Jardel Lundi - A Confraria Do Crime, o Início de Tudo
Jardel Lundi - A Confraria Do Crime, o Início de Tudo
Jardel Lundi - A Confraria Do Crime, o Início de Tudo
PR�LOGO
Alguns dias depois, fui ao encontro arranjado por Arnoldo com seu camarada Dilvo, o
tal conselheiro do capo di tutti i capi do Crime Organizado do Brasil, desencavado
n�o sei de onde, pois tinha ainda
minhas d�vidas quanto � origem de tudo. Arnoldo me adiantou que Dilvo faria os
preparativos para o meu primeiro contato pessoal com o Chef�o. Eu havia revisado o
assunto e me vi assaltado por uma infinidade
de incertezas. Tudo o que vem de Arnoldo, como j� disse, l�ngua de trapo refinado,
adquire uma dimens�o nebulosa, sem a m�nima correspond�ncia com a realidade. Sair
do meu comodismo intelectual de interiores
e me lan�ar numa aventura barra-pesada, da mais completa informalidade, confundia
os meus princ�pios. Eu me sentia como caminhando num campo minado. O qu� Arnoldo me
aprontara desta vez? Procurei, no entanto,
extrair alguma razoabilidade da minha confus�o mental. Afinal, mesmo que o assunto
redundasse em nada, eu n�o teria a perder mais que um pouco de tempo. E tempo e
t�dio, como j� disse, era o que eu mais
tinha de sobra. Valia a pena arriscar. No m�nimo, eu faria contato com mafiosos de
verdade, fato in�dito na minha experi�ncia pessoal. J� havia lidado com pol�ticos
vorazes, com homens de neg�cios dur�es,
frios e selvagens, com espertalh�es inescrupulosos, e talvez Arnoldo pudesse ser
enquadrado na �ltima classifica��o dessa lista, mas com bandido desse tipo, em
carne e osso, seria mon d�but. E, caso tudo
n�o passasse de mais um blefe de Arnoldo, eu poderia, na pior das hip�teses, somar
este aos anteriores, e passar, ent�o, a ter motivos suficientes para, a partir
dali, n�o lhe dar jamais o menor cr�dito.
JAMAIS, JAMAIS!
S� que, desta vez, me enganei feio. O assunto n�o s� era quente como fui convocado
para iniciar o trabalho imediatamente. Trabalho, ali�s, que mudou de forma radical
o rumo de tudo aquilo que eu vinha
fazendo at� ent�o em termos de literatura. E, n�o s� isso, minha vida toda tamb�m
mudou daquele ponto em diante, um giro de cento e oitenta graus. N�o tive nem a
oportunidade de me penitenciar com Arnoldo,
pois ele viajou inopinadamente, sem deixar rastos, como era seu costume de tempos
em tempos.
De manh�, no hor�rio combinado, me encaminhei ao Hotel Ritz, na Place Vend�me,
endere�o que me havia sido passado por Arnoldo antes de seu sumi�o. Ao transpor o
umbral do hall que conduzia � su�te onde
eu estava sendo aguardado, dei de cara com um brutamontes mal-encarado, de terno
escuro e gravata, que, sem dizer palavra, me procedeu uma revista em regra.
Imediatamente percebi que lidava com profissionais,
ningu�m estava ali para brincadeiras. As apalpadelas bruscas de manzorras calejadas
em academias de muscula��o me deram certeza disso. Fui conduzido a uma saleta, onde
havia quatro homens vestindo os mesmos
ternos escuros e gravatas, o uniforme que caracteriza o pessoal do CO e advogados.
Jardel Lundi
Curitiba, 2001.
A MORTE
JL Ent�o, para in�cio de conversa, o que vem a ser a ACC ou A Confraria do Crime?
JD Ah, A Confraria do Crime. N�o me fa�a falar da ACC, bicho, pois acabo virando
poeta. A ACC � um mundo, um sonho. A ACC � o sangue da humanidade derramado desde o
in�cio dos tempos. A ACC � uma
grande explos�o nuclear, a ACC � tudo ou quase nada, � sempre um come�o, uma
esperan�a. N�o, n�o, risca esperan�a, antipatizo com essa palavra. � a�ucarada
demais pro meu gosto, � aquela op��o que
o poder d� ao povo para que tenha perspectiva, para que se acalme. Quem tem
esperan�a ainda tem alguma coisa, � o rescaldo dos perdedores, de quem se conforma
em esperar. Quem n�o a tem, ao contr�rio,
n�o prorroga mais, resgata. A ACC � isso, uma proposta de resgate real, uma
retomada. Num sentido mais amplo, a ACC � uma sociedade secreta com objetivos
pol�ticos bem definidos.
JL Um momento, dar cunho pol�tico a uma sociedade criminosa n�o � for�ar a barra? O
crime.
JD Voc� � t�o transparente, meu chapa, que eu n�o tenho a m�nima dificuldade em
antecipar o que se passa na sua cabe�a, j� sei bem o que voc� vai dizer, para
voc�s, os caretas, o crime reflete uma postura
de exacerbado ego�smo, um processo de solu��o individual, caso possa ser chamado
assim. J� a pol�tica � uma a��o social e, se democr�tica, busca o benef�cio de
todos. A rigor tudo � pol�tica, cada gesto
humano � pol�tico. O titio Arist�, bem l� atr�s, j� dizia bostas desse tipo. Mas
entendi o que voc� quis dizer, cabr�o: quer revestir o assunto pol�tica com um halo
de pureza que ela absolutamente n�o
tem. Isso n�o existe, caralho. Pol�tica � um dos assuntos mais sujos de que se tem
not�cia na hist�ria da humanidade. No entanto, paci�ncia, n�o h� como fugir dele.
Se voc� solta um sonoro peido est� fazendo
pol�tica, n�o pode dizer que n�o. Agora, se cagar nas cal�as ser� uma pol�tica.
suja (riso). Por isso n�o vejo contradi��o nenhuma no que estou dizendo. N�o, n�o
h� contradi��o. Enxergo a coisa com outros
olhos, a verdade � essa. Pelo meu �ngulo, a ordem � vista pelo avesso, est� tudo
virado numa lixeira. N�o, n�o, n�o, estamos perdendo o foco, come�amos errado. A
coisa n�o tem a ver s� com pol�tica, a
coisa come�a antes com aquele animal feroz que � cada um de n�s, que est� escondido
bem l� dentro.
JL:Pelo que me consta, o homem � um animal, mas tamb�m tem uma qualidade
excepcional, � racional.
JD: Humm, olha s�, o bicho � racionalista. (riso). S� que tem o seguinte, cara, a
ferocidade do animal se sobrep�e a tudo, at� mesmo a essa pretensa racionalidade.
Por isso a pol�tica tem essa conota��o
de sujeira, de podrid�o, pois � a preval�ncia do animal sempre voraz sobre o resto
das suas qualidades, essas que voc� chama de racionais. E tem mais, nada funciona a
n�o ser pela for�a, viol�ncia, guerra.
Mas isso tamb�m � tudo muito velho e conden�vel pelos democratas, pelos
politicamente corretos.
JL:No seu entender, somente a for�a comanda o espet�culo? Esse n�o seria o discurso
de um guerreiro primitivo?
JD: Ah, sim, entendi, agora virei o guerreiro primitivo, o l�der desp�tico, o
ditador sanguin�rio? Sem essa do papo-furado de consenso pelo di�logo. � a lei do
mais forte, n�o existe outra, � a regra mais
ampla. Quando o oper�rio faz greve, a categoria n�o est� fortalecida pela uni�o?
Ent�o. N�o adianta chiar, voc� tem que soltar porrada, sen�o n�o leva. S� que os
oper�rios se uniram e tal, mas n�o levaram
grande coisa. Por qu�? Porque � uma for�a fict�cia, concedida, submetida, na
verdade a mais escrava de todas. Nunca se escravizou tanto como no s�culo XX. A
ACC, no entanto, � a prova de que gente fodida
como todos n�s, confrades, �ramos , uma vez organizada, pode se transformar num
poder popular cada vez mais consistente. Se n�o fosse a ACC, a maioria de n�s,
confrades, com certeza ainda andaria rolando
pelas sarjetas ou j� teria esticado as canelas. Agora, o buraco � mais embaixo.
Somos um poder paralelo dos mais fortes. Fica dif�cil para algu�m de fora avaliar a
nossa for�a. N�o a conhecem. Ela se d�
nas sombras, no anonimato. Estamos infiltrados em praticamente tudo o que �
atividade, seja oficial ou privada. E � essa nossa capacidade de nos mantermos
inc�gnitos, enquanto transgredimos a lei, e ao
mesmo tempo institucionalizados, quando usamos a fachada legal para fazer as nossas
falcatruas funcionarem, a causa de tanto sucesso. Se isso n�o � pol�tica, ent�o n�o
sei mais o que seja.
JL: De fato. S� que.
JD: Porra, Jardel, ser� que voc� vai me encher o saco o tempo todo com essas
baboseiras? Eu tratava desses assuntos quando era estudante, adolescente. Nunca
falei tanto em t�o pouco tempo, meu.
JL:Infelizmente, n�o h� como fugir.
JD: O que Dilvo foi me arranjar, Deus do c�u! Voc� j� t� me torrando o saco,
Jardel.
JL:Ent�o, fal�vamos de pol�tica.
JD: Pol�tica � guerra, meu. Quem pode mais, chora menos. Para a ACC, � aprontar e
ficar distante das malhas da lei, ponto. Desse jeito somos respeitados. Mas para
chegarmos a esse est�gio n�o foi mole.
JL:Ent�o o in�cio foi duro?
JD: Porra, claro que foi, meu, tem d�vida? O in�cio de algo majestoso � sempre
dur�ssimo e a ACC n�o fugiu � regra, principalmente quando se parte do zero como
foi o caso dela. Foi preciso muito planejamento,
ac�mulo de capital, trabalho s�rio, armamento pesado, o �ltimo grito da tecnologia
b�lica, para chegarmos aonde estamos. Ora, qualquer idiota sabe que sem dinheiro
n�o se faz nada, da� o crime, o caminho
mais r�pido para se chegar a ele. Imagina se f�ssemos dizer: �Ei! Esperem a�, a
gente vai trabalhar, juntar dinheiro, se organizar e, dentro de uma ou duas
gera��es, vamos estar em condi��es de come�ar
a aprontar, a exigir.� Portanto, vamos congelar a imagem e dar tempo ao tempo
(riso). Mas isso � exatamente o que acontece com as gera��es das gentes, ficam
postergando para os s�culos vindouros, por meio
dos netos, bisnetos, o cacete, e nada acontece. Essa � a tal da esperan�a, da f� em
coisas inexistentes, da f� na bondade alheia, coisas que nunca se realizar�o, isso
eu garanto. O que acontece vem da
a��o direta, geralmente violenta, sem a qual ficamos chuchando o dedinho,
esperan�ooooosos. (riso). Para ser mais preciso, esse tal do esperan�oso � um
fodido dum covard�o que tenta disfar�ar suas fraquezas
com virtude e racionalidade. T� satisfeito agora? Podemos dar por encerrada a nossa
entrevista? Tou com a agenda cheia, bicho. Esse tro�o de ficar de papo-furado n�o �
comigo.
JL:Infelizmente, ainda n�o, Chefe, rec�m come�amos. Quanto tempo demorou para
voc�s, saindo do zero, chegarem ao est�gio atual? Quem criou a ACC?
JD: Quem criou fui eu, �bvio, quem mais poderia ser? Sem mim a ACC n�o existiria,
essa � a verdade. Agora, se demorou? Demorou. A princ�pio pareceram s�culos, hoje,
no entanto, olhada daqui, da dist�ncia
de dez, doze anos depois, parece que foi tudo muito r�pido. N�o mais que doze anos
para chegar aonde estamos. Mais tarde, no decorrer da nossa conversa, voc� vai
ficar sabendo o porqu� de tanta rapidez.
JL:N�o d� pra ficar sabendo agora?
JD: At� d�. Mas vamos ter que ser rapidinho, ok? Atalhos. N�o me prendo a f�rmulas,
padr�es. Atalhos. Uso a t�tica que funciona. Em pol�tica, ou para voc� firmar o seu
poder de barganha, o tempo � ouro,
tem que utilizar o caminho mais pr�tico, logo, o mais curto. N�o tem outro jeito.
Sempre foi assim e sempre ser�. Para se atingir objetivos amplos, quando a
desvantagem � muita, se utilizam atalhos. �
uma lei de economia mais psicol�gica que pol�tica. � o que a ACC faz, usa atalhos,
muitos atalhos. Sou especialista nisso.
JL:A ACC � Jorge Duncan ou Jorge Duncan � a ACC?
JD: A ACC sou eu, como diria o nosso coleguinha daqui, o tal Flaubert. Na verdade,
estou cheio de ouvir baboseiras o tempo todo. Os intelectuais passam escrevendo
livros, mat�rias em revistas e jornais,
sobre os problemas que afligem a humanidade e suas respectivas solu��es. � utopia
que n�o acaba mais. Tudo j� foi pensado e solucionado. em livros, teorias, agora,
na pr�tica. est� tudo ainda por fazer.
� muito papo-furado pro meu gosto. Palavras e mais palavras. Parole, parole,
parole. (cantarola, riso). Enquanto eles protestam, escrevem, pensam, eu
simplesmente ajo. Corto o n� g�rdio como Alexandre.
A prop�sito, esse Alexandre era bom mesmo, um garot�o talentoso que aos 20 anos s�
faltou fazer chover. Pois ent�o, sou um homem de a��o, aquele que faz as coisas
acontecerem, um pouco parecidinho com
o conquistador maced�nio. Eu n�o reflito sobre a realidade, pois ela fala por si
mesma, eu mudo a realidade.
JL:Acha ent�o que intelectual � dispens�vel?
JD: Na sua grande maioria, �bvio. � isso a�. Eles falam, falam, dizem grandes e
bonitas verdades, mas e da�? Tudo continua na mesma. Discursos n�o adiantam.
Sabemos todos onde as coisas est�o erradas,
onde o sapato aperta o calo, qualquer um sabe, eu, voc�, qualquer arig� sabe, as
donas de casa tamb�m. Estas ent�o t�m um grande senso de economia pol�tica,
consulte uma dona de casa e voc� arruma um pa�s.
E quando as mudan�as certas acontecem, as pessoas entendem e aprovam. � um
entendimento que dispensa palavras. O problema � fazer as mudan�as. N�o tem manual
explicativo. A� � que a porca torce o rabo,
e � onde eu entro, mais uma miss�o para Jorge Duncan. (riso).
JL:Mas o senhor n�o pode negar que o mundo sofreu mudan�as importantes, muitas
mudan�as, em todas as �reas. gra�as a esses ditos intelectuais, t�o desprezados
pelo senhor. Cientistas tamb�m s�o intelectuais.
JD: Eu j� n�o tenho tanta paci�ncia, meu chapa. Para mim, as coisas t�m que
acontecer enquanto eu ainda estou vivo, pra ontem, entendeu? Sen�o n�o adianta, n�o
concorda comigo? At� porque os meus descendentes
de A Confraria do Crime contam com isso, n�est-ce pas? Enquanto voc� est� vivo,
ainda liga pras coisas, depois de morto, faz uma figa, morto j� era, n�o precisa de
nada. A vida e as coisas s� valem enquanto
voc� est� vivo, mas para o povo isso n�o funciona, pois eles est�o sempre por fora
da jogada, esperam que daqui a alguns s�culos as coisas aconte�am. S� que n�o
acontecem, e eles ficam esperando Godot,
s�culos afora, esperando sempre com muita esperan�a, com muita f�. (riso).
JL:Nunca pensou em fazer pol�tica partid�ria nos moldes convencionais?
JD: T� me gozando, Jardel? (pausa seguida de risinho artificial.) Mon Dieu, l� est�
voc� de novo querendo me meter nesse neg�cio de pol�tica, caralho.
JL:E ent�o?
JD: Jamais. Sou do tipo que imp�e as regras. Em todo lugar e sempre as minorias
dominaram as maiorias. N�o vou querer mudar as regras justamente agora quando
chegou a minha vez, n�o acha? Al�m do mais,
tanto em pol�tica como na guerra n�o se pode ter pudores. A gente pega o recurso
mais � m�o. Quando afirmo que a ACC tem objetivo pol�tico, � baseado nisso. Estou
sendo verdadeiro, nos batemos por uma
causa justa, estamos exigindo justi�a e igualdade para todos. os confrades. Um
confrade, via de regra, vive uma vida decente, dentro de padr�es humanos razo�veis,
tipo padr�o classe m�dia norte-americana.
Conforme vamos conquistando posi��es, o restante das pessoas, o pov�o, um dia
poder� at� ser beneficiado por extens�o, pois o n�mero de confrades aumenta a cada
ano. Talvez, com o tempo, uma boa parte
dessa gente acabe virando confrade, sei l� (riso).
JL:Um momento, estamos precipitando as coisas, vamos ser mais espec�ficos: um
confrade vive nos padr�es norte-americanos. cometendo crimes?
JD: � cara, voc� nasceu ing�nuo ou foi ficando bob�o com a idade? Me aponta quem
hoje em dia n�o faz uma trampa para sobreviver? A trampa � uma institui��o mundial.
A trampa e a hipocrisia, se n�o nasceram
com o capitalismo, se aperfei�oaram com ele. Tanto em pol�tica, seja de direita ou
esquerda, como em qualquer ramo de neg�cio, voc� encontra algum ind�cio de
cambalacho, por enorme ou pequeno que seja.
A verdade � essa. As pessoas est�o viciadas em corrup��o, � epid�mico. � uma
caracter�stica muito humana, bicho, associada que est� com aquele animal feroz do
qual j� falamos. � isso a�. Ou voc� � um cara
s�rio, Jardel? (riso)
JL:Pelo menos eu procuro ser honesto comigo mesmo.
JD: Ulal�, quem sabe voc� � um bicho raro, meu. Na verdade, o pov�o � o �nico que
tende a ser honesto na parada, vai ver se o arig� n�o paga as presta��es do
credi�rio bem certinho, todo o santo m�s. Attention:
eu disse tende a, mas tamb�m n�o � santo. O povo faz cambalacho quando pode, s� que
num n�vel insignificante, que n�o pesa no c�mputo geral. Logo, o princ�pio da
desonestidade vale para todo mundo, mesmo
para quem tende a, s� varia de intensidade, ressalve-se. Sendo assim, o poder
vigente, sempre metido a esperto, atribui as origens da marginalidade e da
viol�ncia ao pobrerio. Conversa pra boi dormir.
Coisa de esperto, desvia a aten��o para o outro, mete no cu dele. O pov�o � o �nico
pato da hist�ria, pois � o que paga a conta, em todas as circunst�ncias, mas j�
vimos que n�o � nenhum santo. O pov�o
� o que trabalha duro e nada tem em troca, esse � o �nico ponto que serve de
atenuante �s suas maracutaias de sobreviv�ncia. O pov�o paga imposto direto e
indireto, o pov�o paga d�zimo para as congrega��es
religiosas em geral e mant�m as suas mordomias, o pov�o devolve o dinheiro que
recebe a t�tulo de sal�rio para o com�rcio, consumindo, e por a� vai, como se sabe.
O pov�o � como o mar, vem a mar� alta
e ele devolve tudo � terra, eu disse tudo, n�o fica com nada. Por isso � que, para
o ramo de supermercados, por exemplo, nunca existe crise, o mar sempre traz de
volta. Al�m disso, e sobretudo, o pov�o
serve para eleger pol�ticos corruptos. O pov�o � como rabo de puta, todo mundo
manipula. N�o � santo, mas � �til. Est� a� a sua grande serventia. O pov�o elege os
caras que n�o t�o nem a� pra ele. Melhor
ainda, elege e n�o cobra nada. O poder emana do povo, mas n�o volta para ele. S�
sai dele. Para o pov�o, s� p�o e circo, essa � velha, todo mundo sabe, desde os
romanos. L� no Brasil, � p�o e tev�. O pov�o
� aquela m�ezona cheia de leite. Em todos os lugares � assim, o povo � o
sustent�culo da sociedade organizada, mas acaba sempre tomando no cu. Em fun��o
disso, o povo vira fic��o. N�o � nada, � um ser
fant�stico, o bicho raro. A pol�tica, capitalista ou socialista, usa e abusa do
povo e depois joga no lixo. Te cuida, Jardel (riso).
JL:Mas o senhor continua n�o respondendo � minha pergunta. Est� generalizando e
fugindo pela tangente. O confrade se mant�m como? Essencialmente da pr�tica de
crimes contra o patrim�nio como o um-cinco-sete?
JD: Corret�ssimo, o um-cinco-sete. Mas s� o um-cinco-sete? Claro que n�o. Bota a�
tamb�m o um-cinco-zero, o um-cinco-um, o um-cinco-cinco, um-cinco-oito, um-cinco-
nove, um-meia-um, um-meia-dois, um-meia-tr�s,
um-meia-oito, um-sete-um, um-oito-zero, um-nove-meia, dois-sete-tr�s, dois-oito-
nove, dois-nove-tr�s, dois-nove-meia e mais meio quilo de farofa, todos tendo a ver
duma forma ou de outra com manipula��o
do patrim�nio alheio.
JL:Se entendi bem o que senhor est� dizendo, a ordem � usurpar para corrigir o
mundo? O que se percebe, no entanto, � que estamos num contexto onde o justo paga
pelo pecador. Pelo que me consta, os mais
atingidos pelos crimes contra o patrim�nio s�o a classe m�dia e os pobres. As
elites, em fun��o de terem recursos para contratar servi�os e equipamentos de
seguran�a e prote��o, ficam praticamente imunes
� a��o dos bandidos. Estou certo ou errado?
JD: Voc� est� certo e errado. Em rela��o � ACC est� errado. A ACC n�o visa � pessoa
f�sica, exceto quando o cara � representante de um grande conglomerado empresarial.
Mas a ACC n�o pode se responsabilizar
pela a��o de pequenas gangues que agem por conta pr�pria ou de indiv�duos, nem por
pol�ticos e empres�rios corruptos que lesam os cofres p�blicos, o que � roubar dos
pobres indiretamente, at� porque a
ACC n�o monopoliza o crime, n�o pelo menos por enquanto. Via de regra, o comum dos
bandidos, tanto o grande como o pequeno, age de forma indiscriminada, sem crit�rio
de sele��o. O que cai na rede � peixe.
J� a ACC atua atendendo um plano previamente tra�ado. Temos o que se poderia chamar
de previs�o or�ament�ria anual, planejamento com receita e despesa. Nem o governo
federal faz um or�amento t�o criterioso
como o nosso. (riso).
JL:Sempre foi assim?
JD: Claro que n�o, Jardel.
JL:Podia explicar?
JD: Na verdade, come�amos na vala comum, n�o fugimos � regra, pois n�o nascemos
sabendo. No in�cio, tudo o que ca�a na rede era peixe, fosse rico, pobre ou
remediado. Fomos nos aperfei�oando com o tempo,
consequ�ncia de uma depura��o do nosso exerc�cio funcional, de uma dial�tica
ideologizada. Hoje s� visamos � pessoa jur�dica, � institui��o propriamente dita,
seja privada ou estatal. Dessa forma, estamos
perdoados a priori porque pessoa jur�dica n�o tem alma, � uma fic��o. Pessoa f�sica
nem pensar, n�o consta nos nossos planos, at� porque o retorno � muito baixo.
Descartar a pessoa f�sica foi quase que
uma consequ�ncia natural.
JL:Para Jorge Duncan, o lucro indiscriminado � sempre o melhor objetivo?
JD: Jardel, voc� j� percebeu que eu sou bem paciencioso, n�o? (Pausa.) Na verdade
eu nem ligo muito pra dinheiro, a ACC � que est� sempre precisando de caixa alto.
Mas pela tua cara acho que n�o respondi
� pergunta.
JL:Talvez eu tenha me expressado mal. Pelo visto, nada o impede de ser contra tudo
e contra todos, n�o �? As regras do mundo que se lixem. N�o � assim que funciona?
JD: Agora entendi, bicho, aonde voc� quer chegar, e � isso mesmo. Mal comparando,
Lundi, eu sou como o cara que saiu da caverna de Plat�o e foi l� fora ver o mundo.
Agora, ao falar da minha vis�o do outro
lado, sou considerado doid�o, o caralho. S� que, como a maioria das pessoas tem uma
experi�ncia limitada da vida e do mundo, como aqueles que s� viam sombras, tendem,
da mesma forma, a colocar em d�vida
as novidades que lhes trago. N�o, dizem, a vida n�o � t�o ruim como esse
despropositado afirma, nem o ser humano � t�o podre nem t�o terr�vel, ele est�
errado, precisa ser eliminado. Ent�o, eu pergunto:
por que o mundo e, consequentemente, as pessoas est�o implodindo por todos os
lados? Porque nada se sustenta, nem natureza, nem �tica, nem porra nenhuma, e est�
indo tudo pro belel�u?
JL:Discordo. Restam muitos valores importantes aos homens, ainda.
JD: Cite.
JL:Amor, solidariedade, bondade, fraternidade, igualdade, liberdade, �tica.
JD: Claro, claro, entendi, Lundi, seu manique�sta duma figa, na eterna luta entre o
Bem e o Mal, voc� n�o tem d�vida de que o Bem acabar� vencendo.
JL:Com certeza o senhor j� amou algu�m, isso n�o conta?
JD: S�o ilhas num mar de lama.
JL:Mas s�o ilhas que resistem � ressaca do mar. N�o podemos descartar que um lado
bom da vida ainda se mant�m.
JD: O fato de se amar algu�m n�o nos impede de odiar outros ou a pr�pria
humanidade. Hitler amava Eva Braun, mas odiava todos os judeus.
JL:Amor e �dio n�o se excluem, os objetos � que s�o diferentes, seria isso?
JD: N�o �, n�o. A �tica n�o admite ambiguidades, sen�o estaremos falseando. Ou
somos ou n�o somos �ticos, n�o existe meio termo. Ou melhor, at� existe, para os
c�nicos e sofistas, para eles o homem � mau,
mas tamb�m � bom. Mas, por outro �ngulo, n�o existe isso, estamos permanentemente
em conflito conosco mesmos, e isso nos corr�i at� os ossos. Fica dif�cil encontrar
coer�ncia nessa ambiguidade. A �nica
coisa que nos alivia a culpa � a liberdade de agir, pois interrompemos o conflito
entre o certo e o errado, prevalece a nossa decis�o.
JL:Nesse caso, a �tica vai para a cucuia, tudo � permitido.
JD: Ent�o.
JL:Ou tu coloca arreios e freio, abre m�o de tudo e se acomoda, nesse caso, bye
bye, liberdade.
JD: Eu j� fiz a minha escolha, Lundi, e voc� j� fez a sua?
JL:Com certeza, n�o estamos aqui?
JD: Mais alguma pergunta?
JL:O que o senhor acha do comunismo?
JD: Sem essa, cara. Assim vou acabar perdendo as estribeiras com voc�.
JL:Acredite que a pergunta faz sentido para aprofundarmos o nosso painel.
JD: Me parece que voc� est� se aproveitando de uma situa��o para mexer onde n�o
deve.
JL:Se quiser pular a pergunta.
JD: N�o, vou responder. De toda forma, vou ser r�pido. Bom, confesso que j� li
Marx. Quem tem um pouco de bom senso e cora��o amplo acaba simpatizando com o
socialismo marxista de merda, mas � mais uma
quest�o de fase, a fase juvenil de todos n�s, depois passa. O problema � aquele de
que j� falei: o papel em branco aceita tudo, na pr�tica � que s�o elas. A Uni�o
Sovi�tica, a grande tentativa de aplica��o
da tese, resultou num enorme e redondo fracasso.
JL:Qual foi a sua posi��o durante a ditadura no Brasil?
JD: Voc� quer o qu�? Que eu vire professor de sociologia? Pois saiba que nem tomei
conhecimento dessa tal ditadura. Me mantive � parte o tempo todo, at� porque nessa
�poca eu trabalhava para o governo
federal, era funcion�rio p�blico, se agisse de outra forma, seria despedido e/ou
iria mofar nos por�es do DOI-Codi. No entanto, achei uma baita ingenuidade a rea��o
de alguns pequenos grupos de esquerda.
Muita gente boa se fodeu gratuitamente s� defendendo id�ias, e n�o trincheiras. Os
militares deitaram e rolaram torturando e passando fogo em gente inocente que s�
exigia os seus direitos humanos. Temiam
os guerrilheiros das palavras e das letras, pois n�o passavam disso. Se tivessem me
escolhido para organizar o ex�rcito revolucion�rio, hoje eu seria mais um ditador
latino-americano, mod�stia � parte.
As for�as armadas do Brasil estavam exageradamente preparadas para enfrentar
idealistas amadores. O marketing do capitalismo conseguiu convencer a todos os
subdesenvolvidos do mundo que comunista comia
criancinha viva. Tinham aprendido com Hitler a fazer propaganda. Os milicos
brasileiros, na sua noia coletiva e atraso hist�rico, achavam estar defendendo a
p�tria e a soberania nacional das grandes for�as
do comunismo internacional infiltradas no pa�s. Viam monstros onde s� havia
desmilinguidos. Essa foi a maior tragicom�dia da hist�ria do pa�s. Os militares, em
contrapartida, ca�ram na armadilha dos neoliberais
em ascens�o e se endividaram para modernizar o Brasil, tamb�m por total
inexperi�ncia administrativa e pol�tica, apenas para imitar as id�ias dos gringos.
O capitalismo se fortaleceu assim em v�rias partes
do mundo emprestando dinheiro a pa�ses subdesenvolvidos, financiando a ideologia
capitalista. Se a Uni�o Sovi�tica tivesse dinheiro para fazer o mesmo e n�o tivesse
ru�do, ter�amos hoje muitos sat�lites
comunistas al�m de Cuba. Sem dinheiro, por�m, nada se sustenta. Talvez eu tenha
sido superficial para dizer que a direita do Brasil e da Am�rica Latina sempre foi
muito fr�gil e cheia de sentimento de
culpa. A coisa � bem mais complexa.
JL:Mas a vit�ria de Fidel n�o foi igual � de Pirro? Cuba s� teve express�o pol�tica
mundial enquanto a Uni�o Sovi�tica fazia enormes remessas de capital para l�.
Quando, por motivos que todos n�s conhecemos,
o fluxo se interrompeu, Cuba implodiu. O boicote internacional imposto pelos EUA a
mant�m num estado deplor�vel. De que adiantou tudo isso?
JD: N�o foi o que eu disse? Fidel � caricatural, virou personagem de hist�rias em
quadrinhos. Quando se passa a viver de discurso, a blefar e a vociferar aos quatro
ventos, perde-se o sentido da coisa
propriamente dita, voc� vira comediante. Voc� fica girando em torno de seu pr�prio
eixo indefinidamente, como o c�o atr�s do rabo, a repercuss�o � m�nima. Che, por
ser mais aut�ntico, foi at� o fim porque
morreu cedo, nada mais que isso. Claro, Cuba � um marco hist�rico, uma pulga na
camisola dos EUA, mas e da�? Cuba est� l�, � uma presen�a constante, inc�moda, mas,
ao mesmo tempo in�cua, pois jamais teve
resultado efetivo, � rid�cula, pode ser espremida a qualquer momento. Cuba paga o
pre�o do pensamento �nico, ou seja, Fidel pensa por todos. � como um nobre falido,
est� caindo aos peda�os, chocando sua
nobreza de prop�sitos, mas em farrapos. No entanto, mantendo erroneamente o
boicote, os EUA mant�m o mito. Cuba n�o passa disso: � um mito, um s�mbolo. � a
�ltima trincheira do comunismo. No entanto, s�mbolos,
mesmo os fracassados, podem reviver com muita for�a. O mundo n�o est� cheio de
neonazistas?
JL:N�o podemos dar o socialismo como um assunto encerrado?
JD: Sem d�vida que n�o. O socialismo � uma for�a viva no cora��o de muitas pessoas.
Enquanto houver injusti�as, os sonhos socialistas permanecer�o mais vivos do que
nunca. A pr�pria ACC tem fortes ra�zes
socialistas.
JL: Mesmo?N�o � contradit�ria essa afirma��o?
JD: Mesmo. Parece contradit�rio, mas n�o �. Ou at� pode ser, sei l�. Mas o homem
contempor�neo aceita cada vez menos as diferen�as de classes. N�o demora muito para
haver uma mudan�a dr�stica de cultura.
Pelo menos no Brasil vejo as coisas caminharem para esse lado. Para falar bem a
verdade, o capitalismo � um cataclismo para a humanidade. Um ter�o dela passa fome,
o outro mal sobrevive, sobra o terceiro
que se nutre dos outros dois. Esse terceiro est� no topo de uma pir�mide que �
reservado a um grupo seleto. Quer ind�cio mais evidente? Uma ideologia que
privilegia poucos e sacrifica muitos n�o � o que
todos esperam abra�ar, certo? S� que este pequeno grupo vai espernear um bocado e
gastar centenas de bilh�es de d�lares para se manter no topo. E sabemos que o poder
econ�mico pesa na balan�a.
JL:Alguma sugest�o?
JD: Quem viveu naqueles tempos esperaria ver o Imp�rio Romano acabado? E o poder da
Igreja, na idade m�dia, n�o parecia infinito como o pr�prio Deus?
JL:A pr�pria Uni�o Sovi�tica n�o parecia ter vindo para ficar?
JD: Correto. Parece que estamos afinando os instrumentos, n�o �, Jardel? (riso) N�o
se podia prever a sua implos�o t�o r�pida, n�est-ce pas? Esse � que � o problema, o
pensamento �nico n�o funciona, seja
de esquerda ou de direita. Por isso acho que o capitalismo vai ruir em seguida. O
ser humano � multifacetado, embora queiram reduzi-lo a uma �nica configura��o,
sempre para que sejam atendidos interesses
de grupos. Homo consumidor, homo fabris, homo da puta que pariu pode funcionar por
algum tempo, mas n�o funciona indefinidamente. Cada um que nasce quer ter o seu
lugar ao sol, ter o direito de ser feliz
ou chegar o mais pr�ximo que puder da felicidade. Seis bilh�es e l� vai bola de
seres humanos que querem ser felizes. Como solucionar isso? � foda. S� alguns
poucos milh�es de privilegiados conseguem.
Nesse momento � que o lema da ACC passa a fazer sentido: ouseje, ou se joga ou se
esculhamba. Se os confrades forem barrados na entrada do est�dio, v�o esculhambar,
o que significa que ningu�m vai desfrutar
do jogo com tranquilidade. At� pode desfrutar, momentaneamente, mas n�o vai saber
at� quando, um dia vai acabar, a casa cai, algu�m ou muitos v�o morrer e n�o ser�
de morte natural. Ser� antes uma morte
prematura. � o tal do olho por olho. Tudo se resume nisso. Atingimos um est�gio em
que n�o podemos mais esconder isso. O direito � de todos os confrades ou ningu�m
ter� direitos. � a chance que todo mundo
espera ter. Todo o mundo quer a mesma coisa, mas isso � invi�vel, ut�pico. A
maioria do todo sempre fica de fora das benesses da vida.
JL:E isso se reflete dentro da ACC?
JD: A Confraria tem uma hierarquia piramidal, disciplina r�gida, mas n�o �
desigual. Eu sou o Chefe, mas tem muito confrade vivendo em melhores condi��es do
que eu. Por princ�pio, eu me acomodo no padr�o
m�dio dos confrades.
JL:Mas pensar em termos de igualdade, nos moldes do lema da Revolu��o Francesa n�o
� fantasioso?
JD: � o que eu estou dizendo. O cara quer ter o seu emprego, poder tirar f�rias, ir
ao m�dico, ao dentista, estudar, viajar, curtir, quer casa pr�pria, carro, sexo,
comida, o escambau. Todos querem, mas
por que apenas poucos t�m? Esse � o fen�meno da humanidade desigual que ningu�m
conseguiu resolver at� hoje, seja intelectual, fil�sofo, pol�tico, religioso, a
puta que pariu.
JL: � um tru�smo?
JD: Sem d�vida que �. Antigamente, at� as pessoas se conformavam mais, eram mais
domesticadas, por outros motivos, porque n�o tinham muita informa��o. Hoje, mesmo
com a manipula��o da m�dia, as not�cias
circulam pela tev�, pela internet. N�o ficam mais restritas a c�rculos fechados,
isoladas. Ignorante � igual a cego, n�o enxerga nada, n�o consegue decodificar a
realidade, est� l� fechado na caverna vendo
apenas sombras. Hoje, entretanto, voc� fica mais a par da realidade, do que se
passa alhures, sempre flui alguma coisa, por m�nima que seja, alguma coisa sempre
escapa do controle da m�dia que � sempre
manipulada pelo governo de cada pa�s, pelas verbas de marketing, a tal da m�dia
chapa branca. No Brasil, que copia o que acontece no resto do mundo, como n�o podia
deixar de ser, isso acontece muito, a
coniv�ncia da m�dia com o poder. S� que.
JL:Mas o mercado, hoje, n�o seria o grande domador das pessoas comuns? Parece que
ningu�m se anima a contrariar o mercado, at� porque n�o sabe muito bem o que seja
isso.
JD: Jardel, voc� que vive fora do Brasil j� fala no poder do mercado. Mas l� o
fen�meno ainda est� para acontecer. Vai acontecer, mas vai demorar um pouco ainda.
N�o faz muito que se saiu da tal ditadura.
Depois dessa experi�ncia ningu�m mete o pau pra valer no governo, com medo de
reca�da, principalmente os intelectuais brasileiros que ficaram encaga�ados.
Reflexos da tal S�ndrome de Estocolmo, sabe como
� que �? Digo isso porque na ditadura a concentra��o de renda aumentou no Brasil.
Ainda tem muito res�duo do regime de exce��o. Haja visto que a bandeira liberdade
de imprensa sempre anda hasteada a meio
pau. A verdade � que os jornalistas gostam somente de alisar e os intelectuais
brasileiros est�o entediados ou desiludidos, ou ainda deprimidos, ningu�m mete a
boca no trombone com vontade. S� raramente
vemos algu�m bradando no deserto, alguma voz solit�ria que n�o encontra eco. quase
sempre boicotada.
JL:A sua, por exemplo?
JD: Negativo. Eu rec�m comecei e vai demorar muito at� a minha voz chegar ao
conhecimento do p�blico, talvez n�o menos ainda que dez anos. Eu me refiro ao
passado. Os grandes rebeldes n�o constam da hist�ria
oficial do Brasil sen�o en passant. Tudo o que representa rebeldia e protesto no
Brasil � escamoteado e mantido oculto nas trevas pela fina flor do poder legal, que
� sempre elitista, seja de esquerda
ou direita. Se o curr�culo escolar j� � prec�rio, a disciplina de hist�ria � mais
ainda. Eles n�o querem que as pessoas decodifiquem a realidade e se insurjam.
Querem a boiada sempre calma, nunca estourada.
(riso). Tanto que, para que os militares deixassem o poder, foi necess�rio fazer um
acord�o para que n�o houvesse repres�lias.
JL:N�o acha que a implos�o da Uni�o Sovi�tica brochou os intelectuais de esquerda
no mundo todo? E de Lula, o que o senhor acha de Lula?
JD: L� vem voc� de novo querendo estender o assunto, se aproveitando da minha boa
vontade, n�? Vamos encerrando por aqui.
JL:Pelo menos responde a essa, Chefe.
JD: O qu� que eu posso te dizer? A Uni�o Sovi�tica n�o s� brochou como capou muitos
deles. O problema � que a US desmoronou e se tornou um antro de corrup��o e
decad�ncia porque se aburguesou, contrariando
os princ�pios que a constru�ram. Consideraram o poder divino do dinheiro e da
propriedade como uma maldi��o, mas sucumbiram a ela, sabe como � que �? A velha
mufunfa e a realidade valem mais que teorias
que n�o se ajustam � natureza humana. A natureza se ajusta a muita coisa, menos a
teorias que atinjam o patrim�nio das pessoas. Antes � preciso que se fa�a uma troca
de valores. Se as pessoas n�o acreditam
que � melhor perder um pouco de grana do que a vida, a coisa fica empacada. Sem
vaselina a coisa n�o vai. Mao foi mais esperto, interpretou melhor Marx e
aconselhou os chineses a manterem-se na luta constantemente
renovada, a revolu��o que n�o podia acabar nunca, e assim eles v�o dan�ando
conforme a m�sica. Mas chegamos aqui ao bus�lis: a verdade, o problema maior � que
Marx cometeu um equ�voco capital. Elegeu os
oper�rios como a for�a libert�ria, revolucion�ria. Bakunin e Weitling at� chegaram
mais perto, entreviram no lumpemproletariado a sa�da para o impasse. Eu descobri
isso na pr�tica. N�o era o proletariado
a ant�tese para se chegar � s�ntese, mas o l�mpen, o extremo, a camada mais baixa
da sociedade, a ral�, a esc�ria. A ACC prova que o l�mpen � que � a for�a que vai
tirar o mundo dessa estagna��o. Um oper�rio
ainda tem medo de perder alguma coisa, o seu emprego. O l�mpen n�o teme nada, j�
est� no fundo do po�o, n�o tem nada a perder, pois tudo j� est� perdido. A partir
da�, tudo o que vier � lucro. Um confrade
sabe que � prefer�vel morrer do que retornar ao estado de antes da ACC. Como o
assunto � longo, vamos deixar esse por aqui.
JL:E quanto ao Lula?
JD: Nem me fala desse cu cagado. O que posso te dizer desse infeliz? Me parece mais
um vigarista travestido de sindicalista. Parece uma coisa, mas � outra bem
diferente. S� que sabe esconder bem. Dificilmente
me engano ao analisar as pessoas, at� porque se eu n�o for bom nisso, estou
ferrado. Esse n�o me engana, � um artista da Globo, com o tempo, por�m, a m�scara
dele vai cair. Ele caga e fede como todo o
mundo, n�o s� porque � oper�rio e analfabeto. Acho que t�o dando muita import�ncia
pra esse borra-botas. Mesmo assim gostaria de ter ele para assessorar o meu
departamento de estelionato e afins.
(riso). Ele tem um talento especial para enrolar que n�o se encontra t�o
facilmente.
JL:Parece que o Brasil todo pensa bem diferente do senhor.
JD: Ent�o, por que voc� n�o vai fazer uma enquete nas ruas do Brasil para ver o que
eles pensam desse bosta do Lula e n�o me enche mais o saco?
JL:Bem, n�o seria o caso, Chef�o. Mas e quanto � seguran�a da ACC? Os confrades n�o
esperam uma rea��o cada vez mais virulenta do lado contr�rio, ou seja, da pol�cia
comum, da pol�cia federal, talvez at�
do ex�rcito? As for�as repressoras dum governo democr�tico institucionalizado � um
poder que n�o pode ser menosprezado, n�o concorda comigo?
JD: Voc� vem com essas perguntinhas de cerca-louren�o, pensando que � muito
espertinho, n�o �? Pois vamos olhar a coisa por outro �ngulo. Ser� que existe um
interesse efetivo em acabar conosco, ou com
o crime em geral? Veja s�, Cristo, ao receber uma bofetada, ofereceu a outra face,
correto? Isso, na minha opini�o, � um est�mulo ao agressor. Algu�m que se arrisque
a me oferecer a outra face. (riso).
Hoje, a gente sabe que a inten��o era bem outra, psicol�gica, intimidar o agressor
pela resist�ncia passiva. Os
est�icos j� faziam isso na Gr�cia, trezentos anos antes dele: desista de me bater,
isso n�o
me afeta, a for�a bruta jamais vai fazer os meus princ�pios se curvarem, sou
indiferente tanto � dor quanto ao prazer, e mais meio quilo de farofa. J� Cristo
era mais radical: os valores reais est�o fora
desta vida e na outra vida eu sou mais eu. S� faltou dizer que l� tinha Pas�rgada.
(riso). Um outro iludido, Gandhi, fez o mesmo e os indianos continuam todos de mal
a pior. Tudo bobagem. Nietzsche �
que caiu matando: moral de escravos, moral de tuberculosos e leprosos, isso a�.
JL:Resist�ncia passiva nem pensar?
JD: Na verdade, isso n�o existe. Al�m disso, o Sistema, no correr dos s�culos, foi
mais inteligente e passou a utilizar o cristianismo e toda a sua passividade para
benef�cio pr�prio, cooptou os seus valores
nobres: Deus premia com riqueza os seus escolhidos. E n�s tamb�m. Quem se rebela,
est� errado e vai para o inferno. E n�s prendemos e damos pau. Deus gosta � dos
mansos e vai reservar um lugar no c�u pra
eles, mesmo que aqui sejam os sacrificados. Deus escreve certo por linhas tortas e
por a� vai. S� faltou canonizar a mais-valia. Am�n. doim (riso). Sob esse aspecto,
se sou eu o agressor, e o cara me
oferece a outra face para bater, arrebento-lhe as fu�as por ser hip�crita. Ou
melhor, lhe dou o merecido descanso com um teco na nuca. Toda a unanimidade �
burra, como disse o outro. S� se consegue obter
reconhecimento, respeito, quando a outra parte teme a contrapartida. Se sabe que
n�o tem troco, deita e rola. Agora, quando tem troco, e troco pesado, vai pensar
duas vezes, no m�nimo. Qualquer pivete
de rua sabe disso. Por isso ele � dur�o, n�o d� moleza. S� v�o vingar na pr�tica os
direitos humanos quando o Sistema souber que haver� cobran�a, que n�o tem blefe. E
que a san��o ser� muito dr�stica,
no caso de desrespeito. � o que a ACC come�a a fazer neste momento, vai mostrar ao
mundo, pelo livro que estamos elaborando, que tem for�a, que � capaz de enfrentar o
poder oficial, que vai aterrorizar
cada vez mais as pessoas de bem entre aspas se elas n�o abrirem m�o das suas
prerrogativas, n�o abrirem espa�o aos exclu�dos, que n�s representamos. Se elas s�o
de bem, n�o esque�a as aspas, por que n�o
agem como tais? Policial n�o tortura, n�o baga�a os presos nas delegacias, nos
pres�dios? Ent�o. Na rua vamos peg�-los, a eles e �s suas fam�lias. Vamos faz�-los
nos respeitar. Toma l�, d� c�, pois, antes
de serem policiais, eram gente sem poder, e se esqueceram disso. Bateu, levou. N�o
tem essa de deixa passar, de perdoar. Perd�o � pro trouxa do crist�o, pro humilde
do pobre coitado. Hoje, posso afirmar
com tranquilidade que competimos com o Sistema em p� de igualdade. E digo mais, at�
com certa vantagem. Temos dinheiro, poder, organiza��o impec�vel e uma malha de
informa��o eficient�ssima. J� somos uma
epidemia espalhada pelo mundo, um poder paralelo fort�ssimo e competitivo. Grande
parte dos capitais que circulam nas bolsas de valores do planeta tem a nossa
participa��o, e isso est� aumentando cada
ano que passa. Nossos contatos com os l�deres de outras organiza��es levam essa
proposta globalizadora de conscientiza��o pol�tica, voltada �s nossas origens, do
que representamos e do que somos compostos.
A pr�xis do crime � uma pr�xis pol�tica, sempre foi, s� que n�o � reconhecida. Quem
� da massa do crime sabe que n�s apenas estamos retomando o que nos pertence,
porque os nossos antepassados foram fracos
e cederam espa�o durante mil�nios. A forma com que fazemos isso pode parecer
discricion�ria para alguns, os privilegiados de agora, mas que � totalmente v�lida
para a maioria esmagadora dos que se foderam
l� atr�s e que continuam se fodendo agora. As regras do contrato social nunca foram
cumpridas, logo est�o abertos os precedentes para a transgress�o. A transgress�o e
a morte s�o necess�rias para que os
espa�os sejam abertos. Para mim, n�o existe crime, n�o no sentido que lhe querem
dar os juristas. As leis s�o feitas para proteger as castas das elites. Os
criminosos transgridem as regras estabelecidas
porque a sociedade � injusta com eles, � uma lei de m�o �nica. A massa do crime sai
da pobreza, da injusti�a e se gera unicamente na revolta permanente, sem a m�nima
concess�o. Sem essa de que criminoso
tem �ndole ruim cong�nita. Garanto que tem confrade que parece uma mo�a, de t�o
sens�vel (riso). � s�rio (risos). Na verdade, ruim todo mundo �, basta ser
estimulado, o animal est� sempre l�, esperando
a sua vez de dar o bote. A transgress�o, estimulada pela pobreza e pela injusti�a,
� uma necessidade moral. O orgulho de um homem n�o permite que ele fique de cabe�a
baixa. � um assunto vasto esse, pode
ocupar dias e dias sem se esgotar.
JL:Parece que tempo � o que n�o nos falta.
JD: Uma ova. Isso vale pra voc�, seu vagabundo, que vive das facilidades de
escrever. Comigo o buraco � mais embaixo (riso). Claro que o crime, como ato
jur�dico de per si, tem sentido bem amplo, mas eu
estou me referindo aos crimes contra o patrim�nio. Deixemos de lado os homic�dios e
outros delitos, se bem que na maioria dos casos est�o interligados ao patrim�nio e
ao dono do patrim�nio. Veja s�, vou
tentar ser sint�tico. Sem querer imitar o Homem, vou usar o recurso das par�bolas.
Vou contar uma hist�ria que, acho, exemplifica bem o nosso assunto, ou melhor, o
fundamenta (riso). Quando moleque.
JL:No fundo, Jorge Duncan � crist�o? Ou pelo menos simpatiza com Cristo? (risos)
JD: N�o se arrisque a me provocar, cara (risos). N�o, n�o sou crist�o, meu chapa,
se cito o Homem � porque � um exemplo f�cil, conhecido de todos. Mas n�o s� por
isso, Cristo foi um marginal na sua �poca.
Foi julgado e condenado como um criminoso comum, portanto foi um parceiro nosso. Se
fosse hoje, estaria na ACC, seria um confrade, n�o tenho d�vida disso. (risos) Quem
sabe, daqui a uns tempos eu tamb�m
n�o seja visto com outros olhos. (risos) Se li a B�blia, foi com curiosidade
hist�rica, n�o mais que isso. N�o a li, com certeza, como o fazem os evang�licos.
(mais risos) Mas, como estava querendo
dizer e voc� me interrompeu, nos meus idos de moleque, participava de peladas num
terreno baldio.
JL:� mesmo? Chegou a jogar futebol, como todo bom brasileiro? Por acaso teremos um
Garrincha adormecido dentro de Jorge Duncan? (Risos.)
JD: N�o, n�o (risos), nem pensar. Pior que n�o, bem que gostaria (risos), mas, n�o,
nunca tive a aptid�o da gurizada que bate bola nas ruas, que j� nasce feita, com
real talento futebol�stico. Eu era um
reserva vital�cio, apenas preenchia a vaga quando o goleiro titular se lesionava.
Por Deus que eu era um goleiro muito frangueiro (risos). O meu porte f�sico at�
ajudava, a simples presen�a j� cobria um
bom peda�o do gol, por isso me escalavam. Ali�s, a bem da verdade, s� me escalavam
quando n�o havia mais ningu�m por perto (risos). Se o time contr�rio tinha um
goleiro ruim como eu, at� que a partida
ficava mais equilibrada. (risos). Puxa, se al�m de mafioso eu tivesse sido um
jogador talentoso, seria a gl�ria (risos prolongados). Mas, como eu estava dizendo,
costumava jogar com a rapaziada. N�o
me olhe desse jeito, Jardel, encare apenas como jogar, o aspecto l�dico da coisa,
sabe como �? Sem levar muito a s�rio. (mais risos). Pois bem, frequentemente estava
l�, a turma se reunindo para bater
bola na cancha improvisada num terreno baldio, sem maiores pretens�es do que a de
divers�o, insisto em dizer. L� pelas tantas, num determinado dia, apareceram uns
negros. Eram de outras bandas, apenas
conhecidos de vista, raramente nos cruz�vamos. Al�m disso, eram mais velhos, mais
encorpados. Chegaram como quem n�o quer nada, sentaram na grama, ficaram assistindo
ao nosso joguinho mixo. Nisso, um deles
correu atr�s da bola e a reteve, botou ela debaixo do bra�o. Ficou l� parado no
centro do terreno, cheio de banca, desafiador, prendendo a bola sob o sovaco. Os
outros, sentados, rindo, esbanjando tranquilidade.
Um dos nossos, protestou. O pivet�o, cheio de manha, retrucou: seguinte, �, ou se
joga ou se esculhamba. A nossa turma, apesar da desvantagem f�sica, n�o se
intimidou. Est�vamos acostumados a quebrar o
pau com quem quer que fosse. Naquela �poca, alguns de n�s j� �ramos dur�es pra
caralho. Trocamos olhares do nosso lado e nos entendemos. Concordamos em jogar com
os negros, o nosso time contra o deles.
Jogamos, perdemos e ficamos amigos. Os negros eram boas-pra�as e jogavam um bol�o,
s� n�o tinham bola, viviam em malocas, estavam fodidos. Eu e a maioria dos nossos
t�nhamos nossas casas, frequent�vamos
escolas, n�o �ramos ricos, mas viv�amos razoavelmente. Os negros, n�o. Poucos deles
tinham pais, a maioria oper�rios. A m�e lavadeira, o pai servente de obra, ou
ladr�o de galinha, coisas assim, mal ganhavam
pra comer. Os pais de outros eram presidi�rios, prostitutas, bebuns. Outros, ainda,
j� estavam mortos precocemente. Moravam nos becos imundos das favelas do bairro.
Fediam. Alguns deles foram cedo pro
crime e morreram cedo tamb�m, ou na cadeia, ou em tiroteio com policiais, ou at�
por desentendimento com companheiros. Eu que passava grande parte do dia nas ruas,
atr�s de novidades, cheguei a manter
amizade com um daqueles negros por longo tempo, at� que morreu de cirrose, de tanto
beber. Era um cabra macho. Assisti-o brigar algumas vezes, uma delas com navalha.
Ele e o seu rival se lanharam bastante.
Ele ganhou uma cicatriz no ombro, o outro na barriga. Impunha muito respeito. Ao
mesmo tempo, tinha uma grande sensibilidade, compunha sambas e chorinhos, e era
muito conceituado numa escola de samba que
se formou por aquelas bandas. Arranjava umas neguinhas que j� tinham grande
experi�ncia com homens para a gente foder. Pois foi com aqueles garotos, rec�m-
sa�dos das fraldas, ignorantes, paup�rrimos, que
aprendi a minha primeira li��o de cidadania, ou se joga ou se esculhamba. Muitas
d�cadas adiante, essa frase espremida veio a tornar-se o lema da ACC: Ouseje � o
nosso brado de guerra. N�o � bonito isso?
JL:Ent�o podemos considerar que de uma pelada de rua saiu uma experi�ncia marcante?
Da real import�ncia do futebol na vida do brasileiro em geral e, principalmente, da
ACC? (risos)
JD: Pode-se dizer que sim. Isso � profundo, cara, sem brincadeira, me cutucou,
embora na �poca eu n�o tivesse a m�nima id�ia de que seria assim, de que ficaria
marcado por essa experi�ncia, de que ela
influiria em mim. Ela ficou congelada no meu subconsciente at� que, um dia, bem l�
adiante, muitas d�cadas depois, veio a derreter e tomar corpo. Essa frase mostra o
orgulho de um cabra. Ele n�o t� pedindo
permiss�o para participar, est� impondo, exigindo a sua vaga, o seu lugar. Pra mim,
liberdade, igualdade e fraternidade � isso: ou se joga ou se esculhamba. Veja s�:
palavras sa�das da boca dum pivete.
N�o sabia nada de Marx nem de Rousseau, nada de Montesquieu nem de Hobbes, nada de
direitos humanos nem de Revolu��o Francesa. Sua frase estava baseada no direito
natural, no direito instintivo das pessoas,
do direito que deve prevalecer sobre qualquer outro. O estatuto da ACC leva o
sentido dessa frase muito a s�rio tamb�m. Tem um artigo s� tratando dela, do seu
conte�do filos�fico, pol�tico. Eu tamb�m,
a priori, j� sabia disso, por isso me marcou. � o que eu digo: as pessoas sabem das
coisas, mesmo quando est�o totalmente por baixo. O tal do Lula a�, de quem voc�
gosta, n�o deblatera com os patr�es,
pedindo aumento de sal�rio? E o que entende aquele oper�rio e analfabeto de merda
sen�o daquilo que alguns intelectuais de meia-tigela meteram-lhe goela abaixo? No
entanto, ta� ele berrando, cheio de raz�o.
Fez do mesmo jeito que o neguinho das minhas mem�rias que verbalizou um sentimento
que eu guardava, inconscientemente, bem entendido, mas que estava vivo dentro de
mim, como uma semente maldita, o sentimento
de exclus�o e da minha oposi��o a ele. Quando a gente � pi�, tem muito tiroc�nio,
depois vai emburrando, at� que um dia, ou acorda de novo ou fica tapado para
sempre. Quando conto isso, at� me emociono.
Muitos pensam que estou brincando, ou inventei, para encher lingui�a, mas � a mais
genu�na das verdades. � uma das minhas par�bolas. (risos)
JL:Convenhamos, o senhor tem mais pinta de fil�sofo que de mafioso.
JD: Poxa, cara, para de me chamar de senhor, n�o sou t�o caqu�tico assim. N�o s�o
os ga�chos que costumam se tutear? Voc� n�o � ga�cho? Ent�o?
JL:Bom, nesse caso, tu tem mais pinta de fil�sofo que de mafioso, tch�.
JD: Melhorou. Gosto muito do tch� gauchesco. Claro, todo criminoso � um fil�sofo,
pois ele est� questionando as regras estabelecidas. N�o � o que os fil�sofos fazem,
o tempo todo, questionando tudo, at�
a pr�pria realidade? Outra coisa, quem � do crime, come�a cedo a pensar. Por ser um
longo aprendizado, quanto mais cedo voc� come�ar, melhor. Os reflexos s�o
estimulados, seu racioc�nio fica mais r�pido,
sua percep��o passa a se utilizar de atalhos. Ningu�m ingressa tarde no crime, ou
come�a cedo ou nem entra. �s vezes, o cara t� rec�m aprendendo e j� veste o pijama
de madeira. � tudo muito r�pido, a vida
passa em velocidade, � a f�rmula um da viv�ncia. Eu sou exce��o � regra, n�o uma
exce��o comum, mas uma exce��o significativa. � como naquele ditado, malandro bom
j� nasce pronto. Virei a casaca perto
das cinquenta primaveras, d� pra acreditar nisso? Pois � a mais cristalina das
verdades. Entrei pela porta dos fundos, meio enviesado, mas entrei, e, uma vez l�
dentro, n�o tive dificuldade para assimilar
tudo muito f�cil. Era como se eu tivesse vivido em ambiente de crime desde quando
nasci, ou fosse herdeiro gen�tico de pais criminosos. S� que o meu pai, na real,
era um bunda-mole daqueles, um coc� cumpridor
de regras. Outro detalhe a exce��o das exce��es � que nunca peguei cana. Na
pris�o � onde voc� se recicla, troca id�ias, amadurece, faz fama. Como nunca fiquei
em cana, sou um estranho no ninho. Muito
poucos podem se gabar disso. Nem sei como � a porra duma cadeia por dentro, talvez
voc�, como jornalista, saiba muito melhor do que eu. Nunca entrei num pres�dio, o
que conhe�o deles � o que li ou o que
vi no cinema ou na tev�. Esse � o fen�meno: come�ar tarde e nunca ter pego cana.
Para ser verdadeiro, devo revelar que ocorreram tamb�m algumas coisas estranhas na
minha vida.
JL:Por exemplo?
JD: Coisas misteriosas, sei l�. � como dizia aquele cabra: entre o c�u e a terra
tem coisas que a nossa v� filosofia n�o consegue explicar. S� que n�o acho oportuno
tratar disso agora. Como j� falei, tem
tanta coisa que � melhor seguir em frente, tratar apenas das mais importantes, do
contr�rio n�o vamos acabar nunca a nossa conversa. Al�m do mais, � um assunto meio
subjetivo, vindo da boca duma vidente.
Talvez a gente retome isso mais tarde.
JL:O patr�o que sabe. Tu fizeste v�rias cita��es, inclusive sobre os
est�icos, o que demonstra certa intimidade com a hist�ria, a filosofia. Tu descamba
para intelectual, mesmo contra a vontade, ou julguei
errado?
JD: E voc� insiste que insiste, querendo me transformar num her�i ou coisa
parecida, hein? Claro que n�o, cara. Como j� disse, n�o me julgo um intelectual,
por certo que n�o, o que n�o significa que eu
n�o seja capaz de pensar com minha pr�pria cabe�a, correto? Sem essa, sou um homem
de a��o, apenas. E que procura se manter bem-informado, s� isso. Sei bem onde piso.
Peguei essa dica da Igreja cat�lica.
A Igreja � um exemplo de organiza��o, de administra��o eficaz. Para formar um
padre, ela o faz estudar por anos a fio. Em geral, os padres s�o camaradas
educados, bem preparados intelectualmente quero
dizer. Um confrade tamb�m precisa estudar muito para atingir o n�vel ideal. Estudar
e praticar.
JL:E quanto a voc�, em particular, o que estuda ou l�?
JD: Atualmente, leio pouco, mas mesmo assim tenho sempre algum livro na minha mesa
de cabeceira. Anos atr�s, sim, li muito, coisa mais para o lado da psicologia,
filosofia, pol�tica, hist�ria e mesmo literatura.
Uma forma��o humanista, como se chamava na �poca. Mas nunca tive um plano de
leitura programado, a sele��o ficava por conta do acaso. �s vezes, quando o assunto
me empolgava, eu aprofundava. Por exemplo,
a obra de Freud, li toda, cole��o adquirida num sebo. Os Di�logos de Plat�o,
tamb�m. Mas, como j� disse, estou sempre lendo alguma coisa, hoje em dia, por�m, a
minha leitura � mais t�cnica, em fun��o da
minha atividade. Dedico-me mais ao estudo de idiomas, tamb�m por necessidade
profissional. Mas n�o nego que j� li muita poesia, muito romance, nos tempos de
jovem (risos). Ali�s, tive forma��o universit�ria,
me diplomei em Economia, com �nfase em Administra��o, aos 23 anos. Na �poca o curso
de Administra��o n�o existia ainda, era uma especializa��o do curso de Economia.
Cursei na Federal do Paran�. Em seguida
virei funcion�rio p�blico, viajava muito. Antes, aos 18, me casei, um tanto
precocemente.
JL:Pelo que d� para depreender, t�nhamos algu�m bem integrado no Sistema, n�o �
mesmo? O que o levou a uma mudan�a t�o brusca?
JD: Voc� ouviu bem, eu ocupava um cargo numa autarquia federal. Isso a partir de
1955, por a�, mas em 51 eu j� havia ingressado no servi�o p�blico, fiz concurso.
Primeiro numa vaga do governo estadual
do Paran�, depois dum r�pido per�odo passei para a prefeitura de Curitiba, ocupando
um cargo melhor. Sempre concursado, nunca de pistol�o ou coisa que o valha. At� que
finalmente me fixei no Minist�rio
do Interior, sendo esta uma cria administrativa da tal ditadura. Essa experi�ncia
no servi�o p�blico me foi muito �til para atrelar a ACC nas negociatas com
pol�ticos, uma ra�a que n�o me era nada estranha.
Foi nesse cargo do Minist�rio do Interior que me aposentei. Como v�, vivi o auge do
Milagre Brasileiro na Ditadura Militar como funcion�rio p�blico. Mais tarde
voltaremos a falar disso, demoradamente.
Mas n�o me considero nem um mafioso erudito nem ex-maraj�. (risos)
JL:Ent�o quem � Jorge Duncan e por que a mudan�a?
JD: Essa � uma boa pergunta. � o que tento responder a mim mesmo o tempo todo. E
voc�, sabe quem �? Dificilmente a gente sai dessa sinuca de bico. Sem querer ser
pedante, vou fazer mais uma cita��o, desta
vez Rosa, tirada do Grande Sert�o: o diabo na rua, no meio do redemunho. O que ele
queria dizer � que o processo foge ao nosso controle. Quando a gente se d� conta
est� metido no fervedor, ou seja, enterrado
na merda at� o pesco�o. (risos) � isso a�. Posso garantir, no entanto, que, nesses
prim�rdios, eu era um cara padr�o, talvez at� demais. Tudo nos conformes, fam�lia,
pai, m�e, eu era filho �nico. N�o
� uma ocorr�ncia muito rara, se procurar com calma vai achar muitos exemplos que se
assemelham ao meu. Fidel n�o era filho de fazendeiros? O Ch� tamb�m n�o vinha da
classe m�dia argentina? A Patty Hearst
n�o era filha de milion�rios e n�o virou terrorista depois de raptada pelo Ex�rcito
Simbion�s de Liberta��o, nos EUA?
JL:A alega��o � que Patty foi afetada com a S�ndrome de Estocolmo, tanto que foi
libertada antes de vencer a pena, indultada pelo presidente, Jimmy Carter se eu n�o
me engano.
JD: O av� dela era dono dum imp�rio jornal�stico e jamais permitiria que a neta
mofasse na cadeia, essa � a verdade. O fato de ela ter S�ndrome de Estocolmo
equivale ao filhinho de papai brasileiro que,
para escapar da cana, alega ser cleptoman�aco, uma grave doen�a. No caso de um
favelado, seria ladr�o mesmo. N�o me venha com essa, Lundi. Acorda, cara.
JL:No seu caso espec�fico, como aconteceu?
JD: Quanto a mim, virei bandido, sem nenhum trauma. Um ind�cio, se � que pode ser
tomado como base, � que desde cedo mostrei um temperamento voluntarioso, mand�o pra
cacete. Mas, como eu, milhares de crian�as
agem assim, especialmente sendo filho �nico, como era o meu caso, que sempre � mais
mimado do que os que t�m irm�os, que repartem as aten��es dos pais. Fora isso, nada
de excepcional. Hoje estou com sessenta
e poucos, mas � como se tivesse vivido apenas vinte e tantos, de vida �til quero
dizer. O resto do tempo foi um chafurdar constante na merda. Mas enterrado na merda
mesmo, at� o pesco�o, pra valer, n�o
� brincadeira, n�o. (risos) S� fui emergir da porcaria perto dos 50. Da inf�ncia,
melhor dito, da primeira inf�ncia, d� pra aproveitar coisa a� duns cinco anos,
talvez menos. Depois, at� aos 48, panela
de merda, com raras exce��es. Foi um desperd�cio, admito, passar um temp�o desses
jogando a vida fora, mas fazer o qu�? A maioria das pessoas vive assim, no panel�o
de merda, sem nunca conseguir sair.
Ao saltar para fora, minha vida deu um giro de cento e oitenta graus, foi uma
mudan�a brusca, entrei noutra dimens�o. Nunca me arrependi disso, muito pelo
contr�rio. E tem uns idiotas que acham que o cara
depois dos 40 t� fodido, acabado. Estou aqui pra contrariar. Realmente hibernei por
um bom tempo, mas quando acordei ainda tava com todo o g�s. O cara s� t� fodido,
naquela situa��o, quando somente chafurda
na merda e nunca sai do panel�o. Quando � bucha de canh�o, como diria o outro.. �
isso a�.
JL:Se tiv�ssemos que estabelecer uma data, dir�amos que tudo come�ou em.
JD: Podemos situar o ano de 1980 como o in�cio de tudo, ou melhor, da minha grande
virada, aos 50 anos de idade. Em 1974, aos 44 anos, eu j� estava aposentado. Com
18, eu j� tinha feito fam�lia, tava
na batalha. Quem come�a a trabalhar cedo se aposenta cedo.
JL:A virada se deu como aposentado, �?
JD: Correto, bem madurinho. Foi uma mudan�a da �gua pro vinho, muito r�pida. Mas
imagina o que eu fazia nessa �poca, 78, 79, para matar o tempo, pouquinho antes da
virada. De manh�, malhava numa academia
de muscula��o, at� pr�ximo do meio dia. � tarde, �s vezes at� um bom peda�o da
noite, me dedicava � fornica��o. Fazia isso todo santo dia. Malhava a manh� toda,
de segunda a sexta, aos s�bados e domingos,
corria nos parques. O resto do tempo, fornicava. Era o meu esquema, a minha id�ia
de estar em a��o. Tem coisa mais rid�cula? N�o que eu desgoste de esporte nem de
sexo, n�o � isso, era a maneira como eu
levava a coisa, de centrar a minha vida numa rotina daquele tipo, na cabe�a da pica
e nos m�sculos. Hoje, realmente, custo a me reconhecer naquele corpo e naquela
cabe�a. (risos), que eu pudesse ter
sido t�o imbecil como era naquela �poca. Aquele Jorge Duncan do passado n�o tem
nada a ver com o de hoje, somos pessoas totalmente diferentes, nada a ver mesmo.
Isso, sob certo aspecto, � bom sinal, pois
indica que as pessoas podem mudar. N�o digo todas, mas pelo menos algumas, aquelas
que realmente querem. Agora, quer saber de verdade qual era a minha �nica e secreta
ambi��o daqueles tempos?
JL:Sou todo ouvidos.
JD: Voc� n�o pode ter nem id�ia. Tch�-tch�-tch�-tch���. Entrar para o Guinness Book
como o maior fornicador do Brasil e do mundo. Jorge, o Garanh�o Paranaense, o Pica
de Ouro (risos). Como toda fantasia,
eu a acalentava com muito carinho, como se fosse um bicho de estima��o, o gatinho
do qual eu ficava alisando o lombo macio.
JL:Um projeto e tanto. (risos). J� tinha comido quantas mulheres at� ali?
JD: Eu j� andava perto das duas mil e achava essa uma marca consider�vel. Agora,
para ganhar a ta�a, n�o tinha nem id�ia de quantas mais precisaria comer. S� sabia
que tinha de comer, continuar comendo
e quanto mais comesse mais chances teria. Tem cabimento um tro�o desses? Como
qualificar? (risos)
JL:O qu� o Guinness marcava na �poca?
JD: E eu vou saber? Nunca me dera o trabalho de ver se tinha chance ou pelo menos
em saber a quantas andava o desempenho dos concorrentes. (risos)
JL:Visto por outro �ngulo, me parece a atitude t�pica de algu�m com excesso de
vigor f�sico, de muito tes�o. Para n�o explodir, botava pelo ladr�o. Bom, na
verdade os 63 de hoje transparecem mais uns 40
e poucos.
JD: Ah, �? Mas n�o vou agradecer por isso (risos). O pat�tico � que eu levava a
coisa t�o a s�rio que adotara um modus faciendi capaz de me fazer atingir um
recorde do qual eu continuava sem saber a marca.
Seria t�o simples comprar um exemplar do Guinness Book para ver as minhas reais
chances, ou pelo menos me situar na competi��o, mas ia postergando, o que talvez
indicasse o meu medo de uma grande decep��o.
E se o campe�o j� tivesse atingido a marca das cinco, dez mil? Ent�o eu abaixava a
cabe�a e ia � luta.
JL:Ou levantava, certo? (risos)
JD: Como eu dizia, era fazer por merecer a fama de garanh�o incans�vel. Al�m do
arrast�o que eu fazia por todo o lugar onde andava, ruas, lojas, parques,
supermercados, etc., arranjei ainda uma cafetina
para me ajudar a aumentar cada vez mais esse n�mero. Paralelamente, botava an�ncios
em revistas e jornais.
JL:Puxa. (risos)
JD: Verdade. Choviam cartas de todo lugar do pa�s. Dessa forma, eu conseguia comer,
em m�dia, duzentas mulheres por ano, �s vezes um pouco mais.
JL:Nossa, e eu que me achava um comedor razo�vel. (risos)
JD: Sempre fui muito organizado. (risos) Tanto que criei um fich�rio do tipo kardex
coisa bem antiga, n�o?, chegou a conhecer kardex? para controlar essa intensa
atividade fornicadora, com detalhes
de cada transa. Iniciei esse controle muito antes, quando tinha 28 anos, por a�,
acho, e j� comera um bocado de mulheres. Como d� pra ver, era um sonho bem antigo.
(risos) Mais tarde, j� aposentado,
adquiri um computador, um CP-500 antediluviano, e transferi esses registros para
ele, um arquivo com o nome sugestivo de F�meas. Foi um trabalho enorme de digita��o
que me comeu algumas semanas.
JL:Energia � que n�o faltava, n�? (risos)
JD: Bota energia nisso (risos). Mas eu esbanjava tempo nessa �poca, sim e
precisava ocup�-lo para n�o morrer de t�dio. Outro detalhe, montei uma cobertura,
finamente decorada, que seria o matadouro
onde eu faria o sacrif�cio das frangas.
JL:Se escutei bem, voc� disse que havia casado muito cedo. Mesmo assim aprontava um
monte, ou j� havia se separado?
JD: N�o, s� fui me separar bem mais tarde, perto da virada. Mas cavalo amarrado
tamb�m pasta, n�o �? (risos) Aos 18 resolvi casar com uma garota dois anos mais
mo�a. J� come�ou complicado porque tanto
eu quanto ela precisamos de autoriza��o judicial para casar. Os pais dela eram
contra, foi um rolo. Por fim cederam, e casamos. Tivemos dois filhos, um casal.
JL:O casamento se deu ent�o na d�cada de 1940? No final da d�cada? Estou na dire��o
certa?
JD: Por a�. Mas nessa �poca a que estou me referindo, 1978, eu continuava casado,
claro. Zilda, a primog�nita, j� estava com 23, e, Jonas, o ca�ula, com 21. �ramos
uma fam�lia legal, moderninha, cada um
na sua. Neur�ticos an�nimos, tabagistas e bebuns. Eu, no entanto, j� me preocupava
com o avan�o da idade e suas consequ�ncias, tinha largado o cigarro havia uns dez
anos, e a bebida, assim que me aposentei,
logo, quatro anos. Mas Judita, minha mulher, e os dois rebentos continuavam firmes
tanto na birita quanto no tabaco. Naquela �poca fumar era moda, e ainda n�o se
falava muito em c�ncer, etc. Judita e eu
j� est�vamos separados de corpos havia bastante tempo, como seria f�cil de prever.
Eu tinha o meu quarto, ela o dela, e assim �amos levando. � noite, fechado no meu
quarto, sentava diante da m�quina de
escrever el�trica, uma Ol�mpia supimpa antes do CP-500, e fazia os registros das
aventuras do dia. Esse di�rio, com abund�ncia de detalhes, era guardado a sete
chaves num arm�rio de a�o e seria o documento
que serviria de prova �s minhas proezas sexuais.
JL:De fato, era um grande sonho. (risos)
JD: Se era. Por certo que o registro n�o existe mais. Ao romper com o passado,
queimei tudo. Mas era assim mesmo, tudo catalogado. H�bito organizativo de cunho
profissional.
JL:Uma fam�lia situada na classe m�dia alta?
JD: Exato. Eu ganhava uma grana razo�vel, embora n�o fosse nenhum maraj�. (riso)
Dei um duro danado para conquistar o meu lugar ao sol. Mas o que ganhava dava para
sobreviver com dignidade. No final
do m�s, sempre havia um saldo positivo entre a receita e a despesa, que acabava na
poupan�a ou em algum investimento mais lucrativo. J�, do ponto de vista emocional,
a fam�lia era bem tumultuada, cheia
de grilos. Eu com as minhas mulheres, uma vida dupla repartida entre a cobertura e
a casa propriamente dita. Quanto � Judita, era uma freguesa de caderno de cl�nicas
psiqui�tricas. Volta e meia tinha um
surto de bobeira e l� ia ela passar uma temporada na casa de campo, como nos
refer�amos �s suas aus�ncias. Eu procurava levar na goza��o, para dar um aspecto
mais ameno � situa��o. Na verdade, era um casamento
em fase terminal. Eu relutava em me mandar, embora a novela j� tivesse um fim
previs�vel. Mas tamb�m, como toda a novela de tev�, o desfecho era prolongado
indefinidamente.
JL:Fim do amor, mas n�o do h�bito de conviver?
JD: � aquela coisa, Jardel, nada diferente do que rola por a�: �ramos pessoas
normais, t�nhamos casado, tido filhos, feito planos, nos amado e odiado, como
qualquer casal. As pessoas s�o assim, amam, casam,
separam, se fodem e. morrem. A vida � isso, essa chafurda, e a gente sempre l� no
meio do redemunho. A verdade � que, em determinado ponto do percurso, Judita
abilolou total, sem aviso pr�vio, mergulhando
para dentro de si mesma, mergulhos com retornos cada vez mais espa�ados.
JL:Com certeza foi nesse per�odo tu andou lendo Freud?
JD: Sinceramente n�o sei o que lhe causou a bobeira. Tinha duas ocorr�ncias na
fam�lia dela, que talvez se poderia considerar como heran�a gen�tica, uma tia e uma
prima, que foram saindo do ar aos poucos,
at� ratearem completamente. Era uma loucura passiva, serena, uma esp�cie de autismo
retardado. Nunca me interessei em ir a fundo na sua alma. Fomos criando um
desinteresse t�o grande um pelo outro que
acabamos ficando quase estranhos, embora compartilhando a mesma casa, os mesmos
h�bitos dom�sticos. Nas crises, ela sa�a do ar, literalmente. Esquecia do banho,
ficava jogada num canto, tipo um saco de
bosta. Ot�lia, a servi�al, cuidava dela como duma crian�a. Ela se refugiava no seu
mundo fantasmag�rico, e eu no meu, libidinoso. Eu s� me preocupava com o meu
prazer. Por for�a de profiss�o, tempos atr�s,
viajava muito, uma semana em casa, um, dois meses fora, e isso, para mim, era
�timo, eu podia me omitir, digamos, oficialmente, tinha uma boa justificativa para
isso. Jonas e Zilda cresceram com a minha
aus�ncia e a de Judita, que chegava a ficar v�rios meses por ano na casa de campo.
Assim, quase �rf�os, cada um achou o seu caminho como p�de. Zilda, formada em
jornalismo, era freelancer de porra nenhuma,
fazendo turismo-desemprego todo m�s, viajando dum lugar para outro at� quando
durasse o dinheiro da sua mesada. Jonas, estudante de direito, era chegado num
fuminho, que depois evoluiu para a branquinha.
Prometia ser um futuro frequentador de cl�nicas, como a m�e. Na verdade, eu tamb�m
n�o conhecia muito a fundo nenhum dos dois, ou talvez nem me interessasse em chegar
l�. Como cabe�a da fam�lia eu cumpria
com a minha obriga��o de maneira impec�vel. Nunca deixei faltar nada, educa��o,
alimenta��o, etc., arcando com todas as despesas de manuten��o, de modo que ningu�m
precisava se preocupar com a sobreviv�ncia.
Mesmo depois da maioridade, continuavam recebendo mesada. Agindo assim, eu sentia
ter cumprido o meu dever, portanto, pt sauda��es. Como um complemento, para
estimular ainda mais o nosso alheamento, t�nhamos
Ot�lia, uma mulher de 55 anos, nossa empregada h� 20. Fora ela, praticamente, quem
criara os filhos para Judita. Nesse contexto, como Quatro Mosqueteiros meio
enviesados, com cada um por si e Ot�lia por
todos, mant�nhamos a fam�lia em funcionamento. N�o pod�amos admitir, sob hip�tese
alguma, a vida sem Ot�lia. Enquanto eu bancasse e Ot�lia administrasse, o nosso
conv�vio dom�stico tornava-se at� satisfat�rio,
desde que a individualidade de cada um fosse preservada, bem entendido. Enquanto
cada um andava metido na sua toca ou quarto, resguardando a sua privacidade, tudo
ia �s mil maravilhas. Descobrimos logo,
logo que era de bom alvitre evitar as reuni�es de fam�lia, pois, via de regra,
Zilda e Jonas as acabavam bagun�ando. Ambos tinham uma maneira de se odiar,
convicta e persistentemente, que obrigava os nossos
encontros a ficarem cada vez mais espa�ados. Dessa forma, passamos a nos reunir
praticamente nunca, mesmo em datas como Natal ou coisa que o valha. E, quando isso
ocorria, era mais por acaso do que de
forma programada ou habitual no dia a dia. Sempre que insistimos em contrariar essa
regra, a coisa acabava mal.
JL:A solid�o em fam�lia � mais comum do que parece. Muitas fam�lias vivem de
apar�ncias. N�o est� querendo me dizer, entretanto, que foi isso que o levou �
criminalidade, certo?
JD: Judita e eu est�vamos juntos havia cerca de 30 anos. Durante esse tempo, embora
eu fosse apenas dois anos mais velho do que ela, ela passou a aparentar ter, no
m�nimo, vinte anos a mais do que eu.
Enquanto eu treinava de 4 a 5 horas por dia, adotava uma dieta balanceada e tal,
Judita n�o estava nem a�, os radicais livres a pegaram. No seu mundo fant�stico, a
televis�o lhe bastava. O fim de semana,
ent�o, era feito sob medida para ela. Do controle remoto do seu aparelho, ela
comandava o espet�culo, pulando dum canal para outro: Hebe, Chacrinha, Clube do
Bolinha, Faust�o, Silvio Santos, at� finalizar
com o Fant�stico. Quando n�o eram programas de audit�rio, eram novelas, de segunda
a s�bado. Ao telefone, o assunto dela com a m�e era tratar do futuro de cada
personagem, dos rolos em que estavam metidos.
Dispensavam horas penduradas no telefone com esse tipo de papo. Jonas, Ot�lia e eu
praticamente n�o toc�vamos no aparelho. Entretanto, Judita e Zilda, se tivessem a
op��o disso, ficariam na linha a vida
toda, ou a eternidade. Zilda, depois de assistir a um filme de terror cujas
personagens foram sepultadas vivas, exigia que, caso acontecesse qualquer coisa com
ela, e fosse dada como morta, a enterr�ssemos
com um radiotransmissor. Levava isso t�o a s�rio que vira e mexe l� vinha ela com o
assunto. Talvez tencionasse protestar, sei l�, l� de dentro do caix�o, alguma coisa
do tipo. Cada um tinha, � sua maneira,
um parafuso meio solto. Uma outra peculiaridade de que me lembro � que n�o t�nhamos
�lbum de fotografias. Dev�amos ter acumulado, nessas tr�s d�cadas, apenas uma meia
d�zia de instant�neos. Acidentes de
percurso. Zilda tinha uma maior quantidade por causa de suas viagens, mas eram
fotos dela na companhia de estranhos. �ramos, pois, uma fam�lia sem mem�ria. Isso
constitu�a uma assombra��o para Judita.
O fot�grafo queimou o filme at� do nosso casamento, por um acidente que ele n�o
conseguiu explicar bem. Dessa forma, n�o ficou nenhum registro, unzinho que fosse,
do enlace. Isso a apavorava. A m�e de
Judita interpretou o incidente como um mau press�gio. Passaram um bom tempo, ela e
Judita, consultando videntes e m�es de santo para desfazer o pretenso sortil�gio.
Pelo desfecho, n�o tiveram �xito, embora
tenham gasto uma fortuna com trabalhos e patu�s. (risos) Sinceramente, quando volto
a esse tempo, n�o consigo entender como consegui sair daquela meleca. S� posso
pensar que era um predestinado, embora
tenha dificuldade de aceitar uma interpreta��o desse tipo. Vou falar disso mais
tarde, dos sonhos prof�ticos, das premoni��es. Para chegar ao que sou, no entanto,
foi um processo t�o f�cil, t�o autom�tico,
que deve causar aos outros o mesmo espanto que causou em mim. Ou � porque estaria
tudo plantado no meu inconsciente durante todo esse tempo? N�o, n�o tenho d�vidas
de que sou um predestinado, embora continue
relutando em aceitar isso, em atribuir uma origem inexplic�vel � minha lideran�a
carism�tica.
JL:Se f�ssemos levar as coisas ao p� da letra, poder�amos atribuir a tudo um
car�ter meio casual ou misterioso. Acredito que a realidade concreta � irremov�vel,
definitiva. Ou mais ainda, o real, por si
s�, � enigm�tico. Se formos atribuir mais mist�rio ao que j� existe, ca�mos num
d�dalo inextric�vel. Na verdade, tu tens dificuldade de te aceitar ou � uma
desculpa para contornar o problema?
JD: N�o, Jardel, n�o. Simplesmente descobri, ainda a tempo, que temos capacidades
desconhecidas por n�s mesmos. Estamos aprisionados ao nosso corpo e � nossa mente,
mais especificamente ao que pensamos.
Ao romper com uma realidade indesejada, rompi com o meu destino, com o que as
regras sociais me impuseram. Ao fazer isso, mesmo sem saber inicialmente, comecei a
construir uma nova realidade. Uma realidade
onde eu podia me considerar o meu pr�prio criador, embora ainda dentro de algumas
limita��es.
JL:Nesse caso, porque voc� nunca conseguiu romper com uma fam�lia com a qual n�o
parecia ter o menor envolvimento emocional?
JD: Vou saltar a pergunta, fingir que n�o a escutei.
JL:N�o seria a dificuldade que todos n�s temos de resolver quest�es dom�sticas?
Ferir alguns �ntimos n�o � mais dif�cil do que atingir a humanidade inteira?
JD: Voc� � insistente, hein, cara? (pausa tensa)
JL:Ent�o, Chefe, a considerarmos esse per�odo, no mais das vezes era a ca�a �s
mulheres?
JD: Olha s�, minha rotina era essa: sa�a de casa de manh� e s� retornava � noite,
isso quando retornava. �s vezes, passava fora um temp�o, pau e pau nas xoxotas.
Recebia uma grande quantidade de cartas,
respostas dos an�ncios que eu publicava em jornais de v�rios estados e revistas de
circula��o nacional. Botava coisas como: fazendeiro, charmoso, porte atl�tico,
saud�vel, sens�vel, vai realizar todas
as suas fantasias, as mais loucas. M�dico, bem-dotado, tarado por ninfetas.
Empres�rio, de passagem por esta cidade, procura. Era divertido. De tempos em
tempos, eu selecionava algumas delas. Fazia
contatos telef�nicos, tomava um avi�o e ia para. Salvador, Bel�, Vit�ria, Rio,
Sampa, Floripa, Portalegre, Manaus e algumas cidades interioranas, desde que n�o se
afastassem muito do roteiro. Em certa
ocasi�o, fiquei ausente 26 dias, em cada cidade eu comia duas ou tr�s minas e
seguia em frente. Ao cabo dessa turn�, ao retornar a Curitiba, Judita, um baga�o,
estava internada. Foi uma das suas piores
crises, mas isso n�o me impressionou. Ot�lia me substitu�a nas visitas di�rias, das
quais eu tratava de me esquivar. O seu psiquiatra chegou a me ligar, pedindo a
minha presen�a, mas acabei n�o indo. Por
essa �poca, me envolvi com uma menina da academia e estava muito ocupado. Judita e
eu continu�vamos como turistas de casa.
JL Pelo visto, amigos e familiares eram poucos ou quase nenhum?
JD: Digamos que sim.
Mais cenas dom�sticas. Ot�lia me trouxe os jornais no quarto pela manh�. Nada de
novo, lua minguante, conjun��es desfavor�veis, corrup��o no governo, estelionatos,
homic�dios, tr�s bancos assaltados, sequestro
de empres�rio, rebeli�o no pres�dio, �ndice elevado de acidentes de tr�nsito,
desemprego crescente, infla��o em alta. Tomei uma ducha, fiz o desjejum, dei uma
passada na academia. Minha colega n�o pintava
nas aulas de aer�bica havia duas semanas. Sempre que eu ligava, n�o atendia. Para
compensar, carregava os halteres e fazia s�ries de exerc�cios ultrapesadas. Acabava
o treino extenuado, como se tivesse
passado com a ausente uma tarde ativa no motel. Concentrei-me em Ilona. Nas semanas
que se seguiram, Ilona me apresentou umas meninas muito gostosas. Entrementes,
rolos dom�sticos, a panela de merda fervendo,
quanto mais se mexe mais fede. Meu cunhado, diretor da Caixa Econ�mica Federal, que
nunca me liga, ligou.
Tou preocupado com a mana.
Qu� que houve, Flavinho?
N�o sei, por isso estou ligando. Ela me visitou, ontem, achei ela muito caida�a,
super deprimida.
�, Flavinho, at� parece que voc� n�o conhece a mana que tem! � o estado normal
dela, cara, t� sempre achando que o mundo vai acabar a qualquer momento�
N�o, n�o, dessa vez � alguma coisa diferente. S� n�o tenho id�ia do que seja, n�o
consegui captar nada, tenho medo de que a depress�o a leve ao suic�dio.
Eu j� desisti, cansei de tentar mudar o astral dela, n�o tem jeito.
�Vai te foder, p�! Por acaso eu fico ligando pra dizer que a tua mulher te p�e
chifre e que tu n�o reclama?� O problema � que ela n�o se queixa, n�o se abre, n�o
d� uma pista continuou ele.
Fiquei silencioso, ele mudou de assunto:
E o Jonas, como est�? Talvez seja por causa dele. Esses seus filhos est�o sempre
aprontando.
Que nada! O Jonas t� numa boa. A Zilda tamb�m. �Qual �, seu panaca? Algu�m pediu
sua opini�o? Quer que eu v� a� e lhe arrebente a cara?� �, Flavinho querido, n�o
me leva a mal, mas acabei de sair
do banho, tou pelad�o aqui no meio da casa.
Tudo bem, tudo bem, desculpa o mau jeito, s� gostaria que voc� batesse um papo com
ela, que.
Judita entrou no quarto, aproximou o ouvido do fone, na tentativa de escutar.
Claro que dou, claro, tiau. Desliguei.
Era o Nilo? perguntou Judita, referindo-se ao seu psiquiatra. Era da Cl�nica?
N�o, respondi.
Se ligarem de l�, Jorge, pelo amor de Deus, diz que eu n�o estou. O Nilo quer me
internar de novo, tou sentindo, diz que � pro meu bem, n�o fala em outra coisa,
desta vez eu n�o vou, de jeito nenhum!
Terminei de me enxugar, penteei os cabelos. N�o disse que era o mano bund�o.
Decerto estava com medo de que a mana estivesse a fim de fazer um papagaio na sua
ag�ncia e queria garantir o meu aval, preparando
o terreno. A fodida da mana dele era uma sombra na sua pr�pria casa, cheia de
medos, cercada de fantasmas, ningu�m da fam�lia seria capaz de aturar. Para mim,
era como se ela j� estivesse morta, nem tomava
conhecimento da sua presen�a. A rec�proca, com certeza, devia ser v�lida.
Dois dias depois, apareci em casa. Ot�lia me trouxe o jornal e me tratou como se
nada tivesse acontecido. Depois, aos poucos, me fez o relat�rio do que se passou na
minha aus�ncia, Judita tinha ido passar
uns dias com a m�e, ficara muito abalada com. com., n�o terminou a frase, depois
foi piorando, piorando, at� que decidiram intern�-la, o irm�o providenciou tudo.
Quanto �s crian�as, estavam calmas,
chegadas da rua, metiam-se cada uma no seu quarto e n�o botavam a cabe�a para fora.
Na hora das refei��es, ela passava uma bandeja pela porta e vinha peg�-la depois, a
casa parecia um mausol�u.
Ot�lia me comunicou que a despensa estava quase vazia, tinha que pagar as
diaristas, apontou para a correspond�ncia, em cima da mesa, ao lado da Ol�mpia,
onde estavam misturadas as contas de �gua, luz
e telefone. Assinei dois cheques em branco, cruzei-os e os entreguei a ela com a
identidade, um para que providenciasse o rancho, outro para os pagamentos
restantes. Recomendei que inclu�sse u�sque, cerveja
e vinho nas compras.
Para quem? indagou arregalando os olhos.
Para o bispo, coloca tudo aqui no quarto.
Ela ia perguntar mais alguma coisa, mas percebeu que estava extrapolando e calou-
se. Retirou-se abanando a cabe�a, n�o estava conseguindo ficar neutra, queria meter
a colher, decerto previa mudan�as na
casa, para pior, e, quando as coisas pioravam, sempre sobrava para ela. Em seguida,
batidas na porta, Ot�lia.
Que quantidade eu compro dessas. dessas. n�o conseguia desembuchar a palavra
certa.
Meia d�zia de u�sque, dois engradados de cervejas, duas d�zias de garrafas de
vinho, metade branco, seco, outra metade, tinto detalhei as marcas. J� esqueceu?
Comprou isso a vida toda.
S�? ent�o ela riu.
S� respondi, rindo tamb�m.
Ela me encarou, segurando a ma�aneta da porta:
O patr�o vai voltar a beber?
Ot�lia, voc�.
N�o faz isso, patr�o, o senhor t� t�o bem.
Abri o jornal, j� alheado da sua presen�a e do seu coment�rio.
Eu sou sua amiga, patr�o, vai por mim, depois n�o diz que eu n�o avisei.
Tiau, Ot�lia.
Tiau, patr�o, depois eu deixo os comprovantes na sua mesa, caso o senhor sair.
Ok.
Continuou imobilizada, de costas para mim, ainda segurando a ma�aneta, como se
tivesse virado uma est�tua de sal. Desistiu de dizer o que pensava e saiu. O que
dera em Ot�lia? N�o era de abrir o bico.
Talvez estivesse assustada. Devia se lembrar dos tempos �ureos de bebedeiras e
loucuras de toda a fam�lia, do pandem�nio que era, iria voltar tudo aquilo? Se
agora, sem eu beber, j� fizera aquela estrepolia,
imagina bebendo! Devia estar apavorada, a pobre! Pensei em lhe aumentar o sal�rio.
Foram dias de questionamentos sobre o que faziam pessoas como n�s vivendo juntas,
n�o t�nhamos nada a ver uns com os outros, estranhos ligados por t�nues la�os de
consanguinidade e toneladas de comodismo,
eu continuava sem coragem de cair fora. Automatismo neur�tico de ficar chafurdando
na merda, eu era como todo mundo, bastava me imaginar sozinho lidando com roupa e
lou�a suja, preparando rango e tudo
o mais, que as lides dom�stica implicam para desistir da id�ia de partir. Por outro
lado, advogado, papelada, div�rcio, formaliza��es, eram os outros motivos para me
fazer recuar.
Ali, na pior das hip�teses, t�nhamos tudo � m�o e � hora, gra�as a Ot�lia, ela
organizava nossas vidas, nossas necessidades, era o nosso �tero. Ir embora, al�m
disso, tinha uma conota��o de sacanagem,
j� ficava com sentimento de culpa mesmo antes de qualquer decis�o, apesar de tudo,
�ramos e continu�vamos sendo uma fam�lia. Sei l�, autojustificativas n�o faltavam.
No entanto, eu tinha a sensa��o de
ter perdido o melhor da festa, de estar entrando na reta final do meu p�reo
existencial e que ia perder feio a corrida. No fundo, eu n�o passava dum comodista
fodido que adorava chafurdar na merda, essa
era a verdade. Servir uma talagada de u�sque e entornar dum golpe, no entanto, j�
deixava tudo ficar mais suave. E a�? Fazer o qu�?
Nunca trepei nem datilografei tanto como nos meses que se seguiram, abandonei os
treinos, era cama e cama, ferro e ferro. Ligava todo dia para a Ilona e cobrava
produ��o. Ela me veio com uma nova safra
de meninas na faixa dos 15 aos 18. Dentre elas, Marcinha. Ilona me advertiu:
Mercadoria de primeira, com essa o doutor vai ter que gastar um pouquinho mais.
Manda l�.
A menina pretende ser modelo. Precisa de algu�m que queira bancar o seu book.
A� eu entrava.
Quanto vai custar?
Coisa boa n�o sai barato.
Manda brasa, ent�o.
Na tarde seguinte, Ilona apareceu na cobertura com Marcinha. Marcinha foi especial.
Encontrei-a em S�o Paulo muitos anos depois, num restaurante do Bixiga, eu j� era
Chef�o da Confraria. Uma coincid�ncia
que me tirou de grandes apuros. Talvez, se n�o tivesse contado com a sua lealdade,
o meu futuro e o da organiza��o teriam ido para o brejo. Devo isso a ela, nunca vou
esquecer, � uma d�vida eterna.
Uma gra�a de menina, loira natural, olhos verdes, parecia t�mida, mas bastaram umas
bicadas no u�sque para se aprontar, o �lcool fazia uma devasta��o no seu superego,
soltou a franga, dezesseis primaveras,
quarenta e cinco quilos, metro e setenta e oito, pele de plumas brancas, um sinal
rente ao mamilo esquerdo que despontava pelo decote da camiseta.
Ilona, que sabia quebrar o gelo como ningu�m, contou a piada do papagaio e da
freira, e a menina riu para valer. Marcinha escolheu uma fita-cassete e botou a
rodar no aparelho de som. Ilona serviu-se de
cerveja gelad�ssima, e Marcinha me acompanhou no u�sque. Na terceira bicada, a
menina se p�s a dan�ar sozinha. Ilona disse que ia ao banco, depois passava para
apanh�-la. Nosso acordo a obrigava a levar
as meninas de volta.
Ok disse Marcinha , n�o tem pressa e riu. Isso me acendeu.
Marcinha tinha um molejo maneiro nos quadris, levantei-me e fui dan�ar com ela.
Beijinho pra c�, pra l�, excitado, botei pra fora. Marcinha n�o se impressionou.
Bem grande comentou.
Agachou-se e meteu-o na boca gelada dos cubos de gelo. Sabia fazer t�o bem que
gozei em seguida.
Goza, meu bem ela disse e engoliu.
Sentou-se no sof� e cruzou as pernas, tranquilona por ter passado no teste. Fitava-
me inclinando a cabe�a, como procurando um �ngulo favor�vel para me decifrar.
Voc� tem um corpo legal disse , deve malhar bastante.
Um pouco.
Ilona fez o seu cartaz, disse que voc� era legal pacas, mas eu n�o imaginava que
fosse encontrar esse hom�o todo.
� mesmo?
Ela disse que voc� � muito solit�rio, que est� pensando em se mudar para Curitiba.
� respondi.
Ela me falou de voc�, e eu me interessei logo, intui��o, sou muito intuitiva.
Agora quero te enfiar.
Desculpe? ela n�o havia entendido.
Enfiar, ele, nela.
J�? Ela espiou para conferir:
�pa! Ent�o enfia, bem.
Botei a camisinha enquanto ela tirava a roupa, tinha um corpo enxuto, de
musculatura rija, latejante.
Aqui mesmo?
Pode ser.
Ela se posicionou no sof�, enfiei e ela come�ou a falar. Falou, falou, falou.
Tirei, me ajoelhei, comecei a beijar-lhe os p�s, lamb�-los, um p� bem modelado,
dedos estofados, unhas pintadas, chupei o ded�o,
ela estranhava a minha fixa��o pelo p�.
Agora fica de quatro.
Ela ficou.
Fazendo gostoso assim, eu vou me enrabichar em voc�.
Voc� � que � gostosa.
Obrigada.
Vira de lado, ela virou.
Faz de mim o que voc� quiser, me vira do avesso.
Ela pediu um tempo e foi ao banheiro. Voltou enrolada na toalha. Resolvi dar uma de
produtor, mandando que desfilasse, se passasse no teste. Tinha classe, desfilava
desde os 13, fizera cursos em boas
escolas de modelos, ultimamente andava afastada das passarelas por motivos que n�o
podia revelar, pretendia retornar em grande estilo, s� precisava de um book feito
por um bom fot�grafo, real�ou o �bom�,
pois um book, sem que o fot�grafo saiba das coisas, n�o t� com nada. Acendi um
charuto, tornei a encher o copo, sentei-me na poltrona do canto. Ela se deslocava
de um lado a outro da sala, cheia de ademanes
e revoluteios como fazem as manecas na passarela, eu relembrava tudo o que ela
havia falado enquanto trep�vamos. Estava concentrada, acreditava naquilo, todas
aquelas idas e vindas eram uma brincadeira
muito excitante e me deixaram a ponto de bala, mas, antes que eu fizesse outra
ofensiva, a menina tropicou no carpete e voou na minha dire��o, espalhou copo e
charuto para todo o lado. Consegui ampar�-la
sem que se machucasse. Ficou chateada, desculpou-se, era por causa do trago, quando
desfilava n�o bebia, estava um pouco tonta.
N�o esquenta, voc� � �tima, com um book n�o vai faltar trabalho, voc� vai ser uma
top model de sucesso, voc� j� tem o principal, que � o talento.
Com essa salivada, ganhei a menina por inteiro. Ela foi atr�s da bolsa e voltou a
sentar-se na minha coxa. Escarafunchou l� dentro e retirou um envelope. Mostrou-me
uma montoeira de fotos, comentando uma
a uma. Eu fazia de conta estar maravilhado com tanta beleza, tanta roupa
estilizada, tanto desfile, a pica quase explodindo de tes�o pelo contato da pele da
sua coxa na minha, o cheiro adocicado, o som
macio da sua voz. Quando acabou, guardou tudo no envelope e enfiou na bolsa com o
mesmo cuidado que tirara, era a sua arca do tesouro. Olhou-me e sorriu tristemente.
� isso.
Voc� n�o tem apenas talento, princesa, tem experi�ncia, que tamb�m conta muito,
vamos providenciar logo esse book.
� mesmo?
Claro, pra que retardar mais? O mundo te espera.
Ela me abra�ou, deu um beijo na ponta do meu nariz.
Voc� � muito legal, sabia?
Eu puxei-a para mim, enfiando a l�ngua para dentro de sua boca, iniciando um embate
corporal s�frego. Ergui-a nos bra�os e a conduzi para a cama. Fodia como uma
profissional, submetendo-se a todas as minhas
vontades e extravag�ncias, esfor�ava-se para me agradar, tentava antecipar as
minhas inten��es, mostrando que a arte de amar n�o tinha segredos para ela. S�
paramos porque Ilona chegou, passei o envelope
para ela, incluindo mais mil d�lares.
Faz um belo book para a menina, ela merece.
Ilona n�o se mexeu do lugar.
Voc� vai, ela fica.
Ilona fez um gesto que podia significar tudo ou nada, at� a cobran�a de um
acr�scimo no cach�. Entendeu que se tratava de uma exce��o.
Desculpe a interrup��o, at� mais, doutor! disse, na surdina, e saiu, pisando na
ponta dos p�s.
Voltei para o quarto e encontrei Marcinha dormindo, enrodilhada, crian�a
desprotegida. N�o a acordei, liguei para uma pizzaria e fiz um pedido que inclu�a
cervejas. Acordou fam�lica e sedenta como eu.
Comemos vorazmente, disputando os �ltimos peda�os.
Cheguei a me arrepender de pedir pizza, achando que voc� n�o ia comer, dizem que
as modelos est�o sempre de regime.
Conversa pra boi dormir, ao contr�rio, estamos sempre esfomeadas, de tudo.
Disse isso e pulou sobre mim. Demos outra trepada, entre bandejas de papel�o e
latinhas de cerveja, a cama virou um chiqueiro. Fomos tomar banho. Ela trocou os
len��is e deitamos de novo. Entre uma foda
e outra, ela me contava sua vida atribulada. Aos 12, perdera a virgindade com o
padastro. Nunca contou para a m�e, embora ele merecesse que o entregasse, n�o valia
nada. S� revelava isso para pessoas muito
especiais, de cabe�as abertas, como era o meu caso, pois era o seu segredo. Tudo o
que sabia de sexo, aprendera com ele, depois s� aperfei�oara. A m�e era enfermeira
e tinha muitos plant�es noturnos, para
ganhar extras, o que facilitava o relacionamento deles. O pior � que ela gostava do
canalha e n�o sentia culpa. A m�e, coitada, era uma bobona, ele, um espertalh�o,
explorador, vagabundo, pegava todo o
sal�rio dela, que se matava trabalhando, sempre com semanas de sono em atraso. Ela,
Marcinha, na sua autocr�tica, tamb�m n�o prestava.
Sempre fui porra-louca, nunca consegui ser certinha.
Um dia ela flagrou a m�e e o padastro fodendo e resolveu ir embora. Sentiu que
estava sobrando. Tinha 13 anos.
Conheci muita gente bacana, e muita gente cretina tamb�m, mais cretina que bacana,
voc� � legal. e muito gostos�o.
Conhecera, logo que fugiu de casa, uma machorra, que era estilista e a introduziu
no m�tier.
Se n�o fosse ela, eu teria ca�do na prostitui��o. Os homens, mod�stia � parte, n�o
me davam folga e me enchiam de presentes. Eu n�o queria outra vida, s� que n�o
tinha paradeiro, um dia aqui, outro acol�,
quem sabe onde. Assim foi. Xenia � que me revelou os segredos do mundo da moda, o
mundo podre que se passa por baixo dos panos, onde as manecas t�m cota��o de
mercadorias de consumo. S� que tem o seguinte,
nesse n�vel faz bem pro ego, a grana compensa. Foi Xenia que me deu educa��o
profissional, pagou-me cursos gabaritados. Tudo o que sei, devo a ela, isso
reconhe�o, at� falar direito ela me ensinou, passava
corrigindo o meu portugu�s, que era bem ruim. Quando nos separamos, deca� muito,
mas n�o me arrependo, a nossa rela��o estava ficando pesada demais, ela tinha um
ci�me mortal de mim, amea�ava me matar,
o escambau. Ent�o resolvi cair fora. Agora, gra�as a voc�, vou me levantar de novo.
Ot�lia ia todo santo dia ao hosp�cio e vinha de l� com novidades, isso me fazia
lembrar que Judita ainda estava hospitalizada. O irm�o de Judita a visitava com
frequ�ncia tamb�m. Quanto a mim, fui uma
ou duas vezes apenas, mais coagido, para efeitos legais, assinar pap�is,
autoriza��es, do que de moto pr�prio. Tudo muito r�pido, restrito � �rea
administrativa. Entrava e, minutos depois, sa�a. Sou al�rgico
a hospitais, cemit�rios e afins. Coincid�ncia ou n�o, por essa �poca come�aram os
sonhos. O mesmo sonho se repetiu quatro vezes numa semana, sem tirar nem p�r. Nele,
eu me encontrava deitado defronte a
uma janela cujo v�o tomava conta de quase toda a parede. A persiana, apesar de
corrida, conservava as l�minas na horizontal, deixando entrar intensa luz solar. A
luminosidade me feria as vistas, e eu n�o
tinha como me livrar dela. Sentia tamb�m muita dor espalhada pelo corpo. Ansiedade,
sentimento de perda indefinida, acordava angustiado, sufocado. S� isso. Naquele
cen�rio, que parecia de hospital, fora
eu, mais ningu�m. A luz irritante � que era xarope. Eu tinha at� a impress�o de
nunca sonhar, tal a falta de lembran�as on�ricas. Seria consequ�ncia da reca�da?
Curtos circuitos et�licos? A verdade � que,
fechado no quarto, eu tomava um litro ou mais de u�sque numa assentada. Ficava
datilografando e bebendo. Quando me dava conta, o litro estava vazio, descia para
pegar mais gelo e abria nova garrafa. Ou
simplesmente apagava na cadeira, sem conseguir chegar � cama, despertando com
torcicolo e dores lombares. Certa manh�, acordei com o p� inchado e com uma dor
terr�vel, o que me fez deduzir que tinha ca�do
da escada. Certeza mesmo n�o tinha. Um flash nebuloso da queda gerava mais d�vida
que certeza. Impedido de caminhar, fiquei uma semana de molho, afundado no u�sque.
Foi quando os sonhos se repetiram. Ot�lia
me trazia os jornais, que eram minha �nica distra��o, eu os consumia de cabo a
rabo. Nada de novo, tudo previs�vel. Os golpes de colarinho branco eram uma
constante, encadeados uns aos outros como elos
de uma corrente. Evit�-los seria salvar o pa�s da crise econ�mica. Quantos brasis
seriam constru�dos sem a corrup��o? As p�ginas de pol�tica eu pulava. A ditadura
era uma Lolita de 14 anos, bem avoada.
Para mim, pol�tica era a quintess�ncia da mesmice, apenas o caminho mais r�pido at�
o dinheiro e mordomias, al�m do poder puro e simples. Em certa ocasi�o, distra�do,
eu lera um jornal sem me dar conta
de que datava de tr�s anos atr�s. Mas nada parecia desatualizado, os mesmos
problemas de sempre, as mesmas promessas. S� mudavam as datas e as circunst�ncias.
Quem vive no Brasil tem essa sensa��o de perpetuidade,
ou seja, nada se resolve, os pobres continuam mais pobres, os ricos mais ricos,
assim mesmo. Considerava que era pura perda de tempo inteirar-me dessas coisas. O
que mais me interessava no jornal, para
ser franco, eram as cr�nicas policiais. Estava sempre sedento de sangue, como de
sexo. Incorporava-me do velhinho kamikaze e devorava as not�cias de assaltos,
latroc�nios, estelionatos, rixas, sequestros,
viol�ncia policial, rebeli�es em pres�dios, estupros, prostitui��o de menores, e
por a� afora. Eu me divertia comparando as fisionomias descontra�das e de bons
dentes dos colun�veis com as express�es duras
dos bandidos, retratados em flagrantes nas delegacias ou nas celas das pris�es. Na
catadura arrogante dos criminosos n�o havia lugar para amenidades, refletiam o
vale-tudo das suas vidas em urg�ncia urgent�ssima.
Enquanto os primeiros mostravam suas caras f�teis, no desfrute do �cio, o olhar
frio de um assassino revela que ele n�o est� para brincadeiras, seu bote est�
sempre armado, as orelhas sempre de p� em alerta
permanente. Um fil�sofo, para quem gosta do tipo, tal qual um bandido, tamb�m est�
sempre alerta, ligado em tudo. A velocidade com que a vida do bandido se esvai,
todavia, n�o lhe deixa muitas alternativas
para decidir. Sua op��o � sempre a do momento atual, que pode lhe escapar, por�m,
num descuido. Seus atos n�o admitem retrocesso, nem remendos, t�m que ser precisos,
definitivos. N�o pode retratar-se ou
desculpar-se, pois sua culpa � total, assumida. Os casos mais interessantes eu
recortava e guardava numa pasta de pl�stico duro, tamb�m fechada no arm�rio. Ia
criando uma esp�cie de banco de dados de crimes
e criminosos. Aproveitei ainda os dias de recesso para atualizar o arquivo F�meas.
Quando consegui pisar firme sem sentir dor, resolvi dar uma parada no trago e
retomar os treinos, mesmo que moderadamente.
Barbeei-me, banhei-me, botei roupa limpa e sa� da toca. Os sonhos finalmente haviam
cessado.
No segundo dia de academia, por�m, passei mal. No espelho, o meu rosto parecia um
tomate maduro de t�o vermelho, o cora��o querendo saltar pela boca. Sentei-me no
banco supino. Como n�o sentia melhora,
botei minhas coisas na mochila e sa� de fininho. N�o queria alertar o bund�o, que
teria tido um orgasmo de alegria. Fui direto para a emerg�ncia dum hospital. O
m�dico me examinou. Press�o arterial nas
nuvens, 25/18. Deu-me um comprimido e fez um eletrocardiograma, deixando-me
repousando na maca por mais de meia hora. Embora n�o constatasse nada de
preocupante, foram as palavras do m�dico, pois a press�o
baixou para 13/8, recomendou-me que suspendesse toda e qualquer atividade f�sica
exagerada. Fez-me algumas recomenda��es e prescreveu um check-up completo. Executei
o que ele mandou e levei o resultado
dos exames a um cardiologista. Tudo na mais perfeita ordem, a press�o normalizara,
mesmo sem medica��o, talvez a incid�ncia fosse o resultado de um pouco de estresse
ou excesso de birita. Mantive a inatividade
por mais duas semanas, ao cabo das quais eu deveria refazer os exames e voltar l�.
Quando regressei ao consult�rio, deu-me carta branca, liberou os treinos, mas,
malhar peso, somente com carga m�nima.
Tudo n�o passara de um susto, felizmente, nada de grave. Caso, por�m, sentisse
alguma coisa de anormal, parasse com tudo e corresse para l�. Nunca precisei
voltar. Pelo sim, pelo n�o, resolvi manter apenas
a corrida, quatro dias por semana, marcha moderada, e RLM aer�bica no quinto dia.
Correr j� seria suficiente para segurar a forma. Terceira idade, fugindo da morte.
Eu me sentia cada vez mais pr�ximo do
velhinho kamikaze. Ot�lia me participou que Judita estava cada vez pior, passava
sedada o tempo todo, num alheamento de fazer d�. O m�dico pedira a minha presen�a.
Determinei a Ot�lia que contatasse
com o irm�o de Judita e o encarregasse dessa tarefa. No dia seguinte, o psiquiatra
e o irm�o de Judita me ligaram e marcamos uma reuni�o. Acabei esquecendo o
compromisso e n�o compareci. Devem ter resolvido
o assunto, pois me largaram de m�o. Ilona tamb�m estava doente e impossibilitada de
sair. A bruxa andava solta. Fui � luta e descolei duas mulheres geniais na ronda
das lojas.
Por fim, encontrei Lize. Faltavam apenas quinze para chegar nas 2 mil. Recebi
correspond�ncia da imobili�ria que administrava os meus im�veis. Queriam tratar das
bostas de sempre, percentuais de reajustes,
expectativas de mudan�as previstas na nova Lei do Inquilinato, etc. Fui l�
conferir.
A minha renda, provinda da aposentadoria e da loca��o de uma d�zia de im�veis,
ficava em torno dos 20 mil d�lares mensais, dava para ir levando. A despesa tamb�m
era alta. N�o tinha, por�m, do que me queixar,
considerando a renda do brasileiro m�dio, era um privilegiado, localizado no topo
da pir�mide social. Embora tivesse feito carreira em �rg�o p�blico por mais de 25
anos, nunca fui al�m do terceiro escal�o.
O que melhorou os meus proventos foi uma promo��o pouco antes de me aposentar, mas
nada de excepcional. No entanto, nunca dei golpe ou roubei, como muitos colegas que
ficaram ricos. Posso at� afirmar,
sem falsa mod�stia, que fui um funcion�rio-padr�o. Dentro duma autocr�tica
flex�vel, reconhe�o que a aquisi��o de alguns dos im�veis foi facilitada pelo cargo
que eu ocupava, mas apenas na agiliza��o dos
tr�mites da papelada para os financiamentos, nada mais que isso. O que de certa
forma n�o representava porra nenhuma se comparado �s falcatruas praticadas no
servi�o p�blico pelo tr�fico de influ�ncia.
A minha maior preocupa��o era com as exig�ncias da pica, estando esta satisfeita, o
resto por extens�o tamb�m estava.
Na imobili�ria, a recepcionista, um monumento de mulher, me pediu para aguardar um
minuto. Sentei e peguei uma revista. Melhor observando, era uma garotinha, nova no
peda�o, cheia de vontade. O telefone
tocava, ela atendia toda sol�cita:
Lize falando, bom dia.
Uma vozinha para l� de dengosa. Enquanto fingia ler a revista, acompanhava seus
deslocamentos de idas e vindas. Cintura de vespa, bunda arrebitada, pernas
alongadas, peitos duros, cabelos crespos e castanhos
despencando pelas costas, olhos esverdeados, l�bios carnudos, nariz delicado, o meu
ideal de beleza feminina. A cal�a justa de malha preta real�ava as n�degas
estofadas, blusa cinza-floreada, saltos altos
pretos de verniz com fivela prateada, brincos de argolas, um metro e sessenta e
cinco, manequim quarenta, quarenta e oito quilos, entre 16 e 18, pisava firme, como
uma potranca no cio, �gil, decidida,
com todo o leite, ofereceu-me um cafezinho, gentil, desculpando-se da demora.
Enquanto servia, empinou a bundinha e eu gozei em seco. Deu um giro e sumiu l� para
dentro, regressou me pedindo novas desculpas,
eu teria de aguardar mais um pouco, um pouquinho mais de paci�ncia, e pontuou esse
momento sublime com um sorriso que me atingiu violentamente no saco. Comecei a
babar como o c�ozinho diante da del�cia
no prato, mas sem receber de Pavlov a ordem para comer.
N�o tem import�ncia eu disse, abanando o rabo, feliz , espero o tempo que for
necess�rio.
Ela voltou para sua mesa. Fez e refez uma liga��o que n�o se completava. Comecei a
passar mal. N�o podia conceber tanta mulher num corpo s� impune, eu j� a devia
estar estuprando. Est�vamos a s�s ali na
frescura do ar condicionado e da m�sica ambiente e eu, subjugado, n�o podia fazer
nada, nada, tolhido por mil�nios de civiliza��o. A minha impot�ncia passou a ser
uma equa��o metaf�sica insolucion�vel.
Ela tentou mais uma vez, mas s� depois de longa espera algu�m atendeu no outro
lado. Ela e n�o sei quem ficaram um temp�o de papo, o que me provocou um ci�me
desvairado. Escudado na revista pude entender,
ap�s os preliminares, que ela queria que o babaca fosse almo�ar com outro tal, de
nome Airton, e fizesse uma ponte para que ela e o tal Airton se encontrassem, se
poss�vel ainda aquela noite. O que ia
fazer a ponte falou, falou.
P�, cara, d� uma for�a.
Sim, era uma s�plica. Uma rainha suplicante, desesperada? O babaca falou, falou,
falou, falou.
T� bom, t� bom. Desculpe, voc� tem raz�o, eu tenho mais � que esquecer ele. Quando
n�o d�, n�o adianta for�ar a barra, n�o � mesmo? Obrigada, desculpe, tiau.
Descansou o fone e deixou fluir um choro silencioso, sentido. Uma rainha
choramingas, desprezada? Matei a charada, sexta-feira, ela tinha gasto o �ltimo
cartucho para programar a noite, o fim de semana,
mas fora tudo por �gua abaixo. Senti o seu drama, era hora do Super Comedor entrar
em a��o.
N�o vale a pena eu disse.
Oi?
N�o vale a pena chorar por ele, ele n�o vale isso, voc� sabia que cada l�grima de
amor � um diamante extra�do da jazida inesgot�vel do cora��o? N�o � assim que fala
o locutor de r�dio atendendo o seu
consult�rio sentimental na madrugada e mantendo em alta a audi�ncia? Quem vos fala
� o Professor A��car Mascavo, aconselhando cora��es atormentados.
Ela sorriu, triste, secando o rosto com um len�o de papel tirado da gaveta.
Das duas uma continuei , ou voc� parte pra outra ou muda de t�tica e faz ele
correr atr�s, como um totozinho na coleira da dona. Os casados, ent�o, s�o os mais
f�ceis de manipular. Se voc� quiser,
podemos jantar hoje e eu te dou umas dicas bem quentes.
Ela sorriu desanimada.
N�o vale a pena.
Meu m�todo tem seguro-desenlace, se n�o der certo, bom, eu choro junto.
Ela tornou a sorrir.
Sou expert no assunto, menina. Tenho at� um livro escrito: Como Manter Seu
Namorado na Gaiola em Tempo Integral em uma Li��o, n�o requer pr�tica nem
habilidade, e, depois, bonita como voc� �, vai ser
uma barbadinha, s� podemos perder as esperan�as se o rapaz for da ala gay.
Agora ela riu com gosto. Eu tinha sacado sutilmente o seu drama, inflado o seu ego,
bancado o palha�o, me dispunha a ajud�-la, tudo isso em fra��o de minutos, existe
pai melhor? Ela, por acaso, teria outra
oportunidade igual na vida?
A que horas voc� sai?
�s 18h, mas.
Ent�o eu passo aqui.
Olha, o senhor n�o leve a mal.
Senhor t� no c�u. �s 18h estou esperando voc� l� embaixo.
N�o, n�o, primeiro eu vou para casa, n�o vou sair assim.
Claro, queria tomar um banho, trocar de roupa, perfumar a pombinha.
Me pega l�, n�o tem problema para o senhor?
Nenhum, senhora.
Nisso algu�m abriu uma porta e chamou o meu nome. Na sa�da ela me passou um papel
com um endere�o rabiscado, 20 horas. Fiquei torcendo para que o tal Airton n�o
mudasse de id�ia e fosse procur�-la, para
que n�o sucedesse nenhum cataclismo ou coisa do g�nero. Quinze para as oito,
taquic�rdico, eu j� estava estacionado na frente da espelunca que era a rep�blica
de mo�as onde ela morava. Um pr�dio deprimente,
caindo aos peda�os, numa rua escura, no Rebou�as, boquinha entaipada. �s 19h55 ela
veio espiar na porta, para conferir, saindo em seguida. Magn�fica na minissaia. O
rostinho ainda levemente anuviado animou-se
um pouco mais ao se instalar ao meu lado (tentando esconder a surpresa pelo BMW, no
qual deu uma inspecionada rel�mpago, num microssegundo, fingindo n�o notar nada
daquilo que a envolvia como um �tero)
e receber o ramalhete de rosas vermelh�ssimas.
Obrigada disse contida, aproximando o nariz das flores , voc� n�o.
No seguimento, n�o demorou quase nada para que eu colocasse uma fita no possante
aparelho e a voz a�ucarada do Julio Iglesias come�asse a fazer cafun� nas suas
�ltimas resist�ncias de franguinha deslumbrada.
Cinco minutos depois estava rindo, feliz, o luxo, o poder, apazigua as mulheres, o
Pret�o era um iate singrando o mar das Noites Prazerosas rumo ao Continente dos
Orgasmos Intensos, percebeu que tinha
entrado noutra dimens�o, relaxou, s� faltava gozar, o tal Airton j� era, n�o
passava de um borr�o no seu passado falido. Levei-a a um dos restaurantes mais
sofisticados de Curitiba.
Quanto tempo, doutor, esteve viajando? perguntou o ma�tre, polido.
�Muit�ssimo ocupado com o tira-e-bota.�
Ocupamos uma mesa lateral, bem aconchegante, sugeri os pratos, vinho branco
acompanhando. Lize quis pedir suco de laranja. Eu me apressei em dizer:
N�o combina.
Nem em sonho ia permitir que ela corrompesse o momento. Muito franca, deixou vazar
que nunca estivera num lugar t�o chique antes.
Fica � vontade cochichei dentro do seu ouvidinho e senti ela se arrepiando toda ,
essa espelunca � que n�o t� acostumada com mulheres glamourosas como voc�.
Camaleoa, em seguida, por�m, assimilou o ambiente e descontraiu. O vinho e os meus
cochichos de orienta��o ajudaram, claro: bastava eu abrir a boca que ela aproximava
o ouvido, viciadinha que ficou no
bafo do le�o. Foi abrindo tudo, numa franqueza comovente. Era natural de Umuarama,
interior do Paran�, cidade onde o Darli mandaria matar, anos depois, um corretor de
im�veis antes de apagar o Chico Mendes.
Estava em Curitiba havia quatro meses apenas, e com o Airton, havia dois. Ele era
casado, tinha 38 anos.
Regula com voc�, s� que um pouquinho careca. Me escondera o tempo todo o fato de a
esposa estar gr�vida do terceiro filho. S� foi me contar h� coisa de uma semana,
quando a mulher passou a desconfiar
e o pressionou. A� ele resolveu romper, antes que a coisa complicasse para o lado
dele, eu n�o pesava na balan�a, nada mesmo.
Ele trabalhava no banco onde a imobili�ria tinha conta, falou com o gerente e
arranjou a vaga para Lize, onde iniciara havia quinze dias.
Muito gamada ainda?
Nem tanto, talvez seja mais amor pr�prio ferido, sabe, a gente nunca gosta de
receber um fora, voc� n�o acha? Voc� viu que eu tentei uma reaproxima��o, n�o viu?
Acordei cedo e fui correr, dia ensolarado e quente. Lize na cabe�a, corri uns dez
quil�metros, cheio de g�s, botando energia pelo ladr�o, euf�rico, a mil, como se
tivesse cheirado todas, parei, alonguei,
sentei debaixo de uma �rvore, e, sem qu� nem porqu� me flagrei chorando,
copiosamente. Coisa de O M�dico e o Monstro, um po�o de sentimentos desencontrados.
Pensava em ir para casa, banho, roupa limpa,
voar para a pens�o. Foi o que fiz. Enchi uma valise e disse a Ot�lia que ia viajar,
sine die de retorno.
Ah, a Lize. Desceu mais linda, mais iluminada, o cabelo molhado, shortinho, �culos
escuros, boca pintada de vermelho, reclamando de dor de cabe�a, parei num posto e
comprei aspirinas. Peguei a estrada,
sentido S�o Paulo, s� paramos em Registro para almo�ar numa churrascaria.
Flutu�vamos. Resolvi retornar a Curitiba, eu queria fugir com ela, mas estava
confuso, n�o sabia para onde, tomara a dire��o errada.
Num trecho da estrada, por�m, ficamos nos encarando, em sil�ncio, surdos ao som de
Julio Iglesias. Parei no acostamento e beijamo-nos, horas a fio. Nossos cora��es na
boca, no lugar das l�nguas, querendo
pular para fora. Voei para Curitiba, parei na frente da pens�o e ela pegou umas
coisas, �s pressas.
Desci para Florian�polis, pisando fundo. A estrada congestionada, entretanto,
acabou com a minha urg�ncia, chegamos somente ao escurecer. Instalamo-nos num hotel
quatro estrelas, no Centro, banhamo-nos,
trocamos de roupa e sa�mos, j� esfomeados . Em um restaurante agrad�vel em Jurer�,
comemos frutos do mar e tomamos vinho. Diz�amos qualquer coisa, r�amos, nos
bast�vamos um ao outro.
N�o quebr�vamos o contato f�sico em nenhum momento, fic�vamos de m�os dadas, ou
abra�ados, ou ro�ando as pernas enquanto com�amos, ou aos beijos. O toque era
fundamental, sem o que parec�amos em abandono,
n�o bastava a simples presen�a do outro, era preciso apalpar, sentir, um medo
s�bito e renovado da separa��o.
Onde estiv�ramos todo esse tempo? Como pudemos estar separados? Sentados na areia,
olh�vamos o mover das �guas, a lua, o c�u, as nuvens, as rochas, sufocados de
felicidade, a respira��o boca a boca tinha
a emerg�ncia de resgate, ressuscita��o. Escutamos o som de uma banda ao longe. Lize
se eri�ou:
Vamos dan�ar?
Tomamos o carro e encontramos o local j� cheio de gente. Nos misturamos � multid�o.
Lize tinha um diab�lico meneio de serpente. Eu ficava � sua merc�, passarinho
tr�mulo. Eu a queria s� para mim, por isso
a carreguei para fora, urg�ncia urgent�ssima.
Rumei para leste, passando por Canasvieiras, Ingleses, at� desembocar na praia do
Santinho. Invadi um terreno baldio, � borda do outeiro, juntando-me a outros carros
estacionados. Todos t�nhamos objetivos
em comum. A vista dali era magn�fica, o luar despejando sobre o mar e os rochedos.
Apoiados � lateral do carro, ficamos abra�ados, recebendo o bafejo da brisa
carregada de maresia, envoltos no sil�ncio,
curtindo o barato da noite.
Aos beijos, pression�vamos mutuamente os corpos, Lize sentiu meu volume e come�ou a
se esfregar nele, escorregou a m�o e ficou alisando, botei para fora, ela empunhou,
agachou-se e meteu-o na boca, seus
l�bios carnudos, encobrindo os dentes, tornavam a chupada perfeita, mostrou que
sabia fazer.
N�o goza pediu , quero te sentir.
Ergui-a gentilmente nos bra�os e a coloquei sobre o cap�, arranquei-lhe o shorts e
a calcinha, penetrei-a lentamente, invadindo-lhe a privacidade com total
consentimento, mergulhando em suas profundezas
e compartilhando a intimidade do seu �tero envolvente, como se o meu membro fosse
um feto muito querido, a espada e a bainha, eu me encaixava em seus desv�os com a
perfei��o das coisas compat�veis, �ramos
um s�, nossa sincronia de movimentos nos elevava do solo e atingimos um orgasmo
simult�neo, fulminante.
Eu te amo ela disse, precipitada, emocionada. Voc� � o homem da minha vida.
Eu tamb�m te amo me flagrei retrucando , voc� � a mulher da minha vida.
Como despertados de uma letargia moment�nea, entramos no carro e nos refugiamos num
hotel pr�ximo dali. As acomoda��es tinham vista para o mar. Ficamos enla�ados, na
sacada, numa simbiose de depend�ncia
eterna. Repet�amos �te amo, te amo� um para o outro, sem parar. Crescia o
sentimento m�tuo de que era imposs�vel suportar nova separa��o. J� madrugada,
carreguei-a nos bra�os para dentro e coloquei-a na
cama. Eu era o homem mais manso do mundo. Ficamos horas trocando car�cias, juras de
amor, quis erguer-me para ir ao banheiro, mas ela n�o permitiu.
N�o me deixa, nunca mais, quero voc� ao meu lado, para sempre.
Lize me acariciava o rosto, me beijava docemente as p�lpebras, nariz, boca, face,
mir�vamo-nos com olhos de mel.
Promete que nunca vai me deixar?
Prometo, jamais.
Promete que vai me amar para sempre?
Prometo.
Promete que vou ser a �nica?
Prometo, a �nica.
Quando vi voc� entrando na imobili�ria, senti um calafrio, sei l�, s� podia ser um
aviso. Fiquei alerta. Voc� l�, lendo a revista, nem me deu bola, a�.
A� voc� ficou t�o impressionada comigo que, em seguidinha, ligou para o amigo do
Airton.
N�o foi �timo? Imagina se n�o tivesse sido assim, voc� iria reparar em mim, por
acaso?
Ri, que maneira de abreviar as coisas.
Imposs�vel n�o reparar em voc�, princesa.
Ficou com peninha de mim, de verdade, ou n�o passou de onda?
Fiquei, juro, cuidava voc� o tempo todo por cima da revista, despindo-a com os
olhos, tirando pecinha por pecinha, tal como num striptease.
Seu tarado, fazia isso mesmo? Com aquela cara de santinho do pau oco, parecia t�o
inocente, t�o s�rio. Mas, como n�o sou boba, meu instinto me aconselhou: �Se cuida
com esse que por tr�s daquela pele
de cordeiro se esconde um lobo mau cheio de m�s inten��es�. A�, quando voc� falou
comigo, com essa voz de radialista da madrugada, senti de novo aquele arrepio. Voc�
parecia t�o �ntimo, t�o carinhoso.
Mas eu sou carinhoso.
Claro que �, demais. Me derreto toda por um carinho, me deixa mais gamadona, se �
que isso � poss�vel. Promete que vai ser sempre assim, que nunca vai me judiar?
Prometo, vou sempre tratar voc� com o m�ximo de carinho, ternura, amor, vou encher
voc� de dengues, voc� vai virar uma manteiga derretida.
Voc� acredita em Deus, amor?
N�o.
Pois eu acredito. Acho que foi Ele quem nos uniu, Ele que o conduziu at� a
imobili�ria aquele dia, para nos conhecermos, s� pode ser obra Dele a gente estar
aqui. Num dia eu estava t�o infeliz, no outro,
no para�so, s� Deus.
�, deve ser, voc� tem raz�o. Resolvi provocar Mas, e o Airton, j� esqueceu? Deus
a ajudou a esquec�-lo?
Quem � Airton? N�o conhe�o.
Ela me beijou, bloqueando a r�plica, depois continuou:
J� esqueci, sim, e n�o sou nenhuma leviana, n�o, o Airton � um boc�, uma crian�a
mimada que n�o sabe o que quer, preocupado com a esposa, que � quem ele realmente
ama, s� quis me usar, se aproveitar
de mim, boba fui eu que n�o percebi isso antes. S� posso dar gra�as a Deus, sen�o
eu n�o estaria aqui com voc�, ia estar perdendo tudo isso. Depois que voc� me
beijou, l� na estrada, e eu me apaixonei,
descobri que todos os outros homens s�o uns bobos comparados a voc�.
Voc� por acaso est� me chamando de Rei dos Bobos?
N�o, amor meu, voc� � o Rei dos Homens, o dono do meu cora��o, se voc� me deixar,
prefiro morrer.
Ora, garota, voc� me ama com o entusiasmo dos seus 17 anos, com a sa�de e a
energia da sua idade. Nessa fase, o amor � como fogo na palha, intenso, s� que se
esvai logo.
Ah, �? E voc�, com esse �mpeto todo? O seu amor � diferente?
N�o, mas eu te amo com a sabedoria dos meus 48, � um amor bem mais est�vel.
Voc� tem 48? N�o parece, eu lhe daria, no m�ximo, 30 e poucos. O Airton aparenta
ser mais velho que voc�, e s� tem 38, exatamente dez anos menos.
Obrigado, voc� � muito vaselina, isso sim.
Posso lhe dizer uma coisa, amor?
hum hum.
Promete que n�o vai ficar muito vaidoso?
Depende.
Para mim, voc� � o Homem Mais Lindo Do Mundo.
Puxa, n�o fala assim, voc� � que � a Mulher Mais Linda, Mais Gostosa, Mais Tesuda,
Mais Aduladora.
Aduladora, eu? Ent�o aprendi com voc�, voc� me elogia muito.
Ela silenciou, e eu n�o quis quebrar o encanto, ficamos mirando o teto, chocando a
nossa felicidade.
Amor?
O que �, princesa?
Posso lhe fazer uma pergunta, uminha s�, promete ser sincero?
Pode, mas j� sei o que �.
Me responde, ent�o.
Sim, casado, dois filhos, ambos mais velhos que voc�, tenho idade para ser seu
av�.
Av�? De jeito nenhum. Pai, at� concordo, o meu deve ter a sua idade, agora, av�,
nunquinha.
Ela voltou a ficar pensativa. Eu j� sabia, sabia, n�o, pressentia. A felicidade
nunca � completa.
Vai mudar alguma coisa? perguntei.
Ela emudeceu de novo, ensimesmada. Depois de um tempo, me disse:
N�o, pra mim n�o muda nada, algu�m tem culpa, por acaso?
De que signo voc� �? indaguei.
Escorpi�o, ascendente em Le�o, e voc�?
�ries, ascendente em Sagit�rio, combina?
� unha e carne, principalmente carne.
Que �timo.
Depois de uma breve pausa, eu disse, imitando-a:
Benzinho, posso pedir uma coisa? Promete que deixa?
Depende.
Deixa eu ir ao banheiro? Sen�o vou fazer pipi na cama.
Puxa, adorado, esqueci por completo, me perdoe. Mudou de tom: N�o, meu Senhor,
s� se for comigo.
Pegou-me pela m�o, conduzindo-me ao banheiro, abriu a braguilha, de c�coras, e p�s
para fora, orientando a mira. Urinei, um jato forte e demorado, barulhento. Ela
assistia, curiosa.
Meu Deus exclamou, arregalando os olhos , voc� ia alagar a cama.
Ela pegou um peda�o de papel higi�nico e passou na cabe�a.
N�o � assim, � assim disse eu, sacudindo.
Ela o pegou e me imitou. Ele come�ou a crescer em sua m�o.
Viu porque eu n�o queria fazer assim?
Rimos. Ela me pediu licen�a, tirou a calcinha sem nenhuma cerim�nia e sentou-se no
vaso, um jato id�ntico ao meu, forte, demorado e barulhento.
Voc� tamb�m ia alagar a cama, princesa.
Lembrei os versos do poeta assistindo � mic��o da amada e avaliei o grau de
intimidade e erotismo que o motivou a escrever o poema. Ela secou-se, vestiu a
calcinha, arrebitou a bundinha, o mesmo gesto
que me atordoou na primeira vez em que a vi.
Pronto, agora vamos dormir, s� falta escovar os dentes.
Mas n�o dormimos nem escovamos os dentes, fizemos amor at� o dia raiar, depois,
sim, adormecemos, felizes.
Eu havia ancorado o meu navio em porto seguro e n�o me animava a zarpar dali t�o
cedo. Isso, no entanto, tinha um custo enorme: eu passava os dias esperando o final
do expediente para ir apanhar Lize:
dez horas, seiscentos minutos, trinta e seis mil segundos, ros�rios e ros�rios duma
penit�ncia sem fim. Cheguei a peg�-la no hor�rio do almo�o algumas vezes, mas me
tornei t�o inconveniente, n�o permitindo
que ela retornasse ao trabalho, que achei melhor n�o aparecer mais.
Matava o tempo como podia, ou seja, no pior mau humor. Entrementes, ligava v�rias
vezes para a imobili�ria para lhe dizer coisas do tipo �Soy loco por ti, mi amor�,
�Te adoro�, �Te quiero�, �I love you�,
�Je t�aime�, enviava buqu�s de rosas e cart�es ardentes. Eu havia perdido a
compostura, n�o tinha olhos para nenhuma outra f�mea, cavalgadura errante e
desembestada sem r�dea nem cavaleiro. Lize, Lize, Lize, dia e noite, uma fixa��o
louca.
�Por quanto tempo, ainda, Jorgito?�, eu me indagava, tentando prever a dura��o da
paixonite aguda. Nada mais me interessava. Eu a aguardava na sa�da da imobili�ria,
suando frio, at� o �ltimo instante achando
que algo imprevis�vel iria acontecer para impedir o nosso encontro, a minha fissura
realmente s� acabando quando a via sentar-se ao meu lado. Ent�o era ducha fria, o
mundo que se exploda, v� tudo para
o inferno, apr�s moi le d�luge. �amos beber, jantar, depois motel, e a minha
felicidade era completa. Ou melhor, quase, pois, ap�s breve calmaria, iniciava-se a
segunda fase, a da expectativa da nova separa��o
na manh� seguinte. Um sufoco. Eu n�o lhe falara do moc�, mas me angustiava tanto
com a aus�ncia dela que pensava em abrir logo o jogo e lhe propor que mud�ssemos
para l�, casarmos de mentirinha, faz�-la
demitir-se da imobili�ria, sei l�. Num esfor�o prodigioso de vontade, no entanto,
contava at� mil e adiava o impulso. N�o podia me afogar no momento, como
recomendara um alem�o pirado. E quando a paix�o
acabasse, o que podia ocorrer a qualquer momento, dados os meus antecedentes, o que
seria de mim? Ia ficar com um baita abacaxi nas m�os, uma intrusa pegando no meu p�
o tempo todo. �Calma, Jorge, voc�
vai entrar na maior fria�. Mas, bastava pensar assim para que, como uma r�plica
conclusiva, me sobreviesse a convic��o plena de que meu amor por Lize era sincero e
verdadeiro, eterno, sim, nos amar�amos
para sempre, n�o eram meras palavras.
Enquanto pesava os pr�s e os contras do nosso relacionamento, analisando as
circunst�ncias que poderiam faz�-lo dar certo ou n�o, ia protelando por mais
algumas horas a decis�o que poderia selar o meu
destino. Como macaco burro, no entanto, eu permanecia com a m�o na cumbuca
segurando o engodo, com certeza iria me arrepender de n�o larg�-lo. Afinal, j�
fic�vamos juntos a noite inteira, mais intimidade
imposs�vel.
Durante o dia, ela tinha os seus afazeres, eu, os meus, a separa��o natural
enfrentada por casais do mundo todo. Eu � que estava precipitando as coisas. O
problema maior foi reconhecer que, na verdade,
eu n�o tinha nada para fazer, ficava o dia inteiro de bobeira: acabava sendo levado
pelo arrast�o da saudade e tudo recome�ava. Precisava arranjar uma distra��o,
ocupar-me com qualquer coisa, s� isso.
Cheguei a tentar ler na Biblioteca P�blica, ir ao cinema, catar coquinho, jogar
pedrinha n��gua, nada adiantou, o tempo passava cada vez mais lento. Pensei em
pegar umas minas, mas n�o arranjei for�as
para tomar a iniciativa. N�o, a minha pica s� pedia Lize, Lize.
Por fim, joguei tudo para o alto e reca� no c�rculo vicioso da minha
insolucion�tica, agora com a circunst�ncia agravante de violentas crises de ci�me,
enxergava rivais na imobili�ria e em todo lugar.
Ao mesmo tempo, fazia malabarismos para n�o demonstrar nada disso a ela, e at�
conseguia enganar bem, mas no fundo me sentia inseguro como um p�ssaro de asas
quebradas.
Quando descobri que dormir me acalmava, passei a ingerir doses maci�as de
ansiol�ticos, bodeava a tarde toda. S� tinha o cuidado de botar o rel�gio a
despertar para n�o correr o risco de perder o hor�rio
da sa�da de Lize, Deus me livre. Havia, por�m, o risco de revert�rio na mistura com
�lcool, o que invariavelmente ocorria. Eu me turbinava e � noite era sempre um
rec�m-nascido. Assim, o nosso roteiro
varava a madrugada. Lize volta e meia se queixava de passar o dia todo bocejando na
imobili�ria. Nos fins de semana ca�a dura, nada a arrancava da cama. Pudera, em um
m�s, n�o havia motel, restaurante
ou boteco de Curitiba que n�o houv�ssemos visitado. Ela entrava no carro e eu
partia para um roteiro sem rumo.
Primeiro, fazia uma parada em qualquer lugar para a sess�o de beijos, beijos e mais
beijos por horas a fio, nunca antes havia beijado tanto algu�m; era uma fome m�tua
e insaci�vel de beijos. Segundo, quando
a outra fome pintava, invad�amos o boteco mais pr�ximo do nosso beij�dromo
ambulante. Tudo por conta do acaso. Fic�vamos l�, bebendo, comendo, conversando,
rindo, enfim, curtindo a nossa desatinada paix�o.
L� pelas tantas, tom�vamos a saideira, mas, em vez de lev�-la para casa, eu for�ava
a entrada em outra boquinha entaipada. E assim ia, e mais outra e mais outra. Lize,
para n�o me desagradar, topava todas.
E n�o foi uma nem duas vezes que a levei direto para a imobili�ria para que n�o
perdesse o hor�rio.
Em certa ocasi�o, numa dessas baiucas mais � m�o, um grupo de bebuns, numa mesa
pr�xima, encasquetou com o coroa e a ninfeta. A rapaziada estava com a mesa repleta
de garrafas de cerveja vazias, na maior
bagun�a. Quando eu ia ao banheiro, um deles se aproximava de nossa mesa e dava em
cima de Lize. Querendo parecer liberal e superior, levei na esportiva, o que foi um
erro. Quando foi a vez dela de ir ao
toalete, o carinha foi atr�s e esperou na sa�da para passar-lhe um cart�o, ela deu
um tapa na m�o estendida e o cart�o saltou longe. Os outros riram. Ele matou no
osso do peito. Lize voltou para a mesa.
Vamos embora pediu.
Concordei, era hora de levantar acampamento, sen�o ter�amos problemas. Pedi a
saideira, bebemos, paguei, fomos para o carro, liguei o motor.
S� um pouquinho, amor, vou dar uma mijadinha e j� volto.
Voltei ao bar. Passei pela mesa dos caras sem olh�-los, fingi entrar no banheiro e
fiquei espiando, escondido atr�s da divis�ria. O carinha levantou e os colegas
ficaram instigando-o, animou-se com a minha
demora e foi at� o carro. Sa� do esconderijo e tomei a dire��o do grupo, cheguei
chutando a mesa e foi aquele au� de garrafas e copos, acertei um direto no queixo
do mais pr�ximo, o p� na boca de outro,
uma cabe�ada no terceiro. Corri para o carro. O carinha bem que tentou se evadir ao
perceber que ia sobrar para ele, mas fui mais r�pido. Cacei-o pela cinta e pelos
fundilhos e joguei-o de cabe�a no meio
da rua. Olhei para tr�s, para avaliar o estrago. Os bebuns das outras mesas,
solid�rios, ajudavam os caras a se erguerem, o dono da bodega sa�a detr�s do balc�o
de cabelos em p�, entrei no carro e cantei
pneus na arrancada.
Lize estava p�lida, assustada.
O que houve, amor?
Os rapazes foram levantar, escorregaram e deram de cara no ch�o eu disse,
for�ando o riso.
Lize tirou um len�o da bolsa e passou no meu rosto, o tecido ficou vermelho. Olhei
no retrovisor e descobri um corte no topo da cabe�a vertendo sangue. Na cabe�ada,
devia ter pego os dentes do debi. O
sangue escorria-me pela lateral do rosto, tingindo a gola empapada da camisa. Lize,
muito nervosa, colocou o len�o sobre a ferida e ficou pressionando-o para conter a
hemorragia. Insistiu para que f�ssemos
a uma emerg�ncia hospitalar. Cedi. L�, rasparam o cabelo em volta do ferimento,
suturaram e plantaram um curativo. Lize, agarrada ao meu bra�o � sa�da do hospital,
disse:
Benzinho, n�o sabia que voc� era t�o brabo. Quase aleijou os rapazes, meu anjo.
Brincadeirinha. Foi para eles aprenderem a respeitar um senhor de idade e a sua
namoradinha.
Eles estavam b�bados, anjo, voc� tinha que dar um desconto.
Comigo, n�o, viol�o disse eu, fingindo zanga. Mexeu, levou.
Eu � que nunca vou querer tirar voc� do s�rio brincou ela.
Se voc� se meter comigo, leva pau.
Dependendo do pau, at� me meto, mesmo.
Em voc�, sua bobinha, eu n�o bato nem com uma rosa.
Hummm, que galante!
Para n�o despetalar a rosa.
Seu cretino.
Entramos no carro e iniciamos nova sess�o de beijos.
Meu her�i exclamou ela, excitad�ssima , me leva pra cama, me mata de prazer.
Era assim, sem tirar nem por. N�o sosseg�vamos o pito. Depois daquele dia, mais
seletivos, passei a tomar a dire��o dos restaurantes sofisticados, ela n�o queria
mais saber de baixaria. Nos fins de semana,
desc�amos para Floripa. Com a chegada da primavera e as chuvas frequentes,
passe�vamos pela praia debaixo dos aguaceiros, retornando ao hotel encharcados.
Tom�vamos uma ducha, com�amos alguma coisa e �amos
para o quarto foder.
Pul�vamos de praia em praia, de hotel em hotel, peripat�ticos amantes que �ramos.
Onde dar com os costados no dia seguinte era algo que n�o sab�amos nunca. Lize era
obcecada por fotografia, andava sempre
com uma c�mara a tiracolo e um estoque de filmes. Clicava na m�quina o tempo todo.
Eram dezenas de instant�neos por onde pass�vamos. Mandava revelar os filmes em que
est�vamos nus sem a menor inibi��o.
Comprava �lbuns e colocava etiquetas legendadas com os nomes dos lugares, datas,
etc. T�nhamos alguma coisa em comum na mania de colecionar. Mostrava-me fotos mais
antigas e perguntava: Lembra? �s vezes
eu n�o lembrava e ela relatava tudo em tantos detalhes que eu ficava impressionado
com a precis�o de sua mem�ria.
Muito mais, lembrava as roupas que vest�amos no primeiro encontro, o sabor do
primeiro beijo, aquele que a fez amarrar-se em mim, as palavras que eu falara em
tal dia, tal hora, o que com�ramos em tal
ocasi�o, os textos das mensagens de amor que eu lhe remetera no in�cio do nosso
relacionamento, o escambau.
Sabe que dia � hoje?
E deveria?
Est� fazendo quatro meses que estamos juntos.
Tudo isso? retruquei de brincadeira.
Antigamente, voc� era mais rom�ntico, mandava flores. Pelo jeito o entusiasmo
morreu cedo.
Juro que n�o lembrei, princesa, perd�o. Inclinei-me para beij�-la, virou o rosto.
O SONHO
Pelas fotos e fitas de v�deo, recomecei a vida com Lize. Ela juntara centenas de
fotos em v�rios �lbuns e eu os manuseava diariamente. Levava horas, o dia todo
nisso. Eu sabia que era m�rbido proceder
assim, remexer num passado sem volta, mas n�o conseguia evitar. Eu procurava
interpretar o que Lize tencionara fixar em cada instant�neo, o efeito de cada
gesto, cada express�o, a ess�ncia de toda a sua
vitalidade existencial estava ali condensada. Sob esse aspecto din�mico, vital,
determinado, Lize e Laura se assemelhavam, elas usavam atalhos para resolver as
coisas, n�o sofriam as hesita��es da d�vida,
disparavam a decis�o como uma seta, e, via de regra, a resolu��o tomada atingia o
alvo, era a acertada. Esse car�ter pr�tico de resolver as coisas � que me encantava
nelas, a simplicidade, o descomplicado
modo de ser das duas. Quanto a mim, andava em c�rculos ou dire��es helicoidais, em
emaranhados tortuosos, labir�nticos, nunca em sentido retil�neo, comigo as coisas
n�o transcorriam lubrificadas, escorreitas,
mas pesadas, imbricadas. Sem Lize eu estaria, ainda, colecionando calcinhas, sem
Laura, amargando autopiedade. Aprendera alguma coisa com elas, apesar dos pesares.
Cheguei a tentar entender os motivos que poderiam t�-lo levado a ser t�o
imprudente. Imaginei ene motivos, at� um muito f�til, gerado pela carona. Quem sabe
a mulher o aporrinha, e ele, irritado, toma
a rua atabalhoadamente. Quando deseja, uma mulher pode transtornar um homem em
poucos segundos, acha que n�o? Est�o discutindo, entram no carro e o cara, fora de
controle, arranca. Sai em marcha � r�,
a toda, sem olhar para os lados, cego de c�lera. A esquina est� pr�xima e � seu
caminho, para qu� manobrar? Segue adiante. N�o se v� isso a todo instante, babacas
infringindo leis de tr�nsito, andando
na contram�o, o diabo? Quem nunca andou na contram�o em rua de sentido �nico, que
atire a primeira pedra. Quem vai dar uma volta no quarteir�o e gastar combust�vel
quando pode resolver tudo em instantes?
Mas e as leis? Algu�m liga para elas, algu�m vai ser punido? O Ministro que enrole
e enfie. Foi assim. De r�, no escuro e cego de raiva, sem ligar para nada, o cara �
um assassino potencial. Puxa, a morte
j� estava rondando Lize, urubu sobrevoando a carni�a. O cara devia morar pr�ximo de
n�s, ser nosso vizinho. Ta�, simples. Ia ser barbada localizar o paradeiro do
sujeito. Teria conseguido na �poca, sem
deixar que Lize tivesse conhecimento, claro, para n�o deix�-la apreensiva. Mas n�o
tive tempo, fomos ceifados pela voracidade do gume.
Usei uma estrat�gia. Comecei vasculhando a rua onde se dera o quase atropelamento.
Se a hip�tese do arranca-rabo dom�stico tivesse fundamento, ia ser barbadinha.
Batia palmas. Quero falar com o dono do
Monza branco. Ningu�m sabia. Dei a volta no quarteir�o, metade do bairro, nada.
Nenhum morador, no raio de um quil�metro a partir do ponto onde eu residia, tinha
Monza branco em sua garagem. Subitamente,
todos os Monzas brancos tinham sumido do mapa. Achei estranho isso, o mist�rio do
Monza branco. N�o teria me enganado? Talvez, no calor do momento, eu tivesse
confundido as bolas. N�o, n�o. Era Monza branco,
n�o tinha como errar. Nesse caso, com a hip�tese furada, voltava � estaca zero. N�o
me dei por vencido. S� teria que verificar quantos propriet�rios de Monzas brancos
haveria em Curitiba e fazer contato
para saber quais os que teriam circulado em tal rua a tais horas de tal noite de
tal s�bado.
Fui a um despachante e acertamos pre�o pela rela��o dos propriet�rios que ele
levantaria no Detran. Ele calculava que dentro de um ou dois meses j� teria alguma
coisa para me oferecer, ou talvez um pouco
mais. Fiquei � espera. Mas, e se o carro n�o fosse de Curitiba? E se o carro fosse
roubado ou emprestado? Ligava para o despachante.
E a�, meu?
Olha, cavalheiro, o problema � o seguinte, n�o est� sendo f�cil, n�o, convencer
essa turma a me abrir os arquivos. Precisaria de mais uma verbinha para molhar a
m�o deles. Esse pessoal s� funciona na
base da propina.
O cara me enrolou o que deu e me levou uma grana preta. Meti a boca nele por
telefone. Desanimado, desisti da busca. Batia no saco e pensava: �E se eu me
desforrasse em qualquer motorista de Monza branco,
qualquer um, aleatoriamente, azar do Valdemar?� Dessa forma, mesmo na loteria do
acaso, tanto eu poderia topar com o verdadeiro culpado, como n�o. Se topasse,
embora fosse uma possibilidade remot�ssima,
muito que bem, sen�o, que import�ncia teria? De qualquer modo, eu jamais teria
certeza disso, se era ou se n�o era, quando muito poderia convencionar que fosse e
pronto. A decis�o era minha, somente. Sim,
uma esp�cie de decis�o de equival�ncia com sentido simb�lico. Qualquer um que fosse
o legal propriet�rio de um Monza branco, a partir daquele momento, independente de
cor, credo ou op��o sexual, seria
o meu alvo, o culpado de quase ter atropelado Lize. Alea jacta est, o julgamento
chegara ao seu final, a senten�a definitiva fora prolatada.
Uma carta do advogado de Judita para que eu fizesse contato urgente. Liguei pro
loque.
A senhora Judita quer saber se o senhor vai pegar o carro ou n�o.
Que carro?
O BMW.
Voc� � biruta, cara? O BMW n�o existe mais, virou sucata, n�o quero saber daquela
lata velha amassada, ela pode ficar, � toda dela! Hahahahaha.
O mediador, como se n�o tivesse me escutado, falou pausadamente:
Meu senhor, estou me referindo ao BMW que o seguro pagou, est� na garagem dela h�
quase um ano, ela quer saber o que fazer com ele, se o senhor vai peg�-lo ou o qu�?
Pensei: �Ent�o, durante todo esse tempo?. Sem eu saber e ningu�m tocar no assunto?
Viv�amos todos no mesmo planeta?�
Por que n�o me avisou antes, cara? Claro que fico com ele, quando posso apanh�-lo?
Lize e eu n�o sa�amos de dentro do BMW, passe�vamos pela cidade, como seguindo um
roteiro tur�stico: Jardim Bot�nico, �pera de Arame, Parque Barigui. Na beira do
lago, pedi cerveja e xis, Lize jogava
farelos e peda�os de p�o �s carpas, algumas bem-criadas disputavam a comida
espadanando na superf�cie, Lize ria muito, tudo a divertia, estava feliz, feliz e
tesuda, sempre ria muito quando queria aquilo
ou estava nos dias f�rteis, pelo menos eu ainda prestava para alguma coisa, faz�-la
feliz, mas quanto a ela, ia aguentar passar sem sexo?, logo ela que parecia ter
fogo no rabo? Essa d�vida me atormentava,
sen�o seria totalmente feliz. Eu tamb�m j� n�o era t�o machista, mas n�o a ponto de
admitir trai��o, ela jurou que jamais me trairia.
As mulheres s�o diferentes dos homens Lize argumentou , sublimam mais o sexo, tem
mulheres que aguentam longos per�odos de absten��o.
N�o sei, n�o.
Eu tinha as minhas d�vidas, mas se ela conseguisse, bom, seria perfeito.
Jura que voc� n�o nota os olhares cobi�osos dos outros homens?
Volta e meia eu flagrava algu�m a despindo com os olhos, ficava puto, mas, a bem da
verdade, nunca percebi que ela cuidasse algu�m em especial, n�o, era uma mulher
s�ria, nunca me dera motivo de desconfian�a.
Um dia, vi escrito numa privada de bar: �Enquanto eu tiver l�ngua e dedo, mulher
n�o me mete medo�. Ora, eu tinha ambos. A mensagem sob encomenda, como se tivesse
vindo do al�m, me deixou mais tranquilo.
N�o, Lize era uma mulher de garra, se eu estava privado de sexo, ela seria
solid�ria, o nosso grande amor estava acima dos apelos menos nobres.
Resolvemos sair da cidade, a polui��o estava demais, tomamos o rumo do litoral:
Paranagu�, Praia de Leste, Caiob�, Guaratuba. Abra�adinhos, fizemos a travessia de
balsa, subimos o Morro do Cristo, ela
n�o se perdoava de ter esquecido a filmadora, at� a m�quina fotogr�fica teria
quebrado o galho.
O culpado � voc�, disse que ia pegar a sacola em cima da cama e n�o pegou, eu bem
que preveni voc�.
Desculpe, benzinho, a gente volta outro dia.
Eu n�o devia confiar em voc�, eu � que deveria ter pego.
Sentados aos p�s do Cristo, avist�vamos os golfinhos de brincadeiras na �gua,
saltando e mergulhando, estavam com um pique daqueles.
Veja o que estamos perdendo, amoooooor, logo os golfinhos.
Retornamos j� noite, quebrados, fomos dormir cedo, deixamos programada nossa ida a
Floripa para a manh� seguinte. Depois de tanto tempo, precis�vamos ir at� l� para
quebrar o sortil�gio, a m� impress�o
da nossa �ltima viagem. Acordamos cedo, entusiasmados. Dia magn�fico, sol e calor,
ajudei-a a arrumar a bagagem, deixei a filmadora sobre a sua bolsa no sof� da sala
para que n�o houvesse risco de ser
esquecida, ela n�o me perdoaria uma segunda vez, mas nossa alegria durou pouco, o
BMW n�o estava mais ao lado do fusca, custamos a entender que tinham roubado o
carro.
Liguei para a pol�cia, me recomendaram ir at� a delegacia mais pr�xima formalizar
queixa, Lize recusou-se a ir, ficou chorando, inconsol�vel, os nossos planos tinham
ido por �gua abaixo, mais uma vez.
Como ela detestava o fusca, nem me atrevi a propor a troca, fui sozinho fazer o BO,
me retiveram l� a manh� toda. Havia muito cafezinho e papo-furado pela frente, pura
perda de tempo, � impressionante
o descaso desses caras, olham para a gente e n�o nos veem. �Pol�cia e merda � a
mesma coisa, quero ver esses bostas me pegarem�, eu dizia para mim mesmo, encarando
os agentes num desafio silencioso.
Sa� de l� com a velha raiva montada na minha cacunda. Com ou sem pol�cia, eu mesmo
iria atr�s dos bandidos que roubaram o meu carro de estima��o, n�o ia deixar a
coisa passar em brancas nuvens desta vez,
eles iam se foder comigo, ah, iam. Quando cheguei em casa, Lize ainda dormia. Bati
no saco de boxe. Mais calmo, liguei para o advogado de Judita, quem sabe n�o
haveria uma chance.
Quem �?
Aqui � o Jorge. do BMW.
H�m?
O BMW tinha seguro?
N�o sei, acho que n�o, por qu�?
Roubaram o carro.
O qu�? N�o me diga que o senhor deixou que lhe roubassem aquele carr�o.
O desgra�ado estava rindo na minha lata, gargalhando, nem se deu ao trabalho de
tampar o bocal do fone.
Vai se foder, seu bund�o! berrei, desligando.
Fui espiar no quarto, Lize seguia dormindo, pobrezinha, devia estar arrasada, nem
os meus gritos conseguiram despert�-la. Cobri-a com o len�ol e afastei-me p� ante
p�, peguei as chaves do fusca, a pasta
e tomei as ruas.
Andei um bocado pela cidade. Ao retornar, executei uma esp�cie de espiral, tendo
sempre como ponto de refer�ncia o quarteir�o onde eu morava, circundando as ruas
pr�ximas, � procura de algum suspeito.
N�o vi ningu�m que tivesse caracter�sticas de ladr�o de carros, ou melhor, ou todos
pareciam bandidos ou ningu�m parecia, as pessoas deviam carregar cartazes, sou
isso, sou aquilo, seria mais pr�tico,
a raiva atravessada na garganta como uma jamanta me deixava zonzo, esses putos
estragaram o nosso programa, foram se meter com quem estava quieto. Decidi que,
naquela noite, aproveitando o sono de Lize,
ia sair de fininho e ca��-los, deviam atuar nas redondezas, esses caras t�m suas
�reas demarcadas, s�o sempre os mesmos, o Sangue me dera boas dicas do modus
operandi dos puxadores de carros, entrementes
eu vira uns caras estranhos rondando o pr�dio n�o fazia muito, deviam ser eles, seu
reinado � na noite.
J� em casa, desgastado, virei umas talagadas de Johnnie, n�o podia deixar Lize
desconfiar de nada, ela andava meio esquisita ultimamente, jogando verdes, o jeito
� negar sempre, n�o sei, n�o vi, tenho
raiva de quem sabe. Achei-a muito abatida, a maldita enxaqueca, levei um lanche
para ela na cama, tentando levantar o seu astral, mordiscava o sandu�che sem
vontade, lhe dizia coisas como �A vida � assim�,
�Estamos juntos nessa�, �Tem mais Deus pra dar que o diabo pra tirar�, �Menos mal,
ainda temos o fusquinha, sempre quebra o galho.�
N�o entro naquele fusca pulguento nem amarrada.
Preconceito, amor mas n�o quis insistir.
Ap�s os primeiros notici�rios da noite, a deixei assistindo � novela das 8, j�
bocejando, tinha lhe dado son�feros em lugar das aspirinas. Fui para o banho,
quando voltei, j� havia capotado, ainda segurando
o copo e o sandu�che pela metade, coitadinha. Recolhi a bandeja, estendi-a na cama,
nove e pouco, apaguei a tev�, acendi as luzes do quarto, troquei de roupa, fiz
barulho proposital, sapateei ao lado da
cama, dei uma sacudidela em Lize, n�o acordava nem com a torcida do Coxa gritando
em seu ouvido, empunhei a pasta com as armas, dei partida no fusca e fui ao
encontro da aventura maior da minha vida.
Refugiava-me nas sombras da noite como o predador voraz que se esgueira pelas
sarjetas, partindo da premissa de que bandido sempre volta ao local do crime. O
Sangue que o diga. Comecei dando a volta ao
quarteir�o, ia expandir o meu raio de abrang�ncia at� encontrar algum suspeito ou
coisa que o valha, ent�o seria breve, apenas o tempo de um interrogat�rio sum�rio,
em seguida o servi�o e a evas�o. Ia
encontr�-lo com a barriga cheia da tranquilidade que o �xito do roubo anterior lhe
havia dado, melhor que ningu�m essa gente conhece a inoper�ncia da pol�cia e, nesse
quadro de total liberdade de a��o,
eles deitam e rolam, por certo est� motivado a repetir a fa�anha, aproveitar a mar�
de sorte, s� que hoje ele ou eles iam se dar mal, ia ser o seu dia de azar.
As ruas quase desertas e escuras instigavam ainda mais a minha gana assassina. Me
afastei do centro e me precipitei no emaranhado de ruas da cidade, que se emendam
numa sucess�o de domin�, � procura do
meu algoz, quem sabe o acaso n�o me reservaria grandes surpresas. Prossegui na
minha labir�ntica busca at� que, completamente perdido e confuso, e com o meu tempo
cada vez mais curto, parei o carro e tentei
me organizar. Naquela altura do campeonato, o ladr�o j� devia estar no Paraguai,
com a grana no bolso, fazendo a maior festa, o carro no receptador ou no desmanche.
N�o, eles n�o desmancham carros novos
e importados, o Sangue me garantia isso, rendem mais inteiros, adulterada a
documenta��o e numera��o do chassi.
Avaliando bem a quest�o, eu me encontrava na mesma sinuca de bico que a do Monza
branco, o que significava estar num mato sem cachorro, mas nada que a boa, velha e
formal l�gica n�o resolva, afinal se
tratavam de quantos bandidos? Um ou mais? Na maioria das vezes, trabalham em grupo,
se em grupo, quantos seriam, mais precisamente? Ora, como todos n�s sabemos, ladr�o
� tudo a mesma coisa, logo, se eu
matar qualquer um, ou v�rios, ele pode at� n�o pagar pelo dano que me causou, mas
vai pagar pelo que causou a outro, e assim por diante, o que vinha a dar no mesmo,
ou quase. Al�m do mais, ora bolas, eu
n�o precisava justificar nada, apenas agir r�pido para aplacar minha raiva e
preju�zo.
Matada a charada, estabeleci como prioridade me localizar no espa�o e no tempo.
Costurei algumas ruas escuras e acabei desembocando na Mateus Leme. Logo adiante,
j� no bairro S�o Louren�o, vi muita luz,
bastante carros estacionados nas ruas laterais e flanelinhas espalhados pelo local.
Uma festa no Col�gio Santa Maria. Bom sinal, � de abund�ncia que bandido gosta,
pois podem escolher � vontade, mas n�o
com tantos olhos em cima. Mesmo assim, dei um giro por ali, mais por desencargo de
consci�ncia do que por qualquer outra coisa, os flanelinhas me ofereciam vagas,
pensando que eu fosse convidado.
Resolvi dar uma parada e esticar as pernas. Empunhei a pasta e dei a volta no
quarteir�o, encharcando a camisa de suor, pois no retorno enfrentei uma ladeira
quase na vertical. Pelo caminho, uma oferta
abundante de carros de todos os tipos e tamanhos, alguns rec�m-tirados das
revendas. Pareciam t�o dispon�veis naqueles pontos mais distantes, isolados, por
que logo o meu, de dentro de uma garagem fechada,
foi roubado? Era injusto e burro da parte do puxador, ter todo aquele trabalho. Me
meti no fusca e fiquei um temp�o de bobeira, sem saber o que fazer nem por onde
recome�ar, observando algumas pessoas
retornando aos seus ve�culos e se mandando dali. Nisso uma avalancha apressada de
gente desembocou dos port�es do Col�gio em dire��o aos carros, e resolvi sair dali
para evitar o atravancamento. Quando
arranquei, um flanelinha me abordou, me cocei, mas n�o achei dinheiro, o cara me
xingou e chutou o pneu do carro. Buzinavam atr�s, deixei para l�, escapando por uma
rua lateral. Comecei a bocejar sem parar,
como se Morfeu me fizesse cafun�. �O que fazer?�, bocejo e mais bocejo. Soube de um
caso em que o cara abriu tanto a boca num bocejo que acabou deslocando o carrinho,
e de outro que, ao tentar pronunciar
uma palavra em russo, durante o discurso de encerramento no final de um curso,
ficou com os carrinhos pendurados, tendo que ser socorrido na emerg�ncia
hospitalar. Bocejos mil.
Eu precisava cuidar melhor da forma f�sica, a subida da ladeira e o peso da pasta
tinham me posto a nocaute. Naquelas condi��es, achei melhor tirar o time de campo,
estava sujeito a adormecer dirigindo,
e a� seria o fim da picada. Certa madrugada, vi um carro parado no sinaleiro aberto
com a buzina acionada, curioso, parei para observar, o sinal trocava e o carro
nada. Desci e fui espiar, o motorista,
cheirando a �lcool, roncava de boca aberta com a cabe�a apoiada ao volante,
comprimindo a buzina. Dei um sacolejo nele, mas n�o adiantou. Cheguei a ver a
manchete no Sangue, enorme como um outdoor, falando
de mim: �Bebum dorme ao volante do carro em rua deserta e � depenado�.
�Est� na hora de dormir, n�o precisa a mam�e mandar.�, pensei. Na esquina, iniciei
a manobra, enquanto segurava a ponta do queixo para dar apoio aos maxilares, no
cl�max de um bocejo. Foi nesse preciso
momento que avistei um Monza branco, solito, estacionado sobre a cal�ada, presen�a
�nica na rua abandonada. Ato reflexo, brequei. Apaguei as luzes e me preparei para
a campana. O Monza era uma
j�ia rara
refulgindo no breu da noite.
E se o motorista do Monza branco que quase vitimou Lize fosse o mesmo ladr�o que me
roubou o BMW, e ambos fossem o dono do carro ali parado? Seria o c�mulo da boa
sorte. Duvida? Quem duvida � louco,
acasos acontecem, como que n�o? N�o acertam na loteria? Apostas m�nimas com
probabilidades remot�ssimas de acerto, na propor��o de um em dezenas de milh�es? E
ent�o? Afinal n�o mor�vamos todos na mesma
cidade? Nada mais natural que, no jogo dos dados do acaso ilimitado, aconte�am
coincid�ncias. Tudo � poss�vel, at� o amor. Pessoas cruzam diariamente por milhares
de outras nas ruas, milh�es ao longo de
suas vidas, por que v�o se apaixonar apenas por uma em especial? O que � isso,
sen�o o cruzamento casual de pessoas marcadas pela inevitabilidade do encontro?
Dizem at� que as pedras se encontram. n�o
percamos esse conceito de vista, pois tem utilidade.
Naquele instante, nada me traria mais surpresa, o que me fez dar um pulo no assento
como se tivesse levado um choque el�trico, do que perceber dois vultos se
movimentando atr�s do Monza branco. Eles estavam
l� o tempo todo, e eu comendo moscas. De um, podia ver o topo da cabe�a
sobressaindo da lataria, do outro, meio corpo apoiado na traseira do carro, a
atitude t�pica de quem est� displicentemente mijando.
� isso a�, a ousadia dos bandidos � cada vez maior, cresce na medida da certeza da
impunidade, fazem tudo na maior das calmas, sabem que n�o v�o ser importunados pela
lei.
Li no Sangue casos antol�gicos. Em um assalto a resid�ncia, os ladr�es comeram,
beberam cerveja e vinho, usaram o banheiro e n�o deram descarga, deu sono e
resolveram tirar uma soneca antes de se mandarem,
tudo isso com a fam�lia dormindo no interior da casa, os moradores acordaram
sentindo um fedor horr�vel e descobriram tr�s marmanjos puxando uma palha nos sof�s
da sala, s� tiveram o trabalho de ligar
para a delegacia mais pr�xima, um susto com final feliz.
Deixei-me escorregar no banco at� que a linha da vis�o ficasse exatamente no limite
inferior do para-brisa, assim eu podia ver sem ser visto. Um deles entrou pelo lado
do motorista, agilmente, sem que
o alarme disparasse, o que me fez concluir que j� haviam tomado a provid�ncia de
deslig�-lo antes, o que estava dentro, abriu a porta para o outro, que se insinuou.
Antes por�m que tivessem tempo de fazer
a liga��o direta, eu j� estava colado neles. Cheguei com os far�is apagados, me
encararam surpresos, mas sem susto, um deles come�ou a rir, o que me deixou
intrigado, o companheiro imitou-o. �Ah, �?� Agi
r�pido, sem lhes dar a m�nima chance de rea��o. Mirei a t�mpora do motorista,
TRAMBL�M, relampejo implac�vel. Me senti o pr�prio Drag�o da Maldade cuspindo fogo
pelas ventas, ele tombou para o lado, descobrindo
o outro, que erguia os bra�os num gesto instintivo de defesa. Outra cusparada de
fogo seguida de estrondo, o drag�o estava zangado, acertei-o na orelha e ele
projetou-se para fora do carro, talvez porque
j� tivesse aberto a porta para correr. Arranquei sem cantar pneus, tamb�m sem
pressa, arrogantemente calmo, luzes ainda desligadas, joguei o rev�lver dentro da
pasta e o fecho deu um estalido ao se encaixar.
Estava feito.
No topo da rua, dobrei � direita, acendi os far�is e fui descendo a suave colina da
Anita Garibaldi, sentido bairro-centro. Passei na frente da entrada da triagem do
Pres�dio do Ah� e acenei para a imagem
do guarda recortada na vidra�a, tudo sob controle. Sem a menor afoba��o, nem
acreditava, tinha cometido um duplo homic�dio e permanecia um bloco de gelo. Tinha
sido um trabalho enxuto, profissional, o
pr�mio merecido de meses de treinamento. N�o apenas profissional, extremamente
profissional.
Deslizei sob o len�ol, Lize nem se mexeu. L� estava eu, no escuro protegido pelo
h�bito do repouso noturno garantido a todos os mortais. Sim, eu era um pacato
cidad�o desfrutando o descanso dos justos
na cama do quarto da casa que era minha, nunca sa�ra dali, minha mulher ia jurar
que eu estivera com ela a noite toda, eu tinha um �libi perfeito, isso na hip�tese
de eu me tornar um suspeito daquilo,
o que, de antem�o, j� podemos considerar imposs�vel, qual vidente haveria de?
Uau, eu conseguira, sentia a feroz euforia da vit�ria. Calminho, calminho, como se
tivesse acabado de tomar um balde de suco de maracuj�, mais, aliviado, feliz, o
al�vio e a felicidade de quem acabou
de evacuar um monte, depois de uma pris�o de ventre de dias. Ent�o era essa a
sensa��o que sucedia o ato de mandar algu�m pros quintos? O relaxamento derivado de
extraordin�ria sensa��o de poder? Sim,
eu me sentia um Mister Universo, dono de enorme massa muscular e for�a descomunal.
A sensa��o era tal que eu parecia estar inchado, inchado de forte, botando energia
pelo ladr�o, mastod�ntico, tomando
conta da cama. Maravilha, o que eu estivera perdendo todo esse tempo, meu Deus, por
ser fraco, indeciso. O mundo � dos fortes, dos bravos, a vida � um combate, que aos
fracos abate, aos fortes, aos bravos,
s� sabe exaltar.
De repente, por�m, como se algu�m me atacasse pelas costas, recebi uma pancada na
nuca, a minha alegria se dissipou imediatamente como um gol anulado, um calafrio
escorreu pela espinha, que baita mancada,
eu n�o tinha retirado as placas do fusca antes de sair, quantas vezes eu tinha
tirado e reposto aquelas malditas placas mesmo com todo o trabalho que me dava? E
hoje, logo hoje, como fui esquecer? O tipo
de detalhe que pode p�r tudo a perder. Eu executara a minha tarefa com perfei��o
absoluta, mas acabara cometendo um erro prim�rio, pois pela placa t�m-se a
identifica��o imediata do dono do ve�culo. Exceto
se eu tivesse tido a imponder�vel ventura de n�o ter sido visto. mas mesmo assim
foi uma falha imperdo�vel, que n�o me deixou mais pregar olho, o que era festa
virou vel�rio, entrei em p�nico, a qualquer
momento esperava a chegada da pol�cia. E se eu desse parte que me roubaram o fusca?
N�o seria muita coincid�ncia ter dois carros roubados um logo ap�s o outro? E quem
seria louco o suficiente para ter
um BMW e um fusca ao mesmo tempo? Isso n�o era suspeito? N�o, n�o, nem pensar em
outro BO, podia ser pior a emenda que o soneto. Calma, Jorge, calma, me agarrei na
�nica t�bua que podia me salvar, a circunst�ncia
extremada de sorte de n�o ter sido percebido. Ningu�m me viu, pensamento positivo,
tenho o corpo fechado, me olham, mas n�o me veem. Era a �nica chance de sair ileso
dessa hist�ria. mas mesmo assim eu
via, na escurid�o do quarto, a manchete na primeira p�gina do Sangue com a minha
foto, na banca de revistas, uma testemunha garantindo que os tiros partiram de um
fusca escuro, placas tal e tal. ai,
sempre tem um abelhudo onde menos se espera.
Quando clareou, liguei o r�dio e a tev� atr�s de notici�rios. Nada, era cedo
demais. Desci para comprar o SANGUE, a banca ainda estava fechada, e eu, uma massa
ambulante irracional chutando o meio-fio,
o que era uma iniciativa in�til, pois as ocorr�ncias da madrugada s� sairiam na
edi��o do dia seguinte.
Quando retornei, uma r�dio dava as primeiras manchetes do dia: Madrugada sangrenta
em Curitiba, acidentes no tr�nsito, tr�s mortos e dois feridos; assalto a posto de
gasolina, uma morte, os assaltantes
fogem; briga em bar acaba em duas mortes; b�rbaro assassinato no bairro S�o
Louren�o, dois rapazes s�o fuzilados na porta da sua resid�ncia; caminh�o perde
freio e invade padaria, tr�s padeiros feridos
e v�rios p�es machucados; minha gente, essa turma enlouqueceu, a coisa t� ficando
cada dia mais preta, querido ouvinte, cuidado ao sair de casa para n�o pisar numa
po�a de sangue, leve o guarda-chuva para
n�o se respingar, o mundo endoidou, minha gente, o capeta anda solto.
Escutei atentamente o radialista comentar as not�cias, uma a uma, at� chegar
naquela, a que me interessava: Dois rapazes sa�ram de uma festinha de anivers�rio
em casa de fam�lia para irem buscar, na casa
de um deles, veja s�, uns discos para animar o arrasta-p�, a meninada estava l�,
brincando na mais santa inoc�ncia, mas as m�sicas j� estavam muito batidas, sabe
como �, at� que algu�m deu a id�ia de buscar
uns discos para incrementar o repert�rio. L� foram os dois rapazes, alegres, fazer
a sua boa a��o da noite, mas foram ao encontro da morte, queridos ouvintes, na
calada da noite a morte os espreitava,
n�o retornaram mais, e voc�s sabem por qu�? Porque foram fuzilados na porta do
domic�lio de um deles, deixaram o carro estacionado sobre a cal�ada, aberto, era
coisa de minutos, apenas entrar, selecionar
uns discos e sair, para agradar o amiguinho aniversariante que lhes havia feito o
pedido, e que agora se lamentava por t�-lo feito, quem sabe, se n�o tivessem ido,
ainda estariam vivos, n�o se pode saber
com certeza, se n�o tivesse sido naquele exato momento poderia ser mais tarde, se
n�o fosse com esses dois seria com outros, hoje esses pobres rapazes foram os
premiados, amanh� ou depois, serei eu, ou
voc�, ou o seu amigo, o meu, ou nossos filhos, quem sabe? Estamos todos entregues
de bandeja nas m�os desses bandidos, desses assassinos que matam por qualquer
trocado, e a pol�cia onde est� numa hora
dessas? Onde? Pagamos os nossos impostos para qu�? E assim aconteceu essa horr�vel
trag�dia, queridos ouvintes, pouco passado da hora grande, da meia-noite, os pobres
mo�os, quando entraram no carro para
retornar � festa, com o objetivo de deix�-la mais animada, mais alegre, que ironia,
o que acontece? S�o abordados por assaltantes frios e sanguin�rios. Como n�o tinham
dinheiro, eram pouco mais que adolescentes
e, dadas as circunst�ncias, n�o tinham porque estar carregando dinheiro naquela
hora da madrugada, ou se tinham, era pouco e n�o foi do agrado dos bandidos, o que
acontece? As pobres v�timas s�o assassinadas
a tiros, assim, friamente, como se fossem animais no matadouro. Mataram s� por
matar, queridos ouvintes, vejam s� que absurdo, e sa�ram de l� sem levar um tost�o,
uma chacina gratuita, apenas pelo prazer
de matar. Em seguida, evadiram-se do local, e a pol�cia n�o tem nenhuma pista dos
bandidos. n�o deixaram pistas, sumiram, deixando atr�s de si dois corpos estirados
e uma fam�lia desesperada. Onde �
que estamos, meu Deus?
Dois adolescentes, duas crian�as, uau, sem testemunhas. Eu estava livre de entrar
numa fria, in dubio pro reo, essas coisas. De fato, acabara de cometer um erro de
percurso, mas e da�? Quem podia afirmar
que n�o passavam de dois jovens inocentes? Inocentes em termos, bem que um deles
podia ser o que quase atropelou Lize, ou talvez tenha sido o seu pai, o verdadeiro
dono do Monza branco. Na verdade, os
filhos sempre acabam pagando pelos erros dos pais. O radialista passou �s outras
not�cias e n�o tocou mais no assunto, fiquei aguardando o hor�rio dos telejornais
locais que deviam dar a mat�ria com mais
detalhes. Lize flagrou-me andando na sala de um lado para outro, roendo as unhas.
Onde voc� andou esta noite? indagou com rispidez.
O qu�?
Voc� saiu, aonde foi?
Eu n�o sa� coisa nenhuma.
Claro que saiu!
Voc� est� louca? Fiquei a noite inteira deitado naquela cama, ao seu lado.
Isso � que n�o, n�ozinho mesmo. Louco est� voc�! Voc� pegou a pasta, as chaves do
carro e saiu, pensando que eu estivesse dormindo, mas eu estava acordada, seu bobo,
cuidando voc�, e vi com esses olhos
que a terra h� de comer, devia ter-lhe seguido.
Devo ter ido ao banheiro, sei l�.
Vestido, de pasta e com as chaves?
Estou dizendo que n�o sa� e fim de papo.
N�o grite comigo, seu grosseir�o! Lize disse isso e caiu no choro.
N�o enche o saco eu disse, ainda exaltado, e sa� para o corredor do andar batendo
a porta atr�s de mim.
Chamei o elevador, mas n�o desci, fiz isso apenas para ganhar tempo e poder pensar,
s� me faltava essa, agora, Lize complicar as coisas. Eu flutuava, estava prestes a
entrar em combust�o. �Calma, Jorge,
calma�. Parti para os exerc�cios respirat�rios, inspira��o profunda, expirando
devagar. Se fosse o caso, ia contar at� cinco mil, tinha que voltar l� e acalm�-la
tamb�m, dissuadi-la da id�ia, faz�-la crer
que havia sonhado, alguma coisa desse tipo, sen�o o meu �libi teria ido pra cucuia.
Al�m disso, n�o suportava a id�ia de estar brigado com ela, nunca t�nhamos tido uma
pequena rusga que fosse at� ent�o,
precisava acalmar os �nimos, dominar a situa��o, colocar o comboio nos trilhos de
novo. Talvez pudesse sugerir que ela fosse passar uns dias com os pais, em
Umuarama, uma semana, duas, s� o tempo de baixar
a poeira. Podia alegar que precisava resolver os �ltimos detalhes do div�rcio, da
partilha, ela n�o entendia nada disso. Sim, era por a�. E que, ent�o, no seu
retorno, casar�amos de verdade, na igreja,
ela de v�u e grinalda, era isso! Salvo pelo gongo, toquei a campainha, esquecera de
levar a chave. Precisei tocar v�rias vezes at� ela atender.
Desculpe, vai disse eu, abra�ando-a.
Voc� tem outra.
Que disparate, s� amo voc�, minha deusa, s� voc�, juro.
Ent�o por que ia sair no meio da noite de fininho? Eu bem que desconfiei, por isso
fingi estar dormindo, devia ter seguido voc�, seguido a minha intui��o que nunca
falha. S� pode ser outra mulher,
nunca esperei isso de voc�, Jorge.
Calma, benzinho. Eu n�o sa�, amor, juro que n�o sa�, ser� que voc� n�o andou
sonhando? Tem sonho que parece real. Al�m do mais, todos esses acontecimentos, o
roubo do BMW, isso deve ter abalado voc�.
Ela assoou o nariz na manga do pijama.
Sei l�. n�o. foi tudo t�o real.
Mas os sonhos s�o assim, tem uns que parecem verdadeiros.
N�o sei. talvez. mas juraria que vi voc� saindo.
Devia ter me chamado, assim, ficava tudo esclarecido.
Quando toquei no assunto de ela viajar para Umuarama, por�m, encasquetou de novo
que tinha mulher na parada, tinha porque tinha. Agora mais do que nunca passava a
ter certeza de que eu queria me livrar
dela, ficar sozinho para aprontar � vontade. Custei uma eternidade para convenc�-la
de que estava errada, de que os motivos eram outros, lasquei o um-sete-um do
div�rcio e do nosso casamento, engoliu quadrado
a proposi��o. Quando consegui convenc�-la, j� era meio-dia. De um pulo, liguei a
tev�, ela foi preparar sua bagagem. Servi um cubo de gelo e completei com Johnnie
at� a borda, precisava relaxar. Todos
os canais deram a mat�ria, imagens do carro e dos cad�veres, declara��es da
pol�cia, cenas pat�ticas dos familiares, a m�e de um dos garotos gritava,
hist�rica, exigindo provid�ncias das autoridades, seguran�a,
para que outras m�es n�o passassem o mesmo que ela, o escambau. Servi outra
talagada, por fim a confirma��o, ningu�m tinha visto nada, n�o havia testemunhas,
neres de pitibiriba, uau.
N�o me interessava mais em quem atirara, o importante era ter tido a coragem de
faz�-lo, minhas v�timas eram an�nimas, sem fisionomia, um dos rapazes tinha 18
anos, o outro, 19, e da�? Lize n�o fora quase
atropelada aos 17? Eram colegas de faculdade, insepar�veis, onde um ia carregava o
outro, filhos de fam�lias de classe m�dia, padronizados, futuro promissor. Eu
interrompera a trajet�ria deles pelo simples
desejo de faz�-lo, porque me dera na telha, eu era o Deus que decidia o destino das
pessoas, o Poderoso, o Vingador.
Estou pronta disse Lize com voz sumida, interrompendo o meu solil�quio, tinha at�
me esquecido dela.
Vamos l�, benzinho.
Levei-a � rodoferrovi�ria e embarquei-a no �nibus. Durante o trajeto, ela n�o deu
um pio.
Est� louquinho pra me ver pelas costas, n�o �, seu fingido? disse antes de
embarcar, o rosto contra�do de dor.
Nem retruquei, com medo de gerar uma nova discuss�o e ela dar para tr�s, sobretudo,
n�o queria mago�-la ainda mais. Quando vi o �nibus deixando a esta��o, suspirei
aliviado. Menos um problema. N�o me acenou,
sequer me olhou, acompanhei por alguns instantes o seu perfil hirto, contrariado,
desenhado na janela.
Chaveei-me no ap� e revisei, tim-tim por tim-tim, desde a sa�da at� o meu retorno,
todos os eventos marcantes daquela noite inesquec�vel. Cometera um erro, certo, mas
compensara-o desempenhando com perfei��o
o restante da a��o. A sorte ajudara um pouco, e podemos at� generalizar que o fator
sorte � decisivo em ene situa��es, e que eu era, em princ�pio, um homem de sorte,
n�o encontrara Lize? Se bem que o mais
razo�vel seria n�o contar com o ovo, mesmo assim, apesar de tudo ter dado certo,
urgia abrir bem os olhos, redobrar a aten��o, sob pena de por tudo a perder.
Com a lupa emprestada de Sherlock, eu seguia o rastro da excepcional ocorr�ncia e
procurava detectar alguma outra falha, algum detalhe que me passara despercebido,
mas que poderia ser evidente aos olhos
de um policial treinado. Fora a derrapagem das placas, n�o achei nada mais, estava
tudo limpo. Com Lize ausente, eu me sentia mais leve e solto para tratar de um
assunto que era um campo minado. Pela primeira
vez me separava dela sem lamentar, mas n�o seria por muito tempo, logo, logo
estar�amos de novo juntos. Pode-se dizer que foi uma separa��o tecnicamente
necess�ria, de for�a maior.
Peguei caneta e papel e fiquei horas me deliciando com os registros das minhas
impress�es, as primeiras impress�es de um assassino diante do seu primeiro
assassinato, duplo assassinato, para ser mais preciso.
Os notici�rios noturnos davam a mat�ria em �mbito regional e nacional: a viol�ncia
assolava Curitiba, o pa�s, o mundo, as pessoas de bem n�o tinham mais seguran�a de
andar nas ruas, protestavam os �ncoras,
at� quando o governo, as autoridades, iam permitir isso? As babaquices de sempre. A
pol�cia tateava no escuro, mais perdida que cusco em prociss�o, estavam com uma
sorte danada, achavam de tudo que era
latroc�nio, vingan�a, queima de arquivo, os meninos n�o andariam metidos com
drogas? Jamais, eram garotos de boa fam�lia, ing�nuos, nem fumar, fumavam, s�
bebiam refrigerantes. Quanto mais disparatadas
fossem as interpreta��es, melhor para mim. Depois, se resson�ncia havia do
atentado, era porque tinha atingido pessoas com destaque na pir�mide social, se
fossem p�s de chinelo, n�o se estaria falando
mais do assunto, tudo estaria esquecido, riscados da pauta porque n�o d� Ibope. O
alvoro�o todo era porque qualquer bacana podia ser a pr�xima v�tima, agora se
matava sem motivo algum, o cu de todo o mundo
estava na reta, ent�o se borravam nas cal�as e queriam justi�a, aquele nhenhenh�m
todo.
Fiz uma limpeza em regra no rev�lver, jogaria as c�psulas deflagradas numa lixeira
de rua. Outra mancada, por que as mantive todo esse tempo comigo? Revisei a
pistola, estava impec�vel. Da pr�xima vez,
iria us�-la. A minha pontaria com o rev�lver n�o sofrera o m�nimo desvio, fizera a
corre��o devida, s� que o segundo tiro atingira o cocuruto do rapaz, e n�o a
orelha, como eu supunha. Por pouco ele n�o
escapa, se tivesse se curvado um ou dois cent�metros mais, a trajet�ria do proj�til
apenas rasparia-lhe o couro cabeludo e teria escapado ileso. Essa era a an�lise da
pol�cia t�cnica, publicada no SANGUE,
ambos tinham tido morte instant�nea, creditavam alta periculosidade aos
assaltantes. A pol�cia concluiu que os bandidos, irritados por n�o encontrarem nada
de valor, acabaram executando friamente as v�timas.
As investiga��es iam continuar at� a pris�o dos meliantes, et blablabl� et
bl�bl�bl�.
Me ocorreu que a pol�cia poderia estar fazendo corpo mole, dizendo que n�o tinha
pistas e tal apenas para distrair a aten��o do bandido, deix�-lo desguarnecido para
depois peg�-lo de surpresa. Quando menos
esperasse, eu podia estar com os homens nos meus calcanhares. Ficam dando corda com
sadismo de pescador, para que o peixe pense que comeu a isca impunemente, em
seguida, quando menos se espera, vem o pux�o
e a fisgada mortal. Essa hip�tese foi crescendo at� virar um King Kong, recheando a
minha empada. Sai pra l� azar�o. Que nada, se tivessem alguma coisa, j� teriam me
pego h� horas, a press�o de cima,
dos graud�es, era grande, mas estavam mais por fora que bunda de vedete.
Terminada a limpeza das armas, desci � garagem e examinei o fusca, cent�metro a
cent�metro. Vi a marca do chute do flanelinha no pneu, se acerta na lataria, tinha
amassado, vagabundo. Outra hora vou
ter um pl� reservado com ele, n�o perde por esperar. No mais, nenhum vest�gio que
pudesse me incriminar, mas mesmo assim fui ao posto e dei uma ducha nele, limpeza
ampla, total e irrestrita. Acompanhei
o lavador passar o aspirador por dentro.
Faltou ali, �, passa mais um pouquinho aqui. O seguro morreu de velho.
Por fim, mandei dar uma encerada, no capricho. Voltei ent�o para o ap� e me joguei
na cama, como um pesado fardo. Estava cansado, merecia o justo repouso, neque
semper arcum tendit Apollo (Nem sempre Apolo
retesa o arco, o que, para o bom entendedor, significa, ningu�m pode trabalhar sem
descanso, nem mesmo Apolo.).
�gua Verde, estacionei na rua escura, e, tal qual serpente enrodilhada � espera da
sua presa, l� fiquei. Enquanto os compadres v�o para bares, restaurantes, cinemas,
est�dios de futebol, lojas, bord�is,
cassinos clandestinos, rinhas, se picar, e l� sei eu mais o que, eu curtia o meu
lazer de uma forma bem mais divertida, decididamente mais empolgante, interrompendo
o biorritmo dos viventes, abruptamente,
sem pr�vio aviso. Na degola, por exemplo, quando feita com precis�o, o indiv�duo
expira sem se dar conta, n�o tem consci�ncia do passamento, n�o chega a ter tempo,
a morte s�bita indolor. Com um tiro certeiro
em ponto vital, tem efeito id�ntico, o �bito ocorre quase que instantaneamente, n�o
d� tempo nem de gemer. Eu era um executor ben�volo. Um casal apontou na esquina,
vinham abra�adinhos na minha dire��o,
cheios de amor para dar. Ao passarem debaixo do poste, pude ver bem suas
fisionomias alumiadas, eram jovens, bonitos, estavam apaixonados, tal como Lize e
eu j� fomos um dia. Andavam uns passos e paravam,
olhavam-se fundo, beijavam-se na boca, beijos prolongados. Ao chegarem perto, no
ponto menos iluminado onde eu me achava pronto para o bote, desci do carro e, num
gesto breve, mirei a cabe�a do rapaz,
fiz fogo, a menina nem se moveu, uma pequena altera��o no curso da m�o e quase
simultaneamente estourei os miolos da acompanhante. Com o silenciador, os tiros
tinham ru�do de peido, puff, puff. Com os
dois desabados aos meus p�s, entrei no carro e me afastei dali.
Juvev�, uma execu��o assemelha-se a uma trepada, voc� goza e o cacete murcha, voc�
est� satisfeito. Logo, logo, por�m, o tes�o volta, o pau levanta e voc� fica a fim
de novo. Para quem curte droga pesada
� a mesma coisa, a fissura � sempre mais forte. Desta vez, o premiado na loteria da
vida � o senhor sacana que retorna � casa em hora impr�pria, foi comer a secret�ria
no motel depois do expediente, abre
o port�o sem pressa de botar o carro na garagem, retardando a bronca da mulher.
Ficou olhando eu descer do carro e me aproximar, sua express�o era de puro enfado.
A uma dist�ncia de tr�s metros, fuzilei-o
com dois puns consecutivos, um na cabe�a e outro no peito. Enquanto o acompanhava
desmoronar, avistei de relance algu�m espiando na vidra�a. Arranquei imediatamente.
A mulher ia ter que perdoar as perf�dias
do marido, nessa altura j� devia estar chamando os homens, j� era hora de tirar o
cavalinho da chuva, talvez mencionasse o fusca se afastando da cena do crime, n�o
conseguira ver muita coisa, pois a ilumina��o
p�blica dos bairros � escassa, o que favorece o lavor sorrateiro, mas ningu�m se
engana para identificar um fusca.
Fui obrigado a parar no sem�foro para evitar colis�o com os ve�culos que tinham a
prefer�ncia do cruzamento, o motoqueiro parou do meu lado e ficou fazendo vrum-
vrum, acelerava sua motoca com a vol�pia
dos que acreditam na vis viva, � barulho do cacete. O impulso foi t�o veloz que
fugiu ao meu controle. Contrariando as normas b�sicas de acautelamento a que eu me
propunha, outro peidinho, o motoqueiro
foi se inclinando, em c�mara lenta, levando a moto consigo, ambos se estatelaram no
asfalto. Desta vez, sim, pisei fundo, cantando pneus, com tantos peidos
consecutivos, podia acabar me cagando nas cal�as.
Quando as vistas cansavam de ler, quando os dedos do�am de tanto escrever, punha-me
a bater no saco at� me exaurir por completo, ou sa�a para caminhar. Dirigia-me
invariavelmente para o centro da cidade,
misturava-me � multid�o, o contato com pessoas, a simples presen�a delas, aliviava
a tens�o.
A falta que Lize me fazia era enorme, procurava distrair-me com qualquer coisa. Ia
ao cinema, mas sa�a no meio do filme, ou sentava nos bancos das pra�as e ficava
observando os fodidos. As ruas e as pra�as
da cidade est�o infestadas de miser�veis misturados aos ratos, baratas, c�es
sarnentos, moscas. Eu ficava horas olhando essa miu�alha lamber suas feridas, o seu
azedume, a sua inutilidade. Numa dessas
andan�as, fui para os lados do Parque S�o Louren�o. Enquanto dava a volta na pista,
avistei um grupo de velhos que papeavam animados num recanto de �rvores copadas,
parei ali perto e fiquei olhando. Os
velhotes come�aram a se deslocar em bloco e vieram para o meu lado, pediram licen�a
e ocuparam os bancos em torno da mesa de cimento onde eu sentara, falavam pelos
cotovelos e me puxaram para o seu papo-furado.
Eram enfartados de todo tipo, gente simples, sem frescura, reuniam-se ali
diariamente para tomar sol, se exercitar e jogar conversa fora. Notaram que eu
tamb�m era um pouco fora de esquadro, talvez da�
a boa acolhida. Improvisei um bocado de lorotas, que havia sofrido uma isquemia
cerebral e ficara com o lado direito paralisado, depois de quase recuperado, me
envolvi num acidente automobil�stico que
esculhambou o lado esquerdo, tinha visto a morte de frente duas vezes. Acharam que
eu tinha f�lego da gato, contaram-me, um de cada vez, os seus padecimentos
card�acos, as complica��es com outras doen�as,
o diabetes, o reumatismo, a escoliose, a bronquite, a asma, o joanete, o diabo, as
mudan�as sofridas nas suas rotinas di�rias, o
est�icismo com que levavam suas vidas. Sa� de l� com a promessa de voltar,
embora fosse o mais mo�o de todos, com uma margem m�nima de dez anos em rela��o ao
mais jovem deles, embora sem saber que seria adotado como mascote do grupo.
Entrementes, prosseguia no meu roteiro de leituras e fazia o registro sistem�tico
no caderno das minhas incurs�es noturnas mais recentes, em outras ocasi�es me
divertia de uma forma mais amena, distribuindo
peda�os de carne envenenada a todos os c�es que encontrava, principalmente aqueles
que ladravam furiosos detr�s das grades que protegem as propriedades particulares
dos seus donos, atormentando os meus
passeios matinais com seus latidos ensurdecedores.
Sempre achei uma amola��o esse neg�cio de c�o pulando e amea�ando a gente quando se
anda na via p�blica em busca de sossego, nas horas mortas, nos fazem parecer
suspeitos de alguma coisa indefinida, n�o
merecem o menor respeito e tiveram o castigo merecido. Dizimei centenas de c�es no
espa�o de uma semana. Quando algum gato farejava o cheiro ativo da carne na sacola
pl�stica e me seguia, eu o obsequiava
com um peda�o tamb�m. Outro passatempo divertido era quebrar vidra�as de lojas e
pr�dios p�blicos, danificar orelh�es, arrancar placas de sinaliza��o, cortar pneus
de carros, espalhar ma�aroca de pregos
nos corredores de �nibus, ligar para a pol�cia e ve�culos de comunica��o avisando
que bombas haviam sido colocadas em tal e tal reparti��o p�blica, banco, f�rum, e
por a� afora. � noite, assistia �s not�cias
pela tev�, degustando o meu Johnnie on the rocks.
Parei o carro junto da viatura da pol�cia militar que estava estacionada no
acostamento do km 121 da BR 277, havia apenas um PM no banco, o outro devia estar
cagando no mato. Vinte e uma e trinta. O c�u
riscado de fa�scas seguidas de trovoadas prenunciando a tormenta, o debi me olhou
cheio da arrog�ncia que a farda lhe investia.
Oi, pode me dar uma informa��o?
Que que �?
Puff.
Eu queria saber se esta estrada vai dar no fim dela. P�, cara, qual �? Vai me
dizer ou n�o vai?
O parceiro ainda afivelava o cinto, subindo o barranco. Puff-puff.
O ano chegou ao fim e achei melhor manter Lize em Umuarama, apesar da falta que ela
me fazia. O apartamento virara novamente um chiqueiro. Passei o Natal e o Ano Novo
na companhia do meu bom e velho amigo
Johnnie, o g�nio engarrafado na sua forma l�quida. Ele se esfor�ava ao m�ximo para
me agradar e sugeria aventuras ousad�ssimas, que eu quase sempre acolhia de bom
grado, mas nossa amizade acabava sempre
com a �ltima gota.
Passei a frequentar o parque dos velhinhos, eram as �nicas pessoas com quem eu me
relacionava, faziam muita festa ao me ver, e isso me deixava mais parecido com um
ser humano normal. N�o sei por que ca�
nas gra�as deles, me tratavam com uma defer�ncia toda especial, talvez porque fosse
considerado como a mascote do grupo, ou porque fosse o �nico solteiro entre eles,
sei l�, todos eram casados ou vi�vos
de segundas n�pcias, alguns me levavam quitutes feitos em casa pelas mulheres,
outros livros e revistas, davam-me conselhos para driblar a solid�o. Na verdade,
acho que tinham pena de mim. Acabei me enternecendo
com tanta adula��o. Os velhinhos eram mesmo boas pra�as e eu gostava deles.
Durante um m�s, n�o aprontei nada, dando um tempo para a poeira baixar. Lia,
escrevia, caminhava, ia ao parque. L� fui fazendo novos amigos, todos de uma forma
ou de outra relacionados com doen�as do
cora��o. Existe uma enorme popula��o p�s-enfartada que se agarra � vida abdicando
de todos aqueles excessos e prazeres dos quais eram escravos antes.
N�o sei como pude fumar tantos anos, hoje n�o posso nem sentir o cheiro de
cigarro.
Cruzes, n�o posso nem olhar algu�m fumando, idem para a bebida.
Aboli o sal, gorduras, doces, n�o como mais churrasco, perdi quinze quilos, quero
perder mais dez, nem que fique com a cara parecendo uma passa de uva.
N�o diga perder, diga emagrecer, sen�o vai recuperar tudo que perdeu.
Alguns viram hipocondr�acos, e tudo � algum ind�cio ou sintoma de disfun��o ou
doen�a que poder� lev�-lo a novo e fulminante ataque do cora��o. Como pretenso
sobrevivente ferrenho de um derrame, eu podia
tirar sarro deles. Goz�vamo-nos mutuamente.
Eu, depois do derrame, �, pfiu, n�o levanto nem com banda de m�sica.
Eu ainda dou pro gasto, uma vez por semana fa�o a nega v�ia baixar as calcinhas.
E n�o tem medo duma s�ncope na hora do aiaiai?
Nem lembro disso.
N�o tem perigo, amigo, ele s� d� duas por m�s, uma tentativa e uma desist�ncia, o
trabalho maior � da mulher, tira e bota a calcinha e n�o acontece nada, se fosse
eu, chutava o cara.
Pois fique sabendo que o maior �ndice de �bitos de doentes card�acos de terceira
idade � na hora do coito.
N�����oooo, t�s brincando comigo, pois sim, at� com isso vou ter que parar? J�
parei de comer, j� parei de beber, vou ter que parar de trepar?
Parar? Tem certeza provocava algu�m , de que precisa parar?
Ora, n�o chateia, fica de quatro pra ver se voc� n�o vai ter a sensa��o de estar
cagando pra dentro.
Tem mais, te desafio, boto at� a Gretchen de quatro na tua frente que n�o tem
perigo, c�o que muito ladra n�o morde.
Mas � prefer�vel parar de trepar do que ter que descer mais um andar, Deus te
livre.
Durante esse m�s, aturando os velhinhos, fiz a maior matan�a de c�es e gatos que a
hist�ria j� registrou, devo ter eliminado em torno de 3 mil c�es e quinhentos
gatos, gastei uma m�dia de 50 quilos de
carne de segunda e tr�s potes de raticida. Eu estava perdendo outra chance de
entrar para o Guinness Book.
Quando n�o estava em casa ou no Parque, sentava-me na pra�a Os�rio a observar os
fodidos que formavam uma fauna variada de mendigos, pivetes, desempregados, bebuns,
prostitutas, a mulher acampada no ch�o,
no meio de trapos e bugigangas, latas, garrafas pl�sticas, caixas de papel�o, o
mosquedo zumbindo em torno, uma crian�a no colo e a outra, mais crescida, nua,
perambulando em volta. O beb� chorando. A
mulher ent�o enfia um seio murcho na boca da crian�a, que suga, suga, suga, depois
larga e chora com mais for�a ainda. Algu�m jogou um toco de cigarro perto dela e
ela se inclinou para pegar, foi-se esticando,
na tentativa de alcan�ar a guimba, mas, antes que conseguisse, emborcou em c�mara
lenta e teve que se arrastar alguns cent�metros at� apossar-se da guimba. Aprumou-
se e levou-a � boca, tragando a fuma�a
com avidez. A crian�a aumentou o volume do choro, mas ela n�o estava nem a�. Mudei
de lugar, ela e as crian�as bem que mereciam um justo descanso.
Cada dia eu presenciava uma cena digna de nota e registrava no caderno sob o t�tulo
Fodidos. Fiz uma boa cole��o de casos e tipos. Miudinho era um deles, um pedinte
que ficava encostado a uma �rvore e
soltando a sua cantilena como se fosse um canto de sereia.
Ajuda eu, Miudinho, ajuda, ajuda, ajuda eu, ajuda, Miudinho, ajuda eu, ajuda.
Marcava o compasso e dava uma entona��o � voz t�o dram�tica que faria inveja a
muito ator de novelas.
Como pude observ�-lo em hor�rios e dias diferentes, verifiquei que carregava no tom
emocionado quando iniciava a jornada ou a semana, chegando mesmo a ficar quase
inexpressivo no fim de uma sexta-feira
ou quando tinha feito uma boa arrecada��o. Baita malandro, carism�tico, faturava
uma nota preta.
Um pivete, certa vez, enfiou a m�o no bolso de um anci�o bem defronte ao meu banco,
o velhote curvado n�o op�s resist�ncia, parado, ficou olhando o garoto que
examinava o produto do seu furto, sua cara
enrugada n�o demonstrava nenhum sentimento hostil, um len�o, documentos, foram
jogados no ch�o um ap�s outro junto aos p�s do velho pelo pivete, como quem
descarta no jogo de baralho o baga�o que n�o serve.
Reteve consigo apenas o dinheiro, que embolsou, afastando-se calmamente. O velho
agachou-se, humildemente, juntou o seus pertences e colocou-os no bolso, afastando-
se com o mesmo vagar que o garoto, resmungando
para si mesmo. Ambos davam uns passos e paravam, cada um se voltava, encarava o
outro e seguia adiante, como se isso fizesse parte de uma combina��o de dan�a
ensaiada. Acredito que s� eu tenha presenciado
a cena, pois ningu�m interferiu ou se voltou para olhar.
A presen�a da guarda municipal e dos brigadianos era constante, mas in�til. Os
pivetes cheiravam cola de sapateiro, fumavam maconha, jogavam-se no lago do
chafariz, enquanto os homens da lei andavam na
volta da pra�a, indiferentes, olhando sempre para o lado oposto ao da ocorr�ncia.
Deviam atuar apenas em casos extremos de flagrante delito, dos quais, no entanto,
n�o tenho nenhuma lembran�a.
Um engraxate, apartado dos outros, me chamou a aten��o, era mais alto que os
demais, mag�rrimo e meio debiloide, falava enrolando a l�ngua, os outros
aproveitavam-se disso e o exploravam, pegavam a sua
lata de graxa, pano, escova, roubavam-lhe os clientes. Sentado na grama do
canteiro, com o bra�o apoiado na caixa, as pernas esticadas e afastadas, olhava n�o
sei que ao seu lado, a fixidez do olhar e
a triste express�o do seu rosto deixavam-no mais desamparado do que j� era. O
abandono daquela crian�a, associado � sua fisionomia de retardado mental, me
tocaram fundo, apiedei-me dele instantaneamente.
Aquela vis�o me evocava sentimentos que me deprimiam e revoltavam ao mesmo tempo,
me lembrava de algu�m do passado, que igualmente me emocionara, mas n�o tinha id�ia
de quem nem quando, uma intimidade
de algu�m t�o pr�ximo como se fosse um filho. Tentei me colocar no seu lugar,
avaliar a sua condi��o de moleque de rua, mas meu cora��o se p�s a dar pinotes, e
me afastei dali o mais r�pido que pude.
Estacionei na lateral da lojinha que ficava na esquina e tinha entrada pelas duas
ruas. O macr�bio comerciante atendia o bazar sozinho. Uma porta dava acesso para o
interior da casa, da qual a lojinha
era uma extens�o, a mulher devia estar l� dentro preparando o almo�o, tiravam o
sustento dali e moravam nos fundos. Fazia um dia ensolarado e quente, dez horas da
manh� de segunda-feira. O movimento de
pessoas e carros era quase nulo por aquelas bandas da �gua Verde. O homem que
descera do carro era aloirado, usava �culos com aros de metal, uma barriga
proeminente, bigode farto, que lhe dava uma apar�ncia
germ�nica, � la Bismark.
Pois n�o, meu distinto senhor?
Eu ia responder, mas, quando me virei e encarei o velho atrav�s do vidro dos
�culos, os seus olhos cruzaram com os meus. Toda a sua experi�ncia de com�rcio
adquirida atr�s do balc�o, durante todos aqueles
anos atendendo pessoas e aprendendo a conhec�-las ap�s uma breve avalia��o,
indicou-lhe que estava diante de algu�m muito perigoso. Nosso entendimento visual
foi imediato, ele me identificou e eu descobri
o seu medo, mas ele n�o esbo�ou o menor movimento de fuga ou defesa, sabia que era
in�til, ou talvez quisesse proteger a mulher, evitando chamar sua aten��o, para que
se mantivesse afastada.
Introduzi a m�o no interior do palet� e a retirei com a pistola, puff, seu corpo
projetou-se para tr�s, bateu na parede e escorregou para o ch�o, deixando atr�s de
si uma mancha vermelha, repus a arma
no coldre abaixo do sovaco e afastei-me dali com passadas lentas, ningu�m � vista.
Eu estava pronto para uma evas�o r�pida e rasteira, reservara 150 mil d�lares, em
notas de cem, e os guardara, junto com o passaporte e duas passagens �reas de
compra antecipada com validade para um ano,
bastando confirma��o de dia e hor�rio, numa mala cheia de roupas mantida aos p�s da
cama, a qualquer instante eu podia sumir do mapa. Mesmo assim, eu n�o descuidava de
nada. Pedi ao s�ndico uma c�pia da
conven��o de condom�nio e da ata de constitui��o com a rela��o dos propriet�rios,
bati um papo amistoso com ele, que me deu de bandeja uma resenha dos moradores do
pr�dio, al�m disso, fiz as minhas pr�prias
pesquisas, precisava conhecer bem quem me rodeava e os h�bitos de cada um em
particular. Cada andar tinha tr�s apartamentos, sendo um de dois dormit�rios e dois
de um, no total trinta e seis. Al�m da minha,
haviam mais duas coberturas, ocupadas. Uma por um casal de m�dicos em viagem de
estudos aos EUA, logo, ausentes, outra por um advogado aposentado e fam�lia, mulher
e filha, tamb�m quase sempre ausentes.
O apartamento logo abaixo do meu era ocupado por um casal brig�o, o cara dava pau
na mulher toda semana, ela gritava, chorava, andava permanentemente de �culos
escuros e cabelos jogados no rosto para esconder
as marcas das porradas. Faziam as pazes logo ap�s as brigas e tratavam-se de
amorzinho pra l� e pr� c�, como se nada tivesse acontecido. Tinham o h�bito de
falar alto e eu escutava o que diziam, o volume
do aparelho de som e da tev� tamb�m era acima da m�dia, isso tudo acompanhado de
batidas de portas que estremeciam o pr�dio. Faziam uma zoeira permanente que me
tirava do s�rio, muitas vezes tive gana
de descer l� e co�ar o lombo dos dois. Os dois apartamentos vizinhos a eles eram
ocupados por duas empres�rias de turismo, huummm, e por um casal que trabalhava no
Banco do Brasil, ele, gerente, ela, chefe
de departamento, ausentes da manh� � noite. Abaixo desse andar moravam um gay, j�
coroa, sempre acompanhado de garotos imberbes; uma velha e sua filha; e um playboy,
filho de fazendeiro, com intenso entra-e-sai
de piradinhos e chapadinhos.
Restringi o controle da movimenta��o at� o d�cimo andar, fora o playboy, a velha, o
advogado, o casal brig�o e eu, o resto se ausentava durante o dia todo, O playboy
circulava dia e noite, subindo e descendo
pelo elevador, mas somente a partir das quatro ou cinco da tarde, antes, dormia do
amanhecer at� esse hor�rio. A velha raramente sa�a. O advogado ficava, semana sim,
semana n�o, dividindo-se entre a casa
da praia e o s�tio em Piraquara, a filha, excepcional, era carregada com eles.
Quanto ao casal brig�o, o homem era tido como representante comercial, mas n�o sa�a
quase nunca durante o dia, a mulher tinha
cara de puta arrependida. O cara andava com a mulher sempre grudada na sua cola,
costumavam sair ao anoitecer e s� retornavam de madrugada, o pilantra devia botar a
mulher a se virar enquanto fazia a ronda
dos bares. Eu quase sempre acordava com a espampanante chegada deles, vinham
embalados e n�o demorava muito para come�ar a baixaria. Algu�m chegou a chamar a
pol�cia mais de uma vez por causa dos pedidos
de socorro da mulher, a partir da�, o casal deve ter feito o mesmo controle que eu
da vizinhan�a para poder brigar � vontade sem ser importunado, passaram a quebrar o
pau somente pelo final da manh�, quando
despertavam, justo no hor�rio que n�o havia ningu�m no edif�cio, tudo premeditado.
Para colaborar, o barulho do tr�nsito vindo de baixo escondia parte da zoada,
exceto para mim que n�o perdia nada com
o meu treinado ouvido de maestro, capaz de captar os menores desafinos que fossem
das imedia��es. Chegava ao c�mulo de perceber um estalido m�nimo vindo do corredor
do andar estando eu no quarto, o que
podia significar o ru�do causado pelo solado do sapato de algu�m esmagando alguma
part�cula de areia do pavimento durante a pisada. L� ia eu rapidamente p� ante p�
espiar no olho m�gico, e era a servi�al
do condom�nio fazendo o seu silencioso servi�o de limpeza.
Eu j� me achava num processo adiantado de paran�ia, aguardando o aparecimento da
pol�cia a qualquer momento a seguir alguma pista deixada na minha via criminalis.
Passei a programar cada sa�da com mais
rigor, comprei perucas, bigodes, barbas e narizes posti�os, chap�us, bon�s e enchi
um ba� com uma infinidade de acess�rios de disfarce. Antes de entrar em a��o,
parava em algum lugar seguro para me travestir,
virava louro, ruivo encrespado, black power, de �culos escuros e ou de vidro, ora
barbudo, bigodudo, narigudo, e l� sei eu mais o que. Preocupava-me mais com a
cabe�a que ficava exposta na janela do fusca.
Calculava que, se fosse visto, isso ia servir para confundir a pol�cia no caso de
retrato falado.
O ve�culo e os proj�teis das armas constitu�am as provas materiais para me
relacionar aos crimes, priorizei assim a troca do carro e das armas, como primeiro
passo duma nova fase. Entrementes, continuava
insistindo na revis�o dos m�nimos detalhes das etapas de cada opera��o, uma busca
obsessiva por falhas poss�veis. A precis�o cir�rgica que eu utilizava para atingir
os meus objetivos, no entanto, me davam
uma tranquilidade relativa, a minha inquieta��o maior era com o imprevis�vel,
aquele pormenor intang�vel que foge a qualquer controle, nesses casos a capacidade
de improvisa��o � fundamental.
J� no tocante � imprensa, aprendi a conviver com ela, decodificava as not�cias
separando o que elas tinham de trigo, verdadeiro, do joio, sensacionalista,
tentando encontrar alguma reveladora inten��o
nas entrelinhas das mat�rias, no trabalho conjunto que a pol�cia faz com os
jornalistas, servindo ao mesmo tempo para estimular e acalmar a opini�o p�blica, o
que � para vender jornal e o que � pano quente
para n�o causar p�nico no povo e promover o trabalho da seguran�a p�blica. As
mortes misteriosas que infestavam a cidade nos �ltimos tempos colocavam o p�blico
em grande polvorosa, o SANGUE jogava gasolina
na fogueira permanentemente com manchetes e ilustra��es chocantes, suas edi��es se
esgotavam rapidamente.
Na Boca Maldita�, sempre �vida de novidades, n�o se falava em outra coisa,
atribu�am-se nomes ao psicopata sanguin�rio que fazia suas v�timas em s�rie, o
Vampiro de Curitiba, que j� mexia com o imagin�rio
dos curitibanos h� bastante tempo, num primeiro momento, teve a prefer�ncia da
maioria, mas vieram muitos outros, at� que se sedimentou o de Monstro Assassino,
mais tarde abreviado para Monstro apenas.
A imprensa acatou logo o cognome e era Monstro pra c�, Monstro pr� l�, Monstro
ataca, Monstro faz novas v�timas, etc. As vers�es eram variadas e desencontradas, a
bem da verdade, apesar do falat�rio insistente,
s� cresciam as interroga��es. A da pol�cia era maior que todas, se faziam
conjeturas, mas, de concreto mesmo, nada.
A morte dos policiais militares � que exaltara os �nimos da corpora��o, que
prometia medidas dr�sticas dali para a frente. Iam fazer o poss�vel e o imposs�vel
para capturar o Monstro. A imprensa aumentava
a celeuma, incluindo depoimentos dram�ticos dos familiares das v�timas, que se
organizavam para pedir provid�ncias urgentes de prote��o e seguran�a �s
autoridades, e todos eram un�nimes em clamar por justi�a,
a justi�a sempre atrasada, perdida no tempo pelo seu rel�gio sem ponteiros. A
pris�o do Monstro, no entanto, era uma quest�o de honra policial.
Dessa forma, resolvi prolongar a minha inatividade por mais tempo, me mantendo nas
amenidades de empanturrar c�es e gatos. Para n�o dizer que n�o fiz algo de
diferente, certa
. vez, depois de um inocente passeio noturno, e para n�o voltar para casa
sapateiro, dei um tiro na vitrine de uma loja de esquina, a bala varou o enorme
vidro da frente e o que dava para a rua lateral,
formando um estilha�amento em cadeia, uma cascata de cacos que subitamente deixou
os v�os devassados, como a �ltima pe�a de roupa tirada bruscamente num striptease,
e, para completar o espet�culo, o alarme
disparou a seguir, dando o toque surreal � cena, como se a loja desnuda se pusesse
a gritar pedindo ajuda, temerosa de sofrer um ataque sexual. Ca� numa crise de riso
incontrol�vel, foi um dos momentos
mais hilariantes que tive na vida, Lize teria barrigadas de riso caso estivesse
comigo.
Certa manh�, enquanto caminhava no parque, vi � dist�ncia uma mulher que me lembrou
de Lize.
Lize est� morta repeti v�rias vezes para me convencer disso.
Era como estar despertando de um sonho bom e n�o querer admitir a dura realidade.
Preciso aceitar isso, � definitivo, n�o tem mais volta. Ela est� em Umuarama, n�o
com os pais, mas no cemit�rio, os seus
restos mortais, ou o que sobrou dela, est�o enterrados l�, nunca mais vou v�-la
novamente, nunca mais. Comecei a chorar, um choro extra�do do nife da minha dor.
Chorei, chorei. As pessoas que passavam
me olhavam com curiosidade, mas eu estava cagando para elas. Me lembrei do
engraxate debiloide da pra�a Os�rio, est�vamos no mesmo n�vel de abandono, no mesmo
vazio de perspectivas. Aos poucos fui me acalmando,
enxuguei o rosto com o len�o. Quando me ergui, estava com a alma lavada, meus
passos sa�ram decididos. Se aquele garoto, com toda a sua fragilidade e
defici�ncias, conseguia enfrentar a sua brutal realidade,
eu, com muito mais raz�o, e dadas as diferen�as, tamb�m ia conseguir. Retomei a
pista e fui para junto da minha turma.
Nova onda homicida assolou a cidade, o MONSTRO CURITIBANO voltava a atacar com
apetite redobrado. As autoridades municipais nunca foram solicitadas e pressionadas
por tantas dire��es, eram associa��es
de bairros, de clubes, de classes, da puta que pariu, eram feitas passeatas,
reuni�es em condom�nio, em igrejas, comiss�es iam � c�mara de vereadores
reivindicar provid�ncias. O Secret�rio de Seguran�a
estava na corda bamba, ou achava uma solu��o para o problema, para ontem, ou ia
dan�ar, cogitava-se at� da interven��o da pol�cia federal, que recebeu oposi��o
firme das autoridades locais que, em contrapartida,
mobilizou o governo estadual e municipal a juntarem for�as para dar um basta �
crise de viol�ncia e banditismo que aterrorizava as pessoas. N�o chegaram a
decretar estado de calamidade p�blica, pois seria
um marketing extremamente negativo para o munic�pio, tido como capital de padr�o
europeu, mas criaram uma comiss�o especial, prioridade m�xima, uma for�a-tarefa
policial, a nata da nata da pol�cia civil
e militar, somente para tratar da captura do tal MONSTRO, se � que realmente ainda
existia um. O governador garantia verbas, ve�culos, armas, o que preciso fosse para
a captura do MONSTRO, ou MONSTROS,
ou quem quer que fosse que estivesse causando o terror no p�blico.
Aproveitando-se da situa��o, a imprensa volta e meia jogava mais combust�vel no
fogar�u, o SANGUE convocava a popula��o curitibana para diligenciar junto com a
pol�cia, transformando cada cidad�o num parapolicial,
num fiscal, num dedo-duro compulsivo, informando qualquer coisa ou pessoa suspeita,
e assim, de m�os dadas, numa vig�lia permanente, formando uma corrente de f� e de
esperan�a, rezando at�, qualquer ajuda
era bem vinda. E nesse particular os redutos religiosos aderiram � id�ia com todo o
g�s, realizando atos de f� e ora��es em pra�a p�blica. Um telefone foi colocado �
disposi��o para receber chamadas de
den�ncias an�nimas, o DISQUE MONSTRO, para o qual era quase imposs�vel conseguir
liga��o, tal a incid�ncia de trotes, s� eu fiz um mont�o, apontando suspeitos em
v�rios pontos da cidade, mas, em fun��o
da chuva e do frio, resolvi hibernar.
Acondicionei todo o meu material de trabalho em lugar seguro e comprei uma capa de
pl�stico para o fusca, que ficara coberto de p� pela inatividade. Enquanto isso,
lia, estudava, escrevia, caminhava, quando
o tempo melhorava, passava boa parte da manh� e da tarde pegando um solzinho na
companhia dos Amigos do Peito, meus velhinhos de cora��o avariado, que resolveram
fundar uma associa��o, acatando minha sugest�o,
a AAPPSL, ASSOCIA��O DOS AMIGOS DO PEITO DO PARQUE S�O LOUREN�O, com o fim de
reunir enfartados de todos os tipos e idades, promover palestras, etc.
L�, cercado pela coroada, que tamb�m entrara na onda do MONSTRO DE CURITIBA e do
perigo que ele representava para todos n�s, eu me sentia protegido e mimado.
Esse tal de MONSTRO vai espantar os turistas da Capital Ecol�gica.
Com essa for�a-tarefa, n�o dou uma semana para botarem as algemas no bicho.
N�o sei, n�o, estamos nos aproximando do ano 2000. E como diria Nostradamus: Mil,
n�o mais que mil. E olha que ele acertou v�rias profecias. N�o ser� o fim dos
tempos?
Qual, isso � terrorismo pol�tico, o governador n�o andou malhando os paulistas e
cariocas?
Est�o fazendo repres�lias, garanto que mandaram esses elementos pra c� pra fazer
calar a boca do homem, ele fica se proseando, que aqui � diferente, que aqui � o
para�so, que este � o melhor estado do
pa�s, ta� o resultado, atraiu olho gordo e inimigos.
Nisso voc� tem raz�o, n�o � gente daqui, � gente de fora, � cobra mandada, s�
pode, nunca tivemos isso por aqui, meu S�o Genaro. Quando pegarem o bicho, tem que
fazer com ele o que ele fez com os outros,
picadinho.
Eu ficava observando a agita��o dos velhinhos, sorria, abanava a cabe�a, comentava:
A coroa relutou um pouco para aceitar a carona, mas a sua car�ncia e solid�o
falaram mais alto. Trintona, ressabiada de homem, devia ter recebido muita porrada
e judia��o do ex.
Com o MONSTRO � solta, n�o d� para aceitar carona de estranhos disse ela,
tentando ser engra�ada.
Me achou com cara de MONSTRO?
Deus me livre. Me perdoa disse, dando um tapinha na boca , n�o quis dizer isso,
pelo contr�rio, o senhor me parece uma pessoa muito distinta.
Senhor t� no c�u.
Voc� n�o parece nada com o tal de MONSTRO.
E se eu fosse o MONSTRO, apesar de n�o aparentar?
Que esperan�a. Esse tal de MONSTRO deve ser negro e feio, muito feio e fedorento.
Riu, ri tamb�m. Os negros s�o o alvo da execra��o un�nime das pessoas, mesmo das
mais sofridas, a maioria das pessoas n�o consegue decodificar uma fisionomia, um
h�bito que as empurra para o precip�cio,
e � disso que os pol�ticos se beneficiam, quase nem precisam de marketing para
parecerem cordeiros.
Aonde vamos? perguntou ela.
Voc� que sabe.
Olhou o rel�gio.
� cedo ainda, oito horas, �s dez em ponto tenho que estar em casa, sem falta.
Contou-me que tinha um filho pequeno, que era separada, a m�e dela cuidava da
crian�a para que pudesse trabalhar. N�o
sou uma companhia muito agrad�vel finalizou.
Voc� est� muito enganada, � uma mulher muito atraente.
�Para que dizer isso, ench�-la de esperan�a?�, pensei.
Obrigada pelo elogio, at� me acho bonita, mas sou muito amarga, complicada, a vida
me deixou assim.
Eu rodava sem rumo, gastando tempo, procurando um lugar conveniente.
Voc� mora onde? perguntei.
Vila Hauer.
Est�vamos no Pilarzinho. Parei numa rua abandonada, ela achou que eu iria agarr�-
la, preparou-se toda, devia fazer um temp�o que n�o dava uma metida, embrutecida
pela rotina, trabalho, casa, inc�modo de
cria, m�e, dinheiro curto.
N�o � perigoso, aqui?
T� comigo, t� com Deus.
Gostei de voc�, do seu jeit�o. ela disse, abra�ando-me, j� que eu n�o tomava a
iniciativa.
Um momentinho eu disse, e ela recuou.
Passei-lhe o bra�o por sobre o ombro, enquanto cravava o punhal no meio do seu
t�rax franzino e tapava-lhe a boca com a m�o. Debateu-se fracamente, quase
colaborando, elanguescendo em seguida, um passamento
suave. Abri a porta do seu lado e a empurrei para fora, a bolsa foi atr�s. Era uma
pobre mulher necessitada de descanso. Em casa, ao me examinar no espelho, descobri
que ela me arranhara o rosto, uma marca
leve, superficial, mas um res�duo da minha pele ficara debaixo de sua unha.
Coloquei a cara debaixo do infravermelho e passei uma pomada restauradora, demorou
duas semanas para a marca desaparecer por
completo.
Escort vermelho, paramos lado a lado no sem�foro, atirei um beijinho e ela sorriu,
fiz sinal para baixar o vidro, ela obedeceu.
N�o t� a fim duma chupadinha?
Ora, seu.
Levantou r�pido o vidro, arrancou o carro bruscamente. Fui atr�s, emparelhei com
ela, puff, errei, apenas um buraco no vidro, ela entrou em p�nico, perdeu o
controle da dire��o, subiu na cal�ada, desceu,
raspou o poste, ziguezagueou at� conseguir alinhar o carro de novo, encostei ao seu
lado, puff, desta vez a atingi, na t�mpora. O carro se desgovernou, subiu o meio-
fio e chocou-se contra um muro, a buzina
ficou tocando.
Os notici�rios identificaram-na como estudante de Psicologia, dezenove, profiss�o
modelo, filha �nica, retornando para casa rec�m-sa�da da faculdade, s� podia ser
obra do.
O casal de velhinhos criava abelhas e vendia mel, N�O PERGUNTE SE ESSE MEL � PURO,
dizia a placa fixada na grade de ferro do port�o. Eu j� fora fregu�s deles em
�pocas remotas, n�o me reconheceram por
causa do disfarce, moravam sozinhos numa ampla casa e tinham v�rias caixas
espalhadas no terreno que se estendia uns oitenta metros para os fundos. A
vizinhan�a os detestava por causa das abelhas, sentia-se
amea�ada, eles rebatiam:
O perigo aqui, s�o voc�s, as abelhas n�o fazem mal a ningu�m, a ignor�ncia de
voc�s � que as perturba, e a n�s.
Tentaram tir�-los de l� ou acabar com as abelhas, mas os velhos receberam ades�o de
entidades preservacionistas e at� dos macrobi�ticos, e o assunto foi parar na
justi�a, depois n�o fiquei sabendo o que
aconteceu. Como estavam ainda estabelecidos no mesmo lugar, conclu� que deviam ter
ganho a causa.
A vizinhan�a acabou a persegui��o?
Ah, o senhor ouviu falar do caso? Isso vai longe, j� faz mais de vinte anos, agora
est�o mais conformados, pararam com a sabotagem, n�o judiam mais das pobrezinhas,
mas sofremos muito, meu senhor.
� verdade mesmo que as abelhas n�o s�o agressivas?
Isso tudo � ignor�ncia, claro que tem esp�cies mais nervosas, o que n�o � o nosso
caso, as esp�cies de abelhas que criamos s�o mais pac�ficas que um nenezinho, n�o
fazem mal a ningu�m. Al�m do mais,
temos poucas caixas aqui, a maioria do mel n�s trazemos do s�tio e de apicultores
conhecidos, as pessoas � que s�o maldosas, inclusive, picada de abelha � rem�dio
para reumatismo.
Garanto que o MONSTRO n�o � uma abelhinha, hein?
O casal de velhos gostou da piada, era muito engra�ada, hohoho.
N�o, n�o, o MONSTRO, decididamente, n�o � uma abelhinha.
Havia uma estante e uma mesa comprida cobertas com potes de mel, rotulados. Cada um
trazia a origem e uma recomenda��o no r�tulo, mel de angico, laranja, eucalipto,
maric�, etc., pr�polis, favos,
gel�ia
real, tudo aut�ntico, extra�do com a melhor t�cnica de extrativismo artesanal.
Escolhi dois potes, um com r�tulo eucalipto, outro laranja, paguei e embolsei o
troco. Os velhinhos estavam encantados comigo
e me seguiram at� a porta, de modo que fui sum�rio, puff, puff. Sa� sem me voltar.
Eu estava enrodilhado na zona morta de uma rua mais morta ainda, o rapaz, tr�pego,
se aproximava, parou algumas vezes, ora se apoiando no poste ora na �rvore, se
aprumava, depois seguia. Quando chegou
bem perto do carro, escorregou e caiu sobre o canteiro de grama, os p�s para fora
do meio-fio. Desci do carro e me aproximei dele. Roncava em sono profundo, a cara
enterrada na grama. Jovem, musculoso,
trescalando a cacha�a. Encostei a ponta do cano na sua nuca, puff. Senti respingos
no rosto, cuspi fragmentos de seu c�rebro.
Outro sonho no m�nimo curioso, eu me achava sentado atr�s de uma mesa de carvalho
antiga com entalhes em alto relevo. Andando de um lado para outro, um homem de
cerca de 60 anos, de estatura m�dia, em
mangas de camisa branca e gravata, esbelto, mas musculoso, boa pinta, gesticulava
se contrapondo ao que eu lhe dizia. Ele estava agitado, mas mantinha o controle.
Meu tom de voz era quase inaud�vel, mas
duro. Com o cotovelo apoiado no tampo de vidro da s�lida mesa, minha m�o amparava o
queixo de um rosto encarquilhado como uma passa de uva e encimado por uma calva
completa, um vetusto senhor com n�o menos
de 100 anos, mas que exibia impon�ncia e rigidez id�nticas � do tronco que cedeu
seu cerne � mesa, ao mesmo tempo emanava um vasto poder refletido na fala
autorit�ria, uma aura equivalente a de um estadista.
O homem � sua frente tamb�m tinha familiaridade com o mando, e pareciam muito
�ntimos, uma rela��o de pai e filho. Em clima tenso, se discutia uma decis�o
aparentemente muito importante.
Acordei com uma sensa��o de urg�ncia, que nada mais era que o desejo imperioso de
urinar. Fiquei v�rios dias remoendo aquele sonho, tentando retirar algum sentido ou
revela��o de seu conte�do. Estava claro
que tinha a ver comigo e me projetava num futuro long�nquo, mas, e da�? Eu estava
me importando a m�nima em conhecer a minha sorte, se ia viver muito ou pouco. Se
alguma curiosidade ficou, foi querer saber
quem era o homem que me acompanhava, do qual eu ainda lembrava as fei��es, mas
acabei deixando pra l�, eu tinha coisas mais importantes para me preocupar.
Na pra�a Os�rio, tomei assento no meu banco preferido. A mis�ria, como uma sombra,
fazia a sua ronda, mas n�o localizei o engraxate de olhar vazio, filho do meu
escarro. Aos poucos fui retomando a minha
peregrina��o pelos tortuosos caminhos do sofrimento alheio. A inatividade embrutece
os sentidos, atrofia os reflexos, n�o podia deixar o excesso de precau��o tolher os
meus passos, retardar a minha trajet�ria.
Voltei � ativa. Troquei de carro, agora um Gol, azul escuro, ano 1980, mandei
envenenar como o anterior, mas com alguns melhoramentos, reforcei os para-choques
com barra de ferro, pneus radiais, providenciei
v�rias placas frias, coloquei um aerof�lio remov�vel, para retir�-lo sempre que
fosse conveniente, um detalhe que serviria para confundir a sua identifica��o,
surdina ultrassilenciosa, vidros � prova de
balas e portas blindadas. Um pequeno tanque de guerrilha urbana. Deixava-o na
garagem sem capa, pronto para entrar em a��o a qualquer momento. Entretanto, ia ao
parque, ao Centro, a p� ou de �nibus, precisava
conviver com o pov�o, conhecer os seus h�bitos. Eu tive percep��o pr�xima da merda
dos outros, mas isso j� fazia tempo, estava desatualizado, precisava me reciclar.
Certa manh�, acordei tenso e fui golpear o saco, o casal do andar de baixo come�ou
a brigar mais cedo que de costume. A discuss�o deles, os gritos hist�ricos da
mulher, fazia alguma coisa se contorcer
dentro de mim. Em dado momento, perdi o controle e me pus a bater com uma cadeira
no pavimento bem acima da cabe�a deles, deixei-a em peda�os, isso serviu para faz�-
los calar, e eu me acalmar um pouco.
A partir da�, a cada desentendimento, bastava o tom de voz deles ficar mais alto
que eu j� me encrespava. O radinho de pilhas at� que resolveu num primeiro momento,
mas ficar com aquele treco nos ouvidos
o tempo todo era irritante demais para o meu gosto. Mesmo assim, bastava iniciarem
o bate-boca, eu corria para o radinho e o ajustava no volume m�ximo. Certo dia,
botei os fones, sintonizando num programa
de m�sica cl�ssica, e bati no saco um temp�o, inebriado pelas sinfonias de v�rios
compositores. Quanto parei para descansar e tirei o treco da cabe�a, o pau comia
solto, emputeci, minha vontade era descer
l� e dar um peido na cara de cada um. O casalzinho fodido estava quase me tirando
da paci�ncia. Fui para o banho, resolvi sair para almo�ar e dar uma tr�gua aos
ouvidos. No corredor se escutava nitidamente
as nuances do arranca-rabo. Tinha perdido a manh�, in�til tentar ler ou rabiscar no
caderno com um temporal daqueles. Dessa vez extrapolavam, batiam portas, quebravam
coisas, sei l�, uma diversidade de
sons que tornava dif�cil a identifica��o da sua origem. Depois dos gritos seguiam-
se sons abafados que eu atribu�a a tabefes, pois os berros recrudesciam na
sequ�ncia. Uma batucada dos diabos, sem ritmo
nem cad�ncia, Escola-de-Samba-Unidos-Pela-Porrada. N�o consegui segurar, j� estava
a meio caminho andado, aproveitei e desci l�, colei o dedo na campainha, um cara de
bunda abriu a porta.
Vem c�, meu chapa, todo dia uma briguinha, meu? J� tou de saco cheio, p�.
O bund�o ficou me olhando com o maior descaso, como se eu tivesse falado �
minuteira e n�o a ele.
Por que o senhor n�o vai cuidar da sua pr�pria vida? disse e bateu a porta no meu
nariz.
Avaliei a situa��o. Com um bom encontr�o eu botava a porta abaixo e dava um pau nos
dois, seriam apenas alguns segundos, tudo muito r�pido. Ia gritar shazam, mas
consegui brecar o �mpeto a tempo. O caso
ia acabar na delegacia, era melhor manter dist�ncia. N�o, eu n�o ia cair nessa
arapuca, j� havia pensado nas consequ�ncias de uma rea��o desse tipo, por isso
vinha me segurando, n�o convinha levar um processo
por agress�o a essa altura do campeonato, n�o seria nada recomend�vel, nada mesmo.
�Hhuumm, o cara tem temperamento violento, sabe como �, uma coisa puxa a outra, v�
que numa dessas.� Meti o rabo entre
as pernas e tomei o elevador.
Os dois, revoltados contra mim, seriam bem capazes de me atribuir as les�es da
mulher. N�o, � fria, ia pensar numa maneira de dar um jeito neles sem muito
estardalha�o. Ao chegar ao t�rreo, me ocorreu
se algu�m n�o me vira reclamando na porta deles. Subi de novo, desci no d�cimo e
fui batendo de apartamento em apartamento, s� a velhinha do 1003 atendeu, perguntei
se ela estava sem energia el�trica,
assim como eu.
Hein?
Tive que repetir a pergunta.
Hein?
Gritei. Mesmo assim, n�o sei se ela entendeu alguma coisa, era surda como uma
porta, a diaba. Tranquilizei-me.
Ent�o o problema � na minha instala��o, obrigado, desculpe o inc�modo.
O qu�?
Subi para o d�cimo-primeiro e repeti a opera��o. Ningu�m. Do corredor ainda se
escutavam as vozes alteradas, um pouco mais moderadas.
Fui almo�ar num restaurante vegetariano, depois andei um bocado, l� pelas 16 horas
estava de volta. Sil�ncio. Desci e toquei a campainha do apartamento 1101, v�rias
vezes. Nada. Tinham sa�do, os putos.
Peguei o carro e catei um chaveiro distante alguns quarteir�es dali, trouxe-o
comigo e entramos pela garagem, ele abriu instantaneamente a fechadura e fez uma
chave sobressalente. Fiz quest�o de levar
o panaca de volta ao seu pontinho para evitar que ficasse de papo-furado com o
porteiro do meu pr�dio ou com algu�m pelo caminho. Mas o cara era tontinho mesmo,
nem desconfiou que eu n�o era o dono do
apartamento que acabara de abrir, ali�s, a bem da verdade, eu era um Cidad�o-Acima-
de-Suspeitas, quem ousaria suspeitar de mim? Eu � que exagerava nas minhas
precau��es, o seguro morreu de velho, se bem
que porteiro de edif�cio residencial. Voc� sabe como �, n�? Quando n�o tem ningu�m
por perto para fofocar, acaba fazendo intriga do seu p� esquerdo para o direito, e
deste para a barra da cal�a ou para
o cal�ado.
Entrei em casa com a chave queimando na palma da m�o, cantarolando, os meus
vizinhos que se preparassem, eu ia arrumar a cama deles, n�o perdiam por esperar.
Antes de guard�-la em lugar seguro, por�m,
n�o resisti ao impulso de descer para uma inspe��o de reconhecimento. Fiquei
satisfeito com o que vi. Quando voltei, peguei o caderno e fiz uma planta baixa nos
m�nimos detalhes do domic�lio que acabara
de vasculhar, depois li e trabalhei o resto da tarde e um bom peda�o da noite. S�
escutei o casal regressando l� pelas duas da madrugada, desta vez nem o som
ligaram, como costumavam fazer, deviam estas
cansados, pois foram dormir em seguida, calmaria no peda�o. No dia seguinte, ao
acordar, fui pro saco, e nos seguintes e seguintes, cheguei a ficar com os n�s dos
dedos em carne viva de tanto bater na
bolsa de couro recheada de areia, n�o estava conseguindo me fixar no trabalho, me
concentrar em nada. No parque, os velhinhos me torravam o saco, t�dio na pot�ncia
mil, estava que nem vampiro sedento,
ind�cil, na falta de v�tima para extrair sangue novo n�o perdoava nem absorvente
usado, planejei uma sa�da noturna para me adocicar.
Acordei no meio da noite tiritando de frio, fui pegar no arm�rio o grosso cobertor
de l� uruguaia, retornei � cama e experimentei o peso aconchegante da coberta.
Apesar da grande sonol�ncia, alguma coisa
vaga me impedia de dormir. De repente a consci�ncia explodiu como um flash, as
crian�as deviam estar congelando nas pra�as, nas ruas. As madrugadas curitibanas de
inverno s�o implac�veis com os sem-teto.
Saltei da cama, vesti-me �s pressas e disparei para o centro da cidade.
No centro da pra�a Os�rio, as crian�as me rodeavam. Uma delas se aproximou mais que
as outras e eu a segurei, outras foram se achegando, um pouco t�midas, eu as
envolvia com meu abra�o protetor e os chamava
�Meus filhos�. Aquelas que recebiam o meu contato se afastavam para dar lugar �s
pr�ximas, que se agarravam � minha cintura, �s minhas pernas. Meus filhos. eu ia
proteg�-los dali para diante. Seria um
pai zeloso preocupado com a sobreviv�ncia deles, com o futuro deles, com a
felicidade deles. Todos vinham me tocar, refugiar-se na minha for�a, na minha luz,
na luz intensa que emanava das minhas m�os
e que iluminava as trevas das suas vidas, todo o desamparo de quem nada tem al�m de
um corpo mirrado e sujo. Pobres crian�as apavoradas, venham comigo, me sigam, a
solid�o acabou. �amos em frente, num
s�quito macabro, rompendo a p�lida neblina que embolsava a noite gelada, cad�veres
fugitivos das sepulturas em busca de um sonho para viver.
Somente foram descobrir os corpos uma semana depois. Deveu-se isso � insist�ncia da
m�e da mo�a para que o s�ndico chamasse a pol�cia, alegava ter ligado dezenas de
vezes para falar com a filha e ningu�m
atendera, isso n�o era normal, pois costumavam ter contato di�rio, logo, n�o, a
filha n�o tinha viajado sem aviso, como queria fazer crer o s�ndico, tentando se
desembara�ar da tarefa indigesta. A filha
n�o dava um peido sem lhe comunicar, al�m disso, como ele podia explicar o fedor
que exalava por debaixo da porta e se espalhava pelo corredor? O s�ndico resistia �
press�o da mulher, pretextando ter tido
um caso semelhante quando fora s�ndico em outro pr�dio, anos atr�s, em que os
moradores haviam viajado e deixado restos de comida e, o que era pior e causava o
cheiro repugnante que incomodava meio mundo,
sem ter dado descarga no banheiro. Para atender � reclama��o de vizinhos, invadiu o
apartamento e arranjou um rabo daqueles para si. Tudo bem, podia at� n�o ser nada,
talvez excesso de zelo materno, mas
a mulher, hist�rica, exigia uma verifica��o, jurava n�o arredar p� dali enquanto
ele n�o tomasse provid�ncias, exigiu que o s�ndico acionasse a pol�cia. Esta,
apesar da demora, cedeu aos brados da m�e
desesperada e chamou um chaveiro para abrir a porta e adentrar no ap�. Um grupo
entrou, alguns recuaram, o cheiro era insuport�vel. O jornal SANGUE cobriu tudo com
pormenores, exaltando a intui��o da m�e.
Ao chegar da rua, avistei a mulher mi�da berrando com o s�ndico, identifiquei-a de
cara, era escandalosa como a filha. A voz esgani�ada revelava o parentesco, a
heran�a gen�tica, devia gostar de apanhar,
tamb�m. Chaveei-me em casa e fiquei aguardando o desenrolar dos fatos, ouvido
colado � porta. Decodificando os sons, eu podia acompanhar passo a passo o que
rolava l� embaixo, variedades de vozes das quais
eu n�o conseguia entender o significado, mas que implicavam em constata��es e
provid�ncias, o elevador subindo e descendo sem parar, in�cio de tumulto e gritos
agudos, muitos gritos. Permaneci quieto,
longo tempo, apenas escutando a minha pr�pria respira��o e calculando o andamento
dos trabalhos da pol�cia t�cnica, alguns pequenos bols�es de sil�ncio que eram
quebrados por novas movimenta��es.
Por fim, escutei passos no meu andar, algumas vozes indagando se haveria algu�m em
casa, identifiquei a de um dos porteiros indicando o n�mero do meu apartamento.
O doutor est� sempre em casa.
Mesmo assim, ouvia-se o toque insistente e in�til das campainhas dos apartamentos
vizinhos, algumas vozes se afastaram e a minha come�ou a soar na cozinha. Uma,
duas, tr�s vezes. Na quarta, quem tocava
esqueceu o dedo na tecla. Esperei mais um pouco e abri a porta de supet�o, saindo
bruscamente para o corredor e trombando com um tampinha de metro e meio, rosto
amassado, barrigudo, chap�u, o cigarro pendente
dos l�bios, lembrou-me Humphrey Bogart atropelado por uma manada de b�falos e com
metade das pernas decepadas.
O que o senhor faz aqui? perguntei r�spido, tirando os fones dos ouvidos. Os
min�sculos alto-falantes emitiam um som estridente.
Desculpe, cavalheiro. Eu estava tocando a sua campainha quando o senhor saiu e
esbarrou em mim respondeu o hom�nculo, se aprumando e ajeitando o chap�u que quase
lhe caiu da cabe�a.
N�o o vi respondi, desligando o aparelhinho e dando-lhe as costas para fechar a
porta.
Estava de sa�da. O que o senhor deseja? Eu falava quase aos berros.
Cavalheiro, toquei v�rias vezes a sua campainha e j� estava desistindo. recome�ou
ele O porteiro me avisou que o senhor tem o h�bito de escutar r�dio com fones, por
isso eu insistia, para que o
senhor a escutasse. O baixinho tinha uma voz nasalada, arrastada, mon�tona, capaz
de fazer uma
plat�ia dormir em fra��o de segundos, melhor t�cnica de hipnotismo imposs�vel.
N�o escutei nada cortei, dando por encerrada a entrevista.
Olhei para baixo, para concluir o meu exame, e descobri os bicos de seus sapatos
esfolados, precisando de graxa, essa �ltima constata��o do estado lastim�vel da
figura me causou uma irrita��o fulminante,
uma antipatia natural, desamor � primeira vista. Ao tornar a examinar sua cara de
burocrata, insossa, totalmente danificada pelas rugas e pela bexiga, convenci-me de
que fora precipitado e fizera uma enorme
injusti�a ao compar�-lo com o ator. Na verdade, a associa��o se dera apenas pelos
acess�rios, chap�u e cigarro, um, sebento, o outro, babado, um conjunto que
retratava 65 anos de pura decad�ncia, a representa��o
do fracasso em pessoa. O que fazia uma m�mia dessas na pol�cia?
Como em resposta �s minhas observa��es, o pintor de rodap�s ergueu o chap�u pela
copa, educadamente, fazendo uma rever�ncia ao modo oriental, mas me estendendo a
m�o � ocidental.
Comiss�rio Lopes, �s suas ordens.
Envolvi sua m�ozinha molenga e minha primeira rea��o foi a de tritur�-la, achei
melhor, por�m, n�o lhe dar nenhuma dica do que eu seria capaz.
Estou atendendo o chamado do s�ndico, houve um crime de morte no seu pr�dio.
O qu�? berrei na sua cara.
Dizem que esses radinhos de ouvido podem causar surdez com o tempo disse ele
pacienciosamente , se usados muito altos. O senhor se acautele, hein? Alteou a
voz: Seu vizinho aqui de baixo matou
a mulher e se suicidou, tudo leva a crer ter sido um crime passional.
Ah, �? N�o diga. Mas que barbaridade.
O senhor os conhecia? ele me perguntou aos berros.
S� de vista, passavam discutindo, mas isso j� faz tempo, ultimamente andavam
calmos.
Por isso o senhor adotou o uso dos fones?
Como?
Ele ent�o repetiu a pergunta.
N�o, absolutamente. respondi Sou gamado em m�sica cl�ssica, prefiro os sons
harm�nicos � barulheira da cidade, a polui��o sonora est� cada vez pior.
Se est�. Percebi, antes de o senhor desligar o aparelho, que estava escutando a
sinfonia n�mero um de Rachmaninov, em r� menor. Tamb�m sou apreciador dos cl�ssicos
pigarreou, meio constrangido
de que eu o considerasse um esnobe. Desculpe estar o atrapalhando, � que eu
precisava fazer-lhe algumas perguntas. O senhor por acaso escutou alguma coisa
vinda dos seus vizinhos nesses �ltimos dias,
enquanto brigavam, que lhe chamasse a aten��o? Viu algu�m estranho no pr�dio?
N�o respondi imediatamente.
Seu sorriso foi seguido de um breve surto de riso, como uma tosse s�bita, que ele
se apressou em conter, flagrando-se da indelicadeza. Ficou meio sem jeito, era
t�mido, o babaca, passou o cigarro dum canto
da boca para o outro com o aux�lio da l�ngua, deixando-o mais babado ainda. Tinha
perdido momentaneamente o rebolado, mas o recuperou em seguida.
Eu j� calculava. acrescentou. Mais uma perguntinha e j� libero o senhor. Qual
foi a �ltima vez que os escutou brigando?
Iiihhhh, faz tempo.
Acredito que fossem bem conhecidos no pr�dio por causa das brigas, n�o �?
Ahh, sim. Uma vez os assisti se tapearam no elevador, bem debaixo do meu nariz. O
cara me olhou feio, querendo dizer que, se eu me metesse, ia sobrar pra mim tamb�m.
Apenas sorri e fiquei na minha.
Mas ultimamente andavam bem calmos. Se bem que quase nunca escuto nada eu disse,
apontando para o headphone que n�o sejam acordes e frases musicais.
Incomodaram muito o senhor?
Como? N�o entendi.
Ele ergueu o tom da voz.
Faziam muito barulho? Quero dizer, no dia a dia? Isso devia incomodar o senhor com
certeza.
N�o, nunca me incomodaram, n�o me meto com a vida dos vizinhos. Ali�s, nunca
comentei com ningu�m sobre a briga no elevador, o senhor � o primeiro a saber.
Viver e deixar viver?
Isso a�, fico na minha e tudo anda bem.
Se escutava bem a discuss�o deles a� do seu apartamento? Pergunto isso porque,
hoje em dia, esses pr�dios novos t�m estruturas muito fr�geis, as divis�rias
parecem feitas de papel. Se escuta tudo por
elas, mesmo dum andar pro outro. come�ou a arengar ele, parecendo um calhambeque
com motor arruinado subindo com dificuldade um aclive acentuado, o que desencadeou
em mim uma crise intermin�vel de
bocejos. Acredito que n�o seja o caso deste pr�dio continuou , que parece s�lido
e bem constru�do, de primeira, mas �s vezes a gente escuta, mesmo n�o querendo,
chega a ser uma imposi��o. N�o se
lembra de alguma coisa que tenha escutado? Alguma amea�a, coisas assim? Por
incr�vel que pare�a, a maioria dos homic�dios dom�sticos tem antecedentes de alerta
antes da ocorr�ncia propriamente dita, algo
como �Vou te matar, seu ou sua.�, coisas assim, sabe como �?
Sorri para ele.
Estou lembrando, sim. emendei na ponta de um bocejo. A mulher disse certa vez,
escutei porque ela gritava em altos brados, que ia capar ele. N�o capou, mas matou,
o que vem ser a mesma coisa,
um homem capado n�o vale nada, Deus me livre, como se n�o bastassem as mortes
causadas pelo MONSTRO, agora, mais essa, e logo aqui no nosso pr�dio.
N�o, n�o foi ela que matou contrap�s o policial , ao contr�rio, foi o marido que
matou a mulher e, ap�s, suicidou-se, tudo com uma faca de cozinha, coisa muito
feia, uma pena, um casal jovem ainda,
� brincadeira, n�? Hoje em dia, a viol�ncia � uma coisa muito s�ria, por d� c� essa
palha se cometem os crimes mais b�rbaros.
Desta vez fui eu a pigarrear, imitando-o.
Bom, se o senhor j� terminou e quiser me dar licen�a, tenho um compromisso, estava
de sa�da.
Claro, claro, n�o tenho mais perguntas, fico-lhe muito agradecido pela aten��o.
Come�ou a catar alguma coisa no bolso do palet�, retirou a m�o com um cart�o preso
entre os dedos. Era um policial da velha guarda, formal, educado, oriundo da pr�-
hist�ria da academia de pol�cia, passara
pelo regime de Vargas e pela Ditadura sem se corromper.
De todo jeito, vou deixar meu cart�o com o senhor, se lembrar de algum detalhe que
achar importante, por favor, ligue-me, e mais uma vez, obrigado.
Estendeu-me novamente a m�o min�scula e mole, comprimi-a suavemente, enquanto a
gana era fazer mingau com ela. O tipo devia andar matando cachorro a grito nas suas
investiga��es, raciocinava t�o devagar
que era poss�vel antecipar as perguntas que ia formular daqui a uma semana. Escutar
a engrenagem enferrujada do seu c�rebro funcionando, rangendo, como uma carreta de
bois, um diabo que era para estar
aposentado, criando galinhas, ou internado num asilo, eu, hein? Enquanto eu bolara
um esquema que colocara a cidade em polvorosa, vinha um Javert desses a�, sa�do do
s�culo XIX, devagar, quase parando,
para me interceptar, brincadeira tem hora, � meu. Chamei o elevador, ele meteu a
m�o no bolso, cavoucou, n�o achou nada, meteu no outro e tirou um isqueiro, acendeu
o cigarro babado.
V� se n�o vai morrer de enfisema pulmonar antes de chegar ao fim desse caso, hein,
meu chapa?
Ele olhou pra mim, um olhar entre malicioso e culpado, como se desculpando.
V�cio maldito, n�o consigo largar.
Deu uma tragada profunda, depois expirou a fuma�a num longo jato. O elevador chegou
e eu entrei. Antes, por�m, que a porta se fechasse, ele deu dois passos longos, com
uma agilidade inesperada, e prendeu-a
com o p�, a porta tornou a se abrir e ele a acompanhou com o p�, mantendo-a
imobilizada.
O senhor n�o leva a mal se eu lhe fizer uma �ltima perguntinha?
Claro que n�o, manda ver.
Bom, depois das brigas, eles. Entende? Quero dizer, o senhor n�o ouviu alguma vez
eles. N�o sei se fui bem claro. Por fim, resolveu usar as palavras certas,
vencendo o pudor. Sabe? Fazendo
amor? Gemidos, coisas do g�nero?
N�o, nada, isso nunca, nunquinha.
Estranho, t�o passionais, eram bons de briga e ruins de cama?
Explodi numa gargalhada, o velho era pirado mesmo, onde j� se viu querer saber da
vida �ntima do casal quando j� estavam completando a volta ol�mpica do inferno, ele
riu tamb�m, desenxabido.
Recebiam muitas visitas, faziam festas?
Para lhe ser sincero, nunca vi vivalma.
Desculpe. Retirou o p� e a porta se fechou suavemente.
JD: Sim. Foi assim mesmo. De repente eu me sentia livre, feliz, aliviado. Como
algu�m que vomita um alimento indigesto, que rec�m saiu da pris�o, que aprendeu a
voar. Adquiria um poder para o qual estivera
me preparando a vida toda, mesmo sem saber, apenas prorrogando a posse, talvez
achando ainda que o cargo era muito importante para a minha humilde pessoa. N�o
era. Qualquer um pode romper, mas a grande
maioria n�o rompe. E quando rompe, em geral n�o sabe o que fazer com tanta
liberdade. Na verdade, s� rompemos em situa��es-limite. Quando n�o nos sobra mais
nada. A minha loucura me levou � liberta��o.
Somente os loucos se libertam. A civiliza��o � culpada de todos serem neur�ticos,
prisioneiros de si mesmos. � o pre�o que pagamos por viver na bosta da sociedade
humana.
JL:Uma na��o politicamente organizada em termos ideais amenizaria as dificuldades
de conviver em sociedade?
JD: Pelo menos nos daria a sensa��o de estarmos todos no mesmo barco, coisa que n�o
acontece praticamente em nenhum lugar do mundo. Mas sem d�vida que uma sociedade
mais justa � uma sociedade melhor de
se viver. � o que as sombras dizem. (risos). N�o estimula tanto a ira, pelo menos.
No entanto, essa mesma ira � que equilibra o mundo. Pode parecer paradoxal, mas �
assim mesmo. Se voc� se sente injusti�ado,
vai lutar pelos seus direitos e colocar as coisas nos seus devidos lugares. S� n�o
consegue se � muito fraco. A� precisa se agrupar, se organizar. Um grupo � sempre
mais forte do que um indiv�duo, pelo
menos em tese. Essas coisas.
JL:Mas a tua rea��o foi totalmente individual.
JD: Todo in�cio � assim, n�o se sabe muito bem o que nos espera. N�o podemos,
por�m, nos intimidar com a incerteza. Eu arrisquei, era o mesmo que me lan�ar no
escuro sem saber o que havia debaixo dos p�s,
se uma base s�lida ou. o v�cuo. As pessoas hoje n�o se arriscam mais, esperam que
lhes deem as coisas de bandeja, exigem pouco. Querem que os outros pensem por elas.
A tev� em parte j� assumiu essa tarefa.
� sabendo disso que os pol�ticos deitam e rolam.
JL: Como no caso do Brasil? Se o povo n�o fosse �s ruas, n�o sairiam as diretas j�.
JL:Mas nessa �poca, final dos anos de 1970, o Comando Vermelho, no Rio, j� estava a
todo vapor como organiza��o, correto? Ouve alguma influ�ncia posterior?
JD: Nenhuma. O Comando Vermelho era muito fechado e pouca coisa ventilava sobre
ele. Al�m do mais, estava circunscrito � cidade do Rio de Janeiro. Somente a partir
de meados da d�cada de 1980 � que come�ou
a ficar mais conhecido do p�blico, pela imprensa.
JL:E a decep��o, acerca dos resultados da pesquisa, qual era?
JD: N�o chegava a ser decep��o, apesar de verificar pontos extremamente negativos
no modus operandi das quadrilhas e gangues.
JL:Caracter�sticas essas que voc� tratou de eliminar ao criar a ACC?
JD: Nem todas, mas a maioria (risos). O que caracterizava o bandido nacional, ou
mais especificamente, o paranaense, era se juntar em pequenas quadrilhas ou
gangues. Uma grande quantidade delas. Em todo
territ�rio nacional, at� presentemente, podemos contar alguns milhares desses
pequenos grupos, �s vezes de apenas dois ou tr�s integrantes, n�mero, ali�s, que na
sua totalidade n�o saberia precisar. Nem
a pol�cia e nem o IBGE conseguem, o que prova que a estat�stica � ainda um artigo
de luxo no Brasil. Nos EUA, por exemplo, os caras sabem quantos peidos o americano
m�dio d� por dia, j� no Brasil. n�o
sabem nem a quanto andam os ve�culos da prefeitura de Curitiba. (risos), o que, sob
certo aspecto, � bom para eles, pois assim, estando as coisas bem esculhambadas,
fica mais dif�cil de cobrar. Os �rg�os
de pesquisa no Brasil t�m mais a ver com o marketing pol�tico e de neg�cios, mesmo
assim alguns s�o bem duvidosos, a maioria encomendados. Dados precisos para
planejar a administra��o p�blica est�o � margem
das preocupa��es dos caras de Bras�lia. O neg�cio deles � outro. A pol�tica, a
democracia, � uma fachada para as suas inten��es mais rec�nditas. N�o acredito que
estou dizendo isso, as palavras que voc�
coloca na minha boca.
JL:Tu s� est�s descrevendo a realidade das coisas, tch�.
JD: Todo mundo sabe que pol�tico � bandido, � corrupto, que tem todas aquelas
maldades que os p�s de chinelo comuns t�m, s� que mascaradas pelas boas inten��es,
pelos interesses do povo, e n�o sei quantas
baboseiras mais. As palavras adquiriram o poder de sugerir a realidade, de
substituir a realidade como se a realidade fossem, s� que n�o s�o. S�o uma
representa��o simb�lica, uma fantasia. Quando se
usa o termo da boca pra fora, quer se dizer o qu�? Que aquilo n�o vai se realizar,
s�o apenas palavras. Os pol�ticos brasileiros, a exemplo dos de outros lugares,
descobriram isso, com um certo atraso,
diga-se de passagem, e est�o aplicando aqui o que foi aplicado alhures, s� que de
uma forma exorbitada. Mas � uma coisa manjada, apenas para uma fatia pequena da
popula��o, o resto, a grande maioria, por�m,
engole a p�lula, e acredita nas palavras que escuta. � o cr�dito que a crian�a d�
ao Coelhinho da P�scoa, ao Papai Noel, o caralho.
JL:Como n�o acreditar? Como duvidar de algo antes que aconte�a?
JD: Esse � o grande trunfo desses filhos da puta: ningu�m pode duvidar das suas
palavras de promessas antes de elas n�o se realizarem, n�o � mesmo? S� depois, mas
a� j� � tarde, o tempo passou, e o que
passou, passou, n�o h� como resgatar o tempo e a realidade passados. N�o credito
que continuo falando de pol�tica e dos putos dos pol�ticos, que cond�o voc� tem
para conseguir isso de mim, Jardel?
JL:Talvez porque voc� goste, tch�. O problema � que parece que n�o d� para
dissociar pol�cia e pol�tico de bandido, n�o � isso?
JD: Isso. me ajuda a�.
JL:Voc� tecia coment�rios sobre a atua��o prec�ria dos bandos de p�s de chinelo
paranaenses.
JD: � que a maioria dos membros desses bandos malformados apresenta baixo �ndice de
escolaridade e se origina das periferias das grandes cidades, onde est�o
localizados os bols�es de pobreza. Curitiba,
que j� est� come�ando a inchar pra valer, j� apresenta um bocado deles. Esses
pobres diabos atuam, na maioria das vezes, sob efeito de drogas, sempre muito
loucos. Principalmente nos casos de um-cinco-sete
e correlatos. Essa turma funciona mais no instinto, no desespero, no improviso.
Tudo isso contribui para um p�ssimo desempenho. Aquilo que mais tarde passou a se
chamar UNICRIM seria o departamento da
ACC destinado a profissionalizar os confrades no crime. V�o fazer, mas tendo plena
consci�ncia do tipo de delito que est�o praticando, das implica��es jur�dicas que
eles acarretam e dos meios de defesa,
tamb�m jur�dicos, para tentarem escapar ilesos das consequ�ncias de seus atos. Por
isso � important�ssimo, desde o come�o, minimizar os erros. Todos s�o treinados
para dar o melhor de si. Prevenir antes
de remediar. Coisa eminentemente t�cnica, coisa de profissional. Como sabemos, o
profissional n�o pode errar. Profissional que erra � mau profissional. Imagina um
cabeleireiro errar o corte de cabelo de
algu�m �s v�speras de se casar? Ou o costureiro errar o corte do vestido da noiva
�s v�speras do casamento? Imagina o dentista obturar um dente s�o e deixar o
cariado sem tratamento? E por a� vai. No meio
desse pessoal despreparado, muitas a��es n�o passam de simples tentativas. Os caras
s�o presos durante ou at� antes da a��o se iniciar. Claro que existem grupos mais
bem estruturados e tal, at� porque
alguns de seus integrantes pegaram algumas dicas na cadeia, trocaram id�ias com
bandidos veteranos, mais experientes, e corrigiram em parte as defici�ncias. Mas eu
n�o via nada que indicasse lideran�as
unificadoras e que criasse v�nculos para a forma��o de grupos maiores,
especializados, mais profissionais. Isso come�aria a acontecer cinco, dez anos mais
tarde, de um modo mais frequente. O que saltava
aos olhos era a horizontalidade do sistema e a frouxa hierarquia reinante entre
eles. Nesse sentido, o trabalho repressivo da pol�cia ficava facilitado.
Considerando o princ�pio biol�gico de, esmagada
a cabe�a obt�m-se a morte do corpo, tirar uma quadrilha de circula��o numa opera��o
de rotina significava extingui-la. Donde se deduz que bandido desorganizado
subentende pol�cia forte, sendo v�lida tamb�m
a rec�proca. Instintivamente, com o objetivo de obter mais efici�ncia, passei a
tra�ar as linhas mestras para inverter essa situa��o.
JL:E aqui, sim, chegamos finalmente ao princ�pio desencadeante da ACC.
JD: Rien de rien. Eu fazia aquilo para preencher o tempo, como j� disse,
brincadeira de ocioso. Mas uma coisa ia puxando a outra, foi tomando corpo, virou
projeto. Quando me dei conta, havia tra�ado um
plano para a cria��o de uma organiza��o criminosa em termos ideais, com estatuto e
tudo. Mas a id�ia desse tempo n�o tinha nada a ver com a ACC, era apenas uma id�ia
maluca. N�o posso negar, no entanto,
que esse exerc�cio, pode-se dizer assim, serviu de alicerce para a id�ia de cria��o
da ACC, que veio surgir somente muitos anos mais tarde, num outro contexto.
JL:Uma id�ia que veio sementar uma lavoura que redundaria na colheita do fruto
chamado ACC. Podemos dizer assim?
JD: Visto por esse �ngulo, sim. Nessa �poca, por�m, achava que tudo n�o passava de
utopia, de esfor�o in�til, sem aplicabilidade pr�tica. Tanto que n�o cogitei em
momento algum de ter qualquer participa��o.
Jamais pensei em quebrar o meu isolamento, partir para a a��o conjunta. Mas,
conforme o projeto crescia em tamanho e conte�do, pensei em fazer uma experi�ncia,
introduzindo-o num pres�dio de porte, como
a Casa de Deten��o de S�o Paulo, por exemplo, para ver que bicho pudesse dar. Caras
l� de dentro, cancheiros,
da minha parte, apenas a inten��o de idealizar os fundamentos de uma grande
organiza��o criminosa com vistas a abalar as estruturas do poder reinante no
Brasil, nada mais que isso. Eu seria apenas o
pai da id�ia, tipo Arist�teles � considerado o pai l�gica, coisa do g�nero.
JL:Um projeto t�o modesto que deu no que deu.(risos)
JD: � que, na �poca, continuo insistindo, n�o tinha essa configura��o. Da minha
parte, o m�ximo a que eu me predispunha era dar um assessoramento � dist�ncia, sei
l�. Qui�� compartilhar parte das experi�ncias
do MONSTRO. Bem assim.
JL:E o qu� o fez mudar de id�ia?
JD: Um belo dia enchi o saco e larguei tudo de m�o. Conclu� que o trabalho era
pretensioso e que n�o daria frutos, achei tudo muito rid�culo. Joguei toda a
papelada dentro de uma caixa para ir pro lixo.
Como eu nunca retirava o lixo, foi ficando. Muito tempo depois, procurando por
outra coisa, dei com o projeto maluco. Reli-o e vi algum fundamento nele. Ou seja,
vi-o com outros olhos, os olhos do pr�-Chef�o.
Somente a partir da� passei a trat�-lo com seriedade. Nessa altura, eu j� estava
mudado e tinha uma compreens�o mais profunda da panela de merda.
JL:Por exemplo?
JD: Entendia melhor como as coisas funcionavam. O que levava os caras a delinquir?
N�o era s� a pobreza, tinha um componente que pesava mais que tudo, que levava �
radicaliza��o. Tem cara que n�o admite
parar, como no meu caso. � o tipo que poderia ser chamado de nato ou assumido. O
cara � do crime, j� nasceu nele, ou entrou, e n�o quer sair, ou seja, n�o tem
recupera��o para ele. Ou pelo menos enquanto
as regras continuarem sendo as mesmas. O malandro � o nato, � o que participa do
mundo do crime e que cumpre � risca as leis da massa do crime, � a sua figura
principal, re�ne as qualidades ideais e positivas
entre a bandidagem e mesmo na carceragem. Foi quando parti pra pr�xis, para me
achar. Conforme fui me introduzindo no meio da bandidagem, fui me identificando e
conhecendo aqueles que seriam os meus futuros
confrades e sendo reconhecido por eles. Estava criado assim o embri�o da ACC.
JL:E quais seriam as regras que precisariam ser mudadas para permitir o retorno
desse grupo especial ao seio da sociedade? Antes, por�m, gostaria de saber qual �
esse componente t�o importante que leva
as pessoas ao crime?
JD: N�o tenha d�vida, cara, o orgulho de um homem, nada mais que isso ou muito mais
que isso. O orgulho � que faz um homem ser digno de vestir as cal�as que veste. � a
sua maior cidadania. Quem tem orgulho
n�o se deixa pisar, nunca. Ningu�m humilha um confrade, pois o seu orgulho o
protege. Quanto a ser resgatado ao seio da sociedade, como voc� diz, nenhum
confrade pretende isso mais, seria um retrocesso,
at� porque j� est� bem plantado nessa sociedade, j� conseguiu o seu lugar ao sol,
com muita liberdade e orgulho, disso n�o tenha d�vida.
JL:A ACC pretende manter tudo do jeito que est�? Nada deve ser mudado?
JD: S� admitimos a preval�ncia do direito natural sobre o positivo. No estado
atual, as regras s�o quebradas a todo momento. Ora, regras quebradas abrem
precedentes, logo, vale tudo. OUSEJE, sempre.
JL:N�o lhe parece simplista considerar o conjunto das coisas apenas sob esse ponto
de vista?
JD: Enquanto prevalecer o direito da for�a, todos ficam � merc� do mais forte. Esse
tro�o do Rousseau de que a for�a n�o gera direito, � totalmente falso. O direito de
uns � garantido pela submiss�o de
outros. Quando todos exigem seus direitos ao mesmo tempo � a guerra. E, n�s todos,
meu garotinho, estamos em guerra, n�o se deu conta disso ainda?. S� que a ACC sabe
defender bem as suas trincheiras,
com muita garra. �, Jardel, � assim mesmo. Os per�odos de paz s� se d�o quando uma
das partes abriu m�o dos seus direitos ou � mais fraca. Mas a ACC jamais vai abrir
m�o dos seus, isso eu garanto. N�o
tinha se apercebido dessas coisas, Jardel?
JL:Bom, n�o penso assim. Acredito no consenso, no di�logo, na negocia��o. Em suma,
na democracia.
JD: Todos os que est�o do outro lado pensam assim. Somos considerados os errados
por isso. No entanto, a ACC, eu e meus irm�os confrades, pensamos exatamente o
contr�rio. Somente o oprimido reconhece a
sua dor, lambe as suas feridas. Quem n�o sente n�o geme. Somente quem geme � quem
sente. Pergunte a um pol�tico se j� passou fome, se j� ganhou sal�rio-m�nimo, se j�
viveu em favela ou corti�o, se j� perdeu
filho por desidrata��o, o cacete. A maioria dos pol�ticos � das classes abastadas,
no m�nimo da classe m�dia. Poucos v�m realmente de baixo, como o teu Lula, at�
porque a ascens�o pol�tica exige muito
dinheiro. Uma campanha, mesmo de vereador, exige um bocado de dinheiro. Donde pobre
vai ter dinheiro para gastar em campanha, se n�o tem nem pra atender �s
necessidades b�sicas? De fato as coisas parecem
simplistas, mas n�o fomos n�s que as criamos. Somente for�a se opondo a for�a, em
n�vel de igualdade, � que pode levar ao consenso, di�logo, negocia��o, democracia,
essas baboseiras todas. Quando uma das
for�as prevalece n�o tem nada disso. De promessas e discursos o povo est� bem
servido, s� que na pr�tica, s� toma no cu. � tudo conversa mole. N�s, confrades, j�
fomos povo e fracos, agora somos for�a,
uni�o, ningu�m nos barra a entrada.
A PR�XIS
�Os homens fazem a sua pr�pria hist�ria, n�o nas condi��es criadas
por eles, mas nas condi��es dadas.�
Dia seguinte, fui cedo � luta. Ao passar na frente da obra, vislumbrei maravilha de
cano reluzente sobressaindo do coldre do vigia, mulat�o de cara invocada. Obra
grande, dois pr�dios de 20 andares, empreiteira
s�lida financiada por banco mais s�lido ainda, superfaturada, todo mundo metendo a
m�o adoidado, se fosse feita sem trampa o pre�o cairia para um ter�o, n�o desejam
nem ouvir falar em auditoria, o mercado
passivo aceita o pre�o exorbitante de venda sem chiar. Moradia sempre foi artigo de
luxo no Brasil, os oper�rios est�o bem satisfeitos com a mixaria do sal�rio, foram
bem domesticados, tudo na mais santa
paz.
Sentei no meio-fio e fiquei observando, o berro estalando puxava o meu olho como um
im�. � tardinha trocou a guarda, e os loques foram se retirando. O vigia que rendeu
o pardo era um polaco vermelho, magro,
de olho azul e cara de fuinha, mais invocado que o seu antecessor. O peso do berro
que carregava fazia-o vergar para o lado, um tresoit�o cano longo, cromado, maneiro
pacas. Veio na minha dire��o batendo
o cassetete numa das m�os, eu estava sentado no meio-fio do outro lado, com os
cotovelos apoiados nos joelhos, m�os tran�adas atr�s da cabe�a abaixada, cuspindo
no ch�o. Mesmo nessa posi��o, eu n�o perdia
um movimento do debi. Fiquei tal qual, cuspindo, cuspindo, e o vulto cresceu na
minha frente.
E a�, vov�? Perdeu alguma coisa por estas bandas? disse isso e continuou batendo
o cassetete na m�o.
Fui erguendo o rosto devagar e o encarei. Com a barba por fazer, cheia de fios
embranquecidos, devia estar com a apar�ncia do pai do Dr�cula.
E a�, meu patr�ozinho? Eu tava vendo se n�o conseguia uma vaga pra trabalhar, mas
vi tanta gente que desanimei. O meu olhar cheio de humildade e o tom esgani�ado da
minha voz me fazia parecer sa�do
de um asilo de indigentes, uma cena duca, s� n�o ca� na gaitada porque ia estragar
tudo.
O vov� ainda pensa em trabalhar? Vai ser dif�cil conseguir vaga por estas bandas,
o capataz � fogo, n�o viu como todo mundo saiu desanimado? Ele tira o couro do
pessoal. Se o cara n�o � colhudo n�o
dura muito tempo por aqui, n�o. O vov� n�o ia aguentar nem meia hora.
O borra-botas falava de um jeito desrespeitoso, cheio da raz�o, barriga cheia.
� memo?
Podes crer, vov�, podes crer. � melhor ciscar noutra freguesia.
O bunda-suja era mais grosso que dedo destroncado, n�o estava nem a� para o velhote
que podia ser seu av�.
Por acauso o patr�ozinho n�o tem um p�o velho pra me dar? Faz dois dia que n�o
aponho comida de sal na goela.
N�o tem nada n�o, vov�. L� pelo centro tem um albergue que t� dando sop�o pros
carentes.
Suspendi a boca da cal�a, mostrando o p� mec�nico. Enquanto o seu c�rebro
enferrujado decodificava a mensagem de que caminhar at� l� ia ser dif�cil, o calo
do seu minguinho do p� come�ou a amolecer.
Vou dar uma olhada l� dentro, talvez ache alguma coisa falou por fim. Espera
aqui.
O cara de fuinha deu as costas, e eu o segui.
Espera aqui tornou a dizer, segurando o passo ao perceber o meu movimento.
Eu me fiz de desentendido e continuei andando atr�s dele. No port�o de madeira,
chegou a pensar em me barrar, mas o calo deu outra fisgada, seguiu em frente,
encostei o port�o ao passar, eu cuidava para
todos os lados e n�o via ningu�m. J� escurecia e dentro do alojamento n�o se
enxergava nada, o fuinha acendeu a luz, e pelo v�o da porta vi v�rios beliches,
alguns oper�rios deviam pernoitar ali. O cara
de bunda chupada abriu um arm�rio e tirou p�o, bolacha e salame l� de dentro, botou
em cima da mesa junto da parede.
Deu sorte, vov�, o pessoal deixou uns restos. Entra a�. Ficou olhando eu me
servir, sorri.
�, dei sorte memo, patr�ozinho, os home n�o vai se zangar quando voltar?
Pode comer descansado, vov�, eles s� v�o voltar na segunda, n�o tem problema, n�o.
Se o vov� n�o comer, as ratazanas detonam tudo.
Eu tinha dado a chance �quele imbecil de usar um resqu�cio da sua humanidade, e ele
n�o queria perd�-la. Cortei o peda�o de p�o ao meio e coloquei uma fatia de salame
dentro, o cara-chupada me olhava embevecido,
j� com todos os calos amolecidos, talvez at� me desse, de sobremesa, um trocado
para a condu��o.
T� bom, vov�?
Muito bom respondi com a boca cheia. Outra mordida, mais outra, mastigava com
gana.
Fica de noite aqui?
Hoje e amanh�, fico. Antes o capataz deixava a turma dormir a� no final de semana
apontou para os beliches , mas os caras aprontaram tanto que ele resolveu suspender
a mordomia, agora s� durante a
semana. Essa turma tem que se ralar mesmo, n�o d� pra dar colher de ch� pra eles,
s�o que nem macaco, se a gente d� a m�o j� querem o bra�o, ficaram a ver navios,
bem feito.
Se aquilo era jeito de falar dos companheiros, n�o tinha a m�nima consci�ncia de
classe. Eu balan�ava a cabe�a, como se estivesse concordando com tudo o que ele
dizia. Sim, ele tinha toda raz�o do mundo,
e a minha admira��o embasbacada o envaidecia.
Fica sozinho?
S� eu e Deus.
Terminei de comer e levantei, o bunda-suja havia apoiado o traseiro na beirada da
mesa, cruzado os bra�os, enquanto me observava. Talvez, ao me ver naquela pen�ria,
devorando com voracidade as migalhas
que me jogara, se lembrasse de sua inf�ncia, dos maus tempos. Tirei o len�o do
bolso e limpei a boca.
Matou quem tava te matando, vov�? falou bem alto, sorrindo, mostrando o dente de
ouro.
Se matei respondi , e de morte matada.
Tem �gua ali, vov�, pode se servir � vontade disse, apontando uma geladeira
caindo aos peda�os. Se o capataz n�o fosse t�o chato, eu at� deixava o vov� dormir
a�, s� que, se ele descobre, arrebenta
no meu, a� n�o d�, n�?
Eu tinha enternecido aquele casca-grossa, tinha lhe dado a chance de ser solid�rio
e ele respondeu, diga-se de passagem, com um sinal muito fraco, mas agora j� estava
ficando meloso demais para o meu gosto,
estava exagerando, se continuasse nesse ritmo, ia acabar se derretendo que nem
chocolate em dia de calor. Encostei nele.
Gostaria de lhe agradecer, patr�ozinho.
Ora, vov�, n�o esquenta.
Eu deixara a minha m�o escorregar para tr�s, quando a trouxe de volta, a faca
estava nela. Instalei-a debaixo do seu queixo, como era nova e o fio apurado,
embora s� tivesse feito uma pequena press�o,
a ponta cravou-se na pele e um filete da meleca come�ou a escorrer-lhe pelo
pesco�o, atingindo a gola da camisa.
Qual �, vov�? tentou prosseguir, mas o pavor lhe tolheu as palavras e o sangue
fugiu-lhe do rosto. Esbugalhou os olhos, parecendo uma r�s no matadouro, arfando de
desespero.
Mudei a faca para a m�o esquerda e levei a outra at� o seu coldre, soltei o fecho
de press�o e saquei o tresoit�o flamante de l�.
Fique calmo eu disse, recuando e apontando-lhe a arma.
P�, meu velho, qual �? foi o m�ximo que conseguiu pronunciar, com a voz
embargada.
Tem corda a�? perguntei.
Fez um sinal com a cabe�a indicando um lugar qualquer nos fundos do alojamento,
mandei-o deitar-se de bru�os no ch�o, e ele obedeceu prontamente. Eu n�o podia
atirar, pois haviam resid�ncias na volta,
ia fazer chamariz. Inclinei-me sobre ele e apoiei um dos joelhos no centro das suas
costas, ele come�ou a se debater, tentando se virar, botei o revolver na cinta e
peguei a faca com a m�o boa, larguei
o peso do corpo para prens�-lo no solo e puxei a sua cabe�a para tr�s, pelos
cabelos, com a m�o boba. Meti a faca por debaixo do seu pesco�o e iniciei a degola.
N�o sei como ele conseguiu for�as para firmar-se
nos bra�os e dar impulso com as pernas, eu perdi o equil�brio e rolei para o lado,
mas n�o o soltei. Ele se debatia violentamente enquanto eu fazia a faca trabalhar,
com o seu corpo ainda por cima do meu.
Precisei usar toda a minha for�a para cont�-lo. Nisso, senti alguma coisa soltar-
se, era a cabe�a dele separando-se do corpo. Ainda sustendo-a pelos cabelos,
joguei-a para longe, a sangueira era intensa.
Sa� debaixo dele e pus-me de p�, estava ensopado de meleca. Vasculhei numas
prateleiras, tentando encontrar alguma pe�a de roupa. Achei dentro de um saco de
polipropileno a roupa suja deixada pelos oper�rios,
separei uma cal�a e uma camisa e fiz a troca rapidamente, ap�s lavar-me na pia ao
lado do fog�o. Penteei-me. As roupas tinham ficado um pouco justas. Olhei o corpo
decapitado e a enorme mancha de sangue
em volta, contornei-o e recolhi as balas do cintur�o. A cabe�a distava uns tr�s
metros de onde eu me achava, os bugalhos vidrados. Examinei-me, ajeitei as armas na
cintura e sa�, fechando a porta atr�s
de mim.
A catinga da camisa enchia as minhas narinas. L� fora, tudo normal, afastei-me dali
rapidamente, tomei um coletivo no outro lado do quarteir�o e fui para o centro.
Troquei de coletivo, desci no Juvev�
e me dirigi a um terreno baldio que eu memorizara para quando precisasse. Estava
tomado pelo matagal e a escurid�o era completa. Fui tateando at� uma �rvore cujo
vulto se destacava e cavouquei em volta
de suas ra�zes, fiquei com as m�os escalavradas, mas n�o adiantou nada todo o meu
esfor�o, faltava o principal. Retornei para a rua, procurei uma lixeira, de onde
extra� um saco pl�stico imundo, limpei-o
como pude e voltei ao matagal, embrulhei o rev�lver e as balas, coloquei o volume
no fundo do buraco e o cobri de terra, iria servir para qualquer eventualidade
futura.
Revelou que aprendera a manejar l�mina aos 6 anos de idade, com o tio, afamado
malandro da velha-guarda, compositor de sambas, infelizmente j� falecido. For�oso
era dar desconto para suas hist�rias, noventa
e nove v�rgula noventa e nove por cento eram lorotas. Com toda a certeza podia-se
afirmar que, na maioria das vezes, apenas o p� do soneto tinha algum conte�do
verdadeiro. Um dia ele come�ou a me pesquisar.
Qual � a tua, Mano V�io? D� pra sacar que tu tem educa��o, n�o � vagabundo.
� muito vis�vel?
Tirei a tua ligeirinho. Esse cara n�o � do ramo, falei c� com os meus bot�es, mas
tamb�m n�o � nenhum porra-louca, ent�o tem que ter algum problema na vida dele.
Tira se fingindo de vadio pra caguetar,
n�o leva jeito. O amigo t� mais � descornado, n�o � memo? Quando vejo tu olhando
pra coisa nenhuma, d� pra ver que � tristeza da braba, que tem um sentimento te
comendo por dentro. J� tive fase dessas,
eu tamb�m estudei um pouco, apesar de ter me criado na merda, meus pai eram da
ro�a, n�o tinham nem onde cair morto, j� eu, tirei o prim�rio, barbado trabalhei
at� na prefeitura da minha cidade natal,
mas despois, bom, a� ca� no mundo, entortei de vez. deu um tapa nas minhas costas.
Mano V�io, tu � gente boa, tu nunca pegou cana, n�o �, merm�o?
Me vi obrigado a contar-lhe uma hist�ria triste, inventada na hora, como ele
esperava ouvir. Dentro da idealiza��o fantasiosa que fazia de mim, falei sobre
Lize, do acidente, da morte, s� que em circunst�ncias
diferentes, com nomes mudados, lamentei a falta que ela me fazia, sim, ele tinha
raz�o, fora muito esperto da parte dele, mostrava que sabia usar a psicologia, eu
andava desfocado, total, n�o estava nem
a�, ca�ra na vagabundagem. Depois que a gente se arreia fica dif�cil levantar,
perdera o emprego, et cetera. Enchi a lingui�a das calamidades, que estava numa
merda que dava gosto, que de vez em quando
tirava dinheiro de puto, mas que n�o aguentava mais essa de ficar comendo cu de
homem pra sobreviver, estava a fim de entrar em outros esquemas, de adiantar o meu
lado de outro jeito, menos sacrificante,
sabe como �? Tirar o pau da merda. Quando falei dos putos, seu rosto se iluminou, e
ele armou um sorrisinho malicioso, afinal eu dava a dica do que fazia com o
despropositado nas horas vagas.
Ta�, tu chegou como encomenda, tem um cara que eu vou te apresent�, voc�s s�o do
memo padr�o, aquele sabe tudo, d� trambique de tudo quanto � lado, � o terror dos
comerciante, j� quebrou muita firma
forte, incomoda os lojista mais que dez elefante, tem raiva de poli�a e mant�m eles
sempre longe, quil�metros de dist�ncia, gente fin�ssima, irm�o nosso. Dia desses
atr�s ele me bateu que tava percurando
um parceiro de f� prum golpe legal, jura que vai render uns bons pilas, voc�s dois
v�o adiantar um o lado do outro. Ele queria me botar na parada, mas eu tirei o
corpo fora, o meu ramo � puxar carro,
cada um na sua, n�o gosto de beliscar noutros esquemas que n�o seje o meu ch�o.
O desafino da cuca veio at� n�s, disse que a pinga tinha acabado, mas n�o recebeu
resposta.
O Mano V�io dirige?
Fiz que sim com a cabe�a. Ele nunca perguntara o meu nome, me adotou como Mano
V�io, nem eu o contradisse, e foi ficando. A minha apar�ncia j� n�o diferen�ava da
deles, a melena e a barba embranquecidas
n�o me deixavam com menos de 60, e eu n�o me desgostava que fosse assim. A urucaca
berrou desta vez mais alto que a pinga tinha findado, me preparei psicologicamente
para desembolsar mais uns pilas, pois
agora quem bancava as despesas era o paiz�o aqui, mas me enganei, Darcisinho, em
vez do pedido costumeiro de dinheiro, perguntou:
N�o t� a fim de dar uns transbordos por a�, Mano V�io?
Dei de ombros, mas no fundo estava louco para entrar em a��o.
Muler, te arruma a�, penteia essas crina, que vamo dar uns transbordos, o Mano
Ve�o � Fitipaldi.
J� est�vamos esfogueteados da pinga, t�nhamos mais era que botar pra quebrar.
Pegamos um �nibus, sentido centro, era cedo ainda, perto das 10 horas da noite,
acatei a sugest�o de Darcisinho e descemos
no Batel. Andamos por ruas transversais, ele ia descolar um carro pra n�s. N�o foi
preciso procurar muito.
Que acha daquele ali?
Um Monza branco, setenta e poucos, estava solito na travessa deserta.
Pode ser.
Darcisinho estava agitado.
S� que tem o seguinte. Eu abro, ligo e logo tu assume, n�o sou muito bom de bra�o,
o olho atrapalha.
Tudo bem.
Ficamos na esquina, eu e Fedora, e ele foi sozinho at� o carro. Fez servi�o r�pido.
A brincadeira da noite rendeu mil, quinhentos e vinte paus no posto, mais dois paus
com a transa��o do carro, totalizando tr�s mil, quinhentos e vinte. Reparti meio a
meio, passei a Darcisinho a sua parte,
ele pegou e ficou me encarando.
T� faltando a parte da Fedora.
� Darcisinho, a Fedora n�o fez nada, meu, ficou s� olhando, ainda por cima torcia
contra.
Mas ela faz parte da quadrilha, Mano V�io.
Que quadrilha, cara?
A nossa.
N�s n�o passamos duma patota de bebuns agitando um pouco.
Tu que sabe, meu.
Darcisinho embolsou o dinheiro a contragosto, mas mudou de humor repentinamente.
Boa f�ria, hein, Mano V�io?
�.
Senti que ali o cabrito n�o berrava e isso n�o era bom. Fedora estava ausente, l�
pros fundos, mijando ou cagando, sei l�. Separei algumas notas e estendi a
Darcisinho.
D� pra Fedora comprar alguma coisa pra ela.
N�o precisa, n�o, Mano V�io, deixa pra l�, at� acostuma mal.
Pega a�, ela merece.
Darcisinho pegou a grana relutante, abanando a cabe�a. Quando Fedora se aproximou,
Darcisinho deu uns pilas pra ela ir comprar rango e trago.
Tudo isso?
O resto � presente do Mano V�io pra ti.
Ela fez uma careta simp�tica mostrando a porteira aberta da dentadura estragada.
Obrigada, Mano V�io.
J� amanhecia, Fedora se foi, cambaleando, tropicando, carregando o garraf�o de
pl�stico para encher de cacha�a.
Puxa disse eu batendo na testa , esqueci de repartir os cheques.
T� em boas m�os respondeu Darcisinho.
Cavouquei no bolso traseiro e peguei o ma�o dobrado.
O La Rosa ou o Terneir�o compram eles de n�s disse Darcisinho.
� uma boa retruquei.
Agora n�o adianta ir l�, � muito cedo, despois a gente procura eles.
Esclareceu que La Rosa era o tal que ele pretendia me apresentar, assim se matava
dois coelhos com uma cajadada s�.
Tudo bem eu disse.
Somei os cheques, deu mil e oitocentos. Fedora voltou com p�o, salame, queijo e o
garraf�o cheio de cacha�a gelada. Comemos, regando a refei��o com longos tragos que
desciam redondos. Fedora deitou-se
no ch�o, cobriu-se de palha e come�ou a roncar em seguida. Darcisinho deu um chute
nela, Fedora resmungou, virou de lado, parou de roncar. Dormimos.
Acordei com o sol na minha cara, suando, ia ser outro dia quente. O mosqueiro zunia
� nossa volta, enlouquecido, pardais catavam farelos de p�o na toalha improvisada
com as sacolas do super. Eu precisava
tomar um banho, trocar de roupa, os mosquitos me deixaram marcas que, de tanto
co�ar, tinham virado chagas. Darcisinho acordou com a minha agita��o e, notando que
eu me preparava para sair, ergueu-se tamb�m.
Vamo l�, Mano V�io?
Vamo.
Peguei uma sacola para embrulhar o rev�lver, Darcisinho me pediu para examin�-lo.
�, malandro, como � que anda com esse berro sem raspar?
Nem tive tempo desconversei. Nem atentara para esse detalhe importante, se me
pegassem com a arma, iriam identific�-la como a do vigia e eu ia me ferrar.
Darcisinho decidiu n�o adiar mais, ajudei-o a procurar uma pedra e um peda�o de
ferro, martelamos o n�mero da arma at� ficar ileg�vel. Darcisinho enfiou o embrulho
debaixo de Fedora ainda ferrada. Feito
isso, nos fomos.
Ao chegar ao centro, entrei em uma loja e comprei uma camisa, cal�a, sapatos.
Darcisinho me imitou, comprando exatamente as mesmas coisas, s� que no lugar de
sapatos comprou t�nis. Dali seguimos para os
sanit�rios da rodoferrovi�ria, tomei o banho mais demorado da minha vida, nunca
pensei que pudesse sentir tanto prazer numa coisa t�o simples, a �gua me surtiu um
efeito de puro al�vio estimulante. Sa�mos
de l� e entramos em uma barbearia. Barba e cabelo. Remo�amos vinte anos cada um.
Mano V�io, tu t� que � um garot�o, home, nem parece aquele v�io estropiado que
apareceu l� no meu moc�.
E tu parece que rec�m fez 12 anos, que ainda n�o perdeu o caba�o. Ele riu,
faceiro.
Tou bonito, Mano V�io? perguntou, fazendo pose.
T� que � uma bichinha louca.
Que � isso, meu? T� me confundindo? Aqui tem, �. Meteu a m�o entre as pernas
agarrando os bagos sobre o tecido das cal�as.
Vamos procurar La Rosa eu disse , quero que voc� me apresente pra ele, pra trocar
os cheques e pra ele me botar naquele outro esquema que voc� falou.
Darcisinho resolveu iniciar a procura pela pra�a Rui Barbosa, La Rosa n�o tinha
paradeiro certo, podia tanto estar aqui como acol�, isso quando n�o sumia das
bocas, indo cantar em outra freguesia, Sampa,
Bel�, Floripa, Rio, Portalegre, Salvador, sabe-se l� onde mais.
Ao chegarmos � pra�a, no entanto, ningu�m sabia com exatid�o do paradeiro de La
Rosa, constatei que Darcisinho tinha muitos conhecidos por ali, camel�s, mendigos,
vagaus, pivetes, bicheiros, mich�s, o
escambau. A sua nova apar�ncia causou estranheza geral e era motivo de goza��o.
Quanto a La Rosa, um dizia que ele estava em S�o Paulo, outro contradizia, que
tinha visto ele ontem, ali mesmo, na pra�a.
Ele t� sempre naquela birosca da Visconde de Nacar, n�o sai de l� assegurou um
deles.
Sei onde �, mas ele tinha largado aquele ponto, tava muito manjado disse
Darcisinho.
Mas t� de volta.
Fomos at� a birosca, nada. N�o encontramos nem Terneir�o, que seria a segunda
alternativa. Darcisinho tinha outros conhecidos por ali, deixamos recado,
passar�amos mais tarde, que ele nos aguardasse, pelo
sim, pelo n�o, continuamos procurando. Enquanto o procur�vamos, entrei em um super
e comprei uma tintura para cabelo, os meus estavam embranquecendo a olhos vistos,
cada dia um pouco mais, na barbearia
tomara conhecimento dessa triste realidade.
Prosseguimos � cata de La Rosa, na pra�a Os�rio n�o estava, na Tiradentes tamb�m
n�o, na sinuca da Ordem, idem, o calor estava demais. Nos abancamos em um boteco e
pedimos uma cerveja com tira-gosto, bebemos
aquela e mais outras tantas. Os jornais s� iam dar alguma not�cia do rebu no
condom�nio e no posto no dia seguinte, mas o r�dio e a tev� j� deviam estar dando,
agendei mentalmente para, pr�ximo ao meio-dia,
ir a um lugar onde tivesse tev� para assistir ao notici�rio local.
Mano V�io come�ou Darcisinho, falando � socapa , quando tu pegou aquele berro
ontem vi que tava a fim de bolo.
Logo quem falando.
Mano V�io, tu te tomou, cara! O exu Sete Catacumbas baixou em ti, cara, fez gato-
sapato com o cavalo dele. disse isso, e ria pra valer. Ontem tu tava com o
capeta, vivente, queria atirar em tudo
o que via, parecia o Mauro Gigante, que quando vai assaltar banco n�o quer deixar
ningu�m vivo, com a 12 dele, o homem toca fogo em tudo o que se mexe, � um perigo,
hahaha, agora arranjou um irm�o g�meo,
haha.
Quem come�ou foi voc�, eu s� fui lhe dar cobertura.
Mas n�o � que aquele ot�rio quase me acerta? Dei uma pedrada nele e me joguei para
tr�s dos carros, viu como � bom ser pequenininho? Rolei por baixo dum carro e,
antes que o loque se flagrasse, toquei
a l�mina no gog� dele, caiu despejando bala pro outro lado.
E eu preocupado com voc�, Fedora me enchendo a cabe�a que a gente ia pegar cana,
que isso, que aquilo.
Fedora � bundona, t� sempre agourando, chamando coisa ruim pro lado da gente. Vira
essa boca pra l�, azar�o, por isso � que arranquei os dentes dela, indignei com ela
de tanto ela me agourar, por causa
duma dessas a�, igualzinha, ent�o enchi ela de porrada, mas n�o tem jeito, o pau
que nasce torto, apanha, mas n�o se endireita, aquela ali t� sempre chamando azar,
negativa pra caramba.
E voc� ainda queria repartir com ela a nossa f�ria, hein? Lancei o repto para ver
a rea��o dele, se tinha assimilado o acerto ou ainda guardava rancor.
O Mano V�io t� certo, foi bobeira minha, reconhe�o.
Mas voc� em cima dos carros, pulando e estourando os para-brisas � que tava
possu�do pelo capeta, a maior figurinha, o homem endoidou, foi o que pensei comigo.
O problema � que voc� tava dando a maior
bandeira, debaixo das luzes.
Aquele pessoal l� t� todo encaga�ado, Mano V�io, n�o abre o bico, se abrirem,
depois dessa, sabem que levam mais, eu tava engasgado com aqueles puto, parecia que
tinha uma jamanta atravessada na minha
garganta, peguei dois anos de cana por causa daqueles puto, chamaram os home
enquanto eu aliviava os carros com um faixa meu, n�o deu outra, nos deram flagra l�
dentro daquela bosta de estacionamento,
que bobeira, Mano V�io, n�o gosto nem de lembrar, quatro viaturas cercando a �rea,
ca�mo como uns patinho. Agora tou aliviado, a vingan�a � doce.
�, mas voc� teve muita sorte daquele ot�rio n�o te acertar.
� que o cara quis dar uma de mach�o, mas tava todo cocoseado nas cuecas, cara com
medo n�o pensa, acabou se fodendo.
�, mas n�o d� pra dar vacilo, n�o, malandro.
Mano V�io, j� encarei muita parada dura, e tou aqui, �, inteira�o, tenho o corpo
fechado, Mano v�io, uma batuqueira me fez um trabalho pros olhos n�o me ver, arma
branca n�o me furar e as balas desguiar.
Levantou a camisa e me mostrou uma cicatriz nas costas Isso foi no pres�dio,
dessa, sim, escapei por pouco, o cara me deixou a marca, mas eu mandei ele pra
cucuia depois, n�o deixei os puto comer o
meu rabo, pagou com a vida pela tentativa, n�o tem conversa.
Voc� vacilou naquele estacionamento, aquilo l� � lugar de azar pra voc�, na
primeira vez foi preso, agora quase veste o pijama de madeira, n�o chega mais perto
daquele lugar, � meu irm�o. Eu tava
ficando euf�rico, obra da ceva, levantei e dei um abra�o em Darcisinho, ele me
respondeu com um beijo na testa.
Nunca mais, Mano V�io, n�o passo nem pela frente, voc� tem raz�o, aquela � boca
muito da entaipada, n�o afina com o meu astral, tutufum, sarav�.
Pedimos a saideira, t�nhamos ainda que achar La Rosa, se nos embriag�ssemos
ficar�amos em desvantagem para negociar.
Mas gostei de ver o Mano V�io em a��o. disse ele baixando o tom de voz que se
elevara um pouco, obedecendo a um sinal meu p�, Mano V�io, tu � cancheiro, meu, tu
tava me conversando que n�o � do
ramo, escondendo o leite, o jeit�o que voc� empunha o berro e atira com aquela
pontaria � coisa de nego familiarizado com a mixaria, coisa de profissa, l� no
posto voc� mostrou isso, parecia o La Rosa
quando t� nervoso, falando enrolado no castelhano dele.
Ca�mos na risada, a gente estava numa boa, numa naice, trique trique rolim�.
Levantei e fui ao balc�o pedir a conta.
Vamos embora, temos que achar o La Rosa.
Eu s� continuava intrigado com o fato de, at� aquele momento, n�o ter recebido a
tal mensagem para dar a extrema-un��o ao frentista do posto, nos dois anteriores
fora como uma imposi��o, mas j� em seguida
parou. Tamb�m, agora, com o caso passado, nem adiantava mais mesmo. Engra�ado,
parecia algu�m me assoprando no ouvido, diga isso, diga aquilo. Estaria eu virando
m�dium e me tomando como garantiu Darcisinho?
Exu Sete Catacumbas, tutufum, sarav�.
O Mano V�io j� teve quadrilha? Tu tem pinta de quem j� chefiou bando, tu n�o me
engana, seu come-quieto. Eu comandava outros lances, bem diferentes, mas � aquilo,
quem foi rei nunca perde a majestade.
Darcisinho come�ava a me ver com outros olhos, olhos de admira��o e amizade.
Que nada, rapaz, na verdade eu s� trabalho sozinho, voc� � o meu primeiro
parceiro.
N�o me diz? Ent�o, toca aqui, parceir�o. Sentiu-se importante, soqueamos e
apertamos as m�os. Tou te chamando de Mano V�io, mas acho que vou mudar a alcunha,
n�o t� mais de acordo, vou te chamar
de Mano Novo, � s� olhar que vejo um garot�o na minha frente.
T� bom, t� bom, n�o precisa puxar o saco. J� paguei a cerveja, agora, se quiser
mais outra eu pago, n�o tem problema.
Seguimos em frente, rindo, empanturrados de bom humor e otimismo. Darcisinho me
manifestou que mudara de id�ia, gostaria de continuar fazendo neg�cio comigo, que
eu formasse uma quadrilha e fosse o chefe,
ele seria o imediato, mudava de ramo.
Mano V�io, tu tem pulso firme, d� pra coisa, bota os vagabundos a trabalhar para
ti, voc� bola os planos e manda eles executar, n�s vamos, mas botamos eles na
frente.
O problema � que eu � que gosto de ir na frente, Darcisinho, de tar no centro do
redemunho.
O Mano V�io t� certo, eu tamb�m gosto de tar bem na frente do bolo, sen�o n�o tem
gra�a. Tou dizendo bobagem, mas tudo bem, n�s vamos juntos, puxando o resto, gostei
da a��o do posto, a gente tem mais
� que apagar esses puto, sen�o eles deduram a gente.
Isso � pelas v�timas da chacina do Carandiru eu disse.
O qu�? N�o saquei, Mano V�io. Que � que tem o can. can, o qu�?
Nada, nada repliquei, disfar�ando , � bobagem.
O dito tinha pintado, afinal, e eu o emitira em voz alta, automaticamente, quase
sem sentir, agora n�o tinha mais utilidade, quem sabe eu o reservasse para a
pr�xima encomenda��o? S� que, como Darcisinho,
eu tamb�m n�o entendia o significado dela, quem seriam essas v�timas? A Casa de
Deten��o do Carandiru eu sabia tratar-se de um pres�dio de S�o Paulo, mas tinha
havido v�timas l�? Ou haveriam?
Encontro esse que me fez dar uma guinada brusca e me permitiu queimar etapas ainda
no processo inicial do meu aprendizado. De cara ficou evidente que La Rosa me tomou
por bund�o, e eu n�o consegui atinar,
num primeiro momento, em que se baseou para agir assim, ou se fazia parte de seu
procedimento normal de avaliar pessoas, qualificando-as de sorongas a priori, dada
a sua megalomania. Nem me interessei
em saber, em aprofundar a minha an�lise da sua psicologia, quando percebi a sua
manobra, adotei o estratagema de pescador, oferecer uma isca tentadora para o peixe
morder sem demora, e, na continuidade,
dar bastante corda, para deixar que ele, de tanto se debater, morresse de cansa�o.
Seria uma maneira sutil de faz�-lo reconhecer o seu erro de julgamento.
Cheguei no bar �s 10, conforme o combinado, rigorosamente trajado, ele n�o se
encontrava l�, s� foi pintar �s doze e trinta, como quem carrega o mundo nos
ombros, a cara inchada de tanto beber e dormir,
eu at� achava que ele n�o fosse aparecer mais, esperava por esperar. Desculpou-se
pelo atraso e levou-me a um escrit�rio, nas imedia��es. Enquanto faz�amos o trajeto
a p�, foi explicando o que eu devia
fazer, j� tinha preparado uma documenta��o fria para mim, carteira de identidade,
CPF, declara��o de pr�-labore emitida por contador, conta de luz, s� faltava eu
tirar foto para colar na carteira. Eu teria
que me apresentar na casa comercial de um turco, como executivo de uma empresa,
comprar o que desse, tapetes persas, quadros, conjuntos de porcelana chinesa, etc.,
coisa de muito valor e pouco volume,
fornecer um endere�o para entrega e dar refer�ncias, ou seja, nomes e n�meros de
telefones, ele ficaria do outro lado das linhas confirmando os dados que eu ia
passar, coisa simples, mas que dependia do
meu desempenho, tinha que mostrar seguran�a, tornar-me confi�vel. Ele falava de
forma atabalhoada, como se o seu c�rebro estivesse em curto, liga, desliga, sem se
preocupar com o meu entendimento, efeito
da ressaca brava.
Subimos ao 13� andar de um pr�dio, o mobili�rio da sala na qual entramos consistia
apenas de duas mesas, tr�s aparelhos telef�nicos em cima de uma delas, e duas
cadeiras. Ocupou uma das mesas, abriu uma
das gavetas e retirou de dentro dela um grampeador, um furador, caneta, algumas
folhas de papel e um tubo de cola, de uma pasta pl�stica sacou uma quantidade
razo�vel de carteiras de identidades, cart�es
de CPF, carteiras de trabalho, certid�es de nascimentos, certid�es de cart�rios e
distribuidores do f�rum, isso o que eu pude distinguir, fora o que n�o estava a
vista, que permanecia no interior da gaveta.
Ele continuou revirando l� dentro, atr�s de algo que n�o conseguia localizar,
desistiu, pegou um dos aparelhos e discou um n�mero.
E da�? J� fez o cadastro do cara? Limpeza? �timo, te ligo daqui a pouco.
Desligou e virou-se para mim.
Voc� agora � diretor de uma empresa da constru��o civil, o cara tem nome limpeza,
mais limpo que alma de santo, nem um pecadinho financeiro, portanto, d� pra comprar
o que quiser sem problema, desce
ali na pra�a e tira uma foto para a carteira de identidade e tr�s aqui ligeirinho,
e n�o esquece, a partir de agora voc� � um empres�rio, um respeit�vel cidad�o da
maracutaia, um vip abonado, hehehe.
N�o me mexi do lugar, ele perdeu o rebolado sob o foco do meu olhar insistente
entre os seus olhos.
Olha, doutor, n�o precisa nem ir at� a pra�a, aqui ao lado, saindo do pr�dio, �
esquerda, tem um fot�grafo, se eu n�o me engano, � o mesmo pre�o.
Tou sem grana eu disse, � queima-roupa, mantendo-o debaixo do meu olhar firme.
O qu�? N�o acredito, um empres�rio do seu porte, com essa pinta toda, n�o tem
grana pra tirar uma fotinho? N�o tem 3 pilas? E da grana de ontem, n�o sobrou nada?
Senti a ironia por tr�s daquelas palavras. Aceitando o desafio que ele havia
proposto nas entrelinhas, finquei os cotovelos nos bra�os da cadeira e cruzei as
pernas, reclinando o tronco no espaldar, com
a maior calma do mundo, como se estivesse disposto a permanecer ali o dia todo. Ele
me encarou, intrigado.
Tem uma coisa nessa hist�ria que n�o bate, La Rosa, n�o tou gostando desse 71 de
n�o carregar cheque nem cart�o comigo, alegar que sa� sem inten��o de comprar, isso
� furo, meu, um empres�rio do meu
n�vel normalmente carrega tudo isso no leva-tudo, d� pra desconfiar, n�o d�?
Diz que esqueceu a pasta no carro ou no escrit�rio com tudo dentro, posso at�
confirmar isso quando ligarem pra c�, pedir inclusive para avis�-lo de que esqueceu
a pasta em cima da mesa. Voc� tem que
ser artista, � meu, sen�o n�o sobrevive nesse ramo, al�m disso voc� est� esquecendo
dum detalhe muito importante, o com�rcio t� t�o parado com essa crise que eles
est�o loucos pra despachar a mercadoria
da loja, botar o bloco na rua, ficam cegos. Esse turco onde voc� vai � t�o guloso
que, se conquistar a confian�a do cara, leva at� a mulher dele de bonifica��o, s�
que voc� vai se danar porque ela �
um bagulho dos diabos. Aqui ele explodiu numa gargalhada, achando uma gra�a
infinita na pr�pria piada. �, meu, voc� tem que se convencer que � um magnata do
mundo dos neg�cios, tem que fazer o g�nero
desligado, sabe como �, que est� passando pela frente da loja por acaso, parou,
olhou, ficou fissurado com o que viu e entrou, louco pra dar uma surpresa �
mulherzinha gostosa que o espera em casa, voc�
� tarado, quer cobri-la mais uma vez de presentes, como voc� costuma fazer quase
todo dia, voc� tem grana, � pirada�o, exc�ntrico, de repente resolveu mudar o
visual da mans�o, ficou louco pra comer ela
em cima do tapete de cinco mil d�lares, etc., etc. � isso a�. E tem mais, com esse
endere�o para entrega, bairro de classe m�dia alta, o turco n�o vai duvidar nunca,
com esse lance de entrega em endere�o
certo o loque cai como um patinho, vai duvidar de qu�? N�o tem porqu�. Al�m do
mais, esse turco � da velha guarda, vai te dar uma nota promiss�ria ou uma letra de
c�mbio pra voc� assinar e pronto, � credi�rio,
p�, ele tem toda a papelada pronta para formalizar a compra, essa gente nem liga
pra cheque, at� desconfiam daquela folhinha de papel de merda, fica tranquilo
quanto a isso.
Eu j� tinha identificado uma s�rie de outros furos no plano dele, que me fazia
comparar o seu detalhismo a um tecido esfarrapado, mas eu admirava a sua
resist�ncia de permanecer em trincheira destru�da.
Dei um �ltimo toque para que ele sentisse que n�o estava tratando com um retardado
marinheiro de primeira viagem.
O endere�o consta do guia telef�nico?
Sim, claro! respondeu, sem a m�nima convic��o.
Pois ent�o, vamos supor uma coisa, uma suposi��ozinha de nada, uminha s�, e se a
loja ligar pra l�, pra confirmar?
A� voc� corre. Aqui outra gargalhada que o fez chacoalhar por inteiro, estava
adorando me gozar, o puto. Ri tamb�m. N�o, n�o leva a mal, eu tou brincando, n�o
tem problema. Voc� n�o acha que t� um
pouquinho paran�ico? � o seu primeiro servi�o? T� tirando o caba�o?
Claro que n�o, � que n�o tou a� pra embarcar em canoa furada, meu camarada, mas
tudo bem, se voc� acha que vai dar certo, vou pelo amigo, que sabe das coisas, tou
s� fazendo o papel de advogado do diabo,
sacou? Se eu n�o confiasse no teu taco, n�o ia estar aqui, n�o �? O Darcisinho me
falou que voc� � o rei da cocada preta, o terror dos lojistas da pra�a, n�o s� de
Curitiba, mas de todas as capitais do
Brasil.
Isso a�, meu chapa, pensamento positivo, minha intui��o me diz que voc� vai fazer
gol de placa. Se conseguir que eles entreguem a mercadoria hoje, hoje mesmo tamos
com a grana no bolso, tenho um comprador
que paga em verdinha, � s� eu ligar pra ele avisando que a mercadoria t� na m�o que
ele vai apanhar e paga na hora, no cash, n�o tem problema de hor�rio, se for de
noite � melhor ainda.
Se depender de mim, eles entregam a mercadoria dentro de duas horas.
Assim � que se fala, cara, vai l�, vai, com essa f� toda, que eu fico esperando a
loja ligar. aqui ele imitou, em falsete, v�rias vozes simulando secret�rias
atendendo o telefone, cada uma diferente
da outra, La Rosa tinha as suas qualidades polif�nicas, no entanto, bati com os n�s
dos dedos no tampo da mesa.
Voltando � carga. E quanto � que eu vou levar nessa jogada?
Peguei-o desprevenido, achando que j� est�vamos acertados e o assunto resolvido.
Bom, dez por cento t� bom?
S�? Eu fa�o tudo e levo s� dez? Papagaio come e periquito leva a fama?
T� achando pouco?
Uma ninharia.
Que tal o dobro, vint�o?
Melhorou, s� que pra eu ficar satisfeito, e dar tudo certo, tem que ser meio a
meio.
Ele riu, um riso seco, preto, jogou o corpo pra tr�s, inclinando a cadeira,
fazendo-a balan�ar-se em duas pernas apenas. Ele tamb�m j� n�o tinha mais pressa,
tinha esfriado, eu tinha ferido o seu brio,
pisado nos seus calos, enrolar-me, agora, era uma quest�o de honra.
N�o h� como, mesmo, eu paguei o escrit�rio, o telefone, s� a equipe de apoio, que
me esquenta a documenta��o, leva vintinho, n�o tem condi��es. Vinte e cinco por
cento t� na m�o, � pegar ou largar.
Vamos fazer o seguinte contrapropus , rachamos as despesas e as receitas.
Ele riu, sem gra�a, nervoso, verde-musgo, remexeu-se no assento, a sua pressa
compulsiva ou sentimento de culpa cr�nico n�o o deixava resistir � press�o.
Meu Deus, com quem fui me meter? Tudo bem, n�o sou ego�sta, rachamos as despesas,
eu fico com quarenta e cinco e voc� com trinta e cinco, descontado os vinte da
equipe de apoio.
Fiquei mirando fixamente entre seus olhos, s�rio, ele piscou, desviou o olhar, eu
sabia que se engrossasse levaria os cinquenta, mas achei melhor n�o esticar muito a
corda, pelo menos n�o por enquanto.
Ok, topo eu disse. Ele deu um pulo e ficou de p�, todo sorrisos brancos.
Aperta aqui, s�cio. Ele alongou a m�o pequena e molenga, agora suada e fria, pelo
sufoco que eu lhe impingira. Nossa associa��o vai dar bons frutos, vai longe,
amig�o. Depois dessa, n�s vamos partir
pra banco, que � minha especialidade, tou bolando um esquema que vai render uma
nota preta.
Levantei da cadeira e apertei a m�o dele com vontade, pura maldade.
Pode contar comigo, estou pro que der e vier eu disse.
Deixei-o sacudindo a m�o para aliviar a dor e sa� dali direto para a pens�o. Despi-
me, abri um litro de Johnnie Walker e fiquei bebericando at� me embriagar. O jornal
Sangue na manh� seguinte noticiava
a chacina do posto, mas n�o associava esse caso com o roubo do carro e o homic�dio
do estacionamento, as testemunhas do condom�nio descreviam os autores do
assassinato do s�ndico como um velho alto, barbudo,
cabeludo, grisalho e um moreno, atarracado, nenhuma pista conclusiva, outrossim,
nenhuma alus�o era feita ao MONSTRO, n�o era mais not�cia, sa�ra do ar
completamente. Para as autoridades, quanto menos
se falasse dele melhor.
Antes de voltar para a cama novamente, pensei que La Rosa devia estar se
descabelando, reduzindo ainda mais os poucos fios que lhe restavam na cabe�a,
alarmado com o desaparecimento do seu laranja, e Darcisinho,
por sua vez, tamb�m ia chupar o dedo da comiss�o que abatumou, principalmente a que
viria de La Rosa por me ter entregue na bandeja para ser usado, e a evoca��o dessas
imagens me plantou um sorriso nos
l�bios, azulzinho, azulzinho.
Por volta das 11 horas do terceiro dia, depois de banhar-me e vestir-me, tomei a
rua para localizar La Rosa. Enquanto esperava a passagem dos ve�culos para
atravessar a rua para o lado da birosca da Visconde
de Nacar, La Rosa, � porta, avistou-me, fez sinal para que eu aguardasse onde
estava e veio ao meu encontro, apressado.
O que foi que houve, Mano V�io? Por onde � que voc� andou? Foi perguntando ele ao
se aproximar de mim.
N�o sirvo pra laranja, La Rosa.
Puxa, por que n�o me avisou antes? Me deixou esperando, fazendo papel de bobo,
sumiu.
Aquele esquema tava furado, se desse zebra eu ia ficar pendurado no pincel.
N�o ia dar zebra coisa nenhuma, o esquema tava perfeito, voc� � que cagou fora do
penico, sacaneou meio mundo. N�o sei se voc� sabe, mas fiquei mal na parada, o
pessoal cobrou foi de mim.
Que pessoal?
O dono da sala, o pessoal do cadastro, do apoio t�cnico, todo o mundo �
comissionado, tavam contando com a grana.
Tava todo mundo numa boa, na sombra e �gua fresca, o �nico que ia se foder era eu,
n�o �? Arranja outro, n�o entro em canoa furada, ainda mais por mixaria.
Mixaria? Eu bolo tudo, ponho a engrenagem para funcionar. N�o sei se voc� sabe,
mas eram mais de 10 pessoas envolvidas no esquema, voc� s� entra com o corpo, leva
35 por cento e ainda acha que � mixaria?
Essa � muito boa! Qual �, cara, p�e a m�o na consci�ncia, o pessoal t� furioso,
queria devorar o meu f�gado, tou levando voc� de compadre porque � amigo do
Darcisinho, por quem tenho muita amizade e considera��o,
tive que acalmar o pessoal, eles ficaram a fim da sua cabe�a.
N�o dei bola para o que ele disse.
Rachamos ou nada feito, o risco � muito grande.
Por que n�o falou isso ontem?
E n�o falei? Voc� � que me enrolou com o seu papo dez, fingiu n�o tomar
conhecimento do que eu disse.
Risco? Essa � boa, um esquema mumu desses, puro fil� mignon, melhor s� o c�u. E
tem o seguinte, agora � tarde, o esquema t� desarmado, at� armar tudo de novo,
localizar o pessoal, s� pra amanh�.
Que seja, amanh�, fifty-fifty.
Mas ser� que voc� vai aparecer? N�o vai tomar outro ch� de sumi�o?
� s� marcar o hor�rio que eu tou aqui, pontualmente, e voc� tamb�m, n�o � cara? A
regra tem que valer para os dois, no hor�rio, n�o vai querer me dar outro ch� de
banco como fez naquele primeiro dia,
ok?
Voc� � fogo, hem? Leva tudo na ponta da faca, n�? Fifty-fifty? Que seja. ent�o
aperta aqui, s�cio.
Apertamos as m�os, mas antes que eu come�asse a espremer, La Rosa puxou a dele.
Vamos fazer o seguinte, Mano V�io, n�o comenta o incidente com ningu�m, nem com o
Darcisinho, t� legal? Vamos deixar o assunto morrer entre n�s dois apenas. Pra
todos os efeitos, adiamos a opera��o por
problemas t�cnicos, diz que ontem voc� passou mal, lhe deu uma caganeira sem freio,
qualquer coisa do g�nero, sabe como �? Sen�o fica todo mundo de butuca em cima da
gente, tudo bem, Mano V�io?
Por mim, tudo bem.
Podia sentir a humilha��o que sofrera por baixo da sua pseudo-humildade, a sua
pressa em vir ao meu encontro, quando o normal seria me aguardar onde estava para
que eu fosse l� lhe dar uma justificativa.
Gargalhei intimamente, ele devia ter sido alvo do esc�rnio da sua turma. Agora,
dessa forma, pelo menos restabelecia o seu status.
Falar em Darcisinho, n�o viu ele por a� ontem? perguntei.
Te esperou a tarde toda, como voc� n�o apareceu, fomos jogar sinuca na Ordem, ele
deve pintar daqui a pouco, me falou que quer ter um particular com voc�.
Por falar nisso, e o resto da grana? indaguei.
Passei pra ele, ontem mesmo, insistiu que tava precisando, com certeza vai acertar
com voc� depois.
Tudo bem. Vamos tomar uma geladinha para comemorar a sociedade.
Vamos l�.
Cruzamos a rua e entramos na birosca. Antes de nos sentarmos, La Rosa fez umas
apresenta��es, dois caras mal abriram a boca e ficaram me olhando atravessado,
deviam fazer parte da equipe frustrada de La
Rosa, caguei pra eles, j� Terneir�o me deu prazer em conhecer, era um moreno alto,
queimado do sol, vozeir�o espalhafatoso, quarenta e tantos. Aproximou-se de mim e
falou baixinho, ao p� do ouvido:
Ontem o Darcisinho me contou o que voc�s andaram aprontando. Ele e eu, tempos
atr�s, j� trabalhamos juntos e fervemos um bocado tamb�m. deixou a voz chegar ao
tom normal. Tem o seguinte, se � amigo
do Darcisinho, � nosso amigo tamb�m, o Darcisinho � meu irm�o por op��o, vale mais
que irm�o carnal. Voltou-se para La Rosa: O Darcisinho � nosso irm�o, � ou n�o �,
La Rosa?
Claro que �, nosso maninho querido, nossa mascote.
� isso a� disse Terneir�o , eu n�o aprovava a boca de jacar� de Darcisinho,
vomitando tudo pra todo mundo, tinha que estar sempre se exibindo pros outros, n�o
fazia por mal, apenas carecia de aten��o.
E tamb�m dizer todo mundo tem certo exagero, falava para os companheiros de f�, mas
mesmo assim eu era contra, em boca fechada n�o entra mosca, pensei em dar um toque
nele, para que botasse um freio naquela
matraca.
Que que t�o falando de mim pelas costas? disse Darcisinho, entrando no bar.
Podem falar mal, como diz o outro, mas falem de mim.
Olha s�, o desaparecido apareceu. ele me disse. Como � que vai o meu Mano V�io
do peito?
Abra�amo-nos.
Preciso falar com tu depois cochichou no meu ouvido.
Eu tamb�m respondi no mesmo tom.
Terneir�o, La Rosa, pessoal fez um abano geral , o Darcisinho chegou, o pai dos
home marido das muler, nos pequeno dou de prancha e nos grande dou de talho.
�ita gauch�o v�io gritou Terneir�o com seu vozeiro.
Enchi um copo e passei pra ele, virou dum gole s�, enchi de novo. La Rosa sumiu no
interior da birosca com um dos comparsas mal-encarados, tinha livre acesso aos
bastidores. Terneir�o, tamb�m, sumia e
reaparecia. Darcisinho e Terneir�o se agarravam, se tapeavam, se beijavam nas
faces, ou melhor, faziam uma simula��o, beijando o dorso da pr�pria m�o colocada no
local do beijo, sempre um debicando o outro.
Notava-se uma grande e sincera camaradagem entre eles.
Que que �, meu? Vai encarar? Tu � grande, mas n�o � dois. dizia Darcisinho.
Terneir�o retrucava:
Pra brigar com voc�, amarro as duas m�os nas costas, s� vou no p� e dava um chute
no ar, imitando um lutador de artes marciais, com as m�os cruzadas �s costas.
Olha o reumatismo, v�io, numa dessas tu te desanca e n�o apruma nunca mais.
N�o sou o Bruce Lee, mas dou os meus pulinhos, voc� sabe que eu sou faixa preta de
taequend�, n�o �, meu?
Ahhh, �, faixa preta, ele usa uma faixa preta debaixo das cueca pra segurar a
h�rnia. Te assossega, le�o, tu t� mais pra urub� que pra colibri, j� pendurou as
chuteira faz quantos s�culo?
Terneir�o abra�ou Darcisinho e, diante de mim, deu um beijo de verdade na testa do
amigo.
Por esse aqui, �, eu morro peleando. Se ele se meter num bolo, tou no meio, a
bronca tamb�m � comigo. Agora, se ele correr, eu corro junto.
Ca�ram na gaitada, ri tamb�m. Darcisinho desvencilhou-se do abra�o dele.
Tou bem arrumado. Sai pra l�, Terneir�o, tu n�o d� mais no couro, o Mano V�io,
aqui, � que � porreta.
Senti uma chispa de ci�me no olhar de Terneir�o ao ouvir as palavras do velho
companheiro de perip�cias, embora fossem ditas de brincadeira.
T� legal, t� dando uma de puta rampeira agora, trocando o chinelo velho pelo novo,
�? disse Terneir�o.
Darcisinho agarrou-se em mim, fingindo-se de bicha.
O Mano V�io � cal�ado, o teu � um tiquinho, �, � desse tamanhinho, gosto de homem
pi�ud�o.
La Rosa resolveu sair. Na passada, dirigiu-se a mim:
Daqui a pouco tou de volta, me aguarda.
Darcisinho e Terneir�o continuaram de arreganhos por mais um tempo, enchi o saco
com a palha�ada dos dois, pedi um tira-gosto e mais cerveja. Darcisinho e Terneir�o
por fim se aquietaram, encheram os copos
e sentaram-se � mesa que eu ocupava. Assim que Terneir�o se levantou e foi
cumprimentar um conhecido, Darcisinho inclinou-se para o meu lado.
O La Rosa t� tiririca com tu, t� com tu no bico dele. O homem n�o merecia, Mano
V�io, La Rosa � gente fina, meu irm�o.
J� nos entendemos, o neg�cio s� foi adiado por problema t�cnico, vai sair amanh�.
Ah, �? Ent�o retiro o que eu disse, tou metendo o bico onde n�o sou chamado, tou
por fora. S� que tem o seguinte, aprontou pra ele, aguarde o troco porque ele n�o
esquece, o homem � legal e coisa-e-tal,
mas � ruim que nem cobra, vingativo pra caramba, mas se se acertaram, �timo, mesmo
assim te cuida. Tou metendo a colher porque gosto dos dois, quero mais � que voc�s
se acerte.
J� tamos acertados, n�o tem mais enrosco.
Que tanto cochicho � esse a�? Por acaso os pombinhos t�o tendo um caso? falou
Terneir�o.
Isso � conversa de homem, gay n�o tem vez retrucou Darcisinho.
Gay tu vai ver, fica de quatro a� que eu vou te mostrar quem � gay.
Sai fora, a tua muler me bateu, e n�o pediu segredo, que tu n�o levanta h� mais de
ano com ela, por isso virou de sexo. Do jeito que ela tava necessitada, n�o d� pra
duvidar.
Come�aram tudo de novo, peguei meu copo e fui pra porta da birosca. La Rosa n�o
demorou a retornar, quando me viu, de longe, mostrou o polegar pra cima.
T� tudo armado de novo, amanh� �s 10, ok?
Ok.
Na hora combinada, fui � loja do turco e s� n�o a carreguei por inteiro porque n�o
deu para arrancar o pr�dio do lugar. S� que agora havia uma diferen�a nessa jogada,
eu era s�cio de La Rosa. A nota fiscal
bateu nos 68 mil, La Rosa conseguiu repassar tudo por 20, em cash, assim me disse
ele, e n�o me interessei em tirar isso a limpo, pois o objetivo a que eu me
propusera tinha sido atingido. Mesmo que ele
estivesse levando alguma vantagem por baixo dos panos, o que era quase certo, n�o
passava de uma tentativa de recuperar os preju�zos. Ele que ficasse com a impress�o
de que, no frigir dos ovos, levara
vantagem, para mim, o volume da picaretagem n�o fazia o menor sentido, o que me
interessava era ampliar o c�rculo de relacionamentos.
Devia haver algum peixe gra�do por tr�s de La Rosa, possivelmente ainda acima do
tal receptador que comprara a muamba, ele e sua equipe n�o passavam de testas de
ferro, e aquele n�o passara de mais um
golpezinho med�ocre para minorar a fome da arraia mi�da. Para quem estava por fora
do esquema como eu, at� que j� fizera algum progresso, de gr�o em gr�o a galinha
enche o papo. Esperava agora a pr�xima
opera��o, que seria em um banco. Estaria por perto para conferir.
Ent�o era assim, �amos ficar engatados com os caras at� o final?
Claro, Mano V�io, faz parte do acordo que eu fiz com eles, todo o financiamento da
opera��o veio deles, logo.
Por que voc� n�o me falou antes? A gente podia ter bancado o esquema.
N�o adianta crescer o olho, � dando que se recebe.
Quanto eles v�o levar?
Trintinha.
O qu�? Subiu? N�o era vinte? N�s trabalhamos, carregamos as pedras e eles � que
lucram?
Tem mais, Mano V�io, tem mais, esse n�o vai ser o nosso �ltimo trabalho juntos.
N�s precisamos do respaldo deles, s�o profissionais, cara.
Resolvi engolir mais essa.
Aperta aqui disse ele.
Apertamos as m�os, desta vez n�o a espremi. Ele falou solene, olhando-me nos olhos.
O meu amigo Mano V�io � p�-quente, fazia muito tempo que eu n�o dava uma dentro
dessas, andava numa mar� de azar do caralho, eu at� parece que tava pressentindo.
N�o disse que a nossa sociedade ia
render bons frutos? Depois desabafou, soltando a franga: ���, beleza, agora n�o
tem mais puta pobre na zona.
A sua express�o de alegria era verdadeira, e a afei��o mostrada em rela��o a mim
tamb�m, a seta de rancor que me dirigira anteriormente estava congelada no ar, pelo
menos temporariamente, eu s� n�o podia
precisar por quanto tempo ainda ela ficaria hibernando.
Teca n�o me sa�a da cabe�a, tanto de dia como de noite, eu tentava afastar a sua
imagem da minha mente, mas ela teimava em retornar como uma mosca pegajosa. Eu n�o
arrastava o p� da sinuca do Largo da
Ordem na esperan�a de encontr�-la por l�. Tirei informa��o, com a ajuda de
Darcisinho, dos lugares onde poderia encontr�-la, rondamos por l�, mas nada, ela
n�o tinha comparecido ao combinado com Darcisinho,
andava sumida.
Certa tarde, por�m, ela pintou na sinuca. Era perto do Natal, na v�spera da a��o
com Mauro Gigante. Darcisinho correu ao seu encontro e arrastou-a para nossa mesa.
Ela usava um vestido parecido com o do
primeiro dia em que a vira, s� que dessa vez vermelho. A tristeza deixava-a mais
linda, se � que isso pudesse ser poss�vel, senti outro cutuque nos bagos. Dirigiu-
me um oi sorumb�tico.
Oi respondi, puxando uma cadeira. Senta.
Obrigada.
De nada.
Voc�s n�o viram a Laura? perguntou. Marquei uma ponte com ela na semana passada,
mas n�o pude comparecer, perdi o contato.
Ningu�m sabia da Laura e a gente tinha raiva de quem soubesse. Os conhecidos vinham
cumpriment�-la e depois se retiravam, circunspectos, mostrando um respeito
exagerado pelo finado. Estavam mais era babando
pela viuvinha fresca.
De repente Teca levantou-se bruscamente, como se tivesse muita pressa. Muito embora
Darcisinho se rachasse ao meio para ret�-la, de nada adiantou.
Bom, pessoal, j� vou indo, tiau disse secamente e afastou-se para a sa�da, em
passadas r�pidas, seu traseiro espetacular atra�a todos os olhares. Meu cora��o
corcoveava no peito. Quando tive a percep��o
de que outros corpos se movimentavam em sua dire��o, adiantei-me e alcancei-a na
escada.
Preciso de um particular com voc�.
Oi?
Aceita jantar comigo hoje?
Ela me encarou, inclinou a cabe�a, avaliando o convite por um tempo que me pareceu
demasiado longo, sem desgrudar o olho do meu, depois sorriu.
Deixa ver se eu entendi bem, voc� est� me convidando pra sair?
� isso.
Ent�o aceito.
Onde � que eu apanho voc�?
Eu venho aqui, �s dez, ok?
Ok.
Tiau.
Tiau.
Darcisinho estava me esperando, alvoro�ado.
Te juro, Mano V��o, se tu n�o fosse falar com essa muler, eu ia atorar o teu
cacete com a minha l�mina.
T� marcado, pra hoje, �s dez, aqui mesmo. Eu estava amolecido, exultante, feliz,
n�o sei mais o qu�, talvez flutuasse.
Mano V�io, escreve o que eu vou te dizer, essa muler veio atr�s de ti, tava te
procurando, s� que ela � muito orgulhosa e malandra, t� a fim de tu, cara, s� que
n�o quer dar o bra�o a torcer, da� veio
com aquele papo da Laura e tal, ela te marcou desde o primeiro dia, seu caralhudo.
T�s brincando.
Ela n�o tirava o olho de tu, olhava com o canto do olho, interessada, examinando,
te medindo de alto a baixo, te comendo com os olhos.
T�s brincando.
Te juro, caralho, o tempo todo. Eu � que sou zarolho e tu � que n�o enxerga nada,
seu porra? Aposto contigo o que tu quiser como tu vai ganhar ela, hoje mesmo.
T� apostado, mil pratas, mil pratas n�o, duas mil, se tu ganhar, te pago dois
paus, se tu perder me paga um pau.
Chuchu beleza, nunca foi t�o f�cil tirar dinheiro dum ot�rio apaixonado.
Fui at� a pens�o tomar um banho e fazer a barba. Botei terno, gravata, olhei o meu
rosto torto no espelho.
Me perdoa, Lize falei e sa�.
Darcisinho continuava na sinuca me esperando, queria ver o desfecho, ganhar a
aposta. Quando ela apontou na escada, atrasada 15 minutos, vi que era a mulher mais
linda do mundo. Darcisinho me empurrou.
Vai l�, cara, sai fora daqui.
Corri ao encontro dela, meio desajeitado, e tomamos a rua. Embarcamos no primeiro
t�xi e indiquei um bom restaurante, desde que n�o fosse um dos velhos tempos. A
trattoria estava quase vazia, fizemos os
pedidos, ela deixou a meu cargo. Com o card�pio tremendo na minha m�o, pedi fil�
mignon ao molho madeira com acompanhamento de salada e uma garrafa de vinho tinto.
Tocava uma m�sica italiana ao fundo,
super rom�ntica.
O que voc� queria me dizer no t�xi que n�o completou, Mano V�io?
Estou apaixonado por voc� fui dizendo precipitadamente , desde aquele primeiro
dia l� na sinuca, foi amor � primeira vista.
Ei, vamos com calma, voc� � apressadinho, hein? � meio biruta? Eu estou sofrendo
muito, gostava um monte do finado.
� que hoje em dia n�o perco mais tempo com rodeios, vou direto ao assunto, se voc�
est� sofrendo, ent�o estou apaixonado por uma mulher que sofre.
A paix�o continua, n�o vai ser f�cil esquecer o finado, ele me faz muita falta,
era quase um pai pra mim interrompeu o desabafo e ficou um bom tempo em sil�ncio,
perdida em recorda��es, mirando as
unhas vermelhas da m�o bem-tratada, depois me olhou com ar trocista, como tentando
superar a tristeza e houvesse me desculpado. Voc�, hein? Se eu fosse acreditar em
todos os homens que j� me disseram
isso, tava bem arranjada.
Se n�o quer acreditar, n�o acredita, mas � a pura verdade, em que coloca��o eu
fiquei? Em d�cimo mil�simo?
N�o entendi disse ela um tanto desenxabida.
Deixa pra l�.
Que signo voc� �, Mano V�io? e antes que eu respondesse, ela acrescentou: Mas
que nome mais estramb�tico � esse? � o teu nome mesmo ou nome de guerra?
Foi o Darcisinho que me colou essa alcunha.
S� podia vir daquele l� uma coisa t�o horr�vel, mas voc� deve ter um nome decente
n�?
Tenho.
E qual �?
Jorge fui dizendo de improviso.
Esse � bem melhor. E ent�o, Jorge?
Ent�o o qu�?
Qual � o seu signo?
�ries.
S� podia, � fogo na roupa.
E o seu?
N�o adivinha?
Escorpi�o?
Como acertou?
Puro palpite. E ent�o?
Ent�o o qu�, meu querido?
Quer casar comigo?
Ela riu, pela primeira vez, com gosto. A l�ngua, os dentes, o gesto que ela fez
para ajeitar os cabelos, o olhar obl�quo que me dirigiu acabaram de me liquefazer,
eu estava magnetizado, o cacete come�ou
a crescer l� embaixo.
Sabe que voc� n�o est� sendo nada original, que j� escutei centenas de cantadas
parecidas?
� mesmo? Acho que at� podem ser parecidas, mas nenhuma estava carregada com o
mesmo sentimento que a minha, isso eu garanto.
Huummm, que rom�ntico. Continua, vamos, quero ver at� onde voc� vai, se tem boa
imagina��o para mentir bastante.
Posso ser sincero?
� claro, � isso que eu espero de voc�, o m�nimo indispens�vel.
Voc� conseguiu me deixar de pau duro, h� dois anos que ele n�o endurecia, tava
morto.
Conversa mais besta, voc� ia medir pau com o Dila, tou sabendo disse ela tomando-
se de indigna��o. Pegou na al�a da bolsa, erguendo-se, furibunda, interpretara mal
a minha franqueza e ia iniciar a
retirada, segurei-lhe o pulso.
Desculpe se fui grosseiro. Voc� disse que eu podia ser sincero. O Darcisinho � que
inventou essa hist�ria com o Dila, ele n�o sabia do meu problema, eu ficava sempre
saindo pela tangente, voc� tamb�m
deve saber que eu nunca compareci aos encontros, evitando esse confronto, pois n�o
tinha condi��es de competir. Eu sofri um acidente de carro e perdi uma pessoa muito
querida, de l� para c�, nunca tive
nenhuma ere��o nem me interessei por mulher nenhuma, voc� foi a primeira eu falava
inteiramente emocionado, as l�grimas escorrendo-me pelas minhas faces. Teca foi
sentando-se devagarinho enquanto me
escutava, francamente impressionada. L� na sinuca, quando a vi pela primeira vez,
ele deu sinal de vida, agora t� durinho.
Ela trocou de cadeira, ocupando a que estava ao meu lado, sem tirar os olhos dos
meus nem por um momento.
Deixa ver. Meteu a m�o debaixo da mesa e apalpou suavemente no meio das minhas
pernas, foi o afago mais enlouquecedor de que tenho lembran�a. Seu bandido, tava
falando s�rio. Sempre sorrindo,
ela conduziu a m�o ao meu rosto e, enquanto me acariciava, ia me secando as
l�grimas. Ela estava derretida de ternura por mim, seus olhos destilavam um calor
solar. Bichinho, j� que voc� gosta de jogar
o jogo da verdade, vou lhe revelar uma coisa, eu s� fui na porra daquela sinuca
hoje para ver se o encontrava, voc� cravou fundo seus olhares em mim naquela
primeira vez, e queimou, marcou.
Agarrei suas m�os, tremendo as minhas, encabulado.
Verdade?
Por tudo o que � mais sagrado, tou cometendo uma injusti�a com o finado, n�o
esperar mais tempo, mas que posso fazer com uma tenta��o como voc�? L� na sinuca,
todo bonit�o como est� agora, eu pensei
c� comigo, tomara que esse homem n�o chegue mais perto de mim, sen�o o finado vai
dan�ar.
N�o deixei que ela continuasse, levantamos e deixamos o gar�om falando sozinho com
a bandeja nas m�os. Pegamos um t�xi e entramos no motel mais pr�ximo que o
motorista conhecia.
Aqui n�o, painho ela falou, na folga de um beijo, dando outro endere�o ao
taxista.
Andamos um bocado, mas quando chegamos deu para perceber que o lugar era realmente
muito chique e rec�m-inaugurado.
Pra gente tem que ser o melhor, meu doce de c�co disse ela.
E assim a noite teceu a sua teia m�gica sobre n�s.
Apesar de n�o ter dormido a noite toda, cheguei cedo ao local designado. Todos j�
estavam l�, menos Darcisinho. Mauro Gigante recapitulou rapidamente toda a
opera��o, �amos ocupar dois carros, um Opala
e um Escort, ambos roubados e escondidos h� mais de um m�s para essa finalidade.
Gigante distribuiu as armas, para mim tocou uma pistola 9 mm, americana, com dois
pentes, mais o revolver que eu levava
no cinto, �s costas, e tr�s escopetas, para tr�s dos quatro parceiros, a doze de
Gigante, o resto, inclusive Darcisinho, usaria revolver, calibre 38, muni��o �
vontade, um dos rapazes com escopeta levaria
ainda 2 granadas para um caso de emerg�ncia.
Darcisinho chegou esbaforido e tomou posse da sua arma. Maurinho n�o adotava
nenhuma cobertura para a cabe�a. Por iniciativa pr�pria, implantei bigode e nariz
posti�os, �culos escuros, cabelo penteado
com gel.
A que horas vai me pagar? perguntou Darcisinho, � socapa, com um sorriso maroto.
Embarcamos nos carros e partimos, o nosso destino era uma ag�ncia do Banco do
Brasil, nas Merc�s, que estava com os cofres abarrotados, segundo a informa��o
garantida que tinham vendido a Mauro Gigante,
para atender �s folhas de pagamentos de tr�s empresas com mais de mil empregados.
Chegamos ao local, descemos e os motoristas foram dar uma volta de reconhecimento
na quadra. Na da frente e na de tr�s da ag�ncia, Mauro Gigante examinou as
condi��es de execu��o. Havia ainda poucos clientes
no interior da ag�ncia, aqui fora tudo normal tamb�m, os carros retornaram e
estacionaram. Gigante trocou polegares para cima com os motoristas, significava que
estava tudo ok, nenhuma viatura de pol�cia
� vista. Apenas um pequeno problema, havia vaga para apenas um dos carros, o outro
teve que permanecer em fila dupla, as portas traseiras se abriram, pegamos as armas
e entramos no banco sem perda de tempo,
Maurinho na frente. Ele e um de seus capangas tomaram a iniciativa e renderam os
dois seguran�as, com gritos para que todos se deitassem no ch�o. Todos os meus
sentidos estavam em alerta. Clientes e funcion�rios
obedeceram � ordem jogando-se imediatamente no ch�o. Eu ficara encarregado de dar
cobertura a partir da porta de acesso principal e postei-me a uns dois metros dela,
dominando o sal�o. Dali eu tinha um
bom raio de vis�o externa, sem ser visto, encoberto pela cortina. Eu podia, atrav�s
da vidra�a, acompanhar o movimento de quem se aproximasse do pr�dio. A instru��o
que eu recebera era para obrigar a entrar
quem se aproximasse da porta e faz�-lo deitar junto dos outros.
Darcisinho e dois parceiros acompanharam o gerente at� o cofre, sumindo da vista, e
quase que simultaneamente Mauro Gigante e o outro parceiro de escopeta subiram a
escada para o andar superior, o quinto
elemento tamb�m portando escopeta ficou em um ponto intermedi�rio controlando o
pessoal deitado, que inclu�a os dois seguran�as. Ouvi a gritaria l� em cima e em
seguida Mauro Gigante retornando. Parou
no meio da escada e gritou:
Quieto a�, seu puto.
Despencou em dois pulos e veio encostar o cano da arma na cabe�a de um dos
seguran�as, flagrado no gesto de sacar a pistola escondida debaixo da barra da
cal�a, preparando a rea��o. Se Maurinho disparasse,
ia ser meleca para todo lado. O homem empalideceu e se manteve imobilizado enquanto
Maurinho retirava a arma do coldre e a colocava no cinto.
Quer dar uma de her�i, seu put�o?
Em seguida levantou a arma e disparou para cima. O estouro, seguido das lascas de
cali�a desprendendo-se do teto, deixou o restante das pessoas apavoradas. As
mulheres come�aram a gritar.
Quietos! Quem se mexer ou gritar leva chumbo bradou Mauro Gigante amea�ador.
Virem o rosto pro ch�o e botem as m�os na nuca! complementei eu, em altos brados.
Todos obedeceram. Nem eu nem o outro encarregado de manter o controle dos ref�ns
hav�amos percebido a inten��o do seguran�a, registrei mentalmente esse erro e o
atribu� a mim, erro capital que podia ter
melado toda opera��o, pois ia nos pegar de surpresa.
Nesse �nterim, um casal e um homem transpunham a porta quando escutaram o tiro, nos
avistaram pela vidra�a e quiseram retroceder. Com a arma em riste, recuei r�pido,
saindo pela outra banda, e alcancei-os
antes que deixassem o pr�dio. Puxei-os para dentro, amea�ando-os com a pistola, e
empurrei-os para onde se encontravam os outros ref�ns.
Deitem no ch�o, seus bostas, sen�o vou passar fogo em voc�s! Obedeceram sem
hesitar.
Darcisinho e seus dois parceiros apareceram carregando os sacos de dinheiro, olhei
o rel�gio, o tempo de execu��o estava �timo, menos de tr�s minutos.
T� na m�o disse Darcisinho.
Vamos cair fora ordenou Gigante, dando um assobio para o de cima, que desceu as
escadas incontinente, como se estivesse esperando o sinal o tempo todo.
Ningu�m se mexe! tornou a gritar Gigante.
Os quatro foram saindo.
Agora vai voc� ele disse, dirigindo-se a mim.
Sa� atr�s do grupo e parei a meio caminho, entre a fachada da ag�ncia e os carros,
para dar cobertura a Mauro Gigante, ouvi outro estampido da doze, e l� veio ele
correndo. Os da frente j� haviam entrado
no Opala, Mauro passou por mim e entrou no Escort, antes, por�m, que eu tivesse
tempo de fazer o mesmo, uma viatura da PM apontou na esquina, vinha se aproximando
devagar, sem nada perceber. Nisso o Opala
arrancou, guinchando pneus. Perdido o apoio das armas pesadas, gritei para Gigante:
Segura a�.
E ouvi-o repetir a ordem para o motora. Os dois policiais alertaram-se ao se dar
conta de que havia um assalto em andamento. Eu, parado no meio da cal�ada, com uma
pistola na m�o, o carro em fuga, o outro
carro com homens armados, gritos provindos da ag�ncia e do outro lado da cal�ada,
saquei o rev�lver e fui ao encontro da viatura, passando por tr�s do Escort que j�
come�ava a se movimentar, cortei a frente
da viatura atirando com ambas as armas, atingi os dois policiais v�rias vezes, sem
que tivessem chance de reagir nem de pedir refor�os pelo r�dio. O motor da viatura
apagou, fechando o fluxo da rua. Dei
a volta e pulei para dentro do Escort, j� no centro da pista de rolamento.
Senta o p�! ordenou Mauro Gigante ao motorista.
Essa vai feder! disse o motorista, abrindo caminho no tr�nsito com muita
seguran�a. N�o se avistava mais o Opala.
Que feda! berrou Mauro Gigante indignado. N�o tenho medo de brigadiano, tenho
medo � de bunda-mole! Virou a cabe�a para tr�s. Bom trabalho, Mano V�io, tive
sorte de trazer voc�s.
Encontramos o Opala no lugar marcado, passamos para uma Kombi deixada ali para esse
fim e abandonamos o Escort. O motorista sentou o p�. Devolvemos as armas para Mauro
Gigante, que as colocou em um saco.
Agora est�vamos distante do local do assalto, fora de risco. Ningu�m falava,
estavam todos desanimados, esperando a rea��o de Mauro Gigante, rea��o esta que,
pela profundidade de seu sil�ncio, n�o prometia
ser rasa em estragos. Por muito pouco a nossa a��o n�o tinha melado, mas fazer o
qu�?
Vamos l�, pessoal, alegria eu disse , o pior j� passou. Agora, s�o flores, hora
de comemorar.
O pessoal aos pouquinhos foi descontraindo, come�ou a comentar, a rir, menos Mauro
Gigante, continuava ensimesmado, esticando o sil�ncio no tamanho da prosa com seus
bot�es. Darcisinho e eu pedimos para
descer perto de um ponto de �nibus. Antes de desembarcar, tirei os �culos, o nariz
posti�o, o bigode, desmanchei o penteado, despi a camisa floreada, mantendo a
camiseta azul-marinho usada por baixo.
Espero voc�s na sede, mais tarde disse Mauro Gigante, e seguiram.
Chamei um taxi e mandei tocar para o Centro, desci a uma quadra da pens�o.
Darcisinho ia seguir, mas desistiu, paguei o taxi.
Vou dormir um pouco eu disse.
Darcisinho estava chateado.
Eu disse pro motorista segurar, mas ele n�o deu bola, atendeu � ordem do N�lio pra
tocar, se apavoraram com a chegada dos home. Aquela parada era nossa, n�o de voc�s,
muito menos tua que eu tou sabendo,
cada um deles com uma doze e granada, pra qu�? Pra bonito? Tinham que ter estourado
os brigada, podia ter zebrado toda a opera��o e foder com todos n�s se n�o fosse um
tal de Mano V�io.
�, mas n�o zebrou, cara, t� todo mundo vivo e com grana no bolso, foi precipita��o
deles, s� isso. O Maurinho t� engasgado, deu pra perceber, eu tenho at� pena dos
rapazes, o Maurinho n�o vai deixar
em branco.
A minha cabe�a estava ocupada com outra coisa bem mais interessante, eu pouco me
importava com o destino dos bundas-moles. Eu tamb�m tinha derrapado, n�o estava
totalmente isento de culpa, Maurinho � que
fora impec�vel, eu ficaria no aguardo da decis�o de Mauro Gigante para poder
avaliar o alcance da sua lideran�a. Como Darcisinho n�o se decidisse a ir embora,
acrescentei:
De noite a gente se encontra l� no moc� do Maurinho.
Certo, Mano V�io. Isso, vai descansar. Mano V�io deve tar quebrado, a noite
inteira mandando brasa, hein? sorriu tristemente S� v� se n�o se esquece de pagar
as d�vidas de jogo.
Ser�o pagas.
At� l�, Mano V�io.
At�.
Eu e Teca, nos dias que se seguiram, deixamos subentendido um pacto de n�o tocarmos
no passado, nem meu nem dela, pelo menos por enquanto. Eu tinha grande curiosidade
de saber da sua vida com o Dila, particularmente
no tocante ao envolvimento dele com o tr�fico, do andamento e da extens�o dos
neg�cios dele em outras �reas, mas n�o ia for�ar a barra, t�nhamos um bocado de
tempo pela frente. Aos poucos, eu extrairia
dela todas as informa��es que me interessassem. Como era sexta-feira, aluguei um
carro com o cart�o de cr�dito do empres�rio que eu era nas horas vagas e descemos
para Florian�polis. N�o quis comparecer
� reuni�o de partilha, eu pegaria a minha parte depois, em outra ocasi�o. �s 21
horas liguei para o n�mero que Mauro Gigante havia me passado e coloquei-o a par da
minha decis�o.
Tudo bem, Mano V�io, a tua parte � sagrada, fica guardada aqui comigo, deu s�
seiscentos pau, quase metade do que eu esperava, ainda por cima quase deu toda
aquela cacaca, n�o � mesmo? Mas tudo bem,
vou come�ar a repartir, boa viagem.
Obrigado. O Darcisinho ta�?
T� bem aqui do meu lado.
Passa pra ele?
Oi?
Cara, se voc� precisar, pega dois paus da parte que me toca, n�o vou poder estar
a�, tou indo pra Floripa com a Teca.
De jeito nenhum, Mano V�io, n�o vou pegar porra nenhuma da tua parte, quero ter a
honra e a gl�ria de receber essa grana das tuas m�os, de mais ningu�m, entendeu? De
mais ningu�m.
Voc� que sabe.
Um beijinho nas n�degas, quero ver o teu pau quando tu chegar pra ver se n�o
gastou, ok? J� pensou? Do maior pau de Curitiba, virar o menor tiquinho do peda�o,
desse tamainho, �, gastou tudo com a Teca,
hahahaha.
Vai te catar, vai, na volta procuro voc�, tiau.
Olha s�, quando tiver dando uma bem gostosa, te lembra do teu maninho aqui, t�
legal? E d� essa por mim.
T� legal, passa pro Gigante.
Fala.
V� se d� um refresco pros rapazes, eles n�o fizeram por mal. eu dizia isso com
segundas inten��es, s� para test�-lo.
Agora j� esfriei a cabe�a, t� tudo sob controle.
Que bom. Na volta te procuro.
Falou.
Desliguei, voltei pro Santana e seguimos viagem. Durante o trajeto, acabei mudando
de id�ia, em vez de seguir para Floripa, entrei em Cambori� e fomos direto para um
hotel. No dia seguinte, aluguei um
apartamento mobiliado de frente para o mar e mudamos. Permanecemos l� do dia 23 de
dezembro a 2 de janeiro e fizemos uma lua de mel misturada com festa natalina e
r�veillon, quase n�o sa�amos, t�nhamos
tudo a partir da sacada: o mar, o c�u, as estrelas, a noite, a maresia, a luz
intensa do sol, e ped�amos comida e bebida por telefone. O resto foi um relax
completo, s� eu e ela, ela e eu, diger�amos o
n�ctar da vida, a satisfa��o completa que s� duas pessoas que se amam podem
proporcionar uma a outra.
Para mim, que tinha me afastado por completo das amenidades de um relacionamento
amoroso, aqueles poucos dias foram uma tr�gua mais que suficiente para atender �s
minhas necessidades de lazer. Depois do
Natal, comprei uma resma de papel of�cio, v�rias canetas, e pus m�os � obra, s�
interrompia quando Teca vinha se enroscar em mim, umas tr�s ou quatro vezes por
dia, fora a noite.
JD: Nem ela. Eu vivera muito tempo s� para sofrer a influ�ncia de quem quer que
fosse. Mas eu mesmo me policiava para conter esses �mpetos estratosf�ricos. Me
disciplinava para dar um passo ap�s o outro,
com a modera��o que o bom senso exige. Volta e meia tinha que dar um pux�o nas
r�deas para conter o cavalo louco que queria arremeter. Com a idade, vou tendo cada
vez mais sucesso nesse sentido. Mas naquela
�poca cada puxada de r�deas era seguida de uma crise de desalento. Paci�ncia era
uma palavra que n�o constava do meu vocabul�rio. Mas, aos poucos, fui me impondo o
freio. Isso me amadureceu. Me convenci
de que devia me contentar em ser uma esp�cie de Sebrae dos microempreendedores
criminais, da arraia-mi�da do crime, no fundo era isso mesmo, a chinelada � que me
interessava.
JL:Tentar implantar no Brasil uma organiza��o com disciplina r�gida n�o seria
exigir demais? Uma coisa que poderia ser bem aceita por japoneses, chineses,
alem�es, mas por brasileiros me parece meio for�ado.
JD: O Brasil do Terceiro Mundo j� possu�a o Comando Vermelho, com suas regras duras
e especializa��es. A bandidagem em geral tem regras de procedimento que s�o
cumpridas por todos, fora e dentro dos pres�dios.
Isso n�o � nenhuma novidade. A ACC seria uma entidade mais perfeita, mais
tecnicamente organizada e administrada, s� isso. Bandido tamb�m sabe distinguir o
trigo do joio.
JL:Mas misturar bandidagem com pol�tica � que me parece uma coisa extravagante.
Sempre ouvi dizer que bandido n�o tem ideologia. Sua meta � sempre o lucro
imediato, independente de onde venha. Jamais tem
preocupa��es sociais ao escolher suas v�timas.
JD: Mas isso j� mudou h� muito. O processo de forma��o do Comando Vermelho e da ACC
tem conota��es inversas. O Comando Vermelho teve os seus prim�rdios no
aconselhamento dos comunas, surgiu com a Ditadura
Militar. Bandidos comuns e presos pol�ticos cassados pela LSN coabitavam na
penitenci�ria da Ilha Grande. Seus fundadores foram politizados pelos comunas.
Passaram a ler livros como A Guerra de Guerrilhas,
do Che, A Guerrilha Vista por Dentro, de Wilfred Bulcher, e muitos outros. Os
bandidos trocavam id�ias com intelectuais, com ativistas pol�ticos. Quando os
presos pol�ticos sa�ram de l�, deixaram marcas
profundas no pres�dio. Ora, os caras confinados tinham tempo � be�a para pensar.
Foi assim que despontou o Comando Vermelho, com uma conota��o nitidamente pol�tica
entre os seus fundadores. Com o tempo,
por�m, divergiram as ideologias internas, reorientando-se os seus prop�sitos ao de
organiza��o criminosa pura e simples, como funciona at� hoje. J� a ACC, n�o, nosso
in�cio foi congregar pequenos transgressores,
funcionando mais como um sindicato na defesa dos interesses da classe. Talvez eu
fosse o �nico a me posicionar politicamente desde o come�o. Tanto que a original
proposta de forma��o dentro do crime via
UNICRIM � que representava uma inova��o realmente revolucion�ria. Estar�amos, a
partir dali, formando profissionais do crime.
JL:Nesse caso, a ACC foi sofrendo altera��o ideol�gica conforme se desenvolvia?
Fica confirmado, ent�o, que toda a base pol�tica veio da sua influ�ncia direta?
JD: Foi uma evolu��o lenta, mas cont�nua. Espelhei a UNICRIM nos modelos do Sesi,
Sesc, Senac. A diferen�a � que essas eram entidades de base institucional, criavam
rob�s para servirem melhor a classe
patronal. Os nossos jovens tirados das ruas via CREABS passavam desde a pr�-
forma��o ou primeiros est�gios at� os cursos de especializa��o, ficando aptos a
assumirem o lugar de bem-sucedidos homens do
crime. Simultaneamente, outros grupos eram formados para ocuparem postos
importantes nos diversos escal�es do Executivo, Judici�rio e Legislativo do pa�s.
JL:Tirar a ACC do zero foi um trabalho herc�leo, tenho de reconhecer. Em momento
nenhum veio o des�nimo e a vontade de abandonar tudo? As coisas tamb�m n�o davam
erradas?
JD: As id�ias eram tantas que eu n�o sabia bem por onde come�ar. Tive que
estabelecer prioridades, metas. Comecei com a elabora��o dos Estatutos,
estabelecendo as normas b�sicas, a filosofia, definindo
conceitos. Queria que todos encarassem a ACC como eu, com seriedade. Portanto,
precisava dar uma id�ia clara de como ela funcionaria. Concentrei toda a minha
energia nessa tarefa. No in�cio, eu pr�prio
precisei de treinamento para atender a tantas atividades a um tempo s�. Logo eu que
vivi boa parte da vida fechado no meu mundinho a sete chaves. Foi dific�limo
adquirir agilidade mental para tomar v�rias
decis�es a um tempo s�. Decis�es de acerto, quero dizer. Vontade de jogar tudo pro
alto nunca me deu, mas cheguei a me desesperar algumas vezes. Tem aquele ditado:
Quando voc� est� azarado, at� no peidar
se descadeira. Pois houve fases em que tudo s� dava errado, n�o havia santo que
chegasse para atender a tantos pedidos. (risos).
JL:N�o deixar a peteca cair nesses momentos parece ser a decis�o mais importante,
n�o � mesmo?
JD: Tem raz�o. Por isso parti para a instala��o imediata das CREABS, sem d�vida a
sa�da emergencial para arregimentar pessoal e fazer o empreendimento se desenvolver
em bases s�lidas. Seriam as hostes
de vanguarda da ACC, tiradas da ala dos anjinhos. O primeiro contingente estava
recolhido no s�tio de aluguel, em plena disponibilidade. Voltei-me para l�.
JD: Sem essa, Jardel, estamos todos juntos no mesmo barco, para o que der e vier.
Enquanto uns remam outros consultam a b�ssola para n�o perder o rumo. Como a
maioria est� quase sempre � deriva, eu boto
ordem na ma�aroca, buscando a rota certa (risos).
Iniciei com La Rosa e Terneir�o uma s�rie de viagens pelo Brasil e pela Am�rica
Latina, contatando com os l�deres das mais conhecidas organiza��es criminosas com
as quais eu pretendia negociar em breve,
t�o logo finalizadas as linhas mestras do megaempreendimento a que eu me propusera,
para come�ar as opera��es de campo com pessoal novo e bem treinado. Os contatos da
Col�mbia, S�o Paulo, Mato Grosso,
Esp�rito Santo e Natal foram os mais proveitosos. O nosso retorno, no entanto, foi
precipitado por uma s�rie de acontecimentos que deram um giro de 180� nas nossas
perspectivas.
Liguei para a Marcinha, mas a secret�ria dela me passou um outro n�mero, liguei
para Nova York e soube que s� iria retornar ao Brasil dentro de duas semanas.
Por que n�o me ligou, seu fuj�o? Fiquei morrendo de vontade de te ver, lembrar os
velhos tempos.
Perdi o seu cart�o, somente agora Ilona me deu o seu n�mero, falou que voc� est�
famosa. sil�ncio do outro lado. Marcinha?
Que hist�ria mais estranha, Jorge. Se voc� perdeu o meu cart�o, como e por que o
seu amigo me ligou dizendo que voc� o encarregara de substitu�-lo?
Que amigo? La Rosa?
Ele mesmo.
Veja s�, La Rosa querendo me passar para tr�s com a Marcinha, baita cara de pau.
N�s fomos jantar e ele ficou o tempo todo me cantando, me enchendo de perguntas,
dizendo que queria fazer uma surpresa para voc�, n�o entendi bulhufas. Agora voc�
acaba de me dizer que n�o tinha mais
o meu cart�o, o que � que est� havendo? Agora quem quer saber sou eu. E tem mais,
se sa� com ele, Jorge, foi por sua causa, achando que seria uma oportunidade de o
encontrar, ou na ocasi�o ou logo em seguida,
sen�o, nem pensar.
Quer dizer que voc�.
Bem que eu estava desconfiada, n�o nasci ontem, n�o �, Jorge? La Rosa estava cheio
de mist�rio, pediu que n�o lhe contasse nada caso voc� contatasse comigo, que
mantivesse segredo para n�o estragar a
surpresa, pediu aussi o fone de Ilona, quando lhe falei que ela fora a nossa ponte.
Voc� deu?
Mas oui, ch�ri, como n�o dar? Eu estava louca para participar da festa e da
surpresa tamb�m, n�o podia imaginar que ele fosse sumir e n�o me dar mais
satisfa��es, achei o fim da picada. Ele ligou pra
Ilona tamb�m, a mesma coisa que comigo, mil perguntas, ela n�o abriu nada, a Ilona
� macaca velha, n�o �? Voc� sabe. Pois ent�o, n�o estou lhe dizendo que ele pedia
mil segredos a todo mundo para n�o
estragar a surpresa que estava lhe preparando? Com ela a mesma coisa, se Jorge
ligar n�o falem nada pra ele, s� falava na tal festa surpresa que estava preparando
junto com todos os seus amigos.
Festa surpresa? Quando?
Por ocasi�o do seu anivers�rio, n�o quis dar detalhes porque, conforme suas
pr�prias palavras, surpresa n�o se divulga. S� que essa festa nunca aconteceu,
ficamos esperando e nada, e foi isso que me
intrigou, como passo na correria, dum pa�s pra outro, acabei esquecendo, mas fiquei
decepcionada por ter perdido a comemora��o.
Combinei com Marcinha de ligar dentro de 15 dias, quando possivelmente ela j�
estaria de volta ao Brasil, deixei-lhe um n�mero de telefone para recado em
secret�ria eletr�nica, mas que ela s� deveria us�-lo
caso La Rosa ligasse para ela novamente, frisei que s� deveria us�-lo nessa
hip�tese, do contr�rio, n�o. Acrescentei que n�o revelasse, de modo nenhum, o nosso
contato, e que avisasse Ilona para dizer
o mesmo, caso ele ligasse para ela, o que eu achava, no entanto, hip�tese pouco
prov�vel. O pr�ximo contato viria atrav�s de Marcinha.
N�o lhe d� endere�o nenhum, nem seu nem dela, ou melhor, troque de endere�o
imediatamente, v� para um hotel primeiramente e, quando estiver instalada, me avise
que irei encontr�-la, ok? Vou lhe mandar
dinheiro para isso.
N�o, Jorge, de forma alguma.
Esse detalhe voc� pula, Marcinha eu lhe disse pausadamente , se voc� se acha
devedora de alguma coisa em rela��o a mim, obede�a �s minhas recomenda��es
rigorosamente, ser� a melhor forma de pagamento,
assim estaremos quites.
Marcinha jurou que ia executar tudo conforme eu lhe indicava, que eu podia ficar
tranquilo. Eu fiquei me perguntando o que La Rosa andava aprontando. Uma coisa era
certa, estava investigando o meu passado,
pegara a deixa de Marcinha e n�o perdeu muito tempo para isso, at� para Ilona
ligou, v� se pode, mas elas n�o tinham muito o que dizer de mim, exceto o meu
prenome e o endere�o do moc�. Mas e se ele, com
base nisso, aprofundasse as pesquisas? Era s� furungar, ou botar algu�m a faz�-lo,
que poderia ficar a par de muita coisa. Com que objetivo resolveu vasculhar a minha
vida passada? N�o estava movido por
curiosidade moment�nea, gerada pelo encontro casual com Marcinha. N�o, era carta
marcada. La Rosa n�o � do tipo que pesquisa o passado de algu�m apenas motivado por
uma curiosidade natural, apenas para
fofocar, j� devia ter premeditado isso. Tinha m�o de macaco nessa cumbuca, s�
estava esperando a oportunidade, ela pintou, e ele foi fundo, quem melhor do que
uma velha amiga para esclarecer pontos obscuros?
Ele sabia que, sem o cart�o, dificilmente eu faria contato com Marcinha novamente.
Saber do meu passado com que fim, sen�o o de pegar na ponta do meu rabo? O que
estaria pretendendo? Teria alguma coisa
a ver com o meu xar�, Jorge Cinco? Com Carl�o da Branca? Com o pessoal do Rio?
Alguma coisa a ver com os nossos contatos mais recentes, com o pessoal do
narcotr�fico da Col�mbia e Bol�via? La Rosa estaria
fazendo jogo duplo, o filho da puta? Me aprontava a cama, para ele ou algum outro
tomar o meu lugar? Alguma coisa me dizia que sim. A prem�ncia que me acometeu de
ligar para Marcinha n�o seria um aviso?
O meu radar interior sinalizando aproxima��es indesej�veis? Cada vez mais eu n�o
podia desprezar esse sinalizador instalado no imo da minha alma, que soava toda vez
que alguma coisa de ruim estava para
me acontecer, mas por que La Rosa? Quantos da � estariam tramando com ele? Ou tudo
n�o passava da noia que crescia a cada dia com a expans�o da � e o temor permanente
de ela vir a ser desmantelada a qualquer
momento por uma falha inadvertida? Ou n�o era nada disso e eu estava fazendo
tempestade em copo d��gua?
Quem sabe La Rosa tenha se tarado por Marcinha e tentado a qualquer custo se
aproximar dela e arrast�-la para a cama, inclusive inventando hist�rias
mirabolantes para isso. Marcinha se transformara bem
no tipo de mulher capaz de virar a cabe�a de qualquer um, e La Rosa acabou sendo a
sua �ltima v�tima. Mas a ponto de trair o chefe e amigo, em total desrespeito,
furtando-lhe o cart�o? N�o podia simplesmente
ter sido franco comigo? Poderia ter dito �Olha, Jorge, quero essa mulher pra mim
custe o que custar.�, sabia que eu n�o ligava para mulher nenhuma que n�o fosse
Teca, seria f�cil me convencer a lhe dar
cobertura. Botei La Rosa em banho-maria, decidi, para tirar qualquer d�vida do
n�vel da sua lealdade, mant�-lo em observa��o 24 horas do dia, assim como se faz
com coleta de fezes deixada no laborat�rio
para an�lise de cultura, s� para ver que bicho ia dar.
JD: Antes da UNICRIM, onde os ne�fitos teriam forma��o te�rica e pr�tica em tempo
integral, por um m�nimo de tr�s anos, dependendo da compet�ncia de cada um, as
CREABS passaram a funcionar por meio de
institui��es filantr�picas de fachada. Estas fariam a angaria��o de membros entre
meninos e adultos de rua, selecionando aqueles realmente vocacionados para compor o
quadro da organiza��o. As CREABS funcionam
como um est�gio preparat�rio do Sistema de Forma��o (SISFORMA) que leva, no est�gio
seguinte, ao ingresso na UNICRIM. Os cursos da UNICRIM est�o distribu�dos em duas
fases: Intermedi�ria e Adiantada. A
Intermedi�ria abriga alunos dos 6 aos 12 anos, por um tempo m�nimo de dois anos. A
Adiantada, alunos dos 18 aos 23 anos, por um tempo m�nimo de tr�s anos. O confrade
j�nior, conclu�da a fase Intermedi�ria
na UNICRIM, far� trabalho de campo dos 12 aos 17 e meio. Ter�, por�m, suas
atividades orientadas e assistidas o tempo todo por confrades de grau mais
adiantado. Ao completar 18 anos, retorna � UNICRIM
para concluir seus estudos. Da�, at� se formar, por volta dos 23/24 anos, fica por
conta da ACC. O objetivo � torn�-lo um profissional competente na sua �rea de
atua��o.
JL:Os professores da UNICRIM nessa fase inicial eram recrutados onde?
JD: Essa foi a fase mais dif�cil da implanta��o do projeto. Inicialmente �ramos
n�s, os veteranos, a fazermos o papel de professores, transmitindo a nossa
experi�ncia aos ne�fitos, mas isso apenas na parte
pr�tica. A parte te�rica os confrades iam receber nas escolas p�blicas. Isso
atravancou a pequena �rea, pois era muito dif�cil batermos o escanteio e
cabecearmos a gol ao mesmo tempo. Mesmo assim fizemos
alguns progressos. Isso tudo, como voc� pode notar, funcionou a toque de caixa, com
resultados bem aqu�m do que eu esperava. A coisa andou meio que no empurr�o, na
marra. Depois de alguns anos, por�m,
aqueles confrades que foram se formando em universidades, nas v�rias disciplinas de
conhecimento, passaram a preencher essas defici�ncias, tornando a forma��o da
UNICRIM mais aprimorada e autossuficiente.
Quando conseguimos reunir um corpo docente razo�vel, criamos nossas pr�prias
escolas com registro no MEC para poder graduar nossos alunos espec�ficos. N�o
preciso dizer que as vagas eram preenchidas apenas
por alunos vinculados � Confraria, n�o �? Quem era de fora encontrava os cursos
sempre lotados.
JL:Voc� simplesmente fez uma revolu��o cultural e educacional no ambiente criminal.
JD: Com a CENAJU aconteceu a mesma coisa. Inicialmente os advogados eram coletados
no mercado. Depois formamos nossa pr�pria equipe de criminalistas, que hoje s�o
algumas centenas. A CENAJU e a ASSIJUE
t�m import�ncia fundamental para a seguran�a e estabilidade constitucional da
corpora��o em todos os sentidos. O inestim�vel valor do servi�o prestado pela
CENAJU/ASSIJUE garante assist�ncia jur�dica aos
confrades, em atendimento 24 horas, pois mantemos escrit�rios de criminalistas
espalhados em todo o territ�rio brasileiro. A ASSIJUE � uma esp�cie de pronto-
socorro jur�dico. Basta o fone da Central de
Atendimento ser acionado que uma �ambul�ncia� � enviada para �salvar� o paciente,
com urg�ncia urgent�ssima. Um confrade nunca fica pendurado no pincel. Desse modo,
qualquer membro detido tem um advogado
ao seu lado em poucos minutos, ou no m�ximo em algumas horas, independentemente do
lugar da ocorr�ncia, por mais remoto que seja. A estat�stica atual � que cerca de
85% dos presos do Brasil n�o disp�em
de advogados. Com a CENAJU/ASSIJUE tapamos um furo que deixa a maioria dos
marginais entregues � pr�pria sorte. Com confrade, n�o, viol�o. O que me alertou
para esse detalhe, e a prioriz�-lo, foi a analogia
com o infarto do mioc�rdio, no qual o paciente depende de atendimento imediato para
minimizar as sequelas. A presen�a do advogado na delegacia � crucial para a
situa��o do preso a partir daquele instante,
inclusive a do enquadramento no C�digo Penal, minimizando o seu agravamento,
podendo chegar, dependendo do caso, ao relaxamento de um flagrante com base em
amparo legal, at� pedidos imediatos de habeas
corpus, liminares, ou qualquer medida cab�vel de soltura, caso haja. O fundamental
ser� evitar-se ao m�ximo o recolhimento de qualquer afiliado ao c�rcere, servindo-
se para isso de todos os recursos dispon�veis,
l�citos ou il�citos, incluindo-se o suborno.
JL:E como manter toda essa estrutura secreta, sem risco de vazar informa��o
confidencial a qualquer momento, mesmo que inadvertidamente?
JD: Conforme voc� vai perceber, em um contato mais aprofundado com a organiza��o,
toda a nossa estrutura � compartimentada, como o arcabou�o de um navio, de modo
que, pode fazer �gua num ponto qualquer
sem afetar a estrutura geral, que permanece inc�lume, impedindo que o navio jamais
afunde.
JL:Quem garante isso? Pode-se aventar at� a possibilidade de trai��o, infiltra��o
policial, etc. O servi�o de intelig�ncia da pol�cia federal e mesmo a colabora��o
de outras entidades internacionais, como
o FBI, a CIA, o DEA, n�o podem ser menosprezadas, n�o concorda comigo?
JD: Bem se percebe que voc� n�o tem certeza do que fala. Parece que fica jogando
perguntas ao vento para ver se alguma cai de p�. Depois que tiver acesso ao Livro,
caso tiver, vai ver que isso � dific�limo
ou quase imposs�vel. O nosso processo de sele��o � rigoros�ssimo, o que inviabiliza
qualquer possibilidade de infiltra��o. J� de trai��o ningu�m est� livre, nem a ACC.
S� que quem se arriscar vai ter que
pagar um pre�o bem alto, isso eu garanto. Geralmente, para confrade que abre o
bico.
JL:O pre�o seria. (gesto ondulat�rio da m�o) em qualquer rio brasileiro? (risos)
JD: � sempre uma possibilidade. Dependendo do caso pode ser bem pior. (risos)
JL:Para mim, a ACC ainda � uma novidade, de modo que as coisas me parecem um tanto
hipot�ticas, mas, conforme as suas palavras, � uma organiza��o com estrutura j�
consolidada na pr�tica, n�o � isso?
JD: Tem d�vida? E n�o s� no �mbito nacional, no internacional j� est� adquirindo
uma consist�ncia bem acentuada.
JL:Nenhuma d�vida. O que penso �, por que antes nenhum. nenhum.
JD: Bandido, desengasga logo.
JL:N�o diria isso, seria grosseiro. O que penso �, por que nenhum l�der de
organiza��o criminosa teve antes uma id�ia desse tipo? Isso me parece t�o simples,
agora depois de tudo que sei que.
JD: De fato as grandes id�ias parecem simples. depois de executadas, e de fato s�o.
O problema � que a maioria do pessoal n�o tem tempo de pensar e ter id�ias muito
criativas, pois geralmente est� debaixo
do mau tempo, na roda-viva, na rua, no meio do redemunho.
Deixamos o carro em uma rua lateral, o dono de uma rede de lojas e supermercados
havia solicitado, atrav�s de Tim�teo, um dos subordinados diretos de Mauro Gigante,
os nossos favores para sabotar as instala��es
de um concorrente. Como Tim�teo era homem de confian�a, deixamos que ele fizesse as
tratativas iniciais sem a nossa presen�a, a fim de ir adquirindo autonomia e
seguran�a nas negocia��es, fomos l� apenas
supervisionar.
Resolvi acompanhar o grupo, Darcisinho, Mauro Gigante e Tim�teo, n�o s� pelo fato
de auxiliar no levantamento do local, mas para manter-me atualizado com o trabalho
de campo, havia muito que eu ficava
confinado �s depend�ncias da sede sem arredar p� de l�, falando ao telefone e
sentado atr�s de uma mesa, n�o acredito no gerenciamento que se distancia do foco
de opera��es a ponto de este virar novidade.
Pelo lado externo, percorremos a retaguarda do pr�dio central do supermercado,
cujas instala��es ocupavam um quarteir�o inteiro, incluindo o estacionamento, o
objetivo era analisarmos os pontos vulner�veis
do sistema de seguran�a. Ap�s esse procedimento, nos deslocamos por uma rua lateral
para fazer o exame da fachada, e, ao passarmos diante de uma casa, algu�m chamou l�
de dentro. N�s quatro nos voltamos,
uma velhota sorridente estava trepada na janela e gesticulava, pensei que estivesse
pedindo ajuda, mas logo vi que n�o. Darcisinho apontou com o indicador para si
mesmo e a velha fez que n�o com a cabe�a
e ent�o fez um sinal na minha dire��o, desta vez fui eu a espetar o indicador no
peito, a velha confirmou com o polegar para cima, aproximei-me da grade de ferro do
port�o, contrafeito, o que podia querer
comigo uma velha desgrenhada e louca daquelas? Meus tr�s companheiros se detiveram,
observando a cena, Darcisinho e Mauro Gigante tirando sarro da minha cara.
O Mano V�io arranjou pra hoje, viu Maurinho?
Se vi, at� parece que ele pressentiu que hoje ia ganhar uma dona, por isso
resolveu nos acompanhar na �ltima hora retrucou Mauro Gigante.
Escutei a gaitada dos dois nas minhas costas, Tim�teo apenas sorria, para n�o
parecer desrespeitoso. A velha dizia alguma coisa que eu n�o entendia, coloquei a
m�o em concha no ouvido para escutar melhor.
Vou cuidar de voc� dizia a cuca varrida quase num sussurro.
O qu�? Fala mais alto, n�o tou entendendo nada eu disse impaciente, quase
gritando.
Passa aqui outro dia, vou cuidar de voc�.
Mulher mais maluca, parece que bebe, v� se pode, logo quem cuidar de mim.
Est� bem, est� bem, onde a encontro? Aqui mesmo? disse aquilo para encerrar o
assunto.
N�o, meu filho, moro mais adiante apontou para sua esquerda , uma casa amarela, a
duas quadras daqui. Hoje n�o posso atend�-lo, pois estou trabalhando.
Olhei bem nos seus olhos para tirar a sua ficha, diarista e aloprada, totalmente
biruta, insistiu em dizer que ia cuidar de mim, eu, hein? Dei as costas e me
afastei.
E a�, Mano V�io? perguntou Darcisinho. Marcaram uma ponte?
Velha doida respondi, estugando o passo para me afastar da cascata de risos.
Fomos tratar do nosso neg�cio, t�nhamos que tocar fogo naquela jo�a de
supermercado, mandar tudo para a cucuia.
Quando retornei �quela rua, e isso foi ocorrer cerca de dois meses ap�s j� termos
conclu�do o nosso trabalho com sucesso, e no lugar do pr�dio monumental n�o restar
mais que uma extensa mancha negra no
centro do enorme terreno j� terraplanado.
JL:Sem nenhum puxa-saquismo, me parece que a ACC est� fadada a ser a organiza��o
por excel�ncia do terceiro mil�nio.
JD: Olha, nem tanto. Eu, que tenho tido contato com um bocado de lideran�as pelo
mundo afora, posso atestar que tem uns caras muito espertos que me deixam at� um
pouco intimidado quanto ao aspecto organizacional.
Algumas dessas corpora��es j� atingiram est�gios nos quais a ACC ainda est� rec�m
engatinhando.
JL:Em qu�, por exemplo?
JD: A �rea de inform�tica � uma delas.
JL:Mas esse � um quesito em que praticamente todo o mundo est� engatinhando.
JD: Que nada, os americanos e japoneses j� est�o bem adiantados, n�s l� no Brasil �
que ainda estamos muito defasados. As universidades americanas e
europ�ias d�o muita aten��o � tecnologia de ponta
e aumentam cada vez mais o fosso tecnol�gico com a Am�rica Latina, por exemplo.
JL:Na verdade, eu me considero um leigo nesse assunto, n�o manjo nada de
computadores nem de inform�tica, de modo que n�o posso acrescentar nada.
JD: Pois trate de se inteirar, Jardel, o futuro do mundo vai girar em torno disso,
principalmente na �rea de comunica��o, empresas jornal�sticas, etc. Voc� t� pegando
mofo, Jardel, com esse teu comodismo,
trate de sacudir a poeira, meu. Al�m do mais, as organiza��es criminosas dos
gringos est�o cada vez mais legalizando as suas opera��es com conglomerados de
empresas de fachada que praticamente absorvem
todas as atividades ditas ilegais. Tudo passa a ter uma fei��o institucional, de
neg�cio certinho, contabilizado, mascarado, mas que ningu�m pode botar defeito. E
quem se atreve, �. (gesto ondulat�rio
da m�o), e n�o s� no Sena, mas no Rio Missouri, no Volga, no Yang-Ts�. (risos).
JL:Mas o crime organizado no Brasil j� come�a a tomar uma fei��o profissional, a
ACC que o diga.
JD: O importante para o crime organizado do planeta � fazer fachada e lavar
dinheiro, cada vez mais, ou seja, dar uma apar�ncia de legalidade a tudo o que faz.
E os pol�ticos de todos os quadrantes est�o
cada vez mais afinados com o crime organizado, pois � a chance de aumentar a sua
renda sem limites. Financiamentos de campanhas s�o a reza obrigat�ria para o diabo,
no Brasil nem tanto porque rec�m saiu
da ditadura, mas vai come�ar a todo o vapor, se depender de mim, isso eu garanto.
(risos).
JL:O crime organizado est� infiltrado em todos os segmentos de neg�cios, ou tem
alguns que lhe interessam mais?
JD: Basicamente em todos, mas � claro que tem alguns que se sobressaem. No Brasil,
por exemplo, nesse momento � o tr�fico de drogas. � imprescind�vel para o
crescimento de qualquer organiza��o que se preze.
Um que eu estou estudando para implantar com toda a for�a � o tr�fico de
influ�ncias, principalmente no �mbito federal, l� em Bras�lia. Estou preparando
lobistas para atacarem com tudo em v�rias frentes,
principalmente com empreiteiras. Tenho alguns deputados e senadores na manga que
n�o me recusam nada.
JL:Mas a rec�proca � a peso de ouro, n�o �?
JD: S� rel�gio � que trabalha de gra�a, n�, Jardel? Na verdade, todos precisam
ganhar, principalmente aqueles que ocupam o pal�cio do Planalto. No Brasil nada
acontece de importante no �mbito financeiro
ou dos neg�cios sem que passe por Bras�lia antes. Mas tem teta para todos, ningu�m
fica de fora, se voc� tem uma id�ia quente, Bras�lia � o solo prop�cio para seme�-
la.
JL:E o povo onde fica?
JD: Sempre sobra uma rebarbinha para o pov�o, futebol, carnaval, novela da Globo.
(risos).
JL:Pelo jeito, neg�cio bom n�o falta, todo dia tem not�cia de corrup��o e gente
metendo a m�o em verbas p�blicas.
JD: Jardel, voc� n�o perde por esperar, agora ainda n�o � nada, mas espere para ver
daqui a dez, vinte anos, o Brasil vai ser um po�o sem fundo de esc�ndalos
financeiros e pol�ticos. Ser� a bola da vez
internacional, mas vai despontar como aconteceu com muito pa�s de apar�ncia s�ria,
mas que fazia mis�rias por baixo dos panos. � o caminho do crescimento, n�o h� como
n�o trilh�-lo. Os pol�ticos brasileiros
est�o acordando para o jogo r�pido das finan�as globais e, assim, a coisa vai tomar
um ritmo acelerado. O pr�ximo passo ser� a privatiza��o de empresas p�blicas. A ACC
est� atenta para isso, ou seja, comprar
empresa p�blica de apar�ncia falida, por uma merreca, para depois fazer o lucro
aparecer sem muito esfor�o.
JL:Ent�o tem at� presidente metido no meio?
JD: Ningu�m que � esperto mete a m�o em cumbuca. Mas tem quem fa�a por eles, n�o �
mesmo? A pol�tica � uma grande aventura de poder e riqueza. Melhor que pol�tica s�
a ACC.
JL:Ent�o voc� vive em um cruzeiro de aventuras onde o t�dio n�o tem vez?
JD: Hoje posso responder que sim.
JL:Se vem da tua boca, s� posso ter como verdadeiro. At� eu estou a fim de entrar
para a ACC.
JD: Mas voc� j� faz parte dela, meu caro Jardel, o seu t�dio acabou. Daqui para
diante, a ACC n�o vai permitir que voc� se aborre�a. (risos).
JL:De fato, j� n�o me aborre�o mais. (risos)
JD:N�o tem muito mist�rio no contexto de a��o da ACC.
JL:� mesmo?
JD:Veja s�, Jardel, aquele alem�o nazista, o tal de Heidegger, dizia que a verdade
n�o � acess�vel � primeira vista, que ela precisa ser desencoberta, exige um
trabalho de desvendamento, pois quase sempre
a verdade permanece escondida. Os alem�es s�o campe�es em dial�tica, v�o tecendo os
seus argumentos de tal modo que acabam deixando a gente convencido de que est�o
certos. Esse da� fala no tal velamento
e desvelamento. Ou seja, a verdade est� sempre encoberta de v�us, ou seja, est� bem
escondida. At� ent�o, debaixo dos v�us, ela n�o � nada, apenas uma n�o-verdade.
Ora, para virar verdade, precisa ser
desvelada, ou seja, os v�us devem ser retirados at� a verdade ficar exposta. Mesmo
assim, a verdade nunca ficar� totalmente revelada, sempre se manter� escondida,
ainda que aparentemente exposta. Bota
bl�-bl�-bl� nisso. (riso)
Para mim essas id�ias do alem�o foram de grande utilidade. Sempre que me envolvo em
algum rolo criminal procuro deix�-lo sempre o mais encoberto poss�vel de v�us, para
que n�o fiquem pistas ou pontas soltas
para serem aproveitadas no desvelamento, em geral feito pela pol�cia ou pelo
judici�rio. � um jogo de intelig�ncia, onde o mais forte chora menos. (riso) Quanto
mais perfeito e pensado � o plano de execu��o
de uma trampa, mais estaremos dificultando a sua investiga��o a fim de que cheguem
a uma conclus�o e assim poder provar as inten��es sub-rept�cias nele embutidas.
O plano que eu costurei com o poder pol�tico e econ�mico do Brasil tem essas
caracter�sticas: dar muito trabalho ao outro lado (pol�cia e judici�rio) para
tentar provar ou desvendar alguma coisa. Em geral
vira quase um enigma. Antes de tudo, por�m, no meio dessa trajet�ria, � preciso
colocar as pessoas certas nos mais altos escal�es do governo, para dar cobertura no
caso de as verdades virem � tona. Essas
autoridades servir�o para colocar novos v�us no lugar daqueles que foram retirados.
Ou seja, tudo o que for desvelado. logo a seguir sofrer� novo velamento. o que
significa: a verdade nunca vir�
totalmente � tona. nunca. (riso) Entendeu, Jardel?
Na verdade, eu j� n�o tinha mais lembran�a do incidente com a velha, mas acordei
certa manh�, como sempre me acontece quando estou na imin�ncia de alguma enrascada,
com uma pressa tremenda de procurar
a dita cuja, estaria virando paranormal? N�o tive dificuldade em encontrar a casa
amarela de madeira, recuada em um terreno com v�rias �rvores frut�feras de permeio
e dois canteiros cheios de p�s de couves.
Tinha ido solito, coisa que n�o costumava fazer mais, mas n�o estava disposto a ser
motivo de risos adicionais. Desci do carro e me aproximei do port�o meio apodrecido
da sebe de ripas pintadas de um marrom
desbotado pelas sucessivas chuvas, l� estava a mulher velha encostada no umbral da
porta, sorrindo no seu jeito abobalhado, uma perna em descanso cruzada na frente da
que lhe servia de apoio e uma das
m�os apoiada na anca, como se tivesse estado ali � minha espera durante todo aquele
tempo. Nisso a imagem dela se transmudou para a de um samurai, esfreguei os olhos,
o samurai tinha uma fisionomia endurecida
e seu olhar frio de puro gelo me traspassava, aquele homem era perigoso, mas n�o
para mim. Caminhei em sua dire��o disposto a enfrent�-lo. A mulher velha me
esperava com a m�o estendida e apertou a minha
em um cumprimento demorado, procurei em volta, onde diabos havia se metido o
samurai? Eu come�ava a sofrer alucina��es?
Entre, meu filho.
Antes de passar na porta pude observar, na lateral da casa, uma min�scula
edifica��o de alvenaria coberta com telha de amianto pintada de vermelho e com um
cadeado na portinhola, n�o tinha nem id�ia de
que essa era a morada do Exu e de que a velha era uma macumbeira. Fui conduzido a
uma saleta onde haviam apenas duas cadeiras e uma mesa entre elas, em seguida, sem
nada me dizer, a velha sumiu detr�s
de uma cortina que servia de divis�ria deixando-me ali sentado. Demorou tanto que
me ergui e fui espiar atrav�s da cortina, a velha estava ajoelhada e curvada,
apoiada nas m�os, de costas para onde eu
me achava, rezando diante de um altar com dezenas de santos sobre ele, velas acesas
e um bocado de badulaques espalhados por ali. A velha levantou o torso e persignou-
se pronunciando palavras em um dialeto
desconhecido para mim, al�ou as m�os espalmadas para o alto, fez uma sauda��o e se
p�s de p� sem precisar de apoio, apenas com um impulso nas pernas, uma agilidade e
vigor que n�o condizia com o seu corpo
fr�gil.
Retrocedi at� o meu lugar antes que ela se volteasse. A velha arredou a cortina com
o prop�sito de deixar o altar � mostra, carregava um pano de seda vermelho dobrado,
colocou-o sobre a mesa com todo cuidado
e desdobrou-o, havia v�rias conchinhas no seu interior e um baralho de cartas de
tar�. Ela embaralhou as cartas e pediu-me que cortasse, cortei, e ela foi virando
as cartas na minha frente, apontou a carta
com a figura da Morte.
A morte necess�ria que vai dar lugar a uma nova realidade. A morte nem sempre � o
fim falou a t�tulo de explica��o , pode significar renascimento.
Huumm.
Ela suspendeu a fala por alguns instantes, retomando-a logo em seguida com um tom
de voz alterado, enrouquecido.
Foi uma perda muito dolorida, mas estava escrito, ela foi o anjo que te levaria �
loucura e ao desespero supremo.
Antes que eu tivesse tempo de lhe fazer perguntas, ela recolheu as cartas,
empilhou-as e colocou-as de lado. Olhou-me fixamente, um olhar aguado, muito
triste, depois fechou os olhos, come�ou a falar como
se estivesse em transe, apertando as p�lpebras. �Lize�. Quando emitiu aquela
palavra, senti o meu corpo estremecer como atingido por um fio de alta voltagem.
Ela continuou de olhos fechados e gemendo,
numa representa��o de profundo alheamento, prosseguiu no mesmo tom.
Ao chegar, voc� viu aquele que viveu h� quase duzentos anos, voc� � a reencarna��o
daquele samurai, atualmente voc� est� no quinto est�gio da sua evolu��o espiritual,
ele era um bakuto, um dos fundadores
da Yakuza.
Ei, ei eu ia dizendo, tentando deter aquelas baboseiras, mas encontrei meus
l�bios grudados. Ela continuava:
Seu nome � aqui sua voz se alterou para um tom grave, rascante, viril, em japon�s
perfeito Shimizu no Jirocho.
Senti um calafrio percorrendo-me a coluna espinhal e meu corpo inteiro p�s-se a
tremelicar, segurei-me com ambas as m�os nas bordas do assento, e ela continuou
falando com os olhos fechados, agora a voz
era pausada e tranquila, seu rosto se suavizara.
Voc� est� cumprindo a sua miss�o, as pessoas que desencarnou tinham suas horas
marcadas e voc� foi apenas o instrumento para a desvincula��o delas, n�o precisa
temer nada.
�P�xa, essa velha s� est� dizendo merda, me atribuindo temores que eu n�o sinto,
vou me mandar daqui�, pensei.
O sonho com o anci�o, que o intriga tanto, � voc� mesmo aos 108 anos, o homem que
est� em sua companhia � atualmente um jovem de 19 anos, ele vir� a Curitiba para
cumprir sua miss�o, ele ser� o seu bra�o
direito num futuro n�o muito distante, aquele filho querido que voc� sempre sonhou.
Ap�s sua morte, ele vai substitu�-lo no comando da organiza��o, voc� deve
transmitir a ele, portanto, tudo o que sabe,
em contrapartida, ele retribuir� com fidelidade canina e jamais vai tra�-lo, muito
pelo contr�rio, a associa��o de ambos gerar� um enorme imp�rio de poder
incalcul�vel, jamais visto, esse jovem � a reencarna��o
de Don Vito Cascio Ferro a feiticeira deu uma entona��o vigorosa ao pronunciar o
nome desse que foi um dos mais famosos mafiosos italianos da Nova M�fia.
Meu corpo voltou a chacoalhar no assento, entretanto, apesar da aparente novidade
daquelas revela��es, era como se eu j� tivesse um conhecimento antecipado disso
tudo, ou que ele estivera hibernando dentro
de mim durante todo esse tempo, esperando apenas sua revela��o para se confirmar.
No dia em que eu o chamei na rua continuou ela , a fort�ssima vibra��o vinda de
voc� me deu a imediata certeza de que eu seria o instrumento para lhe desvendar as
trilhas que teria de percorrer at�
chegar � liberta��o, nosso encontro tamb�m estava marcado. Nesse ponto, a
camale�nica mulher readquiriu aquele grau de concentra��o que a fazia parecer
executando um grande esfor�o para decodificar
as mensagens que recebia em linguagem esot�rica. Voc� e esse jovem v�o dar um
grande exemplo � humanidade.
Exemplo � humanidade? quase gritei ao interromp�-la. Como o grande pecador que
sou?
Voc� tem certeza de que ser� sempre esse pecador?
Dei de ombros, a velha estava come�ando a delirar, e eu mais ainda, por estar ali
escutando suas profecias pirot�cnicas, as mesmas que qualquer cigana aplica ao mais
deplor�vel dos simpl�rios para tomar-lhe
um troco. Uma raiva s�bita cresceu dentro de mim, seguida do impulso de mandar
aquela velha para os quintos do inferno. Minha m�o desapareceu no interior do
palet�. Aquela mulher passara a conhecer segredos
aos quais ningu�m nunca tivera acesso, ela n�o podia continuar vivendo.
Acalme-se, meu filho, eu sou como um sacerdote, fiz voto de sil�ncio. Reaja,
acalme-se, n�o tema nada de mim, tudo o que sei, vou levar para o t�mulo, guardo
segredos incont�veis, � de outros que voc�
precisa ter cuidado.
Recolhi a m�o vazia e a coloquei junto da outra sobre o tampo da mesa, ambas
espalmadas, demonstrando claramente que eu desistira de meu intento.
A quem preciso temer?
Ela retirou da gaveta da mesa uma folha de papel e uma caneta.
Descreva algu�m de quem voc� desconfia que eu vou lhe revelar o nome que me vai
ser passado. Se coincidir, voc� ter� a certeza.
Rabisquei algumas palavras no papel, cobrindo com a m�o para que ela n�o
enxergasse, e coloquei no bolso superior do palet�. Ela jogou os b�zios e deu tr�s
fortes batidas com os n�s dos dedos no tampo
da mesa, invocando um santo. As conchinhas esparramaram-se e acomodaram-se sobre o
pano, ela as examinou.
La Rosa foram suas palavras. O papel no meu bolso assinalava �alto, magro,
careca, traidor� , voc� precisa tomar muito cuidado com ele, j� vem tramando contra
voc� h� muito tempo, � falso como uma
cobra. � preciso cortar a cabe�a dessa cobra, e de muitas outras, mas n�o espere
muito, voc� est� num meio onde n�o pode confiar em ningu�m, No entanto, ao mesmo
tempo, tem gente de muito valor a seu lado,
esses �ltimos voc� sabe muito bem quem s�o.
Com essa revela��o rendi-me � autenticidade de seus dotes medi�nicos, aquela mulher
tinha um grande tiroc�nio espiritual, n�o era uma mistificadora qualquer. Deixei de
resistir ao seu fasc�nio e abri a
minha guarda para captar melhor as suas revela��es e ensinamentos.
Voc� falou que vou servir de exemplo. Que exemplo posso ser se trago a marca de
Caim?
Voc� acha que n�o pode mudar um dia? Pois prepare-se, voc� vai sofrer outra
mudan�a radical em sua vida e, desta vez, fechar� o c�rculo. Ser� uma mudan�a para
o lado do Bem, e esse jovem que est� por
vir a Curitiba � que vai ajud�-lo a realizar esse tarefa. Voc� vai abandonar o Mal,
virar as costas para ele, o Bem, a partir de determinado momento, ser� a sua meta,
somente o Bem, essa ser� a sua reden��o
e a de todos os que o seguirem.
Eu a olhava fixamente, tentando assimilar tudo aquilo. Ela continuou:
N�o demorar� muito para que isso aconte�a, quando voc� e esse jovem se
encontrarem, e se completar a alian�a entre os dois, ser� o in�cio dessa nova fase,
uma mudan�a que ser� sentida primeiramente por
voc� e que vai influenci�-lo aos poucos. Vencidas as resist�ncias, ele ent�o
seguir� seus passos com lealdade. Voc�s est�o aqui para expiar todo o mal que
fizeram nessa e em outras vidas passadas, n�o
v�o morrer sem antes dar cada um a sua contribui��o � humanidade, � a miss�o de
voc�s.
E como vou reconhecer esse jovem? Quando vou encontr�-lo?
Voc� receber� um sinal.
Que sinal?
N�o tenho conhecimento disso, mas aguarde e confie.
Eu estava confuso, inseguro.
E quanto �quilo que venho fazendo? Devo seguir em frente?
Voc� deve continuar fazendo o que sempre fez, atenda aos seus instintos, a sua
for�a vem da�.
Ela se calou e se manteve im�vel com os olhos fechados por um bom tempo, deixava
expl�cito que estava intensamente concentrada, emitia um som gutural pela boca
crispada, parecido com um leve ronronar de
gato. Quando retomou a fala, numa voz pausada e constantemente pontuada pelo
ronronar a cada pausa respirat�ria, disse:
Estou visualizando uma cena da qual n�o estou entendendo o conte�do, est� meio
nebulosa. ela fez uma pausa. � um lugar espa�oso, parece um alojamento, v�rias
pessoas est�o l� dentro. outra
pausa. Agora come�o a enxergar melhor. H� v�rios homens seminus que rodeiam uma
mulher despida sobre uma cama, eles a desfrutam. pausa. O marido dessa mulher
est� presente e n�o se op�e a isso,
ele observa, indiferente. S�o homens rudes, oper�rios, est�o embriagados, bebem no
gargalo das garrafas, ela est� de quatro e um negro a est� usando. Cada um que a
usa cede o lugar para o pr�ximo. Um
homem corpulento, alto, quase um gigante, est� afastando o negro e tomando o seu
lugar, o gigante tem um p�nis descomunal, ele est� desfrutando a mulher com vigor,
e ela geme e grita. Ele est� muito excitado,
goza r�pido e deixa todo o seu corpanzil cair sobre as costas dela, que verga os
bra�os e fica prensada entre o homem e o colch�o. pausa prolongada, ronco. A
vis�o est� sumindo. outra pausa prolongada.
Sim, agora entendo o que essa vis�o representa, � o momento da sua concep��o,
Jorge Duncan, o seu pai era o gigante, e n�o aquele que te criou, o nome dele
tamb�m era Jorge pausa. Sim, sim, relembrando
a cena, a posi��o dos homens circundando a mulher, as suas fisionomias, os seus
esgares, a orgia, a bebida, as velas iluminando o recinto, tenho a n�tida impress�o
de ter presenciado um ritual de missa
negra, um ritual sat�nico.
Aquela mulher n�o me poupava de nada, nem de que minha m�e n�o passava de uma vadia
e de que eu tinha uma origem esp�ria, prom�scua, depravada. Como interpretando o
meu pensamento, ela disse:
Voc� precisava saber dessas coisas para conseguir entender outras no futuro, o
conhecimento dos nossos erros e os dos outros nos capacitam para o perd�o, para a
humildade, esse inv�lucro que � o nosso
corpo n�o vale nada disse ela enquanto beliscava o pr�prio bra�o , o que vale � a
alma infinita pausa. N�o tenho mais nada a lhe revelar, agora voc� deve levantar-
se e sair. N�o olhe para tr�s e
nunca mais volte aqui.
Por qu�? �Vou virar est�tua de sal?�, pensei, e quase lhe disse isso, contendo o
impulso de gargalhar na sua cara. Ent�o me fizera vir at� ela e agora me descartava
sem mais nem menos? Quem ela estava
pensando que era?
Obede�a.
Que petul�ncia, eram esses os modos de me tratar? Logo a mim? Mas uma for�a
misteriosa me impulsionou para cima e para a frente, e me vi saindo pela mesma
porta que entrara, uma sa�da que n�o chegava a
ter o car�ter de imposi��o humilhante, mas de convite irrecus�vel. Cedi. Tomei a
rua, embarquei no carro e sumi dali.
As buscas que procedi assim que deixei a casa da velha me levaram a saber que
Jirocho nasceu na cidade portu�ria de Shimizu, no Jap�o, em 1� de janeiro de 1820 e
era filho de um marinheiro. Conforme a
crendice local, quem nasce no Ano-Novo ou vai ser um grande g�nio ou grande
criminoso. Jirocho foi uma confirma��o dessa cren�a, tornando-se um mito em sua
terra natal. Ele fundou uma organiza��o criminosa
que reunia um grande ex�rcito de jogadores que dominavam o centro da Tokaido, uma
grande e famosa estrada pontuada de pousadas, onde o jogo era exercido com
intensidade, cantado em verso e prosa, tal qual
um Lampi�o pela nossa literatura de cordel, guardadas as devidas propor��es.
Tornou-se um dos principais personagens das matabi-mono, que eram as hist�rias
desses jogadores errantes, um g�nero de literatura
que goza de grande popularidade desde o in�cio do s�culo XX no Jap�o .
Jirocho foi uma crian�a e adolescente-problema, excessivamente rebelde e brig�o,
por isso o pai, seja por causa da supersti��o, seja por n�o suport�-lo, cedeu-o em
ado��o a um parente rico. Com o falecimento
do pai adotivo, herdou seus neg�cios de com�rcio de arroz. Mais moderado, aos 16
anos assumiu o comando da empresa. Em certa ocasi�o, j� pr�ximo dos 20 anos, um
monge errante veio bater � sua porta profetizando
que ele viria a morrer antes dos 26 anos, de forma violenta, e Jirocho levou essa
predi��o muito a s�rio. Saiu a correr o mundo para aproveitar o pouco de vida que
lhe restava e nas suas andan�as destacou-se
como lutador excepcional, mediador e l�der. Voltando a Shimizu, anos depois,
organizou sua pr�pria quadrilha, a cl�ssica quadrilha bakuto, cujo auge abrangeu os
anos turbulentos de meados do s�culo XIX,
quando o Xogunato Tokugawa estava em decad�ncia, sofrendo ataques de todos os
lados. Com a instala��o do Imperador no Jap�o, o pa�s abriu suas portas ao mundo,
coisa que j� vinha sendo feita pelo x�gun.
O Jap�o sa�a assim do feudalismo.
Jirocho apoiou o Imperador, recebendo indulto de todos os seus antigos crimes e
tornando-se um homem poderoso na comunidade. Diz a lenda que promoveu muitos
melhoramentos na agricultura, pesca e desenvolvimento
da sua cidade natal, Shimizu. Jirocho s� veio a falecer aos 73 anos de idade, em
1893, desacreditando as previs�es do falso monge. Se por um lado Jirocho �
reconhecido e cantado em baladas como o mais
famoso yakuza do Jap�o, a nova leva de historiadores, tentando restaurar a mem�ria
ver�dica do pa�s, baseados em documentos aut�nticos, alegam que Jirocho n�o passava
de um quadrilheiro virulento e opressor
dos agricultores da sua regi�o.
Apesar de Jirocho e eu termos alguns pontos em comum, como a rebeldia, a
agressividade, a embatividade de lutador e o pulso firme do comando, eu n�o me
sentia nem um pouco Jirocho, eu era eu, e as nossas
semelhan�as n�o afian�avam nada �s palavras da bruxa. Eu me contrapunha, rejeitava
veementemente a id�ia de algum fator extraterrestre, metaf�sico ou divino,
considerava a teoria da reencarna��o um besteirol
sem tamanho e jamais conseguiria engolir um monte de merda desses. Restavam os
sonhos, a bruxa, o seu conhecimento do meu passado, era um bocado de coincid�ncias
que s� serviam para confundir o meu racioc�nio,
exceto se a coisa se filtrasse pelo inconsciente das pessoas, dos impulsos. Sob
esse aspecto, eu parecia estar sendo levado a uma determinada dire��o, n�o restava
a menor d�vida.
Eu sabia de muitas coisas, sem nunca ter tido contato com nada que se relacionasse
a elas especificamente, brotavam em mim como um olho-d��gua do solo da minha
mem�ria. A considerar esse encadeamento de
ju�zos, poderia atribuir a origem disso � minha experi�ncia de vidas anteriores em
um passado remoto, era a explica��o mais razo�vel para o fen�meno. Mesmo me
esfor�ando, entretanto, n�o conseguia engolir
a p�lula. Desse modo, resolvi deixar pendente essa quest�o, provis�ria ou
definitivamente, at� ou nunca ter uma resposta adequada para ela. A coisa estava
enveredando por um caminho que n�o me agradava,
um caminho onde o ch�o podia ceder a qualquer momento e me deixar pendurado no
pincel da irracionalidade.
Havia ainda o aspecto de Don Vito Cascio Ferro e de minha m�e virada devassa e
emprenhada pelo diabo ou emiss�rio deste em ritual cabal�stico. Nesse sentido, eu
achava que a coisa estava virando goza��o.
No tocante � minha m�e, ent�o, a coisa se configurava mais inveross�mil ainda.
Pelos antecedentes, achava imposs�vel que pudesse participar de um bacanal diante
dos olhos e com o consentimento de meu pai,
pois sempre fora muito severa consigo mesma e com os outros em assuntos de moral,
era considerada antip�tica e esnobe pelos vizinhos por sua �ndole retra�da, quase
nunca fez amizades dentre as mulheres
dos colegas de meu pai e seus subalternos nas andan�as a que meu pai, como
engenheiro civil, submetia a fam�lia, carregando-a aos lugares mais imprevis�veis e
remotos onde fosse implantar uma estrada ou
ponte.
Tenho uma lembran�a nebulosa dessa �poca, pois n�o t�nhamos paradeiro e n�o consigo
identificar os muitos lugares por onde passamos, mas n�o acredito que essa mudan�a
tivesse se operado somente ap�s o
meu nascimento, tanto que, quando algum amigo de meu pai ia nos visitar, mantinha-
se trancada no quarto at� que este se fosse. Assisti os dois discutindo algumas
vezes por causa desse seu estranho comportamento,
mas nunca alterou sua atitude. Sua �nica companhia permanente eram os livros, os
romances, passava alheada, envolvida com as hist�rias de seus personagens, embora
n�o descuidasse de seus compromissos dom�sticos.
Exercia, entretanto, uma autoridade quase desp�tica sobre meu pai, que se submetia
a ela passivamente, concordando com todas as suas vontades e de forma alguma a
contradizendo em assuntos que estivessem
relacionados � administra��o da casa, mas jamais me pareceu que ele representasse o
tipo do corno manso que aceitaria ser tra�do e humilhado na frente de um grupo
numeroso de subordinados como a bruxa
descrevera.
Quanto ao tal de Jorge, o gigante, meu xar�, guardo uma vaga lembran�a dele. Era um
dos capatazes das obras que meu pai dirigia e o seu bra�o direito na execu��o
desses intermin�veis projetos vi�rios.
Pelo que me consta, o acompanhou por muitos anos, at� quando meu pai, por
insist�ncia da esposa, abandonou essa vida errante, fixando-se em Curitiba e
permitindo, assim, que eu pudesse dispor de uma educa��o
regular. Por essa �poca eu devia ter cerca de 10 anos, e essa decis�o para mim foi
terr�vel, associo-a � minha primeira sensa��o de perda. As frequentes mudan�as de
cidades, �s vezes at� na condi��o de
acampados, em lugares ermos e distantes, de infraestrutura prec�ria, representavam
para mim uma grande aventura cheia de novidades e descobertas, em Curitiba,
realmente, minha vida e a de todos da casa
mudou, nunca mais vi o gigante depois disso, um tipo esquisit�o, de poucas palavras
e que intimidava todo mundo, especialmente a gurizada que �ramos n�s, os filhos dos
oper�rios e funcion�rios da empreiteira.
Ele nos mantinha distante das m�quinas, equipamentos e canteiros de obras
utilizando um rebenque com o qual nos batia sem contempla��o caso cheg�ssemos ao
seu alcance. Quanto a mim, nunca conseguiu atingir,
pois eu me acautelava � sua aproxima��o, tratando de me p�r ao largo. Aqueles em
quem acertava, ficavam com a marca do couro por v�rios dias. Nenhum dos pais,
por�m, teve coragem de ir reclamar a brutalidade
do autor.
J� a bebida, esta sim, lembro, rolava frouxo por l� nos finais da tarde e da
semana, era o �pio de todo mundo. Minha m�e detestava �lcool, n�o suportava nem
cheiro de bebida, motivo de brigas com meu pai,
que volta e meia se embriagava.
Agora, da� a terem participado de um ritual sat�nico e minha m�e vir a ser
desfrutada pelos colegas de meu pai e pelo tal do Jorge havia uma dist�ncia
fant�stica, era forte demais essa hip�tese. O que
n�o deixava, por�m, de ser intrigante, era a bruxa saber de todos esses detalhes,
do acampamento, do gigante. Explicar isso, no entanto, era uma coisa que n�o me
dizia respeito.
Quanto a Don Vito, pelas informa��es que colhi, era um dos organizadores da nova
m�fia italiana, muito diplom�tico e carism�tico, chegavam a dizer que nunca havia
matado ningu�m, exceto um guarda de brigada.
Conseguira, no entanto, mesmo assim, um enorme prest�gio entre os seus pares, sendo
sua mem�ria reverenciada at� os dias de hoje. Don Vito e Jirocho juntos remontando
o banditismo primitivo para a tecnologia
criminal do s�culo XX e XXI, hhuumm, parecia coisa de fic��o cient�fica.
Descontadas as derrapagens de percurso, resultava o fato concreto de eu ter
comprovado as inten��es e o car�ter trai�oeiro de La Rosa. A desfecho id�ntico eu
tamb�m teria chegado, mesmo sem a ajuda da
velha, porque j� detectara os sinais e tomara as provid�ncias cab�veis, seria s�
quest�o de tempo. Por essa feliz coincid�ncia, entretanto, a bem da verdade, as
coisas poderiam ser abreviadas. Fazendo
um balan�o desse incidente, mesmo com relut�ncia, tive que admitir a intimidade que
a velha tinha com o passado e o interior das pessoas, pois, para se chegar a isso,
� necess�rio possuir poderes extrassensoriais
sen�o n�o tem jeito, e isso, de fato, a bruxa demonstrava que tinha, e tive que lhe
tirar o chap�u.
Esse era o saldo positivo, j� o restante deixei no banho-maria das calendas gregas,
suspendendo o ju�zo. Decididamente n�o me preocupo com coisas que n�o tenham a ver
com realidade imediata do contexto
onde estou inserido, ent�o como poderia esquentar com quest�es sobre Bem e Mal?
Para mim, o Mal significava apenas aquilo que contrariava ou limitava a atua��o
humana no dilacerante exerc�cio de viver.
O Mal vinha do Estado, do Poder, que � a exacerba��o m�xima do eu, quanto mais
Poder mais o eu se expande e, via de regra, funciona como um torniquete para todos
os que est�o sob o seu jugo, frustrando
muitos e beneficiando poucos. Quanto ao Bem, tinha uma infinidade de sentidos, quem
n�o considera um Bem tomar Coca-Cola?
N�o, eu n�o estava confuso, e era muito improv�vel que fosse mudar o meu ponto de
vista, n�o podia conceber isso, simultaneamente, por�m, era como se tivessem me
esbofeteado e agora estivesse acordando.
Como se fosse empurrado para a a��o. Sim, eu estava babaqueando, tinha que fazer
uma faxina imediata nas minhas hordas, eu pisava em campo minado, La Rosa era uma
prova tang�vel de que tramavam contra
mim, n�o podia ter mais d�vidas, queria mais o qu�?
JD: A sensa��o esquisita de ter estado o tempo todo com um detalhe do meu futuro
plantado no meu subconsciente, mesmo sem saber do que se tratava, no entanto,
sempre foi uma constante. Acredito n�o ser
o �nico. (risos). S�crates achava ter uma voz que lhe cochichava coisas, que
orientava em parte as suas decis�es. N�o tenho voz, mas tenho sonhos. (risos).
JL:De fato, essa � uma vantagem que a maioria de n�s, pobres mortais, n�o temos.
(risos).
JD: O que posso fazer? Foge da minha al�ada. (risos). Eu me lembro bem de algumas
ocorr�ncias. Aos 7 anos, numa queda, fraturei o antebra�o direito. Por imper�cia
dos plantonistas do HPS, haviam posicionado
mal os ossos, pois s�o dois, ao engessar. N�o podia dar outra coisa, os ossos
colaram fora do lugar. Por ocasi�o da retirada do gesso, detectou-se a falha pelo
Raio X. O antebra�o ficou levemente torto,
os ossos, em vez de formarem uma linha reta, ficaram assim, �, passe o dedo aqui,
Jardel, ainda tenho a marca do erro m�dico, sentiu? O caso foi levado a uma junta
m�dica, que decidiu por uma nova cirurgia
para reparar o erro. Iam serrar o osso bem no ponto do desvio e alinhar
corretamente. Como se percebe, hospital p�blico, desde aquela �poca, j� era fogo,
n�? Na noite anterior ao dia marcado para a cirurgia,
entretanto, sonhei. olha o sonho a�, mais uma vez. (risos) que o m�dico n�o ia
efetuar a opera��o porque, primeiro, ia dar um corte na m�o durante o desjejum
daquele mesmo dia, ao cortar o p�o,
impossibilitando-o de operar por uns dias, e, segundo, porque, com novos exam�s,
ficaria comprovado ser desnecess�rio o tratamento cir�rgico, bastando apenas
fisioterapia. Alegre, comentei o sonho com
meus pais ao acordar. Eles n�o me deram bola, acharam que era fantasia minha para
fugir da situa��o. N�o deu outra. O m�dico atrasou-se e, quando chegou ao hospital,
trazia a m�o enfaixada. Contou a hist�ria
que j� era do nosso conhecimento. O m�dico estava perplexo, pois quase atorou o
dedo de uma das m�os ao cortar o p�o, coisa praticamente inimagin�vel para um
cirurgi�o, n�o � mesmo? Em vista disso, a cirurgia
foi suspensa e marcada nova data. Na verdade, o que realmente causou o adiamento
foi o atraso do m�dico, pois havia uma cirurgia de urg�ncia para logo em seguida do
meu hor�rio que n�o p�de esperar. Nesse
�nterim, por�m, o m�dico solicitou novas chapas de Raio X e resolveu suspender
definitivamente a interven��o cir�rgica, visto os ossos terem se acoplado
firmemente e eu n�o apresentar nenhuma defici�ncia
motora. Estava resolvido o assunto. Ficou apenas essa leve sali�ncia do osso, como
voc� pode perceber, uma deformidade quase impercept�vel com a qual eu poderia
conviver pelo resto da vida sem nenhum problema.
Eles acham solu��o para tudo quando o deles n�o est� na reta, n�o �? Esse sonho,
sim, poderia ser interpretado como o desejo inconsciente de uma crian�a que n�o
quer ser operada, apesar de todos os detalhes
se encaixarem. J� a segunda ocorr�ncia foi por volta dos meus 18 anos, l� por 1948,
quando eu me preparava para ir �s Olimp�adas de Londres. Como lutador de boxe, ia
representar o Paran� e o Brasil, na
categoria meio-m�dio.
JL:Al�m de jogador de futebol, um baita lutador de boxe, hein? Voc� era cheio de
qualidades desde pequeno.
JD: N�o, Jardel, como jogador de futebol n�o me reconhe�o, agora como lutador.
(risos). Veja s�: eu sonhara, uns dois meses antes do embarque, que n�o iria
participar das Olimp�adas, ou melhor, nem sairia
do Brasil porque fraturara uma das m�os, ficando, dessa forma, previamente
eliminado da competi��o. N�o dei a m�nima import�ncia ao sonho e continuei
treinando a fusel. S� redobrei os cuidados para n�o
me contundir. As minhas chances eram muito boas, pois eu tinha tido uma excelente
classifica��o no Brasileiro. Na minha categoria eu era praticamente imbat�vel. Al�m
do mais, essa Olimp�ada era importante
por ser a primeira ap�s a Segunda Grande Guerra, depois da interrup��o. Al�m disso,
eu tinha expectativas de me profissionalizar, etc. Como disse, continuei treinando
intensamente, e, para ser sincero,
nunca mais me lembrei do tal sonho. Poucos dias antes da partida da comitiva
brasileira, por�m, tive um desentendimento em casa com meu pai, por uma besteira,
ele n�o quis me dar dinheiro para comprar
um vidro de vitaminas alegando que a alimenta��o que eu tinha em casa era mais que
suficiente para o meu sustento. N�o sei se voc� sabe como � um pai alem�o sovina?
JL:N�o, n�o sei.
JD: Um alem�o sovina � uma m�o de vaca incompar�vel, n�o tem nada igual.
JL:E o que aconteceu?
JD: Sendo assim, enquanto discut�amos, num �mpeto furioso, em vez de agredir meu
pai, soquei a parede, ao lado dele, quebrando a m�o. Imediatamente me lembrei do
sonho e pensei comigo que eu era um cara
marcado, tipo Caim, sabe? (risos), pois estava perdendo a grande chance da minha
vida.
JL:Essas brigas com o seu pai eram frequentes ou essa em particular foi uma
ocorr�ncia isolada?
JD: Com a chegada da adolesc�ncia, passaram a ser frequentes, sim. Minha m�e, que
tentava abrandar o temperamento truculento que eu apresentara desde pequeno, em
certa ocasi�o a� eu j� tinha uns 13 ou
14 anos , ap�s presenciar uma dessas brigas entre mim e o pai, chamou-me para
conversar. �Jorge, meu filho�, dizia ela, �voc� tem uma raiva condensada dentro de
voc�, um �dio enorme contido. Em dado
momento, cheguei a pensar que voc� fosse pular no seu pai e agredi-lo, tal a f�ria
que voc� estava. Se voc� n�o se esfor�ar para mudar isso, vai causar muito mal �s
pessoas que o rodeiam e a voc� pr�prio,
e talvez voc� seja o mais atingido, o que ainda o salva � que consegue conter o
impulso, mas at� quando?�. Na �poca, lembro bem, fiquei assustado de ouvi-la falar
daquele jeito, me fazia parecer um monstro.
De fato, eu tinha explos�es violentas de c�lera, caso me contrariassem em qualquer
coisa. No momento da f�ria, a vontade era causar um dano irrepar�vel ao oponente,
n�o tinha meio-termo. No mais das vezes,
eu era calmo e bem-humorado, me relacionava bem com todo mundo, tinha muitos amigos
e namoradas e gostava de sexo. S� o pavio � que era um pouco curto. Com a idade, o
pavio foi aumentando, continuava tendo
crises sanguin�rias e vingativas e lamentava n�o ver sangue com mais frequ�ncia,
fosse causado por mim ou por outros. �Voc� precisa canalizar o seu �dio�,
sentenciou minha m�e, �agrida a vida, e n�o as
pessoas�. O melhor canal, no entanto, n�o seria justamente o derramamento de
sangue, a carnificina? O resto, no meu entender, seria apenas paliativo, parar no
melhor da foda. Minha m�e relembrou, para
ilustrar a minha tend�ncia agressiva, do inc�modo que causara ao meu pai quando
andava por volta dos meus 3 anos de idade.
JL:Com apenas 3 anos?
JD: Olha s�: na rua onde mor�vamos, havia dois irm�os com quem eu brincava, o menor
regulava comigo em idade e porte f�sico, o outro era mais velho e mais forte.
Quando eu me desentendia com o menor, o
maior me batia, tomando as dores do irm�o. Ela frisou que eu n�o me queixava nem
chorava nunca, mantendo um sil�ncio cheio de rancor. Ela mesma testemunhou o
moleque mais velho me agredir em v�rias ocasi�es,
chegou a queixar-se para a m�e deles, que n�o tomou nenhuma provid�ncia. Ela falava
e eu ia me lembrando do epis�dio em que um oper�rio deixara sua bicicleta na frente
de uma casa e entrara para falar
com o dono para contratar um servi�o. Eu me acerquei da bicicleta e me pus a tocar
a campainha, nisso os irm�os apareceram, o menor quis fazer o mesmo que eu fazia,
tentando tirar-me do lugar, eu o empurrei,
o maior ent�o me socou, deve ter me atingido no f�gado porque eu ca� no ch�o
contorcido de dor, essa cena ela presenciara da janela e veio socorrer-me. �Voc�
lembra?�, perguntou ela, enquanto se referia
a uma outra ocorr�ncia. �Do caso da bicicleta eu me lembro, do outro n�o�,
respondi. Na vers�o de minha m�e, o oper�rio da bicicleta contratara o servi�o e
iniciou a obra. Na frente da casa, um caminh�o
depositou uma carga de areia para ser usada na reforma. Era ver�o e, manh� cedo, l�
estava eu brincando na areia, esculpindo castelos, bonecos. Mais tarde, os irm�os
surgiram e quiseram entrar na brincadeira.
Foi tudo muito r�pido, de modo que n�o foi poss�vel uma interfer�ncia da parte
dela. Em determinado momento, o menor desmanchou o meu castelo. O peda�o de vidro
que eu usava para alisar a areia, cravei
na face do garoto maior, abrindo uma brecha na carne. Enquanto ele gritava,
apavorado e lavado de sangue, pulei sobre o menor, batendo nele at� cansar, em
seguida, corri para dentro de casa, indo me esconder
debaixo da cama dos meus pais. Foi uma confus�o dos diabos, a dor de cabe�a ficou
com o meu pai, e eu me tornei o her�i da rua, porque ningu�m dali gostava dos
garotos agredidos. Muitos anos depois, uma
tia minha contou que cruzara com o moleque j� adulto em algum lugar e l� estava a
cicatriz marcando a face dele. �Voc� s� tinha 3 anos, Jorge�, dizia minha m�e, sem
conseguir esconder um sorriso de admira��o,
�apenas 3�. Ela queria enfatizar a maldade premeditada da minha a��o, atacara o
maior, em primeiro lugar, para tir�-lo de combate e garantir a agress�o ao menor,
que ficou � minha merc�, totalmente. �Voc�
usou uma estrat�gia, Jorge, com 3 anos de idade�. Enquanto ela me narrava isso, eu
me regozijei intimamente de ter sido t�o esperto em idade t�o tenra. Minha m�e
confessou que se tranquilizara em rela��o
a mim e ao meu futuro quando passei a treinar boxe. Mesmo achando o esporte muito
violento, se conformava, por�m, pelo fato de eu ter achado uma solu��o para o meu
temperamento agressivo. No seu entender,
eu passara a agredir a vida, tal como ela sugerira antes. L�, dentro do ringue,
pelo menos, eu descarregaria parte da minha trucul�ncia, vivendo em paz com os
outros aqui fora, pelo menos em tese. Quando
me tornei um atleta pr�-ol�mpico, a fam�lia ficou orgulhosa de mim, mas a alegria
durou pouco. Depois de me ver esmurrar a parede, ela entendeu que eu n�o mudara em
nada, continuava sendo uma amea�a aos
que me rodeavam. Nessa �poca, e por causa desse incidente, decidi sair de casa,
morar sozinho, ser dono do meu nariz. Arranjei trabalho em seguida e, no mesmo ano,
conheci Judita, resolvendo, dois meses
depois, me casar, apesar da oposi��o de todos, tanto dos parentes dela quanto dos
meus.
JL:Pelo menos, durante um bom tempo, sabemos que essa decis�o atendeu aos seus
prop�sitos.
JD: Acredito que essa agressividade natural do meu temperamento foi que me conduziu
� fascina��o por crimes e mortes. Talvez o reflexo condicionado desse fasc�nio
remonte aos meus 10 anos, quando presenciei
um homic�dio, no interior do estado, num dos paradeiros tempor�rios das andan�as de
meu pai. Um sujeito grandalh�o, forte como um touro, sendo morto por um t�sico, com
uma tesoura. Coisa cheirando � passagem
b�blica do Davi e Golias. O brutamontes encurralou o infeliz contra um muro, ergueu
o bra�o musculoso empunhando um fac�o de l�mina espessa, ia dar de prancha, mas
mesmo assim ia causar um bom estrago
no corpo franzino do pobre diabo. Questi�ncula de d�vida, ningu�m podia crer que
fosse acabar no que deu. O Golias, bebum, cobrava o pagamento de uns vint�ns do
outro. O t�sico, acuado, abaixou a cabe�a
e esticou o bra�o descarnado para a frente, um gesto reflexo de puro terror. Pois
bastou para a tesoura que segurava cravar-se no peito do gigante. Depois se soube,
a utilizara num conserto el�trico para
ganhar uns trocados. Atingido no cora��o, o Golias morreu na hora. Davi escapuliu-
se, com um empurr�o apossou-se da bicicleta de um de n�s, moleques que faziam a
plat�ia, e desabalou rua abaixo, vi tudo
de pertinho, distante a poucos metros, e gostei do que havia visto. Vibrei com a
vit�ria do Davi, um Davi muito prec�rio, caindo aos peda�os, por sinal. O gigante
se chamava Pedro, e era dono de um boteco
onde Davi ficara devendo, d�vida de cacha�a. Pedro, quando s�brio, era um homem at�
gentil. Bastava tomar uns tragos, por�m, para virar bicho. Nessas ocasi�es, exibia
a sua for�a mordendo a boca de um
saco de batatas de cinquenta quilos e carregando-o por v�rios metros, sustentando-o
com seu pesco�o taurino. Volta e meia batia o brim de algum vagabundo. Ningu�m era
p�reo para ele, todos sabiam disso
e o evitavam. A freguesia foi fugindo do boteco, que virara abrigo de moscas.
Estava em um desses dias de maus bofes quando avistou o devedor das pingas
penduradas, entrando na casa defronte, e resolveu
cobr�-lo a qualquer custo. O incidente tr�gico n�o teve grande repercuss�o em mim,
pois a minha �ndole voluntariosa n�o me fazia intimidar com tamanho. Nessa �poca,
j� era bom com os punhos e enfrentava
garotos maiores do que eu e sempre me sa�a bem.
JD: Claro que iremos compor com outros grupos da Ordem, afinal somos todos irm�os
pois temos o mesmo pai e a mesma m�e de origem desconhecida, ou seja, somos os
bastardos da sociedade. Evitaremos sempre
o confronto com outras gangues e organiza��es pois sou contra desentendimentos de
classe, � totalmente contraproducente. A Ordem � a massa do crime. A ACC faz parte
dessa Ordem com muito orgulho. A deten��o
se chama M�rbida. Quem est� na M�rbida � porque falhou em algum ponto do percurso
ou teve azar, � um desafortunado. Todo o esfor�o da ACC daqui de fora ser� tirar o
confrade da M�rbida, custe o que custar.
A M�rbida degrada a condi��o humana, principalmente no Brasil, onde os presos vivem
em condi��es subumanas, sem contar a superlota��o, uma sardinha na lata vive com
mais dignidade. O confrade que sai vai
para a reciclagem, a Refleta, para descobrir onde errou e/ou quais foram as causas
que o levaram at� l�. A partir da� vai trabalhar no sentido de evitar novas
deten��es e aperfei�oar o seu modus operandi,
tanto te�rica como em treinamento de campo. Mas a M�rbida � uma circunst�ncia para
a qual estamos totalmente preparados para enfrentar. S� que o confrade que est� na
M�rbida recebe uma outra denomina��o,
ele � do Passo, � do Passo da Confa (Ca). Confa � a subunidade dos pres�dios onde o
objetivo � a Confraterniza��o dos Amigos. Quem � da (Ca) est� sempre pronto para o
pr�ximo passo pois n�o existe passo
solit�rio todo passo tem antecedente e consequente. E o pr�ximo passo � sempre o
de sair da M�rbida. A ACC, dia e noite, estar� trabalhando para que o Passo da (Ca)
d� o pr�ximo passo certo, ou seja,
saia da M�rbida o mais r�pido poss�vel. Essa sa�da vai acontecer de 3 maneiras: 1)
por medida jur�dica, 2) mediante propina (e aqui se subentende uma cadeia funcional
que vai desde carcereiro at� juiz,
podendo ainda ir mais acima), e, 3) por evas�o. O objetivo � n�o deixar o confrade
mais de um ano na M�rbida, no m�ximo. N�o ser�o economizados nem esfor�os nem
recursos nesse sentido. Nesse quesito s�o
3 os objetivos: curto, m�dio, longo. Objetivo de curto = 3 meses, objetivo de m�dio
= 6 meses, objetivo de longo = 1 ano. A maioria dos confrades consegue sair no
per�odo de curto.
JL:Se a moda pega os pres�dios em vez de superlota��o v�o ter � sublota��o.
JD: S� para voc� ter id�ia do volume de trabalho da CENAJU, mas principalmente da
ASSIJUE, este � um dos nossos departamentos mais sobrecarregados pois atendemos,
al�m dos confrades, os irm�os sem assist�ncia
que requisitam a nossa ajuda. � trabalho que n�o acaba mais.
JL:E esses irm�os de profiss�o e de f� n�o acabam querendo se bandear para a ACC?
JD: N�o estamos conseguindo atender todos os pedidos, mas atendemos dentro do
poss�vel.
JL:N�o h� o risco da ACC inchar demais?
JD: Sempre h� mas o cumprimento do Estatuto � seguido � risca. Temos um dispositivo
bem expl�cito nesse sentido: Onde jogam uns jogam muitos. O princ�pio � o mesmo
para todos. Preencheu os requisitos est�
dentro, ningu�m nessas condi��es fica fora do jogo. (riso)
JL:Mas manter a ACC homog�nea com um n�mero de membros cada vez maior n�o � bem
mais dif�cil, n�o complica ao m�ximo?
JD: �bvio que �, mas um confrade viveu com dificuldades a vida toda, mais uma n�o
ir� desesper�-lo, matamos no peito. Jogada limpa. (riso)
JL:Ent�o a Confraria n�o tem limites de admiss�o?
JD: Na verdade, sim, mas teoricamente n�o, gostar�amos mesmo que n�o tivesse. Estou
trabalhando nesse sentido para criar mecanismos que sustentem uma organiza��o
hiperinchada. Esperamos continuar admitindo
sempre, cada vez mais. Na ACC n�o existe desemprego. (risos)
JL:Isso n�o � meio ut�pico e demag�gico?
JD: Esses termos que voc� usa n�o t�m vez na ACC. Nossos objetivos s�o bem
definidos. Pretendemos nos tornar uma grande organiza��o de poder tanto pol�tico
como econ�mico. Em breve estaremos t�o fortes
que nada de importante acontecer� no Brasil sem que tenhamos uma boa parcela de
participa��o.
JL:Tu me d�s a id�ia de que os pol�ticos est�o l� apenas para negociar em favor de
alguns grupos que se digladiam pelo poder nos bastidores.
JD: Depois de tudo o que falamos at� agora voc� ainda me pergunta isso, Lundi?
Daqui a pouco vou te jogar um balde de �gua gelada, meu. � um tipo de ingenuidade
imperdo�vel para um jornalista que se preze.
N�o me fa�a duvidar de voc�, Lundi, nessa altura do campeonato. (riso)
JL:Na verdade estou perplexo em saber que tudo aquilo em que acreditei nesses anos
todos, como democracia, �tica, justi�a, o escambau, se foi pelo ralo da hist�ria.
Quer dizer que n�o resta mais nada de
nobre para se fazer na vida do que ganhar dinheiro ilicitamente e mexer com os
pauzinhos por baixo dos panos? S� isso � que conta?
JD: Mon cher Lundi, nobreza de prop�sitos, se � que alguma vez existiu, da parte
dos poderosos, � algo que j� nasceu morto. Lembra do que o Rosseau falou acerca do
in�cio da propriedade privada? Quando
um espertinho cercou um terreno e disse: Isto � meu, e todos os que estavam � sua
volta concordaram? S� que isso foi apenas o in�cio duma avalanche de acontecimentos
de esperteza que continuou a suceder.
Hoje os pol�ticos metem a m�o no dinheiro p�blico, dizendo: Isto � meu, e todo o
mundo continua concordando. Fazem o mesmo que aquele personagem primevo de Rosseau,
n�o mudou nada at� hoje. A ACC � uma
das vozes discordantes e responde: Isto � teu mas � meu tamb�m, ou se joga ou se
esculhamba, Ouseje.
JL:Esse lema a servi�o de um partido pol�tico garanto que por si s� faria uma
revolu��o. (riso)
JD: Reconhe�o que essa � uma observa��o muito profunda. (riso) O ing�nuo est� se
redimindo. (riso)
JL:Mas continuemos: uma coisa que eu gostaria muito de saber � se al�m da UNICRIM
e das CREABS, onde tudo efetivamente come�a, embora com certa tend�ncia os
confrades t�m acesso a outros meios de ensino
e aprendizagem, como escolas e faculdades oficializadas?
JD: �bvio, o confrade, em princ�pio, n�o abdicou de ser cidad�o, se paga impostos
logo continua usufruindo de tudo o que tem direito, est� dentro da jogada. O
confrade n�o � nenhum ET ou coisa que o valha,
� uma pessoa normal como qualquer outra: ama, odeia, estuda, se forma, casa,
separa, consome, tira f�rias, etc. Confrade faz bacharelado, licenciatura,
mestrado, doutorado, p�s-gradua��o, MBA, como qualquer
estudante de n�vel superior.
Zezinho era o �nico que sabia do plano, embora parcialmente, porque o executaria
comigo. Zezinho era um rapaz que estava mostrando um grande talento para as
sigilosas tarefas de bastidores. Quando queria
era capaz de passar despercebido em qualquer ambiente, como um camale�o, adaptando-
se ao cen�rio onde atuava. Eu dependia quase que exclusivamente dele para tornar a
opera��o um sucesso. Se me tra�sse,
por�m, eu estaria liquidado e praticamente toda a organiza��o sucumbiria comigo. Eu
n�o gostava de ver tanto poder concentrado nas m�os de um elemento do qual eu n�o
tinha uma total abrang�ncia psicol�gica.
At� agora ele havia correspondido satisfatoriamente a todas as miss�es que tanto eu
quanto Mauro Gigante lhe atribu�ramos. Mas eu o conhecia pouco ainda, apesar de
estar comigo e depois na ACC desde aquele
dia em que lhe dei carona, safando-o de seus perseguidores. S� ultimamente � que eu
o trouxera para perto de mim e t�nhamos uma conviv�ncia mais estreita. Era um cara
muito fechado e n�o deixava transparecer
emo��es. N�o era bobo, devia estar a par da responsabilidade que tinha nas m�os e
de quanto iria crescer no meu conceito se fosse bem sucedido. Devia, ao mesmo
tempo, avaliar a fortuna que um inimigo meu
lhe pagaria para me trair. Eu estava ficando paran�ico de novo, desconfiando at� da
minha pr�pria sombra. Na verdade eu conhecia muito bem Zezinho e o tamanho da sua
lealdade. O que me fazia duvidar dele
e de todos os que me rodeavam era a areia movedi�a da paran�ia maldita que n�o me
largava mais.
Mas n�o havia outro procedimento para garantir a seguran�a de todos n�s. N�o,
Zezinho estava tendo a grande chance da vida dele, n�o ia querer jog�-la pela
janela. Mas eu precisava ter certeza disso, certeza
absoluta.
Vou ter que fazer uma mudan�a de �ltima hora, Zezinho , eu lhe disse com toda a
naturalidade que a circunst�ncia exigia para n�o deixar que ele suspeitasse de
nada, muito menos de que eu poderia estar
desconfiando dele. Talvez eu n�o possa ir com voc�, Terneir�o vai no meu lugar.
O senhor � que determina, o que decidir pra mim � o certo, tou aqui pra batalhar.
Voc� tem certeza que Carl�o ir� visitar a amante e que apenas dois capangas v�o
estar com ele?
Absoluta, s� se fizerem altera��o de �ltima hora mas n�o acredito nisso, � o que
ele vem fazendo praticamente todos os dias deste �ltimo m�s. L� pelas onze toma o
rumo do ap� da mo�a.
Ent�o voc� vai l� com o Terneir�o e faz o servi�o, tem alguma d�vida?
D�vida nenhuma, n�o senhor.
Vou avisar para o Terneir�o encontrar voc� quinze para as onze.
Ent�o j� posso ir indo?
Vai e n�o desgruda do p� do morto.
Zezinho sorriu gelidamente e se foi. N�o deixara vazar ind�cio de nada e eu n�o sou
de perder detalhe nenhum de comportamento. O bicho era precavido, mas pelo que eu
conhecia de psicologia de vida Zezinho
poderia ser considerado um homem da minha total confian�a. Inclusive deveria
aproveit�-lo melhor na organiza��o depois dessa manobra e quando essa fase negra
fosse encerrada, ia tratar de promov�-lo. Arrependi-me
de ter desconfiado dele mas eu n�o podia correr o risco da d�vida, a m�nima.
Zezinho vinha seguindo La Rosa nas �ltimas semanas o tempo todo e me fazia um
relat�rio di�rio dos seus passos. Dia sim, dia
n�o, La Rosa avistava-se com Carl�o. Um informante nosso infiltrado no reduto de
Carl�o tamb�m me passava um relat�rio at� dos hor�rios em que este peidava. Eu
cruzava esses dados e tirava minhas conclus�es.
A agenda de Carl�o n�o tinha nada de excepcional que n�o fosse rotina, exceto a
visita di�ria � sua vira��o. Batia ponto sempre no mesmo hor�rio. Ia dar a sua
bimbadinha de galo numa garota espetacular
pela qual babava. As m�s l�nguas diziam que se ela lhe pedisse para ficar de quatro
para montar ele n�o recusaria. �s vezes os caras exageram um bocado mas n�o sei,
n�o. Caso n�o houvesse nenhum contratempo,
e o tes�o continuasse falando mais alto, seria f�cil peg�-lo de jeito.
�s dez e trinta fui encontrar-me com Zezinho. Ele n�o demonstrou surpresa ao me ver
descer do t�xi completamente travestido ao inverso da minha apar�ncia habitual. Ele
estava concentrado na sua miss�o,
postado ao volante do Opala roubado tempos atr�s, na dobra da esquina.
O homem j� deve tar chegando , disse ele enquanto eu me acomodava ao seu lado.
Ficamos em sil�ncio observando o movimento da entrada do pr�dio e dos carros que
circulavam pela rua. Carl�o deveria surgir pelo lado oposto ao nosso. De onde
est�vamos posicionados s� ir�amos v�-lo quando
descesse do carro para entrar no pr�dio. Dois minutos antes das onze o Mitsubishi
vermelho freou diante do edif�cio. Carl�o e dois seguran�as deixaram o carro e
encaminharam-se para a porta de entrada
sem interrup��o. Teriam de percorrer uns dez metros. Mal avistando o carro de
Carl�o Zezinho adiantou o nosso de modo a cortar a frente do Mitsubishi que j� se
movimentava para sair dali. O sucesso da
opera��o dependia da nossa presteza. Eu pulei pra fora, apoiei a pistola no toldo
do Opala mirando a cabe�a de Carl�o. Disparei. Zezinho, em sincronia, abriu sua
porta e saiu fazendo fogo com sua metralhadora
contra o motorista do Mitsubishi que j� se co�ava em busca da sua arma. Intu� todos
esses movimentos num relance, os breves instantes em que atravessar�amos o carro na
rua e desc�ssemos seriam suficientes
para alertar os reflexos de Carl�o e seus capangas. Suas cabe�as e corpos giravam
para o nosso lado a fim de se inteirarem do que estava rolando. Carl�o teve a sua
t�mpora arrebentada pelo meu tiro antes
que tivesse tempo de esbo�ar qualquer rea��o ou mesmo entender o que se passava.
Fiz outro disparo, quase simult�neo ao primeiro, e acertei-o no pesco�o. Passei, a
seguir, a me ocupar do seguran�a negro
que j� conclu�ra a tor��o do t�rax e retirava sua m�o de dentro do casaco com a
pistola autom�tica. Atingi-o entre os olhos e a meleca jorrou vermelha, num
esguicho, para o lado oposto. Zezinho, com igual
rapidez, tivera tempo de se reposicionar e disparar uma rajada no terceiro elemento
que, atingido em v�rios pontos, despencou sobre os corpos dos companheiros ca�dos
sem tempo de usar sua arma. Toda sequ�ncia
n�o durou mais que poucos segundos, sem nenhum disparo da parte contr�ria. Zezinho
sem hesita��o correu agilmente at� o pequeno volume de corpos amontoados no ch�o
ensanguentado e tornou a disparar sobre
suas cabe�as para prevenir a eventualidade de estarem usando coletes � prova de
balas. Era uma provid�ncia desnecess�ria mas que revelava o seu temperamento
perfeccionista, n�o queria ter arrependimento
de que o servi�o n�o fora bem executado. Entrementes, eu fazia uma varredura �
nossa volta tentando detectar alguma ponta solta, afora alguns expectadores muito
distantes que focaram a vista na nossa dire��o,
mas sem possibilidade de guardarem qualquer detalhe significativo. Apenas o zelador
e duas velhotas no hall do pr�dio em que Carl�o ia entrar testemunharam o epis�dio.
Mas, em p�nico, haviam deitado no
ch�o para se protegerem, cobrindo as cabe�as com as m�os, de modo que seus
depoimentos seriam confusos, quase in�teis. Percebi uma janela se fechando. Zezinho
retornou ao volante do carro encontrando-me
j� instalado ao seu lado. Deu r�, os pneus guincharam, manobrou com per�cia e na
passagem avistei o motorista do Mitsubishi exposto atr�s do para-brisa quebrado
coberto de sangue e cacos de vidro. Zezinho
pegou a transversal imprimindo o m�ximo de velocidade ao carro. Mirei-o de vi�s
para captar a sua rea��o, estava s�rio, compenetrado na condu��o do carro,
mergulhado em cisma, decerto orgulhoso por ter
participado de uma opera��o com o Chef�o. T�nhamos feito um bom trabalho. Dez
minutos depois Zezinho estacionou o Opala numa garagem de aluguel e trocamos para
uma perua zero quil�metro recentemente adquirida
em nome dum laranja e que nunca fora usada. Depois de eu me desfazer dos paramentos
do disfarce, colocamos bon�s do Coxa e fomos ao encontro de Terneir�o e dos outros
encarregados de dar sumi�o nos l�deres
dos bicheiros cariocas. Eu mesmo liguei dum orelh�o para o ap�. Terneir�o me disse
que estava tudo ok, que o servi�o estava feito.
S� t�vamos preocupados com a sua demora, Chefe.
Furou um pneu do nosso carro , eu disse.
Ele riu, ir�nico. Terneir�o e os outros desceram e ocuparam o ve�culo que os
aguardava. Fiz nova liga��o, desta vez para o n�mero especial do QG. Ao terceiro
toque, quando o sinal mudou para ocupado, me
assegurei que tudo tinha idos pelos ares e que no lugar da sede da ACC n�o restava
sen�o um enorme buraco. Em breve uma multid�o estaria fechando a rua, dando
trabalho extra � pol�cia. E quanto aos rep�rteres
de Curitiba teriam mat�ria abundante por um bom tempo.
VIIIVVV�������������!!!
Estiquei os meus bra�os para o alto. Eles tinham finalmente entendido o meu recado.
E tamb�m o de Darcisinho. Desci para o meio deles, misturando-me com os meus
amigos, os meus irm�os, os meus s�cios.
Eu apertava m�os, recebia abra�os. Formavam-se filas para me cumprimentar. Agora,
�ramos um corpo de milhares de m�os, em breve, milh�es, unidas para mudar os rumos
da vida no planeta.
No meio da multid�o, senti um toque na minha m�o mutilada, envolvendo-a. Eu
conhecia aquele toque m�gico, sabia de quem era. Ela ficou segurando a minha m�o
at� que o �ltimo convidado tivesse se retirado
para o lado de fora do pavilh�o para assistir as solenidades do nosso casamento. S�
a�, ent�o, nos viramos, num sincronismo de passo de dan�a ensaiado, ficando cara a
cara, respira��o com respira��o, olho
mergulhado no olho.
Nosso olhar ia t�o fundo que enxergamos um a alma do outro.