?
O que �, princesa?
Posso lhe fazer uma pergunta, uminha s�, promete ser sincero?
Pode, mas j� sei o que �.
Me responde, ent�o.
Sim, casado, dois filhos, ambos mais velhos que voc�, tenho idade para ser seu
av�.
Av�? De jeito nenhum. Pai, at� concordo, o meu deve ter a sua idade, agora, av�,
nunquinha.
Ela voltou a ficar pensativa. Eu j� sabia, sabia, n�o, pressentia. A felicidade
nunca � completa.
Vai mudar alguma coisa? perguntei.
Ela emudeceu de novo, ensimesmada. Depois de um tempo, me disse:
N�o, pra mim n�o muda nada, algu�m tem culpa, por acaso?
De que signo voc� �? indaguei.
Escorpi�o, ascendente em Le�o, e voc�?
�ries, ascendente em Sagit�rio, combina?
� unha e carne, principalmente carne.
Que �timo.
Depois de uma breve pausa, eu disse, imitando-a:
Benzinho, posso pedir uma coisa? Promete que deixa?
Depende.
Deixa eu ir ao banheiro? Sen�o vou fazer pipi na cama.
Puxa, adorado, esqueci por completo, me perdoe. Mudou de tom: N�o, meu Senhor,
s� se for comigo.
Pegou-me pela m�o, conduzindo-me ao banheiro, abriu a braguilha, de c�coras, e p�s
para fora, orientando a mira. Urinei, um jato forte e demorado, barulhento. Ela
assistia, curiosa.
Meu Deus exclamou, arregalando os olhos , voc� ia alagar a cama.
Ela pegou um peda�o de papel higi�nico e passou na cabe�a.
N�o � assim, � assim disse eu, sacudindo.
Ela o pegou e me imitou. Ele come�ou a crescer em sua m�o.
Viu porque eu n�o queria fazer assim?
Rimos. Ela me pediu licen�a, tirou a calcinha sem nenhuma cerim�nia e sentou-se no
vaso, um jato id�ntico ao meu, forte, demorado e barulhento.
Voc� tamb�m ia alagar a cama, princesa.
Lembrei os versos do poeta assistindo � mic��o da amada e avaliei o grau de
intimidade e erotismo que o motivou a escrever o poema. Ela secou-se, vestiu a
calcinha, arrebitou a bundinha, o mesmo gesto
que me atordoou na primeira vez em que a vi.
Pronto, agora vamos dormir, s� falta escovar os dentes.
Mas n�o dormimos nem escovamos os dentes, fizemos amor at� o dia raiar, depois,
sim, adormecemos, felizes.

Eu havia ancorado o meu navio em porto seguro e n�o me animava a zarpar dali t�o
cedo. Isso, no entanto, tinha um custo enorme: eu passava os dias esperando o final
do expediente para ir apanhar Lize:
dez horas, seiscentos minutos, trinta e seis mil segundos, ros�rios e ros�rios duma
penit�ncia sem fim. Cheguei a peg�-la no hor�rio do almo�o algumas vezes, mas me
tornei t�o inconveniente, n�o permitindo
que ela retornasse ao trabalho, que achei melhor n�o aparecer mais.
Matava o tempo como podia, ou seja, no pior mau humor. Entrementes, ligava v�rias
vezes para a imobili�ria para lhe dizer coisas do tipo �Soy loco por ti, mi amor�,
�Te adoro�, �Te quiero�, �I love you�,
�Je t�aime�, enviava buqu�s de rosas e cart�es ardentes. Eu havia perdido a
compostura, n�o tinha olhos para nenhuma outra f�mea, cavalgadura errante e
desembestada sem r�dea nem cavaleiro. Lize, Lize, Lize, dia e noite, uma fixa��o
louca.
�Por quanto tempo, ainda, Jorgito?�, eu me indagava, tentando prever a dura��o da
paixonite aguda. Nada mais me interessava. Eu a aguardava na sa�da da imobili�ria,
suando frio, at� o �ltimo instante achando
que algo imprevis�vel iria acontecer para impedir o nosso encontro, a minha fissura
realmente s� acabando quando a via sentar-se ao meu lado. Ent�o era ducha fria, o
mundo que se exploda, v� tudo para
o inferno, apr�s moi le d�luge. �amos beber, jantar, depois motel, e a minha
felicidade era completa. Ou melhor, quase, pois, ap�s breve calmaria, iniciava-se a
segunda fase, a da expectativa da nova separa��o
na manh� seguinte. Um sufoco. Eu n�o lhe falara do moc�, mas me angustiava tanto
com a aus�ncia dela que pensava em abrir logo o jogo e lhe propor que mud�ssemos
para l�, casarmos de mentirinha, faz�-la
demitir-se da imobili�ria, sei l�. Num esfor�o prodigioso de vontade, no entanto,
contava at� mil e adiava o impulso. N�o podia me afogar no momento, como
recomendara um alem�o pirado. E quando a paix�o
acabasse, o que podia ocorrer a qualquer momento, dados os meus antecedentes, o que
seria de mim? Ia ficar com um baita abacaxi nas m�os, uma intrusa pegando no meu p�
o tempo todo. �Calma, Jorge, voc�
vai entrar na maior fria�. Mas, bastava pensar assim para que, como uma r�plica
conclusiva, me sobreviesse a convic��o plena de que meu amor por Lize era sincero e
verdadeiro, eterno, sim, nos amar�amos
para sempre, n�o eram meras palavras.
Enquanto pesava os pr�s e os contras do nosso relacionamento, analisando as
circunst�ncias que poderiam faz�-lo dar certo ou n�o, ia protelando por mais
algumas horas a decis�o que poderia selar o meu
destino. Como macaco burro, no entanto, eu permanecia com a m�o na cumbuca
segurando o engodo, com certeza iria me arrepender de n�o larg�-lo. Afinal, j�
fic�vamos juntos a noite inteira, mais intimidade
imposs�vel.
Durante o dia, ela tinha os seus afazeres, eu, os meus, a separa��o natural
enfrentada por casais do mundo todo. Eu � que estava precipitando as coisas. O
problema maior foi reconhecer que, na verdade,
eu n�o tinha nada para fazer, ficava o dia inteiro de bobeira: acabava sendo levado
pelo arrast�o da saudade e tudo recome�ava. Precisava arranjar uma distra��o,
ocupar-me com qualquer coisa, s� isso.
Cheguei a tentar ler na Biblioteca P�blica, ir ao cinema, catar coquinho, jogar
pedrinha n��gua, nada adiantou, o tempo passava cada vez mais lento. Pensei em
pegar umas minas, mas n�o arranjei for�as
para tomar a iniciativa. N�o, a minha pica s� pedia Lize, Lize.
Por fim, joguei tudo para o alto e reca� no c�rculo vicioso da minha
insolucion�tica, agora com a circunst�ncia agravante de violentas crises de ci�me,
enxergava rivais na imobili�ria e em todo lugar.
Ao mesmo tempo, fazia malabarismos para n�o demonstrar nada disso a ela, e at�
conseguia enganar bem, mas no fundo me sentia inseguro como um p�ssaro de asas
quebradas.
Quando descobri que dormir me acalmava, passei a ingerir doses maci�as de
ansiol�ticos, bodeava a tarde toda. S� tinha o cuidado de botar o rel�gio a
despertar para n�o correr o risco de perder o hor�rio
da sa�da de Lize, Deus me livre. Havia, por�m, o risco de revert�rio na mistura com
�lcool, o que invariavelmente ocorria. Eu me turbinava e � noite era sempre um
rec�m-nascido. Assim, o nosso roteiro
varava a madrugada. Lize volta e meia se queixava de passar o dia todo bocejando na
imobili�ria. Nos fins de semana ca�a dura, nada a arrancava da cama. Pudera, em um
m�s, n�o havia motel, restaurante
ou boteco de Curitiba que n�o houv�ssemos visitado. Ela entrava no carro e eu
partia para um roteiro sem rumo.
Primeiro, fazia uma parada em qualquer lugar para a sess�o de beijos, beijos e mais
beijos por horas a fio, nunca antes havia beijado tanto algu�m; era uma fome m�tua
e insaci�vel de beijos. Segundo, quando
a outra fome pintava, invad�amos o boteco mais pr�ximo do nosso beij�dromo
ambulante. Tudo por conta do acaso. Fic�vamos l�, bebendo, comendo, conversando,
rindo, enfim, curtindo a nossa desatinada paix�o.
L� pelas tantas, tom�vamos a saideira, mas, em vez de lev�-la para casa, eu for�ava
a entrada em outra boquinha entaipada. E assim ia, e mais outra e mais outra. Lize,
para n�o me desagradar, topava todas.
E n�o foi uma nem duas vezes que a levei direto para a imobili�ria para que n�o
perdesse o hor�rio.
Em certa ocasi�o, numa dessas baiucas mais � m�o, um grupo de bebuns, numa mesa
pr�xima, encasquetou com o coroa e a ninfeta. A rapaziada estava com a mesa repleta
de garrafas de cerveja vazias, na maior
bagun�a. Quando eu ia ao banheiro, um deles se aproximava de nossa mesa e dava em
cima de Lize. Querendo parecer liberal e superior, levei na esportiva, o que foi um
erro. Quando foi a vez dela de ir ao
toalete, o carinha foi atr�s e esperou na sa�da para passar-lhe um cart�o, ela deu
um tapa na m�o estendida e o cart�o saltou longe. Os outros riram. Ele matou no
osso do peito. Lize voltou para a mesa.
Vamos embora pediu.
Concordei, era hora de levantar acampamento, sen�o ter�amos problemas. Pedi a
saideira, bebemos, paguei, fomos para o carro, liguei o motor.
S� um pouquinho, amor, vou dar uma mijadinha e j� volto.
Voltei ao bar. Passei pela mesa dos caras sem olh�-los, fingi entrar no banheiro e
fiquei espiando, escondido atr�s da divis�ria. O carinha levantou e os colegas
ficaram instigando-o, animou-se com a minha
demora e foi at� o carro. Sa� do esconderijo e tomei a dire��o do grupo, cheguei
chutando a mesa e foi aquele au� de garrafas e copos, acertei um direto no queixo
do mais pr�ximo, o p� na boca de outro,
uma cabe�ada no terceiro. Corri para o carro. O carinha bem que tentou se evadir ao
perceber que ia sobrar para ele, mas fui mais r�pido. Cacei-o pela cinta e pelos
fundilhos e joguei-o de cabe�a no meio
da rua. Olhei para tr�s, para avaliar o estrago. Os bebuns das outras mesas,
solid�rios, ajudavam os caras a se erguerem, o dono da bodega sa�a detr�s do balc�o
de cabelos em p�, entrei no carro e cantei
pneus na arrancada.
Lize estava p�lida, assustada.
O que houve, amor?
Os rapazes foram levantar, escorregaram e deram de cara no ch�o eu disse,
for�ando o riso.
Lize tirou um len�o da bolsa e passou no meu rosto, o tecido ficou vermelho. Olhei
no retrovisor e descobri um corte no topo da cabe�a vertendo sangue. Na cabe�ada,
devia ter pego os dentes do debi. O
sangue escorria-me pela lateral do rosto, tingindo a gola empapada da camisa. Lize,
muito nervosa, colocou o len�o sobre a ferida e ficou pressionando-o para conter a
hemorragia. Insistiu para que f�ssemos
a uma emerg�ncia hospitalar. Cedi. L�, rasparam o cabelo em volta do ferimento,
suturaram e plantaram um curativo. Lize, agarrada ao meu bra�o � sa�da do hospital,
disse:
Benzinho, n�o sabia que voc� era t�o brabo. Quase aleijou os rapazes, meu anjo.
Brincadeirinha. Foi para eles aprenderem a respeitar um senhor de idade e a sua
namoradinha.
Eles estavam b�bados, anjo, voc� tinha que dar um desconto.
Comigo, n�o, viol�o disse eu, fingindo zanga. Mexeu, levou.
Eu � que nunca vou querer tirar voc� do s�rio brincou ela.
Se voc� se meter comigo, leva pau.
Dependendo do pau, at� me meto, mesmo.
Em voc�, sua bobinha, eu n�o bato nem com uma rosa.
Hummm, que galante!
Para n�o despetalar a rosa.
Seu cretino.
Entramos no carro e iniciamos nova sess�o de beijos.
Meu her�i exclamou ela, excitad�ssima , me leva pra cama, me mata de prazer.
Era assim, sem tirar nem por. N�o sosseg�vamos o pito. Depois daquele dia, mais
seletivos, passei a tomar a dire��o dos restaurantes sofisticados, ela n�o queria
mais saber de baixaria. Nos fins de semana,
desc�amos para Floripa. Com a chegada da primavera e as chuvas frequentes,
passe�vamos pela praia debaixo dos aguaceiros, retornando ao hotel encharcados.
Tom�vamos uma ducha, com�amos alguma coisa e �amos
para o quarto foder.
Pul�vamos de praia em praia, de hotel em hotel, peripat�ticos amantes que �ramos.
Onde dar com os costados no dia seguinte era algo que n�o sab�amos nunca. Lize era
obcecada por fotografia, andava sempre
com uma c�mara a tiracolo e um estoque de filmes. Clicava na m�quina o tempo todo.
Eram dezenas de instant�neos por onde pass�vamos. Mandava revelar os filmes em que
est�vamos nus sem a menor inibi��o.
Comprava �lbuns e colocava etiquetas legendadas com os nomes dos lugares, datas,
etc. T�nhamos alguma coisa em comum na mania de colecionar. Mostrava-me fotos mais
antigas e perguntava: Lembra? �s vezes
eu n�o lembrava e ela relatava tudo em tantos detalhes que eu ficava impressionado
com a precis�o de sua mem�ria.
Muito mais, lembrava as roupas que vest�amos no primeiro encontro, o sabor do
primeiro beijo, aquele que a fez amarrar-se em mim, as palavras que eu falara em
tal dia, tal hora, o que com�ramos em tal
ocasi�o, os textos das mensagens de amor que eu lhe remetera no in�cio do nosso
relacionamento, o escambau.
Sabe que dia � hoje?
E deveria?
Est� fazendo quatro meses que estamos juntos.
Tudo isso? retruquei de brincadeira.
Antigamente, voc� era mais rom�ntico, mandava flores. Pelo jeito o entusiasmo
morreu cedo.
Juro que n�o lembrei, princesa, perd�o. Inclinei-me para beij�-la, virou o rosto.

Mais um pouco, vai enjoar de mim, me trocar por outra.


Nem pensar.
Tem uma coroa l� na imobili�ria que diz que homem � tudo a mesma coisa, ficam um
tempo numa boa com uma mulher, mas logo, logo acabam enjoando, ent�o a trocam por
qualquer uma, n�o tem exce��o. � assim
que vai ser?
Essa louca n�o sabe o que � amar.
Ela diz que, no in�cio, tudo s�o flores, depois, espinhos.
� uma recalcada.
Diz que todo homem gosta de dar os seus pulinhos, como macacos que pulam de galho
em galho.
Garanto que deve ser um bagulho daqueles, ningu�m chega perto.
Al�m do mais, o nosso relacionamento n�o tem futuro, voc� � casado, quando n�o
quiser mais, me d� o cart�o azul.
Que papo � esse, princesa? Aonde voc� quer chegar, lindona?
�s vezes fico pensando. Se o Jorge n�o me quiser mais, o que eu vou fazer? Fico
insegura, apavorada.
Ora, benzinho, amorz�o da minha vida, que papo mais sinistro. isso nunca vai
acontecer, eu n�o me chamo Airton, t� legal?
Ela come�ou a chorar silenciosamente, as l�grimas despencando das faces,
copiosamente.
Oi, meu amor, n�o faz assim.
Sentei na cama, abracei-a e deixei que chorasse � vontade. Dei a ponta do len�ol
para que se assoasse.
Desculpe pediu ela.
S� desculpo se me disser o que est� se passando.
N�o � nada, amor, bobagem minha, grilos, � que �s vezes fico fantasiando. N�o digo
casar, pois voc� j� � casado, mas me pergunto por que n�o podemos morar juntos se
nos amamos? Sou uma boba mesmo,
isso nunca vai acontecer.
O que n�o vai acontecer?
A gente morar juntos.
Bom, princesa, j� que voc� antecipou. Tenho at� um apartamento em vista,
mobiliado.
Mesmo? Voc� n�o t� me gozando, n�o �, Jorge?
Claro que n�o, benzinho. � que eu queria lhe fazer surpresa. mas voc� acabou de
estragar, pronto.
Ent�o me pus de p� na cama e fiz uma rever�ncia, enquanto dizia:
Lize, amor meu, voc� quer se casar comigo? Morar comigo? Viver comigo? Fale agora
ou se cale para sempre.
Quero, quero. Claro que quero, � o que mais quero na minha vida, Jorge.
Puxa, repita l�, ent�o, voc� aceita se casar comigo?
Claro que aceito!
N�o, princesa, n�o � assim que deve responder, com todo esse �mpeto, bote um pouco
de classe nisso.
Seu bobo. Sim, sim, sim. Voc� � o homem mais maravilhoso do mundo.
Beijamo-nos, the end, fiquei esperando o berro do Zeffirelli: Corta, corta!. Depois
de ter ca�do como um patinho na arapuca que Lize me armou, me vi no compromisso de
lev�-la ao moc�. Fomos l� numa manh�
de s�bado. Ficou maravilhada com a decora��o e a vista privilegiada do lado leste
da cidade.
Este im�vel n�o estava na imobili�ria?
N�o, eu alugava direto para um amigo meu. Foi viajar, na volta, dentro de quinze
dias ele desocupa, vai deixar como est�, s� tira roupas e objetos pessoais, vou
fazer um acerto com ele do que ficar,
o que voc� acha? Ser� que vale a pena?
Acho �timo, claro que vale, tudo o que tem aqui � de qualidade, se o pre�o for bom
� galinha-morta.
Est� pedindo uma mixaria.
Ent�o n�o d� pra perder, amor, s� est� precisando de uma boa limpeza.
Assim que ele me passar as chaves, boto uma diarista pra limpar.
Que nada, deixa que eu mesma limpo. Quando morava com meus pais, quem fazia faxina
na casa era eu, vou deixar isso aqui um brinco, sou boa nisso.
Voc� � boa em muita coisa.
Ela inspecionava tudo de orelhas em p�, o quarto, o banheiro, a cozinha, abria as
portas dos m�veis.
J� est� quase tudo vazio.
Ele est� levando as coisas aos poucos.
� casado esse seu amigo?
Solteir�ssimo.
Huuumm, montou o apartamento com todo esse bom gosto e agora se vai. Talvez
tencionasse casar e n�o deu certo, hein, amor?
�, talvez, nunca tocou no assunto, � muito discreto. Bem camarada, deixou
preparado para n�s.
J� podemos consider�-lo nosso, amor?
Claro, princesa, � apenas uma quest�o de dias.
Lize ainda n�o engolira a hist�ria do tal amigo, parecia um espinho trancado na sua
garganta, levei-a ao terra�o para desviar sua aten��o, se me pressionasse eu
acabaria tendo que revelar a verdade. N�o
queria, no entanto, que ela conhecesse o meu lado mulherengo, j� andava t�o cheia
de grilos que n�o valia a pena p�r mais lenha na fogueira. Era estranho estar com
Lize no moc�, estar em vias de mudar
minha vida, alterar meus h�bitos arraigados. Mais estranho ainda era a imin�ncia de
fixar resid�ncia logo ali no santu�rio das minhas pervers�es sexuais. Se Lize
tivesse a menor premoni��o do que rolara
l� dentro, da quantidade de mulheres que deitou naquela cama, n�o sei n�o. Eu
estava me atirando de cabe�a numa aventura que podia acabar t�o mal ou pior que a
primeira.
Eu me sentia acuado, tenso. Na minha idade, as coisas, de certa forma, j� tinham
tomado rumos definitivos. Romper com Judita, a casa, os filhos, sempre me parecera
hipot�tico, agora estava em vias de acontecer.
Como seria a vida com Lize? Ela n�o passava de uma crian�a, ainda sem passado.
Teria futuro? E se eu me arrependesse? Dizem que essas paix�es tardias s�o as que
acorrentam mais. Estaria liquidado, dominado,
um joguete nas m�os de Lize? Casanova aposentado e barrigudo, bye-bye Guinness
Book, bye-bye gl�ria. O entusiasmo de Lize interrompeu a minha
diarr�ia mental:
Vou fazer uma lista do que preciso, preparar o enxoval.
Pegou a calculadora na bolsa.
Tem o d�cimo terceiro, mais o sal�rio do m�s.
N�o senhora, eu caso, mas voc� sai da imobili�ria, vai virar dona de casa, meu
objeto sexual.
Ai, o bandido quer me aprisionar. Rodopiava com os bra�os abertos teatralizando a
sua exaltada felicidade. Eu j� sou escrava do seu amor, prisioneira da sua
vontade, eu n�o me mando mais, voc�
� o meu dono e patr�o, pode me fazer de capacho, pisa em mim, pisa.
V�-la daquela forma, incrivelmente feliz, compensava qualquer sacrif�cio. Lize n�o
parou mais de fazer planos, listas de compras, o diabo, perdul�ria como toda
mulher.
Pode listar que eu banco.
Voc� vai se arrepender de ter dito isso, amor meu.
Nessa mesma noite, descemos para Floripa, Santinho, o nosso cant�o predileto. Na
manh� seguinte, me fez lev�-la �s lojas do Centro e iniciou as compras.
Liga para o seu amigo, vai, v� se ele sai logo de l�, afinal, vai ter de mudar
mesmo, pode antecipar uns dias.
Eu simulava liga��es. Tanto insisti que o tal amigo resolveu sair dentro de tr�s
dias. Lize exultou. Nosso regresso a Curitiba, com o porta-malas abarrotado, foi
para tomar posse imediata do im�vel vago.
Deixei-a na pens�o para que recolhesse suas coisas e fui at� o moc� descarregar a
tralha. Simultaneamente, retirei de l� o que ainda sobrava, acomodando tudo no
porta-malas rec�m-esvaziado. Num outro dia,
eu teria de refazer tudo, trazendo o restante dos meus pertences que estavam na
casa de Judita. Dava um bocado de m�o de obra toda essa encena��o, mas n�o havia
como evitar. Fui busc�-la na pens�o, a sua
bagagem resumia-se a tr�s malas e algumas sacolas de pl�stico enfunadas. Coloquei
tudo no banco traseiro. Toquei para o moc�, que fazer?
Lize ficou t�o entusiasmada com o novo domic�lio que iniciou a faxina assim que
chegamos. Por sorte faltaram produtos e ela teve que adiar a limpeza para o dia
seguinte. Enquanto trep�vamos, ela relacionava
em voz alta o material a ser comprado. Levou dois dias limpando o apartamento, uma
faceta de Lize que eu desconhecia totalmente. Era detalhista e exigente consigo
mesma. Subia no parapeito para limpar
as vidra�as, deixando-as t�o transl�cidas que parecia n�o haver vidros nas janelas,
jogava-se de quatro no ch�o e escovava vigorosamente o carpete, grimpava-se na
escada para esfregar lustres e lumin�rias,
n�o havia canto ou fresta onde ela n�o furungasse espantando a sujeira. Lustrou
m�veis, fez brilhar cada azulejo da cozinha e do banheiro. De mangueira em punho,
lavou o terra�o e a churrasqueira. Quando
acabou, estava um trapo, mas o apartamento, um brinco. E eu, excitad�ssimo de
flagr�-la nas posi��es mais ex�ticas e sedutoras, mesmo que o trabalho n�o
exigisse, mas que ela executava de prop�sito s�
para me provocar. Eu tentava agarr�-la a for�a, mas ela me repelia.
Pr�ximo da meia-noite, foi para o banho, tomou apenas um copo de leite e caiu dura
na cama, deixando-me a ver navios. Ao acordar, queixou-se de dores no corpo. Quando
lembrou, ligou para a imobili�ria
pedindo as contas. Nos dias que se seguiram, um ap�s o outro, me fez lev�-la �s
compras.
Certa tarde, ela me recomendou:
Agora, voc� vai sair, comprar um terno novo, sapatos, cortar o cabelo e s� me
apare�a aqui l� pelas 19h, ok?
Executei em detalhes tudo o que ela me pediu. No hor�rio marcado, toquei a
campainha. Ela abriu a porta, fascinante no longo vestido branco, de profundo
decote nas costas, saltos altos, o cabelo penteado
para o lado, um toque espanhol. Recebeu-me com tanta ternura e carinho que me
emocionei. Enfiou o bra�o no meu e demos uma volta pela sala.
Voc� est� linda eu disse.
E voc�, elegant�rrimo.
A mesa estava servida a rigor: candelabro, flores, frutos do mar, salada, champanhe
no balde. Sentamo-nos, brindamos, comemos. Era a nossa festa de casamento,
privad�ssima. Um coro entoava a Ave Maria,
de Gounod. Ela pensara em tudo, a festa foi perfeita. Tive uma ere��o fulminante e
fodemos sobre a mesa do nosso banquete. Foi uma foda soberba, para selar as nossas
n�pcias, coroar a nossa exalta��o paradis�aca.
Permanecemos v�rios dias em lua de mel. Faz�amos pedidos de rango e bebida por
telefone. O resto era cama e relax. O moc� n�o era mais um lugar tempor�rio, agora
tinha conota��o de perman�ncia, moradia,
o nosso ninho de amor, conforme a terminologia Lizeana, que dava sempre uma
configura��o super-rom�ntica �s coisas. Comprara toneladas de filmes para a m�quina
fotogr�fica e usava-os sistematicamente para
cobrir o nosso dia a dia, em suas v�rias etapas, na mesa, no banho, na sala, na
cama, e at� no vaso sanit�rio.
Um dia, animei-me a sair s�. Comprei alguns presentes para Lize, um colar de
p�rolas e uma filmadora, dentre outros de menor monta e de utilidade mais dom�stica
do que pessoal. Quase teve um filho de t�o
contente que ficou. Al�m disso, tomei outras provid�ncias, a come�ar pelas mais
prosaicas, que era passar na casa de Judita e recolher o que ainda me pertencia.
Deixei os livros e di�rios secretos, pegaria
em outra ocasi�o. Passei a chave no quarto e recomendei a Ot�lia que enfiasse a
correspond�ncia por baixo da porta. Menti-lhe que ia fazer uma viagem prolongada.
N�o quis saber das novidades. Liguei para
Ilona dispensando os seus servi�os de alcovitagem, pedi o n�mero da sua conta
banc�ria para lhe fazer um dep�sito polpudo, a t�tulo de indeniza��o. Ela lamentou,
eu n�o. Adquiri outra linha telef�nica
convencional, para evitar eventuais liga��es indesej�veis ao antigo n�mero, e
desautorizei a companhia telef�nica a divulgar os dados do novo assinante. Por fim,
liguei para Flavinho, o irm�o de Judita.
Fui curto e grosso:
Estou caindo fora.
Ele me pediu para reconsiderar, trinta anos de casamento n�o se podia jogar para o
alto assim desse jeito. Retruquei que era posi��o firmada, sem volta, desliguei.
Eles que procurassem um advogado e resolvessem
a situa��o, se ocupassem de toda a merdan�a que envolve uma separa��o, depois me
avisassem para assinar. Passei a tarde inteira fora. Durante o tempo todo senti a
falta de Lize, com um n� no peito, como
se a estivesse traindo pelo simples fato de n�o estar em sua companhia.
Quando entrei em casa, ela voou para os meus bra�os e me beijou com paix�o. N�o me
deixe mais s�, suplicou, nunca mais, pensei que fosse enlouquecer com a sua falta.
Confessei-lhe que sentira o mesmo.
Em seguida, ajudei-a a decifrar o manual de opera��es da filmadora. Bastou aprender
a operar para n�o me dar mais descanso, me enquadrando a todo instante nas posi��es
mais rid�culas e imprevis�veis, como
se eu fosse um ET v�tima de sua curiosidade.
N�o, amor, voc� � o meu astro preferido.
Ao presente�-la com a filmadora, realizei seu antigo sonho dourado e imposs�vel.
Uma Sony de �ltima gera��o, s� faltava falar. Muitas vezes ela ficara namorando
filmadoras nas vitrines, como a personagem
de Audrey Hepburn nas vitrines da Tiffany.
Quanto ao colar de p�rolas, esquecera-o em algum canto ou gaveta. Localizou-o, um
dia, depois de muito procurar, somente para satisfazer uma exig�ncia minha, nua em
pelo, apenas adornada com a
j�ia, e
seria eu a flagr�-la nas posi��es mais ousadas e impudicas.
Vingancinha, �? Mas submeteu-se. Eu era um cameraman exigente, perfeccionista,
ela, colaborativa, criativa, consegui bons �ngulos, closes muito excitantes.
Nas semanas que se seguiram, nossa vida ajustou-se � nova realidade, acordar
juntos, dormir juntos, cagar juntos, a rotina da coabita��o. Meu temor era, sendo
colhidos pela avalanche do t�dio, que o relacionamento
abatumasse. A dedica��o de Lize, no entanto, desbancava as minhas previs�es mais
pessimistas. Me concedia o status de sult�o, me obsequiando com infinitas
mordomias, incans�vel e obstinada Scherazade,
sendo eu o foco das suas aten��es, sempre renovadas pela acelera��o centr�peta da
sua ardente feminilidade.
Era tocante o modo como se empenhava em me agradar, mesmo nas pequenas coisas. Ao
entrar no banheiro, pela manh�, deparava-me com uma mensagem carinhosa escrita a
batom no espelho, ou cartas quilom�tricas
extravasando o seu amor por mim. Servia o desjejum com o maior requinte, incluindo
as frutas da minha prefer�ncia, a quantidade exata de ado�ante, nem mais nem menos,
at� o leite vinha na temperatura do
meu agrado, e por a� afora, a minha roupa, sempre impecavelmente lavada e passada,
as toalhas de asseio e roupas de cama trocadas no tempo certo, at� banho me dava.
Eu lhe dava o troco na moeda do prazer. No paroxismo do �pice absoluto, conseguia
que tivesse orgasmos como se sofresse convuls�es, desgastando-a das suas energias
ao ponto da exaust�o de maratonista,
ou levando-a �quelas extremas exalta��es somente conseguidas no cl�max do del�rio
m�stico.
No dia a dia, era uma dona de casa de primeira, sempre cheirosinha, arrumadinha,
renovando o estoque de indument�rias provocantes e me deixando sempre em ponto de
bala.
Conhecedora do meu fraco por p�s, esmerava os seus, cal�ando sand�lias de saltos
estratosf�ricos, que me deixavam maluco. Certa vez, enquanto ela dormia, fiquei
fornicando com seus pezinhos alucinantes,
dos mais bonitos que j� vira, eu os beijava, mordia, lambia, chupava os dedos,
esfregava-os no meu pau, comprimindo o cacete entre a planta de um e o dorso do
outro, friccionando-o por longo tempo. Tive
uma ejacula��o profusa, das mais arrebatadoras da minha vida, aparei a porra com a
m�o e espalhei-a sobre os seus p�s e tornozelos. Lize dormia um sono profundo,
transportada. Quando lhe contei, ao acordar,
n�o acreditou, precisou sentir a viscosidade ressequida deixada pelo esperma na sua
pele para se convencer. A narrativa delirante que lhe fiz do fato, acendeu-a,
ficamos v�rias horas trepando.
Era um processo de escambo permanente. Quanto mais prazer eu lhe proporcionava,
mais afetuosa ela ficava, retribuindo-me sempre em quantidade exponencialmente
superior � da vez anterior. Nunca tivemos
o menor resqu�cio de desentendimento, a nossa conviv�ncia era de pura harmonia em
todos os sentidos. Frequentemente eu me perguntava: �At� quando?�
Num s�bado, � tardinha, faltou ingrediente para um prato que Lize pretendia fazer
especialmente para mim. Fomos a p� ao supermercado, a alguns quarteir�es dali.
Retornamos j� no escuro, carregando algumas
sacolas. Na travessia de uma rua, aconteceu. Sou muito cuidadoso para esse tipo de
coisa. Ao chegar � esquina, olhei em todas as dire��es, antes de atravessar, e n�o
havia carro em tr�nsito, exceto alguns
estacionados, pod�amos atravessar em seguran�a. Quando atingimos o meio do leito,
ouvi o ru�do caracter�stico de um carro engatado em r�, girei a cabe�a, r�pido, e
vi, por sobre a cabe�a de Lize, um Monza
branco vindo em nossa dire��o, a toda velocidade. De onde surgira aquele louco? Por
reflexo, brequei a marcha.
Lize deu um passo � frente e o carro ia atingi-la em cheio. Com o rosto virado para
o meu lado e rindo de uma besteira que eu havia dito, Lize n�o percebeu o que
ocorria. Gritei para alert�-la e alcancei
sua camiseta, puxando-a para junto de mim. Com o repel�o, uma das sacolas escapou
da sua m�o e esparramou na pista o seu conte�do. Foi o tempo de retrocedermos
alguns cent�metros mais e o Monza passar
zunindo, deixando algumas latas e pacotes amassados atr�s de si. Xinguei aos berros
o motorista, que fez uma manobra arriscada na esquina, ingressou na outra pista e
guinchou pneus, afastando-se aceleradamente.
Tentei me deslocar para alcan��-lo, mas j� era tarde, s� avistava a lanterna
vermelha se distanciando. Fiquei possesso. Dei aten��o a Lize, que tentava juntar
as coisas ca�das para ver se aproveitava alguma.
Foi tudo muito r�pido, nem atentei para memorizar a placa do carro. Durante a
manobra, debaixo da luz do poste, pude ver de relance a fisionomia de um homem de
bigode e �culos ocupando o lugar do motorista
e a silhueta de uma mulher ao seu lado. S�. A minha raiva era tanta que eu me
engasgava ao falar.
Calma, homem dizia Lize , n�o aconteceu nada.
Como ela podia ficar t�o tranquila? Em instantes visualizei a trag�dia que poderia
ter quebrado a estabilidade do dia, um filho da puta qualquer fodendo com o nosso
barato.
N�o aconteceu nada porque eu estava atento, sen�o. voc� j� era respondi, o corpo
tr�mulo de c�lera. Voc� podia estar morta, neste momento, Lize, morta!
Vaso ruim n�o quebra disse ela, tentando fazer gra�a.
Ajudei-a a recolher do asfalto o que restava intacto e tomamos o rumo de casa. Por
mais que eu me esfor�asse para atender aos pedidos de Lize, n�o conseguia esquecer
o epis�dio nem conter minha histeria.
Relembrava cada detalhe, avaliando as consequ�ncias no caso de o carro a ter
atingido. Em fun��o da velocidade, o impacto seria violento. Ela seria ou jogada
para o alto ou para debaixo das rodas, como
aconteceu com os mantimentos. Dificilmente escaparia. Eu reproduzia na mente a cena
dela morta no ch�o e me desesperava. N�o ter atinado em anotar mentalmente a placa
do ve�culo � o que me parecia ser
uma furada imperdo�vel da minha parte. Logo eu que me achava muito esperto para
determinadas coisas. Em contrapartida, como era f�cil atropelar algu�m numa rua mal
iluminada e deserta e ficar impune.
Fora eu, n�o havia testemunha. E de que ia adiantar o coc� do meu testemunho? Sem o
n�mero da placa, tudo iria dar em nada, o cara ia tomar ch� de sumi�o e pronto. S�
eu ia permanecer ali, no meio da noite,
chupando o dedo, com cara de bund�o, testemunhando o corpo de Lize estirado no
asfalto, a vida arrasada.
Calma, homem repetia Lize, ao me ver t�o agitado. Veja, eu estou aqui, vivinha
da silva e carente e apalpava o meu cacete tentando me animar.
Pouco adiantaram os seus esfor�os para me levantar o astral, mantive-me deprimido
durante o resto da noite. Apenas biquei o vinho e belisquei a lasanha que ela
executou com tanto empenho, justo a causa
da nossa sa�da. Na cama, nem a toquei, virei pro lado e dormi. Acordei, alta
madrugada, sentado na cama, lavado de suor e apavorado: o sonho da janela se
repetira mais uma vez.

Com a proximidade do fim do ano, especialmente em novembro, quando completou 18


anos, e depois no Natal, Lize teve nova reca�da consumista e atacou as lojas.
Chegou a comprar presentes at� para seus parentes
de Umuarama, pretendendo que eu a levasse l� para v�-los. Com a frieza que seus
pais a trataram ao telefone, por�m, acabou desistindo, jogando todos os embrulhos
na lata do lixo. Ficou deprimida um dia
ou dois, depois retirou os presentes da lixeira e guardou-os no guarda-roupa, por
fim esqueceu o incidente e retomou o seu bom humor.
O ver�o chegou muito quente, e n�o sa�amos de Floripa. Fiz reservas programadas no
hotel que costum�vamos ir. Lize virou uma mulata do Sargentelli de tanto sol que
tomou. As marcas brancas deixadas em
sua pele pelo biqu�ni faziam furor na minha libido, incans�vel cavaleiro das
paisagens enluaradas impregnadas de afrodis�aco feiti�o. Nas v�speras do Carnaval,
sa�mos de Curitiba na quinta-feira, para
evitar o congestionamento da estrada. Sob um sol faiscante, temperatura de 35
graus, a previs�o era de tempo �timo para todo o feriad�o. Mesmo assim a estrada
nos exigiu nervos de a�o de t�o movimentada.
Lize n�o largava a filmadora, como se fosse um filho rec�m-nascido cercado de mimos
e cuidados. Percorremos todos os nossos recantos favoritos para que ela fizesse
registros. Era a mosca no mel. A sua
felicidade f�cil e ing�nua me fascinava. Meu Deus, aquela mulher era fabulosa.
Enriquecia com encanto infantil as coisas mais simples, recheava os momentos mais
comuns com o fogo da sua vitalidade explosiva,
botava vida em tudo.
No conv�vio com ela, eu come�ava a derreter a minha carapa�a de dur�o, deixava-me
enternecer, o cont�gio da sua juventude desbragada facilitava o processo, eu
retrocedia aos bons tempos, ia relaxando,
leve e solto, liberava total e geral, os brutos tamb�m amam e t�m direito de ser
felizes. Mas Floripa n�o tinha mais o sabor de antigamente, al�m do que a cidade
estava simplesmente entupida de gente,
o que tirava a nossa privacidade. No s�bado, deitados na cama do �nico hotel onde
conseguimos vaga, bocej�vamos de t�dio.
Ai, amoreco, estou com saudades da minha casinha choramingava Lize. Voc� n�o
est�?
Aham, amanh� retornaremos cedo.
Por que n�o hoje? Agora?
Eu estava com uma pregui�a que me fazia retardar a ida ao banheiro para defecar,
imagine encarar a estrada incandescente.
Amanh� cedinho a gente volta, prometo, juro.
T���� booooommmm fez ela, amuada, desacostumada de n�o ser atendida
imediatamente.
Vem c�, vem ela se aninhou nos meus bra�os, enchi-a de beijos.
Est� perdoado.
Ficamos ali, jogando conversa fora, eu disse que ia retomar os treinos, ou, pelo
menos, correr, dia sim, dia n�o. E talvez, caso ela n�o me exigisse demais na cama
e me deixasse com uma reserva m�nima
de energia, voltasse ao boxe.
Voc� sabia, por acaso, que eu j� fui campe�o estadual de boxe, aos 16 anos?
Abandonei aos 18, quando ia representar o Brasil na categoria meio-m�dio, nos Jogos
Ol�mpicos da �poca, dias antes do embarque.
N�o diga!
E me obrigou a lhe contar a hist�ria do meu tobog� ol�mpico nos m�nimos detalhes.
Quanto a ela, pretendia fazer um curso de culin�ria s� para me preparar pratos
especiais de baixa caloria, mas saboros�ssimos.
Hhuummm!
Talvez, talvez, n�o estou prometendo nada, amor, pretendo recome�ar os estudos,
abandonados h� dois anos.
Eu n�o largava o copo, consumia cerveja aos baldes, destilados tamb�m, mas s� de
vez em quando. A desvantagem de se beber cerveja � que a gente embarriga logo,
logo. A redu��o que eu pretendia fazer no
teor alco�lico, tomando s� cerveja, se anulava pela quantidade ingerida. Assim, nas
�ltimas semanas, ganhei alguns quilos, toda a gordura concentrada na cintura, se
vacilasse ia inchar que nem bexiga.
Al�m disso, a cerveja d� gases e, em mim, priapismo. Lize � que adorava, ficava
horas e horas montada na verga, gozando dezenas de vezes por dia, eu, n�o raro, nem
gozava. A nossa pregui�a virava tes�o,
ela vinha por cima, de c�coras e fazia um sobe-e-desce acelerado, decidida a me dar
prazer a qualquer custo. Eu perdia a vez, mas ela n�o, renovava o seu prazer em
orgasmos sucessivos.
Fazer-me gozar virou obstina��o, era quase uma quest�o de honra, eu ia gozar ou ela
n�o se chamava Lize, a Geri�trica. Assim, o seu rabo subindo e descendo, os seios
balan�ando debaixo da camiseta que
se encharcara de suor e que ela arrancou dum golpe, jogando-a longe, as contra��es
do rosto, o corpo brilhante empenhado no objetivo �nico de me extrair o leite, era
tocante e voluptuoso a um s� tempo.
Aos poucos, fui sentindo o momento culminante chegar, como num crescendo musical,
at� que explodiu numa combust�o repentina de fogos de artif�cio, espet�culo
pirot�cnico dos mais esplendorosos.
Ufa exclamou Lize, exausta, desabando ao meu lado , voc� quase me matou.
Apagamos. Acordamos, j� noite adiantada, famintos. Tomamos uma ducha e sa�mos
apressados atr�s de comida. Depois de saciados, esticamos at� a danceteria da nossa
primeira vez, onde sempre acab�vamos indo
de tempos em tempos. Definitivamente acesos, ca�mos na gandaia, dan�ando at� o fim
da madrugada. Bebemos um monte. Lize, que antes s� tomava suco de laranja e
refrigerante, agora me fazia companhia em
tudo. Para encerrar, fomos at� o terreno baldio do Cost�o do Santinho e repetimos a
trepada, com Lize sentada no cap�, entre autom�veis an�nimos e c�mplices. Com o sol
� vista fizemos, sonolentos, o caminho
de volta ao hotel, em Jurer�. Despertamos somente � tarde, o dia luminoso e abafado
nos inclinou para o mar e adiamos a nossa partida. A cidade estava eletrizada pela
batucada das escolas de samba, aqui
e ali, e entramos no clima, curt�amos de noite e dorm�amos at� a tarde do dia
seguinte.
Na Ter�a-feira Gorda, acordamos impacientes para o regresso, t�nhamos a maior
urg�ncia do mundo, pedi a conta e deixamos o hotel �s pressas. A estrada estava um
inferno, como previ, todos os motoristas
contagiados da mesma praga. S� para ingressar na secund�ria que levava � BR-101 e,
portanto, sair da ilha, gastamos mais de uma hora. Era tal a quantidade de carros
na estrada que se tinha a impress�o
duma fuga em massa, como se a ilha tivesse se transformado em zona de perigo, com
algum monstro assustador dos filmes de Spielberg � solta. Cheguei a pensar em dar
meia-volta, escapar do estouro da manada
irracional de ve�culos, me abrigar em qualquer espelunca at� as coisas se
acalmarem.
Ao mesmo tempo, n�o aguent�vamos mais Floripa nem por um minuto. Ia consultar Lize,
mas ela dormia um sono profundo e ressonava, a boca entreaberta. Na inoc�ncia de
seu alheamento, n�o tinha percep��o
de que �amos bater em algum ponto daquela estrada. Na posi��o em que se encontrava,
estirada no banco reclinado quase na horizontal, o cinto de seguran�a talvez n�o
tivesse utilidade ou at� fosse danoso:
o corpo ia deslizar para a frente com o impacto e a tira se enganchar debaixo do
seu queixo, causando o enforcamento com o consequente rompimento da laringe,
asfixiando-a em seguida. Caso escapasse do
estrangulamento pelo cinto, seria lan�ada para diante, pela in�rcia, sob o painel e
comprimida nas ferragens. Estendi a m�o, num gesto reflexo, para segur�-la. Quando
a toquei, Lize acordou.
Que cara � essa, amor?
N�o soube o que lhe responder.
Me alcan�a uma cerveja? foi a �nica coisa que me ocorreu. Ela se revirou no
banco, abriu a caixa de isopor e tirou de l� uma lata.
Logo adiante, a estrada se complicou, congestionando em ambos os fluxos. Estreita e
congestionada. N�o s� estreita e congestionada, mas esburacada, mal sinalizada,
totalmente abandonada, a BR-101, quando
atinge Santa Catarina, vinda de qualquer dire��o, tem alguns dos seus piores
trechos. Nessa altura, no entanto, vira um istmo. � dif�cil de acreditar que � a
maior estrada do Brasil, estendendo-se por
toda a costa, do Rio Grande do Sul ao Rio Grande do Norte. Com a op��o do Governo
Federal pelo transporte rodovi�rio, o pa�s possu�a, no entanto, uma malha vi�ria
precar�ssima. Os caminhoneiros, os mais
atingidos, botavam a boca no trombone, mas o governo n�o estava nem a�. A serventia
do motorista � pagar imposto, ped�gio, e, sobretudo, ficar bem caladinho.
Pelo meu carro, por ser importado e do ano, eu pagava um tributo abusivo. Para onde
ia esse dinheiro? Aos Passageiros do Trem-da-Alegria, �s mordomias dos Maraj�s do
Planalto, �s Empreiteiras, aos bolsos
de todos os Pol�ticos e Empres�rios Corruptos do pa�s. Toda vez que eu pegava a
estrada, virava contribuinte indignado, maldizendo o governo. Lize ria dos meus
protestos e filmava a extensa fila de ve�culos
que se perdia no horizonte.
Vou filmar para voc� remeter ao Ministro dos Transportes e dar aquela bronca. Fala
a�, amor.
E eu desfiava uma s�rie de improp�rios que ela ia captando. A fila cont�nua,
Florian�polis-Curitiba, andava alguns metros e parava. Irritado, passei para o
acostamento e fui podando pela direita a extensa
fila imobilizada. Em seguida, o meu exemplo foi seguido por outros e, assim,
formamos uma segunda fila de ida, a �nica que permitia escoamento em velocidade
moderada. Quando, por qualquer motivo, era obrigado
a retornar ao leito da pista, alguns sacaneavam, fechando as brechas. Eu
simplesmente dava sinal e for�ava o ingresso. Talvez, com receio de uma batida no
Pret�o e a consequ�ncia de ter de vender o carro
para pagar o conserto, cediam lugar.
Um Santana, com um adesivo colado no para-choque traseiro escrito POLACO, volta e
meia, quando eu regressava � fila principal, me ultrapassava e eu percebia o
risinho de mofa do motorista. �De que adianta
um carr�o desses para quem n�o sabe dirigir?�, era o que dizia o sorrisinho voador.
Ousado, o motora embicava o carro em qualquer buraco e ia abrindo caminho. Fui
atr�s. Quando ele bobeava, no entanto,
era eu quem o podava, disparando para a frente. Era um japa o motorista do POLACO,
a fam�lia toda estava l� dentro, tudo olhinho puxado, pai, m�e, mulher, filhos,
animais dom�sticos, o resto da tralha
no bagageiro coberto por uma lona. O calor e a tranqueira estavam deixando o japa
visivelmente transtornado, o que descaracterizava a brandura da ra�a. Ficamos nessa
brincadeira de gato e rato por mais
de uma hora.
Uma placa � margem da estrada marcando a quilometragem indicava que hav�amos andado
apenas 20 quil�metros desde a sa�da de Floripa. Isso porque opt�ramos pela forma��o
da segunda fila, sen�o estar�amos
ainda sabe-se l� onde.
Nessa marcha, vamos chegar somente amanh� em Curitiba comentou Lize.
Ou depois de amanh� eu disse.
Rimos um bocado do coment�rio gratuito, r�amos para n�o chorar. O japa ficara l�
atr�s, e eu o controlava pelo retrovisor. Devia pensar que est�vamos rindo dele.
Lize n�o parava quieta, ora substituindo
as fitas no aparelho de som, ora filmando, ora me enchendo de afagos, ora
derramando cerveja na minha goela, batatinhas fritas e outros petiscos, como as
f�meas de p�ssaros fazem com seus filhotes. Quando
eu parara para abastecer, antes de deixar a ilha, enchera o isopor de gelo e comes
e bebes. T�nhamos suprimento para um bom tempo. �s vezes, eu abria o vidro e
recebia um bafo escaldante no rosto. L� fora,
o calor estava de matar. Com o ar condicionado ligado ao m�ximo no frio,
cheg�vamos, por vezes, a ter que baixar o marcador, pois a temperatura ca�a demais.
Comparados aos outros parceiros de infort�nio,
at� que n�o t�nhamos muito do que nos queixar. O japa, sim, devia estar buzina com
a temperatura beirando os 50 graus dentro do POLACO, sufocando sua gente e os
bichos de estima��o.
No ponto da estrada em que agora nos encontr�vamos, nada se movia, est�vamos todos
encalhados no seco. A pista da esquerda estava livre e n�o vinha nenhum carro
daquele sentido, mas ningu�m se atrevia
a invadi-la. Tudo indicava que teria havido algum acidente em algum ponto l�
adiante. Algumas pessoas abandonavam seus ve�culos e iam se abrigar nas sombras de
�rvores fora da estrada. Nisso, um helic�ptero
da pol�cia rodovi�ria come�ou a sobrevoar a estrada, dando rasantes temer�rios
sobre a fila de ve�culos que se perdia nos horizontes de ambos os lados, fazendo um
barulho estrepitoso que amea�ava estourar
os t�mpanos de todo mundo. Notava-se a exaspera��o crescente entre o pessoal dentro
e fora dos carros, o clima ficava cada vez mais pesado.
Em seguida, como uma onda, veio a confirma��o do acidente, a aproximadamente cinco
quil�metros dali. Muitos se puseram em marcha pela pista livre, em busca de
novidades. Eu me via obrigado a manter o motor
do carro ligado para n�o ter que desligar o ar condicionado, e o marcador de
temperatura j� se aproximava do tra�o vermelho. Em breve eu teria de desligar o
motor para que esfriasse um pouco.
Olhei o rel�gio, tr�s horas haviam se passado, tempo suficiente para se fazer o
percurso completo at� Curitiba, no entanto, n�o t�nhamos feito nem um vig�simo.
Lize e eu reclinamos nossos bancos e tentamos
tirar um cochilo. Volta e meia eu abria um olho para controlar o ponteiro da
temperatura. Dava pra dormir uma meia hora, eu calculava, antes que o ponteiro
atingisse o limite m�ximo de fundir o motor.
Vencido o prazo, achei conveniente apagar o motor e abrir as portas do carro, pois
o combust�vel tamb�m j� dava sinais de queda, ia ser pior a emenda que o soneto.
Nisso iniciou-se uma correria, o pessoal retornando aos seus carros. Uma viatura da
pol�cia rodovi�ria surgiu na pista desocupada ponteando uma fila de ve�culos atr�s
de si. A extensa fila do nosso lado,
a exemplo duma centopeia gigantesca, come�ou a se movimentar muito lentamente.
Foram muitas paradas e arrancadas at� o tr�nsito se normalizar. A partir de ent�o,
os catarinas mostraram por que levam a
fama de serem os piores motoristas do pa�s. Quem duvidar que fa�a o teste, tente
andar atr�s de um carro com placa de Florian�polis, mas pode ser Joinville,
Blumenau, Itaja�, Tubar�o, Crici�ma, o lugar
pouco importa. A primeira coisa que voc� vai notar � que o carro n�o sai de tr�s da
jamanta ou do carro que vai � frente. Eles t�m medo de fazer ultrapassagens, mas
tamb�m n�o permitem que ningu�m o fa�a.
N�o mesmo. A fila vai crescendo atr�s deles, mas n�o est�o nem a�, deixa que
cres�a, que digam, que falem. Simplesmente n�o cedem passagem: voc� d� sinal de
luz, buzina, pode at� plantar bananeira no cap�
do seu carro que n�o adianta. Pior, eles se mant�m na esquerda da pista, quando o
correto, previsto em lei, seria cair para a direita, deixando o v�o livre.
Aquele dia, para nossa desgra�a, a estrada estava entupida de catarinas. Muitos
paranaenses, alguns paulistas, um l� que outro carioca, e at� mineiro, baiano,
mato-grossense, brasileiros de todos os costados.
Mas a predomin�ncia maci�a era de catarinas, retornando �s suas cidades de origem,
no norte do Estado. L� estavam eles, como formigas, como se n�o bastassem os
incidentes de percursos.
Outro fato que chama a aten��o s�o as estat�sticas de acidentes envolvendo
caminhoneiros, os catarinas ganham a ta�a, disparados. N�o � antipatia gratuita,
n�o, quando estiver rodando por aquelas bandas,
observe e comprove, ent�o vai se lembrar do que estou dizendo e me dar carradas de
raz�o. Nesse dia, com o para e anda, os catarinas estavam simplesmente soberbos.
Ocupado com eles, esqueci o japa, que
passou chispando pela minha lateral, uma risadinha sard�nica modelada no perfil.
Vai deixar que isso aconte�a? instigou Lize, rindo da minha sinuca.
Pensei r�pido. Havia uma brecha na outra pista. Sem hesitar, entrei no contrafluxo
e acelerei. Eu tinha, com folga, um espa�o de mil metros livre. Lize seguia rindo,
divertindo-se aos montes, soltando
gritinhos de est�mulo, confiante na minha decis�o. Eu ia tocando na contram�o e
cuidando pelo retrovisor o japa que seguia ainda no acostamento. Nisso, a fila do
acostamento trancou e o japa ficou entalado.
Adiantei o que deu pela esquerda. Assim que o primeiro ve�culo em sentido contr�rio
come�ou a dar sinais insistentes de luz pela aproxima��o temer�ria, dei uma guinada
para a direita, aproveitando um v�o,
e, logo a seguir, para o acostamento, percorrendo, ainda, um bom trecho. Desse
modo, distanciei-me tanto do japa que o perdi de vista.
At� nunca mais, japa duma figa gritei euf�rico.
Lize, de joelhos no banco, gozava a situa��o, rindo muito, filmando a retaguarda.
Esse t� perdido disse ela , nunca mais se recupera, nem aqui nem na China.
Justo nessa altura, passamos por um motel. Comentei, al�ando as sobrancelhas:
Quem sabe a gente.
N�o, por favor gritou Lize , n�o aguento mais isso daqui, me tira dessa
barafunda.
Segui. Teria sido uma boa pedida, pois logo adiante a fila imobilizou-se novamente
e o acostamento ficou invi�vel. Lize reclinou o banco e esticou-se, bocejando. Em
poucos minutos, estava dormindo profundamente.
Bocejei v�rias vezes e aumentei o volume do som para me manter alerta. No vazamento
da torneira da estrada, os carros pingavam gota a gota. Passado o entroncamento de
Joinville, todavia, o tr�fego finalmente
foi melhorando. Um pouco depois eu j� andava a 160, esnobando com a pot�ncia do
motor. Fazia as ultrapassagens com um destemor que Lize teria criticado, caso
estivesse desperta, mas como apagara, eu sentava
o p� para recuperar o tempo perdido,
l� adiante, duas carretas seguravam o tr�nsito; fui podando os carros mais
atrasados e me aproximando delas,
atingi a rabeira da �ltima carreta; a estrada, nesse trecho, era cheia de curvas;
no sentido contr�rio, a fila de ve�culos tamb�m era extensa,
antes duma curva, vislumbrei um espa�o e fui com tudo, iniciando a ultrapassagem,
venci a carreta ao meu lado, que ia colada � carreta da ponta, n�o deixando espa�o
para que eu pudesse encaixar-me entre elas,
eu tinha a op��o de frear, retomando o meu lugar � rabada da carreta, ou tentar
vencer ambas,
a curva estava a pequena dist�ncia, mas eu tinha m�quina sobrando; optei pela dupla
ultrapassagem, reduzi para a quarta e pisei fundo no acelerador; com isso,
adiantei-me um pouco mais,
quando atingi a curva, j� estava emparelhado com a cabina da carreta da frente,
ganhando terreno,
repentinamente, logo adiante, despontou um Truck azul encabe�ando a fila do lado
oposto,
o assanhado touro andaluz disparava contra mim, a las cinco en punto de la tarde,
na frente da carreta da qual eu finalizava a ultrapassagem, a menos de cem metros,
avistei a traseira de outro caminh�o parado no acostamento,
num relance, pude avaliar a arapuca na qual ca�ra,
o Truck crescia na minha dire��o; eu n�o teria tempo suficiente de enfiar-me entre
os dois caminh�es, entre o que vinha e o que ia,
o motorista ao meu lado n�o tinha como frear nem me dar passagem sem bater na
carreta estacionada,
a cara crispada do homem antecipava o pavor da batida iminente,
explodiu a buzina num alerta geral, tapeando o ar em ordem expressa para que eu
tomasse o acostamento oposto,
o veloc�metro marcava 140; pensei r�pido, ele tinha raz�o, a minha �nica chance era
sair pela esquerda e alcan�ar o acostamento da outra m�o,
olhei Lize que dormia a sono solto, em completo alheamento,
que baita cagada eu tinha feito,
o Truck j� me abalroava, e dei uma guinada que talvez me fizesse capotar,
um sil�ncio brusco se condensou,
�amos ser lan�ados num suave declive, bater na cerca de arame e invadir a planta��o
de milho,
iniciei o frenamento para evitar a capotagem,
teria dado certo se o motorista do Truck n�o tivesse feito a mesma op��o que eu e
puxado o enorme ve�culo para a sua direita, bem ao meu encontro.

.a mulher j� era, o cara ainda t� respirando, mas t� todo fodido.


Eu n�o reagia, n�o enxergava nada definido, exceto borr�es de luz, escutava vozes,
apaguei v�rias vezes, eu flutuava, deviam estar me transportando, ouvi uma sirene.

Este precisa de cirurgia, AGORA gritou uma voz masculina.


Eu distinguia vultos brancos correndo ao meu lado, ru�dos de engrenagens
disparando, algu�m berrava ordens, recomendava provid�ncias. �Onde est� Lize?�, eu
queria perguntar, mas minha voz n�o sa�a, houve
um grande clar�o, um baque, apaguei de vez.

O SONHO

�Tenho que ser cruel para ser justo;


Aqui come�a o mal, o pior ainda vem.�
Hamlet William Shakespeare
Na CTI, a dor era de corpo inteiro. Imobilizado na cama, me sentia esquartejado,
com v�rios aparelhos fixados em mim. Era como se as partes do meu corpo estivessem
interligadas apenas gra�as a eles. N�o
distinguia ningu�m � minha volta. Os vultos entravam, me picavam, me faziam engolir
comprimidos, trocavam os frascos suspensos nas arma��es de metal e conectados aos
meus bra�os por tubos e agulhas, e
ent�o sa�am. Logo depois as dores ficavam mais suport�veis e eu apagava. Passei a
aguardar essas visitas com expectativa cada vez maior. Como n�o conseguia alcan�ar
a pera de chamada da plantonista, nem
falar por causa do artefato met�lico preso � minha mand�bula, ficava na depend�ncia
total do ir e vir dessas apari��es. �s vezes, custavam tanto para retornar que eu
chegava a supor que tivessem me esquecido.
Em algumas ocasi�es, me flagrei chorando. N�o sei quanto tempo se passou at� eu
poder balbuciar algum som ou mover o bra�o direito, alcan�ar a pera e desencadear o
processo de atendimento.
Ao chegar nesse est�gio, o esquema era este: eu comprimia o bot�o e, se n�o
aparecesse ningu�m nos pr�ximos dois segundos, me punha a grunhir como um animal
agonizante. Das divis�rias de pano branco que
cercavam o meu leito chegavam outros sons inumanos tamb�m muito estranhos. Um dia,
algu�m me disse:
Se o senhor tem recursos, por que n�o contrata uma enfermeira particular?
E como eu fa�o isso?
No mesmo dia, apareceu uma mulher se oferecendo, e eu n�o hesitei em contrat�-la
para turno de 24 horas. Na manh� seguinte, ou outro dia qualquer, n�o sei se minha
contratada ou n�o, me fizeram higiene
sem tantos solavancos, aplicaram sedativos e apaguei em seguida. Quando tornei a
abrir os olhos, percebi que haviam me trasladado para um quarto individual. Pela
janela, entrava um jato de luz que me cegava,
e todo o cen�rio ao meu redor era o do sonho que me atormentara v�rias noites num
passado n�o muito long�nquo. Meu est�mago gelou e urinei na cama. Aos poucos,
parentes e conhecidos foram aparecendo. Repeli
a todos. N�o podia imaginar que fosse t�o popular, quando menos esperava, ia
entrando algu�m no quarto com express�o condo�da. A carni�a atrai os urubus, essa �
a verdade. Exigi que me trocassem de quarto
e determinei que n�o fosse dada nenhuma informa��o sobre o meu estado. Acesso, s�
com a minha autoriza��o expressa. Nunca dei nenhuma.

Eu tinha perdido o p� esquerdo no acidente, a m�o e o antebra�o do mesmo lado


sofreram mutila��es graves, fraturas na cabe�a e no tronco, perfura��o da bacia,
les�es generalizadas. Tinham me remontado,
conforme palavras do cirurgi�o, da melhor maneira. Quanto a Lize. Bem, ela tivera
morte instant�nea.
Em determinadas horas do dia, as dores me enlouqueciam, literalmente. Eu lutava
contra elas, aos gritos e palavr�es. Laura, a enfermeira contratada, tinha muita
paci�ncia comigo. Claro, n�o fazia mais
que a sua obriga��o, era treinada e recebia por isso, honor�rios que faziam inveja
�s suas parceiras de profiss�o. Bastava eu gemer que ela vinha correndo com a
seringa de morfina. N�o ligava quando a
inclu�a no ros�rio de improp�rios que eu desfiava dia e noite.
Acalme-se, dr. Jorge dizia uma voz sem emo��o , assim � pior, agitando-se, a dor
aumenta.
Ah, �? Pois vamos trocar de lugar, a� fico calmo. Vem pra c�, vem. Quero ver sua
valentia.
Ela continha o riso, virando o rosto para que eu n�o notasse.
Estou aconselhando porque sei como funciona, relaxe que a dor passa.
N�o tenho medo da dor, eu quero que ela se foda, vai se foder voc� tamb�m, sua
xexelenta. Ela virou o rosto, novo riso. Ah, �? Vai ficar me gozando, sua
vagabunda, bunda-mole, cocozenta?
Ela n�o conhecia o repert�rio que eu tomara emprestado de Zilda, essa sim
especialista em palavr�es cabeludos, ia lhe mostrar o que tinha aprendido e
aperfei�oado.
Pode me xingar � vontade, n�o ligo, posso avaliar o que o senhor est� passando,
sei que � duro. H� muitos anos convivo com a dor dos outros, sei que n�o � f�cil. O
senhor at� que � muito corajoso, outros
choram, se lastimam, o senhor xinga, esbraveja, cada um reage � sua maneira. O
senhor pelo menos demonstra que tem coragem, que n�o se entrega agora suas
palavras estavam carregadas de emo��o. Mesmo
assim, procure se acalmar, vai ver que � melhor ainda.
Desculpa, Laura, tou com raiva � de mim mesmo, voc� � uma boa pessoa, me d� a
porra dessa inje��o duma vez, vai.
Temos que esperar mais um pouco ainda, dr. Jorge, n�o faz nem uma hora desde a
�ltima dose, a prescri��o � de tr�s em tr�s horas.
Me d� essa merda, AGORA, ANDA.
A dor continuada �s vezes ficava insuport�vel, ela saiu e retornou em cinco
minutos, mas que me pareceram semanas, aplicou-me o l�quido e a dor come�ou a
diminuir, diminuir.
Ave, Laura, morituri te salutant.
Laura sorriu, apaguei. Aos poucos, por�m, a dor foi cedendo. No espa�o de um m�s,
Laura tinha sido a c�mplice perfeita. Eu dizia �mata�, ela, �enforca�. Entrara na
minha, a nossa comunica��o era n�o verbal,
bastava perceber uma leve contra��o na minha face, que j� entrava em a��o.
Certa tarde, antes de ir embora, ela veio com a agulha da seringa pingando na minha
dire��o.
N�o precisa mais, a dor est� passando, esta bosta est� se indo, Laura eu disse
expansivo.
At� que enfim, hein, dr. Jorge?, at� que enfim. Posso tirar folga amanh�, doutor?,
� domingo pediu ela imediatamente.
Cruzes, que mulher mais pr�tica aquela, bastou eu dar o p� para que ela fizesse na
hora um soneto como uma repentista de plant�o.
Est� louca para se ver livre de mim? Vai me deixar entregue aos sanguessugas? Eu
me referia � equipe do hospital, que esbanjava antipatia por mim, eu que os xingava
o tempo todo.
O pessoal � bacana, o senhor � que implicou com eles.
Bacana?, umas pinoias.
Est� bem, doutor, se o senhor n�o quiser, n�o tiro folga. Estou aqui para servi-
lo. A sua voz era de uma temperatura glacial.
Pare de me chamar de doutor, n�o sou doutor porra nenhuma, sou um bosta dum
fodido.
Ok, Jorge, ok. Foi como me recomendaram que o chamasse, mas se n�o gosta.
Ent�o est� dispensada, se quer ver a minha caveira, n�o posso for��-la a mudar de
id�ia.
Pobrezinho, v�o fazer presunto dele segurou minha m�o.
Acha que n�o?
Ok, obrigada, sabia que ia ser compreensivo. Se precisar de mim, pode mandar me
chamar, eles t�m o telefone da minha casa.
Cad�veres n�o precisam.
Est� bem, Jorge, voc� me convenceu, estou cancelando a folga.
Vai, vai, antes que eu me arrependa.
Ela me deu um beijo na testa e saiu. Tinha arranjado uma amiga que me dava banho,
me barbeava, me penteava, sentia meus fedores, aguentava minhas fraquezas, limpava
minhas pudendas, me expurgava as dores,
Laura era uma baita mulher. O domingo sem ela, no entanto, foi dif�cil. Descobri
que estava dependente de sua presen�a, seus cuidados, seus mimos, a gente falava
pouco, mas se entendia muito pelos olhos,
era uma profissional competente, intuitiva.
O momento cr�tico do dia foi na hora do �ngelus, o alto-falante do quarto ao lado
transmitia em alto volume uma voz � la Cid Moreira rezando e de fundo a solista
cantando a Ave-Maria de Bach/Gounod. A
ordem que eu dera a Laura fora manter o volume do som do nosso quarto sempre no
zero. Chamei a atendente.
Diz para baixarem o volume.
N�o posso fazer isso, o volume est� normal, o senhor.
V� � merda, sua puta.
Seu grosseir�o retrucou a mulher, me dando as costas. Saiu batendo a porta atr�s
de si.
A m�sica se prolongou at� o fim. Ali, s�, consciente e deliberadamente s�,
enfrentei as vozes do coro que me atingiam mais do que a dor, pois me faziam
lembrar Lize. Quanto mais a dor diminu�a, mais a
lembran�a dela crescia. Meu peito se confrangeu e chorei um bocado. Sentia-me
definitivamente s� e triste, a metade de mim, o peda�o de mim, tinha sido
arrancado, e agora eu estava sozinho, um corpo sem
causa, in�til, in�til. Um sentimento de nulidade que me dava consci�ncia de que
havia transposto um est�gio proibido, sem retorno, no qual as portas v�o se
fechando � nossa passagem e s� temos a op��o
do embate frontal, cara a cara com o v�cuo existencial.
A partir de agora, tudo se clareava, e eu tinha de conviver com a realidade nua e
crua, n�o havia mais como esconder a morte de Lize, enfiar a cabe�a no buraco como
um avestruz e desconhecer o que se passava
na superf�cie. Eu espichava a minha perman�ncia no hospital para n�o ter que voltar
ao moc�, ao nosso ninho de amor, eu me sedara e dormira al�m da conta para n�o ter
que encarar a falta de Lize, eu queria
fugir do contexto onde todos est�vamos soterrados, eu, Lize, Judita, meus filhos, a
puta-que-pariu, eu queria escapulir da culpa, da mea maxima culpa.
Mas n�o havia como. Eu era, irremediavelmente, o culpado pela morte da pessoa que
mais amara na vida, por n�o
ter sido razo�vel, n�o ter seguido os conselhos b�sicos de seguran�a, por ter sido
imprudente e desequilibrado. Ela pagou pelo meu desajuste. Quantos j� tinham pago o
pre�o por conviver comigo?

Na manh� seguinte, quando Laura abriu a porta, fui lhe dizendo:


Me leva embora, n�o aguento mais isto aqui.
Laura ensacou minhas roupas, meus medicamentos, aguardamos a chegada do m�dico para
prescrever a alta, que j� poderia ter sido dada havia algumas semanas. O m�dico me
fez algumas recomenda��es, as quais
Laura escutou atenta. A sa�da do hospital foi menos penosa do que imaginei,
colocaram-me na cadeira de rodas e l� fomos n�s, no final da manh�. Um mutilado
passa a ter dificuldades mil para se deslocar,
um veterano mutilado, pior ainda, pois tem que mudar os h�bitos de uma vida
inteira.
Entrar e sair do t�xi foi a primeira. Laura e o motorista fizeram o trabalho
pacientemente, o ranheta, o purgante, era eu, me queixando e enchendo o saco o
tempo todo. Ao chegarmos ao pr�dio, descobrimos
que n�o t�nhamos chaves, um detalhe para o qual sequer atent�ramos. Laura foi atr�s
de um chaveiro, que fez o servi�o sem grandes problemas, bastaram-lhe alguns
segundos.
O apartamento cheirava a mofo. Laura escancarou as janelas e deixou o sol entrar.
Eu comandava bem a cadeira alugada com o bra�o direito e fui at� o quarto. A
aus�ncia de Lize era imensa. Abri uma porta
do roupeiro e olhei suas roupas, todas ordenadas, ela era muito met�dica e zelosa
com seus objetos pessoais. Respirei fundo e fui procurar Laura, que estava na
cozinha.
A pata est� doendo.
Fez muito movimento hoje, temos que levantar a perna, lembra-se do que o doutor
falou?
Aplicou-me uma forte dose de morfina.
Laura, vou precisar de voc�.
Eu sei, pode contar comigo, � s� o tempo de eu ir em casa pegar umas pe�as de
roupa.
S� por uns dias, depois voc� continua fazendo apenas o turno diurno.
N�o tem problema, o tempo que for necess�rio.
Obrigado.
De nada.
Laura me preparou um lanche e saiu. Retornaria logo, logo. Deixou-me deitado no
sof� com a perna apoiada no encosto.
N�o se mexa da� recomendou.
O telefone tocou v�rias vezes, quem poderia ser? Lize e eu quase n�o o t�nhamos
usado nem fornecemos o n�mero para ningu�m. Tive ganas de atender, mas obedeci �
ordem de Laura, n�o me mexi do lugar,
eu era um menino bem comportado. Fiquei ali, inerte, olhando a casa, eu temia o que
tinha pela frente, acostumar-me � presen�a infact�vel de Lize. Ela estava ali, eu
sentia, s� n�o podia v�-la, toc�-la.
Apare�a, meu bem eu disse, emocionado , quero te ver.
Eu havia, n�o digo sonhado, mas delirado com ela enquanto estava no hospital,
diversas vezes. Eram alucina��es terr�veis, com muitas brigas, discuss�es, pela
primeira vez eu a via raivosa, ela assumia
o papel de Zilda, me fazendo acusa��es ofensivas, Judita tamb�m frequentava esses
desvarios, sempre acusativa, como a filha. Eu me humilhava, de joelhos, lhes pedia
perd�o. Numa dessas, Judita me chutou
sem d� a perna amputada, e eu acordei com dores horr�veis. Lembrar esse per�odo �
sempre mortificante.
Em outra ocasi�o, sonhei com o acidente, a estrada tumultuada, mas tanto Lize
quanto eu sa�mos ilesos. Foi o �nico sonho bom, compensador, que tive. No sonho, a
realidade � que parecia ser o pesadelo.
Agora, no moc�, num local que Lize assimilara rapidamente, eu temia o inconsciente,
os fantasmas, a tortura psicol�gica.
Acho que dormi, pois, quando dei por mim, Laura j� havia regressado. Fiquei
aliviado com a sua presen�a, o seu bi�tipo atarracado de mulher din�mica tinha um
forte apelo maternal, estava na profiss�o certa,
ela pr�pria era um b�lsamo para os doentes, com seu jeito bonach�o, tranquilo,
protetor. Serviu-me um bife malpassado com salada verde. Enquanto eu comia, p�s-se
a faxinar o apartamento. Extrapolava suas
atribui��es de enfermeira para dona de casa e servi�al, e fazia isso com uma
naturalidade incr�vel, ela era uma dona incr�vel.
Deixe isso, mulher eu disse, tentando brec�-la , amanh� a gente contrata uma
diarista.
Este apartamento passou muito tempo fechado, est� repleto de fungos e �caros, d�
pra sentir no ar, sou al�rgica a esses bichos. Outra coisa, patr�o, seria bom
comprar um filtro de �gua, n�o me arrisco
a tomar �gua das torneiras de Curitiba.
Temos ainda que fazer algumas adapta��es por aqui para iniciarmos o trabalho de
fisioterapia. ou pretende passar o resto da vida numa cadeira de rodas ou usando
muletas? Lembra do que o m�dico falou?
Com uma pr�tese mec�nica, ningu�m vai saber que o senhor n�o tem p�. O bra�o e a
m�o tamb�m t�m jeito, � preciso trabalho, apenas. Portanto, m�os � obra, seu
pregui�oso, e j�. S� preciso de dinheiro para
tomar essas provid�ncias.
Falou, patroa, falou, t� falado.
Ent�o, toca pro banho, mas antes fa�a a barba.
J�, j�.
Amanh� cedo vai pro cabeleireiro.
O que � que voc� quer fazer comigo?
Quer saber mesmo? Quero preparar voc� para ser meu par num bail�o.
Voc� endoidou, Laura?
Agora que estamos morando juntos, vai conhecer o meu lado festeiro, homem que mora
comigo tem que me levar pro belel�u, sen�o n�o me segura.
Ca�mos na risada. Eu tinha encontrado a Am�lia, a Mulher de Verdade. Fui pro
banheiro, fiz o que ela recomendou, me barbeei, depois me sentei no piso, fechei o
box e deixei a �gua escorrer sobre mim durante
um bom tempo, s� precisei da ajuda de Laura para vestir o pijama, comprado por Lize
e nunca usado. A perna recome�ara a doer. Voltei pro sof�, Laura continuou a
limpeza nas outras depend�ncias. Apontou
na porta, apoiou o ombro no batente, segurando um porta-retratos.
Quer que eu ligue a tev�?
Que tev�?
N�o tem tev� nesta casa? Nunca vi casa sem tev�.
As mesmas palavras de Lize quando dera falta da tev�, disse que s� casaria comigo
se eu comprasse uma tev�, prometi que ia comprar, mas fui protelando, depois at�
esquecemos, fascinados com o nosso pr�prio
espet�culo. Depois de casados � que n�o tive tempo de comprar. Ia dizer a Laura que
detestava tev�, mas fiquei calado. Mostrou-me a foto.
Era ela?
Era, Laura, chamava-se Lize, est�vamos apaixonados.
Acho que li alguma coisa no jornal. Era uma linda menina.
Esta era a primeira vez que toc�vamos no assunto, Laura sempre fora super discreta.
Sentou-se na ponta do sof�.
Quer falar sobre ela?
Contei-lhe como t�nhamos nos conhecido, como nos apaixon�ramos, como t�nhamos
resolvido viver juntos, como tudo acabara, t�o bruscamente, falei ainda um longo
tempo sobre um bocado de coisas.
Acho voc�s duas muito parecidas.
Obrigada pela parte que me toca, quisera eu ser t�o bonita assim.
Calei-me, engasgado de emo��o. Laura, quieta, olhava a foto, n�o teceu o m�nimo
coment�rio, esperando que eu continuasse. Como n�o consegui mais abrir a boca, ela
ergueu-se, entregando-me o porta-retratos.
Vou deixar voc�s dois a s�s disse e saiu da sala.

Os dias que se seguiram foram de muita movimenta��o. Laura me botava pilha, me


encorajando a voltar a usar minhas pr�prias pernas, ou o que sobrara de uma delas.
O ortopedista me prescreveu um p� mec�nico,
que eu mandei confeccionar numa casa especializada. Descobri que existe uma
ind�stria ortop�dica funcionando a mil, da qual eu n�o tinha a m�nima id�ia. Fazem
pr�teses de todo o tipo, eu lia os prospectos
para me inteirar, deviam ter at� olho do cu sobressalente para alegria das bichas
avariadas.
O bra�o e a m�o esquerda exigiam trabalho de fisioterapia. Todo santo dia Laura me
levava para a cl�nica, e eu ficava l� a manh� toda, de um aparelho para outro,
forno de Bier, luz infravermelha, ultrassom,
polias com pesos, o diabo. Mexendo com a musculatura atrofiada, as dores
retornaram, fodidas, mas suport�veis. Eu convivia com elas como o casal que se
odeia, mas n�o se separa porque o v�nculo de depend�ncia
neur�tica � mais forte.
O progresso era lento, o t�dio, mortal. No rosto e na cabe�a ficaram cicatrizes
feias, na t�mpora esquerda, um afundamento. O Pitanguy ia ter que rebolar para
botar ordem no peda�o. O nariz estava intacto,
restava-me esse consolo. O cabelo crescera, e eu penteava-o para o lado das falhas,
na tentativa de cobri-las, de modo que o estilo do corte seria fundamental dali
para diante. Vaidoso como sempre fui,
ficava dif�cil aceitar a mudan�a. Antes, eu j� me preocupava com rugas que sequer
haviam aparecido, agora, com a cara escalavrada, um olho ca�do, a boca torta,
totalmente fora de esquadro, s� ia me dar
bem em filmes de porno-terror. O Garanh�o da Cabe�a Inchada, Os Mancos Tamb�m Amam,
O Manco Contra-Ataca.
Quando o p� ficou pronto, voltei � inf�ncia, e retomei o aprendizado de andar.
Laura dizia:
Dand�, nen�m, dand� pra ganhar tent�m.
E eu andava at� ela, claudicante, babando pelo pirulito que ela me acenava.
Inicialmente, com a ajuda de uma bengala. Depois, ensaiei os primeiros passos sem
apoio e as dores pediram div�rcio, foi uma
separa��o sem ressentimento. Tirando os defeitos, eu restara um homem normal,
encantador, para a mam�e coruja que era Laura. Ela tivera uma participa��o decisiva
no meu restabelecimento. De meia em meia
hora me servia uma x�cara de ch� de est�mulo, uma colher de sopa de brio,
cataplasmas de amor-pr�prio, massagens de garra e perseveran�a. Sem Laura, eu teria
apodrecido na cama ou virado um parasita da
cadeira de rodas. Eu absorvia, por cont�gio, toda a vitalidade do seu corpanzil
irrequieto, resistente, at� passei a ver o mundo um pouco pela sua vis�o sempre
otimista e infinitamente pr�tica. Um dia,
ela deu por encerrada a sua miss�o.
Est� um belo garot�o, n�o precisa mais de mim.
Sorri para ela, destilando gratid�o.
Se voc� n�o fosse comprometida, eu iria me habilitar.
E quem disse que voc� faz o meu tipo?
Abra�amo-nos, e ficamos assim um longo tempo, chorando, por fim nos separamos. Ela
se foi, levando a minha promessa de que eu iria visit�-la, vez ou outra, e fiquei
com a dela, mas sab�amos que era uma
despedida definitiva, nunca mais ir�amos nos ver, cada um tinha ou n�o os seus
afazeres pela frente. O cord�o umbilical estava rompido, agora eu estava por minha
pr�pria conta, de novo s�. Confesso que
senti o est�mago gelar quando a vi sumir da minha vista.

Pelas fotos e fitas de v�deo, recomecei a vida com Lize. Ela juntara centenas de
fotos em v�rios �lbuns e eu os manuseava diariamente. Levava horas, o dia todo
nisso. Eu sabia que era m�rbido proceder
assim, remexer num passado sem volta, mas n�o conseguia evitar. Eu procurava
interpretar o que Lize tencionara fixar em cada instant�neo, o efeito de cada
gesto, cada express�o, a ess�ncia de toda a sua
vitalidade existencial estava ali condensada. Sob esse aspecto din�mico, vital,
determinado, Lize e Laura se assemelhavam, elas usavam atalhos para resolver as
coisas, n�o sofriam as hesita��es da d�vida,
disparavam a decis�o como uma seta, e, via de regra, a resolu��o tomada atingia o
alvo, era a acertada. Esse car�ter pr�tico de resolver as coisas � que me encantava
nelas, a simplicidade, o descomplicado
modo de ser das duas. Quanto a mim, andava em c�rculos ou dire��es helicoidais, em
emaranhados tortuosos, labir�nticos, nunca em sentido retil�neo, comigo as coisas
n�o transcorriam lubrificadas, escorreitas,
mas pesadas, imbricadas. Sem Lize eu estaria, ainda, colecionando calcinhas, sem
Laura, amargando autopiedade. Aprendera alguma coisa com elas, apesar dos pesares.

Mesmo assim, eu tinha plena consci�ncia de ser um debiloide completo. Quando eu


tirava o p� mec�nico, para me banhar ou dormir, e me mirava no espelho, vendo o
conjunto do meu corpo, o rosto desfigurado,
a m�o mutilada, a insufici�ncia motora do membro superior esquerdo, o toco da
perna, eu via o qu�? Um homem que era a pr�pria representa��o do seu inconsciente,
o retrato da sua s�ntese, o somat�rio dos
seus erros e acertos, a massa de modelar que ia se alterando com o passar dos anos
e que acabaria como, onde e quando?
E ent�o, meu amor, o que acha de mim, agora?
Lize n�o se impressionava com as minhas deformidades, continuava me olhando com a
vis�o deformada e afetuosa dos apaixonados. A vida passa, o amor n�o, ela me dizia
com o seu doce e franco sorriso juvenil.
A aus�ncia de Laura me aproximava cada vez mais de Lize, como se ela tivesse
repetido ao ir embora: �Vou deixar voc�s dois a s�s�. At� a minha resist�ncia com a
tev� foi superada, comprei um aparelho pequeno,
quatorze polegadas, em cores, e um videocassete. Eu morria de curiosidade de
assistir �s fitas gravadas por Lize. Mas foi uma experi�ncia dolorosa demais. Ao me
deparar com a imagem animada e o som de
sua voz, ca�a numa esp�cie de del�rio alucinat�rio, seguido por avassaladora
depress�o. Pirei completamente. Enchia a cara durante a reprodu��o do audiovisual.
Passei semanas num torpor alco�lico pr�ximo
da abulia. Recebia o est�mulo das imagens, mandava litros e litros de u�sque,
afundava no limbo. Descobrira a melhor maneira de ir ligeirinho para o espa�o. As
cenas de Lize nua com o colar de p�rolas
tinham ficado muito boas, hiperexcitantes, dignas da Playboy. N�o tive, por�m, a
m�nima rea��o, o Buck Jones tava l�, mortinho da silva.
N�o me lembrava de ter tido uma ere��o nos �ltimos meses, o membro servia apenas �s
chamadas fisiol�gicas da mic��o. O bloqueio seria consequ�ncia da perfura��o
sofrida na virilha ou traumato-psicol�gico?
Mas essa situa��o, em absoluto, n�o me incomodava, muito pelo contr�rio, finalmente
me libertara de uma imposi��o biol�gica � qual estivera sempre condenado. Enfim
livre, brocha, mas feliz. Nem me cutucou
procurar um m�dico para descobrir a causa da impot�ncia precoce, eu ficara
psicologicamente mais calmo, mais racional, anal�tico. Compensou. Liberto dos
apelos da carne, eu me elevava para um novo patamar
na escala da evolu��o, passava a ser dono das minhas emo��es e secre��es. Passei a
ver com nitidez o car�ter dispersivo do sexo, uma v�lvula de escape que s� serve
para nos confundir. Na verdade, o sexo
n�o tem outra fun��o a n�o ser a procriativa, no mais, tudo � confete e serpentina.

Fui � fonte dos jornais da �poca do acidente, consegui grava��es de telejornais,


depoimentos de testemunhas, registros de ocorr�ncias, tive acesso aos laudos
periciais e de necr�psia, etc. Me inteirei,
ainda, pelos avisos deixados pelo oficial de justi�a na portaria do pr�dio, que
estava respondendo a um processo de autoria de acidente de tr�nsito com v�timas
fatais. Tive que constituir advogado. O motorista
da carreta, que tivera ferimentos leves, pedia indeniza��o pelos danos causados ao
seu ve�culo. Me dei conta, tamb�m, de que j� se tinham passado oito meses desde a
morte de Lize. Havia ainda o processo
de separa��o amig�vel proposto por Judita. Nunca fui t�o requisitado.
Eu abdicara da mea��o no tocante ao rol dos bens dom�sticos, ficando apenas com as
roupas e outros objetos de uso pessoal. Quanto aos im�veis, no entanto, seriam
vendidos e divididos paritariamente. Laura
fora buscar tudo para mim na casa que Judita ainda ocupava com Jonas e Zilda. Laura
me acompanhara, tamb�m, ao f�rum, para assinar a separa��o, pouco antes de encerrar
a sua competente presta��o de servi�os.
Judita e eu mal nos olhamos. Restava aguardar a tramita��o do processo e a
expedi��o dos formais de partilha. Trinta por cento da minha renda de alugu�is e
sal�rio-aposentadoria iam para a conta de Judita,
o que achei justo, estava acabado. Iniciava a nova vida sozinho.
Passei a organizar tudo o que se relacionava a Lize e a mim, tinha um bocado de
coisas. Al�m das fotos e das fitas de v�deo, havia cartas, bilhetes, guardanapos de
papel de restaurantes, flores secas guardadas
em livros e cadernos. Demorei semanas etiquetando pastas com o nome Ninho. Quase
diariamente repassava todo aquele material, numa ordem determinada. Via, lia,
relia, treslia.
Continuava ainda escrevendo para Lize na m�quina de escrever, agora com muita
dificuldade, pois dedilhava apenas com uma das m�os, n�o cartas, mas mensagens
singelas, frases soltas, despretensiosos versos,
acr�sticos, palavras avulsas de amplo significado privativo, coisas assim. Era uma
simula��o, como se Lize tivesse se ausentado provisoriamente, ido visitar os pais
em Umuarama, por exemplo. Em certos
est�gios da bebedeira, chegava a acreditar realmente nisso.
Quanto ao dossi� F�meas, empacotei-o em pequenos volumes, que fui despejando pela
lixeira do pr�dio. Minhas sa�das e entradas eram pela garagem, para evitar vizinhos
e porteiros. Quando a campainha da
porta ou do interfone tocava, eu nunca atendia.
Os parentes de Lize haviam se apropriado dum corpo que era meu, aproveitando-se da
minha inconsci�ncia, � revelia da minha vontade. Quando sa� do coma, ressurgindo do
nada, os familiares da parte dela
e da minha j� tinham tomado as provid�ncias de praxe, coisas como atestado de
�bito, resgate do seguro, inuma��o, o escambau. Eu n�o tivera op��o, me sentia
roubado. Eu n�o tinha mais passado, a n�o ser
Lize, e mesmo assim era logrado intempestivamente. Ah, n�o.
Cheguei a pensar durante um tempo em ir at� Umuarama, sua terra natal, e negociar
com a fam�lia a remo��o dos seus restos mortais para Curitiba. Mas depois mudei de
id�ia. O qu� eu ia fazer com o defunto
de Lize? Praticar necrofilia? O que eu tinha para resolver com Lize independia de
seu cad�ver, j� decomposto, era todo um processo de adapta��o � sua aus�ncia. Eu
pr�prio a arrancara de mim, n�o tinha
direitos exclusivos sobre ela. Mas n�o fizera isso sozinho, fora envolvido naquela
circunst�ncia absurda. Mas por quem? Isso me dava uma raiva gratuita, sem alvo. Um
sentimento devastador que me botava
em transe, aos gritos, atacando tudo o que encontrasse pela frente. Eu vomitava fel
como um vulc�o, a m�o direita machucada, muitos m�veis e utens�lios destro�ados.
Assim come�ou a crescer dentro de mim o sentimento permanente de �dio generalizado.
Um h�spede inc�modo, como o alimento pesado que fica horas no est�mago sem
digest�o. O que eu estava fazendo era brincadeira
de crian�a, bater em objetos. Precisava era matar gente para me acalmar. Matar
simplesmente, n�o, mas brutalizar, apavorar, como um justiceiro implac�vel. Em um
breve momento de sanidade, por�m, tentei
solucionar a coisa comprando um grande e pesado saco de areia. Instalei-o no centro
da sala, fixando-o num trip� de caibros sete por sete. Eu mesmo comprei o material
e confeccionei a arma��o, possesso,
dando marteladas a torto e a direito. Ficou parecendo mais um lustre estramb�tico
do que qualquer outra coisa. Assim, passei a bater no saco toda vez que a crise
sobrevinha, dia ou noite. Obedecia aos
conselhos da mam� Laura, escolhendo um alvo substituto inanimado, golpeando o saco
at� a estafa. A ferida da m�o se agravando. Isso me acalmava, uau, me jogava no
ch�o exausto e dormia ali mesmo.
Mesmo assim, n�o era o bastante, sentia que faltava alguma coisa. Alguma coisa
consistente, cheia de vida. Talvez a meleca viscosa, sim, talvez ela conseguisse
aplacar a minha ira demon�aca, olho por olho,
dente por dente. Eu precisava de um grande carnaval para mitigar a minha vol�pia
vingativa, e como precisava. Despertava com aquele mal-estar, dispneico, uma prensa
comprimindo o peito. �Por que fizeram
essa sacanagem comigo? Lize n�o merecia isso, uma crian�a ainda.� Algu�m tinha que
pagar por isso. Eu n�o pensava em outra coisa enquanto desperto, somente vingan�a,
vingan�a. Tinha que descarregar o
meu �dio. Eu n�o podia, simplesmente, ter perdido o amor, raz�o de ser da minha
vida, e o mundo continuar intato. Lize n�o ia ser a �nica lesada, nem eu a pagar o
pato sozinho. Alguma coisa precisava
acontecer, qualquer coisa, delenda Cartago.
Foi quando explodiu o flash do Monza branco. Depois do incidente, eu n�o podia ver
Monza branco sem querer olhar a cara do dono. Procurava o bigodudo de �culos.
Virara obsess�o. �Claro, ta�.� Imediatamente
meu �dio passou a ter alvo, bastaria descobrir o motorista do Monza branco que
quase atropelou Lize e fazer picadinho dele. Eu tinha deixado esse assunto em
banho-maria por falta de oportunidade, epoch�,
ju�zo suspenso, aconteceram tantas coisas, agora era hora de retom�-lo.

Cheguei a tentar entender os motivos que poderiam t�-lo levado a ser t�o
imprudente. Imaginei ene motivos, at� um muito f�til, gerado pela carona. Quem sabe
a mulher o aporrinha, e ele, irritado, toma
a rua atabalhoadamente. Quando deseja, uma mulher pode transtornar um homem em
poucos segundos, acha que n�o? Est�o discutindo, entram no carro e o cara, fora de
controle, arranca. Sai em marcha � r�,
a toda, sem olhar para os lados, cego de c�lera. A esquina est� pr�xima e � seu
caminho, para qu� manobrar? Segue adiante. N�o se v� isso a todo instante, babacas
infringindo leis de tr�nsito, andando
na contram�o, o diabo? Quem nunca andou na contram�o em rua de sentido �nico, que
atire a primeira pedra. Quem vai dar uma volta no quarteir�o e gastar combust�vel
quando pode resolver tudo em instantes?
Mas e as leis? Algu�m liga para elas, algu�m vai ser punido? O Ministro que enrole
e enfie. Foi assim. De r�, no escuro e cego de raiva, sem ligar para nada, o cara �
um assassino potencial. Puxa, a morte
j� estava rondando Lize, urubu sobrevoando a carni�a. O cara devia morar pr�ximo de
n�s, ser nosso vizinho. Ta�, simples. Ia ser barbada localizar o paradeiro do
sujeito. Teria conseguido na �poca, sem
deixar que Lize tivesse conhecimento, claro, para n�o deix�-la apreensiva. Mas n�o
tive tempo, fomos ceifados pela voracidade do gume.

Usei uma estrat�gia. Comecei vasculhando a rua onde se dera o quase atropelamento.
Se a hip�tese do arranca-rabo dom�stico tivesse fundamento, ia ser barbadinha.
Batia palmas. Quero falar com o dono do
Monza branco. Ningu�m sabia. Dei a volta no quarteir�o, metade do bairro, nada.
Nenhum morador, no raio de um quil�metro a partir do ponto onde eu residia, tinha
Monza branco em sua garagem. Subitamente,
todos os Monzas brancos tinham sumido do mapa. Achei estranho isso, o mist�rio do
Monza branco. N�o teria me enganado? Talvez, no calor do momento, eu tivesse
confundido as bolas. N�o, n�o. Era Monza branco,
n�o tinha como errar. Nesse caso, com a hip�tese furada, voltava � estaca zero. N�o
me dei por vencido. S� teria que verificar quantos propriet�rios de Monzas brancos
haveria em Curitiba e fazer contato
para saber quais os que teriam circulado em tal rua a tais horas de tal noite de
tal s�bado.
Fui a um despachante e acertamos pre�o pela rela��o dos propriet�rios que ele
levantaria no Detran. Ele calculava que dentro de um ou dois meses j� teria alguma
coisa para me oferecer, ou talvez um pouco
mais. Fiquei � espera. Mas, e se o carro n�o fosse de Curitiba? E se o carro fosse
roubado ou emprestado? Ligava para o despachante.
E a�, meu?
Olha, cavalheiro, o problema � o seguinte, n�o est� sendo f�cil, n�o, convencer
essa turma a me abrir os arquivos. Precisaria de mais uma verbinha para molhar a
m�o deles. Esse pessoal s� funciona na
base da propina.
O cara me enrolou o que deu e me levou uma grana preta. Meti a boca nele por
telefone. Desanimado, desisti da busca. Batia no saco e pensava: �E se eu me
desforrasse em qualquer motorista de Monza branco,
qualquer um, aleatoriamente, azar do Valdemar?� Dessa forma, mesmo na loteria do
acaso, tanto eu poderia topar com o verdadeiro culpado, como n�o. Se topasse,
embora fosse uma possibilidade remot�ssima,
muito que bem, sen�o, que import�ncia teria? De qualquer modo, eu jamais teria
certeza disso, se era ou se n�o era, quando muito poderia convencionar que fosse e
pronto. A decis�o era minha, somente. Sim,
uma esp�cie de decis�o de equival�ncia com sentido simb�lico. Qualquer um que fosse
o legal propriet�rio de um Monza branco, a partir daquele momento, independente de
cor, credo ou op��o sexual, seria
o meu alvo, o culpado de quase ter atropelado Lize. Alea jacta est, o julgamento
chegara ao seu final, a senten�a definitiva fora prolatada.

Precisava me preparar devidamente para aquele cerimonial. Foi o que fiz,


aperfei�oando a linha mestra do meu louco projeto, avaliando os riscos e
consequ�ncias que poderiam da� advir. A pena m�xima de
reclus�o no Brasil � de 30 anos, tanto para a morte de um como de mil, optei pelo
m�ximo. Na verdade, um �nico motorista seria pouco para resgatar a inestim�vel
aus�ncia de Lize, muito pouco. Tracei um
plano simples, mais com o objetivo de ter alguma coisa palp�vel nas m�os, e n�o
deixar a inten��o morrer na casca, do que efetivamente partir para a a��o: apagar o
primeiro incauto que eu encontrasse utilizando
um Monza branco, desde que em circunst�ncias favor�veis de execu��o, �bvio,
tratando de me evadir em seguida. Em que isso implicava? Com o surgimento de
cad�veres de motoristas de Monzas brancos espalhados
pela cidade, seria iniciada uma ca�ada ao matador em s�rie, qualquer bobeada e eu
ia ver o sol nascer quadrado. Em fun��o disso, muito cuidado e sangue frio para
burlar a pronta rea��o da pol�cia. Inexperiente,
talvez me desse mal, precisava encarar essa possibilidade adversa.
Fiz uma sondagem �s profundezas geol�gicas do meu ser e conclu� que estava pronto
para o que desse e viesse. Mesmo assim, pintou a d�vida: na hora H teria coragem de
consumar o ato, assim, na maior? N�o
sabia responder. Na verdade, n�o tinha certeza de nada. Nesse caso, tinha que agir
primeiro e pensar depois. Parti para a a��o efetiva. Precisava de um carro para
seguir o Monza branco at� o lugar prop�cio.
Teria de ser um carro popular, de utiliza��o geral, que passasse despercebido, o
fusca seria o mais indicado. Teria que me habilitar novamente, pois nunca mais
tocara num carro, ou reaver a habilita��o
antiga, o que descartava de antem�o. Com o p� mec�nico, seria vi�vel ou teria de
fazer adapta��es? Fui a uma revenda de carros usados, fiz um test drive, tudo
normal, sem maiores problemas. Dali, procurei
um despachante, o meu caso ficava mais complicado porque tinha v�tima fatal, ia
precisar gastar um pouco mais para liberar o meu prontu�rio, exceto se tirasse nova
habilita��o no interior do Estado. Achei
melhor a segunda op��o. Propina alta. Mas tive a promessa de estar com a
habilita��o em 24 horas. N�o precisava nem fazer teste, s� acompanhar o despachante
e assinar uns pap�is.
Sa�mos cedinho para Castro, distante cento e poucos quil�metros da capital. Embora
a habilita��o fosse emitida pelo Detran de Curitiba, sa�mos de l� com uma
autoriza��o para apanh�-la uma semana depois,
quando o normal seria a demora de pelo menos um m�s, o primeiro passo estava dado.
Segundo, tinha que providenciar uma arma. Tamb�m n�o tinha a m�nima experi�ncia com
armas de fogo, atirara meia d�zia
de vezes na vida, deixara um rev�lver na casa de Judita, sabe-se l� onde estaria.
Antes de ir atr�s, comprei alguns livros sobre armas para me inteirar do assunto.
Achei melhor fazer um curso para aprender
a atirar. Em um m�s, adquiri uma pontaria razo�vel. Um colega de turma me indicou
um armeiro que vendia armas importadas. At� ali n�o tinha encontrado nenhuma
dificuldade, tudo lubrificado. Tomava as provid�ncias
com uma determina��o que Laura teria exigido de mim caso estivesse por perto.
Outro ponto importante era recuperar um pouco da forma perdida. Comecei uma
caminhada pela manh�, inicialmente 30 minutos, marcha r�pida, depois fui aumentando
gradativamente, at� chegar a 3 horas sem
me cansar. Fazia refor�o de agachamento, no lugar do elevador usava as escadas,
fazia apoio com um s� bra�o, apertava bolas de t�nis e halteres de molas, fazia
roscas e batia no saco. O bra�o direito ficou
estalando, o esquerdo, um mero auxiliar, mas mesmo assim confi�vel. Em seis meses
eu j� era outro homem. Muito longe ainda do Jorge original, mas quem n�o tem c�o
ca�a com gato perneta. Beber nem pensar.
Paralelamente, continuava praticando dire��o numa autoescola, e duas, tr�s vezes
por semana ia praticar tiro, com rev�lver e pistola. O armeiro me conseguiu duas
boas armas sem proced�ncia e me deu algumas
dicas preciosas sobre elas. Mais tarde ia adaptar um silenciador � pistola. Em
casa, estudei ambas as armas a fundo, desmontando, montando, conhecendo os detalhes
do seu mecanismo, o poder de fogo e as
caracter�sticas espec�ficas de cada uma. O rev�lver tinha um pequeno deslocamento
de mira para a direita ao ser acionado, o atirador precisava fazer essa corre��o,
descontando o desvio para ter um tiro
preciso, detalhe fundamental. J� a pistola, n�o, era perfeita, era tiro dado, bugio
deitado, desde que fosse bem assestada. Encomendei, tamb�m, um fuzil com mira
telesc�pica, para alvos distantes. O uso
do fuzil seria mais recomend�vel para um iniciante, muito embora com a consider�vel
perda de emo��o causada pela execu��o � queima-roupa. Uma arma pesada e de maior
volume, no entanto, teria o inconveniente
do transporte. Descartei. Entrementes, os preparativos me deixavam impaciente para
a a��o.
Decidido a p�r m�os � obra de uma vez, comprei um carro. Escolhi um fusca cinza-
chumbo, ano 1975. Deixei-o numa oficina por mais duas semanas para que o mec�nico o
envenenasse. Enquanto esperava, revisava
o plano detalhadamente. Apagava as luzes, e, em posi��o de l�tus no assoalho da
sala, em profunda concentra��o, imaginava a realiza��o de um homic�dio fict�cio
passo a passo. Fiz ene simula��es e isso
me deu a certeza de j� estar amadurecido para a a��o.
No mesmo dia em que fui pegar o carro, programei uma incurs�o noturna. Aguardei a
chegada da hora sentado disciplinadamente no sof�, as pernas cruzadas, controlando
o ritmo respirat�rio e tamborilando
no dorso da pasta executiva que continha as armas carregadas. Sa� furtivamente pela
garagem e tomei as ruas. Tive o cuidado de remover as placas do carro, precau��o
esta que eu reputava indispens�vel para
evitar futura identifica��o do ve�culo e seu propriet�rio, caso alguma coisa desse
errado. Percorri alguns bairros mais retirados, atento ao menor sinal de Monza
branco. Quando, depois de longa procura,
avistei um em tr�nsito, sa� em sua persegui��o. Durante todo o tempo que o segui,
em alguns momentos encostando ao seu lado e encarando o motorista sem bigode,
comprovava o equ�voco. Em nenhum momento,
por�m, decidi partir para as vias de fato. Talvez se tivesse bigode, fosse
diferente.
Nos dias que se seguiram, em horas mortas, explorei a cidade em v�rias dire��es,
quil�metros e quil�metros consumidos com o peito oprimido. Sen�o, ficava horas em
campana, aguardando o retorno do motorista
ao Monza branco achado ao acaso, estacionado numa rua qualquer. Duma coisa passei a
ter certeza: seria incapaz de tomar a m�nima atitude agressiva em rela��o a
qualquer uma dessas pessoas sob a minha vigil�ncia,
quanto mais mat�-las. N�o era o meu ramo, pensava. Ao voltar para casa, tinha de
recolocar as placas, na garagem deserta, tarefa penosa, pois feita no escuro e com
uma m�o apenas, j� que a ajuda da outra,
na posi��o inc�moda, era quase nula.
Frustrado, totalmente pra baixo, resolvi abandonar a empreitada. Eu n�o passava de
um bund�o, como todo mundo, um c�o que muito ladrava e n�o mordia. Tentava
justificar a minha incapacidade argumentando
que Lize era uma pessoa pac�fica, jamais teria aprovado o meu intento homicida.
Decepcionado comigo mesmo, mas ao mesmo tempo aliviado, guardei as armas e pendurei
as chuteiras de Inimigo P�blico. Nova
reca�da no destilado. Comprei uma caixa de Johnnie Walker e mandei brasa. Quando
acabou, trouxe outra, outra, outra. O maior esfor�o que fazia era descer para
comprar o Sangue na banca da esquina, isso
quando conseguia me aprumar.

Eu dormia de cara cheia sobre a montoeira de fotos espalhadas na cama ou no sof� da


sala. Certa madrugada, dei com a imagem de Lize congelada na tev�. Seu rosto em
close me encarava, sorridente, piscou
o olho maliciosa.
� voc�, meu bem? ouvi minha voz ressoando no sil�ncio. Veio ver como est� o seu
velho brocha? Ainda tem esperan�a de que ele reaja?, hahahaha.
Apertei o bot�o, liberando a imagem e o som. Lize, lasciva, rolava pelo ch�o,
enroscada no colar de p�rolas, ronronando como uma gata no cio, outro close, desta
vez do seu delicado pezinho, perfeito, as
unhas pintadas de vermelho, eu n�o cansava de beijar aqueles p�s, mordiscar os seus
dedos, lamber o seu solado, o calcanhar, outra mordida, deixei-a louca e a fiz ter
v�rios orgasmos s� com o banho de
l�ngua, do ded�o do p� � ra�z dos cabelos, a minha l�ngua enxerida desbravando os
recantos de seu corpo, penetrando em todas as suas fendas e sali�ncias,
investigando rea��es desconhecidas e imprevis�veis
da sua epiderme eri�ada, de bru�os, a l�ngua deslizando pelas coxas, galgando as
n�degas, escorrendo pelo sacrococc�geo, avan�ando pelo dorso e esp�duas numa
atropelada breve, arremessando-se triunfante
� base do pesco�o e aos pelos da nuca, ela se estorcia no trajeto do �rg�o mole e
�mido, como se estivesse sendo atacada por milhares de formigas, gemendo e dando
gritinhos agudos, num gozo prolongado
indefinidamente, o som da sua voz, o seu apelo corporal me deixavam numa euforia
extrema, mas falsa, vazia, nenhuma rea��o er�tica, eu olhava o membro amolecido,
como uma lingui�a pendente do gancho do
a�ougue. Para minha surpresa, Lize pegou o cacete e colocou-o na boca, ela chupava
um pau com maestria, sempre foi boa nisso, o cacete mole, bamba, �s vezes escapulia
de seus l�bios, totalmente grogue,
ela o ca�ava, recolocava-o na boca, prendia-o entre os l�bios e sugava a glande com
for�a, cansou de sugar em v�o, Lize ficou zangada.
Voc� andou me traindo. Trepou tanto que agora n�o consegue nem levantar, n�, seu
bandido? Teve coragem de fazer isso comigo? disse isso e caiu em pranto.
Calma, benzinho, n�o � assim, eu estou liquidado, imprest�vel. Depois do acidente,
n�o sou mais homem, juro, depois de voc�, nunca olhei para mulher nenhuma.
Voc� diz isso para me enrolar, pensa que eu sou boba? Tesudo do jeito que era.
N�o, juro que n�o, � a pura verdade, n�o passo de um velho brocha, por causa do
acidente, acha que � f�cil para mim ter que reconhecer isso? Ainda mais sabendo que
voc� � uma mulher muito fogosa.
Eu jamais trairia voc� porque o amo. Voc�, sim, teve milhares de mulheres, sei
tudinho.
Como � que voc� descobriu? Quem contou pra voc�?
Agora voc� n�o me esconde mais nada, seu barba-azul, sei tudo de voc�.
� mesmo? Ent�o sabe que n�o a tra�, buuuhhhh!, peguei voc�.
Voc� deve me trair em pensamento, ent�o.
Nunca, nunca, n�o precisa atirar verde.
Jura?
Juro, juro. Sempre fui fiel.
Voc� sabe convencer uma mulher, hein, seu espertinho? Voc� sempre me faz cair no
seu papo 10, n�o �, garanh�o? Voc� � um danad�o de gostoso, � por isso que sou
gamada em voc�, gamadona.
Vem, meu amor, deixa de zanga, me d� um beijinho, vai fechei os olhos e fiquei
esperando o beijo que n�o veio.

Uma carta do advogado de Judita para que eu fizesse contato urgente. Liguei pro
loque.
A senhora Judita quer saber se o senhor vai pegar o carro ou n�o.
Que carro?
O BMW.
Voc� � biruta, cara? O BMW n�o existe mais, virou sucata, n�o quero saber daquela
lata velha amassada, ela pode ficar, � toda dela! Hahahahaha.
O mediador, como se n�o tivesse me escutado, falou pausadamente:
Meu senhor, estou me referindo ao BMW que o seguro pagou, est� na garagem dela h�
quase um ano, ela quer saber o que fazer com ele, se o senhor vai peg�-lo ou o qu�?

Pensei: �Ent�o, durante todo esse tempo?. Sem eu saber e ningu�m tocar no assunto?
Viv�amos todos no mesmo planeta?�
Por que n�o me avisou antes, cara? Claro que fico com ele, quando posso apanh�-lo?

Quando quiser, o senhor j� se comprometeu de ir apanh�-lo, lembra? Mas n�o o fez,


s� lhe pe�o que, desta vez, cumpra a promessa. Outra coisa, a senhora Judita pediu
para que a avisasse com anteced�ncia
de sua ida, para que ela possa sair antes, n�o deseja encontr�-lo.
Pode avis�-la que vou hoje � tarde?
Era melhor resolver o assunto de uma vez, antes que mudassem de id�ia, ningu�m
parecia estar batendo muito bem, n�o.
Correto, a que horas?
L� pelas 15 horas, t� bem, assim?
Correto, qualquer altera��o que o senhor resolva fazer, por favor me comunique,
sen�o prevalece o combinado, ok? Pretendo estar l� a sua espera, para formalizar a
retirada do bem.
Correto cortei o seu papo t�cnico e furado e desliguei.
�s quinze em ponto eu descia do t�xi, o borra-botas j� estava l�, um tipo
enjoativo, meio careca, gord�o, terno e gravata, barriga inchada, cheirando a
col�nia barata, aqueles caras com a boca cheia de
palavras. Detesto advogados, detesto. Ao mesmo tempo me ocorreu que precisava
contatar com o outro que estava tratando do processo do acidente, esquecera-o por
completo, eu tinha a vaga lembran�a de ter
recebido uma intima��o alguns meses atr�s, mas tinha deixado pra l�, devia estar
misturada ao monturo que se acumulava num canto da sala. Agora, com Lize de volta,
eu me tranquilizava, as coisas iam tomar
ordem novamente.
O borra-botas tirou o controle remoto do bolso, acionou-o, a porta da garagem
levantou. L� estava ele, o sacana, o Pret�o tesudo, s�sia do anterior, todo
empoeirado, mas felino, intacto, virgem, charmoso,
nos trinques. O borra estendeu-me um papel, assinei e devolvi, sem ler, passou-me
as chaves do carro e era como S�o Pedro me passando as do Para�so.
N�o deve estar funcionando, depois de tanto tempo. estava ele dizendo.
Abri a porta, sentei-me, dei partida, quem foi rei sempre ter� majestade, pegou na
terceira tentativa, um BMW � um BMW. O borra sorriu como uma sanfona esticada
lentamente, fascinado, ou melhor, sorongo.
Escuta eu disse, distra�do, apertando um bot�o para ver o vidro da porta baixar,
tudo funcionava perfeitamente, eta carrinho porreta , quando vamos assinar o
div�rcio?
Como?
O div�rcio. Assinar, botar o meu jameg�o nessa coisa.
Ele fez uma careta.
Meu caro senhor, voc�s assinaram o div�rcio h� mais de oito meses, lembra que na
ocasi�o o senhor ficou de pegar o carro e n�o apareceu mais nem deu satisfa��es?
Arranquei sem me despedir do abostado, como eu deixaria de pegar o carro que mais
amava? O cara era um biruta completo, talvez estivesse querendo me confundir para
tirar algum proveito sub-rept�cio. Ent�o
eu era um homem livre? Uau, agora poderia casar de verdade com Lize, ela ia pular
de alegria quando soubesse da novidade, nem iria acreditar. Parei num posto,
abasteci, troquei o �leo, n�o podia lhe exibir
o carro opaco de p�, mandei dar uma ducha. Fiquei dentro do carro enquanto eles o
passavam pela m�quina, Lize adorava ver a espuma e a �gua caindo, uma pena ela n�o
estar ali, sempre que isso acontecia,
a gente ficava l� se beijando durante o tempo da lavagem, ela ficava fascinada com
os grandes escov�es girando, como uma crian�a empolgada com um brinquedo novo. Sa�
voando. Coloquei o BMW ao lado do fusca
e avaliei os dois, a impon�ncia de um e a humildade sacana de outro, hhuummm. Subi
correndo para dar a not�cia a Lize, n�o a encontrei, devia ter ido ao super, servi-
me do Johnnie at� a borda, apenas uma
pedra de gelo. Quando Lize chegou, fui dizendo:
Benzinho, adivinha qual � a surpresa?
O BMW, estou louca para dar uma volta.
Como � que soube?
Voc� n�o falou com o advogado na minha frente, cora��o?
Ah, �, esqueci.
� a bebida, voc� bebe demais, d� branco. Sentou-se na beirada do sof� cheia de
nojo, como se tivesse restos de coc� por ali Xiiiiii, que imund�cie, bastou eu
ficar uns dias fora para voc� deixar
esse apartamento virado num chiqueiro, n�o �, seu pirata? Amanh� vou fazer uma
faxina completa. De p�, as pernas abertas, as m�os na cintura, ficou me encarando
E ent�o, vamos l�, ou n�o?
S� deixa eu terminar o meu aperitivo.
Vou me servir de um tamb�m, vamos brindar.
Ela serviu-se de um resto de Campari que havia na garrafa, batemos os copos, tim-
tim.
Ao nosso amor eterno, ao nosso BMW.

Lize e eu n�o sa�amos de dentro do BMW, passe�vamos pela cidade, como seguindo um
roteiro tur�stico: Jardim Bot�nico, �pera de Arame, Parque Barigui. Na beira do
lago, pedi cerveja e xis, Lize jogava
farelos e peda�os de p�o �s carpas, algumas bem-criadas disputavam a comida
espadanando na superf�cie, Lize ria muito, tudo a divertia, estava feliz, feliz e
tesuda, sempre ria muito quando queria aquilo
ou estava nos dias f�rteis, pelo menos eu ainda prestava para alguma coisa, faz�-la
feliz, mas quanto a ela, ia aguentar passar sem sexo?, logo ela que parecia ter
fogo no rabo? Essa d�vida me atormentava,
sen�o seria totalmente feliz. Eu tamb�m j� n�o era t�o machista, mas n�o a ponto de
admitir trai��o, ela jurou que jamais me trairia.
As mulheres s�o diferentes dos homens Lize argumentou , sublimam mais o sexo, tem
mulheres que aguentam longos per�odos de absten��o.
N�o sei, n�o.
Eu tinha as minhas d�vidas, mas se ela conseguisse, bom, seria perfeito.
Jura que voc� n�o nota os olhares cobi�osos dos outros homens?
Volta e meia eu flagrava algu�m a despindo com os olhos, ficava puto, mas, a bem da
verdade, nunca percebi que ela cuidasse algu�m em especial, n�o, era uma mulher
s�ria, nunca me dera motivo de desconfian�a.
Um dia, vi escrito numa privada de bar: �Enquanto eu tiver l�ngua e dedo, mulher
n�o me mete medo�. Ora, eu tinha ambos. A mensagem sob encomenda, como se tivesse
vindo do al�m, me deixou mais tranquilo.
N�o, Lize era uma mulher de garra, se eu estava privado de sexo, ela seria
solid�ria, o nosso grande amor estava acima dos apelos menos nobres.
Resolvemos sair da cidade, a polui��o estava demais, tomamos o rumo do litoral:
Paranagu�, Praia de Leste, Caiob�, Guaratuba. Abra�adinhos, fizemos a travessia de
balsa, subimos o Morro do Cristo, ela
n�o se perdoava de ter esquecido a filmadora, at� a m�quina fotogr�fica teria
quebrado o galho.
O culpado � voc�, disse que ia pegar a sacola em cima da cama e n�o pegou, eu bem
que preveni voc�.
Desculpe, benzinho, a gente volta outro dia.
Eu n�o devia confiar em voc�, eu � que deveria ter pego.
Sentados aos p�s do Cristo, avist�vamos os golfinhos de brincadeiras na �gua,
saltando e mergulhando, estavam com um pique daqueles.
Veja o que estamos perdendo, amoooooor, logo os golfinhos.
Retornamos j� noite, quebrados, fomos dormir cedo, deixamos programada nossa ida a
Floripa para a manh� seguinte. Depois de tanto tempo, precis�vamos ir at� l� para
quebrar o sortil�gio, a m� impress�o
da nossa �ltima viagem. Acordamos cedo, entusiasmados. Dia magn�fico, sol e calor,
ajudei-a a arrumar a bagagem, deixei a filmadora sobre a sua bolsa no sof� da sala
para que n�o houvesse risco de ser
esquecida, ela n�o me perdoaria uma segunda vez, mas nossa alegria durou pouco, o
BMW n�o estava mais ao lado do fusca, custamos a entender que tinham roubado o
carro.
Liguei para a pol�cia, me recomendaram ir at� a delegacia mais pr�xima formalizar
queixa, Lize recusou-se a ir, ficou chorando, inconsol�vel, os nossos planos tinham
ido por �gua abaixo, mais uma vez.
Como ela detestava o fusca, nem me atrevi a propor a troca, fui sozinho fazer o BO,
me retiveram l� a manh� toda. Havia muito cafezinho e papo-furado pela frente, pura
perda de tempo, � impressionante
o descaso desses caras, olham para a gente e n�o nos veem. �Pol�cia e merda � a
mesma coisa, quero ver esses bostas me pegarem�, eu dizia para mim mesmo, encarando
os agentes num desafio silencioso.
Sa� de l� com a velha raiva montada na minha cacunda. Com ou sem pol�cia, eu mesmo
iria atr�s dos bandidos que roubaram o meu carro de estima��o, n�o ia deixar a
coisa passar em brancas nuvens desta vez,
eles iam se foder comigo, ah, iam. Quando cheguei em casa, Lize ainda dormia. Bati
no saco de boxe. Mais calmo, liguei para o advogado de Judita, quem sabe n�o
haveria uma chance.
Quem �?
Aqui � o Jorge. do BMW.
H�m?
O BMW tinha seguro?
N�o sei, acho que n�o, por qu�?
Roubaram o carro.
O qu�? N�o me diga que o senhor deixou que lhe roubassem aquele carr�o.
O desgra�ado estava rindo na minha lata, gargalhando, nem se deu ao trabalho de
tampar o bocal do fone.
Vai se foder, seu bund�o! berrei, desligando.
Fui espiar no quarto, Lize seguia dormindo, pobrezinha, devia estar arrasada, nem
os meus gritos conseguiram despert�-la. Cobri-a com o len�ol e afastei-me p� ante
p�, peguei as chaves do fusca, a pasta
e tomei as ruas.
Andei um bocado pela cidade. Ao retornar, executei uma esp�cie de espiral, tendo
sempre como ponto de refer�ncia o quarteir�o onde eu morava, circundando as ruas
pr�ximas, � procura de algum suspeito.
N�o vi ningu�m que tivesse caracter�sticas de ladr�o de carros, ou melhor, ou todos
pareciam bandidos ou ningu�m parecia, as pessoas deviam carregar cartazes, sou
isso, sou aquilo, seria mais pr�tico,
a raiva atravessada na garganta como uma jamanta me deixava zonzo, esses putos
estragaram o nosso programa, foram se meter com quem estava quieto. Decidi que,
naquela noite, aproveitando o sono de Lize,
ia sair de fininho e ca��-los, deviam atuar nas redondezas, esses caras t�m suas
�reas demarcadas, s�o sempre os mesmos, o Sangue me dera boas dicas do modus
operandi dos puxadores de carros, entrementes
eu vira uns caras estranhos rondando o pr�dio n�o fazia muito, deviam ser eles, seu
reinado � na noite.
J� em casa, desgastado, virei umas talagadas de Johnnie, n�o podia deixar Lize
desconfiar de nada, ela andava meio esquisita ultimamente, jogando verdes, o jeito
� negar sempre, n�o sei, n�o vi, tenho
raiva de quem sabe. Achei-a muito abatida, a maldita enxaqueca, levei um lanche
para ela na cama, tentando levantar o seu astral, mordiscava o sandu�che sem
vontade, lhe dizia coisas como �A vida � assim�,
�Estamos juntos nessa�, �Tem mais Deus pra dar que o diabo pra tirar�, �Menos mal,
ainda temos o fusquinha, sempre quebra o galho.�
N�o entro naquele fusca pulguento nem amarrada.
Preconceito, amor mas n�o quis insistir.
Ap�s os primeiros notici�rios da noite, a deixei assistindo � novela das 8, j�
bocejando, tinha lhe dado son�feros em lugar das aspirinas. Fui para o banho,
quando voltei, j� havia capotado, ainda segurando
o copo e o sandu�che pela metade, coitadinha. Recolhi a bandeja, estendi-a na cama,
nove e pouco, apaguei a tev�, acendi as luzes do quarto, troquei de roupa, fiz
barulho proposital, sapateei ao lado da
cama, dei uma sacudidela em Lize, n�o acordava nem com a torcida do Coxa gritando
em seu ouvido, empunhei a pasta com as armas, dei partida no fusca e fui ao
encontro da aventura maior da minha vida.

Refugiava-me nas sombras da noite como o predador voraz que se esgueira pelas
sarjetas, partindo da premissa de que bandido sempre volta ao local do crime. O
Sangue que o diga. Comecei dando a volta ao
quarteir�o, ia expandir o meu raio de abrang�ncia at� encontrar algum suspeito ou
coisa que o valha, ent�o seria breve, apenas o tempo de um interrogat�rio sum�rio,
em seguida o servi�o e a evas�o. Ia
encontr�-lo com a barriga cheia da tranquilidade que o �xito do roubo anterior lhe
havia dado, melhor que ningu�m essa gente conhece a inoper�ncia da pol�cia e, nesse
quadro de total liberdade de a��o,
eles deitam e rolam, por certo est� motivado a repetir a fa�anha, aproveitar a mar�
de sorte, s� que hoje ele ou eles iam se dar mal, ia ser o seu dia de azar.
As ruas quase desertas e escuras instigavam ainda mais a minha gana assassina. Me
afastei do centro e me precipitei no emaranhado de ruas da cidade, que se emendam
numa sucess�o de domin�, � procura do
meu algoz, quem sabe o acaso n�o me reservaria grandes surpresas. Prossegui na
minha labir�ntica busca at� que, completamente perdido e confuso, e com o meu tempo
cada vez mais curto, parei o carro e tentei
me organizar. Naquela altura do campeonato, o ladr�o j� devia estar no Paraguai,
com a grana no bolso, fazendo a maior festa, o carro no receptador ou no desmanche.
N�o, eles n�o desmancham carros novos
e importados, o Sangue me garantia isso, rendem mais inteiros, adulterada a
documenta��o e numera��o do chassi.
Avaliando bem a quest�o, eu me encontrava na mesma sinuca de bico que a do Monza
branco, o que significava estar num mato sem cachorro, mas nada que a boa, velha e
formal l�gica n�o resolva, afinal se
tratavam de quantos bandidos? Um ou mais? Na maioria das vezes, trabalham em grupo,
se em grupo, quantos seriam, mais precisamente? Ora, como todos n�s sabemos, ladr�o
� tudo a mesma coisa, logo, se eu
matar qualquer um, ou v�rios, ele pode at� n�o pagar pelo dano que me causou, mas
vai pagar pelo que causou a outro, e assim por diante, o que vinha a dar no mesmo,
ou quase. Al�m do mais, ora bolas, eu
n�o precisava justificar nada, apenas agir r�pido para aplacar minha raiva e
preju�zo.
Matada a charada, estabeleci como prioridade me localizar no espa�o e no tempo.
Costurei algumas ruas escuras e acabei desembocando na Mateus Leme. Logo adiante,
j� no bairro S�o Louren�o, vi muita luz,
bastante carros estacionados nas ruas laterais e flanelinhas espalhados pelo local.
Uma festa no Col�gio Santa Maria. Bom sinal, � de abund�ncia que bandido gosta,
pois podem escolher � vontade, mas n�o
com tantos olhos em cima. Mesmo assim, dei um giro por ali, mais por desencargo de
consci�ncia do que por qualquer outra coisa, os flanelinhas me ofereciam vagas,
pensando que eu fosse convidado.
Resolvi dar uma parada e esticar as pernas. Empunhei a pasta e dei a volta no
quarteir�o, encharcando a camisa de suor, pois no retorno enfrentei uma ladeira
quase na vertical. Pelo caminho, uma oferta
abundante de carros de todos os tipos e tamanhos, alguns rec�m-tirados das
revendas. Pareciam t�o dispon�veis naqueles pontos mais distantes, isolados, por
que logo o meu, de dentro de uma garagem fechada,
foi roubado? Era injusto e burro da parte do puxador, ter todo aquele trabalho. Me
meti no fusca e fiquei um temp�o de bobeira, sem saber o que fazer nem por onde
recome�ar, observando algumas pessoas
retornando aos seus ve�culos e se mandando dali. Nisso uma avalancha apressada de
gente desembocou dos port�es do Col�gio em dire��o aos carros, e resolvi sair dali
para evitar o atravancamento. Quando
arranquei, um flanelinha me abordou, me cocei, mas n�o achei dinheiro, o cara me
xingou e chutou o pneu do carro. Buzinavam atr�s, deixei para l�, escapando por uma
rua lateral. Comecei a bocejar sem parar,
como se Morfeu me fizesse cafun�. �O que fazer?�, bocejo e mais bocejo. Soube de um
caso em que o cara abriu tanto a boca num bocejo que acabou deslocando o carrinho,
e de outro que, ao tentar pronunciar
uma palavra em russo, durante o discurso de encerramento no final de um curso,
ficou com os carrinhos pendurados, tendo que ser socorrido na emerg�ncia
hospitalar. Bocejos mil.
Eu precisava cuidar melhor da forma f�sica, a subida da ladeira e o peso da pasta
tinham me posto a nocaute. Naquelas condi��es, achei melhor tirar o time de campo,
estava sujeito a adormecer dirigindo,
e a� seria o fim da picada. Certa madrugada, vi um carro parado no sinaleiro aberto
com a buzina acionada, curioso, parei para observar, o sinal trocava e o carro
nada. Desci e fui espiar, o motorista,
cheirando a �lcool, roncava de boca aberta com a cabe�a apoiada ao volante,
comprimindo a buzina. Dei um sacolejo nele, mas n�o adiantou. Cheguei a ver a
manchete no Sangue, enorme como um outdoor, falando
de mim: �Bebum dorme ao volante do carro em rua deserta e � depenado�.
�Est� na hora de dormir, n�o precisa a mam�e mandar.�, pensei. Na esquina, iniciei
a manobra, enquanto segurava a ponta do queixo para dar apoio aos maxilares, no
cl�max de um bocejo. Foi nesse preciso
momento que avistei um Monza branco, solito, estacionado sobre a cal�ada, presen�a
�nica na rua abandonada. Ato reflexo, brequei. Apaguei as luzes e me preparei para
a campana. O Monza era uma
j�ia rara
refulgindo no breu da noite.
E se o motorista do Monza branco que quase vitimou Lize fosse o mesmo ladr�o que me
roubou o BMW, e ambos fossem o dono do carro ali parado? Seria o c�mulo da boa
sorte. Duvida? Quem duvida � louco,
acasos acontecem, como que n�o? N�o acertam na loteria? Apostas m�nimas com
probabilidades remot�ssimas de acerto, na propor��o de um em dezenas de milh�es? E
ent�o? Afinal n�o mor�vamos todos na mesma
cidade? Nada mais natural que, no jogo dos dados do acaso ilimitado, aconte�am
coincid�ncias. Tudo � poss�vel, at� o amor. Pessoas cruzam diariamente por milhares
de outras nas ruas, milh�es ao longo de
suas vidas, por que v�o se apaixonar apenas por uma em especial? O que � isso,
sen�o o cruzamento casual de pessoas marcadas pela inevitabilidade do encontro?
Dizem at� que as pedras se encontram. n�o
percamos esse conceito de vista, pois tem utilidade.
Naquele instante, nada me traria mais surpresa, o que me fez dar um pulo no assento
como se tivesse levado um choque el�trico, do que perceber dois vultos se
movimentando atr�s do Monza branco. Eles estavam
l� o tempo todo, e eu comendo moscas. De um, podia ver o topo da cabe�a
sobressaindo da lataria, do outro, meio corpo apoiado na traseira do carro, a
atitude t�pica de quem est� displicentemente mijando.
� isso a�, a ousadia dos bandidos � cada vez maior, cresce na medida da certeza da
impunidade, fazem tudo na maior das calmas, sabem que n�o v�o ser importunados pela
lei.
Li no Sangue casos antol�gicos. Em um assalto a resid�ncia, os ladr�es comeram,
beberam cerveja e vinho, usaram o banheiro e n�o deram descarga, deu sono e
resolveram tirar uma soneca antes de se mandarem,
tudo isso com a fam�lia dormindo no interior da casa, os moradores acordaram
sentindo um fedor horr�vel e descobriram tr�s marmanjos puxando uma palha nos sof�s
da sala, s� tiveram o trabalho de ligar
para a delegacia mais pr�xima, um susto com final feliz.
Deixei-me escorregar no banco at� que a linha da vis�o ficasse exatamente no limite
inferior do para-brisa, assim eu podia ver sem ser visto. Um deles entrou pelo lado
do motorista, agilmente, sem que
o alarme disparasse, o que me fez concluir que j� haviam tomado a provid�ncia de
deslig�-lo antes, o que estava dentro, abriu a porta para o outro, que se insinuou.
Antes por�m que tivessem tempo de fazer
a liga��o direta, eu j� estava colado neles. Cheguei com os far�is apagados, me
encararam surpresos, mas sem susto, um deles come�ou a rir, o que me deixou
intrigado, o companheiro imitou-o. �Ah, �?� Agi
r�pido, sem lhes dar a m�nima chance de rea��o. Mirei a t�mpora do motorista,
TRAMBL�M, relampejo implac�vel. Me senti o pr�prio Drag�o da Maldade cuspindo fogo
pelas ventas, ele tombou para o lado, descobrindo
o outro, que erguia os bra�os num gesto instintivo de defesa. Outra cusparada de
fogo seguida de estrondo, o drag�o estava zangado, acertei-o na orelha e ele
projetou-se para fora do carro, talvez porque
j� tivesse aberto a porta para correr. Arranquei sem cantar pneus, tamb�m sem
pressa, arrogantemente calmo, luzes ainda desligadas, joguei o rev�lver dentro da
pasta e o fecho deu um estalido ao se encaixar.
Estava feito.
No topo da rua, dobrei � direita, acendi os far�is e fui descendo a suave colina da
Anita Garibaldi, sentido bairro-centro. Passei na frente da entrada da triagem do
Pres�dio do Ah� e acenei para a imagem
do guarda recortada na vidra�a, tudo sob controle. Sem a menor afoba��o, nem
acreditava, tinha cometido um duplo homic�dio e permanecia um bloco de gelo. Tinha
sido um trabalho enxuto, profissional, o
pr�mio merecido de meses de treinamento. N�o apenas profissional, extremamente
profissional.
Deslizei sob o len�ol, Lize nem se mexeu. L� estava eu, no escuro protegido pelo
h�bito do repouso noturno garantido a todos os mortais. Sim, eu era um pacato
cidad�o desfrutando o descanso dos justos
na cama do quarto da casa que era minha, nunca sa�ra dali, minha mulher ia jurar
que eu estivera com ela a noite toda, eu tinha um �libi perfeito, isso na hip�tese
de eu me tornar um suspeito daquilo,
o que, de antem�o, j� podemos considerar imposs�vel, qual vidente haveria de?
Uau, eu conseguira, sentia a feroz euforia da vit�ria. Calminho, calminho, como se
tivesse acabado de tomar um balde de suco de maracuj�, mais, aliviado, feliz, o
al�vio e a felicidade de quem acabou
de evacuar um monte, depois de uma pris�o de ventre de dias. Ent�o era essa a
sensa��o que sucedia o ato de mandar algu�m pros quintos? O relaxamento derivado de
extraordin�ria sensa��o de poder? Sim,
eu me sentia um Mister Universo, dono de enorme massa muscular e for�a descomunal.
A sensa��o era tal que eu parecia estar inchado, inchado de forte, botando energia
pelo ladr�o, mastod�ntico, tomando
conta da cama. Maravilha, o que eu estivera perdendo todo esse tempo, meu Deus, por
ser fraco, indeciso. O mundo � dos fortes, dos bravos, a vida � um combate, que aos
fracos abate, aos fortes, aos bravos,
s� sabe exaltar.
De repente, por�m, como se algu�m me atacasse pelas costas, recebi uma pancada na
nuca, a minha alegria se dissipou imediatamente como um gol anulado, um calafrio
escorreu pela espinha, que baita mancada,
eu n�o tinha retirado as placas do fusca antes de sair, quantas vezes eu tinha
tirado e reposto aquelas malditas placas mesmo com todo o trabalho que me dava? E
hoje, logo hoje, como fui esquecer? O tipo
de detalhe que pode p�r tudo a perder. Eu executara a minha tarefa com perfei��o
absoluta, mas acabara cometendo um erro prim�rio, pois pela placa t�m-se a
identifica��o imediata do dono do ve�culo. Exceto
se eu tivesse tido a imponder�vel ventura de n�o ter sido visto. mas mesmo assim
foi uma falha imperdo�vel, que n�o me deixou mais pregar olho, o que era festa
virou vel�rio, entrei em p�nico, a qualquer
momento esperava a chegada da pol�cia. E se eu desse parte que me roubaram o fusca?
N�o seria muita coincid�ncia ter dois carros roubados um logo ap�s o outro? E quem
seria louco o suficiente para ter
um BMW e um fusca ao mesmo tempo? Isso n�o era suspeito? N�o, n�o, nem pensar em
outro BO, podia ser pior a emenda que o soneto. Calma, Jorge, calma, me agarrei na
�nica t�bua que podia me salvar, a circunst�ncia
extremada de sorte de n�o ter sido percebido. Ningu�m me viu, pensamento positivo,
tenho o corpo fechado, me olham, mas n�o me veem. Era a �nica chance de sair ileso
dessa hist�ria. mas mesmo assim eu
via, na escurid�o do quarto, a manchete na primeira p�gina do Sangue com a minha
foto, na banca de revistas, uma testemunha garantindo que os tiros partiram de um
fusca escuro, placas tal e tal. ai,
sempre tem um abelhudo onde menos se espera.

Quando clareou, liguei o r�dio e a tev� atr�s de notici�rios. Nada, era cedo
demais. Desci para comprar o SANGUE, a banca ainda estava fechada, e eu, uma massa
ambulante irracional chutando o meio-fio,
o que era uma iniciativa in�til, pois as ocorr�ncias da madrugada s� sairiam na
edi��o do dia seguinte.
Quando retornei, uma r�dio dava as primeiras manchetes do dia: Madrugada sangrenta
em Curitiba, acidentes no tr�nsito, tr�s mortos e dois feridos; assalto a posto de
gasolina, uma morte, os assaltantes
fogem; briga em bar acaba em duas mortes; b�rbaro assassinato no bairro S�o
Louren�o, dois rapazes s�o fuzilados na porta da sua resid�ncia; caminh�o perde
freio e invade padaria, tr�s padeiros feridos
e v�rios p�es machucados; minha gente, essa turma enlouqueceu, a coisa t� ficando
cada dia mais preta, querido ouvinte, cuidado ao sair de casa para n�o pisar numa
po�a de sangue, leve o guarda-chuva para
n�o se respingar, o mundo endoidou, minha gente, o capeta anda solto.
Escutei atentamente o radialista comentar as not�cias, uma a uma, at� chegar
naquela, a que me interessava: Dois rapazes sa�ram de uma festinha de anivers�rio
em casa de fam�lia para irem buscar, na casa
de um deles, veja s�, uns discos para animar o arrasta-p�, a meninada estava l�,
brincando na mais santa inoc�ncia, mas as m�sicas j� estavam muito batidas, sabe
como �, at� que algu�m deu a id�ia de buscar
uns discos para incrementar o repert�rio. L� foram os dois rapazes, alegres, fazer
a sua boa a��o da noite, mas foram ao encontro da morte, queridos ouvintes, na
calada da noite a morte os espreitava,
n�o retornaram mais, e voc�s sabem por qu�? Porque foram fuzilados na porta do
domic�lio de um deles, deixaram o carro estacionado sobre a cal�ada, aberto, era
coisa de minutos, apenas entrar, selecionar
uns discos e sair, para agradar o amiguinho aniversariante que lhes havia feito o
pedido, e que agora se lamentava por t�-lo feito, quem sabe, se n�o tivessem ido,
ainda estariam vivos, n�o se pode saber
com certeza, se n�o tivesse sido naquele exato momento poderia ser mais tarde, se
n�o fosse com esses dois seria com outros, hoje esses pobres rapazes foram os
premiados, amanh� ou depois, serei eu, ou
voc�, ou o seu amigo, o meu, ou nossos filhos, quem sabe? Estamos todos entregues
de bandeja nas m�os desses bandidos, desses assassinos que matam por qualquer
trocado, e a pol�cia onde est� numa hora
dessas? Onde? Pagamos os nossos impostos para qu�? E assim aconteceu essa horr�vel
trag�dia, queridos ouvintes, pouco passado da hora grande, da meia-noite, os pobres
mo�os, quando entraram no carro para
retornar � festa, com o objetivo de deix�-la mais animada, mais alegre, que ironia,
o que acontece? S�o abordados por assaltantes frios e sanguin�rios. Como n�o tinham
dinheiro, eram pouco mais que adolescentes
e, dadas as circunst�ncias, n�o tinham porque estar carregando dinheiro naquela
hora da madrugada, ou se tinham, era pouco e n�o foi do agrado dos bandidos, o que
acontece? As pobres v�timas s�o assassinadas
a tiros, assim, friamente, como se fossem animais no matadouro. Mataram s� por
matar, queridos ouvintes, vejam s� que absurdo, e sa�ram de l� sem levar um tost�o,
uma chacina gratuita, apenas pelo prazer
de matar. Em seguida, evadiram-se do local, e a pol�cia n�o tem nenhuma pista dos
bandidos. n�o deixaram pistas, sumiram, deixando atr�s de si dois corpos estirados
e uma fam�lia desesperada. Onde �
que estamos, meu Deus?
Dois adolescentes, duas crian�as, uau, sem testemunhas. Eu estava livre de entrar
numa fria, in dubio pro reo, essas coisas. De fato, acabara de cometer um erro de
percurso, mas e da�? Quem podia afirmar
que n�o passavam de dois jovens inocentes? Inocentes em termos, bem que um deles
podia ser o que quase atropelou Lize, ou talvez tenha sido o seu pai, o verdadeiro
dono do Monza branco. Na verdade, os
filhos sempre acabam pagando pelos erros dos pais. O radialista passou �s outras
not�cias e n�o tocou mais no assunto, fiquei aguardando o hor�rio dos telejornais
locais que deviam dar a mat�ria com mais
detalhes. Lize flagrou-me andando na sala de um lado para outro, roendo as unhas.
Onde voc� andou esta noite? indagou com rispidez.
O qu�?
Voc� saiu, aonde foi?
Eu n�o sa� coisa nenhuma.
Claro que saiu!
Voc� est� louca? Fiquei a noite inteira deitado naquela cama, ao seu lado.
Isso � que n�o, n�ozinho mesmo. Louco est� voc�! Voc� pegou a pasta, as chaves do
carro e saiu, pensando que eu estivesse dormindo, mas eu estava acordada, seu bobo,
cuidando voc�, e vi com esses olhos
que a terra h� de comer, devia ter-lhe seguido.
Devo ter ido ao banheiro, sei l�.
Vestido, de pasta e com as chaves?
Estou dizendo que n�o sa� e fim de papo.
N�o grite comigo, seu grosseir�o! Lize disse isso e caiu no choro.
N�o enche o saco eu disse, ainda exaltado, e sa� para o corredor do andar batendo
a porta atr�s de mim.
Chamei o elevador, mas n�o desci, fiz isso apenas para ganhar tempo e poder pensar,
s� me faltava essa, agora, Lize complicar as coisas. Eu flutuava, estava prestes a
entrar em combust�o. �Calma, Jorge,
calma�. Parti para os exerc�cios respirat�rios, inspira��o profunda, expirando
devagar. Se fosse o caso, ia contar at� cinco mil, tinha que voltar l� e acalm�-la
tamb�m, dissuadi-la da id�ia, faz�-la crer
que havia sonhado, alguma coisa desse tipo, sen�o o meu �libi teria ido pra cucuia.
Al�m disso, n�o suportava a id�ia de estar brigado com ela, nunca t�nhamos tido uma
pequena rusga que fosse at� ent�o,
precisava acalmar os �nimos, dominar a situa��o, colocar o comboio nos trilhos de
novo. Talvez pudesse sugerir que ela fosse passar uns dias com os pais, em
Umuarama, uma semana, duas, s� o tempo de baixar
a poeira. Podia alegar que precisava resolver os �ltimos detalhes do div�rcio, da
partilha, ela n�o entendia nada disso. Sim, era por a�. E que, ent�o, no seu
retorno, casar�amos de verdade, na igreja,
ela de v�u e grinalda, era isso! Salvo pelo gongo, toquei a campainha, esquecera de
levar a chave. Precisei tocar v�rias vezes at� ela atender.
Desculpe, vai disse eu, abra�ando-a.
Voc� tem outra.
Que disparate, s� amo voc�, minha deusa, s� voc�, juro.
Ent�o por que ia sair no meio da noite de fininho? Eu bem que desconfiei, por isso
fingi estar dormindo, devia ter seguido voc�, seguido a minha intui��o que nunca
falha. S� pode ser outra mulher,
nunca esperei isso de voc�, Jorge.
Calma, benzinho. Eu n�o sa�, amor, juro que n�o sa�, ser� que voc� n�o andou
sonhando? Tem sonho que parece real. Al�m do mais, todos esses acontecimentos, o
roubo do BMW, isso deve ter abalado voc�.
Ela assoou o nariz na manga do pijama.
Sei l�. n�o. foi tudo t�o real.
Mas os sonhos s�o assim, tem uns que parecem verdadeiros.
N�o sei. talvez. mas juraria que vi voc� saindo.
Devia ter me chamado, assim, ficava tudo esclarecido.
Quando toquei no assunto de ela viajar para Umuarama, por�m, encasquetou de novo
que tinha mulher na parada, tinha porque tinha. Agora mais do que nunca passava a
ter certeza de que eu queria me livrar
dela, ficar sozinho para aprontar � vontade. Custei uma eternidade para convenc�-la
de que estava errada, de que os motivos eram outros, lasquei o um-sete-um do
div�rcio e do nosso casamento, engoliu quadrado
a proposi��o. Quando consegui convenc�-la, j� era meio-dia. De um pulo, liguei a
tev�, ela foi preparar sua bagagem. Servi um cubo de gelo e completei com Johnnie
at� a borda, precisava relaxar. Todos
os canais deram a mat�ria, imagens do carro e dos cad�veres, declara��es da
pol�cia, cenas pat�ticas dos familiares, a m�e de um dos garotos gritava,
hist�rica, exigindo provid�ncias das autoridades, seguran�a,
para que outras m�es n�o passassem o mesmo que ela, o escambau. Servi outra
talagada, por fim a confirma��o, ningu�m tinha visto nada, n�o havia testemunhas,
neres de pitibiriba, uau.
N�o me interessava mais em quem atirara, o importante era ter tido a coragem de
faz�-lo, minhas v�timas eram an�nimas, sem fisionomia, um dos rapazes tinha 18
anos, o outro, 19, e da�? Lize n�o fora quase
atropelada aos 17? Eram colegas de faculdade, insepar�veis, onde um ia carregava o
outro, filhos de fam�lias de classe m�dia, padronizados, futuro promissor. Eu
interrompera a trajet�ria deles pelo simples
desejo de faz�-lo, porque me dera na telha, eu era o Deus que decidia o destino das
pessoas, o Poderoso, o Vingador.
Estou pronta disse Lize com voz sumida, interrompendo o meu solil�quio, tinha at�
me esquecido dela.
Vamos l�, benzinho.
Levei-a � rodoferrovi�ria e embarquei-a no �nibus. Durante o trajeto, ela n�o deu
um pio.
Est� louquinho pra me ver pelas costas, n�o �, seu fingido? disse antes de
embarcar, o rosto contra�do de dor.
Nem retruquei, com medo de gerar uma nova discuss�o e ela dar para tr�s, sobretudo,
n�o queria mago�-la ainda mais. Quando vi o �nibus deixando a esta��o, suspirei
aliviado. Menos um problema. N�o me acenou,
sequer me olhou, acompanhei por alguns instantes o seu perfil hirto, contrariado,
desenhado na janela.

Chaveei-me no ap� e revisei, tim-tim por tim-tim, desde a sa�da at� o meu retorno,
todos os eventos marcantes daquela noite inesquec�vel. Cometera um erro, certo, mas
compensara-o desempenhando com perfei��o
o restante da a��o. A sorte ajudara um pouco, e podemos at� generalizar que o fator
sorte � decisivo em ene situa��es, e que eu era, em princ�pio, um homem de sorte,
n�o encontrara Lize? Se bem que o mais
razo�vel seria n�o contar com o ovo, mesmo assim, apesar de tudo ter dado certo,
urgia abrir bem os olhos, redobrar a aten��o, sob pena de por tudo a perder.
Com a lupa emprestada de Sherlock, eu seguia o rastro da excepcional ocorr�ncia e
procurava detectar alguma outra falha, algum detalhe que me passara despercebido,
mas que poderia ser evidente aos olhos
de um policial treinado. Fora a derrapagem das placas, n�o achei nada mais, estava
tudo limpo. Com Lize ausente, eu me sentia mais leve e solto para tratar de um
assunto que era um campo minado. Pela primeira
vez me separava dela sem lamentar, mas n�o seria por muito tempo, logo, logo
estar�amos de novo juntos. Pode-se dizer que foi uma separa��o tecnicamente
necess�ria, de for�a maior.
Peguei caneta e papel e fiquei horas me deliciando com os registros das minhas
impress�es, as primeiras impress�es de um assassino diante do seu primeiro
assassinato, duplo assassinato, para ser mais preciso.
Os notici�rios noturnos davam a mat�ria em �mbito regional e nacional: a viol�ncia
assolava Curitiba, o pa�s, o mundo, as pessoas de bem n�o tinham mais seguran�a de
andar nas ruas, protestavam os �ncoras,
at� quando o governo, as autoridades, iam permitir isso? As babaquices de sempre. A
pol�cia tateava no escuro, mais perdida que cusco em prociss�o, estavam com uma
sorte danada, achavam de tudo que era
latroc�nio, vingan�a, queima de arquivo, os meninos n�o andariam metidos com
drogas? Jamais, eram garotos de boa fam�lia, ing�nuos, nem fumar, fumavam, s�
bebiam refrigerantes. Quanto mais disparatadas
fossem as interpreta��es, melhor para mim. Depois, se resson�ncia havia do
atentado, era porque tinha atingido pessoas com destaque na pir�mide social, se
fossem p�s de chinelo, n�o se estaria falando
mais do assunto, tudo estaria esquecido, riscados da pauta porque n�o d� Ibope. O
alvoro�o todo era porque qualquer bacana podia ser a pr�xima v�tima, agora se
matava sem motivo algum, o cu de todo o mundo
estava na reta, ent�o se borravam nas cal�as e queriam justi�a, aquele nhenhenh�m
todo.
Fiz uma limpeza em regra no rev�lver, jogaria as c�psulas deflagradas numa lixeira
de rua. Outra mancada, por que as mantive todo esse tempo comigo? Revisei a
pistola, estava impec�vel. Da pr�xima vez,
iria us�-la. A minha pontaria com o rev�lver n�o sofrera o m�nimo desvio, fizera a
corre��o devida, s� que o segundo tiro atingira o cocuruto do rapaz, e n�o a
orelha, como eu supunha. Por pouco ele n�o
escapa, se tivesse se curvado um ou dois cent�metros mais, a trajet�ria do proj�til
apenas rasparia-lhe o couro cabeludo e teria escapado ileso. Essa era a an�lise da
pol�cia t�cnica, publicada no SANGUE,
ambos tinham tido morte instant�nea, creditavam alta periculosidade aos
assaltantes. A pol�cia concluiu que os bandidos, irritados por n�o encontrarem nada
de valor, acabaram executando friamente as v�timas.
As investiga��es iam continuar at� a pris�o dos meliantes, et blablabl� et
bl�bl�bl�.
Me ocorreu que a pol�cia poderia estar fazendo corpo mole, dizendo que n�o tinha
pistas e tal apenas para distrair a aten��o do bandido, deix�-lo desguarnecido para
depois peg�-lo de surpresa. Quando menos
esperasse, eu podia estar com os homens nos meus calcanhares. Ficam dando corda com
sadismo de pescador, para que o peixe pense que comeu a isca impunemente, em
seguida, quando menos se espera, vem o pux�o
e a fisgada mortal. Essa hip�tese foi crescendo at� virar um King Kong, recheando a
minha empada. Sai pra l� azar�o. Que nada, se tivessem alguma coisa, j� teriam me
pego h� horas, a press�o de cima,
dos graud�es, era grande, mas estavam mais por fora que bunda de vedete.
Terminada a limpeza das armas, desci � garagem e examinei o fusca, cent�metro a
cent�metro. Vi a marca do chute do flanelinha no pneu, se acerta na lataria, tinha
amassado, vagabundo. Outra hora vou
ter um pl� reservado com ele, n�o perde por esperar. No mais, nenhum vest�gio que
pudesse me incriminar, mas mesmo assim fui ao posto e dei uma ducha nele, limpeza
ampla, total e irrestrita. Acompanhei
o lavador passar o aspirador por dentro.
Faltou ali, �, passa mais um pouquinho aqui. O seguro morreu de velho.
Por fim, mandei dar uma encerada, no capricho. Voltei ent�o para o ap� e me joguei
na cama, como um pesado fardo. Estava cansado, merecia o justo repouso, neque
semper arcum tendit Apollo (Nem sempre Apolo
retesa o arco, o que, para o bom entendedor, significa, ningu�m pode trabalhar sem
descanso, nem mesmo Apolo.).

Eu acabara de agitar a colm�ia, e as abelhas, alvoro�adas e indignadas, zumbiam


ruidosamente, prontas para o revide. Autoridades, cheias de poses, tomavam
atitudes, faziam o seu papel de agentes defensores
da paz social, a figura��o de sempre. Eu descobrira tr�s falhas prim�rias na minha
estr�ia, ap�s o segundo e terceiro invent�rios, coisa de ne�fito, compreens�vel,
um-dois-um n�o era brincadeira, dava
cana, cana da grossa, malandro vacilou sifu. O simples fato de a pol�cia ser
esculhambada, fajuta, prec�ria, n�o me preservava a priori.
Quando a press�o vem de cima, os homens s�o obrigados a mostrar servi�o, se
encontram uma ponta solta, come�am a puxar, pois, numa dessas, tem boi no fim da
linha. Na minha modesta opini�o, essas mancadas
sinalizavam o quanto ainda faltava percorrer para que eu me tornasse um
profissional de verdade, rec�m tirara o caba�o, tudo bem, mas eu estava inserido no
contexto, definitivamente, e isso era o mais
louv�vel. Como in�cio at� que era v�lido, de qualquer modo. Sem instrutor, ia ter
que aprender em cima dos meus pr�prios erros, desde que n�o fossem definitivos, n�o
� mesmo? E ir tratando de evitar outros
futuros. A regra b�sica era ter cautela, n�o botar prego sem estopa. Dali para
diante, as coisas ficariam cada vez mais dif�ceis, as investiga��es cresceriam, as
press�es aumentariam, um contingente maior
de ratos seria colocado nas ruas, a m�dia martelando em cima, j� viu.
Assim, conhecida a fisiologia de cada falha, estabeleci uma provid�ncia corretiva
para cada uma delas. Na primeira, o caso n�o seria de remover as placas t�o
somente, um carro sem placas chama aten��o,
principalmente quando n�o � novo, logo, o recomendado seria usar placas frias
durante cada opera��o.
A segunda falha independia de mim, Lize e seu testemunho. Sendo assim, Lize devia
ser mantida afastada at� segunda ordem, por dois motivos. Primeiro: n�o achava que
ela fosse aprovar o meu procedimento,
caso tomasse conhecimento dele, ia me cobrar isso pelo resto da vida, buzinando nos
meus ouvidos o tempo todo, e ningu�m resiste a uma tortura dessa magnitude; o
segundo seria uma consequ�ncia do anterior,
Lize vai me entregar sempre, � uma sincera compulsiva, pura demais, faria isso sem
maldade, achando estar fazendo uma boa a��o para me recuperar, tinha boca de jacar�
de nascen�a, n�o sabia dissimular
ou mentir, de modo que deveria ser mantida na casa dos pais por tempo
indeterminado. No caso de ela vir a complicar, querendo retornar antes do previsto,
afirmar que eu a enganara o tempo todo, que sim,
tinha uma amante, ela tinha raz�o, eu me apaixonara por outra, o rompimento nos
faria sofrer a ambos, mas seria um mal necess�rio, e tamb�m serviria para preserv�-
la, no caso de eu vir a ser pego.
A terceira falha, a que reputo a mais importante e que deveria receber um
tratamento especial da minha parte, foi eu ter atirado no que vi e acertado no que
n�o vi, trocado as bolas. Ter tomado os rapazes
por ladr�es foi uma falha elementar de observa��o, produto do mais aut�ntico
amadorismo, bobeira ao quadrado, digna dos Trapalh�es. Se eu os quisesse relacionar
com o Monza branco, tudo bem, agora, confundi-los
com ladr�es de seu pr�prio carro, puxa, essa foi forte, se os rapazes fossem do
ramo, ou seja, bandidos de verdade, n�o teriam notado a minha aproxima��o? Claro,
ladr�o t� sempre antenado. Nesse caso,
teriam me preparado uma recep��o a bala e, antes que eu tivesse tempo de levantar o
rev�lver, j� teriam tirado, de ca�ador eu passaria a ca�a.
Al�m do mais, deu zebra, o fato de um dos rapazes ser parente de n�o sei quem do
governo s� serviu para alertar os gansos, agora t�o metendo a boca no trombone, a
chiadeira � geral, muito carnaval, o prato
cheio que pol�tico adora, prefeito, governador, secret�rio de seguran�a, delegado,
a puta que os pariu, prometem mundos e fundos, juram que v�o fazer isso e aquilo,
decerto com a inten��o �bvia de me intimidar.
Mas agora, por�m, que a cagada estava feita, n�o havia como remediar, paci�ncia, o
neg�cio era esperar que a imprensa esquecesse o assunto, o que n�o devia demorar
muito, ou me restava ainda fazer uma
bagun�a maior, desviar a aten��o para outro lado, enquanto tivessem com que se
ocupar, n�o iam se concentrar em ningu�m especificamente. Alguma coisa deu para
extrair dessa ma�aroca, que n�o se nasce sabendo,
tudo tem a sua ci�ncia e o seu aprendizado, precisava sim era ficar esperto para
pegar o traquejo da coisa, n�o adiantava ter pressa, que � inimiga da perfei��o, s�
o tempo ia se encarregar de me dar a
virtuosidade do of�cio.
Outro detalhe que passou a me preocupar, embora n�o chegasse a representar uma
falha, mas que dava uma bandeira tremenda, era o ru�do dos estampidos. Procurei
desesperadamente nas minhas anota��es o endere�o
do armeiro de quem recebera indica��o. Assim que o encontrei, num tempo que me
pareceu demasiado, fui at� l� e encomendei um silenciador para cada arma. Atendeu-
me na mesma rapidez e propor��o dos d�lares
que me cobrou, ou seja, uma pequena fortuna, fazer o qu�? Isso me tranquilizou,
dali para diante, eu podia mandar brasa que n�o ia importunar o sossego de ningu�m.

Sa� com o intuito de arranjar duas placas. Elegi o estacionamento de um


supermercado para a opera��o. Eram 8 horas da noite, s�bado, o hor�rio em que todos
os cretinos da cidade
marcam encontro nesses antros de consumismo. Fiquei observando os carros chegarem,
um Corcel encaixou-se em uma vaga pr�xima onde eu me posicionara e desovou uma
fam�lia inteira, seis pessoas, incluindo
duas crian�as, esses n�o sairiam dali t�o cedo. Quando sumiram nas escadas
rolantes, aproximei-me do carro com uma chave de fenda e um alicate, em minutos
retirei as placas, embarquei no meu carro e desapareci.
Deixei o tempo pingar mais algumas horas na ampulheta da minha impaci�ncia, uma
espera que me consumia os nervos em frangalhos, por fim, perto das 11, troquei as
placas do fusca e tomei as ruas, hiperexcitado.

�gua Verde, estacionei na rua escura, e, tal qual serpente enrodilhada � espera da
sua presa, l� fiquei. Enquanto os compadres v�o para bares, restaurantes, cinemas,
est�dios de futebol, lojas, bord�is,
cassinos clandestinos, rinhas, se picar, e l� sei eu mais o que, eu curtia o meu
lazer de uma forma bem mais divertida, decididamente mais empolgante, interrompendo
o biorritmo dos viventes, abruptamente,
sem pr�vio aviso. Na degola, por exemplo, quando feita com precis�o, o indiv�duo
expira sem se dar conta, n�o tem consci�ncia do passamento, n�o chega a ter tempo,
a morte s�bita indolor. Com um tiro certeiro
em ponto vital, tem efeito id�ntico, o �bito ocorre quase que instantaneamente, n�o
d� tempo nem de gemer. Eu era um executor ben�volo. Um casal apontou na esquina,
vinham abra�adinhos na minha dire��o,
cheios de amor para dar. Ao passarem debaixo do poste, pude ver bem suas
fisionomias alumiadas, eram jovens, bonitos, estavam apaixonados, tal como Lize e
eu j� fomos um dia. Andavam uns passos e paravam,
olhavam-se fundo, beijavam-se na boca, beijos prolongados. Ao chegarem perto, no
ponto menos iluminado onde eu me achava pronto para o bote, desci do carro e, num
gesto breve, mirei a cabe�a do rapaz,
fiz fogo, a menina nem se moveu, uma pequena altera��o no curso da m�o e quase
simultaneamente estourei os miolos da acompanhante. Com o silenciador, os tiros
tinham ru�do de peido, puff, puff. Com os
dois desabados aos meus p�s, entrei no carro e me afastei dali.

Juvev�, uma execu��o assemelha-se a uma trepada, voc� goza e o cacete murcha, voc�
est� satisfeito. Logo, logo, por�m, o tes�o volta, o pau levanta e voc� fica a fim
de novo. Para quem curte droga pesada
� a mesma coisa, a fissura � sempre mais forte. Desta vez, o premiado na loteria da
vida � o senhor sacana que retorna � casa em hora impr�pria, foi comer a secret�ria
no motel depois do expediente, abre
o port�o sem pressa de botar o carro na garagem, retardando a bronca da mulher.
Ficou olhando eu descer do carro e me aproximar, sua express�o era de puro enfado.
A uma dist�ncia de tr�s metros, fuzilei-o
com dois puns consecutivos, um na cabe�a e outro no peito. Enquanto o acompanhava
desmoronar, avistei de relance algu�m espiando na vidra�a. Arranquei imediatamente.
A mulher ia ter que perdoar as perf�dias
do marido, nessa altura j� devia estar chamando os homens, j� era hora de tirar o
cavalinho da chuva, talvez mencionasse o fusca se afastando da cena do crime, n�o
conseguira ver muita coisa, pois a ilumina��o
p�blica dos bairros � escassa, o que favorece o lavor sorrateiro, mas ningu�m se
engana para identificar um fusca.
Fui obrigado a parar no sem�foro para evitar colis�o com os ve�culos que tinham a
prefer�ncia do cruzamento, o motoqueiro parou do meu lado e ficou fazendo vrum-
vrum, acelerava sua motoca com a vol�pia
dos que acreditam na vis viva, � barulho do cacete. O impulso foi t�o veloz que
fugiu ao meu controle. Contrariando as normas b�sicas de acautelamento a que eu me
propunha, outro peidinho, o motoqueiro
foi se inclinando, em c�mara lenta, levando a moto consigo, ambos se estatelaram no
asfalto. Desta vez, sim, pisei fundo, cantando pneus, com tantos peidos
consecutivos, podia acabar me cagando nas cal�as.

Quando as vistas cansavam de ler, quando os dedos do�am de tanto escrever, punha-me
a bater no saco at� me exaurir por completo, ou sa�a para caminhar. Dirigia-me
invariavelmente para o centro da cidade,
misturava-me � multid�o, o contato com pessoas, a simples presen�a delas, aliviava
a tens�o.
A falta que Lize me fazia era enorme, procurava distrair-me com qualquer coisa. Ia
ao cinema, mas sa�a no meio do filme, ou sentava nos bancos das pra�as e ficava
observando os fodidos. As ruas e as pra�as
da cidade est�o infestadas de miser�veis misturados aos ratos, baratas, c�es
sarnentos, moscas. Eu ficava horas olhando essa miu�alha lamber suas feridas, o seu
azedume, a sua inutilidade. Numa dessas
andan�as, fui para os lados do Parque S�o Louren�o. Enquanto dava a volta na pista,
avistei um grupo de velhos que papeavam animados num recanto de �rvores copadas,
parei ali perto e fiquei olhando. Os
velhotes come�aram a se deslocar em bloco e vieram para o meu lado, pediram licen�a
e ocuparam os bancos em torno da mesa de cimento onde eu sentara, falavam pelos
cotovelos e me puxaram para o seu papo-furado.
Eram enfartados de todo tipo, gente simples, sem frescura, reuniam-se ali
diariamente para tomar sol, se exercitar e jogar conversa fora. Notaram que eu
tamb�m era um pouco fora de esquadro, talvez da�
a boa acolhida. Improvisei um bocado de lorotas, que havia sofrido uma isquemia
cerebral e ficara com o lado direito paralisado, depois de quase recuperado, me
envolvi num acidente automobil�stico que
esculhambou o lado esquerdo, tinha visto a morte de frente duas vezes. Acharam que
eu tinha f�lego da gato, contaram-me, um de cada vez, os seus padecimentos
card�acos, as complica��es com outras doen�as,
o diabetes, o reumatismo, a escoliose, a bronquite, a asma, o joanete, o diabo, as
mudan�as sofridas nas suas rotinas di�rias, o
est�icismo com que levavam suas vidas. Sa� de l� com a promessa de voltar,
embora fosse o mais mo�o de todos, com uma margem m�nima de dez anos em rela��o ao
mais jovem deles, embora sem saber que seria adotado como mascote do grupo.
Entrementes, prosseguia no meu roteiro de leituras e fazia o registro sistem�tico
no caderno das minhas incurs�es noturnas mais recentes, em outras ocasi�es me
divertia de uma forma mais amena, distribuindo
peda�os de carne envenenada a todos os c�es que encontrava, principalmente aqueles
que ladravam furiosos detr�s das grades que protegem as propriedades particulares
dos seus donos, atormentando os meus
passeios matinais com seus latidos ensurdecedores.
Sempre achei uma amola��o esse neg�cio de c�o pulando e amea�ando a gente quando se
anda na via p�blica em busca de sossego, nas horas mortas, nos fazem parecer
suspeitos de alguma coisa indefinida, n�o
merecem o menor respeito e tiveram o castigo merecido. Dizimei centenas de c�es no
espa�o de uma semana. Quando algum gato farejava o cheiro ativo da carne na sacola
pl�stica e me seguia, eu o obsequiava
com um peda�o tamb�m. Outro passatempo divertido era quebrar vidra�as de lojas e
pr�dios p�blicos, danificar orelh�es, arrancar placas de sinaliza��o, cortar pneus
de carros, espalhar ma�aroca de pregos
nos corredores de �nibus, ligar para a pol�cia e ve�culos de comunica��o avisando
que bombas haviam sido colocadas em tal e tal reparti��o p�blica, banco, f�rum, e
por a� afora. � noite, assistia �s not�cias
pela tev�, degustando o meu Johnnie on the rocks.
Parei o carro junto da viatura da pol�cia militar que estava estacionada no
acostamento do km 121 da BR 277, havia apenas um PM no banco, o outro devia estar
cagando no mato. Vinte e uma e trinta. O c�u
riscado de fa�scas seguidas de trovoadas prenunciando a tormenta, o debi me olhou
cheio da arrog�ncia que a farda lhe investia.
Oi, pode me dar uma informa��o?
Que que �?
Puff.
Eu queria saber se esta estrada vai dar no fim dela. P�, cara, qual �? Vai me
dizer ou n�o vai?
O parceiro ainda afivelava o cinto, subindo o barranco. Puff-puff.

O ano chegou ao fim e achei melhor manter Lize em Umuarama, apesar da falta que ela
me fazia. O apartamento virara novamente um chiqueiro. Passei o Natal e o Ano Novo
na companhia do meu bom e velho amigo
Johnnie, o g�nio engarrafado na sua forma l�quida. Ele se esfor�ava ao m�ximo para
me agradar e sugeria aventuras ousad�ssimas, que eu quase sempre acolhia de bom
grado, mas nossa amizade acabava sempre
com a �ltima gota.
Passei a frequentar o parque dos velhinhos, eram as �nicas pessoas com quem eu me
relacionava, faziam muita festa ao me ver, e isso me deixava mais parecido com um
ser humano normal. N�o sei por que ca�
nas gra�as deles, me tratavam com uma defer�ncia toda especial, talvez porque fosse
considerado como a mascote do grupo, ou porque fosse o �nico solteiro entre eles,
sei l�, todos eram casados ou vi�vos
de segundas n�pcias, alguns me levavam quitutes feitos em casa pelas mulheres,
outros livros e revistas, davam-me conselhos para driblar a solid�o. Na verdade,
acho que tinham pena de mim. Acabei me enternecendo
com tanta adula��o. Os velhinhos eram mesmo boas pra�as e eu gostava deles.
Durante um m�s, n�o aprontei nada, dando um tempo para a poeira baixar. Lia,
escrevia, caminhava, ia ao parque. L� fui fazendo novos amigos, todos de uma forma
ou de outra relacionados com doen�as do
cora��o. Existe uma enorme popula��o p�s-enfartada que se agarra � vida abdicando
de todos aqueles excessos e prazeres dos quais eram escravos antes.
N�o sei como pude fumar tantos anos, hoje n�o posso nem sentir o cheiro de
cigarro.
Cruzes, n�o posso nem olhar algu�m fumando, idem para a bebida.
Aboli o sal, gorduras, doces, n�o como mais churrasco, perdi quinze quilos, quero
perder mais dez, nem que fique com a cara parecendo uma passa de uva.
N�o diga perder, diga emagrecer, sen�o vai recuperar tudo que perdeu.
Alguns viram hipocondr�acos, e tudo � algum ind�cio ou sintoma de disfun��o ou
doen�a que poder� lev�-lo a novo e fulminante ataque do cora��o. Como pretenso
sobrevivente ferrenho de um derrame, eu podia
tirar sarro deles. Goz�vamo-nos mutuamente.
Eu, depois do derrame, �, pfiu, n�o levanto nem com banda de m�sica.
Eu ainda dou pro gasto, uma vez por semana fa�o a nega v�ia baixar as calcinhas.
E n�o tem medo duma s�ncope na hora do aiaiai?
Nem lembro disso.
N�o tem perigo, amigo, ele s� d� duas por m�s, uma tentativa e uma desist�ncia, o
trabalho maior � da mulher, tira e bota a calcinha e n�o acontece nada, se fosse
eu, chutava o cara.
Pois fique sabendo que o maior �ndice de �bitos de doentes card�acos de terceira
idade � na hora do coito.
N�����oooo, t�s brincando comigo, pois sim, at� com isso vou ter que parar? J�
parei de comer, j� parei de beber, vou ter que parar de trepar?
Parar? Tem certeza provocava algu�m , de que precisa parar?
Ora, n�o chateia, fica de quatro pra ver se voc� n�o vai ter a sensa��o de estar
cagando pra dentro.
Tem mais, te desafio, boto at� a Gretchen de quatro na tua frente que n�o tem
perigo, c�o que muito ladra n�o morde.
Mas � prefer�vel parar de trepar do que ter que descer mais um andar, Deus te
livre.
Durante esse m�s, aturando os velhinhos, fiz a maior matan�a de c�es e gatos que a
hist�ria j� registrou, devo ter eliminado em torno de 3 mil c�es e quinhentos
gatos, gastei uma m�dia de 50 quilos de
carne de segunda e tr�s potes de raticida. Eu estava perdendo outra chance de
entrar para o Guinness Book.
Quando n�o estava em casa ou no Parque, sentava-me na pra�a Os�rio a observar os
fodidos que formavam uma fauna variada de mendigos, pivetes, desempregados, bebuns,
prostitutas, a mulher acampada no ch�o,
no meio de trapos e bugigangas, latas, garrafas pl�sticas, caixas de papel�o, o
mosquedo zumbindo em torno, uma crian�a no colo e a outra, mais crescida, nua,
perambulando em volta. O beb� chorando. A
mulher ent�o enfia um seio murcho na boca da crian�a, que suga, suga, suga, depois
larga e chora com mais for�a ainda. Algu�m jogou um toco de cigarro perto dela e
ela se inclinou para pegar, foi-se esticando,
na tentativa de alcan�ar a guimba, mas, antes que conseguisse, emborcou em c�mara
lenta e teve que se arrastar alguns cent�metros at� apossar-se da guimba. Aprumou-
se e levou-a � boca, tragando a fuma�a
com avidez. A crian�a aumentou o volume do choro, mas ela n�o estava nem a�. Mudei
de lugar, ela e as crian�as bem que mereciam um justo descanso.
Cada dia eu presenciava uma cena digna de nota e registrava no caderno sob o t�tulo
Fodidos. Fiz uma boa cole��o de casos e tipos. Miudinho era um deles, um pedinte
que ficava encostado a uma �rvore e
soltando a sua cantilena como se fosse um canto de sereia.
Ajuda eu, Miudinho, ajuda, ajuda, ajuda eu, ajuda, Miudinho, ajuda eu, ajuda.
Marcava o compasso e dava uma entona��o � voz t�o dram�tica que faria inveja a
muito ator de novelas.
Como pude observ�-lo em hor�rios e dias diferentes, verifiquei que carregava no tom
emocionado quando iniciava a jornada ou a semana, chegando mesmo a ficar quase
inexpressivo no fim de uma sexta-feira
ou quando tinha feito uma boa arrecada��o. Baita malandro, carism�tico, faturava
uma nota preta.
Um pivete, certa vez, enfiou a m�o no bolso de um anci�o bem defronte ao meu banco,
o velhote curvado n�o op�s resist�ncia, parado, ficou olhando o garoto que
examinava o produto do seu furto, sua cara
enrugada n�o demonstrava nenhum sentimento hostil, um len�o, documentos, foram
jogados no ch�o um ap�s outro junto aos p�s do velho pelo pivete, como quem
descarta no jogo de baralho o baga�o que n�o serve.
Reteve consigo apenas o dinheiro, que embolsou, afastando-se calmamente. O velho
agachou-se, humildemente, juntou o seus pertences e colocou-os no bolso, afastando-
se com o mesmo vagar que o garoto, resmungando
para si mesmo. Ambos davam uns passos e paravam, cada um se voltava, encarava o
outro e seguia adiante, como se isso fizesse parte de uma combina��o de dan�a
ensaiada. Acredito que s� eu tenha presenciado
a cena, pois ningu�m interferiu ou se voltou para olhar.
A presen�a da guarda municipal e dos brigadianos era constante, mas in�til. Os
pivetes cheiravam cola de sapateiro, fumavam maconha, jogavam-se no lago do
chafariz, enquanto os homens da lei andavam na
volta da pra�a, indiferentes, olhando sempre para o lado oposto ao da ocorr�ncia.
Deviam atuar apenas em casos extremos de flagrante delito, dos quais, no entanto,
n�o tenho nenhuma lembran�a.
Um engraxate, apartado dos outros, me chamou a aten��o, era mais alto que os
demais, mag�rrimo e meio debiloide, falava enrolando a l�ngua, os outros
aproveitavam-se disso e o exploravam, pegavam a sua
lata de graxa, pano, escova, roubavam-lhe os clientes. Sentado na grama do
canteiro, com o bra�o apoiado na caixa, as pernas esticadas e afastadas, olhava n�o
sei que ao seu lado, a fixidez do olhar e
a triste express�o do seu rosto deixavam-no mais desamparado do que j� era. O
abandono daquela crian�a, associado � sua fisionomia de retardado mental, me
tocaram fundo, apiedei-me dele instantaneamente.
Aquela vis�o me evocava sentimentos que me deprimiam e revoltavam ao mesmo tempo,
me lembrava de algu�m do passado, que igualmente me emocionara, mas n�o tinha id�ia
de quem nem quando, uma intimidade
de algu�m t�o pr�ximo como se fosse um filho. Tentei me colocar no seu lugar,
avaliar a sua condi��o de moleque de rua, mas meu cora��o se p�s a dar pinotes, e
me afastei dali o mais r�pido que pude.

Estacionei na lateral da lojinha que ficava na esquina e tinha entrada pelas duas
ruas. O macr�bio comerciante atendia o bazar sozinho. Uma porta dava acesso para o
interior da casa, da qual a lojinha
era uma extens�o, a mulher devia estar l� dentro preparando o almo�o, tiravam o
sustento dali e moravam nos fundos. Fazia um dia ensolarado e quente, dez horas da
manh� de segunda-feira. O movimento de
pessoas e carros era quase nulo por aquelas bandas da �gua Verde. O homem que
descera do carro era aloirado, usava �culos com aros de metal, uma barriga
proeminente, bigode farto, que lhe dava uma apar�ncia
germ�nica, � la Bismark.
Pois n�o, meu distinto senhor?
Eu ia responder, mas, quando me virei e encarei o velho atrav�s do vidro dos
�culos, os seus olhos cruzaram com os meus. Toda a sua experi�ncia de com�rcio
adquirida atr�s do balc�o, durante todos aqueles
anos atendendo pessoas e aprendendo a conhec�-las ap�s uma breve avalia��o,
indicou-lhe que estava diante de algu�m muito perigoso. Nosso entendimento visual
foi imediato, ele me identificou e eu descobri
o seu medo, mas ele n�o esbo�ou o menor movimento de fuga ou defesa, sabia que era
in�til, ou talvez quisesse proteger a mulher, evitando chamar sua aten��o, para que
se mantivesse afastada.

Introduzi a m�o no interior do palet� e a retirei com a pistola, puff, seu corpo
projetou-se para tr�s, bateu na parede e escorregou para o ch�o, deixando atr�s de
si uma mancha vermelha, repus a arma
no coldre abaixo do sovaco e afastei-me dali com passadas lentas, ningu�m � vista.

Eu estava pronto para uma evas�o r�pida e rasteira, reservara 150 mil d�lares, em
notas de cem, e os guardara, junto com o passaporte e duas passagens �reas de
compra antecipada com validade para um ano,
bastando confirma��o de dia e hor�rio, numa mala cheia de roupas mantida aos p�s da
cama, a qualquer instante eu podia sumir do mapa. Mesmo assim, eu n�o descuidava de
nada. Pedi ao s�ndico uma c�pia da
conven��o de condom�nio e da ata de constitui��o com a rela��o dos propriet�rios,
bati um papo amistoso com ele, que me deu de bandeja uma resenha dos moradores do
pr�dio, al�m disso, fiz as minhas pr�prias
pesquisas, precisava conhecer bem quem me rodeava e os h�bitos de cada um em
particular. Cada andar tinha tr�s apartamentos, sendo um de dois dormit�rios e dois
de um, no total trinta e seis. Al�m da minha,
haviam mais duas coberturas, ocupadas. Uma por um casal de m�dicos em viagem de
estudos aos EUA, logo, ausentes, outra por um advogado aposentado e fam�lia, mulher
e filha, tamb�m quase sempre ausentes.
O apartamento logo abaixo do meu era ocupado por um casal brig�o, o cara dava pau
na mulher toda semana, ela gritava, chorava, andava permanentemente de �culos
escuros e cabelos jogados no rosto para esconder
as marcas das porradas. Faziam as pazes logo ap�s as brigas e tratavam-se de
amorzinho pra l� e pr� c�, como se nada tivesse acontecido. Tinham o h�bito de
falar alto e eu escutava o que diziam, o volume
do aparelho de som e da tev� tamb�m era acima da m�dia, isso tudo acompanhado de
batidas de portas que estremeciam o pr�dio. Faziam uma zoeira permanente que me
tirava do s�rio, muitas vezes tive gana
de descer l� e co�ar o lombo dos dois. Os dois apartamentos vizinhos a eles eram
ocupados por duas empres�rias de turismo, huummm, e por um casal que trabalhava no
Banco do Brasil, ele, gerente, ela, chefe
de departamento, ausentes da manh� � noite. Abaixo desse andar moravam um gay, j�
coroa, sempre acompanhado de garotos imberbes; uma velha e sua filha; e um playboy,
filho de fazendeiro, com intenso entra-e-sai
de piradinhos e chapadinhos.
Restringi o controle da movimenta��o at� o d�cimo andar, fora o playboy, a velha, o
advogado, o casal brig�o e eu, o resto se ausentava durante o dia todo, O playboy
circulava dia e noite, subindo e descendo
pelo elevador, mas somente a partir das quatro ou cinco da tarde, antes, dormia do
amanhecer at� esse hor�rio. A velha raramente sa�a. O advogado ficava, semana sim,
semana n�o, dividindo-se entre a casa
da praia e o s�tio em Piraquara, a filha, excepcional, era carregada com eles.
Quanto ao casal brig�o, o homem era tido como representante comercial, mas n�o sa�a
quase nunca durante o dia, a mulher tinha
cara de puta arrependida. O cara andava com a mulher sempre grudada na sua cola,
costumavam sair ao anoitecer e s� retornavam de madrugada, o pilantra devia botar a
mulher a se virar enquanto fazia a ronda
dos bares. Eu quase sempre acordava com a espampanante chegada deles, vinham
embalados e n�o demorava muito para come�ar a baixaria. Algu�m chegou a chamar a
pol�cia mais de uma vez por causa dos pedidos
de socorro da mulher, a partir da�, o casal deve ter feito o mesmo controle que eu
da vizinhan�a para poder brigar � vontade sem ser importunado, passaram a quebrar o
pau somente pelo final da manh�, quando
despertavam, justo no hor�rio que n�o havia ningu�m no edif�cio, tudo premeditado.
Para colaborar, o barulho do tr�nsito vindo de baixo escondia parte da zoada,
exceto para mim que n�o perdia nada com
o meu treinado ouvido de maestro, capaz de captar os menores desafinos que fossem
das imedia��es. Chegava ao c�mulo de perceber um estalido m�nimo vindo do corredor
do andar estando eu no quarto, o que
podia significar o ru�do causado pelo solado do sapato de algu�m esmagando alguma
part�cula de areia do pavimento durante a pisada. L� ia eu rapidamente p� ante p�
espiar no olho m�gico, e era a servi�al
do condom�nio fazendo o seu silencioso servi�o de limpeza.
Eu j� me achava num processo adiantado de paran�ia, aguardando o aparecimento da
pol�cia a qualquer momento a seguir alguma pista deixada na minha via criminalis.
Passei a programar cada sa�da com mais
rigor, comprei perucas, bigodes, barbas e narizes posti�os, chap�us, bon�s e enchi
um ba� com uma infinidade de acess�rios de disfarce. Antes de entrar em a��o,
parava em algum lugar seguro para me travestir,
virava louro, ruivo encrespado, black power, de �culos escuros e ou de vidro, ora
barbudo, bigodudo, narigudo, e l� sei eu mais o que. Preocupava-me mais com a
cabe�a que ficava exposta na janela do fusca.
Calculava que, se fosse visto, isso ia servir para confundir a pol�cia no caso de
retrato falado.
O ve�culo e os proj�teis das armas constitu�am as provas materiais para me
relacionar aos crimes, priorizei assim a troca do carro e das armas, como primeiro
passo duma nova fase. Entrementes, continuava
insistindo na revis�o dos m�nimos detalhes das etapas de cada opera��o, uma busca
obsessiva por falhas poss�veis. A precis�o cir�rgica que eu utilizava para atingir
os meus objetivos, no entanto, me davam
uma tranquilidade relativa, a minha inquieta��o maior era com o imprevis�vel,
aquele pormenor intang�vel que foge a qualquer controle, nesses casos a capacidade
de improvisa��o � fundamental.
J� no tocante � imprensa, aprendi a conviver com ela, decodificava as not�cias
separando o que elas tinham de trigo, verdadeiro, do joio, sensacionalista,
tentando encontrar alguma reveladora inten��o
nas entrelinhas das mat�rias, no trabalho conjunto que a pol�cia faz com os
jornalistas, servindo ao mesmo tempo para estimular e acalmar a opini�o p�blica, o
que � para vender jornal e o que � pano quente
para n�o causar p�nico no povo e promover o trabalho da seguran�a p�blica. As
mortes misteriosas que infestavam a cidade nos �ltimos tempos colocavam o p�blico
em grande polvorosa, o SANGUE jogava gasolina
na fogueira permanentemente com manchetes e ilustra��es chocantes, suas edi��es se
esgotavam rapidamente.
Na Boca Maldita�, sempre �vida de novidades, n�o se falava em outra coisa,
atribu�am-se nomes ao psicopata sanguin�rio que fazia suas v�timas em s�rie, o
Vampiro de Curitiba, que j� mexia com o imagin�rio
dos curitibanos h� bastante tempo, num primeiro momento, teve a prefer�ncia da
maioria, mas vieram muitos outros, at� que se sedimentou o de Monstro Assassino,
mais tarde abreviado para Monstro apenas.
A imprensa acatou logo o cognome e era Monstro pra c�, Monstro pr� l�, Monstro
ataca, Monstro faz novas v�timas, etc. As vers�es eram variadas e desencontradas, a
bem da verdade, apesar do falat�rio insistente,
s� cresciam as interroga��es. A da pol�cia era maior que todas, se faziam
conjeturas, mas, de concreto mesmo, nada.
A morte dos policiais militares � que exaltara os �nimos da corpora��o, que
prometia medidas dr�sticas dali para a frente. Iam fazer o poss�vel e o imposs�vel
para capturar o Monstro. A imprensa aumentava
a celeuma, incluindo depoimentos dram�ticos dos familiares das v�timas, que se
organizavam para pedir provid�ncias urgentes de prote��o e seguran�a �s
autoridades, e todos eram un�nimes em clamar por justi�a,
a justi�a sempre atrasada, perdida no tempo pelo seu rel�gio sem ponteiros. A
pris�o do Monstro, no entanto, era uma quest�o de honra policial.
Dessa forma, resolvi prolongar a minha inatividade por mais tempo, me mantendo nas
amenidades de empanturrar c�es e gatos. Para n�o dizer que n�o fiz algo de
diferente, certa
. vez, depois de um inocente passeio noturno, e para n�o voltar para casa
sapateiro, dei um tiro na vitrine de uma loja de esquina, a bala varou o enorme
vidro da frente e o que dava para a rua lateral,
formando um estilha�amento em cadeia, uma cascata de cacos que subitamente deixou
os v�os devassados, como a �ltima pe�a de roupa tirada bruscamente num striptease,
e, para completar o espet�culo, o alarme
disparou a seguir, dando o toque surreal � cena, como se a loja desnuda se pusesse
a gritar pedindo ajuda, temerosa de sofrer um ataque sexual. Ca� numa crise de riso
incontrol�vel, foi um dos momentos
mais hilariantes que tive na vida, Lize teria barrigadas de riso caso estivesse
comigo.

1 Lugar, no centro de Curitiba, onde se re�nem, como o pr�prio nome sugere,


boateiros e fofoqueiros (N. do Editor)

Os jornais e telejornais divulgaram as imagens dos tr�s Monstros, dois negros e um


branco, que tinham sido pegos quando se preparavam para currar uma garota no bairro
�gua Verde, um dos locais de crimes
com maior incid�ncia do modus operandi do Monstro de Curitiba, onde, logo a seguir,
possivelmente, os Monstros iriam assassin�-la. A jovem escapou por pouco, dada a
interven��o sempre eficiente da PM,
os tr�s biltres negaram para a imprensa, peremptoriamente, que fossem os Monstros e
que tivessem inten��o de mat�-la, mas a pol�cia obtivera uma confiss�o por escrito
dos meliantes, confirmando a vers�o
dos brigadianos que efetuaram a deten��o. A partir de agora, todos os curitibanos
iam poder dormir, estar em casa e/ou sair �s ruas tranquilos, n�o um mas tr�s
Monstros estavam bem trancafiados na Penitenci�ria
do Ah�, para triagem, e iam pagar por seus crimes hediondos, com a severa aplica��o
da justi�a. Creditavam-lhes em torno de 50 homic�dios, fora outros cometimentos de
somenos import�ncia, praticados individual
e/ou conjuntamente.
A viatura da PM que efetuara a pris�o, sob o comando do sargento Arquibaldo e do
cabo Alceu, transitava, para a felicidade total da v�tima, por uma das ruas do
sossegado bairro �gua Verde, preferido pelos
Monstros para a consecu��o das suas atrocidades, � tardinha do dia anterior,
noticiava o SANGUE, quando foi alertada por gritos de socorro da v�tima vindos de
um terreno baldio. Os dois policiais adentraram
no terreno e surpreenderam os tr�s fac�noras em processo de flagrante delito,
contiveram os bandidos com seus rev�lveres trinta e oito e arrebataram a mo�a
traumatizada das suas garras assassinas. A v�tima,
nesse momento preciso, berrava, hist�rica, MONSTROS, MONSTROS. Algemados, os
bandidos foram recolhidos � delegacia da jurisdi��o, e a v�tima ao IML, onde foi
submetida � per�cia m�dica e lavrado o correspondente
laudo. O delegado e seus auxiliares n�o tiveram dificuldades em obter uma confiss�o
completa da autoria do atentado e de mais cinquenta outros homic�dios at� agora sem
solu��o naquela especializada e cong�neres,
sem d�vida nenhuma eram os Monstros e suas monstruosidades. Ao vivo, os celerados
confessaram detalhes dos assassinatos, executados com requintes de crueldade, com a
maior frieza e insensibilidade, devendo,
em virtude da sua alta periculosidade, ficarem incomunic�veis, at� serem julgados.
A pol�cia militar e civil cumpria mais uma vez com brilhantismo o seu papel de
defensora da ordem e da seguran�a p�blica.
Os policiais militares que efetuaram a pris�o foram agraciados com a medalha de
honra ao m�rito em sua corpora��o, recebidas das m�os do comandante, na presen�a do
governador e do prefeito, que estiveram
presentes � solenidade, bem como todas as autoridades representativas de assegurar
a paz p�blica em �mbito municipal e estadual.
Um m�s depois, estando o assunto morto e enterrado, liguei para o SANGUE pedindo
sua exuma��o. Os tr�s acusados at� que podiam ter suas culpas no cart�rio e coisa e
tal, mas n�o tinham o direito de assumir
os crimes com a marca registrada do Monstro. O Monstro, no caso eu, o aut�ntico,
reivindicava a elimina��o de quatorze pessoas apenas. Os tr�s pobres diabos n�o
passavam de bodes expiat�rios, arma��o feita
pela pol�cia, como de praxe, para encobrir sua incompet�ncia. Eu falava com forte
sotaque alem�o.
Focc�s fan ferrr ke ossss krrrrimes fan kontinuarrrr.
Alertei para o fato de que os bandidos n�o tinham sidos flagrados com as armas
utilizadas por mim, no caso, uma Beretta nove mil�metros e um Magnum quatrocentos e
cinquenta, ambas com silenciador.
Ossss krrrrimes fan kontinuarrrr desliguei.
No dia seguinte, o jornal dava a not�cia na p�gina de rosto inteira: POL�CIA ARMOU
TUDO, Monstro liga para nossa reda��o inocentando os tr�s acusados detidos e acusa
a pol�cia de arma��o. Era pedida uma
interven��o mais incisiva da Promotoria P�blica para verificar os fundamentos da
den�ncia. � tarde, os telejornais rodaram a fita cassete gravada pelo rep�rter do
SANGUE. Confesso que n�o percebi o puto
fazer a grava��o. A voz do alem�o estava um barato e podia ser confundida com a de
um terrorista nazista ou de algum membro da Baader-Meinhof, refugiado
temporariamente no Brasil.
Assim como eu intencionava, o rebu se instaurou de novo na cidade. Viaturas andavam
nas ruas em alta velocidade com as sirenes ligadas, dia e noite, qualquer um de voz
um pouco rouca e sotaque carregado
era detido, inquirido e solto, nessa ordem. A pol�cia jogava sua tarrafa, mas n�o
trazia nenhum peixe nela. Quando ocorria de um suspeito ficar retido por tempo al�m
do normal, eu ligava para o SANGUE
e ele era liberado em seguida. Os chargistas dispunham de mat�ria abundante:
�Monstro requer a cria��o de um Monstr�dromo para delimitar suas atua��es�,
�Monstro amea�a pol�cia: desliguem as sirenes que
eu n�o consigo mais dormir e estou ficando nervoso, posso cometer loucuras�,
�Monstro procura Monstra para constituir fam�lia e mudar de vida�, �Pol�cia segue
pegadas do Monstro e acaba no zool�gico.
na jaula do elefante�, �Monstro se re�ne com a c�pula do INPS para negociar sua
aposentadoria�.
No meio dos velhinhos do S�o Louren�o, eu me sentia seguro, protegido pela aura de
inoc�ncia que eles espalhavam � sua volta, uma ablu��o purificadora por contato
imediato de primeir�ssimo grau. Ficava
l� a manh� toda, tomando sol, relaxando, ciscando na grama e jogando pedrinhas na
�gua do lago. Quando voltava para casa, retomava as leituras, as escritas.

Certa manh�, enquanto caminhava no parque, vi � dist�ncia uma mulher que me lembrou
de Lize.
Lize est� morta repeti v�rias vezes para me convencer disso.
Era como estar despertando de um sonho bom e n�o querer admitir a dura realidade.
Preciso aceitar isso, � definitivo, n�o tem mais volta. Ela est� em Umuarama, n�o
com os pais, mas no cemit�rio, os seus
restos mortais, ou o que sobrou dela, est�o enterrados l�, nunca mais vou v�-la
novamente, nunca mais. Comecei a chorar, um choro extra�do do nife da minha dor.
Chorei, chorei. As pessoas que passavam
me olhavam com curiosidade, mas eu estava cagando para elas. Me lembrei do
engraxate debiloide da pra�a Os�rio, est�vamos no mesmo n�vel de abandono, no mesmo
vazio de perspectivas. Aos poucos fui me acalmando,
enxuguei o rosto com o len�o. Quando me ergui, estava com a alma lavada, meus
passos sa�ram decididos. Se aquele garoto, com toda a sua fragilidade e
defici�ncias, conseguia enfrentar a sua brutal realidade,
eu, com muito mais raz�o, e dadas as diferen�as, tamb�m ia conseguir. Retomei a
pista e fui para junto da minha turma.

JL:Esse retorno � realidade teve mudan�as imediatas?


JD: N�o, foi apenas uma constata��o. A raiva permanecia viva, ainda. Somente meses
mais tarde � que fui sofrer a metamorfose.
JL:E a consci�ncia, durante esse processo de afirma��o do eu, mostrava sinais de
arrependimento ou remorso em alguns momentos?
JD: Nenhum. Somente muito mais tarde isso veio a ocorrer. Ent�o tentei me recompor
perante os familiares das pessoas que vitimei. Demorei um temp�o nesse trabalho de
identificar as minhas v�timas e de
localizar seus familiares.
JL:Isso aconteceu realmente?
JD: Com toda a certeza. Fiz isso recorrendo �s minhas anota��es e aos jornais da
�poca. Era um gesto simb�lico de arrependimento. Procurei me colocar no lugar de
cada pessoa e do que ela significava para
o seu grupo familiar quando em vida, oferecendo, a partir da�, um resgate
compat�vel com essa falta. Tentei ser o mais objetivo poss�vel e, na grande
maioria, foram indeniza��es pecuni�rias an�nimas. Em
muitos casos, a indeniza��o extrapolou em muito a falta que o finado teria feito.
Teve uma mulher muito pobre, cujo filho, depois que ela morreu, ficou morando
somente com a av�. Para esses dei uma casa,
tirando-os da vila miser�vel onde moravam, e fiz um dep�sito em caderneta de
poupan�a para garantir a educa��o da crian�a at� a faculdade.
JL:E isso era suficiente para aliviar a culpa?
JD: Em princ�pio n�o havia culpa. Os cat�licos, por exemplo, expiam a culpa com uma
simples confiss�o. Basta vomitar a podrid�o que voc� estar� salvo. � a psican�lise
dos pobres, qualquer um vai l� no
confession�rio e negocia a sua salva��o. Acho que tive uma postura �tica exemplar
ao fazer essas indeniza��es. Sob certo aspecto, era uma expia��o sincera e digna de
cr�dito. N�o o cr�dito para entrar
no c�u, mas o cr�dito para me permitir continuar convivendo em sociedade, embora
como opositor do Sistema.
JL:O que significa para voc� fazer oposi��o ao Sistema?
JD: � n�o compactuar com os espertos. Esperteza n�o � sin�nimo de intelig�ncia, mas
de poder, de obten��o de lucro, o esperto � o bicho voraz em a��o. Tem cara a� que
se acha mais esperto que a pr�pria
esperteza. O cara que quer dar uma de esperto pra cima de mim acaba, via de regra,
se estrepando. N�o dou chance para os espertos.
JL:Ent�o voc� se acha mais esperto do que os outros?
JD: N�o, mas sou vacinado contra espertos. O esperto chega perto de mim e a a��o da
vacina come�a a fazer efeito, uma esp�cie de escudo protetor. Ou eu sou mais animal
que ele.

Nova onda homicida assolou a cidade, o MONSTRO CURITIBANO voltava a atacar com
apetite redobrado. As autoridades municipais nunca foram solicitadas e pressionadas
por tantas dire��es, eram associa��es
de bairros, de clubes, de classes, da puta que pariu, eram feitas passeatas,
reuni�es em condom�nio, em igrejas, comiss�es iam � c�mara de vereadores
reivindicar provid�ncias. O Secret�rio de Seguran�a
estava na corda bamba, ou achava uma solu��o para o problema, para ontem, ou ia
dan�ar, cogitava-se at� da interven��o da pol�cia federal, que recebeu oposi��o
firme das autoridades locais que, em contrapartida,
mobilizou o governo estadual e municipal a juntarem for�as para dar um basta �
crise de viol�ncia e banditismo que aterrorizava as pessoas. N�o chegaram a
decretar estado de calamidade p�blica, pois seria
um marketing extremamente negativo para o munic�pio, tido como capital de padr�o
europeu, mas criaram uma comiss�o especial, prioridade m�xima, uma for�a-tarefa
policial, a nata da nata da pol�cia civil
e militar, somente para tratar da captura do tal MONSTRO, se � que realmente ainda
existia um. O governador garantia verbas, ve�culos, armas, o que preciso fosse para
a captura do MONSTRO, ou MONSTROS,
ou quem quer que fosse que estivesse causando o terror no p�blico.
Aproveitando-se da situa��o, a imprensa volta e meia jogava mais combust�vel no
fogar�u, o SANGUE convocava a popula��o curitibana para diligenciar junto com a
pol�cia, transformando cada cidad�o num parapolicial,
num fiscal, num dedo-duro compulsivo, informando qualquer coisa ou pessoa suspeita,
e assim, de m�os dadas, numa vig�lia permanente, formando uma corrente de f� e de
esperan�a, rezando at�, qualquer ajuda
era bem vinda. E nesse particular os redutos religiosos aderiram � id�ia com todo o
g�s, realizando atos de f� e ora��es em pra�a p�blica. Um telefone foi colocado �
disposi��o para receber chamadas de
den�ncias an�nimas, o DISQUE MONSTRO, para o qual era quase imposs�vel conseguir
liga��o, tal a incid�ncia de trotes, s� eu fiz um mont�o, apontando suspeitos em
v�rios pontos da cidade, mas, em fun��o
da chuva e do frio, resolvi hibernar.
Acondicionei todo o meu material de trabalho em lugar seguro e comprei uma capa de
pl�stico para o fusca, que ficara coberto de p� pela inatividade. Enquanto isso,
lia, estudava, escrevia, caminhava, quando
o tempo melhorava, passava boa parte da manh� e da tarde pegando um solzinho na
companhia dos Amigos do Peito, meus velhinhos de cora��o avariado, que resolveram
fundar uma associa��o, acatando minha sugest�o,
a AAPPSL, ASSOCIA��O DOS AMIGOS DO PEITO DO PARQUE S�O LOUREN�O, com o fim de
reunir enfartados de todos os tipos e idades, promover palestras, etc.
L�, cercado pela coroada, que tamb�m entrara na onda do MONSTRO DE CURITIBA e do
perigo que ele representava para todos n�s, eu me sentia protegido e mimado.
Esse tal de MONSTRO vai espantar os turistas da Capital Ecol�gica.
Com essa for�a-tarefa, n�o dou uma semana para botarem as algemas no bicho.
N�o sei, n�o, estamos nos aproximando do ano 2000. E como diria Nostradamus: Mil,
n�o mais que mil. E olha que ele acertou v�rias profecias. N�o ser� o fim dos
tempos?
Qual, isso � terrorismo pol�tico, o governador n�o andou malhando os paulistas e
cariocas?
Est�o fazendo repres�lias, garanto que mandaram esses elementos pra c� pra fazer
calar a boca do homem, ele fica se proseando, que aqui � diferente, que aqui � o
para�so, que este � o melhor estado do
pa�s, ta� o resultado, atraiu olho gordo e inimigos.
Nisso voc� tem raz�o, n�o � gente daqui, � gente de fora, � cobra mandada, s�
pode, nunca tivemos isso por aqui, meu S�o Genaro. Quando pegarem o bicho, tem que
fazer com ele o que ele fez com os outros,
picadinho.
Eu ficava observando a agita��o dos velhinhos, sorria, abanava a cabe�a, comentava:

Calma, pessoal, olha a adrenalina, voc�s v�o e o MONSTRO fica.


Mas o assunto era palpitante demais, estava em todas as bocas malditas da cidade, e
n�o s�o poucas, apesar de s� uma merecer o nome.
Deixava os velhinhos e ia para casa de �nibus. Fazia tanto tempo que eu n�o entrava
em um coletivo que havia esquecido como era, as pessoas estranhavam o meu modo
insistente de olh�-las, como se fossem
seres ex�ticos. L� ia eu no meio da galera, de p�, prensado como sardinha na lata,
com a catinga dos trabalhadores nas ventas, as pessoas passivamente sentadas ou
agarradas na tubula��o de apoio com aquelas
caras de bund�es, a boiada ruminante, que n�o se insurge, n�o protesta, tudo para
eles est� bom, e se n�o est�, paci�ncia, os conformados cong�nitos. Os oper�rios
eram os �nicos que ainda rosnavam um pouco,
mas por quanto tempo ainda? Agora, na verdade, s� o MST � que tomava uma atitude um
pouco mais agressiva, de resto, apenas n�s, os do crime, os irredut�veis, os
inveterados, os inquebrant�veis, � que temos
orgulho, arrog�ncia, inflexibilidade, ningu�m nos verga, nem leis, nem governos,
nem for�as, nem poder, quando cedemos � porque estamos preparando a rea��o, s�
estamos dispersos, sem crach� de identifica��o,
precisamos nos reunir. Fora das pris�es, at� os oper�rios se organizam, por que n�o
n�s?

A coroa relutou um pouco para aceitar a carona, mas a sua car�ncia e solid�o
falaram mais alto. Trintona, ressabiada de homem, devia ter recebido muita porrada
e judia��o do ex.
Com o MONSTRO � solta, n�o d� para aceitar carona de estranhos disse ela,
tentando ser engra�ada.
Me achou com cara de MONSTRO?
Deus me livre. Me perdoa disse, dando um tapinha na boca , n�o quis dizer isso,
pelo contr�rio, o senhor me parece uma pessoa muito distinta.
Senhor t� no c�u.
Voc� n�o parece nada com o tal de MONSTRO.
E se eu fosse o MONSTRO, apesar de n�o aparentar?
Que esperan�a. Esse tal de MONSTRO deve ser negro e feio, muito feio e fedorento.

Riu, ri tamb�m. Os negros s�o o alvo da execra��o un�nime das pessoas, mesmo das
mais sofridas, a maioria das pessoas n�o consegue decodificar uma fisionomia, um
h�bito que as empurra para o precip�cio,
e � disso que os pol�ticos se beneficiam, quase nem precisam de marketing para
parecerem cordeiros.
Aonde vamos? perguntou ela.
Voc� que sabe.
Olhou o rel�gio.
� cedo ainda, oito horas, �s dez em ponto tenho que estar em casa, sem falta.
Contou-me que tinha um filho pequeno, que era separada, a m�e dela cuidava da
crian�a para que pudesse trabalhar. N�o
sou uma companhia muito agrad�vel finalizou.
Voc� est� muito enganada, � uma mulher muito atraente.
�Para que dizer isso, ench�-la de esperan�a?�, pensei.
Obrigada pelo elogio, at� me acho bonita, mas sou muito amarga, complicada, a vida
me deixou assim.
Eu rodava sem rumo, gastando tempo, procurando um lugar conveniente.
Voc� mora onde? perguntei.
Vila Hauer.
Est�vamos no Pilarzinho. Parei numa rua abandonada, ela achou que eu iria agarr�-
la, preparou-se toda, devia fazer um temp�o que n�o dava uma metida, embrutecida
pela rotina, trabalho, casa, inc�modo de
cria, m�e, dinheiro curto.
N�o � perigoso, aqui?
T� comigo, t� com Deus.
Gostei de voc�, do seu jeit�o. ela disse, abra�ando-me, j� que eu n�o tomava a
iniciativa.
Um momentinho eu disse, e ela recuou.
Passei-lhe o bra�o por sobre o ombro, enquanto cravava o punhal no meio do seu
t�rax franzino e tapava-lhe a boca com a m�o. Debateu-se fracamente, quase
colaborando, elanguescendo em seguida, um passamento
suave. Abri a porta do seu lado e a empurrei para fora, a bolsa foi atr�s. Era uma
pobre mulher necessitada de descanso. Em casa, ao me examinar no espelho, descobri
que ela me arranhara o rosto, uma marca
leve, superficial, mas um res�duo da minha pele ficara debaixo de sua unha.
Coloquei a cara debaixo do infravermelho e passei uma pomada restauradora, demorou
duas semanas para a marca desaparecer por
completo.

Escort vermelho, paramos lado a lado no sem�foro, atirei um beijinho e ela sorriu,
fiz sinal para baixar o vidro, ela obedeceu.
N�o t� a fim duma chupadinha?
Ora, seu.
Levantou r�pido o vidro, arrancou o carro bruscamente. Fui atr�s, emparelhei com
ela, puff, errei, apenas um buraco no vidro, ela entrou em p�nico, perdeu o
controle da dire��o, subiu na cal�ada, desceu,
raspou o poste, ziguezagueou at� conseguir alinhar o carro de novo, encostei ao seu
lado, puff, desta vez a atingi, na t�mpora. O carro se desgovernou, subiu o meio-
fio e chocou-se contra um muro, a buzina
ficou tocando.
Os notici�rios identificaram-na como estudante de Psicologia, dezenove, profiss�o
modelo, filha �nica, retornando para casa rec�m-sa�da da faculdade, s� podia ser
obra do.

O casal de velhinhos criava abelhas e vendia mel, N�O PERGUNTE SE ESSE MEL � PURO,
dizia a placa fixada na grade de ferro do port�o. Eu j� fora fregu�s deles em
�pocas remotas, n�o me reconheceram por
causa do disfarce, moravam sozinhos numa ampla casa e tinham v�rias caixas
espalhadas no terreno que se estendia uns oitenta metros para os fundos. A
vizinhan�a os detestava por causa das abelhas, sentia-se
amea�ada, eles rebatiam:
O perigo aqui, s�o voc�s, as abelhas n�o fazem mal a ningu�m, a ignor�ncia de
voc�s � que as perturba, e a n�s.
Tentaram tir�-los de l� ou acabar com as abelhas, mas os velhos receberam ades�o de
entidades preservacionistas e at� dos macrobi�ticos, e o assunto foi parar na
justi�a, depois n�o fiquei sabendo o que
aconteceu. Como estavam ainda estabelecidos no mesmo lugar, conclu� que deviam ter
ganho a causa.
A vizinhan�a acabou a persegui��o?
Ah, o senhor ouviu falar do caso? Isso vai longe, j� faz mais de vinte anos, agora
est�o mais conformados, pararam com a sabotagem, n�o judiam mais das pobrezinhas,
mas sofremos muito, meu senhor.
� verdade mesmo que as abelhas n�o s�o agressivas?
Isso tudo � ignor�ncia, claro que tem esp�cies mais nervosas, o que n�o � o nosso
caso, as esp�cies de abelhas que criamos s�o mais pac�ficas que um nenezinho, n�o
fazem mal a ningu�m. Al�m do mais,
temos poucas caixas aqui, a maioria do mel n�s trazemos do s�tio e de apicultores
conhecidos, as pessoas � que s�o maldosas, inclusive, picada de abelha � rem�dio
para reumatismo.
Garanto que o MONSTRO n�o � uma abelhinha, hein?
O casal de velhos gostou da piada, era muito engra�ada, hohoho.
N�o, n�o, o MONSTRO, decididamente, n�o � uma abelhinha.
Havia uma estante e uma mesa comprida cobertas com potes de mel, rotulados. Cada um
trazia a origem e uma recomenda��o no r�tulo, mel de angico, laranja, eucalipto,
maric�, etc., pr�polis, favos,
gel�ia
real, tudo aut�ntico, extra�do com a melhor t�cnica de extrativismo artesanal.
Escolhi dois potes, um com r�tulo eucalipto, outro laranja, paguei e embolsei o
troco. Os velhinhos estavam encantados comigo
e me seguiram at� a porta, de modo que fui sum�rio, puff, puff. Sa� sem me voltar.

Eu estava enrodilhado na zona morta de uma rua mais morta ainda, o rapaz, tr�pego,
se aproximava, parou algumas vezes, ora se apoiando no poste ora na �rvore, se
aprumava, depois seguia. Quando chegou
bem perto do carro, escorregou e caiu sobre o canteiro de grama, os p�s para fora
do meio-fio. Desci do carro e me aproximei dele. Roncava em sono profundo, a cara
enterrada na grama. Jovem, musculoso,
trescalando a cacha�a. Encostei a ponta do cano na sua nuca, puff. Senti respingos
no rosto, cuspi fragmentos de seu c�rebro.

Barigui, dezenove horas, eu acabara de circundar o lago, a temperatura ca�ra, vento


forte, nuvens negras e densas. As pessoas haviam fugido do mau tempo, deixando o
parque deserto. Ficamos a s�s, eu e
o carateca fazendo o seu treino, vestia apenas a cal�a do quimono e a faixa
vermelha, o torso compacto nu. Executava os katas com rigor absoluto, golpes
enxutos, �geis, de excelente t�cnica, emendados
um no outro. Fort�ssimo, sua musculatura ressaltava dos movimentos. Eu o espiava de
detr�s da �rvore, na sua coreografia de despedida. Ele usava um amplo espa�o do
gramado, ao terminar o treino, executou
sequ�ncias de cambalhotas pontuadas com um mortal, estava numa forma fodida. Por
fim se livrou das cal�as e, de cuecas, entrou na �gua, nadou um bom trecho com
bra�adas vigorosas. Aproximei-me do lugar
onde ele deixara suas coisas, nesse momento ele sa�a da �gua, gotejante, ao
perceber que eu carregava a arma, instintivamente posicionou-se em defesa, sabendo,
por�m, ser in�til, dada a dist�ncia que havia
entre n�s. N�o lhe dei tempo de pensar em algum truque, puff, acertei-o numa das
pernas e ele caiu. Olhava-me o tempo inteiro nos olhos, sustentei o seu olhar e fui
me aproximando dele, parando longe o
suficiente para que ele n�o pudesse se meter a besta. Escorava a perna ferida com
as m�os, eu o atingira no joelho, devia estar doendo pacas, ergui lentamente o
bra�o e mirei no ponto entre e acima dos
seus olhos, ele n�o piscou, n�o pediu clem�ncia, cabra macho pra chuchu, puff.

Eu vagueava pelo apartamento, da sala para a cozinha, da cozinha para o quarto, de


novo para a sala, ind�cil animal enjaulado, quase nunca subia ao terra�o, na
verdade at� me esquecia de que havia um,
a �ltima vez que subi l� foi para chumbar, com massa forte de cimento e areia, uma
argola de a�o na parte interna da churrasqueira, prendi nela uma corda e deixei-a
enrolada junto com um par de luvas grossas
de couro sob uma pilha de jornais velhos, um rolo de trinta metros. Em qualquer
conting�ncia, bastaria jog�-lo pela mureta, cal�ar as luvas e me lan�ar para baixo,
ia dar num dos cantos do terreno que
acessava a parte de tr�s da garagem ou ao p�tio do pr�dio vizinho, poderia me
evadir em segundos. Uma op��o de fuga tranquila, caso esse detalhe escapasse �
previs�o dos meus ca�adores. O fato de ocupar
o apartamento do �ltimo andar poderia lev�-los a n�o atentar para isso, sei l�, era
sempre uma possibilidade em aberto.
O apartamento estava um caos, para me locomover, eu precisava escolher caminho. Um
dia, criei �nimo e resolvi fazer uma limpeza em regra. Enquanto colocava ordem na
bagun�a, a lembran�a de Lize veio automaticamente,
pelo resto da vida n�o conseguiria dissociar uma a��o de limpeza de sua imagem,
tinha a impress�o de ela estar ali, em outra pe�a, bastaria apenas cham�-la. Havia
ocasi�es em que eu sentia mais a sua falta,
somente o meu amigo Johnnie me ajudava a suportar isso com mais firmeza. Era um bom
amigo, quase fiel como um animal de estima��o. Colocava m�sica no aparelho,
alegrava-me, enchendo-me de esperan�a de
que ela n�o demoraria a retornar para casa, mas agora eu sabia que isso n�o passava
de um mero artif�cio da parte dele para me consolar, bons amigos s�o para essas
coisas.
Acho que fiquei mais de noventa dias encerrado no apartamento, vivia num regime
espartano, cagava, mijava, refei��es frugais, raros banhos, o �nico luxo que eu me
proporcionava era a companhia do meu amigo
Johnnie e a alucinante exalta��o que ele me proporcionava. Quando sentia fome,
utilizava o servi�o de telentrega, eu abria a porta o suficiente para deixar passar
a encomenda e estender o dinheiro ou cheque,
eu n�o via o entregador nem ele a mim, evitava qualquer contato humano, apenas os
vizinhos de baixo continuavam enchendo o meu saco com as suas xaropadas. Comprei um
radinho de pilhas com fones de ouvido
e dei fim ao meu tormento.
Eu assistia pela tev� os cap�tulos da novela O MONSTRO CURITIBANO, da qual eu era o
protagonista distante e conhecia antecipadamente o texto. Volta e meia eram
reavivadas velhas feridas para manter os
n�veis de audi�ncia no pico, o Jornal Nacional era esperado com avidez, o Brasil
queria saber o que o MONSTRO andara aprontando, na verdade o MONSTRO avacalhara com
a imagem de Curitiba no mundo, uma n�doa
que escandalizava uma das capitais mais conservadoras do pa�s. A Curitiba careta
conseguiu botar no bolso centros violentos como Rio e S�o Paulo? Essa injusta fama
deixava as autoridades cada vez mais
irritadas com o marketing negativo que j� come�ava a apresentar reflexos na
economia, temia-se um boicote no turismo de neg�cios.
A morte do atleta que abalou a opini�o p�blica paranaense rendeu um bocado, afinal,
o carateca era a grande esperan�a do Paran� e do Brasil no pan-americano. Campe�o
estadual duas vezes, o mesmo fen�meno
que eu fora s�culos atr�s no boxe, ia concorrer ao brasileiro, estava
preparad�ssimo e era um dos favoritos, poss�vel medalha de ouro nas pr�ximas
olimp�adas, condi��es n�o lhe faltavam. Esse grande potencial
do esporte paranaense, filho de tradicional fam�lia, fora abortado bruscamente, um
crime monstruoso, sem solu��o, como muitos outros que o antecederam. O governador
pressionou tanto que o secret�rio de
seguran�a acabou se exonerando, o novo tomou posse em seguida, cheio de g�s,
vassoura nova varrendo a todo vapor, prometendo o diabo, deu uma entrevista,
esbanjando carisma, pediu que lhe dessem um close,
falava com voz pausada e treinada, abaritonada, olhando a c�mara de frente.
Olha aqui, �, olha bem pra mim, seu vagabundo, olha bem aqui na minha cara, viu?
Estamos no teu encal�o, seu cr�pula, todos juntos, unidos, de m�os dadas, com f�.
N�s vamos te pegar, seu canalha, e
n�o demora muito, voc� n�o perde por esperar, seu infeliz, j� estamos chegando
pertinho de voc�.
Num crescendo, ele ia botando emo��o nas palavras, era um artista consumado.
Quando voc� menos esperar, �, estaremos botando as m�os no seu pesco�o e, a�, sabe
o que vamos fazer? Isso, � a c�mera focou suas m�os, que se tornaram um emaranhado
de dedos retorcidos sadicamente
, assim mesmo, e n�o vamos soltar nunca mais, n�s j� estamos chegando em voc�, seu
verme, bem pertinho, bem mais perto do que voc� imagina.
Deve ter causado boa impress�o no p�blico e rendido bom Ibope, pois a todo momento
colocavam a sua cara de bund�o no ar, destacando as m�os retorcidas esganando o
MONSTRO, como se este pudesse ser intimidado
por um coc� de secret�rio. Liguei pro DISQUE MONSTRO, carregando no sotaque.
��ou eu, o Monstrrro, tizz pra e�e putto to �ecrret�rrio kke hoxxee � noitte a
��itaatte ffai �offrrer hhum banhho de ��anque, ehh elllle kke �e cuitte, poiss
ffai �opprrar prra ellle tampp�m.
Fui a outro orelh�o e liguei para o f�rum.
Tiene una bomba ahy, va explodir a las quinze.
Naquela noite, n�o fiz nada de mais. Antes de ir dormir, por�m, sa� e atorei os
fios de uns cinquenta orelh�es. Eu descia do carro e, num golpe r�pido da tesoura
de podar, degolava o aparelho, entrava
no carro e ia para o pr�ximo. Isso s� servia para matar o tempo, o MONSTRO s�
desacelera mesmo quando v� a viscosa meleca vermelha, s� ela o amansa, o embriaga,
deixa-o sonolento, lhe d� o nocaute, sen�o
ele fica doid�o, muito doid�o.
Para minha surpresa, na manh� seguinte, todos os jornais e telejornais apresentaram
um retrato falado do MONSTRO, conforme o depoimento de uma testemunha mantida em
sigilo: neg�o, cabelo black power, fazia
mais o tipo roqueiro do que propriamente o de um assassino serial. Isso causou
outro terremoto na cidade, os negros de Curitiba, repentinamente, perderam o
sossego, todo neg�o, e quase todos estavam na
moda, usando cabeleiras � la Tony Tornado, passou a ser suspeito, no m�nimo olhado
com desconfian�a. Em fun��o disso, os negros em massa resolveram tosar a juba
volumosa a um tempo s�. A pol�cia passou
a det�-los nas portas dos cabeleireiros, antes que o fizessem. Foram centenas os
negros detidos, um arrast�o pra valer, baseado na l�gica de probabilidade de que o
MONSTRO podia ser um deles, apesar dos
protestos da comunidade negra.
Liguei para o rep�rter do SANGUE, que reconheceu a minha voz.
Ah, � voc� de novo?
Nan saberr ke neg�n errra Monstrrro.
Olha aqui, meu chapa, agora tem uma testemunha quente que viu o MONSTRO certo, �
melhor voc� parar de ligar pra c�, seu fajut�o.
Ahhh h�, h�? Antess ch� te prrofei ke ��ou eu o Monstrrro, tttei uma parrrada ��
parrra descan��arrr.
Parada? Essa � boa, os homic�dios continuam a todo o vapor, isso � parar? Nunca se
morreu tanto em t�o pouco tempo numa mesma cidade.
Masss nan ��ou eu, xx� di���e, eu tou parrrado, xx� di����e.
Olha aqui, cara, n�o tenho mais tempo para perder com voc�, tenho que trabalhar.
Se voc� est� parado, tem outros monstros por a� em plena atividade, te flagra, p�,
a gente precisa vender jornal, �
o nosso neg�cio, se n�o d� lucro, fecha, sacou? Neg�o suspeito com cara de tarado
sempre vende bem, viu a cara dele? Uau, que cara de mau, este tem todas as
ferramentas para ser o MONSTRO. Al�m do mais,
tem essa testemunha-chave que viu o MONSTRO e jura que � ele, n�o vai ser voc� que
vai estragar tudo. mudou de tom Voc� j� ajudou a vender milhares de exemplares,
lembra? Aquela fita correu o mundo,
mas agora voc� j� era, t� querendo atrapalhar por qu�? V� se larga do meu p�,
chul�, s� lhe dei ouvidos antes porque o assunto tinha futuro, mas agora.
Larguei o fone e corri para o fusca, peguei uma via-r�pida e s� parei a cinco
quil�metros dali, n�o ia ser ing�nuo a ponto de permitir que localizassem o orelh�o
que eu usava por rastreamento, aquele imbecil
n�o ia me meter numa fria daquelas. Bem feito, deixei-o pendurado no pincel. Liguei
de outro orelh�o.
Bommm, carrra eu disse pausadamente ao rep�rter do SANGUE, num tom cavernoso ,
fosss� saberrrr kke nan � o negrrrr�n, t� ���e faccendo de ���alame? ��errrr� ke
fou terrrr kke apagarrrr focc� parrrra
akabarrrr kon e���as besteirrrras? ��eu babakkkka.
Desliguei, n�o lhe dando chance de retrucar. Afastei-me apressado do local, o foca
puxa-saco era esperto, mas eu o pegara na tampinha. Mesmo assim, ele continuava bom
comerciante, vendendo bem o seu peixe,
al�m de saber cuidar da pr�pria pele. Pelo sim, pelo n�o, � noite l� estava a voz
ir�nica do alem�o batata em todos os telejornais do Brasil: nan ��aberrrr ke
negrr�n errrra Monstrrrro. Ele suprimira habilidosamente
a sua voz, deixando apenas o alem�o falar, que, por sinal, era duma veracidade
incr�vel, convencia qualquer um. As tev�s desencantaram a tal testemunha-chave,
colocaram-na no ar e ela se contradisse de
cara, o retrato falado caiu no descr�dito geral, e a comunidade negra pode respirar
aliviada, agradecendo � interven��o do MONSTRO.
Afinal, a pol�cia e a m�dia os injusti�ara, e isso motivados por preconceito,
discrimina��o pura, o MONSTRO parece ter mais sensibilidade do que essa corja
oficial, desfechou a lideran�a de uma escola
de samba, a chave da testemunha era falsa, tudo voltava � estaca zero. A pol�cia
teria de recome�ar o seu trabalho sem nada nas m�os.
O secret�rio tomou ch� de sumi�o, na verdade, s� tinham a voz do alem�o como ponto
de partida. O jornal SANGUE aproveitou a deixa e lan�ou duas p�ginas inteiras de
quadrinhos com a biografia do MONSTRO,
abrangendo desde a sua mais tenra idade, onde, num campo de concentra��o, aprendeu
a praticar atrocidades com o av� nazista, at� a atualidade, j� adulto, quando
atingia o c�mulo da sua monstruosidade,
aterrorizando Curitiba. A comunidade alem� protestou de cara, um fonoaudi�logo veio
a p�blico afirmar que o sotaque do pseudo-alem�o era fajut�rrimo, nenhum alem�o que
se prezasse, mesmo descendente indireto,
iria cometer aquelas cacofonias lingu�sticas com t�o m� dic��o, o assunto tinha
mais a ver com negrrrr�n do que alem�n. A Comiss�o dos Direitos dos Negros amea�ou
entrar na justi�a contra o fonoaudi�logo,
acusando-o de racismo manifesto, o debate culminou pegando fogo num programa de
tev� montado exclusivamente para que os representantes de ambas as correntes se
manifestassem, alem�n ou negr�n?

Outro sonho no m�nimo curioso, eu me achava sentado atr�s de uma mesa de carvalho
antiga com entalhes em alto relevo. Andando de um lado para outro, um homem de
cerca de 60 anos, de estatura m�dia, em
mangas de camisa branca e gravata, esbelto, mas musculoso, boa pinta, gesticulava
se contrapondo ao que eu lhe dizia. Ele estava agitado, mas mantinha o controle.
Meu tom de voz era quase inaud�vel, mas
duro. Com o cotovelo apoiado no tampo de vidro da s�lida mesa, minha m�o amparava o
queixo de um rosto encarquilhado como uma passa de uva e encimado por uma calva
completa, um vetusto senhor com n�o menos
de 100 anos, mas que exibia impon�ncia e rigidez id�nticas � do tronco que cedeu
seu cerne � mesa, ao mesmo tempo emanava um vasto poder refletido na fala
autorit�ria, uma aura equivalente a de um estadista.
O homem � sua frente tamb�m tinha familiaridade com o mando, e pareciam muito
�ntimos, uma rela��o de pai e filho. Em clima tenso, se discutia uma decis�o
aparentemente muito importante.
Acordei com uma sensa��o de urg�ncia, que nada mais era que o desejo imperioso de
urinar. Fiquei v�rios dias remoendo aquele sonho, tentando retirar algum sentido ou
revela��o de seu conte�do. Estava claro
que tinha a ver comigo e me projetava num futuro long�nquo, mas, e da�? Eu estava
me importando a m�nima em conhecer a minha sorte, se ia viver muito ou pouco. Se
alguma curiosidade ficou, foi querer saber
quem era o homem que me acompanhava, do qual eu ainda lembrava as fei��es, mas
acabei deixando pra l�, eu tinha coisas mais importantes para me preocupar.

Reapareci no parque, os velhinhos pensando que eu j� havia empacotado. Ficaram


muito contentes de me ver saud�vel e bem-humorado, apesar de muito magro.
Inclu�ram-me num torneio de xadrez que teria in�cio
na semana seguinte, queriam meu endere�o para me prestarem algum tipo de
assist�ncia, em caso de necessidade, desconversei e acabei indo embora sem deixar
paradeiro nem telefone, �s vezes os velhinhos
ficavam meio chiclete.

Na pra�a Os�rio, tomei assento no meu banco preferido. A mis�ria, como uma sombra,
fazia a sua ronda, mas n�o localizei o engraxate de olhar vazio, filho do meu
escarro. Aos poucos fui retomando a minha
peregrina��o pelos tortuosos caminhos do sofrimento alheio. A inatividade embrutece
os sentidos, atrofia os reflexos, n�o podia deixar o excesso de precau��o tolher os
meus passos, retardar a minha trajet�ria.
Voltei � ativa. Troquei de carro, agora um Gol, azul escuro, ano 1980, mandei
envenenar como o anterior, mas com alguns melhoramentos, reforcei os para-choques
com barra de ferro, pneus radiais, providenciei
v�rias placas frias, coloquei um aerof�lio remov�vel, para retir�-lo sempre que
fosse conveniente, um detalhe que serviria para confundir a sua identifica��o,
surdina ultrassilenciosa, vidros � prova de
balas e portas blindadas. Um pequeno tanque de guerrilha urbana. Deixava-o na
garagem sem capa, pronto para entrar em a��o a qualquer momento. Entretanto, ia ao
parque, ao Centro, a p� ou de �nibus, precisava
conviver com o pov�o, conhecer os seus h�bitos. Eu tive percep��o pr�xima da merda
dos outros, mas isso j� fazia tempo, estava desatualizado, precisava me reciclar.
Certa manh�, acordei tenso e fui golpear o saco, o casal do andar de baixo come�ou
a brigar mais cedo que de costume. A discuss�o deles, os gritos hist�ricos da
mulher, fazia alguma coisa se contorcer
dentro de mim. Em dado momento, perdi o controle e me pus a bater com uma cadeira
no pavimento bem acima da cabe�a deles, deixei-a em peda�os, isso serviu para faz�-
los calar, e eu me acalmar um pouco.
A partir da�, a cada desentendimento, bastava o tom de voz deles ficar mais alto
que eu j� me encrespava. O radinho de pilhas at� que resolveu num primeiro momento,
mas ficar com aquele treco nos ouvidos
o tempo todo era irritante demais para o meu gosto. Mesmo assim, bastava iniciarem
o bate-boca, eu corria para o radinho e o ajustava no volume m�ximo. Certo dia,
botei os fones, sintonizando num programa
de m�sica cl�ssica, e bati no saco um temp�o, inebriado pelas sinfonias de v�rios
compositores. Quanto parei para descansar e tirei o treco da cabe�a, o pau comia
solto, emputeci, minha vontade era descer
l� e dar um peido na cara de cada um. O casalzinho fodido estava quase me tirando
da paci�ncia. Fui para o banho, resolvi sair para almo�ar e dar uma tr�gua aos
ouvidos. No corredor se escutava nitidamente
as nuances do arranca-rabo. Tinha perdido a manh�, in�til tentar ler ou rabiscar no
caderno com um temporal daqueles. Dessa vez extrapolavam, batiam portas, quebravam
coisas, sei l�, uma diversidade de
sons que tornava dif�cil a identifica��o da sua origem. Depois dos gritos seguiam-
se sons abafados que eu atribu�a a tabefes, pois os berros recrudesciam na
sequ�ncia. Uma batucada dos diabos, sem ritmo
nem cad�ncia, Escola-de-Samba-Unidos-Pela-Porrada. N�o consegui segurar, j� estava
a meio caminho andado, aproveitei e desci l�, colei o dedo na campainha, um cara de
bunda abriu a porta.
Vem c�, meu chapa, todo dia uma briguinha, meu? J� tou de saco cheio, p�.
O bund�o ficou me olhando com o maior descaso, como se eu tivesse falado �
minuteira e n�o a ele.
Por que o senhor n�o vai cuidar da sua pr�pria vida? disse e bateu a porta no meu
nariz.
Avaliei a situa��o. Com um bom encontr�o eu botava a porta abaixo e dava um pau nos
dois, seriam apenas alguns segundos, tudo muito r�pido. Ia gritar shazam, mas
consegui brecar o �mpeto a tempo. O caso
ia acabar na delegacia, era melhor manter dist�ncia. N�o, eu n�o ia cair nessa
arapuca, j� havia pensado nas consequ�ncias de uma rea��o desse tipo, por isso
vinha me segurando, n�o convinha levar um processo
por agress�o a essa altura do campeonato, n�o seria nada recomend�vel, nada mesmo.
�Hhuumm, o cara tem temperamento violento, sabe como �, uma coisa puxa a outra, v�
que numa dessas.� Meti o rabo entre
as pernas e tomei o elevador.
Os dois, revoltados contra mim, seriam bem capazes de me atribuir as les�es da
mulher. N�o, � fria, ia pensar numa maneira de dar um jeito neles sem muito
estardalha�o. Ao chegar ao t�rreo, me ocorreu
se algu�m n�o me vira reclamando na porta deles. Subi de novo, desci no d�cimo e
fui batendo de apartamento em apartamento, s� a velhinha do 1003 atendeu, perguntei
se ela estava sem energia el�trica,
assim como eu.
Hein?
Tive que repetir a pergunta.
Hein?
Gritei. Mesmo assim, n�o sei se ela entendeu alguma coisa, era surda como uma
porta, a diaba. Tranquilizei-me.
Ent�o o problema � na minha instala��o, obrigado, desculpe o inc�modo.
O qu�?
Subi para o d�cimo-primeiro e repeti a opera��o. Ningu�m. Do corredor ainda se
escutavam as vozes alteradas, um pouco mais moderadas.
Fui almo�ar num restaurante vegetariano, depois andei um bocado, l� pelas 16 horas
estava de volta. Sil�ncio. Desci e toquei a campainha do apartamento 1101, v�rias
vezes. Nada. Tinham sa�do, os putos.
Peguei o carro e catei um chaveiro distante alguns quarteir�es dali, trouxe-o
comigo e entramos pela garagem, ele abriu instantaneamente a fechadura e fez uma
chave sobressalente. Fiz quest�o de levar
o panaca de volta ao seu pontinho para evitar que ficasse de papo-furado com o
porteiro do meu pr�dio ou com algu�m pelo caminho. Mas o cara era tontinho mesmo,
nem desconfiou que eu n�o era o dono do
apartamento que acabara de abrir, ali�s, a bem da verdade, eu era um Cidad�o-Acima-
de-Suspeitas, quem ousaria suspeitar de mim? Eu � que exagerava nas minhas
precau��es, o seguro morreu de velho, se bem
que porteiro de edif�cio residencial. Voc� sabe como �, n�? Quando n�o tem ningu�m
por perto para fofocar, acaba fazendo intriga do seu p� esquerdo para o direito, e
deste para a barra da cal�a ou para
o cal�ado.
Entrei em casa com a chave queimando na palma da m�o, cantarolando, os meus
vizinhos que se preparassem, eu ia arrumar a cama deles, n�o perdiam por esperar.
Antes de guard�-la em lugar seguro, por�m,
n�o resisti ao impulso de descer para uma inspe��o de reconhecimento. Fiquei
satisfeito com o que vi. Quando voltei, peguei o caderno e fiz uma planta baixa nos
m�nimos detalhes do domic�lio que acabara
de vasculhar, depois li e trabalhei o resto da tarde e um bom peda�o da noite. S�
escutei o casal regressando l� pelas duas da madrugada, desta vez nem o som
ligaram, como costumavam fazer, deviam estas
cansados, pois foram dormir em seguida, calmaria no peda�o. No dia seguinte, ao
acordar, fui pro saco, e nos seguintes e seguintes, cheguei a ficar com os n�s dos
dedos em carne viva de tanto bater na
bolsa de couro recheada de areia, n�o estava conseguindo me fixar no trabalho, me
concentrar em nada. No parque, os velhinhos me torravam o saco, t�dio na pot�ncia
mil, estava que nem vampiro sedento,
ind�cil, na falta de v�tima para extrair sangue novo n�o perdoava nem absorvente
usado, planejei uma sa�da noturna para me adocicar.

O MONSTRO levou Curitiba ao paroxismo do terror e era not�cia em todo o mundo de


novo. Numa �nica noite, fez v�rias chacinas em pontos diferentes da cidade,
totalizando quinze v�timas, a sua marca era
inconfund�vel, um �nico tiro na cabe�a ou no cora��o, ningu�m sabia de onde partia,
nem quem disparava, um mist�rio insol�vel.

Enquanto as pessoas tomavam partido e se engajavam no movimento lan�ado pelas


autoridades para localizar o MONSTRO a qualquer custo, em mutir�o, com centenas de
cartazes distribu�dos pela cidade oferecendo
o pr�mio de 50 mil d�lares a quem indicasse uma pista para a sua captura, tendo em
acr�scimo o apoio maci�o da m�dia, eu me fodia com os meus vizinhos, vivendo a
minha realidade prosaica, o lado negro
da minha rotina cotidiana, comprovando que em casa de ferreiro o espeto � de pau
mesmo. As brigas matinais prosseguiam e eu era obrigado a passar com os fones nos
ouvidos para segurar a alcateia que havia
dentro de mim, era inc�modo, mas eu procurava ver o lado bom das coisas, assim ia
aprimorando a minha prec�ria forma��o musical. Sintonizava na Radio Cultura e
desfrutava da boa m�sica dos grandes cl�ssicos,
incluindo jazz e mpb de primeira, at� ali, por�m, n�o tra�ara ainda nenhum plano de
repres�lia contra os meus vizinhos purgantes, apesar da chave, apesar do esp�rito
de porco, minha preocupa��o b�sica
era n�o meter os p�s pelas m�os. Dava um tempo, quem sabe se acalmavam e tudo
voltasse aos tempos tranquilos que era antes. Dessa forma, n�o tirei mais os fones
dos ouvidos, nem pra cagar, j� que tinha
que me acostumar.
Virei o coroa alienado, sempre no mundo da lua, curtindo o seu sonzinho maneiro a
todo volume. O porteiro do pr�dio me dirigia a palavra, mas eu n�o escutava. Entre
os velhinhos, no parque, a mesma coisa.
Com o seu alto astral permanente, os velhinhos apoiaram a minha iniciativa, achando
que eu tinha encontrado uma boa companhia para a minha solid�o. Sendo assim, podia
trabalhar na minha cole��o de recortes,
escrever legendas e coment�rios para cada um deles, al�m de descrever em detalhes
todos os meus passos noturnos, assim como o efeito que me causavam.

Depois de um per�odo de calmaria, no qual eu praticamente esquecera da dupla


briguenta, aconteceu outro pega pra capar daqueles. Nunca tinha visto nada igual,
eles simplesmente botavam a casa abaixo. A
sirene soou dentro de mim, indicando que a minha paci�ncia se esgotara, era chegada
a hora. Desci dois andares pela escada e fui tocando todas as campainhas, menos a
da velha, ningu�m atendeu, est�vamos,
portanto, a s�s no pr�dio, do d�cimo ao d�cimo-segundo, eu, a velha e os dois.
Calcei um par de luvas de borracha, coloquei a pistola e o punhal no cinto, �s
costas, e tornei a descer, introduzi a chave
na fechadura com todo o cuidado, dei o primeiro giro, mas a porta n�o abriu, s�
faltava estar com a corrente de seguran�a, nesse caso, o meu plano improvisado
furaria, dei o segundo giro e a porta cedeu,
fechei-a usando a chave enfiada na fechadura pelo lado de dentro, presa a um
chaveiro. Eu me cercava de cuidados para n�o fazer ru�dos, mas podia ter arrombado
a porta que eles n�o teriam escutado, tal
o clima do bafaf� que rolava l� dentro. A mulher sempre aos gritos, jogando coisas
no ch�o, quebrando tudo, n�o havia varia��o em torno do tema, ele falava num tom
sincopado, como se estivesse engasgado
ou tossindo. Surpreendi-os na cozinha, o cara de costas para mim, estavam pelados.
Fui r�pido, pulei sobre ele aplicando-lhe uma gravata e cravando-lhe o punhal no
centro do peito, ele esperneou sem muito
�mpeto. Pela quantidade de sangue que jorrou, senti que acertara direto o cora��o,
eu cuidava para n�o me respingar as cal�as e os t�nis. A mulher aumentou o ritmo
dos berros, ap�s breve interrup��o causada
pela surpresa do assalto. Fiquei contendo o corpo do homem junto de mim com firmeza
enquanto fazia movimentos de rota��o com o punho para que a l�mina tivesse maior
penetra��o e fizesse mais estragos.
Entrementes recuei alguns passos, sempre o carregando comigo, fechando o v�o da
porta, o que impediria a sa�da da mulher, caso tentasse. Quando senti que o homem
desfalecera completamente, retirei o punhal
da ferida e fui largando o corpo, que deslizou para o ch�o e se acomodou aos meus
p�s como um saco de batatas. A mulher emitia agudos gritos sem cessar, numa crise
hist�rica, curvada para a frente, agitando
as m�os comprimidas. Eu n�o a perdia de vista, mirando-a nos olhos. Ela havia me
reconhecido, mas ainda n�o tinha assimilado a minha s�bita apari��o e o que estava
acontecendo. De repente, parou de gritar
e veio na minha dire��o, totalmente confusa, imaginando quem sabe que tudo aquilo
fosse efeito retardado da bebedeira ou da droga consumida na v�spera, sei l�,
assumiu um ar abobalhado de cansa�o repentino.
Vizinho, � o senhor? o h�lito cheirando a �lcool. Andr�, meu amor, levanta, meu
anjo.
Quando chegou na dist�ncia certa, impulsionei-me para diante e atingi-a na ponta do
queixo com um cruzado de direita. Ao cair, levou a mesa consigo, espalhando
cadeiras, copos e garrafas para todo lado.
Por fim, reinou o sil�ncio. Examinei o local. Uma das garrafas ca�das vertia o
resto de u�sque sobre os ladrilhos e impregnava o ar com seu odor caracter�stico.
Abri a torneira, lavei o punhal, as m�os enluvadas, os bra�os, espargindo as bordas
da cuba para remover eventuais res�duos de sangue, sequei no pano de prato as m�os
e o punhal, recoloquei-o na bainha,
sequei tamb�m com meticulosa aten��o a superf�cie met�lica da pia, tentando
descobrir alguma �ltima marca de sangue, abri a gaveta do balc�o e encontrei o que
procurava, uma faca de l�mina longa e larga.
Estudei a mulher: era nova, atraente, seios consistentes, as pernas bem torneadas
esticadas e abertas, apresentava hematomas em v�rios pontos do corpo, uns mais
antigos, outros mais recentes, tinha levado
um bocado de porrada, um dos olhos tinha uma mancha preta. Passei a l�mina na sua
car�tida, a sangueira verteu. Ela soltou um fraco gemido, e eu finquei a faca
repetidas vezes no seu abdome, traspassando-a.
Ocupei-me ent�o do homem. Ajeitei a faca nas suas m�os e tornei a cravar no mesmo
lugar de onde o punhal sa�ra, assim ficava configurado um homic�dio passional
seguido de suic�dio. O casal passava brigando,
um dia o caldo entornou. Ajeitei-o no piso de ladrilhos, levemente apoiado na
parede, e avaliei a cena no conjunto, uma m�o escorregara para o lado do corpo do
homem, a outra ainda segurava a faca, frouxamente.
O sangue que escorrera da ferida espalhara-se pelo ch�o, cobrindo os respingos do
punhal deixados no meu trajeto at� a pia, tornei a examinar o quadro, tudo parecia
muito natural, a desordem, a posi��o
dos corpos, consequ�ncia da luta, muito sangue empo�ando. Absorvido no exame, fui
flagrado por um ru�do s�bito, girei o corpo e, num gesto reflexo, saquei a pistola,
o cora��o disparando. A campainha do
telefone voltou a tocar, a secret�ria eletr�nica atendeu no terceiro toque. Quem
ligou n�o quis deixar recado. Deixei o cora��o recuperar o ritmo normal enquanto
dava a �ltima conferida no local.
Abri uma fresta na porta e inspecionei o corredor deserto, fiquei � escuta,
sil�ncio total. Deixei a chave na fechadura conforme a encontrei, sa�, dei dois
giros com a minha, por fora, e subi para o meu
andar.
Guardei a pistola, o punhal e as luvas dentro da caixa de madeira com o resto das
armas e passei o cadeado. Troquei de roupa e pus as que vestia, junto com o t�nis,
na m�quina de lavar e a liguei. Apanhei
a caixa, pendurei o headphone no pesco�o e desci pelas escadas at� o subsolo, botei
a caixa no porta-malas do Gol, pressionei o controle remoto, a porta da garagem
abriu e fechou, chamei o elevador, desci
no t�rreo e fui checar a caixa de correspond�ncia, como se tivesse acabado de
chegar da rua.
N�o tem nada pro senhor, doutor.
Tirei os fones dos ouvidos, continuei furungando na fechadura, como se estivesse
emperrada. Achando que eu n�o escutara, o porteiro repetiu:
N�o tem nada, doutor.
Oi, vim em casa s� para olhar a correspond�ncia, estou esperando uma carta de
confirma��o dos Estados Unidos.
Deu azar, doutor, hoje n�o chegou nada para o senhor.
Obrigado.
De nada, doutor.
Fui para o elevador e apertei o bot�o, desisti, tornei a passar pela frente da mesa
do porteiro e me dirigi � porta de acesso � garagem.
Nem vou subir comentei , vou aproveitar que estou aqui e almo�ar antes.
Ele sorriu.
Vai matar quem t� te matando, doutor?
�, nessa hora ele � quem manda disse eu, olhando o rel�gio e alisando o abdome ,
tiauzinho.
Tiau, doutor, bom apetite.
Obrigado, igualmente.
De nada, doutor.
Pronto, tinha um �libi armado. Tomei o Gol e fui direto para a rodoferrovi�ria,
onde deixei a caixa no guarda-volumes. Escondi o canhoto debaixo do tapete do carro
e s� fui para casa � noitinha. � claro
que a chave sobressalente do apartamento do casal eu joguei no lago do Parque
enquanto proseava com a minha turminha longeva.

Acordei no meio da noite tiritando de frio, fui pegar no arm�rio o grosso cobertor
de l� uruguaia, retornei � cama e experimentei o peso aconchegante da coberta.
Apesar da grande sonol�ncia, alguma coisa
vaga me impedia de dormir. De repente a consci�ncia explodiu como um flash, as
crian�as deviam estar congelando nas pra�as, nas ruas. As madrugadas curitibanas de
inverno s�o implac�veis com os sem-teto.
Saltei da cama, vesti-me �s pressas e disparei para o centro da cidade.

No centro da pra�a Os�rio, as crian�as me rodeavam. Uma delas se aproximou mais que
as outras e eu a segurei, outras foram se achegando, um pouco t�midas, eu as
envolvia com meu abra�o protetor e os chamava
�Meus filhos�. Aquelas que recebiam o meu contato se afastavam para dar lugar �s
pr�ximas, que se agarravam � minha cintura, �s minhas pernas. Meus filhos. eu ia
proteg�-los dali para diante. Seria um
pai zeloso preocupado com a sobreviv�ncia deles, com o futuro deles, com a
felicidade deles. Todos vinham me tocar, refugiar-se na minha for�a, na minha luz,
na luz intensa que emanava das minhas m�os
e que iluminava as trevas das suas vidas, todo o desamparo de quem nada tem al�m de
um corpo mirrado e sujo. Pobres crian�as apavoradas, venham comigo, me sigam, a
solid�o acabou. �amos em frente, num
s�quito macabro, rompendo a p�lida neblina que embolsava a noite gelada, cad�veres
fugitivos das sepulturas em busca de um sonho para viver.

Vi o garoto em desabalada carreira na dire��o contr�ria � que eu seguia, se


aproximava velozmente. Calculei, pelo rumo que tomava, que ia passar rente ao
carro. Freei. Abri a porta e saltei para fora.
Ele tentou se esquivar, mas n�o conseguiu, colidiu comigo. Prendi-o firmemente,
enquanto ele esperneava. Aqueles que o perseguiam iam chegando.
Calma eu disse, tentando captar sua confian�a , sou amigo. Entra aqui.
Empurrei-o para dentro, ele pulou para o banco do carona e eu me acomodei ao seu
lado. Arranquei freneticamente, fazendo os pneus cantarem no asfalto. Ofegante e
muito assustado, o garoto n�o entendia
nada do que havia se passado, nem da minha interven��o intempestiva. Mirava-me
desconfiado, e sorri para tranquiliz�-lo.
Essa foi por pouco, hein?
�. respondeu.
Mantive o sorriso, e ele sorriu tamb�m, em seguida relaxou e se p�s � vontade, com
aquela facilidade camale�nica que certos tipos t�m de se adaptar quase que
instantaneamente �s circunst�ncias. O moleque
amulatado de olhos gra�dos e riso f�cil n�o teria mais que 9 anos (mais tarde ia
verificar que a minha avalia��o era furada, tinha 12, resultado da subnutri��o).
Indaguei, e ele confessou que havia surrupiado
a bolsa da mulher � sa�da do banco, a umas dez quadras do local onde o interceptei,
dois caras tentaram ca��-lo, outros se juntaram � persegui��o, apenas um deles
corria bem, mas jamais conseguiria alcan��-lo.
Afirmava isso com uma convic��o cheia de orgulho. Eles tinham ganhado algum
terreno, pois, enquanto corria, examinava o conte�do da bolsa e ia largando atr�s
de si aquilo que n�o o interessava. Isso retardou
a sua marcha. Quando se desfez da bolsa, passou a distanciar-se deles, reteve
apenas o dinheiro. Retirou-o do bolso e contou.
Boa f�ria eu disse.
�. respondeu ele.
A mulher tinha renda, conta em banco, casa, fam�lia, ombros para chorar, tinha
estrutura para poder assimilar a perda sem grandes problemas, o moleque sim � que
estava na pior, realmente necessitado.
Meu nome � Jorge eu disse, estendendo a m�o. Ele apertou-a faceiro.
Eu sou o Z�, mas todo o mundo me chama de Zezinho.
Acomodou-se melhor no banco, seguro de si. Em instantes, deu uma geral � sua volta,
tomando p� da nova situa��o. Me lan�ou um olhar travesso e exclamou:
�. Valeu, tio.
Rimos. Ele n�o fazia a m�nima id�ia de que tinha arranjado um amigo e um pai a um
tempo s�. Deixei-o no sobrad�o com as outras crian�as.

JL:Este sobrad�o que voc� menciona teria que finalidade?


JD: Seria um local que aluguei para abrigar crian�as de rua.
JL:Ent�o j� havia uma inten��o, mesmo que remota, de trein�-las para o crime?
JD: N�o, n�o. Na verdade, o sobrad�o come�ou abrigando a gurizada para suprir o
abandono em que viviam e foi o embri�o daquilo que, anos mais tarde, passou a se
chamar CREABS. Mas come�ou sem a m�nima
inten��o. Nessa �poca n�o passava de uma iniciativa privada. um gesto da mais pura
caridade crist�. digamos assim. (risos). Soa um pouco estranho dito desta maneira,
n�o? Mais ainda saindo da minha
boca, n�? (risos).
JL:Nessa �poca voc� j� pensava em criar a Confraria?
JD: Nem pensar. Como j� disse, as coisas foram acontecendo primeiro, depois � que
virou projeto. Comigo a carro�a nunca andou na frente dos bois.

Somente foram descobrir os corpos uma semana depois. Deveu-se isso � insist�ncia da
m�e da mo�a para que o s�ndico chamasse a pol�cia, alegava ter ligado dezenas de
vezes para falar com a filha e ningu�m
atendera, isso n�o era normal, pois costumavam ter contato di�rio, logo, n�o, a
filha n�o tinha viajado sem aviso, como queria fazer crer o s�ndico, tentando se
desembara�ar da tarefa indigesta. A filha
n�o dava um peido sem lhe comunicar, al�m disso, como ele podia explicar o fedor
que exalava por debaixo da porta e se espalhava pelo corredor? O s�ndico resistia �
press�o da mulher, pretextando ter tido
um caso semelhante quando fora s�ndico em outro pr�dio, anos atr�s, em que os
moradores haviam viajado e deixado restos de comida e, o que era pior e causava o
cheiro repugnante que incomodava meio mundo,
sem ter dado descarga no banheiro. Para atender � reclama��o de vizinhos, invadiu o
apartamento e arranjou um rabo daqueles para si. Tudo bem, podia at� n�o ser nada,
talvez excesso de zelo materno, mas
a mulher, hist�rica, exigia uma verifica��o, jurava n�o arredar p� dali enquanto
ele n�o tomasse provid�ncias, exigiu que o s�ndico acionasse a pol�cia. Esta,
apesar da demora, cedeu aos brados da m�e
desesperada e chamou um chaveiro para abrir a porta e adentrar no ap�. Um grupo
entrou, alguns recuaram, o cheiro era insuport�vel. O jornal SANGUE cobriu tudo com
pormenores, exaltando a intui��o da m�e.
Ao chegar da rua, avistei a mulher mi�da berrando com o s�ndico, identifiquei-a de
cara, era escandalosa como a filha. A voz esgani�ada revelava o parentesco, a
heran�a gen�tica, devia gostar de apanhar,
tamb�m. Chaveei-me em casa e fiquei aguardando o desenrolar dos fatos, ouvido
colado � porta. Decodificando os sons, eu podia acompanhar passo a passo o que
rolava l� embaixo, variedades de vozes das quais
eu n�o conseguia entender o significado, mas que implicavam em constata��es e
provid�ncias, o elevador subindo e descendo sem parar, in�cio de tumulto e gritos
agudos, muitos gritos. Permaneci quieto,
longo tempo, apenas escutando a minha pr�pria respira��o e calculando o andamento
dos trabalhos da pol�cia t�cnica, alguns pequenos bols�es de sil�ncio que eram
quebrados por novas movimenta��es.
Por fim, escutei passos no meu andar, algumas vozes indagando se haveria algu�m em
casa, identifiquei a de um dos porteiros indicando o n�mero do meu apartamento.
O doutor est� sempre em casa.
Mesmo assim, ouvia-se o toque insistente e in�til das campainhas dos apartamentos
vizinhos, algumas vozes se afastaram e a minha come�ou a soar na cozinha. Uma,
duas, tr�s vezes. Na quarta, quem tocava
esqueceu o dedo na tecla. Esperei mais um pouco e abri a porta de supet�o, saindo
bruscamente para o corredor e trombando com um tampinha de metro e meio, rosto
amassado, barrigudo, chap�u, o cigarro pendente
dos l�bios, lembrou-me Humphrey Bogart atropelado por uma manada de b�falos e com
metade das pernas decepadas.
O que o senhor faz aqui? perguntei r�spido, tirando os fones dos ouvidos. Os
min�sculos alto-falantes emitiam um som estridente.
Desculpe, cavalheiro. Eu estava tocando a sua campainha quando o senhor saiu e
esbarrou em mim respondeu o hom�nculo, se aprumando e ajeitando o chap�u que quase
lhe caiu da cabe�a.
N�o o vi respondi, desligando o aparelhinho e dando-lhe as costas para fechar a
porta.
Estava de sa�da. O que o senhor deseja? Eu falava quase aos berros.
Cavalheiro, toquei v�rias vezes a sua campainha e j� estava desistindo. recome�ou
ele O porteiro me avisou que o senhor tem o h�bito de escutar r�dio com fones, por
isso eu insistia, para que o
senhor a escutasse. O baixinho tinha uma voz nasalada, arrastada, mon�tona, capaz
de fazer uma
plat�ia dormir em fra��o de segundos, melhor t�cnica de hipnotismo imposs�vel.
N�o escutei nada cortei, dando por encerrada a entrevista.
Olhei para baixo, para concluir o meu exame, e descobri os bicos de seus sapatos
esfolados, precisando de graxa, essa �ltima constata��o do estado lastim�vel da
figura me causou uma irrita��o fulminante,
uma antipatia natural, desamor � primeira vista. Ao tornar a examinar sua cara de
burocrata, insossa, totalmente danificada pelas rugas e pela bexiga, convenci-me de
que fora precipitado e fizera uma enorme
injusti�a ao compar�-lo com o ator. Na verdade, a associa��o se dera apenas pelos
acess�rios, chap�u e cigarro, um, sebento, o outro, babado, um conjunto que
retratava 65 anos de pura decad�ncia, a representa��o
do fracasso em pessoa. O que fazia uma m�mia dessas na pol�cia?
Como em resposta �s minhas observa��es, o pintor de rodap�s ergueu o chap�u pela
copa, educadamente, fazendo uma rever�ncia ao modo oriental, mas me estendendo a
m�o � ocidental.
Comiss�rio Lopes, �s suas ordens.
Envolvi sua m�ozinha molenga e minha primeira rea��o foi a de tritur�-la, achei
melhor, por�m, n�o lhe dar nenhuma dica do que eu seria capaz.
Estou atendendo o chamado do s�ndico, houve um crime de morte no seu pr�dio.
O qu�? berrei na sua cara.
Dizem que esses radinhos de ouvido podem causar surdez com o tempo disse ele
pacienciosamente , se usados muito altos. O senhor se acautele, hein? Alteou a
voz: Seu vizinho aqui de baixo matou
a mulher e se suicidou, tudo leva a crer ter sido um crime passional.
Ah, �? N�o diga. Mas que barbaridade.
O senhor os conhecia? ele me perguntou aos berros.
S� de vista, passavam discutindo, mas isso j� faz tempo, ultimamente andavam
calmos.
Por isso o senhor adotou o uso dos fones?
Como?
Ele ent�o repetiu a pergunta.
N�o, absolutamente. respondi Sou gamado em m�sica cl�ssica, prefiro os sons
harm�nicos � barulheira da cidade, a polui��o sonora est� cada vez pior.
Se est�. Percebi, antes de o senhor desligar o aparelho, que estava escutando a
sinfonia n�mero um de Rachmaninov, em r� menor. Tamb�m sou apreciador dos cl�ssicos
pigarreou, meio constrangido
de que eu o considerasse um esnobe. Desculpe estar o atrapalhando, � que eu
precisava fazer-lhe algumas perguntas. O senhor por acaso escutou alguma coisa
vinda dos seus vizinhos nesses �ltimos dias,
enquanto brigavam, que lhe chamasse a aten��o? Viu algu�m estranho no pr�dio?
N�o respondi imediatamente.
Seu sorriso foi seguido de um breve surto de riso, como uma tosse s�bita, que ele
se apressou em conter, flagrando-se da indelicadeza. Ficou meio sem jeito, era
t�mido, o babaca, passou o cigarro dum canto
da boca para o outro com o aux�lio da l�ngua, deixando-o mais babado ainda. Tinha
perdido momentaneamente o rebolado, mas o recuperou em seguida.
Eu j� calculava. acrescentou. Mais uma perguntinha e j� libero o senhor. Qual
foi a �ltima vez que os escutou brigando?
Iiihhhh, faz tempo.
Acredito que fossem bem conhecidos no pr�dio por causa das brigas, n�o �?
Ahh, sim. Uma vez os assisti se tapearam no elevador, bem debaixo do meu nariz. O
cara me olhou feio, querendo dizer que, se eu me metesse, ia sobrar pra mim tamb�m.
Apenas sorri e fiquei na minha.
Mas ultimamente andavam bem calmos. Se bem que quase nunca escuto nada eu disse,
apontando para o headphone que n�o sejam acordes e frases musicais.
Incomodaram muito o senhor?
Como? N�o entendi.
Ele ergueu o tom da voz.
Faziam muito barulho? Quero dizer, no dia a dia? Isso devia incomodar o senhor com
certeza.
N�o, nunca me incomodaram, n�o me meto com a vida dos vizinhos. Ali�s, nunca
comentei com ningu�m sobre a briga no elevador, o senhor � o primeiro a saber.
Viver e deixar viver?
Isso a�, fico na minha e tudo anda bem.
Se escutava bem a discuss�o deles a� do seu apartamento? Pergunto isso porque,
hoje em dia, esses pr�dios novos t�m estruturas muito fr�geis, as divis�rias
parecem feitas de papel. Se escuta tudo por
elas, mesmo dum andar pro outro. come�ou a arengar ele, parecendo um calhambeque
com motor arruinado subindo com dificuldade um aclive acentuado, o que desencadeou
em mim uma crise intermin�vel de
bocejos. Acredito que n�o seja o caso deste pr�dio continuou , que parece s�lido
e bem constru�do, de primeira, mas �s vezes a gente escuta, mesmo n�o querendo,
chega a ser uma imposi��o. N�o se
lembra de alguma coisa que tenha escutado? Alguma amea�a, coisas assim? Por
incr�vel que pare�a, a maioria dos homic�dios dom�sticos tem antecedentes de alerta
antes da ocorr�ncia propriamente dita, algo
como �Vou te matar, seu ou sua.�, coisas assim, sabe como �?
Sorri para ele.
Estou lembrando, sim. emendei na ponta de um bocejo. A mulher disse certa vez,
escutei porque ela gritava em altos brados, que ia capar ele. N�o capou, mas matou,
o que vem ser a mesma coisa,
um homem capado n�o vale nada, Deus me livre, como se n�o bastassem as mortes
causadas pelo MONSTRO, agora, mais essa, e logo aqui no nosso pr�dio.
N�o, n�o foi ela que matou contrap�s o policial , ao contr�rio, foi o marido que
matou a mulher e, ap�s, suicidou-se, tudo com uma faca de cozinha, coisa muito
feia, uma pena, um casal jovem ainda,
� brincadeira, n�? Hoje em dia, a viol�ncia � uma coisa muito s�ria, por d� c� essa
palha se cometem os crimes mais b�rbaros.
Desta vez fui eu a pigarrear, imitando-o.
Bom, se o senhor j� terminou e quiser me dar licen�a, tenho um compromisso, estava
de sa�da.
Claro, claro, n�o tenho mais perguntas, fico-lhe muito agradecido pela aten��o.
Come�ou a catar alguma coisa no bolso do palet�, retirou a m�o com um cart�o preso
entre os dedos. Era um policial da velha guarda, formal, educado, oriundo da pr�-
hist�ria da academia de pol�cia, passara
pelo regime de Vargas e pela Ditadura sem se corromper.
De todo jeito, vou deixar meu cart�o com o senhor, se lembrar de algum detalhe que
achar importante, por favor, ligue-me, e mais uma vez, obrigado.
Estendeu-me novamente a m�o min�scula e mole, comprimi-a suavemente, enquanto a
gana era fazer mingau com ela. O tipo devia andar matando cachorro a grito nas suas
investiga��es, raciocinava t�o devagar
que era poss�vel antecipar as perguntas que ia formular daqui a uma semana. Escutar
a engrenagem enferrujada do seu c�rebro funcionando, rangendo, como uma carreta de
bois, um diabo que era para estar
aposentado, criando galinhas, ou internado num asilo, eu, hein? Enquanto eu bolara
um esquema que colocara a cidade em polvorosa, vinha um Javert desses a�, sa�do do
s�culo XIX, devagar, quase parando,
para me interceptar, brincadeira tem hora, � meu. Chamei o elevador, ele meteu a
m�o no bolso, cavoucou, n�o achou nada, meteu no outro e tirou um isqueiro, acendeu
o cigarro babado.
V� se n�o vai morrer de enfisema pulmonar antes de chegar ao fim desse caso, hein,
meu chapa?
Ele olhou pra mim, um olhar entre malicioso e culpado, como se desculpando.
V�cio maldito, n�o consigo largar.
Deu uma tragada profunda, depois expirou a fuma�a num longo jato. O elevador chegou
e eu entrei. Antes, por�m, que a porta se fechasse, ele deu dois passos longos, com
uma agilidade inesperada, e prendeu-a
com o p�, a porta tornou a se abrir e ele a acompanhou com o p�, mantendo-a
imobilizada.
O senhor n�o leva a mal se eu lhe fizer uma �ltima perguntinha?
Claro que n�o, manda ver.
Bom, depois das brigas, eles. Entende? Quero dizer, o senhor n�o ouviu alguma vez
eles. N�o sei se fui bem claro. Por fim, resolveu usar as palavras certas,
vencendo o pudor. Sabe? Fazendo
amor? Gemidos, coisas do g�nero?
N�o, nada, isso nunca, nunquinha.
Estranho, t�o passionais, eram bons de briga e ruins de cama?
Explodi numa gargalhada, o velho era pirado mesmo, onde j� se viu querer saber da
vida �ntima do casal quando j� estavam completando a volta ol�mpica do inferno, ele
riu tamb�m, desenxabido.
Recebiam muitas visitas, faziam festas?
Para lhe ser sincero, nunca vi vivalma.
Desculpe. Retirou o p� e a porta se fechou suavemente.

Nosso olhar se cruzou durante o ato do correr da porta, coisa de um ou dois


segundos apenas, o curto momento em que pude sentir a firmeza do olhar de �guia
querendo extrair do meu algum recado oculto,
um desconfiado olhar de bode velho que denunciava a sua insatisfa��o com algo
impreciso, mas que podia vir a ter significado, um olhar de d�vida permanente.
�Hhuumm, veja s�.�, pensei, �o velhote � enganador,
se fazendo de bobo para passar bem, eu o estivera desdenhando o tempo todo.�. Por
tr�s daquela apar�ncia de songamonga, de tira decadente, escondia-se uma raposa
cheia de artimanhas, de macaco velho
que n�o cai do galho.
Peguei-o pelo olhar, um olhar-armadilha, cheio de subentendidos e retic�ncias;
olhar de campo minado, onde voc� pisa e vai pelos ares; olhar de sab�o, onde voc�
escorrega e cai; olhar de rede de pescar,
onde, quanto mais voc� esperneia, mais se enleia; olhar de areia movedi�a, onde
voc� vai afundando inapelavelmente; olhar de raios X, que vai at� o �mago do seu
esqueleto; olhar de tarado, que p�e a nu
a mais virtuosa das mulheres.
O que ele vira em mim, meu Deus, que tanto o intrigara? O que eu deixara vazar na
linguagem fugidia do gestual simb�lico, mas percept�vel a quem est� acostumado a
desvendar mensagens reveladas por um inconsciente
trai�oeiro? Aquele homem era um lobo vestido de cordeiro, caborteiro de merda, mas
eu tamb�m o pegara, flagrei-o no ato de querer decifrar-me pelo olhar, como se isso
fosse poss�vel. Se o velhote tinha
os seus ardis, eu, da minha parte, mantinha o radar da minha cautela captando
sinais estranhos, ininterruptamente, por m�nimos que fossem, e o olhar enigm�tico
do policial, muito embora pudesse n�o passar
dos exageros do meu excesso de zelo, me deixou com a pulga atr�s da orelha.
Enquanto percorria as ruas, fiz uma revis�o dos meus atos dos �ltimos dias,
tentando detectar alguma m�nima falha, mas n�o encontrei nada com que pudesse me
preocupar, aquela nota destoante que falseia
a melodia, nada, nada, exceto eu ter mantido comigo as cal�as e os t�nis lavados,
mas dos quais me desfiz imediatamente assim que me dei conta. Fora esse pormenor
negligente, mas j� sanado, nada mais restava
de comprometedor, a minha guarda continuava bem fechada, ia ser dif�cil algu�m
conseguir vaz�-la. Mesmo assim, pois o seguro morreu de velho, passei a encarar a
hip�tese de ter de fazer uma retirada emergencial
como uma conting�ncia iminente.

Comecei empacotando todos os petrechos que pudessem me incriminar: cadernos, armas,


disfarces, e guardei tudo, em dois volumes, num dos cofres do sobrad�o. L� eu
mantinha tamb�m seis passagens a�reas,
em aberto, para v�rios lugares do planeta, com validades sempre renovadas e
duzentos mil d�lares em notas de cem, al�m dos cento e cinquenta mil mocozeados em
casa, no teto falso do guarda-roupa. Renovei,
ainda, o visto do passaporte para a Alemanha. A minha paran�ia crescia na justa
medida que eu acompanhava as not�cias de jornal, r�dio e tev�. N�o dormia mais,
esperando o momento crucial de ser pego pela
pol�cia, a qualquer momento. Um personagem conhecido aparecia nos sonhos das minhas
breves sonecas, dizendo: �Estamos chegando bem pertinho, bem pertinho.�
Assim foi at� que, duas semanas ap�s a retirada dos corpos, levei um susto enorme
que me causou uma �lgida paralisia moment�nea da espinha. Quando deixava a garagem,
avistei o perfil do comiss�rio Lopes
lutando para estacionar um pr�-hist�rico Gordine, cinza-horripilante, a lataria
trepidante cheia de marcas de ferrugem, o para-choque dianteiro amarrado com um fio
de luz. Se o Lobo Mau resolvesse dar
um assopr�o na geringon�a, puxa, mandava tudo pelos ares com a maior facilidade.
Parei mais adiante e fiquei na campana, duzentos batimentos card�acos por minuto,
se at� o bispo aceitava a tese de crime
passional, o que o filho da puta fazia furungando por l� de novo? Ficou vinte
minutos dentro do pr�dio. Fazendo o qu�? Falando com quem? Sobre o que e quem?
Assim que ele se foi, eu tornei a entrar pela garagem e fui direto ao porteiro, que
era o Gesu�no.
Acabei de ver o velhote da pol�cia saindo quando cheguei.
�, ele j� veio tr�s vezes nesta semana. Sobe l� no apartamento, fica examinando
tudo de novo, pergunta pelos moradores.
Por mim, tamb�m?
Principalmente pelo senhor. Elogia muito o senhor, diz que devia ter saco de fil�
para aguentar tanta briga do casal. N�o sei quem falou pra ele que uma vez o senhor
chegou a bater na porta deles para
reclamar, mas que n�o adiantou nada, continuaram brigando.
Falaram isso pra ele? Quem foi? Nunca cheguei perto da porta deles, n�o me meto
com a vida dos outros.
N�o sei quem falou, ele n�o me disse, mas eles encheram o seu saquinho, n�o foi,
doutor? Todo dia uma briga, � dose pra elefante, eu tamb�m teria bronqueado, s�
podia acabar daquele jeito.
N�o digo que n�o me incomodaram algumas vezes, mas eu botava o headphone e as
brigas, � eu disse, acompanhando de um estalar de dedos , sumiam.
Grande, doutor, boa essa, muito boa, pra que o senhor ia ficar poluindo os seus
ouvidos, n�o �? O melhor � curtir uma musiquinha, n�o � mesmo?
Hoje ele falou com algu�m? �Calma l�, Jorge, vai ficar dando letra pra esse cag�o
te entregar?�, pensei.
Pelo que o inspetor falou, subiu pra vistoriar o apartamento, pela d�cima vez, e
para falar com a Dona Rute, a senhora idosa do 1103, mas essa foi a �ltima vez,
pois o s�ndico j� recebeu um comunicado
dos parentes das v�timas que v�o retirar os seus pertences do local do crime. Se
n�o me engano, a mudan�a sai amanh� mesmo. Com o apartamento vazio, garanto que ele
n�o vai querer subir. �s vezes fico
pensando, c� entre n�s, n�, doutor? Se o velho n�o t� passando a m�o em algum
objeto cada vez que vai l�.
Se est�, j� deve ter pego um bocado de coisas.
Sabe como �, n�? Esses caras da pol�cia ganham mal pra caramba, t�o sempre babando
no freio, �s vezes s�o piores que os pr�prios bandidos.
� a primeira vez que ele fala com a dona Rute? fiz a pergunta como quem pisa em
ovos.
Negativo, a terceira ou quarta. Deve ser porque ela e a filha moram bem ao lado do
local do crime, elas tamb�m devem ter pago os seus pecados com os dois.
�Ser� que foi a velha que falou de mim?�, pensei. �Imposs�vel, s� se a velha era
enganadora tamb�m, se fingia de surda, ou era do tipo que passava espiando pelo
olho-m�gico. N�o, n�o, � noia minha,
mas quem falou ent�o? A �nica que estava l� naquele dia era ela, podia ser verde do
Lopes, para fazer o porteiro se abrir, sei l�, precisava repensar a situa��o.�
S� sei que minhas orelhas esticaram mais um pouco, tamb�m podia ser apenas trabalho
de rotina, o Lopes era devagar quase parando, jabuti era velocista perto dele.
Decerto complementava os relat�rios de
encerramento do caso. A cada detalhe que a mem�ria caduca e prec�ria esquecia, l�
ia ele verificar de novo. Quem sabe se eu desse uma ligadinha, como quem n�o quer
nada, para sondar se tinha novidade?
N�o, seria bandeira demais, o velho n�o era t�o ot�rio assim, a troco de que o meu
interesse repentino? Estava tudo sob controle, eu n�o tinha o que temer, fizera um
�timo servi�o nas barbas de todos e
ponto final, n�o havia nada que levasse algu�m a desconfiar de mim, era noia pura.
Eu ainda estava surpreso com a ousadia. Ousadia apenas? N�o, toneladas de ousadia,
mas era esta a minha marca, ousadia
sem peias, sangrenta, demon�aca, b�rbara, de fac�nora cruel, que ia figurar com
destaque nos Anais da Hist�ria Criminosa do Pa�s quando, ap�s minha morte, tomassem
conhecimento do conte�do dos meus cadernos.
Nota mil, com a extensa lista de atos escabrosos, terr�ficos, not�veis, sem, no
entanto, correr o risco de sofrer a m�nima san��o, inc�lume total. Esse seria
sempre o meu grande trunfo.
Depois de matutar um bocado, por�m, mudei de id�ia, resolvi ligar.
Comiss�rio Lopes? Salve, aqui � o Jorge, vizinho do casal que se matou, t�
lembrado?
O do headphone?
Isso, como vai o senhor?
Se lembrou de alguma coisa importante?
N�o sei se vai ajudar, mas lembrei duma insignific�ncia. N�o sei nem se ter�
alguma utilidade, mas, pelo sim pelo n�o, resolvi ligar.
Sil�ncio impaciente do outro lado, sil�ncio de concreto armado, sil�ncio de quem
esperava a minha liga��o, mais dia menos dia. Eu j� conhecia as suas rea��es,
previra tudo igualzinho.
Lembrei que, uma vez, uma �nica vez, escutei gemidos de prazer, mas que me
pareceram ser de dois homens, n�o dum homem e duma mulher, achei curioso, na �poca,
mas acabei esquecendo. Agora me ocorreu,
ser� que o rapaz n�o era gilete?
Sabe-se l�, o senhor tem certeza disso? Chegou a ver outro homem na companhia
deles ou dele?
N�o, n�o, resumiu-se aos gemidos, apenas. Os dois deviam ter algum problema
conjugal para brigarem tanto, n�o acha? Talvez ela tivesse descoberto o caso do
marido com outro e ficado indignada com a descoberta,
ele, para n�o ficar por baixo, batia nela, coisas desse tipo. Hoje em dia acontece
de tudo, e Curitiba est� sempre na vanguarda dos novos e ins�litos costumes, embora
a bicharoquice seja velha como o
mundo, n�o � mesmo?
� falou o Marcha Lenta , o comportamento dos jovens est� al�m da nossa
imagina��o.
Fiquei na d�vida se valia a pena lhe falar isso, se teria alguma relev�ncia.
Bem pensado interrompeu-me ele , claro que valeu, sempre � algum adendo, um fato
novo que deve ser analisado. Fico-lhe muito agradecido, estou praticamente
encerrando o caso, tudo leva a crer que
seja crime passional, exceto se aparecer prova em contr�rio. Mesmo que tenha havido
algum outro parceiro sexual, um m�nage � trois, n�o resta d�vida de que o rapaz
matou a mo�a e, ap�s, atentou contra
si, o motivo disso � que n�o se sabe, n�o consegui descobrir, morreu com eles. O
laudo t�cnico apontou algumas pequenas discrep�ncias, que me colocaram uns grilos
na cabe�a, mas n�o passou disso, estou
concluindo o relat�rio com a tese de crime passional, n�o resta a menor d�vida. De
toda forma, fico-lhe muito grato.
De nada, foi um prazer colaborar com a Lei.
Desliguei. Ufa, que al�vio. Ent�o, � isso, tudo como dantes no quartel de Abrantes,
a minha noia � que assombrou o meu castelo de cartas, viu fantasmas onde n�o havia,
mas � prefer�vel ser um
paran�ico
livre do que um desligado atr�s das grades. Agora eu podia retornar aos meus
estudos e escritos, com tranquilidade, para recuperar o tempo perdido. O velhote
era bob�o mesmo, apenas ressabiado. Como todo
funcion�rio p�blico, estava louco para se livrar das tarefas, da batata quente em
suas m�os que era aquele caso. Estava em fim de carreira, nas v�speras de pendurar
as chuteiras, mas valeu o sarro que
tirei dele com a hist�ria dos gemidos inconstantes, podia ter dormido sem essa, o
loque, se tivesse parado de meter o bedelho onde n�o era chamado.

Ao me aproximar do ponto onde costumava me reunir com os velhinhos no parque,


distingo, um pouco afastado do grupo, o comiss�rio Lopes com um deles, o Alcides.
Uma sirene escandalosa de alarme foi acionada
repentinamente dentro de mim. Taquic�rdico, me refugiei atr�s de uma �rvore e
fiquei observando os dois, que iam no embalo de uma conversa animada. Desde quando
esse detetive de merda sabia que eu frequentava
o S�o Louren�o? Mesmo um observador menos atento podia perceber que Lopes
pressionava Alcides, crivava-o de perguntas, como era o seu estilo. Lopes
articulava, Alcides escutava de olhos baixos e, a seguir,
respondia, sempre nessa sequ�ncia. Em determinado ponto, Alcides, denotando
impaci�ncia, ergueu-se, Lopes o imitou, sempre falando e acompanhando com gestos
conciliativos. Que tantos questionamentos tinha
ele a fazer? Sobre qu�? S� podia ser sobre mim. Alcides voltou a sentar-se, Lopes
tamb�m, como se o tira fosse a imagem do velho refletida no espelho. Em outra
altura, Alcides abanou v�rias vezes a cabe�a
em sinal de nega��o demonstrando franca irrita��o na fisionomia e na brusquid�o dos
gestos. Desde que os flagrara at� a despedida de Lopes, contei trinta minutos no
rel�gio, sem considerar o tempo anterior
� minha chegada.
Esperei Lopes afastar-se e segui-o a uma dist�ncia segura. Dirigiu-se a sua lata
velha, embarcou e se foi, deixando um rastro de fuma�a atr�s de si, como se a
charanga fosse um grande charuto ambulante.
Retornei ao grupo ao qual Alcides j� se incorporara. Ap�s os cumprimentos de praxe,
Alcides puxou-me pelo bra�o, solicitando-me para um � parte.
Teve um velhote aqui � sua procura, afirmando ser seu conhecido. Achei meio
estranho, me encheu de perguntas, queria saber de voc�, desde quando eu o conhecia,
com quem voc� se relacionava. O que
voc� andou aprontando? Andou pegando alguma guria de menor, seu tarad�o?
Eu mantinha um ar alheado, sem mostrar muito interesse no que ele dizia.
Um homem atr�s de mim, fazendo perguntas? U�, sai. Qual era o nome dele?
Um tal de comiss�rio Lopes, disse que estava tratando do crime do casal l� do seu
pr�dio, queria lhe fazer umas perguntas, como n�o o encontrou, me abordou para ver
se o conhecia, bastou eu dizer que
sim e o homem n�o me largou mais, um chato de galochas.
Ah, j� sei quem �, voc� tem raz�o, � um velho purgante, n�o tem o que fazer e fica
enchendo o saco de todo mundo, n�o sai l� do edif�cio, depois que um casal se matou
ap�s uma briga. Mas o caso j� est�
at� encerrado, saiu at� nos jornais, t� lembrado?
O que ele veio fazer justo aqui?
Estava bisbilhotando.
Pelo jeito anda seguindo voc�, queria saber se eu estava a par do assunto, se voc�
comentara com algu�m da turma. Eu disse que n�o, que n�o sabia de nada, nem sabia
onde voc� morava.
Essa � boa, n�o estou entendendo o que ele quer comigo nesta altura do campeonato.
Falei com ele h� uns dias, me disse que estava encerrando o caso.
Por acaso voc� n�o andou envolvido com a vizinha assassinada? O marido descobriu e
passou-a na faca?
Nem brinca com uma coisa dessas, Alcides.
S� sei que ele me cozinhou quase uma hora me fazendo perguntas de todo tipo,
parecia que eu era uma testemunha-chave, queria porque queria saber qual a sua
atividade, se tinha fam�lia, coisas assim,
eu disse que o conhecia daqui fazia alguns meses, mas n�o sabia detalhes da sua
vida, s� que tivera um derrame e se acidentara, que se aposentara em fun��o disso e
que pretendia viajar para os Estados
Unidos. Veja s�, quando falei que voc� ia viajar, ele quis saber mais e mais, e a�,
eu dei um corte nele, �Por que o senhor n�o pergunta essas coisas diretamente pra
ele?�, eu disse. At� que foi educado,
se flagrou, se desculpou, e retirou-se em seguida, acho que foi atr�s de voc� na
sua casa, j� que n�o o encontrou aqui.
E eu vindo para c�. Que pena o desencontro, assim j� deslindava essa chorumela
toda.
Pois foi o homem sair e voc� chegar, se tivesse chegado uns cinco minutinhos
antes, pegava ele aqui ainda.
Uma pena, depois vou ligar pra ele. Voc� tem o telefone dele?
Sim, pois me deixou um cart�o para lhe dar e o recado para lhe ligar sem falta.
Alcides se co�ou e localizou o cart�o. Fique com ele. O tira tamb�m mencionou que
achava estranho voc� n�o ter comentado
conosco sobre a trag�dia do casal. At� a imprensa e a tev� j� tinham badalado o
caso � be�a, se eu n�o me engano, ouvi alguma coisa no notici�rio, ou foi voc�
mesmo que comentou?
N�o lembro. Faz coisa de vinte dias, um m�s, por a�, nem me lembro se comentei ou
n�o aqui com voc�s, ando envolvido com a papelada da viagem, � tanta burocracia que
d� at� vontade de desistir.
Ent�o j� est� com o p� no estribo?
J� estou no lombo do cavalo, creio que daqui a uns dias estou embarcando.
Ent�o temos que avisar a turma para organizar o bota-fora, voc� sabe, o Dirceu �
que se encarrega de organizar as festas.
Fomos nos juntar aos outros e Alcides deu a not�cia. Dirceu se adiantou:
Deixa comigo, j� posso convidar as garotas?
Todos riram. N�o tinham de que se ocupar, agarravam-se a qualquer coisa que
aparecesse, por mais f�til que fosse, para preencherem o seu tempo, o tempo in�til
que lhes restava. Aguardei mais um pouco para
n�o ser grosseiro, pedi licen�a e me ausentei, com a promessa de retornar no dia
seguinte bem cedo. Dirceu ia or�ar a festa, fazer as arrecada��es, mas queria o meu
parecer antes. Eu, como homenageado,
n�o teria �nus nenhum.
Entrei no Gol. Precisava agir r�pido e rasteiro, o puto do Lopes tinha farejado
alguma coisa, s� n�o sabia o qu�. Talvez devesse ligar novamente para ele. N�o.
Hora de sumir do mapa, deitar o cabelo, pra
j�. Fui para casa. Debaixo da minha porta tinha um cart�o. Vi escrito no verso: Por
favor, procure-me, precisamos conversar, um abra�o, Lopes. Peguei tudo de que
necessitava e coloquei no porta-malas do
Gol, depois subi, tomei uma ducha, vesti-me e desci empunhando uma mala. O porteiro
da noite j� tinha rendido o Jarbas.
Oi, avisa o Jarbas que estou indo para os Estados Unidos, retorno dentro duns tr�s
meses. Pede para ele fazer o combinado, ok?
Tudo bem, doutor, boa viagem.

Ao deixar o pr�dio, destru� a �ltima ponte atr�s de mim, impossibilitando qualquer


forma de retrocesso, minha �nica op��o era seguir em frente. Iniciava uma nova
fase, fase de muitas mudan�as. O comiss�rio
Lopes me obrigava a antecipar um projeto programado para dali a alguns meses,
paci�ncia, ia deixar coisas pendentes, mas fazer o qu�? O bom senso aconselhava que
era hora de tirar o cavalinho da chuva,
o tira caqu�tico possu�a um faro mais apurado do que o presum�vel, ia mostrando as
garras mi�das, revelando uma personalidade obstinada, dada a rumina��es, capaz de
revisar e esmiu�ar os fatos de um caso,
indefinidamente. Com resigna��o ia juntando as pe�as do intrincado quebra-cabe�a,
sem a m�nima pressa, disposto a gastar o tempo que fosse necess�rio para dirimir
aquelas duvidazinhas que iam surgindo
ao longo das investiga��es, que, em �ltima an�lise, poderiam at� redundar em nada,
ou n�o, sendo indispens�vel, por�m, que as pe�as se encaixassem com perfei��o no
tabuleiro da sua desconfian�a. Caso isso
n�o ocorresse, sua experi�ncia profissional lhe determinava que alguma coisa n�o ia
bem e precisava ser esclarecida, a partir da�, ele ia fundo, atendendo aos apelos
da sua intui��o e ingressando em outro
est�gio, seguindo o fio da meada e esperando ver recompensado o seu trabalho de
tartaruga, o que implicava num processo reflexivo de caracter�sticas muito mais
rigorosas que o anterior, e que, possivelmente,
o absorveria mais ainda, pois tratava-se de remontar os fatos tendo como ponto de
partida a estranha pe�a, que o levaria ao maior grau de aproxima��o daquela
realidade concreta que enredou os agentes do
evento.
Nessa altura, eu me perguntava: �Qual a pe�a do jogo que eu armara n�o se encaixara
no contexto da sua d�vida hiperb�lica, gerando desconfian�as no policial manhoso?�
N�o tinha nem id�ia. ou tudo n�o
passava de noia? Uma ova, Lopes n�o teria ido sondar no parque. Como ficara sabendo
que eu frequentava o parque e me reunia com os velhinhos? �bvio ululante, andara me
seguindo, mas desde quando? Quanto
mais eu repassava as poss�veis iniciativas de Lopes, mais grilado ficava. Eu tinha
mancado em algum ponto da trajet�ria e o radar do seu instinto agu�ado captou.
Entreguei-me � exaustiva tarefa de rever
todos os atos daquela a��o impulsiva, milimetricamente, sem topar, no entanto, com
qualquer derrapada que pudesse gerar suspeitas. Ficou, no entanto, refor�ada minha
tese de que Lopes n�o perdia nada do
que se passava a sua volta, sendo infinitamente mais esperto do que aparentava,
insistindo mesmo em se fazer passar por bobo, escudado na apar�ncia desleixada e
imbecil, se fazia de isca, mas era anzol,
aranha astuciosa tecendo sua teia para enredar pelo m�nimo descuido. Eu quebrava a
cabe�a tentando entender suas lucubra��es policialescas, as associa��es e
conclus�es que delas extra�a, o gume cortante
do seu racioc�nio l�gico-dedutivo, a configura��o que dava ao seu mosaico
reflexivo, imbricando as partes, sem afoba��o, preocupando-se, como exige o
silogismo apod�ctico, no encadeamento de um conceito
no outro, com o objetivo exclusivo e incans�vel de alcan�ar a verdade.
Al�m disso, convencia-me, cada vez mais, de que Lopes era, ao mesmo tempo, um
psic�logo perspicaz, rapinante, capaz de apropriar-se do inconsciente das pessoas,
mostrando-se profundo conhecedor das tipologias
e teorias criminog�nicas, das nuances emocionais que transformam comportamentos
regrados nos mais repulsivos homicidas, do fluxo e refluxo da corrente de
consci�ncia das mentalidades delinquentes, do processo
m�rbido das maquina��es psic�ticas, do determinismo repetitivo que envolve as a��es
violentas, transitando com agilidade em labirintos inacess�veis � maioria dos seus
colegas de profiss�o. Cheguei a considerar
o quanto me sairia proveitoso disputar uma brincadeira de gato e rato com um tipo
desse calibre, poderia aprender um bocado, queimar etapas no meu aprendizado, mas
abortei essa possibilidade, seria arriscad�ssima.
Pelo menos n�o agora, talvez mais tarde. No entanto, for�oso era admitir o talento
de Lopes para tirar leite de pedra, sem nada nas m�os, apenas contando com sua
arguta sensibilidade e seu racioc�nio de
trado. Uma metodologia feij�o-com-arroz, mas que ia atingindo seus objetivos,
conseguindo desentranhar ind�cios invis�veis deixados no local do crime, um quebra-
cabe�a resolvido do fim para o in�cio, dos
quais eu jamais saberia dizer de que se tratavam, um mist�rio que quase me colocara
� sua merc�.
Quanto a mim, ainda ensaiava os primeiros passos na tentativa de distinguir os
rec�nditos da intencionalidade alheia, reconhecia o longo e sofrido caminho pela
frente a ser percorrido. Talvez, algum dia,
se continuasse me esfor�ando, eu adquirisse a mesma habilidade que Lopes tinha de
traduzir o intang�vel, captar o que est� por tr�s das apar�ncias, decifrar a
escurid�o, talvez.

JD: Sim. Foi assim mesmo. De repente eu me sentia livre, feliz, aliviado. Como
algu�m que vomita um alimento indigesto, que rec�m saiu da pris�o, que aprendeu a
voar. Adquiria um poder para o qual estivera
me preparando a vida toda, mesmo sem saber, apenas prorrogando a posse, talvez
achando ainda que o cargo era muito importante para a minha humilde pessoa. N�o
era. Qualquer um pode romper, mas a grande
maioria n�o rompe. E quando rompe, em geral n�o sabe o que fazer com tanta
liberdade. Na verdade, s� rompemos em situa��es-limite. Quando n�o nos sobra mais
nada. A minha loucura me levou � liberta��o.
Somente os loucos se libertam. A civiliza��o � culpada de todos serem neur�ticos,
prisioneiros de si mesmos. � o pre�o que pagamos por viver na bosta da sociedade
humana.
JL:Uma na��o politicamente organizada em termos ideais amenizaria as dificuldades
de conviver em sociedade?
JD: Pelo menos nos daria a sensa��o de estarmos todos no mesmo barco, coisa que n�o
acontece praticamente em nenhum lugar do mundo. Mas sem d�vida que uma sociedade
mais justa � uma sociedade melhor de
se viver. � o que as sombras dizem. (risos). N�o estimula tanto a ira, pelo menos.
No entanto, essa mesma ira � que equilibra o mundo. Pode parecer paradoxal, mas �
assim mesmo. Se voc� se sente injusti�ado,
vai lutar pelos seus direitos e colocar as coisas nos seus devidos lugares. S� n�o
consegue se � muito fraco. A� precisa se agrupar, se organizar. Um grupo � sempre
mais forte do que um indiv�duo, pelo
menos em tese. Essas coisas.
JL:Mas a tua rea��o foi totalmente individual.
JD: Todo in�cio � assim, n�o se sabe muito bem o que nos espera. N�o podemos,
por�m, nos intimidar com a incerteza. Eu arrisquei, era o mesmo que me lan�ar no
escuro sem saber o que havia debaixo dos p�s,
se uma base s�lida ou. o v�cuo. As pessoas hoje n�o se arriscam mais, esperam que
lhes deem as coisas de bandeja, exigem pouco. Querem que os outros pensem por elas.
A tev� em parte j� assumiu essa tarefa.
� sabendo disso que os pol�ticos deitam e rolam.
JL: Como no caso do Brasil? Se o povo n�o fosse �s ruas, n�o sairiam as diretas j�.

JD: No Brasil, o povo � o que menos conta. N�o s� no Brasil, claro.


JL:Quer dizer que, para voc�, a redemocratiza��o do pa�s teve outras causas que n�o
o protesto popular?
JD: Talvez mais externas do que internas. Um pa�s do porte do Brasil n�o pode estar
fechado aos mercados externos, loucos para desovar os seus excedentes. Temos um
mercado consumidor quase inexplorado.
Dar uma aura democr�tica ao pa�s e abri-lo ao mercado externo � um motivo muito
maior do que as �nsias populares. A esquerda representou o seu papel dentro do que
era esperado, para dar a impress�o de
que o povo imp�s a sua vontade. Na verdade n�o foi nada disso. O Lula do ABC,
defendendo os direitos dos trabalhadores, parece uma coisa muito bonita, mas sei
coisas desse cara que o equiparam aos meus
agentes menos qualificados, n�o passa de pura fachada. Mas deixa pra l�. O mercado
financeiro internacional � que v� no Brasil uma galinha dos ovos de ouro. E n�o vai
desistir enquanto n�o verem a galinha
exausta e improdutiva. Esgotada a fonte, bye bye, Brazil. Mas o Brasil ainda tem
muita riqueza que � mantida sob sigilo, vai demorar muito tempo, por�m, at� que
isso aconte�a.
JL:J� que falou no Lula, vou tornar a perguntar. Toda a vez que falamos nele, voc�
sai pela tangente, por qu�?
JD: Eu sabia que voc� n�o ia perder a oportunidade de me atazanar de novo com esse
borra-botas s� porque mencionei o nome dele. Mas vai ser a �ltima vez que toco no
assunto, certo? Esse merda n�o me engana,
nem a mim nem � Teca. Um dia a m�scara dele vai cair e voc�s v�o ver quem � o
verdadeiro oper�rio do ABC. O abostado � de neg�cio, s� que n�o chegaram no pre�o
dele, ou ele n�o chegou na oferta dos outros.
Escuta esta. Conheci um cara do interior do Paran�, semianalfabeto. Voc� olhava pro
cara e n�o dava nada por ele, tal a sua apar�ncia de jacu. Pois o cara hoje � dono
dum conglomerado de neg�cios de fazer
inveja a muito gringo. Com aquela apar�ncia. O puto s� diz abobrinha, � um p� no
saco, mas sabe ganhar dinheiro como ningu�m. O Lula � isso a� e mais meio quilo de
farofa, � um comunicador nato, gog� de
171 de primeira classe, tem o dom. S� que tamb�m tem o seguinte: se subir vai ser
mais manipulado que bunda de puta. Ele, de repente, vai servir aos interesses de
grupos, e esses grupos n�o v�o hesitar
em usar e abusar dele, faz parte do jogo do poder. Para o povo, vai parecer que �
ele quem manda, mas na real ele � e sempre ser� apenas um bonifrate, acionado por
gente que nunca aparece. Essas m�os invis�veis
que acionam os pauzinhos dos bonecos � que realmente mandam. E quem � do mando, n�o
quer aparecer, ter� sempre os seus testas de ferro na linha de frente.
JL:Voc� quer dizer que, quem est� no poder est� necessariamente sendo manipulado?
Essa hip�tese se enquadra no seu caso?
JD: Voc� t� querendo se meter a besta comigo, Jardel? Voc� � come cru, cara? Eu n�o
preciso de votos nem de negocia��o para receber apoio, como � o caso desse
mequetrefe e da posi��o desvantajosa de onde
ele emergiu. O poder dele saiu duma categoria profissional que adquiriu alguma
for�a de barganha. S� que, quando o poder dele extrapolar o �mbito da categoria, se
personificar no oper�rio l�der, no indiv�duo,
ele vai se sentir livre para tratar do seu futuro como pol�tico, mas a� � que a
porca vai entortar o rabo. O carisma do pol�tico � que pesa na balan�a, e isso,
temos que reconhecer, n�o falta para o oper�rio.
Ele que saiu da merda vai ter a empatia para se comunicar com o pov�o, e no momento
que isso acontecer ele vai deslanchar. E a� ele vai costurar acordos que v�o
embasbacar aqueles que acompanharam a sua
trajet�ria pol�tica. Toma nota do que eu vou te revelar: esse a� vende at� a m�e
pra subir, n�o respeita nada. Como, ali�s, a maioria dos fodidos dos pol�ticos, s�
que esse tem a vantagem de ter origem
humilde e, por isso, vai ter a capacidade de enganar melhor e mais convincentemente
o pov�o das suas origens. Eu fiz o caminho inverso, tive que mergulhar na vida
animal para entender melhor esse homem
primitivo que vive dentro de todos n�s. O meu jogo, por�m, � mais s�rio que o de
Lula, pois eu n�o vou ter que trair ideologias para agradar ningu�m. Eu sou o que
sou, Lula � o que querem que seja, o que
� bem diferente. Eu, perto dele, sou um puro.
JL:Essa seria a diferen�a mais marcante entre voc�s dois?
JD: Claro que n�o, porra, n�o mesmo, nem ouse me comparar a esse cu cagado. Lula �
elementar, n�o tem mentalidade inquisitiva, com ele � p�o, p�o, queijo, queijo. Ele
n�o tem a imagina��o que leva � grandeza,
pois isso s� se adquire com os livros. Lula � o cara que come pela m�o dos outros,
n�o tem autonomia. N�o acredito em quem n�o l�, em quem n�o tem conhecimento
te�rico. Ele fica arranhando as coisas superficiais
e precisa que os outros lhe digam o que fazer, bem ao contr�rio de mim, que fa�o as
regras. Os intelectuais o rodeiam e lhe impingem id�ias que ele n�o consegue
avaliar a extens�o, por isso vai embarcar
em canoa furada. O bom para ele � que n�o tem nada a perder, s� a ganhar. Claro que
isso n�o � s� pr�prio dele, FHC tamb�m embarcou em canoa furada com os
monetaristas, mas Lula � o mais influenci�vel
de todos. O FHC pode tomar decis�es por mal�cia, Lula toma por desconhecimento,
logo, ingenuidade. O ing�nuo � o bobo da corte, o otimista que acredita em tudo,
vai na onda. Lula jamais ser� uma estrela,
ser� sempre sat�lite. Sem a bengala dos intelectuais ele n�o � nada, sozinho ele �
vazio e do vazio n�o se tira nada. De repente puxam o tapete dele e ele vai ficar
pendurado no pincel. Agora, ele tem
uma excelente qualidade, � um pau mandado de primeiro n�vel, isso � o que ele �, e
� bom nisso, quando achar que pode ficar por conta, a� a coisa vai feder, ele vai
come�ar a fazer cagada, uma atr�s da
outra. Ele acha que acredita na intui��o dele, mas ela foi criada pela orienta��o
dos outros, dos metidos a sabidos, dos intelectualoides de meia tigela que ainda
acreditam em Marx. E o Brasil e o povo
brasileiro, ficam como o marisco, entre a rocha e a viol�ncia da mar�, sifu. Talvez
eu seja o verdadeiro Salvador da P�tria, mas como n�o vou me meter em pol�tica, o
Brasil vai perder essa grande oportunidade
de sair de seu atraso hist�rico. (riso).
JL:Ou talvez voc� prepare algum confrade para assumir esse lugar?
JD: Est� a� uma boa sugest�o, vou pensar seriamente nela.
JL:E o Lula, se chegar ao poder central?
JD: Diga-me, Jardel, o que se pode esperar de um governo de oper�rios, fam�licos de
poder, sen�o uma corrup��o desenfreada para locupletar a todos? Na verdade, se Lula
e os oper�rios chegarem ao poder,
ser� muito bom para os neg�cios, digamos, escusos. (riso) Posso dizer de outra
maneira: o que pode fazer um partido de oper�rios pelo Brasil? Depois de
conquistarem o poder, caso consigam, v�o saquear
os cofres p�blicos, as empresas p�blicas. E essas tem aos montes: Petrobras, BNDES,
Banco do Brasil, Caixa Econ�mica Federal, Vale do Rio Doce, Telebras, Embraer,
Sider�rgica Nacional, concess�es de rodovias
e ferrovias, e por ai vai. V�o fazer o que todos os socialistas fizeram no mundo
todo: enriquecer e esquecer os tais princ�pios de igualdade, caso tenha tido algum.
Fa�o uma ressalva: se este estrup�cio
do Lula chegar no poder vou compor com ele, porque n�o? Os pol�ticos s�o mais
vorazes que n�s, os contraventores, n�o tenha d�vidas Jardel. (riso)
JL:Bem, estamos fugindo um pouco do assunto.
JD: N�o tenho mais nada a falar desse filho da puta, ponto. Por enquanto ele n�o �
nada, n�o passa de um coc� ambulante. Estamos conversados, Jardel?
JL:Tudo bem, Chefe. Voltemos ao assunto Confraria, que � o que realmente interessa.
Nessa fase, antes de entrar na pr�xis, pode-se dizer que j� havia uma inten��o
embrion�ria de organizar um grupo para
atuar e abandonar a atividade solit�ria?
JD: S� se foi inconsciente, de obra pensada, n�o. Na verdade, a minha �nica
preocupa��o nessa �poca era ocupar o meu tempo. Eu estudava v�rios assuntos,
separadamente ou em conjunto. Nos meados da d�cada
de 1970, iniciei um levantamento para saber como atuavam os bandidos do meu estado,
sem nenhuma pretens�o, por mera curiosidade, uma atra��o gratuita. Uma simula��o
para, no caso de ser eu, saber como
fazer. Um exerc�cio de entediado, nada mais que isso. Como j� falei para voc� mais
de uma vez, eu era um bosta dum fodido dum debiloide. O que se poderia supor � que,
talvez, sempre de uma forma inconsciente,
eu quisesse me precaver melhor, para uma eventualidade no futuro, como, sabe como
�, identificar falhas nos outros para evit�-las, coisas do tipo. Cheguei a
organizar at� uma bibliografia. Servi-me, tamb�m,
de muitos jornais e revistas. A muito custo, extra� alguma coisa de um advogado
criminalista, de um ou outro p� de chinelo, pivete, ex-detento que cruzaram meu
caminho.
JL:Porqu� a muito custo?
JD: Digo a muito custo porque nessa �poca eu evitava contatos humanos, vivia
encapsulado, fora os velhinhos do parque, como j� disse, eu praticamente n�o me
aproximava de ningu�m, e mesmo com os velhinhos
os contatos eram cada vez mais espor�dicos. Era o trabalho de coleta sistem�tico,
mas a dist�ncia, que me absorvia. Toda a informa��o com algum conte�do era anotada
e catalogada. O Sangue me auxiliou muito
nessa tarefa. Volta e meia o depoimento de algum vagabundo detido em delegacias
trazia alguma dica que me interessava, e que me fazia associar com outras e outras,
e assim ampliar o meu conhecimento sobre
certos assuntos. Comprava, tamb�m, jornais de outros estados para verificar at� que
ponto havia identidades de procedimentos, etc. Levei alguns meses nesse trabalho. E
o que levantei n�o diferia muito
daquilo que eu j� conhecia, ou deduzia, ou que qualquer rep�rter policial aprende
na pr�tica di�ria das suas coberturas. A partir da� cruzei esses dados com os de
livros de autores estrangeiros que analisavam
organiza��es criminosas j� plantadas em outros pa�ses, algumas bem antigas como a
Yakuza, as Tr�ades, a M�fia, dentre outras.
JL:Uma leitura que rendeu frutos, depreende-se.
JD: A M�fia, por exemplo, paradigma por excel�ncia do crime organizado no mundo
todo, tem estrutura piramidal, com r�gida hierarquia e poder central, tal qual se
v� nas for�as armadas. Atualmente � administrada
como empresa, tanto nos EUA como na Sic�lia. Possui um n�mero significativo de
afiliados, chegando a algumas dezenas de milhares, apesar de crit�rios seletivos
excessivamente rigorosos. A Yakuza tamb�m
� fundada na tradi��o cultural e apresenta, sem d�vida nenhuma, uma disciplina
maior que a da M�fia, al�m de ser numericamente superior. Como administrador,
por�m, quando dei por terminado o levantamento,
j� podendo tra�ar um perfil da bandidagem brasileira, fiquei horrorizado com os
resultados.
JL:E agora vamos chegando cada vez mais perto do que seria o in�cio da ACC ou, pelo
menos, uma inten��o de criar uma quadrilha organizada?
JD: Como eu j� disse antes, conscientemente ainda n�o. Continuava bem longe disso.

JL:Mas nessa �poca, final dos anos de 1970, o Comando Vermelho, no Rio, j� estava a
todo vapor como organiza��o, correto? Ouve alguma influ�ncia posterior?
JD: Nenhuma. O Comando Vermelho era muito fechado e pouca coisa ventilava sobre
ele. Al�m do mais, estava circunscrito � cidade do Rio de Janeiro. Somente a partir
de meados da d�cada de 1980 � que come�ou
a ficar mais conhecido do p�blico, pela imprensa.
JL:E a decep��o, acerca dos resultados da pesquisa, qual era?
JD: N�o chegava a ser decep��o, apesar de verificar pontos extremamente negativos
no modus operandi das quadrilhas e gangues.
JL:Caracter�sticas essas que voc� tratou de eliminar ao criar a ACC?
JD: Nem todas, mas a maioria (risos). O que caracterizava o bandido nacional, ou
mais especificamente, o paranaense, era se juntar em pequenas quadrilhas ou
gangues. Uma grande quantidade delas. Em todo
territ�rio nacional, at� presentemente, podemos contar alguns milhares desses
pequenos grupos, �s vezes de apenas dois ou tr�s integrantes, n�mero, ali�s, que na
sua totalidade n�o saberia precisar. Nem
a pol�cia e nem o IBGE conseguem, o que prova que a estat�stica � ainda um artigo
de luxo no Brasil. Nos EUA, por exemplo, os caras sabem quantos peidos o americano
m�dio d� por dia, j� no Brasil. n�o
sabem nem a quanto andam os ve�culos da prefeitura de Curitiba. (risos), o que, sob
certo aspecto, � bom para eles, pois assim, estando as coisas bem esculhambadas,
fica mais dif�cil de cobrar. Os �rg�os
de pesquisa no Brasil t�m mais a ver com o marketing pol�tico e de neg�cios, mesmo
assim alguns s�o bem duvidosos, a maioria encomendados. Dados precisos para
planejar a administra��o p�blica est�o � margem
das preocupa��es dos caras de Bras�lia. O neg�cio deles � outro. A pol�tica, a
democracia, � uma fachada para as suas inten��es mais rec�nditas. N�o acredito que
estou dizendo isso, as palavras que voc�
coloca na minha boca.
JL:Tu s� est�s descrevendo a realidade das coisas, tch�.
JD: Todo mundo sabe que pol�tico � bandido, � corrupto, que tem todas aquelas
maldades que os p�s de chinelo comuns t�m, s� que mascaradas pelas boas inten��es,
pelos interesses do povo, e n�o sei quantas
baboseiras mais. As palavras adquiriram o poder de sugerir a realidade, de
substituir a realidade como se a realidade fossem, s� que n�o s�o. S�o uma
representa��o simb�lica, uma fantasia. Quando se
usa o termo da boca pra fora, quer se dizer o qu�? Que aquilo n�o vai se realizar,
s�o apenas palavras. Os pol�ticos brasileiros, a exemplo dos de outros lugares,
descobriram isso, com um certo atraso,
diga-se de passagem, e est�o aplicando aqui o que foi aplicado alhures, s� que de
uma forma exorbitada. Mas � uma coisa manjada, apenas para uma fatia pequena da
popula��o, o resto, a grande maioria, por�m,
engole a p�lula, e acredita nas palavras que escuta. � o cr�dito que a crian�a d�
ao Coelhinho da P�scoa, ao Papai Noel, o caralho.
JL:Como n�o acreditar? Como duvidar de algo antes que aconte�a?
JD: Esse � o grande trunfo desses filhos da puta: ningu�m pode duvidar das suas
palavras de promessas antes de elas n�o se realizarem, n�o � mesmo? S� depois, mas
a� j� � tarde, o tempo passou, e o que
passou, passou, n�o h� como resgatar o tempo e a realidade passados. N�o credito
que continuo falando de pol�tica e dos putos dos pol�ticos, que cond�o voc� tem
para conseguir isso de mim, Jardel?
JL:Talvez porque voc� goste, tch�. O problema � que parece que n�o d� para
dissociar pol�cia e pol�tico de bandido, n�o � isso?
JD: Isso. me ajuda a�.
JL:Voc� tecia coment�rios sobre a atua��o prec�ria dos bandos de p�s de chinelo
paranaenses.
JD: � que a maioria dos membros desses bandos malformados apresenta baixo �ndice de
escolaridade e se origina das periferias das grandes cidades, onde est�o
localizados os bols�es de pobreza. Curitiba,
que j� est� come�ando a inchar pra valer, j� apresenta um bocado deles. Esses
pobres diabos atuam, na maioria das vezes, sob efeito de drogas, sempre muito
loucos. Principalmente nos casos de um-cinco-sete
e correlatos. Essa turma funciona mais no instinto, no desespero, no improviso.
Tudo isso contribui para um p�ssimo desempenho. Aquilo que mais tarde passou a se
chamar UNICRIM seria o departamento da
ACC destinado a profissionalizar os confrades no crime. V�o fazer, mas tendo plena
consci�ncia do tipo de delito que est�o praticando, das implica��es jur�dicas que
eles acarretam e dos meios de defesa,
tamb�m jur�dicos, para tentarem escapar ilesos das consequ�ncias de seus atos. Por
isso � important�ssimo, desde o come�o, minimizar os erros. Todos s�o treinados
para dar o melhor de si. Prevenir antes
de remediar. Coisa eminentemente t�cnica, coisa de profissional. Como sabemos, o
profissional n�o pode errar. Profissional que erra � mau profissional. Imagina um
cabeleireiro errar o corte de cabelo de
algu�m �s v�speras de se casar? Ou o costureiro errar o corte do vestido da noiva
�s v�speras do casamento? Imagina o dentista obturar um dente s�o e deixar o
cariado sem tratamento? E por a� vai. No meio
desse pessoal despreparado, muitas a��es n�o passam de simples tentativas. Os caras
s�o presos durante ou at� antes da a��o se iniciar. Claro que existem grupos mais
bem estruturados e tal, at� porque
alguns de seus integrantes pegaram algumas dicas na cadeia, trocaram id�ias com
bandidos veteranos, mais experientes, e corrigiram em parte as defici�ncias. Mas eu
n�o via nada que indicasse lideran�as
unificadoras e que criasse v�nculos para a forma��o de grupos maiores,
especializados, mais profissionais. Isso come�aria a acontecer cinco, dez anos mais
tarde, de um modo mais frequente. O que saltava
aos olhos era a horizontalidade do sistema e a frouxa hierarquia reinante entre
eles. Nesse sentido, o trabalho repressivo da pol�cia ficava facilitado.
Considerando o princ�pio biol�gico de, esmagada
a cabe�a obt�m-se a morte do corpo, tirar uma quadrilha de circula��o numa opera��o
de rotina significava extingui-la. Donde se deduz que bandido desorganizado
subentende pol�cia forte, sendo v�lida tamb�m
a rec�proca. Instintivamente, com o objetivo de obter mais efici�ncia, passei a
tra�ar as linhas mestras para inverter essa situa��o.
JL:E aqui, sim, chegamos finalmente ao princ�pio desencadeante da ACC.
JD: Rien de rien. Eu fazia aquilo para preencher o tempo, como j� disse,
brincadeira de ocioso. Mas uma coisa ia puxando a outra, foi tomando corpo, virou
projeto. Quando me dei conta, havia tra�ado um
plano para a cria��o de uma organiza��o criminosa em termos ideais, com estatuto e
tudo. Mas a id�ia desse tempo n�o tinha nada a ver com a ACC, era apenas uma id�ia
maluca. N�o posso negar, no entanto,
que esse exerc�cio, pode-se dizer assim, serviu de alicerce para a id�ia de cria��o
da ACC, que veio surgir somente muitos anos mais tarde, num outro contexto.
JL:Uma id�ia que veio sementar uma lavoura que redundaria na colheita do fruto
chamado ACC. Podemos dizer assim?
JD: Visto por esse �ngulo, sim. Nessa �poca, por�m, achava que tudo n�o passava de
utopia, de esfor�o in�til, sem aplicabilidade pr�tica. Tanto que n�o cogitei em
momento algum de ter qualquer participa��o.
Jamais pensei em quebrar o meu isolamento, partir para a a��o conjunta. Mas,
conforme o projeto crescia em tamanho e conte�do, pensei em fazer uma experi�ncia,
introduzindo-o num pres�dio de porte, como
a Casa de Deten��o de S�o Paulo, por exemplo, para ver que bicho pudesse dar. Caras
l� de dentro, cancheiros,
da minha parte, apenas a inten��o de idealizar os fundamentos de uma grande
organiza��o criminosa com vistas a abalar as estruturas do poder reinante no
Brasil, nada mais que isso. Eu seria apenas o
pai da id�ia, tipo Arist�teles � considerado o pai l�gica, coisa do g�nero.
JL:Um projeto t�o modesto que deu no que deu.(risos)
JD: � que, na �poca, continuo insistindo, n�o tinha essa configura��o. Da minha
parte, o m�ximo a que eu me predispunha era dar um assessoramento � dist�ncia, sei
l�. Qui�� compartilhar parte das experi�ncias
do MONSTRO. Bem assim.
JL:E o qu� o fez mudar de id�ia?
JD: Um belo dia enchi o saco e larguei tudo de m�o. Conclu� que o trabalho era
pretensioso e que n�o daria frutos, achei tudo muito rid�culo. Joguei toda a
papelada dentro de uma caixa para ir pro lixo.
Como eu nunca retirava o lixo, foi ficando. Muito tempo depois, procurando por
outra coisa, dei com o projeto maluco. Reli-o e vi algum fundamento nele. Ou seja,
vi-o com outros olhos, os olhos do pr�-Chef�o.
Somente a partir da� passei a trat�-lo com seriedade. Nessa altura, eu j� estava
mudado e tinha uma compreens�o mais profunda da panela de merda.
JL:Por exemplo?
JD: Entendia melhor como as coisas funcionavam. O que levava os caras a delinquir?
N�o era s� a pobreza, tinha um componente que pesava mais que tudo, que levava �
radicaliza��o. Tem cara que n�o admite
parar, como no meu caso. � o tipo que poderia ser chamado de nato ou assumido. O
cara � do crime, j� nasceu nele, ou entrou, e n�o quer sair, ou seja, n�o tem
recupera��o para ele. Ou pelo menos enquanto
as regras continuarem sendo as mesmas. O malandro � o nato, � o que participa do
mundo do crime e que cumpre � risca as leis da massa do crime, � a sua figura
principal, re�ne as qualidades ideais e positivas
entre a bandidagem e mesmo na carceragem. Foi quando parti pra pr�xis, para me
achar. Conforme fui me introduzindo no meio da bandidagem, fui me identificando e
conhecendo aqueles que seriam os meus futuros
confrades e sendo reconhecido por eles. Estava criado assim o embri�o da ACC.
JL:E quais seriam as regras que precisariam ser mudadas para permitir o retorno
desse grupo especial ao seio da sociedade? Antes, por�m, gostaria de saber qual �
esse componente t�o importante que leva
as pessoas ao crime?
JD: N�o tenha d�vida, cara, o orgulho de um homem, nada mais que isso ou muito mais
que isso. O orgulho � que faz um homem ser digno de vestir as cal�as que veste. � a
sua maior cidadania. Quem tem orgulho
n�o se deixa pisar, nunca. Ningu�m humilha um confrade, pois o seu orgulho o
protege. Quanto a ser resgatado ao seio da sociedade, como voc� diz, nenhum
confrade pretende isso mais, seria um retrocesso,
at� porque j� est� bem plantado nessa sociedade, j� conseguiu o seu lugar ao sol,
com muita liberdade e orgulho, disso n�o tenha d�vida.
JL:A ACC pretende manter tudo do jeito que est�? Nada deve ser mudado?
JD: S� admitimos a preval�ncia do direito natural sobre o positivo. No estado
atual, as regras s�o quebradas a todo momento. Ora, regras quebradas abrem
precedentes, logo, vale tudo. OUSEJE, sempre.
JL:N�o lhe parece simplista considerar o conjunto das coisas apenas sob esse ponto
de vista?
JD: Enquanto prevalecer o direito da for�a, todos ficam � merc� do mais forte. Esse
tro�o do Rousseau de que a for�a n�o gera direito, � totalmente falso. O direito de
uns � garantido pela submiss�o de
outros. Quando todos exigem seus direitos ao mesmo tempo � a guerra. E, n�s todos,
meu garotinho, estamos em guerra, n�o se deu conta disso ainda?. S� que a ACC sabe
defender bem as suas trincheiras,
com muita garra. �, Jardel, � assim mesmo. Os per�odos de paz s� se d�o quando uma
das partes abriu m�o dos seus direitos ou � mais fraca. Mas a ACC jamais vai abrir
m�o dos seus, isso eu garanto. N�o
tinha se apercebido dessas coisas, Jardel?
JL:Bom, n�o penso assim. Acredito no consenso, no di�logo, na negocia��o. Em suma,
na democracia.
JD: Todos os que est�o do outro lado pensam assim. Somos considerados os errados
por isso. No entanto, a ACC, eu e meus irm�os confrades, pensamos exatamente o
contr�rio. Somente o oprimido reconhece a
sua dor, lambe as suas feridas. Quem n�o sente n�o geme. Somente quem geme � quem
sente. Pergunte a um pol�tico se j� passou fome, se j� ganhou sal�rio-m�nimo, se j�
viveu em favela ou corti�o, se j� perdeu
filho por desidrata��o, o cacete. A maioria dos pol�ticos � das classes abastadas,
no m�nimo da classe m�dia. Poucos v�m realmente de baixo, como o teu Lula, at�
porque a ascens�o pol�tica exige muito
dinheiro. Uma campanha, mesmo de vereador, exige um bocado de dinheiro. Donde pobre
vai ter dinheiro para gastar em campanha, se n�o tem nem pra atender �s
necessidades b�sicas? De fato as coisas parecem
simplistas, mas n�o fomos n�s que as criamos. Somente for�a se opondo a for�a, em
n�vel de igualdade, � que pode levar ao consenso, di�logo, negocia��o, democracia,
essas baboseiras todas. Quando uma das
for�as prevalece n�o tem nada disso. De promessas e discursos o povo est� bem
servido, s� que na pr�tica, s� toma no cu. � tudo conversa mole. N�s, confrades, j�
fomos povo e fracos, agora somos for�a,
uni�o, ningu�m nos barra a entrada.

A PR�XIS

�Os homens fazem a sua pr�pria hist�ria, n�o nas condi��es criadas
por eles, mas nas condi��es dadas.�

O 18 Brum�rio de Lu�s Napole�o Karl Marx


Cal�a surrada, camisa desbotada, sapatos cambaios, cabeludo, barbudo, bodum pra
ningu�m botar defeito. Caminhei na dire��o do Pres�dio do Ah�. Diante do port�o,
dei meia-volta e comecei a me afastar como
se estivesse deixando a pris�o ap�s cumprir longa pena. Ia enfrentar, a partir de
agora, a vida da estaca zero, iniciando uma pr�xis de sobreviv�ncia a qualquer
custo. Uma simula��o onde o palco seria
a realidade e o papel interpretado n�o teria texto, uma simula��o que eu pretendia
levar a s�rio, at� as �ltimas consequ�ncias, o que significava dizer que estaria
por conta e risco da minha pr�pria improvisa��o.
Para dar maior veracidade ao meu personagem, esvaziei a cabe�a de qualquer
pensamento, deixando-o assumir meu corpo, impor sua vontade. A primeira constata��o
tinha car�ter de urg�ncia, estava duro, o
que fazer para levantar grana e resolver os problemas b�sicos de comer, beber,
morar?
Parti ent�o em busca da a��o salvadora. Seguindo o instinto, tomei o rumo do centro
da cidade, e marchei uma boa hora para chegar ao mict�rio da Pra�a Os�rio. Eu tinha
um dote avantajado que, mesmo molenga,
chamava a aten��o, s� servia pra mijar, � bem verdade, mas, mesmo assim, ia faz�-lo
render um bom dinheiro. N�o trazia afixado nele nenhum letreiro que indicasse sua
inutilidade para alertar os incautos,
logo, por�m, aquilo, que num primeiro momento me pareceu uma id�ia de excelentes e
compensadores resultados a curto prazo, na pr�tica transformou-se em um trabalho
lento que exigia muita paci�ncia e tenacidade.
Voc� precisa ficar do lado de fora, observando os tipos que entram. Quando pinta um
cara com caracter�sticas delicadas, voc� o segue, encosta do lado dele, tira para
fora e simula a mijada, mas s� isso,
na verdade, n�o basta, voc� precisa adquirir aquele n�vel de provoca��o
exibicionista, ficar balan�ando, descobrindo e cobrindo a glande com o prep�cio,
enquanto se deixa examinar a vontade. Quando a outra
parte come�a a babar, voc� puxa papo ou guarda e sai fora, se a fissura for grande,
ela vai segui-lo como um c�o sarnento, o que n�o significa que haver� qualquer
entendimento.
No in�cio eu causava muita sensa��o, muito olho arregalado, muita cantada cheia de
promessas vazias, alarmes falsos sem nenhum resultado pecuni�rio, nenhum arrast�o
efetivo. Tinha a sensa��o de ter ca�do
do cavalo, pois a prostitui��o exige uma certa desinibi��o e agressividade de
vendedor para colocar seu produto � venda, coisa que eu ainda n�o tinha adquirido,
ou talvez fosse a minha apar�ncia descuidada
a causa do fracasso, sei l�. Al�m do mais, voc� descobre que a concorr�ncia �
grande, que o mercado est� saturado, uma infinidade de caras querendo tirar
proveito da pica.
� tarde, j� meio desgastado e com fome, mudei para a rodoferrovi�ria, sentei na
frente da entrada do mict�rio, ali o movimento era maior e voc� n�o ficava muito
visado. L� pelas tantas, apareceu um cara
esbelto, bem escanhoado, carregando uma valise a tiracolo. Tem veado que �
discreto, parece homem, mas deixa escapar uma pontinha de maneirismo, aquela
desmunhecada sutil que revela a sua prefer�ncia,
� preciso estar atento a essas particularidades para n�o errar o bote. Ao transpor
a porta, o tipo torceu o pesco�o, deu aquele olhar morti�o para o meu lado seguido
duma rabanada e projetou-se para a
frente. �Quem desdenha quer comprar�, pensei. Levantei e fui atr�s. Botei pra fora
e senti sua rea��o imediata, desloquei-me para o seu lado sacudindo o bruto.
Tem que segurar o bicho firme sen�o ele enlouquece.
� rebelde? perguntou uma vozinha delicada acompanhada de um sorriso de bons
dentes.
Iiichhh, t� sempre querendo se meter onde n�o � chamado. eu falava em tom baixo,
recheado de mal�cia.
Ent�o � dos bons.
� decidido.
Sa�mos juntos, e eu fui direto ao assunto.
T� a fim dum mich�?
Oi? ele disse, como se n�o tivesse entendido minha sugest�o. Eu ent�o repeti a
pergunta.
Depende do que vai custar, tou meio desprovido.
� bbg, baratinho e bem gostoso eu disse, e ele riu.
Tem um local aqui perto continuei.
Tudo bem, garanh�o. S� tem o seguinte, disponho apenas de uma hora, n�o posso
perder esse �nibus, pelo amor de Deus.
Tempo suficiente pra voc� viajar feliz.
Ele sorriu, revirando os olhos nas �rbitas como se estivesse experimentando
del�cias.
Pra onde � que a boneca vai?
Sampa. Na semana que vem estou de volta, se for bom como voc� apregoa, a gente
bisa, t� ok?
Na sa�da da esta��o, tomamos a direita. Nas imedia��es, n�o muito longe, tem alguns
pontos onde � poss�vel trucidar algu�m com tranquilidade, quanto mais enrabar. Nos
encaminhamos para tr�s do muro que
cercava o terreno baldio, botei pra fora.
Uma chupadinha antes pediu ele, a fissura fazia sua m�o tremer.
Largou a valise, mas, antes que me tocasse, apliquei-lhe um uppercut potente, bem
na ponta do queixo. Gemeu e caiu durinho. Abri a valise, s� bugiganga, localizei a
carteira no bolso traseiro da cal�a,
peguei s� dinheiro, v�rias notas gra�das, arranquei o rel�gio do seu pulso e a
corrente de ouro que lhe contornava o pesco�o. Retornei � rua caminhando sem pressa
e, conforme ia me afastando, aumentava
o ritmo das passadas.
Corri para a parada e embarquei no biarticulado que chegava, acomodei-me num banco
e contei o dinheiro, duzentos e setenta e seis reais. Desci no terminal Cap�o da
Imbuia, andei um pouco pelas redondezas,
entrei num boteco, pedi um xis e uma cerveja. Relaxado e sem deixar transparecer
emo��o na fisionomia, eu me regozijava interiormente, me sentia como o garoto que
faz a sua primeira sacanagem, perdendo
a virgindade. Pude avaliar tamb�m que, com o dinheiro dos outros, o lanche fica
mais gostoso. O atendente que me servia tinha cara de bund�o, fui em cima.
N�o t� a fim de comprar uns bagulhos?
O ot�rio examinou o rel�gio, a corrente com a medalha de Nossa Senhora da Luz.
Vai ficar um tes�o no pescocinho da namorada, me d� trinta pilas e pode ficar com
tudo.
Retrucou que estava sem grana, que j� tinha rel�gio.
Me d� vinte e estamos conversados.
Revirou os objetos na m�o, o rel�gio era comum, mas a corrente e a medalha valiam
cinco vezes mais. Foi consultar o patr�o. O portuga bigodudo examinou as pe�as por
todos os �ngulos, me olhou atravessado,
cochichou no ouvido do escravo, abriu a caixa registradora e passou-lhe o dinheiro.
O debi, de posse da mixaria, ficou importante, quis negociar, seguir o exemplo do
verdugo explorador que era o seu patr�o.
Por quinze t� fechado.
Deixa pra l�, ent�o.
Tudo bem, segura a�.
Peguei a grana e fui saindo.
Temos que acertar o rango disse ele nas minhas costas.
P�, meu chapa, era vinte incluindo o rango, sen�o nada feito olhei-o duro.
T� legal, t� legal.
Retornei para o terminal, embarquei num �nibus para o centro. Numa ferragem,
comprei uma faca, uns vinte cent�metros de l�mina estreita e rija, enfiei na cinta,
por atr�s, sob a camisa, e fui procurar
uma pens�o. Achei uma espelunca a oitenta paus por m�s, tive de pagar adiantado.
Trago minhas coisas amanh�.
Entrei pro cub�culo e deitei no colch�o de palha, de forro rasgado e coberto de
manchas, exalando mau cheiro, a cama rangeu sob o meu peso. Dormi o sono dos
justos.

Dia seguinte, fui cedo � luta. Ao passar na frente da obra, vislumbrei maravilha de
cano reluzente sobressaindo do coldre do vigia, mulat�o de cara invocada. Obra
grande, dois pr�dios de 20 andares, empreiteira
s�lida financiada por banco mais s�lido ainda, superfaturada, todo mundo metendo a
m�o adoidado, se fosse feita sem trampa o pre�o cairia para um ter�o, n�o desejam
nem ouvir falar em auditoria, o mercado
passivo aceita o pre�o exorbitante de venda sem chiar. Moradia sempre foi artigo de
luxo no Brasil, os oper�rios est�o bem satisfeitos com a mixaria do sal�rio, foram
bem domesticados, tudo na mais santa
paz.
Sentei no meio-fio e fiquei observando, o berro estalando puxava o meu olho como um
im�. � tardinha trocou a guarda, e os loques foram se retirando. O vigia que rendeu
o pardo era um polaco vermelho, magro,
de olho azul e cara de fuinha, mais invocado que o seu antecessor. O peso do berro
que carregava fazia-o vergar para o lado, um tresoit�o cano longo, cromado, maneiro
pacas. Veio na minha dire��o batendo
o cassetete numa das m�os, eu estava sentado no meio-fio do outro lado, com os
cotovelos apoiados nos joelhos, m�os tran�adas atr�s da cabe�a abaixada, cuspindo
no ch�o. Mesmo nessa posi��o, eu n�o perdia
um movimento do debi. Fiquei tal qual, cuspindo, cuspindo, e o vulto cresceu na
minha frente.
E a�, vov�? Perdeu alguma coisa por estas bandas? disse isso e continuou batendo
o cassetete na m�o.
Fui erguendo o rosto devagar e o encarei. Com a barba por fazer, cheia de fios
embranquecidos, devia estar com a apar�ncia do pai do Dr�cula.
E a�, meu patr�ozinho? Eu tava vendo se n�o conseguia uma vaga pra trabalhar, mas
vi tanta gente que desanimei. O meu olhar cheio de humildade e o tom esgani�ado da
minha voz me fazia parecer sa�do
de um asilo de indigentes, uma cena duca, s� n�o ca� na gaitada porque ia estragar
tudo.
O vov� ainda pensa em trabalhar? Vai ser dif�cil conseguir vaga por estas bandas,
o capataz � fogo, n�o viu como todo mundo saiu desanimado? Ele tira o couro do
pessoal. Se o cara n�o � colhudo n�o
dura muito tempo por aqui, n�o. O vov� n�o ia aguentar nem meia hora.
O borra-botas falava de um jeito desrespeitoso, cheio da raz�o, barriga cheia.
� memo?
Podes crer, vov�, podes crer. � melhor ciscar noutra freguesia.
O bunda-suja era mais grosso que dedo destroncado, n�o estava nem a� para o velhote
que podia ser seu av�.
Por acauso o patr�ozinho n�o tem um p�o velho pra me dar? Faz dois dia que n�o
aponho comida de sal na goela.
N�o tem nada n�o, vov�. L� pelo centro tem um albergue que t� dando sop�o pros
carentes.
Suspendi a boca da cal�a, mostrando o p� mec�nico. Enquanto o seu c�rebro
enferrujado decodificava a mensagem de que caminhar at� l� ia ser dif�cil, o calo
do seu minguinho do p� come�ou a amolecer.
Vou dar uma olhada l� dentro, talvez ache alguma coisa falou por fim. Espera
aqui.
O cara de fuinha deu as costas, e eu o segui.
Espera aqui tornou a dizer, segurando o passo ao perceber o meu movimento.
Eu me fiz de desentendido e continuei andando atr�s dele. No port�o de madeira,
chegou a pensar em me barrar, mas o calo deu outra fisgada, seguiu em frente,
encostei o port�o ao passar, eu cuidava para
todos os lados e n�o via ningu�m. J� escurecia e dentro do alojamento n�o se
enxergava nada, o fuinha acendeu a luz, e pelo v�o da porta vi v�rios beliches,
alguns oper�rios deviam pernoitar ali. O cara
de bunda chupada abriu um arm�rio e tirou p�o, bolacha e salame l� de dentro, botou
em cima da mesa junto da parede.
Deu sorte, vov�, o pessoal deixou uns restos. Entra a�. Ficou olhando eu me
servir, sorri.
�, dei sorte memo, patr�ozinho, os home n�o vai se zangar quando voltar?
Pode comer descansado, vov�, eles s� v�o voltar na segunda, n�o tem problema, n�o.
Se o vov� n�o comer, as ratazanas detonam tudo.
Eu tinha dado a chance �quele imbecil de usar um resqu�cio da sua humanidade, e ele
n�o queria perd�-la. Cortei o peda�o de p�o ao meio e coloquei uma fatia de salame
dentro, o cara-chupada me olhava embevecido,
j� com todos os calos amolecidos, talvez at� me desse, de sobremesa, um trocado
para a condu��o.
T� bom, vov�?
Muito bom respondi com a boca cheia. Outra mordida, mais outra, mastigava com
gana.
Fica de noite aqui?
Hoje e amanh�, fico. Antes o capataz deixava a turma dormir a� no final de semana
apontou para os beliches , mas os caras aprontaram tanto que ele resolveu suspender
a mordomia, agora s� durante a
semana. Essa turma tem que se ralar mesmo, n�o d� pra dar colher de ch� pra eles,
s�o que nem macaco, se a gente d� a m�o j� querem o bra�o, ficaram a ver navios,
bem feito.
Se aquilo era jeito de falar dos companheiros, n�o tinha a m�nima consci�ncia de
classe. Eu balan�ava a cabe�a, como se estivesse concordando com tudo o que ele
dizia. Sim, ele tinha toda raz�o do mundo,
e a minha admira��o embasbacada o envaidecia.
Fica sozinho?
S� eu e Deus.
Terminei de comer e levantei, o bunda-suja havia apoiado o traseiro na beirada da
mesa, cruzado os bra�os, enquanto me observava. Talvez, ao me ver naquela pen�ria,
devorando com voracidade as migalhas
que me jogara, se lembrasse de sua inf�ncia, dos maus tempos. Tirei o len�o do
bolso e limpei a boca.
Matou quem tava te matando, vov�? falou bem alto, sorrindo, mostrando o dente de
ouro.
Se matei respondi , e de morte matada.
Tem �gua ali, vov�, pode se servir � vontade disse, apontando uma geladeira
caindo aos peda�os. Se o capataz n�o fosse t�o chato, eu at� deixava o vov� dormir
a�, s� que, se ele descobre, arrebenta
no meu, a� n�o d�, n�?
Eu tinha enternecido aquele casca-grossa, tinha lhe dado a chance de ser solid�rio
e ele respondeu, diga-se de passagem, com um sinal muito fraco, mas agora j� estava
ficando meloso demais para o meu gosto,
estava exagerando, se continuasse nesse ritmo, ia acabar se derretendo que nem
chocolate em dia de calor. Encostei nele.
Gostaria de lhe agradecer, patr�ozinho.
Ora, vov�, n�o esquenta.
Eu deixara a minha m�o escorregar para tr�s, quando a trouxe de volta, a faca
estava nela. Instalei-a debaixo do seu queixo, como era nova e o fio apurado,
embora s� tivesse feito uma pequena press�o,
a ponta cravou-se na pele e um filete da meleca come�ou a escorrer-lhe pelo
pesco�o, atingindo a gola da camisa.
Qual �, vov�? tentou prosseguir, mas o pavor lhe tolheu as palavras e o sangue
fugiu-lhe do rosto. Esbugalhou os olhos, parecendo uma r�s no matadouro, arfando de
desespero.
Mudei a faca para a m�o esquerda e levei a outra at� o seu coldre, soltei o fecho
de press�o e saquei o tresoit�o flamante de l�.
Fique calmo eu disse, recuando e apontando-lhe a arma.
P�, meu velho, qual �? foi o m�ximo que conseguiu pronunciar, com a voz
embargada.
Tem corda a�? perguntei.
Fez um sinal com a cabe�a indicando um lugar qualquer nos fundos do alojamento,
mandei-o deitar-se de bru�os no ch�o, e ele obedeceu prontamente. Eu n�o podia
atirar, pois haviam resid�ncias na volta,
ia fazer chamariz. Inclinei-me sobre ele e apoiei um dos joelhos no centro das suas
costas, ele come�ou a se debater, tentando se virar, botei o revolver na cinta e
peguei a faca com a m�o boa, larguei
o peso do corpo para prens�-lo no solo e puxei a sua cabe�a para tr�s, pelos
cabelos, com a m�o boba. Meti a faca por debaixo do seu pesco�o e iniciei a degola.
N�o sei como ele conseguiu for�as para firmar-se
nos bra�os e dar impulso com as pernas, eu perdi o equil�brio e rolei para o lado,
mas n�o o soltei. Ele se debatia violentamente enquanto eu fazia a faca trabalhar,
com o seu corpo ainda por cima do meu.
Precisei usar toda a minha for�a para cont�-lo. Nisso, senti alguma coisa soltar-
se, era a cabe�a dele separando-se do corpo. Ainda sustendo-a pelos cabelos,
joguei-a para longe, a sangueira era intensa.
Sa� debaixo dele e pus-me de p�, estava ensopado de meleca. Vasculhei numas
prateleiras, tentando encontrar alguma pe�a de roupa. Achei dentro de um saco de
polipropileno a roupa suja deixada pelos oper�rios,
separei uma cal�a e uma camisa e fiz a troca rapidamente, ap�s lavar-me na pia ao
lado do fog�o. Penteei-me. As roupas tinham ficado um pouco justas. Olhei o corpo
decapitado e a enorme mancha de sangue
em volta, contornei-o e recolhi as balas do cintur�o. A cabe�a distava uns tr�s
metros de onde eu me achava, os bugalhos vidrados. Examinei-me, ajeitei as armas na
cintura e sa�, fechando a porta atr�s
de mim.
A catinga da camisa enchia as minhas narinas. L� fora, tudo normal, afastei-me dali
rapidamente, tomei um coletivo no outro lado do quarteir�o e fui para o centro.
Troquei de coletivo, desci no Juvev�
e me dirigi a um terreno baldio que eu memorizara para quando precisasse. Estava
tomado pelo matagal e a escurid�o era completa. Fui tateando at� uma �rvore cujo
vulto se destacava e cavouquei em volta
de suas ra�zes, fiquei com as m�os escalavradas, mas n�o adiantou nada todo o meu
esfor�o, faltava o principal. Retornei para a rua, procurei uma lixeira, de onde
extra� um saco pl�stico imundo, limpei-o
como pude e voltei ao matagal, embrulhei o rev�lver e as balas, coloquei o volume
no fundo do buraco e o cobri de terra, iria servir para qualquer eventualidade
futura.

Manh� seguinte, de tanto trotear debaixo do sol, assaduras e bolhas formaram-se na


perna, causadas pelas tiras de couro que fixavam o p� mec�nico. Na �gua Verde,
refugiei-me no terreno baldio para tomar
f�lego, um cinamomo copado espalhava sombra generosa. Avancei pelo in�o alto e
acomodei-me na pequena clareira com montes de capim seco sob a parte sombreada,
algu�m j� andara se refugiando por ali, saquei
o p� posti�o para aliviar a dor e examinei o estrago, precisava duma pomada
cicatrizante para tratar as escaras, se piorassem, iria ter dificuldades para
caminhar. Despi a camisa para desfrutar do o�sis
que convidava a puxar uma palha. Nisso, o monte de capim seco se movimentou do meu
lado, foi se abrindo vagarosamente e descobriu-se uma enorme cabe�a, o volume da
cabeleira desgrenhada aumentada por longos
fiapos de gram�neas soltando-se do topo. Meu impulso foi sacar a faca e apontar o
gog� do sujeito.
Calma, maninho sibilou uma voz aguda, contida, mas sem o menor resqu�cio de
medo , tou chegando em miss�o de paz.
Sentando-se ao meu lado, duas bolitas escuras brilhantes, cheias de curiosidade e
zombaria, me inspecionaram com muita aten��o.
Se encaga�ou, �ndio v�io? O camarada explodiu numa gargalhada gorgolejante, fora
de prop�sito.
Sou o Darcisinho das Candongas, o Darcisinho Maluco, cheguei premero no peda�o,
mas tem lugar pra mais um, fique a gosto, amig�o.
Examinei bem o tipo e vi que n�o estava a fim de enrosco, eu devia t�-lo
despertado, por pouco n�o sentara em cima dele, tive o entendimento imediato de que
o monte de pasto seco servia para prote��o dos
mosquitos da noite e das moscas do dia, matada a charada, repus a faca na cintura.

Desculpa o mau jeito eu disse.


N�o foi nada, n�o, amig�o, t� passando mal das perna, companhero? Quando vi tu te
desmontando, pensei que tava vendo assombra��o. Bahh, �ndio v�io, quem se encaga�ou
fui eu, tu n�o tem p� daquele lado,
meu? D�i muito, amig�o?
Descobrira o homem das mil perguntas.
De tanto caminhar, machucou, come�ou a doer, agora t� legal. Tirando fora os
arreios, at� que alivia.
Que nem matungo velho, �, cada um com as suas mazelas, eu c� n�o tenho esse olho,
�. Sacou o olho da face esquerda para fora da �rbita, fazendo-o rolar na m�o
espalmada. � de vidro, j� tou acostumado,
n�o me faz falta.
Botou o olho no lugar e come�ou a cavoucar o ch�o ao seu lado, possu�a m�o mi�da,
infantil, trouxe com ela um garraf�o pl�stico e desatarrachou a tampa. Senti o odor
ativo de pinga.
Qu� um trago, amig�o?
Peguei o recipiente e entornei na goela, engasguei, tossi, ele riu.
Essa � daquela que matou o guarda, meu eu disse.
Fui noutro gole e a pinga desceu fervendo, era uma cacha�a de p�ssima qualidade, a
pior que eu j� bebera na vida, pura soda c�ustica.
Legal, desceu redondinha eu disse, devolvendo o garraf�o para ele, que se p�s de
p�.
Inclinando-se um pouco para a frente, levou a boca ao gargalho, depois impulsionou
a cabe�a para tr�s, empinando o frasco, o pomo-de-ad�o subindo e descendo, enquanto
o l�quido ia baixando. Era um tampinha
de metro e meio, com um assopr�o eu botava ele por terra. Quando tirou o garraf�o
do bico, o l�quido descera pela metade, soltou um arroto sonoro.
Eta, vid�o bom.
Deu um passo para o lado e chutou outro monte de capim seco, algu�m berrou l�
embaixo e um tronco saltou, como impelido por uma mola. Vi o semblante amarrotado
de uma mulher muito feia sobressaindo da
palha, enredada na cabeleira espessa.
Acorda pra cuspir, sua vadia.
Qual �, Darcisinho? T� me estranhando? A mulher, com uma falha frontal nos
dentes, tinha um ar abobalhado. Deixou-se cair para tr�s novamente. Eu quero
dormir, porra.
Sem essa gritou ele, autorit�rio, dando outro chute na protuber�ncia do solo,
outro grito , temo visita, sua condenada, levanta pra providenci� o rango.
A mulher obedeceu, mas permaneceu resmungando, olhou pra mim, desconfiada.
Esse a� � o mano v�io. Cumprimenta o home, muler.
Buenas resmungou ela sem me olhar.
Buenas respondi.
O mano v�io por acauso tem uns pilas a� pra gente compr� um tira-gosto? pediu
ele, estendendo para mim a m�ozinha crestada de unhas compridas e pretas, uma m�o
que me impressionava por ser t�o min�scula.
Cavouquei o bolso, tirei uma ma�aroca de notas, selecionei uma de dez e passei pra
ele.
Vixe, tudo isso? disse ele, e ent�o virou-se para a mulher: Toma, muler,
capricha no engasga-gato.
Ela apanhou a nota e se afastou mancando, alta e magrela, como uma figura de El
Greco, sacudindo a poeira e a palha aderida � roupa enxovalhada, por fim, se
aprumou, acertando o passo. Enquanto ela se
distanciava, ele comentou:
Baita muler, n�o me larga, quanto mais pau eu dou nela mais gama. Muler tem que
levar pau mesmo. riu do trocadilho. Notou aquela falha de dente na boca dela? Foi
um soco meu. Agora, sabe o
que � que eu fa�o? Meto a pi�a bem no meio e ela chupa sem machucar.
Mal balancei a cabe�a. O cagalh�o j� estava me irritando com aquela fanfarrice.
O amigo � b�o de arma branca, hein?
Encarei-o com um olhar duro, sem responder, o que vi e n�o vi aconteceu num
relance. Ele sacou a navalha de dentro da camisa, abriu-a, e isso eu vi, em
seguida, acompanhado dum movimento rapid�ssimo, senti
alguma coisa raspando a minha garganta, j� isso eu n�o vi, levei a m�o
automaticamente para sentir o estrago, mas estava tudo em ordem, exibia a navalha
imobilizada e reluzente bem diante dos meus olhos,
a m�o esperando nova ordem do c�rebro para deslocar-se. Uma coisa ficou evidente,
se tivesse querido, podia ter me degolado, eu nem ia notar, como na anedota, eu ia
dizer �Buuhhh, errou�, e ele, retrucar
�Ent�o mexe a cabe�a, seu bostica�, eu ia mexer e ela ia desabar. Fiquei
impressionado com a sua precis�o executiva de rob�tica, mudei minha opini�o sobre
ele, imediatamente, eu estava lidando com um malandro
consumado, curtido. Tinha a metade da minha idade, mas podia me ensinar alguma
coisa.
Desculpa o mau jeito, amig�o. Eu n�o ia lhe fazer nenhum mal, longe disso, s� quis
me exibir, � que sou meio
metido, memo, gosto de aparecer. Olha s�, n�o tinha perigo. Fez a demonstra��o
conduzindo a m�o devagar na minha dire��o e, no momento em que a l�mina ia me
atingir, ele torceu o bra�o e me ro�ou a
pele do pesco�o com a unha do dedo m�nimo.
Desarmou o perigoso instrumento, manipulando-o destramente e fazendo-o sumir na
palma miniatural, guardou-o, desta vez no bolso traseiro da cal�a.
Gostei de ver a rea��o do amigo, � cuiud�o memo, nem piscou. S� fa�o utilidade
desse apetrecho em �ltimo causo, quando topo alguma parada dura, algum desafeto.
Nessas a�, como s� tenho amigo, ele enferruja
no bolso. Sempre digo, � prefer�vel ter cem amigo que um s� inimigo, �s veiz a
pessoa � uma s�, mas causa mais dano que um ex�rcito inteiro. Eu sou de paz, o
amigo j� viu, chegou aqui e foi bem recebido,
gosto � de ter amigos, e duma pinga, e de muler, e de outras cositas m�s. Agora que
essa mocoronga pegou no meu p�, sou meio homem.
E continuou arengando sem parar, o cara era papo-furado para mais de metro, l�ngua
de trapos desgranido, deixava a gente com os ouvidos zunindo de tanto tagarelar,
mas soube me fazer admir�-lo pela macheza,
isso confirma que, entre homens, n�o tem tamanho, pesa mais a esperteza, a per�cia
de armas. Eu balan�ava a cabe�a, concordando, considerando que, nos poucos minutos
da nossa breve rela��o, Darcisinho
crescera v�rios cent�metros no meu conceito. Tornei a passar a m�o no pesco�o e vi
que estava inteiro.
J� o amig�o n�o � de muito palavreado, n�o tou certo? ele continuou. J� conhe�o
o seu jeito, � como o mar, calmo por cima e agitado por baixo, esses com o seu
jeit�o � que s�o perigoso, eu, n�o,
gosto � duma boa prosa, de fazer amizade, companherismo. O amig�o � daqui memo? Eu
sou ga�cho, meio bugre, l� das banda de Carazinho, conhece aqueles rinc�o?
Fiz que n�o com a cabe�a, comecei a encaixar o p� na perna.
O qu�? O amig�o j� quer partir? Vai me fazer essa desfeita? N�o vai rang� comigo?
Por acaso lhe desacatei? Se levou a mal a brincadeira, me adesculpe.
Claro que n�o, que esperan�a, vou ficar, sim, � que a dor j� se foi, agora d� pra
p�r o p� de novo.
Ah, bom, pensei que o amigo ia me deix� triste, desprez� o meu convite.
Longe disso. Passa o garraf�o aqui, seu falador do capeta.
Ele riu do meu modo de falar, me alcan�ou a vasilha e eu emborquei, iniciando uma
contagem, quando cheguei no dez, retirei do bico o garraf�o quase vazio.
Assim que gosto de ver.
Ele se apossou do garraf�o e me imitou, secando o l�quido que restava, depois
lan�ou o vaso para longe. Levantei e me afastei pra mijar, ele me seguiu. Enquanto
me imitava, espiou o meu pau, dissimuladamente.
O qu�? N�o � que o homem � aleijado memo, da perna e do pau. Se eu tenho uma pi�a
desse tamanho, boto um circo pra ganh� dinheiro, cobro um tanto s� pro p�blico olh�
e deix� o queixo cair. Com essa
porcaria que eu tenho aqui, n�o tiro nem pro fumo. Quantos cent�metro tem, mano
v�io?
N�o sei disse rindo , nunca medi. Balancei e guardei.
O amigo t� perdendo dinheiro. Vamo faz� uma sociedade: o amigo entra com o
desprop�sito e eu com o malho, isso a� duro deve dar uns trinta cent�metro, no
m�nimo, e n�o sei quanto de grossura, garanto
que fica maior que o meu antebra�o. Tamo feito, amig�o, vai chover dinheiro na
nossa horta.
Eu tinha arranjado um f�. A mulher retornou com duas sacolas pl�sticas recheadas de
rango mais outro garraf�o de pinga que recebera o conte�do de duas garrafas e
improvisou uma mesa no ch�o. Comemos com
gula carne, arroz, feij�o e salada enquanto bic�vamos a pinga. Em seguida o
garraf�o pl�stico baixou para a metade, a mulher bebia em p� de igualdade conosco,
Darcizinho n�o parava de trovar, me deixava
zonzo, parecia um zang�o zumbindo sem parar, zumbindo, zumbindo. Voltou ao assunto
do cacete.
Vem c�, muler, agora tu vai ver o que � um cacet�o. Puxou a mulher pela m�o e
plantou-a na minha frente. Mostra a�, amig�o.
P�, meu chapa, v� se te flagra eu disse aporrinhado.
N�o tem nenhuma, amig�o, t� tudo em casa, tu j� � da familha, mostra a�.
N�o tive outra sa�da que abrir a braguilha e mostrar.
J� vi maior disse a jabiraca sem a menor cerim�nia , e duro.
Tu � mais � besta? Maior? De quem? Do Dila? Nunca que o do Dila � maior que o do
amig�o.
O do Dila � bem maior, o maior pau que eu j� vi. Duro fica desse tamanho, �.
E desde quanto tu j� viu o pau do Dila duro, sua mocreia?
Vi ele comendo uma das puta dele. Desse tamanho, �. Foi afastando as m�os para
mostrar o tamanho, o cara bem devia ter um pau de cavalo.
Vai te catar, sua bebum, tu t�s mais j� � podre de b�ba. Sai pra l�. E deu um
empurr�o nela. A pica do amig�o d� de dez na do Dila.
Enquanto eles discutiam, recolhi o cacete como quem mete o rabo entre as pernas,
nem em sonhos Darcisinho podia imaginar que o objeto da sua louva��o estava mais
morto que m�mia do Egito, muito menos sairia
da minha boca coment�rio que pudesse decepcion�-lo. A bruaca, com longo suspiro
pregui�oso, se jogou a um canto, cobrindo-se de palha, as moscas faziam a farra com
os restos da comida, corria uma brisa
fresca que nos aliciava para uma soneca, Darcisinho tamb�m se deixou levar, eu fui
atr�s, a pinga nos dera uma moleza dos diabos.

Ao despertar, vi os dois cheirando cola de sapateiro. Ofereceram-me, hesitei uns


segundos, mas acabei encarando. Eu j� tinha experimentado lol�, maconha, coca�na,
mas parara nas primeiras provas, temia
entortar de vez usando drogas mais pesadas, e apenas isso n�o me deixou ir al�m.
Com o tempo, fiquei sabendo que Darcisinho usava de tudo o que pintasse, de coca�na
a anfetamina, passando por crack, maconha,
hero�na, haxixe, o escambau, variava conforme o seu estado financeiro, se bom,
refinava, se mau, ia de cola mesmo, de pinga brava. Toda a grana que faturava, os
traficantes, amigos dele, levavam, estava
sempre pendurado com algu�m, em consequ�ncia, enquanto estivesse drogado, n�o tinha
disposi��o para descolar grana, s� ia � luta quando estava durango, c�rculo
vicioso. Com o meu aparecimento, ele viu
uma maneira de adiar o basquete at� segunda ordem, todo dia me levava um troco.
Resolvi permanecer com eles alguns dias mais para ampliar o meu c�rculo de
relacionamentos e sacar alguns macetes da malandragem. Montamos um acampamento
provis�rio, pois ele, como eu, refugiara-se ali
para um breve descanso, mas que foi sendo protelado. Ali est�vamos expostos aos
olhares curiosos dos moradores dos pr�dios vizinhos, detr�s t�nhamos as �reas de
servi�o de um edif�cio de dez andares, o
grande cinamomo nos dava uma boa cobertura, mas, dependendo do �ngulo, fic�vamos
vis�veis, volta e meia eu flagrava algu�m de butuca em cima de n�s, na frente, uma
resid�ncia gradeada, habitada por um
casal de velhos, aos lados, muros. Pela manh�, os pardais faziam uma algazarra dos
diabos, um sabi� empolgado vinha trautear ali pr�ximo, a impress�o era a de estar
em um s�tio, pois tamb�m havia grilos,
cigarras. Os mosquitos nos deixavam ves�culas vermelhas na pele, as moscas eram uma
praga, alguns ratos e baratas entrevistos de relance.
Um dia insisti com Darcisinho para que me ensinasse a manejar a navalha, com a qual
era um artista, n�o se fez de rogado e ficou horas se exibindo, me treinando. O meu
progresso foi lento, embora pertinaz,
ele usava ambas as m�os, atirando a navalha aberta da direita para a esquerda e
vice-versa, seguindo-se golpes precisos, fatiando o ar. Com a per�cia de
prestidigitador, recolhia a navalha para o centro
da microm�o, dobrava-a, escondia a bendita atr�s das costas e reaparecia com ela
vazia, no segundo seguinte j� estava com a navalha aberta na palma apenas presa
pelo polegar, fazendo malabarismos, golpeando
em v�rias dire��es. Executava os movimentos ora parado, ora acompanhando-os com
coreografia de capoeirista, saltando, gingando, rolando no ch�o, dando cambalhotas,
apoiando o dorso da m�o que segurava
a arma no solo, enquanto aplicava a rasteira no oponente invis�vel, isso tudo com
agilidade felina, mantendo-se nesse ritmo por cerca de uma hora, esbanjando f�lego.

Revelou que aprendera a manejar l�mina aos 6 anos de idade, com o tio, afamado
malandro da velha-guarda, compositor de sambas, infelizmente j� falecido. For�oso
era dar desconto para suas hist�rias, noventa
e nove v�rgula noventa e nove por cento eram lorotas. Com toda a certeza podia-se
afirmar que, na maioria das vezes, apenas o p� do soneto tinha algum conte�do
verdadeiro. Um dia ele come�ou a me pesquisar.
Qual � a tua, Mano V�io? D� pra sacar que tu tem educa��o, n�o � vagabundo.
� muito vis�vel?
Tirei a tua ligeirinho. Esse cara n�o � do ramo, falei c� com os meus bot�es, mas
tamb�m n�o � nenhum porra-louca, ent�o tem que ter algum problema na vida dele.
Tira se fingindo de vadio pra caguetar,
n�o leva jeito. O amigo t� mais � descornado, n�o � memo? Quando vejo tu olhando
pra coisa nenhuma, d� pra ver que � tristeza da braba, que tem um sentimento te
comendo por dentro. J� tive fase dessas,
eu tamb�m estudei um pouco, apesar de ter me criado na merda, meus pai eram da
ro�a, n�o tinham nem onde cair morto, j� eu, tirei o prim�rio, barbado trabalhei
at� na prefeitura da minha cidade natal,
mas despois, bom, a� ca� no mundo, entortei de vez. deu um tapa nas minhas costas.
Mano V�io, tu � gente boa, tu nunca pegou cana, n�o �, merm�o?
Me vi obrigado a contar-lhe uma hist�ria triste, inventada na hora, como ele
esperava ouvir. Dentro da idealiza��o fantasiosa que fazia de mim, falei sobre
Lize, do acidente, da morte, s� que em circunst�ncias
diferentes, com nomes mudados, lamentei a falta que ela me fazia, sim, ele tinha
raz�o, fora muito esperto da parte dele, mostrava que sabia usar a psicologia, eu
andava desfocado, total, n�o estava nem
a�, ca�ra na vagabundagem. Depois que a gente se arreia fica dif�cil levantar,
perdera o emprego, et cetera. Enchi a lingui�a das calamidades, que estava numa
merda que dava gosto, que de vez em quando
tirava dinheiro de puto, mas que n�o aguentava mais essa de ficar comendo cu de
homem pra sobreviver, estava a fim de entrar em outros esquemas, de adiantar o meu
lado de outro jeito, menos sacrificante,
sabe como �? Tirar o pau da merda. Quando falei dos putos, seu rosto se iluminou, e
ele armou um sorrisinho malicioso, afinal eu dava a dica do que fazia com o
despropositado nas horas vagas.
Ta�, tu chegou como encomenda, tem um cara que eu vou te apresent�, voc�s s�o do
memo padr�o, aquele sabe tudo, d� trambique de tudo quanto � lado, � o terror dos
comerciante, j� quebrou muita firma
forte, incomoda os lojista mais que dez elefante, tem raiva de poli�a e mant�m eles
sempre longe, quil�metros de dist�ncia, gente fin�ssima, irm�o nosso. Dia desses
atr�s ele me bateu que tava percurando
um parceiro de f� prum golpe legal, jura que vai render uns bons pilas, voc�s dois
v�o adiantar um o lado do outro. Ele queria me botar na parada, mas eu tirei o
corpo fora, o meu ramo � puxar carro,
cada um na sua, n�o gosto de beliscar noutros esquemas que n�o seje o meu ch�o.
O desafino da cuca veio at� n�s, disse que a pinga tinha acabado, mas n�o recebeu
resposta.
O Mano V�io dirige?
Fiz que sim com a cabe�a. Ele nunca perguntara o meu nome, me adotou como Mano
V�io, nem eu o contradisse, e foi ficando. A minha apar�ncia j� n�o diferen�ava da
deles, a melena e a barba embranquecidas
n�o me deixavam com menos de 60, e eu n�o me desgostava que fosse assim. A urucaca
berrou desta vez mais alto que a pinga tinha findado, me preparei psicologicamente
para desembolsar mais uns pilas, pois
agora quem bancava as despesas era o paiz�o aqui, mas me enganei, Darcisinho, em
vez do pedido costumeiro de dinheiro, perguntou:
N�o t� a fim de dar uns transbordos por a�, Mano V�io?
Dei de ombros, mas no fundo estava louco para entrar em a��o.
Muler, te arruma a�, penteia essas crina, que vamo dar uns transbordos, o Mano
Ve�o � Fitipaldi.
J� est�vamos esfogueteados da pinga, t�nhamos mais era que botar pra quebrar.
Pegamos um �nibus, sentido centro, era cedo ainda, perto das 10 horas da noite,
acatei a sugest�o de Darcisinho e descemos
no Batel. Andamos por ruas transversais, ele ia descolar um carro pra n�s. N�o foi
preciso procurar muito.
Que acha daquele ali?
Um Monza branco, setenta e poucos, estava solito na travessa deserta.
Pode ser.
Darcisinho estava agitado.
S� que tem o seguinte. Eu abro, ligo e logo tu assume, n�o sou muito bom de bra�o,
o olho atrapalha.
Tudo bem.
Ficamos na esquina, eu e Fedora, e ele foi sozinho at� o carro. Fez servi�o r�pido.

T� na m�o disse ele, freando o carro na nossa frente, sorriso aberto.


Enquanto t�nhamos ficado � espera, controlando o movimento de gente, ele entrou,
desligou o alarme, fez pegar o carro e o trouxe at� n�s. Na minha contagem mental,
tudo n�o durou mais que dois minutos.
Darcisinho me surpreendia a cada momento. Ele passou para o banco do carona e eu
ocupei o seu lugar, Fedora entrou atr�s. Regulei o banco para as minhas pernas, os
espelhos e inspecionei o painel, o ponteiro
do combust�vel indicava pouco mais de um quarto de tanque.
Vamos l�, meu chapa, te manda disse Darcisinho, me dando um tapa no ombro , vai
marcar bobeira, Mano V�io?
Engatei a marcha e pisei fundo no acelerador, mantendo a embreagem comprimida, o
motor roncou como querendo levantar voo, ent�o soltei a embreagem de chofre, o
carro patinou sem se mover do lugar. Os pneus
cantaram e queimaram no paralelep�pedo, levantando uma nuvem de fuma�a e cheiro de
borracha queimada, depois o carro tomou velocidade e azulamos dali. Darcisinho
batia palmas aprovando a minha proeza.
Isso a�, Mano V�io, mete ficha nessa merda. O Mano V�io � bom de bra�o, memo.
Tomei o rumo do terreno onde deixara o rev�lver, no Juvev�. Em dez minutos chegamos
l�. Desci, Darcisinho me seguiu, custei para localizar o pacote no escuro,
Darcisinho quase consumiu a caixa de f�sforos.
Desembrulhei, botei o berro na cinta, as balas no bolso da camisa, Darcisinho
tamb�m se surpreendia comigo.
Agora tamos equipado disse ele , v�o se foder conosco.
Mas, para contrariar a nossa disposi��o, n�o houve jeito de fazer o motor do carro
funcionar na igni��o, Darcisinho e Fedora tiveram que empurrar um bom peda�o para
que eu pudesse faz�-lo pegar na m�quina,
botaram os bofes para fora. Parei na frente de um boteco, Fedora desceu e trouxe
duas garrafas de pinga. A cana gelada desceu redondinha. Volta e meia o carro
apagava, e t�nhamos que empurrar. Darcisinho
se indignou.
Como � que essa merda l� pegou de cara e agora t� se fresqueando?
Carro velho � foda eu disse.
Sei onde tem carro bom, vamo l�.
Ele foi me orientando, dando as dicas, e eu sentei o pau. Andamos um bocado, entra
aqui, sai ali, dobra � direita, por sorte o carro n�o rateou mais. Na frente de um
condom�nio de v�rios pr�dios de quatro
andares, no Campina do Siqueira, ele me ordenou que parasse. Pulou do carro e abriu
os bra�os, num gesto amplo.
Escolhe, Mano V�io.
Os boxes estavam cheios de carros, o que abunda n�o prejudica. O �nico
inconveniente era o local estar iluminado demais, nada prop�cio �s inten��es de
Darcisinho, mas mesmo assim escolhi um Escort azul.
Voc�s ficam aqui, se der zebra a gente se manda. N�o deixa essa bosta apagar, Mano
V�io.
Tudo bem.
Mantive o carro com o afogador puxado, �s vezes ele tossia, engasgava, mas n�o
apagava. Fiquei de p� ao lado do carro para acompanhar melhor os deslocamentos de
Darcisinho, a rua estava erma, mas os pr�dios
tinham v�rios pontos de luz externos e muitas janelas com as luzes acesas e as
vidra�as abertas por causa do calor, sem contar as lumin�rias dos boxes debaixo dos
pilotis, era muita claridade para o meu
gosto. O maldito calor n�o estimulava ningu�m a dormir, se o alarme disparasse ia
zebrar.
Darcisinho abriu o port�o corredi�o somente ap�s um tempo que me pareceu demasiado
longo, fez isso em duas etapas. Foi l�, olhou o mecanismo do port�o e voltou para
pegar uma chave de fenda e um alicate
localizados no porta-luvas do Monza.
Agora vai dar.
Lutou, lutou, lutou, por fim escutei um estalido e o port�o ceder. Ele foi abrindo
devagar porque os rod�zios rangiam ao se deslocarem, foi se esgueirando, procurando
manter-se sempre debaixo das manchas
de sombra. Atingiu o Escort, e eu o perdi de vista, calculei que devia ter se
enfiado embaixo para desativar o alarme. Em seguida, o vi trabalhando na porta e
conclu� que tivera �xito na tarefa anterior.
Entrou no carro, o alarme nem piou, fez pegar e saiu de r�. Em instantes parou ao
nosso lado e mudamos de carro, deixei o Monza funcionando.
Aguenta a� que eu j� volto disse Darcisinho.
Nem tive tempo de lhe perguntar o que pretendia fazer, ele se afastou rapidamente e
Fedora falou alguma coisa que eu n�o entendi, enfiei a cabe�a pela janela.
Que que �? perguntei.
Ele vai aprontar e n�s vamo em cana disse Fedora.

Voltei a procurar Darcisinho e o divisei de p� sobre o cap� de um carro, as m�os


carregadas de pedras, bem debaixo de um ponto de luz, t�o exposto como se estivesse
no centro de uma vitrine. Ploft, estourou
um para-brisa e pulou para o cap� seguinte. Ploft, outro para-brisa estourado, o
baixinho tinha pirado. Come�aram aparecer cabe�as nas janelas, ploft, ploft, ploft,
agora ele dava pulos repetidos sobre
um Corcel novinho, o cap� afundara, ploft, ploft. Um rosto apontou detr�s dos
carros, o homem trazia um berro em punho, ia pegar Darcisinho de jeito. Eu me pus a
correr como pude na dire��o deles, quando
cruzei o port�o, escutei um estampido, e no instante seguinte Darcisinho corria ao
meu encontro, encurvado.
Vamo l�, meu grunhiu ele, raspando por mim em sentido contr�rio , sujou.
Segui em frente e vi o homem do rev�lver ca�do, uma boceta no pesco�o, chafurdando
agonizante na meleca, Darcisinho tivera tempo de usar a navalha. Veio uma frase na
minha mente e eu a enunciei em voz
alta, num impulso, enquanto fazia fogo.
Isso � pelas crian�as da favela do Morro da Cruz de Porto Alegre dei a extrema-
un��o para ele, acertando-o na testa.
Ele parou de se mexer, gritos, vi uma cabe�a apontar na porta da garagem, sob as
colunas de concreto, fiz um disparo naquela dire��o e os vidros partiram-se, mais
gritos, fui recuando e, onde percebia
um movimento ou vulto, atirava em cima, as cabe�as sumiram das janelas. Desci a
rampa e corri o mais r�pido que pude, evitando claudicar, quando entrei no carro,
Darcisinho gritou.
Tu endoidou, Mano V�io, que que tu foi fazer l�?
Terminar o servi�o, uai.
Toca l�, Mano V�io, vamo em frente que detr�s vem gente gritava ele, excitado.
Arranquei cantando pneus. O Escort, sim, estava tinindo, atendia aos comandos com
precis�o, devia ser carro do ano. Darcisinho me passou a garrafa de cana quase
vazia que esquentara nas m�os de Fedora,
enquanto eu dirigia a toda para longe dali. Darcisinho confessou que tinha pego
cana porque fora apanhado naquele mesmo condom�nio, com um colega, puxando uns
carros, em anos passados, estivera engasgado
at� hoje, sempre querendo ir � forra, mas nunca pintara oportunidade, agora estava
feito, afinal conseguira. Pensei que n�o pod�amos dar muita bandeira com o carro,
pois a pol�cia, nessas alturas, j� tinha
sido acionada. Fedora abriu a outra garrafa de cana, troc�vamos ela de m�o em m�o,
secou logo. Darcisinho atirou a garrafa vazia pela janela, e, pelo retrovisor, a vi
saltitar sobre o asfalto como uma
pipoca doida, at� que por fim se espatifou. Enquanto eu pensava em uma maneira de
nos desfazermos do carro, ou troc�-lo por outro, avistei um posto.
Vamos descolar uma grana? propus.
S� vamo respondeu Darcisinho.
Embiquei na dire��o das bombas e descemos, finquei o cano do rev�lver nos peitos do
frentista mais � m�o.
Donde est� la plata?
O qu�? gemeu o mulato, atarantado, sem entender o meu castelhano.
El dinero, seu bund�n, el dinero.
L� dentro, l� dentro respondeu o mulato, branco de susto.
Darcisinho continha o outro frentista com a navalha no gog�, ambos estavam
encaga�ados, dispostos a colaborar. O mulato me conduziu at� o escrit�rio, abriu a
porta de um arm�rio e o cofre estava l� dentro.
Abre-lo ordenei.
Os dedos tremiam-lhe, e ele n�o conseguia girar a roleta. Olhou para mim, com cara
de choro, suplicando.
Abre pra mim, senhor, por favor, n�o tou conseguindo.
Diga-lo falei, trocando o rev�lver de m�o.
Tr�s voltas para a direita e para no noventa. Fiz o que ele disse. Uma volta
para a esquerda e para no vinte e cinco. Fiz. Uma volta para a direita e para no
sessenta.
Anda-te duma vez, seu cagalh�n eu disse, o rev�lver quase me escapando da m�o
lesionada, j� sem for�as.
Duas para a esquerda e para no dez. � s�.
Girei a manivela recolhendo os cilindros da fechadura, a porta se abriu, e o mulato
suspirou aliviado. Tinha um ma�o de dinheiro amarrado por um atilho, outro de
cheques preso por um clipe, peguei tudo
e botei no bolso da cal�a. Troquei o rev�lver de m�o, fiz meia-volta e disparei na
t�mpora do mulato, ele caiu duro.
Isso � pelas crian�as que morreram de fome em Biafra. Era a outra frase que me
pintou na mente como um flash.
Darcisinho me espiava dobrando a navalha lentamente e escondendo-a dentro da
camisa. O outro frentista, � minha aproxima��o, pediu:
Por favor, n�o me mate, seu mo�o, eu tenho fam�lia, cinco filhos. Era um homem de
meia idade, grisalho, bigode, o medo o aviltava.
Te deita nel piso.
Ele se apressou em obedecer. Darcisinho me estudava, atento, n�o perdia um gesto,
uma palavra. Desfechei um tiro na nuca do homem, fiquei � espera da frase que n�o
surgiu. Botei o rev�lver na cinta, abri
a gaveta do balc�o e peguei mais uns trocados e cheques, recolhi, tamb�m, um
talon�rio de notas fiscais em branco, fiz tudo com uma lentid�o premeditada,
esperando o dito que teimava em n�o se materializar.
Darcisinho s� me cubando de uma certa dist�ncia, tirando suas conclus�es da minha
performance. Sem que nenhuma senten�a viesse � tona, eu disse, por fim:
Vamos embora.
Agora era eu que estava no comando. Entramos no carro e zarpamos. O carro era uma
batata quente nas nossas m�os, precis�vamos nos livrar dele. Antes que eu falasse
qualquer coisa, como captando a minha
preocupa��o, Darcisinho me orientou para atingirmos um desmanche no CIC. O
receptador era um velho camarada seu e nos pagou dois paus pelo carro, foi uma
negocia��o r�pida e rasteira. Pegamos um �nibus
e descemos na esta��o Cap�o Raso, baldeamos para o biarticulado e retornamos para o
nosso moc�.

A brincadeira da noite rendeu mil, quinhentos e vinte paus no posto, mais dois paus
com a transa��o do carro, totalizando tr�s mil, quinhentos e vinte. Reparti meio a
meio, passei a Darcisinho a sua parte,
ele pegou e ficou me encarando.
T� faltando a parte da Fedora.
� Darcisinho, a Fedora n�o fez nada, meu, ficou s� olhando, ainda por cima torcia
contra.
Mas ela faz parte da quadrilha, Mano V�io.
Que quadrilha, cara?
A nossa.
N�s n�o passamos duma patota de bebuns agitando um pouco.
Tu que sabe, meu.
Darcisinho embolsou o dinheiro a contragosto, mas mudou de humor repentinamente.
Boa f�ria, hein, Mano V�io?
�.
Senti que ali o cabrito n�o berrava e isso n�o era bom. Fedora estava ausente, l�
pros fundos, mijando ou cagando, sei l�. Separei algumas notas e estendi a
Darcisinho.
D� pra Fedora comprar alguma coisa pra ela.
N�o precisa, n�o, Mano V�io, deixa pra l�, at� acostuma mal.
Pega a�, ela merece.
Darcisinho pegou a grana relutante, abanando a cabe�a. Quando Fedora se aproximou,
Darcisinho deu uns pilas pra ela ir comprar rango e trago.
Tudo isso?
O resto � presente do Mano V�io pra ti.
Ela fez uma careta simp�tica mostrando a porteira aberta da dentadura estragada.
Obrigada, Mano V�io.
J� amanhecia, Fedora se foi, cambaleando, tropicando, carregando o garraf�o de
pl�stico para encher de cacha�a.
Puxa disse eu batendo na testa , esqueci de repartir os cheques.
T� em boas m�os respondeu Darcisinho.
Cavouquei no bolso traseiro e peguei o ma�o dobrado.
O La Rosa ou o Terneir�o compram eles de n�s disse Darcisinho.
� uma boa retruquei.
Agora n�o adianta ir l�, � muito cedo, despois a gente procura eles.
Esclareceu que La Rosa era o tal que ele pretendia me apresentar, assim se matava
dois coelhos com uma cajadada s�.
Tudo bem eu disse.
Somei os cheques, deu mil e oitocentos. Fedora voltou com p�o, salame, queijo e o
garraf�o cheio de cacha�a gelada. Comemos, regando a refei��o com longos tragos que
desciam redondos. Fedora deitou-se
no ch�o, cobriu-se de palha e come�ou a roncar em seguida. Darcisinho deu um chute
nela, Fedora resmungou, virou de lado, parou de roncar. Dormimos.
Acordei com o sol na minha cara, suando, ia ser outro dia quente. O mosqueiro zunia
� nossa volta, enlouquecido, pardais catavam farelos de p�o na toalha improvisada
com as sacolas do super. Eu precisava
tomar um banho, trocar de roupa, os mosquitos me deixaram marcas que, de tanto
co�ar, tinham virado chagas. Darcisinho acordou com a minha agita��o e, notando que
eu me preparava para sair, ergueu-se tamb�m.
Vamo l�, Mano V�io?
Vamo.
Peguei uma sacola para embrulhar o rev�lver, Darcisinho me pediu para examin�-lo.
�, malandro, como � que anda com esse berro sem raspar?
Nem tive tempo desconversei. Nem atentara para esse detalhe importante, se me
pegassem com a arma, iriam identific�-la como a do vigia e eu ia me ferrar.
Darcisinho decidiu n�o adiar mais, ajudei-o a procurar uma pedra e um peda�o de
ferro, martelamos o n�mero da arma at� ficar ileg�vel. Darcisinho enfiou o embrulho
debaixo de Fedora ainda ferrada. Feito
isso, nos fomos.
Ao chegar ao centro, entrei em uma loja e comprei uma camisa, cal�a, sapatos.
Darcisinho me imitou, comprando exatamente as mesmas coisas, s� que no lugar de
sapatos comprou t�nis. Dali seguimos para os
sanit�rios da rodoferrovi�ria, tomei o banho mais demorado da minha vida, nunca
pensei que pudesse sentir tanto prazer numa coisa t�o simples, a �gua me surtiu um
efeito de puro al�vio estimulante. Sa�mos
de l� e entramos em uma barbearia. Barba e cabelo. Remo�amos vinte anos cada um.
Mano V�io, tu t� que � um garot�o, home, nem parece aquele v�io estropiado que
apareceu l� no meu moc�.
E tu parece que rec�m fez 12 anos, que ainda n�o perdeu o caba�o. Ele riu,
faceiro.
Tou bonito, Mano V�io? perguntou, fazendo pose.
T� que � uma bichinha louca.
Que � isso, meu? T� me confundindo? Aqui tem, �. Meteu a m�o entre as pernas
agarrando os bagos sobre o tecido das cal�as.
Vamos procurar La Rosa eu disse , quero que voc� me apresente pra ele, pra trocar
os cheques e pra ele me botar naquele outro esquema que voc� falou.
Darcisinho resolveu iniciar a procura pela pra�a Rui Barbosa, La Rosa n�o tinha
paradeiro certo, podia tanto estar aqui como acol�, isso quando n�o sumia das
bocas, indo cantar em outra freguesia, Sampa,
Bel�, Floripa, Rio, Portalegre, Salvador, sabe-se l� onde mais.
Ao chegarmos � pra�a, no entanto, ningu�m sabia com exatid�o do paradeiro de La
Rosa, constatei que Darcisinho tinha muitos conhecidos por ali, camel�s, mendigos,
vagaus, pivetes, bicheiros, mich�s, o
escambau. A sua nova apar�ncia causou estranheza geral e era motivo de goza��o.
Quanto a La Rosa, um dizia que ele estava em S�o Paulo, outro contradizia, que
tinha visto ele ontem, ali mesmo, na pra�a.
Ele t� sempre naquela birosca da Visconde de Nacar, n�o sai de l� assegurou um
deles.
Sei onde �, mas ele tinha largado aquele ponto, tava muito manjado disse
Darcisinho.
Mas t� de volta.
Fomos at� a birosca, nada. N�o encontramos nem Terneir�o, que seria a segunda
alternativa. Darcisinho tinha outros conhecidos por ali, deixamos recado,
passar�amos mais tarde, que ele nos aguardasse, pelo
sim, pelo n�o, continuamos procurando. Enquanto o procur�vamos, entrei em um super
e comprei uma tintura para cabelo, os meus estavam embranquecendo a olhos vistos,
cada dia um pouco mais, na barbearia
tomara conhecimento dessa triste realidade.
Prosseguimos � cata de La Rosa, na pra�a Os�rio n�o estava, na Tiradentes tamb�m
n�o, na sinuca da Ordem, idem, o calor estava demais. Nos abancamos em um boteco e
pedimos uma cerveja com tira-gosto, bebemos
aquela e mais outras tantas. Os jornais s� iam dar alguma not�cia do rebu no
condom�nio e no posto no dia seguinte, mas o r�dio e a tev� j� deviam estar dando,
agendei mentalmente para, pr�ximo ao meio-dia,
ir a um lugar onde tivesse tev� para assistir ao notici�rio local.
Mano V�io come�ou Darcisinho, falando � socapa , quando tu pegou aquele berro
ontem vi que tava a fim de bolo.
Logo quem falando.
Mano V�io, tu te tomou, cara! O exu Sete Catacumbas baixou em ti, cara, fez gato-
sapato com o cavalo dele. disse isso, e ria pra valer. Ontem tu tava com o
capeta, vivente, queria atirar em tudo
o que via, parecia o Mauro Gigante, que quando vai assaltar banco n�o quer deixar
ningu�m vivo, com a 12 dele, o homem toca fogo em tudo o que se mexe, � um perigo,
hahaha, agora arranjou um irm�o g�meo,
haha.
Quem come�ou foi voc�, eu s� fui lhe dar cobertura.
Mas n�o � que aquele ot�rio quase me acerta? Dei uma pedrada nele e me joguei para
tr�s dos carros, viu como � bom ser pequenininho? Rolei por baixo dum carro e,
antes que o loque se flagrasse, toquei
a l�mina no gog� dele, caiu despejando bala pro outro lado.
E eu preocupado com voc�, Fedora me enchendo a cabe�a que a gente ia pegar cana,
que isso, que aquilo.
Fedora � bundona, t� sempre agourando, chamando coisa ruim pro lado da gente. Vira
essa boca pra l�, azar�o, por isso � que arranquei os dentes dela, indignei com ela
de tanto ela me agourar, por causa
duma dessas a�, igualzinha, ent�o enchi ela de porrada, mas n�o tem jeito, o pau
que nasce torto, apanha, mas n�o se endireita, aquela ali t� sempre chamando azar,
negativa pra caramba.
E voc� ainda queria repartir com ela a nossa f�ria, hein? Lancei o repto para ver
a rea��o dele, se tinha assimilado o acerto ou ainda guardava rancor.
O Mano V�io t� certo, foi bobeira minha, reconhe�o.
Mas voc� em cima dos carros, pulando e estourando os para-brisas � que tava
possu�do pelo capeta, a maior figurinha, o homem endoidou, foi o que pensei comigo.
O problema � que voc� tava dando a maior
bandeira, debaixo das luzes.
Aquele pessoal l� t� todo encaga�ado, Mano V�io, n�o abre o bico, se abrirem,
depois dessa, sabem que levam mais, eu tava engasgado com aqueles puto, parecia que
tinha uma jamanta atravessada na minha
garganta, peguei dois anos de cana por causa daqueles puto, chamaram os home
enquanto eu aliviava os carros com um faixa meu, n�o deu outra, nos deram flagra l�
dentro daquela bosta de estacionamento,
que bobeira, Mano V�io, n�o gosto nem de lembrar, quatro viaturas cercando a �rea,
ca�mo como uns patinho. Agora tou aliviado, a vingan�a � doce.
�, mas voc� teve muita sorte daquele ot�rio n�o te acertar.
� que o cara quis dar uma de mach�o, mas tava todo cocoseado nas cuecas, cara com
medo n�o pensa, acabou se fodendo.
�, mas n�o d� pra dar vacilo, n�o, malandro.
Mano V�io, j� encarei muita parada dura, e tou aqui, �, inteira�o, tenho o corpo
fechado, Mano v�io, uma batuqueira me fez um trabalho pros olhos n�o me ver, arma
branca n�o me furar e as balas desguiar.
Levantou a camisa e me mostrou uma cicatriz nas costas Isso foi no pres�dio,
dessa, sim, escapei por pouco, o cara me deixou a marca, mas eu mandei ele pra
cucuia depois, n�o deixei os puto comer o
meu rabo, pagou com a vida pela tentativa, n�o tem conversa.
Voc� vacilou naquele estacionamento, aquilo l� � lugar de azar pra voc�, na
primeira vez foi preso, agora quase veste o pijama de madeira, n�o chega mais perto
daquele lugar, � meu irm�o. Eu tava
ficando euf�rico, obra da ceva, levantei e dei um abra�o em Darcisinho, ele me
respondeu com um beijo na testa.
Nunca mais, Mano V�io, n�o passo nem pela frente, voc� tem raz�o, aquela � boca
muito da entaipada, n�o afina com o meu astral, tutufum, sarav�.
Pedimos a saideira, t�nhamos ainda que achar La Rosa, se nos embriag�ssemos
ficar�amos em desvantagem para negociar.
Mas gostei de ver o Mano V�io em a��o. disse ele baixando o tom de voz que se
elevara um pouco, obedecendo a um sinal meu p�, Mano V�io, tu � cancheiro, meu, tu
tava me conversando que n�o � do
ramo, escondendo o leite, o jeit�o que voc� empunha o berro e atira com aquela
pontaria � coisa de nego familiarizado com a mixaria, coisa de profissa, l� no
posto voc� mostrou isso, parecia o La Rosa
quando t� nervoso, falando enrolado no castelhano dele.
Ca�mos na risada, a gente estava numa boa, numa naice, trique trique rolim�.
Levantei e fui ao balc�o pedir a conta.
Vamos embora, temos que achar o La Rosa.
Eu s� continuava intrigado com o fato de, at� aquele momento, n�o ter recebido a
tal mensagem para dar a extrema-un��o ao frentista do posto, nos dois anteriores
fora como uma imposi��o, mas j� em seguida
parou. Tamb�m, agora, com o caso passado, nem adiantava mais mesmo. Engra�ado,
parecia algu�m me assoprando no ouvido, diga isso, diga aquilo. Estaria eu virando
m�dium e me tomando como garantiu Darcisinho?
Exu Sete Catacumbas, tutufum, sarav�.
O Mano V�io j� teve quadrilha? Tu tem pinta de quem j� chefiou bando, tu n�o me
engana, seu come-quieto. Eu comandava outros lances, bem diferentes, mas � aquilo,
quem foi rei nunca perde a majestade.
Darcisinho come�ava a me ver com outros olhos, olhos de admira��o e amizade.
Que nada, rapaz, na verdade eu s� trabalho sozinho, voc� � o meu primeiro
parceiro.
N�o me diz? Ent�o, toca aqui, parceir�o. Sentiu-se importante, soqueamos e
apertamos as m�os. Tou te chamando de Mano V�io, mas acho que vou mudar a alcunha,
n�o t� mais de acordo, vou te chamar
de Mano Novo, � s� olhar que vejo um garot�o na minha frente.
T� bom, t� bom, n�o precisa puxar o saco. J� paguei a cerveja, agora, se quiser
mais outra eu pago, n�o tem problema.
Seguimos em frente, rindo, empanturrados de bom humor e otimismo. Darcisinho me
manifestou que mudara de id�ia, gostaria de continuar fazendo neg�cio comigo, que
eu formasse uma quadrilha e fosse o chefe,
ele seria o imediato, mudava de ramo.
Mano V�io, tu tem pulso firme, d� pra coisa, bota os vagabundos a trabalhar para
ti, voc� bola os planos e manda eles executar, n�s vamos, mas botamos eles na
frente.
O problema � que eu � que gosto de ir na frente, Darcisinho, de tar no centro do
redemunho.
O Mano V�io t� certo, eu tamb�m gosto de tar bem na frente do bolo, sen�o n�o tem
gra�a. Tou dizendo bobagem, mas tudo bem, n�s vamos juntos, puxando o resto, gostei
da a��o do posto, a gente tem mais
� que apagar esses puto, sen�o eles deduram a gente.
Isso � pelas v�timas da chacina do Carandiru eu disse.
O qu�? N�o saquei, Mano V�io. Que � que tem o can. can, o qu�?
Nada, nada repliquei, disfar�ando , � bobagem.
O dito tinha pintado, afinal, e eu o emitira em voz alta, automaticamente, quase
sem sentir, agora n�o tinha mais utilidade, quem sabe eu o reservasse para a
pr�xima encomenda��o? S� que, como Darcisinho,
eu tamb�m n�o entendia o significado dela, quem seriam essas v�timas? A Casa de
Deten��o do Carandiru eu sabia tratar-se de um pres�dio de S�o Paulo, mas tinha
havido v�timas l�? Ou haveriam?

Na birosca da Visconde de Nacar, encontramos La Rosa rodeado de cupinchas.


Darcisinho e ele se abra�aram, fazendo um bocado de festa um para o outro, dava
para notar que eram amigos de longa data e que
tinham grande afeto um pelo outro. Enquanto se abra�avam, cochichavam e riam entre
si, quem sabe n�o tivessem sido companheiros de pris�o?
Deixa eu te apresentar o Mano V�io.
Eu e La Rosa apertamos as m�os, ele tinha m�os delicadas e vestia um terno de linho
marrom com gravata floreada, sapato estalando de novo, tinha eleg�ncia natural,
embora uma calv�cie galopante devastasse
o seu couro cabeludo, e fisionomia de boa gente, a simpatia e os seus olhos azuis,
no entanto, escondiam o seu lado menos social. Era castelhano de origem, mas o
sotaque quase se dilu�ra de todo, devia
estar no Brasil j� havia bastante tempo.
E da�, Darcisinho, por onde andava? Garanto que t� montado na grana, por isso n�o
aparece mais pra ver os amigos. Piscou o olho pra mim, sorrindo.
N�o t�o bem como tu, amig�o v�io, mas vai se levando, empurrando a carro�a no
muque. Se eu tivesse rico, a� � que n�o largava os amigo, ia tar aqui o tempo todo.
Baixou o tom de voz e puxou La Rosa
para um � parte, segurou no meu bra�o para que eu me juntasse a eles. O Mano V�io
aqui tem uns bagulhos a� pra tu, irm�o.
Dei o ma�o de cheques para ele, a maioria em pequenos valores, totalizando 1.800
reais. Ele examinou o mont�culo.
� sujeira recente?
E da grossa vomitou Darcisinho.
Vou ter que repassar pra outras bandas, posso adiantar 100 pra voc�s agora, amanh�
dou o resto, mais uns 200. La Rosa falava macio, pausado.
V� se melhora essa oferta, meu irm�o, a gente t� num sufoco, precisando de grana,
consegue uns seiscentos pra gente.
T� dif�cil. considerou, batendo com os cheques no dorso da m�o. Mais 300 d� pra
ser, 400 no total, fechamos?
Darcisinho me olhou, e eu topei. La Rosa entrou para tr�s do balc�o, falou com o
dono da birosca para quem Darcisinho havia deixado o recado, e veio com uma nota de
100, quentinha.
O Mano V�io aqui t� a fim de adiantar o lado dele foi logo dizendo Darcisinho ,
gente fina t� a�, a gente se conhece h� pouco, mas a nossa amizade vem de outra
encarna��o.
La Rosa me avaliava de maneira discreta, levantando a minha ficha nos registros do
seu banco de dados pessoal, demonstrou que fui aprovado.
Agora eu tenho um compromisso, tou com o dia tomado, o amigo vai ter que me
desculpar. Vamos marcar para amanh�, �s 10? Tenho uma barbadinha que vai render uma
grana preta, o amigo tem estilo. Por
acaso, sem querer desfazer a apar�ncia do amigo, que � muito elegante, pode vir de
terno e gravata, no capricho?
Fiz que sim com a cabe�a. Darcisinho e eu nos despedimos dele. La Rosa n�o brincava
em servi�o, sabia das coisas, pr�tico, ligeiro, o pessoal que o cercava aguardava
as suas instru��es, dedicou-se para
eles. Ao sairmos, mirei o rel�gio da pra�a, dando-me conta de haver perdido o
hor�rio das not�cias, me programei desta vez para assistir ao telejornal da noite.
Sa�mos dali e gastei quase tudo o que me
restava comprando terno, sapato, camisa e gravata, um verdadeiro banho de loja.
Darcisinho me gozava enquanto eu experimentava as becas que o vendedor me trazia.
Quer dizer que o Mano V�io amanh� vai tirar retrato? Hhuummm, o Mano V�io j� n�o �
mais aquele, agora t� cheio de rapap� e tal-e-coisa-e-coisa-e-tal-e-tal-e-coisa-e-
tal-e-tal, ali�s nem � mais Mano V�io,
� Mano Novo.
O vendedor e eu r�amos de seu jeito. Ele, limpo, escanhoado, cabelo aparado,
ganhara bom aspecto, provou alguns ternos, me imitando, quando o vendedor perguntou
se ele ia levar alguma coisa, respondeu:
T� louco, rap�, eu n�o passo dum pobre oper�rio, isso n�o � pro meu bico, n�o, o
galo, t� ali, �, esse a�, sim, fala grosso, mata a cobra e mostra o pau, �
poderoso, t� com a grana dele mocozeada no
banco, na poupan�a, eu, pobre de mim, eu ando com ele s� pra fazer isso. agachou-
se e fingia lustrar os meus sapatos, tirar o p� das roupas. Eu sou o lacaio dele.
Lacaio, nada, eu sou o guarda-costas
dele. Inflou o peito, abriu os bra�os, ficou na ponta dos p�s, imitando um
seguran�a parrudo. Te mete.
Pegamos os pacotes e fomos para o moc�. Antes, Darcisinho passou numas bocas para
pagar os seus d�bitos e fazer novo suprimento de maconha, crack, coca. Quando nos
aproxim�vamos do terreno baldio, vimos
a movimenta��o, uma retroescavadeira fazia a limpeza da �rea. Fedora estava sentada
no meio-fio, jururu.
Esses putos quase passaram com essa merda em cima de mim reclamou ela.
Darcisinho foi para cima do pessoal que trabalhava no local para tirar satisfa��o.
Vamos embora eu disse para ele.
Ele remoeu a sua raiva mais um tempo, mas acabou me atendendo. Come�amos a levantar
acampamento.
O berro t� na sacola? perguntei a Fedora, que respondeu com um gesto de cabe�a.
Ajudei-os a carregar as sacolas que Fedora juntara com os pertences deles. Ela nem
ligou ou notou a nossa mudan�a de visual nem os pacotes que carreg�vamos,
completamente alheia, estava ainda em estado
de choque depois do susto que levara, as rodas enormes que quase a achataram ao
ch�o n�o deviam lhe sair da cabe�a, no pouco que faltara para ter batido com a cola
na cerca.
Paramos em um boteco, pedimos cervejas e tira-gosto. Falei da pens�o, que era
barata.
Neca paus disse Darcisinho , tem outro ponto que eu j� tava de olho, tou indo pra
l�, um amig�o meu comanda as coisas por l�, fiquei de puxar uns carros pra ele, vou
me arranjar por l�. Explicou-me
detalhadamente como ir at� o local, caso eu quisesse falar com ele urgente.
Tudo bem eu disse , eu vou pra outras bandas hoje, tenho que acertar umas contas
com uma dona a�.
Entendi, vai botar a monstruosidade a funcionar n�o �? Esse desprop�sito deve tar
babando por uma xota, hein? Vai tirar o pau da merda, hein, Mano V�io? A Fedora at�
que tava a fim de encarar, n�o �,
minha flor?
Fedora fez cara de nojo.
N�o gosto de homem de pau grande.
Hhuummm! Quem desdenha quer comprar. Qual �? Darcisinho deu um pulo da cadeira e
caiu de p�. T� me chamando de pau an�o? Qual �, sua piranha? O meu n�o � esse
desprop�sito do Mano V�io, mas d�
pro gasto, d� ou n�o d�?
Ela fez uma careta.
Que d�, d�, de vez em quando, sai fora.
Xexelenta acrescentou Darcisinho. N�o estava bravo, s� fazia onda, jogava
conversa fora.
Tem umas minas a� que t�o a fim de se virar pra mim, n�o pego porque n�o gosto de
muler no meu p�, basta tu, Fedorinha. e deu um cascudo nela.
P�, meu, qual �? protestou Fedora. Pensa que n�o d�i, �?
O Mano V�io � que t� certo, quando quer descarregar, procura uma mina e despeja um
litro de leite nela, n�o deixa muler encher o saco dele.
Voc� gosta de me avacalhar na frente dos outros, n�? Judia, vai, pisa em cima, �
disso que voc� gosta, j� tou acostumada.
Darcisinho mudou de tom.
Coisa ruim n�o morre cedo, Fedorinha, olha aqui o que � que eu trouxe pra minha
loca. Abriu a boca do saco de papel, ela espiou l� dentro e o seu rosto
escalavrado se iluminou. Ele escondeu o saco
nas costas.
Bom, j� que eu n�o dou mais no couro, tu vai ficar fora desta.
Ela sentou-se na coxa dele, abra�ou-o, piscou o olho pra mim.
Tava brincando, gostos�o da m�e, j� tou at� com calo na xota de tanto fuque-fuque,
tu n�o me d� descanso, tarad�o.
Rimos em coro. Darcisinho pediu mais uma ceva e acendeu um baseado que ele enrolou
ali mesmo.
Bom, pessoal eu disse, levantando da cadeira , fui.
�, Mano V�io de guerra, quer dizer que vai tirar a teia de aranha da
jib�ia? � isso a�, meu irm�o disse ele, depois recomendou: N�o se esquece de ir
falar com o homem amanh�.
De jeito nenhum. Amanh�, no hor�rio, tou l�, o interesse � meu, no fim da tarde
tou chegando no centro, a gente se pecha por l�.
Isso se eu ainda tiver vivo. Mirou o saco al�ando as sobrancelhas, o que
significava que ele e Fedora iriam fundo.
Tiau eu disse.
Tiau, Mano V�io, v� se n�o vai gastar o pau. Enquanto eu me afastava, ele gritou:
�, meu, v� se n�o esquece a minha comiss�o na trampa com o La Rosa, hein?
Ergui o polegar sem me voltar, fui direto para a pens�o descansar e preparar-me
para o encontro com La Rosa.

Encontro esse que me fez dar uma guinada brusca e me permitiu queimar etapas ainda
no processo inicial do meu aprendizado. De cara ficou evidente que La Rosa me tomou
por bund�o, e eu n�o consegui atinar,
num primeiro momento, em que se baseou para agir assim, ou se fazia parte de seu
procedimento normal de avaliar pessoas, qualificando-as de sorongas a priori, dada
a sua megalomania. Nem me interessei
em saber, em aprofundar a minha an�lise da sua psicologia, quando percebi a sua
manobra, adotei o estratagema de pescador, oferecer uma isca tentadora para o peixe
morder sem demora, e, na continuidade,
dar bastante corda, para deixar que ele, de tanto se debater, morresse de cansa�o.
Seria uma maneira sutil de faz�-lo reconhecer o seu erro de julgamento.
Cheguei no bar �s 10, conforme o combinado, rigorosamente trajado, ele n�o se
encontrava l�, s� foi pintar �s doze e trinta, como quem carrega o mundo nos
ombros, a cara inchada de tanto beber e dormir,
eu at� achava que ele n�o fosse aparecer mais, esperava por esperar. Desculpou-se
pelo atraso e levou-me a um escrit�rio, nas imedia��es. Enquanto faz�amos o trajeto
a p�, foi explicando o que eu devia
fazer, j� tinha preparado uma documenta��o fria para mim, carteira de identidade,
CPF, declara��o de pr�-labore emitida por contador, conta de luz, s� faltava eu
tirar foto para colar na carteira. Eu teria
que me apresentar na casa comercial de um turco, como executivo de uma empresa,
comprar o que desse, tapetes persas, quadros, conjuntos de porcelana chinesa, etc.,
coisa de muito valor e pouco volume,
fornecer um endere�o para entrega e dar refer�ncias, ou seja, nomes e n�meros de
telefones, ele ficaria do outro lado das linhas confirmando os dados que eu ia
passar, coisa simples, mas que dependia do
meu desempenho, tinha que mostrar seguran�a, tornar-me confi�vel. Ele falava de
forma atabalhoada, como se o seu c�rebro estivesse em curto, liga, desliga, sem se
preocupar com o meu entendimento, efeito
da ressaca brava.
Subimos ao 13� andar de um pr�dio, o mobili�rio da sala na qual entramos consistia
apenas de duas mesas, tr�s aparelhos telef�nicos em cima de uma delas, e duas
cadeiras. Ocupou uma das mesas, abriu uma
das gavetas e retirou de dentro dela um grampeador, um furador, caneta, algumas
folhas de papel e um tubo de cola, de uma pasta pl�stica sacou uma quantidade
razo�vel de carteiras de identidades, cart�es
de CPF, carteiras de trabalho, certid�es de nascimentos, certid�es de cart�rios e
distribuidores do f�rum, isso o que eu pude distinguir, fora o que n�o estava a
vista, que permanecia no interior da gaveta.
Ele continuou revirando l� dentro, atr�s de algo que n�o conseguia localizar,
desistiu, pegou um dos aparelhos e discou um n�mero.
E da�? J� fez o cadastro do cara? Limpeza? �timo, te ligo daqui a pouco.
Desligou e virou-se para mim.
Voc� agora � diretor de uma empresa da constru��o civil, o cara tem nome limpeza,
mais limpo que alma de santo, nem um pecadinho financeiro, portanto, d� pra comprar
o que quiser sem problema, desce
ali na pra�a e tira uma foto para a carteira de identidade e tr�s aqui ligeirinho,
e n�o esquece, a partir de agora voc� � um empres�rio, um respeit�vel cidad�o da
maracutaia, um vip abonado, hehehe.
N�o me mexi do lugar, ele perdeu o rebolado sob o foco do meu olhar insistente
entre os seus olhos.
Olha, doutor, n�o precisa nem ir at� a pra�a, aqui ao lado, saindo do pr�dio, �
esquerda, tem um fot�grafo, se eu n�o me engano, � o mesmo pre�o.
Tou sem grana eu disse, � queima-roupa, mantendo-o debaixo do meu olhar firme.
O qu�? N�o acredito, um empres�rio do seu porte, com essa pinta toda, n�o tem
grana pra tirar uma fotinho? N�o tem 3 pilas? E da grana de ontem, n�o sobrou nada?

Nadinha, gastei tudo nessa beca.


Durango Kid, mesmo?
Acenei a cabe�a.
Ent�o, s�o dois suspirou ele , deixei tudo o que eu tinha no bingo, ontem �
noite, ando numa mar� de azar pra jogo. O que � raro, tou sempre tirando o dinheiro
deles, j� ganhei muita grana no bingo,
mas ontem, n�o teve jeito, me raparam pra valer.
Permaneci empacado diante da mesa, incomodando-o com a fixidez do meu olhar e
testando a sua capacidade de arranjar solu��es para situa��es p�fias. Ele abriu
gaveta por gaveta, tinha de tudo l� dentro,
maquininhas de cart�o de cr�dito, cart�es magn�ticos, tal�es de cheques, quilos de
bagulhada. Passou ent�o para a outra mesa, camisinha, papel-carbono, l�pis,
borracha, carimbos aos montes, menos pila,
uma moedinha que fosse. Tornou a sentar-se e co�ou a cabe�a por um bom tempo,
depois deu um pulo do assento, como se precisasse ir urgente ao banheiro.
N�o podemos deixar a peteca cair disse com um sorriso amarelo e saiu da sala. N�o
demorou muito e estava de volta com uma nota de dez. Quem tem padrinho n�o morre
pag�o disse, dessa vez seu sorriso
era azul.
No meu entender, ele tinha sa�do apenas para me persuadir da mentira de que estava
sem dinheiro. L� fora, meteu a m�o no bolso e separou dezinho, deu o tempo e
voltou. Mais tarde � que vim a saber que
aquilo era rotina, todo santo dia ele se pelava no jogo, em festas nos puteiros, e
sempre iniciava o dia mais duro que coxa de galo velho, retomando a via-cr�cis para
meter tutu no bolso de novo. Para
La Rosa, como para S�sifo, cada dia era um eterno recome�ar, sempre partindo do
zero. Na verdade, ele disparara pelo corredor, a pedir emprestado para os vizinhos,
deu sorte de conseguir no primeiro.
Vai l�, vai disse, passando-me a nota , hoje ser� nosso dia de sorte.
Desci para tirar a foto. No fot�grafo, regateei e consegui reduzir o pre�o para
dois reais, o lambe-lambe me avaliou e duvidou que eu s� tinha dez bagarotes e que
precisava do troco para ir at� a Fazendinha
levar a documenta��o para ser admitido num emprego e reservar cinco reais para
comprar rem�dio pro filho doente.
Se eu pagasse os tr�s expliquei-lhe, humildemente , n�o ia dar. O cara me olhava
desconfiad�ssimo. � s� figura��o acrescentei, referindo-me ao meu visual de
magnata , essa roupa nem � minha,
um amigo meu me emprestou para que eu fosse bem apresent�vel na entrevista, assim
que eu receber o primeiro sal�rio, venho trazer um presente pra voc�, pela
colabora��o. O amigo toma um vinho, um uisquezinho?
Tudo bem disse ele concordando , pode ser por dois reais, mas n�o precisa
presente, n�o.
O cara continuava cabreiro, n�o estava conseguindo engolir a minha hist�ria de
jeito nenhum.
Fa�o quest�o, uma m�o lava a outra, amig�o. Obrigado, companheiro.
De nada.
Estimulado pela l�ngua de trapo de Darcisinho e La Rosa, me dei bem no exerc�cio,
buscando um 71 forte para ocasi�es variadas, treino para xaveco de vendedor de
porta a porta, improvisado �s circunst�ncias,
assim, eu acabara de confirmar por antecipa��o a tese que La Rosa me exporia mais
adiante, de que as pessoas gostam de ser enroladas, no fundo
at� esperam por isso, caem sabendo, s� para se lastimar depois, se fazerem de
v�timas, naquela rela��o sadomasoquista que comp�e a maioria dos contatos humanos.
Subi. La Rosa continuou com a m�o estendida ap�s eu lhe passar as fotos, e eu me
fiz de desentendido.
O troco falou com voz adocicada, com medo de que eu pudesse me ofender.
Qu� troco?
Os sete.
Bahhh, rapaz, desculpa, eu n�o sabia que voc� ia precisar e fiz um lanche, fui
dormir sem janta ontem, desculpa mesmo, fico te devendo essa, pode descontar da
minha parte depois.
Ele tornou a pintar o seu sorriso de amarelo nos l�bios, mas cheguei a escutar,
pelo relampejo dos seus olhos, a fera rugir dentro dele, a dificuldade que teve
para conter o bicho, dar-lhe um tranquilizante
para que adormecesse.
Tudo bem, tudo bem.
Garanto que a partir daquele momento tinha inclu�do o meu nome na lista negra do
seu SERASA (SErvi�o de RAncor Sem Apela��o) privado. J� recomposto e com calma
estudada, pegou a foto e montou a identidade
fria, fazendo furinhos com um tubinho fino de ponta afiada, apropriado para essa
finalidade, no rosto do titular, tudo nos conformes. Depois colou, assoprou e me
passou o conjunto de documentos com um
mesmo nome. Repetiu outra vez tudo aquilo que eu teria de dizer et cetera e tal,
era detalhista, mas, como balancei a cabe�a dando a entender que assimilara tudo,
arrematou apenas.
Vou confirmar tudo daqui, ok? Depois que o cr�dito for aprovado, voc� manda
entregar no endere�o da conta de luz, ok?
Correto.
Nenhuma d�vida?
Nadinha.
Voc� assimila f�cil, chuchu beleza, trabalhar com gente inteligente � outra coisa.

Senti a ironia por tr�s daquelas palavras. Aceitando o desafio que ele havia
proposto nas entrelinhas, finquei os cotovelos nos bra�os da cadeira e cruzei as
pernas, reclinando o tronco no espaldar, com
a maior calma do mundo, como se estivesse disposto a permanecer ali o dia todo. Ele
me encarou, intrigado.
Tem uma coisa nessa hist�ria que n�o bate, La Rosa, n�o tou gostando desse 71 de
n�o carregar cheque nem cart�o comigo, alegar que sa� sem inten��o de comprar, isso
� furo, meu, um empres�rio do meu
n�vel normalmente carrega tudo isso no leva-tudo, d� pra desconfiar, n�o d�?
Diz que esqueceu a pasta no carro ou no escrit�rio com tudo dentro, posso at�
confirmar isso quando ligarem pra c�, pedir inclusive para avis�-lo de que esqueceu
a pasta em cima da mesa. Voc� tem que
ser artista, � meu, sen�o n�o sobrevive nesse ramo, al�m disso voc� est� esquecendo
dum detalhe muito importante, o com�rcio t� t�o parado com essa crise que eles
est�o loucos pra despachar a mercadoria
da loja, botar o bloco na rua, ficam cegos. Esse turco onde voc� vai � t�o guloso
que, se conquistar a confian�a do cara, leva at� a mulher dele de bonifica��o, s�
que voc� vai se danar porque ela �
um bagulho dos diabos. Aqui ele explodiu numa gargalhada, achando uma gra�a
infinita na pr�pria piada. �, meu, voc� tem que se convencer que � um magnata do
mundo dos neg�cios, tem que fazer o g�nero
desligado, sabe como �, que est� passando pela frente da loja por acaso, parou,
olhou, ficou fissurado com o que viu e entrou, louco pra dar uma surpresa �
mulherzinha gostosa que o espera em casa, voc�
� tarado, quer cobri-la mais uma vez de presentes, como voc� costuma fazer quase
todo dia, voc� tem grana, � pirada�o, exc�ntrico, de repente resolveu mudar o
visual da mans�o, ficou louco pra comer ela
em cima do tapete de cinco mil d�lares, etc., etc. � isso a�. E tem mais, com esse
endere�o para entrega, bairro de classe m�dia alta, o turco n�o vai duvidar nunca,
com esse lance de entrega em endere�o
certo o loque cai como um patinho, vai duvidar de qu�? N�o tem porqu�. Al�m do
mais, esse turco � da velha guarda, vai te dar uma nota promiss�ria ou uma letra de
c�mbio pra voc� assinar e pronto, � credi�rio,
p�, ele tem toda a papelada pronta para formalizar a compra, essa gente nem liga
pra cheque, at� desconfiam daquela folhinha de papel de merda, fica tranquilo
quanto a isso.
Eu j� tinha identificado uma s�rie de outros furos no plano dele, que me fazia
comparar o seu detalhismo a um tecido esfarrapado, mas eu admirava a sua
resist�ncia de permanecer em trincheira destru�da.
Dei um �ltimo toque para que ele sentisse que n�o estava tratando com um retardado
marinheiro de primeira viagem.
O endere�o consta do guia telef�nico?
Sim, claro! respondeu, sem a m�nima convic��o.
Pois ent�o, vamos supor uma coisa, uma suposi��ozinha de nada, uminha s�, e se a
loja ligar pra l�, pra confirmar?
A� voc� corre. Aqui outra gargalhada que o fez chacoalhar por inteiro, estava
adorando me gozar, o puto. Ri tamb�m. N�o, n�o leva a mal, eu tou brincando, n�o
tem problema. Voc� n�o acha que t� um
pouquinho paran�ico? � o seu primeiro servi�o? T� tirando o caba�o?
Claro que n�o, � que n�o tou a� pra embarcar em canoa furada, meu camarada, mas
tudo bem, se voc� acha que vai dar certo, vou pelo amigo, que sabe das coisas, tou
s� fazendo o papel de advogado do diabo,
sacou? Se eu n�o confiasse no teu taco, n�o ia estar aqui, n�o �? O Darcisinho me
falou que voc� � o rei da cocada preta, o terror dos lojistas da pra�a, n�o s� de
Curitiba, mas de todas as capitais do
Brasil.
Isso a�, meu chapa, pensamento positivo, minha intui��o me diz que voc� vai fazer
gol de placa. Se conseguir que eles entreguem a mercadoria hoje, hoje mesmo tamos
com a grana no bolso, tenho um comprador
que paga em verdinha, � s� eu ligar pra ele avisando que a mercadoria t� na m�o que
ele vai apanhar e paga na hora, no cash, n�o tem problema de hor�rio, se for de
noite � melhor ainda.
Se depender de mim, eles entregam a mercadoria dentro de duas horas.
Assim � que se fala, cara, vai l�, vai, com essa f� toda, que eu fico esperando a
loja ligar. aqui ele imitou, em falsete, v�rias vozes simulando secret�rias
atendendo o telefone, cada uma diferente
da outra, La Rosa tinha as suas qualidades polif�nicas, no entanto, bati com os n�s
dos dedos no tampo da mesa.
Voltando � carga. E quanto � que eu vou levar nessa jogada?
Peguei-o desprevenido, achando que j� est�vamos acertados e o assunto resolvido.
Bom, dez por cento t� bom?
S�? Eu fa�o tudo e levo s� dez? Papagaio come e periquito leva a fama?
T� achando pouco?
Uma ninharia.
Que tal o dobro, vint�o?
Melhorou, s� que pra eu ficar satisfeito, e dar tudo certo, tem que ser meio a
meio.
Ele riu, um riso seco, preto, jogou o corpo pra tr�s, inclinando a cadeira,
fazendo-a balan�ar-se em duas pernas apenas. Ele tamb�m j� n�o tinha mais pressa,
tinha esfriado, eu tinha ferido o seu brio,
pisado nos seus calos, enrolar-me, agora, era uma quest�o de honra.
N�o h� como, mesmo, eu paguei o escrit�rio, o telefone, s� a equipe de apoio, que
me esquenta a documenta��o, leva vintinho, n�o tem condi��es. Vinte e cinco por
cento t� na m�o, � pegar ou largar.
Vamos fazer o seguinte contrapropus , rachamos as despesas e as receitas.
Ele riu, sem gra�a, nervoso, verde-musgo, remexeu-se no assento, a sua pressa
compulsiva ou sentimento de culpa cr�nico n�o o deixava resistir � press�o.
Meu Deus, com quem fui me meter? Tudo bem, n�o sou ego�sta, rachamos as despesas,
eu fico com quarenta e cinco e voc� com trinta e cinco, descontado os vinte da
equipe de apoio.
Fiquei mirando fixamente entre seus olhos, s�rio, ele piscou, desviou o olhar, eu
sabia que se engrossasse levaria os cinquenta, mas achei melhor n�o esticar muito a
corda, pelo menos n�o por enquanto.
Ok, topo eu disse. Ele deu um pulo e ficou de p�, todo sorrisos brancos.
Aperta aqui, s�cio. Ele alongou a m�o pequena e molenga, agora suada e fria, pelo
sufoco que eu lhe impingira. Nossa associa��o vai dar bons frutos, vai longe,
amig�o. Depois dessa, n�s vamos partir
pra banco, que � minha especialidade, tou bolando um esquema que vai render uma
nota preta.
Levantei da cadeira e apertei a m�o dele com vontade, pura maldade.
Pode contar comigo, estou pro que der e vier eu disse.
Deixei-o sacudindo a m�o para aliviar a dor e sa� dali direto para a pens�o. Despi-
me, abri um litro de Johnnie Walker e fiquei bebericando at� me embriagar. O jornal
Sangue na manh� seguinte noticiava
a chacina do posto, mas n�o associava esse caso com o roubo do carro e o homic�dio
do estacionamento, as testemunhas do condom�nio descreviam os autores do
assassinato do s�ndico como um velho alto, barbudo,
cabeludo, grisalho e um moreno, atarracado, nenhuma pista conclusiva, outrossim,
nenhuma alus�o era feita ao MONSTRO, n�o era mais not�cia, sa�ra do ar
completamente. Para as autoridades, quanto menos
se falasse dele melhor.
Antes de voltar para a cama novamente, pensei que La Rosa devia estar se
descabelando, reduzindo ainda mais os poucos fios que lhe restavam na cabe�a,
alarmado com o desaparecimento do seu laranja, e Darcisinho,
por sua vez, tamb�m ia chupar o dedo da comiss�o que abatumou, principalmente a que
viria de La Rosa por me ter entregue na bandeja para ser usado, e a evoca��o dessas
imagens me plantou um sorriso nos
l�bios, azulzinho, azulzinho.

Por volta das 11 horas do terceiro dia, depois de banhar-me e vestir-me, tomei a
rua para localizar La Rosa. Enquanto esperava a passagem dos ve�culos para
atravessar a rua para o lado da birosca da Visconde
de Nacar, La Rosa, � porta, avistou-me, fez sinal para que eu aguardasse onde
estava e veio ao meu encontro, apressado.
O que foi que houve, Mano V�io? Por onde � que voc� andou? Foi perguntando ele ao
se aproximar de mim.
N�o sirvo pra laranja, La Rosa.
Puxa, por que n�o me avisou antes? Me deixou esperando, fazendo papel de bobo,
sumiu.
Aquele esquema tava furado, se desse zebra eu ia ficar pendurado no pincel.
N�o ia dar zebra coisa nenhuma, o esquema tava perfeito, voc� � que cagou fora do
penico, sacaneou meio mundo. N�o sei se voc� sabe, mas fiquei mal na parada, o
pessoal cobrou foi de mim.
Que pessoal?
O dono da sala, o pessoal do cadastro, do apoio t�cnico, todo o mundo �
comissionado, tavam contando com a grana.
Tava todo mundo numa boa, na sombra e �gua fresca, o �nico que ia se foder era eu,
n�o �? Arranja outro, n�o entro em canoa furada, ainda mais por mixaria.
Mixaria? Eu bolo tudo, ponho a engrenagem para funcionar. N�o sei se voc� sabe,
mas eram mais de 10 pessoas envolvidas no esquema, voc� s� entra com o corpo, leva
35 por cento e ainda acha que � mixaria?
Essa � muito boa! Qual �, cara, p�e a m�o na consci�ncia, o pessoal t� furioso,
queria devorar o meu f�gado, tou levando voc� de compadre porque � amigo do
Darcisinho, por quem tenho muita amizade e considera��o,
tive que acalmar o pessoal, eles ficaram a fim da sua cabe�a.
N�o dei bola para o que ele disse.
Rachamos ou nada feito, o risco � muito grande.
Por que n�o falou isso ontem?
E n�o falei? Voc� � que me enrolou com o seu papo dez, fingiu n�o tomar
conhecimento do que eu disse.
Risco? Essa � boa, um esquema mumu desses, puro fil� mignon, melhor s� o c�u. E
tem o seguinte, agora � tarde, o esquema t� desarmado, at� armar tudo de novo,
localizar o pessoal, s� pra amanh�.
Que seja, amanh�, fifty-fifty.
Mas ser� que voc� vai aparecer? N�o vai tomar outro ch� de sumi�o?
� s� marcar o hor�rio que eu tou aqui, pontualmente, e voc� tamb�m, n�o � cara? A
regra tem que valer para os dois, no hor�rio, n�o vai querer me dar outro ch� de
banco como fez naquele primeiro dia,
ok?
Voc� � fogo, hem? Leva tudo na ponta da faca, n�? Fifty-fifty? Que seja. ent�o
aperta aqui, s�cio.
Apertamos as m�os, mas antes que eu come�asse a espremer, La Rosa puxou a dele.
Vamos fazer o seguinte, Mano V�io, n�o comenta o incidente com ningu�m, nem com o
Darcisinho, t� legal? Vamos deixar o assunto morrer entre n�s dois apenas. Pra
todos os efeitos, adiamos a opera��o por
problemas t�cnicos, diz que ontem voc� passou mal, lhe deu uma caganeira sem freio,
qualquer coisa do g�nero, sabe como �? Sen�o fica todo mundo de butuca em cima da
gente, tudo bem, Mano V�io?
Por mim, tudo bem.
Podia sentir a humilha��o que sofrera por baixo da sua pseudo-humildade, a sua
pressa em vir ao meu encontro, quando o normal seria me aguardar onde estava para
que eu fosse l� lhe dar uma justificativa.
Gargalhei intimamente, ele devia ter sido alvo do esc�rnio da sua turma. Agora,
dessa forma, pelo menos restabelecia o seu status.
Falar em Darcisinho, n�o viu ele por a� ontem? perguntei.
Te esperou a tarde toda, como voc� n�o apareceu, fomos jogar sinuca na Ordem, ele
deve pintar daqui a pouco, me falou que quer ter um particular com voc�.
Por falar nisso, e o resto da grana? indaguei.
Passei pra ele, ontem mesmo, insistiu que tava precisando, com certeza vai acertar
com voc� depois.
Tudo bem. Vamos tomar uma geladinha para comemorar a sociedade.
Vamos l�.
Cruzamos a rua e entramos na birosca. Antes de nos sentarmos, La Rosa fez umas
apresenta��es, dois caras mal abriram a boca e ficaram me olhando atravessado,
deviam fazer parte da equipe frustrada de La
Rosa, caguei pra eles, j� Terneir�o me deu prazer em conhecer, era um moreno alto,
queimado do sol, vozeir�o espalhafatoso, quarenta e tantos. Aproximou-se de mim e
falou baixinho, ao p� do ouvido:
Ontem o Darcisinho me contou o que voc�s andaram aprontando. Ele e eu, tempos
atr�s, j� trabalhamos juntos e fervemos um bocado tamb�m. deixou a voz chegar ao
tom normal. Tem o seguinte, se � amigo
do Darcisinho, � nosso amigo tamb�m, o Darcisinho � meu irm�o por op��o, vale mais
que irm�o carnal. Voltou-se para La Rosa: O Darcisinho � nosso irm�o, � ou n�o �,
La Rosa?
Claro que �, nosso maninho querido, nossa mascote.
� isso a� disse Terneir�o , eu n�o aprovava a boca de jacar� de Darcisinho,
vomitando tudo pra todo mundo, tinha que estar sempre se exibindo pros outros, n�o
fazia por mal, apenas carecia de aten��o.
E tamb�m dizer todo mundo tem certo exagero, falava para os companheiros de f�, mas
mesmo assim eu era contra, em boca fechada n�o entra mosca, pensei em dar um toque
nele, para que botasse um freio naquela
matraca.
Que que t�o falando de mim pelas costas? disse Darcisinho, entrando no bar.
Podem falar mal, como diz o outro, mas falem de mim.
Olha s�, o desaparecido apareceu. ele me disse. Como � que vai o meu Mano V�io
do peito?
Abra�amo-nos.
Preciso falar com tu depois cochichou no meu ouvido.
Eu tamb�m respondi no mesmo tom.
Terneir�o, La Rosa, pessoal fez um abano geral , o Darcisinho chegou, o pai dos
home marido das muler, nos pequeno dou de prancha e nos grande dou de talho.
�ita gauch�o v�io gritou Terneir�o com seu vozeiro.
Enchi um copo e passei pra ele, virou dum gole s�, enchi de novo. La Rosa sumiu no
interior da birosca com um dos comparsas mal-encarados, tinha livre acesso aos
bastidores. Terneir�o, tamb�m, sumia e
reaparecia. Darcisinho e Terneir�o se agarravam, se tapeavam, se beijavam nas
faces, ou melhor, faziam uma simula��o, beijando o dorso da pr�pria m�o colocada no
local do beijo, sempre um debicando o outro.
Notava-se uma grande e sincera camaradagem entre eles.
Que que �, meu? Vai encarar? Tu � grande, mas n�o � dois. dizia Darcisinho.
Terneir�o retrucava:
Pra brigar com voc�, amarro as duas m�os nas costas, s� vou no p� e dava um chute
no ar, imitando um lutador de artes marciais, com as m�os cruzadas �s costas.
Olha o reumatismo, v�io, numa dessas tu te desanca e n�o apruma nunca mais.
N�o sou o Bruce Lee, mas dou os meus pulinhos, voc� sabe que eu sou faixa preta de
taequend�, n�o �, meu?
Ahhh, �, faixa preta, ele usa uma faixa preta debaixo das cueca pra segurar a
h�rnia. Te assossega, le�o, tu t� mais pra urub� que pra colibri, j� pendurou as
chuteira faz quantos s�culo?
Terneir�o abra�ou Darcisinho e, diante de mim, deu um beijo de verdade na testa do
amigo.
Por esse aqui, �, eu morro peleando. Se ele se meter num bolo, tou no meio, a
bronca tamb�m � comigo. Agora, se ele correr, eu corro junto.
Ca�ram na gaitada, ri tamb�m. Darcisinho desvencilhou-se do abra�o dele.
Tou bem arrumado. Sai pra l�, Terneir�o, tu n�o d� mais no couro, o Mano V�io,
aqui, � que � porreta.
Senti uma chispa de ci�me no olhar de Terneir�o ao ouvir as palavras do velho
companheiro de perip�cias, embora fossem ditas de brincadeira.
T� legal, t� dando uma de puta rampeira agora, trocando o chinelo velho pelo novo,
�? disse Terneir�o.
Darcisinho agarrou-se em mim, fingindo-se de bicha.
O Mano V�io � cal�ado, o teu � um tiquinho, �, � desse tamanhinho, gosto de homem
pi�ud�o.
La Rosa resolveu sair. Na passada, dirigiu-se a mim:
Daqui a pouco tou de volta, me aguarda.
Darcisinho e Terneir�o continuaram de arreganhos por mais um tempo, enchi o saco
com a palha�ada dos dois, pedi um tira-gosto e mais cerveja. Darcisinho e Terneir�o
por fim se aquietaram, encheram os copos
e sentaram-se � mesa que eu ocupava. Assim que Terneir�o se levantou e foi
cumprimentar um conhecido, Darcisinho inclinou-se para o meu lado.
O La Rosa t� tiririca com tu, t� com tu no bico dele. O homem n�o merecia, Mano
V�io, La Rosa � gente fina, meu irm�o.
J� nos entendemos, o neg�cio s� foi adiado por problema t�cnico, vai sair amanh�.

Ah, �? Ent�o retiro o que eu disse, tou metendo o bico onde n�o sou chamado, tou
por fora. S� que tem o seguinte, aprontou pra ele, aguarde o troco porque ele n�o
esquece, o homem � legal e coisa-e-tal,
mas � ruim que nem cobra, vingativo pra caramba, mas se se acertaram, �timo, mesmo
assim te cuida. Tou metendo a colher porque gosto dos dois, quero mais � que voc�s
se acerte.
J� tamos acertados, n�o tem mais enrosco.
Que tanto cochicho � esse a�? Por acaso os pombinhos t�o tendo um caso? falou
Terneir�o.
Isso � conversa de homem, gay n�o tem vez retrucou Darcisinho.
Gay tu vai ver, fica de quatro a� que eu vou te mostrar quem � gay.
Sai fora, a tua muler me bateu, e n�o pediu segredo, que tu n�o levanta h� mais de
ano com ela, por isso virou de sexo. Do jeito que ela tava necessitada, n�o d� pra
duvidar.
Come�aram tudo de novo, peguei meu copo e fui pra porta da birosca. La Rosa n�o
demorou a retornar, quando me viu, de longe, mostrou o polegar pra cima.
T� tudo armado de novo, amanh� �s 10, ok?
Ok.

No in�cio da tarde, La Rosa, Terneir�o, Darcisinho e eu fomos para uma sinuca da


Ordem. La Rosa e Darcisinho eram os melhores de n�s, Terneir�o e eu apenas
contrapeso para formar duplas, La Rosa e Terneir�o
contra Darcisinho e eu. Depois remanej�vamos, La Rosa e eu contra Darcisinho e
Terneir�o. Como o meu lado perdia sempre, pode-se concluir que o ruim era eu, o
rasga-pano, o taco-duro. O pessoal que chegava,
vinha cumprimentar os meus companheiros, ou acenava de longe, eram muito populares
e considerados, os tr�s.
Nisso, l� pelo meio da tarde, chegou o famigerado Dila, acompanhado de uma mulher
fant�stica, deu para ver de cara que o homem era importante, pois foi aquele
suspense na sua entrada, todo mundo fazendo
quest�o de cumpriment�-lo, at� o dono da sinuca foi prestar-lhe homenagens.
Darcisinho ficou excitado, piscou o olho para mim v�rias vezes, correu a fazer as
apresenta��es. Convidou o casal para jogar
conosco, insistiu tanto que o par acabou aceitando, o que era sinal de alta
defer�ncia no meio. Formamos tr�s duplas, Darcisinho e eu, La Rosa e Terneir�o,
Dila e a mulher, Teca. Enquanto jog�vamos, Darcisinho
fazia m�mica nas costas de Dila, ora baixando o polegar, significando que ele n�o
era de nada, abria as m�os distanciadas e balan�ava, me apontando, significando que
o meu era maior. Comecei a ficar preocupado,
os seguran�as de Dila tinham ficado, uns l� fora e dois c� dentro, perto da porta
de entrada. Como o chefe estava entre amigos, eles relaxavam a guarda, por isso n�o
tinham percebido as insinua��es de
Darcisinho.
Pare quieto que o homem pode desconfiar intimei-o num cochicho.
Maneirou um pouquinho s�, depois continuou fazendo caretas e botando a l�ngua para
fora nas costas do Dila. La Rosa e Terneir�o tamb�m notaram o desacato velado e
faziam sinais disfar�ados para ele parar,
mas n�o adiantava. Mesmo algu�m das rela��es do Dila, ali da volta, podia se
antenar, interpretar mal, tomar as dores, fazer lamban�a, sei l�, e a coisa acabar
fedendo. Eu j� estava prevendo furdun�o a
qualquer instante, bastando o Dila encrespar, eu j� tinha lobrigado as pistolas
autom�ticas debaixo do sovaco dos goril�es da porta. Darcisinho estava muito
confiante na sua navalha, confian�a que crescia
a cada copo de cerveja. Eu, da minha parte, estava limpo, s� com a roupa do corpo,
ia ser foda. Ou o comportamento de Darcisinho era admiss�vel entre eles, pelo tempo
da amizade, estando eu por fora,
total e geral? Ou talvez Darcisinho fosse o bobo da corte e ningu�m ligasse para as
suas zombarias, esperando, ao contr�rio, um desempenho cada vez mais histri�nico?
Ou o isolamento prolongado me tirara
a capacidade de curtir a conviv�ncia descontra�da dos outros? Em todo caso, fiquei
atento.
Dila era um mulato forte, narigudo, cinquenta e tantos, cabelo emplastrado de
brilhantina e dono de uma calma impressionante, parecia atuar em c�mara lenta, como
um bicho pregui�a, at� a voz era arrastada.
Quando come�ava passar o giz na ponta do taco, a gente sentava e contava at� mil,
dois mil, enquanto ele contava um causo ou fazia um coment�rio, sempre jocoso.
Conforme Darcisinho me informou depois,
ele era dono de uma casa noturna, explorava prostitui��o e fazia tr�fico de drogas,
tinha acumulado um patrim�nio consider�vel ao longo dos anos, e um poder que
poderia ser maior se n�o fosse o seu jeit�o
pachorrento de fazer tudo a passo de tartaruga, talvez at�, numa corrida entre os
dois, ele e a tartaruga, n�o sei, n�o. Ora, esse seu modo de ser se refletia nos
neg�cios, que iam, mas iam devagar, quase
parando, embora, sempre.
Darcisinho n�o estava nem a�, e quando a mulher, a tal de Teca, se debru�ava sobre
a mesa, arrebitando o rabo fabuloso, ent�o, sim, ele extrapolava, e todos n�s, sem
ter onde meter o olhar, em respeito
a Dila, perd�amos o rebolado, sem jeito e sem gra�a. Ela ia dando as suas tacadas
e, a cada bola enca�apada, vibrava com gritinhos e pulinhos de comemora��o, e suas
n�degas tremelicavam juntas numa provoca��o
diab�lica, e a gente ali naquele olha-n�o-olha, para que Dila n�o levasse a mal. A
cada flex�o do corpo dela, a barra do vestido subia mais um pouquinho, deixando,
por ef�meros momentos, aparecer uma nesga
da calcinha rendada vermelha, flashes que nos ofuscavam e faziam imaginar o
esplendor que seria desfrutar daquele para�so proibido, enquanto ela, para manter a
classe, continuadamente era obrigada a dar
pux�ezinhos na barra do vestido para encobrir as coxas fulgurantes. Darcisinho,
agora mais precavido, procurava se manter na retaguarda de Dila para escamotear
deste as suas micagens maldosas, podia ser
louco, mas n�o era bobo. Acredito que Dila, por ser homem tamb�m, dava um desconto
a todos n�s, principalmente a Darcisinho, fazendo vista grossa �s suas insinua��es
visuais, at� porque j� devia estar
acostumado, se trazia sempre Teca junto de si, imagina se fosse engrossar com cada
homem que botasse os olhos nela? N�o teria sossego, passaria o resto da vida se
incomodando, e depois seria praticamente
imposs�vel para ele conter todos os olhares gulosos dirigidos � mulher, com aquele
rabo de para-raios.
Dila era gente fin�ssima, a tranquilidade em pessoa, n�o estava nem a�, era mais
f�cil ele, com a sua calma, bulir com os nervos de quem estivesse por perto do que
se sentir atingido por uma extrapolada
qualquer. A presen�a de Teca era em si uma situa��o complicada, mas azar de quem
n�o tivesse autocontrole, n�o fosse capaz de segurar o animal que habitava dentro
de si, ent�o tinha que se ralar mesmo.
Eu avaliava o casal, disfar�adamente, e n�o podia deixar de considerar que, se Dila
transferisse toda aquela modorra ao ato, permanecendo horas e horas no intercurso,
estaria a� explicado o seu sucesso
com as mulheres, que, via de regra, detestam os homens r�pidos e rasteiros,
galiformes por excel�ncia.
Darcisinho agora, a cada vez que Teca pegava o taco, entrava em transe, esperando
ela se debru�ar sobre a mesa para jogar, devorando a bunda da mulher num arregalar
de olhos, juntando as m�os no peito,
como se estivesse tendo um ataque do cora��o, e jogando a cabe�a para tr�s como se
fosse desmaiar.
Teca come�ou Darcisinho , tu t� cada vez mais gostosa, muler, se tu n�o fosse o
cacho do meu compadre Dila, a� n�s ia botar pra quebrar, n�o � benzinho?
Teca assoprou um beijinho para ele, num gesto afetuoso.
Claro, amorz�o, tamb�m sou gamadona em voc�, qualquer dia eu mudo de id�ia e a
gente foge pra Bahia, minha terra natal.
A� eu vou ver o que � que a baiana tem?
Isso a�, amorz�o.
O que est� se passando, a�, ����� xeeente, n�o tou gostando desse papo, n�o.
disse Dila pachorrentamente, levando a brincadeira adiante �����, Darcisinho,
deixa de dar em cima da minha muler, seu
capeta.
N�o leva a mal, n�o, painho, antes de eu fugir com ele lhe dou aviso com
anteced�ncia de trinta anos.
Todos rimos para aliviar a tens�o. Teca tinha corpo de viol�o, nem mais nem menos,
voz de contralto, adocicada, vinte e poucos, mulata de pele clara, cabelos crespos,
abundantes e longos, rosto afogueado,
olhos gra�dos e castanho-escuros, superc�lios espessos, nariz mi�do e reto, e uma
boca. meu compadre, com dois bei�os carnudos, revirados para fora, pintados de
vermelho, que sugeriam aquelas proezas
fenomenais que efetivamente seriam capazes de executar, nem mais nem menos.
Modelando o corpo perfeito, com tudo no lugar, um vestido simples, de malha, preto,
curto e justo, que deixavam suas pernas consistentes
� mostra, e envolvendo o pezinho tamb�m de unhas vermelhas uma sand�lia de salto
alto com tiras pretas que se enroscavam at� a metade da perna, deixando vincos, o
peda�o de mau caminho que azara qualquer
um. O tal do Dila � que estava com tudo e n�o estava prosa. Quanto mais o tempo
passava mais a presen�a de Teca foi crescendo, dominando tudo e todos, sempre
sorrindo, simpatic�ssima, enca�apando bem as
bolas de dificuldade m�dia, e, como todos n�s, bebendo cerveja acompanhada de tira-
gosto. Dila era o �nico que casava a cerveja com steinh�ger.
Para ser franco, eu j� nem olhava mais na dire��o dela, pois me causava mal-estar
ver aquele avi�o de mulher ali t�o perto. N�o olhando era como se ela tivesse se
afastado da sinuca, voado pela janela,
tomado os c�us, para fora do planeta, a milhares de anos-luz das minhas m�os e do
meu desejo. Quando resolvi ir ao banheiro, Darcisinho suspendeu o jogo, gritando,
numa convoca��o geral:
Mandrake bombeirinho!
Ningu�m se recusou a ir, pois a cerveja � esse diur�tico implac�vel que n�o escolhe
pelo. No mict�rio, Darcisinho n�o teve d�vida, sem a menor cerim�nia, come�ou a
medir pau. Postou-se entre mim e Dila
e olhando, ora pro meu, ora pro dele, tirava as suas conclus�es. Eu pr�prio tamb�m
espichei o olho para o lado, e acho que Dila tamb�m fez o mesmo, espiada discreta
no descuido do outro. Terneir�o e La
Rosa, que ocupavam os espa�os nas nossas costas, mantiveram-se neutros. Para
resumir, as picas, moles, regulavam de tamanho, talvez o dele um tantinho mais
comprido, o meu mais grosso, agora faltavam ser
vistos duros para se tirar as d�vidas. Guardei o meu, Dila o dele, sorridente,
tinha uma paci�ncia e um humor de J�.
Aposto cinco mil e pego o Mano V�io Darcisinho fazia o repto, La Rosa e Terneir�o
toparam apostar.
Como j� conheciam a fama do Dila, tamb�m conhecido como Trip�, ou Perna de Mesa, e
n�o tinham olhado o meu, pediram para ver, como me recusei, fecharam a aposta com
Darcisinho, contra mim.
Que � isso, minha xente? disse Dila. V�o deixar o rapaz constrangido, garanto
que o meu � tiquinho perto do dele, vamos deixar pra l�.
Uma mod�stia estudada de quem tem certeza de que j� ganhou.
Vamos fazer o seguinte, pessoal, noutro dia a gente faz as medi��es, t� legal? eu
disse, querendo ganhar tempo. Hoje tou prejudicado, trepei a noite toda, o
Darcisinho sabe disso, e n�o levanto nem
com banda de m�sica.
Dila sorria, sorria, sem responder nada, confiante, tolerante, parecia um
pistoleiro do faroeste, acostumado a cotejar, sempre tinha algu�m querendo ser
melhor que ele, mas a fama de ser o rei do gatilho
fazia-o vencer todos os desafios.
Vamos marcar pra sexta-feira prop�s Darcisinho entusiasmado , na boate do Dila,
combinado?
Combinado responderam todos.
�pa protestei eu, corrigindo a tempo , agora tou lembrando que nesta sexta n�o
vai dar, n�o, j� tenho um compromisso, s� na pr�xima, a� tudo bem.
Dila sorriu mais uma vez, abanando a cabe�a.
Que que � isso, pessoal, o rapaz n�o t� gostando da brincadeira, nesse caso eu
tamb�m tou fora interp�s, recusando-se a competir, talvez imaginando que eu
quisesse fugir da raia, ou n�o passasse de
figura��o como muitos por a�.
Todos concordaram com a altera��o de data e ficou estabelecido que, se Dila
ganhasse, Darcisinho e eu ter�amos que pagar cinco paus a cada um deles, se ao
contr�rio, eles tr�s � que teriam que nos pagar
o mesmo valor. Voltamos para o jogo. Em dado momento, o meu olhar e o de Teca se
cruzaram, e ela sorriu para mim, piscando um olho, era apenas uma manifesta��o de
simpatia, sem mal�cia nenhuma, mas senti
um cutuque nos bagos, seria um sinal de vida depois de tanto tempo? Estaria o
gigante adormecido querendo despertar?

Na hora combinada, fui � loja do turco e s� n�o a carreguei por inteiro porque n�o
deu para arrancar o pr�dio do lugar. S� que agora havia uma diferen�a nessa jogada,
eu era s�cio de La Rosa. A nota fiscal
bateu nos 68 mil, La Rosa conseguiu repassar tudo por 20, em cash, assim me disse
ele, e n�o me interessei em tirar isso a limpo, pois o objetivo a que eu me
propusera tinha sido atingido. Mesmo que ele
estivesse levando alguma vantagem por baixo dos panos, o que era quase certo, n�o
passava de uma tentativa de recuperar os preju�zos. Ele que ficasse com a impress�o
de que, no frigir dos ovos, levara
vantagem, para mim, o volume da picaretagem n�o fazia o menor sentido, o que me
interessava era ampliar o c�rculo de relacionamentos.
Devia haver algum peixe gra�do por tr�s de La Rosa, possivelmente ainda acima do
tal receptador que comprara a muamba, ele e sua equipe n�o passavam de testas de
ferro, e aquele n�o passara de mais um
golpezinho med�ocre para minorar a fome da arraia mi�da. Para quem estava por fora
do esquema como eu, at� que j� fizera algum progresso, de gr�o em gr�o a galinha
enche o papo. Esperava agora a pr�xima
opera��o, que seria em um banco. Estaria por perto para conferir.

Darcisinho, Terneir�o, La Rosa e eu nos encontr�vamos quase que diariamente na


birosca da Visconde de Nacar. La Rosa mostrava-se entusiasmado comigo, achara
excelente o meu desempenho, bem al�m das suas
expectativas, e se preparava para a pr�xima opera��o, na qual pretendia me incluir,
em breve, desta vez em um banco. Os bancos eram sua especialidade, e a trampa ia
ser mais demorada, uma vez que exigia
tramita��o de papelada, mas bem mais lucrativa, sua estimativa era fazer render uns
100, 150 paus, para ser dividido em dois.
Reserva um pau para abrirmos a conta na semana que vem ele me recomendou.
Vamos abrir a conta com quanto?
Um pau.
Ent�o eu reservo 500 e voc� mais 500. � tudo meio a meio, meu chapa.
Voc� � fogo, hein? Ent�o j� fica com a minha parte.
Contou o dinheiro e me passou, mais valia prevenir do que remediar, v� que se
pelasse no bingo e n�o tivesse cacife pra honrar sua parte. Logo, era melhor
garantir a sua participa��o desde agora. Ele sabia,
de antem�o, que eu n�o ia lhe dar moleza, come�ava a aprender.
Est�vamos em meados de novembro, com a proximidade das festas de fim de ano, a
cidade se eletrizava, as pessoas corriam para l� e para c� feito baratas tontas.
Darcisinho puxava um carro atr�s do outro,
faturando alto, Terneir�o e La Rosa tamb�m estavam fren�ticos, pois a �poca era
prop�cia a qualquer forma de cambalacho, e n�o dava para marcar bobeira.
Abri a conta no banco com um dep�sito de mil reais, seguindo a orienta��o de La
Rosa, que me passara uma pasta contendo a documenta��o completa da empresa e de
seus s�cios. La Rosa apresentou-se como diretor
financeiro, e a mim como diretor-presidente de um grupo imobili�rio que abrangia
uma construtora-incorporadora, uma imobili�ria e uma firma de engenharia e
projetos, que estava se implantando na cidade,
oriundo de S�o Paulo. Conjuntamente foram abertas contas de pessoas f�sicas e
jur�dicas, sem que sequer fosse necess�rio dep�sito, levamos original e xerox do
contrato social, balan�os, escrituras de propriedades,
a��es e ap�lices de seguros, negativas estaduais e federais, tudo esquentado pela
equipe de apoio. A lista de patrim�nio dos s�cios fez os dois gerentes bobos
alegres que nos atendiam arregalar os olhos,
por pouco n�o sentaram no nosso colo, nos prometeram mundos e fundos, era s� uma
quest�o de tempo, tudo ia depender da aprova��o cadastral.
Eu, da minha parte, mantinha uma pose compat�vel com o meu status, inflando o
peito, olhando sempre por cima. La Rosa sentia-se � vontade dentro de uma ag�ncia
banc�ria, conhecedor que era dos seus meandros,
saiu pedindo um cheque especial e cart�o empresarial com limites m�nimos de 10 mil
negativos, idem para cada s�cio, com limites m�nimos de 5, o encaminhamento do
cart�o ia demandar um tempo mais prolongado,
em torno de 30 dias, j� a libera��o do cheque especial se daria logo ap�s a
aprova��o do tal cadastro, coisa de uma semana no m�ximo. La Rosa tinha um estilo
todo especial para tratar de neg�cios, que
me obrigou a tirar o chap�u para ele, enquanto formulava as exig�ncias de
reciprocidade, mencionando os valores que a firma ia movimentar com os dep�sitos e
a carteira de cobran�a, fazia cara de nojo,
como se os limites que o banco estavam nos liberando fossem coisas de somenos
import�ncia, bem diferentes das altas transa��es a que a firma e n�s ambos
est�vamos permanentemente envolvidos e acostumados
a tratar, mas que, enfim, era uma circunst�ncia da qual n�o havia como escapar, se
ele que era o encarregado das finan�as do grupo n�o o fizesse quem carregaria as
pedras, afinal? Essa atua��o dava �timo
resultado e as trocas de olhares entre a dupla de gerentes davam a impress�o de
terem descoberto o caminho da ro�a, possivelmente seria a empresa que daria melhor
retorno � ag�ncia, pelo seu volume de
neg�cios, e isso era muito bom.
La Rosa mentia t�o descarada e abundantemente que me preocupava se teria mem�ria
para se lembrar de tudo no futuro, caso fosse cobrado em algum momento, eu, da
minha parte, tentei inicialmente memorizar
parte desse acervo, mas desisti em seguida, pois seria tarefa para um banco de
dados de computador, n�o menos. No mais, La Rosa se relacionava f�cil e ia
conquistando simpatias, fazia um trabalho de aliciamento
de magn�fica simplicidade, sempre sorrindo, contando piadas, dava chaveirinhos de
brinde para os caixas que nos atendiam, aqui, agendas sofisticadas com capa de
couro para os gerentes, ali, cart�es-calend�rios,
canetas, r�guas e mais chaveiros para quem cruzasse na sua frente. Conforme
palavras suas, estava fazendo um marketing de divulga��o, sedimentando a marca da
empresa no mercado paranaense, a come�ar pelo
universo da ag�ncia banc�ria. Todo o material, em nome da firma, tinha sido
impresso em uma gr�fica integrada ao nosso esquema, em quantidades reduzidas, mas
de alt�ssima qualidade, apenas para atender
�s necessidades moment�neas. Em uma semana, a firma j� era conhecida de todos os
funcion�rios da ag�ncia, e La Rosa tamb�m. Deixamos ainda os nossos sofisticados
cart�es de visitas com a ger�ncia e os
encarregados do departamento de cadastro, a cada dois dias ele fazia uma visita �
ag�ncia, batia um papo com os gerentes, sondando, para saber da data em que eles
iriam � nossa sede, para conhec�-la, ofereceu-se
em mandar um motorista com o carro da firma para vir apanh�-los, os gerentes
estavam atarefad�ssimos com o fechamento do balan�o da gest�o anual da ag�ncia e
protelavam a visita.
Fazendo ainda o papel de advogado do diabo, eu detectava v�rios furos no plano
geral, mas quando ia falar, ele me impedia.
Se voc� n�o faz as coisas com certeza de vit�ria, nem tente, voc� � muito
pessimista.
Errado, eu sou realista, � diferente. E n�o me venha com esse papo de autoajuda
que comigo n�o funciona.
Vai por mim que voc� vai bem. Os caras referia-se aos gerentes j� est�o na minha
m�o, mais um ou dois dias e eles j� estar�o fazendo o cr�dito na conta.
Sem que eles fa�am uma comprova��o do escrit�rio regional e da sede em constru��o?
Sem conferir a matriz de S�o Paulo? Duvideod�.
S� v�o ligar para a matriz, isso se ligarem, e se o fizerem, os nossos
colaboradores de l� estar�o dando as informa��es que pedirem.
J� faz quinze dias e at� agora, nada, garantiram que em uma semana j� estariam
liberando.
� que � fim de ano, S�o Tom�, nessa �poca � foda, meu, t� todo mundo querendo
tirar o pai da forca, aguarde e ver�, mas n�o perca a f�, sen�o. Olha, meu, s� eu
fazendo concentra��o positiva, � muito
cansativo para uma pessoa s�, p�, voc� precisa me ajudar nisso, � meu s�cio,
concentre-se.
A recomenda��o dele era para que eu imaginasse os gerentes na minha frente dizendo
sim a todas as nossas exig�ncias e pedidos, mas que fizesse isso com uma
concentra��o profunda, para que a energia positiva
fosse emanada e influenciasse os caras.
O pior � que eu os imagino somente dizendo n�o eu retrucava. Quem sabe se a
gente fosse a um terreiro encomendar um trabalho de batuque, n�o seria mais r�pido?

Puxa, voc� � fogo, mesmo, hein?


Mas, como num passe de m�gica, e para a minha perplexidade, os gerentes estavam t�o
confiantes na nossa performance que no dia seguinte ligaram para La Rosa, pedindo
que mand�ssemos apanhar os contratos
para assinar.
Eu n�o disse? EU N�O DISSE, PORRA? gritou La Rosa, vibrando com a sua vit�ria.
Era com isso que eu n�o concordava, contar com o fator sorte, a coisa tinha que ser
mais t�cnica, se os gerentes n�o fossem t�o babacas, e n�o houvesse a lufa-lufa de
fim de ano, n�o teria dado certo,
apenas por estarem sobrecarregados n�o nos visitaram, caso o fizessem, iam
encontrar o qu�? Um escrit�rio mixuruca, alugado por temporada de um a tr�s meses,
com uma recep��o e uma recepcionista, cada
uma mais acanhada que a outra, uma sala de diretoria despojada, mas jamais a Sala-
Da-Diretoria-De-Um-S�lido-Grupo-Imobili�rio que faz�amos crer que fosse real.
Poder�amos at� alegar que a sede era provis�ria
e tal, mas mesmo assim eles poderiam ir �s obras da constru��o da sede da
construtora-incorporadora, na BR-116, e l� o qu� achariam? Apenas um terreno cheio
de mato, ou seja, se eles fossem pesquisar a
empresa a fundo, todo o golpe desandaria como o bolo quando a porta do forno �
aberta antes do tempo de cozimento. Ningu�m conseguiria engolir tanto pedregulho,
ademais, uma coisa puxa a outra, se fossem
verificar a autenticidade da documenta��o, as certid�es de propriedades em
montagens de xerox, j� iriam direto � delegacia mais pr�xima.
No entanto, se a gente esquentasse mais a coisa como eu pretendia, o retorno seria,
tamb�m, proporcionalmente maior, e a teta poderia ficar dando leite por um per�odo
bem mais prolongado, mas para La Rosa
tempo era uma coisa que n�o contava, ele estava sempre com pressa, tudo para ele
tinha que ser para ontem, aqui e ontem. Mostrei isso a ele, menos o que se referia
� sua peculiaridade temporal.
S� que tem o seguinte, meu camaradinha retrucou, com a sapi�ncia dos vencedores ,
em estelionato voc� tem que contar com duas coisas, sempre. Primeiro, envolvimento
psicol�gico bem feito, e nisso
voc� viu como eu caprichei, ningu�m escapa da minha teia, voc� me conhece, foi
testemunha, eu tava com os homens na palma da minha m�o, bem seguros pelo rabo;
segundo, sorte, sorte, muita sorte, meu amigo,
� fundamental.
Negativo discordei. Na minha opini�o, voc� tem que minimizar o fator sorte quase
a zero, quanto ao lado psicol�gico, admito, � primordial, assim, se a gente
trabalhar com uma margem de erro pequena
ou pr�xima de zero, sei que � mais dif�cil, exige maiores gastos e organiza��o,
mais tempo, mas o trambique fica mais vi�vel, esquenta, vai ser gol sempre, e o
retorno ter� uma progress�o geom�trica em
vez de aritm�tica.
La Rosa me encarou duro.
Deu certo ou n�o deu?
Deu.
E ent�o? O que voc� quer mais? Mano V�io, voc� � muito purgante, quer perfei��o.
Deixa pra l�, meu, mas agora imagina se eles fossem checar o cadastro da empresa a
fundo? Se fossem pedir pra matriz de S�o Paulo verificar os dados fornecidos? Se
tivessem feito uma visita ao escrit�rio
da empresa ou �s obras da sede regional? Pensa nisso. Teria dado certo?
Se, se, se, estar�amos chupando o dedo continuou me olhando, impass�vel,
esperando eu terminar a minha perora��o. Deu certo ou n�o deu?
Dei de ombros.
Ent�o, meu chapa, ponto final, acabou, quer ficar discutindo o sexo dos anjos? Cai
na real, Mano V�io, acabou e deu tudo certo, PT sauda��es, n�o se fala mais no
assunto, ok?
Estava enfunado de raz�o, parecia um pav�o exibindo o rabo em leque, ou melhor,
Tarz�, dando o seu brado de triunfo e batendo no peito. Mesmo contrariado, dei-lhe
os parab�ns, afinal de contas o assunto
estava encerrado, mesmo. Fomos desfrutar o resultado, fiquei esperando por ele em
um bar pr�ximo � ag�ncia. La Rosa trouxe os contratos, ele mesmo carimbou e assinou
no meu lugar, tinha uma habilidade
incr�vel para imitar assinaturas, qualquer uma, bastava treinar um pouco.
Haviam liberado limite de cheque especial, em conta devedora, at� 20 mil, em nome
da firma, outro limite de cheque especial de 10 mil para a pessoa f�sica do
representante da firma, cart�o de cr�dito com
limite de 12 mil, jur�dico, outro de 8 mil para o diretor-presidente, al�m de um de
5 mil para o diretor-comercial, mais ainda, a firma poderia descontar cheques pr�-
datados, sem limite de valor, com libera��o
de at� 80% do montante apresentado, a uma taxa especial�ssima, abaixo da de
mercado. O banco decididamente estava disposto a manter o grupo como cliente por
muitos e muitos anos.
La Rosa j� pegara tamb�m boletos de border�s para entrar com os cheques em seguida,
come�aria as remessas no dia seguinte, poderia apresentar toneladas deles, estava
euf�rico.
Sabe o que isso representa? Vamos ultrapassar um milh�o nessa ag�ncia, depois
vamos ter de sumir por uns tempos, tirar f�rias, mas o ver�o ta� mesmo, foi feito
pra isso, s� n�o podemos esquecer da comiss�o
do pessoal, temos que calcular e fazer o repasse conforme for entrando o numer�rio.

Ent�o era assim, �amos ficar engatados com os caras at� o final?
Claro, Mano V�io, faz parte do acordo que eu fiz com eles, todo o financiamento da
opera��o veio deles, logo.
Por que voc� n�o me falou antes? A gente podia ter bancado o esquema.
N�o adianta crescer o olho, � dando que se recebe.
Quanto eles v�o levar?
Trintinha.
O qu�? Subiu? N�o era vinte? N�s trabalhamos, carregamos as pedras e eles � que
lucram?
Tem mais, Mano V�io, tem mais, esse n�o vai ser o nosso �ltimo trabalho juntos.
N�s precisamos do respaldo deles, s�o profissionais, cara.
Resolvi engolir mais essa.
Aperta aqui disse ele.
Apertamos as m�os, desta vez n�o a espremi. Ele falou solene, olhando-me nos olhos.

O meu amigo Mano V�io � p�-quente, fazia muito tempo que eu n�o dava uma dentro
dessas, andava numa mar� de azar do caralho, eu at� parece que tava pressentindo.
N�o disse que a nossa sociedade ia
render bons frutos? Depois desabafou, soltando a franga: ���, beleza, agora n�o
tem mais puta pobre na zona.
A sua express�o de alegria era verdadeira, e a afei��o mostrada em rela��o a mim
tamb�m, a seta de rancor que me dirigira anteriormente estava congelada no ar, pelo
menos temporariamente, eu s� n�o podia
precisar por quanto tempo ainda ela ficaria hibernando.

Entrementes, como uma bomba, uma not�cia surpreendeu e consternou os bas-fonds


curitibanos. Um motoqueiro dera tr�s tiros no peito de Dila, � entrada da sua casa
noturna, de madrugada, matando-o na hora.
Era evidente que fora servi�o encomendado. O motoqueiro fugiu em alta velocidade,
n�o dando chance aos seguran�as de Dila se co�arem, o IML s� foi liberar o corpo na
tarde do segundo dia, e centenas de
amigos compareceram ao vel�rio, que aconteceu numa das capelas do cemit�rio da �gua
Verde.
Dila era muito considerado no meio, inclusive na ala da m�o-molhada da pol�cia,
embora tido como ultrapassado e reacion�rio. Pressentia-se mudan�as no ar. O boato
imediato que correu era que um desafeto
e concorrente, o Carl�o da Branca, tinha mandado fazer o servi�o, querendo ampliar
um mercado do qual Dila tinha apenas uma pequena fatia. Dila, com a idade,
amolecera, preocupava-se mais com o bem estar
das mulheres que o rodeavam do que com o tr�fico, e Teca, diziam as m�s l�nguas,
era a causadora dessa frouxid�o, prejudicando assim o lucrativo neg�cio das drogas.
Na opini�o de alguns, Dila sempre andara
com o freio de m�o puxado, mais devagar s� parado, de modo que foi uma exce��o ter
sido t�o r�pida a viagem dele para a cidade dos p�s juntos. Agora dava para
perceber que tinha muita gente de olhos bem
abertos, atenta para os novos tempos. Das duas uma, se Carl�o tivesse ades�o da
maioria dos comparsas de Dila, a coisa morreria por ali, sen�o, ia feder, e a
cidade ia virar um campo de guerra.
Quando chegamos ao cemit�rio, as putas, reunidas em um canto, choravam, choravam.
Teca estava inconsol�vel.
Tou preocupado � com essa mulher dizia Darcisinho. Como � que um avi�o desses
vai ficar agora sem voar? Sem consolo nenhum?
N�o vai ser f�cil substituir o Dila falou Terneir�o , o homem era aleijado, n�o
tinha a perna esquerda. Voc� vai pegar na al�a do caix�o e sentir o peso, metade se
deve ao cacete.
N�o diz besteira, Terneir�o, o pau do Mano V�io � maior que o do Dila.
Agora n�o d� mais pra medir, n�? retrucou Terneir�o. O Mano V�io ficou se
mancando, marcou a medi��o duas vezes e n�o compareceu.
N�o compareceu porque o home tinha compromisso, uai, o home � ocupado, p�, mas �
cara de palavra, ele n�o tinha bola de cristal pra saber que iam apagar o Dila, n�o
�? Agora, tem o seguinte, se o do
Mano V�io era maior mole, ia ser maior duro, � �bvio.
De jeito nenhum, tem uns que crescem mais que outros, mesmo sendo menor quando
mole, e, al�m do mais, pelo que me consta, o do Dila � que era maior mole.
Negativo, voc�s nem chegaram a ver porque o Mano V�io n�o quis mostrar. Agora, eu
vi e dou o meu testemunho, o do Mano V�io era maior e mais grosso.
Puxa, mas voc�s entendem de cacete pra caramba, hein? Parece congresso de bichas
aparteou La Rosa, sarc�stico. Coitada da Teca, vou ter que dar o meu apoio moral
para ela. e afastou-se na dire��o
do cacho de Dila, seguido por Terneir�o.
Est�vamos distanciados da multid�o formada nos arredores da capela, mas Darcisinho
atra�a muitos olhares e risos. Tanto ele quanto Terneir�o e La Rosa tinham muitos
conhecidos entre os presentes e passavam
apertando m�os e trocando abra�os, parecia o Festival da Bandidagem, e eles, os
mestres-de-cerim�nias, pois n�o faltava quase ningu�m importante.
O cacete do Mano V�io � o maior caralho de Curitiba desafiou Darcisinho, cantando
de galo. Queria ver algu�m contrari�-lo, quem podia contestar estava abotoado no
pijama de madeira. Tou com ele e
n�o abro, e depois tem o seguinte, s� a Teca � capaz de desempacar essa aposta
agora. Mano V�io, voc� vai ter que tocar o ferro na boneca, a Teca pode dizer com
certeza qual era o maior, melhor que ela
n�o tem, n�o � mesmo?
Vamos respeitar o falecido falou um baixinho entroncado, metro e meio , o
presunto mal esfriou, muito precisado de reza, e os danados j� t�o de olho na
mulher do cara? Mui amigos, hein?
Maurinho Gigante! gritou Darcisinho, e os dois se abra�aram, dando fortes tapas
um nas costas do outro. Era dif�cil distinguir quem era o mais alto dos dois, com
boa vontade Darcisinho devia ter meio
mil�metro a mais de altura.
Quanto tempo, hein, irm�o velho? Tava com saudade de tu, cara, tu sabe que eu
sempre fui apaixonado por tu, n�o �, meu irm�o?
Iiiichhhh, rapaz. �, Darcisinho, v� se se flagra, voc� t� parecendo uma bicha
desvairada que n�o pode ver homem que se amolece toda, voc� vai cair na boca do
povo se n�o maneirar, meu chapa alfinetou
Terneir�o, j� de volta e envolvendo o tal Maurinho com seus longos bra�os.
Darcisinho, por milagre, n�o lhe deu bola e apresentou-me a Mauro Gigante.
Esse aqui � o Mano V�io, irm�o da gente.
Tamb�m t� de olho no avi�o? Como � gostosa essa mulher, meu Deus! disse Mauro
Gigante, me apertando a m�o. Se � irm�o do Darcisinho � meu irm�o tamb�m.
Esse aqui falou Darcisinho , � o candidato natural da Teca, tem um cacete maior
que o do Dila. Voc� sabe, n�, buraco que o Dila entrou t� estragado pra sempre.
Eta, cuiud�o v�io disse Mauro Gigante rindo, mostrando dentes alinhados, mas
escurecidos pela nicotina , tem mais � que se empernar com essa gostosona, ela
ainda t� se virando? fez a pergunta para
Darcisinho.
O qu�? Imagina se o Dila ia deixar algu�m tocar na muler dele, bem capaz. Ele
tirou ela da zona faz tempo, alguns anos, ela tava s� no bem-bom.
Eu tou por fora retrucou Mauro Gigante , fazia um temp�o que n�o via o Dila, que
n�o tinha not�cia dele, at� que ontem.
Terneir�o o interrompeu, fazendo o seu vozeir�o se sobressair e apontando para
Darcisinho:
Te cuida com esse a�, virou a casaca total, depois que conheceu o Mano Veio, n�o
sei qual � a dos dois.
Darcisinho ia retrucar, mas La Rosa aproximou-se. Depois dos cumprimentos calorosos
trocados com Mauro Gigante, despediu-se dizendo ter muito trabalho a fazer.
Cochichou-me que na manh� seguinte j� ia
largar o primeiro lote de cheques, estava indo para o escrit�rio da firma para
preparar o material.
J� sei onde tu vai trabalhar interveio Darcisinho, ir�nico.
Voc� � que tinha que carimbar e endossar todos aqueles cheques, seu sacana, � o
presidente do grupo disse-me La Rosa, segurando o meu bra�o.
Esqueceu que eu te passei uma procura��o pra voc� fazer isso? retruquei.
Presidente n�o mete a m�o na cumbuca.
�, beleza, voc� n�o quer outra vida, hein? Eu fa�o tudo, e voc� s� p�e no bolso.
Ah, �, t� achando ruim? Vou ligar pro gerent�o dizendo que voc� t� descontente e
que eu vou ter de fechar a firma.
T� louco, homem?
Rimos todos. La Rosa se foi. Darcisinho viu Terneir�o rondando a Teca e foi at� l�,
tinha tanto zelo por ela que parecia ser o guarda-costas substituto. Mauro Gigante
continuava apertando m�os, tamb�m
era popular e respeitado.
O que que o amigo anda fazendo? perguntou-me ele quando ficamos a s�s.
Qualquer coisa, agora tou no um-sete-um.
Mauro Gigante tinha olhos inquietos que disparavam em todas as dire��es, observando
tudo, j� o tinha flagrado me cuidando com o canto do olho, fazendo a sua an�lise
pessoal, o corpo tamb�m estava sempre
em movimento, como se pulgas o estivessem atacando o tempo todo, tipo el�trico que
s� fica nervoso quando inativo. Mais tarde, quando pude v�-lo em a��o, descobri ter
nervos de a�o, n�o se abalava com
nada.
Darcisinho, l� adiante, proseava com a Teca, depois veio para o nosso lado. Eu
tinha dado os p�sames a ela na chegada e n�o me aproximei mais. Nas raras vezes que
os nossos olhares se cruzaram, apesar
da dist�ncia, ela sustentou o seu, at� que cabe�as e corpos interpostos nos
apagassem, cheguei a duvidar de que ela tivesse lembran�a de mim, embora a nossa
apresenta��o tivesse sido recente, coisa de
duas ou tr�s semanas atr�s. A sua express�o consternada era sincera, uma grande dor
transpassava-lhe o rosto, devia ter tido uma grande afei��o pelo finado. Apesar das
brincadeiras de Darcisinho, n�o havia
a m�nima possibilidade de aquela mulher se interessar por mim, tudo n�o passava de
diarr�ia mental dele, sem qualquer fundamento, seu maior prazer era ficar tirando
sarro da cara dos outros. Teriam ficado
filhos? Ou ela n�o passava apenas de utens�lio de cama do chef�o? O qu� pretenderia
fazer? Iria permanecer morando no mesmo lugar? Fiquei me perguntando essas coisas.
Por que eu tinha tanto interesse
por ela? Aquela mulher me dava nos nervos, tal qual Mauro Gigante quando n�o tinha
o que fazer.
J� marquei uma ponte pra tu e ela, semana que vem foi dizendo Darcisinho ao
retornar, esfregando as m�os. Recebi um coice l� embaixo.
Voc� pirou, Darcisinho? O homem nem esfriou. Voc� t� me gozando, seu. Mas, com a
not�cia, uma s�bita onda de calor invadiu-me o peito, Darcisinho dava uma de Ilona
sem saber?
Que nada, t� assim de gavi�o em cima, �, Mano V�io, o primeiro que atropelar pra
valer, leva, tu � o candidato natural, j� disse e repito, meu chapa, tem que
assumir o cargo.
Eu ia retrucar, mas Darcisinho se achegou a Mauro Gigante e ficou cochichando em
seu ouvido por um bom tempo. Eu procurava Teca no meio da multid�o, como para ter
uma confirma��o do nosso encontro pelo
seu olhar, talvez deixasse passar algum ind�cio de que havia um compromisso j�
pactuado, mas o cerco em volta do caix�o era grande e eu via apenas nesgas de seu
corpo e vestu�rio escuro. Pensei em ir at�
l�, mas n�o consegui reunir coragem.
Foi esse a�, �? disse Gigante, apontando o dedo pra mim.
O pr�prio, voc�s s�o como irm�o g�meo, t�o no concurso do deixa que eu mato, os
irm�o Parada Dura, Mat�ozinho e Mat�oz�o.
Eu j� tinha comentado para o Darcisinho n�o abrir o bico, mas fora o mesmo que
falar com uma porta, entrou por um ouvido e saiu pelo outro.
Eu rec�m tou aprendendo com ele como � que se faz retruquei , este sim � que
passa a navalha em tudo o que se mexe.
Mauro riu, depois falou s�rio, baixando a voz. Pelo que disse, vi que n�o perdia
tempo, estava sempre trabalhando.
Tou preparando um esquema quente agora pro Natal, quero voc�s comigo, � coisa de
cinco minutos e tamos com um milh�o no bolso. Tou desfalcado, perdi dois homens em
tiroteio, faz pouco outro marcou bobeira
e pegou cana, tou precisando de gente boa, melhor que voc�s dois n�o existe.
Eu topo respondi imediatamente.
Eu tamb�m disse Darcisinho.
Combinamos um encontro com Mauro Gigante para a noite daquele mesmo dia, que
come�ava a clarear. Em seguida, nos confessou que tinha ido ao enterro com o
objetivo de arranjar mais dois parceiros, sabia
que a nata da malandragem de Curitiba estaria l�, na madruga.
No escuro, todos os gatos s�o pardos, por sinal veio gente at� de outros estados,
se a pol�cia resolvesse dar uma batida pra valer brincou , o crime na cidade
acabava da noite pro dia.
Os home devem andar por a� observando os movimentos, acha que n�o? disse
Darcisinho.
Que nada, j� reconheci dois tiras a� que eram assim com o finado disse Mauro
Gigante, esfregando um indicador no outro , e depois ningu�m vai se meter a besta
querendo dar uma de macho por aqui, v�o
� comer fogo abriu o palet� e exibiu a 9 mm enfiada na cinta, a ponta do cano
devia ficar-lhe na altura do joelho.
Mais tarde, j� na reuni�o no moc� de Mauro Gigante, ele nos confiou que os dois
substitutos que ele procurava tinham que ser ouro-e-fio com os companheiros
perdidos. Tivera a sorte de nos encontrar, dupla
melhor era imposs�vel, inflou um pouco o nosso ego, colocou-nos a par do assalto e
marcou outra reuni�o, para dali a uma semana, para tratarmos dos detalhes, garantia
que era coisa boa.
S� eu sei que o Maurinho Gigante n�o se mete em canoa furada. Confio no teu taco,
meu irm�o retrucou Darcisinho.
Fiquei encarregado de dar um treinamento de tiro para o Darcisinho, com o fim de
recicl�-lo. Em assalto, uma coisa � certa, nego bobeou leva bala, temos que estar
bem preparados.
Mauro Gigante era pr�tico, l�gico, incisivo. Apresentou-nos os outros integrantes
da quadrilha, mais quatro, dos quais Darcisinho conhecia dois, dois motoristas que
n�o estavam presentes completavam a
equipe. Ir�amos em dois carros.
L� pelo in�cio do novo ano acrescentou Gigante , queria preparar a a��o de
resgate de um parceiro no pres�dio, posso contar com voc�s?
Tou pro que der e vier eu disse.
Com o meu maninho Mauro Gigante e com o meu Mano Vei�o aqui eu topo todas disse
Darcisinho. Falar em vei�o, me lembrei do Dila. E a�, Maurinho, o que � que t�
achando dessa hist�ria?
Eu liguei pro Carl�o antes de ir pro vel�rio, ele me jurou que n�o tem nada a ver
com isso. Ele tinha rixa com o v�io, mas muito respeito ao mesmo tempo, sabe como
�, n�, Darcisinho? Bom cabrito n�o
berra, vai jurar toda a vida que n�o foi ele.
N�o � muita areia pro caminh�o do Carl�o? perguntou Darcisinho.
Claro que foi o Carl�o, Darcisinho, voc� tem d�vida, meu? Tenho um cupincha que
trabalhou com ele que me jurou de p� junto que foi ele, e o homem n�o � de jogar
conversa fora, disse que tem peixe gra�do
dos bicheiros do Rio por tr�s, dando for�a pro Carl�o por baixo dos panos. O Carl�o
vai ser o bra�o direito dos homens de l�, querem se infiltrar daqui at� o Rio
Grande, em S�o Paulo eles n�o t�m vez,
o Coronel e os outros n�o d�o moleza.
L� no cemit�rio tinha muito boato acrescentou Darcisinho, n�o muito convencido
daquela hist�ria , disseram at� que foi coisa do Tim�tio, bra�o direito do Dila.
Sem essa cortou Mauro Gigante , o Tim�tio sim � um cu cagado, n�o tem culh�o pra
isso. S� que tem o seguinte, se foi o Carl�o, e eu tenho certeza disso, o feiti�o
pode virar contra o feiticeiro. Os
peix�o do Rio usaram ele de testa de ferro e depois v�o dar um chega pra l� nele,
se o malandro vacilar vai se foder, tem dinheiro grosso na parada, e quando t�
assim, voc� sabe n�? T� todo o mundo de
olho, mas o Carl�o tamb�m � foda, n�o d� moleza pra ningu�m, mas n�o tem muita
cabe�a e t� muito mal assessorado.
Se tu t� dizendo isso � porque � isso.
Eu n�o tenho nada contra o cara, s� tou dando o meu palpite, nem sei se foi ele
tamb�m, certeza mesmo ningu�m tem, tou falando o que me falaram, de repente a real
� bem outra, vamos aguardar pra ver.
� isso a� maninho, mas eu vou mais pelo teu ju�zo do que pelo de qualquer outro
arrematou Darcisinho.
Eu n�o me interessava um vint�m pelo que eles discutiam.

Teca n�o me sa�a da cabe�a, tanto de dia como de noite, eu tentava afastar a sua
imagem da minha mente, mas ela teimava em retornar como uma mosca pegajosa. Eu n�o
arrastava o p� da sinuca do Largo da
Ordem na esperan�a de encontr�-la por l�. Tirei informa��o, com a ajuda de
Darcisinho, dos lugares onde poderia encontr�-la, rondamos por l�, mas nada, ela
n�o tinha comparecido ao combinado com Darcisinho,
andava sumida.
Certa tarde, por�m, ela pintou na sinuca. Era perto do Natal, na v�spera da a��o
com Mauro Gigante. Darcisinho correu ao seu encontro e arrastou-a para nossa mesa.
Ela usava um vestido parecido com o do
primeiro dia em que a vira, s� que dessa vez vermelho. A tristeza deixava-a mais
linda, se � que isso pudesse ser poss�vel, senti outro cutuque nos bagos. Dirigiu-
me um oi sorumb�tico.
Oi respondi, puxando uma cadeira. Senta.
Obrigada.
De nada.
Voc�s n�o viram a Laura? perguntou. Marquei uma ponte com ela na semana passada,
mas n�o pude comparecer, perdi o contato.
Ningu�m sabia da Laura e a gente tinha raiva de quem soubesse. Os conhecidos vinham
cumpriment�-la e depois se retiravam, circunspectos, mostrando um respeito
exagerado pelo finado. Estavam mais era babando
pela viuvinha fresca.
De repente Teca levantou-se bruscamente, como se tivesse muita pressa. Muito embora
Darcisinho se rachasse ao meio para ret�-la, de nada adiantou.
Bom, pessoal, j� vou indo, tiau disse secamente e afastou-se para a sa�da, em
passadas r�pidas, seu traseiro espetacular atra�a todos os olhares. Meu cora��o
corcoveava no peito. Quando tive a percep��o
de que outros corpos se movimentavam em sua dire��o, adiantei-me e alcancei-a na
escada.
Preciso de um particular com voc�.
Oi?
Aceita jantar comigo hoje?
Ela me encarou, inclinou a cabe�a, avaliando o convite por um tempo que me pareceu
demasiado longo, sem desgrudar o olho do meu, depois sorriu.
Deixa ver se eu entendi bem, voc� est� me convidando pra sair?
� isso.
Ent�o aceito.
Onde � que eu apanho voc�?
Eu venho aqui, �s dez, ok?
Ok.

Tiau.
Tiau.
Darcisinho estava me esperando, alvoro�ado.
Te juro, Mano V��o, se tu n�o fosse falar com essa muler, eu ia atorar o teu
cacete com a minha l�mina.
T� marcado, pra hoje, �s dez, aqui mesmo. Eu estava amolecido, exultante, feliz,
n�o sei mais o qu�, talvez flutuasse.
Mano V�io, escreve o que eu vou te dizer, essa muler veio atr�s de ti, tava te
procurando, s� que ela � muito orgulhosa e malandra, t� a fim de tu, cara, s� que
n�o quer dar o bra�o a torcer, da� veio
com aquele papo da Laura e tal, ela te marcou desde o primeiro dia, seu caralhudo.
T�s brincando.
Ela n�o tirava o olho de tu, olhava com o canto do olho, interessada, examinando,
te medindo de alto a baixo, te comendo com os olhos.
T�s brincando.
Te juro, caralho, o tempo todo. Eu � que sou zarolho e tu � que n�o enxerga nada,
seu porra? Aposto contigo o que tu quiser como tu vai ganhar ela, hoje mesmo.
T� apostado, mil pratas, mil pratas n�o, duas mil, se tu ganhar, te pago dois
paus, se tu perder me paga um pau.
Chuchu beleza, nunca foi t�o f�cil tirar dinheiro dum ot�rio apaixonado.
Fui at� a pens�o tomar um banho e fazer a barba. Botei terno, gravata, olhei o meu
rosto torto no espelho.
Me perdoa, Lize falei e sa�.
Darcisinho continuava na sinuca me esperando, queria ver o desfecho, ganhar a
aposta. Quando ela apontou na escada, atrasada 15 minutos, vi que era a mulher mais
linda do mundo. Darcisinho me empurrou.
Vai l�, cara, sai fora daqui.
Corri ao encontro dela, meio desajeitado, e tomamos a rua. Embarcamos no primeiro
t�xi e indiquei um bom restaurante, desde que n�o fosse um dos velhos tempos. A
trattoria estava quase vazia, fizemos os
pedidos, ela deixou a meu cargo. Com o card�pio tremendo na minha m�o, pedi fil�
mignon ao molho madeira com acompanhamento de salada e uma garrafa de vinho tinto.
Tocava uma m�sica italiana ao fundo,
super rom�ntica.
O que voc� queria me dizer no t�xi que n�o completou, Mano V�io?
Estou apaixonado por voc� fui dizendo precipitadamente , desde aquele primeiro
dia l� na sinuca, foi amor � primeira vista.
Ei, vamos com calma, voc� � apressadinho, hein? � meio biruta? Eu estou sofrendo
muito, gostava um monte do finado.
� que hoje em dia n�o perco mais tempo com rodeios, vou direto ao assunto, se voc�
est� sofrendo, ent�o estou apaixonado por uma mulher que sofre.
A paix�o continua, n�o vai ser f�cil esquecer o finado, ele me faz muita falta,
era quase um pai pra mim interrompeu o desabafo e ficou um bom tempo em sil�ncio,
perdida em recorda��es, mirando as
unhas vermelhas da m�o bem-tratada, depois me olhou com ar trocista, como tentando
superar a tristeza e houvesse me desculpado. Voc�, hein? Se eu fosse acreditar em
todos os homens que j� me disseram
isso, tava bem arranjada.
Se n�o quer acreditar, n�o acredita, mas � a pura verdade, em que coloca��o eu
fiquei? Em d�cimo mil�simo?
N�o entendi disse ela um tanto desenxabida.
Deixa pra l�.
Que signo voc� �, Mano V�io? e antes que eu respondesse, ela acrescentou: Mas
que nome mais estramb�tico � esse? � o teu nome mesmo ou nome de guerra?
Foi o Darcisinho que me colou essa alcunha.
S� podia vir daquele l� uma coisa t�o horr�vel, mas voc� deve ter um nome decente
n�?
Tenho.
E qual �?
Jorge fui dizendo de improviso.
Esse � bem melhor. E ent�o, Jorge?
Ent�o o qu�?
Qual � o seu signo?
�ries.
S� podia, � fogo na roupa.
E o seu?
N�o adivinha?
Escorpi�o?
Como acertou?
Puro palpite. E ent�o?
Ent�o o qu�, meu querido?
Quer casar comigo?
Ela riu, pela primeira vez, com gosto. A l�ngua, os dentes, o gesto que ela fez
para ajeitar os cabelos, o olhar obl�quo que me dirigiu acabaram de me liquefazer,
eu estava magnetizado, o cacete come�ou
a crescer l� embaixo.
Sabe que voc� n�o est� sendo nada original, que j� escutei centenas de cantadas
parecidas?
� mesmo? Acho que at� podem ser parecidas, mas nenhuma estava carregada com o
mesmo sentimento que a minha, isso eu garanto.
Huummm, que rom�ntico. Continua, vamos, quero ver at� onde voc� vai, se tem boa
imagina��o para mentir bastante.
Posso ser sincero?
� claro, � isso que eu espero de voc�, o m�nimo indispens�vel.
Voc� conseguiu me deixar de pau duro, h� dois anos que ele n�o endurecia, tava
morto.
Conversa mais besta, voc� ia medir pau com o Dila, tou sabendo disse ela tomando-
se de indigna��o. Pegou na al�a da bolsa, erguendo-se, furibunda, interpretara mal
a minha franqueza e ia iniciar a
retirada, segurei-lhe o pulso.
Desculpe se fui grosseiro. Voc� disse que eu podia ser sincero. O Darcisinho � que
inventou essa hist�ria com o Dila, ele n�o sabia do meu problema, eu ficava sempre
saindo pela tangente, voc� tamb�m
deve saber que eu nunca compareci aos encontros, evitando esse confronto, pois n�o
tinha condi��es de competir. Eu sofri um acidente de carro e perdi uma pessoa muito
querida, de l� para c�, nunca tive
nenhuma ere��o nem me interessei por mulher nenhuma, voc� foi a primeira eu falava
inteiramente emocionado, as l�grimas escorrendo-me pelas minhas faces. Teca foi
sentando-se devagarinho enquanto me
escutava, francamente impressionada. L� na sinuca, quando a vi pela primeira vez,
ele deu sinal de vida, agora t� durinho.
Ela trocou de cadeira, ocupando a que estava ao meu lado, sem tirar os olhos dos
meus nem por um momento.
Deixa ver. Meteu a m�o debaixo da mesa e apalpou suavemente no meio das minhas
pernas, foi o afago mais enlouquecedor de que tenho lembran�a. Seu bandido, tava
falando s�rio. Sempre sorrindo,
ela conduziu a m�o ao meu rosto e, enquanto me acariciava, ia me secando as
l�grimas. Ela estava derretida de ternura por mim, seus olhos destilavam um calor
solar. Bichinho, j� que voc� gosta de jogar
o jogo da verdade, vou lhe revelar uma coisa, eu s� fui na porra daquela sinuca
hoje para ver se o encontrava, voc� cravou fundo seus olhares em mim naquela
primeira vez, e queimou, marcou.
Agarrei suas m�os, tremendo as minhas, encabulado.
Verdade?
Por tudo o que � mais sagrado, tou cometendo uma injusti�a com o finado, n�o
esperar mais tempo, mas que posso fazer com uma tenta��o como voc�? L� na sinuca,
todo bonit�o como est� agora, eu pensei
c� comigo, tomara que esse homem n�o chegue mais perto de mim, sen�o o finado vai
dan�ar.
N�o deixei que ela continuasse, levantamos e deixamos o gar�om falando sozinho com
a bandeja nas m�os. Pegamos um t�xi e entramos no motel mais pr�ximo que o
motorista conhecia.
Aqui n�o, painho ela falou, na folga de um beijo, dando outro endere�o ao
taxista.
Andamos um bocado, mas quando chegamos deu para perceber que o lugar era realmente
muito chique e rec�m-inaugurado.
Pra gente tem que ser o melhor, meu doce de c�co disse ela.
E assim a noite teceu a sua teia m�gica sobre n�s.
Apesar de n�o ter dormido a noite toda, cheguei cedo ao local designado. Todos j�
estavam l�, menos Darcisinho. Mauro Gigante recapitulou rapidamente toda a
opera��o, �amos ocupar dois carros, um Opala
e um Escort, ambos roubados e escondidos h� mais de um m�s para essa finalidade.
Gigante distribuiu as armas, para mim tocou uma pistola 9 mm, americana, com dois
pentes, mais o revolver que eu levava
no cinto, �s costas, e tr�s escopetas, para tr�s dos quatro parceiros, a doze de
Gigante, o resto, inclusive Darcisinho, usaria revolver, calibre 38, muni��o �
vontade, um dos rapazes com escopeta levaria
ainda 2 granadas para um caso de emerg�ncia.
Darcisinho chegou esbaforido e tomou posse da sua arma. Maurinho n�o adotava
nenhuma cobertura para a cabe�a. Por iniciativa pr�pria, implantei bigode e nariz
posti�os, �culos escuros, cabelo penteado
com gel.
A que horas vai me pagar? perguntou Darcisinho, � socapa, com um sorriso maroto.

Depois da opera��o respondi no mesmo tom.


Eu n�o disse, seu filho da puta?
Se concentre no trabalho, Darcisinho.
Abre o jogo, ent�o, meu.
Em boca fechada n�o entra mosca, v� se n�o vai sair espalhando por a�.
Eu n�o te falei? Eu conhe�o quando uma muler t� querendo chumbo grosso.
Vamos l�, pessoal gritou Mauro Gigante , � ferro na boneca, de noite vamos fazer
aquela festa com o dinheiros dos ot�rios.

Embarcamos nos carros e partimos, o nosso destino era uma ag�ncia do Banco do
Brasil, nas Merc�s, que estava com os cofres abarrotados, segundo a informa��o
garantida que tinham vendido a Mauro Gigante,
para atender �s folhas de pagamentos de tr�s empresas com mais de mil empregados.
Chegamos ao local, descemos e os motoristas foram dar uma volta de reconhecimento
na quadra. Na da frente e na de tr�s da ag�ncia, Mauro Gigante examinou as
condi��es de execu��o. Havia ainda poucos clientes
no interior da ag�ncia, aqui fora tudo normal tamb�m, os carros retornaram e
estacionaram. Gigante trocou polegares para cima com os motoristas, significava que
estava tudo ok, nenhuma viatura de pol�cia
� vista. Apenas um pequeno problema, havia vaga para apenas um dos carros, o outro
teve que permanecer em fila dupla, as portas traseiras se abriram, pegamos as armas
e entramos no banco sem perda de tempo,
Maurinho na frente. Ele e um de seus capangas tomaram a iniciativa e renderam os
dois seguran�as, com gritos para que todos se deitassem no ch�o. Todos os meus
sentidos estavam em alerta. Clientes e funcion�rios
obedeceram � ordem jogando-se imediatamente no ch�o. Eu ficara encarregado de dar
cobertura a partir da porta de acesso principal e postei-me a uns dois metros dela,
dominando o sal�o. Dali eu tinha um
bom raio de vis�o externa, sem ser visto, encoberto pela cortina. Eu podia, atrav�s
da vidra�a, acompanhar o movimento de quem se aproximasse do pr�dio. A instru��o
que eu recebera era para obrigar a entrar
quem se aproximasse da porta e faz�-lo deitar junto dos outros.
Darcisinho e dois parceiros acompanharam o gerente at� o cofre, sumindo da vista, e
quase que simultaneamente Mauro Gigante e o outro parceiro de escopeta subiram a
escada para o andar superior, o quinto
elemento tamb�m portando escopeta ficou em um ponto intermedi�rio controlando o
pessoal deitado, que inclu�a os dois seguran�as. Ouvi a gritaria l� em cima e em
seguida Mauro Gigante retornando. Parou
no meio da escada e gritou:
Quieto a�, seu puto.
Despencou em dois pulos e veio encostar o cano da arma na cabe�a de um dos
seguran�as, flagrado no gesto de sacar a pistola escondida debaixo da barra da
cal�a, preparando a rea��o. Se Maurinho disparasse,
ia ser meleca para todo lado. O homem empalideceu e se manteve imobilizado enquanto
Maurinho retirava a arma do coldre e a colocava no cinto.
Quer dar uma de her�i, seu put�o?
Em seguida levantou a arma e disparou para cima. O estouro, seguido das lascas de
cali�a desprendendo-se do teto, deixou o restante das pessoas apavoradas. As
mulheres come�aram a gritar.
Quietos! Quem se mexer ou gritar leva chumbo bradou Mauro Gigante amea�ador.
Virem o rosto pro ch�o e botem as m�os na nuca! complementei eu, em altos brados.

Todos obedeceram. Nem eu nem o outro encarregado de manter o controle dos ref�ns
hav�amos percebido a inten��o do seguran�a, registrei mentalmente esse erro e o
atribu� a mim, erro capital que podia ter
melado toda opera��o, pois ia nos pegar de surpresa.

Nesse �nterim, um casal e um homem transpunham a porta quando escutaram o tiro, nos
avistaram pela vidra�a e quiseram retroceder. Com a arma em riste, recuei r�pido,
saindo pela outra banda, e alcancei-os
antes que deixassem o pr�dio. Puxei-os para dentro, amea�ando-os com a pistola, e
empurrei-os para onde se encontravam os outros ref�ns.
Deitem no ch�o, seus bostas, sen�o vou passar fogo em voc�s! Obedeceram sem
hesitar.
Darcisinho e seus dois parceiros apareceram carregando os sacos de dinheiro, olhei
o rel�gio, o tempo de execu��o estava �timo, menos de tr�s minutos.
T� na m�o disse Darcisinho.
Vamos cair fora ordenou Gigante, dando um assobio para o de cima, que desceu as
escadas incontinente, como se estivesse esperando o sinal o tempo todo.
Ningu�m se mexe! tornou a gritar Gigante.
Os quatro foram saindo.
Agora vai voc� ele disse, dirigindo-se a mim.
Sa� atr�s do grupo e parei a meio caminho, entre a fachada da ag�ncia e os carros,
para dar cobertura a Mauro Gigante, ouvi outro estampido da doze, e l� veio ele
correndo. Os da frente j� haviam entrado
no Opala, Mauro passou por mim e entrou no Escort, antes, por�m, que eu tivesse
tempo de fazer o mesmo, uma viatura da PM apontou na esquina, vinha se aproximando
devagar, sem nada perceber. Nisso o Opala
arrancou, guinchando pneus. Perdido o apoio das armas pesadas, gritei para Gigante:

Segura a�.
E ouvi-o repetir a ordem para o motora. Os dois policiais alertaram-se ao se dar
conta de que havia um assalto em andamento. Eu, parado no meio da cal�ada, com uma
pistola na m�o, o carro em fuga, o outro
carro com homens armados, gritos provindos da ag�ncia e do outro lado da cal�ada,
saquei o rev�lver e fui ao encontro da viatura, passando por tr�s do Escort que j�
come�ava a se movimentar, cortei a frente
da viatura atirando com ambas as armas, atingi os dois policiais v�rias vezes, sem
que tivessem chance de reagir nem de pedir refor�os pelo r�dio. O motor da viatura
apagou, fechando o fluxo da rua. Dei
a volta e pulei para dentro do Escort, j� no centro da pista de rolamento.
Senta o p�! ordenou Mauro Gigante ao motorista.
Essa vai feder! disse o motorista, abrindo caminho no tr�nsito com muita
seguran�a. N�o se avistava mais o Opala.
Que feda! berrou Mauro Gigante indignado. N�o tenho medo de brigadiano, tenho
medo � de bunda-mole! Virou a cabe�a para tr�s. Bom trabalho, Mano V�io, tive
sorte de trazer voc�s.
Encontramos o Opala no lugar marcado, passamos para uma Kombi deixada ali para esse
fim e abandonamos o Escort. O motorista sentou o p�. Devolvemos as armas para Mauro
Gigante, que as colocou em um saco.
Agora est�vamos distante do local do assalto, fora de risco. Ningu�m falava,
estavam todos desanimados, esperando a rea��o de Mauro Gigante, rea��o esta que,
pela profundidade de seu sil�ncio, n�o prometia
ser rasa em estragos. Por muito pouco a nossa a��o n�o tinha melado, mas fazer o
qu�?
Vamos l�, pessoal, alegria eu disse , o pior j� passou. Agora, s�o flores, hora
de comemorar.
O pessoal aos pouquinhos foi descontraindo, come�ou a comentar, a rir, menos Mauro
Gigante, continuava ensimesmado, esticando o sil�ncio no tamanho da prosa com seus
bot�es. Darcisinho e eu pedimos para
descer perto de um ponto de �nibus. Antes de desembarcar, tirei os �culos, o nariz
posti�o, o bigode, desmanchei o penteado, despi a camisa floreada, mantendo a
camiseta azul-marinho usada por baixo.
Espero voc�s na sede, mais tarde disse Mauro Gigante, e seguiram.
Chamei um taxi e mandei tocar para o Centro, desci a uma quadra da pens�o.
Darcisinho ia seguir, mas desistiu, paguei o taxi.
Vou dormir um pouco eu disse.
Darcisinho estava chateado.
Eu disse pro motorista segurar, mas ele n�o deu bola, atendeu � ordem do N�lio pra
tocar, se apavoraram com a chegada dos home. Aquela parada era nossa, n�o de voc�s,
muito menos tua que eu tou sabendo,
cada um deles com uma doze e granada, pra qu�? Pra bonito? Tinham que ter estourado
os brigada, podia ter zebrado toda a opera��o e foder com todos n�s se n�o fosse um
tal de Mano V�io.
�, mas n�o zebrou, cara, t� todo mundo vivo e com grana no bolso, foi precipita��o
deles, s� isso. O Maurinho t� engasgado, deu pra perceber, eu tenho at� pena dos
rapazes, o Maurinho n�o vai deixar
em branco.
A minha cabe�a estava ocupada com outra coisa bem mais interessante, eu pouco me
importava com o destino dos bundas-moles. Eu tamb�m tinha derrapado, n�o estava
totalmente isento de culpa, Maurinho � que
fora impec�vel, eu ficaria no aguardo da decis�o de Mauro Gigante para poder
avaliar o alcance da sua lideran�a. Como Darcisinho n�o se decidisse a ir embora,
acrescentei:
De noite a gente se encontra l� no moc� do Maurinho.
Certo, Mano V�io. Isso, vai descansar. Mano V�io deve tar quebrado, a noite
inteira mandando brasa, hein? sorriu tristemente S� v� se n�o se esquece de pagar
as d�vidas de jogo.
Ser�o pagas.
At� l�, Mano V�io.
At�.

Eu e Teca, nos dias que se seguiram, deixamos subentendido um pacto de n�o tocarmos
no passado, nem meu nem dela, pelo menos por enquanto. Eu tinha grande curiosidade
de saber da sua vida com o Dila, particularmente
no tocante ao envolvimento dele com o tr�fico, do andamento e da extens�o dos
neg�cios dele em outras �reas, mas n�o ia for�ar a barra, t�nhamos um bocado de
tempo pela frente. Aos poucos, eu extrairia
dela todas as informa��es que me interessassem. Como era sexta-feira, aluguei um
carro com o cart�o de cr�dito do empres�rio que eu era nas horas vagas e descemos
para Florian�polis. N�o quis comparecer
� reuni�o de partilha, eu pegaria a minha parte depois, em outra ocasi�o. �s 21
horas liguei para o n�mero que Mauro Gigante havia me passado e coloquei-o a par da
minha decis�o.
Tudo bem, Mano V�io, a tua parte � sagrada, fica guardada aqui comigo, deu s�
seiscentos pau, quase metade do que eu esperava, ainda por cima quase deu toda
aquela cacaca, n�o � mesmo? Mas tudo bem,
vou come�ar a repartir, boa viagem.
Obrigado. O Darcisinho ta�?
T� bem aqui do meu lado.
Passa pra ele?
Oi?
Cara, se voc� precisar, pega dois paus da parte que me toca, n�o vou poder estar
a�, tou indo pra Floripa com a Teca.
De jeito nenhum, Mano V�io, n�o vou pegar porra nenhuma da tua parte, quero ter a
honra e a gl�ria de receber essa grana das tuas m�os, de mais ningu�m, entendeu? De
mais ningu�m.
Voc� que sabe.
Um beijinho nas n�degas, quero ver o teu pau quando tu chegar pra ver se n�o
gastou, ok? J� pensou? Do maior pau de Curitiba, virar o menor tiquinho do peda�o,
desse tamainho, �, gastou tudo com a Teca,
hahahaha.
Vai te catar, vai, na volta procuro voc�, tiau.
Olha s�, quando tiver dando uma bem gostosa, te lembra do teu maninho aqui, t�
legal? E d� essa por mim.
T� legal, passa pro Gigante.
Fala.
V� se d� um refresco pros rapazes, eles n�o fizeram por mal. eu dizia isso com
segundas inten��es, s� para test�-lo.
Agora j� esfriei a cabe�a, t� tudo sob controle.
Que bom. Na volta te procuro.
Falou.
Desliguei, voltei pro Santana e seguimos viagem. Durante o trajeto, acabei mudando
de id�ia, em vez de seguir para Floripa, entrei em Cambori� e fomos direto para um
hotel. No dia seguinte, aluguei um
apartamento mobiliado de frente para o mar e mudamos. Permanecemos l� do dia 23 de
dezembro a 2 de janeiro e fizemos uma lua de mel misturada com festa natalina e
r�veillon, quase n�o sa�amos, t�nhamos
tudo a partir da sacada: o mar, o c�u, as estrelas, a noite, a maresia, a luz
intensa do sol, e ped�amos comida e bebida por telefone. O resto foi um relax
completo, s� eu e ela, ela e eu, diger�amos o
n�ctar da vida, a satisfa��o completa que s� duas pessoas que se amam podem
proporcionar uma a outra.
Para mim, que tinha me afastado por completo das amenidades de um relacionamento
amoroso, aqueles poucos dias foram uma tr�gua mais que suficiente para atender �s
minhas necessidades de lazer. Depois do
Natal, comprei uma resma de papel of�cio, v�rias canetas, e pus m�os � obra, s�
interrompia quando Teca vinha se enroscar em mim, umas tr�s ou quatro vezes por
dia, fora a noite.

JL:Por essa �poca � que iniciou a confec��o do Estatuto da organiza��o?


JD: Mais precisamente nesse retiro de final de ano, l� mesmo em Cambori�. Teca e a
opera��o com Mauro Gigante me botaram uma pilha como nos tempos em que eu
frequentava a academia de muscula��o. Transbordava
energia pelo ladr�o. Uma euforia que eu extravasava trepando e imaginando uma
grande organiza��o do crime funcionando sob o meu comando. Fazia muito tempo que
n�o me sentia t�o bem nem t�o otimista. Como
j� falei para voc�, eu alinhavara alguma coisa, tempos atr�s, mas foram
apontamentos gerados mais pelo calor do momento de a��es de campo, nada que se
comparasse ao que eu pretendia agora. Ali, aninhado
com Teca, as coisas se definiram com clareza meridiana e eu comecei a montar o
projeto de algo grandioso, tentando chegar aos m�nimos detalhes.
JL:E conseguiu ir at� o fim ou apenas costurou os pontos principais?
JD: Os apontamentos b�sicos estavam l�. Depois, somente com o tempo e a experi�ncia
� que fui aperfei�oando e sistematizando.
JL:Teca permitiu que isso acontecesse ou nem ela conseguiu refrear esses del�rios?

JD: Nem ela. Eu vivera muito tempo s� para sofrer a influ�ncia de quem quer que
fosse. Mas eu mesmo me policiava para conter esses �mpetos estratosf�ricos. Me
disciplinava para dar um passo ap�s o outro,
com a modera��o que o bom senso exige. Volta e meia tinha que dar um pux�o nas
r�deas para conter o cavalo louco que queria arremeter. Com a idade, vou tendo cada
vez mais sucesso nesse sentido. Mas naquela
�poca cada puxada de r�deas era seguida de uma crise de desalento. Paci�ncia era
uma palavra que n�o constava do meu vocabul�rio. Mas, aos poucos, fui me impondo o
freio. Isso me amadureceu. Me convenci
de que devia me contentar em ser uma esp�cie de Sebrae dos microempreendedores
criminais, da arraia-mi�da do crime, no fundo era isso mesmo, a chinelada � que me
interessava.
JL:Tentar implantar no Brasil uma organiza��o com disciplina r�gida n�o seria
exigir demais? Uma coisa que poderia ser bem aceita por japoneses, chineses,
alem�es, mas por brasileiros me parece meio for�ado.
JD: O Brasil do Terceiro Mundo j� possu�a o Comando Vermelho, com suas regras duras
e especializa��es. A bandidagem em geral tem regras de procedimento que s�o
cumpridas por todos, fora e dentro dos pres�dios.
Isso n�o � nenhuma novidade. A ACC seria uma entidade mais perfeita, mais
tecnicamente organizada e administrada, s� isso. Bandido tamb�m sabe distinguir o
trigo do joio.
JL:Mas misturar bandidagem com pol�tica � que me parece uma coisa extravagante.
Sempre ouvi dizer que bandido n�o tem ideologia. Sua meta � sempre o lucro
imediato, independente de onde venha. Jamais tem
preocupa��es sociais ao escolher suas v�timas.
JD: Mas isso j� mudou h� muito. O processo de forma��o do Comando Vermelho e da ACC
tem conota��es inversas. O Comando Vermelho teve os seus prim�rdios no
aconselhamento dos comunas, surgiu com a Ditadura
Militar. Bandidos comuns e presos pol�ticos cassados pela LSN coabitavam na
penitenci�ria da Ilha Grande. Seus fundadores foram politizados pelos comunas.
Passaram a ler livros como A Guerra de Guerrilhas,
do Che, A Guerrilha Vista por Dentro, de Wilfred Bulcher, e muitos outros. Os
bandidos trocavam id�ias com intelectuais, com ativistas pol�ticos. Quando os
presos pol�ticos sa�ram de l�, deixaram marcas
profundas no pres�dio. Ora, os caras confinados tinham tempo � be�a para pensar.
Foi assim que despontou o Comando Vermelho, com uma conota��o nitidamente pol�tica
entre os seus fundadores. Com o tempo,
por�m, divergiram as ideologias internas, reorientando-se os seus prop�sitos ao de
organiza��o criminosa pura e simples, como funciona at� hoje. J� a ACC, n�o, nosso
in�cio foi congregar pequenos transgressores,
funcionando mais como um sindicato na defesa dos interesses da classe. Talvez eu
fosse o �nico a me posicionar politicamente desde o come�o. Tanto que a original
proposta de forma��o dentro do crime via
UNICRIM � que representava uma inova��o realmente revolucion�ria. Estar�amos, a
partir dali, formando profissionais do crime.
JL:Nesse caso, a ACC foi sofrendo altera��o ideol�gica conforme se desenvolvia?
Fica confirmado, ent�o, que toda a base pol�tica veio da sua influ�ncia direta?
JD: Foi uma evolu��o lenta, mas cont�nua. Espelhei a UNICRIM nos modelos do Sesi,
Sesc, Senac. A diferen�a � que essas eram entidades de base institucional, criavam
rob�s para servirem melhor a classe
patronal. Os nossos jovens tirados das ruas via CREABS passavam desde a pr�-
forma��o ou primeiros est�gios at� os cursos de especializa��o, ficando aptos a
assumirem o lugar de bem-sucedidos homens do
crime. Simultaneamente, outros grupos eram formados para ocuparem postos
importantes nos diversos escal�es do Executivo, Judici�rio e Legislativo do pa�s.
JL:Tirar a ACC do zero foi um trabalho herc�leo, tenho de reconhecer. Em momento
nenhum veio o des�nimo e a vontade de abandonar tudo? As coisas tamb�m n�o davam
erradas?
JD: As id�ias eram tantas que eu n�o sabia bem por onde come�ar. Tive que
estabelecer prioridades, metas. Comecei com a elabora��o dos Estatutos,
estabelecendo as normas b�sicas, a filosofia, definindo
conceitos. Queria que todos encarassem a ACC como eu, com seriedade. Portanto,
precisava dar uma id�ia clara de como ela funcionaria. Concentrei toda a minha
energia nessa tarefa. No in�cio, eu pr�prio
precisei de treinamento para atender a tantas atividades a um tempo s�. Logo eu que
vivi boa parte da vida fechado no meu mundinho a sete chaves. Foi dific�limo
adquirir agilidade mental para tomar v�rias
decis�es a um tempo s�. Decis�es de acerto, quero dizer. Vontade de jogar tudo pro
alto nunca me deu, mas cheguei a me desesperar algumas vezes. Tem aquele ditado:
Quando voc� est� azarado, at� no peidar
se descadeira. Pois houve fases em que tudo s� dava errado, n�o havia santo que
chegasse para atender a tantos pedidos. (risos).
JL:N�o deixar a peteca cair nesses momentos parece ser a decis�o mais importante,
n�o � mesmo?
JD: Tem raz�o. Por isso parti para a instala��o imediata das CREABS, sem d�vida a
sa�da emergencial para arregimentar pessoal e fazer o empreendimento se desenvolver
em bases s�lidas. Seriam as hostes
de vanguarda da ACC, tiradas da ala dos anjinhos. O primeiro contingente estava
recolhido no s�tio de aluguel, em plena disponibilidade. Voltei-me para l�.

N�o estou interrompendo? Posso lhe dizer uma coisa, painho?


At� duas.
Voc� pode n�o gostar, anjo.
Diga l�, assim mesmo.
O seu, apesar de pouca coisa, � maior que o do Dila.
Ah, �? Nossa, que grande not�cia.
Eu sabia que n�o ia gostar.
Pois n�o gostei mesmo.
O �nico a quem interessaria ouvir isso n�o est� aqui, pois falei me lembrando do
cujo, tinha uma fixa��o em arranjar algu�m com o pau maior que o do Dila, n�o sei
por qu�.
Bateu tanto na tecla at� que achou, quem procura acha.
Diz isso pra ele voc� mesmo.
Digo.
Liguei para o Taco de Ouro. Ceder � interrup��o de Teca era ao mesmo tempo atender
� falta que eu sentia da minha turma. Falar com Darcisinho amenizaria a saudade que
eu sentia deles.
O Darcisinho ta�?
N�o, ainda n�o apareceu.
Quando chegar, manda ele ligar pra esse n�mero. ditei o n�mero escrito no disco
do aparelho , diz que � da parte do Mano V�io.
O telefone s� foi tocar � tardinha, liga��o a cobrar.
Tem algu�m querendo te dizer uma coisa fui falando e passei pra Teca.
Diz a�.
Oi, amorz�o, vou ser breve, o do Mano V�io � maior que o do Dila, disparado, senti
isso.
Escutei o grito de Darcisinho, tirei o fone da m�o dela.
T� satisfeito agora, seu punheteiro?
Pra mim, n�o � novidade nenhuma, eu sabia disso desde o in�cio, quando botei os
olhos no bruto.
Agora vai cobrar a sua aposta, vai, seu man�aco sexual desliguei e deixei o fone
fora do gancho.
Na noite seguinte, recebi outra liga��o a cobrar do Darcisinho, ele e Mauro Gigante
tinham se descartado dos tr�s bundas-moles que haviam rateado no assalto, haviam
largado os presuntos em um val�o na
sa�da norte da cidade. Darcisinho contou como o Maurinho continuava engasgado.
A� eu disse pra ele, te desengasga, � meu, ele me convidou e fizemos o servi�o.
Quem caga pra tr�s tem que se foder, e j� serve de exemplo pro futuro. O Maurinho
se amarrou pra tomar a decis�o porque
o motora era primo dele, filho do seu padrinho, que ele tem como pai, mas tava
sabendo o tempo todo que, se n�o fizesse isso, ia se desmoralizar.
O que voc�s resolverem eu assino embaixo eu disse , voc�s sabem das coisas melhor
que ningu�m, quem contrariar t� errado.
E a�, Mano V�io, como � que t� o pissirico? J� gastou o cacet�o?
T� desse tamainho.
Ai, meu Deus do c�u, isso � que � vida de malandro, s� no bem-bom, essa � a vida
que eu pedi a Deus e n�o levei, mas tou feliz por tu, meu Maninho Velhinho, eu da
minha parte tenho a Fedora aqui pra
dar uns tapas nela quando me d� vontade.
O Mauro Gigante j� substituiu os homens?
Ainda n�o, t� esperando tu pra te fazer uma proposta, tu j� at� imagina, n�? J�
quer te tomar de parceiro, ombro a ombro, meio a meio.
Assim que chegar a�, procuro voc�s.
Quanto tempo mais vai ficar a� no bem-bom, Mano V�io?
Dia dois tou voltando, portanto daqui a quatro dias. Chega de f�rias, n�o aguento
mais falei baixinho para que Teca n�o escutasse , mas n�o fiquei parado n�o, tenho
v�rios projetos estudados pra
gente tocar pra frente.
Comigo n�o tem f�rias, essas mordomia � pr� burgueis que nem tu, comigo � na
dureza, ferro na boneca.
Como � que est�o os movimentos pela cidade? A poeira j� baixou? Tenho lido os
jornais e assistido tev� e n�o vi novidade nenhuma, os homens continuam boiando,
n�?
�.
Voc�s t�m que ficar atentos para uma eventualidade de den�ncia an�nima, algu�m do
lado dos rapazes eliminados querendo se vingar, sabe como �, n�? Matar pol�cia
sempre mexe com os brios da corpora��o,
n�o v�o descansar enquanto n�o derem o troco.
N�o tem problema, t� tudo sob controle, a poeira t� baixando. Darcisinho fez uma
pausa. Mano V�io?
Fala, Darcisinho.
Ent�o voc� j� fez de conta que ela era a Mam�e Noel e deu o saco cheio pra ela
esvaziar?
Vai ver se eu tou l� na esquina, Darcisinho, vai. Desliguei sem recolocar o fone
no gancho.

JD: Quando subimos para Curitiba, no entanto, eu j� levava um projeto de a��o


debaixo do bra�o que iria abranger o primeiro semestre de 1984. Tudo o que eu tinha
na cabe�a, em linhas gerais, a estrutura
toda da organiza��o, estava ali condensado. Deixei a id�ia amadurecer mais um pouco
para come�ar a coloc�-la em pr�tica, o que come�ou a ocorrer depois de v�rias
assembl�ias e reuni�es de discuss�o, obedecendo
a um cronograma. A primeira provid�ncia foi criar o Conselho Consultivo da
Confraria (CCC), a partir do qual seriam tomadas, dali para a frente, as
delibera��es mais importantes. Fui eleito o Presidente
deste Conselho, sendo o meu voto o de Minerva. Entrementes, criei alguns m�dulos de
comando, com chefias pr�prias, aproveitando o know-how dos integrantes da minha
equipe atual, conforme a especialidade
de cada um. O treinamento referente a assaltos a bancos, a carros-fortes, empresas
e caminh�es de cargas ficou incumbido a Mauro Gigante. Furtos de ve�culos,
recepta��o, desmanches, clonagem, etc. a Darcisinho.
Lenoc�nio, administra��o das casas noturnas, recrutamentos dos mich�s, tanto
masculinos quanto femininos, tr�fico de mulheres, etc. ficaria, inicialmente, a
cargo de Teca. Estelionato e seus derivados,
incluindo golpes de colarinho branco, a La Rosa. Terneir�o assumiria o controle do
tr�fico de drogas e armas. A supervis�o geral seria feita por mim.
JL:Nesse momento o economista/administrador passou a prevalecer, subentende-se.
JD: Uma das primeiras provid�ncias foi contratar advogados e contadores que
tivessem afinidades com nossos prop�sitos. S�o dois esp�cimes f�ceis de negociar e
impor regras, pois dan�am conforme o ritmo
da grana que embolsam. Os primeiros me dariam assessoria permanente e elaborariam
as apostilas com as no��es b�sicas de direito penal e civil. Essa seria uma das
cadeiras obrigat�rias a todos os cursos
que a futura UNICRIM promoveria quando em funcionamento, pr�-requisito
indispens�vel para mudan�a de fase, progress�o de ciclos, aprova��o ou gradua��o.
Os segundos para efetuarem os registros de dezenas
de micros e pequenas empresas que serviriam de fachadas para as m�ltiplas
dilig�ncias criminosas da organiza��o, al�m da lavagem de dinheiro.
JL:Dentro desse organograma b�sico as coisas come�aram a funcionar.
JD: Para cada categoria de delitos, seria feito um manual de procedimentos, em suas
linhas gerais, com aconselhamento operacional de tudo o que deveria ser evitado de
contraproducente, enriquecidos com
relatos de experi�ncias de casos bem e malsucedidos, al�m de um suporte jur�dico
para as provid�ncias a serem tomadas na eventualidade de deten��o. Nessa �poca me
antenei para um lance interessante: explorar
a inimputabilidade penal dos menores de 18 anos. Poderiam ser criadas quadrilhas de
menores de idade, minimizando ao m�ximo as consequ�ncias de san��o para esses
agentes. Um adolescente bem treinado poderia
ter, por um per�odo em torno de cinco anos, dos 12 aos 17, por exemplo, um
desempenho quase t�o bom ou melhor que um profissional adulto, preservada a sua
integridade f�sica e mental por impunidade resguardada
em lei. Impunidade em termos, san��o haveria, por�m bem mais branda do que a de um
adulto que tivesse cometido o mesmo delito, nas mesmas circunst�ncias. Era uma
brecha que a lei oferecia para que se pudesse
introduzir um grande n�mero de menores na massa do crime, mantida a efici�ncia e a
produtividade, e reduzida sobremaneira a eventualidade de prolongado afastamento.
Al�m disso, estar�amos produzindo um
menor que, ao atingir a maioridade, j� seria dono de uma qualifica��o profissional
de alt�ssimo n�vel t�cnico, estando preparado para enfrentar miss�es de gradua��es
muito mais complexas, no futuro. O
recrutamento de toda essa massa de menores delinquentes seria feito atrav�s das
CREABS, e dali, aos poucos, eles seriam remetidos aos s�tios onde funcionariam os
cursos b�sicos de forma��o criminal, e,
posteriormente, � UNICRIM, mesmo em faixas et�rias precoces.
JL:Parece algo tirado da experi�ncia do Hitler no nazismo alem�o.
JD: Este era o enfoque primordial de todo o meu Sistema de Forma��o: treinamento
intensivo para refor�ar a teoria. Eu pretendia implantar at� treinamento com
realidade virtual, com aux�lio de computadores,
tanto quanto situa��es simuladas de opera��es a serem executadas com a brevidade
poss�vel. Na minha ansiedade de implanta��o tudo tinha que ser para ontem. E para
coroar todo esse processo, um respaldo
de equipamento b�lico de �ltima gera��o. Eu n�o tinha conhecimento de nada
parecido, exceto em cursos de treinamento de alguns setores da pol�cia federal, ou
de tropas de elite de combate como a SWAT,
ou ainda de destacamentos do ex�rcito israelense para o combate ao terrorismo.
Dessa forma eu estaria implantando no pa�s tropas de meliantes juvenis capazes de
abalar as prec�rias, anacr�nicas e descapitalizadas
estruturas das pol�cias civil e militar. O objetivo para tanta efici�ncia seria
obter um retorno financeiro significativo, em um breve espa�o de tempo, e
suficiente para ampliar a organiza��o em ritmo
geom�trico em um per�odo de dez anos, guindando-a a um est�gio de competi��o
dif�cil de ser igualada ou confrontada.
JL:E o capital para financiar toda essa estrutura sairia de onde, mais
especificamente? Inicialmente de seu patrim�nio pessoal ou das opera��es em curso?
As opera��es, por si s�s, seriam suficientes?
JD: Lembro que nessa �poca, e por um longo per�odo � frente, eu anotava no alto da
p�gina de todos os meus apontamentos: urg�ncia urgent�ssima: fazer caixa.
Transformou-se numa obsess�o. Antes de nomear
um tesoureiro fixo para a ACC, eu mesmo assumi essa tarefa do controle financeiro
da organiza��o com um rigor de fazer inveja ao Tio Patinhas. Teca me auxiliava com
a sua m�o de vaca modelar, que fazia
render o dinheiro milagrosamente. Com a minha megalomania por grandes
empreendimentos, contudo, n�o havia dinheiro que chegasse. Eu simplesmente n�o
admitia, entretanto, que houvesse a m�nima interrup��o
ou sequer o menor atraso nas obras: o cronograma tinha que ser cumprido
rigorosamente, de prefer�ncia com antecipa��o das metas. Nesses momentos � que
botei um pouco do meu patrim�nio pessoal na parada.
Tratei de imprimir um ritmo vertiginoso nas opera��es de campo, levando os meus
colaboradores � estafa. Andava todo mundo de crista baixo de tanto trabalhar. Al�m
disso, sou do tipo que est� sempre tocando
pimenta no cu do pessoal em troca de produ��o. O dinheiro entrava aos borbot�es,
mas desaparecia na mesma propor��o na execu��o dos projetos. Mas os resultados n�o
demoraram a aparecer, e isso deu �nimo
redobrado � equipe. Em praticamente dois anos cheios, a estrutura b�sica estava
montada, rigorosamente nos prazos.
JL:Escutando voc� falar de Teca, mesmo que rapidamente, lembro-me imediatamente de
Laura e Lize. Parece que todas elas tinham um senso pr�tico bem desenvolvido.
JD: Chego a dizer mais: Teca reunia as qualidades de Laura e Lize juntas e mais as
dela pr�pria. Mas nada foi t�o r�pido como parece nessa minha s�ntese de dez anos
depois. O dia a dia contava horas, minutos,
segundos. Eu, que queria adiantar o passar de cada dia, o via escoar com uma
lentid�o irritante. Se as coisas n�o andavam na velocidade que eu desejava, tamb�m
me faltava tempo para execut�-las convenientemente.
Uma contradi��o insan�vel essa do passar do tempo que eu n�o conseguia nunca
solucionar a contento. Ainda hoje tenho a sensa��o de que tudo passou r�pido
demais. N�o s� em rela��o � Confraria, mas tamb�m
na minha vida pessoal: embora eu tenha ficado com Teca um tempo bem mais longo do
que com as outras duas juntas, tamb�m mantenho a sensa��o de ter perdido coisas
importantes no nosso relacionamento, at�
porque n�o tivemos filhos e praticamente n�o tivemos uma conviv�ncia familiar,
vamos dizer, normal.
JL:Qual de voc�s quis evitar os filhos?
JD: Nenhum dos dois, s� nunca tratamos disso. Um filho representava talvez um
encargo a mais que nenhum dos dois estaria disposto a assumir. Hoje consideramos
ter feito a coisa certa. Embora ainda ache
que nos curtimos muito pouco.
JL:Voc�s moravam juntos ou separados?
JD: Logo ap�s o nosso retorno a Curitiba, Teca mudara provisoriamente para um
apartamento pequeno no centro da cidade, mantido em total sigilo e conhecido apenas
por n�s dois. Ela quase n�o sa�a e, quando
o fazia, usava perucas e �culos escuros, para tentar n�o ser reconhecida. Eu, da
minha parte, sempre na correria, aparecia l�, tr�s ou quatro vezes por semana, sem
aviso pr�vio, tamb�m tomando sempre o
maior cuidado de n�o ser seguido. Ali�s, sempre exagerado, eu trocava seguidamente
de paradeiro, n�o tomava as ruas no dia a dia sem mudar de disfarce, cada vez mais
me preocupando em esconder a minha
verdadeira identidade, pois n�o me sentia seguro com o rumo que as coisas tomavam
na cidade. Carl�o da Branca parecia estar resolvido a usurpar todos os neg�cios
lucrativos de Curitiba, doesse a quem doesse.
JL:Voc� se alternava entre a Teca e os afazeres exigidos para deslanchar a ACC?
JD: Eu me virava mais que bolacha em boca de velho, como se dizia antigamente.
Descobri uma casa nos arredores da cidade, da qual gostei muito, e transformei-a na
sede provis�ria da ACC. Adquiri um lote
de computadores e acess�rios e iniciei o treinamento do pessoal que me acompanhava.
Ao mesmo tempo, eu selecionava os elementos especializados em cada �rea para formar
o corpo docente da UNICRIM, que eu
pretendia colocar em funcionamento em breve. S� que tive de interromper o projeto
da UNICRIM por total falta de condi��es. Dediquei-me ent�o ao feij�o-com-arroz da
nossa atividade, com o objetivo exclusivo
de levantar grana, muita grana.
JL:E esse pessoal acreditava e/ou entendia bem esses prop�sitos ou voc� tinha por
acr�scimo a tarefa de catequiz�-los?
JD: Com os novos membros n�o tive problemas, pois j� ingressavam sob regras
definidas. Quanto aos confrades antigos e fundadores, foi um parto complicad�ssimo.
Tive que extrair a crian�a rebelde a f�rceps,
com muita paci�ncia. Alguns deles, por�m, botei em compromisso na marra, como se
faz na caserna.
JL:J� se falava em ACC, ou o nome veio mais tarde?
JD: De in�cio, apelidei a organiza��o de Confraria do Crime. O que pegou, por�m,
foi ACC. Teve vota��o un�nime em
assembl�ia. Estava assim criado um grupo com objetivos bem definidos. Depois de
alguns
meses, apresentei o Estatuto que, ap�s lido e discutido, tamb�m foi aprovado por
unanimidade. Como j� falei, o CCC � que decidia tudo, desde a sua cria��o.
JL:Eu poderia ter acesso a esse documento?
JD: No tempo adequado, quem sabe, n�o vai depender s� de mim, hoje tudo funciona no
contexto. Isso que voc� chama de documento, o Estatuto, entre os confrades �
conhecido como o Livro. Tudo o que regula
a ACC est� registrado no Livro. O Livro � privativo dos confrades e t�o somente.
JL:A organiza��o passou a ter uma sede pr�pria ou reuniam-se temporariamente aqui e
ali?
JD: As primeiras reuni�es aconteceram inicialmente no moc� do Mauro Gigante. Depois
de um tempo, destinamos uma verba para a compra do casar�o que eu mencionei antes,
em um bairro afastado, nos limites
da cidade, que funcionou como sede durante um per�odo n�o muito longo, coisa de ano
e pouquinho. Ao lado do port�o corredi�o, uma placa da transportadora que operava
l� como empresa de fachada, o que deixava
a movimenta��o de entra e sai de ve�culos como coisa normal.
JL:Como voc� administrava a organiza��o? Continuava participando de opera��es de
campo ou se limitou a ficar atr�s de uma mesa, apenas coordenando tudo?
JD: Eu queria que prevalecesse sempre o consenso do CCC, muito embora, na pr�tica,
eu � que tinha de tomar decis�es individuais, algumas emergenciais. Isso me
incomodava, pois ia contra o estabelecido
no Livro. No meu papel de supervisor, no entanto, eu n�o me conformava de ficar
fora da a��o. Mas, mesmo que quisesse, n�o poderia participar de todas, claro, mas
de algumas eu insistia em participar para
n�o perder o traquejo.
JL:Mas hoje isso est� superado?
JD: O qu�?
JL:Isso de tomar decis�es sozinho.
JD: Com certeza. Hoje tudo � decidido pelo consenso do CCC, conforme prescreve o
Livro. O Livro � a constitui��o da Confraria. Est� tudo ali. Quem contraria o Livro
t� fu�ado.
JL: E quando a ACC passou a extrapolar o �mbito de Curitiba para se tornar uma
organiza��o com ra�zes nacionais?
JD: Isso come�ou a acontecer bem mais tarde. Esse foi um trabalho lento que eu fui
cozinhando sem pressa, procurando sempre os contatos certos para me articular. Meus
primeiros contatos foram com o pessoal
de S�o Paulo e Rio Grande do Sul. Nesse m�tier, as indica��es s�o sempre o caminho
mais seguro. Sempre fui um bom articulador e nunca tive dificuldades para expandir
os meus relacionamentos. Mas, se disser
que foi f�cil, estarei mentindo. Somente o tempo � que vai sedimentando a confian�a
dos aliados, que no in�cio s�o sempre muito desconfiados.
JL:E o Jorge Duncan de hoje j� se preparava para entrar em cena naquela �poca ou
continuava apenas o Mano V�io?
JD: Sim, por que n�o dar nome aos bois? Nome e sobrenome s�o fict�cios, mas Jorge
Duncan � a marca associada indel�vel e inseparavelmente � ACC e � UNICRIM, o
aut�ntico background da organiza��o. No entanto,
� um s�mbolo que se mant�m apenas dentro da ACC, enquanto isso h� uma infinidade de
nomes que v�o surgindo conforme as circunst�ncias. Mod�stia � parte, Monstro e Mano
V�io fizeram parte desse conjunto
que � Jorge Duncan, peda�os de um fen�meno infinitamente mais abrangente. Jorge
Duncan � um monobloco gran�tico que veio das profundezas da terra, do v�mito dos
aflitos, para jogar ou esculhambar.
JL:Isso soa como a voz dos profetas b�blicos, os que tinham uma miss�o a realizar.

JD: Sem essa, Jardel, estamos todos juntos no mesmo barco, para o que der e vier.
Enquanto uns remam outros consultam a b�ssola para n�o perder o rumo. Como a
maioria est� quase sempre � deriva, eu boto
ordem na ma�aroca, buscando a rota certa (risos).

Teca imprensou-me contra a parede, encolerizada.


Eu sempre fui mulher de bandido, antes do Dila, fui casada com um fals�rio, meu
pai e um irm�o meu, ambos finados, eram do ramo, com o Dila, os caras mais barras-
pesadas de Curitiba e do Brasil frequentavam
a nossa casa, e eu estava sempre l�, do lado dele, mas com voc�, n�o, � bem
diferente, parece que eu sou de porcelana, um bibel�, me p�e de lado, em cima do
toucador e me esquece, esquece mesmo, ou, ou.
e eu estou achando que � mais por esse lado, ou n�o confia em mim. Bom, a�, Mano
V�io. Sempre que ela ficava zangada comigo, me chamava assim , a� j� � outro papo,
o buraco � mais embaixo, confia
ou n�o confia, p�xa? Ou t� pensando que sou dedo-duro?
Confio, claro, n�o � nada disso, voc� est� equivocada.
Ah, �? Mas n�o parece, mesmo, ent�o por que me bota para escanteio?
Ora Teca, n�o tou botando ningu�m.
T�, t�, sim senhor, nessa casa eu sou que nem boneca de trapo, voc� vem, come,
come, mata a vontade, a� enjoa, joga num canto qualquer e vai embora, O que eu
represento para vo.? Estava t�o indignada
que se engasgou com a pr�pria saliva, tossiu, tossiu, esperou passar o acesso e
recome�ou, j� mais calma. O que eu espero de um homem � que ele seja meu
companheiro, independentemente se � bandido ou
mocinho, n�o me interessa um homem s� na cama, homem de cama tem milh�es por a�,
basta eu estalar os dedos que eles chovem, ou, por acaso, voc� pensa que eu estou
com voc� apenas por causa desse trof�u
pendurado no meio das suas pernas? Pois est� muito enganado, eu estou com voc�
porque voc� era um homem apaixonado, que me batalhou e conquistou, e agora, o que �
que eu tenho?
Meu bem, voc� sabe que eu tenho os meus compromissos, estamos passando por um
momento dif�cil, o que voc� quer de mim?
O que eu quero? Essa � boa, eu quero voc� todo pra mim, por inteiro, n�o uma parte
apenas, um pedacinho, eu quero voc� o tempo todo comigo. Prometo que vou ser que
nem aqueles macaquinhos, um com a m�o
nos olhos, outro com a m�o nas orelhas, outro com a m�o na boca, n�o vou me
intrometer nunca nos neg�cios do meu homem, nem dar palpite, exceto se for
requisitada, mas quero estar ao lado dele, participar
da sua vida. Quero tamb�m que ele me considere sua mulher de f�, quero um homem que
seja meu dono e n�o um amante passageiro, que s� vem quando deseja descarregar a
sua porra.
� s� isso o que voc� quer?
O meu quase sil�ncio a enfurecia cada vez mais.
�, sim, � isso.
S� isso? Ent�o por que n�o me disse antes? Pega as suas coisas e vamos embora
daqui.

JL:E a Teca teve papel de colaboradora ou ficou de lado?


JD: Ela sempre me cobrou participa��o ativa na ACC, desde o in�cio. Relutei um
pouco, mas com o andamento e aprofundamento do nosso relacionamento, acabei cedendo
e essa decis�o foi bem acertada, pois
encontrei nela, al�m de uma grande colaboradora, uma conselheira criteriosa que
muito me auxiliou em decis�es importantes que tive que tomar ao longo da minha
carreira.
JL:Formaram uma esp�cie de Bonnie Clyde cabocla?
JD: Essa bobajada toda de roli�de � bem diferente da vida real. O que n�o quer
dizer que nossa vida foi paradona, longe disso, sempre foi bem movimentada. Na
verdade, nunca pudemos nos queixar de t�dio.
JL:Acho que formulei mal a pergunta: quem sabe ela teve uma participa��o mais do
tipo Maria Bonita com Lampi�o?
JD: Voc� quer � glamour, n�, Jardel, rotular coisas aut�nticas com nomes fantasias,
n�? (risos). Na verdade, a participa��o de Teca foi mais administrativa, nunca em
a��es de campo. Embora tenha participado
de uma ou outra. Treinei-a, no entanto, para ser uma executiva na �rea de turismo e
lazer. Demonstrou uma compet�ncia acima da m�dia quando passou a supervisionar,
mais tarde, o gerenciamento das nossas
casas noturnas, restaurantes, mot�is e hot�is, sex shops, saunas, etc.
JL:A experi�ncia de conv�vio com Dila foi proveitosa?
JD: A experi�ncia dela com bandidos, inclusive pai e irm�o, n�o teria valido de
nada se Teca n�o fosse a mulher inteligente que �. Ela � uma grande pensadora do
crime e �s vezes me surpreende com sua vis�o
aprofundada do assunto. Para avaliar pessoas, ent�o, � genial. Nada lhe escapa.
Sempre que posso, carrego-a comigo quando tenho algum encontro importante, para ter
uma segunda opini�o abalizada. Com sua
�ndole pr�tica, Teca me aconselha, te cuida desse, cuidado com aquele, esse n�o d�
o bote agora, mas te prepara, vem logo em seguida, e assim por diante. Mas n�o s�
ela, os tr�s mosqueteiros, Darcisinho,
Terneir�o e Mauro Gigante, tamb�m sempre foram excelentes conselheiros. Como
conhecedores antigos da vida bandida de Curitiba, sempre me deram indica��es
preciosas, de quem ou com que eu podia contar,
etc. Darcisinho e Teca, por�m, formavam uma dupla de perdigueiros farejadores
excepcionais, abundantes em vatic�nios corretos, dificilmente erravam nas receitas
de avalia��es e opini�es.
JL:O espa�o deixado por Dila foi ocupado por quem? Carl�o da Branca ou outro?
JD: Conforme as corretas avalia��es de Maurinho Gigante, Carl�o da Branca tinha
incorporado a fatia de Dila que, somada a sua, atingia praticamente 80% dos
neg�cios de drogas da Regi�o Metropolitana. Em
pouco tempo, teria o monop�lio do neg�cio na Capital. Como n�o recebeu repres�lias
de nenhum lado e, muito pelo contr�rio, granjeou ades�es, sentia-se o dono do
peda�o. Nada mais justo. Cercara-se de gente
forte que o apoiava ou se consorciava com ele, conseguiu convencer o pessoal de
que, numa disputa de pontos, ele arrasaria a todos, pois ningu�m, na verdade, tinha
estrutura para competir com o seu grupo.
Evidenciava-se, cada dia mais, que ele era o testa de ferro dos bicheiros do Rio,
que ampliavam a sua �rea de atua��o. Com o Paran� sob controle, os cariocas
fechavam o cerco de S�o Paulo. Certamente tinham
uma estrat�gia para irem paulatinamente apertando o torniquete e se apossando de
pontos importantes da capital paulista e de alguns redutos do interior que tinham
express�o regional. Eu percebi claramente
que Carl�o seria a minha porta de entrada para a escalada do tr�fico, nos n�veis em
que eu pretendia, mas seria uma estrat�gia que demandaria tempo, muita paci�ncia e
muito jogo de bastidores. Bolei um
plano simples e deixei-o em banho-maria para cozinhar aos poucos. Escalei La Rosa,
em vez de Terneir�o, que viajava muito nesse per�odo, para fazer a ponte de acesso.
Como n�o era uma coisa para aquele
momento, fui tratar de outras prioridades. A minha urg�ncia urgent�ssima continuava
sendo fazer caixa, captar o m�ximo que pudesse, no menor tempo poss�vel. Enquanto
isso eu at� facilitava para que Carl�o
fosse ampliando cada vez mais as suas transa��es milion�rias com maconha, craque,
�xtase, hero�na, coca�na, haxixe, o escambau. Quando chegasse a minha hora e a
minha vez j� encontraria um mercado bem
sedimentado, com todas as arestas j� aparadas. Por enquanto, eu correria por fora,
organizando e consolidando a ACC, o que n�o era tarefa pequena. Eu mesmo tinha
tanta coisa para aplainar que n�o sabia
nem por onde come�ar, como j� disse, o que seria uma for�a de express�o, sabia, mas
eram muitas frentes a um tempo s�, nada, por�m, que eu n�o pudesse dar conta. Algum
tempo depois, La Rosa me veio com
uma not�cia promissora, de que tivera uma entrevista com Carl�o da Branca, atrav�s
de um amigo seu, e que este mostrara interesse em trocar figurinhas, nos cedendo um
pequeno espa�o do tr�fico em troca
de armas pesadas, o tr�fico no qual eu me concentrara, sob o competente comando de
Terneir�o. Enquanto entabul�vamos neg�cio, orientei La Rosa a estreitar os la�os
com Carl�o e mesmo a deixar subentendido
que ele poderia mudar de lado, dentro de uma proposta promissora. Assim eu teria um
informante seguro infiltrado nas hostes do concorrente que eu pretendia usurpar. As
coisas come�avam a tomar rumo para
grandes voos em um futuro pr�ximo.

Iniciei com La Rosa e Terneir�o uma s�rie de viagens pelo Brasil e pela Am�rica
Latina, contatando com os l�deres das mais conhecidas organiza��es criminosas com
as quais eu pretendia negociar em breve,
t�o logo finalizadas as linhas mestras do megaempreendimento a que eu me propusera,
para come�ar as opera��es de campo com pessoal novo e bem treinado. Os contatos da
Col�mbia, S�o Paulo, Mato Grosso,
Esp�rito Santo e Natal foram os mais proveitosos. O nosso retorno, no entanto, foi
precipitado por uma s�rie de acontecimentos que deram um giro de 180� nas nossas
perspectivas.

JL:Sonhos, premoni��es, estalos, parece que esses fen�menos come�avam a se tornar


uma constante na tua vida. O que, de fato, considerava que fosse isso?
JD: Nada me desgostava mais. Eu procurava me desfazer de tudo isso como a mulher
que d� descarga no vaso para se livrar do feto indesejado, mas a coisa acabava
sempre retornando. Sinceramente n�o sei a
que atribuir esses fen�menos, mas que eles aconteceram, aconteceram, e sempre
reincidindo. Imagina um l�gico e um realista como eu sentindo tremores medi�nicos.
Simplesmente inadmiss�vel. No entanto,
eu estava perplexo com a mulherzinha e suas profecias tiradas n�o sei de onde. Como
ela podia mencionar Lize? Como ela podia conhecer detalhes antigos da minha vida?
Acho que era telepatia, sei l�. Admito
que esse tipo de coisa � grego para mim, n�o entendo bulhufas.
JL:Mas n�o me refiro especificamente ao que te disse a velha, o que seria uma
particulariza��o. Refiro-me ao conjunto de prod�gios que, de uma forma ou de outra,
o levaram a desembocar naquilo que voc�
� hoje.
JD: Sinceramente me nego em atribuir isso a uma origem divina, paranormal, alguma
coisa dessa ordem.
JL:Mas voc� j� se reconheceu predestinado.
JD: Convenhamos que de uma forma muito leviana. Talvez at� contradit�ria.
Sinceramente deixo em rela��o a isso uma d�vida hiperb�lica. Uma pend�ncia que n�o
sei explicar, ou que me foge ao entendimento.
N�o sei, n�o. Em fun��o disso, resolvi suspender o ju�zo.
JL:Mas tem alguns livros s�rios sobre reencarna��o. A pr�pria parapsicologia � uma
ci�ncia digna de cr�dito que.
JD: Sinceramente n�o gostaria de entrar no m�rito da quest�o. Ou melhor, me recuso.
Menciono esses fatos por terem efetivamente ocorrido, mas nunca os levei muito a
s�rio, para mim tinham mais um sentido
de folclore. Lembravam-me Jorge Amado, a Bahia, o candombl�, africanismo, ax�s,
sincretismo religioso, M�e Menininha, capoeira, sarav�, ogunh�, essas coisas.
Afirmo, no entanto, que essa velha existiu,
suas palavras, os sonhos, as premoni��es. Quem quiser que tire suas conclus�es. A
minha preocupa��o � consignar os fatos. Nada mais que isso.

Em S�o Paulo, est�vamos La Rosa e eu jantando em um restaurante italiano do Bixiga


quando algu�m tocou no meu ombro, fui virando a cabe�a lentamente, olhei a m�o
delicada e bem-tratada, dedos recheados
de an�is, pousada na ombreira do meu palet�, balangand�s caros ao redor do pulso. O
meu olhar continuou subindo ao longo do bra�o delgado de pele alva e perfumada, um
mulher�o de 1,80 elevava-se ao meu
lado, bel�ssima.
Jorge? perguntou uma voz suave e segura de si.
Ergui-me da cadeira e os meus olhos ficaram ao n�vel dos seus, verdes. Antes que eu
respondesse, ela me abra�ou, euf�rica.
Jorge, quanto tempo.
Ao me soltar, pude examinar bem o seu rosto e verifiquei que se tratava de uma das
mais bonitas fei��es femininas j� captadas pela minha vista, mas n�o a reconheci.
Como mencionara o meu nome, devia ser
coisa bem antiga.
N�o est� se lembrando de mim? Ela sentiu o meu embara�o e abreviou. Eu sou a
Marcinha, estive em seu apartamento em Curitiba s�culos atr�s, Ilona nos
apresentou, o book.
Ergui as sobrancelhas, esbo�ando um sorriso.
Voc� � aquela franguinha que queria ser modelo?
Huumm, mudara um bocado, para melhor, claro, oui, c�est moi, o mundo d� voltas, as
pedras se encontram. Apresentei-a a um La Rosa embasbacado, convidei-a a sentar-se
e a nos fazer companhia, desculpou-se
por n�o poder, estava acompanhada, me passou um cart�o para que eu ligasse para
ela, ficaria aguardando o meu convite ansiosamente. Despediu-se com outro abra�o
arrebatado e retornou a uma mesa pr�xima,
onde um homem elegantemente trajado a aguardava com um sorriso amarelo nos l�bios,
talvez temendo perder a mulher para os dois desconhecidos. La Rosa, em um gesto
r�pido, tomou o cart�o dos meus dedos
e o focou com o raio laser do seu olhar curioso, e ent�o o devolveu para mim.
Estava escrito: Marcia du Pont, Top Model e abaixo um n�mero de telefone. Marcinha
estava se virando?
No dia seguinte, pela manh�, tomamos o avi�o para o Rio. Tr�s dias depois, quando
fech�vamos a conta no hotel, me lembrei de ligar para Marcinha para marcarmos
encontro, faria o retorno por S�o Paulo s�
para v�-la, mas n�o achei o cart�o, onde o teria posto? Desisti de procurar e
cancelei a ida a S�o Paulo fazendo voo direto para Curitiba. Somente ap�s uns 60
dias ocorreu-me de tentar localiz�-la, compelido,
subitamente, por um impulso inconsciente. Liguei para a telefonista de plant�o da
Telesp, o seu nome n�o constava na lista, o que significava que fora negada a
divulga��o, alguma coisa me movia a falar
com ela de qualquer jeito, urg�ncia urgent�ssima. A minha mem�ria conseguiu lembrar
o n�mero de Ilona, tantas vezes usado. Ilona fez uma festa ao reconhecer a minha
voz.
A Marcinha? Como n�o vou lembrar, doutor? Falo com ela seguidamente, por sinal
est� zangada com o senhor, pois ficou de ligar para ela e n�o ligou. Ela me falou
do encontro de voc�s em S�o Paulo, ligue
para ela, vai deix�-la muito contente, tal como eu. Ser lembrada depois de todos
esses anos.
Perguntei se a Marcinha estava se virando.
N�o, de jeito nenhum, a Marcinha � uma das manecas brasileiras mais em voga da
atualidade na Europa e nos Estados Unidos, e das mais bem pagas tamb�m. N�o sabia?
Por onde o senhor anda que n�o sabe?
Ela est� em todas as revistas de moda, jornais, tev�, nunca a viu? Essa d�vida, e �
ela mesma quem afirma isso com orgulho, ela tem com o senhor. S� para o doutor ter
uma id�ia, ela passa mais tempo
em T�quio, Paris, Roma e Nova York do que aqui, ali�s, nem sei se ela est� no
Brasil agora.
N�o entendo nada de moda mesmo, tou por fora, n�o sou obrigado a saber. Ilona me
deu o n�mero de Marcinha.

JL:Mas o Brasil � a oitava economia do mundo capitalista.


JD: Beleza pura. O capitalismo n�o sobrevive sem uma sociedade de consumo. E a� eu
pergunto: onde est� o consumidor brasileiro? Quem, ganhando sal�rio m�nimo, pode se
denominar consumidor? Um ter�o do
povo � de pobres e indigentes. Belo capitalismo! A classe m�dia achatada � achacada
pelas multinacionais. Restam cinco, dez por cento. Mas estes j� t�m tudo. Ent�o eu
pergunto, v�o vender para quem? S�
me resta definir o consumo brasileiro como um consumo de formiguinhas, jamais uma
economia pujante com consumidores robustos, como o americano e o europeu, e mesmo
os asi�ticos.
JL: Podemos exportar.
JD: Com a quantidade de barreiras alfandeg�rias em todo o mundo? Se a produ��o
b�sica da exporta��o brasileira vem da agroind�stria, os seus pre�os internacionais
est�o ficando cada vez mais defasados.
No entanto, os produtos industrializados e de alta tecnologia que importamos ficam
cada vez mais valorizados. Como sair dessa sinuca sen�o investindo em educa��o,
sa�de, pesquisa tecnol�gica e mais um
bocado de et ceteras? Veja o exemplo dos tigres asi�ticos, a China, a Coreia, o
Jap�o. Fazem tudo aquilo que o Brasil n�o faz, ou o governo brasileiro. O Brasil
n�o tem nem bomba at�mica!
JL:N�o me diga que � a favor da constru��o da bomba at�mica?
JD: Voc� sabe quanto os pa�ses do G7 investem em tropas e armas? Uma babil�nia,
quase um trilh�o de d�lares anuais. Se querem a paz, como os americanos apregoam
aos sete ventos, por que investir em melhoramentos
b�licos? Conversa para boi ir dormir. O poder militar � fundamental para a
domina��o do mundo, para manter os pa�ses pobres sob o tac�o. Se n�o querem a
prolifera��o de armas nucleares, por que investem
tanto nisso?
JL:Si vis pacem para bellum? Se queres a paz prepara a guerra?
JD: Todo ser humano � por natureza violento. Por isso o mais forte domina o mais
fraco. Ora, eu deixando de ser o mais fraco, ou me nivelando ao outro ou o
superando, eu estabele�o uma regra de conviv�ncia:
se voc� se meter a bobo comigo vai ter. Isso deve ser assim, at� segunda ordem. Sem
uma cl�usula de respeito ou medo subentendida a coisa n�o funciona. Esse neg�cio de
que for�a n�o gera direito � utopia
alienada, � irreal. A realidade n�o pode ser encarada com tanta ingenuidade. Por
isso os estadistas estudam mais Maquiavel do que Rousseau, o italiano � bem mais
realista que o franc�s. Por isso que essa
hist�ria de contrato n�o vinga, porque as desigualdades s�o muitas, alguns poucos
s�o infinitamente mais poderosos que outros muitos. Em consequ�ncia, os
investimentos em ex�rcitos e armas ficam cada vez
mais altos. Um ex�rcito bem equipado e praticamente imbat�vel como o norte-
americano n�o admite discord�ncias. Por isso os EUA dominam o mundo e todos os
outros se submetem. A partir da�, o Brasil j� fez
sua op��o por ser menor, subalterno, colonial, pobre. E n�o s� o Brasil, mas a
maioria dos pa�ses, bem entendido, incluindo a Am�rica Latina. Se n�o mudarem a
mentalidade continuar�o assim at� o fim dos
tempos.
JL:Ent�o voc� n�o v� grandes chances de o Brasil sair dessa?
JD: A elite que comanda n�o se identifica com a na��o. No fundo, se sente mais
europeu ou norte-americano que brasileiro. A come�ar por a�. E mais da metade da
popula��o, se n�o � analfabeta total, � analfabeta
funcional, ou seja, o que sabe n�o lhe permite interpretar os fatos e as
manipula��es da m�dia com precis�o. Povo ignorante n�o pensa, n�o protesta. Por que
a concentra��o de renda se gerou na Ditadura?
Ora os militares sabiam que, se as elites concentrassem mais renda, teriam melhor
apoio delas. Foi o que deu, as leis favoreceram a corrup��o, as negociatas. O poder
do capital alimenta a domina��o, �
um ex�rcito paralelo. O povo, quanto mais achatado, mais sufocado, mais passivo.
Por que n�o existem mais revolu��es populares? Porque isso requer consci�ncia
cr�tica, tempo para pensar, capacidade de
pensar, organiza��o. E um m�nimo de capital. Desempregado, desnutrido, desesperado,
quem consegue se organizar? Por isso continentes inteiros ficam � merc� de pequenos
tiranos que tudo podem.

Liguei para a Marcinha, mas a secret�ria dela me passou um outro n�mero, liguei
para Nova York e soube que s� iria retornar ao Brasil dentro de duas semanas.
Por que n�o me ligou, seu fuj�o? Fiquei morrendo de vontade de te ver, lembrar os
velhos tempos.
Perdi o seu cart�o, somente agora Ilona me deu o seu n�mero, falou que voc� est�
famosa. sil�ncio do outro lado. Marcinha?
Que hist�ria mais estranha, Jorge. Se voc� perdeu o meu cart�o, como e por que o
seu amigo me ligou dizendo que voc� o encarregara de substitu�-lo?
Que amigo? La Rosa?
Ele mesmo.
Veja s�, La Rosa querendo me passar para tr�s com a Marcinha, baita cara de pau.
N�s fomos jantar e ele ficou o tempo todo me cantando, me enchendo de perguntas,
dizendo que queria fazer uma surpresa para voc�, n�o entendi bulhufas. Agora voc�
acaba de me dizer que n�o tinha mais
o meu cart�o, o que � que est� havendo? Agora quem quer saber sou eu. E tem mais,
se sa� com ele, Jorge, foi por sua causa, achando que seria uma oportunidade de o
encontrar, ou na ocasi�o ou logo em seguida,
sen�o, nem pensar.
Quer dizer que voc�.
Bem que eu estava desconfiada, n�o nasci ontem, n�o �, Jorge? La Rosa estava cheio
de mist�rio, pediu que n�o lhe contasse nada caso voc� contatasse comigo, que
mantivesse segredo para n�o estragar a
surpresa, pediu aussi o fone de Ilona, quando lhe falei que ela fora a nossa ponte.

Voc� deu?
Mas oui, ch�ri, como n�o dar? Eu estava louca para participar da festa e da
surpresa tamb�m, n�o podia imaginar que ele fosse sumir e n�o me dar mais
satisfa��es, achei o fim da picada. Ele ligou pra
Ilona tamb�m, a mesma coisa que comigo, mil perguntas, ela n�o abriu nada, a Ilona
� macaca velha, n�o �? Voc� sabe. Pois ent�o, n�o estou lhe dizendo que ele pedia
mil segredos a todo mundo para n�o
estragar a surpresa que estava lhe preparando? Com ela a mesma coisa, se Jorge
ligar n�o falem nada pra ele, s� falava na tal festa surpresa que estava preparando
junto com todos os seus amigos.
Festa surpresa? Quando?
Por ocasi�o do seu anivers�rio, n�o quis dar detalhes porque, conforme suas
pr�prias palavras, surpresa n�o se divulga. S� que essa festa nunca aconteceu,
ficamos esperando e nada, e foi isso que me
intrigou, como passo na correria, dum pa�s pra outro, acabei esquecendo, mas fiquei
decepcionada por ter perdido a comemora��o.
Combinei com Marcinha de ligar dentro de 15 dias, quando possivelmente ela j�
estaria de volta ao Brasil, deixei-lhe um n�mero de telefone para recado em
secret�ria eletr�nica, mas que ela s� deveria us�-lo
caso La Rosa ligasse para ela novamente, frisei que s� deveria us�-lo nessa
hip�tese, do contr�rio, n�o. Acrescentei que n�o revelasse, de modo nenhum, o nosso
contato, e que avisasse Ilona para dizer
o mesmo, caso ele ligasse para ela, o que eu achava, no entanto, hip�tese pouco
prov�vel. O pr�ximo contato viria atrav�s de Marcinha.
N�o lhe d� endere�o nenhum, nem seu nem dela, ou melhor, troque de endere�o
imediatamente, v� para um hotel primeiramente e, quando estiver instalada, me avise
que irei encontr�-la, ok? Vou lhe mandar
dinheiro para isso.
N�o, Jorge, de forma alguma.
Esse detalhe voc� pula, Marcinha eu lhe disse pausadamente , se voc� se acha
devedora de alguma coisa em rela��o a mim, obede�a �s minhas recomenda��es
rigorosamente, ser� a melhor forma de pagamento,
assim estaremos quites.
Marcinha jurou que ia executar tudo conforme eu lhe indicava, que eu podia ficar
tranquilo. Eu fiquei me perguntando o que La Rosa andava aprontando. Uma coisa era
certa, estava investigando o meu passado,
pegara a deixa de Marcinha e n�o perdeu muito tempo para isso, at� para Ilona
ligou, v� se pode, mas elas n�o tinham muito o que dizer de mim, exceto o meu
prenome e o endere�o do moc�. Mas e se ele, com
base nisso, aprofundasse as pesquisas? Era s� furungar, ou botar algu�m a faz�-lo,
que poderia ficar a par de muita coisa. Com que objetivo resolveu vasculhar a minha
vida passada? N�o estava movido por
curiosidade moment�nea, gerada pelo encontro casual com Marcinha. N�o, era carta
marcada. La Rosa n�o � do tipo que pesquisa o passado de algu�m apenas motivado por
uma curiosidade natural, apenas para
fofocar, j� devia ter premeditado isso. Tinha m�o de macaco nessa cumbuca, s�
estava esperando a oportunidade, ela pintou, e ele foi fundo, quem melhor do que
uma velha amiga para esclarecer pontos obscuros?
Ele sabia que, sem o cart�o, dificilmente eu faria contato com Marcinha novamente.
Saber do meu passado com que fim, sen�o o de pegar na ponta do meu rabo? O que
estaria pretendendo? Teria alguma coisa
a ver com o meu xar�, Jorge Cinco? Com Carl�o da Branca? Com o pessoal do Rio?
Alguma coisa a ver com os nossos contatos mais recentes, com o pessoal do
narcotr�fico da Col�mbia e Bol�via? La Rosa estaria
fazendo jogo duplo, o filho da puta? Me aprontava a cama, para ele ou algum outro
tomar o meu lugar? Alguma coisa me dizia que sim. A prem�ncia que me acometeu de
ligar para Marcinha n�o seria um aviso?
O meu radar interior sinalizando aproxima��es indesej�veis? Cada vez mais eu n�o
podia desprezar esse sinalizador instalado no imo da minha alma, que soava toda vez
que alguma coisa de ruim estava para
me acontecer, mas por que La Rosa? Quantos da � estariam tramando com ele? Ou tudo
n�o passava da noia que crescia a cada dia com a expans�o da � e o temor permanente
de ela vir a ser desmantelada a qualquer
momento por uma falha inadvertida? Ou n�o era nada disso e eu estava fazendo
tempestade em copo d��gua?
Quem sabe La Rosa tenha se tarado por Marcinha e tentado a qualquer custo se
aproximar dela e arrast�-la para a cama, inclusive inventando hist�rias
mirabolantes para isso. Marcinha se transformara bem
no tipo de mulher capaz de virar a cabe�a de qualquer um, e La Rosa acabou sendo a
sua �ltima v�tima. Mas a ponto de trair o chefe e amigo, em total desrespeito,
furtando-lhe o cart�o? N�o podia simplesmente
ter sido franco comigo? Poderia ter dito �Olha, Jorge, quero essa mulher pra mim
custe o que custar.�, sabia que eu n�o ligava para mulher nenhuma que n�o fosse
Teca, seria f�cil me convencer a lhe dar
cobertura. Botei La Rosa em banho-maria, decidi, para tirar qualquer d�vida do
n�vel da sua lealdade, mant�-lo em observa��o 24 horas do dia, assim como se faz
com coleta de fezes deixada no laborat�rio
para an�lise de cultura, s� para ver que bicho ia dar.

JD: Antes da UNICRIM, onde os ne�fitos teriam forma��o te�rica e pr�tica em tempo
integral, por um m�nimo de tr�s anos, dependendo da compet�ncia de cada um, as
CREABS passaram a funcionar por meio de
institui��es filantr�picas de fachada. Estas fariam a angaria��o de membros entre
meninos e adultos de rua, selecionando aqueles realmente vocacionados para compor o
quadro da organiza��o. As CREABS funcionam
como um est�gio preparat�rio do Sistema de Forma��o (SISFORMA) que leva, no est�gio
seguinte, ao ingresso na UNICRIM. Os cursos da UNICRIM est�o distribu�dos em duas
fases: Intermedi�ria e Adiantada. A
Intermedi�ria abriga alunos dos 6 aos 12 anos, por um tempo m�nimo de dois anos. A
Adiantada, alunos dos 18 aos 23 anos, por um tempo m�nimo de tr�s anos. O confrade
j�nior, conclu�da a fase Intermedi�ria
na UNICRIM, far� trabalho de campo dos 12 aos 17 e meio. Ter�, por�m, suas
atividades orientadas e assistidas o tempo todo por confrades de grau mais
adiantado. Ao completar 18 anos, retorna � UNICRIM
para concluir seus estudos. Da�, at� se formar, por volta dos 23/24 anos, fica por
conta da ACC. O objetivo � torn�-lo um profissional competente na sua �rea de
atua��o.
JL:Os professores da UNICRIM nessa fase inicial eram recrutados onde?
JD: Essa foi a fase mais dif�cil da implanta��o do projeto. Inicialmente �ramos
n�s, os veteranos, a fazermos o papel de professores, transmitindo a nossa
experi�ncia aos ne�fitos, mas isso apenas na parte
pr�tica. A parte te�rica os confrades iam receber nas escolas p�blicas. Isso
atravancou a pequena �rea, pois era muito dif�cil batermos o escanteio e
cabecearmos a gol ao mesmo tempo. Mesmo assim fizemos
alguns progressos. Isso tudo, como voc� pode notar, funcionou a toque de caixa, com
resultados bem aqu�m do que eu esperava. A coisa andou meio que no empurr�o, na
marra. Depois de alguns anos, por�m,
aqueles confrades que foram se formando em universidades, nas v�rias disciplinas de
conhecimento, passaram a preencher essas defici�ncias, tornando a forma��o da
UNICRIM mais aprimorada e autossuficiente.
Quando conseguimos reunir um corpo docente razo�vel, criamos nossas pr�prias
escolas com registro no MEC para poder graduar nossos alunos espec�ficos. N�o
preciso dizer que as vagas eram preenchidas apenas
por alunos vinculados � Confraria, n�o �? Quem era de fora encontrava os cursos
sempre lotados.
JL:Voc� simplesmente fez uma revolu��o cultural e educacional no ambiente criminal.

JD: Com a CENAJU aconteceu a mesma coisa. Inicialmente os advogados eram coletados
no mercado. Depois formamos nossa pr�pria equipe de criminalistas, que hoje s�o
algumas centenas. A CENAJU e a ASSIJUE
t�m import�ncia fundamental para a seguran�a e estabilidade constitucional da
corpora��o em todos os sentidos. O inestim�vel valor do servi�o prestado pela
CENAJU/ASSIJUE garante assist�ncia jur�dica aos
confrades, em atendimento 24 horas, pois mantemos escrit�rios de criminalistas
espalhados em todo o territ�rio brasileiro. A ASSIJUE � uma esp�cie de pronto-
socorro jur�dico. Basta o fone da Central de
Atendimento ser acionado que uma �ambul�ncia� � enviada para �salvar� o paciente,
com urg�ncia urgent�ssima. Um confrade nunca fica pendurado no pincel. Desse modo,
qualquer membro detido tem um advogado
ao seu lado em poucos minutos, ou no m�ximo em algumas horas, independentemente do
lugar da ocorr�ncia, por mais remoto que seja. A estat�stica atual � que cerca de
85% dos presos do Brasil n�o disp�em
de advogados. Com a CENAJU/ASSIJUE tapamos um furo que deixa a maioria dos
marginais entregues � pr�pria sorte. Com confrade, n�o, viol�o. O que me alertou
para esse detalhe, e a prioriz�-lo, foi a analogia
com o infarto do mioc�rdio, no qual o paciente depende de atendimento imediato para
minimizar as sequelas. A presen�a do advogado na delegacia � crucial para a
situa��o do preso a partir daquele instante,
inclusive a do enquadramento no C�digo Penal, minimizando o seu agravamento,
podendo chegar, dependendo do caso, ao relaxamento de um flagrante com base em
amparo legal, at� pedidos imediatos de habeas
corpus, liminares, ou qualquer medida cab�vel de soltura, caso haja. O fundamental
ser� evitar-se ao m�ximo o recolhimento de qualquer afiliado ao c�rcere, servindo-
se para isso de todos os recursos dispon�veis,
l�citos ou il�citos, incluindo-se o suborno.
JL:E como manter toda essa estrutura secreta, sem risco de vazar informa��o
confidencial a qualquer momento, mesmo que inadvertidamente?
JD: Conforme voc� vai perceber, em um contato mais aprofundado com a organiza��o,
toda a nossa estrutura � compartimentada, como o arcabou�o de um navio, de modo
que, pode fazer �gua num ponto qualquer
sem afetar a estrutura geral, que permanece inc�lume, impedindo que o navio jamais
afunde.
JL:Quem garante isso? Pode-se aventar at� a possibilidade de trai��o, infiltra��o
policial, etc. O servi�o de intelig�ncia da pol�cia federal e mesmo a colabora��o
de outras entidades internacionais, como
o FBI, a CIA, o DEA, n�o podem ser menosprezadas, n�o concorda comigo?
JD: Bem se percebe que voc� n�o tem certeza do que fala. Parece que fica jogando
perguntas ao vento para ver se alguma cai de p�. Depois que tiver acesso ao Livro,
caso tiver, vai ver que isso � dific�limo
ou quase imposs�vel. O nosso processo de sele��o � rigoros�ssimo, o que inviabiliza
qualquer possibilidade de infiltra��o. J� de trai��o ningu�m est� livre, nem a ACC.
S� que quem se arriscar vai ter que
pagar um pre�o bem alto, isso eu garanto. Geralmente, para confrade que abre o
bico.
JL:O pre�o seria. (gesto ondulat�rio da m�o) em qualquer rio brasileiro? (risos)
JD: � sempre uma possibilidade. Dependendo do caso pode ser bem pior. (risos)
JL:Para mim, a ACC ainda � uma novidade, de modo que as coisas me parecem um tanto
hipot�ticas, mas, conforme as suas palavras, � uma organiza��o com estrutura j�
consolidada na pr�tica, n�o � isso?
JD: Tem d�vida? E n�o s� no �mbito nacional, no internacional j� est� adquirindo
uma consist�ncia bem acentuada.
JL:Nenhuma d�vida. O que penso �, por que antes nenhum. nenhum.
JD: Bandido, desengasga logo.
JL:N�o diria isso, seria grosseiro. O que penso �, por que nenhum l�der de
organiza��o criminosa teve antes uma id�ia desse tipo? Isso me parece t�o simples,
agora depois de tudo que sei que.
JD: De fato as grandes id�ias parecem simples. depois de executadas, e de fato s�o.
O problema � que a maioria do pessoal n�o tem tempo de pensar e ter id�ias muito
criativas, pois geralmente est� debaixo
do mau tempo, na roda-viva, na rua, no meio do redemunho.

Deixamos o carro em uma rua lateral, o dono de uma rede de lojas e supermercados
havia solicitado, atrav�s de Tim�teo, um dos subordinados diretos de Mauro Gigante,
os nossos favores para sabotar as instala��es
de um concorrente. Como Tim�teo era homem de confian�a, deixamos que ele fizesse as
tratativas iniciais sem a nossa presen�a, a fim de ir adquirindo autonomia e
seguran�a nas negocia��es, fomos l� apenas
supervisionar.
Resolvi acompanhar o grupo, Darcisinho, Mauro Gigante e Tim�teo, n�o s� pelo fato
de auxiliar no levantamento do local, mas para manter-me atualizado com o trabalho
de campo, havia muito que eu ficava
confinado �s depend�ncias da sede sem arredar p� de l�, falando ao telefone e
sentado atr�s de uma mesa, n�o acredito no gerenciamento que se distancia do foco
de opera��es a ponto de este virar novidade.
Pelo lado externo, percorremos a retaguarda do pr�dio central do supermercado,
cujas instala��es ocupavam um quarteir�o inteiro, incluindo o estacionamento, o
objetivo era analisarmos os pontos vulner�veis
do sistema de seguran�a. Ap�s esse procedimento, nos deslocamos por uma rua lateral
para fazer o exame da fachada, e, ao passarmos diante de uma casa, algu�m chamou l�
de dentro. N�s quatro nos voltamos,
uma velhota sorridente estava trepada na janela e gesticulava, pensei que estivesse
pedindo ajuda, mas logo vi que n�o. Darcisinho apontou com o indicador para si
mesmo e a velha fez que n�o com a cabe�a
e ent�o fez um sinal na minha dire��o, desta vez fui eu a espetar o indicador no
peito, a velha confirmou com o polegar para cima, aproximei-me da grade de ferro do
port�o, contrafeito, o que podia querer
comigo uma velha desgrenhada e louca daquelas? Meus tr�s companheiros se detiveram,
observando a cena, Darcisinho e Mauro Gigante tirando sarro da minha cara.
O Mano V�io arranjou pra hoje, viu Maurinho?
Se vi, at� parece que ele pressentiu que hoje ia ganhar uma dona, por isso
resolveu nos acompanhar na �ltima hora retrucou Mauro Gigante.
Escutei a gaitada dos dois nas minhas costas, Tim�teo apenas sorria, para n�o
parecer desrespeitoso. A velha dizia alguma coisa que eu n�o entendia, coloquei a
m�o em concha no ouvido para escutar melhor.
Vou cuidar de voc� dizia a cuca varrida quase num sussurro.
O qu�? Fala mais alto, n�o tou entendendo nada eu disse impaciente, quase
gritando.
Passa aqui outro dia, vou cuidar de voc�.
Mulher mais maluca, parece que bebe, v� se pode, logo quem cuidar de mim.

Est� bem, est� bem, onde a encontro? Aqui mesmo? disse aquilo para encerrar o
assunto.
N�o, meu filho, moro mais adiante apontou para sua esquerda , uma casa amarela, a
duas quadras daqui. Hoje n�o posso atend�-lo, pois estou trabalhando.
Olhei bem nos seus olhos para tirar a sua ficha, diarista e aloprada, totalmente
biruta, insistiu em dizer que ia cuidar de mim, eu, hein? Dei as costas e me
afastei.
E a�, Mano V�io? perguntou Darcisinho. Marcaram uma ponte?
Velha doida respondi, estugando o passo para me afastar da cascata de risos.
Fomos tratar do nosso neg�cio, t�nhamos que tocar fogo naquela jo�a de
supermercado, mandar tudo para a cucuia.
Quando retornei �quela rua, e isso foi ocorrer cerca de dois meses ap�s j� termos
conclu�do o nosso trabalho com sucesso, e no lugar do pr�dio monumental n�o restar
mais que uma extensa mancha negra no
centro do enorme terreno j� terraplanado.

JL:Sem nenhum puxa-saquismo, me parece que a ACC est� fadada a ser a organiza��o
por excel�ncia do terceiro mil�nio.
JD: Olha, nem tanto. Eu, que tenho tido contato com um bocado de lideran�as pelo
mundo afora, posso atestar que tem uns caras muito espertos que me deixam at� um
pouco intimidado quanto ao aspecto organizacional.
Algumas dessas corpora��es j� atingiram est�gios nos quais a ACC ainda est� rec�m
engatinhando.
JL:Em qu�, por exemplo?
JD: A �rea de inform�tica � uma delas.
JL:Mas esse � um quesito em que praticamente todo o mundo est� engatinhando.
JD: Que nada, os americanos e japoneses j� est�o bem adiantados, n�s l� no Brasil �
que ainda estamos muito defasados. As universidades americanas e
europ�ias d�o muita aten��o � tecnologia de ponta
e aumentam cada vez mais o fosso tecnol�gico com a Am�rica Latina, por exemplo.
JL:Na verdade, eu me considero um leigo nesse assunto, n�o manjo nada de
computadores nem de inform�tica, de modo que n�o posso acrescentar nada.
JD: Pois trate de se inteirar, Jardel, o futuro do mundo vai girar em torno disso,
principalmente na �rea de comunica��o, empresas jornal�sticas, etc. Voc� t� pegando
mofo, Jardel, com esse teu comodismo,
trate de sacudir a poeira, meu. Al�m do mais, as organiza��es criminosas dos
gringos est�o cada vez mais legalizando as suas opera��es com conglomerados de
empresas de fachada que praticamente absorvem
todas as atividades ditas ilegais. Tudo passa a ter uma fei��o institucional, de
neg�cio certinho, contabilizado, mascarado, mas que ningu�m pode botar defeito. E
quem se atreve, �. (gesto ondulat�rio
da m�o), e n�o s� no Sena, mas no Rio Missouri, no Volga, no Yang-Ts�. (risos).
JL:Mas o crime organizado no Brasil j� come�a a tomar uma fei��o profissional, a
ACC que o diga.
JD: O importante para o crime organizado do planeta � fazer fachada e lavar
dinheiro, cada vez mais, ou seja, dar uma apar�ncia de legalidade a tudo o que faz.
E os pol�ticos de todos os quadrantes est�o
cada vez mais afinados com o crime organizado, pois � a chance de aumentar a sua
renda sem limites. Financiamentos de campanhas s�o a reza obrigat�ria para o diabo,
no Brasil nem tanto porque rec�m saiu
da ditadura, mas vai come�ar a todo o vapor, se depender de mim, isso eu garanto.
(risos).
JL:O crime organizado est� infiltrado em todos os segmentos de neg�cios, ou tem
alguns que lhe interessam mais?
JD: Basicamente em todos, mas � claro que tem alguns que se sobressaem. No Brasil,
por exemplo, nesse momento � o tr�fico de drogas. � imprescind�vel para o
crescimento de qualquer organiza��o que se preze.
Um que eu estou estudando para implantar com toda a for�a � o tr�fico de
influ�ncias, principalmente no �mbito federal, l� em Bras�lia. Estou preparando
lobistas para atacarem com tudo em v�rias frentes,
principalmente com empreiteiras. Tenho alguns deputados e senadores na manga que
n�o me recusam nada.
JL:Mas a rec�proca � a peso de ouro, n�o �?
JD: S� rel�gio � que trabalha de gra�a, n�, Jardel? Na verdade, todos precisam
ganhar, principalmente aqueles que ocupam o pal�cio do Planalto. No Brasil nada
acontece de importante no �mbito financeiro
ou dos neg�cios sem que passe por Bras�lia antes. Mas tem teta para todos, ningu�m
fica de fora, se voc� tem uma id�ia quente, Bras�lia � o solo prop�cio para seme�-
la.
JL:E o povo onde fica?
JD: Sempre sobra uma rebarbinha para o pov�o, futebol, carnaval, novela da Globo.
(risos).
JL:Pelo jeito, neg�cio bom n�o falta, todo dia tem not�cia de corrup��o e gente
metendo a m�o em verbas p�blicas.
JD: Jardel, voc� n�o perde por esperar, agora ainda n�o � nada, mas espere para ver
daqui a dez, vinte anos, o Brasil vai ser um po�o sem fundo de esc�ndalos
financeiros e pol�ticos. Ser� a bola da vez
internacional, mas vai despontar como aconteceu com muito pa�s de apar�ncia s�ria,
mas que fazia mis�rias por baixo dos panos. � o caminho do crescimento, n�o h� como
n�o trilh�-lo. Os pol�ticos brasileiros
est�o acordando para o jogo r�pido das finan�as globais e, assim, a coisa vai tomar
um ritmo acelerado. O pr�ximo passo ser� a privatiza��o de empresas p�blicas. A ACC
est� atenta para isso, ou seja, comprar
empresa p�blica de apar�ncia falida, por uma merreca, para depois fazer o lucro
aparecer sem muito esfor�o.
JL:Ent�o tem at� presidente metido no meio?
JD: Ningu�m que � esperto mete a m�o em cumbuca. Mas tem quem fa�a por eles, n�o �
mesmo? A pol�tica � uma grande aventura de poder e riqueza. Melhor que pol�tica s�
a ACC.
JL:Ent�o voc� vive em um cruzeiro de aventuras onde o t�dio n�o tem vez?
JD: Hoje posso responder que sim.
JL:Se vem da tua boca, s� posso ter como verdadeiro. At� eu estou a fim de entrar
para a ACC.
JD: Mas voc� j� faz parte dela, meu caro Jardel, o seu t�dio acabou. Daqui para
diante, a ACC n�o vai permitir que voc� se aborre�a. (risos).
JL:De fato, j� n�o me aborre�o mais. (risos)
JD:N�o tem muito mist�rio no contexto de a��o da ACC.
JL:� mesmo?
JD:Veja s�, Jardel, aquele alem�o nazista, o tal de Heidegger, dizia que a verdade
n�o � acess�vel � primeira vista, que ela precisa ser desencoberta, exige um
trabalho de desvendamento, pois quase sempre
a verdade permanece escondida. Os alem�es s�o campe�es em dial�tica, v�o tecendo os
seus argumentos de tal modo que acabam deixando a gente convencido de que est�o
certos. Esse da� fala no tal velamento
e desvelamento. Ou seja, a verdade est� sempre encoberta de v�us, ou seja, est� bem
escondida. At� ent�o, debaixo dos v�us, ela n�o � nada, apenas uma n�o-verdade.
Ora, para virar verdade, precisa ser
desvelada, ou seja, os v�us devem ser retirados at� a verdade ficar exposta. Mesmo
assim, a verdade nunca ficar� totalmente revelada, sempre se manter� escondida,
ainda que aparentemente exposta. Bota
bl�-bl�-bl� nisso. (riso)
Para mim essas id�ias do alem�o foram de grande utilidade. Sempre que me envolvo em
algum rolo criminal procuro deix�-lo sempre o mais encoberto poss�vel de v�us, para
que n�o fiquem pistas ou pontas soltas
para serem aproveitadas no desvelamento, em geral feito pela pol�cia ou pelo
judici�rio. � um jogo de intelig�ncia, onde o mais forte chora menos. (riso) Quanto
mais perfeito e pensado � o plano de execu��o
de uma trampa, mais estaremos dificultando a sua investiga��o a fim de que cheguem
a uma conclus�o e assim poder provar as inten��es sub-rept�cias nele embutidas.
O plano que eu costurei com o poder pol�tico e econ�mico do Brasil tem essas
caracter�sticas: dar muito trabalho ao outro lado (pol�cia e judici�rio) para
tentar provar ou desvendar alguma coisa. Em geral
vira quase um enigma. Antes de tudo, por�m, no meio dessa trajet�ria, � preciso
colocar as pessoas certas nos mais altos escal�es do governo, para dar cobertura no
caso de as verdades virem � tona. Essas
autoridades servir�o para colocar novos v�us no lugar daqueles que foram retirados.
Ou seja, tudo o que for desvelado. logo a seguir sofrer� novo velamento. o que
significa: a verdade nunca vir�
totalmente � tona. nunca. (riso) Entendeu, Jardel?

Na verdade, eu j� n�o tinha mais lembran�a do incidente com a velha, mas acordei
certa manh�, como sempre me acontece quando estou na imin�ncia de alguma enrascada,
com uma pressa tremenda de procurar
a dita cuja, estaria virando paranormal? N�o tive dificuldade em encontrar a casa
amarela de madeira, recuada em um terreno com v�rias �rvores frut�feras de permeio
e dois canteiros cheios de p�s de couves.
Tinha ido solito, coisa que n�o costumava fazer mais, mas n�o estava disposto a ser
motivo de risos adicionais. Desci do carro e me aproximei do port�o meio apodrecido
da sebe de ripas pintadas de um marrom
desbotado pelas sucessivas chuvas, l� estava a mulher velha encostada no umbral da
porta, sorrindo no seu jeito abobalhado, uma perna em descanso cruzada na frente da
que lhe servia de apoio e uma das
m�os apoiada na anca, como se tivesse estado ali � minha espera durante todo aquele
tempo. Nisso a imagem dela se transmudou para a de um samurai, esfreguei os olhos,
o samurai tinha uma fisionomia endurecida
e seu olhar frio de puro gelo me traspassava, aquele homem era perigoso, mas n�o
para mim. Caminhei em sua dire��o disposto a enfrent�-lo. A mulher velha me
esperava com a m�o estendida e apertou a minha
em um cumprimento demorado, procurei em volta, onde diabos havia se metido o
samurai? Eu come�ava a sofrer alucina��es?
Entre, meu filho.
Antes de passar na porta pude observar, na lateral da casa, uma min�scula
edifica��o de alvenaria coberta com telha de amianto pintada de vermelho e com um
cadeado na portinhola, n�o tinha nem id�ia de
que essa era a morada do Exu e de que a velha era uma macumbeira. Fui conduzido a
uma saleta onde haviam apenas duas cadeiras e uma mesa entre elas, em seguida, sem
nada me dizer, a velha sumiu detr�s
de uma cortina que servia de divis�ria deixando-me ali sentado. Demorou tanto que
me ergui e fui espiar atrav�s da cortina, a velha estava ajoelhada e curvada,
apoiada nas m�os, de costas para onde eu
me achava, rezando diante de um altar com dezenas de santos sobre ele, velas acesas
e um bocado de badulaques espalhados por ali. A velha levantou o torso e persignou-
se pronunciando palavras em um dialeto
desconhecido para mim, al�ou as m�os espalmadas para o alto, fez uma sauda��o e se
p�s de p� sem precisar de apoio, apenas com um impulso nas pernas, uma agilidade e
vigor que n�o condizia com o seu corpo
fr�gil.
Retrocedi at� o meu lugar antes que ela se volteasse. A velha arredou a cortina com
o prop�sito de deixar o altar � mostra, carregava um pano de seda vermelho dobrado,
colocou-o sobre a mesa com todo cuidado
e desdobrou-o, havia v�rias conchinhas no seu interior e um baralho de cartas de
tar�. Ela embaralhou as cartas e pediu-me que cortasse, cortei, e ela foi virando
as cartas na minha frente, apontou a carta
com a figura da Morte.
A morte necess�ria que vai dar lugar a uma nova realidade. A morte nem sempre � o
fim falou a t�tulo de explica��o , pode significar renascimento.
Huumm.
Ela suspendeu a fala por alguns instantes, retomando-a logo em seguida com um tom
de voz alterado, enrouquecido.
Foi uma perda muito dolorida, mas estava escrito, ela foi o anjo que te levaria �
loucura e ao desespero supremo.
Antes que eu tivesse tempo de lhe fazer perguntas, ela recolheu as cartas,
empilhou-as e colocou-as de lado. Olhou-me fixamente, um olhar aguado, muito
triste, depois fechou os olhos, come�ou a falar como
se estivesse em transe, apertando as p�lpebras. �Lize�. Quando emitiu aquela
palavra, senti o meu corpo estremecer como atingido por um fio de alta voltagem.
Ela continuou de olhos fechados e gemendo,
numa representa��o de profundo alheamento, prosseguiu no mesmo tom.
Ao chegar, voc� viu aquele que viveu h� quase duzentos anos, voc� � a reencarna��o
daquele samurai, atualmente voc� est� no quinto est�gio da sua evolu��o espiritual,
ele era um bakuto, um dos fundadores
da Yakuza.
Ei, ei eu ia dizendo, tentando deter aquelas baboseiras, mas encontrei meus
l�bios grudados. Ela continuava:
Seu nome � aqui sua voz se alterou para um tom grave, rascante, viril, em japon�s
perfeito Shimizu no Jirocho.
Senti um calafrio percorrendo-me a coluna espinhal e meu corpo inteiro p�s-se a
tremelicar, segurei-me com ambas as m�os nas bordas do assento, e ela continuou
falando com os olhos fechados, agora a voz
era pausada e tranquila, seu rosto se suavizara.
Voc� est� cumprindo a sua miss�o, as pessoas que desencarnou tinham suas horas
marcadas e voc� foi apenas o instrumento para a desvincula��o delas, n�o precisa
temer nada.
�P�xa, essa velha s� est� dizendo merda, me atribuindo temores que eu n�o sinto,
vou me mandar daqui�, pensei.

JL:Mas e as negociatas estaduais e municipais? Superam as nacionais?


JD: Em n�mero, sim. Mas os cuidados s�o redobrados para n�o se dar nome aos bois. O
nosso pessoal fica mais exposto, mas faz parte do m�tier. Vou te contar um causo
insignificante dentro do contexto, mas
que vai exemplificar bem a quantas andamos. Tinha um mulat�o que era presidente de
um sindicato em Curitiba e se aproveitou do cargo para fazer carreira pol�tica. O
cara era analfa de p�s-gradua��o, com
aquele jeito de falar sem pluralizar como o seu Lula, ali�s agora virou moda todo
mundo falar errado como o metal�rgico fedido, adeus gram�tica, concord�ncia verbal
e nominal. S� que esse botocudo a que
estou me referindo falava r�pido e queria porque queria tudo para ontem. Convenceu
a categoria a partir para sede pr�pria. Foi a� que entramos. Conseguimos um terreno
no centr�o de Curitiba e negociamos
com ele por cinco vezes mais. Todo o mundo molhou o bico. Logo em seguida uma
incorporadora do nosso conglomerado de empresas ganhou entre aspas a concorr�ncia
para a constru��o da sede. Para abreviar:
aquilo que teria um custo x, em condi��es normais, saiu por quinze vezes mais. N�o
sai neg�cio na �rea da constru��o civil oficial entre aspas que n�o seja
superfaturado. A propina rola solta. O tal presidente
hoje � vereador e um grande colaborador nosso. Enquanto isso, a ACC est� sempre em
cima do lance, como um zagueiro atento (risos).
JL:� tudo assim?
JD: Sem exce��o.
JL:Por essas e outras � que o Brasil n�o anda para a frente?
JD: Por essas e um milh�o de outras. Mas porque o Brasil precisa caminhar para a
frente? Para os lados � melhor. Principalmente para o nosso lado. (risos) Mas por
que voc� acha que o Brasil � o pa�s de
maior concentra��o de renda do mundo? Com as verbas da corrup��o se poderia
construir mais dois ou tr�s brasis paralelos. Al�m do mais, esse esquema n�o foi
criado por n�s, � velho de 500 anos. Por isso
� que, desde cedo, nas CREABS e na UNICRIM, os nossos ne�fitos s�o educados,
informados e conscientizados das realidades da vida, que a maioria j� conhece muito
bem, pois veio da lama. Sabe muito bem da
necessidade de se tornar um guerreiro para lutar pela causa, cujo lema � Ouseje, e
que � a sua pr�pria causa e de mais ningu�m. N�o, Jardel, n�o estou sendo radical,
vai por mim, quem avisa amigo �, ponha
isso bem dentro da sua cabe�a, quando se entra nesse n�vel, nos primeiros escal�es,
na grana preta e poder do topo, � outra dimens�o, voc� entra na velocidade da luz
da vida aventureira. � o mundo maravilhoso
do poder, das grandes negociatas onde o dinheiro rola solto e f�cil. Nesse mundo
nunca tem crise. Agora, voc� precisa ter jogo de cintura para acompanhar esse
ritmo, se n�o tiver pique funde a m�quina
no meio do caminho: teco-teco n�o entra nessa competi��o de avi�o supers�nico.
JL:Parece que o mundo do crime est� sempre correndo na frente do Sistema e que, sob
certa forma positiva, inclusive, o estimula, para que este acompanhe o seu ritmo
fren�tico, � isso?
JD: At� o linguajar informal � outro, ali�s nem precisa se falar muito, fica tudo
subentendido. A linguagem passa a ser cifrada, sint�tica, sedimentada na
gestualidade, e nesse sentido fica potencializada
a velocidade da comunica��o. �s vezes um simples gesto, um olhar, significam mais
do que um discurso inteiro. O gestual passa a valer quase como uma imagem que vale
mais que mil palavras. Ent�o significa
que, quanto mais voc� entende do tro�o, mais adiantado voc� est�, mais por dentro,
o seu grau de evolu��o � medido pela sua intui��o. Equivale � linguagem dos
amantes, onde o corpo fala mais alto para
a obten��o do seu objetivo. Quando voc� sabe das coisas e o seu vizinho tamb�m,
voc�s precisam ficar dando explica��o um ao outro? �bvio que n�o. The time is
money. Voc� esfrega o polegar no indicador
e basta, quem n�o entende isso? � nessa linguagem das meias palavras, dos gestos
difusos, das ambiguidades, que todo mundo se entende, intuitivamente. Para que
mais? Mas isso, para quem est� de fora, �
grego. Quem est� de fora fica boiando. � o mesmo que ver chineses conversando, n�o
se entende nada. � uma linguagem para iniciados, quem est� fora n�o entra, quem
est� dentro n�o sai.
JL:Visto por esse �ngulo, parece que todas as a��es humanas t�m segundas inten��es,
ou seja, a maioria delas, as que efetivamente pesam na balan�a das rentabilidades,
sendo executadas por debaixo dos panos,
� isso?
JD: �, Jardel, e voc� tem d�vida? Essa � a sua �rea de atua��o profissional,
Jardel, a comunica��o, � o teu m�tier, voc� conhece bem como essa porra funciona,
ou pelo menos deveria. Vou te dar o enfoque
da ACC: para ela tudo tem a clareza do sol da manh�, do hino nacional, o sol da
liberdade em raios f�lgidos, portanto voc� n�o est� mais levando a not�cia para a
reuni�o de pauta, para ser selecionada,
ou recebendo a not�cia da tev�, que � manipulada, filtrada do r�dio ou do jornal,
do discurso fajuto das autoridades, agora voc� est� fazendo a hist�ria por sua
pr�pria conta, a hist�ria em que a grana
e o poder trocam de m�os, indefinidamente, mas que tem uma caracter�stica, essas
s�o m�os recicl�veis, s� isso, n�o tem nobreza ou superioridade nesse contexto,
trata-se apenas de uma luta encarni�ada
pela posse do tutu e do poder pol�tico e econ�mico, e da capacidade de conquist�-lo
com o m�ximo de efici�ncia, s� isso.
JL:Estou t�o distanciado desse contexto que parece miragem.
JD: J� falei para voc� sacudir a poeira, n�? S� que esse mundo de que falo � real,
muito real. Ningu�m � favorecido por ele, o povo, digamos, o mundo global n�o
melhora nada, s� o mundo particular dos
operadores do Sistema, das m�os invis�veis. Apenas alguns grupos sofrem oscila��es
para mais ou para menos, fica mais ou menos rico, o dinheiro sempre troca de m�os,
mas s�o sempre as mesmas m�os, n�o
� s� a minha nem a sua, se voc� n�o chega l�, s�o m�os manicuradas e macias,
habituadas ao contato de c�dulas desde o �tero das suas mam�es, desde pequenos
brincando com a��es, t�tulos, pap�is, pap�is
suaves e aveludados, manipulando milh�es. Mas para voc� chegar l�, entrar nesse
mundo fechado, tente antes primeiro ir � Lua, a Marte, pois � muito dif�cil, �
dif�cil como passar no buraco de uma agulha,
n�o para sair, como queria o Homem, mas para entrar. Para chegar l�, voc� encontra
mais dificuldades que o H�rcules com as suas tarefas absurdas. � um clube
privad�ssimo, com exig�ncias quase insuper�veis
de ingresso, por isso fique esperto, Lundi, desperte dessa letargia, abra os olhos
e veja a vida como ela �, de olhos bem abertos para enxergar bem, sem deforma��es
como voc� a viu at� agora, voc� � um
jornalista, p�, precisa saber distinguir as coisas. Se voc� continuar olhando a
vida pelo calidosc�pio da tradi��o, a� n�o tem jeito, voc� t� fu�ado. (risos). Voc�
ainda est� preso na caverna do Plat�o,
criatura! Sai para fora, homem!
JL:Esse discurso est� me cheirando a autoajuda, voc� parece o Lair Ribeiro
pregando.
JD: Acho que at� j� peguei um pouco do jeito dele. (risos). Mas, de fato, � preciso
mudar o enfoque, assumir nova postura diante da vida e do mundo, sen�o voc� nunca
vai sacar as coisas, vai estar sempre
por fora, morou? Por tr�s dos cart�is, dos trustes, dos polos e monop�lios, sempre
vai encontrar o nosso conhecido animal voraz no in�cio da fila. Algu�m que n�o liga
a m�nima para a vida humana, a dos
outros, bem entendido, e que costuma mandar tirar de circula��o quem se atravessa
em seu caminho. N�o tem tanto crime sem solu��o? � por isso. Quem n�o colabora, cai
fora, vai pro belel�u, se d� mal, e
ningu�m vai mexer uma palha para esclarecer as causas do seu desaparecimento,
ali�s, n�o h� o m�nimo interesse nisso, que essas causas venham � tona, o mist�rio
deve continuar, indefinidamente. Sendo a
vida o bem mais precioso, cada um de n�s quer preservar a sua, conservar o seu
tesouro, logo, n�o pode sair da linha. Por isso a morte ser necess�ria, para manter
o Sistema, o Esquema. Quem n�o se conforma
vai para o campo-dos-p�s-juntos adubar as ra�zes das flores do jardim perp�tuo. A
�nica maneira de fazer a outra parte, o antagonista, ceder � colocando-o em xeque,
ou d� ou desce. De outra forma, por
bem, ningu�m entrega a rapadura, n�o � assim? Com moleza n�o se consegue nada,
nadinha. At� na B�blia Deus usava press�o o tempo todo para obter resultados
favor�veis. N�o se lembra de Abrah�o?
JL:Ent�o j� estamos em plena terceira guerra mundial?
JD: H� horas. (risos). Convenhamos, Jardel, eu n�o sou nada original, n�o digo nada
de novo, apenas uso os mesmos recursos que eles, a morte necess�ria. O capitalismo
est� se esgotando, aproveitemos
a rebarba, enquanto d� tempo, o mundo est� cada vez mais violento e ca�tico, como
um bal�o cheio de furos, por mais que se tente tapar os furos a um tempo s�, �
impratic�vel. A popula��o do mundo est�
crescendo e a natureza entrando em colapso, sendo assim, fica f�cil prever esse
futuro ensombrecido.
JL:Podemos profetizar melhor que Nostradamus?
JD:E com muito mais precis�o. Ou seja, cada vez mais h� menos recursos para todos.
Mas ningu�m quer abrir m�o das suas prerrogativas. O pov�o, espremido contra o
rochedo, n�o aguenta mais press�o. At�
porque n�o se consegue enganar tantos por t�o longo tempo. Inapelavelmente,
desembocamos sempre na economia de sobreviv�ncia. N�o tem cabimento que consigamos
viver razoavelmente bem com 60 mil d�lares
anuais, sendo necess�rios apenas 4 milh�es e 200 mil d�lares para manter uma vida
m�dia de 70 anos, mas que, em contrapartida, tenha milion�rios por a� desfrutando
de dezenas ou at� centenas de bilh�es
de d�lares. Algu�m est� errando nos c�lculos dessa l�gica de distribui��o. Um mundo
com tantas diferen�as, onde um oper�rio ganha uma m�dia de 700 mil d�lares numa
vida toda de 70 anos, e isso considerando
um sal�rio de 800 d�lares/m�s, que no Brasil seria para l� de razo�vel, n�o pode
dormir em paz sen�o pela for�a e pela propaganda enganosa, cada vez mais intensas.
O crime organizado, cada vez mais tecnol�gico
e legalizado, virou uma alternativa quase �nica para manter o status das elites e
conter as rea��es das massas populares.
JL:Se entendi bem, na sua opini�o o crime organizado � que d� sustentabilidade aos
pol�ticos e �s suas pol�ticas p�blicas e econ�micas?
JD: Jardel e suas perguntas cretinas. Veja bem, os pol�ticos, ou a pol�tica de
governo, continuam empurrando com a barriga as solu��es de massa, enrolando o pov�o
como podem por meio da m�dia e de medidas
legais com apar�ncia de benef�cio social. As palavras, nesse contexto de
irrealiza��es, passam a ter um peso definitivo nessa tarefa manipulat�ria, da� a
import�ncia da m�dia escrita e falada no mundo
atual. Os pol�ticos conseguiram cooptar os jornalistas, � custa de propostas
irrecus�veis, mais conhecidas como favores ou propinas, ou ainda com a troca de
figurinhas, voc� me d� isso que eu lhe dou publicidade
e propaganda em contratos milion�rios para manter o seu ve�culo ativo e bem-
remunerado. Assim, aquilo do que a m�dia trata passa a ser o vis�vel, o grande
resto n�o existe. E o invis�vel, o que n�o aparece,
o verdadeiramente real, desaparece. Esse � o fen�meno da palavra escrita e falada
no mundo atual: o discurso criando realidades. virtuais. A l�gica do verbo e da
sintaxe. Vivemos nessa contradi��o, que
� a grande sa�da encontrada pelas elites e mantenedora do seu status quo. O mundo
vai implodir, mas quem est� com as r�deas n�o vai abrir m�o desse privil�gio,
nunca. E quando o mundo estiver implodindo
v�o dizer �Engano, o mundo est� perfeito, continuem fazendo o que tem que ser
feito, nada mudou�. Ser� assim.
JL:E a ACC est� inserida nesse contexto para valer?
JD: A ACC conseguiu furar essa chapa de a�o de dois metros de espessura e desfrutar
de um lugar ao sol. E est� se tornando cada vez mais �til aos pol�ticos do Brasil,
que veem nela uma solu��o para viabilizar
os seus projetos mais loucos e ambiciosos. Uma m�o lava a outra. Esse poder
paralelo nos permite acumular capital e expandir cada vez mais a nossa �rea de
influ�ncias, esquentando neg�cios, lavando dinheiro,
colocando no mercado centenas de milh�es de d�lares por ano, que deixa os donos do
poder e do capital babando de inveja. � claro que jamais vamos participar da lista
dos 10 mais da Forbes, mas quem se
importa com isso? (risos). Isso agu�a a gula dessa turma, que j� � gulosa por
natureza, ficam putos com o nosso sucesso. Como as nossas ra�zes est�o muito
profundas e praticamente inarred�veis, o jeito
� conviver conosco da melhor maneira, e isso, na verdade, passa a ser muito
conveniente para eles. � aquilo que voc� chama de negocia��o, acomoda��o de
interesses. Somos, a ACC e os pol�ticos, como amantes,
e temos habilmente que esconder o tempo todo a rela��o de infidelidade do marid�o,
que � o pov�o. E toda aquela sacanagem que aparentemente n�o pode aparecer, por
moralidade ou �tica p�blica, passa a ser
feita debaixo dos panos, com a maior tranquilidade, n�o em mot�is, mas na
intimidade dos pa�os. Agora eles veem o CO faturar uma nota preta em suas v�rias
modalidades, tr�fico de drogas, etc., e n�o ficam
mais chupando o dedinho como antes, pois passaram a participar disso. Fazem a sua
parte de amante na rela��o, nos abrindo as pernas, e recebem o seu prazer na forma
de financiamentos de campanha, enriquecimento
il�cito, etc. Cada um na sua. Descobriram que o que vinham fazendo era
insignificante perto do que a parceria conosco lhes permite desfrutar. Isso, no
passado, feria seus brios profundamente. Por isso
nos perseguiam com tanta vol�pia. Agora estamos consorciados indissoluvelmente.
(risos).
JL:Quer dizer que agora o esquema funciona como conviv�ncia pac�fica?
JD: Em parte, sim. Se, por um lado, insistem para que os governos dos seus pa�ses
reprimam o tr�fico de drogas, e os EUA imp�em isso �s suas col�nias, pois toda a
fam�lia americana est� contaminada, com
filhos e netos drogaditos, por outro lado, o Sistema precisa investir altos
capitais em ind�stria de repress�o e servi�os para manter as apar�ncias e fazer o
dinheiro circular. Assim estar� criando postos
de trabalho e novas fontes de rendas para sofrerem desvios em sua grande parte. �
um monstro que se realimenta do pr�prio rabo. O combate ao tr�fico � o lado
oficial, o lado oficioso � a lavagem do dinheiro
desviado, que nunca � pouco. O segundo envolve um n�mero significativo de pessoas,
pessoal especializado no servi�o de bastidores. E essa � a faceta realmente
compensadora de toda a engrenagem, a margem
de lucro � sempre maior que todos os neg�cios ditos honestos do mundo, nenhum
neg�cio d� tanto lucro como o tr�fico de drogas, de armas, de crian�as, de
mulheres, de �rg�os, etc., talvez apenas, antigamente,
a escravatura e o tr�fico de negros. � um lucro por etapas, primeira, segunda,
etc., progressivo. Esse � o grande lance das jogadas pol�ticas e criminosas
associadas, elas nunca se interrompem, continuam
sempre se desdobrando. Ningu�m quer saber de um fluxo interrompido. Em compensa��o,
a repress�o a todas essas atividades criminosas gera outra fonte de lucros
fabulosa. Qual o po�o de petr�leo que extrai
lucro de todas as extremidades? Acabou o petr�leo, o po�o secou e fim de papo. A
ca�a �s bruxas, ou o medo generalizado engendrado pela m�dia, n�o � uma atividade
quase eterna, ou prolongada por um tempo
indefinido? Essas transa��es bipolares � que s�o as mais lucrativas no mundo dos
neg�cios oficiais. � tudo legal, politicamente correto. Se o crime � a doen�a, o
Rambo � a cura. S� que a cura nunca chega
porque tem a reca�da, os desdobramentos, as inova��es, e por a� se vai
indefinidamente.
JL:Mas e o trabalho do minist�rio p�blico e da pol�cia federal? Sabe-se que muita
coisa � investigada e levada at� as �ltimas consequ�ncias.
JD: Mas quem pode dar conta de tanto rolo, de um volume t�o grande de sacanagem? �
uma bola de neve. Por que voc� acha que os quadros do minist�rio p�blico est�o
sempre defasados? Al�m do mais, voc� v�
algum pol�tico de primeira linha preso, Lundi? Quando alguma coisa vaza, no
entanto, assemelha-se mais � ocasi�o em que o marido flagra o casal de amantes, mas
acaba perdoando a derrapada do c�njuge, fingindo,
a partir dali, n�o saber que a infidelidade continua. O pov�o sempre ser� um corno
manso tolerante e de boa paz. Pol�ticos ladr�es contumazes n�o se reelegem mesmo
depois de descobertas as suas trapa�as?
JL:Maluf que o diga, n�? Rouba, mas faz.
JD: Maluf � apenas um entre milhares, s� que a maioria est� invis�vel, n�o aparece
na m�dia, portanto n�o existe. Ali�s, ningu�m tem mais interesse em negociar com
quem est� em evid�ncia, que se queimou,
esse j� era. O cara tem que estar na crista da onda do politicamente correto,
ent�o, sim, pode roubar � vontade sem ter ningu�m pegando no seu p�. Enquanto isso,
tem outro lado da moeda: por que muita
gente torce para os bandidos? Porque no fundo sabe que eles s�o a sua �ltima
esperan�a. A flor do lodo, o marginal � o revolucion�rio que vai mudar o mundo, ou
j� o est� mudando, pois � o �nico que, al�m
das pol�cias e das mil�cias, est� armado e n�o tem medo de matar ou morrer. A
bandidagem s� precisava reciclar os seus m�todos, e isso � o que a faz. Um marginal
n�o tem nada a perder, s� a ganhar, se
tem �xito, ganha o lucro da opera��o, se � preso, ganha moradia e rango gr�tis, na
cadeia, at� organizar a pr�xima fuga, se morre em combate, ganha sua casa de campo.
(risos). Sabe o que � ideologia?
� a posi��o que um homem toma diante da realidade e que, por ser uma posi��o
pol�tica, define os rumos da sua conduta. Dessa forma, aquilo que em determinado
momento hist�rico se qualifica de transgress�o,
em outro pode ser o passo decisivo na conquista da sua liberta��o, e a de todos que
os seguem. Cristo de bandido passou a Filho de Deus, uma promo��o e tanto.
JL:Jorge Duncan tamb�m poder� ser promovido no futuro?
JD: Quem duvida � louco. Al�m do mais, agora n�o h� como retroceder, � tarde
demais, estamos condenados a marchar somente adiante. S� nos deteremos, se formos
destru�dos ou se formos n�s os destruidores,
a nossa guerra � parte de uma rixa ancestral. Como fomos marcados pelo ferro quente
da injusti�a, n�o h� nada que possa ser feito para aplacar a nossa ira. A mem�ria,
sempre reavivada no �mbito da ACC,
n�o permite que a esque�amos. Ela tem o vigor e a perman�ncia da tocha ol�mpica,
que se mant�m acesa durante os jogos para lembrar os nobres prop�sitos do esporte.
J� a nossa � mantida sempre acesa para
lembrar as humilha��es j� sofridas. S� que o nosso prop�sito n�o � t�o ameno, pois
lida com os destinos da ra�a humana, est� comprometido com o seu futuro, ou nos
tornamos todos iguais agora, favorecidos
pelas mesmas oportunidades de chances, ou faremos explodir o planeta, como Nero fez
com Roma, com objetivos distintos, � claro. Essa aberra��o de apenas cerca de mil
pessoas serem donas de cerca de noventa
por cento do capital do mundo vai se acabar, na marra, a ferro e fogo. Cerca de 6
bilh�es de pessoas vivem sob o comando dessas mil. Existe absurdo maior no mundo
animal e na natureza? Se o homem � um
ser social, como pregava o tio Arist�, ent�o deve se portar como tal. Agora, se �
um ser radical, egoc�ntrico, a despeito de todos os seus semelhantes, deve ser
erradicado do planeta como uma peste nojenta.
Ou pelo menos reduzido at� que os sobreviventes abram novas vagas para o jogo.
JL:Nesse sentido, o discurso da ACC � totalmente socialista ou comunista, n�o
concorda comigo?
JD: Alguma vez neguei isso? O nosso discurso � coerente com o nosso lema, Ouseje:
significa claramente que n�o admitimos ficar fora da jogada. Lembro-me de ter lido
um cara dizer, l� pelos idos de 1960,
Jean Rostand, se n�o me engano, um bi�logo franc�s, que o organismo, quanto mais
primitivo, mais egoc�ntrico �, e cita a ameba para refor�ar seu argumento. Eu fico
pensando: o homem n�o ter� ficado pior
que a ameba?
JL:Nesse sentido, o discurso da ACC descamba agora para a moralidade religiosa, n�o
� assim?
JD: Nessa sua mania de rotular as coisas, pode at� ser, mas e da�? N�o me interessa
se o que eu digo se enquadra nisso ou naquilo. O que eu quero simplesmente dizer �
que a consci�ncia n�tida da possibilidade
de morte iminente for�a o homem a sentir a sua pr�pria presen�a enquanto ser vivo.
Ele sabe que �, ele est� presente, o antes e o depois n�o interessam, o agora � que
� o foco, apenas o agora. Pelo que
eu saiba, ningu�m quer postergar o seu momento atual de vida, deixar de ser, exceto
em casos excepcionais. A grande maioria, no entanto, vive no passado ou no futuro,
nunca no presente, no agora. Perdeu
a sintonia com a vida vivida em cima do lance, com o ato de viver no tempo da
jogada. Esse distanciamento lhe d� uma falsa sensa��o de seguran�a, deixa de sentir
o perigo que � o viver no redemunho, de
assumir a responsabilidade das suas jogadas. Apenas quando � cobrada sobrev�m o
momento da reflex�o. Ent�o bate na testa e exclama: caralho. Mas a� quase sempre �
tarde demais. Na ACC, ao contr�rio, ensina-se
a viver intensamente o momento presente, sem expectativa de futuro. Se o momento
presente � bom, presume-se que estejamos certos, do contr�rio � porque erramos. O
futuro ser� sempre uma hip�tese que pode
ou n�o se concretizar. Ele desloca o problema da validade do direito para uma
esfera metajur�dica, na qual permanece um res�duo teol�gico, e que n�o resolve o
impasse instalado na
ra�z de todo o drama
jur�dico, tal como formulado por Pascal: a justi�a, sem a for�a, � impotente; a
for�a, sem justi�a, � tir�nica. Ora, n�o podendo o homem fazer o justo forte,
acabou por fazer o forte justo. Mas n�o leve
essa perora��o muito a s�rio, estou improvisando. (risos).

O sonho com o anci�o, que o intriga tanto, � voc� mesmo aos 108 anos, o homem que
est� em sua companhia � atualmente um jovem de 19 anos, ele vir� a Curitiba para
cumprir sua miss�o, ele ser� o seu bra�o
direito num futuro n�o muito distante, aquele filho querido que voc� sempre sonhou.
Ap�s sua morte, ele vai substitu�-lo no comando da organiza��o, voc� deve
transmitir a ele, portanto, tudo o que sabe,
em contrapartida, ele retribuir� com fidelidade canina e jamais vai tra�-lo, muito
pelo contr�rio, a associa��o de ambos gerar� um enorme imp�rio de poder
incalcul�vel, jamais visto, esse jovem � a reencarna��o
de Don Vito Cascio Ferro a feiticeira deu uma entona��o vigorosa ao pronunciar o
nome desse que foi um dos mais famosos mafiosos italianos da Nova M�fia.
Meu corpo voltou a chacoalhar no assento, entretanto, apesar da aparente novidade
daquelas revela��es, era como se eu j� tivesse um conhecimento antecipado disso
tudo, ou que ele estivera hibernando dentro
de mim durante todo esse tempo, esperando apenas sua revela��o para se confirmar.
No dia em que eu o chamei na rua continuou ela , a fort�ssima vibra��o vinda de
voc� me deu a imediata certeza de que eu seria o instrumento para lhe desvendar as
trilhas que teria de percorrer at�
chegar � liberta��o, nosso encontro tamb�m estava marcado. Nesse ponto, a
camale�nica mulher readquiriu aquele grau de concentra��o que a fazia parecer
executando um grande esfor�o para decodificar
as mensagens que recebia em linguagem esot�rica. Voc� e esse jovem v�o dar um
grande exemplo � humanidade.
Exemplo � humanidade? quase gritei ao interromp�-la. Como o grande pecador que
sou?
Voc� tem certeza de que ser� sempre esse pecador?
Dei de ombros, a velha estava come�ando a delirar, e eu mais ainda, por estar ali
escutando suas profecias pirot�cnicas, as mesmas que qualquer cigana aplica ao mais
deplor�vel dos simpl�rios para tomar-lhe
um troco. Uma raiva s�bita cresceu dentro de mim, seguida do impulso de mandar
aquela velha para os quintos do inferno. Minha m�o desapareceu no interior do
palet�. Aquela mulher passara a conhecer segredos
aos quais ningu�m nunca tivera acesso, ela n�o podia continuar vivendo.
Acalme-se, meu filho, eu sou como um sacerdote, fiz voto de sil�ncio. Reaja,
acalme-se, n�o tema nada de mim, tudo o que sei, vou levar para o t�mulo, guardo
segredos incont�veis, � de outros que voc�
precisa ter cuidado.
Recolhi a m�o vazia e a coloquei junto da outra sobre o tampo da mesa, ambas
espalmadas, demonstrando claramente que eu desistira de meu intento.
A quem preciso temer?
Ela retirou da gaveta da mesa uma folha de papel e uma caneta.
Descreva algu�m de quem voc� desconfia que eu vou lhe revelar o nome que me vai
ser passado. Se coincidir, voc� ter� a certeza.
Rabisquei algumas palavras no papel, cobrindo com a m�o para que ela n�o
enxergasse, e coloquei no bolso superior do palet�. Ela jogou os b�zios e deu tr�s
fortes batidas com os n�s dos dedos no tampo
da mesa, invocando um santo. As conchinhas esparramaram-se e acomodaram-se sobre o
pano, ela as examinou.
La Rosa foram suas palavras. O papel no meu bolso assinalava �alto, magro,
careca, traidor� , voc� precisa tomar muito cuidado com ele, j� vem tramando contra
voc� h� muito tempo, � falso como uma
cobra. � preciso cortar a cabe�a dessa cobra, e de muitas outras, mas n�o espere
muito, voc� est� num meio onde n�o pode confiar em ningu�m, No entanto, ao mesmo
tempo, tem gente de muito valor a seu lado,
esses �ltimos voc� sabe muito bem quem s�o.
Com essa revela��o rendi-me � autenticidade de seus dotes medi�nicos, aquela mulher
tinha um grande tiroc�nio espiritual, n�o era uma mistificadora qualquer. Deixei de
resistir ao seu fasc�nio e abri a
minha guarda para captar melhor as suas revela��es e ensinamentos.
Voc� falou que vou servir de exemplo. Que exemplo posso ser se trago a marca de
Caim?
Voc� acha que n�o pode mudar um dia? Pois prepare-se, voc� vai sofrer outra
mudan�a radical em sua vida e, desta vez, fechar� o c�rculo. Ser� uma mudan�a para
o lado do Bem, e esse jovem que est� por
vir a Curitiba � que vai ajud�-lo a realizar esse tarefa. Voc� vai abandonar o Mal,
virar as costas para ele, o Bem, a partir de determinado momento, ser� a sua meta,
somente o Bem, essa ser� a sua reden��o
e a de todos os que o seguirem.
Eu a olhava fixamente, tentando assimilar tudo aquilo. Ela continuou:
N�o demorar� muito para que isso aconte�a, quando voc� e esse jovem se
encontrarem, e se completar a alian�a entre os dois, ser� o in�cio dessa nova fase,
uma mudan�a que ser� sentida primeiramente por
voc� e que vai influenci�-lo aos poucos. Vencidas as resist�ncias, ele ent�o
seguir� seus passos com lealdade. Voc�s est�o aqui para expiar todo o mal que
fizeram nessa e em outras vidas passadas, n�o
v�o morrer sem antes dar cada um a sua contribui��o � humanidade, � a miss�o de
voc�s.
E como vou reconhecer esse jovem? Quando vou encontr�-lo?
Voc� receber� um sinal.
Que sinal?
N�o tenho conhecimento disso, mas aguarde e confie.
Eu estava confuso, inseguro.
E quanto �quilo que venho fazendo? Devo seguir em frente?
Voc� deve continuar fazendo o que sempre fez, atenda aos seus instintos, a sua
for�a vem da�.
Ela se calou e se manteve im�vel com os olhos fechados por um bom tempo, deixava
expl�cito que estava intensamente concentrada, emitia um som gutural pela boca
crispada, parecido com um leve ronronar de
gato. Quando retomou a fala, numa voz pausada e constantemente pontuada pelo
ronronar a cada pausa respirat�ria, disse:
Estou visualizando uma cena da qual n�o estou entendendo o conte�do, est� meio
nebulosa. ela fez uma pausa. � um lugar espa�oso, parece um alojamento, v�rias
pessoas est�o l� dentro. outra
pausa. Agora come�o a enxergar melhor. H� v�rios homens seminus que rodeiam uma
mulher despida sobre uma cama, eles a desfrutam. pausa. O marido dessa mulher
est� presente e n�o se op�e a isso,
ele observa, indiferente. S�o homens rudes, oper�rios, est�o embriagados, bebem no
gargalo das garrafas, ela est� de quatro e um negro a est� usando. Cada um que a
usa cede o lugar para o pr�ximo. Um
homem corpulento, alto, quase um gigante, est� afastando o negro e tomando o seu
lugar, o gigante tem um p�nis descomunal, ele est� desfrutando a mulher com vigor,
e ela geme e grita. Ele est� muito excitado,
goza r�pido e deixa todo o seu corpanzil cair sobre as costas dela, que verga os
bra�os e fica prensada entre o homem e o colch�o. pausa prolongada, ronco. A
vis�o est� sumindo. outra pausa prolongada.
Sim, agora entendo o que essa vis�o representa, � o momento da sua concep��o,
Jorge Duncan, o seu pai era o gigante, e n�o aquele que te criou, o nome dele
tamb�m era Jorge pausa. Sim, sim, relembrando
a cena, a posi��o dos homens circundando a mulher, as suas fisionomias, os seus
esgares, a orgia, a bebida, as velas iluminando o recinto, tenho a n�tida impress�o
de ter presenciado um ritual de missa
negra, um ritual sat�nico.
Aquela mulher n�o me poupava de nada, nem de que minha m�e n�o passava de uma vadia
e de que eu tinha uma origem esp�ria, prom�scua, depravada. Como interpretando o
meu pensamento, ela disse:
Voc� precisava saber dessas coisas para conseguir entender outras no futuro, o
conhecimento dos nossos erros e os dos outros nos capacitam para o perd�o, para a
humildade, esse inv�lucro que � o nosso
corpo n�o vale nada disse ela enquanto beliscava o pr�prio bra�o , o que vale � a
alma infinita pausa. N�o tenho mais nada a lhe revelar, agora voc� deve levantar-
se e sair. N�o olhe para tr�s e
nunca mais volte aqui.
Por qu�? �Vou virar est�tua de sal?�, pensei, e quase lhe disse isso, contendo o
impulso de gargalhar na sua cara. Ent�o me fizera vir at� ela e agora me descartava
sem mais nem menos? Quem ela estava
pensando que era?
Obede�a.
Que petul�ncia, eram esses os modos de me tratar? Logo a mim? Mas uma for�a
misteriosa me impulsionou para cima e para a frente, e me vi saindo pela mesma
porta que entrara, uma sa�da que n�o chegava a
ter o car�ter de imposi��o humilhante, mas de convite irrecus�vel. Cedi. Tomei a
rua, embarquei no carro e sumi dali.

As buscas que procedi assim que deixei a casa da velha me levaram a saber que
Jirocho nasceu na cidade portu�ria de Shimizu, no Jap�o, em 1� de janeiro de 1820 e
era filho de um marinheiro. Conforme a
crendice local, quem nasce no Ano-Novo ou vai ser um grande g�nio ou grande
criminoso. Jirocho foi uma confirma��o dessa cren�a, tornando-se um mito em sua
terra natal. Ele fundou uma organiza��o criminosa
que reunia um grande ex�rcito de jogadores que dominavam o centro da Tokaido, uma
grande e famosa estrada pontuada de pousadas, onde o jogo era exercido com
intensidade, cantado em verso e prosa, tal qual
um Lampi�o pela nossa literatura de cordel, guardadas as devidas propor��es.
Tornou-se um dos principais personagens das matabi-mono, que eram as hist�rias
desses jogadores errantes, um g�nero de literatura
que goza de grande popularidade desde o in�cio do s�culo XX no Jap�o .
Jirocho foi uma crian�a e adolescente-problema, excessivamente rebelde e brig�o,
por isso o pai, seja por causa da supersti��o, seja por n�o suport�-lo, cedeu-o em
ado��o a um parente rico. Com o falecimento
do pai adotivo, herdou seus neg�cios de com�rcio de arroz. Mais moderado, aos 16
anos assumiu o comando da empresa. Em certa ocasi�o, j� pr�ximo dos 20 anos, um
monge errante veio bater � sua porta profetizando
que ele viria a morrer antes dos 26 anos, de forma violenta, e Jirocho levou essa
predi��o muito a s�rio. Saiu a correr o mundo para aproveitar o pouco de vida que
lhe restava e nas suas andan�as destacou-se
como lutador excepcional, mediador e l�der. Voltando a Shimizu, anos depois,
organizou sua pr�pria quadrilha, a cl�ssica quadrilha bakuto, cujo auge abrangeu os
anos turbulentos de meados do s�culo XIX,
quando o Xogunato Tokugawa estava em decad�ncia, sofrendo ataques de todos os
lados. Com a instala��o do Imperador no Jap�o, o pa�s abriu suas portas ao mundo,
coisa que j� vinha sendo feita pelo x�gun.
O Jap�o sa�a assim do feudalismo.
Jirocho apoiou o Imperador, recebendo indulto de todos os seus antigos crimes e
tornando-se um homem poderoso na comunidade. Diz a lenda que promoveu muitos
melhoramentos na agricultura, pesca e desenvolvimento
da sua cidade natal, Shimizu. Jirocho s� veio a falecer aos 73 anos de idade, em
1893, desacreditando as previs�es do falso monge. Se por um lado Jirocho �
reconhecido e cantado em baladas como o mais
famoso yakuza do Jap�o, a nova leva de historiadores, tentando restaurar a mem�ria
ver�dica do pa�s, baseados em documentos aut�nticos, alegam que Jirocho n�o passava
de um quadrilheiro virulento e opressor
dos agricultores da sua regi�o.
Apesar de Jirocho e eu termos alguns pontos em comum, como a rebeldia, a
agressividade, a embatividade de lutador e o pulso firme do comando, eu n�o me
sentia nem um pouco Jirocho, eu era eu, e as nossas
semelhan�as n�o afian�avam nada �s palavras da bruxa. Eu me contrapunha, rejeitava
veementemente a id�ia de algum fator extraterrestre, metaf�sico ou divino,
considerava a teoria da reencarna��o um besteirol
sem tamanho e jamais conseguiria engolir um monte de merda desses. Restavam os
sonhos, a bruxa, o seu conhecimento do meu passado, era um bocado de coincid�ncias
que s� serviam para confundir o meu racioc�nio,
exceto se a coisa se filtrasse pelo inconsciente das pessoas, dos impulsos. Sob
esse aspecto, eu parecia estar sendo levado a uma determinada dire��o, n�o restava
a menor d�vida.
Eu sabia de muitas coisas, sem nunca ter tido contato com nada que se relacionasse
a elas especificamente, brotavam em mim como um olho-d��gua do solo da minha
mem�ria. A considerar esse encadeamento de
ju�zos, poderia atribuir a origem disso � minha experi�ncia de vidas anteriores em
um passado remoto, era a explica��o mais razo�vel para o fen�meno. Mesmo me
esfor�ando, entretanto, n�o conseguia engolir
a p�lula. Desse modo, resolvi deixar pendente essa quest�o, provis�ria ou
definitivamente, at� ou nunca ter uma resposta adequada para ela. A coisa estava
enveredando por um caminho que n�o me agradava,
um caminho onde o ch�o podia ceder a qualquer momento e me deixar pendurado no
pincel da irracionalidade.
Havia ainda o aspecto de Don Vito Cascio Ferro e de minha m�e virada devassa e
emprenhada pelo diabo ou emiss�rio deste em ritual cabal�stico. Nesse sentido, eu
achava que a coisa estava virando goza��o.
No tocante � minha m�e, ent�o, a coisa se configurava mais inveross�mil ainda.
Pelos antecedentes, achava imposs�vel que pudesse participar de um bacanal diante
dos olhos e com o consentimento de meu pai,
pois sempre fora muito severa consigo mesma e com os outros em assuntos de moral,
era considerada antip�tica e esnobe pelos vizinhos por sua �ndole retra�da, quase
nunca fez amizades dentre as mulheres
dos colegas de meu pai e seus subalternos nas andan�as a que meu pai, como
engenheiro civil, submetia a fam�lia, carregando-a aos lugares mais imprevis�veis e
remotos onde fosse implantar uma estrada ou
ponte.
Tenho uma lembran�a nebulosa dessa �poca, pois n�o t�nhamos paradeiro e n�o consigo
identificar os muitos lugares por onde passamos, mas n�o acredito que essa mudan�a
tivesse se operado somente ap�s o
meu nascimento, tanto que, quando algum amigo de meu pai ia nos visitar, mantinha-
se trancada no quarto at� que este se fosse. Assisti os dois discutindo algumas
vezes por causa desse seu estranho comportamento,
mas nunca alterou sua atitude. Sua �nica companhia permanente eram os livros, os
romances, passava alheada, envolvida com as hist�rias de seus personagens, embora
n�o descuidasse de seus compromissos dom�sticos.
Exercia, entretanto, uma autoridade quase desp�tica sobre meu pai, que se submetia
a ela passivamente, concordando com todas as suas vontades e de forma alguma a
contradizendo em assuntos que estivessem
relacionados � administra��o da casa, mas jamais me pareceu que ele representasse o
tipo do corno manso que aceitaria ser tra�do e humilhado na frente de um grupo
numeroso de subordinados como a bruxa
descrevera.
Quanto ao tal de Jorge, o gigante, meu xar�, guardo uma vaga lembran�a dele. Era um
dos capatazes das obras que meu pai dirigia e o seu bra�o direito na execu��o
desses intermin�veis projetos vi�rios.
Pelo que me consta, o acompanhou por muitos anos, at� quando meu pai, por
insist�ncia da esposa, abandonou essa vida errante, fixando-se em Curitiba e
permitindo, assim, que eu pudesse dispor de uma educa��o
regular. Por essa �poca eu devia ter cerca de 10 anos, e essa decis�o para mim foi
terr�vel, associo-a � minha primeira sensa��o de perda. As frequentes mudan�as de
cidades, �s vezes at� na condi��o de
acampados, em lugares ermos e distantes, de infraestrutura prec�ria, representavam
para mim uma grande aventura cheia de novidades e descobertas, em Curitiba,
realmente, minha vida e a de todos da casa
mudou, nunca mais vi o gigante depois disso, um tipo esquisit�o, de poucas palavras
e que intimidava todo mundo, especialmente a gurizada que �ramos n�s, os filhos dos
oper�rios e funcion�rios da empreiteira.
Ele nos mantinha distante das m�quinas, equipamentos e canteiros de obras
utilizando um rebenque com o qual nos batia sem contempla��o caso cheg�ssemos ao
seu alcance. Quanto a mim, nunca conseguiu atingir,
pois eu me acautelava � sua aproxima��o, tratando de me p�r ao largo. Aqueles em
quem acertava, ficavam com a marca do couro por v�rios dias. Nenhum dos pais,
por�m, teve coragem de ir reclamar a brutalidade
do autor.
J� a bebida, esta sim, lembro, rolava frouxo por l� nos finais da tarde e da
semana, era o �pio de todo mundo. Minha m�e detestava �lcool, n�o suportava nem
cheiro de bebida, motivo de brigas com meu pai,
que volta e meia se embriagava.
Agora, da� a terem participado de um ritual sat�nico e minha m�e vir a ser
desfrutada pelos colegas de meu pai e pelo tal do Jorge havia uma dist�ncia
fant�stica, era forte demais essa hip�tese. O que
n�o deixava, por�m, de ser intrigante, era a bruxa saber de todos esses detalhes,
do acampamento, do gigante. Explicar isso, no entanto, era uma coisa que n�o me
dizia respeito.
Quanto a Don Vito, pelas informa��es que colhi, era um dos organizadores da nova
m�fia italiana, muito diplom�tico e carism�tico, chegavam a dizer que nunca havia
matado ningu�m, exceto um guarda de brigada.
Conseguira, no entanto, mesmo assim, um enorme prest�gio entre os seus pares, sendo
sua mem�ria reverenciada at� os dias de hoje. Don Vito e Jirocho juntos remontando
o banditismo primitivo para a tecnologia
criminal do s�culo XX e XXI, hhuumm, parecia coisa de fic��o cient�fica.
Descontadas as derrapagens de percurso, resultava o fato concreto de eu ter
comprovado as inten��es e o car�ter trai�oeiro de La Rosa. A desfecho id�ntico eu
tamb�m teria chegado, mesmo sem a ajuda da
velha, porque j� detectara os sinais e tomara as provid�ncias cab�veis, seria s�
quest�o de tempo. Por essa feliz coincid�ncia, entretanto, a bem da verdade, as
coisas poderiam ser abreviadas. Fazendo
um balan�o desse incidente, mesmo com relut�ncia, tive que admitir a intimidade que
a velha tinha com o passado e o interior das pessoas, pois, para se chegar a isso,
� necess�rio possuir poderes extrassensoriais
sen�o n�o tem jeito, e isso, de fato, a bruxa demonstrava que tinha, e tive que lhe
tirar o chap�u.
Esse era o saldo positivo, j� o restante deixei no banho-maria das calendas gregas,
suspendendo o ju�zo. Decididamente n�o me preocupo com coisas que n�o tenham a ver
com realidade imediata do contexto
onde estou inserido, ent�o como poderia esquentar com quest�es sobre Bem e Mal?
Para mim, o Mal significava apenas aquilo que contrariava ou limitava a atua��o
humana no dilacerante exerc�cio de viver.
O Mal vinha do Estado, do Poder, que � a exacerba��o m�xima do eu, quanto mais
Poder mais o eu se expande e, via de regra, funciona como um torniquete para todos
os que est�o sob o seu jugo, frustrando
muitos e beneficiando poucos. Quanto ao Bem, tinha uma infinidade de sentidos, quem
n�o considera um Bem tomar Coca-Cola?
N�o, eu n�o estava confuso, e era muito improv�vel que fosse mudar o meu ponto de
vista, n�o podia conceber isso, simultaneamente, por�m, era como se tivessem me
esbofeteado e agora estivesse acordando.
Como se fosse empurrado para a a��o. Sim, eu estava babaqueando, tinha que fazer
uma faxina imediata nas minhas hordas, eu pisava em campo minado, La Rosa era uma
prova tang�vel de que tramavam contra
mim, n�o podia ter mais d�vidas, queria mais o qu�?

JD: A sensa��o esquisita de ter estado o tempo todo com um detalhe do meu futuro
plantado no meu subconsciente, mesmo sem saber do que se tratava, no entanto,
sempre foi uma constante. Acredito n�o ser
o �nico. (risos). S�crates achava ter uma voz que lhe cochichava coisas, que
orientava em parte as suas decis�es. N�o tenho voz, mas tenho sonhos. (risos).
JL:De fato, essa � uma vantagem que a maioria de n�s, pobres mortais, n�o temos.
(risos).
JD: O que posso fazer? Foge da minha al�ada. (risos). Eu me lembro bem de algumas
ocorr�ncias. Aos 7 anos, numa queda, fraturei o antebra�o direito. Por imper�cia
dos plantonistas do HPS, haviam posicionado
mal os ossos, pois s�o dois, ao engessar. N�o podia dar outra coisa, os ossos
colaram fora do lugar. Por ocasi�o da retirada do gesso, detectou-se a falha pelo
Raio X. O antebra�o ficou levemente torto,
os ossos, em vez de formarem uma linha reta, ficaram assim, �, passe o dedo aqui,
Jardel, ainda tenho a marca do erro m�dico, sentiu? O caso foi levado a uma junta
m�dica, que decidiu por uma nova cirurgia
para reparar o erro. Iam serrar o osso bem no ponto do desvio e alinhar
corretamente. Como se percebe, hospital p�blico, desde aquela �poca, j� era fogo,
n�? Na noite anterior ao dia marcado para a cirurgia,
entretanto, sonhei. olha o sonho a�, mais uma vez. (risos) que o m�dico n�o ia
efetuar a opera��o porque, primeiro, ia dar um corte na m�o durante o desjejum
daquele mesmo dia, ao cortar o p�o,
impossibilitando-o de operar por uns dias, e, segundo, porque, com novos exam�s,
ficaria comprovado ser desnecess�rio o tratamento cir�rgico, bastando apenas
fisioterapia. Alegre, comentei o sonho com
meus pais ao acordar. Eles n�o me deram bola, acharam que era fantasia minha para
fugir da situa��o. N�o deu outra. O m�dico atrasou-se e, quando chegou ao hospital,
trazia a m�o enfaixada. Contou a hist�ria
que j� era do nosso conhecimento. O m�dico estava perplexo, pois quase atorou o
dedo de uma das m�os ao cortar o p�o, coisa praticamente inimagin�vel para um
cirurgi�o, n�o � mesmo? Em vista disso, a cirurgia
foi suspensa e marcada nova data. Na verdade, o que realmente causou o adiamento
foi o atraso do m�dico, pois havia uma cirurgia de urg�ncia para logo em seguida do
meu hor�rio que n�o p�de esperar. Nesse
�nterim, por�m, o m�dico solicitou novas chapas de Raio X e resolveu suspender
definitivamente a interven��o cir�rgica, visto os ossos terem se acoplado
firmemente e eu n�o apresentar nenhuma defici�ncia
motora. Estava resolvido o assunto. Ficou apenas essa leve sali�ncia do osso, como
voc� pode perceber, uma deformidade quase impercept�vel com a qual eu poderia
conviver pelo resto da vida sem nenhum problema.
Eles acham solu��o para tudo quando o deles n�o est� na reta, n�o �? Esse sonho,
sim, poderia ser interpretado como o desejo inconsciente de uma crian�a que n�o
quer ser operada, apesar de todos os detalhes
se encaixarem. J� a segunda ocorr�ncia foi por volta dos meus 18 anos, l� por 1948,
quando eu me preparava para ir �s Olimp�adas de Londres. Como lutador de boxe, ia
representar o Paran� e o Brasil, na
categoria meio-m�dio.
JL:Al�m de jogador de futebol, um baita lutador de boxe, hein? Voc� era cheio de
qualidades desde pequeno.
JD: N�o, Jardel, como jogador de futebol n�o me reconhe�o, agora como lutador.
(risos). Veja s�: eu sonhara, uns dois meses antes do embarque, que n�o iria
participar das Olimp�adas, ou melhor, nem sairia
do Brasil porque fraturara uma das m�os, ficando, dessa forma, previamente
eliminado da competi��o. N�o dei a m�nima import�ncia ao sonho e continuei
treinando a fusel. S� redobrei os cuidados para n�o
me contundir. As minhas chances eram muito boas, pois eu tinha tido uma excelente
classifica��o no Brasileiro. Na minha categoria eu era praticamente imbat�vel. Al�m
do mais, essa Olimp�ada era importante
por ser a primeira ap�s a Segunda Grande Guerra, depois da interrup��o. Al�m disso,
eu tinha expectativas de me profissionalizar, etc. Como disse, continuei treinando
intensamente, e, para ser sincero,
nunca mais me lembrei do tal sonho. Poucos dias antes da partida da comitiva
brasileira, por�m, tive um desentendimento em casa com meu pai, por uma besteira,
ele n�o quis me dar dinheiro para comprar
um vidro de vitaminas alegando que a alimenta��o que eu tinha em casa era mais que
suficiente para o meu sustento. N�o sei se voc� sabe como � um pai alem�o sovina?
JL:N�o, n�o sei.
JD: Um alem�o sovina � uma m�o de vaca incompar�vel, n�o tem nada igual.
JL:E o que aconteceu?
JD: Sendo assim, enquanto discut�amos, num �mpeto furioso, em vez de agredir meu
pai, soquei a parede, ao lado dele, quebrando a m�o. Imediatamente me lembrei do
sonho e pensei comigo que eu era um cara
marcado, tipo Caim, sabe? (risos), pois estava perdendo a grande chance da minha
vida.
JL:Essas brigas com o seu pai eram frequentes ou essa em particular foi uma
ocorr�ncia isolada?
JD: Com a chegada da adolesc�ncia, passaram a ser frequentes, sim. Minha m�e, que
tentava abrandar o temperamento truculento que eu apresentara desde pequeno, em
certa ocasi�o a� eu j� tinha uns 13 ou
14 anos , ap�s presenciar uma dessas brigas entre mim e o pai, chamou-me para
conversar. �Jorge, meu filho�, dizia ela, �voc� tem uma raiva condensada dentro de
voc�, um �dio enorme contido. Em dado
momento, cheguei a pensar que voc� fosse pular no seu pai e agredi-lo, tal a f�ria
que voc� estava. Se voc� n�o se esfor�ar para mudar isso, vai causar muito mal �s
pessoas que o rodeiam e a voc� pr�prio,
e talvez voc� seja o mais atingido, o que ainda o salva � que consegue conter o
impulso, mas at� quando?�. Na �poca, lembro bem, fiquei assustado de ouvi-la falar
daquele jeito, me fazia parecer um monstro.
De fato, eu tinha explos�es violentas de c�lera, caso me contrariassem em qualquer
coisa. No momento da f�ria, a vontade era causar um dano irrepar�vel ao oponente,
n�o tinha meio-termo. No mais das vezes,
eu era calmo e bem-humorado, me relacionava bem com todo mundo, tinha muitos amigos
e namoradas e gostava de sexo. S� o pavio � que era um pouco curto. Com a idade, o
pavio foi aumentando, continuava tendo
crises sanguin�rias e vingativas e lamentava n�o ver sangue com mais frequ�ncia,
fosse causado por mim ou por outros. �Voc� precisa canalizar o seu �dio�,
sentenciou minha m�e, �agrida a vida, e n�o as
pessoas�. O melhor canal, no entanto, n�o seria justamente o derramamento de
sangue, a carnificina? O resto, no meu entender, seria apenas paliativo, parar no
melhor da foda. Minha m�e relembrou, para
ilustrar a minha tend�ncia agressiva, do inc�modo que causara ao meu pai quando
andava por volta dos meus 3 anos de idade.
JL:Com apenas 3 anos?
JD: Olha s�: na rua onde mor�vamos, havia dois irm�os com quem eu brincava, o menor
regulava comigo em idade e porte f�sico, o outro era mais velho e mais forte.
Quando eu me desentendia com o menor, o
maior me batia, tomando as dores do irm�o. Ela frisou que eu n�o me queixava nem
chorava nunca, mantendo um sil�ncio cheio de rancor. Ela mesma testemunhou o
moleque mais velho me agredir em v�rias ocasi�es,
chegou a queixar-se para a m�e deles, que n�o tomou nenhuma provid�ncia. Ela falava
e eu ia me lembrando do epis�dio em que um oper�rio deixara sua bicicleta na frente
de uma casa e entrara para falar
com o dono para contratar um servi�o. Eu me acerquei da bicicleta e me pus a tocar
a campainha, nisso os irm�os apareceram, o menor quis fazer o mesmo que eu fazia,
tentando tirar-me do lugar, eu o empurrei,
o maior ent�o me socou, deve ter me atingido no f�gado porque eu ca� no ch�o
contorcido de dor, essa cena ela presenciara da janela e veio socorrer-me. �Voc�
lembra?�, perguntou ela, enquanto se referia
a uma outra ocorr�ncia. �Do caso da bicicleta eu me lembro, do outro n�o�,
respondi. Na vers�o de minha m�e, o oper�rio da bicicleta contratara o servi�o e
iniciou a obra. Na frente da casa, um caminh�o
depositou uma carga de areia para ser usada na reforma. Era ver�o e, manh� cedo, l�
estava eu brincando na areia, esculpindo castelos, bonecos. Mais tarde, os irm�os
surgiram e quiseram entrar na brincadeira.
Foi tudo muito r�pido, de modo que n�o foi poss�vel uma interfer�ncia da parte
dela. Em determinado momento, o menor desmanchou o meu castelo. O peda�o de vidro
que eu usava para alisar a areia, cravei
na face do garoto maior, abrindo uma brecha na carne. Enquanto ele gritava,
apavorado e lavado de sangue, pulei sobre o menor, batendo nele at� cansar, em
seguida, corri para dentro de casa, indo me esconder
debaixo da cama dos meus pais. Foi uma confus�o dos diabos, a dor de cabe�a ficou
com o meu pai, e eu me tornei o her�i da rua, porque ningu�m dali gostava dos
garotos agredidos. Muitos anos depois, uma
tia minha contou que cruzara com o moleque j� adulto em algum lugar e l� estava a
cicatriz marcando a face dele. �Voc� s� tinha 3 anos, Jorge�, dizia minha m�e, sem
conseguir esconder um sorriso de admira��o,
�apenas 3�. Ela queria enfatizar a maldade premeditada da minha a��o, atacara o
maior, em primeiro lugar, para tir�-lo de combate e garantir a agress�o ao menor,
que ficou � minha merc�, totalmente. �Voc�
usou uma estrat�gia, Jorge, com 3 anos de idade�. Enquanto ela me narrava isso, eu
me regozijei intimamente de ter sido t�o esperto em idade t�o tenra. Minha m�e
confessou que se tranquilizara em rela��o
a mim e ao meu futuro quando passei a treinar boxe. Mesmo achando o esporte muito
violento, se conformava, por�m, pelo fato de eu ter achado uma solu��o para o meu
temperamento agressivo. No seu entender,
eu passara a agredir a vida, tal como ela sugerira antes. L�, dentro do ringue,
pelo menos, eu descarregaria parte da minha trucul�ncia, vivendo em paz com os
outros aqui fora, pelo menos em tese. Quando
me tornei um atleta pr�-ol�mpico, a fam�lia ficou orgulhosa de mim, mas a alegria
durou pouco. Depois de me ver esmurrar a parede, ela entendeu que eu n�o mudara em
nada, continuava sendo uma amea�a aos
que me rodeavam. Nessa �poca, e por causa desse incidente, decidi sair de casa,
morar sozinho, ser dono do meu nariz. Arranjei trabalho em seguida e, no mesmo ano,
conheci Judita, resolvendo, dois meses
depois, me casar, apesar da oposi��o de todos, tanto dos parentes dela quanto dos
meus.
JL:Pelo menos, durante um bom tempo, sabemos que essa decis�o atendeu aos seus
prop�sitos.
JD: Acredito que essa agressividade natural do meu temperamento foi que me conduziu
� fascina��o por crimes e mortes. Talvez o reflexo condicionado desse fasc�nio
remonte aos meus 10 anos, quando presenciei
um homic�dio, no interior do estado, num dos paradeiros tempor�rios das andan�as de
meu pai. Um sujeito grandalh�o, forte como um touro, sendo morto por um t�sico, com
uma tesoura. Coisa cheirando � passagem
b�blica do Davi e Golias. O brutamontes encurralou o infeliz contra um muro, ergueu
o bra�o musculoso empunhando um fac�o de l�mina espessa, ia dar de prancha, mas
mesmo assim ia causar um bom estrago
no corpo franzino do pobre diabo. Questi�ncula de d�vida, ningu�m podia crer que
fosse acabar no que deu. O Golias, bebum, cobrava o pagamento de uns vint�ns do
outro. O t�sico, acuado, abaixou a cabe�a
e esticou o bra�o descarnado para a frente, um gesto reflexo de puro terror. Pois
bastou para a tesoura que segurava cravar-se no peito do gigante. Depois se soube,
a utilizara num conserto el�trico para
ganhar uns trocados. Atingido no cora��o, o Golias morreu na hora. Davi escapuliu-
se, com um empurr�o apossou-se da bicicleta de um de n�s, moleques que faziam a
plat�ia, e desabalou rua abaixo, vi tudo
de pertinho, distante a poucos metros, e gostei do que havia visto. Vibrei com a
vit�ria do Davi, um Davi muito prec�rio, caindo aos peda�os, por sinal. O gigante
se chamava Pedro, e era dono de um boteco
onde Davi ficara devendo, d�vida de cacha�a. Pedro, quando s�brio, era um homem at�
gentil. Bastava tomar uns tragos, por�m, para virar bicho. Nessas ocasi�es, exibia
a sua for�a mordendo a boca de um
saco de batatas de cinquenta quilos e carregando-o por v�rios metros, sustentando-o
com seu pesco�o taurino. Volta e meia batia o brim de algum vagabundo. Ningu�m era
p�reo para ele, todos sabiam disso
e o evitavam. A freguesia foi fugindo do boteco, que virara abrigo de moscas.
Estava em um desses dias de maus bofes quando avistou o devedor das pingas
penduradas, entrando na casa defronte, e resolveu
cobr�-lo a qualquer custo. O incidente tr�gico n�o teve grande repercuss�o em mim,
pois a minha �ndole voluntariosa n�o me fazia intimidar com tamanho. Nessa �poca,
j� era bom com os punhos e enfrentava
garotos maiores do que eu e sempre me sa�a bem.

Os problemas intestinos da organiza��o come�avam a se avolumar, alguns agora at�


envolvendo trai��o, que � o crime hediondo na escala de valores da bandidagem,
iniciava-se uma disputa por territ�rio na
cidade para a qual eu, como dirigente de uma organiza��o que se desenvolvia em
propor��o geom�trica, estivera comendo moscas. Foi um erro que me custou um pre�o
muito alto, uma grande carga de maconha
e coca�na foi interceptada j� na sa�da do Paran� rumo a S�o Paulo e Minas Gerais,
por sorte o bando nosso que fazia a escolta da carreta conseguiu se evadir, apenas
o motorista foi pego, e como laranja
seria de pouca utilidade para a PF.
Nossos informantes juravam que algu�m de dentro da ACC estava dando o servi�o para
os homens, o que para mim n�o era nenhuma novidade, e mais, a PF montava um dossi�
das rotas do tr�fico no Paran� e das
pessoas envolvidas nelas, com certeza os nomes de Mano V�io, Carl�o da Branca e
outros menos expressivos estariam entre eles. A PF, no entanto, passara a saber
muito em pouco tempo, frequentes baixas no
escoamento se sucediam, o que indicava haver caguete na parada entregando o ouro. O
que eu estava esperando, meu Deus? Urgia tomar medidas dr�sticas. Outro tira
informante da civil confirmou uma investiga��o
da pesada em curso, a ordem era desmantelar ou, no m�nimo, desestabilizar as
organiza��es ligadas ao tr�fico, prendendo os seus cabe�as com a maior brevidade
poss�vel. Convoquei uma reuni�o com esses informantes
e lhes assegurei uma quantia astron�mica, desde que n�o deixassem rolar nada sem
antes me comunicarem. Logo veio a not�cia de que um dos meus homens, al�m de ter
virado a casaca para o lado de Carl�o e
seus aliados, a ramifica��o dos bicheiros cariocas j� instalada em Curitiba e que
lhe dava suporte local, estava com instru��es expressas para facilitar a invas�o da
pol�cia no QG da ACC, tinham at� uma
data programada para isso, dentro dos pr�ximos sessenta dias. Enquanto isso, iam
continuar as baixas em quase todos os neg�cios ligados � ACC, e o produto
resultante seria distribu�do entre os v�rios grupos
rivais. A grande novidade era que Carl�o da Branca havia estabelecido uma coliga��o
com altos escal�es da pol�cia estadual e alguns veteranos da PF, a pol�cia entrava
de sola no ramo milion�rio das drogas,
todo mundo ia poder tirar a sua lasca, o bolo seria repartido na propor��o da
import�ncia de cada um deles.
A participa��o de policiais corruptos no tr�fico crescera muito nos �ltimos tempos
e j� se tinha not�cia de tiras que, com seus parcos sal�rios, eram donos de mans�es
e carros de luxo importados. Eu achava
um absurdo isso e me posicionava frontalmente contra, Carl�o, no entanto, inclu�a
um bocado de ratos em sua folha de pagamento e era o cabe�a dessa jogada para tirar
definitivamente a ACC de circula��o
e ficar dono do campinho do tr�fico na capital e no estado. Era coisa para ontem,
eles estavam com muita pressa, eu que me antenasse, pois a coisa estava na
imin�ncia de acontecer. Por fim, a revela��o
de que algu�m muito importante do meu grupo se bandeara para o lado deles e os
mantinha bem informados confirmava definitivamente a trai��o de La Rosa. O nome do
traidor, por�m, todos desconheciam, pois
era mantido em sigilo absoluto.
Enquanto eu dava os �ltimos retoques em um projeto que iria desencadear a
contraofensiva em cadeia, um incidente precipitou tudo. Um assalto programado para
treinamento de um pequeno bando de ne�fitos
a uma ag�ncia de bairro que receberia alto provimento de dinheiro para atender
saques de pessoal de v�rias empresas teve resultado desastroso. Mauro Gigante e
Darcisinho foram presos e dois dos cinco novos
confrades, garotos ainda, foram mortos a tiros em confronto com a pol�cia durante a
fuga. Darcisinho recebera um tiro de rasp�o no ombro e Mauro Gigante deslocara a
mand�bula quando o carro que o transportava
bateu em um poste. Tudo dera errado desde o in�cio. Mauro Gigante chegou a pensar
em suspender a opera��o, pois achava os rapazes ainda verdes demais para o trabalho
de campo, mas n�o suspendeu, desprezando
a sua intui��o, e acabou dando com os burros n��gua. A infeliz decis�o dele e o
fato de ele e Darcisinho darem sustenta��o ao grupo sacramentou a cagada.
Despachei cinco advogados para a delegacia distrital com a miss�o de solt�-los a
qualquer pre�o. Um dos advogados me deu retorno imediato, estavam de m�os atadas.
As negocia��es fora dos padr�es estavam
descartadas, pois tinha gente gra�da de cima coordenando as opera��es, mas n�o
sairiam de l� antes de esgotar todos os recursos jur�dicos. Mauro Gigante e
Darcisinho estavam sendo mantidos isolados a sete
chaves e iam ser transferidos para outro local ignorado. Matei a charada: a pol�cia
tinha conhecimento de ter posto as m�os em peixes gra�dos e ia fazer de tudo para
extrair deles o m�ximo que pudesse
de informa��o. A nossa �nica chance de libert�-los seria no trecho onde se daria o
deslocamento de ambos. Organizei uma opera��o rel�mpago para esse fim e fiquei no
aguardo da not�cia que me forneceria
esses dados, o hor�rio da sa�da da delegacia e o local de destino. Precisei
negociar rapidamente essa informa��o a peso de ouro com um novo policial ligado �
distrital por meio de um intermedi�rio que
me garantiu de p�s juntos que ela seria dada no tempo certo, entrementes localizei
La Rosa e o trouxe para perto de mim sob o pretexto de que ele iria presidir uma
reuni�o no in�cio da noite para tratarmos
do resgate de Mauro Gigante e Darcisinho. Encostei Terneir�o nele, com a
recomenda��o expressa:
Controla todas as liga��es que ele fizer e n�o desgruda dele um segundo sequer, se
ele for ao banheiro cagar, voc� entra junto.
X� comigo me tranquilizou Terneir�o.
O primeiro telefonema revelou que a transfer�ncia de Mauro Gigante e Darcisinho se
daria no in�cio da noite resguardada de forte aparato policial. Estavam preparados
para recha�ar qualquer tentativa de
resgate e seria quase imposs�vel burlar o cerco.
Que horas vai ser?
Ainda n�o sei.
O local?
Ouvi algu�m mencionar que v�o para a triagem do pres�dio do Ah� e em seguida ser�o
transferidos para Piraquara, mas n�o � com certeza, preciso confirmar.
Me liga assim que souber.
Chamei La Rosa.
Vamos invadir a delegacia e tir�-los de l� hoje � noite, de qualquer jeito, quero
que voc� me ajude a coordenar a a��o.
Ok, chefe, mas n�o vai ser f�cil.
Mas tamb�m n�o � imposs�vel. Vou participar diretamente do resgate. Re�na os
nossos melhores homens para isso, equipamento pesado.
Certo, a que horas iremos?
Na madruga, � noite todos os gatos s�o pardos. La Rosa, quero que voc� fique aqui
no meu lugar coordenando tudo, se alguma coisa der errado, voc� assume o comando,
ok?
Ok, mas vai dar tudo certo, chefe, ainda n�o vi voc� ratear.
Sempre tem a primeira vez.
Mas com certeza n�o vai ser hoje.
Tomara. Manda o Terneir�o vir aqui.
Ok.
La Rosa saiu e Terneir�o entrou.
A arapuca t� armada, vamos ver se funciona eu disse.
Pra bobo ele n�o serve.
Se pelo menos ele beliscar, j� resolve.
N�o sei n�o, � melhor n�o contar com o ovo.
Se ele sair � porque vai ligar, daqui de dentro sabe que seria mancada e que eu
iria descobrir.
A seguir comecei a passar as ordens para as equipes que estavam � espera do sinal.
Uma faria a liga��o para o f�rum avisando que havia l� uma bomba para explodir, em
seguida para jornais e canais de tev�,
ao longo da tarde seriam despachados dezenas de comunicados de m�ltiplas
ocorr�ncias visando tumultuar o tr�nsito e as comunica��es e deixar as linhas da
Secretaria de Seguran�a e das delegacias distritais
congestionadas. Simultaneamente, tr�s assaltos a bancos foram desencadeados e o
in�cio de rebeli�o nos pres�dios do Ah� e Piraquara. T�nhamos destinado o sequestro
do c�nsul da Alemanha para desviar a
aten��o de uma megaopera��o de drogas que se daria dentro de um m�s e depois propor
troc�-lo por alguns presos. Resolvi antecip�-la. Alguns homens da ACC arrancaram o
diplomata da cadeira do cabeleireiro
no centro da cidade, acontecimento que teve repercuss�o imediata na televis�o. O
secret�rio de seguran�a e o chefe da pol�cia foram acionados imediatamente. A
enxurrada de comunicados falsos e verdadeiros
iria colocar boa parte dos policiais da cidade em polvorosa, iriam ter que fazer
jus aos miser�veis sal�rios que recebiam do Estado, ao mesmo tempo que as polpudas
propinas do tr�fico de drogas.
Uma hora depois, La Rosa ausentou-se do QG por quinze minutos. Assim que regressou,
veio me ver.
Est� tudo pronto, chefe.
�timo. Obrigado, La Rosa. Vou descansar um pouco e me preparar para a manobra da
noite, qualquer novidade me comunica.
Pode ir tranquilo, chefe, est� tudo sob controle.
Terneir�o desceu comigo para o por�o. Teca j� havia se mandado, no final da manh�,
para um hotel em S�o Paulo, onde ficaria a minha espera, carregando consigo uma
volumosa bagagem que inclu�a materiais
e documentos importantes da Confraria, que poderiam ter utilidade mais adiante.
Terneir�o estava buzina, enquanto eu armava a bomba para explodir ao terceiro toque
da campainha do telefone ligado em uma
linha especial, ele desabafava:
Puxa, tanto trabalho para nada, tudo por causa desse filho da puta seguiu
excomungando La Rosa por um bom tempo. Um cara que a gente considerava um irm�o.
at� que se flagrou da inutilidade do
desabafo e deixou para l�.
Eu tamb�m me ressentia em ter que abandonar o QG, mas talvez, de todos, eu fosse o
mais condicionado a destruir pontes atr�s de mim. Ademais, a situa��o n�o permitia
hesita��es, havia o lado positivo da
quest�o para ser aproveitado, rompimentos sempre geram novas alternativas, novos
rumos, psicologicamente, portanto, eu estava pronto para grandes mudan�as e
redirecionamentos que iriam gerar novas solu��es
e a implanta��o de novos estilos, ali�s, metamorfose era comigo mesmo, o passado
est� morto, o futuro � o que interessa.
Tratei de me concentrar no que estava fazendo, havia explosivo ali para mandar o
quarteir�o pelos ares, n�o pretendia deixar pedra sobre pedra, ia dar muito
trabalho e pouca ou quase nenhuma pista para
a pol�cia t�cnica. Quanto a La Rosa, pelos meus c�lculos, dependendo do tempo que
durava a caguetagem, n�o teria vomitado muita coisa a respeito da ACC aos seus
novos parceiros. Talvez tivesse adotado
um esquema conta-gotas para valorizar suas informa��es, ningu�m precisava lhe
ensinar como negociar uma posi��o, sabia como fazer isso. Nem se deram ao trabalho
de instalar escutas no QG para acompanhar
os meus passos e o das nossas atividades, La Rosa devia t�-los demovido disso pelo
risco que implicava de ser descoberto, mas, no fundo, para que ficassem
inteiramente em suas m�os, devia fazer parte do
acordo. Toda a informa��o partiria dele sob pena de comprometer o esquema, e ele
sabia o quanto eu era meticuloso no tocante � seguran�a do QG e que, se desse com
qualquer coisa estranha plantada em minhas
depend�ncias, n�o descansaria enquanto n�o chegasse � ponta do fio da meada.
Passei, junto com Wilfredo, nosso t�cnico de telefonia, um dos prheakers maiorais
de Curitiba, um dia inteiro vasculhando todos os cantos do QG atr�s de um grampo ou
coisa que valha, nada. Wilfredo inspecionou
inclusive a rede externa, dada a minha insist�ncia, e tamb�m n�o encontrou nada,
substituiu duas linhas da vizinhan�a pelas nossas e pod�amos fazer liga��es com a
maior seguran�a do mundo, palavra do Wilfredo,
e para exagerar nos seus cuidados e me deixar mais tranquilo ainda instalou
antigrampos por todo lado, de modo que eu estava sereno quanto � possibilidade de
La Rosa vir a desconfiar de que eu poderia
saber algo das suas cavila��es, n�o havia a m�nima chance disso.
Havia, por�m, um ponto em branco no meu ros�rio de d�vidas, La Rosa por acaso teria
convencido algum subordinado a lhe seguir os passos? Eu achava que n�o, pois ele
ficaria mais vulner�vel e teria o rabo
preso por um terceiro, que poderia tra�-lo por d� c� essa palha. N�o, minha
convic��o � que ele estaria sozinho na parada, n�o havia mais ningu�m. A �nica
mudan�a radical que eu teria que fazer estava
relacionada ao tempo. Isso ficou claro como o dia, se antes eu dispunha de semanas,
talvez at� meses, para desarmar a armadilha que haviam me preparado, agora n�o me
sobravam sen�o alguns dias, poucos
dias, que poderiam ser abreviados pela minha iniciativa e necessidade. Atingi o
est�gio em que o tempo n�o vale somente dinheiro, mas redu��o substancial de a��es
e resultados concretos. Dinheiro n�o passa
de fic��o, portanto, nada de perder tempo. Se tinha que mudar, que fosse de maneira
curta e grossa, sem rodeios. Quanto mais eu pensava no assunto, mais o tempo
encolhia e se tornava urgente uma a��o efetiva.
La Rosa e seus cupinchas n�o haviam me cortado as asas, pois pretendiam antes se
apossar dos muitos neg�cios da ACC, ainda em andamento. S� que eles estavam mais
adiantados do que eu supunha, v�rias das
nossas transa��es, algumas de grande porte, j� haviam sido meladas e n�o restavam
muitas mais, mas n�o iam parar sem antes rapar o tacho, depois, sim, em um arremate
magistral, matariam dois coelhos, eu
e a Confraria, com uma cacetada s�, de modo que, esse era outro ponto favor�vel, eu
podia aproveitar ao m�ximo esses breves dias de sobrevida.
Enquanto isso, deviam estar se divertindo �s minhas custas, enquanto eu corria
todos os riscos, o lucro ficava com eles. Melhor neg�cio que esse s� o da China.
Deixei-os rir � vontade enquanto elaborava
um plano simples para resgatar Darcisinho e Mauro Gigante.
Pr�ximo do hor�rio marcado, dois cambur�es da BM seriam capturados e os nossos
vestiriam os uniformes de seus ocupantes, seriam postados em um ponto estrat�gico
do percurso a ser feito pelo comboio da
pol�cia com os presos simulando uma blitz. Por ocasi�o do deslocamento, seriam
interceptados e feito o regate dos prisioneiros. Expedi a ordem para que n�o fosse
deixado nenhum policial vivo, seria declarada
a guerra. Policial � funcion�rio p�blico, ganha sal�rio e propina, n�o pode querer
tirar o p�o da boca de bandido, cada um na sua. Uma vez recuperados Mauro Gigante e
Darcisinho, seguir�amos para a segunda
parte do plano.
Assim, conclu�da a montagem da bomba, subimos para a sala de comando onde estava La
Rosa, com pinta de chefe e tudo.
Deu pra descansar, chefinho?
Nem lhe respondi, dispensando-o. Quando La Rosa transpunha a porta de a�o, eu lhe
disse.
Esteja aqui dentro de uma hora para me render.
Ok, chefe.
Terneir�o havia sa�do com a miss�o de reunir um grupo de elite para a opera��o de
rua e iria me ligar quando tudo estivesse pronto. Nesse �nterim, recebi a
informa��o de �ltima hora que a transfer�ncia
de Mauro Gigante e Darcisinho n�o se daria mais, em contrapartida foi montado um
forte esquema de seguran�a na delegacia para reprimir a opera��o de resgate que
estava prevista para a madrugada do dia
seguinte. V�rias casas das redondezas da delegacia seriam ocupadas por policiais
para fechar o cerco e evitar a retirada do grupo de resgate, ia ser f�cil de
entrar, mas dif�cil de sair. Conforme a informa��o
que batera nos ouvidos da pol�cia, havia ainda a possibilidade de Mano V�io estar
entre esses elementos, chance que n�o poderia ser perdida.
Sem o translado de Mauro Gigante e Darcisinho, me obriguei a fazer uma mudan�a
radical nos planos. A velha raiva me dominou e comecei a babar de pura emo��o, me
incorporei de Jirocho, Monstro, Mano V�io,
da Puta Que Me Pariu, do Diabo Que Me Carrega. Se eles queriam iam ter. Terneir�o
me ligou e marcamos encontro. Chamei Zezinho e Tim�teo pelo interfone.
Zezinho, dispense todos os rapazes e me espere no carro. Tim�teo, suba at� aqui.
Em seguida, passei o alarma geral para todas as nossas sucursais da cidade. Tim�teo
entrou e confirmou que as instru��es que eu lhe passara estavam atendidas, que era
a de conseguir em torno de dez cad�veres
e vesti-los. Tr�s estavam no lugar combinado e deveriam seguir com ele, os
restantes foram deixados no QG, nos pontos que lhe indicara.
Ok disse a ele e deixei a sala como um tuf�o, seguido de Tim�teo.
La Rosa falava ao telefone.
Voc� vem comigo.
Agarrei-o pela lapela do casaco na altura do cangote, como se faz com coelho, e
arrastei-o comigo at� a garagem, onde estavam as duas vans j� lotadas e a perua
blindada. Ele nem protestou, pois sabe que
viro um animal feroz quando estou no comando. Empurrei La Rosa para o banco de tr�s
e Tim�teo n�o demorou a sentar-se ao seu lado. Eu ocupei o banco do carona, com
Zezinho na dire��o. Arrancamos todos
a um tempo s�, o c�u sem lua e sem estrelas estava tomado de nuvens pesadas, a
atmosfera �mida e quente indicava tempestade iminente. Zezinho acionou o controle
ao sairmos e, antes que o port�o de a�o
se fechasse para sempre, pude ver a silhueta do pr�dio confundir-se com as copas
das �rvores escuras.
Cada ve�culo tomou seu rumo. Zezinho nos deixou no ponto marcado e seguiu adiante,
La Rosa e eu passamos para o carro blindado que Terneir�o ocupava, dessa vez eu
atr�s. Tim�teo tomou o volante de uma
terceira van acompanhado de dois homens armados com metralhadoras e arrancou, e
Terneir�o seguiu-o tendo La Rosa a seu lado. Tim�teo sumiu da nossa vista.
Terneir�o conhecia o caminho e dirigia com uma
lentid�o de dar nos nervos.
Toca o p� nessa merda cheguei a lhe dizer, mas pouco adiantou.
Quando atingimos a estrada de terra batida, cercada de mato fechado em ambos os
lados, avistamos as luzes da van estacionada na borda do matagal, em sentido
contr�rio ao nosso. Tim�teo estava s�, encostado
na lateral do ve�culo com bra�os e pernas cruzadas.
Para atr�s, eu disse.
Terneir�o manobrou o carro e o alinhou com a traseira da van mantendo dist�ncia
duns dez metros. Uma faixa esbranqui�ada no c�u mostrava a chuva se aproximando.
N�o demorou muito algumas bagas grossas
estouraram no para-brisa, seguidas da orquestra��o intensa do aguaceiro acompanhada
de rel�mpagos e trovoadas. O sil�ncio no interior do carro, por�m, era mais ruidoso
que o tumulto de fora. A respira��o
tensa de La Rosa era o metr�nomo que marcava a evolu��o da gravidade daquela
conjuntura. Um di�logo surdo transcorria no n�vel das inten��es, os vidros
embaciados davam um clima fantasmag�rico �s luzes
vermelhas do sinaleiro da van. Terneir�o acendeu a luz do teto quebrando o suspense
e se virou no banco apoiando o cotovelo no espaldar para me olhar. Um olhar
impaciente de quem quer ver as coisas resolvidas
pra j�. N�o tinha nada a ver com piedade mas com repulsa, estar sentado ao lado do
traidor devia lhe causar engulhos. La Rosa o imitou torcendo o dorso enquanto
passava o len�o na testa e na careca porejadas
de suor. Encostei o cano da pistola na sua t�mpora. Ele sorriu tristemente.
Desculpa, chefe, disse ele. Reconhe�o que foi mancada mas a proposta deles era
irrecus�vel, eles.
N�o deixei que terminasse, a meleca esborrifou o painel e seu esqueleto desmoronou.
Eu e Terneir�o descemos, a pancada subitamente se interrompera. Tim�teo passou a
transportar os corpos enrijecidos da
van que pareciam manequins de vitrines de loja. Parecia n�o forcejar muito o que
revelava sua excelente forma f�sica. Colocou-os nos lugares que acab�vamos de
desocupar e os prendia com o cinto de seguran�a.
Um deles tinha um p� mec�nico e estava vestido com um traje igual ao meu. Terneir�o
e eu nos mantivemos afastados assistindo Tim�teo executar o seu servi�o. Por fim
ele empunhou um pequeno tonel e despejou
gasolina sobre os corpos e bancos, o restante sobre a lataria e debaixo do ve�culo.
Descal�ou o par de luvas cir�rgicas e jogou-as sobre o cap�. Caminhou na nossa
dire��o e afastamo-nos todos juntos mais
um pouco ainda. Pediu um cigarro a Terneir�o que catou o ma�o no bolso, retirou um
cigarro e lhe passou. Tim�teo fixou-o nos l�bios e se co�ou � procura do f�sforo.
Terneir�o, num gesto r�pido e impaciente,
contrastando com a calma de Tim�teo, acendeu o isqueiro e encostou a chama no
cigarro. Tim�teo aspirou e a sua ponta incandesceu. Segurando-o entre os dedos
m�dio e polegar apontou na dire��o do carro
e o lan�ou. A explos�o que se seguiu foi magn�fica. Entramos na van e Tim�teo
calcou o p�, n�o t�nhamos andado um quil�metro ainda quando escutamos a explos�o
maior causada pelo combust�vel do tanque.
Eu estava t�o excitado com o cheiro da decomposi��o dos cad�veres que se mantinha
no interior da van apesar das janelas abertas que seria bem capaz de ir invadir a
delegacia e arrancar Mauro Gigante e
Darcisinho de l�, na marra. Mas tive que me conformar com a separa��o dos meus
melhores amigos pois o momento n�o era prop�cio. Teria que adiar um pouco mais. Em
breve eles estariam de novo no nosso conv�vio,
muito em breve. Por enquanto eu tinha ainda outras provid�ncias a tomar, o que me
manteria muito ocupado por um bom tempo.

JL:Mas tu deves convir comigo que, inevitavelmente, alguns confrades, apesar de


todas as precau��es, acabar�o presos. Sendo assim, o que acontecer� nos pres�dios?

JD: Claro que iremos compor com outros grupos da Ordem, afinal somos todos irm�os
pois temos o mesmo pai e a mesma m�e de origem desconhecida, ou seja, somos os
bastardos da sociedade. Evitaremos sempre
o confronto com outras gangues e organiza��es pois sou contra desentendimentos de
classe, � totalmente contraproducente. A Ordem � a massa do crime. A ACC faz parte
dessa Ordem com muito orgulho. A deten��o
se chama M�rbida. Quem est� na M�rbida � porque falhou em algum ponto do percurso
ou teve azar, � um desafortunado. Todo o esfor�o da ACC daqui de fora ser� tirar o
confrade da M�rbida, custe o que custar.
A M�rbida degrada a condi��o humana, principalmente no Brasil, onde os presos vivem
em condi��es subumanas, sem contar a superlota��o, uma sardinha na lata vive com
mais dignidade. O confrade que sai vai
para a reciclagem, a Refleta, para descobrir onde errou e/ou quais foram as causas
que o levaram at� l�. A partir da� vai trabalhar no sentido de evitar novas
deten��es e aperfei�oar o seu modus operandi,
tanto te�rica como em treinamento de campo. Mas a M�rbida � uma circunst�ncia para
a qual estamos totalmente preparados para enfrentar. S� que o confrade que est� na
M�rbida recebe uma outra denomina��o,
ele � do Passo, � do Passo da Confa (Ca). Confa � a subunidade dos pres�dios onde o
objetivo � a Confraterniza��o dos Amigos. Quem � da (Ca) est� sempre pronto para o
pr�ximo passo pois n�o existe passo
solit�rio todo passo tem antecedente e consequente. E o pr�ximo passo � sempre o
de sair da M�rbida. A ACC, dia e noite, estar� trabalhando para que o Passo da (Ca)
d� o pr�ximo passo certo, ou seja,
saia da M�rbida o mais r�pido poss�vel. Essa sa�da vai acontecer de 3 maneiras: 1)
por medida jur�dica, 2) mediante propina (e aqui se subentende uma cadeia funcional
que vai desde carcereiro at� juiz,
podendo ainda ir mais acima), e, 3) por evas�o. O objetivo � n�o deixar o confrade
mais de um ano na M�rbida, no m�ximo. N�o ser�o economizados nem esfor�os nem
recursos nesse sentido. Nesse quesito s�o
3 os objetivos: curto, m�dio, longo. Objetivo de curto = 3 meses, objetivo de m�dio
= 6 meses, objetivo de longo = 1 ano. A maioria dos confrades consegue sair no
per�odo de curto.
JL:Se a moda pega os pres�dios em vez de superlota��o v�o ter � sublota��o.
JD: S� para voc� ter id�ia do volume de trabalho da CENAJU, mas principalmente da
ASSIJUE, este � um dos nossos departamentos mais sobrecarregados pois atendemos,
al�m dos confrades, os irm�os sem assist�ncia
que requisitam a nossa ajuda. � trabalho que n�o acaba mais.
JL:E esses irm�os de profiss�o e de f� n�o acabam querendo se bandear para a ACC?
JD: N�o estamos conseguindo atender todos os pedidos, mas atendemos dentro do
poss�vel.
JL:N�o h� o risco da ACC inchar demais?
JD: Sempre h� mas o cumprimento do Estatuto � seguido � risca. Temos um dispositivo
bem expl�cito nesse sentido: Onde jogam uns jogam muitos. O princ�pio � o mesmo
para todos. Preencheu os requisitos est�
dentro, ningu�m nessas condi��es fica fora do jogo. (riso)
JL:Mas manter a ACC homog�nea com um n�mero de membros cada vez maior n�o � bem
mais dif�cil, n�o complica ao m�ximo?
JD: �bvio que �, mas um confrade viveu com dificuldades a vida toda, mais uma n�o
ir� desesper�-lo, matamos no peito. Jogada limpa. (riso)
JL:Ent�o a Confraria n�o tem limites de admiss�o?
JD: Na verdade, sim, mas teoricamente n�o, gostar�amos mesmo que n�o tivesse. Estou
trabalhando nesse sentido para criar mecanismos que sustentem uma organiza��o
hiperinchada. Esperamos continuar admitindo
sempre, cada vez mais. Na ACC n�o existe desemprego. (risos)
JL:Isso n�o � meio ut�pico e demag�gico?
JD: Esses termos que voc� usa n�o t�m vez na ACC. Nossos objetivos s�o bem
definidos. Pretendemos nos tornar uma grande organiza��o de poder tanto pol�tico
como econ�mico. Em breve estaremos t�o fortes
que nada de importante acontecer� no Brasil sem que tenhamos uma boa parcela de
participa��o.
JL:Tu me d�s a id�ia de que os pol�ticos est�o l� apenas para negociar em favor de
alguns grupos que se digladiam pelo poder nos bastidores.
JD: Depois de tudo o que falamos at� agora voc� ainda me pergunta isso, Lundi?
Daqui a pouco vou te jogar um balde de �gua gelada, meu. � um tipo de ingenuidade
imperdo�vel para um jornalista que se preze.
N�o me fa�a duvidar de voc�, Lundi, nessa altura do campeonato. (riso)
JL:Na verdade estou perplexo em saber que tudo aquilo em que acreditei nesses anos
todos, como democracia, �tica, justi�a, o escambau, se foi pelo ralo da hist�ria.
Quer dizer que n�o resta mais nada de
nobre para se fazer na vida do que ganhar dinheiro ilicitamente e mexer com os
pauzinhos por baixo dos panos? S� isso � que conta?
JD: Mon cher Lundi, nobreza de prop�sitos, se � que alguma vez existiu, da parte
dos poderosos, � algo que j� nasceu morto. Lembra do que o Rosseau falou acerca do
in�cio da propriedade privada? Quando
um espertinho cercou um terreno e disse: Isto � meu, e todos os que estavam � sua
volta concordaram? S� que isso foi apenas o in�cio duma avalanche de acontecimentos
de esperteza que continuou a suceder.
Hoje os pol�ticos metem a m�o no dinheiro p�blico, dizendo: Isto � meu, e todo o
mundo continua concordando. Fazem o mesmo que aquele personagem primevo de Rosseau,
n�o mudou nada at� hoje. A ACC � uma
das vozes discordantes e responde: Isto � teu mas � meu tamb�m, ou se joga ou se
esculhamba, Ouseje.
JL:Esse lema a servi�o de um partido pol�tico garanto que por si s� faria uma
revolu��o. (riso)
JD: Reconhe�o que essa � uma observa��o muito profunda. (riso) O ing�nuo est� se
redimindo. (riso)
JL:Mas continuemos: uma coisa que eu gostaria muito de saber � se al�m da UNICRIM
e das CREABS, onde tudo efetivamente come�a, embora com certa tend�ncia os
confrades t�m acesso a outros meios de ensino
e aprendizagem, como escolas e faculdades oficializadas?
JD: �bvio, o confrade, em princ�pio, n�o abdicou de ser cidad�o, se paga impostos
logo continua usufruindo de tudo o que tem direito, est� dentro da jogada. O
confrade n�o � nenhum ET ou coisa que o valha,
� uma pessoa normal como qualquer outra: ama, odeia, estuda, se forma, casa,
separa, consome, tira f�rias, etc. Confrade faz bacharelado, licenciatura,
mestrado, doutorado, p�s-gradua��o, MBA, como qualquer
estudante de n�vel superior.

Zezinho era o �nico que sabia do plano, embora parcialmente, porque o executaria
comigo. Zezinho era um rapaz que estava mostrando um grande talento para as
sigilosas tarefas de bastidores. Quando queria
era capaz de passar despercebido em qualquer ambiente, como um camale�o, adaptando-
se ao cen�rio onde atuava. Eu dependia quase que exclusivamente dele para tornar a
opera��o um sucesso. Se me tra�sse,
por�m, eu estaria liquidado e praticamente toda a organiza��o sucumbiria comigo. Eu
n�o gostava de ver tanto poder concentrado nas m�os de um elemento do qual eu n�o
tinha uma total abrang�ncia psicol�gica.
At� agora ele havia correspondido satisfatoriamente a todas as miss�es que tanto eu
quanto Mauro Gigante lhe atribu�ramos. Mas eu o conhecia pouco ainda, apesar de
estar comigo e depois na ACC desde aquele
dia em que lhe dei carona, safando-o de seus perseguidores. S� ultimamente � que eu
o trouxera para perto de mim e t�nhamos uma conviv�ncia mais estreita. Era um cara
muito fechado e n�o deixava transparecer
emo��es. N�o era bobo, devia estar a par da responsabilidade que tinha nas m�os e
de quanto iria crescer no meu conceito se fosse bem sucedido. Devia, ao mesmo
tempo, avaliar a fortuna que um inimigo meu
lhe pagaria para me trair. Eu estava ficando paran�ico de novo, desconfiando at� da
minha pr�pria sombra. Na verdade eu conhecia muito bem Zezinho e o tamanho da sua
lealdade. O que me fazia duvidar dele
e de todos os que me rodeavam era a areia movedi�a da paran�ia maldita que n�o me
largava mais.
Mas n�o havia outro procedimento para garantir a seguran�a de todos n�s. N�o,
Zezinho estava tendo a grande chance da vida dele, n�o ia querer jog�-la pela
janela. Mas eu precisava ter certeza disso, certeza
absoluta.
Vou ter que fazer uma mudan�a de �ltima hora, Zezinho , eu lhe disse com toda a
naturalidade que a circunst�ncia exigia para n�o deixar que ele suspeitasse de
nada, muito menos de que eu poderia estar
desconfiando dele. Talvez eu n�o possa ir com voc�, Terneir�o vai no meu lugar.
O senhor � que determina, o que decidir pra mim � o certo, tou aqui pra batalhar.

Voc� tem certeza que Carl�o ir� visitar a amante e que apenas dois capangas v�o
estar com ele?
Absoluta, s� se fizerem altera��o de �ltima hora mas n�o acredito nisso, � o que
ele vem fazendo praticamente todos os dias deste �ltimo m�s. L� pelas onze toma o
rumo do ap� da mo�a.
Ent�o voc� vai l� com o Terneir�o e faz o servi�o, tem alguma d�vida?
D�vida nenhuma, n�o senhor.
Vou avisar para o Terneir�o encontrar voc� quinze para as onze.
Ent�o j� posso ir indo?
Vai e n�o desgruda do p� do morto.
Zezinho sorriu gelidamente e se foi. N�o deixara vazar ind�cio de nada e eu n�o sou
de perder detalhe nenhum de comportamento. O bicho era precavido, mas pelo que eu
conhecia de psicologia de vida Zezinho
poderia ser considerado um homem da minha total confian�a. Inclusive deveria
aproveit�-lo melhor na organiza��o depois dessa manobra e quando essa fase negra
fosse encerrada, ia tratar de promov�-lo. Arrependi-me
de ter desconfiado dele mas eu n�o podia correr o risco da d�vida, a m�nima.
Zezinho vinha seguindo La Rosa nas �ltimas semanas o tempo todo e me fazia um
relat�rio di�rio dos seus passos. Dia sim, dia
n�o, La Rosa avistava-se com Carl�o. Um informante nosso infiltrado no reduto de
Carl�o tamb�m me passava um relat�rio at� dos hor�rios em que este peidava. Eu
cruzava esses dados e tirava minhas conclus�es.
A agenda de Carl�o n�o tinha nada de excepcional que n�o fosse rotina, exceto a
visita di�ria � sua vira��o. Batia ponto sempre no mesmo hor�rio. Ia dar a sua
bimbadinha de galo numa garota espetacular
pela qual babava. As m�s l�nguas diziam que se ela lhe pedisse para ficar de quatro
para montar ele n�o recusaria. �s vezes os caras exageram um bocado mas n�o sei,
n�o. Caso n�o houvesse nenhum contratempo,
e o tes�o continuasse falando mais alto, seria f�cil peg�-lo de jeito.
�s dez e trinta fui encontrar-me com Zezinho. Ele n�o demonstrou surpresa ao me ver
descer do t�xi completamente travestido ao inverso da minha apar�ncia habitual. Ele
estava concentrado na sua miss�o,
postado ao volante do Opala roubado tempos atr�s, na dobra da esquina.
O homem j� deve tar chegando , disse ele enquanto eu me acomodava ao seu lado.
Ficamos em sil�ncio observando o movimento da entrada do pr�dio e dos carros que
circulavam pela rua. Carl�o deveria surgir pelo lado oposto ao nosso. De onde
est�vamos posicionados s� ir�amos v�-lo quando
descesse do carro para entrar no pr�dio. Dois minutos antes das onze o Mitsubishi
vermelho freou diante do edif�cio. Carl�o e dois seguran�as deixaram o carro e
encaminharam-se para a porta de entrada
sem interrup��o. Teriam de percorrer uns dez metros. Mal avistando o carro de
Carl�o Zezinho adiantou o nosso de modo a cortar a frente do Mitsubishi que j� se
movimentava para sair dali. O sucesso da
opera��o dependia da nossa presteza. Eu pulei pra fora, apoiei a pistola no toldo
do Opala mirando a cabe�a de Carl�o. Disparei. Zezinho, em sincronia, abriu sua
porta e saiu fazendo fogo com sua metralhadora
contra o motorista do Mitsubishi que j� se co�ava em busca da sua arma. Intu� todos
esses movimentos num relance, os breves instantes em que atravessar�amos o carro na
rua e desc�ssemos seriam suficientes
para alertar os reflexos de Carl�o e seus capangas. Suas cabe�as e corpos giravam
para o nosso lado a fim de se inteirarem do que estava rolando. Carl�o teve a sua
t�mpora arrebentada pelo meu tiro antes
que tivesse tempo de esbo�ar qualquer rea��o ou mesmo entender o que se passava.
Fiz outro disparo, quase simult�neo ao primeiro, e acertei-o no pesco�o. Passei, a
seguir, a me ocupar do seguran�a negro
que j� conclu�ra a tor��o do t�rax e retirava sua m�o de dentro do casaco com a
pistola autom�tica. Atingi-o entre os olhos e a meleca jorrou vermelha, num
esguicho, para o lado oposto. Zezinho, com igual
rapidez, tivera tempo de se reposicionar e disparar uma rajada no terceiro elemento
que, atingido em v�rios pontos, despencou sobre os corpos dos companheiros ca�dos
sem tempo de usar sua arma. Toda sequ�ncia
n�o durou mais que poucos segundos, sem nenhum disparo da parte contr�ria. Zezinho
sem hesita��o correu agilmente at� o pequeno volume de corpos amontoados no ch�o
ensanguentado e tornou a disparar sobre
suas cabe�as para prevenir a eventualidade de estarem usando coletes � prova de
balas. Era uma provid�ncia desnecess�ria mas que revelava o seu temperamento
perfeccionista, n�o queria ter arrependimento
de que o servi�o n�o fora bem executado. Entrementes, eu fazia uma varredura �
nossa volta tentando detectar alguma ponta solta, afora alguns expectadores muito
distantes que focaram a vista na nossa dire��o,
mas sem possibilidade de guardarem qualquer detalhe significativo. Apenas o zelador
e duas velhotas no hall do pr�dio em que Carl�o ia entrar testemunharam o epis�dio.
Mas, em p�nico, haviam deitado no
ch�o para se protegerem, cobrindo as cabe�as com as m�os, de modo que seus
depoimentos seriam confusos, quase in�teis. Percebi uma janela se fechando. Zezinho
retornou ao volante do carro encontrando-me
j� instalado ao seu lado. Deu r�, os pneus guincharam, manobrou com per�cia e na
passagem avistei o motorista do Mitsubishi exposto atr�s do para-brisa quebrado
coberto de sangue e cacos de vidro. Zezinho
pegou a transversal imprimindo o m�ximo de velocidade ao carro. Mirei-o de vi�s
para captar a sua rea��o, estava s�rio, compenetrado na condu��o do carro,
mergulhado em cisma, decerto orgulhoso por ter
participado de uma opera��o com o Chef�o. T�nhamos feito um bom trabalho. Dez
minutos depois Zezinho estacionou o Opala numa garagem de aluguel e trocamos para
uma perua zero quil�metro recentemente adquirida
em nome dum laranja e que nunca fora usada. Depois de eu me desfazer dos paramentos
do disfarce, colocamos bon�s do Coxa e fomos ao encontro de Terneir�o e dos outros
encarregados de dar sumi�o nos l�deres
dos bicheiros cariocas. Eu mesmo liguei dum orelh�o para o ap�. Terneir�o me disse
que estava tudo ok, que o servi�o estava feito.
S� t�vamos preocupados com a sua demora, Chefe.
Furou um pneu do nosso carro , eu disse.
Ele riu, ir�nico. Terneir�o e os outros desceram e ocuparam o ve�culo que os
aguardava. Fiz nova liga��o, desta vez para o n�mero especial do QG. Ao terceiro
toque, quando o sinal mudou para ocupado, me
assegurei que tudo tinha idos pelos ares e que no lugar da sede da ACC n�o restava
sen�o um enorme buraco. Em breve uma multid�o estaria fechando a rua, dando
trabalho extra � pol�cia. E quanto aos rep�rteres
de Curitiba teriam mat�ria abundante por um bom tempo.

JL:Tu mencionaste a grande interfer�ncia da pol�cia paranaense nos neg�cios dos


bandidos, principalmente no tocante ao tr�fico de drogas e armas. Como isso foi
resolvido se � que foi? Sem contar o envolvimento
dos pol�ticos, que tamb�m n�o era pequeno. Ent�o reformulo a pergunta: como foi
poss�vel acomodar todos esses interesses aparentemente conflitantes ACC, pol�cia e
pol�ticos de modo a que todos convivessem
numa boa?
JD: Essa foi a primeira grande engenharia de acomoda��o que eu tive que empreender.
Foi dific�limo. E continua pois ainda n�o est� terminada, talvez ainda demore um
bom tempo at� acabar. Por enquanto ainda
n�o se consegue distinguir com precis�o quem � bandido e quem � pol�cia. Alguns
policiais achavam e acham que t�m tanto direito de ganhar dinheiro grosso com o
tr�fico como as quadrilhas que atuam no ramo.
Eu, � bom que se frise, desde o in�cio fui frontalmente contra isso. A partir da� �
que a minha lideran�a ficou reconhecida nacional e internacionalmente, mas apenas
no �mbito do submundo do crime. Comecei
uma campanha na m�dia para conseguir o apoio da opini�o p�blica. Sempre se acha um
monte de jornalistas que n�o resiste a uma boa propina, voc� paga o pre�o e a
mat�ria sai conforme o seu gosto. A � nessa
�poca ainda n�o produzia suas pr�prias crias na UNICRIM e t�nhamos que nos utilizar
das disponibilidades que o mercado oferecia, mesmo correndo alguns riscos de
despertar curiosidade para pontos que deviam
permanecer intoc�veis. Mas t�nhamos um jornalista na manga, que vou chamar de Hugo,
que faturou uma grana preta e que era relativamente confi�vel. Pois bem, Hugo, de
um jornal de Curitiba, metia o pau
na pol�cia e na corregedoria como nenhum outro fez. Fez isso por um bom tempo at�
que o apagaram. A corregedoria teve que se co�ar, pela repercuss�o do caso, e botou
um pouco de ordem no galinheiro. Mas
apenas para manter as apar�ncias. Para todos os efeitos tudo estava sob controle
mas a participa��o dos policiais corruptos continuava correndo solta, como continua
at� hoje, infelizmente. (riso) Nessa
�poca fizeram-se fortunas. Tinha comiss�rio construindo mans�o em Caiob�. Escriv�o
desfilando com carro importado por toda Curitiba. Mas algum resultado positivo
houve, pouco, jamais como eu pretendia
que acontecesse. No mais a coisa rola solta at� agora. Mas � aquela coisa: papagaio
come milho e periquito leva a fama. Estou na luta e acredito que vou conseguir
separar as fun��es de bandido e pol�cia,
o que � um desprop�sito. Veja se tem cabimento: um bandido querendo botar ordem no
procedimento �tico do policial, moralizar a pol�cia. S� no Brasil. (risos)
JL:Como o tr�fico de drogas � praticamente incontrol�vel, seja l� porque for�as de
repress�o, e n�o s� aqui mas no mundo inteiro, ent�o a pol�cia brasileira acha que
deve ter uma fatia do bolo, n�o � assim?
JD: S� falta registrar no cart�rio de t�tulos e documentos um acordo de
cavalheiros, n�o � mesmo? (risos) Voc� est� come�ando a entender como a engrenagem
funciona, Jardel. S� que o pol�tico � o mais voraz
de todos os personagens da com�dia humana e exige participa��o em tudo. E que,
efetivamente, acaba obtendo com base na hierarquia do poder na pir�mide social, da
press�o. O poder pol�tico � a exacerba��o
m�xima do eu. Quanto mais poder mais o eu se expande, como um leque, e mais guloso
fica, um raio crescente capaz de atingir dimens�es absurdas. Policia e bandido,
ambos t�m que abrir m�o de uma fatia sen�o
vem CPI, o escambau, pra acabar com a alegria geral, uma esp�cie de Ouseje aplicada
ao contr�rio. A coisa virou esculhamba��o, Jardel, como tudo no Brasil, ali�s. S�
rindo, meu. (risos)
JL:Como arrumar essa bagun�a?
JD: � o que eu venho tentando fazer a um bocado de tempo sem �xito. Mas um dia
chego l�, n�o sei ainda como mas chego.
JL:Como a coisa continua na mesma, pois a pol�cia paranaense n�o abriu m�o, e,
parece, conforme suas palavras, nem os pol�ticos.
JD: � um abacaxi que eu vou ter que continuar descascando por n�o sei quanto tempo
ainda. Estou com o espinh�o atravessado na garganta, me incomodando pacas. At� que
um dia me baixe o santo e a coisa se
conserta ou entorta de vez.
JL:Meio que na base da ignor�ncia?
JD: Por qu� n�o? Mas s� que n�o � bem assim. N�o temos o exemplo de Alexandre? O n�
g�rdio n�o tinha outro jeito de ser desatado sen�o sendo cortado ao meio. Alexandre
percebeu isso, inteligente como era,
e n�o hesitou, tocou-lhe uma espadada. Uma a��o que pareceu impulsiva mas que foi
resultado duma reflex�o r�pida e rasteira. N�o adianta dar soco em ponta de faca.
Duma coisa tenho certeza: n�o vou continuar
permitindo indefinidamente que a pol�cia e os pol�ticos venham ciscar no meu
terreiro. As coisas t�m que ter um m�nimo de dec�ncia, n�o acha, Jardel?
JL:Quando as coisas chegam a esse ponto, acho que sim. (risos) E como pretende
fazer isso?
JD: Sinceramente, ainda n�o sei, vou ter que esperar as coisas se acomodarem, como
as melancias no andor da carro�a. A�, quando tudo parecer tranquilo, n�o mais que
de repente, corto o n� e acaba a festa.
JL:Mas nesse caso a ACC sairia perdendo tamb�m?
JD: Mais do que j� est�? N�o, na verdade aumentar�amos o nosso poder de barganha,
provando que as diferen�as devem ser mantidas, a qualquer custo. Eles, os do poder
institucionalizado, dependem mais de
n�s do que ao contr�rio.
JL:Em que sentido?
JD: No sentido �nico de que o papel deles � outro, porra. Pol�cia � pol�cia,
bandido � bandido. S� isso. N�o tem mistura. � �leo e �gua.
JL:Mas continuo insistindo em perguntar: isso n�o atrapalha os neg�cios?
JD: N�o, na medida em que as negocia��es sejam renovadas por determinados per�odos,
de tanto a tanto, depois se negocia novo per�odo e assim por diante, e n�o de forma
permanente como vem acontecendo at�
hoje. E as negocia��es tem que se dar com a c�pula, que t�m poder de decis�o e n�o
como est�, onde cada policial acha que � autoridade m�xima, negociando por sua
conta e risco. Atualmente s�o formados
grupos e correntes de opini�o dentro da pol�cia, o que � um absurdo. Isso tem que
acabar definitivamente. Dentro duma nova orienta��o, a cada m�s, a cada semestre, a
cada ano, as coisas ter�o que ser rediscutidas.
N�o vou permitir que o nosso lema, Ouseje, seja apropriado indevidamente por tanto
cu cagado. Os italianos tinham raz�o, � Cosa Nostra, de ningu�m mais. Quem quiser
participar tem que se adaptar �s nossas
regras e n�o o inverso.
JL: � uma t�tica de manuten��o do poder da ACC mas que pode ser negociada sempre,
n�o?
JD: Nem mais nem menos.
JL:Mas no ponto da narrativa em que paramos, com a morte dos chef�es das duas
organiza��es, o que resultou disso?
JD: Alguns dos nossos jornalistas a soldo fizeram reportagens com muito sangue e
imagens cruas, que s�o as vedetes da not�cia-espet�culo que garante a vendagem de
muitos di�rios e ibope aos telejornais.
O au� que fizemos na cidade foi um fil�o inesgot�vel para esse jornalismo de
mercado. Durante muitos dias foram noticiadas as guerras de gangues pela disputa de
territ�rio no tr�fico de drogas, chacinas
de chef�es, Mano V�io e Carl�o, dois chefes das quadrilhas rivais, mortos em
tiroteio e que deixaram a cidade aliviada dos maiores traficantes do estado. Mas as
autoridades pegaram carona no meu trabalho
de limpeza, creditando o feito ao desempenho de quem? Ningu�m menos que da pol�cia
que esquadrinhou os QGs dos quadrilheiros e conseguiu documentos que levaram a
muitos outros membros que foram capturados.
Aquele bl�-bl�-bl� conhecido de todos: cr�ditos e mais cr�ditos atribu�dos �
operosidade da pol�cia estadual e federal que vinham investigando h� muitos meses o
desempenho criminoso das duas maiores quadrilhas
que disputavam entre si o tr�fico de drogas tanto de Curitiba quanto do cone sul,
tudo isso e mais meio quilo de farofa. Para enriquecer a mat�ria l� estavam as
fotos de Carl�o e Mano V�io, estampadas
nas capas de todos os tabloides, o que n�o deixava d�vida de que a cidade estava
livre de dois perigosos traficantes que condenavam os filhos das boas fam�lias �
escravid�o das drogas. N�o � preciso que
se diga que o retrato falado de Mano Veio n�o tinha a nada a ver comigo, era
produto da fantasia dos jornalistas que confeccionaram as mat�rias. A fisionomia do
cad�ver dele, deformada pelo fogo, podia
ser de qualquer um.
JL:E o que nos reserva o futuro do mundo do crime?
JD: O estelionato � o crime do futuro, cada vez mais sofisticado e altamente
lucrativo, principalmente no �mbito oficial, onde o volume de dinheiro � sempre
grande e compensador. O Brasil � um campo f�rtil
para a corrup��o, como j� disse, tem empresas p�blicas como a Petrobras, BNDES,
Banco do Brasil, etc., ainda virgens, esperando o nosso ass�dio. (risos) Sem falar
nos crimes de internet, outra �rea promissora
na qual estamos nos especializando, e que, no frigir dos ovos, n�o deixa de ser
estelionato, s� que com outra fisionomia, um pouco diferente da tradi��o.

Os convidados come�aram a chegar desde as primeiras horas do dia, provenientes de


Corumb�, distante 260 quil�metros da fazenda, onde eram identificados e
encaminhados cada um � sua respectiva aeronave.
No total, ao longo de toda a manh�, foram 10 v�os de cada jatinho subindo e
descendo na moderna pista de pouso da fazenda, transportando cerca de 2.000
pessoas. Um ter�o delas eram mulheres. Todos, sem
exce��o, traziam afixados no peito um crach� de identifica��o e exibiam o convite
personalizado recebido um m�s antes. O Comit� de Recep��o, composto de um elenco de
manecas elegantemente trajadas, ap�s
examinarem os convites entregavam a cada um dos presentes uma pasta vermelha
lacrada. Outrossim, acolhiam os presentes daqueles que os carregavam em m�os. Num
canto j� se amontoavam dezenas de pacotes
e volumes, acompanhados de cart�es identificando os doadores. Algu�m, de tempos em
tempos, auxiliado por um carrinho de metal, removia parte desse material para outro
lugar. Um outro grupo encarregado
da recep��o, se esfor�ava para dar a melhor acolhida �quela pequena multid�o,
encaminhando-a aos seus devidos lugares. A equipe de seguran�a, paramentada com os
indefect�veis trajes pretos, apesar da alta
temperatura, circulava silenciosa e discretamente por todos os arredores. Por volta
das 10,30 h, chegaram os �ltimos voos retardat�rios e em seguida os avi�es
desligaram os seus motores, causando um al�vio
generalizado. Um c�u sem nuvens e um sol brilhante estimulavam o clima de festa. A
temperatura mantinha-se em torno dos 35� e a umidade relativa do ar era baix�ssima.
Mesas ornamentadas com centenas de
cadeiras em volta, algumas sob toldos coloridos, outras sob �rvores copadas, iam
sendo atulhadas de pratos, talheres, copos e todo o aparato necess�rio ao deleite
dos convivas. �s 11 h, um conjunto musical
come�ou a tocar m�sicas de repert�rio variado. Um pelot�o de empregados carregando
utens�lios e complementos faziam o trajeto da sede da fazenda at� as mesas
instaladas onde ia realizar-se a comilan�a.
Volta e meia uma agita��o repentina irrompia entre os convidados e eram as
manifesta��es efusivas do encontro entre velhos companheiros de antigas jornadas
que por sua vez faziam novas apresenta��es e
a camaradagem ia se instalando. �s 11,30 h, os convidados foram instados a passar
ao extenso pavilh�o coberto que servia de hangar onde eu iria fazer um breve
pronunciamento. O cheiro ativo da carne assada
j� come�ava a espalhar-se no ar, aliciando as narinas dos convivas e enchendo-lhes
a boca de saliva. Os churrasqueiros, mais afastados, diante de longas valas com
toras de madeira queimando, iriam assar
cerca de 1 tonelada de carnes nobres, que seria acompanhada com mais de 400 quilos
de saladas variadas e 5.000 litros de chope e grande quantidade de refrigerantes.
Isso sem considerar os aperitivos, que
inclu�am os destilados u�sque, vodka, cacha�a nortista e mineira, etc. e fartas
infus�es de frutos e ervas da regi�o, acompanhados de tira-gosto, que j� circulavam
em um n�mero expressivo de copos
e m�os. Como sobremesa seriam servidas compotas, pudins, tortas e bolos: algumas
preciosidades realmente inesquec�veis.
�s 12 horas em ponto ingressei no pavilh�o repleto de gente espremida em cadeiras
de metal desconfort�veis, cedidas por empr�stimo pelos fornecedores de bebidas.
Receberam-me calorosamente, a mim e a Teca,
estalando palmas e gritos de apoio. Est�vamos elegantemente vestidos para a
solenidade do nosso casamento que se realizaria logo ap�s o meu breve discurso e
antes do banquete, num altar montado junto das
�rvores pr�ximas da sede e onde um juiz de paz e um padre aguardavam a postos. Teca
estava deslumbrante, vestindo o modelo exclusivo de um costureiro paulista criado
especialmente para a ocasi�o. Um vestido
branco mal cobrindo os joelhos em linhas cl�ssicas e um v�u, que seria colocado
momentos antes da cerim�nia, este sim quilom�trico, carregado por aias e aios
dispersos a sua volta. Posicionamo-nos na longa
mesa instalada no meio do palco: eu, no centro, Teca a minha esquerda, Mauro
Gigante na terceira posi��o, Darcisinho � minha direita com Terneir�o a seu lado.
Avistei Fedora, sentada na primeira fila com
os dois meninos, filhos dela e Darcisinho. Fedora sofrera uma mudan�a radical, com
o aconselhamento de Teca: fizera um tratamento bucal, recolocando os dentes que
faltavam, al�m de tratamento da pele e
um novo look do vestu�rio. Fedora abanou para n�s discretamente. Terneir�o
aproximou o rosto do microfone e assoprou no bocal para testar: o ru�do retumbou
nos potentes alto-falantes, distribu�dos pelos
quatro cantos do recinto, ao mesmo tempo arejado por potentes ventiladores.
Terneir�o desenganchou o microfone do suporte e p�s-se de p�:
Senhoras e senhores, irm�os e confrades, sejam todos bem-vindos. Disse com o seu
vozeir�o que parecia mais encorpado ainda na sa�da do pesado sistema de som. Hoje
� um dia hist�rico. Important�ssimo
para a nossa classe, pois estamos reunidos como nunca estivemos e garanto que aqui
ser�o tratados assuntos definitivos acerca do nosso futuro e da nossa sobreviv�ncia
como tal. Vou passar a palavra ao
Mano V�io, ou Jorge Duncan, ou Aristodemo Fagundes. Aqui ele me olhou como a me
perguntar se n�o tinha falado demais citando tantos nomes; como eu sorri, o que
significava um assentimento, ele prosseguiu.
. que dispensa apresenta��es e que est� presidindo a mesa e os trabalhos. Logo
hoje, no dia do seu casamento, para que ele nos d� a sua mensagem. Parab�ns ao
casal.
Eu e Teca nos erguemos e seguiu-se uma salva de palmas. Era um texto decorado que
Terneir�o atropelara em alguns pontos trope�ara noutros mas conseguira dar o seu
recado. Nenhum de n�s tinha qualquer experi�ncia
de falar para grandes plat�ias da� a minha insist�ncia para, aproveitando a
multid�o presente ao casamento, praticarmos um pouco. Era uma boa oportunidade de
perdermos a inibi��o. Se bem que teria algu�m
ali efetivamente que fosse reparar nisso? N�o est�vamos entre gente simples e
informal, todas vindo do ponto mais baixo da pir�mide social? Tinha gente ali t�o
casca-grossa como um jaboti, eu pr�prio n�o
era assim? Quando os aplausos esparsos finalizaram recebi o microfone de Terneir�o.
Apesar de ter treinado isso dezenas de vezes e querer parecer natural, senti ainda
um pequeno tremor de nervosismo na
m�o que segurava o microfone. Eu tinha estudado e me preparado para esse momento
mas parecia que repentinamente nada tinha adiantado, tudo fora in�til.
Disfar�adamente inspirei e expirei, pausadamente
para readquirir o controle dos nervos, como tinha recomendado meu instrutor de
dic��o, enquanto o sil�ncio crescia na
plat�ia com a expectativa de me escutar. Comecei a soltar a voz:
Irm�os, confrades. Obrigado pela presen�a. � uma grande honra para mim dirigir-
lhes a palavra. Principalmente hoje, como disse o Terneir�o, no dia do meu
casamento. Agora eu j� come�ava a me sentir
pisando em solo firme. Aqui, praticamente todos n�s somos amigos, convivemos
juntos de longa data, muitos de n�s at� j� trabalhamos juntos na verdade, formamos
uma grande fam�lia e sabemos todos
o que queremos. O que eu vou tratar aqui j� o fiz pessoalmente com muitos de voc�s,
em outras ocasi�es, muito embora os assuntos fossem bem diferentes. Portanto, vou
ser o mais sucinto poss�vel, para que
o assunto realmente importante, que est� l� fora, atormentando as nossas narinas,
n�o seja retardado.
Aplausos e �Muito bem�. Encaminhei-me at� a extensa faixa de tecido que encobria o
painel por tr�s da mesa e puxei uma cordinha para solt�-la. No painel estava
escrito:

O CRIME DEIXOU DE SER MARGINAL


AGORA � OFICIAL

Repeti, em alto e bom som, o texto do painel.


O qu� significa isso, confrades? Significa que com o t�rmino dessa solenidade
estaremos encerrando tamb�m uma etapa para iniciarmos outra, bem mais promissora.
Dentro da pasta que cada um de voc�s recebeu
ao chegar, apresentamos sugest�es para atingirmos o objetivo proposto no slogan
atr�s de mim. Como s�o muitas sugest�es fica invi�vel discorrer sobre todas.
Portanto, para abreviarmos o nosso prop�sito,
selecionei uma que me parece ser a mais tentadora delas, pelo retorno que poder�
oferecer. Mod�stia � parte essa sugest�o foi idealizada por este que vos fala. O
objetivo principal � esse: legalizar a
maioria das nossas a��es, duma forma cada vez mais profissional e rent�vel. Nossos
irm�os pol�ticos, aliados em grande parte das nossas atividades e interesses
rec�procos, ter�o, a partir de agora, uma
participa��o cada vez mais efetiva nas nossas rela��es. Hoje, nesse ano de 1985, a
minha proposta pode parecer algo invi�vel, em fun��o da legisla��o vigente, mas eu
digo uma coisa: leis s�o para serem
aperfei�oadas ou alteradas para o benef�cio geral. Os nossos aliados pol�ticos
ficar�o com essa tarefa em m�os, a partir de agora, para nos darem retorno com a
brevidade poss�vel. Ningu�m aqui tem pressa,
o apressado come cru, o que � do homem o bicho n�o come, vamos deixar o nosso
legislativo trabalhar com calma para o bem geral da na��o. O que nos cabe fazer �
cobrar. Portanto, cobrem dos seus deputados,
dos seus senadores, de todos os irm�os pol�ticos com os quais voc�s t�m contato e
neg�cios, para que eles n�o se esque�am do compromisso que t�m conosco, cobrem para
que atendam a maior parte das propostas
que a� est�o delineadas. Esses nossos irm�os felizmente t�m o dom da palavra e
sabem convencer a todos do que � bom para o povo e para todos n�s. Se eles n�o
conseguirem, com o seu papo dez, ent�o ningu�m
consegue. Vamos continuar cobrando sempre para que eles fa�am novas leis, ou
reformulem as antigas, para que as mudan�as aconte�am, mudan�as que nos beneficiem
junto com o povo, e, consequentemente, ao
nosso querido Brasil.
Fiz uma pausa para tomar um gole d�gua. O calor come�ava a aumentar, em breve
estaria insuport�vel ali dentro. Eu precisava ser breve.
Vou lhes falar rapidamente desta id�ia muito querida, que bolei j� faz algum
tempo. � o seguinte: n�s temos que conseguir uma maneira legal de criar uma nova
modalidade de empr�stimo destinada � categoria
dos aposentados. Mas n�o ser� um empr�stimo convencional, ser� diferente, este ter�
desconto em folha. O que implica isso? Implica que o desconto em folha garante a
adimpl�ncia, ou seja, ningu�m vai atrasar
pagamento, ent�o o risco ser� praticamente zero, exceto em alguns raros casos, um
problema que pode ser contornado com uma boa ap�lice de seguro de vida, um valor
que ser� calculado com os juros e embutido
nas parcelas. Esses juros ser�o cobrados um pouquinho abaixo do praticado no
mercado. Perdemos nos juros mas ganhamos na quantidade dos empr�stimos, pois
estaremos dando acesso ao cr�dito a uma faixa praticamente
virgem da popula��o, al�m da garantia de adimpl�ncia com pontualidade brit�nica.
Ser�o milh�es de aposentados ganhando sal�rio-m�nimo que est�o fora da economia de
mercado e que, dessa forma, ser�o incorporados
a ela. Sem contar os outros aposentados de faixas de renda mais altas, que tamb�m
s�o alguns milh�es. O arroxo salarial e de proventos, uma vez mantidos, garantir�
uma massa de empr�stimos de v�rios bilh�es
de reais, com risco pr�ximo de zero, conforme falei antes. E tem mais: ap�s
criarmos um oceano de endividados que n�o conseguir�o inadimplir, ofereceremos a
eles a renova��o semestral do empr�stimo, mantendo
um cliente cativo at� o final de suas vidas. Estou encaminhando essas propostas aos
nossos irm�os pol�ticos para que comecem a providenciar solu��es. Por isso, insisto
em que cada lideran�a aqui presente
passe a cobrar dos seus cupinchas a aprova��o desse projeto que � uma galinha dos
ovos de ouro sem galinha. Sendo assim, enquanto os nossos homens estar�o
trabalhando para aprovar isso no Congresso, vamos
n�s tratando de nos organizar para operacionalizar os ovos da galinha. (risos) E
para isso precisamos de bancos, financeiras, factorings, etc. Daqui pra diante
passemos a bola aos nossos advogados e contabilistas
para que formalizem no papel todo esse emaranhado legal e tornem realidade tudo
aquilo que precisamos. Portanto, m�os � obra, pessoal.
Fui interrompido por uma fervorosa salva de palmas, o sinal mais evidente da boa
acolhida �s novidades.
Obrigado. Em suma, � isso a�. Leiam com aten��o tudo o que est� contido nesta
pasta para que em outra ocasi�o, ou pessoalmente com cada um a gente possa discutir
em detalhes todos os procedimentos para
viabilizar essa nossa grande mudan�a para o mundo oficializado, a come�ar por esse
projeto que muito promete a todos n�s. E esse � s� o come�o, muita coisa vem atr�s.
Tudo isso est� a� na pasta, mastigadinho
em detalhes, apontando um leque de possibilidades de neg�cios que v�o engordar a
nossa rentabilidade. Essas s�o id�ias nossas que s�o lan�adas � aprecia��o de voc�s
todos. Estamos abertos a sugest�es de
novas id�ias e novas propostas para viabilizarmos com seguran�a as nossas frentes
de trabalhos. Tudo o que vier ser� bem-vindo.
Aplausos e coros de �Muito bem�. Se a plat�ia estava tensa e nervosa com o calor e
o cheiro de carne assada, ao mesmo tempo estava bem atenta �s minhas palavras que
calavam fundo nos seus interesses. Sim,
toda aquela gente estava ali, viera a esse encontro de boa vontade, sinal de que
estava interessada e motivada pela id�ia dos novos tempos e rumos. Com muitos deles
eu j� tratara do assunto, anteriormente,
num t�te-�-t�te informal; como uma grande parte j� conhecia o assunto, aprovara e
comentara com outros, para que chate�-los com conceitos complicados que a maioria
detestava encarar? Eram todos homens,
e algumas mulheres, pr�ticos, de a��o, n�o toleravam teorias, com quase ou nenhum
refinamento. Eu tinha que ser curto e grosso. Conseguir-lhes o apoio, rapidamente,
e passarmos � confraterniza��o da festa
que era a parte mais amena e esperada do encontro. Na informalidade da reuni�o �
que residia a sua maior atra��o. Nenhum de n�s estava muito acostumado a decis�es
de
assembl�ia. O conluio sigiloso � que
era o nosso forte. Foi o que fiz, ent�o, uma exposi��o r�pida e sint�tica do que eu
pretendia deles dali pra frente. Da minha inten��o de tirar o crime no Brasil do 3�
mundo e moderniz�-lo, de inclu�-lo
na t�o propalada globaliza��o, da ado��o de novas metodologias de execu��o, do uso
de tecnologia de ponta, de armas de �ltima gera��o, do uso eficiente da Internet,
da inform�tica, especialmente dos hackers,
etc. Mas o mais importante de tudo isso seria legaliza��o e formaliza��o do que j�
t�nhamos e abrir novas frentes de lucro.
Tentei prosseguir, para complementar com alguns detalhes de como ia funcionar na
pr�tica o projeto, mas notava-se uma forte impaci�ncia na
plat�ia com o aumento da temperatura. Todo o mundo se abanava
com qualquer coisa � m�o, bandeja, papel, len�o. De repente estabeleceu-se um
sil�ncio tumular e tosses secas, entre as pausas da minha voz, s� quebrados pelos
ru�dos das p�s dos ventiladores e abanos.
Era o sinal que o interesse acabara. Em seguida vieram os cochichos, uma que outra
risada. Eu os perdera. N�o estavam mais prestando a m�nima ao que eu dizia. Meio
desanimado com a rea��o da minha
plat�ia,
encerrei o discurso de qualquer jeito.
De toda a forma agrade�o contando com a compreens�o e o apoio de todos ao nosso
projeto. Tenho dito. Sejam mais uma vez todos muito bem-vindos e aproveitem a
festa.
Quando conclu� estava com a goela seca e as ma��s do rosto queimando. Bebi outro
copo d�gua recolocado na minha frente ao lado da haste do microfone, suado e com
uma po�a ao seu redor.
Darcisinho puxou o microfone para a sua dire��o e falou em cima dele com a sua voz
de taquara rachada:
Viva o Mano V�io!
Em seguida ele se ergueu e levantou ambos os bra�os, tornando a gritar, a plenos
pulm�es:
VIVA O MANO V�IO!
Pelas suas faces afogueadas e olhos saltados percebi que Darcisinho estava a mil
pelo brasil, tinha cheirado todas. Fedora, que com a maternidade baixara a bola com
as drogas, tentava cont�-lo como podia,
o que parecia ser muito pouco ou quase nada. Darcisinho fazia sinais insistentes
com as m�os, de baixo para cima, impulsionando a
plat�ia. Senti que vinha roj�o daquele quadrante.
MANO V�IO! MANO V�IO!
Nisso as cadeiras come�aram a ser arrastadas e os presentes a levantaram-se, bra�os
elevando-se no ar, m�os agitando-se como bandeirolas, acompanhadas de gritos, em
un�ssono, como o �LA! que se formaria
nas arquibancadas dos est�dios do mundo todo, d�cadas vindouras:
MANO V�IO! MANO V�IO! MANO V�IO!
Darcisinho tornou a gritar, cada vez mais excitado:
VIVA O MONSTRO!
Um ponto de interroga��o enorme pairou sobre a cabe�a da plat�ia que calou-se
abruptamente..
Darcisinho apossou-se do microfone, e, agilmente, subiu na mesa, para surpresa
geral:
Quero dizer uma coisa a todo o mundo que n�o sabe. O nosso Chef�o aqui � o Homem
das Mil Caras, o Homem do Capeta, o MONSTRO!
No interior de todas as cabe�as a mensagem se decodificava rapidamente. Darcisinho
gritou de novo, a boca bem pr�xima ao microfone, as palavras explodindo como
estampidos de um fuzil AR-15:
VIVA O MANO V�IO! VIVA O MONSTRO! VIVA O CACETUDO!
Aqui Terneir�o e Mauro Gigante, simultaneamente, como se fosse uma jogada
combinada, ergueram-se dos seus assentos e alcan�aram o microfone e o arrancaram
das m�os de Darcisinho que n�o fez oposi��o. Darcisinho
saltou da mesa e veio nos abra�ar, a mim e a Teca.
O coro das duas mil vozes, como respondendo ao puxamento de um estribilho, gritava:

VIIIVVV�������������!!!
Estiquei os meus bra�os para o alto. Eles tinham finalmente entendido o meu recado.
E tamb�m o de Darcisinho. Desci para o meio deles, misturando-me com os meus
amigos, os meus irm�os, os meus s�cios.
Eu apertava m�os, recebia abra�os. Formavam-se filas para me cumprimentar. Agora,
�ramos um corpo de milhares de m�os, em breve, milh�es, unidas para mudar os rumos
da vida no planeta.
No meio da multid�o, senti um toque na minha m�o mutilada, envolvendo-a. Eu
conhecia aquele toque m�gico, sabia de quem era. Ela ficou segurando a minha m�o
at� que o �ltimo convidado tivesse se retirado
para o lado de fora do pavilh�o para assistir as solenidades do nosso casamento. S�
a�, ent�o, nos viramos, num sincronismo de passo de dan�a ensaiado, ficando cara a
cara, respira��o com respira��o, olho
mergulhado no olho.
Nosso olhar ia t�o fundo que enxergamos um a alma do outro.

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