10 Sobre o Tempo e A Histã Ria Na Filosofia Brasileira

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O TEMPO E A HISTÓRIA NA FILOSOFIA BRASILEIRA

Sumário

Introdução H. Bergson, A ideia de tempo, M. Heidegger, Ser e tempo, P. Ricoeur, Tempo


e ação, E. Lévinas. Deus, a morte e o tempo, I. Prigogine, O fim das certezas, J. L. Borges,
História da eternidade, O. Andrade, Um aspecto... e I. Domingues, O fio e a trama
1. O TEMPO COMO SILENCIAMENTO, ANISTORICISMO E COLONIZAÇÃO

I. A necessária inutilidade da filosofia............................................................................2


1. A filosofia como filha da autoridade atemporal.........................................................6
2. A filosofia como via compreensiva da temporalidade.............................................12
II. A invenção do tempo entre os povos ancestrais.......................................................16
1. De tzolk’in às tradições do meu finado pai...............................................................19
2. Da quebra da historicidade ao silenciamento do outro.............................................24
III. A história única como forma de colonização do tempo.........................................31
1. A narrativa do tempo na historiografia brasileira.....................................................36
2. A história como criação do tempo colonizado.........................................................40

2. O TEMPO COMO MITO, HISTÓRIA E CONHECIMENTO

IV. A criação do tempo mítico como narrativa primeira............................................47


1. Algumas narrativas míticas do tempo......................................................................49
2. Do Do yowm, ze^man e’êth ao preço do tempo........................................................56
V. O tempo histórico como forma do discurso filosófico.............................................62
1. Da eternidade ao movimento: de Platão a Aristóteles..............................................65
2. A reinvenção da eternidade: Agostinho de Hipona..................................................76
VI. Do tempo no eterno ao tempo como a priori epistêmico.........................................83
1. O tempo como exitus et reditus ad Deum.................................................................85
2. Do tempo absoluto ao a priori epistêmico...............................................................91
3. A ESCRITA DO TEMPO NA FILOSOFIA BRASILEIRA

Referências...................................................................................................................101

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INTRODUÇÃO

Epígrafes do livro: 1ª citação de O. Andrade, BNCC Tempo e espaço e autor


colonial

A maior transformação operada pelos costumes novos é em relação ao tempo. Enquanto a Idade
Média mergulhava o seu conceito de vida na ausência de tempo, prolongando-a até a vida eterna
(“quando não haverá mais tempo” – no dizer de Dostoiévski), o mundo novo divide o tempo e o
conta avaramente. (Andrade, 1978, p. 159)

Está inventado o relógio mecânico. A primeira grande figura de burguês, o comerciante Alberti de
Florença, escrevia: “Quem não perde tempo, tudo consegue e quem sabe trabalhar o tempo é
mestre do que quiser”. (Andrade, 1978, p. 159)

Mas por toda a parte, o relógio mecânico inaugura a civilização da máquina que é a do trabalho e
do tempo contado. (Andrade, 1978, p. 159)

No entanto, é na Idade Média que deita raízes a era do trabalho. Nela se insere a criação do tempo
medido. (Andrade, 1978, p. 160)

Referências

Andrade, Oswald de. Obras completas VI: do pau-brasil à antropofagia e às utopias. 2ª


ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

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I. A NECESSÁRIA INUTILIDADE DA FILOSOFIA

Se alguém pergunta “para que serve a filosofia”, pode-se dar uma resposta realista
– “ela não serve para nada” ou simplesmente ignorar a pergunta ironicamente pensando:
“ela não serve para quem fez a pergunta”. Tal como o canto do pássaro-preto (também
conhecido como assum-preto ou Gnorimopsar chopi), as Bachianas Brasileiras n º 2 de
Heitor Villa-Lobos ou a beleza da Noite estrelada sobre o Ródano de Vincent Van Gogh,
a filosofia felizmente não serve para nada. A roupa que vestimos ou a chave que usamos
servem tão somente enquanto cobrem decentemente o corpo ou está apta para consertar
um aparelho. Se não cumprem mais suas respectivas funções, nem a roupa nem a chave
servem para mais nada e, portanto, estão na hora de serem recicladas. Os instrumentos
úteis tem agora uma obsolescência programada, tal qual o celular que se torna não
atualizável em dois ou três anos. O corpo humano enquanto trabalhador braçal também
se tornou inútil, por isso obsoleto para a indústria 6.0. A automação industrial produz em
maior quantidade e com maior precisão o que o corpo humano produz a duras penas e
com muitas falhas. De novo, se a pergunta “para que serve” for aplicada pela indústria
6.0 ao corpo humano, a resposta será invariavelmente a mesma que damos sobre um
celular ou computador que não se conecta à rede wifi: não serve para nada. Nem por isso
admitimos que o simples fato de termos sido despedidos do trabalho, devemos ser
considerados inúteis. O corpo humano não entra na ordem da serventia tal como um
celular, uma peça de roupa ou uma chave velha.
Isso se deve, em primeiro lugar, à crença que ainda alimentamos sobre a possível
importância do humano no mundo. Somos narcísicos demais para admitir a própria
obsolescência. Então, o jeito é sustentar a autoilusão de que o ser humano continua como
um “dispositivo fundamental” na dinâmica do mundo. Ele constitui assim uma espécie de
finalidade autorreferente ou autocomplacente. Admitimos que é melhor não sucumbirmos
à tentação do suicídio imediato. Assim, o ser humano participa do reino dos dispositivos
com finalidade autorreferente e autocomplacente que se legitima pelo próprio narcisismo.
O reino das coisas – a roupa, a chave ou o celular – se legitima apenas pela utilidade. Não
há como justificar a necessidade de guardá-los quando não são mais úteis. No melhor dos
casos, os encaminhamos para reciclagem ou, simplesmente, poluímos o mundo com o seu
descarte. Resta considerar a inutilidade do reino estético e/ou ético – o canto do pássaro-
preto ou as Bachianas de Villa-Lobos ou a beleza da Noite estrelada sobre o Ródano de

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Van Gogh – que não se legitimam nem pelas razões próprias aos reinos da autorreferência
humana nem pela utilidade prática. O que é fundamental no reino estético e/ou ético é
justamente sua inutilidade, a impossibilidade de utilização e instrumentalização prática.
A beleza do canto da ave, o encanto da melodia ou o fascínio da pintura para nada
servem. É graças à sua inoperatividade, inutilidade e improdutividade que se tornam de
máxima importância para a percepção humana. Qualquer objeto do reino das coisas serve-
nos apenas enquanto é novidade, mas logo se torna repetida e perdemos o encanto. No
reino da estética, não há serventia – nem operação, nem utilidade, nem produtividade –
e, por isso essas realidades atravessam o tempo e apresentam um vislumbre da eternidade.
Não interessa qual seja o pássaro-preto que ouvi, nem importa que Villa-Lobos tenha
morrido a tanto tempo (1887-1959), nem que Van Gogh (1853-1890) jamais tenha
pensado no Brasil. No reino estético, importa o que a beleza provoca naquele que a
observa. De forma equivalente, a filosofia não serve nem ao reino da autorreferência
humana nem ao reino das coisas para uso prático. A filosofia é necessariamente inútil. A
obra produzida por ela aplica-se exclusivamente à capacidade de refinar estética, ética ou
reflexivamente o ser humano. Em qualquer momento que se tornar prática ou operativa,
a filosofia estará completamente destituída de sua identidade. Sua operação fundamental
é suscitar no ser humano a certeza socrática – só sei que nada sei – ou seja, evidenciar a
ignorância humana e os limites do conhecimento científico. Com isso, não se menospreza
a obra humana, apenas a situa dentro do reino da falibilidade e finitude humana.
Nesse reino da falibilidade e da finitude, reconhecemos que toda obra humana está
condicionada à irrepetibilidade, irreversibilidade e irretratabilidade. Tudo o que se passa,
não retorna jamais sob a mesma condição nem podemos retornar ao segundo que passou
(t0) e que agora já encontra ultrapassado (t1) tal como pensou Crátilo: “Heráclito por ter
dito que não é possível banhar-se duas vezes no mesmo rio: Crátilo pensava não ser
possível nem mesmo uma vez” (Aristóteles, Metafísica IV, 5, 1010a13-15). A
sucessividade irrepetível do tempo consagra sua irreversibilidade: o tempo inicial (t0) ou
aquele tempo que o sucedeu (t1) já estão irreversivelmente no passado, pois nos
encontramos em um tempo à frente (t2). E à medida que se somam a irrepetibilidade e a
irreversibilidade, podemos compreender que o tempo é irretratável. Tudo o que acontece
ou deixa de acontecer, eterniza-se. O que foi feito está eternizado na sua consequência. O
que não foi realizado, também já está fixado na inatividade irretratável. O moribundo não
socorrido, morreu e jamais voltará a viver.

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É essa consciência da falibilidade e da finitude humana que a filosofia nos ensina


a partir do momento que entendemos a dimensão do tempo e nos situamos no mundo. O
tempo não é apenas aquilo que passa, mas aquilo fora do qual não existimos. Ele flui de
forma irrepetível, irreversível e irretratável com ou sem a consciência humana. Contra o
curso do tempo encontra-se a vontade humana de eternizar verdades, realidades e padrões.
Essa vontade de eternizar – retirar o fluxo da vida do curso corrosivo do tempo – acontece
por meio das formas de discurso que são transformados em autoridades estáveis. Aquilo
que está autorizado ou que é admitido como verdadeiro, não precisa mais ser questionado
e pode permanecer tal e qual por tempo indeterminado.
A vontade de eternizar algo como verdadeiro choca-se com o processo contínuo
de corrosão temporal. Esse contraste precisa ser entendido para que não alimentemos os
discursos de autoridade como se fossem inquestionáveis. Afinal, o ser humano resiste ao
máximo a tudo o que se possa dizer que é temporal: de um lado, a vitória de Zeus contra
Cronos seria a vitória da eternidade contra a temporalidade; de outro, a luta pela juventude
eterna seria também a vitória contra o fluxo bioquímico do próprio corpo. Exemplifico:
desde o momento em que lemos a palavra tempo (t0) até agora, sucedeu-se uma série de
momentos que chamamos segundos. Daquele tempo inicial (t0) até o presente (tn), o
metabolismo do corpo continua em fluxo: umas moléculas perderam elétrons enquanto
outras os captaram. À perda de elétrons chamamos oxidação; ao ganho de elétrons,
redução. Em resumo, do t0 até este momento tn+1, os nossos corpos estão oxidando-se,
digo, estamos envelhecendo e esse processo é temporal, isto é, irreversível e irretratável,
além de repetível. Isso será assim até que a maior parte das células apresentem uma perda
maior de elétrons que sua capacidade de recomposição, o corpo estará oxidado de forma
irreversível e chegará à falência, à morte.
O contrário desse processo se mostra no desejo de eternidade – estancar o fluxo
do envelhecimento e produzir verdades que estejam a salvo do poder corrosivo do tempo
– mas isso parece pouco provável. Os gregos representaram a vitória sobre o tempo com
o mito de Zeus derrotando Cronos e introduzindo a eternidade acima do fluxo do presente.
Por sua vez, há quase um século, Martin Heidegger concluía seu Ser e tempo (1927 § 83)
com a angustiada questão: “Há um caminho que conduza do tempo originário ao sentido
do ser? O tempo ele mesmo se manifesta como horizonte do ser?” A essa angústia
experimentada diante do fluxo inexorável do tempo, a humanidade sempre contrapõe uma
resposta de permanência e constância. Para não viver assolada pela angústia contínua,

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busca-se um “sentido do ser” ou disso que somos no mundo: uma das formas de construir
algum sentido para o ser ou para si mesmo, encontra-se na narração do fluxo do tempo,
vale dizer, narrar a história do tempo ou eternizar o átimo de tempo que se chama instante.
É nesse átimo de tempo que nomeamos agora (o nûn de Aristóteles) que se quer
um caminho para fora do fluxo eterno do esquecimento. Estamos submersos no mar do
devir ou, segundo a expressão de Heráclito (DK fr. 12), não somos os mesmos que entram
no mesmo rio, nem somos os mesmos a cada instante, somos e não somos mais os mesmos
(DK fr. 49a). O fluxo contínuo do tempo – pânta rhei – não admite permanência nem ser
algo sob a mesma forma. Retomando a intuição heraclitiana, Nietzsche nomeou o “portal
do instante”, o tempo chamado agora, como a encruzilhada onde se tocam dois destinos
sem união (Assim falou Zaratustra, parte III, xlvi, 2 A visão e o enigma): “esta rua larga
que desce, dura uma eternidade; e essa outra longa rua que sobe: é outra eternidade”. A
saber, a rua que desce é o passado completamente inacessível e, a rua que sobe, é o futuro
ainda não acessível a qualquer experiência. Com isso, Nietzsche reforça a ideia que
estamos no fluxo do presente, antecedidos e sucedidos por duas eternidades (o passado e
o futuro) incomunicáveis com o agora (o presente). O que resta é o mar do devir, a fruição,
o agora.
Imerso no fluxo contínuo do tempo, mergulhado no mar do devir, perdido neste
tempo chamado agora, atravessando constantemente o portal do instante, o ser humano é
o filho do tempo em busca desesperada por eternidade, constância, estabilidade e repouso.
A questão que se impõe nessa condição é aquela sobre a capacidade de suportar com
lucidez e sagacidade o mar do devir sem antes nem depois, sem porto nem praia à vista.
De um lado, vemos Heráclito e Nietzsche rindo de quem quer parar o fluxo do tempo ou
de quem quer estagnar o processo de oxidação celular; de outro, enxergamos perplexos o
desejo de escapar da fruição que devora o tempo e que conduz tudo ao silêncio do passado
e à inacessível eternidade do ontem, bem como veta o acesso antecipado ao segundo de
glória que se chama amanhã. Somos filhos do tempo habitados por um desejo contínuo
de eternidade: sonhamos com o elixir da eterna juventude, desejamos a imortalidade com
a consciência continuada do presente e buscamos o reconhecimento de si pelo outro no
amanhã sem fim. Contrariando esse desejo de eternidade, estamos mergulhados no tempo,
no fluxo da finitude, no curso da falibilidade, no mar do devir. É nesse ponto que emerge
a pergunta pela possibilidade de um ser eterno bondoso que nos salve do esquecimento.
Um ser que seria capaz de conservar ao menos nossa consciência depois do instante que

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a morte pesar sobre nossos olhos. Queremos uma eternidade conscientes do presente que
agora desfrutamos, sem dores nem castigos, apenas com o prazer por vir. Contrariamente,
o que se apresenta ao conhecimento que temos do mundo, é a certeza do fluxo inexorável
do tempo que tudo conduz ao fim e ao silêncio. Por isso, choramos os mortos como uma
perda irreversível e uma saudade que não terá fim. Queremos eternizar o que amamos. É
justamente nessa encruzilhada da certeza da finitude temporal e do desejo de eternidade
que a pergunta heideggeriana deve ser retomada: o tempo é o horizonte último do ser?
Para esboçar a busca de resposta à questão, faremos dois movimentos
argumentativos: no primeiro, situareemos a condição da filosofia como foi recebida da
herança tardia medieval através do ensino lusitano: apresentaremos algumas notas sobre
a concepção de filosofia como os portugueses a transmitiram na segunda escolástica ou
escolástica tardia (século XVI ao XIX); no segundo, apresentaremos algumas notas sobre
a noção de filosofia presente na Base Nacional Comum Curricular (BNCC: Brasil, 2017),
uma vez que é a normativa para o currículo de ensino filosófico secundário em curso no
Brasil.

1. A filosofia como filha da autoridade atemporal

A temporalidade constitui o exato oposto da eternidade dentro da lógica binária


da autoridade. O termo autoridade remete a três instâncias distintas: uma, referida àquilo
que se aprende com a experiência ao longo da vida e que, decantada com os anos, torna
a pessoa experimentada uma possível autoridade em determinado assunto, tal como era o
reconhecimento concedido à autoridade dos mais velhos até a metade do século passado;
outra, aquela que se refere à demonstração lógica capaz de produzir o consenso entre as
partes, trata-se da autoridade do cientista, cuja vigência também encontra-se em crise
desde que a autoridade da razão lógico-demonstrativa passou a ser questionada na ciência;
e a terceira, aquela autoridade que repousa em um fundamento metafísico, quer seja ao
investir a autoridade do governante quer seja ao legitimar o discurso do religioso. Com
isso, estamos dizendo que há três formas de autoridade presentes dentro da sociedade: a
experiência (fundada no acúmulo contínuo da vivência e transmitida por um testemunho
considerado fidedigno), a ciência (fundada na demonstração racional do discurso e
operada discursivamente pelo expert no interior de uma determinada frente de

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conhecimento) e a crença (fundada na crença em uma revelação transcendente e


transmitida pelo testemunho de quem acredita em determinada divindade).
Tanto a experiência quanto a crença não gozam de justificativas suficientes para
se situarem o bojo da verdade científico-filosófica desde em que Platão escreveu sua
República (VI, 508a-509b). Platão balizou os limites desse conhecimento pela mediação
de duas dimensões extremas: a primeira, a sensível, uma vez que todo conhecimento tem
seu impulso inicial nos sentidos, sobretudo na capacidade de ver (ópsis e orân) que capta
o mundo, mas que nada conhece se lhe falta a capacidade de conhecer (noûs: nóesis ou
visão de conjunto, gnôsis ou contemplar o objeto e epistéme ou capacidade apreensiva);
a segunda dimensão, a transcendente, aquela que se situa para além do ser e da essência
dos objetos captados pelos sentidos (epékeina tês ousías: 509b). No intervalo situado
entre a dimensão sensível e a transcendente, encontra-se a dimensão inteligível, onde
operam os conhecimentos científico e filosófico, a saber, onde existe conhecimento em
toda a sua extensão e formas.
Se a busca humana pelo conhecimento se limitasse àquilo que podemos conhecer
de forma lógico-demonstrativa, a ciência satisfaria as inquietações do nosso intelecto. No
entanto, raramente estamos dispostos a derrogar nossas experiências (a fonte de certezas
e intuições individuais) e nossas crenças em um fundamento transcendente da realidade
(a crença nos deuses ou nos poderes superiores ao mundo inteligível). Mais que isso, a
herança cultural constituída pelas religiões em suas mais variadas formas e expressões,
bem como o reconhecimento prestado aos grandes mestres do conhecimento humano, são
suficientes para constituir a autoridade de formas de saber que ultrapassam determinado
tempo e cultura. O resultado desse processo de acúmulo de experiências e crenças, mais
o influxo do conhecimento produzido pelos mestres do conhecimento, constitui o rol
daqueles que reconhecemos como autoridades humanas.
As culturas não se baseiam apenas no conhecimento lógico-demonstrativo. Ao
contrário, o patrimônio cultural de um determinado povo nasce da fusão de experiências,
conhecimentos e crenças provenientes de variadas origens. O resultado é a admissão de
determinadas autoridades como fontes constitutivas do saber humano, transmitidas de
forma quase imemorial. Dentro da dimensão transcendente, isto é, no campo da teologia,
a autoridade goza de amplo reconhecimento (Pascal, 1989, p. 50):

É, entretanto, na Teologia que essa autoridade tem sua maior força, pois aí ela é inseparável da
verdade e só a conhecemos por aquela – de modo que para dar total certeza sobre os assuntos mais

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incompreensíveis à razão, é suficiente mostrá-los nos livros sagrados (assim como, para mostrar a
incerteza das coisas mais verossímeis, basta mostrar que elas não estão lá contidas); pois, como
seus princípios estão acima da natureza e da razão, e, sendo o espírito humano muito fraco para lá
chegar por seus próprios esforços, não pode atingir essas compreensões elevadas se não for levado
até lá por uma força onipotente e sobrenatural.

A teologia constitui, no sentido pascaliano, o campo da autoridade do discurso no


âmbito da crença. Nem os ditames da natureza nem os arroubos da razão são capazes de
mover a compreensão de quem se confia completamente à autoridade teológica. Dada tal
condição, a dúvida sobre a veracidade teológica somente se instaura à medida que o crente
admitir a possibilidade de submeter seu “objeto de crença” à análise da razão. Como isso
depende da vontade, não é possível ensinar a crer nem demover a crença de quem confia
na autoridade. A autoridade no campo teológico trata de verdades que estão para além de
qualquer possibilidade de demonstração lógica e, no entanto, são críveis para quem se fia
no testemunho autorizado (ou da autoridade). Não se trata de objetar esta ou aquela forma
de conhecimento, mas apenas de demarcar o âmbito específico ou os limites próprios do
conhecimento lógico-demonstrativo. Por isso, analisemos a formulação pascaliana sobre
essas formas de conhecimento, as dimensões sensível e inteligível, de acordo com suas
especificidades (Pascal, 1989, p. 50):

O mesmo não ocorre com os assuntos que caem sob os sentidos ou sob o raciocínio: aqui a
autoridade é inútil; só a razão pode conhecê-los. Eles possuem seus direitos separados:
primeiramente, uma [a autoridade] possuía toda vantagem [no campo teológico]; aqui, a outra [a
razão] reina, por sua vez. Mas como os assuntos deste tipo [do domínio da razão] são proporcionais
ao alcance do espírito, ele encontra total liberdade de aí avançar; sua fecundidade inesgotável
produz continuamente e suas invenções podem em conjunto ser ininterruptas e infinitas... [lacuna].

Na dimensão sensível encontram-se exclusivamente os objetos captados pelos


sentidos e transmitidos pelo testemunho de quem presenciou determinado acontecimento.
Acreditar no testemunho é uma decisão possível para quem recebe o relato daquele que
atesta um acontecimento. Porém, imputar a crença em um testemunho desde que não se
creia naquele que fez a atestação é impossível. O resultado é a impossibilidade de provar
a veracidade de uma experiência sensível. Pode-se tão somente narrar com uma ou
múltiplas atestações um determinado acontecimento. Tanto a dimensão teológica quanto
a dimensão sensível estariam sujeitas a duas formas forma de cegueira, segundo Pascal
(1989, p. 50): “...a cegueira daqueles que trazem apenas a autoridade como prova nos
assuntos físicos, ao invés de raciocínio ou experiências; e horrorizar-nos pela malícia dos
outros, que empregam apenas o raciocínio na Teologia, ao invés da autoridade da

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Escritura e dos Patriarcas”. Cada dimensão do conhecimento opera dentro de uma forma
específica de validação da verdade: para a teológica, a autoridade; para a sensível, o
testemunho; e para o conhecimento, a demonstração racional.
A perícia da inteligência está em não tentar sobrepor os procedimentos específicos
de uma determinada dimensão sobre o objeto específico de outra. Os limites epistêmicos
do discurso equivalem aos limites específicos do conhecimento: a autoridade interessa ao
universo da dimensão teológica; o testemunho funciona dentro dos limites da atestação
de uma experiência; e a racionalidade lógico-demonstrativa opera dentro dos limites do
conhecimento. Porém, não há consenso quanto à admissão da perda de validade ou do
não-reconhecimento de uma dimensão do saber para além dos seus limites. Explicitemos.
As revoluções do mundo moderno – a passagem do mundo fechado ao universo
infinito ou revolução copernicana, a ruptura da imagem do mundo e da humanidade com
a expansão produzida pela invasão do Novo Mundo1, o advento da racionalidade
empírico-matemática em detrimento do princípio de autoridade, e a perda do controle do
discurso teológico à medida que a imprensa permitiu a assimilação individual das
Escrituras – conduziram à perda da permanência e da segurança do mundo, a saber, à
derrocada do princípio de autoridade (Arendt, 2014, p. 132). A crise da autoridade como
princípio de organização social conduziu à ruptura da tradição, porque aquela depende
diretamente desta. A autoridade baseia-se na transmissão que os ancestrais ou pais de uma
civilização delegam aos seus descendentes. Sem a transmissão (traditio) não há
reconhecimento da autoridade do sucessor, por isso a autoridade dentro das sociedades
tradicionais acontece por sucessão e não, por eleição (Arendt, 2014, p. 163). A autoridade
ancestral investe o sucessor permitindo que ele desempenhe um poder legítimo dentro
dessa sociedade e, ao mesmo tempo, veta o acesso ao poder para qualquer outro situado
fora da linha sucessória ou não descendente dessa ancestralidade. O fundamento dessa
autoridade situa-se tanto no tempo imemorial dos antepassados quanto no princípio de
hereditariedade e transmissão do saber (a tradição). Com o fim da época medieval e o
advento da modernidade, o princípio de autoridade entrou em crise e, metaforicamente, o
mundo perdeu sua estabilidade (Arendt, 2014, p. 187): “viver em uma esfera política sem
autoridade nem a consciência concomitante de que a fonte desta transcende o poder e os
que o detêm, significa ser confrontado de novo, sem a confiança religiosa em um começo

1
Revisar as menções à América Latina trocando tudo para Abya Yala ou Abiayala[1] é uma
denominação histórica do continente americano na língua kuna, que significa "terra em plena maturidade"
ou "terra de sangue vital".

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sagrado e sem a proteção de padrões de conduta tradicionais e, portanto, autoevidentes,


com os problemas elementares da convivência humana”.
Destituído o poder da autoridade, todas as normas da conduta humana precisam
ser legitimadas democraticamente. Se o poder não se transmite mais hereditariamente, os
indivíduos precisam estabelecer um contrato de uso do poder limitando reciprocamente o
uso da força para que a sociedade não naufrague na violência de todos contra todos. Se o
conhecimento não advém de uma fonte transcendente imune ao tempo, todas as verdades
estão situadas no limite da temporalidade e da finitude humana, logo, nenhuma verdade
absoluta goza de validade e reconhecimento. O conhecimento está limitado à dimensão
temporal no sentido socrático do só sei que nada sei, vale dizer: toda verdade acessível
está limitada ao horizonte da racionalidade e irremediavelmente marcada pela finitude.
O princípio da autoridade no campo do conhecimento legitima verdades para além
da dimensão da demonstração racional. Tal procedimento operou de forma notável dentro
da forma mentis medieval e ninguém melhor para exemplificar isso que o recurso a Tomás
de Aquino. Suas obras remetem continuamente a uma hierarquia de autoridades sendo a
Sacra Scriptura a primeira, secundada pelos padres da Igreja (os doctores) e, em terceiro
lugar, encontram-se os filósofos greco-romanos, sucedidos por juristas e canonistas (os
jurisconsultos) e, finalmente, os concílios eclesiais. Porém, essa hierarquia é polarizada
por dois nomes em especial: de um lado, a Escritura, fonte de toda verdade revelada que
encontra em Deus seu fundamento último, de outro, “o Filósofo” que, para além de todos
os argumentos dos demais, paira como autoridade maior entre todos, a saber, Aristóteles:

Aristóteles, no lugar citado, exprime-se segundo a opinião dos Pitagóricos que, opinando ser o mal
uma certa natureza, ensinavam que o bem e o mal são gêneros. Pois, Aristóteles costuma sobretudo
nas obras de lógica, pôr exemplos que eram prováveis no seu tempo, segundo a opinião de alguns
filósofos. Ou também se pode responder que, como diz o Filósofo, a primeira contrariedade é o
hábito e a privação, porque essa contrariedade mantém-se sempre em todos os contrários, por ser
sempre um deles imperfeito em relação ao outro; assim, o negro em relação ao branco, o amargo
em relação ao doce. (Tomás de Aquino, Suma teológica, parte I, q. 48, art. 1, resposta à 1ª objeção)

Mesmo citando os Pitagóricos, a opinião de alguns filósofos, além de Agostinho


e Dionísio no parágrafo anterior, Tomás de Aquino responde apoiando-se distintamente
em uma só autoridade: “como diz o Filósofo”. Em suas 4.278 páginas, a Suma Teológica
reúne nada menos que 1.104 referências nominais a Aristóteles e mais 1.878 referências
ao mesmo, porém tratando-o como “o Filósofo”. Recorde-se que, independentemente da
forma, o Estagirita é sempre citado como a principal autoridade filosófica para Tomás de

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Aquino. Ele cita Agostinho 3.077 vezes, mas principalmente como teólogo e sem medo
de contradizê-lo. As 2.982 menções a Aristóteles são majoritariamente positivas e perde
apenas para as referências à Escritura, 4.291 menções. Daí, o Estagirita é mencionado no
topo da cadeia argumentativa tomasiana, consolidado, por isso uma figura de autoridade.
O principal resultado do reconhecimento dessa autoridade foi transformá-lo em
um marco intemporal ou a-histórico da “verdade filosófica”. Isso se na publicação do
Ratio Studiorum (1599) como guia pedagógico jesuítico que prevaleceu nos Países
Ibéricos sobretudo, até o fim do Padroado e, no caso do Brasil, até cerca de 1890. As
autoridades de Aristóteles e Tomás de Aquino foram transformadas em marcos
atemporais no pensamento filosófico e teológico inaciano. Não por acaso, o Ratio indica
“como seguir Aristóteles. Em questões de alguma importância não se afaste de
Aristóteles, a menos que se trate de doutrina oposta à unanimidade recebida pelas escolas,
ou, mais ainda, em contradição com a verdadeira fé” (Franca, 1952, p. 159). Note como
a autoridade dele permanece inconteste, escusada apenas se contrariar a verdadeira fé que,
por sua vez, também está alicerçada no argumento de autoridade. Por sua vez, além de
Aristóteles, os jesuítas habilitam também uma autoridade teológica (Franca, 1952, p.
159): “De Santo Tomás, pelo contrário [faz exceção aqui a Avicena, Averróis, os
Alexandristas e autores infensos ao cristianismo], fale sempre com respeito; seguindo-o
de boa vontade todas as vezes que possível, dele divergindo, com pesar e reverência,
quando não for plausível a sua opinião”. De onde se seguem as autoridades de Aristóteles
e Tomás de Aquino como os nomes irretocáveis na filosofia e teologia a partir do primeiro
século da segunda escolástica. Durante todo esse período, os dois autores tiveram ampla
repercussão filosófica e teológica, sobretudo entre os inacianos e, no século passado,
quando se decaia tal reconhecimento, o Papa Pio XI fez questão de reafirmar a autoridade
de Tomás de Aquino no seu Studiorum Ducem 11 (a 29 de junho de 1923): “não só como
Doutor Angélico, mas também como Doutor Comum e Universal da Igreja (non modo
Angelicum, sed etiam Communem seu Universalem Ecclesiae Doctorem)”. Afinal, o que
está em jogo ao afirmar a autoridade?
A defesa de uma autoridade justifica o valor intemporal das verdades proclamadas
pela autoridade em questão. O resultado é, por um lado, a manutenção do discurso dentro
dos mesmos termos afirmados naquele momento pelo autor reconhecido como
“autoridade” e, por outro, a ruptura do fluxo temporal da investigação filosófica: se
Aristóteles ou Tomás de Aquino fosse “a autoridade” até o presente, nada mais precisaria

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
13

ser pesquisado. Seria suficiente a retransmissão do seu discurso sem necessidade de


crítica nem contestação. A função do discurso de autoridade é, nesse sentido, suspender
o fluxo da história, do tempo e da mudança do conhecimento. Nesse sentido, todos
poderíamos ser aristotélicos e/ou tomista sem nenhum prejuízo para o próprio
conhecimento filosófico. Tudo o que se fez e produziu filosófica e/ou teologicamente
após eles, não passaria de comentário de seus escritos e desenvolvimentos de seus
pensamentos. Com isso, estaria estagnado o fluxo do tempo dentro da lógica do
conhecimento. Aristóteles seria “o Filósofo por excelência” independente do tempo e,
Tomás de Aquino, por sua vez, “o Teólogo”. A filosofia seria filha da autoridade, e não,
do tempo. O fluxo epistemológico do conhecimento autorizado estaria assentado nos
eixos da estabilidade, imutabilidade e tradição. Dito isso, a filosofia não seria mais que
um discurso a-histórico com validade permanente e inquestionável. O tempo continuaria
a existir, mas a autoridade e o debate filosófico seriam impetráveis por ele. O mundo do
conhecimento seria perfeito e estável tal como queira Parmênides (DK fr. 1): “convém
que tudo aprendas, tanto o ânimo inabalável da redonda verdade, como as opiniões dos
mortais, em que não há verdadeira confiança. Todavia, aprenderás isto também, como
aquilo que se acredita deve sê-lo em qualquer dúvida, fazendo passar todas as coisas
através de tudo”.

2. A filosofia como via compreensiva da temporalidade

O reverso da noção a-histórica ou intemporal da verdade é a redução da filosofia


à sua dimensão histórica e temporal. A pergunta sobre o tempo como horizonte de sentido
do ser tal como formulada por Heidegger torna-se, doravante, a pergunta sobre o tempo
como horizonte e fim da verdade filosófica. Situar a filosofia no horizonte do tempo não
é apenas repetir que toda verdade enunciada pertence ao reino da falibilidade e da finitude,
mas o reconhecimento de que toda verdade é irrepetível, irreversível e irretratável, vale
dizer: a irrepetibilidade demarca um campo da verdade como não coincidência discursiva
entre o ontem e o hoje, ou seja, a verdade alcançada ontem não serve como imposição
para o hoje; a irreversibilidade significa que toda verdade alcançada não pode ser deposta
nem negada, exceto pela deficiência negacionista do conhecimento; e a irretratabilidade
aponta para a direção da veracidade constitutiva do conhecimento no tempo. Negando de
novo a eternidade da verdade, a filosofia aposta na temporalidade – na falibilidade e na

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
14

finitude – histórica da verdade. E, para entender como tal compreensão funciona na atual
configuração do ensino médio, analisemos a definição da filosofia na BNCC.
A palavra filosofia aparece 26 vezes nas 600 páginas da BNCC: sendo 20 no plural
e 6 no singular. A primeira ocorrência plural destaca a necessidade de o ensino religioso
efetuar-se “sem desconsiderar a existência de filosofias seculares de vida” (Brasil, 2017,
p. 436). Depois seguem-se 19 referências às “filosofias de vida” quase sempre ladeadas
de adjetivações como “tradições, conhecimentos e movimentos religiosos e filosofias de
vida”, portanto sem identificar nenhum conteúdo preciso para essas filosofias.
As ocorrências no singular são mínimas, sendo que a primeira enquadra a filosofia
dentro das ciências humanas e sociais aplicadas, ao lado da história, geografia e sociologia
como uma das áreas de competências específicas do Ensino Médio (Brasil, 2017, p. 33).
Depois disso, o termo retorna na seção sobre “A progressão das aprendizagens essenciais
do Ensino Fundamental para o Ensino Médio”, no qual apresenta “[n]o Ensino Médio,
com a incorporação da Filosofia e da Sociologia, a área de Ciências Humanas e Sociais
Aplicadas propõe o aprofundamento e a ampliação da base conceitual e dos modos de
construção da argumentação e sistematização do raciocínio, operacionalizados com base
em procedimentos analíticos e interpretativos” (p. 472). A filosofia nesta passagem conta
como parte da construção argumentativa e sistemática do raciocínio operada pela análise
e interpretação nas ciências humanas e sociais. Nesse sentido, cabe destacar que filosofia,
nessa passagem, nada tem a ver com filosofias de vida nem com visões de mundo difusas,
menos ainda com tradições, conhecimentos e movimentos religiosos. A filosofia funciona
como construção argumentativa e sistemática do raciocínio, e mais que isso, através de
procedimentos analíticos e interpretativos.
A terceira referência provém da definição do currículo da formação geral básica
sobre as aprendizagens essenciais na BNCC (Brasil, 2017, p. 476) onde a sociologia e a
filosofia constituem o oitavo eixo fundamental. Na sequência, a quarta referência
enquadra-se nas ciências naturais onde aparece a “história e filosofia da ciência” (p. 556)
enquanto formas de conhecimentos conceituais integradas nas ciências naturais. A
penúltima ocorrência do termo encontra-se na área 5.4. dedicada às Ciências Humanas e
Sociais Aplicadas onde Filosofia, Geografia, História e Sociologia são descritas como
aprendizagens essenciais “sempre orientada para uma formação ética” (p. 561). Eis o que
se diz até o presente nesse texto programático, restando a última referência (p. 563):
“definir o que seria o tempo é um desafio sobre o qual se debruçaram e se debruçam

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
15

grandes pensadores de diversas áreas do conhecimento. O tempo é matéria de reflexão na


Filosofia, na Física, na Matemática, na Biologia, na História, na Sociologia e em outras
áreas do saber”. A filosofia encontra-se dentro do arcabouço das ciências naturais, exatas,
humanas e sociais que trabalham com o tempo, enquanto “matéria de reflexão na
Filosofia”. Não se trata de um apêndice nem de um tema de menor relevo, ao contrário,
“Tempo e Espaço explicam os fenômenos nas Ciências Humanas porque permitem
identificar contextos, sendo categorias difíceis de se dissociar” (p. 563). A difícil
dissociação entre tempo e espaço se fortaleceu, sobretudo após a filosofia kantiana, que
os identificaram como condições de possibilidade de apreensão dos fenômenos internos
e externos (Kant, 2001 [1781], I, 1 § 1-8 [A22s e B37s]) na estética transcendental dos
elementos do conhecimento. Porém, com o intuito de centrar a atenção nos elementos da
“construção da argumentação e sistematização do raciocínio, operacionalizados com base
em procedimentos analíticos e interpretativos”, elegemos o conceito de tempo como
objeto prioritário nessa pesquisa e, para tanto, necessário se faz explicitar como a BNCC
(Brasil, 2017, p. 563) o formula na sequência do argumento:

Na História, o tempo assume significados e importância variados. O fundamental é compreender


que não existe uma única noção de tempo e que ele não é nem homogêneo nem linear, ou seja, ele
expressa diferentes significados. Assim, no Ensino Médio, os estudantes precisam desenvolver
noções de tempo que ultrapassem a dimensão cronológica, ganhando diferentes dimensões, tanto
simbólicas como abstratas, destacando as noções de tempo em diferentes sociedades. Na história,
o acontecimento, quando narrado, permite-nos ver nele tanto o tempo transcorrido como o tempo
constituído na narrativa sobre o narrado.

A formulação dessa definição do tempo na história pode ser, de alguma forma,


matizada pela compreensão filosófica do tempo, embora não possa ser definida com uma
expressão tão breve quanto essa. Não obstante, como o tempo é “matéria de reflexão na
Filosofia”, desenvolveremos uma análise das formas como o tempo foi expresso ao longo
da história das culturas indo-europeia, africana e ameríndia. Ao mesmo tempo, estaremos
sempre atentos para que a noção de tempo não seja esvaziada de sua dimensão radical
que assola e domina a vida humana no mundo, a saber, o tempo cronológico. Daí não se
segue que desprezaremos nem as compreensões simbólicas nem as abstratas do tempo,
embora isso não signifique, por si, que estaremos dispostos a flertar nem com a
introspecção psicológica do tempo, visto que não se trata do nosso objeto de análise, nem
alimentaremos compreensões abstratas do tempo, se isso significar compreensão
teológica ou meta-empírica do tempo.

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
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A radicalização analítica do conceito de tempo permite não um romantização do


tempo, mas uma radicalização da capacidade humana de responsabilização ética frente
ao mundo, entendido como totalidade das formas de vida e de existência envoltas na terra.
Em miúdos, a certeza da falibilidade e da finitude do conhecimento humano limitado nos
horizontes do tempo impõe ao sujeito que conhece uma profunda humildade, uma vez
que admite a falência e a limitação inerente a todo o seu conhecimento. Admitir o tempo
como irrepetível, provoca a ação na direção do aperfeiçoamento máximo, uma vez que já
não será mais possível rever ou refazer a mesma decisão. A irreversibilidade temporal
torna cada gesto uma fratura eterna, pois uma vez realizado – qualquer que seja o gesto
ou obra – jamais conseguiremos desfazer seu alcance e seus efeitos. Enfim, a
irretratabilidade vai ainda mais longe: nenhuma culpa se desfaz com o perdão. Uma vez
produzida a ofensa, o perdão nada mais significa que a suspensão do desejo de vingança.
Porém, o perdão não alcançará jamais o apagamento ou o esquecimento da ofensa
produzida ou sofrida.
A radicalidade da vida mundana reduzida ao fluxo contínuo do tempo não permite
a volta ao passado para desfazer o trauma nem antecipa a possibilidade da (des)graça
futura. O que resta é o fluxo temporal e, mergulhados nele, a possível decisão em favor
de ou contra a construção mediana, boa ou excelente das relações com o outro, o mundo
e as coisas. À medida que se estabelecem e fortalecem essas relações, construímos a trama
da história. Sem nenhuma necessidade pré-estabelecida pelos deuses (sem predestinação)
e também sem qualquer garantia de esperança no reino dos aventurados (sem parousia),
o curso do tempo entende-se antes e depois da existência individual de cada um de nós
no mundo. A diferença que podemos estabelecer no tempo não será, pois quantitativa,
uma vez que o tempo flui inexoravelmente, mas qualitativa, onde podemos construir
relações na trama ou no drama da história. Cada um decide no hoje se agirá de forma vil,
mediana, boa ou excelente sem a possibilidade de repetir, reverter ou retratar a ação
efetuada. Sair da fragmentação do instante t1 para o t2 somente é possível por meio da
relação. Superar o atomismo da vida e a dissociação do mundo torna-se possível quando
as relações superam o trauma e formam uma trama histórica, sempre precária e limitada,
porque sempre governada pelo fluxo incessante do tempo.

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
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II. A INVENÇÃO DO TEMPO ENTRE OS POVOS ANCESTRAIS

Sem antes nem depois, talvez essa seja a forma mais extrema de compreensão da
vida humana. A ruptura com o tempo que nos precedeu (o passado) e a ausência de espera
ou de um projeto que se estenda para o amanhã (o futuro), certamente mergulha a vida
em um fluxo radical do presente. Essa possibilidade transforma o tempo presente em uma
espécie de unicidade ou raridade imperdível. Se não há como acessar o passado, não resta
nenhuma esperança nem memória do tempo chamado ontem. A dissolução do passado e
a ausência de um tempo por vir, de um futuro, mergulha a vida no mar do devir sem porto
nem ancoradouro possível. Restaria apenas navegar, e navegar infinitamente.
A saída do mar do devir infinito sem passado nem futuro acontece por duas formas
bastante comuns. A primeira bifurca-se na memória e no testemunho. Aquilo que passou
ontem e já está ausente dos sentidos, permanece de alguma forma na memória. O processo
de hominização dependeu profundamente desse recurso. A ausência completa de
memória seria condenar os antepassados ao nomadismo infinito. Uma vez que os povos
ancestrais, caçadores e coletores, começaram a estabelecer rotas em busca de alimentos e
retornaram aos mesmos pontos para fazer suas colheitas, começaram a alimentar e povoar
a memória com as estações do tempo (os períodos frutíferos ou os melhores momentos
para caça) e com essa disposição, começaram a fixar na mente os ciclos exploratórios da
fauna e da flora.

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
18

À medida que conseguiram identificar os ciclos da produção alimentar e as épocas


propícias para caça ou pesca, esses povos estabeleceram hábitos que ritmaram suas vidas
e práticas cotidianas. Isso somente foi possível graças ao aprimoramento da memória. Os
povos nômades iniciaram, então um processo cíclico de regularidade na coleta e caça de
alimentos. Porém, esse processo dependeria da experiência de cada indivíduo enquanto
sujeito capaz de apreender memorizando o ciclo das estações propícias. Com a difusão
da linguagem entre os membros de uma mesma tribo, esse processo de conhecimento por
experiência poderia ser encurtado: aquele que já conhecia poderia transmitir verbalmente
ao outro a memória de suas experiências, constituindo-se assim como um testemunho do
curso da natureza onde vivia. Enquanto evento individual, a memória serviria apenas para
que o indivíduo se orientasse na prática cotidiana. Enquanto evento coletivo, a memória
compartilhada dentro da tribo tornou-se, progressivamente, a fonte do testemunho verbal.
A socialização do conhecimento mediado pela linguagem constituiu, dessa forma,
a memória das estações propícias para caça, pesca e coleta de alimentos. Quanto mais os
povos se dedicassem ao cultivo do solo, passando progressivamente do nomadismo para
o sedentarismo da vida agrícola, mais necessário se fazia o conhecimento das estações da
chuva, dos ventos, do frio e do sol. Assim, seria possível escolher o melhor período para
plantar, caçar e pescar. Estava instituída, graças à memória, a rotina de povos agricultores.
Essa conquista fez avançar a sedentarização desses povos, mas não foi capaz de conservar
seus saberes nascidos da experiência cotidiana com a natureza. Isso só se tornou efetivo
à medida que começaram a transmitir verbalmente seus conhecimentos. A memória fez-
se testemunho. A narração do conhecimento transformou a prática da vida coletiva: quem
tinha mais experiência – normalmente, os anciões – transmitiam-no aos mais jovens pela
linguagem verbal ou escrita, pictórica ou não. Tanto maior fossem os conhecimentos
transmitidos, maior a memória de um povo e, quanto mais memória, maior capacidade de
coordenar a vida de acordo com o ritmo da natureza.
A identificação dos períodos mais ou menos propícios à caça, à pesca e ao plantio
deu lugar à compreensão do ciclo das estações da natureza. Em cada uma delas, um modo
de ação era mais adequado para desenvolvimento e menos dispendioso em dedicação e
trabalho. Dessa compreensão dos ciclos naturais, nasceram as formas primitivas de narrar
o curso do tempo. Com isso, estamos dizendo que a compreensão do tempo nasceu pari
passu com o reconhecimento das estações naturais. Não se trata ainda de uma percepção
das fases e estações completamente delimitadas, mas da capacidade de identificar e fazer

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
19

a vida seguir o ritmo propício da natureza. Ela foi a mestra da memória à medida que fez
com que os seres humanos identificassem as estações adequadas para cada atividade. Com
a transmissão desse conhecimento verbalizado em forma de testemunho, estava garantida
a primeira compreensão dos ciclos e estações da vida. Começava aí a possibilidade de dar
à memória um estatuto de conhecimento, isto é, transformar a experiência acumulada em
testemunho transmissível à coletividade.
A dupla passagem da experiência à memória, seguida pela passagem da memória
ao testemunho, constituíram os dois movimentos fundamentais para a legitimação do
conhecimento acumulado pelos antepassados. À medida que esse conhecimento foi dito
em forma de testemunho às futuras gerações, estava estabelecida a noção de passado. De
tudo o que se havia experimentado, poder-se-ia constituir um relato para as gerações por
vir. A primeira forma de transmissão desses relatos foi, em todas as culturas, a oralidade
que, combinada aos ritos, perpetuava a memória dos “tempos imemoriais”. A fragilidade
da transmissão oral deve-se à necessidade de manter o elo contínuo da tradição, ou seja,
a necessidade de retransmitir com a maior fidelidade possível aquilo que foi recebido dos
antepassados. Somente assim o passado perduraria no presente: a memória faz a história.
A transmissão da memória nem sempre gozou dos maiores benefícios. A guerra
entre os povos sempre conduz à perda de uma série de monumentos históricos. Outro fato
trágico para a memória é a extinção de uma língua. Alguns conhecimentos dependem em
grande parte da forma e da sintaxe de comunicação de uma língua determinada para serem
transmitidos adequadamente. Como as culturas retransmitem, em suas fases iniciais, seus
conhecimentos oralmente, a extinção de uma língua significa uma tragédia cultural. Com
o advento da linguagem escrita, a memória pode ser preservada até que alguém acesse de
novo aquele idioma, embora não consiga acessar nem reconstruir a forma mentis de onde
vieram os textos. O fato de uma cultura registrar seus costumes de forma escrita, salva os
costumes do esquecimento, ao mesmo tempo que desmobiliza o cuidado da memória nas
formas de retransmissão oral. A conquista da história escrita é a salvaguarda da memória.
Com o registro escrito da memória, institui-se um testemunho autorizado de uma tradição.
A questão que se impõe, doravante, é saber como os povos ancestrais transmitiram
suas memórias. Se se reduziam à transmissão oral, com a extinção de uma língua e seus
falantes, estavam irremediavelmente perdidos esses testemunhos. Se os transmitiam em
forma escrita, ainda que os futuros leitores não tenham acesso à forma mentis do redator,
a escrita da história – a memória feita testemunho – permanece como patrimônio por vir.

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
20

A possibilidade de conhecer boa parte dos patrimônios culturais do passado, depende, em


grande parte, da possibilidade de acessar as narrativas que os povos ancestrais redigiram.
O limite dessa possibilidade é, não apenas a escrita desses povos, mas também as políticas
de conservação desses relatos. De um lado, esses escritos são ameaçados pelas guerras de
conquista quando, não poucas vezes, são completamente destruídos. De outro, as políticas
implementadas pelos conquistadores podem não apenas adulterar os relatos quanto fazer
crer que sequer existiram. Trata-se, nesse caso, da política do esquecimento.
Aplicando essas duas possibilidades à história dos povos ancestrais – às culturas
anteriores à invasão do Novo Mundo e às culturas dos povos africanos transportados para
cá – não é incomum repetir que se tratam de povos ágrafos. A contínua afirmação de que
se tratam de povos ágrafos por parte dos conquistadores anula a principal questão relativa
à legitimação da conquista: povos ditos ágrafos seriam primitivos, logo, carentes de
civilização e cultura. A forma que os conquistadores usam para transmissão da cultura é
a negação completa da cultura ancestral e a imposição da cultura dos conquistadores. De
onde resulta a reafirmação contínua da história dos vencedores como a única história que,
de fato e de direito, merece legitimidade e reconhecimento, digo, a história do vencedor
se torna a história do processo civilizatório dos vencidos.
Os relatos seiscentistas da conquista do Novo Mundo, com especial ênfase naquilo
que se refere a Pindorama (terra das palmeiras) renomeado Terra de Vera Cruz e, mais
tarde, Brasil, centram-se, em geral, no exotismo, na nudez e na ausência de conversação
entre os conquistadores e os povos tidos como bárbaros. A mágica se operou no primeiro
momento com a transformação da nhe’engaíba (língua dura e rude praticada pelos povos
marajoaras) em nhe’engatú (língua boa e geral cultivada graças à ação do conquistador).
A expressão máxima da deposição das línguas originárias em benefício da imposição da
língua adventícia encontra-se na Arte de grammática da língua brasílica (1687) do jesuíta
Luís Figueira. Com isso, consumava-se, de certa forma, a incompreensão das línguas dos
povos originários e forjava-se uma pretensa língua geral (nhe’engatú) capaz de viabilizar
o diálogo entre os “povos primitivos e ágrafos” e os “povos civilizados e escritores”. Com
a crença da agrafia difundida, a narração da conquista saia das mãos dos conquistados e
passava “naturalmente” às mãos dos conquistadores. O resultado foi a crença persistente
de que os povos ancestrais – quer os originários de Pindorama quer os adventícios da
África – seriam povos ágrafos, portanto, desprovidos de história. Testemunhar o passado
desses povos seria uma tarefa própria dos povos da escrita que, por sua vez, seria quem

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
21

tinha condições de narrar a memória dos ancestrais. Porém, essa versão da conquista
equivale a pedir ao conquistador que invente a história do conquistado quando, na
verdade, o que se pretende fazer, doravante, é mostrar que a narrativa do conquistador
nada mais foi que sua autolegitimação e instanciação de uma política do esquecimento.
Então, vejamos outras narrativas.

1. De tzolk’in às tradições do meu finado pai

Os primeiros registros da memória dos povos mesoamericanos (o dia 0.0.0.0.0 da


origem humana) equivaleriam ao dia 11 de agosto do ano de 3.114 a.C. Isso significa que
a história desses povos gira em torno de mais de 5 mil anos de história antes do presente.
A possibilidade dessa datação torna-se incrivelmente simétrica entre esse calendário e o
calendário juliano desde, aproximadamente, o século VI a.C. Os povos mesoamericanos
são os herdeiros das tradições zapotecas e olmecas, de onde sobressaíram os povos
mixtecas e astecas. Esses povos se identificam, de alguma forma, graças ao uso corrente
do tzolk’in. Um termo que significa, literalmente, “contagem de dias”. De onde se segue
que estamos falando de povos cuja cultura está centrada, diretamente, no uso do
calendário, a saber, na narração da memória transmitida como forma de testemunho para
as futuras gerações. Transmissão não apenas oral, mas preferencialmente escrita.
O tzolk’in regula o testemunho do passado. Ele, enquanto contagem dos dias, foi
a forma que os povos mesoamericanos usaram para estabelecer o calendário anual de 365
dias que, por sua vez, era chamado de haab’. A compreensão anual era cíclica, dividida
em 52 haabs que, no calendário juliano, equivale às semanas. A diferença na contagem
dos dias está no fato desses povos agruparem o tempo em duas formas distintas: os ciclos
breves de 13 dias eram os tzolkin e, os longos, de 20 dias, os haab. A contagem dos dias
era o tzolk’in, enquanto a contagem das semanas, o haab’.
Dentro da tradição maia, ainda se usa o termo k’in para indicar um dia singular. A
reunião de 20 dias (k’ins) é o winal, também grafado como uinal, cujo correspondente
juliano seria o mês. A passagem de 18 winals equivale a um tun, a saber, 360 dias mais 5
dias destinados à celebração dos deuses, ou seja, um ano de 365 dias. Analogamente aos
20 dias de um winal (mês), a reunião de 20 tuns (anos) formam um k’atun (uma geração)
e a reunião de 20 k’atuns formam um b’ak’tun, o que equivale a 400 anos. É interessante

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
22

notar que o tzolk’in – a contagem dos dias – é um princípio estruturante da cultura maia
a pontos de se fazer representar inclusive na arquitetura.

© https://viagemeturismo.abril.com.br/materias/as-15-piramides-mais-impressionantes-do-continente-americano

A imagem da Pirâmide de Papantla construída há mais de mil anos, presente no


estado de Veracruz no México, é um testemunho incontestável do valor que atribuíam à
contagem do tempo (tzolk’in). Essa pirâmide integra o conjunto arqueológico El Tajín e,
provavelmente, é uma herança dos povos Totonacas. O fato dela representar um tun – um
ano solar de 365 dias – em forma linear não constitui um acaso. Não é incomum ver as
culturas ancestrais representarem o tempo de forma cíclica tal qual se nota no calendário
juliano que ainda seguimos. Acreditamos que o ano se encerra no dia 31 de dezembro e
um novo ano inicia-se no dia primeiro de janeiro para encerra-se, de novo, no fim de
dezembro, sucessivamente. Essa é uma visão cíclica do tempo, cuja mudança poderia ser
apenas de qualidade ou evolutiva como a forma do movimento de um hélice.
Diversamente, a compreensão dos engenheiros totonacas era linear e a arquitetura
destaca a precisão dos cortes e os ajustes perfeitos entre as rochas. A mais ampla datação
registrada no calendário maia são 20 b’ak’tuns que são descritos novamente como uma
sucessão linear do tempo entre passado, presente e futuro. A única compreensão cíclica
no caso seria a de longa duração, a saber, os b’ak’tuns enquanto imagem do ciclo natural

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
23

das estações e do ciclo do nascimento e morte. Para registrar a memória do passado, era
costume entre os maias construírem monumentos entre o fim de um k’atun (20 anos ou
uma geração) e o início de outra. Com o fim do período clássico (100 a.C. a 1000 d.C.),
houve algumas mudanças na forma de datação e, em algumas regiões, o k’atun de 20 anos
foi substituído por 13 k’atuns, sendo que o último k’atun passava a ser nomeado como
Ahau (senhor) identificado ao nome do último governante. Cada k’atun de 13 anos era
contado na seguinte ordem 11-9-7-5-3-1-12-10-8-6-4-2-13 Ahau sucedido por 1 Imix, a
saber, um dia dedicado a celebrar a memória do último senhor daquele Ahau.
Todo esse complexo calendário encontra-se descrito na obra Chilam Balam de
Chumayel que condensa grande parte da cultura, do calendário e da sabedoria dos povos
maia mesoamericanos. O calendário maia apresenta semelhanças e equivalências com os
calendários asteca e inca, porém seria excessivo trazê-los neste momento, por isso remeto
a uma apresentação breve presente em Philosophia brasiliensis (Marques, 2015, p. 67s).
Além da compreensão linear maia, é preciso notar que houve outras formas de narração
do tempo entre nossos ancestrais. Por isso, sumariemos alguns elementos da compreensão
do tempo na cultura tupi-guarani, explicitando pontos elementares.
Os tupis-guaranis orientavam-se geograficamente pela posição dos astros. Nota-
se em primeiro lugar a orientação dos pontos cardeais e as estações a partir da posição do
Cruzeiro do Sul (Curuxu): o polo norte e o inverno, identificados por Curuxu na vertical
(as três estrelas maiores para cima); o polo sul e o verão, por Curuxu invertido (as três
estrelas maiores para baixo); o polo leste e a primavera, Curuxu pende para a direita com
três estrelas maiores e a menor para baixo; e o polo oeste e o outono, Curuxu pende para
a esquerda com as três estrelas maiores e a menor para cima. O fato curioso é que os
índios tupinambás do Maranhão em 1612 e os guaranis do sul do Brasil em 1991
utilizavam o mesmo sistema de orientação geográfica, não obstante a distância espaço-
temporal que os distingue (Afonso, 2022, p. 4). Os mesmos pontos cardeais e as estações
eram usados para demarcar as fases da lua, bem como o conhecimento das marés.
Ademais, a principal diferença aportada pela cosmologia guarani é a compreensão
circular do mundo e do tempo, bem como o reconhecimento de um poder divino superior
(Afonso, 2022, p. 7):

Na cosmogênese guarani, Nhanderu (Nosso Pai) criou quatro deuses principais que o ajudaram na
criação da Terra e de seus habitantes. O zênite representa Nhanderue os quatro pontos cardeais
representam esses deuses. O Norte é Jakaira, deus da neblina vivificante e das brumas que
abrandam o calor, origem dos bons ventos. O Leste é Karai, deus do fogo e do ruído do crepitar

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
24

das chamas sagradas. No Sul, Nhamandu, deus do Sol e das palavras, representa a origem do
tempo-espaço primordial. No Oeste, Tupã, é deus das águas, do mar e de suas extensões, das
chuvas, dos relâmpagos e dos trovões. O calendário guarani está ligado à trajetória aparente anual
do Sol e é dividido em tempo novo e tempo velho (ara pyau e ara ymã, respectivamente, em
guarani). Ara pyau é o período de primavera e verão, sendo ara ymã o período de outono e inverno.

A ciclicidade temporal guarani estrutura-se de forma binária – o tempo novo e o


tempo velho – espelham as grandes mudanças nos trópicos: o tempo novo que imita a
renovação da fauna e flora, e o tempo velho, que indica o período de maior recolhimento
das plantas e animais. Assim, a circularidade temporal limita-se ao período anual. Além
da compreensão temporal, outro dado que merece atenção é aquele que contraria
frontalmente a narrativa que os identificam como povos ágrafos. Essa compreensão vem
sendo revista graças à pesquisa do antropólogo Eduardo de Almeida Navarro (2022) sobre
as cartas dos índios Camarões de 1645 provenientes de Pernambuco.
Tratam-se de seis cartas situadas no tempo da dominação holandesa no Brasil
(1637-1645), sob o governo do conde Maurício de Nassau-Siegen. O descuido lusitano
foi a porta de entrada para a efetivação da presença holandesa nos estados nordestinos.
Lá a tolerância religiosa de Nassau permitiu uma composição social diversa sem conflitos
entre a tradição católica e o protestantismo holandês. A trégua não foi longa, pois com a
restauração do trono português e, consequentemente, o fim do domínio espanhol, a Coroa
fez novas investidas em vistas de retomar o domínio na Colônia. O conflito luso-holandês
durou quase nove anos e as populações indígenas potiguares distribuídas da Paraíba ao
Rio Grande do Norte dividiam-se entre as duas potências. Não obstante os desastres que
todo conflito produz, houve também avanços, pois foi justamente nesse período que esses
indígenas fortaleceram a troca de correspondências entre si, embora estivessem em lados
opostos na disputa (Navarro, 2022, p. 4). O que elas têm em comum é justamente a luta
para manter a possibilidade de viverem livres de qualquer um dos dois poderes em
questão, tanto o lusitano quanto o holandês.
Eduardo Navarro traduziu seis cartas redigidas entre 19 de agosto e 21 de outubro
de 1645, sendo que a primeira foi escrita após o massacre de Cunhaú e, as outras cinco,
após o massacre de Uruaçu. Felipe Camarão escreveu três cartas em tupi antigo; por sua
vez, Diogo da Costa, irmão de Pedro Poti, uma e, finalmente, Diogo Pinheiro Camarão,
mais duas cartas destinadas a Pedro Poti (Navarro, 2022, p. 4). Além do valor histórico e
linguístico para reconstrução do tupi antigo, as cartas atestam a compreensão temporal e
política dos povos potiguares. Eis um indício da não passividade dos povos indígenas
frente aos domínios e às tentativas dos colonizadores. Outro fator digno de nota é que há

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
25

algumas transformações na língua tupi presente nessas cartas que, certamente, decorrem
do contato que houve com a língua portuguesa, sobretudo aquele que José de Anchieta e
Luís Figueira quiseram patronizar em nome da civilização e cristianização dos indígenas.
Nota-se ainda nas cartas a influência do conflito religioso entre católicos e protestantes
que foi transposto do Velho para o Novo Mundo. Esse conflito revela-se à medida que os
próprios indígenas admitem tomar partido em nome de uma ou outra tradição religiosa e
em defesa do Estado lusitano ou holandês mesmo quando isso significa uma ruptura das
tradições familiares e uma crise entre aqueles que viviam unidos por laços consanguíneos
(Navarro, 2022, p. 48). Felizmente, isso não significou a ruptura completa dos laços que
os uniam. As cartas, ao contrário, testemunham o interesse e a decisão de conservarem os
vínculos e tradições que lhes tinham sido transmitidas pelos antepassados. Dessa forma,
o que está em questão nas cartas não é apenas a capacidade de se posicionarem frente a
um conflito religioso e político produzido pelos conquistadores, mas a decisão de manter
a memória dos antepassados como um compromisso primário ainda que em meio à crise
e ao conflito colonial (Navarro, 2022, p. 48):

A desestruturação do mundo tradicional indígena é claramente perceptível em tais cartas. Com


efeito, o próprio Felipe Camarão admitiu-o, ao prometer a Pedro Poti, em sua carta de 19 de agosto,
que novamente faria os potiguaras viverem “de acordo com seu modo de vida de antigamente”. A
mesma insatisfação ele manifestou na carta que escreveu a Antônio Paraupaba, em 4 de outubro:
“Eu vou para Paraguaçu, buscando aquela nossa futura morada. Eu não posso deixar desaparecer
de nós mesmos as tradições do meu finado pai”.

Façamos uma breve retomada: a contagem dos dias (tzolk’in) tal como foi pensada
pelo povo maia não se reduz à perpetuação de uma memória pelo simples apego ao
passado. A narrativa da memória se transforma em construção do testemunho daqueles
povos que viveram durante a conquista espanhola. Da mesma forma, as cartas tupis são
um vestígio da memória de que não se resignou sob a força brutal da conquista. Essas
cartas testemunham não apenas o vínculo de amizade que unia aqueles povos, embora
divididos por vezes graças aos conflitos religiosos e às lutas pelo poder dos Estados
lusitano e holandês, mas principalmente a certeza de que era preciso reconquistar o modo
de vida de antigamente através da conquista da própria vida livre e autônoma. Mais que
isso, a carta de Felipe Camarão testemunha suficientemente a autoconsciência que
conservavam, não obstante os conflitos coloniais: “eu não posso deixar desaparecer de
nós mesmos as tradições do meu finado pai”.

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
26

2. Da quebra da historicidade ao silenciamento do outro

Da mesma forma que os povos originários do Novo Mundo foram considerados


como povos primitivos, a saber, povos destituídos de historicidade e de cultura
elaborados, os povos africanos também sofreram as mesmas negações. Sua oralidade sem
foi vista na forma de um exotismo, mais que isso, foi visto como um traço definidor de
sua memória. Alia-se a isso o fato de sempre se representar a África não como era ou
poderia ser, mas como se desejava que ela fosse, isto é, à imagem e semelhança do que o
colonizador dizia a seu respeito. Com isso, o continente africano foi milenarmente tratado
como um povo destituído de culturas originais, mas isso só foi possível à medida que
branquearam e europeizaram um nome como Agostinho de Hipona, quando separam a
representação histórica e cultural egípcia do resto do continente e à medida que apagaram
da história o nome de Timbuktu, a velha Alexandria do Saara. O resultado desses
processos foi, de um lado, o apagamento da história africana e, de outro, a exotização de
seus traços culturais. Dessa forma, nada mais parecia ser necessário para resumir a
história africana que repetir ibi sunt leones (aí existem [apenas] leões). De onde se seguia
que “as sociedades africanas passavam por sociedades que não podiam ter história”
(M’Bow, 2010, p. xxi).
A reiterada negação da historicidade dos povos africanos motivou a elaboração do
projeto de história da África patrocinado pela UNESCO a partir de 1971. A recusa de se
reconhecer a história africana condenava o continente a permanecer como uma entidade
a-histórica ou uma entidade cuja historicidade se definia por subordinação às narrativas
dos colonizadores. Some-se a isso as tragédias da escravidão e da colonização, bem como
a separação discriminatória de formas distintas de humanidade, aquele que dividiria
grupos sociais entre “brancos” e “negros”. De onde resultou a histórica reafirmação da
narrativa colonial em detrimento da historicidade africana. Os colonizadores pensando e
agindo como se fossem superiores aos colonizados e, com isso, impondo uma condição
subalterna aos povos africanos que, caso quisessem romper tal ciclo, teriam que “lutar
contra uma dupla servidão, econômica e psicológica” (M’Bow, 2010, p. xxii). Na
dimensão econômica, os vínculos de dependência criados pelos colonizadores
condenavam as sociedades africanas a se manterem dependentes de matrizes coloniais.
Na dimensão psicológica, a condição de subalternidade dificulta a afirmação de processos
emancipatórios e libertários.

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
27

Dentro dessa dualidade, quando tais sociedades conseguiam alguma estabilidade


econômica, por vezes, faltava a desenvoltura psicológica para afrontar a ruptura com a
matriz colonial e vice-versa, quando havia a coragem de enfrentar as lutas pela libertação,
faltavam condições materiais para subsidiar a reorganização política e social dos povos.
Outro elemento não menos importante para a construção da história da África são as
fontes originais (primárias e seguras) que documentem sua historicidade. Caso contrário,
o risco seria repetir a narrativa composta pelos colonizadores como a própria narrativa.
Ademais, a construção de uma historicidade própria enfrentava as consequências da
colonização que se estendiam aos “âmbitos demográfico, econômico, psicológico e
cultural”, sabendo que as tramas sociais nunca vinham desacompanhadas de outros
fatores externos como, por exemplo, as diferenças entre a África do norte, a África
subsaariana e a herança árabe. E, para coroar os desafios, lembre-se que “o processo de
descolonização e de construção nacional, mobilizador da razão e da paixão de pessoas
ainda vivas e muitas vezes em plena atividade” precisaria reconciliar as arestas sociais
internas (entre as tribos e etnias, e entre os países africanos) e externas (entre os países
africanos e seus colonizadores). O resultado está na lentidão e na complexidade de pensar
um processo de descolonização sem que a sociedade convulsione na recolonização
interna (M’Bow, 2010, p. xxiv).
A simples reafirmação de que “a África tem uma história” não resolve o problema.
Para que a história de um continente represente de forma coerente e emancipatória uma
tribo, um país ou um continente, essa história precisa ser escrita com base em critérios
capazes de superar a autorreferenciação e a narração externa. Uma história que se paute
na exclusiva autorreferenciação, rompe a capacidade de inserção da história no campo do
debate com as culturas estrangeiras. Uma história que dependa fundamentalmente de uma
narração externa, nunca alcançará a emancipação. Por isso, essa história precisa superar
o impulso do confronto direto e precisa respeitar o ciclo de amadurecimento interno para
que a tomada de consciência de um povo signifique efetivamente sua emancipação, mas
o que se viu em muitas narrativas era a recusa de enfrentar a própria tragédia da história:
“abatido por vários séculos de opressão, esse continente presenciou gerações de viajantes,
de traficantes de escravos, de exploradores, de missionários, de procônsules, de sábios de
todo tipo, que acabaram por fixar sua imagem no cenário da miséria, da barbárie, da
irresponsabilidade e do caos” (Ki-Zerbo, 2010, p. xxxii).

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
28

A imagem de si traçada pela narrativa alheia não passava, ao longo dos séculos,
de um processo de subordinação da própria história à historicidade alheia: o tempo de um
povo subalternizado foi colonizado pelo tempo do conquistador (Dagenais, 2004, p. 366).
A condição para se romper com a colonização do tempo depende de vários fatores: uma
autocompreensão coesa, o reconhecimento dos influxos positivos da natureza entorno, o
superar a punção demográfica da escravidão e a reconstrução da estabilidade social para
alavancar o fluxo de desenvolvimento tecnológico (Ki-Zerbo, 2010, p. xxxv). Somando-
se esses fatores às pesquisas das fontes, é possível começar a escrever uma história própria
de um povo determinado. As fontes disponíveis na história africana são de cinco matrizes
principais: a escrita (embora nem sempre bem distribuída no tempo e espaço continental),
a arqueológica (dependente de localização, classificação e proteção), a oral (reunindo
discursos épicos, prosaicos, didáticos e éticos), a linguística (que permite o conhecimento
de distintos processos de evolução discursiva) e a etnoantropológica (que precisa superar
a prática colonial para não reduzir o discurso à recolonização espaço-temporal). Mais que
isso, cumpre ainda destacar que tais fontes precisam ser conjugadas interdisciplinarmente
sem privilegiar uma em detrimento de outras graças à diversidade própria dos saberes que
emergem delas (Ki-Zerbo, 2010, p. xxxvi-xlix).
A interdisciplinaridade constitui a primeira base para o método historiográfico da
história em questão. Não obstante, para o nosso objetivo, a compreensão do tempo requer
a compreensão da capacidade de um povo narrar seu ontem em virtude de um amanhã,
ou seja, a capacidade de um povo articular sua história discursivamente do ontem sem o
medo de não haver amanhã. Quanto ao ponto, a pesquisa filosófica não retem os dados
estritos da oralidade nem da etnoantropologia nem da arqueologia para não transgredir os
limites epistêmicos. A filosofia trabalha, no melhor dos casos, com a narrativa da história:
a construção retórica do passado em vistas de explicitar os valores subjacentes à cultura
e perceber os indícios, se é que existem, da história por vir de um povo. Para tanto, não
cabe à filosofia senão integrar compreensivamente os resultados das demais pesquisas.
Nesse sentido, há dois elementos que merecem atenção precípua na compreensão
do tempo na cultura africana: o processo de escravidão e os manuscritos de Timbuktu. O
primeiro elemento não importa apenas em virtude do trauma histórico produzido, mas da
quebra da noção de historicidade. A compreensão do tempo enquanto fator estruturante
da identidade subjetiva depende não apenas da autocompreensão (consciência de si e dos
seus projetos individuais), mas também do reconhecimento alheio. A obra da escravidão,

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
29

seguida do processo de diáspora social e cultural, produz na mente do escravizado uma


fratura da própria história. Transportado para outro continente, sem direitos reconhecidos,
o escravizado é reduzido à condição de um ser a-histórico. O que conta dele é apenas seu
corpo enquanto força motriz. Sua historicidade e cultura foram fraturadas com o desterro.
O lado objetivo dessa condição é seu não reconhecimento pelo outro: o escravizado não
conta como alguém dotado de história. Sua existência se passa como fluxo subordinado
completamente à vontade alheia: seu tempo e sua narrativa (sua história) somente existem
enquanto dependentes da história do seu senhor (Hegel, 1992, p. 131), “o que o escravo
faz é justamente o agir do senhor, para o qual somente é o ser-para-si, a essência: ele é a
pura potência negativa para a qual a coisa é nada, e é também o puro agir essencial nessa
relação”. Nem o escravizado nem o fruto do seu trabalho gozam de historicidade, porque
o tempo de sua vida se determina pela vontade de seu senhor. O escravizado age como
um objeto a-histórico em virtude da impossibilidade de sua autodeterminação. A história
que constrói permanece negativa, isto é, não reconhecida pelo seu senhor nem pelo outro.
O escravizado tem a história negada pela dominação senhorial: vive como desconhecido.
O segundo elemento fundamental para compreensão da história africana serão,
pois os relatos do tempo vivido, isto é, a história do seu passado anterior à colonização
europeia. Nessa condição, o relato histórico – os manuscritos de Timbuktu – reconstroem
um elo com um passado que seria considerado imemorial para os europeus, mas ancestral
para os africanos. A história narrada não é apenas uma memória, mas o testemunho de
uma existência que precedeu a fratura da colonização e da diáspora. O testemunho
reconstrói a história que a tragédia histórica da dominação e da diáspora pretendiam
silenciar. A existência do manuscrito testemunha a existência de uma outra historicidade
no tempo. Embora falando no singular, não se trata de um manuscrito apenas, mas de um
conjunto de manuscritos que chega à cifra de 700.000 documentos e que, sem sombra de
dúvida, são a condição para reconstruir a história africana anterior à tragédia colonial, tal
qual é necessário fazer nas Américas para que se reencontre a história dos povos
originários não obstante o trauma da invasão. Com isso, Nazeem Mubeen I. Goolam no
artigo The Timbuktu Manuscripts (2006, p. 50) reencontra a condição de uma história
descolonizada, digo, a condição para que os africanos se reconheçam senhores de uma
história anterior à colonização, o que supõe necessariamente a possibilidade de
renascimento da cidade antiga anterior à colonização.

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
30

Um acervo histórico como o de Timbuktu (700.000 manuscritos) não deixa dúvida


quanto a riqueza das fontes de conhecimento disponíveis para a reconstrução da história,
porém há outras fontes igualmente importantes e solidárias, como a arqueologia e tradição
oral (Goolam, 2006, p. 29). Essas fontes requerem a competência e a dedicação múltipla
de pesquisadores interdisciplinares em vistas de conjugar arqueologia, tradição oral e os
manuscritos, além das fontes históricas, etnográficas, demográficas e geográficas. Quanto
à região norte africana, os livros testemunham a enorme expansão das viagens dos árabes
e, consequentemente, da difusão histórica dos livros na cultura africana. De 1000 a 1600
d.C., a África experimentou a “idade do ouro da história da África ocidental” (golden age
of West African history) que foi rompida pela empresa colonial (Goolam, 2006, p. 30).
Essa era de ouro tem recebido considerável atenção crítica de pesquisadores desde
o início do século passado, sobretudo em obras como Literatura Árabe da África Online
complementa Geschichte der Arabischen Litteratur (ALAO / GAL) de Carl Brockelmann
(1868-1956). Embora essa fonte não esteja mencionada no artigo de Goolam, recorde-se
que os manuscritos apresentam uma riqueza cultural tão ampla quanto aquela encontrada
na Europa do século XVI. Some-se a isso os 3 volumes do Handbook to the Arabic
Writings of West Africa and the Saara (1979) organizados por John O. Hunwick e os 13
volumes do Arabic Literature of Africa (1993-2022) organizados por John O. Hunwick e
R. S. O’Farey. Retomando, Goolam exemplifica a sabedoria africana com a versão latina
da Descripta Africae na seção dedicada a Tumbutum Regnum. Aí aparecem as figuras de
Timbuktu e Djenne por volta de 1100 d.C. explicitando a proeminência histórica do Mali.
O Tumbutum Regnum trata temas fundamentais da vida política africana: o justo governo,
a justiça, a ética e a lei. Na parte dedicada à lei, encontra-se uma resposta de Ahmad Baba
sobre a questão da escravidão que ilustra perfeitamente o valor histórica da fonte.
O resultado dessa nota sumária sobre os manuscritos de Timbuktu precisa ser lido
em dupla vertente: de um lado, a validade do testemunho documental que destrona aquela
enviesada noção de oralidade generalizada em relação àquele continente, de outro, expõe
a abertura teórica de um acervo documental quase inexplorado em proporção à sua maior
extensão. Os manuscritos de Timbuktu são um testemunho suficiente para a compreensão
da dimensão da oralidade na tradição africana (Goolam, 2006, p. 39):

Os manuscritos de Timbuktu demonstram a sólida e longa tradição intelectual africana e apontam


para o fato de a África possuir um rico legado de história escrita, contrariando a falsa percepção

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
31

de que a África seria um “continente da oralidade”, e contrariando também a opinião popular de


que apenas a tradição oral teria preservado a herança legada pela tradição 2.

O segundo aspecto trata da dimensão teórica presente nos referidos documentos.


Longe de serem uma espécie de “almanaque cultural” sem explicitação teórica rigorosa,
os manuscritos integram o arco completo da tradição filosófica similar à indo-europeia.
Com isso, não se trata de uma leitura por similaridade, mas apenas para identificar quão
rico é o arcabouço teórico dos manuscritos. Sem mais delongas, melhor compreender o
que trazem a partir da exposição de Goolam (2006, p. 43):

No final da década de 1960, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura, realizou uma conferência em Timbuktu onde se descobriu uma enorme gama de
manuscritos. Até aquele momento, havia sido descobertos 700.000 manuscritos, sendo que o mais
antigo data de 1204. Esses manuscritos, redigidos em árabe, abordam uma variedade de assuntos,
desde matemática, astronomia, medicina, literatura, filosofia, direito, linguística até a música. Eles
estão em forma de tratados, cartas, poemas e documentos jurídicos. Quanto a estes, incluem leis
comerciais da época e são um testemunho vivo da civilização avançada e refinada da África
subsaariana há mais de 800 anos3.

Chegado a esse ponto, podemos retornar ao ponto de partida que pôs em questão
a possibilidade de reconstruir a memória dos povos ancestrais novo-mundistas e africanos
não apenas por meio da oralidade, mas também dos testemunhos escritos, vale dizer, por
meio da memória transformada em testemunho. Não há dúvidas de que muito se perdeu
tanto aqui quanto lá, graças à política do esquecimento levada a cabo pelos colonizadores.
Não se pode menosprezar o trabalho que foi feito para reduzir ao silêncio duas “culturas
supostamente ágrafas”. Não obstante, do lado de cá, há não só os grandes monumentos
da cultura maia-quiché com seus mitos de origem quanto com seus calendários e registros
da memória, além dos outros escritos como as cartas dos índios Camarões que atestam o
domínio da escrita e a compreensão da necessidade política de demarcarem seu espaço
contra a dupla conquista que os ameaçava, a portuguesa e a holandesa. Do lado de lá, os
manuscritos timbuktanos são testemunhos de uma série de conquistas históricas: a

2
The Timbuktu manuscripts demonstrate the strong and long intellectual tradition of Africa and point to
the fact that Africa possesses a rich legacy of written history, contrary to the false perception that Africa
was or is an “oral continent”, and contrary to popular opinion that oral tradition alone preserved its heritage.
3
In the late 1960s the United Nations Educational, Scientific and Cultural Organisation held a conference
in Timbuktu where a wide range of manuscripts had been discovered. To date, some 700 000 manuscripts
have been discovered there, with the oldest one dating back to 1204. These manuscripts, written in Arabic,
cover a wide variety of subjects including mathematics, astronomy, medicine, literature, philosophy, law
and linguistics and music. They take the form of treatises, letters, poems and legal documents. The
manuscripts on law include business laws of the times and are a living testimony of the highly advanced
and refined civilisation in Sub-Saharan Africa more than 800 years ago.

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
32

primeira, o reconhecimento da força da cultura letrada africana que resistiu à política do


esquecimento perpetrada pela lógica colonial; a segunda, a recusa do mito do continente
da oralidade que não gozará de nenhuma validade a se considerar os avanços da pesquisa
desde a segunda metade do século XX; a terceira, a exigência de profunda humildade
frente à tarefe de estudar e pôr a descoberto o patrimônio cultural africano.
Caso contrário, a recusa do exigente trabalho de reconstrução das tradições tanto
dos povos originários quanto dos africanos conduzirá à mitificação do discurso sobre tais
culturas. O mínimo a se esperar dos estudos sobre essas culturas é a volta às fontes de
suas tradições mediante o estudo minucioso e paciente em vistas de reconstruir suas
tradições de pensamento frente ao risco de mitificar suas histórias e, novamente, colonizar
seu passado em benefício do discurso de engajamento social ou de outras formas de
discurso que escondem a radicalidade da história sob o véu da militância retórica.

III. A HISTÓRIA ÚNICA COMO FORMA DE COLONIZAÇÃO DO TEMPO

A relação eu-tu pode ocorrer de duas formas: a primeira, pelo reconhecimento que
se traduz na empatia, no respeito e no diálogo; a segunda, pelo desconhecimento, operado
no jogo da antipatia, da violência e do silenciamento. Como é impossível viver isolado já
que todos os seres humanos estão condenados, até o presente, à vida na terra, não há outra
possibilidade senão procurando amenizar e aprimorar a relação eu-tu. O crescimento da
população mundial não deixa dúvidas quanto à impossibilidade de viver no isolamento.
Não há ilha deserta onde alguém possa se esconder nem há outro planeta disponível até o

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
33

presente. Nada soa mais explícito que ritmo vertiginoso do crescimento populacional: em
1500 eram 438 milhões de pessoas na terra; em 1600, 556 milhões; em 1700, 660 milhões;
em 1800, 1 bilhão; em 1900, 1,6 bilhão; em 2000, 6,1 bilhões; em 2017, 7,6 bilhões e
estima-se para 2100, 11,2 bilhões. Em resumo, entre 1500 e 1900, a população cresceu
em média 39,28% entre 1900 e 2000, cresceu espantosamente 281%, com previsão de
crescer de 83,60% no século XXI. Em 2021, chegamos 7,888 bilhões de pessoas, o que
significa que dividimos cada quilômetro quadrado da terra com mais 50,66 pessoas. A
terra está urbanizada, mas nem por isso podemos dizer que estamos educados para lidar
com as pessoas a habitam.
Enquanto não reconhecermos o outro com um igual, continuaremos a desenvolver
relações alérgicas. O outro será sempre visto como ameaça contínua e potencial inimigo.
Assim, a força do não reconhecimento recíproco multiplica relações violentas eu-tu. Estar
ao lado do outro parece uma constante ameaça, excluindo as relações de prazer e de bem
viver. Desde o advento da modernidade europeia (marcada pela revolução científica, a
mudança da visão geocêntrica para a heliocêntrica, a reforma protestante e a invasão do
Novo Mundo), as relações humanas têm se tornado mais difíceis, embora sempre houve
conflitos entre eu-tu, entre povos e nações, entre grupos e etnias. Não existe um tempo
edênico em que o ser humano tenha gozado de paz e serenidade em um paraíso terrestre.
Mas, a partir do momento em que a disputa pela sobrevivência se torna mais atroz,
crescem os conflitos eu-tu.
Com o advento da modernidade europeia, o humano operou quatro grandes formas
de não reconhecimento recíproco, ou seja, de dominação social: a primeira, pautada na
conquista material, espiritual e simbólica (efetivada por meio do domínio territorial,
religioso e cultural) descrita por Tzvetan Todorov em A conquista da América (1982); a
segunda, operada pela dominação do ser, saber, poder e gênero (as dominações corporal,
epistêmica, social e masculino-feminino) presentes, por exemplo, na Ética da libertação
na idade da globalização e da exclusão (1998) de Enrique Dussel; a terceira, dinamizada
por formas de violência interseccional (racismo, sexismo, classismo, colonialismo,
etarismo, patriarcalismo, machismo, capacitismo, xenofobia, bifobia, homofobia,
transfobia, além de outras formas de intolerância social e religiosa) têm sido debatidas
desde a década de 60 por pessoas como Leslie McCall, bell hooks e Lélia González (entre
outras), de quem destacamos Por um feminismo Afro-Latino-Americano (ensaio de 1988

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
34

e livro de 2020); a quarta, efetivada através da colonização do tempo e do espaço, que


passamos a analisar.
Todas as formas de vida demarcam o espaço que habitam como uma forma de se
protegerem de invasores e predadores. Afinal, dentre as necessidades básicas de todo ser
encontra-se a nutrição, a proteção e a reprodução. Por isso, o espaço constitui uma forma
primordial de ser, estar e existir no mundo. A pedra está no mundo, mas não interage com
o mundo. A formiga está no mundo e interage com tudo à sua volta, embora em espaço
restrito. O humano também está no mundo, interage, modifica e destrói seu próprio
habitat. Com os demais 7,888 bilhões de seres humanos, nós habitamos o espaço do
mundo e o constituímos pelo discurso (ao nomear o espaço e os artefatos), pela força (ao
controlar as coisas) e pela autoridade (ao ordenar as relações). Para além do espaço,
habitamos o tempo. Habitamos ou somos o tempo? É interessante a pergunta colocada
por Martin Heidegger no final de Ser e tempo (2012 § 83): “o tempo ele mesmo se
manifesta como horizonte do ser?”
As relações humanas se dão no tempo, quer aquelas que já aconteceram (ontem)
quer aquelas que podem acontecer (amanhã), embora tenhamos certeza apenas daquelas
que acontecem agora: estamos aqui e isso é irremediável. Caetano Veloso o disse dentro
da Oração ao tempo (1989): “por seres tão inventivo / e pareceres contínuo / tempo,
tempo, tempo, tempo / és um dos deuses mais lindos / tempo, tempo, tempo, tempo”. Nós
sempre lidamos com a memória e a promessa (o ontem e o amanhã) como se tivéssemos
qualquer poder sobre eles. O fato é que o ontem está irrepetivelmente passado e o amanhã,
completamente indeterminado, resta, portanto, a ilusão de que o tempo é contínuo, mas o
que temos como experiência fática é apenas o tempo, tempo, tempo, tempo, isto é, o hoje.
Embora não existe apenas um hoje, mas 7,888 bilhões de narrativas distintas na terra.
O problema não está no tempo presente – o hoje – mas no fato de absolutizar uma
narrativa como se houvesse uma leitura correta da realidade ou uma história única. Não
há unidade histórica, pois cada ser humano enxerga, experiencia e narra o curso do tempo
de forma única e irrepetível4. Narrar o tempo é, portanto, um exercício polifônico. Não
há quem capte e descreva a multiplicidade do mundo dentro de uma visão unitária.
Quando se alimenta a ilusão de que há uma história do mundo, o que se opera, de fato, é
a redução da multiplicidade à unidade, da diversidade à singularidade, dos outros ao eu.

4
A insustentável leveza do ser (1984) de Milan Kundera exemplifica belamente o valor narrativo
de múltiplas e contraditórias descrições da realidade sem, no entanto, colocá-las em xeque. Ao contrário, a
multiplicidade das narrativas contrárias e contraditórias evidencia, justamente, a polifonia do real.

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
35

O que, em última instância, nada mais significa senão a absolutização de uma versão da
narrativa do tempo reduzindo a multiplicidade das vozes à univocidade do mais forte. Aí
está O perigo de uma história única (2019) como descrito por Chimamanda Adichie.
Ela mostra como sua colega não conseguia compreender a possibilidade de haver
os mesmos gostos entre pessoas iguais, embora nascidas geograficamente muito distantes
uma da outra. O epicentro da descrição está na incapacidade de ver o outro como igual.
Isso decorre da absolutização de uma narrativa única da história. Todas as pessoas vivem
no mesmo planeta, embora estejam em condições humanas radicalmente distintas, nem
por isso haverá alguém mais ou menos humano que outro. Todas as pessoas participam
da condição de homo sapiens sapiens igualitariamente. A pergunta, então, deverá ser: de
onde nasce ou qual é a origem da desigualdade entre os seres humanos?
Não se trata de retomar a discussão de Jean-Jacques Rousseau no Discurso sobre
a origem e os fundamentos da desigualdade entre os seres humanos (1755) cuja causa é
a desigualdade social. Trata-se de reconhecer que, além da desigualdade social, há outras
formas de produção de violência em curso e, neste caso, estamos falando da narrativa do
tempo: a construção da história dos vencidos pela voz dos vencedores, digo, a história
única narrada por quem detém o poder. À medida que a narrativa do tempo se concentra
apenas em uma perspectiva, reforçam-se os pressupostos da história única e anula-se a
diversidade das narrativas das outras pessoas. Assim, a diversidade humana é reduzida à
singularidade do eu: os outros, nada mais são, que uma extensão secundária da história
narrada e instituída pelo eu. Antes de reconhecer a diversidade, institui-se a história única.
A memória, enquanto narração de um tempo específico, torna-se o relato de “uma
história única da catástrofe” (Adichie, 2019, posição 10). O narrador se coloca em pé de
superioridade e descreve a história alheia como desenrolar de uma tragédia inevitável. O
outro passa a ocupar o lugar do subalternizado pelo discurso do narrador. À medida que
se institui a narrativa da história alheia por uma única perspectiva, ela é assumida como
uma narrativa necessária, vale dizer, é como se a história não pudesse ser de outra forma.
O narrador coloca-se na condição de superior e atribui-se o direito de determinar, através
da narrativa, o lugar do outro. Com isso, destitui-se o outro daquilo que ele tem de mais
próprio: a sua história. Narrada pela mão do vencedor, a história dos vencidos será sempre
o movimento de aceitação do vencedor como uma presença messiânica.
A diferença é reduzida a nada. A igualdade constitutiva do ser humano cede lugar
à unicidade discursiva dominada pela perspectiva externa, pela narrativa estrangeira. A

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
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diferença reduz-se à mesmidade. O resultado desse processo não poderia ser mais difícil:
o narrador situa-se na condição de senhor em relação ao narrado. É nessa condição que
se institui a narrativa da história única como necessidade irremediável e, através desse
dizer, justificam-se todas as formas de violência. Estabelece-se assim a estrutura do nkali,
digo, a ilusão de “ser maior do que outro”, como afirma Adichie (2019, pos. 13): “o poder
é a habilidade não apenas de contar a história de outra pessoa, mas de fazer que ela seja
sua história definitiva”. Isso se deve à decisão de não reconhecer o outro como alguém
dotado de uma história própria, diferente, específica, única. Ao narrar a história do
vencido, o vencedor situa-o dentro da sua própria história. O outro é capturado pelo eu e
colocado na posição que eu desejo que ele ocupe.
Nessa condição nascem os estereótipos como formas de dominação do outro. Pôr
o outro sob o signo de qualquer estereótipo o reduz à situação de objeto de uma narrativa
sem direito à alteridade, à diferença, ao seu valor de sujeito único e irrepetível. Por isso,
não há nenhum equívoco na atitude de todos os conquistadores: eles sempre se julgam na
condição de narrar a história dos conquistados. Isso se repetiu quer na América Espanhola
quer na Portuguesa à medida que os relatos dos viajantes dos séculos XV e XVI foram
profícuos na criação de imagens estereotipadas dos conquistados. Em relação ao Brasil,
ainda hoje repete-se que se trata de um país com uma natureza exuberante habitada por
um povo indigno dela. Não é um acaso esse relato, ele simplesmente repete tudo o que
português descreveu nos relatos seiscentistas: povos não civilizados que suposta e
maliciosamente estavam como que à espera de alguém para tirá-los da barbárie e civilizar.
O estereótipo dos povos originários como bárbaros perdidos na natureza ofereceu
a condição para o português se julgar no direito de catequizar e civilizá-los esses povos
(Marques, 2023, capítulo IX). Não são poucos aqueles que ainda hoje repetem o discurso
estereotipado da barbárie originária à espera do civilizador. Contrariamente, os povos
originários nunca estiveram à espera nem esperavam um civilizador nem buscavam um
novo deus nem queriam uma nova história. Como já notamos antes, não se tratavam de
povos ágrafos nem destituídos de história para estarem à disposição de se submeter a uma
nova história escrita pelo colonizador. De forma ainda mais radical, é preciso reconhecer
a autoconsciência daqueles povos à luz das suas próprias narrativas, não como arremedo
da narrativa dos conquistadores, mas como obra de sua própria história antes da invasão:

Pois nossa humildade não corrigiu sua soberba, nem nossa obediência a sua ambição: porque esta
nação procura igualmente sua riqueza e as misérias alheias. / Quem duvida de que os que nos

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
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introduzem agora deidades não conhecidas, amanhã, com o secreto império que dá o magistério
dos homens, não introduzam novas leis ou nos vendam infamemente, onde um intolerável cativeiro
será o castigo de nossa credulidade? (...) E principalmente, não sentes o ultraje de tua deidade e
que com uma lei estrangeira e horrível derroguem as que recebemos de nossos antepassados; e que
pelos vãos ritos cristãos se deixem os de nossos oráculos divinos e pela adoração de um madeiro
as de nossas verdadeiras deidades? O que é isso? A nossa paterna verdade há de vencer assim uma
mentira estrangeira? (Marques e Pereira, 2020, p. 131-132)

Eis um extrato do discurso do Cacique Principal de Potyravá onde destaca a crítica


da história vista pela perspectiva dos povos originários. Não se trata de um discurso de
nosso tempo, reelaborado na consciência do século XXI, mas de uma consciência de uma
história própria já expressa no século XVII por aquele cacique. Contrariamente, o que se
reconhece nas narrativas portuguesas é justamente o destaque dos estereótipos – barbárie,
boçalidade e violência – como as marcas específicas dos povos originários. Instituindo a
partir disso uma história única e violenta contra nossos ancestrais em virtude do discurso
que não reconhece a diversidade e, sobretudo, a diferença dos povos originários. Aquilo
que Chimamanda Adichie denunciou em relação às histórias da África, aplica-se também
à história única que pesa na compreensão do tempo entre nós, digo, também nascemos de
uma história única que ainda não foi reescrita pelas vozes que a precederam.
O melhor exemplo de quão fortes e violentos foram os estereótipos produzidos
pela historiografia lusitana que até recentemente acreditava-se tanto na agrafia daqueles
povos quanto na generalizada antropofagia entre os povos originários. Ironicamente,
Oswald de Andrade descreveu essa consciência em 1928 no famoso Manifesto
Antropófago (1978, p. 13): “só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente.
Filosoficamente. Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos,
de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz. Tupi, or not
tupi that is the question”. Tanto Adichie quanto Oswald reconhecem o risco capital da
história única ou única lei do mundo. Nessa condição, as individualidades perdem-se em
coletividades e, supostamente, se confirmaria o estereótipo que a história narrada pelo
português teria a respeito dos povos originários: são todos antropófagos ágrafos.
É exatamente neste ponto que se deve questionar como foi escrita nossa história:
as diretrizes historiográficas brasileiras permitem a eclosão de narrativas diversas ou
permanecemos sob a égide de uma história única? Posta a questão, analisemos como foi
gestada a moderna historiografia brasileira e as possibilidades que traz para a narração
das formas de vida social que integram a sociedade brasileira. Que não somos um povo
único é sabido, mas quais são as histórias que construímos, ainda precisamos avaliar.

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
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1. A narrativa do tempo na historiografia brasileira

Não há muita dificuldade de se reconhecer o século XIX como tempo do arquivo.


O que se deve, por um lado, à expansão da ciência moderna e ao surgimento de epistemes
diversificadas (a biologia, a história e a economia, sobretudo) e, por outro, ao incremento
da prática arquivística pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). A atuação
do órgão dependia não somente da coleção de documentos e fontes de pesquisa, mas
também da capacidade de organizar, selecionar, classificar e estudar as fontes em vistas
de construir uma história própria para o país. Nesse intuito, o IHGB lançou na década de
40 um concurso cujo tema era Como se deve escrever a história do Brasil, e a monografia
vencedora foi apresentada em 1843 por Karl Friedrich Philipp von Martius. O resultado
do concurso orientou a base crítica da moderna historiografia nacional.
Ele formulou pressupostos do que julgava necessário para o historiador da cultura
brasileira à luz de uma compreensão precisa da tarefa (Martius, 1845, p. 54): “a história
é uma mestra, não somente do futuro, como também do presente”. Compreender o modo
de narrar o passado, institui os pressupostos não apenas sobre o que já foi, mas também
as possibilidades de se interpretar o futuro e, por óbvio, o presente igualmente. Não há
narrativa inocente do passado nem há história anódina. Toda narrativa do tempo já é uma
interpretação em vistas de construir uma determinada visão sobre o presente e o futuro.
Quanto maior é a capacidade de um povo de compreender seu passado, melhor será sua
consciência do presente e, consequentemente, sua lucidez para determinar seu futuro. Não
é por acaso que todas as grandes civilizações sempre criaram sua própria história.
O mesmo não aconteceu entre nós, pois somos povos que foram colonizados no
início da modernidade europeia, cujo passado nos foi negado. Tal qual René Char
retomado por Hannah Arendt no prefácio de Entre o passado e o futuro, podemos repetir
o poeta: “nossa herança nos foi deixada sem nenhum testamento”. No caso brasileiro,
aquilo que restou dessa herança ainda sofreu a decisão deletéria da política do
esquecimento que tentou anular os rastros do que havia sido nosso passado. A destruição
do passado não produz um esquecimento puro e simples, mas traz consigo a incapacidade
de se reconhecer tanto no presente quanto no futuro tal como Hannah Arendt descreveu
com precisão (2014, p. 31): “sem testamento ou, resolvendo a metáfora, sem tradição –
que selecione e nomeie, que transmita e preserve, que indique onde se encontram os

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
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tesouros e qual o seu valor – parece não haver nenhuma continuidade consciente no
tempo, e portanto, humanamente falando, nem passado nem futuro, mas tão-somente a
sempiterna mudança do mundo e o ciclo biológico das criaturas que nele vivem”. A
destruição da história pela política do esquecimento destitui o passado de sua condição
de crivo do presente. Tudo o que acontece parece necessário e inaugural. O hoje se torna
um acontecimento como se fosse fortuito e, portanto, ninguém seria responsável pelo
mesmo. O curso atual dos fatos parece destituído de responsabilidade e justificam-se,
dessa forma, todos os absurdos possíveis. A vida é reduzida à sua condição meramente
biológica. Não que a condição biológica seja desprezível, mas que a vida humana não se
reduz à dimensão biológica. O fato em curso não é a mera redução da vida ao biológico,
mas a identificação entre a vida e a necessidade fática. Desprovida de razões e de
pressupostos do passado, a vida passa a ser tratada como um fenômeno biológico. Todas
as experiências acumuladas no curso do tempo são negadas e tudo o que acontece passa
a ser tratado como inevitável.
A redução da vida a fenômeno biológico implica a anulação da capacidade de pôr
em questão os jogos de força que determinam o presente. Se tudo o que acontece hoje se
reduzir ao acaso e à biologia, nenhuma razão anterior poderia ser aduzida para pensar os
trâmites do presente. O resultado da anulação do passado e a redução da vida à biologia
determina a leitura do presente (Arendt, 2014, p. 40): “o problema, contudo, é que, ao que
parece, não parecemos estar nem equipados nem preparados para esta atividade de pensar,
de instalar-se na lacuna entre o passado e o futuro”. A condição para pensar o presente é,
na acepção arendtiana, a capacidade de reconhecer a narrativa do tempo (o conhecimento
do passado com seu testamento e traumas) em vistas de pensar o horizonte por vir da vida
(construir um projeto mínimo para o amanhã). Entre o passado e o futuro, encontra-se o
hoje da reflexão, a saber, o lugar que não podemos renunciar a pensar: o presente.
Retomemos, então, a forma como o passado recente brasileiro deveria ser narrado
dentro da nossa moderna historiografia à luz da proposta apresentada por Martius. Parte-
se do pressuposto de que quanto maior tenha sido a contribuição “de cada uma dessa
raças” (expressão do autor que nos parece estranha, por isso usaremos etnias ou povos)
tanto mais se deve destacar historicamente sua contribuição na formação do país.
Estabelecido esse ponto sem maior justificativa, o autor já apresenta a consequência
imediata (Martius, 1845, p. 30-31): “disso necessariamente se segue o português, que,
como descobridor, conquistador e senhor, poderosamente influiu naquele

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
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desenvolvimento; o português que deu as condições e garantias morais para um reino


independente; que o português se apresenta como o mais poderoso e essencial motor”.
Essa afirmação encontra-se no primeiro tópico do texto de Martius e, portanto, funciona
como um a priori para toda a leitura que se apresentará na sequência. O autor admite de
saída que o português ocupa o espaço proeminente de “descobridor, conquistador e
senhor” e, mais que isso, que supostamente, seria o efetuador das condições e garantias
morais deste reino. Se assim o fora, como lhe negar o reconhecimento de “mais poderoso
e essencial motor”?
Tendo partido dessa ideia acerca da história do Brasil, o autor não faz mais nada
que justificá-la nas partes que se seguem, tanto ao tratar dos “índios”, ou melhor, os povos
originários no tópico 2, quanto da “raça africana no tópico 4. Novamente, o núcleo de seu
argumento se situa em “os portugueses e a sua parte na história do Brasil” no tópico 3. O
que ele destaca sobre os povos originários são “suas fraturas” – povos de origem edênica
a serem comparados com seus vizinhos, dotados de uma língua geral em vias de extinção,
portadores de mitologia, teogonia e geogonia comparáveis às dos demais povos do Novo
Mundo, cuja preocupação caberá aos estudos etnográficos – de onde se segue que estudos
arqueológicos são recomendáveis em vistas de conservar alguns traços de suas memórias.
O balanço estabelecido por Martius sobre os povos originários está longe de ser exato,
visto que, só a título de exemplo, mais de 150 dialetos originários sobreviveram até o
presente.
Na sequência, volta a destacar a importância das “façanhas marítimas comerciais
e guerreiras portuguesas” na formação da identidade brasileira. Mais que isso, Martius vê
como determinante para a história brasileira o fato de Portugal ter estabelecido diversas
rotas comerciais com todo o mundo, inclusive a rota escravista (Martius, 1845, p. 42-43).
O elemento civilizador lusitano seria o centro propulsor de toda a vida no Novo Mundo
tal como já o teria sido à medida que estabeleceu feitorias africanas, tanto as costeiras
quanto as interioranas, a partir de onde controlou fluxos comerciais e escravistas há
tempos. Disso se seguem importantes consequências: a primeira é aquela que mostra
como o escravo africano entra na cultura brasileira não propriamente como um elemento
novo, mas como parte da expansão lusitana transposta da África ao Brasil; a segunda, se
quiser entender a presença africana no Brasil deve-se estudar “seus costumes, suas
opiniões civis, seus conhecimentos naturais, preconceitos e superstições, os defeitos e
virtudes próprios à sua raça em geral” para compreender sua presença no Brasil; a terceira,

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
41

evidencia a conquista brasileira pelo lusitano essencialmente como uma obra filantrópica,
cujo balanço fala por si mesmo (Martius, 1845, p. 50): “nos pontos principais a história
do Brasil será sempre a história de um ramo de portugueses; mas se ela aspirar a ser e
merecer o nome de uma história pragmática, jamais poderá ser excluídas as suas relações
para com as raças etiópica e índia”. Com isso, Martius define a história do Brasil como
um ramo da história lusitana filantropicamente extensiva aos “etíopes e índios”.
A conclusão aponta na direção da imaturidade geral das ideias políticas brasileiras,
somada à divisão entre as diferentes regiões do país. Esse sentimento precisa ser refeito
para que se despertem laços de amizade e colaboração entre todas elas. Na ordem política,
há dois grupos proeminentes: o primeiro são os republicanos a alimentar projetos utópicos
e, os outros, os monarquistas. Aqueles precisam ser dissuadidos de sua ilusão de realizar
tal missão por habitarem um país marcado pela “inconveniência de discussões licenciosas
dos negócios públicos, por uma imprensa desenfreada, e [pela] necessidade de uma
Monarquia em um país onde há um tão grande número de escravos” (Martius, 1845, p.
540). Esse era o país conhecido pelo monarquista alemão ao defender a manutenção desse
mesmo estatuto social no Brasil. Os republicanos errariam em quatro aspectos à luz dessa
análise: primeiro ao noticiar o debate das questões públicas e, segundo, ao permitir que a
imprensa denuncie erros públicos; terceiro, o país precisa manter a monarquia e, quanto
seria impossível instituir uma república onde reinam os escravos. Martius não apenas é
um monarquista, mas operado uma crítica ao republicanismo à medida que propõe uma
forma para a escrita da história. Por isso, não se admira que, ao tratar do segundo grupo
mais proeminente na política, ele defenda explicitamente que “o historiador do Brasil,
que para prestar um serviço à sua pátria deverá escrever como autor monárquico-
constitucional, como unitário no mais puro sentido da palavra” (Martius, 1845, p. 55).
O monarquismo do autor casa-se perfeitamente com aquela compreensão expressa
anteriormente acerca do lugar onde o elemento lusitano predominaria sobre o “etíope e o
índio”. Estes dois elementos da história nacional deveriam ser incorporados ao ramo da
história portuguesa, uma vez que teria sido esse elemento a garantia última e fundamental
para a instituição de uma civilização nos trópicos. Com tal postura, Martius não apenas
defende a manutenção do status quo monárquico, mas também, de alguma forma,
reconhece que a obra da escravidão seria difícil de ser superada nesse país. Mais que isso,
ele insere os povos originários também dentro da história da expansão portuguesa. A
expertise náutica lusitana já os havia levado à costa e ao interior da África antes do século

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
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XVI, a partir de onde estenderam seus poderes para conquistar as novas terras. Isso
significa que tanto a história dos povos africanos quanto a história dos originários
estariam compreendidas dentro da história da monarquia portuguesa. O enquadramento
fotográfico não poderia ser mais explícito e favorável à forma como a monarquia
conduzia seus negócios nos dois lados do Atlântico. Lá, haviam salvo os “etíopes” da
barbárie inicial. Aqui, não apenas salvaram quanto civilizaram os “índios”. Enfim, a
história pensada nessa ótima coloca o português explicitamente como o redentor dos
povos que ele havia colonizado.

2. A história como criação do tempo colonizado

Desde a Crítica da razão pura (KrV 2001, I, 1 §2 [A22 e B37]) de Immanuel Kant
sabemos o espaço é a condição de possibilidade de todos os fenômenos externos, vale
dizer, conhecemos as coisas presentes no mundo graças à distribuição delas dentro do que
dizemos espaço. De forma equivalente, o tempo é a condição de possibilidade de todos
os fenômenos internos, ou melhor, de todas as intuições sensíveis (Kant, 2001, I, 1 § 4
[A31 e B46]). Isso significa que somente apreendemos as coisas ou que captamos as
intuições sensíveis no espaço e no tempo como veremos mais detalhadamente adiante. O
fato de o tempo ser condição para todas as nossas formas de conhecimento constitui um
marco definidor para tudo o que conhecemos: os objetos do conhecimento são temporais.
E isso não significa apenas um período cronológico, mas uma qualidade do tempo, uma
forma de compreensão epistêmica do mundo, de tudo que ocorre nele e que se dá às
formas da percepção humana (Dagenais, 2004, p. 365).
O fato de situar o conhecimento dentro do limite espaço-temporal condiciona tudo
o que se segue a partir de então. Não analisaremos a demarcação espacial como critério
epistêmico, embora não o desprezaremos de todo tal como está presente na BNCC (Brasil,
2017, p. 563): “Tempo e Espaço explicam os fenômenos nas Ciências Humanas porque
permitem identificar contextos, sendo categorias difíceis de se dissociar”. Nosso objeto
será o tempo enquanto condição de possibilidade para o conhecimento. O tempo não
apenas como condição de possibilidade do conhecimento, mas como um modo específico
de colonização do outro. Uma vez que todas as relações eu-tu, colonizador-colonizado,
vencedor-vencido se dão no tempo, ele deixa de ser apenas uma condição epistêmica e se
torna um instrumento que a própria colonização. Isso se deve ao fato de a compreensão

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
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do tempo ser sempre dita igual para todos os seres humanos, embora ele seja
qualitativamente diferente entre todos os indivíduos. Tal como já mencionamos, se
existem 7,888 bilhões de pessoas no mundo, haverá igual número de narrativas diversas,
irreconciliáveis e não excludentes, não obstante possam ser contraditórias entre si. Essa
diferença nas narrativas não se deve a uma forma de subjetivismo extremado do tipo “eu
sinto a vida diferente por uma razão x qualquer”. A diferença na narração do tempo se
deve à forma como instituímos o tempo. Grosso modo, estamos dizendo que existem
formas distintas de constituição temporal.
Aparentemente, começar nossas leituras a partir dos povos originários e africanos
e só em terceiro lugar voltarmo-nos para a história europeia parece estranho. Comumente,
mas não inocentemente, nossas narrativas começam com a chegada dos europeus ao Novo
Mundo. O fato de repetir insistentemente a narrativa do tempo a partir da chegada dos
europeus é apenas mais uma forma de reafirmar a historicidade europeia como o marco
fundador da historicidade dos povos novo-mundistas. À medida que se diz “a descoberta
do Brasil foi em 1500” já estão justificados três pressupostos: um, aquele que reafirma a
ilusão de encontro fortuito deste continente pelas rotas marítimas europeias; dois, o nome
e a identidade desde país supostamente já estariam fixados em 1500; três, adotamos a
datação cristã que remete a história ao marco do nascimento do cristianismo. Vale dizer,
já adotamos a visão do tempo europeu, temos o tempo novo-mundista colonizado pela
história indo-europeia. A possibilidade de romper com essa colonização do tempo seria
remeter a história novo-mundista (que também é uma categoria europeia) à história dos
povos mesoamericanos e tupi-guarani. Sabendo que isso implica remeter à historiografia
da sua chegada a essa porção do mundo através das rotas migratórias e, posteriormente,
teremos que refazer a história pretérita de nossa cultura ancestral.
Diversamente, sequer questionamos o calendário que seguimos. Ao tratar formas
distintas de datação histórica, quer através dos calendários mesoamericano e tupi-guarani
quer dos calendários africanos, apontamos para a possibilidade de novas historiografias.
Enquanto prevalecer como marco fundador da história novo-mundista os anos de 1492 e
1500, não haverá como romper com as amarras coloniais. Adotar a datação do
colonizador implica demarcar a história do colonizado à luz da história colonizadora. Os
anos de 1492 e 1500 em uma historiografia descolonizada deveriam ser narrados como
história de uma invasão e não como o início da história novo-mundista. A astúcia do
colonizador é fundar a nova história do colonizado. Enquanto a data da dominação

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
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persistir como data fundadora de uma nova historiografia, o colonizado mimetizará a


história do colonizador, pois ela será ainda seu fundamento último. Ao processo de
construção narrativa mediante a qual o colonizador integra o colonizado como parte de
sua história dá-se o nome de “colonização do tempo” (Dagenais, 2004, p. 366).
O tempo colonizado é demarcado pelos grandes feitos da história do colonizador.
Exemplifiquemos: a origem da datação que seguimos remete à crença fundante do povo
colonizador que parte do surgimento do cristianismo; a língua que praticamos ainda traz
o nome do idioma do colonizador, o português; a história da cultura brasileira descreve o
arco de tempo que vai do ano de 1500 até o presente sem interrogar radicalmente pelas
narrativas históricas anteriores à invasão; os heróis da pátria ainda são largamente ligados
à história e aos feitos do colonizador: a abolição da escravatura, a pretensa independência
e a unidade linguística nacional remetem diretamente ao processo colonial com o paralelo
apagamento das lutas abolicionistas, da pressão social por independência (a Inconfidência
Mineira em 1789, a Independência da Bahia em 1823 e a Revolução Farroupilha de 1835)
e do silenciamento as línguas dos povos originários. Note que nenhuma destas lutas está
no calendário como feriado nacional, mas as demais, sim. Isso significa que a narrativa
do tempo ainda continua colonizada pela historiografia do colonizador.
Os processos de colonização do tempo não aconteceram só aqui. John Dagenais
mostra como a retórica da Modernidade europeia foi o fundamento para colonizar o tempo
da Idade Média: aquela vista como o tempo das luzes, cujo maior epíteto é o Iluminismo
europeu, enquanto esta (a Idade Média) foi vista como a Idade das Trevas ou a noite de
mil anos (Dagenais, 2004, p. 369). Com isso, a dita Modernidade funda uma nova história
livre dos vícios anteriores e renovada pelo espírito dos novos tempos. A forma utilizada
para a construção dessa retórica moderna foi situar a Idade Média como uma noite de mil
anos entre o passado idílico (a Antiguidade clássica greco-romana estendida do século VI
a.C. ao V d.C.) e o futuro promissor inaugurado com o renascimento da arte e da cultura
antigas. A Idade Média seria, portanto, um longo hiato de tempo de trevas. O que, por sua
vez, significa também a negação das raízes da Modernidade situadas dentro do período
medieval. O tempo medieval passou a ser tratado como tempo de “alteridade” (otherness)
irreconciliável, ou ainda, como tempo de flagelos e catástrofes (the flagellants of Time),
cuja diferença inviabiliza sua integração na história da Modernidade (Dagenais, 2004, p.
368). Essa incongruência que a Modernidade identifica na Idade Média se deve ao fato
de a retórica moderna se colocar como incomparavelmente superior ao medievo.

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
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Transpondo o argumento da colonização do tempo para a história novo-mundista


não é difícil destacar as três marcas principais desse movimento: a primeira, a América
ou o Novo Mundo recebe sua identidade nominal a partir da ação do colonizador: o velho
Américo Vespúcio e o Novo Mundo em relação ao Velho Mundo, a Europa; a segunda,
a história novo-mundista foi integrada na história do expansionismo europeu graças às
narrativas da conquista com o consequente apagamento das histórias dos povos
mesoamericanos e tupis-guaranis, portanto, sobreviveram as histórias da conquista, da
catequização e da colonização generosa pelo europeu; a terceira, a idade do ouro que
restou à compreensão dos povos novo-mundista somente seria viável se retomada
miticamente a história das culturas originárias ou, no melhor dos casos, como de fato
aconteceu, adotamos a datação da historiografia europeia assumindo a Antiguidade
greco-romana e a Idade Média como se fossem também nossas ancestrais, isto é,
internalizamos a história do colonizador. Com isso, a história dos povos novo-mundistas
não será outra que a história de povos que agora lutam por descolonizar seu próprio
tempo, não obstante ainda siga a datação alheia. Postas estas marcas, o Novo Mundo
nasce sem identidade autóctone: seu nome decorre da ação colonial, seu passado é
relegado ao silêncio e ao esquecimento, e suas culturas originárias não gozam de
legitimidade nem de reconhecimento social. O tempo está colonizado.
Situado entre um passado idílico perdido (ainda que tal passado seja tratado como
uma idade de ouro para os povos originários) e um futuro por vir melhor que o presente
(identificado ao suposto avanço representado pelo colonizador), os povos novo-mundistas
não gozam de um tempo autêntico no presente. Ao contrário, oscilam entre o passado que
foi idealizado e perdido e o futuro que não assenta suas bases no presente. Explicitamente,
o que a colonização do tempo produz é “um tempo de miséria entre colchetes” (a time of
squalor bracketed), um hiato histórico que rompe o ciclo histórico para fundar uma nova
historicidade guiada pela narrativa do colonizador (Dagenais, 2004, p. 371). Assim, esse
tempo colonizado é colocado entre o passado idílico e o futuro ideal por vir, sacrificando
o presente colonizado, até que o dito presente primitivo do colonizado possa evoluir para
o suposto futuro bem-aventurado representado pelo colonizador. Consequentemente, sem
o passado vivido nem um futuro garantido, o tempo presente do colonizado perde toda a
densidade histórica e fica à mercê da narrativa alheia. Sem passado nem futuro, o presente
é identificado à necessidade biológica em que todos os absurdos são válidos para salvar
o que resta da vida e, novamente, Hannah Arendt traz lucidez (2014, p. 40): “o problema,

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
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contudo, é que, ao que parece, não parecemos estar nem equipados nem preparados para
esta atividade de pensar, de instalar-se na lacuna entre o passado e o futuro”.
O futuro do tempo colonizado não será outra coisa que o presente do colonizador.
A escala do tempo colonizado estrutura uma evolução mimética, a saber, o colonizador
se coloca como espelho para o colonizado e este, o reconhece como tal. Daí então, o que
se entende por cultura será o estágio evolutivo do colonizador que, exemplar e
comparativamente, em 1500, já estaria no estágio 3, pois tinha uma escrita, uma crença
não-idolátrica e uma sociedade civilizada. Para que o colonizado se equipare ao
colonizador para dialogar em pé de igualmente, ele terá que (i) adotar a escrita, (ii)
praticar uma crença não-idolátrica e (iii) tornar-se um povo civilizado. Em resumo, ele
precisará mimetizar o colonizador. Somente à medida que ele se equiparar ao colonizador,
ele deixará de ser um primitivo. E, à medida que se identifica ao colonizador, ele depõe
sua própria cultura e mimetiza a cultura colonial, isto é, ele introjeta a cultura do
colonizador. Mas isso não resolve seu drama histórico, pois uma vez que tiver
internalizado o estágio 3 do colonizador, ele verá que o colonizador já está em outros
estágios mais avançados que esse, logo ele terá que, novamente, mimetizar sua cultura
em um círculo vicioso infindável.
Outra estratégia da colonização do tempo é a prática da ruptura histórica: tudo se
inicia de forma abrupta, intempestiva com a chegada do europeu em 1492 e 1500. Quando
uma compreensão descolonizada da história dos povos mesoamericanos equiipararia o
dia inaugural 0.0.0.0.0 da cultura humana (tzolk’in) ao dia 11 de agosto de 3.114 a.C. logo
a invasão do Novo Mundo dataria, respectivamente, dos anos 4.606 e 4.614 da história
dos povos originários. Longe disso, o que ocorreu foi a ruptura da história originária pela
imposição do tempo do colonizador (Dagenais, 2004, p. 374): “tal como em outras
relações coloniais, esta demarcação de um tempo propício para a colonização tem como
objetivo principal a exploração do colonizado pelo colonizador5”. O tempo colonizado é
o tempo do outro que detém o poder e, por isso pode determinar o tempo do dominado: o
apagamento do passado do colonizado lhe inviabiliza a compreensão do seu presente, e a
projeção de um futuro por vir, desprovido de qualquer critério compreensivo do passado
e do presente, deixa o futuro ao acaso, à mercê da necessidade biológica do momento.

5
As in other colonial relations, this demarcation of a time ripe for colonization has as its primary goal the
exploitation of the colonized by the colonizer.

O tempo e a história na filosofia brasileira


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A última marca da colonização do tempo é a produção do passado incognoscível.


Tudo o que está remetido ao passado de um povo colonial é tratado como desprovido de
valor e com acesso duvidoso. O colonizador ensina o colonizado a desconfiar do próprio
passado, isto é, ensina-o a ignorar a própria história e tratar seu passado como uma obra
sem legitimidade nem futuro possível, tal qual a Modernidade fez em relação ao medievo
(Dagenais, 2004, p. 364): “a Idade Média serve, então, como um país permanentemente
desconhecido, uma terra ignoscenda da história, uma terra incognoscível, na qual várias
forças da modernidade podem contestar as diversas tentativas de estabelecer uma
hegemonia, talvez até de formas não admissíveis para a própria modernidade6”. De onde
resultou um contraste marcante entre os tempos medievais e os modernos, a saber, entre
a Idade das Trevas e o Iluminismo. A passagem das trevas à luz ocorre, dentro da retórica
moderna, apenas à medida que se abandonado essa terra incognoscível e seu passado. Tal
qual a terra ignoscenda medieval, o Brasil permaneceu até meados do século XVIII como
uma feitoria litorânea completamente desprovida de processo de interiorização tratado
não só na cartografia francesa, mas também pelo próprio imperador Dom Pedrro II como
les pays inconnu (Domingues, 2017, p. 33 e 223), identificado como o Brasil do Interior
e dos Sertões, cuja exceção era apenas o litoral. O fim do processo não difere do início:

Através da colonização do tempo e da negação da contemporaneidade do encontro com o outro, o sujeito


monotópico passa a ver esse outro como representante de um estágio prévio da sua própria evolução.
Com isso, o outro se transforma num ser primitivo que precisa ser guiado condescendentemente em
direção ao estágio iluminado do sujeito monotópico. Nessa perspectiva, até mesmo o conceito de
cultura não-europeia é uma invenção europeia. A consequência disso, para países colonizados como o
Brasil, está em que a lógica da colonialidade, com toda a sua crueldade e exploração predatória, é
atenuada ou até mesmo obscurecida por uma retórica da modernidade (...) (Margutti, 2020, p. 20)

A relação proveniente desse processo será completa e continuamente assimétrica.


O colonizador será confundido com um filantropo e o colonizado, com um primitivo que
estava em espera messiânica por um libertador. Tanto a história quanto a geografia onde
se situam o colonizado terão o mesmo destino: a história será colonizada como primitiva
e a geografia, como incognoscível. A saída apresentada pelo colonizador introduzirá o
colonizado em um ciclo vicioso: sendo ele um primitivo que habita uma terra ignota, para
superar tais condições, deverá mimetizar quem é civilizado e desenvolvido. O colonizado
passa a repetir a história do colonizador como se fosse sua própria história e mimetiza

6
The Middle Ages serves, then, as a permanently undiscovered country, a terra ignoscenda of history, a
land not to be known, in which various forces of modernity can contest each other’s attempts to establish
hegemony, perhaps in ways not admissible to modernity itself.

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
48

tudo o que significa desenvolvimento para superar seu possível subdesenvolvimento. A


colonização do tempo se retroalimenta com a mimese do colonizador: tanto maior será a
pretensa evolução do colonizado quanto mais se identificar ao colonizador. O reverso do
processo se autolegitima: tanto mais colonizado será quanto mais mimetiza o colonizador.
Abandonando o próprio passado e ignorando o lugar em que se encontra, o colonizado vê
como saída apenas sua identificação ao colonizador. Essa situação, reafirma a dialética
do senhor e do escravo (Hegel, 1992, p. 131): “o que o escravo faz é justamente o agir do
senhor, para o qual somente é o ser-para-si, a essência: ele é a pura potência negativa para
a qual a coisa é nada, e é também o puro agir essencial nessa relação”. Nem o escravizado
nem seu trabalho têm história, uma vez que é o senhor quem determina a ação do escravo.
Da mesma forma, a colonização do tempo reduz a história do colonizado a um fragmento
do presente, preso às necessidades biológicas primárias, desprovido de passado, carente
de futuro por vir, e condenado à incapacidade de pensar por si mesmo a trama do tempo.

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
49

IV. A CRIAÇÃO DO TEMPO MÍTICO COMO NARRATIVA PRIMEIRA

O tempo foi uma preocupação em todas as culturas, inclusive naquelas que só é


possível acessar através de sua mitologia. Pensar os mitos não é uma tarefa fácil, pois a
semântica histórica exige uma compreensão do espírito do tempo e suas possibilidades.
Ademais, não há como ignorar a repetição insistente sobre a passagem da era mítica à era
racional como o tempo do nascimento da filosofia indo-europeia. Daí resulta uma leitura
bastante desfavorável sobre os mitos como se significassem apenas falsidades e ilusões.
Os mitos não se perdem facilmente, pois há uma memória cultural que os revive e retoma
quase em condição circular. Outrossim, eles não contam apenas falsidades. Antes, narram
uma leitura da realidade que precisa ser sempre matizada e contextualizada e, no sentido
preciso de sua tradução latina, os mitos são considerados como lendas. Termo que deriva
da contração do gerúndio do verbo leggere e significa, literalmente, aquilo que deve ser
lido com atenção (a legenda). Mais que isso, os mitos tiveram um estatuto epistêmico de
grande relevância na Grécia antiga, a ponto de um filósofo cioso dos usos da racionalidade
lógico-demonstrativa como Aristóteles afirmar que “aquele que ama o mito é, de certo
modo, filósofo” (Metafísica I, 2, 982b18-19). Com isso não estamos dizendo que mito e
filosofia se equivalem, mas que os mitos oferecem um objeto importante para o pensar,
pois condensam uma visão de mundo típica de uma cultura e/ou uma demarcação social.
A presença do mito em uma cultura não significa que todas as pessoas pensem o
mundo daquela forma precisa, mas que esse mito apresenta traços de uma visão de mundo
presente em uma parte significativa de uma população. Ele funciona como uma caricatura
da vida social. Ele funciona tanto melhor quanto menos se identifica com um indivíduo
apenas. Esse é o caso, por exemplo, da estátua da liberdade presente em Manhattan nos
EUA ou o Cristo redentor no Rio de Janeiro. A semiótica dessas imagens identifica os
povos do lugar onde se encontram supostamente como povos que vivem a liberdade e que

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
50

estão sob as bênçãos divinas do redentor, mas isso não significa que seja uma realidade
efetiva. Nesse caso, a realidade não importa, conta mais o valor semiótico das imagens.
Analogamente, os mitos cumprem a mesma função em relação às culturas que os criaram
e que eles representam. Essa compreensão estende-se de forma equivalente à ideia de
grandeza transmitida pelas monumentais pirâmides egípcias e mesoamericanas. Assim, o
mito encarna uma representação aparente de uma cultura independente de sua efetividade
e veracidade histórica. Exatamente por isso, a expressão mítica serve a tantos usos uma
vez que representa uma verdade que pode ser verdadeira ou não sem nenhum prejuízo
para a própria figura que representa. O mito, nesse sentido, tem dupla função: a primeira,
agregar uma visão de mundo em torno de determinado discurso independente de seu valor
de verdade e, a segunda, comunicar “uma verdade” de forma estável e atemporal fora da
condição de verificação da verdade comunicada. Exemplifico, se o deus grego invocado
por Alexandre não o livrou da morte, não significa que o deus falhou, mas que era a hora
de Alexandre morrer. A retórica mítica escapa à possibilidade de explicação racional.
Não obstante, como as culturas nascem de narrativas míticas, analisemos como
algumas delas pensaram miticamente a explicação do tempo. No caso, não se trata de pôr
em questão a veracidade dos deuses e dos seus discursos. Partimos da certeza de que todos
os relatos são verazes, embora nem todos sejam logicamente plausíveis. A veracidade do
discurso mítico não se apoia na sua demonstração lógica, mas na capacidade retórica de
produzir convencimento social e, nesse sentido, os mitos das grandes culturas estão mais
vivos que a própria humanidade à qual pertencemos hoje, isto é, eles sobreviveram até o
presente e, provavelmente, continuarão a ser lembrados por muitos séculos ainda. Dentro
dessa demarcação conceitual, apresentaremos duas perspectivas narrativas: uma centrada
na compreensão mítica do tempo nas culturas acádia (presente na Epopeia de Gilgamesh),
egípcia (presente no Livro Egípcio dos Mortos) e grega (presente na Teogonia de Hesíodo
e recontada por Jean-Pierre Vernant); outra, presente nas narrativas do tempo no B'reishit
1 e no Qohélet 3 (respectivamente, os livros do Gênesis e do Eclesiastes da Escritura
judaica e cristã) e, finalmente, nos Caracteres morais de Teofrasto de Eresos (372-287
a.C.), o sucessor de Aristóteles na escola peripatética. A razão de aproximarmos Teofrasto
da Escritura judaica se deve ao fato de ele ser contemporâneo à composição do Eclesiastes
(450-180 a.C.) e apresentar uma breve, mas importante compreensão do tempo.
Seguindo as duas perspectivas sobre o tempo não esgotamos o assunto dentro da
era clássica, mas teremos apresentado elementos suficientes para compreendermos como

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
51

a humanidade, dispersa em tempos e lugares distintos, procurou situar a compreensão do


tempo dentro dos limites de sua cultura. No caso, coloca-se em questão com esta análise
as diversas possibilidades de interpretar o tempo e, principalmente, interpretá-lo dentro
do horizonte da vida humana no mundo. Afinal, ele reaparece em diferentes narrativas
não só como um motivo de júbilo nem só como razão de dores, o tempo constitui-se quase
sempre como a condição de autocompreensão dos povos. Se fosse uma compreensão na
ordem mítica, a explicação seria atemporal e a-histórico, mas, diversamente, mesmo nas
narrativas míticas, ele tende a ser compreendido historicamente enquanto possibilidade
explicativa para a vida do ser humano e para a história social. Vejamos suas formas.

1. Algumas narrativas míticas do tempo

A Epopeia de Gilgámesh é considerado o texto mais antigo da humanidade e sua


redação iniciou entorno do ano 2000 a.C. pelos povos sumérios. Trata-se de um poema
mesopotâmico, redigido em escrita cuneiforme, disposto em 12 tabuinhas com cerca de
300 em cada uma. A obra narra algumas aventuras que, provavelmente, remetem ao fim
do segundo período dinástico sumério, o que, no caso, remeteria ao século XXVII a.C.,
mas sua redação final pode ter se estabelecido no século VII a.C.
A noção de autoria está longe de ser uma preocupação para aquele tempo. O tema
da obra – Sha naqba imuru – recebeu várias traduções desde Aquele que viu a Profundeza
a Aquele que o abismo viu e, ainda, Aquele que se eleva sobre todos os outros reis. Basta
ao nosso propósito a compreensão do enredo geral da epopeia: Gilgámesh é acompanhado
por seu amigo Enkídu, que é filhos dos deuses e seu enviado para impedir Gilgamesh de
tiranizar o povo de Úruk. Os dois realizam grandes conquistas tanto ao derrotar Humbaba
quanto o Touro dos Céus e, posteriormente, lançam-se em uma grande missão subdividida
em 5 jornadas que tem por finalidade descobrir o segredo da vida eterna: a imortalidade.
As narrativas são sempre datadas e o objetivo final é a possibilidade de escapar da força
do tempo, isto é, da mortalidade que a todos ameaça. Por isso, Gilgámesh e Enkídu
empreendem as jornadas em vistas de encontrarem uma resposta para o mistério da morte.
A primeira excursão reuniu a meretriz Shámhat e o caçador Enkídu do primeiro
ao terceiro dia quando, enfim, “chegou o rebanho, bebeu no açude, / chegam os animais,
a água lhes alegra o coração – / e também ele: Enkídu! Seu berço são os montes!”
(Gilgamesh, tabuinha I, versos 173-173). Reunidos no monte, a meretriz se entregou ao

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
52

caçador: “fez com esse primitivo o que faz uma mulher / e o desejo dele se excitou por
ela. / Seis dias e sete noites Enkídu este ereto e inseminou Shámhat” (I, 192-194). Assim,
inicia-se a narrativa do tempo na epopeia, não apenas ao situar o percurso que fizeram,
mas também ao prolongar a grandeza do prazer por seis dias e sete noites, o indica que o
tempo do dia era contado a partir da tarde até a manhã, por isso mais noites do que dias.
Durante muito tempo viveram juntos o caçador e a meretriz até a chegada de Gilgámesh
que despertou o amor de Shámhat. Ela desejava que Enkídu abandonasse seus vícios e ao
chegar o outro, ela reconhece que já o amava (I, 240-244): “Enkídu, abandona teus vícios,
/ a Gilgámesh Shámhat ama, / Ánu, Énlil e Ea fizeram plena sua sabedoria: // antes que
viesses das montanhas, / Gilgámesh, no coração de Úruk, via-te em sonhos”.
Assim estão unidos os três personagens centrais do enredo. Na sequência, nota-se
o tempo depois do momento da assembleia de Úruk, terra natal de Gilgámesh, quando ele
decide empreender a primeira jornada na direção do Líbano (IV, 1-4): “às vinte léguas
partiram o pão, / às trinta léguas estenderam a tenda, / cinquenta léguas andaram o dia
inteiro: / jornada de mês e meio ao terceiro dia: chegaram perto do Monte Líbano”. Se for
contar a distância na correspondência atual significa que percorrendo 241 quilômetros em
um dia inteiro. Se gastaram um mês e meio para chegar ao Monte Líbano, percorreram
mais de dez mil quilômetros na primeira jornada. Essa narrativa se repete na segunda,
terceira e quarta jornadas em direção ao Monte Líbano. Apenas ao percorrerem a quinta
jornada, enfim, alcançaram um pouso seguro, só então “em face de Shámhat cavaram
uma cisterna, / água ---- puseram em ---- / foi Gilgámesh ao topo da montanha, / farinha
ofertou aos montes: // Montanha, ordena-me um sonho, mensagem boa eu veja!” (IV,
163-166). Aqui se completa a missão ao Monte Líbano onde os três personagens juntos
descobrem a sabedoria do amor acessível aos seres humanos.
A segunda parte da obra dá espaço relata uma epopeia ainda mais difícil. Se soa
um desafio a conquista do amor, a segunda conquista é ainda maior: a sabedoria da morte
ou a conquista da imortalidade. Todo o relato se passa na maior peregrinação que se pode
fazer: Gilgámesh e Enkídu decidem-se ir ao fim do mundo se preciso for, lá eles verão o
abismo que separa a humanidade de todo o fardo da morte. Querem vencer o mais terrível
dos inimigos, aquele que derrota e iguala vencedores e vencidos. Depois de conquistarem
o Monte Líbano, tomam e abatem o Touro dos Céus que habitava a Floresta de Cedros.
Dominam os leões e as feras dos montes, derrotam reis e principados, mas não derrotam
o último dos inimigos (X, 132-138): “ao meu amigo – o amo muito! – comigo enfrentou

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
53

todas as penas, / a Enkídu, amigo meu que – o amo muito! – comigo enfrentou todas as
penas, / atingiu-se o fado da humanidade! // Por seis dias e sete noites sobre ele chorei, /
não o entreguei ao funeral / até que um verme lhe caiu do nariz”. A maior das conquistas
termina com a pior das derrotas: a morte do amigo amado. Enkídu jamais voltará a viver.
Todo o temor da morte e todas as conquistas não o livrou dela. Não há como remediar o
fardo da existência humana, por isso Gilgámesh chora o mais que pode – seis dias e sete
noites – até o corpo do amado não suporte mais ficar sobre a terra. Aquele que conquistou
reinos e venceu todos os perigos, não foi capaz de livrar o amigo da morte (X, 144-148):
“como calar, como ficar eu em silêncio? / O meu amigo, que amo, tornou-se barro, /
Enkídu, o meu amigo, que amo, tornou-se barro! / E eu: como ele não deitarei / e não
mais levantarei de era em era?”
O lamento de Gilgámesh mistura o sofrimento pelo amigo amado com a certeza
de que também ele caminha para a morte com a impossibilidade de se levantar no tempo.
Uma vez que se experimenta o fardo da vida, não se pode mais voltar à luz do dia. Assim
a dor da perda do amigo se torna uma antecipação da própria morte, a certeza do fim. Os
outros inimigos podem ser derrotados, mas a morte chega em hora inesperada (X, 308-
311): “chegada a hora, construímos uma casa, / chegada a hora, fazemos um ninho, /
chegada a hora, os irmãos repartem, / chegada a hora, rixas há na terra”. Gilgámesh revê
a vida humana sob o fardo inexorável do tempo, uma luta que jamais terá fim enquanto
lutamos por prorrogar a existência. No entanto, chegada a hora, nada mais se pode fazer,
a morte leva a certeza e “logo a seguir não há nada” (X, 315). Tudo se perde no silêncio
da morte por maior que tenha sido a vida humana. Independente da fortuna e de todas as
conquistas, toda vida experimentará a chegada da hora em que “não há nada”. Nada resta
da vida gloriosa e reconhecida, pior que isso é saber que somente os deuses Anunnákki a
conhecem (X, 321-322): “dispuseram morte e vida, / da morte não revelaram o dia”. Se a
primeira epopeia foi vitoriosa – Gilgámesh, Enkídu e Shámhat – descobriram a sabedoria
do amor, a segunda epopeia os derrotaram, depois de conquistarem tudo, ficou a certeza
de que o tempo da morte é um segredo reservado aos deuses Anunnákki.
Passemos da Epopeia de Gilgámesh ao Livro Egípcio dos Mortos. Se o primeiro
foi a epopeia dos viventes em busca de conhecer e derrotar a face da morte, o segundo é
a epopeia dos outros em direção à vida que se inicia na morte. A epopeia egípcia reúne
as preces que os mortos dirigem aos deuses para que seus nomes não sejam apagados no
além. As menções que nos interessam são as que identificam as formas do tempo quer na

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
54

vida quer na morte, quer no tempo quer na eternidade, em vistas de superar o reino dos
mortos. Esse reino dominado por Osíris, aquele que governa as duas terras (volume I,
Hino a Râ): “salve, meu senhor, que passas através da eternidade, cujo ser é eterno. Salve,
Disco, senhor dos raios de luz, levantas-te e fazes viver toda a humanidade. Deixa que eu
te contemple todos os dias ao romper da manhã”. A divindade solar ilumina os dois
mundos – o dos vivos e o dos mortos – pois encontra-se para além do tempo, Osíris reina
na eternidade. Nela, é contemplado por aqueles que se deitaram na sombra deste mundo,
todos o contemplam como “tu que és Eternidade e Perpetuidade” (volume I, capítulo xv,
nº 5, doravante: I, xv, 1). Embora as passagens sejam breves, pode-se compreender a
relação entre os deuses e os humanos na narrativa: aqueles vivem eterna e perpetuamente,
enquanto estes, vivem no tempo e podem apenas contemplar os deuses na eternidade. Há
uma divisão radical entre o mundo humano e o divino, os vivos e os mortos.
A outra divisão que aparece entre os deuses egípcios remete ao curso do tempo:
“ontem é Osíris e Hoje é Râ” (II, xvii, 16). O tempo passa a ser determinado pela presença
e controle dos deuses. Osíris apresenta-se como filho de Râ e diante de Horo (ou Horus),
o deus por vir. A diferença que se instaura entre eles é a relativa à vigência de seu domínio
do tempo: embora Osíris Nu seja o profeta de milhões de anos, ainda assim permanece
com sua identidade marcada “Sou Ontem”; ao passo que Râ impera sobre o Hoje, o tempo
presente está sob seu controle irrestrito; o amanhã, porém, pertence ao que está por vir
(II, xlii, 26-27): “salve, ó Ovo! Sou Horo, o que vive por milhões de anos, cuja chama
brilha sobre vós e traz vossos corações para mim”. Ontem, Hoje e Amanhã são as figuras
dos deuses soberanos que dominam o tempo, Osíris, Râ e Horo. Não dominam o tempo
por viverem nele, mas por estarem acima de todo tempo, na eternidade e na perpetuidade.
Por isso, o escriba Nebseni afirma (II, lxii, 7): “tempo ilimitado, sem começo nem fim,
foi-me dado; herdo a eternidade, e a perpetuidade me foi concedida”. Eis a expressão que
identifica Osíris no capítulo sobre a água no mundo inferior. Em resumo, todo o tempo
pertence aos deuses Osíris, Râ e Horo – o passado, o presente e o futuro – estão sob seu
poder e nada escapa ao seu domínio (II, lxiv, 2-5):

(2) Sou Ontem, Hoje e Amanhã, e (tenho) o poder (3) de nascer pela segunda vez; (sou) a divina
Alma oculta que criou os deuses, e dá repastos celestiais aos cidadãos do Tuat (mundo inferior),
de Amentet e do céu. (Sou) o Leme (4) e do Este, Possuidor de dois Rostos Divinos em que se
veem os seus raios. Sou o Senhor dos homens levantados; (o Senhor) que sai da escuridão, e (5)
cujas formas de existência são da casa em cujo interior se acham os mortos.

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
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Eis uma expressão central no capítulo sobre como sair ao mundo inferior, ela está
novamente inserida no capítulo sobre como sair à luz. Isso significa que encontrar a saída
do mundo das trevas ou chegar ao reino da luz depende diretamente do conhecimento do
tempo, não apenas do tempo dos vivos, mas sobretudo do tempo dos deuses, do tempo
governado pelos deuses, o Ontem, o Hoje e o Amanhã. Dessa forma, a narrativa egípcia
deifica o próprio tempo à medida que o identifica à trindade de deuses imortais e
perpétuos: Osíris, Râ e Horo. De onde se segue a descrição do mundo divino representado
no pedestal dos deuses-leões do horizonte, onde a coluna do tempo está situada entre os
deuses do Ontem e do Hoje, no início do terceiro volume do Livro. Nele, a luta tratava é
para que os humanos não venham a morrer uma segunda vez. Isso significaria a extinção
completa do seu nome durante o julgamento que todos ao chegarem ao reino dos mortos.
O coração humano é colocado sobre a balança da justiça e deverá pesar menos que uma
pena, caso contrário, nenhuma esperança restará àquele que a vida chegou ao fim.
A esperança que resta aos mortos é que não sejam destruídos na segunda morte
nem sejam condenados ao desaparecimento durante seu julgamento. Além disso, esperam
que a memória de sua vida permaneça tanto para contemplarem a humilhação dos seus
inimigos quanto para permanecerem na recordação de seus amigos. Por isso, os mortos
recitam a prece de Osíris escrita por Ani diante da morte (III, clxxv, 17-26):

(17) Seja-me concedido chegar aos príncipes sagrados, pois estou acabando com todo o mal que
pratiquei, desde o tempo em que esta terra veio a surgir de Nu (18), quando saltou do abismo
aquífero exatamente como era nos dias de antanho. Sou o Destino (ou o Tempo) e Osíris, e operei
minhas transformações [tornando-me] semelhante a diversas (19) serpentes. O homem não
conhece, e os deuses não podem ver, a dupla beleza que fiz para Osíris, que é maior do que todos
os deuses. Dei-lhe (20) a região dos mortos. E efetivamente, seu filho Horo está sentado no trono
do que habita o Lago do Fogo Duplo, como seu herdeiro. Fiz que ele fosse entronizado (21) no
barco de milhões de anos. Horo está confirmado no seu trono, (entre os seus) amigos e tudo o que
lhe pertencia. Na verdade, a alma de Set, que (22) é maior do que todos os deuses, partiu. Seja-me
concedido amarrar-lhe a alma no barco divino (23) à minha (?) vontade, e tenha (ele) medo ao
divino corpo. Ó meu pai Osíris, fizeste por mim o que teu pai Râ fez por ti. More eu na terra
permanentemente; (24) conserve eu a posse do meu trono; seja forte o meu herdeiro; floresçam
minha tumba e meus amigos que estão sobre a terra; (25) sejam meus inimigos entregues à
destruição e às algemas da deusa Serc. Sou teu filho e Râ é meu pai. (26) Para mim, além disso,
fizeste vida, força e saúde. Horo está confirmado no seu trono. Consente que os dias da minha vida
recebam adoração e honras.

A terra surgiu de Nu dentro de um tempo preciso. É nela que se suporta o mal e


se pratica o bem possível a todos os mortais. A terra governada pelo império de Osíris,
nada menos que uma terra conduzida pelo Destino, ou seja, o Tempo. Os seres humanos
não conhecem os deuses nem o mundo que eles habitam, mas podem reconhecê-los pelo

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
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curso do tempo: o Ontem identificado com Osíris, o Hoje identificado com Râ e o amanhã
identificado com Horo. O curso da vida na terra é seu Destino. Não há como viver no
mundo gozando da eternidade nem da perpetuidade que pertencem apenas aos deuses. Ao
contrário, tudo o que existe no mundo é governado irremediavelmente pelo Tempo, esse
Destino que governa todas as coisas. O mundo dos vivos rege-se pelo Tempo ou Destino.
O mundo dos deuses rege-se pela eternidade e perpetuidade. Para os vivos, tudo está no
curso do destino e nada escapa à corrosão temporal do passado, presente e futuro. Para os
deuses, nada está no curso do tempo, pois existem eterna e perpetuamente, portanto livres
do curso do tempo. Nesse sentido, o mundo divide-se em tempo e eternidade, mortais e
imortais, finitos e perpétuos. O ponto de separação entre os dois mundos é a distinção de
tempo e eternidade. Não se trata de um mundo dual, mas de um mundo que segue desde
o mundo dos mortais ao dos imortais – do tempo à eternidade – tal como se afirma no
título original da obra, transliterado rw nw prt m hrw, que significa o Livro do surgimento
do Dia ou o tempo da vida divinizada.
A terceira e última narrativa mítica do tempo encontra-se na tradição grega desde
a Teogonia de Hesíodo à Ilíada e Odisseia de Homero, além de tantos outros escritos de
natureza filosófica. Na mitologia grega, a presença de deuses formou um teatro de ciúmes
entre os seres divinos e os humanos, embora nos interessem apenas alguns pontos do todo.
Vejamos: no princípio era o Caos. Dele, nasceu a Terra que, por sua vez, engendrou Urano
ou o Céu estrelado e as Ondas do Mar. Terra e Céu não tinham como gerar novos seres.
Aí então, entra Éros, o velho Amor, que permitiu a fecundação da Terra pelo Céu, visto
este recobria aquela, mas não a fecundava e, “assim, o mundo se constrói a partir de três
divindades primordiais: Kháos, Gaîa e Éros, e, em seguida, de duas entidades paridas por
Terra: Ouranós e Póntos. Eles são ao mesmo tempo forças naturais e divindades”
(Vernant, 2000, p. 20). Graças à união de Terra e Céu por obra do Amor, nas seis Titãs e
seis Titânidas. O mais novo dos Titãs é “Crono dos pensamentos marotos” (Krónos). A
relação entre Terra e Céu deixa-a infeliz, pois Céu a sufoca, impossibilitando-a de dar à
luz seus filhos. É nesse momento que o filho caçula da Terra (Crono) decide ajudá-la.
A Terra forja uma foice de metal e entrega para Crono. Quando o Céu vai fecundá-
la novamente, Crono decepa o membro viril do Céu e o atira ao mar. Das Ondas do Mar
nasce a mais bela das deusas – Afrodite – e, de seus passos na areia, nascem o jovem Éros
e o Desejo (Éros e Hímeros). Depois de decepado, o Céu se contrai, abrindo espaço para
os filhos da Terra saiam do seu útero. Nesse momento, nascem os filhos do Caos – Érebo

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
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e Nýx (a absoluta escuridão e a noite) – e os novos filhos da Terra – Aithér e Hemére (o


éter e a luz do dia). Inicia-se aqui o ciclo de dia e noite, sucedendo-se continuamente: “os
seres humanos, os bichos, as plantas vivem noite e dia nessa conjunção de opostos, ao
passo que os deuses, bem no alto do céu, não conhecem a alternância do dia e da noite”
(Vernant, 2000, p. 24). A sucessão de dia e noite pertence apenas ao mundo, a saber, o
curso do tempo se passa apenas entre a fauna e a flora. Os deuses desconhecem a sucessão,
pois vivem fora do tempo. Como todo ato de violência tem uma consequência, castrar o
Céu não gerou apenas a deusa da beleza (Afrodite), pois, do sangue caído por terra, nasceu
também Éris: a origem de todas as formas de violência e de discórdia dentro da família.
Doravante, os deuses conviveram também com as paixões e discórdias entre eles.
Na face da Terra reina a beleza de Afrodite e a astúcia de Crono e, entre os deuses,
reina o desejo de vingança de Éris e Céu contra o abusado Crono. Foi graças à sua astúcia
que os deuses Titãs foram libertados do ventre da Terra, por isso todos lhes eram aliados.
Da Terra nasceram os três Ciclopes e os três Cem-Braços (Vernant, 2000, p. 29). Ela
originou de todas as coisas, tanto por ser terra fértil (Gaîa) quanto por ser matéria
individualizada de todo elemento natural (Rea). O preço pago por todas as coisas que há
na face da Terra é justamente viverem a sucessão de dias e noites continuamente. A Terra
conhece essa sucessão e sabe que todas as coisas, exceto os deuses, irão sempre acabar.
Ela conhece os segredos do tempo passado (todas as coisas acontecem em sua face, por
isso ela é a testemunha primeira) e sabe o futuro antecipadamente (uma vez que domina
os tempos). Tudo o que nasce na face da Terra está sob a soberania de Crono. Ele devora
todas os seus filhos. Cada coisa ao nascer é engolida pela boca faminta de Crono que os
conversa em seu ventre: “todos os filhos de Crono e Rea são tragados pelo ventre paterno”
(Vernant, 2000, p. 30). A angústia da Terra e de Rea era ver todos os seus filhos devorados
por Crono. Então, as duas decidem que precisam estancar a malícia de Crono: “a conselho
de Terra, Rea resolve se defender da conduta escandalosa de Crono. Planeja uma
artimanha, uma burla, uma fraude, uma mentira. Ao fazê-lo, opõe a Crono aquilo mesmo
que o define, pois ele é um deus da astúcia, um deus da mentira e da duplicidade”
(Vernant, 2000, p. 30). A burla é simples: Rea vai para Creta dar à luz ao seu filho mais
novo. Quando chega Crono, ela lhe entrega uma pedra embrulhada nos cueiros do filho.
Crono a devora sem perceber. Enquanto isso, Zeus cresce forte em Creta escondido dos
olhos de Crono. Já adulto, Zeus quer libertar todos os seus irmãos que Crono engolira. O
único meio recorrer à astúcia (mêtis) e ele o faz habilmente (Vernant, 2000, p. 31):

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
58

Como fazer? Zeus está sozinho. Mais uma vez, é graças à astúcia que conseguirá, graças a essa
astúcia que os gregos chamam mêtis, ou seja, essa forma de inteligência que sabe combinar de
antemão procedimentos de vários tipos para enganar a pessoa que se tem diante de si. A astúcia de
Zeus consiste em fazer Crono tomar um phármakon, ou seja, um remédio, apresentado como um
sortilégio, mas que na verdade é um vomitório. É Rea que lhe oferece. Mal Crono o engole, começa
a vomitar. Primeiro, pedra, depois Héstia, que é a primeira a aparecer, depois toda a série de deuses
e deusas, no sentido inverso de suas idades.

Mêtis reorganiza a ordem do universo: Rea e Zeus destronam o império de Crono.


A astúcia (mêtis) reverte tudo o que acontecia no universo: o império de Crono mantém
a vigência da ordem temporal sobre todas as outras. Ele é o senhor do tempo, da passagem
e da fruição de todas as coisas, por isso é o deus que devora todos os seus filhos. A cada
novo nascimento, um novo desaparecimento. Crono devora todos os seus filhos, tudo é
corroído por obra do tempo. A vitória de Zeus, graças à artimanha de Rea, significa uma
nova orientação: a realidade temporal é sobrepassada pela realidade eterna. A era de Zeus
instaura a ordem da eternidade acima do mundo físico ou temporal. A derrota de Crono
abre uma fissura na temporalidade: o universo se divide em temporalidade e eternidade,
doravante. No reino da temporalidade vigem seres humanos, outros animais, plantas e o
reino mineral. Tudo será corroído pela força do tempo. No reino da eternidade vigem os
deuses, os Titãs, as Titânidas e os semideuses. Há uma nota importante a se lembrar, os
seres divinos no mundo grego não estão isentos de paixões, ao contrário, eles digladiam-
se continuamente com as mesmas paixões e enfretamentos humanos. A diferença está no
fato de esse conflito ser de ordem eterna reverberando entre todos os seres temporais. De
forma exemplar, a guerra entre aqueus e troianos sofre continuamente a interferência dos
deuses que se posicionam a favor ou contra seus protegidos. Na Odisseia, ninguém menos
que Posseidon fará oposição ferrenha à astúcia de Ulisses contra seu retorno para casa.
O império nascente sob a soberania de Zeus será estável (fora da ordem temporal),
pois reúne, de um lado, a inventividade e esperteza da deusa guerreira Atena e, de outro,
a astúcia de Mêtis que foi engolida por Zeus e, doravante, ele “se torn[ou] o Metióesis, ou
seja, o deus feito inteiramente mêtis, a Prudência em pessoa” (Vernant, 2000, p. 41). A
fusão da disposição guerreira com a força da prudência transformou Zeus em um deus de
império eterno. A vitória de Zeus sobre Crono é a passagem do reino da temporalidade
para o reino da eternidade, da fruição à estabilidade, da mudança à permanência. O poder
de Zeus será ainda confrontado pelos Gigantes, mas eles também não lhe serão páreo,
uma vez que Zeus congrega o apoio de diversos Titãs, Titânidas e semideuses. Com isso,

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
59

o universo ganhou novo estatuto (Vernant, 2000, p. 56): “Zeus ocupa o trono do universo.
Agora o mundo está ordenado. Os deuses disputaram entre si, alguns triunfaram. Tudo o
que havia de ruim no céu etéreo foi expulso, ou para a prisão do Tártaro ou para a terra,
entre os mortais”. A eternidade se torna o lugar dos deuses bem-aventurados, enquanto a
temporalidade reúne o espaço das dores e males sob o império do efêmero. O eterno vence
o tempo através da vitória de Zeus sobre Crono. Há aqui uma reversão da ordem temporal
em benefício da ordem eterna. O polo do mundo muda de direção até que renasça a busca
da dimensão temporal por parte dos filósofos como veremos adiante.

2. Do yowm, ze^man e’êth ao preço do tempo

Na compreensão mítica do tempo, vimos três percursos simultâneos: a luta por se


conhecer o dia da morte, a busca de não submergir na segunda morte e o vencimento da
temporalidade pela eternidade. Vamos agora pontuar alguns elementos sobre a leitura das
narrativas do tempo, por um lado, consideraremos o B'reishit 1 e o Qohélet 3 (a saber, os
livros do Gênesis e Eclesiastes da Escritura judaica e cristã) e, por outro, os Caracteres
morais de Teofrasto de Eresos (372-287 a.C.). Vejamos o horizonte dos textos.
O B’reishit reúne textos dos séculos XV a XII a.C. com as heranças das culturas
e mitos sumérios, babilônicos e ugaríticos. Há constantes culturais presentes no B’reishit
que ecoam poemas sumérios da criação e relatos babilônicos do dilúvio. Essa influência
marcará o primeiro livro da Torah como um conjunto de narrativas interculturais capazes
de formar uma leitura coerente, por certo, mas bastante diversas. Linguisticamente, pode-
se distinguir uma fonte javista (centrada na identificação divina como a figura de Ywhw),
uma fonte eloísta que está presente desde o primeiro capítulo onde o divino é nomeado
como Elohiym), uma terceira fonte sacerdotal (cuja marca principal está na identificação
da memória ritual comunitária) e uma fonte deuteronomista (identificada pela revisão das
leis e leituras dos códigos morais sociais). Dentro desse panorama elementar, pode-se
entrever o enredo geral do livro estruturado entre três partes: as narrativas criacionistas,
as genealogias patriarcais e as epopeias populares entrevistas na história de José do Egito.
Eis o enquadramento no qual apresentaremos alguns elementos sobre a compreensão do
tempo no primeiro capítulo B’reishit:

1
No início Deus criou os céus e a terra. 2 E a terra estava sem forma e vazia e a escuridão pairava
sobre a face do abismo, e o espírito de Deus pairava sobre a face das águas. 3 E Deus disse que

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
60

haja luz / e houve luz. / 4 E Deus viu que a luz era boa / e Deus dividiu a luz e a escuridão. 5 E Deus
chamou à luz dia e à escuridão noite. / E houve uma noite e uma manhã, primeiro dia.

A tradução do texto poderia ser matizada e comparada de diversas formas, mas


não será o caso. Destacamos apenas a primeira ocorrência do principal indício da fonte
eloísta – o nome Elohiym – que se traduz como seres divinos ou deuses, por se tratar do
plural de ’El ou Deus (Strong, 2002, posição 60). Os dois versículos iniciais servem tão
somente como enquadramento do poema que vem a seguir, pois os outros 29 versículos
repetem a mesma estrutura poética dos versículos 3 a 5: “e Deus disse haja... / houve... /
Deus separou isto daquilo / houve uma tarde e uma manhã, segundo dia”. O poema da
criação segue a mesma lógica que a forma babilônica do cômputo do dia – uma tarde e
uma manhã – seguida da identificação do dia. A sequência não é de difícil compreensão:
cria-se a luz no primeiro dia; o firmamento no segundo; o solo seco no terceiro; o sol, a
luz e a as estrelas no quarto; os peixes e as aves no quinto; e as criaturas na terra no sexto.
O sétimo dia foi reservado para o descanso. O ponto de grande relevância é, justamente,
o fato de toda a obra divina ser narrada segundo a ordem do tempo. Embora o ser divino
esteja na condição eterna, toda a obra da criação e a formação do mundo nascem segundo
a ordem temporal. O tempo e a eternidade se aproximam, mas não se confundem.
Tudo o que acontece no mundo está sob a égide do tempo. A representação do dia
no primeiro capítulo do B’reishit está expressa na palavra yowm traduzível como dia,
tempo, ano, um dia de trabalho ou jornada de um dia de acordo com a circunstância em
que se inscreve (Strong, 2002, posição 409). Por sua vez, na versão grega da Septuaginta,
o termo para designar o dia é heméra, significando igualmente o tempo de uma jornada
diária. Com isso, dizemos que o tempo presente nesse capítulo é puramente cronológico,
o tempo que dura um ato completo, uma jornada de trabalho. O que se comprova,
finalmente, com a afirmação de um dia para o descanso divino, ou seja, toda obra
mundana inclusa na criação implica o tempo de sua efetivação. Curiosamente, a obra da
criação exige tanto esforço que o criador necessita encontrar um tempo para descansar.
De onde se segue a universalização do tempo nesse relato.
A segunda ocorrência notória sobre o tempo encontra-se em Qohélet 3 e também
está disposto em forma poética. Por se tratar de um texto tardio, redigido entre 450 a 180
a.C. não está livre de possíveis influências da cultura grega. O enredo é simples, o relato
segue um tom autobiográfico e parece ser de um rei que olha para o passado e avaliação
suas experiências com um senso profundamente crítico. A primeira parte apresenta um

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
61

poema, seguido por uma investigação sobre a condição da vida humana e se estende do
primeiro ao sexto capítulo. A partir daí, inicia-se a terceira parte onde se reconhece uma
leitura cética sobre a possibilidade humana de compreensão e domínio completo de seus
próprios atos, e igual incerteza sobre o que virá depois da vida. A última parte completa-
se com um novo poema. Em resumo, há dois argumentos que perpassam o texto: um que
aconselha comer, viver e celebrar a vida, pois nada mais resta ao ser humano, e outro que
está expresso no célebre ceticismo do autor que perpassa todo o texto (1, 2): “vaidade das
vaidades, tudo é vaidade” (habel habalim hakkol habel). Novamente, esse texto interessa
a esta análise por integrar um poema sobre o tempo que está disposto em nove versículos
e merecem ser lidos na íntegra (3, 1-9):

1
Para tudo há uma ocasião certa; / há um tempo certo para cada propósito / debaixo do céu: / 2
Tempo de nascer e tempo de morrer, / tempo de plantar / e tempo de arrancar o que se plantou, / 3
tempo de matar e tempo de curar, / tempo de derrubar e tempo de construir, 4 tempo de chorar e
tempo de rir, / tempo de prantear e tempo de dançar, / 5 tempo de espalhar pedras / e tempo de
ajuntá-las, / tempo de abraçar e tempo de se conter, / 6 tempo de procurar e tempo de desistir, /
tempo de guardar / e tempo de jogar fora, 7 tempo de rasgar e tempo de costurar, / tempo de calar
e tempo de falar, / 8 tempo de amar e tempo de odiar, / tempo de lutar e tempo de viver em paz. / 9
O que ganha o trabalhador com todo o seu esforço?

O poema segue uma métrica perfeita de alto a baixo e revela o quanto a influência
da cultura helênica lhe era próximo. Isso se evidencia pelo próprio título – Qohélet – uma
vez que o nome significa O-que-sabe. Com a aproximação entre as culturas semita e a
helênica, o autor não queria deixar-se dominar pela cultura grega, por isso “o livro do
Qohélet só pode ser entendido como uma tentativa de aproveitar tudo quanto possível da
interpretação do mundo grego, sem renunciar, no entanto, à sabedoria israelita, ou seja,
ao seu estatuto próprio” (Campos, 2004, p. 24). O autor do poema emprega formas da
narrativa grega dentro de sua expressão, mas não se deixa dominar por ela. A sequência
argumentativa lógica e retórica presente no texto certamente provém da herança grega,
porém o que está em questão – a filosofia subjacente ao texto – é toda israelita (Campos,
2004, p. 25). É nesse enquadramento que se deve interpretar o poema citado.
Ele inicia-se com uma expressão que não poucas vezes causa confusão entre quem
se dedica a traduzir: “para tudo há uma ocasião certa (z^eman); / há um tempo certo (’eth)
para cada propósito / debaixo do céu”. Não é raro encontrar uma distinção expressiva
entre os termos que traduzem z^eman e ’eth, embora o primeiro termo signifique “tempo
determinado, tempo marcado, tempo” e ’eth signifique, por sua vez, “tempo, tempo usual,
tempo de um evento, tempo de uma experiência” (Strong, 2002, posições 280 e 818). O

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
62

que leva à necessidade de uma reavaliação do verso inicial que poderia ser entendido com
“para tudo há um tempo determinado; há um tempo certo para cada propósito debaixo do
céu”. Com isso, o poema reafirma que tudo que acontece debaixo do céu, está dentro da
ordem temporal e nada escapa dessa lógica. O resultado dessa compreensão implica que
tudo o que ocorre durante a vida humana – nascer e morrer, plantar e colher, matar e curar,
derrubar e construir, chorar e rir, prantear e dançar, espalhar e juntar, abraçar e conter,
procurar e desistir, guardar e jogar, rasgar e costurar, calar e falar, amar e odiar, lugar e
pacificar – acontece dentro do tempo e sob seu poderio. Portanto, nada escapa ao tempo.
O curso da vida humana reduz-se ao limite estritamente temporal, na compreensão de
Qohélet. Uma vez que o poema termina no oitavo verso, o nono serve apenas como uma
forma de reafirmação do ceticismo do autor: “o que ganha o trabalhador com todo o seu
esforço?” A resposta será sempre a mesma: quanto maior a fadiga, maior o sofrimento.
O ponto em questão serve para explicitar algo que aparecerá na tradição cristã no
curso da assimilação da herança dos escritos semíticos. A tradução da Septuaginta traz
uma leitura mais interpretativa que literal do poema. Isso se deve à tradução do primeiro
versículo – para tudo há uma ocasião certa (z^eman); / há um tempo certo (’eth) para cada
propósito / debaixo do céu – a partir de uma tradução interpretativa que entende z^eman
como chrónos e ’eth como kairòs. Assim interpretado, o verso ganha outro sentido: “para
há um tempo; há uma ocasião conveniente para cada propósito debaixo do céu”. Opera-
se uma transformação do texto à medida que o tempo cronológico fica como tempo geral
para o curso do mundo, e o tempo dos acontecimentos particulares são tratados como uma
ocasião conveniente ou “o tempo da graça”, literalmente, o kairòs. A versão grega que
está na Septuaginta opera com uma teologia do tempo subjacente à tradução. A partir daí,
o tempo seria o tempo do mundo, enquanto todas as coisas que acontecem ao ser humano
ocorreriam no tempo da graça. Porém, não é isso parece dizer o texto na versão hebraica.
O último escrito que queremos mencionar nesta parte é o Teofrasto que é um grego
contemporâneo à redação do Qohélet. Enquanto sucessor de Aristóteles na direção de sua
escola, Teofrasto teve uma produção escrita extraordinária com 157 livros, conforme as
listas mais comuns de autoria que lhe são atribuídas. Destacou-se tanto como um exímio
representante da divulgação científica em seu tempo quanto como representante de certo
pessimismo difuso na sociedade, como se nota na resposta que deu aos seus discípulos na
hora de sua morte (Diógenes Laêrtios, V, 2, 41 [2014, p. 139]):

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
63

Nada tenho a declarar em particular, a não ser que, como a vida demonstra, muitos prazeres são
mera aparência. Como efeito, mal começamos a viver e logo morreremos. Nada é mais nocivo que
a ambição desmedida. Desejo-vos boa sorte, e renunciai à minha doutrina, que custa muitas
fadigas, ou dedicai-vos a ela denodadamente, porquanto a glória é grande. A vida proporciona
mais decepções que vantagens. Mas, agora que já não é possível deliberarmos sobre a conduta
reta, escolhei vós mesmos o que deveis fazer.

Tanto Qohélet quanto Teofrasto representam um pouco o espírito do tempo: um


profundo pessimismo quanto à vida. Teofrasto manifestará em mesma influência nos seus
Caracteres morais que passamos a sumariar em algumas notas. Desde o proêmio nota-se
sua preocupação com a situação da Grécia: embora todos os seus contemporâneos tenham
recebido uma boa educação e vivam sob o mesmo clima e o mesmo céu, de onde viriam
costumes tão vazios e diferentes entre eles? Eis a questão introduz o texto desenvolvido
em 28 capítulos cujos títulos merecem leitura atenta: falsidade, adulação, loquacidade,
rusticidade, lisonja, indolência, charlatanice, galanteio, ruindade impudente, miséria,
insolência, impertinência, obséquio intempestivo, estupidez, aspereza, superstição,
ressentimento injusto, desconfiança, asquerosidade, moleza, ambição fútil, mesquinhez,
vaidade, soberba, medo ou timidez, ânsia por sobressair, instrução tardia e maledicência.
Nenhum capítulo apresenta comportamento virtuoso, apenas comportamentos viciosos.
Quais seriam as razões do pessimismo presente tanto no Qohélet quanto em Teofrasto?
É dentro desse enquadramento que devemos compreender as notas que se seguem.
No capítulo sobre a loquacidade, o autor nota a presença nociva de seus conterrâneos:
“quem está sentido a seus semelhantes, deve desprender e afastar-se, se não quiser ficar
doente, porque é demasiado sofrer com pessoas que não distinguem o tempo folgar nem
o tempo de trabalhar”. Entre essas pessoas, somente cresce o vício e a devassidão, por
isso quem quiser manter-se sadio, não deve se aproximar de pessoas sem discernimento.
O segundo ponto encontra-se no capítulo dedicado aos galanteios ou aos conquistadores
(VIII): “de onde vens? O que tens a dizer? Tens algo de novo para contar-me sobre os
negócios deste tempo? E juntando mais questões, insiste: Não há nada de novo a dizer?”
A prática do galanteador (logopoiía) é sempre a mesma: “reunir palavras e ações forjadas
pelo capricho de quem fala”. Ele nada mais tem a oferecer, senão os encantos da retórica
vazia. E, curiosamente, à pergunta que caracteriza o conquistador – não há nada de novo
a dizer? – pode-se responder com a afirmação presente em Qohélet 1, 9: “o que aconteceu
tornará a acontecer, / o que foi feito se fará novamente; / não há nada novo debaixo do
sol”. Tanto Qohélet quanto Teofrasto parecem decepcionados com o vazio dos discursos

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
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presentes em seu tempo. Nenhum deles espera nada de novo debaixo do sol. É dentro
dessa demarcação que Teofrasto trata da vaidade (capítulo XXIII):

Pode-se definir a vaidade ou presunção: ostentação de bens que não existem. O vaidoso ou
presunçoso é assim: estando no porto do Pireo [em Atenas], conta aos estrangeiros as muitas
riquezas que tem no mar. Fala longamente do dinheiro que tem distribuído como prêmio, em larga
quantidade, e quanto rendimento tem recebido. (...) Acrescenta que investiu tudo isso em esmolas;
e não contabiliza os gastos que teve ao enviar sua esquadra, nem considera em quantos cargos
públicos serviu.

Esse vaidoso vive como se o tempo e o dinheiro lhe fossem infinitos, como se não
lhes custassem nada, quando a realidade é outra: “o tempo custa muito caro”, não apenas
para ele, mas para os seres humanos que habitam na face da terra. Essa é a grande lição
que Teofrasto deixa à posteridade. Ao fim da vida, tudo lhe parece vaidade e não há mais
o que esperar: “nada tenho a declarar em particular, a não ser que, como a vida demonstra,
muitos prazeres são mera aparência”. O fluxo inexorável do tempo leva a reconhecer que
todas as coisas são vãs dada a brevidade da vida. Ninguém poderá pagar seu preço sequer
para lhe estender um segundo a mais. Qohélet e Teofrasto sabem que a vida humana está
condenada a pagar o preço altíssimo de sua subordinação à lógica temporal, por isso vazio
também o esforço do trabalhador que quer ter todos os bens. O tempo da vida não pertence
ao domínio humano, pois ele é fugaz: “mal começamos a viver e logo morreremos”.
V. O TEMPO HISTÓRICO COMO FORMA DO DISCURSO FILOSÓFICO

O tempo dos mitos soa bem mais interessante que o tempo da história. No tempo
dos mitos, os deuses responsabilizam-se pelo bem que acontece e assumem as dores de
quem chora. Em tempos alegres não custa reconhecer quanto faz bem o curso do tempo.
No tempo das dores, sempre queremos dividir as responsabilidades com alguém. Não há
muita dificuldade em se reconhecer como responsável por grandes conquistas nem se dar
ao luxo de viver os melhores momentos da vida, afinal, o ser humano tem um pendor
especial pelo desejo de heroísmo. Dificilmente alguém se questiona pelas razões de sua
própria felicidade. Porém, como a vida não traz apenas alegrias, o tempo das dores parece
mais propício à reflexão. Não é raro perguntarmos quais são as razões ou de quem é a
responsabilidade pelas dores que nos afligem. Sempre nos colocamos no lugar do justo
que sofre e queremos saber as razões do sofrimento, não porquê essas razões sejam tão
importantes, mas porquê queremos nos livrar logo dos sofrimentos. Não é incomum fazer
o jogo de transferência de responsabilidade atribuindo aos deuses e ao mundo as supostas

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
65

causas de nosso sofrimento. Quando se acredita em alguma espécie de redenção, não tarda
reclamar aos deuses que socorram em meio ao sofrimento. Quando não, faz-se dos deuses
os responsáveis pelo infortúnio alheio com a culpa posta na vontade divina.
O crente recorre ao divino para agradecer algumas vezes, mas recorrentemente se
lembra de pedir socorro em meio ao infortúnio. Para o cético, a resposta parece demorar
um pouco mais: a alegria vem passageiramente e a dor não traz explicação nem desculpa.
Os tempos felizes e os sombrios alternam-se sem outra justificativa que o próprio curso
do mundo. Não há como responsabilizar outra pessoa pelo próprio infortúnio, exceto a si
mesmo e, nesse caso, cabe apenas assumir a própria responsabilidade. O que não está dito
nessa relação é uma parte tão bela quanto difícil: o crente agradece a bênção e pede auxílio
e clemência na dor, mas precisa se haver também com a responsabilidade pelas ações que
podem ou não agradar aos deuses. Se lhe vem a dor, não custa chegar à resposta que lhe
provém da culpa pelos erros passados. O cético não enfrenta o consolo diante da dor, mas
também não sofre com a suposta responsabilidade. Ele simplesmente reconhece que o
resultado de suas ações decorre de sua própria decisão, a saber, do gozo de sua liberdade
e da forja da responsabilidade. Enquanto o crente sofre com a culpa e o medo do erro, o
cético luta com sua liberdade sendo levado a assumir sua completa responsabilidade.
Essas duas formas de compreensão do tempo – o tempo da redenção e o tempo da
vida sem redenção – habitam as diversas formas de discurso, desde a hipócrita frase “foi
a vontade de Deus” diante do sofrimento alheio até a não menos hipócrita “Deus fará”. O
certo que o ser humano parece buscar continuamente dividir sua responsabilidade com o
deus que lhe escuta. Quer sempre se safar das culpas e quer que o bom deus o ouça, mas
não se importa se esse mesmo deus esquece seus inimigos. Basicamente, a luta humana
se resume a diminuir a dor e aumentar o prazer pessoal, porque não é incomum julgar que
a vida é curta demais. Quando estamos diante da dor inevitável da morte é difícil manter
a retórica da descrença. É nessa condição que se busca com maior intensidade a possível
condição que prolongue o tempo para além do presente tal qual diz João Guimarães Rosa
na carta de 27 de outubro de 1945 dirigida a Antonio Azeredo da Silveira (s/d, p. 8):
“pessoalmente, penso que chega um momento na vida da gente, em que o único dever é
lutar ferozmente por introduzir, no tempo de cada dia, o máximo de ‘eternidade’”.
Guimarães Rosa sabe que poucas ações humanas permanecem ao findar da vida.
Depois do breve percurso que separa o nascimento da morte, resta apenas o silêncio e é,
justamente, diante desse silêncio e da ausência completa de manifestação de emerge na

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
66

ação humana o propósito de eternidade. Contra a fugacidade da vida, busca-se a porta da


eternidade tal como os egípcios outrora construíram as pirâmides como forma de abrir as
portas para o mundo dos mortos, ou como os habitantes de Abiayala também construíram
suas pirâmides para celebrar e cativar a atenção dos deuses ou, ainda, como Gilgámesh
que se aventurou até a face do abismo, mas que não conseguiu conhecer a data da morte.
O desejo de eternidade abre a possibilidade de estender a fugacidade do presente para
além do imediato e sonhar com uma dimensão do tempo que não se acabaria com a morte.
Por isso, o poeta quer inserir no presente “no tempo de cada dia, o máximo de eternidade”.
Fazer valer o tempo para além da fugacidade do instante é um desejo contínuo da
nossa espécie. Porém, até então, nem descobrimos a fonte da eterna juventude nem fomos
capazes de adiar um segundo a hora da morte. Se há uma condição que parece inevitável
para o ser humano é, portanto, pensar e viver dentro do tempo, dentro do limite temporal
do nascimento fortuito e da morte inevitável. A questão heideggeriana apresentada na
conclusão de Ser e tempo (1927) parece a manifestação desse sacerdote angustiado do
nazismo com o próprio fim: a possibilidade de o tempo ser o horizonte e o sentido do ser
condena tudo ao acabamento dentro da história fática da vida. Diversamente, pode-se
pensar também como o limite do tempo liberta de qualquer domínio eterno e, ao mesmo
tempo, condena todo o curso da vida à passagem dos instantes sem fim nem começo, sem
controle nem sentido, sem lar a buscar nem porto de partida. O tempo não imprime sentido
à vida. Ele apenas serve como modo de compreensão do próprio curso dessa vida.
A compreensão da vida a partir do tempo supõe algum reconhecimento primário.
De fato, se é impossível que o tempo exista como um ser material, uma coisa ou objeto
independente por si mesmo, não se pode pressupor sua independência em relação a tudo.
De um lado, ele não existe antes que o futuro se efetive, de outro, também não existe em
relação ao tempo passado, pois em ambos, ele permanece inacessível, imensurável. Resta
apenas a possibilidade de pensar o tempo presente, nesse sentido, “é impossível ser ou
pensar o tempo sem o agora” (Aristóteles, Física VIII, 1, 251b19-20 e Puente, 2001, p.
18). O agora funciona como acesso único ao tempo pela impossibilidade de reencontrar
o passado, exceto através da narrativa da memória, e pela inviabilidade de contar o futuro,
exceto como projeto ou esperança. Nos dois pontos extremos – o passado e o futuro – se
anulam na imaterialidade e no devir. O tempo presente – o agora – não obstante a radical
fugacidade, permanece como acesso privilegiado tanto ao passado, à medida que se fizer
memória, quanto ao futuro, se se construir algum projeto porvir. Portanto, é com os olhos

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
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voltados para o diagnóstico do tempo presente, considerando a ótima expressão da teoria


crítica, que pretendemos analisar a composição do discurso filosófico sobre o tempo. Não
faremos um percurso histórico completo nem linear. Analisaremos três momentos-chave
para a compreensão do tempo na filosofia antiga, a saber, em Platão ca. 428/427-348/347
a.C.), Aristóteles (384-322 a.C.) e Agostinho de Hipona (354-430 d.C.).
Basta considerar a distância que há entre Platão e Aristóteles (séculos V e IV a.C.)
e Agostinho de Hipona (século IV e V d.C.) para se reconhecer a impossibilidade de fazer
uma leitura linear da questão do tempo entre eles. A razão de elencar os três se deve tanto
ao fato de serem os dois primeiros que se dedicaram decididamente ao tema quanto, por
sua vez, à diferenciação que Agostinho inseriu na compreensão do tempo. Podem-se ler
vários outros autores com igual proveito, mas isso tornaria excessivo o percurso dentro
do nosso propósito. Com isso, queremos destacar momentos decisivos na compreensão
do tempo na Antiguidade grega clássica e romana tardia. Analisemos os textos.

1. Da eternidade ao movimento: de Platão a Aristóteles

Pensar a filosofia é tudo, menos uma tarefa simples. A distância que nos separa
dos antigos e o turbilhão de análises que receberam ao longo dos séculos torna a filosofia
antiga um continente tão povoado quanto difícil de discernir o verdadeiro valor dos textos.
Por isso, abandonamos a ilusão de fazer uma leitura extensiva de comentadores, detendo-
nos apenas em um ou outro comentário que evidencia as diferenças e asperezas entre os
filósofos. Não se trata de mostrar a veracidade ou falsidade de uma interpretação, mas de
explicitar as arestas e as especificidades que compõem as diferenças entre eles e, no caso
de Platão e Aristóteles, esse ponto não é de menor relevância, dada a relação tensa de
discipulado infiel do Estagirita em relação ao seu mestre.
Há duas obras de Platão que tratam do tempo, o Timeu e o Político, sendo aquele
o mais conhecido e referendado sobre o tema. O enredo do Timeu não traz novidade para
o leitor atual: ele dá continuidade ao diálogo socrático com Timeu, Crítias e Hermócrates.
No dia anterior ao diálogo precedente em que eles haviam tratado a constituição da cidade
ideal expressa na República, Crítias chama atenção para a necessidade de trazer a cidade
justa para a realidade e inicia a reconstrução da narrativa recordando a herança egípcia
que chegou aos povos gregos (Platão, Timeu 26d). Partem, então para discussão da
herança poética de Sólon quando de sua visita ao Egito. Lá ele conheceu a história da

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
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cidade ideal de Atlântida que seria guerreada por Atenas. Feito esse preâmbulo, passam
à análise da gênese do universo em vistas de entender o que seria uma cidade ideal: aquele
tema ocupa o centro do diálogo. Estabelece-se a descrição do universo dualmente com a
distinção entre o imutável e o mutável, a razão e a sensação, o mundo eterno e o mundo
físico. Este constituindo o espaço da mudança, da corrupção, da desordem e do devir,
aquele, o espaço da estabilidade, da incorruptibilidade, da ordem e da eternidade. Feita a
distinção entre o mundo eterno e o mundo físico, cabe entender como os dois se conectam.
Um dos pontos de convergência entre os dois mundos é, justamente, o tempo.
A primeira menção ao tempo aparece de forma colateral. Trata-se da referência ao
esquecimento promovido pelo tempo e à destruição da humanidade que pesa na história
grega e que foi contado a Crítias pelo seu avô. Crítias tomou conhecimento da grandeza
de Sólon e da herança egípcia em sua poesia, porque seu avô lhe contou narrou a viagem
do sábio ao antigo Egito. Por isso, eles se decidem a “narrar de memória que grandes e
admiráveis feitos dos tempos antigos desta cidade” deveriam ser conversados para incluir
na história o justo louvor à deusa no dia de sua festa (Timeu 21a). Já nessa passagem fica
explícita a função do diálogo: narrar e conservar a memória da cidade antiga. Sem narrar,
a história simplesmente caí no esquecimento. É graças à narrativa que povos conservam
aquilo que o tempo reduziria ao silêncio e ao esquecimento. O preço cobrado pelo silêncio
e pelo esquecimento é demasiado alto para qualquer cidade: um povo sem história torna-
se refém de qualquer discurso tirano. Essa era a condição da Grécia naquele momento,
por isso o sacerdote egípcio que conversava com Sólon o adverte frontalmente quando ao
risco da ausência de tradição que pesa sobre os seus conterrâneos (Timeu 22b):

Foi então que um dos sacerdotes já de muita idade lhe disse: “Ó Sólon, Sólon, vós, Gregos, sois
todos umas crianças; não há um grego que seja velho”. Ouvindo tais palavras, Sólon indagou: “O
que queres dizer com isso?” “Quanto à alma, sois todos novos – disse ele. É que nela não tendes
nenhuma crença antiga transmitida pela tradição nem nenhum saber encanecido pelo tempo”.

A crise grega decorria da ausência de tradição. A consequência era a ausência de


memória e a jovialidade dos gregos, a saber, a incapacidade de aprender com o passado,
o que fazia com que os gregos vivessem presos apenas ao presente. O mundo grego seria
demasiado jovem para aprender com o tempo, visto que não conservava suas narrativas.
Feita a exortação, o diálogo segue até o momento em que novamente a jovialidade grega
mostra sua face no desejo de trazerem a cidade ideal descrita na República, no dia anterior
para o hoje, para a realidade concreta. O pedido apresentado no diálogo é para consigam

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
69

transpor os muros da distância entre a idealidade e a realidade, o passado e o presente. O


que se exprime de forma contundente no desejo dos participantes (Timeu 26d): “quanto
aos cidadãos e à cidade que tu ontem nos descreveste como num mito, ponhamo-los aqui,
transportando-os para a realidade...” Há uma tensão interna no diálogo entre quem crê no
passado e no modelo ideal como uma escola para o pensamento presente e quem deseja
que as respostas do pensamento sejam transpostas para a realidade imediata. A conclusão
do livro IX da República (592b) não deixa dúvidas quanto ao ponto: “referes-te à cidade
que edificamos há pouco na nossa exposição, àquela que está fundada só em palavras,
pois creio bem que não se encontra em parte alguma da terra”. A constatação imediata no
diálogo republicano aponta para a necessidade de transpor a teoria para prática, ou seja,
dar a conhecer os pressupostos teóricos como instrumentos para a edificação da realidade
concreta e imediata. No entanto, Sócrates permanece reticente quanto à possibilidade de
a filosofia servir como receita prática para pensar a cidade, pois é ele quem diz no final
da mesma passagem: “talvez haja um modelo no céu, para quem quiser contemplá-la e,
contemplando-a, fundar uma para si mesmo. De resto, nada importa que a cidade exista
em qualquer lugar, ou venha a existir, porquanto é pelas suas normas, e pelas de mais
nenhuma outra, que ele pautará o seu comportamento”.
A resposta socrática aponta na direção inversa ao pragmatismo da filosofia. Pensar
a cidade não significa estabelecer um plano de governo ou de construção civil, mas formar
o espírito humano em vistas de que os indivíduos pratiquem as justas decisões nas ações.
A cidade platônica permanece no plano do projeto ideal disseminado no espírito humano.
Não se trata de nada contrário à sua filosofia, antes, é a certeza de que a justiça sempre
conserva uma dimensão utópica, incompleta ou por se realizar. Digo, nenhuma cidade,
por mais coesa que seja, atingirá a perfeição da justiça. A condição da justiça na cidade é
constitutivamente incompleta, podendo seu ideal ser remetido ao passado quando nossos
pais foram capazes de estabelecer uma possível idade do outro (Timeu 26d): “estarão em
absoluta harmonia e nós não estaremos fora de tom se dissermos que eles são os que
existiram naquele tempo” bem-aventurado em que a justiça governava as relações civis.
Há uma tensão imanente no processo da justiça: a ideia de justiça precisa necessariamente
estar imune às vicissitudes e aos interesses do mundo, em primeiro lugar, por isso tal ideia
permanece como uma marca eterna, enquanto a ação justa se opera no mundo humano,
onde imperam os vícios e as perversões, logo, a justiça mundana será sempre parcial, em
segundo lugar. Enquanto ideia, a justiça é perfeita, enquanto realização, o ser humano não

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
70

se mostra capaz de realizá-la perfeitamente. Com isso, Platão identifica as duas dimensões
determinantes do mundo: a dimensão visível, sempre sujeita à corrupção e aos vícios, e a
invisível, sempre conversada como um ideal regulador na vida no mundo (Timeu 37a).
A mistura entre o visível e o invisível, o temporal e o eterno, o ideal e o real não
alcança uma identificação cabal, pois é preciso reconhecer que o mundo está constituído
pela ação de seres humanos. Em virtude de sua condição, não por sua escolha nem pela
sua maldade, o humano jamais realizará a plenitude da justiça, pois todos os indivíduos
presente no mundo estão sujeitos a condição de meros “seres” e, nessa condição, efetiva-
se a conjunção das “três partes da natureza do Mesmo, do Outro e do Ser, dividida e unida
segundo a proporção, ela gira em torno de si própria e, sempre que contacta com qualquer
coisa cujo ser pode ser dividido ou com qualquer coisa cujo ser não pode ser dividido, é
movimentada na sua totalidade” (Timeu 37a). Por melhor que seja o equilíbrio natural das
realidades presentes no mundo, a junção das três naturezas inviabiliza o equilíbrio perfeito
entre o Mesmo, o Outro e o Ser, porque suas naturezas são radicalmente distintas. Dito
de forma breve, entre o eu, o tu e o ele não há condição de pensamento que seja capaz de
produzir justiça em perfeição para todos, pois o que nos une é justamente a diferença de
nossas naturezas. A beleza do mundo decorre da harmonia das proporções, mas nenhuma
decisão será perfeitamente proporcional a ponto de realizar a perfeição da justiça humana.
Por isso, o melhor que faz é justamente respeitar o espaço da diferença entre as partes, tal
como Marcelo Pimenta Marques nos mostrou em Platão, pensador da diferença (2008).
O ponto extremo da relação entre o Mesmo e o Outro – eu e tu – encontra-se na expressão
discursiva quando o Mesmo se assume como o próprio verdadeiro, e o Outro é relegado
à condição de produtor de “opiniões e crenças firmes e verdadeiras” (Timeu 37b).
A distinção estabelecida entre o Mesmo e o Outro precisa ser entendida: sendo o
Mesmo aquele “que é ele próprio verdadeiro quer diga respeito ao Mesmo quer ao Outro”,
não restando muito espaço para a diferença. O Mesmo institui-se, nesse sentido, como o
lugar da própria verdade, enquanto o Outro permanecerá como aquele que gera “opiniões
e crenças firmes e certas (-
: Timeu 37b)”. O discurso do Outro sempre será entendido como dóxa e
písteis, a saber, “opiniões e crenças seguras e certas”, mas não se comparará ao discurso
do Mesmo que será “sempre verdadeiro ()” quer em relação a si (o
Mesmo) quer em relação ao Outro. Se assim é a alma do mundo, dividida entre o Mesmo
e o Outro, entre o que diz a verdade e aquele que fala de opiniões e crenças, precisa se

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
71

estabelecer uma ordem da verdade que faça a junção entre o Mesmo e o Outro, o invisível
e o visível, o tempo e o eterno, o estável e o mutável, o ser e o devir. Essa junção existe.
A condição eterna cabe ao mundo e aos deuses. Assim que foi engendrado aquele,
os deuses eternos queriam dar ao mundo um caráter semelhante ao do arquétipo eterno.
Isso dependia da possibilidade de os deuses tornarem o mundo também eterno, entretanto,
tal condição lhes era impossível em virtude da própria constituição mundana. A diferença
que há entre os deuses e o mundo permanecia intransponível (Timeu 37d): “acontecia que
a natureza daquele ser [o deus que engendrou o mundo] era eterna, e não era possível
ajustá-la por completo ao ser gerado”, por isso o mundo jamais poderia ser eterno dentro
da mesma condição e forma que o deus que o engendrou. Nesse ponto está estabelecida
a distinção radical entre o mundo e os deuses, o temporal e o eterno, o visível e o invisível,
o transitório e o permanente. É, então, nessa condição que o deus engendrador procura
um liame capaz de unir o visível ao invisível (Timeu 37d):

Então, [o engendrador] pensou em construir uma imagem móvel da eternidade (


), e, quando ordenou o céu (), construiu, a partir da
eternidade que permanece uma unidade, uma imagem eterna que avança de acordo com o número
(); é aquilo a que chamamos tempo ().

A “imagem móvel da eternidade” capaz de estabelecer o vínculo de semelhança


entre os deuses e o mundo é o tempo. Como o mundo jamais será eterno tal qual os deuses,
resta-lhe apenas assemelhar-se maximamente à condição que lhe é possível através do
espelho do tempo. Não que o tempo seja eterno, ele é “uma imagem móvel da eternidade”.
A bifurcação entre tempo e eternidade está instituída dentro do pensamento grego com a
formulação platônica. Rios de tinta não foram capazes de apagar a linha horizontal traçada
por essa expressão, por isso ainda opomos as dimensões temporal e eterna ao pensar nossa
experiência no mundo. O tempo constitui-se como uma imagem da eternidade não por
qualquer forma de identificação, senão ele seria eterno, mas por seu caráter contínuo,
constante e permanente tal como é permanente o movimento do céu. A diferença está no
fato de o movimento celeste seguir de maneira ordenada e unitária ()
à semelhança do número (). Não que o céu se defina pelo número, mas ele
se assemelha, quer na unidade quer no ordenamento, ao número, digo, à ordem perfeita.
Platão desdobra a sequência do diálogo doravante tratando dos corpos celestes (os
deuses visíveis e criados), dos corpos terrestres (a gênese dos corpos, das sensações e dos
sentimentos) e dos números (as figuras geométricas, os quatro elementos, e o movimento

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
72

e o repouso). Como nosso interesse reduz-se à compreensão do tempo, ficamos por aqui
nesse diálogo, lembrando que esta exposição difere da de Rémi Brague que faz o tempo
depender do número do movimento celeste e não da imagem da eternidade: “o tempo é o
movimento do céu na medida em que este possui uma estrutura numérica” (Brague, 2006,
p. 69). Tal interpretação interessa ao autor na medida em que permite ressignificar a noção
do tempo não mais em relação à eternidade, mas em relação à percepção psicológica do
tempo. O resultado de sua interpretação se mostra na passagem da compreensão cósmica
do tempo à sua compreensão psicológica: “o tempo perde sua ligação com a ordem
quantificável do universo material. Ele se vincula, pelo contrário, à experiência do tempo
que é a da alma” (Brague, 2006, p. 79). Essa subjetivação da compreensão temporal perde
uma das notas centrais da interpretação do Timeu, a saber, ele como chave interpretativa
do cosmo. À medida que subjetiva o tempo, Rémi Brague afasta Platão da noção temporal
da antiguidade grega e o mergulha na interpretação modernizante de seu pensamento. Daí
ele pode concluir dizendo que “o tempo é o movimento ordenado do céu, que manifesta
a estrutura numérica da alma do mundo. Assim concebida, a alma produz o tempo em vez
de tomar consciência dele” (Brague, 2006, p. 79). Embora seja uma interpretação próxima
e favorável ao diálogo com o nosso tempo, ele afasta-se da compreensão cosmológica em
que Platão a propôs, pois depende da reescrita da própria definição que afirmaria ser o
tempo “a imagem móvel do céu” e não mais da eternidade.
Contrariamente, preferimos permanecer fiéis à expressão platônica, pois o tempo
não depende da produção subjetiva, mas é dele que precisamos tomar consciência graças
ao seu caráter irrepetível, irreversível e irretratável, uma vez que vida no mundo corre no
fuso do tempo, sem qualquer esperança de alcançar a eternidade, visto que esta os deuses
a reservam apenas para eles. É no fluxo tenso do tempo que desdobramos todas as nossas
decisões, que cuidamos ou desprezamos as ações, que administramos ou negligenciamos
o mundo. É nesse espaço em que vivemos e suportamos a tensão da desigualdade política
do mundo: “para não remontar ao livro IV da República [em uma leitura in extenso], no
qual Platão também relembra que toda cidade está dividida em duas cidades, a dos ricos
e a dos pobres, além do mais em guerra uma com a outra, sendo por isso um erro grave
tratá-las como constituindo um só Estado” (Arantes, 2023, p. 32-33). É no curso do tempo
que se operam as desigualdades e as injustiças políticas. Portanto, é nesse mesmo espaço
– dentro do tempo do mundo – que precisamos pensar a dimensão política da existência.

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
73

Para além de tudo o que Platão diz na República sobre a justiça, será no Político
que ele enfrentará a tarefa de descrever o perfil humano do administrador público. Cabe-
lhe a difícil missão de exercer um governo justo e bom e é, justamente por isso, que sua
missão é tão difícil. Como todo aglomeramento de indivíduos, todo Estado reúne pessoas
pertencentes às duas cidades – os ricos e os pobres – o político precisará encontrar uma
forma de equilibrar as contas ou administrar e praticar a justiça de forma equitativa. Nesse
ponto torna-se notória a dificuldade da missão, pois não se trata mais de definir a justiça
como Platão fez na República, mas de explicar como o político administrará justamente.
Não lhe basta conhecer o passado nem projetar ideais para o futuro, o político vive a tensa
relação de conciliar os interesses de ricos e pobres no agora das decisões. Depois de tratar
do reino dos outros animais e antes de abordar a legalidade necessária e a imperfeição das
constituições civis, Platão detém-se na análise do abandono humano no mundo sem poder
contar com o socorro dos deuses. Estes servem-lhe tão somente como exemplos para a
administração eterna como obra dos pastores divinos, por isso leiamos (Político 271d):

Acompanhaste bem a discussão. Mas a ordem a que tu te referes, em que tudo nascia de si mesmo
para servir aos humanos, não tem relação alguma com o ciclo ora em curso: pertencia ela ao ciclo
precedente. Nesse tempo, a direção e a vigilância de Deus se exerciam, primeiramente, tal como
hoje (), sobre todo o movimento circular, e essa mesma vigilância ainda existia localmente,
pois todas as partes do mundo estavam distribuídas entre os deuses encarregados de governá-las.

Platão apresenta duas esferas de administração do mundo: os deuses olímpicos se


revezam na administração de todo o mundo () e, ainda assim, dividem
cada parte aos cuidados de um deus particular para que exerça seu poder localmente. Não
se trata de um conflito entre as duas formas administrativas, mas do fato de os deuses se
dedicarem a cuidar do movimento circular do mundo, do cosmo. O ponto de tensão situa-
se não na administração compartilhada entre os deuses, mas no fato de tal administração
acontecer no tempo chamado hoje – no agora () –, pois é justamente nesse lugar
que se opera a direção e a vigilância política. Como há um conflito contínuo entre as duas
cidades – a dos ricos e a dos pobres –, o político precisa administrar não em função do
passado nem à espera do futuro, mas decidir de forma justa no tempo do hoje, agora ().
Novamente, Rémi Brague interpreta de forma típica a passagem. Ele tira do reino
de Crono (do tempo presente) a responsabilidade pela tensão administrativa do político.
Ele o faz à medida que sobrepõe a mítica soberania de Zeus ao império de Crono, isto é,
mediante da dimensão do permanente, o eterno, sobre o tempo presente, o agora (Brague,
2006, p. 94): “ao reino de Cronos se sucedeu, segundo a representação que consta na

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
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mitologia, o de Zeus, que destronou seu pai”. Aparentemente, a sobreposição do eterno


ao tempo presente não causa um problema maior, porém, a consequência está no deslocar
o polo da urgência política do agora para o polo da mediação divina de Zeus que guiaria
o tempo. Vale dizer, sob a administração política seguiria os ditames divinos e não mais
a urgência política do agora em vistas de resolver a tensão entre a cidade dos ricos e a dos
pobres. Com isso, não há dúvida que a interpretação de Rémi Brague (2006, p. 98) esvazia
o reino da vida política, pois “Cronos reina, mas não governa” em benefício da eternidade.
Diversamente, a interpretação in radice do texto platônico, exige do político a destreza
de lidar continuamente com a tensão entre ricos e pobres, entre beneficiados e espoliados,
entre privilegiados e empobrecidos, porque a administração política da cidade acontece
como a vigilância contínua dos bens públicos (res publica) no tempo chamado hoje ().
Na direção completamente oposta à interpretação metafísica de Rémi Brague, está
a compreensão do tempo na Física de Aristóteles (IV, 10-14). O tratado do tempo ocupa
um lugar especial no pensamento aristotélico. E, na acepção que defendemos, casa-se em
tudo com o lugar estabelecido no Político (271d): se “a direção e a vigilância de Deus se
exerciam, primeiramente, tal como hoje () (...) sobre todas as partes do mundo”,
não se estranha reconhecer que “é impossível ser ou pensar o tempo sem o agora ()”
(Física VIII, 1, 251b e Puente, 2001, p. 18). O fuso do tempo corre na teia do agora onde
se decide a administração da cidade. Não há tempo anterior ou posterior que justifique a
possibilidade de o político postergar ou procrastinar a decisão, a beleza da política nasce
da sua dificuldade radical: toda decisão é tomada no presente como resposta ao problema
que existe no hoje histórico. Vejamos, pois como se passa da eternidade ao movimento,
a saber, da compreensão platônica em que o tempo serve como vínculo imagético entre o
invisível e o visível à compreensão aristotélica do tempo como medida do movimento.
Para o Estagirita, o tempo revela-se como portador de uma dupla possibilidade:
de um lado, ele representa a face cruel da mudança () da vida à morte, da
geração à corrupção, do calor ao frio, enfim, do ser ao não-ser, pois ele rege-se pelo devir
inexorável e a tudo devora (Metereologia I, 14, 351a26); de outro, o tempo constitui a
condição de possibilidade de toda ação e invenção humana (Física IV, 13, 222b19 e Ética
a Nicômaco I, 7, 1098a24: apud Laurent, 2015, p. 85). O tempo não é a causa da mudança
() das coisas, ele sequer é uma substância. Ele apenas mede o movimento ou a
passagem () das mudanças que governam o mundo. Isso decorre da condição de
o passado não existir mais e o futuro não existir ainda, restando, portanto, o império do

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
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agora (). No tempo chamado hoje (), corre o curso das coisas do mundo dentro de
sua quádrupla condição: a primeira é a potencialidade, a partir de onde algo pode ou não
vir a ser, devir, existir ou não, e na mudança do não-ser ao ser que as coisas são geradas
mediante a passagem da potência ao ato, da possibilidade à atualidade; a segunda, refere-
se à condição da modalidade do ser: antes fui criança e agora sou adulto, não sendo uma
“criançadulto” ao mesmo tempo e sob a mesma forma; a terceira condição é a necessidade
e esta não comporta exceção, o que é necessário existe independentemente da fatalidade
e do acaso (), pois segue o imperativo da eternidade; por fim, a quarta condição pode
ser dita a contingência: tudo o que é contingente pode ser e deixar de ser a qualquer tempo
sem nenhuma explicação nem causa, pois o reino da contingência é governado pela força
do tempo. É dentro dessas condições que corre a vida humana, tanto sob o domínio do
devir quanto no domínio em que pode agir e inventar sua presença do mundo.
O ser humano pode, na dimensão estrita de sua vida, realizar sua potencialidade,
enquanto se trata de coisas que estão sob seu domínio, por exemplo, a ação política. Não
nenhuma determinação prévia que impeça ou o obrigue a agir desta ou daquela maneira.
Sua potencialidade lhe permite governar suas decisões. Na condição modal, esse humano
poderá determinar algumas coisas respeitando obviamente a impossibilidade de ser e não
ser a mesma coisa sob a mesma condição ao mesmo tempo, isto é, não pode ser criança e
adulto ao mesmo tempo e sob a mesma condição. Contra o reino da necessidade, nada se
pode fazer: não determinamos a hora de nascer nem determinamos a sorte que nos vem.
Estamos subordinados a viver sob o reinado da necessidade de alimentação, proteção e
reprodução, sendo vetado ao ser humano sobreviver fora de tais condições. Finalmente,
é na condição contingente que o curso da vida se passa. É aí que podemos agir e inventar
novas formas de existir. E, por isso mesmo, recorde-se que o reino da contingência está
sob a soberania do tempo. No reino da temporalidade, podemos agir ou não, inventar ou
não, novas formas de ser no mundo. Portanto, é no tempo que corre a vida humana e fora
dele não resta nenhuma possibilidade, pois só nos resta o agora.
Eis o cenário em que se enquadra o estudo do tempo na Física de Aristóteles. Não
se faz necessário sumariar a extensão da obra, cujos livros tratam respectivamente da (i)
o tema da física e os três princípios naturais (matéria, forma e composto); (ii) a natureza
como princípio do movimento, as quatro causas, e o acaso e a possibilidade; (iii) a
potência, o ato e o infinito; (iv) o lugar, o vazio e o tempo; (v e vi) as quatro formas do
movimento e a passagem ao contrário; (vii) o motor e o movente e (viii) o primeiro motor.

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
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Em resumo, a Física não é outra coisa senão o estudo sobre a força da natureza, do devir
do mundo, da physis. No capítulo sobre o movimento, encontra-se o tratado do tempo
(IV, 10-14) cujo ápice está na passagem que, de alguma forma, veta toda compreensão
transcendental do tempo (IV, 11, 220a25): “o tempo é o número do movimento segundo
o anterior e o posterior (), e é
contínuo (por ser uma espécie de continuidade), isso é manifesto”.
A definição nada mais expressa que a consequência exata e direta da compreensão
da natureza enquanto physis (aquilo que desabrocha) somada à noção de movimento que
guia toda a obra. Não se trata de mudança () na natureza das coisas, mas da
passagem ou do deslocamento () entre este e aquele ponto, entre aqui e ali. Com
essa definição, o autor inscreve definitivamente o tempo dentro do limite do mundo, sem
qualquer possibilidade de reconciliação ou de capitulação da eternidade. Ainda que a
sucessão agoras constitua um contínuo, nem por isso se tem acesso ao passado nem ao
futuro. Sabe-se apenas que o instante inicial (t0) liga-se ao posterior (t1) por sucessividade
e assim continuamente. Porém, como o tempo não é uma substância, não há como segurar
ou controlar sua existência. Ao contrário, tal qual a natureza (physis) é o tempo que guia
a vida humana tanto em suas invenções quanto em suas ações. Não havendo a condição
de um tempo perfeito nem ideal, resta a possibilidade contingencial de agirmos no mundo
dentro dos limites de nossa inventividade. E como todos os seres mundanos são limitados
por sua condição contingencial, não há nenhuma ação necessária nem determinada prévia
ou providencialmente. Toda ação no mundo resulta da decisão do agente e, por óbvio,
traz o (b)ônus de sua completa responsabilidade.
Novamente, é Rémi Brague que apresenta uma interpretação que merece atenção:
seu argumento sugere que precisamos pensar a sucessão de instantes ou, na fórmula que
ele apresenta, “o tempo é o agora dos agoras”. A consequência será a distensão do tempo
entre o agora anterior (t1) e o agora posterior (tn), inserindo, nesse sentido, um contínuo
no próprio agora (Brague, 2006, p. 156): “a maneira pela qual o agora é ao mesmo tempo
uno e múltiplo é a explicitação da ideia de articulação”. O que, em primeiro lugar, abre
espaço para pensar o sendo ou a duração do instante e, em segundo, radicalizando esse
pressuposto, permitiria pensar o passado e o futuro (Brague, 2006, p. 157): “o tempo
‘avança’ pelo meio, pelo presente que ejeta ao mesmo tempo do passado e do futuro. O
‘movimento’ do tempo é centrífugo”. Com isso, Rémi Brague, de alguma forma, constitui
uma noção de tempo linear enquanto passado, presente e futuro, rompendo com a radical

O tempo e a história na filosofia brasileira


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compreensão aristotélica do tempo enquanto agora. Por isso, a interpretação mais coesa
parece ser aquela proposta em Fernando Rey Puente (2001, p. 192):

O agora () é a referência a partir da qual o anterior-posterior é determinado, e essa determinação


é a contrária em relação ao passado () e ao futuro (), pois “no passado nós
denominamos ‘anterior’ o que é mais distante do agora e ‘posterior’ o que é mais próximo; já no
futuro ‘anterior’ é o mais próximo, e ‘posterior’, ao contrário, o mais distante” (Física 223a10-13
e Metafísica 1018b14-19).

Com isso, Aristóteles está nos dizendo que estamos condenados a agir no presente.
Nem o passado nem o futuro nos pertencem. Resta apenas o presente como a condição
para se pensar e agir neste mundo. Desfeitas as ilusões das amarras do passado que fixam
o indivíduo na cadeia da lembrança, despojado da promessa de um futuro contingente que
não comporta qualquer traço de interesse em satisfazer o capricho subjetivo, o indivíduo
vive apenas o presente, o agora (), sem precisar se submeter nem ao drama da karma
não cumprido no passado nem se ocupar ansiosamente (preocupar) com o (in)fortúnio
que pode lhe advir. Assim, a ação e a inventividade humana estão libertas para sonhar e
criar um horizonte completamente novo de significados e realizações. Como não há uma
remissão do passado nem uma antecipação do futuro, o indivíduo encontra-se livre para
determinar seu presente, por isso “a natureza de uma atividade é completa a cada instante”
(Puente, 2001, p. 318). Tudo o que se realiza, realiza-se definitivamente, sem regresso
nem porvir. A consequência está na certeza de que tudo precisa e deve ser realizado em
sua completeza ou “instantaneamente como um todo”. O tempo requer a coragem de um
agente capaz de levar seu propósito e sua realização à plenitude, à perfeição. Não havendo
como refazer nem desfazer, antecipar nem anteceder o curso do tempo. Liberto do peso
do passado (karma) e igualmente livre da necessidade de se projetar tensamente para o
amanhã, resta ao indivíduo viver, agir e inventar seu próprio caminho no tempo presente
(), fazendo de cada decisão um ato completo, inextenso e sincrônico em que “início e
fim coincidem”, visto que chegou à plenitude: “a cada novo instante pensar é já ter
pensado e ver é já ter visto, ou seja, eles são atos e, ao ser atos, são sempre completos”
(Puente, 2001, p. 318). Realizando-se, assim, plenamente no prazer do agora.

2. A reinvenção da eternidade: Agostinho de Hipona

O arco temporal que distingue o tempo de Platão e Aristóteles nos séculos V e IV


a.C. dos séculos IV e V d.C. em que viveu Agostinho de Hipona foram marcados, de um

O tempo e a história na filosofia brasileira


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lado, pela expansão helenizante da filosofia clássica e, por outro, pelo advento da noção
de uma nova temporalidade: a encarnação do Logos eterno de Deus dentro da história faz
com que uma nova temporalidade se institua. A referência mais rápida e direta ao fato se
faz sentir no calendário judaico-cristão que ainda seguimos e que distingue os séculos em
antes e depois de Cristo. Afinal, que mudança ocorre no tempo à luz do cristianismo?
A compreensão do tempo no pensamento agostiniano depende fundamentalmente
da crença na encarnação do Logos:  (João 1,14). Sendo ele eterno,
fez-se tempo, e mudou a ordem de compreensão da temporalidade. A condição do tempo
passa a ser pensada não mais separada da condição eterna, ou seja, a temporalidade será,
doravante, compreendida a partir da eternidade. A polarização sai da dimensão temporal
para a eterna, sabendo que a esta precede e sucede aquela. Nessa compreensão, o eterno
antecede necessariamente o temporal, coexiste simultaneamente com ele e o sucede para
além do seu fim. Posto isso, tudo o que se passa no curso do tempo é mera finitude não
sendo possível registrar nada que seja estável. A polarização de importância passa do aqui
para o lá, o tempo para a eternidade, da finitude para a infinitude. O cristianismo, nesse
sentido, reverte a lógica do tempo à medida que coloca seu centro na eternidade. Tal como
Platão que dividia o Estado em duas cidades – a dos ricos e a dos pobres –, Agostinho
também dividirá a lógica do mundo em duas ordens (Confissões VIII, 10):

Todas essas verdades são boas, e lutam entre si, até que se tome uma decisão, que unifique a
vontade, antes dividida. Assim também, quando a eternidade agrada à nossa parte superior e o bem
temporal nos prende fortemente cá embaixo: é a mesma alma que, sem uma vontade plena, quer
um e outro desses bens. Por isso, dilacera-a uma grande dor; a verdade nos faz preferir a eternidade,
mas o hábito não quer abandonar os bens temporais.

A distinção apresentada por Agostinho situa-se no campo da polêmica contra os


maniqueus ao tratar a questão da dupla deliberação da vontade onde se reconhecem duas
tendências ou almas de naturezas opostas, sendo uma boa e outra má. Aquilo que Platão
havia falado em relação à dificuldade de conciliar politicamente os interesses entre ricos
e pobres dentro de um mesmo Estado, Agostinho traz para o âmbito da interioridade
humana identificando-o com as naturezas opostas da vontade – a boa e a má – e fazendo
pensar como o dilaceramento entre as paixões aqui de baixo impeçam a alma de alcançar
os dons lá de cima, isto é, como os prazeres do mundo prendem e impedem a alma de
chegar à contemplação eterna. Dito isso, não se trata mais de pensar politicamente as duas
cidades, mas de avaliar quão desvirtuada pode estar a vontade da alma a ponto de prender
o indivíduo à ilusão do mundo, deixando o superior pelo inferior, o eterno pelo temporal.

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
79

O desenvolvimento da divisão entre tempo e eternidade ainda se radicalizará, pois


Agostinho insiste na caracterização da centralidade da palavra coeterna de Deus, ou seja,
do Logos eterno. Esse Logos não pode ser outro que aquele pronunciado eternamente por
Deus Pai que o engendrou simultânea e eternamente em sua plenitude. Caso esse Logos
estivesse sujeito ao devir, “já haveria tempo e mudança, e não a verdadeira eternidade
nem a verdadeira imortalidade” (Confissões XI, 7). Se o Logos é eterno e imortal, todas
as criaturas divinas são feitas sucessiva e temporalmente. À eternidade e imortalidade do
Logos, opõem-se sem contradição a temporalidade e mortalidade das criaturas. Significa
isso que nenhuma criatura goza ou participa da condição eterna e imortal de Trindade. Só
ela existe eterna e imortalmente. Tudo o mais está condenado à lógica da temporalidade
e da mortalidade não por decisão própria, mas graças à limitação congênita da criatura.
Enquanto a Trindade vive e goza a eternidade com uma vontade constante e eterna
que não a faz desejar nada que seja diferente de si mesma, a criatura permanece joguete
de uma vontade corrompida pelo pecado inicial. A vontade divina não fratura seu querer
nem lhe acrescenta nada que já não tenha, pois a divindade já é plena de todos atributos.
Diversamente, a vontade humana, corrompida pelo pecado, submete-o a luta contínua dos
quereres cá de baixo tiranizando os lá do alto, da mortalidade afrontando a eternidade.
Como Deus não criou nada desprovido de liberdade, a criação ficou sujeita à sua vontade
que, uma vez corrompida, impede que a criatura deseje perfeitamente a eternidade sem
ser dominado pela temporalidade. Como, então, conciliar as duas vontades se torna tema
fundamental para a antropologia agostiniana e ele o responderá em um capítulo dedicado
ao tempo e à eternidade que merece leitura na íntegra (Confissões XI, 11):

Os que assim falam não te compreendem ainda, ó Sabedoria de Deus, luz das inteligências; não
compreendem ainda como é criado o que é criado por ti e em ti. Esforçam-se por saborear as coisas
eternas, mas seu espírito voa ainda sobre as realidades passadas e futuras. Quem poderá deter esse
pensamento, quem o fixará por um momento, para que tenha um rápido vislumbre do esplendor
da eternidade imutável, e a compare com os tempos impermanentes, para perceber que qualquer
comparação é impossível? Então veria que a sucessão dos tempos não é feita senão de uma
sequência infindável de instantes, que não podem ser simultâneos; que, pelo contrário, na
eternidade, nada é sucessivo, tudo é presente, enquanto o tempo não pode ser de todo presente.
Veria que todo o passado é repelido pelo futuro, que todo futuro segue o passado, que tanto o
passado como o futuro tiram seu ser e seu curso daquele que é sempre presente. Quem poderá
deter a inteligência do homem para que pare e veja como a eternidade imóvel, que não é futura
nem passada, determina o futuro e o passado? Acaso poderá realizar isso minha mão? Ou esta
minha língua, com a palavra, poderia realizar tal obra?

O Hiponate articular tempo e eternidade a partir de uma distensão do instante,


sendo o tempo compreendido como sucessão infindável de instantes e a eternidade, como

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
80

presente completo de tudo o que existe simultaneamente. Se o tempo caracteriza por uma
sucessividade de instantes, a eternidade se identifica como uma intensidade do presente.
Nela, não haverá nem antes nem depois, tudo acontece em máxima intensidade no agora.
Enquanto o tempo, morosamente, acontece apenas na sucessão de instantes. Com isso, o
que se alcança é certeza de Deus não está no tempo, antes, o tempo somente existe graças
à criação divina, por isso “precedes, porém a todo o passado na altura de tua eternidade
sempre presente; dominas todo o futuro porque está por vir e que, quando chegar, já será
passado. Contudo, tu és sempre o mesmo, e teus anos não passam jamais” (Confissões
XI, 13). O tempo não está lado a lado com Deus, pois ele foi criado por Deus. Este o fez
vir a ser e, portanto, Deus está fora da lógica do tempo, ele não se submete à força do
passado nem teme a espera do futuro, porque ele existe eternamente. O desdobramento
dessa compreensão é a certeza de “teu hoje é a eternidade” (Confissões XI, 13). O tempo
divino, se assim se pode dizer, é sempre o presente contínuo. O polo de referência passa,
doravante, para o divino que determina o temporal. Não se compreende o tempo a partir
de si mesmo, mas sempre em referência à eternidade. É nesse ponto que se põe a questão
que é o tempo? e a resposta também merece leitura in extenso (Confissões XI, 14):

Não houve, pois, tempo algum em que nada fizesses, pois fizeste o próprio tempo. E nenhum
tempo pode ser coeterno contigo, pois és imutável; se, o tempo também o fosse, não seria tempo.
Que é, pois o tempo? Quem poderia explicá-lo de maneira breve e fácil? Quem pode concebê-lo,
mesmo no pensamento, com bastante clareza para exprimir a ideia com palavras? E, no entanto,
haverá noção mais familiar e mais conhecida usada em nossas conversações? Quando falamos
dele, certamente compreendemos o que dizemos; o mesmo acontece quando ouvimos alguém falar
do tempo. Que é, pois, o tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei; mas se quiser explicar a quem
indaga, já não sei. Contudo, afirmo com certeza e sei que, se nada passasse, não haveria tempo
passado; que se não houvesse os acontecimentos, não haveria tempo futuro; e que se nada existisse
agora, não haveria tempo presente. Como então podem existir esses dois tempos, o passado e o
futuro, se o passado já não existe e se o futuro ainda não chegou? Quanto ao presente, se
continuasse sempre presente e não passasse ao pretérito, não seria tempo, mas eternidade. Portanto,
se o presente, para ser tempo, deve tornar-se passado, como podemos afirmar que existe, se sua
razão de ser é aquela pela qual deixará de existir? Por isso, o que nos permite afirmar que o tempo
existe é a sua tendência para não existir.

A resposta agostiniana à difícil questão sobre o que seja o tempo vem a partir da
distensão do mesmo: à medida que reconhece sua passagem rumo ao silêncio, emerge o
passado e, enquanto se espera seu devir em um momento qualquer, nasce a compreensão
do futuro. Se já aconteceu, existe como passado; se está à espera, existe como futuro,
sendo ambos incomensuráveis. O passado é acessível pela memória; o futuro, pela espera.
Ainda se tenha a impressão da velocidade acelerada do tempo, o período de um século
não passa em uma sucessão simultânea. Decorridos dois anos, há um passado de 730 dias

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
81

que, se não for registrado, se perde na lembrança vaga. Ao mesmo tempo, restam 98 anos
por vir. Sem pressa nem retardo, sem aceleração nem possibilidade procrastinar, o tempo
passa inexoravelmente desde a primeira hora do dia às outras 23 que ainda restam: “cada
hora intermediária tem atrás de si horas passadas e diante de si horas futuras. Mas também
essa única hora composta de fugitivos instantes; tudo o que dela correu é passado, e tudo
o que ainda lhe resta é futuro” (Confissões XI, 15). Tudo aquilo que já passou existe na
memória e constitui o modo de existência do passado. Tudo o que está por vir, ainda pode
ser revisto e refeito, mas também já existe no projeto, por isso Agostinho afirma que não
existe apenas o presente, “o futuro e o passado também existem” (Confissões XI, 17). O
presente é o primeiro dado do tempo que podemos mensurar e, nesse sentido, Agostinho
apresenta uma definição que recorda a de Aristóteles ao afirmar “quando o tempo passa,
pode ser percebido e medido” (Confissões XI, 16). Porém, ele rompe com tradição grega
à medida que estende a definição do tempo tanto em relação ao passado e ao futuro quanto
ao situá-lo em relação à criação: o mundo foi criado no tempo, mas antes de todo tempo,
Deus já existia na eternidade. A percepção do tempo ocorre como uma distensão da alma
(distentio animae) que capta a totalidade do presente (in Palacios et alii, 2002, p. 26):

É em seu ser na alma que o passado cresce e diminui o futuro, nela eles são, nela realmente cabe-
lhes ser: “In te, anime meus, tempora metior”, em ti, minha alma, meço o tempo (XXVII, 36, 1 cf.
34-36), pois nele é presente o que meço; ela espera, fixa a atenção, capta por esta, retém na
memória: ninguém nega que o passado já não é e que não é ainda o futuro, na memória, porém, e
na alma, cabe-lhes um ser que me permite medi-los.

A subjetivação da percepção do tempo inaugura uma nova era na compreensão do


tema: além de afastar da compreensão objetiva de medida do movimento, o tempo passa
a ser analisado na interioridade perceptiva do sujeito. Ademais, Agostinho o dispõe entre
o passado e o futuro dentro da dimensão mundana, a saber, entre a memória e a profecia
e, na dimensão transcendental, ele o situa na condição criada e subordinada à eternidade.
O que Aristóteles havia alcançado com a determinação objetiva do tempo, foi remodelado
tanto pela compreensão subjetivada do passado, presente e futuro quanto pela disposição
do tempo subordinado à eternidade na narrativa agostiniana. Tal inversão da compreensão
objetiva do tempo decorre da ressignificação do conceito de instante ou agora (in Palacios
et alii, 2002, p. 59): “o instante é o lugar da sensação imediata, mas também da intuição
do inteligível. Eternidade e instante são dois conceitos-limite em relação ao tempo; ambos
escapam de medidas temporais. Após ter narrado sua vida ex ordine, portanto, Agostinho
investigará como a intuição da eternidade se dá no instante”. A emergência do fragmento

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
82

do tempo – o instante – facultará uma compreensão da eternidade enquanto intensidade


perfeita da presença divina à consciência do indivíduo. Essa intuição do eterno presente
à consciência se distenderá quer através da narração da experiência de mundo (o passado)
quer por meio da esperança por vir (o futuro). Com isso, toda experiência do tempo se dá
no lugar de uma consciência criada que se debate entre uma vontade corrompida e uma
condição constitutiva de sua finitude, restando-lhe, portanto, apenas a esperança redimida
de uma eternidade na contemplação da face divina.

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
83

VI. DO TEMPO NO ETERNO AO TEMPO COMO A PRIORI EPISTÊMICO

Se não fosse ingênua a tentativa de resumir argumentos filosóficos, poderia dizer


que o tempo foi definido em Platão, Aristóteles e Agostinho, respectivamente, em relação
à imagem eterna, ao movimento e à memória e profecia. Doravante, poderíamos elencar
mais três conceitos fundamentais – a eternidade, a física mecânica e a epistemologia – só
para se ter uma ideia das definições correspondentes em Tomás de Aquino (1225-1274),
Isaac Newton (1643-1727) e Immanuel Kant (1724-1804). Se entre Platão e Aristóteles
(séculos V e IV a.C.) e Agostinho de Hipona (século IV e V d.C.) há a distinção temporal
de oito séculos, entre Tomás de Aquino, de um lado, e Isaac Newton e Immanuel Kant,
de outro, há a diferença seria de mais de quatro séculos. Isso serve como advertências ao
leitor para que não pense que se trata de uma leitura histórica das fontes como se houvesse
conexão causal entre elas. Longe disso, o que se quer é destacar alguns momentos em que
as compreensões distintas do tempo provocaram uma mudança considerável na sua forma
de explicação e na maneira como a história das ideias passaram a lidar com essa noção.
Na Antiguidade grega, as concepções propostas por Platão e Aristóteles estavam
em relação à imagem da eternidade e ao movimento eterno, mas nenhum dos dois deram-
se o direito de constituir uma compreensão da eternidade propriamente dita. Explico: para
Platão, a eternidade possível era apenas dos números e das ideias, o que nada tem a haver
com a eternidade como pensada após o surgimento do Cristianismo e, para Aristóteles, a
eternidade se refere ao movimento dos deuses visíveis, ou seja, dos astros. Portanto, estão
longe de pensar a eternidade como uma coisa em si que subsiste separada do mundo como
se fosse origem para este, porque o mundo incriado grego já era eterno. Logo, nenhuma
outra entidade, senão os deuses olímpicos, gozaria da mesma condição. Sendo eternos,
não há qualquer necessidade de perguntar pela origem do mundo, menos ainda de tentar
fazê-lo depender da ação criadora dos deuses. Afinal, os gregos não supõem um criador.
Eis o ponto central de distinção entre a compreensão grega e a cristã do mundo.
Se o mundo já é eterno, não há necessidade de nenhum criador que justifique seu existir.
Se o mundo não é eterno, necessariamente deveria haver quem o fez existir, um criador.
De forma ilustrativa, as duas primeiras ocorrências do termo criador nas Confissões de
Agostinho de Hipona são suficientes para entender o papel do criador: tratando do amor
ao jogo mundano, o autor recorre ao “meu Senhor, ordenador e criador da natureza” (I,
10) indicando como o mundo depende desse que ordena e cria todos os elementos naturais

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
84

e, na segunda passagem, a expressão é ainda mais explícita ao render graças ao criador (i,
20): “Senhor, graças te sejam dadas, excelso e ótimo criador e ordenador do universo,
nosso Deus, mesmo que te limitasses a me fazer apenas menino. Porque então, eu já
existia, vivia, sentia, cuidava da minha integridade, eco de tua profunda unidade, fonte de
minha existência”. Se criar e ordenar o universo cabe a Deus, Agostinho atribui-lhe nada
menos que ser a fonte da existência de cada indivíduo. Com isso, tudo o que existe – quer
os astros do universo quer os indivíduos ínfimos – foi criado, ordenado e vieram a existir
por obra de um criador. De onde se segue que a explicação última para aquilo que existe
não depende mais de si, mas de uma origem externa criadora, um Deus onipotente. E, se
tudo foi criado pela vontade desse criador, antes que existissem, somente ele existiria. O
que veio a ser, teve sua origem nele, segundo a obra da criação. Nesse caso, nem os astros
nem o tempo são pensados como eternos, eterno será apenas o criador, tudo o mais, será
visto como obra criada temporalmente pelo designo do criador.
A compreensão humana estará, segundo a visão agostiniana, segmenta-se, de um
lado, pelo reconhecimento da finitude de toda a obra da criação e, de outro, reconhece-se
a exclusiva eternidade apenas do criador. O tempo da criatura está limitado ao horizonte
do mundo, enquanto o criador frui eternamente a existência, para além do mundo. Donde
resulta uma visão dual para a criatura condenada à temporalidade. A única forma dela se
encontrar com a condição eterna divina será a redenção futura – a parousia – mediante a
visão beatífica. Dentro do horizonte do mundo, resta à condição humana suportar o fluxo
do presente entre o presente do passado (a memória e a narrativa de tudo o que já existiu)
e o presente do futuro (a promessa e a profecia como esperança de um vir a ser divino).
Ainda assim, por mais que espere do passado e do futuro, o tempo da criatura humana é
vivido enquanto experiência mundana de sua fragilidade que se revela, antes de tudo, no
reconhecimento da pequenez humana. A mudança operada na compreensão do tempo na
cosmovisão cristã se deve a dois fatores: o primeiro referente ao fundamento metafísico
do mundo que, doravante, derroga a ideia grega de mundo eterno, e o pensa como mundo
criado e, ontologicamente, dependente do ser divino (Confissões X, 6): “interroguei a
imensidão do universo acerca de [quem é] Deus, e ele me respondeu: ‘não sou eu, mas
foi ele quem me criou’”. Logo, o fundamento último do mundo passa a ser um ponto
externo ao mundo, tanto na ordem do ser (o criador e a criatura) quanto na ordem do
tempo (o criador é eterno e a criatura, temporal). O segundo fator refere-se à condição da
criatura: ela se reconhece dependente do ser divino e condenada à temporalidade, a qual

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
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só lhe é acessível enquanto memória e profecia, mediante a subjetivação do tempo, visto


na história da salvação e na promessa de redenção, o futuro contingente do mundo.
Com isso, institui-se a nova visão do ser humano: ontologicamente, dependente
do criador; temporalmente, reduzido à condição finita; e, epistemologicamente, carente
de uma história e de uma promessa subjetivamente construídas. A objetividade do tempo
presente na definição aristotélica – a medida do movimento em relação ao anterior e ao
posterior – perde seu referencial teórico cedendo lugar à compreensão subjetiva do tempo
captado na memória e na profecia, na história e na promessa. Disso resultará o contemptus
mundi como base compreensiva do tempo que alimentará a Idade Média até que no século
XII, Bernardo de Cluny, escreva De contemptu mundi. Obra centrada na fugacidade das
alegrias mundana e, consequentemente, no desprezo por tudo o que é transitório e o apelo
para a vida governada pela eternidade, pois somente a vida espiritual santificada daria
acesso à condição permanente de contemplação divina. É nessa condição que se consegue
entender os desdobramentos epistemológicos da compreensão do tempo na Idade Média,
com Tomás de Aquino, e no início da Modernidade, com Isaac Newton e Immanuel Kant.

1. O tempo como exitus et reditus ad Deum

Thomas de Kempis (1380-1471) certamente não tinha grande pretensão de definir


o que significava a grandeza do conhecimento ao escrever sobre a doutrina da verdade
em A imitação de Cristo (I, iii, 7): “diga-me, onde estão agora todos mestres e professores
que você conhecer tão bem na vida e pelos quais ficou famoso seu aprendizado?” Thomas
de Kempis parece, de fato, convicto de que todo o conhecimento humano não tem grande
valor. A certeza de que todo conhecimento passa bem como desaparece o reconhecimento
que outrora foi devotado aos mestres, leva o autor ao ceticismo em relação ao valor dos
discursos sapienciais. Por isso, ele conclui o capítulo sobre a doutrina da verdade depondo
o conhecimento do centro do saber e colocando a caridade como o centro da vida humana,
porque “rapidamente passa a glória do mundo (sic transit gloria mundi)” (Kempis, 1940,
I, iii, 7). Uma vez que o tempo do mundo é fugaz e a permanência existe apenas naquilo
que se encontra fora do tempo, a saber, na eternidade, esta torna-se o centro da existência.
Nada que é transitório poderá prender a atenção de quem nasceu para a eternidade.
É dentro dessa cosmovisão cristã que se situa a obra de Tomás de Aquino. Embora tenha
vivido um século antes de Thomas de Kempis, ele não difere do veredito sobre o tempo.

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
86

Ao contrário, a principal obra de Tomás de Aquino atesta suficientemente como o tempo


estava situado dentro da compreensão da eternidade. Não por acaso, há duas questões da
primeira parte da Suma teológica que identificam perfeitamente essa compreensão.
As duas expressões encontram-se nas questões sobre a Trindade na primeira parte
da obra. A primeira expressão encontra-se na resposta à pergunta: ao Pai, corresponde
ou não ser o princípio de todas as coisas? A compreensão trinitária permite a Tomás de
Aquino situar tanto uma origem quanto um fim para o universo. A origem está expressa
na certeza de que o princípio é aquilo de quem procede tudo o mais que existe no universo
e que não procede de coisa alguma, portanto, o universo procede (exitus) desse princípio
primeiro (Suma teológica I, q. 33). Tudo o que procede por pura generosidade é recebido
como dom, dádiva e presente. Portanto, não há como o ser do mundo, incluindo todas as
criaturas humanas, serem capazes de gerar a si mesmas. Tudo o que existe, somente existe
porque recebeu do princípio primeiro o dom de existir, saindo ou vindo como um dom.
Como é impossível conquistar um dom, isto é, como é impossível que o mundo conquiste
por si e para si mesmo a sua própria existência, ele o recebe de outro, a saber, do princípio
primeiro. Por isso, cabe à criatura apenas responder ao dom de existir: “daí que só a
criatura racional pode receber a Pessoa divina. Mas o fato de recebê-la, tê-la não pode
consegui-lo com suas próprias forças; sendo necessário que o seja concedido de cima para
baixo; pois dizemos que nos é dado o que nos vem de fora. Assim, à Pessoa divina
corresponde dar-se e ser dom” (Suma teológica I, q. 38). Tanto maior é o dom divino que
se dá ao ser humano, quanto maior deverá ser a resposta (reditus), a dádiva humana de si
ao divino. Dessa forma, estabelece-se a base para a compreensão da relação criadora em
Tomás de Aquino: do ser divino procedem (exitus) todas as coisas que existem como dons
e nenhuma criatura é capaz de conquistar a existência por sua capacidade própria, resta-
lhe apenas responder ao dom divino com sua generosidade (reditus ad Deum).
O movimento do exitus et reditus ad Deum somente se efetiva em virtude do dom
divino que sustenta a criação. Não há nenhuma possibilidade de a criatura elevar-se à
condição do criador por força própria. A resposta ou retorno da criatura ao seio do criador
se deve inteiramente à lógica do dom (Suma teológica I, q. 38, art. 2): “para demonstrá-
lo, há que se ter presente que, segundo o Filósofo, dom é propriamente entrega sem dever
de devolução, isto é, aquilo que se dá sem intenção de receber algo em troca, e isso implica
doação gratuita”. É dessa forma que se completa o círculo entre o criador e a criatura: ele
a fez por pura generosidade e dádiva, enquanto a criatura responde ao criador com total

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
87

doação de si àquele que a criou. Dito de forma breve, o movimento do criador à criatura
é o exitus, pois ela procede do criador; e o movimento da criatura ao criador é o reditus,
pois só lhe resta responder ao dom criação com sua total generosidade. Eis a condição
para se compreender a dimensão do tempo no pensamento de Tomás de Aquino.
Ele trata a questão do tempo na primeira parte da Suma teológica ao expor o tema
da eternidade divina. A questão está dividida em seis artigos, a saber, que é a eternidade,
se Deus é eterno, se a eternidade é devida a Deus, se há diferença entre tempo e eternidade,
a diferença entre evo (aevum) e tempo, e se o evo existe tal qual o tempo e a eternidade.
Para uma compreensão adequada do tema, façamos uma leitura extensiva da questão parte
a parte, considerando todos os artigos. O primeiro artigo investiga se “é ou não correto
definir a eternidade como a posse total, simultânea e completa da vida interminável”. E a
resposta de Tomás não deixa a menor dúvida: ele começa dizendo que o conhecimento
da eternidade se inicia com a compreensão do tempo e cita textualmente a definição de
Aristóteles. A primeira consequência da retomada da definição aristotélica é reconhecer
que o tempo implica movimento, mudança, passagem, enquanto “o conceito de eternidade
consiste na concepção de uniformidade do que está absolutamente isento de movimento”.
A segunda consequência, se o tempo é a medida do movimento, então ele precisa ser visto
a partir de um princípio e em relação a um fim, senão seria um movimento eterno e ele,
por tabela, também seria eterno. Aquilo que é eterno, é essencialmente imutável sem ter
princípio nem fim. Daí, Tomás de Aquino formula sua definição de eternidade: “primeiro,
refere-se àquilo que se dá na eternidade e que é interminável, isto é, carente de princípio
e fim (àquilo que se refere ao término). Segundo, refere-se à própria eternidade como o
que é carente de sucessão, isto é, sendo toda ela simultânea” (Suma teológica I, q. X, art.
1). Portanto, a eternidade é uma espécie de contínuo sem princípio nem fim nem sucessão,
dando-se completa e simultaneamente à compreensão de quem a acessa.
Definida a eternidade, o autor analisa se Deus é ou não eterno. A resposta segue
os predicados apresentados anteriormente: primeiro, como ele já havia afirmado, Deus
não poderia existir se não fosse digno de integrar todas as perfeições (Suma teológica I,
q. 2, art. 3) e, dentre as perfeições, a imutabilidade é uma delas; segundo, outra perfeição
presente nele será necessariamente a eternidade, pois o que não é eterno, é temporal, com
isso deveria ter um princípio e um fim, mas esse é o caso das criaturas, não de Deus; e
terceiro, ele não apenas é eterno nem só existe na eternidade, mas é a própria eternidade
em máximo grau e, como “nenhuma outra coisa é sua própria duração, porque nenhuma

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
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é seu próprio ser, [logo, apenas] Deus é seu próprio ser uniformemente. Razão pela qual,
ele é sua essência, sendo assim também sua eternidade” (Suma teológica I, q. X, art. 2).
Em Deus, ser e eternidade se equivalem, pois a eternidade é uma perfeição, ele é sempre
sem princípio nem fim e somente ele existe uniformemente, de modo intemporal e fora
do fluxo de qualquer mudança. Por isso, ele é o eterno.
Admitir a identidade entre Deus e eternidade não é o principal problema teórico
que o autor enfrenta. O problema radicaliza-se à medida que reconhece nas Escrituras não
apenas a indicação, mas a identificação da eternidade atribuída a certas criaturas, como o
caso da terra que, segundo o Qohélet 1, 4: “geração vai e geração vem, mas a terra
permanece para sempre (eh'-rets aw-mad' o-lawm')”. A análise de Tomás de Aquino será
então direcionada à identificação de tudo o que é eterno, além de Deus. Será possível que
a terra e outras criaturas sejam eternas tais quais o próprio Deus? A resposta dada percorre
duas vertentes: de um lado, ele afirmará que o conceito de eternidade – o fato de algo ser
imutável – atribui-se tanto ao ser quanto à operação da terra, dos anjos e dos santos, pois
eles são sempre os mesmos desde que criados e, de outro, a eternidade é acessível a todos
os seres humanos desde que conheçam a Deus: “a vida eterna é esta, que conheçam Deus
()” (João, 17, 3). A resposta de Tomás mostra
que a eternidade é extensiva aos outros seres – à terra, aos anjos e aos santos – desde que
não estejam submetidos às mudanças de pensamentos, tal como afirma Agostinho no De
Trinitate XV (Suma teológica I, q. X, art. 3). Em resumo, a eternidade é própria a Deus,
mas pode ser acessada pelos seres desde permaneçam os mesmos, com funções constantes
e pensamentos imutáveis. Eis o ponto em que se nota que Tomás de Aquino emprega dois
conceitos de eternidade: um que é próprio de Deus por ser imutável em seu ser, outro que
é próprio aos demais seres, desde que se façam imutáveis por sua vontade. Por isso, donde
se segue o quarto artigo: há ou não diferença entre tempo e eternidade?
Tomás de Aquino é forçado pela sequência argumentativa a explicitar a diferença
entre tempo e eternidade. Esta não tem princípio nem fim, é a totalidade simultânea de
todas as coisas e a medida do existir permanente. Contrariamente, o tempo tem princípio
e fim, é a medida do movimento e é sempre transitório. Com isso, tempo e eternidade são
distintos em tudo: na forma de existir (com ou sem um princípio e um fim), no modo de
manifestação (simultâneo ou sucessivo) e na disposição existencial (se é permanente ou
transitório). Estabelecidas essas distinções, ele leva-a às últimas consequências a partir
da Física IV de Aristóteles: “se o movimento do céu durará sempre, o tempo não se

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
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medirá por sua duração total, pois o infinito não é mensurável” (Suma teológica I, q. X,
art. 4). A potência máxima do tempo é a capacidade de medir o movimento segundo antes
e depois, isto é, o movimento limitado à sua finitude. Com isso, nota-se a impossibilidade
de haver um tempo eterno, enquanto condição de máxima extensão. Logo, todo tempo é
essencialmente finito, com princípio e fim, limitado, dentro da ordem do sucessivo e não
sendo possível perceber tudo simultaneamente, o tempo permanece incapaz de dar acesso
à condição eterna. Apenas a eternidade pode ser dada como experiência simultânea, total
e completa de tudo o que existe, mas, certamente, fora da condição deste mundo em que
tudo se passa no tempo. Dentro do tempo, tudo se mede como princípio e fim, século, ano
e dia, isto é, o tempo é sempre quantificável, enquanto a eternidade nunca o será. Tudo o
que ocorre no mundo será, portanto, sucessivo e temporal, enquanto na eternidade, tudo
é simultâneo e permanente (Suma teológica I, q. X, art. 4). Então, como entender que os
seres possam ser permanentes, como afirmado no artigo anterior?
A resposta à condição de permanência dos seres – a terra, os anjos e os santos – é
bastante engenhosa. O autor encontra um meio termo entre o tempo e a eternidade (Suma
teológica I, q. X, art. 5): “o evo (aevum) se diferencia do tempo e da eternidade como um
médio entre ambos. Há quem estabeleça essa diferença dizendo: a eternidade não tem
princípio nem fim; o evo tem princípio, mas não tem fim; o tempo tem princípio e fim”.
Essa primeira perspectiva traz vantagens e problemas: a vantagem está em se reconhecer
que entre a eternidade e o tempo não há nenhuma confusão, pois a primeira é imutável e
o segundo, mutável e mensurável por seu princípio e fim. A diferença vem do evo com o
princípio, mas sem o fim, ou seja, uma vez que aqueles seres – a terra, os anjos e os santos
– foram criados, não serão mais destruídos. Eles seriam eternos depois de criados, o que
não os igualaria ao Deus que é eterno desde sempre, uma vez que não foi criado. Porém,
isso inviabiliza a possibilidade de pensar a mudança naquilo que foi criado.
Diversamente, apoiados na ideia de que todas as coisas criadas podem mudar, há
quem argumente em direção oposta (Suma teológica I, q. X, art. 5): “a eternidade não tem
antes nem depois; o tempo tem antes e depois com novidade e antiguidade; o evo tem
antes e depois sem novidade nem antiguidade”. O problema está na compreensão do evo
como aquilo que seria marcado pelo (com antes e depois), mas fora de mudança ou sem
novidade específica. Tudo o que é temporal, que se pauta por antes e depois, pode mudar.
A grande dádiva do tempo está justamente na possibilidade contínua de mudança e na
impossibilidade de fixar qualquer verdade ou instância temporal. A definição rejeitada

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
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por Tomás de Aquino deve-se, pois à incongruência em algo ter antes e depois, mas estar
privado de novidade. Tudo o que tem antes e depois, será sempre passível de novidade,
de mudança, não estando determinado nem fixado por qualquer outro princípio que lhe
seja externo. A conclusão desse artigo traz uma das mais belas e completas noções das
relações entre tempo e eternidade. De um lado, aquilo que é eterno permanece contínua e
imutavelmente, não sendo possível alterar seu curso nem sua vontade. O ser permanente
não se submete a nenhuma mudança, por isso é eterno. Contrariamente, tudo o que muda,
pode ser ou não ser, pode alterar inclusive a própria vontade, o próprio ato e a própria
disposição de agir. Voltando à compreensão dos seres imutáveis – os astros –, estão
condenados a ocuparem sempre a mesma posição e responderem sempre à determinação
que os fixa na existência, pois não têm vontade, enquanto os anjos, embora igualmente
imutáveis, precisam sempre reafirmarem a mesma vontade: eles “têm que ser imutáveis
ainda que submetidos à mudança da eleição, algo próprio de sua natureza”. Digo, os anjos
têm a liberdade de querer algo diferente daquilo para o que foram determinados pela
eleição divina: “podem mudar com respeito à sua eleição, pensamento, afeto e lugar. E
podem ser medidos pelo evo, que é o meio entre a eternidade e o tempo. diversamente, o
ser medido pela eternidade não muda nem está submetido à mudança” (Suma teológica I,
q. X, art. 5). A consequência não poderia ser menos importante: os astros são imutáveis,
portanto, desprovidos de qualquer vontade; os anjos são mutáveis, embora tenham que se
ajustar sempre à determinação de sua eleição; os seres temporais, sempre sofrem com a
mudança (o princípio e o fim), mas estão continuamente livres para determinar a vontade.
Se o ser humano não goza da eternidade nem da imutabilidade, pois foi condenado
a viver no tempo, ele tem um princípio e um fim, sua vontade é inconstante, entretanto,
não há nada que lhe determine previamente. Traduzindo isso em linguagem atual: os anjos
precisam responder à eleição divina, pois vivem no evo: foram criados e estão submissos
à condição de sua natureza; os astros são imutáveis, por isso desprovidos de toda vontade;
apenas os seres humanos estão submissos à condição temporal completa: temos um antes
e um depois, não somos imutáveis nem eternos, mas podemos determinar nossa vontade
(Suma teológica I, q. X, art. 5). Logo, aquilo que pareceria uma fraqueza, a temporalidade,
é justamente a condição da liberdade humana, pois somente por ser temporal que se pode
alterar a vontade, o pensamento, o afeto e o lugar, inclusive a própria eleição. O humano
pode, nesse sentido, inclusive não amar a Deus e ser igualmente livre, pois vive livre de
toda determinação eterna. Quase em sentido irônico, a eternidade se torna condição de

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
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imutabilidade ou, de forma direta, de ausência de liberdade, exceto se a vontade for igual
ao ser, isto é, apenas em Deus vontade e ser se identificariam perfeitamente.
A análise do tema da eternidade é concluída no sexto artigo e retomada, em parte,
na questão 47, art. 2 ao analisar a desigualdade das coisas e na questão 50, art. 4 sobre a
natureza dos anjos. Para o momento, interessa-nos a conclusão do artigo relativo ao evo
(Suma teológica I, q. X, art. 6): “existe apenas um evo, porque se cada coisa se mede pelo
mais simples em seu gênero, o ser de todo evo se medirá pelo primeiro ser eterno, que
será tanto mais simples quando mais antigo (Aristóteles, Metafísica X)”. Apoiado na
metafísica aristotélica, Tomás chega à conclusão que apenas a Deus cabe a eternidade;
aos astros e aos anjos, cabem a condição do evo, pois uma vez criados, durarão sempre;
e os demais seres, incluindo o humano, são temporais, finitos, transitórios, mutáveis, ou
seja, graças à condição temporal, conversamos a possibilidade contínua de mudança e de
escolha em cada momento da breve existência que desfrutamos no tempo.
Depois dessa longa análise, necessário se faz compreender como o tempo passou
a outra compreensão nos tempos modernos. Enquanto o período medieval sobrevalorizou
a eternidade e, consequentemente, a ideia de uma vida eterna conduzindo ao desprezo do
mundo (contemptu mundi), o período moderno conduziu à inversão da ordem do tempo.
A prioridade que outrora era atribuída à eternidade foi invertida. A condição temporal
passou ao primeiro patamar da ribalta e a eternidade trouxe-se uma compreensão segunda.
Isso se deve, em parte, à inversão provocada pelo advento dos tempos modernos – a
revolução científica, a mudança da compreensão geocêntrica para a heliocêntrica, a
reforma protestante e a invasão do Novo Mundo – que se nota, de um lado, na deposição
da noção de eternidade como núcleo da esperança post mortem e, de outro, no advento da
compreensão científica para explicar a ordem cósmica. É justamente nesse ponto que os
Philosophiae Naturalis Principia Mathematica (1687) de Isaac Newton devem ser lidos.

2. Do tempo mecânico ao a priori epistêmico

Se o tempo moderno sempre foi identificado à compreensão mecânica do mundo,


isso não se deve ao acaso. Pelo contrário, a primeira modernidade estava prenhe de uma
visão de mundo matemática, como se nota desde os títulos dos Princípios matemáticos
da filosofia natural de Isaac Newton quanto Ética demonstrada à maneira dos geômetras
(Ethica ordine geométrico demonstrata de 1675) de Baruch Spinoza (1632-1677). A

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
92

explicação mecânica da natureza não era apenas um desejo, mas uma condição para que
se reverter o primado da compreensão teológica do mundo. A revolução científica, no que
tange à passagem do geocentrismo ao heliocentrismo, não é só um tópico de curiosidade
histórica, mas uma forma de reinterpretar a visão humana sobre o mundo. Para tanto, faz-
se necessário compreender como Isaac Newton reformulou a compreensão do tempo para
que se torne possível compreender como ele passou à condição de princípio
epistemológico determinante não apenas na filosofia, mas em quase todos os campos do
saber humano, a partir da formulação da Crítica da razão pura (1781) de Immanuel Kant.
Isaac Newton trata do tempo tanto nas Definições VII e VIII quanto nos Axiomas
ou Leis do Movimento da obra os Princípios matemáticos da filosofia natural, com seus
respectivos escólios. Como a obra está organizada no padrão das definições matemáticas,
selecionamos tão só as definições e axiomas fundamentais para a compreensão do tempo.
As duas definições integram a base da segunda lei de Newton – a lei da inércia – é pode
ser vista como parte da teoria do conhecimento do autor. A definição VII apresenta como
a força centrípeta opera no movimento circular, sendo ela a força atrativa do objeto em
movimento para o centro gravitacional do círculo: “a quantidade de aceleração de uma
força centrípeta é sua própria medida, sendo proporcional à velocidade que produz em
um dado tempo” (Newton, 1972, def. VII, tradução nossa aqui e doravante). Essa força
atrai os corpos na mesma proporção em seus movimentos de queda, agindo igualmente
sobre todos eles e, por certo, considerando a resistência oferecida pelo ar. Dito isso, torna-
se mais fácil compreender a definição seguinte (Newton, 1972, def. VIII): “a quantidade
de movimento produzido por uma força centrípeta mede a si mesma, sendo proporcional
ao movimento produzido em um dado tempo”. Nessa definição, o autor aponta para força
direcional do movimento em relação ao centro, vale dizer, o movimento de queda de todo
corpo dirige-se para o centro gravitacional que o atrai proporcionalmente à sua massa e o
desconto da força de resistência do ar.
Esse mesmo ponto é comentado nos axiomas relativos ao movimento (Newton,
1972, leis do movimento, corolário VI): todos os corpos movem-se de forma igual se têm
a mesma massa e recebem o mesmo impulso e não sofrem resistências diferentes. Nesse
sentido, todos os movimentos de queda têm aceleração igual se a condição atmosférica é
a mesma para os objetos em questão. Sendo assim, “todos os corpos de moverão de forma
igual, em relação à velocidade, conforme a segunda lei”. Newton explica a segunda lei
ou lei da inércia [F = m.a] nessa passagem: a força necessária para deslocar um corpo ou

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
93

massa é igual a essa massa vezes a aceleração. Dizendo de forma inversa, a aceleração de
um corpo é igual força dividida pela massa do corpo [a = F/M]. Isso significa que a força
de aceleração ou a velocidade é proporcional à força do empuxo dividida pela massa mais
a resistência do meio. Havendo força e massa são iguais, sem resistência desproporcional,
os movimentos paralelos serão sempre iguais entre si. Essa posição afirmada por Isaac
Newton não é uma exceção e ele o demonstra na introdução do escólio (Newton, 1972,
leis do movimento, corolário VI, escólio): “até o momento, eu transmiti os princípios
aceites pelos matemáticos e confirmados por inúmeras experiências”. Ele identifica um
dos matemáticos na sequência – Galileu Galilei – e segue para o centro explicativo desse
escólio: “quando um corpo está em queda, a gravidade uniforme, ao agir de igual modo
em cada partícula igual de tempo, imprime naquele corpo forças iguais e gera velocidades
iguais: e no tempo total imprime toda a força e gera toda a velocidade proporcional ao
tempo”. Em resumo, a velocidade será proporcional à aceleração desde que o tempo seja
também o mesmo. A força da gravitação universal dos corpos é, por si mesma, uniforme
e, não havendo resistência desproporcional, a massa seguirá em queda acelerada com uma
velocidade proporcionalmente crescente em relação ao tempo da mesma. O resultado não
surpreende: “os espaços descritos em tempos proporcionais são como as velocidades e os
tempos em conjunto, ou seja, não razão duplicada dos tempos”. Tanto maior será o tempo
quanto mais acelerada será a queda. Se a velocidade for duplicada, o tempo será dividido.
Inversamente, se um corpo for lançado para o alto em linha reta na vertical, tanto
maior será o tempo de deslocamento quanto menor será a velocidade quer pela redução
da força motriz e da resistência do meio quer pela ação da força gravitacional agindo em
sentido contrário. No caso, a gravidade e a resistência atmosférica reduzem a velocidade
de forma proporcional ao tempo de deslocamento vertical. Caso o corpo seja lançado em
movimento horizontal ao solo, novamente a resistência atmosférica e a força gravitacional
reduzirão a força do lançamento até que ele seja atraído à terra. A maior distância relativa
ao ponto de projeção determinará a redução da velocidade de deslocamento até chegar ao
ponto de inércia completa. Dito isso, preciso ressaltar que não nos interessa propriamente
a explicação pura dos fenômenos, mas a compreensão da visão de mundo subjacente aos
princípios da física newtoniana, a saber, a compreensão mecanicista da relação de forças
no mundo e suas consequências. De onde se segue que “um conceito fundamental da
mecânica de Newton é o PRG (Princípio da Relatividade de Galileu); esse princípio está
intimamente relacionado à noção de referenciais inerciais ao afirmar que dois

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
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observadores inerciais não podem fazer distinção objetiva entre repouso e movimento
uniforme” (Leite e Andrade-Neto, 2023, p. 12). Com isso, pode-se admitir tanto o espaço
quanto o tempo como realidades físicas objetivas. Aquele sendo o plano homogêneo e
infinito, o continuum, da disposição das coisas, e este (o tempo), a forma igual e informe,
constante e duradoura, da manifestação dos acontecimentos no mundo.
Dentro desse enquadramento, podemos entender o que o autor quer com sua visão
sobre o tempo e o espaço. Na sequência de sua argumentação (Newton, 1972, leis do
movimento, corolário VI, escólio I), o físico se mostra seguro quanto às noções básicas
da física: “tempo, espaço, lugar e movimento são termos bem conhecidos por todos”. Esse
ponto somente parece verdadeiro, pois diz tratar da compreensão vulgar dos mesmos. Não
há dúvidas que todos captamos uma compreensão básica, porém dificilmente chegamos
à compreensão abstrata desses mesmos conceitos tal como ele os formula (Newton, 1972,
leis do movimento, corolário VI, escólio I):

O tempo absoluto, verdadeiro e matemático, em si e por sua natureza, sem relação com nada de
externo, flui de modo uniforme, e com outro nome chama-se duração. O tempo relativo, aparente
e vulgar é uma medida qualquer, sensível e externa, (quer exacta quer aproximada) da duração
pelo movimento, a qual é vulgarmente usada em vez do tempo verdadeiro; como a hora, o dia, o
mês e o ano.

Isaac Newton distingue dois conceitos radicalmente distintos do tempo: o tempo


relativo como medida do movimento local em sua duração, ou seja, a compreensão vulgar
do tempo aproxima-se da noção aristotélica que o pensa como medida do movimento em
relação ao anterior e ao posterior. Diversamente, o tempo absoluto independente dessa
visão de deslocamento físico, ele flui uniformemente em si e por si, digo, é pura duração.
A consequência dessa distinção mostra-se, sobretudo na compreensão dos movimentos
astronômicos, pois não se trata de movimento local que sempre está submisso à posição
e à possibilidade de variação pelas condições desiguais do mundo. Por sua vez, o tempo
absoluto, visto na perspectiva astronômica, é constante, uniforme e livre de alterações.
As formas de variação do movimento local não afetam o tempo absoluto, por isso o tempo
não será acelerado nem retardado, será sempre constante e homogêneo (Newton, 1972,
leis do movimento, corolário VI, escólio IV): de onde resulta que “assim como a ordem
das partes do tempo é imutável, assim também o é a ordem das partes do espaço”. Pode-
se assim dizer tempo e espaço são simultâneos e inseparáveis. A ordem do tempo segue
e realimenta a ordem do espaço, e vice-versa. Tudo aquilo que existe e pode ser estudado
dentro das ordens do tempo e do espaço serão, portanto, feitos nos “lugares próprios a si

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
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e a todas as coisas [porque] todas as coisas estão colocadas no tempo quanto à ordem de
sucessão, e no espaço quanto à ordem de posição” (Newton, 1972, leis do movimento,
corolário VI, escólio IV). Por isso se segue que é preciso fazer a distinção entre as noções
relativa e absoluta, uma vez que as noções propostas – tempo, espaço, lugar e movimento
– não devem ser entendidas de forma vulgar. Caso isso aconteça, a compreensão do tempo
poderia ser considerada acelerada ou reduzida, rápida ou lenta, fugaz ou morosa. Dentro
dessa compreensão, qualquer uma das noções será desvirtuada. A correção dessas noções
se deve à adoção de suas compreensões absolutas em que “a linguagem será insólita e
puramente matemática, se as entendermos aqui como quantidades mensuradas” (Newton,
1972, leis do movimento, corolário VI, escólio IV). Caso as compreendamos em relação
à medida do movimento ou do deslocamento circunstancial, estaremos corrompendo as
compreensões corretas propostas pela matemática e pela filosofia, segundo as palavras do
próprio Newton na conclusão desse escólio.
Seguindo essa conceituação newtoniana, o tempo deixa de ser pensado em relação
ao movimento local e passa a ser compreendido matemática e filosoficamente de forma
absoluta, isto é, livre da representação sensível do mover. Destacado do deslocamento,
resta pensar abstrata e absolutamente os conceitos de tempo, espaço, lugar e movimento.
Independente da percepção sensível, o tempo flui “em si e por sua natureza, sem relação
com nada de externo, flui de modo uniforme, e com outro nome chama-se duração”
(Newton, 1972, leis do movimento, corolário VI, escólio I). O resultado dessa concepção
absoluta da física é a admissão de uma noção mecânica do universo, onde os conceitos
centrais não estão subordinados ao sensível (Leite e Andrade-Neto, 2023, p. 13):

Tempo e espaço são entidades interligadas e indissociáveis. O instante presente universal não
existe. O tempo flui de maneira diferente para observadores em movimento relativo. Relógios
igualmente precisos, em movimento relativo, marcam durações diferentes entre eventos. Assim,
não podemos falar de um agora universal. Ora, se não existe um presente comum a todo o universo,
a própria noção de realidade clássica é abalada. O fluxo do tempo também é alterado pela presença
de corpos massivos. Quanto mais próximo de uma grande massa mais lentamente o tempo flui.

A concepção absoluta de tempo não se reduz à concepção vulgar. O movimento


local é alterado pelos condicionantes relativos: a massa do corpo, a resistência do meio e
a força gravitacional. Não há um tempo único para o espaço relativo e o absoluto, portanto
não há um tempo único para todo o universo. Não convém reduzir a compreensão absoluta
à circunstância do objeto: as particularidades e singularidades do objeto. Longe de haver
uma realidade única, a realidade é múltipla e o tempo jamais será o mesmo para todo o

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
96

universo. Somente é possível pensar o tempo de forma equânime se ultrapassar as noções


e situações locais, isto é, não dá para compreender o tempo de forma vulgar a partir das
circunstâncias específicas. Nesse sentido, as noções de tempo, espaço, lugar e movimento
são absolutos e independentes das particularidades e especificidades. É justamente por
isso que o universo newtoniano é classificado como universo da física mecânica.
De Isaac Newton (1643-1727) a Immanuel Kant (1724-1804) não apenas o que se
pode pensar como certa contemporaneidade, mas continuidade na compreensão física do
mundo. Lutando contra a concepção idealista do conhecimento, Kant quer reconciliar os
conceitos do racionalismo cartesiano com as intuições sensíveis do empirismo humeano.
Ele o faz na primeira parte da Crítica da razão pura, nomeadamente na introdução da
Doutrina transcendental dos elementos, onde trata da Estética transcendental (§ 1-8 [A
20s / B 33-73]). Vejamos alguns elementos da compreensão kantiana.
A segunda introdução da KrV inicia-se com a distinção entre conhecimento puro
e empírico: sendo o puro, aquele que depende exclusivamente dos conceitos, uma herança
do racionalismo, e podendo haver algo como um conhecimento inato na alma, de acordo
com o que René Descartes pensava como ideias inatas; e o conhecimento empírico, o que
parte e reconhece a experiência como fonte primária do conhecimento (KrV 2001, B 1
Introdução): “assim, na ordem do tempo, nenhum conhecimento precede em nós a
experiência e é com esta que todo o conhecimento tem o seu início. Se, porém, todo o
conhecimento se inicia com a experiência, isso não prova que todo ele derive da
experiência”. De início, Kant já rompe com a ideia de um saber puramente abstrato ou
conceitual, com o racionalismo teórico, logo, afirma que todo conhecimento começa com
a experiência, embora esta não seja nem indexe todo o conhecimento. Se pensarmos todo
o conhecimento como derivado da experiência, estaríamos reduzidos ao fisicalismo. Não
haveria possibilidade de conhecer senão o que houvesse prova empírica. Se revertêssemos
para uma compreensão de todo conhecimento como independente da experiência, voltaria
ao conhecimento tradicional, isto é, sem nenhuma capacidade de aprendizado empírico.
Nesse sentido, Kant produz uma revolução ao integrar as duas perspectivas:

Sem a sensibilidade, nenhum objeto nos seria dado; sem o entendimento, nenhum seria pensado.
Pensamentos sem conteúdo são vazios; intuições sem conceitos são cegas. Pelo que é tão
necessário tornar sensíveis os conceitos (isto é, acrescentar-lhes o objeto na intuição) como tornar
compreensíveis as intuições (isto é, submetê-las aos conceitos). (KrV 2001, A 51 / B 75)

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
97

A intuição sensível é aquilo que captamos de cada objeto através dos sentidos.
Não há nenhuma distância em relação ao mundo empírico, no caso. Se dispensarmos toda
sensibilidade, estaríamos afastados da experiência e nenhum objeto seria captado por nós.
O conhecimento seria meramente abstrato ou conceitual. O reverso não é menos danoso:
se reduzíssemos o conhecimento ao meramente empírico, não teríamos a capacidade de
formar conceitos. Dispensar o entendimento, seria reduzir o conhecimento ao apontar as
coisas como se tal bastasse para o conhecimento. Estaríamos reduzidos ao fisicalismo ou
ao materialismo estrito. Consequentemente, são inviáveis “pensamentos sem conteúdo
[pois] são vazios; intuições sem conceitos são cegas”. Logo, o conhecimento decorre quer
da intuição sensível e requer, necessariamente, o entendimento como categorizador e/ou
nomeador dos objetos dadas na intuição. Assim, Kant reconcilia Descartes e Hume.
A questão que nasce da conciliação entre intuição sensível e entendimento é como,
quando e sob quais condições captamos as intuições. A resposta à questão será dada por
uma expressão clássica na obra kantiana: a condição de possibilidade do conhecimento.
Expliquemos: todo conhecimento ocorre desde tenhamos os pressupostos suficientes para
acessá-lo, ou melhor, somente conhecemos aquilo que temos condição de conhecer. Seria
ilusório pensar que o conhecimento independente do sujeito. Ao contrário, é o sujeito que
forma e aplica o conceito a cada intuição sensível ou, simplificando, à medida que percebe
um objeto (capta uma intuição sensível), o sujeito formula um juízo e aplica um conceito
ao objeto percebido (o entendimento conceitua a intuição sensível). Isso apenas acontece,
porque o sujeito percipiente tem condição de identificar e nomear o objeto percebido. A
essa capacidade de perceber e nomear o objeto, dá-se o nome de condição de possibilidade
(KrV 2001, A 242): “mais não há a fazer com elas do que considerar as funções lógicas
no juízo como condição de possibilidade das próprias coisas, sem poder mostrar, no
mínimo, onde possam ter a sua aplicação e o seu objeto e, portanto, como podem ter
alguma significação e validade objetiva no entendimento puro, sem a sensibilidade”. Se
é impossível acessar o objeto conhecimento (se não temos a intuição sensível do mesmo)
e se não há como significá-lo conceitualmente (se nos falta o conceito para identificá-lo),
não temos como conhecer. A condição de possibilidade de acesso ao objeto, é o que nos
permite conhecer o que é, como é e quando algo se mostra à nossa capacidade cognitiva.
Desprovido dessa condição, não há conhecimento algum, nem inato nem infuso.
Kant apresenta duas condições de possibilidades de todas as formas de conhecer.
Como ele herda parte do empirismo humeano, não poderia ser algo tão distinto daquilo

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
98

que a compreensão moderna havia elevado ao primeiro patamar da ciência, vale dizer, ele
não cria as condições de possibilidades. Nem ele nem Hume nem Newton as criaram, pois
tais condições são um a priori epistêmico. Afirmar que algo é um a priori não equivale a
dizer que simplesmente é anterior à experiência. Trata-se de algo que não se prova
empiricamente na sua máxima extensão. O a priori institui-se como condição para algo.
Mais que isso, pense em algo que tenha validade epistêmica necessária (independente da
experiência de indivíduos particulares) e universal (tem validade para além de um tempo
específico ou de uma condição determinada, podendo ser pressuposto como presente em
todo sujeito que conhece). A primeira condição de possibilidade a priori do conhecimento
ou a forma a priori da sensibilidade que capta qualquer intuição sensível é o espaço:

O espaço é uma representação necessária, a priori, que fundamenta todas as intuições externas.
Não se pode nunca ter uma representação de que não haja espaço, embora se possa perfeitamente
pensar que não haja objetos alguns no espaço. Consideramos, por conseguinte, o espaço a condição
de possibilidade dos fenômenos, não uma determinação que dependa deles; é uma representação
a priori, que fundamenta necessariamente todos os fenômenos externos. (KrV 2001, A 24 / B 38)

O filósofo de Königsberg afirma que nenhuma intuição sensível ou qualquer coisa


que venhamos a imaginar será sempre imaginada espacialmente, pois não conseguimos
imaginar nem intuir um objeto desprovido de suas dimensões, por exemplo, de largura,
altura e profundidade. Pensamos sempre espacialmente. Quaisquer que sejam os objetos,
eles são sempre imaginados dentro de uma condição de perto, afastado ou distante. Não
sobrepomos um objeto ao outro nem conseguimos conceituar um objeto sem antes fazê-
lo a partir de alguma representação sensível. Se imaginamos quer uma cor quer um anjo,
por exemplo, sempre o fazemos atribuindo a cor a alguma superfície sólida ou líquida e,
ao anjo, sempre o imaginamos com alguma forma minimamente humana. Representar os
objetos sempre passam, nesse sentido, pela necessidade de integrá-los à noção de espaço.
Essa primeira condição de possibilidade fundamenta todos os fenômenos externos. Dito
isso, vejamos a segunda condição a priori de possibilidade do conhecimento:

O tempo é uma representação necessária que constitui o fundamento de todas as intuições. Não se
pode suprimir o próprio tempo em relação aos fenômenos em geral, embora se possam
perfeitamente abstrair os fenômenos do tempo. O tempo é, pois, dado a priori. Somente nele é
possível toda a realidade dos fenômenos. De todos estes se pode prescindir, mas o tempo (enquanto
a condição geral da sua possibilidade) não pode ser suprimido. (KrV 2001, A 31 / B 46)

Se o espaço é a condição de possibilidade dos fenômenos externos, o tempo, por


sua vez, é a condição dos fenômenos externos e internos. Nem captamos nenhum objeto

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
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do conhecimento senão temporalmente: antes, durante ou depois. Independente do qual


seja o objeto ou a intuição sensível que tenhamos captados, ela o será sempre expressa
como já conhecida, em conhecimento ou por se conhecer. Com isso, Kant situa qualquer
intuição sensível epistêmica no curso do tempo: quanto mais preciso for a identificação e
a descrição de um objeto, mais exato será o conhecimento que temos dele. Por exemplo,
uma lembrança comum da infância, exceto se traumática, será mais vaga e disforme que
aquilo que vivemos há algumas horas, embora ambas serão sempre lembradas como algo
anterior ou muito anterior a este ou aquele momento. Em relação ao por vir, vale também
a representação possível do tempo: ilusoriamente, temos “alguma certeza” do acontecerá
amanhã, mas duvidamos do que acontecerá daqui há uma década. Independentemente, de
ser amanhã ou daqui a dez anos, sempre dentro de um tempo qualquer. A consequência
disso é que “tomados conjuntamente [espaço e tempo] são formas puras de toda a intuição
sensível, possibilitando assim proposições sintéticas a priori” (KrV 2001, A 39 / B 56).
O conhecimento que temos será sempre expresso na forma de juízo (S é P o sujeito é seu
predicado) considerando tanto S quanto P como passíveis de captação no espaço e tempo.
Quando formulo um juízo sintético a priori atribuo um conhecimento ou informação nova
ao sujeito em questão: é juízo, porque atribui um predicado y a um sujeito x qualquer; é
sintético, porque informa algo que não está contido na definição do sujeito e é a priori,
pois tem validade universal e necessária.
O ponto extremo da linha argumentativa kantiana não poderia ser menos radical,
por isso explicitemos alguns enunciados decorrentes dela: (i) a partir dessas condições de
possibilidades – de espaço e tempo – pode-se dizer que os juízos de conhecimento “nunca
podem ultrapassar os objetos dos sentidos e apenas têm valor para objetos da experiência
possível” (KrV 2001, B 73). Disso se infere que nenhum objeto meta-empírico será parte
do conhecimento científico, no caso, nem a metafísica com seus objetos (Deus, liberdade
da vontade e imortalidade da alma) nem a estética (o belo e o sublime) nem a ética (para
se pensar Deus, liberdade e alma) serão objetos de qualquer ciência. Esta é apenas ciência
dentro dos limites da experiência possível no espaço e tempo. (ii) Todo conhecimento de
matriz científica é válido necessária e universalmente, isto é, para além de espaço e tempo.
Não podendo se restringir o valor dos princípios matemáticos ou físicos, por exemplo.
(iii) As formas de conhecimento, cujos objetos não forem captados no espaço e no tempo,
não podem ser considerados científicos, a saber, nem a metafísica nem a estética, nem a
ética nem a psicologia, são dignas do nome de ciências na compreensão kantiana estrita.

O tempo e a história na filosofia brasileira


Rascunho não citável
100

Dito isso, é impossível não estabelecer as relações básicas: a primeira com relação
a Isaac Newton, uma vez que ele estabeleceu espaço e tempo como condições absolutas
de todo conhecimento. A física newtoniana pressupõe um universo mecanicista, onde só
é possível pensar relações a partir de quantidades mensuráveis e limitadas à linguagem
puramente matemática. O universo mecanicista de Newton tornou-se, nesse sentido, base
epistemológica da filosofia kantiana para a qual fora do espaço e tempo simplesmente
não existem conhecimentos válidos. Isso mostra uma face da epistemologia moderna que
se estende da revolução científica com a passagem do geocentrismo ao heliocentrismo até
o idealismo alemão quando a episteme moderna consagra o apriorismo espaço-temporal
como condição necessária e universal de todo conhecimento válido. A segunda relação
que devemos estar atentos é aquela presente na BNCC, 2017, p. 563): “Tempo e Espaço
explicam os fenômenos nas Ciências Humanas porque permitem identificar contextos,
sendo categorias difíceis de se dissociar”. Uma vez vistos como necessários e universais,
espaço e tempo simplesmente deslegitimam a validade científica das “ciências humanas”,
pois nenhum dos objetos e pressupostos da metafísica, da estética, da ética e da psicologia
seriam legitimados a partir das condições de possibilidade a priori espaço-temporal como
passíveis de experiência ou de serem captados na intuição sensível. Com isso, a filosofia
que está pressuposta na Base Nacional Comum Curricular (2017) não difere em nada
daquela, cujos pressupostos seguiriam necessariamente a física mecanicista universal de
Isaac Newton e Immanuel Kant. É a partir dessa constatação que precisamos reorientar a
possibilidade de pensar a constituição dessas categorias. Nomeadamente, nesta pesquisa,
seguiremos com a análise do conceito de tempo dentro dos corpora filosóficos brasileiros
produzidos entre o início do século XVIII até a primeira metade do século XIX com vistas
a compreender quais são os pressupostos filosóficos que fundam a compreensão do tempo
entre os filósofos e seus escritos contemporâneos a Newton e Kant. Pode-se perguntar: a
noção de tempo presente na filosofia brasileira, nos séculos XVIII e XIX, seguiu a física
mecanicista do universo ou existem outras formas possíveis para pensar o tempo?

O tempo e a história na filosofia brasileira


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