TESE Mirella de Almeida Braga

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA E MUSEOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA

MIRELLA DE ALMEIDA BRAGA

A IDENTIDADE IMPLORADA: as experiências de conversão e retorno dos


judeus do nordeste sob o olhar de instituições judaicas nacionais e internacionais

Recife
2021
MIRELLA DE ALMEIDA BRAGA

A IDENTIDADE IMPLORADA: as experiências de conversão e retorno dos judeus

do nordeste sob o olhar de instituições judaicas nacionais e internacionais

Tese apresentada à Coordenação do Programa de Pós-


Graduação em Antropologia da Universidade Federal
de Pernambuco, como requisito final para obtenção
do título de Doutora em Antropologia. Área de
concentração: Antropologia.

Orientadora: Profa. Dra. Misia Lins Reesink

Recife

2021.
Catalogação na fonte
Bibliotecária Maria do Carmo de Paiva, CRB4-1291

B813i Braga, Mirella de Almeida.


A identidade implorada : as experiências de conversão e retorno dos
judeus do Nordeste sob o olhar de instituições judaicas nacionais e
internacionais / Mirella de Almeida Braga. – 2021.
182 f. : il. ; 30 cm.

Orientadora: Profª. Drª. Mísia Lins Reesink.


Tese (Doutorado) - Universidade Federal de Pernambuco, CFCH.
Programa de Pós-Graduação em Antropologia, Recife, 2021.
Inclui referências e anexos.

1. Antropologia. 2. Judeus – identidade. 3. Judaísmo. 4. Conversão. I.


Reesink, Mísia Lins (Orientadora). II. Título.

301 CDD (22. ed.) (BCFCH2022-036)


MIRELLA DE ALMEIDA BRAGA

A IDENTIDADE IMPLORADA: AS EXPERIÊNCIAS DE CONVERSÃO E


RETORNO DOS JUDEUS DO NORDESTE SOB O OLHAR DE INSTITUIÇÕES
JUDAICAS NACIONAIS E INTERNACIONAIS

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Antropologia da Universidade
Federal de Pernambuco, Centro de Filosofia e
Ciências Humanas, como requisito para
obtenção do título de Doutora em Antropologia.
Área de concentração: Antropologia.

BANCA EXAMINADORA

________________________________________________________________________
Profa. Drª. Mísia Lins Reesink (Orientadora)
Universidade Federal de Pernambuco

____________________________________________________________
Prof. Dr. Antonio Carlos Mota de Lima (Examinador Titular Interno)
Universidade Federal de Pernambuco

______________________________________________________________________
Prof. Dr. Renato Monteiro Athias (Examinador Titular Externo)
Universidade Federal de Pernambuco

________________________________________________________________________
Prof. Dr. Juarez Caesar Malta Sobreira (Examinador Titular Externo)
Universidade Federal Rural de Pernambuco

_______________________________________________________________________
Profª. Drª. Maristela Oliveira de Andrade (Examinadora Titular Externa)
Universidade Federal da Paraíba
Ao companheiro de todas as horas, Emanuel. À minha filha amada, Maria Luiza.
AGRADECIMENTOS

A Deus e à Virgem Santíssima, sem eles nada do que ocorreu e ocorre em minha vida
seria possível.
Ao meu companheiro Emanuel, amor da minha vida. Pelo compartilhar da vida em
família. Por me ajudar, me incentivar e me ouvir. Pelo ombro amigo de sempre. Por me
apresentar a Antropologia.
À minha filha, Maria Luiza, que me fez essa mulher forte que sou. Ser sua mãe é uma
grande dádiva.
À minha mãe Nair, por ser meu espelho de luta e meu exemplo de mulher aqui na terra.
À Hannah, minha filha pet, que trouxe doçura e leveza aos meus dias.
À minha Família, à minha irmã Roberta, à minha sobrinha Maria Eduarda, à minha vó
Diva, à minha sogra Graça e aos meus cunhados, Tiago e Karlos Eduardo, por sempre estarem
presentes para o que der e vier.
À minha orientadora Misía Reesink, pela dedicação com que orientou esta pesquisa.
Gratidão imensa!
Aos Professores Renato Athias e Antonio Motta, pelo acolhimento de minha tese desde
o momento da qualificação do projeto e por todas as contribuições para o presente texto.
À minha querida professora Maristela Andrade, por sempre ofertar com entusiasmo os
caminhos da pesquisa e publicações.
Aos amigos e amigas, meus irmãos e minhas irmãs de fé, que de algum modo se fizeram
presentes em minha vida e estão ao meu lado em tudo o que produzo.
À Natalia Vieira, minha gratidão!
À Universidade Federal de Pernambuco, professore(a)s e funcionário(a)s em geral, pelo
ensino, pelas trocas para além da sala de aula. Gratidão!
Às instituições CAPES e FACEPE, pelo apoio financeiro para a realização do
Doutorado tão sonhado.
Aos meus interlocutores de pesquisa, por todo acolhimento.
“Quem elegeu a busca, não pode recusar a travessia” (GUIMARÃES ROSA, 1986, p. 448).
RESUMO

A presente tese é dedicada aos processos de formação, cisão e reinvenção de comunidades judaicas
em Campina Grande, Paraíba, a partir da descrição analítica das relações vivenciadas por esses
grupos junto a lideranças e instituições do judaísmo estabelecido nos cenários nacional e
internacional. A exemplo de outros conversos atuantes no Nordeste e em outras regiões do Brasil,
os judeus campinenses (que se autodeclaram “Bnei Anussim”, “marranos” ou “sefarditas”) se
constituem, majoritariamente, a partir de dissidências de igrejas evangélico-neopentecostais que
estão em busca de verdades teológicas presentes em livros sagrados (Antigo Testamento da Bíblia
e Torá) e da redescoberta de genealogias sanguíneas de famílias de cristãos-novos que aportaram
no “Novo Mundo” em séculos coloniais passados. De modo bastante diversificado, tais
comunidades se organizam em torno de práticas cotidianas atentas a um calendário de ritos
religiosos, a fim de se tornarem conhecidas e reconhecidas por vertentes reformadas e ortodoxas do
judaímo contemporâneo. Em meio a essas experiências de reinvenção de grupos de conversos, surge
o projeto Sinagoga Sem Fronteiras. Sediado na cidade de São Paulo e com relações com rabinos
reformados radicados em Israel, o Sinagoga Sem Fronteiras propõe um acolhimento “mais
democrático” das comunidades judaicas brasileiras. A presença do projeto em algumas
comunidades campinenses revela a construção de um imaginário repleto de estereótipos sobre o
“judeu nordestino”, considerado periférico em relação ao judeu de migração mais recente,
estabelecido no eixo Rio-São Paulo. As ações da Sinagoga Sem Fronteiras, apoiadas pela Fundação
Zera Israel, têm provocado cisões e articulações de novos grupos de convertidos. Tais relações entre
grupos de judeus estabelecidos e grupos outsiders é acompanhada com certa preocupação pelo
Ministério da Educação de Israel que tem enviado representantes para observação do fenômeno dos
conversos presente em diversas localidades no Nordeste e de outras regiões do Brasil e do mundo.
As ilustres “visitas” da oficialidade judaica visam compreender a dinâmica desses processos
identitários, repletos de questões étnicas, religiosas e políticas, no intuito de tentar monitorar, e
mesmo disciplinar, os imponderáveis de um universo assaz multifacetado.

Palavras-chave: Comunidades judaicas Bnei Anussim; Identidade étnica; Identidade religiosa.


ABSTRACT

This thesis is dedicated to the processes of formation, split and reinvention of Jewish communities
in Campina Grande, Paraíba, from the analytical description of relationships experienced by those
groups with leaders and institutions of established Judaism in national and international scenarios.
Like other active converts in the Northeast and in other regions of Brazil, the Jews from Campina
Grande (self-declared “Bnei Anussim”, “marranos” or “sefarditas”) are constituted, for the most
part, from the dissidences of evangelical neo-Pentecostal churches that seek theological truths
present in sacred books (Old Testament of the Bible and Torah) and from the rediscovery of blood
genealogies of New Christian families that docked in the “New World” in past colonial centuries.
In a very diverse way, these communities are organized around daily practices attentive to a calendar
of religious rites, in order to become known and recognized by reformed and orthodox strands of
contemporary Judaism. In the midst of these experiences of reinvention of converts groups, the
Synagogue Without Borders project is created. Headquartered in the city of São Paulo and with
relationships with retired rabbis based in Israel, the Synagogue Without Borders Project proposes a
“more democratic” reception of Brazilian Jewish communities. The presence of the project in some
communities in Campina Grande reveals the construction of an imaginary full of stereotypes about
the “northeastern Jew”, considered peripheral compared to the Jew of more recent migration,
established in the Rio-São Paulo axis. The actions of the Synagogue Without Borders project,
supported by the Zera Israel Foundation, has been causing splits and formations of new converts
groups. Such relations between Jewish established groups and outsiders groups are seen with some
concern by the Israel Ministry of Education, which has been sending representatives to observe the
phenomenon of converts present in several locations in the Northeast and other regions of Brazil
and the world. The illustrious "visits" of the Jewish officialdom aim to understand the dynamics of
these identity processes, full of ethnic, religious and political issues, in order to try to monitor, and
even discipline, the imponderables of a very multifaceted universe.

Keywords: Bnei Anussim Jewish communities; Ethnic identity; Religious identity.


LISTA DE IMAGENS

Imagem 1 - Pesquisas e trabalhos sobre o Nordeste judaico (século XX) ............................... 43


Imagem 2 - Lançamento do livro Viduy, de Odmar Braga na Kahal Zur ................................. 53
Imagem 3 - Comunidade Maguen David no espaço para reunião............................................ 62
Imagem 4 - Sede da Comunidade Amigos da Torah ................................................................ 64
Imagem 5 - Sala da casa de Noah, sede da comunidade Caraíta .............................................. 69
Imagem 6 - Antonio Ribeiro e membros da Comunidade Branca Dias ................................... 73
Imagem 7 - Reunião pós shabat na casa da Ana Elya – sede da Beit Israel .............................. 76
Imagem 8 - Formação e Cisão das comunidades de conversos ao judaísmo em Campina
Grande................................................................................................................... 77
Imagem 9 - Tabela os ritos, festividades judaicas, calendário cristão ...................................... 79
Imagem 10 - Luzes da Hanukáh na Casa da Ana Elya, Sede da Beit Israel .............................. 81
Imagem 11 - Alessandro Magno (talit branco com franjas), Kiko (a esquerda de blusa
listrada) e demais membros da Maguen David no Rosh Hashaná.................... 85
Imagem 12 - Mesa posta para o Rosh Hashaná da Comunidade Beit Israel ............................ 87
Imagem 13 - Shabat na comunidade Beit Israel em Campina Grande/PB ............................... 99
Imagem 14 - A cabana (Sucá) ................................................................................................. 104
Imagem 15 - Ana Elya, Leda e demais mulheres fantasiadas na festa do Purim em Campina
Grande ............................................................................................................. 106
Imagem 16 - Comunidade Beit Israel na festa de Purim .......................................................... 107
Imagem 17 - Membros da Comunidade Branca Dias em momento de celebração do
Purim................................................................................................................. 108
Imagem 18 - Matzov (pão ázimo) presente na mesa da Pessach ............................................. 111
Imagem 19 - Líderes das comunidades brasileiras Bnei Anussim em Israel ............................ 119
Imagem 20 - Certificado de Descendência judaica sefardita ................................................... 125
Imagem 21 - Documento Associação Religiosa Sefardi Bnei Anussim .................................. 127
Imagem 22. Antônio Ribeiro (quipá azul) e os participantes da Branca Dias em uma noite
de Chanucá ......................................................................................................... 129
Imagem 23 - Oferta de curso online de hebraico para crianças ............................................... 131
Imagem 24 - Comunidade Beit Israel e seus membros, liderada por Jessé Alexandrino
(lado esquerdo, de Quipá marrom) em reunião para estudo da Torá ................. 134
Imagem 25 - Gilberto Ventura oferece curso online sobre a Cabalah ..................................... 143
Imagem 26 - Recorte da Página da “vakinha” para IV Yeshivá do Sertão .............................. 152
Imagem 27 - Jovens participando de atividade na IV Yeshuva do Sertão organizada pelo
SSF.................................................................................................................... 154
Imagem 28 - Meninas no momento da celebração do shabat durante a IV Yeshuva do
Sertão na sede da Sinagoga sem Fronteiras em São Paulo ............................. 155
Imagem 29 - Logomarca da Fundação Zera Israel ................................................................. 156
Imagem 30 - Rabino Amsalem da Zera Israel em arte para divulgação do podcast ................. 157
Imagem 31 - Capa da Página do Facebook do projeto Sinagoga Sem Fronteiras ..................... 158
Imagem 32 - Capa da Página do Facebook da Fundação Zera Israel ...................................... 159
Imagem 33 - Amsalem (de gravata sentado ao centro), Ventura (de camisa azul, sentado) e
outros parceiros da Fundação Zera Israel em Tibau do Sul, Rio Grande do
Norte ................................................................................................................ 160
Imagem 34 - Malka e a filha Tevel na comunidade Maguen David ........................................ 164
Imagem 35 - Palestra “Os judeus esquecidos” - Associação Religiosa Israelita (ARI) ............ 165
LISTA DE SIGLAS

ABHR Associação Brasileira de História das Religiões


ABRADJIN Associação Brasileira dos Descendentes de Judeus da Inquisição
ARI Associação Religiosa Israelita
CIP Congregação Israelita Paulista
CONIB Confederação Israelita do Brasil
DEVIR Religião, Contemporaneidade, Morte, Imagem (Grupo de Estudos do
Programa de Pós-Graduação em Antropologia – PPGA/UFPE)
IBRAM Instituto Brasileiro de Museus
PPGA Programa de Pós-Graduação em Antropologia
PPGCR Programa de Pós-Graduação em Ciências das Religiões
PT do B Partido Trabalhista do Brasil
REIA Revista de Estudos e Investigações Antropológicas
SSF Sinagoga Sem Fronteiras
UEPB Universidade Estadual da Paraíba
UFPB Universidade Federal da Paraíba
UFPE Universidade Federal de Pernambuco
UNICAMP Universidade Estadual de Campinas
USP Universidade de São Paulo
WIC West-Indische Compagnie (Companhia das Índias Ocidentais)
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 14
2 OLHARES PARA AS ESTRELAS DE DAVI: NARRATIVAS E TRAJETÓRIAS
DO JUDAÍSMO NO BRASIL E NO MUNDO .......................................................... 29
2.1 Mitos de origem e interpretações historiográficas do judaísmo no Brasil .............. 29
2.2 Branca Dias e as narrativas da resistência da identidade judaica na Paraíba........ 37
2.3 Os neoconversos observados pelos estudos judaicos no Brasil ................................. 39
2.4 Judeus ortodoxos e liberais em um mundo de facções .............................................. 44
3 OS JUDEUS NEOCONVERSOS EM CAMPINA GRANDE: TRAJETÓRIAS
INDIVIDUAIS E PROCESSOS DE FORMAÇÃO COMUNITÁRIA .................... 50
3.1 Em busca do sangue judeu em genealogias perdidas ................................................ 51
3.2 As origens evangélicas dos conversos .......................................................................... 55
3.3 Os processos de formação das comunidades de conversos em Campina Grande... 60
3.3.1 A Maguen David ............................................................................................................. 60
3.3.2 A Amigos da Torah ......................................................................................................... 64
3.3.3 Os caraítas ....................................................................................................................... 68
3.3.4 A Branca Dias ................................................................................................................. 71
3.3.5 A Beit Israel .................................................................................................................... 73
4 OS RITOS COTIDIANOS E FESTIVOS NO MUNDO DOS NEÓFITOS ............ 78
4.1 Entre ritos cotidianos e festivos: os sinais diacríticos da judaicidade ....................... 78
4.1.1 O Rosh Hashaná ............................................................................................................... 83
4.1.2 O Yom Kipur ................................................................................................................... 88
4.1.3 Shabat ............................................................................................................................... 92
4.1.4 Sucot (Festa dos Tabernáculos ou Cabanas) .................................................................. 102
4.1.5 O Purim .......................................................................................................................... 104
4.1.6 Pessach ........................................................................................................................... 109
5 A COMUNIDADE MAGUEN DAVID ENTRE RABINOS, PROCESSOS DE
RECONHECIMENTO E CISÕES............................................................................ 114
5.1 As visitas dos rabinos Moysés Elmescany e Alexandre Leone ................................. 114
5.2 As visitas dos rabinos Gilberto Ventura e Haim Amsalem à Paraíba e a instalação
de um Tribunal Rabínico na Praia Ponta de Campina, em Cabedelo ................... 117
5.3 Primeira cisão da Maguen David: a formação da comunidade Branca Dias........ 128
5.4 Segunda cisão da Maguen David: a formação da comunidade Beit Israel ............ 132
6 SINAGOGA SEM FRONTEIRAS E A EXPANSÃO DOS SENTIDOS E
PRÁTICAS JUDAICAS ............................................................................................. 137
6.1 Um rabino outsider entre os judeus neoconversos ................................................... 137
6.2 O “Nordeste judaico” imaginado ............................................................................. 144
6.3 A IV Yeshivá do Sertão em São Paulo ..................................................................... 149
6.4 O Projeto Sinagoga Sem Fronteiras e a Fundação Zera Israel ............................. 155
6.5 A missão do Ministério da Educação de Israel junto aos judeus neoconversos do
Nordeste brasileiro .................................................................................................... 160
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 168
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 171
ANEXO A - (THE LAW OF RETURN 5710/1950)................................................ 178
ANEXO B - (A LEI DO RETORNO) ...................................................................... 181
14

1 INTRODUÇÃO

Recria tua vida, sempre, sempre.


Remove pedras e planta roseiras e faz doces.
Recomeça.
(Cora Coralina)

Reconstruindo os caminhos da tese

As razões para seguir na presente tese com os estudos sobre as histórias e identidades
judaicas no Nordeste refletem o desejo de analisar o florescimento de comunidades em busca
contínua pelo reconhecimento do status de “ser judeu” por meio de diversificados processos.
Iniciei as pesquisas sobre judaísmo em 2007, quando ingressei no Programa de Mestrado em
Ciências das Religiões da Universidade Federal da Paraíba – PPGCR/UFPB e me debrucei
sobre as histórias de Branca Dias, uma judia que viveu nas terras de Camaragibe, Pernambuco,
durante o século XVII. Na oportunidade, o debate girou em torno da perseguição sofrida pelos
judeus junto ao Tribunal do Santo Ofício e do processo de transformação dos costumes e
crenças locais a partir da chegada dos ditos “cristãos-novos”1 em Pernambuco e na Paraíba no
século XVI. Em outra pós-graduação, o Mestrado em Antropologia pela Universidade Federal
da Paraíba – PPGA/UFPB, entre os anos de 2014 e 2016, vivenciei uma experiência etnográfica
junto a três comunidades judaicas em Campina Grande, Paraíba: a Maguen David, a Amigos
da Torah e o grupo de que se autodenomina “Caraítas”. Encontrei semelhanças e divergências
entre esses pequenos grupos de conversos campinenses. Ao praticarem a religião segundo os
preceitos da Torá, idealizando, muitas vezes, práticas mais ortodoxas, as famílias que integram
as comunidades campinenses lançam mão de determinadas estratégias identitárias, por meio de
improvisos e artimanhas, para seguir os preceitos tradicionais, desenvolvendo o que denomino,
inspirada em Michel De Certeau ([1980] 1994), uma “arte de se tornar judeu”. Desta feita, na
presente tese dedico especial atenção à descrição das relações de poder, expressas nos processos
de criação, consolidação, dissolução, fragmentação e agregação de identidades judaicas
vivenciadas por grupos de conversos de comunidades de Campina Grande (Maguen David,

1
Mais adiante, ainda na Introdução, dedicaremos a devida atenção à referida categoria histórica.
15

Amigos da Torah, Caraítas, Branca Dias e Beit Israel) junto a determinados grupos (Sinagogas)
do judaísmo tradicionalmente estabelecido no âmbito nacional e internacional. As relações
diversificadas e conflituosas de poder vivenciadas concretamente entre Sinagogas e rabinos
estabelecidos e sinagogas e comunidades outsiders, no sentido eliasiano desses conceitos, é a
principal fonte empírica para a construção da experiência etnográfica e das reflexões ora
propostas.
De modo geral, o judaísmo pressupõe que o povo judeu tem uma origem étnica comum
e existem genealogias familiares que identificam quem pertence ou não a essa tradição
sanguínea. Segundo as leis judaicas orais mais antigas, só é plenamente judeu aquele que é
nascido de mãe judia. É uma questão de phýsei e não nómos, como observa a filósofa Hannah
Arendt sobre sua própria judaicidade (BUTLER, 2017). Em vários lugares do mundo,
comunidades judaicas encontram dificuldades na comprovação do vínculo matrilinear com o
judaísmo e buscam outros caminhos para obtenção do sonhado reconhecimento étnico e
religioso. Os participantes das comunidades campinenses afirmam, por exemplo, que
descendem dos antigos cristãos-novos. São, portanto, “Bnei Anussim”, Sefarditas ou Marranos.
Os Bnei Anussim são “os filhos dos forçados”, os descendentes dos judeus da Peninsula Ibérica,
marcados pelos processos de conversão compulsória ao catolicismo no processo de hegemonia
da Igreja no “velho mundo”, trazidos para as Américas no período colonial (NOVINSKY,
1983). Essa categoria “Bnei Anussim” é inserida nos textos que discutem o judaísmo no final
dos anos 1990 e ao longo dos anos 2000, populariza-se o termo “Bnei Anussim” entre as
comunidades judaicas do Nordeste brasileiro. Em Campina Grande, esse termo passou a ser
utilizado de modo mais frequente em algumas comunidades de conversos a partir de 2015, sob
influência do projeto Sinagoga Sem Fronteiras 2 . Até 2015, os grupos religiosos não
apresentavam um padrão para se referirem aos judeus ibéricos perseguidos pela Inquisição,
optando ora por “Sefarditas”, ora por “Marranos” e ora por “Bnei Anussim”.
Além da vinda de judeus cristãos-novos nos séculos XVI e XVII aos primeiros pólos
(arraiais, vilas e cidades) da colonização ibérica nas Américas, especialmente para a costa do
que hoje é o Nordeste do Brasil, outras levas de judeus vieram para o país em fluxos migratórios
decorrentes das políticas imperiais de incentivo ao branqueamento da população brasileira
(segunda metade do século XIX) (ROCHE, 1969; AZEVEDO, 1987; SILVA, 2013) e das

2
Mais adiante, ainda na Introdução, dedicaremos a devida atenção ao referido projeto.
16

experiências de violência e fome na Europa no período das grandes guerras mundiais (primeira
metade do século XX)3. A maioria desses imigrantes era formada de Asquenazes4, oriundos de
regiões do leste europeu. Essas famílias passaram a se estabelecer em grandes centros urbanos
das regiões Sudeste e Sul, especialmente nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro. Enquanto
os grupos imigrantes dos séculos XIX e XX já vieram para o Brasil consolidados como judeus
de fato e de direito, aqueles que se declaram descendentes dos cristãos-novos dos tempos
coloniais precisam, em muitas situações, adentrar em intermináveis processos de conversão ao
judaísmo que exigem um grande dispêndio de energia psíquica e recursos financeiros.
Paradoxalmente, por serem considerados “conversos”, os judeus “filhos da terra” precisam do
aval “oficial” dos judeus filhos de imigrantes para serem reconhecidos pelo que são. Há uma
inversão de tradições, em que o novo (“de fora”) ocupa o lugar de hegemonia e oficialidade e
o velho (“de dentro”) ocupa o lugar de marginalidade no processo de controle identitário.
É importante dizer que a população judaica brasileira é a segunda mais numerosa da
América Latina, atrás apenas da Argentina, com 120 mil judeus entre os 204 milhões de
brasileiros, ou seja, 0,06% da população5. Os conversos de Campina Grande e de outros grupos
espalhados pelo país não são contabilizados nesses dados “oficiais”.
A maior parte dos judeus campineses e de outras comunidades espalhadas pelo Brasil
está convicta de sua matrilearidade judaica. Entretanto, na impossibilidade de comprovação do
vínculo sanguíneo materno, algumas pessoas e grupos iniciaram um longo e burocrático
processo de conversão, aos moldes do que prescreve a chamada “Lei do Retorno”, a Lei nº
5.710 de 1950, promulgada desde a criação Estado de Israel. Essa legislação foi criada para
regulamentar o processo de imigração e o regresso dos exilados e refugiados à nova pátria
judaica. Justifica-se a existência da lei e do próprio Estado de Israel pelo imperativo de

3
Além do fenômeno dos cristãos-novos durante o período colonial e dos fluxos migratórios de judeus para o Brasil
entre a segunda metade do século XIX e primeira metade do século XX, é preciso registrar que também houve a
vinda para o Brasil de judeus sefarditas oriundos do Marrocos e de outras regiões do norte da África nas primeiras
décadas do oitocentos, estabelecendo-se na Amazônia, principalmente em Belém, onde fundaram em 1824 uma
sinagoga (LINS, 2010).
4
Os asquenazes são os judeus originários das regiões centreais e orientais da Europa. Estudos de geneticistas
afirmam que os asquenazes descendem de diversos grupos étnicos provenientes da região do Cáucaso e do Oriente
Médio, especialmente dos cazares judaizados e dos judeus que emigraram da Mesopotâmia e da Palestina
(ELHAIK, 2013).

5
Dados da Confederação Israelita do Brasil – CONIB em https://www.conib.org.br/historia/.
17

compensação dos crimes do Holocausto, na esteira da Declaração dos Direitos Humanos 6 ,


condição que atualiza e seculariza as tradições religiosas da aliá7. Resumidamente, podemos
dizer que a Lei do Retorno declara que todo judeu reconhecido pode imigrar para o Estado de
Israel, com direito à residência e cidadania. Entretanto, esse reconhecimento produziu um
imbróglio na multiplicadade de identidades judaicas contemporâneas. Tal processo de retorno
às origens, na maioria das vezes desejadas, conta com uma boa dose de invenção no sentido
wagneriano do conceito. Os critérios para conversão e a própria necessidade desse processo são
questionadas por grupos que se identificam como judeus de fato e de direito e não consideram
justo depender de uma avaliação de um tribunal rabínico (o chamado “Beit Din”). “O rabinato
de Israel só nos recebe para conversão, ‘guiyur’, como se fôssemos ‘goyime’, não judeus[!]”
(2005, p. 176), desabafa, em Os passos do retorno, João Fernandes Dias de Medeiros, um
rabino retornado atuante em uma sinagoga de Natal, Rio Grande do Norte. Enquanto as
comunidades de novos judeus potiguares acionam majoritariamente o termo “retorno” quando
se referem ao processo de autoidentificação com o judaísmo, os grupos paraibanos costumam
revezar, sem maiores preocupações, as categorias “conversão” e “retorno” ao nominarem suas
experiências de emergência étnico-religiosa. Para se tornar um judeu converso/retornado, o
iniciante precisa cumprir uma série de exigências documentais e ritualísticas, sob a supervisão
de um tribunal rabínico (corte religiosa ligada ao Ministério da Justiça israelense) que observará
e certificará o que está presente na Torá. A Torá é conjunto de ensinamentos transmitidos por
D’us 8 a Moisés, escritos em cinco partes, o Pentateuco 9 . Os ensinamentos versam sobre a
origem, a saga e as leis da Halachá que devem reger a vida e caminho a ser seguido pelo povo
escolhido por D’us. Antenados nessas normas de conduta, as comunidades judaicas

6
Hannah Arendt afirma que era uma grande estupidez formar um Estado judeu ignorando a presença dos povos
árabes, defendendo, por outro lado, a formação de um sistema federado, onde não houvesse maioria ou minoria.
Em 1944, Arendt reconhecia, no texto “Sionismo Reconsiderado”, que os conflitos trágicos, daquela época, se
tornariam conflitos insolúveis, caso a presença de uma pluralidade não fosse considerada na organização política
do Estado judeu. Ela considerava que o programa do povo judeu, incapaz de aceitar a realidade da presença dos
povos árabes, seria um castelo no ar. Ilusionistas, utópicos e apolíticos: são as palavras que Arendt utilizava para
qualificar os políticos judaicos da Palestina que conduziam as negociações para a formação de Israel.
https://diplomatique.org.br/
7
Aliá, ou aliah, é o processo em que judeus nascidos em qualquer lugar do mundo imigram para Israel para
exercerem o direito à cidadania israelense.
8
D’us é uma das formas utilizadas por alguns judeus de língua portuguesa para se referirem a Deus sem citar seu
nome completo em respeito ao terceiro mandamento recebido por Moisés pelo qual Deus teria ordenado que seu
nome não fosse falado em vão. Passagem observada no livro de Êxodo (20,7) (EPSTEIN, 2009).

9
O Pentateuco é um nome para os cinco primeiros livros da Bíblia, os quais estudiosos bíblicos conservadores
acreditam que tenham sido em sua maioria escritos por Moisés.
18

campinenses cotidianamente têm evidenciado suas práticas de afirmação e diferenciação


étnico-identitária, sendo monitoradas por instituições judaicas centrais.
O fato de não ser possível traçar com exatidão genealogias que permitam unir
historicamente o sangue dos antigos cristãos-novos com os judeus contemporâneos que vivem
em determinados nichos do Nordeste e em outras regiões do país expande e dinamiza os modos
de compreender e viver o judaísmo. James Ross (2000), autor que vivenciou diversas
experiências etnográficas pelo mundo, “da floresta amazônica às colinas do nordeste da Índia”,
afirma ter encontrado pessoas e comunidades que estão descobrindo conexões com o judaísmo
e inventando novas formas de vida judaica. Alguns são ex-cristãos ou muçulmanos que foram
inspirados por líderes carismáticos a seguir práticas registradas na Bíblia hebraica; outros
acreditam que seus ancestrais eram judeus e proclamaram que estão voltando às tradições
perdidas por anos de perseguição ou assimilação. Todos eles querem ser aceitos e reconhecidos
como judeus. Esse fenômeno social idealiza, como dizem os próprios judeus que buscam
contemporaneamente reconhecimento de suas comunidades, um processo de retorno.
Há de se reconhecer que as identidades judaicas sempre foram agregadas às diversas
nacionalidades e regionalidades (judaísmo espanhol/ catalão/ polonês/ português/alemão/
brasileiro/ nordestino). Alguns estudos antropológicos contemporâneos buscam caracterizar os
indivíduos e seus grupos sociais como mediadores de diversas fontes identitárias que convivem
ao mesmo tempo, identidade de gênero, nacional, étnica, dentre outras (Hannerz, 1997). Trata-
se de uma multiplicidade de identidades sobrepostas, ora concorrentes, ora conviventes. Ainda
que a diversidade de identidades sobrepostas também seja a marca das comunidades judaicas
campinenses, o sentimento de pertença a uma tradição étnico-religiosa é tão forte nessas pessoas
que se torna o elo comum que não permite que se sintam completamente apartados em suas
lutas cotidianas em busca de reconhecimento identitário mais amplo e significativo, envolvendo
movimentos nacionais e internacionais.
O que pude perceber durante o tempo de pesquisa, acumulados ao longo de vários anos
dedicados ao tema, é que ser judeu para os membros dessas comunidades é, sobretudo, procurar,
por muitos meios, extrair padrões comportamentais e rituais cotidianos no intuito de legitimar
sua pertença ao status quo judaico monitorado por instituições que representariam um judaísmo
estabelecido. Dentre as alternativas “processuais” de ser reconhecido oficialmente no mundo
judaico convencional, há, a título de exemplo, a possibilidade de realização de cursos, de um
19

ano ou mais de duração, para que o postulante consiga fazer o chamado retorno por meio da já
referida passagem por um tribunal rabínico.
A partir do desejo de retornar a uma essência judaica abafada pela colonização ibérica,
geralmente o despertado inicia os procedimentos de conversão por meio da sua integração em
alguma comunidade de judeus neófitos. Embora haja determinados padrões ritualísticos, os
procedimentos de conversão são diferenciados de grupo para grupo, de sinagoga para sinagoga,
de rabino para rabino. Tais diferenças vão desde os critérios de reconhecimento, passando pela
ascensão hierárquica via conquista “títulos”, processos que preveem “pagamentos”, até aqueles
grupos, como os Caraítas, que se acreditam retornados pelo simples fato de estarem inseridos
em uma comunidade judaica, já que buscam o retorno não por processos de conversão e sim
pela autoevidência de estarem cumprindo as leis da Torá.

Apresentando as comunidades judaicas campinenses

Como informado no início da presente Introdução, na dissertação defendida em 2016,


mantive contato por meio de pesquisas de campo junto a três comunidades judaicas atuantes
em Campina Grande: a Maguen David, a Amigos da Torah e o grupo de que se autodenomina
Caraítas.
A comunidade Maguen David tem sede no bairro do Catolé10, organizando suas reuniões
na casa de propriedade de Nézio, localizada em frente ao Bar da Curva, no Catolé. Nézio é
membro da comunidade e aluga sua casa para o próprio grupo que faz parte. Os frequentadores
da Maguen David são judeus seguidores das escrituras e das tradições orais judaicas11. Trata-
se de um grupo liderado por Alessandro Magno, um advogado, ex-evangélico da Primeira Igreja
Batista, de classe média. Os participantes afirmam o cumprimento das leis dietéticas, dos jejuns,
bem como os ritos e festividades judaicas de forma coletiva. Entre novembro e dezembro de

10
O Catolé é um bairro predominantemente residencial, de classe média e afastado do centro de Campina Grande.
As residências de um padrão de classe média dividem o território com o Terminal Rodoviário e o maior Shopping
da cidade.

11
As “tradições orais judaicas” são apresentadas nos cânticos e leituras entonados pela coletividade, em
determinados ritos. Enquanto “lei escrita” é uma expressão utilizada para a Torá, “lei oral” refere-se aos
comentários considerados legítimos por muitos grupos de judeus no mundo. Segundo a maioria dos judeus
religiosos, as tradições orais “explicam melhor” como os preceitos da Torá devem ser conduzidos. A Torá sozinha,
mesmo com seus 613 preceitos/mandamentos, necessitaria, assim, de outros guias para direcionamento do
comportamento cotidiano e ritualístico dos judeus (EPSTEIN, 2009).
20

2017, alguns membros do grupo rompem com Alessandro por desentendimentos relacionados
ao processo de conversão e fundam a comunidade Branca Dias. A Maguen David chegou a
agregar cerca de trinta e cinco membros, alguns fixos, outros sazonais, entre adultos, homens e
mulheres, jovens e crianças, que residem em diversos bairros de Campina Grande. Em abril de
2019, ocorreu uma grande cisão na comunidade Maguen David, que provocou o surgimento de
uma nova comunidade judaica em Campina Grande, denominada Beit Israel. Ainda nesta
Introdução e ao longo da tese, trataremos das motivações e implicações dessas divisões e
surgimento da Branca Dias e Beit Israel.
A comunidade Amigos da Torah tem sede própria no bairro do José Pinheiro12, sendo
composta por jovens, adultos, homens e mulheres, de diferentes condições socioeconômicas,
alguns fixos, outros sazonais, que residem em diversas localidades de Campina Grande. Por
alguns anos a comunidade reunia jovens estudantes, amigos do Issac, filho caçula do Davi
André, que acompanha todas as reuniões, festividades, sendo uma liderança juvenil na Amigos
da Torah. O grupo é liderado por Davi André de Meneses, empresário e ex-pastor batista. Até
o ano de 2018, Davi André era o responsável por “representar o judaísmo” com sua comunidade
no Encontro da Nova Consciência13, evento ecumênico que compõe o calendário dos festejos
da cidade no mês de fevereiro. Em busca de angariar maior prestígio ao grupo, o líder chegou
a articular visitas e palestras da historiadora Anita Novinsky, referência nacional nos estudos
judaicos, que esteve presente na Amigos da Torah entre os anos de 2010 e 2011.
Os Caraítas estão concentrados majoritariamente no bairro do José Pinheiro. A sede do
grupo é a própria casa do líder Edvaldo, conhecido como “Noah”, professor de artes marciais,
ex-pastor batista, de classe menos abastada. É comum entre os conversos e retornados, o uso de
um nome hebraico, aportuguesado, em substituição ao nome de batismo. A origem dos caraítas
campinenses é mais humilde, a maioria são trabalhadores do comércio campinense. Os Caraítas
são identificados, por eles próprios, como os “seguidores das escrituras da Torá”. Surgidos no

12
O José Pinheiro, conhecido popularmente, como “Zepa”, é um bairro popular de Campina Grande,
predominantemente comercial. Encontra-se nesse bairro uma grande feira de troca e bancas de jogo bicho muito
populares na cidade.
13
O Encontro da Nova Consciência existe na cidade de Campina Grande no período do Carnaval desde 1992,
recebendo representantes de diferentes universos confessionais, tornando a cidade um grande palco para o turismo
religioso na referida época do ano, motivo também da dinamização da economia local através do grande fluxo de
turistas na região. Anualmente a PMCG junto a patrocinadores locais inventiam na manutenção do evento, porém
com o passar dos anos, o movimento foi perdendo o número de adeptos e consequentemente os patrocinadores.
Os investimentos da PMCG já não eram os mesmos nesses últimos anos de 2018/2020, o número reduzido de
patrocinadores dificultando a logística do evento. Em 2021, devido a pandemia da Covid-19, o evento foi realizado
de modo online, em sua 30ª edição, com seu início na quinta-feira (11/02), às 20h, e término no dia 18/02/2021.
21

século VIII, os Caraítas rejeitam a autoridade dos rabinos e as chamadas “leis orais”, que
haviam sido codificadas no Talmud. Creem que é por meio apenas das antigas escrituras
hebraicas que os judeus podem encontrar a verdade teológica e dogmática para direcionar suas
experiências de vida. Fazem os jejuns, seguem as leis dietéticas, mas não cantam, nem recitam
preces à Deus. Muitas de suas práticas foram baseadas na maneira como os judeus adoravam
nos antigos templos em Jerusalém (Ross, 2000). Os Caraítas resistem hoje como uma das
poucas facções restantes do judaísmo histórico, um grupo separado que ainda é considerado
judeu. Estão presentes no próprio Estado de Israel, onde contam com um departamento
governamental que cuida dos seus interesses (Morashá, 2000). Aqui no Brasil há uma
comunidade caraíta em Salvador que se conecta ao grupo de Campina Grande por meio do líder
local, Noah.
A presente tese segue atenta às dinâmicas de transformação e reivençao das três
referidas comunidades abordadas na pesquisa de mestrado e passa a concentrar esforços
descritivos e analíticos nos processos de cisão sofridos pela Maguen David que resultaram na
formação de novas comunidades: a Branca Dias e a Beit Israel.
A comunidade Branca Dias tem sede no bairro de Santa Rosa, próximo ao centro da
cidade, profetizam a fé hebraica e de seus rituais, aconselhados por Gilberto Ventura, eles
integram atualmente o projeto Sinagoga Sem Fronteiras – SSF. Sediado na cidade de São Paulo
e com relações com rabinos reformados radicados em Israel, o SSF propõe um acolhimento
“mais democrático” das comunidades judaicas brasileiras. A comunidade é composta por
muitos jovens como Aldrey Ribeiro, que ensina hebraico às crianças e adolescentes que
participam dos encontros do grupo. Assim como as outras comunidades de conversos, a Branca
Dias organiza encontros para debater o judaísmo no Nordeste e no mundo, buscando trazer
pesquisadores e professores versados em temas judaicos que atuam no campo acadêmico.
A comunidade Beit Israel mantém os shabats e encontros realizados na casa do casal
Jessé Alexandrino e Ana Elya, no bairro do Catolé, sendo formada por muitos dissidentes da
Maguen David. Os membros (cerca de 35) procuram seguir o calendário judaico e são fiéis aos
ensinamentos da Halachá. A comunidade se aproximou recentemente do rabino Jacob de
Oliveira, que tempos atrás completou seu processo de conversão. Os vínculos estabelecidos
pela Beit Israel giram em torno das relações de vizinhança e da experiência comum de terem
participado da comunidade Maguen David. Formam um grupo bastante receptivo e festivo.
22

As relações de consenso e conflito vivenciadas entre os integrantes da Maguen David,


da Beit Israel e da Branca Dias e entre as referidas comunidades e as Sinagogas e os rabinos
estabelecidos no Brasil, em contato com projetos direcionados por “Israel”, fundamentam
grande parte das problemáticas e reflexões desenvolvidas por este trabalho de doutoramento.

Estratégias metodológicas da pesquisa, questões da tese e objetivos

As questões desenvolvidas ao longo da presente tese passaram a definir estratégias


metodológicas específicas. A pesquisa ora apresentada observou-participou de encontros,
conversas, entrevistas, ora individualmente, ora coletivamente, junto a essas comunidades e
sinagogas que defendem identidade étnico-religiosas judaicas sob perspectivas bastante
diversificadas e até contraditórias. Muitos desses judeus conversos de Campina Grande e de
outras localidades do Nordeste, do Brasil e do mundo, afirmam que estão “retornando”, por
meio do redescobrimento de suas histórias de vida e de determinadas tradições, a uma verdade
abafada e a um sentido original que foram violentamente arrancados de suas trajetórias
existenciais por circunstâncias históricas decorrentes de situações coloniais e de guerras (Ross,
2000). Antes de mostrar como persegui metodologicamente a resposta para as perguntas da
presente tese, a fim de compreender a constituição do “ser judeu”, quero apresentar as diferentes
instâncias de meu trabalho de campo, começando pelos grupos (comunidades) no qual me
envolvi mais detida e especificamente para chegar às minhas considerações finais.
O “ser judeu” para essas comunidades de conversos tem um sentido valioso de
“resgate”. Eles ressaltam em suas falas o reconhecimento de uma história de sofrimento que
seus antepassados viveram. Lembram a coragem, a disciplina e a convicção de “nunca terem
abandonado a fé hebraica” de seus ancestrais. “Ser judeu”, nesse contexto, é pertencer ao
mundo daqueles que fizeram na América um recomeço de suas histórias; é viver as leis
mosaicas14 de uma forma plena e sem sigilo. É pertencer a uma tradição étnico-religiosa e estar
em “par com o Eterno”.
É necessário, pois, compreender que redes de sentidos contemporâneos tornam
plausíveis tais mudanças de trajetórias de vida de pessoas que formam pequenas comunidades
religiosas em localidades onde não há, aparentemente, nada, nenhum marco físico ou fatos-

14
Conjunto de códigos e doutrinas formado por 613 disposições negativas e positivas, ordens e proibições
presentes na Torá (EPSTEIN, 2009).
23

mitos que possam provocar ou constituir a organização e união de pessoas em torno da fé


judaica. Por que, afinal, em uma cidade como Campina Grande há o florescimento de
comunidades em busca contínua e sofrida pelo reconhecimento “oficial” do status étnico
judaico, gerando uma mobilização em prol do retorno Bnei Anussim?
Tendo acumulado, ao longo de todo o trabalho de campo, informações acerca dos grupos
acima delineados, o presente texto selecionou e elaborou interpretações sobre o processo
dinâmico de significação e ressignificação das crenças e dos valores judaicos em contextos
específicos de Campina Grande, buscando compreender a formação do controle identitário e a
caracterização do que se narra como permanências, dissipações de costumes tradicionais e/ou
processos de transformação por trocas e fluxos culturais entre indivíduos e segmentos sociais
direta ou indiretamente relacionados aos grupos contemplados na pesquisa, em suas relações
com as sinagogas e projetos hegemônicos no plano nacional e internacional.
Na presente tese, estou basicamente interessada em descrever os processos de criação,
consolidação, dissolução, fragmentação e agregação de identidades judaicas em comunidades
que recentemente “despertaram” para alguma faceta do judaísmo. A questão das
conversões/retornos contemporâneas, mais do que “polêmica” entre os movimentos judaicos,
revela a existência de uma diversidade de judaísmos e de relações assimétricas de poder entre
grupos estabelecidos e grupos outsiders.
Mas, afinal, qual o lugar das comunidades marranas/sefarditas/Bnei Anussim no amplo
e complexo espectro do judaísmo? Como eles se apresentam ao mundo? Como se organizam
os grupos de judeus neoconversos atuantes no Nordeste brasileiro no cenário do judaísmo
internacional? Embora tais questões não possam ser respondidas em sua plenitude, a presente
tese argumenta que muitos desses indivíduos e grupos não se satisfazem com a
autoidentificação ao judaísmo; estão em constante busca de reconhecimento e legitimidade
perante uma centralidade político-religiosa, o Estado de Israel, representando por leis e agentes
que controlam os processos de retorno. Para alcançarem tal feito, judeus nordestinos têm
ampliado suas redes de contatos e influências com autoridades rabínicas e agentes estatais que
possam orientá-los e encaminhá-los a processos exitosos de conversão. Sem conseguirem
comprovar materialmente a descendência judaica, os postulantes à conversão passam a
enfrentar uma saga burocrática, de contornos kafkianos, envolvendo o cumprimento de ritos
religiosos e exigências documentais que implicam em um grande dispêndio de energia psíquica
e recursos financeiros.
24

Os caminhos trilhados para construção da presente tese já foram percorridos por outros
autores que se dedicaram a descrever e analisar os fenômenos sociais relacionados à formação
de identidades judaicas em comunidades brasileiras, especialmente na região Nordeste e Norte
do país. Ramagem (1983), Cukierkorn (1994), Ross (2000), Wachtel (2001), Valadares (2004),
Silva (2008), Lins (2010), Tavares (2014), entre outros, contribuíram para que este trabalho
alcançasse uma visão mais ampla e crítica acerca da multifatorialidade econômica, política,
étnica, religiosa e cultural que envolve os processos identitários judaicos. Além deles, Elias
(1965) se revelou um marco teórico fundamental para a argumentação desenvolvida no texto
acerca da dinâmica interrelacional do controle étnico-religioso-indentitário a partir de
determinadas centralidades (Estado de Israel), representatadas por determinados agentes e
regras (servidores, rabinos, leis), subvertidas por uma realidade imprevisível de pessoas e
grupos (judeus neoconversos) situados à margem (e, ao mesmo tempo, mobilizados em fazer
parte) do sistema hegemônico.
Nenhuma realidade social é fixa e imutável. Portanto, o trabalho ora apresentado
“registra” um momento histórico, de caráter extremamente dinâmico, da realidade dos sujeitos
e das coletividades judaicas campinenses. Os leitores têm agora em mãos, na verdade, uma
crônica etnográfica que descreve analiticamente determinados contextos vividos, provocando
uma fresh mutation (BONDER E SORJ, 2001) na questão das conversões ao judaísmo no
Nordeste brasileiro das primeiras décadas do século XXI.
No processo de pesquisa e escrita, busquei compreender a relação entre as biografias
individuais e narrativas das memórias coletivas, observando criticamente consensos e conflitos
nos processos de construção de identidades étnico-religiosas e no agenciamento do indivíduo
junto às comunidades de conversos. Por meio das entrevistas e dos grupos focais, formais e
informais, pude analisar e construir as trajetórias de vida individuais e coletivas, enriquecendo
de detalhes a minha experiência etnográfica.
A participação em reuniões, eventos e rituais junto às comunidades também foram
fundamentais para o exercício etnográfico ora proposto. Participei festividades organizados por
cada comunidade e de encontros que envolviam vários grupos realizados em Campina Grande,
João Pessoa, Recife e São Paulo. Proveitosas para a pesquisa também foram conversas
informais na casa dos interlocutores e, também, os bate papos via Whatsapp, sobretudo em
tempos de pandemia da Covid-19, quando os encontros presenciais foram suspensos devido ao
25

imperativo do distanciamento social. Essas experiências de pesquisa e de vida enriqueceram a


presente tese e a compreensão do rico universo existencial do outro.
Em vez de entrevistas baseadas em roteiros com questões formuladas previamente, vivi
junto aos judeus campinenses uma relação mais aproximada e íntima de diálogo, o que Vincent
Crapanzano (1991) chama de conversa. Crapanzano observa que na boa conversa surge algo
novo para os participantes e, de certo modo, independente deles (BRAGA, 2019). O verdadeiro
diálogo não é muito comum nas pesquisas de campo, mesmo nas experiências etnográficas:
“dada as relações de poder na situação de campo, o nativo frequentemente cede – ou parece
ceder – ao gênero em que insiste o etnógrafo, isto é, a entrevista em que cada pergunta ‘breve’
requer uma resposta longa, sincera e relevante” (1991: 68). Na maioria das situações, as
entrevistas foram realizadas individualmente, a partir do relato da história de vida de lideranças
e outros representantes das comunidades que mostraram relevantes para o processo de pesquisa.
Em outros momentos, fui levada pelos próprios interlocutores a realizar entrevistas no formato
de grupo focal, geralmente realizadas nas sedes de cada comunidade. Essas mudanças dos
rumos tomados pela pesquisa a partir do próprio campo faz parte de um processo de
reflexividade etnográfica (GEERTZ, 1973), em que o autor exerce pouco controle das situações
apresentadas pelos interlocutores. No final das contas, a etnografia se torna um espaço-tempo
em qual fatos, encontros, conversas e ideias inesperadas podem emergir, desencadeando novas
estratégias de pesquisa e novos modelos interpretativos não imaginados no planejamento
inicial.
É óbvio que a análise descritiva (ou descrição analítica) do etnógrafo é elaborada a
partir de um determinado “discurso”; é uma interpretação de segunda ou terceira mão.
Entretanto, o que precisa ficar evidenciado ao leitor é que, do ponto de vista dos interlocutores
da pesquisa, não existem “interpretações”, essa coisa leve e poética do mundo científico
descrente da “verdade dos outros”; o que existe na experiência concreta de determinados judeus
campinenses é o fenômeno concreto do que aqui já definimos como retorno.
O acesso aos entrevistados ocorreu primeiramente por meio de “contatos-chave” e das
redes sociais desde os estudos dissertativos, estratégia que se manteve para o período da tese,
especialmente por meio das redes sociais Facebook e Instagram. O processo de sistematização
dos dados da pesquisa em momentos dependeu da “era digital” e da interação que os sujeitos
colaboradores promoviam no ciberespaço. “Meus” interlocutores da pesquisa estavam, na
maioria das ocasiões, dispostos, alegres e desinibidos. Em outros momentos, se mostraram
26

dispersos e silenciosos. Construí densos diários de campo a partir dessas relações. A inserção
no campo acabou me conduzindo a determinados conteúdos emocionais dos sujeitos que me
possibilitaram uma troca etnográfica mais rica. Alguns dos meus interlocutores participam de
debates no mundo acadêmico e se mostram interessados em contribuir com os argumentos
construídos na presente tese que, de certo modo, ajuda a ampliar o horizonte da diversidade
cultural judaica no Nordeste brasileiro. O estudante de Fisíca (UFPB) Joaquim, ex-frequentador
da comunidade Maguen David15, empolgado com minha pesquisa, me presenteou com o livro
O judaísmo no século XXI, de Nilton Bonder e Bernardo Sorj, obra que se revelou importante
para algumas questões levantadas ao longo do texto.
Durante os anos de pesquisa que culminaram na dissertação de mestrado e agora na tese
de doutorado, consegui estabelecer laços mais duradouros com alguns interlocutores. Enquanto
na maior parte do tempo, estive em contato virtual ou em visitas cotidianas de campo,
geralmente, na sede das comunidades abordadas na pesquisa, em determinadas situações, pude
vivenciar certos eventos ocorridos em Campina Grande, João Pessoa, Recife e São Paulo que
possibilitaram perceber certas relações entre os diversos agentes descritos na presente pesquisa.
Durante o percurso etnográfico trilhado, consegui participar de bons debates acadêmicos
sobre a temática abordada na tese. Fui convidada para participar de uma mesa redonda que
abordou a temática da Resistência, Diversidade e Sensibilidades durante o encontro promovido
pela Associação Brasileira de História das Religiões – ABHR, realizado em João Pessoa em
2019, passando também integrar e receber importantes contribuições no grupo de estudos
Religião, Contemporaneidade, Morte e Imagem – DEVIR, organizado pela professora Mísia
Reesink, do PPGA/UFPE. Além disso, publiquei resultados prévios desta pesquisa no volume
21 da Revista Ciências Sociais e Religião da Unicamp.
No intuito de salvaguardar a privacidade das informações dos interlocutores da pesquisa
e em comum acordo com muitos deles, resolvi substituir os nomes reais por nomes fictícios no
presente texto da tese.
Apresentando os capítulos

Nesta Introdução, apresentei os objetivos e percursos da pesquisa e da escrita da tese,


buscando evidenciar minhas estratégias narrativas e recursos metodológicos utilizados para

15
Joaquim atualmente não frequenta nenhuma comunidade em Campina Grande. Na última conversa que tivemos
em julho de 2020, ele afirmou que ¨sente-se judeu como sempre”, não frequenta mais as reuniões, estudando a
Torá em casa.
27

elaboração dos dados. Para tanto, foi importante recuperar os caminhos e descaminhos iniciais
da pesquisa que revelaram como se deu minha inserção no campo e o desenvolvimento das
relações com os interlocutores da pesquisa. O desenvolvimento do trabalho evidenciou a
enorme complexidade existentes dentro de cada comunidade e nas relações estabelecidas por
elas. O título da tese endereça o leitor a refletir que o reconhecimento do “ser judeu” é algo
implorado, ou seja, movido, pleiteado, reclamado, procurado, intentado, suplicado, requisitado,
rogado, diligenciado, reivindicado, que por fim depende do preenchimento dos requisitos
sanguíneos ou passar por um tribunal rabínico (Beit Din) para ter “forma judaica” estabelecida.
Tratei então de adicionar às questões gerais norteadoras da tese as questões específicas
provocadas pelo contato com cada comunidade. Passemos agora ao arcabouço do trabalho, ao
modo de divisão e organização dos capítulos e seus respectivos fios condutores que levam às
considerações finais.
No primeiro capítulo, intitulado “Olhares para as estrelas de Davi: narrativas e
trajetórias do judaísmo no Brasil e no mundo”, convido ao leitor para adentrar em algumas
experiências históricas do universo multifacetado do judaísmo brasileiro, dando especial
atenção aos mitos, as permanências e as transformações de comunidades de neoconversos, em
seus processos de formação e dispersão no mundo, dando especial atenção a formação aos
processos das comunidades na região Nordeste. Destacando os neoconversos observados pelos
estudos judaicos no Brasil e sua trajetória.
No segundo capítulo, intitulado “Os judeus neoconversos em Campina Grande:
trajetórias individuais e processos de formação comunitária”, nesse capítulo convido ao
leitor a experiência junto as comunidades de neoconversos em Campina Grande, apresento as
descrições e análises de experiências mais contemporâneas das comunidades campinenses,
constituídas por neoconversos ao judaísmo, esboçando suas genealogias e trajetórias de
lideranças e compreendendo os sentidos de suas origens evangélico-pentecostais e
neopentecostais. Por fim, observaremos criticamente como disputas entre vertentes ortodoxas
e reformadas do judaísmo contemporâneo se relacionam e afetam grupos de neoconversos no
Nordeste brasileiro.
No terceiro capítulo, intitulado “Os ritos cotidianos e festivos no mundo dos
neófitos”, abordo o modo como as comunidades organizam e ritualizam o calendário religioso
judaico, descrevendo celebrações como o Shabat, o Rosh Hashaná, o Yom Kipur, o Sucot, o
Purim e a Pessach, aproximando o leitor das festividades, do sentido de ser judeu, do judaísmo
28

para as comunidades de neoconversos que interpretam as leis judaicas num parâmetro das
sinagogas estabelecidas.
No quarto capítulo, intitulado “A comunidade Maguen David entre rabinos,
processos de reconhecimento e cisões”, aproximo o leitor do cotidiano da comunidade
Maguen David em seus ritos estratégicos em busca de reconhecimento coletivo e conversões
individuais de seus membros. Os contatos e as visitas de rabinos de diferentes perfis religiosos,
a exemplo de Moisés Elmescany e Alexandre Leone, e, em seguida, Gilberto Ventura, Haim
Amsalem e Jacob de Oliveira. Algumas dessas visitas marcam eventos que reestruturam a
organização comunitária, alterando trajetórias de lideranças e participantes e provocando
processos de cisão e formação de novas comunidades.
No quinto capítulo, intitulado “Sinagoga Sem Fronteiras e a expansão dos sentidos e
práticas judaicas”, as descrições e análises da tese se voltam para os processos de formação e
expansão da chamada “Sinagoga Sem Fronteiras”. Sediado na cidade de São Paulo e com
relações com rabinos reformados radicados em Israel, esse projeto, liderado por Gilberto
Ventura, propõe um acolhimento mais democrático dos “Bnei Anussim” brasileiros. A presença
do Sinagoga Sem Fronteiras – SSF revela a construção de um imaginário repleto de estereótipos
sobre o “judeu nordestino”, considerado periférico em relação ao judeu migrante estabelecido
no eixo Sudeste-Sul. As ações da SSF, apoiadas pela Fundação Zera Israel, têm provocado
cisões e formações de novos grupos de neoconversos em Campina Grande e alhures. Proponho
a análise das seguintes situações: paralelamente à atuação da Sinagoga Sem Fronteiras, o
Ministério da Educação de Israel tem enviado representantes para observação do fenômeno dos
neoconversos presentes em diversas localidades no Nordeste e de outras regiões do Brasil e do
mundo. Tais “visitas” buscam compreender esses processos identitários no intuito de
informação e disciplinamento do universo multifacetado dos judaísmos contemporâneos.
29

2 OLHARES PARA AS ESTRELAS DE DAVI: NARRATIVAS E TRAJETÓRIAS DO


JUDAÍSMO NO BRASIL E NO MUNDO

Na vida de todo judeu pelos caminhos do mundo,


há sempre um judeu que chegou antes.
(Orígenes Lessa)

2.1 Mitos de origem e interpretações historiográficas do judaísmo no Brasil

O campo religioso judaico brasileiro, refletindo um fenômeno mundial, se constitui, ao


longo do tempo, por meio de um entrelaçamento de experiências políticas, econômicas e
culturais multifacetadas que se imbricam mediante interesses mútuos ou de conflitos que ora
aglutinam, ora fragmentam grupos, e se reverberam em reinvenções comunitárias do judaísmo.
Esse quiproquó de vozes e identidades contemporâneas se torna mais uníssono quando o
assunto se reporta às origens judaicas do Brasil. Ao tentarem recuperar as histórias que buscam
apreender a vida de seus ancestrais, os conversos (atuantes em Campina Grande e alhures) se
aliam às narrativas historiográficas reverberadas pelo mundo acadêmico, descrevendo
personagens e cenários que revelam fatos-mitos de provação e superação diaspórica do povo
judeu.
Com base em documentos diversos e interpretações de entrelinhas existentes entre a
oficialidade da história da colonização católica e a vida dos primeiros colonos, as historiografias
produzidas no Brasil e na América Latina costumam narrar a chegada dos primeiros judeus a
esse “novo mundo” a partir dos míticos contatos coloniais do século XVI. Narra-se que levas
de judeus foram forçadamente, sob a pecha de “cristãos-novos”, a uma terra hostil, embora de
natureza exuberante. Cristão-novo é a designação dada em Portugal e Espanha aos judeus e
muçulmanos convertidos ao cristianismo em contraposição aos cristãos-velhos, os nascidos e
criados em berços católicos. Compunham, dessa forma, os extratos sociais rechaçados pela
Igreja nas metrópoles ibéricas. Instalaram-se nas colônias como força de trabalho para
exploração e consolidação dos objetivos de domínio das terras invadidas pela Coroa portuguesa
e espanhola. Enquanto uns teriam se submetido às atividades mais “especializadas” nos
engenhos e fazendas, outros, talvez a maioria, se tornaram pequemos comerciantes e mestres
de ofícios práticos, necessários ao estabelecimento de uma “civilização” nos trópicos, atuando
como ferreiros, sapateiros, seleiros, carpinteiros, alfaiates etc. Ao mesmo tempo em que
30

intolerava o cristão-novo, as Coroas da União Ibérica 16 , por interesses de ocupar o solo


conquistado, concedeu a essas famílias a possibilidade de posse das terras e de exercer o
senhorio sobre os domínios explorados. O batismo, ainda que forçado, dotou essas famílias de
status de “colono”, um privilégio para poucos, e promoveu uma participação dos judeus na vida
econômica das terras que se tornaram o Brasil como conhecemos (PINTO, 2006). O
empreendimento colonial ibérico, inicialmente motivado pelo comércio da cana-de-açúcar,
produto apreciado em muitos mercados, acabou se tornando uma oportunidade de crescimento
econômico rápido para os primeiros colonos, inclusive para os cristãos-novos. Algumas dessas
famílias passaram a ser proprietárias de engenhos prósperos.
Entre as instituições de poder agenciadas pelas metrópoles ibéricas, aquela que mais
afetou negativamente a vida dos primeiros judeus que habitaram o Brasil colonial foi a
Inquisição. No contexto histórico da Península Ibérica, a Inquisição foi estabelecida
primeiramente na Espanha em novembro de 1478, por meio da Bula do Papa Sisto IV, colocada
em prática no ano de 1483, com um acordo firmado entre os reis espanhóis e a Igreja Católica
convidando todas as pessoas que quisessem assumir “heresias” a se apresentar à Coroa
(MELLO, 1996). Entre os “hereges”17, os judeus representavam uma grande ameaça, em razão
da política antijudaica levada a cabo pela Inquisição. Essa política atingiu seu ápice em 1492,
quando o rei da Espanha Fernando II exigiu a conversão de judeus ao catolicismo ou a expulsão
das terras do reino. Em Portugal, Dom João III ordena, em 1536, a instalação do Tribunal da
Santa Inquisição em terras de domínio luso. Instaura-se, nesse período, um longo sistema de
acusação e punição de “hereges”, com inquisidores nomeados diretamente pelo rei e sigilo
absoluto nos processos. A estrutura inquisitorial concebia torturas e execuções como
instrumentos de controle religioso e político-administrativo. Nesse contexto, os cristãos-novos
estavam possivelmente mais preocupados com o resguardo de suas vidas do que com fato de
viverem distantes de seus locais de origem na Europa. Buscavam, muitas vezes, condições de
vida e de liberdade que não encontrariam na metrópole, onde a Inquisição já havia se instalado
(1536) e tinha os conversos forçados como principais alvos (LIPINER, 1969).

16
A União Ibérica foi a unificação dos reinos de Espanha e Portugal entre 1580 e 1640. Nesse período, o reino
português esteva sob domínio espanhol. Com a morte do rei Dom Sebastião, que não tinha filhos, o rei espanhol
Filipe II alegando parentesco com Dom Sebastião, “tomou” o reino português e anexou-o à Espanha (CRUZ,
1995).

17
Além das práticas judaizantes, a Inquisição considerava como práticas heréticas a feitiçaria, a bigamia, o
adultério e a sodomia (CRUZ, 1995).
31

Segundo cálculos realizados a partir da documentação da “Primeira Visitação do


[Tribunal do] Santo Ofício ao Brasil”, ainda no século XVI, o número de cristãos-novos que se
estabeleceram, ou apenas passaram pela Capitania de Pernambuco seria algo em torno de 1200
pessoas (LIPINER, 1969). A chegada, de tempos em tempos, de membros do Tribunal do Santo
Ofício quebrava a sociabilidade e a tolerância reinantes no cotidiano da colônia, fazendo com
que muitas famílias de judeus revivessem suas lembranças de perseguição violenta. Havia um
grande temor por parte dessas famílias de que a presença do Santo Ofício fosse provocada por
alguma prática “judaizante” cometida por algum parente mais descuidado. Segundo Novisnky
(2015), ser judaizante poderia significar várias situações do cotidiano do cristão-novo, desde
agir baseado em princípios da razão prática, passando por demonstrar alguma forma de
iconoclastia, até possuir conhecimentos advindos de uma educação formal. A historiadora
defende que grande parte dos judeus vindos para as Américas no tempo colonial eram
alfabetizados. Esse fato produzia um grande contraste social entre pessoas letradas, os cristãos
forçadamente batizados, e não letradas, os cristãos de berço, fato que poderia facilitar as
denúncias de práticas judaizantes. Novinsky et al (2015) também afirmam que a “vida judaica”
no Brasil, como em Portugal, tinha de ser clandestina. Nos primeiros séculos da colonização,
foram criadas sociedades secretas e os judeus, sob a máscara social de cristãos, se reconheciam
por códigos indecifráveis para os estranhos ao grupo.
A liberdade para a prática do judaísmo no Brasil só foi garantida na Constituição do
Império do Brasil em 1822, doze anos após as prescrições do tratado comercial assinado entre
os reis de Portugal e Inglaterra, coibindo a intolerância religiosa em nome de interesses
econômicos maiores. Nesse tratado, foi permitida, por exemplo, a liberdade de culto dos
protestantes, súditos da Coroa britânica, que passariam a frequentar os mercados estabelecidos
nas colônias (LESSER, 1995).
Historiadores que se dedicam às temáticas dos cristãos-novos nas Américas narram que
muitos judeus ibéricos chegaram por estas bandas para reestruturar sua família, no interesse de
prosperar e fugir da perseguição étnico-religiosa que sofriam em terras europeias, acionando,
em situações de menor opressão, um dialeto desenvolvido pelos seus ancestrais, o “ladino”18.

18
Designativo da língua com traços arcaicos do espanhol falada por comunidades de judeus de ascendência ibérica.
Grosso modo, trata-se de uma mistura de palavras hebraicas, usadas no dia a dia, com a língua da região, que podia
ser o castelhano, o português, o árabe ou o catalão. Estima-se que ainda seja falada por aproximadamente 150000
indivíduos em comunidades sefarditas, em Israel, nos Balcãs, no Oriente Médio e norte de Marrocos (BRAGA,
2016).
32

No Brasil, encontram um “lar”, embora cheio de tensões e conflitos com os cristãos católicos.
Ainda segundo tais narrativas, os cristãos-novos conseguiram resistentemente manter práticas
cotidianas judaicas, sobretudo as domésticas, transmitindo suas tradições às próximas gerações
enquanto escapavam da perseguição religiosa sofrida. Para a sociedade colonial, externaram o
catolicismo de modo forçado e formal, ainda inibidos pelos procedimentos de acusação e tortura
da Inquisição. Enquanto muitos conseguiam escapar da delação, outros eram levados por
denúncia ao julgamento do Tribunal do Santo Ofício, acusados de práticas judaizantes em terras
sob a alçada da administração colonial. Se condenados, recebiam penas que variavam do
cárcere à polé19.
No contexto das guerras de independência dos Países Baixos contra a Coroa espanhola,
a Companhia das Índias Ocidentais conquista terras nas colônias ibéricas, passando a ocupar,
administrar e explorar comercialmente os diversos portos, fortes, vilas e cidades pertencentes
às Capitanias de Pernambuco e à Bahia de Todos Santos, especialmente entre 1630 e 1654, uma
vasta região do que hoje é o litoral dos Estados de Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio
Grande do Norte e Ceará. Enquanto alguns colonos lusitanos são mortos e expulsos das
capitanias, outros passam a compartilhar o mesmo espaço com os ditos “holandeses”. Os
documentos do período revelam que as relações locais de poder eram bastante complexas e
“houve tanto casos de cristãos-novos que defenderam a causa portuguesa, como de cristãos-
velhos que passaram para o lado holandês” (2000, p. 46).
De modo geral, a historiografia do tema defende a existência uma convivência mais
amistosa entre os colonos de tradição protestante e os cristãos-novos já instalados nas terras de
antigo domínio ibérico (NOVINSK et al, 2015). A historiadora Daniela Levy (2018) argumenta,
por exemplo, que o governador João Maurício de Nassau, codinome português de Johan
Maurits van Nassau-Siegen, era um grande humanista e defendia a boa convivência entre
grupos religiosos distintos, tolerando a presença de católicos e judeus nas terras governadas por
uma Companhia de tradição protestante. Autores como José Antonio Gonsalves de Mello
(1996) e Ronaldo Vainfas (2010) evidenciam que no chamado “período holandês” houve um
intenso fluxo migratório de judeus ibéricos que, perseguidos pela Inquisição, haviam sido
acolhidos inicialmente em países como Holanda e Inglaterra, para, em seguida, serem

19
Instrumento de tortura usado na Inquisição, consistindo em uma roldana presa no teto, em que a vítima era
suspensa, com pesos nos pés, deixando-a cair em brusco arranco sem tocar no chão. Informações em
http://www.museudainquisicao.org.br/acervo/pole/.
33

transferidos para Capitania de Pernambuco, especialmente para a cidade do Recife. Mello


(1996) chega a afirmar que Recife se tornou, em grande parte do século XVI, um dos principais
centros de recepção dos judeus refugiados do mundo, fundando em 1637 a sinagoga Kahal
Zur20, a primeira das Américas. A sinagoga se localiza na atual rua do Bom Jesus, no centro da
cidade.
Entretanto, um olhar mais atento aos relatos mais antigos do período tende a
desestabilizar certas narrativas de ode à liberdade judaica e tolerância religiosa durante a
administração colonial calvinista. Em seu História dos feitos recentemente praticados durante
oito anos no Brasil e noutras partes sob o Governo do ilustríssimo João Maurício Conde de
Nassau etc., ora Governador de Wesel, Tenente-General de Cavalaria das Províncias-Unidas
sob o Príncipe de Orange, publicado em 1647, Gaspar Barléu documenta os pormenores das
formas de controle da vida social daquele “Brasil holandês”. O cotidiano da colônia estava sob
o jugo de autoridades religiosas, pois “está em uso no Brasil a mesma forma de govêrno
eclesiástico que nas igrejas holandesas. A suprema autoridade pertence ao Conde e ao Conselho
Secreto” ([1647] 1940, p. 344) “em razão dos estreitíssimos vínculos entre o Estado e a Igreja”
(Idem, p. 345). Portanto, o governo da Companhia “determinou que os eclesiásticos reformados
conduzidos a bordo ou nomeados para as fortalezas deviam sentar-se condignamente à mesa
dos comandantes” (Idem: 345; 346), estando os papistas (católicos) e os judeus submetidos às
restrições impostas pela religião calvinista dominante. Os católicos romanos só deveriam
realizar “as cerimônias de sua religião no recinto das igrejas e não fora, pelas ruas e estradas”
(Idem, p. 346). Para os judeus, a Companhia impunha restrições mais duras como não edificar
“novas sinagogas”, não “casar com cristã ou ter concubina cristã” e “não converter cristão ao
mosaismo” (Idem, p. 346).
Além de estabelecer limites às práticas cotidianas e aos cultos religiosos dissidentes, os
administradores da Companhia das Índias Ocidentais compreendiam que era preciso coverter
os colonos à verdadeira fé reformada. Para tanto, eram bastante úteis os ministros do culto
reformado:

20
Desde 2002, a partir de ações promovidas por a partir de ações promovidas pela Federação Israelita de
Pernambuco e pelo Arquivo Histórico Judaico de Pernambuco, a Kahal Zur funciona como um espaço de difusão
da cultura judaica e de encontro de estudiosos do judaísmo. Nos tempos atuais, no mês de fevereiro, durante a
festividade do Purim, grupos de judeus conversos viajam de diferentes localidades dos Estados do Rio Grande do
Norte, Paraíba e Pernambuco para se encontrarem em um momento de celebração da vida em frente à velha
sinagoga. Tércio Amaral, Diário de Pernambuco. 17/03/2014. Vide:
http://www.impresso.diariodepernambuco.com.br/
34

[...] designaram-se os que formassem a puerícia, ministrassem os rudimentos da fé ao paganismo


obcecado e espancassem, com a centelha de melhor doutrina, as trevas de uma profunda
ignorância. Para conseguir-se isto regularmente e com esperança de piedoso fruto, Maurício e os
predicantes públicos acharam que se deveriam tratar de maneira diversa os pagãos, os judeus e
os papistas. Quanto aos pagãos, eram de parecer que se fazia mister suprimir-se o culto
supersticioso de vários deuses, elevando-se-lhes o espírito à adoração de um só Deus. Quanto
aos judeus, era preciso desarraigar-lhes a inveterada opinião de observarem a lei mosaica e de
esperarem-a restauração do reino de Jerusalém. Cumpria persuadí-los ao respeito e à fé em Jesús-
Cristo, filho de Maria, como o Messias prometido e havia muito nascido. (BARLÉU, [1647]
1940, p. 57)

A historiadora Fernanda Mayer Lustosa (2000) observa que algumas dessas restrições
decretadas pelos administradores calvinistas não se realizaram “a ferro e a fogo” e os cristãos-
novos continuaram realizando seus cultos clandestinos, estabelecendo laços matrimoniais com
famílias de cristãos-velhos e atualizando suas práticas judaizantes.
Após décadas de ocupação holandesa em uma extensa faixa do litoral do que viria a ser
o Nordeste brasileiro, a Coroa portuguesa passou a adotar uma política de conciliação com a
Companhia, inimiga histórica da Espanha. Com isso, os portugueses visavam o desgaste
espanhol e a futura independência do reino em relação à União Ibérica (LUSTOSA, 2000). A
partir de 1640, com o fim da União Ibérica e o retorno da autonomia político-administrativa
portuguesa sobre as colônias, o rei Dom João IV se dedicou com mais afinco à recuperação das
capitanias ocupadas pela Companhia (BRAGA, 2009). Em Pernambuco, havia um clima de
descontentamento entre os antigos colonos e os administradores holandeses por conta do
endividamento dos senhores de engenho, da crescente cobrança e juros e perseguição ao
catolicismo (MELLO, 1996). Em 1645, teve início um movimento de revolta contra o domínio
holandês que ficou conhecido como “Insurreição Pernambucana”. Narra-se que a ação foi
liderada pelos senhores de engenho João Fernandes Vieira e André Vidal de Negreiros, o
potiguara Filipe Camarão e o “negro livre” Henrique Dias, com apoio da Coroa portuguesa.
Após violentas lutas, como o combate do Monte das Tabocas (1645) e as duas batalhas dos
Guararapes (1648 e 1649), os holandeses foram finalmente derrotados. Em 1661 os holandeses
assinaram a Paz de Haia com Portugal e, em 1669, acertaram o recebimento de uma indenização
por conta das terras perdidas (MELLO, 1996). O paradoxo entre a exigência de um processo
indenizatório e a narrativa heróica da vitória dos colonos portugueses não costuma ser analisado
pela historiografia do período.
Segundo Levy (2018), os judeus que haviam estabelecido raízes na capitania de
Pernambuco, que incluía uma área significativa do que hoje compreendemos como região
35

Nordeste do Brasil, foram acuados pelo retorno da administração colonial portuguesa. O


governador Francisco Barreto de Menezes deu um ultimato: três meses. Algumas famílias
fugiram para os sertões da capitania e outras embarcaram rumo à Holanda. Enquanto grupos
tiveram êxito no retorno ao velho mundo, outros passaram a morar em Nova Amsterdã, atual
Nova York, após intempéries do tempo e vicissitudes das batalhas navais entre metrópoles no
Atlântico ao longo das viagens de fuga (LEVY, 2018).
Aqueles cristãos-novos que permaneceram na colônia, se afastaram do Recife,
encontrando refúgio em lugarejos da Paraíba e do Rio Grande do Norte (NOVINSK, 1987).
Com o deslocamento forçado, muitos tiveram que se readaptar uma nova vida social e material,
em período de crise do açúcar brasileiro. No século XVIII, as famílias cristãs-novas se viram
em uma situação econômica difícil, resultado da decadência geral da capitania (LUSTOSA,
2000). O afastamento do litoral e das capitais decorria mais de uma busca de melhores
condições de vida do que uma fuga de perseguições religiosas: “à medida que o açúcar entrou
em crise notamos que os membros desta comunidade passaram a formar núcleos menores e
mais isolados, tendendo a interiorizar-se pelo sertão nordestino.” (LUSTOSA, 2000, p. 63).
Analisando as informações das famílias cristãs-novas na Paraíba presentes nos processos da
Inquisição de Lisboa, Lustosa observa:

No século XVIII notamos maior mobilidade neste grupo pelas constantes mudanças de sítios no
interior dos grandes engenhos da região litorânea. Apenas a família de Antonio Nunes Chaves
continuou morando no mesmo lugar, uma vez que vivia em terras de sua propriedade. Os demais
cristãos-novos mudaram de local de moradia, alguns deles deixando a Paraíba. Os locais com
maior concentração de cristãos-novos eram o Engenho Velho, Engenho do Meio, Engenho Novo,
Engenho de Santo André, e Engenho do Poxi. O engenho com maior número de cristãos-novos
foi o Engenho Velho, aonde moravam várias famílias cristãs-novas, perto umas das outras, “sem
haver de distancia nem hum quarto de Legoa”, pois muitos casais cristãos-novos costumavam
residir em sítios próximos de seus pais, formando uma comunidade rural. Esta familiaridade foi
também conseqüência de um elevado número de uniões consangüíneas. O casamento entre
primos foi bastante comum. (LUSTOSA, 2000, p. 63)

Com o advento do Império (século XIX) e o esfriamento das perseguições no Nordeste,


paradoxalmente, as notícias documentais sobre os cristãos-novos impõem um silêncio narrativo
sobre a questão. Supõe-se que eles tenham sido absorvidos pela sociedade nacional, ou viraram
“coisa do passado”. Ao mesmo tempo, levas de judeus europeus, geralmente asquenazes,
chegavam ao Brasil, especialmente para as regiões Sudeste e Sul 21 , em busca de melhores

21
Ao longo do século XIX, o Brasil também recebeu fluxos migratórios de judeus sefarditas oriundos do Marrocos
e de outras regiões do norte da África nas primeiras décadas do oitocentos, estabelecendo-se na Amazônia,
principalmente em Belém, onde fundaram em 1824 uma sinagoga (LINS, 2010).
36

condições de vida, na esteira de uma política de incentivo à vinda de imigrantes do “mundo


civilizado” concebida por Dom Pedro II. O governo imperial estava preocupado com a
formação de uma nação civilizada, dotada dos sentidos e técnicas do trabalho moderno.
Devidamente estruturados pelo acesso a boas terras e apoio logístico e financeiro, os judeus e
outros povos europeus contribuiriam para o sonhado branqueamento da população brasileira.
A melhoria da “raça” era um pressuposto natural do desenvolvimento nacional (ROCHE, 1969;
AZEVEDO, 1987; SILVA, 2013). Paulo Valadares (2007) demonstra que por cerca de
trezentos anos os cristãos-novos resistiram culturalmente à assimilação dentro da sociedade
católica sob o influxo da perseguição inquisitorial.
O silêncio narrativo sobre os cristãos-novos do Nordeste brasileiro atravessará o século
XIX, permanecendo durante a primeira metade do século XX (VALADARES, 2007). Como
veremos mais adiante neste capítulo, nos anos 1970, no município de Caicó, Rio Grande do
Norte, um pequeno grupo de pessoas passa a se identificar como descendentes dos primeiros
judeus que habitaram as terras da colônia e do império brasileiro, evidenciando os antigos
costumes e rituais marranos e expressando o desejo do retorno a um judaísmo perdido e jamais
esquecido.
Os mitos de origem do judaísmo no Brasil, narrados pela historiografia pertinente à
temática e certificados pelos conversos, buscam se conectar a fatos que expressam a resistência
dos cristãos-novos diante das pressões da Igreja e da Metrópole. Nessas narrativas, o mais
importante é evidenciar as alteridades entre um “eu judeu resistente” e o “outro não-judeu
dominante” e não os sincretismos possivelmente existentes nos processos e relações entre os
grupos que compunham a sociedade colonial e imperial. Por exemplo, ignora-se o fato de que
as fronteiras culturais entre cristãos-novos e cristãos-velhos foram se tornando cada vez mais
borradas ao longo dos séculos. A formalidade católica e a domesticidade judaica se
ressignificavam a cada nova geração formando sujeitos que não eram exatamente os católicos
e os judeus à moda europeia. Algo recorrente, segundo o autor Nathan Wachtel (2011) é o fato
de muitos dos judeus que aqui estavam no território brasileiro pertencerem a famílias cristãs,
mas famílias com algo particular, com costumes particulares. Desde a proibições de
alimentação, de comer porco, ou costumes funerários particulares, como o de enterrar os mortos
em terra limpa com a mortalha (algo bem difundido até os anos 1980, em todo o sertão do
Nordeste). E muitos cumprem o mesmo itinerário, por várias razões (de estudo, de trabalho, de
37

saúde): migram para a cidade e se dão conta de que esses costumes familiares, que pensavam
ser totalmente cristãos, não são recomendados pela Igreja católica.

2.2 Branca Dias e as narrativas da resistência da identidade judaica na Paraíba

Sobre a vida judaica nos primeiros séculos de colonização da Paraíba, Novinsky et al,
baseadas em pesquisas genealógicas e documentais22 de Lustosa (2000) e outros trabalhos sobre
o tema, arrisca dizer que:

A Paraíba apresenta uma história fortemente ligada ao judaísmo. Muito cedo os cristãos-novos
estabeleceram-se em Nossa Senhora das Neves. A fidelidade ao judaísmo nessa região do país
foi mais representativa do que em outras. Os conversos não se assimilaram como no Rio de
Janeiro, em Minas ou na Bahia, perseverando mais tempo na identidade judaica, fiéis às velhas
tradições herdadas dos pais e dos avós. Podemos considerá-los, do ponto de vista religioso, como
os mais radicais da história colonial. Transformaram a Paraíba, a partir do século XVI, em uma
“terra de judeus” (NOVINSKY et al, 2015, p. 175).

O Tribunal do Santo Ofício estava atento à presença de cristãos-novos mais altivos na


Paraíba e abria processos inquisitoriais sobre alguns moradores. Alguns dos acusados foram
presos e confessaram o criptojudaísmo. Sobre essas confissões, Lustosa afirma:

De 35 cristãos-novos presos na Paraíba, cujos processos foram examinados, todos, com exceção
de 6, confessaram que eram criptojudeus, admitindo que praticavam cerimônias judaicas. Eles
sabiam que deviam confessar para conseguir o perdão dos inquisidores, pois, Vitória Barbalha,
cujo marido, um filho e cinco filhas foram presos pelo Santo Ofício disse: “se elles tinhão
commetido algua culpa q. tocasse ao Sto. Officio, confessassem tudo” (Lustosa, 2000, p. 85).

Dessa forma, não se sabe exatamente se a alegada “fidelidade ao judaísmo” (NOVINSK


et al, 2015) dizia respeito ao orgulho identitário local, diferenciado em relação a outras regiões
da colônia, ou a estratégias de sobrevivência mediante o conhecimento prévio das regras e
vícios processuais do Santo Ofício.
O fato é que o protagonismo judaico na Paraíba é acentuado por meio da construção de
algumas personagens históricas dos tempos coloniais, como Branca Dias, figura que se destaca
no processo de contar e recontar a “saga” dos primeiros judeus que habitaram o Brasil. A
presença mítico-histórica de Branca Dias é de tal ordem que consegue representar, a um só

22
Lustosa (2000) se debruçou sobre os processos da Inquisição de Lisboa, buscando reconstituir as relações
sociais, atividades econômicas e crenças religiosas vivenciadas pelos cristãos-novos em diversas localidades da
Paraíba colonial.
38

tempo, três mulheres homônimas vivendo em distintos tempos e espaços coloniais de


Pernambuco e da Paraíba (REAL, 2004), passando por perseguições religiosas e processos
inquisitoriais que as levaram a grandes sofrimentos e, em alguns casos, à morte.

[...] são consideradas três Brancas, sendo elas: a Branca Dias que viveu em Pernambuco, acusada
de difundir práticas judaicas ao longo do século XVI em terras de Camaragibe, [...] com
existência histórica comprovada. Há uma outra que teria vivido em Apipucos (hoje bairro do
Recife), sem documentação comprobatória de sua existência, no entanto citada pela literatura
como a grande imagem da duplicação, tendo sido transportada ao longo dos séculos como
recriação da Branca histórica do século XVI. E, ainda, uma Branca Dias que teria vivido em
terras localizadas em Gramame, Paraíba, no século XVIII, filha do cristão-novo Simão Dias [e
D. Maria Alves Dias], acusada de propagar o judaísmo em terras paraibanas. (BRAGA, 2009, p.
40)

A exemplo das Brancas pernambucanas, a Branca Dias paraibana (1734 - 1761),


moradora do Engenho Velho, Gramame, praticava ritos considerados judaicos (guarda do
sábado, organização de shabats, lavagem da casa quando havia um falecido, acendimento de
velas etc.) em seu universo doméstico, mantendo boas relações com o governo colonial e com
a elite local. Remontando interpretações de historiadores mais antigos como Maximiano
Lopes Machado (1912), Coriolano de Medeiros (1922) e Geraldo Irenêo Joffily (1965)
autores reafirmam que Branca Dias foi levada à força para cadeia do Limoeiro em Lisboa,
sendo executada na fogueira da Inquisição em 20 de março de 1761 (JOFFILY, 1993; PINTO,
1997).
A personagem Branca Dias marca importantes símbolos que reforçam a estrutura
narrativa da “saga” dos judeus no Brasil e, de modo mais geral, no “Novo Mundo”. Esses
símbolos povoam o imaginário dos conversos atuantes em muitas localidades da região
Nordeste. Na ponta de um antigo punhal, encontrado no século XIX sob a pedra-mor do
engenho de Camaragibe, pode-se ler a seguinte frase atribuída a Branca Dias: “fui sempre o que
nunca serei” (BRAGA, 2009). Contemporaneamente, alguns integrantes das comunidades de
conversos campinenses se afirmam, com orgulho, descendentes de Branca Dias. Quando
Antônio Ribeiro funda, juntamente com outros Bnei Anussim, uma comunidade judaica no
bairro de Santa Rosa, em Campina Grande, a nomeia de “Branca Dias” a fim de consolidar a
ideia de resistência reverberada pela heroína que sobrevive à perseguição sofrida pelos judeus
no período colonial. Há entre esses grupos o conhecimento e o respeito pela narrativa histórica
de resistência dos seus ancestrais, os judeus colonizadores que ajudaram a formar o que hoje
entedemos como “Brasil”.
39

Por meio de fatos-mitos como Branca Dias, construções genealógicas e observação de


costumes do cotidiano, os judeus conversos nordestinos e nortistas se sentem ligados a laços de
sangue e civilizacionais tão ou mais substanciais (e puros) do que as tradições trazidas para o
Brasil pelos judeus “diaspóricos” que aportaram nas regiões Sudeste e Sul do Brasil tempos
depois, grupos sociais que hoje se encontram em centros mais consolidados do judaísmo
estabelecido em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro. Como veremos mais adiante na tese,
tais grupos estabelecidos têm se arvorado o direito de definir, estereotipar e, por vezes,
subalternizar conforme seus critérios de judaicidade legítima as manifestações e multiplicidade
das experiências étnico-religiosas das comunidades marranas brasileiras.
Em vários lugares do país existem diversas comunidades improvisando sinagogas, seja
em ambientes domésticos ou em locais alugados, onde se encontram coletivamente e vivenciam
as tradições judaicas, baseada no estudo do hebraico, na leitura da Torá e do Talmud, no
cumprimento de regras cotidianas e na realização de festividades do calendário judaico. O
retorno veio para ficar.

2.3 Os neoconversos observados pelos estudos judaicos no Brasil

É apenas no início do século XX que surgem os primeiros estudos e ensaios relacionados


às questões judaicas no Brasil. Enquanto intelectuais como Gustavo Barroso buscavam em suas
obras argumentos antissemitistas para expurgar influências raciais negativas na vida social e
política brasileira, o antropólogo Gilberto Freyre explorou, em Casa grande e senzala (1933) e
Sobrados mucambos (1936), as influências judaicas na cultura brasileira, sendo precursor de
muitas pesquisas e reflexões do que se tornaria, décadas depois, um novo campo do
conhecimento historiográfico e antropológico. Freyre influenciou autores como José Antônio
Gonsalves de Mello, Evaldo Cabral de Mello, Marco Aurélio de Alcântara, Vamireh Chacon e
Luís Câmara Cascudo para citar apenas alguns estudiosos que dedicaram atenção a esse campo
dos anos 1930 até os anos 1960 (SOBREIRA, 2009).
Em 1963, o rabino Frizt Pinkuss, um dos fundadores da Congregação Israelita Paulista
– CIP, sediada em São Paulo capital, funda o curso de graduação de Língua e Literatura
Hebraica em na Universidade de São Paulo (USP). Em 1968, sob a coordenação da professora
Rivka Berezin, funda-se o Centro de Estudos Judaicos, com o propósito de ampliar o campo de
estudos na Universidade (FFLCH, 2011). É nesse contexto que Pinkuss toma conhecimento das
pesquisas de Novinsky sobre os cristãos-novos no Nordeste brasileiro. Em 1972, ele solicitou
40

que a historiadora uspiana acompanhesse de perto os relatos da existência de pessoas que se


afirmavam judeus em Caicó, Rio Grande do Norte. Algumas famílias do seridó potiguar
preservavam “costumes judaicos” e estavam interessadas nos processos rituais envolvidos no
chamado “retorno” (SOBREIRA, 2009). Segundo Novinsky, tais relatos foram comunicados
por meio de uma carta do pároco local:

Anita Novinsky, em declarações feitas ao The Jerusalem Post e publicadas em 31 de maio de


2006, esclareceu que até a década de 1960 ninguém ainda conhecia marranos no Brasil. Não se
conhecia a sua existência. Ela só descobriu a existência de marranos no Brasil quando através de
uma carta um padre [Antenor Salviano de Araújo] do interior do Rio Grande do Norte,
autointitulado “judeu da diáspora”, a convidou para visitar sua paróquia, que ele reivindicava ser
inteiramente judia (SILVA, 2008, p. 7).

Entretanto, para a comunidade de marranos organizada no Rio Grande do Norte, o


movimento de retorno ao judaísmo no Nordeste brasileiro começou muito antes da ilustre visita
da historiadora da USP ao município de Caicó. Ainda nos primeiros anos do século XX, o
mossoroense Abdon Nunes de Carvalho, se considerava descendente dos antigos cristãos-
novos, decidindo, em 1913, circuncisar seu filho, José Nunes Cabral de Carvalho. Em 1927,
Abdon, então tenente da Polícia Militar, integraria em 1927 o grupo de resistência às ações do
bando de Lampião cangaceiro na cidade de Mossoró (Silva, 1927). Na vida adulta, o filho
circuncisado de Abdon tornar-se-ia professor de antropologia física da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte (UFRN), catalogando aspectos da cultura sertenaja cujas origens
pudessem ser traçadas até hábitos judeus (ALMEIDA, 2017). O antropólogo teria, inclusive,
“percorrido diversos sítios e fazendas do Seridó potiguar, realizando entrevistas com antigos
moradores da região e coletando evidências que corroborassem suas asserções” (Almeida,
2017: 169).
Após mobilizações iniciadas por famílias do Seridó que passaram a integrar um
movimento maior na capital rionortegrandense, grupos de retornados reativam em 1979 o
Centro Israelita Rionortegrandense (CIRN) na cidade de Natal, instituição originalmente
fundada por judeus asquenazes radicados no Rio Grande do Norte. O professor José Nunes
Cabral de Carvalho e do (atualmente) rabino João Fernandes Dias de Medeiros (também
conhecido como “Rav Yohanan Yedidyah”) fazem parte do primero grupo que organiza
encontros e palestras sobre o marranismo nordestino.
Em 2005, João Medeiros lança a obra Nos passos do retorno relatando os processos de
conversão de famílias ao judaísmo no Rio Grande do Norte a partir da redescoberta das raízes
41

marranas/sefarditas. No livro, João Medeiros conta que, por volta de 1970, reúne um grupo de
pesquisadores retornados ao judaísmo (Marcos Filgueira23, Olavo Medeiros Filho24e Odmar
Pinheiro Braga25) e inicia um trabalho de levantamento de genealogias familiares e de histórias
de vida, “resgatando” as origens marranas da região do seridó potiguar. O trabalho chama
atenção de outros grupos e lugares, do Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco, que passam
a ser registrados pela pesquisa. É o início de um movimento mais amplo de ressurgimento
étnico-religioso dos judeus nordestinos.
Atualmente, João Medeiros é rabino da sinagoga Braz Palatnik, localizada no bairro
Cidade Alta, em Natal. O rabino potiguar exerceu importante papel na criação da comunidade
Maguen David, em Campina Grande, evidenciando a existência de uma rede de contatos e
apoios entre pessoas e grupos interessadas em conhecer e vivenciar a identidade e religiosidade
judaica.
Tendo participado dos levantamentos genealógicos e das primeiras mobilizações dos
retornados estabelecidos no Rio Grande do Norte, Odmar Braga, juntamente com Francisco
Geraldo Apoleano Dias e outras pessoas que se reconhecem como judeus, funda em 1996 a
Associação Religiosa Sefardi Bnei Anussim. A Associação visa prestar assistência às famílias
e grupos marranos atuantes na região Nordeste por meio de orientações religiosas diversas e
organização de encontros entre retornados de várias regiões do país. Em 1997, Odmar e
associados organizam em uma casa alugada em Boa Viagem, Recife, o I Encontro Brasileiro
Bnei Anussim, contando com a participação de pessoas influentes no cenário judaico nacional.
A Associação transformou-se ao longo dos anos, mudando de liderança, nome e sedes.
Atualmente, funciona como Associação Bereshit Olam na própria residência de Odmar, na
cidade de Paulista, Pernambuco. A atuação da associação foi perdendo força devido aos
conflitos internos existentes que fragmentavam os interesses e propostas do movimento.
A partir dos anos 1980, pesquisadores brasileiros e estrangeiros passaram a observar
com mais atenção ao fenômeno da emergência étnico-religiosa de pessoas e grupos que se

23
Marcos Antônio Filgueira, nascido em 1949, é professor de Entomologia e Ecologia Agrícola da UFERSA
(Universidade Federal Rural do Semi-Árido), com sede em Mossoró, RN, genealogista, autor da obra “Os Judeus
Foram Nossos Avós”.
24
Olavo Medeiros Filho, natural de Caicó, advogado de formação, ligado ao IHGRN/IHGB. De sua autoria,
Velhos Inventários do Seridó, onde há a preocupação do autor com a formação étnica da população, procurando
descrever a composição da mesma.
25
Mais a frente no presente capítulo abordaremos um pouco da trajetória de vida de Odmar Braga.
42

identificavam como judeus no Nordeste brasileiro. Em 1983, Sonia Maria Bloomfield


Ramagem defendeu a dissertação de mestrado em antropologia (DAN/UnB), intitulada “A fênix
de Abraão: um estudo sobre cristãos-novos retornados ao judaísmo de seus ancestrais”, a partir
de uma experiência etnográfica junto aos marranos no Rio Grande do Norte, descrevendo o que
ela intitula de “projeto messiânico” encabeçado por João Medeiros, na segunda metade da
década de 1970, de “tentar atrair possíveis interessados em um retorno ao judaísmo”
(RAMAGEM, 1983, P. 72)
Após pesquisas realizadas no interior potiguar, especialmente no município de Venha-
ver, em 1994, Jacques Cukierkorn defende a tese para sua ordenação no rabinato no Hebrew
Union College, Cincinnati, Ohio, Estados Unidos, sobre o fenômeno do retorno marrano. Em
“Retornando – Coming Back: a description and historical perspective of the crypto-jewish
community of Rio Grande do Norte, Brazil”, o rabino argumenta que o judaísmo dos habitantes
da pequena Venha-Ver se manifesta por meio de práticas cotidianas inconscientes que alteram a
própria relação com a religiosidade católica. Embora se reconheçam como católicos e frequentem
assiduamente as missas, alguns se recusam a se ajoelhar perante o altar no momento da eucaristia.
Ao longo dos anos 1990, o jornalista James Ross, professor da Northeastern University
de Boston, Estados Unidos, realizou uma extensa pesquisa de campo, viajando por vários
continentes em busca dos processos de reinvenção das identidades judaicas, que resultou na
obra “Fragile branches: travels through the jewish diáspora”, publicada em 2000, cujo capítulo
“Secret jews” é dedicado aos marranos do Nordeste brasileiro. No livro, Ross afirma que a
extraordinária diversidade das formas de vivenciar o judaísmo faz parte da própria essência do
“ser judeu”. As histórias de dispersões, laços de parentesco com outros povos e processos de
conversão tornam quase impossível definir purezas étnicas e religiosas no judaísmo. Questiona-
se, então, “quem decide quem é judeu?”. Um punhado de autoridades ultra-ortodoxas em Israel
devem ter o direito de julgar o que eles identificam como o povo representante da verdadeira
Torá? Ou os judeus devem saudar a diversidade cultural que tem sido central para a vida dos
seus múltiplos grupos e segmentos ao longo da história?
Entre os anos de 2000 e 2001, o antropólogo francês Nathan Wachtel, professor do
Collège de France, Paris, visitou vários lugares nos Estados de Pernambuco, Paraíba, Rio
Grande do Norte e Ceará, recolhendo histórias de vida de vários conversos ao judaísmo.
Algumas informações de sua pesquisa se encontram no livro “La foi du souvenir: labyrinthes
marranes”, publicado em 2001. Em 2011, Wachtel lançou Mémoires marranes, obra em que o
43

autor descreve e discute as ecperiências de redescoberta identitária judaica no Nordeste


brasileiro, sistematizando os dados do trabalho de anos de estudos acerca da temática. Wachtel
percebeu representações positivas e negativas em torno da herança marrana entre as famílias
nordestinas. Para o autor, essa memória dinamiza um duplo movimento: de um lado, a
fidelidade perseverante às tradiçoes; de outro, a dinâmica de fusão com outros povos e o risco
do esquecimento. O nordeste brasileiro, argumenta o antropólogo, apresenta as condições
históricas e culturais propícias para o surgimento e vitalidade ambos os fenômenos.
Em 2004, Paulo Valadares Ribeiro dos Santos defende a dissertação de mestrado em
história (PPGHS/USP) “A presença oculta: genealogia, identidade e cultura cristã-nova
brasileira nos séculos XIX e XX” em que o autor explica que a maioria dos descendentes de
cristãos-novos integrou-se à população geral entre o final da época colonial e início do Império.
Valadares apresenta a narrativa dos judeus que viveram em Portugal e foram convertidos
forçadamente ao catolicismo a partir de 1497. A categoria “cristão-novo” existe legalmente até
1773, quando se instituiu o término da distinção civil. A pesquisa de Valadarares identificou
genealogicamente alguns descendentes dos judeus perseguidos e a contribuição histórica desses
grupos na vida social brasileira contemporânea.
Em 2005, Elaine Eiger e Luize Valente lançam o documentário A estrela oculta do
sertão levantando e evidenciando os costumes judaicos presentes no cotidiano de famílias
residentes em municípios do interior dos Estados da Paraíba e do Rio Grande do Norte. O
documentário confronta o judaísmo oficial com o judaísmo dos conversos, provocando
questões relacionadas à identidade cultural e tolerância religiosa.
Recentemente, alguns trabalhos etnográficos abordaram essa temática em diferentes
contextos socioculturais que apresentaram reflexões aproximadas do fenômeno do retorno. Em
2014, Abel de Castro Tavares conclui a tese em antropologia (PPGA/UFPE) “Conversão, judaísmo
e alteridade: narrativas de pertencimento e instâncias de reconhecimento”, em que compara
processos de conversão ao judaísmo em comunidades atuantes em Fortaleza, Recife, Brasília e
Montreal, observando a existência de um paradoxo: a ânsia por uma nova identidade cultural em
um processo de enquadramento do sujeito em uma religião normativa. Em 2016, em minha
dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós Graduação em Antropologia da UFPB
(PPGA/UFPB), “Da arte de se tornar judeu: interpretando estratégias identitárias vivenciadas por
comunidades judaicas em Campina Grande/PB” descrevi e analisei o processo de formação de
fronteiras étnicas e religiosas em/entre três grupos campinenses, chamando atenção para
44

determinados elementos do cotidiano que operam como verdadeiros marcos de diferenciação e


afirmação identitária voltados para a conquista da sonhada conversão ao judaísmo.
A linha do tempo abaixo inserida (imagem 1) busca sintetizar as principais pesquisas e
trabalhos sobre o Nordeste judaico ao longo do século XX. Enquanto as primeiras obras se
concentraram na compreensão das influências judaicas na cultura brasileira e das questões
relacionadas à presença dos cristãos-novos no Brasil colonial e imperial, a partir da década de
1970 as pesquisas passam a ser direcionadas para descrições e reflexões do fenômeno do
retorno por meio de estudos de caso e análises comparativas.

Imagem 1 - Pesquisas e trabalhos sobre o Nordeste judaico (século XX)

Fonte: Autoria própria, 2020.

2.4 Judeus ortodoxos e liberais em um mundo de facções

Como a maioria das religiões, o judaísmo se reinventa continuamente, estabelecendo


grupos, ideias e práticas hegemônicas e grupos, ideias e práticas marginais. Segundo Ross, a
própria origem do povo hebreu remete a um processo de “bricolagem poliglota”:

Like most religions, Judaism has continually reinvented itself. The hebrews first emerged from
a polyglot of tribes and conquered peoples. Descent was based on paternity; many Hebrew
forefathers, from Abraham to Moses, intermarried with women from other tribes. As the hebrew
people became a nation, a countless number of converts joined them many came from conquered
tribes who forced to convert (ROSS, 2000, P. 03)
45

Assim, línguas, costumes, rituais, valores, tudo o que atualmente consideramos


tradicionalmente judaicos, inclusive as próprias leis religiosas e histórias do povo hebreu, são
processos dinâmicos, remodelados e ressignificados sob as mais diversas influências dos
contatos culturais ao longo do tempo e das chamadas “diásporas judaicas”26.
O surgimento de novas facções judaicas (grupos que se separaram das formas
predominantes de judaísmo que ainda permanecem judeus) contribuiu significativamente para
a reinvenção contínua do judaísmo. O novo marginal provocava o velho hegemônico para
mudanças. Cada grupo deixou sua marca e mudou os contornos da religião e o que ela poderia
abrigar ou não. Desde os samaritanos, os essênios e os fariseus, séculos antes de Cristo,
passando pelos caraítas no século VIII, até os hasids entre os séculos XVIII e XIX, grupos
étnicos vem desafiando os elementos estruturais do que em cada época se configurava como
judaísmo normativo, definindo novos mitos de origem, novas leis, novas formas de sacerdócio
e novos processos rituais, mais tarde tolerados, ou mesmo incorporados, pelas cúpulas
religiosas de Israel. Um exemplo mais recente desse processo de incorporação de valores e
práticas antes rechaçadas é a absorção por parte das autoridades rabínicas legalistas de alguns
elementos da espiritualidade dos hasids27. Os judeus ditos “ultra-ortodoxos” de hoje são os
herdeiros dessa fusão entre o misticismo hassídico e o academicismo rabínico (ROSS, 2000).
Entre as muitas formas de se classificar e se definir vertentes religiosas para o judaísmo,
a mais convencional e contemporânea é aquela que propõe a divisão dos judeus em três grandes
e influentes grupos: o judaísmo ortodoxo, o judaísmo conservador e o judaísmo reformista ou
reformado. A principal diferença entre esses grupos é a sua abordagem em relação às leis
judaicas. O ortodoxo sustenta que a Torá e as demais leis judaicas são de origem divina, eterna
e imutável, e que devem ser rigorosamente seguidas. Os conservadores e reformistas são mais
liberais, com o judaísmo conservador, geralmente promovendo uma interpretação mais
“tradicional” de requisitos do judaísmo do que o judaísmo reformista. A posição reformista

26
A diáspora judaica é o nome dado às diversas expulsões forçadas dos judeus mundo afora, incluindo a formação
de outras comunidades judaicas fora das regiões que hoje são conhecidas como Israel, partes do Líbano e Jordânia.
A chamada “Primeira Diáspora” teria sido iniciada em 586 a.C., quando o imperador babilônico Nabucodonosor
II conseguiu invadir o Reino de Judá, destruindo Jerusalém e deportando os judeus para a Mesopotâmia (alguns
migraram para vários países do Oriente). A “Segunda Diáspora” teria ocorrido no ano 70 d.C, após a destruição
de Jerusalém pelo Império Romano, “obrigando” os judeus a migrarem para outros países da Ásia Menor, África
ou sul da Europa (EHRLICH, 2008).
27
Para melhor compreensão do movimento hassídico dentro do judaísmo vide “Basic ideas of Hasidism” de Louis
Jacobs (2007).
46

típica é de que a lei judaica deve ser vista como um conjunto de diretrizes gerais e não como
um conjunto de restrições e obrigações cujo respeito é exigido dos judeus (SORJ, 2011).
A ideia de uma “ortodoxia judaica” não surgiu formalmente até o século XIX.
Desenvolveu em resposta ao judaísmo reformista, um movimento eclodido na Alemanha que
inspirou os judeus a assumir papéis ativos fora do gueto e na comunidade circundante. O
sucesso dos judeus reformados e o ressentimento contra eles na sociedade alemã alimentaram
os antissemitismos virulentos dos nazistas. Alguns judeus ultra-ortodoxos sugeriram que o
Holocausto era a punição de Deus pela assimilação judaica (ROSS, 2000).
Em teoria, os reformados são aqueles que assumem com tranquilidade os fluxos
culturais possibilitados pelas diásporas judaicas que gerou diversos movimentos identitários,
étnicos e religiosos dentro do judaísmo.

Kurdistani Jews celebrate Shavuot, the Festival Of Weeks, by staging mock battles in the
mountains close to where Noah's ark may have landed “Mountain Jews” In the Caucasus recite
many of their prayers in the jewish dialect of Tat, a nearly lost western Iranian language. Some
descendants of Spaniish Jews still speak Ladino, a mixture of Spanish, Hebrew, Arabic, and
several other tongues. American Jews, adapting to their Christians surroundings have inflated
the importance of Hanukkah, a minor Jewish holiday, which usually takes place close to
Christmas. Jewish foods, from couscous to latkes, also borrow from a wide of cultures (ROSS,
2000, p. 6-7).

Hoje os reformados são hegemônicos em países como Estados Unidos, Alemanha e


Reino Unido, enquanto os conservadores são bastante atuantes em Israel, marcando também
presença em sinagogas estadunidenses. O sistema liberal, de modo geral, é aquele que conhece
e respeita as leis judaicas, mas se apresenta aberto a pessoas e valores “de fora” na experiência
de compartilhamento das tradições religiosas. Costumam não se opor aos processos de
conversão daqueles que não comprovam a descendência de “sangue judeu” via linha materna.
A pretensão dos Bnei Anussim, especialmente dos novos conversos, de acessarem à Lei
do Retorno historicamente enfrenta significativa oposição dos rabinos ortodoxos para quem os
marranos estão à margem do judaísmo legítimo por carecerem de comprovação axiomática da
matrilinearidade nos termos da Halachá. A antropóloga Ramagem apresenta o caso de um
rabino ortodoxo que empreendeu visita a uma comunidade de conversos em Natal, Rio Grande
do Norte, sem conseguir fazer qualquer ligação do grupo com o que compreendia ser o autêntico
judaísmo.
47

Não ficamos impressionados que a coisa tenha qualquer origem... até se fosse, se há trezentos
anos [...] houve qualquer ligação com o judaísmo, mas nesses anos já houve tantos casos de
casamentos no meio, com certeza, que não se pode nem mais saber quem era mais judeu... morar
naqueles arredores não tinha qualquer condição de manter nosso esquema de vida...
(RAMAGEM, 1983, p. 85)

Em Israel, os judeus reformados buscam cada vez mais se inserir nas posições de poder
estatal e religioso. Por sua vez, os judeus conservadores estão ganhando seguidores, embora os
judeus ortodoxos mantenham a voz da autoridade legal judaica. Entre os cidadãos israelitas,
apenas rabinos ortodoxos podem realizar casamentos legais, divórcios e conversões. A lei
israelense dá aos tribunais rabínicos o direito de decidir quem deve ser considerado judeu.
Como parte de um mar de dezenas de outras facções e movimentos ao longo da história judaica,
os rabinos ortodoxos lutaram contra quaisquer mudanças que diminuíssem sua autoridade
(ROSS, 2000).
Nos Estados Unidos, os ortodoxos se mostram maleáveis a uma visão mais acolhedora
do judaísmo28. Judeus neoconversos mais abastados, especialmente estabelecidos no Brasil,
procuram o sistema estadunidense devido a organização e controle de documentos existente da
Rabbinical Council of America (RCA) para aquisição de um certificado por vias de menor
burocracia.
Nas últimas décadas, Israel se tornou um país rico e de elevado IDH29. Judeus conversos
que moram em diversos continentes enfrentam imensas barreiras burocráticas para ter acesso à
Lei do Retorno. Muitos cidadãos israelitas temem que a nação que conquistaram receba grandes
influxos de pessoas pobres do “Terceiro Mundo”. Afinal, para setores mais xenófobos da “terra
santa”, “ser judeu” não deveria ser uma passagem só de ida para ingresso de uma subumanidade
no “Primeiro Mundo”. De fato, Israel representa, para muitos, uma espécie de oásis da
“cidadania ocidental” no Oriente Médio. Talvez isso nos ajude a compreender as razões para
que rabinos estabelecidos, mesmo os ditos “liberais”, insistam em desafiar burocraticamente as
origens e as motivações dos judeus outsiders.
Os conceitos interrelacionais estabelecidos e outsiders foram cunhados por Norbert
Elias na década de 1960, quando desenvolveu pesquisas etnográficas em uma pequena
comunidade no interior da Inglaterra nominada ficcionalmente de “Winston Parva” 30 e

28
Maiores informações disponíveis em: https://www.jewishvirtuallibrary.org/rabbinical-council-of-america
29
Índice de Desenvolvimento Humano.
30
As pesquisas de Elias foram publicadas no livro “Os estabelecidos e os ousiders: sociologia das relações de
poder a partir de uma pequena comunidade”.
48

observou que havia uma relação conflituosa entre moradores mais antigos da “aldeia” e
moradores recém-chegados do “loteamento”. A dinâmica conflitiva configurava uma série
situações de hegemonização das origens, territórios e costumes dos aldeões anteriormente
estabelecidos e de marginalização daqueles “estrangeiros” (outsiders) que construiram um
loteamento próximo à aldeia ansiosos por fazer parte da comunidade de Winston Parva. Como
acompanharemos ao longo da tese, as análises eliasianas das relações de poder vivenciadas por
uma pequena comunidade inglesa podem ser observadas em uma escala mais ampla entre
judeus nordestinos e autoridades rabínicas e agentes estatais de centros do judaísmo nacional e
internacional.
Butler, ancorada em reflexões arendtianas acerca da fundação do Estado de Israel e dos
privilégios de uma cidadania étnica (e quase racial) em formação, escreve que mesmo os judeus
seculares se sentem envolvidos pela aura religiosa de “povo escolhido”, superior ao restante da
humanidade.

[...] os judeus que não mais acreditam em seu Deus de maneira tradicional, mas continuam se
considerando ‘escolhidos’ de um modo ou de outro só podem querer dizer com isso que, por
natureza, são os mais sábios, mais rebeldes ou mais fortes da Terra. E isso seria, por mais voltas
que se dê, nada mais do que uma surpetição racista (BUTLER, 2017, P. 140).

No cenário judaico brasileiro contemporâneo, o judaísmo liberal, especialmente o de


vertente conservadora, é adotado na maioria das sinagogas estabelecidas, buscando representar
grande parte dos coletivos religiosos não identificados com os setores mais ortodoxos ao mesmo
tempo em que mantém boas relações com o rabinato de Israel. Contraditoriamente, apesar desse
perfil moderado, oficialmente “liberal”, o rabinato das sigagogas estabelecidas no Brasil não
manifestam diposição para mediar as demandas por conversão das comunidades outsiders
perante os tribunais controlados por Israel.
Com o passar do tempo, o movimento liberal, inicado na Alemanha e espalhado pelo
mundo, especialmente nos Estados Unidos, se distanciou das práticas antitradicionais do
judaísmo reformado (LAMM, 2008). Em várias partes do mundo, esse movimento vem, nas
últimas décadas, consolidando uma posição mais moderada. É nesta posição moderada que,
provavelmente, a Congregação Israelita Paulista (CIP), a instituição que mais forma rabinos no
Brasil, se apresenta ao universo multifacetado do judaísmo contemporâneo.
Acionando histórias de resistência diaspórica de um povo escolhido por Deus e
perseguido por religiões, impérios e metrópoles hegemônicas, os judeus de cidadania israelita
49

plena lidam, há um bom tempo, com pessoas e comunidades de novos judeus cientes da
dignidade de seu sangue e suas tradições. Grupos que não se contentam com a posição étnico-
religiosa marginal em que foram postos pela experiência geopolítica judaica.
50

3 OS JUDEUS NEOCONVERSOS EM CAMPINA GRANDE: TRAJETÓRIAS


INDIVIDUAIS E PROCESSOS DE FORMAÇÃO COMUNITÁRIA

Tempos atrás, o advogado Alessandro, liderança da comunidade Maguen David, visitou


a Sinagoga Kahal Zur, no Recife, e pôde constatar, aliviado, a sua aproximação genealógica
com o judaísmo. Por sua própria conta, ele já havia feito e detalhado a reconstrução de sua
árvore genealógica materna, requisito considerado básico para a confirmação da sonhada
consanguinidade com o povo judeu. No mesmo período, o comerciante Davi André, fundador
da Amigos da Torah, pagou uma boa quantia de dinheiro para facilitar a aquisição do título de
“judeu convertido” pelo sistema liberal nos Estados Unidos. Depois de muitas pesquisas em
escritos sagrados e transitar por algumas comunidades religiosas, o jornalista Antonio, ex-
participante da Amigos da Torah e da Maguen David, hoje crê que encontrou o judaísmo mais
puro ao praticá-lo na comunidade que ele organiza atualmente, a Branca Dias. Ex-pastor batista
e fundador da comunidade caraíta em Campina Grande, o professor de taekwondo Noah
conheceu o judaísmo quando iniciava a vida adulta em Salvador, Bahia. Influenciado por “seu
iniciador” Oshana Iashali, Noah retorna à Paraíba e decide fundar um grupo com características
caraítas, passando a lecionar a língua hebraica. Atualmente consegue agregar alguns
participantes no grupo, a maioria jovens. Os encontros acontecem na sala de sua própria casa.
A dona de casa Ana Elya se interessou fortemente pelas tradições hebraicas ao aprofundar os
seus estudos do Antigo Testamento. Ela foi quem primeiro se afirmou como judia em sua
família. Começou a pesquisar os costumes, celebrações e a tradição judaica e, aos poucos,
convenceu o esposo Jessé, que já andava desconfiado com as pregações do pastor da
Assembléia de Deus. Por muito tempo, Ana, Jessé e seus dois filhos fizeram parte da Maguen
David, até que desentendimento internos fizeram com que fundassem uma nova comunidade,
a Beit Israel. Iniciado no judaísmo na Maguen David, o agente de turismo Alberto tomou a
seguinte decisão: “eu vou para Israel, vou fazer meu processo de retorno”. Ele já conhecia
alguns judeus atuantes no Recife que lhe deram uma carta de recomendação e um belo dia foi.
Estudou, cumpriu os ritos necessários e, enfim, se converteu pelos trâmites do sistema liberal.
Atualmente, arrumou um emprego em Israel, é casado com uma “judia pura”, com quem tem
dois filhos. Lá é conhecido como “Kaleb”. A dona de casa Leda frequentava assiduamente os
encontros Maguen David, momentos em que aprendeu a “ser judia” juntamente com seus filhos
Bruno e Kedma. Bruno ministrava alguns ritos coletivos na ausência do líder Alessandro,
enquanto Kedma executava os belos cânticos dos dias festivos. Há anos a família se organiza
51

financeiramente para iniciar os trâmites burocráticos necessários para o reconhecimento oficial


da condição de judeus que, no fundo, já são. Atualmente, integram a comunidade Beit Israel,
fundada pela família de Ana Elya. O físico Joaquim afirma ser descendente de antigos judeus
marranos. Começa se interessar por essas histórias já adulto, relembrando e observando os
costumes que seus avós e seus pais mantinham em suas casas, como lavar a casa após a morte
de alguém, não comer carne de porco e se resguardar entre a noite de sexta até às 18 horas do
sábado. Já frequentou alguns encontros da Maguen David, mas não acredita que precisa passar
por um processo de conversão “oficial”: “eu sou judeu, me reconheço como judeu e isso basta”.
Pedro Agra, professor de Educação Física da rede municipal de Campina Grande, conheceu o
judaísmo quando estava “em busca da verdade” na Bíblia. Questionava-se sobre o conceito de
“salvação” e sobre a interpretação cristã sobre o “verdadeiro messias”. Encontrou no judaísmo
a explicação de muitas de suas escolhas alimentares e iniciou o estudo da língua hebraica e da
Torá. Embora tenha participado de algumas reuniões na casa de Noah, no bairro do José
Pinheiro, ele nunca fez parte de nenhuma comunidade religiosa. Atualmente, se afirma seguidor
do caraísmo. Sentido-se devidamente habilitado nos conhecimentos judaicos, Pedro decidiu
estudar mais o judaísmo junto a Universidade de São Paulo em um curso livre, apresentando
no trabalho final de curso uma monografia sobre os judeus que seguem as tradições sem
participarem de alguma comunidade religiosa. Após a finalização desse trabalho, ele poderá
participar da cerimônia de conversão e ir até aos Estados Unidos a fim de obter o almejado
“título de judeu”.
Redescobrindo o que sempre foram, os judeus de Campina Grande e de outras
localidades do Nordeste e do Brasil encontram no próprio sangue de suas veias e em
interpretações mais apuradas de escrituras sagradas os sentidos mais profundos de uma vida
religiosa autêntica e plena.

3.1 Em busca do sangue judeu em genealogias perdidas

No judaísmo, a substância sangue é uma questão estrutural, que define as razões de


existir de tradições milenares preservadas por meio de interrelações de casamentos entre
famílias judias desde os primeiros tempos da “humanidade”. Quando falamos em “judeus”,
estamos nos referindo muito mais a um “povo”, a uma “etnia”, do que a uma “religião”. E o
patrimônio genético do povo judeu é preservado e transmitido, sobretudo, por mulheres.
Embora a judia se encontre, em muitas situações, excluída (por ela mesma, em processo
52

bourdiesiano de dominação masculina) de cumprir a grande maioria dos preceitos positivos


judaicos, é por meio da mulher que se estabelece a descendência do povo de D’us. Pois é a
linhagem sanguínea materna que comprova, de uma vez por todas, a pertença de um indivíduo
ao mundo hebraico, o “ser judeu”. Essa tese, de fortes efeitos reais práticos, para construção de
identidades judaicas é adotada hegemonicamente pelo Estado de Israel, sendo uma importante
referência ideológica para as comunidades judaicas ao redor do mundo (BRAGA, 2016).

O status da mãe biológica (exclusivamente) determina o status da criança. Se a mãe biológica é


judia, então não importa qual seja o seu pai biológico, todos os seus filhos são judeus. Se ela não
for judia, é indiferente quem ou o que o pai é, todos os filhos também não são judeus
(IMMANUEL, 1987, P. 18)

É importante dizer que a concepção da matrilinearidade como elemento definidor do


sangue judeu é firmada pelos rabinos ortodoxos. Nesse entendimento, existem os chamados
“casamentos mistos”, mãe judia e pai não judeu. Os filhos desses enlaces podem ser
considerados judeus. Se, por outro lado, somente o pai é judeu, Jacob Immanuel afirma: “os
filhos desse casamento não são judeus e, se quiserem se tornar, terão de passar pela conversão
religiosa, da mesma maneira que qualquer outro gentio” (IMMANUEL, 1987, p. 3).
Entretanto, entre os judeus reformados existe a concepção de que ambos os pais podem
dar ao filho a condição de judeu. Dessa forma, em determinados grupos de feição mais liberal,
a descendência paterna é reconhecida mesmo que a mãe não seja comprovadamente judia, desde
que a criança seja criada “como judeu” e se identifique com a fé judaica (BRAGA, 2016). À
revelia do pensamento da imensa maioria dos grupos judeus, a patrilinealidade é defendida
pelos caraítas.
No entanto, ao longo da história judaica, definir quem é judeu é mais uma questão
política do que uma questão teológica. Em uma emenda de 1970, o Estado de Israel ampliou a
chamada Lei de Retorno para permitir a imigração de pessoas com um dos pais ou avós que era
judeu, bem como cônjuges não judeus. Centenas de milhares de imigrantes da antiga União
Soviética, muitos com apenas conexões marginais ao judaísmo, se estabeleceram em Israel sob
essa emenda e eram elegíveis para assistência do governo (ROSS, 2000).
A conversão religiosa, prevista na Lei do Retorno, é um processo longo, que requer
aquisição de conhecimentos, execução processos rituais específicos e pagamentos de
determinadas quantias para instalação de um tribunal rabínico (Beit Din) voltado para
reconhecimento dos neoconversos como judeus étnicos. Os valores podem variar entre R$
53

1.200,00 a R$ 2.300,00, dependendo do sistema e do rabino que fará o processo de


reconhecimento. Tornar-se judeu é, para um futuro convertido, uma busca cotidiana e requer
um grande esforço físico, mental e monetário. Entretanto, o fato de se tornarem judeus por meio
da conversão não exclui o fato de que individualmente cada convertido (de todas as
comunidades religiosas contempladas na presente tese) possui intimamente a convicção de suas
origens étnicas judaicas (BRAGA, 2016). Embora saibam da impossibilidade de comprovação
oficial por parte das instituições e mecanismos de controle étnico-identitário judaico, os
conversos/retornados se consideram judeus tão ou mais tradicionais do que aqueles
autointitulados legítimos.
Aqueles que se identificam como marranos, sefarditas e/ou Bnei Anussim em Campina
Grande e em outras localidades do Nordeste brasileiro costumam se apresentar como legítimos
herdeiros das antigas tradições judaicas. Ao informar o nome, geralmente, mencionam também
o sobrenome31, relatando, em seguida, as práticas judaicas presentes nas famílias, as heranças,
ao mesmo tempo genéticas e culturais, transmitidas pelos pais, avós, bisavós e tataravós, a
matrilinearidade repassada por gerações que se revela no sangue, no corpo, no comportamento
e no caráter.
Sobre o sangue judeu transmitido entre gerações e presente em muitas famílias
paraibanas, Davi André, da Amigos da Torah, afirma que “o número de descendentes do rei
Davi, na Paraíba, é difícil de precisar, mas pode ser verificado através dos sobrenomes, que
segundo estudo genealógico desenvolvido na Holanda, descendem diretamente de Davi”. Como
vimos na abertura deste capítulo, muitos conversos campinenses, de diferentes vertentes e
comunidades religiosas, empreendem esforços para investigar as origens de suas famílias. Seja
em conversas com familiares mais velhos, seja em pesquisas em livros e no Google, buscam
traçar um caminho genealógica para acharem um meio de retornar às matrizes judaicas que dão
sentido às suas existências.
Entre os conversos há uma crença generalizada de que as famílias que possuem
sobrenomes de origem animal ou vegetal descendem dos judeus cristianizados à força. Além
disso, o fato de ser muito comum no Nordeste (e no Brasil de um modo geral) os pais batizarem
os filhos com nomes retirados do Antigo Testamento reforçam a convicção de que somos parte
de árvores genealógicas de raízes judaicas (BRAGA, 2016).

31
O Dicionário Sefaradi de sobrenomes, de Guilherme Faiguenboim, Paulo Valadares e Anna Rosa Campagnano
(2020), é uma compilação de cerca de 12 mil sobrenomes judaicos, de origem ibérica.
54

Entretanto, mesmo os nomes e os sobrenomes sem vínculo explícito com alguma


tradição judaica podem ser atestados da presença do sangue judeu nas veias daqueles que se
identificam como descendentes dos antigos marranos que aportaram nas Américas em tempos
coloniais. A primeira vez que encontrei Odmar Braga, poeta recifense e importante referência
nos estudos acerca do marranismo no Nordeste brasileiro, durante o lançamento do seu livro
Viduy (uma coletânea de poemas ladinos) em junho de 2018 (ver imagem 2), ele comentou
sobre o nosso sobrenome em comum “Braga”, afirmando ser de origem cristã-nova. Segundo
Odmar, assim se origina “os Braga”:

[...] É um sobrenome chamado toponímico, ou seja, referente ao lugar onde surgiu. Contudo, o
primeiro a utilizar este sobrenome para pagar impostos foi Isaac Benchilomor de Braga, ou seja,
Isaac “filho de Salomão de Braga”, que na verdade eram todos eles, os dois, de La Corunã, na
Galícia Espanhola. Eles eram rabinos, pai e filho, e, em virtude do decreto de expulsão ou
conversão forçada dos judeus da Espanha da rainha Isabel, de Castela, eles atravessaram a
fronteira da Galícia espanhola de La Corunã e foram para Braga e fizeram um registro como
sendo Braga, ou seja, de Braga, cidade de Braga. Por isso um sobrenome toponímico. [...] Ambos
rabinos e que escreviam Torá. É muito interessante essa história, esse foi o primeiro dos Braga.

Imagem 2 - Lançamento do livro Viduy, de Odmar Braga na Kahal Zur.

Fonte: Arquivo pessoal da autora. Foto de Emanuel Braga.

Os processos de “redescoberta” da ancestralidade judaica por meio da história dos


sobrenomes marranos e da construção da genealogia familiar ocorrem já na vida adulta desses
indivíduos que passam a ver a si próprios como descendentes de judeus. Quando indagam os
parentes mais velhos, os integrantes dos grupos de conversos campinenses afirmam não
receberem respostas esclarecedoras sobre determinados costumes antigos praticados por avós e
55

bisavós nem sobre a ascendência matrilinear. Tal processo de retorno às origens conta com uma
boa dose de invenção, no sentido wagneriano do termo (BRAGA, 2016). Ao indagar Joaquim,
ex-integrante da comunidade Maguen David que atualmente segue suas convicções religiosas
de modo individual, sobre os argumentos que o convenceram para se considerar judeu, ele deu
uma pausa reflexiva para resposta e, em seguida, afirmou em tom firme: “eu sou judeu, me
reconheço como judeu e isso basta”. Compartilhando o mesmo pensamento de Joaquim,
Francisco Soares, conhecido como Kiko, outro ex-integrante da Maguen David, encontra
sentidos individuais para se sentir judeu

Para mim ser judeu é se sentir judeu. Não importa o que um acha que é o judaísmo. É você fazer
seu judaísmo, eu faço o meu judaísmo. Eu venho aqui na sinagoga, eu interpreto as leis, eu escuto
o meu líder. Eu faço parte das regras baseadas nas leis que eu me propus a seguir. É preciso estar
sempre participando, tentando introduzir judeus aqui na comunidade. Saber o que é, estudar a
religião e estar seguindo os ensinamentos do eterno. E ainda assim, estar lendo, se aprofundando,
interpretando do seu jeito e depois passando para os seus filhos.

Nesse processo de busca identitária, é preciso também observar que raramente são
famílias inteiras que se convertem ou retornam ao judaísmo a partir de reconstruções de árvores
genealógicas. Os conversos campinenses e de outras localidades do Nordeste brasileiro
assumem e professam, em muitas situações, solitariamente sua identidade judaica à revelia dos
familiares mais próximos. O perfil comum desses novos judeus é: homem divorciado de meia
idade, cujos filhos ficam sob a responsabilidade da família da ex-mulher. Para esses homens, a
dedicação mais intensa à religiosidade judaica, geralmente, ocorre após o divórcio ou a partir
de alguma crise durante o casamento. É provável que a vivência de uma religião considerada
não convencional, com códigos, assuntos e práticas distintas dos universos católicos e
evangélicos (mais presentes nas famílias nordestinas) implique em desajustes conjugais que
culminam em crises e divórcios. Ainda que não haja a separação de corpos, esses homens judeus
seguem individualmente suas práticas em seus lares, sendo vistos como sujeitos excêntricos.

3.2 As origens evangélicas dos conversos

Do ponto de vista religioso, o judaísmo concebe que existem leis divinas transmitidas
por meio de um livro sagrado, a Torá. A Torá é composta pelos escritos deixados pelo profeta
Moisés a partir de revelações do próprio Deus. O livro reúne histórias sobre a criação do
Universo e da Humanidade representada por um povo escolhido, os hebreus. Com base em
56

recursos descritivos, normativos e reflexivos, a Torá apresenta toda a legislação civil e religiosa
que deve perpassar a existência do povo escolhido por Deus. Tal congruência de princípios
teológicos basilares é contrastada por uma diversidade de interpretações, posturas e ações
religiosas de coletividades de judeus ao longo de uma história milenar. Como vimos, ao longo
da Introdução e do Capítulo I da tese, o judaísmo é multifacetado, sendo constituído por grupos
e subgrupos distintos, os quais se diferenciam tanto pelas origens históricas e geográficas como
pelas perspectivas teológicas professadas.
É difícil precisar o que desperta em determinadas pessoas originalmente alheias ao
universo judaico, acomodadas em suas convicções religiosas de nascença, o desejo de buscar
no judaísmo os sentidos mais profundos de sua vida. A “descoberta” dessa identidade é, na
verdade, o resultado de um processo complexo e multifatorial que, em muitos casos observados,
começa pela simples curiosidade em relação aos costumes familiares, passados de geração em
geração, e pela leitura de passagens do Antigo Testamento da Bíblia.
Ross, em suas pesquisas e reflexões transetnográficas, se pergunta o que poderia motivar
as pessoas a se declararem judeus em lugares que se mostram historicamente tão hostis e
estranhos à vida judaica. Por que africanos, asiáticos e latino-americanos se identificam com
uma religião que muitas vezes parece rejeitar misturas culturais indesejadas? Segundo o
jornalista-etnógrafo, parte da resposta está no apelo ao sofrimento duradouro apregoado pelas
velhas escrituras, textos que guiam os judeus há milênios. Os personagens vívidos e narrativas
bíblicas convincentes apresentam uma linguagem sobressalente que evoca um “nível cognitivo
universal”, a história da luta da humanidade para encontrar seu lugar no mundo (ROSS, 2000).
Nessa linha de raciocínio, os neoconversos seriam atraídos pelo judaísmo por
compreenderem, por meio do Antigo Testamento, que os judeus são “povos escolhidos por
Deus”. O status especial aos olhos de Deus pode ter ressonância para quem busca uma vida
melhor e se sente constrangido por uma religião e cultura dominantes em vários contextos
temporais e espaciais. Os judeus quase sempre viveram como uma “cultura minoritária”,
sustentando uma identidade outsider, enquanto se adaptam ao seu entorno “opressor”. Nas
narrativas bíblicas, eles sobrevivem a massacres, expulsões, torturas e quase extinção. Entre
outros fatores, grupos e segmentos que se sentem oprimidos em todos os lugares (minorias
étnicas, pobres e “aqueles que simplesmente não se encaixam”) muitas vezes tendem a se
identificar com o povo judeu (ROSS, 2000).
57

Ao contrário do que observa e reflete Ross, as comunidades de judeus conversos de


Campina Grande não se encontram contemporaneamente em posição de “oprimidos” por
religiões e culturas hegemônicas. Não são normalmente perseguidos por movimentos de
intolerância religiosa. Se há alguma menção negativa velada às suas existências por parte de
católicos, evangélicos e outras denominações cristãs, ela se traduz muito mais no campo dos
estereótipos da adjetivação do patético e do risível do que de práticas de ofensas explícitas de
exclusão ou subalternização. Embora, de fato, esses judeus neoconversos representem grupos
bastante diminutos em relação às religiosidades e espiritualidades cristãs, a maioria das
lideranças das comunidades pertente a extratos da classe média campinense e paraibana. Além
disso, em declarações públicas e manifestos em redes sociais, essas lideranças, e mesmo outros
conversos economicamente menos privilegiados, demonstram flertar com ideologias
conservadoras da extrema direita brasileira, defendendo o uso particular de armas e o voto em
representantes do fascismo brasileiro.
O fato é que entre os muitos percursos que levam pessoas a se organizar em
comunidades religiosas judaicas em Campina Grande e em outras localidades do Nordeste
brasileiro, um deles costuma perpassar as histórias de vida da maioria dos participantes dos
grupos de conversos: as origens evangélico-pentecostais e neopentecostais (BRAGA, 2016).
É importante mencionar que muitos desses neoconversos ingressam nas comunidades
judaicas pela necessidade de mudança de crença e questionamento dos preceitos de sua religião
de origem. “Eu já me sentia afastado daquela fé [cristã], ela não era minha. Então procurei dizer
aos meus parentes queridos de Boa Vista32 que iria me dedicar ao judaísmo, e foi assim que
iniciei a minha caminhada aqui em Campina Grande”, afirma Kiko, ex-integrante da
comunidade Maguen David que atualmente não se identifica com nenhum grupo da cidade.
Assim como Kiko, muitos membros das comunidades judaicas campinenses são ex-
evangélicos, especialmente oriundos de igrejas pentecostais ou neopentecostais, que, de um
modo ou de outro, acessaram os “valores judaicos” na vivência religiosa de suas igrejas, sendo
atraídos para a anterioridade do judaísmo. A busca por retornar a um cristianismo “mais
primitivo” é de tal ordem que desloca o cristão da sua fé de nascença para uma fé idelizada a
partir de novas interpretações teológicas de textos já conhecidos.
O universo de símbolos de origem judaica faz parte do cotidiano de muitos evangélicos.
O uso da bandeira de Israel como símbolo associado à terra do povo de Deus é cada vez mais

32
Boa Vista é um município brasileiro localizado na região metropolitana de Campina Grande, estado da Paraíba.
58

recorrente no entre pentecostais e neopentecostais no Brasil. O talit, elemento que compõe os


trajes religiosos de alguns pastores também é uma importante insígnia de representatividade
judaica muito frequente no meio pentencostal/ neopentecostal, mostrando que a aproximação
dos valores dos evangélicos com o judaísmo está muito presente no Brasil e em outros lugares
do mundo. Líderes neopentecostais, como Edir Macedo, se apresentam à sociedade por meio
de expressões, adereços e ritos apropriados da cultura religiosa judaica. A construção do
“Templo de Salomão” na cidade de São Paulo, em maio de 2012, aos moldes do que teria sido
o antigo templo judaico localizado em Jerusalém, Israel, para abrigar uma das sedes da Igreja
Universal do Reino de Deus (IURD), talvez seja o exemplo mais notório dessa confluência de
simbologias entre o pentecostalismo e o neopentecostalismo brasileiros e um judaísmo
imaginado e sonhado por conversos. Repleta de significados para o conhecedor, peças como
talit, usados por pastores em cultos evangélicos, despertam o fiel para uma estética e cosmologia
diferenciada e cativante. Martha Topel reflete sobre o que chama “a inusitada incorporação do
judaísmo em vertentes cristãs brasileiras”, afirmando:

No que diz respeito às igrejas neopentecostais, é cada vez mais comum a apropriação de
símbolos, rituais e trechos da liturgia judaica. Entre eles, têm destaque a estrela de David (na
bandeira do Estado de Israel ou simplesmente como um ornamento dentro das igrejas), a menorá
(candelabro de sete braços), o shofar (chifre de carneiro cujo som tem lugar destacado nas
comemorações do Ano Novo Judaico e no Dia da Expiação), o talit (acessório em forma de xale
usado pelos judeus ortodoxos), réplicas da Arca da Aliança e passagens escritas em hebraico,
tanto nos livros litúrgicos como nas paredes dos prédios dessas igrejas. Em algumas
denominações evangélicas, é comum que se celebre a Páscoa Judaica e a Festa dos Tabernáculos,
e a IURD (Igreja Universal do Reino de Deus) organizou em 2007 uma campanha nacional de
venda de mezuzot (pequeno rolo de pergaminho, que contém trechos sagrados da Torá, protegido
por uma caixinha e pregado nos umbrais das portas de lares e estabelecimentos judaicos).
Finalmente, quase todas as igrejas evangélicas organizam viagens a Israel nas quais seus
membros e simpatizantes visitam, além dos lugares santos cristãos, os lugares sagrados do
judaísmo, como o Monte Sião e o Muro das Lamentações (TOPEL, 2011, P. 25).

Maguen David, Amigos da Torah, Caraítas, Beit Israel e Branca Dias são comunidades
de ex-cristãos que encontraram no judaísmo uma fé última e verdadeira. Geralmente, são ex-
evangélicos das vertentes pentecostais e neopentecostais, mais especificamente ex-
assembleianos, e das vertentes batistas. Algumas lideranças dos grupos, inclusive, são ex-
pastores: Alessandro, da Maguen David, e Davi André, da Amigos da Torah, foram pastores da
Igreja Batista Regular; e Noah foi pastor da Igreja Batista. Já Jessé e Ana Elya, casal que
coordena as ações da da Beit Israel, participava ativamente das atividades da Assembleia de
59

Deus e Antônio Ribeiro, fundador da Branca Dias, se declarou, certa feita, “ex-católico não
praticante”.
Todas essas lideranças se conhecem em Campina Grande. Algumas delas estiveram
unidas em determinados momentos de suas trajetórias religiosas e, por conta de questões
pessoais ou “teológicas”, por vezes, entraram em conflito, passando a traçar outros caminhos
individuais e coletivos de fé, fazendo parte de outros grupos e fundando novas associações. Em
Campina Grande, a partir dos anos 2000, aumentou o interesse de evangélicos na religião
judaica. Esse crescimento estava relacionado aos laços ecumênicos possibilitados pelo
Encontro da Nova Consciência, que possibilitou a existência de diálogos interreligiosos na
cidade de Campina Grande. Alguns afirmavam que seus pensamentos, comportamentos e ações
já estavam em sintonia com o judaísmo antes de adentrarem em alguma comunidade de
conversos.
Quando atuava como pastor batista, Alessandro aprofundou seus estudos sobre as
velhas escrituras, percebendo as lógicas subjacentes ao judaísmo. Davi André atenta-se para as
primeiras profecias do Antigo Testamento e propõe uma reinterpretação da própria figura do
judeu Jesus Cristo. Noah convida seus alunos para novos olhares sobre as metáforas dos livros
do Pentateuco. Todos eles intentam aproximar os neófitos do judaísmo por meio de uma leitura
mais profunda das mesmas escrituras sagradas já conhecidas pelo universo cristão. O Antigo
Testamento da Biblia corresponde à Torá ou à Bíblia Hebraica, que são os cinco primeiros
livros do Pentateuco: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio.
Ao tomarem “ao pé da letra” muitos preceitos do Antigo Testamento, especialmente dos
livros do Pentateuco, encontram os sentidos existenciais da vida religiosa dos antigos hebreus,
vistos, cada vez mais, como “seus ancestrais”. Para muitos deles, verdade é também sinônimo
de anterioridade e o judaísmo seria, dentro do prisma interpretativo ex-cristão, o sistema
religioso que mais representaria essa fé idealizada (BRAGA, 2016). O judaísmo, nesse sentido,
é o ápice de uma trajetória de convencimento teológico da seriedade e veracidade das histórias
e preceitos firmados no Antigo Testamento bíblico que desloca, em determinado momento, os
neopentecostais de suas antigas crenças cristãs rumo a uma identidade religiosa judaica mais
original. Identidade perdida por fatores externos e sociais ao indivíduo (tais como nascer em
um berço cristão, ter acesso a fontes religiosas limitadas pela visão cristã de mundo etc.) e
recuperada, a tempo, por um aprofundamento dos estudos e da compreensão teológica. Um
processo narrado como retorno.
60

3.3 Os processos de formação das comunidades de conversos em Campina Grande

As cinco comunidades judaicas atuantes em Campina Grande se originam a partir de


pessoas que se convertem individualmente ao judaísmo e passam a entrar em contato com outras
pessoas de trajetórias religiosas semelhantes. A necessidade de estabelecer encontros periódicos
e ritos coletivos de celebração da nova fé acabam instituindo um espírito comunitário regido
por muitas das formes élémentaires de la vie religieuse observados na clássica obra de Émile
Durkheim.
Nas comunidades campinenses, a busca constante por formas mais coesas de
organização, expressando a si mesmos e ao outro a existência de uma autonomia ritual e gestão
do grupo, revelam o profundo desejo de construção de uma identidade étnico-religiosa
condizentes com a judaicidade pretendida.
Como veremos nas próximas linhas as comunidades de neoconversos formadas em
Campina Grande estabelecem conexões por meio de relações interpessoais de seus líderes e
participantes que revezam relações de solidariedade e animosidade que ativam alinhamentos,
abandonos e retornos.

3.3.1 A Maguen David

A comunidade Maguen David foi fundada no final dos anos 1990 por Ana Cristina
Arruda Silveira, conhecida como “Hanna”, uma estudiosa do marranismo nordestino. Antes de
ativar o movimento de redescoberta das raízes judaicas em Campina Grande, Hanna participava
de pesquisas que envolviam as histórias de famílias dos descendestes dos cristãos-novos no Rio
Grande do Norte e Paraíba, tempo em que conheceu o (hoje) rabino João Medeiros, importante
articulador dos processos de retorno ao judaísmo no Seridó potiguar e em Natal, como vimos
anteriormente. Inicialmente, o grupo formado em Campina Grande era voltado exclusivamente
para estudos hebraicos e aprofundamento da Torá. Aos poucos, a turma foi definindo certos
pensamentos, comportamentos e ações de viés religioso. Ela batizou o nome da comunidade de
“Maguen David”, que significa “Estrela de Davi” em hebraico. Inicialmente, os encontros do
grupo ocorriam em sua própria residência, reunindo os vizinhos, amigos e curiosos. Segundo
Alessandro, Hanna era uma pessoa muito altiva e ciente dos direitos dos conversos à identidade
judaica abafada pela história do Brasil. Ana Elya acredita que a fundadora da comunidade
61

deixou um importante legado de conhecimentos e fé para aqueles que passaram a fazer parte de
grupos de conversos na cidade.
Em 2009, Hanna, após 12 anos de coordenação das atividades da comunidade, faleceu.
Nesse período, a comunidade já se reunia com frequência e havia muitos integrantes bem
formados nas tradições judaicas que davam continuidade aos ritos e festividades coletivas, sob
liderança de Alessandro Magno Levi. Alugaram uma casa no mesmo bairro, o Catolé, em frente
ao Bar da Curva. Sob os cuidados de Alessandro, a Maguen David se tornou mais visível aos
olhos de outros movimentos de neoconversos fora do eixo campinense, com os símbolos
judaicos mais evidenciados tanto no espaço em que o grupo era acolhido como nas insígnias de
cada um dos integrantes. “A gente percebe um judeu pela primeira vez pelos sinais que ele
apresenta, a roupa, o uso do quipá. Hoje afirmo que todos de minha comunidade usam dessa
obediência a nossa ascendência judaica”, afirma. Na sala de reuniões da casa alugada, há uma
bandeira de Israel em destaque. “Eu vejo a bandeira de Israel como símbolo fundacional para
nós judeus”, disse Jessé, um dos membros mais antigos do grupo que recentemente fundou,
juntamente com sua esposa Ana Elya, a comunidade Beit Israel por conta de dissidências
internas na Maguen David. Israel é visto como uma pátria mãe, um lar acolhedor. A bandeira
de Israel não é apenas um adereço estendidos nas paredes de uma casa transformada em
sinagoga e sim como um elemento sagrado.
Alessandro é casado, tem duas filhas. Sua família nunca manifestou interesse em seguir
as práticas religiosas do pai. Não é incomum encontrar lideranças dos neoconversos
desacompanhados por suas famílias em suas comunidades. Influentes em seus grupos
religiosos, essas pessoas não parecem conectar sua intimidade doméstica à nova vida judaica,
sendo, em muitas situações, vistos como sujeitos “exóticos” e mesmo “loucos”.
As páginas do Facebook e Instagram da comunidade possuem muitos seguidores de
dentro e fora da Paraíba que se conectam a partir de uma rede virtual de neoconversos
espalhados pelo Brasil e pelo mundo. As postagens, geralmente, dizem respeito as festividades
presentes no calendário judaico e vivenciadas na comunidade.
Desde as origens da Maguen David, mulheres assumem diversas funções ritualísticas
da comunidade. Embora Alessandro domine a formalidade cerimonial por meio de instruções
e correções dos ritos, é perceptível que mulheres como Ana Elya e Ana Cariry agenciam
influências na forma de organização comunitária por meio de seus carismas e tomadas de
decisão. Para Ana Elya, “a presença feminina é o fio condutor das ações festivas e organizadas
62

presentes na comunidade. Eu mesma distribuo com as demais mulheres as atividades em um


cronograma”. Em uma comunidade extremamente sexista, elas, Ana Elya e Ana Cariry, chegam
mais cedo para preparar os alimentos e a logística do shabat. Se os princípios religiosos são,
muitas vezes, abstratos; são elas quem tratam de concretizá-los em vivências reais, ativando os
sentidos do viver em comunidade.
Em 2017, Antonio Ribeiro, então integrante da Maguen David, decide romper com a
comunidade. Nesse ano, a Sinagoga Sem Fronteiras entra em contato com diversas
comunidades de neoconversos nordestinas, inclusive a Maguen David. O projeto oferece ao
grupo a oportunidade de passar pelos ritos de um tribunal rabínico (Beit Din), conforme a a Lei
do Retorno de Israel. Para tanto, o rabino Amsalem é indicado pelo rabino Gilberto Ventura,
coordenador do projeto, para fazer a conversão coletiva do grupo na praia de Ponta de Campina,
em Cabedelo, Paraíba. Como nesse processo, houve mal-entendidos e a comunidade não
consegue seu objetivo, Antonio, juntamente com outros membros, optam por seguir o projeto
do rabino Ventura, deixando de fazer parte da Maguen Davi para fundar em Campina Grande
uma outra comunidade judaica.
Em 2019, após diversos desgastes entre as famílias de Ana Elya e Jessé e Alessandro
acerca da condução dos encontros religiosos comunitários e dos conflitos internos causados
pelas visitas de rabinos ao grupo, há uma ruptura de diversos integrantes com a Maguen David,
seguida pela fundação de mais uma nova comunidade de neoconversos, a Beit Israel.
A história da comunidade Maguen David pode ser dividida em duas partes: a primeira,
constituída pelos primeiros anos de solidariedade entre os frequentadores da comunidade, em
que havia um respeito à diversidade de formações e posições dos participantes em nome da
congregação religiosa em torno de um processo de conversão coletiva ao judaísmo; e a segunda,
mais recente, caracterizada pelos conflitos internos e por rompimentos comunitários. Como
vimos, em 2017, alguns integrantes como Antonio Ribeiro, seu sobrinho Aldrey, Raquel, entre
outros, aderiram ao projeto Sinagoga Sem Fronteiras fundando a comunidade Branca Dias; e,
em 2019, a família de Jessé e Ana Elya, juntamente com outras pessoas mais próximas, decidem
se afastar do grupo original para fundar a comunidade Beit Israel.
Atualmente, a Maguen David se encontra bastante esvaziada e enfraquecida. Alessandro
busca contatos com rabinos atuantes em Sinagogas tradicionais do Brasil, a fim de manter ativos
os sentidos de conversão “oficial” tão presentes na comunidade desde sua origem.
Recentemente, Kiko, que tinha rompido com Alessandro para acompanhar o projeto Sinagoga
63

Sem Fronteiras, transitando em diversos grupos de conversos, voltou a participar dos shabats
da Maguen David. Segundo ele, a Maguen David ainda é comunidade que busca ser fiel aos
preceitos judaicos verdadeiros e fazia mais sentido retornar ao primeiro grupo que o acolheu
em Campina Grande.
Imagem 3 - Comunidade Maguen David no espaço para reunião.

Fonte: Página da comunidade no Facebook, 2018.

A comunidade Maguen David vivenciou, de modo emblemático, o que Victor Turner


([1974] 2008) nominou drama social, passando por momentos de ruptura, crise, ação
reparadora que culminou em um processo de cisão comunitária, cujo desfecho, como veremos
ainda neste capítulo, se dá na formação de novas comunidades judaicas: Branca Dias e Beit
Israel.
64

3.3.2 A Amigos da Torah

A Associação Judaica Amigos da Torah está profundamente ligada ao seu fundador e


mentor Davi André de Meneses, um próspero empresário campinense. Por volta dos anos 2000,
ainda quando era pastor da Igreja Batista Regular, Davi André frequentava rodas de conversas
sobre o judaísmo organizadas em Campina Grande pela Universidade Federal de Campina
Grande. Em um desses encontros, ocorridos no bairro de Bodocongó, ele conheceu a
dramaturga Lourdes Nunes Ramalho (1926 - 2019), que se interessava, entre outras coisas, por
temas relacionados à cultura judaica no Nordeste. Nascida no Jardim do Seridó, Rio Grande do
Norte, Lourdes veio com os pais ainda criança para Campina Grande. Lourdes era bastante
próxima de Hanna, fundadora da Maguen David. As duas se encontravam para descobrir as
raízes judaicas de suas famílias e da história da Paraíba. Segundo Davi André, Lourdes
mantinha vários objetos e livros sobre o judaísmo em sua residência e o iniciou nos
conhecimentos sobre esse universo que até então desconhecia. Ela costumava não opor fé
judaica e fé cristã e a figura de Jesus fazia parte da religiosidade judaica. Com a dramaturga,
Davi André iniciou os estudos da língua hebraica e passou a praticar determinados ritos
religiosos em seu ambiente doméstico. Quando se sentiu devidamente habilitado, passou a
ensinar essas tradições a familiares, amigos e interessados, fundando em 2010 a Associação
Amigos da Torah, que passou a funcionar em uma casa adquirida no bairro do José Pinheiro.
Na sinagoga improvisada numa sala comercial (ver imagem 4), são realizados os
serviços religiosos regulares aos sábados à noite. Na fachada, podemos ler no letreiro “Amigos
da Torah” e, abaixo, “venha conhecer sua origem”. Esse convite aberto à participação do outro
desconhecido não é tão comum nos grupos de conversos que não costumam fazer proselitismo
religioso. Normalmente, mais de trinta pessoas frequentam o espaço, incluindo homens e
mulheres, jovens e adultos. Nesse ambiente, a Amigos da Torah busca vivenciar as principais
festividades do calendário judaico. Entretanto, em algumas ocasiões mais especiais, Davi André
convida os participantes para confraternizarem em sua própria casa localizada no Alto Branco,
um bairro nobre de Campina Grande. O líder da Amigos da Torah também recebe em sua casa
visitas de pessoas influentes no campo dos estudos judaicos brasileiros, a exemplo da
historiadora Anita Novinsky. Sempre desejou que sua família seguisse a fé judaica, mas sua
primeira esposa não mostrava muito interesse. Os filhos, especialmente Isaac, o caçula,
65

acompanha todas as reuniões e festividades da comunidade, sendo uma liderança juvenil na


Amigos da Torah. Atualmente Davi André é divorciado e namora uma mulher mais jovem.
No espaço onde ocorrem os shabats da Amigos da Torah, não há divisões entre homens
e mulheres, todos são convidados a participar do mesmo modo das celebrações. Durante esses
encontros, Davi André costumeiramente usa um talit com as cores de Israel. Ele faz a leitura da
Torá, que são revezados por cânticos entoados pela comunidade, os “louvores ladinos”. Ao som
puxado pela guitarra do Isaac e sua “banda”, esses shabats são bastante alegres e animam o
público presente, formado também por jovens vindos de vários bairros de Campina Grande.

Imagem 4 - Sede da Comunidade Amigos da Torah.

Fonte: Facebook da Amigos da Torah, 2020.

A página do Facebook da comunidade possue cerca de 280 seguidores. As postagens


dizem respeito aos símbolos judaicos e ao Estado de Israel, abordando vieses políticos e
ideológicos de tendência mais radical. Em um post da página, a comunidade informa que “não
temos intenção de converter ninguém ao judaísmo, mas queremos ter o direito de sermos
ouvidos e respeitados em nossos pontos de vista”.
Davi André costuma se vangloriar de seu “título de judeu”, adquirido pelo sistema
liberal em 2010, concedido por uma Sinagoga estadunidense, onde ele recebeu o nome de
66

batismo “Davi Ben Avraham”. Sobre o título recebido por Davi André nos Estados Unidos e o
incômodo causado entre certas lideranças judaicas em Campina Grande, Flávio Jorge, ex-
presidente da Associação Judaica Amigos da Torah, no exercício do “direito de resposta” a uma
matéria escrita pelo jornalista Antônio Ribeiro para o Jornal da Borborema em março de 2010,
publicou a seguinte fala em defesa de Davi André:

Davi André de Meneses, dirigiu-se aos Estados Unidos, depois de cumprir todos os trâmites
legais exigidos pelo rabinato, sendo entrevistado por um tribunal rabínico (Beit Din) formado
por três rabinos reunidos na presença do Eterno, foi aceita a sua conversão juntamente com a de
sua família. A instituição que emitiu os devidos documentos é uma respeitada sinagoga
norteamericana reconhecidamente judaica, sendo ele membro da mesma. Essa sinagoga é filiada
a uma entidade que agrega mais de oitocentos mil judeus norte-americanos e mais outros
milhares em vários países33.

O “direito de resposta” se dava em razão da deslegitimação do “título de judeu” por


parte das comunidades judaicas de Campina Grande. Aqueles que se reconheciam como judeus
na cidade acusavam ora de modo velado, ora explicitamente, Davi André de práticas
messiânicas por inserir a figura de Jesus Cristo nos encontros promovidos na Amigos da Torah.
Mas à frente, ainda neste tópico, retomaremos essas questões.
Em suas falas nas reuniões da Amigos da Torah, Davi André sempre busca abordar
temas “globais” relacionados à questão judaica e os conflitos do Oriente Médio. Em sua página
pessoal do Facebook, posta fotos segurando armas junto à bandeira de Israel mostrando
disposição em defender à pátria-mãe de ataques terroristas.
Estabelecendo boas relações com o poder público municipal, Davi André conseguiu,
por muito tempo, consolidar um protagonismo da Amigos da Torah nos ecumênicos Encontros
da Nova Consciência. Davi André aproveitava essas reuniões, ocorridas anualmente no período
do carnaval, para popularizar a existência da fé e tradições judaicas diante de outros segmentos
religiosos, estudiosos e curiosos de Campina Grande. Em diversas oportunidades, o líder da
Amigos da Torah conseguiu mediar o apoio para a vinda de personalidades do “judaísmo
nacional” para ministrem palestras e cursos em Encontros da Nova Consciência, que ganhavam
destaque nas mídias locais, se tornando conhecidos em toda a Paraíba. “Essa conquista é fruto
do reconhecimento do trabalho que desenvolvo e a prefeitura reconhece e nos chama para
representar o judaísmo, isso causa um burburinho na cidade, outras comunidades não gostam,

33
Trecho extraído da página http://vinaccconscienciacrista.blogspot.com.br/2010/03/direito-de-resposta-da-
associacao.html.
67

mas eu não me importo”, Davi André comentou certa feita. Mesmo com a sabida presença de
outros grupos religiosos atuantes na cidade, apenas a Amigos da Torah “representa” o judaísmo
no evento ecumênico. Entretanto, as demais comunidades não parecem se incomodar com esse
fato. Nos últimos anos, esses Encontros da Nova Consciência foram perdendo sua importância
em razão da falta de adesão dos patrocinadores do poder público e da iniciativa privada local.
Por influência de Lourdes Ramalho, uma devota do catolicismo, Davi André costuma
conciliar a fé e os ensinamentos judaicos com as mensagens de Jesus Cristo. Nos dias de shabat,
alguns livros e objetos que fazem referência a símbolos e valores cristãos são expostos à venda
sobre uma mesa instalada na sede da Amigos da Torá. Percebendo meu estranhamento em
relação a essa constatação, o líder da comunidade fez o seguinte comentário: “somos
observantes da Torá, a nossa ideia sobre a salvação é realizada pela graça, não se julgam através
da venda de elementos que exprimam Yeshua34”. Embora no centro da sala de reuniões uma
cópia dos rolos da Torá seja armazenada em um armário ornamental, chamado de “arca
sagrada”, não é incomum que os participantes da Amigos da Torah façam a leitura do novo
testamento da Bíblia durante os encontros realizados no sábado à noite. Por conta dessa
convivência entre símbolos judaicos e cristãos, as outras comunidades judaicas campinenses
costumam taxar essas práticas da Amigos da Torá de “judaísmo messiânico”.
Em entrevista publicada pela Folha de São Paulo em 23 de dezembro de 2004, o rabino
Henry Sobel, então presidente do Rabinato da Congregação Israelita Paulista (CIP), resume de
um modo bastante didático como o judaísmo tradicionalmente interpreta a figura de Jesus
Cristo:

Acreditamos que Jesus foi um grande homem, um grande mestre que pregou ideais universais.
Porém não o aceitamos como Messias ou Salvador, pois o judaísmo não reconhece um “filho de
Deus” que se destaca e se eleva acima dos outros seres humanos. A convicção judaica é a de que
todos os homens são iguais. Somos todos “filhos de Deus”, criados à sua imagem, e nenhum ser
humano pode ser considerado mais divino do que os outros. Na teoria judaica, com seu enfoque
rigorosamente monoteísta, Deus não pode se materializar em nenhuma forma.

As narrativas épicas do judaísmo dão conta de processos de perseguições e guerras que


ocasionavam escravidão e odisseias envolvendo o povo hebreu. Nessas situações de sofrimento
extremo, profetas acalmavam as multidões prevendo a vinda de messias que promoveriam a
salvação do povo escolhido por Deus. Nas escrituras antigas, o Reino de Davi

34
“Jesus” em hebraico.
68

(aproximadamente 1000 a.C) é narrado como um período de paz e glórias, conquistado após
batalhas travadas entre hebreus e filisteus. A partir de então, a ideia de um messias entre os
judeus passou a ser cada vez mais atrelada a um homem que virá restaurar esse tempo perdido.

É crença comum no Judaísmo que o Messias surgirá e restaurará o Reino de Davi em seu Estado
e soberania originais, reconstruirá o Templo Sagrado de Jerusalém (Beit Hamikdash), reunirá os
dispersos de Israel, e, em seus dias, todas as leis da Torá serão reinstituídas, como o tinham sido
nos tempos antigos (SILVA E SILVA, 2017, p. 252).

Ainda que ungido pelo próprio Deus, a exemplo do rei Davi, o messias redentor do povo
judeu não é uma divindade; seus poderes e feitos são demasiadamente humanos. Segundo
Deborah Hornblas Travassos (2014), os movimentos que se assumem adeptos do “judaísmo
messiânico” rompem com as tradições judaicas ao conceber que Jesus Cristo, figura de atributos
divinos, é o “filho de Davi” enviado por Deus para salvar o seu povo. Para os judeus
convencionais, há uma contradição entre a mensagem e vida de Jesus e as leis da Torá. Para os
judeus messiânicos, há uma convergência entre a mensagem e vida de Jesus e as leis da Torá.
Do ponto de vista de alguns integrantes das comunidades judaicas campinenses, os
ensinamentos e ritos realizados na Amigos da Torah, sob a liderança de Davi André, podem ser
muitas coisas, menos judaísmo. Neoconversos que se veem como mais tradicionais taxam Davi
André de professar o “judaísmo messiânico”. Existe uma crença geral no meio das comunidades
judaicas atuantes em Campina Grande de que o processo de conversão se estabelece por meio
de uma linha evolutiva em que os adeptos começam no judaísmo messiânico e, conforme se
aproximam dos verdadeiros ensinamentos da Torá e das orientações dadas pelos rabinos e nas
práticas rituais mais tradicionais, vão avançando estágios para se tornarem “ortodoxos”, ou seja,
mais “puros” de sangue e de relação com Israel. Sobre fascínio pela ortodoxia judaica por parte
dos neófitos, observa Sorj: “um judeu visivelmente perfeito é a atração que exerce a ortodoxia
principalmente para aqueles que não são ortodoxos” (2001, p. 28).

3.3.3 Os caraítas

Assim como ocorre com a comunidade Amigos da Torah, o grupo campinense dos
caraítas está profundamente ligado ao seu fundador e mentor Edvaldo Souza, conhecido como
Noah Levi, ou simplesmente Noah. Nascido em Campina Grande em 1962, Noah foi morar em
Salvador, Bahia, no início dos anos 1990, logo após o seu divórcio. Estava em busca de
69

melhores condições de vida e novos conhecimentos. De formação evangélica, em Salvador, se


tornou pastor da Igreja Batista. Na capital baiana também se aperfeiçoou nas artes marciais.
Participando de encontros com temáticas judaicas, conheceu a liderança Oshana Iashali, que o
iniciou nos saberes e práticas judaicas. Nos anos 2000, retorna à Campina Grande para ficar
próximo aos pais e ao seu filho. Inicia atividades no espaço de sua casa, oferecendo aulas de
taekwondo e, posteriormente, um curso de língua hebraica, reunindo algumas pessoas, na
maioria jovens, atraídas pela cultura judaica. A partir da língua, alguns de seus alunos
demonstraram interesse em se aprofundar na leitura e interpretação da Torá, passando a se
identificar, a exemplo de Noah, como judeus caraítas. Sua família não se identifica com o
judaísmo. O seu filho mora com a ex-mulher e não costuma acompanhar as práticas religiosas
do pai. Atualmente Noah namora uma mulher mais jovem.
Noah organiza as atividades pedagógicas e religiosas em sua própria casa, localizada no
bairro do José Pinheiro (ver imagem 5). Os encontros ocorrem no terraço ou na sala de estar,
onde cadeiras de plástico são dispostas diante de uma lousa branca. Noah divide dias e horários
para as aulas de taekwondo, o curso de língua hebraica e os shabats.
Imagem 5 - Sala da casa de Noah, sede da comunidade Caraíta. Noite de shabat.

Fonte: página do Facebooh de Noah, 2018.

A maioria dos frequentadores da comunidade moram no próprio José Pinheiro, um


bairro popular e comercial. Muitos são de origem mais humilde e de baixa escolaridade.
70

Diferentemente dos ritos coletivos mais lúdicos dos demais grupos judaicos atuantes em
Campina Grande, os caraítas campinenses costumam revezar leituras e interpretações da Torá
com rodas de conversa sobre generalidades acerca da origem e funcionamento do Universo,
história do mundo, do Brasil e da Paraíba e mesmo ufologia.
Atualmente, Noah mantém contato com um rabino caraíta de São Paulo, Youssef
Zaitune Halevi Korach, presidente da Comunidade Judaica Caraita Sefaradim no Brasil
(COMJUCASE), a fim de se conectar a redes mais amplas de comunidades caraítas no Brasil e
no mundo.
Como vimos no primeiro capítulo, o caraísmo é um conjunto de correntes religiosas que
concebe que somente a Torá escrita deve guiar a vida do povo escolhido por Deus. Essas
escrituras sagradas contêm o manifesto do próprio Deus ao profeta Moisés e constituem a base
das histórias e normas do verdadeiro judeu. O judeu não precisa, portanto, das tradições orais
expressas no Talmud nem de uma autoridade religiosa que oriente seu cotidiano e sua fé. Nesse
sentido, os judeus são iguais na capacitade de interpretar e professar os ensinamentos
presentificados na Torá e não devem depender de rabino ou sinagoga para encontrarem a
verdade. Essa postura antirabínica dos caraítas historicamente não foi bem recebida pelo
judaísmo hegemônico que há séculos incorpora as tradições da Torá oral como cânones
religiosos do mundo judaico (SCHUR, 1992). Atualmente os caraítas formam grupos
minoritários que existem em vários países e continentes à revelia dos rabinatos locais e das
cúpulas religiosas de Israel.
Líderes como Alessandro, da Maguen David, e Davi André, da Amigos da Torah,
costumam ignorar a existência de uma comunidade caraíta em Campina Grande, afirmando que
Israel não reconhece esses movimentos no Brasil.
Esse perfil intelectual mais “independente” dos caraítas, que ignora a influência de
rabinos e de tradições comunitárias orais em seus cotidianos, tende a formar pessoas que
seguem trajetórias judaicas individuais, que não procuram se integrar a coletivos religiosos e
sinagogas. Pedro Agra é um bom exemplo desse tipo de trajetória. Sobre a liderança de Noah
junto ao grupo atuante no bairro do José Pinheiro, Pedro afirmou:

O líder é o Noah Levi, ele é ligado ao Oshana, a primeira liderança que eu tive contato, e eu me
afastei de lá. Ele é caraíta, mas ele tá num nível bem mais assim... Ele tem uma prática de
judaísmo bem mais diferente da minha, embora que ele siga aos caraítas também. Ele, o caraíta
não acredita na lei oral.
71

Certa feita, sabendo que, na época, eu era estudante de mestrado em Antropologia do


PPGA/UFPB, Noah me pediu uma oportunidade para exposição de uma palestra na
Universidade “O livro do Gênesis e o judaísmo”. Com a ajuda da professora Maristela Andrade,
minha então orientadora, e do Grupo de Estudos Videlicet, do Programa de Pós-Graduação em
Ciências das Religiões, conseguimos organizar este momento em novembro de 2016. Noah se
sentiu muito à vontade na palestra entre “acadêmicos”, conseguindo provocar boas reflexões
filosóficas e teológicas nos presentes. A ideia de que um bom judeu é, antes de tudo, um
intelectual que domina conhecimentos essenciais para a humanidade faz parte dos sentidos de
vida de muitos conversos de Campina Grande e alhures.

3.3.4 A Branca Dias

A comunidade Branca Dias (ver imagem 6) nasce de uma dissidência dos participantes
da Maguen David em relação aos procedimentos mais “corretos” e “práticos” de conversão ao
judaísmo, agravada com a atuação do rabino Gilberto Ventura, da Sinagoga Sem Fronteiras,
junto ao grupo campinense. No quarto capítulo da presente tese, nos deteremos mais
atentamente a esta situação de rompimentos comunitários da Maguen David. Neste momento,
é importante informar que o jornalista Antônio Ribeiro, após seguir trajetórias judaicas de fé
individual e participar de reuniões da Amigos da Torah e do grupo caraíta, passa a integrar a
comunidade Maguen David, participando de shabats e festividades. Insatisfeito com os rumos
dos processos de conversão tomados na comunidade, Antônio, juntamente com seu sobrinho
Aldrey, Raquel e outros dissidentes, decide se afastar de vez da Maguen David, fundando em
2017, uma nova comunidade de conversos ao judaísmo. Os encontros desse grupo acontecem
em uma casa alugada no bairro de Santa Rosa. Por meio de uma intensa atuação nas redes
sociais, a comunidade Branca Dias passa a receber pessoas curiosas e interessadas na nova fé.
Casado e pai de dois filhos, o campinense Antônio nasceu em um lar de pais católicos
“não praticantes”, mas foi criado mesmo pela avó materna. “Ela guardava os sábados e aquilo
ali me intrigava quando pequeno, mas eu não compreendia”, lembra. Antônio se recorda de
velas acesas em candelabros na casa e mulheres mais velhas rezando durante as festas
religiosas, com destaque para o que seria a “Pessach”, sempre comemoradas pela família.
Mesmo que muitas práticas rememoradas por Antônio também façam parte do universo do
chamado “catolicismo popular”, ele afirma que sua avó tinha uma religiosidade diferenciada.
72

Antônio teve seu primeiro contato com o judaísmo por meio de sua amizade com Davi
André, atualmente líder da Amigos da Torah. Os dois participavam do Encontro da Nova
Consciência. Enquanto Davi André fazia parte da organização, Antônio fazia a cobertura
jornalística do evento. Entre os anos de 2005 e 2008, Antônio frequentou a comunidade Amigos
da Torah. A amizade com Davi André foi desgastando a partir de desavenças sobre questões
políticas locais e quando ele percebeu que a Amigos da Torah praticava o “judaísmo
messiânico”, misturando tradições hebraicas com cristãs. As recorrentes leituras do Novo
Testamento da Bíblia durante os shabats passaram a incomodar de tal maneira que não pôde
mais permanecer na comunidade. Após romper com Davi André, Antônio ficou um tempo sem
frequentar grupos religiosos. Em 2005, conheceu Alessandro em um grupo de amigos em
comum e decidiu conhecer o trabalho desenvolvido na Maguen David. No início, participava
apenas de alguns momentos festivos, aproximando-se aos poucos de cada integrante. Entre
2008 e 2009, a partir de convites mais efusivos de Alessandro, resolveu se engajar mais
ativamente e passou a frequentar semanalmente os shabats e demais atividades da comunidade.
Antônio costumava levar seu sobrinho Aldrey, então adolescente (hoje graduado em História
pela UFCG), para participação nesses encontros. Embora de modo mais pontual, a esposa e os
filhos de Antônio participavam de algumas atividades religiosas da comunidade Maguen David,
tornado-se mais presentes depois da fundação da Branca Dias. Durante o período de sua
participação na Maguen David, Pedro Agra o apresenta a Noah, líder dos caraítas estabelecidos
no bairro do José Pinheiro. Encantado com o caraísmo, Antônio passa a conhecer um pouco
das reuniões da comunidade. Entre 2015 e 2017, transita em vários espaços judaicos da cidade
em busca de autoconhecimento religiosos.
A aproximação de Antonio Ribeiro com Gilberto Ventura sempre foi mais agudizada
devido às questões familiares que os envolvem. Ventura é sogro de Aldrey e Aldrey é, como
sabemos, sobrinho de Antonio Ribeiro. Logo nas primeiras visitas do rabino Ventura, Antônio
se prontificou a intermediar as relações entre o rabino e a comunidade Maguen David, passando
a defendar as ideias e intercâmbios culturais propostos pela Sinagoga Sem Fronteiras na
comunidade. Antônio se convenceu de que o rabino traria a possibilidade do sonhado
reconhecimento dos membros da Maguen David. Mas, como veremos mais adiante na tese,
após a realização de um fatídico tribunal rabínico (Beit Din) e da falta de adesão dos membros
da Maguen David às investidas de Ventura, Antônio decide fundar o próprio grupo “filiado” a
Sinagoga Sem Fronteiras, com o propósito de acolher de modo mais amplo pessoas interessadas
73

na conversão ao judaísmo via métodos menos “convencionais”. A comunidade Branca Dias


tem se mostrado bem estruturada, procurando manter-se em contato com a rede de conversos
nordestinos formada pela Sinagoga Sem Fronteiras.
Imagem 6 - Comunidade Branca Dias. Os participantes fazem a leitura da Torah em um shabat.

Fonte: Página da Branca Dias no Facebook, 2019.

2.3.5 A Beit Israel

De modo semelhante ao processo de formação da Branca Dias, a comunidade Beit Israel


nasce de uma dissidência dos participantes da Maguen David relacionada a questões internas
de ordem pessoal e a desentendimentos acerca dos procedimentos coletivos para obtenção do
reconhecimento da comunidade como “sinagoga” e dos seus integrantes como judeus
oficialmente conversos. Como sabemos, no quarto capítulo da presente tese, teremos a
oportunidade de nos deter com mais atenção aos processos de rompimentos comunitários
ocorridos na Maguen David. Por enquanto, neste momento, é importante compreendermos o
processo de formação da Beit Israel.
Diferentemente de Antônio Ribeiro, as pessoas que se afastaram da comunidade
liderada por Alessandro para fundar um novo grupo sempre participaram ativamente de todas
as atividades organizadas pela Maguen David. A saída desse grupo deixou Alessandro bastante
74

isolado, fragilizando a própria existência comunitária da Maguen David. A decisão de


rompimento definitivo partiu inicialmente do casal Jessé Alexandrino e Ana Elya.
Nascido em Campina Grande, Jessé é um militar de alta patente do exército brasileiro,
aposentado desde 2018. Como militar, foi transferido para vários lugares do Brasil durante sua
carreira. Por muitos anos morou em Natal, Rio Grande do Norte, onde conheceu Ana Elya.
Após um namoro de quase três anos, casaram-se em 1988 e, com o novo remanejamento do
posto de Jessé, foram morar em Macéio, Alagoas. Os pais de Jessé eram assembleianos e os de
Ana Elya católicos, embora seu pai tenha se convertido à Assembleia na vida adulta. Como ela
já frequentava igrejas evangélicas durante a vida de solteira, em Macéio, a família passou a
participar de cultos da Assembleia de Deus. No final dos anos 1990, o casal recebeu a visita do
irmão de Jessé, Ivonaldo. Os dois nasceram e cresceram em Campina Grande. Em Campina,
Ivonaldo tomou conhecimento dos ensinamentos judaicos por meio de Hanna, passando a
integrar a Maguen David. Ivonaldo trouxe essas referências a Maceió e o casal Ana Elya e Jessé
começaram a se questionar sobre determinadas questões bíblicas. Um dia Jessé indagou ao
pastor da Assembleia de Deus em Maceío sobre Jesus ser de fato o messias anunciado pelas
antigas escrituras. Se Jesus era o messias, por que seus ensinamentos contradizem muitas
tradições judaicas do Antigo Testamento? O pastor desconversou, não respondeu ao
questionamento e apenas falou ao Jessé: “desde que o mundo é mundo é assim. Me ensinaram
assim, não posso dizer o contrário para igreja”. Inconformado com a resposta, Jessé decide se
aprofundar nas histórias e mensagens do judaísmo, seguindo uma nova religião. Para Ana Elya,
que já simpatizava um bom há tempo com a fé judaica, esse entendimento do esposo foi um
momento de muita felicidade. Sua família passaria a constituir um lar de judeus. A nova vida
se revelava com posturas e comportamentos domésticos diferentes, evidenciados especialmente
nas regras de alimentação e rituais cotidianos.
Quando Jessé foi finalmente transferido para sua cidade natal, Campina Grande, em
2001, foram morar no bairro do Catolé, sendo vizinhos de Alessandro. Nesse tempo, Hanna,
Alessandro e outros neoconversos davam apenas os primeiros passos para formação de uma
comunidade religiosa judaica, a Maguen David. Em plena sintonia de fé, Jessé e Ana Elya
passaram a ser frequentadores assíduos da comunidade, contribuindo com os serviços e a
organização coletiva dos ritos e festividades.
Após vários anos de construção comunitária, Jessé e Ana Elya começaram a se
desentender seriamente com Alessandro e outros membros do grupo. Os desgastes acerca da
75

forma de condução dos ritos coletivos e dos procedimentos burocrático-religiosos para


conquista da conversão da comunidade se tornaram mais evidentes a partir da saída de Antônio,
Aldrey, Raquel, Kiko e outros parceiros de fé da Maguen David em 2017. Nos primeiros meses
de 2019, alguns comportamentos de Alessandro foram interpretados como intransigentes. Ana
Elya, Jessé, seus filhos e pessoas mais próximas se afastaram cada vez mais da Maguen David.
Em abril, após uma reunião entre amigos, Jessé e Ana Elya decidem fundar a comunidade Beit
Israel, passando a receber na própria casa dissidentes da Maguen David e outras pessoas
interessadas em viver a verdadeira fé judaica.
Uma das famílias dissidentes do grupo original da Maguen David que integram a Beit
Israel é formada por Leda e seus filhos Bruno e Kedma. Leda conheceu o judaísmo por meio
de Ana Elya, sua vizinha. Em 2005, juntamente com os filhos, passa a fazer parte da Maguen
David. O esposo de Leda nunca participou dos encontros da comunidade, não se interessa pelo
judaísmo. Na Maguen David, Kedma puxava os cânticos das celebrações e Bruno fazia a leitura
da Torá, por vezes substituindo Alessandro na condução ritualística. Atualmente, Kedma é
fisioterapeuta e professora universitária da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) e Bruno
é gerente do em uma agência do Banco do Brasil. Com o advento da Beit Israel, sua família se
sente mais unida e participativa, atuando com protagonismo em todas as atividades
comunitárias.
A Beit Israel atualmente conta com a participação de cerca de 30 pessoas, em ex-
integrantes da Maguen David e moradores do Catolé, um bairro de classe média. A maioria dos
frequentadores são homens, amigos ou próximos da família de Jessé e Ana Elya. Inspiradas no
protagonismo de Ana Elya, as mulheres da Beit Israel se mostravam ativas na condução dos
ritos e festividades organizadas pela comunidade. Os encontros da comunidade são vivenciados
no “espaço gourmet”, aos fundos da casa do casal Jessé e Ana Elya.
76

Imagem 7 - Shabat na casa da Ana Elya, sede da Beit Israel.

Fonte: Facebook de Ana Elya, agosto de 2019.

Apesar de oficialmente Jessé se apresentar como liderança da Beit Israel, é a sua esposa,
Ana Elya, a pessoa que consegue agenciar uma grande rede de influências que perpassam a
vinda de mais adeptos e a estruturação da nova comunidade. Ana Elya sempre prezou pela
realização de shabats e festas judaicas repletas de símbolos e cores. Em sua residência, organiza,
juntamente com outras mulheres, bazares e jantares bastante convidativos para os integrantes
da Beit Israel.
As reviravoltas dos processos de formação, cisão e reaglutinação de comunidades
religiosas judaicas em Campina Grande, em constantes contatos, fragilização e consolidação de
77

limites identitários reafirmam as reflexões de Fredrik Barth ([1969] 2000) acerca do fenômeno
dos grupos étnicos, que não são dados e sim constructos dinâmicos em experiências de
reinvenção social. Os grupos étnicos tendem a se manifestar em situações de contato e conflito,
manipulando identidades em razão de circunstâncias históricas e sociais, “regulando”, por
assim dizer, a visibilidade do “eu” em relação ao “outro” a partir de sinais diacríticos e
experiências de diferenciação cultural.
A linha do tempo abaixo inserida intenta periodicizar as formações e cisões das
comunidades de conversos ao judaísmo de Campina Grande, revelando marcos fundacionais,
de estabilização e desestabilização dos grupos.
Imagem 8 - Formação e Cisão das comunidades de conversos ao judaísmo em Campina Grande

Fonte: Autoria própria, 2020.


78

4 OS RITOS COTIDIANOS E FESTIVOS NO MUNDO DOS NEÓFITOS

4.1 Entre ritos cotidianos e festivos: os sinais diacríticos da judaicidade

Segundo Victor Turner, “o rito é a interrupção da vida rotineira. É a teatralização e a


dramatização daquilo que é contínuo na sociedade, segundo uma vontade e uma simbologia que
não está inscrita em um manual cultural” ([1967] 2005, p. 118). Como o autor observa, é como
se as coisas fossem reduzidas ou comprimidas até uma condição uniforme, para serem
modeladas de novo, dotadas de outros poderes, e assim serem capacitadas para enfrentarem sua
nova condição de vida. Renato Rosaldo ([1989] 2000) procura fragilizar tal ideia turneriana do
ritual. Para o antropólogo chicano, o ritual deve ser compreendido como uma experiência
humana aberta, porosa, sujeita a diversas clivagens e vicissitudes da conjuntura global e local
onde ele se reproduz e faz sentido (Rosaldo, [1989] 2000). Não é uma unidade microscópica
que congrega densamente uma realidade mais ampla e fragmentada, como pode fazer crer certa
interpretação do conceito de situação social de Max Gluckman ([1958] 2010). O ritual, assim,
é um fenômeno diferente para cada sujeito posicionado antes, durante, depois, dentro e fora da
sua ocorrência.
Seria importante discorrer ao leitor sobre as ritualidades e festividades que encontrei nas
comunidades de neoconversos em Campina Grande. Atentarei com o olhar de observadora-
participante de ritos coletivos e festas do calendário judaico das comunidades de Campina
Grande (Maguen David; Amigos da Torah; Caraítas; Beit Israel; e Branca Dias), buscando
evidenciar os mais prestigiados por cada comunidade; como se realizam os ritos e festividades
e como as sinagogas e casas são arrumadas para a festa ou acontecimento mostrando os
organizadores e financiadores dos ritos e festividades em cada comunidade; salientando o que
ocorre no momento de realização dessas celebrações em cada comunidade e como esses ritos e
festividades são transformados ao longo do tempo, verificando as influências das visitas
externas, dos rabinos observadores, as mudanças ritualísticas internas, agenciadas por
lideranças ou participantes. Toda essa dinâmica analisada como sinal diacrítico da judaicidade,
bem como verificando a importância para os neoconversos.
Para os judeus é importante comemorar as festividades bem como vivenciar os ritos
existentes no judaísmo. As comunidades em Campina Grande seguem a estrutura da maioria
das comunidades judaicas do mundo, e se organizam e festejam suas celebrações históricas e
79

religiosas de acordo com seus meios sociais e culturais, ressignificando a tradição judaica. A
partir de então, a busca pelo “ser judeu” ganha atenção especial em minha pesquisa, pois percebi
que cada comunidade vivencia suas experiências, seus ritos em busca do judaísmo pleno, seja
nas celebrações religiosas ou durante as festividades do calendário judaico.
Na organização da sinagoga, no preparo dos alimentos, no cuidado do ambiente para as
preces da comunidade, há a predominância da figura feminina em todos os afazeres. Da
alimentação ao zelo do lugar, cabe a mulher as obrigações rituais, bem como as tarefas
realizadas no espaço doméstico, como o acendimento das velas no início do shabat, o período
ritual que se estende do final da tarde de sexta-feira até o final da tarde do sábado, a preparação
dos alimentos segundo prescrições rituais, a observância da pureza ritual, que determina a
separação dos casais no período menstrual e pós-parto da mulher, o que inscreve o espaço
feminino nos limites da esfera privada. É interessante perceber que as mulheres participam das
atividades sinagogais, mas durante as celebrações devem se acomodar em um lugar separado
dos homens para “não lhes tirar a concentração” neste importante momento de contato com o
sagrado. Na maioria das festividades, elas participam de forma muito ativa das liturgias.
As datas são coletivamente marcos repletos de símbolos para os judeus, ressaltando a
importância no cotidiano de cada sujeito, os neoconversos em Campina Grande revivem as
datas do calendário judaico e seguem adaptando a realidade local os costumes e ritos
estabelecidos. A seguir (ver imagem 9) os significados dos ritos e festividades presentes nas
comunidades dos neófitos campinenses, compondo as ideias de pertencimento ao lugar, ou de
um lugar de identificação dentro do judaísmo estabelecido, na procura da afirmação do sistema,
seus ritos e festividades.
Imagem 9 - Tabela das festividades e ritos judaicos.

FESTA/RITO SIGNIFICADO CALENDÁRIO CRISTÃO-


tempo de realização
Ano novo judaico (início do
ROSH HASHANÁ período de auto reflexão de dez Setembro
dias até o Yom Kippur)
Dia do perdão, do julgamento,
YOM KIPPUR da reconciliação com o eterno. Setembro/outubro
É o sábado dos sábados.
É um rito onde há a Guarda da sexta e sábado (dias
SHABAT comemoração do dia sagrado da semana)
80

(ocorre das 18 h da sexta às 18 h


do sábado) para entrar em uma
nova semana.
Festa das cabanas ou festa do
tabernáculo. O Sucot relembra
SUCOT os 40 anos de êxodo dos Setembro
hebreus no deserto após a sua
saída do Egito.
Salvação dos judeus na Pérsia
PURIM no século V a.e.c. Ocorre no Fevereiro
período do carnaval no Brasil.
Libertação dos filhos de Israel
PESSACH da escravidão do Egito. Páscoa Abril
judaica.
Fonte: Autoria própria, 2021.

Além das principais festividades mencionadas que são realizadas coletivamente nas
comunidades de neófitos campinenses, existem outros presentes no calendário judaico, como a
Hanukáh (Chanucá), Festa das Luzes ou Festa da Dedicação, que ocorre no mês de novembro
celebrando a vitória e a liberdade religiosa do povo judeu. Optamos por não a mencionar na
tabela acima, pois apenas a comunidade Beit Israel e Maguen David a celebram de maneira
coletiva durante oito dias dedicados a sua celebração. Além do acendimento das velas na
sinagoga, partilham comida e proferem preces. Durante a celebração da Hanukáh há de forma
obrigatória o acendimento de velas no candelabro de nove braços durante a semana, no
judaísmo os candelabros representam símbolos da vida, de D´us e sua criação que sustenta o
divino e orna seu santuário (Hebreus 8:12). O candelabro de nove braços, de nome Chanukah,
é usado durante os oito dias do feriado judaico de Chanukah, também chamado de “Festa das
Luzes”. Nesta celebração, os judeus de todo o mundo comemoram a libertação do Templo de
Jerusalém do domínio dos Gregos no século II a.C. sob a liderança dos Macabeus e o milagre
do azeite que havia numa botija - que duraria um dia só - e que queimou no candelabro do
Templo por oito dias. Este é o motivo dos nove braços da Chanuká (ver imagem 10), sendo o
braço do meio, mais proeminente, denominado Shamash (servente), pois a vela que é colocada
neste braço é usada para acender as velas que são colocadas nos outros oito braços (LAMM,
2009).
81

Imagem 10 - Luzes da Hanukáh na Casa da Ana Elya, Sede da Beit Israel.

Foto: Mirella Braga.

As comunidades Branca Dias e Amigos da Torah reproduzem a celebração da Hanukáh


no ambiente doméstico de cada família, fazendo o acendimento das velas no candelabro de
nove braços, as preces são proferidas de maneira individual.
As comunidades judaicas campinenses analisadas procuram cumprir todas ou quase
todas as festividades existentes no calendário judaico. O que faz parte deste processo de
construção de identidade judaica é vivido através da diversidade de ritos, reforçada pela
memória coletiva e construída ao longo de sua história. É importante destacar que o que garante
o sentimento de identidade do indivíduo é experenciado na memória compartilhada não só no
82

campo histórico, do real, mas sobretudo no campo simbólico, e de fato essa descrição se faz
presente nas comunidades em Campina Grande de neófitos, que procuram preservar a tradição
judaica ao longo do tempo.
É de fato na análise do ato performático da realização dos encontros coletivos, em que
observei que há o envolvimento dos sujeitos, a propriedade da linguagem e a produção dos
efeitos de sentimentos, ligação, ação dos sujeitos envolvidos no processo que o sentido, as
representações são agudizadas pelos sujeitos de tal modo a provocar conexões. Em um desses
momentos percebi a entonação da voz masculina sempre em tom mais elevado do que a
feminina, desde os cânticos quando a voz das mulheres fica numa espécie de “segunda voz”,
como também nas leituras sempre iniciadas por homens. Na entonação dos cânticos, as
mulheres devem acompanhar em voz baixa deixando para a figura masculina todo o papel de
pronunciar e exaltar as palavras. Aos homens é delegada a leitura da Torá, a exaltação dos
cânticos e todas as preces presentes na Sinagoga. De acordo com mulheres e homens da Maguen
David, existe muito poder sensual na voz feminina e tal sensualidade não deve ser aflorada em
demasia nos cânticos hebraicos e nos momentos sagrados de louvor. A presença marcante do
homem como “grande chefe” ainda de fato é um símbolo presente no judaísmo, e é repetida nas
comunidades de Campina Grande. De acordo com Sandra Souza, “a religião é uma das
responsáveis pela produção e reprodução dessa hierarquia dos sexos, sacralizando papéis
socioculturalmente construídos” (LAMM, 2009, p. 53).
Nas comunidades é característico encontrar mulheres bem vestidas na noite do shabat,
bem como nas demais cerimônias/ritos, geralmente prevalecendo tons claros nas vestes e o tom
branco para as cadeiras que são organizadas em fileira nos espaços coletivos das comunidades,
geralmente uma grande sala com poucos adereços. Para a maioria das comunidades, a
participação na vida coletiva da sinagoga/comunidade é tão importante quanto a adesão as
orações estabelecidas no shabat, a alimentação, aos novos hábitos de vestir-se e sobretudo a
leitura atenta da Torá. Além dos shabats, pude acompanhar durante a pesquisa algumas das
festas mais importantes realizadas nas comunidades (sinagogas) em Campina Grande, a
exemplo do Rosh Hashaná, cabeça do ano, ou seja, o ano novo judaico.
Na maior parte dos eventos que presenciei, a participação dos adultos sempre foi mais
evidente, mas em eventos específicos, como o Rosh Hashaná e a celebração do Yom Kippur,
presenciei um número diversificado de homens e mulheres, adultos, jovens e poucos idosos.
Agora iremos fazer a imersão nos detalhes observados através da etnografia apresentada no
83

campo de pesquisa. Ressalto que a festividade de modo geral, pode ser considerada mais
simétrica, pois está ordenada a partir de um calendário judaico e tradicionalmente vivenciadas
pelos conversos em Campina Grande.

4.1.1 O Rosh Hashaná

O Rosh-hashaná é o inicio do ano judaico (GUTIN; BANK, 2004). O Rosh Hashaná


ocorre no mês de Tisherei (em setembro), que de acordo com o calendário judaico rabínico é
no sétimo mês do calendário bíblico. Na preparação para o Rosh Hashaná (Cabeça do Ano ou
Ano Novo) o ato de pedir perdão a qualquer pessoa que possa ter lhe prejudicado durante o ano
anterior é de fato iniciar o ano novo “limpo”, sem ninguém guardar rancor um contra o outro.
Da mesma forma, os judeus entendem que devem perdoar aqueles que os ofenderam. Neste dia,
os judeus se dedicavam às orações e súplicas, pois acreditavam que este era um período no qual
Deus determinava e confirmava o destino de cada indivíduo para o ano que estava surgindo.
Lembro que Alessandro me disse em uma de nossas conversas sobre a importância do perdão
e sobretudo do ser perdoado, “quando a gente perdoa e é perdoado, a nossa alma eleva, ficamos
em paz com o eterno”.
No ano de 2020, a comunidade Beit Israel comemorou o Rosh Hashaná a chegada do
“ano bom e doce” nas dependências da casa de Ana Elya e Jessé, reunindo os membros da
comunidade Beit Israel. Embora seja recomendado o uso do shofar (instrumento de sopro feito
com os chifres do boi), considerado como um despertador espiritual, a comunidade Beit Israel
não faz uso do mesmo.
Registrei o uso do shofar na comunidade Amigos da Torah, quando em uma de minhas
visitas, Davi André tocou o instrumento antes de começar as preces da noite especial do shabat,
recebendo no final uma grande quantidade de palmas do público, eufórico, eram jovens
encantados com o som do instrumento e com a performance do líder. Ao tempo em que e
necessário dizer que a festividade do Rosh Hashaná da Amigos da Torah não é vivida
coletivamente com mesa farta após o shabat. Há uma dispersão dos membros logo após o
shabat, cada família/ membro segue seu caminho. Davi André segue para sua residência com a
companheira e seu filho Isaac.
Sobre a passagem do ano, há uma descrição na página das redes sociais no Facebook de
Ana Elya no dia 17/09/2020 que reflete o entusiasmo sobre o ano novo, as boas práticas e a
união. A liderança feminina da Ana Elya é muito importante para a comunhão existente dentro
84

da Beit Israel, ela é a figura que agrega, sempre muito cuidadosa, zelosa no cumprimento da
tradição, Shulchan Aruch (Código da Lei Judaica).

Queridos amigos, entraremos em mais um ano judaico, feliz 5781 Quero desejar a todos vocês
um feliz ano novo doce, com saúde e muita paz. Que seja um recomeço para grandes realizações.
Que haja muita união em todos os lares judaicos, com a proteção de HaShem. Que todos sejam
inscritos no livro da vida. No próximo ano, que estejamos em Yerushalayim (PÁGINA DO
FACEBOOK DA ANA ELYA, 2020)

Em Campina Grande, as comunidades acompanham as festividades e tentam seguir a


tradição judaica do Rosh Hashaná. Na comunidade Maguen David sobre a liderança de
Alessandro Magno o Rosh Hashaná foi vivido (ver imagem 11) com muita alegria junto aos
membros que permaneceram na comunidade, jovens e adultos, dentre eles a presença de Kiko.
Kiko estava presente no Rosh Hashaná à convite de Alessandro. Esse é um período muito
festivo para os judeus, a acolhida da entrada para o “bom ano". As comunidades Maguen David
e a comunidade de João Pessoa reuniram-se para festejar a data em um número reduzido de
pessoas na comunidade devido as questões sanitárias da covid-1935, ainda assim o momento foi
marcado por simbologias querepresenta o inicio do ciclo da vida e o bom ano novo ano para os
judeus.

35
Pandemia anteriormente já mencionada.
85

Imagem 11 - Alessandro Magno (talit branco com franjas), Kiko (a esquerda de blusa listrada) e demais
membros da Maguen David no Rosh Hashaná

Fonte: Página do facebook de Fabiane Andrade, setembro de 2020.

Há uma preocupação, sobretudo durante o período da festividade do Rosh Hashaná,


com as boas intenções dos judeus que possam atingir níveis espirituais mais elevados, para ser
assim merecedores da piedade do Eterno e possa assim alcançar por merecimento os decretos
Divinos. Sempre presente nas festividades das comunidades há a organização de um cenário
com os símbolos necessários para fazer o passado presente e, nessa fusão de tempo e espaço,
há a criação das condições para a realização dos cultos e para o contato da comunidade com o
sagrado.
Ana Cariry relata sobre a participação no Rosh Hashaná, “eu sou judia e entendo isso
na fase adulta, pra mim é como se eu já tivesse nascido judia, é assim que eu me sinto. Então
essa festa é algo que faz parte da minha identidade, do meu eu, tem significado”.
Sobre a festa do Rosh Hashaná, Pedro Agra observou:

Existem algumas tradições que estão registradas na própria Tanakn, ou na Torá, ou melhor, na
Tanakn que são os livros dos profetas, os escritos que nós chamamos de Tanakn ou Micrá. Se
for na primeira época, contemporânea de Cristo nós reconhecemos como Tanakn. Em outras
palavras, para dizer que
86

somos judeus, a nossa religião, o caraíta ele é muito diferente do rabanita, [interessante perceber
que esta palavra não aparece em nenhum momento da fala da Maguen David, Beit Israel, Branca
Dias e da Amigos da Torah. Por que?] porque nós temos práticas diferentes. Eles não comem
leite com carne, e nós interpretamos as passagens que eles interpretam que não podem comer
leite com carne de maneira diferenciada. Por exemplo, eles celebram o ano novo judaico agora,
Israel esta celebrando agora de setembro, o Rosh Hashaná, e logo em seguida nós celebramos o
Yom Teruá, dia de aclamação ao eterno, certo? O dia de trombetear, de fazer barulho, de fazer
festejos, de se alegrar. A festa não é...
Nós vemos como a segunda cabeça do ano mas não um ano novo. Porque registrado na Biblia
ou na Torá, o ano novo a partir de Moshé, quando o eterno mandou Moshé descer do Egito e
subir pra Israel, certo, pra Terra de Canaã, o eterno disse no primeiro mês, no mês da primavera,
certo, o eterno disse: “Israel agora vai ser outono não primavera”. O eterno disse: “este será o
primeiro dos meses, o primeiro mês do ano”. Então o primeiro mês do ano não seria agora. Então
os rabanitas celebram agora mas isso aí não sei se a palavra certa é aculturação ou sincretismo
religioso de outras culturas. Então o eterno deu a Moshé a ordem, então quando é primavera no
Oriente médio, em Israel, ali é o ano novo judaico. Nós celebramos também as festas dos pães
se sem fermento, quais são no ano as outras festividades que vamos celebrar? Simchat Torá, que
marca o ciclo anual da leitura da Torá que é terminado e reiniciado neste dia. Dançamos e nos
alegramos com a Torá, celebramos a Chanucá que comemora a reinauguração do Templo
Sagrado de Jerusalém, após a vitória dos macabeus. É celebrada durante oito dias. Eles, os
rabanitas, celebram no acendimento de velas, oito velas, usando um candelabro 36 de nove braços.

Lembro que perguntei ao rabino Alexandre Leone se ele reconhecia a comunidade


caraíta em Campina Grande, de forma pouca amistosa, ele falou: “Não há qualquer forma oficial
de comunidade caraíta que seja reconhecida pelo Estado de Israel no Brasil”. Mais uma vez
percebi o quanto as práticas judaicas existentes em Campina Grande são multifacetadas.
Uma das experiências mais importantes e marcantes que tive em campo foi participar
juntamente com outros membros da comunidade do Rosh Hashaná e todo o encantamento de
sua organização (ver imagem 12) e da festividade do Yom Kipur, pois embora sejam mais
fechadas ao público, por estar como pesquisadora fiz o contato com a liderança que gentilmente
deixou que eu acompanhasse as festividades, a única ressalva feita era para não entrar de
gravador ou celular na sinagoga.
Na festividade do Yom Kipur, logo em seguida do Rosh Hashaná, a intenção do perdão,
da limpeza espiritual, fica ainda mais clara. São códigos de interpretação do mundo e da vida
como ela é e deve ser. Eu arrisco dizer que os sujeitos praticantes estão em uma “fase” de
liminaridade, que nas palavras de Victor Turner tende a escapar da “rede de classificações que
normalmente determinam a localização de estados e posições num espaço cultural. As entidades
liminares não se situam aqui nem lá” ([1969] 1974, p. 117).

36
Os candelabros para o judaísmo representam símbolos da vida, de D’us e sua criação que sustenta o divino e
orna seu santuário (Hebreus 8: 12). O candelabro de sete braços, de nome Menorah, constitui um símbolo
decorativo e artístico da fé judaica. O candelabro de nove braços, de nome Chanukah, é usado durante os oito dias
do feriado judaico de Chanukah, também chamado de “Festa das Luzes” (LAMM, 2009).
87

Imagem 12 - Mesa posta para o Rosh Hashaná – Comunidade Beit Israel

Fonte: Facebook de Ana Elya, setembro de 2020.

A primeira vez que vi a festividade sendo comemorada em Campina Grande foi na


comunidade Maguen David em 2018, observei a consagração dos alimentos na época do Rosh
Hashaná e lembro que Ana Elya (hoje a frente da comunidade Beit Israel) era a responsável
pelo preparo das guloseimas, do pão, denominado Chalot. A alimentação que marcadamente se
fazia presente na mesa da comunidade era responsabilidade das mulheres, que organizavam
também toda a sinagoga com cores e enfeites.
O pão servido nessas festividades, especificamente na Rosh Hashaná, se diferenciava
do pão servido no shabat, pois o chalot era redondo, simbolizando a continuidade, a eternidade.
Ana Elya recebia ajuda de algumas outras mulheres da comunidade para o preparo do pão e da
mesa. É no Rosh Hashaná que percebi os cânticos cantados com maior intensidade, uma maior
participação das pessoas na comunidade, e isso fazia toda a diferença. Sobre o Rosh Hashaná
diz Ana Elya, “eu comecei a acender minhas velas para o eterno, né? Uso meu candelabro,
aquele que você viu lá no meu quarto”. Ana faz referência ao candelabro de nove braços que
88

ela possui no seu quarto, localizado no primeiro andar de sua casa. O Rosh Hashaná ocorre
durante dois dias. E durante esses dois dias, Ana adapta a casa para as comemorações do ano
novo judaico. Percebo a tentativa animada da Ana em mostrar que adaptações foram
produzidas em sua casa, pois compreendo que o lar é uma importante marcação simbólica da
presença das práticas judaizantes. Penso que ela vê na minha presença enquanto pesquisadora,
um caminho que ratifique a veracidade das práticas judaicas de sua família e de sua
comunidade.
Em seguida do Rosh Hashaná, dez dias precisamente, eles comemoram o Yom Kipur,
dia considerado mais importante do ano para muitos judeus, “o dia do perdão”. Este é um dia
de arrependimento para todos, para o indivíduo e para a comunidade. É o tempo do perdão para
Israel. Por isso, todos são obrigados a se arrepender e a confessar os seus erros nesse momento.
O dia do perdão é a segunda das festas do início do ano, celebrada logo após o Rosh Hashaná.

4.1.2 O Yom Kipur

No Yom Kipur, outro hábito que os grupos põem em prática é a dieta alimentar, além
de separar esse dia para o descanso, promovendo o perdão, logo após o início do novo ano
(Rosh Hasanhá), “zerando” os pecados e promovendo a reconciliação com o Eterno. Essa
festividade é um aviso que a cada novo ano, os judeus que vivenciam, encontram-se conscientes
de suas tradições, (re) afirmando, com isso, a sua identidade judaica.
Os judeus que vivem o ritual do Yom Kipur estão escrevendo suas histórias, buscando
suas identificações culturais com mais intensidade. Em Rosh Hashanah, o justo e o ímpio
recebem o seu julgamento. Uma pessoa não deve ver-se como má ou ser presunçosa em
considerar-se justa. Portanto, existem os 40 dias para melhorar e inclinar a balança para o lado
da justiça. Durante todo o mês de Elul, e mais intensamente entre Rosh Hashaná e Yom Kipur,
os judeus realizam uma autoavaliação sobre sua conduta durante todo o ano.
Sobre o Yom Kipur e sua preparação, Alessandro Magno observa,

O Rosh Hashaná é uma preparação para esse grande momento em nossa comunidade. Mas no
Rosh Hashaná podemos comer, a carne casher de preferência, mas no Yom Kipur que sabemos
que é o nosso ‘ano novo pessoal’, nós não podemos, devemos fazer o grande esforço para que o
eterno nos perdoe.
89

Durante o Yom Kipur, percebi na leitura o mais importante elemento, a mesma seguia
sem pausa. O dia do Yom Kipur, conforme calendário judaico, é um dia de arrependimento
para todos, para o indivíduo e para a comunidade. É o tempo do perdão para Israel. Por isso,
todos são obrigados a se arrepender e a confessar os seus erros nesse momento. O dia do perdão
é a segunda das festas do início do ano; é celebrada dez dias após o Rosh Hashaná. Nesse dia
sagrado, é proibido ingerir qualquer tipo de alimentos ou bebida, sendo marcado por um jejum
absoluto, porém, no dia anterior, é preparada uma refeição bastante farta, à base de carnes,
sopas, aves, salgados e doces. Os temperos fortes e bebidas alcoólicas são evitados, por
provocarem sede. Segundo o Dicionário da cozinha do mundo – Larousse (2005), um dia após
o Yom Kipur costuma-se tomar um caldo de frango preparado com salsão, legumes, cebola e
cravo-da-índia, o guildene. Alguns membros da Maguen David, como a família de Ana Elya e
Jessé e o líder Alessandro Magno, repetem essa descrição dietética pós-Yom Kipur.
Cheguei ao local, aproximadamente às 18 horas. Toquei a campainha, percebi que a
mesma não funcionava. Decidi chamar. Mas não obtive resposta. Foi então que percebi o portão
aberto na lateral. Ouvi o burburinho de pessoas em reunião, resolvi empurrar o portão e assim
consegui entrar. Percebi que no local havia uma grande mesa onde as pessoas estavam reunidas,
homens e mulheres. Não havia neste dia específico crianças no local. Talvez seja reflexo do
tempo de vigília em que passaríamos. No ambiente da casa, havia uma pequena estrela de Davi
pequena no centro da parede e, em lugar mais alto, a bandeira do estado de Israel. Na sala onde
entraríamos para seguir o Yom Kipur, havia cadeiras de plástico brancas. A sala continha
poucos ornamentos, não há excessos no lugar, são evitadas imagens e qualquer tipo de
esculturas, embora se note na antessala (espaço de transição entre a sala de recepção e o espaço
reservado aos rituais sagrados) a presença da Arca Sagrada que contém os rolos da Torá e um
candelabro de sete velas. O Yom Kipur deve ser realizado no décimo dia do calendário judaico
e vai até o anoitecer do dia seguinte. No ritual mais importante do calendário judaico, o
momento de exaustão e entrega física e espiritual, com mais de 25 horas de orações se faz a
grande marca. Homens e mulheres reversavam em leituras. O serviço religioso transcorria entre
pausas e ritmos mais acelerados, guiado por Alessandro, que usava um talit azul belíssimo e um
quipá de cor branca. Em alguns momentos de pausas mais longas, algumas mulheres, que
seguiam de fato as prescrições bíblicas de orar com o corpo e a alma, seguravam o livreto com
as mãos e balançando o corpo para frente e para trás, ou para os lados. Percebi que os homens
são menos adeptos a orar dessa forma do que as mulheres. O excesso de barulho e de vozes
90

intercaladas característicos deste momento é próprio do formato tradicional da execução do


Yom Kipur. Há excesso de barulho e logo em seguida uma pausa para o silêncio.
Como pude observar, o dia mais sagrado no calendário judaico, era vivido pelos
membros da comunidade na integralidade do que a tradição preconiza, em que o judeu deve
realizar cinco serviços de prece, correspondentes aos cinco níveis da alma para atingir o
encontro com o divino. A figura do Alessandro me fez recordar o que Barth ([1969] 2000) nos
diz a respeito da figura dos iniciadores em seu estudo etnográfico na Melanésia. Eles são
pessoas, arquétipos sociais, que transacionam os conhecimentos para cima, com os deuses, e
para baixo, com os neófitos, manifestando-se apenas por performances. Segundo Barth “o
iniciador deve ter domínio sobre esse corpo de conhecimentos e saber quais os itens indicados
para cada etapa do processo de iniciação que realiza” ([1969] 2000: 146).
Era cerca de 18:30 h, estávamos na sala, em divisória, homens e mulheres. Nesse
momento inicial, Alessandro pediu para que todos procurassem em seus livros a “página tal”,
que seria o início da recitação do Yom Kipur. Todos procuraram, acharam e começamos a
leitura. O Yom Kipur é um capítulo do ritual judaico presente neste livro emprestado a todos
para compartilhamento de uma extensa leitura ministrada por Alessandro. A leitura é rápida e
os erros da leitura não impedem que o orador líder continue lendo as frases e orações presentes
no livro. Alessandro tem uma voz poderosa e precisou dela na leitura. Percebi que eram poucos
momentos de pausa para que ele pudesse ingerir algum líquido, eu via claramente uma garrafa
com água próxima ao Alessandro. Do lado direito do livro, que deve ser lido “de trás pra frente”,
há a escrita em hebraico com todas aquelas letras diferenciadas em relação ao alfabeto
convencional. Do lado esquerdo superior, a “tradução” para o alfabeto convencional, imitando
nossa fonética, e inferior à tradução do significado da mensagem para o português. São três
formas de apresentação da mesma mensagem. Alessandro começou a ler em português e ficava
revezando entre a leitura no português e na fonética hebraica. Ana Elya, que estava com o kissui
rosh (cobertura da cabeça para mulheres casadas) do meu lado acompanhava toda leitura,
recitando baixinho e gesticulando. As demais mulheres, algumas mais senhoras e outras jovens
(com 20 anos cada), sempre muito bem vestidas, acompanhavam de forma mais lenta e sem
seguir muito as regras do “levantar e sentar”, “levantar e inclinar o corpo”. Apenas Ana Elya e
Ana Cariry faziam tudo de forma rápida. Observei a dedicação e o compromisso da
comunidade com a execução da festividade do Yom Kipur. Segui com a certeza de que a força
do feminino presente na Maguen David era algo extraordinário. E pude perceber com clareza a
91

diferença entre a participação de homens e mulheres. Enquanto aqueles lêem avidamente a


oração sem emitir ruído, apenas movimentando os lábios e o corpo – dobrando os joelhos e se
curvando em alguns momentos da oração ou movimentando o corpo sem sair do lugar em outras
passagens – as mulheres podem ser encontradas orando em tom de murmurinhos, aproveitando
o momento para falar com Deus, tentando acompanhar a oração e executando fielmente os
movimentos realizados na cerimônia do Yom Kipur mas sempre saindo um pouco do seu lugar
ao “levantar e sentar”. Turner ([1969];1974) nos ajuda a compreender acerca da performance
ritual dos sujeitos como uma demonstração da distintividade dos seus realizadores, tornando
público quem são eles e suas diferenças em relação a outros grupos e religiões, assim ocorre
com as comunidades judaicas de modo geral.
Por ser o Yom Kipur um dia dedicado ao jejum, à oração e à reflexão, ao arrependimento
e ao perdão, ele consegue o maior número de adeptos possíveis ao culto. Sobre o jejum, Nathan
Wachtel descreve:

O rito, sem dúvida, mais praticado nos meios marranos. Os judaizantes impunham-se a si
próprios, não só por ocasião das grandes obrigações anuais, como as do Grande Dia (Kippur) ou
da comemoração da Rainha Ester, mas também muito frequentemente durante as semanas
ordinárias, a até duas ou três vezes na mesma semana, de preferência à segunda e à quinta (era o
jejum completo de vinte e quatro horas, segundo o ‘costume judaico’, entre o cair da noite de um
dia e o cair da noite do dia seguinte). Assim se fazia com muito variadas intenções, como
implorar o perdão dos pecados, a salvação das almas ou a vinda do Messias ou manifestar
simplesmente a fé na lei de Moisés, mas também, mais prosaicamente, para pedir a cura de uma
doença ou o êxito de uma viagem ou de uma operação comercial. Esta frequência do jejum entre
os judaizantes pode ser explicada por motivos, principalmente práticos. O rito do jejum tinha a
vantagem de poder ser cumprido da maneira mais discreta e correspondia, no fim das contas, ao
estilo marrano: era facilmente mantido em segredo, ninguém de fora o notava. (WACHTEL,
2002, p. 144)

Como o Yom Kipur é uma data do calendário judaico considerada “mais rígida”, sendo
um dia de expiação, há proibições que estão centradas no trabalho e no consumo alimentar dos
indivíduos. Há a abstinência de todo o prazer e de questões físicas, como: lavar-se e tomar
banho, untar o corpo, usar sapatos de couro, jóias, manter relações sexuais. É um momento por
eles considerado como “o zerar o ano”. Quando um judeu participa, ele afirma seu compromisso
ainda mais com a comunidade, com sua unidade com o divino. É um dia de "não fazer", porque
nele não se deve comer ou beber, tomar banho, passar perfumes ou cremes, nem vestir calçados
de couro. Lembro bem que a principal recomendação de Alessandro foi “você não deve usar
nada de couro” e seguiu advertendo “não poderá anotar nada, nem fazer imagens”. Coloquei
fortemente em minhas anotações, em grifos, para que eu pudesse adequar-me ao espaço e
92

vivenciar aqueles preciosos momentos de análise do outro. Eu estava exausta só de olhar os


movimentos, as repetições e a falta de comida. Confesso que estava muito entristecida com toda
restrição e querendo que “aquilo tudo acabasse logo”. A cerimâonia é muito intensa. Eu estava
exausta. Os cânticos embora belos, seguem o ritmo pausado de uma leitura enfadonha e
repetitiva. São mantras ditos rapidamente por diversas vezes, falando de passagens históricas
do povo judeu, frases de expiação dos pecados, súplicas, humilhação dohomem perante Deus,
mensagens teológicas e morais. As repetições exigidas pelo ritual me causavam cansaço físico
e psíquico, me deixando exausta. Ao tempo em que registrava que homens e mulheres, com
mais idade, estavam dispostos e aparentemente felizes, suplicavam para ter seus nomes inscritos
no livro da vida por mais um ano com cânticos e orações em tom elevado, sem cessar.
A celebração foi encerrada por Alessandro com a repetição coletiva do versículo "O
Senhor é nosso Deus" por longas sete vezes, em seguida houve a dispersão dos participantes,
dava para perceber que alguns foram para casa e não voltaram para a finalização do Yom
Kipur, eu contei uma baixa do início para o fim da cerimônia de cinco pessoas no total de
participantes. Percebi também que, nesses momentos de festividade de calendário obrigatório,
os indivíduos discordam entre si mais do que em outros momentos de festejos na comunidade.
Entendo que nesses momentos eles querem dizer o que de fato é “ser judeu” e de “que forma
age um judeu”, mostrando assim que a identidade não é um fenômeno estático, mas sim
dinâmico e circunstancial, isso faz parte do mecanismo que eles criaram para a legitimação
identitária.
Ao analisar essas festividades posso perceber que no judaísmo há uma noção muito
intensa de separar e delimitar o tempo, de inserir um cuidado especial com as preces e uma
ideia de intensificar os momentos como a separação e organização do cosmo, são valores
absolutos e há uma exigência no cumprimento. Portanto, essas festividades terminam sendo
um grande momento das comunidades em sentir-se “mais judaicas”, pois há uma intensidade
no cumprir os anseios da coletividade no manter os sinais que demarcam o sentido de “ser
judeu”.

4.1.3 Shabat

Originou-se do relato da Bíblia no qual se lê que Deus fez o mundo em seis dias e no
sétimo descansou (GUTIN; BANK, 2004).
93

O shabat é um rito em que os judeus comemoram como o dia sagrado (das 18 h da sexta
às 18 h do sábado) para entrar em uma nova semana. É um dos mais antigos rituais do judaísmo,
de grande valor religioso e cultural, o shabat é especial por ser um dia de consagração e guarda.
No que diz respeito ao caráter de guarda do shabat, no relato bíblico encontra-se referências ao
imperativo de se definir o que constitui trabalho, uma vez que neste dia é proibido trabalhar. É
preciso lembrar que no judaísmo muitos preceitos são cumpridos no ambiente doméstico, a
exemplo do shabat, período que corresponde ao pôr-do-sol da sexta feira ao pôr-do-sol do
sábado, dia de descanso que representa o sétimo dia do Gênesis, após o sexto dia de criação. O
shabat é marcado por três refeições festivas e uma série de restrições, somando trinta e nove
atividades proibidas37, e as refeições especiais são feitas em família.
As comunidades judaicas campinenses na realização de shabat começam com o
acendimento das velas, conforme os preceitos judaicos. Sabe-se que na época em que as casas
eram iluminadas apenas pela luz dos candelabros, este ritual garantia claridade durante o
descanso semanal.
Nas comunidades de neófitos de Campina Grande o shabat ocorre todas as sextas-feiras
e aos sábados. Quanto ao horário as comunidades modificam de acordo com seus membros e
suas ocupações. Na comunidade Branca Dias, o shabat ocorre a partir de cânticos e da leitura
em hebraico da Torá proferida por Aldrey, muitos shabats da Branca Dias são transmitidos ao
vivo, seja pelo instagram ou facebook, independente da pandemia da covid-19. Acredito que
essa é a forma encontrada por eles para que possam ser vistos em suas celebrações por Gilberto
Ventura, rabino responsável pelo projeto Sinagoga Sem Fronteiras que a comunidade está
agregada.
A comunidade Amigos da Torah realiza o shabat às 19 h devido ao número de membros
que são trabalhadores do comércio local de Campina Grande, inviabilizando as preces e
cânticos antes do horário das sete da noite. Logo que chegam, as pessoas acomodam-se nas
cadeiras brancas de plástico dispostas diante da Arca Sagrada, que contém a torá. Sobre o shabat
na Amigos da Torah em visita feita a comunidade em 2008, Anita Novinsky relatou,

Um garoto, filho de Davi Meneses, retirou do armário a pequena e pobrezinha Tora e leu as
escrituras em hebraico, cantando e cumprindo o ritual do shabat. Todos acompanhavam
comovidos e compenetrados. Foi um shabat tipicamente brasileiro, mas marrano, naquela sala

37
São trinta e nove proibições. Dentre elas, abater, retirar pele de animal morto, preparar couro, acender ou apagar
fogo, ou seja, há no Shabat a proibição de realizar as tarefas que destoam da ideia de guardar o dia santo, dia do
senhor. Maiores informações poderão ser obtidas em: https://www.conib.org.br/.
94

improvisada, com uma mezuzá na porta, que cada adulto e criança beijava ao entrar, foi um
shabat em pleno sertão da Paraíba, onde centenas de pessoas ansiosas buscavam saber quem
eram, encontrando nessa busca um novo sentido para a vida (NOVINSKY, 2008, p. 471)

Na comunidade Maguen David, o shabat ocorre geralmente a partir das seis horas da
noite, o movimento começa no salão principal, onde encontramos a mesa redonda, cadeiras
brancas distribuídas ao redor da mesa, lugar que as reuniões da comunidade acontecem, lugar
também em que a comunidade aguarda a chegada do líder Alessandro antes do início das
atividades na sinagoga.
Em uma de nossas conversas Alessandro lembrou de sua infância e relatou, “minha
infância no interior de Pernambuco era marcada por uma forte identidade judaica que durante
gerações foi transmitida por minha avó materna aos seus descendentes. Nas sextas-feiras
enchiam-se a casa de pessoas e havia uma grande festa”. Penso que a festa mencionada por
Alessandro era a guarda imprescindível da sexta-feira a partir das 18 h até o sábado no mesmo
horário quando todo judeu celebrava o seu shabat, “uma festa santa”. O shabat na comunidade
Maguen David, é um ritual religioso que busca, através da simbologia, um caminho de
comunicação com o sagrado. Nele existe uma sequência padronizada de ações, de palavras
professadas em hebraico pelo líder reproduzida pelos sujeitos de forma atenta e conectada,
dando um sentido de pertencimento a partir das práticas (re)construídas.
O shabat é afirmado a partir dos costumes e tradições do povo judeu, vivido pelas
comunidades em Campina Grande mantendo e fazendo renascer a identidade de um grupo que,
no caso dos judeus, passou por diversas adversidades em meio a perseguições e mudanças ao
longo do tempo. É para os judeus a representação da perfeição de Deus, onde tendo criado o
universo observou que tudo estava perfeito, e assim cessou toda sua obra, há o fortalecimento
de que o shabat é o descanso. Como afirmam Bonder e Sorj, “shabat entende a pausa como
fundamental para a saúde de tudo que é vivo. A noite é pausa, o inverno é pausa, mesmo a
morte é pausa. Onde não há pausa, a vida lentamente se extingue”. (2001. p. 89).
Na comunidade Beit Israel, o shabat ocorre a partir das seis horas da noite na parte de
trás da casa da Ana Elya. Há um candelabro de sete velas, uma grande mesa e a distribuição de
cadeiras de acordo com o número de participantes que para o shabat são cerca de 15/20 pessoas,
entre homens e mulheres. Nos encontros do shabat não vejo participação dos jovens, nem
mesmo do Davi, filho jovem da Ana e do Jessé.
Na sinagoga Beit Israel as mulheres seguem uma tabela estabelecida e afixada em um
quadro de informes para manutenção e organização da sinagoga. Esta tabela é produzida por
95

Ana Elya que distribui as tarefas femininas para a produção da challah no shabat, o acendimento
das velas na sinagoga, dentre outras tarefas distribuídas semanalmente. A divisão de atividades
prescritas às mulheres por Ana Elya indica quem serão as responsáveis pela challah, delegando
responsabilidade às mais jovens para o acendimento das velas para o shabat e para a ajuda na
limpeza da sinagoga. Para as mulheres da comunidade Beit Israel, capitaneadas por Ana Elya,
a judia deve exercer a função de “reprodutora cultural”, pois ela é a responsável pela
transmissão oral das “histórias familiares” e pela “vigilância alimentar”.
Vale ressaltar que no shabat há uma quebra das atividades do cotidiano (é visto como o
momento/dia de descanso, sem exercício de atividades, assim como seguem os adventistas que
guardam como sagrado), onde há a valorização do convívio social, em que a família, os amigos
e a comunidade em geral devem estar em maior interação, sintonia com o Eterno.
O autor Elias Lipiner afirma a importância do shabat,

Na mais remota tradição judaica o sábado, como dia destinado à regeneração física e espiritual
do homem, ocupa um lugar de grande destaque. A prescrição do repouso sabático erigiu-se num
dos mandamentos do próprio Decálogo. Não admira, pois, que a observância desse preceito
constitui um dos costumes heréticos mais visados nas denúncias e confissões (LIPINER, 1969,
p. 70)

No shabat, é comum as mulheres prepararem a chalá, o pão trançado. Ana Elya é


“especialista em chalá”, afirma Jessé. Ana produz de forma artesanal os quitutes para o shabat,
incluindo o pão trançado e demais guloseimas.
As chamas do shabat representam a segurança de uma refeição iluminada. Em quase
todas as comunidades pesquisadas na tese, é pacífico o costume conhecido no judaísmo de que
é a mulher a responsável por acender as velas do shabat. Boa parte das mulheres na comunidade
Beit Israel não trabalham fora de casa, sobretudo as mais velhas, como Leda e Ana Elya, com
o tempo que sobra dedicam-se ao trabalho na comunidade, inclusive o acendimento das velas
do shabat e a organização dos festejos. Há de fato no judaísmo o entendimento que o dever de
acender as velas está relacionado à casa judaica e a mulher, esta tradição associou-se à figura
feminina e é seguida na maioria das comunidades pesquisadas, exceto na comunidade dos
caraítas. E sobre essa divergência é importante mencionar a fala de Pedro Agra afirma em sua
descrição sobre o shabat caraíta o que constato sobre a diversidade campinense acerca das
práticas judaicas dos caraítas nos shabats, na verdade o que vejo é um envolvimento espiritual
não fundamentado em canções e costumes judaicos, mas sim nas leis judaicas, nas suas
96

reinterpretações, de modo que torna particular o modo de viver o judaísmo na comunidade


caraita campinense.

Nós acreditamos no que está escrito no texto, pra você entender melhor se for nos termos judaicos
na “Micrá” que é a biblia em hebraico, certo? Micrá significa os textos né, então nós acreditamos
como Moisés acreditava. Então dizer hoje que nós, bom, nós temos práticas judaicas mas nós
não aceitamos que a tradição como hoje grande parte do judaismo no Brasil e no mundo que a
tradição é colocada muitas vezes a frente da lei. Vamos dar um exemplo, no Shabat, as judias
elas estão lá e tem o hábito de acender velas, fazem uma prece, uma benção né, e colocam como
se fosse o eterno que tivesse ordenado acender velas antes do shabat, não é no shabat que essas
velas são acessas. Então nós não acendemos as velas, os caraítas não acendem porque nós não
lemos nas escrituras textos para confirmar essa tradição.

Ana Elya, da comunidade Beit Israel observa que o shabat é experenciado como o dia
de descanso semanal no judaísmo, e o mesmo deve ser vivido de forma obrigatória por todo
judeu. Ela afirma que é um importante momento para reunir a comunidade e celebrar o eterno
com alegria. Ana observa que:

Por amor a Torá e por amor do serviço divino, dos profetas e destes dias de descanso que nos
deste, que seja eterno o nosso D’us, para santificação e repouso, para glória e beleza. Por tudo
isto eterno, D’us nosso, agradecemos-te e te bendizemos. Que seja bendito o teu nome pela boca
de todo ser vivo continuamente e para sempre. Bendito seja tu, eterno, e santificado seja o shabat.

A celebração do shabat da comunidade Beit Israel acontece na casa de Ana Elya e Jessé,
que serve atualmente como sede para os encontros da comunidade. Há a preservação nessa
comunidade do ambiente doméstico para o culto, para isso podemos ter duas explicações, a
primeira pode ser essa atitude um resultado do que viveram os judeus na diáspora, quando
mudaram o local para a Sinagoga e para dentro do lar, sendo os rituais conduzidos pelo chefe
da casa, bem como por sua esposa e outros membros da família, ou pelo fato da condição
financeira não permitir que a comunidade se reúna em um ambiente próprio e/ou alugado.
Na comunidade Beit Israel, temos aproximadamente de 25 a 30 pessoas que estão
frequentando atualmente a comunidade, mas em tempos de distanciamento social 38 esse
número foi reduzido para cerca de 20 pessoas (Ver imagem 13) que atualmente frequentam o
shabat na casa de Ana Elya, entre homens e mulheres, adultos e crianças. Nos eventos e reuniões
da comunidade Beit Israel todos os homens cobrem a cabeça com o quipá, enquanto as mulheres

38
O distanciamento social é vivido no Brasil e no mundo durante o ano de 2020, devido à grande crise sanitária
da covid-19. No Brasil temos o primeiro caso registrado em 17 de março de 2020. A comunidade então decidiu
retornar no mês de agosto os encontros presenciais, que estavam suspensos desde março, porém com o número
reduzido de pessoas, e destacando as normas de prevenção ao vírus.
97

usam vestidos longos ou saias longas, algumas (as mais velhas) cobrem os cabelos com algum
lenço (Tichel), que é o código exigido no judaísmo para as mulheres casadas, que elas cubram
os cabelos, em conformidade com o código de modéstia conhecido como tzniut.
Geertz ([1973] 1989), em sua análise sobre a religião como sistema simbólico, sugere
que a religião, a exemplo de outros sistemas, tem a capacidade de servir, para um individuo ou
grupo, como fonte de concepções do mundo, de si próprio e de suas relações, construindo
disposições e motivações, um modo de ver e agir no mundo. A religião fornece um modelo para
a atitude, definindo uma imagem plausível para a ordem cósmica, um conjunto de concepções
metafísicas e físicas da existência.
Dessa forma, o ideal de vida judaica, construído por cada judeu e judia em suas relações
comunitárias e “externas”, funciona como um devir que caracteriza certos percursos cotidianos
para se tornar um “bom judeu”. Sobre um dos momentos de shabat vividos na comunidade
Maguen David, quando Kiko ainda frequentava a comunidade ele mencionou, “nos dias de hoje
você anda no sertão, eu sou de Boa Vista aqui pertinho de Campina Grande, e lá mesmo eu vejo
os costumes das famílias, às vezes essas famílias nem sabem porque nem o motivo, mas os
costumes são puramente judaicos...”. Alessandro completou a fala do Kiko e disse, “Meu pai
e minha mãe não cultuavam o sábado, mas tinham algumas regras que se aplicavam ao sábado,
por exemplo eles faziam uma refeição especial não se sabia porque, só depois de adulto
entendi”. Sobre a identidade judaica e a permanência de vínculos, costumes e afetos, Sorj
escreve:

Para os judeus modernos a identidade judaica apresenta as seguintes características: é uma


identidade a tempo parcial, ou seja, a nível consciente a identidade judaica aparece só
circunstancialmente; ela é modular, isto é, a tradição judaica transforma-se num Lego onde cada
um reconstrói seu modelo personalizado; ela é mutante, acompanhando as permanentes
transformações da sociedade; ela é dependente do ciclo de vida, das relações intergeracionais e
de passagens na vida pessoal (SORJ, 2004, p.7).

As orações e os cânticos são celebrados na Beit Israel numa grande mesa e os membros
presentes celebram o dia do descanso. As canções judaicas concedem uma unidade na
comunidade, vejo homens e mulheres cantando e empolgados na entonação do hebraico. Logo
após as orações que terminam geralmente às 21 h os membros reúnem-se para celebrar com
alimentos, no cuidado casher, das leis dietéticas, o encontro. No entanto, quase sempre após
eventos, e incluo o shabat em um desses, devido ao agrupamento de pessoas, é servida uma
refeição, como se fosse um jantar, com uma diversidade de pratos, desde os típicos da culinária
98

judaica (o pão trançado de Ana Elya é um sucesso!), passando por comidas do nordeste
brasileiro, como bolos e minisanduíches. Este momento tem um importante efeito socializador,
havendo a integração entre os membros e visitantes, descontração, planos para próximos
encontros e festividades. É de fato um momento que percebo uma maior aproximação entre os
presentes. Eu creio que toda essa festividade tem sua significativa importância, mas não nos
trazem por si só esperança aos grupos, que de fato necessitam da comprovação de sua existência
e de seu reconhecimento advindos do sistema judaico estabelecido.
Sempre que visitei as comunidades onde havia uma festividade ou simplesmente o
shabat, eu era anunciada como uma convidada especial, a comunicação sempre era gerada pelo
líder as demais pessoas da comunidade, eu me sentia especial de fato e aproveitava o momento
para observar as relações e o cotidiano estabelecido em cada comunidade. Queria entender a
finalidade de cada um, sobretudo do líder e seu preparo para integrar os membros da
comunidade em busca de viver o judaísmo.

Imagem 13 - Shabat na comunidade Beit Israel em Campina Grande/PB

Fonte: Facebook Ana Elya, dezembro de 2020.


99

Um dos sinais diacríticos mais importantes que demarcam fronteiras identitárias no


ritual do shabat entre os grupos campinenses são as chamadas “leis dietéticas”. Elas variam de
uma comunidade para outra, embora certas proibições pareçam produzir consensos em todos
os grupos contemplados no trabalho, levando-me a crer que a diferenciação proposital de
códigos alimentares que constituem uma grande fronteira e disciplina a existência de judeus e
não judeus no mundo. Lembro que em minha ida a sede do Sinagoga Sem Fronteiras em janeiro
de 2019, percebi a preocupação com a alimentação através da fala de um dos jovens que
participava do shabat, ele pertencia a comunidade Branca Dias em Campina Grande e esboçou,
“a minha mãe tem o cuidado de comprar peixes que possuem escamas e nadadeiras e que podem
ser consumidos pelo judeu. Quando não posso comer peixe fresco, eu prefiro o enlatado”.
Existem laços de afeto, de pertença e de fé, sem dúvida alguma, que permitem que essas
emoções visíveis e sensíveis sirvam como estruturas de poder e de normatização.
Sobre as leis dietéticas lembro da minha conversa com Pedro Agra, caraíta, e ele de
forma muito espontânea descreveu:

Nós temos que seguir por exemplo tudo o que a Torá recomenda, nós devemos comer, a carne
tem que ser de procedência judaica, é o que se recomenda, certo? É o que se recomenda. Eu
como carne, eu procuro a procedência do açougue e do animal, a forma que ele foi abatido, temos
que saber a forma do abate, sabemos que os açougues árabes aqui no Brasil eles têm uma prática
muito identica ao judeu, né. Do abate do animal, só é diferente que eles fazem uma prece e
direciona ao Deus que é Alá, né. Nós oramos em outro nome, o caraíta ora no nome né. Mas nós
em nossas orações nós invocamos o nome do eterno.

O alimento, de fato, é um elemento purificador da experiência identitária judaica, e


podemos encontrar essa experiência purificadora na diversidade encontrada nas comunidades
campinenses. O fator principal para aqueles que não conseguem ter acesso a dieta alimentar
casher, onde os alimentos são certificados e menos suscetíveis a contaminações, além de serem
menos agrotóxicos e conservantes, é adaptar os alimentos a sua realidade financeira, e de fato
observei durante a minha pesquisa ocorrer em diversas comunidades, necessariamente o mais
importante era o consumo de carne que deve seguir uma série de regras tanto na produção
quanto no preparo dos pratos. Além disso, a carne não pode ser misturada em nenhum momento
com leite e derivados, nem durante o armazenamento, os neófitos judeus campinenses seguem
realmente o passo a passo quanto a ingestão da carne. Para ser permitida nessa dieta, a carne
deve ser oriunda de um animal ruminante. Aves como frango, peru, ganso e pato também são
aceitas, todos os ruminantes de casco fendido, aves comerciais e peixes de escamas e nadadeiras
100

são animais que podem entrar no programa casher, mas as de rapina - ou seja, que se alimentam
de outros animais - não são permitidas. Como nos disse Pedro Agra em uma de nossas
conversas;

A Tora proíbe comer sangue, mesmo que seja de animais casher, pois simboliza a vida. Para que
a proibição não seja violada é necessário que nós judeus aos prepararmos nossos alimentos utilize
método de tornar casher, adaptando o alimento, no qual a carne salgada é deixada de molho
tornando possível a ingestão.

Ana Elya é a grande responsável em sua comunidade Beit Israel pelos quitutes judaicos
presentes nas festividades e após o shabat. Ana faz questão de mostrar o preparo da comida
casher, em uma de minhas visitas a casa dela lembro que ela mostrou a massa do pão, do
macarrão, os enlatados, o azeite, dentre outros, observando sempre a marca “alimentação
casher”. Algumas mulheres que frequentam a comunidade Beit Israel participam auxiliando
ativamente Ana Elya nas atividades que compõem o cotidiano da sinagoga, mostrando a força
feminina no agrupamento dos membros por meio de seus serviços religiosos e do preparo
alimentar. Ana e sua família passam a constituir dentro do lar códigos de comportamento e de
vida doméstica, evidenciados especialmente em regras de alimentação advindos dos preceitos
judaicos. Na hora de fazer as compras de supermercado, Ana tem o cuidado de verificar o rótulo
dos alimentos e, ao constatar que os mesmos possuem o certificado casher, efetua a compra,
garantindo assim a dieta alimentar judaica em sua casa. É o que ocorre com outros adeptos das
comunidades judaicas pesquisadas em Campina Grande, a exemplo de Alessandro Magno
(Maguen David). Sobre as obrigações do processo ritual, Turner nos diz: “o sujeito ritual [...]
tem direitos e obrigações perante os outros de tipo claramente definido e estrutural, esperando-
se que se comporte com certas normas costumeiras e padrões éticos” ([1969] 1974, p. 117).
As mulheres que trabalham com a cozinha judaica vivenciam recordações e memórias
que foram espalhadas pelo mundo junto das diásporas. Ciente dessa importante obrigação,
Jacqueline Ventura, a “rabanit Jacque”, esposa do rabino Gilberto Ventura, possui uma página
nas redes sociais (instagram, facebook e um blog) denominada “Culinária Diversificada
brasileira casher”, onde lança inúmeras receitas e ministra cursos da culinária judaica. Ela
esteve aqui em João Pessoa em 2018, no espaço da loja Camicado, no principal Shopping da
cidade, reunindo cerca de 50 pessoas das comunidades judaicas de João Pessoa e Campina
Grande, ministrando um curso sobre comidas casher, entre cânticos e petiscos casher, muitos
se alegravam, comiam, cantavam e dançavam junto ao rabino e sua esposa, caracterizo o
101

momento como uma vivencia das relações ora harmoniosas, ora conflitantes, trazendo um sinal
de unidade nas comunidades Bnei Anussim “do lado de cá”. Nesse processo de construção do
judaísmo no projeto Sinagoga Sem Fronteiras, Ventura e a sua esposa têm a responsabilidade
de informar, ensinar, aconselhar, orientar e principalmente acompanhar as diferentes etapas do
“ser judeu” nas comunidades Bnei Anussim. É importante salientar que as trajetórias desses
indivíduos tornaram-se parte do contexto histórico da formação da comunidade Branca Dias e
da fragmentação da comunidade Maguen David. Nesse sentido, a história de Ventura e sua
esposa entrecruza-se com a história das comunidades judaicas campinenses.
As famílias de Ana Elya e de Ana Cariry estão constantemente em vigilância em relação
aos preceitos considerados corretos e “mais tradicionais” na concepção de sua comunidade
religiosa. Esta vigilância é intensa por se tratar de um processo de iniciação. Eles precisam ser
aceitos ritualmente por uma comunidade legitimada de judeus. Hervieu-Léger (1999) destaca
que as histórias dos neófitos se estruturam sobre uma oposição binária entre um antes, descrito
como vazio de sentidos ou marcado pela desordem, e um depois, vivido em ordem e plenitude.
A busca pela comida casher é reveladora de um trabalho árduo de persuasão e
convencimento aos demais membros da comunidade, procurando incentivar a busca e ingestão
de alimentos “puros” que produzem a ligação mais próxima com os costumes dos estabelecidos,
e, sobretudo formando uma fantástica doação de tempo na produção dos alimentos e trabalho
para a comunidade.
O que pudemos compreender neste capítulo é que a mobilização em prol do retorno dos
Bnei Anussim a sua identidade étnico-religiosa ancestral, os homens assumem o protagonismo
da história e são os “portadores da cultura”, ficando as mulheres como “submissas e portadoras
dos serviços domésticos e da sinagoga”. Como nos afirma Novinsky, “as mulheres se inserem
no universo secreto marrano, podendo ser consideradas um foco da resistência ao catolicismo”
(2015, p. 156). Até o momento atual são as mulheres judias que possuem a tarefa de agregar no
espaço interno das sinagogas, seja nas festividades, seja na criação dos filhos e filhas, tarefa
essa que se estende para o interior das sinagogas. Em Campina Grande não é diferente.
Cabe as mulheres a domesticidade dos costumes judaicos além da organização do local
(sinagoga) onde ocorrem os encontros e festividades, percebemos o cuidado com a organização
e o preparo dos alimentos através das comemorações realizadas na Beit Israel, Ana Elya sempre
muito caprichosa e responsável por fortalecer a identidade judaica no ambiente doméstico, bem
como em sua comunidade. As festividades são importantes comemorações para os membros da
102

comunidade Beit Israel, que seguem empolgados por Ana e Jessé. Ana recentemente falou sobre
a organização das festividades na Sinagoga/comunidade, pois ela é a grande responsável não
apenas pela alimentação, e sim por toda distribuição da mesa, pelo acendimento das velas e pela
limpeza de modo geral do lugar:

Nem todos da nossa comunidade participam das festas, ajudam. Mas eu e Jessé, nós
participamos, ajudamos, estamos fazendo a nossa parte, podemos até errar em algo dentro do
ritual, e já erramos. Mas aí quando eu estou com alguma dúvida eu ligo para o rabino Jacó
Oliveira e sua esposa, daí eu pergunto e ele nos corrige, então, aprendemos e na próxima fazemos
direitinho.

A preparação da mesa, dos alimentos, pães, farofa, banana, cuscuz e outras iguarias
nordestinas ficam ao encargo das mulheres, na comunidade Beit Israel. Mas percebi que em
todas as comunidades pesquisadas a influência feminina é ativa desde o pensar as dietas
alimentares e os afazeres da sinagoga, até mesmo na preparação da celebração, e após o shabat,
que para o judeu é a comemoração do seu elo de ligação com o eterno, e consequentemente,
com o outro. A identidade se constrói de modo consistente a partir de um dado contexto social,
cultural e histórico, o qual define um estilo de vida conforme a identidade construída, é na
observância dos preceitos judaicos e na ressignificação deles em seu cotidiano que os Bnei
Anussim campinenses compreendem chegar mais próximos da relação formal com o judaísmo
estabelecido.

4.1.4 Sucot (Festa dos Tabernáculos ou Cabanas)

Dentre as três grandes festas comandadas por Deus, a Festa dos Tabernáculos é a de
maior significado profético. São dias festivos onde os hebreus segundo o preceito bíblico,
devem se alegrar na presença de Deus; morando em tendas em recordação ao tempo em que
após a libertação do Egito, viveram durante 40 anos como peregrinos do deserto. A festividade
começa ao pôr do sol de Domingo, e termina ao anoitecer de Domingo. É comemorada no
décimo-quinto dia do mês de Tishri, duas semanas após Rosh Hashanah e, usualmente, é
realizada no final do mês de setembro ou princípio de outubro. Em 2020, a festa foi
comemorada do pôr do sol de 04 de outubro e finalizada no anoitecer de 11 de outubro de 2020,
durando sete dias.
Para realização da festividade é importante que a cabana (sucá) tenha pelo menos 70×70
centímetros quadrados, podendo ser construída num quintal de uma casa ou numa varanda de
103

um apartamento. A cabana precisa de pelo menos três paredes e as paredes podem ser de
qualquer material, assim são sempre produzidas as cabanas das comunidades judaicas
campinenses. Mesmo que as pessoas da comunidade não tenham habilidades ou recursos para
montar sua sucá (cabana), é possível, usar a criatividade e a vontade, para os judeus o que é
importante é o cumprir a mitzvah com alegria, e isso os neófitos campinenses executam com
maestria.
Em 2020, durante sete dias a comunidade Beit Israel comemorou a Sucót na casa de
Ana Cariry (ver imagem 14), reunidos em uma cabana colorida, com folhas de palmeira,
produzida pelos próprios membros da comunidade, onde partilhavam os alimentos preparados
e servidos pelas mulheres da comunidade após as preces.
Lembro que em um dos momentos de Sucót que acompanhei em 2017 na comunidade
Maguen David havia a seguinte prece proferida por todos que participavam do momento:
“Baruch Atá A-do-nai, E-lo-hê-nu Mêlech haolam, asher kideshánu bemitsvotav, vetsivánu al
netilat lulav”, que significa “Bendito és Tu, A-do-nai, nosso D’us, Rei do Universo, que nos
santificou com Seus mandamentos, e nos ordenou pegar o lulav”. Para as pessoas que estavam
presentes na festividade, sem dúvida, o momento constituía o sentir o puro judaísmo, deixava
de ser um sistema autônomo para se tornar um ponto comum de referência, o modelo contra o
qual as suas crenças e práticas judaicas eram medidas e referenciadas para outros
sujeitos/comunidades. Logo, é possível compreender que o “ser judeu” na atualidade implica
em escolhas e posicionamentos políticos, ideológicos e religiosos que qualificam as pessoas em
seus mais diferentes discursos e sistemas de representações, ao tempo que também podem
colocar essas pessoas em lugares a partir dos quais se situam em relação à sociedade e aos
grupos que as reconhecem e as distinguem.
104

Imagem 14 - A cabana (Sucá)

Fonte: Página do Facebook da Ana Cariry.

4.1.5 O Purim

O nome “Purim” vem da palavra hebraica “pur”, que significa “sorteio”. É para os
judeus a festa que comemora a salvação dos judeus do extermínio na Pérsia antiga, por volta de
450 A.E.C. (antes da Era Comum). Purim: festa judaica que comemora o fim do decreto de
aniquilação do povo judeu pelo rei da Pérsia (Gutin; Bank, 2004).
O Purim é celebrado todos os anos no 14º dia de Adar39 do calendário judaico. Começa
ao cair da noite do décimo quarto dia de Adar e vai até ao anoitecer do dia seguinte. Pela
tradição judaica, Haman, o conselheiro do rei Achashverosh (Assuero), convenceu o monarca

39
Adar é o último mês do ano religioso do calendário judaico, corresponde ao mês de fevereiro no calendário
cristão.
105

persa da cidade de Sushan (Susa) a exterminar os judeus. Em um sorteio (Pur), ficou


determinado que a matança começaria no dia 13 de Adar. O plano de extermínio foi abortado
com a intervenção da mulher de Achasverosh, a rainha Esther e seu parente Mordechai
(Mardoqueu), que até então mantinham em sigilo sua condição judaica40. Desde então, a festa
se realiza na data em que os judeus de Sushan venceram seus inimigos. Toda a passagem é
narrada na Meguilat Esther (Livro de Esther), lida durante as celebrações. Na comemoração do
Purim há o uso de fantasias e há uma grande comemoração entre os participantes (ver imagem
15) nas comunidades pesquisadas, exceto nos caraítas que não comemoram o Purim
festivamente.
A festividade é comemorada com misturas de cores, fantasias e comidas. Adultos e
crianças usam fantasias e se divertem jogando serpentinas e usando do momento para celebrar
o carnaval judaico ou simplesmente há o costume de se usar máscaras ou fantasias e encenar
peças baseadas na história de Ester. É uma festa judaica que comemora a salvação dos judeus
persas do plano de Hamã, para exterminá-los, no antigo Império Aquemênida tal como está
escrito no Livro de Ester, um dos livros do Tanach41. É um costume das comunidades na festa
de Purim ler e ouvir Meguilat Ester42.
Na comunidade Beit Israel bem como na Maguen David, os membros seguem as
orientações expostas para o período de Purim, cantando e lendo o livro sobre a história da rainha
Ester.
Em um de nossos encontros Ana Elya de forma muito alegre falou, “O Purim é o
momento em nossa comunidade alegre, de encontro com muito brilho, trocas de presente, onde
o eterno está feliz por nossa felicidade”. Ela e as demais mulheres da comunidade vivem o
momento do Purim com muita alegria e adereços.
Na comunidade Beit Israel havia detalhes nas instruções sobre a festividade que os
sujeitos vivem como uma devoção, tudo construído com muito zelo através da rede de
informações coletadas por intermédio das conversas que Ana Elya realizada com sua rede de

40
Maiores informações disponíveis em: https://www.conib.org.br/glossario/purim/.
41
Tanach é o conjunto principal de livros sagrados, sendo o mais próximo do que se pode chamar de uma Bíblia
judaica. O conteúdo é equivalente ao Antigo Testamento cristão, porém com outra divisão. Maiores informações
disponíveis em: https://legalsaber.com.br/tanach/
42
A Meguilá de Esther (meguilá significa “rolo” em hebraico) é uma das cinco meguilot que estão incluídas no
cânon bíblico. Maiores informações disponíveis em:
https://pt.chabad.org/holidays/purim/article_cdo/aid/3714697/jewish/A-Meguil-Ester.htm
106

influência junto a esposa do rabino Jacob ou com a esposa do rabino Moysés. O medo de errar
ronda a mente dos neoconversos da Beit Israel e o alinhamento especificava o posicionamento
de cada pessoa e a sua importância dentro da sinagoga como integrante responsável pela
manutenção da tradição judaica. É importante salientar que a codificação das diferenças entre
estabelecidos e outsiders seja uma suposta e distinta estrutura existente no judaísmo e
reverberada pela comunidade judaica israelense, sobretudo a que mantém o poder do estado, e
que dentro dessa ótica situa a uns em situação natural de inferioridade em relação a outros.
Como bem nos ensinou o autor Max Gluckman ([1958] 2010) acerca do conceito de situação
social. O ritual, assim, é um fenômeno diferente para cada sujeito posicionado antes, durante,
depois, dentro e fora da sua ocorrência.

Imagem 15 - Ana Elya, Leda e demais mulheres fantasiadas na festa do Purim em Campina Grande.

Fonte: Página do facebook da Ana Elya.

Ana Elya, Leda e as demais mulheres promovem à festa de Purim na comunidade. A


festa é observada um pouco antes da Páscoa. É no Purim que dizem recordar quem são os judeus
e o que querem ser efetivamente e simbolicamente aos outros, pois para elas o judaísmo só
permanece vivo por causa de suas festas e suas tradições. Para festa de Purim, Ana Elya e as
demais mulheres da comunidade Beit Israel (antes essas mulheres pertenciam a comunidade
Maguen David) organizam uma ceia com diversos pratos especiais e característicos da ceia de
Purim, sendo um dos favoritos as esfirras recheadas com sementes de uvas ou ameixas em
107

forma de triângulo, doces, a ornamentação sempre em destaque para as cores de Israel, azul e
branco (ver imagem 16). Há muito vinho e danças ao som de buzinas e batidas de palmas e pés,
além da troca de presentes que simboliza para os judeus união e retorno.
Imagem 16 - Comunidade Beit Israel na festa de Purim

Fonte: Página do facebook de Ana Elya.

As estratégias usadas pelas comunidades para vivenciar as festividades, a exemplo do


Purim, são parte do que de fato é o marranismo em tempos contemporâneos, a procura pela
integração dos grupos/comunidades. O Purim, bem como as demais festividades, são
fenômenos que resultam em estratégias que subsidiam o sistema de crenças dos Bnei Anussim
ao longo dos séculos, e estão presentes no imaginário da população nordestina, sendo datas
simbólicas vivenciadas no calendário judaico com muita intensidade pelas comunidades dos
neoconversos.
A comunidade Branca Dias organiza o Purim na sede da comunidade no bairro de Santa
Rosa (ver imagem 17), há a participação de parte dos membros, entre crianças e adultos, alguns
fantasiados para festejar o momento alegre de celebração do calendário judaico. Aldrey Ribeiro,
vice-presidente da sinagoga, o responsável espiritual da comunidade, que junto ao tio Antonio
Ribeiro celebra o momento fazendo referência a história da Rainha Ester, com uso da passagem
108

bíblica para explicar a importância do momento aos membros, conforme podemos visualizar
na imagem abaixo mencionada.
Outros costumes nos remetem a clara evidência da presença marcante dos costumes do
festejo do Purim presente também na forma da alimentação exposta nas festividades e no
cotidiano dos membros, a comunidade Branca Dias segue as orientações de Jacqueline Ventura,
esposa do rabino Ventura, que os lembram dos métodos de alimentação e de substituição de
produtos para dieta alimentar casher.
Imagem 17 - Membros da Comunidade Branca Dias em momento de celebração do Purim

Fonte: Página do Facebook da Comunidade Branca Dias, março de 2020.

Antecedendo o período da comemoração da festa de Purim, as comunidades Branca


Dias, Maguen David, Beit Israel unem-se para o recolhimento de alimentos que são doados as
instituições carentes de Campina Grande, pois nesse período eles acreditam ainda mais que a
generosidade com os mais necessitados é particularmente importante. Turner diz que, “os
indivíduos estruturalmente inferiores aspiram à superioridade simbólica estrutural no ritual”
(2013, p. 185). Para os judeus, no Purim há o agradecimento a D’us pelos milagres, pela
salvação, pelas maravilhas produzidas no mundo. Por isto, durante as rezas da Amidá (Shmone
Esre) e do Bircat Hamazon (bênção após uma refeição em que se comeu pão), adiciona-se o
109

trecho “Al Hanisim”. No dia 14 de Adar, por ser um dia de muita alegria, é proibido jejuar e
não se deve realizar trabalho desnecessário, nem é ocasião para lamentações e luto.
A festividade do Purim é alegre, cheia de cores, fantasias, máscaras e adornos, requer
momentos de maior barulho para a vizinhança, com descontração, brilho, serpertina, é para os
neoconversos de Campina Grande a comemoração, seguindo as tradições do calendário judaico,
da resistência judaica sob o domínio dos persas.

4.1.6 Pessach

A Pessach começa ao pôr do sol da sexta-feira no calendário do ano judaico e termina


ao anoitecer do Sábado. A Pessach é a festa que as comunidades judaicas comemoram o êxodo
dos judeus do Egito antigo, liderados por Moisés, e o surgimento de sua identidade como povo
e nação. A tradução literal do nome da festa é “passar por cima”, em referência à última das
dez pragas, à qual, segundo a tradição judaica, o faraó e o povo egípcio foram submetidos por
não libertar os judeus da escravidão43. Sobre o período da festividade da páscoa judaica, o
rabino Michel Schlesinger, da Confederação Israelita do Brasil (Conib) fala que é “a festa que
comemora a passagem do povo israelita da escravidão do Egito para a libertação da Terra
Prometida, através da travessia do Mar Vermelho.”44
É importante relatar que o modo como as festividades são organizadas nas comunidades,
aproximam-se dos rituais vividos e produzidos pelos rabinos estalebecidos que são os
interlocutores dos processos de conversão em Campina Grande, seja o Gilberto Ventura, o
Jacob de Oliveira ou o rabino Moysés Elmescany. Vale salientar ainda que as diferentes
gerações presentes nas comunidades campinenses possuem cada uma um modo específico de
ver e sentir o mundo e isso implica em novas interpretações, tendo em vista que as mudanças
decorrentes do dinamismo geracional, acompanham situações sociais, políticas, econômicas,
culturais, e estas estão longe de serem estáticas. Pude perceber no decorrer desses anos de
pesquisa junto as comunidades de neófitos de Campina Grande que a grande preocupação dos
sujeitos Bnei Anussim é ser judeu de verdade, acreditando eles que a pessoa não é judia por
simplesmente querer ser judeu, diferente do cristão que chega na igreja e hoje decidindo ser

43
Maiores informações sobre a Pessach (festa da páscoa judaica) disponíveis em:
https://www.conib.org.br/glossario/pessach/
44
Em entrevista concedida a BBC/Brasil em https://www.bbc.com/portuguese/geral-43578076
110

cristão, se torna cristão, mas ela é judia quando cumpre os preceitos da Torá, por amar O estado
de Israel e seu povo, por todos os rituais cumpridos, pela circuncisão dos homens, pelo Beit
Din para os que dele necessitam, chegando assim mais próximo do eterno. Assim, torna-se o
sentido de “Nação” presente nas festividades existentes no calendário judaico e consolidadas
nas comunidades campinenses.
Pelos costumes judaicos, e de fato as informações são seguidas pelas comunidades de
Campina Grande, é vedado comer alimentos fermentados e à base de farinha de trigo, como
forma de lembrar o que passaram os antepassados durante a saída do Egito. Cada um dos
alimentos servido no jantar da Pessach é disposto e consumido segundo formas e rituais
específicos, que incluem desde a ordem da ingestão de cada alimento bem como momentos de
bênçãos, agradecimentos e os pedidos.
A Páscoa ou Pessach, de acordo com a designação em hebraico, é a principal festa
doméstica da vida judaica. É a festa da liberdade, comemorativa da libertação de Israel
relativamente à servidão egípcia. A festividade tem como um dos principais alimentos o matzot,
pão ázimo, um tipo de pão assado sem fermento, feito de farinha de trigo e água, comida
tradicional da Pessach (ver imagem 18). As pessoas da comunidade Beit Israel encomendam
anualmente o pão ázimo (casher) para de maneira coletiva festejarem a Pessach, junto a
degustação de vinho casher, ovos e folhas que são os demais alimentos comuns e presentes na
mesa partilhados no tempo da páscoa judaica.
111

Imagem 18. Matzov (pão ázimo) presente na mesa da Pessach.

Fonte: Página do facebook da Ana Elya, 28/02/2021.

As mulheres da comunidade Beit Israel encabeçadas por Ana Elya são responsáveis pelo
preparo dos alimentos servidos logo após a reunião da Pessach, onde comemoram lendo a Torá,
com a leitura mais uma vez da narrativa do êxodo e entoando salmos de louvor. O centro da
Páscoa judaica é o jantar, que provoca a unidade entre os participantes e permite reviver a
solidariedade do povo judeu.
Na Pessach que acompanhei na comunidade Maguen David em 2017, as crianças da
comunidade estavam bastante animadas e participavam cantando junto aos adultos preces ao
‘Eterno’. As canções entoadas por adultos e crianças nas festividades foram selecionadas pelo
líder/ rabino Alessandro Magno com o propósito de reforçar a identidade judaica, uma vez que
as canções falavam do judaísmo, narrando a sua história, suas questões de fé e resistência do
112

povo judeu. Há a exaltação da história dos judeus por ser a páscoa o período de reflexão sobre
a fuga do povo judeu que durante anos viveu como escravo no Egito, é a festa da libertação da
opressão egípcia.
Sobre esse sentimento de união, sentimento de comunidade tão presente nos espaços
sinagogais das comunidades campinenses, podemos destacar o conceito weberiano sobre os
grupos étnicos:

[...] aqueles grupos humanos que, em virtude de semelhanças no habitus externo ou nos
costumes, ou em ambos, ou em virtude de lembranças de colonização e migração nutrem uma
crença subjetiva na procedência comum, de tal modo que esta se torna importante para a
propagação de relações comunitárias, sendo indiferente se existe ou não uma comunidade de
sangue efetiva (WEBER, 1994, p. 270)

É no espaço denominado de “sinagoga”, onde ocorrem as reuniões dos grupos, que uma
função educacional é inserida há a defesa de uma obediência aos mandamentos divinos, e a
produção das relações comunitárias a partir dos comandos estabelecidos entre os sujeitos.
Nas comunidades abordadas na presente pesquisa de tese, o sagrado D’us 45 ou para
alguns denominado de Eterno, é evocado nos rituais como uma experiência concreta cotidiana,
vivenciada desde o acendimento de uma vela no shabat ou nas sete velas para hanukáh46, seja
na execução de uma prece, na leitura de uma passagem da Torá, na organização cotidiana da
alimentação etc.
As comunidades campinenses analisadas na presente tese buscam manter
particularidades identitárias, proximidade com a língua hebraica e a entonação dos cânticos.
Assim, no que se refere às questões relativas à identidade social e à dinâmica das associações,
a atuação dos grupos marranos nordestinos é no sentido de sua organização comunitária,
procurando preservar a cultura sefardita, e alcançar a reconstituição da identidade judaica que
na execução dos rituais é o objetivo de todos os membros das comunidades estudadas na
presente tese.
Como vimos, em Campina Grande, não existe uma uniformidade nas narrativas e ações
das “artes de se tornar judeu”. Em um pequeno contexto geográfico do interior paraibano,

45
D’us é uma das formas utilizadas por alguns judeus de língua portuguesa para se referirem a Deus sem citar seu
nome completo em respeito ao terceiro mandamento recebido por Moisés pelo qual Deus teria ordenado que seu
nome não fosse falado em vão. Passagem observada no livro de Êxodo (20,7) (EPSTEIN, 2009).
46
Festa judaica conhecida como o Festival das luzes. “Chanucá” é uma palavra hebraica que significa “dedicação”
ou “inauguração”. A primeira noite de Chanucá começa após o pôr do sol do 24º dia do mês judaico de Kislev
(EPSTEIN, 2009).
113

coexistem várias possibilidades existenciais definindo conflitos e consensos entre judeus,


“semi-religiosos” e leigos, aqueles que permanecem socioculturalmente identificados e
integrados à comunidade judaica sem grandes preocupações com alguma ortodoxia. Mesmo
que frequentem a sinagoga e participem dos shabats, alguns obedecem aos mizvots
(mandamentos), outras não querem, outros não conseguem (por questões financeiras).
Os neófitos (candidatos ao status de judeus reconhecidos), atuantes nas comunidades
abordadas na presente pesquisa, estrategicamente e, ao mesmo tempo, involuntariamente,
constroem uma série de habitus, tomando emprestado o conceito de Pierre Bourdieu (1989), da
“arte de se tornar judeu”. Assim, determinados padrões comportamentais identitários são
constituídos por meio de determinados modos de operar aprendidos para que os praticantes
possam agir ou reagir segundo as situações e os espaços sociais apresentados no momento das
ações. Apesar de tais ações estarem em constantes processos de atualização cotidiana, por meio
de controles irrefletidos da percepção e do preceito incorporado, elas sempre dão margem para
a criatividade dentro do campo de interações identitárias judaicas. O cotidiano inventivo 47
acionado pela própria alquimia dos conflitos existentes nas disposições incorporadas pelo
capital de conhecimento identitário judaico é o que potencializa a formação, dissolução e
reestruturação das fronteiras e dos fluxos culturais entre os grupos de judeus campinenses.

47
Esse lado inventivo dos judeus campinenses pode ter ligação, e eu creio que realmente possua com o que
Gorenstein (2005) e tantos outros enfatizaram, ao narrar em suas obras os “novos judeus no Brasil”, que as
dificuldades de comunicação, a proibição da manutenção de escolas, do ensino da Bíblia e do hebraico, e
principalmente o perigo mortal de ser descoberto pela Inquisição, limitaram as práticas judaicas. Dessas, restaram
poucas leis mantidas na memória, transmitidas pelos pais aos filhos. O judaísmo praticado no Brasil não era
ortodoxo, de religião letrada, passou a ter transmissão oral, “as escondidas”, vinda daqueles que ainda tinham
conhecimento das tradições. Vainfas e Souza (2000) lembram que a religião judaica, assim como o próprio
cristianismo, foi-se mesclando às religiões populares. Os cristãos-novos do século XVIII já eram cristãos há mais
de dois séculos, desde a conversão forçada e, portanto, não exatamente “novos”, comentam eles. Logo, eram
perseguidos não porque hereges da religião católica, mas principalmente porque tinham sangue judeu.
114

5 A COMUNIDADE MAGUEN DAVID ENTRE RABINOS, PROCESSOS DE


RECONHECIMENTO E CISÕES

Como vimos ao longo da tese, as comunidades de judeus conversos de Campina Grande


costumam estabelecer contatos com agentes que representam instituições judaicas nacionais e
internacionais em busca de reconhecimento étnico-religioso. Esses agentes geralmente são
rabinos mais abertos ao diálogo com grupos não reconhecidos oficialmente. Eles costumam
fazer visitas custeadas pelas comunidades, fazendo palestras sobre temas judaicos ou
orientações religiosas voltadas para processos de conversão. Tais visitas passam a influenciar
o cotidiano desses grupos, alterando pensamentos e comportamentos e provocando dissidências
locais que, em algumas situações, culminam em cisões e formação de novas comunidades. No
presente capítulo dedicaremos atenção descritiva e analítica às experiências de busca de
reconhecimento nacional e internacional da Maguen David em sua rede de contatos com rabinos
e instituições judaicas. Agentes externos foram decisivos para a desestabilização da Maguen
David, contribuindo para a formação das comunidades Branca Dias e Beit Israel.

5.1 As visitas dos rabinos Moysés Elmescany e Alexandre Leone

Diante da necessidade cada vez maior de concretizar o processo de conversão,


Alessandro Magno, apoiado por outros participantes da Maguen David, começa a estabelecer
contatos com rabinos. O primeiro sucesso nesse intento se deu relativamente por acaso. Em
2009, o rabino Moysés Elmescany, que pertenceu a Shavei Israel48, e hoje é vinculado ao Centro
Israelita do Pará – CIP, sediado em Belém do Pará, veio participar da abertura da exposição “A
chama que a Inquisição nunca conseguiu apagar”, apoiada pela Shavei Israel no período do
Carnaval (Purim) em Campina Grande. A Shavei Israel é uma organização não-governamental
sem fins lucrativos que tem como objetivo ajudar judeus em processos de acesso à cidadania
israelita. Tem sede em Tel Aviv e representações espalhadas pelo mundo todo, inclusive no
Recife. A exposição foi intermediada por David Salgado, jornalista campinense, amigo de

48
Shavei Israel é uma organização Judia sediada em Israel que quer alcançar descendentes e supostos descendentes
de Judeus à volta do Mundo e tem por meta fortalecer a ligação deles com Israel e o povo Judeu. Fundada por
Michael Freund nos anos de 1970, Shavei Israel localiza Judeus perdidos e comunidades Judias escondidas e
assiste-as com o regressar às suas raízes. Maiores informações em: https://www.shavei.org/pt-br/bnei-anusim-pt-
br/
115

Alessandro Magno, que durante três anos foi editor do jornal Amazônia judaica e fez parte, na
época, da programação das atividades religiosas organizadas pela Maguen David. Nesse tempo,
Alessandro buscava contatos fora de seu círculo social imediato para orientações pessoais
acerca de sua descendência judaica e processos de conversão conforme a Lei do Retorno de
Israel. A presença do rabino em Campina Grande foi uma excelente oportunidade para trazê-lo
à Maguen David para realização de cursos sobre os ensinamentos da Torá e os conjuntos de
liturgias que compõem a Halachot. O rabino, de posição mais próxima à tradição ortodoxa,
ficou impressionado com a força de vontade das pessoas em se tornarem judias mesmo sem a
comprovação de suas raízes sanguíneas.
Após a participação na exposição, Moysés passa a fazer visitas periódicas à
comunidade, financiadas pelo rateio de contribuições dos membros da Maguen David. Nas
vindas até Campina Grande, o rabino organiza uma série de “cursos” sobre o judaísmo com os
membros da Maguen David. Ele promove, nesse tempo, uma “avaliação” do modo como estão
sendo conduzidos os ensinamentos da lei hebraica na comunidade, observando como as
festividades estão sendo realizadas, a execução individual de determinados ritos judaicos, o
modo de preparo dos alimentos, o cumprimento dos jejuns e outros atos cotidianos que revelam
a vivência tradicional no judaísmo. O comportamento de Alessandro Magno, suas atitudes
como liderança comunitária, também são minunciosamente observadas. Em algumas das
visitas, o rabino trazia sua esposa Carolina Elmescany para que ela cuidasse das instruções às
mulheres da Maguen David, a lide doméstica, os cuidados com a alimentação e a educação dos
filhos.
Na época das visitas do rabino Moysés, o casal Ana Elya e Jessé fazia parte da
comunidade e relembram que em uma dessas visitas, ele expôs a necessidade de modificações
e reformas na casa alugada para que o ambiente pudesse se tornar, enfim uma sinagoga. Entre
as principais mudanças, destaca-se a inserção de uma divisória, um biombo, na sala em que
ocorriam as orações para que homens e mulheres não se misturassem durante a realização dos
ritos de preces, conforme ensinamentos presentes na Torá concretizados em antigos templos
judaicos. Geralmente, as sinagogas que dispõem de espaços separados por gêneros durante a
realização de preces e leituras dos livros sagrados são aquelas de tradição mais ortodoxa. Outra
indicação de Moysés dizia respeito à construção de uma mikvá para realização de batismos de
imersão na água dos judeus convertidos. Na sinagoga improvisada, a mikvá seria um tanque
que armazenaria água semelhante a uma piscina, que deveria ser instalada na parte externa da
116

casa, no terraço. A comunidade ansiava pelo reconhecimento da Maguen David como


“sinagoga” e essas modificações da estrutura da casa pareciam passos fundamentais para essa
conquista. Enquanto a divisória para separação do público masculino e feminino no ambiente
de orações foi rapidamente improvisada, a obra de instalação do tanque era mais dispendiosa e
exigia um tempo maior para execução.
Com o passar do tempo, as orientações do rabino Moysés Elmescany foram sendo
contrabalanceadas com a presença de outros rabinos na comunidade que apontavam a existência
de exageros “ortodoxos” na execução de determinados procedimentos para a conquista da
conversão ao judaísmo. Embora a Maguen David ainda estabelecesse contatos com Moysés,
suas visitas passaram a ser mais esporádicas, dando espaço à influência pedagógica de outros
rabinos como Alexandre Leone, da comunidade Bnei Chalutzim de Alphaville, São Paulo. O
rabino paulistano intensificou sua aproximação e orientações à comunidade entre os anos 2010
e 2015.
Alexandre é, entre outras coisas, professor do curso de Teologia do Centro Universitário
Salesiano São Paulo, sendo um importante pesquisador dos movimentos judaicos latino-
americanos, tendo uma linha mais progressista de atuação. Alessandro tomou conhecimento do
rabino Alexandre Leone por meio das redes sociais, sobretudo Facebook. Na página do rabino,
havia publicações voltadas para a defesa do pluralismo, o que chamava atenção de Alessandro,
que estava em busca de um líder religioso mais aberto ao acolhimento de um grupo judeu ainda
não reconhecido pelo Estado de Israel. Os encontros da comunidade Maguen David com
Alexandre foram durante muito tempo foram estabelecidos via Skype e, por duas vezes,
presencialmente em visitas que o rabino fez à Sinagoga de Olinda, no período do Purim. A
vinda do rabino à Olinda se dava por convites de várias comunidades marranas estabelecidas
em Pernambuco, Paraíba, Ceará e Alagoas para ministrar um curso de “Introdução ao
Judaísmo”, um “passo” para o estabelecimento de um tribunal rabínico (Beit Din) instalado
para julgar processos de conversão na região Nordeste. Durante o Purim de 2015, um rabino
chamado Gilberto Ventura observava atentamente a situação daquelas comunidades nordestinas
de novos conversos postulantes de um reconhecimento do Estado de Israel via mediadores
religiosos como Alexandre Leone. Pouco tempo depois desse evento, Ventura criaria o Projeto
Sinagoga Sem Fronteiras que influenciaria os cotidianos e as estratégias de conversão de muitas
comunidades religiosas como a Maguen David.
117

Em determinado momento dos contatos com Maguen David, ao saber das formas de
organização da comunidade, o rabino Alexandre, de visão mais progressista, estranhou a rigidez
dos ritos e chegou a comentar “nem os judeus ortodoxos de Israel se comportam dessa forma,
por que vocês precisam agir assim?”.
O surgimento do projeto Sinagoga Sem Fronteiras, capitaneado pelo rabino Ventura,
propondo uma abordagem mais ativa nos processos de conversão das comunidades judaicas
nordestinas, provocou o afastamento paulatino do rabino Alexandre das mediações entre os
grupos de novos conversos e as possibilidades de instalação de tribunais rabínicos para acesso
à Lei do Retorno.
Sendo judeus comprovadamente filhos de judeus, os rabinos Moysés e Alexandre se
aproximaram da Maguen David e do fenômeno do ressurgimento étnico marrano por espanto e
vontade de conhecer uma nova realidade. Dispostos a dar orientações sobre conhecimentos e
processos rituais judaicos, os dois se viram limitados, por convicção individual e/ou convenções
religiosas, a iniciar os procedimentos oficiais de conversão da comunidade. Fazendo parte de
alas conservadoras e liberais do judaísmo, os dois rabinos se relacionaram com os conversos de
Campina Grande sem instalar o tão sonhado Tribunal Rabínico previsto pela Lei do Retorno de
Israel, interesse maior dos participantes da Maguen David.

5.2 As visitas dos rabinos Gilberto Ventura e Haim Amsalem à Paraíba e a instalação de
um Tribunal Rabínico na Praia Ponta de Campina, em Cabedelo

O sonho continuado e frustrado de reconhecimento via processos de conversão ao


judaísmo, ancorados na Lei de Retorno de Israel, impulsionou à comunidade Maguen David a
procurar caminhos cada vez menos convencionais de acesso à oficialidade judaica. Rabinos
como Moysés Elmescany e Alexandre Leone, vinculados de diferentes modos ao status quo do
judaísmo estabelecido no Brasil, passaram a não mais satisfazer os desejos dos participantes da
comunidade de se verem reconhecidos pelo que são. Compreendendo que esse reconhecimento
da identidade judaica não viria por meio de rabinos atuantes no Brasil, famílias financeiramente
mais estruturadas como a de Ana Elya plenejava uma viagem à Israel. “Já estou vendo o valor
das passagens, alimentação, vestimenta e estadia em Israel. O processo por lá é mais fácil”,
comentou certa feita.
Entretanto, antes da família de Ana Elya confirmar a dispendiosa viagem para Israel,
ainda surgiria no Brasil uma “grande oportunidade” para que os membros da Maguen David
118

pudessem, finalmente, se tornar judeus. Os caminhos menos convencionais e, aparentemente,


mais práticos de se tornar judeu reconhecido foram oferecidos, de modo bastante enfático, pelo
rabino Gilberto Ventura e a proposta da Sinagoga Sem Fronteiras (SSF), sediada na cidade de
São Paulo. Como vimos no tópico anterior, o rabino participa de um Purim em Olinda no ano
de 2015 e se entusiasma com a possibilidade de formar uma rede de comunidades nordestinas
e de outras regiões do país interessadas em conhecer o judaísmo e em iniciar efetivamente
processos oficiais de conversão.
No primeiro tópico do quinto capítulo da presente tese, acompanharemos um pouco da
trajetória pessoal e religiosa do rabino Gilberto Ventura que tem buscado conhecer e intervir
sobre a realidade das comunidades de novos convertidos ao judaísmo no Nordeste brasileiro
desde os anos 2000. O que importa saber neste momento é que é a partir de 2015 que Ventura
se aproxima de vez da comunidade Maguen David, iniciando orientações práticas para
conversão dos integrantes que se mostrassem interessados em executar o “passo a passo” do
processo de reconhecimento nos termos da Lei do Retorno de Israel.
Antes mesmo do Purim realizado em Olinda em 2015, o rabino Gilberto Ventura havia
participado de outros encontros com as comunidades judaicas nordestinas, geralmente
organizados em frente à Sinagoga Kahal Zur, no centro do Recife. A vinda de Gilberto Ventura
e de sua esposa Jacqueline Ventura era sempre financiada pelas comunidades. Um dos
participantes dos referidos encontros, tempos depois, afirmou que essas viagens para Recife e
Olinda exigiram um grande sacrifício dos neoconversos da Paraíba: “Ventura estava querendo
que toda vez que estivesse em Recife nós ficássemos juntos, mas não levava em conta que
temos família, trabalho por aqui, então para mim não dava mais”.
Durante o período de maior aproximação entre o rabino Ventura e a Maguen David,
entre 2015 e 2017, houve várias comunicações virtuais e alguns encontros presenciais
direcionados aos preparativos para a comunidade adentrar oficialmente ao processo de
conversão ao judaísmo. Os processos de conversão são individuais; cada postulante “aprovado”
deve receber um certificado atestando sua descendência judaica sefardita. Embora a experiência
de avaliação seja individual, o rabino que julga o mérito do pretenso judeu observa como os
“candidatos” se comportam em rituais coletivos. Entre os preparativos para conversão
encaminhada pelo rabino Ventura, podemos destacar a realização de cursos temáticos,
passagem por banhos rituais e, para os homens, o procedimento da circuncisão. Também
contribuiu para o fortalecimento do processo que culminou no Beit Din a viagem que
119

Alessandro Magno fez à Israel, representando a comunidade Maguen David, para participação
no “Seminário Conexão”. Segundo informações da Confederação Israelita do Brasil (CONIB),
o Instituto de Estudos Sefaraditas e dos Anussim (ISAS) realizou entre 22 de fevereiro a 8 de
março de 2017 “um evento inédito em Israel: o primeiro Seminário Conexão, voltado às
lideranças de comunidades brasileiras de Bnei Anussim” (CONIB, 2017). O evento aconteceu
na sede do instituto no Netanya Academic College (ver imagem 19). O Seminário contou com
a participação de 19 representantes de várias partes do Brasil. Além de atividades voltadas à
formação “cidadã”, os participantes visitaram alguns rabinos e líderes israelenses e conheceram
o Parlamento (Knesset). “É importante que os participantes conheçam Israel mais a fundo. Por
isso, queremos prover uma carga de informações sobre o país e levá-los a conhecer os lugares
mais importantes”, explica Salomon Buzaglo, diretor do ISAS, à CONIB.
Acompanhando o desenvolvimento dos preparativos da comunidade ao longo de dois
anos, nos primeiros meses de 2017 o rabino Gilberto Ventura avaliou que a maioria dos
participantes da Maguen David estava preparada para o julgamento do Tribunal Rabínico. Para
abertura de um tribunal como esse, é necessário que os pretensos judeus estejam em sintonia
com as autoridades religiosas judaicas, aceitando cumprir ritos de conversão. A autoridade
religiosa que preside o Beit Din deve ser um rabino devidamente formado em escolas, sob os
auspícios do Grão-Rabinato do Estado de Israel.
Imagem 19 - Representantes das comunidades brasileiras Bnei Anussim no Seminário Conexão, em
Israel

Fonte: Página do Facebook de Alessandro Magno.


120

Por afinidade afetiva e ideológica, Ventura convida Haim Amsalem, rabino sefardita,
para presidir o Tribunal Rabínico junto às comunidades de neoconversos paraibanas. As
tratativas com Amsalem ocorriam há algum tempo, entre visitas de líderes das comunidades
Bnei Anussim ao estado de Israel, eventos no Brasil junto ao SSF. Desde os primeiros contatos,
Amsalem demonstrava familiaridade com o processo dos Bnei Anussim, sendo ele próprio um
“militante” da causa.
Nascido em 1959 em Oran, Argélia, o rabino Haim Amsalem se mudou com para Lyon,
França, onde ele viveu até os 11 anos de idade. Em 1970, a família partiu para Haifa, Israel. Lá,
ele se formou na Yeshivá Kisse Rahamim, sendo ordenado rabino em 1980, passando a servir
como Chefe da Yeshiva. No final dos anos 1980, foi nomeado como rabino da comunidade
judaica sefardita, um “Heichal Haness”, em Genebra, Suíça, função que ocupou até sua entrada
no Knesset, a legislatura nacional unicameral de Israel, um braço do poder legislativo do
governo israelense49.
Em um Estado que mistura trajetórias do rabinato com trajetórias de posições
governamentais, Amsalem é membro do partido político SHAS. O partido foi fundado em 1984
por Ovadia Yossef (ex-Grão-Rabino de Israel), se autointula “Guardiões Sefarditas da Torá” e
tem como um dos focos de sua atuação a desburocratização e concepções mais abertas e
acolhedoras dos processos conversão ao judaísmo (Fundação Zera Israel, 2019). As principais
bandeiras defendidas pelo partido são propor políticas de proteção e sustentabilidade da
população judaica de baixa renda e garantir um Estado judaico mais plural e tolerante em Israel.
Amsalem escreveu livros e publicou artigos religiosos e trabalhos de pesquisa sobre a Torá,
sendo também especialista em decifrar manuscritos sefarditas.
Em 2009 os aliados políticos do SHAS perderam força na cúpula estatal israelense e
alguns rabinos como Amsalem tiveram diminuição do prestígio de suas atividades rabínicas,
sendo acusados de expandirem a Lei do Retorno para além de seus limites legais. Em 2011,
Amsalem decide romper com as atividades políticas do SHAS, em protesto contra à convocação
de estudantes da Yeshiva para o serviço militar. Nos últimos anos, Amsalem tem dedicado parte
de sua vida a recuperar seus direitos religiosos, publicando recentemente um artigo intitulado
“The conversion scandal”, publicado pelo Jewish Ideas, em que escreve:

We have a scandal in Israel relating to the evil practice that is spreading: the annulment or non-
recognition of conversions performed by private rabbinical courts in their localities. These

49
Informações sobre Amsalem podem ser obtidas na página da Fundação Zera Israel. https://zera-israel.org/en/
121

conversions are performed according to the halakha, with circumcision, ritual immersion in the
mikva, and acceptance of the mitzvoth.

This unprecedented aspersion of halakhically valid conversions emanates from Israel’s Chief
Rabbinate which sees itself as though it were the great Sanhedrin of old. The Rabbanut unjustly
invalidates conversions not performed under its authority or by those who are obedient to its
authority. They annul or invalidate halakhic conversions [not done under their authority],
something unprecedented and blatantly against the halakha. This position is in violation of the
Talmud’s clear statement (Yevamot 47b): “One who has immersed and emerged from the mikva
is a Jew in all matters. What is the legal implication of this statement? If he later repudiates [his
conversion] he is to be considered as an apostate Jew. If he marries a Jewish women, the marriage
is valid [since he is Jewish] (AMSALEM, 2019, p. 1).

Em 2011, Amsalem juntamente com outras lideranças rabínicas e políticas rechaçadas


pela nova cúpula do Estado de Israel, criam a Fundação Zera Israel. A instituição assume os
mesmos princípios e objetivos do SHAS, atuando em várias frentes da sociedade civil em Israel
e em outros países. No próximo capítulo da tese, acompanharemos as formas de atuação da
Fundação, especialmente na parceria desenvolvida com a SSF no Brasil.
Ventura e Amsalem são colegas próximos desde o tempo em que o rabino paulistano
frequentou, durante um determinado período da sua juventude, a Yemin Orde Technical High
School na cidade israelense de Haifa. Essa escola oferece a jovens brasileiros a oportunidade
de estudar o equivalente ao ensino médio em Israel. As aulas são ministradas em português por
professores brasileiros residentes em Israel, de acordo com as exigências do Ministério da
Educação (MEC). A “boa formação” de Ventura o permitiu acessar espaços de maior prestígio
nos centros religiosos e educacionais judaicos de São Paulo, além de conseguir manter um bom
relacionamento com determinadas autoridades rabínicas e agentes estatais de Israel. O contato
mais “profissional” com Amsalem só ocorre na vida adulta quando interesses particulares que
envolvem os Bnei Anussim os aproximam. Desde então, Ventura mantém contato com
Amsalem e a partir de 2015 os dois intensificaram a parceria entre Zera Israel e Sinagoga Sem
Fronteiras a fim mediar e contribuir para mediações mais justas dos acessos à Lei do Retorno.
Com esse perfil mais aberto ao “novo”, o rabino Amsalem foi indicado por Ventura para
presidir o Tribunal Rabínico que seria instalado na praia de Ponta de Campina, em Cabedelo.
Sabendo quem seria o sacerdote que presidiria o sonhado Beit Din, os integrantes de
comunidades judaicas nordestinas de novos conversos trataram de organizar a logística para o
sucesso da cerimônia. Com a vinda do distinto rabino, esses grupos tiveram que arcar com todas
as despesas de deslocamento, hospedagem e alimentação. Alguns participantes da Maguen
David, especialmente aqueles que estavam em dificuldade financeira, contrairam diversas
dívidas em busca do reconhecimento que, dessa vez, parecia estar realmente próximo e factível.
122

Além das despesas da vinda de um rabino de Israel para o Brasil, aqueles que indicaram o desejo
e a devida condição financeira para fazer parte do processo de conversão pagaram um valor
individual (R$ 1.200,00) para custeio do ritual que incluía alimentação e vestimentas próprias
e um certificado. Tais investimentos para conquista de uma identidade religiosa mais
“autêntica” são incompreendidos pelas famílias de alguns postulantes à conversão. Quando
Kiko comunicou à família sobre os gastos e a necessidade de viagem à Cabedelo para
participação em um ritual de conversão, foi repreendido pela “loucura” que estava fazendo.
Certa feita, sua irmã comentou: “nunca ouvi falar disso por aqui, não sei se existe essa tal
religião aí que você usa um boné colorido e fala uma língua estranha”. Joaquim, que fez parte
da Maguen David em um certo período da sua vida, desabafou comigo: “nem todos da
comunidade terão acesso a esse reconhecimento porque nem todos possuem condição
financeira. Para mim, basta estar junto aos colegas e fazer as preces corretas, seguir a tradição...
Eu sou judeu”.
Alessandro, Ana Elya e Jessé, Leda e filhos, Ana Cariry, Antônio Ribeiro e família,
Kiko, Raquel, entre outros se dispuseram a participar do processo. Hugo Borges, sua esposa
Sheila e outros integrantes da comunidade Shomer Israel, em João Pessoa, também passariam
pelo tribunal rabínico. Além dos grupos da Paraíba, também vieram para Cabedelo integrantes
de comunidades de novos conversos dos Estados de Pernambuco e Rio Grande do Norte. Todos
em busca do sonhado reconhecimento pela Lei do Retorno. Como a maioria dos postulantes
eram da Paraíba, decidiu-se por um local mais próximo a esses grupos. Considerando que o
batismo dos conversos deveria se dar em águas advindas de fontes naturais como mares, rios,
lagos etc., conforme preceitos das tradições da Giyur, os postulantes optaram pela realização
do Beit Din na praia de Ponta de Campina, em uma casa cedida por Ana Cariry. O deslocamento
do grupo de Campina Grande para João Pessoa se deu por meio de carros particulares e aluguel
de vans. Outras que vieram de comunidades de fora da Paraíba, vieram por vários meios de
transporte, ficaram hospedados em João Pessoa. A turma da Maguen David, em maior número,
permaneceu na própria casa de praia cedida por Ana Cariry durante a semana de realização do
tribunal. Os rabinos Ventura e Amsalem, que estava acompanhado de alguns de seus filhos, se
acomodaram em um hotel na cidade de João Pessoa, tudo custeado pelas comunidades. Alguns
participantes como Kiko afirmam que o Beit Din durou mais de uma semana quem pudesse
participar de tudo, participava, quem não conseguisse poderia participar só de dois a três dias
para cumprimento dos principais ritos.
123

O Tribunal Rabínico da praia de Ponta de Campina se deu em julho de 2017. O “evento”


durou aproximadamente uma semana e contou com a participação de cerca de 150 pessoas,
vindas de comunidades judaicas atuantes nos Estados da Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do
Norte. Não pude presenciar pessoalmente o que ocorreu no período de realização do Beit Din.
Na época, indaguei a Alessandro se poderia participar “quietinha” do encontro, mas ele foi
bastante taxativo ao afirmar que o ritual seria fechado e só poderiam entrar aqueles que
realmente postulavam a conversão perante o tribunal. Os fatos que ocorreram no “evento” me
foram relatados (por vezes, de modo contraditório) meses depois por alguns membros da
Maguen David, especialmente Ana Elya e Kiko. Como parte da avaliação prevista pelo tribunal,
o rabino Amsalem propôs a simulação coletiva dos serviços religiosos dos chamados “dias
áusteros” no calendário judaico, que acontecem normalmente entre os meses de setembro e
novembro com as celebrações do Rosh Hashaná e Yom Kipur.
Durante o Beit Din, os postulantes precisam, entre outras coisas, apresentar
documentações que comprovem a descendência judaica, relatar a existência práticas judaizantes
e o cumprimento das leis da Hashalá na história da família e expor as razões para ingressar em
um processo de conversão. Realiza-se também entrevistas que atestem os conhecimentos
relacionados à Torá e à língua hebraica. Os candidatos reunidos na praia de Ponta de Campina
fizeram uma declaração pública de compromisso pleno com a fé judaica, renunciado a
quaisquer resquícios de práticas religiosas do passado.
Para ter direito à conversão, os postulantes que estivessem casados, com família,
precisavam que o cônjuge e os filhos também passassem pelo processo ritual. Houve diversos
batismos e casamentos no Beit Din. Casais já consolidados nas práticas judaicas, como Jessé e
Ana Elya, renovaram seus votos diante da Torá. “Pais de família”, como Alessandro e Antônio
Ribeiro, que ainda não haviam convencido suas famílias da importância da conversão ao
judaísmo, conseguiram levar suas esposas e filhos para firmar os compromismos batismais e
conjugais ministrados pelo rabino Amsalem. Kiko não conseguiu convencer sua esposa. Como
se tratava da realização de um sonho, eternamente adiado e financeiramente dispendioso,
decidiu se separar da mulher para seguir solteiro e apto para o batismo do Beit Din. “Já estava
em um casamento com problemas de convivência, incompatibilidade, e pronto, decidi”, me
confidenciou certa feita.
Alguns participantes me relataram que antes e durante a realização do Beit Din foi
estabelecido um “pacto” entre os grupos presentes para não exposição dos procedimentos
124

realizados no tribunal. O acordo previa, entre outras coisas, que as despesas daquele processo
de conversão não deveriam vir ao conhecimento público.
O Estado de Israel não reconheceu nenhuma das conversões feitas pelo rabino Amsalem
e não há nenhum documento atestando que sua atividade foi aprovada pelo Grão Rabinato de
Israel, instituição que legalmente autoriza tais processos. As comunidades que participaram do
Beit Din não foram informadas pelo rabino organizador do ritual, Gilberto Ventura, que as
atividades rabínicas do rabino Amsalem estavam temporariamente suspensas pelo Estado do
Israel e, dessa forma, os processos de conversão realizados não tinham validade legal. O rabino
Amsalem também se manteve em silêncio quanto ao seu impedimento durante todo o processo
ritual. A maioria dos postulantes ao certificado de descendência judaica sefardita se sentiram
enganados pela falta dessa informação. Caso soubessem de tal suspensão, muitos não
ingressariam nos ritos e nos gastos necessários à participação no Beit Din.
Meses depois da realização do Beit Din e do recebimento dos certificados, alguns
integrantes da comunidade Shomer Israel, de João Pessoa, deram entrada no visto de
permanência em Israel e souberam da não oficialidade do certificado de descendência judaica
sefardita (ver imagem 20). A informação se espalhou entre as pessoas que ingressaram no
tribunal presidido por Amsalem e, pesquisando mais a fundo a situação do rabino, identificaram
seu processo de suspensão. Nesse momento, veio uma grande frustração, cobranças a Ventura,
seguidas do rompimento da Maguen David com a SSF. Os primeiros a rechaçar o projeto foram
Alessandro, Jessé e Ana Elya, depois vieram os demais. Uma minoria decide permanecer com
o controvertido rabino.
Após a realização do Beit Din, os rabinos Ventura e Amsalem retornam para suas
moradas. Em São Paulo, à revelia das desconfianças e críticas de lideranças de grupos de
neoconversos nordestinos, Ventura segue com o projeto da SSF, consolidando nas redes socais
a imagem de rabino defensor dos Bnei Anussim.
As semanas que se seguiram à realização do Beit Din na praia da Ponta de Campina
foram de muitos desentendimentos entre os membros da Maguen David. Os desentendimentos
diziam respeito, em especial, a três questões: 1. a não oficialidade do “Certificado de
Descendência Judaica Sefardita” recebido por aqueles que passaram pelo tribunal por conta da
descoberta da suspensão das atividades rabínicas do sacerdote que predidiu a cerimônia, o
rabino Haim Amsalem; 2. a falta de transparência das despesas das comunidades nos processos
de planejamento e execução do tribunal rabínico mediado pela Sinagoga Sem Fronteiras; e 3. a
125

personalidade impulsiva e individualista (“de difícil trato”, afirmou um dissidente) do rabino


Ventura. A figura do rabino Ventura passou a ser rechaçada pela maioria dos membros da
Maguen David e aqueles que defendiam seus atos passaram a ser afastar cada vez mais da
comunidade.
Imagem 20 - Certificado de Descendência judaica sefardita

Fonte: Facebook, vida prática, 2019.

Enquanto na Maguen David houve um “racha” em torno da continuidade ou não da


comunidade com o projeto de Ventura, a maior parte dos grupos participantes do Beit Din
ocorrido na praia da Ponta de Campina, como a Shomer Israel de João Pessoa, continuaram
vinculados à Sinagoga Sem Fronteiras. Os que permaneceram com a SSF, justificam o
posicionamento afirmando que a conversão é um processo muito difícil e o certificado é mais
126

um “meio” do que um “fim último” da busca pelo sonhado retorno. Indagado sobre a não
validade do documento assinado pelo rabino Amsalem, Kiko pondera: “eu soube que não tem
validade. Mas também sei que ninguém quis rasgar. De qualquer forma foi um judeu, um judeu
com referência profunda em Israel, então não era uma pessoa qualquer, não era o rabino Ventura
fazendo, era Amsalem, um judeu ortodoxo”. Como vimos no primeiro capítulo da tese, para
muitos neoconversos, a categoria “ortodoxo” não diz respeito necessariamente às questões
teológicas e ideológicas do multiverso religioso do judaísmo; e sim ao fato de determinado
judeu ser avaliado como “mais” puro, sanguineamente, ou ter nascido em Israel, no centro das
tradições judaicas, distante das maculadas misturas de lugares como o Brasil. Além disso, para
Kiko, eles haviam “ganhado um cavalo e ninguém poderia questionar os dentes”. Judeus
legítimos estavam os reconhecendo como judeus legítimos, era isso que importava e não a
burocracia do Estado de Israel. “Eu não acredito que ele [Amsalem] tenha agido de má fé, ele
acreditou no seu taco”, opina Kiko. “Há um conceito de que se três judeus praticantes resolvem
fazer conversões, eles estão habilitados pra isso. Agora se vão ou não ser reconhecidos pelo
Estado de Israel, aí é outra questão”, conclui.
Em pesquisas virtuais acerca da realização de tribunais rabínicos no Brasil, encontrei
algumas experiências de Beit Din aparentemente bem-sucedidas, mas nenhuma delas envolveu
comunidades que se identificam como “marranas”, “sefarditas” e/ou “Bnei Anussim”. Esses
processos de conversão reconhecidos pelo Estado de Israel foram realizados nas regiões Sul e
Sudeste do país, junto a comunidades asquenazes, com a participação de rabinos da
Congregação Israelita Paulista (CIP) e de outras associações e sinagogas de maior prestígio no
cenário judaico nacional (CASTRO E RABKIN, 2016).
Odmar Braga, fundador da Associação Religiosa Sefardi Bnei Anussim (ver imagem
21) e uma importante referência do movimento marrano nordestino, lembra que tais processos
de “certificação de Anussim”, concedidos mediante pagamento a rabinos, “não possuem valor
legal, apenas sentimental”. Odmar defende que aqueles indivíduos e grupos que se reconhecem
como marranos devem ter uma postura de mais altivez, com autonomia e conhecimento de sua
história, para que não sejam enganados pela “conversa bonita” de figuras como Ventura.
Segundo o poeta recifence, Ventura “desconhece a realidade dos judeus do Nordeste e não
contribui para o judaísmo no Brasil; quer mesmo era impor uma vontade sua e um projeto seu
e pronto”.
127

Imagem 21 - Documento de registro da criação da Associação Religiosa Sefardi Bnei Anussim

Fonte: Acervo pessoal de Odmar Braga

Segundo alguns dissidentes da SSF, o rabino Gilberto Ventura segue afirmando a


validade do Certificado de Descendência Sefardita recebida pelos convertidos e se irrita com
aqueles que levantam argumentos e fatos contrários, que o lembram o fato da suspensão do
rabino Amsalem no momento de realização do tribunal rabínico. A exemplo de outros judeus
neoconversos atuantes no Nordeste, os integrantes da Maguen David que romperam com a SSF
estão incomodados com a presença e influência de Ventura por compreenderem que seus
discursos e ações desestabilizam a seriedade da causa Bnei Anussim. O processo de cisma
vivenciado pela comunidade Maguen David se desenvolveu, ou foi exponenciado, a partir da
presença de agentes externos de relativo poder carismático sobre um grupo de neófitos outsiders
128

ansiosos por reconhecimento de figuras estabelecidas. Ao buscarem concretizar uma utopia por
meio das promessas de conversão menos dispensiosa em um tribunal rabínico realizado
“próximo de casa”, alguns membros da Maguen David passaram a viver um conflito de lealdade
(Turner, [1957] 1996) entre continuar com um projeto seguro e demorado proposto pela
liderança comunitária (Alessandro) e se aventurar em um projeto promissor e ousado da
liderança “de fora”, paradoxalmente, mais crível (Ventura).

5.3 Primeira cisão da Maguen David: a formação da comunidade Branca Dias

Quando reiniciei meu “campo” em 2017, participando de reuniões da Maguen Davi


percebi que a comunidade havia mudado. Mesmo que, naquele momento, grande parte dos
antigos membros estivessem ali presentes, era notório o mal-estar entre os participantes, mesmo
diante de alguém “de fora”. Como vimos no subtópico anterior, a presença do rabino Gilberto
Ventura, do seu projeto pessoal Sinagoga Sem Fronteiras e a frustração diante da não
oficialidade dos certificados oferecidos pelo Beit Din realizado na praia de Ponta de Campina
provocaram divergências internas na Maguen David que culminaram na saída de figuras
bastante atuantes no grupo como Antônio Ribeiro, seu sobrinho Aldrey Ribeiro e Raquel.
Enquanto a não oficialidade dos certificados assinados pelo rabino Amsalem causou
frustração em alguns integrantes, outros continuam acreditando na validade do tribunal, ou,
pelo menos, na boa fé dos organizadores. Alessandro passou a ter mais dificuldades na
mediação dessas divergências de pensamento, especialmente a partir do afastamento paulatino
de pessoas engajadas na comunidade, como Kiko. O isolamento de Alessandro faz parte do
processo que ele mesmo foi criando, sobretudo a partir das decepções sofridas após julho de
2017 com o evento de Beit Din, ele ficou mais amargo com as pessoas da comunidade, o que
tornou o convívio cada dia mais difícil.
Assim como Maguen David, a comunidade Branca Dias (ver imagem 22) é,
formalmente, uma associação, com estatuto, assembleias, presidente, secretário e tesoureiro.
Antônio nomeia de “Branca Dias” buscando consolidar a ideia de resistência reverberada pela
heroína paraibana que sobrevive à perseguição sofrida pelos judeus no período colonial. O
nome daria mais legitimidade e “identidade” ao grupo.
A comunidade Branca Dias é composta majoritariamente por jovens, tanto do gênero
masculino como feminino, de diferentes condições socioeconômicas e residentes em diversas
129

localidades de Campina Grande. Alguns membros são permanentes, outros surgem, participam
de alguns encontros e, em seguida, abandonam o projeto.

Imagem 22 - Comunidade Branca Dias em noite de Chanucá

Fonte: Página do Facebook da Comunidade Branca Dias, 2021.

A presença carismática de Aldrey nas divulgações do projeto da SSF e da própria


comunidade Branca Dias contribuem para atração de um público jovem ao frisson de uma
identidade judaica ao mesmo tempo diferente, “estilosa” e convidativa. Aldrey é noivo da filha
do rabino Ventura e participa ativamente das ações religiosas e pedagógicas da SSF,
ministrando as recitações e interpretações acerca da Torá, os cânticos judaicos e o ensino da
130

língua hebraica, fazendo as pontes entre os jovens de Campina Grande e outros municípios da
Paraíba e do Nordeste e a sede do projeto em São Paulo. Na Branca Dias, Aldrey é o “braço
direito” do seu tio Antônio nas decisões e rumos tomados pela comunidade. Ventura atesta a
importância da presença do seu genro nesses processos de consolidação da Branca Dias e SSF
ao relembrar que o jovem “viajou para Nova York para participar de uma comemoração do
365º aniversário da Congregação Shearith Israel”. A Shearith Israel é considerada a primeira
Congregação judaica das Américas, congregação mais antiga de Manhattan50.
A defesa da presença de jovens em uma comunidade de conversos vinculada ao projeto
Sinagoga Sem Fronteiras é uma das principais preocupações do rabino Ventura. Em entrevista
concedida, em 2019, o rabino fez a seguinte observação sobre esses grupos campinenses,
especialmente a Maguen David: “você observa que não há jovens na comunidade de Campina
Grande e isso é preocupante. Com quem esse jovem vai namorar, casar?”. Uma das formas de
“captar” jovens para comunidades sintonizadas com o projeto Sinagoga Sem Fronteiras é o
oferecimento de cursos on line da língua hebraica para crianças de 7 a 13 anos (ver imagem
23). Tais cursos são pagos e ministrados por Aldrey, sob os auspícios de Ventura. No anúncio
de oferta do curso, não há menção direta à necessidade de filiação religiosa ao judaísmo, embora
a chamada conclame a importância de se aprender a “língua do povo de Israel”. As aulas
ocorrem duas vezes por semana, com turmas de até dez alunos, em via plataforma Google Meet.
Há três níveis do curso: o básico, o intermediário e o avançado.
A comunidade Branca Dias faz parte do projeto SSF do rabino Gilberto Ventura.
Seguindo os estudos das origens judaicas, construindo, legitimando elementos singulares dos
discursos dos neoconversos surge o encantamento pelo rabino Gilberto Ventura, por seu
carisma, sua comunicação não sofisticada, aberta, que de maneira rápida acessa o público
jovem. Ventura ganha maior legitimidade por atuar como professor há mais de 20 anos nas
escolas hebraicas da cidade de São Paulo, em seu projeto da Yeshuva do Sertão junto da SSF
promove o encontro de diversos jovens de várias localidades do país, que financiados pelos país
ou responsáveis são enviados durante as férias de janeiro para a sinagoga coordenada por
Ventura e sua esposa Jacqueline. Alguns desses jovens pertencem as comunidades de
neoconversos do Nordeste, dentre elas a comunidade Branca Dias.

50
Maiores informações em https://www.newyorklatinculture.com/shearith-israel/.
131

Imagem 23 - Oferta de Curso online de hebraico para crianças

Fonte: Instagram da comunidade Branca Dias, fevereiro de 2021.

O crescimento da comunidade Branca Dias resultou no esvaziamento de jovens na


comunidade Maguen David, o que causava preocupação no rabino Gilberto Ventura quanto a
reprodução de casamentos Bnei Anussim na comunidade, pois não tinha quantidade de jovens
suficiente para relacionamentos. Essa questão foi um dos motivos para discussão entre ele e a
comunidade. Mas, eu não percebia preocupação no Alessandro em resgatar os jovens, ou até
mesmo fazer com que os filhos dos participantes da Maguen David participassem das
132

celebrações. Os filhos da Ana Elya são um bom exemplo, nenhum se envolveu com meninas
neoconversas, e pouco frequentam as celebrações da comunidade.

5.4 Segunda cisão da Maguen David: a formação da comunidade Beit Israel

O Beit Din realizado na praia da Ponta de Campina em julho de 2017 foi um marco de
desestruturação e reestruturação da comunidade Maguen David. Após a saída de alguns
integrantes para fundação de uma nova comunidade vinculada ao projeto Sinagoga Sem
Fronteiras, a Maguen David, aos poucos, voltou às reuniões periódicas e à organização dos
shabats.
Nos últimos meses de 2017, Alessandro retoma novamente o contato com o rabino
Moysés Elmescany, que durante muitos anos acompanhou a trajetória da comunidade. O rabino
Moysés buscou acalmar os ânimos e apaziguar as relações que andavam estremecidas
internamente entre vários integrantes da comunidade. Alessandro buscou se fortalecer se
aproximando do “núcleo duro” da Maguen David, aqueles mais antigos, que levavam famílias
para as celebrações: o casal Jessé e Ana Elya, a família de Leda e a família de Ana Cariry.
Entretanto, com o passar do tempo, a figura de uma liderança que centralizava as decisões
passou a não fazer mais sentido, considerando que muitos participantes já atuavam há muito
tempo nas atividades religiosas, amadureceram com o aprendizado junto aos rabinos e
enfrentaram juntos as situações da conversão frustrada. A repetição de falas e atos de direção e
a imposição de uma determinada decisão por parte de Alessandro eram cada vez mais
constrangedoras para o grupo e, de reunião em reunião, Jessé tomou para si a tarefa de
contradizer a liderança, com questionamentos, discordâncias e desobediências.
Uma das atitudes tomadas por Jessé à revelia de Alessandro, foi procurar o rabino Jacob
de Oliveira, atuante em Brasília, Distrito Federal, para uma “segunda opinião” acerca dos rumos
tomados pela comunidade Maguen David. Mais à frente, acompanharemos um pouco da
história de vida e da trajetória religiosa do rabino Jacob.
Os desgastes internos protagonizados por Alessandro e Jessé foram tornando o convívio
comunitário insuportável e, em abril de 2019, o casal Jessé e Ana Elya decidem romper de vez
com Alessandro, se afastando da comunidade Maguen David. Ana Elya não entra em detalhes
acerca do que motivou exatamente o rompimento definitivo, apenas lamenta pelo “gênio difícil
de Alessandro”. Ao me noticiar a existência da comunidade Beit Israel, informa, via Whatsapp:
“estamos nos reunindo em nossa casa, Alessandro é muito difícil, não estamos mais na Maguen
133

David. Foi melhor assim”. Em seguida, reitera que “o afastamento foi melhor pra todos”. Em
outra oportunidade, parece entristecida com a intriga com Alessandro e desabafa: “somos
vizinhos, porta com porta. Fazer o quê?”. A aproximação da comunidade com o projeto
coordenado pelo rabino Gilberto Ventura é apontada como a primeira causa das discórdias na
comunidade: “depois que o rabino Ventura entrou lá, muitas brigas surgiram. Resultou nessa
divisão que temos”.
Ana Cariry também lamenta os conflitos internos da Maguen David, lembrando que
sempre foi uma comunidade muito séria e ciente das dificuldades dos processos de
reconhecimento: “existem várias comunidades aqui em Campina, realmente. Mas só a nossa
mesmo que lutava pela conversão aqui e mesmo com muita luta havia discordância com as
decisões da liderança e agora estamos aqui, nesse novo momento”.
Com a saída de Jessé e Ana Elya, a maioria dos integrantes deixa a Maguen David e
passa a frequentar os encontros promovidos na casa do casal. Nesse momento, é notória a
importância e a influência de Ana Elya na comunidade. Para muitos não fazia sentido
permanecer sem a estrutura acolhedora de Ana. Ela era quem organizava a sinagoga
improvisada, não apenas nas festividades, mas em todos os serviços religiosos e na gestão do
cotidiano comunitário. Era ela quem indicaria os rumos que aquelas pessoas deveriam tomar na
“caminhada” judaica, seja na alimentação, nas preces, na organização da página virtual da
comunidade, e outros afazeres. Sem uma sede específica para abrigar os dissidentes, o casal
Jessé e Ana Elya passam a receber os ex-integrantes da Maguen David em sua casa, “na parte
de trás”, onde há uma ampla “área gourmet” que poderia muito bem servir para a nova sinagoga
(ver imagem 24). Em comum acordo com todos os presentes, o casal propõe a fundação de nova
comunidade, intitulada Beit Israel, que significa “Casa de Israel”. Um mês após o rompimento
com Alessandro o grupo formaliza o CNPJ da associação e divulgam sua existência de um
modo mais amplo nas redes sociais. A comunidade Beit Israel passa a ser orientada
espiritualmente e ritualisticamente pelo rabino Jacob de Oliveira, que já mantinha contado com
integrantes da Maguen David, em especial com o casal Jessé e Ana Elya.
Fazendo da própria casa uma sinagoga, o casal Jessé e Ana Elya acabam tornando os
shabats e demais ritos e festividades judaicas mais íntimos e acolhedores, com fartura de
comidas e bebidas e desconcentração nos encontros, sempre movimentados por conversas
amistosas, leveza nas preces e cânticos.
134

Nascido em 1965 no Rio Grande do Sul, Jacob de Oliveira se afirma, a exemplo dos
seus pais e avós, marrano, “descendente de judeus portugueses”. Apoiado pela família, aos 18
anos, viaja para Israel, onde, entre 1992 e 1999, estuda Filosofia Judaica e cursos de línguas
semíticas, como hebraico e aramaico. Ainda nesse período, anos noventa, iniciou o processo de
conversão pela Lei do Retorno, sendo reconhecido judeu de descendência sefardita pelo
Ministério do Interior do Estado de Israel. Em 2008, foi nomeado “Rabino da União Sefardita
Hispano-Portuguesa”. Atualmente, o rabino reside em Brasília, Distrito Federal, juntamente
com sua esposa Rachel Benveniste. É tradutor, pesquisador e professor da Universidade de
Brasília (UnB). Em 2017 foi procurado pela comunidade Maguen David para prestar
consultoria acerca de determinadas tradições do calendário judaico e sobre os processos de
conversão existentes no Brasil. A comunidade voltava a procurar rabinos que anteriormente
prestavam consultorias, Jacoob era um desses rabinos, como forma de consolidar suas tradições
e não “perder-se” no caminho.
Imagem 24 - Comunidade Beit Israel em reunião para estudo da Torá.

Fonte: Página do Facebook de Ana Elya


135

O rabino Jacob orienta a comunidade Beit Israel para tarefas coletivas, as liturgias, e o
cumprimento do calendário judaico, sem entrar no mérito da necessidade de tribunais e
certificados para o reconhecimento dos conversos por parte do Estado de Israel.
Originada nos anos 1990 com o idealismo de Hannah e Alessandro, a Maguen David
passou por dois processos de cisão e precisa atualmente se reinventar como comunidade. Com
o retorno de Kiko e outros integrantes que se aventuraram em experiências comunitárias e
religiosas diversas, o grupo liderado por Alessandro se mantém fiel às convicções religiosas de
seus fundadores, buscando processos de conversão que estejam mais condizentes com a Lei de
Retorno do que com os discursos que vendem um acesso “menos oficial” ao reconhecimento
do Estado de Israel.
Os processos de cisma comunitário não são um fenômeno exclusivo da Maguen David.
Em várias comunidades judaicas de neoconversos, há uma tendência permanente aos conflitos
teológicos entre membros de um mesmo grupo. Esses indivíduos em busca de uma “verdade
mais verdadeira” acerca das “grandes questões do Universo” e a escolha pelo judaísmo já faz
parte de suas trajetórias de vida. Assim, as mudanças de afirmação identitária religiosa já
vinham ocorrendo quando os neoconversos professavam religiosidades evangélicas
pentecostais e neopentecostais e discordavam das interpretações que seus líderes religiosos
davam para determinadas passagens bíblicas do Antigo Testamento. Tais processos de
estruturação, desestruturação e reestruturação organizacional comunitária e individual
reveberam na multiplicidade e complexidade faccional do movimento Bnei Anussim das
comunidades atuantes no Nordeste brasileiro. Enquanto Turner escreve que “os neófitos tendem
a criar entre si uma intensa camaradagem e igualitarismo” (1974, p. 118), Joaquim, membro da
Maguen David, não deixa de fragilizar essa homogeneidade no interior de um sistema cultural
aparentemente coeso, afirmando: “a identidade judaica em Campina é muito diversa, rica e
curiosa”.
A experiência etnográfica estabelecida junto a essas comunidades de judeus
neoconversos têm demonstrado que se por um lado os grupos tendem a cismas que provocam
a existência de facções e novos grupos, por outro não costumam se unir em uma rede ampla de
solidariedade mediante a existência de uma ameaça externa de maior gravidade. Ou seja,
podemos dizer que os neoconversos não desenvolveram mecanismos de fissão-fusão revezados
em tempos de paz e guerra a exemplo das sociedades Dinka e Nuer descritas e analisadas por
Edward Evans-Pritchard ([1940] 2007) em seu clássico estudo. Isso ocorre, outrossim, pela
136

própria inexistência de uma real ameaça externa às identidades, projetos e ações religiosas
desses grupos que não são vistos pelas religiões cristãs e agentes hegemônicos no Brasil como
um mal a ser intolerado e extirpado e sim como algo aceito ora por estar sintonizado às histórias
do Antigo Testamento da Bíblia, ora por ser curioso e, de algum modo, risível pelo exotismo
dos ritos. Em vez da dicotomia fissão/fusão, estamos aqui falando de uma fissão exponencial
que pode permitir reviravoltas e retornos de indivíduos que rompem para depois reavaliarem
suas posições e serem, quem sabe, incorporados novamente às comunidades que inicialmente
tiveram acolhimento no processo de se tornar judeu, a exemplo de Kiko e outros.
137

6 SINAGOGA SEM FRONTEIRAS E A EXPANSÃO DOS SENTIDOS E PRÁTICAS


JUDAICAS

O crescente fenômeno da formação de comunidades judaicas de neoconversos vem


sendo criteriosamente observado pelas cúpulas dos rabinatos de Israel e de outros lugares do
mundo. As centralidades político-étnico-religiosas do judaísmo monitoram os movimentos que
surgem nas periferias que ora imploram por um reconhecimento oficial, ora ignoram processos
burocráticos e seguem seus “modos de ser judeu” à revelia do controle legal-estatal. Há também
um certo estranhamento, e mesmo deslumbre, das autoridades israelitas diante dos
imponderáveis nas novas formas de viver o judaísmo no mundo contemporâneo. “O que fazer
com isso?”; “como isso pode ser usado a favor de Israel”, podem se questionar.
No discurso público dos rabinos e demais agentes “reformados”, especialmente de
instituições como Sinagoga Sem Fronteiras (SSF) e Zera Israel, o Estado de Israel e sua rede
de observadores, as comunidades de judeus neoconversos devem ser, de algum modo,
acolhidas, seja por meio de orientações voltadas para processos de conversão, seja para o
estabelecimento de boas relações com grupos de militantes e simpatizantes da causa judaica.
Como pudemos perceber ao longo das descrições e reflexões da presente tese, as experiências
concretas de diálogos entre neoconversos e judeus estabelecidos revelam, em determinados
contextos, processos de desinformação, exclusão, dominação e estereotipação das novas
identidades judaicas.
Quais são as informações que circulam entre os rabinatos de Israel e aqueles
estabelecidos no Brasil quando o assunto é comunidade de neoconversos? Por que a
comunidade judaica estabelecida no Brasil aparentemente encontra dificuldades de aceitação
dos neoconversos que se declaram “marranos”, “sefarditas”, “Bnei Anussim”? Como se situa
os trabalhos pela SSF, um projeto vinculado à Zera Israel, nos meios rabínicos internacionais?
Essas são algumas das questões lançadas neste capítulo e que esta tese busca compreender. Em
vez de respostas, o que apresento neste momento são as experiências do projeto da SSF junto
às comunidades judaicas nordestinas que provocam novas questões ao fenômeno social.

6.1 Um rabino outsider entre os judeus neoconversos

Como já adiantamos no quarto capítulo, nos últimos anos, especialmente a partir de


2017, um rabino paulistano tem provocado uma efervescência no modo como as comunidades
138

judaicas nordestinas ativam e apresentam sua identidade étnico-religiosa nos meios sociais
judeus do Brasil e do mundo. Estamos falando de Gilberto Ventura, conhecido por seu entorno
mais próximo como “Moré Ventura”, e o seu projeto Sinagoga Sem Fronteiras. A SSF parece
ter dado novo ânimo a alguns grupos de neoconversos, especialmente os jovens, que têm como
um dos sentidos basilares da vida o desejo em viver e ser reconhecido por sua ancestralidade e
práticas judaicas.
Ventura nasceu em São Paulo capital, no dia 3 de janeiro de 1974, filho de uma família
de judeus asquenazes que se casaram com judeus sefararditas. Segundo o rabino, desde muito
jovem soube compreender o que representava “ser judeu” e ter que conviver com “as marcas
de uma perseguição”. Desde cedo, aprendera a lidar com conflitos e diferenças nos ambientes
sociais que frequentava, especialmente por ser filho de um judeu que migrara do Egito para o
Brasil. Na juventude, Ventura frequentou a Yemin Orde Technical High School na cidade
israelense de Haifa, iniciando os estudos do Talmud e da Torá e, em seguinda, cursando, durante
vários anos, Seminários Rabínicos (Yeshivot, Binyan Olam, Sderot, Messilot HaTorá e Kolel
Tomchei Teshuvá).
Ventura forma-se rabino em 1995 e retorna para a cidade de São Paulo ainda no final
dos anos 1990. Ao chegar na terra natal, passa a lecionar em cursos sobre Judaísmo, História
Judaica, Hebraico e Lei Judaica em diversas instituições educacionais judaicas de São Paulo:
Colégio Renascença, Colégio Yavne, INDAC, Escola Beit Yaacov, A Hebraica, entre outras.
Na A Hebraica, uma associação cultural devotada à difusão de conhecimentos judaicos, Ventura
alcançou grande espaço e visibilidade por meio de contatos e influência pessoal. Nesse tempo,
casa-se com Jacqueline Ventura, com quem tem três filhos. A esposa o acompanha em todas as
suas atividades rabínicas. Paralelamente ao seu trabalho de docente, passa a integrar a
Congregação Israelita Paulista (CIP) e a Confederação Israelita do Brasil (CONIB), mantendo
maior ligação com o sistema judaico de vertente reformada estabelecido nacionalmente e
internacionalmente. Influenciado pelas ideias de rabinos como Haim Amsalem, rabino-chefe
da Zera Israel e Marc Angel, ex-presidente da federação dos rabinos ortodoxos dos EUA,
Ventura defende a expansão do judaísmo, e não a sua proteção ensimesmada, pelo mundo afora.
Em 2013, ele atuou como membro do Fórum Interreligioso para uma Cultura de Paz e Liberdade
de Crença, coletivo vinculado à Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania do Governo do
Estado de São Paulo, defendendo ações de tolerância religiosa por parte dos poderes públicos
139

locais em parceria com as organizações civis e ganhando certa notoriedade na comunidade


judaica local.
No mesmo ano em que passa a atuar pelo Fórum, Ventura se afasta da CIP por razões
pessoais e políticas. Segundo ele, havia uma postura conservadora da Congregação diante dos
movimentos dos judeus neoconversos. Ele acredita que o fato de os Bnei Anussim serem, no
geral, de origem humilde e nordestina, de pele mais escura, contribui decisivamente para as
reiteradas negativas institucionais para suas tentativas de conversão/retorno a uma condição
étnico-religiosa idealizada. Fazendo parte desses coletivos, rabino Ventura se sentia impotente
diante da sua sensibilidade de compreensão dos direitos identitários desses grupos e da sua
vontade de intervir mais concretamente na situação de exclusão dos neoconversos, postos à
margem do judaísmo estabelecido.
Ao deixar a CIP, começa a reunir parceiros de convicções semelhantes, a exemplo do
diretor de cultura de A Hebraica, José Luiz Goldfarb, para planejar o que alguns anos depois
tornar-se-ia a “Sinagoga Sem Fronteiras”, uma sinagoga aberta para acolhimento de novas
identidades judaicas, especialmente as de tradição Bnei Anussim (esta é categoria étnico-
religiosa mais utilizada pela SSF), e que assume, em muitas situações, uma postura proselitista,
raramente encontrada no judaísmo. Mesmo que historicamente tenha entrado em diversos
atritos com posturas teológicas e políticas mais conservadoras do judaísmo, Ventura prefere se
autodenominar “rabino ortodoxo sefaradim”, como em depoimento dado ao programa
televisivo Shalom Brasil, em 18 de fevereiro de 2019.
Os primeiros contatos de Ventura com as comunidades nordestinas de novos
convertidos, mais especificamente com algumas lideranças e grupos atuantes nos Estados da
Paraíba e Rio Grande do Norte, iniciam em um período anterior ao seu afastamento da CIP e
da CONIB. Por volta do início dos anos 2000, de uma maneira tímida, Ventura e outros rabinos
paulistanos foram procurados para contribuir com seus conhecimentos na narrativa do premiado
documentário A estrela oculta do Sertão, de Luize Valente e Elaine Eiger (2005). O
documentário destaca as histórias de diversas famílias de descendentes de cristãos-novos que
habitão os sertões nordestinos. A relação das narrativas do judaísmo oficial com as práticas dos
retornados é abordada na obra, evidenciando questões como identidade, fé e tolerância
religiosa. A partir da circulação do documentário, divulgado em alguns meios acadêmicos e
círculos sociais de estudiosos do judaísmo no Brasil por iniciativa pessoal do médico e
pesquisador Luciano Canuto, um dos entrevistados que protagonizam o documentário, houve
140

um exponencial crescimento do númeto de comunidades que se autodenominam Bnei Anussim


nos Estados da Paraíba, Rio Grande do Norte e Pernambuco. Muitos de meus interlocutores
afirmam ter despertado para as questões relacionadas à cultura judaica no cotidiano de suas
famílias ao conhecerem o filme dirigido por Luize e Elaine.
A aproximação com a produção de A estrela oculta do Sertão também trouxe Ventura
para a temática dos novos convertidos ao judaísmo, mas não o despertou anseios de atuação
nesse campo. No fundo, ele era um curioso querendo compreender melhor o que se passava
naquele “Nordeste” que até aquele momento era apenas uma região seca e pobre do Brasil. Uma
das falas do poeta Odmar Braga no filme desestabilizava o status quo dos judeus de origem
asquenaze radicados majoritariamente na região sudeste do país, mas também presentes em
cidades como Recife, Pernambuco, que se veem como os mais tradicionais existentes no Brasil

A comunidade judaica oficial ela está isenta, poderíamos assim dizer, de culpa do
desconhecimento. Ou seja, desconhecer, não há culpabilidade em desconhecer, em virtude de
não ter conhecimento daquilo que não é parte de sua própria história porque essa é a parte da
nossa história e não dessa comunidade advinda do Leste da Europa, que tem 70 anos de Recife.
E nós estamos aqui há 500. Eles têm apenas 70, então não fazem parte dessa construção dos
últimos 500 anos.

Entre as lideranças do movimento dos judeus retornados do Nordeste, Ventura toma


conhecimento das pesquisas e reflexões do (atualmente) rabino João Medeiros, que publicaria,
em 2005, o livro Nos passos do retorno, o resultado de suas pesquisas historiográficas e
genealógicas sobre as famílias marranas do seridó potiguar e de outras regiões do Nordeste
brasileiro. Ventura fica fascinado com esse “novo mundo” de possibilidades diversas no
judaísmo tupiniquim “redescoberto”.
Mas é só a partir de 2013, os laços de aproximação do rabino Ventura com as
comunidades de novos convertidos de Campina Grande, que não tinham aparecido como
fenômeno social no filme de 2005, começam a ser estreitados. Entre 2013 e 2015 muitas são
idas e vindas de Ventura ao Recife, para participação em seminários e festividades, onde os
grupos se encontravam na Kahal Zur. Essas situações possibilitam o encontro com lideranças e
participantes das comunidades Maguen David, de Campina Grande, Shomer Israel, de João
Pessoa, Sinagoga Beit Isaac Abravanel Sefaradim, de Belo Jardim; Centro Israelita do Rio
Grande do Norte (CIRN), sediada em Natal, Rio Grande do Norte, entre outras.
Após o acúmulo de conhecimentos e contatos referentes ao movimento Bnei Anussim,
Ventura cria o projeto SSF em 2016, que funciona de modo intinerante até 2018, quando se fixa
141

em uma casa alugada no bairro (de classe média) Jardim Paulistano, na cidade de São Paulo.
Um dos incentivadores da SSF é a Fundação Zera Israel, que tem como um dos articuladores o
rabino Amsalem. Abordaremos as histórias e ações da Fundação mais adiante neste capítulo.
A Sinagoga Sem Fronteiras inaugura um período em que Ventura consegue, via criação
de um CNPJ, articular a expansão de seus projetos e cursos, ampliando a adesão de grupos de
neófitos interessados em fazer parte de uma “sinagoga” que se propõe aberta ao público geral.
Segundo o site da associação, a Sinagoga tem como missão “promover a consciência do povo
brasileiro a respeito de suas origens judaicas e a respeito da história judaica oculta do Brasil,
através de textos históricos, relatos orais, genealogia e vasta documentação”.
Por meio da SSF, ele também conseguiu viabilizar parcerias com instituições como a
Zera Israel para organização de processos de formação e conversão de comunidades judaicas,
a exemplo do Beit Din realizado na praia de Ponta de Campina, em Cabedelo, Paraíba.
Em 2017, como vimos no quarto capítulo da tese, a SSF marcou a história das
comunidades judaicas nordestinas ao organizar em uma casa de praia, em Ponta de Campina,
um tribunal rabínico (Beit Din), presidido por Haim Amsalem. O conjunto de ritos de conversão
durou cerca de uma semana e contou com a participação de aproximadamente 150 pessoas. A
partir desse evento, algumas comunidades se destruturaram e outras se formaram atraindo uma
nova leva de adeptos, especialmente jovens. O projeto da SSF, coordenado pelo rabino Ventura,
ficou cada vez mais conhecido e influenciador no pequeno universo dos judeus neoconversos.
Ao mesmo tempo, o Beit Din provocou o afastamento de alguns grupos Bnei Anussim, a
exemplo da Maguen David. Como vimos no quarto capítulo da tese, a não validade legal
(Estado de Israel) do certificado de descendência judaica sefardita assinado pelo rabino
Amsalem provocou um racha na comunidade campinsense. Enquanto uma minoria, convicta
na boa fé dos atos praticados pelos rabinos Ventura e Amsalem durante os preparativos e
execução do Beit Din, permanece atrelada à SSF, formando novos grupos dissidentes da
Maguen David, a maioria rompe com o projeto por entenderem que houve uma má condução
dos seus organizadores no processo de conversão dos neófitos.
A figura de Ventura é, ao mesmo tempo, controversa e atraente. Por meio de uma
performance popular e emocional, de uma linguagem acessível e do bom domínio dos recursos
das redes sociais, o rabino agrega bastante poder carismático em torno dos grupos Bnei
Anussim esperançosos por algum tipo de reconhecimento identitário. Ventura é um grande
digital influencer. Seus posts e vídeos apresentam elementos da cultura judaica e de sua própria
142

história como rabino de um modo cativante, chamando a atenção não só das pessoas e
comunidades que se identificam com o judaísmo, mas também de um público geral, grupos que
nunca tinham ouvido falar nessas histórias, costumes, reflexões etc.
Segundo Ventura, o crescimento exponencial da SSF tem provocado desconforto em
integrantes da CIP. Há “perseguição ao seu projeto”, afirma o rabino em vídeos publicados em
sua página do Youtube para seus seguidores, provocando uma série comentários, a maioria a
favor do projeto encabeçado por Ventura. O rabino parece gostar e fazer bem esse papel de
ativista polêmico das redes sociais.
Ao que tudo indica, o desconforto não é apenas de membros da CIP e tão pouco se
restringe ao Brasil. Em 2018, uma representante do Ministério da Educação do Estado de Israel,
a antropóloga Malka Shabtay, veio ao Brasil para identificar e mapear as comunidades judaicas
de neoconversos e dialogar com elas, a fim de compreender o processo do Beit Din ocorrido
em julho de 2017, envolvendo o rabino Haim Amsalem, e outros fatos envolvendo a atuação
da SSF. No último tópico do presente capítulo retornaremos a esse monitoramento internacional
do Estado de Israel em relação aos imponderáveis culturais e políticos do judaísmo professado
pelo mundo afora.
Atualmente, pelos dados do próprio projeto (SSF, 2021), a Sinagoga Sem Fronteiras
acolhe 25 comunidades de Bnei Anussim pelo Brasil. As ações seguem lideradas pelo rabino
Gilberto Ventura, com apoio de sua esposa Jacqueline Ventura, agregando neoconversos mais
proativos como Aldrey, da comunidade Branca Dias, Campina Grande.
Paralelamente à coordenação das ações da SSF, Ventura dá aulas semanais onde há a
cobrança de uma taxa mensal para diversos grupos e promove palestras sobre temas
relacionados à cultura e história do judaísmo, marranismo no Brasil e no mundo, vertentes
contemporâneas do judaísmo, dentre outros, em todo Brasil, de modo presencial e online.
Durante a pandemia da Covid-19, Ventura intensifica a venda de seus cursos online pagos. Os
cursos são de diversas temáticas, desde história e língua hebraica até os motivacionais
(“autoajuda”) baseados em ensinamentos presentes em escritos sagrados do judaísmo.
Além de oferecer diversos cursos pagos e de coordenar a SSF, o rabino Ventura também
é escritor. O seu último livro O resgate dos Bnei Anussim (2020) 51 foi prefáciado pela
historiadora Anita Novinsky e narra a história das comunidades judaicas da Espanha e de

51
Ver maiores informações em: https://www.sefer.com.br/o-resgate-dos-bnei-anussim/4/
143

Portugal que migraram para o Nordeste do Brasil nos séculos XVI e XVII, sendo perseguidas
pelo Tribunal do Santo Ofício.
Ventura passa a ser conhecido como um “grande conhecedor da realidade Bnei
Anussim”, alguém que integra e funda um projeto que populariza o judaísmo junto ao “povo
brasileiro”, especialmente entre os nordestinos. Em dezembro de 2020, Ventura oferece, por
meio de anúncios em suas redes sociais, o curso sobre a Cabalah52 (ver imagem 25), que seria
“o estudo sobre as escrituras sagradas e [...] como elas podem ajudar no desenvolvimento da fé
e no autoconhecimento e desenvolvimento espiritual, mental e emocional”.
Imagem 25 - Gilberto Ventura oferece curso online sobre a Cabalah

Fonte: Página do Facebook de Gilberto Ventura.

Diante da “frieza” no trato com os judeus “não oficiais” e do descompromisso das


sinagogas e dos rabinos atuantes no Brasil em relação aos processos de reconhecimento dos
neoconversos, Ventura tornou-se um alento, alguém que assume uma postura ativa no

52
Seu nome deriva da palavra Kabbalah (QBLH), que em hebraico significa “recepção”. É considerada a
vertente mística do judaísmo que visa justamente conhecer Deus e o Universo. Para alguns, trata-se de uma
“revelação para eleger santos de um passado remoto”, reservada apenas a alguns privilegiados. Maiores
informações disponíveis em: https://0201.nccdn.net/1_2/000/000/172/f0d/SEGREDOS-DA-CABALA---Sergio-
Pereira-Couto.pdf
144

acolhimento das causas Bnei Anussim. Para alguns dissidentes do projeto SSF, Ventura
enxergou um “mercado” para esse tipo de prática. Sendo um homem esperto, encontrou no
drama dos novos convertidos, na busca kafkiana por reconhecimento estatal de Israel, um bom
nicho de mercado de cursos pagos sobre judaísmo, tribunais rabínicos pagos para conversão de
neófitos, certificados pagos de descendência judaica sefardita etc.
O sucesso do SSF depende muito do carisma e energia política do rabino Ventura, que
sabe muito bem utilizar as ferramentas discursivas de persuasão e mobilização, especialmente
por meio das mídias sociais, de adeptos ao projeto.

6.2 O “Nordeste judaico” imaginado

Como vimos na Introdução e no primeiro capítulo desta tese, existem três grandes fluxos
étnico-culturais de judeus e/ou descendentes de judeus no Brasil. O primeiro deles, por ordem
cronológica, é formado a partir da vinda forçada de judeus sefarditas, taxados então como
“cristãos-novos”, nos séculos XVI e XVII aos primeiros pólos (arraiais, vilas e cidades) da
colonização ibérica nas Américas, especialmente para a costa do que hoje é o Nordeste
brasileiro. É desse fluxo migratório colonial que as comunidades judaicas nordestinas
abordadas no presente trabalho se afirmam genealogicamente descendentes. O segundo deles,
por ordem cronológica, é a leva de judeus sefarditas, oriundos do Marrocos e de outras regiões
do norte da África, vinda para o Norte do país nas primeiras décadas do oitocentos. Esses grupos
se estabeleceram majoritariamente na Amazônia, principalmente em Belém, onde fundaram em
1824 a primeira de muitas sinagogas. É desse fluxo migratório que rabinos como Moysés
Elmescany, que durante anos estabelece uma boa relação com a comunidade Maguen David,
se afirma genealogicamente descendente. O terceiro e último deles, em ordem cronológica, é a
leva de judeus asquenazes, oriundos do Leste da Europa, aportada, sobretudo, nas regiões
Sudeste e Sul do Brasil na segunda metade do século XIX, a partir de esforços das políticas
imperiais de incentivo ao branqueamento da população brasileira e das experiências de guerra
e fome na Europa. Esse terceiro movimento migratório também se fez presente nas primeiras
décadas do século XX. É desse fluxo que rabinos como Alexandre Leone e Gilberto Ventura,
que mantiveram, por um determinado período de suas vidas, relações com a Maguen David, se
afirmam descendentes.
Enquanto os descendentes dos grupos de imigrantes dos fluxos aportados no Brasil a
partir do século XIX (sefarditas no Norte e asquenazes no Sudeste/Sul) vieram para cá
145

compreendidos como “judeus de fato e de direito”, aqueles que se declaram descendentes dos
cristãos-novos dos tempos coloniais precisam, em muitas situações, adentrar em intermináveis
processos de conversão ao judaísmo que exigem um grande dispêndio de energia psíquica e
recursos financeiros. Paradoxalmente, por serem considerados “conversos”, os judeus “filhos
da terra” precisam do aval “oficial” dos judeus filhos de imigrantes mais recentes para serem
reconhecidos pelo que são. Há uma inversão de tradições, em que o novo (“de fora”) ocupa o
lugar de hegemonia e oficialidade e o velho (“de dentro”) ocupa o lugar de marginalidade no
processo de controle identitário.
Esse paradoxo expôs as comunidades judaicas nordestina ao crivo de agentes e
instituições do judaísmo estabelecido no Brasil. A dependência do crivo de outrem tem
provocado a existência de relações assimétricas passíveis de processos de desinformação,
exclusão, dominação e estereotipação das “novas” (na verdade, mais antigas) identidades
judaicas vivenciadas na região Nordeste.
Historicamente, o Nordeste do Brasil é concebido como uma região de estereótipos
(lugar de seca, miséria, religiosidade e folclore primitivos) fabricados pelo “outro” e
incorporado pelo próprio “eu nordestino” (ALBUQUERQUE JR., 1999). Tais generalizações
sobre um “tipo humano” condenado a eternamente repetir suas tradições “regionais” acabam se
sobrepondo à existência complexa de indivíduos que fazem parte, em determinado momento
de suas vidas, de grupos Bnei Anussim. Assim, a primeira imagem construída pelo rabino
Gilberto Ventura, um sudestino, acerca da comunidade Maguen David não é a de um grupo
judaico formado por pessoas multifacetadas, repletas de subjetividades, e sim a de um grupo de
“nordestinos” que, por motivos contestáveis, se afirmam judeus. Por serem “regionais”, esses
judeus deveriam fazer preces em aboio, trajando gibão e chapéu de couro, ao som de “Asa
branca”. Ventura afirma que conhece bem esse povo que ajudou a construir o Brasil. Desde sua
infância, tem contato e estabelece afetos com os nordestinos. “É o porteiro do prédio, o
motorista de táxi, o garçom, estão em nossa volta e tem sangue judeu em suas veias”, disse em
uma entrevista que me foi concedida em janeiro de 2019.
O Nordeste não é apenas uma “região” no mapa do Brasil; trata-se de uma “cultura” de
linguagens e costumes próprios. A figura tipificada do “nordestino” faz parte do imaginário
nacional, do vocabulário pasteurizado do brasileiro médio, das piadas prontas, dos preconceitos
do noticiário jornalístico e dos planos de desenvolvimento regional. Mas o Nordeste e o
146

nordestino, enquanto objetos de apreciação e classificação cultural, são invenções prático-


discursivas recentes na enciclopédia nacional.

Até meados da década de 1910, o Nordeste não existia. Ninguém pensava em Nordeste, os
nordestinos não eram percebidos, nem criticados como uma gente de baixa estatura, diferente e
mal adaptada. Aliás, não existiam. As elites locais não solicitavam, em nome dele, verbas do
Governo Federal para resolver o problema de falta de chuvas, como registra Graciliano Ramos
em Vidas Secas, livro que se tornou filme famoso. Ademais, o problema mal era anunciado; era
apenas vivido. Sem grande visi/dizibilidade (RAGO, 1996, p. 13)

Ao longo de sua trajetória de contatos e trabalhos realizados junto a grupos de


neoconversos atuantes na região Nordeste, Ventura busca incorporar em sua performance
determinados elementos de uma nordestinidade folclórica. Dependendo do contexto da
apresentação e do público participante, o rabino se apresenta com um chapéu de couro adornado
por estrelas de Davi, simulacro daquele utilizado por vaqueiros e cangaceiros, e passa a entonar
um sotaque do que acredita ser a “fala do nordestino”, enfatizando o “visse” no final das frases
e recorrendo a clichês popularizados pela mídia de massa e pelo senso comum. Tais
performances fazem parte da estratégia da Sinagoga Sem Fronteiras de acionar o sentimento de
pertença nos sujeitos para provocar sua participação mais efetiva e atrair um número cada vez
maior de adeptos ao projeto que, ao contrário de outras sinagogas tradicionais, assume uma
postura proselitista. Estabelecendo uma comunicação mais direta e lúdica com um público de
possíveis fãs da SSF, Ventura compôs recentemente uma canção inspirada nos folhetos de feira,
dito “cordel judaico” chamado “Bar Mitzvá do Sertão” que, em vídeo postado no Youtube,
narrado com a ajuda de xilogravuras, diz assim:

eu lhe contarei um causo


ouça bem, cabra da peste
que se deu em Pernambuco
entre a Caatinga e o Agreste

tem vivido entre nós


desde a colonização
os cabra m se diz
descendente de pai Abraão
e que fugido de uma tal
de dona Inquisição
vieram do mar do Recife
aos pedregulhos do Sertão

o sujeito desse causo


se chama seu Jacobino
que mais sua mulher Sara
tem somente um menino
147

descarnado feito a seca


e astuto como artista
de precoce iniciou
na carreira de repentista

os três moravam numa choça


de madeira e palinha
cercada de bode magro
e um punhado de galinha
só comiam carne seca
e nem morto sarapatel
e no lugar de “pai nosso”
diziam “Shema Israel”

certo dia dona Sara


voltou fatigada da roça
e tomou um grande susto
ao adentrar em sua choça
deu de cara com seu homem
e outro de nome rabino
que falavam de um bar
com seu galego pequenino

meu galego é de menor


disse a moça arretada
se alguém levar pro bar
vou repartir pancada
e é melhor cê cair fora
vai de jegue ou de jangada
seu rabino antes que eu deixe
sua barba bem ralada

rabino picou a mula


mas no outro dia voltou
e a pedido de jacobino
o rapagote levou
pra cidade de Recife
para a rua dos judeus
direto pra sinagoga
onde rezavam pra D’us

eita rabino da gota serena!

ao voltar ao seu labor


dona Sara constatou
com painho Jacobino
que o rabino levou
seu pequeno filhotinho
pro Recife, para o bar
e saindo pela rua
ela pôs-se a trovejar

delegado me acuda
traz de volta meu menino
que tá pra ser encachaçado
por um tal de seu rabino
com a ajuda deste jegue
chamado de Jacobino
148

foi levado para o bar


pobrezinho do menino

dona Sara me desvende


onde fica este bar
vilarejo, rua, nome
me revele o lugar
que lá ligeirinho irei
pra com isto acabar
e o rabino atrás das grades
toda a vida vai ficar

delegado, o lugar onde


fica o bar eu não sei
somente o nefasto nome
deste lugar eu direi
é um nome bem difícil
de poder pronunciar
é um nome esquisito
parece que é “bar mitzvah”

o xerife explodiu
de tanto rir caiu no chão
causo hilário como este
há muito não vejo não
dona Sara esqueceu
sua própria tradição
confundiste com um bar
sua primeira comunhão

eita bar mitzvah da gota serena!

Em entrevista concedida em março de 2015 à jornalista Érika Zaituni do Jornal O povo


acerca da “regionalização do judaísmo” no Brasil, o rabino Gilberto Ventura defende que “o
judaísmo brasileiro, social e dialógico, escrito em cordel, rezado em aboio, embalado na viola,
brindado na cachaça e coroado pelo chapéu do boiadeiro voltou”. Para Ventura, buscar viver o
“judaísmo nordestino” é tão ou mais legítimo do que presenciar judeus europeus preservando
suas tradições ortodoxas. O rabino sempre faz comparações entre as “culturas” da Europa e do
Nordeste para evidenciar a importância das raízes locais na configuração de um “judeu
sertanejo”. Fazendo um paralelo entre os trajes típicos, ele simetriza a força dos símbolos locais:
“o chapéu de boiadeiro com a estrela de Davi pode ser tão judaico quanto o chapéu e o terno
preto que marcam a ortodoxia de um judeu europeu”. Ao ouvir tal discurso, os neoconversos
costumam aplaudir a defesa que um rabino paulistano faz de sua “cultura regional”.

O regional, nesse caso, é incorporação da alteridade do outro pelo eu, a exemplo de Said (1990).
É com desembaraço que nos assumimos “regionais”. Nas palavras de Albuquerque Jr.: “devemos
suspeitar que somos agentes de nossa própria discriminação, opressão ou exploração” (1999:
149

21). Se os nordestinos se justificam existencialmente como um grupo discriminado, regional,


tornam-se potenciais agentes de recebimento de dádivas (BRAGA, 2013: 108)

No caso da relação entre as comunidades judaicas nordestinas e a SSF, essas dádivas se


revestem de orientações, cursos, ritos de conversão e promessas de reconhecimento “oficial”
futuro. Em linguagem maussiana, podemos dizer que são dádivas e, ao mesmo tempo, são
venenos por portarem junto com o conhecimento adquirido uma situação de dependência cíclica
dificilmente superável do recebedor em relação ao doador.
A SSF se assume como parte do judaísmo estabelecido, liderada por um rabino
“comprovadamente judeu” que é sensível à causa Bnei Anussim. São judeus lembrados que
“dão voz aos irmãos esquecidos” por meio de acolhimento e orientações religiosas. Os
acolhidos pelo projeto são outsiders, novos convertidos em busca de reconhecimento dos
estabelecidos. São reiteradamente alertados de sua condição de nordestinos exóticos que
pelejam para falar e ler em hebraico e para cumprir ritos de conversão. No final das contas, os
(“que se dizem”) judeus no Nordeste não são tradicionais por uma linha genealógica do tempo
que os reconecta com os cristãos-novos do período colonial e sim por serem nordestinos,
representando um folclore mais autêntico de um Brasil imaginado.
À revelia desses estereótipos do imaginário sudestino, os judeus nordestinos se sentem
ligados a laços de sangue e civilizacionais tão ou mais substanciais (e puros) do que as tradições
trazidas para o Brasil pelos judeus diaspóricos que aportaram nas regiões Sudeste e Sul do
Brasil tempos depois.

6.3 A IV Yeshivá do Sertão em São Paulo

Para os jovens participantes das comunidades judaicas de Campina Grande e de


neoconversos de modo geral, quanto mais convidativas forem as propostas para vivenciar o
judaísmo, mais ativamente a assembleia vai participar. Faz parte dos objetivos da SSF
apresentar a esse público juvenil um judaísmo mais atraente, com os pés apoiados na tradição
e os olhos direcionados para a contemporaneidade. Dessa forma, o projeto busca manter certos
ritos judaicos considerados mais ortodoxos, produzindo um desejo dos jovens pelo exotismo de
práticas tão antigas e, ao mesmo tempo, conecta a sinagoga às redes sociais apresentando uma
linguagem atualizada em performances de youtubers showman.
150

Uma das formas de atrair os jovens para o projeto é promover encontros entre eles em
cursos e momentos celebrativos como a Yeshivá do Sertão. A Yeshivá do Sertão é um encontro
de jovens organizado desde 2017 para conectar as novas gerações Bnei Anussim ao universo
cultural do judaísmo praticado no Brasil e no mundo. “Yeshivá” (do hebraico ‫ )ישיבה‬significa
“assento”; é o nome dado às instituições ou reuniões dedicadas ao estudo da Torá e do Talmud.
A escolha por “Sertão”, em vez de “Nordeste” por exemplo, provavelmente se deu para
imprimir no encontro uma ideia mais simbólica e poética dos Bnei Anussim nordestinos. A
ideia da Yeshivá do Sertão nasceu de rabino Ventura, que sonhava em traduzir as tradições
judaicas para os valores da juventude do século XXI. A primeira edição do encontro ocorreu
em uma casa de praia em Lucena, litoral norte da Paraíba, no final de 2017, reunindo jovens de
comunidades judaicas Paraíba e de Pernambuco. A segunda edição da Yeshivá foi realizada em
fevereiro 2018, em Campina Grande, com a participação apenas das comunidades campinenses.
A exemplo da primeira, a terceira edição também foi realizada em uma casa de praia, desta vez
localizada no município de Tibau do Sul, Rio Grande do Norte, nos primeiros meses de 2018,
contando com a participação de jovens de vários Estados do Nordeste. Diferente das demais, a
quarta Yeshivá do Sertão ocorre em São Paulo capital, na própria sede da SSF recém
conquistada, reunindo, segundo informações do site do projeto, 25 comunidades advindas
especialmente de Estados do Nordeste, mas com a presença de jovens Bnei Anussim de outras
localidades do país.
Para realização da IV Yeshivá do Sertão, a SSF montou um “acampamento” em uma
grande casa localizada em rua movimentada do bairro Jardim Paulistano, São Paulo. Os jovens
acolhidos são hospedados no mesmo local onde ocorrem os encontros, com quartos e banheiros
reservados para as meninas e meninos, alimentação disponível o dia todo e atividades
distribuídas nos três turnos do evento. A exemplo do que ocorre na maioria dos espaços
alugados ou próprios que funcionam como sinagogas improvisadas das comunidades judaicas
nordestinas, na parte externa da casa que abriga a SSF não há nada que possa ser associado a
um templo religioso. Não há símbolos judaicos no portão, em alguma placa instalada, nada. É
uma casa grande, com primeiro andar, protegida por um muro e um portão alto, pintados de
uma cor escura, quase preta, sem nenhuma placa que indicasse que ali havia uma sinagoga.
Quando se adentra nela, é que se percebe a existência de símbolos do Estado de Israel,
bandeiras, estrelas de Davi, candelabros, castiçais com velas acesas, comidas e bebidas casher.
Logo na entrada, há uma banquinha expondo quipás, a bandeiras de Israel, camisetas, comidas,
151

livros, CDs e artigos religiosos judaicos, que eram vendidos por um pernambucano de nome
Miqueias, com autorização do rabino Ventura.
A IV Yeshivá do Sertão é evento que faz parte do calendário anual da SSF. A Yeshivá
é um encontro direcionado para os jovens que desejam se aprofundar nos conhecimentos e
práticas judaicas. O encontro funciona como uma iniciação ao judaísmo. Nesse momento, os
participantes se familiarizam com a história dos hebreus e de Israel, aprendem a leitura da
Torah, têm aulas de hebraico e de alguns costumes judaicos. Uma das propostas da Yeshivá é
o desenvolvimento de relações de amizade com um grupo de interesses semelhantes e fé
compartilhada ao longo de cerca de vinte dias.
Ventura é o grande organizador das Yeshivás. No quarto encontro, ele contou com a
contribuição fundamental de sua esposa Jacqueline, que acompanha o rabino em muitos de seus
trabalhos, e de sua mãe, dona Perola Pintchowsky. A maioria dos participantes da IV Yeshivá
do Sertão são de comunidades judaicas nordestinas, os ditos “Bnei Anussim”. Estavam
presentes no encontro integrantes da comunidade Branca Dias, Campina Grande, Paraíba; da
Shomer Israel, João Pessoa, Paraíba; da Beit Isaac Abravanel, Belo Jardim, Pernambuco, entre
outras. São jovens de origem de famílias menos abastadas, com idade entre 15 a 18 anos, que
já se dedicavam conhecer o judaísmo e a língua hebraica de forma autodidata. Além dos
nordestinos, se fizeram presentes no encontro jovens paulistanos de classe média, moradores
de bairros mais próximos do Jardim Paulistano. Alguns deles já tinham algum tipo de relação
com Ventura. É importante salientar que Ventura tem se envolvido com movimentos da
periferia em São Paulo. Enquanto uma minoria dos participantes é custeada pelos pais, a maior
parte dos presentes na Yeshivá é formada por jovens de camadas menos abastadas da sociedade,
vindos da Paraíba, de Pernambuco e do Rio Grande do Norte. Segundo Ventura, “muitos desses
jovens são vindos de famílias humildes. Não cobramos a estadia deles porque sabemos da
condição. Muitas famílias enviam esses jovens através de rifas feitas, então eles chegam aqui e
aqui nós os instruímos dentro da lei judaica”.
A SSF também arrecada doações de apoiadores do projeto para realização de encontros,
como os Yeshivás, por meio do site “Vakinha”. (Ver imagem 26). Ao que tudo indica, a SSF
funciona apenas por meio de doações do voluntariado ou das matrículas e mensalidades dos
cursos oferecidos por Ventura, Aldrey e outros integrantes da sinagoga. O projeto não recebe
apoio financeiro de editais públicos ou de patrocínios privados. A parceria de instituições como
152

a Fundação Zera Israel não implica em repasse de recursos financeiros e sim à divulgação mais
ampla do projeto e às prestações de serviços religiosos por parte do rabino Haim Amsalem.

Imagem 26 - Recorte da Página da “vakinha” para IV Yeshivá do Sertão

Fonte: vakinha.com.br.

Durante a programação do encontro, são organizados alguns passeios coletivos pela


cidade de São Paulo (um por semana). Os locais de visita são escolhidos por meio de votação
dos participantes. Em um desses passeios, os jovens tiveram a oportunidade de conhecer o
centro da capital paulistana utilizando a rede de metrô.
Ao reunir esses jovens em torno da fé judaica e de uma série de conhecimentos, segundo
Ventura, se potencializa uma ação social e cultural em um meio que necessita de debates,
aprendizados e histórias positivas e produtivas. Assim, o objetivo do encontro não é só saber
falar o hebraico e sim transformá-los em “cidadãos judeus plenos”. Como vimos no tópico
anterior do presente capítulo, para Ventura, a SSF tem um papel “social” a cumprir diante dos
grupos de neoconversos. As relações estabelecidas pelo projeto com os jovens dessas
comunidades configuram redes de dependência a um “centro” dadivoso, que passa a ajudar
pessoas naturalmente carentes de uma região naturalmente carente, potencializados pelos
153

estereótipos produzidos sobre um “Nordeste imaginado”, seco, pobre e à espera de ações


sociais.
Mesmo propondo uma visão mais aberta do acolhimento de pessoas “de fora” para
acesso ao judaísmo, internamente a SSF prioriza determinados elementos ritualísticos da
religiosidade ortodoxa, como a separação física entre homens (meninos) e mulheres (meninas).
Além disso, durante a leitura da Torá e o entoar dos cânticos, as vozes masculinas devem ter
mais destaque no que as femininas. O sucesso do projeto se deve, entre outras coisas, a esse
jogo de captação de adeptos, abrir a sinagoga para os neófitos e, ao mesmo tempo, ser fiel às
tradições judaicas na lide interna do cotidiano e da organização das festividades. Ventura sabe
que o que muitas vezes atrai esses jovens à SSF é o exotismo das práticas judaicas de tempos
mais antigos.
As mesas e cadeiras das salas onde ocorrem as atividades oferecidas pelo projeto durante
a IV Yeshivá são dispostas em forma de “U”, assim todos podem ser observados ao mesmo
tempo por todos e podem concentrar mais atenção ao ministrante do curso ou “oficina” que
transita pelo centro do espaço (ver imagem 27). A maior parte dos trabalhos ocorrem na sala
principal da casa, um ambiente amplo, naturalmente ventilado e com dois ventiladores dispostos
ao fundo que ajudam na melhor circulação do ar. Do salão, local das reuniões e dos shabats,
temos acesso à cozinha, com uma extensa mesa que serve de refeitório aos participantes. No
primeiro andar da casa, há quatro dormitórios, sendo uma suíte, dois banheiros sociais e um
escritório onde o Ventura cuida da parte administrativa da SSF e faz as gravações para seu canal
no Youtube.
As atividades em grupo são revezadas pelos organizadores da sinagoga, geralmente
membros da família de Ventura, especialmente sua esposa Jacqueline e sua mãe, dona Perola,
ou jovens prodígios como Aldrey, da comunidade Branca Dias, Campina Grande. Jacqueline,
uma mulher de meia idade, é a responsável pela culinária judaica servida aos jovens e pela
organização do espaço da sinagoga. Dona Perola é uma senhora de idade mais avançada, com
visão limitada, bastante envolvida com os jovens que frequentam a sinagoga. Sendo artista
plástica, normalmente, ela se encarrega dos cursos envolvendo pintura e artesanato.
154

Imagem 27 - Jovens participando de atividade na IV Yeshivá do Sertão, SSF.

Fonte: Foto de Mirella Braga, arquivo pessoal da autora.

Nos dias em que pude participar da IV Yeshivá, estavam em momento de shabat, entre
a sexta e o sábado. Estava em São Paulo com minha família. Enquanto minha filha, Maria Luiza
(que na época tinha 6 anos de idade), interagia mais à vontade com alguns jovens e, na maior
parte do tempo, ficou pintando desenhos na mesa da cozinha, com a ajuda da esposa e da filha
do rabino Ventura, eu e meu esposo Emanuel, também antropólogo, cuidamos de observar e
participar, na medida do possível, dos ritos daquele shabat. No início da noite da sexta, houve
as preces e a leitura da Torá, que foram conduzidas por Aldrey, sob atento monitoramento de
Ventura. A celebração foi realizada na grande sala principal da casa. Um retroprojetor expunha
na parede branca fotografia e vídeos com imagens de símbolos judaicos. Havia também uma
espécie de púlpito disposto em frente ao público formado, onde Aldrey fazia a leitura da torá e
os demais direcionamentos ritualísticos. À moda ortodoxa, as meninas foram dispostas
separadamente dos meninos em cadeiras de plástico brancas espaçadas por um espaço deixado
entre os grupos. Mesmo estando à vontade em casa onde estão hospedados, durante o shabat os
meninos usavam calças, camisas mais sociais e quipás ou chapéus de cores escuras. As meninas
usavam vestidos longos ou blusas mais fechadas compostas com saias longas. Evitavam
155

adornos, joias e maquiagem (ver imagem 28). Diferentemente do que ocorre nas comunidades
judaicas campinenses, especialmente Maguen David e Beit Israel, as jovens que participavam
do shabat organizado pela SSF não utilizavam véu de proteção dos seus cabelos e rostos. Os
jovens buscavam repetir cada gesto conduzido por Aldrey, se curvavam, se sentavam e se
levantavam, buscando evitar erros nas técnicas do corpo e no desenvolvimento da leitura,
conforme a indicação do celebrante. A leitura guiada por Aldrey era replicada pelos demais de
forma rápida e intensa com breves pausas para respiração. O uso disciplinado dos adereços
judaicos e o cuidado com a correção técnica dos gestuais e pronúncia de palavras é, de fato,
como nos lembra Barth (2000), o processo de revelação dos segredos da manipulação de
símbolos concretos, tarefa precípuo de um iniciador perante os seus seguidores.
Imagem 28 - Meninas no momento da celebração do Shabat durante a IV Yeshivá do Sertão na sede da SSF em
São Paulo.

Fonte: Foto de Emanuel Braga, arquivo pessoal da autora.

6.4 O Projeto Sinagoga Sem Fronteiras e a Fundação Zera Israel

Embora tenha características próprias relacionadas ao contexto dos judaísmos


praticados no Brasil e às idiossincrasias de seu fundador, Gilberto Ventura, o projeto Sinagoga
156

Sem Fronteiras faz parte de um movimento mais amplo de acolhimento das demandas de judeus
que foram forçados a negar suas identidades originais em determinadas conjunturas históricas
de intolerância religiosa. Dentro desse movimento, a Fundação Zera Israel (ver imagem 29),
uma organização sem fins lucrativos, tem se destacado no cenário internacional por sua rede de
relações e influências em diversas partes do mundo. Atualmente, a Zera Israel tem sede em
Genebra, Suíça, e tem como missão apoiar comunidades Bnei Anussim dispersas em diversas
localidades, buscando reaproximá-las das dimensões históricas e cidadãs do Estado de Israel.
A Suíça, e não Israel, tornou-se a “casa” da Fundação por conta da atuação e influência de um
de seus co-fundadores, o rabino Haim Amsalem na região. Nos anos 1990, ele foi nomeado
rabino da comunidade judaica sefardita que integra a Sinagoga Heichal Haness em Genebra,
cargo que ocupou até entrar no Knesset, em 2006. A categoria “Bnei Anussim” é a mais
utilizada no meio dos agentes políticos envolvidos com a Fundação. É nos discursos e ações
da Zera Israel que o projeto de Ventura pode se articular com mais poder ideológico e, mesmo,
financeiro no trabalho de “resgate” das comunidades judaicas nordestinas vinculadas ao
projeto.
Imagem 29 - Logomarca da Fundação Zera Israel

Fonte: Site da Fundação Zera Israel.

Como vimos no quarto capítulo, em 2011, o rabino Haim Amsalem, juntamente com
outras lideranças rabínicas e políticas rechaçadas pela nova cúpula que então se estabelecia no
Estado de Israel, criam a Fundação Zera Israel. A instituição assume os mesmos princípios e
157

objetivos do SHAS, partido que contava com a ativa participação do Amsalem, passando a atuar
em várias frentes da sociedade civil em Israel e em outros países.
A Zera Israel recebe o apoio financeiro de empresários como Arie Toledano, um dos
fundadores da Fundação e seu atual presidente. Depois de mais de 30 anos de carreira em uma
empresa de tecnologia digital na França, Toledano resolve se dedicar ao fortalecimento da
instituição. Toledano tem origem israelita e milita pelas causas judaicas desde sua juventude.
Em sua trajetória, sempre buscou apoiar as comunidades judias na França e em Israel.
A Zera Israel tem o objetivo de alcançar comunidades sefarditas não reconhecidas por
Israel no mundo todo (ver imagem 30), mas atualmente segue suas atividades e formação de
uma rede de influência em determinadas regiões de países como Itália, México e Colômbia. No
Brasil, o rabino Ventura e sua SSF se tornam o principal canal de articulação da Fundação Zera
Israel.
Imagem 30 - Rabino Amsalem da Zera Israel em arte para divulgação de um podcast.

Fonte: Página do Facebook da Fundação Zera Israel.

Assim como a SSF, a Fundação Zera Israel a funciona apenas por meio de doações do
voluntariado ou das matrículas e mensalidades dos cursos oferecidos por Amsalem e outros
rabinos integrantes do projeto. Tanto o SSF (ver imagem 31) como a Fundação (ver imagem
158

32) possuem páginas bastante ativas nas redes sociais, com canais destinados especificamente
a doações e ampliação de parcerias que visam, do ponto de vista discursivo, reaproximar os
judeus dispersos pelo mundo às dimensões históricas e cidadãs do judaísmo capitaneadas pelo
Estado de Israel.
Imagem 31 - Capa da Página do Facebook da SSF

Fonte: Página do Facebook da SSF.


159

Imagem 32 - Capa da Página do Facebook da Fundação Zera Israel

Fonte: Página do Facebook da Fundação Zera Israel.

Talvez o ápice da aproximação entre Fundação Zera Israel e Sinagoga Sem Fronteiras
e, especialmente, dos rabinos Amsalem e Ventura em um projeto conjunto no Brasil, seja a
organização do Beit Din na praia de Ponta de Campina, Cabedelo, Paraíba, em julho de 2017.
Como vimos no quarto capítulo da tese, esse evento marca processos de reorganização político-
identitária de comunidades judaicas nordestinas, especialmente no contexto de Campina
Grande. Enquanto alguns poucos neoconversos decidem se afastar da SSF em razão de
decepção com o projeto de Ventura, há um crescimento vertiginoso de adeptos da sinagoga por
meio da formação de novas comunidades religiosas e da adesão de um público de jovens
interessados na experiência judaica (imagem 33).
160

Imagem 33 - Amsalem (de gravata sentado ao centro), Ventura (de camisa azul, sentado) e outros
parceiros da Fundação Zera Israel em Tibau do Sul, Rio Grande do Norte.

Fonte: Página do Facebook da Sinagoga Sem Fronteiras.

6.5 A missão do Ministério da Educação de Israel junto aos judeus neoconversos do


Nordeste brasileiro

Desde outubro de 2015 data da primeira Comissão do Knesset (Parlamento de Israel)


para a reconexão com descendentes de Comunidades Judaicas Espanholas e Portuguesas 53 ,

53
Maiores informações podem ser acessadas em: https://www.conib.org.br/instituto-para-estudos-sefaradis-e-dos-
anussim-em-israel-realiza-simposio-para-bnei-anussim-brasileiros/
161

presidida por Robert Ilatov, o Estado de Israel passou a preocupar-se (ainda que timidamente)
com o processo de conversão e de integração dos Bnei Anussim à comunidade judaica e
israelense. Não é nada consensual no Estado de Israel, entre autoridades que compõem o
Knesset, as demandas por reconhecimento dos Bnei Anussum como judeus com direitos à
cidadania israelita. Em meio ao crescimento de comunidades marranas pelo mundo afora, o
Estado de Israel observa preocupado o fenômeno das conversões e passa a planejar e executar
ações voltadas para monitoramento diplomático dos movimentos étnico-religiosos que se
autodenominam “judeus” no Brasil e alhures.
A preocupação com a aferição de quem deve ou não ser reconhecido como judeu para
efeitos da concessão da cidadania israelense é de tal ordem que motivou o planejamento e
execução de uma política de monitoramento dos processos de conversão de Bnei Anussim e
outras formas identitárias judaicas não hegemônicas ao redor do mundo. Estruturado a partir de
mitos fundadores da história étnica e da teologia judaica, Israel fundamenta parte significativa
de suas políticas de Estado em razões religiosas de proteção do judaísmo contra riscos de
deslegitimação ideológica e conflito bélico. Assim, os planos e ações de controle do acesso de
pessoas supostamente não judias à cidadania israelita é tratado intersetorialmente entre vários
Ministérios, especialmente pelas pastas da Diáspora, da Justiça e da Educação.
O Ministério da Educação de Israel é a pasta do Estado encarregada de supervisionar as
instituições de educação pública em Israel. O Ministério tem um Ministro da Educação, que é
também membro do gabinete e auxiliares técnicos no quadro, especialistas em diversas áreas
do saber, entre filósofos, antropólogos, historiadores, dentre outros. Ao longo dos anos, o
sistema educação israelense passa por mudanças, estruturais, organizacionais, constitucionais,
de conteúdo. A educação em Israel é relativamente autônoma para cada etnia. Alunos judeus
estudam na língua hebraica enquanto os alunos árabes estudam em árabe. Em cidades mistas,
como Haifa e Lod (judeus e árabes) há escolas multiétnicas54. Cabe ao governo do estado de
Israel o gerenciamento/administração do sistema voltado a atender aos valores centrados na
língua hebraica, na imigração, em Jerusalém e na paz entre os povos.
Em 2006 a antropóloga Malka Shabtay em um artigo de sua autoria, intitulado
“Introduction: Applied Anthropology in Israel 2006”, falou que “No Estado de Israel, os
antropólogos estão principalmente envolvidos com os desafios cada vez maiores da integração

54
Vide em: https://abmes.org.br/
162

multiétnica e multicultural da sociedade em que vivem, dentro do contexto de construção da


nação”. (Tradução livre nossa).
Assim, interessa o detalhe ao Estado de Israel em acompanhar as relações construídas
nas comunidades Bnei Anussim no Brasil e as identidades judaicas outiders, tendo como ponto
o Ministério da Educação, que já desenvolve ações voltadas para a integração multiétnica dos
povos.
Malka é consultora do Ministério da Educação por ser ela especialista há mais de trinta
anos em treinamento intercultura envolvendo pesquisas com jovens em risco, judeus ortodoxos
árabes israelenses e novos imigrantes. Professora, Antropóloga, doutora em Filosofia pela
Faculdade Ben-Gurion University of the Negev (Israel) em 1995, pesquisadora, dedica seus
estudos há mais de 36 anos a estudar os judeus etíopes, integrando o Ministério da Educação
desde 2007 até o presente momento da escrita da presente tese. A pasta da Educação possui
ligações diretas com o Ministério da Diáspora e o Ministério da Justiça. Diferentemente das
funções ministeriais da Educação, as pastas da Diáspora e da Justiça se dedicam, entre outras
coisas, aos processos formais que envolvem a defesa dos Direitos Humanos (que trata de
violação da vida ou dignidade de uma pessoa).
Diante da preocupação do Estado de Israel com o crescimento do número de
comunidades Bnei Anussim postulantes à conversão, a antropóloga Malka é enviada entre os
meses de agosto e setembro de 2018 para contatar grupos em algumas localidades do Brasil a
fim de elaborar um relatório sobre a situação dos neoconversos. Um dos focos da missão é
observar as relações das comunidades como a Maguen David, que um ano antes (2017) havia
participado de um Beit Din, com projetos como o da Sinagoga Sem Fronteiras. A antropóloga
aporta primeiramente em São Paulo, onde faz visitas às instituições judaicas como CIP, A
Hebraica, entre outras. Da capital paulista, segue para Recife, onde é recebida por Renato
Athias, judeu nascido em Belém, Pará, e professor de Antropologia do PPGA/UFPE. O
professor Renato informa a Malka sobre minha pesquisa junto às comunidades de neoconversos
de Campina Grande e a antropóloga se interessa em obter mais informações diretamente
comigo. De Israel, Malka já tinha estabelecido contato com Alessandro, líder da Maguen David,
e desejava conhecer de perto a realidade local. Tivemos dois encontros, no primeiro momento,
pudemos conversar brevemente na sala do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Etnicidade
(NEPE), PPGA/UFPE, e, uma semana depois, estive presente no momento de sua visita que a
163

antropóloga fez à sede da Maguen David, em Campina Grande, onde ficou hospedada na casa
de Jessé e Ana Elya.
No encontro que tivemos no PPGA, Malka comentou que o Estado de Israel tinha a
intenção de mapear as comunidades brasileiras Bnei Anussim com o propósito de integrá-los,
da melhor forma possível, à nação. Com a aproximação dos 80 anos de criação do Estado de
Israel, o governo israelense tem se preocupado em acolher outras formas e experiências de se
identificar com o judaísmo nas diversas regiões do globo. A conversa com Malka durou mais
de duas horas, momento em que pude repassar algumas informações sobre as relações das
comunidades Bnei Anussim no Nordeste brasileiro com a SSF. Além do professor Renato
Athias estavam presentes na sala do NEPE, Thayane Fernandes (estudante do PPGA/UFPE) e
Jefferson (técnico administrativo da UFPE e frequentador da comunidade Bnei Anussim de
Olinda). Jefferson ajudava a traduzir algumas das minhas falas para o inglês, quando Malka não
conseguia compreender no português.
Participando de um shabat organizado pela comunidade Maguen David, em Campina
Grande, Malka, acompanhada por sua filha Tevel, uma adolescente de 15 anos que
acompanhava a mãe nas viagens ao Brasil, falou enfaticamente para todos os presentes na
reunião da preocupação do Estado de Israel com o envolvimento das comunidades Bnei
Anussim brasileiras com ritos não oficiais de conversão como os promovidos pela SSF. Tais
processos causariam frustração e descrença na Lei de Retorno e no Estado de Israel. Quando
ocorrem essas situações, agentes do Ministério da Educação são enviados para observação e,
se possível, orientação das comunidades a respeito de informações sobre o funcionamento do
sistema e do acesso à cidadania israelita.
Malka visitou a comunidade Maguen David em Campina Grande em uma noite de
shabat (ver imagem 34), aproveitando para observar as formas de organização e vivência dos
ritos, especialmente as preces, a divisão de gênero, a leitura dos textos sagrados em hebraico e
os cânticos. A sua participação em um shabat fazia parte do processo de monitoramento de
comunidades judaicas outsiders.
164

Imagem 34 - Malka e a filha Tevel em um shabat na comunidade Maguen David

Fonte: Página do Facebook da Sinagoga Maguen David, 2018.

Após sua passagem por Campina Grande, Malka seguiu viagem para o Rio de Janeiro.
Realizou visitas em comunidades Bnei Anussim no Rio de Janeiro antes de retornar para Israel
para compreender a dinâmica apresentada pelos atores sociais. Malka realizou uma palestra
intitulada “Os judeus esquecidos” na Associação Religiosa Israelita – ARI (ver imagem 35). A
Associação é uma organização sem fins lucrativos, sediada na capital do estado do Rio, no
bairro de Botafogo, fundada em 1942, que tem como objetivo a promoção do judaísmo
conectado ao passado e ao mesmo tempo integrado aos dias atuais, conforme descrição presente
na página da associação 55 . A antropóloga israelense observou não apenas a forma de

55
Vide http://arirj.com.br/
165

organização das comunidades, mas durante sua passagem pelo Brasil na região Nordeste, nos
estados de Pernambuco e da Paraíba, em São Paulo e no Rio de Janeiro observou as dinâmicas
do judaísmo e suas mais diversas artes do fazer desde o processo que as comunidades enfrentam
ao pleiteir a formalização do processo de conversão, a assimilação do judaísmo e suas práticas,
bem como a diversidade de leituras, preces, cânticos produzidos pelas comunidades Bnei
Anussim espalhadas ao longo do Brasil.

Imagem 35 - Palestra “Os judeus esquecidos” - Associação Religiosa Israelita (ARI), Rio de Janeiro/RJ.

Fonte: Instagram @AriAssociacaoReligiosaIsraelita.

O rápido crescimento das comunidades Bnei Anussim, sobretudo nos últimos anos, tem
chamado a atenção do Estado de Israel. Essa expansão “descontrolada” motiva, cada vez mais,
a adoção de um programa multifacetado de inspeções e normativas para proteção do status
étnico-religioso do judaísmo hegemônico e dos direitos abarcados pela cidadania israelita.
166

Do ponto de vista legal, o Estado de Israel buscou assegurar o controle da multiplicidade


identitária judaica desde o final dos anos 1980. A Suprema Corte Israelense estabeleceu no ano
de 1989 que os processos de conversão realizados fora das fronteiras do Estado de Israel devem
ser oficialmente reconhecidos e abarcados pela Lei do Retorno, pouco importando a corrente
religiosa do rabino que a tenha realizado, se ortodoxa, reformada ou liberal. O acórdão
paradigmático visou integrar os dispositivos legais fragmentados em um corpo sistemático de
normas. Entretanto, mesmo depois do acórdão, as divergências sobre a legitimidade das
conversões permaneceram e, em 31 de março de 2005, uma ala das autoridades religiosas
israelenses se junta a representantes do governo de Israel para instalar uma comissão
interdenominacional objetivando o estabelecimento de consensos sobre o tema. A Rabanut faz
parte da própria estrutura do Estado de Israel, o que dificulta as demandas por conversão dos
grupos que estão à margem do judaísmo estabelecido.
Existem cerca de setenta tribunais rabínicos ortodoxos estabelecidos ao redor do mundo,
metade deles nos Estados Unidos. Muitos postulantes à conversão ao judaísmo optam pela
realização da conversão nos Estados Unidos devido a menor burocracia exigida pelo Beit Din.
Foi o caso do Davi André, líder da comunidade Amigos da Torah, que adquiriu seu “título de
judeu” em um tribunal formado nos Estados Unidos. Como demonstramos ao longo da tese,
mesmo com o documento em mãos, Davi André encontra dificuldades de legitimá-lo perante
as demais comunidades, sendo muitas vezes acusado de “não judeu” e praticante do “judaísmo
messiânico”.
O Brasil, assim como a maioria dos países, não possui tribunal rabínico autorizado a
iniciar processos de conversão de judeus. Para os brasileiros postulantes à conversão, oferecidos
programas de estudo em que jovens são enviados para escolas judaicas equivalentes ao ensino
médio como o Yemin Orde no Estado de Israel.
Para os Bnei Anussim, afirma Salomon Buzaglo, diretor do Instituto para Estudos
Sefaraditas e dos Anussim (ISAS) do Netanya Academic Colleg, “é preciso que o Estado de
Israel” amplie essas “oportunidades”, encontrando “uma forma de permitir que esses candidatos
possam estudar no país por um ano com um visto de estudante no intuito de solidificar as raízes
judaicas e transmitir conhecimentos que possibilitem o fortalecimento das comunidades no
Brasil quanto ao processo de retorno.
Como vimos não existe uma uniformidade nas narrativas e ações das “artes de se tornar
judeu”. Coexistem várias possibilidades existenciais definindo conflitos e consensos entre
167

judeus ortodoxos e liberais, “semi-religiosos” e leigos, grupos estabelecidos e outsiders, um


campo diverso, multitifacetado, administrado pelo estado de Israel, o cenário maior de toda essa
trama. Para os Bnei Anussim resta talvez a vontade e a expertise da “arte do fazer”, “do tornar”.
Como afirma Kiko, “Para mim ser judeu é se sentir judeu. Não importa o que um acha que é o
judaísmo. É você fazer seu judaísmo, eu faço o meu judaísmo”. Ou talvez nos dizeres de Ana
Elya, “É preciso estar sempre participando, em contato com o Eterno, o judaísmo somos nós”.
168

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os capítulos da presente tese buscaram dar conta dos processos de formação, cisão e
reinvenção de comunidades judaicas atuantes em Campina Grande, Paraíba, a partir da
descrição das relações vivenciadas por esses grupos junto a lideranças e instituições do
judaísmo estabelecido nos cenários nacional e internacional. A exemplo de outros conversos
atuantes no Nordeste e em outras regiões do Brasil, os judeus campinenses (que se autodeclaram
“Bnei Anussim”, “marranos” ou “sefarditas”) se constituem, majoritariamente, a partir de
dissidências de igrejas evangélico-neopentecostais que estão em busca de verdades teológicas
presentes em livros sagrados (Antigo Testamento da Bíblia e Torá) e da redescoberta de
genealogias sanguíneas de famílias de cristãos-novos que aportaram no “Novo Mundo”,
especialmente na região onde hoje se situa o Nordeste brasileiro, em séculos coloniais passados.
De modo bastante diversificado, as comunidades de neoconversos se organizam em
torno do domínio de conhecimentos judaicos (língua hebraica, leitura da Torá, cumprimento de
regras dietéticas etc.) e de práticas cotidianas atentas a um calendário de ritos religiosos, a fim
de se tornarem conhecidas e reconhecidas por autoridades rabínicas e agentes estatais de Israel.
Esses grupos, dentro de suas perspectivas particulares, fazem parte de um fenômeno social de
reinvenção (wagneriana) do judaísmo contemporâneo no Nordeste brasileiro e em outras
regiões do mundo. Tais processos de formação de novas identidades judaicas foram descritos e
analisados por autores como Ramagem (1983), Cukierkorn (1994), Ross (2000), Wachtel
(2001), Valadares (2004), Silva (2008), Lins (2010), Tavares (2014) e Braga (2016), entre
outros autores.
Os argumentos expostos na tese demonstraram que grupos de judeus nordestinos não se
satisfazem com a mera autoidentificação ao judaísmo, precisam do aval “material”, expresso,
especialmente, por certificados de descendência étnica que informem “aos seus e ao mundo” o
que fato e de direito eles são. Em constante busca de reconhecimento e legitimidade perante o
Estado de Israel, esses indivíduos têm ampliado suas redes de contatos e influências com
agentes estatais e autoridades rabínicas que possam orientá-los e encaminhá-los a processos
exitosos de conversão. No intento de se tornarem visíveis no cenário judaico nacional e
internacional, alguns desses judeus se articulam em páginas de redes sociais e organizam
viagens a cidades como São Paulo, Nova York e Jerusalém a fim de alcaçarem maior
notoriedade e legitimidade. Sem conseguirem comprovar materialmente a descendência
169

judaica, os neoconversos passam a enfrentar uma saga burocrática, de contornos kafkianos,


envolvendo o cumprimento de ritos religiosos e exigências documentais que implicam em um
grande dispêndio de energia psíquica e recursos financeiros.
Em meio às relações estabelecidas pelos grupos de neoconversos, repletas de histórias
de frustração nos processos convencionais de conversão, surge o projeto Sinagoga Sem
Fronteiras, coordenado pelo rabino Gilberto Ventura, como um caminho mais acessível de
reconhecimento dos Bnei Anussim. Sediado na cidade de São Paulo e com relações com rabinos
radicados em Israel, nos Estados Unidos e na Europa, a SSF propõe um acolhimento “mais
democrático” das comunidades judaicas brasileiras. A presença do projeto em algumas
comunidades campinenses revela a construção de um imaginário repleto de estereótipos sobre
o “judeu nordestino”, considerado periférico em relação ao judeu de migração mais recente,
estabelecido no eixo Rio-São Paulo. As ações da SSF, apoiadas pela Fundação Zera Israel, têm
provocado cisões e articulações de novos grupos de convertidos.
Tais relações entre grupos de judeus estabelecidos “não autorizados” e grupos outsiders
é acompanhada com certa preocupação pelo governo de Israel, que tem enviado agentes estatais
para observação do fenômeno dos neoconversos presentes em diversas localidades no Nordeste
e de outras regiões do Brasil e do mundo. As ilustres “visitas” da oficialidade judaica visam
compreender a dinâmica desses processos identitários, reavivados por questões étnicas,
religiosas e políticas. Esses agentes, representando princípios ideológicos e procedimentos
normativos advindas da cúpula rabínica e estatal de Israel, intentam monitorar, e mesmo
disciplinar, os imponderáveis de um universo assaz multifacetado.
Comunidades como a Maguen David, a Amigos da Torah, os Caraítas, a Branca Dias e
a Beit Israel, de Campina Grande, a exemplo do que acontece com outros contextos locais
nordestinos, estão sendo criteriosamente observadas por rabinos e sinagogas nacionais e
internacionais. As centralidades político-étnico-religiosas do judaísmo monitoram os
movimentos que surgem nas periferias que ora imploram por um reconhecimento oficial, ora
ignoram processos burocráticos e seguem seus “modos de ser judeu” à revelia do controle legal-
estatal de Israel.
Os judeus dos sertões do Nordeste brasileiro seguem ansiosos pelo reconhecimento de
suas descendências sefarditas, pela cosmovisão produzida pelos sujeitos judeus neoconversos de
que são o que sempre foram: judeus. Assim, espero que a partir da constituição do que chamei de
“ser judeu” seja possível direcionar o olhar para os neoconversos como mais do que “dóceis
170

soldados”. Apresentando grandes contribuições a partir do presente texto definindo um novo


colorido ao “mapa brasileiro e mundial” de comunidades judaicas, descrevendo criativas
experiências de vida de pessoas que atribuem poderosos sentidos às antigas leis hebraicas e são
desconhecidas, muitas vezes, no próprio círculo social de judeus. Os judeus neoconversos com
ou sem o aval de rabinos “de fora”, se sentem ligados a laços de sangue e civilizacionais tão ou
mais substanciais (e puros) do que os laços daqueles cidadãos israelitas que se dizem
descendentes dos antigos hebreus. Eles fazem parte do mesmo povo escolhido por D’us.
171

REFERÊNCIAS

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Janeiro: Imago, 1987.

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BARTH, Frederik. “O guru e o iniciador: transações de conhecimentos e moldagem da cultura


no sudeste da Ásia e na Melanésia”. In: O guru, o iniciador e outras variações antropológicas.
Rio de Janeiro/RJ: Contra Capa Livraria, 2000.

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ANEXO A - (THE LAW OF RETURN 5710/1950)


179
180
181

ANEXO B - (A LEI DO RETORNO)


182

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