10 Sobre o Tempo e A Histã Ria Na Filosofia Brasileira
10 Sobre o Tempo e A Histã Ria Na Filosofia Brasileira
10 Sobre o Tempo e A Histã Ria Na Filosofia Brasileira
Sumário
Referências...................................................................................................................101
INTRODUÇÃO
A maior transformação operada pelos costumes novos é em relação ao tempo. Enquanto a Idade
Média mergulhava o seu conceito de vida na ausência de tempo, prolongando-a até a vida eterna
(“quando não haverá mais tempo” – no dizer de Dostoiévski), o mundo novo divide o tempo e o
conta avaramente. (Andrade, 1978, p. 159)
Está inventado o relógio mecânico. A primeira grande figura de burguês, o comerciante Alberti de
Florença, escrevia: “Quem não perde tempo, tudo consegue e quem sabe trabalhar o tempo é
mestre do que quiser”. (Andrade, 1978, p. 159)
Mas por toda a parte, o relógio mecânico inaugura a civilização da máquina que é a do trabalho e
do tempo contado. (Andrade, 1978, p. 159)
No entanto, é na Idade Média que deita raízes a era do trabalho. Nela se insere a criação do tempo
medido. (Andrade, 1978, p. 160)
Referências
Se alguém pergunta “para que serve a filosofia”, pode-se dar uma resposta realista
– “ela não serve para nada” ou simplesmente ignorar a pergunta ironicamente pensando:
“ela não serve para quem fez a pergunta”. Tal como o canto do pássaro-preto (também
conhecido como assum-preto ou Gnorimopsar chopi), as Bachianas Brasileiras n º 2 de
Heitor Villa-Lobos ou a beleza da Noite estrelada sobre o Ródano de Vincent Van Gogh,
a filosofia felizmente não serve para nada. A roupa que vestimos ou a chave que usamos
servem tão somente enquanto cobrem decentemente o corpo ou está apta para consertar
um aparelho. Se não cumprem mais suas respectivas funções, nem a roupa nem a chave
servem para mais nada e, portanto, estão na hora de serem recicladas. Os instrumentos
úteis tem agora uma obsolescência programada, tal qual o celular que se torna não
atualizável em dois ou três anos. O corpo humano enquanto trabalhador braçal também
se tornou inútil, por isso obsoleto para a indústria 6.0. A automação industrial produz em
maior quantidade e com maior precisão o que o corpo humano produz a duras penas e
com muitas falhas. De novo, se a pergunta “para que serve” for aplicada pela indústria
6.0 ao corpo humano, a resposta será invariavelmente a mesma que damos sobre um
celular ou computador que não se conecta à rede wifi: não serve para nada. Nem por isso
admitimos que o simples fato de termos sido despedidos do trabalho, devemos ser
considerados inúteis. O corpo humano não entra na ordem da serventia tal como um
celular, uma peça de roupa ou uma chave velha.
Isso se deve, em primeiro lugar, à crença que ainda alimentamos sobre a possível
importância do humano no mundo. Somos narcísicos demais para admitir a própria
obsolescência. Então, o jeito é sustentar a autoilusão de que o ser humano continua como
um “dispositivo fundamental” na dinâmica do mundo. Ele constitui assim uma espécie de
finalidade autorreferente ou autocomplacente. Admitimos que é melhor não sucumbirmos
à tentação do suicídio imediato. Assim, o ser humano participa do reino dos dispositivos
com finalidade autorreferente e autocomplacente que se legitima pelo próprio narcisismo.
O reino das coisas – a roupa, a chave ou o celular – se legitima apenas pela utilidade. Não
há como justificar a necessidade de guardá-los quando não são mais úteis. No melhor dos
casos, os encaminhamos para reciclagem ou, simplesmente, poluímos o mundo com o seu
descarte. Resta considerar a inutilidade do reino estético e/ou ético – o canto do pássaro-
preto ou as Bachianas de Villa-Lobos ou a beleza da Noite estrelada sobre o Ródano de
Van Gogh – que não se legitimam nem pelas razões próprias aos reinos da autorreferência
humana nem pela utilidade prática. O que é fundamental no reino estético e/ou ético é
justamente sua inutilidade, a impossibilidade de utilização e instrumentalização prática.
A beleza do canto da ave, o encanto da melodia ou o fascínio da pintura para nada
servem. É graças à sua inoperatividade, inutilidade e improdutividade que se tornam de
máxima importância para a percepção humana. Qualquer objeto do reino das coisas serve-
nos apenas enquanto é novidade, mas logo se torna repetida e perdemos o encanto. No
reino da estética, não há serventia – nem operação, nem utilidade, nem produtividade –
e, por isso essas realidades atravessam o tempo e apresentam um vislumbre da eternidade.
Não interessa qual seja o pássaro-preto que ouvi, nem importa que Villa-Lobos tenha
morrido a tanto tempo (1887-1959), nem que Van Gogh (1853-1890) jamais tenha
pensado no Brasil. No reino estético, importa o que a beleza provoca naquele que a
observa. De forma equivalente, a filosofia não serve nem ao reino da autorreferência
humana nem ao reino das coisas para uso prático. A filosofia é necessariamente inútil. A
obra produzida por ela aplica-se exclusivamente à capacidade de refinar estética, ética ou
reflexivamente o ser humano. Em qualquer momento que se tornar prática ou operativa,
a filosofia estará completamente destituída de sua identidade. Sua operação fundamental
é suscitar no ser humano a certeza socrática – só sei que nada sei – ou seja, evidenciar a
ignorância humana e os limites do conhecimento científico. Com isso, não se menospreza
a obra humana, apenas a situa dentro do reino da falibilidade e finitude humana.
Nesse reino da falibilidade e da finitude, reconhecemos que toda obra humana está
condicionada à irrepetibilidade, irreversibilidade e irretratabilidade. Tudo o que se passa,
não retorna jamais sob a mesma condição nem podemos retornar ao segundo que passou
(t0) e que agora já encontra ultrapassado (t1) tal como pensou Crátilo: “Heráclito por ter
dito que não é possível banhar-se duas vezes no mesmo rio: Crátilo pensava não ser
possível nem mesmo uma vez” (Aristóteles, Metafísica IV, 5, 1010a13-15). A
sucessividade irrepetível do tempo consagra sua irreversibilidade: o tempo inicial (t0) ou
aquele tempo que o sucedeu (t1) já estão irreversivelmente no passado, pois nos
encontramos em um tempo à frente (t2). E à medida que se somam a irrepetibilidade e a
irreversibilidade, podemos compreender que o tempo é irretratável. Tudo o que acontece
ou deixa de acontecer, eterniza-se. O que foi feito está eternizado na sua consequência. O
que não foi realizado, também já está fixado na inatividade irretratável. O moribundo não
socorrido, morreu e jamais voltará a viver.
busca-se um “sentido do ser” ou disso que somos no mundo: uma das formas de construir
algum sentido para o ser ou para si mesmo, encontra-se na narração do fluxo do tempo,
vale dizer, narrar a história do tempo ou eternizar o átimo de tempo que se chama instante.
É nesse átimo de tempo que nomeamos agora (o nûn de Aristóteles) que se quer
um caminho para fora do fluxo eterno do esquecimento. Estamos submersos no mar do
devir ou, segundo a expressão de Heráclito (DK fr. 12), não somos os mesmos que entram
no mesmo rio, nem somos os mesmos a cada instante, somos e não somos mais os mesmos
(DK fr. 49a). O fluxo contínuo do tempo – pânta rhei – não admite permanência nem ser
algo sob a mesma forma. Retomando a intuição heraclitiana, Nietzsche nomeou o “portal
do instante”, o tempo chamado agora, como a encruzilhada onde se tocam dois destinos
sem união (Assim falou Zaratustra, parte III, xlvi, 2 A visão e o enigma): “esta rua larga
que desce, dura uma eternidade; e essa outra longa rua que sobe: é outra eternidade”. A
saber, a rua que desce é o passado completamente inacessível e, a rua que sobe, é o futuro
ainda não acessível a qualquer experiência. Com isso, Nietzsche reforça a ideia que
estamos no fluxo do presente, antecedidos e sucedidos por duas eternidades (o passado e
o futuro) incomunicáveis com o agora (o presente). O que resta é o mar do devir, a fruição,
o agora.
Imerso no fluxo contínuo do tempo, mergulhado no mar do devir, perdido neste
tempo chamado agora, atravessando constantemente o portal do instante, o ser humano é
o filho do tempo em busca desesperada por eternidade, constância, estabilidade e repouso.
A questão que se impõe nessa condição é aquela sobre a capacidade de suportar com
lucidez e sagacidade o mar do devir sem antes nem depois, sem porto nem praia à vista.
De um lado, vemos Heráclito e Nietzsche rindo de quem quer parar o fluxo do tempo ou
de quem quer estagnar o processo de oxidação celular; de outro, enxergamos perplexos o
desejo de escapar da fruição que devora o tempo e que conduz tudo ao silêncio do passado
e à inacessível eternidade do ontem, bem como veta o acesso antecipado ao segundo de
glória que se chama amanhã. Somos filhos do tempo habitados por um desejo contínuo
de eternidade: sonhamos com o elixir da eterna juventude, desejamos a imortalidade com
a consciência continuada do presente e buscamos o reconhecimento de si pelo outro no
amanhã sem fim. Contrariando esse desejo de eternidade, estamos mergulhados no tempo,
no fluxo da finitude, no curso da falibilidade, no mar do devir. É nesse ponto que emerge
a pergunta pela possibilidade de um ser eterno bondoso que nos salve do esquecimento.
Um ser que seria capaz de conservar ao menos nossa consciência depois do instante que
a morte pesar sobre nossos olhos. Queremos uma eternidade conscientes do presente que
agora desfrutamos, sem dores nem castigos, apenas com o prazer por vir. Contrariamente,
o que se apresenta ao conhecimento que temos do mundo, é a certeza do fluxo inexorável
do tempo que tudo conduz ao fim e ao silêncio. Por isso, choramos os mortos como uma
perda irreversível e uma saudade que não terá fim. Queremos eternizar o que amamos. É
justamente nessa encruzilhada da certeza da finitude temporal e do desejo de eternidade
que a pergunta heideggeriana deve ser retomada: o tempo é o horizonte último do ser?
Para esboçar a busca de resposta à questão, faremos dois movimentos
argumentativos: no primeiro, situareemos a condição da filosofia como foi recebida da
herança tardia medieval através do ensino lusitano: apresentaremos algumas notas sobre
a concepção de filosofia como os portugueses a transmitiram na segunda escolástica ou
escolástica tardia (século XVI ao XIX); no segundo, apresentaremos algumas notas sobre
a noção de filosofia presente na Base Nacional Comum Curricular (BNCC: Brasil, 2017),
uma vez que é a normativa para o currículo de ensino filosófico secundário em curso no
Brasil.
É, entretanto, na Teologia que essa autoridade tem sua maior força, pois aí ela é inseparável da
verdade e só a conhecemos por aquela – de modo que para dar total certeza sobre os assuntos mais
incompreensíveis à razão, é suficiente mostrá-los nos livros sagrados (assim como, para mostrar a
incerteza das coisas mais verossímeis, basta mostrar que elas não estão lá contidas); pois, como
seus princípios estão acima da natureza e da razão, e, sendo o espírito humano muito fraco para lá
chegar por seus próprios esforços, não pode atingir essas compreensões elevadas se não for levado
até lá por uma força onipotente e sobrenatural.
O mesmo não ocorre com os assuntos que caem sob os sentidos ou sob o raciocínio: aqui a
autoridade é inútil; só a razão pode conhecê-los. Eles possuem seus direitos separados:
primeiramente, uma [a autoridade] possuía toda vantagem [no campo teológico]; aqui, a outra [a
razão] reina, por sua vez. Mas como os assuntos deste tipo [do domínio da razão] são proporcionais
ao alcance do espírito, ele encontra total liberdade de aí avançar; sua fecundidade inesgotável
produz continuamente e suas invenções podem em conjunto ser ininterruptas e infinitas... [lacuna].
Escritura e dos Patriarcas”. Cada dimensão do conhecimento opera dentro de uma forma
específica de validação da verdade: para a teológica, a autoridade; para a sensível, o
testemunho; e para o conhecimento, a demonstração racional.
A perícia da inteligência está em não tentar sobrepor os procedimentos específicos
de uma determinada dimensão sobre o objeto específico de outra. Os limites epistêmicos
do discurso equivalem aos limites específicos do conhecimento: a autoridade interessa ao
universo da dimensão teológica; o testemunho funciona dentro dos limites da atestação
de uma experiência; e a racionalidade lógico-demonstrativa opera dentro dos limites do
conhecimento. Porém, não há consenso quanto à admissão da perda de validade ou do
não-reconhecimento de uma dimensão do saber para além dos seus limites. Explicitemos.
As revoluções do mundo moderno – a passagem do mundo fechado ao universo
infinito ou revolução copernicana, a ruptura da imagem do mundo e da humanidade com
a expansão produzida pela invasão do Novo Mundo1, o advento da racionalidade
empírico-matemática em detrimento do princípio de autoridade, e a perda do controle do
discurso teológico à medida que a imprensa permitiu a assimilação individual das
Escrituras – conduziram à perda da permanência e da segurança do mundo, a saber, à
derrocada do princípio de autoridade (Arendt, 2014, p. 132). A crise da autoridade como
princípio de organização social conduziu à ruptura da tradição, porque aquela depende
diretamente desta. A autoridade baseia-se na transmissão que os ancestrais ou pais de uma
civilização delegam aos seus descendentes. Sem a transmissão (traditio) não há
reconhecimento da autoridade do sucessor, por isso a autoridade dentro das sociedades
tradicionais acontece por sucessão e não, por eleição (Arendt, 2014, p. 163). A autoridade
ancestral investe o sucessor permitindo que ele desempenhe um poder legítimo dentro
dessa sociedade e, ao mesmo tempo, veta o acesso ao poder para qualquer outro situado
fora da linha sucessória ou não descendente dessa ancestralidade. O fundamento dessa
autoridade situa-se tanto no tempo imemorial dos antepassados quanto no princípio de
hereditariedade e transmissão do saber (a tradição). Com o fim da época medieval e o
advento da modernidade, o princípio de autoridade entrou em crise e, metaforicamente, o
mundo perdeu sua estabilidade (Arendt, 2014, p. 187): “viver em uma esfera política sem
autoridade nem a consciência concomitante de que a fonte desta transcende o poder e os
que o detêm, significa ser confrontado de novo, sem a confiança religiosa em um começo
1
Revisar as menções à América Latina trocando tudo para Abya Yala ou Abiayala[1] é uma
denominação histórica do continente americano na língua kuna, que significa "terra em plena maturidade"
ou "terra de sangue vital".
Aristóteles, no lugar citado, exprime-se segundo a opinião dos Pitagóricos que, opinando ser o mal
uma certa natureza, ensinavam que o bem e o mal são gêneros. Pois, Aristóteles costuma sobretudo
nas obras de lógica, pôr exemplos que eram prováveis no seu tempo, segundo a opinião de alguns
filósofos. Ou também se pode responder que, como diz o Filósofo, a primeira contrariedade é o
hábito e a privação, porque essa contrariedade mantém-se sempre em todos os contrários, por ser
sempre um deles imperfeito em relação ao outro; assim, o negro em relação ao branco, o amargo
em relação ao doce. (Tomás de Aquino, Suma teológica, parte I, q. 48, art. 1, resposta à 1ª objeção)
Aquino. Ele cita Agostinho 3.077 vezes, mas principalmente como teólogo e sem medo
de contradizê-lo. As 2.982 menções a Aristóteles são majoritariamente positivas e perde
apenas para as referências à Escritura, 4.291 menções. Daí, o Estagirita é mencionado no
topo da cadeia argumentativa tomasiana, consolidado, por isso uma figura de autoridade.
O principal resultado do reconhecimento dessa autoridade foi transformá-lo em
um marco intemporal ou a-histórico da “verdade filosófica”. Isso se na publicação do
Ratio Studiorum (1599) como guia pedagógico jesuítico que prevaleceu nos Países
Ibéricos sobretudo, até o fim do Padroado e, no caso do Brasil, até cerca de 1890. As
autoridades de Aristóteles e Tomás de Aquino foram transformadas em marcos
atemporais no pensamento filosófico e teológico inaciano. Não por acaso, o Ratio indica
“como seguir Aristóteles. Em questões de alguma importância não se afaste de
Aristóteles, a menos que se trate de doutrina oposta à unanimidade recebida pelas escolas,
ou, mais ainda, em contradição com a verdadeira fé” (Franca, 1952, p. 159). Note como
a autoridade dele permanece inconteste, escusada apenas se contrariar a verdadeira fé que,
por sua vez, também está alicerçada no argumento de autoridade. Por sua vez, além de
Aristóteles, os jesuítas habilitam também uma autoridade teológica (Franca, 1952, p.
159): “De Santo Tomás, pelo contrário [faz exceção aqui a Avicena, Averróis, os
Alexandristas e autores infensos ao cristianismo], fale sempre com respeito; seguindo-o
de boa vontade todas as vezes que possível, dele divergindo, com pesar e reverência,
quando não for plausível a sua opinião”. De onde se seguem as autoridades de Aristóteles
e Tomás de Aquino como os nomes irretocáveis na filosofia e teologia a partir do primeiro
século da segunda escolástica. Durante todo esse período, os dois autores tiveram ampla
repercussão filosófica e teológica, sobretudo entre os inacianos e, no século passado,
quando se decaia tal reconhecimento, o Papa Pio XI fez questão de reafirmar a autoridade
de Tomás de Aquino no seu Studiorum Ducem 11 (a 29 de junho de 1923): “não só como
Doutor Angélico, mas também como Doutor Comum e Universal da Igreja (non modo
Angelicum, sed etiam Communem seu Universalem Ecclesiae Doctorem)”. Afinal, o que
está em jogo ao afirmar a autoridade?
A defesa de uma autoridade justifica o valor intemporal das verdades proclamadas
pela autoridade em questão. O resultado é, por um lado, a manutenção do discurso dentro
dos mesmos termos afirmados naquele momento pelo autor reconhecido como
“autoridade” e, por outro, a ruptura do fluxo temporal da investigação filosófica: se
Aristóteles ou Tomás de Aquino fosse “a autoridade” até o presente, nada mais precisaria
finitude – histórica da verdade. E, para entender como tal compreensão funciona na atual
configuração do ensino médio, analisemos a definição da filosofia na BNCC.
A palavra filosofia aparece 26 vezes nas 600 páginas da BNCC: sendo 20 no plural
e 6 no singular. A primeira ocorrência plural destaca a necessidade de o ensino religioso
efetuar-se “sem desconsiderar a existência de filosofias seculares de vida” (Brasil, 2017,
p. 436). Depois seguem-se 19 referências às “filosofias de vida” quase sempre ladeadas
de adjetivações como “tradições, conhecimentos e movimentos religiosos e filosofias de
vida”, portanto sem identificar nenhum conteúdo preciso para essas filosofias.
As ocorrências no singular são mínimas, sendo que a primeira enquadra a filosofia
dentro das ciências humanas e sociais aplicadas, ao lado da história, geografia e sociologia
como uma das áreas de competências específicas do Ensino Médio (Brasil, 2017, p. 33).
Depois disso, o termo retorna na seção sobre “A progressão das aprendizagens essenciais
do Ensino Fundamental para o Ensino Médio”, no qual apresenta “[n]o Ensino Médio,
com a incorporação da Filosofia e da Sociologia, a área de Ciências Humanas e Sociais
Aplicadas propõe o aprofundamento e a ampliação da base conceitual e dos modos de
construção da argumentação e sistematização do raciocínio, operacionalizados com base
em procedimentos analíticos e interpretativos” (p. 472). A filosofia nesta passagem conta
como parte da construção argumentativa e sistemática do raciocínio operada pela análise
e interpretação nas ciências humanas e sociais. Nesse sentido, cabe destacar que filosofia,
nessa passagem, nada tem a ver com filosofias de vida nem com visões de mundo difusas,
menos ainda com tradições, conhecimentos e movimentos religiosos. A filosofia funciona
como construção argumentativa e sistemática do raciocínio, e mais que isso, através de
procedimentos analíticos e interpretativos.
A terceira referência provém da definição do currículo da formação geral básica
sobre as aprendizagens essenciais na BNCC (Brasil, 2017, p. 476) onde a sociologia e a
filosofia constituem o oitavo eixo fundamental. Na sequência, a quarta referência
enquadra-se nas ciências naturais onde aparece a “história e filosofia da ciência” (p. 556)
enquanto formas de conhecimentos conceituais integradas nas ciências naturais. A
penúltima ocorrência do termo encontra-se na área 5.4. dedicada às Ciências Humanas e
Sociais Aplicadas onde Filosofia, Geografia, História e Sociologia são descritas como
aprendizagens essenciais “sempre orientada para uma formação ética” (p. 561). Eis o que
se diz até o presente nesse texto programático, restando a última referência (p. 563):
“definir o que seria o tempo é um desafio sobre o qual se debruçaram e se debruçam
Sem antes nem depois, talvez essa seja a forma mais extrema de compreensão da
vida humana. A ruptura com o tempo que nos precedeu (o passado) e a ausência de espera
ou de um projeto que se estenda para o amanhã (o futuro), certamente mergulha a vida
em um fluxo radical do presente. Essa possibilidade transforma o tempo presente em uma
espécie de unicidade ou raridade imperdível. Se não há como acessar o passado, não resta
nenhuma esperança nem memória do tempo chamado ontem. A dissolução do passado e
a ausência de um tempo por vir, de um futuro, mergulha a vida no mar do devir sem porto
nem ancoradouro possível. Restaria apenas navegar, e navegar infinitamente.
A saída do mar do devir infinito sem passado nem futuro acontece por duas formas
bastante comuns. A primeira bifurca-se na memória e no testemunho. Aquilo que passou
ontem e já está ausente dos sentidos, permanece de alguma forma na memória. O processo
de hominização dependeu profundamente desse recurso. A ausência completa de
memória seria condenar os antepassados ao nomadismo infinito. Uma vez que os povos
ancestrais, caçadores e coletores, começaram a estabelecer rotas em busca de alimentos e
retornaram aos mesmos pontos para fazer suas colheitas, começaram a alimentar e povoar
a memória com as estações do tempo (os períodos frutíferos ou os melhores momentos
para caça) e com essa disposição, começaram a fixar na mente os ciclos exploratórios da
fauna e da flora.
a vida seguir o ritmo propício da natureza. Ela foi a mestra da memória à medida que fez
com que os seres humanos identificassem as estações adequadas para cada atividade. Com
a transmissão desse conhecimento verbalizado em forma de testemunho, estava garantida
a primeira compreensão dos ciclos e estações da vida. Começava aí a possibilidade de dar
à memória um estatuto de conhecimento, isto é, transformar a experiência acumulada em
testemunho transmissível à coletividade.
A dupla passagem da experiência à memória, seguida pela passagem da memória
ao testemunho, constituíram os dois movimentos fundamentais para a legitimação do
conhecimento acumulado pelos antepassados. À medida que esse conhecimento foi dito
em forma de testemunho às futuras gerações, estava estabelecida a noção de passado. De
tudo o que se havia experimentado, poder-se-ia constituir um relato para as gerações por
vir. A primeira forma de transmissão desses relatos foi, em todas as culturas, a oralidade
que, combinada aos ritos, perpetuava a memória dos “tempos imemoriais”. A fragilidade
da transmissão oral deve-se à necessidade de manter o elo contínuo da tradição, ou seja,
a necessidade de retransmitir com a maior fidelidade possível aquilo que foi recebido dos
antepassados. Somente assim o passado perduraria no presente: a memória faz a história.
A transmissão da memória nem sempre gozou dos maiores benefícios. A guerra
entre os povos sempre conduz à perda de uma série de monumentos históricos. Outro fato
trágico para a memória é a extinção de uma língua. Alguns conhecimentos dependem em
grande parte da forma e da sintaxe de comunicação de uma língua determinada para serem
transmitidos adequadamente. Como as culturas retransmitem, em suas fases iniciais, seus
conhecimentos oralmente, a extinção de uma língua significa uma tragédia cultural. Com
o advento da linguagem escrita, a memória pode ser preservada até que alguém acesse de
novo aquele idioma, embora não consiga acessar nem reconstruir a forma mentis de onde
vieram os textos. O fato de uma cultura registrar seus costumes de forma escrita, salva os
costumes do esquecimento, ao mesmo tempo que desmobiliza o cuidado da memória nas
formas de retransmissão oral. A conquista da história escrita é a salvaguarda da memória.
Com o registro escrito da memória, institui-se um testemunho autorizado de uma tradição.
A questão que se impõe, doravante, é saber como os povos ancestrais transmitiram
suas memórias. Se se reduziam à transmissão oral, com a extinção de uma língua e seus
falantes, estavam irremediavelmente perdidos esses testemunhos. Se os transmitiam em
forma escrita, ainda que os futuros leitores não tenham acesso à forma mentis do redator,
a escrita da história – a memória feita testemunho – permanece como patrimônio por vir.
tinha condições de narrar a memória dos ancestrais. Porém, essa versão da conquista
equivale a pedir ao conquistador que invente a história do conquistado quando, na
verdade, o que se pretende fazer, doravante, é mostrar que a narrativa do conquistador
nada mais foi que sua autolegitimação e instanciação de uma política do esquecimento.
Então, vejamos outras narrativas.
notar que o tzolk’in – a contagem dos dias – é um princípio estruturante da cultura maia
a pontos de se fazer representar inclusive na arquitetura.
© https://viagemeturismo.abril.com.br/materias/as-15-piramides-mais-impressionantes-do-continente-americano
das estações e do ciclo do nascimento e morte. Para registrar a memória do passado, era
costume entre os maias construírem monumentos entre o fim de um k’atun (20 anos ou
uma geração) e o início de outra. Com o fim do período clássico (100 a.C. a 1000 d.C.),
houve algumas mudanças na forma de datação e, em algumas regiões, o k’atun de 20 anos
foi substituído por 13 k’atuns, sendo que o último k’atun passava a ser nomeado como
Ahau (senhor) identificado ao nome do último governante. Cada k’atun de 13 anos era
contado na seguinte ordem 11-9-7-5-3-1-12-10-8-6-4-2-13 Ahau sucedido por 1 Imix, a
saber, um dia dedicado a celebrar a memória do último senhor daquele Ahau.
Todo esse complexo calendário encontra-se descrito na obra Chilam Balam de
Chumayel que condensa grande parte da cultura, do calendário e da sabedoria dos povos
maia mesoamericanos. O calendário maia apresenta semelhanças e equivalências com os
calendários asteca e inca, porém seria excessivo trazê-los neste momento, por isso remeto
a uma apresentação breve presente em Philosophia brasiliensis (Marques, 2015, p. 67s).
Além da compreensão linear maia, é preciso notar que houve outras formas de narração
do tempo entre nossos ancestrais. Por isso, sumariemos alguns elementos da compreensão
do tempo na cultura tupi-guarani, explicitando pontos elementares.
Os tupis-guaranis orientavam-se geograficamente pela posição dos astros. Nota-
se em primeiro lugar a orientação dos pontos cardeais e as estações a partir da posição do
Cruzeiro do Sul (Curuxu): o polo norte e o inverno, identificados por Curuxu na vertical
(as três estrelas maiores para cima); o polo sul e o verão, por Curuxu invertido (as três
estrelas maiores para baixo); o polo leste e a primavera, Curuxu pende para a direita com
três estrelas maiores e a menor para baixo; e o polo oeste e o outono, Curuxu pende para
a esquerda com as três estrelas maiores e a menor para cima. O fato curioso é que os
índios tupinambás do Maranhão em 1612 e os guaranis do sul do Brasil em 1991
utilizavam o mesmo sistema de orientação geográfica, não obstante a distância espaço-
temporal que os distingue (Afonso, 2022, p. 4). Os mesmos pontos cardeais e as estações
eram usados para demarcar as fases da lua, bem como o conhecimento das marés.
Ademais, a principal diferença aportada pela cosmologia guarani é a compreensão
circular do mundo e do tempo, bem como o reconhecimento de um poder divino superior
(Afonso, 2022, p. 7):
Na cosmogênese guarani, Nhanderu (Nosso Pai) criou quatro deuses principais que o ajudaram na
criação da Terra e de seus habitantes. O zênite representa Nhanderue os quatro pontos cardeais
representam esses deuses. O Norte é Jakaira, deus da neblina vivificante e das brumas que
abrandam o calor, origem dos bons ventos. O Leste é Karai, deus do fogo e do ruído do crepitar
das chamas sagradas. No Sul, Nhamandu, deus do Sol e das palavras, representa a origem do
tempo-espaço primordial. No Oeste, Tupã, é deus das águas, do mar e de suas extensões, das
chuvas, dos relâmpagos e dos trovões. O calendário guarani está ligado à trajetória aparente anual
do Sol e é dividido em tempo novo e tempo velho (ara pyau e ara ymã, respectivamente, em
guarani). Ara pyau é o período de primavera e verão, sendo ara ymã o período de outono e inverno.
algumas transformações na língua tupi presente nessas cartas que, certamente, decorrem
do contato que houve com a língua portuguesa, sobretudo aquele que José de Anchieta e
Luís Figueira quiseram patronizar em nome da civilização e cristianização dos indígenas.
Nota-se ainda nas cartas a influência do conflito religioso entre católicos e protestantes
que foi transposto do Velho para o Novo Mundo. Esse conflito revela-se à medida que os
próprios indígenas admitem tomar partido em nome de uma ou outra tradição religiosa e
em defesa do Estado lusitano ou holandês mesmo quando isso significa uma ruptura das
tradições familiares e uma crise entre aqueles que viviam unidos por laços consanguíneos
(Navarro, 2022, p. 48). Felizmente, isso não significou a ruptura completa dos laços que
os uniam. As cartas, ao contrário, testemunham o interesse e a decisão de conservarem os
vínculos e tradições que lhes tinham sido transmitidas pelos antepassados. Dessa forma,
o que está em questão nas cartas não é apenas a capacidade de se posicionarem frente a
um conflito religioso e político produzido pelos conquistadores, mas a decisão de manter
a memória dos antepassados como um compromisso primário ainda que em meio à crise
e ao conflito colonial (Navarro, 2022, p. 48):
Façamos uma breve retomada: a contagem dos dias (tzolk’in) tal como foi pensada
pelo povo maia não se reduz à perpetuação de uma memória pelo simples apego ao
passado. A narrativa da memória se transforma em construção do testemunho daqueles
povos que viveram durante a conquista espanhola. Da mesma forma, as cartas tupis são
um vestígio da memória de que não se resignou sob a força brutal da conquista. Essas
cartas testemunham não apenas o vínculo de amizade que unia aqueles povos, embora
divididos por vezes graças aos conflitos religiosos e às lutas pelo poder dos Estados
lusitano e holandês, mas principalmente a certeza de que era preciso reconquistar o modo
de vida de antigamente através da conquista da própria vida livre e autônoma. Mais que
isso, a carta de Felipe Camarão testemunha suficientemente a autoconsciência que
conservavam, não obstante os conflitos coloniais: “eu não posso deixar desaparecer de
nós mesmos as tradições do meu finado pai”.
A imagem de si traçada pela narrativa alheia não passava, ao longo dos séculos,
de um processo de subordinação da própria história à historicidade alheia: o tempo de um
povo subalternizado foi colonizado pelo tempo do conquistador (Dagenais, 2004, p. 366).
A condição para se romper com a colonização do tempo depende de vários fatores: uma
autocompreensão coesa, o reconhecimento dos influxos positivos da natureza entorno, o
superar a punção demográfica da escravidão e a reconstrução da estabilidade social para
alavancar o fluxo de desenvolvimento tecnológico (Ki-Zerbo, 2010, p. xxxv). Somando-
se esses fatores às pesquisas das fontes, é possível começar a escrever uma história própria
de um povo determinado. As fontes disponíveis na história africana são de cinco matrizes
principais: a escrita (embora nem sempre bem distribuída no tempo e espaço continental),
a arqueológica (dependente de localização, classificação e proteção), a oral (reunindo
discursos épicos, prosaicos, didáticos e éticos), a linguística (que permite o conhecimento
de distintos processos de evolução discursiva) e a etnoantropológica (que precisa superar
a prática colonial para não reduzir o discurso à recolonização espaço-temporal). Mais que
isso, cumpre ainda destacar que tais fontes precisam ser conjugadas interdisciplinarmente
sem privilegiar uma em detrimento de outras graças à diversidade própria dos saberes que
emergem delas (Ki-Zerbo, 2010, p. xxxvi-xlix).
A interdisciplinaridade constitui a primeira base para o método historiográfico da
história em questão. Não obstante, para o nosso objetivo, a compreensão do tempo requer
a compreensão da capacidade de um povo narrar seu ontem em virtude de um amanhã,
ou seja, a capacidade de um povo articular sua história discursivamente do ontem sem o
medo de não haver amanhã. Quanto ao ponto, a pesquisa filosófica não retem os dados
estritos da oralidade nem da etnoantropologia nem da arqueologia para não transgredir os
limites epistêmicos. A filosofia trabalha, no melhor dos casos, com a narrativa da história:
a construção retórica do passado em vistas de explicitar os valores subjacentes à cultura
e perceber os indícios, se é que existem, da história por vir de um povo. Para tanto, não
cabe à filosofia senão integrar compreensivamente os resultados das demais pesquisas.
Nesse sentido, há dois elementos que merecem atenção precípua na compreensão
do tempo na cultura africana: o processo de escravidão e os manuscritos de Timbuktu. O
primeiro elemento não importa apenas em virtude do trauma histórico produzido, mas da
quebra da noção de historicidade. A compreensão do tempo enquanto fator estruturante
da identidade subjetiva depende não apenas da autocompreensão (consciência de si e dos
seus projetos individuais), mas também do reconhecimento alheio. A obra da escravidão,
No final da década de 1960, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura, realizou uma conferência em Timbuktu onde se descobriu uma enorme gama de
manuscritos. Até aquele momento, havia sido descobertos 700.000 manuscritos, sendo que o mais
antigo data de 1204. Esses manuscritos, redigidos em árabe, abordam uma variedade de assuntos,
desde matemática, astronomia, medicina, literatura, filosofia, direito, linguística até a música. Eles
estão em forma de tratados, cartas, poemas e documentos jurídicos. Quanto a estes, incluem leis
comerciais da época e são um testemunho vivo da civilização avançada e refinada da África
subsaariana há mais de 800 anos3.
Chegado a esse ponto, podemos retornar ao ponto de partida que pôs em questão
a possibilidade de reconstruir a memória dos povos ancestrais novo-mundistas e africanos
não apenas por meio da oralidade, mas também dos testemunhos escritos, vale dizer, por
meio da memória transformada em testemunho. Não há dúvidas de que muito se perdeu
tanto aqui quanto lá, graças à política do esquecimento levada a cabo pelos colonizadores.
Não se pode menosprezar o trabalho que foi feito para reduzir ao silêncio duas “culturas
supostamente ágrafas”. Não obstante, do lado de cá, há não só os grandes monumentos
da cultura maia-quiché com seus mitos de origem quanto com seus calendários e registros
da memória, além dos outros escritos como as cartas dos índios Camarões que atestam o
domínio da escrita e a compreensão da necessidade política de demarcarem seu espaço
contra a dupla conquista que os ameaçava, a portuguesa e a holandesa. Do lado de lá, os
manuscritos timbuktanos são testemunhos de uma série de conquistas históricas: a
2
The Timbuktu manuscripts demonstrate the strong and long intellectual tradition of Africa and point to
the fact that Africa possesses a rich legacy of written history, contrary to the false perception that Africa
was or is an “oral continent”, and contrary to popular opinion that oral tradition alone preserved its heritage.
3
In the late 1960s the United Nations Educational, Scientific and Cultural Organisation held a conference
in Timbuktu where a wide range of manuscripts had been discovered. To date, some 700 000 manuscripts
have been discovered there, with the oldest one dating back to 1204. These manuscripts, written in Arabic,
cover a wide variety of subjects including mathematics, astronomy, medicine, literature, philosophy, law
and linguistics and music. They take the form of treatises, letters, poems and legal documents. The
manuscripts on law include business laws of the times and are a living testimony of the highly advanced
and refined civilisation in Sub-Saharan Africa more than 800 years ago.
A relação eu-tu pode ocorrer de duas formas: a primeira, pelo reconhecimento que
se traduz na empatia, no respeito e no diálogo; a segunda, pelo desconhecimento, operado
no jogo da antipatia, da violência e do silenciamento. Como é impossível viver isolado já
que todos os seres humanos estão condenados, até o presente, à vida na terra, não há outra
possibilidade senão procurando amenizar e aprimorar a relação eu-tu. O crescimento da
população mundial não deixa dúvidas quanto à impossibilidade de viver no isolamento.
Não há ilha deserta onde alguém possa se esconder nem há outro planeta disponível até o
presente. Nada soa mais explícito que ritmo vertiginoso do crescimento populacional: em
1500 eram 438 milhões de pessoas na terra; em 1600, 556 milhões; em 1700, 660 milhões;
em 1800, 1 bilhão; em 1900, 1,6 bilhão; em 2000, 6,1 bilhões; em 2017, 7,6 bilhões e
estima-se para 2100, 11,2 bilhões. Em resumo, entre 1500 e 1900, a população cresceu
em média 39,28% entre 1900 e 2000, cresceu espantosamente 281%, com previsão de
crescer de 83,60% no século XXI. Em 2021, chegamos 7,888 bilhões de pessoas, o que
significa que dividimos cada quilômetro quadrado da terra com mais 50,66 pessoas. A
terra está urbanizada, mas nem por isso podemos dizer que estamos educados para lidar
com as pessoas a habitam.
Enquanto não reconhecermos o outro com um igual, continuaremos a desenvolver
relações alérgicas. O outro será sempre visto como ameaça contínua e potencial inimigo.
Assim, a força do não reconhecimento recíproco multiplica relações violentas eu-tu. Estar
ao lado do outro parece uma constante ameaça, excluindo as relações de prazer e de bem
viver. Desde o advento da modernidade europeia (marcada pela revolução científica, a
mudança da visão geocêntrica para a heliocêntrica, a reforma protestante e a invasão do
Novo Mundo), as relações humanas têm se tornado mais difíceis, embora sempre houve
conflitos entre eu-tu, entre povos e nações, entre grupos e etnias. Não existe um tempo
edênico em que o ser humano tenha gozado de paz e serenidade em um paraíso terrestre.
Mas, a partir do momento em que a disputa pela sobrevivência se torna mais atroz,
crescem os conflitos eu-tu.
Com o advento da modernidade europeia, o humano operou quatro grandes formas
de não reconhecimento recíproco, ou seja, de dominação social: a primeira, pautada na
conquista material, espiritual e simbólica (efetivada por meio do domínio territorial,
religioso e cultural) descrita por Tzvetan Todorov em A conquista da América (1982); a
segunda, operada pela dominação do ser, saber, poder e gênero (as dominações corporal,
epistêmica, social e masculino-feminino) presentes, por exemplo, na Ética da libertação
na idade da globalização e da exclusão (1998) de Enrique Dussel; a terceira, dinamizada
por formas de violência interseccional (racismo, sexismo, classismo, colonialismo,
etarismo, patriarcalismo, machismo, capacitismo, xenofobia, bifobia, homofobia,
transfobia, além de outras formas de intolerância social e religiosa) têm sido debatidas
desde a década de 60 por pessoas como Leslie McCall, bell hooks e Lélia González (entre
outras), de quem destacamos Por um feminismo Afro-Latino-Americano (ensaio de 1988
4
A insustentável leveza do ser (1984) de Milan Kundera exemplifica belamente o valor narrativo
de múltiplas e contraditórias descrições da realidade sem, no entanto, colocá-las em xeque. Ao contrário, a
multiplicidade das narrativas contrárias e contraditórias evidencia, justamente, a polifonia do real.
O que, em última instância, nada mais significa senão a absolutização de uma versão da
narrativa do tempo reduzindo a multiplicidade das vozes à univocidade do mais forte. Aí
está O perigo de uma história única (2019) como descrito por Chimamanda Adichie.
Ela mostra como sua colega não conseguia compreender a possibilidade de haver
os mesmos gostos entre pessoas iguais, embora nascidas geograficamente muito distantes
uma da outra. O epicentro da descrição está na incapacidade de ver o outro como igual.
Isso decorre da absolutização de uma narrativa única da história. Todas as pessoas vivem
no mesmo planeta, embora estejam em condições humanas radicalmente distintas, nem
por isso haverá alguém mais ou menos humano que outro. Todas as pessoas participam
da condição de homo sapiens sapiens igualitariamente. A pergunta, então, deverá ser: de
onde nasce ou qual é a origem da desigualdade entre os seres humanos?
Não se trata de retomar a discussão de Jean-Jacques Rousseau no Discurso sobre
a origem e os fundamentos da desigualdade entre os seres humanos (1755) cuja causa é
a desigualdade social. Trata-se de reconhecer que, além da desigualdade social, há outras
formas de produção de violência em curso e, neste caso, estamos falando da narrativa do
tempo: a construção da história dos vencidos pela voz dos vencedores, digo, a história
única narrada por quem detém o poder. À medida que a narrativa do tempo se concentra
apenas em uma perspectiva, reforçam-se os pressupostos da história única e anula-se a
diversidade das narrativas das outras pessoas. Assim, a diversidade humana é reduzida à
singularidade do eu: os outros, nada mais são, que uma extensão secundária da história
narrada e instituída pelo eu. Antes de reconhecer a diversidade, institui-se a história única.
A memória, enquanto narração de um tempo específico, torna-se o relato de “uma
história única da catástrofe” (Adichie, 2019, posição 10). O narrador se coloca em pé de
superioridade e descreve a história alheia como desenrolar de uma tragédia inevitável. O
outro passa a ocupar o lugar do subalternizado pelo discurso do narrador. À medida que
se institui a narrativa da história alheia por uma única perspectiva, ela é assumida como
uma narrativa necessária, vale dizer, é como se a história não pudesse ser de outra forma.
O narrador coloca-se na condição de superior e atribui-se o direito de determinar, através
da narrativa, o lugar do outro. Com isso, destitui-se o outro daquilo que ele tem de mais
próprio: a sua história. Narrada pela mão do vencedor, a história dos vencidos será sempre
o movimento de aceitação do vencedor como uma presença messiânica.
A diferença é reduzida a nada. A igualdade constitutiva do ser humano cede lugar
à unicidade discursiva dominada pela perspectiva externa, pela narrativa estrangeira. A
diferença reduz-se à mesmidade. O resultado desse processo não poderia ser mais difícil:
o narrador situa-se na condição de senhor em relação ao narrado. É nessa condição que
se institui a narrativa da história única como necessidade irremediável e, através desse
dizer, justificam-se todas as formas de violência. Estabelece-se assim a estrutura do nkali,
digo, a ilusão de “ser maior do que outro”, como afirma Adichie (2019, pos. 13): “o poder
é a habilidade não apenas de contar a história de outra pessoa, mas de fazer que ela seja
sua história definitiva”. Isso se deve à decisão de não reconhecer o outro como alguém
dotado de uma história própria, diferente, específica, única. Ao narrar a história do
vencido, o vencedor situa-o dentro da sua própria história. O outro é capturado pelo eu e
colocado na posição que eu desejo que ele ocupe.
Nessa condição nascem os estereótipos como formas de dominação do outro. Pôr
o outro sob o signo de qualquer estereótipo o reduz à situação de objeto de uma narrativa
sem direito à alteridade, à diferença, ao seu valor de sujeito único e irrepetível. Por isso,
não há nenhum equívoco na atitude de todos os conquistadores: eles sempre se julgam na
condição de narrar a história dos conquistados. Isso se repetiu quer na América Espanhola
quer na Portuguesa à medida que os relatos dos viajantes dos séculos XV e XVI foram
profícuos na criação de imagens estereotipadas dos conquistados. Em relação ao Brasil,
ainda hoje repete-se que se trata de um país com uma natureza exuberante habitada por
um povo indigno dela. Não é um acaso esse relato, ele simplesmente repete tudo o que
português descreveu nos relatos seiscentistas: povos não civilizados que suposta e
maliciosamente estavam como que à espera de alguém para tirá-los da barbárie e civilizar.
O estereótipo dos povos originários como bárbaros perdidos na natureza ofereceu
a condição para o português se julgar no direito de catequizar e civilizá-los esses povos
(Marques, 2023, capítulo IX). Não são poucos aqueles que ainda hoje repetem o discurso
estereotipado da barbárie originária à espera do civilizador. Contrariamente, os povos
originários nunca estiveram à espera nem esperavam um civilizador nem buscavam um
novo deus nem queriam uma nova história. Como já notamos antes, não se tratavam de
povos ágrafos nem destituídos de história para estarem à disposição de se submeter a uma
nova história escrita pelo colonizador. De forma ainda mais radical, é preciso reconhecer
a autoconsciência daqueles povos à luz das suas próprias narrativas, não como arremedo
da narrativa dos conquistadores, mas como obra de sua própria história antes da invasão:
Pois nossa humildade não corrigiu sua soberba, nem nossa obediência a sua ambição: porque esta
nação procura igualmente sua riqueza e as misérias alheias. / Quem duvida de que os que nos
introduzem agora deidades não conhecidas, amanhã, com o secreto império que dá o magistério
dos homens, não introduzam novas leis ou nos vendam infamemente, onde um intolerável cativeiro
será o castigo de nossa credulidade? (...) E principalmente, não sentes o ultraje de tua deidade e
que com uma lei estrangeira e horrível derroguem as que recebemos de nossos antepassados; e que
pelos vãos ritos cristãos se deixem os de nossos oráculos divinos e pela adoração de um madeiro
as de nossas verdadeiras deidades? O que é isso? A nossa paterna verdade há de vencer assim uma
mentira estrangeira? (Marques e Pereira, 2020, p. 131-132)
tesouros e qual o seu valor – parece não haver nenhuma continuidade consciente no
tempo, e portanto, humanamente falando, nem passado nem futuro, mas tão-somente a
sempiterna mudança do mundo e o ciclo biológico das criaturas que nele vivem”. A
destruição da história pela política do esquecimento destitui o passado de sua condição
de crivo do presente. Tudo o que acontece parece necessário e inaugural. O hoje se torna
um acontecimento como se fosse fortuito e, portanto, ninguém seria responsável pelo
mesmo. O curso atual dos fatos parece destituído de responsabilidade e justificam-se,
dessa forma, todos os absurdos possíveis. A vida é reduzida à sua condição meramente
biológica. Não que a condição biológica seja desprezível, mas que a vida humana não se
reduz à dimensão biológica. O fato em curso não é a mera redução da vida ao biológico,
mas a identificação entre a vida e a necessidade fática. Desprovida de razões e de
pressupostos do passado, a vida passa a ser tratada como um fenômeno biológico. Todas
as experiências acumuladas no curso do tempo são negadas e tudo o que acontece passa
a ser tratado como inevitável.
A redução da vida a fenômeno biológico implica a anulação da capacidade de pôr
em questão os jogos de força que determinam o presente. Se tudo o que acontece hoje se
reduzir ao acaso e à biologia, nenhuma razão anterior poderia ser aduzida para pensar os
trâmites do presente. O resultado da anulação do passado e a redução da vida à biologia
determina a leitura do presente (Arendt, 2014, p. 40): “o problema, contudo, é que, ao que
parece, não parecemos estar nem equipados nem preparados para esta atividade de pensar,
de instalar-se na lacuna entre o passado e o futuro”. A condição para pensar o presente é,
na acepção arendtiana, a capacidade de reconhecer a narrativa do tempo (o conhecimento
do passado com seu testamento e traumas) em vistas de pensar o horizonte por vir da vida
(construir um projeto mínimo para o amanhã). Entre o passado e o futuro, encontra-se o
hoje da reflexão, a saber, o lugar que não podemos renunciar a pensar: o presente.
Retomemos, então, a forma como o passado recente brasileiro deveria ser narrado
dentro da nossa moderna historiografia à luz da proposta apresentada por Martius. Parte-
se do pressuposto de que quanto maior tenha sido a contribuição “de cada uma dessa
raças” (expressão do autor que nos parece estranha, por isso usaremos etnias ou povos)
tanto mais se deve destacar historicamente sua contribuição na formação do país.
Estabelecido esse ponto sem maior justificativa, o autor já apresenta a consequência
imediata (Martius, 1845, p. 30-31): “disso necessariamente se segue o português, que,
como descobridor, conquistador e senhor, poderosamente influiu naquele
evidencia a conquista brasileira pelo lusitano essencialmente como uma obra filantrópica,
cujo balanço fala por si mesmo (Martius, 1845, p. 50): “nos pontos principais a história
do Brasil será sempre a história de um ramo de portugueses; mas se ela aspirar a ser e
merecer o nome de uma história pragmática, jamais poderá ser excluídas as suas relações
para com as raças etiópica e índia”. Com isso, Martius define a história do Brasil como
um ramo da história lusitana filantropicamente extensiva aos “etíopes e índios”.
A conclusão aponta na direção da imaturidade geral das ideias políticas brasileiras,
somada à divisão entre as diferentes regiões do país. Esse sentimento precisa ser refeito
para que se despertem laços de amizade e colaboração entre todas elas. Na ordem política,
há dois grupos proeminentes: o primeiro são os republicanos a alimentar projetos utópicos
e, os outros, os monarquistas. Aqueles precisam ser dissuadidos de sua ilusão de realizar
tal missão por habitarem um país marcado pela “inconveniência de discussões licenciosas
dos negócios públicos, por uma imprensa desenfreada, e [pela] necessidade de uma
Monarquia em um país onde há um tão grande número de escravos” (Martius, 1845, p.
540). Esse era o país conhecido pelo monarquista alemão ao defender a manutenção desse
mesmo estatuto social no Brasil. Os republicanos errariam em quatro aspectos à luz dessa
análise: primeiro ao noticiar o debate das questões públicas e, segundo, ao permitir que a
imprensa denuncie erros públicos; terceiro, o país precisa manter a monarquia e, quanto
seria impossível instituir uma república onde reinam os escravos. Martius não apenas é
um monarquista, mas operado uma crítica ao republicanismo à medida que propõe uma
forma para a escrita da história. Por isso, não se admira que, ao tratar do segundo grupo
mais proeminente na política, ele defenda explicitamente que “o historiador do Brasil,
que para prestar um serviço à sua pátria deverá escrever como autor monárquico-
constitucional, como unitário no mais puro sentido da palavra” (Martius, 1845, p. 55).
O monarquismo do autor casa-se perfeitamente com aquela compreensão expressa
anteriormente acerca do lugar onde o elemento lusitano predominaria sobre o “etíope e o
índio”. Estes dois elementos da história nacional deveriam ser incorporados ao ramo da
história portuguesa, uma vez que teria sido esse elemento a garantia última e fundamental
para a instituição de uma civilização nos trópicos. Com tal postura, Martius não apenas
defende a manutenção do status quo monárquico, mas também, de alguma forma,
reconhece que a obra da escravidão seria difícil de ser superada nesse país. Mais que isso,
ele insere os povos originários também dentro da história da expansão portuguesa. A
expertise náutica lusitana já os havia levado à costa e ao interior da África antes do século
XVI, a partir de onde estenderam seus poderes para conquistar as novas terras. Isso
significa que tanto a história dos povos africanos quanto a história dos originários
estariam compreendidas dentro da história da monarquia portuguesa. O enquadramento
fotográfico não poderia ser mais explícito e favorável à forma como a monarquia
conduzia seus negócios nos dois lados do Atlântico. Lá, haviam salvo os “etíopes” da
barbárie inicial. Aqui, não apenas salvaram quanto civilizaram os “índios”. Enfim, a
história pensada nessa ótima coloca o português explicitamente como o redentor dos
povos que ele havia colonizado.
Desde a Crítica da razão pura (KrV 2001, I, 1 §2 [A22 e B37]) de Immanuel Kant
sabemos o espaço é a condição de possibilidade de todos os fenômenos externos, vale
dizer, conhecemos as coisas presentes no mundo graças à distribuição delas dentro do que
dizemos espaço. De forma equivalente, o tempo é a condição de possibilidade de todos
os fenômenos internos, ou melhor, de todas as intuições sensíveis (Kant, 2001, I, 1 § 4
[A31 e B46]). Isso significa que somente apreendemos as coisas ou que captamos as
intuições sensíveis no espaço e no tempo como veremos mais detalhadamente adiante. O
fato de o tempo ser condição para todas as nossas formas de conhecimento constitui um
marco definidor para tudo o que conhecemos: os objetos do conhecimento são temporais.
E isso não significa apenas um período cronológico, mas uma qualidade do tempo, uma
forma de compreensão epistêmica do mundo, de tudo que ocorre nele e que se dá às
formas da percepção humana (Dagenais, 2004, p. 365).
O fato de situar o conhecimento dentro do limite espaço-temporal condiciona tudo
o que se segue a partir de então. Não analisaremos a demarcação espacial como critério
epistêmico, embora não o desprezaremos de todo tal como está presente na BNCC (Brasil,
2017, p. 563): “Tempo e Espaço explicam os fenômenos nas Ciências Humanas porque
permitem identificar contextos, sendo categorias difíceis de se dissociar”. Nosso objeto
será o tempo enquanto condição de possibilidade para o conhecimento. O tempo não
apenas como condição de possibilidade do conhecimento, mas como um modo específico
de colonização do outro. Uma vez que todas as relações eu-tu, colonizador-colonizado,
vencedor-vencido se dão no tempo, ele deixa de ser apenas uma condição epistêmica e se
torna um instrumento que a própria colonização. Isso se deve ao fato de a compreensão
do tempo ser sempre dita igual para todos os seres humanos, embora ele seja
qualitativamente diferente entre todos os indivíduos. Tal como já mencionamos, se
existem 7,888 bilhões de pessoas no mundo, haverá igual número de narrativas diversas,
irreconciliáveis e não excludentes, não obstante possam ser contraditórias entre si. Essa
diferença nas narrativas não se deve a uma forma de subjetivismo extremado do tipo “eu
sinto a vida diferente por uma razão x qualquer”. A diferença na narração do tempo se
deve à forma como instituímos o tempo. Grosso modo, estamos dizendo que existem
formas distintas de constituição temporal.
Aparentemente, começar nossas leituras a partir dos povos originários e africanos
e só em terceiro lugar voltarmo-nos para a história europeia parece estranho. Comumente,
mas não inocentemente, nossas narrativas começam com a chegada dos europeus ao Novo
Mundo. O fato de repetir insistentemente a narrativa do tempo a partir da chegada dos
europeus é apenas mais uma forma de reafirmar a historicidade europeia como o marco
fundador da historicidade dos povos novo-mundistas. À medida que se diz “a descoberta
do Brasil foi em 1500” já estão justificados três pressupostos: um, aquele que reafirma a
ilusão de encontro fortuito deste continente pelas rotas marítimas europeias; dois, o nome
e a identidade desde país supostamente já estariam fixados em 1500; três, adotamos a
datação cristã que remete a história ao marco do nascimento do cristianismo. Vale dizer,
já adotamos a visão do tempo europeu, temos o tempo novo-mundista colonizado pela
história indo-europeia. A possibilidade de romper com essa colonização do tempo seria
remeter a história novo-mundista (que também é uma categoria europeia) à história dos
povos mesoamericanos e tupi-guarani. Sabendo que isso implica remeter à historiografia
da sua chegada a essa porção do mundo através das rotas migratórias e, posteriormente,
teremos que refazer a história pretérita de nossa cultura ancestral.
Diversamente, sequer questionamos o calendário que seguimos. Ao tratar formas
distintas de datação histórica, quer através dos calendários mesoamericano e tupi-guarani
quer dos calendários africanos, apontamos para a possibilidade de novas historiografias.
Enquanto prevalecer como marco fundador da história novo-mundista os anos de 1492 e
1500, não haverá como romper com as amarras coloniais. Adotar a datação do
colonizador implica demarcar a história do colonizado à luz da história colonizadora. Os
anos de 1492 e 1500 em uma historiografia descolonizada deveriam ser narrados como
história de uma invasão e não como o início da história novo-mundista. A astúcia do
colonizador é fundar a nova história do colonizado. Enquanto a data da dominação
contudo, é que, ao que parece, não parecemos estar nem equipados nem preparados para
esta atividade de pensar, de instalar-se na lacuna entre o passado e o futuro”.
O futuro do tempo colonizado não será outra coisa que o presente do colonizador.
A escala do tempo colonizado estrutura uma evolução mimética, a saber, o colonizador
se coloca como espelho para o colonizado e este, o reconhece como tal. Daí então, o que
se entende por cultura será o estágio evolutivo do colonizador que, exemplar e
comparativamente, em 1500, já estaria no estágio 3, pois tinha uma escrita, uma crença
não-idolátrica e uma sociedade civilizada. Para que o colonizado se equipare ao
colonizador para dialogar em pé de igualmente, ele terá que (i) adotar a escrita, (ii)
praticar uma crença não-idolátrica e (iii) tornar-se um povo civilizado. Em resumo, ele
precisará mimetizar o colonizador. Somente à medida que ele se equiparar ao colonizador,
ele deixará de ser um primitivo. E, à medida que se identifica ao colonizador, ele depõe
sua própria cultura e mimetiza a cultura colonial, isto é, ele introjeta a cultura do
colonizador. Mas isso não resolve seu drama histórico, pois uma vez que tiver
internalizado o estágio 3 do colonizador, ele verá que o colonizador já está em outros
estágios mais avançados que esse, logo ele terá que, novamente, mimetizar sua cultura
em um círculo vicioso infindável.
Outra estratégia da colonização do tempo é a prática da ruptura histórica: tudo se
inicia de forma abrupta, intempestiva com a chegada do europeu em 1492 e 1500. Quando
uma compreensão descolonizada da história dos povos mesoamericanos equiipararia o
dia inaugural 0.0.0.0.0 da cultura humana (tzolk’in) ao dia 11 de agosto de 3.114 a.C. logo
a invasão do Novo Mundo dataria, respectivamente, dos anos 4.606 e 4.614 da história
dos povos originários. Longe disso, o que ocorreu foi a ruptura da história originária pela
imposição do tempo do colonizador (Dagenais, 2004, p. 374): “tal como em outras
relações coloniais, esta demarcação de um tempo propício para a colonização tem como
objetivo principal a exploração do colonizado pelo colonizador5”. O tempo colonizado é
o tempo do outro que detém o poder e, por isso pode determinar o tempo do dominado: o
apagamento do passado do colonizado lhe inviabiliza a compreensão do seu presente, e a
projeção de um futuro por vir, desprovido de qualquer critério compreensivo do passado
e do presente, deixa o futuro ao acaso, à mercê da necessidade biológica do momento.
5
As in other colonial relations, this demarcation of a time ripe for colonization has as its primary goal the
exploitation of the colonized by the colonizer.
6
The Middle Ages serves, then, as a permanently undiscovered country, a terra ignoscenda of history, a
land not to be known, in which various forces of modernity can contest each other’s attempts to establish
hegemony, perhaps in ways not admissible to modernity itself.
estão sob as bênçãos divinas do redentor, mas isso não significa que seja uma realidade
efetiva. Nesse caso, a realidade não importa, conta mais o valor semiótico das imagens.
Analogamente, os mitos cumprem a mesma função em relação às culturas que os criaram
e que eles representam. Essa compreensão estende-se de forma equivalente à ideia de
grandeza transmitida pelas monumentais pirâmides egípcias e mesoamericanas. Assim, o
mito encarna uma representação aparente de uma cultura independente de sua efetividade
e veracidade histórica. Exatamente por isso, a expressão mítica serve a tantos usos uma
vez que representa uma verdade que pode ser verdadeira ou não sem nenhum prejuízo
para a própria figura que representa. O mito, nesse sentido, tem dupla função: a primeira,
agregar uma visão de mundo em torno de determinado discurso independente de seu valor
de verdade e, a segunda, comunicar “uma verdade” de forma estável e atemporal fora da
condição de verificação da verdade comunicada. Exemplifico, se o deus grego invocado
por Alexandre não o livrou da morte, não significa que o deus falhou, mas que era a hora
de Alexandre morrer. A retórica mítica escapa à possibilidade de explicação racional.
Não obstante, como as culturas nascem de narrativas míticas, analisemos como
algumas delas pensaram miticamente a explicação do tempo. No caso, não se trata de pôr
em questão a veracidade dos deuses e dos seus discursos. Partimos da certeza de que todos
os relatos são verazes, embora nem todos sejam logicamente plausíveis. A veracidade do
discurso mítico não se apoia na sua demonstração lógica, mas na capacidade retórica de
produzir convencimento social e, nesse sentido, os mitos das grandes culturas estão mais
vivos que a própria humanidade à qual pertencemos hoje, isto é, eles sobreviveram até o
presente e, provavelmente, continuarão a ser lembrados por muitos séculos ainda. Dentro
dessa demarcação conceitual, apresentaremos duas perspectivas narrativas: uma centrada
na compreensão mítica do tempo nas culturas acádia (presente na Epopeia de Gilgamesh),
egípcia (presente no Livro Egípcio dos Mortos) e grega (presente na Teogonia de Hesíodo
e recontada por Jean-Pierre Vernant); outra, presente nas narrativas do tempo no B'reishit
1 e no Qohélet 3 (respectivamente, os livros do Gênesis e do Eclesiastes da Escritura
judaica e cristã) e, finalmente, nos Caracteres morais de Teofrasto de Eresos (372-287
a.C.), o sucessor de Aristóteles na escola peripatética. A razão de aproximarmos Teofrasto
da Escritura judaica se deve ao fato de ele ser contemporâneo à composição do Eclesiastes
(450-180 a.C.) e apresentar uma breve, mas importante compreensão do tempo.
Seguindo as duas perspectivas sobre o tempo não esgotamos o assunto dentro da
era clássica, mas teremos apresentado elementos suficientes para compreendermos como
caçador: “fez com esse primitivo o que faz uma mulher / e o desejo dele se excitou por
ela. / Seis dias e sete noites Enkídu este ereto e inseminou Shámhat” (I, 192-194). Assim,
inicia-se a narrativa do tempo na epopeia, não apenas ao situar o percurso que fizeram,
mas também ao prolongar a grandeza do prazer por seis dias e sete noites, o indica que o
tempo do dia era contado a partir da tarde até a manhã, por isso mais noites do que dias.
Durante muito tempo viveram juntos o caçador e a meretriz até a chegada de Gilgámesh
que despertou o amor de Shámhat. Ela desejava que Enkídu abandonasse seus vícios e ao
chegar o outro, ela reconhece que já o amava (I, 240-244): “Enkídu, abandona teus vícios,
/ a Gilgámesh Shámhat ama, / Ánu, Énlil e Ea fizeram plena sua sabedoria: // antes que
viesses das montanhas, / Gilgámesh, no coração de Úruk, via-te em sonhos”.
Assim estão unidos os três personagens centrais do enredo. Na sequência, nota-se
o tempo depois do momento da assembleia de Úruk, terra natal de Gilgámesh, quando ele
decide empreender a primeira jornada na direção do Líbano (IV, 1-4): “às vinte léguas
partiram o pão, / às trinta léguas estenderam a tenda, / cinquenta léguas andaram o dia
inteiro: / jornada de mês e meio ao terceiro dia: chegaram perto do Monte Líbano”. Se for
contar a distância na correspondência atual significa que percorrendo 241 quilômetros em
um dia inteiro. Se gastaram um mês e meio para chegar ao Monte Líbano, percorreram
mais de dez mil quilômetros na primeira jornada. Essa narrativa se repete na segunda,
terceira e quarta jornadas em direção ao Monte Líbano. Apenas ao percorrerem a quinta
jornada, enfim, alcançaram um pouso seguro, só então “em face de Shámhat cavaram
uma cisterna, / água ---- puseram em ---- / foi Gilgámesh ao topo da montanha, / farinha
ofertou aos montes: // Montanha, ordena-me um sonho, mensagem boa eu veja!” (IV,
163-166). Aqui se completa a missão ao Monte Líbano onde os três personagens juntos
descobrem a sabedoria do amor acessível aos seres humanos.
A segunda parte da obra dá espaço relata uma epopeia ainda mais difícil. Se soa
um desafio a conquista do amor, a segunda conquista é ainda maior: a sabedoria da morte
ou a conquista da imortalidade. Todo o relato se passa na maior peregrinação que se pode
fazer: Gilgámesh e Enkídu decidem-se ir ao fim do mundo se preciso for, lá eles verão o
abismo que separa a humanidade de todo o fardo da morte. Querem vencer o mais terrível
dos inimigos, aquele que derrota e iguala vencedores e vencidos. Depois de conquistarem
o Monte Líbano, tomam e abatem o Touro dos Céus que habitava a Floresta de Cedros.
Dominam os leões e as feras dos montes, derrotam reis e principados, mas não derrotam
o último dos inimigos (X, 132-138): “ao meu amigo – o amo muito! – comigo enfrentou
todas as penas, / a Enkídu, amigo meu que – o amo muito! – comigo enfrentou todas as
penas, / atingiu-se o fado da humanidade! // Por seis dias e sete noites sobre ele chorei, /
não o entreguei ao funeral / até que um verme lhe caiu do nariz”. A maior das conquistas
termina com a pior das derrotas: a morte do amigo amado. Enkídu jamais voltará a viver.
Todo o temor da morte e todas as conquistas não o livrou dela. Não há como remediar o
fardo da existência humana, por isso Gilgámesh chora o mais que pode – seis dias e sete
noites – até o corpo do amado não suporte mais ficar sobre a terra. Aquele que conquistou
reinos e venceu todos os perigos, não foi capaz de livrar o amigo da morte (X, 144-148):
“como calar, como ficar eu em silêncio? / O meu amigo, que amo, tornou-se barro, /
Enkídu, o meu amigo, que amo, tornou-se barro! / E eu: como ele não deitarei / e não
mais levantarei de era em era?”
O lamento de Gilgámesh mistura o sofrimento pelo amigo amado com a certeza
de que também ele caminha para a morte com a impossibilidade de se levantar no tempo.
Uma vez que se experimenta o fardo da vida, não se pode mais voltar à luz do dia. Assim
a dor da perda do amigo se torna uma antecipação da própria morte, a certeza do fim. Os
outros inimigos podem ser derrotados, mas a morte chega em hora inesperada (X, 308-
311): “chegada a hora, construímos uma casa, / chegada a hora, fazemos um ninho, /
chegada a hora, os irmãos repartem, / chegada a hora, rixas há na terra”. Gilgámesh revê
a vida humana sob o fardo inexorável do tempo, uma luta que jamais terá fim enquanto
lutamos por prorrogar a existência. No entanto, chegada a hora, nada mais se pode fazer,
a morte leva a certeza e “logo a seguir não há nada” (X, 315). Tudo se perde no silêncio
da morte por maior que tenha sido a vida humana. Independente da fortuna e de todas as
conquistas, toda vida experimentará a chegada da hora em que “não há nada”. Nada resta
da vida gloriosa e reconhecida, pior que isso é saber que somente os deuses Anunnákki a
conhecem (X, 321-322): “dispuseram morte e vida, / da morte não revelaram o dia”. Se a
primeira epopeia foi vitoriosa – Gilgámesh, Enkídu e Shámhat – descobriram a sabedoria
do amor, a segunda epopeia os derrotaram, depois de conquistarem tudo, ficou a certeza
de que o tempo da morte é um segredo reservado aos deuses Anunnákki.
Passemos da Epopeia de Gilgámesh ao Livro Egípcio dos Mortos. Se o primeiro
foi a epopeia dos viventes em busca de conhecer e derrotar a face da morte, o segundo é
a epopeia dos outros em direção à vida que se inicia na morte. A epopeia egípcia reúne
as preces que os mortos dirigem aos deuses para que seus nomes não sejam apagados no
além. As menções que nos interessam são as que identificam as formas do tempo quer na
vida quer na morte, quer no tempo quer na eternidade, em vistas de superar o reino dos
mortos. Esse reino dominado por Osíris, aquele que governa as duas terras (volume I,
Hino a Râ): “salve, meu senhor, que passas através da eternidade, cujo ser é eterno. Salve,
Disco, senhor dos raios de luz, levantas-te e fazes viver toda a humanidade. Deixa que eu
te contemple todos os dias ao romper da manhã”. A divindade solar ilumina os dois
mundos – o dos vivos e o dos mortos – pois encontra-se para além do tempo, Osíris reina
na eternidade. Nela, é contemplado por aqueles que se deitaram na sombra deste mundo,
todos o contemplam como “tu que és Eternidade e Perpetuidade” (volume I, capítulo xv,
nº 5, doravante: I, xv, 1). Embora as passagens sejam breves, pode-se compreender a
relação entre os deuses e os humanos na narrativa: aqueles vivem eterna e perpetuamente,
enquanto estes, vivem no tempo e podem apenas contemplar os deuses na eternidade. Há
uma divisão radical entre o mundo humano e o divino, os vivos e os mortos.
A outra divisão que aparece entre os deuses egípcios remete ao curso do tempo:
“ontem é Osíris e Hoje é Râ” (II, xvii, 16). O tempo passa a ser determinado pela presença
e controle dos deuses. Osíris apresenta-se como filho de Râ e diante de Horo (ou Horus),
o deus por vir. A diferença que se instaura entre eles é a relativa à vigência de seu domínio
do tempo: embora Osíris Nu seja o profeta de milhões de anos, ainda assim permanece
com sua identidade marcada “Sou Ontem”; ao passo que Râ impera sobre o Hoje, o tempo
presente está sob seu controle irrestrito; o amanhã, porém, pertence ao que está por vir
(II, xlii, 26-27): “salve, ó Ovo! Sou Horo, o que vive por milhões de anos, cuja chama
brilha sobre vós e traz vossos corações para mim”. Ontem, Hoje e Amanhã são as figuras
dos deuses soberanos que dominam o tempo, Osíris, Râ e Horo. Não dominam o tempo
por viverem nele, mas por estarem acima de todo tempo, na eternidade e na perpetuidade.
Por isso, o escriba Nebseni afirma (II, lxii, 7): “tempo ilimitado, sem começo nem fim,
foi-me dado; herdo a eternidade, e a perpetuidade me foi concedida”. Eis a expressão que
identifica Osíris no capítulo sobre a água no mundo inferior. Em resumo, todo o tempo
pertence aos deuses Osíris, Râ e Horo – o passado, o presente e o futuro – estão sob seu
poder e nada escapa ao seu domínio (II, lxiv, 2-5):
(2) Sou Ontem, Hoje e Amanhã, e (tenho) o poder (3) de nascer pela segunda vez; (sou) a divina
Alma oculta que criou os deuses, e dá repastos celestiais aos cidadãos do Tuat (mundo inferior),
de Amentet e do céu. (Sou) o Leme (4) e do Este, Possuidor de dois Rostos Divinos em que se
veem os seus raios. Sou o Senhor dos homens levantados; (o Senhor) que sai da escuridão, e (5)
cujas formas de existência são da casa em cujo interior se acham os mortos.
Eis uma expressão central no capítulo sobre como sair ao mundo inferior, ela está
novamente inserida no capítulo sobre como sair à luz. Isso significa que encontrar a saída
do mundo das trevas ou chegar ao reino da luz depende diretamente do conhecimento do
tempo, não apenas do tempo dos vivos, mas sobretudo do tempo dos deuses, do tempo
governado pelos deuses, o Ontem, o Hoje e o Amanhã. Dessa forma, a narrativa egípcia
deifica o próprio tempo à medida que o identifica à trindade de deuses imortais e
perpétuos: Osíris, Râ e Horo. De onde se segue a descrição do mundo divino representado
no pedestal dos deuses-leões do horizonte, onde a coluna do tempo está situada entre os
deuses do Ontem e do Hoje, no início do terceiro volume do Livro. Nele, a luta tratava é
para que os humanos não venham a morrer uma segunda vez. Isso significaria a extinção
completa do seu nome durante o julgamento que todos ao chegarem ao reino dos mortos.
O coração humano é colocado sobre a balança da justiça e deverá pesar menos que uma
pena, caso contrário, nenhuma esperança restará àquele que a vida chegou ao fim.
A esperança que resta aos mortos é que não sejam destruídos na segunda morte
nem sejam condenados ao desaparecimento durante seu julgamento. Além disso, esperam
que a memória de sua vida permaneça tanto para contemplarem a humilhação dos seus
inimigos quanto para permanecerem na recordação de seus amigos. Por isso, os mortos
recitam a prece de Osíris escrita por Ani diante da morte (III, clxxv, 17-26):
(17) Seja-me concedido chegar aos príncipes sagrados, pois estou acabando com todo o mal que
pratiquei, desde o tempo em que esta terra veio a surgir de Nu (18), quando saltou do abismo
aquífero exatamente como era nos dias de antanho. Sou o Destino (ou o Tempo) e Osíris, e operei
minhas transformações [tornando-me] semelhante a diversas (19) serpentes. O homem não
conhece, e os deuses não podem ver, a dupla beleza que fiz para Osíris, que é maior do que todos
os deuses. Dei-lhe (20) a região dos mortos. E efetivamente, seu filho Horo está sentado no trono
do que habita o Lago do Fogo Duplo, como seu herdeiro. Fiz que ele fosse entronizado (21) no
barco de milhões de anos. Horo está confirmado no seu trono, (entre os seus) amigos e tudo o que
lhe pertencia. Na verdade, a alma de Set, que (22) é maior do que todos os deuses, partiu. Seja-me
concedido amarrar-lhe a alma no barco divino (23) à minha (?) vontade, e tenha (ele) medo ao
divino corpo. Ó meu pai Osíris, fizeste por mim o que teu pai Râ fez por ti. More eu na terra
permanentemente; (24) conserve eu a posse do meu trono; seja forte o meu herdeiro; floresçam
minha tumba e meus amigos que estão sobre a terra; (25) sejam meus inimigos entregues à
destruição e às algemas da deusa Serc. Sou teu filho e Râ é meu pai. (26) Para mim, além disso,
fizeste vida, força e saúde. Horo está confirmado no seu trono. Consente que os dias da minha vida
recebam adoração e honras.
curso do tempo: o Ontem identificado com Osíris, o Hoje identificado com Râ e o amanhã
identificado com Horo. O curso da vida na terra é seu Destino. Não há como viver no
mundo gozando da eternidade nem da perpetuidade que pertencem apenas aos deuses. Ao
contrário, tudo o que existe no mundo é governado irremediavelmente pelo Tempo, esse
Destino que governa todas as coisas. O mundo dos vivos rege-se pelo Tempo ou Destino.
O mundo dos deuses rege-se pela eternidade e perpetuidade. Para os vivos, tudo está no
curso do destino e nada escapa à corrosão temporal do passado, presente e futuro. Para os
deuses, nada está no curso do tempo, pois existem eterna e perpetuamente, portanto livres
do curso do tempo. Nesse sentido, o mundo divide-se em tempo e eternidade, mortais e
imortais, finitos e perpétuos. O ponto de separação entre os dois mundos é a distinção de
tempo e eternidade. Não se trata de um mundo dual, mas de um mundo que segue desde
o mundo dos mortais ao dos imortais – do tempo à eternidade – tal como se afirma no
título original da obra, transliterado rw nw prt m hrw, que significa o Livro do surgimento
do Dia ou o tempo da vida divinizada.
A terceira e última narrativa mítica do tempo encontra-se na tradição grega desde
a Teogonia de Hesíodo à Ilíada e Odisseia de Homero, além de tantos outros escritos de
natureza filosófica. Na mitologia grega, a presença de deuses formou um teatro de ciúmes
entre os seres divinos e os humanos, embora nos interessem apenas alguns pontos do todo.
Vejamos: no princípio era o Caos. Dele, nasceu a Terra que, por sua vez, engendrou Urano
ou o Céu estrelado e as Ondas do Mar. Terra e Céu não tinham como gerar novos seres.
Aí então, entra Éros, o velho Amor, que permitiu a fecundação da Terra pelo Céu, visto
este recobria aquela, mas não a fecundava e, “assim, o mundo se constrói a partir de três
divindades primordiais: Kháos, Gaîa e Éros, e, em seguida, de duas entidades paridas por
Terra: Ouranós e Póntos. Eles são ao mesmo tempo forças naturais e divindades”
(Vernant, 2000, p. 20). Graças à união de Terra e Céu por obra do Amor, nas seis Titãs e
seis Titânidas. O mais novo dos Titãs é “Crono dos pensamentos marotos” (Krónos). A
relação entre Terra e Céu deixa-a infeliz, pois Céu a sufoca, impossibilitando-a de dar à
luz seus filhos. É nesse momento que o filho caçula da Terra (Crono) decide ajudá-la.
A Terra forja uma foice de metal e entrega para Crono. Quando o Céu vai fecundá-
la novamente, Crono decepa o membro viril do Céu e o atira ao mar. Das Ondas do Mar
nasce a mais bela das deusas – Afrodite – e, de seus passos na areia, nascem o jovem Éros
e o Desejo (Éros e Hímeros). Depois de decepado, o Céu se contrai, abrindo espaço para
os filhos da Terra saiam do seu útero. Nesse momento, nascem os filhos do Caos – Érebo
Como fazer? Zeus está sozinho. Mais uma vez, é graças à astúcia que conseguirá, graças a essa
astúcia que os gregos chamam mêtis, ou seja, essa forma de inteligência que sabe combinar de
antemão procedimentos de vários tipos para enganar a pessoa que se tem diante de si. A astúcia de
Zeus consiste em fazer Crono tomar um phármakon, ou seja, um remédio, apresentado como um
sortilégio, mas que na verdade é um vomitório. É Rea que lhe oferece. Mal Crono o engole, começa
a vomitar. Primeiro, pedra, depois Héstia, que é a primeira a aparecer, depois toda a série de deuses
e deusas, no sentido inverso de suas idades.
o universo ganhou novo estatuto (Vernant, 2000, p. 56): “Zeus ocupa o trono do universo.
Agora o mundo está ordenado. Os deuses disputaram entre si, alguns triunfaram. Tudo o
que havia de ruim no céu etéreo foi expulso, ou para a prisão do Tártaro ou para a terra,
entre os mortais”. A eternidade se torna o lugar dos deuses bem-aventurados, enquanto a
temporalidade reúne o espaço das dores e males sob o império do efêmero. O eterno vence
o tempo através da vitória de Zeus sobre Crono. Há aqui uma reversão da ordem temporal
em benefício da ordem eterna. O polo do mundo muda de direção até que renasça a busca
da dimensão temporal por parte dos filósofos como veremos adiante.
1
No início Deus criou os céus e a terra. 2 E a terra estava sem forma e vazia e a escuridão pairava
sobre a face do abismo, e o espírito de Deus pairava sobre a face das águas. 3 E Deus disse que
haja luz / e houve luz. / 4 E Deus viu que a luz era boa / e Deus dividiu a luz e a escuridão. 5 E Deus
chamou à luz dia e à escuridão noite. / E houve uma noite e uma manhã, primeiro dia.
poema, seguido por uma investigação sobre a condição da vida humana e se estende do
primeiro ao sexto capítulo. A partir daí, inicia-se a terceira parte onde se reconhece uma
leitura cética sobre a possibilidade humana de compreensão e domínio completo de seus
próprios atos, e igual incerteza sobre o que virá depois da vida. A última parte completa-
se com um novo poema. Em resumo, há dois argumentos que perpassam o texto: um que
aconselha comer, viver e celebrar a vida, pois nada mais resta ao ser humano, e outro que
está expresso no célebre ceticismo do autor que perpassa todo o texto (1, 2): “vaidade das
vaidades, tudo é vaidade” (habel habalim hakkol habel). Novamente, esse texto interessa
a esta análise por integrar um poema sobre o tempo que está disposto em nove versículos
e merecem ser lidos na íntegra (3, 1-9):
1
Para tudo há uma ocasião certa; / há um tempo certo para cada propósito / debaixo do céu: / 2
Tempo de nascer e tempo de morrer, / tempo de plantar / e tempo de arrancar o que se plantou, / 3
tempo de matar e tempo de curar, / tempo de derrubar e tempo de construir, 4 tempo de chorar e
tempo de rir, / tempo de prantear e tempo de dançar, / 5 tempo de espalhar pedras / e tempo de
ajuntá-las, / tempo de abraçar e tempo de se conter, / 6 tempo de procurar e tempo de desistir, /
tempo de guardar / e tempo de jogar fora, 7 tempo de rasgar e tempo de costurar, / tempo de calar
e tempo de falar, / 8 tempo de amar e tempo de odiar, / tempo de lutar e tempo de viver em paz. / 9
O que ganha o trabalhador com todo o seu esforço?
O poema segue uma métrica perfeita de alto a baixo e revela o quanto a influência
da cultura helênica lhe era próximo. Isso se evidencia pelo próprio título – Qohélet – uma
vez que o nome significa O-que-sabe. Com a aproximação entre as culturas semita e a
helênica, o autor não queria deixar-se dominar pela cultura grega, por isso “o livro do
Qohélet só pode ser entendido como uma tentativa de aproveitar tudo quanto possível da
interpretação do mundo grego, sem renunciar, no entanto, à sabedoria israelita, ou seja,
ao seu estatuto próprio” (Campos, 2004, p. 24). O autor do poema emprega formas da
narrativa grega dentro de sua expressão, mas não se deixa dominar por ela. A sequência
argumentativa lógica e retórica presente no texto certamente provém da herança grega,
porém o que está em questão – a filosofia subjacente ao texto – é toda israelita (Campos,
2004, p. 25). É nesse enquadramento que se deve interpretar o poema citado.
Ele inicia-se com uma expressão que não poucas vezes causa confusão entre quem
se dedica a traduzir: “para tudo há uma ocasião certa (z^eman); / há um tempo certo (’eth)
para cada propósito / debaixo do céu”. Não é raro encontrar uma distinção expressiva
entre os termos que traduzem z^eman e ’eth, embora o primeiro termo signifique “tempo
determinado, tempo marcado, tempo” e ’eth signifique, por sua vez, “tempo, tempo usual,
tempo de um evento, tempo de uma experiência” (Strong, 2002, posições 280 e 818). O
que leva à necessidade de uma reavaliação do verso inicial que poderia ser entendido com
“para tudo há um tempo determinado; há um tempo certo para cada propósito debaixo do
céu”. Com isso, o poema reafirma que tudo que acontece debaixo do céu, está dentro da
ordem temporal e nada escapa dessa lógica. O resultado dessa compreensão implica que
tudo o que ocorre durante a vida humana – nascer e morrer, plantar e colher, matar e curar,
derrubar e construir, chorar e rir, prantear e dançar, espalhar e juntar, abraçar e conter,
procurar e desistir, guardar e jogar, rasgar e costurar, calar e falar, amar e odiar, lugar e
pacificar – acontece dentro do tempo e sob seu poderio. Portanto, nada escapa ao tempo.
O curso da vida humana reduz-se ao limite estritamente temporal, na compreensão de
Qohélet. Uma vez que o poema termina no oitavo verso, o nono serve apenas como uma
forma de reafirmação do ceticismo do autor: “o que ganha o trabalhador com todo o seu
esforço?” A resposta será sempre a mesma: quanto maior a fadiga, maior o sofrimento.
O ponto em questão serve para explicitar algo que aparecerá na tradição cristã no
curso da assimilação da herança dos escritos semíticos. A tradução da Septuaginta traz
uma leitura mais interpretativa que literal do poema. Isso se deve à tradução do primeiro
versículo – para tudo há uma ocasião certa (z^eman); / há um tempo certo (’eth) para cada
propósito / debaixo do céu – a partir de uma tradução interpretativa que entende z^eman
como chrónos e ’eth como kairòs. Assim interpretado, o verso ganha outro sentido: “para
há um tempo; há uma ocasião conveniente para cada propósito debaixo do céu”. Opera-
se uma transformação do texto à medida que o tempo cronológico fica como tempo geral
para o curso do mundo, e o tempo dos acontecimentos particulares são tratados como uma
ocasião conveniente ou “o tempo da graça”, literalmente, o kairòs. A versão grega que
está na Septuaginta opera com uma teologia do tempo subjacente à tradução. A partir daí,
o tempo seria o tempo do mundo, enquanto todas as coisas que acontecem ao ser humano
ocorreriam no tempo da graça. Porém, não é isso parece dizer o texto na versão hebraica.
O último escrito que queremos mencionar nesta parte é o Teofrasto que é um grego
contemporâneo à redação do Qohélet. Enquanto sucessor de Aristóteles na direção de sua
escola, Teofrasto teve uma produção escrita extraordinária com 157 livros, conforme as
listas mais comuns de autoria que lhe são atribuídas. Destacou-se tanto como um exímio
representante da divulgação científica em seu tempo quanto como representante de certo
pessimismo difuso na sociedade, como se nota na resposta que deu aos seus discípulos na
hora de sua morte (Diógenes Laêrtios, V, 2, 41 [2014, p. 139]):
Nada tenho a declarar em particular, a não ser que, como a vida demonstra, muitos prazeres são
mera aparência. Como efeito, mal começamos a viver e logo morreremos. Nada é mais nocivo que
a ambição desmedida. Desejo-vos boa sorte, e renunciai à minha doutrina, que custa muitas
fadigas, ou dedicai-vos a ela denodadamente, porquanto a glória é grande. A vida proporciona
mais decepções que vantagens. Mas, agora que já não é possível deliberarmos sobre a conduta
reta, escolhei vós mesmos o que deveis fazer.
presentes em seu tempo. Nenhum deles espera nada de novo debaixo do sol. É dentro
dessa demarcação que Teofrasto trata da vaidade (capítulo XXIII):
Pode-se definir a vaidade ou presunção: ostentação de bens que não existem. O vaidoso ou
presunçoso é assim: estando no porto do Pireo [em Atenas], conta aos estrangeiros as muitas
riquezas que tem no mar. Fala longamente do dinheiro que tem distribuído como prêmio, em larga
quantidade, e quanto rendimento tem recebido. (...) Acrescenta que investiu tudo isso em esmolas;
e não contabiliza os gastos que teve ao enviar sua esquadra, nem considera em quantos cargos
públicos serviu.
Esse vaidoso vive como se o tempo e o dinheiro lhe fossem infinitos, como se não
lhes custassem nada, quando a realidade é outra: “o tempo custa muito caro”, não apenas
para ele, mas para os seres humanos que habitam na face da terra. Essa é a grande lição
que Teofrasto deixa à posteridade. Ao fim da vida, tudo lhe parece vaidade e não há mais
o que esperar: “nada tenho a declarar em particular, a não ser que, como a vida demonstra,
muitos prazeres são mera aparência”. O fluxo inexorável do tempo leva a reconhecer que
todas as coisas são vãs dada a brevidade da vida. Ninguém poderá pagar seu preço sequer
para lhe estender um segundo a mais. Qohélet e Teofrasto sabem que a vida humana está
condenada a pagar o preço altíssimo de sua subordinação à lógica temporal, por isso vazio
também o esforço do trabalhador que quer ter todos os bens. O tempo da vida não pertence
ao domínio humano, pois ele é fugaz: “mal começamos a viver e logo morreremos”.
V. O TEMPO HISTÓRICO COMO FORMA DO DISCURSO FILOSÓFICO
O tempo dos mitos soa bem mais interessante que o tempo da história. No tempo
dos mitos, os deuses responsabilizam-se pelo bem que acontece e assumem as dores de
quem chora. Em tempos alegres não custa reconhecer quanto faz bem o curso do tempo.
No tempo das dores, sempre queremos dividir as responsabilidades com alguém. Não há
muita dificuldade em se reconhecer como responsável por grandes conquistas nem se dar
ao luxo de viver os melhores momentos da vida, afinal, o ser humano tem um pendor
especial pelo desejo de heroísmo. Dificilmente alguém se questiona pelas razões de sua
própria felicidade. Porém, como a vida não traz apenas alegrias, o tempo das dores parece
mais propício à reflexão. Não é raro perguntarmos quais são as razões ou de quem é a
responsabilidade pelas dores que nos afligem. Sempre nos colocamos no lugar do justo
que sofre e queremos saber as razões do sofrimento, não porquê essas razões sejam tão
importantes, mas porquê queremos nos livrar logo dos sofrimentos. Não é incomum fazer
o jogo de transferência de responsabilidade atribuindo aos deuses e ao mundo as supostas
causas de nosso sofrimento. Quando se acredita em alguma espécie de redenção, não tarda
reclamar aos deuses que socorram em meio ao sofrimento. Quando não, faz-se dos deuses
os responsáveis pelo infortúnio alheio com a culpa posta na vontade divina.
O crente recorre ao divino para agradecer algumas vezes, mas recorrentemente se
lembra de pedir socorro em meio ao infortúnio. Para o cético, a resposta parece demorar
um pouco mais: a alegria vem passageiramente e a dor não traz explicação nem desculpa.
Os tempos felizes e os sombrios alternam-se sem outra justificativa que o próprio curso
do mundo. Não há como responsabilizar outra pessoa pelo próprio infortúnio, exceto a si
mesmo e, nesse caso, cabe apenas assumir a própria responsabilidade. O que não está dito
nessa relação é uma parte tão bela quanto difícil: o crente agradece a bênção e pede auxílio
e clemência na dor, mas precisa se haver também com a responsabilidade pelas ações que
podem ou não agradar aos deuses. Se lhe vem a dor, não custa chegar à resposta que lhe
provém da culpa pelos erros passados. O cético não enfrenta o consolo diante da dor, mas
também não sofre com a suposta responsabilidade. Ele simplesmente reconhece que o
resultado de suas ações decorre de sua própria decisão, a saber, do gozo de sua liberdade
e da forja da responsabilidade. Enquanto o crente sofre com a culpa e o medo do erro, o
cético luta com sua liberdade sendo levado a assumir sua completa responsabilidade.
Essas duas formas de compreensão do tempo – o tempo da redenção e o tempo da
vida sem redenção – habitam as diversas formas de discurso, desde a hipócrita frase “foi
a vontade de Deus” diante do sofrimento alheio até a não menos hipócrita “Deus fará”. O
certo que o ser humano parece buscar continuamente dividir sua responsabilidade com o
deus que lhe escuta. Quer sempre se safar das culpas e quer que o bom deus o ouça, mas
não se importa se esse mesmo deus esquece seus inimigos. Basicamente, a luta humana
se resume a diminuir a dor e aumentar o prazer pessoal, porque não é incomum julgar que
a vida é curta demais. Quando estamos diante da dor inevitável da morte é difícil manter
a retórica da descrença. É nessa condição que se busca com maior intensidade a possível
condição que prolongue o tempo para além do presente tal qual diz João Guimarães Rosa
na carta de 27 de outubro de 1945 dirigida a Antonio Azeredo da Silveira (s/d, p. 8):
“pessoalmente, penso que chega um momento na vida da gente, em que o único dever é
lutar ferozmente por introduzir, no tempo de cada dia, o máximo de ‘eternidade’”.
Guimarães Rosa sabe que poucas ações humanas permanecem ao findar da vida.
Depois do breve percurso que separa o nascimento da morte, resta apenas o silêncio e é,
justamente, diante desse silêncio e da ausência completa de manifestação de emerge na
Pensar a filosofia é tudo, menos uma tarefa simples. A distância que nos separa
dos antigos e o turbilhão de análises que receberam ao longo dos séculos torna a filosofia
antiga um continente tão povoado quanto difícil de discernir o verdadeiro valor dos textos.
Por isso, abandonamos a ilusão de fazer uma leitura extensiva de comentadores, detendo-
nos apenas em um ou outro comentário que evidencia as diferenças e asperezas entre os
filósofos. Não se trata de mostrar a veracidade ou falsidade de uma interpretação, mas de
explicitar as arestas e as especificidades que compõem as diferenças entre eles e, no caso
de Platão e Aristóteles, esse ponto não é de menor relevância, dada a relação tensa de
discipulado infiel do Estagirita em relação ao seu mestre.
Há duas obras de Platão que tratam do tempo, o Timeu e o Político, sendo aquele
o mais conhecido e referendado sobre o tema. O enredo do Timeu não traz novidade para
o leitor atual: ele dá continuidade ao diálogo socrático com Timeu, Crítias e Hermócrates.
No dia anterior ao diálogo precedente em que eles haviam tratado a constituição da cidade
ideal expressa na República, Crítias chama atenção para a necessidade de trazer a cidade
justa para a realidade e inicia a reconstrução da narrativa recordando a herança egípcia
que chegou aos povos gregos (Platão, Timeu 26d). Partem, então para discussão da
herança poética de Sólon quando de sua visita ao Egito. Lá ele conheceu a história da
cidade ideal de Atlântida que seria guerreada por Atenas. Feito esse preâmbulo, passam
à análise da gênese do universo em vistas de entender o que seria uma cidade ideal: aquele
tema ocupa o centro do diálogo. Estabelece-se a descrição do universo dualmente com a
distinção entre o imutável e o mutável, a razão e a sensação, o mundo eterno e o mundo
físico. Este constituindo o espaço da mudança, da corrupção, da desordem e do devir,
aquele, o espaço da estabilidade, da incorruptibilidade, da ordem e da eternidade. Feita a
distinção entre o mundo eterno e o mundo físico, cabe entender como os dois se conectam.
Um dos pontos de convergência entre os dois mundos é, justamente, o tempo.
A primeira menção ao tempo aparece de forma colateral. Trata-se da referência ao
esquecimento promovido pelo tempo e à destruição da humanidade que pesa na história
grega e que foi contado a Crítias pelo seu avô. Crítias tomou conhecimento da grandeza
de Sólon e da herança egípcia em sua poesia, porque seu avô lhe contou narrou a viagem
do sábio ao antigo Egito. Por isso, eles se decidem a “narrar de memória que grandes e
admiráveis feitos dos tempos antigos desta cidade” deveriam ser conversados para incluir
na história o justo louvor à deusa no dia de sua festa (Timeu 21a). Já nessa passagem fica
explícita a função do diálogo: narrar e conservar a memória da cidade antiga. Sem narrar,
a história simplesmente caí no esquecimento. É graças à narrativa que povos conservam
aquilo que o tempo reduziria ao silêncio e ao esquecimento. O preço cobrado pelo silêncio
e pelo esquecimento é demasiado alto para qualquer cidade: um povo sem história torna-
se refém de qualquer discurso tirano. Essa era a condição da Grécia naquele momento,
por isso o sacerdote egípcio que conversava com Sólon o adverte frontalmente quando ao
risco da ausência de tradição que pesa sobre os seus conterrâneos (Timeu 22b):
Foi então que um dos sacerdotes já de muita idade lhe disse: “Ó Sólon, Sólon, vós, Gregos, sois
todos umas crianças; não há um grego que seja velho”. Ouvindo tais palavras, Sólon indagou: “O
que queres dizer com isso?” “Quanto à alma, sois todos novos – disse ele. É que nela não tendes
nenhuma crença antiga transmitida pela tradição nem nenhum saber encanecido pelo tempo”.
se mostra capaz de realizá-la perfeitamente. Com isso, Platão identifica as duas dimensões
determinantes do mundo: a dimensão visível, sempre sujeita à corrupção e aos vícios, e a
invisível, sempre conversada como um ideal regulador na vida no mundo (Timeu 37a).
A mistura entre o visível e o invisível, o temporal e o eterno, o ideal e o real não
alcança uma identificação cabal, pois é preciso reconhecer que o mundo está constituído
pela ação de seres humanos. Em virtude de sua condição, não por sua escolha nem pela
sua maldade, o humano jamais realizará a plenitude da justiça, pois todos os indivíduos
presente no mundo estão sujeitos a condição de meros “seres” e, nessa condição, efetiva-
se a conjunção das “três partes da natureza do Mesmo, do Outro e do Ser, dividida e unida
segundo a proporção, ela gira em torno de si própria e, sempre que contacta com qualquer
coisa cujo ser pode ser dividido ou com qualquer coisa cujo ser não pode ser dividido, é
movimentada na sua totalidade” (Timeu 37a). Por melhor que seja o equilíbrio natural das
realidades presentes no mundo, a junção das três naturezas inviabiliza o equilíbrio perfeito
entre o Mesmo, o Outro e o Ser, porque suas naturezas são radicalmente distintas. Dito
de forma breve, entre o eu, o tu e o ele não há condição de pensamento que seja capaz de
produzir justiça em perfeição para todos, pois o que nos une é justamente a diferença de
nossas naturezas. A beleza do mundo decorre da harmonia das proporções, mas nenhuma
decisão será perfeitamente proporcional a ponto de realizar a perfeição da justiça humana.
Por isso, o melhor que faz é justamente respeitar o espaço da diferença entre as partes, tal
como Marcelo Pimenta Marques nos mostrou em Platão, pensador da diferença (2008).
O ponto extremo da relação entre o Mesmo e o Outro – eu e tu – encontra-se na expressão
discursiva quando o Mesmo se assume como o próprio verdadeiro, e o Outro é relegado
à condição de produtor de “opiniões e crenças firmes e verdadeiras” (Timeu 37b).
A distinção estabelecida entre o Mesmo e o Outro precisa ser entendida: sendo o
Mesmo aquele “que é ele próprio verdadeiro quer diga respeito ao Mesmo quer ao Outro”,
não restando muito espaço para a diferença. O Mesmo institui-se, nesse sentido, como o
lugar da própria verdade, enquanto o Outro permanecerá como aquele que gera “opiniões
e crenças firmes e certas (-
: Timeu 37b)”. O discurso do Outro sempre será entendido como dóxa e
písteis, a saber, “opiniões e crenças seguras e certas”, mas não se comparará ao discurso
do Mesmo que será “sempre verdadeiro ()” quer em relação a si (o
Mesmo) quer em relação ao Outro. Se assim é a alma do mundo, dividida entre o Mesmo
e o Outro, entre o que diz a verdade e aquele que fala de opiniões e crenças, precisa se
estabelecer uma ordem da verdade que faça a junção entre o Mesmo e o Outro, o invisível
e o visível, o tempo e o eterno, o estável e o mutável, o ser e o devir. Essa junção existe.
A condição eterna cabe ao mundo e aos deuses. Assim que foi engendrado aquele,
os deuses eternos queriam dar ao mundo um caráter semelhante ao do arquétipo eterno.
Isso dependia da possibilidade de os deuses tornarem o mundo também eterno, entretanto,
tal condição lhes era impossível em virtude da própria constituição mundana. A diferença
que há entre os deuses e o mundo permanecia intransponível (Timeu 37d): “acontecia que
a natureza daquele ser [o deus que engendrou o mundo] era eterna, e não era possível
ajustá-la por completo ao ser gerado”, por isso o mundo jamais poderia ser eterno dentro
da mesma condição e forma que o deus que o engendrou. Nesse ponto está estabelecida
a distinção radical entre o mundo e os deuses, o temporal e o eterno, o visível e o invisível,
o transitório e o permanente. É, então, nessa condição que o deus engendrador procura
um liame capaz de unir o visível ao invisível (Timeu 37d):
e o repouso). Como nosso interesse reduz-se à compreensão do tempo, ficamos por aqui
nesse diálogo, lembrando que esta exposição difere da de Rémi Brague que faz o tempo
depender do número do movimento celeste e não da imagem da eternidade: “o tempo é o
movimento do céu na medida em que este possui uma estrutura numérica” (Brague, 2006,
p. 69). Tal interpretação interessa ao autor na medida em que permite ressignificar a noção
do tempo não mais em relação à eternidade, mas em relação à percepção psicológica do
tempo. O resultado de sua interpretação se mostra na passagem da compreensão cósmica
do tempo à sua compreensão psicológica: “o tempo perde sua ligação com a ordem
quantificável do universo material. Ele se vincula, pelo contrário, à experiência do tempo
que é a da alma” (Brague, 2006, p. 79). Essa subjetivação da compreensão temporal perde
uma das notas centrais da interpretação do Timeu, a saber, ele como chave interpretativa
do cosmo. À medida que subjetiva o tempo, Rémi Brague afasta Platão da noção temporal
da antiguidade grega e o mergulha na interpretação modernizante de seu pensamento. Daí
ele pode concluir dizendo que “o tempo é o movimento ordenado do céu, que manifesta
a estrutura numérica da alma do mundo. Assim concebida, a alma produz o tempo em vez
de tomar consciência dele” (Brague, 2006, p. 79). Embora seja uma interpretação próxima
e favorável ao diálogo com o nosso tempo, ele afasta-se da compreensão cosmológica em
que Platão a propôs, pois depende da reescrita da própria definição que afirmaria ser o
tempo “a imagem móvel do céu” e não mais da eternidade.
Contrariamente, preferimos permanecer fiéis à expressão platônica, pois o tempo
não depende da produção subjetiva, mas é dele que precisamos tomar consciência graças
ao seu caráter irrepetível, irreversível e irretratável, uma vez que vida no mundo corre no
fuso do tempo, sem qualquer esperança de alcançar a eternidade, visto que esta os deuses
a reservam apenas para eles. É no fluxo tenso do tempo que desdobramos todas as nossas
decisões, que cuidamos ou desprezamos as ações, que administramos ou negligenciamos
o mundo. É nesse espaço em que vivemos e suportamos a tensão da desigualdade política
do mundo: “para não remontar ao livro IV da República [em uma leitura in extenso], no
qual Platão também relembra que toda cidade está dividida em duas cidades, a dos ricos
e a dos pobres, além do mais em guerra uma com a outra, sendo por isso um erro grave
tratá-las como constituindo um só Estado” (Arantes, 2023, p. 32-33). É no curso do tempo
que se operam as desigualdades e as injustiças políticas. Portanto, é nesse mesmo espaço
– dentro do tempo do mundo – que precisamos pensar a dimensão política da existência.
Para além de tudo o que Platão diz na República sobre a justiça, será no Político
que ele enfrentará a tarefa de descrever o perfil humano do administrador público. Cabe-
lhe a difícil missão de exercer um governo justo e bom e é, justamente por isso, que sua
missão é tão difícil. Como todo aglomeramento de indivíduos, todo Estado reúne pessoas
pertencentes às duas cidades – os ricos e os pobres – o político precisará encontrar uma
forma de equilibrar as contas ou administrar e praticar a justiça de forma equitativa. Nesse
ponto torna-se notória a dificuldade da missão, pois não se trata mais de definir a justiça
como Platão fez na República, mas de explicar como o político administrará justamente.
Não lhe basta conhecer o passado nem projetar ideais para o futuro, o político vive a tensa
relação de conciliar os interesses de ricos e pobres no agora das decisões. Depois de tratar
do reino dos outros animais e antes de abordar a legalidade necessária e a imperfeição das
constituições civis, Platão detém-se na análise do abandono humano no mundo sem poder
contar com o socorro dos deuses. Estes servem-lhe tão somente como exemplos para a
administração eterna como obra dos pastores divinos, por isso leiamos (Político 271d):
Acompanhaste bem a discussão. Mas a ordem a que tu te referes, em que tudo nascia de si mesmo
para servir aos humanos, não tem relação alguma com o ciclo ora em curso: pertencia ela ao ciclo
precedente. Nesse tempo, a direção e a vigilância de Deus se exerciam, primeiramente, tal como
hoje (), sobre todo o movimento circular, e essa mesma vigilância ainda existia localmente,
pois todas as partes do mundo estavam distribuídas entre os deuses encarregados de governá-las.
agora (). No tempo chamado hoje (), corre o curso das coisas do mundo dentro de
sua quádrupla condição: a primeira é a potencialidade, a partir de onde algo pode ou não
vir a ser, devir, existir ou não, e na mudança do não-ser ao ser que as coisas são geradas
mediante a passagem da potência ao ato, da possibilidade à atualidade; a segunda, refere-
se à condição da modalidade do ser: antes fui criança e agora sou adulto, não sendo uma
“criançadulto” ao mesmo tempo e sob a mesma forma; a terceira condição é a necessidade
e esta não comporta exceção, o que é necessário existe independentemente da fatalidade
e do acaso (), pois segue o imperativo da eternidade; por fim, a quarta condição pode
ser dita a contingência: tudo o que é contingente pode ser e deixar de ser a qualquer tempo
sem nenhuma explicação nem causa, pois o reino da contingência é governado pela força
do tempo. É dentro dessas condições que corre a vida humana, tanto sob o domínio do
devir quanto no domínio em que pode agir e inventar sua presença do mundo.
O ser humano pode, na dimensão estrita de sua vida, realizar sua potencialidade,
enquanto se trata de coisas que estão sob seu domínio, por exemplo, a ação política. Não
nenhuma determinação prévia que impeça ou o obrigue a agir desta ou daquela maneira.
Sua potencialidade lhe permite governar suas decisões. Na condição modal, esse humano
poderá determinar algumas coisas respeitando obviamente a impossibilidade de ser e não
ser a mesma coisa sob a mesma condição ao mesmo tempo, isto é, não pode ser criança e
adulto ao mesmo tempo e sob a mesma condição. Contra o reino da necessidade, nada se
pode fazer: não determinamos a hora de nascer nem determinamos a sorte que nos vem.
Estamos subordinados a viver sob o reinado da necessidade de alimentação, proteção e
reprodução, sendo vetado ao ser humano sobreviver fora de tais condições. Finalmente,
é na condição contingente que o curso da vida se passa. É aí que podemos agir e inventar
novas formas de existir. E, por isso mesmo, recorde-se que o reino da contingência está
sob a soberania do tempo. No reino da temporalidade, podemos agir ou não, inventar ou
não, novas formas de ser no mundo. Portanto, é no tempo que corre a vida humana e fora
dele não resta nenhuma possibilidade, pois só nos resta o agora.
Eis o cenário em que se enquadra o estudo do tempo na Física de Aristóteles. Não
se faz necessário sumariar a extensão da obra, cujos livros tratam respectivamente da (i)
o tema da física e os três princípios naturais (matéria, forma e composto); (ii) a natureza
como princípio do movimento, as quatro causas, e o acaso e a possibilidade; (iii) a
potência, o ato e o infinito; (iv) o lugar, o vazio e o tempo; (v e vi) as quatro formas do
movimento e a passagem ao contrário; (vii) o motor e o movente e (viii) o primeiro motor.
Em resumo, a Física não é outra coisa senão o estudo sobre a força da natureza, do devir
do mundo, da physis. No capítulo sobre o movimento, encontra-se o tratado do tempo
(IV, 10-14) cujo ápice está na passagem que, de alguma forma, veta toda compreensão
transcendental do tempo (IV, 11, 220a25): “o tempo é o número do movimento segundo
o anterior e o posterior (), e é
contínuo (por ser uma espécie de continuidade), isso é manifesto”.
A definição nada mais expressa que a consequência exata e direta da compreensão
da natureza enquanto physis (aquilo que desabrocha) somada à noção de movimento que
guia toda a obra. Não se trata de mudança () na natureza das coisas, mas da
passagem ou do deslocamento () entre este e aquele ponto, entre aqui e ali. Com
essa definição, o autor inscreve definitivamente o tempo dentro do limite do mundo, sem
qualquer possibilidade de reconciliação ou de capitulação da eternidade. Ainda que a
sucessão agoras constitua um contínuo, nem por isso se tem acesso ao passado nem ao
futuro. Sabe-se apenas que o instante inicial (t0) liga-se ao posterior (t1) por sucessividade
e assim continuamente. Porém, como o tempo não é uma substância, não há como segurar
ou controlar sua existência. Ao contrário, tal qual a natureza (physis) é o tempo que guia
a vida humana tanto em suas invenções quanto em suas ações. Não havendo a condição
de um tempo perfeito nem ideal, resta a possibilidade contingencial de agirmos no mundo
dentro dos limites de nossa inventividade. E como todos os seres mundanos são limitados
por sua condição contingencial, não há nenhuma ação necessária nem determinada prévia
ou providencialmente. Toda ação no mundo resulta da decisão do agente e, por óbvio,
traz o (b)ônus de sua completa responsabilidade.
Novamente, é Rémi Brague que apresenta uma interpretação que merece atenção:
seu argumento sugere que precisamos pensar a sucessão de instantes ou, na fórmula que
ele apresenta, “o tempo é o agora dos agoras”. A consequência será a distensão do tempo
entre o agora anterior (t1) e o agora posterior (tn), inserindo, nesse sentido, um contínuo
no próprio agora (Brague, 2006, p. 156): “a maneira pela qual o agora é ao mesmo tempo
uno e múltiplo é a explicitação da ideia de articulação”. O que, em primeiro lugar, abre
espaço para pensar o sendo ou a duração do instante e, em segundo, radicalizando esse
pressuposto, permitiria pensar o passado e o futuro (Brague, 2006, p. 157): “o tempo
‘avança’ pelo meio, pelo presente que ejeta ao mesmo tempo do passado e do futuro. O
‘movimento’ do tempo é centrífugo”. Com isso, Rémi Brague, de alguma forma, constitui
uma noção de tempo linear enquanto passado, presente e futuro, rompendo com a radical
compreensão aristotélica do tempo enquanto agora. Por isso, a interpretação mais coesa
parece ser aquela proposta em Fernando Rey Puente (2001, p. 192):
Com isso, Aristóteles está nos dizendo que estamos condenados a agir no presente.
Nem o passado nem o futuro nos pertencem. Resta apenas o presente como a condição
para se pensar e agir neste mundo. Desfeitas as ilusões das amarras do passado que fixam
o indivíduo na cadeia da lembrança, despojado da promessa de um futuro contingente que
não comporta qualquer traço de interesse em satisfazer o capricho subjetivo, o indivíduo
vive apenas o presente, o agora (), sem precisar se submeter nem ao drama da karma
não cumprido no passado nem se ocupar ansiosamente (preocupar) com o (in)fortúnio
que pode lhe advir. Assim, a ação e a inventividade humana estão libertas para sonhar e
criar um horizonte completamente novo de significados e realizações. Como não há uma
remissão do passado nem uma antecipação do futuro, o indivíduo encontra-se livre para
determinar seu presente, por isso “a natureza de uma atividade é completa a cada instante”
(Puente, 2001, p. 318). Tudo o que se realiza, realiza-se definitivamente, sem regresso
nem porvir. A consequência está na certeza de que tudo precisa e deve ser realizado em
sua completeza ou “instantaneamente como um todo”. O tempo requer a coragem de um
agente capaz de levar seu propósito e sua realização à plenitude, à perfeição. Não havendo
como refazer nem desfazer, antecipar nem anteceder o curso do tempo. Liberto do peso
do passado (karma) e igualmente livre da necessidade de se projetar tensamente para o
amanhã, resta ao indivíduo viver, agir e inventar seu próprio caminho no tempo presente
(), fazendo de cada decisão um ato completo, inextenso e sincrônico em que “início e
fim coincidem”, visto que chegou à plenitude: “a cada novo instante pensar é já ter
pensado e ver é já ter visto, ou seja, eles são atos e, ao ser atos, são sempre completos”
(Puente, 2001, p. 318). Realizando-se, assim, plenamente no prazer do agora.
lado, pela expansão helenizante da filosofia clássica e, por outro, pelo advento da noção
de uma nova temporalidade: a encarnação do Logos eterno de Deus dentro da história faz
com que uma nova temporalidade se institua. A referência mais rápida e direta ao fato se
faz sentir no calendário judaico-cristão que ainda seguimos e que distingue os séculos em
antes e depois de Cristo. Afinal, que mudança ocorre no tempo à luz do cristianismo?
A compreensão do tempo no pensamento agostiniano depende fundamentalmente
da crença na encarnação do Logos: (João 1,14). Sendo ele eterno,
fez-se tempo, e mudou a ordem de compreensão da temporalidade. A condição do tempo
passa a ser pensada não mais separada da condição eterna, ou seja, a temporalidade será,
doravante, compreendida a partir da eternidade. A polarização sai da dimensão temporal
para a eterna, sabendo que a esta precede e sucede aquela. Nessa compreensão, o eterno
antecede necessariamente o temporal, coexiste simultaneamente com ele e o sucede para
além do seu fim. Posto isso, tudo o que se passa no curso do tempo é mera finitude não
sendo possível registrar nada que seja estável. A polarização de importância passa do aqui
para o lá, o tempo para a eternidade, da finitude para a infinitude. O cristianismo, nesse
sentido, reverte a lógica do tempo à medida que coloca seu centro na eternidade. Tal como
Platão que dividia o Estado em duas cidades – a dos ricos e a dos pobres –, Agostinho
também dividirá a lógica do mundo em duas ordens (Confissões VIII, 10):
Todas essas verdades são boas, e lutam entre si, até que se tome uma decisão, que unifique a
vontade, antes dividida. Assim também, quando a eternidade agrada à nossa parte superior e o bem
temporal nos prende fortemente cá embaixo: é a mesma alma que, sem uma vontade plena, quer
um e outro desses bens. Por isso, dilacera-a uma grande dor; a verdade nos faz preferir a eternidade,
mas o hábito não quer abandonar os bens temporais.
Os que assim falam não te compreendem ainda, ó Sabedoria de Deus, luz das inteligências; não
compreendem ainda como é criado o que é criado por ti e em ti. Esforçam-se por saborear as coisas
eternas, mas seu espírito voa ainda sobre as realidades passadas e futuras. Quem poderá deter esse
pensamento, quem o fixará por um momento, para que tenha um rápido vislumbre do esplendor
da eternidade imutável, e a compare com os tempos impermanentes, para perceber que qualquer
comparação é impossível? Então veria que a sucessão dos tempos não é feita senão de uma
sequência infindável de instantes, que não podem ser simultâneos; que, pelo contrário, na
eternidade, nada é sucessivo, tudo é presente, enquanto o tempo não pode ser de todo presente.
Veria que todo o passado é repelido pelo futuro, que todo futuro segue o passado, que tanto o
passado como o futuro tiram seu ser e seu curso daquele que é sempre presente. Quem poderá
deter a inteligência do homem para que pare e veja como a eternidade imóvel, que não é futura
nem passada, determina o futuro e o passado? Acaso poderá realizar isso minha mão? Ou esta
minha língua, com a palavra, poderia realizar tal obra?
presente completo de tudo o que existe simultaneamente. Se o tempo caracteriza por uma
sucessividade de instantes, a eternidade se identifica como uma intensidade do presente.
Nela, não haverá nem antes nem depois, tudo acontece em máxima intensidade no agora.
Enquanto o tempo, morosamente, acontece apenas na sucessão de instantes. Com isso, o
que se alcança é certeza de Deus não está no tempo, antes, o tempo somente existe graças
à criação divina, por isso “precedes, porém a todo o passado na altura de tua eternidade
sempre presente; dominas todo o futuro porque está por vir e que, quando chegar, já será
passado. Contudo, tu és sempre o mesmo, e teus anos não passam jamais” (Confissões
XI, 13). O tempo não está lado a lado com Deus, pois ele foi criado por Deus. Este o fez
vir a ser e, portanto, Deus está fora da lógica do tempo, ele não se submete à força do
passado nem teme a espera do futuro, porque ele existe eternamente. O desdobramento
dessa compreensão é a certeza de “teu hoje é a eternidade” (Confissões XI, 13). O tempo
divino, se assim se pode dizer, é sempre o presente contínuo. O polo de referência passa,
doravante, para o divino que determina o temporal. Não se compreende o tempo a partir
de si mesmo, mas sempre em referência à eternidade. É nesse ponto que se põe a questão
que é o tempo? e a resposta também merece leitura in extenso (Confissões XI, 14):
Não houve, pois, tempo algum em que nada fizesses, pois fizeste o próprio tempo. E nenhum
tempo pode ser coeterno contigo, pois és imutável; se, o tempo também o fosse, não seria tempo.
Que é, pois o tempo? Quem poderia explicá-lo de maneira breve e fácil? Quem pode concebê-lo,
mesmo no pensamento, com bastante clareza para exprimir a ideia com palavras? E, no entanto,
haverá noção mais familiar e mais conhecida usada em nossas conversações? Quando falamos
dele, certamente compreendemos o que dizemos; o mesmo acontece quando ouvimos alguém falar
do tempo. Que é, pois, o tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei; mas se quiser explicar a quem
indaga, já não sei. Contudo, afirmo com certeza e sei que, se nada passasse, não haveria tempo
passado; que se não houvesse os acontecimentos, não haveria tempo futuro; e que se nada existisse
agora, não haveria tempo presente. Como então podem existir esses dois tempos, o passado e o
futuro, se o passado já não existe e se o futuro ainda não chegou? Quanto ao presente, se
continuasse sempre presente e não passasse ao pretérito, não seria tempo, mas eternidade. Portanto,
se o presente, para ser tempo, deve tornar-se passado, como podemos afirmar que existe, se sua
razão de ser é aquela pela qual deixará de existir? Por isso, o que nos permite afirmar que o tempo
existe é a sua tendência para não existir.
A resposta agostiniana à difícil questão sobre o que seja o tempo vem a partir da
distensão do mesmo: à medida que reconhece sua passagem rumo ao silêncio, emerge o
passado e, enquanto se espera seu devir em um momento qualquer, nasce a compreensão
do futuro. Se já aconteceu, existe como passado; se está à espera, existe como futuro,
sendo ambos incomensuráveis. O passado é acessível pela memória; o futuro, pela espera.
Ainda se tenha a impressão da velocidade acelerada do tempo, o período de um século
não passa em uma sucessão simultânea. Decorridos dois anos, há um passado de 730 dias
que, se não for registrado, se perde na lembrança vaga. Ao mesmo tempo, restam 98 anos
por vir. Sem pressa nem retardo, sem aceleração nem possibilidade procrastinar, o tempo
passa inexoravelmente desde a primeira hora do dia às outras 23 que ainda restam: “cada
hora intermediária tem atrás de si horas passadas e diante de si horas futuras. Mas também
essa única hora composta de fugitivos instantes; tudo o que dela correu é passado, e tudo
o que ainda lhe resta é futuro” (Confissões XI, 15). Tudo aquilo que já passou existe na
memória e constitui o modo de existência do passado. Tudo o que está por vir, ainda pode
ser revisto e refeito, mas também já existe no projeto, por isso Agostinho afirma que não
existe apenas o presente, “o futuro e o passado também existem” (Confissões XI, 17). O
presente é o primeiro dado do tempo que podemos mensurar e, nesse sentido, Agostinho
apresenta uma definição que recorda a de Aristóteles ao afirmar “quando o tempo passa,
pode ser percebido e medido” (Confissões XI, 16). Porém, ele rompe com tradição grega
à medida que estende a definição do tempo tanto em relação ao passado e ao futuro quanto
ao situá-lo em relação à criação: o mundo foi criado no tempo, mas antes de todo tempo,
Deus já existia na eternidade. A percepção do tempo ocorre como uma distensão da alma
(distentio animae) que capta a totalidade do presente (in Palacios et alii, 2002, p. 26):
É em seu ser na alma que o passado cresce e diminui o futuro, nela eles são, nela realmente cabe-
lhes ser: “In te, anime meus, tempora metior”, em ti, minha alma, meço o tempo (XXVII, 36, 1 cf.
34-36), pois nele é presente o que meço; ela espera, fixa a atenção, capta por esta, retém na
memória: ninguém nega que o passado já não é e que não é ainda o futuro, na memória, porém, e
na alma, cabe-lhes um ser que me permite medi-los.
e, na segunda passagem, a expressão é ainda mais explícita ao render graças ao criador (i,
20): “Senhor, graças te sejam dadas, excelso e ótimo criador e ordenador do universo,
nosso Deus, mesmo que te limitasses a me fazer apenas menino. Porque então, eu já
existia, vivia, sentia, cuidava da minha integridade, eco de tua profunda unidade, fonte de
minha existência”. Se criar e ordenar o universo cabe a Deus, Agostinho atribui-lhe nada
menos que ser a fonte da existência de cada indivíduo. Com isso, tudo o que existe – quer
os astros do universo quer os indivíduos ínfimos – foi criado, ordenado e vieram a existir
por obra de um criador. De onde se segue que a explicação última para aquilo que existe
não depende mais de si, mas de uma origem externa criadora, um Deus onipotente. E, se
tudo foi criado pela vontade desse criador, antes que existissem, somente ele existiria. O
que veio a ser, teve sua origem nele, segundo a obra da criação. Nesse caso, nem os astros
nem o tempo são pensados como eternos, eterno será apenas o criador, tudo o mais, será
visto como obra criada temporalmente pelo designo do criador.
A compreensão humana estará, segundo a visão agostiniana, segmenta-se, de um
lado, pelo reconhecimento da finitude de toda a obra da criação e, de outro, reconhece-se
a exclusiva eternidade apenas do criador. O tempo da criatura está limitado ao horizonte
do mundo, enquanto o criador frui eternamente a existência, para além do mundo. Donde
resulta uma visão dual para a criatura condenada à temporalidade. A única forma dela se
encontrar com a condição eterna divina será a redenção futura – a parousia – mediante a
visão beatífica. Dentro do horizonte do mundo, resta à condição humana suportar o fluxo
do presente entre o presente do passado (a memória e a narrativa de tudo o que já existiu)
e o presente do futuro (a promessa e a profecia como esperança de um vir a ser divino).
Ainda assim, por mais que espere do passado e do futuro, o tempo da criatura humana é
vivido enquanto experiência mundana de sua fragilidade que se revela, antes de tudo, no
reconhecimento da pequenez humana. A mudança operada na compreensão do tempo na
cosmovisão cristã se deve a dois fatores: o primeiro referente ao fundamento metafísico
do mundo que, doravante, derroga a ideia grega de mundo eterno, e o pensa como mundo
criado e, ontologicamente, dependente do ser divino (Confissões X, 6): “interroguei a
imensidão do universo acerca de [quem é] Deus, e ele me respondeu: ‘não sou eu, mas
foi ele quem me criou’”. Logo, o fundamento último do mundo passa a ser um ponto
externo ao mundo, tanto na ordem do ser (o criador e a criatura) quanto na ordem do
tempo (o criador é eterno e a criatura, temporal). O segundo fator refere-se à condição da
criatura: ela se reconhece dependente do ser divino e condenada à temporalidade, a qual
doação de si àquele que a criou. Dito de forma breve, o movimento do criador à criatura
é o exitus, pois ela procede do criador; e o movimento da criatura ao criador é o reditus,
pois só lhe resta responder ao dom criação com sua total generosidade. Eis a condição
para se compreender a dimensão do tempo no pensamento de Tomás de Aquino.
Ele trata a questão do tempo na primeira parte da Suma teológica ao expor o tema
da eternidade divina. A questão está dividida em seis artigos, a saber, que é a eternidade,
se Deus é eterno, se a eternidade é devida a Deus, se há diferença entre tempo e eternidade,
a diferença entre evo (aevum) e tempo, e se o evo existe tal qual o tempo e a eternidade.
Para uma compreensão adequada do tema, façamos uma leitura extensiva da questão parte
a parte, considerando todos os artigos. O primeiro artigo investiga se “é ou não correto
definir a eternidade como a posse total, simultânea e completa da vida interminável”. E a
resposta de Tomás não deixa a menor dúvida: ele começa dizendo que o conhecimento
da eternidade se inicia com a compreensão do tempo e cita textualmente a definição de
Aristóteles. A primeira consequência da retomada da definição aristotélica é reconhecer
que o tempo implica movimento, mudança, passagem, enquanto “o conceito de eternidade
consiste na concepção de uniformidade do que está absolutamente isento de movimento”.
A segunda consequência, se o tempo é a medida do movimento, então ele precisa ser visto
a partir de um princípio e em relação a um fim, senão seria um movimento eterno e ele,
por tabela, também seria eterno. Aquilo que é eterno, é essencialmente imutável sem ter
princípio nem fim. Daí, Tomás de Aquino formula sua definição de eternidade: “primeiro,
refere-se àquilo que se dá na eternidade e que é interminável, isto é, carente de princípio
e fim (àquilo que se refere ao término). Segundo, refere-se à própria eternidade como o
que é carente de sucessão, isto é, sendo toda ela simultânea” (Suma teológica I, q. X, art.
1). Portanto, a eternidade é uma espécie de contínuo sem princípio nem fim nem sucessão,
dando-se completa e simultaneamente à compreensão de quem a acessa.
Definida a eternidade, o autor analisa se Deus é ou não eterno. A resposta segue
os predicados apresentados anteriormente: primeiro, como ele já havia afirmado, Deus
não poderia existir se não fosse digno de integrar todas as perfeições (Suma teológica I,
q. 2, art. 3) e, dentre as perfeições, a imutabilidade é uma delas; segundo, outra perfeição
presente nele será necessariamente a eternidade, pois o que não é eterno, é temporal, com
isso deveria ter um princípio e um fim, mas esse é o caso das criaturas, não de Deus; e
terceiro, ele não apenas é eterno nem só existe na eternidade, mas é a própria eternidade
em máximo grau e, como “nenhuma outra coisa é sua própria duração, porque nenhuma
é seu próprio ser, [logo, apenas] Deus é seu próprio ser uniformemente. Razão pela qual,
ele é sua essência, sendo assim também sua eternidade” (Suma teológica I, q. X, art. 2).
Em Deus, ser e eternidade se equivalem, pois a eternidade é uma perfeição, ele é sempre
sem princípio nem fim e somente ele existe uniformemente, de modo intemporal e fora
do fluxo de qualquer mudança. Por isso, ele é o eterno.
Admitir a identidade entre Deus e eternidade não é o principal problema teórico
que o autor enfrenta. O problema radicaliza-se à medida que reconhece nas Escrituras não
apenas a indicação, mas a identificação da eternidade atribuída a certas criaturas, como o
caso da terra que, segundo o Qohélet 1, 4: “geração vai e geração vem, mas a terra
permanece para sempre (eh'-rets aw-mad' o-lawm')”. A análise de Tomás de Aquino será
então direcionada à identificação de tudo o que é eterno, além de Deus. Será possível que
a terra e outras criaturas sejam eternas tais quais o próprio Deus? A resposta dada percorre
duas vertentes: de um lado, ele afirmará que o conceito de eternidade – o fato de algo ser
imutável – atribui-se tanto ao ser quanto à operação da terra, dos anjos e dos santos, pois
eles são sempre os mesmos desde que criados e, de outro, a eternidade é acessível a todos
os seres humanos desde que conheçam a Deus: “a vida eterna é esta, que conheçam Deus
()” (João, 17, 3). A resposta de Tomás mostra
que a eternidade é extensiva aos outros seres – à terra, aos anjos e aos santos – desde que
não estejam submetidos às mudanças de pensamentos, tal como afirma Agostinho no De
Trinitate XV (Suma teológica I, q. X, art. 3). Em resumo, a eternidade é própria a Deus,
mas pode ser acessada pelos seres desde permaneçam os mesmos, com funções constantes
e pensamentos imutáveis. Eis o ponto em que se nota que Tomás de Aquino emprega dois
conceitos de eternidade: um que é próprio de Deus por ser imutável em seu ser, outro que
é próprio aos demais seres, desde que se façam imutáveis por sua vontade. Por isso, donde
se segue o quarto artigo: há ou não diferença entre tempo e eternidade?
Tomás de Aquino é forçado pela sequência argumentativa a explicitar a diferença
entre tempo e eternidade. Esta não tem princípio nem fim, é a totalidade simultânea de
todas as coisas e a medida do existir permanente. Contrariamente, o tempo tem princípio
e fim, é a medida do movimento e é sempre transitório. Com isso, tempo e eternidade são
distintos em tudo: na forma de existir (com ou sem um princípio e um fim), no modo de
manifestação (simultâneo ou sucessivo) e na disposição existencial (se é permanente ou
transitório). Estabelecidas essas distinções, ele leva-a às últimas consequências a partir
da Física IV de Aristóteles: “se o movimento do céu durará sempre, o tempo não se
medirá por sua duração total, pois o infinito não é mensurável” (Suma teológica I, q. X,
art. 4). A potência máxima do tempo é a capacidade de medir o movimento segundo antes
e depois, isto é, o movimento limitado à sua finitude. Com isso, nota-se a impossibilidade
de haver um tempo eterno, enquanto condição de máxima extensão. Logo, todo tempo é
essencialmente finito, com princípio e fim, limitado, dentro da ordem do sucessivo e não
sendo possível perceber tudo simultaneamente, o tempo permanece incapaz de dar acesso
à condição eterna. Apenas a eternidade pode ser dada como experiência simultânea, total
e completa de tudo o que existe, mas, certamente, fora da condição deste mundo em que
tudo se passa no tempo. Dentro do tempo, tudo se mede como princípio e fim, século, ano
e dia, isto é, o tempo é sempre quantificável, enquanto a eternidade nunca o será. Tudo o
que ocorre no mundo será, portanto, sucessivo e temporal, enquanto na eternidade, tudo
é simultâneo e permanente (Suma teológica I, q. X, art. 4). Então, como entender que os
seres possam ser permanentes, como afirmado no artigo anterior?
A resposta à condição de permanência dos seres – a terra, os anjos e os santos – é
bastante engenhosa. O autor encontra um meio termo entre o tempo e a eternidade (Suma
teológica I, q. X, art. 5): “o evo (aevum) se diferencia do tempo e da eternidade como um
médio entre ambos. Há quem estabeleça essa diferença dizendo: a eternidade não tem
princípio nem fim; o evo tem princípio, mas não tem fim; o tempo tem princípio e fim”.
Essa primeira perspectiva traz vantagens e problemas: a vantagem está em se reconhecer
que entre a eternidade e o tempo não há nenhuma confusão, pois a primeira é imutável e
o segundo, mutável e mensurável por seu princípio e fim. A diferença vem do evo com o
princípio, mas sem o fim, ou seja, uma vez que aqueles seres – a terra, os anjos e os santos
– foram criados, não serão mais destruídos. Eles seriam eternos depois de criados, o que
não os igualaria ao Deus que é eterno desde sempre, uma vez que não foi criado. Porém,
isso inviabiliza a possibilidade de pensar a mudança naquilo que foi criado.
Diversamente, apoiados na ideia de que todas as coisas criadas podem mudar, há
quem argumente em direção oposta (Suma teológica I, q. X, art. 5): “a eternidade não tem
antes nem depois; o tempo tem antes e depois com novidade e antiguidade; o evo tem
antes e depois sem novidade nem antiguidade”. O problema está na compreensão do evo
como aquilo que seria marcado pelo (com antes e depois), mas fora de mudança ou sem
novidade específica. Tudo o que é temporal, que se pauta por antes e depois, pode mudar.
A grande dádiva do tempo está justamente na possibilidade contínua de mudança e na
impossibilidade de fixar qualquer verdade ou instância temporal. A definição rejeitada
por Tomás de Aquino deve-se, pois à incongruência em algo ter antes e depois, mas estar
privado de novidade. Tudo o que tem antes e depois, será sempre passível de novidade,
de mudança, não estando determinado nem fixado por qualquer outro princípio que lhe
seja externo. A conclusão desse artigo traz uma das mais belas e completas noções das
relações entre tempo e eternidade. De um lado, aquilo que é eterno permanece contínua e
imutavelmente, não sendo possível alterar seu curso nem sua vontade. O ser permanente
não se submete a nenhuma mudança, por isso é eterno. Contrariamente, tudo o que muda,
pode ser ou não ser, pode alterar inclusive a própria vontade, o próprio ato e a própria
disposição de agir. Voltando à compreensão dos seres imutáveis – os astros –, estão
condenados a ocuparem sempre a mesma posição e responderem sempre à determinação
que os fixa na existência, pois não têm vontade, enquanto os anjos, embora igualmente
imutáveis, precisam sempre reafirmarem a mesma vontade: eles “têm que ser imutáveis
ainda que submetidos à mudança da eleição, algo próprio de sua natureza”. Digo, os anjos
têm a liberdade de querer algo diferente daquilo para o que foram determinados pela
eleição divina: “podem mudar com respeito à sua eleição, pensamento, afeto e lugar. E
podem ser medidos pelo evo, que é o meio entre a eternidade e o tempo. diversamente, o
ser medido pela eternidade não muda nem está submetido à mudança” (Suma teológica I,
q. X, art. 5). A consequência não poderia ser menos importante: os astros são imutáveis,
portanto, desprovidos de qualquer vontade; os anjos são mutáveis, embora tenham que se
ajustar sempre à determinação de sua eleição; os seres temporais, sempre sofrem com a
mudança (o princípio e o fim), mas estão continuamente livres para determinar a vontade.
Se o ser humano não goza da eternidade nem da imutabilidade, pois foi condenado
a viver no tempo, ele tem um princípio e um fim, sua vontade é inconstante, entretanto,
não há nada que lhe determine previamente. Traduzindo isso em linguagem atual: os anjos
precisam responder à eleição divina, pois vivem no evo: foram criados e estão submissos
à condição de sua natureza; os astros são imutáveis, por isso desprovidos de toda vontade;
apenas os seres humanos estão submissos à condição temporal completa: temos um antes
e um depois, não somos imutáveis nem eternos, mas podemos determinar nossa vontade
(Suma teológica I, q. X, art. 5). Logo, aquilo que pareceria uma fraqueza, a temporalidade,
é justamente a condição da liberdade humana, pois somente por ser temporal que se pode
alterar a vontade, o pensamento, o afeto e o lugar, inclusive a própria eleição. O humano
pode, nesse sentido, inclusive não amar a Deus e ser igualmente livre, pois vive livre de
toda determinação eterna. Quase em sentido irônico, a eternidade se torna condição de
imutabilidade ou, de forma direta, de ausência de liberdade, exceto se a vontade for igual
ao ser, isto é, apenas em Deus vontade e ser se identificariam perfeitamente.
A análise do tema da eternidade é concluída no sexto artigo e retomada, em parte,
na questão 47, art. 2 ao analisar a desigualdade das coisas e na questão 50, art. 4 sobre a
natureza dos anjos. Para o momento, interessa-nos a conclusão do artigo relativo ao evo
(Suma teológica I, q. X, art. 6): “existe apenas um evo, porque se cada coisa se mede pelo
mais simples em seu gênero, o ser de todo evo se medirá pelo primeiro ser eterno, que
será tanto mais simples quando mais antigo (Aristóteles, Metafísica X)”. Apoiado na
metafísica aristotélica, Tomás chega à conclusão que apenas a Deus cabe a eternidade;
aos astros e aos anjos, cabem a condição do evo, pois uma vez criados, durarão sempre;
e os demais seres, incluindo o humano, são temporais, finitos, transitórios, mutáveis, ou
seja, graças à condição temporal, conversamos a possibilidade contínua de mudança e de
escolha em cada momento da breve existência que desfrutamos no tempo.
Depois dessa longa análise, necessário se faz compreender como o tempo passou
a outra compreensão nos tempos modernos. Enquanto o período medieval sobrevalorizou
a eternidade e, consequentemente, a ideia de uma vida eterna conduzindo ao desprezo do
mundo (contemptu mundi), o período moderno conduziu à inversão da ordem do tempo.
A prioridade que outrora era atribuída à eternidade foi invertida. A condição temporal
passou ao primeiro patamar da ribalta e a eternidade trouxe-se uma compreensão segunda.
Isso se deve, em parte, à inversão provocada pelo advento dos tempos modernos – a
revolução científica, a mudança da compreensão geocêntrica para a heliocêntrica, a
reforma protestante e a invasão do Novo Mundo – que se nota, de um lado, na deposição
da noção de eternidade como núcleo da esperança post mortem e, de outro, no advento da
compreensão científica para explicar a ordem cósmica. É justamente nesse ponto que os
Philosophiae Naturalis Principia Mathematica (1687) de Isaac Newton devem ser lidos.
explicação mecânica da natureza não era apenas um desejo, mas uma condição para que
se reverter o primado da compreensão teológica do mundo. A revolução científica, no que
tange à passagem do geocentrismo ao heliocentrismo, não é só um tópico de curiosidade
histórica, mas uma forma de reinterpretar a visão humana sobre o mundo. Para tanto, faz-
se necessário compreender como Isaac Newton reformulou a compreensão do tempo para
que se torne possível compreender como ele passou à condição de princípio
epistemológico determinante não apenas na filosofia, mas em quase todos os campos do
saber humano, a partir da formulação da Crítica da razão pura (1781) de Immanuel Kant.
Isaac Newton trata do tempo tanto nas Definições VII e VIII quanto nos Axiomas
ou Leis do Movimento da obra os Princípios matemáticos da filosofia natural, com seus
respectivos escólios. Como a obra está organizada no padrão das definições matemáticas,
selecionamos tão só as definições e axiomas fundamentais para a compreensão do tempo.
As duas definições integram a base da segunda lei de Newton – a lei da inércia – é pode
ser vista como parte da teoria do conhecimento do autor. A definição VII apresenta como
a força centrípeta opera no movimento circular, sendo ela a força atrativa do objeto em
movimento para o centro gravitacional do círculo: “a quantidade de aceleração de uma
força centrípeta é sua própria medida, sendo proporcional à velocidade que produz em
um dado tempo” (Newton, 1972, def. VII, tradução nossa aqui e doravante). Essa força
atrai os corpos na mesma proporção em seus movimentos de queda, agindo igualmente
sobre todos eles e, por certo, considerando a resistência oferecida pelo ar. Dito isso, torna-
se mais fácil compreender a definição seguinte (Newton, 1972, def. VIII): “a quantidade
de movimento produzido por uma força centrípeta mede a si mesma, sendo proporcional
ao movimento produzido em um dado tempo”. Nessa definição, o autor aponta para força
direcional do movimento em relação ao centro, vale dizer, o movimento de queda de todo
corpo dirige-se para o centro gravitacional que o atrai proporcionalmente à sua massa e o
desconto da força de resistência do ar.
Esse mesmo ponto é comentado nos axiomas relativos ao movimento (Newton,
1972, leis do movimento, corolário VI): todos os corpos movem-se de forma igual se têm
a mesma massa e recebem o mesmo impulso e não sofrem resistências diferentes. Nesse
sentido, todos os movimentos de queda têm aceleração igual se a condição atmosférica é
a mesma para os objetos em questão. Sendo assim, “todos os corpos de moverão de forma
igual, em relação à velocidade, conforme a segunda lei”. Newton explica a segunda lei
ou lei da inércia [F = m.a] nessa passagem: a força necessária para deslocar um corpo ou
massa é igual a essa massa vezes a aceleração. Dizendo de forma inversa, a aceleração de
um corpo é igual força dividida pela massa do corpo [a = F/M]. Isso significa que a força
de aceleração ou a velocidade é proporcional à força do empuxo dividida pela massa mais
a resistência do meio. Havendo força e massa são iguais, sem resistência desproporcional,
os movimentos paralelos serão sempre iguais entre si. Essa posição afirmada por Isaac
Newton não é uma exceção e ele o demonstra na introdução do escólio (Newton, 1972,
leis do movimento, corolário VI, escólio): “até o momento, eu transmiti os princípios
aceites pelos matemáticos e confirmados por inúmeras experiências”. Ele identifica um
dos matemáticos na sequência – Galileu Galilei – e segue para o centro explicativo desse
escólio: “quando um corpo está em queda, a gravidade uniforme, ao agir de igual modo
em cada partícula igual de tempo, imprime naquele corpo forças iguais e gera velocidades
iguais: e no tempo total imprime toda a força e gera toda a velocidade proporcional ao
tempo”. Em resumo, a velocidade será proporcional à aceleração desde que o tempo seja
também o mesmo. A força da gravitação universal dos corpos é, por si mesma, uniforme
e, não havendo resistência desproporcional, a massa seguirá em queda acelerada com uma
velocidade proporcionalmente crescente em relação ao tempo da mesma. O resultado não
surpreende: “os espaços descritos em tempos proporcionais são como as velocidades e os
tempos em conjunto, ou seja, não razão duplicada dos tempos”. Tanto maior será o tempo
quanto mais acelerada será a queda. Se a velocidade for duplicada, o tempo será dividido.
Inversamente, se um corpo for lançado para o alto em linha reta na vertical, tanto
maior será o tempo de deslocamento quanto menor será a velocidade quer pela redução
da força motriz e da resistência do meio quer pela ação da força gravitacional agindo em
sentido contrário. No caso, a gravidade e a resistência atmosférica reduzem a velocidade
de forma proporcional ao tempo de deslocamento vertical. Caso o corpo seja lançado em
movimento horizontal ao solo, novamente a resistência atmosférica e a força gravitacional
reduzirão a força do lançamento até que ele seja atraído à terra. A maior distância relativa
ao ponto de projeção determinará a redução da velocidade de deslocamento até chegar ao
ponto de inércia completa. Dito isso, preciso ressaltar que não nos interessa propriamente
a explicação pura dos fenômenos, mas a compreensão da visão de mundo subjacente aos
princípios da física newtoniana, a saber, a compreensão mecanicista da relação de forças
no mundo e suas consequências. De onde se segue que “um conceito fundamental da
mecânica de Newton é o PRG (Princípio da Relatividade de Galileu); esse princípio está
intimamente relacionado à noção de referenciais inerciais ao afirmar que dois
observadores inerciais não podem fazer distinção objetiva entre repouso e movimento
uniforme” (Leite e Andrade-Neto, 2023, p. 12). Com isso, pode-se admitir tanto o espaço
quanto o tempo como realidades físicas objetivas. Aquele sendo o plano homogêneo e
infinito, o continuum, da disposição das coisas, e este (o tempo), a forma igual e informe,
constante e duradoura, da manifestação dos acontecimentos no mundo.
Dentro desse enquadramento, podemos entender o que o autor quer com sua visão
sobre o tempo e o espaço. Na sequência de sua argumentação (Newton, 1972, leis do
movimento, corolário VI, escólio I), o físico se mostra seguro quanto às noções básicas
da física: “tempo, espaço, lugar e movimento são termos bem conhecidos por todos”. Esse
ponto somente parece verdadeiro, pois diz tratar da compreensão vulgar dos mesmos. Não
há dúvidas que todos captamos uma compreensão básica, porém dificilmente chegamos
à compreensão abstrata desses mesmos conceitos tal como ele os formula (Newton, 1972,
leis do movimento, corolário VI, escólio I):
O tempo absoluto, verdadeiro e matemático, em si e por sua natureza, sem relação com nada de
externo, flui de modo uniforme, e com outro nome chama-se duração. O tempo relativo, aparente
e vulgar é uma medida qualquer, sensível e externa, (quer exacta quer aproximada) da duração
pelo movimento, a qual é vulgarmente usada em vez do tempo verdadeiro; como a hora, o dia, o
mês e o ano.
e a todas as coisas [porque] todas as coisas estão colocadas no tempo quanto à ordem de
sucessão, e no espaço quanto à ordem de posição” (Newton, 1972, leis do movimento,
corolário VI, escólio IV). Por isso se segue que é preciso fazer a distinção entre as noções
relativa e absoluta, uma vez que as noções propostas – tempo, espaço, lugar e movimento
– não devem ser entendidas de forma vulgar. Caso isso aconteça, a compreensão do tempo
poderia ser considerada acelerada ou reduzida, rápida ou lenta, fugaz ou morosa. Dentro
dessa compreensão, qualquer uma das noções será desvirtuada. A correção dessas noções
se deve à adoção de suas compreensões absolutas em que “a linguagem será insólita e
puramente matemática, se as entendermos aqui como quantidades mensuradas” (Newton,
1972, leis do movimento, corolário VI, escólio IV). Caso as compreendamos em relação
à medida do movimento ou do deslocamento circunstancial, estaremos corrompendo as
compreensões corretas propostas pela matemática e pela filosofia, segundo as palavras do
próprio Newton na conclusão desse escólio.
Seguindo essa conceituação newtoniana, o tempo deixa de ser pensado em relação
ao movimento local e passa a ser compreendido matemática e filosoficamente de forma
absoluta, isto é, livre da representação sensível do mover. Destacado do deslocamento,
resta pensar abstrata e absolutamente os conceitos de tempo, espaço, lugar e movimento.
Independente da percepção sensível, o tempo flui “em si e por sua natureza, sem relação
com nada de externo, flui de modo uniforme, e com outro nome chama-se duração”
(Newton, 1972, leis do movimento, corolário VI, escólio I). O resultado dessa concepção
absoluta da física é a admissão de uma noção mecânica do universo, onde os conceitos
centrais não estão subordinados ao sensível (Leite e Andrade-Neto, 2023, p. 13):
Tempo e espaço são entidades interligadas e indissociáveis. O instante presente universal não
existe. O tempo flui de maneira diferente para observadores em movimento relativo. Relógios
igualmente precisos, em movimento relativo, marcam durações diferentes entre eventos. Assim,
não podemos falar de um agora universal. Ora, se não existe um presente comum a todo o universo,
a própria noção de realidade clássica é abalada. O fluxo do tempo também é alterado pela presença
de corpos massivos. Quanto mais próximo de uma grande massa mais lentamente o tempo flui.
Sem a sensibilidade, nenhum objeto nos seria dado; sem o entendimento, nenhum seria pensado.
Pensamentos sem conteúdo são vazios; intuições sem conceitos são cegas. Pelo que é tão
necessário tornar sensíveis os conceitos (isto é, acrescentar-lhes o objeto na intuição) como tornar
compreensíveis as intuições (isto é, submetê-las aos conceitos). (KrV 2001, A 51 / B 75)
A intuição sensível é aquilo que captamos de cada objeto através dos sentidos.
Não há nenhuma distância em relação ao mundo empírico, no caso. Se dispensarmos toda
sensibilidade, estaríamos afastados da experiência e nenhum objeto seria captado por nós.
O conhecimento seria meramente abstrato ou conceitual. O reverso não é menos danoso:
se reduzíssemos o conhecimento ao meramente empírico, não teríamos a capacidade de
formar conceitos. Dispensar o entendimento, seria reduzir o conhecimento ao apontar as
coisas como se tal bastasse para o conhecimento. Estaríamos reduzidos ao fisicalismo ou
ao materialismo estrito. Consequentemente, são inviáveis “pensamentos sem conteúdo
[pois] são vazios; intuições sem conceitos são cegas”. Logo, o conhecimento decorre quer
da intuição sensível e requer, necessariamente, o entendimento como categorizador e/ou
nomeador dos objetos dadas na intuição. Assim, Kant reconcilia Descartes e Hume.
A questão que nasce da conciliação entre intuição sensível e entendimento é como,
quando e sob quais condições captamos as intuições. A resposta à questão será dada por
uma expressão clássica na obra kantiana: a condição de possibilidade do conhecimento.
Expliquemos: todo conhecimento ocorre desde tenhamos os pressupostos suficientes para
acessá-lo, ou melhor, somente conhecemos aquilo que temos condição de conhecer. Seria
ilusório pensar que o conhecimento independente do sujeito. Ao contrário, é o sujeito que
forma e aplica o conceito a cada intuição sensível ou, simplificando, à medida que percebe
um objeto (capta uma intuição sensível), o sujeito formula um juízo e aplica um conceito
ao objeto percebido (o entendimento conceitua a intuição sensível). Isso apenas acontece,
porque o sujeito percipiente tem condição de identificar e nomear o objeto percebido. A
essa capacidade de perceber e nomear o objeto, dá-se o nome de condição de possibilidade
(KrV 2001, A 242): “mais não há a fazer com elas do que considerar as funções lógicas
no juízo como condição de possibilidade das próprias coisas, sem poder mostrar, no
mínimo, onde possam ter a sua aplicação e o seu objeto e, portanto, como podem ter
alguma significação e validade objetiva no entendimento puro, sem a sensibilidade”. Se
é impossível acessar o objeto conhecimento (se não temos a intuição sensível do mesmo)
e se não há como significá-lo conceitualmente (se nos falta o conceito para identificá-lo),
não temos como conhecer. A condição de possibilidade de acesso ao objeto, é o que nos
permite conhecer o que é, como é e quando algo se mostra à nossa capacidade cognitiva.
Desprovido dessa condição, não há conhecimento algum, nem inato nem infuso.
Kant apresenta duas condições de possibilidades de todas as formas de conhecer.
Como ele herda parte do empirismo humeano, não poderia ser algo tão distinto daquilo
que a compreensão moderna havia elevado ao primeiro patamar da ciência, vale dizer, ele
não cria as condições de possibilidades. Nem ele nem Hume nem Newton as criaram, pois
tais condições são um a priori epistêmico. Afirmar que algo é um a priori não equivale a
dizer que simplesmente é anterior à experiência. Trata-se de algo que não se prova
empiricamente na sua máxima extensão. O a priori institui-se como condição para algo.
Mais que isso, pense em algo que tenha validade epistêmica necessária (independente da
experiência de indivíduos particulares) e universal (tem validade para além de um tempo
específico ou de uma condição determinada, podendo ser pressuposto como presente em
todo sujeito que conhece). A primeira condição de possibilidade a priori do conhecimento
ou a forma a priori da sensibilidade que capta qualquer intuição sensível é o espaço:
O espaço é uma representação necessária, a priori, que fundamenta todas as intuições externas.
Não se pode nunca ter uma representação de que não haja espaço, embora se possa perfeitamente
pensar que não haja objetos alguns no espaço. Consideramos, por conseguinte, o espaço a condição
de possibilidade dos fenômenos, não uma determinação que dependa deles; é uma representação
a priori, que fundamenta necessariamente todos os fenômenos externos. (KrV 2001, A 24 / B 38)
O tempo é uma representação necessária que constitui o fundamento de todas as intuições. Não se
pode suprimir o próprio tempo em relação aos fenômenos em geral, embora se possam
perfeitamente abstrair os fenômenos do tempo. O tempo é, pois, dado a priori. Somente nele é
possível toda a realidade dos fenômenos. De todos estes se pode prescindir, mas o tempo (enquanto
a condição geral da sua possibilidade) não pode ser suprimido. (KrV 2001, A 31 / B 46)
Dito isso, é impossível não estabelecer as relações básicas: a primeira com relação
a Isaac Newton, uma vez que ele estabeleceu espaço e tempo como condições absolutas
de todo conhecimento. A física newtoniana pressupõe um universo mecanicista, onde só
é possível pensar relações a partir de quantidades mensuráveis e limitadas à linguagem
puramente matemática. O universo mecanicista de Newton tornou-se, nesse sentido, base
epistemológica da filosofia kantiana para a qual fora do espaço e tempo simplesmente
não existem conhecimentos válidos. Isso mostra uma face da epistemologia moderna que
se estende da revolução científica com a passagem do geocentrismo ao heliocentrismo até
o idealismo alemão quando a episteme moderna consagra o apriorismo espaço-temporal
como condição necessária e universal de todo conhecimento válido. A segunda relação
que devemos estar atentos é aquela presente na BNCC, 2017, p. 563): “Tempo e Espaço
explicam os fenômenos nas Ciências Humanas porque permitem identificar contextos,
sendo categorias difíceis de se dissociar”. Uma vez vistos como necessários e universais,
espaço e tempo simplesmente deslegitimam a validade científica das “ciências humanas”,
pois nenhum dos objetos e pressupostos da metafísica, da estética, da ética e da psicologia
seriam legitimados a partir das condições de possibilidade a priori espaço-temporal como
passíveis de experiência ou de serem captados na intuição sensível. Com isso, a filosofia
que está pressuposta na Base Nacional Comum Curricular (2017) não difere em nada
daquela, cujos pressupostos seguiriam necessariamente a física mecanicista universal de
Isaac Newton e Immanuel Kant. É a partir dessa constatação que precisamos reorientar a
possibilidade de pensar a constituição dessas categorias. Nomeadamente, nesta pesquisa,
seguiremos com a análise do conceito de tempo dentro dos corpora filosóficos brasileiros
produzidos entre o início do século XVIII até a primeira metade do século XIX com vistas
a compreender quais são os pressupostos filosóficos que fundam a compreensão do tempo
entre os filósofos e seus escritos contemporâneos a Newton e Kant. Pode-se perguntar: a
noção de tempo presente na filosofia brasileira, nos séculos XVIII e XIX, seguiu a física
mecanicista do universo ou existem outras formas possíveis para pensar o tempo?
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