Adelaide Carraro - Falencia Das Elites
Adelaide Carraro - Falencia Das Elites
Adelaide Carraro - Falencia Das Elites
FALNCIA
DAS ELITES
(6
Edio)
1979
Prefcio
formais, os planos autnticos de uma escritora que, embora no desconhea suas limitaes em alguns pontos da
criao artstica, tem sabido ser verdadeira, quando lhe
apraz documentar o que tem visto na sociedade da qual
um dos elementos. . .
Assim, Adelaide Carraro, tendo conhecido um mundo despojado de conscincia moral e jurdica essencialmente em valores de ordem, de lgica e de coeso
(como nos procurou revelar em " E U E O G O V E R N A D O R " ) neste segundo livro reproduz uma nova forma
de t e m p o i n u m a n o na feio de um sanatrio, onde as
doentes no podem destramar o n cego de uma vida
que lhes deram, vida travada, muitas vezes, de frustraes,
de fraudes e de vcios.
Se todo assunto assunto para o romancista que
devemos dizer de um sanatrio, em cujos habitantes a
doena, os transes de angstia, os olhos fundos de desespero procedem de um mundo condenvel, sem plenitude,
sem maravilhoso ntimo, estigmatizado, principalmente,
por uma conscincia erogentica do sexo, de onde ressai
o e x l i o a f e t i v o que o homem e a mulher do nosso tempo
tanto deploram, porm no podem superar?
C A R L O S BURLAMQUI K P K E
DE
CONVERSA.
No instante em que me sentei mquina de escrever para iniciar s primeiras pginas de FALNCIA DAS
ELITES, eu sabia a responsabilidade que assumia perante o enorme pblico que acompanhou, no meio de
imensa e at s vezes desconcertante polmica, meu primeiro livro, intitulado "EU E O GOVERNADOR".
Quando este no menos despretensioso trabalho
chegar s livrarias do meu pas, o livro "EU E O GOVERNADOR" ter sido adquirido por cerca de cem mil
pessoas. Da a responsabilidade que agora me perturba.
o nus do sucesso.
"FALNCIA DAS ELITES" causar um destes
resultados em minha vida: serei relegada totalmente ao
ostracismo ou me consagrarei perante o pblico que devorou, durante meses, minha primeira obra.
Meu editor me disse que este livro, agora posto
venda, tem sido procurado diariamente pelo grande
pblico. . .
Sei que h expectativa em torno dele.
Sei tambm que no posso decepcionar queles que
acreditam na minha pessoa como escritora moderna, que
foge da fico e prefere retratar personagens reais, e histrias verdicas, episdios que ainda esto bem vivos na
memria dessas figuras.
Talvez, por isto, no tivesse sido compreendida por
grande parte dos crticos literrios.
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,,
E minha pergunta tem, obviamente, sua justificativa; seria o pblico leitor norte-americano inculto?
lgico que o argumento vlido para justificar o
sucesso de "EU E O GOVERNADOR", pelos crticos
brasileiros, dever valer para justificar o sucesso de "Os
Insaciveis", nos Estados Unidos da Amrica do Norte.
J houve, alis, quem afirmasse que no h livros
pornogrficos e sim leitores pornogrficos. Pegue a
carapua quem o desejar. . .
Fui muito combatida.
"FALNCIA
combate.
DAS
ELITES"
ir
redobrar
esse
12
CARRARO
I
No asfalto escaldante d a s r u a s de P i n d a m o n h a n g a b a ,
m e u s ps q u e i m a m d e n t r o d a s botas de meio-cano de
pelica preta.
S i n t o um calor bravio percorrer todo o
m e u corpo.
No posso compreender como, em pleno
inverno, o sol possa estar t o a r d e n t e . Fiz m a l em vestir
o conjunto de n a p a . As calas de couro preto, b e m j u s t a s ,
m a l facilitam o meu a n d a r . Acho que estou bem extravagante.
Os olhares indiscretos que me a n a l i s a m me
d o c o n t a de que estou r e a l m e n t e c h a m a n d o a ateno.
No m e u ntimo, porm, sei que fiz u m a enorme besteira:
a Madre n o vai receber-me com essa roupa. O pior,
mesmo, esse calor. Meu pescoo est todo m o l h a d o
e gotas de suor b r o t a m na m i n h a testa.
Como esse
b o n d i n h o est d e m o r a n d o , m e u Deus! L em c i m a sei
q u e o clima vai ficando mais a m e n o e q u a n d o e n t r a r
m e s m o em Campos do Jordo, o frio me far esquecer
esse suplcio do asfalto de P i n d a m o n h a n g a b a .
Com que alegria entrei no velho bondinho!
Novecentos m e t r o s de a l t u r a e meio c a m i n h o v e n c i d o . . .
Subindo m a i s novecentos m e t r o s estarei vendo t u d o o
que deixei h m a i s de dez anos.
J n o sinto m a i s
aquele calor sufocante. O vento frio passa pelas frestas
de m a d e i r a e me envolve.
Sinto um arrepio sacudir
todo o m e u ser. As penedias das m o n t a n h a s se aprox i m a m . Mais alm j posso divisar os macios alcantilados, azulecentes, que f o r m a m com os " s t r a t u s " , o cu
privilegiado de Campos do Jordo. Nas curvas tem-se
a impresso de que se pode at tocar n a s m o n t a n h a s ,
13
Rimos baixinho.
Ele sem-
Mas t a m b m ficou r i c o . . .
T a m b m m e n t i r a . E p a r a encerrar o a s s u n t o ,
vou r e l a t a r u m a p a s s a g e m ocorrida comigo na volta do
Rio de Janeiro, no interior do avio, logo aps o lanam e n t o de m e u livro na G u a n a b a r a . Viajava em com20
A Madre n o m u d a r a quase n a d a .
Apenas mais
a l g u m a s r u g a s sulcavam o seu rosto, mesmo assim, s
no c a n t o dos olhos. A m e s m a pele b r a n c a , a m e s m a
voz p a u s a d a , carinhosa. O mesmo olhar meigo.
No princpio falou d e m o r a d a m e n t e sobre o meu
livro. No a interrompi, em sinal de respeito. Recriminou-me, em p a r t e , e nossa conversa t e r m i n o u com
u m a notcia que me revoltou:
Adelaide, acho-me no dever de lhe c o n t a r a
insistncia do pedido das famlias das doentes p a r a que
n o a recebesse no Sanatrio. Voc sabe, todas as moas
daqui so filhas daquilo que podemos qualificar de elites.
Famlias catlicas, de g r a n d e respeito. Sei que d i g n a
de ficar entre ns. Por isso fingi ignorar t u d o e voc
est aqui. Mas evite um c o n t a t o m u i t o prolongado com
as doentes. Por qualquer deslise dessas m a l u q u i n h a s as
famlias podem culp-la. P r i n c i p a l m e n t e Ins e Belinha,
as m a i s levadas, porm moas inocentes.
Tive vontade de explodir ali mesmo. A Madre,
contudo, n o era culpada. Com c a l m a a p a r e n t e retornei
ao m e u a p a r t a m e n t o .
Ins a i n d a me esperava.
Madre.
Contei-lhe o pedido da
Olhei-a e s p a n t a d a .
desprevenida:
Voc est
Odeio-os, sim, Adelaide. Eles me l a r g a r a m . P e n s a r a m que o conforto, o dinheiro, o luxo exagerado, ser i a m suficientes p a r a me proteger.
F u i criada com
babs e g o v e r n a n t a s . Fiz o que quis na infncia e na
adolescncia.
Os resultados so horrveis.
Jogo da
Chave, sim.
E n t o n o sabe?
Pois vrios casais se
r e n e m com suas esposas em luxuosos a p a r t a m e n t o s no
G u a r u j . Cada casal coloca a chave do seu respectivo
q u a r t o n u m vaso.
Cada h o m e m tira u m a chave.
O
fulano vai dormir com a m u l h e r cuja chave corresponde
ao q u a r t o . H briga q u a n d o a coincidncia faz com q u e
o esposo tire a chave do prprio aposento.
Ele ser,
ento, obrigado a se deitar com a prpria consorte, em
vez de ter a esposa do amigo! u m a vergonha. Meus
pais a d o r a m , no fim de s e m a n a , participar desse jogo.
Meu pai se julga com m u i t a s o r t e . . . n u n c a retirou a
prpria c h a v e . . .
Nos olhos de Ins n o havia u m a lgrima, m a s um
dio frio, tenaz.
Eu tremia, atnita, com a confisso escandalosa.
Ela acrescentou:
Adelaide, vamos sair e c a t a r t u r i s t a s por a.
Quero beij-los b a s t a n t e , transform-los todos em tuberculosos! Adoro fingir-me de conquistada e a n d a r com
esses palhaos que vem aqui com ares de sedutores.
a m o s c h a m a r Belinha p a r a sair j u n t a s q u a n d o esta
entrou em c o m p a n h i a de Diana, m i n h a vizinha de q u a r t o ,
e que fora, no a n o passado, "miss G u a r u j " .
25-
O jovem n o respondeu.
Enlaando-a, f-la camin h a r em direo ao seu aposento.
Ao mesmo tempo,
com olhar frio, observava o seu aspecto.
Ela estava
plida, m o s t r a n d o grandes olheiras, respirao ofegante.
Um suor e s t r a n h o porejava de sua testa.
Deve ser o calor, Ins. Vou ajud-la a t i r a r o
vestido e os sapatos. Logo, logo, voc h de melhorar.
Vai ver. . .
Eu ficarei com voc, n o se p r e o c u p e . . .
I n s deitou-se apenas de combinao. Lus recostou-se ao seu lado, aproximando-se bem do seu corpo.
Segurou-lhe fortemente as mos.
Acariciou-a, depois,
com meiguice.
Um silncio pesado envolvia o ambiente.
Gotculas de suor c o n t i n u a v a m a deslizar por todo
o corpo de I n s e sua respirao era cada vez mais
ofegante.
Talvez seja a p e n a s um s i n t o m a sem maiores
conseqncias, m e u amor.
Vamos t i r a r t a m b m essa
combinao...
Talvez assim o seu calor p a s s e . . .
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Fitou-o
Voc a g o r a ser m i n h a m u l h e r , q u e r i d a !
I n s n o respondia.
Limitou-se, com os olhos
semicerrados, a sacudir d e v a g a r i n h o a cabea, n u m
gesto de a b a n d o n o .
A c a m a era u m a c h a g a m o n s t r u o s a , de um verm e l h o escuro, quase preto.
Ins, eu a a m o d e s e s p e r a d a m e n t e . . .
seja a m i n h a esposa!
Quero q u e
No leu m i n h a c a r t a ?
Voc
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Sei l se o f i l h o m e u ?
E l a v a c i l o u , r e c u a n d o e e n c o s t a n d o - s e p o r t a do
enorme armrio embutido do apartamento.
V o c ficou louco m e s m o , L u i s . Desde que aconteceu aquilo conosco, eu v i m diretamente para o S a n a t r i o . N u n c a m a i s sa. C o m o pode c o m e t e r u m a o f e n s a
t o r p e c o m o esta?
S i n t o m u i t o , I n s , m a s n o posso m e c a s a r c o m
voc.
O m e l h o r q u e v o c t e m a f a z e r t i r a r essa
criana.
O h ! L u s , p e n s e n o s m e u s pais, n a m i n h a f a m l i a , e m m i m , n a m i n h a i d a d e ! T e n h o a p e n a s dezesseis
anos!
A resposta de L u s d e m o n s t r o u h a v e r , no seu n t i m o ,
intensa irritao:
O r a , v pro inferno!
Voc se entregou porque
quis, porque era u m a garota fcil!
E s t a v a , na realid a d e , m o r r e n d o de v o n t a d e de ser p o s s u d a e, a s s i m , se
v o c se e n t r e g o u a m i m , p o d e r se e n t r e g a r a o u t r o s
h o m e n s que n o conheo?
A r e s p o s t a d e I n s f o i u m d e s a b a f o c h e i o d e dio.
T i r o u a a l i a n a d o dedo e j o g o u - a d e s a b r i d a m e n t e n o
resto de Lus. N u n c a mais o v i u .
O filho no nasceu. F o i para So Paulo e, n u m a
m a t e r n i d a d e d a a v . P a u l i s t a , a b o r t o u . O s pais s o u b e r a m
esconder todo o escndalo. N o h o u v e sequer c o m e n trios.
H o j e o s e u dio aos h o m e n s t o v i o l e n t o q u e se
f a z f c i l , c o m o o b j e t i v o de c o n t a m i n a r todos os r a p a z e s
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q u e d e l a se a p r o x i m a m . b o n i t a , j o v e m , e se e s f o r a
p a r a n o s e c u r a r . N o q u e r n e m saber dos p a i s :
Eles me t r a n s f o r m a r a m na m u l h e r devassa em
que me c o n v e r t i , nos m e u s 23 anos de idade!
33
II
As i n t e r n a d a s foram avisadas de que o novo m dico chegaria domingo. Na vspera, j havia um movim e n t o febricitante, aquele mesmo que caracterizava a
ansiedade d a s moas que d i s p u t a r i a m mais t a r d e o
mdico, n u m prlio amoroso cheio de lances prfidos.
As jovens h a v i a m combinado que esperariam o
facultativo na escadaria de e n t r a d a do edifcio, cada u m a
com um " b o u q u e t " de flores de pereira n a s mos.
E foi r e a l m e n t e no domingo, cerca de dezesseis
horas, que o mdico chegou.
Naquele dia fui Vila n o v a m e n t e , a fim de visitar
m i n h a a m i g a Mercedes. Pedira o carro e m p r e s t a d o
Belinha. No sei por que, m a s n o desejava participar
da recepo ao novo mdico. Achava deslealdade. No
estava doente. Apenas b u s c a r a o sanatrio p a r a repouso.
P r o c u r a r i a chegar tarde, assim j estaria t e r m i n a d a
a h o m e n a g e m ao novo doutor do Sanatrio.
Um vento glido, n a q u e l a t a r d e de domingo, aoitava
Campos do Jordo. A neblina, adensando-se, j come a r a a cobrir os picos das m o n t a n h a s . Campos do
J o r d o era assim mesmo.
U m a t a r d e ensolarada, de
repente, se t r a n s f o r m a v a n u m dia farrusquento, e logo
o russo(*) descia sobre a cordilheira, envolvendo t u d o .
Resolvi voltar ao sanatrio. N u n c a agradvel
dirigir automvel no meio do nevoeiro.
J na vereda
() Russo palavra popular com que os moradores da cidade de
Campos do Jordo chamam o forte nevoeiro que. de repente, baixa
sobre todo o municpio.
34
Enfermeiro?. . .
...
Ele me interrompeu:
Branco?
F i q u e i e m silncio. E s t a v a r e a l m e n t e d e s a p o n t a d a .
P a r a m i m a q u i l o e r a u m episdio i n a u d i t o . N u n c a v i r
um mdico negro em sanatrio de tuberculosas, principalmente n u m hospital para milionrias.
Isto iria
causar um rebulio infernal.
J antevia os problemas
t e r r v e i s q u e i r i a m ser c r i a d o s , dali a m i n u t o s . T e n t e i
r e m e d i a r a s i t u a o . M a s ele a p e n a s se l i m i t o u a i n d a g a r se no final da v e r e d a j se avistaria o sanatrio.
Balancei a cabea, em sinal a f i r m a t i v o .
Insisti para
lev-lo. A g r a d e c e u - m e .
Seu desapontamento t a m b m me desconcertou,
senhorita.
P r e f i r o a n d a r a p. V o u m e d i t a n d o . A t
c h e g a r a o edifcio f o r m a r e i a l g u m p l a n o .
Talvez o
melhor.
T e n h o acertado mais do que errado, quando
p e n s o b a s t a n t e a n t e s d e t o m a r a deciso d e r r a d e i r a .
Desculpe-me, sim?
Afastou-se do m e u automvel e seguiu em frente.
Demorei muito para dar partida no m e u carro.
F i q u e i a o l h a r o mdico n e g r o , alto, elegantemente vestido c o m u m terno moderno.
L i g u e i c m o t o r e passei p o r ele a t o d a a v e l o c i d a d e .
E s t a v a meio desnorteada.
Pelo espelhinho retrovisor vi que o mdico n e g r o
p a r o u e f i c o u o l h a n d o o m e u a u t o m v e l , at o v e c u l o
desaparecer n a p r i m e i r a c u r v a .
Na sua cabea, decerto, ia um t u r b i l h o de pensamentos tumultuosos, que se e n t r e c h o c a v a m . E s t a v a
v e r g a d o a o peso d e t e r r v e l i n d e c i s o . O l h o u s e u r e l g i o .
E r a m quase q u a t r o h o r a s da tarde. F o i subindo a ver e d a cercada de pinheirais e pereiras. P a r o u de sbito.
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V se d a "esteca" agora e
n o m e : ficou sendo m e s m o Sebastio: Este dia est m a r cado p a r a sempre na m e m r i a de D. Malvina, sua m e .
Dito, seu esposo, foi assassinado, j u s t a m e n t e no dia do
n a s c i m e n t o de Tio. T i n h a ido venda p a r a c o m p r a r
bebidas e festejar o acontecimento. Deparou u m a briga.
Foi separar os contendores e levou u m a facada na
barriga. Morreu a n t e s de chegar ao hospital.
!
P r a um poco, me.
de gude.
T g u a r d a n d u as bolinha
J entreguei a ropa da
m e e ela n o g o s t a q u e eu
pretinho.
demore
explicou o
E a sua, t a m b m lava?
nem
arruma a
Ela
cama?
B e m , ela j o g a b a r a l h o , p e n t e i a o cabelo, p i n t a
a s u n h a s , c o m p r a p r e s e n t e p r m i m , f a z m u i t a coisa.
E s e u p a i , ele t r a b a i a ?
Papai industrial.
M e u pai m o r r i d u . . .
qui industrial?
N o sei.
Papai tem fbrica.
g r a n d e . E u j estive l.
fbrica muito
F o i q u a n d o s u r g i u a b a b d e C h i q u i n h o e foi u m
alvoroo.
Um preto no j a r d i m , conversando com o filho da
p a t r o a , era algo que d a v a m e s m o p a r a criar a m a i o r
b a l b r d i a possvel. T i o sentiu-se em perigo e saiu
c o r r e n d o . C h i q u i n h o c o r r e u a t r s dele.
Volte, Tio!
Volte!
C h i q u i n h o a v a n o u sobre o j a r d i n e i r o q u e t e n t a v a
a l c a n a r T i o . E s t e c o n s e g u i u p a s s a r pelo p o r t o e
desaparecer na r u a asfaltada.
M a s a a m i z a d e dos dois f i c o u selada p a r a s e m p r e .
T o d a s a s s e m a n a s eles s e v i a m .
que T i o t i n h a u m amigo rico.
Na favela j sabiam
39
U m d i a T i o v o l t o u r a d i a n t e . F o r a c o n v i d a d o pelo
C h i q u i n h o p a r a i r s u a festa d e a n i v e r s r i o , u m a
r e u n i o c o m m u i t o bolo e doces v o n t a d e .
E l e e s p e r a v a o s b a d o c o m o se fosse o m a i o r dia
d a s u a v i d a . N a v s p e r a desse d i a , s d u a s h o r a s d a
m a d r u g a d a , T i o acordou assustado e correu para a sua
me:
Acorda, me!
Acorda!
T na h o r a da festa!
D. M a l v i n a o l h o u p a r a o relgio impressionada,
pensando ter perdido m e s m o a hora. Z a n g o u - s e :
Q u i festa, qui nada, m i n i n u ! A i n d a n u m t n a
h o r a , n o . A f e s t a s t a r d e , d i a b i n h u . A i n d a f a r t a
muitu tempu.
Q u i tempu, me, diz!
Qui tempu!
deitou-se s e g u r a n d o o r e l g i o . E l e s p e n s a v a
m a s n o sabia q u e s u a m e s e n t i a p r o f u n d a s
peito o q u e n o t i n h a d i n h e i r o p a r a i r a o
A l g o a q u e i m a v a p o r d e n t r o , s e m q u e ela
o q u e fosse.
velocidade,
41
Saia!
Olhe o
C h i q u i n h o , sou
N a q u e l e i n s t a n t e , as d e z e n a s de c r i a n a s e a d u l t o s
c a n t a v a m a letra do " P a r a b n s " .
A voz do T i o no
c h e g o u at a j a n e l a .
F i c o u e n c o s t a d o n a g r a d e at
q u a s e dez h o r a s d a n o i t e .
V i u , um por u m , os convidados sairem. Depois as
l u z e s s e a p a g a r a m . A f e s t a t e r m i n a r a . D o s seus o l h o s
a l g u m a s l g r i m a s q u e n t e s , grossas, d e s l i z a v a m pelas
faces.
S u a idade j a m a i s l h e p e r m i t i r i a c o m p r e e n d e r a
m e n t a l i d a d e das elites.
S q u a n d o c h e g o u ao p do m o r r o q u e c o m e o u a
correr, g r i t a n d o , soluando alto, c h a m a n d o a m e :
Me!
Me!
du Chiquinho!
N u m d e i x a r a m e u e n t r a n a casa
M a s D . M a l v i n a n u n c a i r i a saber d o
seu f i l h i n h o . E l a e s t a v a m o r t a e m u i t a
va-se dentro do nico c o m p a r t i m e n t o do
e n f a r t e v i t i m a r a - a , l o g o aps a s a d a do
festa do m e n i n o rico.
infortnio de
gente apertacasebre.
Um
T i o para a
Q u a t r o c r i o s i l u m i n a v a m o i n t e r i o r d o tsco b a r r a c o .
F o i a l t i m a l e m b r a n a que T i o teve de sua me.
D u r a n t e a l g u n s dias ele f i c o u n u m casebre v i z i n h o .
Q u e r i a m providenciar o internamento do menino no
J u i z a d o de Menores.
Certa
manh
Tio
saiu
em
direo
casa
de
Chiquinho.
43
r e c o m e n d a n d o - l h e q u e n o sasse d a l i a t ele a r r a n j a r
u m a s o l u o p a r a o p r o b l e m a . T o d o s o s dias l h e l e v a r i a
comida.
Mas C h i q u i n h o como qui v o u nu banheiro?
O garoto pensou durante algum tempo:
Eu lhe levo um penico.
P r o n t o , t resolvido.
O s dias i a m p a s s a n d o . C a d a v e z t o r n a v a - s e m a i s
d i f c i l , p a r a o m e n i n o , a t i n g i r o p o r o c o m o p r a t o de
comida. T i o , por sua vez, j estava enjoado de ficar
tranficado naquele antro. T i n h a vontade de brincar nos
jardins.
S e m t o m a r b a n h o , p o r v r i o s dias, s e n t i a
terrvel coceira no corpo.
Sua r o u p i n h a estava m u i t a
suja.
O p e n i c o c h e i o d e coco e r a o u t r o g r a n d e p r o blema.
N e m todos o s dias C h i q u i n h o c o n s e g u i a a t r a v e s s a r a casa a t o b a n h e i r o p a r a l i m p - l o . O r e m d i o
era ficar sentindo aquele cheiro danado. E r a o que mais
enjoava a Tio.
E , u m dia, q u a n d o C h i q u i n h o teve d e sair, e m c o m p a n h i a d a p a j e m , T i o r e s o l v e u d a r u m g i r o pelo
palacete.
V i s i t o u p r i m e i r o o s sales d o a n d a r t r r e o . D e s l u m b r o u - s e c o m as e s t t u a s , os q u a d r o s , a l a r e i r a , o g r a n d e
relgio de parede, os tapetes magnficos.
S u b i u as
escadas, s e g u i n d o pelo c o r r e d o r , q u a n d o d e p a r o u u m a
porta entreaberta. A b r i u - a um pouco mais e divisou a
m e d e C h i q u i n h o p e n t e a n d o o s l o n g o s cabelos l o i r o s ,
que tanto impressionaram a T i o :
U m a f a d a ! . . . e x c l a m o u , pondo as m o z i n h a s
n o s lbios.
A m e d e C h i q u i n h o , p o r m , v i u T i o pelo e s p e l h o .
V i r o u - s e com os olhos pregados no pretinho.
Levan45
mame?
Ele m e u
A m e dele m o r r e u .
M e u f i l h o , p r e t o n o p r e s t a . T o d o s eles c r e s c e m
ladres, m a t a m gente.
E s q u e a esse m o l e q u e n o j e n t o .
N u n c a p e r m i t i r i a q u e v o c crescesse a o l a d o d e u m n e grinho. u m a raa maldita. Papai do C u no abenoa
os pretos, m e u filho.
O d e s t i n o , c o n t u d o , c o n t r a r i o u a v o n t a d e da m e
de C h i q u i n h o .
O menino ficou dominado profundam e n t e por u m a nostalgia que lhe t i r a v a , inclusive, a
vontade de se alimentar.
Mdicos f o r a m chamados.
Mas Chiquinho s queria ver Tio.
Na visita que os pais f i z e r a m ao J u i z a d o de Men o r e s f i c o u p a t e n t e q u e ele n o p e r m i t i r i a " a l u g a r " o
p r e t i n h o apenas p a r a salvar o filho.
Adotem,
magistrado.
nica
soluo
asseverou
s e r v i o s n o S a n a t r i o S . P e d r o , at a a d m i s s o d e f i n i t i v a
de um facultativo.
Seria difcil e n c o n t r a r u m mdico,
m e s m o c o m a oferta de polpudo ordenado, que se s u jeitasse a m o r a r n o s a n a t r i o e t r a n s f o r m - l o n o s e u l a r .
E s s a dificuldade fizera c o m que o G o v e r n o corresse em
socorro do sanatrio de milionrias tuberculosas, porque
o nico mdico existente no Pronto-Socorro no d a v a
conta do servio.
T i o h o j e d o u t o r S e b a s t i o de O l i v e i r a v o l t o u
realidade.
Aquelas m i n s c u l a s bolinhas de v i d r o ,
m o m e n t a n e a m e n t e , o fizera recordar-se de um passado
m a r c a d o p o r h u m i l h a e s e dores i n d e l v e i s . A c a r i c i o u
l e v e m e n t e a c a b e a dos dois n e g r i n h o s q u e a i n d a b r i n c a v a m c o m as bolinhas de gude e r u m o u , decidido, p a r a
o m a j e s t o s o edifcio d o S a n a t r i o S . P e d r o .
Ia diglad i a r - s e , ele o sabia, c o m o q u e h a v i a de m a i s r e p r e s e n t a t i v o n a s elites b r a s i l e i r a s : a s f i l h a s dos m i l i o n r i o s q u e
h a v i a m , m e r c de suas vidas repletas de noitadas,
a d q u i r i d o a d e v a s t a d o r a peste b r a n c a .
e por
era
Diana, a i r m de
Chiquinho,
que ali
Estendi-lhe as mes.
E voc
dinheiro
P o r t a s se a b r i r a m e vrias o u t r a s doentes c o r r e r a m
p a r a o local onde estvamos discutindo.
Diana, foi m o r d a z :
Olhe aqui, s u a cadelinha, voc que se prostituiu
como contou n u m livro, n o tem m o r a l p a r a chegar
perto de m i m !
Senti o s a n g u e invadir-me a cabea. M i n h a s t m poras c o m e a r a m a latejar e a resposta se r e s u m i u na
violenta bofetada que lhe desferi!
D e s g r a a d a acrescentei, perdendo t o t a l m e n t e
a c o m p o s t u r a Conheo a sua histria, v a g a b u n d i n h a !
O dinheiro que voc t e m n o consegue cobrir a l a m a
51
Ela
E ela p o d e r i a e n f r e n t a r as nossas f a m l i a s ?
C a l c u l e o e s c n d a l o q u e isto v a i p r o d u z i r q u a n d o nossos
pais s o u b e r e m q u e e s t a m o s s e n d o e x a m i n a d a s p o r u m
negro!
O s a n a t r i o v a i se e s v a z i a r da n o i t e p a r a o
d i a . A M a d r e sabe disso. E l a n o q u e r a b a l a r a t r a dio de S. P e d r o e q u a n d o for interpelada, v a i precisar
p r o v a r q u e est t o m a n d o " e n r g i c a s " p r o v i d n c i a s p a r a
a f a s t a r o d o u t o r n e g r o d o nosso c o n v v i o .
Q u a n t o a o m d i c o , este a l h e o u - s e , v o l u n t a r i a m e n t e ,
das e n f e r m a s das elites. P a s s o u a d e d i c a r - s e , c o m e s m e r o ,
s i n d i g e n t e s , q u e e m n m e r o d e sessenta n o c r i a r a m
muitos problemas.
M a s , m e s m o e n t r e elas, e x i s t i a m
a l g u m a s que d e m o n s t r a v a m nojo, sentimento de repulsa.
Solidarizaram-se c o m as doentes ricas que ao t o m a r e m
conhecimento, passaram a freqentar mais assiduam e n t e o s pores, d e m o n s t r a n d o u m a f a l s a a m i z a d e
q u e l a s q u e t a m b m se n e g a v a m a ser a t e n d i d a s p e l o
mdico n e g r o . D i a n a , por seu t u r n o , fez o possvel p a r a
que as sessenta indigentes cerrassem fileiras c o m as
54
o nosso ntimo.
e v i d e n t e q u e no seio das classes
m a i s f a v o r e c i d a s esse falso p u d o r m a i s a c e n t u a d o ,
m a s n e m p o r isso d e i x a d e e x i s t i r t a m b m n a s classes
necessitadas.
V e j a o s e x e m p l o s q u e pode c o l h e r e m
m e i o s i n d i g e n t e s . C e r c a de 20 m o a s , das m a i s p o b r e s ,
s o l i d a r i z a r a m - s e c o m a s colegas r i c a s .
A s o u t r a s 40,
c o n t u d o , aliaram-se a m i m e t e n t a m convencer as demais
d o e r r o q u e c o m e t e m . A l g u m a s c e d e r o . O u t r a s perm a n e c e r o n a s posies i n i c i a i s , m a i s p o r a m b i o .
P e n s a m que tero a l g u m a r e c o m p e n s a . . .
Muito poucas a d e r i r a m p o r c o n v i c o . . .
M i n h a cara Adelaide,
v o c p r e c i s a c o n h e c e r m e l h o r o ser h u m a n o .
Tentarei
adquirir
maior
compreenso
vou
E s t b e m assim?
56
III
Na saleta de p l a n t o do S a n a t r i o , a c a m p a i n h a
tocou repetidas vezes, revelando o nervosismo de q u e m
c h a m a v a . O q u a d r o i n d i c a v a q u e no a p a r t a m e n t o n. 2,
da A l a " B " , a l g u m pedia auxlio. A enfermeira olhou
o r e l g i o . E r a m d u a s h o r a s d a m a n h . S o n o l e n t a , levantou-se lentamente para atender ao chamado.
Se n o for suco de l a r a n j a , um fingimentoqualquer, t e n h o certeza, foi r e s m u n g a n d o , e n q u a n t o
c a m i n h a v a pelo l o n g o c o r r e d o r a t a p e t a d o .
A e n f e r m a era Diana.
Q u e r o que voc c h a m e o
mal-humorada, enfermeira.
doutor ordenou,
D o n a D i a n a , t a l v e z e u possa a t e n d - l a . O m dico do P r o n t o - S o c o r r o f i c a r a b o r r e c i d o se o c h a m a r m o s
p a r a a l g o q u e n o seja r e a l m e n t e i m p o r t a n t e .
Alm
disso, t e n h o de ir a t cidade.
No quero o doutor Pedro.
o d o u t o r Sebastio.
M a n d e v i r at a q u i
A e n f e r m e i r a , s u r p r e s a , a r r e g a l o u os o l h o s :
O mdico negro?
S i m , o doutor Sebastio.
E n t e n d e u bem?
f o r m a s . O s seios e m p i n a d o s , a r f a n t e s , q u a s e m o s t r a ,
n u m decote a t r e v i d o , e r a m u m a t e n t a o .
A d o r a q u i , r e f l e t e a q u i disse ela, c o l o c a n d o a
p o n t a do s e u dedo i n d i c a d o r sobre o seio d i r e i t o , ao
m e s m o t e m p o que o l h a v a o mdico c o m certo desdm,
c o n s e r v a n d o u m s o r r i s o m a r o t o n o c a n t o dos lbios.
O t r e m e r das m o s do dr. S e b a s t i o a c e n t u o u - s e
visivelmente. Na sua testa l a r g a o suor aflua, demonstrando a forte emotividade que o acometera.
A c h o m e l h o r a senhorita cobrir-se.
S e u estado
n o d e v e ser b o m . O o r g a n i s m o pode e s t a r p r e d i s p o s t o
a u m a p n e u m o n i a t a r t a m u d e o u o dr. Sebastio,
c o m o que buscando u m a sada p a r a a situao em que,
d e r e p e n t e se, v i a e n v o l v i d o .
D i a n a fingiu no ouvir a ponderao.
demonstrando contrariedade.
Suspirou
segundo, a m i n h a infncia.
C h e g u e i c o n c l u s o de
que o a m a v a . H mais de u m a semana v e n h o lutando
c o n t r a o a b s u r d o desse m e u r a c i o c i n i o .
Hoje, finalm e n t e , d e d u z i q u e n o a m o r : desejo!
Sim, Tio,
eu o desejo c a r n a l m e n t e , t a n t o q u a n t o o odeio p o r ser
n e g r o ! E , v o c T i o , v a i ser m e u , i n t e i r i n h o m e u , h o j e ,
aqui, neste a p a r t a m e n t o , nesta c a m a !
O dr. S e b a s t i o r e c u o u a t n i t o :
M e n i n a , voc enlouqueceu?
rendo?
O q u e est q u e -
esforo
ele
empurrou,
desvenci-
Voc m i n h a i r m de criao, D i a n a !
posso! N o posso! N o seja l o u c a , D i a n a !
No
Eu o q u e r o , T i o , n e m . q u e seja a l t i m a coisa
que faa na v i d a !
H o u v e u m p r i n c p i o d e l u t a e n t r e o s dois.
O mdico, mais assustado ainda, a p e r t o u os pulsos de D i a n a
e, c o m a m o direita, deu-lhe ruidosa bofetada.
Chorando,
cama:
c o n v u l s i v a m e n t e , ela a t i r o u - s e sobre a
Virou-se
61
e saiu apressado do a p a r t a m e n t o .
C o m um leno as
m o s e n x u g a v a n e r v o s a m e n t e o pescoo m o l h a d o d e
suor. Seus pensamentos e s t a v a m de tal modo t o r t u r a n d o
sua cabea que n o sentiu que vrias portas, sua
passagem, se f e c h a v a m devagarinho.
Muitas
noite.
enfermas
souberam
do
encontro
daquela
N o t e r r a o m a l m e p o d i a m a n t e r e m p. U m t r e m o r
e s t r a n h o t o m a r a c o n t a d e t o d o o m e u ser. N o p o d i a
c o m p r e e n d e r a q u i l o a q u e a c a b a r a d e assistir. A l g o a l i
estava errado.
Lentamente retornei ao m e u apartam e n t o e d u r a n t e m u i t o tempo fiquei c o m os olhos
abertos, recostada e m m i n h a c a m a , buscando u m a resposta p a r a a interrogao que m a r t e l a v a m i n h a cabea.
*
comigo.
Os acontecimentos que m a r c a r a m a c h e g a d a
ao S a n a t r i o do doutor Sebastio nos t r a n s f o r m a r a m
definitivamente em inimigas irreconciliveis.
O caso Diana-Dr. Sebastio estava criado.
S o
f u t u r o iria d e m o n s t r a r o que essa aliana produziria
na vida do Sanatrio.
De u m a coisa eu estava certa: daquele dia em
d i a n t e D i a n a seria alvo da m a i s indiscreta d a s espion a g e n s , d a p a r t e d a maioria das moas i n t e r n a d a s n o
Sanatrio S. Pedro.
Aps o almoo resolvi visitar as indigentes. Havia
a l g u m tempo, t r a v a r a amizade com u m a d a s enfermas
pobres e, aos poucos fui conhecendo s u a histria revolt a n t e . Desse dia em d i a n t e passei a visit-la assiduam e n t e , p r o c u r a n d o dar-lhe o conforto moral de que
necessitava.
A n a Maria era o seu nome.
T i n h a traos belos.
Seus cabelos, bem negros, e r a m compridos, sedosos. Os
olhos, grandes, revelavam a m a r g u r a , decepo. No
r a r a s vezes, lampejos de dio m a l conseguiam esconder
a revolta de que seu n t i m o estava t o m a d o . Inegavelm e n t e Ana Maria fora, a n t e s de a tuberculose destruir-lhe
a sade, u m a jovem a t r a e n t e .
G a n h a r a a terrvel
molstia n a prostituio.
Passava h o r a s conversando com Ana Maria. s
vezes n o falvamos. P e r m a n e c a m o s com o o l h a r perdido, a b a t i d a s pelos p e n s a m e n t o s que vez por o u t r a nos
envolviam.
Naquela t a r d e , ali, s e n t a d a na c a m a , ao lado de
A n i n h a , eu, m e n t a l m e n t e , revivia todos os lances de s u a
vida passada, que colimaram na tuberculose e na sua
i n t e r n a o , como indigente, nos pores do Sanatrio
S. Pedro.
64
Tzinho a deixou n a q u i l o que ele c h a m a v a "chc a r a " , aos cuidados de u m a e m p r e g a d a de pouca idade,
m a s que se m o s t r a v a atenciosa ao extremo.
Fique t r a n q i l a .
Logo voltarei.
O emprego
demora um pouco ainda. Voc ficar hospedada aqui.
Concorda? foram as blandiciosas palavras de Tzinho
ao se despedir da moa.
Os dias foram correndo e Tzinho aparecia u m a
vez por s e m a n a na ilha.
Os cuidados e as atenes
p a r a a ex-empregada foram, despertando um s e n t i m e n t o
de t e r n u r a no corao da m o c i n h a . E m b o r a n o sasse
da ilha, t i n h a a liberdade de a n d a r pelo terreno.
Os
ces, na p a r t e do dia, ficavam presos, e s seis h o r a s
da t a r d e e r a m soltos.
Ana, assustada, trancava-se na
casa, u m a a u t n t i c a m a n s o , onde n o faltavam conforto, luxo e boa comida, que lhe era servida pela jovem
empregada.
Algumas vezes Ana Maria recebia ordens da servial
p a r a ficar no q u a r t o e l era t r a n c a d a . E s t r a n h a v a a
d e t e r m i n a o , q u a n t o mais que nesses dias ouvia g r a n d e
a l g a z a r r a nos sales trreos da m a n s o . No r a r a s
vezes reconhecia a voz do p a t r o , principalmente
a sua g a r g a l h a d a escandalosa. T u d o era m u i t o singular
e Ana Maria n o compreendia porque n o podia assistir,
embora n o participando, a essas ruidosas festas q u e
Tzinho, quase todas as s e m a n a s , organizava na ilha.
Ana M a r i a t e m verdadeiro h o r r o r de l e m b r a r os
acontecimentos d a q u e l a t a r d e que acabou, p a r a ela, nos
pores do Sanatrio S. Pedro, de Campos do Jordo.
A e m p r e g a d a esquecera de fechar a p o r t a chave.
67
Socorro!
foi
o apelo que
69
Eu n o
73
IV
As c a m a d a s de n u v e n s i a m desaparecendo do cu
e pedaos de azul, entremeados de fogo, i a m surgindo,
a n u n c i a n d o o fim da borrasca, que d u r a n t e h o r a s desab a r a sobre Campos do Jordo.
Parecia que a Sua
brasileira ia se t o r n a n d o toda a m a r e l a d a . No verde
lavado pela e n x u r r a d a , refletia-se a cor d o u r a d a que se
espraiava por todo o firmamento.
Estava exausta.
O vestido molhado g r u d a v a em
m e u corpo.
E x t e n u a d a , fsica e espiritualmente, deitei-me de costas na relva dourada. No sentia coragem
p a r a fazer o longo c a m i n h o de volta at o Sanatrio.
Q u a n d o percorrera os oito quilmetros at o Morro do
Elefante, n o os sentira.
Estava fora de m i m , com
m e u s raciocnios n u m frentico jogo de acontecimentos
m i s t u r a d o s com o dio que, de repente de m i m se aposs a r a pelas ingratides desse m u n d o materializado em
que vivemos; a vida que u n s poucos privilegiados gozam,
que somente sobrevivem espezinhando o prximo, sufoc a n d o as possibilidades dos menos favorecidos.
No sei q u a n t o t e m p o fiquei, assim, m e r g u l h a d a
e m seus prprios p e n s a m e n t o s , n u m t u r b i l h o cascat e a n t e , sem ritmo, sem concatenao. Q u a n d o me levantei n o v a m e n t e , j t i n h a deliberado n o dormir
a q u e l a noite no Sanatrio. Iria p a r a a casa de Mercedes,
na Vila J a g u a r i b e .
Nosso encontro foi coberto de p e r g u n t a s , princip a l m e n t e pelo estado em q u e me encontrava. Depois
de um c h q u e n t e e reconfortante fui me deitar.
74
G r a d u a l m e n t e a noite ia se a n u n c i a n d o .
Da claridade, s o m b r a s a p a r e c i a m e cobriam tudo, magicamente.
As estrelas b r i l h a v a m e a lua espargia u m a
plida e esverdeada luz por toda Campos do Jordo.
O complexo dessa beleza, que s Campos do J o r d o
possui, eu o ia absorvendo com a m i n h a alma, m e u s
olhos, m i n h a m e n t e . Logo mais, m e u s olhos e s t a v a m
pregados na a g u l h a do velocmetros, sorrindo por poder
sentir aquele vento gelado b a t e n d o em m e u rosto,
fustigando m e u olhos a t as l g r i m a s escorrerem. Eu
ia p e n s a n d o n a s brincadeiras ocorridas e n t r e Mercedes,
eu e G r a c i n h a , envolvendo o simptico dr. Pedro.
E o facultativo i n t e r r o m p e u o belo silncio que nos
embevecia.
Foi gentil em aceitar o convite p a r a passearmos
noite.
Sinto-me feliz em poder dispor de a l g u m a s
h o r a s p a r a sentir, de perto, a beleza de Campos do
J o r d o e a i n d a desfrutar s u a c o m p a n h i a .
Aonde iremos? perguntei, lacnica, m a s suavemente.
Ao "Vu da Noiva".
A essa h o r a ?
No seria i m p r u d n c i a ?
digo em Campos do J o r d o !
d e cada p a s . . .
g a s t a m t a n t o t e m p o a f a z e r p r o m e s s a s q u e , depois, l h e s
alta o tempo para as c u m p r i r e m . . . V o u lhe contar o
que o c o r r e u , na semana passada, no Sanatrio, assim
t e r u m a i d i a m a i s c l a r a d o d e s p o t i s m o das elites. E u
estava no m e u a p a r t a m e n t o q u a n d o recebi a visita de
unia indigente. Sabe D e u s l o que fez aquela m e n i n a
p a r a a t i n g i r a ala dos m i l i o n r i o s do S a n a t r i o S. P e d r o ,
pois n o i g n o r a v a q u e e x p r e s s a m e n t e p r o i b i d o , aos
p o b r e s , sair dos p o r e s e e n t r a r n a " a l a das p r i v i l e g i a das"...
L c i a o n o m e desta c r i a t u r a e s e u p e d i d o
h u m i l d e era em favor do pai. Desejava que eu intercedesse, c o m o pudesse, j u n t o aos polticos, p a r a q u e s e u
p a i fosse n o m e a d o f u n c i o n r i o p b l i c o .
Ele era motor i s t a d e u m a das e m p r e s a s q u e e x p l o r a m o s e r v i o d e
transporte de passageiros, em automveis, entre So
Paulo e Santos.
So os famosos " e x p r e s s i n h o s " . No
meu quarto se encontrava Patricia, u m a sobrinha do
p a t r o de L c i a , que ficou em silncio, r i n d o ironicam e n t e das q u e i x a s q u e a i n d i g e n t e m e f a z i a . S e n t a d a ,
e n v o l v i d a n u m "peignoir" d e n y l o n a c o l c h o a d o , c o m o s
ps p r o t e g i d o s p o r c h i n e l i n h a s d e p e l i c a f o r r a d a d e l ,
ela f o r m a v a u m g r a n d e c o n t r a s t e c o m o l e v e v e s t i d o
de chita da modesta Lcia.
Os e m p r e g a d o s , j o v e m L c i a disse P a t r c i a ,
i n t e r r o m p e n d o suas l a m r i a s so i n s a c i v e i s .
No
c o m p r e e n d e m q u e , s e m a e x i s t n c i a dos p a t r e s , n o
e x i s t i r i a m os e m p r e g o s . . . Os pobres, m e n i n a , existem,
p o r q u e os ricos r e p a r t e m o m u i t o q u e t m . . . o c u
de q u e m o g a n h a e a t e r r a , de q u e m a a p a n h a . .. As
leis t r a b a l h i s t a s nos dias de h o j e , no B r a s i l , q u e c r i a m
esses p r o b l e m a s p a r a o s o p e r r i o s .
Cada vez exigem
m a i s . E se os e m p r e g a d o r e s f o s s e m a t e n d e r a t o d a s as
e x i g n c i a s de seus e m p r e g a d o s , i r i a m l o g o f a l n c i a .
o q u e o c o r r e c o m os m o t o r i s t a s q u e t r a b a l h a m na
81
m a i s do que
em polvorosa.
I r m s m a l se
que e s t a v a m
ininterrupta.
V i r o u - s e , i n o p i n a d a m e n t e , f e c h o u a p o r t a a t r s de si
e c a m i n h o u pelo c o r r e d o r , f i t a d o p o r m a i s d e u m d e z e n a
de moas que a g u a r d a v a m os resultados da interveno
do m d i c o e p r o c u r a v a m ler em suas feies se os
r e m e d i o s p o r ele m i n i s t r a d o s s u r t i a m e f e i t o .
O mdico negro, ao entrar no a p a r t a m e n t o de Nair,
p i s a r a , sem. p e r c e b e r , n u m a p o a d e s a n g u e . E l e p a s s o u
f i r m e , d i s t a n t e , e n t r e a s e n f e r m a s das elites. N o t a p e t e
c l a r o f o i f i c a n d o a m a r c a r u b r a d e seus sapatos. N o
h o u v e u m m u r m r i o , a n t e s o u depois d e s u a p a s s a g e m .
N o f i m d o c o r r e d o r , ele s e v o l t o u . P a r o u d u r a n t e a l g u m
t e m p o . O l h o u u m a p o r u m a e , depois, l e v a n t a n d o l e n t a mente um brao, ordenou categrico, violento, fora de si:
A pera terminou, jovens!
V o l t e m p a r a seus
quartos! Vamos, voltem, j! J ! u m a ordem! Voltem!
N o h o u v e rplica. O silncio foi total. A o s poucos
cada u m a ia abrindo a p o r t a de seu a p a r t a m e n t o e
desaparecendo. Elas s e n t i r a m , naquele instante, que o
mdico negro as derrotara.
O dr. S e b a s t i o f i c o u , n o sei q u a n t o t e m p o , de p,
no f i m do corredor. O l h a v a o c a m i n h o totalmente vazio,
c o m aqueles r a s t r o s d e s a n g u e m a r c a n d o o tapete.
V o l t o u - s e e l e n t a m e n t e se d i r i g i u aos seus a p o s e n t o s .
A b r i u a p o r t a , f e c h a n d o - a l o g o em s e g u i d a e a t i r o u - s e
c a m a . vestido. De bruos, apertando a cabea no t r a v e s s e i r o , c h o r o u , d e m o d o c o n v u l s i v o , aos a r r a n c o s .
O mdico n e g r o parecia que estivera participando
de u m a batalha, cuja vitria se lhe assemelhava a u m a
derrota n t i m a , a qual acabou de prostr-lo, p r o f u n d a m e n t e abalado. C h e g a r a concluso de que q u e m pad e c e u , v e n c e u , e q u e a c o r a g e m a f o r a de r e s i s t i r e
de sofrer, e que os olhos que no c h o r a m , n o sabem
v e r a beleza e f e a l d a d e do m u n d o .
87
V
Adelaide, creio que j solucionei m e u problema.
U m p o l t i c o , q u e est p a s s a n d o u m a s f r i a s a q u i e m
C a m p o s do J o r d o , fez u m a c a r t a de apresentao a
u m a pessoa q u e est p a s s a n d o u n s dias n a G u a n a b a r a .
V o u at a o R i o e , s e t u d o d e r c e r t o , s a i r e i p a r a s e m p r e
de So Paulo. Pedirei, inclusive, demisso do cargo que
exero na Secretaria da Sade.
C o n v e r s v a m o s nos jardins internos do Sanatrio.
E r a u m a tarde ensolarada de domingo. H a v i a , porm,
u m a r z i n h o f r i o q u e o sol n o c o n s e g u i a e s q u e n t a r .
O l h e i o D r . Sebastio a d m i r a d a e ao m e s m o t e m p o
decepcionada:
N o a c r e d i t o nessas i n t e r f e r n c i a s p o l t i c a s , D r .
Sebastio. P e r m i t a - m e , mais u m a v e z , discordar d a sua
deciso, m a s o s e n h o r n o pode e n o se d e v e d a r p o r
v e n c i d o . M a i s v a l e e s p e r a n a b o a , q u e r u i m posse. N s
d e v e m o s l u t a r pelo q u e c e r t o q u a n d o l o b r i g a m o s possibilidades d e v e n c e r s e m c r e s c i m e n t o das dissenses.
Desistir agora u m a estultcia. Q u a n d o se convencer
que e r r o u em no se defender na h o r a mais fcil, vai
v e r i f i c a r q u e a s d i f i c u l d a d e s c o n t r a seus anseios d o b r a r a m a tal ponto que s h u m a m n i m a parcela p a r a
se a l c a n a r a v i t r i a .
M a s a pessoa c o m q u e m v o u f a l a r n a G u a n a b a r a
a e x - P r i m e i r a D a m a do E s t a d o de P e r n a m b u c o .
logo r e t o r n a r p a r a o n o r t e . S e r m a i s d i f c i l p a r a m i m
v i a j a r at o R e c i f e .
P o r q u e h a v e r i a de c o n t i n u a r a
p i s a r e m e s p i n h o s , s e h a possibilidade d e t r a n s f o r m - l o s e m ptalas? N o , A d e l a i d e , n o s o u p a l m a t r i a
do m u n d o . T o d o o tempo que t e n h o disponvel dedico-o
aos estudos. A m e d i c i n a um p r o g r e s s o i n c e s s a n t e .
V o c ficou a d m i r a d a por saber que me utilizo de gelo
para estancar u m a hemoptise.
o mtodo moderno.
E acredito, no aprendi nos bancos da Faculdade. N o
posso d e s p e r d i a r m e u t e m p o c o m essas t o l i n h a s e seus
preconceitos radicalizados.
Os lderes negros do Brasil
se q u e eles e x i s t e m q u e t r a t e m de f a z - l o . P o r
m i m , confesso-me derrotado.
Essas jovens milionrias
me v e n c e r a m m e s m o . O que o c o r r e u a s e m a n a passada,
c o m aquela moa, Nair, foi a gota d g u a que e n t o r n o u
o m e u copo c h e i o de e s p e r a n a s .
Pois b e m , D r . Sebastio. O senhor v a i falar c o m
a ex-Primeira D a m a do Estado de Pernambuco. V a i
perder o seu tempo. C o n h e o aquela senhora e m u i t a
coisa a s e u respeito. N a d a l h e d i r e i , p o r h o r a . D - m e
o p r a z o necessrio p a r a pedir a v i n d a , aqui, a C a m p o s
d o J o r d o , d e u m a m i g o q u e f o i a m a n t e dessa s e n h o r a ,
p o r i m p o s i o dela m e s m a . T e l e f o n a r e i , a i n d a h o j e , <
s depois de o u v i - l o , o s e n h o r t o m a r a deciso fina ..
Combinados?
1
Combinados.
pequeno
em
posio,
doutor,
para
91
saber t o d a a p o d r i d o s e x u a l q u e c o r r i a pelos b a s t i d o r e s
do g o v e r n o f e d e r a l , e s c u s t a s dos c o f r e s p b l i c o s . M a s
o p o u c o q u e sei d p a r a e s c a n d a l i z a r o pais i n t e i r o . K a
n o R i o , i n c l u s i v e , u m local q u e o s " g r a n d e s " c o n h e c e m
pela denominao de " a p a r t a m e n t o presidencial". F i c a
n u m dos m a i s f a m o s o s h o t i s d o B r a s i l .
T u d o o que
ali g a s t o , p a g o pelo I n s t i t u t o B r a s i l e i r o do C a f .
E r a u m . dos p o u c o s l u g a r e s a o n d e o p r p r i o P r e s i d e n t e
d a R e p b l i c a c o m p a r e c i a . A l i s , diga-se d e p a s s a g e m ,
q u e o p r e s i d e n t e t i n h a u m f a m o s o p i a n i s t a das noites
cariocas, c u j a n i c a f u n o j u n t o ao Chefe da Nao,
e r a o d e c o n s e g u i r d e t e r m i n a d o s tipos d e m u l h e r e s . s
v e z e s esse p i a n i s t a cedia a p r p r i a r e s i d n c i a p a r a o
Presidente ter encontros amorosos c o m as pequenas que
l h e e r a m c o n s e g u i d a s p o r esta espcie d e " s e c r e t r i o
s e x u a l " do Presidente da Repblica.
O "apartamento
p r e s i d e n c i a l " f a m o s o n a s h o s t e s p o l t i c a s . Nesse l o c a l ,
em meio a um ambiente carregado de sexo, t r a m a v a m - s e
as mais grossas safadezas. As m u l h e r e s , ali, f u n c i o n a v a m a s s i m c o m o u m a espcie d e a u x l i o p a r a a o b t e n o
de favores j u n t o ao B a n c o do Brasil e cargos altamente
remunerados no Exterior.
E r a m a u t n t i c a s espis, a
s e r v i o de d e s g n i o s t o r p e s e interesses i n c o n f e s s v e i s .
D i f i c i l m e n t e u m h o m e m n e g a a l g u m a coisa m u l h e r
q u a n d o e s t c o m esta n a c a m a , r e c e b e n d o s u a s c a r c i a s . .
C o n h e o m u i t a g e n t e boa q u e a n d a p o r a, a r r o t a n d o
a u t o r i d a d e , m a s q u e c o n s e g u i u c h e g a r a essa p o s i o
f a z e n d o c o m q u e a p r p r i a esposa f r e q e n t a s s e o " a p a r t a m e n t o p r e s i d e n c i a l " e pleiteasse esse o u a q u e l e f a v o r
visando benefcio p e s s o a l . . .
E a e x - P r i m e i r a D a m a de
P e r n a m b u c o f o i , n a s p o u c a s v e z e s q u e esteve n o R i o ,
u m a grande freqentadora do "apartamento presidenc i a l " . H i s t r i c a a o e x t r e m o , s a t e n d i a aos pedidos
depois d e s a t i s f e i t a n o s e x o . P a r a isso b a s t a v a o h o m e m
lhe a g r a d a r . . . F o i o que ocorreu comigo. M i n h a misso
92
j u n t o ento P r i m e i r a D a m a de P e r n a m b u c o , era a de
e n t r e g a r - l h e , p e s s o a l m e n t e , u m a c o r r e s p o n d n c i a d o gen e r a l de q u e m eu era secretrio particular. N o poderia
h a v e r t e s t e m u n h a s n a e n t r e g a dessa m i s s i v a . F u i r e c e bido e m s u a s a l a , n o P a l c i o das P r i n c e s a s , u m a s t r s
v e z e s , e a p r e s e n a de e s t r a n h o s me i m p e d i a de f a z e r - l h e
a entrega. E l a j me esperava como enviado do general.
No e n t e n d i a , e n t o , p o r q u e m e f a z i a e n t r a r e m s e u
gabinete de t r a b a l h o sabendo da reserva que o assunto
e x i g i a . Q u a n d o , f i n a l m e n t e , f i c a m o s a ss na s a l a , o
c a r i n h o com que me t r a t o u , causou-me certo espanto.
L e u a c a r t a n a m i n h a f r e n t e . s vezes i n t e r r o m p i a
a leitura e me o l h a v a d e m o r a d a m e n t e , sorrindo de m a neira significativa.
Sentado sua frente, j u n t o da mesa de trabalho,
h a v i a entre ns u m silncio desconcertante. E u estalava
os dedos n e r v o s a m e n t e e p r o c u r a v a p e r d e r o o l h a r pela
j a n e l a a f o r a . ..
T e r m i n a d a a l e i t u r a d a c a r t a , ela a g u a r d o u n o
p r p r i o seio e m e o l h a n d o f i x a m e n t e , c r u z o u o s b r a o s
sobre a m e s a . Q u e b r o u o s i l n c i o q u e d o m i n a v a t o d a
a ampla sala:
Pois b e m A u r l i o .
O caso me i n t e r e s s a s i m .
T u , n a t u r a l m e n t e , sabes o c o n t e d o dessa c o r r e s p o n d n c i a , pois n o ?
F i z um aceno a f i r m a t i v o c o m
contudo, articular u m a s palavra.
cabea,
sem,
93
97
. ..
cansado...
t i m o , m e u filho.
Temos aqui a mais macia
das c a m a s do Estado de P e r n a m b u c o . . .
Tu poders
dormir t r a n q i l o . . . n u m a m b i e n t e a r o m a t i z a d o . . .
Que tal?
Pulei, assustado:
Dormir?
Aqui?
Ele pode
d e q u i n z e dias, t e m p o e x a t o e m q u e f i q u e i s e u a m a n t e ,
s a t i s f a z e n d o - a em todos os c a p r i c h o s . . .
O dr. S e b a s t i o o u v i r a o r e l a t o d e A u r l i o c o m u m a
expresso de desanimo estampada nos olhos. N o c o n seguia compreender como a devassido m i n a v a assim
os b a s t i d o r e s polticos e sociais deste pas. L i m i t o u - s e a
perguntar:
E o s e n h o r v o l t o u a v - l a , depois de t u d o isso?
A l g u m a s vezes s e m , p o r m , falar-lhe.
F o i em
a l g u m a s solenidades p o l t i c a s i m p o r t a n t e s o c o r r i d a s e m
Braslia ou no Rio. u m a f i g u r a bem apagada hoje.
S e u esposo c o n t i n u a na p o l t i c a e p r a t i c a m e n t e ele
q u e m m a n o b r a t o d o o P a r t i d o d o q u a l u m dos d i r i g e n t e s m x i m o s e m e m b r o dos m a i s i n f l u e n t e s e m t o d a
aquela regio. E l a deve continuar, presentemente a dir i g i r os canaviais que possui por todo o interior de
P e r n a m b u c o . E u n u n c a m a i s a e s q u e c i , pois s e u
m e s m o sei o q u e passei n a q u e l a n o i t e e n o s dias s e g u i n tes, a o l a d o dessa m a d a m e .
E l a , p o r m , j deve ter
m e esquecido. l g i c o . . .
Interrompi a conversa
Aurlio, para perguntar:
entre
dr.
Sebastio
A u r l i o , t o d a s as v e z e s q u e o u o essa h i s t r i a ,
v o c s e m p r e se n e g a a d i z e r o c o n t e d o d a q u e l a f a m o s a
carta do general P r i m e i r a D a m a de P e r n a m b u c o .
P o r que? P o d e r i a d i z - l o a g o r a ? F a z t a n t o t e m p o , a c h o
que no t e m mais importncia.
De fato, faz m u i t o tempo.
d e ser u m a r e v e l a o p e r i g o s a . . .
G o s t a r i a t a m b m de saber,
a p a r t e o u o dr. S e b a s t i o .
Contudo, no deixa
senhor Aurlio
T o d a s as s e m a n a s i n f o r m o u , e n t o , A u r l i o
partia p a r a a Bolvia um avio da F A B , em servio
101
VI
M i n h a estada em S. Pedro estava quase no fim e
logo r e t o r n a r i a a So Paulo. Havia recebido u m a c a r t a
de u m a a m i g a do Rio, que me pleiteava interferncia na
sentido de conseguir o i n t e r n a m e n t o de u m a jovem de
n o m e Cludia. Seu estado era grave e requeria imediato
t r a t a m e n t o . Conversei l o n g a m e n t e com a Madre e consegui a vaga existente, devido u m a a l t a que o dr.
Sebastio havia dado logo no comeo da s e m a n a .
Eu
teria que ir ao Rio p a r a a j u d a r o t r a n s p o r t e da moa
a t o Sanatrio S. Pedro.
Belinha t a m b m havia obtido licena de u m a s e m a n a
e estava prestes a e m b a r c a r p a r a o Rio.
Q u a n d o lhe p e r g u n t e i o que ia fazer na ex-Capital,
mostrou-se misteriosa, pondo o dedo indicador sobre os
lbios:
P s i u . . . n o fale alto. Ns vamos viajar j u n t a s
e no c a m i n h o lhe conto. Tapeei a Madre e disse que
m e u s pais se e n c o n t r a m no Rio e ela me deixou ir. O
dr. Pedro afianou Madre que estou quase c u r a d a e
que u m a s e m a n a n o Rio n o ir alterar m e u estado
de sade.
Agora, caluda!
No n i b u s conversaremos,
o. k?
Achei graa naquele mistrio todo, m a s me conformei, apesar da curiosidade n a t u r a l que se apossara
de m i m .
Dois
104
n u m a das poltronas do nibus da Viao Cometa, percorrendo, ao lado de Belinha, a sempre perigosa Via
D u t r a , em d e m a n d a do Rio de Janeiro.
Belinha preferiu utilizar-se do nibus por ter ficado
com receio de enfrentar a e s t r a d a com seu automvel.
Pois isso mesmo, Adelaide dizia-me m a l i ciosa, Belinha. Todos os anos se celebra, ali u m a
festa especial. difcil eu perd-la. Sempre h a novidade da presena de a l g u m de fama internacional.
Desta feita o dono da boate q u e m vem vindo com
u m a bela a r t i s t a de Hollywood p e n d u r a d a no seu
Drao...
O que acho esquisito, Belinha, o n o m e dessa
boate. u m a imoralidade c h o c a n t e !
Belinha riu e repetiu o nome da casa n o t u r n a :
"Bocetinha de Ouro",
priado?
quer
nome m a i s apro-
Esquece-se do seu
quinhos, e b r i l h a v a m q u a n d o ele se a p r e s e n t o u a m i m .
A doena, efetivamente, a i n d a n o t i n h a feito q u a l q u e r
estrago d e maior m o n t a e m m e u organismo.
Meu n o m e Oswalco. .. e o seu?
Cludia.
Bonito n o m e . . . at sugestivo.
Carioca?
Sou, e o s e n h o r ?
Do P a r a n , m a i s precisamente de L o n d r i n a . Sou
casado e t e n h o cinco filhos, um dos quais e s t u d a n u m
colgio de J a c a r z i n h o . A t u a l m e n t e t r a b a l h o no IBC.
Voc conhece o P a r a n ?
No, n u n c a estive l, m a s gostaria i m e n s a m e n t e
de conhec-lo. Ainda n o fui a So Paulo, que to
p e r t i n h o do Rio!
Por falar no P a r a n , convidei u n s amigos de l
p a r a virem p a s s a r u n s dias na G u a n a b a r a .
Ocupo o
" a p a r t a m e n t o presidencial", do hotel m a i s famoso do
Rio. N o conheo n i n g u m a q u i no Rio. N o s eu
como m e u s amigos gostaramos de fazer amizades
a q u i . . . Desejamos t e r c o m p a n h i a p a r a j a n t a r e m bons
lugares, ir a teatros, b o a t e s . . .
Voc n o teria u m a s
a m i g u i n h a s ? . . . Hoje noite, por exemplo, poderamos
todos j a n t a r l n o a p a r t a m e n t o . . .
E n t e n d e r a bem o que ele desejara. M a s pouco me
importava. P a r a m i m o fim justificava os meios. J u l g o
q u e u m a g o t a d e mel a p a n h a m a i s moscas que u m
tonel de vinagre, precisava de um sanatrio. E r a q u e s t o
de vida ou de m o r t e . Oswaldo, n a q u e l e i n s t a n t e , repres e n t a v a o sol, a primavera, o vero, a flor desabrochando,
p o r q u e n a verdade, n u n c a m e s e n t i r a t o feliz. Depois,
veio a decepo e t u d o se t r a n s f o r m o u . T u d o passou a
111
"apartamento-presidencial'.
S u b i m o s e m q u a t r o casais
e os demais cinco h o m e n s f i c a r a m no bar do hotel,
t o m a n d o a l g u m a bebida.
F i c a m o s bebendo e comendo alguns salgadinhos que
o garon trouxera, durante mais de u m a hora. Todas
n o s e s t v a m o s altas. O s h o m e n s n o e s c o n d i a m a aleg r i a a r t i f i c i a l p r o v o c a d a pelo excesso d o lcool.
Na
m e s i n h a d e c a b e c e i r a d e u m a das c a m a s h a v i a u m r d i o
embutido.
L i g a d o , fez p e n e t r a r n o a m b i e n t e s e n s u a l
melodia.
J u n t o s , os quatros pares ensaiaram os prim e i r o s passos d e d a n a q u e e n v o l v i a o a p a r t a m e n t o
presidencial do mais famoso hotel do R i o de J a n e i r o .
E nesse enleio p r p r i o d o a m b i e n t e e m q u e v i v a m o s
quela hora, n e m notamos quando os cinco companheiros
de Oswaldo chegaram tambm no apartamento. Sent i m o s a p r e s e n a deles q u a n d o a v o z e n r o l a d a de um
anunciou:
T a m b m queremos brincar. . .
H o u v e , d e i n c i o , u m a e u f o r i a . O s o l h o s dos c i n c o
h o m e n s e s t a v a m v t r e o s , i n d i c a n d o a l t a d o s a g e m alcolicas. O s n o v o s i n d i v d u o s n o s c e r c a r a m n u m a r o d a v i v a
e aos g r i t o s a l e g r e s i a m f o r a n d o a r e t i r a d a de nossas
roupas. A resistncia que poderamos oferecer era mn i m a e em poucos as q u a t r o e s t a v a m c o m p l e t a m e n t e
nuas no apartamento presidencial.
C o m e a m o s a ser j o g a d a s u m a a u m a c o n t r a o s
homens.
Um tal de Carlos gritou que ia comear o
futebol e n u n c a i m a g i n r a m o s que ns seramos a bola
c o m que os nove tarado se i a m divertir.
O primeiro
p o n t a p q u e s e n t i n a s costas, v i o l e n t o , a t e r r o r i z a n t e ,
jogou-me na direo de Oswaldo que, sorrindo, me rec e b e u e c o m u m esforo h e r c l e o a t i r o u - m e p a r a o a r ,
fazendo-me estatelar no cho atapetado, de pernas
113
* *
vida,
doutor?
perguntei
d i f c i l de p r o g n o s t i c a r .
certo, p o r m que
n o p r i m e i r o a t a q u e d e h e m o p t i s e ela n o r e s i s t i r . V e i o
m u i t o tarde para o hospital. ..
Cludia no resistiu u m a semana, falecendo d u r a n t e
um terrvel ataque de hemoptise. F o r a o presente que
o alto funcionrio do I B C , e hoje P r o c u r a d o r da R e p blica, dera j o v e m que o f o r a p r o c u r a r , p a r a obter u m a
vaga n u m sanatrio.
A o s v i n t e a n o s , a d e s i l u s o , seg u i d o s de t r s a n o s de d e s c r e n a . S a l c a n o u a f e l i c i d a d e aos 2 4 a n o s , c o m a m o r t e q u e , f i n a l m e n t e , l h e
deu o descano merecido.
A s f a r r a s d o a p a r t a m e n t o p r e s i d e n c i a l so a t h o j e
p a g a s pelos c o f r e s p b l i c o s . . .
116
VII
O T i o a m a a Diana, sim Adelaide!
Isto um absurdo, Ins. N o acredito. T u d o
n o p a s s a d e u m p l a n o dessa s r d i d a v i s a n d o d e s t r u i r
o coitado. T e n h o c e r t e z a . . .
O l h e , sua tola.
E u posso p r o v a r o q u e e s t o u
d i z e n d o . D i g o m a i s : s o u a n i c a q u e sei dos e n c o n t r o s
q u e t m h a v i d o e n t r e o s dois n a C a s a d e H s p e d e s !
E u o s v i pelo m e n o s u m a v e z e n t r a n d o l ! C h e g a isso?
Fiz-me de incrdula:
T o d o o s a n a t r i o s a b e r i a disso se fosse v e r d a d e ,
Ins.
N o t e n h o a l n g u a solta, o r a ! Recorda-se q u a n d o v o c m e c o n t o u o q u e o c o r r e r a e n t r e o s dois n a q u e l a
n o i t e , n o i n t e r i o r d o a p a r t a m e n t o dela?
N a d a disse a
n i n g u m , m a s o fato que todo m u n d o sabia, no dia
seguinte. A discusso em v o z alta despertou as v i z i n h a s
e todas v i r a m q u a n d o o T i o saiu do a p a r t a m e n t o de
Diana.
A c h o q u e o f a t o s e r v i u de lio e a g o r a eles
se e n c o n t r a m fora do prdio, na Casa de Hspedes. N o
acredito que u m a m u l h e r b r a n c a se v submeter a um
n e g r o p o r u m s i m p l e s c a p r i c h o . O u ele gostoso m e s m o . . . o u ela g o s t a dele. A c a b o u - s e , p r o n t o . isso s i m ,
queira ou no queira, sua palhaa!
Pois
limpos. ..
vou
investigar
porei
tudo
em
pratos
117
Na e n t r a d a
movimento, sem
Que bosta!
Silncio!
Olhe!
121
Upa!
Q u e m ser?
Juro
* *
O que a fez
T i o i n q u i r i u - a c o m o s olhos.
A Casa de Hspedes, T i o !
seguro, discreto, formidvel?
Q u e r refgio mais
tartamu-
Olhe!
E D i a n a e x i b i a , c o m o s e fosse u m t r o f u , a c h a v e
da residncia de hspedes do S a n a t r i o S. Pedro.
D i a n a , por favor, deixe de loucuras!
Isto tudo
ainda vai acabar muito m a l !
Seja compreensiva!
N o me deixe esperando m u i t o tempo, T i o .
H o j e , a u m a da m a n h , estarei no interior da Casa de
Hspedes, esperando voc. A t l.
D i a n a se r e t i r o u , lesta, s e m se voltar. No corredor
t o m o u a s m e s m a s p r e c a u e s e , p o u c o depois, d e i t a d a
d e costas o l h a v a f i x a m e n t e o t e t o b r a n c o d e s e u q u a r t o ,
ao m e s m o tempo que, nervosa, esfregava as mos.
No apartamento fronteiro ao seu Ins a n d a v a de
um canto para outro, no menos inquieta.
De quando
em quando parava no centro do quarto.
Meditava e
logo v i n h a u m desabafo:
125
est
voc,
Diana?!...
Onde...
eu...
negro
afastou-se,
evitando
contato
D i a n a . . . no adianta.
Eu sou o mdico do
S a n a t r i o ! O mdico do Sanatrio, compreende?
D i a n a estava p a r a d a no meio do q u a r t o , como a
e s t t u a de c a r n e de u m a deusa. Seus olhos refulgiam
129
na semi-escurido que se fizera no aposento com o pequeno facho de luz oriundo da cama.
Ela pareceu ficar impaciente:
Ora, Tio, se voc veio at aqui, t e m que completar sua visita! Vamos deixar de besteira! voc a c a b a
m e enervando!
D i a n a , eu vim at a q u i querendo lhe m o s t r a r
que sou b a s t a n t e forte p a r a resistir aos seus encantos.
Possu-la n o seria problema. Mas eu sou dono daquilo
que voc n o acredita que ns, os negros, temos: m o r a l ,
conscincia, respeito. Vim at aqui p a r a lhe dizer q u e
deixe de ser louquinha. Agora, neste m i n u t o , voc vai
se vestir e r e t o r n a r ao seu a p a r t a m e n t o !
Tio, n o brinque comigo, estou lhe advertindo!
. . . ou a m e a a n d o ?
I n t e r p r e t e como quiser, m a s voc vai t i r a r essa
roupa, de q u a l q u e r m a n e i r a !
Ser que insensvel?
No est me vendo?
No t e n h o aquelas formas que
a t r a e m u m h o m e m ? Ser que v o c . . .
O dr. Sebastio i n t e r r o m p e u - a :
Pare, m e n i n a !
Seus a r g u m e n t o s n o podem,
modificar m i n h a posio de respeito, aquele respeito q u e
devo ter, n o s por voc, como pelas o u t r a s doentes
que se a c h a m sob os m e u s cuidados profissionais!
Cuidados profissionais! disse a moa cerrando
os dentes, n u m desdm afrontoso, o qual j d e m o n s t r a v a
estar se t o r n a n d o possessa.
Diana...
Onde j viu negro ser mdico?
130
Como voc
pretensioso!
Voc vai agora decidir: ou me possui ou
compra u m a inimiga irreconcilivel p a r a sempre!
O dr. Sebastio olhou-a, por longo tempo.
Seus
lbios t r e m i a m e seu rosto, afogueado, assemelhava-se
ao de um enfermo m u i t o febril.
Neste i n s t a n t e , jovem, eu vejo como sou m a i s
elevado que voc! Sou negro, sim, m a s t e n h o pelo m e u
s e m e l h a n t e aquele respeito que lhe falta desde t e n r a
idade.
No sinto medo de s u a s ameaas!
Virou-se, enraivecido, e t o m o u o r u m o da p o r t a de
sada da Casa de Hspedes.
Diana pareceu ficar e n d e m o n i n h a d a . Correu ao seu
encontro e t e n t o u atingir-lhe a cabea com os p u n h o s
cerrados:
Desgraado! Desgraado!
Voc me p a g a r caro por isto!
DIANA."
O dr. Sebastio ficou com a c a r t a em suas m o s
d u r a n t e m u i t o tempo, de p, olhando, v a g a m e n t e , pela
janela.
"Oh!
Meu Deus, que fiz p a r a s u p o r t a r esta
provao? Ela n o desiste de me t e n t a r ! No desiste!"
m u r m u r a v a , m e n e a n d o a cabea. "Bem, irei. No
devo d e m o n s t r a r fraqueza, n e m t a m p o u c o medo de s u a
pessoa. Afinal pode ser r e a l m e n t e algo i m p o r t a n t e . Mas
j u r o , a m i m mesmo, que a l t i m a vez que vou q u e l a
m a l d i t a C a s a ! " e atirou, com revolta, a c a r t a de
Diana na cama.
A discusso que houve e n t r e os dois, mais u m a vez
foi violenta.
Por todas m a n e i r a s , D i a n a queria u m a
a t i t u d e do mdico, em relao sua posse.
Parecia
Guaruj,
u m a obsesso da linda ex-miss
Na verdade, n o queria n a d a . O bilhete fora m a i s
um ardil p a r a a t r a i r o mdico negro quele local e
t e n t a r seduzi-lo.
133
E r a m m a i s d e d u a s e meia d a m a n h q u a n d o a m b o s
s a r a m , a m u a d o s um com o outro. Lentos, silenciosos,
c a m i n h a v a m em direo ao prdio do Sanatrio, prximo s rvores frondosas. Nisto ouviram u m m u r m r i o
de vozes e o r u d o de pisadas nos p e d r e g u l h o s .
Diana, voltou-se, ligeira, a p a v o r a d a :
Tio, vem gente!
ali!
O b a r r a c o de lenha!
Corra, D i a n a !
Vamos, escondamos-nos
No fale n a d a !
Vamos
As d u a s pessoas p a s s a r a m r e n t e s ao b a r r a c o .
O l h a r a m , displicentemente, p a r a o seu interior.
No
p a r a r a m e s e g u i r a m p a r a o prdio do Sanatrio.
O dr. Sebastio respirou, aliviado, e p a s s a n d o o
leno n a t e s t a m u r m u r o u :
E s t vendo no que d o s u a s loucuras? Eu n o
t i n h a n a d a que e s t a r fazendo aqui. Vim s p a r a saber
o que voc queria. Calculou se nos vissem? Seria difcil convencer essas t e s t e m u n h a s que estvamos a p e n a s
conversando, s trs h o r a s d a m a n h , n a p o r t a d a Casa
de Hspedes!
134
135
VIII
O dia a m a n h e c e r a r u i m p a r a Lilia, u m a jovem
riograndense q u e estava h m a i s de seis meses intern a d a no Sanatrio.
Os acessos de tosse se sucediam
desde a s seis h o r a s d a m a n h . N i n g u m pde c o n t i n u a r
dormindo, apesar d a m a d r u g a d a a n o r m a l que h o u v e r a
no Sanatrio. O dr. P e d r o j fora c h a m a d o e lhe m i n i s t r a v a remdios, no af de c o m b a t e r a tosse e evitar
q u e a m e s m a se transformasse na sempre t e m i d a h e moptise. O a p a r t a m e n t o de Lilia situava-se t a m b m na
ala " b " .
E s t a moa era u m a das boas amizades q u e
formei d u r a n t e a h o s p e d a g e m no S a n a t r i o So Pedro.
Gostava mesmo dela.
Conversamos b a s t a n t e , d u r a n t e
vrios dias, e n o me lembro de t e r tido c o n h e c i m e n t o
de histria m a i s escabrosa envolvendo m e m b r o s de u m a
sociedade, p r i n c i p a l m e n t e em se t r a t a n d o d a s elites
riograndenses, g e r a l m e n t e notvel pela discrio.
A g u a est boa?
Posso ir a t a t a m b m ?
M u d a s , e s p a n t a d a s , n u m a situao p r a t i c a m e n t e
sem sada, a m b a s n o responderam. Ele insistiu:
Como q u e u m a loira t o l i n d a assim n a s c e u
sem lngua? O problema de vocs isto.
E, cnico, com ar vitorioso, exibia as r o u p a s d a s
d u a s jovens, soltando u m a g a r g a l h a d a sonora.
Moo, por favor, v embora, o senhor n o poderia
escolher o u t r a h o r a p a r a falar com a gente? implorou,
quase chorosa, M a r g a r e t h .
Uai! Qual a diferena em conversarmos agora,,
aqui, ou em o u t r o l u g a r ?
Ser que o senhor n o c o m p r e e n d e ? . . .
O moo t i n h a requintes m e s m o perversos.
Riu
m a i s alto. Fez u m m o n t i n h o d a s r o u p a s d a s d u a s moas e sentou-se sobre o mesmo. No dedo indicador da
137
Agora v embora.
P u x a , como
* *
Somente a l g u m a s esto se
139
a r r i s c a n d o e s vezes h correrias. H a t r u m o r e s de
grossa p i c a r e t a g e m nesse negcio e n o podemos nos
e n t r e g a r n a s m o s de q u e m pode, a m a n h , sem o m e n o r
escrpulo, nos denunciar. Isto, velho, d cadeia! Lembra-se do " e s t o u r o " d a q u e l a firma estrangeira, l em
So Paulo? Caiu a t na concordata.
N a t u r a l , lgico!
Eles foram longe demais. A
g a n n c i a , somente a g a n n c i a que leva u m a empresa,
nesse negcio, p a r a o vinagre. Podemos g a n h a r r.isso
m a i s d e u m bilho cada u m , h o m e m !
No sei, n o s e i . . .
E se fracassar?
Eu...
O i n d u s t r i a l era um h o m e m riqussimo. D o m i n a n d o
u m a d a s maiores siderrgicas d o pas, possua a i n d a , n a
regio de Bag, no sul-leste do Rio G r a n d e do Sul, grandes fazendas onde a l g u m a s c e n t e n a s de operrios t r a balhavam.
O dinheiro l h e v i n h a fcil.
Dedicava-se
t a m b m p e c u r i a possuindo cerca de 20 mil cabeas
d e gado. E r a , porm, d e u m a g a n n c i a sem limites e m
se t r a t a n d o de dinheiro. P a r t i c i p a v a de q u a l q u e r negoc i a t a desde que esta lhe rendesse m a i s a l g u n s milhes
e x t r a s . P r o c u r a , e n t r e t a n t o , sempre fugir da responsabilidade: o diretor-secretrio, geralmente, era q u e m assum i a o n u s dos problemas m a i s graves, p r i n c i p a l m e n t e
q u a n d o estes a m e a a v a m vir a pblico.
Esse g r a n d e poder financeiro do i n d u s t r i a l lhe perm i t i a a obteno d a s m e n i n a s que ambicionava.
Seu
secretrio fazia as viagens pelo interior, visitando, demor a d a m e n t e , Passo F u n d o , Pelotas, Caxias do Sul, G u a p o r .
As vezes ia a t S a n t a n a do Livramente, l em baixo,
quase na divisa com o U r u g u a i .
Utilizava-se de seu
avio p a r t i c u l a r , o que sempre impressionava m u i t o . . .
A escolha era efetivamente meticulosa. Ele, como
g r a n d e conhecedor de gado, ia inspecionar o r e b a n h o e
a p o n t a r a novilha m a i s c a r a . . .
No caso de e n c o n t r a r
c a r n e m a i s saborosa, que d e l c i a ! . . .
Passo F u n d o , porm, era a cidade que m a i s fornecia
c a r n e h u m a n a , fresca, saudvel, jovem, fome incontrolvel da d u p l a de libertinos.
O q u e h a v i a de revoltante nessa escolha era o tipo
de moa a t a c a d a pelo secretrio, n a s suas a n d a n a s pelo
interior do Estado: p r o c u r a v a sempre as famlias m a i s
miserveis e que viviam na periferia d a s cidades. Aos
poucos ia se i n s i n u a n d o j u n t o s m e n i n a s a p a r e c e n d o
144
tudo, inclusive
" c o m p r o u " no
Ainda sou m e que ele n u n c a
E n q u a n t o as d u a s infelizes confessavam e n t r e si
s u a s desditas, o noivo de M a r g a r e t h comeava a ter os
primeiros g r a n d e s tropeos financeiros. O negcio da
148
Vou
disso n u m a
Foi q u a n d o aconteceu o que n e n h u m dos dois esper a v a : Llia compareceu polcia e denunciou o presidente
da g r a n d e i n d s t r i a como corruptor de menores.
Ela
era a p e n a s u m a das i n m e r a s vtimas!
O escndalo tomou propores gigantescas. E r a
a s s u n t o obrigatrio de todas as rodas. Os reflexos na
i n d s t r i a e r a m terrveis. Os jornais, rdio e televises
se dividiram na defesa do industrial.
As o u t r a s men i n a s que t i n h a sido seduzidas pelo industrial se apresent a r a m polcia. Alguns a f i r m a v a m que era u m a c h a n t a g e m que se estava p r e p a r a n d o c o n t r a a empresa
desmoralizando-se o seu dirigente m x i m o . Muitas das
depoentes e r a m p r o s t i t u t a s fichadas. No havia, na
realidade, n e n h u m a prova palpvel.
As moas foram
a p o n t a d a s opinio pblica como freqentadoras de
bordis e o rumoroso escndalo ia g a n h a n d o mbito
nacional.
Ao todo foram i n s t a u r a d o s 19 processos c o n t r a o
libidinoso industrial!
Do lado do diretor-secretrio a situao estava n o
menos terrvel. Atravessando u m a fase financeira das
m a i s difceis, com seu ex-amigo fazendo a m e a a s espantosas, foi obrigado a repor p a r t e da q u a n t i a : m a i s da
metade.
A s u a a m a n t e estava n o v a m e n t e grvida e ele precisava casar r a p i d a m e n t e . T u d o acontecera to de
r e p e n t e que ele estava quase louco.
Naquela noite estava a c a b r u n h a d o , q u a n d o chegou
rica m a n s o onde morava, em c o m p a n h i a da a m a n t e
e da genitora desta:
Perdi milhes em um negcio m a l conduzido!
m u r m u r o u , q u a n d o interpelado pela a m a n t e .
151
T e m , sim!
E u sei que t e m !
Pea dinheiro
emprestado a eles!
Ora, deixem-me em paz! Vocs n o viviam n u m
casebre, com parcos recursos, no interior? Pior q u e
agora n o podemos viver todos j u n t o s ?
Eu caso com
s u a filha e pronto, tudo fica l e g a l . . .
Nunca!
Voc t e m que remediar esta situao!
exclamou, decidida, a m e de M a r g a r e t h , que por
sua vez, n o parecia m u i t o preocupada com a perspectiva
do seu futuro.
No ligue p a r a isto, m a m e .
Todos os m e u s
sonhos foram desfeitos mesmo.
T e n h o u m a filha de
quase um ano, um outro de quase ms e meio no ventre,
e n e m sequer sou casada! T e n h o u m a vida falsa, m e n tirosa, s escondidas de todo o m u n d o . Quer escndalo
maior se descobrissem que eu t e n h o um filho ilegtimo?
Que a noiva do diretor da m a i o r siderrgica do pas
est grvida pela s e g u n d a vez? Que sou m e solteira?
Sinceramente, m a m e , a n d o t o desiludida que seria
maravilhoso se voltssemos mesmo p a r a o interior, longe
desse bulcio, dessa elite corrompida, falida, i m u n d a !
A dicusso e n t r e os trs se prolongou d u r a n t e m u i t o
t e m p o ainda, q u a n d o o ex-secretrio, de repente, p a r o u
de falar p a r a abrir os olhos, imprimindo-lhes um brilho
maquiavlico. Estalou os dedos e exclamou, eufrico:
152
Eureca!
Descobri a sada!
Descobri!
Ah!
*
Os negativos!
*
Agora ele me
Quanto?
Quanto?
No quero m u i t a conversa!
Trezentos milhes!
Voc est ficando louco!
muito!
sepulcral
na
ampla
sala
da
Espere, c a n a l h a !
Eu dou o dinheiro!
No
possvel, contudo, d a r de u m a s vez. Darei em trs
parcelas.
t i m o , vejo que j comeou a t o m a r juzo. Mas
os negativos, s os ter, na totalidade, q u a n d o efetuar
o l t i m o p a g a m e n t o . O.K.?
D a q u i a u m a s e m a n a darei a primeira parcela
d e 100 m i l h e s . . . e . . .
E s t timo!
timo!
timo! interrompeu
o e x - s e c r e t r i o . Mas h algo m a i s que desejo: a p a r e n temente fizemos as p a z e s . . .
155
ltimo
Quero
mento
Impossvel!
fez comigo!
por ocasio do
vou me casar.
n u m aconteciAlegre.
A igreja estava m a r a v i l h o s a m e n t e o r n a m e n t a d a de
rosas b r a n c a s . O rgo d e r r a m a v a no recinto os acordes
da m a r c h a nupcial, e n q u a n t o o coro, bem ao fundo,
t o r n a v a m a i s suave a i n d a o interior do templo superl o t a d o , repleto de amigos e curiosos que desejavam ver
a ourssima e linda noiva do a n o !
L estava o Governador do Estado, em pessoa, prestigiando a solenidade religiosa. Todo o secretariado do
governo achava-se presente e as figuras m a i s represent a t i v a s da sociedade exibiam os custosssimos trajes.
E r a o g r a n d e acontecimento social da cidade!
157
IX
Tenho a t hoje m a r c a d o s , indelevelmente em m e u
esprito, os horrores das cenas a que assisti e que j a m a i s
olvidei. Parece-me, a t agora, que fui, n a q u e l a s h o r a s ,
a t r a d a espiritualmente p a r a aquele local, e Deus me
deu a infelicidade de ver aqueles acontecimentos p a r a
que fosse t e s t e m u n h a do crime!
Naquela noite sara com o dr. Pedro p a r a d a r u m a s
voltas e esquecer, m o m e n t a n e a m e n t e , os problemas que,
n a s l t i m a s horas, h a v i a m surgido no Sanatrio.
A Madre t i n h a conversado seriamente comigo e
t u d o indicava que ela estava b a s t a n t e aborrecida com
os fatos ocorridos na l t i m a m a d r u g a d a , envolvendo o
t u r i s t a de Campos do J o r d o e Ins.
Por mais q u e
a r g u m e n t a s s e , foi-me de todo impossvel convencer a
responsvel pelo Sanatrio que eu n a d a tivera com a
sada da jovem tuberculosa.
Ela, pelo m e n o s no seu
ntimo, entendia que eu havia persuadido Ins a passear
comigo e o resultado fora aquele escndalo que a c o r d a r a
todo o hospital, s trs h o r a s da m a n h !
Prometera Madre que nos prximos dias, e n t o ,
deixaria S. Pedro, a fim de que n o me fossem a t r i b u d a s
as peraltices d a s enfermas.
Foi u m a d a s l t i m a s vezes que me avistei com a
Madre. E, desde aquele i n s t a n t e em que conversramos,
e n t r e i em g r a n d e m u t i s m o , tristeza que n e m as m a l u quices de Belinha e I n s conseguiram modificar.
159
c o m e a r a m a riscar
borrasca inesperada:
o cu
negro, a n u n c i a n d o
uma
era
imperativa,
mas
denotava
161
exclamei,
a p a v o r a d a e sobr-
Tudo
Bata mais!
Mais!
Mais! gritava
como que t o m a d a de intenso histerismo.
Diana,
Os relmpagos i l u m i n a v a m r e p e t i d a m e n t e aquela
cena ttrica e eu me sentia desfalecer de pavor.
Mata!
Mata!
Perdi os sentidos.
Acorde!
Estou a i n d a
Menina!
Houve um crime pavoroso esta noite
no Sanatrio! M a t a r a m o noivo de D i a n a a p o r r e t a d a ,
l d e n t r o do depsito de lenhas! H um rebulio d a n a d o
a! Vamos, levante, porque a coisa est feia mesmo!
P r e n d e r a m o criminoso? quis saber, quase
fora de m i m .
Sim, querida, e n o podia ser m e s m o outro.
P r e n d e r a m o dr. Sebastio! A D i a n a fez um banze dos
diabos!
Ela est inconsolvel, coitadinha!
Desgraada! Aquela desgraada! Assassina, desgraada! gritei, l e v a n t a n d o os p u n h o s cerrados.
U!
com voc?
E s t ficando louca?
atormentava.
165
Um sorriso
m i d o despontou no c a n t o de m e u s lbios.
Retornei
aos m e u s aposentos e p e r g u n t e i , com ar ingnuo, a I n s :
O que e s t a r aquele polcia fazendo na p o r t a do
a p a r t a m e n t o de D i a n a ?
Ora, todo
assassino. Alis,
qualquer m a n e i r a
fizer declaraes,
Presa? I n t e r r o m p i .
. . . n . . . n . . . no.
Sob custdia policial, digamos. melhor, soa m e l h o r . . . Afinal q u e m m a t o u
foi um preto nojento.
Ou voc a c h a que D i a n a iria
m a t a r o prprio noivo? Alm do mais aonde iria buscar
fora p a r a l e v a n t a r aquele porrete e descer na cabea
do coitado? Dizem que a m a d e i r a utilizada deste
t a m a n h o . . . e, com as mos, I n s p r o c u r a v a m o s t r a r
as dimenses da a r m a do crime.
B e m . . . ela poderia se valer do auxlio de
a l g u m . . . insinuei, p r o c u r a n d o d e m o n s t r a r u m a
c a l m a que n a realidade n o possua.
Ora!
Qual o interesse?
No sei, no.
Talvez t u d o isto seja besteira.
Nem atino o porqu de nossa c o n v e r s a . . .
Espere!
Voc despertou algo que talvez t e n h a
f u n d a m e n t o . Veja bem: D i a n a n o v i n h a u l t i m a m e n t e
saindo com o mdico negro?
Fiz-lhe um gesto sem sentido, n a d a respondendo
efetivamente.
M u i t o bem.
Que eles estavam se e n c o n t r a n d o
na Casa de Hspedes, n e m voc t e m dvidas. Ns d u a s
167
169
c o m e a r a m a me a t o r m e n t a r . No t i n h a mais paz de
esprito.
J h a v i a combinado com a Madre que iria
m e s m o embora. O crime que me segurou m a i s tempo.
Comecei a a l i m e n t a r a idia de sair i m e d i a t a m e n t e do
S a n a t r i o e ir a So Paulo. Ficaria a l g u n s dias na
Paulicia e depois d e t o r n a r i a a Campos do J o r d o p a r a
visitar o dr. Sebastio.
Ainda n o a d q u i r i r a c o r a g e m
p a r a faz-lo. No sabia como encar-lo. Aquelas m o s
acendendo o cigarro na escurido do depsito de l e n h a s ,
e o b a r u l h o ensurdecedor da c h u v a caindo no t e t o de
zinco do depsito, q u e i m a v a m - m e o crebro.
As idias foram crescendo em m i n h a cabea e logo
resolvi concretiz-las. Despedi-me quase de r e p e n t e de
Belinha e Ins e p a r t i p a r a S. Paulo, onde procurei me
refazer dos aborrecimentos, e n t r e g a n d o - m e faina diria
do lar.
Os jornais aos poucos foram esquecendo o crime e
os cinco dias que p r e t e n d i a passar na Capital, na realidade se p r o l o n g a r a m pelo espao de q u a t r o meses.
A decepo que sofrera com o dr. Sebastio, porm,
n o saa n u n c a de m i n h a cabea. Vez por o u t r a , quedava-me introspectiva, lembrando-me de s u a infncia, de
todo o sofrimento por que p a s s a r a a n t e s de a t i n g i r a
faculdade e colar g r a u .
F o r a t o d a u m a existncia de
sacrifcios que de repente se desmoronava.
Um moo,
cheio de vida, ficaria m a i s de a n o s a t i r a d o ao fundo
de um crcere. No ntimo, eu entendia, t u d o t i n h a como
origem o racismo q u e d o m i n a v a as castas privilegiadas.
No fora aquelas posies a n t a g n i c a s das incompreensvel Diana, e c e r t a m e n t e a t r a g d i a n o teria m a r c a d o ,
assim, indelevelmente, a vida do mdico negro.
Estava, por o u t r o lado, a b a l a d a por t r e m e n d a dor
de conscincia. Assistira, afinal, ao crime. D i a n a havia
174
de
profunda
fraqueza
Acredita?
No consegui arti-
Virou-se p a r a mim.
terrveis:
ciai e c e r t a m e n t e s na J u s t i a
causdico "ad hoc".
seria
nomeado
um
Ins foi c h a m a d a t a m b m p a r a depor. Ela confirm o u aquela cena que assistramos na noite do baile de
r e a b e r t u r a d a t e m p o r a d a , n o G r a n d e Hotel, q u a n d o
vramos os dois saindo da Casa de Hspedes e depois
se refugiarem no depsito de l e n h a .
Vrias enfermas foram ouvidas sobre a discusso
h a v i d a c e r t a noite no interior do a p a r t a m e n t o de D i a n a
com o mdico negro.
Toda a tor.peza sexual foi sendo
posta tona, n u m inqurito que desmascarava, lenta e
inexoravelmente, u m a elite que cada dia apresentava
seus bastidores apodrecidos.
Um e m a r a n h a d o de fatos foi, aos poucos, t o m a n d o
corpo d e n t r o da pea policial. D i a n a parecia irremediavelmente e n r e d a d a no inqurito.
Vrias contradies i a m sendo a n o t a d a s pela autoridade policial, naquele famoso depoimento, e que a n t e s
era pea basilar do processo.
Os contatos de m e u advogado com o dr. Sebastio
foram sendo m a i s ntimos e finalmente o mdico exibiu
o famoso bilhete que D i a n a lhe dirigira certa noite,
rogando a sua ida Casa de Hspedes.
Aquele d o c u m e n t o modificou toda a posio da polcia que se viu obrigada, apesar da presso dos advogados da famlia de D i a n a a ouvi-la n o v a m e n t e .
Um
infindvel n m e r o de pontos obscuros precisariam, afin a l , ser esclarecidos pela moa. Tudo, na pea policial,
indicava que D i a n a havia faltado verdade e passara,
de repente, t a m b m , condio de r, naquele rumoroso
processo criminal!
177
Voc h de
179
XI
Amaldio-o a t o fim de s u a existncia, negro
malagradecido! Eu o recebi na m i n h a casa q u a n d o voc
era u m p r e t i n h o m a l t r a p i l h o , a b a n d o n a d o , sem pai n e m
m e ! Eu lhe dei um lar, roupa, remdio, s a d e e c u l t u r a
p a r a que, como p a g a , voc levasse a desgraa p a r a
d e n t r o da m e s m a casa que o acolheu: m a l d i t o seja, Tio,
at o seu l t i m o s e g u n d o de vida!
" S e u " Jorge, juro-lhe que j a m a i s toquei n u m fio
de cabelo de sua filha!
T u d o n o passa de m e n t i r a !
Sim, m e n t i r a , sim! E aquele ser m a l d i t o q u e
est sendo gerado no ventre de m i n h a filha?
No sei "seu Jorge, m a s posso lhe assegurar que
aquilo n o m e u ! Preferiria m o r r e r !
Deus t e s t e m u n h a que s permiti a sua e n t r a d a
em m i n h a casa p a r a salvar m e u filho que definhava!
Agora, do outro lado, ele deve estar assistindo, c o n t r a riado, revoltado, ao resultado de seu carinho, de seu
corao m a g n n i m o !
O pai de D i a n a , exteriorizado profundo dio nos
olhos, a c a b r u n h a d o , a r q u e a d o sob o peso da desgraa q u e
se a b a t e r a sobre seu lar, n o permitiu que o dr. Sebastio
falasse mais u m a s palavra. Virou-se, spero, e deixou
a cela onde o mdico negro estava encarcerado.
O facultativo engolia em seco, de p, sem n e n h u m
movimento. Os olhos p a r a d o s n o seguravam, as grossas
l g r i m a s que a evidncia dos fatos que o c o n d e n a v a m .
180
"No a d i a n t a m a i s a r g u m e n t a r , m e u Deus!
T u d o foi mesmo c u i d a d o s a m e n t e p r e p a r a d o p a r a me incriminar.
Vou ser condenado por essa h i d r a de mil
cabeas que a elite!"
O pai de Diana, ao deixar a cadeia pblica de C a m pos do Jordo, dirigiu-se d i r e t a m e n t e p a r a o Sanatrio,
a fim de m a n t e r u m a entrevista com s u a filha.
A r e u n i o havida, a n t e s , e n t r e o pai da jovem, o
doutor P e d r o e a Madre, foi e n t r e c o r t a d a de lances
violentos, de frases chocantes.
. .. e, n o possvel fazer-se u m a operao, agora
ainda que h a j a risco de vida p a r a m i n h a filha? perg u n t a v a o desesperado e inconformado pai, dirigindo-se
ao mdico.
Foi a Madre q u e m respondeu pelo dr. Pedro:
Dr. Jorge, o que isto? Quer arriscar a vida
de s u a prpria filha? E por que o aborto? Isto um
crime que Deus, Nosso Senhor, j a m a i s perdoa!
A resposta do pai de D i a n a foi c o r t a n t e , m o r d a z :
A senhora, Madre, n o es em condio de pond e r a r coisa a l g u m a ! No c u m p r i u o seu dever de zelar
por m i n h a filha. Foi na casa que a senhora dirige que
ela foi possuda por um negro!
O filho que est no
ventre de Diana, se nascer vivo, p a r a m i m um ente
morto, desde j!
No quero saber da sua existncia,
do seu nome, n e m do seu destino! Prefiro ver, sim, a
m i n h a filha m o r t a a ser m e de um negro! A s e n h o r a
culpada por t u d o o que est acontecendo!
A Madre levantou-se. Ficou erecta. Suas bondosas
feies d e m o n s t r a v a m dor pelas palavras ferinas q u e
recebera em pleno rosto. Seus olhos, porm, n o t i n h a m
181
P e r d o a i - m e , S e n h o r , m a s n o est e m m i m t o m a r
o u t r a deciso. M e u e s p r i t o a s s i m m e s m o , i n t o l e r v e l ,
doentio!
N o poderei agir de o u t r a m a n e i r a , J e s u s ! "
E c o m essa f i x i d e z d e p e n s a m e n t o , l e v a n t o u - s e r pido, dirigindo-se p a r a o a p a r t a m e n t o onde a filha
estava internada.
Na porta do quarto de D i a n a , p a r o u por a l g u m t e m po.
S u a s m o s v r i a s vezes f i z e r a m m e n o d e g i r a r
a m a a n e t a , r e c u a n d o , s e m p r e t r m u l a s . N o s seus o l h o s
h a v i a m um brilho estranho.
F i n a l m e n t e decidiu-se e
avanou escancarando a porta.
A m o a a s s u s t o u - s e c o m a e n t r a d a r e p e n t i n a do
seu p a i . E l a , n a v e r d a d e , e s t a v a h a v i a m u i t o e s p e r a n d o
esse e n c o n t r o . S e m p r e q u e n e l e p e n s a v a , u m t r e m o r a
p e r c o r r i a p o r i n t e i r o . S e n t i a - s e a p a v o r a d a a n t e a possib i l i d a d e de t e r q u e e n f r e n t a r o p a i .
O sr. J o r g e f e c h o u , d e v a g a r i n h o , a p o r t a a t r s de
si.
O l h o u sua filha demoradamente.
Ele parecia que
ia f r a q u e j a r a n t e os p r o p s i t o s q u e o t r o u x e r a m at a l i .
M a s , de r e p e n t e , e n r i j e c e u o o l h a r e f a l o u s p e r o e d e c i dido c o m a j o v e m :
T u d o o que me era possvel fazer p a r a que nossa
f a m l i a n o fosse e n l a m e a d a pelo s e u gesto i n d i g n o f o i
t e n t a d o . N a d a m a i s s e pode f a z e r ! E s s a d e s g r a a q u e
v o c est g e r a n d o v a i m e s m o n a s c e r !
Hoje a ltima
vez que a vejo em m i n h a v i d a ! Seu n o m e est riscado
d o seio d e n o s s a f a m l i a ! V o c n o m a i s m i n h a f i l h a !
N s a r e p u d i a m o s e a a m a l d i o a m o s ! i n d i g n a de l e v a r
o n o m e h o n r a d o que lhe dei!
V o c est p a r a t o d o c
sempre proscrita de nossa famlia!
Maldita! Maldita!
M i l vezes m a l d i t a !
O sr. J o r g e v o l t o u - s e t o r p i d o q u a n t o e n t r a r a e
183
O delegado de polcia de C a m p o s do J o r d o c h e g o u
a tornar-se impertinente.
Queria, a qualquer custo,
o u v i r D i a n a . O processo estava parado, sofrendo soluo
de continuidade. As ordens mdicas, p o r m , e r a m t a x a tivas. A m o a estava p r o f u n d a m e n t e debilitada, e n t r e g u e
a u m a prostrao geral, sem nimo para nada. O choque
d a deciso d o p a i a c a b a r a p o r a r r a s t - l a obsesso d o
suicdio!
U m a polcia f e m i n i n a foi posta no interior do
a p a r t a m e n t o d e D i a n a , n u m c o n t n u o r e v e z a m e n t o , por
determinao do delegado e total exigncia mdica.
Diana no fazia um s movimento no interior do
s e u a p a r t a m e n t o sem. t e r a o s e u l a d o a v i g i l n c i a c o n s tante de sua guarda.
A s p r p r i a s necessidades fisiolgicas e r a m feitas n a p r e s e n a d a p o l i c i a l f e m i n i n a e
u m a enfermeira.
N o r a r a s vezes aquelas severidade causava exploses t e r r v e i s e m D i a n a , o c a s i o e m q u e p r e c i s a v a ser
a c a l m a d a a p o d e r de i n j e e s , q u e a m u i t o c u s t o l h e
eram ministradas.
O advogado do dr. Sebastio c o n s e g u i r a d e f e r i m e n t o
n u m a petio que fizera ao delegado: esperar-se-ia o
nascimento do filho de Diana.
Em seguida seria feito
o e x a m e de sangue p a r a se p r o v a r , afinal, se era ou
n o filho do m d i c o n e g r o . Esse resultado, c e r t a m e n t e ,
poria um ponto final na pea policial e D i a n a seria,
ou no, arrolada como co-autora.
184
* *
Ela n u n c a
Nunca mais
E ela j a m a i s soube que, no dia da sua m o r t e , cheg a r a a Campos do Jordo, n a s mos do delegado de
polcia, o resultado do exame de s a n g u e : o m e n i n o p r e t o
q u e dera luz n o era filho do dr. Sebastio!
186
* *
atade
O dr. Sebastio ficou longo tempo olhando o envelope, sem coragem para abri-lo.
Q u a n d o o fez, sem sentir, leu-a alto, e todas ns
ouvimos:
"Meu Tio,
Na minha infncia entendia que o odiava.
Quando voc partiu de casa, por minha interferncia pessoal, senti que tinha sido injusta. Voltar
de minha indeciso seria uma fraqueza que a sociedade onde vivi jamais admitiria. Quando o vi novamente, j agora em condies to especiais, quis
revoltar-me contra o desejo que me envergonhava:
amar um negro! E era na realidade o que tinha
por voc: amor! A nossa unio era impossvel pela
posio de nossa famlia. Quis faz-lo meu amante
e voc se recusou. Rebaixei-me, enquanto voc,
cada vez, crescia mais e nobremente.
Tio, voc tem um carter que causa inveja a
muita gente branca da falsa elite em que sempre
vivi. Sei que muito tarde para eu reconhecer
os erros que pratiquei na vida. Mas que estas minhas ltimas palavras sirvam para voc me perdoar
agora que estou morta.
De quem lhe quis muito e por isto, inexplicavelmente, o feriu tanto,
DIANA."
O silncio q u e d o m i n a v a a todos ns era doloroso,
contagiante. Os coveiros, chocados, t i r a r a m seus chepus
e n q u a n t o se c u m p r i a o ltimo desejo da m o r t a . O
a m b i e n t e tornou-se p r o f u n d a m e n t e melanclico.
189
O dr. S e b a s t i o n o c h o r o u , m a s s u a f r a s e at h o j e
martela meus ouvidos:
D i a n a , querida, que na m o r t e encontre a paz que
em vida jamais conseguiu possuir.
*
D i a n a f o r a a l m n a s suas cartas. U m a o u t r a , a c h a d a
e n t r e seus p e r t e n c e s , e s t a v a dirigida ao delegado de polcia na qual fazia completa confisso do seu c r i m e e
i n c l u s i v e esclarecia o caso das r o u p a s e n s a n g e n t a d a s do
dr. S e b a s t i o ;
U m a noite, atravs daquele bilhete que consta do
i n q u r i t o , a t r a i u o m d i c o p a r a a C a s a de H s p e d e s . O
j a r d i n e i r o D i t o e n t r o u n o seu q u a r t o e l h e r o u b o u a
c a m i s a e o t e r n o . A p s m a t a r o n o i v o de D i a n a , s u j o u
a q u e l a s peas d e s a n g u e . E l e m e s m o s e e n c a r r e g o u d e
escond-las e m local q u e n o i g n o r a v a , s e r i a m e n c o n t r a d a s p o r u m dos f u n c i o n r i o s d o S a n a t r i o .
P a r a f a z e r c o m q u e o n o i v o fosse ao depsito de len h a s , n a n o i t e f a t d i c a , D i a n a m e n t i u - l h e sobre o assdio
q u e s o f r i a d a p a r t e d o dr. Sebastio. E p a r a p r o v a r q u e
estava sendo perseguida, a f i r m o u ao n o i v o que m a r c a r a
u m e n c o n t r o n o depsito c o m o f a c u l t a t i v o d e cor.
O
n o i v o a s s i s t i r i a , t e r i a a p r o v a , e c o m isto a m b o s c o n s e g u i r i a m e x p u l s a r o d r . S e b a s t i o do S a n a t r i o .
Foi o
ardil do qual se v a l e u p a r a atrair o n o i v o p a r a a terrvel
cilada.
D i a n a escrevera todas aquelas cartas porque c o n t a v a
matar-se na p r i m e i r a oportunidade. O que n u n c a passara
p o r s u a cabea q u e s u a m o r t e s e r i a t o h o r r i p i l a n t e .
E
190
ausncia
de
seus pais no
seu sepultamento
Apertou m i n h a s m o s
Eu t a m b m a a m a v a . ..
P u s m i n h a cabea no encosto do banco e cerrei as
plpebras. Comecei a sentir a velocidade do automvel
descendo a serra de Campos e i m a g i n a v a os vales floridos e maravilhosos que se poderiam descortinar dali.
No consegui a d m i r a r a paisagem. A frase do dr. Sebastio bailava na m i n h a cabea. No p u d e conter as
l g r i m a s que, teimosas, afloraram nos m e u s olhos.
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