Tese Intersubjetividade em Hegel
Tese Intersubjetividade em Hegel
Tese Intersubjetividade em Hegel
I.F.C.H
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Direito e Intersubjetividade:
Eticidade em Hegel e o Conceito Fichteano de
Reconhecimento
Tese de Doutorado
desenvolvida sob a orientação
do Prof. Dr. Marcos Lutz
Müller ( DF/IFCH/Unicamp)
II
(cc/ifch)
II
III
III
IV
Conteúdo:
Agradecimentos...........................................................................................................................................................VI
Resumo......................................................................................................................................................................VIII
Abstract........................................................................................................................................................................IX
Introdução Geral.........................................................................................................................................................XI
1. Direito, Moral e Reconhecimento em Fichte.................................................................................................1
1.1 Primeiras reflexões de Fichte sobre a intersubjetividade.....................................................................................1
1.1.1 Intersubjetividade no contexto da filosofia prática de Kant.............................................................................1
1.1.2 Intersubjetividade e reformulação do princípio moral: as Vorlesungen.........................................................5
1.1.3 Sociedade e o postulado da alteridade.................................................................................................................9
1.1.4 Moral e direito a partir da intersubjetividade.................................................................................................14
1.2. Intersubjetividade originária e o direito como coerção: a Grundlage des Naturrechts (1796/97)..................16
1.2.1 Direito, autoconsciência e finitude: nach den Prinzipien der Wissenschaftslehre..........................................16
1.2.2 Direito, Subjetividade e Intersubjetividade: o modelo Aufforderung/Anerkennung....................................27
1.2.3 Intersubjetividade e Zwangsrecht......................................................................................................................51
2. Hegel e os dois modelos de Intersubjetividade: Frankfurt e os primeiros anos em Jena (1798-
1804)................................................................................................................................................................70
2.1 Intersubjetividade e Crítica da Moral Formalista: Vereinigung e amor em Frankfurt.................................70
2.1.1 Distanciamento de Fichte e primeiras reflexões sobre a intersubjetividade: os Entwürfe über Religion und
Liebe...............................................................................................................................................................................72
2.1.2 Amor e Crítica da Moral em Geist des Christentums......................................................................................85
2.1.3 Amor, Intersubjetividade e Destino: individualização e erosão da “intersubjetividade genuína” em Geist
des Christentums...........................................................................................................................................................92
2.1.3.1 Amor e intersubjetividade..................................................................................................................................92
2.1.3.2 Amor, Ruptura e Destino...................................................................................................................................95
2.1.3.3 Intersubjetividade e Individualização: modelos de intersubjetividade em Frankfurt......................................105
2.2 Crítica a Fichte e a gênese intersubjetiva da eticidade: Jena (1801/1804).....................................................114
2.2.1 Elementos da Crítica à Filosofia da Reflexão: entendimento, razão e cisão...............................................114
2.2.1.1 De Frankfurt a Jena: a relação entre Vereinigung e Reflexão..........................................................................116
2.2.1.2 Jena: Reflexão e Cultura..................................................................................................................................118
2.2.1.3 Jena: Filosofia e Reflexão................................................................................................................................123
2.2.1.4 Elementos gerais da crítica jenense a Fichte....................................................................................................125
2.2.2 Diferenciação das concepções de intersubjetividade na crítica à filosofia social de Fichte: a
Differenzschrift...........................................................................................................................................................128
2.2.3 Eticidade absoluta e crítica ao formalismo do “entendimento prático”: o Naturrechtaufsatz...................135
2.2.3.1 O absoluto no Naturrechtaufsatz.....................................................................................................................137
2.2.3.2 Moral, Direito e a crítica à concepção fichteana de intersubjetividade...........................................................143
2.2.3.3 Liberdade absoluta e o ser-um de vontade universal e vontade singular.........................................................149
2.2.3.4 Eticidade relativa e Eticidade absoluta............................................................................................................154
2.2.4 Constituição intersubjetiva do “Espírito do Povo” em 1802.........................................................................157
2.2.4.1 Eticidade e Relação no System der Sittlichkeit................................................................................................163
2.2.4.2 Articulação societária pré-estatal da intersubjetividade solidária e excludente...............................................167
2.2.4.3 Crime e Justiça Punitiva: o paroxismo da exclusão.........................................................................................178
2.2.4.4 Tipologia da auto-exclusão no System der Sittlichkeit.....................................................................................182
2.2.4.5 Gênese intersubjetiva do Einssein no System der Sittlichkeit..........................................................................187
2.2.5 Socialização, Individualização e teoria da consciência: diretrizes em Jena................................................190
2.2.6 Natureza, Consciência e Espírito no Jenaer Systementwurf 1803/04............................................................195
2.2.7 EXCURSO: Estatuto supra-individual dos media trabalho e linguagem....................................................203
2.2.8 Amor, Formação e Individualização: a “potência” da Família...................................................................209
2.2.9 Luta por Reconhecimento e Espírito do povo no Jenaer Systementwurf 1803/04.......................................214
3. Teoria da Consciência, Reconhecimento e Eticidade...............................................................................227
3.1 Consciência e Autoconsciência: Fenomenologia e Enciclopédia......................................................................231
3.2 Desejo e Solipsismo..............................................................................................................................................235
3.3 Luta e Exclusão....................................................................................................................................................238
3.4 Autoconsciência e reconhecimento.....................................................................................................................249
3.5 Autoconsciência, ser-reconhecido e eticidade....................................................................................................254
IV
V
3.6 Gênese intersubjetiva imediata da eticidade como direito: reconstrução do argumento contratualista a
partir do Jenaer Sytementwurf 1805/06....................................................................................................................263
Conclusão: uma possível leitura das Grundlinien ?................................................................................................276
Bibliografia.................................................................................................................................................................281
V
VI
AGRADECIMENTOS
São muitas as pessoas e instituições que estiveram envolvidas nos quatro anos e meio de
pesquisa e de redação deste trabalho.
Agradeço imensamente ao prof. Dr. Marcos Lutz Müller, pela presença constante, pela
sua extrema disponibilidade e amabilidade, e, sobretudo, por sua enorme precisão na análise do
texto em seus diversos estágios de desenvolvimento. Na solução dos complexos problemas
relativos a uma versão em português das obras de juventude de Hegel e Fichte, recorri de tal
forma ao seu brilhante e exímio trabalho de tradução que me seria difícil precisar todas as
assimilações que foram feitas. Entretanto, mesmo assim, eximo o Marcos de qualquer
responsabilidade no tocante à imprecisão que ainda possa restar.
Durante a realização da pesquisa para este trabalho, travei contato com diversas
instituições. Em primeiro lugar, agradeço a todo o pessoal, administrativo e acadêmico, do
departamento de filosofia da UNICAMP, que contribuiu, de uma maneira ou de outra, para uma
realização que possa se considerar agora exitosa.
No início do doutorado, fui agraciado, após a classificação pela banca de admissão, com
uma bolsa do CNPQ (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) para a
realização da pesquisa, o que possibilitou, de imediato, que o trabalho passasse de simples projeto
ao âmbito da exeqüibilidade. Após isso, foi-me concedida uma bolsa de doutorado da FAPESP
(Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), pela qual estou imensamente
agradecido, pois sem o financiamento, que durou de 2002 a 2006, este trabalho não teria,
seguramente, chegado ao seu termo.
Durante a vigência da bolsa FAPESP, foi-me possível realizar dois estágios de pesquisa
na Alemanha. O resultado final da pesquisa dificilmente teria esta forma, se não fossem tais
estágios, os quais ofereceram as melhores condições para uma pesquisa bibliográfica que dá
sustentação ao trabalho. O primeiro estágio, no segundo semestre de 2002, foi financiado pela
FAPESP e realizado na Universität-München e na Bayerische Akademie der Wissenschafen,
junto ao produtivo e acolhedor pessoal da Fichte-Kommission, ao qual eu agradeço imensamente,
especialmente na figura do prof. Dr. Erich Fuchs e do prof. Dr. Günther Zöller.
VI
VII
Durante este período, fui acolhido de maneira bastante cordial pelo pessoal da cátedra de
Teoria Política do Geschwister-Scholl-Institut na Universität-München, especialmente pelo prof.
Dr. Henning Ottmann e seus orientandos, os quais me propiciaram um período de intenso
aprendizado e de excelente convivência acadêmica. Também durante este período, tive a
oportunidade de apresentar e discutir, em seminários para doutorandos e em colóquios de
filosofia na Alemanha, os resultados seminais do projeto que se concretizou neste trabalho.
Durante esta última fase de pesquisa na Alemanha, fui financiado por uma bolsa de doutorado
“sanduíche” do CNPQ. Também ao pessoal do escritório de “cooperação internacional” desta
valorosa instituição, meus sinceros agradecimentos.
VII
VIII
RESUMO
Este trabalho pretende desenvolver uma tese de leitura acerca das motivações e da
consolidação da filosofia social de Hegel, qual seja: a importância da assimilação da teoria
fichteana da intersubjetividade para a constituição do modelo hegeliano do desenvolvimento da
eticidade. Na primeira parte, pretende-se mostrar que a teoria fichteana da intersubjetividade,
desenvolvida no contexto da dedução da relação de direito, possui um potencial ético que parece
cristalizar-se numa concepção não limitativa, não excludente e positiva da relação intersubjetiva.
Na segunda parte, após investigar a contraposição, nos escritos de Hegel em Frankfurt, entre a
intersubjetividade limitativa e potencialmente desagregadora, própria às relações contratuais do
direito privado, e a harmonia intersubjetiva do amor, pretende-se mostrar que a derrocada da
expectativa de Hegel com respeito ao ideal de integração social pela via de uma Volksreligion
conduz a contraposição entre a intersubjetividade “solidária” e a “restritiva” ao projeto de uma
“subjugação” da esfera econômica juridicamente regulada sob o âmbito político-público da
eticidade absoluta. Em seguida, perseguindo a tese de que o problema do Einssein entre universal
e singular pressupõe uma solução intersubjetivista, procura-se explorar as peculiaridades da
“gênese intersubjetiva” do espírito do povo no System der Sittlichkeit e no Jenaer Systementwurf
1803/04, com especial ênfase na progressiva imbricação entre teoria da consciência,
reconhecimento e desenvolvimento conceitual da eticidade, a qual interpretamos como uma
articulação sócio-filosófica entre a intersubjetividade formadora e a intersubjetividade limitativa.
Na terceira parte, pretende-se clarificar, a partir de uma análise comparativa do reconhecimento
em suas versões “fenomenológicas”, a conexão do mesmo com a efetivação da liberdade
individual na eticidade. A intenção é mostrar que a “generalização” do movimento, pela sua
inserção na “filosofia do espírito subjetivo”, não conduz necessariamente ao seu desligamento
dos estágios de efetivação intersubjetiva da liberdade, mas antes à sua pressuposição como forma
normativa da relação social efetiva, de maneira que não apenas a relação intersubjetiva
participativa e formadora da individualidade e a relação solidária, que constitui a gênese do
estado ético, como também a relação de respeito recíproco à intangibilidade da pessoa, podem,
enquanto “relações éticas”, ser tematizadas no registro comum de um “ser-reconhecido”.
Finalmente, procura-se mostrar como Hegel insere, no Systementwurf 1805/06, a “luta por
reconhecimento” em uma argumentação que articula a forma participativa de intersubjetividade
com a gênese da solidariedade ética que tem de estar vinculada à efetividade social de uma
vontade universal, a qual é, entretanto, compreendida pela primeira vez por Hegel, em sua
imediatidade, como direito. O resultado mais amplo do trabalho é a tese de que tal interpretação
poderia ser “aplicada” em uma leitura das Grundlinien, o que, entretanto, será aqui apenas
indicado.
VIII
IX
ABSTRACT
This work intends to delineate some motives underlying the development of Hegel´s
social philosophy. According to the interpretation we attempt to formulate, Fichte´s view of
intersubjectivity plays a decisive role in Hegel´s comprehension of the conceptual unfolding of
“ethical life” (Sittlichkeit). The first part focuses on Fichte´s theory of intersubjectivity,
particularly on its version presented in the Foundations of Natural Law, where it is deduced as a
condition for the “juridical relation”(Rechtsverhältnis). The main task is to show that Fichte´s
conception of the intersubjective mediation of individual conscience, when considered apart from
its endurable form as a relation of reciprocally limited spheres of action, seems to contain the
ethical potential for a “non-limited”, “non-exclusive” and positive actualization of individual
freedom. In the second part, after elucidating, in Hegel´s early writings, the opposition between
the “juridical”, potentially disintegrative conception of intersubjectivity and the harmony of love,
we intend to indicate how the frustration of Hegel´s expectations, regarding social integration
through a Volksreligion, conduces to the project of “subordination” (Bezwingung) of juridically
regulated economics under the political realm of the abolute ethical life. Thus, after
demonstrating that the problem of the Einssein of universal and individual pressuposes an
intersubjective solution, the aim is to delineate the intersubjective genesis of the “Spirit of a
People” in the System of Ethical Life and in the Philosophy of Spirit 1803/04, always
emphazising the progressive articulation of theory of conscience, recognition and the conceptual
unfolding of ethical life. The third part aims to elucidate, through a comparative investigation of
the “phenomenological” versions of Hegel´s theory of recognition, its connection with the
actualization of individual freedom in the institutional framework of ethical life. In this context, it
is aimed to show that the “generalization” of the process of recognition, due to its insertion into
the “philosophy of subjective spirit”, in despite of its immediate disconnection from the stages of
intersubjective actualization of freedom, points toward the possibility of its pressuposition as the
normative form of the actual social relation. According to this view, this “generalization” allows
that not only the formative intersubjective ralation and the solidary connection among the
individuals, that engenders the “ethical state”, but also the interpersonal relations, based on
reciprocal respect to the intangibility of individual freedom, could be reduced to the common
denominator of a “being-recognized” (Anerkanntsein). Finally, the task is to consider how Hegel
integrates, in the Philosophy of Spirit 1805/06, the “struggle for recognition” into an
argumentation that articulates the participative form of intersubjectivity with the genesis of the
ethical solidarity that is vinculated to the social actuality of the universal will, which is, for the
first time in Hegel´s philosophical development, understood in its immediacy as right (Recht). As
a conclusion, we summarize some indications of a possible extension of this presented view to an
interpretation of Hegel´s Philosophy of Right.
IX
X
1
“O que é sagrado ? Isto o é – o que cinge juntas muitas almas, ainda que as ate sutilmente, como o junco ata o ramalhete. O que é o mais sagrado
? Aquilo que, sentido cada vez mais profundamente, torna os espíritos sempre mais concordes, hoje e eternamente.” Goethes Werke, Auswahl in
zehn Teilen, hg. Von K. Alt., Erster Teil, Berlin/Leipzig/Wien/Stuttgart, p. 181. Hegel cita livremente e de maneira inexata (TWA 7, 293) as
palavras de Goethe nas notas manuscritas ao § 142 das Grundlinien. “Sagrado, o que liga os espíritos, ainda que fosse tão levemente como o junco
ata o ramalhete; o mais sagrado, o que pensado intimamente - torna os espíritos eternamente unos na concórdia.” A tradução das notas manuscritas
de Hegel é de Marcos Lutz Müller e está em “Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito ou Direito Natural e Ciência do Estado no seu
Traçado Fundamental”, texto completo em fase de publicação. Versão gentilmente cedida pelo tradutor. Müller notou como também esta
rememoração dos dísticos goetheanos em sala de aula revela uma atitude ilustrativamente “tendenciosa” por parte de Hegel, na medida em que ele
substitui o que era “sentido sempre mais profundamente” (tiefer und tiefer gefühlt) pelo que é “pensado intimamente” (innig gedacht).
X
XI
Introdução Geral
O título do trabalho não deve gerar equívoco. Sua primeira metade se refere a um tipo
de relação que pretendemos estabelecer na obra de Hegel; já a segunda parte se refere ao seu fio
condutor. Com o título principal “direito e intersubjetividade”, não se pretende dizer que direito e
intersubjetividade sejam nexos contrapostos, mas a intenção é antes mostrar que, embora para
Hegel e Fichte o direito pressuponha, em geral, uma trama intersubjetivamente constituída, não
se trata, para nenhum dos autores, de uma correspondência unívoca, o que justamente se expressa
naquela relação fundamental: a intersubjetividade juridicamente constituída não reduz todo o
escopo de uma convivência comunitária dos indivíduos e, como queremos mostrar lançando mão
de uma investigação de algumas obras de Hegel, a intersubjetividade pela qual se efetiva
socialmente o direito tanto pressupõe formas diferentes de intersubjetividade como condição
primordial de sua “socialização” típica, quanto suscita ainda, do ponto de vista de uma
“individualização” que foi tornada, em circunstâncias modernas, potencialmente aberta, veículos
que possam contribuir à amortização das “abstrações” que por ela se tornam necessárias.
Este trabalho pretende desenvolver e embasar uma tese de leitura acerca das
motivações e da consolidação da filosofia social de Hegel, qual seja: a importância da
assimilação da teoria fichteana da intersubjetividade para a constituição do modelo hegeliano do
desenvolvimento da eticidade, que culmina em uma realização “comunitária” da liberdade. O
horizonte mais amplo do trabalho consiste em percorrer, a partir da teoria fichteana da
intersubjetividade e da crítica de Hegel à filosofia social de Fichte, a formulação da teoria do
desenvolvimento da eticidade após o Naturrechtaufsatz no sentido de compreendê-la, a despeito
de uma suposta perda de seu teor genuinamente sócio-teórico, como inserida na intenção geral de
uma reconstrução “substancialista” ou “institucional” do ponto de vista do jusracionalismo
contratualista e, mais especificamente, de investigar como tal teoria do desenvolvimento da
eticidade pretende revelar parte da base intersubjetiva para a defrontação de singulares
plenamente individualizados, os quais se deparam socialmente segundo reivindicações jurídicas
intersubjetivamente vinculantes e universalmente válidas. Em outras palavras, trata-se de inserir a
teoria hegeliana da intersubjetividade, vinculada à tese do desenvolvimento da eticidade, no
contexto de um argumento para a gênese do nexo social que Hegel vai denominar, nas
Grundlinien, de sociedade civil, um estágio do “desenvolvimento” da eticidade em que o tecido
social é forjado por vínculos normativos que correspondem, em geral, à reciprocidade e mútua
“impenetrabilidade” dos singulares pressuposta pela teoria contratualista do estado de natureza e
do estado civil. Em suma, embora nossa ênfase não recaia sobre a relação entre a sociedade civil
e o estado ético, trata-se aqui de uma tentativa de interpretar o desenvolvimento conceitual da
eticidade, principalmente nos escritos hegelianos de Frankfurt e Jena, a partir das concepções
inclusiva e excludente da intersubjetividade.
intersubjetiva enquanto Aufforderung, possui um potencial ético que parece ir além da relação
intersubjetiva de defrontação jurídica dos indivíduos enquanto pessoas de direito (1.2). Este
potencial ético parece, por sua vez, cristalizar-se numa concepção não limitativa, não excludente
e positiva da relação intersubjetiva, segundo a qual os “indivíduos” tomam parte ativa e
positivamente no processo pelo qual se constitui tanto a identidade de cada um, quanto (por isso
mesmo) a identidade comunitária que lhes é imanente. Correndo o risco de resvalar para uma
leitura retrospectiva de Fichte a partir de Hegel – condicionada tanto pela compreensão hegeliana
do desenvolvimento da história da filosofia, como pela visão predominante até a metade do
século XX do desenvolvimento do idealismo alemão oferecida por Richard Kroner – pretende-se,
contudo, mostrar que, de fato, uma concepção “solidária” da intersubjetividade parece se
constituir como um negativo deste processo de “repressão jurídica” do conceito fichteano de
reconhecimento (1.2.3), para tomar emprestado a expressão, já tradicional na Hegelforschung, de
uma verdrängte Intersubjektivität, através da qual Theunissen interpreta o escamoteamento do
momento intersubjetivo na exposição das Grundlinien.
2
Honneth, Axel– Kampf um Anerkennung. Zur moralischen Grammatik sozialer Konflikte, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1992. Honneth
diferencia (capítulos 1 e 2), numa aguda análise dos textos de Jena, formas positivas de reconhecimento: relações interpessoais primordiais como
amor e amizade, relações de direito e relações comunitárias baseadas na solidariedade. O amor torna possível a autoconfiança, o direito torna
possível o auto-respeito e a estima pela comunidade torna possível a auto-estima. Correspondentemente a isso, existem, segundo Honneth, três
formas de negação do reconhecimento: o abuso, a negação dos direitos e o denegrir ou insultar. No entanto, tanto Honneth quanto Habermas criam
uma distinção muito aguda entre o jovem Hegel e o Hegel maduro, de maneira a atribuir, via de regra, o reconhecimento ao universo temático do
jovem Hegel do período de Jena, um tema que, no entanto, deixa de ter uma importância capital no desenvolvimento subseqüente de Hegel.
XII
XIII
Ambos insistem numa substituição, operada pelo Hegel da Enciclopédia e das Grundlinien, do conceito de reconhecimento pela concepção
monológica de uma subjetividade auto-reflexiva: segundo eles, Hegel teria substituído a primazia das relações intersubjetivas para sua filosofia
prática pelas relações entre um sujeito posto de modo absoluto e sua auto-efetivação. Como diz Honneth, “eticidade se tornou uma forma do
espírito que se auto-desenvolve monologicamente e que não mais constitui uma forma de intersubjetividade.”
3
Honneth, Axel–Kampf um Anerkennung. Zur moralischen Grammatik sozialer Konflikte, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1992, 73. Em sua
crítica à compreensão fenomenológica da teoria do reconhecimento, Honneth acredita que ela tenha, através de um “re-direcionamento para a
teoria da consciência”, obstruído a possibilidade de se pensar o processo de reconhecimento como um processo de formação da autonomia
pessoal, o que teria como decorrência um “modelo substancialista de eticidade”. No entanto, há que se pensar se esta leitura não poderia ser
considerada equivocada. Somente através deste re-direcionamento, no Systemenentwurf de 1803/1804, foi possível a Hegel a superação da
representação tradicional de natureza como essência das conexões ordenadoras estruturadas teleologicamente e a ocupação gradativa com a
autonomia do indivíduo. Na verdade, a compreensão anti-individualista da eticidade enquanto substância espinosana é muito mais ferrenha nos
textos políticos da primeira fase do período de Jena, como o Naturrechtaufsatz e o System der Sittlichkeit.
XIII
XIV
4
A tematização da perda da capacidade formadora do quadro institucional fornecido pela eticidade hegeliana vem de mãos dadas, em Honneth,
com seu distanciamento em relação a Siep, o que deixa transparecer, por outro lado, o caráter problemático de sua interpretação do jovem Hegel.
Siep, Ludwig – Anerkennung als Prinzip der praktischen Philosophie, Freiburg/München, 1976 Ele menciona que a tentativa de Siep de oferecer,
a partir do modelo hegeliano, uma teoria normativa das instituições, tem em comum com sua apropriação o fato de considerá-la válida como teoria
das condições necessárias da socialização humana apenas após uma reestruturação pós-metafísica, o que ele faz sobretudo recorrendo às
pressuposições naturalistas do pragmatismo de Mead. Ver: Mead, George H. – Geist, Identität und Gesellschaft, Frankfurt am Main, Suhrkamp,
2005. No entanto, diz Honneth: “a partir daí, contudo, querer derivar diretamente um critério normativo para a avaliação de instituições eu
considero falso, porque nós não possuímos, em princípio, nenhum saber completo acerca de que forma institucional pode tomar o preenchimento
de necessárias e determinadas fontes de reconhecimento. Siep confia demais no conteúdo científico-social da filosofia prática de Hegel, quando
ele tenciona desenvolver a partir dela uma teoria normativa das instituições.”(109) Para Honneth importa, sobretudo, tornar as pressuposições da
relação de reconhecimento profícuas para a explicação de processos histórico-empíricos de transformação das sociedades, o que significa, em face
do Ansatz de Siep, um passo no sentido da “sociologização”.ver Honneth, Axel – Kampf um Anerkennung. Zur moralischen Grammatik sozialer
Konflikte, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1992, 109 Neste sentido, não se pode entender como esta “sociologização” pretenda, em distinção a
Siep e ao próprio Hegel, dar conta da formação de capacidades subjetivas.
5
Habermas, Jürgen – “Ciências Sociais Reconstrutivas versus Ciências Sociais Compreensivas” : in Consciência Moral e Agir Comunicativo,
Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro 1989, 37-58. Habermas se refere à teoria do desenvolvimento moral de Lawrence Kohlberg, elaborada a partir
da teoria do desenvolvimento cognitivo de Jean Piaget, com o objetivo de ratificar sua posição de que “as ciências sociais podem se tornar
conscientes de sua dimensão hermenêutica, permanecendo fiéis no entanto, à tarefa de produzir um saber teórico.”(49) Para Habermas, “a teoria
de Kohlberg é um exemplo para a divisão de trabalho bem peculiar entre a reconstrução racional de intuições morais (filosofia) e a análise
empírica do desenvolvimento moral (psicologia).”(49) Kohlberg e Piaget explicam a aquisição de competências presumidamente universais
utilizando-se para isso de modelos de desenvolvimento interculturalmente invariantes e determinados por uma lógica interna dos processos de
aprendizagem correspondentes. Neste sentido, debruçado sobre a questão de uma abordagem empírica do problema do universalismo moral,
Kohlberg acaba se deparando tanto com a defesa do cognitivismo e universalismo morais contra o relativismo e o ceticismo, quanto com a
comprovação da teoria moral formalista frente a teorias utilitaristas e contratualistas. Para Habermas – e este representa o ponto de intersecção
entre a teoria de Kohlberg e suas teses acerca da combinação de interpretação e compreensão, de atitude objetivante e performativa nas ciências
sociais – baseando-se no conceito de aprendizagem construtivista, a linha natural de considerações morais do leigo pode ser agora adotada
reflexivamente pelo filósofo moral. “Essa afinidade baseia-se no fato de que tanto o sujeito de experiência com que se defronta o psicólogo, como
também o filósofo moral assumem a mesma atitude performativa de um participante do discurso prático.”(54) Para Habermas, Kohlberg efetiva
uma perspectiva de complementaridade na divisão de trabalho da teoria do desenvolvimento moral e da filosofia moral, de tal maneira que o
“êxito de uma teoria empírica, que só pode ser verdadeira ou falsa, pode servir de garantia para a validade normativa de uma teoria moral
empregada para fins empíricos.” Eis porque Habermas se vê habilitado, a partir desta tese, a recorrer à teoria do desenvolvimento moral como
expediente que pode fornecer uma confirmação indireta à ética do discurso.
XIV
XV
sempre no sentido de que o ponto de vista contratualista do estado civil que, para Hegel, mantém-
se ao nível do “estado exterior” da sociedade civil, pressupõe, enquanto condições conceituais de
sua formação, tanto formas participativas de intersubjetividade na formação de uma
potencialmente generalizada “individualização”, como formas solidárias da intersubjetividade
que irrompem a mera confirmação recíproca da validez categórica de reivindicações jurídicas.
Neste sentido, percebemos que, de fato, o desenvolvimento conceitual da eticidade sempre se
deixou compreender em esferas graduais de realização intersubjetivamente mediada da liberdade.
Entretanto, o desafio tanto de uma compreensão atualizante de Hegel, quanto de uma avaliação
de sua prestabilidade para a moderna teoria social tem de se concentrar sobretudo nas interfaces
entre estas esferas, porque justamente nelas poderia ser mais significativo identificar
unilateralidades na relação entre socialização e individualização.
XV
XVI
XVI
1
No entanto, num viés não tão formalista e que procura dotar aquela concepção de ética de
algum elemento conteudístico, a obrigação moral fora compreendida também como um
mandamento de respeito à dignidade do outro como ser humano1. Embora Kant não insista nesta
possível abertura intersubjetiva – tangenciada também pelo conceito de “reino dos fins” – que
seria dada à sua fundamentação da moral, ela permanece como um dado que parece não
inteiramente redutível ao procedimento de fundamentação monológica perseguido pela
Fundamentação e pela Segunda Crítica: isto porque uma lei que se constitui como dever de
respeito ao outro enquanto ser racional, parece considerá-lo como mais do que uma simples
condição exterior de realização da liberdade do sujeito. Segundo a cláusula de que a lei moral
seja ratio cognoscendi da liberdade, o outro ser humano em seu direito moral de ser respeitado
parece antes ser uma condição de possibilidade da consciência da liberdade: a experiência moral
da consciência intersubjetivamente mediada da liberdade seria, na medida em que esta última é
ratio essendi da lei moral, o inelutável “fato da razão” de uma concepção universalista e
deontológica da ética, que se funda sobre o reconhecimento da necessidade prática do respeito a
outrem.
inseparabilidade do sentimento moral e do fato da razão é tomada, na verdade, de Dieter Henrich. Ainda segundo Loparic, a ligação vital entre
fato da razão e respeito remete à consciência moral como um todo, de maneira que ela tem, ao mesmo tempo, um caráter sensível e racional. Este
duplo aspecto responde pela validade da lei moral no domínio sensível do sentimento moral, onde é aplicada e onde encontra sua referência única.
Para outras interpretações da ligação entre fato da razão e sentimento moral, ver: Beck, L.W. A commentary on Kant’s critique of practical reason
Luków, P. – The fact of reason .Kant’s passage to ordinary moral knowledge, Kant-Studien 84(1993), Allison , Henry E. Kant’s theory of
freedom
3
“...pode-se imediatamente fazer consistir o conceito de direito na possibilidade de conformar a coerção geral recíproca com a liberdade de todos.
De fato, como o direito não tem absolutamente por objeto senão o que concerne aos atos exteriores, o direito estrito, aquele em que não se mescla
nada próprio à Ética, é o que exige tão-somente princípios exteriores de determinação para o arbítrio; porque neste caso é puro e sem mescla de
preceito ético algum.” AA 6, 232
4
“Somente, portanto, o direito puramente exterior pode ser chamado direito estrito. Este direito se funda, na verdade, na consciência da obrigação
de todos segundo a lei; porém, para determinar o arbítrio em conseqüência dessa obrigação, o direito estrito ou puro não pode nem deve se referir
a essa consciência como móvel; pelo contrário, deve se apoiar no princípio da possibilidade de uma força exterior conciliável com a liberdade de
todos, segundo leis gerais.” AA 6, 232
5
“1. O direito, como ciência sistemática, divide-se em Direito Natural (Naturrecht), que se funda em princípios puramente a priori, e em Direito
positivo (estatutário), que tem por princípio a vontade de um legislador; 2. O Direito como faculdade (moral) de obrigar (Der Rechte
als(moralischer)Vermögen Andere zu verpflichten) os outros, isto é, como fundamento legítimo (als einen gesetzlichen Grund)(titulum) contra
eles, dos quais a divisão principal é aquela entre direito inato e direito adquirido (das angeborne und erworbene Recht).”AA 6, 237
6
Sobre a faculdade moral de obrigar, indicamos a excelente leitura de Wolfgang Kersting, que, interpretando-a como direito subjetivo, mostra
como ela promove o desdobramento da intrasubjetividade ética em intersubjetividade jurídica. A relação jurídica de obrigação fundamentada na
legislação racional exterior é a ilustração da duplicação idealístico-transcendental do eu, a qual soluciona a aparente antinomia da auto-obrigação
ético-fomal e ético-material numa relação intersubjetiva exterior. Partindo-se da concepção de uma legislação racional exterior, a relação jurídica
fundamental toma a feição de uma obrigação exterior cujo sujeito e objeto possuem posições complementares na relação jurídica de obrigado e
obrigante. O sujeito do direito que contrapõe aquele juridicamente obrigado entra em cena como obrigante, como legislador exterior, cuja
capacidade jurídica consiste na competência legislativa e obrigadora. Com efeito, se o direito subjetivamente considerado (para a consciência)
consiste na faculdade moral de obrigar, trata-se com isso do tornar-se concreto da esfera humana da intersubjetividade. Kersting, Wolfgang –
Wohlgeordnete Freiheit, Immanuel Kants Rechts- und Staatsphilosophie, Frankfurt, Suhrkamp 1993
7
No final da Einleitung in die Rechtslehre, Kant chega a uma divisão do ponto de vista subjetivo dos obrigantes e dos obrigados (Eintheilung
nach dem subjectiven Verhältniß der Verpflichtenden und Verpflichteten) e estabelece que somente existe (adest) relação real (ein reales
Verhältniß zwischen Recht und Pflicht) de direito e dever como “relação do homem com seres que têm direitos e deveres ... porque é uma relação
de homem a homem.”ver AA 6, 241 Ao contrário da relação ética, a relação jurídica é um certo tipo de relação entre mim e os outros que se
constitui pela reciprocidade entre direito e dever, isto é, entre o dever de cumprimento da lei e o direito como faculdade moral ou legítima de
obrigar ao cumprimento.
8
“O conceito de direito, na medida em que tal conceito relaciona-se a uma obrigação correspondente ao direito (isto é, o conceito moral do
mesmo[der moralische Begriff desselben])...” AA 6, 230
3
9
Não podemos discutir, nesta ocasião, a pertinência desta acusação, repetida inúmeras vezes, de que a moral kantiana seja formalista e baseada
num princípio tautológico. Esta discussão poderia se tornar mais profícua em conexão com elementos da crítica hegeliana ao conceito kantiano de
consciência moral. No entanto, alguns trabalhos mais contemporâneos podem fornecer diretrizes para a compreensão do embate Kant/Hegel
quanto aos conceitos de Moralität e Sittlichkeit, e isto especialmente na esteira do debate contemporâneo acerca das tentativas de fundamentação
da ética do discurso, do embate entre comunitaristas e liberais e das teses defendidas por representantes do Neo-aristotelismo. O recente retorno da
questão moralidade versus eticidade pode não só lançar luz sobre a passagem da moralidade à eticidade nas Grundlinien e da crítica apropriativa
de Hegel ao “ponto de vista moral”, mas também auxiliar na ponderação acerca da relação entre uma normatividade fundada sobre a exigência de
reconhecimento recíproco e o princípio da moral deontológica e universalista, quer esta seja discursiva, quer “monológica” e “individualista”.
Neste nexo problemático, onde a questão do embate entre Kant e Hegel e da crítica ao formalismo da moral kantiana ainda desempenham muitas
vezes o papel de diretriz privilegiada, podemos citar os seguintes trabalhos: Apel, Karl-Otto – „Kann der postkantische Standpunkt der Moralität
noch einmal in substantielle Sittlichkeit „aufgehoben“ werden? “,in: Kuhlmann, Wolfgang (Hg.) – Moralität und Sittlichkeit: Das Problem
Hegels und die Diskursethik, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1986,217-263 Brumlik, Micha – „Über die Ansprüche Ungeborener und
Unmündiger: wie advokatorisch ist die diskursive Ethik? “,in: Kuhlmann, Wolfgang (Hg.) – Moralität und Sittlichkeit: Das Problem Hegels und
die Diskursethik, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1986,265-300 Bubner, Rüdiger – „Moralität und Sittlichkeit – Die Herkunft eines
Gegensatzes“, in: Kuhlmann, Wolfgang (Hg.) – Moralität und Sittlichkeit: Das Problem Hegels und die Diskursethik, Suhrkamp, Frankfurt am
Main, 1986, 64-84 Collins, Ardis B. – “Hegel´s Critical Appropriation of Kantian Morality”, in: Williams, R. R. – (ed.) Beyond liberalism and
communitarianism: studies in Hegel´s Philosophy of right, Albany, New York, 2001, 21-39 Forst, Rainer–„Kommunitarismus und Liberalismus:
Stationen einer Debatte“, in: Honneth, Axel (Hg.) – Kommunitarismus: eine Debatte über die moralischen Grundlagen moderner Gesellschaften,
Frankfurt am Main, 1995(Theorie und Gesellschaft, 26), 181-212– Kontexte der Gerechtigkeit: politische Philosophie jenseits von Liberalismus
und Kommunitarismus, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1994 Honneth, Axel – „Diskurs Ethik und implizites Gerechtigkeitskonzept: eine
Diskussionsbemerkung“,in: Kuhlmann, Wolfgang (Hg.) – Moralität und Sittlichkeit: Das Problem Hegels und die Diskursethik, Suhrkamp,
Frankfurt am Main, 1986,183-194–(Hg.)Kommunitarismus: eine Debatte über die moralischen Grundlagen moderner Gesellschaften, Frankfurt
am Main, 1995(Theorie und Gesellschaft, 26) Kuhlmann, Wolfgang – „Moralität und Sittlichkeit: ist die Idee einer letztbegründeten normativeb
Ethik überhaupt sinnvoll?“,in: Kuhlmann, Wolfgang (Hg.) – Moralität und Sittlichkeit: Das Problem Hegels und die Diskursethik, Suhrkamp,
Frankfurt am Main, 1986,194-216
10
[Habermas, Jürgen –„Arbeit und Interaktion. Bemerkungen zu Hegels Jenenser „Philosophie des Geites“ “, in: Frühe politische Systeme:
System der Sittlichkeit, Über die wissenschaftlichen Behandlungsarten des Naturrechts, Jenaer Realphilosophie. Herausgegeben und
kommentiert von Gerhard Göhler,Frankfurt am Main, Ullstein 1974, 786-814,794-795].
4
interpretar o agir moral kantiano como um caso de agir estratégico11. Embora não possamos
discutir aqui pormenorizadamente a leitura de Habermas, estamos nos beneficiando de sua
interpretação da relação entre o agir moral e um certo pressuposto seu: a intersubjetividade. Para
ele, o conceito kantiano de autonomia pressupõe uma forma particular de concordância
intersubjetiva: o reino dos fins. Mas é isso justamente que passa ao largo da questão acerca de
como uma tal comunidade poderia ser primeiramente efetivada, negligenciando o problema da
realização da liberdade intersubjetivamente mediada em contextos concretos. A consciência
moral é apresentada por Kant de maneira formal e individualista, isto é, na figura da consciência
individual apartada das condições intersubjetivas de seu engendramento.
11
Jürgen Habermas considera que com a subtração da relação positiva entre as vontades à possível comunicação e sua substituição por uma
concordância transcendentalmente necessária, “o agir moral no sentido de Kant se apresenta, mutatis mutandis, como um caso especial daquilo
que nós hoje denominamos de agir estratégico.”[Habermas, Jürgen –„Arbeit und Interaktion. 795]
12
Para Habermas, o que notabiliza a concepção hegeliana da autoconsciência em face dos seus predecessores idealistas é justamente sua
compreensão do eu, plasmada pela estrutura lógico-especulativa do conceito, como unidade imediata de universalidade e singularidade, pela qual
ele vai além do eu kantiano enquanto unidade originária e sintética da apercepção transcendental, o qual representa, segundo Habermas, a
experiência, fundamental para a “filosofia da reflexão”, da identidade do eu na auto-reflexão, a auto-experiência do sujeito cognoscente
proporcionada por sua capacidade de absoluta abstração. O que, segundo Habermas, caracteriza o empreendimento filosófico da
Wissenschaftslehre de Fichte é que esta persegue a dialética da relação entre eu e outro nos limites da subjetividade do saber-de-si, pelo que a
“dialética fichteana” permaneceria vinculada à relação da “reflexão solitária”. Decerto a interpretação de Habermas encontra respaldo na “filosofia
primeira de Fichte”. Porém, ele parece ignorar totalmente os desenvolvimentos contidos na Grundlage des Naturrechts. A gênese intersubjetiva da
autoconsciência individual poderia, sem dúvida, ser interpretada como preâmbulo à concepção hegeliana da dialética da autoconsciência, a qual de
fato ultrapassa a relação da reflexão solitária na direção de uma relação complementar de indivíduos que se reconhecem. Assim, complementando
a interpretação de Habermas, esperamos investigar neste trabalho como o conceito fichteano de reconhecimento está no fundamento da refutação
hegeliana do caráter originário da experiência da autoconsciência e de sua mediação pela experiência da interação, o que o teria levado a
abandonar os métodos de fundamentação da filosofia transcendental da consciência e a ter optado pelo caminho de uma teoria do espírito, o qual
se constitui como medium da comunicação e da constituição recíproca da identidade dos parceiros. Em suma, se, por um lado, a
Wissenschaftslehre de Fichte aprofunda, com sua concepção do eu efetivo como identidade do eu e do não-eu, a unidade transcendental kantiana
da autoconsciência; a teoria fichteana do reconhecimento se encontra, por outro lado, entre os motivadores da teoria hegeliana do espírito como
desdobramento dialético do eu enquanto unidade de universalidade e singularidade. Ver Habermas, Jürgen –„Arbeit und Interaktion. p. 788-790
13
Wildt estabelece uma conexão entre o respeito por si mesmo (Selbstachtung) e sua relação prático-intencional a direitos fundamentais, de
maneira que a auto-atribuição de direitos morais fundamentais se constitui como condição necessária para o engendramento de respeito por si ou
auto-estima. Para Wildt, exatamente esta conexão é tematizada e filosoficamente articulada pelas teorias do reconhecimento de Fichte e do Hegel
dos Jenaer Systementwürfe. Ainda segundo Wildt, esta conexão, ao ser formulada em termos da relação entre direitos humanos e dignidade
humana, que é propriamente o objeto do respeito, é capaz de reformular intuições jusnaturalistas-revolucionárias fundamentais da modernidade.
Neste sentido, para Wildt, o conceito de Anerkennung pode ser considerado, nestes autores, “um cauteloso sucessor do conceito kantiano de
respeito”, introduzido como condição necessária da consciência-de-si – compreendida por Wildt, no sentido coloquial, como auto-estima, respeito
por si mesmo ou noção da própria dignidade – e em conexão com a dedução do direito. Wildt considera que para Fichte e Hegel o “poder se
atribuir direitos” é uma condição necessária do respeito por si, da auto-estima, da noção da própria dignidade de si como ser racional Wildt,
Andreas – „Recht und Selbstachtung, im Anschluß an die Anerkennungslehre von Fichte und Hegel“, in: Kahlo, M., Wolff, E. A u. Zaczyk, R.
(Hrsg.) – Fichtes Lehre vom Rechtsverhältnis, Frankfurt am Main, 1992, 127-171
14
Honneth, Axel – „Die transzendentale Notwendigkeit von Intersubjektivität: (Zweiter Lehrsatz: § 3)“, in: Merle, Jean-Christophe(Hg) –
Johann Gottlieb Fichte, Grundlage des Naturrechts, Akad.-Verl., Berlin, 2001,63-80, p.71. Honneth expõe uma rica descrição das alternativas
que teriam sido possíveis a Fichte na solução do paradoxo da “simultaneidade hipostasiada”. Em primeiro lugar, teria sido possível compreender a
auto-posição do sujeito como se processando continuamente no modo de uma espontaneidade indisponível e como que anônima. Para Honneth,
esta via foi aquela assumida por Friedrich Schlegel no círculo do primeiro romantismo, “quando ele transfere o ônus da reflexividade estética do
sujeito para a própria obra de arte, rebentando com isso o arcabouço da tradição idealista da filosofia do sujeito.” Uma segunda alternativa que
poderia ter sido escolhida por Fichte seria o abandono do modelo de auto-certificação vinculado a uma noção epistêmica de reflexividade e sua
compreensão pela via de um modelo de estados pré-reflexivos de sentimentos, alternativa que é seguida, segundo Honneth, pela trilha que parte
dos inovadores trabalhos de Dieter Henrich e que procuram responder a questão das condições da consciência-de-si remetendo-a a uma noção do
estar-familiarizado-consigo ou Mit-sich-Vertrautsein. Finalmente, a alternativa assumida por Fichte, e que se constitui como uma compreensão da
auto-certificação intersubjetivamente mediada da subjetividade, inaugura a via que vai ser trilhada por filósofos que vão de Hegel a G. H. Mead,
5
Kant não construiu a gênese da consciência da liberdade tal como Fichte e Hegel, ou seja,
enquanto processo de reconhecimento, através do qual os pressupostos desta consciência se
constituem em modelos sociais de confirmação recíproca. Estes elaboraram uma teoria da
Anerkennung que acaba por revelar que a universalidade das concepções kantianas da ética, da
moral e do direito só é possível através da mediação intersubjetiva da liberdade individual e da
gênese da consciência-de-si universal.
“Há uma quantidade considerável de perguntas que [ela] deve responder antes de poder se tornar ciência e doutrina-
da-ciência (Wissenschaftslehre) ... especialmente as duas seguintes, sem cuja resposta não poderia ser possível,
dentre outras coisas, um direito natural meticuloso (ein gründliches Naturrecht) ... com que autorização o ser
humano chama uma determinada parte do mundo corpóreo de seu corpo ? Como ele chega a considerar este seu
corpo como pertencente ao seu eu, uma vez que, precisamente, ele se contrapõe a este ? ... como ele chega a supor
exteriormente a si seres racionais semelhantes a si e a reconhecê-los, uma vez que os mesmos seres de maneira
nenhuma são dados imediatamente em sua pura consciência-de-si ?”15
Nesta célebre colocação do ano 1794 em seu discurso inaugural na Universidade de Jena
– que teve, dentre seus ilustres ouvintes, o poeta Hölderlin, o qual, sustentando o ideário da
Vereinigungsphilosophie, exerceu enorme influência sobre a concepção de intersubjetividade do
jovem Hegel – Fichte menciona as questões primordiais para um “Direito Natural”. Quatro anos
depois, em sua importante versão da Doutrina-da-Ciência de 1798 (nova methodo), Fichte
menciona a necessidade de que o nexo intersubjetivo deva ser constitutivo para a consciência
individual como condição para a universalidade do princípio moral: “em Kant o princípio da
suposição de seres racionais fora de nós não aparece como um fundamento de conhecimento
(Erkenntnisgrund), mas como um princípio prático, tal como ele apresentou na fórmula de seu
princípio moral: eu devo agir de tal modo que minha maneira de agir possa se tornar lei para todo
ser racional. Mas aí eu preciso já supor seres racionais fora de mim, pois como eu pretenderia de
outra maneira relacionar tal lei a eles ?”16
passando por Feuerbach e chegando a Habermas. Para Honneth, o característico deste tipo de vertente pode ser compreendido como tentativa de
“conceitualizar a subjetividade em uma dependência principial em relação a uma intersubjetividade prévia.”
15
Vorlesungen, VI, 302
16
WL1798, AA IV, 2 (142)
17
A questão da intersubjetividade não se reduz em Fichte ao problema do direito, que não constitui o nível mais elevado de intersubjetividade. A
religião é, por exemplo, sobreposta ao direito. Sobre o título de religião, Fichte considera não a igreja existente de fato, mas uma comunidade
espiritual de todos os cidadãos que visa à destinação comum de todos os homens. O Fichte do período que estamos considerando fornece uma
descrição desta comunidade religiosa tanto nas Vorlesungen de 1794, quanto na Sittenlehre de 1798.
18
Lauth, Reinhard – “Le Problème de l´interpersonalité chez J. G. Fichte“, in: Archives de Philosophie, 25 (1962), 325-344. Lauth é
responsável não só pela publicação, sob o título de Von den Pflichten der Gelehrten - Jenaer Vorlesungen 1794/95, das curtas Vorlesungen que
marcam a entrada de Fichte na Universidade de Jena numa coletânea juntamente com outros esboços, mas também foi, em seu artigo precursor, o
primeiro a chamar atenção para o significado sistemático destas lições tanto para a fundamentação da teoria fichteana da intersubjetividade,
quanto para o surgimento da concepção sistemática geral do primeiro Fichte.
6
Uma tal investigação significa que o ser humano não será considerado enquanto eu puro,
isto é, a pura atividade prática que inicia a Wissenschaftslehre de 1794. O eu que é consciência-
de-si efetiva não pode, de acordo com o terceiro princípio da doutrina-da-ciência (a síntese da
divisibilidade), ser o eu absoluto: consciência-de-si efetiva (e com ela a liberdade individual)
supõe o “choque” com algo que não é ela mesma. Assim, tal ponto de partida remete a esta
consciência-de-si, isto é, a um indivíduo em abstração de todo o ser possível e necessário que lhe
é exterior23. Este procedimento, que se notabiliza pela abstração da intersubjetividade24, fornece a
primeira determinação/destinação do homem.
19
Como lembra Edith Düsing, “se se considera que Fichte começa a conceber primeiramente uma teoria do reconhecimento acentuada em termos
éticos e no tocante à teoria da formação; e dois anos depois explicita este tema, com maior exatidão, no contexto totalmente modificado de uma
filosofia do direito; e, novamente, dois anos depois, trata, da mesma forma, no System der Sittenlehre, um correlato essencial do
“reconhecimento”, a saber: a interpelação (Aufforderung) – e na verdade, como ele diz, a partir de um princípio mais elevado; então surge o
problema da determinação da relação entre teoria do reconhecimento e ética. Com isso, surge, ao mesmo tempo, a questão acerca da possível
existência de modos ou estágios diversos de reconhecimento.”[ Düsing, E. –Intersubjektivität und Selbstbewußtsein: behavioristische,
phänomenologische und idealistische Begründungstheorien bei Mead, Schütz,Fichte und Hegel , Köln, 1986, 205] Fichte não se ocupou tanto
desta questão; mas a retomada do tema da intersubjetividade rendeu-lhe a precisão quanto ao papel a ser ocupado pelos conceitos de Anerkennung
e Aufforderung no contexto sistemático da “história pragmática da consciência-de-si”. Este processo toma contornos sistemáticos bem definidos e
precisos na Doutrina-da-Ciência de 1798, na qual a necessidade da “interpelação” é inserida definitivamente na sistemática filosófico-
transcendental da gênese da consciência-de-si concreta.
20
A palavra alemã Bestimmung está sendo ora traduzida por “determinação”, ora por “destinação”. Achamos lícito supor que neste texto de Fichte
ela é muitas vezes utilizada como sinônimo dos termos latinos determinatio e destinatio, ou seja, ora é utilizada num sentido lógico-teórico de
limitação de um conceito pelas notas, ora no sentido prático da determinidade final do homem enquanto ser racional e sensível.
21
Vorlesungen, VI, 293
22
Vorlesungen, VI, 293
23
“O que seria o propriamente espiritual no homem, o eu puro puramente em si, isolado, apartado de todas as relações fora do mesmo ? Esta
pergunta não é passível de resposta e, tomada de maneira exata, contém uma contradição consigo mesma. Não é verdade que o eu puro seja um
produto do não-eu – assim eu denomino tudo aquilo que é pensado fora, que se diferencia dele e que é contraposto a ele ... uma tal frase exprimiria
7
“Tão certo quanto o homem ter razão, ele é seu próprio fim (Zweck), isto é, ele não é porque algo outro deve ser, ele
é pura e simplesmente porque ele deve ser: seu mero ser é o fim último (der letzte Zweck) de seu ser, ou, o que
significa o mesmo, não se pode perguntar sem contradição acerca do fim do seu ser. Ele é porque ele é. Este caráter
do ser absoluto, do ser por causa de si mesmo, é o seu caráter ou sua destinação (Bestimmung), na medida em que ele
é considerado pura e simplesmente como um ser racional ... Na medida em que ele é em geral, ele é ser racional. Na
medida em que ele é alguma coisa, o que é ele então ?”25
Fichte vincula o ser-fim-término do ser humano à qualidade de ser sujeito da lei ética. Na
medida em que o ser humano quer existir, segundo seu conceito, como fim absoluto em si, ele
tem de procurar referir tudo o que ele é concretamente enquanto ser vivo sensível-racional à sua
egoidade26, pois a forma desta enquanto seu princípio espiritual é o fundamento de seu caráter
absoluto e de sua capacidade de não ser condicionado por nada do que lhe é exterior.
“ ... a frase mencionada acima – o homem é porque ele é – se transforma na seguinte sentença: o homem deve ser o
que ele é, simplesmente porque ele é, isto é, tudo o que ele é, deve ser relacionado ao seu eu puro, à sua egoidade.
Tudo o que ele é, ele deve ser simplesmente porque ele é um eu; e o que ele não pode ser porque ele é um eu, não
deve ele ser de maneira nenhuma.”27
Fichte vai procurar então provar esta compreensão do ser humano, pautada pela idéia do
eu que se constitui a si mesmo de maneira absoluta, como uma tarefa eticamente ordenada, e isto
através da suposição de que a identidade pessoal do sujeito, sua unidade enquanto sujeito prático
não é algo previamente dado, mas que surge somente no decurso da realização da lei moral.
“O homem deve sempre concordar consigo mesmo (Der Mensch soll stets einig mit sich selbst sein), ele não deve
nunca se contradizer. Na verdade, o eu puro nunca pode estar em contradição consigo mesmo, pois não há nele
nenhuma diversidade, e ele é sempre um e o mesmo. Todavia, o eu empírico, determinável e determinado por coisas
exteriores, pode se contradizer. E quanto mais freqüentemente ele se contradiz, tanto mais isto é um indício de que
ele é determinado não segundo a forma do eu puro, não por si mesmo, mas pelas coisas exteriores. E dessa maneira
ele não deve ser. O homem é fim em si (selbst Zweck), deve se determinar a si mesmo e nunca se deixar determinar
um materialismo transcendente que é totalmente contrário à razão ... mas é certamente verdadeiro, e será demonstrado rigorosamente em seu
devido lugar que o eu não se torna e nem pode se tornar consciente de si mesmo a não ser em suas determinações empíricas, e que tais
determinações empíricas pressupõem necessariamente um algo fora do eu. Já mesmo o corpo do homem, que ele denomina seu corpo, é algo fora
do eu.”[ Vorlesungen, VI, 294/295]
24
“Considerar o homem em si mesmo e isolado não significa, portanto, nem aqui, nem em outro lugar, considerá-lo como eu puro, sem qualquer
relação com alguma coisa fora de seu eu puro, e sim considerá-lo apartado de todas as relações com seres racionais iguais a si.” [ Vorlesungen, VI,
294/295]
25
Vorlesungen, VI, 295/296
26
“A consciência-de-si empírica, isto é, a consciência de alguma determinação (Bestimmung) em nós não é possível a não ser sob pressuposição
de um não-eu ... Este não-eu precisa exercer influência (einwirken) na capacidade receptiva do eu (seine leidende Fähigkeit), a qual nós
denominamos sensibilidade (Sinnlichkeit). Assim, na medida em que o homem é, ele é um ser sensível. No entanto ... ele é simultaneamente um
ser sensível, e sua razão não deve ser superada (aufgehoben) por sua sensibilidade, mas ambas devem subsistir lado a lado.” [Vorlesungen, VI,
296]
27
Vorlesungen, VI, 296
8
por algo estranho. Ele deve ser o que ele é, porque ele quer ser e deve querer. O eu empírico deve ser afinado
(gestimmt) de tal forma que ele poderia ser afinado desta maneira eternamente.” 28
Na relação entre eu puro e eu empírico no homem há uma harmonia universal que deve
ser considerada um estado de completude da existência humana digno de ser ambicionado. Mas o
pressuposto desta harmonia está na reformulação feita por Fichte do imperativo categórico de
Kant: “Por isso ... eu exprimiria o princípio da doutrina dos costumes (Sittenlehre) com a
seguinte fórmula: age de tal maneira que tu possas pensar a máxima de tua vontade como lei
eterna para ti.”29 De acordo com isso, a bondade da vontade e das ações que dela se seguem
resulta do critério implícito na lei moral de que o homem se veja, no que concerne à sua vontade,
numa relação a si que mantenha sua identidade. Em cada ação individual, o agente tem de poder
asseverar que o princípio que guia seu fazer permanece sem contradição e que no querer da
máxima escolhida está contida para ele uma lei individual que poderia ser eternamente seguida:
nisto reside, para Fichte, o problema da validade universal e da capacidade de universalização das
máximas30.
28
Vorlesungen, VI, 297
29
Vorlesungen, VI, 297
30
As Vorlesungen fornecem um subsídio para a compreensão do difícil § 5 da Wissenschaftslehre de 1794, parágrafo que abre a “Fundação da
Ciência do Prático”. Nesta passagem das Vorlesungen, Fichte considera uma conjunção entre eu absoluto, eu prático e eu teórico. O eu efetivo,
isto é, a consciência-de-si do ser humano concreto, é infinita somente no tocante à sua determinação e enquanto ponto final do seu esforço.
Quando o eu empírico descobre a idéia de sua essência propriamente dita, então ele se torna vontade prática, a qual se dirige à exigência de
cumprir, através de seu esforço, sua tarefa, que se torna representação graças à lei moral.
31
“Eu me dediquei, neste verão [1795], a investigações sobre o direito natural, e cheguei à conclusão que há, por toda parte, carência de uma
dedução da realidade do conceito de direito, que todas as explicações do mesmo são somente explicações analíticas (Wort-erklärungen). [...] Eu
reconsiderei, nesta oportunidade, a Grundlegung de Kant e cheguei à conclusão de que, se, em algum lugar, [então aí] a insuficiência dos
princípios kantianos e a pressuposição de [princípios] mais elevados – feita sub-repticiamente por ele mesmo – se deixa demonstrar de maneira
evidente.”[ Fichte an Reinhold, 29. August 1795: III 2, 385]
32
Na Grundlegung, ao contrário do que fará na Kritik der praktischen Vernunft, Kant torna a validade do imperativo categórico dependente do
princípio do mundo inteligível. Como frisa muito bem Henry Allison – contra a tese de Paton de que Kant já em FMC tem consciência da não
possibilidade de justificação da submissão de todo ser racional à lei moral por considerações não morais, a qualidade de membro do mundo
inteligível fornece a requerida premissa não moral pela qual podemos pressupor a liberdade e daí inferir a submissão moral (pela identidade dos
conceitos na autonomia), sem nos precipitarmos na objeção de círculo vicioso. Allison , Henry E. Kant´s theory of freedom , p.221 Para Kant,
através da idéia de liberdade, o ser humano tem de se representar como membro do mundo inteligível, cujo ordenamento é a lei moral com a qual
se depara enquanto imperativo. Dessa forma, Fichte critica em Kant algo que o próprio Kant tenderá a ver como uma insuficiência de sua
argumentação na fundação da moral. Na segunda Crítica, o mundo dos inteligíveis não é mais fundamento de possibilidade e de legitimação da
validade do imperativo categórico, e sim, inversamente, o fato da razão é em nós o sinal de que pertencemos a um tal mundo inteligível, ao qual o
homem somente se transpõe em virtude do reconhecimento da obrigatoriedade da lei prática incondicionada.
9
racionais exteriores a partir do dever, que se mostra primeiramente incondicionado para o “eu
puro finito”, Fichte traça o programa investigativo não somente das Vorlesungen, mas que
constitui o cerne da exposição da Sittenlehre de 1798 (§§ 17-18) e, sob a forma de uma
investigação das condições de possibilidade da consciência-de-si, orienta também o Naturrecht
(§§ 1-7).
“Eu denomino sociedade a relação dos seres racionais uns aos outros. O conceito de sociedade não é possível sem a
pressuposição de que efetivamente haja seres racionais exteriormente a nós, e sem determinações características
(Merkmale), por meio das quais nós somos capazes de diferenciar tais seres de todos os outros que não são racionais,
e que, portanto, não pertencem à sociedade. Como nós chegamos a esta pressuposição? E quais são estas
determinações (Merkmale) ?”35
Atentando a isso, Fichte procura rejeitar uma tese segundo a qual seria possível provar a
atribuição de racionalidade e de reivindicação do uso da liberdade a seres existentes através da
experiência36. Sempre se poderia enumerar uma série de determinações pelas quais, segundo a
experiência, foi-se habituado a diferenciar a racionalidade exterior da ausência dela; no entanto, a
33
Vorlesungen, VI, 302
34
Vorlesungen, VI, 302
35
Vorlesungen, VI, 302
36
“ “Nós extraímos ambas [as pressuposições] da experiência, tanto que existam fora de nós seres racionais, quanto os indícios que os diferenciam
de seres não-racionais (die Unterscheidungszeichen derselben von vernunftlosen Wesen)”, de tal forma devem responder aqueles que ainda não se
habituaram à investigação filosófica rigorosa. Mas uma tal resposta seria superficial e insatisfatória, não seria mesmo sequer uma resposta à nossa
pergunta, e sim pertenceria a uma pergunta completamente diferente...” [Vorlesungen, VI, 303]
10
propriedade da racionalidade enquanto tal jamais poderia ser percebida desta forma. “A
experiência ensina apenas que a representação (Vorstellung) de seres racionais exteriormente a
nós esteja contida em nossa consciência empírica; e sobre isso não há nenhum conflito...a
pergunta é se a esta representação corresponde algo fora das mesmas, se, independentemente de
nossa representação – e mesmo que nós não tenhamos disso a representação – existam seres
racionais fora de nós. Acerca disso a experiência nada pode ensinar, na medida em que ela é
experiência, isto é, o sistema de nossas representações.” 37 Da mesma forma, se se pretende
inferir pela experiência a racionalidade a partir da semelhança de efeitos percebidos com aqueles
que seriam esperados de um agente racional, isto não prova, contudo, a existência efetiva de tais
seres racionais38.
“Nós mesmos é que primeiramente carregamos estes para dentro da experiência. Somos nós que explicamos certas
experiências a partir da existência de seres racionais fora de nós. Mas com que autorização explicamos algo desta
maneira ? Esta autorização (Befugnis) tem de ser demonstrada de maneira mais precisa antes de seu uso, porque
nisto se fundamenta a validade da mesma, que não pode simplesmente ser fundamentada no uso efetivo. E assim nós
não daríamos nenhum passo adiante e estaríamos novamente diante da pergunta que levantamos acima: como nós
chegamos a supor e reconhecer seres racionais exteriormente a nós? ”39
Fichte mostrou que “o impulso (Trieb) mais elevado no homem é o impulso para a
identidade, para a perfeita concordância consigo mesmo”41 e que, portanto, a determinação ética
do ser humano se realiza através do esforço por esta concordância. Mas esta concordância interna
implica também a concordância de tudo aquilo que lhe é exterior com seus conceitos práticos
necessários, isto é, com seus princípios subjetivos para o agir que se deixam coadunar com a lei
moral, os quais são referidos ao mundo exterior de tal maneira que a existência ou não existência
de algo determinado não pode ser indiferente para ele. “Seus conceitos não só não devem ser
contraditos – de maneira que lhes fosse indiferente a existência ou não-existência de um objeto a
ele correspondente –, mas deve ser também efetivamente dado algo que lhes seja
correspondente.”42 O interesse prático determinado segundo móbeis éticos pode ter de exigir
37
Vorlesungen, VI, 303
38
“a experiência pode, no máximo, ensinar que são dados efeitos, que são semelhantes a efeitos de causas racionais, mas jamais ela pode ensinar
que as causas de tais efeitos existam efetivamente em si como seres racionais, pois um ser em si mesmo não é objeto da experiência.”[
Vorlesungen, VI, 303]
39
Vorlesungen, VI, 303
40
“O âmbito teórico da filosofia está exaurido de maneira concorde pelas meticulosas investigações dos críticos. Todas as perguntas que
permanecem até agora sem resposta precisam ser respondidas a partir de princípios práticos ... nós precisamos tentar ver se conseguimos
responder efetivamente as questões levantadas a partir destes mesmos princípios.”[Vorlesungen, VI, 304]
41
Vorlesungen, VI, 303
42
Vorlesungen, VI, 303
11
“Ele não é capaz de produzir tais seres, mas ele põe o conceito deles como fundamento da
sua observação do não-eu e espera encontrar algo que corresponda a ele.”45 Se a consciência
exige, para a realização do impulso ético para a identidade, seu reflexo racional no mundo, não se
trata com isso da capacidade de se produzir tais seres. Uma vez que o caráter da racionalidade e
da liberdade jamais pode ser diretamente observável nos seres exteriores, o postulado da
existência do alter ego – com o qual cada um, de acordo com seu impulso ético para identidade,
espera se deparar – precisa se limitar a determinados sinais que permitem a inferência da
liberdade na alteridade46. O sujeito jamais pode se tornar imediatamente consciente de uma
liberdade exterior, mas pode tentar excluir todas as causas naturais pensáveis para um fenômeno,
a fim de poder admitir para este novo fenômeno uma causalidade mediante uma liberdade que
localiza na sua alteridade47.
“Se agora, através de nossa ação livre, da qual nós somos conscientes da maneira indicada, modifica-se a espécie de
efeitos (Wirkungsart) de tal maneira que a situação resultante não seja mais explicável a partir da lei segundo a qual
43
Vorlesungen, VI, 304
44
Vorlesungen, VI, 304
45
Vorlesungen, VI, 304/305
46
“A primeira característica da racionalidade a se apresentar, ainda que seja simplesmente negativa, é a eficácia segundo conceitos (Wirksamkeit
nach Begriffen), a atividade segundo fins (Tätigkeit nach Zwecken). O que traz o caráter da conformidade a fins (Zweckmässigkeit) pode ter um
autor racional.” [Vorlesungen, VI, 304/305] Mas mesmo assim Fichte adverte acerca do caráter equívoco da derivação de uma causa livre pelo
efeito conforme a fins. “Aquilo a que o conceito de conformidade a fins não se deixa aplicar certamente não tem um autor racional. Mas esta
peculiaridade é ambígua: concordância do múltiplo com a unidade é o caráter da conformidade a fins, mas há várias espécies desta concordância
que se deixam explicar por simples leis da natureza (aus bloßen Naturgesetzen) – ainda que não por leis mecânicas, mas pelo menos por
orgânicas.” [Vorlesungen, VI, 304/305]
47
Na verdade, segundo Fichte, esta consciência imediata da própria liberdade é, em si mesma, algo problemático. No entanto, através do mesmo
procedimento que um sujeito pode utilizar para se tornar consciente mediatamente da influência da liberdade de sua vontade sobre seu eu empírico
(a ausência de outras causas pertinentes), Fichte pretende chegar à “prova” da existência necessária de uma liberdade na alteridade. “De uma
liberdade exterior a mim eu não posso de maneira alguma me tornar consciente de maneira imediata. Nem mesmo de uma liberdade em mim
mesmo, ou da minha própria liberdade eu posso me tornar consciente; pois a liberdade em si é o último fundamento de explicação
(Erklärungsgrund) de toda a consciência e não pode, portanto, figurar no âmbito da consciência. Mas eu posso me tornar consciente de que, em
uma certa determinação do meu eu empírico pela minha vontade, eu não posso me tornar consciente de outra causa a não ser esta própria vontade.
E esta não-consciência da causa poder-se-ia bem denominar de consciência da liberdade.” [Vorlesungen, VI, 305]
12
ela anteriormente decorria, e sim simplesmente a partir do que pusemos como fundamento da nossa ação livre, então
nós somente podemos explicar esta determinação modificada pela pressuposição de que a causa daquele efeito seja
igualmente racional e livre. A partir disso surge – o que eu recupero em terminologia kantiana – uma ação recíproca
segundo conceitos (eine Wechselwirkung nach Begriffen), uma comunidade conforme a fins (eine zweckmässige
Gemeinschaft) e é isto o que eu denomino sociedade (Gesellschaft). O conceito de sociedade está agora
completamente determinado.”48
Fichte deduz a realidade prática do postulado do alter ego a partir da necessidade prática
do esforço ético pela plena concordância consigo mesmo. No Naturrecht, na Sittenlehre e na
Nova methodo, Fichte atribui, na investigação acerca das condições de possibilidade da
consciência-de-si, um significado ainda mais decisivo à intersubjetividade. Não é o eu já
consciente de si mesmo como ser racional que se lança à procura do alter ego como condição de
seu impulso ético: ele o “encontra” no momento da gênese de sua consciência-de-si e da tomada
de consciência de sua liberdade. Nas reformulações da dedução da intersubjetividade, Fichte não
parte de um indivíduo já formado e que dispõe da idéia do uso de sua liberdade. O encontro de
ambos os sujeitos se tornará condição recíproca para o encontrar-se a si mesmo como livre.
Embora Fichte insira nas Vorlesungen a intersubjetividade como elo imprescindível no
desenvolvimento ético de um sujeito dotado de consciência moral formada, uma vez que a
história da consciência-de-si concreta não é plenamente possível sem o nexo social, sua
48
Vorlesungen, VI, 305/306
49
“Pertence aos impulsos fundamentais do homem poder supor seres racionais seus semelhantes exteriormente a si. Ele pode supô-los somente
sob a condição de que ele entre em sociedade, segundo o significado acima determinado. O impulso social pertence, portanto, aos impulsos
fundamentais do ser humano. O homem é destinado (bestimmt) a viver em sociedade, ele deve viver em sociedade, ele é não um homem
inteiramente acabado e se contradiz a si mesmo, se ele vive isoladamente.” Tal resultado é determinado pela conexão com o eu absoluto, que põe a
si mesmo incondicionalmente, e mesmo com o caráter que assume esta auto-posição absoluta na estrutura da determinação essencial do ser
racional finito. Por isso, o tom da argumentação é pouco voltado à coexistência de seres livres como dado essencial à constituição recíproca da
identidade e da consciência da liberdade. O ser humano somente pode se aperfeiçoar eticamente, na medida em que, seguindo seu impulso
fundamental de supor seres racionais semelhantes a si, ele entra com eles em “sociedade”; pois quando o ser humano procura uma existência
apartada da comunidade, ele se enreda numa contradição a propósito de sua própria essência e de sua determinação: o impulso à socialização com
o alter ego está implicado no esforço individual para a consecução da plena identidade consigo, de maneira que o ser humano estaria
suspendendo, ao optar pelo isolamento, este esforço que, segundo a teoria fichteana da subjetividade, faz parte da essência espiritual do eu finito.
O isolamento significaria, como princípio subjetivo do agir, uma limitação da intensidade possível do esforço ético pela identidade.
13
50
“O derradeiro e mais elevado fim da sociedade é a completa unidade e unanimidade com todos os possíveis membros da mesma. Uma vez que
a consecução deste objetivo pressupõe a consecução da determinação do homem em geral, a consecução da perfeição absoluta, então ele é tão
inalcançável quanto aquele o é, enquanto o homem não deve parar de ser homem e não deve se tornar Deus.”[Vorlesungen, VI, 310]
51
“Todo indivíduo tem seu ideal particular de ser humano em geral, e tais ideais se diferenciam não só na matéria, mas também na forma. Cada
um avalia, segundo seu próprio ideal de ser humano, aquele que ele reconhece como um ser humano. Cada um deseja, em virtude daquele impulso
fundamental, encontrar todo outro como semelhante a tal ideal. Ele tenta, observa-o e quando o encontra sob tal ideal, ele procura elevá-lo até tal
patamar. Neste círculo de espíritos com espíritos, vence sempre aquele que é um homem melhor, mais elevado. Surge assim, através da sociedade,
o aprimoramento do gênero (Vervollkommnung der Gattung), e nós encontramos aqui, ao mesmo tempo, a destinação de toda a sociedade como
tal.”[Vorlesungen, VI, 307]
52
Vorlesungen, VI, 310
53
SS, 256
54
Vorlesungen, VI, 306/307
14
55
ver Honneth, Axel – „Die transzendentale Notwendigkeit von Intersubjektivität: (Zweiter Lehrsatz: § 3)“, in: Merle, Jean-Christophe(Hg) –
Johann Gottlieb Fichte, Grundlage des Naturrechts , Akad.-Verl. , Berlin , 2001,63-80, p. 63
56
Baumanns, P. – Fichtes ursprüngliches System. Sein Standort zwischen Kant und Hegel, Stuttgart, 1972 p.175
57
Weischedel, Wilhelm – Der frühe Fichte: Aufbruch d. Freiheit zur Gemeinschaft, Frommann-Holzboog, Stuttgart, 1973, p. 14
58
“Um tal argumento estava, ainda que ele devesse facilitar o acesso ao conceito de comunidade humana, plenamente de acordo com as premissas
da doutrina-da-ciência, já que a existência de seres racionais foi compreendida somente como projeção necessária de uma consciência-de-si que se
dirige ao aperfeiçoamento (als notwendige Projektion eines nach Vervollkommnung strebenden Selbstbewußtseins).”Honneth, op. cit, p.63/64
59
Vorlesungen, VI, 307
60
“Este aproximar-se da unidade e unanimidade com todos os indivíduos nós podemos chamar de unificação. Com efeito, a unificação ... é a
verdadeira destinação do ser humano em sociedade. Mas esta unificação ... somente é possível através do aperfeiçoamento. Por isso, nós podemos
bem dizer: aperfeiçoamento social, aperfeiçoamento de si mesmo através da influência livremente utilizada de outros sobre nós, e aperfeiçoamento
dos outros através de nossa atuação sobre eles, enquanto atuação sobre seres racionais, é nossa destinação na sociedade.” [ Vorlesungen, VI, 310]
61
“O ser humano pode utilizar as coisas não-racionais como meios para seus fins, mas não os seres racionais; ele não deve nem mesmo precisar
deles para os fins deles próprios. Ele não deve atuar sobre eles como sobre a matéria morta ou sobre o animal, de maneira que, por meio deles, ele
simplesmente faça prevalecer seu fim, sem levar em conta sua liberdade.”[ Vorlesungen, VI, 309]
15
“Vós vedes, meus senhores, quão importante é não confundir a sociedade em geral com o tipo particular
empiricamente determinado de sociedade, denominada estado (Staat). A vida no estado não pertence aos fins
absolutos do homem ... trata-se, sim, de um meio para a fundação de uma sociedade perfeita, o qual somente se
realiza sob certas condições (ein nur unter gewissen Bedingungen statt findendes Mittel zur Gründung einer
vollkommenen Gesellschaft). Tanto quanto todas as instituições humanas que são simples meios, o estado tende a seu
aniquilamento: a finalidade (Zweck) de todo governo (Regierung) é tornar o governo supérfluo.”63
“Seguramente, este ainda não é o momento ... mas é certo que existe, no transcorrer projetado a priori para o gênero
humano, um tal ponto em que, ao invés da força e da esperteza, a simples razão será reconhecida como juiz
soberano. Eu digo ser reconhecida (anerkannt sein)”, pois enganar seu concidadão (Mitmenschen), ou lesá-lo por
engano, podem os homens ainda neste caso; todavia, eles têm todos de possuir a boa vontade de se deixar convencer
de seu equívoco; e, assim como eles estão convencidos dele, retratá-lo e reparar o dano. Antes que suceda este
momento, nós em geral não somos ainda sequer verdadeiros seres humanos.”65
62
“o impulso de socialização é determinado negativamente pela lei de concordância absoluta: ele não deve se contradizer. O impulso diz respeito
à interação (Wechselwirkung), à influência recíproca (gegenseitige Einwirkung), mútuo dar e tomar (gegenseitiges Geben und Nehmen), recíproco
fazer e sofrer (gegenseitiges Tun und Leiden), não simplesmente à simples causalidade, contra a qual o outro teria de se comportar apenas
passivamente ... não se destina à subordinação, como no mundo corpóreo, mas à coordenação. Se não se quer deixar os seres racionais procurados
serem livres, então se leva em conta apenas sua sociabilidade teórica e não sua livre racionalidade: não se quer entrar com eles em sociedade, e
sim dominá-los como animais mais habilidosos, e então se coloca o impulso à socialização em contradição consigo mesmo.”[ Vorlesungen, VI,
308/309]
63
Vorlesungen, VI, 306
64
A socialização humana somente adquire um valor ético quando sua aptidão para a socialização se processa em subordinação àquele esforço
eminentemente ético. “Na medida em que surgiu também do elemento mais interior e mais puro da essência humana, esta destinação para a
sociedade em geral é, todavia, enquanto mero impulso, subordinada àquela suma lei de ininterrupta concordância conosco mesmos ou lei ética
(Sittengesetz), e precisa ser ulteriormente determinada por esta última ...”[Vorlesungen, VI, 308] Nas Vorlesungen, Fichte concebe a habilidade
para a socialização em termos da plena reciprocidade do dar e do receber, isto é, de uma interação pela liberdade. “Para alcançar esta destinação e
conseguir alcançá-la sempre mais, precisamos de uma habilidade que somente é adquirida e intensificada através da cultura: uma habilidade para
dar, ou de agir sobre os outros enquanto seres racionais, e uma aptidão em receber (einer Empfänglichkeit zu nehmen), ou de tirar, a partir da
atuação dos outros sobre nós, o melhor proveito.” [Vorlesungen, VI, 310/311]
65
Vorlesungen, VI, 306/307
16
direito, enquanto âmbito da coerção, procura restaurar, ainda que com vistas à manutenção do
nexo social em face da ameaça de dissolução pelo princípio do egoísmo universal. Obviamente,
com sua concepção teleológico-moral do estado, Fichte acaba por hipostasiar esta concepção de
intersubjetividade, compreendendo-a como uma “era” a ser alcançada com a superação da
imperfeição da vida política sob o estado. No entanto, queremos reter o seguinte resultado: se a
função do estado é “restaurar”, ao menos exteriormente por meio do direito, o estofo de
inteligibilidade baseada na confiança recíproca, na geração mútua de expectativas de ação e que
possibilita o surgimento de um grau mínimo de solidariedade social, é justamente porque este
padrão de uma intersubjetividade livre e fundada na não-coerção66 não é para ser alcançado no
futuro: ele não só já está contrafactualmente presente, como também é condição de possibilidade
do próprio direito e de sua inteligibilidade como ordem racional das coisas; o direito tem já de
partir, como condição de sua própria normatividade, de uma certa concepção do tipo de laço
social que ele deseja pragmaticamente preservar. É justamente este par conceitual forjado nas
Vorlesungen como oposição entre sociedade e estado que constitui, a nosso ver, o melhor recurso
para a interpretação da mudança de perspectiva na exposição do Naturrecht de Fichte – mudança
que se opera entre o âmbito de fundamentação do reconhecimento como relação originária que
está na base de toda outra relação jurídica, o qual cria a “fidelidade e a crença” mútuas como
fundamento de possibilidade da relação social pautada pelo direito e que ele quer manter e
restaurar (§§1-7); e a investigação, no que concerne à quebra da obrigatoriedade jurídico-social
(§§8-16), acerca das condições de aplicação do direito como lei de coerção imanente à liberdade
individual. O sentido desta interpretação é a tentativa de mostrar em que medida Fichte
abandona, na construção de seu direito natural, as potencialidades éticas do conceito de
reconhecimento, e em que medida este abandono se vincula a uma separação radical entre direito
e dever.
66
“Livre é somente aquele que quer tornar livre tudo em volta de si e que, através de uma certa influência, efetivamente torna tudo livre. Sob seus
olhos nós respiramos mais livremente. Nós nos sentimos por nada oprimidos, ou contidos, ou confinados. Nós sentimos um prazer incomum de
fazer e de ser tudo o que o respeito por nós mesmos não nos proíbe.” [ Vorlesungen, VI, 308]
67
Nos referimos aqui não simplesmente à obra de Fichte publicada em 1794 com o título Grundlage des gesamten Wissenschaftslehre, mas
também às obras de filosofia prática publicadas com a designação nach den Prinzipien der Wissenschaftslehre, isto é, a Grundlage des
Naturrechts (1796/1797) e o System der Sittenlehre (1798). O contexto sistemático da primeira Wissenschaftslehre também é consideravelmente
ampliado por textos programáticos, como é o caso das Vorlesungen über die Bestimmung des Gelehrten (1794) ou mesmo pelas Vorlesungen
compaginadas como Wissenschaftslehre nova methodo (1798). A citação das obras completas é feita com base na edição Fichte, J. G Werke em 20
volumes, Editadas por Immanuel H. Fichte, Walter De Gruyter, Berlin,1971. A partir de agora utilizaremos a abreviação GNR para a Grundlage
des Naturrecht nach den Prizipien der Wissenchaftlehre, e Sittenlehre para o System der Sittenlehre nach den Prizipien der Wissenchaftlehre,
ambos presentes no volume 3 da referida edição.
17
terminologia imortalizada por Fichte, a partir do choque (Anstoß). A faculdade prática absoluta é
mera espontaneidade sem consciência do seu agir livre: somente mediante um outro independente
de si o eu pode pôr a si mesmo conscientemente como ser-para-si, somente sob a condição da
posição de um não-eu se torna possível a consciência-de-si da atividade como livre.
“O conceito de individualidade é ... um conceito recíproco (Wechselbegriff), isto é, um conceito que somente em
relação a um outro pensar pode ser pensado, e que é condicionado, segundo a forma, pelo mesmo – e, na verdade,
por um igual – pensamento. Ele somente é possível em um ser racional, na medida em que é posto de maneira
conclusa por um outro. Portanto, ele não é nunca meu, e sim, segundo minha admissão (Geständnis) e a admissão do
outro, meu e seu, seu e meu. É um conceito comunitário (ein gemeinschaftlicher Begriff), no qual duas consciências
são unificadas na unidade.”70
É Fichte, portanto, que introduz a idéia de que o indivíduo como tal, considerado
isoladamente e apartado da interação “real” em que se encontra desde sempre e que constitui o “a
priori” que condiciona sua consciência-de-si como indivíduo, nada mais é do que uma abstração.
O ser humano é um gênero, e o indivíduo somente é livre e consciente de si como tal em meio a
outros seres humanos71. A posição de si é condicionada pela posição do outro, de maneira que o
eu não pode existir como tal sem relação ao outro. Para Fichte, a consciência da liberdade não é
um estado em que a auto-reflexão revela uma faculdade previamente dada, ou um fato da razão,
mas um processo de encontrar-se a si mesmo através do “choque” com outros seres humanos.
Estas concepções formam o cerne da teoria fichteana da intersubjetividade nos escritos de 1794 a
1798, baseada no modelo Aufforderung/Anerkennung.
Com sua ligação entre intersubjetividade e teoria da consciência, Fichte antecipa a teoria
hegeliana do reconhecimento, especialmente em sua versão posterior ao System der Sittlichkeit,
68
Quatro importantes comentadores de Fichte defendem, de maneira diversa, a tese de que a Grundlage des Naturrechts contém rupturas
sistemáticas, bem como divergências em relação à obra fichteana posterior. Enquanto Baummans vê não somente ausência de rigor lógico na
dedução do conceito de direito, mas também uma ruptura intransponível entre a obra sobre o direito e a doutrina-da-ciência de 1794, Schottky
identifica, no procedimento filosófico de Fichte após a dedução do conceito de direito nos §§ 1-4, um retorno ao direito natural de Hobbes.
Principalmente a visão de Baummans quanto à incoerência entre o direito natural e a filosofia primeira é ratificada, pela obra de Verweyen,
através do recurso às obras posteriores de Fichte sobre o direito. Contra todas estas interpretações posiciona-se Ludwig Siep, para quem as
principais incoerências da obra de Fichte se tornam aparentes, se se puder interpretar o método utilizado pelo filósofo desde a abertura da obra
como uma forma prototípica do método de exposição segundo “experiências da consciência”, mais tarde assimilado pelo próprio Hegel.
Verweyen, H. – Recht und Sittlichkeit in J.G. Fichtes Gesellschaftslehre, München, 1975; Baumanns, P. – Fichtes ursprüngliches System. Sein
Standort zwischen Kant und Hegel, Stuttgart, 1972 Siep, Ludwig – „Einheit und Methode von Fichtes „Grundlage des Naturrechts““, in: Siep,
Ludwig–Praktische Philosophie im deutschen Idealismus, Frankfurt am Main, 1992, 41-64
69
Para Ludwig Siep, o método de dedução transcendental empregado na dedução do conceito de direito se caracteriza por uma modificação tão
intensa deste conceito herdado de Kant que se deixa derivar desta modificação um conceito de experiência da consciência. Ludwig Siep (1992).
Este método se caracteriza, decerto, pelo intento geral de fornecer as ações cognitivas e volitivas que têm de ser pressupostas como condições de
possibilidade da consciência da eficácia livre. Entretanto, esta aplicação geral do intento transcendental da Wissenschaftslehre representa uma
extensão metodológica, na medida em que passa do âmbito das condições da unidade subjetiva e da consciência da objetividade na base de uma
espontaneidade absoluta para a unidade transcendental de um sujeito que é um ser racional finito.
70
GNR, 47/48
71
“O ser humano ... só se torna ser humano entre seres humanos; e ... se devem haver de algum modo seres humanos, então tem de haver muitos.”
[GNR, 39] “...isto é uma verdade que deve ser provada estritamente a partir do conceito de ser humano. Tão logo se determina completamente este
conceito, é-se impelido do pensamento de um indivíduo à aceitação de um segundo, a fim de se poder explicar o primeiro. O conceito de ser
humano não é, pois, o conceito de um indivíduo – pois um tal ser é impensável –, mas o conceito de um gênero.” [GNR, 39]
18
“Pessoas como tais devem ser absolutamente livres e simplesmente dependentes de sua vontade. Pessoas devem, tão
certo quanto elas o são, estar em influência recíproca e, portanto, não simplesmente dependentes de si. Como ambas
as coisas possam subsistir em conjunto, responder a isso é a tarefa da ciência do direito (Rechtswissenschaft); e a
pergunta que jaz como seu fundamento é esta: como é possível uma comunidade de seres livres como tais?”74
Fichte pretende resolver esta antinomia demonstrando que a interação com o outro é
condição necessária da formação prático-cognitiva da autoconsciência individual. É na interação
com o outro que a liberdade originariamente absoluta do eu é limitada pela liberdade do outro,
uma limitação que não é exterior ao conceito de liberdade, mas que lhe é essencial, já que sem a
limitação da atividade em si infinita do eu não seria possível nenhuma posição do não-eu. No
entanto, chama atenção a vinculação, declarada acima, da idéia de reconhecimento ao isolamento
do indivíduo, e nisto reside a verdadeira conseqüência da unilateralidade do desenvolvimento
dado por Fichte ao elemento intersubjetivo, isto é, o caráter propriamente negativo de seu
conceito intersubjetivamente mediado de liberdade, que o faz compreender a relação ao outro
como essencialmente limitativa, apesar de constitutiva para a consciência individual. Fichte não
chega a conceber a mediação intersubjetiva da liberdade individual de uma maneira “solidária” e
não excludente, mas essencialmente limitativa. Isto é bastante notório na tese fichteana acerca da
durabilidade hipotética da obrigatoriedade, mas se torna evidente numa declaração feita por
Fichte em outro contexto, a saber: a “fundação do saber teórico” na Wissenschaftslehre de 1794.
Fichte diz que “a forma da ação recíproca (Wechselwirkung) consiste no excluir e ser-excluído
dos membros recíprocos um pelo outro.”75 É claro que a afirmação de Fichte não é feita no
contexto da sua filosofia do direito, e que o conceito de Wechselwirkung não tem ainda aqui a
72
Na vertente de comentadores especialmente atentos a este fato, são dignos de nota Siep e Honneth. Ver a discussão proposta por Siep em Siep,
Ludwig – Anerkennung als Prinzip der praktischen Philosophie, Freiburg/München, 1976, 22-36. Já Honneth, ao considerar a apropriação
hegeliana do conceito de reconhecimento no System der Sittlichkeit de 1802, diz : “em seu escrito sobre a fundamentação do direito natural”,
Fichte compreendeu o reconhecimento como uma interação entre os indivíduos que subjaz à relação jurídica.” Honneth, Axel–Kampf um
Anerkennung. Zur moralischen Grammatik sozialer Konflikte, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1992
73
GNR, 85/86
74
GNR, 85
75
WL 1794, 195. Modificamos aqui a tradução de Rubens Rodrigues. No original, Fichte diz: “Die Form der Wechselwirkung besteht im
gegenseitigen Ausschliessen und Ausgeschlossenwerden der Wechselglieder durcheinander.”. R. R traduz Wechselwirkung por alternância. Sem
dúvida, existem boas razões para esta escolha, principalmente se se considera o contexto eminentemente teórico da declaração. Não somos
partidários da tese defendida por Philonenko e aprofundada por Rénaut de que a primeira Doutrina-da-Ciência contenha já uma teoria da
intersubjetividade, o que, segundo Renaut, leva a considerar que a Grundlage des Naturrechts vem justamente resolver, graças à sua discussão
intersubjetivista da categoria Wechselwirkung, a aporia deixada pela primeira versão da Doutrina-da-Ciência no tocante ao problema da
representação. No entanto, preferimos continuar a traduzir o termo pelo seu equivalente mais apropriado no contexto da filosofia fichteana do
direito. Ver também Philonenko, A. – L’oeuvre de Fichte , J.Vrin , Paris , 1984; Métaphysique et politique chez Kant et Fichte, Bibliothèque
d'histoire de la philosophie / Nouvelle série , J.Vrin, Paris, 1987; e Renaut, Alain – Système du droit : philosophie et droit dans la pensée de
fichte, P.U.F, Paris, 1986; „Deduktion des Rechts (Dritter Lehrsatz: §4)“, in: Merle, Jean-Christophe(Hg) – Johann Gottlieb Fichte, Grundlage
des Naturrechts , Akad.-Verl. , Berlin , 2001, 81-95.
19
acepção que terá na teoria da intersubjetividade, mas antes uma acepção semelhante ao conceito
kantiano de Gemeinschaft, tal como este aparece na “terceira Analogia da Experiência” na
Crítica da Razão Pura.
Fichte deduz o reconhecimento recíproco como relação que subjaz às relações jurídicas e
que é, como tal, condição de possibilidade da consciência-de-si. A idéia de que a liberdade
originariamente infinita do sujeito tem de ser limitada na relação com um outro, a fim de poder se
pôr como real, é, do ponto de vista das premissas de Fichte, bastante consistente; pois todas as
determinações são em si inicialmente negações e, portanto, limitações. No entanto, resta sempre a
questão acerca da necessidade de que a relação recíproca entre sujeitos seja um excluir recíproco.
Isto se deve ao fato de que Fichte põe como fundamento de sua teoria um indivíduo atomizado, o
qual não entra com o outro em uma relação possivelmente solidária, nem deixa que o outro
“participe” da formação de sua individualidade, mas que apenas necessita da esfera exclusiva da
alteridade para afirmar sua individualidade. “Eu devo ser um eu autônomo (ein selbständiges
Ich), este é meu fim-término(Endzweck); para tudo aquilo através do que as coisas fomentam esta
autonomia, eu devo utilizá-las, este é o seu fim-término.”76
Esta identificação da coerção jurídica com o “direito natural realizado” se baseia numa
concepção negativa da liberdade do indivíduo. “O conceito de direito deve ser um conceito
originário da razão pura.”80 Como se origina da razão pura, o direito se constitui, para Fichte,
como uma coerção imanente81 à liberdade do indivíduo, a qual é por isso mesmo compreendida
76
Sittenlehre, 208
77
Em GNR 52, Fichte diz: “Eu tenho que reconhecer o ser racional fora de mim em todos os casos como tal, isto é, limitar minha liberdade pelo
conceito da possibilidade de sua liberdade.A deduzida relação entre seres racionais, segundo a qual cada um limita sua liberdade pelo conceito da
possibilidade da liberdade do outro, sob a condição de que o primeiro limite da mesma forma a sua pela do outro, denomina-se relação de direito
(Rechtsverhältnis), e a fórmula que foi agora apresentada é o princípio do direito (Rechtssatz).”
78
GNR, 149
79
GNR, 142/152
80
GNR, 7
81
“Se os efeitos dos seres racionais devem poder coincidir no mesmo mundo, ter, conseqüentemente, influência uns sobre os outros, estorvar-se e
criar impedimentos reciprocamente, então a liberdade nesta última significação somente seria possível para pessoas que estão nesta situação de
uma influência recíproca umas com as outras, sob a condição de que todos encerrassem sua efetividade em certos limites e que dividissem de certa
maneira entre si o mundo como esfera de sua liberdade. Como eles são postos livres, então um tal limite não poderia encontrar-se fora da
liberdade, pelo que ele seria suspenso (aufgehoben) e de forma alguma seria limitado como liberdade. Antes, todos precisariam pôr-se a si
20
como condição da consciência-de-si individual. “Encontra-se na intenção deste conceito que ele
se torne necessário mediante o fato de que o ser racional não pode se pôr como tal, com
consciência-de-si, sem se pôr como indivíduo, como um dentre outros seres racionais, os quais
ele supõe estarem fora de si, da mesma forma como ele supõe a si mesmo.”82 Para Hegel, a
compreensão atomística da relação intersubjetiva juridicamente reduzida, enquanto incapaz de
render uma liberdade individual positiva, torna-se tanto mais evidente na própria intenção de
compreender a “relação comunitária” como condição da liberdade individual.
Para Fichte, a ciência filosófica do direito tem de fornecer sua dedução, determinando o
conteúdo do conceito de direito e a necessidade racional do mesmo, a fim de mostrar como,
enquanto um conceito da razão pura, o direito pode ser aplicado ao mundo sensível.“Ações
necessárias, resultantes do conceito do ser racional, são ... somente aquelas através das quais é
condicionada a possibilidade da consciência-de-si.”83 Entender como Fichte vai obter, no quadro
geral de sua filosofia transcendental “reconstrutiva”84 das condições de possibilidade da
consciência, o conceito de direito, é compreender o que significa para ele sua dedução filosófica:
para ele, a filosofia prova a necessidade racional do conceito de direito – e mais, sua origem
essencialmente racional – mostrando que ele é uma condição necessária da possibilidade da
consciência-de-si, ou seja, do saber-de-si de um sujeito efetivo.
“Há um conceito determinado mediante a razão e nela contido (grifo meu E.C.L) não pode significar senão que um
ser racional, tão certo quanto este ser é, necessariamente agiu de uma certa maneira determinada. Desta ação
determinada, o filósofo tem de mostrar que ela é uma condição da consciência-de-si, o que constitui a dedução da
mesma. Ele tem que descrever ela mesma tanto segundo sua forma, a maneira-de-agir, quanto o que surge desta ação
para a reflexão. Ao mesmo tempo, ele fornece por meio disso a prova (Erweis) da necessidade do conceito,
determina-o e mostra sua aplicação.”85
O que surge para a reflexão da consciência-de-si da ação pela qual o direito se efetiva é o
“o objeto total do conceito de direito, a saber: uma comunidade (Gemeinschaft) entre seres livres
como tais.” 86 Com esta inserção do direito no rol das condições transcendentais de possibilidade
da consciência-de-si, ao descrever a forma do conceito bem como o objeto ao qual ele se refere, a
dedução filosófica do direito estará, ao mesmo tempo, mostrando sua necessidade e sua
aplicabilidade. Para Fichte, a forma é a maneira-de-agir da consciência-de-si efetiva pela qual
este conceito surge para ela. Da decomposição desta maneira de agir será delineado um plano
para a dedução de cada elemento seu, o qual deverá levar à determinação completa do conceito
de direito, de sua necessidade e de sua aplicação.
“Deixa-se mesmo apresentar sensivelmente como a maneira-de-agir nesta posição (in diesem Setzen) é o conceito de
direito. Eu ponho a mim mesmo como racional, isto é, como livre. Nesta operação, aparece em mim a representação
da liberdade. Eu ponho na mesma ação indivisa outros seres livres. Eu delineio, portanto, mediante minha
mesmos este limite através da liberdade, isto é, todos precisariam tomar-se como lei não causar dano à liberdade daqueles com os quais se
encontram em comunidade de influência recíproca (in gegenseitiger Wechselwirkung) ”[GNR, 8/9]
82
GNR, 8
83
GNR, 2
84
Mais detalhes acerca desta concepção de filosofia transcendental, ver: Bartuschat, W – „Zur Deduktion des Rechts aus der Vernunft bei Kant
und Fichte“, in: Kahlo, M., Wolff, E. A u. Zaczyk, R. (Hrsg.) – Fichtes Lehre vom Rechtsverhältnis, Frankfurt am Main, 1992, 173-193; Renaut,
Alain – Système du droit : philosophie et droit dans la pensee de fichte, P.U.F, Paris, 1986; Siep, Ludwig – „Naturrecht und Wissenschaftlehre“,
in: Kahlo, M., Wolff, E. A u. Zaczyk, R. (Hrsg.) – Fichtes Lehre vom Rechtsverhältnis, Frankfurt am Main, 1992, 71-91; Siep, Ludwig –
„Philosophische Begründung des Rechts bei Fichte und Hegel“ , in: Siep, Ludwig–Praktische Philosophie im deutschen Idealismus, Frankfurt am
Main, 1992, 65-80;Weischedel, Wilhelm – Der frühe Fichte: Aufbruch d. Freiheit zur Gemeinschaft, Frommann-Holzboog, Stuttgart, 1973;
Zaczyc, Rainer – „Die Struktur des Rechtsverhältnisses (§§1-4)im Naturrecht Fichtes“, in: Kahlo, M., Wolff, E. A u. Zaczyk, R. (Hrsg.) –
Fichtes Lehre vom Rechtsverhältnis, Frankfurt am Main, 1992, 9-27;Verweyen, H. – Recht und Sittlichkeit in J.G. Fichtes Gesellschaftslehre,
München, 1975;
85
GNR, 7
86
GNR, 9
21
imaginação (Einbildungskraft) uma esfera para a liberdade, na qual vários seres se distribuem. Eu atribuo a mim
mesmo não toda a liberdade que eu pus, pois eu preciso também pôr outros seres, aos quais tenho que atribuir uma
parte desta liberdade. Eu limito a mim mesmo em minha apropriação (Zueignung) da liberdade na medida em que
deixo restar aos outros liberdade. O conceito de direito é, portanto, o conceito das relações necessárias de seres
racionais uns com os outros.”87
Entretanto, diz Fichte, tal atividade pura “aparece, de acordo com as leis da consciência –
e, especialmente de acordo com a lei fundamental de que o ativo somente pode ser considerado
como sujeito e objeto unificados (como eu) – como eficácia sobre algo fora de mim (als
Wirksamkeit auf etwas außer mir).”92 O eu finito é tal que tem, como condição de sua auto-
posição, a atividade que reflete sobre algo limitado, retornando a si mesma. Sem dúvida, o sujeito
finito é um ser racional e, por isso, “se deve se pôr como tal, então ele precisa atribuir a si mesmo
uma atividade, cujo fundamento último jaz pura e simplesmente nele mesmo. (ambos os
princípios são intercambiáveis (Wechselsätze): um diz o que o outro diz).”93 A autoconsciência
do eu finito envolve a certificação reflexiva de si em uma relação a outras coisas além de si
mesmo. “Onde e em que medida tu observas atividade, tu observas também resistência; pois,
afora isso, tu não observas qualquer atividade. A partir deste fundamento, a consciência da
resistência é uma consciência mediada, de nenhuma forma uma consciência imediata, é mediada
por isto: que eu tenha que me considerar como algo que simplesmente conhece (als bloß
anerkennendes) e, neste conhecimento da objetividade, como sujeito inteiramente
independente.”94 A atividade do sujeito finito tem necessariamente de ser uma in sich
zurückkehrende Tätigkeit, que é, neste sentido, não-absoluta e limitada (begrenzt), uma vez que
ela encontra, em sua auto-compreensão, em sua auto-constituição como subjetividade consciente-
de-si, elementos de si mesma que não tem como reduzir aos produtos de sua própria atividade.
“Sua atividade na intuição do mundo, o ser racional não pode pôr como tal”95, isto é, como pura
atividade ou espontaneidade produtiva. Portanto, no âmbito mesmo do Direito Natural, a
mudança de enfoque tem conseqüências imediatas para todo o argumento: o sujeito racional
individualizado não pode compreender como objetivações postas por si mesmo tudo aquilo que o
eu absoluto, após execução de ações cognitivas e volitivas, compreende no outro (não-eu) como
resultado de sua própria espontaneidade; pois, neste caso, as condições de sua individualidade
“empiricamente constatável”– sua coexistência com outros seres racionais independentes de si –
seriam destruídas96. Assim, o Naturrecht de Fichte tenciona investigar as condições sob as quais
um sujeito racional finito alcança a consciência de si mesmo como tal, de maneira que justamente
o conceito de direito constituirá uma destas condições.
O vínculo pretendido por Fichte entre o Naturrecht e a Grundlage de 1794 responde pela
extensão do titulo – nach den Prinzipien der Wissenschaftslehre – e orienta a investigação em
direção aos atributos racionais do sujeito finito97 e não aos pressupostos transcendentais sob os
91
SS, 12
92
SS, 12
93
GNR, 17
94
SS, 7
95
GNR, 18
96
Por esta razão, Frederick Neuhouser caracteriza o projeto central da Grundlage des Naturrechts como inicialmente suscitando paradoxos:
através do conceito de direito deve ser explicado como a relação do sujeito finito ao mundo independente tem de ser constituída de maneira que
sua finitude possa ser levada à concordância com sua capacidade de liberdade por auto-posição. Neuhouser, F. – “The Efficacy of the rational
Being (First Proposition §1) ”, in: Merle, Jean-Christophe(Hg) – Johann Gottlieb Fichte, Grundlage des Naturrechts , Akad.-Verl. , Berlin ,
2001,39-49
97
ver Siep, Ludwig – „Naturrecht und Wissenschaftlehre“, in: Kahlo, M., Wolff, E. A u. Zaczyk, R. (Hrsg.) – Fichtes Lehre vom
Rechtsverhältnis, Frankfurt am Main, 1992, 71-91– „Einheit und Methode von Fichtes „Grundlage des Naturrechts““, in: Siep, Ludwig–
Praktische Philosophie im deutschen Idealismus, Frankfurt am Main, 1992, 41-64
23
98
Zweite Einleitung, AA IV, 2 (34)
99
Erste Einleitung, 8
24
segue disso seja válido para todo ser racional finito.”100A auto-posição precisa ser para a
consciência finita, a qual deve tomar consciência de si como tal, como subjetividade limitada.
Assim, não pode haver consciência-de-si completamente independente das condições
espaciotemporais do mundo empírico: se a consciência-de-si tem de ser real, o sujeito precisa
apreender a si mesmo como existente num mundo empírico; mas se a mesma precisa ser ao
mesmo tempo absoluta, tem também de haver algo no si apreendido que permita ver a
consciência como auto-determinada ou constituída por sua própria atividade. Para Fichte, a
consciência-de-si requer mais do que um ato mental imediato pelo lado do sujeito: para alcançar a
consciência-de-si enquanto auto-determinação é preciso que o sujeito finito “se encontre” (sich
findet) como livre no mundo empírico, de maneira que a liberdade do sujeito finito possua uma
presença objetivada no mundo empírico, a qual, ao ser refletida ao sujeito, confirme a ele sua
auto-determinação.
Para Fichte, as condições sob as quais um sujeito real, com existência no tempo e no
espaço, torna-se primeiramente consciente de si como auto-determinante não podem ser
explicadas a partir da intuição do mundo. Portanto, é a insuficiência da Weltanschauung como
relação simplesmente cognitiva ao mundo que leva diretamente à necessidade de definição da
racionalidade intrínseca ao ser racional finito como sendo uma auto-relação prática, uma freie
Selbstbestimmung zur Wirksamkeit, a qual, como posição orientada praticamente segundo o
conceito da potencial eficácia do ser racional no mundo sensível, caracteriza o tipo de relação
entre o sujeito e a efetividade que é capaz de lhe render a consciência da própria subjetividade. A
investigação das condições de possibilidade da capacidade de agir pela representação de fins
constitui o escopo da própria filosofia prática, como diz Fichte em sua Sittenlehre.
“Agora ... está respondida ... [a pergunta:] ... como eu chego a admitir que algo objetivo resulte de algo subjetivo, um
ser de um conceito; e, por meio disso, está deduzido o princípio de toda filosofia prática. Esta admissão deve ocorrer
100
Erste Einleitung, 8
101
GNR, 19
102
Zweite Einleitung, AA IV, 2 (29)
25
propriamente porque eu tenho de me pôr como absolutamente ativo. Porém, depois que eu diferenciei em mim um
subjetivo e um objetivo, não posso descrever esta atividade, pois, a não ser como uma causalidade do conceito.
Atividade absoluta é o único puro e imediato predicado a ser atribuído a mim: causalidade pelo conceito é a
apresentação do mesmo forjada necessariamente pelas leis da consciência e a única possível. Nesta última figura,
denomina-se a atividade absoluta também liberdade. Liberdade é a representação sensível da independência
(Selbständigkeit), e a mesma surge por contraposição (durch den Gegensatz) com a vinculação ao objeto
(Gebundenheit des Objekts) e de nós mesmos como inteligência, na medida em que nós nos relacionamos a nós
mesmos.”103
103
SS, 9
104
“O subjetivo e o objetivo são unificados, ou considerados como harmônicos, antes de mais nada, de maneira que o subjetivo decorra do
objetivo, que o primeiro deva se orientar segundo o último. Como nós chegamos à afirmação de uma tal harmonia é investigado pela filosofia
teórica. Ambos são considerados como estando em harmonia, de maneira que o objetivo deve resultar do subjetivo, um ser a partir do meu
conceito (o conceito de fim): eu ajo. De onde surge a suposição de uma tal harmonia tem a filosofia prática de investigar.”[ SS, 1-2]
105
GNR, 20
106
GNR, 20
107
GNR, 139
108
Ao contrário de Kant, que considerava que a habilidade de se colocar fins por si mesmo somente é possível para um ser que é também
moralmente autônomo, Fichte compreende tal capacidade como independente da acepção mais enfática da auto-determinação envolvida na
autonomia moral. Tal distinção serve à compreensão da discussão que Fichte realiza, a partir das Vorlesungen, do assim enunciado “princípio da
Sittenlehre” no System der Sittenlehre através da “absoluta concordância consigo mesmo”. A auto-determinação discutida no Naturrecht não
exige que se pense o sujeito como determinando arbitrariamente seus fins em conformidade com algum princípio que seja produto de sua própria
racionalidade: os fins que o sujeito estabelece para si mesmo são seus próprios, porque ele os escolhe, não porque eles exprimam algo acerca do
26
Mas por que a argumentação contida nos §§1-2 funciona como preâmbulo para a
consideração da intersubjetividade como condição da autoconsciência efetiva ? “O indivíduo tem
de ser deduzido a partir do eu absoluto. Para isso, a doutrina-da-ciência vai avançar, sem
hesitação, para o direito natural. Um ser finito – deixa-se demonstrar por uma dedução – só pode
pensar a si mesmo como ser sensível numa esfera de seres sensíveis, dos quais, sobre uma parte
(que não são capazes de iniciar) ele tem causalidade, e com outra parte (à qual ele transfere o
conceito de sujeito) ele está em interação; e nesta medida se chama indivíduo.”113 Neste trecho de
uma carta a Jacobi, Fichte diferencia claramente entre dois momentos da dedução da
individualidade: a dedução do mundo de coisas sobre as quais o sujeito tem causalidade, e a
dedução de seres racionais finitos, que dividem necessariamente a esfera objetiva com o sujeito,
mas que estão com esses em relação de interação. A primeira parte do Folgesatz trata
expressamente da “convicção acerca de um mundo sensível fora de nós”. Nesta colocação, fica
claro que Fichte parte do intelecto humano comum, reconhecendo nele a perspectiva tomada pelo
ser racional finito, que é o objeto de análise filosófica no Naturrecht. A intenção é deduzir
tipo de ser que o sujeito é essencialmente. Já na Sittenlehre, onde o fim que o sujeito estabelece para si mesmo precisa ser seu próprio fim em
sentido estrito, isto é, na medida em são determinados segundo sua essência como ser racional.
109
GNR, 21
110
GNR, 18
111
Esta denominação é usada pela única vez no período de produção de Fichte que estamos discutindo. Tal termo inexiste na Wissenschaftslehre
de 1794, ou na de 1798. De fato, o § 9 do System der Sittenlehre vem encabeçado pelo título Folgerung. Mais a este respeito, ver : Piché, Claude
– „Die Bestimmung der Sinnenwelt durch das vernünftige Wesen(Folgesatz: §2)“, in: Merle, Jean-Christophe(Hg) – Johann Gottlieb Fichte,
Grundlage des Naturrechts , Akad.-Verl. , Berlin , 2001, 51-62
112
GNR, 24
113
Briefe (Brief an Jacobi vom 30. August 1795)- III 2, 392
27
filosoficamente esta convicção114. Segundo a solução apontada por Fichte, de um ponto de vista
especulativo, a independência do mundo é ilusória, pois o ser racional confere habitualmente às
coisas exteriores sua cotidiana independência, sem que lhe ocorra que ele mesmo, devido à
própria limitação, faz parte do processo que levou à sua contraposição. No final do segundo
“princípio doutrinário”(§3), Fichte retorna à questão acerca da realidade do mundo exterior,
sugerindo que a mesma encontra sua solução definitiva na dedução do alter ego como condição
da autoconsciência.
“Se há um ser humano, há então necessariamente um mundo, e ele determina este mundo assim como é o nosso, que
contém em si seres não racionais e racionais.... a pergunta pelo fundamento da realidade dos objetos está então
respondida...A realidade do mundo...é condição da consciência-de-si, pois não podemos nos pôr a nós próprios sem
pôr algo fora de nós, ao qual nós atribuímos a mesma realidade que delegamos a nós mesmos.”115
O problema da realidade do mundo somente pode ser resolvido no momento em que entra
em cena algo contraposto ao sujeito que não pode ser reduzido ao agir unilateral do ser racional,
mas, ao contrário, entra com ele, enquanto seu semelhante, numa relação de interpelação
(Aufforderung). É o tradutor do Naturrecht para o francês, Alain Renaut, que desenvolve a tese
de que o problema da representação, não tendo sido resolvido de maneira peremptória na
doutrina-da-ciência de 1794, é finalmente desvendado pelo Naturrecht com a discussão acerca da
realidade do mundo exterior vinculada à dedução da intersubjetividade116.
realidade da “vida prática”, a forma originária da autoconsciência comum. Em geral, Fichte trata
esta questão como se ambos os planos de realidade pudessem ser fundamentados em uma mesma
base, o que entra em conflito com a tese de que a realidade da “vida prática” só deva valer para o
entendimento humano comum. “Aqueles estados-de-ação originários têm a mesma realidade que
têm, no mundo sensível, a causalidade das coisas umas sobre as outras e sua interação
generalizada.” Como a realidade do mundo sensível somente subsiste por meio do
“esquecimento”, pelo ser racional, das operações através das quais ele pôs o objeto como sendo, a
realidade deste ato do eu tem de ser de um tipo especial. No que concerne à realidade do mundo
exterior, de acordo com o ponto de vista do filósofo, que o vê, em última instância, como
produção de um eu ativo, a efetividade exterior só possui a propriedade de completa
independência ao ser considerada da perspectiva do sujeito finito. Portanto, de mesma realidade
ela somente pode ser em termos comparativos, isto é, as operações originárias, cujos vínculos são
descritos pelo filósofo, têm tanta realidade para os filósofos, quanto o mundo sensível tem para o
entendimento humano comum. Um bom exemplo disso é mencionado por Fichte no §6, no
tocante ao reconhecimento recíproco dos seres humanos.
“A natureza decidiu já há tempos esta questão. Não há, decerto, nenhum ser humano que, ao avistar pela primeira
vez um ser humano, sem que nem mais, seja tomado por temor, como diante de um animal desembestado, ou que
faça menção de matá-lo ou de devorá-lo, como um selvagem; o qual enfim não contaria antes e imediatamente com
comunicação recíproca (wechselseitige Mitteilung). Isto não é assim através de hábito ou instrução, mas através de
natureza e razão; e nós deduzimos acima a lei de acordo com a qual isto procede assim.”118
118
GNR, 81
119
GNR, 81
120
Lauth, Reinhard – „Le Problème de l´interpersonalité chez J. G. Fichte“, in: Archives de Philosophie, 25 (1962), 325-344. De acordo com
29
que isto não tenha se dado pela formulação de uma nova base ontológica comunitária para a
subjetividade121. Entretanto, é preciso considerar sob que condições Fichte proporcionou, com o
conceito de Aufforderung, uma ruptura “intersubjetivista” em sua obra, a qual teria como efeito
imediato o questionamento de premissas, por assim dizer, monológicas da doutrina-da-ciência.
“O ser racional finito não pode atribuir a si mesmo uma eficácia livre no mundo sensível sem
atribuí-la também aos outros e, com isso, sem também admitir outros seres racionais finitos
exteriormente a si”122. Além de a teoria da Aufforderung ser incorporada por Fichte na
Wissenschaftslehre de 1798 – e justamente no contexto da dedução da individualidade e de
passagem entre o eu puro e o eu individual (ver §§13-18) –, o próprio enunciado do segundo
“princípio doutrinário” (§3) enfatiza que a atividade racional dos outros seres deva ser objeto de
uma pressuposição, por parte do ser racional finito, no processo de constituição de sua
consciência-de-si. Como lembra Honneth, a Fichteforschung oscila, em geral, entre duas
interpretações possíveis da teoria da Aufforderung: ou a “interpelação” tem de ser compreendida
como ato eminentemente intersubjetivo, “que se furta à manipulação pelo sujeito que se produz
espontaneamente”123, constituindo assim uma condição exterior da consciência-de-si; ou este
conceito representa uma forma simplesmente projetiva da subjetividade transcendental, ainda
que, pela exigência de pressuposição da liberdade do outro, ganhe contornos intersubjetivos. A
este debate gostaríamos de contribuir com a tese de que o modelo Aufforderung/Anerkennung
realmente inaugura, no quadro geral da filosofia do eu do primeiro Fichte, bases sólidas para uma
consideração filosófica da intersubjetividade124; além disso, inserindo a intersubjetividade no
Lauth, Fichte pode ser considerado como primeiro teórico da intersubjetividade. Heimsoeth, Heinz – Fichte, Verlag Ernst Reinhardt, München,
1923. Para Heimsoeth, um dos empreendimentos mais originais de Fichte é ter se ocupado com o modo de dadidade do outro eu
(Gegebenheitsweise des fremden Ich), o qual passa a ser mais do que uma parte do mundo sensível material, ao possuir o mesmo “modo de ser”
que o eu certo de si mesmo. Para Heimsoeth, a primeira versão do sistema, a Grundlage der gesamten Wissenschaftslehre de 1794/1795,
permaneceu ainda presa ao âmbito da dedução geral das funções fundamentais da consciência em geral a partir dos princípios mais elevados.
Somente o acabamento do primeiro sistema, cuja base é a Grundlage, permitiu a Fichte chegar ao conceito da consciência-de-si concreta e efetiva,
que é alcançado pelo Naturrecht e pela Sittenlehre de 1796 e 1798, os quais expõem as condições genéticas do eu individual. É neste contexto que
surge o novo núcleo problemático de uma multiplicidade de seres racionais, os quais possuem um modo de ser completamente diferente do mundo
material exterior e, todavia, são diversos entre si. Para Heimsoeth, a teoria fichteana do indivíduo concreto afasta toda a suspeita de solipsismo que
poderia pairar sobre o primeiro sistema de Fichte, já que nas faculdades da imaginação produtiva somente a realidade da natureza é superada, mas
não a realidade das outras pessoas.
121
Weischedel, Wilhelm – Der frühe Fichte: Aufbruch der Freiheit zur Gemeinschaft, Frommann-Holzboog, Stuttgart, 1973. Weischedel
interpreta a concepção geral do primeiro Fichte como uma “ontologia fundamental do ser humano na relação de tensão entre o eu que se sabe
como absoluto e o eu que faz experiência de si mesmo como dependente.” Por isso, em correspondência a esta tese de leitura, importa menos a
Weischedel o ponto de partida filosófico-transcendental fichteano em Kant do que a determinação essencial do homem contida na filosofia do
primeiro Fichte. Weischedel salienta a gênese do esforço infinito do eu, apresentada na Wissenschaftslehre de 1794 a partir de uma diferença
imanente ao eu puro, enquanto necessidade do existir humano em contradição. Esta necessidade essencial para o eu de refletir acerca de se e em
que medida ele compreende em si toda a realidade em conformidade com o seu conceito de si mesmo – quando lhe surge a idéia de uma infinitude
que tem ainda de ser completada – é, segundo Weischedel, o índice da existência do homem numa contínua contradição, de tal maneira que a
realização concreta da unificação da absolutidade com a finitude do eu em um tal esforço é sempre apenas uma unificação fragmentária. Dentro
deste panorama, Weischedel compreende que, para Fichte, o ser humano é um ser originariamente social e que a necessidade de socialização e do
tornar-se membro de uma comunidade se constitui como uma propriedade de sua existência; e, por isso, ele procura obter um conceito
ontologicamente fundado da comunidade através da demonstração da gênese da consciência comum a partir da consciência-de-si. “O ser-com-
outros não é deduzido por Fichte da consciência do dever, mas da consciência de si: não é demonstrado de maneira ética, mas ontológica.”(123)
122
GNR, 30
123
Honneth, op.cit, p.64/65
124
O conceito de um choque exterior pode ser considerado o pivô para a consideração do grau de proximidade e afastamento em que o Naturrecht
se encontra em relação à filosofia fichteana do eu, cujas diretrizes foram estabelecidas pela Wissenschaftslehre de 1794. Pode o âmbito da
intersubjetividade, aberto pela obra de 1796/1797, estar de acordo com a idéia fichteana de um sistema de condições de retorno da subjetividade à
sua igualdade originária ? Como lembra Honneth, pode bem ser que a interpelação só possua um caráter exterior e transsubjetivo para o ser
racional finito. Por outro lado, quando apreciada do ponto de vista do filósofo transcendental, perde a aparente intersubjetividade seu caráter
irredutível à auto-referência subjetiva e adquire um papel eminentemente transcendental. A resposta a esta questão é que pode levar a considerar
se e como o Direito Natural permanece vinculado ao arcabouço monológico da filosofia primeira de Fichte ou inaugura a filosofia da
intersubjetividade. “se o ato intersubjetivo de interpelação, que aqui é compreendido como condição necessária da consciência do direito, é,
também do ponto de vista do filósofo que analisa, um fato prévio ou exterior – e, por sua vez, não subjetivamente constituído –, então estaria de
fato aberto o caminho para uma teoria da intersubjetividade. Mas se, ao contrário, este ato se revela, do ponto de vista informado do filósofo,
como algo aparentemente exterior, que, na verdade, também é apenas originado pela produtividade do sujeito transcendentalmente atuante, então
permaneceriam conservadas as premissas monológicas ao longo do desenvolvimento da obra de Fichte e a doutrina da intersubjetividade seria
parte do programa da filosofia transcendental.” Ver Honneth, Axel – „Die transzendentale Notwendigkeit von Intersubjektivität: (Zweiter
Lehrsatz: § 3)“, in: Merle, Jean-Christophe(Hg) – Johann Gottlieb Fichte, Grundlage des Naturrechts , Akad.-Verl. , Berlin , 2001,63-80,
p.79/80. Há que se considerar, entretanto, que a Wissenschaftslehre nova methodo desenvolve, dentro do quadro da exposição do sistema de
30
âmbito geral de uma teoria da justiça, a teoria fichteana propicia um arcabouço conceitual capaz
de reconstruir o enunciado kantiano da intersubjetividade jurídico-moral. Deseja-se também
fundamentar a tese de que nem um modelo técnico-pragmático de vida político-jurídica, nem a
redução jurídica da intersubjetividade esgotam as potencialidades éticas do modelo fichteano, o
qual parece ser abandonado, em nome da pressuposição antropológica fundamental de um
egoísmo universal, no âmbito da investigação das condições de aplicação do direito, algo que
pode ser interpretado como um retorno a Hobbes125.
filosofia primeira, também uma discussão acerca da intersubjetividade (com o conceito de Aufforderung). Neste sentido, Edith Düsing procura
salientar a importância desta última para a compreensão do verdadeiro papel desempenhado pela intersubjetividade no quadro mais amplo do
projeto fichteano de filosofia transcendental. Ver Düsing, E. – Intersubjektivität und Selbstbewußtsein: behavioristische, phänomenologische und
idealistische Begründungstheorien bei Mead, Schütz,Fichte und Hegel , Köln, 1986; e „Modelle der Anerkennung und Identität des Selbst (Fichte,
Mead, Erikson)“, in: Schild, Wolfgang (Hg) – Anerkennung: Interdisziplinäre Dimensionen eines Begriffs, Ein Synposium, Königshausen &
Neumann,Würzburg, 2000,99-127. Também Günther Zöller parece compreender de outra forma o problema da intersubjetividade com ajuda da
Wissenschaftslehre nova methodo. Segundo G. Zöller, há dois caminhos bem definidos para se tentar abordar o conceito de intersubjetividade no
pensamento de Fichte: considerá-la no contexto da teoria da vontade pura na WL(1798) Nova Methodo; ou traçar a emergência e desenvolvimento
da teoria da interpersonalidade jurídica a partir da WL(1794) até o texto sobre o direito natural de 1797, o que traz a vantagem de sublinhar o
importante papel deste conceito na filosofia social de Fichte. Para Zöller, não está claro que a teoria fichteana da intersubjetividade suplante sua
concepção da subjetividade transcendental. Para ele, a intersubjetividade surge dentro dos limites de uma teoria transcendental do sujeito, e não
constitui uma “ontologia social” fora da consciência individual e de suas condições transcendentais. Talvez esteja aí a raiz dos recentes esforços
de Zöller em compreender o caráter primordial da teoria da vontade pura frente a intersubjetividade, compondo uma obra que coloca a exposição
de 1798 como locus privilegiado de análise do sistema fichteano. ver Günter, Zöller – Fichte's transcendental philosophy : the original duplicity
of intelligence and will, Cambridge Univ. Press, Cambridge, 1998
125
Siep, Ludwig – „Einheit und Methode von Fichtes „Grundlage des Naturrechts““, in: Siep, Ludwig–Praktische Philosophie im deutschen
Idealismus, Frankfurt am Main, 1992, 41-64 Esta tese de amplo alcance, que estrutura este fabuloso artigo de Ludwig Siep, será alvo de uma
apreciação posterior.
126
GNR, 32
31
momento precedente, e assim até o infinito. Nós não encontramos nenhum ponto possível ao qual
nós poderíamos atar o fio da consciência-de-si...”127
127
GNR, 31
128
Seguimos aqui a compreensão fornecida por Axel Honneth. “O que Fichte reproduz aqui na forma de um regresso infinito, deixa-se apresentar,
ao se distanciar de suas próprias palavras (in Loslösung von seinen eigenen Worten) também na figura de uma aporia, na qual toda aquela
explicação da consciência-de-si, que se utiliza do modelo da reflexão auto-referente (Modell der selbstbezüglichen Reflexion), tem de cair”
Honneth, Axel – „Die transzendentale Notwendigkeit von Intersubjektivität: (Zweiter Lehrsatz: § 3)“, in: Merle, Jean-Christophe(Hg) – Johann
Gottlieb Fichte, Grundlage des Naturrechts , Akad.-Verl. , Berlin , 2001,63-80, p.70
129
GNR, 32
130
GNR, 32
131
Honneth, Axel – „Die transzendentale Notwendigkeit von Intersubjektivität: (Zweiter Lehrsatz: § 3)“, in: Merle, Jean-Christophe(Hg) –
Johann Gottlieb Fichte, Grundlage des Naturrechts , Akad.-Verl. , Berlin , 2001,63-80, p.71.
132
Esta introdução de acontecimentos espaciotemporais na dedução das condições da consciência individual representa, para Siep, o segundo
aspecto que se conecta com a extensão fichteana do arcabouço geral da dedução transcendental. Como a eficácia no mundo sensível é condição da
consciência-de-si, a interpelação, ao conter em si as condições de possibilidade da tomada de consciência do ser racional como tal, é uma relação
recíproca no mundo sensível, a qual se estabelece segundo circunstâncias espaciotemporais. Entretanto, para Siep, isto não significa que a dedução
transcendental é considerada dependente de elementos empíricos, mas antes que as condições de possibilidade da consciência-de-si têm de levar
em conta agora a estrutura fundamental do encontro de seres racionais no mundo efetivo de suas ações. Siep, Ludwig – „Einheit und Methode
von Fichtes „Grundlage des Naturrechts““, in: Siep, Ludwig–Praktische Philosophie im deutschen Idealismus, Frankfurt am Main, 1992, 41-64
Eis porque Siep associa o significado factual da interpelação não à intuição intelectual que constitui o ponto de partida da filosofia primeira de
Fichte, mas ao necessário encontro de seres racionais no mundo sensível, cuja interação forma, enquanto circunstância localizada, em geral, no
tempo e no espaço, a condição de surgimento da consciência-de-si do indivíduo. É somente na medida em que um tal fato espaciotemporal
transcendental tem conseqüências para a posição da consciência individual que reflete e age que Siep identifica aí uma introdução, no método de
dedução transcendental, de elementos da “experiência da consciência”. Neste sentido, no Naturrecht, as condições para o chegar-a-si-mesma da
consciência individual são acontecimentos espaciotemporais cuja estrutura universal pode ser pressuposta para toda “individualização”.
32
inaugura, por assim dizer, uma tradição filosófica que pode muito bem ser compreendida como
“constituição intersubjetiva da subjetividade”, possui, entretanto, estreita conexão com o
programa fundamental do Naturrecht, qual seja: mostrar que o “vínculo jurídico” é uma condição
necessária da consciência-de-si.
“Tão certo, portanto, como deve haver consciência, da mesma maneira devemos aceitar o
que foi exposto. A prova sintética estrita está assim completa, pois o que foi descrito está
corroborado enquanto condição absoluta da consciência-de-si.”133 Fichte apresenta uma solução
para o problema do regresso infinito na forma de uma síntese segundo a qual o ato de auto-
reflexão é concebido a partir de um objeto ao qual se atribui a mesma característica da
subjetividade: a livre eficácia. Se se admite que o objeto que limita o indivíduo no processo de
auto-certificação prática, isto é, na sua corroboração de seu “querer-ser-eficiente”, também é ele
mesmo capaz de eficácia, desaparece a indesejável exigência de se retroceder a uma posição
prévia.
“O que foi exposto através dela [a saber, da síntese E.C.L] deve ser um objeto; mas é o caráter do objeto que a livre
atividade do sujeito seja posta, pela sua apreensão (Auffassung), como obstruída. Este objeto deve ser uma eficácia
do sujeito. Porém, é o caráter de uma tal eficácia que a atividade do sujeito seja absolutamente livre e se determine a
si mesma. Aqui ambos os caracteres devem ser conservados e nenhum deles ser perdido. Com pode ser isso possível
? Ambos são completamente unificados, se nós pensarmos um ser-determinado do sujeito à autodeterminação, uma
solicitação (Aufforderung) a ele em resolver-se por uma eficácia.”134
133
GNR, 32
134
GNR, 32
135
GNR, 32
136
A interpelação preenche as características de um ato da consciência pelo qual o sujeito finito faz a experiência de si mesmo como sujeito
prático e teórico, atuante sobre um objeto e também determinado por si mesmo. Como acrescenta de maneira interessante Ludwig Siep, este ato da
consciência não é o ato próprio da consciência transcendental que tem de ser pressuposta na Wissenschaftslehre pela posição do eu puro, da qual
se explica o saber de si mesmo como determinado pelo não-eu. Siep, Ludwig – „Einheit und Methode von Fichtes „Grundlage des
Naturrechts““, in: Siep, Ludwig–Praktische Philosophie im deutschen Idealismus, Frankfurt am Main, 1992, 41-64 O conceito de Aufforderung é
vinculado, neste sentido, explicitamente à dedução transcendental das condições necessárias do consciência-de-si, às quais pertence também a
gênese da consciência da individualidade. Bartuschat, W – „Zur Deduktion des Rechts aus der Vernunft bei Kant und Fichte“, in: Kahlo, M.,
Wolff, E. A u. Zaczyk, R. (Hrsg.) – Fichtes Lehre vom Rechtsverhältnis, Frankfurt am Main, 1992, 173-193 Weischedel, Wilhelm – Der frühe
Fichte: Aufbruch d. Freiheit zur Gemeinschaft, Frommann-Holzboog, Stuttgart, 1973 Zaczyc, Rainer – „Die Struktur des Rechtsverhältnisses
(§§1-4)im Naturrecht Fichtes“, in: Kahlo, M., Wolff, E. A u. Zaczyk, R. (Hrsg.) – Fichtes Lehre vom Rechtsverhältnis, Frankfurt am Main, 1992,
9-27 Verweyen, H. – Recht und Sittlichkeit in J.G. Fichtes Gesellschaftslehre, München, 1975;
33
pergunta aqui, e sim tão-somente acerca de como a coisa tem de aparecer para o sujeito a ser
investigado”137.
Mas se é isso que Fichte pretende com as primeiras formulações de seu zweiter Lehrsatz,
é lícito inferir que é o próprio significado tradicional deste par conceitual sujeito-objeto que não
mais pode ser compreendido na acepção legada pela metafísica dogmática ou mesmo
transcendental. Este par conceitual tem que ser adaptado agora à compreensão do processo de
ação e reação de seres finitos que agem por conformidade a fins, isto é, têm que ser adaptados à
compreensão não de um sistema causal, mas de uma interação intersubjetiva: a modificação do
sentido em que se compreende “objeto” nesta dialética leva a uma modificação da compreensão
da eficácia do sujeito que deve ser refletida pelo “objeto”. O raciocínio de Fichte transforma a
contraposição representacional ou teórica problemática entre sujeito e objeto, da qual não parecia
haver saída para a dedução da condição incondicionada da consciência-de-si do indivíduo, numa
relação de interação intersubjetiva entre um interpelador e um endereçado, em cuja direção
aquele objeto, que se tornou agora também um sujeito, lança uma expectativa quanto à livre
cooperação em vista de fins comunitariamente válidos ou normas. A palavra causalidade
(Kausalität) não mais pode descrever a contento esta relação, a qual se desenvolve agora no
registro intersubjetivo da interação (Wechselwirkung).
Ao determinar um objeto, o ser racional sente sua livre eficácia, primeiramente, como
unilateral: ele determina o objeto através da posição de um mundo sensível fora de si, o qual lhe
aparece como puramente determinável. Este passo é necessário para a explicação da
autoconsciência prática, pois a causalidade, ou a relação sujeito/objeto, é, do ponto de vista do
argumento fichteano, pressuposto para a tematização da intersubjetividade. “Eu não posso pensar
a mim mesmo como eu, sem pensar certas coisas (aquelas que não podem iniciar) como
completamente submetidas a mim. A elas eu estou em relação de causa; a outros fenômenos em
relação de interação. A figura (Gestalt) humana é, para os seres humanos, expressão do último
tipo ... A aplicação destes princípios para a produção de um direito natural é fácil.”138 Nesta
passagem de uma carta a Reinhold – a quem Fichte inclusive apresenta os primeiros esboços do
Naturrecht – aparece a distinção necessária entre causalidade e interação, isto é, entre as relações
sujeito/objeto e eu/outro; a causalidade é caracterizada como ação eminentemente unilateral, na
medida em que os objetos, que estão submetidos a ela, não reagem, ou seja, não podem
desenvolver uma livre eficácia no mesmo sentido de um sujeito. “[O objeto] não é capaz de
nenhuma alteração por si mesmo (ele não pode iniciar nenhuma ação (Wirkung)); por
conseguinte, ele não pode reagir a esta atuação (es kann mithin dieser Einwirkung nicht zuwider
handeln)”139 Tal distinção é um imprescindível preâmbulo para a compreensão da peculiaridade
da doutrina da intersubjetividade.
O objetivo almejado por Fichte com a introdução deste paradigma interativo é a ruptura
do círculo a que sua argumentação, desenvolvida somente segundo o modelo de relação causal de
um sujeito auto-referente sobre um objeto inerte, havia levado. Neste novo modelo de
compreensão, o sujeito não representa mais a auto-determinação, cuja execução lhe fornece a
certificação de sua subjetividade, como contraposição a um objeto, mas como atitude
performativa em relação a outro sujeito. O ponto comum aos dois modelos é justamente que
agora, como antes, a resposta do “sujeito” diante do “objeto” (a reflexão de sua atividade) é
137
GNR, 33
138
Briefe (Brief an Reinhold vom 29. August 1795)- III 2, 386
139
Briefe (Brief an Reinhold vom 29. August 1795)- III 2, 386
34
reação à tentativa de efetivação de um fim posto. Torna-se claro que, no modelo intersubjetivo, o
outro sujeito somente pode se tornar consciente de sua própria liberdade – e com isso de sua
própria subjetividade – se a expectativa erguida pelo primeiro sujeito for o reflexo de sua
atividade, isto é, uma determinação que tem por fim solicitar ao outro uma expressão de sua
liberdade, de fazer uso dela no mundo efetivo, de se portar como sujeito livre. Esta interação
fundamental que solicita ao sujeito que faça uso de sua liberdade, que tome uma atitude
performativa que é condição para a cooperação em vista da consecução de fins comuns ou fins
próprios que supõem aquiescência do outro, e que acaba por despertar nele a consciência de que é
um ser livre, um indivíduo, um sujeito, é chamada por Fichte de Aufforderung, que gostaríamos
de traduzir tanto por interpelação, que tem a vantagem de manter o nuance intersubjetivo, como
por solicitação, que nos parece mais fiel ao sentido final da abordagem, isto é, de uma
determinação que tem como fim bastante determinado instar o outro a demonstrar sua liberdade.
“Mas o mesmo [o exigido e que é um objeto] não é compreendido de outra forma – e não pode ser compreendido de
outra forma – do que como uma simples interpelação (Aufforderung) do sujeito ao agir. Tão certo [como], portanto, o
sujeito compreende o mesmo, da mesma forma ele possui o conceito de sua própria liberdade e independência, e, na
verdade, como de algo dado a partir de fora. ”140
140
GNR, 32/33
141
GNR, 33
142
GNR, 81
35
referência normativa ao futuro. “Ele recebe o conceito de sua livre eficácia não como algo que é
no presente momento – pois isto seria uma verdadeira contradição –, mas como algo que deve ser
no futuro.”143 O instante da tomada de consciência de si mesmo está contido na referência à
liberdade que deve ser no futuro, referência que é esclarecida pela concomitância da solicitação
do interpelador e da expectativa de uma resposta não coagida e racional. No instante em que o
indivíduo se compreende como interpelado numa situação de solicitação que lhe exige resposta
ou uma reação futura pautada pela independência, isto é, não coagida e racional, o indivíduo
toma consciência de que, doravante, é capaz de se auto-determinar . No nexo intersubjetivo da
interpelação, o círculo é rompido justamente porque o interpelado não mais necessita possuir um
conceito de sua eficácia livre anteriormente à contraposição (o que gerava a aporia, pois a
contraposição requer novamente a certificação anterior da liberdade que vai ser então
contraposta); pois, segundo Fichte, o interpelado adquire, depois do choque exterior, depois de se
deparar com o solicitante, o conceito de sua livre eficácia como algo que deve ser no futuro, e
não que tinha que ser no passado. Esta validade deontológica futura da liberdade na interpelação
se conecta com as condições sob as quais o “encontro” pode ser compreendido como ocasião para
uma expressão da liberdade por parte do interpelado. Nestes termos, exteriorizada a solicitação
por parte do solicitante, a percepção desta comunicação como ocasião para uma resposta não-
coagida reside justamente na possibilidade de distinção, por parte do sujeito interpelado, dos
motivadores próprios à expressão da liberdade em relação à coerção pura e simples.“O sujeito
não pode se achar necessitado a simplesmente agir efetivamente. Ele não seria então livre, nem
um eu. Se ele devesse se resolver a agir, ele pode ainda menos se achar necessitado a agir desta
ou daquela maneira determinada ... ele não seria nem livre e nem um eu.” 144
Para Fichte, o encontrar-se livre do sujeito mediante a interpelação tem como condição a
possibilidade de uma reação que seja, em última instância, internamente motivada e que se
processe, concretamente, em termos de aceitação ou recusa145. “Como e em que sentido ele é
determinado à eficácia, a fim de se encontrar como um objeto ? Simplesmente na medida em que
ele se encontra como algo que poderia atuar (wirken) aqui, que é solicitado à atuação, mas que
pode muito bem se abster disso (es unterlassen).”146 Esta condição é justamente o que, segundo
Fichte, pode evidenciar a distinção entre uma interação entre sujeitos de uma relação pautada pela
causalidade segundo o paradigma da relação entre sujeito e objeto, a qual, quando efetivada no
mundo humano, só pode resultar em coerção, em sua acepção mais ampla. “O conceito exposto é
o de uma livre eficácia recíproca (einer freien Wechselwirksamkeit) em sua mais alta precisão ...
Se ele deve ser determinado de maneira precisa, então a atuação (Wirkung) não pode ser pensada
de maneira apartada da contra-atuação.” 147
143
GNR, 32/33
144
GNR, 34
145
O ser racional, diz Fichte, deve realizar sua eficácia livre. Esta exigência feita a ele está contida no conceito, e tão certo quanto ele compreende
o pretendido conceito, ele a realiza: “ou através do agir efetivo. Somente a atividade em geral é exigida. Porém, jaz expressamente no conceito que
na esfera das ações possíveis o sujeito deve escolher uma através da auto-determinação ... tão certo quanto ele age, escolhe ele, por auto-
determinação, esta certa maneira e é, nesta medida, absolutamente livre e ser racional, e se põe também como tal; ou através do não-agir.
Também assim ele é livre, pois ele deve, segundo nossa pressuposição, ter compreendido o conceito de sua eficácia, enquanto algo exigido e que o
incita (etwas...ihm Angemutetes). Na medida em que ele procede à revelia deste estímulo (Anmutung) e se abstém do agir, ele escolhe de maneira
igualmente livre entre o agir e o não-agir.”
146
GNR, 34
147
GNR, 34/35
36
148
GNR, 40
149
Honneth, Axel – „Die transzendentale Notwendigkeit von Intersubjektivität: (Zweiter Lehrsatz: § 3)“, in: Merle, Jean-Christophe(Hg) –
Johann Gottlieb Fichte, Grundlage des Naturrechts , Akad.-Verl. , Berlin , 2001,63-80, p.74
150
GNR, 47
151
GNR, 39
37
Decerto, há que se conceder a Honneth que “Fichte não pode ter pretendido compreender
seu conceito de interpelação no sentido estrito de um imperativo, porque com isso seria subtraída
ao endereçado a tomada de posição propriamente tencionada; ele deve ter escolhido este conceito
específico para salientar a circunstância de que, em toda abordagem (Anrede) de um outro ser
humano, está contida uma exigência (Zumutung), na medida em que dele está sendo esperada
uma reação condizente a um ser capaz de razão. Para Fichte, todos os atos de fala comunicativos
representam “interpelações”, pois por meio deles uma segunda pessoa deve ser motivada a fazer
uso de sua “livre eficácia”152. É certo também que, no âmbito em que Fichte constrói o
argumento – a saber, como ruptura com o “círculo” da reconstrução da autoconsciência – não é
necessário sobrecarregar a interpelação com conotações morais. Mas, como o próprio Honneth
reconhece, a interpelação possui implicações normativas: “todo ser humano que aborda seu
próximo de forma comunicativa, obriga-se, na execução do ato de fala, a conceder-lhe ao menos
a possibilidade de uma resposta não-coagida. Inversamente, pode-se, com bons motivos, esperar
daquele que, através da abordagem, se tornou o endereçado, uma reação que consiste no uso de
sua própria capacidade racional.”153 Uma conotação moral da interpelação – e, de maneira mais
profunda, sua consideração como matriz intersubjetiva de relações interpessoais tanto
excludentes quanto inclusivas – vai além da abordagem de Fichte e mesmo dos objetivos
pretendidos por ele com a introdução do conceito; pois o interpelado não está aqui obrigado a
reagir ético-moralmente, mas apenas instado a reagir com racionalidade e liberdade. Mas se, a
partir da interpelação, uma possível abertura para a reconstrução de uma moral universalista da
humanidade como fim em si e como nexo fundacional de formas “participativas” de uma
“socialização individualizante” pode ser encontrada em germe, ela não estaria na perspectiva
unilateral do interpelado, mas na conduta não coerciva do interpelador. As conseqüências
normativas, bem como a redução das potencialidades éticas da interpelação como modelo geral
de uma socialização anterior à mútua exclusão das pessoas de direito, serão melhor delineadas
pela transformação da constituição unilateral da consciência-de-si do interpelado no modelo
bilateral do reconhecimento recíproco, relação originária que subjaz a toda relação intersubjetiva
arbitrária e que revela, como atrelada a uma resposta racionalmente formulada à abordagem, a
obrigação de atribuir ao outro uma esfera de liberdade que foi concedida na solicitação154. Este
tipo de raciocínio extrapola o âmbito restrito da discussão sobre a interpelação como
possibilidade intersubjetiva de ultrapassar o círculo na fundamentação da consciência. Porém,
justamente porque se trata, com a interpelação, de um nexo intersubjetivo que, para ser
compreendido, “tem de ser de tal forma que ambos se constituam como partes integrantes de um
acontecimento como todo (einer ganzen Begebenheit)” 155 – pois só “assim algo é postulado
152
op. Cit. P.76
153
op. Cit. P.77
154
Aqui se pode compreender como Fichte espera alcançar, a partir das pressuposições de compreensão da abordagem, um saber normativamente
tão exigente como o que se acha pressuposto na consciência de direitos indivíduos. “Pois, até aqui, nada mais foi mostrado do que isto: um
ouvinte é capaz de se certificar simultaneamente de sua racionalidade e a do parceiro de interação na execução da compreensão; enquanto, para
além disso, na consciência individual do direito tem que ao menos estar contido um saber prático acerca do fato de que todos os membros de uma
comunidade jurídica limitaram reciprocamente sua liberdade originária pelos mesmos fundamentos normativos.” Honneth, Axel – „Die
transzendentale Notwendigkeit von Intersubjektivität: (Zweiter Lehrsatz: § 3)“, in: Merle, Jean-Christophe(Hg) – Johann Gottlieb Fichte,
Grundlage des Naturrechts , Akad.-Verl. , Berlin , 2001,63-80, p.79
155
GNR, 34/35
38
como condição da consciência-de-si de um ser racional”156 –, ela tem de ser também considerada
em seu potencial ético e inclusivo.
156
GNR, 34/35
39
ainda que não seja lembrado por Fichte, uma limitação do potencial socializador de uma
individualização que se opera segundo o modelo de uma mútua educação formativa.
Vimos que o ser racional finito não pode pôr-se a si mesmo sem apreender sua liberdade
como uma atividade limitada por algo que lhe é contraposto, isto é, sem pôr simultaneamente um
não-eu como algo exterior e limitante de sua própria atividade. “Somente em algo assim é
possível atar o fio da consciência-de-si ... O sujeito pode e tem de pôr a si mesmo como ser
livremente atuante (freiwirkendes Wesen) sob esta condição ... Se ele se põe a si mesmo como tal,
então ele pode e tem de pôr um mundo sensível, contrapondo-se a ele.”157Como a condição da
autoconsciência é a atividade que retorna a si mesma a partir do limite, o direito vai entrar em
cena para qualificar esta mesma liberdade que tem de se pôr como limitada. De acordo com a
teoria da Aufforderung, ficou demonstrado que, se o eu finito deve continuar a ser, apesar de sua
limitação intrínseca, uma subjetividade, a limitação de sua livre eficácia não pode ser baseada na
opressão ou na coerção, e sim tem de consistir numa solicitação à expressão desta liberdade. “O
sujeito agora se pôs enquanto um tal que contém em si mesmo o último fundamento de algo que
está nele (esta foi a condição da egoidade, da racionalidade em geral); mas ele pôs, da mesma
forma, um ser fora de si como último fundamento disso que nele aparece (als den letzten Grund
dieses in ihm Vorkommenden).”158 Somente desta maneira, a atividade do sujeito é de tal modo
forjada que ela permanece ao mesmo tempo limitada pela presença de um não-eu (capaz de
interpelar) e também potencialmente livre. Se o segundo Lehrsatz evidencia os pressupostos para
o entendimento da solicitação como condições da auto-apreensão da atividade, o terceiro
Lehrsatz precisa revelar esta atividade como uma liberdade que se auto-limita, pois somente esta
limitação, propiciada pela auto-determinação, é capaz de complementar as condições sob as quais
o sujeito pode responder à interpelação. Assim, porquanto, por um lado, a consciência somente
pode se certificar de si mesma pela admissão de outras consciências; e, por outro lado, a postura
não coercitiva, que é condição para a compreensão da solicitação e para a auto-certificação, só é
possível como limitação da esfera de liberdade, o sujeito só pode chegar à consciência-de-si ao
considerar a si mesmo como sujeito ao vínculo jurídico. Como diz, Alain Renaut, “a conditio
juris é a própria conditio humana”159
O mais importante parágrafo da primeira parte tem seu ponto de partida na abordagem
geral da argumentação que pretende esmiuçar: “O ser racional finito não pode admitir outros
seres racionais exteriormente a si, sem pôr-se como estando em uma determinada relação com
eles, a qual se denomina relação de direito (Rechtsverhältnis)”160 O parágrafo tem uma
pormenorizada subdivisão, sendo que as duas primeiras partes (I e II) se destinam à exposição do
conceito de reconhecimento como “relação de seres livres uns aos outros enquanto relação de
interação por inteligência e liberdade” 161, conceito sobre o qual “se baseia toda a doutrina do
direito” 162 . A terceira parte (marcada também como I e que se subdivide em inúmeras outras) se
refere à dedução propriamente dita do conceito de direito, de seu princípio e de sua fórmula. A
estas subdivisões se seguem dois ricos corolários (denominados corollarium, subdivido em 3
partes com letras latinas e que diz respeito mais à relação de interação entre os indivíduos; e
corollaria, subdividido em cinco alíneas, que concerne mais à dedução da relação jurídica a partir
da interação recíproca), em que Fichte expõe idéias que vão desde o caráter intersubjetivo do seu
157
GNR, 35
158
GNR, 41
159
Renaut, Alain – „Deduktion des Rechts (Dritter Lehrsatz: §4)“, in: Merle, Jean-Christophe(Hg) – Johann Gottlieb Fichte, Grundlage des
Naturrechts , Akad.-Verl. , Berlin , 2001, 81-95
160
GNR, 41
161
GNR, 44
162
GNR, 45
40
“Eu me ponho como indivíduo em contraposição com um outro indivíduo, na medida em que eu atribuo a mim uma
esfera para a minha liberdade – da qual eu excluo o outro – e ao outro uma esfera para a sua liberdade, da qual eu
me excluo. Isto se deixa compreender simplesmente com o pensamento de um fato e de acordo com este fato.” 166
163
Fichte compreende, no § 4, o vínculo jurídico entre indivíduos como estritamente fundado na interação recíproca concreta entre eles, a qual
significa propriamente uma interação efetivada pela exteriorização de sua liberdade por meio de ações. Por outro lado, o vínculo que permanece
entre eles mesmo na inexistência de uma interação efetiva, Fichte relega ao domínio da consciência moral e da ética.“Somente através de ações,
exteriorizações de sua liberdade, no mundo sensível os seres racionais chegam à interação uns com os outros. Portanto, o conceito de direito se
refere ao que se exterioriza no mundo sensível. O que não tem nele qualquer causalidade e permanece no interior do ânimo (im Innern des
Gemütes), pertence à alçada de outro tribunal: a moral.”[GNR, 55] “Somente na medida em que seres racionais se encontram em relação uns com
os outros e podem agir de tal forma que a ação de um pode ter conseqüências para os outros, é possível entre eles a questão do direito, como
resulta da dedução efetuada, a qual sempre pressupõe uma interação real. Entre aqueles que não se conhecem, ou cujas esferas de atuação
(Wirkungssphären) são completamente separadas uma da outra, não há qualquer relação de direito. Deturpa-se inteiramente o conceito de direito
quando se fala, por exemplo, dos direitos daqueles já há muito falecidos sobre os que estão vivos. Deveres de consciência (Gewissenspflichten)
pode-se bem ter para com a memória deles, mas de nenhuma forma de obrigatoriedades existentes por direito.”[GNR, 56]
164
No § 3, Fichte faz uma indicação geral segundo a qual a dedução da intersubjetividade teria solucionado o problema da representação, isto é, da
convicção de que às representações dos objetos exteriores a nós correspondem objetos. [GNR, 40] No § 4, Fichte faz uma curiosa interpretação da
suposição da racionalidade do outro indivíduo no momento do tratamento em termos da posição dele por mim como uma unidade de razão e
sensibilidade, unidade que se torna também condição para a minha “obrigação” em tratá-lo como ser racional ou como ser simplesmente sensível.
“Posto, ele age de tal forma que sua ação é determinada, na verdade, através dos predicados sensíveis da ação precedente – e isto é necessário de
acordo com o mecanismo causal da natureza –, mas não através do ocorrido reconhecimento de mim como ser livre; isto é, através de seu agir, ele
me subtrai a liberdade que deve ser atribuída a mim, e me trata, nesta medida, como um objeto: assim sou eu sempre necessitado a atribuir a ação
a ele, ao mesmo ser sensível C. (Ele é, por exemplo, a mesma língua, o mesmo modo de se mover). Por outro lado, o conceito deste ser sensível C
através do reconhecimento – e talvez através de uma seqüência de ações que é determinada por meio dele – está unificado em minha consciência
com o conceito da racionalidade, e o que eu uma vez uni, não posso separar. Porém, aqueles conceitos são postos como necessários e
essencialmente unificados. Eu pus razão e sensibilidade como a essência de C. Agora, na ação X, eu tenho necessariamente que separá-los e
posso, portanto, atribuir-lhe a racionalidade como apenas contingente. Meu próprio tratamento dele enquanto um ser racional se torna então
contingente, condicionado, e somente tem lugar no caso de ele mesmo me tratar desta forma. Portanto, eu posso, em completa coerência
(Konsequenz) – que aqui é minha única lei – tratá-lo neste caso como um mero ser sensível, até que ambas, sensibilidade e razão, estejam
novamente unificadas no conceito de sua ação.”[GNR, 49]
165
A este respeito, Fichte começa lembrando que, como o conceito de obrigação é totalmente oposto ao de direito, este último não é deduzido da
lei moral, que enuncia a obrigação incondicional: “o deduzido conceito não tem nada a ver com a lei moral, é deduzido sem a mesma, e já nisso
reside – já que não é possível mais do que uma dedução do mesmo conceito – a prova fáctica de que ele não pode ser deduzido da lei moral.
Outrossim, todas as tentativas de uma tal dedução são inteiramente malogradas. O conceito de obrigação (Pflicht), o qual se origina daquela lei, é,
na maioria das características, diretamente contraposto ao do direito.”[GNR, 54] Depois Fichte lembra sua concepção da lei do direito como lex
permissiva, o que torna impossível, segundo ele, poder aproximar sua fundamentação do direito da ética, que se baseia numa lei estritamente
obrigante.“A lei do direito permite apenas, mas jamais obriga que a pessoa cumpra seu direito. Sim, a lei moral proíbe muito freqüentemente a
execução de um direito, o qual então realmente não cessa, por causa disso ... de ser um direito ...” [GNR, 54] Em seguida, Fichte aborda
rapidamente uma questão que desenvolverá melhor no § 18 do System der Sittenlehre, segundo a qual há um dever moral de se submeter a um
estado e de cumprir os direitos como se fossem deveres éticos. Aqui Fichte deixa claro que percebe o direito apenas como possível pelo medium
coercitivo, ou mesmo, através da violência física. “Mas se talvez a lei moral der ao conceito de direito uma nova sanção é uma pergunta que não
pertence de maneira geral ao direito natural, e sim à moral real (in eine reelle Moral gehört), e que será respondida neste âmbito e ao seu tempo.
No terreno do direito natural, a boa vontade não tem nada a fazer. O direito precisa se deixar coagir, mesmo se nenhum homem tivesse uma boa
vontade. E é a isto que vem a ciência do direito, à projeção de um tal ordenamento das coisas. Violência física, e somente ela, dá a ele neste
terreno a sanção.” [GNR, 54] Finalmente, Fichte enuncia sua idéia de uma separação radical entre as duas ciências, a qual se funda na própria
razão. “Ambas as ciências são, já originalmente e sem nenhum acréscimo nosso, separadas pela razão e são totalmente contrapostas.” [GNR, 55]
166
GNR, 52
41
Vimos que, de acordo com o § 3, o ser racional finito é levado a admitir, para escapar ao
círculo na fundamentação da consciência-de-si, a interpelação de um ser racional fora dele como
condição de sua própria liberdade. Fichte analisou, no § 3, as condições sob as quais um ser
racional finito pode receber esta solicitação como um instar ao comportamento racional e não
como uma tentativa de exercer sobre ele a coerção, o que não poderia dar origem assim à sua
consciência de que é livre171. Uma investigação da resposta do sujeito àquela interpelação
constitui a contrapartida de um argumento que pretende revelar a condição de possibilidade de
uma “comunidade de seres livres como tais”, objeto do conceito de direito, isto é, da convivência
de consciências-de-si no mundo de sua influência recíproca: os sujeitos têm de se pôr como tais,
isto é, como livres e, no entanto, como (auto-)limitados. O argumento tem que mostrar sob que
condições esta vida interativa é possível, sem que tenham que abrir mão da liberdade de sua
consciência-de-si. A questão da reconstrução da autoconsciência individual se tornou o problema
da possibilidade da liberdade intersubjetiva. Portanto, em primeiro lugar, é preciso que se
167
GNR, 52
168
GNR, 52
169
GNR, 52/53
170
GNR, 18
171
Siep parece subestimar o papel do direito ao vê-lo – especialmente no terceiro “princípio doutrinário” – como simples “conseqüência” do
“acontecimento da interpelação” à liberdade e do segundo princípio doutrinário. Segundo Siep, a passagem entre intersubjetividade e direito não
caracteriza uma dedução, e ele discute ainda que “o deixar em aberto de minha esfera de ação [a auto-limitação recíproca da liberdade pela
liberdade do outro] ... seja para mim um critério suficiente da racionalidade do outro. O fato de que o outro permite a mim todas as minhas ações
que limitam a liberdade, poderia ser um sinal de desinteresse, astúcia ou mesmo de falta de uma coletividade comigo.”[Siep, Ludwig–Praktische
Philosophie im deutschen Idealismus, Frankfurt am Main, 1992, p.48] Para Merle, Siep quer com isso refutar a tese defendida por Fichte de que o
ato de auto-limitação tenha de ter como fim a produção de um conhecimento no outro. Sem limitação da liberdade nenhum outro ser livre como tal
pode ser apreendido. Obviamente, uma auto-limitação somente não é suficiente para uma tal solicitação ou interpelação.
42
contraponham dois seres racionais, que não poderão, de acordo com o pressuposto, abandonar
sua pretensão à liberdade, pelo que não se tornam consciências-de-si: “O sujeito tem de se
diferenciar por oposição (Gegensatz) do ser racional, que ele admitiu exteriormente a si de
acordo com a prova acima [a saber, a do §3 E.C.L].”172 Se a condição da liberdade intersubjetiva
e da consciência-de-si de ambos sujeitos é a limitação recíproca das liberdades, sem a qual não há
resposta válida à interpelação, a condição fundamental daquela é a simples contraposição dos
indivíduos.
E aqui vale uma nota sobre o procedimento dedutivo de Fichte no primeiro Hauptstück.
Os níveis precedentes constituem os pressupostos para a dedução a ser efetuada em um certo
nível. Se Fichte tivesse se limitado ao § 3, teria deduzido a existência de outros seres racionais
finitos, isto é, da intersubjetividade e do potencial individualizante intrínseco a esta forma de
socialização. Os níveis seguintes da dedução são condicionados pelos níveis precedentes na
forma “nenhum x sem y”, onde x representa o nível alcançado até o momento, e y as condições
necessárias do nível posterior. Assim, qual é a condição de uma simples contraposição e
conseqüente “separação” dos seres racionais em uma “intersubjetividade indiferente”, a qual
representa, por assim dizer, a redução do potencial de uma socialização baseada na
intersubjetividade formativa173 ?
“... no interior desta esfera designada a ele, o sujeito escolheu, deu absolutamente a si próprio a mais próxima
determinação limítrofe de seu agir (die Grenzbestimmung seines Handelns), apenas da última determinação de sua
eficácia jaz o fundamento somente nele. Somente nesta medida ele pode pôr a si mesmo enquanto único fundamento
de algo, separar-se totalmente do ser livre fora dele e atribuir sua eficácia somente a si.”174
Fichte esclarece então que a condição para a separação, isto é, para a auto-posição de um
ser racional como contraposto a um outro ser racional, é que, apesar da interpelação deste àquele,
a última determinação de sua liberdade esteja sob seu controle. No entanto, a condição de
possibilidade da interpelação era justamente que uma esfera de ação fosse deixada indeterminada
para o exercício de resposta não coagida do interpelado.“Nesta esfera, somente o sujeito pode ter
escolhido, e não o outro; pois ele a deixou indeterminada, de acordo com a pressuposição ... o
que escolheu com exclusividade nesta esfera é o indivíduo, o ser racional determinado pela
contraposição a outro ser racional; e o mesmo é caracterizado por uma determinada
exteriorização (Äußerung) da liberdade que é atribuída exclusivamente a ele.”175 A interpelação
forneceu a condição para que surgisse o indivíduo enquanto sujeito prático capaz de exteriorizar
sua liberdade: uma socialização que tem em sua base a relação intersubjetiva em seu potencial
172
GNR, 41
173
Chamamos atenção acima para uma compreensão da interpelação como acontecimento que suscita, no interpelado, uma atitude performativa
em relação ao outro, uma abertura à alteridade cujas potencialidades alcançam a possibilidade de cooperação e de uma relação positiva à vontade
do outro. É a compreensão advogada por Siep – segundo a qual o Naturrecht se caracteriza pela introdução, no método de dedução transcendental,
de elementos referentes à experiência da consciência – que lhe permite elaborar uma interpretação tanto da passagem entre os §3 e §4 quanto entre
o segunda e o terceira Hauptstücke como contínuas. Em primeiro lugar, a passagem do §3 para o §4 se caracteriza pela transformação da
interpelação unilateral em reconhecimento recíproco, o que se faz pela revelação da limitação da liberdade pelo interpelado como condição da
própria interpelação. A passagem significa também a desvinculação da interpelação das circunstâncias concretas e sua transformação numa
operação a se repetir nas futuras interações. Após contestar a posição de Verweyen e Baumanns, segundo a qual uma interpelação somente se
deixa pensar como relação de reconhecimento recíproco, Ludwig Siep insiste na tese de que, por ser um ato de educação, a interpelação não é de
maneira nenhuma redutível a uma atuação conforme ao “comportamento jurídico”, isto é, ao respeito indiferente à esfera de liberdade, já que se
trata de uma atuação sobre um indivíduo que ainda não chegou, em geral, à consciência de si. Isto permite a Siep concluir que a interpelação nem
inclui nem pressupõe o reconhecimento. Siep, Ludwig – „Einheit und Methode von Fichtes „Grundlage des Naturrechts““, in: Siep, Ludwig–
Praktische Philosophie im deutschen Idealismus, Frankfurt am Main, 1992, 41-64 Weischedel, Wilhelm – Der frühe Fichte: Aufbruch d. Freiheit
zur Gemeinschaft, Frommann-Holzboog, Stuttgart, 1973 Zaczyc, Rainer – „Die Struktur des Rechtsverhältnisses (§§1-4)im Naturrecht Fichtes“,
in: Kahlo, M., Wolff, E. A u. Zaczyk, R. (Hrsg.) – Fichtes Lehre vom Rechtsverhältnis, Frankfurt am Main, 1992, 9-27Verweyen, H. – Recht und
Sittlichkeit in J.G. Fichtes Gesellschaftslehre, München, 1975
174
GNR, 41/42
175
GNR, 42
43
indeterminado, isto é, representa, em geral, o ponto de vista de uma atitude performativa que se
abstém da coerção sobre o outro, a qual constitui, por isso mesmo, a possibilidade de formas
inclusivas, cooperativas e não indiferentes de intersubjetividade. No entanto, de acordo com o
movimento da racionalidade finita, demonstrado na Wissenschaftslehre de 1794, “eu oponho, no
eu, ao eu divisível, um não-eu divisível”176, “um princípio teórico formal, o qual foi, no seu
devido lugar, rigorosamente demonstrado, e que, com sorte, pareça convincente ao intelecto
humano sadio mesmo sem prova”177; de maneira que a auto-posição do indivíduo, graças ao
fundamento último de determinação de sua eficácia, deixado e instado pelo ser racional que o
interpelara e o trouxera à consciência-de-si, implica que estes, estando contrapostos, tenham sido
postos em relação de comparação um com o outro. “Não pode ser contraposto, se, no mesmo
momento indiviso da reflexão, os contrapostos não forem também equiparados (gleichgesetzt),
relacionados um ao outro e comparados um com o outro.” 178
176
S.W I, 110
177
GNR, 42
178
GNR, 42
179
GNR, 43
180
GNR, 43
181
GNR, 43
44
liberdade do sujeito – ainda que de maneira somente problemática – foi pressuposta. Portanto, ele
limitou sua liberdade através do conceito da liberdade (formal) do sujeito.”182
Para Fichte, o que se estabelece nesta relação é que, ao tornar-se consciente de si pela
interpelação, o sujeito toma consciência também de sua contraposição a um indivíduo, pelo que a
formação da individualidade e sua contraposição se revelam co-originárias. Mas não é só isso:
nesta tomada de consciência da limitação “congênita” de sua liberdade pela esfera de atuação de
um outro ser racional livre, o sujeito toma conhecimento também do próprio sujeito que o
interpelou como um sujeito racional e livre, um ser capaz de auto-limitação, que é, para Fichte,
“o critério exclusivo da razão.”183 Com efeito, o ser racional somente se torna consciente-de-si
porque toma conhecimento do outro enquanto ser racional e livre, que limitou sua própria esfera
de atuação em prol de que ele tivesse a possibilidade de uma resposta não coagida. O resultado é
que “sua auto-limitação foi ... condicionada pelo conhecimento, ao menos problemático, do
objeto enquanto um ser possivelmente livre. Portanto, o conceito que tem o sujeito do ser exterior
a si como sendo um ser livre é condicionado pelo mesmo conceito que tem dele este ser e por um
agir determinado por este conceito.”184 Este conhecimento é apenas problemático, pois, neste
nível, o ser racional apenas supõe, por ter chegado a cogitar a possibilidade de uma resposta não
coagida, que o interpelador de fato limitou sua liberdade formal em função disso. “O acabamento
(Vollendung) do conhecimento categórico, que tem o ser exterior ao sujeito acerca deste último
enquanto um ser livre, é condicionado pelo conhecimento do sujeito e o agir conforme a ele.”
185
A condição para que o conhecimento possa se tornar categórico é que ele se complete como
plena reciprocidade, isto é, que, por uma resposta não coagida que seja também uma auto-
limitação em prol do exercício da liberdade do interpelador, o sujeito exteriorize a marca
indelével de sua racionalidade, fornecendo ao interpelador subsídio à confirmação de sua
suposição de que se trataria possivelmente de um ser livre. “O outro não poderia tirar a conclusão
de que ele seria um ser racional, pois a conclusão somente se torna necessária através da ocorrida
auto-determinação.”186
Acontece que, para Fichte, aquela exigência dirigida aos outros, segundo a qual eles
devem limitar sua liberdade, está contida analiticamente na ação pela qual o sujeito põe a si
mesmo como uma consciência individual. “... a minha liberdade só é possível por meio disso: que
o outro permaneça no interior de sua esfera. Portanto, da mesma forma que eu reivindico a
primeira por todo o futuro, eu reivindico também sua limitação; e como ele deve ser livre, exijo,
por todo futuro, sua limitação por si mesmo – e isto tudo de maneira imediata, tal como eu me
ponho enquanto indivíduo.”190 Portanto, se – tanto quanto eu só posso me pôr como indivíduo, na
medida em que eu exijo do outro que me reconheça – o outro somente pode se confirmar como
indivíduo, na medida em que me solicita ou interpela a reconhecê-lo como tal, então o
reconhecimento recíproco, ou seja, a própria relação intersubjetiva como tal, é condição da
individualidade.
Segundo o processo pelo qual o conhecimento que o outro tem de mim como ser racional
e livre passou de problemático a categórico, o outro sujeito, assim como eu, somente pôde se
limitar, porque ele tomou conhecimento de mim como um ser livre. O outro me reconhecerá
como sujeito simplesmente sob a condição de que eu o trate como tal, na medida em que eu me
deixe conduzir pelo conceito que eu mesmo construí para mim acerca dele. Desta maneira, ambos
os movimentos se condicionam reciprocamente.
“A relação de seres livres uns aos outros é determinada necessariamente da seguinte maneira e é posta como assim
determinada: o conhecimento que um indivíduo tem do outro é condicionado pelo fato de (bedingt dadurch daß) o
indivíduo: ela é posta no futuro (in der Zukunft), tão logo o indivíduo mesmo é posto nela.”(GNR 51/52) Neste sentido, a liberdade, que só pode
ser corroborada no processo mesmo de sua inserção no mundo, isto é, no processo de efetivação do conceito prático ou fim, cuja posição é o que
conduz à ação, é orientada para o advento futuro do fim efetivado, de sua efetiva inserção no mundo. Assim, para poder conceber um ser cuja
essência é a liberdade como tal, é necessário poder identificar todo o seu futuro com uma tal eficácia de seus conceitos práticos, ou seja, poder
pensar todo o futuro do indivíduo como marcado pelo conceito de liberdade. Com efeito, a liberdade é, como determinidade do ser individual,
também sua determinação, e, na verdade, só pode ser compreendida como determinidade do ser racional finito, na medida em que é sua
determinação.
190
GNR, 52
191
SW, 189/DC 1794, 99
192
Comprando a leitura feita por Philonenko da Doutrina-da-Ciência de 1794, Renaut pretende que esta obra forneça já a diretriz do projeto
fichetano de uma teoria da intersubjetividade e, na verdade, na forma de uma “desconstrução das ilusões especulativas do sujeito sobre si mesmo”.
Ver Renaut, Alain – „Deduktion des Rechts (Dritter Lehrsatz: §4)“, in: Merle, Jean-Christophe(Hg) – Johann Gottlieb Fichte, Grundlage des
Naturrechts , Akad.-Verl. , Berlin , 2001, 81-95
46
outro o tratar como livre (isto é, limitar sua liberdade pelo conceito da liberdade do primeiro). Esta forma de
tratamento (Behandlung) é condicionada, no entanto, pela maneira de agir do primeiro com respeito ao outro; esta
pela maneira de agir e pelo conhecimento do outro, e assim por diante ao infinito. A relação de seres livres uns aos
outros é, portanto, a relação de uma interação mediante inteligência e liberdade (Verhältnis einer Wechselwirkung
durch Intelligenz und Freiheit). Nenhum pode reconhecer o outro, se ambos não se reconhecerem reciprocamente; e
nenhum pode tratar o outro como um ser livre, se ambos não se tratarem desta forma reciprocamente.”193
O ser racional exterior ao sujeito, que fora admitido como fundamento de sua tomada de
consciência da própria liberdade, teve de limitar, segundo os pressupostos da argumentação, sua
própria liberdade, a fim de que fosse dada ao sujeito a possibilidade de uma resposta não coagida
e, com isso, de dar expressão à sua natureza racional. Em vista desta auto-limitação, o conceito
que o sujeito tem dele é de um ser racional e livre. No entanto, o conceito que ele tem do sujeito
permanece problemático, assim como permanece problemática ainda toda a relação enquanto
interação de seres racionais livres: uma relação recíproca entre seres racionais somente pode ter
lugar sob a condição de que o conceito que o interpelador faz do sujeito passe do nível
problemático ao categórico, deixe de ser uma suposição baseada na expectativa de que se trate de
um ser racional e passe a ser a certeza disso. A própria continuidade desta frágil célula
comunitária depende disso. Portanto, o seu reconhecimento do sujeito como ser livre depende de
sua resolução em se auto-limitar em prol do exercício não coagido da liberdade do interpelador,
isto é, depende de como o sujeito o trata. “A condição era que eu reconhecesse o outro como um
ser racional (válido para mim e para ele), isto é, que eu o tratasse como um tal ser – pois somente
o agir é um tal reconhecer que é válido em geral (gemeingültig). Isto eu tenho agora
necessariamente, tão certo quanto eu me contraponho a ele como ser racional – compreende-se,
enquanto eu procedo racionalmente, isto é, de maneira conseqüente aos meus conhecimentos.”194
O reconhecimento categórico e de validade geral depende, portanto, de uma ação efetiva da parte
do sujeito em se auto-limitar em prol do exercício da liberdade do outro, pois somente assim
aquele pode ver confirmada sua suposição de que o sujeito é um ser racional e livre. Esta
peculiaridade do conceito fichteano de reconhecimento, que depende de uma interação efetiva e
somente assim pode ter lugar, liga-se profundamente a sua concepção da perda da
obrigatoriedade da relação jurídica. Para compreender este vínculo, é necessário procurar
compreender duas colocações na citação acima: o que significa a validez geral do
reconhecimento recíproco, e como esta validez se coaduna com a tese de que a interação se
mantém válida “enquanto eu procedo racionalmente, isto é, de maneira conseqüente aos meus
conhecimentos.” Com efeito, o que primeiro se impõe é compreender a relativização desta
validez geral frente ao modelo de obrigatoriedade incondicionada da moral.
“O conceito exposto é altamente importante para nosso propósito, pois sobre ele se baseia toda a nossa teoria do
direito ... eu somente posso motivar (anmuten) um determinado ser racional a me reconhecer como um ser racional,
na medida em que eu mesmo o trate como um tal ser ... não que o mesmo em si, e em abstração de mim e de minha
consciência – talvez como estando diante de sua consciência (vor seinem Gewissen) (isto é da alçada da moral), ou
diante de outros (este é o caso diante do estado) – me reconheça, e sim que ele, segundo sua consciência e a minha,
unificadas sinteticamente numa unidade (segundo uma consciência para nós comunitária), me reconheça, de tal
forma que, tão certo como ele quer valer como um ser racional, eu possa necessitá-lo a confessar que ele sabia que eu
próprio sou também um.”195
193
GNR, 44
194
GNR, 46
195
GNR, 44
47
respeitar a vida em geral, ou a vida humana em particular, de maneira que se constituísse como
uma validez geral que nada devesse à interação real que a constitui como tal, mas estaria antes
“pronta” na consciência moral do indivíduo. Por outro lado, enquanto esfera originária que torna
possível o direito, o reconhecimento não pode ser simplesmente extorquido pelo estado, e aqui é
preciso entender precisamente o que pretende Fichte: o estado pode levar um indivíduo a
reconhecer o direito de outro sobre algo ou contra alguém etc..., mas isto é um reconhecimento de
segunda ordem. Aqui se trata, no entanto, de um reconhecimento originário, da emergência da
própria consciência individual da liberdade em sua necessária mediação intersubjetiva: é este
elemento que aqui se cria que vai tornar primeiramente possíveis as relações arbitrárias entre
indivíduos, isto é, uma convivência jurídica real. Decerto, veremos que a função maior do direito
como direito de coerção é, para Fichte, restaurar este âmbito originário de um mútuo tratamento
racional, ao menos de maneira simplesmente exterior. No entanto, nesta constituição
intersubjetiva das próprias liberdades, não se pode fazer apelo a uma instância superior que possa
coagir ao reconhecimento, pois assim seria vedada a possibilidade de que os sujeitos se
resolvessem de maneira não coagida a limitar sua própria liberdade em prol da liberdade do
outro. Vimos acima que a fonte genuína da validez geral do reconhecimento é localizada por
Fichte na “consciência para nós comunitária”, na qual o eu e o outro se unificaram, pelo que
Fichte antecipa, vale dizer, a estrutura formal do conceito hegeliano de reconhecimento em Jena,
compreendido como processo de mútua formação da consciência individual e da consciência
universal. Mas como esta consciência comunitária fornece o fundamento desta validez geral ?
“Tão certo eu agora o reconheço, isto é, o trato, da mesma forma ele é impelido (gebunden),
através de sua exteriorização primeiramente problemática, ou é compelido (verbunden),
necessitado por conseqüência teórica, a me reconhecer categoricamente, e, na verdade, de
maneira válida em geral (gemeingültig), isto é, a tratar-me como um ser livre.”196
Em vista daquela suposição ainda problemática de que estaria às voltas com um ser
racional e livre, a resposta não coagida e que se resolveu pela auto-limitação gera no interpelador,
segundo Fichte, uma obrigação válida em geral em me reconhecer categoricamente, obrigação
que, segundo Fichte, é baseada na necessidade da conseqüência teórica. Esta validez peculiar da
relação de reconhecimento engendrada numa contraposição de indivíduos que se resolveram
“unificadamente” a se tratar mutuamente como seres livres, é melhor esclarecida quando ele diz:
“Acontece uma unificação de contrapostos numa unidade (in Eins). Sob a presente pressuposição jaz o ponto de
unificação em mim, na minha consciência; e a unificação é condicionada por isso: que eu seja capaz da consciência.
Ele, por sua vez, preenche a condição sob a qual eu o reconheço, e ma prescreve. Do meu lado, eu acrescento a
condição: eu o reconheço efetivamente e o obrigo (verbinde), por meio disso, de acordo com a condição apresentada
por ele mesmo, a me reconhecer categoricamente; e me obrigo, de acordo com seu reconhecimento, a tratá-lo de
igual maneira.”197
196
GNR, 46/47
197
GNR, 47
48
socialmente convenientes, minha liberdade de maneira não coagida. Mas esta fundamentação da
validez geral da obrigação em reconhecer o outro tem, como contrapartida, a peculiaridade de
que cessa necessariamente quando chega ao fim aquela unificação em um consciência
comunitária, constituída pela reciprocidade do tratamento um do outro como ser racional. “Meu
próprio tratamento dele enquanto um ser racional se torna então contingente, condicionado, e
somente tem lugar no caso de ele mesmo me tratar desta forma.”198 A validade geral da obrigação
em permanecer no estado originariamente engendrado de reconhecimento recíproco é
condicionada, segundo Fichte, pela continuidade da unificação que produz este quadro geral, qual
seja: o mútuo tratamento como ser racional. A obrigação cessa, quando aquele tratamento cessar.
Esta idéia tem amplas conseqüências tanto para a concepção fichteana da validez hipotética da lei
jurídica e sua compreensão do conceito de direito como conceito técnico-prático, quanto para sua
concepção dos problemas relativos à aplicação do direito como lei de coerção.
198
GNR, 49
199
GNR, 48
200
GNR, 48
49
Finalmente, a dedução do conceito de direito em Fichte deve ser vista como tentativa de
estabelecer uma constituição recíproca do âmbito individual e do âmbito social, da consciência
singular e da consciência universal, como tentativa de revelar a constituição apriorística da
reciprocidade própria ao mundo jurídico como condição da possibilidade da consciência-de-si e,
com isso, como condição da possibilidade da existência de todo eu enquanto indivíduo. Portanto,
se se quisesse compreender uma tal dedução do ponto de vista estritamente lógico de inferências
a partir de um único princípio, então ter-se-ia que admitir que é o próprio sujeito ou a
individualidade enquanto tal que seria deduzida a partir da relação jurídica. A inserção do
conceito de direito no âmbito da reconstrução das condições de auto-posição do sujeito finito
leva, na verdade, a uma intensa modificação do paradigma jusnaturalista, segundo o qual, a partir
da natureza do homem como ser racional, é deduzida a legitimidade da capacidade de ter direitos.
Se, por um lado, a limitação recíproca é deduzida do conceito de indivíduo, há que se considerar
se, por outro lado, a filosofia de Fichte parte, no que diz respeito especificamente ao primeiro
Haupstück, de uma fundamentação individualista do direito, de maneira que Fichte continuasse a
fazer eco à tradicional subordinação da questão jurídico-política acerca da limitação recíproca das
liberdades à investigação acerca da essência do homem como livre individualidade, ainda que
201
“Portanto, eu me ponho como juiz, isto é, como alguém que se encontra acima dele (seinen Oberen): por isso, a superioridade (Superiorität) de
cada um, que supõe ter razão (Recht zu haben vermeint), sobre aquele contra o qual se tem razão. Mas, na medida em que eu recorro contra ele
àquela lei comunitária (auf jenes gemeinschaftliche Gesetz), eu o convido a ser comigo ao mesmo tempo juiz (lade ich ihn ein, mit mir ... zu
richten); e exijo que ele tenha que considerar meu procedimento contra ele, mesmo neste caso, como conseqüente e que o julgue conveniente
(billigen), instado pelas leis do pensamento. A comunidade da consciência continua a persistir. Eu o julgo segundo um conceito que ele mesmo, de
acordo com minha reivindicação (Anforderung), tem de ter.”[ GNR, 50]
202
GNR, 50
203
Siep, Ludwig – „Einheit und Methode von Fichtes „Grundlage des Naturrechts““, in: Siep, Ludwig–Praktische Philosophie im deutschen
Idealismus, Frankfurt am Main, 1992, 41-64, p.58
50
isto pareça ter sido a intenção original de Fichte e mais condizente com seu programa filosófico
exposto em 1794 nas Vorlesungen.
204
GNR, 53
51
poderia ser erigida não somente uma moral universalista, como também uma forma positiva,
inclusiva ou não-excludente de relação ao outro, cujo exemplo paradigmático seria para Fichte a
relação entre o indivíduo que educa e o que é educado e que Hegel vai projetar habilmente sobre
a relação entre pais e filhos. Além de passagens do próprio Naturrecht, esta realidade se torna
tanto mais difícil de entender, quando se observa a função desempenhada pela intersubjetividade,
cristalizada no conceito de Aufforderung, em textos cujo viés investigativo é eminentemente
ético.
O tema a ser tratado por Fichte na segunda “parte principal” do Direito Natural, que
engloba os §§ 5-7, é a “dedução da aplicabilidade do conceito de direito”, a qual é revelada, ao
fim de sua exposição do § 7, como um dos interesses fundamentais da teoria do direito, o que
deixa ver que o escopo da obra ultrapassa em muito a dedução do direito a partir da relação
fundamental de reconhecimento recíproco: dentre outras coisas, é justamente a tentativa de
deduzir as condições de aplicabilidade do conceito de direito que torna evidente a separação
radical entre a moral e direito natural, assim como arremessa a relação intersubjetiva fundamental
de “respeito recíproco” ao plano da aplicabilidade da lei a casos de transgressão. Neste sentido,
estes desenvolvimentos completam aquela “redução” jurídica da intersubjetividade
primeiramente deduzida como educação e a tornam o ambiente propriamente jusnaturalista da
defrontação de indivíduos plenamente individualizados enquanto pessoas. Conforme se mostrou
acima, a reciprocidade na auto-limitação da liberdade, o direito enquanto “comunidade das
consciências” que se reconhecem mutuamente, e a individualização dos seres racionais se
condicionam reciprocamente, de maneira que uma individualização segura e indiferente de todos
como pessoas depende da continuidade da reciprocidade do reconhecimento. Entretanto, pode-se
perceber como, a partir de Fichte, pode ser levantada a questão acerca da simbiose entre esta
individualização indiferente e formas participativas de socialização que poderiam ser pensadas
sob o título de educação.
Os quatro primeiros parágrafos mostraram que a consciência-de-si de um ser racional
finito pressupõe a auto-atribuição de livre eficiência – e, com isso, a posição e determinação de
um mundo sensível –, mas também a suposição de outros seres racionais finitos, bem como a
relação originária de reconhecimento recíproco entre si e estes outros coabitantes do mundo das
ações. Desta última relação, que é condição para a consciência-de-si do sujeito finito, deduziu-se
a relação de direito, a qual significa que os seres racionais finitos têm de delimitar as próprias
expressões de sua liberdade no mundo pelo conceito da possibilidade da liberdade de outros seres
racionais finitos, se todos devem partilhar, enquanto sujeitos individualizados, o status de seres
conscientes de si. Neste sentido, a segunda parte vai procurar enunciar as condições fundamentais
sob as quais é possível a realização da relação de direito. Continuam a explorar o universo
temático dos parágrafos anteriores, mas agora da perspectiva de um indivíduo que já se constituiu
como tal. Os dois “princípios doutrinários” subseqüentes, desenvolvidos nos §§ 5 e 6, pretendem
mostrar que um ser racional finito não pode se pôr a si mesmo como eficiente, sem atribuir a si
mesmo um corpo (Leib) material, o qual ele é capaz de determinar continuamente; e que a auto-
atribuição de um corpo não é possível para o ser racional finito, sem a suposição de que este
corpo possa ser influenciável por outro ser racional sensível. Depois destes primeiros elementos,
os quais reproduzem o teor da argumentação anterior no plano do sujeito individualizado como
pessoa e de posse da esfera corporal de expressão de sua liberdade, Fichte conclui sua exposição
com a idéia, exposta no § 7, de que as condições essenciais de aplicabilidade do conceito de
52
direito estão esgotadas, o que representa a passagem para o âmbito da aplicação propriamente
dita.
O § 5 faz a dedução do corpo (Leib) como esfera de atuação exclusiva da pessoa, na qual
se parte do conceito de indivíduo ou pessoa que fora deduzido anteriormente.
“O ser racional põe-se ... como um indivíduo – ao invés desta expressão, nós nos utilizaremos, de agora em diante,
do termo pessoa – através disso: ele atribui a si mesmo exclusivamente uma esfera para sua liberdade ... nenhuma
outra [pessoa] é ela mesma, isto é, nenhuma outra pode escolher nesta esfera destinada somente a ela. Isto constitui
seu caráter individual: por meio desta determinação ela é o que é, este ou aquele, que se acha deste ou de outro
modo.”205
205
GNR, 56
206
GNR, 57
207
Esta percepção do eu concreto, segundo a qual a esfera do exercício da liberdade do ser racional finito se contrapõe a ele como uma parte do
mundo exterior que se diferencia dele mesmo, é explicada por Fichte por um recurso à teoria transcendental da objetividade, desenvolvida na
Wissenschaftslehre de 1794. Fichte evoca, no § 5, apenas o resultado geral de sua exposição: a intuição não é simplesmente receptiva em relação a
um objeto dado previamente, mas produz este objeto. Segundo ele, intuir é, na verdade, produzir. “Esta esfera é posta por uma atividade originária
e necessária do eu, isto é, ela é intuída (angeschaut), e se torna assim um real – como certos resultados da doutrina-da-ciência não podem ser
apropriadamente pressupostos, eu apresento somente aqueles que são necessários aqui. Não se tem a mais leve idéia sobre o que é tematizado na
filosofia transcendental – e, mais propriamente, em Kant – se se acredita que, no intuir, afora aquele que intui e a intuição, haja ainda uma coisa,
talvez uma matéria (Stoff), à qual se dirige a intuição ... Através do intuir mesmo e simplesmente por meio dele surge o intuído, o eu retorna a si
mesmo. E esta ação fornece, ao mesmo tempo, a intuição e o intuído. A razão (o eu) não é, na intuição, de forma alguma passiva (leidend), e sim
absolutamente ativa; ela é, na intuição, imaginação produtiva (produktive Einbildungskraft). Através do intuir, algo é delineado (hingeworfen),
assim como talvez, se se deseja uma metáfora, o pintor lança sobre a superfície a figura completa, e como que antevê (hinsieht), antes que a mão
mais lenta possa imitar seus esboços. Da mesma maneira, é posta aqui a referida esfera.”. No entanto – e nisto reside a verdadeira diferença entre a
consciência comum e a consciência filosófica –, o ser racional não é, no âmbito da vida, consciente de sua própria atividade de produção do
objeto. Para alcançar esta consciência, para poder reconstruir a gênese do mundo segundo os preceitos de um sistema genuinamente idealista – isto
é, atribuindo esta gênese, de maneira originária, à egoidade absoluta –, ele necessita dos meios artificiais projetados pela reflexão filosófica.
“Fichte exprime a diferença entre a produção natural do objeto pelo ser racional e sua aparente independência do mesmo através do contraste entre
pôr (pelo lado do eu puro) e achar (pelo lado do eu empírico).”Zöller, Günter –„Leib, Materie und gemeinsames Wollen als
Anwendungsbedingungen des Rechts (Zweites Haupstück: §§5-7)“ in: Merle, Jean-Christophe(Hg) – Johann Gottlieb Fichte, Grundlage des
Naturrechts , Akad.-Verl. , Berlin , 2001,92-111] Com isso, Fichte caracteriza a forma fundamental da atividade intuitiva-produtiva originária do
ser racional como o “traçar linhas” ou das Linienziehen, o qual é compreendido como raiz comum do tempo e do espaço, a partir da qual estes
seriam obtidos por uma determinação ulterior “Mais ainda: o eu que intui a si mesmo como ativo intui a sua atividade como um traçar de linhas
(Linienziehen). Este é o esquema da atividade em geral, tal como aquele que quer estimular em si mesmo aquela mais elevada intuição vai
encontrar. A linha originária é a pura extensão (die reine Ausdehnung), o comum ao tempo e ao espaço, e da qual os últimos surgem apenas por
diferenciação e determinações ulteriores. Ela não pressupõe o espaço, e sim o espaço a pressupõe; e as linhas no espaço, isto é, os limites daquilo
que nele se estende, são algo inteiramente outro. Da mesma forma, em linhas, ocorre a produção da esfera que é o tema aqui, e ela se torna assim
algo extenso (ein Ausgedehntes).”GNR, 58.
53
por isso, sua identidade. A pessoa somente é o que é, na medida em que a esfera de liberdade
permanece a mesma. A permanência subjetivamente considerada da pessoa corresponde, do lado
objetivo, à permanência de sua esfera de liberdade. A esfera de liberdade estendida espacialmente
e atribuída constantemente à pessoa por si mesma é seu corpo material (materieller Körper)
como o que abrange todas as suas ações livres possíveis. “O corpo (Körper) material deduzido é
posto como âmbito (Umfang) de todas as ações livres possíveis da pessoa , e nada além disso.”208
Este conceito é forjado em estrita relação com o caráter fundamental como ser racional agente.
“Como o descrito corpo (Körper) nada mais é do que a esfera das ações livres, assim é esgotado
tanto o conceito do último através de seu conceito, quanto o seu conceito pelo conceito do último.
A pessoa não pode, a não ser nele, ser uma causa absolutamente livre, isto é, uma causa
imediatamente atuante através da vontade.” 209O corpo é aquela parte do mundo na qual a atuação
da liberdade da pessoa se torna imediatamente eficiente, o que quer dizer que, através da posição
proposital de um fim, a pessoa se torna imediatamente causa de um objeto correspondente a este
conceito do fim, enquanto toda outra eficiência causal orientada por volição é indireta e mediada
através de outras conexões causais que não pelo seu corpo próprio.
O conceito fichteano de Körper, forjado no bojo de uma teoria da ação, estabelece uma
conexão imediata entre a vontade livre de uma pessoa e seu corpo. “Quando um determinado
querer é dado, então se pode concluir uma determinada modificação do corpo que lhe é
correspondente. Inversamente ... a partir de uma dada alteração nele, pode-se, da mesma forma,
concluir seguramente um determinado conceito da pessoa que lhe é correspondente.”210 Não há
nenhum querer dentro da esfera exclusiva de liberdade sem que sua eficiência esteja
imediatamente nesta esfera; e, inversamente, não há nenhuma alteração na esfera de liberdade da
pessoa sem o correspondente conceito desta alteração no querer da pessoa. É a exclusividade da
pessoa na atividade nos limites de sua própria esfera de liberdade que será crucial na discussão
acerca da possível influência na esfera de liberdade por parte de uma outra pessoa.
208
GNR, 59
209
GNR, 59
210
GNR, 59
211
Como esfera exclusiva da exteriorização livre da vontade de uma pessoa, seu corpo não é uma matéria inalterável como tal, mas sua forma
particular modificada, ou as partes da matéria imediatamente postas em movimento pela vontade. O conceito de Körper diz respeito somente aos
membros do corpo de uma pessoa que são móveis independentemente umas das outras. A partir desta articulação do corpo que se refere
imediatamente à vontade da pessoa, pode-se diferenciar a constituição biológica do corpo ou sua organização, que não é, por sua vez, objeto
imediato da vontade. Fichte denomina o corpo articulado (artikulierter Körper), enquanto esfera exclusiva da liberdade da pessoa, Leib. “Um
corpo (Körper), como o que foi descrito, a cujo persistir e identidade nós ligamos o persistir e a identidade de nossa personalidade
(Persönlichkeit), o qual nós pomos como um todo fechado e articulado, e nós nos pomos imediatamente como causa através de nossa vontade, é
aquilo que chamamos nosso corpo (Leib), e assim está provado o que deveria ser provado.”(GNR 59)
212
GNR, 63
54
213
“Também esta transferência (dieses Übertragen) de meu pensamento necessário a uma pessoa fora de mim jaz no conceito da pessoa. Por
conseguinte, eu tenho de atribuir isto à pessoa fora de mim: que, caso ela me ponha como pessoa, ela suponha de mim o mesmo que eu mesmo
suponho de mim e dela; e suponha de mim, ao mesmo tempo, que eu suponha dela o mesmo. O conceito da articulação determinada dos seres
racionais e do mundo sensível exterior a eles são conceitos necessariamente comunitários (gemeinschaftliche Begriffe), conceitos sobre os quais
concordam (übereinstimmen) necessariamente os seres racionais, sem qualquer acordo (Verabredung) prévio, pois em cada um, em sua própria
personalidade (Persönlichkeit), está fundamentada a mesma forma de intuição, e eles precisam ser pensados como tais. Cada um pode pressupor
do outro com fundamento, motivá-lo (ihm anmuten) e recorrer ao fato de que ele tenha os mesmos conceitos sobre estes objetos, tão certo quanto
ele é um ser racional.” GNR, 73
214
“Esta contradição não se deixa extirpar a não ser pela pressuposição de que o outro seja necessitado, já naquela atuação originária, necessitado
como um ser racional, isto é, obrigado (verbunden) pela conseqüência, a me tratar como um ser racional – e, na verdade, que ele seja necessitado
a isso através de mim – portanto, que ele seja, ao mesmo tempo, já naquela primeira atuação originária, na qual eu dependo dele, dependente de
mim; por conseguinte, que já aquela relação (Verhältnis) originária seja uma interação (Wechselwirkung). Mas anteriormente àquela atuação, eu
não sou de maneira nenhuma eu. Eu não me pus, pois a posição de mim mesmo é condicionada através desta atuação, só é possível por meio dela.
Realmente eu devo atuar (wirken). Portanto, eu devo atuar sem atuar, atuar sem atividade.”GNR, 74
215
GNR, 80
216
GNR, 90/91
217
GNR, 90
55
Enquanto esta pergunta não for respondida, aquele princípio não tem, malgrado toda a sua
excelência, nenhuma aplicabilidade e realidade.”218 Com a ampliação do modelo da
Aufforderung/Anerkennung para uma teoria fenomenológica da liberdade, Fichte pretende ter
solucionado, ao deduzir o critério de diferenciação dos “assistidos” pela lei, o problema da
aplicabilidade (Anwendbarkeit) da reciprocidade implícita na moral kantiana a uma comunidade
de seres racionais finitos. Resta a questão da “realidade”, ou seja, do “mecanismo” pelo qual esta
proteção se institucionaliza, questão que se refere à aplicação ou Anwendung do conceito de
direito.
Logo no início do §7219, Fichte esclarece que sua teoria do direito pretende responder à
pergunta pelo acordo entre a liberdade da pessoa e a necessária influência recíproca entre elas.
Para Fichte, a demonstração “se apóia simplesmente sobre a pressuposição de uma tal
comunidade, a qual se funda ela mesma na possibilidade da consciência-de-si. Assim, todas as
conseqüências até aqui são derivadas, através de inferências mediatas, do postulado Eu=Eu, e são
tão certas quanto o mesmo.”220 Com efeito, a questão da possibilidade da autoconsciência se
converte na questão da possibilidade de uma comunidade de seres livre como tais. “Até aqui
revelamos as condições exteriores desta possibilidade. Nós explicamos como, sob esta
pressuposição, as pessoas que estão em influência recíproca e a esfera de sua influência recíproca
– o mundo sensível – têm de ser constituídas (beschaffen sein müsse).” 221 Com a teoria do corpo
articulado e da atuação sobre a esfera de liberdade da pessoa, enquanto extensões do modelo
intersubjetivo do direito, foram apresentadas as condições que Fichte denomina “exteriores” ou
“objetivas” da possibilidade da comunidade jurídica, unificadas na compreensão da relação
jurídica como fundamentada na gênese recíproca da comunidade e da individualidade, ou seja,
em um âmbito de intersubjetividade originária que se conecta com as implicações da
autoconsciência. Deste modo, o modelo interpelação/reconhecimento aparece como fundamento
da relação “arbitrária” em geral: “a toda interação arbitrária de seres livres jaz uma interação
originária e necessária dos mesmos como fundamento, a seguinte: o ser livre necessita, através de
sua simples presença no mundo sensível, sem mais, todo outro ser livre a reconhecê-lo como uma
pessoa. Ele fornece o fenômeno determinado, o outro fornece o conceito determinado.” 222
Toda “relação social” possível é, segundo Fichte, condicionada por uma relação recíproca
de indivíduos mediante sua inteligência – enquanto faculdade de apreender a peculiaridade
fenomênica da auto-posição e de forjar um conceito desta posição – e liberdade, isto é, a
faculdade de responder de maneira não coagida ao conceito desta posição. Tal declaração revela
um potencial ético-inclusivo, implícito na noção de interpelação, na medida em que “ambos estão
necessariamente unificados ... conhecem (erkennen) um ao outro em seu interior”223. Entretanto,
estritamente jurídica permanece a intersubjetividade, na medida em que “a liberdade não possui
nisto o menor espaço para hesitação (Spielraum) ... surge um conhecimento comunitário, e nada
além disso. Ambos conhecem (erkennen) um ao outro em seu interior, mas estão isolados, como
antes.”224 O problema é que, independentemente do prosseguimento efetivo da contraposição dos
indivíduos, esta relação originária é responsável, de maneira talvez não redutível ao caráter
218
GNR, 80/81
219
“Pessoas como tais devem ser absolutamente livres e simplesmente dependentes de sua vontade. Pessoas devem, tão certo quanto elas o são,
estar em influência recíproca e, portanto, não simplesmente dependentes de si. Como ambas as coisas possam subsistir em conjunto, responder a
isso, é a tarefa da ciência do direito (Rechtswissenschaft); e a pergunta que jaz como seu fundamento é esta: como é possível uma comunidade de
seres livres como tais?”[ GNR, 85]
220
GNR, 85
221
GNR, 85
222
GNR, 85/86
223
GNR, 85/86
224
GNR, 85/86
56
“A validade da lei depende, portanto, simplesmente disso: se alguém é conseqüente ou não. Porém, a conseqüência
depende aqui da liberdade da vontade, e não se deixa perceber por que alguém deveria ser conseqüente, se ele não
tem (muß) de sê-lo, tampouco como se deixa perceber, ao contrário, por que ele não deveria sê-lo. A lei teria de
orientar-se à liberdade (Das Gesetz müßte sich an die Freiheit richten). Aqui está, portanto, a linha fronteiriça entre a
necessidade e a liberdade para nossa ciência.”229
Para Fichte, é este tipo de raciocínio, pelo qual se inicia a investigação da aplicação do
conceito de direito, que constitui a passagem do âmbito da liberdade para o da necessidade.
Segundo nossa interpretação, enquanto o âmbito originário do conceito de reconhecimento
definiu a possibilidade da liberdade individual engendrada em sua necessária inserção social
como âmbito a partir do qual se deixa formular a lei do direito como auto-limitação recíproca das
esferas de atuação da liberdade, o problema da aplicação se dirigirá não mais ao escopo desta
dedução da liberdade como tal, mas ao âmbito da necessidade de manutenção segura desta
cláusula de auto-limitação recíproca contida na lei jurídica como condição da comunidade de
seres livre e da consciência-de-si230. Com efeito, com vistas a esta necessidade, se não se deixa
225
GNR, 86
226
GNR, 86
227
GNR, 86
228
GNR, 85
229
GNR, 86
230
A peculiaridade do §7 está em que, apesar das alusões à validade hipotética da lei jurídica até este ponto da exposição, somente nele se deixa
perceber uma passagem entre o âmbito originário do reconhecimento como condição da consciência-de-si e do nexo social em geral para o âmbito
da necessidade de manutenção contínua da comunidade. “foi mostrado que, se um ser racional deve chegar à consciência-de-si ... um outro teria de
57
aduzir um motivo absoluto para que o indivíduo se atenha à limitação de sua liberdade, um
fundamento hipotético, que enuncie a pura e simples manutenção da comunidade como fim, é o
que se procura: “Não se deixa indicar nenhum fundamento absoluto por que o ser racional
deveria ser conseqüente e, de acordo com isso, dar a si mesmo a lei que foi mostrada. Talvez seja
possível aludir a um fundamento hipotético para isso. Então, deve-se imediatamente apresentá-lo:
se uma comunidade absoluta entre pessoas como tais deve ter lugar, cada membro de uma tal
comunidade teria de dar a si mesmo a lei acima.”231 Com efeito, é na finalidade de uma
manutenção contínua da comunidade que reside hipoteticamente232 a motivação para o
comportamento conforme a lei do direito, para um comportamento conseqüente. “Se então
pudesse ser mostrado que um ser racional necessariamente precisaria querer o primeiro, então se
poderia também demonstrar a necessidade da conseqüência postulada. Mas isso não se deixa
demonstrar a partir das premissas apresentadas até aqui” 233, isto é, das premissas vinculadas à
gênese intersubjetiva da individualidade. A validade da obrigatoriedade do direito é um
postulado: deve-se supô-la como necessária para que a comunidade de seres livres subsista;
todavia, não se deixa ainda mostrar por que os seres livres têm necessariamente de querer aquele
fim e por que ele possui uma tal congruência com a conseqüência lógica: no §13 ficará claro que
este motivo é a segurança. “O postulado, segundo o qual a comunidade de seres livres como tais
deve ter lugar continuamente, aparece aqui, portanto, ele mesmo como um tal postulado que cada
um somente pela liberdade poderia prover a si mesmo. Mas se ele não fornece tal postulado a si
mesmo, então não se submete por meio disso necessariamente, ao mesmo tempo, à lei acima.” 234
Pode-se perceber acima que o reconhecimento gera originalmente mais do que simplesmente uma
lei de validade hipotética, mas também um conceito originário de respeito recíproco, que, no
entanto, não é adequado à manutenção da necessidade do vínculo social e que talvez por isso não
tenha sido desenvolvido no quadro de uma teoria do direito voltada a problemas relativos à sua
aplicação235, o que não impede que possa ser compreendido como locus de onde emanaria a
solidariedade social. Um tal elemento solidário do vínculo social somente pode ser
compreendido, do ponto de vista do argumento de Fichte, como uma relação positiva entre as
vontades que é típica da moralidade. Certo é, todavia, que, apesar de todas as alusões à separação
radical entre moral e direito, na passagem do âmbito da liberdade para o da necessidade, Fichte é
capaz de traçar a linha fronteiriça entre direito e moral sem apelar ao problemático conceito de
lex permissiva. “O ser racional não é absolutamente obrigado (verbunden) pelo caráter da
racionalidade a querer a liberdade de todos os seres racionais exteriores a ele. Este princípio é a
linha fronteiriça entre direito natural e moral, e peculiaridade característica de um tratamento
puro da primeira ciência. Na moral, mostra-se uma obrigatoriedade (Verbindlichkeit) em querer
isso. No direito natural, só se pode dizer a cada um que isto ou aquilo vai se seguir à sua ação. Se
ele toma isto para si, ou espera a isto escapar, então não se pode, além disso, lançar mão de
atuar sobre o mesmo (auf dasselbe einwirken müsse) como sobre um ser racional ... Que, porém, depois que a consciência-de-si está posta, sempre
seres racionais precisem atuar sobre o sujeito da mesma de maneira racional, não é posto por meio disso e não se deixa deduzir a partir disso, sem
que seja necessário, como próprio fundamento de prova, a conseqüência, a qual deve ser provada.”GNR, 87
231
GNR, 87
232
“não se pode evidenciar nenhum fundamento absoluto por que alguém deveria tornar a fórmula do direito – limita tua liberdade de tal forma
que o outro ao teu lado também possa ser livre – lei de sua vontade e de suas ações. Assim, deixa-se perceber que uma comunidade de seres livres
como tais não possa subsistir, se cada um não estiver subordinado a esta lei; que, portanto, quem quiser esta comunidade, tem de querer
necessariamente também a lei e que ela tem assim validade hipotética (hypothetische Gültigkeit). Se uma comunidade de seres livres como tais
deve ser possível, então a lei do direito tem de valer (gelten).”[ GNR, 89]
233
GNR, 87
234
GNR, 87/88
235
Este direcionamento dado por Fichte à sua teoria do direito, especialmente à sua doutrina-do-direito, fica claro na seguinte passagem: “O
fundamento de meu direito de coerção é o seguinte: que o outro não se submeta à lei do direito ... O direito de coerção tem seus limites, a
submissão voluntária do outro sob a lei do direito é este limite; qualquer coerção para além deste limite é contrária ao direito. Este princípio
universal é, portanto, elucidativo. Já que nós ensinamos um direito natural real e não meramente formal, trata-se somente da pergunta se e como
este limite na aplicação pode ser encontrado e determinado. Um direito de coerção se introduz, caso um direito originário seja lesado.” GNR,
96/97
58
nenhum argumento contra ele.”236 Poder-se-ia responder a Fichte que ele está completamente
correto, mas que seu conceito de reconhecimento gera inadvertidamente um conceito de respeito
recíproco, que ainda continua a exercer uma função normativa na exposição do direito, mas que,
malgrado isso, poderia, dentro da intenção de expor as condições de aplicação do direito, ter sido
melhor desenvolvido no âmbito de uma teoria intersubjetiva da ética, o que somente ocorre,
entretanto, às custas de uma “hipóstase ética” da intersubjetividade pelo vínculo da teoria da
Aufforderung à doutrina da harmonia preestabelecida das ações237.
Mas a questão de Fichte é separar rigorosamente a vida comunitária sob o direito de uma
relação positiva entre as vontades. “Eu não quero nada mais do que estar com ele em comunidade
de tratamento conforme a razão: a maneira de proceder deve ser recíproca. Nós queremos ambos
nos tratar desta forma ... Eu não pus que eu queira tratá-lo como ser livre, mesmo quando ele não
me tratar desta maneira; e tampouco que eu queira tratá-lo não como um ser livre, mas da
maneira como ele me trata.”238Segundo Fichte, não há nenhum motivo absoluto ou
incondicionado que poderia determinar o ser racional ao reconhecimento continuado do outro
como ser racional. A resolução em continuar o tratamento do outro racionalmente, limitando a
própria liberdade pela possibilidade da liberdade do outro, a manutenção do respeito à
humanidade, não pode, para Fichte, ser fundamentada em obrigações de cunho moral, devendo
ser condicionada por outro tipo de circunstâncias. Muito embora uma ligação com o conceito
moral de respeito pela humanidade como fim em si pudesse ser aqui engendrada, de maneira o
reconhecimento pudesse ser compreendido como relação originária que não se reduz
exclusivamente ao mundo jurídico, Fichte desvincula totalmente o conceito de reconhecimento
do âmbito da razão pura prática, insistindo em compreender a manutenção do vínculo jurídico
como essencialmente subserviente a circunstâncias de coerência teórica do “ser racional consigo
mesmo”. No entanto, um tal vínculo não representaria propriamente uma contaminação do
conceito de direito por considerações morais, não afetando a aplicação do conceito de direito.
Como o que realmente se impõe a Fichte como problema crucial de uma teoria do direito é o
problema da “realização” ou “aplicação”, considerar o nexo moral pertencente ao conceito de
reconhecimento poderia, eventualmente, levar à dependência da manutenção da comunidade
jurídica à “boa vontade”.
Sem limitação recíproca não é possível uma comunidade de seres livres enquanto tais.
Todavia, o estabelecimento desta condição e a subsistência da relação de direito, assim como a
validade da lei jurídica, não se encontra no poder do indivíduo que quer tal lei, e sim necessita de
um gemeinschaftliches Wollen, de um querer comunitário, no qual está incorporada a vontade
conjunta de todos os envolvidos que querem a validez da lei jurídica. “Mas até mesmo a
condição, a comunidade de seres livres, é novamente condicionada por um querer comunitário
(gemeinschaftliches Wollen). Ninguém pode, por sua simples vontade, realizar (realisieren) uma
comunidade com o outro, se o outro não possui esta mesma vontade e não se submete, de acordo
com a mesma, à lei do direito, que é por isso condicionada.” 239 A livre comunidade recíproca dos
seres livres somente pode surgir, se cada um dos envolvidos se submete à limitação de sua
236
GNR, 87/88
237
Tornou-se impossível, neste trabalho, abordar este problema de como Fichte é conduzido, na Sittenlehre, a uma hipóstase ética da
intersubjetividade graças a uma absorção da teoria leibniziana da harmonia preestabelecida. Para mais indicações neste sentido, ver: Baumanns,
P. – Fichtes ursprüngliches System. Sein Standort zwischen Kant und Hegel, Stuttgart, 1972 Düsing, E. –Intersubjektivität und Selbstbewußtsein:
behavioristische, phänomenologische und idealistische Begründungstheorien bei Mead, Schütz,Fichte und Hegel , Köln, 1986 –„Modelle der
Anerkennung und Identität des Selbst(Fichte, Mead, Erikson)“ “,in: Schild,Wolfgang(Hg)– Anerkennung: Interdisziplinäre Dimensionen eines
Begriffs, Ein Synposium,Königshausen & Neumann,Würzburg, 2000,99-127 Hösle, Vittorio – „Intersubjektivität und Willensfreiheit in Fichtes
„Sittenlehre““, in: Kahlo, M., Wolff, E. A u. Zaczyk, R. (Hrsg.) – Fichtes Lehre vom Rechtsverhältnis, Frankfurt am Main, 1992, 29-52
238
GNR, 88/89
239
GNR, 89/90
59
liberdade segundo a lei do direito. “Se o outro não tem esta vontade – e, o que é uma prova
segura disso, trata o primeiro em oposição à lei do direito – então o primeiro é liberado
(losgesprochen) da lei pela própria lei. Ela somente tinha validade sob a condição do
comportamento conforme o direito por parte do outro. Esta condição não é dada, e assim a lei não
é, segundo sua própria expressão, aplicável a este caso. E o primeiro, se continua a não haver lei,
como é aqui pressuposto, é remetido pura e simplesmente à sua própria vontade: ele tem um
direito contra o outro.”240 Se por acaso um dos indivíduos que estão um para o outro em relação
jurídica “rescinde” ou interrompe, de maneira unilateral, a comunidade de liberdade recíproca, na
medida em que trata um parceiro jurídico de maneira contrária à lei jurídica, então, segundo
Fichte, a lei do direito perde, para aquele que foi lesado e em relação ao que a infringiu, a
validade. Isto ocorre porque a lei do direito é limitada à condição de um querer comunitário dos
envolvidos e vale somente para os participantes que atuam um sobre o outro segundo a
normatividade da lei jurídica: aquele que infringe a lei do direito através de uma livre atuação
sobre um outro perde também a proteção da lei jurídica contra a atuação não livre de outros.
“Assim como seu tratamento de mim não se conforma ao meu conceito, da mesma forma o
próprio conceito deixa de vigorar (hinfällt); e a lei que eu prescrevo a mim mesmo através dele, a
obrigatoriedade (Verbindlichkeit), a qual eu estabeleço comigo mesmo, deixa de valer. Eu não
sou em nada mais por ela detido, e dependeria novamente simplesmente de minha livre
resolução.”241
Com efeito, tudo o que se pode atestar como condição de possibilidade da consciência-de-
si tem de ser aceito como fato dado no e com o conceito de consciência-de-si: se algo como a
240
GNR, 89/90
241
GNR, 88/89
242
GNR, 91
243
GNR, 91
60
consciência-de-si é posto, então precisa estar posto tudo o que não se deixa pensar sem a
consciência-de-si. Depois de deduzir a relação jurídica como condição da consciência-de-si nos
§§1-4, e as condições de aplicabilidade deste conceito nos §§5-7, Fichte pretende considerar a
situação inicial de onde tem de partir uma doutrina-do-direito ao traçar, no §8, uma Einteilung
der Rechtslehre, uma divisão para a qual a própria introdução da obra já atentara244. “O postulado
coexistir (das postulierte Beisammenstehen) da liberdade de vários seres somente é possível, no
entanto, – e aqui se compreende continuamente (beständig), e não talvez simplesmente aqui e ali,
de maneira contingente – por meio disso: que cada ser livre torne para si mesmo lei a limitação
de sua liberdade pelo conceito da liberdade de todos os demais...”245 Para Fichte, uma doutrina-
do-direito somente se deixa desenvolver se se pode explicar, por um lado, em que consistem as
condições da liberdade ou o que significa dizer que uma pessoa é livre; e, por outro lado, o que se
segue da circunstância de que a limitação da própria liberdade pela representação da liberdade
das demais pessoas tem de ser uma lei. Da primeira questão se ocupa a teoria do conceito de
Urrecht ou direito originário, da segunda o conceito de direito coercitivo ou Zwangsrecht.
244
“No presente escrito, o conceito de direito foi deduzido (deduziert), simultaneamente com seu objeto, como condição da consciência-de-si. Ele
é derivado (abgeleitet), determinado e sua aplicação assegurada, como é exigido de uma ciência real. Isto aconteceu nos capítulos primeiro e
segundo desta investigação. Ele é determinado ulteriormente, e, nas doutrinas (Lehre) dos direitos civis (Staatsbürgerrechte), à qual as
investigações sobre o direito originário (Urrecht) e o direito coercivo (Zwangsrecht) servem de preparação, é atestada a maneira como ele
precisaria ser realizado .”[ GNR, 11]
245
GNR, 92
246
GNR, 94
247
No entanto, não é apropriado dizer, mesmo que Fichte tenha desenvolvido sua teoria de direito originário em grande proximidade com sua
concepção do reconhecimento, que esta concepção pertença àquela teoria. O reconhecimento é muito mais “o resultado de uma reflexão que se
apóia no conceito de direito originário desenvolvido por Fichte, a fim de interpretá-lo em seguida sob condições sociais, isto é, sob a
pressuposição da existência de outros seres livres.” Horstmann, Rolf-Peter – „Theorie des Urrechts(§§8-12)“, in: Merle, Jean-Christophe(Hg) –
Johann Gottlieb Fichte, Grundlage des Naturrechts , Akad.-Verl. , Berlin , 2001,113-123, 121
248
GNR, 137
61
lei jurídica tem lugar um “estado natural” de uma absoluta insegurança. Reformulado segundo o
conceito de Urrecht, “o objetivo (Zweck) de estar em comunidade de liberdade com uma pessoa
só é alcançável sob a condição de que a própria pessoa tenha dado a si mesma a lei de respeitar a
liberdade do outro ou seu direito originário”249 Portanto, a relação jurídica efetiva, engendrada
“conseqüentemente” no reconhecimento, é condicionada pela resolução contínua, comum aos
envolvidos, de permanecer em uma livre comunidade uns com os outros. “Ao meu
comportamento em relação àquele que não deu a si mesmo esta lei, ela não é de maneira
nenhuma aplicável, pois o fim em nome do qual eu deveria respeitar seus direitos originários
perde sua vigência (hinwegfällt).” 250 Não há fundamento absoluto para tornar a lei jurídica lei
para si mesmo. Entretanto, sem que todos se submetam a esta lei, não poderia existir uma
comunidade de seres livres. Mas o fato de que a exigência de “entrar num estado civil” seja um
imperativo hipotético não se reverte em um completo voluntarismo com respeito à observância
do direito. Em relação a um transgressor se está desobrigado e se tem contra ele um direito de
coerção. Com efeito, com a discussão, empreendida a partir da perspectiva performativa dos
envolvidos, em torno do Zwangsrecht e da conexão com a instituição do estado, “a possibilidade
daquilo que deve ser determinado pelo conceito de direito e que deve ser julgado (beurteilt)
segundo ele, está provada: o recíproco atuar (das gegenseitige Einwirken) de seres livres e
racionais uns sobre os outros. Está mostrado que tais seres podem, sem prejuízo do caráter de sua
liberdade, atuar uns sobre os outros” 251
249
GNR, 94/95
250
GNR, 94/95
251
GNR, 91
252
GNR, 8/9
253
GNR, 90
254
“A quantidade (Quantität) da aplicabilidade desta lei é indicada de maneira determinada. Em geral, ela vale somente sob a condição – e
somente para o caso – de que uma comunidade, um recíproco atuar entre seres livres como tais, tenha lugar, sem prejuízo de sua liberdade. Como,
no entanto, o fim desta mesma comunidade é condicionado, mais uma vez, pelo comportamento daquele com o qual alguém quer entrar em
comunidade, então esta sua validade para a pessoa individual é novamente condicionada por isso: se o outro se submete à mesma ou não, onde ela,
segundo o ajuizamento, vale justamente pelo seu não-valer (Nichtgelten), e a pessoa que foi tratada de maneira contrária ao direito é investida do
direito ao tratamento arbitrário do agressor (den rechtswidrig Behandelten zur willkürlichen Behandlung des Angreifers berechtigt).” GNR, 91
255
Sobre a aplicação do direito de coerção, Fichte diz: “é claro, a partir da dedução do direito de coerção que foi fornecida acima, em qual caso o
mesmo possa ser introduzido, a saber: quando uma pessoa lesa os direitos originais de outra.”GNR, 95 Especificamente sobre o limite desta
aplicação: “...poder-se-ia determinar para todo caso o limite da coerção jurídica, ele se estenderia até a completa reparação e ressarcimento de
prejuízos, até o ponto em que ambas as partes fossem reconduzidas ao estado no qual se encontravam anteriormente à investida injusta. E, assim,
o direito de coerção estaria determinado, pois, exatamente, segundo a qualidade e a quantidade, através do dano sofrido.” GNR, 97 “O direito de
coerção é infinito e não tem qualquer limite ... na medida em que talvez o outro não tome a lei como tal em seu coração e não se submeta a ela.
Mas tão logo ele a assume, acaba o direito de coerção, já que a duração da mesma se fundamenta apenas na ilegalidade (Gesetzlosigkeit) do outro;
e qualquer coerção ulterior”GNR, 97/98
62
não; eu penso a mim mesmo, em geral, sob ela: eu não me penso sob ela neste caso determinado.
De acordo com o primeiro, eu ajo de maneira justa (handle ich rechtlich), sob o comando da lei,
e tenho por isso um direito; de acordo com a última, tenho a permissão (darf) de atacar sua
liberdade e pessoalidade, e meu direito é, por isso, um direito de coerção (Zwangsrecht).”256
Portanto, Fichte compreende a lei do direito como Erlaubnisgesetz, lex permissiva capaz de
determinar tanto o caso de sua aplicação, como o caso de sua não aplicação. Esta possível
isenção, que é determinada em conjunto com a aplicação pela lei do direito, é um componente
essencial da própria lei, a qual tem validade mesmo através de sua não validade.
256
GNR, 94/95
257
GNR, 136
258
GNR, 136/137
259
GNR, 136
63
tal forma: “isto que deve provar a legalidade (Rechtslichkeit) e a capacidade jurídica
(Rechtsfähigkeit) do outro – sua subordinação à lei – prova apenas em que medida aquilo que
deve ser provado já está pressuposto, e não possui nenhuma validade nem significado, se não é
pressuposto.”260 Neste registro, a questão que Fichte pretende responder é por que, todavia, deve
poder ser possível uma comunidade que se baseia no hábito de fazer promessas, sem que fosse
necessário para isso a coerção, isto é, em que a relação jurídica fosse condicionada por confiança.
“É pressuposta, neste acordo, a confiança de cada um no outro de que o mesmo se aterá à sua
palavra ... que ele faça disso para si uma lei inviolável”261 O problema que permanece num
princípio como esse é a contingência na manutenção da comunidade.
Torna-se mais clara a inversão de fatores pretendida por Fichte: acordos permanecem
problemáticos enquanto não está reciprocamente claro o preenchimento da condição de que cada
um tenha feito da lei do direito a lei inviolável de sua vontade. “Uma tal segurança somente tem
lugar sob a condição de que para ambos a lei do direito seja a lei inviolável de sua vontade, e se
ambos não são capazes de depreender reciprocamente esta convicção um do outro, então eles não
acertam nenhum acordo.”262A efetividade jurídica de um acordo não está condicionada a uma
intenção prévia de entrar em acordo, e nem a uma promessa de se ater futuramente à lei do
direito, mas unicamente à certeza da subordinação das vontades a esta lei. Como não se pode
coagir a confiança nem a crença na probidade, permanece sempre a insegurança a respeito da
disposição do parceiro em se ater à sua promessa. Por isso, conclui Fichte, uma tal
fundamentação para um estado jurídico seria insuficiente. “A segurança de ambos não deve
depender do acaso, mas de uma necessidade que se compara à necessidade mecânica, da qual não
seja possível uma exceção.” 263 Fichte faz então uma declaração que se pode interpretar, em
conexão com a ênfase performativa da exposição, como se referindo à ligação entre
reconhecimento e direito de coerção:
“A possibilidade da relação jurídica entre pessoas no âmbito do direito natural é condicionada por fidelidade e
crença mútuas (Treue und Glauben). A crença e a fidelidade mútuas não são, no entanto, dependentes da lei do
direito: elas não se deixam coagir, nem há um direito a coagi-las. Não se pode coagir alguém a ter uma crença
interior na minha retidão, porque esta não se exterioriza, e jaz, portanto, fora da esfera do direito natural. Mas eu não
sou capaz nem mesmo de coagir alguém a exteriorizar sua desconfiança para comigo.”264
Ater-se à ênfase performativa da argumentação permite ver que Fichte induz muitos
comentadores à interpretação desta passagem simplesmente como uma crítica à anteposição de
uma promessa dos envolvidos em se manterem atentos aos preceitos fornecidos pela lei do
direito265 em relação à instituição do estado jurídico. Para Kaufmann, por exemplo, apesar da
declaração categórica, Fichte estaria aqui criticando a noção de que a confiança recíproca seria
uma condição do estado jurídico. No entanto, há que se atentar ao fato de que Fichte oferece a
sentença como um “resultado” da argumentação anterior, e justamente aqui se torna clara, através
da remissão ao reconhecimento, a inversão de fatores que ele pretende. Justamente porque crença
e confiança, isto é, a inteligibilidade originária de uma relação positiva entre as vontades
260
GNR, 137
261
GNR, 136/137
262
GNR, 137
263
GNR, 137
264
GNR, 138
265
Ver principalmente Kaufmann, Matthias – „Zwangsrecht(§§13-16)“, in: Merle, Jean-Christophe(Hg) – Johann Gottlieb Fichte, Grundlage
des Naturrechts , Akad.-Verl. , Berlin , 2001, 125-137 Köhler, M. – „Zur Begründung des Rechtszwangs im Anschluß an Kant und Fichte“, in:
Kahlo, M., Wolff, E. A u. Zaczyk, R. (Hrsg.) – Fichtes Lehre vom Rechtsverhältnis, Frankfurt am Main, 1992, 93-126Maesschalck, Marc – Droit
et creation sociale chez Fichte : une philosophie moderne de l'action politique , Ed. de l'Inst. Supérieur de Philosophie , Bibliothèque
philosophique de Louvain , Louvain-la-Neuve , 1996Maus, Ingenborg – „Die Verfassung und ihre Garantie: das Ephorat (§§ 16, 17 und 21)“,
in: Merle, Jean-Christophe(Hg) – Johann Gottlieb Fichte, Grundlage des Naturrechts , Akad.-Verl. , Berlin , 2001, 139-158
64
ocasionada pela expectativa mútua de comportamento, estão fora do âmbito do direito natural,
não podem constituir a base de sustentação e manutenção de uma comunidade política de seres
livres, e a lei jurídica somente recebe sua aplicação efetiva como lei de coerção. Esperamos poder
ter justificado a tese de que o reconhecimento, enquanto âmbito intersubjetivo originário,
fundamento da relação social em geral, quer seja ela conforme ou contrária ao direito – um
âmbito que simplesmente torna possível a contraposição de seres racionais como sujeitos livres
que reconhecem a necessidade de uma auto-limitação recíproca da liberdade em favor do outro,
isto é, o conceito de respeito mútuo, como fundamento de sua própria liberdade e individualidade
– é o fundamento da relação jurídica enquanto tal, mas, mais que isso, ele é responsável também
pelo estofo de inteligibilidade e geração mútua de expectativas de comportamento unicamente
mediante o qual há sentido em se falar de tratamento arbitrário de um pelo outro, isto é, de quebra
da obrigatoriedade da lei. Se é assim, é o próprio reconhecimento que, ao criar este estofo prévio
de “fidelidade e crença”, engendra o escopo de aplicação da lei do direito como lei de coerção: o
direito tem de funcionar como um meio para restaurar este nexo originário ao menos em seus
aspectos exteriores, justamente aqueles que caem sob a alçada do direito, com a finalidade de
manter estáveis as condições sob as quais a comunidade de seres livres subsiste. A função do
direito positivo-coercitivo é – e nisto reside sua validade hipotética – tornar efetivo o conceito de
respeito recíproco, cuja gênese se encontra no processo de reconhecimento, ao menos em um
nexo estritamente exterior. A visão de Kaufmann se torna insustentável, porque Fichte não
considera que fidelidade e crença sejam uma ficção, ou mesmo que sejam algo que somente pode
surgir num estado jurídico, mas sim que ela “desaparece” ou “é perdida”. “Tão logo confiança,
crença entre as pessoas, que vivem umas com as outras, foi perdida, segurança recíproca e toda a
relação jurídica entre elas se tornou impossível.” 266Claro que o retorno a uma situação onde as
interações têm de valer como se existisse uma plena confiança recíproca somente é possível no
quadro de um aparato legal público-coercitivo, já que “uma vez perdidas, confiança e crença não
podem ser restabelecidas”267, ou seja, somente podem ser indubitavelmente restabelecidas no
contexto exterior da simples coerção jurídica. Fichte deixa claro que a crença e a confiança
recíproca constituem, enquanto tais, um estado psicológico internamente fundado e
“moralmente” instituído quanto à expectativa de um comportamento positivo do outro. “Pela falta
de fundamento (Von dem Ungrunde) que constitui a desconfiança recíproca, as partes não podem
ser convencidas, na medida em que uma tal convicção somente poderia ser construída, antes de
toda condescendência e fraqueza, numa boa vontade” 268 Mas um estado de coisas onde todos
agem na certeza de que devem poder confiar nos outros, este estado é efetivado como estado
jurídico. Não é difícil ver que inteligibilidade no que concerne a uma motivação de confiança
fundada na expectativa de um comportamento adequado tem sua raiz no conceito de respeito
recíproco, ainda mais quando é aproximada ao âmbito moral. Para Fichte, o nome que se convém
dar a este estado de uma “confiança” exteriormente constituída é segurança269, o último fim-
término (der letzte Endzweck) oferecido ao indivíduo pela lei270, a finalidade da vida em
266
GNR, 138
267
GNR, 138
268
GNR, 138
269
“Se ... um tal dispositivo, atuante com uma necessidade mecânica, pudesse ser encontrado, através do qual, a partir de uma ação contrária ao
direito, resultaria o contrário de seu fim, então a vontade seria necessitada, por um tal dispositivo, a somente querer o que é conforme o direito.
Através deste expediente (Anstalt), após ter sido perdida a confiança e a crença, a segurança seria restabelecida, e a boa vontade seria tornada
prescindível para a realização exterior do direito ... Um dispositivo como o descrito se chama lei coerciva (Zwangsgesetz).”[ GNR, 140/141]
270
“o último fim término (der letzte Endzweck) fornecido a mim através da lei é segurança recíproca. Nele reside tanto o fim de que os direitos
permaneçam por mim inviolados, quanto, e no mesmo grau, o fim de que os meus permaneçam ilesos diante dele. E, enquanto ambos não forem
da mesma maneira fins da minha vontade, a minha vontade é injusta (unrechtlich), e eu sou inapto para uma relação segura e pacífica.”GNR,
142/143
65
comunidade e o fundamento do postulado que diz que o ser humano deve querer viver em
comunidade271.
O fato de que a experiência de ruptura se vincula a uma relação positiva entre as vontades
associada a uma expectativa de comportamento, a qual Fichte não tem como entender a não ser
apelando aos conceitos tradicionais da moral273, fica claro quando Fichte retoma a questão no
§14, associando à impossibilidade de se extorquir confiança a impossibilidade de coagir um ser
humano a ter boa vontade. A isso se soma a ênfase em compreender que a segurança, esta forma
juridicamente restabelecida da confiança, não se refere à “interioridade”. “Nenhum dos dois tem
a ver com a boa vontade do outro em si, segundo a sua forma. Cada um se encontra, neste mérito,
diante do tribunal de sua própria consciência.” 274 Juridicamente, não importa a ninguém a boa
vontade do outro, mas sim que ele determine sua liberdade de tal forma que, no âmbito da
exterioridade, pareça que ele age motivado por uma boa vontade. “Cada um quer – e tem o direito
de querer – que somente resultem da outra parte aquelas ações que sucederiam, se ele possuísse
uma vontade permanentemente boa. Se esta vontade realmente está presente não é a questão:
cada um somente pode fazer reivindicação à legalidade(Legalität) do outro, mas de maneira
nenhuma à moralidade (Moralität).”275 É somente este comportamento conforme ao dever que eu
tenho direito de reivindicar juridicamente e “a liberdade da boa vontade permanece intocada – e
em sua inteira dignidade – pela lei coercitiva.”276 Fichte permanece um kantiano pelo resgate da
tese de que o direito possa e tenha a força de se fazer valer sem recurso à boa vontade ou à
consciência da obrigatoriedade de todos.
271
“liberdade jurídica recíproca e segurança devem ter o domínio, de acordo com a lei do direito ... Aquele fim tem que ser então realizado por
aquele através do qual ele unicamente pode ser realizado segundo uma regra, e esta é somente a lei coercitiva.”GNR, 141
272
Zum ewigen Frieden, VIII 366
273
Para pensar uma relação positiva entre as vontades na forma de expectativas “originárias” de comportamento intersubjetivamente engendradas,
Fichte não possui nenhum outro arcabouço conceitual a não ser os conceitos tradicionais da moral. Eis porque, sugestivamente, a educação, um
paradigma de relação intersubjetiva que é condição da autoconsciência, é aproximado da moral. A hipótese de “uma moralidade generalizada
(durchgängige Moralität)” fica descartada para o gênero homem “a partir do fato de que ele precisa ser educado para a moralidade e tem que se
educar a si mesmo; porque ele não é moral por natureza, mas somente através do próprio trabalho deve se tornar apto a isso” GNR, 147
274
GNR, 139
275
GNR, 139
276
GNR, 141
277
“Todavia, não pode e não deve ser encontrado um dispositivo (Veranstaltung), segundo o qual as ações, que não devem suceder, fossem
inibidas por uma mecânica violência natural. Isto é em parte impossível, pois o homem é livre, e por isso mesmo pode resistir a uma violência
física, ou mesmo superá-la; em parte, contrário ao direito, pois, por meio disso, o homem, no âmbito do conceito de direito, seria transformado
numa simples máquina ... O dispositivo a ser encontrado teria de se dirigir à própria vontade, ser capaz de necessitá-la, ao se determinar a si
mesma por si mesma, a não querer nada a não ser o que pode subsistir com a liberdade conforme a leis.”GNR, 139
66
forma erigido que, do querer de todo fim não conforme o direito, resultasse necessariamente – e
segundo uma lei continuamente eficaz –, então cada vontade contrária ao direito se aniquilaria:
justamente porque se quereria algo, não se poderia querê-lo. Cada vontade não conforme ao
direito seria o fundamento de sua própria aniquilação, assim como a vontade é, em geral, o
fundamento de si mesma ....”278 Apenas neste caso, através de uma “lei coercitiva que predomina
com necessidade mecânica”279, cada um dos envolvidos tomaria consciência de que “a segurança
do outro com respeito a mim se torna a minha própria segurança.”280
Para Fichte, o fato de que alguém esteja contra o direito e, por isso, fora da alçada do
mesmo, fornece a justificativa originária da pena, sua vontade se torna então uma vontade
privada que não mais concorda com a vontade comum. “A tarefa ... que nós esperamos resolver
através do conceito de uma comunidade (durch den Begriff eines gemeinen Wesens), foi a
seguinte: realizar um poder, através do qual, entre pessoas que vivem junto umas das outras, o
direito, ou aquilo que elas todas necessariamente querem, possa ser obrigado (erzwungen).”281 O
problema de encontrar aquele que unicamente é capaz de exercer a coerção e aplicar penas é o
que leva à teoria fichteana do estado282 e se caracteriza como tarefa não só desta disciplina, mas
da filosofia do direito como um todo283: segundo Fichte, deve-se negar terminantemente a
possibilidade de que aquele particular que foi lesado possa exercer a coerção e aplicar a pena284.
Para que esta penalização seja possível de uma forma apropriada e jurídica, faz-se necessária uma
comunidade política. “O objeto da vontade comum (der gemeinsame Wille) é a segurança
recíproca; mas, segundo a pressuposição – na medida em que não tem lugar nenhuma
moralidade, mas somente amor de si (Eigenliebe) – o querer da segurança do outro parte, em
cada indivíduo, do querer de sua própria segurança ... Nós podemos exprimir isto resumidamente
na seguinte fórmula: cada um subordina o fim comum ao seu fim privado.”285Sem a comunidade
política, a coerção permanece, segundo Fichte, juridicamente problemática. Por outro lado, em
sentido estrito, não há, para ele, direito natural, uma vez que relações jurídicas entre seres
humanos somente são possíveis sob leis positivas de uma comunidade: “não é possível nenhum
direito natural ... nenhuma relação jurídica entre pessoas, a não ser numa comunidade (in einem
278
GNR, 139/140
279
GNR, 143/144
280
GNR, 143/144
281
GNR, 148
282
Para Fichte, o meio somente pode ser encontrado pela unificação da vontade dos contraentes, que devem querer que a reparação recíproca,
providenciada pela lei jurídica, seja exercida por um poder irresistível. “Pergunta-se como poderia ser introduzido um tal ordenamento de coisas ...
exige-se um poder coercitivo, que penalize de maneira inelutável o agressor (eine zwingende, den Angreifer unwiderstehlich bestrafende Macht).
Através de quem deve ser primeiramente erigido um tal poder ? ... Ele é posto como meio para a consecução da segurança recíproca, quando
confiança e crença não têm mais lugar, e em mais nenhuma outra consideração ... somente aquele que quer aquele fim poderia querer, de acordo
com isso, aquele poder; porém, este tem de querê-lo também necessariamente. Agora estão os contraentes postos, os quais querem o fim. Então,
são eles, e somente eles, os que podem querer o meio. No querer deste fim, e somente nele, sua vontade está unificada: ela tem também, portanto,
que ser unificada no querer do meio, isto é, eles precisam fechar entre si um contrato para a instituição de uma lei de coerção e de um poder
coercitivo.” GNR, 144/145 A aplicação da lei coercitiva só é possível numa comunidade onde cada particular tivesse tanto poder quanto direito,
sem o que a coerção permaneceria problemática. “Assim, um tal contrato ... somente poderia ser realizado sob a condição de que o que foi lesado
sempre fosse o superior em poder (der Übermächtige) – mas somente até o limite determinado pela deduzida lei coercitiva – e perdesse todo o
poder, onde ele o tivesse alcançado; ou, segundo a fórmula apresentada acima, que cada um tivesse tanto poder (Gewalt) quanto direito. Mas isso
somente se dá, como vimos acima, numa comunidade (in einem gemeinen Wesen). Portanto, não é possível nenhuma aplicação da lei coercitiva, a
não ser numa comunidade (in einem gemeinen Wesen). Além disso, a coerção é sempre somente problematicamente conforme ao direito e, por
isso mesmo, a aplicação efetiva da coerção é sempre injusta, como se existisse um direito categórico a isso.” GNR, 146/147
283
“Portanto, é tarefa do direito estatal (Staatsrecht) – e, segundo nossa prova, da filosofia do direito como um todo – encontrar uma vontade da
qual seja simplesmente impossível que ela seja um outra que não a vontade comum (der gemeinsame Wille) ... ou encontrar uma vontade, na qual
vontade privada e vontade comum estejam unificadas sinteticamente.”GNR, 149
284
“se a execução do direito de coerção pelo próprio lesado é possível ou não, depende ... da resposta à pergunta se um direito natural
propriamente dito é possível, na medida em que por meio disso deve ser designada uma ciência da relação de direito entre as pessoas fora do
estado.”GNR, 99/100 “... e, para se convencer a si mesmo da evidência desta doutrina, pertence também que se proporcione uma determinada
percepção da impossibilidade da execução do direito de coerção pelo próprio lesado, a qual foi aqui demonstrada.” GNR, 100
285
GNR, 148
67
gemeinen Wesen), e sob leis positivas.” 286 A natureza humana é de tal forma identificada com a
suposição de um “egoísmo universal”287 que daí é derivada a necessidade do direito e de sua
efetivação no aparato coercitivo das leis públicas de uma comunidade. Mas, para Fichte, o que se
perde em direito natural, se obtém novamente com lucro, na medida em que “o próprio estado se
torna o estado de natureza do homem, e suas leis não devem ser nada além do que o direito
natural realizado.”288
* * *
286
GNR, 147
287
“A segurança dos direitos de todos é querida somente pela vontade concordante de todos, pela concordância desta sua vontade. Somente acerca
disso todos concordam, pois em todo o restante seu querer é particular e diz respeitos aos fins individuais. Nenhum indivíduo, nenhuma parte dá –
de acordo com a pressuposição de um egoísmo universal, segundo a qual é computada a lei coercitiva – a si mesma este fim, mas somente todos
uns com os outros.”[ GNR, 149]
288
GNR, 147
289
ver Kersting, Wolfgang – „Die Unabhängigkeit des Rechts von der Moral (Einleitung ): Fichte Rechtsbegründung und „die gewöhnliche
Weise, das Naturrecht zu behandeln““ in: Merle, Jean-Christophe(Hg) – Johann Gottlieb Fichte, Grundlage des Naturrechts , Akad.-Verl. , Berlin
, 2001,21-37
68
290
Siep vê nesta ruptura um retorno a Hobbes, na medida em que Fichte passa a pressupor que não se encontra no indivíduo nenhuma moralidade,
mas somente amor próprio. Segundo Siep, entretanto, que a vontade de auto-conservação se contrapõe à livre auto-limitação não se deixa deduzir
nem do conceito de vontade, nem imediatamente como condição da consciência-de-si. Siep, Ludwig – „Einheit und Methode von Fichtes
„Grundlage des Naturrechts““, in: Siep, Ludwig–Praktische Philosophie im deutschen Idealismus, Frankfurt am Main, 1992, 41-64, 55. Para
Siep, a ruptura que identificamos a partir do §7 deixa-se dissipar, se se compreende o Naturrecht como baseado num método de apresentação de
experiências da consciência, de maneira que a conexão entre livre auto-limitação, egoísmo universal e lei de coerção garantida pelo estado possa
ser compreendida sem a tese de uma ruptura da exposição e recaída no método “pré-transcendental” do direito natural, isto é, o abandono da
dedução das condições de possibilidade da consciência-de-si e do ponto de vista da consciência agente em nome de pressuposições concernentes à
antropologia, como a tese de um egoísmo universal. Para nossa compreensão do direito natural de Fichte, uma tal interpretação é, sem dúvida,
marcante, principalmente ao auxiliar na manutenção da unidade da obra. Entretanto, não nos parece ir contra a tese de que a redução jurídica do
conceito de reconhecimento em Fichte acaba por limitar as potencialidades ético-intersubjetivas do conceito de interpelação.
291
GNR, 138
292
GNR, 85/86
69
compreensibilidade seja engendrado pelo – ou melhor, seja uma outra designação para o –
reconhecimento recíproco, compreendido agora não em sua limitação jurídica, mas na plenitude
de seu potencial inclusivo como resposta à interpelação293. Como o próprio Fichte coloca, este
âmbito não pode ser coagido, ele é originariamente engendrado como condição da
“individualização”. Decerto ele pode ser quebrado, e é nesta base que Fichte desenvolverá sua
teoria do Zwangsrecht e sua teoria do contrato; ou seja, aquele âmbito de inteligibilidade mútua e
a manutenção de expectativas de comportamento originariamente geradas, no qual se fundamenta
a possibilidade do direito, é função do próprio direito restaurar: se aquela situação “moral
altruísta” ou não coagida de respeito mútuo e de plena consciência da dignidade do outro como
ser livre, que é condição da minha própria auto-estima como ser racional livre e responsável e
também de uma possível “solidariedade social”, não pode ser restaurada como tal, ao menos sua
expressão exterior, que dá sustentabilidade à continuidade das relações entre arbítrios, pode ser
mantida por coerção: a segurança. Obviamente, de uma perspectiva sistemática, poder-se-ia dizer
que aquela componente não-jurídica do reconhecimento mútuo seria o objeto da teoria da ética.
Mas o problema é que ela é co-originária ao fundamento do direito como condição da
consciência-de-si, isto é, é engendrada numa relação intersubjetiva de reconhecimento recíproco.
Se é assim, fica difícil entender como, no Naturrecht, apesar dos problemas relativos à
determinação da aplicabilidade do conceito de direito de maneira totalmente independente da
moral, Fichte não desenvolveu seu conceito de reconhecimento em uma relação intersubjetiva
originariamente inclusiva, em que os sujeitos se colocam imediatamente nas perspectivas
intercambiáveis de obrigado e obrigante, como formadores participativos da individualidade do
outro, um âmbito que poderia ser admitido tanto como elemento fundacional do nexo normativo
da vida político-jurídica, quanto como fundamento de nichos de uma vida social solidária e
inclusiva, quanto ainda da necessidade de que o direito seja possível enquanto “idéia de uma
coerção geral e recíproca”. O processo de reconhecimento recíproco como processo de
engendramento de uma “consciência imediata” da dignidade do outro como ser racional
responderia também pela formação intersubjetiva e mútua de identidades concretas, unidas na
determinação geral e institucionalizada da pessoa, mas respeitadas e formadas em suas
diferenças.
O que tem que ficar claro a respeito do adiantamento de confiança mutuamente atribuída
em razão da obrigatoriedade hipotética do reconhecimento recíproco, fundada na conseqüência
lógica de um silogismo, é que esta obrigatoriedade intersubjetiva da lei do pensamento pressupõe
uma comunidade de consciências, o que se conecta com o fato de que o agir orientado por esta
conseqüência somente se torna plausível, se as consciências não possuem motivos fortes para
deixar de proceder segundo uma auto-limitação voluntária: tem que se mostrar minimamente
plausível para as consciências “reconhecentes” a insistência preliminar num respeito mútuo.
Deste modo, segundo Fichte, torna-se uma pressuposição fundamental para a dedução de um
conceito de direito aplicável à expectativa de que o oposto da mútua racionalidade se confirme
factualmente. O problema é que, ao passar explicitamente para o problema de aplicação do
direito, Fichte parece criar uma ruptura entre a tese de uma livre e recíproca auto-limitação da
293
Sob o título de “repressão jurídica do conceito de reconhecimento em Fichte”, espera-se aqui compreender, na linha de Ludwig Siep, aquele
processo pelo qual, segundo Fichte, a relação de reconhecimento recíproco se sobrepõe ao paradigma da interpelação, na medida em que ela,
enquanto resultado de uma limitação da liberdade por uma solicitação intersubjetiva, não pode ser compreendida de imediato como educação em
seu sentido mais geral, como formação prática da individualidade em seu sentido mais profundo. Siep, Ludwig – „Einheit und Methode von
Fichtes „Grundlage des Naturrechts““, in: Siep, Ludwig–Praktische Philosophie im deutschen Idealismus, Frankfurt am Main, 1992, 41-64,
49/50 Eis porque, com a qualificação de uma “repressão jurídica”, pretendemos dar conta desta redução da intersubjetividade que Siep identifica
ao propor uma interpretação da passagem entre os §§ 3 e 4 como uma reflexão da consciência interpelada, como uma conseqüência que a
consciência que se forma retira da experiência de interpelação, a qual somente confere sentido à compreensão que propõe Fichte deste
desenvolvimento como educação.
70
tópico do “amor”, Hegel concebe, em face da intensificação, diagnosticada já nos textos de Bern
e Tübingen, das relações intersubjetivas essencialmente “excludentes”, forjadas segundo o molde
do direito privado, um paradigma ou ideal das relações humanas genuínas, isto é, não
“excludentes” e não “limitadoras”, que tendem, com o aprofundamento da concepção de Hegel, a
se tornarem imprescindíveis para a compreensão da formação originária da identidade individual.
A comparação deste paradigma com as relações próprias a uma intersubjetividade limitativa, cujo
alcance se intensifica pelo avanço do individualismo que está na base do desenvolvimento do
direito privado e da constituição do Privatleben moderno – uma comparação que perpassa todos
os textos de Frankfurt – denota já o preâmbulo para uma teoria e crítica das instituições sociais e
estatais294. O itinerário que vai destas intuições hegelianas iniciais acerca da interação humana na
plenitude de suas possibilidades sócio-integradoras até os esboços de 1803/04 e 1805/06 passa
justamente pela absorção do que, para a filosofia social de Hegel, será o principal resultado
alcançado por Fichte: o movimento recíproco entre a formação da consciência individual e da
consciência universal, movimento no qual Hegel procurará ressaltar o potencial intrínseco desta
consciência universal – incorporada em instituições, normas e costumes de um povo, – para a
formação da individualidade, de maneira que a interação passa a ser compreendida, em seu nexo
normativo ampliado, como processo no qual os indivíduos chegam, ao mesmo tempo, à sua
consciência de si e à formação de níveis de “consciência comum” compatíveis com e
correspondentes a suas relações a si mesmos (Honneth, 1992). Esta absorção, cujas condições de
possibilidade também já estão prefiguradas em Frankfurt, é o que permite a Hegel uma
revalorização do “mundo da vida privada” e das relações próprias a uma “intersubjetividade
limitadora ou juridicamente mediada” e uma reintegração do Rechtsverhältnis à dialética de
individualização e socialização, de consciência individual e da consciência universal. Hegel não
assume simplesmente o conceito fichteano de intersubjetividade, mas antes, a partir de
preocupações anteriores quanto ao problema da perda do poder sócio-unificador graças ao vigor
da vida essencialmente mercantil e burguesa da modernidade, integra o viés formativo da
individualidade implícito no conceito fichteano de reconhecimento no quadro de uma
tematização mais concreta da articulação entre concepções antagônicas da intersubjetividade, no
qual caberá às relações de direito a “adaptação” de formas solidárias de existência comunitária à
generalização de uma regulação jurídico-econômica da vida social.
294
Siep, Ludwig –Anerkennung als Prinzip der praktischen Philosophie, Freiburg/München, 1976, p.37
72
As primeiras reflexões de Hegel sobre a conexão entre amor e moralidade datam ainda do
período de Tübingen no contexto da investigação acerca das condições de possibilidade de uma
Volksreligion moderna, a qual, seguindo o modelo grego de uma religião viva e capaz de falar à
fantasia do povo, pudesse fazer frente tanto à positividade do cristianismo, quanto à negação do
positivo pelo esclarecimento. Neste contexto, o amor é compreendido como elemento constituinte
desta Volksreligion, que responde pela adesão subjetiva à mesma.
Para Hegel, ao “caráter empírico, que está encerrado nos limites do círculo das
inclinações, pertence também o sentimento moral...” (TWA 1, 30) Ao contrário do
“esvaziamento” do teor moral do “caráter empírico” em Kant, e influenciado pelo “caráter
estético” de Schiller, Hegel defende uma compreensão mais integrada das “duas metades do
homem”295, e o amor desempenha nesta integração um papel particular. Trata-se de um
sentimento moral que estimula outras inclinações e sentimentos que podem ter valor moral.
295
“em nossa própria natureza estão envolvidas tais sensações que, apesar de não morais e não oriundas do respeito pela lei e que, portanto, nem
são inteiramente firmes e seguras, nem possuem em si um valor, nem merecem novamente respeito, mas são, contudo, dignas de amor, evitam
inclinações más e fomentam o melhor do homem. Deste tipo são todas as boas inclinações, compaixão, bem-querer, amizade etc...” (TWA 1, 30)
73
Hegel ainda se vincula a Kant pela compreensão da origem da moral na razão prática como
vontade, no “caráter inteligível”, e que o amor entre seres humanos consiste em uma inclinação,
algo que é por isso intrinsecamente “patológico” e pertencente ao “caráter empírico”. Hegel
atribui ao amor entre os seres humanos o papel de princípio fundamental do “caráter empírico”,
mas o compreende como algo que é moral em si mesmo, na medida em que eleva o poder do
direcionamento da natureza impulsiva pela validade prática da relação intersubjetiva
racionalmente motivada.
“O princípio fundamental do caráter empírico é amor, o qual tem algo de análogo com a razão, na medida em que o
amor se encontra a si mesmo em outros seres humanos, ou antes, esquecendo-se de si mesmo, põe-se para fora de sua
existência, como que vive em outro, sente e é ativo – tal como a razão, enquanto princípio de leis universalmente
válidas, reconhece-se a si mesma novamente em todo ser racional, enquanto concidadã de um mundo inteligível. O
caráter empírico é, na verdade, afetado por prazer e desprazer, mas amor, se ele já é um princípio patológico do agir,
é altruísta (uneigennützig).” (TWA 1, 30)
296
Sobre a distinção kantiana entre o “amor patológico” e o “amor prático”, observar as discussões de Kant a respeito da interpretação moral dos
mandamentos cristãos de “amor a Deus” e “amor ao próximo”. Na Crítica da Razão Prática e na Fundamentação da Metafísica dos Costumes,
Kant compreende o mandamento de “amor a Deus” como “fazer os próprios deveres com satisfação” (KpV A148, GMS BA13). Na Doutrina da
Virtude, o “amor prático” enquanto “máxima do bem-querer” adquire importância também na esfera do agir intersubjetivo (MS 118). Neste
sentido, amor seria um sentimento que acompanha a execução de deveres morais para com os outros e que, na situação específica da obrigação
moral intersubjetiva, poderia ser visto como diferenciação do respeito. O “dever de amor ao próximo” (MS 120) é o “dever de fazer dos fins de
outros (na medida em que realmente não são não-éticos) meus [fins].” É nesta medida que Kant, com toda a sua restrição em interpretar os
mandamentos cristãos segundo os preceitos de uma “religião nos limites da simples razão”, compreende a ligação entre o “amor intersubjetivo” e
a moral, o que não deixa margem a formas mais particulares de relação amorosa entre os sujeitos.
74
234). Ao final do período de Bern, Hegel começa a expandir seu horizonte filosófico kantiano297,
graças à influência da Kritik der Urteilskraft de Kant e das Briefe über ästhetische Erziehung de
Schiller, na direção da investigação das condições subjetivas e intersubjetivas de uma concepção
viva da “religião do povo”. Na mesma época, graças ao aprofundamento de estudos históricos,
Hegel se dirige à compreensão do processo de colapso do mundo grego e de sua religião frente ao
advento do mundo romano e à disseminação da religião cristã, bem como do processo pelo qual
esta passa dos ideais igualitários e comunitários iniciais à sua solidificação como religião positiva
e objetiva baseada na autoridade eclesiástica298. Pode-se dizer que a preocupação maior de Hegel
em Tübingen e Bern é com a integração social na era moderna. Hegel deseja resgatar na
modernidade a integração social imediata própria da pólis antiga, em que o indivíduo se identifica
imediatamente com o ethos universal da comunidade. Por meio desta identificação, tem origem
uma liberdade comunitária politicamente ordenada, da qual todos os cidadãos participam. Para
Hegel, esta harmonia era nutrida e estimulada por uma “religião popular” cujos apelos falavam
diretamente à natureza do homem, suas disposições particulares e sua imaginação. Se Hegel
avança sobretudo num registro religioso durante estes anos, é justamente porque investiga as
condições para que o cristianismo de sua época, que oscila entre a ligação protestante do sujeito a
Deus e a subordinação católica à autoridade eclesiástica, possa se tornar uma religião sócio-
integradora ou Volksreligion. Que ele se torne paulatinamente mais consciente desta
impossibilidade se deve não só às insuficiências e à positividade intrínsecas à religião cristã, mas
antes aos processos de formação da modernidade, que impediram que a religião pudesse exercer a
função sócio-integradora que realizara outrora. A Zeitdiagnose de Hegel é, com efeito, que o
ideal da pólis antiga desapareceu, porque a vida livre unificada de antes, animada imediatamente
pela fantasia religiosa, tornou-se, graças à institucionalização de relações de direito privado e à
ubiqüidade de relações sociais burguesas, uma vida privada ou essencialmente individualista.
Neste processo, a liberdade substancial e a eticidade foram reduzidas à moral enquanto código
individual de conduta e à subordinação do estado à manutenção dos interesses particulares.
297
Bondeli, M. – Der Kantianismus des jungen Hegel. Die Kant-Aneignung und Kant-Überwindung Hegels auf dem Weg zum philosophischen
System, Hamburg, 1997
298
Para uma visão penetrante das investigações de Hegel durante o período de Bern, ver: Bondeli, M. – “Vom Kantianismus zur Kant-Kritik. Der
junge Hegel in Bern und Frankfurt” in: Hegels Denkentwicklung in den Berner und Frankfurt Zeit, hrsg. V. M. Bondeli und H. Linneweber-
Lammerskitten, München, 31-52
299
Bondeli, M. – Der Kantianismus des jungen Hegel. Die Kant-Aneignung und Kant-Überwindung Hegels auf dem Weg zum philosophischen
System, Hamburg, 1997, 117
75
seguira até o começo do período de Frankfurt, o kantianismo do jovem Hegel permanece ainda
conservado, na medida em que o ser supremo não é objeto da filosofia ou do conhecimento, mas
apenas da crença e da vivência religiosa: também o amor e o sentimento do ser-um é sempre
acometido pelo caráter de sua resistência à reflexão, mesmo de sua inefabilidade. É também
neste contexto que Hegel tem insights inovadores acerca dos aspectos sociais da Vereinigung
que, sem nenhum exagero, prenunciam seus desenvolvimentos posteriores acerca da eticidade e
do reconhecimento, contexto em que o amor assume um papel de destaque: é um tema recorrente
no horizonte investigativo do antigo colega de Hegel em Tübingen, Hölderlin, que o homem
moderno, cindido em razão e sensibilidade, possa ser reunificado pelo amor.
Um texto freqüentemente negligenciado, mas que revela posições que são um verdadeiro
divisor de águas, são os Entwürfe über Religion und Liebe, texto composto de três fragmentos –
um deles, Glauben und Sein, reconhecidamente modificado, escrito no primeiro ano de estadia
em Frankfurt em um linguajar notadamente fichteano, que revela, decerto, o impacto do estudo
da Grundlage de Fichte no verão de 1795300, mas também a profunda influência de Hölderlin301.
O intento geral de Hegel neste texto é estabelecer a conexão entre o amor e a unificação ou
reconciliação da vida, o que ele faz justamente numa radicalização de sua adesão bernense à
razão prática absoluta: filiando-se à tradição fichteana, Hegel compreende, sob a chave do
conceito moral como determinação do eu que se diferencia em contraposições, a distinção entre a
fundamentação teórica dos dados e objetos da fé positiva, por um lado, e o ideal moral a ser
ambicionado pelo sujeito, por outro.
Já no trecho subseqüente, sob o título de “Religião, fundar uma Religião”, Hegel pretende
que a idéia deste esforço absoluto, desta suprema atividade prática que anseia por atingir a
suspensão de toda realidade na infinitude de Deus, também não pode originar uma religião. “As
sínteses teóricas se tornam totalmente objetivas, inteiramente contrapostas ao sujeito. A atividade
prática aniquila o objeto e é inteiramente subjetiva”(TWA 1, 242). Assim, nem nas sínteses
teóricas, que contrapõem objeto e sujeito, nem na atividade prática, que, apesar de ainda os
contrapor, tenciona aniquilar o limite e ser totalmente subjetiva, está-se ligado ao objeto, isto é,
300
Rosenkranz, Karl – Georg Wilhelm Friedrich Hegels Leben, Darmstadt, 1972.
301
Jamme, Christoph – „Ein ungelehrtes Buch“ Die philosophiesche Gemeinschaft zwischen Hölderlin und Hegel in Frankfurt 1797-1800,
Bonn, 1988 – „ „Jedes Lieblose ist Gewalt“. Der junge Hegel, Hölderlin und die Dialektik der Aufklärung “, in : Jamme, Cristoph und Helmut
Schneider(Hg.) – Der Weg zum System. Materialien zum jungen Hegel, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1990, 130-170. A influência de Hölderlin
foi imensa em Hegel durante o período de Frankfurt, não somente para que Hegel pudesse manter intacto e sem distorções seu ideal, mas também
no enriquecimento deste ideal da comunidade livre. Antes mesmo que Hegel atinasse com a possibilidade de afastamento em relação a Kant,
Hölderlin formulara, já em 1795, uma crítica da filosofia prática de Fichte como dominação da natureza pela razão e mesmo do caráter puramente
antropológico da ampliação do belo kantiano operada por Schiller. Para Hegel, é extremamente importante a concepção de um ser (Sein) como
unificação (Vereinigung) que antecede o juízo (Urteil) ou a partição originária (Urteilung) que engendra sujeito e objeto. Para uma análise mais
detelhada, ver: Wylleman, A. (ed.) –“Driven Forth to Sciene”, in: Wylleman, A. (ed.) – Hegel on the ethical life, religion and philosophy, 1793 -
1807 , 1- 45; Bondeli, M. – Der Kantianismus des jungen Hegel. Die Kant-Aneignung und Kant-Überwindung Hegels auf dem Weg zum
philosophischen System, Hamburg, 1997
76
está-se em contato com a “divina união”. “Onde sujeito e objeto, ou liberdade e natureza são
pensados como de tal forma unificados que a natureza é liberdade, que sujeito e objeto não
podem ser separados, aí está o divino – um tal ideal é o objeto de toda religião. Uma deidade é ao
mesmo tempo sujeito e objeto, não se pode dizer dela que seja sujeito em oposição a objetos”
(TWA 1, 242). Já aqui é visível que Hegel, sob forte influência da tese hölderliniana de que a
unificação “verdadeira e infinita” antecede a Ur-teilung ou cisão originária entre sujeito e objeto,
não vê como possível o resgate da religião não-positiva dentro do paradigma racional-religioso da
fé moral kantiano-fichteana. Segundo Hegel, esta unidade, que é o ideal religioso por excelência,
somente pode ser encontrada no amor, o qual é compreendido por Hegel, pela primeira vez, na
linha do que pretende Hölderlin com o termo Vereinigung302. “Somente no amor se é um com o
objeto, não se domina, nem se é dominado. Este amor, tornado ser (Wesen) a partir da
imaginação (Einbildungskraft), é a divindade. O homem cindido (der getrennte Mensch) tem, por
conseguinte, reverência, respeito por ela; o [homem] em harmonia consigo (der in sich einige
[Mensch]) tem amor.” (TWA 1, 242).
O amor é esta unidade bipolar em que há ausência completa de dominação, em que sujeito
e objeto em sentido tradicional não mais estão presentes e se ultrapassa o subjetivismo e
objetivismo absolutos das sínteses prática e teórica. O amor, enquanto unificação essencialmente
bipolar, amálgama e não dominação, fornece a alternativa ao respeito e à reverência que o
homem incompleto e finitizado tem pelo infinito enquanto algo que está fora dele e que o aguarda
no além; constitui-se não simplesmente como subterfúgio análogo, mas como sentimento de
“imanência do divino”, o qual se torna efetivo, pela imaginação, na harmonia consigo mesmo e
na suspensão da opressão da natureza própria pela autoridade estranha. Notório é também o
deslocamento da unificação do terreno da possibilidade e do dever-ser do esforço prático para a
efetividade do sentimento amoroso gerada pela imaginação e que é sentida como harmonia da
racionalidade com a natureza. “Aquela unificação pode ser denominada unificação do sujeito e
do objeto, da liberdade e da natureza, do efetivo e do possível. Se o sujeito conserva a forma do
sujeito, e o objeto a forma do objeto, a natureza [permanece] sempre natureza, então nenhuma
unificação é encontrada. O sujeito, o ser livre, é o que prepondera, e o objeto, a natureza, é o
subjugado”(TWA 1, 242) É a crítica de Hölderlin a Fichte que é determinante para a refutação de
um ideal de subjetividade prática incondicionada que, a partir do aquém da efetividade
consciente, deve se alçar à infinitude pela paulatina aniquilação de toda a objetividade, de
maneira que se pode reconduzir a unificação da natureza e da liberdade, onde objeto e sujeito são
um só sem subordinação, à concepção do Sein explorada por Hölderlin em sua obra-prima Urteil
und Sein de 1795303. Entretanto, ao contrário de Hölderlin304, que, resgatando a ontologia
platônica do amor e da beleza num registro espinozano, encontra na “intuição intelectual” do ser
o acesso à infinitude, Hegel compreende que a unificação é experimentada no sentimento
amoroso, experiência que se faz representar (também artisticamente) pela faculdade imaginativa
e sua união peculiar do sentimento e da razão. De qualquer forma, apesar desta primeira recusa
da moralische Weltanschauung, tanto a idéia kantiana de um livre jogo das faculdades no
ajuizamento do belo (Kritik der Urteilskraft) e a concepção fichteana do Schweben da
“imaginação produtiva”, quanto a ampliação “ética”, empreendida por Schiller, do conceito
kantiano de beleza como “terceiro caráter” do homem, que faz a mediação entre as “metades
302
Henrich, D. – „Hegel und Hölderlin“, in Hegel im Kontext, Frankfurt, 1971, 9-40
303
Jamme, Christoph – „Ein ungelehrtes Buch“ Die philosophiesche Gemeinschaft zwischen Hölderlin und Hegel in Frankfurt 1797-1800,
Bonn, 1988 – „ „Jedes Lieblose ist Gewalt“. Der junge Hegel, Hölderlin und die Dialektik der Aufklärung “, in : Jamme, Cristoph und Helmut
Schneider(Hg.) – Der Weg zum System. Materialien zum jungen Hegel, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1990, 130-170.
304
Wylleman, A. (ed.) –“Driven Forth to Sciene”, in: Wylleman, A. (ed.) – Hegel on the ethical life, religion and philosophy , 1793 - 1807 , 1-
45
77
cindidas” do “homem total”, continuam a ser idéias influentes para Hegel. Em suma, na
passagem entre os dois primeiros trechos deste fragmento se dá uma verdadeira ruptura com o
kantianismo presente na compreensão dos mandamentos morais como exigências de “afirmar a
unidade prática contra os impulsos”(TWA 1, 239).
“Se lá, onde na natureza há eterna separação, algo incompatível (Unvereinbares) for
unificado, aí há positividade. Este unificado, este ideal é, portanto, objeto, e há nele algo que não
é sujeito.” (TWA 1, 244) . Para Hegel, é uma profunda “separação entre o impulso e a
efetividade”, em que surge “dor efetiva”, que leva à postulação de uma religião positiva calcada
numa divindade punitiva como meio de obter uma tranqüilização ao menos temporária (TWA 1,
244). Por outro lado, segundo o trecho “Amor e Religião”, a religião verdadeira não está nem em
um objeto fora do sujeito, o que suscitaria positividade e autoridade, nem em um objeto que está
somente no sujeito, o que perverteria o sentido comunitário daquilo que pode ser uma religião
plena. “O ideal nós não podemos pôr fora de nós, senão seria um objeto – [mas também] não
somente em nós, senão não seria nenhum ideal.” (TWA 1, 244) Neste paradoxo da unificação
pode-se perceber todo o significado comunitário da concepção hegeliana da unificação. Hegel
pretende que a solução para este dilema esteja numa religião que é “um com o amor” (die
Religion ist eins mit der Liebe) (TWA 1, 244). A religião tem de incorporar a validade
interpessoal e intersubjetiva autêntica do amor, para além da dicotomia sujeito e objeto. A
religião verdadeira está no sentimento de diversos sujeitos de serem um no amor. O divino, o
místico e religioso estão nesta intersubjetividade, nesta comunidade de seres na qual eles perdem
o caráter solipsista do indivíduo solitário e vêem-se no outro como objetos, isto é, vêem no outro
a si mesmos. O caráter “divino” – e, posteriormente, especulativo, inacessível ao entendimento
(Enciclopédia § 426 A) – desta intersubjetividade, desta “socialização positiva” – posto que não
concerne a seres humanos simplesmente como indivíduos apartados uns dos outros, mas como
indivíduos inteiros, estimados, apreciados e plenamente individualizados pela própria
“socialização” – , jamais abandonará a filosofia social de Hegel. “A religião é um com o amor
(die Religion ist eins mit der Liebe). O ser amado (der Geliebte) não nos é contraposto, ele é um
com nossa essência. Nós vemos somente a nós nele; e, contudo, em seguida, novamente ele não é
nós – um milagre que não somos capazes de compreender” (TWA 1, 244).
A idéia do amor como algo que se coaduna com a moralidade, isto é, como princípio de
ação não-racional ou patológico, mas ainda não auto-referente, é uma concepção que Hegel traz
dos tempos de Tübingen. Mas se antes o amor tem necessariamente de ser ligado a uma
moralidade estritamente racional, nos fragmentos de Frankfurt Hegel vai paulatinamente
sustentando a transcendência do ponto de vista moral pelo amor. “A unidade prática é afirmada
pelo fato de que o contraposto é suprimido (aufgehoben). Todos os mandamentos morais são
exigências para afirmar esta unidade contra os impulsos. Estas são diversas apenas em que,
representada esta unidade, são direcionadas a impulsos diversos.” (TWA 1, 239) A moral se
associa para Hegel à dominação da multiplicidade de nossa natureza impulsiva pela unidade do
eu abstrato. Neste sentido, “moral (Moralisches) e objetivo (Objektives) em sentido habitual são
diretamente contrapostos um ao outro” (TWA 1, 240), pois a “essência do eu prático consiste no
movimento da atividade ideal para além do efetivo (im Hinausgehen der idealen Tätigkeit über
das Wirkliche) e na exigência de que a atividade objetiva deva ser igual à [atividade] infinita”
(TWA 1, 240). Eis porque Hegel compreende que o ponto de vista moral, da atividade prática
subjetiva com vistas à realização do bem, revela-se, na realidade efetiva, como um impulso para
superar toda a subjetividade que é, na verdade, um “amor pelo objetivo” e pela separação, sem o
que estancaria toda a atividade. Uma tal relação é percebida também na menção ao fato de que o
78
ideal judaico de Deus enquanto senhor e autoridade transcendente confere aos homens “domínio
sobre os objetos”.
Hegel interpreta este amor pelo que está morto, Liebe um des Toten willen, fazendo
referência a uma associação de pessoas com o objetivo de um “intercâmbio” de “coisas mortas”,
onde cada um está oposto a um mundo exterior ao qual sua consciência está ligada como a algo
essencial: “a essência dele consiste em que o ser humano seja, em sua natureza mais interior, um
contraposto, um autônomo, que tudo seja para ele mundo exterior (Aussenwelt) – o qual é assim
tão eterno quanto ele mesmo.”(TWA 1, 245) A relação intersubjetiva em vista do que é morto
corresponde, “subjetivamente”, a uma “atitude religiosa” que se liga à projeção do infinito para o
supra-sensível enquanto suspensão de toda realidade, isto é, uma compreensão religiosa da
relação finito/infinito que se associa ao temor em face de um poder estranho. Graças à oposição
entre o controle e a união verdadeira, a relação intersubjetiva do amor aponta para uma
compreensão religiosa da “divindade imanente” à vida social efetiva como experimentação da
unicidade da vida. Muito embora a “unicidade da vida”, evocando a compreensão hölderliniana
do “ser”, tenha conotações eminentemente ontológicas, há que se reter certamente o nexo sócio-
filosófico do tema: o conflito entre uma associação de seres humanos em vista da “manipulação”
das coisas mortas e o amor verdadeiro como unidade da vida na união física e espiritual entre
homem e mulher.
Portanto, o fragmento que se inicia com welchem Zwecke denn ..., tematiza não somente o
“göttliche Liebe”, mas sobretudo e explicitamente o amor conjugal, sexual ou relações amorosas
enquanto permeadas por relações interpessoais mediadas pela relação às coisas. A este “amor
pelo que é morto”, Hegel contrapõe o amor verdadeiro, o qual diz respeito aos “seres vivos” e
nada tem em comum com a dominação e controle do mundo objetivo pela associação de
indivíduos autônomos. O que se torna problemático para a força unificadora do “amor
intersubjetivo” é que os seres humanos querem viver também como indivíduos autônomos e têm
por isso de viver em relações de outra natureza e que são reguladas por normas morais e
jurídicas. “Os que amam estão em ligação com muita coisa morta: a cada qual pertencem muitas
coisas, isto é, está em relação com contrapostos que, também para aquele que se relaciona, são
ainda contrapostos, objetos. E assim eles são ainda capazes de uma múltipla contraposição na
múltipla aquisição e posse de propriedade e direitos.” (TWA, 1, 249) Por outro lado, o amor
verdadeiro “é um recíproco receber e dar”(TWA 1, 247): “aquele que recebe não se torna por
meio disso mais rico que o outro: na verdade, ele enriquece, mas tanto quanto o outro. Igualmente
aquele que dá não se torna mais pobre: ao dar ao outro, ele faz aumentar na mesma quantidade
seus tesouros” (TWA 1, 247). Ele se rege pela lógica de uma doação recíproca e pelo “acúmulo”
de “riqueza da vida”, enquanto a relação intersubjetiva em vista do que é morto se baseia na
matéria, segue a lógica da troca e se rege pela atribuição recíproca de direitos de propriedade: “o
mais pobre hesita em tomar [algo] ao mais rico, a se pôr numa mesma posse com ele, porque este
mesmo praticou uma ação do contrapor, pôs-se para fora do círculo do amor. Mas a este temor,
que sua propriedade desperta, o possuidor se antecipa ao conferir a ele seu direito de propriedade,
que lhe cabe contra qualquer outra pessoa, que se suprime em face daquele que ama ...”(TWA 1,
249). Aqui já se vê prefigurada a intenção mais geral da teoria do reconhecimento dos Jenaer
Systementwürfe e, no limite, também a relação, presente nas Grundlinien, entre a sociedade civil
enquanto esfera da efetivação dos direitos da pessoa e da “perda da eticidade em seus extremos”,
por um lado, e a unidade ética do estado, bem como seus “pilares éticos” na corporação e na
família, por outro: Hegel estabelece aqui de maneira clara o embate entre a unidade ética de um
altruísmo universal e o ethos egoísta próprio da esfera em que os indivíduos fazem valer seus
79
pela imortalidade que mendiga com tremores e temor.” (TWA 1, 245). A unificação verdadeira
exige que se rompa com esta “independência abstrata”, a qual não vem do “reconhecimento” pelo
seu outro, o estranho. O singular tem de ser independente em seu estranho, ver-se a si mesmo
nele, ter confirmada sua independência de uma maneira plena, na forma da entrega total, do amor
e da estima por sua constituição particular. Mas, dentro desta unificação plena e seguindo a
intuição de Hegel acerca da diferença como parte da vida que se auto-produz, onde vê Hegel aqui
o “separável” ?
“O separável (das Trennbare), enquanto ele é, antes da completa unificação, ainda algo próprio (ein eigenes), cria
dificuldades aos que amam: é uma espécie de conflito entre a entrega total – a aniquilação unicamente possível, a
aniquilação do contraposto na unificação – e a autonomia (Selbständigkeit) que ainda está presente. Aquela se sente
estorvada por esta: o amor se mostra contrariado (ist unwillig) pelo que é ainda separado, pela propriedade. Este
exasperar-se do amor a propósito da individualidade é a vergonha.” (TWA 1, 247)
Para Hegel, em vista da unificação verdadeira, da entrega total que nadifica o contraposto
e que, no sentimento de amor, se faz imanente à existência intersubjetiva, o separável se constitui
pela subsistência daquele paradigma da consciência-de-si que se contrapõe a um “exterior
insondável”: trata-se da racionalidade que está por trás do atomismo e individualismo que são a
base das relações de direito privado entre indivíduos proprietários, os quais se unificam de
maneira ainda relativa, isto é, em vista da “dominação” do que é morto. Do ponto de vista da
unificação sentida pelos que amam, o ater-se aos objetos como meus ou teus constitui o lado
relacional dentro daquela unificação, relação individual que é maculada pela ameaça de
dissolução: é a vergonha diante da separabilidade que ameaça a unificação. “Em uma investida
destituída de amor, um espírito pleno de amor (ein liebevolles Gemüt) é importunado por esta
mesma hostilidade (Feindseligkeit), sua vergonha se torna ira, que agora defende somente a
propriedade, o direito” (TWA 1, 247). Nesta relação da unificação como suspensão das
individualidades e da subsistência da individualidade inexpugnável do direito à propriedade, vê-
se a antecipação de temas importantes para Hegel ainda em Frankfurt, mas sobretudo em Jena:
quer a dialética da reconciliação pelo destino, quer o projeto de uma absorção da vida privada do
indivíduo proprietário no quadro de uma eticidade absoluta (Naturrechtaufsatz), ou ainda o
desencadeamento de uma luta por reconhecimento a partir do dano à propriedade (Jena 1803-
1806) têm sua raiz comum neste “conflito entre o amor e o direito à propriedade”.
“O morto que se encontra sob o poder / de um [deles] é contraposto a ambos, e parece somente poder ter lugar a
unificação do que caísse sob o domínio de ambos. Aquele que ama e que observa o outro em posse de uma
propriedade tem de sentir esta particularidade do outro que ele permitiu. Não pode nem mesmo suprimir a
dominação excludente do outro, pois isto seria novamente uma oposição (Entgegensetzung) ao poder do outro, uma
vez que ele não pode encontrar nenhuma outra relação ao objeto (Objekt) a não ser a dominação (Beherrschung) do
mesmo. Ele contraporia um domínio à dominação do outro e suprimiria uma relação do outro, sua exclusão de todo
outro.” ( TWA, 1, 249/250)
Dado seu conceito de amor ainda excessivamente sobrecarregado pelo sentido conjugal (e
mesmo sexual) do termo, a discussão que Hegel propõe sobre a relação entre a
“intersubjetividade divina” do amor e o direito à propriedade de uma individualidade exclusivista
que, todavia, tem de ser “suspensa” na “unificação não dominadora” do amor, leva à discussão da
“comunidade de bens” (Gütergemeinschaft) nos limites da união conjugal305. De maneira geral,
segundo Hegel, a união amorosa não pode se confundir com a propriedade comunitária, se se
entende sob esta designação a supressão da individualidade e do direito à propriedade dos
cônjuges. O amor é uma unificação não dominadora. “No amor há ainda o separado, mas não
mais como separado, e o vivo sente o vivo.”(TWA 1, 246) Nesta unificação, os termos são
elevados à sua unidade essencial, mas têm conservada sua individualidade. Neste sentido, o amor
não aniquila o direito à propriedade transformando-se numa propriedade comunitária de bens.
“Se o uso é comunitário, então o direito à posse permaneceria com isso indecidido, o pensamento
do direito não se faria esquecer, porque tudo aquilo em cuja posse os seres humanos estão tem a
forma jurídica (Rechtsform) da propriedade. Mas se o possuidor põe o outro também num igual
direito da posse, então é a comunidade de bens (Gütergemeinschaft) somente o direito de cada
um dos dois à coisa.”(TWA 1, 250) A individualização em seu sentido mais amplo, inclusive
como afirmação individualista dos direitos da pessoa, é, na medida em que seres humanos se
contrapõem necessariamente uns aos outros de uma maneira também mundana, a circunstância
incontornável a ser enfrentada pela unificação amorosa, circunstância que, do ponto de vista de
sua institucionalização no direito privado moderno, é o palco onde o amor teria de provar sua
pujança e seu poder nadificador, a força capaz de “suspender” (em sua polissemia) a
individualização. Em relação à comunidade de bens, a união conjugal é esta contradição: a
essência originária dos vivos e a subsistência incontornável do separado. Como não lembrar do
parágrafo inicial da Família nas Grundlinien, em que Hegel declara que o “amor é ... a mais
prodigiosa contradição, que o entendimento não pode dissolver, já que não há nada de mais duro
305
Para o Hegel das Grundlinien, a propriedade adquire o caráter de propriedade privada, porque nela a minha vontade singular se torna objetiva
para mim. Por outro lado, a propriedade comunitária adquire a determinação de uma comunidade em si dissolúvel, na qual a participação de um
dos membros é algo arbitrário (LFFD §46). Para além disso, a representação de uma comunidade dos bens que tencione eliminar o princípio da
propriedade privada se revela um desconhecimento total do teor da liberdade da pessoa e de sua objetivação na coisa de que é proprietária.“A
idéia do Estado platônico como princípio universal contém contra a pessoa a in-justiça de torná-la incapaz de propriedade privada. A
representação de uma fraternização piedosa ou amistosa e, mesmo, forçada dos homens com comunidade dos bens e com a proscrição do princípio
da propriedade privada pode se oferecer facilmente àquela disposição de ânimo que desconhece a natureza da liberdade do espírito e a do direito e
que não a apreende nos seus momentos determinados.” (LFFD §46 A) Já no fragmento Die Liebe dos Entwürfe, Hegel chega a uma visão
semelhante da comunidade de bens, principalmente no que concerne à impossibilidade de, por meio deste recurso, aniquilar o princípio da
propriedade privada. “Assim, pertence ou a nenhum dos que amam, ou a cada qual pertence uma porção particular. Comunidade de bens significa
o direito de cada um à coisa, a participação igual ou indeterminada [nela]. Ela pressupõe sempre uma partição e, na verdade, [a] necessidade desta
partição, particular, propriedade; na verdade, não dos meios em repouso do inutilizado, do morto, mas sim a partição necessária do mesmo no uso.
Através deste não-isolamento da propriedade, enquanto ela não é usada, a comunidade de bens engana com a aparência de uma completa
suspensão dos direitos: no fundo, também um direito à parte da propriedade que não é imediatamente usada, mas somente utilizada, é conservado,
só que sobre isso não se faz menção.”(TWA 1, 249) A comunidade bens cria a ilusão de que se suspendeu o direito à propriedade privada, o que,
todavia, não se dá. De certa forma, esta discussão contém o germe da diferenciação da sociedade civil, enquanto esfera da efetivação do direito
privado, e do estado, a efetivação da idéia ética: Hegel tende a conceber aqui o amor como uma unificação que suspende a individualidade
atomista, mas, por isso mesmo, a conserva, e não a aniquila. Sua aniquilação estaria por trás da representação de uma comunidade de bens. “Na
comunidade de bens, as coisas não são nenhuma propriedade, mas nela está escondido o direito, a propriedade sobre alguma parte da mesma. De
acordo com isso [é que] se tem de julgar o modo habitual entre os que se amam de suspender reciprocamente os direitos sobre as coisas – direito
sobre pessoas (Personenrecht) se exclui do amor já através de seu nome como um serviço que lhe é abjeto – e ver nisso uma prova do amor.”
(TWA 1, 249)
82
do que esta ponta da autoconsciência, que é negada e que eu devo, contudo, ter como
afirmativa.”(LFFD §158)
Portanto, nos Entwürfe über Religion und Liebe, Hegel faz conviver, ao lado da
problemática propriamente especulativa do amor como unificação que suspende as
contraposições e como sentimento de si da vida em sua duplicação (Verdoppelung)306, uma
consideração do amor como relação não limitativa das individualidades, consideração que se
revela numa análise “quase-fenomenológica” da relação entre duas pessoas que se amam e que se
unem em laços conjugais (Siep 1976, 39). É neste contexto que se tornam significativas a
vergonha (Scham), a relação de entrega recíproca e a relação dos amantes tanto à sua propriedade
comum quanto à “efetivação espiritual” de seu amor na criança. Por um lado, amor é a entrega
total e renúncia da individualidade a todo elemento “morto”, isto é, cuja existência se vincula ao
estado de separação, ao passo que a vergonha é, diante disso, o “exasperar-se do amor a propósito
da individualidade” (TWA 1, 248), a inquietude do amor e da unificação em face do que teima
em permanecer na separação, quer os corpos, quer as posses. Por outro lado, é um absorver e
integrar de diferenças: “esta riqueza da vida o amor adquire na permuta (Auswechslung) de todos
os pensamentos, de todas as diversidades da alma, ao procurar infinitas diferenças e descobrir,
para si mesmo, unificações infinitas, ao se voltar para a inteira multiplicidade da natureza, a fim
de sorver o amor de cada vida da mesma.” (TWA 1, 248) O amor “detecta” as diferenças infinitas
e pela compreensão das mesmas em sua unificação confere a si mesmo seu conteúdo singular e
seu sentimento de si: “o [que há de] mais próprio se unifica no contato, no tatear até a perda da
consciência (Bewusstlosigkeit), a suspensão de toda diferenciação.” (TWA 1, 248). Nesta
absorção da “multiplicidade das almas” e mesmo da “multiplicidade da natureza” à unificação
amorosa, “o mortal despojou-se do caráter da separabilidade, e um germe da imortalidade, um
germe daquilo que se desenvolve e produz a partir de si, um ser vivo veio a ser.”( TWA 1, 248)
Esta relação de caráter divino entre os cônjuges, em que “os espíritos se tornam mais concordes
do que jamais, e daquilo que ainda era separado da consciência determinada, tudo é posto de
lado”, em que “todos os pontos, nos quais um tinha tocado o outro ou fora tocado por ele, que,
portanto, somente tinha sentido, pensado, são equiparados”, tem sua “consubstanciação”, sua
“efetividade espiritual” na criança, onde “os espíritos são permutados” (TWA 1, 248). “E assim
tem-se agora: o unido, os separados e o reunificado. Os unificados se separam novamente, mas na
criança a unificação se tornou ela mesma inseparável.”(TWA 1, 248/249)
O fato de que, no invólucro desta relação concreta que aparece na criança, os cônjuges
estão novamente separados, indica, para Hegel, o limite que cerca o poder unificante do amor,
visível na relação dos cônjuges com sua “propriedade comum”. O amor não assimila as
diferenças de posse, direito e propriedade, as quais caracterizam a individualidade das pessoas
unidas; mais que isso: ele tem por isso de permanecer irredutivelmente apartado das relações de
direito privado. Tais relações supõem a separação de qualquer outro indivíduo mediada pela
dominação sobre as coisas. “Somente o sentimento do amor, do regozijo é comunitário. O que é
meio para o regozijo [e] é morto, é somente propriedade; e uma vez que o amor nada faz de
306
No amor, diz Hegel, “ a vida se encontra a si mesma, como uma duplicação de si e unicidade (Einigkeit) da mesma. A vida tem de percorrer, a
partir da unicidade não desenvolvida e através da formação, o círculo em direção a uma unicidade acabada (vollendete). À unicidade não
desenvolvida contrapunham-se a possibilidade de separação e o mundo.” (TWA 1, 246) No amor, a vida se desenvolve e se diferencia a si mesma
em seres vivos. Neste percurso, cabe à reflexão a produção de oposições, mas no amor é retirada a estranheza do diferente e termos são unidos em
sua diferença. Tais considerações levam àquela tese de vasto alcance na obra hegeliana e cuja consecução data ainda do período de Frankfurt: a
separação e a reflexão fazem parte da própria vida.“No desenvolvimento, a reflexão produziu sempre mais [o] contraposto, que foi unificado no
impulso apaziguado (befriedigt), até que ela contrapôs o todo do próprio ser humano a ele mesmo, até que o amor suprime a reflexão em plena
carência de objetos, subtrai ao contraposto todo o caráter de um estranho, e a vida se encontra ela mesma sem nenhuma outra incompletude
(Mangel).”(TWA 1, 246)
83
unilateral, então ele nada pode tomar do que, no apoderamento, na unificação da dominação,
permanece ainda um meio, uma propriedade. Uma coisa (Ding), algo que está fora do sentimento
do amor, não pode ser comunitária, justamente porque é uma coisa.”(TWA 1, 249) O poder
unificante do amor não tem, para o Hegel dos Entwürfe, a capacidade de penetrar na
separabilidade da Gütergemeinschaft e estilhaçar os direitos que nela estão presentes de
utilização das coisas comuns. Para Hegel, as relações típicas do direito privado, relações entre
proprietários e entre estes e seus pertences, impossibilitam a plenitude da unificação no amor,
para a qual é necessária a vivificação do que é morto. “Esta unificação do amor é, na verdade,
completa, mas ela somente o pode ser, na medida em que o separado somente é de tal forma
contraposto que um é o que ama e o outro o que é amado – de tal maneira, portanto, que cada
separado seja um órgão de um ser vivo.”(TWA 1, 249) O que não pode ser vivificado, deificado
pela imaginação, representado como parte viva de um todo vivo, não pode ser unificado. “Porque
o amor é um sentimento do vivo, então os que amam somente podem se diferenciar na medida
em que são mortais, em que pensam a possibilidade da separação, não na medida em que
efetivamente algo fosse separado, em que o possível, ligado a um ser, fosse o efetivo. Nos que se
amam não há qualquer matéria (Materie), eles são um todo vivo. Os que se amam têm autonomia
(Selbständigkeit), princípio vital próprio (eignes Lebensprinzip) – isto significa somente: eles
podem morrer.” (TWA 1, 246) O amor é um sentimento no qual nenhuma diferenciação pode ser
feita entre o que sente e o que é sentido: ele é vida que sente e vida que é sentida. Enquanto seres
vivos, os que se amam são um só. Enquanto são seres mortais, seres em sua relação ao que é
morto, os seres que se amam podem se diferenciar, mas não como seres vivos. O amor e a
completude de dois seres humanos torna a mortalidade e a finitude de sua perspectiva autônoma,
pela qual se relacionam ao que é morto, algo infinito e divino: o amor une o mortal e cria uma
nova vida humana; e quando o corpóreo retorna à separabilidade, aí se faz ver novamente a força
da unificação no amor: os seres que se amam se envergonham do que os mantém separados, do
que os torna autônomos e, por isso, se esforçam para tornar tudo que possuem algo comunitário,
apesar de que, enquanto coisas mortas, suas posses residam fora do amor e, com efeito, não
possam ser genuinamente comunitárias.
seio da própria família (LFFD §175, §177), é assimilada justamente à gênese conceitual deste
produto singular do processo histórico da formação da modernidade política: a sociedade civil
enquanto esfera do esfacelamento da eticidade imediata da família, o âmbito da diferença e da
mediação, onde, entretanto, se efetiva, no bojo da atividade econômica e produtiva emancipada, a
autonomia da particularidade pela mediação social e jurídica da persecução dos interesses
privados.
Mas a irredutibilidade das relações de direito privado ao amor nos Entwürfe realça a
modificação operada por Hegel na sua concepção de intersubjetividade a partir de Jena sob a
influência do conceito fichteano do “reconhecimento jurídico”. O que caracteriza a herança
fichteana em Hegel é, sobretudo, a compreensão da intersubjetividade como contendo em si o
momento da separação dos indivíduos, isto é, como relação que produz a um só tempo a
consciência individual dos sujeitos e sua consciência comum. Em 1797/98, Hegel concebe o
amor como capaz de absorver as diferenças até o limite do que é “inapelavelmente morto”, do
que é, enquanto propriedade, juridicamente exigível. Enquanto consciência da igualdade dos
amantes, o amor reafirma a individualidade e confirma a identidade individual na forma do afeto
e da estima; mas não pode engendrar as diferenças e, desta forma, dele não pode emergir a
consciência individual em sua auto-exclusão. Nos Entwürfe, a concepção hegeliana da relação
intersubjetiva é uma compreensão da reabsorção das individualidades numa “consciência
comum”, mas não uma explicação da gênese destas individualidades como tais. Após realçar as
características da unificação pelo amor frente ao pensamento reflexivo, que o aproximam
bastante da concepção posterior de uma unidade “em sentido especulativo”307, Hegel menciona
que não se trata com o amor de um “sentimento singular”, mas sim do movimento da vida que,
partindo deste como “vida parcial” (Teilleben), “se impele, através da dissolução, até a dispersão
na multiplicidade de sentimentos, e para se encontrar neste todo da multiplicidade.” (TWA 1,
246) A vida é compreendida como processo no qual se desenvolvem oposições inconscientes
através da reflexão, a qual é o “motor” do desdobramento das separações.
307
“Ele exclui todas as contraposições, ele não é entendimento, cujas relações deixam o múltiplo sempre como múltiplo, e cuja unidade são as
mesmas contraposições. Ele não é razão, que contrapõe pura e simplesmente seu determinar ao determinado. Ele não é nada limitante, nada
limitado, nada finito.” (TWA 1, 246)
85
individualização, por isso mesmo, às relações intersubjetivas que dão forma ao direito privado. É
neste sentido que Hegel parece compreender o “morto” quase dogmaticamente como o
impedimento à unificação, como a diferença que é irredutível ao que é idêntico entre os amantes,
o que é o motivo da vergonha e do exasperar-se do amor contra a individualidade.
311
Wildt, Andreas – Autonomie und Anerkennung. Hegels Moralitätskritik im Lichte seiner Fichte-Rezeption, Stuttgart, 1983, 299 e seg.
87
à representação da onipotência de Deus que funda uma religião onde não há espaço para o amor
ou unidade com o divino, mas apenas para uma relação de escravidão e senhorio entre homem e
Deus (TWA 1, 278), e que se reproduz na relação interpessoal baseada na legalidade. “À
ausência de amor (Lieblosigkeit) dos judeus não pôde Jesus contrapor diretamente o amor, pois a
ausência de amor enquanto algo negativo tem necessariamente de se mostrar em uma forma, e
esta forma, o positivo dela [da ausência de amor E.C.L], é lei e direito. É nesta figura conforme
ao direito (in dieser rechtmäßigen Gestalt) que ela sempre aparece.” (TWA 1, 362/363) A
aproximação com a moral kantiana, último baluarte da modernidade filosófica, revelará que a
“positividade” inerente ao espírito judaico não pode ser corrigida em termos de rigor moral, mas
antes que, tal como sua expressão mais moderna, o “legalismo moral”, ou uma rechtsförmige
Moralität, tem suas raízes na Urteilung ou “cisão originária” entre sujeito e objeto e na fixação de
sua oposição absoluta312.
“À idéia de Deus dos judeus como seu senhor e quem tem autoridade sobre eles (Gebieter
über sie) contrapõe Jesus a relação de Deus aos seres humanos como a de um pai para com seus
filhos.” (TWA 1, 370) Jesus pretende eliminar, segundo Hegel, o ideal judaico de um Deus
onipotente e contraposto ao mundo. Esta relação homem-Deus que não é mais baseada na
dominação e na subjugação, o que impossibilita o ser-um dos dois, mas uma relação de
unificação e de amor, tem de assumir o lugar do ideal de um Deus supramundano. Hegel pretende
mostrar que esta nova relação, na medida em que o divino é compreendido de maneira imanente
ao mundo, se reproduz no universo intra e interpessoal humano de uma forma que ultrapassa o
paradigma legal-coercitivo de auto-relação e de inter-relação.
“Deus é amor e o amor é Deus: não há outra divindade a não ser o amor. Somente o que não é divino, o que não ama,
tem de ter a divindade na idéia. Quem não pode acreditar que Deus estava em Jesus, que ele reside nos homens, este
despreza os homens. Reside o amor [entre os homens], reside Deus entre os homens ... Onde isto não se dá, então
dele tem de se falar ... tudo é separado e assim há apenas um ideal.” (TWA 1, 304/305)
312
Conforme a análise de Düsing, apesar da consistência teórica própria, no contexto do projeto ético de Hegel em Frankfurt são amplamente
empregados conceitos lógico-ontológicos a serem desenvolvidos posteriormente no quadro da lógica especulativa. Tais elementos, que contêm as
condições teóricas para a elaboração consistente de uma crítica à moral kantiana, são de grande importância para a compreensão da argumentação
em Geist des Christentums. A primeira modificação conceitual importante introduzida por Hegel se refere ao aspecto lógico: trata-se da “não-
conceitualidade” de oposição entre universal e particular, segundo a qual a eticidade, concebida em unidade harmoniosa com a inclinação
sensível, não está, como de costume, contraposta, enquanto universal não-abstrato, ao particular, ao sujeito natural que sente a inclinação e realiza
as ações. A concepção de uma unidade harmônica e completa entre eticidade racional e inclinação sensível do sujeito natural exige um projeto
não-conceitual de unidade entre o universal e o particular, de maneira que o particular não mais se contraponha ao universal e a ele seja
subsumido, mas que já esteja nele contido integralmente. “Este poderia ser o primeiro projeto, ainda rudimentar, de uma universalidade não
abstrata ou discursiva, mas concreta, a qual posteriormente Hegel vai desenvolver pormenorizada e teoricamente em sua lógica especulativa,
procurando provar sua possibilidade. Esta concepção da universalidade concreta forma ainda em sua posterior filosofia do direito a base lógico-
conceitual para a crítica à ética kantiana. Nos escritos de Frankfurt, aquela unidade de razão e sensibilidade, de eticidade e inclinação é, enquanto
amor, um sentimento fundamental que não pode ser determinado em si mesmo conceitualmente.” Düsing, Edith und Düsing, Klaus – “Gesetz
und Liebe. Untersuchungen zur Kantkritik und zum Ethik-Entwurf in Hegels Frankfurter Jugendscgriften”, in: Merker, Barbara und Georg
Mohr/Michael Quante – Subjektivität und Anerkennung, Mentis, Frankfurt am Main, 2004 , 1-15 A segunda modificação introduzida por Hegel e
que se refere ao aspecto ontológico, diz respeito ao abandono da compreensão da ética como algo apenas possível e que tem de se efetivar num
sujeito concreto. Para Hegel, efetividade e possibilidade têm de ser compreendidas como unificadas, e o ético tem de ser efetivado no sujeito
sensível, que existe como particular, como racionalmente concebido e possível. Isto quer dizer que, para Hegel, não somente a eticidade
deontológica, mas a eticidade propriamente dita é esta unidade de possibilidade e efetividade. Esta modificação se vincula também à inefabilidade
que, como é comum na tradição da Vereinigungsphilosophie, está ligada à compreensão da verdadeira unidade: efetividade diferenciada da
totalidade ética humana só pode ser vivenciada, mas não adequadamente conceituada. Finalmente, uma terceira modificação diz respeito à
superação da separação kantiana entre a objetividade ética (a lei moral) e a subjetividade da vontade finita. Para Hegel, a eticidade verdadeira e a
liberdade do “homem total” consiste em que o universal e objetivo da eticidade estejam harmônica e intimamente ligados ao sujeito natural
particular, o que precisamente lhe rouba a estranheza. Tal eticidade enquanto eticidade efetiva é a síntese do sujeito e do objeto na qual ambos
perderam sua contraposição. Prenunciando já seu afastamento e crítica da filosofia fichteana, Hegel caracteriza sua concepção do todo ético
humano não como mera identidade de sujeito e objeto, mas como uma síntese ou harmonização de termos diversos, a qual estanca a contraposição
pela ligação essencial de ambos os termos que faz desvanecer a diversidade. Uma tal união é o amor, e porque ela se distancia da concepção
discursiva da identidade sujeito-objeto, tem, para ser originariamente compreendida e se efetivar, de ser sentida, e não simplesmente conceituada
ou descrita. A suspeição da incompatibilidade da “universalidade concreta” da verdadeira eticidade do “homem total” com uma teoria do
“conceito abstrato” de extração kantiana prefigura-se já aqui como prelúdio da crítica da filosofia da “subjetividade absoluta”, à qual se entrega
Hegel, programaticamente, ao término do período de Frankfurt, e, pormenorizadamente, no período de Jena.
88
Com efeito, a tarefa de que se incumbe Jesus é ultrapassar este estado de coisas, o destino
engendrado pela própria vida e que a esfacelou. Em nome disso, segundo Hegel, Jesus incorpora
o ideal do “homem em sua totalidade”, a totalidade da natureza humana que tem de ser
recuperada pelas forças do próprio homem, ou seja, sem o subterfúgio de uma unidade somente
aparente e, por isso mesmo, dominadora.
“Um homem que quisesse restabelecer o ser humano em sua inteireza (Ganzheit) não podia de maneira nenhuma
trilhar um tal caminho que acrescenta ao dilaceramento do ser humano somente uma renitente presunção. Agir no
espírito das leis não lhe poderia significar agir em favor do dever contradizendo as inclinações. Pois ambas as partes
do espírito (não se pode, neste estar-dilacerado do ânimo, falar de outra maneira) não se encontrariam, justamente
por isso, de maneira nenhuma no espírito, mas sim contra o espírito das leis, uma delas porque é um excludente,
portanto, limitado a partir de si mesmo, a outra porque é um oprimido (Unterdrücktes)”. (TWA 1, 324)
Para Hegel, Jesus não se opôs à lei como tal, mas sim ao que se poderia chamar de um
recurso “desespiritualizado” à mesma. O que caracteriza o recurso à lei que se contrapõe ao
“espírito das leis” é a exclusão mútua do dever e da inclinação, e, conseqüentemente, a
subordinação da particularidade da natureza impulsiva à universalidade do princípio estritamente
racional de ação313. “Pois o madamento do dever é uma universalidade que permanece
contraposta ao particular, e este é o oprimido quando ela domina.” (TWA 1, 323) A “doutrina
ética” que Hegel considera estar sendo veiculada por Jesus se caracteriza pela intenção de
fornecer um complemento (πλήϱωµα) à dominação estranha do universal abstrato da lei sobre as
inclinações do indivíduo particular. O mesmo efeito que Jesus espera ter na crítica ao modus
vivendi judaico Hegel espera ter na sua crítica a esta que é a expressão conceitual mais depurada
do poder obrigante da universalidade abstrata da lei racional: a moral kantiana. Entretanto, o
entusiasmo de Jesus em acabar com a unidade abstrata, coercitiva e “dominadora” entre universal
e particular, como intenção de abolir a estranheza dos termos sem abolir a própria
“espiritualidade” da obrigatoriedade dos mandamentos morais enquanto tal, isto é, de
“complementá-la”, tem de alçar-se para além da contraposição pura e simples. Ora, isto nada
mais é do que subverter o significado mesmo dos termos enquanto são compreendidos de
maneira apartada. “Jesus não teve simplesmente de indicar o complemento dos deveres, mas sim
também o objeto destes princípios, a essência da esfera dos deveres, a fim de destruir o âmbito
contraposto ao amor.” (TWA 1, 334) Importava a Jesus, pensa Hegel, sobretudo indicar a
essência inseparada de ambos os termos, de ambas as “metades” do ser humano, não
simplesmente indicar a natureza impulsiva como complemento de um dever em si abstrato – o
que poderia soar como a apresentação de um subterfúgio ao rigor de uma vida moral (TWA 1,
325/326) –, mas apresentar o conteúdo dos mesmos enquanto conteúdo particular intrinsecamente
universal: a esfera desta essência, onde se dissolve a oposição entre forma e conteúdo, é o âmbito
do amor, e os conteúdos que daí brotam são, enquanto tais, contrapostos à universalidade abstrata
da lei. “Unicidade da inclinação com a lei, por meio do que esta perde sua forma enquanto lei.
Esta concordância é o πλήϱωµα da lei, um ser, o qual, tal como se poderia exprimir de outra
313
Na sua tentativa de fazer valer o princípio cristão do amor em contraste com a positividade da lei judaica, Hegel demonstra ter sofrido enorme
influência de Schiller. Já este, tanto nas Über die ästhetische Erziehung des Menschen in einer Reihe von Briefen e em Über Anmut und
Würde, critica Kant por ele ter deslocado a relação de dominação e escravidão para o interior do homem, e exige virtude como “inclinação para o
dever”, através do que “prazer e dever são postos em conexão”. Apesar da sua crítica posterior à bela alma, levada a termo sobretudo no capítulo
sobre o Gewissen na Fenomenologia, Hegel considera Jesus, no estado de positividade em que se solidifica a religião judaica, como bela alma,
cuja determinação é ser um único ser humano perfeitamente vivo em si mesmo, como encarnação do princípio do amor, que, posteriormente,
adquire sua efetividade na religião cristã. Na verdade, como mostra o casal Düsing, Hegel radicaliza a crítica de Schiller a Kant: se Schiller ainda
não polemizara a validade da lei ética como fundamento dos deveres éticos, assim como re-determinara e tornara estético para o homem o ideal
ético, Hegel critica, por sua vez, o princípio kantiano da eticidade como absoluto Sollen, substituindo-o pelo amor. Düsing, Edith und Klaus
Düsing – “Gesetz und Liebe. Untersuchungen zur Kantkritik und zum Ethik-Entwurf in Hegels Frankfurter Jugendscgriften”, in: Merker, Barbara
und Georg Mohr/Michael Quante – Subjektivität und Anerkennung , Mentis, Frankfurt am Main, 2004 , 1-15
89
Para fazer frente a este domínio ultrajante do universal sobre o singular, Jesus recorrera,
pensa Hegel, a um procedimento que, ao contrário da relação determinante de “subsunção
violenta” do particular sob o universal vazio do dever, faz lembrar o conceito kantiano de juízo
reflexionante: a capacidade de elevação do particular até o universal, ou seja, a imanência da
universalidade da obrigatoriedade em relação ao conteúdo particular dos impulsos314. Com isso,
Hegel parece estar resgatando o potencial ético da idéia da “universalidade sintética” do intelecto
intuitivo de Kant e sua implícita relação orgânica da parte ao todo, ao mesmo tempo em que
reinterpreta, por esta via, o mandamento cristão do amor a Deus “espiritualizado” por Jesus. “Ele
[o amor] não é nenhum universal contraposto a uma particularidade, não [é] uma unidade do
conceito, mas uma unidade do espírito, divindade. Amar Deus é se sentir no todo da vida sem
limites, no infinito. Neste sentimento de harmonia não há, sem dúvida, qualquer universalidade;
pois na harmonia o particular não é resistente, mas consoante, senão não seria nenhuma
harmonia.” (TWA 1, 363) O ponto nevrálgico do procedimento é que se pretende com isso não
apenas evitar a renúncia ao papel dos impulsos e interesses particulares na efetivação de uma vida
ética, mas também não renunciar à racionalidade (universalidade) da vida ética. “Jesus contrapôs
314
Esta intuição de vasto alcance, segundo a qual Hegel faz valer o potencial dos conceitos kantianos da “faculdade de julgar reflexionante” e do
“intelecto intuitivo” para uma compreensão harmônica do “universal ético” que unifica em si o universal e o particular apartados pela moral, é
explicitada e advogada por M. Bondeli. Bondeli se apóia em duas evidências fornecidas por Hegel para defender a influência de Kant sobre a
concepção de amor. Em primeiro lugar, como lembra Bondeli, está o pensamento de uma Erhebung do singular ao universal, a qual permite a
suspensão da contraposição como alternativa à tese deontológica da submissão da natureza impulsiva à idéia do dever. Em segundo lugar, a tese
da síntese de universal e particular que suspende a contraposição, que se filia à concepção kantiana do “universal sintético” que se comporta em
face do particular como a totalidade orgânica diante de suas partes. Hegel parece então fazer valer contra o caráter determinante da moral
deontológica o potencial ético do conceito kantiano de uma universalidade que suspende o Bestimmen e Bestimmtwerden que caracterizam a cisão
entre universal e particular pela positividade do “ato legal” e que se relacionam também à relação fichteana entre o eu e o não-eu (Setzen).
90
“A concordância da inclinação com a lei é de tal espécie que lei e inclinação não são mais diversas; e a expressão
concordância da inclinação com a lei se torna inteiramente inapropriada, porque nela aparecem lei e inclinação ainda
como particulares, enquanto contrapostos, e facilmente poderia ser entendido um auxílio da disposição moral, do
respeito pelo dever e do ser-determinado da vontade pela lei através da inclinação diversa disto; e já que os [termos]
que concordam são diversos, também a concordância seria somente contingente, somente a unidade de estranhos, um
pensado.”(TWA 1, 326/327)
315
Este caráter inefável da unificação viva, que se conecta com a posição hegeliana que é mantida até o período de Jena e segundo a qual o
pensamento conceitual e discursivo, isto é, a reflexão, é inadequada e mesmo incapaz de exprimir o “ser” anterior à Ur-teilung, é de tal forma
arraigada no pensamento hegeliano da época que mesmo Jesus, em sua tentativa de retirar a forma legal dos mandamentos éticos durante o sermão
da montanha, parece ser presa destas armadilhas do pensamento conceitual. “Quando Jesus exprime também aquilo que ele contrapõe às leis e
[que põe] acima dela enquanto mandamentos ... então esta expressão é mandamento em um sentido inteiramente diferente do que o dever-ser do
mandamento do dever (das Sollen des Pflichtgebots). Ela é somente a conseqüência de que o vivo é pensado, exprimido, dado na forma que lhe é
estranha do conceito, enquanto, em contrapartida, o mandamento do dever, segundo sua essência, é, enquanto um universal, um conceito.” (TWA
1, 324) Bondeli, M. – Der Kantianismus des jungen Hegel. Die Kant-Aneignung und Kant-Überwindung Hegels auf dem Weg zum
philosophischen System, Hamburg, 1997
91
concepção de uma motivação ao agir ético espontânea e unificada com a estrutura pulsional do
indivíduo316.
Portanto, Jesus é visto como arauto de um ideal ético que é totalmente diverso não apenas
do puro legalismo, mas também da remissão da validade da lei à obrigação moral erigida pela
autonomia da razão, a qual somente suprime a positividade parcialmente e, mais exatamente, na
medida em que interioriza a dominação do particular pelo universal. Para Hegel, do ponto de
vista da positividade – perspectiva mais ampla do que o conceito kantiano de heteronomia –, há
muito pouca diferença entre o ser humano que tem seu senhor fora de si e o que o tem dentro de
si e que, portanto, é “seu próprio escravo” (TWA 1, 322 e 323): a positividade no ético
corresponde à oposição tanto da universalidade formulada conceitualmente, quanto da
objetividade das obrigações legais ou civis à particularidade e subjetividade da natureza
impulsiva do ser humano. Se à positividade corresponde a cisão e o dilaceramento do homem, à
complementação da lei corresponde o “ser”, a unidade da vida, a virtude ética em que a diferença
entre universal e particular, sujeito e objeto é suspensa. “Como os mandamentos do dever
pressupõem uma separação e anunciam uma dominação do conceito em um dever-ser, então, em
contrapartida, aquilo que é enaltecido acima desta separação é um ser, uma modificação da vida”
(TWA 1, 324). A virtude não é o controle do indivíduo sobre seus impulsos e interesses através
de sua razão, mas modificações ou configurações da vida, unicidade de dever e inclinação, na
qual aquele se despoja de sua universalidade abstrata e esta de sua mera particularidade. “A
contraposição do dever e da inclinação encontrou nas modificações do amor sua unificação.”
(TWA 1, 338) Segundo Hegel, Jesus anuncia a “doutrina ética” segundo a qual as modificações
do amor presentes na virtude elevam o homem acima do autodomínio da moral individualista,
mas também acima do mundo das obrigações civis e das exigências de uma “pura legalidade”. A
positividade na vida ética, a elevação do sentido da obrigação tanto civil quanto moral até o
patamar de uma identidade meramente abstrata, sacrifica a vivacidade das relações humanas:
“Lástima para as relações humanas que precisamente não se encontram no conceito de dever, o
qual, tanto quanto não é meramente o pensamento vazio da universalidade, mas antes deve se
apresentar numa ação, exclui todas as outras relações e as domina.” (TWA 1, 323) O problema é
que tais relações, que simplesmente não se encontram no conceito de dever, são as relações
intersubjetivas genuínas, aquelas que, ao contrário do “agir conforme as leis”, extorquido quer
por si mesmo quer pela coerção civil, não caem sob o âmbito da ordenação: sua própria essência
é integrar a estrutura pulsional individual num agir social solidário e formador do outro.
“Imediatamente voltado contra leis se mostra este espírito de Jesus, enaltecido acima da
moralidade, no sermão da montanha, o qual é, na maioria dos exemplos sobre leis, uma tentativa
levada a termo de retirar das leis o legal (das Gesetzliche), a forma de leis, e que prega não o
respeito pelas mesmas, mas aquilo que as preenche e, contudo, as suspende como leis, e que é,
assim, algo mais elevado do que a obediência às mesmas e que as torna prescindíveis.”(TWA 1,
316
Esta nova concepção de universalidade, profundamente influenciada pela tradição pós-kantiana que, de alguma forma, persegue a concepção da
universalidade reflexionante do intelecto intuitivo, reflete, com toda a força, o distanciamento em relação à Postulatenlehre e ao ideal de harmonia
entre a razão e a sensibilidade através do movimento duplo de “sensificação” da moral e de “moralização” da sensibilidade que se baseia nela e ao
qual Hegel se vincula ainda em Bern. De acordo com a visão frankfurtiana de Hegel, a qual desemboca no monismo de uma “metafísica do ser”
que, por assim dizer, ultrapassa o Sollen do progresso virtuoso em direção à santidade, a harmonia “extorquida” mediante “respeito”, que está na
base da afirmação da virtude face à sensibilidade e que dá sentido ao progresso, implica em temor da sensibilidade e impulso de ultrapassá-la e,
sendo assim, não traz nenhuma reconciliação. Para uma consideração do pensamento hegeliano em Bern e suas concepções ligadas à moralização
da sensibilidade tanto em conexão com a sensibilidade espiritualizada da Grécia antiga, quanto com o embate kantiano entre razão e sensibilidade,
ver: Bondeli, M. –„Zwischen radikaler Kritik und neuem Moralitätskonzept“, in : Jamme, Cristoph und Helmut Schneider(Hg.) – Der Weg zum
System. Materialien zum jungen Hegel, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1990,171-192 Jamme, Cristoph und Helmut Schneider(Hg.) – Der Weg
zum System. Materialien zum jungen Hegel, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1990 – „ „Jedes Lieblose ist Gewalt“. Der junge Hegel, Hölderlin und
die Dialektik der Aufklärung “, in : Jamme, Cristoph und Helmut Schneider(Hg.) – Der Weg zum System. Materialien zum jungen Hegel,
Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1990, 130-170
92
324) O amor a que alude Jesus no sermão da montanha é, para falar em termos da crítica
hegeliana a Kant, a conexão harmoniosa do universal da ética, o mandamento moral, e da
natureza sensível do sujeito particular numa efetividade que garante a liberdade do homem “em
sua totalidade”. A partir desta concepção do amor Hegel define, como contrapartida à moral
deontológica, uma “doutrina da virtudes”317 (Düsing 2004, 7) enquanto modificações do amor, as
quais definem o escopo subjetivo e intersubjetivo do amor. O amor é, primeiramente, um estado
de harmonia interior ao sujeito ético instaurado pela unicidade de sua racionalidade e sua
natureza impulsiva, ou seja, o sentimento e o discernimento desta existência total. Em segundo
lugar, o amor é um estado de harmonia intersubjetiva, isto é, de unicidade dos diversos sujeitos
éticos no seu plano comum de ação. A relação intersubjetiva do amor opera entre os indivíduos a
unificação não dominadora que se efetiva, no interior de cada um, como unicidade entre razão e
sensibilidade, e assim ambos são um para o outro plenamente livres dentro desta relação, sem
assimetria ou unilateralidade, e somente por ela são o que são. Na acepção intersubjetiva do
amor, pode-se ver implícita a estrutura intersubjetiva do espírito compreendida como o ser-
reconhecido resultante da mútua formação e confirmação de identidades, uma estrutura que o
amor como tal ultrapassa, na medida em que se efetiva enquanto partilha da riqueza da vida
pessoal. “No amor o ser humano se reencontrou a si mesmo no outro. Porque ele é uma
unificação da vida, pressupunha a separação, um desenvolvimento, uma multilateralidade
formada da mesma.” (TWA 1, 394) O amor é uma totalidade à qual os indivíduos estão
obrigados, mas que não tem a forma da obrigação, pois não a sentem como obrigados, e sim
como unicidade de sua vida com a vida do outro, “duplicação da vida e unicidade da mesma”
(TWA 1, 245). Como ensinam os Entwürfe, é problemática a noção de absorção total, pois resta
ainda a diversidade das pessoas, que, enquanto possibilidade da separação, revela o caráter
“mortal” dos indivíduos que se amam. O avanço peculiar de Geist des Christentums reside na
cláusula de que o amor pressupõe a multilateralidade desenvolvida da vida. É no horizonte da
plenitude viva desta relação intersubjetiva que o Hegel de Frankfurt ainda poderia cultivar
esperanças de que o cristianismo pudesse superar a positividade da solidificação da comunidade
em instituições e leis, o que ele, entretanto, não faz, assim como mostra sua concepção do
“destino de Jesus”.
317
Para o casal Düsing, o projeto hegeliano de ética em Frankfurt, concebido em um embate crítico com a ética kantiana, possui especial
significado sistemático. Ele se deixa classificar em geral como ética, enquanto esta consiste numa doutrina das virtudes, e parte do princípio
fundamental do amor, compreendido como princípio das virtudes. Hegel esboça esta doutrina ética em uma re-interpretação puramente filosófica e
produtiva da ética cristã. Tal projeto de ética e esta crítica à ética kantiana representam um marco no desenvolvimento intelectual de Hegel,
formulando argumentos críticos e perspectivas éticas fundamentais que Hegel conserva e desenvolve mais tarde. Düsing, Edith und Klaus
Düsing – “Gesetz und Liebe. Untersuchungen zur Kantkritik und zum Ethik-Entwurf in Hegels Frankfurter Jugendscgriften”, in: Merker, Barbara
und Georg Mohr/Michael Quante – Subjektivität und Anerkennung , Mentis, Frankfurt am Main, 2004 , 1-15 , p.5
93
a própria lei, a auto-coerção da virtude kantiana, mas sim as virtudes sem dominação e sem
submissão, modificações do amor.” (TWA 1, 359/360) A questão é que, na discussão dos
exemplos aludidos por Jesus, esta concepção de virtude somente adquire significado concreto
como disposição para um interagir que justamente se pauta pela não dominação do outro, isto é,
pelo tratamento do outro não somente como um igual e livre, mas sobretudo como alguém para
quem uma exitosa formação da identidade individual depende amplamente da participação do
sujeito virtuoso, no sentido preciso de que o mesmo seja motivado em seu agir pelo interesse nos
múltiplos aspectos de sua existência concreta, em seu “bem viver” e em sua plena inserção social.
“poder-se-ia esperar que Jesus tivesse trabalhado contra a positividade dos mandamentos morais, contra a simples
legalidade, que ele tivesse mostrado que o legal (das Gesetzliche) seria um universal e que toda a sua obrigatoriedade
residiria em sua universalidade, porquanto, em parte, cada dever-ser, cada ordenado se anuncia, na verdade, como
um estranho, mas é, por outro tanto, enquanto conceito (a universalidade), um subjetivo, pelo que perde, enquanto
produto da força humana, da faculdade da universalidade, da razão, sua objetividade, sua positividade e heteronomia,
e o ordenado se apresenta como fundado na autonomia da vontade humana. Por este itinerário, entretanto, a
positividade somente é eliminada parcialmente.” (TWA 1, 321/323)
As leis, às quais Jesus se opõe duplamente, diferenciam-se primeiro pela origem (leis
morais são produto da própria razão), mas sobretudo porque, enquanto as morais representam
dominação intra-pessoal, as civis supõem, ainda que devam seu poder coercitivo a uma instância
objetiva, a dominação inter-pessoal318. O combate de Jesus contra a positividade do ético não se
reduz a um simples combate contra a “hipocrisia moral” de um comportamento pragmaticamente
calculado segundo a conformidade com a lei: trata-se de um combate contra a universalidade
abstrata da obrigação como tal. O combate contra a pura legalidade não eliminaria a positividade,
pois ainda subsistiria uma contradição entre a universalidade do dever e as condições de sua
aplicação particular. O que Jesus pretende no sermão da montanha com sua concepção de virtude
como modificação do amor é, para Hegel, algo mais radical: trata-se de retirar dos mandamentos
“ama a Deus” e “ama o teu próximo” a própria forma de um mandamento e fundá-los na
“inclinação plenamente espiritual do amor”. “Sem dúvida, o amor não pode ser ordenado, sem
dúvida ele é patológico, uma inclinação – mas com isso nada foi retirado de sua grandeza, ele não
é com isso de maneira nenhuma aviltado, que sua essência não é nenhuma dominação sobre algo
estranho a ele.” (TWA 1, 362/363) Eis porque Hegel vê como um erro a identificação que
empreende Kant na segunda Crítica e na Tugendlehre do mandamento cristão do amor a Deus e
318
“Porquanto na última perspectiva a unificação dos contrapostos não é conceituada, não é objetiva, então as leis civis contêm o limite (Grenze)
da contraposição de muitos vivos – porém, as puramente morais determinam o limite da contraposição dentro de um vivo. Aquelas encerram a
contraposição de vivos em face de vivos, estas a contraposição de um lado, de uma força de um vivo em face dos outros lados, das outras forças
do mesmo vivo, e uma força deste ser é, nesta medida, dominante em face da outra força do mesmo.” (TWA 1, 321/322)
94
A unificação interior pelo amor supõe sua efetivação na forma de uma intersubjetividade
que gera, na percepção de si no outro, o sentimento de si que é esta harmonia entre inclinação e
razão no sujeito que age. A conexão dos dois registros é estabelecida pela tentativa de Jesus em
compreender, a partir do amor como unificação, a espiritualidade por trás do mandamento
cristão de amor ao próximo. Jesus contrapõe a virtude do amor ao próximo aos mandamentos que
supõem um tratamento do mesmo como individualidade abstrata, apartada do sujeito como uma
matéria, que lhe cabe apenas dominar, extirpar, servir-se dela ou mesmo deixá-la ir. Neste caso, a
separação entre “eu e próximo” se funda na própria compreensão da enunciação de um vínculo ao
próximo como mandamento. “Cada mandamento somente pode exprimir um dever-ser, porque é
um universal; ele anuncia, ao mesmo tempo, sua incompletude (Mangelhaftigkeit) ao não
declarar nenhum ser.” (TWA 1, 327) Portanto, ao invés da obrigação em não fazer mal a outrem
(ou mesmo, “não matarás”), Jesus se concentra na disposição do “amor universal à humanidade”,
que não somente torna supérfluo um mandamento qualquer de respeito ao outro enquanto pessoa
apartada, mas, em geral, “suspende o mandamento segundo sua forma, a contraposição do mesmo
enquanto o que ordena em face de um resistente, remove aquele pensamento de sacrifício,
destruição e submissão (Unterjochung) do ânimo”(TWA 1, 327). Na intersubjetividade social, a
319
Dada sua concepção de virtude como algo além do ponto de vista do embate entre razão e sensibilidade, Hegel se contrapõe sobretudo à
representação do bonum supremum ou da virtude como ideal de santidade enquanto estágio moral em que se faz impossível compreender, tal
como no “aperfeiçoamento moral” do sujeito, a obrigação enquanto o que possa ser praticado com satisfação. “E também a honra que ele [Kant
E.C.L], em contrapartida, assegura àquela expressão de Jesus, ao considerá-la o ideal de santidade que nenhuma criatura pode alcançar, é
igualmente um gasto supérfluo; pois um tal ideal, no qual os deveres fossem representados como praticados com satisfação, é em si mesmo
contraditório, porque deveres exigiriam uma contraposição, ao passo que o fazer com satisfação (Gernetun) [não exigiria] nenhuma
contraposição.” (TWA 1, 325) Acerca das sutilezas da argumentação kantiana, que já pretende contrapor à idéia de uma “coerção ao amor” uma
relação entre amor e dever, bem como a uma possível antecipação da estrutura sujeito-objeto do conceito hegeliano de amor em Frankfurt a partir
da concepção kantiana da “amizade moral”, indicamos a leitura de Bondeli, M. – Der Kantianismus des jungen Hegel. Die Kant-Aneignung und
Kant-Überwindung Hegels auf dem Weg zum philosophischen System, Hamburg, 1997, 131 e seg. Para Bondeli, Hegel aderiu à compreensão
kantiana da “amizade moral” (Tugendlehre) como unificação de amor e respeito, e a reinterpretou à luz do princípio panteísta do “um em todos e
todos em um”, mas dirigiu-a contra Kant na forma de uma exigência de auto-superação da obrigação, querendo ver nesta relação um contra-
modelo de comunidade capaz de fazer frente a um estado erigido sobre direitos e deveres.
320
“E sobre esta confusão do mandamento do dever, o qual consiste na contraposição do conceito e do efetivo, e da maneira inteiramente
inessencial (ausserwesentlich) de exprimir o vivo, repousa sua hermética recondução do que ele [Kant E.C.L] denomina um mandamento – ama a
Deus sobre todas as coisas e o próximo como a ti mesmo – ao mandamento do dever. E sua observação de que o amor – ou no significado que ele
pretende ter que conferir a este amor: executar todos os deveres com satisfação (alle Pflichten gerne ausüben) não possa ser ordenado se anula
por si mesma, porque no amor todo pensamento de deveres se subtrai.”(TWA 1, 324/325) Aliado à crítica à compreensão kantiana do “dever em
amar” está o já mencionado caráter “inefável” do amor, que se interconecta tanto com as exíguas expectativas de Hegel quanto à capacidade da
reflexão em fornecer acesso discursivo ao “uno”, compreendido na esteira do “ser” da Vereinigungsphilosophie de Hölderlin, cujo acesso
privilegiado é, para o Hegel de Frankfurt, ainda a experiência religiosa; quanto com a impossibilidade de que o amor venha a ser enunciado como
um princípio prático, o que acarretaria em sua fixação no momento conceitual da universalidade e, conseqüentemente, em sua compreensão
contraditória como dever. “É uma espécie de desonra ao amor se ele é ordenado, que ele, um vivo, um espírito, seja chamado por nome. Seu
nome, que sobre ele se reflete, e o pronunciar do mesmo não é espírito, não [é] sua essência, mas antes contraposto a ele, e somente enquanto
nome, enquanto palavra ela pode ser ordenada.” (TWA 1, 363)
95
A tentativa de Jesus de retirar do “ama teu próximo” o caráter de mandamento revela que
no amor os indivíduos não vêem no ser amado a individualidade diferente, mas antes que o “ser
humano se reencontrou a si mesmo no outro.” (TWA 1, 394) Com efeito, por ser este “encontrar-
se no outro”, este ter o sentimento de si na unificação com o outro, o amor é um impulso para a
unificação, para a renúncia de si e, por conseguinte, também separação, cisão da unidade
originária entre as duas individualidades. Entretanto, a tese por trás da expectativa de Hegel
quanto à capacidade sócio-integradora do conceito cristão de amor se vincula ao predomínio do
momento de auto-renúncia e suspensão da própria individualidade frente ao momento de
sentimento de si mesmo na unificação com o outro.
hostilidade.” (TWA 1, 362/363) Para Hegel, quer no âmbito intra-subjetivo, quer no âmbito
intersubjetivo, a natureza particular do indivíduo recebe seu “direito” em face da universalidade,
isto é, tanto sua natureza impulsiva, quanto ele e os seus Mitmenschen enquanto particularidades,
deixam de ser objetos manipuláveis pela vontade universal abstrata.
321
Em seu interessante e recente livro, Fischbach parece compreender a inovação hegeliana da concepção de intersubjetividade que pode ser
reconduzida a Fichte como um registro clássico da inovação que Honneth pretende do conceito habermasiano de interação. Fischbach, Franck –
Fichte et Hegel : la reconnaissance, Presses Universitaires de France, Paris 1999, 123 e seg. Fischbach atribui a Hegel a conexão da teoria do
reconhecimento enquanto “teoria das condições intersubjetivas transcendentais da subjetividade”, elaborada por Fichte, com a perspectiva da “luta
por reconhecimento”, isto é, da perspectiva da consecução deste reconhecimento a partir de árduo embate no plano de ação dos indivíduos. É esta
conexão que permite a Hegel abordar mais profundamente do que Fichte os desvirtuamentos da relação de reconhecimento e, em último caso, sua
reversão em relação de dominação. Segundo Fischbach, Habermas e Honneth reproduziriam este embate num registro “pós-metafísico” de
discussão. Habermas se filiaria à tradição que remonta a Fichte de investigar as relações entre as condições ideais de interação e as condições
empíricas de uma dominação institucionalizada. O que caracteriza a reconstrução habermasiana do conceito hegeliano de interação a partir dos
elementos da “pragmática lingüística universal” é a intenção de revelar as normas imanentes da atividade comunicacional orientada ao
entendimento mútuo. Habermas, Jürgen –„Arbeit und Interaktion. Bemerkungen zu Hegels Jenenser „Philosophie des Geites“ “, in: Frühe
politische Systeme: System der Sittlichkeit, Über die wissenschaftlichen Behandlungsarten des Naturrechts, Jenaer Realphilosophie.
Herausgegeben und kommentiert von Gerhard Göhler,Frankfurt am Main, Ullstein 1974, 786-814 – Der Philosophische Diskurs der Moderne :
zwölf Vorlesungen, Surhkamp, Frankfurt am Main, 1988 – Die Einbeziehung des Anderen: Studien zur politischen Theorie, Suhrkamp, Frankfurt
am Main, 1996. Em seus trabalhos mais recentes, Honneth pretende mostrar que o empreendimento habermasiano supõe – ou se refere a – um
ponto de vista crítico sobre a sociedade a partir do qual podem ser considerados os percalços sociais e políticos à efetivação das normas imanentes
a uma prática discursiva orientada para a compreensão mútua: é a normatividade imanente do agir comunicacional que funda a possibilidade de se
adotar um ponto de vista crítico sobre o que cria empecilhos à plena efetivação da interação, mas este ponto de vista, na medida em que não se
refere explicitamente à perspectiva dos excluídos das benesses de uma existência plenamente reconhecida, permanece excessivamente abstrato.
Para Honneth, é somente a perspectiva do “não-reconhecimento” e do “desrespeito” que efetiva aquele ponto de vista crítico da sociedade.
Portanto, conclui Honneth, há um potencial normativo em jogo na interação social, o qual, entretanto, não concerne prioritariamente às normas
lingüísticas da interação, mas se localiza antes na perspectiva dos sujeitos acometidos por um atentado ao reconhecimento recíproco que está na
base da auto-compreensão dos sujeitos como parceiros na interação lingüisticamente mediatizada, isto é, na experiência moral concreta da
injustiça, dos maus tratos e da desonra. Neste sentido, no registro da conexão do desenvolvimento conflituoso dos níveis sócio-institucionais de
intersubjetividade com a experiência moral da não efetivação do teor normativo do interagir social, compreendida como “dinâmica social do
desrespeito (Missachtung)”, o modelo hegeliano vem sendo resgatado numa reorientação da “teoria crítica” através da ampliação do teor
normativo do paradigma habermasiano de comunicação para além da pragmática universal; sendo assim, não é estranho que se encontre, ainda na
formulação da teoria da intersubjetividade do jovem Hegel, especialmente na discussão do crime como “destruição da vida”, a menção à
instauração desta perspectiva do sujeito afetado pelo não-reconhecimento. “O que sucede à reconciliabilidade – já que nela a lei perde sua forma,
o conceito de vida é reprimido no tocante à universalidade, que no conceito abarca dentro de si todo o particular – é somente um prejuízo aparente,
e um verdadeiro e infinito ganho pela riqueza das relações vivas com os talvez poucos indivíduos. Ela não exclui o efetivo, mas o pensado,
possibilidades; e esta riqueza da possibilidade na universalidade do conceito, a forma do mandamento, é ela mesma um dilaceramento da vida e,
segundo seu conteúdo, tão árida que ela, afora o maltrato (Misshandlung) singular proibido nela, permite todo o restante.” (TWA 1, 327/328) ver
Honneth, Axel – Das Andere der Gerechtigkeit: Aufsätze zur praktischen Philosophie, Surhkamp, Frankfurt am Main, 2000
97
contraposta à compreensão “legalista” da justiça como pena, discussão que, como bem exprime
Siep, é uma tentativa de interpretação do tema cristão da remissão dos pecados pela absorção de
elementos da tragédia grega e shakespeariana322. Além disso, a discussão acerca do amor como
reconciliação do criminoso com a unidade vital lesada por seus atos segue o movimento de
ampliação, pretendido por Hegel, do “modelo ético” do amor, enquanto estado harmonioso intra-
subjetivo, até o nível de um estágio de harmonia intersubjetiva num círculo restrito e chegando
até o ponto de revelar seu poder unificante na superação de um estágio socialmente criado de
positividade e dominação institucional da lei (strafende Gerechtigkeit). “Porque, a saber, as leis
são somente unificações pensadas de contrapostos, então estes conceitos não esgotam, nem de
longe, o caráter multifacetado da vida.” (TWA 1, 347)
322
Para Habermas, a causalidade do destino, pela qual ele compreende a força de restabelecimento de uma relação ética enquanto “situação não-
coagida de diálogo” oprimida pela “violência” que se estabelece entre as partes, é o exemplo originário e paradigmático do que ele chama de
“dialética da relação ética”, a qual é, segundo ele, reconstruída por Hegel no decorrer do período de Jena sob o título de Kampf um Anerkennung.
Para Habermas, esta causalidade é desencadeada pela suspensão “criminosa”, isto é, individualista e excludente da relação ética originária, ou
seja, da complementaridade da comunicação não coagida e da satisfação recíproca de interesses. Com efeito, na medida em que a hostilidade que
adere ao trato intersubjetivo torna visível a corrupção da complementaridade e da amizade originárias, o destino representa justamente o poder
ressurgente da vida lesada contra o criminoso. Esta causalidade somente é reabsorvida no solo vital que a produziu, na medida em que o criminoso
passa a sentir a vida lesada como sua própria, na medida em que é acometido pela percepção que seu distanciamento da vida é, na verdade,
distanciamento de si mesmo. Compreendendo a causalidade do destino em um sentido eminentemente intersubjetivo, Habermas interpreta a tese
hegeliana do anseio pela vida perdida, o qual surge da experiência da vida cindida, como o reconhecimento de ambas as partes de que sua
contraposição se deve ao seu destacamento ou à abstração da conexão vital comum e que lhes é originária, pelo que fazem a experiência, diz
Habermas, “na relação dialógica do conhecer-se-no-outro, do fundamento comum de sua existência.” Habermas, Jürgen –„Arbeit und
Interaktion. Bemerkungen zu Hegels Jenenser „Philosophie des Geites“ “, in: Frühe politische Systeme: System der Sittlichkeit, Über die
wissenschaftlichen Behandlungsarten des Naturrechts, Jenaer Realphilosophie. Herausgegeben und kommentiert von Gerhard Göhler,Frankfurt
am Main, Ullstein 1974, 786-814, 791-792
323
Para Hegel, a pena surge como o universal abstrato da lei totalmente apartado do particular, isto é, o universal do dever desligado da ação
individual.“A pena é efeito de uma lei transgredida da qual o ser humano se desobrigou (von dem der Mensch sich losgesagt hat), mas da qual ele
98
social da dominação pelo universal vazio da consciência. Assim como no embate intra-subjetivo
entre universal e particular, também aqui Hegel argumenta que a identidade abstrata da
unificação delito-pena deixa exterior a si o caráter variegado das relações vitais entre indivíduo e
comunidade, notadamente os laços originários que estão por trás de “fenômenos” como o perdão
e a reconciliação, que redimem os pecados e extirpam a culpa. Entretanto, se a pena consiste no
alcance social ampliado da dominação subjetiva e intersubjetiva da universalidade da lei, esta
extensão da dominação do universal vazio sobre a vida comunitária pressupõe o atrelamento da
lei ao poder vivo, ao poder da vida comunitária que se volta contra o particular. Para que o
criminoso perca seu direito legalmente compreendido “na efetividade ... a lei precisa ser ligada
com vivo, ser revestida de poder. Se agora, na verdade, a lei insiste na sua temível majestade – e
que a pena seja merecimento pelo crime – isto não pode, na verdade, jamais ser superado.” (TWA
1, 338)
Vimos acima como Hegel amplia, com seu conceito de positividade, a noção kantiana de
heteronomia, e passa a compreender, na voz de Jesus Cristo, tanto ela quanto a autonomia moral
da vontade como formas de uma positividade cujo denominador comum é a “forma legal” da
moral e do direito enquanto tal, na medida em que a lei supõe uma contraposição entre o
particular e o universal vazio da obrigação. “Lei é uma relação pensada dos objetos uns aos
outros; no reino de Deus não pode haver qualquer relação pensada, porque não há quaisquer
objetos um para o outro. Uma relação pensada é firme e permanente, sem espírito, um jugo
(Joch), um encadeamento (Zusammenkettung), uma dominação e escravidão – atividade e
sofrimento (Tätigkeit und Leiden), determinar e ser-determinado.” (TWA 1, 308/309). Seguindo
Kant e sua própria tipologia das leis e deveres expressa ainda em Bern324 e retomada em Espírito
do Cristianismo, Hegel compreende que leis civis ou jurídicas podem se tornar morais, se o
sujeito as segue a partir de sua própria motivação e convicção racional325. Por outro lado, há,
segundo Hegel, leis morais às quais nenhuma lei civil corresponde, por exemplo, aquelas que
enunciam deveres morais para consigo mesmo326. Entretanto – e nisto consistiu, segundo Hegel, a
inovação da luta de Jesus ao considerar o resquício de positividade mesmo das leis morais (TWA
1, 322) –, uma vez que lei implica um universal vazio, contraposto ao particular, qualquer que
seja o tipo da lei em questão (moral, civil ou mesmo eclesiástica), uma lei sempre pode ser
infringida por seres humanos que agem segundo sua natureza pulsional, excluída do universal
ainda depende e à qual, nem à pena nem ao seu ato, ele não pode escapar.” (TWA 1, 340) Com efeito, a desobrigação em relação ao universal do
dever pressuposta no ato transgressor tem, como contrapartida à existência apartada do universal, a sua irredutibilidade, ou seja, a dependência do
indivíduo em relação a ele. A causa disso é, para Hegel, o fato de que, com a transgressão, um dever determinado deixou de ser cumprido, um
conteúdo que se subsumia à lei, mas a forma da mesma, a universalidade permanece intocada, só que agora, enquanto pena, o conteúdo da lei é o
próprio ato transgressor. “Pois, já que o caráter da lei é universalidade, então o criminoso esfacelou, na verdade, a matéria da lei, mas a forma, a
universalidade permanece, e a lei, sobre a qual ele acreditava ter se tornado senhor, permanece; contudo, aparece, segundo seu conteúdo,
contraposta, ela tem a figura do ato que contradiz a lei anterior.” (TWA 1, 340) Na passagem da lei à pena, trata-se assim de uma inversão pela
qual o conteúdo particular da transgressão se reveste da figura da universalidade da lei, o que reproduz a contraposição entre o particular e
universal, agora como pena e transgressor.“O conteúdo do ato tem agora a figura da universalidade e é lei. Esta inversão (Verkehrtheit) da mesma,
que ela se torna o contrário disso que ela era antes, é a pena – ao desobrigar-se da lei, o ser humano permanece ainda súdito. E já que a lei
permanece enquanto universal, então também o ato permanece, pois ele é o particular.” (TWA 1, 340/341)
324
Em “Positividade da Religião Cristã”, de 1795/96, ver o trecho intitulado “Das Zum-Staat-Werden einer moralischen oder religiösen
Gesellschaft”(TWA 1, 133 e seg)
325
“Jesus se posiciona contra aquelas leis que nós, segundo perspectivas distintas, denominamos mandamentos morais ou civis diferentemente da
maneira como se posiciona contra os mandamentos puramente objetivos, aos quais Jesus contrapõe algo inteiramente estranho, o subjetivo em
geral. Como aquelas exprimem relações naturais do ser humano na forma de mandamentos, então o engano com respeito às mesmas consiste em
se elas ou se tornam inteiramente objetivas, ou apenas em parte. Como leis são unificações de contrapostos no conceito, o qual as deixa, portanto,
como contrapostos; e o conceito, contudo, consiste ele mesmo na contraposição em face do efetivo, então ele exprime um dever-ser (Sollen). Na
medida em que o conceito é considerado não segundo seu conteúdo, mas segundo sua forma – que ele é conceito, é forjado e compreendido pelo
ser humano –, o mandamento é moral. Na medida em que se atenta somente ao conteúdo, enquanto unificação determinada de contrapostos
determinados, e o dever-ser, portanto, não se origina da propriedade do conceito, e sim é afirmado por um poder estranho, nesta medida o
mandamento é civil.” (TWA 1, 321)
326
“Mandamentos puramente morais que não são capazes de se tornar civis, isto é, nos quais os contrapostos e a unificação não podem ter a forma
de estranhos, seriam aqueles que dizem respeito à limitação daquelas forças cuja atividade não é uma atividade, uma relação para com outros seres
humanos.”(TWA 1, 322)
99
abstrato da lei. “A pena reside imediatamente na lei lesada. Ao criminoso é impingido o prejuízo
do igual direito que, através de um crime, foi lesado em um outro. O criminoso se pôs fora do
conceito que é o conteúdo da lei.” (TWA 1, 338) Esta infração, que é, em geral, um crime, do
qual o criminoso se sabe culpado, traz consigo a necessidade de pena, seja ela pela via de um
sofrimento impingido exteriormente ao infrator, seja ela advinda da consciência moral que lhe é
interior e se processe, assim, como má consciência.
“Como a lei fora contraposta ao amor não segundo seu conteúdo, mas segundo sua forma, então ela pôde ser
assimilada a ele, perdendo, entretanto, nesta assimilação, sua figura. Em contrapartida, ao crime ela é contraposta
segundo seu conteúdo. Ela é excluída dele, e realmente o é; pois o crime é uma destruição da natureza. Quando o uno
é contraposto, então a unificação dos contrapostos está presente somente no conceito, ele foi tornado uma lei. Se o
contraposto foi destruído, então permanece o conceito, a lei: mas ele exprime, com isso, somente o falho (das
Fehlende), uma lacuna, porque seu conteúdo está suspenso na efetividade, e [ele] se chama assim lei penal
(strafendes Gesetz) ... Mas tanto mais difícil parece ser pensar como a lei possa, nesta forma, enquanto justiça
punitiva, ser suspensa. Na suspensão anterior da lei através das virtudes, desapareceu somente a forma da lei, seu
conteúdo permaneceu; mas aqui, com a forma, seria também seu conteúdo suspenso, pois seu conteúdo é pena.”
(TWA 1, 338)
O problema para Hegel é mostrar que a culpa pelo crime não é revogada no “paradigma
legalista” da expiação penal327, mas permanece eternamente como lesão indelével: a justiça
lesada não se reconcilia, o que implicaria na tomada de consciência pelo criminoso da lei como
sua própria vontade. “A lei é bem satisfeita por meio disso, pois a contradição entre seu dever-ser
pronunciado e a efetividade do criminoso, a exceção que o criminoso quis fazer do universal, está
suspensa. Somente o criminoso não está reconciliado com a lei (ela continua sendo para o
criminoso um ser estranho ou subjetivo nele, enquanto má consciência)” (TWA 1, 340) Pelo
amor, a lei perdeu, para o ser humano virtuoso, seu caráter coercitivo, mas, como demonstra a
contraposição do criminoso à justiça que lesou, a lei não parece perder seu caráter coercivo de
forma geral. “Um juiz pode cessar de agir como um juiz, pode indultar. Mas com isso não se fez
bastante à justiça, esta é inflexível, e, enquanto leis forem o mais elevado, não se pode escapar
dela, o individual tem de ser sacrificado ao universal, isto é, tem-se que matar.” (TWA 1,
338/339) Além disso, onde o crime é visto apenas como violação da lei, a própria pena, ou a
investida do universal transgredido sobre o particular criminoso, não pode reconciliar, desfazer o
ocorrido. “A lei, enquanto ordenante ou como punitiva, é lei somente através disso: que ela é
contraposta ao particular. A lei tem a condição de sua universalidade em que os seres humanos
agentes ou as ações são particulares. E as ações são particulares, na medida em que elas são
consideradas em relação à universalidade, às leis, enquanto conformes ou contrárias a elas ... a
determinidade delas não pode sofrer nenhuma alteração. Elas são o efetivo, elas são o que são. O
que aconteceu não pode ser feito não acontecido, a pena segue o ato.” (TWA 1, 340) A pena é
capaz de eliminar a oposição entre a universalidade da lei e a particularidade do criminoso, mas,
uma vez que permanece um poder estranho que se ergue contra a exceção pretendida, não é capaz
de reconciliar o criminoso com a própria lei, o ser humano com a justiça maculada. “Na má
consciência (an dem bösen Gewissen), a consciência de sua ação má, de si mesmo como um mal,
327
Acerca da plausibilidade da implícita interpretação hegeliana da concepção “formalista” da pena em Frankfurt enquanto uma radicalização da
luta entre razão e sensibilidade, a qual se interconecta com a compreensão da lei moral como Ausführungsprinzip, indicamos a sagaz e
pormenorizada leitura de Bondeli. Bondeli, M. – Der Kantianismus des jungen Hegel. Die Kant-Aneignung und Kant-Überwindung Hegels auf
dem Weg zum philosophischen System, Hamburg, 1997, 128 e seg. Segundo Bondeli, a impossibilidade de que a lei moral possa exigir que a
sensibilidade seja imediatamente aniquilada se converte, no registro penal, na impossibilidade de que transgressões da lei sejam punidas segundo
determinados princípios. A determinação da punição compete, para Bondeli, apenas ao direito positivo, de maneira que ele conclui que Kant
transportou arbitrariamente as determinações da lei moral como “imperativo categórico” e “justiça” para a pena, o que se constitui como mistura
da moralidade com disposições do direito positivo. “Na pena moral o separado é sempre um exterior do qual eu escapo, o qual eu posso dominar.
O ato é a pena dentro de si mesmo. Tanto quanto eu, com o ato, tenha lesado vida aparentemente estranha, da mesma maneira eu lesei a própria
[vida].” (TWA 1, 305)
100
a pena sofrida não altera nada. Pois o criminoso vê a si mesmo sempre como criminoso, ele não
tem sobre sua ação, enquanto uma efetividade, nenhum poder, e esta sua efetividade está em
contradição com sua consciência da lei.” (TWA 1, 340)
Com sua concepção da pena como destino, Hegel pretende justamente compreender o
“fenômeno” do crime no horizonte do processo de auto-estranhamento e auto-diferenciação da
vida que deságua na reconciliação da vida consigo mesma no amor, pelo que se prenuncia já aqui
o mote jenense da cisão como um “fator da vida”. “A vida reencontrou a vida no amor. Entre
pecado e sua remissão, tampouco entre pecado e pena, imiscui-se um estranho. A vida se cinde
consigo mesma e se reunifica.” (TWA 1, 354) Ora, uma compreensão do crime como
discrepância engendrada pela própria vida em si mesma implica o abandono da compreensão do
delito como transgressão, como “acontecer” particular absolutamente apartado da universalidade
que rege a vida comunitária, mas igualmente da pena como efetivação social da “insatisfação” do
universal transgredido, aplicação do seu poder que, como pensa Hegel, é ela mesma
“modificação da vida” e, por conseguinte, sujeita à contingência. “O destino é, ao contrário,
incorruptível e ilimitado, tal como a vida. Ele não conhece quaisquer relações dadas, quaisquer
diversidades de pontos de vista, da situação, nenhuma circunscrição da virtude. Onde vida foi
lesada, mesmo que tenha acontecido também ainda de modo tão jurídico (rechtlich), com tal
presunção, aí entra em cena o destino...” (TWA 1, 347) Para Hegel, o problema fundamental do
paradigma “legalista” da strafendes Gesetz é justamente a consideração do crime como oposição
absoluta da universalidade da lei infringida, por um lado, e do indivíduo particular enquanto
criminoso, por outro. Em outras palavras, trata-se para Hegel, da absolutização dos lados da
oposição entre o universal legal totalmente apartado do indivíduo (pena) e o indivíduo que diante
de si e do universal não pode jamais deixar de ser um criminoso, a “transgressão
101
personificada”328: “diante da lei, o criminoso nada mais é do que um criminoso. Entretanto, assim
como aquela é um fragmento da natureza humana, assim também este [o é]; se cada uma fosse
um todo, um absoluto, então também o criminoso não seria mais do que um criminoso.” (TWA 1,
353) Neste diagrama é que a potência punitiva se ergue como universal lesado totalmente
apartado do particular. “Mas o vivo, cujo poder se unificou com a lei, o executor, que retira do
criminoso na efetividade o direito perdido no conceito, o juiz não é a justiça abstrata, mas antes
um ser (Wesen), e justiça somente sua modificação.” (TWA 1, 338) Assim, Hegel compreende
que a lei somente se defronta ao particular como sanção, porque se unificou com a vida. Mas se é
assim, se a justiça em seu exercício, enquanto “modificação de um vivo”, somente pode se fazer
valer contra o criminoso pela união com a vida, o crime é ele mesmo vida que se contrapõe à
vida, ao passo que a lei é vida que se faz valer em sua universalidade contra vida que se
particularizou: “vida enquanto vida não é diversa de vida.” (TWA 1, 305). O estranhamento entre
o universal punitivo e o transgressor é, numa perspectiva originária329, o auto-estranhamento da
vida, o processo mesmo de sua auto-diferenciação. “Somente através de uma ruptura para fora da
vida unida (durch ein Herausgehen aus dem einigen Leben), nem regulada pelas leis nem
contrária às mesmas, [somente] pela mortificação da vida, é engendrado um estranho.
Nadificação da vida não é um não-ser da mesma, mas sua separação, e a nadificação consiste em
que ela foi convertida em inimigo.” (TWA 1, 342)
O crime, diz Hegel, “é uma destruição da natureza”; por outro lado, se a lei é, como tal, “a
unificação dos contrapostos [que] está presente somente no conceito”, a lei penal é esta mesma
unificação quando “o contraposto foi destruído”, que “exprime com isso somente o falho (das
Fehlende), uma lacuna, porque seu conteúdo está suspenso na efetividade” e “é, segundo seu
conteúdo, contraposta à vida, porque ela mostra a destruição da mesma”(TWA 1, 338). A
reconciliação do criminoso com a justiça exige a recondução de ambos à sua unidade vital. Com
essa compreensão, Hegel antecipa sua crítica jenense (Naturrechtaufsatz) do caráter “arbitrário” e
contingente da pena como sanção, como exercício da justiça que mantém a fixação na
universalidade abstrata do merecimento da pena. “A necessidade do merecimento da pena
permanece firme, mas o exercício da justiça não é nada necessário, pois ela, enquanto
modificação de um vivo, também pode passar, outra modificação pode entrar em cena. E assim a
justiça se torna algo contingente: entre ela enquanto universal, pensado e ela enquanto efetivo,
isto é, num ente vivo, pode haver uma contradição.” (TWA 1, 339) Em face da fixação no caráter
punitivo da justiça se ergue a necessidade de que ela seja reconduzida novamente à vida como
única maneira de se fazer valer como tal. Importa, portanto, que o caráter punitivo da justiça não
seja elevado ao absoluto.
“E assim não haveria nenhum retorno à unicidade da consciência por um caminho puro, nenhuma suspensão da pena,
da lei ameaçadora e da má consciência, a não ser um ignominioso mendigar, se a pena tem de ser considerada
somente como algo absoluto, se ela não estivesse sob nenhuma condição e não tivesse nenhum lado a partir do qual
328
Segundo Hegel, o retorno do destino enquanto vida em sua hostilidade à totalidade do estado originário é possível em virtude da humanidade
total do transgressor, seu vínculo à vida; “pois o pecador é mais do que um pecado existente, um crime que possui personalidade: ele é um ser
humano, crime e destino estão nele, ele pode retornar novamente a si mesmo, e quanto ele retorna, / eles estão abaixo dele.” (TWA 1, 353/354)
329
É bastante ilustrativo notar que, para Hegel, o paradigma da justiça centrado na concepção do destino como pena se constitui como uma esfera
originária, a própria vida, a partir da qual, unicamente, a gênese do universal e do particular contrapostos absolutos ganha sentido: “o destino tem,
em relação à reconciliabilidade (Versöhnbarkeit), a prerrogativa, diante da lei punitiva, de que ele se encontra no interior do âmbito da vida,
enquanto que um crime sob lei e pena [se encontra] no âmbito de contraposições que não se pode ultrapassar, de efetividades absolutas.”(TWA 1,
342) É neste horizonte temático, que antecipa, ainda no registro do conceito de vida e ser da Vereinigungsphilosophie, o poder nadificante da
concepção de “eticidade absoluta” no Naturrechtaufsatz, que Hegel compreende a vida como âmbito anterior e originário do qual a lei surge como
“vida incompleta”, universal contraposto, incapaz de reconciliar a vida em sua beleza originária. “Mas, na pena como destino, a lei é mais tardia
do que a vida e se encontra mais profundamente do que esta. Ela é apenas a lacuna da mesma, a vida falha (das mangelnde Leben) enquanto
poder; e a vida é capaz de curar novamente suas chagas, a vida separada e hostil [é capaz] de retornar mais uma vez (a)dentro de si mesma e de
superar a obra mal feita do crime, a lei e a pena.” (TWA 1, 343/344)
102
ela tivesse acima de si, como sua condição, uma esfera mais elevada. Lei e pena não podem ser reconciliadas, mas
antes [podem ser] suspensas na reconciliação do destino.” (TWA 1, 341)
Para Hegel, o que antecipa de certa forma a discussão do crime nas Grundlinien, o crime
não pode ser visto simplesmente como uma transgressão da lei, mas antes como uma violação da
vida em sua unicidade, dilaceramento da mesma. “A enganação do crime, que crê destruir vida
estranha e ampliar a si mesmo com isso, se dissolve quando o espírito deixado para trás da vida
lesada entra em cena contra o mesmo.” (TWA 1, 342) Nesta transgressão que é, na verdade, a
violação e perturbação da harmonia divina do amor, a unicidade do sujeito consigo mesmo e dos
diversos sujeitos entre si, a pena não mais aparece como a reação de um poder estranho, mas
como destino que se executa pela vida lesada e violada. “O temor diante da pena é temor diante
de um estranho ... a pena pressupõe, portanto, um senhor estranho desta efetividade, e o temor
diante da pena é temor diante dele; em contrapartida, o destino é poder hostil, o poder da vida
tornada inimiga e, portanto, o temor diante do destino / não [é] o temor ante um estranho.” (TWA
1, 344/345) Assim, o sofrimento e o temor diante da sanção legal se tornam, em sua verdade
originária, o sinal de que foi “revogada” ao criminoso a atitude amistosa da vida, a qual,
rompendo o liame originário, tornou-se hostil a ele: porém, esta hostilidade não é mais “exterior”,
mas sentida pelo próprio transgressor. E uma vez que o destino que se abre das chagas desta vida
transgredida não se situa acima ou abaixo dela, mas é antes a própria vida que se dilacera, a
reconciliação com o destino é possível. A vida cura suas chagas, e aquele que experimenta, no
destino, a perda da unidade da vida, pode recuperar esta unidade na união não dominadora ou não
coercitiva com os outros, isto é, na harmonia do amor. Para Hegel, esta unidade da vida também
pode ser violada de uma maneira “conforme a lei” pelo engajamento individual no fazer valer de
seus direitos (Kampf).
Com efeito, se o crime é vida que atenta contra a própria vida, nele é a vida mesma que
rompe a rede de suas relações originárias, e, nesta violação, evidencia-se o impulso de reposição
destas relações, um anseio (Sehnsucht) que o crime enquanto ação particular que transgride o
universal da lei não revela e que, enquanto “conhecimento da perda da vida”, é já remissão dos
pecados, reconciliação, fruição da vida em sua plenitude330. “A partir daí, onde o criminoso sente
a destruição de sua própria vida (sofre a pena) ou conhece a si mesmo como destruído (na má
consciência), sobressai o efeito do seu destino, e este sentimento da vida destruída tem de se
tornar o anseio pela [vida] perdida (eine Sehnsucht nach dem verlorenen). O faltante é conhecido
como sua parte, como o que deveria ser nele, [mas] nele não é. Esta lacuna não é um não-ser.”
(TWA 1, 344) A idéia hegeliana de que o amor, enquanto compaginação daquelas relações
originárias, é o que apazigua e satisfaz aquele anseio de retorno da vida (a)dentro de si, é o que
reconcilia a pena como destino com a natureza, evidencia também o distanciamento da
concepção hegeliana do “estado de harmonia intersubjetiva” em relação ao anti-utilitarismo do
estado originário de justiça a ser restaurado segundo o direito penal kantiano: para Hegel, a
harmonia intersubjetiva “restaurada” se efetiva como esfera supra-moral e supra-legal, isto é, um
âmbito onde o criminoso existe não como “eternamente” contraposto à universalidade da lei,
dilacerado por este sofrimento, mas sim como plenamente reconciliado com as relações vitais
cuja ruptura provocou. Este bem, visado pela pena como destino, o restabelecimento da harmonia
subjetiva e intersubjetiva, apesar de ser distinto do paradigma penal da justiça, não pode ser
considerado como exterior a ela, de maneira que a posição hegeliana pudesse ser considerada
utilitarista por admitir como finalidade da pena a consecução de objetivo distinto do
330
“O destino, no qual o ser humano sente o [que foi] perdido, provoca um anseio pela vida perdida. Este anseio pode, se deve ser falado de [ser]
melhor e de ser melhorado, significar já um melhoramento, pois ela, sendo um sentimento da perda da vida, conhece o [que foi] perdido como
vida, como [algo] que outrora lhe era amistoso. E este conhecimento já é uma fruição da vida.” (TWA 1, 345)
103
restabelecimento da justiça enquanto tal. É justamente a tese hegeliana mais geral, a de que o
amor é πλήϱωµα da lei, que evidencia a esfera deste bem que é a “vida reconciliada consigo
mesma” como uma esfera acima da lei e que a “suspende” em si mesma, não um fim exterior à
justiça, mas seu fim imanente.
“No destino, a pena é um poder hostil, um individual, no qual universal e particular estão unificados também na
perspectiva de que, dentro dele, o dever-ser e a execução deste dever-ser não estão separados, como na lei, a qual é
somente uma regra, um pensado e [que] carece de um contraposto a ela, de um efetivo do qual ela adquire poder.
Neste poder hostil, o universal também não é separado do particular na perspectiva segundo a qual a lei, enquanto
universal, é contraposta ao ser humano e às suas inclinações enquanto [estes são o] particular.”(TWA 1, 340)
Por destino, termo tomado de empréstimo a Schiller, Hegel compreende esta “vida
lesada” pelo crime. Para Hegel, o desligamento do indivíduo da unidade vital, da “unicidade da
consciência”, desligamento que ocorre tanto no cometimento do crime quanto na ação limitada
(exclusivamente particular), causa lesão à vida e faz cair sobre si, com a culpa provocada pelo
seu desligamento, um destino. Mas o destino não permanece este poder negativo individual, mas
é compreendido por Hegel como o poder universal da vida que afronta o culpado de maneira
hostil: ele é um separado que não pode ser nadificado pelo seu oposto331. Este poder é suscitado
tão logo um ser humano aja de maneira “excludente”, mesmo na mera afirmação da
individualidade e de direitos em face de outrem. Se o âmbito da justiça legal, que se desenvolve
no quadro geral do paradigma “legalista” da strafende Gerechtigkeit, não é rompido e se
permanece sempre na oposição do universal abstrato da lei e da particularidade transgressora,
culpa e destino permanecem irreconciliados e exigem inapelavelmente a pena e sofrimento por
parte do indivíduo. “a pena como destino é a igual retroação (die gleiche Rückwirkung) do
próprio ato do criminoso, [retroação] de um poder que ele próprio muniu, de um inimigo, o qual
ele mesmo deu a si como inimigo.” (TWA 1, 342) No entanto, segundo Hegel, se a contraposição
legal e a exigência que cria pela efetivação da pena são superadas, se é abandonado o paradigma
da justiça punitiva e se adentra no elemento do perdão e da remissão da culpa, o destino pode,
enquanto vida que é danificada e que por isso entra em cena, ser reconciliado, e a vida pode
novamente reencontrar a vida numa nova unicidade. Mas isso somente é possível sob a condição
de uma outra atitude socialmente instituída frente às lesões jurídicas, ao crime e, em geral, ao agir
exclusivista e afirmador da individualidade. Esta condição se realiza no estado de harmonia
intersubjetiva chamado por Hegel de amor: somente o amor supera a justiça “legalista” e unifica
o destino332. “Porém, o amor reconcilia não somente o criminoso com o destino, ele reconcilia
também o ser humano com a virtude, isto é, se ele não fosse o único princípio da virtude, então
cada virtude seria, ao mesmo tempo, uma não-virtude.” (TWA 1, 359) Seja em foro subjetivo,
seja em foro intersubjetivo, o amor suspende as contraposições da vida limitada e danificada,
principalmente entre o indivíduo e a comunidade, e a reconduz à “unicidade de consciência”
apropriada a este estado de harmonia divina que Hegel compreende, na linha da
Vereinigungsphilosophie de Hölderlin, de maneira panteísta, como o “um em todos e todos em
um”. O amor, preconizado pelo Jesus do apóstolo João como sendo o próprio espírito divino,
suspende e ultrapassa a positividade ou a solidificação social das oposições vitais pela fixação
331
“Reconciliada a lei não pode ser, pois ela insiste sempre em sua temível majestade e não se deixa influenciar pelo amor ... O destino, por outro
lado, pode ser reconciliado, porque ele mesmo é um dos membros, um separado, o qual, enquanto separado, não é nadificado pelo seu contrário,
mas sim pode ser suspenso através da unificação. O destino é a própria lei que eu estabeleci na ação (seja esta transgressão de uma outra lei ou
não), em seu retroagir sobre mim.” (TWA 1, 305)
332
Entretanto, em pleno acordo com o “modelo ético do amor”, este estado intersubjetivo de reconciliação no amor é vista também, ao mesmo
tempo, como suspensão da contradição entre homo noumenon e homo phaenomenon. “Esta reconciliação não é, portanto, nem a / destruição ou
opressão de um estranho, nem uma contradição entre a consciência de si mesmo e a esperada diversidade da representação de si em um outro, ou
uma contradição entre o merecimento segundo a lei e o preenchimento da mesma, entre o homem como conceito e o homem enquanto efetivo.”
(TWA 345/346)
104
das mesmas no paradigma “legalista” de justiça e de moral e, nesta medida, torna-se, enquanto
princípio das virtudes, também o fundamento de uma comunidade que vai além da positividade
das leis jurídicas e morais na direção de uma unicidade interior (subjetiva) e intersubjetiva
harmônica da vida. Interessante notar como Hegel, já neste ponto de sua obra, compreende, em
certa sintonia com desenvolvimentos posteriores relacionados à reconciliação, a relação entre o
amor e o direito como percorrendo a polissemia do verbo aufheben: enquanto uma efetividade
espiritual mais elevada, o amor não teria, para se efetivar nas comunidades políticas e religiosas,
de aniquilar as instituições que se baseiam no paradigma “legalista” de justiça, mas antes
vivificá-los, de fazer penetrar neles a vida e, somente desta maneira, pôr-se acima deles e elevá-
los a este nível mais espiritualizado de efetividade social. Nesta integração é que se realiza a
plenitude do que Hegel pretende ao dizer que amor é πλήϱωµα da lei. “Também na hostilidade
do destino é sentida pena justa (gerechte Strafe). Entretanto, como ela não vem de uma lei
estranha sobre o ser humano, mas antes, a partir do ser humano, primeiramente surge a lei e o
direito do destino, então o retorno ao estado originário, à totalidade é possível...” (TWA 1,
353/354)
“A vida lesada se me defronta como destino. Apaziguado ele está, quando eu tiver sentido
seu poder, o poder do morto, tal como, no crime, eu agi simplesmente como poder.”(TWA 1,
305) Com efeito, a unificação do “criminoso” com a comunidade somente pode se efetivar, em
última instância, não pela pena, mas pelo amor, que é, segundo Hegel, a alma vivificante da pena
como destino. “O destino ... isto é, a própria lei que retroage (das rückwirkende Gesetz selbst),
pode ser superado; pois uma lei que eu mesmo estabeleci, uma separação que eu mesmo fiz, eu
posso também nadificar.” (TWA 1, 305) O destino propicia uma reconciliação do “criminoso”
com a comunidade ao fazer com que o indivíduo sinta sua lesão da vida contra si mesmo, contra
o outro e contra a própria vida. “Este sentimento da vida que se reencontra a si mesma é o amor,
e nele se reconcilia o destino. O ato do criminoso não é, considerado desta maneira, nenhum
fragmento. A ação que vem da vida, do todo, apresenta também o todo. O crime, que é a
transgressão de uma lei, é somente um fragmento, pois fora dela [a transgressão E.C.L] está já a
lei, a qual não pertence a ela. O crime, o qual provém da vida, expõe este todo, mas [o expõe]
partido, e as partes hostis podem novamente integrar-se em um todo.”(TWA 1, 345) A condição
“subjetiva” de possibilidade do retorno da vida a partir da cisão ou da reconciliação do amor é a
percepção do transgressor de seu ato como seu isolamento do todo vital, como destruição da
unidade da vida, o que se fundamenta na sua defrontação com a vida que, através de seu próprio
ato, se tornou hostil, isto é, com o destino; pois nesta consciência de si mesmo como inimigo333,
consciência da ruptura dos laços vivos com a comunidade, da totalidade que se tornou hostil, está
já contida a idéia de um impulso ao restabelecimento da unidade. “A justiça está apaziguada
(befriedigt), pois o criminoso sentiu a mesma vida que ele lesou dentro de si enquanto lesada. Os
aguilhões da consciência moral (Gewissen) se tornaram embotados, pois, a partir do ato, o mau
espírito deles retrocedeu: não há nada hostil mais no homem.” (TWA 1, 346) Para Hegel, a
consciência da hostilidade e contraposição da vida é, ao mesmo tempo, consciência da unidade
perdida com a mesma e da possibilidade de sua recuperação. “ a contraposição é a possibilidade
de reunificação, e na medida em que se contrapôs na dor, pode-se ser re-acolhido (wieder
aufgenommen [zu] werden). Porque também o hostil é sentido como vida, nisto reside a
possibilidade de reconciliação do destino.” (TWA 345)
333
“Então o destino não é nada estranho, tal como a pena ... é a consciência de si mesmo, mas [consciência de si mesmo] enquanto de um inimigo.
O todo pode restabelecer dentro de si a amizade, ele pode retornar à sua vida pura através do amor: assim se torna sua consciência novamente
crença em si mesmo, a intuição de si mesmo se tornou uma outra e o destino está reconciliado.”(TWA 1, 346)
105
De certa maneira, pode-se dizer que Espírito do Cristianismo converge para um resultado
aporético. Esta “aporia” representa, em geral, a derrocada da expectativa de Hegel quanto a uma
integração social, em condições sociais “complexas”, que se baseiam na garantia dos direitos
individuais e salvaguarda das relações jurídico-privadas, através de uma Volksreligion vinculada
ao amor. “O destino da propriedade se tornou poderoso demais para nós, mais ainda do que
reflexões sobre isso seriam suportáveis, do que sua separação de nós nos seria pensável.” (TWA
1, 333) A aporia se estabelece pela mútua exclusão entre a forma genuinamente espiritual e
originária de relação comunitária ou intersubjetiva, definida pelo âmbito de solidariedade,
confiança, fraternidade e perdão do amor, por um lado; e as relações sociais que supõem
formação das individualidades, seu destacamento da unicidade vital das consciências e sua
“confrontação” no horizonte da afirmação excludente da autoconsciência individual, e que são
compreendidas por Hegel em geral como “relações de direito”(Rechtsverhältnisse), por outro
lado. “Assim, amor e luta não são vistos ainda, em Espírito do Cristianismo, como dois
momentos de um processo de interação no qual a autoconsciência se forma por separação e
unificação. A separação que o amor tenciona ultrapassar pode ter diferentes causas: não somente
o conflito por direitos – que pressupõe uma determinada situação histórica –, mas ainda também
a reflexão, assim como, de maneira geral, o “desenvolvimento” e formação (Ausbildung) da
individualidade.”334 O processo de individualização, enquanto processo de mútua exclusão de
individualidades, não somente parece não fazer parte da “unicidade da consciência” dos
indivíduos, como ainda corresponde à ameaça de seu colapso. Esta relação conflituosa entre duas
334
Siep, Ludwig (Hg.) –Anerkennung als Prinzip der praktischen Philosophie, Freiburg/München, 1976, p.49
106
acepções aparentemente excludentes de “relação intersubjetiva” – cuja integração pode ser vista,
sem exagero, como o impulso fundamental da teoria hegeliana da eticidade tanto em Jena, no
Naturrechtaufsatz, no System der Sittlichkeit e nos Systementwürfe, quanto no registro
sistemático que se vincula ao aparecimento das Grundlinien – é considerada por Hegel nos
tópicos sobre o destino de Jesus e das comunidades cristãs primitivas, cuja fuga em relação à
efetividade social selam o próprio destino do cristianismo como religião e das formas sociais
modernas, na medida em que estas germinam e se solidificam no solo do “espírito do
cristianismo”.
“A riqueza revela, portanto, sua contraposição ao amor, à totalidade, através disso: que ela é um direito e é
conceituada numa multiplicidade de direitos, através do que, em parte sua virtude que se relaciona imediatamente a
ela, a retidão, em parte as outras virtudes possíveis nos limites de seu círculo, são necessariamente ligadas com
exclusão, e cada ato de virtude é em si um contraposto.” (TWA 1, 334)
335
Todavia, é preciso ter em mente que, ao utilizar o conceito de Bildung para se referir ao processo de condensação da individualidade destacada
da eticidade substancial, Hegel parece compreender este processo como contendo mais elementos do que aqueles que convergem para a origem do
Privatmensch a partir do declínio da pólis antiga, o que corresponde, nos contornos gerais, à tese de Lukács sobre os escritos de Frankfurt.
Lukács, Georg – Der junge Hegel und die Probleme der kapitalistischen Gesellschaft , Aufbau-Verlag, Berlin/Weimar 1986. Para Lukács,
somente no período de Frankfurt aparece para Hegel o problema de uma avaliação positiva das instituições modernas, da sociedade burguesa e do
indivíduo privado. Os “Escritos Teleológicos de Juventude” de Hegel são orientados, em seu impulso fundamental, contra o cristianismo enquanto
religião objetivamente institucionalizada, uma intenção que se guia pela tese fundamental acerca do desenvolvimento histórico do ocidente,
segundo a qual o declínio das repúblicas antigas representa também a derrocada da sociedade da liberdade e grandeza humanas, a transformação
do cidadão republicano da pólis no Privatmensch meramente egoísta da sociedade moderna, no Burguês.
107
Para Hegel, a relação intersubjetiva sob a égide do paradigma da justiça é uma relação
mutuamente excludente entre os indivíduos, cujo fim é estabelecer o ponto de vista
reciprocamente reconhecido da igualdade do direito de ambos. “A retaliação e a igualdade da
mesma é o princípio sagrado de toda justiça, o princípio sobre o qual deve repousar a constituição
do estado.” (TWA 1, 331) O ponto de vista jurídico-moral da justiça define a formação e
solidificação da esfera da igualdade dos direitos. Contraposto a este paradigma de relação
intersubjetiva, que supõe a mútua exclusão das individualidades, está a “ética do amor”
propagada por Jesus: “Jesus exige, em geral, renúncia do direito, elevação acima de toda a esfera
da justiça ou injustiça através do amor, no qual, com o direito, também este sentimento de
desigualdade e o deve (das Soll) deste sentimento, que exige igualdade, isto é, o ódio contra
inimigos, desaparece.” (TWA 1, 331) Por incluir também formação desta igualdade, a justiça
corresponde, enquanto processo geral da separação e mútua exclusão das individualidades
(potencialmente de luta e ódio), também à possibilidade da desigualdade e da imposição
unilateral de reivindicações. E, de fato, Hegel compreende, já em Espírito do Cristianismo, o
processo de formação desta esfera de mútua exclusão e igualdade como uma luta por direitos
(Kampf für Rechte), a qual corresponde a uma ruptura da vida e da natureza que permanece
incontornável com a manutenção deste ponto de vista. “E por isso [porque o corajoso se insere
também no âmbito do direito e do poder E.C.L] é já a luta por direitos um estado não-natural –
tão bem quanto o sofrimento passivo – , no qual há contradição entre o conceito do direito e sua
efetividade.”(TWA 1, 348) Para Hegel, a formação do ponto de vista jurídico-moral da justiça
encerra em si uma contradição que é o fato de que a universalidade pensada individualmente no
“conceito de direito”, enquanto fundamento legítimo para ações, não se coaduna com a
efetividade da afirmação unilateral que gera a luta.“Através da autodefesa do injuriado o agressor
é, da mesma maneira, atacado e, por meio disso, posto no direito de autodefesa, de tal forma que
ambos têm direito, ambos se encontram em guerra, a qual confere a ambos o direito de se
defender.” (TWA 1, 348/349) A defesa do injuriado investe o agressor, na lógica do ponto de
vista jurídico, do direito de se defender diante da investida que foi a reação do agredido. Assim, o
conflito jurídico se torna apenas uma contraposição inexorável entre dois direitos, duas
pretensões de universalidade na dominação do objetivo: “na luta por direitos reside uma
contradição. O direito, que é um pensado, portanto, um universal, [e] é, no agressor, um outro
pensado: assim haveria aqui dois universais, os quais se suspenderiam, mas, mesmo sim, são.
Igualmente os combatentes estão contrapostos enquanto efetivos, ambos viventes, vida em luta
com vida, o que novamente se contradiz.” (TWA 1, 348)
336
“E como eles, desta maneira, ou deixam a decisão do direito sobrevir por violência ou força – já que o direito e a efetividade nada têm em
comum um com o outro, eles mesclam ambos [os combatentes] e os tornam independentes desta; ou eles se submetem a um juiz ... Eles renunciam
à sua própria dominação da efetividade, ao poder e deixam um estranho, uma lei na boca de um juiz falar sobre eles. Eles se submetem então a um
tratamento contra o qual, entretanto, cada parte protestou, tendo ele entrado em contradição com o prejuízo do direito deles, ou seja, puseram-se
contra o tratamento através de um outro.” (TWA 1, 348/349)
108
contentar com a passividade do “não fazer valer seu direito”. “O verdadeiro de ambos os
contrapostos, da bravura (Tapferkeit) e da passividade, unifica-se de tal maneira na beleza da
alma que daquela a vida permanece, a contraposição por outro lado se anula (wegfällt); desta
permanece o prejuízo do direito, mas a dor desaparece.” (TWA 1, 348/349) A postura individual,
que é capaz de encaminhar a contenda para a plena reconciliação, é uma “síntese de coragem e
passividade” (Siep, 1979, 49), que se caracteriza pela renúncia consciente da possibilidade de
fazer valer seu direito.
“Um ânimo que está enaltecido acima das relações jurídicas (Rechtsverhältnisse), que não está capturado por nada de
objetivo, não tem nada a perdoar ao injuriador, pois este não lhe lesou nenhum direito, já que ele renunciou ao
mesmo, tão logo seu objeto foi atingido. Está aberto para a reconciliação, pois lhe é possível, portanto, retomar
novamente toda relação viva, entrar mais uma vez nas relações da amizade do amor, já que dentro de si não lesou
nenhuma vida. Do seu próprio lado, nenhuma sensação hostil se antepõe em seu caminho, nenhuma consciência,
nenhuma exigência ao outro de restabelecer o direito lesado, nenhum orgulho que exigisse do outro a confissão de ter
estado abaixo dele, numa esfera mais inferior, no âmbito jurídico.” (TWA 1, 351)
A questão não é, para Hegel, nada trivial: sobre a possibilidade de uma integração
socialmente abrangente pelo princípio do amor se baseia sua expectativa quanto à restauração da
beleza de uma “religião do povo”. “A amizade das almas enquanto essência, enquanto espírito
pronunciado para a reflexão, é o espírito divino, Deus, o qual governa a comunidade. Há uma
idéia mais bela do que um povo de seres humanos que são relacionados uns aos outros pelo amor
? uma mais arrebatadora do que pertencer a um todo que, enquanto todo, uno, é o espírito de
Deus, cujos filhos são os singulares ?” (TWA 1, 394) Diante desta bela idéia de um povo de
Deus, Hegel constata, entretanto, que a integração social abrangente tem que se basear em outros
elementos, os quais concebe já em certa sintonia com o que se tornará, posteriormente, o “sistema
de carências”.
“De uma concordância no conhecimento, em opiniões iguais não se pode falar aqui. A unificação de muitos repousa
sobre igual necessidade (Not), ela se expõe em ob-jetos (Gegenständen) que podem ser comunitários, em relações
que surgem a este respeito e que, em seguida, no esforço comum pelas mesmas e na atividade e ação comum. Ela
pode se ligar a mil ob-jetos de posse e fruição comunitária e de igual formação e nestes conhecer a si mesma.” (TWA
1, 395)
posicionam os seres humanos em relação à sua formação e ao seu interesse, em sua relação ao
mundo, quanto mais cada um tem de característico (Eigentümliches), tanto mais limitado o amor
se torna a si mesmo” (TWA 1, 395) A insuficiência sócio-integradora do amor se mostra, por
conseguinte, na necessidade de se recolher a um círculo de “ethos único” como forma de
encontrar a satisfação que é seu estado de harmonia intersubjetiva e de unicidade da consciência:
“para ter a consciência de sua felicidade, para dá-la a si mesmo, tal como ele faz com satisfação,
é necessário que ele se aparte, que ele crie para si até mesmo inimizades.” (TWA 1, 395) Com
estas ponderações Hegel alcança então a precisão no seu diagnóstico das insuficiências do amor
enquanto princípio sócio-integrador: “um amor entre muitos permite, portanto, apenas um
determinado grau da força, da interioridade e exige igualdade do espírito, do interesse, das muitas
relações de vida, esmorecimento das individualidades.” (TWA 1, 395)
Por conseguinte, esta sensação de aspereza completa das relações de vida era a percepção
do próprio Cristo, e foi ela que, segundo Hegel, levou Jesus a abandonar o povo judeu ao seu
próprio destino e a tentar subtrair a si mesmo e ao seu séqüito de apóstolos deste destino
inexorável. “A ausência de destino (Schicksallosigkeit) através da fuga para a vida não
preenchida foi facilitada aos membros da comunidade nisto: que eles formavam uma comunidade
que se abstinha de todas as formas da vida um contra o outro, ou que ela somente se determinava
através do espírito universal do amor, isto é, não vivia nestas formas.” (TWA 1, 405) A
contrapartida desta tentativa é justamente que Jesus teve que apartar a si mesmo e seu círculo
limitado de fraternidade e amor de toda participação na vida social e civil, tanto a participação em
relações jurídico-privadas, quanto em “relações humanas naturais” (como casamento,
constituição de família etc...). “No desígnio do amor, a comunidade (Gemeine) despreza qualquer
unificação que não seja a mais interior, qualquer espírito que não seja o mais elevado.” (TWA 1,
396) Mesmo as “relações humanas naturais” foram infestadas pela ausência de espírito do
legalismo: “por isso, Jesus se isolou de sua mãe, de seus irmãos, de seus parentes. Ele não podia
amar nenhuma mulher, engendrar nenhuma criança, tornar-se pai de família nem concidadão que
desfrutasse com os outros da vida em comum.” (TWA 1, 400). Para Hegel, a fim de preservar a
pureza e a beleza da relação vital de unidade com o divino, que se consubstanciava no seu círculo
111
seleto baseado no amor e na fraternidade, Jesus teve de recusar toda participação do amor na
efetividade social. “Por causa do caráter da contaminação (Verunreinigung) da vida, Jesus
somente podia trazer o reino de Deus no coração, somente [podia] entrar em relação com seres
humanos para formá-los (um sie zu bilden)” (TWA 1, 399/400) Esta rejeição do mundo é já,
segundo Hegel, parte da Himmelfahrt de Jesus, um movimento de restauração, no elemento da
pura idealidade, de uma vida que é, na verdade, esvaziada de toda realidade. Este conflito entre a
pura idealidade da efetivação do amor no círculo íntimo de Jesus e a situação existente de um
mundo infestado pelas relações legais é, para Hegel, o que sela o destino e morte de Jesus.
“A existência de Jesus era, portanto, separação do mundo e fuga dele para o céu, restabelecimento, na idealidade, da
vida que se esvazia (Wiederherstellung des leerausgehenden Lebens in der Idealität), em cada conflitante
recordação, e volver os olhos para cima na direção de Deus; mas, por outro lado, manejo (Betätigung) do divino e,
nesta medida, luta com o destino: em parte, na difusão do reino de Deus, com cuja / apresentação todo o reino do
mundo colapsava e desaparecia; em parte, na reação imediata contra porções singulares do destino, assim como elas
se lhe deparavam diretamente – exceto contra a porção do destino que aparecia imediatamente como estado e [que]
também em Jesus chegava à consciência, contra o qual ele se comportava passivamente.” (TWA 1, 402/403)
A fuga para longe da impureza da realidade social selou também o destino do cristianismo
primitivo e, em última instância, também do cristianismo em seu desenvolvimento histórico e da
civilização que nasceu sob a prevalência de seu espírito. Os discípulos diretos de Jesus formaram
uma comunidade apartada do mundo cujo elo espiritual era formado pela unicidade da
consciência no amor, a relação intersubjetiva que não é mais uma “relação”, mas o encontrar a si
mesmo nos outros. “A partir da idéia de reino de Deus estão excluídas, na verdade, todas as
relações (Verhältnisse) fundadas por um estado, as quais se encontram infinitamente mais fundo
do que as relações (Beziehungen) vivas da associação (Bundes) divina e por uma tal [associação]
somente podem ser desprezadas” (TWA 1, 399) Entretanto, o amor neste caso se mostra aquém,
pensa Hegel, do modelo da “justiça como destino”, isto é, a recuperação da vida a partir da perda
da unidade da mesma nos processos de “individualização”, mas se trata antes de uma unidade que
não ousa defrontar-se com seu contrário, que não tem força para contemplar a perda de si e a
partir dela reconciliar-se consigo. “Afora este comunitário fruir, rezar, comer, se alegrar, crer e
ter esperança, afora a atividade única para a disseminação da crença, para o aumento do caráter
comunitário da devoção, jaz ainda um campo descomunal de objetividade, a qual estabelece um
destino de alcance multifacetado e de violento poder, e que se dirige à múltipla atividade.” (TWA
1, 396) As relações de amor e fraternidade do séqüito de Jesus não possuem a “objetividade” do
encontro de si no outro, da superação da exclusão recíproca dos indivíduos, mas permanecem um
sentimento “subjetivo” da unidade pura apartada do mundo. “Em todas as formas da religião
cristã que se desenvolveram no destino ulterior dos tempos, reside este caráter fundamental da
contraposição no divino, o qual deve estar presente somente na consciência e nunca na vida”
(TWA 1, 418). Com efeito, a plenitude da vida não é experienciada na forma de uma existência
comunitária, na forma de uma vida comunitária que é capaz de se sobrepor às cisões decorrentes
da individualização, mas tem de se satisfazer com uma efetivação sectária. É este sectarismo que,
ao fim e ao cabo, torna o cristianismo inapto a oferecer uma integração social sob o ethos único
do princípio do amor ao próximo e da reconciliação: “o amor deles [do círculo de espíritos que é
um pequeno reino de Deus] não é religião; pois unicidade, o amor dos seres humanos não
adquire, ao mesmo tempo, a apresentação desta unicidade. Amor os unifica, mas os amantes não
conhecem esta unificação. Onde eles conhecem, conhecem o apartado (Abgesondertes).” (TWA
1, 407)
tornam pessoas privadas contrapostas a um estado hostil, [pessoas privadas] que se excluem
dele.” (TWA 1, 399) O amor fraterno dos primeiros cristãos, uma relação comunitária que
somente se realiza em sua pureza graças ao destacamento do mundo social, pode, enquanto
sentimento, ser exprimido pela interioridade fervorosa em suas ações religiosas e na proclamação
de sua fé, mas não em manifestações da vida que se caracterizam pela cisão de sua unidade
originária, isto é, “fenômenos” da vida que são porções objetivas que pertencem à efetividade
social em sua totalidade. “Com esta relação ao estado, um imenso lado da unificação viva está já
separada, um importante liame para os membros do reino de Deus [está partido], uma parte da
liberdade, do caráter negativo de uma liga da beleza, uma porção de relações ativas, de relações
vivas está perdida.” (TWA 1, 398/399) Ao pretender estar acima das relações naturais e das ações
“excludentes”, sem ter se reconciliado com elas, o amor dos primeiros cristãos, baluarte espiritual
do cristianismo, tem de permanecer socialmente inefetivo e sem a força vital que possibilite sua
reconciliação com as relações sociais petrificadas, que fazem parte da vida. Como o estado não
pôde ser superado, reconciliado com a vida no amor, “permanece o destino de Jesus e da sua
comunidade ... uma perda de liberdade, uma limitação da vida, uma passividade na dominação
por um poder estranho” (TWA 1, 399). Para Hegel, na medida em que, apartada do mundo, a
união cristã se reproduz apenas pela dependência em relação ao mestre que lhes conferiu a fé, o
cristianismo se torna, no âmago de sua doutrina, uma religião positiva, uma religião da
dependência na qual não se alcança a unidade da vida que é a imanência do divino, mas o divino
tem de permanecer um objeto da consciência.
“Mas o amor é ele mesmo ainda natureza incompleta. Nos momentos do amor feliz não há nenhum espaço para
objetividade; contudo, toda reflexão suspende o amor, restabelece a objetividade, e com ela recomeça o âmbito das
limitações. [O] religioso é, portanto, o πλήϱωµα do amor (reflexão e amor unidos, ambos pensados [como]
ligados).” (TWA 1, 370)
Para Hegel, o amor cristão, que, em sua persecução interiorizada do divino, nega-se a
cumprir o movimento de cisão e reunificação da vida, torna-se apenas um ideal de vida
comunitária, inefetivo porque contraposto a um mundo real de relações intersubjetivas que não
podem ser reconduzidas à beleza da intersubjetividade originária. A divindade do amor se
revelou, com o desenvolvimento do cristianismo posterior a Jesus, como sua incompletude, sua
“idealização” e recusa à efetivação social. Com efeito, mesmo a proposta de Hegel de vencer esta
limitação pela unificação da reflexão e do amor em uma religião como complemento do amor
encontra seus limites intransponíveis, já que a vida do todo, a ligação de muitos, se baseia em
relações intersubjetivas engendradas pela auto-afirmação excludente da individualidade e pela
reflexão.
ele não é capaz justamente de complementar a lei no sentido sugerido por Hegel, o que representa
o insucesso da tentativa hegeliana de apresentar a religião cristã como Volksreligion fundada no
amor.
337
Habermas, Jürgen –„Arbeit und Interaktion“, 811
114
compreendidos como momentos de uma unificação abrangente338. Uma coisa parece, todavia,
estar clara: é preciso integrar à concepção de intersubjetividade frankfurtiana de Hegel o
“momento jurídico” da diferenciação dos indivíduos como momento positivo da consciência-de-
si universal.
Boa parte dos temas ligados à crítica do “formalismo prático”, que já eram alvo de Hegel
em Frankfurt, são recuperados na primeira fase de Jena, principalmente a crítica à “razão pura
prática”, à compreensão “formalista” da coerção e ao efeito das relações de direito privado sobre
a intersubjetividade originária. Mas o que torna o período de Jena tão peculiar é, primeiramente,
o tratamento destas questões segundo uma maior “autonomia filosófico-sistemática” de Hegel,
ainda que, na fase em questão, tal autonomia seja profundamente influenciada pela filosofia da
identidade de Schelling. Em um segundo momento, a peculiaridade fica por conta da intensa
aproximação do tema da eticidade em relação à teoria da consciência e, a fortiori, à filosofia do
espírito.
Embora o tema deste trabalho imponha drásticas reduções temáticas, há que se considerar
que o Naturrechtaufsatz, texto programático fundamental da filosofia prática de Hegel, se
vincula, em suas teses referentes à crítica ao formalismo do “entendimento prático”, à concepção
seminal do ponto de vista da “especulação filosófica”. O capítulo se inicia, portanto, por um
resgate dos principais posicionamentos filosóficos de Hegel na época. No entanto, como se trata
com isso apenas de um preâmbulo à compreensão do teor “intersubjetivista” da crítica
apropriativa de Fichte, não se pode aqui discorrer sobre o exato teor da colaboração filosófica
Hegel-Schelling339, ou sobre as importantes diferenças entre os dois que já na época são visíveis e
que se acentuam até a Fenomenologia340. Da mesma maneira, não é possível percorrer os
pormenores do itinerário intelectual trilhado por Hegel desde Frankfurt até a consecução de seu
“ponto de vista especulativo”341, o que levaria a um compêndio sobre a influência filosófica
multilateral exercida sobre ele durante o período e que resulta em sua revalorização da filosofia
como conhecimento do absoluto. Muito embora se tente abaixo mostrar como as principais teses
da novíssima filosofia especulativa estão estreitamente ligadas à compreensão hegeliana do
idealismo kantiano-fichteano, vamos também nos eximir de testar a plausibilidade das posições
de Hegel em relação a Fichte, ou mesmo se tais posições constituem uma compreensão fiel às
idéias do mesmo, ou ainda se Fichte pretendeu dar alguma resposta contundente às críticas
hegelianas em Jena342. Pensa-se aqui servir bem ao propósito de uma elucidação geral da tese
especulativa fundamental, em vigor no Naturrechtaufsatz, com uma consideração rápida, a partir
339
Düsing, Klaus – „Die Entstehung des spekulativen Idealismus“ in: Transzendentalphilosophie und Spekulation, hg. Walter Jaeschke, Hamburg
1994, 144-163
340
Düsing, Klaus – „Spekulation und Reflexion. Zur Zusammenarbeit Schellings und Hegels in Jena“ in: HST 5 (1969), 95-128
341
Referimos o leitor neste ponto a dois excelentes trabalhos, cujo teor e completude parecem aplacar o intento de uma descrição pormenorizada
do desenvolvimento filosófico de Hegel em Jena. Baum, Manfred – Die Entstehung der Hegelschen Dialektik, Bonn, 1989, Gérard, Gilbert –
Critique et dialectique : l'itinéraire de Hegel à Iéna, (1801 - 1805), Bruxelles, 1982
342
Para uma excelente visualização do diálogo entre Hegel e Fichte, inclusive de suas nuanças realmente recônditas e freqüentemente ignoradas
pelos comentadores especializados, o trabalho de Siep permanece ainda imprescindível. Siep, Ludwig – Hegels Fichtekritik und die
Wissenschaftslehre von 1804, München, 1970
116
da Differenzschrift e de Glauben und Wissen, acerca dos conceitos de entendimento e razão, bem
como de sua relação (“teórica” e “histórico-cultural”) ao tema da cisão (Entzweiung).
Ao absorver tal problemática na sua doutrina da gênese das faculdades prática e teórica da
razão pelo processo de determinação recíproca do eu e do não-eu, Fichte fornece a Hegel – já nos
Entwürfe über Religion und Liebe, especialmente na parte final, Glauben und Sein, datada por
Schülze como do ano de 1798 – meios para operacionalizar a concepção de Vereinigung em
termos da suspensão da separação entre sujeito e objeto. O que surge daí é, resumidamente, a
concepção de Vereinigung fundamental para a crítica “jenense” às oposições em que se enreda a
“filosofia da reflexão”. Hegel compreende que tanto a moral da razão autônoma, quanto a
determinação prática do não-eu pelo eu, não fornecem uma unificação sem dominação do objeto
pelo sujeito, da natureza interna ou externa pelo universal racional: sob Vereinigung Hegel
compreende uma “concordância” originária destes contrapostos. A partir da aplicação conferida
por Hegel ao mote do Ἕν καὶ Πάν na compreensão da unidade ética autêntica do amor, da
unificação do indivíduo com a natureza e com a comunidade, o conceito de Vereinigung vai
paulatinamente se tornando apto a fundamentar uma crítica especulativa às filosofias de Kant e
Fichte como filosofias do dualismo e das oposições fixas engendradas pela reflexão ou
entendimento.
excluir de si seu contrário: “toda expressão é produto da reflexão e, portanto, pode ser mostrada
cada uma como um posto, de maneira que sendo posto algo, ao mesmo tempo um outro não é
posto, é excluído.” (TWA 1, 422) Esta insuficiência da reflexão pode ser eliminada, segundo
Hegel, se se considera a “ligação da síntese e da antítese” (TWA 1, 422) não como “um posto,
compreendido (Verständiges), refletido”, mas como “um ser exterior à reflexão.” (TWA 1, 422)
A alternativa encontrada por Hegel é a “compreensão não conceitual” da ligação e da não-ligação
como diferenciações de um “ser” exterior à reflexão e que a abarca numa totalidade, em conexão
com seu contrário. Portanto, na falta de alternativa que pudesse conceituar este nexo –, pois
conceituar é, para Hegel, precisamente refletir e diferenciar e, com efeito, diferenciar o pensar do
seu pensado –, não resta outra possibilidade a não ser considerar que este ser anterior à reflexão
somente pode ser vivido nas ações religiosas de unificação com Deus. Como a filosofia – e
entenda-se aqui, sobretudo, a filosofia da reflexão – somente pode enunciar este “ser”, e cabe à
experiência religiosa o preenchimento de sua plena vivência, a filosofia, diz Hegel, “tem
justamente por isso / de terminar com a religião, pois aquela é um pensar e, portanto, tem um
oposto em parte do não-pensar, em parte do pensante e do pensado. Ela tem de mostrar em todo
finito a finitude e, através da razão, de exigir a complementação (Vervollständigung) do
mesmo.”(TWA 1, 422/423) Entretanto, paradoxal como possa parecer, é esta descrença na
filosofia do entendimento que cria o ensejo para uma concepção de filosofia irredutível à
reflexão.
Uma vez que as diferentes formas de filosofia da reflexão, o objeto de uma crítica para a
qual a própria compreensão hegeliana da filosofia autêntica fornece o critério, são o produto mais
sofisticado de uma modernidade calcada no entendimento, trata-se com isso também de uma
crítica da modernidade. Às oposições tipicamente “conceituais”, como entre subjetividade e
objetividade, descritas na Differenzschrift, corresponde aquela mais cultural, abordada em
Glauben und Wissen, entre fé e saber, a qual se origina da luta incessante do esclarecimento
contra o obscurantismo, que se encontra no nascedouro da era moderna. Para Hegel, a finitização
do mundo pelo entendimento, o qual relega o sentimento religioso ao âmbito interno do sujeito,
provoca justamente a fuga da religião e da transcendência para fora do âmbito da objetividade, e
com isso a dessacralização do mundo (TWA 2, 290 e seg.): tal processo torna qualquer apelo
119
344
É tentador referir este vínculo entre esclarecimento, protestantismo e a noção de dessacralização ao tópico weberiano do “desencantamento do
mundo”, desenvolvido em sua “Sociologia da Religião” e em estreita conexão com a relação entre o desenvolvimento do capitalismo no moderno
ocidente e a disseminação de modos racionais de conduta de vida associados à ética vocacional do protestantismo ascético. A influência do
vínculo estabelecido por Hegel se faz sentir fortemente, também em conexão com uma assimilação profunda da teoria weberiana da
racionalização, na formação da “situação de consciência” de onde brota a “Dialética do Esclarecimento” de Horkheimer e Adorno (Adorno, T.W,
Horkheimer, M. – Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos”. 2 ed. Tradução Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar,
1985.). De fato, para os autores, Hegel conhecia como poucos a dialética do esclarecimento. Não é surpreendente, portanto, que os autores tomem,
no ensaio “o conceito do esclarecimento”, justamente a perspectiva hegeliana de uma crítica imanente à filosofia kantiana que ressalta a
combinação entre dominação da natureza e a abstração. “A dominação da natureza traça o círculo dentro do qual a Crítica da Razão Pura baniu o
pensamento ... a dominação da natureza volta-se contra o próprio sujeito pensante; nada sobra dele senão justamente esse eu penso eternamente
igual que tem de poder acompanhar todas as minhas representações.”(38) A contra-face da separação radical entre espírito e natureza é a repressão
do eu na forma de sua generalização e abstração, da supressão de sua natureza individualizada em nome do paradigma racional que permite a
previsibilidade fenomênica. O projeto de desencantamento do mundo é a transformação da natureza em objetividade física matematicamente
explicável. Como Hegel já havia identificado, na filosofia do entendimento a dominação da natureza se revela conceitualmente no princípio da
identidade abstrata. Lukàcs mostrou como esta dominação em nível conceitual se ergue como efetiva dominação social, ao indicar que o processo
de reificação da consciência, pelo qual a identidade abstrata se torna célula do pensamento burguês, tem como contra-face a disseminação social
da forma mercadoria. Lukacs, Gyorgy – „Die Verdinglichung und das Bewußtsein des Proletariats“ in: Geschichte und klassenbewubtsein.
Studien über marxistische Dialektik Darmstadt: Luchterhand, 1979. Adorno e Horkheimer reafirmam sua dívida com o conceito lukáscsiano de
reificação da consciência ao conceberem a abstração identitária da ciência esclarecida como estrutura conceitual fundamental ao valor de troca. “a
sacralidade do hic et nunc, ... que recai sobre o elemento substituto, distingue-o radicalmente, torna-o introcável na troca . É a isso que a ciência dá
fim. Nela não há nenhuma substitutividade específica ... a substutividade converte-se na fungibilidade universal ... O preço dessa vantagem, que é
a indiferença do mercado pela origem das pessoas que nele vêm trocar suas mercadorias, é pago por elas mesmas ao deixarem que suas
possibilidades inatas sejam modeladas pela produção de mercadorias que se podem comprar no mercado.”(25) Com respeito à importância das
considerações de Hegel para o marxismo ocidental, Habermas é preciso ao tomar o “conceito hegeliano de modernidade” como ponto de partida
da tematização filosófica do mundo moderno. Acerca dos principais antecedentes filosóficos da teoria habermasiana da racionalização, com
especial ênfase na tematização do conteúdo normativo da modernidade inerente ao processo de des-diferenciação das esferas culturais de valor
(ver Habermas, Jürgen – Der Philosophische Diskurs der Moderne : zwölf Vorlesungen, Surhkamp, Frankfurt am Main, 1988, capítulo V e
XII), tanto nos antecedentes weberianos da modernização como racionalização, quanto na motivação em vista dos resultados aporéticos da crítica
da razão instrumental da “primeira teoria crítica”, ver: Habermas, Jürgen – Theorie des kommunikativen Handelns (Bd.1: Handlungsrationalität
und gesellschaftliche Rationalisierung), Suhrkamp, Frankfurt am Main1981. capítulos II e IV
120
formação do espírito moderno, evidenciado na querela entre fé e saber, (TWA 2, 287) é, com
efeito, a derrocada da razão e o abandono da pretensão do saber absoluto.
“A assim chamada crítica das faculdades de conhecimento (Erkenntniskräfte) em Kant, o não sobrevoar da
consciência em Fichte (das nicht Überfliegen des Bewußtseins) e, em Jacobi, o não empreender nada de impossível
para a razão, não significam outra coisa do que limitar absolutamente a razão à forma da finitude e, em todo
conhecer racional, não esquecer a absolutidade do sujeito, e fazer da limitação (Beschränktheit) uma lei e ser eternos,
tanto em si quanto para a filosofia. Não há nada, portanto, para ver nestas filosofias além da elevação da cultura da
reflexão (Reflexionskultur) a um sistema – uma cultura do entendimento humano comum que se eleva até o
pensamento de um universal, [o qual] toma, entretanto, porque permanece entendimento comum, o conceito infinito
por pensar absoluto, e deixa seu outro intuir do eterno e seu conceito infinito separados um do outro.” (TWA 2, 298)
“O procedimento negativo do esclarecimento, cujo lado positivo estava em sua afetação frívola sem conteúdo,
proporcionou um [conteúdo] a si mesmo através do fato de que apreendeu (auffasste) sua própria negatividade e, em
parte, libertou-se da insipidez pela pureza e pela infinitude do negativo; em parte, entretanto, justamente por isso,
somente pode ter como saber positivo igualmente o finito e empírico, o eterno, porém, somente no além, de tal
maneira que este é vazio para o conhecer e que este espaço vazio infinito do saber somente pode ser preenchido com
a subjetividade do ansiar e do presumir (Subjektivität des Sehnens und Ahnens).”(TWA 2, 288)
eterno, que está acima de toda subjetividade e que, como um fogo, aniquila toda a subjetividade
(TWA 2, 382). Na “fé reflexiva”, permanece uma consciência subjetiva da suspensão de
subjetividade e da finitude na fé.
É neste panorama geral que deve ser feito um resgate da filosofia fichteana. Nos limites
do seu princípio comum, a “absolutidade do finito”(TWA 2, 296), as diferentes formas da
filosofia da reflexão, enquanto “totalidade das formas possíveis para o princípio”( TWA 2, 296),
se opõem entre si; e isto de tal maneira que a filosofia fichteana é compreendida como síntese do
lado subjetivo desta esfera (Jacobi) com o lado objetivo (Kant): “ela exige a forma da
objetividade e dos princípios como Kant, mas põe o conflito desta pura objetividade contra a
subjetividade, ao mesmo tempo, como um ansiar e uma identidade subjetiva.” (TWA 2, 296).
Segundo a classificação das formas de filosofia da reflexão, a “realidade efetiva” que os
conceitos oriundos da subjetividade possuem, ponto característico da objetividade da filosofia
kantiana, desaparece em Jacobi, e a razão não mais é capaz de apreender a objetividade de seus
“conceitos de entendimento”. Neste sentido, Fichte representa uma “síntese” destas posições não
porque preserve as posições ultrapassando as unilateralidades, mas porque as incorpora em
determinados momentos de seu sistema: o intento da “objetividade kantiana” é mantido pela
dedução da realidade objetiva a partir do eu, o que se revela, por outro lado, também como
“fixação na subjetividade”. Mas Fichte também mantém o recurso à fé, o que caracteriza a
subjetividade de Jacobi, principalmente na sua concepção do esforço prático, embora interprete
objetivamente este recurso à fé como necessário ao agir ético fundamentado na vontade pura.
Fichte permanece no âmbito da finitude, porque, segundo Hegel, ao fixar-se na absolutidade
subjetiva, nem corrobora a objetividade do mundo fenomênico, nem pode concebê-lo como
realidade oposta ao conceito de vontade pura. Para além disso, Fichte estabelece que a integração
do eu e do mundo, do ideal e do real, não é cognoscível. “Segundo Fichte, Deus é algo
incompreensível e impensável. O saber não sabe nada além de que nada sabe, e precisa se
refugiar na fé. Depois de tudo, o absoluto não pode, segundo a antiga distinção, estar em face da
razão, e tampouco para ela, mas ele está antes acima da razão.” (TWA 2, 288)
“se este conceito é posto positivamente, permanece somente a identidade relativa possível entre eles, a dominação
pelo conceito do que aparece como real e finito, sob o que se encontra todo o belo e ético. Mas se o conceito é posto
345
A filosofia fichteana parte do eu absoluto para explicar toda a realidade e, ao pô-lo como o absolutamente positivo, permanece fixo na oposição
à realidade objetiva. Para Hegel, tanto na filosofia teórica quanto na prática, a oposição entre o eu e a realidade permanece absoluta, e entre ambos
os registros da Wissenschaftslehre a diferença reside em que, na filosofia prática, a realidade não é posta como pura abstração, mas recebe antes o
sinal positivo e aparece enquanto realidade empírica (TWA 2, 398). A dedução das condições tanto do conhecimento teórico, quanto do querer
moral a partir da identidade do eu absoluto, é vista por Hegel como um empreendimento circular, pois o eu absoluto nada mais é do que “um
momento de espontaneidade e identidade a si de uma consciência constituído por abstração, [de uma consciência] que em suas funções “normais”
somente é capaz de sínteses limitadas de opostos (espontaneidade e receptividade, razão e sensibilidade, esforço infinito e agir limitado). A
dedução somente acrescenta ao puro momento novamente aquilo que anteriormente fora abstraído.” Siep, Ludwig Der Weg der Phänomenologie
des Geistes. Ein einführender Kommentar zu Hegels „Differenzschrift“ und „Phänomenologie des Geistes“, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 2000,
41
123
como negativo, então está presente a subjetividade do indivíduo em forma empírica, e o dominar não ocorre pelo
entendimento, mas como uma força natural e uma fraqueza das subjetividades umas contra as outras.” (TWA 2, 294)
Ao término do período de Frankfurt, Hegel menciona que a “elevação do ser humano, não
do finito ao infinito – pois estes são somente produtos da simples reflexão, e como tais sua
separação é absoluta –, mas antes da vida finita à vida infinita, é a religião.” (TWA 1, 421) A
diferença fundamental entre a concepção hegeliana esboçada no Systemfragment e o programa a
ser desenvolvido em Jena é a compreensão de que somente à filosofia cabe conduzir à
consciência do poder unificador que é a vida absoluta. Isto implica em que as oposições da
reflexão sejam “relativizadas” e mostradas conceitualmente na sua gênese a partir da identidade
absoluta. Se finito e infinito não podem estar em absoluta contraposição, o ponto de vista do
sujeito que reflete sobre seu limite tem de ser assimilado como momento da manifestação da vida
infinita, de maneira que a filosofia possa reconstruir conceitualmente o absoluto como “esta
unidade sintética originária, isto é, uma unidade que não tem de ser compreendida (begriffen)
como produto de contrapostos, mas antes como identidade originária verdadeiramente necessária
e absoluta de contrapostos”(TWA 2,305) A identidade absoluta passa a ser compreendida como o
próprio “princípio produtivo” das oposições – de saber e ser, de unidade e multiplicidade, de
conceito e intuição, e de sujeito e mundo objetivo – e como “unidade sintética”, o termo médio de
elementos contrários. A partir de Jena é a filosofia que se orienta pela auto-suspensão da finitude
124
na infinitude: “conhecer o finito é um tal conhecer de uma parte ... mas na idéia finito e infinito
são um, e, por isso, a finitude como tal desapareceu, na medida em que ela deveria ter verdade e
realidade em si e para si. Contudo, somente aquilo que nela é negação é que foi negado e, assim,
posta a verdadeira afirmação.” (TWA 2, 301)
Tanto em Jena quanto no Systemfragment, Hegel concebe a filosofia de sua época como
acometida pela oposição absoluta entre o que pensa e o que é pensado (TWA 1, 423), entre
sujeito e objeto. Assim como no último texto de Frankfurt, Hegel sustenta em Jena que a reflexão
dilacera a absoluta unidade vital (TWA 1, 422). “A reflexão isolada, enquanto pôr de
contrapostos, seria um suspender do absoluto. Ela é a faculdade (Vermögen) do ser e da
limitação.” (TWA 2, 26) O que se modifica substancialmente entre os dois períodos é justamente
a concepção da verdadeira filosofia. “Suspender estas oposições tornadas firmes é o único
interesse da razão. Este seu interesse não tem o sentido de que ela estivesse, em geral, se pondo
contra a contraposição e a limitação.” (TWA 2, 21) Se a finitude da consciência tem de ser,
enquanto ambiente da reflexão, não rechaçada, mas acolhida como momento insuficiente do
absoluto, é a própria reflexão que tem de ser mostrada em sua referência positiva à reconstrução
conceitual do mesmo: “a reflexão tem, enquanto razão, a relação ao absoluto e ela somente é
razão através desta relação; a reflexão nadifica (vernichtet), nesta medida, a si mesma e a todo ser
e limitado, ao relacioná-lo ao absoluto. Ao mesmo tempo, no entanto, justamente por sua relação
ao absoluto, o limitado tem um subsistir.” (TWA 2, 26) O ponto de vista especulativo supõe a
recondução da negatividade da reflexão ao absoluto enquanto ambiente em que os contrapostos
adquirem subsistência e na qual têm sua origem : “a razão se põe contra a fixação absoluta da
cisão pelo entendimento, e tanto mais [se opõe a essa fixação], quanto os opostos absolutos
brotaram eles mesmos da razão.” (TWA 2, 21/22). Portanto, é a própria reflexão que “toma
consciência” de si mesma como poder nadificador das oposições que ela própria engendra.
“A razão se apresenta enquanto força do absoluto negativo e, com isso, como negar
absoluto – e, ao mesmo tempo, como força da posição (Kraft des Setzens) da totalidade objetiva e
subjetiva contrapostas. De uma vez, ela eleva o entendimento acima dele mesmo, impele-o,
segundo a maneira dele, a um todo; ela o seduz a produzir uma totalidade objetiva.” (TWA 2, 26)
Como “poder nadificante” e “força da posição”, entendimento e razão, negatividade absoluta e
positividade absoluta, a razão preenche, enquanto reflexão filosófica, aquela pretensão de Hegel
presente desde o Systemfragment: “a vida justamente não pode ser considerada somente como
unificação, relação, mas sim tem, ao mesmo tempo, [de ser considerada] como contraposição”
(TWA 1, 422) – e que reaparece na Differenzschrift com a cláusula da cisão como “fator da vida”
(TWA 2, 21/22); preenchimento que, juntamente com a transformação da filosofia implicada em
sua revalorização frente à religião, constitui o genuíno berço da filosofia especulativa de Hegel.
Assim, a reflexão filosófica é reconhecida no nível epistemológico como um lado do
conhecimento especulativo, assim como, no âmbito ontológico, a não-identidade obtém seu
direito como um lado da realidade absoluta: “pois a cisão necessária é um fator da vida, que se
forma eternamente pondo oposições, e a totalidade na suprema vitalidade só é possível através do
[seu] restabelecimento a partir da suprema separação (Trennung).” (TWA 2, 21/22)
O deslocamento daquilo que é, por princípio, infinito para um processo em que o infinito
deve primeiramente ser alcançado pela incessante superação do limite é o sinal, para Hegel, de
que na filosofia da reflexão opera sub-repticiamente a força do “infinito racional”: o
entendimento não se satisfaz em permanecer na sua concepção unilateral de um “ilimitado
limitado” e passa a exigir o acabamento desta idéia de infinitude. “Todo ser é, porquanto ele é
125
Hegel pretende uma crítica imanente à filosofia da reflexão, a negação da reflexão com
vistas a torná-la fiel ao princípio genuinamente especulativo da unidade absoluta do sujeito e do
objeto. A reflexão se torna um Instrument des Philosophierens justamente porque permite pensar
“especulativamente” cada oposição da reflexão em face da unidade absoluta. Decomposta em
suas funções, a especulação é reflexão, mas também intuição transcendental, consciência
imediata da unidade de contrapostos, unificação do subjetivo e objetivo. Enquanto auto-
suspensão do entendimento pela fixação simultânea dos contrapostos em sua subsistência para si
(TWA 2, 27), a reflexão levada ao paroxismo, o conhecimento filosófico revela seu lado positivo
como intuição transcendental, na qual todas as oposições são nadificadas e a identidade emerge
em seu caráter positivo. Para Hegel, não há verdadeira filosofia sem a intuição transcendental,
mas somente Unphilosophie (TWA 2, 320). O ponto-chave para a compreensão de toda a crítica
hegeliana a Kant e Fichte durante o período de Jena – e especialmente da crítica ao “formalismo
do entendimento prático” – é a noção de um filosofar formal, isto é, aquele que, procedendo sem
intuição transcendental da identidade originária e absoluta, permanece enredado em uma
oposição irreconciliável entre ser e pensar346.
346
“o filosofar sem intuição avança em uma seqüência sem fim de finitudes, e a passagem do ser ao conceito e do conceito ao ser é um salto
injustificado. Um tal filosofar denomina-se um filosofar formal, pois coisa, assim como conceito, é cada um para si somente forma do absoluto.
Ele pressupõe a destruição da intuição transcendental, uma contraposição absoluta de ser e conceito; e se ele fala do incondicionado, então ele
mesmo torna isso novamente um formal, talvez na forma de uma idéia, a qual fosse contraposta ao ser.”(TWA 2, 42/43)
126
e Fichte347 oscila entre o reconhecimento pelo fato de que na “dedução das formas do
entendimento o princípio da especulação, a identidade do sujeito e objeto, é pronunciada da
maneira mais determinada” (TWA 2, 10); e a constatação de que em seu desenvolvimento o
sistema se mantém aquém deste enunciado: “quando Kant faz desta identidade mesma, enquanto
razão, objeto da reflexão filosófica, a identidade desaparece de junto de si mesma.” (TWA 2,10)
Com efeito, apesar de alcançarem o “autêntico” princípio da especulação – onde se revela a
“imitação” da razão pelo entendimento –, Kant e Fichte pretendem resolver a tarefa da razão,
contida no princípio da identidade entre sujeito e objeto, através somente dos meios da reflexão.
347
Acerca desta congruência de Kant e Fichte na consecução do “autêntico” princípio da especulação, Hegel diz, em relação a Fichte, que: “O
puro pensar a si mesmo, a identidade do sujeito e do objeto na forma Eu=Eu é o princípio do sistema fichteano, e se se atém imediatamente a este
princípio – tal como, na filosofia kantiana, ao princípio transcendental, o qual jaz no fundamento da dedução das categorias – então se tem o
autêntico princípio da especulação inovadoramente exprimido.”(TWA 2,11)
348
Na Differenzschrift e em Glauben und Wissen, Hegel chega a discutir, sob a luz de sua caracterização geral da auto-suspensão da reflexão na
razão especulativa, aspectos intrincados das filosofias de Kant, Fichte e Jacobi, e até mesmo a oferecer uma caracterização sistemática da
“completude de formas” da filosofia da reflexão. Um estudo sobre a sua profundidade – e mesmo plausibilidade – excederia o intento deste
trabalho e talvez tivesse de perseguir o fio condutor da crítica de Hegel em suas obras de maturidade, onde diversos pontos estão melhor
decantados. No entanto, na tentativa de promover a passagem à crítica do “formalismo do entendimento prático”, parece profícuo delimitar os
contornos da crítica hegeliana ao primeiro sistema de Fichte. Na medida em que Glauben und Wissen concentra-se, à exceção de ataques à
filosofia do direito de Fichte, muito mais na obra Bestimmung des Menschen, de 1800, cabe aqui chamar antes a atenção para os elementos
contidos na Differenzschrift.
349
Este itinerário é, de resto, o fio condutor da crítica hegeliana na Differenzschrift. “Na seguinte apresentação do sistema fichteano deve-se tentar
mostrar que a pura consciência, a identidade de sujeito e objeto estabelecida no sistema como absoluta, é uma identidade subjetiva de sujeito e
objeto. A apresentação vai tomar o itinerário de provar o eu, o princípio do sistema, como sujeito-objeto subjetivo, tanto imediatamente, quanto no
modo de dedução da natureza e, especialmente, nas relações da identidade nas ciências particulares da moral e do direito natural” (TWA 2,50)
127
350
Baumanns lembra que a crítica hegeliana a Fichte influenciou grande parte da interpretação da filosofia fichteana no século XX, como Kroner
(1961), Guéroult (1930), Vuillemin (1954) e Hartmann (1960). Não há como negar que a Wissenschaftslehre tem seu ponto de partida na
identidade absoluta do Eu=Eu e que o ponto de chegada, tal como no “enunciado hegeliano” do ich soll ich sein, retrocede, de certa forma, em
relação à exigência originária de identidade absoluta entre sujeito e objeto (Baumanns, P. – Fichtes ursprüngliches System. Sein Standort
zwischen Kant und Hegel, Stuttgart, 1972). O que se deve censurar a Hegel é, entretanto, que ele talvez não proceda a uma crítica imanente do
sistema fichteano tal como tenciona, nem que seja realmente fiel aos princípios da doutrina-da-ciência. (ver: Siep, Ludwig – Der Weg der
Phänomenologie des Geistes. Ein einführender Kommentar zu Hegels „Differenzschrift“ und „Phänomenologie des Geistes“, Suhrkamp,
Frankfurt am Main, 2000, p. 40 e seg.) O sistema fichteano pode ser compreendido como não tencionando ir além da perspectiva finita do eu deve
ser igual a eu. Para uma boa consideração da construção hegeliana de uma superação racional-absoluta das oposições da filosofia fichteana como
crítica exterior à doutrina-da-ciência, ver Baumanns (1972, 34 e seg). Hegel teria ido além do fim evidente da doutrina-da-ciência de ser apenas
uma teoria da razão finita na contraditoriedade de sua essência única, e não teria tencionado ver encerrada na triplicidade dos princípios
fundamentais esta contradição: já no princípio da doutrina-da-ciência está presente aquela unidade contraditória de identidade e duplicidade que é
trazida à luz pelo “esforço assintótico” da autoconsciência efetiva de aproximação em relação ao ideal de identidade completa entre eu e objeto.
Nesta contraditoriedade inicial, que se desenvolve plenamente como o termo das deduções, revela-se a importância da imaginação enquanto
faculdade da oscilação (Schweben) entre termos contrapostos. ver Torres Filho, Rubens Rodrigues – O Espírito e a Letra : a Crítica da
Imaginação Pura em Fichte , Ática , São Paulo , 1975 “A doutrina-da-ciência é da espécie que não se deixa transmitir de maneira nenhuma pelas
simples letras, mas sim simplesmente pelo espírito, porque suas idéias fundamentais têm de ser engendradas naquele que a estuda pela própria
imaginação produtiva (durch die schaffende Einbildungskraft selbst).”(WL1794 I, 284). Neste sentido, pensa Baumann, poder-se-ia dizer que, na
verdade, o sistema fichteano de filosofia primeira não chega ao termo aquém do que anunciara o início, mas antes retorna à mesma
contraditoriedade in nuce.
351
A partir de sua tese a respeito da inépcia de Hegel em perceber que o término da doutrina-da-ciência já contém como desenvolvida a
contradição encerrada já na enunciação dos três Grundsätze, Baumanns procura refutar a compreensão advogada por Philonenko e segundo a qual
a crítica hegeliana à não circularidade do sistema deveria ser atribuída à confusão entre “fundamento”(Grundlage) e sistema. Para Philonenko, a
Doutrina-da-ciência de 1794 é apenas a base fundamental (Grundlage), a qual apresenta, em seu ponto término, o início apropriado do sistema.
Como, para Philonenko, somente se pode esperar circularidade e retorno ao ponto inicial do sistema propriamente dito, o qual não foi levado a
128
necessidade de uma esfera independente de si como âmbito da realização de sua atividade, isto é,
torna-se dependente de um não-eu que, mesmo sendo o “palco de suas ações”, permanece-lhe
insondável. O eu prático entra num processo de esforço pela aniquilação do não-eu, sem poder
ambicionar a consecução desta tarefa, o que significaria o aniquilamento da condição de seu agir
e de sua esfera fenomênica. É neste sentido que Hegel pretende que a doutrina-da-ciência,
entendida como filosofia primeira e ciências reais dela derivadas, não retorna ao ponto de partida
estabelecido pelo próprio “programa” do sistema. Desta maneira – e este parece ser o ponto mais
fecundo da crítica hegeliana, malgrado sua compreensão unilateral do sistema fichteano como
sistema especulativo-holístico mal sucedido352 –, a identidade da pura consciência-de-si e da
consciência-de-si empírica permanece não comprovada, algo que se conecta profundamente com
o desenvolvimento das ciências reais (direito e ética).
termo, então a exigência de um retorno ao princípio que abre a Grundlage é uma tarefa sem sentido. ver Philonenko, Alexis – L’oeuvre de Fichte
, J.Vrin , Paris , 1984; – Métaphysique et politique chez Kant et Fichte, Bibliothèque d'histoire de la philosophie / Nouvelle série , J.Vrin, Paris,
1987. Para Baumanns, interpretação que aqui seguimos, não se pode levar a sério a declaração de que Naturrecht e Sittenlehre não façam parte de
um sistema que se entende como aplicação da Grundlage e de seus resultados a âmbitos objetivos particulares. Decerto o sistema e sua
fundamentação não são idênticos, mas, na medida em que o sistema faz claramente a aplicação dos elementos fundacionais, a fundamentação se
revela indiretamente como fundamentação última do sistema. A “fundamentação” não é fundamentação do sistema, mas da doutrina-da-ciência.
Isto quer dizer que partes do sistema já estão visíveis nesta “fundamentação”, como é o caso da concepção fichteana da ética e da relação entre
razão e natureza, o que faz dela também, em certo sentido, “fundamentação do sistema”. Por outro lado, ainda segundo Baumann, a pressuposição
de uma exterioridade mútua entre sistema e fundamentação, defendida por Philonenko, levaria à exigência de que o término da Doutrina-da-
ciência de 1794, que forneceria o ponto de partida para o sistema propriamente dito, teria forçosamente de reaparecer na parte final do sistema.
Mas isto esbarra numa incongruência: “o que é, pois, a “Sittenlehre” senão uma explicação do ich-soll-ich-sein ou do esforço para o
preenchimento do ideal do eu que foi reelaborado no fim da obra de 1794/95 ?” (Baumann 1972, 35)
352
O que se poderia perfeitamente objetar a Hegel é que o tema do primeiro sistema de Fichte (1794-1800) é a práxis apreendida em seu núcleo
contraditório como atividade infinita-finita: não a intuição de si total da razão ou a auto-construção da razão absoluta, mas o ser humano em sua
totalidade como ser-racional finito e infinito. A oposição entre a infinitude e a finitude no homem, que se expressa – como vê Hegel (TWA 2,
406/407 e TWA 2, 55/56) – nos dois primeiros Grundsätze da Doutrina-da-Ciência de 1794 pelas fórmulas da “auto-posição” do eu e da “contra-
posição” do não-eu, não tem, de acordo com Fichte, de ser superada numa razão absoluta pela interpretação das oposições como seus momentos.
Na querela acerca da interpretação “hegelianizante” que oferece Hegel do sistema fichteano, parece-se estar como que numa escolha arbitrária
dentre modelos filosóficos conflitantes. Somente da perspectiva da pressuposição de uma tal razão absoluta, que fosse compreendida como
intuição total de si na forma da auto-reconstrução dialética de seus momentos, o sistema fichteano pode aparecer em sua suposta unilateralidade,
ou, como Hegel se expressará mais tarde, nas Grundlinien, ao dizer que Fichte não apreende “o dualismo da infinitude e da finitude nem mesmo
na imanência e na abstração.” (LFFD §6) Como diz Baumanns, “justamente a oposição à razão absoluta revela a peculiaridade da filosofia
fichteana no período de 1794 até 1800, de tal maneira que Fichte pode reivindicar dignidade exatamente pelo mesmo motivo em que Hegel
encontrou ensejo para sua crítica.”ver Baumanns, P. – Fichtes ursprüngliches System. Sein Standort zwischen Kant und Hegel, Stuttgart, 1972,
36). Também Ludwig Siep e Klaus Düsing compreendem o empreendimento hegeliano de crítica à filosofia de Fichte em Jena como não
totalmente destituído de parcialidade, um projeto que tende a uma crítica externa e não-imanente. Isto parece já ser claro mesmo no fundamento
da crítica: Hegel supõe que Fichte apreendera a idéia de razão como identidade de ser e pensamento, mas, ao fixar a razão como atividade
incondicionada da autoconsciência, não foi capaz de desenvolver aquela intuição inicial num sistema. Pela contraposição absoluta entre eu e não-
eu, Fichte é levado a admitir que a explicação das formas do não-eu a partir da atividade subjetiva não é capaz de eliminar os conteúdos da
consciência toda a exterioridade da afecção, já que tem de ser sempre assumido um “choque” que não é redutível ao lado do sujeito. Desta
maneira, a “tomada de posse” incondicionada e absoluta do não-eu pelo eu se torna, em face da irredutibilidade do não-eu, o término de um
esforço ético-moral inacabável, porque condição da atividade limitada. Como nota Siep (ver Siep, Ludwig Der Weg der Phänomenologie des
Geistes. Ein einführender Kommentar zu Hegels „Differenzschrift“ und „Phänomenologie des Geistes“, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 2000,
40), “que a pura espontaneidade do eu no início da doutrina-da-ciência seja um simples momento do sujeito e, ao fim, um objetivo de seu querer,
não tem de ser, para Fichte, nenhum fracasso. Importava para ele essencialmente encontrar na consciência mesma um incondicionado, indubitável,
sobre o qual a consciência da liberdade e o conhecimento teórico se deixassem fundamentar – e, na verdade, de tal forma que primeiramente a
liberdade comporia razoavelmente as fundações de nosso conhecimento do mundo.” Assim como Baumanns, Siep vê no procedimento hegeliano
uma infidelidade ao intento fichteano, na medida em que Hegel interpreta a filosofia de Fichte como um sistema da identidade mal sucedido. Com
efeito, que a identidade de pôr e ser, a totalidade abrangente do eu enunciada no primeiro princípio, não seja alcançada pelo desenvolvimento do
sistema se conecta justamente com o fato de que Fichte não tenciona desenvolver um sistema de idealismo absoluto pela complementação de
oposições, mas sim “parte de princípios absolutos cujas condições de pensabilidade devem ser indicadas no decorrer da dedução”(Siep 2000, 41).
A contradição latente entre o Sich-setzen e o Entgegensetzen não deve, segundo Fichte, ser “suspensa” numa identidade e unidade mais elevada,
mas sim ser evitada por meio da limitação do significado e do alcance dos membros irreconciliáveis da oposição.
129
É a partir deste diagrama geral que Hegel pretende mostrar, nos primeiros escritos de
Jena, que, na “doutrina da ciência aplicada”, revelam-se as mesmas insuficiências que acometem
o arcabouço mais fundamental do pensamento fichteano: o subjetivismo intransponível ao
princípio fichteano da identidade de sujeito e objeto. Primeiramente, Hegel segue sua intuição do
período de Frankfurt de que a dominação do universal vazio sobre o particular, que caracteriza o
formalismo prático de Kant e Fichte, mostra-se tanto no âmbito intra-subjetivo da consciência
moral, quanto na esfera intersubjetiva das relações de direito. Para Hegel, o que diferencia a
dominação do conceito formal na esfera moral da dominação na esfera do direito é que, neste
caso, a exterioridade mútua de universal e singular se revela como contraposição absoluta da
vontade universal e da vontade individual, ao passo que aquela contraposição é considerada, na
esfera moral, como devendo ser superada no interior do indivíduo.
“A doutrina dos costumes tem em comum com o direito natural que a / idéia domine absolutamente o impulso, a
liberdade [domine absolutamente] a natureza. Entretanto, eles se diferenciam em que, no direito natural, a sujeição
de seres livres sob o conceito é, em geral, absoluto auto-fim (absoluter Selbstzweck), de maneira que o abstraktum
353
Siep, Ludwig – Anerkennung als Prinzip der praktischen Philosophie, Freiburg/München, 1979, 52/53
130
fixado da vontade comum esteja também fora do indivíduo e tenha poder sobre ele. Na doutrina dos costumes, o
conceito e a natureza têm de ser postos como unificados numa e na mesma pessoa.”(TWA 2, 87/88)
Com efeito, o ponto comum entre ambas as “realizações” práticas da dominação sob o
universal vazio é uma “absoluta e fixa polaridade de liberdade e necessidade”, a qual não permite
“pensar em nenhuma síntese e em nenhum ponto de indiferença” e pela qual “a
transcendentalidade se perde totalmente no fenômeno e em sua faculdade, o entendimento.”
Desta maneira, diz Hegel, a identidade absoluta “não pode se resolver verdadeiramente nem para
o indivíduo, no ponto de indiferença da beleza do ânimo e da obra, nem para a comunidade livre
completa dos indivíduos numa associação (Gemeinde).” (TWA 2, 90) Entretanto, esta concepção,
que tem suas raízes na crítica da filosofia prática ensaiada em Frankfurt, não mais é considerada
em sua indiferença para com a “interiorização do senhor”, mas antes a relação de dominação
sobre a natureza pulsional do indivíduo, que se processa pela interiorização do universal formal,
revela, frente à exterioridade mútua de vontade universal e vontade singular, seu caráter “mais
inatural”354; pois, enquanto o direito formalista supõe que “a crença na unicidade do interior com
o exterior não se dá”; por outro lado, na moral, “se ... o mandante é transferido para o próprio ser
humano, e nele são absolutamente contrapostos um mandante e um sujeitado, então a harmonia
interior é destruída. Não-unicidade e cisão absoluta constituem a essência do ser humano. Ele tem
de procurar por uma unidade, mas, no caso de uma não-identidade que jaz no fundamento, resta-
lhe tão-somente uma unidade formal.” (TWA 2, 88)
354
“Ser seu próprio senhor e escravo parece, na verdade, ter uma vantagem diante do estado em que o ser humano é o escravo de um estranho.
Entretanto, a relação (Verhältnis) da liberdade e da natureza, se acaso, na eticidade, ela deve se tornar uma dominação e escravidão subjetiva, uma
opressão própria da natureza, se torna muito mais inatural do que a relação (Verhältnis) no direito natural, no qual o mandante e detentor do poder
aparecem como um outro que se encontra fora do indivíduo vivo.” (TWA 2, 88)
355
“O direito deve acontecer, mas não enquanto liberdade interior, mas sim enquanto liberdade exterior dos indivíduos, a qual é um ser-subsumido
dos mesmos sob o conceito, que lhes é estranho.”(TWA 2, 425)
131
relação pura (reine Beziehung) [deles] um em face do outro é mais possível, e toda relação é um
dominar e ser-dominado segundo leis de um entendimento conseqüente.” (TWA 2, 81)
“aquele estado do entendimento não é uma organização, mas uma máquina, o povo não [é] o corpo orgânico de uma
vida comum e rica, mas uma pluralidade atomística e pobre de vida, cujos elementos são substâncias absolutamente
contrapostas, em parte uma porção de pontos, de seres racionais, em parte matérias multiplamente modificáveis pela
razão – isto é, nesta forma: pelo entendimento – elementos cuja unidade é um conceito, cuja ligação é um dominar
sem-fim.” (TWA 2, 87)
Com efeito, para Hegel, o colapso formalista da identidade originária da razão pela sua
fixação na “metade” supra-sensível do sujeito transforma a liberdade verdadeira, que se objetiva
em relações intersubjetivas “solidárias” ou “não-excludentes”, numa liberdade subjetivizada e
apenas negativa, exercida em relações intersubjetivas empobrecidas pelo caráter essencialmente
limitativo: “o conceito do limitar constitui o reino da liberdade, no qual cada relação recíproca
(Wechselverhältnis) verdadeiramente livre, para si mesma infinita e ilimitada, isto é, bela da vida,
é aniquilada por meio disso: que o vivo é dilacerado em conceito e matéria, e a natureza é posta
em sujeição (Botmässigkeit).” (TWA 1, 81/82) A partir desta concepção negativa da liberdade do
indivíduo, que faz valer sua esfera de um agir conforme a razão, pode-se reconduzir a crítica
hegeliana à filosofia social de Fichte ao embate entre duas concepções de liberdade. A partir de
Jena, o princípio fundamental da filosofia prática de Hegel é o princípio da unidade de liberdade
objetiva e subjetiva, ao passo que a Fichte se censura a fixação em um conceito eminentemente
subjetivo de liberdade. “A liberdade tem de suspender a si própria para ser liberdade. Evidencia-
se novamente, a partir disso, que liberdade aqui é somente um mero negativo, a saber:
indeterminidade absoluta, ou seja, assim como foi mostrado a respeito do pôr-se a si mesmo, é
um fator ideal – a liberdade considerada do ponto de vista da reflexão.” (TWA 1, 81/82)
Obviamente, ambos são herdeiros diretos da compreensão kantiana de que a autodeterminação
perfaz a essência da liberdade. Entretanto, enquanto Fichte se prende à idéia da indeterminidade
do “pôr-se a si mesmo”, Hegel pretende que a unidade entre sujeito e objeto somente seja
plenamente racional quando compreendida como totalidade, isto é, na medida em que se entenda
por liberdade o configurar-se a si mesma da razão numa totalidade, objetivação da livre auto-
determinação, a qual, caso contrário, permanece apenas subjetiva e formal. Neste embate se
encontra o sentido maior daquela célebre sentença pela qual Hegel, no Naturrechtaufsatz, marca
a gênese de seu conceito de liberdade absoluta a partir da crítica especulativa ao livre-arbítrio e à
compreensão jurídico-formalista do problema da coerção: “uma liberdade para a qual houvesse
algo realmente exterior e estranho, não é nenhuma liberdade: a essência dela e sua definição
formal é, justamente, que nada há de absolutamente exterior.” (TWA 2, 476) Um tal conceito de
liberdade se distingue completamente do conceito formal de liberdade como independência,
justamente porque a concepção desta auto-determinação formal concebe como exterior a si aquilo
de que quer se fazer independente, de maneira que, segundo Hegel, a independência ou
autonomia não satisfazem a uma caracterização plenamente racional da liberdade, mas consistem
antes numa determinação da reflexão para a qual subsiste algo exterior à racionalidade. Com
efeito, segundo Hegel, o que é plenamente racional não se contrapõe a um reino exterior a si da
necessidade, contra o qual deve se fazer valer como independência: para a atividade absoluta da
razão não há nenhuma contraposição intransponível e irreconciliável, pois a contraposição da
liberdade a si mesma, pelo que surge o âmbito da finitude e da multiplicidade, não é renúncia
resignada à plenitude de sua própria natureza, mas antes forma necessária de seu aparecimento,
que traz em si o germe do restabelecimento da identidade pela suspensão da oposição: trata-se
tão-somente da cisão como fator, como momento, da vida infinita. Eis porque a liberdade
racional de Hegel se constitui em embate ferrenho contra a concepção reflexiva da liberdade
como inapelavelmente imersa na contradição, isto é, contra o livre arbítrio, o conceito negativo
de liberdade, a indeterminidade. Para Hegel, o arbítrio, “a contingência tal como ela é enquanto
vontade”, ou “a vontade enquanto contradição”(LFFD §15), nada mais é do que a decantação
133
Por conseguinte, diante desta teoria inovadora da liberdade, torna-se possível um conceito
não limitativo da liberdade individual, isto é, a liberdade do indivíduo que se objetiva em relações
intersubjetivas “solidárias” ou “não-excludentes” como constitutiva de relações vitais, relações
éticas plenamente racionais e, por isso mesmo, condições da identidade dos indivíduos. Se, no
quadro geral da matriz intersubjetiva da concepção fichteana de interação social, “o direito tem
de acontecer, mesmo que, para isso, confiança, prazer e amor, todas as potências de uma
identidade genuinamente ética, tenham de ser, como se diz, completamente extirpadas” (TWA 2,
87), para Hegel, um outro tipo de intersubjetividade é mais condizente com sua compreensão não
limitativa de liberdade individual: “a comunidade da pessoa com outra tem, por isso, de ser vista
não como uma limitação da verdadeira liberdade do indivíduo, mas antes como uma ampliação
da mesma.” (TWA 2, 82) Para Hegel, é justamente no âmbito de uma relação intersubjetiva
solidária, não-excludente, não-limitativa, não-individualista, que a liberdade individual encontra
sua verdade e, pela suspensão de sua fixação na subjetividade da independência e da
indeterminação, encontra-se objetivada no mundo. “Através de uma comunidade genuinamente
livre de relações vivas (Beziehungen), o indivíduo renunciou à sua indeterminidade, que se
compreendia como liberdade. Na relação viva (in der lebendigen Beziehung) somente há
liberdade, na medida em que ela encerra em si a possibilidade de suspender a si mesma e de
travar outras relações (Beziehungen), isto é, a liberdade é, enquanto fator ideal, nulificada.”
(TWA 2, 83)
É verdade que Hegel somente permite, na Differenzschrift e em Glauben und Wissen, que
se compreenda apenas muito indiretamente como se configura politicamente esta interação
viva356 dos indivíduos uns aos outros, ou entre os mesmos e a vontade comum. Entretanto, Hegel
356
ver Baumanns, P. – Fichtes ursprüngliches System. Sein Standort zwischen Kant und Hegel, Stuttgart, 1972. Baumanns compreende a crítica
hegeliana à filosofia social e política de Fichte, especialmente em sua forma apresentada na Differenzschrift, no registro geral da refutação daquela
tese acerca do desenvolvimento do idealismo alemão imortalizada por Richard Kroner e segundo a qual as filosofias de Fichte e Schelling
deveriam ser consideradas como estágios no desenvolvimento da concepção de filosofia do idealismo absoluto de Hegel. Kroner, Richard – Von
Kant bis Hegel, Tübingen, 1961. Neste sentido, a crítica hegeliana tanto aos princípios fundamentais do idealismo fichteano como à sua filosofia
social são marcadas, para Baumanns, por uma tentativa mais ou menos manifesta de Hegel de encontrar em Fichte os prenúncios tanto de sua
concepção de filosofia especulativa, quanto de seu conceito de liberdade absoluta. (141) Entretanto, segundo Baumanns, enquanto a crítica da
Differenzschrift à doutrina-da-ciência é desferida a partir de uma posição que Hegel não mais abandona no desenvolvimento subseqüente de seu
sistema – qual seja, a dialética da razão absoluta –, a crítica hegeliana à filosofia político-jurídica de Fichte se baseia sobretudo numa concepção
ético-política que, ao contrário, Hegel abandonaria no desenvolvimento posterior (143). Aquilo que aqui nós gostaríamos de perceber como uma
re-aproximação de Fichte e uma absorção da estrutura da intersubjetividade jurídica no quadro mais amplo de uma teoria dos estágios de
intersubjetividade que contribuem para a gênese da identidade entre o indivíduo e a comunidade na eticidade absoluta – processo que, sem dúvida,
encontra ecos tanto nos Jenaer Systementwürfe, quanto nas versões da Enciclopédia, assim como na própria teoria da eticidade moderna nas
Grundlinien – Baumanns vê apenas como o sinal de que Hegel vai paulatinamente abandonando, pela absorção da gewalthabendes Gesetz ou
mesmo da Rechtspflege no quadro mais amplo do desenvolvimento da eticidade, o projeto inicial que se vincula à Differenzschrift: a concepção,
excessivamente ligada à idealização juvenil da pólis grega, de uma comunidade bela, livre e viva. Neste sentido, para Baumanns, o próprio
desenvolvimento da filosofia política de Hegel em Jena já marca este processo pelo qual a idéia jenense original de substituir leis pela
imediatidade mediatizada dos costumes é simplesmente abandonada por uma revalorização do papel a ser desempenhado pela estrutura da
intersubjetividade jurídica na construção do conceito de eticidade (144 e seg.). Por outro lado, o presente trabalho se filia a uma concepção deste
desenvolvimento que remonta aos trabalhos de Ludwig Siep e Axel Honneth. O fato de que a estrutura formal da intersubjetividade jurídica tenha
sido paulatinamente incorporada ao processo de gênese da eticidade absoluta não significa, de maneira nenhuma, que o projeto de uma
compreensão não individualista de comunidade tenha sido abandonado. O direito e os modos de ação recíproca associados ao paradigma jurídico-
moral de intersubjetividade são compreendidos por Hegel como um estágio de desenvolvimento da totalidade ética e parecem estar nela
conservados enquanto garantia institucionalizada de proteção à identidade da pessoa. Por outro lado, o estágio da relação intersubjetiva efetivada
na totalidade ética do povo traz em seu bojo não somente esta garantia institucionalizada de respeito universal à pessoa na forma de direitos
individuais e que se funda na limitação recíproca da liberdade de ação, mas sobretudo o reconhecimento e reafirmação por parte do outro e da
comunidade como um todo de aspectos singulares da formação da identidade individual. É neste sentido que interpretamos aqui a tese de Honneth
segundo a qual o estágio de intersubjetividade que se efetiva ao nível da eticidade absoluta contém, além dos aspectos eminentemente negativos e
limitativos da intersubjetividade jurídica, também a afirmação de possibilidades individualizadas de formação das identidades, cujo espectro é
134
já antecipa que, primeiramente, a razão se encontra mais expressamente a si mesma em sua auto-
configuração em um povo (TWA 2, 87); em segundo lugar, que, nesta totalidade ética orgânica
do povo, a comunidade humana encontra, politicamente, sua expressão plenamente racional, que
nadifica as contraposições da reflexão: “a mais elevada comunidade é a mais elevada liberdade,
tanto segundo o poder, quanto segundo a execução – a mais elevada comunidade, na qual,
contudo, justamente a liberdade, enquanto fator ideal, e a razão, enquanto contraposta à natureza,
são inteiramente anuladas.” (TWA 2, 82) Finalmente, para Hegel, nesta totalidade orgânica, a
natureza ética tem sua “efetividade na qual o eticamente infinito, ou o conceito, e o eticamente
finito, ou a individualidade, são pura e simplesmente um.” (TWA 2, 425)
Contudo, no System der Sittlichkeit, Hegel se vê pela primeira vez envolvido com a tarefa,
traçada na Differenzschrift para a filosofia, de construir o absoluto a partir da reflexão: no System
der Sittlichkeit, Hegel descreve o processo da gênese da eticidade absoluta na totalidade do povo
tendo como ponto de partida a subjetividade singular do sentimento prático que se contrapõe ao
mundo como esfera da satisfação de suas carências. Este processo se desenvolve também
segundo estágios prévios de relação intersubjetiva entre os seres humanos e que, ao fim e ao
cabo, são conservadas em sua “verdade relativa” e incompleta na totalidade ética do povo. É
justamente neste contexto, que se abre com System der Sittlichkeit, que tem início a
reaproximação de Hegel com a concepção “reduzida juridicamente” do reconhecimento em
Fichte: a limitação recíproca e o reconhecimento omnilateral da liberdade de ação dos indivíduos,
seja no que concerne ao estofo originário de inteligibilidade que as torna possível, seja em seu
papel imprescindível na efetivação ética da orientação universal pela persecução dos interesses
privados, ou ainda no potencial normativo inerente às possibilidades de seu rompimento efetivo,
são assimilados ao processo de gênese intersubjetiva da plena reconciliação entre o universal da
comunidade e o indivíduo. De maneira geral, este movimento de revalorização da
considerado em geral como a esfera ética de uma “solidariedade social”. No System der Sittlichkeit, Honneth pretende ver alcançado este estágio
de relação intersubjetiva no início do capítulo sobre eticidade absoluta com a consideração acerca da wechselseitige Anschauung dos indivíduos.
“Em sua apresentação da “eticidade absoluta”, que se segue ao capítulo sobre o crime, é afirmado, como fundamento intersubjetivo de uma futura
comunidade, uma relação específica entre os sujeitos, para a qual se encontra aqui a categoria de “intuição recíproca”: o indivíduo “vê-se” em
todo outro como a si mesmo. Com esta formulação, Hegel ... tentou caracterizar uma forma superior de relação recíproca entre os sujeitos. Tal
modelo de um reconhecimento que chega até o [elemento] afetivo, para a qual se oferece sobretudo a categoria de “solidariedade”, deve
manifestamente fornecer a base comunicativa sobre a qual os indivíduos isolados uns dos outros pela relação de direito, possam se reencontrar
mais uma vez no quadro mais amplo de uma comunidade ética.” ver Honneth, Axel – Kampf um Anerkennung. Zur moralischen Grammatik
sozialer Konflikte, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1992, p.44
135
357
Riedel, Manfred – „Hegels Kritik des Naturrechts“ in: Studien zu Hegels Rechtsphilosophie, Frankfurt am Main, 1969, 42-74
136
358
Na análise de temas discutidos no Naturrechtaufsatz, o presente trabalho se encontra numa situação mais “complicada” do que aquela que M.
L. Müller retrata na introdução de seu artigo sobre o importante texto hegeliano. ver Müller, Marcos L. –“O direito natural de Hegel:
pressupostos especulativos da crítica ao contratualismo”, in: Filosofia Política. Rio de Janeiro, RJ: , n.5, p.41 - 66, 2003. Esta situação se explica
pelo fato de que, além da interpretação clássica fornecida por Bernard Bourgois [ver Bourgeois, Bernard – Le Droit Naturel de Hegel (1892-
1803)- Commentaire: Contribuition à l´étude de la genèse de la spéculation hégélienne à Iéna, Paris, 1986], a qual, para além da discussão
precisa do texto, confere ao artigo de Hegel importante papel não só na solidificação e tematização de suas principais teses ético-políticas, mas
ainda na elaboração de sua filosofia especulativa como um todo, temos também diante dos olhos a recente, concisa e excepcional interpretação de
Müller acerca da articulação entre a crítica do formalismo, empreendida na segunda parte do artigo, e a parte propriamente positiva, a terceira
parte, na qual Hegel delineia pela primeira vez seu programa para um “sistema da eticidade”. Na medida em que Müller se ocupa principalmente
da gênese do processo de “auto-diferenciação do absoluto prático”, enquanto totalidade ética, a partir da crítica ao formalismo da concepção
fichteana de comunidade política e da suspensão da infinitude absolutamente negativa da filosofia da reflexão – e isto com vistas a tematizar, pela
via da consideração dos conceitos de liberdade absoluta e de pertença do indivíduo à comunidade ética, o resgate hegeliano da tese aristotélica da
“anterioridade da pólis sobre o indivíduo” em face do individualismo e atomismos próprios às doutrinas modernas do direito natural –, torna-se
com isso, aliado à amplitude da obra de Bourgeois, o fundamento da interpretação que aqui desejamos utilizar acerca “direito natural”. Outrossim,
vinculada a esta interpretação principal, há que se mencionar também a obra de Kimmerle, que se constitui, enquanto resultado de um trabalho
especialmente importante de datação dos escritos de Jena, como um marco dentro da Hegelforschung [ver Kimmerle, Heinz – Das Problem der
Abgeschlossenheit des Denkens. Hegels „System der Philosophie“ in den Jahren 1800-1804, Bonn(Beiheft 8 der HST)], bem como o recente e
competente artigo de Cruysberghs [ver Cruysbergs, Paul – “Hegel´s critique of modern natural law” ”, in: Wylleman, A. (ed.) – Hegel on the
ethical life, religion and philosophy , 1793 – 1807, 81-117]. Para além destes trabalhos, deve-se incluir ainda o formidável livro de Schnädelbach,
o qual permite a visualização das conexões que podem ser estabelecidas entre o Naturrechtaufsatz e os demais textos hegelianos sobre filosofia
prática, especialmente o System der Sittlichkeit, os Jenaer Systementwürfe e as Grundlinien. [ver Schnädelbach, Herbert – Hegels praktische
Philosophie: Ein Kommentar der Texte in der Reihenfolge ihrer Entstehung, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 2000]
359
Müller, Marcos L. –“O direito natural de Hegel: pressupostos especulativos da crítica ao contratualismo”, in: Filosofia Política. Rio de
Janeiro, RJ: , n.5, p.41 - 66, 2003
360
Ilting, Karl-Heinz – „Hegels Auseinandersetzung mit der aristotelischen Politik“, in: Frühe politische Systeme: System der Sittlichkeit, Über
die wissenschaftlichen Behandlungsarten des Naturrechts, Jenaer Realphilosophie. Herausgegeben und kommentiert von Gerhard Göhler,
Frankfurt am Main, Ullstein 1974, 759-785 Neste célebre artigo, Ilting sustenta conexões interessantes capazes de indicar o teor da integração
promovida por Hegel entre a filosofia política clássica e as teorias modernas do direito natural. Em primeiro lugar, segundo Ilting, o programa de
um “sistema da eticidade”, delineado no Naturrechtaufsatz e levado a termo, graças ao alinhamento de Hegel à Potenzenmethode de Schelling, no
System der Sittlichkeit, caracteriza-se sobretudo por uma equiparação da doutrina espinosana da substância infinita, à qual Hegel adere
imediatamente depois da Seinsmetaphysik do período de Frankfurt graças à influência do projeto schellingniano de mediação entre Kant e
Espinosa, com a doutrina aristotélica da comunidade política. Esta equiparação permite a Hegel fundamentar a primazia do positivo ou do povo no
fato de que este, enquanto substância que se diferencia, é primordial em relação ao negativo ou ao indivíduo. Ilting compreende o projeto
hegeliano traçado nos primeiros textos de filosofia prática em Jena como uma tentativa de unificar visceralmente a política de Aristóteles com o
direito natural tal como ele é compreendido pelo pensamento político que se inicia com Maquiavel, passa por Hobbes e chega até Espinosa. Esta
tese de leitura Ilting pretende confirmar sobretudo apelando à estrutura tripartite de System der Sittlichkeit. Para Ilting, a primeira e a última parte
da obra hegeliana, que contêm, respectivamente, as considerações sobre a “eticidade natural” e a “totalidade ética do povo”, corresponderiam ao
traçado estabelecido pela própria política de Aristóteles. A parte acerca da “eticidade natural” equivaleria à economia aristotélica, exposta no
primeiro livro da Política, e seu objetivo seria “mostrar como, a partir da condicionalidade original e ainda inteiramente natural do ser humano,
surge aquela diversidade de atividades e formas comunitárias que se completa na comunidade política.”(Ilting, 74, 711). Portanto, Ilting vê nesta
adesão à política aristotélica, evidenciada no itinerário de efetivação das formas societárias da “eticidade natural” pela comunidade política, dois
137
importantes motivos na formação do pensamento político de Hegel: por um lado, é na sua doutrina da “eticidade natural” que aquele ideal da
“comunidade de relações vivas”, que serve de critério para a avaliação negativa da concepção fichteana de intersubjetividade, adquire sua base
real. Por outro lado, para Ilting, é justamente a retomada da relação entre economia e comunidade em Aristóteles que conduz Hegel à absorção em
seu sistema filosófico dos resultados de sua investigação sobre economia política clássica. Em contrapartida ao desdobramento orgânico da
eticidade a partir das necessidades originárias do ser humano, processo que é compreendido sob o tópico da “eticidade natural”, Ilting sugere que a
inserção do capítulo “o negativo ou a liberdade ou o crime” entre a “eticidade natural” e a comunidade política é o índice da ruptura da
continuidade que o teria vinculado exclusivamente a Aristóteles, se ele tivesse desenvolvido a comunidade política imediatamente a partir das
formas subjetivas e sociais pré-estatais. É esta inserção que Ilting atribui à absorção da doutrina moderna do direito natural no quadro de uma
filosofia política orientada pela primazia aristotélica da pólis. Para Ilting, nesta chave de leitura, três autores teriam sido significativos para Hegel.
Primeiramente Maquiavel, cujas teses políticas pragmáticas incapazes de ultrapassar os limites da prudência política somente com Hobbes
adquiriram fundamentação filosófica rigorosa. [ver Honneth, Axel – Kampf um Anerkennung. Zur moralischen Grammatik sozialer Konflikte,
Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1992, capítulo 1]. À incontestável influência de Hobbes nas concepções hegelianas desta fase em Jena e que se
vinculam à luta por reconhecimento já se aludiu de maneira bastante consistente. [ver Siep, Ludwig –„Der Kampf um Anerkennung. Zu Hegels
Auseinandersetzung mit Hobbes in den Jenaer Schriften“, in: Hegel-Studien (1974), 155-209] A peculiaridade da leitura de Ilting se revela, na
medida em que ele declara que “somente Espinosa conferiu à doutrina do direito natural de Hobbes um fundamento metafísico, ao determinar ser
como atividade e a unidade dela [da doutrina do direito natural em Hobbes] como poder, o qual é, correspondentemente, uma expressão limitada
do poder infinito da natureza ou de Deus”(Ilting, 1974, 777). Para Ilting, a peculiaridade de uma filosofia política como a hegeliana, concebida
como tentativa de integrar no quadro geral da primazia da pólis motivos oriundos do direito narutal moderno, está justamente em ter conferido à
temática moderna da luta pela afirmação individual de prerrogativas sociais e da formação de ordem de dominação legalmente instituída um novo
significado: a imposição social do poder constituído como estado não visa somente à afirmação pragmática da “verdade social” como solução para
a ameaça ubíqua de desintegração graças à exacerbação do princípio do egoísmo, mas sobretudo a produzir, para os próprios combatentes, a
verdade e a efetividade da pertença de ambos ao povo. Nisto consiste a possibilidade de absorção do conflito social a uma compreensão da
comunidade política que se considera como correção do individualismo moderno e de sua redução da política ao agregado de átomos subsistentes
por si, isto é, como capaz de compreender o nexo político da comunidade humana como algo essencialmente inclusivo e “solidário”.
361
Uma tal tendência interpretativa encontra respaldo na mais recente pesquisa sobre a datação dos manuscritos jenenses de Hegel. Em 2002, foi
reeditado na Alemanha aquele manuscrito hegeliano de 1802-1803, copiado por Karl Rosenkranz, publicado por Georg Lasson com o título de
“System der Sittlichkeit” [in G.W.F Hegel, Sämtliche Werke, Band 7, Schriften zur Politik und Rechtsphilosophie,Leipzig, 1913, 415-499]. Nesta
nova edição, preparada por Horst D. Brandt e prefaciada por Kurt Rainer Meist, se defende, com excelente embasamento técnico, a tese de que
não só a presumida data de composição está errada, mas que, possivelmente, não se trata no texto de um trabalho preparatório de Hegel acerca
daquilo que depois seria apresentado, de maneira completa, como a filosofia do espírito objetivo, e sim de uma crítica sistemática da teoria
fichteana do direito natural, ou pelo menos de parte de uma obra projetada por Hegel com este objeto. Em vista das pesquisas técnicas levadas a
termo com o fim de confirmar esta tese, Brandt publica a reedição do texto com o seguinte título: G.W.F Hegel, System der Sittlichkeit [Critik der
Fichteschen Naturrechts], Hamburg: Meiner, 2002. O System der Sittlichkeit representaria este interessante híbrido na trajetória do
desenvolvimento de Hegel, pelo qual a correção do individualismo e atomismo próprios ao direito natural moderno, cuja forma melhor acabada é
o “formalismo do entendimento prático”, através do recurso às concepções aristotélicas a respeito da “anterioridade da pólis”, correção que se
realiza certamente pelo itinerário de uma equiparação da pólis aristotélica com a substância espinosana e se condensa na teoria da auto-
diferenciação do absoluto prático, encontra a possibilidade, suscitada pela teoria fichteana da intersubjetividade, de apresentar o desdobramento da
totalidade ética na forma de uma sobreposição de paradigmas de relação intersubjetiva que são conservados na efetivação da liberdade como
comunidade. Neste processo pelo qual a teoria fichteana da intersubjetividade é absorvida na constituição da eticidade, também a importância
dada por Hegel à relação dos indivíduos que, no momento da reprodução material da vida social, deparam-se como proprietários, é
consideravelmente aumentada, ao passo que também as teses herdadas de Aristóteles com respeito à eticidade natural da família também são
reintegradas ao desdobramento da comunidade ética na forma de um estágio de relação intersubjetiva. Não seria, portanto, um exagero ver nesta
integração de Fichte e Aristóteles o nascedouro do plano definitivo de desdobramento da eticidade, e nem o estabelecimento da conexão
propriamente hegeliana entre eticidade e direito.
362
Não cabe neste trabalho tecer uma consideração pormenorizada as descontinuidades entre a Differenzschrift e o Naturrechtaufsatz. Para uma
compreensão segura deste tópico, indicamos os seguintes trabalhos: Kimmerle, Heinz – Das Problem der Abgeschlossenheit des Denkens. Hegels
„System der Philosophie“ in den Jahren 1800-1804, Bonn(Beiheft 8 der HST); Horstmann, R – „Problem der Wandlung in Hegels Jenaer
Systemkonzeption“ in: Philosophische Rundschau, 19, 1973, pp. 87-118; Meist, Kurt – „Hegels Systemkonzeption in der frühen Jenaerzeit“, in:
Hegel in Jena, pp 59-79. Especialmente no que diz respeito à relação entre Hegel, Schelling e a “administração” de sua herança espinosana, ver:
Cruysbergs, Paul – “Hegel´s critique of modern natural law” ”, in: Wylleman, A. (ed.) – Hegel on the ethical life, religion and philosophy ,
1793 – 1807, 81-117
138
não é ainda completa na Differenzschrift ou em Glauben und Wissen363, mas se aprofunda nos
textos de filosofia prática, na forma de um alinhamento mais direto de Hegel com a metafísica
espinosana da substância – como expediente para a compreensão da relação
comunidade/indivíduo enquanto relação substância/modificações 364 –, e alcança seu apogeu na
utilização do método das potências de Schelling, tanto na gênese da liberdade absoluta no
Naturrechtaufsatz, como na tentativa mais ou menos artificial365 de submeter o desdobramento da
comunidade ética ao método de subsunção recíproca de conceito e intuição. Diante da crítica
hegeliana à filosofia da reflexão, o objetivo de “corrigir” o individualismo das modernas teorias
do direito natural através do recurso à filosofia política clássica não é uma “restauração” pura e
simples do ideal político-comunitário da pólis grega, mas antes a demonstração da negatividade
intrínseca à absolutização da liberdade individual e do elemento social em que esta se realiza: a
atividade econômica juridicamente regulada. Segundo a tese jenense da “cisão como fator da
vida”, se a negatividade da esfera de exercício da liberdade individual tem de ser relativizada em
face do positivo da plena realização da liberdade na comunidade, isto somente pode ocorrer não
pela supressão pura e simples deste momento, mas apenas pela demonstração de seu caráter de
momento do todo, um momento ao qual, especialmente em circunstâncias modernas, cabe um
devido direito de existência.
Hegel, ainda no império romano, mas se cristaliza com a moderna autonomização, em face da
política, da esfera econômica regulada pelo direito privado –, intensifica-se o predomínio do
paradigma da justiça, calcado na relação de propriedade e entre proprietários, sobre a organização
política. A potência da propriedade privada tem seu fundamento numa relação intersubjetiva
limitativa e restritiva que pressupõe singulares completamente formados em sua individualização
sem uma referência aos diversos vínculos originários que possam ter segundo estruturas
intersubjetivas “positivas” que, formando um processo originário de socialização, constituem as
condições de possibilidade desta individualização. É verdade que, somente após alcançar, sob a
influência também de Aristóteles, um modelo de desenvolvimento da eticidade, Hegel
compreende um processo de socialização que tem como sua contra-face a individualização. No
Naturrechtaufsatz a ênfase de Hegel está sobretudo no caráter originário do vínculo político dos
singulares, de maneira que, “se o singular apartado não é nada independente (nichts
Selbständiges), então ele tem de estar, igual a todas as partes, em uma unidade com o todo.”
(TWA 2, 505)
Por conseguinte, o conceito hegeliano de absoluto ético tem de possuir uma envergadura
capaz de sustentar este projeto. Na introdução ao System der Sittlichkeit, Hegel esclarece que,
“para conhecer a idéia da eticidade absoluta, a intuição tem de ser posta perfeitamente adequada
ao conceito, pois a idéia nada mais é que a identidade de ambos.”(SdS, 3) Para que ambos se
tornem adequados, explica Hegel, isto é, para “que ... esta equiparação (Gleichsetzen) se torne
perfeita”, faz-se necessário que “aquele que aqui fora posto na forma da particularidade tenha de
ser posto agora na forma da universalidade, e aquele que fora posto na forma da universalidade
tenha agora de ser posto na forma da particularidade”(SdS, 3), o que resultará no recurso à
subsunção recíproca de conceito e intuição. Hegel acrescenta que “aquilo que, contudo, é o
verdadeiramente absoluto é a intuição, e o verdadeiramente particular o conceito absoluto: cada
qual tem, portanto, de ser posto em face do outro uma vez sob a forma da particularidade e outra
vez sob a forma da universalidade, subsumindo, primeiro, a intuição sob o conceito, e a outra vez,
o conceito sob a intuição”(SdS, 3). Se Hegel pretende que os diversos estágios da eticidade sejam
dados a conhecer pela subsunção recíproca de conceito e intuição um sob o outro, a intuição e o
conceito em seu caráter absoluto constituem, por assim dizer, balizas da exposição, ou seja,
“pontos de chegada e de partida”; pois, como diz Hegel, “a idéia da eticidade absoluta é o
retomar da realidade absoluta para dentro de si como para dentro de uma unidade (das
Zurücknehmen der absoluten Realität in sich als in eine Einheit), de tal forma que esta retomada
140
e esta unidade é a totalidade absoluta” e, portanto, “sua intuição é um povo absoluto, seu conceito
é o ser-um (Einssein) absoluto das individualidades.”(SdS, 3)
Por outro lado, se o sistema somente começa a se constituir com a subsunção desta
intuição ao conceito, “nesta subsunção, pois, a intuição da eticidade, que é um povo, se torna uma
realidade múltipla ou uma individuali/dade, um ser humano singular”(SdS, 3/4). Ora, tal como,
com sua teoria posterior da mediação intersubjetiva da autoconsciência, Hegel reduz a pretensão
de absolutidade e universalidade da intuição intelectual fichteana do Eu=Eu, em face de seu
caráter abstrato, ao status de uma consciência singular que se contrapõe ao objeto enquanto
desejo, também aqui, no System der Sittlichkeit, Hegel reduz a pretensão do conceito absoluto,
fundamento do qual o formalismo do “entendimento prático” pretende deduzir moral e direito
como oriundos apenas da razão pura, ao status de perspectiva de um indivíduo singular, de um
sujeito particular que se contrapõe ao mundo como ambiente da satisfação imediata ou
mediatizada (pelo trabalho) de suas carências, um singular sobre o qual paira a eticidade como
unidade formal (SdS 4).
“A realidade desta representação [que capta a natureza ética apenas a partir do lado de sua
identidade relativa E.C.L] se fundamenta na consciência empírica e na experiência universal de
cada um de encontrar em si mesmo ... esta unidade pura da razão prática ou a abstração do eu.”
(TWA 2, 458/459) A crítica ao formalismo do “entendimento prático”, enquanto preâmbulo para
o delineamento da auto-diferenciação do absoluto ético, pode ser compreendida justamente como
absorção do conceito absoluto na intuição absoluta enquanto momento da mesma. Para Hegel, a
conseqüência prática mais importante da fixação formalista no momento subjetivo da liberdade é
dupla. No aspecto prático-moral desta fixação, a perspectiva do indivíduo e do sujeito autônomo
torna-se o ponto de partida dos “sistemas da comunidade humana”. “Esta liberdade não se
encontra a si mesma enquanto razão, mas sim enquanto ser racional, isto é, sintetizado com seu
contraposto, com um finito, e já esta síntese da personalidade encerra em si a limitação de um dos
fatores ideais, como aqui é a liberdade. Razão e liberdade enquanto ser racional não são mais
razão e liberdade, mas um singular.”(TWA 2, 82) Com efeito, se, por um lado, o formalismo na
compreensão da liberdade transforma a perspectiva genuinamente racional da liberdade efetivada
em relações intersubjetivas – e, em última instância, na organicidade do povo – numa “eticidade
do singular”(TWA 2, 504); por outro lado, somente permite a compreensão da comunidade
política como um agregado de indivíduos autônomos sob a autoridade juridicamente constituída,
de átomos subsistentes por si concebidos, de acordo com premissas atomistas e individualistas do
contratualismo, como anteriores à sua associação366, o que também se revelará, como mostrarão o
System der Sittlickeit e demais “sistemas da eticidade” em Jena, uma compreensão da
comunidade política que despreza as condições de socialização humana no forjamento da
identidade intersubjetivamente mediada dos indivíduos.
366
“Esta substancialidade dos pontos funda um sistema da atomística da filosofia prática, no qual, assim como na atomística da natureza, um
entendimento estranho aos átomos se torna lei, a qual, no prático, se chama direito, um conceito da totalidade que deve se contrapor a cada ação –
pois cada qual é uma [ação] determinada – determiná-la e [deve], portanto, matar nela o vivo, a verdadeira identidade.” (TWA 2, 87)
141
ponto de vista da Unsittlichkeit367. “Não se pode também falar em negar este ponto de vista ...
Mas isto tem de ser afirmado: que ele não é o ponto de vista absoluto, como aquele no qual,
conforme foi mostrado, a relação se prova somente como um lado, e o isolar da mesma, [prova-
se], portanto, como algo unilateral, e que, porque eticidade é algo absoluto, aquele ponto de vista
não é o ponto de vista da eticidade, mas antes que nele não há qualquer eticidade.” (TWA 2,
458/459) A peculiaridade da crítica de Hegel está na compreensão de que este ponto de vista,
enquanto perspectiva do singular, tem de ser integrado como momento da própria eticidade. “A
consciência empírica é empírica, porque os momentos do absoluto aparecem nela dispersos,
contíguos, em seqüência, apartados. Mas não seria ela mesma nenhuma consciência comum, se a
eticidade não aparecesse nela igualmente.” (TWA 2,459)
Enquanto a eticidade é algo absoluto, somente sua auto-diferenciação pode conferir valor
ético à perspectiva do conceito absoluto, extirpando, ao romper seu isolamento, o risco da não-
eticidade ou do individualismo incapaz de apreender a anterioridade dos vínculos intersubjetivos
em relação à pressuposição das singularidades autonomizadas. Com efeito, a eticidade em seu
caráter genuinamente absoluto, em sua substancialidade e em seu movimento de produção das
determinidades, somente pode ser apreendida ao se recorrer à intuição, a faculdade que Hegel
identificou, na Differenzschrift, com o poder racional de nadificar as determinações da reflexão.
Frente ao proceder diferenciador da reflexão, “a unidade da intuição ... é a indiferença das
determinidades, as quais constituem um todo, não um fixar das mesmas enquanto apartadas ou
contrapostas, mas antes um apreender em conjunto (Zusammenfassen) e objetivar das mesmas”
(TWA 2, 467). Nesta “presença absoluta”, propiciada pela intuição, na qual “indiferença e as
determinidades diferentes são pura e simplesmente unificadas”, “jaz a força da eticidade em
geral e, naturalmente, também da eticidade em particular, de que se trata primeiramente para
aquela razão legislante e da qual, antes, justamente aquela forma do conceito, da unidade formal
e da universalidade tem de ser afastada; pois esta é justamente aquilo pelo que a essência da
eticidade é imediatamente suspensa.” (TWA 2, 467) Para Hegel, é justamente na oposição
irredutível – tanto da razão prática à natureza pulsional, quanto da vontade universal às vontades
singulares – que reside a ameaça não-ética (unsittlich) do formalismo, pelo que o universalmente
necessário se converte, pela irredutibilidade do outro como oposto, em algo contingente.
367
“E o que diz respeito ao recurso à consciência comum, então, justamente na própria, a eticidade tem de aparecer necessariamente da mesma
maneira como aquele ponto de vista, o qual, já que a relação se isola para si, enquanto sendo em si e que não é posto enquanto momento, é o
princípio da não-eticidade.” (TWA 2,459)
368
“O absoluto é conhecido, segundo sua idéia, enquanto esta identidade de diferentes, cuja determinidade é serem um deles a unidade, e o outro
a multiplicidade; e esta determinidade é ideal, isto é, ela é apenas na infinitude ... esta determinidade é suspensa na exata medida em que é posta.
Cada qual, tanto a unidade quanto a multiplicidade, cuja identidade é o absoluto, é ela mesma unidade do uno e do múltiplo.” (TWA 2, 456)
142
369
“E já que a indiferença ou a unidade é a liberdade, a relação, por outro lado, ou a identidade relativa, é a necessidade, então cada um destes dois
aparecimentos é o ser-um e a indiferença da liberdade e da necessidade.” (TWA 2, 457) Ao compreender indiferença como esfera da liberdade
(momento para o qual nada há de diferente de si) e a relação como esfera da necessidade (momento da exterioridade mútua dos termos e do
exercício de causalidade), Hegel atribui à liberdade o poder da absoluta integração das diferenças na unidade, ao passo que considera o âmbito da
necessidade como relação entre a liberdade e a necessidade, esfera de sua contraposição. Na manifestação do absoluto como natureza ética, são
distinguidos então o momento da indiferença ou da liberdade absoluta e o momento do exercício da liberdade sobre o domínio da necessidade, de
forma que a natureza ética é livre também em termos relativos, isto é, na esfera da necessidade, e a eticidade é o reino da liberdade que se realiza a
si mesma. “Porque, entretanto, na natureza ética, mesmo em sua relação, a unidade é o primeiro, então / ela é, também nesta identidade relativa,
isto é, na necessidade, livre.” (TWA 2, 457/458)
143
enquanto oposto: “ela é o princípio do movimento e da alteração, então sua essência mesma não é
nada além do que ser o contrário imediatizado de si mesma, ou seja, ela é o absolutamente
negativo, a abstração da forma, a qual, sendo ela identidade pura, [é] imediatamente pura não-
identidade ou absoluta contraposição” (TWA 2, 454). Na medida em que apenas abstrai da
multiplicidade e, com isso, não nega a oposição como tal, a infinitude é o contrário imediatizado
de si mesma: enquanto princípio de movimento e mudança, a infinitude absoluta é, presa à
afirmação sub-reptícia do seu oposto, a conversão na absoluta finitude, na oposição absoluta, na
absoluta determinidade. Se, por um lado, a infinitude não pode ser desvinculada do seu oposto, a
verdadeira infinitude é, para Hegel, positiva, a unidade absoluta de si mesma e de seu oposto. Por
isso mesmo, a infinitude pura pertence, enquanto momento, ao aparecer do absoluto; entretanto,
enquanto simples momento, está restrita àquela esfera em que a unidade ou a liberdade se põe a si
mesma como contraposta à multiplicidade e à necessidade, a esfera de uma relação de
exterioridade e determinação recíproca que é tão essencial quanto o momento da indiferença ou
da unidade interior dos termos.
Isto constitui a base para a tese de que uma eticidade a partir da razão pura prática é
inviável: como o conteúdo é o que, por definição, é absolutamente apartado da forma racional,
uma determinidade qualquer somente pode ser assimilada à forma pura de uma maneira empírica.
“Este real está posto essencialmente fora da razão, e somente na diferença em face do mesmo a
razão prática é, cuja essência é apreendida (begriffen) como uma relação de causalidade sobre o
múltiplo – como uma identidade que é afetada absolutamente por uma diferença e que não escapa
para fora do aparecimento (Erscheinung).” (TWA 2, 456) Hegel mostra esta impossibilidade,
primeiramente, numa crítica ácida da moral kantiana370, a qual, apesar de não considerar com
inteira isenção a posição kantiana371, é retomada posteriormente em suas linhas gerais. Para
Hegel, a razão pura prática de Kant, “ao ser desta maneira isolada, é, ela própria, é somente a
forma sem força, abandonada pelo poder verdadeiramente nadificador da razão, [forma] que
assimila a si as determinidades e as abriga sem nadificá-las, mas antes as pereniza em seu
contrário.” (TWA 2, 468/469)
A consideração de Fichte é, decerto, mais fiel ao espírito do direito natural fichteano, mas
a concepção unilateral da comunidade política de Fichte é referida diretamente à inobservância
do momento da indiferença. Tal como na relação interior ao indivíduo, que caracteriza a moral
370
Na sua apresentação crítica da moral kantiana, Hegel fornece aos leitores, em primeiro lugar, a possibilidade de perceber de maneira destacada
os momentos constituintes do absoluto apreendido como relação. “A expressão empírica e popular pela qual esta representação, que capta a
natureza ética apenas a partir do lado de sua identidade relativa, se fez tanto recomendar, é que o real, sob o nome de sensibilidade, inclinações,
faculdade de desejar inferior e etc... (momento da multiplicidade da relação) não entre em concordância (momento da contraposição da unidade e
da multiplicidade) com a razão (momento da unidade pura da relação), e que a razão consista em querer, a partir da própria auto-atividade absoluta
e autonomia, e em limitar e dominar aquela sensibilidade (momento da determinidade desta relação, que nela a unidade ou a negação da
multiplicidade é o primeiro).” (TWA 2, 458)
371
“O que vai além do conceito puro do dever e da abstração de uma lei não mais pertence a esta razão pura, tal como Kant, aquele que apresentou
esta abstração do conceito em sua pureza absoluta, reconheceu muito bem [ao dizer] que toda matéria da lei passa ao largo da razão prática e que
ela nada mais possa fazer enquanto a forma da prestabilidade (Tauglichkeit) das máximas do arbítrio à lei suprema.”(TWA 2, 459/460) O cerne da
crítica hegeliana à moral kantiana no Naturrechtaufsatz – a qual, em seus caracteres gerais, é repetida, como lembra Schnädelbach, em obras
posteriores como a Fenomenologia, as Grundlinien e as Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie –, tem seu cerne na acusação de que a
vacuidade de seu princípio impossibilita que a razão pura prática possa fornecer leis concretas, ou seja, conteúdo para leis determinadas.
“Entretanto, o interesse é justamente saber o que seja direito e dever. Pergunta-se pelo conteúdo da lei ética, e se tem a ver somente com este
conteúdo. Mas a essência da vontade pura da razão pura prática é que se faça abstração de todo conteúdo, e assim é em si contraditório procurar,
junto a esta razão prática absoluta, já que a essência dela consiste em não ter nenhum conteúdo, uma legislação dos costumes, já que ela teria de
possuir um conteúdo.” (TWA 2, 460/461) Esta impossibilidade transforma a razão pura prática de Kant, segundo Hegel, numa mera instância de
verificação da prestabilidade de máximas a se tornarem leis práticas. Baseando-se nesta leitura da moral kantiana, que corresponde em boa medida
à exposição do próprio Kant, Hegel vai além e vincula à moral kantiana uma acusação de fomentar a não-eticidade (Unsittlichkeit). Desta maneira,
para Hegel, a unidade analítica e a produção de analogias, sua interpretação do procedimento de exame racional das máximas, não somente se
revela algo dispensável, como mesmo algo falso. “Mas a unidade analítica e tautologia da razão prática é não somente algo supérfluo, mas, na
expressão que ela adquire, algo falso, e ela tem de ser conhecida enquanto princípio da não-eticidade (Unsittlichkeit) ... Onde, entretanto, uma
determinidade e singularidade é elevada a um em si, aí há transgressão da razão (Vernunftwidrigkeit) e, em relação ao ético, não-eticidade.” (TWA
2, 463) Esta tese hegeliana se baseia sobretudo no que ele mesmo enxerga como sendo o problema fundamental do formalismo: sua abstração de
todo conteúdo se reverte numa absolutização do mesmo, isto é, a elevação de um conteúdo finito ao status de algo incondicionado. Por outro lado,
é justamente a assimilação da determinidade ética à forma pura da razão que a destrói como determinidade, impossibilitando a demonstração de
qualquer conteúdo determinado como algo ético. O paradoxo da moral kantiana é, segundo Hegel, que a forma é separada do conteúdo e, ao
mesmo tempo, já que somente o conteúdo assimilado à forma pode ser considerado ético, e o conteúdo como tal jamais pode ser algo em si
universal como a forma, a recondução do conteúdo à forma como eticidade se converte justamente em absoluta não eticidade. Entretanto, pode-se
dizer que, em última instância, a não eticidade própria à moral kantiano-fichteana reside justamente no fato de que seu objeto não é a eticidade
absoluta, mas antes o âmbito de um individualismo hipertrofiado que se deixa entender como declínio da totalidade ética como tal. É neste sentido
que, segundo Schnädelbach, Hegel não procede, em sua crítica a Kant, de uma maneira propriamente imanente. Schnädelbach mostra habilmente,
com respeito à objeção de formalismo e de impossibilidade de que o imperativo categórico possa oferecer elementos conteudísticos, bem como
aos exemplos aludidos por Hegel no Naturrechtaufsatz, que é somente a consideração da moral kantiana sob a perspectiva da eticidade absoluta
que permite a Hegel interpretar a validade incondicionada do imperativo categórico como eticidade absoluta formal, o que Hegel deixa claro ao
dizer que “se ... a unidade da razão prática não fosse também esta unidade positiva da intuição, mas tivesse apenas o significado negativo de
nadificar o determinado, então ela exprimiria puramente a essência da razão negativa ou da infinitude, do conceito absoluto.” (TWA 2, 468/469)
Hegel teria procedido como se “Kant tivesse, na filosofia prática, filosofado em si já na perspectiva do absoluto. É somente esta sugestão que
explica a agudeza da crítica hegeliana a Kant. Certamente, esta crítica não é imanente, pois ela mede a ética kantiana por um critério
transcendente.”(68) Esta “transcendência” da crítica hegeliana é reconduzida por Schnädelbach a um dissenso entre os dois filósofos a respeito do
conceito de Sollen, considerado por Kant o índice do âmbito prático da filosofia transcendental, e por Hegel como índice da adoção de uma
perspectiva da finitude que, na ética, conduziria inapelavelmente à não eticidade. Como aponta Schnädelbach, esta interpretação da moral kantiana
em seu caráter unsittlich tende a se modificar no desenvolvimento da filosofia hegeliana, ao ponto de, nas Grundlinien, a moralidade em sentido
kantiano ser compreendida como o momento da infinitude para si da subjetividade, e apenas sua absolutização ser ainda compreendida como
ameaça à integridade do todo ético. [ver Schnädelbach, Herbert – Hegels praktische Philosophie: Ein Kommentar der Texte in der Reihenfolge
ihrer Entstehung, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 2000]
145
372
Para uma leitura pormenorizada sobre a crítica hegeliana ao Eforado, ver Müller, Marcos L. –“O direito natural de Hegel: pressupostos
especulativos da crítica ao contratualismo”, in: Filosofia Política. Rio de Janeiro, RJ: , n.5, p.41 - 66, 2003.Bourgeois, Bernard – Le Droit
Naturel de Hegel (1892-1803)- Commentaire: Contribuition à l´étude de la genèse de la spéculation hégélienne à Iéna, Paris, 1986
373
Segundo Hegel, operante nesta “relação ulterior” (nähere Beziehung) continua sendo a “contraposição insuperável posta” (gesetzte
unüberwindliche Trennung) que consiste na sua fixação como uma identidade relativa (TWA 2, 468). Entretanto, segundo Hegel, a discussão
passa de um nível geral para um âmbito em que a contraposição aparece em sua maneira peculiar.
374
O ser-para-si é, segundo Hegel, o resultado da dialética da alteração, da passagem incessante de algo ao outro, a restauração do ser como
negação da negação. O sendo-para-si, a consumação da qualidade, é, na medida em que contém o ser como suspenso, a imediatez da relação a si
mesmo; mas, na medida em que contém como suspensos o ser-aí e determinidade, é, enquanto relação do negativo para consigo mesmo, o uno,
que, pela suspensão da diferença em sua determinidade infinita, é em si mesmo carente-de-diferença, isto é, exclui o outro. Mas o uno é, para
Hegel, não carente-de-relação como o ser, mas relação negativa a si mesmo e, por conseguinte, o pressuposto dos muitos, e está incluído no
pensamento do uno o pôr-se como muitos. Portanto, o ser-para-si contém em si o duplo movimento: na relação negativa do uno consigo mesmo é
sua diferenciação de si mesmo, que Hegel compreende como repulsão ou pôr de muitos unos que se excluem reciprocamente (Enc. §97); por outro
lado, o “comportar-se negativo dos muitos unos entre si” é, de qualquer forma, também relação recíproca de uns com os outros, isto é, relação do
uno a si mesmo, ou atração. Se, por um lado, segundo Hegel, a igualdade da atração e repulsão suspende o uno exclusivo ou o ser-para-si e
constitui a passagem para a quantidade enquanto determinidade indiferente e não mais idêntica com o ser, a asserção unilateral da repulsão do uno
como posição dos muitos unos constitui, por outro lado, o ponto de vista da filosofia atomística, que afirma, em geral, a contingência da atração. À
compreensão, calcada na reflexão, de que os muitos unos se comportam de maneira exclusiva e mutuamente excludente e segundo a qual o uno “é
o repelente e os muitos o repelido”, Hegel contrapõe o progredir imanente do ser-para-si: “é antes o uno ... que é justamente isto: excluir-se de si
mesmo e pôr-se como muitos; mas cada um dos muitos é ele mesmo uno, e por isso, ao comportar-se como tal, essa repulsão de todos os lados se
converte assim em seu contrário: a atração.”(Enc §97 adendo).
375
O “exemplo mais próximo do ser para si” é o eu como relação infinita e negativa a si mesmo, a “autoconsciência como ser-para-si posto e
consumado” (TWA 5, 175). Na Ciência da Lógica, a independência (Selbständigkeit) “impelida ao ápice do uno sendo-para-si” é compreendida
como “independência formal que se destrói a si mesma, o engano mais elevado e renitente que se toma pela mais elevada verdade”. Segundo
Hegel, suas formas mais concretas aparecem como liberdade abstrata, eu puro e então como o mal. Esta liberdade abstrata é o “comportamento
negativo para consigo mesmo, o qual, ao querer obter seu próprio ser, destrói o mesmo”. Em uma digressão que retoma o tema da reconciliação do
indivíduo criminoso com as relações vitais lesadas pela sua posição exclusivista, tão presente nos escritos de Frankfurt, de Jena e assimilado à
discussão sobre o perdão na Fenomenologia, Hegel diz que “este seu fazer é somente a manifestação da nadidade deste fazer” e que “a
reconciliação é o reconhecimento daquilo contra o que o comportar-se negativo se dirige, antes como [reconhecimento] de sua essência”(TWA 5,
192/193).
146
Para Hegel, a compreensão de que o uno forma o pressuposto do múltiplo e de que está
contida na asserção do uno exclusivo sua necessária dispersão e diferenciação de si – e que, por
isso, a dispersão desemboca no reencontro do uno consigo mesmo – somente é acessível
“segundo o conceito”. Já na representação que dá vida à “visão atomística”, os muitos unos são
considerados como “imediatamente presentes” (Enc. § 97). É justamente no sulco desta
compreensão do movimento do “conceito absoluto”, de sua posição da multiplicidade376 e do
retorno dele a si mesmo nesta multiplicidade, enquanto contrapostos à concepção contingente e
exterior da atração, que Hegel critica a gênese da perspectiva jurídica em Fichte, que, segundo
Hegel, supõe a separação irrecuperável entre direito e moral377.
“O conceito absoluto, enquanto ele mesmo é uma diversidade, é uma porção de sujeitos, e a estes ele é, na forma da
pura unidade, enquanto quantidade absoluta, contraposto em face deste seu ser-posto qualitativo. Então ambos são
postos, um ser-um interior (ein inneres Einssein) dos contrapostos, o que é a essência de ambos, o conceito
absoluto; e um estar-saparado dos mesmos, [primeiro] sob a forma da unidade, na qual ele é direito e dever,
[segundo] sob a forma da diversidade, na qual ele é sujeito que quer e pensa.”(TWA 2, 469)
momento da indiferença, mas é antes fixado em seu movimento e separado da identidade relativa,
que é compreendida como relação de subsunção da dispersividade das vontades particulares sob a
unidade do normativo, ou legalidade. Para Hegel, a posição formalista “não permaneceu fiel a
este ser-uno, mas antes, ao reconhecer, na verdade, o mesmo enquanto a essência e enquanto o
absoluto, ela põe da mesma maneira a separação em uno e múltiplo absolutamente, e um ao lado
do outro com a mesma dignidade.” (TWA 2, 470) Assim, para Hegel, o problema diz respeito,
propriamente, não tanto à concepção da moralidade, mas à contraposição irredutível da mesma à
legalidade, o que se reverte também sobre ela, na medida em que a torna extremamente
unilateral, uma disposição de ânimo ideal dos sujeitos: ao invés de ser reconhecida como o
momento de indiferença, para onde se faz reconduzir toda a perspectiva relacional segundo a qual
as vontades particulares são subsumidas sob a unidade vazia do dever e do direito – perspectiva
em que se dão desvios de conduta, crime e coerção –, o momento da unidade vital é posto,
enquanto “moralidade”, como esfera isolada em relação à esfera isolada da legalidade. Para
Hegel, o resultado deste isolamento intransponível é a idealidade tanto do ser-um do uno e do
múltiplo, quanto de sua relação ou separação na identidade apenas relativa, o que leva à
compreensão de ambos como apenas possíveis: “tanto não é o absoluto positivo, o que
constituiria a essência de ambos e em que eles seriam um, mas antes o [absoluto] negativo ou o
conceito absoluto; como ainda aquele necessário ser-uno se torna formal, e ambas as
determinidades contrapostas, enquanto postas absolutamente, caem em seu subsistir sob a
idealidade, a qual é, nesta medida, a mera possibilidade de ambos.”(TWA 2, 470)
378
“Os conceitos fundamentais do sistema da legalidade resultam / a partir disso da seguinte maneira. É condição da pura autoconsciência, e esta
pura autoconsciência, eu, é a verdadeira essência e o absoluto, apesar do que ela é, contudo, condicionada, e sua condição é que ela avance para
uma consciência real, [de maneira que] estas duas formas permanecem, nesta relação do ser-condicionado em face uma da outra, pura e
simplesmente contrapostas entre si.” (TWA 2, 470/471)
149
singulares que conduz Fichte à compreensão da unificação socialmente efetiva das vontades
singulares como exterior às mesmas, isto é, como não alcançando uma identidade originária, a
qual, entretanto, é inconscientemente pressuposta como tecido social que torna primeiramente
possível o ponto de vista jusnaturalista centrado na “individualização plena, acabada e
fundamental”, isto é, que toma como arcabouço das relações sócio-políticas a vontade singular.
contratuais de direito civil, uma penetração (eindrigen) ilegítima desta relação na “majestade
absoluta da totalidade ética”. “O elemento principal aqui no foco da crítica hegeliana [ao
contratualismo] é o da construção da unidade ética a partir de liberdades individuais, concebidas
numa multiplicidade posta como originária, e que fundam sua coexistência mediante um acordo
de limitação recíproca dos arbítrios segundo uma lei jurídica que implica um poder coercitivo.”379
Desta maneira, se a relação de coerção se atrela à racionalidade própria ao intercâmbio jurídico
dos indivíduos e à manutenção da ordem legal de sua existência comum, revelar esta relação
como um momento do movimento do absoluto, que se põe a si mesmo como totalidade ética, é
mostrar a origem derivada desta relação e, nesta medida, subtrair-lhe a pretensão de esgotar a
compreensão filosófica da comunidade política380.
absoluta é a negação dos indivíduos em sua finitude, não somente uma negação de uma
determinidade singular (por meio de coerção), mas a negação da totalidade de suas
determinações, a fortiori de suas vidas. Somente a referência da unidade relativa à indiferença
pode, na forma da nulidade do indivíduo enquanto oposto ao povo, fornecer uma compreensão da
infinitude verdadeira. Hegel descreve então um arco que vai desde a indiferença negativa – a
indeterminidade da vontade como arbítrio, que se limita ao acolhimento de um conteúdo
empírico como princípio subjetivo em detrimento do que permanece necessariamente exterior a
este conteúdo –, até a indiferença positiva, ou seja, a integração da totalidade de determinidades
que constituem a existência do singular numa totalidade comunitária orgânica, pelo que recebem
seu significado ético: a existência ética positiva do singular como membro do todo.
aquela liberdade, a qual pode ser posta enquanto limitável, é, justamente por isso, mais uma vez
não absoluta.” (TWA 2, 476) Sendo uma indeterminidade vazia que se limita pela escolha e se
fixa no acolhimento de uma “máxima” em detrimento da determinidade contrária, continua presa
ao conteúdo que lhe permanece exterior, condicionada pela finitude de um conteúdo contingente.
Falta-lhe a força de plena nadificação da totalidade das determinações, uma vez que sua negação
é somente oposição à máxima não escolhida. Mas a liberdade verdadeiramente ética, em que
universal e singular são indiferenciados e unificados num elemento racional acima de ambos e
que os abarca382, somente é atingida na suspensão do que se mantém exterior ao indivíduo, ou
seja, suspensão da exterioridade gerada na constituição de sua própria singularidade. “Pois o
indivíduo é uma singularidade, e a liberdade é um aniquilar da singularidade.” (TWA 2, 477)
Assim, aquilo que, do ponto de vista do arbítrio fixado numa determinidade qualquer,
aparece como uma exigência exterior de negação de uma determinidade, é, da perspectiva da
totalidade ética, um processo de auto-diferenciação e produção de todas as determinidades.
Portanto, da perspectiva do indivíduo, o ponto de vista do absoluto somente é acessível pela auto-
elevação, a partir da mútua exterioridade entre arbítrio e coerção, até o patamar da indiferença
absoluta das determinações. Somente escapando ao “ou-ou” do arbítrio o indivíduo atinge o
ponto de vista da liberdade verdadeira. Eis porque, para o indivíduo, esta elevação é uma
nulificação de sua vida, compreendida como multiplicidade de determinações que singularizam
sua existência individual e que, ao excluírem determinações opostas, tornam-no coercível. “Pela
singularidade, o indivíduo está imediatamente sob determinidades, e, com isso, está presente para
o mesmo um exterior, de maneira que coerção é possível.” (TWA 2, 477)
Para Hegel, é algo totalmente diverso da concepção do indivíduo como dotado apenas de
uma capacidade indeterminada de se auto-determinar “pôr determinidades no indivíduo sob a
forma da infinitude, ... pô-las de maneira absoluta no mesmo”, isto é, pô-las na forma da
indiferenciação negativa. “A determinidade sob a forma da infinitude é, com isso, ao mesmo
tempo, suspensa, e o indivíduo é somente enquanto ser livre, isto é, ao serem postas nele
determinidades, ele é a absoluta indiferença destas determinidades, e nisto consiste formalmente
sua natureza ética.” (TWA 2, 477) Nesta elevação ao ponto de vista da indiferença absoluta das
determinações, o indivíduo vislumbra a forma fundamental de sua existência ética como
suspensão da exterioridade383. Por outro lado, a recondução ao momento de indiferença do
absoluto, o qual se deixa vislumbrar ao indivíduo como a forma da posição indiferente das
determinações, é o viés pelo qual também a exterioridade cultivada pela sua existência singular é
conservada e recebe sua significância ética384, de tal modo que o “positivo da eticidade consiste”
“em que, na medida em que os indivíduos em geral – quer contra si ou algo outro – sejam
diferentes e tenham uma relação (Beziehung) a um exterior, esta própria exterioridade ... [seja]
382
Para uma compreensão, em toda a sua envergadura, do argumento de Hegel, faz-se necessário reter em mente, como sublinha Müller, que a
recondução de determinidades à indiferença tem o sentido não de um vazio indeterminado, isto é, uma dissolução dos opostos, mas é
compreendida positivamente como a unificação dos mesmos numa identidade racional que se ergue acima da oposição. Esta indiferença positiva
é, enquanto momento essencial do absoluto, a estrutura formal da liberdade absoluta. [ver: Müller, Marcos L. –“O direito natural de Hegel:
pressupostos especulativos da crítica ao contratualismo” 52/53 ]
383
Como sublinha Müller, ao indivíduo considerado como apartado do universal, isto é, para o arbítrio individual, a liberdade absoluta da
indiferença aparece como uma aniquilação ou dissolução de sua singularidade, porque sua existência singular é o múltiplo de determinações
fixadas, as quais, na medida em que são contingentes, tornam-no passível de coerção. Por isso, fixada a oposição entre universal e particular, em
que a liberdade é compreendida como efetivada na passagem da indeterminidade à limitação, a liberdade que se evidencia na referência à
indiferença positiva lhe aparece como indiferença negativa, ou seja, como retorno à pura indeterminidade. [ver: Müller, Marcos L. –“O direito
natural de Hegel: pressupostos especulativos da crítica ao contratualismo” 53 ]
384
Acerca desta interpretação da distinção entre o aspecto formal da natureza ética do indivíduo, a infinitude puramente negativa com respeito a
todas as determinações; e o elemento positivo da eticidade, a recondução da multiplicidade de determinações e do conjunto de relações em que se
fixa o indivíduo e que constituem sua singularidade à indiferença, recondução que é pensada positivamente, isto é, como integração das mesmas
na totalidade orgânica da vida do povo, ver: Müller, Marcos L. –“O direito natural de Hegel: pressupostos especulativos da crítica ao
contratualismo” 53/54
153
indiferente e uma relação viva, a organização”; pois, como reconhecera Hegel desde a
Differenzschrift, “somente na organização há totalidade” (TWA 2, 477). Portanto, a eticidade
absoluta se mostra em seu caráter positivo como povo pela integração, numa totalidade orgânica,
da multiplicidade de determinações que perfazem a perspectiva da existência singularizada do
indivíduo. A forma da posição indiferente das determinidades, recondução imediata da infinitude
subjetiva ao momento da indiferença que constitui o elemento formal da natureza ética do
indivíduo, é a subjugação de determinidades. “Ao negar tanto + A quanto – A, ele [o sujeito] é
subjugado, mas não coagido ... Esta possibilidade de abstrair de determinidades é sem limites, ou
seja, não há nenhuma determinidade a qual seja absoluta” (TWA 2, 478) A liberdade e, por
conseguinte, a verdadeira incondicionalidade e absolutidade, deixam-se ver no subjugar pelo
caráter não unilateral, ao mesmo tempo subjetivo e objetivo, da negação de uma certa
determinidade385: “[que haja uma determinidade que seja absoluta] se contradiria imediatamente,
mas antes a própria liberdade ou a infinitude é, na verdade, o negativo, mas o absoluto e seu ser-
singular é singularidade absoluta assimilada ao conceito, infinitude negativamente absoluta,
liberdade pura.” (TWA 2, 478) A subjugação ou o indivíduo que se subjuga é o desenvolvimento
ulterior daquele ponto de partida sublinhado pela introdução ao System der Sittlichkeit, o conceito
absoluto, que de início é apenas um ser humano singular e, em sua plena imersão na substância
ética infinita, torna-se singularidade absoluta. Por isso a subjugação será, enquanto disposição
subjetiva duradoura e concreta de entrega pelo todo, o traço característico do estamento dos
“homens livres”. No Naturrechtaufsatz, entretanto, a liberdade é, do ponto de vista do indivíduo
que indiferencia as determinações, visível de início somente na força absoluta de sua
negatividade: a negação como defrontação concreta com a morte386, o aparecimento da
subjugação absoluta da vida e do arbítrio do indivíduo.“Este negativamente absoluto, a liberdade
pura, é, em seu aparecimento, a morte, e pela capacidade da morte o sujeito se prova como livre e
pura e simplesmente enaltecido acima de toda coerção.” (TWA 2, 479) O verdadeiro teor daquela
remissão da infinitude à indiferença, isto é, da indeterminidade como aparecimento da
indiferença na relação, revela-se na indiferenciação da relação como tal, porque se “o suspender
mesmo também pode ser apreendido e expresso pela reflexão, então o suspender de ambos os
lados da determinidade aparece, em seguida, como o pôr perfeitamente igual do determinado
segundo seus dois lados.” (TWA 2, 479) Neste movimento, o que era subjugação absoluta,
indiferenciação absoluta das determinidades, torna-se liberdade absoluta, posição das
determinidades na forma da indiferença; e, tendo sido integrada a exterioridade cultivada em
torno da existência singular do indivíduo, a singularidade pura nadificada na morte se torna um
indivíduo em sua existência ética universal.“É a absoluta subjugação; e porque ela é
absolutamente, ou porque nela a singularidade se torna pura e simplesmente singularidade pura
... então ela é o conceito de si mesma e, portanto, infinita e o contrário de si mesma, ou absoluta
libertação, e a pura singularidade, que está na morte, é seu próprio contrário, a universalidade.”
(TWA 2, 479) A subjugação é o agir universal e ético do indivíduo, a efetivação no indivíduo do
processo pelo qual o todo ético se auto-diferencia, produz e nadifica as determinações, as quais,
unilateralmente fixadas pelo arbítrio individual, constituem a existência individualizada do
385
“No subjugar há, portanto, liberdade através disso: que ele diz respeito puramente à suspensão de uma determinidade, tanto na medida em que
ela é posta positivamente, quanto na medida em que ela é posta negativamente, subjetivamente e objetivamente, não simplesmente [a suspensão]
de um lado da mesma e, portanto, considerada em si, se retém puramente negativa” (TWA 2, 479)
386
Müller vê, de maneira muito perspicaz, esta passagem ao identificar a subjugação como um operador da liberdade pura ou absoluta, o qual está
diretamente envolvido na passagem da indiferença negativa para a indiferença positiva, do elemento formal da eticidade do indivíduo (a
indeterminidade) para o elemento positivo da eticidade, a absorção da singularidade na totalidade ética que denuncia a pertença dos singulares ao
povo. [ver: Müller, Marcos L. –“O direito natural de Hegel: pressupostos especulativos da crítica ao contratualismo”,54] Desta maneira, a
subjugação é, em seu aspecto negativo, a negatividade absoluta da infinitude formal, que nadifica todas as determinações; e, em sua significação
positiva, torna esta infinitude visível como momento relacional do absoluto em seu aparecimento, como manifestação prática e negativa da
eticidade absoluta no indivíduo, afirmação da eticidade positiva no indivíduo singular como negativo (55).
154
“Na eticidade absoluta, a infinitude ou a forma enquanto o absolutamente negativo está, assim como o anteriormente
conceituado subjugar mesmo, assimilado em seu conceito absoluto, em que ele se relaciona não a determinidades
singulares, mas antes a toda a efetividade e possibilidade das mesmas, a saber: à vida ela mesma e, portanto, a
matéria da forma infinita é igual, mas de tal maneira que o positivo da mesma é o absolutamente ético, a pertença a
um povo, o ser-uno com o mesmo que o singular comprova, de uma maneira indubitável, no negativo, pelo perigo de
morte apenas.” (TWA 2, 481)
O indivíduo não pode ser coagido a sacrificar sua vida pelo povo: se o momento da
infinitude está imediatamente sob o momento da indiferença, o sacrifício da vida em nome do
todo é subjugação (bezwingen), e a bravura como disposição em assim proceder é o que
demonstra a pertença originária do indivíduo à totalidade ética do povo. É através da unidade do
momento da infinitude e do momento da indiferença que o povo se constitui como totalidade
ética.
“Já que este sistema da realidade está inteiramente na negatividade e na infinitude, então
se segue, para sua relação à totalidade positiva, / que ele tenha de ser tratado pela mesma de uma
maneira completamente negativa e [tenha] de permanecer subordinado à sua dominação.” (TWA
2, 482/483) Se, pela recondução da infinitude à indiferença, tornou-se claro que as múltiplas
determinações em que se fixa a singularidade têm de ser consideradas negativamente,
subordinadas ao povo como totalidade ética, sob o risco de que seu desenvolvimento
independente conduza à desintegração da unidade originária, trata-se com ele, para Hegel, de
uma dimensão incontornável da existência concreta do povo. Portanto, a vida econômica tem de
ser reconhecida em sua realidade, o que somente pode ser alcançado pela determinação de seu
papel no interior da organização do povo. “O que segundo sua natureza é negativo, tem de
permanecer negativo e não pode tornar-se algo firme. Para impedir que ele se constitua para si e
155
se torne um poder independente ... o todo ético precisa conservá-lo no sentimento de sua
nadidade interior.” (TWA 2, 483) Tal como a negação desta multiplicidade, o momento da
infinitude formal, é reconduzido à indiferença da totalidade, a vida econômica, o sistema real
daquela multiplicidade enquanto “realidade pura” e que “exprime apenas os extremos da relação
(Verhältnis)” (TWA 2, 483), obtém seu significado ético na medida em que a penetração da
indiferença neste sistema também constitui um momento essencial da existência organizada do
povo.
“a relação (Verhältnis) contém também uma / idealidade, uma identidade relativa das determinidades contrapostas, e
esta não pode, assim, ser positivamente absoluta, mas somente formal. Através da idealidade, na qual o real é posto
na relação das relações (in der Beziehung der Verhältnisse), a posse se torna propriedade e, sobretudo, a
particularidade, também a [particularidade] viva, é, ao mesmo tempo, determinada como um universal, pelo que a
esfera do direito é constituída.” (TWA 2, 483/484)
Hegel subtrai à relação o caráter absolutizado que lhe conferira o formalismo. A relação é,
para Hegel, o aparecimento do absoluto prático na forma de uma oposição entre unidade e
multiplicidade que é reconduzida à indiferença em duas direções: por um lado, na natureza ética,
a unidade, enquanto subjugação absoluta e enfrentamento da morte em nome do povo, sobrepõe-
se à multiplicidade das determinações da existência singular; por outro lado, na natureza física, a
multiplicidade dos interesses cuja satisfação é perseguida na esfera econômica prevalece sobre a
unidade fornecida pelo direito privado, porém esta unidade é ela mesma a penetração da
indiferença. “Enquanto a relação na configuração é absolutamente indiferenciada ela não cessa de
ter a natureza da relação. Ela permanece uma relação da natureza orgânica à inorgânica.” (TWA
2, 487) Se estes dois movimentos têm de pertencer à existência ética do povo, não podem ser
dispostos lado a lado como registros subsistentes por si, já que sua oposição aniquilaria ambos:
eles têm antes de ser compreendidos como momentos numa totalidade orgânica, como momentos
da organização da vida ética do povo.
“a unidade, a qual é indiferença dos contrapostos e os nadifica em si e os compreende, e a unidade que é somente
indiferença formal ou a identidade da relação de realidades subsistentes, têm elas mesmas de serem pura e
simplesmente enquanto um, através do perfeito acolhimento da relação na indiferença mesma, isto é, o absoluto ético
tem de se organizar perfeitamente como configuração (Gestalt), pois a relação é a abstração do lado da
configuração.” (TWA 2, 487)
concretiza um destes aspectos: com a classe dos “homens livres”, os guerreiros e governantes, a
eticidade absoluta é efetivamente realizada como unidade absoluta da indiferença e da relação em
que prevalece a unidade; com a classe dos “homens não-livres”, os cidadãos inseridos no
ordenamento jurídico do sistema da vida econômica, a relação tem na multiplicidade sua
primazia, mas, uma vez que a lei oferece com sua unidade formal a penetração da indiferença na
relação, ela é acolhida na eticidade absoluta como esfera da eticidade relativa. Na questão da
articulação entre os dois estamentos, entre a eticidade absoluta e a eticidade relativa – ou ainda,
mais modernamente, entre a política e a economia – mostra-se o verdadeiro teor do projeto
hegeliano de reconciliação ou de exposição das condições sociais de integração política sob
hipertrofia tipicamente moderna da esfera privada como sustentáculo da atividade de reprodução
material da sociedade: se o âmbito da relação, que se concretiza como atividade econômica
juridicamente regulada dos singulares na persecução de seus interesses privados, ameaça, com a
tendência moderna de sua intensificação e potencial absolutização, o nexo político-comunitário
que responde pela unidade originária dos indivíduos como pertencentes ao povo, Hegel pretende
oferecer uma teoria social capaz de demonstrar a diferenciação entre política e economia como
processo de auto-diferenciação do absoluto prático, processo que tem sua contrapartida na
necessária assimilação da esfera historicamente produzida da atividade econômica e social
despolitizada à totalidade ética, assimilação que se processa segundo o modelo de uma
subjugação que indiferencia e reconcilia, indiferencia na medida em que a reconduz à primazia
do ético, e reconcilia na medida em que confere a esta esfera o direito de existência legítima. “Se
este sistema tem, ao mesmo tempo, de se desenvolver aí como estado (Zustand) geral e de
destruir a eticidade livre, onde ela está misturada com aquelas relações e não está originariamente
apartada das mesmas e de suas conseqüências, então é necessário que este sistema seja acolhido /
com consciência, seja reconhecido em seu direito, seja excluído do estamento nobre e que seja
conferido um estamento próprio como seu reino.”(TWA 2, 493/494)
necessidade e no direito que a eticidade concede à sua natureza inorgânica e aos poderes
subterrâneos ao ceder-lhes uma parte de si mesma e sacrificá-la” (TWA 2, 494). Pela remissão ao
caráter trágico da modernidade política, Hegel estabelece a tese de que a eticidade moderna se
notabiliza pelo auto-sacrifício que faz o absoluto de uma parte de si mesmo aos “poderes
subterrâneos” e “desintegradores” da atividade econômica, concretizada na persecução de
interesses privados e fruição da propriedade, com vistas ao re-acolhimento desta esfera
relativamente autônoma a si mesmo e, por conseguinte, a neutralizar seu potencial desagregador
da unidade ética originária entre os singulares. Note-se aqui apenas que esta doutrina de rara
beleza condensa o ideário que constitui a peculiaridade mais notável da filosofia política de
Hegel: o reconhecimento, em meio ao seu projeto de correção do individualismo e atomismo do
jusnaturalismo moderno através de um recurso à tese política clássica de anterioridade da pólis
sobre o indivíduo, da peculiaridade do mundo moderno e do processo histórico que autonomizou
a atividade econômica e hipertrofiou a esfera privada como seu sustentáculo. “pois a força do
sacrifício consiste no intuir (Anschauen) e no / objetivar do envolvimento com o inorgânico,
intuição através da qual este envolvimento é desatado, o inorgânico apartado e reconhecido como
tal, com isso, ele mesmo acolhido na indiferença.” (TWA 2, 494/495)
Muito embora o Naturrechtaufsatz não enfatize – tanto quanto se poderia esperar, diante
da expectativa gerada pela crítica a Fichte na Differenzschrift –, uma crítica aos aspectos
limitativos e excludentes do direito enquanto relação intersubjetiva entre as vontades singulares,
subjaz certamente à sua discussão do atomismo que se vincula ao jusnaturalismo moderno a
compreensão do direito como um modo insuficiente de interação, “disseminado” no declínio da
eticidade e, por conseguinte, pela imposição histórica de limites exíguos a formas solidárias de
intersubjetividade: o direito natural moderno se vincula a uma compreensão da comunidade
humana segundo o modelo da “unificação dos muitos”, uma conexão dos sujeitos singulares
isolados387. Para Hegel, a contra-face institucional da hipertrofia da esfera econômica da
satisfação dos interesses particulares é, portanto, o “sistema de propriedade e direito”, a imersão
no “débil não tomar parte (Gleichgültigkeit) da vida privada” (TWA 2, 492). Com efeito, “com
esta vida privada universal e para o estado no qual o povo se constitui apenas do segundo
estamento, está presente imediatamente a relação formal de direito, a qual fixa o singular e o põe
absolutamente.”(TWA 2, 491)
387
Honneth, Axel – Kampf um Anerkennung. Zur moralischen Grammatik sozialer Konflikte, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1992, 22/23. O que
se torna tão atraente na filosofia política clássica é a compreensão do teor ético das relações travadas pelo sujeito no interior da pólis: o ideal de
que os membros da comunidade são capazes de reconhecer, nos costumes praticados publicamente, uma expressão intersubjetiva de sua
particularidade é o motivo que o leva, desde a crítica a Fichte na Differenzschrift, a considerar os costumes intersubjetivamente vinculantes o meio
social adequado à integração da liberdade social e da liberdade singular (23 e 24).
388
Wildt, Andreas – Autonomie und Anerkennung. Hegels Moralitätskritik im Lichte seiner Fichte-Rezeption, Stuttgart, 1983, 317
158
significado, ao passo que isto somente acontece, se as relações intersubjetivas em que o indivíduo
(ao menos do primeiro estamento) se encontra são revestidas de um caráter não individualista. Eis
porque Hegel empreende esta crítica, pelo conceito de bravura, à coercibilidade própria à moral
do indivíduo e à intersubjetividade jurídico-privada, cujo objetivo é apontar para a suspensão da
esfera individualista, mesmo em face da necessidade do direito privado na regulamentação da
persecução dos interesses particulares.
Se, por um lado, Hegel localiza a “gênese conceitual” da eticidade absoluta na prontidão
em morrer pelo povo, sua Ständelehre não deixa ver ainda a constituição da totalidade ética como
suspensão de uma auto-afirmação omnilateral das individualidades, do processo histórico de
destacamento dos indivíduos que caracteriza a modernidade, um movimento ao qual já Geist des
Christentums submetera o poder reconciliador da unidade vital; e isto porque a Ständelehre no
Naturrechtaufsatz, enquanto resultado do processo de auto-sacrifício do absoluto e de
reconhecimento da necessária subsistência de sua porção inorgânica na modernidade –
movimento pelo qual a eticidade absoluta “reconhece” (TWA 2, 494) o direito do inorgânico e
“ao mesmo tempo dele se purifica”(TWA 2, 494) –, significa, em termos da organização interna
do povo, a delegação, pelo próprio absoluto, dos papéis a serem desempenhados pelos
indivíduos: ou o direito à vida e à persecução dos interesses e satisfação das necessidades no
âmbito da esfera privada, ou a vida ética em sua plenitude, evidenciada na prontidão de se anular
como indivíduo pelo bem do todo. “A tragédia está nisso, que a natureza ética, a fim de não se
envolver com sua [natureza] inorgânica, aparta-a de si como um destino e a contrapõe a si e,
através do reconhecimento do mesmo na luta, está reconciliada com a essência divina como com
a unidade de ambos.”(TWA 2, 496) Esta dificuldade de compreender a eticidade absoluta como
engendrada pela suspensão/conservação da afirmação multilateral das individualidades, da
“ubiqüidade do crime”, reside principalmente no fato de que reconhecimento não é aqui ainda a
gênese de uma universalidade intersubjetiva a partir do confronto entre indivíduos, mas o auto-
movimento do absoluto389.
dos indivíduos enquanto átomos subsistentes por si, isto é, no fato de que não se ocupa com a
questão de como, enquanto condição para o ser-um de liberdade universal e liberdade singular, os
indivíduos são capazes, com base em nexos societários originários, não só de “instituir”, em
primeiro lugar, sua exterioridade mútua, como também de suspendê-la gradativamente em
direção ao âmbito de uma autoconsciência universal e de um reconhecimento que conserva e
ultrapassa a institucionalização da intangibilidade da pessoa, um âmbito capaz de combinar a
universalização trazida por uma “socialização” tipicamente jurídica com a possibilidade de uma
“individualização” potencialmente indeterminada390. Conforme atesta o feixe de questões ligadas
à “tragédia no ético”, o Naturrechtaufsatz privilegia, com sua tentativa de articulação do
acolhimento da eticidade relativa na eticidade absoluta, a relação entre universal e singular, mas
não a relação intersubjetiva propriamente dita, cujo desenvolvimento, a partir de formas
originárias de formação recíproca de identidades individuais – concebidas a contrapelo da
“individualização pronta” do jusnaturalismo contratualista –, até um ponto em que se suspende a
exterioridade mútua dos indivíduos, é o que pode constituir o tecido social da totalidade ética
como povo. De fato, Hegel parece indicar, em sua crítica à tese fichteana da necessidade da
coerção sob condições de rompimento de uma relação intersubjetiva “não excludente”, que a
suspensão da exterioridade recíproca se conecta com o ser-um originário, pelo que, entretanto, as
“condições de possibilidade” da exterioridade e sua suspensão permanecem intocadas.
Entretanto, alguma indicação acerca destas questões implícitas parece ser dada na
“tipologia das ciências práticas” oferecida pelo Naturrechtaufsatz. Hegel compreende o direito
natural como ciência da eticidade absoluta real. Em face desta ciência prática primordial391, moral
e ética constituem ciências associadas à subjetividade do indivíduo e possuem um objeto que tem
390
Esta relação entre uma complementaridade de processos de socialização e individualização se torna mais clara, tanto em sua herança hegeliana
quanto em sua conexão com a salvaguarda institucional provida pelo direito, se se acompanha a evolução do pensamento de Habermas nas
décadas de 80 e 90. Habermas estabelece, partindo de Hegel, uma vinculação das mais importantes entre a normatividade e os processos de
socialização e individualização. Habermas, Jürgen –„Arbeit und Interaktion“(790/791) Por outro lado, em um trabalho recente, Habermas parece
não partilhar da posição de Honneth de que os esboços de sistema de Jena, embora continuem a manter a força de seu viés socializador,
sacrifiquem seu nexo individualizante com a adesão à teoria da consciência e o conseqüente afastamento em relação ao ponto de partida
aristotélico do System der Sittlichkeit, segundo o qual a progressiva intensificação dos laços sócio-integradores possui como contrapartida um
processo de individualização e sofisticação da relação a si do eu graças à prévia imersão do indivíduo no estofo originário de relações
comunicacionais que caracteriza a eticidade natural. ver Ver: Habermas, Jürgen – „Wege der Detranzendentalisierung: Von Kant zu Hegel und
züruck“in: Wahrheit und Rechtfertigung: philosophische Aufsätze, Frankfurt am Main, 1999, 186-229, pg 199-201 Honneth, Axel – Kampf um
Anerkennung. Zur moralischen Grammatik sozialer Konflikte, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1992, 48 Habermas considera que Hegel tenha sido
o mentor da intuição que ele mesmo desenvolveu mais tarde em um outro contexto: “todos os fenômenos históricos têm maior ou menor
participação na estrutura dialética das relações de reconhecimento recíproco, nas quais pessoas são individualizadas pela socialização
(Vergesellschaftung).” Habermas, Jürgen – „Individuierung durch Vergesellschatung“in: Nachmetaphysiches Denken, Frankfurt am Main 1988,
187-241) Habermas entende que o teor filosófico inovador da teoria hegeliana do reconhecimento resida na possibilidade de reconduzir à unidade
de um processo dialético os “impulsos” para a socialização e para a individualização. Na década de 1980, Habermas aprofunda sua concepção da
complementaridade entre socialização e individualização na discussão sobre a conexão, desenvolvida pela ética do discurso, entre a eticidade e o
ponto de vista moral: ele se volta à questão de pensar como pode ser compensada a descontextualização da moral universalista no sentido de uma
vinculação da motivação racional com as atitudes empíricas eficazes, ancoradas em uma socialização individualizante. Habermas, Jürgen – “¿
En que consiste la “racionalidad” de una forma de vida ?”in: Escritos sobre moralidad y eticidad, Padiós, I.C.E-U.A.B, 1991, 85 Habermas,
Jürgen –„Moralität und Sittlichkeit: treffen Hegels Einwände gegen Kant auch auf die Diskursethik zu?“, in: Kuhlmann, Wolfgang (Hg.) –
Moralität und Sittlichkeit: Das Problem Hegels und die Diskursethik, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1986, 16-37. É somente em fins da década
de 80 e início da década de 90 que Habermas investe o direito positivo moderno da capacidade de complementar o déficit prático de uma moral
universalista, principalmente no que concerne à ancoragem de processos de aprendizagem ligados à formação política da vontade em um quadro
institucional pós-convencional. Habermas, Jürgen – Direito e Democracia entre facticidade e validade, Tempo Brasileiro, Rio de janeiro, 1997
Habermas, Jürgen – Tanner Lectures: Faktizität und Geltung: Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts und des demokratischen Rechtsstaats,
Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1992, 565 A questão da vulnerabilidade dos indivíduos que somente podem se individualizar pela socialização,
bem como sua solução “moral”, é retomada sob a perspectiva da complementaridade entre moral e direito.
391
Para Hegel, “a partir desta idéia da natureza da eticidade absoluta resulta ... a relação da eticidade do indivíduo à eticidade absoluta real, a
relação das ciências das mesmas, da moral e do direito natural.” (TWA 2, 504). Enquanto a eticidade absoluta real “compreende (begreift) em si a
infinitude ou o conceito absoluto, a pura e simples singularidade [como] unificada em sua suprema abstração”, ela é “imediatamente eticidade do
singular”, de forma que, inversamente, “a essência da eticidade do singular é a pulsação do sistema inteiro e mesmo o sistema inteiro.” (TWA 2,
504) Segundo Hegel, o direito natural, co-extensivo à sua teoria da eticidade absoluta, é responsável por uma inversão na relação tradicional entre
moral e direito, de maneira que “à moral somente cabe propriamente o âmbito do em si negativo, mas ao direito natural o verdadeiramente
positivo, segundo seu nome, que ele deva construir a maneira como a natureza ética chega a seu verdadeiro direito.” (TWA 2, 505). Desta forma,
o objeto da moral são as “virtudes que são em si possibilidades e que estão em um significado negativo” (TWA 2, 505)
160
de ser, por conseguinte, compreendido como algo negativo. Entretanto, a ética é relacionada à
descrição da natureza das virtudes enquanto aparecem nos indivíduos do primeiro estamento, ao
passo que a moral em sentido kantiano é compreendida como ciência da eticidade do indivíduo
do segundo estamento, isto é, como potencial para expressão da eticidade universal na vida do
burguês392. A educação tem em comum com ambas a referência à subjetividade do indivíduo.
“Assim como ... [a ética E.C.L] tem relação (Beziehung) ao subjetivo ou negativo, então o
negativo em geral tem de ser diferenciado enquanto subsistir da diferença e enquanto falta
(Mangel) da mesma ... a falta (Mangel) de diferença representa a totalidade enquanto um
encoberto e não desdobrado (Eingehülltes und Unentfaltetes), no qual o movimento e infinitude
não são em sua realidade.” (TWA 2, 507/508) Desta maneira, enquanto na moral e na ética a
negatividade aparece especificamente como diferença realmente existente, como existência de
um indivíduo diferenciado que parece ser subsistente por si como elemento dotado de
propriedades éticas ou de disposição moral, na educação a negatividade aparece, ao contrário,
como falta de diferença, isto é, como uma diferença não-desenvolvida entre indivíduo e
totalidade, uma indiferença imediata, já que se trata não da “realidade social” da infinitude, mas
apenas da possibilidade do movimento que a possa pôr. “A criança é, enquanto forma da
possibilidade de um indivíduo ético, um subjetivo ou negativo, cujo tornar-se humanizável
(Mannbarwerden) é o cessar desta forma e cuja educação é a disciplina ou o subjugar da mesma.”
(TWA 2, 507) Para Hegel, a criança a ser educada não se destacou ainda da totalidade como
aquele indivíduo que parece existir por si mesmo, quer como um átomo, quer como “homem
público”. Na criança, individualidade, disposição moral e virtudes têm que ser desenvolvidas,
pois a eticidade ainda não se manifesta como o espírito do indivíduo. “O positivo e a essência é
que ela, sorvendo o seio da eticidade universal, primeiramente viva em sua intuição absoluta
como um ser estranho, compreenda-a (begreift) cada vez mais e assim passe para o espírito
392
“Mas assim como estas propriedades são o reflexo da eticidade absoluta no singular enquanto negativo – no singular, entretanto, que está em
absoluta indiferença com o universal e o todo – [são] assim o reflexo dela em sua consciência pura, então tem que estar também presente um
reflexo da mesma em sua consciência empírica, e um tal [reflexo tem] de constituir a natureza ética do segundo estamento, o qual está na realidade
solidificada, na posse e na propriedade. Este reflexo da mesma é agora aquilo para o que o significado habitual da moralidade pode ser mais ou
menos adequado – o pôr-indiferente das determinidades da relação, portanto, a eticidade do bourgeois ou do ser humano privado, para a qual a
diferença das relações é firme e a qual delas depende e nela é. Uma ciência desta moralidade é, por conseguinte, primeiramente o conhecimento
destas próprias relações, de tal maneira que, na medida em que elas são consideradas em relação (Beziehung) ao ético, já que esta, em virtude do
ser-fixado absoluto, somente pode ser formal, justamente aquele pronunciar da tautologia mencionado acima encontra aqui seu lugar.”(TWA 2,
506) Como bem observa P. Cruysberghs, com sua intenção de relacionar a filosofia moral em sentido kantiano à possibilidade de expressão da
eticidade absoluta na vida do indivíduo do estamento dos homens não-livres, isto é, ao burguês, Hegel penetra no sentido mais profundo da crítica
à moral kantiana a partir do exemplo relacionado ao “depósito” e à propriedade (TWA 2, 466/467). [ver: Cruysbergs, Paul – “Hegel´s critique of
modern natural law” ”, in: Wylleman, A. (ed.) – Hegel on the ethical life, religion and philosophy , 1793 – 1807, 81-117, 109] Para Hegel, a vida
do burguês tem sua esfera de exercício no estágio da propriedade, estágio em que, justamente, propriedade e posse constituem uma realidade fixa.
Assim, para Hegel, na fixação da realidade na forma da relação de propriedade e dos proprietários, a filosofia moral em sentido kantiano tem sua
tarefa primordial na exposição destas relações, de maneira que ela reconduz tais relações à indiferença de modo puramente formal. Para o burguês,
uma vez posta a relação de propriedade, não se lhe torna possível questionar a necessidade ou contingência desta relação, isto é, se uma tal relação
pode ser relativizada em face do serviço em prol da integridade pública, mas resta-lhe apenas acolher em seu arbítrio a máxima de respeitar tais
relações. A incapacidade do burguês em se alçar, na condução de seu modus vivendi privado, acima do âmbito da relação e, especificamente, de
vislumbrar a necessidade relativa da propriedade, corresponde, para Hegel, à concretização do procedimento próprio à legislação formal da razão
pura kantiana, isto é, a atribuição da forma da lei universal a um determinado conteúdo dado. A limitação deste procedimento reside, para Hegel,
justamente no fato de que permanece inapelavelmente formal, postulando a irredutível exterioridade do conteúdo colhido empiricamente. A crítica
hegeliana à moral kantiana e a redução de seu escopo ao modus vivendi burguês imerso nas relações de direito privado se insere naquele que, com
respeito a Kant, será o intento crítico de Hegel até as Grundlinien: remeter a moral kantiana da autonomia às suas condições históricas (modernas)
de efetivação numa esfera social autonomizada da atividade econômica despolitizada, isto é, à bürgerliche Gesellschaft. As relações de
propriedade, que, elevadas à potência de lei universal, exigem um incondicional respeito recíproco, não podem, para Hegel, pretender nenhuma
verdadeira absolutidade, posto que são justamente dependentes das relações finitas que regulam a vida privada do burguês. Mas, se a moralidade
permanece presa à dadidade destas relações, não pode lhe ser atribuído o caráter de eticidade absoluta, mas se constitui apenas, para Hegel, o
reflexo do direito privado, que constitui a esfera da eticidade relativa nos limites da vida econômica, no indivíduo e permanece, por conseguinte,
dependente da irredutibilidade histórica de certas relações econômicas, tal como dela depende também o próprio direito privado. Para
Schnädelbach, a perspectiva da eticidade absoluta estabelece, no que concerne à crítica da moral, a conexão entre a discussão filosófica e
histórico-diagnóstica da moral moderna. Na medida em que a perspectiva da eticidade absoluta possibilita a plena objetivação da moral e sua
consideração a partir de um ponto de vista exterior e a relativização de sua validade por um estado determinado do desenvolvimento das relações
sociais, “Hegel prepara a moderna análise sociológica e ideológico-crítica da moral burguesa, a qual formou o centro sobretudo dos teóricos
marxistas da moral até os nossos dias.” [ver Schnädelbach, Herbert – Hegels praktische Philosophie: Ein Kommentar der Texte in der
Reihenfolge ihrer Entstehung, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 2000, 55]
161
393
Ao fim de sua pequena mas ilustrativa digressão a respeito da relação da educação à eticidade absoluta, Hegel declara que o devir das virtudes
e da “indiferença mediatizada” entre indivíduo e totalidade ética assume o caráter oposto à tentativa de estabelecer um ethos peculiar a um
indivíduo ou a um grupo específico dentro do povo. Para Hegel, as virtudes, bem como o seu desenvolvimento pela educação, somente ganham
sua significância genuína pela imersão que permitem do indivíduo no ethos comunitário. “Esclarece-se aqui a partir de si mesmo que tanto aquelas
virtudes, quanto a eticidade absoluta são tampouco um empenho por uma eticidade peculiar e apartada como / o devir das mesmas pela educação,
e que o esforço por uma eticidade peculiar positiva é algo em si mesmo impossível e, com respeito à eticidade, somente as palavras dos homens
mais sábios da antiguidade são o verdadeiro: ser ético é viver de acordo com os costumes de seu país.” (TWA 2, 507/508)
162
394
Riedel, Manfred – „Die Rezeption der Nationalökonomie“in: Hegels Kritik der Naturrecht, 1969, 75-99
395
Para Honneth, o que conduz Hegel ao desenvolvimento de seu programa da “eticidade absoluta”, próprio ao Naturrechaufsatz, sob a forma
presente no System der Sittlichkeit, é a investigação dos meios categoriais capazes de explicar filosoficamente a formação de uma organização da
sociedade, cuja efetividade plena seja o reconhecimento “solidário” da liberdade individual de todos os cidadãos. Por isso, sustenta Honneth, o
ponto de partida que se oferece a esta empreitada são justamente aquelas relações éticas nas quais os “sujeitos isolados” se movem desde sempre,
ou seja, a adoção de um “estágio natural” da socialização humana que é sempre caracterizada pela existência de formas elementares de existência
intersubjetiva. E nisto Honneth vê, muito apropriadamente, a orientação aristotélica do primeiro sistema hegeliano da eticidade: segundo o
conceito hegeliano de natureza já têm de estar embutidas como um substrato, ao nível da naturalidade elementar do gênero, relações comunitárias
que encontram seu pleno desdobramento ao nível da comunidade política. Honneth, Axel – Kampf um Anerkennung. Zur moralischen Grammatik
sozialer Konflikte, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1992, 25/26
163
A estrutura expositiva que perpassa toda a primeira das três partes principais é o
“destacamento” do particular em relação ao universal. Entretanto, para Hegel, a reconstrução
progride até o ponto de imanência do universal, justamente porque, se “esta unidade paira por
sobre o singular, ele não pode sair nem abstrair dela, ela está nele, oculta nele. Ela aparece nesta
contradição: que esta luz interior não se apaga (zusammenschlägt) absolutamente e não é um com
a luz universal, que paira sobre ele enquanto algo que o impele à unidade, enquanto impulso,
esforço.”(SdS 4) A exterioridade mútua de universal e particular é, portanto, a característica
primordial da eticidade natural: “determina-se com isso a identidade do particular (em cujo lado
entrou a intuição) e do universal enquanto uma unificação (Vereinigung) imperfeita ou como
relação (Verhältnis)”(SdS 4). Entretanto, a própria eticidade absoluta segundo a relação será alvo
da “aplicação” das potências. Desta maneira, originam-se suas duas partes principais, as quais
têm em comum o fato de que nelas o universal, quer oculto, quer “visível” como contraposto
ao(s) sujeito(s), perpassa as “figuras” apontando o sentido da progressão: a imanência do
universal.
“Naquela [subsunção do conceito sob a intuição, primeira potência da eticidade absoluta segundo a relação, ou
eticidade natural, E.C.L] a unidade, o universal, é o interior; nesta [subsunção da intuição sob o conceito] ela se opõe
e está novamente em relação com o conceito ou o particular. Em ambos a eticidade é um impulso, isto é, ele se torna
α) não absolutamente um com a unidade absoluta, β) diz respeito ao singular, γ) é satisfeito neste singular, esta
satisfação singular é ela mesma totalidade; mas δ) vai, ao mesmo tempo, além do mesmo; todavia, este ir-além
(Hinausgehen) é aqui, sobretudo, algo negativo, indeterminado.”(SdS 4)
Moralitätskritik im Lichte seiner Fichte-Rezeption, Stuttgart, 1983, 321. Entretanto, entendemos aqui que justamente o modelo de uma articulação
dialética entre os modelos de intersubjetividade pode fazer ver como esta conclusão pode ser apressada: educação e direito, intersubjetividade
participativa e excludente formam o núcleo teórico sem o qual não podem ser compreendidas a dissolução ética da família e a dispersão atomista
da sociedade civil.
165
Neste diagrama, o ponto de partida da primeira potência da eticidade natural nada mais é
do que a absorção do conceito (particular) ao universal que surgiu como natureza física. “A
primeira potência é a eticidade natural como intuição, a completa ausência de diferença
(Differenzlosigkeit) da mesma ou o ser-subsumido (Subsumiertsein) do conceito sob a intuição,
portanto, a natureza propriamente dita (die eigentliche Natur).”(SdS 4) A identidade imediata do
particular com a natureza que o circunda é o que, para Hegel, caracteriza a satisfação, o ser-um
“imediato” de conceito e intuição: “ela é então totalidade, viva, mas formal, porque justamente
este nível, no qual ela está, é ele mesmo um nível determinado, e assim a vida absoluta tanto
paira sobre ela, quanto permanece um interior.”(SdS 4) É desta unidade imediata entre indivíduo
e natureza, presente no “sujeito em sua satisfação”, que se torna pressuposto para a contraposição
entre indivíduo e natureza na forma da carência e, por conseguinte, da atividade natural subjetiva
(e depois coletiva) com vistas à sua satisfação: o trabalho. Segundo Hegel, a satisfação
“permanece [algo] interior (ein Inneres), porque não é conceito absoluto e assim, enquanto vida
interior, não está presente (vorhanden ist), ao mesmo tempo, sob a forma do contraposto, do
exterior; e, justamente por isso, ela não é intuição absoluta, pois ela não pode como tal estar
presente (vorhanden sein kann), na relação, para o sujeito, e, com efeito, também sua identidade
não pode ser a [identidade] absoluta.”(SdS 4) A interioridade do universal que perfaz a satisfação
implica justamente a necessidade do progredir na reconstrução do ético através do mundo
contraposto do trabalho, da posse e da fruição, um progredir cujo sentido é dado justamente pela
recondução da contraposição novamente à indiferença.
“Mas o ético (das Sittliche) é em si e para si, de acordo com sua essência, o recuo da diferença adentro de si, a
reconstrução. A identidade resulta da diferença, é, segundo sua essência, negativa. Que ela seja isso, é indício de que
aquilo que ela aniquila já seja. Portanto, esta naturalidade ética é também um desvelamento (Enthüllung), um entrar
em cena do universal frente ao particular (ein Auftreten des Allgemeinen gegen das Besondere), mas de tal forma que
este mesmo entrar em cena permaneça completamente um particular, o idêntico, a quantidade absoluta inteiramente
oculta.”(SdS 5)
A partir desta tese de que a reconstrução da eticidade parte desta esfera em que o
universal “paira” sobre o singular, desta parte pré-societária, evidenciada na imbricação entre
vida ética e natureza própria à primeira potência da eticidade relativa, Hegel faz suceder outra
parte em que a esfera das relações societárias naturais e pré-estatais rompe o simples ocultamento
por trás da contraposição entre indivíduo e mundo e se eleva ao patamar de uma universalidade
formal, que se contrapõe agora ao sujeito singular. Trata-se da “segunda Potência da Infinitude,
Idealidade, no Formal ou na Relação”, “a subsunção da intuição sob o conceito, ou o surgimento
(das Hervortreten) do ideal e o ser-determinado do particular ou singular pelo mesmo.” (SdS 19)
A compreensão do progresso na reconstrução do ético nesta potência, isto é, do impulso interior à
mesma para o desvelamento do universal em sua imanência, é justamente o caráter formal da
contraposição entre o mesmo e o indivíduo. Para Hegel, o universal ou o ideal é, nesta
“[potência] formal”, “somente a abstração do ideal”, “possui causalidade, mas como algo
puramente ideal”. Eis porque não se trata ainda, nesta potência, de como o ideal se constitui
“como tal para si mesmo e se torna uma totalidade” (SdS 19)
unidades societárias que apenas têm valor ético relativo, na medida em que podem ser
reconduzidas à indiferença da unidade absoluta. A intuição elevada à potência absoluta é a
unidade substancial da natureza ética, a qual aparece na multiplicidade dos indivíduos e de suas
relações, bem como no ordenamento formal pelo qual esta multiplicidade se organiza e recebe a
forma da unidade. É esta multiplicidade subordinada à forma da unidade que constitui a “esfera
do conceito”, e sua plena recondução à unidade é o que a torna adequada à unidade da natureza
ética.
401
“Assim como na potência anterior o singular era dominante, aqui o é o universal: na primeira este permanece escondido, algo interior, e lá a
própria fala (Rede) somente é considerada enquanto singular, em sua abstração.”(SdS 19)
402
“Por este conceito formal a relação viva à natureza (die lebendige Naturbeziehung) se torna, da mesma maneira, uma relação fixada (ein
fixiertes Verhältnis) que ela antes não era; também sobre ela a universalidade tem de pairar e a [a relação E.C.L] sub / meter: o amor, a criança, a
formação, o instrumento, a fala são, objetiva e universalmente, relações (Beziehungen), relacionamentos (Verhältnisse); entretanto, são relações
naturais, insubordinadas (ununterworfene), contingentes, não reguladas (unregierte), que não são elas mesmas assimiladas à universalidade. A
universalidade está nelas e em seu próprio interior (die Allgemeinheit ist an und [in]ihnen selbst) e não se projetou para fora e nem se lhes
contrapôs.”(SdS 19/20)
403
Riedel vê, no período que vai de 1802 a 1805, o desenvolvimento das concepções políticas de Hegel marcado por uma passagem do conceito
clássico de natureza para um conceito de natureza forjado a partir das teorias modernas do direito natural de Locke e Hobbes. Ver Riedel,
Manfred – Hegels Kritik der Naturrecht, in: Studien zu Hegels Rechtphilosophie, 1969, 46. Há que se levar em conta sem dúvida o adendo de
Göhler a esta constatação, segundo o qual esta passagem é, antes de mais nada, a integração de motivos oriundos de ambas as tradições, na medida
em que também o conceito moderno de uma natureza desprovida de capacidade ética ou de expressar minimamente a universalidade plenamente
efetivada pela eticidade, o conceito de uma natureza que deve ser abandonada, também é pouco relevante para a compreensão do conceito de
natureza. Ver Göhler, Gerhard – „Dialektik und Politik in Hegels frühen politischen Systemen: Kommentar und Analyse“ Mais recentemente
isto se torna importante para o projeto de descrever a crítica hegeliana ao atomismo e individualismo do direito natural moderno através dos
estágios de intersubjetividade que compõem as esferas da eticidade no System der Sittlichkeit. Parte imprescindível da tese de Honneth é
justamente a auto-organização intersubjetiva da eticidade ainda enquanto natureza. Honneth, Axel – Kampf um Anerkennung. Zur moralischen
Grammatik sozialer Konflikte, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1992. Com Honneth e Göhler há que se concordar, sobretudo, em que Hegel
renuncia, já no esboço de 1803/1804, à imbricação originária entre espírito e natureza no conceito de eticidade natural.
167
abstrato (conceito) na segunda. A diferença marca as figuras que vão desde a atividade prática
natural até a indiferença da vida individual na família, passando pelas determinações universais
do direito que surgem da subordinação do trabalho vivo às circunstâncias econômico-sociais de
uma satisfação generalizada das carências. Não emergiu ainda aquela unidade ética que Hegel
“visualiza” na intuição de um povo politicamente organizado, no qual se efetiva a unidade
concreta de universal e singular: no ápice do movimento da eticidade natural há apenas a
totalidade em sua realidade múltipla, na qual o universal aparece ao indivíduo como algo
contraposto a ele.
404
“a tomada de posse aqui é o ideal deste subsumir, ou o repouso do mesmo, o trabalho [por sua vez] a realidade ou o movimento, o inserir-se do
sujeito que subsume na realidade do objeto. O terceiro, a síntese, é a posse, conservação e poupar do objeto: está nele aquela determinação ideal
segundo o primeiro momento, mas enquanto real no objeto de acordo com o segundo [momento].”(SdS 8)
405
“a posse não está, na primeira potência do sentimento prático, de maneira nenhuma presente, e da mesma maneira a tomada de posse
(Besitzergreifung) [está presente] puramente enquanto momento, ou antes: eles não são reais, ainda não mantidos separados um do outro, fixados.
(o tema aqui ainda não pode ser de forma nenhuma o de um fundamento jurídico (rechtlicher Grund) ... da posse.”(SdS 8)
406
“que o objeto esteja subsumindo sob si o trabalho, ele é como real na relação (assim como antes [era] aniquilado, posto como mera abstração de
um objeto); pois, enquanto [está] subsumindo, ele é identidade do universal e do particular ... o trabalho é aqui também um trabalho real ou vivo, e
168
atividade produtiva ainda não tornada abstrata frente à exigência social de satisfação generalizada
das carências, que Hegel alcança o conceito de inteligência como meio de trabalho e posse407,
meio cujas implicações intersubjetivas se conectam com o problema da Bildung. Hegel
compreende a relação “viva” entre trabalho e produto como se realizando no meio universal que é
a inteligência, de maneira que o trabalho vivo é, enquanto relação viva do elaborar e do objeto,
essencialmente o trabalho intersubjetivo de formação no interior do gênero humano, mediante o
qual é intersubjetivamente formada tanto a capacidade prático-cognitiva dos indivíduos, quanto
sua natureza anímica individualizada, evidenciada em carências socialmente mediadas408. “Ele [o
trabalho, E.C.L] é totalidade, [e] justamente com isso, o subsumir separado da primeira e da
segunda potência [do trabalho vivo] é aqui sobretudo posto. O ser humano é potência,
universalidade para o outro, mas o outro igualmente, e assim faz / da sua realidade, do seu ser
peculiar (sein eigentümliches Sein), do atuar sobre outro, uma acolhida na indiferença, e ele é
agora o universal em face do primeiro.” (SdS 11/12) A tese de Hegel é, portanto, que a
potência do tornar-se ativo do indivíduo, que surge já sob o signo de um “estar além” da mera
relação animal da satisfação imediata do desejo na fruição, antecipando o tema do trabalho como
gehemmte Begierde na Fenomenologia, eleva-se de uma atividade singular automática a uma
atividade viva em que sujeito e objeto se complementam. Sob o fundamento desta atividade viva,
pela qual um particular, ao servir não mais simplesmente a uma satisfação imediata, mas a uma
carência socialmente engendrada, que rompe o círculo de satisfação imediata, eleva-se ao
universal, é que a atividade de mútua formação das inteligências tem sua origem. “E a formação
(Bildung) é este permutar absoluto no conceito absoluto, no qual cada sujeito e universal
transforma, ao mesmo tempo, absolutamente sua particularidade em universalidade e, em
meio ao oscilar na posição momentânea como potência, põe-se a si mesmo justamente como
universal; e com isso tem este ser-potência e a universalidade de maneira não-mediada no
mesmo, em face de si, e, por conseguinte, torna-se ele mesmo um particular.”(SdS 12) A
cooperação na produção para satisfação de carências socialmente engendradas “ergue, sobre o
ser-uma-com-a-outra das inteligências, uma totalidade própria”409, o trabalho como formação,
enquanto um “absoluto permutar no conceito absoluto”, no qual cada singular se torna sujeito e
universal ao mesmo tempo, e torna sua particularidade imediatamente universal. Não por acaso,
esta transformação do conceito em seu oposto, sem que seja necessária sua aniquilação, é
associada à inteligência410, a qual ganha aqui, como o que é capaz de ser “imediatamente o
contrário de si mesma”, uma estrutura claramente intersubjetiva.
sua vivacidade (Lebendigkeit) tem de ser conhecida como totalidade, cada momento, entretanto, ele mesmo como um trabalho vivo peculiar,
enquanto objeto particular.”(SdS 9)
407
Com a relação recíproca e a mútua implicação entre trabalho e posse, “está subsumida, para o objeto vivo que subsume e para o
trabalho vivo, a intuição sob o conceito, em seguida o conceito sob a intuição, e depois [há] a identidade de ambos.” (SdS 9) Com efeito,
“o trabalho, subsumido sob esta intuição [da inteligência como identidade das potências anteriores E.C.L], é subsumir unilateral, na
medida em que, através do mesmo, este subsumir é ele mesmo suspenso.” (SdS 11)
408
Como o interesse são os elementos intersubjetivos do processo de reconstrução do ético, eximimo-nos de uma consideração profunda acerca da
conexão entre trabalho e Bildung, pela qual Hegel se torna tão influente, através de sua interpretação pela esquerda hegeliana, na tradição do assim
chamado “marxismo ocidental”. Para além de precisar a herança hegeliana em Marx, tal conexão se faz importante para a compreensão dos
pensamentos de Kojève, Lukács e da “Escola de Frankfurt”. ver: Kimmerle, Heinz – Das Problem der Abgeschlossenheit des Denkens. Hegels
„System der Philosophie“ in den Jahren 1800-1804, Bonn(Beiheft 8 der HST), p.217-223; Schnädelbach, Herbert – Hegels praktische
Philosophie: Ein Kommentar der Texte in der Reihenfolge ihrer Entstehung, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 2000, p.85
409
Kimmerle, Heinz – Das Problem der Abgeschlossenheit des Denkens. Hegels „System der Philosophie“ in den Jahren 1800-1804,
Bonn(Beiheft 8 der HST), 218
410
“A determinação ideal do outro é objetiva, mas de tal maneira que esta objetividade imediatamente também se põe subjetivamente e se torna
causa; pois que algo seja potência para o outro, ele tem de ser não somente universalidade e indiferença em relação para com o mesmo, mas antes
[ser] enquanto o ente para si, posto [para si], ou um universal verdadeiramente absoluto: e isto a inteligência é no mais elevado grau. Segundo
justamente esta mesma perspectiva, um universal, enquanto ela [a perspectiva] é um particular, ambos são, de maneira não-mediatizada e
absolutamente, um.” (SdS 12)
169
“Esta relação viva é ... enquanto determinidade dos contrapostos, ideal. Porém ... em nome da dominação do
conceito, a diferença permanece, mas sem desejo. Ou seja, a determinidade dos contrapostos é uma
[determinidade] superficial, não natural, real, e o prático se dirige, na verdade, à suspensão desta determinidade
contraposta, mas não em um sentimento, antes de tal maneira que ela se torna intuição de si mesmo em um
estranho e, por conseguinte, tem seu desenlace com a individualidade acabada que se lhe defronta (mit
gegenüberstehender vollkommener Individualität endigt), através do que o ser-um na natureza é suspenso ainda
mais. Esta é a relação de pais e filhos.” (SdS 13)
A relação entre pais e filhos é esta contraposição cuja idealidade se desfaz da forma que
possui no apaziguamento do desejo e se efetiva no reconhecimento de si em uma individualidade
411
Schnädelbach, Herbert – Hegels praktische Philosophie: Ein Kommentar der Texte in der Reihenfolge ihrer Entstehung, Suhrkamp, Frankfurt
am Main, 2000, p.85
412
No System der Sittlichkeit, Hegel compreende o ser-si-mesmo e conhecer-se no outro, não mais como em Frankfurt enquanto Vereinigung,
unificação ética absoluta, mas, diante de todas as frustrações em relação ao projeto da Volksreligion, reduz seu alcance à idealidade no âmbito da
natureza, momento intersubjetivo elementar dos nexos societários engendrados na imbricação entre eticidade e natureza e que tornam possível
uma individualidade socialmente constituída. “A incompreensibilidade (Unbegreiflichkeit) deste seu ser si mesmo em um estranho (sein
selbst Sein in einem fremden) pertence por isso à natureza, não à eticidade, pois esta é, em relação aos diferentes, absoluta igualdade de
ambos. Em relação ao ser-um, [é] absoluto ser-um pela idealidade. Aquela idealidade da natureza (Naturidealität) permanece, contudo, na
desigualdade e, por isso, no desejo, no qual um deles é determinado como subjetivo e o outro como objetivo.” (SdS 13)
413
Como observa Schnädelbach, neste movimento que leva da união conjugal à formação e posterior dissolução da família, está certamente
prefigurada a teoria da família exposta nas Grundlinien e segundo a qual a mesma se dissolve necessariamente e destaca de si mesma os
indivíduos formados enquanto particularidades autônomas, os quais, enquanto livres e iguais, perfazem a esfera da sociedade civil. Apenas
contestamos, segundo o que vimos acima acerca dos Entwürfe über Religion und Liebe, que esta seja a primeira exposição desta intuição
hegeliana. Outro aspecto que nos parece ter sido negligenciado por Schnädelbach diz respeito à sua colocação de que “a palavra-chave
“reconhecer” falta no texto, a qual designa nos Jenaer Systementwürfe e na Fenomenologia um motivo fundamental da teoria hegeliana da
socialização.”(86) Justamente ao fim do movimento, que faz convergir a relação entre pais e filhos e o processo de formação recíproca, processo
que eleva a particularidade à universalidade do gênero, Hegel diz se tratar de “um reconhecer que é recíproco, ou a suprema individualidade e
a diferença exterior.”(SdS 13)
170
414
Partindo do conceito de Werden da eticidade, mencionado por Hegel na tipologia das ciências práticas no Naturrechtaufsatz, principalmente
com respeito ao papel a ser desempenhado pela educação, Honneth sustenta que somente se o Werden der Sittlichkeit pode ser compreendido
como um “movimento de ir para dentro uma da outra” de socialização e individualização, é que “se pode, como seu resultado, aceitar também
uma forma de sociedade que tem sua conexão orgânica no reconhecimento intersubjetivo da particularidade de todos os singulares.” Honneth,
Axel – Kampf um Anerkennung. Zur moralischen Grammatik sozialer Konflikte, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1992, 28/28
415
Ao fundamentar, em seu resgate “pós-metafísico” de Hegel, sua tese de que estágios de reconhecimento recíproco se revertem em confirmação
prática de determinadas dimensões da individualidade, Honneth entende que o trabalho de formação constitui a determinação interior da família, a
qual se converte na formação da negatividade interior e autonomia da criança. Em geral, a leitura bastante pertinente de Honneth se dirige, como é
sabido, à tentativa de “expor”, a partir da teoria hegeliana de estágios comunitários de realização da liberdade individual (que recebem seu
desenvolvimento mais célebre na teoria da eticidade nas Grundlinien), um “conceito formal de eticidade”. Em vista disso, Honneth insiste numa
sobreposição dos níveis, os quais se diferenciam principalmente no tocante ao elemento de identidade pessoal que, em um certo nível de existência
intersubjetiva, encontra sua confirmação. Entretanto, pensamos que esta sobreposição ainda não faz totalmente justiça às potencialidades do
modelo hegeliano. Por isso, interessa-nos visualizar a complementaridade de socialização e individualização não simplesmente na sobreposição,
mas sobretudo nas interfaces entre os níveis de reconhecimento recíproco, já que estas interfaces podem indicar as rupturas mais significativas na
formação da identidade pessoal. Honneth, Axel – Kampf um Anerkennung. Zur moralischen Grammatik sozialer Konflikte, Suhrkamp, Frankfurt
am Main, 1992., 33, 34. Sendo assim, importa, em nosso contexto, principalmente a relação entre estes dois paradigmas de relação intersubjetiva:
por um lado, aquele formado na “esfera da família” e, por outro, aquela relação intersubjetiva de contraposição que é institucionalizada com o
reconhecimento da pessoa.
416
Na base das potências pelas quais se efetiva o espírito no Systementwurf 1803/1804, a potência da linguagem, do instrumento e da família, cuja
célebre interpretação por Habermas enquanto modelos de relação dialética reciprocamente irredutíveis – e particularmente irredutíveis ao
movimento de auto-reflexão do espírito –, pôs em evidência, está a sua prefiguração no System der Sittlichkeit. Entretanto, neste último a criança é
pensada como um “meio vivo” da interação entre inteligências, ao passo que o “instrumento” é considerado apenas um meio ele mesmo singular,
meramente ideal. Como unificação entre a “interação” e o “trabalho”, Hegel enuncia a “fala” ou a linguagem, o “instrumento da razão, a criança
dos seres inteligentes”. A Habermas passou também desapercebido que, no System der Sittlichkeit, Hegel revela uma profunda absorção de Fichte
no tocante à assimilação da educação como forma de interação. Entretanto, o resultado alcançado por Hegel com respeito à “fala” pode ser
compreendido como um sustentáculo à tese habermasiana que plasma toda sua obra posterior, de que a “linguagem penetra no agir comunicativo;
pois somente as significações intersubjetivamente válidas e constantes, que são criadas pela tradição, permitem orientações à reciprocidade, isto é,
expectativas complementares de comportamento. Com efeito, a interação é dependente de comunicação lingüística introduzida na vida (eingelebt).
Mas também o agir instrumental, tão logo ele aparece como trabalho social, está inserido numa rede de interações e, por isso, é, por sua vez,
dependente das condições comunicativas de contorno de toda possível cooperação.”ver Habermas, Jürgen –„Arbeit und Interaktion, 803
171
vê potencialmente unificados na relação entre pais e filhos: “cada um é um ser igual e autônomo
(ein gleiches, selbstständiges Wesen). Que também a relação / de tal amor e sensação seja, é
forma exterior, a qual não diz respeito à sua essência, que é a universalidade em que eles se
encontram.”(SdS 13/14) Hegel concebe estas estruturas segundo o modelo de um “(re)conhecer”
imediato, imediato porque não supõe o conflito, a partir de onde poderia se erguer como sua
extirpação: “um reconhecer que é recíproco, ou a suprema individualidade e a diferença exterior.”
(SdS 13) Entretanto, amor e educação formativa são relações intersubjetivas dependentes da
singularidade, e como a eticidade absoluta exige a suspensão do singular na unidade e na
universalidade, amor e educação são insuficientes enquanto formas genuinamente éticas de
existência comum. “A absoluta igualdade deles está também aqui no interior, e, segundo toda
a potência na qual nós estamos, a relação é subsistente (beständig) somente no singular” (SdS
13) Tal como acontece com o reconhecimento formal da pessoa, também tais formas
intersubjetivas precisariam de uma realidade duradoura, de uma “presença absoluta”. Entretanto,
ao contrário da universalidade formal da regulação jurídica da esfera econômica, nas formas
intersubjetivas inclusivas da esfera natural da “eticidade segundo a relação” a universalidade está
oculta por detrás dos indivíduos, não aparecendo a eles como universalidade formal que se
encontra acima deles e os subordina: nisto reside a espontaneidade das formas não excludentes de
relação intersubjetiva.
417
“Esta relação de escravidão, ou [relação] de pessoa a pessoa, de vida formal a vida formal, na qual uma delas está na forma da indiferença, e a
outra na forma da diferença, tem de ser indiferenciada, ou tem de ser subsumida sob a primeira potência, de tal maneira que a mesma relação da
personalidade (Persönlichkeit), da dependência do outro em relação ao outro (Abhängigkeit des andern von dem andern) permanece; porém [de
maneira que] a identidade seja uma [identidade] absoluta, ainda que [uma identidade] interior, não engendrada (herausgeborne), e a relação de
diferença apenas a forma exterior.” (SdS, 30) Pelo direito privado, os indivíduos se reconhecem enquanto capazes de posse e de fechar contratos,
isto é, enquanto subjetividades absolutas ou pessoas. O singular é reconhecido como totalidade viva, como indiferença de todas as determinidades.
A suspensão deste reconhecimento, o qual constitui a natureza ética do singular ou a universalidade de sua singularidade determinada, conduz à
relação de dominação, de desigualdade. Mas se, por um lado, os indivíduos são reconhecidos como iguais enquanto pessoas, o que possibilita a
fluidez do movimento de todas as particularidades da vida sem a fixação na mesma, o poder de ser sujeito e de ser este ponto de indiferença é, por
outro lado, dependente do “poder da vida”, de maneira que, na realidade da vida ela mesma, os indivíduos são desiguais. A contradição entre a
igualdade dos indivíduos enquanto pessoas e sua desigualdade com respeito às determinações particulares, é resolvida, nos limites da eticidade em
relação, na família.
172
A família constitui, para Hegel, a figura final da segunda potência da eticidade natural e,
na verdade, o ponto final da eticidade absoluta segundo a relação, no qual a sua idealidade e a
realidade devem chegar finalmente à indiferença: “a suprema totalidade da qual a natureza é
capaz” (SdS, 32). Esta figura final da eticidade natural fornece uma intuição da totalidade do
ético que se deixa interpretar, portanto, como unidade que suspende a multiplicidade atomizada
de indivíduos vivos, que se constituem, enquanto singulares livres capazes de dispor sobre a
propriedade, reivindicar direitos e fechar contratos, pelo reconhecimento recíproco como pessoas.
Ela se encontra acima, isto é, como unidade, justamente porque representa, no interior da
imbricação vital entre o ético e a natureza, a única possibilidade de amortecer os efeitos funestos
da dominação, a qual se atrela necessariamente, neste nível, com a possibilidade de uma
liberdade ilimitada desencadeada pela determinação universal do ser-pessoa do indivíduo. Esta
precariedade inserida por Hegel no ambiente de socialização primeva dos seres humanos, a
naturalidade do ético, conduz a uma compreensão da eticidade natural como incapaz de
engendrar uma “presença absoluta” do direito como tal, o que a torna refém de relações
eminentemente coercitivas que somente podem ser, no melhor dos casos, amortecidas graças ao
estofo de vida comunitária que se efetiva na família. O fato de que a idealidade e a realidade
desta potência, a idealidade da determinação universal do ser pessoa do indivíduo e a realidade de
uma possível dominação fundada na “desigualdade do poder da vida”, tenham de ser
indiferenciadas na família, não significa propriamente que esta possa fornecer o meio de
existência desta indiferença: significa, sobretudo, que a família é uma unidade de vida ética que
não se pauta prioritariamente pela “lógica” da liberdade possivelmente absoluta do indivíduo
reconhecido como pessoa, mas antes por relações originárias de solidariedade, tanto no amor
conjugal, quanto no amor pelos filhos e no esforço por sua formação, pela elevação de sua
particularidade ao universal do gênero. Esta compreensão da contraposição entre a
potencialmente desagregadora e dominadora intersubjetividade individualista do reconhecimento
da pessoa e de um modelo intersubjetivo solidário que visa a aplacar as tendências de resvalar na
dominação que perpassam esta socialização pré-política, significa apenas que a família pode
amortecer tais tendências em nichos comunitários diminutos, mas, antes de mais nada, que esta
possibilidade é também consideravelmente anulada na mesma medida em que conflitos se
desenvolvem em escalas sociais mais amplas. O que não pode, entretanto, ser ignorado é,
segundo Hegel, que tanto na unidade inclusiva da família, quanto na unidade mutuamente
excludente proporcionada pelo primeiro estágio de “institucionalização” da individualidade,
ainda na esfera da eticidade natural, na forma do reconhecimento da pessoa, a identidade dos
indivíduos permanece insuficiente do ponto de vista da eticidade absoluta, quer por permanecer
estritamente formal, contraposta aos indivíduos e pairando sobre eles, ou por permanecer ainda
recôndita, oculta pela particularidade que dá vida à unidade ética natural da família418. As formas
de relação intersubjetiva no interior da eticidade natural, reconhecimento recíproco e formal
418
“Mas que a identidade permaneça uma [identidade] interior, é necessário, porque ela é, em toda esta potência, ou uma [identidade]
formal (direito) que paira (schwebende) sobre o particular, uma [identidade] contraposta, ou uma [identidade] interior, a saber: uma que
está subsumida sob a intuição da particularidade, [sob] a individualidade como tal e aparece, por conseguinte, como natureza, não
enquanto uma identidade que subjuga uma oposição – ou como natureza ética, na qual aquela oposição é, da mesma maneira, suspensa –,
mas de tal maneira que a particularidade e individualidade sejam o subsumido (das Subsumierte).” (SdS, 28)
173
419
Para Honneth, a tarefa da eticidade absoluta é, antes de mais nada, purificar o estado social formado pelas relações intersubjetivas “naturais” de
sua base no princípio da singularidade. Segundo seu estudo, apesar de o movimento do reconhecimento ter rompido os limites particularistas do
círculo familiar, o progresso na generalização social é “comprado” com o esvaziamento e formalização daquilo que, no sujeito singular, encontra
confirmação intersubjetiva. Honneth refere-se, sobretudo, à atribuição recíproca da liberdade negativa da pessoa, isto é, do direito formal de poder
reagir a todas as transações econômicas, em que o sujeito se insere pela generalização de sua reivindicação de posse, com sim ou não. Para
Honneth, o que aliás se depreende sem muita dificuldade do texto hegeliano, o que é reconhecido na forma de um título de direito é a liberdade
negativamente determinada. Honneth, Axel – Kampf um Anerkennung. Zur moralischen Grammatik sozialer Konflikte, Suhrkamp, Frankfurt am
Main, 1992 33, 34,35
420
Isto se dirige à divisão proposta por Göhler Göhler, Gerhard – „Dialektik und Politik in Hegels frühen politischen Systemen: Kommentar und
Analyse“, in: Frühe politische Systeme: System der Sittlichkeit, Über die wissenschaftlichen Behandlungsarten des Naturrechts, Jenaer
Realphilosophie. Herausgegeben und kommentiert von Gerhard Göhler,Frankfurt am Main, Ullstein 1974, p.384
174
inteligência humana, pelo que a relação viva entre sujeito e objeto toma a feição de um trabalho
recíproco de formação dos indivíduos, e a reconstrução do ético é reconduzida a uma interação
universal entre os mesmos que se constitui como possibilidade de sua existência social. Na
medida em que interagem enquanto sujeitos que são também objeto de uma elaboração mútua
que ocorre no elemento natural, os seres humanos apresentam cada qual a unidade imediata de
opostos, isto é, como particulares sendo verdadeiramente para si, enquanto são, atuando uns sobre
os outros, universais. O princípio da existência ética pré-política dos indivíduos é então a
universalidade elevada à totalidade de inteligências que agem reciprocamente em prol de sua
mútua formação (Bildung). Desta maneira, é pré-figurada, ainda no âmbito da naturalidade do
gênero humano, a unidade real e a universalidade socialmente abrangente da totalidade ética no
povo. Eis porque esta potência alcança sua efetivação mais concreta na fala (Rede) ou linguagem,
a mediação mais concreta dos sujeitos que interagem.
Esta universalidade, ainda determinada pela singularidade e ainda não manifesta como
universalidade determinante e duradoura, emerge da interioridade e passa a exercer a função de
coordenação, em condições sociais mais abrangentes, das relações recíprocas entre os agentes.
Em vista das relações naturais recuperadas na primeira potência, este movimento toma a feição
de uma fixação das mesmas em relações econômico-jurídicas, na qual a contingência inicial é
subordinada ao controle pelo universal. Entretanto, a esfera econômica juridicamente regulada
tem, em comum com o estágio imediato da naturalidade do ético, sua permanência no âmbito da
mera relação à particularidade, pela qual ela mesma lhe aparece também como uma
particularidade. “A relação de troca e do reconhecimento da posse, e, com isso, a propriedade
– a qual se referiu até aqui a singulares –, torna-se aqui totalidade, mas sempre no interior da
própria singularidade, ou seja, a segunda relação é assimilada à universalidade, ao conceito
da primeira.”(SdS, 27) A passagem do momento natural da “eticidade segundo a relação” para
seu momento conceitual na “idealidade” ou “formalidade”, significa o deslocamento para o
primeiro plano do princípio que até agora permanecera subordinado, a contraposição ao universal
pela subordinação da apreensão intuitiva ou coesa do ético ao conceito. Neste movimento, o
universal vai se tornando paulatinamente a idealidade do indivíduo, a qual era, na esfera natural
da relação, prefigurada pelo aparecimento ainda particularizado do universal da linguagem421.
Este ponto marca a entrada dos indivíduos numa relação “excludente” e “atomizada” de uns para
com os outros. Uma primeira forma desta relação é a necessária cooperação atomizada ou
abstrata na produção e na satisfação universal das carências.
421
Ver Kimmerle, Heinz – Das Problem der Abgeschlossenheit des Denkens. Hegels „System der Philosophie“ in den Jahren 1800-1804,
Bonn(Beiheft 8 der HST), 223
175
uma finitude subsistente para si, a qual não deve ser nadificada na idealidade, pelo que é
impossível que a realidade seja uma [realidade] verdadeira e absoluta.”(SdS, 27) O contrato
entra em cena para promover a segurança da igualdade quantitativa pela estrita reciprocidade de
prestações (Leistungen), as quais são, na troca, ainda ameaçadas pelo arbítrio individual,
elevando assim o universal ao status de garantia jurídica real. Com o contrato a universalidade
formal no âmbito social alcança sua mais alta possibilidade. No contrato, localiza-se a
emergência real do universal.
“A vida do indivíduo é a abstração elevada ao ponto supremo da sua intuição. A pessoa, porém, o puro conceito da
mesma, e este conceito é, na verdade, o conceito absoluto ele mesmo. Neste reconhecer da vida, ou no pensamento
do outro enquanto conceito absoluto, ele é enquanto ser livre, enquanto possibilidade de ser o contrário de si mesmo
em relação a uma determinidade. E no singular enquanto tal não há nada que não possa ser considerado como
determinidade.” (SdS 28)
425
“Formalmente, na simplicidade ou intuição, o indivíduo é indiferença de todas as determinidades, e, enquanto tal, um [indivíduo] formalmente
vivo, e é como tal reconhecido. Tal como anteriormente [era reconhecido] enquanto [indivíduo] que possui coisas singulares, da mesma maneira
[é reconhecido] aqui enquanto [indivíduo] sendo para si no todo.” (SdS, 27) Esta estrutura de relação intersubjetiva, enquanto perpassada pela
“presença” da idealidade, não fixa a singularidade com respeito a relações de propriedade, mas a fixa em si mesma, pois o direito reconhece todo
sujeito individual como pessoa, isto é, todos como iguais: “a intuição desta totalidade – contudo, da mesma enquanto singularidade, é o
indivíduo enquanto indiferença de todas as determinidades, e como ele se apresenta como uma tal enquanto totalidade.” (SdS, 27)
426
Schnädelbach, Herbert – Hegels praktische Philosophie: Ein Kommentar der Texte in der Reihenfolge ihrer Entstehung, Suhrkamp, Frankfurt
am Main, 2000, 90
178
427
Parece pertinente, neste momento, mencionar como esta posição de Hegel no System der Sittlichkeit é substancialmente modificada no
desenvolvimento posterior do sistema. Refiro-me, sobretudo, à subordinação sistemática das determinações e categorias jurídico-econômicas à
eticidade natural da família, pelo que se revela, como observa Schnädelbach, a extrema influência em Hegel da concepção aristotélica da
economia enquanto vinculada ao ambiente doméstico. Esta concepção vai se desenvolver sobretudo na direção de uma plena separação da
economia em relação à família e, por conseguinte, sua compreensão ampliada até o âmbito de uma economia política, que abrange a sociedade
como um todo. Mais indicações a respeito: Schnädelbach, Herbert – Hegels praktische Philosophie: Ein Kommentar der Texte in der
Reihenfolge ihrer Entstehung, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 2000 Göhler, Gerhard – „Dialektik und Politik in Hegels frühen politischen
Systemen: Kommentar und Analyse“, in: Frühe politische Systeme: System der Sittlichkeit, Über die wissenschaftlichen Behandlungsarten des
Naturrechts, Jenaer Realphilosophie. Herausgegeben und kommentiert von Gerhard Göhler,Frankfurt am Main, Ullstein 1974, 337-610
Kimmerle, Heinz – Das Problem der Abgeschlossenheit des Denkens. Hegels „System der Philosophie“ in den Jahren 1800-1804, Bonn(Beiheft
8 der HST)
428
Neste sentido, o crime se reverte, graças à sua estrutura da negação abstrata, no asseguramento de uma universalidade mecânica e sem vida, um
desenvolvimento quantitativo do universal das determinações sociais. O universal da existência comunitária é ampliado proporcionalmente aos
fenômenos assimilados pelo seu restabelecimento. No ápice do desenvolvimento, a indiferença da vida pré-estatal, a família, é despida, na guerra,
da determinação singular e ampliada a uma unidade quantitativamente mais abrangente e mais formal: vê-se assim que a assimilação do crime
intensifica a universalidade em sua abrangência e alcance social.
429
Uma compreensão da real função do segundo capítulo do System der Sittlichkeit parece extrapolar realmente o escopo metodológico imposto
pela tentativa de reconstruir o ético através da Potenzenmethode. As indicações de Hegel quanto o direcionamento lógico pelo conceito e pela
abstração do universal formal parecem privilegiar a interpretação segundo a qual a parte sobre o crime se insere no estágio geral de subsunção sob
o conceito, a qual já é operacionalizada na eticidade natural. Göhler, Gerhard – „Dialektik und Politik in Hegels frühen politischen Systemen:
Kommentar und Analyse“, 393
179
é, enquanto negativo, a essência. O real é posto como ideal, é determinado pela liberdade
pura.”(SdS 34) Desde suas discussões sobre intersubjetividade em Frankfurt, Hegel caracteriza a
“modernização” como sistemático destacamento do indivíduo das relações éticas em que está
desde sempre enredado. Hegel enxerga em Fichte, por outro lado, o extremo da tentativa de
fundamentar a posição absoluta do indivíduo e de um sistema do direito enquanto limitação
recíproca das liberdades. Fichte localiza a origem da relação de direito no movimento de gênese
da autoconsciência, isto é, da identidade individual: em sua Nova Methodo, o processo de gênese
da autoconsciência é a “passagem da indeterminidade à determinidade”430, isto é, a transformação
da pura espontaneidade em consciência limitada, de maneira que o direito, concebido segundo o
modelo da limitação recíproca das liberdades, é o limite à liberdade ilimitada do indivíduo. É este
conceito de liberdade ilimitada, que se põe em absoluta oposição e negatividade, que Hegel
aborda no segundo tomo de System der Sittlichkeit, sobre “a liberdade ou o negativo ou o
crime”431. “Este negativo ou a liberdade pura se dirige então à suspensão do objetivo de tal
maneira que ele torna a determinidade ideal, somente exterior e superficial na necessidade, o
negativo em essência e, portanto, nega a realidade em sua determinidade, mas fixa esta
negação”(SdS 34)
430
“Toda consciência da auto-atividade (Selbsttätigkeit) é uma consciência do nosso limitar de nossa atividade. Mas eu não posso intuir a mim
mesmo como limitante sem pôr um passar da indeterminidade à determinidade e contrapô-lo ao determinado.”Zweite Einleitung, AA IV, 2 (34)
431
Não estamos aqui contestando a já amiúde aludida influência de Hobbes sobre o segundo capítulo do System der Sittlichkeit. Segundo Siep, a
questão não é tanto o conceito de “luta de todos contra todos”, mas antes o enunciado, vinculado à teoria hobbesiana do estado de natureza, de que
a liberdade ilimitada do indivíduo, concebida por Hobbes como “direito de todos a tudo” e por Fichte como Urrecht, expressa-se no ambiente de
conflito ou de luta. Ver Siep, Ludwig –„Der Kampf um Anerkennung. Zu Hegels Auseinandersetzung mit Hobbes in den Jenaer Schriften“, in:
Hegel-Studien (1974), 155-209 Hegel compreende a liberdade ilimitada não como a liberdade singular própria à compreensão do estado de
natureza em Hobbes, mas como negação da eticidade natural e de seus níveis de interação.
180
O capítulo sobre o crime se estrutura, por outro lado, segundo a suspensão simplesmente
negativa, através da qual a determinidade finita desaparece subsumida ao momento ideal do
absoluto – na qual, portanto, o negativo “suspende, através da iden/tidade plenamente
acabada como o seu contrário, a sua forma ou idealidade [do contraposto E.C.L], toma-lhe
justamente o negativo e o torna absolutamente positivo ou real”(SdS 33/34). Trata-se de um
movimento no qual as determinidades societárias pré-estatais são negadas em seu próprio
“estágio ético”, isto é, têm seu caráter de uma universalidade social ainda determinada pela
oposição ameaçado pela contraposição radical à singularidade: a realidade essencial do oposto
não é atingida, pelo que se ratifica a idealidade da determinidade ao custo de sua realidade. Eis
porque aquela suspensão total desemboca na eticidade absoluta, enquanto esta suspensão ainda
“inacabada” é tematizada num estágio ético relativo em que o singular se opõe às formas
originárias de intersubjetividade. A interdependência destas formas de negação reside em que a
acolhida da determinidade na eticidade absoluta somente se torna inteiramente visível pela
negação simples da mesma no crime. A liberdade pura torna patente a idealidade da
determinidade, isto é, a idealidade da posição das determinidades singulares enquanto estando em
oposição à universalidade formal; mas, ao fazer do negativo sua essência, o ato criminoso revela
que o que é posto na eticidade em relação é somente uma determinidade que não atinge a
essência interior da existência social. Por isso mesmo, a negação criminosa é somente uma
suspensão ideal da determinidade. Se esta negação fosse levada ao paroxismo, a objetividade
seria completamente aniquilada, e também a subjetividade se aniquilaria como tal, o que
significaria a dissolução da diferença em uma indiferença sem forma.
432
Na medida em que se constitui como negação e simultânea conservação da determinidade finita no absoluto, Schnädelbach compreende a
Aufhebung der Aufhebung, da qual Hegel distingue, no System der Sittlichkeit, a suspensão meramente negativa, na qual a determinidade finita
desaparece sem diferença na idealidade do absoluto, como a proto-forma da negação da negação e, portanto, como antecipação da negação
determinada em relação à negação abstrata. Schnädelbach, Herbert – Hegels praktische Philosophie: Ein Kommentar der Texte in der
Reihenfolge ihrer Entstehung, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 2000, 94
433
Kimmerle, Heinz – Das Problem der Abgeschlossenheit des Denkens. Hegels „System der Philosophie“ in den Jahren 1800-1804,
Bonn(Beiheft 8 der HST)
181
e ameaçador. Neste sentido, Hegel mantém, no System der Sittlichkeit, apenas a estrutura geral entre lei objetiva e pena, mas desvincula-se da
temática da reconciliação e remissão pelo amor. Göhler, Gerhard – „Dialektik und Politik in Hegels frühen politischen Systemen: Kommentar
und Analyse“, 393. A suspensão positiva, que tem seu eco na reconciliação pelo destino, não se efetiva no capítulo sobre o crime e, na terceira
parte, não se dá do mesmo modo que em Frankfurt: a reconciliação ocorre não mais no plano da fraternidade e do perdão, mas antes, de maneira
substancial, pela inserção da singularidade na unidade viva do povo e de sua organização estatal. Com efeito, a unidade efetivada da eticidade em
System der Sittlichkeit constitui-se por uma “redução” da estrutura da reconciliação enunciada em Frankfurt à problemática da lesão e
restabelecimento da lei enquanto universal fixo, voltada à absorção societária pré-estatal de todos os fenômenos negativos empiricamente
relevantes de uma intensificação exacerbada da posição excludente da singularidade, que se posicionam por isso de maneira negativa e destrutiva
em relação à universalidade comunitária e que, em nome de uma integração social estável e imanente à singularidade, têm de ser negados pelo
universal. Decerto, fenômenos como o assassínio, a vingança e a guerra, representam já uma extenuação da estrutura fundamental da
lesão/restabelecimento do universal, porém neles somente uma universalidade ainda negativa e sem vivacidade se disseminou pela existência
comunitária.
436
Wildt, Andreas – Autonomie und Anerkennung. Hegels Moralitätskritik im Lichte seiner Fichte-Rezeption, Stuttgart, 1983, p.323
437
Para uma visão detalhada acerca desta diferença, indicamos Göhler, Gerhard – „Dialektik und Politik in Hegels frühen politischen Systemen:
Kommentar und Analyse“, 393 Siep, Ludwig –„Der Kampf um Anerkennung. Zu Hegels Auseinandersetzung mit Hobbes in den Jenaer
Schriften“, in: Hegel-Studien (1974), 155-209
438
“A consciência desta sua própria aniquilação é um subjetivo, interior, ou seja, a má consciência (das böse Gewissen). Ela é, nesta
medida, incompleta e tem de se apresentar exteriormente como justiça vingativa.” (SdS 36) A consciência (Gewissen), enquanto aspecto
ideal ou intra-subjetivo da relação entre crime e justiça vingativa, é compreendida por Schnädelbach como uma “instância psíquica passível de
reconstrução a partir relações intersubjetivas da vida”. Schnädelbach, Herbert – Hegels praktische Philosophie: Ein Kommentar der Texte in der
Reihenfolge ihrer Entstehung, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 2000, 94/95
439
“Em seguida ela [a consciência moral, E.C.L] começa a se satisfazer, porque ela observa o começo de sua realidade nele. Ela produz um ataque
a si, do que ela pudesse se defender, e através da defesa contra o ataque se tranqüiliza, pois que ela defende a exigência mais universal, a
indiferença e totalidade – a saber: a vida, da qual mesmo a consciência moral é uma determinidade – contra a negação ameaçada.” (SdS 36)
440
Com isso, o risco de morte, o qual era, no Naturrechtaufsatz, a suspensão do singular e o índice da unificação ética do mesmo com o povo, é
compreendido aqui como “possibilidade da apresentação do singular ele mesmo enquanto totalidade”440, prenunciando o Jenaer Systementwurf
1803/04. Siep, Ludwig –„Der Kampf um Anerkennung. Zu Hegels Auseinandersetzung mit Hobbes in den Jenaer Schriften“, in: Hegel-Studien
(1974), 155-209, 163/168
441
Que o capítulo sobre o crime representa o “paroxismo da exclusão”, deve-se ao vínculo inextricável entre liberdade pura e pura negatividade.
Viu-se acima que a gênese da pessoa já trouxera o tema da liberdade negativa à tona. Esta liberdade de poder abstrair de tudo é agora levada ao
seu momento radical pela negação da própria vida e, portanto, dos vínculos éticos naturalmente estabelecidos. Schnädelbach, Herbert – Hegels
praktische Philosophie: Ein Kommentar der Texte in der Reihenfolge ihrer Entstehung, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 2000, 94/95
183
“Pois o reconhecer é justamente esta relação (Beziehung), a qual é em si meramente ideal, enquanto que [com]
uma [relação (Beziehung)] real é indiferente pelo mesmo se o sujeito efetivamente unificou absolutamente
consigo, de maneira inextricável, a determinidade, ou se esta unificação está somente posta na forma da
possibilidade. Pelo reconhecer a relação relativa torna-se ela mesma indiferente, a subjetividade dela [torna-se]
ao mesmo tempo objetiva” (SdS 39)
Portanto, Hegel procura compreender este tipo de crime como danificação da rede
previamente articulada do reconhecimento recíproco. “A suspensão real do reconhecer
suspende também aquela relação e é furto e, na medida em que se dirige puramente ao objeto
relacionado, roubo.”(SdS 39) A novidade deste estágio em relação à devastação reside na
indiferença da rede intersubjetiva lesada em relação à integridade do objeto: “o roubo é aqui,
portanto, da mesma maneira pessoal e [, portanto,] furto”(SdS 40), ou seja, quer como furto ou
como roubo, a “devastação” se transfere aqui para o âmbito da pessoa, e o crime se torna uma
lesão pessoal445. Com isso, há uma intensificação do dano ético da lesão justamente porque a
442
Se e em que medida esta exigência possui um sustentáculo nas determinações metodológicas do texto de Hegel, como defende Kimmerle,
deixamos aqui em aberto, já que nos interessa sobretudo o teor social da tipologia da exclusão criminosa. Mais sobre isso, ver Kimmerle, Heinz –
Das Problem der Abgeschlossenheit des Denkens. Hegels „System der Philosophie“ in den Jahren 1800-1804, Bonn(Beiheft 8 der HST), 235 e
seg.
443
“O conceito absoluto, o contrário imediato de si mesmo, é real, porque o produto não é de maneira alguma uma identidade de subjetivo
e objetivo, mas antes pura objetividade, carência de forma (Formlosigkeit) pura e simplesmente.”(SdS 38) A capacidade do elemento
absoluto em assumir a “forma da natureza”(SdS 38), isto é, o sucumbir da diferença e do determinado à indiferença, constitui o
“ultrapassar para o exterior” do “fanatismo do devastar”(SdS 38), o qual, entretanto, “na medida em que ela está na determinidade,
somente pode despojar a posse.”(SdS 38) Eis porque a “indiferença da posse ou do direito não lhe importa nada. Ela é somente na
particularidade.”(SdS 38)
444
“o ético é, pela sua natureza de ser inteligência, ao mesmo tempo objetivamente universal e, portanto, em relação indiferente com um
outro.”(SdS 38). Para Hegel, “a aniquilação de uma partícula/ridade”(SdS 38/39) é aqui aniquilação “dirigida a um ser ético”(SdS 39),
“aniquilação da indiferença e pôr da mesma como [pôr] de um negativo”, o que significa “que a determinidade como tal permanece,
apenas é posta com a determinidade negativa.”(SdS 39)
445
Hegel esclarece que, com a passagem da devastação para o delito jurídico, a lesão se transfere para o ponto de indiferença da relação, isto é, ao
sujeito, tornando-se lesão pessoal. “Nesta relação do sujeito ao objeto, que é na [relação de] propriedade, é deixada, pela aniquilação da
indiferença e do direito, na verdade, a determinidade, esta permanece nisso indiferente, o objeto roubado permanece o que ele é. Mas não o
sujeito, o qual aqui no particular é ele mesmo a indiferença na relação. Na medida em que, agora, não esta abstração de sua relação ao objeto está
suspensa, mas antes na mesma ele mesmo está lesado, algo é a ele suprimido ... e já que então a indiferença das determinidades é a pessoa, e esta é
aqui lesada, então a diminuição da propriedade é lesão pessoal.” (SdS 39)
184
lesão não se efetiva somente como diminuição da propriedade, mas como dano à pessoa e, por
conseguinte, à personalidade como tal. “Ela [a diminuição da propriedade] é necessariamente
uma tal [lesão pessoal]. Pois ela é imediatamente não pessoal, se somente a abstração da
relação do sujeito ao objeto é lesada. Mas esta abstração como tal não é feita nesta potência:
ela ainda não tem em algo, ele mesmo universal, sua realidade e retenção (Halt), mas o tem
somente na particularidade da pessoa. E, por isso, cada furto é pessoal.”(SdS 39)
É reação a um “delito jurídico” como o roubo ou o furto que dá ensejo, segundo Hegel, a
um embate, no qual se contrapõem dois singulares enquanto pessoas de direito, querendo fazer
valer suas reivindicações, tanto a de uma ampliação indevida da própria esfera de ação, quanto a
exigência de respeito aos direitos da pessoa e da propriedade: “a subsunção de uma posse que é
propriedade sob o desejo de um outro, ou seja, a negação da indiferença, e a afirmação da
particularidade quantitativamente maior contra a [particularidade] quantitativamente menor,
da subsunção dos diferentes sob a menor, isto é a violência (Gewalt), não em geral, mas
contra a propriedade”(SdS 40). Mas, de acordo com a doutrina da “justiça punitiva” ou da
oposição reparadora do universal lesado, Hegel pode dizer aqui que “o roubo tem também de ter
sua contra-atuação, ou a subsunção invertida.” (SdS 40) Para Hegel, deve-se ater estritamente
ao que, neste estágio, significaria de fato uma inversão da relação de lesão, ou seja, já que a
lesão do reconhecer se deu pela violência e já que o delito se efetua no âmbito pré-estatal da
eticidade relativa, uma contra-atuação tem também a forma da violência que subverte a
relação de força: “como aqui se é subjugado (bezwungen), isto é, o poder menor foi
subsumido sob o maior poder, então inversamente o que agora é maior tem de ser posto como
o menor. E, segundo a razão absoluta, esta inversão é, em si e para si, tão necessária quanto
aquela subsunção é efetivamente roubo.”(SdS 40) Eis porque, diante da assimetria típica de
um exercício de violência, Hegel compreende, neste estágio da lesão pessoal, como única
alternativa possível à negação da negação, a instauração de uma relação de servidão, pela qual a
pessoa que lesou a propriedade alheia tem seu crime nadificado em troca do seu não-
reconhecimento como pessoa e de sua liberdade negativa446. A relação de dominação se instaura,
porque enquanto a pessoa lesada luta por sua integridade, luta em nome da identificação absoluta
entre sua pessoa e a determinidade singular lesada, o criminoso não tem sua integridade em jogo,
ou seja, “roubo é a subsunção singular, que não se dirige à totalidade da personalidade” (SdS
40), e sim apenas a tentativa arbitrária de impor um interesse particular. “Mas justamente
porque o que ataca pôs nisso toda a sua personalidade, então a relação também não pode
terminar com a totalidade da personalidade em uma relação que domina, mas antes somente
ser [isso] por um momento.”(SdS 41) Por isso, a situação tende a se radicalizar em um estágio
em que ambas as partes se vêem lesadas em sua integridade.
446
“E por meio de que ele passa ao pessoal, pessoa se mede por pessoa, e o subjugado se torna o escravo do outro. E este tornar-se escravo é
propriamente o aparecimento disto: qual relação nesta relação de subsunção cabe a cada um dos indivíduos. Sem relação eles não podem estar um
ao lado do outro.”(SdS 40) Muito embora a relação que se instaura aqui seja uma assimétrica, ela é, enquanto resultado do conflito e por isso
mesmo, única forma possível de “integração social” no quadro de uma relação intersubjetiva “natural” danificada por lesão pessoal. Não há,
portanto, no System der Sittlichkeit, a possibilidade de que esta relação possa ser assimilada a uma unidade teórica mais elevada. “Na relação
precedente a inversão é absolutamente nadificante, porque a nadificação é ela mesma absolutamente, por conseguinte, a retroação como contra um
animal ágil, subjugação absoluta ou a morte.” (SdS 41)
185
levada às últimas conseqüências que ele próprio já se dirige à lesão não de uma determinidade
singular, mas sim à integridade do atingido. “Porque a negação somente pode ser uma
determinidade, então esta – que o todo esteja em jogo – tem de ser elevada a um todo. Mas por
meio disso, que ela é pessoal, ela é imediatamente o todo; pois a determinidade pertence à
pessoa, a qual é a indiferença do todo.” (SdS 41) A “necessidade” da exasperação do conflito em
uma lesão da integridade está em que, em última instância, é virtualmente impossível a lesão a
uma determinidade da pessoa sem que sua integridade seja atingida: “uma particularidade da
pessoa [ser] negada é somente / uma abstração, pois na pessoa ela é acolhida absolutamente na
indiferença. O vivo é lesado.”(SdS 41/42) Neste quadro da lesão pessoal, em que a própria vida
é, na forma da integridade da existência de uma pessoa, vituperada, há, segundo Hegel, em vista
da “recondução” socialmente necessária da particularidade à indiferença da pessoa e, por
conseguinte, da transformação da mesma em algo apenas abstrato quando desligada da
indiferenciação “viva”, uma lesão da honra: “porque ... a esta indiferença se contrapõe a
abstração da particularidade lesada, então através da última também aquela é posta idealmente,
e o lesado é a honra.”(SdS 42)
realidade. A honra está sem dúvida lesada, mas a honra não pode ser indiferenciada da vida”(SdS
43) Se, na potência anterior, o ambiente em que se deflagra o crime é a regulamentação jurídica
da propriedade e o reconhecimento recíproco dos proprietários como pessoas, segundo o
momento da indiferença da eticidade negativa, o crime atinge a esfera da honra do singular, na
qual estão intimamente ligadas, para Hegel, a sua existência física e o seu ser-reconhecido como
pessoa. “Ao ser esta última posta em jogo [a vida E.C.L] para devolver à primeira [à honra
E.C.L] sua realidade, a qual enquanto honra lesada é somente ideal, então ocorre a vinculação
(Verknüpfung) da idealidade da honra com sua realidade”(SdS 43) Este vínculo interior entre o
ser-pessoa e a existência concreta do indivíduo torna qualquer investida contra a honra um ataque
ao indivíduo como um todo e não somente ao seu reconhecimento como pessoa. “Mas a uma luta
por “honra” somente se pode manifestamente chegar, porque a possibilidade para uma tal auto-
relação afirmativa é dependente, por sua vez, do reconhecimento confirmador por outros sujeitos.
Um indivíduo somente é capaz de uma completa identificação consigo mesmo, na medida em que
ele encontra, em suas peculiaridades e propriedades, também através de seus parceiros de
interação, assentimento e apoio.”448 Ao compreender como honra esta consciência singular da
pessoa como totalidade dos elementos físicos e sociais da existência individual, Hegel torna, ao
mesmo tempo, inadequada uma restauração da mesma pela via do assassinato, da desforra ou
mesmo da submissão servil, já que, em nenhuma destas possibilidades, a consciência da honra é
plenamente restaurada em seus elementos físicos e sociais. A vinculação da idealidade da honra
com sua realidade se dá “somente através disso: que a determinidade lesada seja elevada à toda
realidade, e a honra consiste em que, se uma vez a determinidade é negada, também a totalidade
das determinidades, ou seja, a vida, deve se dirigir a isso.”(SdS 43)
448
Honneth, Axel – Kampf um Anerkennung. Zur moralischen Grammatik sozialer Konflikte, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1992, 41
449
Que a progressão do delito percebido como lesão à personalidade para a luta por honra representa também uma ultrapassagem daquela base
“jurídica” de compreensão do delito, Hegel deixa claro com suas considerações acerca do ensejo da contenda. Seguindo o caráter não-jurídico da
doutrina hobbesiana do estado de natureza, Hegel entende que, no caso da luta por honra, a própria idéia de justiça é pulverizada em razões
puramente arbitrárias, e a questão acerca da justiça do ensejo perde, ao contrário do que acontece no caso do roubo e do furto, seu sentido.
“Acerca do caráter justo (Gerechtigkeit) do ensejo de uma tal luta não se pode falar. Assim como a luta como tal emerge, a justiça está de ambos
os lados, pois está posta a igualdade do risco, e na verdade do mais livre, porque o todo está em jogo. O ensejo, ou seja, a determinidade que é
posta enquanto acolhida na indiferença e enquanto pessoal, não é pura e simplesmente nada em si e para si, justamente porque ela somente é algo
enquanto pessoal. ”(SdS 42) Um tratamento perspicaz da questão da motivação é apresentada por Honneth, refletindo seu objetivo primordial,
qual seja: identificar, como contrapartida aos atos que causam ruptura em níveis diferenciados de reconhecimento recíproco, formas de
desrespeito. Honneth, Axel – Kampf um Anerkennung. Zur moralischen Grammatik sozialer Konflikte, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1992 Para
Honneth, poder-se-ia vincular os atos de devastação e aniquilação à reação à experiência de “abstração de uma já formada eticidade”(38). Aos
crimes que rompem estruturas intersubjetivas de reconhecimento jurídico, vincular-se-iam motivações ocasionadas pelo caráter abstrato do
187
Este ambiente caracterizado pelo risco de mútua aniquilação, de guerra (SdS 46) e pela
insegurança generalizada do singular diante da possibilidade de ser lesado em sua pessoa, pode
ser compreendido como uma reconstrução450 da doutrina hobbesiana do estado de natureza.
Entretanto, Hegel compreende este estado de insegurança não como um âmbito pré-ético da
existência social, mas como a face negativa de uma existência social e ética pré-estatal, estado de
uma mútua exclusão conduzida ao paroxismo graças à insuficiência integradora daquela esfera de
uma socialização ainda natural. Além disso, não se trata para Hegel de um conflito em nome do
direito ilimitado, mas de um conflito por reconhecimento e honra. Hegel concebe a liberdade
pura, da qual também Hobbes parte, atribuindo a cada singular um “direito ilimitado” como
capacidade potencialmente irrefreável de negar qualquer determinidade e compreende a
positivação da liberdade individual em relações sociais auto-determinadas. Entretanto, para
Hegel, tais relações sociais serão relações estáveis de reconhecimento que rompem com o nexo
exclusivamente limitativo do estado civil. Quanto à conexão entre o Naturrechtaufsatz e o System
der Sittlichkeit no tocante à formação do Einssein a partir do gradual rompimento pelos
singulares de sua exterioridade mútua, em sua retroação sobre as formas pré-estatais de existência
social, o capítulo sobre o crime451 representa justamente o processo pelo qual os indivíduos vão
sendo progressivamente munidos das perspectivas sem as quais o Einssein das vontades
singulares não pode ser formado de maneira imanente a elas, o que é a condição necessária às
premissas não individualistas do conceito hegeliano de eticidade. No System der Sittlichkeit em
particular, tal processo tem, como contrapartida social à expansão e descentramento da
subjetividade, o amadurecimento de relações de reconhecimento recíproco que, ao nível do estofo
intersubjetivo primário, não são capazes de abrigar plenamente as possibilidades desencadeadas
pela liberdade negativa dos indivíduos. Com efeito, correspondente à passagem da pessoa
jurídica à pessoa em sua totalidade está a intensificação da colaboração social e a consciência da
própria dependência que tem um sujeito dos outros em aspectos imprescindíveis de sua plena
individualização. “... nos sujeitos, no mesmo itinerário pelo qual eles chegam a uma maior
autonomia, deve crescer, ao mesmo tempo, um saber acerca de sua dependência recíproca.”452
reconhecimento jurídico(38). De uma maneira menos passível de fundamentação, Honneth atribui ao crime que se dirige contra a integridade de
uma pessoa, o caráter de uma reação à “experiência prévia de não ter sido reconhecido como uma pessoa individualizada.”(40)
450
Para o embasamento desta formulação: Schnädelbach, Herbert – Hegels praktische Philosophie: Ein Kommentar der Texte in der Reihenfolge
ihrer Entstehung, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 2000, 98 Honneth, Axel – Kampf um Anerkennung. Zur moralischen Grammatik sozialer
Konflikte, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1992 Apesar de Hegel somente introduzir, no System der Sittlichkeit, o conceito de luta no segundo
momento do desdobramento da atitude criminosa, Honneth acredita que o texto esteja amplamente influenciado por este conceito, o que se deixa
perceber sobretudo na difícil aglutinação que, segundo ele, é feita por Hegel da filosofia política de Aristóteles, da teoria do reconhecimento de
Fichte e a doutrina do direito natural de Hobbes.
451
Honneth, Axel – Kampf um Anerkennung. Zur moralischen Grammatik sozialer Konflikte, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1992, 42
452
Honneth, Axel – Kampf um Anerkennung. Zur moralischen Grammatik sozialer Konflikte, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1992, 43
188
A exasperação do conflito jurídico numa luta por honra torna claro que, segundo a
articulação entre a intersubjetividade excludente e a participativa453, somente a demonstração da
incompletude de formas estritamente jurídicas de existência social pode engendrar o teor
intersubjetivo sobre o qual uma comunidade ética pode se formar. Não é por acaso, portanto, que
Hegel sublinha que somente a constituição intersubjetiva454 do ser-um do indivíduo e da
totalidade é capaz de preencher a condição de uma constituição do todo imanente às partes, o que
justamente diferencia a compreensão hegeliana de comunidade de seu equivalente
contratualista455.
“Ao ser o povo a indiferença viva e ao ser toda a diferença natural nadificada, o indivíduo intui-se em cada um como
a si mesmo. Ele alcança a suprema sujeito-objetividade. E esta identidade de todos é justamente por meio disso não
uma igualdade abstrata, uma [igualdade] da cidadania, mas uma [igualdade] absoluta, e uma [igualdade] intuída na
consciência empírica, uma [igualdade] que se apresenta na consciência da particularidade. O universal, o espírito, é,
em cada um e para cada um ele mesmo, na medida em que ele é singular. Ao mesmo tempo, este intuir e ser-um são
imediatos, o intuir não é nada além do que o pensamento” (SdS 49)
Intuição dos indivíduos uns nos outros constitui o povo como indiferença viva, ao passo
que a intuição do mesmo na consciência empírica responde pela imanência desta constituição. Os
fenômenos da auto-exclusão do singular demonstram gradual e universalmente a dependência da
plena individualização em relação ao todo social e, portanto, à socialização que forma a
comunidade: eles estabelecem, na forma de uma progressiva ruptura e intensificação de relações
intersubjetivas, o unívoco paralelismo entre individualização e socialização. A possibilidade da
absoluta negação da eticidade natural torna as potências da eticidade natural incapazes de garantir
a efetivação da eticidade nos costumes de um povo. “A natureza absoluta não está, em nenhuma
delas, numa figura espiritual (Geistesgestalt): nem a família, nem muito menos as potências
subordinadas, ainda muito menos o negativo, são éticos.”(SdS 47) Por isso, a realização da
unidade absoluta da inteligência implica a recondução dos contrapostos à unidade. “A eticidade
tem de ser, com a completa nadificação da particularidade e da identidade relativa, do que
unicamente a relação natural (Naturverhältnis) é capaz, identidade absoluta da
inteligência.”(SdS 47) Assim, Hegel oferece, inicialmente, uma visão retrospectiva da exposição
total da obra sublinhando que, em nenhum dos elementos anteriores, quer seja na unidade relativa
do reconhecimento da liberdade negativa da pessoa, quer seja na unidade indiferente da família,
453
Há, de fato, como identifica Honneth, uma peculiaridade no System der Sittlichkeit com respeito à concatenação dos estágios de
reconhecimento e dos processos correspondentes de luta. Em nítida diferença aos esboços posteriores em Jena, o processo de luta não se configura
como estágio intermediário entre as formas de reconhecimento, mas, ao contrário, diferentes tipos de luta, associados a estes estágios, são
inseridos em um único capítulo. Honneth atribui esta peculiaridade em parte à utilização do método de subsunção, em parte à intenção de Hegel de
fazer valer seu Ansatz contra a teoria hobbesiana do estado de natureza, visivelmente acionada no capítulo intermediário. Honneth, Axel – Kampf
um Anerkennung. Zur moralischen Grammatik sozialer Konflikte, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1992, 35,36 Segundo nossa interpretação, esta
peculiaridade pode ser reconduzida a uma necessidade sócio-teórica premente para Hegel, a qual, entretanto, ele expõe de uma maneira
aparentemente ocasional na obra de 1802: a compreensão do arcabouço intersubjetivo da existência social dos indivíduos como uma articulação
entre uma forma inclusiva e uma excludente de relação intersubjetiva. É neste panorama geral que uma sucessão diferenciada de conflitos, que ora
negam um, oram negam outro aspecto deste feixe de relações primárias, que o procedimento hegeliano pode revelar seu alcance.
454
Para Honneth, Hegel procura salientar, com a fórmula da intuição de si mesmo no outro, pela qual explicita a relação intersubjetiva própria do
âmbito da eticidade no System der Sittlichkeit, a qual é repetida, anos mais tarde, na Fenomenologia, “uma forma da relação recíproca entre os
sujeitos que é superior à forma meramente cognitiva”, a qual caracteriza para ele o reconhecimento jurídico. Peculiar a esta forma de relação
intersubjetiva é o fato de que beira o elemento afetivo, graças ao que Honneth lança mão do conceito de solidariedade para caracterizá-la. Desta
maneira, Honneth acaba abordando a relação entre os tipos de relação intersubjetiva, algo extremamente presente nas considerações de Hegel
desde Frankfurt, mas que, na análise de Honneth, obtém apenas uma importância episódica. Para Honneth, os elementos solidários contidos na
intuição de si no outro “devem fornecer manifestamente a base comunicativa sobre a qual os indivíduos isolados uns dos outros pela relação de
direito podem, mais uma vez, se encontrar no quadro mais abrangente de uma comunidade ética.” Honneth, Axel – Kampf um Anerkennung. Zur
moralischen Grammatik sozialer Konflikte, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1992, 44
455
Hegel desenvolve esta relação na forma de uma contraposição entre a comunidade enquanto totalidade dialética e a sociedade enquanto
“agregado” concebido na base de um atomismo social. “Há que se conhecer a identidade desta intuição e da idéia. No povo está posta
formalmente em geral, a saber, a relação de uma porção de indivíduos, não uma porção carente-de-relação (eine beziehungslose Menge), nem
uma simples maioria. Aquele não, uma porção não põe em geral uma relação que está na eticidade, a subsunção de todos sob um universal, o
qual teria para a consciência dela realidade, que seria um com eles, e que tivesse poder e violência sobre eles; mas antes a porção é singularidade
absoluta, e o conceito da porção, ao serem eles um, é a abstração deles que lhes é estranha, exterior a eles ”(SdS 49)
189
se encontra ainda a natureza absoluta numa forma espiritual, o que significa que as “figuras”
desenvolvidas até este ponto não são ainda genuinamente éticas456. Digno de nota é que Hegel
tem inicialmente diante dos olhos uma constituição intersubjetiva da eticidade, o que ele deixa
transparecer na contraposição à relação intersubjetiva na família: “A intuição está ao mesmo
tempo em relação, o intuir-se real e objetivamente do indivíduo no outro está preso a uma
diferença. O intuir na mulher, na criança e no escravo não é nenhuma igualdade absoluta acabada
(vollkommen). Ela permanece uma [igualdade] interior, não engendrada para fora (nicht
herausgeborene), impronunciada. Há uma insuperabilidade (Unüberwindlichkeit) do conceituar
da natureza dentro dela.”(SdS 47) Ainda que implicitamente, é em vista da exigência
intersubjetiva de uma “intuição indiferente” do indivíduo no outro que Hegel define o escopo
sistemático de uma “unidade da inteligência” capaz de indiferenciar a “unidade da natureza”
atingida na família.
“a identidade absoluta da natureza tem de ser acolhida na unidade do conceito absoluto e de estar presente na
forma desta unidade: uma essência clara e ao mesmo tempo absolutamente rica, ser-objetivo plenamente
acabado e intuir do indivíduo em um estranho, portanto, a suspensão da determinidade e configuração naturais,
completa indiferença da fruição de si.”(SdS 47)
456
Hegel comenta, na introdução à eticidade, esta insuficiência do ponto de vista da particularidade, considerada de ambos os lados, tanto da
particularidade como tal, como da universalidade abstrata. “Nas potências precedentes, há a totalidade da particularidade segundo os dois lados da
mesma, da particularidade como tal, e da universalidade enquanto unidade abstrata. Aquela é a família, mas ela é uma tal totalidade na qual, na
verdade, todas as potências naturais (Naturpotenzen) estão unificadas.”(SdS 47) “Na universalidade, entretanto, a liberdade da relação (Freiheit
vom Verhältnis), o aniquilar de um dos lados da mesma através do outro, é o mais elevado, e ela somente é racional enquanto conceito absoluto,
na medida em que se dirige à negatividade.”(SdS 47)
457
Kimmerle vê aqui a incongruência de que o System der Sittlichkeit deveria ter sido elaborado desde o início como o desdobramento deste
princípio de possibilidade da liberdade pura do indivíduo, e não ter tomado como ponto de partida princípios de conhecimento como intuição e
conceito absoluto. Kimmerle, Heinz – Das Problem der Abgeschlossenheit des Denkens. Hegels „System der Philosophie“ in den Jahren 1800-
1804, Bonn(Beiheft 8 der HST), 239. Neste sentido, a percepção deste elemento imanente à temática da eticidade poderia ser interpretado como
motivador recôndito para um afastamento em relação ao arcabouço metodológico tomado de Schelling em direção ao realinhamento com o
bewusstseintheoretischer Ansatz de Fichte, o qual foi notado sobretudo por Riedel e Wildt. ver Wildt, Andreas – Autonomie und Anerkennung.
Hegels Moralitätskritik im Lichte seiner Fichte-Rezeption, Stuttgart, 1983, 325 e seg. Riedel, Manfred – „Hegels Kritik des Naturrechts“ in:
Studien zu Hegels Rechtsphilosophie, Frankfurt am Main, 1969, 42-74
458
Kimmerle, Heinz – Das Problem der Abgeschlossenheit des Denkens. Hegels „System der Philosophie“ in den Jahren 1800-1804,
Bonn(Beiheft 8 der HST), 237
190
relativa própria à relação natural se torna insuficiente459. É neste sentido que Hegel compreende a
eticidade genuína e absoluta como identidade absolutamente indiferente de intuição intelectual e
intuição empírica, da essência universal e do indivíduo, do fazer universal e do fazer individual.
“Na eticidade o indivíduo é, portanto, de uma maneira eterna. Seu ser e fazer empíricos são um
pura e simplesmente universal; pois não é o individual que age, mas antes o espírito absoluto e
universal nele.”(SdS 48) Trata-se, portanto, do resgate do enunciado seminal do System der
Sittlichkeit, segundo o qual o povo é a intuição desta idéia de eticidade cujo conceito é uma
multiplicidade de indivíduos. “A intuição desta idéia da eticidade, ... a forma na qual ela aparece
a partir do lado de sua particularidade, é o povo.”(SdS 50), uma intuição que é absoluta, “porque
ela é pura e simplesmente objetiva, todo ser-singular e sensação está nela exterminado e ela [é]
intuição, porque ela está na consciência. O conteúdo dela [da intuição E.C.L] é absoluto, porque
ele é o eterno e está livre de todo subjetivo.”(SdS 50) O descentramento das perspectivas
particulares, o aplainamento das unilateralidades vinculadas à ênfase particularista das outras
potências e, enfim, o direcionamento ético da subjetividade, que caracterizam, em toda filosofia
hegeliana, as perspectivas da eticidade efetiva e da autoconsciência universal, são associados, no
System der Sittlichkeit, com o círculo traçado desde a enunciação de sua pressuposição
fundamental; pois, diz Hegel, “toda a relação à carência e aniquilar é suspensa, e o prático, que
começa com o aniquilar do objeto, passou para seu contrário, para a aniquilação do subjetivo, de
tal maneira que o objetivo é a identidade absoluta de ambos.”(SdS 50)
Vimos acima que, ainda que implicitamente, Hegel investiga, em Frankfurt e no início do
período de Jena, a conexão entre eticidade e intersubjetividade. No System der Sittlichkeit,
através de um resgate não simplesmente programático, como no Naturrechtaufsatz, da tese
aristotélica da “anterioridade da pólis”, Hegel estabelece, em sua teoria do desenvolvimento da
eticidade, a conexão entre a liberdade individual, radicalizada pela filosofia transcendental, e a
formulação de um quadro institucional comunitário460 no qual aquela liberdade pode encontrar
sua efetivação adequada. Entretanto, é somente na segunda metade do período de Jena que Hegel
se torna plenamente capaz de implementar este projeto, o qual, a partir de 1805/06, estabelece a
feição madura de sua filosofia política. Ainda no System der Sittlichkeit, foi a reformulação
inspirada em Fichte do ponto de partida aristotélico, bem como a “dinamização hobbesiana” da
teoria fichteana do reconhecimento461, movimentos vinculados à reconstituição do conceito
459
Schnädelbach sublinha a modificação que se instaura na atitude de Hegel com respeito a esta insuficiência das formas societárias prévias e que
ainda se localizam ao nível de uma identidade relativa. A partir dos Jenaer Systementwürfe Hegel passa a reconsiderar a classificação dos estágios
da eticidade negativa e relativa como estritamente não-éticos por não satisfazerem o critério da absoluta indiferença. Com isso, passa
paulatinamente a compreendê-los como integrados à eticidade absoluta na qualidade de momentos aos quais cabe um “Recht”, tal como esta
expressão é amplamente utilizada nas Grundlinien. Schnädelbach, Herbert – Hegels praktische Philosophie: Ein Kommentar der Texte in der
Reihenfolge ihrer Entstehung, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 2000, p.98/99 De acordo com Schnädelbach, tais modificações são acompanhadas
também pela substituição do conceito de povo pelo de estado, o qual passa a abranger, enquanto unidade individual do ético, todos os momentos
da eticidade natural, relativa e negativa. Associada a esta importante modificação está também a inserção do estado na esfera do espírito objetivo e
a correspondente separação entre espírito absoluto e objetivo, o que, embora tenha importantes conseqüências para o esvaziamento das
potencialidades da concepção hegeliana de intersubjetividade em nome da concepção da monarquia constitucional assimilada, ao movimento de
efetivação da singularidade conceitual da idéia liberdade na “personalidade do estado”, desobriga o estado de ser a manifestação imediata do
absoluto.
460
Siep compreende esta tarefa sobretudo como uma dupla necessidade: primeiramente, a necessidade de superar a destruição kantiana da filosofia
prática clássica; em segundo lugar, o desafio de ultrapassar o abismo entre a ética e a crítica da sociedade por meio de uma teoria das instituições.
Para Siep, é a esta dupla necessidade que se dirige o vínculo entre reconhecimento e teoria da consciência. Siep, Ludwig – Anerkennung als
Prinzip der praktischen Philosophie, Freiburg/München, 1976
461
Honneth, Axel – Kampf um Anerkennung. Zur moralischen Grammatik sozialer Konflikte, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1992 Honneth
entende que o insight hegeliano que permite afugentar o atomismo do direito natural moderno é a eticidade natural enquanto fundamento natural
da socialização humana, o qual, compreendido teleologicamente segundo o conceito aristotélico de natureza, representa o germe da idéia de
comunidade a ser plenamente desenvolvido na eticidade política (26). Hegel interpõe, então, entre ambos os estágios “a reconfiguração e a
ampliação das formas iniciais da comunidade social na direção de relações mais abrangentes de interação social.”(27) Os fenômenos do crime são
investidos da função de anular, através de recorrentes negações de relações intersubjetivas primárias, “unilateralidades e particularizações” que
191
ainda permeiam determinados níveis de coexistência social. Com efeito, Hegel forneceria, para Honneth, com sua teoria da eticidade natural, a
compreensão do teor normativo do fundamento natural da coexistência, de maneira que deste núcleo surgiria, através da concepção da
“diferenciação” imposta pela atitude excludente do crime, uma progressiva intensificação dos “laços comunitários” e, ao mesmo tempo, da
autonomia e da identidade individuais. Assim, Honneth compreende que um tal Ansatz somente é possível através de uma reformulação tanto do
modelo fichteano do reconhecimento, quanto do conceito hobbesiano de luta. Hegel lança mão do modelo fichteano justamente para constituir o
teor das relações societárias ou intersubjetivas primárias, isto é, para traduzir intersubjetivamente aquele estofo societário enunciado
aristotelicamente. Já o recurso ao direito natural hobbesiano e à sua concepção conflituosa serve justamente à dinamização do modelo
intersubjetivo de Fichte, com vistas à introdução do momento negativo que visa à ampliação do quadro societário pré-estatal: trata-se de uma re-
interpretação do conceito hobbesiano de luta justamente porque a mesma não deve mais ter o caráter de um conflito em nome da auto-conservação
da integridade física, mas a feição ética de um processo na direção de uma socialização individualizante.
462
Já em Frankfurt, Hegel percebera que somente no “quadro sócio-institucional” – nesta época, uma religião do povo intersubjetivamente
constituída através do amor –, a individualidade modernamente engendrada encontraria condições de efetivação. Entretanto, com o conceito de
amor enquanto Vereinigung, compreendido em sua dimensão horizontal e vertical, Hegel chega à intuição de que a liberdade do indivíduo se
localiza no âmbito da unificação, a qual unicamente pode tornar positivo aquilo que de outra maneira somente poderia se deixar sentir como
limitação. Siep, Ludwig (Hg.) –„Der Freiheitsbegriff der praktischen Philosophie Hegels in Jena“, in: Siep, Ludwig–Praktische Philosophie im
deutschen Idealismus, Frankfurt am Main, 1992, 158-181
463
Siep, Ludwig – Anerkennung als Prinzip der praktischen Philosophie, Freiburg/München, 1976, 146 e seg.
464
Siep, Ludwig – Anerkennung als Prinzip der praktischen Philosophie, Freiburg/München, 1976, 154
192
465
Contestamos a tese de Siep de que Hegel ainda não foi capaz de compreender a suspensão da eticidade relativa e da liberdade pura “enquanto
um desenvolvimento necessário cujo princípio seja ele mesmo visível na eticidade relativa.” Siep, Ludwig – Anerkennung als Prinzip der
praktischen Philosophie, Freiburg/München, 1976, 163. Não se trata somente de visibilidade, já que, partindo da concepção da intuição da
eticidade como povo, Hegel parece antes direcionar sua compreensão do ponto de partida da exposição, o indivíduo contraposto ao mundo como
ambiente de satisfação de suas carências, a fim de obter a intuição pressuposta. O problema é antes que, se o programa hegeliano é de mediação,
não parece claro então que um conceito teleológico de natureza possa ser plenamente reconduzido ao conceito kantiano-fichteano de liberdade da
consciência.
466
“O absoluto deve ser construído para a consciência, isto é a tarefa da filosofia.”(TWA 2, 24) A execução da tarefa da filosofia, compreendida
ainda em termos de uma síntese especulativa entre intuição e reflexão, pode ser vinculada à separação entre consciência pura e empírica. “A
reflexão filosófica é condicionada, ou a intuição transcendental vem à consciência pela livre abstração de toda multiplicidade da consciência
empírica; e, nesta medida, ela é um subjetivo. Se a reflexão filosófica se torna, nesta medida, ela mesma objeto, então ela torna um condicionado
princípio de sua filosofia. Para apreender a intuição transcendental de maneira pura, ela tem ainda de abstrair deste subjetivo, [fazer com] que ela
não seja para a mesma, enquanto fundamentação da filosofia, nem subjetiva nem objetiva, nem autoconsciência contraposta à matéria, nem
matéria contraposta à autoconsciência, mas identidade absoluta, nem subjetiva, nem objetiva: pura intuição transcendental. Enquanto objeto da
reflexão ela se torna sujeito e objeto. Estes produtos da pura reflexão a reflexão filosófica põe, em sua permanente contraposição, (a)dentro do
absoluto. A contraposição da reflexão especulativa não é mais um objeto e um sujeito, mas antes uma intuição transcendental subjetiva e uma
intuição transcendental objetiva, aquela eu, esta natureza. Que estes dois contrapostos – eles se denominam agora eu e natureza, autoconsciência
pura e empírica, conhecer e ser, pôr-se-a-si-mesmo e contrapor, finitude e infinitude – sejam postos, ao mesmo tempo, no absoluto, nesta
antinomia a reflexão comum não enxerga nada além da contradição, apenas a razão [enxerga] nesta absoluta contradição a verdade, através da
qual ambos são postos e ambos são nadificados, nenhum dos dois é e, ao mesmo tempo, ambos são.” (TWA 2, 115)
193
501), munido com o poder de produzir oposições, de ser uma diferenciação de si na simples auto-
referência, dispersão na multiplicidade e recolhimento da mesma na unidade. Já no System der
Sittlichkeit, também a inteligência concebida desta forma desempenha um papel imprescindível,
pois a eticidade absoluta aparece primeiro como natureza, isto é, dispersão na multiplicidade dos
indivíduos independentes e de suas ações, a qual é suspensa pela negatividade da inteligência.
“Os olhos do espírito e os olhos do corpo coincidem perfeitamente.”(SdS 48) É somente através
de uma auto-suspensão da individualidade que surge a eticidade absoluta em sua expressão
imediata e na forma espiritual dos costumes e instituições de um povo. “O conceito absoluto em
sua completa indeterminidade, a inquietação da infinitude do conceito absoluto, que nada
mais é o do que isto, e no seu nadificar dos contrapostos um pelo outro, nadifica a si mesmo,
o ser-real da subjetividade absoluta.” (SdS 38) Do ponto de vista da evolução da concepção
hegeliana do movimento da eticidade e do projeto de mediação entre filosofia política antiga e
filosofia transcendental, a insuficiência do System der Sittlichkeit está sobretudo em que Hegel
somente possui o método da subsunção recíproca e da adequação entre conceito e intuição,
implementação do princípio metodológico de unificação entre reflexão e intuição defendido na
Differenzschrift, para fazer a mediação entre a consciência da absoluta eticidade, isto é, entre o
espírito de um povo e a consciência da singularidade, que é como aparece, primeiramente, a
inteligência. A comprovação textual desta ancoragem metodológica da unidade ética reside na
apresentação do principal nexo teórico do System der Sittlichkeit, a suspensão da singularidade na
eticidade absoluta, na terminologia de uma teoria da consciência estruturada pela inteligência
enquanto conceito absoluto468.
468
“A eticidade é ... determinada, que o indivíduo vivo enquanto vida seja igual ao conceito absoluto, que sua consciência empírica seja um com a
[consciência] absoluta, e a consciência absoluta [seja] ela mesma consciência empírica, uma intuição indiferenciável de si mesma; porém, de tal
maneira que esta diferenciação seja completamente algo superficial e ideal, e o ser-sujeito seja na realidade, e na diferenciação nada seja. Este
completo ser-igual é somente possível pela inteligência, ou conceito absoluto, segundo o qual o ser vivo, enquanto contrário de si mesmo, é como
objeto. Este objeto é ele mesmo vivacidade absoluta e absoluta identidade do uno e do múltiplo, não como toda outra intuição empírica posta sob a
relação, a qual, servindo à necessidade e enquanto limitado, está posta [como] tendo exterior a si a infinitude.”(SdS 48)
469
“A perspectiva que a filosofia tem do mundo e da necessidade, segundo a qual todas as coisas estão em Deus e não há nenhuma singularidade,
está perfeitamente realizada para a consciência empírica, ao ter cada singularidade do agir ou pensar ou ser, sua essência e seu significado apenas
e tão-somente no todo, e nesta medida o fundamento dela [é] pensado, somente isto é pensado, e o indivíduo não sabe de nenhum outro”(SdS 48)
“esta universalidade, a qual unificou a particularidade pura e simplesmente consigo, é a divindade do povo, e este universal, intuído na
forma ideal da particularidade, é o Deus do povo: ele é uma maneira ideal de intuí-lo.”(SdS 49)
195
consciência inicial, na medida em que não mostra a relação essencial entre a consciência
individual e a consciência ética enquanto auto-conhecimento da essência: a subsunção se revela
como um meio exterior de indiferenciar termos contrapostos que são, por definição, a
possibilidade de serem repartidos numa consciência. “Hegel não é capaz, no Sistema da
Eticidade, de apresentar a passagem das formas da eticidade “natural” e “negativa” para a
verdadeira eticidade enquanto um progresso necessário que esteja fundado na “natureza” da
própria eticidade relativa, e isto significa: no seu elemento e sustentáculo (Träger), a consciência
singular. A “consciência empírica” permanece presa nos limites da “relação” e de sua negação
incompleta e unilateral.”470 Portanto, a insuficiência não pode ser diretamente resolvida apenas
apelando à essência auto-referente e auto-diferenciadora do conceito absoluto, pois isto
significaria apenas uma pressuposição da unidade entre a consciência empírica e a consciência
absoluta, e não sua comprovação direta para a consciência individual: é preciso que o processo
pelo qual a eticidade substancial se origina e os elementos socializantes envolvidos neste
processo gradativo sejam apresentados na forma de um progredir imanente à própria consciência.
Viu-se acima que Hegel já tem em mãos, em 1802, o princípio fundamental a ser
operacionalizado na teoria da consciência: a inteligência, cuja essência é, enquanto conceito
absoluto, poder passar ao contrário imediato de si. Justamente a pormenorização, para a própria
consciência individual, do processo pelo qual ela passa da singularidade à universalidade, isto é,
vê sua singularidade sendo gradativamente suspensa até desembocar na união comunitária com
outras consciências singulares, é a intuição fundamental do vínculo que Hegel pretende
estabelecer entre teoria do reconhecimento e teoria da consciência471. É verdade que os elementos
470
Siep, Ludwig – Anerkennung als Prinzip der praktischen Philosophie, Freiburg/München, 1976, 181
471
Siep, Ludwig – Anerkennung als Prinzip der praktischen Philosophie, Freiburg/München, 1976, 180
196
472
Schnädelbach, Herbert – Hegels praktische Philosophie: Ein Kommentar der Texte in der Reihenfolge ihrer Entstehung, Suhrkamp, Frankfurt
am Main, 2000, 139. Schnädelbach pretende impor ressalvas àquela tese de Wildt segundo a qual a anteposição de uma teoria da consciência ao
desenvolvimento da eticidade representa uma gradativa reaproximação em relação a Fichte no período intermediário de Jena. Wildt, Andreas –
Autonomie und Anerkennung. Hegels Moralitätskritik im Lichte seiner Fichte-Rezeption, Stuttgart, 1983. Para Schnädelbach, Hegel adere muito
cedo ao programa do desenvolvimento do conceito de eticidade capaz de oferecer a mediação entre o princípio moderno da liberdade subjetiva e a
eticidade substancial da pólis antiga. Segundo Schnädelbach, Hegel compreende que a eticidade somente possa ser conceitualmente restabelecida
em um viés investigativo que rompa com o caráter absoluto da posição do sujeito transcendental. Seria justamente esta constituição prévia do
conceito hegeliano de eticidade que teria inviabilizado sua tematização no horizonte definido pelo Sistema do Idealismo Transcendental de
Schelling e sua redução do escopo da filosofia prática à orientação fichteana pelo transcendental. Por outro lado, ao deslocar o problema do
desenvolvimento da eticidade absoluta para o âmbito da filosofia da natureza, sendo levado a recorrer à pressuposição da totalidade ética do povo
como uma espécie de fato natural elementar, cuja justificação caberia então à filosofia da natureza, Hegel é conduzido, dada a incongruência deste
movimento em relação ao programa transcendental da filosofia da identidade, à teoria da consciência como fundamentação para a filosofia prática,
formulando seu conceito de espírito e se afastando de Schelling.
473
Kimmerle, Heinz – Das Problem der Abgeschlossenheit des Denkens. Hegels „System der Philosophie“ in den Jahren 1800-1804,
Bonn(Beiheft 8 der HST), 247
474
“No espírito, o éter absolutamente simples retornou a si mesmo através da infinitude da terra. Na terra em geral, este ser-um (Einssein) da
absoluta simplicidade do éter e da infinitude existe difundido (verbreitet) numa fluidez universal, contudo, em seu difundir, fixando-se como
singularidades; e o um numérico da singularidade, a qual para o animal é a determinidade essencial, torna-se ele mesmo um ideal, torna-se um
momento.”(JSE I, 183)
197
A diferenciação categórica entre espírito e natureza pode apenas em parte ser entendida
como reabilitação da postura filosófico-transcendental475, uma vez que a gênese do espírito se dá
aqui imanentemente a partir de nexos pertencentes à filosofia da natureza. Se, por um lado, a
filosofia da natureza tem com isso seu término, e se, nestes termos, uma tal diferenciação
rigorosa seria o ponto de acordo entre Hegel e a tradição transcendental; por outro lado, a
filosofia do espírito não recorre simplesmente, como seu ponto de partida, a uma autoconsciência
pura, mas antes à própria forma imediata do espírito: uma consciência efetiva, individual e que se
constitui no âmbito formado pelas relações naturais suspensas pelo retorno a si do espírito a partir
da exteriorização. Que o espírito seja qualitativamente diferente da natureza, eis o ponto comum
de Hegel com Kant e Fichte; mas que, todavia, o ponto de partida para o desenvolvimento do
espírito pressuponha o ambiente de conexões naturais suspensas no conceito de uma consciência
efetiva, eis sua ruptura com os mesmos. É na concepção da consciência como simultaneamente
universal e individual que reside o cerne da tentativa de suspender a cisão fichteana entre
consciência pura e consciência empírica.
475
Para Kimmerle, o momento da introdução do conceito de consciência na filosofia do espírito representa o ponto de inflexão no
desenvolvimento da filosofia hegeliana, uma reabilitação do princípio da filosofia transcendental como conceito central da filosofia, com a
ressalva de que a unidade de sujeito e objeto é tematizada na dimensão do espírito aparecente. Kimmerle, Heinz – Das Problem der
Abgeschlossenheit des Denkens. Hegels „System der Philosophie“ in den Jahren 1800-1804, Bonn(Beiheft 8 der HST), 260 Para uma
relativização desta tese, ver: Schnädelbach, Herbert – Hegels praktische Philosophie: Ein Kommentar der Texte in der Reihenfolge ihrer
Entstehung, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 2000, 139
476
Kimmerle, Heinz – Das Problem der Abgeschlossenheit des Denkens. Hegels „System der Philosophie“ in den Jahren 1800-1804,
Bonn(Beiheft 8 der HST), 256
198
Para Hegel, ainda que sua essência seja “igualmente o ser-suspenso de ambos”(JSE I,
189), a consciência aparece, imediatamente, como um de seus lados, “o qual é ele mesmo
determinado como o ativo (als Tätiges) e, por isso, como o que suspende (als Aufhebendes)” (JSE
I, 189); e, neste sentido, como algo que não “põe a si mesmo somente como consciência, não
como aquilo de que se é consciente, e é, portanto, consciência somente singular, formal, negativa,
e não absoluta. Pois aquilo de que é consciente ela não põe como igual a si.” (JSE I, 189) Na
medida em que a consciência se põe somente como o primeiro lado, a forma do consciente, é
determinada pelo exterior, sendo por isso empírica.
“Esta / consciência empírica tem, entretanto, de ser consciência absoluta, ou imediatamente o outro que não o que ela
é, tem de ter em si mesma seu ser-outro (sein Anderssein), sua igualdade positiva com a consciência. Ela é
consciência absoluta, ao ser este outro que ela mesma não é, sua própria consciência perfeita, sem qualquer ser-para-
si-mesma, sem qualquer verdadeira diversidade, diversa dele somente pela forma sem conteúdo do ser-outro, de
maneira que ela, na medida em que é tão sem-conteúdo quanto forma, é universalmente nela mesma também ideal.”
(JPG I, 189/190)
477
Wildt, Andreas – Autonomie und Anerkennung. Hegels Moralitätskritik im Lichte seiner Fichte-Rezeption, Stuttgart, 1983, p.330
199
contrapõe a si como um outro” (JSE I, 189), de maneira que traz inscrita em sua essência o motor
de seu movimento e “tem de deixar entrar no lugar do outro um outro que lhe é desigual; ela
suprime este outro desigual, mas chega por meio disso somente a uma infinitude empírica e
exterior, a qual tem seu outro sempre exterior a si.” (JSE I, 189) Télos e desdobramento do
espírito se estabelecem: trata-se do rompimento absoluto da contraposição, do “para si” da
infinitude exterior em direção à posição de si neste ser-outro. Por conseguinte, o
desenvolvimento da consciência em direção à sua plenificação como espírito passa por estágios
de auto-reflexão que se constituem cada um, primeiramente, pela posição de uma separação pela
e na consciência como atividade; em segundo lugar, a consciência suspende, pela apreensão de si
mesma como contradição, a identidade de si mesma; e atinge, em terceiro lugar, através de uma
reflexão de si mesma em si mesma, um estágio superior na progressão.
478
Schnädelbach, Herbert – Hegels praktische Philosophie: Ein Kommentar der Texte in der Reihenfolge ihrer Entstehung, Suhrkamp, Frankfurt
am Main, 2000, 119 Pode-se dizer que Hegel passa a distinguir claramente entre o (auto-)conhecimento da auto-configuração espiritual da
comunidade ética como uma esfera separada em relação às faculdades abstratas ou individuais do espírito, as quais constituem sua relação a si
mesmo. “Conhecendo a organização do espírito, então nós conhecemos a consciência não como o simplesmente interior dos indivíduos, ou como
200
Neste sentido, o movimento que define a filosofia do espírito – e, com ela, também a
filosofia prática – no Systementwurf 1803/04 é o movimento pelo qual a consciência vai
paulatinamente apreendendo aquilo de que é consciente como sendo ela mesma, tornando-se, ao
término do movimento, realidade absoluta da consciência, o contrário do que ela imediatamente
é. “Este é o fim, a realidade absoluta da consciência, à qual nós temos de elevar seu conceito. É a
totalidade que ela tem enquanto espírito de um povo, o qual é absolutamente a consciência de
todos, que eles intuem (anschauen) e que contrapõem a si enquanto consciência, mas do mesmo
modo conhecem imediatamente sua contraposição, sua singularidade como individualidade nele
suspensa, ou sua consciência como um absolutamente universal.”(JPG I, 190) O desenvolvimento
do espírito desde a sua célula – a consciência não como a “autoconsciência pura” de Fichte, mas
como unidade imediata da universalidade e singularidade –, coincide com o movimento de auto-
suspensão da singularidade, um processo cuja característica propriamente filosófico-social, o
descentramento da perspectiva individualista da singularidade excludente, será amplamente
realçada pela teoria do reconhecimento. Somente no povo, ao ser suspensa como singular, a
atividade consciente adquire existência duradoura, tornando-se universalidade de uma obra
comum. “como lá [em seu contrário E.C.L] o conceito absoluto da consciência existe como
singularidade absoluta, [ele tem] aqui de existir como conceito determinado, ou como em si
essencialmente um diversificado (ein Vielfaches), exterior, e condensar-se, a partir de ambos,
passando à absoluta totalidade, de tal forma que, igualmente, um grande indivíduo universal
exista enquanto espírito de um povo, o qual [é] absolutamente enquanto um Sendo nos indivíduos
(das absolut als ein in den Individuen Seiendes), – os quais são suas singularidades, / seus órgãos;
também, como, justamente nisso, contraposto a eles.” (JSE I, 187/188) Na medida em que a
essência da consciência é a unidade dialética de si mesma e de seu outro, isto é, de sua atividade e
de sua passividade, a consciência que é espírito absoluto, espírito de um povo, põe sua atividade
na mesma medida em que a põe suspensa como passividade. A unidade dos dois elementos da
consciência é a unidade de sujeito e objeto da qual a filosofia do espírito parte enquanto não
desdobrada, e para a qual ela retorna, mas agora na forma de um “espírito ético” enquanto auto-
conhecimento do espírito, uma apresentação real da idéia na unidade absoluta de universal e
particular.
os momentos da oposição (die Momente des Gegensatzes) aparecem nos indivíduos como tais, como múltiplas faculdades, inclinações e paixões
etc..., que se referem a objetos particulares enquanto conceitos determinados; e sim, ao conhecer a consciência em geral, segundo seu conceito,
enquanto absoluto Uno da singularidade e do conceito determinado, então nós conhecemos justamente seus momentos organizantes (seine
organisierenden Momente), tal como eles, enquanto momentos da consciência absoluta, são para si, não como algo que estivesse simplesmente na
forma do indivíduo, de um dos lados da consciência absoluta – enquanto paixão, impulso, inclinação –; mas como ela é absolutamente para si, e
se organiza para si mesma – e dessa forma, a propósito, está nos indivíduos, mas imediatamente como seu outro lado, aquilo a que eles, enquanto
indivíduos, se contrapõem. No entanto, a consciência é a essência (Wesen) de ambos.”(JSE I, 188)
201
aparece, portanto, como um meio (als eine Mitte) entre eles, como a obra de ambos, como o terceiro, ao que eles se
referem (worauf sie sich beziehen), no qual eles são um, mas como aquilo em que, do mesmo modo, ambos se
diferenciam.” (JSE I, 191)
479
“O que é consciente (das Bewußtseiende) diferencia igualmente este meio de si mesmo, na medida em que ele se diferencia do que, na
consciência, é diferenciado, com a diferença de que ele refere ambos também a este meio. A universalidade absoluta se torna meio somente no
sujeito, no isolar da oposição ... este meio é ele mesmo também um contraposto, ou ele tem nele a forma de sua existência; pois sua existência é
aquilo no que ele é como um contraposto.” (JSE I, 191)
480
Para Schnädelbach, na medida em que Hegel separa a consciência real em três âmbitos formados cada um por um par de conceitos, acontece
justamente que, ao fim e ao cabo, não aparece jamais um terceiro termo como medium: é a própria consciência que é sempre a mediação entre os
pares, de maneira que memória, trabalho e família são os momentos ideais, enquanto língua, instrumento e bem-da-família são os momentos reais
dos media, ou seja, da totalidade de ambos os lados, os quais constituem a consciência efetiva. Schnädelbach, Herbert – Hegels praktische
Philosophie: Ein Kommentar der Texte in der Reihenfolge ihrer Entstehung, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 2000, 120 Schnädelbach sugere a
compreensão específica da Mitte como Mittel, ou seja, genuinamente como medium da atuação recíproca dos lados ideal e real da consciência
efetiva, sugerida na compreensão da interação entre atividade e passividade do indivíduo.
481
“ela [a consciência E.C.L] é posta somente como algo determinado (ein Bestimmtes), como momento de sua totalidade, na medida em que é
como [sendo] na oposição; ou ela existe, na medida em que ela é aquilo em que ambos, o que é consciente de si (das sich Bewußtseinende) e
aquilo de que este tem consciência (das, dessen dies sich bewußt ist), se põem nele como um e também a ele se contrapõem, i.e a consciência
mesma é, desta maneira, algo preenchido com uma determinidade (ein mit einer Bestimmtheit Behaftetes, Existierendes), algo existente.”(JSE I,
191)
482
Siep e Kimmerle observam que Hegel somente leva a subdivisão do texto segundo potências ou meios até a família, o que, segundo Siep, deixa
em aberto se o meio da luta pertence à potência da família ou constitui uma nova potência. Siep, Ludwig – Anerkennung als Prinzip der
praktischen Philosophie, Freiburg/München, 1976, 186 Já Kimmerle entende que o meio da luta teria de ser dividido entre uma luta por honra e
uma luta por posse. Kimmerle, Heinz – Das Problem der Abgeschlossenheit des Denkens. Hegels „System der Philosophie“ in den Jahren 1800-
1804, Bonn(Beiheft 8 der HST).
202
Pode-se interpretar a formulação peculiar, dada por Hegel à teoria da consciência em sua
combinação da mesma com a teoria da eticidade, como uma tentativa de romper com o quadro
geral de um mentalismo levado às últimas conseqüências por sua guinada transcendental484, isto
é, uma reação às inúmeras oposições conceituais em que incorre o idealismo kantiano-fichteano
na tentativa de explicar as questões epistemológicas fundamentais acerca da “origem e da
dependência causal do conhecimento”485, oposições que desembocam na querela pós-kantiana
acerca da “coisa em si”. A resposta de Hegel às antinomias da auto-reflexão consiste em uma
compreensão do desenvolvimento da consciência, a “estrutura fundamental não desenvolvida do
espírito”486, segundo media que “estruturam previamente as potenciais relações entre sujeito e
objeto.”487 A compreensão hegeliana da consciência como medium se dirige contra a concepção
mentalista de uma subjetividade exteriormente limitada e auto-suficiente, a qual é, por isso, presa,
segundo Habermas, de dualismos entre o interior e o exterior, ou entre o público e o privado.
Aquela razão prática descentrada, depurada pela guinada transcendental do mentalismo, é
liberada por Hegel dos limites auto-referentes da reflexão sobre si, o que significa que Hegel
confere voz às relações entre sujeito e objeto já previamente estabelecidas antes que o próprio
sujeito efetivo incorra em determinadas contraposições ao seu exterior. “Hegel refuta a tese de
que o sujeito cognoscente, falante e agente se encontra diante da tarefa de construir uma ponte
sobre o abismo entre si e o outro separado dele. Um sujeito que está de antemão junto de seu
outro não percebe nenhum déficit que exija compensação. Percepções e juízos se articulam em
uma teia de conceitos previamente fechada lingüisticamente, ações se perfazem na esteira de
práticas executadas. Um tal sujeito não pode estar junto a si mesmo sem estar junto ao outro. Esta
experiência central não é somente cognitivamente relevante, ela é também a chave para os
conceitos normativos hegelianos do amor, o estar-junto-a-si no outro (Bei-sich-selbst-sein im
Anderen), e da liberdade, o estar-no-outro-junto-a-si (Im-Anderen-bei-sich-selbst-Sein)”488 Neste
contexto, com o conceito hegeliano de media, a pré-estruturação das relações sujeito-objeto
483
Kimmerle, Heinz – Das Problem der Abgeschlossenheit des Denkens. Hegels „System der Philosophie“ in den Jahren 1800-1804,
Bonn(Beiheft 8 der HST)
484
Habermas, Jürgen – „Wege der Detranzendentalisierung: Von Kant zu Hegel und züruck“in: Wahrheit und Rechtfertigung: philosophische
Aufsätze, Frankfurt am Main, 1999, 186-229
485
Habermas, Jürgen – „Wege der Detranzendentalisierung: Von Kant zu Hegel und züruck“, 186-229, 193
486
Wildt, Andreas – Autonomie und Anerkennung. Hegels Moralitätskritik im Lichte seiner Fichte-Rezeption, Stuttgart, 1983, p.329
487
Habermas, Jürgen – „Wege der Detranzendentalisierung: Von Kant zu Hegel und züruck“, 194 A despeito da crítica de Wildt com respeito à
confusão de Habermas acerca da conexão estrutural dos media se referir às formas de mediação de sujeito e objeto, bem como a não especificação
da questão acerca de se os media “concorrem” para a questão geral da constituição da autoconsciência, ou para a questão mais específica da
identidade do eu, Habermas continua sustentando sua posição, delineada nos anos 1960. Em 1999, entretanto, ele deixa ainda mais claro como
espera vincular a questão da mediação entre sujeito e objeto, e o duplo processo de uma “individualização pela socialização” (198-200). Comparar
com Habermas, Jürgen – „Individuierung durch Vergesellschaftung“in: Nachmetaphysisches Denken, Frankfurt am Main, 187-241. Mas, antes
disso, Habermas esclarece, no texto de 1968, o vínculo entre a constituição do eu e a conexão entre os media. “Porque Hegel não vincula a
constituição do eu à reflexão do eu solitário sobre si mesmo, mas a compreende a partir de processos de formação – a saber, de concordância
comunicativa de sujeitos contrapostos – não é reflexão como tal que é decisiva, mas o medium no qual a identidade do universal e do singular se
estabelece.”(796) Mais à frente, Habermas esclarece: “... nós poderíamos esperar que Hegel introduzisse agir comunicativo como o medium para o
processo de formação do espírito autoconsciente. De fato, ele constrói, nas lições de Jena, no exemplo da vida em comum de um grupo primordial,
da interação nos limites da família, o “bem-da-família” como o meio existente das formas recíprocas de comportamento. Só que, ao lado da
“família” se encontram duas outras categorias as quais Hegel desdobra, da mesma maneira, como media do processo de formação: linguagem e
trabalho ... linguagem e trabalho como media do espírito não se deixam reconduzir à experiência da interação e do reconhecimento recíproco.”
Habermas, Jürgen –„Arbeit und Interaktion. Bemerkungen zu Hegels Jenenser „Philosophie des Geites“ 796/797
488
Habermas, Jürgen – „Wege der Detranzendentalisierung: Von Kant zu Hegel und züruck“, 195
203
antecipadoras da própria efetividade, é a própria relação tradicional entre sujeito e objeto que é
totalmente modificada: sujeito e objeto passam a somente existir em e através de suas relações.
Apesar das inúmeras críticas489, suscitadas por sua tentativa primeva de oferecer, com
base em uma suposta irredutibilidade, colhida no Systementwurf 1803/1804 de Hegel, de trabalho
e interação, de agir instrumental e agir comunicacional, uma renovação da teoria social de
Marx490 – críticas dirigidas tanto pela Hegelforschung, quanto pelos marxianos –, Habermas
voltou recentemente ao tema tão significativo para o direcionamento de seu projeto filosófico491.
Em geral, Habermas mantém quase todas as intuições inspiradas pela irredutibilidade de
linguagem, trabalho e interação que pretende ter encontrado na obra não publicada de Hegel, mas
imprime à sua revisitação uma orientação diferente, conferindo ao Hegel de 1803/04 o papel de
arauto do “poderoso movimento de destranscendentalização do sujeito cognoscente”, cujo ensejo
fora certamente a própria filosofia do “último metafísico”492. Caberia a Hegel o mérito de ter
iniciado o processo de recondução do sujeito transcendental kantiano à sua situação no espaço
social e no tempo histórico. “Aquela primeira existência vinculada da consciência como meio é
seu ser como linguagem, como instrumento e como os bens (das Gut); ou, como simples ser-um:
memória, trabalho e família.” (JSE I, 193) Neste contexto, o pontapé inicial do processo de
destranscendentalização, operado por Hegel no quadro da “guinada transcendental” do
mentalismo empreendida por Kant e Fichte, consiste na ruptura, através da introdução da
linguagem, do trabalho e da interação como media pelos quais “o espírito humano é impregnado
e transformado”493 e que “estruturam previamente as relações que o sujeito cognoscente e agente
estabelece com os objetos no mundo”494, com um modelo cognitivo de auto-reflexão que é
489
Habermas dedica principalmente a última parte de seu artigo seminal à tentativa de traçar um programa de renovação do marxismo pela
revogação do caráter absoluto do trabalho como paradigma para a produção de todas as categorias da teoria social e pela assimilação da pretensa
intuição hegeliana a respeito de uma irredutibilidade de trabalho e interação. Para uma apreciação da crítica a Habermas a partir dos estudiosos de
Marx, ver: Schmied-Kowarzik, Wolfdietrich – Die Dialektik der gesellschaftlichen Praxis, München, 1981. Entretanto, a crítica mais virulenta à
posição habermasiana vem do lado dos “hegelianos”. Wildt concorda, de maneira geral, com a tese de Habermas de que a sistemática definitiva da
filosofia hegeliana é marcada pela redução dos media do esboço de 1803/04 a um denominador comum: a forma lógica da auto-reflexão. Wildt,
Andreas – Autonomie und Anerkennung. Hegels Moralitätskritik im Lichte seiner Fichte-Rezeption, Stuttgart, 1983, p.326 e seg. Habermas,
Jürgen –„Arbeit und Interaktion. Bemerkungen zu Hegels Jenenser „Philosophie des Geites“ 807-809 Wildt também endossa a tese
habermasiana de que o caráter irredutível dos media não tem somente um sentido estrutural, mas também um papel dinamizador do
desenvolvimento. A crítica de Wildt diz respeito, sobretudo, à relação entre os media concebida por Habermas no âmbito da conexão estrutural ou
pré-societária dos media. De um ponto de vista histórico-mundial, Habermas sustenta, por exemplo, que o desenvolvimento do reconhecimento
jurídico universal está atrelado historicamente a um exacerbado desenvolvimento das forças produtivas necessário à institucionalização do
predomínio da “troca de equivalentes”, isto é, que o desenvolvimento do processo de trabalho possibilita o reconhecimento universal cristalizado
no direito civil-burguês. No entanto, com respeito à conexão estrutural e pré-social dos media, Habermas permanece, segundo Wildt, apenas no
âmbito impreciso da questão acerca da mediação entre sujeito e objeto. Neste sentido, segundo Wildt, Habermas não é capaz de diferenciar a
respeito de uma constituição, baseada no reconhecimento recíproco, da autoconsciência ou da identidade do eu, para a qual seriam necessários,
segundo Habermas, também os media da linguagem e do trabalho. Para Wildt, Habermas acaba passando ao largo da questão para ele
fundamental: a possibilidade da identidade do eu estar vinculada à conexão entre linguagem, trabalho e reconhecimento.
490
A interpretação seminal de Hegel oferecida por Habermas após Erkenntnis und Interesse(1968) causou enorme celeuma na ortodoxia
marxista, bem como em representantes da “escola de Frankfurt”. A principal conseqüência desta interpretação para um revigoramento do
marxismo, pretendido por Habermas na época, seria a independência de trabalho e interação, os quais permaneceriam, ao contrário do que pensara
Marx, formas de socialização humana não redutíveis uma à outra. Na medida em que esta interpretação implica em que as relações de produção e
a superestrutura institucional e cultural da sociedade não podem ser apenas reconduzidas a um determinismo ferrenho por parte do trabalho e das
forças produtivas, é o próprio monismo da explicação proposta por Marx que é posto em xeque. Com respeito à situação para ele “aporética”
alcançada em Dialética do Esclarecimento e a Dialética Negativa, Habermas mostra que a derivação de todas as formas de opressão a partir da
lógica da dominação da natureza por uma razão formalizada, subjetivizada e instrumentalizada é um programa crítico insuficiente, pois a interação
teria de integrar o quadro geral de onde poderia provir a racionalização social.
491
Habermas, Jürgen – „Wege der Detranzendentalisierung: Von Kant zu Hegel und züruck“in: Wahrheit und Rechtfertigung: philosophische
Aufsätze, Frankfurt am Main, 1999, 186-229
492
Tal processo Habermas vê prosseguir em Humboldt, Pierce, Dilthey, Cassirer, Heidegger e Wittgenstein. Expoentes mais recentes de um
paradigma epistemológico vinculado ao cartesianismo da auto-reflexão seriam , Husserl, Sartre e, mais recentemente, também Roderick
Chrisholm e Dieter Henrich.
493
Habermas, Jürgen – „Wege der Detranzendentalisierung: Von Kant zu Hegel und züruck“ 186/187
494
Habermas, Jürgen – „Wege der Detranzendentalisierung: Von Kant zu Hegel und züruck“ 188
204
determinante em toda tradição filiada a Descartes e que alcança Kant e Fichte495. “Para o ponto
de vista da consciência, que somente enxerga a oposição da consciência, ambos os lados da
própria consciência aparecem em ambos os lados da oposição. A memória aparece do lado do
que é consciente de si, já a linguagem, do outro lado; da mesma forma, o trabalho daquele lado,
já o instrumento deste; igualmente família daquele, e os bens-de-família (Familiengut) deste
lado.” (JSE I, 193) Para Hegel, a atividade diferenciadora da consciência, pela qual ela se cinde
em consciência e naquilo de que é consciente, é, em decorrência de sua própria “essência
espiritual” enquanto igualdade dos lados, também o “ambiente” em que se torna possível a
diferenciação: a unidade consciente de si como memória ou “acervo lingüístico”, trabalho ou
“reprodução material” e família ou “relação ética ou intersubjetiva” são pré-articuladas pela
existência da consciência enquanto meio espiritual em que se formam, isto é, como “linguagem,
instrumento e bens”.
“a linguagem, o instrumento e os bens-de-família não são simplesmente um dos lados da oposição, que se contrapõe
ao que se põe como consciente, e sim são da mesma forma relacionados a ele; e [são] o meio, aquilo em que ele se
separa de sua oposição verdadeira – na linguagem, [separa-se] de outros aos quais ele fala; no instrumento, daquilo
contra o qual ele exerce com o instrumento sua atividade; através dos bens-de-família, dos membros da sua família.”
(JSE I, 193)
Para Hegel, tanto o ser-um de cada potência, quanto a unidade existente do meio “são o
absolutamente universal”; o medium é, entretanto, em cada caso, “universal como existente e
como absolutamente existente, como contínuo (dauernd), como tendo existência universal.” (JSE
I, 194) A linguagem, o instrumento e a relação ética articulam, portanto, enquanto existência
“exterior e interior” da consciência como espírito, não apenas a “forma do objetivo”, mas
também a própria consciência singular contraposta a este objetivo e que, por seu próprio
movimento, concebe-se como autoconsciência496. “Ele é como ativo (er ist als Tätiges). Estes
meios não são aquilo contra o qual ele [é] ativo: não contra a linguagem, instrumento e bens-de-
família enquanto tais, e sim o meio (die Mitte), ou como é denominado, o termo médio (das
Mittel) através do qual e por meio do qual ele é ativo contra um outro.”(JSE I, 193) É a própria
ambivalência do medium enquanto aquilo que estrutura previamente a experiência da consciência
e aquilo que a permite estruturá-la que cria a dualidade entre atividade e passividade da
consciência com relação ao meio.
“Ele somente é ativo através do outro lado do meio: memória, trabalho e família. A atividade do indivíduo (die
Tätigkeit des Individuums) pode se dirigir contra ambos os lados e seus momentos singulares, e [ainda] pôr ele
próprio idealmente os mesmos ... assim são eles igualmente em si absolutamente necessários, e o indivíduo se
encontra, enquanto singular, muito mais sob a dominação deles do que eles sob a sua.” (JSE I, 193)
495
Enquanto a “guinada transcendental”, operada por Kant e Fichte no quadro geral do mentalismo e que cria o ambiente para a investida de
Hegel, consiste na tese do poder constitutivo da espontaneidade subjetiva em relação aos objetos da experiência, bem como na reserva crítica
acerca da impossibilidade de uma produção idealista do mundo por esta mesma espontaneidade, a postura hegeliana de destranscendentalização da
auto-reflexão torna-se tão importante para a constituição do próprio projeto habermasiano, porque, paralelamente à transformação transcendental
da auto-reflexão “na reconstrução racional das condições subjetivas necessárias das capacidades epistêmicas – ou [na] dissolução crítica de auto-
enganos eticamente relevantes ou [no] descentramento das próprias perspectivas que é exigido dos participantes de um discurso prático”(187) –,
instaura uma compreensão pós-mentalista que permite a articulação da idéia de espírito na “historicidade do espírito humano, na objetividade de
suas incorporações simbólicas e na individualidade das pessoas agentes e de seus contextos de ação.”Habermas, Jürgen – „Wege der
Detranzendentalisierung: Von Kant zu Hegel und züruck“188
496
Desconsiderando a plausibilidade da leitura de Habermas como renovação do marxismo, no que tange a Hegel, é extremamente difícil
considerar, com base no Systementwurf 1803/1804, linguagem, trabalho e interação como momentos de formação do espírito independentes uns
dos outros. Schnädelbach, Herbert – Hegels praktische Philosophie: Ein Kommentar der Texte in der Reihenfolge ihrer Entstehung, Suhrkamp,
Frankfurt am Main, 2000, 157 É bastante plausível que linguagem, trabalho e interação não possam ser depreendidos como momentos do espírito
a partir da simples mediação sujeito-objeto do espírito no movimento absoluto da reflexão de si mesmo. Por um lado, os momentos não parecem,
certamente, redutíveis uns aos outros ao menos no tocante a uma possível derivação comum. No entanto, a própria sistemática desenvolvida por
Hegel parece apontar para uma dependência da derivação de cada estágio em relação ao outro.
205
Trata-se aqui do estatuto supra-individual dos media, o qual é certamente mais visível no
caso da relação ética, mas vale também para os outros meios. Se a consciência de um sujeito
singular é relação de contraposição entre um sujeito empírico e seu objeto, os media, enquanto
nexos espirituais no âmbito da consciência, são os vínculos unificadores da cisão, abrangem e
unificam os termos, de tal forma que sempre ultrapassam a consciência dos sujeitos singulares497.
Eis porque esta dominação é somente aparente e, neste sentido, “não há, de forma nenhuma,
relação de dominação do indivíduo ou contra o indivíduo, e sim o indivíduo é somente um lado
formal da oposição” (JSE I, 193/194). Portanto, “a essência é ... a unidade de ambos os lados, e
esta unidade é a consciência, que se apresenta enquanto tal / a si mesma como universal em
ambos os lados de sua universalidade”, os quais são “a unidade dos dois lados daquela oposição
ideal do indivíduo consciente e do [termo] a ele contraposto.” (JSE I, 193/194). O caráter passivo
ou ativo assumido pelo indivíduo em relação ao medium é o que, portanto, é aniquilado e reposto
pelo meio espiritual, de maneira que “os dois lados da oposição, o indivíduo ativo e o passivo que
se lhe opõe, são duradouros somente como oposição em geral, e esta sua universalidade como
oposição é propriamente o meio existente.” (JSE I, 194) Enquanto os media linguagem e trabalho
são os termos médios nos quais a contraposição entre sujeito e objeto, entre consciência e
autoconsciência se estabelece, a interação, isto é, a relação entre duas consciências forma a
existência social efetiva da consciência ou do espírito, “o mundo da vida compartilhado
intersubjetivamente”498 e confere subsistência aos media que constituem a consciência teórica e
prática dos sujeitos singulares, a sua capacidade de conhecer e de dominar a natureza. Também
neste sentido o desenvolvimento da consciência enquanto sucessão de media faz a consciência
singular ou empírica apontar para a consciência absoluta, sua realidade mais adequada499. Com
efeito, é preciso compreender que, no tocante à contraposição do “indivíduo ativo” e do
“indivíduo passivo”, “o que neles é essencial, universal, é este meio. A consciência enquanto
existente, existe realmente na oposição do ativo contra o passivo; mas o que nesta oposição
mesma é o sendo (das Seiende), é o meio da consciência existente ... Neste meio, o qual a
consciência vem a ser, a consciência adquire existência. Ela chega a um produto absoluto e
permanente ...”(JSE I, 193/194)
497
Habermas, Jürgen – „Wege der Detranzendentalisierung: Von Kant zu Hegel und züruck“ 201
498
Habermas, Jürgen – „Wege der Detranzendentalisierung: Von Kant zu Hegel und züruck“, 201
499
Wildt, Andreas – Autonomie und Anerkennung. Hegels Moralitätskritik im Lichte seiner Fichte-Rezeption, Stuttgart, 1983, p.333
206
lingüisticamente, quer como intuição ou conceito, sempre apoiada no estofo lingüístico anterior à
própria contraposição.
“A linguagem é, segundo sua essência, existente para si mesma, natureza posta idealmente, e ela é como que mera
forma, ela é um mero falar, uma exterioridade. Ela não é um produzir, mas a simples forma do tornar-exterior (die
bloße Form des Äußerlichemachens) o que já foi produzido, como isto tem de ser falado, o formal da pura atividade,
o devir imediato do ser-interior em seu contrário (das unmittelbare Werden des Innerlichsein zu seinem Gegenteile),
em um exterior.” (JSE I, 226)
“A linguagem é somente como linguagem de um povo ... Somente como obra de um povo a linguagem é a existência
ideal do espírito, na qual ele exprime o que ele é segundo sua essência e em seu ser. Ela é um universal, em si
reconhecido, que ecoa da mesma maneira na consciência de todos. Cada consciência falante se torna nela uma outra
consciência. Da mesma maneira, segundo seu conteúdo, somente num povo ela se torna linguagem verdadeira,
exprimir o que cada um quer dizer” (JSE I, 226/227)
Por outro lado, ainda ao nível da potência teórica da língua e da memória, a consciência
“se torna, através do entendimento, enquanto o ser do conceito determinado, conceito absoluto
simples, reflexão absoluta em si, vacuidade da capacidade formal da absoluta abstração. E a
relação da oposição se torna um suprimir de diferentes que em si [estão] um contra o outro.” (JSE
I, 195) Portanto, o resultado do processo teórico é alcançado depois do entendimento, é o
conceito absoluto simples, a absoluta reflexão (a)dentro de si mesma, a vacuidade da faculdade
formal da absoluta abstração, a qual não é decerto apenas a pura autoconsciência do idealismo
kantiano-fichteano, não um ponto de partida pressuposto como fato, mas o resultado do
desenvolvimento e auto-suspensão das oposições examinadas no medium linguagem. “Ao tomar-
lhes sua forma, a consciência determina a oposição de um lado como forma absolutamente sendo-
para-si, reflexão absoluta em si mesma, absoluta vacuidade do conceito, e do outro lado como
matéria absoluta.” (JSE I, 195) Ao término da potência definida pelo meio teórico da língua e da
memória, a consciência não é ainda a unidade de universalidade e singularidade, mas a unidade
pontual vazia da individualidade, à qual se contrapõe a totalidade de determinidades enquanto
realidade estranha. O resultado da potência teórica é a unidade da unidade do conceito e da
multiplicidade de determinidades, ou a razão formal, a qual contrapõe-se novamente à
singularidade ao pôr sua própria como suspensa.
Eis porque, ao nível da potência teórica, a linguagem ainda não se refere à comunicação
propriamente dita de sujeitos agentes e que coexistem, mas se vincula ainda à simbolização
lingüística a que recorre o indivíduo apartado em sua confrontação com a natureza. Se a memória
207
forma o estofo interior da utilização de símbolos, a linguagem como tal é a primeira categoria
pela qual o espírito é pensado como medium, como elemento interior e exterior, o qual ultrapassa
assim a reflexão da autoconsciência solitária. Entretanto, enquanto “reconstruída ... em um
povo”, a linguagem se torna um aniquilar do exterior que é ele mesmo uma exterioridade, “o qual
tem de ser aniquilado, suspenso, a fim de se tornar linguagem significante (um zur bedeutenden
Sprache zu werden), tornar-se aquilo o que ela é em si, segundo seu conceito. Portanto, ela é no
povo como um outro algo morto que não ela mesma, tornando-se totalidade ao ser superada
enquanto um exterior e ao chegar a seu conceito (zu ihrem Begriff wird).”(JSE I, 227)
500
“A consciência, que na linguagem se organizava para a totalidade do ideal, partia do conceito de infinidade, e a organização ocorria ... no
elemento da universalidade indiferente” (JSE I, 208) “O absolutamente Uno (das absolute Eins) da reflexão é ele mesmo enquanto negativo
somente através da negação, isto é, através da relação ao contraposto, ele é essencialmente relacionado ao último. Em sua reflexão absoluta, ele se
libertou da relação a um outro; entretanto, a reflexão absoluta é, ela mesma, somente enquanto esta relação ao outro.” (JSE I, 209)
501
Wildt, Andreas – Autonomie und Anerkennung. Hegels Moralitätskritik im Lichte seiner Fichte-Rezeption, Stuttgart, 1983, p.334 Wildt
explicita muito bem este vínculo. Sem apelar à oposição entre determinidade e indeterminidade, a passagem do processo teórico ao prático, da
vacuidade da abstração absoluta ao movimento de suspensão da singularidade, permaneceria insolúvel. Para resolver o problema, Wildt apela a
uma compreensão da indeterminidade que não se demora na sua acepção vazia, mas que revela, à moda dos primeiros anos de Jena, seu teor
substancial de ser a totalidade das determinações. Neste sentido, para Wildt, não se pode dizer que Hegel construa o processo da consciência
apenas apelando à dialética entre sujeito e objeto, mas também como resolução da antinomia entre determinidade e indeterminidade na
autoconsciência epistêmica. “Isto significa que linguagem, instrumento e família são, para Hegel, não somente meios entre sujeito e objeto, ou
entre sujeito e sujeito, mas, além disso, meios entre determinidade e indeterminidade do sujeito. Sua função é essencialmente a de possibilitar uma
ampla identificação do sujeito com sua determinidade.” (334) Wildt é assim levado a concordar com Habermas em que os media consistam nas
condições de constituição da identidade do eu (335).
208
total desta potência se caracteriza pelo domínio da realidade individual do espírito em face do
escamoteamento de sua universalidade real, a qual tem de ser restabelecida pela suspensão da
singularidade502.
“Aquela unidade teórica, ao ter se realizado, se tornou o absoluto contrário de si mesma, se tornou absoluta
singularidade e contraposição. E a relação agora posta é uma [relação] prática. A singularidade absoluta tem de se
preencher, tem de superar a contraposição absoluta. Mas, ao se elevar ela mesma de maneira prática à totalidade
absoluta, torna-se ela novamente o contrário de si mesma.” (JSE I, 209)
“O instrumento é o meio racional e existente, a universalidade existente do processo prático, é ele mesmo passivo
segundo o lado de quem trabalha (nach der Seite des Arbeitenden), e ativo frente ao que é elaborado (gegen das
Bearbeitete). Ele é aquilo em que o trabalhar tem seu permanecer, o que apenas resta do que trabalha e do que é
elaborado, e em que sua contingência se eterniza. Ele se propaga pelas tradições, enquanto tanto o desejante quanto o
desejado subsistem e colapsam apenas como indivíduos.”(JSE I, 211)
502
Seguimos aqui a indicação de Schnädelbach de que esta potência pode ser lida em analogia à subsunção da intuição sob o conceito, o que
significa o ocultamento da universalidade ideal em face do predomínio da singularidade individual. Schnädelbach, Herbert – Hegels praktische
Philosophie: Ein Kommentar der Texte in der Reihenfolge ihrer Entstehung, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 2000, 125
503
Habermas, Jürgen – „Wege der Detranzendentalisierung: Von Kant zu Hegel und züruck“, 203
209
A postura prática implica sua própria suspensão, pois deixa ver a consciência como
originariamente dirigida contra a diferença de si mesma e da totalidade das determinidades. A
“oposição, assim como sua relação, sua idealidade, tem a forma contraposta à [forma] que veio
anteriormente. A consciência como consciência do singular é contraposta à [consciência] de
outros singulares, e ela tem agora de pôr a singularidade como uma [singularidade] suspensa, ou
ela [é] como uma coisa existente contra coisas existentes”(JSE I, 208) O resultado acumulado no
desenvolvimento da consciência é que, na potência do instrumento, a consciência compreende
que não é independente daquilo que ela quer negar, mas que somente tem a consciência de si
mesma no outro. Habermas defende que os processos das potências teórica e prática, baseados na
noção de medium, deixam ainda sem explicação, ao se deterem na perspectiva da consciência
singular que se contrapõe à natureza, o sentido mais profundo de objetividade vinculado àquela
noção, na medida em que se referem ao que ultrapassa a subjetividade da contraposição504. A
“potência prática assim como a teórica ... são apenas potências ideais, cada qual põe a
consciência na abstração de uma forma da oposição – a teórica na abstração da universalidade
simples e indiferente ... a prática na abstração da relação absolutamente diferente, da relação
absolutamente contraposta.”(JSE I, 209) A verdade é que ambos os media em seus momentos
ideais, memória e trabalho, remetem a unidades que excedem a mera contraposição singular e
encontram sua realidade efetiva no estofo lingüístico utilizado por uma cultura para a
interpretação do mundo e no aproveitamento social da racionalidade instrumental e técnica na
reprodução material de uma comunidade. Por isso, segundo Hegel, a consciência
“... se decompõe em si mesma e se realiza em momentos diferentes um contra o outro, dos quais cada qual é uma
consciência, na / diferença dos sexos, na qual ela igualmente suprime o desejo singular da natureza e se torna
inclinação que permanece (sich...zur bleibenden Neigung macht); na família se tornou totalidade da singularidade e
eleva a natureza inorgânica a bens-de-família, como o meio exterior igualmente permanente das mesmas, e passa
daqui para a sua existência absoluta, para a eticidade.”( JSE I, 195/196)
A tese de Hegel é que ambos os media somente encontram sua realidade perene e acabada
no espírito do povo. Entretanto, a constituição de um tal espírito cuja objetividade excede a mera
subjetividade singular passa pelo compartilhamento intersubjetivo de práticas comuns ligadas à
vida e à tradição comunitária. É neste sentido que a vida afetiva no seio da família vem
complementar o desenvolvimento dos media505. A constituição da posse e da família se dá pelo
aprofundamento da relação entre o desejo e a coisa morta em uma relação de uma consciência
individual a uma outra.
504
Habermas, Jürgen – „Wege der Detranzendentalisierung: Von Kant zu Hegel und züruck“ 204
505
Sobre a relação da família, enquanto primeiro grau na elevação da consciência à totalidade da singularidade, com o espírito ético, Hegel diz o
seguinte: “Ambas – a constituição da consciência como razão formal, abstração absoluta, absoluta vacuidade, singularidade, e [a constituição] da
mesma como constituição real enquanto família, a riqueza absoluta dos singulares – são eles mesmos somente momentos ideais da existência do
espírito, ou a maneira como ele se organiza imediatamente em seu comportamento negativo para com a natureza. Livremente sendo para si e
desfrutando absolutamente de si mesmo, ele surge como ser ético (als sittliches Wesen). Na organização de um povo, a natureza absoluta do
espírito chega ao seu direito.”(JSE I, 196)
210
“é um aniquilar refreado pela necessidade (Not) ou um absolutamente exterior. A liberdade da consciência suprime
esta necessidade e refreia o aniquilar na fruição por si mesmo, torna ambos os sexos consciência um para o outro,
sendo-para-si (Fürsichseinenden), que subsistem (Bestehenden), ou de tal forma que no ser-para-si do outro cada
qual é ele próprio, que cada um na consciência do outro, i.e na sua singularidade, em seu ser-para-si, é consciente de
si mesmo, é para si.” (JSE I, 212)
“E a relação sexual se torna uma tal [relação] na qual, no ser da consciência de cada um, o primeiro mesmo é um
com o outro, ou uma [relação] ideal. O desejo se liberta, desta forma, da relação à fruição, ele se torna um ser-um
imediato de ambos no ser-para-si absoluto de ambos, ou ela se torna amor. E a fruição está neste intuir (Anschauen)
de si mesmo no ser da outra consciência. A própria relação se torna, da mesma maneira, o ser de ambos; e uma
[relação] que de tal forma permanece enquanto o ser de ambos, ou seja, ela se torna o casamento (Ehe).”(JSE I, 212)
Com efeito, com o tornar-se ideal deste desejo pelo outro, a relação conjugal, os sujeitos
se tornam um para o outro imediatamente autoconsciências, confirmam reciprocamente um ao
outro sua existência para si. “Estando nele cada qual reciprocamente na consciência do outro, /
então cada um está no outro reciprocamente como sua inteira singularidade.” (JSE I, 212/213) O
elemento comum criado pelas consciências é um elemento permanente em si mesmo, pois cada
consciência dá à outra sua existência como consciência. Com efeito, na medida em que eles dão
um ao outro uma existência comum na qual a singularidade natural é aniquilada, tendem,
enquanto particulares, para o “colapso”. “Os cônjuges conferem a si mesmos uma existência
inteiramente comum [a ambos], na qual eles não estão em ligação (Verbindung) com uma
singularidade qualquer, com um fim particular, [e sim] na qual eles pertencem à natureza e são
um.” (JSE I, 213) Nesta medida, a contraposição, que em sua unidade imediata é a relação sexual,
persegue seu aprofundamento dentro de si como casamento, na qual a desejo natural se tornou
inclinação permanente. Se a família é a idealidade desta potência, a dispersão real ou a existência
é incorporada no bem-da-família. Este momento marca a passagem da “teoria da consciência”,
forma prototípica do espírito subjetivo, para a filosofia da eticidade, que contém a prefiguração
do espírito objetivo. É na relação interativa própria à potência da família que se realiza o que a
consciência pôde vislumbrar na esfera do instrumento, a saber: que ela tem sua consciência de si
mesma somente no seu outro, ou seja, é esta unidade da relação passiva e ativa ao outro somente
na interação dos indivíduos que se corporifica no amor, no casamento e na educação dos filhos.
Com tal tese, Hegel faz mais uma vez do ponto de partida de sua teoria do desenvolvimento da
eticidade um nexo societário que responde por uma relação de intersubjetividade inclusiva e
participativa, substancialmente contraposta à intersubjetividade excludente das relações de direito
privado. “Este vínculo (Band), enquanto vínculo no qual [está] a totalidade da consciência de
cada um, é justamente por isso sagrado, distanciando-se do conceito de um contrato, como se
211
quis considerar o casamento.”(JSE I, 213) Analisado sob a perspectiva de sua relação com a luta
por reconhecimento, que se instaura com a plena formação das individualidades no solo ético
familiar, este elemento de uma intuição imediata de si no outro se constitui, revelando o extremo
potencial normativo da tese hegeliana da gênese conceitual da sociedade civil como processo de
dissolução ética da família, como condição de uma individualização socialmente instituída e a ser
juridicamente institucionalizada. Entretanto, sua deficiência se revelará ainda na permanência da
unidade de ser-para-si e objetividade, atividade e passividade nos limites da consciência da
singularidade. Nestes termos, a unidade da consciência na interação familiar mostra seu caráter
excludente correspondente à atividade negativa e excludente da consciência prática singular.
“Este meio, no qual eles se conhecem como um, como tendo suspendido sua oposição, e no qual eles justamente por
isso novamente se contrapõem, é como [meio] sendo-para-si. Este lado do meio, no qual eles se conhecem como Uno
e como suspensos, é necessariamente uma consciência, pois eles somente são um enquanto consciência: é a criança,
na qual eles se conhecem como em uma única consciência (in welchem sie sich als in Einem Bewußtsein) enquanto
Uno, e justamente nisso como suspensos; e eles vêem (anschauen) nela este seu ser-suspenso (Aufgehobenwerden).
Eles se conhecem nela como gênero (Gattung), se conhecem como um outro que não o que eles próprios são, a
saber: como unidade que veio-a-ser (als gewordne Einheit).”(JSE I, 213)
A tese de que os pais vêem na criança sua própria suspensão, pelo que a formam e
educam a fim de elevá-la ao nível de sua própria consciência, “produzindo sua própria morte”, é
extremamente importante para uma apreciação, em termos de uma teoria dos processos modernos
de individualização e socialização, da teoria hegeliana da dissolução ética da família, bem como
para a passagem à sociedade civil – que, mesmo no sistema maduro, pode ser ainda considerada
como a permanente reposição de uma incessante luta por reconhecimento de indivíduos
emergentes do solo afetivo da família. “O processo da individualidade é um configurar
(Gestalten), e aquele que aqui consome em si a figura que vem-a-ser é a individualidade que
vem-a-ser.” (JSE I, 213) Entretanto, deve ser compreendida no sentido em que a criança se
forma, por sua vez, a partir de uma “objetividade consciente” que é a própria consciência dos
pais, dela se nutre como condição de sua plena individualização.
Por conseguinte, a tese de que os pais produzem seu colapso na medida em que educam a
criança tem sua compreensão orientada pela função individualizante que Hegel atribui ao nexo
intersubjetivo da vida afetiva da família: um ambiente intersubjetivo que se caracteriza, enquanto
elemento formador da individualidade, por seu papel inclusivo e participativo. Hegel parece
então fundamentar a compreensão segundo a qual a formação de consciências singulares
independentes depende de nexos sociais prévios à sociedade civil e que se compõem de
elementos participativos na formação da individualidade. “Ao educá-la, eles põem nela a
consciência deles que veio-a-ser (ihr gewordenes Bewußtsein) nela, e produzem sua [própria]
morte ao vivificá-la até a consciência (es zum Bewußtsein beleben), com o que a consciência dos
pais realiza sua reflexão em si mesma, a vacuidade da singularidade absoluta e, enquanto
consciência que veio-a-ser, torna-se natureza inorgânica, a cuja totalidade o ser humano enquanto
criança se eleva.” (JSE I, 213) Na medida em que os filhos são considerados a objetivação do
saber-se no outro, a existência deste mesmo saber como consciência na qual os pais se vêem a si
mesmos enquanto gênero humano, a relação entre pais e filhos, especialmente a formação das
consciências pela educação, é compreendida como o necessário “aprofundamento” da relação de
conhecer-se a si mesmo no outro que estrutura a relação afetiva, uma experiência de “vacuidade
da singularidade absoluta”, de descentramento da perspectiva egocêntrica “no interior do quadro
familiar de expectativas recíprocas e normativas de comportamento.” 508 Para a consciência em
formação “a consciência dos pais é sua matéria, às custas da qual ela se forma. Eles são para ela
um obscuro e desconhecido pressentir (Ahnden) de si mesma, eles suspendem seu simples e
ensimesmado ser-dentro-de-si (sein einfaches und gedrungenes Insichsein). O que eles dão a ela,
eles o perdem; nela eles falecem, pois o que eles dão a ela, é sua própria / consciência.” (JSE I,
213/214) Na relação de formação e interação educativa no interior da família, pela qual a criança
se revela o “meio consciente” da intuição recíproca, o descentramento significa, para os pais, uma
contraposição aos filhos na forma de uma subordinação da singularidade própria à consciência
que se forma, a experiência propriamente ética de descentramento de seu eu “ensimesmado”.
“Nesta perspectiva, os parceiros se reconhecem, ao mesmo tempo, como membros de uma
comunidade particular, como pertencentes a uma família, na qual se cristalizam direitos e deveres
concernentes a funções da socialização (“educação da criança”) e da reprodução material (“bem-
da-família”)”509. Neste sentido, do ponto de vista da “existência ética” dos indivíduos, ambos os
lados se põem em um processo recíproco de formação, cujo produto é uma consciência
essencialmente supra-individual. “Com isso, na família, a totalidade da consciência é o mesmo
que algo que vem-a-ser para si mesmo. O indivíduo / vê a si mesmo no outro. O outro é o mesmo
508
Habermas, Jürgen – „Wege der Detranzendentalisierung: Von Kant zu Hegel und züruck“ 205
509
Habermas, Jürgen – „Wege der Detranzendentalisierung: Von Kant zu Hegel und züruck“ 205
213
todo da consciência, e ela tem sua consciência no outro, no produzido”(JSE I, 214/215). Por
conseguinte, na interação familiar, é a própria consciência que se ergue, para Hegel, à sua
totalidade própria, como uma consciência que devém para si mesma.“A consciência se torna uma
tal consciência que põe em si uma outra consciência. Na educação se suprime a unidade sem-
consciência (die bewußtlose Einheit), esta [unidade] se desmembra em si, ela se torna consciência
formada (wird zum gebildeten Bewußtsein)” (JSE I, 213)
Se, por um lado, sob a perspectiva dos pais, a educação deixa ver, em uma antecipação da
existência ética dos indivíduos, o descentramento ético da consciência singular; por outro lado, a
perspectiva da criança, a qual coincide com a formação da consciência para a totalidade que se
tornará absolutamente excludente na luta por reconhecimento, deixa ver o papel sistemático
assumido pela potência da família em relação às potências anteriores. “Até aqui, para a
consciência, era o outro, enquanto ela mesma, contraposição absoluta, um puramente outro; aqui
a consciência se tornou para si mesma um outro: para os pais, a criança; para a criança, os pais. E
a educação da criança consiste em que a consciência posta para ela como uma outra que não ela
se torne sua própria [consciência].”(JSE I, 213) Eis porque Hegel pretende que o processo de
formação da criança seja, em face da idealidade teórica indiferente da razão formal e da
“singularização absoluta” da consciência que se eleva à independência no “desejo refreado”, a
unidade da consciência teórica e prática. “Para a consciência ativa que até aqui estava na
oposição, é superada a própria oposição, ao ser o outro lado, posto até aqui como o lado não
consciente, ele mesmo uma consciência ... a consciência se produz para si mesma como
identidade do interior e do exterior.” (JSE I, 214) Como com isso, segundo Hegel, a consciência
alcança a efetivação imediata de sua estrutura essencial, de ser imediatamente o contrário de si
mesma, a consciência atinge, na família, sua totalidade. “Tal como anteriormente, no prático
configurar-se-a-si-mesmo (im praktischen Sichselbstgestalten) da consciência, a consciência
aparecia como um real, sendo em face à natureza, assim aparece ela aqui como algo que para ela
mesma vem-a-ser (ein für es selbst Werdendes) ... Na potência prática, tornou-se para si esta
absoluta singularidade, [enquanto] para nós uma [consciência] que tem sua consciência em um
outro: [mas] aqui ela se torna isso para si mesma.”(JSE I, 213) A totalidade da família é a
efetivação apenas imediata da estrutura da consciência justamente porque não se trata ainda com
ela de uma totalidade extensiva, mas uma totalidade apenas intensiva e particular. O
reconhecimento é o movimento pelo qual esta totalidade intensiva, alcançada como ponto
culminante do processo prático, se amplia na forma do auto-conhecimento em toda outra
totalidade.
“A formação (Bildung) do mundo em linguagem está em si presente (ist an sich vorhanden). Tal como o devir da
razão e do entendimento, ela recai na educação, ela existe para a consciência que devém (für das werdende
Bewußtsein) enquanto mundo ideal, enquanto sua natureza inorgânica; e ela não tem de se desvencilhar desta
maneira da natureza, mas sim de encontrar para a idealidade da mesma a realidade, de procurar para a linguagem o
significado, que está no ser. Este é da mesma maneira para a mesma [consciência], ele permanece somente como que
a / atividade formal do relacionar dos mesmos, que já são, uns aos outros.”(JSE I, 226/227)
Portanto, é na educação e para a consciência que vem a ser que se revela verdadeiramente
a pré-estruturação lingüística da experiência cognitiva. Em um sentido ontogenético, a abstração
da potência teórica, razão e entendimento, são formados concretamente, isto é, à parte do
processo “abstrato” descrito na potência teórica, sem a necessidade de que o sujeito cognoscente
rompa sua relação de imersão com o mundo circundante, justamente porque seu mundo
circundante já é “idealizado” e estruturado lingüisticamente pela consciência dos formadores. A
concretude da atitude cognitiva em um sentido ontogenético, reduzida a uma “atividade quase-
formal de relacionar”, reside apenas no restabelecimento da referência, previamente estruturada,
entre linguagem e objeto, entre idealidade e realidade. “Vindo o mundo, enquanto este mundo
ideal, até a criança, então é a tarefa desta consciência encontrar o significado, a realidade deste
ideal, como o ideal existe. Ela tem de realizar este ideal.” (JSE I, 214) A “relação da consciência”
se inverte, pois antes consciência singular e mundo se contrapunham como idealidade e realidade,
enquanto que “aqui a consciência é o singular, e o outro lado de sua oposição é o ideal, um
mundo, tal como ele é na consciência.” (JSE I, 214) A consciência ativa que fecha a potência
prática exercia-se como “atividade absolutamente contraposta”(JSE I, 214), ao passo que, para a
criança enquanto consciência que vem a ser, dissolve-se a contradição entre o mundo real e o
mundo ideal “ao pôr idealmente o lado real, para ela não consciente, e realizar o lado consciente,
o [lado] ideal dos pais ... Ela unifica ambos e é, primeiramente, uma consciência que veio-a-ser
ela mesma. Ela supera da mesma forma o exterior, na medida em que supera a interioridade, a
idealidade: ambos existem para ela como um exterior.”(JSE I, 214)
510
Siep mostrou eficazmente como Hegel vai transformando o princípio do reconhecimento em princípio da eticidade. Siep, Ludwig –
Anerkennung als Prinzip der praktischen Philosophie, Freiburg/München, 1976. Para Schnädelbach, o Hegel do System der Sittlichkeit mantém o
processo de reconhecimento exclusivamente preso ao contexto da eticidade natural. Schnädelbach, Herbert – Hegels praktische Philosophie: Ein
Kommentar der Texte in der Reihenfolge ihrer Entstehung, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 2000, 150 Temos visto que Honneth identifica as
estruturas societárias pré-estatais com o conceito de reconhecimento, compreendendo-as como estruturas intersubjetivas primárias, no que segue
Wildt. Wildt, Andreas – Autonomie und Anerkennung. Hegels Moralitätskritik im Lichte seiner Fichte-Rezeption, Stuttgart, 1983 Entretanto,
Honneth é particularmente audacioso ao identificar, no capítulo sobre a liberdade negativa, elementos que podem ser reduzidos a uma mediação
do conceito fichteano de reconhecimento com o conceito hobbesiano de luta. Honneth, Axel – Kampf um Anerkennung. Zur moralischen
Grammatik sozialer Konflikte, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1992
511
O objeto geral da luta por reconhecimento é a “positivação” do momento eminentemente negativo da auto-exclusão do singular. No sistema
não publicado de 1802, embora a parte intermediária do texto seja dedicada à liberdade pura do indivíduo, também as relações intersubjetivas
originárias contra as quais a fúria destrutiva desta liberdade se volta, são pressupostas sem fundamentação, e a parte negativa do escrito continua a
ser, ela mesma, anexada como “pressuposição negativa” da eticidade absoluta.Wildt, Andreas – Autonomie und Anerkennung. Hegels
Moralitätskritik im Lichte seiner Fichte-Rezeption, Stuttgart, 1983, p. 325
512
originalmente: põe. Modificação do tradutor.
513
Honneth, Axel – Kampf um Anerkennung. Zur moralischen Grammatik sozialer Konflikte, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1992 Como é
sabido, Honneth depreende seu modelo dos três estágios de reconhecimento pelo qual se dá o desenvolvimento “histórico” da eticidade
diretamente do System der Sittlichkeit, mas lamenta que Hegel não possua meios na época para uma “compreensão mais determinada de sua
mediação de Fichte e Hobbes”(Honneth 1992, 47). Honneth lamenta também que, com o apelo à teoria da consciência a partir de 1803, Hegel
tenha eliminado do conceito de natureza todo o seu “significado ontologicamente abrangente”(Honneth 1992, 48), o qual passa apenas a significar
o contraposto absoluto do espírito, isto é, a natureza física e pré-humana. Honneth vê nisso a estruturação teórica da esfera da eticidade entregue
ao processo de reflexão do espírito, o que já aponta para a sistemática definitiva. Com respeito à inserção da teoria do reconhecimento, apesar de
preservar a relação ética do estado como ponto central da análise reconstrutiva da eticidade, “Hegel não pode mais agora compreender o itinerário
de formação de uma comunidade estatal como um processo de desdobramento conflituoso de estruturas elementares de uma eticidade natural,
originária.” (Honneth 1992, 49). Embora desde 1802 Hegel compreenda, diz Honneth, o movimento do reconhecimento sempre como um meio de
216
socialização e formação comunitária da consciência universal pelo descentramento das perspectivas excessivamente individuais, somente o System
der Sittlichkeit mune este movimento com a capacidade de gerar individualização, isto é, “aumento das capacidades do eu” (Honneth 1992, 51). O
motivo para esta complexa modificação Honneth atribui ao arrefecimento da influência aristotélica pela adesão ao programa de uma teoria da
consciência. Para Honneth, “o âmbito objetivo de sua análise reconstrutiva se compõe não mais de formas de interação social, de “interações
éticas”, mas se constitui de níveis de auto-mediação da consciência individual” (Honneth 1992, 52), de maneira que “também as relações de
comunicação entre sujeitos não podem ser mais compreendidas como algo fundamentalmente prévio aos indivíduos”. Ao sacrificar esta faceta, a
teoria hegeliana do reconhecimento acaba por perder sua característica de “história da sociedade” e passa a se compreender como formação do
indivíduo para o universal social.
514
Ver: Habermas, Jürgen – „Wege der Detranzendentalisierung: Von Kant zu Hegel und züruck“in: Wahrheit und Rechtfertigung:
philosophische Aufsätze, Frankfurt am Main, 1999, 186-229, pg 199-201 Habermas parece não partilhar da posição de Honneth de que os esboços
de sistema de Jena, embora continuem a manter a força de seu viés socializador, sacrifiquem seu nexo individualizante com a adesão à teoria da
consciência e o conseqüente afastamento em relação ao ponto de partida aristotélico do System der Sittlichkeit, segundo o qual a progressiva
intensificação dos laços sócio-integradores possui como contrapartida um processo de individualização e sofisticação da relação a si do eu graças
à prévia imersão do indivíduo no estofo originário de relações comunicacionais que caracteriza a eticidade natural. Segundo Honneth, Hegel teria
compensado sua adesão à teoria da consciência com uma renúncia ao intersubjetivismo em sentido forte que residia no recurso ao ponto de partida
“teórico-comunicativo” aristotélico. Já Habermas estabelece, partindo de Hegel, uma vinculação das mais importantes entre a normatividade e os
processos de socialização e individualização. Para Habermas, o que notabiliza a concepção hegeliana do eu é justamente sua compreensão do
mesmo, plasmada pela estrutura lógico-especulativa do conceito, como unidade imediata de universalidade e singularidade, pela qual Hegel vai
além do eu kantiano enquanto unidade originária da apercepção, que representa a experiência, fundamental para a filosofia da reflexão, da
identidade do eu na auto-reflexão, a auto-experiência do sujeito cognoscente, proporcionada por sua capacidade de absoluta abstração (790). Este
conceito de unidade espiritual permite que os singulares se identifiquem uns com os outros e, ao mesmo tempo, percebam-se como não idênticos.
“A percepção originária de Hegel consiste em que o eu enquanto autoconsciência somente pode ser compreendido quando é espírito, isto é,
quando ele passa da subjetividade à objetividade de um universal, em que, sobre a base da reciprocidade, os sujeitos que se sabem como não
idênticos são unificados.”(790) Habermas relaciona este conceito de unidade espiritual justamente ao momento da normatividade
intersubjetivamente engendrada e ao momento dos processos de socialização e individualização.
515
Wildt, Andreas – Autonomie und Anerkennung. Hegels Moralitätskritik im Lichte seiner Fichte-Rezeption, Stuttgart, 1983, p. 338
217
requeríveis, o tecido formado por pretensões de expansão da totalidade singular que se deixem
“espontaneamente” desdobrar em uma totalidade social.
“Através do necessário dano, que deve conduzir ao reconhecer, ambos estão numa
relação em que se põem um frente ao outro (gegeneinander) como singularidade absoluta
negativa, como totalidade.” (JSE I, 219) O processo de reconhecimento tem seu preâmbulo516 na
atribuição pela consciência da unidade de si mesma com o outro (potência do instrumento e
potência da família) ao ser para si excludente, isto é, ao compreender a si mesma em sua
singularidade como a totalidade. “É absolutamente necessário que a totalidade à qual a
consciência chegou na família, conheça-se como a si mesma numa outra tal totalidade, numa
outra tal consciência. Neste conhecer (In diesem Erkennen), cada um é imediatamente para o
outro um absolutamente singular.” (JSE I, 217) Neste esboço de 1803/1804, Hegel interpreta o
ser racional finito, com o qual Fichte inicia a Grundlage des Naturrechts e que estaria enredado
no movimento do reconhecer, como sendo a totalidade à qual a consciência chegou na família, a
totalidade da consciência que se tornou para si com a dissolução da família, entendida como
processo de formação educativa da individualidade. Portanto, a luta por reconhecimento se torna
também um meio no qual as totalidades excludentes que emergem da interação familiar se
relacionam umas às outras de maneira ativa e passiva, um elemento que tem que se tornar efetivo,
sem o que não pode haver auto-suspensão da singularidade e sua transformação em consciência
universal.
“Enquanto esta totalidade, ambos, que querem se reconhecer e se saberem reconhecidos como esta totalidade de
singularidades, entram em cena um contra o outro. E o significado, que eles a si conferem, consiste em que cada um
apareça na consciência do outro / como um tal, que o exclua de toda a extensão de suas singularidades; β) que ele,
neste seu excluir, seja efetivamente totalidade ... aqui estão um contra o outro, [seres] efetivos, i.e. [seres]
absolutamente contrapostos, sendo absolutamente para si, e sua relação é uma [relação] puramente prática, mesmo
uma [relação] efetiva: o meio de seu reconhecer tem de ser ele mesmo um [meio] efetivo.” (JSE I, 218/219)
516
Seguindo a tradição dos comentadores, referimo-nos aqui ao movimento total cujo ponto de partida é a imediatez da unidade da consciência em
seu outro nas instituições da família.
517
Kimmerle, Heinz – Das Problem der Abgeschlossenheit des Denkens. Hegels „System der Philosophie“ in den Jahren 1800-1804,
Bonn(Beiheft 8 der HST), 251
218
“O aparecimento de um singular contra o outro é um múltiplo ter, o bem (das Gut), o meio exterior. Este é, segundo
sua natureza, enquanto um exterior, um universal, e nele os singulares irrelacionados se relacionam uns aos outros.
Mas é o bem de um deles; a relação de vários àquele [bem] é uma [relação] negativa, que exclui. Que a relação
excludente de um deles àquele seja uma [relação] racional, que ela seja em verdade uma totalidade, é deste
reconhecer que se trata na relação dos singulares.” (JSE I, 217)518
Novamente Hegel deixa claro, em íntima relação com a localização geral do conflito no
dano recíproco à posse, que surge necessariamente de uma projeção para o exterior de uma
pretensão em ser a totalidade, como o reconhecimento formará uma rede de relações composta
pela expansão racionalmente válida de reivindicações intersubjetivamente vinculantes. Além
disso, em conexão com a potência da família, Hegel sustenta, no Systementwurf 1803/04, uma
tese que se acha em profunda relação com a conexão entre teoria do reconhecimento, dissolução
ética da família e a gênese da sociedade civil. Hegel entende, analogicamente519, que a família
constitui a natureza inorgânica do espírito. A singularidade que emerge como ponto de partida da
luta por reconhecimento é uma totalidade “que, libertada da sua relação diferente, da sua
existência na natureza, tem de se tornar um espírito absolutamente positivo, um [espírito]
absolutamente universal; e a família como tal, a realidade da singularidade, é a natureza
inorgânica do espírito, a qual tem de se pôr a si mesma como uma [natureza] suspensa, tem de se
elevar à potência do universal. Nós consideramos primeiramente como ela é enquanto
subsistente, mas designada com o caráter da universalidade.”(JSE I, 226) Mesmo sendo elemento
espiritual e não propriamente natural, a família está para o espírito do povo assim como a
natureza inorgânica está para a orgânica. Isto acontece porque a vida ética universal “se nutre” da
família, na medida em que esta é, ao mesmo tempo, suspensa e posta no todo ético e nele obtém
sua confirmação ética. O espírito se nutre da mesma e por isso a suspende, já que ela é dissolvida
pela formação e plena individualização dos adultos, os quais, entretanto, fundam novas famílias,
o que revela justamente a permanente auto-reposição institucional da família a partir de sua
própria negação. A inovação sócio-filosófica da tese hegeliana acerca da constituição da luta por
reconhecimento aponta então para a tese de que a situação de absoluta exterioridade recíproca
entre os singulares é resultado da dissolução de um nível imediato de interação, de maneira que a
própria sociedade civil passa a ser compreendia como a permanente reprodução de um estado de
mútua exterioridade de indivíduos previamente formados em importantes aspectos de sua
individualidade no solo interativo pré-social520.
seines Besitzes und seines Seins) aparece ligada à sua inteira essência (Wesen), é absorvido em
sua indiferença – na medida em que ele põe cada momento como si mesmo; pois isto é a
consciência, o ser-ideal do mundo (das Ideellsein). O dano a qualquer de suas singularidades é,
portanto, infinito, [é] uma lesão absoluta, uma lesão dele como um todo, uma lesão de sua honra.
E o embate por cada singular é uma luta pelo todo (die Kollision um jedes einzelne ist ein Kampf
um das Ganze).”(JSE I, 217) A consciência enquanto totalidade é o ser-ideal do mundo, isto é,
cada totalidade individual, emergente da dissolução da relação ética primária da família, possuía
antes sua própria “orientação em relação ao mundo”, tanto no que concerne às suas faculdade
cognitivas, quanto com respeito à normatividade de sua reivindicação de “posse”, ou seja, de suas
pretensões dirigidas ao exterior. Não há ainda, portanto, a orientação universal, a validez
cognitiva e normativa universalizável521. Ora, se a consciência é totalidade intensiva, isto é,
identificação incondicional com cada um de seus momentos ou determinidades, então um conflito
por causa de um destes momentos é, na verdade, um conflito em nome do todo.
“Cada relação (Beziehung) do outro à minha singularidade é ela mesma uma [relação], e,
por causa da necessidade do reconhecer, tais relações têm de surgir. Eu me revelo nesta
singularidade como totalidade, eu torno a relação imediatamente infinita e, no que concerne ao
outro, eu me dirijo à posição de mim nele (und gehe in Ansehung des andern darauf, mich in ihm
zu setzen)”522 A necessidade do tangenciamento das reivindicações de totalidade é inscrita na
essência da consciência na mesma medida em que está inscrita, na pretensão de ser a totalidade, a
“necessidade do reconhecer”: “este reconhecer diz respeito, portanto, a se revelar para o outro
como totalidade da singularidade, a ver-se desta forma no outro e igualmente este [em si mesmo].
Mas neste realizar (realisieren) a totalidade da singularidade se suprime a si mesma.”523 Entender
como, a partir do inevitável contato entre os singulares que reivindicam, de maneira solipsista,
serem a totalidade, resultará o que tem de resultar, se acaso devam ser engendrados os laços
éticos e costumes que mantêm coesa uma comunidade e conferem, na base de um respeito
recíproco524 à intangibilidade, sentido à própria dispersão dos singulares, implica, para Hegel, em
que se vislumbre a natureza contraditória desta auto-suspensão da singularidade, ínsita no
movimento do reconhecer. “Este reconhecer dos singulares é, portanto, absoluta contradição nele
mesmo. O reconhecer é somente o ser da consciência enquanto uma totalidade numa outra
consciência, mas, ao se tornar efetivo, então ele suspende a outra consciência e, com isso, se
suspende o próprio reconhecer ... E realmente a consciência é, ao mesmo tempo, somente como
um tornar-se-reconhecido por uma outra (ein Anerkanntwerden von einem Andern); e ela é, ao
521
Schnädelbach vê nisso mais um indício da radicalização, proposta por Hegel, em relação ao modelo fichteano do reconhecimento, uma vez que
a premissa segundo a qual as consciências se impelem para a totalidade para si, o reconhecimento não é mais possível, como em Fichte, num
respeito recíproco, mas tem necessariamente de conduzir a uma contradição entre as pretensões de totalidade. Schnädelbach, Herbert – Hegels
praktische Philosophie: Ein Kommentar der Texte in der Reihenfolge ihrer Entstehung, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 2000, 151. Para
Schnädelbach, a construção hegeliana do reconhecimento como conhecimento de si no outro se afasta da concepção fichteana principalmente
porque, para Fichte, o reconhecimento ainda parece estar preso a elementos decisionistas e voluntaristas, a uma orientação pessoal para o respeito.
Mas, sendo assim, Schnädelbach conclui, seguindo Ilting, que a problemática do reconhecimento em Fichte se torna capaz de se subtrair ao
problema mais profundo que Hegel tem em mente, a saber: a contradição a que são necessariamente conduzidas as consciências no fazer valer de
suas pretensões unilaterais à totalidade. Seguindo a mesma orientação, Schnädelbach traça também um paralelo entre a teoria hegeliana do
reconhecimento com a primeira conseqüência depreendida por Hobbes da calamidade do estado de natureza, a primeira “lei da natureza”, a qual
ordena a instituição da paz, ou seja, a decisão voluntária por parte de todos a “firmarem um pacto”. Relacionada à visão de Hegel, o problema aqui
seria, segundo Schnädelbach, justamente que, do mesmo modo em que os indivíduos são “orientados” a instituir uma paz contratual, do mesmo
modo podem deixar de fazê-lo. Entretanto, ele enfraquece, ao nosso ver, seu paralelo ao ver traços de voluntarismo na concepção hegeliana deste
que é o elemento primordial do ser-reconhecido: a relação intra-familiar.
522
(JSE I, 220 Nota Em E dizia o seguinte até se dirige para a Morte(Tod geht) (221, linha 11), mais tarde modificado)
523
A passagem seguinte até si mesmo em si mesmo, (linha 34) dizia em E (mais tarde modificado)
524
Que, apesar de a luta por reconhecimento desembocar diretamente no espírito ético, Hegel concebe aqui uma gênese de uma convivência
jurídica baseada no respeito recíproco à esfera de ação, o qual certamente é possibilitado pelo solo ético de costumes imediata e
intersubjetivamente vinculantes, fica claro quando ele, em meio à discussão acerca da luta de vida e morte, diz: “que minha totalidade, enquanto
[totalidade] de um singular, seja, na outra consciência, justamente esta totalidade sendo-para-si – que ela seja reconhecida, respeitada ...” (JSE I,
217 Nota “Em E dizia o seguinte até pôr (setzen), (219, linha 38) depois modificado”).
220
mesmo tempo, somente consciência enquanto um uno numérico absoluto, e tem de ser
reconhecida como tal, isto é, ela tem de se dirigir à morte do outro e à sua própria, e é somente na
efetividade da morte.”(JSE I, 221) Com efeito, na medida em que o reconhecer exige a auto-
posição de si na alteridade, expansão da reivindicação de ser a totalidade sobre o outro, está
implícita na auto-suspensão da singularidade pela sua auto-apresentação na outra singularidade o
célebre conceito hegeliano da luta de vida e morte525. A luta de vida e morte significa a
radicalização526 do contato entre as duas reivindicações de totalidade: cada singular “toma a
consciência” de que sua pretensão de ser a totalidade somente obtém validade se ele se dirige à
aniquilação do outro.
“Eu somente posso conhecer a mim mesmo, como esta totalidade singular na consciência do outro, na medida em
que eu me ponho na sua consciência como um tal, que eu seja, no meu excluir, uma totalidade do excluir, que eu me
dirija à morte dele. Dirigindo-me à sua morte, exponho-me eu mesmo à morte, eu arrisco minha própria vida, eu
cometo a contradição de querer afirmar a singularidade do meu ser e da minha posse. E esta afirmação passa ao seu
contrário: eu sacrifico toda esta posse e a possibilidade de toda posse e fruição, sacrifico a própria vida.” (JSE I, 220)
525
“O reconhecer recíproco da totalidade singular de cada um, na medida em que esta [totalidade] singular é negada, torna-se uma relação
negativa da totalidade: cada qual tem de pôr a si mesmo de tal forma enquanto totalidade na consciência do outro que ele emprega frente ao outro
toda a sua totalidade aparecente, sua vida na conservação de qualquer singularidade (das er gegen den andern seine ganze erscheinende Totalität,
sein Leben, an die Erhaltung irgendeiner Einzelheit setzt), / e cada um tem igualmente de se dirigir à morte do outro.”(JSE I, 219/220)
526
Ao contrário do que acontece na Fenomenologia e na Enciclopédia, no Systementwurf 1803/04 Hegel menciona apenas muito rapidamente a
relação de dominação como um expediente que possa estancar a luta antes da morte propriamente dita, a qual aniquila também a possibilidade de
reconhecimento. Este desenvolvimento se conecta, sem dúvida, com o fato de que aqui o movimento de reconhecer é compreendido claramente no
movimento de gênese intersubjetiva do espírito do povo como autoconsciência universal, o que se deixa perceber também na importância
diminuta que a relação de dominação terá na teoria do reconhecimento em Nuremberg e Berlim.“Este reconhecer da singularidade da totalidade
engendra, portanto, o nada da morte. Cada tem de conhecer do outro, se ele é uma consciência absoluta α) cada um tem de se pôr numa tal relação
frente ao outro, por meio do que isto vem à luz: ele tem de lesá-lo, e cada um somente pode saber do outro se ele é totalidade, ao impeli-lo até a
morte. E cada um somente se revela, da mesma forma, como totalidade para si, ao se dirigir consigo mesmo para a morte. Se ele em si mesmo se
demora nos limites da morte (innerhalb des Todes), se ele se revela ao outro somente como pondo em jogo nisso a perda (Verlust) de uma parte ou
de toda a posse, como chaga e não como a vida mesma, então ele é para o outro imediatamente uma não-totalidade, ele não absolutamente para si,
e se torna o escravo do outro. Se ele, no interior da morte, fica parado de maneira contígua ao outro (wenn er an dem andern innerhalb des Todes
stehenbleibt) e suspende o conflito antes da morte, então ele nem se revelou como totalidade, nem reconheceu o outro como tal.”(JSE I, 221)
527
Siep, Ludwig –„Der Freiheitsbegriff der praktischen Philosophie Hegels in Jena“, in: Siep, Ludwig–Praktische Philosophie im deutschen
Idealismus, Frankfurt am Main, 1992, 158-181
528
(JSE I, 217 Nota “Em E dizia o seguinte até pôr (setzen), (219, linha 38) depois modificado”)
529
Embora no Systementwurf 1803/04 Hegel insira o movimento do reconhecer diretamente na gênese do espírito do povo enquanto consciência
universal, é lícito supor que ele compreenda esta gênese como algo que poderia ser desmembrado em termos de uma gênese do espírito ético do
povo e uma gênese do reconhecimento universal da propriedade e dos títulos de direito. “Ao me pôr como totalidade da singularidade, eu me
suprimo a mim mesmo enquanto totalidade da singularidade. Eu quero ser reconhecido nesta extensão da minha existência, em meu ser e minha
posse; mas, ao suprimir esta existência, eu os transformo, e somente me torno em verdade reconhecido enquanto racional, enquanto totalidade, ao
dirigir-me eu mesmo à morte do outro, ao arriscar minha própria vida e esta / extensão de minha existência mesma, ao suprimir a totalidade da
minha singularidade.”(JSE I, 220/221) De fato, embora a noção de posse seja, em sua identificação enquanto determinidade com a totalidade da
singularidade, extremamente importante para a discussão do movimento do reconhecer e do seu “dirigir-se à morte”, na medida em que a
221
somente pode ser reconhecido pelo outro, na medida em que seu aparecimento múltiplo é nele
indiferente, em cada singularidade de sua posse se corrobora como infinita e vinga cada dano até
a morte.” 530 Tal como a necessidade da própria tangência das “esferas de totalidade” estava
inscrita na própria essência da pretensão erguida pela consciência singular, também a necessidade
de que todas as suas posses – e, a fortiori, sua vida – sejam postas em jogo reside na própria
essência da consciência, a qual “é essencialmente tal que a totalidade do singular se contrapõe a
si e permanece a mesma neste tornar-se-outro (Anderswerden), tal que a totalidade do singular
está numa outra consciência e seja a consciência do outro, e nesta [consciência] seja justamente
este absoluto permanecer da mesma [totalidade], o qual ela tem para si; ou tal que elas são
reconhecidas pelo outro.”531 Nesta radicalização da luta por reconhecimento representada na luta
de vida e morte, dissolve-se, na medida em que os combatentes chegam ao paroxismo da
renúncia a si mesmos como totalidade da singularidade532, a afirmação abstrata de si contida na
pretensão singular de ser a totalidade, de maneira que a mesma é suspensa.
“Que nós tomamos conhecimento de que o reconhecido somente é totalidade, consciência, ao se suspender, é
somente um conhecer desta própria consciência: ela própria faz esta reflexão de si mesma em si mesma de que a
totalidade singular, ao / se conservar como tal [totalidade] quer ser, sacrifica-se a si mesma de maneira absoluta, se
suspende e, com isso, faz o contrário daquilo a que se dirige. Ela mesma somente pode ser como uma [totalidade]
suspensa; ela não pode se conservar como sendo uma [totalidade] (als eine seiende), e sim somente como uma
[totalidade] posta enquanto suspensa: com isso ela se põe a si mesma como uma [totalidade] suspensa e somente
como uma tal [totalidade] pode ser reconhecida, este imediatamente Uno e o mesmo. Ela é uma [totalidade] que se
suspende a si mesma, e é uma [totalidade] reconhecida, a qual é em outra consciência que não ela mesma: ela é com
isso consciência absolutamente universal.”(JSE I, 221/222)
O término do embate não é, portanto, o conhecer imediato de si mesmo no outro, mas uma
postura recíproca pautada pelo reconhecimento, pelo conhecimento de que a identidade do eu
somente é possível pela mediação do reconhecimento do outro reconhecido por mim. “Este
reconhecer absoluto contém com isso imediatamente em si mesmo uma contradição: ele se
suspende a si mesmo somente de maneira infinita (es ist nur unendlich sich selbst aufhebend). A
singularidade enquanto totalidade deve ser reconhecida, deve ser tanto para mim, como na
consciência do outro.”533 A luta por reconhecimento vai mostrar-lhe a incompatibilidade de
singularidade excludente e totalidade, pois ela faz a experiência da contradição de que não se
pode ver em seu outro enquanto singularidade excludente sem aniquilar a si mesma ou a ele, o
que representa a inversão da consciência da individualidade em consciência do espírito do povo.
Eis porque o reconhecimento fundamenta a conexão necessária entre as formas da consciência
prática e as instituições da eticidade substancial. Com o processo de reconhecimento, é a própria
essência da consciência, de ser o contrário imediato de si mesma, que se torna para ela parte da
sua constituição cognitiva, isto é, parte de sua experiência, o que veio a ser na inversão de sua
totalidade excludente propiciada pela luta. “Este ser do estar-suspenso (Aufgehobensein) da
consciência “adquire toda sua posse, põe a lesão, o não-ser-reconhecido (das Nichtanerkanntwerden) de seu excluir, como infinita ... se apresenta
a si mesma como sustentando (vertretend) cada singularidade com sua inteireza.” (JSE I, 221 Nota), Hegel admite que, no espírito do povo
enquanto totalidade ética, há o reconhecimento universal da mesma. “Em sua singularidade, a posse se torna igualmente, na totalidade de um
povo, uma [posse] universal; ela permanece posse deste singular, mas, na medida em que ele é posto assim [como singular] pela consciência
universal, ou seja, na medida em que nesta todos possuem o seu, isto é, ela se torna propriedade. Seu excluir se torna um tal que todos excluem
comunitariamente todo outro igualmente, e, na posse determinada, todos têm igualmente sua posse, ou seja, que o possuir do singular é o possuir
de todos.”(JPG I, 230/231) Segundo nossa interpretação, é por isso que, no Systementwurf 1805/06, a luta por reconhecimento é inserida
sistematicamente na gênese da eticidade enquanto “espírito efetivo” e “vontade universal”, gênese que é imediatamente, entretanto, direito.
530
(JSE I, 217 Nota “Em E dizia o seguinte até pôr (setzen), (219, linha 38) depois modificado”)
531
(JSE I, 217 Nota “Em E dizia o seguinte até pôr (setzen), (219, linha 38) depois modificado”)
532
“Mas ela somente pode se apresentar como todo ao se suspender como ente nos singulares, ao sacrificar (hingibt), na defesa de si mesma, sua
posse à destruição e a vida como o simples aparecimento que compreende em si todos os lados da totalidade da singularidade. Portanto, ela
somente pode ser totalidade da singularidade na medida em que renuncia a si mesma como totalidade da singularidade, e, da mesma forma, à outra
na qual ela quer ser conhecida ... Este reconhecer é absolutamente necessário ...”(JSE I, 221 Nota)
533
(JSE I, 220 Nota Em E dizia o seguinte até se dirige para a Morte(Tod geht) (221, linha 11), mais tarde modificado)
222
534
Wildt, Andreas – Autonomie und Anerkennung. Hegels Moralitätskritik im Lichte seiner Fichte-Rezeption, Stuttgart, 1983, p. 337
535
Schnädelbach difere de Honneth acerca da mediação alcançada por Hegel das teses de Hobbes e de Fichte. Schnädelbach, Herbert – Hegels
praktische Philosophie: Ein Kommentar der Texte in der Reihenfolge ihrer Entstehung, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 2000, 153 Segundo
Schnädelbach, Hegel segue explicitamente Hobbes ao considerar o bellum omnium contra omnes como resultado de uma atribuição generalizada
de um direito ilimitado a tudo, mesmo à existência física dos Mitmenschen, o que Hegel traduz na forma de uma reivindicação pela totalidade. É
justamente a situação primordial, subentendida pelo conceito hebbesiano de estado de natureza e ancorada em concepções antropológicas, que
Hegel procura explicitar intersubjetivamente ao inserir em sua compreensão o princípio transcendental que rege a teoria fichteana do
reconhecimento. Este apelo ao argumento transcendental é, para Schnädelbach, parte da herança fichteana em Hegel que Honneth desconsidera: o
indivíduo efetivo do estado de natureza em Hobbes se torna a consciência em sua prerrogativa de ser o ser-ideal do mundo. Da mesma maneira, o
Ansatz fichteano é contrabalançado pela dinamização conflituosa do modelo de reconhecimento, isto é, pela radicalização do “ser-ideal do
mundo” numa reivindicação de totalidade erguida por todo indivíduo sob a ausência completa de instituições jurídicas e éticas. No entanto, como
se tornou claro, Hegel compreende este estado de conflito como dissolução de um estado de interação ética imediata, o qual é, na verdade,
responsável pela formação de sujeitos adultos plenamente individualizados.
536
Wildt, Andreas – Autonomie und Anerkennung. Hegels Moralitätskritik im Lichte seiner Fichte-Rezeption, Stuttgart, 1983, p. 339
537
Wildt, Andreas – Autonomie und Anerkennung. Hegels Moralitätskritik im Lichte seiner Fichte-Rezeption, Stuttgart, 1983, p. 339
538
Wildt, Andreas – Autonomie und Anerkennung. Hegels Moralitätskritik im Lichte seiner Fichte-Rezeption, Stuttgart, 1983 Wildt também
antecipa, com bastante força, a discussão feita por Honneth com respeito à motivação do crime ou da lesão que engendram a luta. Para Wildt, “o
pôr em questão da própria identidade é, no entanto, fundamental para a lesão de normas morais; pois o convenciamento racional da validade de
normas morais é fundamentado justamente em que o reconhecimento das mesmas é condição necessária para sentido e identidade do eu. A
223
do processo à aquisição pela consciência singular de sua mais adequada realidade no espírito do
povo, Hegel torna evidente que o pleno desenvolvimento da identidade singular se dá somente na
tessitura da vida comunitária definida pelo mútuo reconhecimento de direitos e deveres539. Como
para Hegel a consciência somente tem uma existência genuína como reconhecida, só há vida
social sob a pressuposição de um reconhecimento intersubjetivamente partilhado de direitos e
deveres. Mostrar como uma tal pressuposição reside no próprio movimento da consciência é o
sentido primordial da inserção do reconhecimento na filosofia do espírito em Jena. É neste
sentido que, para Hegel, a luta perde todo apelo a um raciocínio hipotético e é desprovida mesmo
de todo significado social efetivo: trata-se somente da contra-face necessária do estado de
sociedade, quando este é mostrado em sua gênese a partir de uma teoria da consciência, isto é, o
negativo do mesmo que contém a condição de sua positivação, a experiência da consciência de
sua destinação ético-social enquanto racionalidade jurídico-moral. A luta propicia, portanto, a
“auto-experiência das estruturas da razão prática e das condições interpessoais da identidade do
eu.”540
identidade do eu não é, portanto, somente posta em questão na experiência da morte, mas toda preocupante transgressão de normas
morais.”(340/341) Comparar com a discussão feita por Honneth em toda a primeira parte de seu trabalho sobre o reconhecimento no jovem Hegel.
539
Wildt, Andreas – Autonomie und Anerkennung. Hegels Moralitätskritik im Lichte seiner Fichte-Rezeption, Stuttgart, 1983, p. 340 Para Wildt, a
teoria hegeliana do reconhecimento é primordialmente uma compreensão dos efeitos que uma identidade do eu não plenamente desenvolvida pode
ter a relação de si aos outros. Neste sentido, antecipando Honneth e, sob alguns aspectos, propiciando uma visão diferenciada dos estágios de
identidade individual dentro do próprio processo de reconhecimento, Wildt estabelece que o desenvolvimento da identidade do eu se dá em três
estágios: o estágio da pretensão à totalidade, o estágio heróico da honra e a identidade propriamente social ocasionada pelo reconhecimento de
direitos e deveres. Eis porque Wildt define o intento mais fundamental da teoria de Hegel como sendo “a fundamentação do ponto de vista da
razão jurídico-moral”(240), fundamentação para a qual a luta se caracteriza como meio positivo, que traz em si a condição de sua própria
superação. Nisto Wildt vê a inversão operada por Hegel no conceito hobbesiano de luta: a luta é necessária para a constituição da razão prática,
pois somente no risco de morte o singular é levado à experiência de sua racionalidade. Esta leitura muito perspicaz pode ser comparada com a
teoria de Honneth, segunda a qual o movimento de constituição da eticidade em Hegel se desenvolve segundo estágios sucessivos de
reconhecimento aos quais correspondem graus diferenciados da identidade individual, ou seja, amor e auto-estima, direito e respeito por si,
solidariedade e estima social. Ver Honneth, Axel – Kampf um Anerkennung. Zur moralischen Grammatik sozialer Konflikte, Suhrkamp,
Frankfurt am Main, 1992, 45 e seg. Note-se aqui apenas como Honneth e Wildt divergem profundamente em sua interpretação do teor normativo
do conceito hegeliano de honra, ponto de vista que Wildt considera fanático e no qual, portanto, nada de racional se pode encontrar.
540
Wildt, Andreas – Autonomie und Anerkennung. Hegels Moralitätskritik im Lichte seiner Fichte-Rezeption, Stuttgart, 1983, 342
541
JSE I, 223 Nota Na margem lateral em cima
224
consciência de sua liberdade, estariam plenamente aptos a dar seu consentimento a um estado
civil. Para Hegel, um “estado civil” pressupõe, no mínimo, a formação da individualidade, não
somente seu destacamento na esfera da educação, mas sua recondução a padrões ético-jurídicos
de uma aquiescência intersubjetivamente gerada. Neste sentido, não somente a razão pura prática
plenamente formada no quadro da racionalidade procedimental em que se baseia o contrato
originário, mas também o voluntarismo e decisionismo peculiares ao assentimento arbitrário em
submeter-se a uma regulação civil da liberdade, bem como a promessa em permanecer sob tal
regulação542, são postas em xeque: em suma, para Hegel, o contrato não é possível, pois suas
próprias condições de possibilidade não são alcançáveis no estado de natureza543.
542
Hegel é especialmente crítico em relação à substituição da experiência concreta contida no reconhecimento pela noção abstrata, incompleta e
voluntarista da promessa como embasamento para a constituição do estado civil, algo que pode ser reconduzido por Hegel ao quadro geral de uma
confusão contratualista do Staatsrecht com o Privatrecht, ainda que este também esteja assim numa acepção errônea. Esta crítica é quase sempre
ilustrada por sua teoria da linguagem enquanto potência teórica da consciência. “Se eles se comportam negativamente, deixam um ao outro, então
nenhum deles apareceu ao outro como totalidade, e também não [apareceu] o ser de um na consciência do outro, nem o apresentar (Darstellen),
nem o reconhecer. A linguagem, explicações, promessas não são este reconhecimento, pois a linguagem é somente um meio ideal: ela desaparece
tal como aparece, não é um reconhecimento que permanece, um reconhecimento real. Este somente pode ser um [reconhecimento] real, ao se pôr
cada singular de tal forma como totalidade na consciência do outro,”(JSE I, 217 Nota “Em E dizia o seguinte até pôr (setzen), (219, linha 38)
depois modificado”) “Isto nenhum deles pode provar ao outro por palavras, asseguramentos, ameaças ou promessas; pois a linguagem é somente a
existência ideal da consciência: mas aqui estão um contra o outro, [seres] efetivos, i.e. [seres] absolutamente contrapostos, absolutamente sendo-
para-si, e sua relação é uma [relação] puramente prática, mesmo uma [relação] efetiva: o meio de seu reconhecer tem de ser ele mesmo um [meio]
efetivo.”(JSE I, 218/219)
543
Para uma excelente caracterização da crítica hegeliana ao contratualismo, ver: Patten, Allen – Hegel´s Idea of Freedom, Oxford, 1999, cap. 4 e
–“Social Contract Theory and the Politics of Recognition in Hegel´s Political Philosophy ”, in: Williams, R. R. – (ed.) Beyond liberalism and
communitarianism: studies in Hegel´s Philosophy of right, Albany, New York, 2001, 167-184 Patten reconstrói, em toda a sua profundidade, a
crítica hegeliana ao contratualismo mostrando como Hegel aposta em que os processos de socialização e individualização vinculados ao conceito
de reconhecimento, processos que são mediados pelas instituições sócio-políticas da eticidade moderna, são imprescindíveis para formar a própria
liberdade individual (capacidades, atitudes volitivas e auto-compreensão) à qual recorre o contratualismo para basear o contrato social em um
assentimento arbitrário por parte do indivíduo. Na mesma linha de nossa interpretação, mas focalizando as Grundlinien, Patten localiza também
no conceito de reconhecimento efetivado como Bildung a formação da capacidade de fazer uso da liberdade no sentido de fomentar a existência de
um tecido ético-jurídico, uso pressuposto pelo contratualismo. Neste feixe de questões, Patten desvenda a opção hegeliana por uma investigação
substancialista, isto é, tomando como ponto de partida a base sócio-política de formação da capacidade para a liberdade.
544
Aqui nos desviamos profundamente da leitura de Honneth. Para ele, na medida em que o movimento da consciência se inicia com a
confrontação teórica e prática do indivíduo com seu mundo circundante, “o processo intelectual de formação que resulta desta confrontação e se
desenvolve na forma de uma reflexão do espírito sobre as capacidades de mediação que já foram executadas por ele intuitivamente, surge primeiro
225
singular vê a si mesma enquanto uma [totalidade] ideal, suspensa, e ela não é mais [totalidade]
singular, e sim é para si mesma este estar-suspenso de si mesma, e ela é somente reconhecida, é
somente universal enquanto esta [totalidade] suspensa.” (JSE I, 222) Antes, a própria perspectiva
em que emerge o “ser-reconhecido” é, primordialmente, uma perspectiva intersubjetiva, isto é, do
reconhecimento de uma consciência singular em outra consciência singular.
“Eu sou totalidade absoluta, estando / a consciência dos outros enquanto uma totalidade da singularidade em mim
somente como uma [totalidade] suspensa [da singularidade], mas da mesma forma a minha totalidade da
singularidade é uma [totalidade] suspensa no outro. A singularidade é singularidade absoluta, infinidade, contrário
imediato de si mesma. [É] a essência do espírito: ter em si de uma maneira simples a infinitude, de tal forma que a
oposição se suspenda imediatamente. Estas três formas do ser, do suspender e do ser como estar-suspenso (als
Aufgehobensein) são postos absolutamente como um.”(JSE I, 222/223)
Hegel está de tal forma tomado pela idéia de que o autêntico Einssein somente é
engendrado em uma perspectiva intersubjetiva que faz coincidir explicitamente a gênese do ser-
reconhecido com o momento, inscrito na própria essência da consciência, de conversão da
singularidade excludente em singularidade absoluta. O que chama também a atenção é que ele
identifica o momento da singularidade absoluta, unidade dos três momentos que perfazem a
“lógica” do movimento da consciência (ser, suspender e ser como estar-suspenso), não com o
espírito do povo ele mesmo, mas como sua essência. Em vista do desenvolvimento da teoria da
intersubjetividade de Hegel em Jena, este aparentemente simples resultado se registra como um
enunciado lapidar: a essência da substância ética enquanto espírito do povo é a estrutura
intersubjetiva fornecida pelo ser-reconhecido de uma consciência singular em outra. “Este ser da
consciência, que é enquanto totalidade singular, enquanto uma [totalidade] que abriu mão de si
mesma, vê-se justamente nisso a si mesma em outra consciência, é imediatamente ela mesma
para si enquanto uma outra consciência, ou seja, ela é em outra consciência somente enquanto
esta outra consciência de si mesma (ihrer selbst), i.e como [totalidade] suspensa de si mesma.”
(JSE I, 222) É somente este nexo intersubjetivo que pode conectar a idéia do espírito do povo
como substância ética ao télos do processo de reconhecimento da consciência singular, marcado
pela renúncia de si, pela renúncia à sua perspectiva solipsista e ensimesmada, com vistas ao
reencontro de si mesma na alteridade no contexto de uma universalidade intersubjetivamente
abrangente, na qual, um “tornar-se reconhecido” que é condição para a existência da
consciência545, a singularidade está novamente preservada. “Dessa forma, ela é reconhecida: em
toda outra consciência, ao ser em uma outra [consciência], ela é o que é imediatamente para si
mesma, uma [totalidade] suspensa, por meio do que a singularidade está salva.”(JSE I, 222)
no sujeito individual uma consciência da totalidade, antes que ele, de maneira secundária, conduza aquele nível de generalização ou
descentramento da perspectiva do eu que é concomitante com a luta por reconhecimento.”(52) Eis porque, para Honneth, Hegel pagou sua adesão
à teoria da consciência com uma renúncia ao intersubjetivismo em sentido forte, o qual residia no recurso ao ponto de partida teórico-
comunicativo aristotélico. Uma visão profundamente diferente de Honneth no tocante à submissão do intersubjetivismo à adesão à teoria da
consciência é advogada por Wildt. Wildt, Andreas – Autonomie und Anerkennung. Hegels Moralitätskritik im Lichte seiner Fichte-Rezeption,
Stuttgart, 1983, p. 341 Para Wildt, enquanto Hegel desenvolve, no System der Sittlichkeit, sua teoria do reconhecimento a partir de uma teoria do
crime; por outro lado, a partir de 1803, a luta não se origina mais de um crime contra um estágio prévio de relação comunicacional entre os
indivíduos, o que não significa, para Wildt, que, aliada à sua capacidade socializadora e geradora de normas, a teoria do reconhecimento perca,
como quer Honneth sua capacidade de intensificação das capacidades individuais. Ver: Honneth, Axel – Kampf um Anerkennung. Zur
moralischen Grammatik sozialer Konflikte, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1992, 45 em diante. Para Wildt, a diferença da teoria do
reconhecimento em sua nova versão em relação à teoria do crime não está em que ela subtrai a lesão ao outro de qualquer vinculação normativa,
mas que “ela, seguindo o atalho que passa pelo conceito de consciência e a experiência da mesma em relação à própria morte, relaciona a temática
do crime explicitamente à problemática da identidade do eu. Ela declara, sobretudo, que a lesão de um sistema válido de direitos e deveres ... abala
de tal forma o sentido da vida social que os envolvidos não podem se furtar à percepção de que uma identidade somente é possível, se se fixa na
intenção fundamental dos direitos e deveres e ela é, ao mesmo tempo, racionalmente concretizada.”(341)
545
“A totalidade singular é, pois as outras totalidades singulares são postas como [totalidades] suspensas: põe-se assim na consciência suspensa do
outro, torna-se reconhecida. Nestes sua totalidade é da mesma forma uma [totalidade] suspensa, e, ao se realizar no reconhecer, ela está suspensa:
e ela é neste para si mesma como [consciência] suspensa; ela conhece-se a si mesma como uma suspensa, pois justamente ela somente é enquanto
reconhecida. Como não reconhecida, como não [sendo] uma outra consciência que não ela mesma, ela simplesmente não é, seu tornar-se-
reconhecido (sein Anerkanntwerden) é sua existência, e ela somente é nesta existência enquanto uma [consciência] suspensa.”(JSE I, 223)
226
Por outro lado, a questão do “salvamento” da singularidade cria o ensejo para que se
aborde o segundo registro em que se aprofunda a gênese do Einssein, a saber: a relação entre a
singularidade e a substância ética. A preservação da singularidade no contexto de uma
“percepção” intersubjetivamente ampliada da totalidade se conecta intimamente com a
modificação na compreensão hegeliana do indivíduo imerso na substância, a qual se afasta
consideravelmente da perspectiva erguida por uma Ständelehre, ainda que o Naturrechtaufsatz a
tivesse superado de certa forma, ao explicitá-la em termos de uma teoria da consciência (TWA 2,
506). A perspectiva à qual é elevada a consciência singular na experiência da renúncia de si e do
auto-sacrifício é nitidamente vinculada não à postura de uma “casta de guerreiros”, mas ao
processo pelo qual a totalidade intensiva que emerge da família se expande a uma totalidade
extensiva, de maneira que a identificação da consciência com cada uma de suas determinidades é
convertida em uma auto-identificação como determinidade de um todo ético, já que o autêntico
ser-para-si somente é obtido, em uma nítida antecipação do movimento “fenomenológico” da
“verdade da certeza de si”, nesta renúncia que é reencontro de si mesma na alteridade. Ao mesmo
tempo, a radicalização de uma disposição para a morte em nome da “totalidade” é agora
conectada apenas com a radicalização de pretensão de totalidade da consciência singular546.
Eis porque, nos termos precisos da teoria da consciência que subjaz à teoria do
reconhecimento e à gênese do Einssein no Systementwurf 1803/04, a imersão da consciência
singular na substância ética é compreendida de maneira bastante peculiar. “Ela é uma consciência
universal e que persiste, ela não é uma mera forma dos singulares sem substância, mas sim os
singulares não são mais: ela é substância absoluta, é espírito de um povo, para o qual a
consciência como singular é forma somente para si, a qual se torna imediatamente uma outra, o
lado de seu movimento, a eticidade absoluta.”(JSE I, 223) Ainda que aderindo à metafísica
espinosana da substância – “o espírito absoluto de um povo é o elemento absolutamente
universal, o éter, que tragou (verschlungen) todas as consciências singulares: a substância única,
viva, simples e absoluta.” (JSE I, 224) –, Hegel compreende aqui a “dissolução do acidente” não
tanto de maneira negativa segundo a doutrina da bravura e da disposição para a morte em nome
do todo (ainda que este núcleo temático continue a ser, certamente, determinante), mas como uma
existência ética do indivíduo, uma existência ética que tem como contrapartida a tessitura de uma
existência comunitária baseada em costumes que são, antes de mais nada, intersubjetivamente
vinculantes; ou, em outras palavras, modos de vivência comunitária cujo seguimento é sentido
pelo indivíduo como elemento imprescindível da constituição de sua própria identidade. “O
singular como membro de um povo é um ser ético (ein sittliches Wesen), cuja essência [é] a
substância viva da eticidade universal, [ao passo que] ela como [consciência] singular, como
forma ideal de um ente, [é] apenas como suspensa. O ser (das Sein) da eticidade em sua
multiplicidade viva são os costumes do povo.”(JSE I, 223)
546
“A totalidade singular está posta em si mesma enquanto uma [totalidade] meramente possível, não sendo-para-si (nicht fürsichseiende) – em
seu subsistir [é] somente uma tal [totalidade] que sempre está pronta para a morte, que renunciou a si mesma, que certamente é enquanto
totalidade singular, como família e na posse e na fruição, mas de tal forma que esta relação (Verhältnis) é, para ela mesma, uma [relação] ideal e
se revela como [relação] que se sacrifica a si mesma.” (JSE I, 222)
227
(die erscheinende Mitte) dos contrapostos, aquilo em que eles são igualmente um – na medida em
que nele eles se contrapõem e contra o qual são ativos, seu Uno aniquilante (ihr vernichtendes
Eins), cuja atividade contra eles é sua própria atividade, assim como sua atividade contra o
mesmo [é] a atividade do espírito.”(JSE I, 224) Como elemento emergente da luta por
reconhecimento, o espírito do povo é a consciência absolutamente real, eticidade absoluta
enquanto unidade da substância e da forma, a qual se efetiva plenamente como “devir do espírito
ético”547, nos costumes de um povo. O espírito de um povo é, enquanto espírito absoluto no
Jenaer Systementwürf 1803/1804, a substância simples universal e, ao mesmo tempo, a
unificação da atividade individual de todos, a obra de todos enquanto devir permanente de tais
atividades em seu espírito, em sua substância estável e permanente, “a obra ética do povo”
enquanto “ser vivo do espírito universal”548. “O espírito do povo tem de se tornar eternamente
obra, ou seja, ele é somente como um eterno tornar-se espírito (als ein ewiges Werden zum
Geiste) ... Eles o produzem, mas eles o reverenciam como um ente-para-si (als ein
Fürsichseindes). E ele é para si mesmo, pois a atividade deles, por meio do que eles o
engendram, é o suspender deles próprios, ao que eles se dirigem, é o espírito universal sendo-
para-si.”(JSE I, 224) Entretanto, tanto o Systementwurf 1805/06 quanto as Grundlinien revelam
que, no primeiro esboço não publicado de Jena, Hegel envereda por uma compreensão de uma
eticidade absoluta na qual o direito e a liberdade do indivíduo assumem um papel subordinado.
547
“O devir absoluto desta idéia de espírito a partir de sua natureza inorgânica, [devir] do espírito ético (des sittlichen Geistes) é a necessidade de
seu agir na totalidade de sua obra.”(JSE I, 225)
548
“Tem de ter verdade [a tese de] que os singulares põem sua totalidade singular como uma [totalidade] ideal ... A obra ética do povo é o ser-vivo
(das Lebendigsein) do espírito universal, ele [é] como espírito ser-um ideal deles, enquanto obra [é] o meio deles ... e esta [obra] enquanto
universal, igualmente suprimem nela imediatamente somente a si mesmos, e são para si uma atividade suspensa, [uma] singularidade
suspensa.”(JSE I, 225)
549
Gadamer, Hans Georg – „Hegels Dialektik des Selbstbewußtseins“, in: Fulda, Hans Heinrich und Dieter Henrich (Hg.) – Materialen zu
Hegels „Phänomenologie des Geistes“, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1992, 217-242
550
Os trabalhos que, neste sentido, foram realmente inovadores e inauguraram esta corrente interpretativa de Hegel, bem como, muitas vezes,
também pontos de partida filosóficos até hoje bastante influentes, seriam os seguintes: Honneth, Axel–Kampf um Anerkennung. Zur moralischen
Grammatik sozialer Konflikte, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1992; Siep, Ludwig (Hg.) –Anerkennung als Prinzip der praktischen Philosophie,
Freiburg/München, 1976 Wildt, Andreas – Autonomie und Anerkennung. Hegels Moralitätskritik im Lichte seiner Fichte-Rezeption, Stuttgart,
1983
551
Uma recente orientação de trabalhos sobre a filosofia social e jurídica de Hegel empreende uma revalorização do conceito fichteano-hegeliano
de reconhecimento e pretendem, por essa via, re-atualizar a filosofia ética de Hegel tornando-a profícua para os atuais debates da filosofia política.
Nesta linha, poderíamos mencionar: Williams, R. R. – (ed.) Beyond liberalism and communitarianism: studies in Hegel´s Philosophy of right,
Albany, New York, 2001; – Hegel´s Ethics of Recognition, London/Los Angeles, 1997; Siep, Ludwig – „Selbstverwirklichung, Anerkennung und
politische Existenz. Zur Aktualität der politischen Philosophie Hegels“, in: Gerechtigkeit und Politik. Philosophische Perspektiven, hrsg. v. R.
Schmücker und U. Steinvorth, Berlin, 41-56; Honneth, Axel– Das Andere der Gerechtigkeit: Aufsätze zur praktischen Philosophie, Surhkamp,
Frankfurt am Main, 2000; –„Gerechtigkeit und Kommunikative Freiheit: Überlegungen im Anschluss an Hegel“, in: Merker, Barbara und Georg
Mohr/Michael Quante – Subjektivität und Anerkennung , Mentis, Frankfurt am Main, 2004, 213-226; Habermas, Jürgen – Wahrheit und
Rechtfertigung: philosophische Aufsätze, Frankfurt am Main, 1999
228
prática são sobretudo duas coisas: primeiramente, a ampliação do reconhecimento jurídico do respeito
recíproco à liberdade da pessoa a formas “solidárias” de consentimento ao bem estar e à “identidade”
pessoal do outro. Em segundo lugar, a idéia de um modelo integrado de consentimento (Zustimmung),
limitação e do deixar-livre (Freigabe). Se Hegel torna este “movimento” o fio condutor de sua
apresentação sistemática das formas de comportamento, construtos sociais (família, profissões e estado)
e instituições (direito, administração e poderes públicos), então ele põe com isso à disposição da
filosofia prática – tanto sistemática quanto “concreta” – um princípio talvez ainda hoje proveitoso.”552
De acordo com esta vertente, a vantagem da teoria hegeliana do reconhecimento frente a outras teorias
pós-hegelianas da socialização estaria em mostrar geneticamente a co-originalidade e a mútua
implicação da autoconsciência individual e da intersubjetividade social. Neste sentido, mesmo que
Hegel não tenha explorado todas as potencialidades de seu conceito de reconhecimento no quadro de
sua filosofia social madura, o paradigma desenvolvido em sua teoria da intersubjetividade talvez
contenha um profícuo ponto de partida para superar dialeticamente a unilateralidade de pontos de vista
exclusivamente comunitaristas ou liberais553.
Seja do ponto de vista conceitual da progressão das figuras da consciência554, seja sob a
perspectiva do substrato histórico-filosófico correspondente às mesmas555, já foi amplamente
demonstrado que o movimento do reconhecimento tem uma importância sistemática para a
Fenomenologia que excede sua tematização mais evidente nas partes introdutórias do capítulo
552
Siep, Ludwig –„Die Bewegung des Anerkennens in der Phänomenologie des Geistes“, in: Köhler, Dietmar und Otto Pöggeler (Hg.) – G.W.F
Hegel, Phänomenologie des Geistes (Klassiker auslegen), Berlin, 1998, 107-127; 121
553
Para uma reconstrução pormenorizada tanto daquilo que se convencionou chamar de “debate entre comunitaristas e liberais”, quanto das
conexões do mesmo com o embate entre neoaristotelismo e ética do discurso, ver: Forst, Rainer –„Kommunitarismus und Liberalismus:
Stationen einer Debatte“, in: Honneth, Axel (Hg.) – Kommunitarismus: eine Debatte über die moralischen Grundlagen moderner Gesellschaften,
Frankfurt am Main, 1995(Theorie und Gesellschaft, 26), 181-212 – Kontexte der Gerechtigkeit: politische Philosophie jenseits von Liberalismus
und Kommunitarismus, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1994 Honneth, Axel –Kommunitarismus: eine Debatte über die moralischen Grundlagen
moderner Gesellschaften, Frankfurt am Main, 1995(Theorie und Gesellschaft, 26) Kuhlmann, Wolfgang (Hg.) – Moralität und Sittlichkeit: Das
Problem Hegels und die Diskursethik, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1986 Schnädelbach, Herbert –„Was ist Neoaristotelismus? “,in:
Kuhlmann, Wolfgang (Hg.) – Moralität und Sittlichkeit: Das Problem Hegels und die Diskursethik, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1986,38-63
Williams, R. R. –(ed.) Beyond liberalism and communitarianism: studies in Hegel´s Philosophy of right, Albany, New York, 2001 Para se
compreender como Honneth considera pertinente a teoria hegeliana do reconhecimento para os atuais debates acerca da teoria da justiça, indica-se
aqui o excelente artigo Honneth, Axel –„Gerechtigkeit und Kommunikative Freiheit: Überlegungen im Anschluss an Hegel“, in: Merker, Barbara
und Georg Mohr/Michael Quante – Subjektivität und Anerkennung , Mentis, Frankfurt am Main, 2004, 213-226. Neste artigo, Honneth parte da
constatação de que vigora, atualmente, uma concordância acerca do procedimento de fundamentação e o âmbito de objetividade de uma teoria
social da justiça. (213) Neste sentido, “igualdade e autonomia individual aparecem assim, atualmente, como os dois componentes indissociáveis
de uma concepção racional da justiça.”(213/214) Com efeito, para compreender a inserção do conceito hegeliano de reconhecimento nesta
problemática, Honneth percebe que “estes dois conceitos fundamentais declaram realmente muito pouco a respeito da maneira como a efetivação
da liberdade individual de todos os membros da sociedade deve ser igualmente garantida.”(214); e, neste sentido, Honneth se pergunta,
retoricamente, “como seriam constituídos os princípios da justiça decididos pelos membros da sociedade, sob a condição de que eles vissem a
efetivação de sua liberdade como dependente da efetivação da liberdade dos outros”, abandonando assim, tal como Hegel no desenvolvimento de
sua filosofia prática, o ponto de partida centrado em um individualismo metódico, e adotando “o conceito comunicativo de liberdade individual.”
No que concerne à atualidade do conceito hegeliano de reconhecimento para a possibilidade de ultrapassar, no âmbito pós-metafísico, a dicotomia
entre a ética aristotélica e a moral kantiana da autonomia, ver o excelente artigo Honneth, Axel – „Zwischen Aristoteles und Kant: Skizze einer
Moral der Anerkennung“ in: Honneth, Axel – Das Andere der Gerechtigkeit: Aufsätze zur praktischen Philosophie, Surhkamp, Frankfurt am
Main, 2000 Neste artigo, Honneth defende que, o ponto de partida na teoria hegeliana do reconhecimento poderia fornecer “a descoberta de uma
alternativa na qual ambos os pontos de vista são de tal forma integrados que com isso nós podemos viver um vida menos cindida”, uma direção na
qual Honneth vê “a tarefa central de uma teoria moral hoje.”
554
Apesar dos problemas relativos à sistemática própria da Fenomenologia, tanto à sua diferença constitutiva entre o em-si e o para nós, quanto à
vinculação da identidade entre consciência singular e universal não somente a formas de consciência prática, mas também a formas de consciência
teórica, religiosa e filosófica, Siep empreende um interessante resgate da estrutura do reconhecimento na Fenomenologia, principalmente no que
concerne à relação entre consciência universal e singular, entre eu e nós, para o que se concentra em elementos do capítulo sobre a Razão e sobre
o Espírito. Para Siep, em momentos decisivos do processo de formação da consciência em direção à autoconsciência universal na sua forma
espiritual, a estrutura do reconhecimento recíproco aparece como critério normativo deste processo gradual, principalmente na passagem da razão
prática para o espírito e na conclusão das três figuras principais do espírito, isto é, o primeiro, segundo e terceiro “Si” do espírito – “o espírito
verdadeiro”, o “espírito alienado” e o “espírito certo de si mesmo” –, os quais, ao se tornarem subjacentes aos mundos do espírito enquanto
relações imanentes entre singularidade e universalidade, ou entre si e substância – “o estado de direito”, “a liberdade absoluta ou o terror” e a
“consciência moral, a bela alma, o mal e seu perdão” –, somente podem ser compreendidos como momentos de um reconhecimento mútuo entre
singular e pelo universal. Siep, Ludwig – Anerkennung als Prinzip der praktischen Philosophie, Freiburg/München, 1976, 99
555
Especialmente nítida se torna a relação entre as figuras da consciência em sua trajetória de formação na Fenomenologia e o substrato histórico-
filosófico que corresponde a elas com o sensacional trabalho de Falke. Falke, Gustave-Hans – Begriffene Geschichte. Das historische Substrat
und die systematische Anordnung der Bewußtseinsgestalten in Hegels ´Phänomenologie des Geistes´. Interpretation und Kommentar, Berlin,1996
229
556
Na recepção da Fenomenologia e do desenvolvimento das figuras iniciais da “Consciência-de-si” – como desejo, a luta por reconhecimento, a
relação entre senhor e escravo – feita no século XX, parece ter sido especialmente atraente a idéia de uma compreensão das representações da
realidade em seu vínculo com a história social. Dentre estas recepções, cumpre citar ao menos a interpretação marxista de Lukàcs e a
existencialista de Kojève. Ver: Lukács, Georg – Der junge Hegel und die Probleme der kapitalistischen Gesellschaft , Aufbau-Verlag,
Berlin/Weimar 1986 Kojève, Alexandre – Introduction à la lecture de Hegel. Lecons sur la Phénoménlogie de l´Esprit professes de 1933 à 1939
à École des Hautes-Etudes, hg. v. Raymond Queneau, Paris, 1947. Outras interpretações igualmente influentes no século XX deixam-se orientar
pela teoria moderna do conhecimento, como: Habermas – Erkenntnis und Interesse, Mit einem neuen Nachwort, 8. Aufl., Frankfurt am Main,
1985; Taylor, Charles – Hegel, Frankfurt am Main, 1985; Pippin, Hegel´s Idealism. The satisfaction of Self-consciousness, Cambridge, 1989;
Pinkard, Terry – Hegel´s Phnomenology. The Sociality of Reason, Cambridge, 1994
557
Especificamente sobre o tema do reconhecimento tal como desenvolvido por Hegel na Fenomenologia, os seguintes trabalhos podem ser
mencionados: Williams, R. R. – Recognition: Hegel and Fichte on the Other, Albany, University of New York Press, 1992– Hegel´s Ethics of
Recognition, London/Los Angeles, 1997; Siep, Ludwig –„Die Bewegung des Anerkennens in der Phänomenologie des Geistes“, in: Köhler,
Dietmar und Otto Pöggeler (Hg.) – G.W.F Hegel, Phänomenologie des Geistes (Klassiker auslegen), Berlin, 1998, 107-127. Algumas obras e
artigos que tratam da Fenomenologia como um todo, mas que permitem, mesmo assim, uma boa compreensão do papel do reconhecimento na
obra, bem como do capítulo “Consciência-de-si” Hyppolite, Jean Gaston – a Genèse et structure de la ´Phénoménologie de l´Esprit de Hegel,
Paris, Existem obras e artigos de grande mérito especificamente sobre o percurso do capítulo Consciencia-de-si: Pöggler, Otto –
„Selbstbewußtsein als Leitfaden der Phänomenologie des Geistes“, in: Köhler, Dietmar und Otto Pöggeler (Hg.) – G.W.F Hegel, Phänomenologie
des Geistes (Klassiker auslegen), Berlin, 1998, 129-142 –„ Die Komposition der ´Phänomenologie de Geistes´“, in: Fulda, Hans Heinrich und
Dieter Henrich (Hg.) – Materialen zu Hegels „Phänomenologie des Geistes“, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1992, 329-390 Marx, Werner –
Das Selbstbewußtsein in Hegels ´Phänomenologie des Geistes´, Frankfurt am Main, 1986. Alguns outros livros e artigos abordam temas que, sob
certo ponto de vista, são interconectados com uma discussão sobre o reconhecimento, principalmente que versam sobre temas desenvolvidos no
capítulo “Espírito”, quer se liguem eles à noção de eticidade, à crítica da visão moral do mundo ou à dialética da consciência moral (Gewissen).
Dentre eles: Hirsch, Emanuel – “Die Beisetzung der Romantiker in Hegels ´Phänomenoligie´. Ein Kommentar zu dem Abschnitte über die
Moralität”, in: Fulda, Hans Heinrich und Dieter Henrich (Hg.) – Materialen zu Hegels „Phänomenologie des Geistes“, Suhrkamp, Frankfurt am
Main, 1992, 245-275 Köhler, Dietmar und Otto Pöggeler (Hg.) – G.W.F Hegel, Phänomenologie des Geistes (Klassiker auslegen), Berlin, 1998 ,
– „Hegels Gewisssensdialektik“, in: Köhler, Dietmar und Otto Pöggeler (Hg.) – G.W.F Hegel, Phänomenologie des Geistes (Klassiker auslegen),
Berlin, 1998, 209-224
558
Trata-se da “forma paradigmática” do reconhecimento, à qual Hegel se refere explicitamente na fase madura de sua produção, como, por
exemplo, nos adendos aos §§ 35 e 57 das Grundlinien, a saber: os “desenvolvimentos fenomenológicos” da autoconsciência na
Enciclopédia. Tem-se de observar que Hegel se refere, nas Grundlinien, à teoria do reconhecimento tal como fora desenvolvida na versão
publicada em 1817 da Enciclopédia, a assim chamada Heidelberger Enziklopädie. No entanto, esta versão da teoria do reconhecimento
não apresenta modificações decisivas com relação à Berliner Enzyklopädie de 1830, a qual fornece uma versão melhor decantada e
pormenorizada do que a obra anterior. Em função disso, consideraremos prioritariamente a versão berlinense desta obra.
559
Sobre esta interpretação do “movimento do reconhecimento” como télos do “programa de filosofia prática” contido na trajetória da
Fenomenologia, dois trabalhos me parecem ser de suma importância: Williams, R. R.– Recognition: Hegel and Fichte on the Other, Albany,
University of New York Press, 1992 Siep, Ludwig –„Die Bewegung des Anerkennens in der Phänomenologie des Geistes“, in: Köhler, Dietmar
und Otto Pöggeler (Hg.) – G.W.F Hegel, Phänomenologie des Geistes (Klassiker auslegen), Berlin, 1998, 107-127–Anerkennung als Prinzip der
praktischen Philosophie, Freiburg/München, 1976.
560
Siep, Ludwig –Der Weg der Phänomenologie des Geistes. Ein einführender Kommentar zu Hegels „Differenzschrift“ und „Phänomenologie
des Geistes“, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 2000, 98/99
230
561
Siep, Ludwig –Der Weg der Phänomenologie des Geistes. Ein einführender Kommentar zu Hegels „Differenzschrift“ und „Phänomenologie
des Geistes“, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 2000, 99
562
Sobre as relações explícitas e implícitas da Fenomenologia com o sistema maduro, ver Falke, Gustave-Hans – Begriffene Geschichte. Das
historische Substrat und die systematische Anordnung der Bewußtseinsgestalten in Hegels ´Phänomenologie des Geistes´. Interpretation und
Kommentar, Berlin,1996 ver parte A
563
Falke é bastante eficiente em fazer ver como a Fenomenologia se vincula não somente à intenção “conceitual”, explicitada desde a
Differenzschrift, de construir o absoluto para a consciência, de elevar a consciência natural, decantada filosoficamente com a crítica kantiana do
conhecimento, à forma científica da mesma, tomando como ponto de partida sua estrutura imanente –, horizonte no qual revela também toda a
influência da formulação fichteana da separação entre o conhecer e o em-si como cisão entre autoconsciência pura e consciência empírica –; como
também à intenção “histórico-filosófica” de levar às últimas conseqüências a evolução da filosofia da reflexão em suas formas no sentido de
restituir a filosofia do absoluto, intenção anunciada e parcialmente levada a termo em Glauben und Wissen. Falke também aprofunda bastante a
concepção hegeliana ligada à Fenomenologia ao interpretá-la no quadro geral de uma tentativa de mediação entre a crítica kantiana do
conhecimento e a filosofia da identidade de Fichte e Schelling. Falke, Gustave-Hans – Begriffene Geschichte. Das historische Substrat und die
systematische Anordnung der Bewußtseinsgestalten in Hegels ´Phänomenologie des Geistes´. Interpretation und Kommentar, Berlin,1996, ver
parte A
564
Talvez a passagem da Fenomenologia que traz à luz mais fortemente a relação afirmativa ao outro, que é o objetivo final do conceito de
reconhecimento, seja o caráter afirmativo do reconhecimento que tem lugar no perdão, e mesmo o “reconhecimento recíproco que é espírito
absoluto”. (Werke, 3, 408, 471)
231
Por outro lado, na Enciclopédia, que expõe o sistema tardio de Hegel, a crítica
especulativa a concepções parciais de verdade que tiveram seu lugar no desenvolvimento da
história da filosofia está também presente565, mas é subordinada à exposição positiva do sistema.
Em conexão com o “puro conceito do reconhecer” da Fenomenologia, Hegel agora focaliza mais
o caráter afirmativo e positivo da relação intersubjetiva, de maneira que o outro aparece aqui
como co-participante de um conceito concreto de liberdade do indivíduo que Hegel pretende estar
operacionalizado em sua teoria da eticidade. Já a caminho da sistemática definitiva, Hegel declara,
nos §§ 33-42 da “Doutrina da Consciência ” dos Nürnberger Schriften566, que, pelo movimento do
reconhecimento da autoconsciência, realiza-se a passagem da “liberdade negativa” para a “liberdade
positiva”. Na Enciclopédia, o conceito de reconhecimento vincula mais estreitamente a gênese
fenomenológica do espírito ao movimento do espírito objetivo, ou à efetividade e concretude da
liberdade em instituições sociais, de maneira a se constituir, em relação a este movimento
subseqüente, como um pressuposto, como nexo constituinte da substância da eticidade567. Em
particular, a discussão sobre o reconhecimento fornece a transição da consciência-de-si individual
à consciência-de-si universal, isto é, do espírito subjetivo ao espírito objetivo.
565
Um exemplo eloqüente desta presença da crítica especulativa de outras compreensões filosóficas é dado, sem dúvida, no Vorbegriff (§§ 19-83)
da Ciência da Lógica na Enciclopédia, onde Hegel faz anteceder à consecução do próprio ponto de vista de sua lógica especulativa uma crítica das
“posições do pensamento com respeito à objetividade metafísica” (§§ 26-78). Nestes parágrafos, Hegel desconstrói especulativamente posições
filosóficas que vão desde a metafísica dogmática de Espinosa ou Leibniz, por exemplo, passando por uma consideração do idealismo
transcendental, chegando até uma crítica da “filosofia do saber imediato”, exemplificada paradigmaticamente por Jacobi.
566
Werke, 4/118
567
Enc. § 436, adendo
568
TWA 3, 144
232
“Na expressão EU=EU se exprime o princípio da absoluta razão e liberdade. A liberdade e a razão consistem em que
eu me eleve à forma do EU=EU, que eu reconheça tudo como o meu, como EU; e que apreenda cada objeto como
membro no sistema que sou eu mesmo; para abreviar, que eu tenha em uma só e na mesma consciência [o] Eu e o
mundo; que eu me reencontre no mundo a mim mesmo, e vice versa, que na minha consciência eu tenha o que é, o
que tem objetividade.”(Enc. § 424 , adendo)
569
Para Falke, a tarefa da “verdade da certeza de si mesmo” consiste em realizar o princípio especulativo da filosofia fichteana através de uma
crítica imanente de maneira a reconduzir a subjetividade isolada, que se absolutiza neste enunciado, à consciência da racionalidade do efetivo.
Para isso, segundo Falke, Hegel entra em um embate com textos fichteanos que vão desde a Grundlage des Naturrechts, passando pela Sittenlehre
e chagando até a Bestimmung des Gelehrten. Ver Falke, Gustave-Hans – Begriffene Geschichte. Das historische Substrat und die systematische
Anordnung der Bewußtseinsgestalten in Hegels ´Phänomenologie des Geistes´. Interpretation und Kommentar, Berlin,1996 , 143 e seg
233
tem somente em si a base dessa liberdade, mas ainda não a liberdade verdadeiramente
efetiva.”(Enc., § 424, adendo) A liberdade efetiva exige o estar-junto-a-si-mesmo-no-outro, ou,
no linguajar próprio à filosofia do espírito subjetivo, exige que a autoconsciência se reencontre a
si mesma nesta alteridade que lhe é inextirpável, que veja sua subjetividade espontaneamente na
objetividade, que unifique concretamente o saber-de-si e o saber-do-outro, a si mesma e a
consciência. Nestes termos, o ponto de partida do processo é, assim como na Fenomenologia,
uma contradição entre a consciência-de-si como unidade simples e indiferenciada e sua referência
ao objeto como consciência.
que ela ainda possui por ser negação condicionada da consciência, e não sua afirmação infinita,
por ser ainda interioridade sem diferença, isto é, por ser um eu abstrato contraposto ao não-eu,
ou, numa palavra, por ser ainda consciência. É o processo pelo qual o eu dá a si mesmo
objetividade (Enc., §425 adendo) ultrapassando a unilateralidade do sujeito particular. “A
contradição aqui descrita deve ser resolvida; isto acontece de maneira que a consciência-de-si,
que se tem por objeto enquanto consciência, enquanto Eu, vai desenvolvendo a idealidade
simples do Eu até a diferença real; suprimindo assim sua subjetividade unilateral dá a si mesma
objetividade.”(Enc., §425 adendo)
Essa essência igual a si mesma, diz Hegel, “só a si mesma se refere ... e o relacionar-se
consigo mesma é, antes, o fracionar-se, ou, justamente, aquela igualdade-consigo-mesma é a
diferença interior.”(TWA 3, 131) Trata-se, enquanto mediação do imediato consigo mesmo, da
“infinitude simples – ou o conceito absoluto”, o qual “... deve-se chamar a essência simples da
vida, a alma do mundo, o sangue universal, que onipresente não é perturbado nem
interrompido por nenhuma diferença, mas que antes é todas as diferenças como também seu
ser-suspenso; assim, pulsa em si sem mover-se, treme em si sem inquietar-se.”( TWA 3, 131)
Assim, a infinitude, que era somente para nós, se tornou também para consciência. Para Hegel, é
no recurso à explicação fenomênica do jogo de forças que a infinitude “surgiu, livre, pela primeira
vez”(TWA 3, 132); pois o entendimento experimenta, com a inversão do mundo decorrente da
intenção estática da legalidade, a oposição absoluta entre fenômeno e essência, e contempla o
surgimento de um objeto que é, na verdade, também ele mesmo: a vida, forma objetiva onde cada
determinação reverte-se no contrário de si mesma, e “essa inquietação absoluta do puro mover-se-
a-si-mesmo [faz] que tudo o que é determinado de qualquer modo ... seja antes o contrário dessa
determinidade.”(TWA 3, 131) Eis porque é gerada, com a transformação do objeto em si mesmo,
235
uma relação que não é mais aquela entre consciência e objeto “sem consciência”, mas a relação
para si mesma, a essência da consciência-de-si: o entendimento descobre, na estrutura do “ser-o-
oposto-de-si-mesmo”, sua própria estrutura como consciência-de-si. “Quando a infinitude – como
aquilo que ela é – finalmente é o objeto para a consciência, então a consciência é consciência-de-
si.”(TWA 3, 132) O entendimento se torna objeto de si mesmo e, nesta medida, não
simplesmente objeto, mas também sujeito: “essa unidade é também ... seu repelir-se de si mesma; e
esse conceito se fraciona na oposição entre a consciência-de-si e a vida.”(TWA 3, 138)
expressão imediata do movimento pelo qual o sebaer-de-si emerge do saber-do outro, isto é, pelo
qual a consciência-de-si institui sua unidade consigo mesma através da negação do seu ser-outro,
e o mundo perde sua subsistência em-si, permanecendo apenas como outro da consciência-de-si,
dependente desta relação a ela.
Entretanto, atrelada à emergência da consciência desejante do meio vital está a tese de que
“o que a consciência-de-si diferencia de si como sendo ... é também Ser refletido sobre si; o objeto do
desejo imediato é um ser vivo.”(TWA 3, 140/141) Segundo Hegel, a universalidade imediata ou
singularidade da consciência-de-si emergente da vida opõe-se, como puro ser para si, à vida
universal e tem a pretensão de se pôr absolutamente para si, o que a levará a experimentar a
obstinação deste objeto em corroborar-lhe a certeza de sua independência. Aquilo com que a
consciência-de-si se depara como o outro do eu é a vida em geral, aquilo que é o mesmo e o outro de
si. Ao desejar a vida, a consciência de si deseja um outro cuja essência é poder ser ela mesma, e se
apercebe de que justamente este objeto do desejo lhe escapa, pois a vida é a substancialidade como tal,
o puro engendrar e dissolver de diferenças, justamente o elemento com o qual a consciência-de-si não
pode se confundir sem perder sua pretensão a ser sujeito. O “objeto da consciência-de-si é também
independente nessa negatividade de si mesmo e assim é, para si mesmo, gênero, universal
fluidez na peculiaridade de sua distinção: é uma consciência-de-si viva.”(TWA 3, 143) A
pluralidade de autoconsciências fica antecipada pelos “limites” de auto-certificação delimitados
pela emergência da consciência-de-si a partir da substância vital: a alteridade a ser
permanentemente aniquilada e, por conseguinte, incontornável.
Já pelo caráter dúbio do objeto do desejo (TWA 3, 138) deixa-se perceber que, no
movimento de satisfação do desejo, a consciência-de-si deseja sua própria unidade consigo e, por
isso mesmo, deseja um objeto que não seja simples transitoriedade, mas cuja subsistência para si
237
e independente dela possa lhe garantir também sua independência. Portanto, a verdade do desejo
é o desejo de encontrar outro desejo, uma outra consciência-de-si. Hegel exprime este resultado
com uma das suas frases mais famosas: “A consciência-de-si só alcança sua satisfação em uma
outra consciência-de-si”(TWA 3, 143) Neste caso, em que o “objeto é tanto eu quanto objeto”, é
mantida a alteridade essencial do desejo, ao mesmo tempo em que o eu se encontra a si mesmo.
Quando a própria vida se torna uma outra consciência-de-si para o eu, a consciência-de-si atinge
a si própria neste desdobramento de si; pois encontrando uma consciência-de-si que lhe aparece
como outro e como mesmo, o eu retorna a si mesmo mantendo uma alteridade que lhe é, no
fundo, essencial. A condição da consciência-de-si e da corroboração de sua posição de si para si é
a existência de outras consciências-de-si; isto porque a consciência que é desejo não pode se pôr
no ser e atingir a verdade subjetiva da certeza de si mesmo sem que a vida, seu outro substancial,
se diferencie como outro desejo. Por isso, o desejo deve referir-se a um outro desejo, isto é, para
obter sua corroboração de si e da independência de seu ser-para-si, deve encontrar-se a si mesmo
como ser-para-outro, ao mesmo tempo em que encontra em seu outro independente a
confirmação de que é para si. Somente sob a condição de um encontro entre duas consciências-
de-si, é possível aparecer como um outro de alguém, e aparecer a outro como alguém.
“...na consciência-de-si imediata, portanto, natural, singular, exclusiva, a contradição tem a figura de que a
consciência-de-si, cujo conceito consiste em referir-se a si mesmo, a ser EU = EU, refere-se, ao contrário, ao mesmo
570
Em sua tentativa de relacionar a Fenomenologia e as figuras da consciência a momentos “histórico-filosóficos”, a interpretação de Falke é
extremamente bem-sucedida na tentativa de reconduzir a discussão do capítulo sobre a autoconsciência a um embate com a filosofia de Fichte. Em
primeiro lugar, Falke identifica algo que, no contexto da Enciclopédia, se torna bastante claro: a consciência que descobre que tem no outro, ao
qual se relaciona, apenas sua própria essência como objeto é apenas a unidade abstrata que se contrapõe ao mundo como Trieb de ser idêntico a si.
Desta maneira, a oposição entre consciência e autoconsciência reproduz o conflito entre autoconsciência pura e consciência empírica. Com efeito,
Falke considera que o conceito fichteano de esforço, enquanto tentativa de superar uma tal cisão, fornece o teor filosófico-histórico para o
conceito hegeliano de desejo. Hegel iguala, então, o sujeito transcendental de Fichte ao estágio mais inferior de subjetividade. Falke, Gustave-
Hans – Begriffene Geschichte. Das historische Substrat und die systematische Anordnung der Bewußtseinsgestalten in Hegels ´Phänomenologie
des Geistes´. Interpretation und Kommentar, Berlin,1996 , 151
571
Acerca da enunciação dos passos percorridos pela consciência-de-si em sua dialética, Hegel diz o seguinte: “Os graus dessa elevação da
certeza à verdade são [os que seguem]. O espírito é: a) Consciência em geral, que tem o objeto como tal; b) Consciência-de-si, para a qual o
Eu é o objeto; c) Unidade da consciência e consciência-de-si: [é] razão, o conceito de espírito. ”(Enc., §417)
238
tempo a um Outro imediato, não posto idealmente; a um objeto exterior, a um não-Eu, e é exterior a si mesma,
porque embora sendo em si totalidade, unidade do subjetivo e objetivo, só existe de início como algo unilateral,
puramente subjetivo, que somente pela satisfação do desejo chega a ser totalidade em si e para si.”( Enc., § 426,
adendo)
573
Düsing, E. – Intersubjektivität und Selbstbewußtsein: behavioristische, phänomenologische und idealistische Begründungstheorien bei Mead,
Schütz,Fichte und Hegel , Köln, 1986
240
Ora, para que a consciência possa provar para si a verdade da certeza que tem de si
mesma como este ser vivo totalmente independente, tem de entrar num processo prático de
confirmação, o qual, dadas as condições impostas pela estrutura de plena reciprocidade do
reconhecimento, não pode ser mais um processo de confirmação monológica, mas se trata de uma
pretensão de verdade que tem de ser corroborada de maneira obrigatoriamente intersubjetiva.
“Têm de travar essa luta, porque precisam elevar à verdade, no Outro e nelas mesmas, sua certeza de
ser-para-si.”(TWA 3, 148) A consciência que surge como uma figura particular na
substancialidade da vida universal é, inicialmente, somente um ser vivo. No entanto, como a
essência desta consciência-de-si é a pura negação de toda alteridade, isto é, seu ser-para-si, a
consciência-de-si deve se manifestar, mesmo em sua positividade de ser-vivo, contra esta mesma
positividade; pois “de acordo com o conceito do reconhecimento, isso não é possível a não ser que
cada um leve a cabo essa pura abstração do ser-para-si.” (TWA 3, 147) Se sua manifestação em sua
plena independência de ser-para-si requer, como se demonstrou, o seu desdobramento, tal
duplicação está, inicialmente, no ambiente vital da diferença, e cada consciência-de-si vê no
outro apenas uma figura particular da vida, não se reconhecendo verdadeiramente, num primeiro
momento, em seu outro, para quem é apenas um ser vivo estranho. No encontro dos dois
indivíduos imersos na substância vital, sua certeza de si ainda não se elevou à verdade, isto é,
permanece ainda subjetiva, ao nível de uma simples suposição. A condição para que esta certeza
se torne objetivamente verdadeira, é a condição contida no “puro conceito do reconhecer”: faz-se
necessário que o outro também se apresente como pura certeza de si, de maneira que a
objetividade mostre apenas a subjetividade como num reflexo: “a consciência-de-si deve intuir seu
ser-Outro como puro ser para-si, ou como negação absoluta.”(TWA 3, 148) Os dois indivíduos
devem se reconhecer um ao outro como não sendo simples seres vivos, mas como consciências-
de-si num sentido pleno, cada qual tendo corroborado sua certeza de si mesma como livre, seres
vivos cuja essência é a negação de toda a alteridade, mesmo da positividade de seu ser como ser-
vivo.
O resultado deste raciocínio é, para Hegel, que, para atingir a verdade de seu ser-para-si,
a consciência-de-si deve elevar-se acima da vida, arriscar a própria vida para se confirmar a si
mesma como livre e independente. “Só mediante o pôr a vida em risco, a liberdade [se conquista]:
e se prova que a verdade da consciência-de-si não é o ser, nem o modo imediato como ela surge, nem
o seu submergir-se na expansão da vida; mas que nada há na consciência-de-si que não seja para ela
momento evanescente; que ela é somente puro ser-para-si.” (TWA 3, 148)
241
Com isto está traçado o arcabouço especulativo do processo de luta de vida e morte por
reconhecimento. O que tem de ser experienciado intersubjetivamente por cada indivíduo é que a
consciência-de-si, que emerge da substância vital e ainda se encontra imersa nela, é independente
de tudo, ou, em outras palavras, que vê, arriscando a si mesmo e dirigindo-se à morte do outro, a
própria positividade da vida que lhes dá sustentação como absolutamente inessencial. “Assim
como arrisca sua vida, cada um deve igualmente tender à morte do outro; pois para ele o Outro não
vale mais que ele próprio ... deve suprassumir seu ser-fora-de-si.” (TWA 3, 148) A elevação acima da
vida, que está incluída na gênese da autoconsciência, o ser humano prova, a si mesmo e ao outro
com o qual se depara na fluidez vital, pela sua capacidade de pôr a própria vida em jogo,
tornando possível sua libertação das condições dadas pelo seu ser-aí.
Esta diferença entre os dois desenvolvimentos permite entender porque Hegel não mais
deriva, na Enciclopédia, a intersubjetividade do conceito de consciência-de-si a partir da
experiência que faz a consciência-de-si desejante da independência de seu objeto, mas a
desenvolve a partir da particularização da universalidade da consciência-de-si em sua satisfação
(Enc., §429). Na satisfação do desejo como negação da imediatidade e singularidade, a
autoconsciência atinge em si a universalidade no sentido da identidade desta singularidade com
seu objeto. “A consciência-de-si é o conceito, que se manifesta, do objeto mesmo. Em seu
aniquilamento [operado] pela consciência-de-si, o objeto sucumbe, portanto, pela potência de seu
próprio conceito, que é somente interior e, justamente por esse motivo, parece vir só de fora. Assim é
posto o objeto subjetivamente.”(Enc, §427, adendo). A diferença de procedimentos se traduz aqui
pela diferença entre a perspectiva exterior da “alternância tediosa do desejo”, que se lhe revela
242
“Segundo o lado exterior a consciência-de-si imediata ... continua presa na alternância tediosa, que prossegue até
o infinito, do desejo e de sua satisfação; da subjetividade que em sua objetivação recai sempre de novo em si
mesma. Ao contrário, segundo o lado interior, ou segundo o conceito, a consciência-de-si, por meio da suspensão
de sua subjetividade, e do objeto exterior, negou sua própria imediatez, o ponto de vista do desejo”(Enc.
§429, adendo)
“Para superar essa contradição, é necessário que os dois Si, que se contrapõem
reciprocamente, se ponham e se reconheçam em seu ser-aí, em seu ser-para-outro, tais como
são em si ou segundo o seu conceito – a saber: não como seres simplesmente naturais, mas
como seres livres.”(Enc. § 431 adendo) A imediatez de ambos os Si é o elemento da
naturalidade, onde cada consciência-de-si existe para si mesma de maneira imediata, isto é, como
um ser-aí auto-referente e excludente. O deparar-se imediato de um com o outro, dos dois
sujeitos ainda imersos no elemento não-cultivado da naturalidade (Natürlichkeit), pelo qual
ambos são abruptamente demovidos de sua pretensa independência absoluta e engajados numa
oposição de particulares, é o momento imediato do processo de reconhecimento. É um momento
de tensão, pois a absoluta proximidade, que se constitui pela sua identidade comum de
particularidades desejantes, contrasta com a completa incerteza acerca do outro, o caráter
insondável das intenções que abriga sua possível autonomia. Esta tensão entre o comum aos dois
e sua completa impenetrabilidade se torna insustentável, pois nesta situação nenhum dos dois tem
o que, enquanto consciência-de-si, necessariamente busca: a objetivação de sua certeza de si
como ser racional livre. A situação caminha então para um processo de mediação, cuja finalidade
é ultrapassar a imediatez e a consciência-de-si imersa no elemento da mera naturalidade. “Os
homens devem, portanto, querer reencontrar-se um ao outro. Isso não pode acontecer, porém,
enquanto eles estão presos em sua imediatez, em sua naturalidade: pois é ela justamente que
os exclui um do outro, e os impede de ser como livres, um para o outro.” (Enc. § 431
adendo) Portanto, Hegel compreende o processo de reconhecimento como processo no qual
tanto o eu quanto o outro suspendem suas respectivas imediatidades, permitindo a
penetrabilidade recíproca de suas esferas de identidade como condição para a constituição
recíproca destas identidades, para que cada um veja o outro como livre e possa assim
também ver que é visto pelo outro como livre, isto é, ver a si mesmo como livre. “Somente
assim se realiza a verdadeira liberdade: pois, já que ela consiste na identidade de mim com o
outro, então eu só sou verdadeiramente livre quando o outro também é livre, e é
reconhecido por mim como livre. Essa liberdade de um no outro reúne os homens de uma
maneira interior, enquanto, ao contrário, a carência (Bedürfnis) e a necessidade (Notwendigkeit)
só os aproximam exteriormente.”(Enc. § 431 adendo) O fato de que carências e necessidades
oriundas da mera naturalidade aproximem os homens de maneira exterior, e de que tal
aproximação não esgote o teor intersubjetivo do ser-reconhecido universal pode, diante da
teoria da eticidade nas Grundlinien, ser interpretado como uma continuidade do vínculo
entre reconhecimento e eticidade estabelecido nos Jenaer Systementwürfe, uma vez que
Hegel parece compreender a “sociedade civil”, oriunda da “dissolução ética da família”,
como a reposição constante de uma impenetrabilidade mútua e de uma identidade exterior
que tem raízes na naturalidade, isto é, no “estado de natureza”. Enquanto resultante de um
processo excludente de “individualização”, a sociedade civil guarda em seu nexo
intersubjetivo de mútua impenetrabilidade a possibilidade de ruptura do ser-reconhecido e
de deflagração de “luta por reconhecimento”.
Na Enciclopédia, a “luta de vida e morte” recebe sua orientação pelo fato de a suspensão
da imediatidade natural ser condição para a plena realização do ser-reconhecido. A identificação
da imediatez com a naturalidade (Natürlichkeit) de um indivíduo particular não cultivado retoma
a herança hobbesiana, que Hegel traz desde Jena na sua compreensão do Naturzustand como
condição de um conflito entre indivíduos exclusivamente auto-referentes. “... a l u t a pelo
reconhecimento na forma levada ao extremo, que foi indicada, só pode ter lugar no estado-de-
natureza – em que os homens só existem como singulares: ao contrário, está longe da
sociedade civil e do Estado, porque aqui mesmo o que constitui o resultado daquela luta, a
saber o ser-reconhecido, já está presente.”(Enc. §432 adendo) Apenas a luta por
reconhecimento no grau extremo de uma luta de vida e morte tem de ter sido abandonada na
sociedade civil, pois graças à sua liberação dos indivíduos para uma vida auto-referente
regulada por sua identidade exterior, a sociedade civil repõe, em vista de seu nexo
intersubjetivo de impenetrabilidade, o risco de ruptura do ser-reconhecido, e, sob esta
perspectiva, a sociedade civil poderia ser compreendida, também intersubjetivamente, como
“o sistema da eticidade perdida nos seus extremos”(LFFD §184), o que teria conduzido Hegel a
explicitar o nexos reconstitutivos de uma intersubjetividade não excludente como condição para a
passagem ao Estado. Também não apenas a luta pelo reconhecimento em sua forma extrema
esgota a compreensão do estado de natureza, pois neste se concebe não somente a morte como
possível, mas o impedimento desta alternativa através relação unilateral de reconhecimento como
subterfúgio para a manutenção da vida, necessária para que a liberdade tenha um ser-aí, ainda que
seja a liberdade de quem domina. “Sendo a vida tão essencial quanto a liberdade, a luta
termina antes de tudo, como negação unilateral, com a desigualdade”(Enc. §434) Portanto, o
estado-de-natureza é o estágio em geral de um não reconhecimento, quer tenha sido paralisado
em sua iminência, quer tenha sido instituído de maneira assimétrica. O estado-de-natureza guarda
em si o rol de possibilidades incluídas no estágio em que os seres humanos convivem apenas
como singulares excludentes, seres racionais que se supõem absolutamente livres, mas que,
mergulhados no egoísmo e no solipsismo da utilização da sua exterioridade em geral como meio
para a realização de fins particulares, se deparam uns aos outros como particularidades
“impenetráveis”. Com efeito, explorando o tema não desenvolvido explicitamente por Hobbes
nos capítulos XIII e XIV do Leviatã, Hegel relaciona a “condição natural” do homem
explicitamente ao não-ser-reconhecido pelo outro, isto é, compreende o estado de natureza como
estágio “em que os indivíduos, sejam o que forem, e façam o que fizerem, querem
extorquir-se reconhecimento.”(Enc. §432 adendo) O reconhecimento recíproco é, neste
246
contexto, condição para a passagem deste estágio, em que todo mútuo respeitar é condicionado
pelo empenho da “subjetividade vazia”(Enc §432), para o estágio de uma vida ética e, com isso,
condição da própria universalidade e objetividade do respeito recíproco, do sentimento mútuo de
dignidade e dos laços de solidariedade, não apenas numa escala interpessoal, mas coletiva – ou,
como diz Hegel, da “honra” em seu “conteúdo substancial, universal, objetivo”(Enc §432).
Com efeito, se o reconhecimento recíproco se constitui como estrutura da substancialidade ética
em sua racionalidade e, como isso, de uma ordem social do respeito recíproco à liberdade, a
passagem para a consciência-de-si universal como resolução da dialética do senhor e do escravo
se constitui, na Enciclopédia, como reconstrução intersubjetivamente mediada do respeito ao
outro como ser racional e na sua dignidade de fim em si.
“início da sabedoria”(TWA 3, 152); pois, se com vistas à satisfação do senhor “parecia caber à
consciência escrava o lado da relação inessencial para com a coisa” (TWA 3, 152), o escravo, através
da transformação do mundo pelo trabalho, deste seu “desejo refreado, um desvanecer contido”
(TWA 3, 152), aprende a postergar a satisfação e, por meio dele, “encontra-se a si mesmo”(TWA
3, 152). A relação se reverte porque, através do trabalho, o escravo chega a realizar sua
independência em relação ao senhor, enquanto este, que introduz entre si e o mundo a
consciência servil, torna-se, entregue à decadência do luxo, dependente do escravo. Esse “agir
formativo é, ao mesmo tempo, a singularidade, ou o puro ser-para-si da consciência ... a consciência
trabalhadora, portanto, chega assim à intuição do ser independente, como [intuição] de si
mesma.”(TWA 3, 152/153) No entanto, o fato de ter retornado a si mediante o trabalho não põe
fim à necessidade do escravo de ser reconhecido em sua independência por outra consciência-de-
si que também o reconhece como tal, além do que a reversão na relação que “institui” a
dependência do senhor em relação a ele não representa o necessário término da relação desigual
de dominação como tal, mas pode produzir, antes, um novo modelo de assimetria. Mais
especificamente, Hegel passa da dialética do senhor e do escravo para a consideração de várias
estratégias dualistas adotadas pelo escravo para afirmar sua independência em face da
dependência exterior ou mundana. Tais estratégias são o estoicismo, o ceticismo e a consciência
infeliz.
Na obra de 1830, a relação entre senhor e escravo é também a verdade da luta de vida e
morte, mas a ênfase de Hegel é re-direcionada em termos político-filosóficos, recuperando, ao
menos segundo o espírito, o vínculo estabelecido em Jena entre reconhecimento e eticidade, o
que se deixa também integrar no projeto de correção crítico-especulativa do jusnaturalismo
contratualista, visível no argumento, levado a termo nas Grundlinien, de um quadro institucional,
efetivado em termos de relações de reconhecimento recíproco, que torna primeiramente possível
a formação dos indivíduos plenamente individualizados que constituem o ponto de partida do
contratualismo. Na Enciclopédia, o tema da relação entre senhor e escravo é introduzido,
curiosamente, no contexto de uma passagem do estado-de-natureza (Naturzustand) para a
eticidade (Sittlichkeit), isto é, como passagem de um estado de oposição de particulares
impenetráveis uns aos outros à identidade concreta dos indivíduos em sua diferença.
reconhecido, seja compreendida, neste contexto, como estágio intermediário de uma relação
intersubjetiva pautada pela extorsão do reconhecimento e que se caracteriza como “passagem do
estado da consciência-de-si submersa no desejo e na singularidade ao estado da consciência-
de-si universal.” (Enc §433), isto é, exatamente a transposição para o plano histórico do
movimento da “consciência-de-si que reconhece”. Deste modo, o processo de reconhecimento é
introduzido por Hegel no quadro de um argumento próprio à teoria do contrato, de maneira que
revela os pressupostos transcendentais do estado de direito e os elementos de uma teoria da
justiça intersubjetivamente fundamentada: a plena reciprocidade do ser-reconhecido, tanto no
que se refere à relação entre o “eu” e o “tu”, ou seja, entre pessoas; quanto no que se refere às
relações entre o “eu” e o “nós”, isto é, entre o indivíduo e as instituições públicas. “O que
domina no Estado são o espírito do povo, os costumes, a lei. Ali o homem é reconhecido e
tratado como ser racional, como livre, como pessoa; e de seu lado, o Singular faz-se digno
desse reconhecimento porque, com a superação da naturalidade de sua consciência-de-si, ele
obedece a um universal, à vontade essente em si e para si, à lei: portanto, comporta-se para com os
outros de uma maneira universalmente válida, reconhece-os como ele mesmo quer valer: como
livre, como pessoa.”(Enc 432, adendo) A construção intersubjetiva da reciprocidade do ser-
reconhecido universal, tanto em sua imediatez como direito, quanto em seu pleno
desenvolvimento como eticidade, submete a teoria hegeliana da justiça a uma perspectiva atual.
Na própria Enciclopédia, retomando a gênese intersubjetiva dos direitos e deveres a partir do
estado-de-natureza, formulada desde o Jenaer Systemenentwurf de 1805/06, Hegel enuncia esta
concepção de justiça em conexão tanto com a gênese e relação recíproca entre direito e dever
(ihr Verhältnis zueinander), quanto com o processo pelo qual o espírito ultrapassa sua
particularidade e o elemento de sua imediatidade.
“É porém a reflexão imanente do espírito mesmo, ir para além de sua particularidade como também de sua
imediatez natural e dar a seu conteúdo racionalidade e objetividade; onde elas são, enquanto relações
necessárias, direitos e deveres. É pois essa objetivação que indica seu conteúdo, como também sua relação
recíproca: sua verdade em geral; como Platão mostrou que só podia apresentar com sentido verdadeiro, o
que era a justiça em si e para si ... na figura objetiva da justiça, isto é, na construção do Estado enquanto [é]
a vida ética.”(Enc. §474)
O escravo que trabalha assimilou em si o desejo do senhor, a cuja persecução ele submete
sua vontade natural, elevando-se assim “acima da singularidade egoísta [selbstische] de sua
vontade natural, e se situa nessa medida, segundo o seu valor, mais alto do que o senhor,
preso no seu egoísmo.”(Enc §435 adendo). Sua submissão é, assim como na Fenomenologia, o
249
574
Para Hegel, o movimento do reconhecimento reproduz, no interior da própria consciência – no elemento do para-si – aquele movimento que
ela, enquanto entendimento, compreendia, sob o nome de jogo de forças, como exterior a si, no elemento do em-si. Naquele momento, apesar de
cada força ter parecido atuar fora de si e sofrer atuações a partir do exterior, o entendimento acabou descobrindo neste jogo a ação recíproca das
causas, isto é, que cada força continha o que lhe parecia estranho.“O que naquele [jogo de forças] era para nós, aqui é para os extremos
mesmos. O meio termo é a consciência-de-si que se decompõe nos extremos; e cada extremo é essa troca de sua determinidade, e
passagem absoluta para o oposto.”(TWA 3, 146)
251
“O conceito dessa sua unidade em sua duplicação, [ou] da infinitude que se realiza na
consciência-de-si, é um entrelaçamento multilateral e polissêmico.” (TWA 3, 144) Para
compreender como este nexo espiritual antecipado pode não somente ser inserido, na
Enciclopédia, como resultado da luta, mas também funcionar “normativamente” em relação
aos nichos de realização intersubjetiva da liberdade individual na teoria da eticidade, é
preciso desvendar em que consiste a multiplicidade de sentidos contida no “puro
reconhecer”. “Para a consciência-de-si há uma outra consciência-de-si [ou seja]: ela veio para
fora de si. Isso tem dupla significação: primeiro, ela se perdeu a si mesma, pois se acha numa
outra essência. Segundo, com isso ela suspendeu o Outro, pois não vê o Outro como
essência, mas é a si mesma que vê no Outro.”(TWA 3, 145) O duplo sentido da relação
intersubjetiva está então em que o Outro aparece como o Si, e o Si aparece também como o
Outro, de maneira que a negação do Outro, que é incorporada pelo desejo, torna-se também
negação de si.
575
R. R. Williams denomina o âmbito da discussão sobre o reconhecimento empreendida na Fenomenologia – e que aqui pretendemos dar ênfase
sob a rubrica da enunciação formal do movimento de reconhecimento – de “eidético”, em contraposição ao âmbito “empírico” no qual este
conceito começaria a ser realizado pela consciência individual e que abrangeria as figuras da luta de vida e morte e da relação entre dominação e
servidão. Nesta leitura, o nexo normativo do âmbito eidético estaria em que ele revela ser impossível uma análise puramente transcendental da
consciência e de seu outro. Por isso, esta perspectiva, que expõe as condições de possibilidade da consciência-de-si contidas no processo de
reconhecimento, impõe também a percepção de que o outro não pode ser tratado exclusivamente sob esta ótica, e que outra perspectiva se faz
necessária: a empírica. Uma vez que o reconhecimento é um conceito não-formal, o âmbito eidético não exclui o empírico, mas modifica a
consciência com respeito a ele. No entanto, a análise eidética não é especulação vazia, mas antecipação não-formal de uma realidade determinada
e que tem que ser mostrada em sua gênese.[ver Williams, R. R.– Recognition: Hegel and Fichte on the Other, Albany, University of New York
Press, 1992]
576
Williams, R. R.– Recognition: Hegel and Fichte on the Other, Albany, University of New York Press, 1992 e Düsing, Edith – “Genesis des
Selbstbewußtseins durch Anerkennung und Liebe. Untersuchungen zu Hegels Theorie der konkreten Subjektivität” in: Hegels Theorie des
Subjektiven Geistes (Spekulation und Erfahrung II/14), Stuttgart: Fromman-Holzboog, 244-279] Segundo estes autores, no contexto do
desdobramento enciclopédico da autoconsciência, a perda de si mesmo e do recolhimento a si se dá quando ela descobre que não é universal, mas
um particular que se depara com outro particular. A condição do “tornar-se concreto” da universalidade é o recíproco “deixar o outro ir
livremente”, isto é, o retorno a si de posse da confirmação de si mesmo como livre e o simultâneo reconhecimento da liberdade do outro, a
renúncia a exercer sobre ele dominação ou coerção. Por isso, reconhecimento recíproco se torna a condição da efetividade de uma solidariedade
social que não é coagida ou extorquida em termos de uma universalidade abstrata e, por isso mesmo, condição de aparecimento do espírito ou da
consciência universal e da identidade concreta. Esta universalidade concreta supera a relação de exterioridade entre universal e particular, segundo
a qual a relação ao outro é uma relação de restrição e limitação da minha própria liberdade, e sim sua própria efetivação. É esta situação de
liberdade intersubjetivamente mediada que permite a percepção da força da concepção hegeliana da liberdade como “estar-junto-a-si-no-outro”.
253
e na reconciliação577. Embora este âmbito “formal” não diga nada a respeito de como a
equivalência entre ser-para-outro e ser-para-si é de fato trazida à efetividade, ao evidenciar o
plano da experiência onde esta relação tem de ser produzida, antecipando problemas de uma
possível assimetria, ele diz apenas, sem produzir a própria efetividade empírica, que ela tem de
ser produzida, que o conceito de reconhecimento não pode permanecer meramente formal. A
partir disso, pode-se questionar uma certa unilateralidade na interpretação do conceito hegeliano
de reconhecimento como a que pretende Kojève578 ao reduzir este movimento à consideração da
relação de dominação e escravidão.
577
Em seu trabalho principal, Siep desvendou a função muitas vezes recôndita, mas de fato imprescindível, da “estrutura” do processo de
reconhecimento para o desenvolvimento das figuras da Fenomenologia, e isto não somente no que diz respeito propriamente à relação
intersubjetiva simétrica (entre eu e outro eu), mas sobretudo sua emergência nas figuras da consciência e do espírito, que se pode caracterizar
como relações entre a consciência individual e universal. Siep, Ludwig – Anerkennung als Prinzip der praktischen Philosophie,
Freiburg/München, 1976 ver a discussão que ocupa boa parte da primeira divisão do livro. O objetivo principal de Siep foi o de investigar se a
estrutura básica do reconhecimento, formada pelas relações de “amor” e “luta”, pode ser também considerada operacional na Fenomenologia.
578
O problema fundamental com uma interpretação da intersubjetividade como a fornecida por Kojève, que praticamente a reduz à relação de
dominação do escravo pelo senhor, é que ela se torna insustentável mesmo dentro do contexto eminentemente “negativo” da Fenomenologia, uma
obra cuja ênfase é justamente dada ao caráter auto-subvertedor das figuras da consciência na trajetória de sua formação histórico-filosófica.
Kojève não atenta à distinção clara entre a estrutura normativa do conceito de reconhecimento e a relação entre senhor e escravo enquanto uma
figura particular determinada como necessário estágio histórico-conceitual de realização daquela estrutura normativa, perdendo com isso a
percepção dos caracteres afirmativo e negativo do reconhecimento. Mas, mesmo dentro do contexto da Fenomenologia, a relação entre senhor e
escravo não esgota as possibilidades inerentes à estrutura normativa do conceito de reconhecimento. Em primeiro lugar, Kojève parece não
considerar a “reversão da figura da consciência servil ou infeliz, alienada de si mesma, do mundo e de Deus, na discussão de Hegel acerca da
razão como uma estrutura dinâmica e objetiva “no-mundo”.”[ Williams, R. R.– Hegel´s Ethics of Recognition, London/Los Angeles, 1997; 67].
Neste contexto, Hegel considera que a razão é o medium da relação, de maneira que, sendo a razão consciência-de-si, sua relação previamente
negativa à alteridade se converte numa relação afirmativa. (TWA 3, 139 e 175-176). Além disso, Kojève parece desconhecer o reconhecimento
recíproco constitutivo da família e das relações entre irmão e irmã que Hegel considera na discussão sobre a relação de Antígona com seu irmão
(TWA, 3 274-275 e 325-326). Mas talvez a passagem da Fenomenologia que traz à luz mais fortemente a relação afirmativa ao outro, que é o
objetivo final do conceito de reconhecimento, seja o caráter afirmativo do reconhecimento que tem lugar no perdão, e mesmo o “reconhecimento
recíproco que é espírito absoluto” (TWA 3, 408 e 471). A reflexão de Ludwig Siep é o marco que permite superar a predominância da influente
interpretação feita por Kojève do conceito hegeliano de reconhecimento como centrado na relação entre senhor e escravo. Kojève, Alexandre –
Introduction à la lecture de Hegel. Leçons sur la Phénoménlogie de l´Esprit professes de 1933 à 1939 à École des Hautes-Etudes, hg. v.
Raymond Queneau, Paris, 1947. Dentro do estágio eu-tu de reconhecimento, Siep diferencia dois modelos: o amor e a luta, isto é, uma forma de
reconhecimento sem oposição das vontades; e um conflito de vontades que visa ao reconhecimento mútuo. Já no estágio das relações de
reconhecimento entre indivíduo e as instituições, Siep pretende que o Hegel de Jena desenvolva o reconhecimento como um princípio crítico que
permite precisar a legitimidade de instituições sociais, nas quais os indivíduos devem poder se encontrar a si mesmos e se ver refletidos os seus
interesses. Siep vê a importância do reconhecimento para a filosofia prática de Hegel na capacidade de permitir uma renovação da filosofia prática
tradicional em bases pós-modernas, pós-liberais e intersubjetivas. Desta maneira, Hegel superaria o quadro conceitual individualista do direito
natural moderno, inadequada a uma plena compreensão da liberdade individual em sua necessária mediação intersubjetiva e em sua significação
plenamente positiva. Esta superação teria, de acordo com Siep, o resultado de fornecer uma reconciliação entre a tradição aristotélica e a filosofia
transcendental. Siep, Ludwig – Anerkennung als Prinzip der praktischen Philosophie, Freiburg/München, 1976.
579
Williams, R. R.– Recognition: Hegel and Fichte on the Other, Albany, University of New York Press, 1992, 171
254
Porém, duas consciências-de-si não se relacionam como forças que agem uma sobre a
outra. A relação recíproca transcende, neste caso, o quadro causal, pois para cada uma a outra é
um momento de sua própria relação a si. Ambas dependem do outro não somente na relação ao
outro, mas também na sua própria auto-compreensão. Uma modificação de si é, necessariamente,
580
Para Siep, a introdução do conceito de reconhecimento, a qual é amplamente independente da “trajetória da experiência”, não pode ser
identificada com a estrutura da relação afetiva elaborada nos Jenaer Systementwürfe, ainda que o ponto de partida do capítulo “Autoconsciência”
seja uma unidade indiferenciada das consciências. Na Fenomenologia, não se pode falar, neste momento, de uma relação positiva à
individualidade do outro e, no contexto do movimento em questão, pelo qual a autoconsciência vai tentar comprovar-se a si mesma como essência
da alteridade, a independência somente é alcançada pela luta e pela dominação, as quais deixam para traz a unidade indiferenciada da vida. Siep,
Ludwig – Anerkennung als Prinzip der praktischen Philosophie, Freiburg/München, 1976, 70 Para Siep, com respeito às formas de
reconhecimento abordadas sob o título de amor, que supõe uma aproximação e dissolução da individualidade no outro, a Fenomenologia contribui
sobretudo com a caracterização de sua estrutura normativa baseada na plena reciprocidade, mas não na tematização de estruturas efetivas de
interação que a incorporariam socialmente.
581
Habermas, Jürgen –„Wege der Detranzendentalisierung: von Kant zu Hegel und zurück“in: Wahrheit und Rechtfertigung: philosophische
Aufsätze, Frankfurt am Main, 1999, 186-229, 210
582
Pinkard, Terry – Hegel´s Phnomenology. The Sociality of Reason, Cambridge, 1994. Inspirado por Terry Pinkard, Habermas abordou
recentemente a dialética do senhor e do escravo em um sentido “epistêmico”, isto é, com o fim de fundamentar, a partir de uma investigação da
relação entre intersubjetividade e objetividade, a tese de que, para Hegel, o saber a respeito do mundo objetivo é de natureza social. Neste
contexto, a tese fundamental de Habermas, a qual se conecta com a interpretação da Fenomenologia como história da racionalidade, é a de que
somente na dialética de senhor e escravo se torna plausível uma abordagem da relação epistêmica entre objetividade e intersubjetividade, já que,
neste contexto, ao afastar-se do amor como modelo de relação intersubjetiva, Hegel é levado, ao tomar como ponto de partida a pura
intersubejtividade ao invés da subjetividade transcendental, a abordar o problema de uma constituição intersubjetiva da relação comum ao mundo.
Habermas, Jürgen –„Wege der Detranzendentalisierung: von Kant zu Hegel und zurück“in: Wahrheit und Rechtfertigung: philosophische
Aufsätze, Frankfurt am Main, 1999, 186-229, 209 Neste sentido, é possível interpretar, seguindo Habermas, que somente o momento social da
emergência dos indivíduos a partir da intersubjetividade da família e da ausência de referência afetiva ao mundo é que suscita a questão de uma
compreensão intersubjetivamente unificada da objetividade. Assim, para Habermas, enquanto nos Jenaer Systementwürfe a reconstrução de
estágio de mútua independência é baseado na assimilação do modelo da luta por reconhecimento, somente na Fenomenologia a perspectiva
epistêmica é de fato trazida a primeiro plano.
583
A interpretação de Habermas é interessante, principalmente quando se considera a luta por reconhecimento em sua inserção na passagem da
consciência à autoconsciência. Entretanto, uma extrapolação de sua tese no sentido de uma predominância do significado epistêmico seria também
inaceitável. Eis porque uma certa predominância do sentido ético-normativo continua orientando sua interpretação. “A luta por reconhecimento é
menos uma luta de vida e morte, pois a dialética entre senhor e escravo visa menos à subjugação e emancipação do que, antes, à construção social
de um ponto de vista imparcial segundo a reivindicação, o qual possibilita relações objetivas ao mundo e juízos intersubjetivamente vinculantes.”
Habermas, Jürgen –„Wege der Detranzendentalisierung: von Kant zu Hegel und zurück“in: Wahrheit und Rechtfertigung: philosophische
Aufsätze, Frankfurt am Main, 1999, 186-229, 211
584
Kahlenberg, Thomas – Die Befreiung der Natur. Natur und Selbstbewusstsein in der Philosophie Hegels, Felix Meiner, Hamburg, 1997
255
uma alteração no outro, na medida em que esta relação ao outro é constituinte de si mesmo. Este
é o diferencial entre uma interação causal como Wechselwirkung e uma relação de duplo
significado como o reconhecimento recíproco585, no qual os termos relacionados se relacionam a
si mesmos mediante a relação ao outro, e se relacionam ao outro através da relação a si. O
paradoxal na relação dialética da intersubjetividade é que cada termo contém toda a relação586.
“Assim, no espírito universal, tem cada um a certeza de si mesmo – a certeza de não encontrar, sendo na efetividade,
outra coisa que a si mesmo. Cada um está tão certo de si mesmo quanto dos outros. Vejo em todos eles que, para si
mesmos, são apenas como essências independentes, como Eu sou. Neles vejo a livre unidade com os outros, de modo
que essa unidade é através dos outros como é através de mim. Vejo-os como me vejo, e me vejo como os
vejo.”(TWA, 3, 265)
585
Siep, Ludwig–Anerkennung als Prinzip der praktischen Philosophie, Freiburg/München, 1976, 137
586
Williams, R. R.– Hegel´s Ethics of Recognition, London/Los Angeles, 1997; 53
256
587
Ver: Siep, Ludwig – Der Weg der Phänomenologie des Geistes. Ein einführender Kommentar zu Hegels „Differenzschrift“ und
„Phänomenologie des Geistes“, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 2000, 144
258
independentes, como a luz nas estrelas, em seus inúmeros pontos rutilantes.” (TWA 3, 264) A vida
de um povo é então a realidade plenamente acabada do conceito da efetivação da razão
consciente de si na independência do ser-outro.
rígidos, opondo resistência — e no entanto ao mesmo tempo idênticos — uns aos outros, e
assim não-autônomos, não impenetráveis, mas, de certo modo, confundidos.”(Enc. §436)
Segundo Hegel, eles se encontram numa relação genuinamente dialético-especulativa, cuja
verdade consiste na unidade do subjetivo e da objetividade, e por isso tal unidade é o fundamento
da eticidade aparecente (der erscheinenden Sittlichkeit), especialmente na família, no amor
sexual, no amor à pátria e na disposição a entregar-se a valores elevados.
“A consciência-de-si universal é o saber afirmativo de si mesmo no outro Si: cada um desses Si tem como livre
singularidade absoluta autonomia mas devido à negação de sua imediatez, ou desejo, é consciência-de-si universal, e
é objetivo, e tem a universalidade real como reciprocidade de modo que se sabe reconhecido no outro [Si] livre; e
isso sabe enquanto reconhece o outro e o sabe livre.”(Enc. §436)
Este estado de liberdade universal do recíproco ser-reconhecido, que é, para Hegel, uma
relação “de tipo completamente especulativo”(Enc. §436 adendo), é a liberdade positiva do
indivíduo, a verdade da liberdade negativa e que o entendimento não é capaz de compreender. De
acordo com a filosofia do espírito objetivo, a liberdade da consciência-de-si universal pode ser
considerada ainda incompleta, na medida em que ela foi obtida na relação com uma outra
consciência-de-si particular como o “aparecer do substancial” e não no substancial universal da
vida coletiva. “... esse aparecer do substancial pode também ser separado do substancial e
sustentado para si mesmo” (Enc. §436). Mas, mesmo assim, ela constitui, para o conceito
alcançado pela própria consciência, a “substância de toda a espiritualidade essencial” (Enc.
§436), ou simplesmente, o fundamento da eticidade (Enc. §436 adendo).
diferença programática das obras, ou mesmo sua inserção sistemática, ou ainda a possibilidade de
pressupor a Lógica como ciência do elemento puro do pensar. Pode-se dizer também que a
diversidade no término do processo em ambas as obras se deve ao fato de que, na Enciclopédia, o
resultado da luta por reconhecimento é “aduzido pelo conceito do espírito”(Enc. §436 adendo),
enquanto que, na Fenomenologia, a exposição tem de se basear apenas nas experiências
“subjetivas” da consciência. Mas também na obra de 1830 o “conceito” tem de se apresentar
discursivamente nas figuras concretas do “espírito que aparece” ou que se torna fenômeno, isto é,
da consciência, atestando, no movimento imanente da consciência, sua validade e realidade: neste
fato se baseia também a congruência dos movimentos em ambas as obras, à exceção de seu
término diferenciado. É possível que Hegel tenha notado a suposta incongruência de sua
argumentação no tocante ao movimento da consciência-de-si. Talvez um dos mais significativos
indícios disto esteja na “Doutrina-da-Consciência para a classe intermediária” dos Nürnberger
Schriften (1808/09), a qual fora pensada ainda, como declara Hegel, como introdução à filosofia
(TWA 4, 73). Nesta obra, que, segundo a compreensão sistemática, se aproxima mais da
Enciclopédia do que da Fenomenologia, Hegel apresenta, como resultado do processo de
reconhecimento, não mais a consciência-de-si estóica, mas a “consciência-de-si universal”. “A
consciência-de-si universal, sendo espírito vivo, universalidade que é, ao mesmo tempo,
individualidade, tendo renunciado à sua particularidade e sabendo a si mesma sendo em-si e,
portanto, como idêntica aos outros, é reconhecida e reconhece.”(TWA 4, 84)588 Do ponto de vista
da essência do conceito hegeliano de consciência-de-si, compreendida como subjetividade auto-
reflexiva – e, no contexto da Fenomenologia, como capacidade de auto-correção fundada nesta
auto-reflexividade – a consciência-de-si universal se constitui como um resultado muito mais
coerente do que a consciência estóica. No entanto, há que se considerar a convivência,
demonstrada na primeira parte do capítulo sobre a “Consciência-de-si”, entre o ponto de vista do
“Fenomenólogo” – para quem já está presente o conceito “verdadeiro” da consciência-de-si, o
aparecer “para nós” do espírito – , que descreve o movimento da consciência apreendida ideal-
tipicamente pela pura observação, e o ponto de vista da consciência engajada em sua experiência,
cujas figuras historicamente condicionadas são interpretadas historico-filosoficamente pelo
filósofo. Na Enciclopédia, este esforço da Fenomenologia em trazer à unidade os momentos da
pura teoria da consciência e o momento da realidade histórica da inserção das figuras desta
consciência, esforço que freqüentemente não é capaz de aparar arestas inextirpáveis, é deslocado
do foco central pela adoção do ponto de vista mais ou menos panorâmico do filósofo do espírito,
o qual, concentrado exclusivamente no momento teórico do desenvolvimento da consciência, é
capaz de reconstruir o processo da consciência-de-si de maneira rápida e até certo ponto mais
harmônica. Mas, se na Enciclopédia o movimento parece, segundo o conteúdo, mais congruente
com o itinerário imanente da consciência-de-si, isto se traduz também numa maior confiança por
parte de Hegel em que o indivíduo seja capaz de se elevar de maneira autônoma, pela simples
auto-reflexão, à universalidade.
588
A intersubjetividade da consciência-de-si universal que se tornou consciente de si mesma é ainda mais exemplarmente formulada na “Doutrina-
da-Consciência” de 1809: “A consciência-de-si universal é a intuição de si mesmo como um Si não particular e diferente dos outros, mas de um Si
universal e em-si essente. Assim ele reconhece em si a si mesmo e as outras consciências-de-si e é reconhecido por elas.”(TWA 4, 120/121)
262
589
“E, caso se acredite que o especulativo é algo longínquo e incompreensível, só se precisa considerar o conteúdo de tal relação para se
convencer da falta-de-base dessa opinião. O especulativo, ou racional e verdadeiro, consiste na unidade do conceito — ou do subjetivo
— e da objetividade. Essa unidade está manifestamente presente, do ponto de vista em questão.”(Enc, § 436 adendo)
590
No texto alemão original, Hegel utiliza o termo Wiederscheinen. Mas uma palavra como esta não existe no alemão. Com efeito, os editores
alemães dão duas possibilidades para a compreensão deste termo. A edição mais recente da Enciclopédia [Enzyklopädie (1830), hrsg. Nikotin und
Pöggeler, Felix Meiner Verlag, 1969] traz Widererscheinen como construção arcaica de Widerscheinen ou reflexão. Neste ponto, modificamos a
tradução que estamos utilizando. Na tradução oferecida por Paulo Meneses (p.207) consta o termo original Widererscheinen, traduzido como
“aparecer contrastante”. Já a edição Theorie Werkausgabe da Suhrkamp traz o termo Wiedererscheinen, o qual estamos traduzindo por
“reaparecer”.
591
Williams, R. R. – Hegel´s Ethics of Recognition, London/Los Angeles, 1997, 90/91
263
592
Williams, R. R. – Hegel´s Ethics of Recognition, London/Los Angeles, 1997, 91
593
Nenhum autor confere maior importância ao Systementwurf 1805/06 para o desenvolvimento da filosofia hegeliana do que Ludwig Siep, o qual
reconhece neste texto não somente o ponto de convergência das intenções de Hegel com respeito à filosofia prática em Jena, como ainda uma
substancial antecipação da sistemática definitiva, que se estabelece a partir da Propedêutica de Nürnberg. Sobre isso ver: Ludwig – Anerkennung
als Prinzip der pra ktischen Philosophie, Freiburg/München, 1976 parte II, capítulo 5 A tese fundamental de Siep a respeito da peculiaridade do
local ocupado pelo texto em questão para o desenvolvimento de Hegel consiste em que, apesar de nele surgir o “esboço” da sistemática definitiva
e sua característica diferenciação em espírito subjetivo, objetivo e absoluto, a mesma ainda não se torna determinante.
594
Schnädelbach, Herbert – Hegels praktische Philosophie: Ein Kommentar der Texte in der Reihenfolge ihrer Entstehung, Suhrkamp, Frankfurt
am Main, 2000, 129 No Systementwurf 1805/06, Hegel compreende cada forma da autoconsciência como um silogismo e, desta maneira, sua
apresentação como uma seqüência de silogismos. Segundo Ludwig Siep, trata-se com isso de uma resposta ao problema de se pensar o momento
do pôr-(a)dentro-da-unidade da separação entre simplicidade e infinitude, singularidade e universalidade, à qual tende a compreensão da
264
Entretanto, vamos nos eximir aqui de uma análise tanto da transição do “espírito teórico” ou
inteligência para o “espírito prático” ou vontade, quanto do próprio desenvolvimento do conceito
de vontade, amplamente baseado na figura do silogismo595, ainda que o movimento do
reconhecimento esteja, em sua remissão constante, em uma inextricável relação com o recurso à
figura do silogismo596. Apenas deixe-se aqui claro que também a utilização do termo vontade
para designar a atividade da consciência enquanto não simplesmente auto-referente, mas que se
objetiva a si mesma, é tradicionalmente interpretada como uma estreita aproximação a Fichte597,
assim como, na teoria da vontade que se torna autoconsciente e racional pela mediação
intersubjetiva, também uma adesão à tradição rousseauísta-kantiana da “vontade universal” tem
sido identificada598.
determinação fundamental da autoconsciência enquanto contrário de si mesma, preconizada no Systementwurf 1803/04, e isto de maneira a
determinar o “fazer” da consciência como aquilo que é, dentro de si mesmo, ao mesmo tempo, unificar e separar, e que põe seus membros em uma
relação na qual os une, na medida em que os separa, e os separa na medida em que os une. Siep, Ludwig – Anerkennung als Prinzip der
praktischen Philosophie, Freiburg/München, 1976, 187
595
Para fundamentar a tese de Riedel de que o direcionamento promovido por Hegel no esboço de 1805/06 à sua filosofia do espírito, o qual a
coloca na trilha do sistema definitivo, deve ser atribuído a uma influência fichteana diferenciada, Horstmann e Wildt procuram, primeiramente,
localizar a peculiaridade “lógico-sistemática” da obra. Ao lado da mútua implicação entre consciência e autoconsciência e da sua estrutura calcada
na possibilidade de ser, enquanto unidade de universalidade e singularidade, imediatamente o outro de si mesmo, caracteres que já estavam
presentes, respectivamente, nos primeiros textos de Jena e no esboço de 1803/04, a filosofia do espírito do esboço de 1805/06 se notabiliza,
sobretudo, pela utilização da forma lógica do silogismo, uma estrutura de mediação que, no texto em questão, pôde ser caracterizada como uma
forma mais complexa do juízo infinito ver: Göhler, Gerhard – „Dialektik und Politik in Hegels frühen politischen Systemen: Kommentar und
Analyse. Ver: Riedel, Manfred – „Hegels Kritik des Naturrechts“in: Studien zu Hegels Rechtsphilosophie, 1969, 42-74, 1969 Horstmann, Rolf-
Peter – „Probleme der Wandlung in Hegels Jenaer Systemkonzeption“in: Philosophische Rundschau, 19, 87-118 Wildt, Andreas – Autonomie
und Anerkennung. Hegels Moralitätskritik im Lichte seiner Fichte-Rezeption, Stuttgart, 1983
596
De acordo com Siep, “apresentar a autoconsciência como atividade do inferir (Schliessen) e como “sistema” de silogismos é, evidentemente,
uma formação ulterior conseqüente da teoria da consciência enquanto “contrário de si mesma”. Pois isto significa somente poder se relacionar a si
mesmo pelo “dirimir” dentro de si – e pelo pôr-(a)dentro do dirimido. E isto significa ainda que um tal pôr-(a)dentro somente é possível entre
“extremos”, os quais contêm dentro de si mesmos este inteiro movimento. Siep, Ludwig – Anerkennung als Prinzip der praktischen Philosophie,
Freiburg/München, 1976, 188 Desta maneira, Siep defende uma relação visceral entre a figura do silogismo e o movimento de reconhecimento, na
medida em que este sustenta somente ser possível a relação a si mesmo através da relação a um outro –, relação que é tanto amor quanto luta, isto
é, separação e unificação em relação a um outro que também é uma auto-relação, extremos que são, desta maneira, de tal forma relacionados que
têm seu ser no ser-reconhecido, que são, portanto, sua própria relação.
597
Ver: Siep, Ludwig – Anerkennung als Prinzip der praktischen Philosophie, Freiburg/München, 1976, 189 Para Wildt, trata-se do “ponto alto
da recepção de Fichte na filosofia real de Jena .” Wildt, Andreas – Autonomie und Anerkennung. Hegels Moralitätskritik im Lichte seiner Fichte-
Rezeption, Stuttgart, 1983, ver: 343 O conceito hegeliano de vontade aparece, em sua acepção próxima à filosofia do espírito subjetivo e à
introdução das Grundlinien, na subdivisão intitulada “b. vontade” do capítulo sem título e chamado, pelo editor dos Jenaer Systementwürfe, de “o
espírito segundo seu conceito”, a vontade é desdobrada ainda no âmbito abstrato, em oposição à vontade universal, desdobrada no âmbito do
“espírito efetivo”. É somente na parte genuinamente prática da filosofia do espírito, que se inicia com o conceito de vontade, que a estrutura do
silogismo, a inserção de um termo médio independente aos extremos da singularidade e da universalidade, encontra sua melhor decantação no
texto de 1805/06.
598
Ver: Siep, Ludwig – Anerkennung als Prinzip der pra ktischen Philosophie, Freiburg/München, 1976, 189 Schnädelbach, Herbert – Hegels
praktische Philosophie: Ein Kommentar der Texte in der Reihenfolge ihrer Entstehung, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 2000, 136
265
efetividade de um mundo, pelo que ela pode adquirir a forma da necessidade, mas antes da auto-
suspensão de uma vontade ainda abstrata na efetividade espiritual do “ser-reconhecido”, isto é,
em um tecido social formado por interações entre vontades conscientes-de-si. Em outras palavras,
a efetividade não significa ainda aqui a auto-configuração do espírito do povo, mas um jogo de
relações recíprocas onde justamente se diferencia a unidade abstrata entre vontade singular e
vontade universal. Portanto, as determinações jurídico-econômicas, que mais tarde serão objeto
da sociedade civil e de sua regulação exterior, afastam-se, no Systementwurf 1805/06, da
sistemática definitiva justamente por serem compreendidas segundo a orientação de um processo
de reconhecimento entre vontade singular e universal, o qual somente encontra seu termo quando
tanto a vontade singular abandona a pretensão de que sua reflexão em si consiste em lei universal,
quanto, por outro lado, a vontade universal que se institucionaliza jurídica e legalmente
reconhece este momento da vontade singular como seu próprio elemento599. O fato,
especialmente visível no Jenaer Systementwurf (1805/06), de que a eticidade do povo passa a ser
compreendida por Hegel como uma constelação de relações de reconhecimento implica em um
teor normativo diferenciado, na medida em que as relações factuais somente podem ser
consideradas éticas se permitirem uma reestruturação segundo o critério das relações
intersubjetivas de reconhecimento recíproco, o critério da liberdade autoconsciente numa
comunidade ética segundo o princípio moderno da subjetividade.
599
Siep, Ludwig – Anerkennung als Prinzip der pra ktischen Philosophie, Freiburg/München, 1976, 193/194
600
ver Wildt, Andreas – Autonomie und Anerkennung. Hegels Moralitätskritik im Lichte seiner Fichte-Rezeption, Stuttgart, 1983
601
Este desdobramento corresponde ao processo de sublimação do desejo. Em um primeiro momento, o desejo é compreendido reciprocamente no
sentido de uma relação instrumental ao objeto, tal como no âmbito da relação entre o impulso e sua satisfação no trabalho. Hegel toma, como
ponto de partida, o potencial de desdobramento intersubjetivo do desejo feminino, enquanto desejo de ser desejado por outro. Muito se tem
chamado atenção para o caráter misógino e convencional da tentativa hegeliana de desdobrar a existência intersubjetiva a partir desta concepção
do desejo feminino. A tese de Hegel, já amplamente sublinhada por Wildt e Honneth, é a de que somente com base neste “meta-desejo” é possível
o desdobramento da plena auto-experiência da vontade enquanto objetivada, de maneira que também esta concepção se torna a base
intersubjetivista das “implicações sociais e racionais-constitutivas”(Wildt 354) da vontade e, em particular, da existência mediada pela consciência
individual dos direitos.
266
“(O saber é mesmo este sentido duplo: cada um é igual ao outro no que se lhe contrapôs. Seu diferenciar-se do outro
é, portanto, seu igualar-se com ele (sein Sichgleichsetzen mit ihm)); e ele é conhecer (Erkennen) justamente nisso:
que ele mesmo é este saber de que a ele sua contraposição se transforma, para ele mesmo, em igualdade; ou seja, que
sabe isto, tal como ele mesmo se vê (sich anschaut), enquanto si mesmo. Conhecer significa justamente saber / o ob-
jetivo (das Gegenständliche) em sua ob-jetividade (Gegenständlichkeit) enquanto si (als Selbst): [é] conteúdo
compreendido (begriffener Inhalt), conceito que é ob-jeto.”(JSE III, 192/193)
Esta noção de uma autoconsciência que somente se “põe” pela renúncia à própria
independência, pela necessidade de encontrar-se a si mesma no outro, vincula-se, por sua vez, à
conexão deste tipo de relação à intersubjetividade inclusiva típica da formação (Bildung) da
individualidade. Desta maneira, a relação amorosa se estabelece, para Hegel, primeiramente ao
nível de uma “consciência de si mesmo” imersa na naturalidade, não plenamente desenvolvida.
Disto resulta tanto que a relação afetiva se nutre do assentimento recíproco às peculiaridades,
267
quanto que a renúncia do ser-para-si no amor não tem o sentido preciso de uma suspensão das
características individuais, mas apenas do impulso para vislumbrar nelas a própria essência.
Enquanto encontro de si mesmo no outro, o amor consiste na “valorização não auto-referente”
das próprias idiossincrasias enquanto aquilo em que o outro se vê a si próprio. Eis porque, em um
registro mais contemporâneo de discussão, a relação afetiva pode ser vista como a fonte
intersubjetiva de auto-estima e como uma “unidade de si e de ob-jeto, de ser-para-si e ser-para-
outro”602, na medida em que a “objetividade” constitui de tal forma meu si que para que este se
forme é preciso entregar-se à alteridade. “Este próprio suspender é seu ser para outro (sein Sein
für Anderes), no que seu ser imediato se transforma. Seu próprio suspender vem a ser para cada
um no outro enquanto ser para outro. O outro é assim para mim, isto é, ele se sabe em mim. Ele é
somente ser para outro, isto é, ele está fora de si.”(JSE III, 193)
Enquanto o amor forma, para Hegel, o núcleo de sua compreensão da família, é com o
desenvolvimento desta célula societária que ele pretende desencadear o processo de
“recrudescimento” da individualidade que, no amor, está imersa na alteridade enquanto perda de
si. Para Hegel, o desenvolvimento da estrutura familiar, o qual culmina, no sistema maduro, na
tese da dissolução ética da família como gênese conceitual da sociedade civil, deve justamente
fazer ver como, a partir da relação afetiva, tem de ser possível a tematização do retorno a si capaz
de fazer valer sua diferença, o que constitui o cerne para a compreensão da luta por
reconhecimento. Seguindo o esboço de 1803/04, novamente no texto de 1805/06 Hegel pretende
empreender esta passagem através das determinações que objetivam o amor. A objetivação do
amor em sua exterioridade, isto é, enquanto relação à alteridade na prestação mútua de serviço603
e enquanto existência material universal como fruto do desejo refreado em nome do
“comunitário”604, é a posse da família. Por outro lado, no processo de educação dos filhos, o
amor se objetiva como unidade consciente-de-si, exterior e interiormente605, ao mesmo tempo em
que aponta para sua auto-suspensão.
“Ela [a criança E.C.L] é o ob-jeto imediato, ou um singular; e a unidade do amor é agora, ao mesmo tempo,
movimento de suspender esta singularidade. Este movimento tem, segundo um lado, o significado da suprimir o ser-
aí imediato – morte dos pais, eles são o devir desaparecente (das verschwindende Werden), a origem que se suspende
a si mesma. Em face do indivíduo engendrado, este [movimento] é, enquanto movimento consciente, o devir do ser-
para-si dele: a educação. Todavia, segundo sua essência em geral, [é] o suspender do amor.”(JSE III, 195)
família” é tão acentuado no Systementwurf 1805/06 que até mesmo a forte caracterização fundada
na filosofia da natureza a respeito do processo de reprodução da espécie humana, conferido pelo
esboço de 1803/04 à tese da educação dos filhos como morte dos pais, é bastante reduzida neste
texto, o qual enfatiza muito mais a percepção que têm os pais da consciência da criança tanto
como sua própria quanto como uma consciência independente em formação, que por isso as nega
e, apesar de circunscrita ainda ao âmbito da relação afetiva, impulsiona a intersubjetividade para
um registro excludente. Na verdade, o fato de que tanto a consciência dos pais quanto a
consciência da criança em sua relação recíproca sejam elevadas à totalidade, isto é, sejam trazidas
ao ser-para-si plenamente consciente de si mesmo, o qual é o resultado de uma relação
intersubjetiva entre dois seres-para-si enquanto unidades de si mesmos e da alteridade, sugere que
já no interior da família se efetivam relações entre totalidades independentes. Por conseguinte, a
“contradição” inerente à vida familiar entre uma intersubjetividade não excludente, que se ergue
sobre a base de um “ser-reconhecido” sem oposição e que se deixa objetivar na dedicação pela
criança, e uma intersubjetividade imediatamente excludente, objetivada na formação da criança
para a independência, somente se deixa compreender como uma “relação dialética” entre duas
formas de intersubjetividade, a qual tem, no processo mesmo de educação sua efetivação mais
visível, na medida em que esta exige, no interior da família, formas participativas na construção
da identidade do outro, ao mesmo tempo em que resultam na sua “exclusão”. Justamente esta
compreensão deve responder pelo potencial de fenômenos sociais que se vinculam à gênese da
sociedade civil a partir da dissolução ética da família606. Como diz Hegel: “a educação – nenhum
singular pode se tornar toda a finalidade (Kein Einzelnes kann zum ganzen Zwecke gemacht
werden).”(JSE III, 196). Nesta sentença fica claro como Hegel espera que estejam inseridos na
família elementos descentradores implementados na formação da individualidade e que fornecem
o substrato para a reconstrução hegeliana do estado de natureza. Nesta retomada do tema da
morte dos pais no processo de educação dos filhos, Hegel desenvolve profundamente o teor
normativo e sócio-político de sua concepção de intersubjetividade. Para Hegel, a dissolução da
família com o pleno desenvolvimento da individualidade pela educação resulta naquilo que, em
um registro teórico da tradição contratualista, fora chamado de estado de natureza. Trata-se de
uma crítica desconcertante ao argumento contratualista, que supõe, geralmente, como ambiente
em que se estabelece um estado civil, uma exterioridade recíproca dos indivíduos, mas que,
contraditoriamente, acaba por pressupor relações familiares, “quer na figura de famílias
independentes e individuais, quer na figura de indivíduos prontos, conscientes-de-si e auto-
determinados, os quais realmente já têm de ter surgido a partir de famílias, nas quais unicamente
eles poderiam ter crescido como tais indivíduos.”607 Neste sentido, na medida em que, para
Hegel, conceitos tradicionais como pessoa, reciprocidade entre direito e dever, propriedade e
contrato são referidos, em seu significado e teor normativo, ao processo de mediação
intersubjetiva que primeiramente os engendra, ele acaba por antecipar uma investigação
ontogenética do desenvolvimento das faculdades morais e sociais do indivíduo.
606
Para Siep, “Hegel acentuou na Filosofia Real que a relação do amor enquanto relação sexual e a relação pais-filhos permanecem igualmente
“um ao lado do outro” enquanto momentos na família ... somente através de ambas as relações em conjunto o sujeito se torna ser-para-si
autoconsciente. Nesta medida, a família é, por um lado, a intuição de uma relação entre dois em um terceiro e, por outro lado, a unidade de duas
relações diversas entre dois.” Siep, Ludwig – Anerkennung als Prinzip der praktischen Philosophie, Freiburg/München, 1976, 62/63 Siep acentua
também a tentativa de Harris de analisar a passagem da família à luta por reconhecimento a partir da identificação do momento conflituoso dentro
da própria família, o que empreende recorrendo a meios psicanalíticos. Ver. Harris, H.S. – “The concept of Recognition in Hegel´s Jena
Manuscripts”in: Hegel-Studien, Beiheft 20, 1980
607
Schnädelbach, Herbert – Hegels praktische Philosophie: Ein Kommentar der Texte in der Reihenfolge ihrer Entstehung, Suhrkamp, Frankfurt
am Main, 2000.
269
natureza: ponto de partida para a gênese do direito não é um estado de imersão no ser-aí, mas
antes o estado de uma existência intersubjetiva “em si”, como algo não desenvolvido, como
aquilo que ainda deve chegar à efetividade. “α) estado-de-natureza – direito no estado de
natureza, enquanto direito absoluto. – direito contém a pura pessoa, puro ser reconhecido (reines
Anerkanntsein); – assim, eles não estão no estado-de-natureza, e sim imersos no ser-aí – por meio
de que o ser humano é, em seu conceito; mas, no estado-de-natureza, ele não é em seu conceito, e
sim como ser natural (Naturwesen), em seu ser-aí. – [A] pergunta se contradiz de maneira
imediata – eu considero o homem em seu conceito, isto é, não no estado de natureza.” (JSE III,
196 ) Com efeito, antes de examinar a que pergunta Hegel se refere, cumpre notar que, por meio
de sua inserção do movimento de reconhecimento no desenvolvimento da eticidade, Hegel é
capaz de precisar, em contraposição ao seu conceito de estado-de-natureza desenvolvido depois
na Enciclopédia enquanto relação intersubjetiva imersa na imediatidade e na naturalidade das
consciências-de-si, a tese de que o ponto de partida para a reconstrução conceitual dos nexos
ético-jurídicos da comunidade reside em um momento de emergência do “ser humano em seu
conceito”, ainda que não institucionalizado numa trama objetiva de reconhecimento da pessoa, ao
menos a forma em si de uma individualidade coesa, cujo nascedouro tem de ser reconduzido a
formas primevas de formação, constituição e conservação desta individualidade. Portanto, pensa
Hegel, uma reconstituição da gênese intersubjetiva do direito e da eticidade requer, antes de mais
nada, uma reformulação do que se pode entender por estado de natureza: não a impenetrabilidade
de singulares presos à sua naturalidade e corporeidade, mas a forma não desenvolvida de uma
existência intersubjetiva que já conta com uma contraposição de individualidades “prontas” para
se exigirem reciprocamente respeito a suas respectivas esferas de atuação. “Esta relação é
habitualmente o que se denomina de estado-de-natureza, / o livre e indiferente ser dos indivíduos
uns em face dos outros, e o direito natural (Naturrecht) deve responder o que têm os indivíduos,
segundo esta relação, enquanto direitos e deveres uns para com os outros, o qual é a necessidade
de seu comportamento – deles segundo seu conceito de consciências-de-si independentes.”(JSE
III, 196/197)
608
Honneth, Axel– Kampf um Anerkennung. Zur moralischen Grammatik sozialer Konflikte, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1992 Para Honneth,
Hegel pretende, com seu recurso à concepção contratualista do estado de natureza, criticar a tradição para a qual a determinação do direito é
“trazida de fora”, isto é, um tipo de solução que se pauta pelo voluntarismo e decisionismo da localização da passagem para o “estado civil” no
indivíduo. Esta crítica consistiria em mostrar que o surgimento de relações de direito decorre necessariamente da situação de mútua exclusão
reconstruída pelo conceito de estado de natureza (71). Embora não discordemos disso, entendemos que nossa interpretação enfatiza mais os nexos
originários da intersubjetividade que fundamenta o “grau mínimo” de respeito recíproco que Hegel introduz na doutrina do estado de natureza.
609
Honneth, Axel– Kampf um Anerkennung. Zur moralischen Grammatik sozialer Konflikte, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1992 Honneth
extrai, da apresentação do Systementwurf 1805/06, com um alto grau de plausibilidade, a tese de que o elemento intersubjetivo do amor é condição
para que a vontade subjetiva possa se experimentar a si mesma como um sujeito desejante e acometido por carências e, como o nível da interação
abre a possibilidade, interditada pelo estágio da contraposição instrumental ao mundo, para que os sujeitos possam intuir-se reciprocamente, no
mútuo reconhecimento de sua individualidade natural, como sujeitos acometidos por carências, Honneth vê, no nível intersubjetivo do amor, não
somente presente o nexo socializante de uma dependência da formação da identidade subjetiva em relação ao reconhecimento por parte dos
outros, mas, mais ainda, o nexo propriamente individualizante de que a formação da identidade em uma certa dimensão da individualidade (como
a individualidade natural reconhecida no amor) está atrelada ao reconhecimento da mesma dimensão nos outros (64).
271
610
Lembremos inclusive que a inserção do reconhecimento, de que estamos tratando aqui, no Systementwurf 1805/06 aparece na parte do texto
que foi chamada pelos editores como “Geist nach seiner Begriff”, a qual, compreendendo o desenvolvimento de inteligência e vontade, poderia ser
considerada a forma prototípica da “Filosofia do Espírito Subjetivo”.
272
sem o qual eu não teria emergido como “individualidade completa”. Desta maneira, pensa Hegel,
ao contrapor-me a outra individualidade,
“eu produzo para isso a determinação do direito, eu mostro a partir dele que ele é uma [determinação] capaz de
direito (rechtsfähige), uma pessoa –; mas este mostrar incide em mim, é o movimento do meu pensamento, mas o
conteúdo é o Si livre. Este movimento não permite, no entanto, isto que ele é – ou seja, ele é o movimento deste
conceito – o direito é a relação da pessoa em seu comportar-se para com outra – o elemento universal do ser livre
dela – ou seja, a determinação, limitação de sua liberdade vazia. Esta relação ou limitação eu não tenho que inventar
(aushecken) ou de produzir para mim, mas antes o ob-jeto é ele mesmo este engendrar do direito em geral, isto é, da
relação que reconhece (der anerkennenden Beziehung).”(JSE III, 197)
611
Honneth, Axel– Kampf um Anerkennung. Zur moralischen Grammatik sozialer Konflikte, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1992 Em sua tese de
que o amor constitui o “elemento da eticidade” e a “prefiguração” (Ahnung) da mesma, Hegel marca, infelizmente não por uma explicitação do
meio termo oferecido pela educação, a distância em que a formação da individualidade numa interação participativa se coloca em relação à
socialização potencialmente indiferente em que as instituições jurídico-econômicas se baseiam(65).
612
Honneth, Axel– Kampf um Anerkennung. Zur moralischen Grammatik sozialer Konflikte, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1992 Segundo
nossa interpretação, apesar de entender coerentemente o sentido da argumentação de Hegel, Honneth acaba permanecendo em um nível
excessivamente abstrato de discussão, na medida em que não revela o real cerne do argumento hegeliano. Honneth parte, de fato, da idéia de que
uma crítica da doutrina tradicional do estado de natureza precisa se dirigir “às relações pré-contratuais de reconhecimento recíproco, as quais
jazem ainda elas mesmas no fundamento das relações de concorrência.”(72) É na fundamentação da tese de que os indivíduos tenham, ainda antes
273
de todo conflito e contraposição, de alguma forma se reconhecido, que, em nossa opinião, Honneth não parece proceder a contento; pois, apesar de
perceber como Hegel insere, em sua concepção modificada de estado de natureza, uma coerção ao reconhecimento recíproco, ainda que em uma
forma elementar na disponibilidade ou predisposição do indivíduo em limitar sua esfera de ação – inserção esta que responde pela possibilidade de
formação da consciência individual do respeito recíproco imprescindível para o “estado jurídico” –, Honneth deixa aparentemente suspensa no ar
a origem desta primeira forma elementar de reconhecimento e de redução voluntária da própria esfera de ação (73,74). E isto se torna tanto mais
surpreendente quando se recorda que, segundo Honneth, o cerne interativo da vida familiar, o qual se baseia no amor e na educação, no
reconhecimento recíproco da individualidade natural e na formação da individualidade coesa que é o pressuposto para a confrontação no “estado
de natureza”, notabiliza-se justamente por fornecer ao sujeito uma primeira experiência de sua possível unificação ético-comunitária com seres
contrapostos a ele. Em nossa interpretação, escapa a Honneth a idéia de que justamente a educação constitui o meio que unifica o reconhecimento
recíproco da individualidade natural no amor e a formação da individualidade coesa enquanto dotada de uma predisposição mínima a limitar sua
esfera de liberdade em nome do seu parceiro de interação no âmbito de uma concorrência.
613
Honneth, Axel– Kampf um Anerkennung. Zur moralischen Grammatik sozialer Konflikte, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1992 Como falta a
Honneth a ênfase na conexão entre individualização e socialização presente na educação como formação da individualidade, ele somente é capaz
de chegar à vaga idéia de que a “experiência de ser amado constitui, para cada sujeito, uma pressuposição para a participação na vida pública de
uma comunidade”(66), uma tese que Honneth radicaliza ao vincular um desenvolvimento exitoso do eu à observância de condições
emocionalmente relevantes: “somente o sentimento de ser fundamentalmente reconhecido e confirmado em sua particular natureza pulsional,
deixa surgir, em primeiro lugar, em um sujeito, a quantidade de auto-confiança que o capacita à participação igualitária na formação política da
vontade.”(66) Trata-se, sobretudo, de uma tese arriscada, ainda mais quando uma participação igualitária possa se dar sem esta condição. Em
nossa interpretação, as condições para uma tal participação, especialmente da intuição de si mesmo que lhe serve de base, são fundamentadas
numa formação participativa da individualidade, a qual pode ser efetivamente vinculada à relação amorosa no interior da família. Tal leitura não
entra totalmente em conflito com a leitura de Honneth, o qual vê, na tese de que o amor constitui o prenúncio da eticidade, a experiência que faz
todo sujeito do sentido para a possibilidade de unificação com outros indivíduos, o que ele percebe, entretanto, como atrelado ao “erro” de Hegel
nos Entwürfe über Religion und Liebe de identificar “unificação social” com as relações típicas do “amor conjugal”. A esta compreensão de
Honneth, poder-se-ia objetar que, muito embora tal identificação exista, a preocupação primordial de Hegel fora a de delimitar o raio de ação das
relações de direito privado, implícitas com a expressção Liebe um des Toten willen.
614
Honneth, Axel– Kampf um Anerkennung. Zur moralischen Grammatik sozialer Konflikte, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1992 Ainda mais
problemática se torna para Honneth a não articulação, na sua interpretação da reconstrução hegeliana do argumento contratualista, entre uma
forma excludente e inclusiva de intersubjetividade, articulação esta que possibilita a compreensão do ponto de partida “intersubjetivo” da
reformulação hegeliana do estado de natureza, pois ele faz dela o fundamento de sua leitura da luta: somente porque Honneth parte de uma
compreensão da mútua contraposição e concorrência entre os indivíduos como se estabelecendo sobre a base de um grau mínimo de
reconhecimento, que ele pode compreender a exclusão pela tomada de posse como um ato que lesa uma conexão interativa previamente articulada
274
Honneth deixe presa no ar a tese de que uma compreensão do ponto de partida da luta por
reconhecimento no estado de natureza segundo a perspectiva performativa do envolvido leve à
conclusão de que “os sujeitos em desavença não podem ser compreendidos como seres que agem
simplesmente de maneira egocêntrica, seres isolados uns dos outros. Ambos os sujeitos têm,
antes, de ter incluído sua correspondente contraparte em suas próprias diretrizes de ação, antes
que eles se contraponham hostilmente uns aos outros no conflito. Ambos têm, portanto, de já
haver aceitado o correspondente outro antecipadamente como um parceiro de interação, do qual
eles tencionam deixar dependente seu próprio agir.”615 Entretanto, uma tese desta somente pode
ser sustentada se, na própria formação da individualidade, acha-se inserido um nexo que
direciona o agir individual para uma possibilidade originária de inclusão do outro. Fundamental
para o nosso argumento é, entretanto, que, compreendendo a luta como meio de realização
daquela estrutura do reconhecimento aglutinada ao próprio conceito de “ser humano” e que
emerge dos estágios interativos pré-estatais, Hegel vê em seu desfecho a gênese da vontade
universal em sua identidade com a vontade singular: “Eles são um saber de seu ser, e o ser deles é
este espiritual, a vontade universal. Neste elemento ... a vontade abstrata tem de se suspender, ou
seja, produzir-se como suspensa no elemento do ser-reconhecido universal, nesta efetividade
espiritual.”(JSE III, 204) No movimento das Grundlinien, tal identidade é prenunciada com a
discussão da justiça punitiva enquanto auto-suspensão do direito em si, estagnado na contradição
em sua lesão pela vontade particular que se excetua do acordo estabelecido como vontade
contratual comum, aparecendo, na discussão sobre a justiça punitiva, como “exigência de uma
vontade, que, enquanto vontade subjetiva particular, queira o universal enquanto tal.” (LFFD
§103) Constituir-se-á, desta maneira, como a diretriz para o desenvolvimento que levará à
Selbstaufhebung da moralidade na eticidade, na medida em que estabelece que a vontade se
ponha “ num primeiro momento, na oposição da vontade universal em si e da vontade singular
sendo para si, para então, através do suspender dessa oposição, da negação da negação,
determinar-se como vontade que, no seu ser-aí, não só é vontade livre em si, mas, também, para
si mesma, como negatividade que se refere a si mesma.” (LFFD §104) Em tal identidade residirá
o ponto de partida “imediato” recuperado na introdução à Eticidade enquanto “unidade do
conceito da vontade e do seu ser-aí, o qual é a vontade particular” (LFFD §143), para em seguida
enunciar o estado ético, que “enquanto efetividade da vontade substancial, efetividade que ela
tem na autoconsciência particular erguida à universalidade do Estado, é o racional em si e por
si.”(LFFD §258) Neste mesmo sentido, é verdade que, no Systementwurf 1805/06, Hegel concebe
ainda, após a enunciação desta identidade que emerge da luta por reconhecimento, diversas
diferenciações e reaproximações entre as mesmas, algumas concebidas em estreito paralelo com
as Grundlinien616: primeiramente, o elemento do ser-reconhecido, para onde converge a sua
(74 e seg.). Portanto, Honneth pode não ter percebido, mas a própria articulação entre uma forma inclusiva e outra excludente de
intersubjetividade é vital para sua interpretação de Hegel e, com ela, para sua teoria normativa do reconhecimento, uma vez que somente isso pode
tornar possível a recondução da “reação criminosa” ao quadro geral de motivos, suscitados pela própria exclusão original, enquanto “frustração de
expectativas positivas de comportamento do outro”. Desnecessário dizer que tal conjunção é o que permite a Honneth inserir, no caráter
conflituoso das interações humanas no âmbito da concorrência, o potencial normativo que impulsiona tais interações a um estágio de maior
inclusão. O próprio Honneth parece compreender que Hegel lança mão, na forma de uma pressuposição de uma compreensão originária, por parte
dos envolvidos, de seu recíproco reconhecimento enquanto possíveis sustentadores de uma reivindicação de respeito à integridade de sua própria
pessoa (78), um conceito normativo de reconhecimento, o qual tem, entretanto, de se tornar efetivo para as consciências na forma de um processo
de luta. Não vamos aqui reconstruir o processo de luta por reconhecimento no Systementwurf 1805/06. Indicamos a interpretação de Honneth. (78-
82) Honneth associa habilmente a radicalização da luta em um conflito de vida e morte à percepção, pelos envolvidos, do outro como puro si, o
que suscita um “saber da vontade” no qual está incluído o saber do outro como alguém dotado de direitos fundamentais.
615
Honneth, Axel– Kampf um Anerkennung. Zur moralischen Grammatik sozialer Konflikte, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1992,77
616
Muito se diz que um dos principais paralelos entre o Systementwurf 1805/06 e as Grundlinien é a predominância do conceito de vontade. De
fato, o movimento que corresponderia, no sistema definitivo, ao “espírito prático”, já é todo ele concebido tendo como base o conceito de vontade
em sua suspensão da razão teórica ou inteligência. “A vontade que sabe deve ser preenchida α) como [vontade] do amor, com o saber da unidade
imediata dos dois extremos, deles como [extremos] sem o si (ihrer als selbstloser); β) com o reconhecer, com eles enquanto si livre. Cada qual é
o preenchimento do extremo universal – este do singular, isto é, o tornar o mesmo silogismo completo, este silogismo tem os extremos na forma
do ser-para-si nele. Cada conhecer se torna reconhecer. Eles são como sabendo-se enquanto ser-para-si, de tal forma são separados.” (JSE III, 203)
Acerca da relação entre esta vontade que é inteligência com a gênese da eticidade e do espírito objetivo, Hegel menciona, no parágrafo inicial da
275
imediatidade, é compreendido por Hegel, no Esboço de 1805/06, na relação contratual (JPG III,
209); em seguida, a partir da possibilidade de quebra de contratos, resulta sua teoria
“intersubjetivista” do crime, amplamente baseada no conceito de reconhecimento (JPG III
212/213 e seg) Eis porque Hegel chama esta unidade imediata entre vontade universal e singular
não ainda de eticidade, mas de direito. “Esta vontade que sabe é agora [vontade] universal. Ela é
o ser-reconhecido; contraposta a si na forma da universalidade, / ela é o ser, efetividade em geral;
e o singular, o sujeito é a pessoa. A vontade do singular é a [vontade] universal, e a universal é a
singular – eticidade em geral, imediatamente, contudo, direito.” (JSE III, 203/204) Trata-se com
isso da forma imediata da vontade universal. O resultado da luta no esboço de 1805/06 não é a
suspensão definitiva da singularidade no espírito do povo, mas o direito enquanto forma imediata
da eticidade, no qual a vontade singular permanece ainda contraposta à sua própria
universalidade. A gênese do “espírito efetivo” constitui a passagem do espírito em seu conceito
para a efetividade do mesmo, o qual se subdivide em “ser-reconhecido imediato”, cuja
determinação fundamental é o ser-pessoa, o ser-reconhecido universal, compreendido como
unidade de inteligência e vontade; e em “a lei que detém poder” (das Gewalt habende Gesetz).
parte intitulada “Espírito Efetivo” no Jenaer Systementwurf 1805/06, que “nem como inteligência, nem como saber o espírito é efetivo, e sim
como vontade que é inteligência, isto é, na inteligência está a unidade de duas universalidades; e na vontade estas são sis completos. Eles são um
saber de seu ser, e o ser deles é este espiritual, a vontade universal. Neste elemento o precedente tem de se apresentar; tal como na vontade a
inteligência abstrata se suprimiu – ou seja, seus ob-jetos se preencheram através de si mesmos – nele a vontade abstrata tem de se suprimir, ou
seja, produzir-se como suprimida no elemento do ser-reconhecido universal, nesta efetividade espiritual.”(JSE III, 204)
617
Refiro-me, sobretudo, à interpretação geral deste desenvolvimento advogada por Siep e Riedel. Siep, Ludwig – Anerkennung als Prinzip der
praktischen Philosophie, Freiburg/München, 1976 Riedel, Manfred – „Hegels Kritik des Naturrechts“in: Studien zu Hegels Rechtsphilosophie,
1969, 42-74, 1969. Importa, porém, como diz Siep, “como se há de compreender este desenvolvimento: enquanto “inversão” da relação entre
filosofia prática antiga e direito natural moderno em face dos primeiros escritos de Jena, ou como sua mediação bem sucedida.”(199) Enquanto
Siep sustenta a tese de uma bem sucedida mediação, a qual fornece o fundamento para a sua tese a respeito da “renovação da filosofia prática” a
partir do conceito de reconhecimento, Riedel insiste em que a adoção de um direcionamento jusnaturalista se processa segundo uma inversão da
relação que mantinha com a filosofia política clássica e por uma reconsideração da relação entre espírito e natureza. Para Siep, entretanto, não se
pode falar, no Systementwurf 1805/06, exatamente de uma inversão na relação entre o direito e a eticidade da polis, uma vez que Hegel, seguindo
o gradualmente enunciado princípio jenense da superioridade do espírito sobre a natureza, continua, no Systementwurf 1805/06, a compreender a
tese aristotélica de anterioridade da pólis sobre o singular no sentido de que a consciência individual somente alcança sua auto-efetivação através
de sua auto-negação ou da consciência da unidade de si mesma com a eticidade substancial de um povo e, por conseguinte, refuta continuamente o
recurso contratualista ao teor político-legitimador do contrato com base justamente na tese de que, através dele, a “vontade comum” não pode
surgir pela renúncia pelo indivíduo de sua singularidade excludente.
618
Riedel, Manfred – „Die Rezeption der National-ökonomie“ in: Studien zu Hegels Rechtsphilosophie, 1969,75-99
619
Riedel, Manfred – „Hegels Kritik des Naturrechts“in: Studien zu Hegels Rechtsphilosophie, 1969, 42-74, 1969
620
Siep, Ludwig – Anerkennung als Prinzip der praktischen Philosophie, Freiburg/München, 1976, 198
276
da família e que traz em si as condições para o desenvolvimento ulterior de uma relação de pleno
reconhecimento entre universal e singular que caracteriza a eticidade propriamente dita. É a
própria exigência por formas eticamente mais elevadas de reconhecimento que impulsiona o
direito, através de novas formas de “luta”, para a suspensão da diferença entre singular e
universal na eticidade institucional do estado. Portanto, ao contrário de Fichte, Hegel investe o
reconhecimento da função de suspender a singularidade que ainda subsiste no horizonte de uma
mediação jurídica.
4. Conclusão: uma possível leitura das Grundlinien ?
Muito se tem falado atualmente de como os textos postumamente publicados de Hegel
sobre filosofia prática e ética, produzidos em Jena anteriormente à Fenomenologia e
posteriormente ao Naturrechtaufsatz, conteriam um enorme potencial em pontos de vista que não
somente não teriam sido aproveitados pela forma definitiva da “filosofia do espírito objetivo”,
como ainda teriam sido deslocados a um plano secundário. Já há alguns anos a originalidade e o
potencial da teoria da eticidade desenvolvida por Hegel em textos como o System der Sittlichkeit
e os Jenaer Systementwürfe vêm sendo reivindicados pela tradição do nachmetaphysisches
Denken para o revigoramento da “filosofia prática” e “teoria da justiça” – e isto justamente numa
direção em que se realça o desvirtuamento das intuições jenenses pela subordinação da exposição
sistemática da eticidade à auto-reflexividade do espírito.
621
Habermas, Jürgen –„Arbeit und Interaktion. Bemerkungen zu Hegels Jenenser „Philosophie des Geites““ 786/787
277
de Jena, Hegel tornou o modelo de interação social, assimilado a partir de Fichte, a base para sua
teoria social e política, fundamento para a constituição processual de seu conceito de Volksgeist.
622
Roth, Klaus – „Abstraktes Recht und Sittlichkeit in Hegels Jenaer Systementwürfen“, in: Henkel, Michael (Hrsg.) – Staat, Politik und Recht
beim frühen, Berlin, 2002,11-37, 18-19. Hegel teria chegado, para Roth, a uma teoria da sociedade civil e do estado que, calcada no conceito de
reconhecimento, abrangia aspectos jurídico-morais e salientava os momentos conectivos das esferas político-social e jurídico-moral, ao passo que
a sistemática definitiva da filosofia do espírito objetivo, alcançada na Propedêutica dos Nürnberger Schriften, tornaria, graças ao obscurecimento
do elemento intersubjetivo, os temas de filosofia prática aparentemente independentes uns dos outros.Especialmente confuso se torna, para Roth, o
modo como as diversas esferas do espírito objetivo se relacionam umas às outras, principalmente como direito abstrato e moral devam ser
compreendidos como momentos não-éticos ou pré-éticos a serem “suspensos” na eticidade e conservados nela. Para Theunissen, as primeiras
esferas do espírito objetivo exercem uma função apenas crítica no todo da obra, representam apenas uma apreciação crítica e desconstrutivista do
direito natural e da moral kantiano-fichteana da autonomia, que, entretanto, não obtém resultados construtivos, os quais somente na terceira parte
são introduzidos. Roth critica esta visão dos capítulos iniciais das Grundlinien apenas como “preâmbulo desconstrutivista” do panorama teórico
jurídico-moral pré-hegeliano: caso se interprete ambos os capítulos como incapazes de fornecer elementos constitutivos para a compreensão da
vida sócio-política, não se compreende como Hegel espera que os elementos positivos, desenvolvidos neste capítulo, possam ser conservados na
eticidade e como nexos que lhe são constitutivos.
623
A pertinência da análise de Theunissen em relação ao preâmbulo crítico fornecido pelo artigo seminal de Habermas é atestado pelo próprio
Habermas em um texto bastante recente: Habermas, Jürgen –Wahrheit und Rechtfertigung: philosophische Aufsätze, Frankfurt am Main, 1999.
Refiro-me propriamente ao capítulo 4, intitulado “Wege der Detranszendentalisierung. Von Kant zu Hegel und zurück”, no qual Habermas
menciona que se trata em seu artigo de uma análise “epistemológica” do problema da intersubjetividade em Hegel e se exime de um exame do
tema da verdrängte Intersubjektivität em um registro político-filosófico, dando a entender, ao citar Theunissen, sua satisfação com a análise das
Grundlinien feita por este sob a inspiração da tese fornecida por Habermas com respeito ao abandono por Hegel de suas intuições jenenses.
278
624
Theunissen, Michael – „Die verdrängte Intersubjektivität in Hegels Philosophie des Rechts“in: Dieter Henrich/Rolf-Peter Horstamann, Hegels
Philosophie des Rechts. Die Theorie der Rechtsformen und ihre Logik, Stuttgart 1982, 317-381
625
Ver também Kaltenbacher, Walter – Freiheitsdialektik und Intersubjetivität in Hegels Rechtsphilosophie. Frankfurt am Main, 1994. De certa
maneira, pode-se dizer que Theunissen defende uma tese que é, em muitos aspectos, uma versão invertida da tese de Hösle [Hösle, Vittorio –
Hegels System , 2 Bände, Meiner Verlag, Hamburg, 1987]. Enquanto Hösle afirma que as categorias da lógica são todas mundanas e que, por
conseguinte, não podem suportar as considerações de Hegel sobre a intersubjetividade na “filosofia real”; Theunissen acredita que, muito embora
Hegel apresente uma teoria com algum teor de intersubjetividade nas Grundlinien, esta intersubjetividade é reprimida, não simplesmente na obra
como um todo, mas em detalhes da argumentação. As razões alegadas por Theunissen para esta repressão da intersubjetividade são os
compromissos metafísicos de Hegel, a pretensa tomada de partido de Hegel pelos antigos contra os modernos, e seu conceito monológico de
sujeito. De maneira geral, Theunissen pretende que o conceito hegeliano do social destitua os indivíduos de sua independência, pois a
compreensão metafísica da relação entre eles – um espírito objetivo hipostasiado como substância ética – se sobrepõe à intersubjetividade. “A
concepção panteísta de espírito objetivo remove toda a intersubjetividade da eticidade.”(12). “Hegel substitui toda relação intersubjetiva por uma
relação da substância a estas pessoas, e como resultado a independência das pessoas desaparece.”(12).
626
ver Müller, Marcos L. –“A Gênese Conceitual do Estado Ético”. REVISTA DE FILOSOFIA POLÍTICA - NOVA SÉRIE. PORTO ALEGRE
- L&PM: , v.2, p.9 - 38, 1998.
627
Robert Williams desenvolveu, na década de 90, uma interessante leitura do conceito hegeliano de reconhecimento, a qual se acha mais
claramente exposta em dois livros e alguns artigos. Williams, R. R. – Hegel´s Ethics of Recognition, London/Los Angeles, 1997– Recognition:
Hegel and Fichte on the Other, Albany, University o f New York Press, 1992 O primeiro livro enfatiza mais a teoria do reconhecimento do jovem
Hegel, enquanto o mais recente procura empreender uma sólida leitura da filosofia política madura de Hegel através do conceito de
reconhecimento. Grosso modo, pode-se dizer que a tese central de Williams é que o reconhecimento não é apenas uma figura fenomenológica do
conceito de liberdade, mas também a estrutura intersubjetiva e padrão do conceito hegeliano de espírito. Para Williams, diante desta tese de
envergadura, o reconhecimento fornece a estrutura ontológica mais fundamental da filosofia hegeliana do espírito, de sua filosofia prática e do
conceito hegeliano de eticidade. Williams concorda com Honneth e Habermas que o reconhecimento fornece um itinerário promissor para a
reconstrução pós-metafísica da filosofia social e da ética, mas refuta a tese de que o reconhecimento seja abandonado pelo Hegel maduro.
279
Uma intuição que nos parece poder revelar como os momentos intersubjetivos de
constituição do espírito objetivo possam se tornar ainda significativos para a compreensão sócio-
filosófica da profundidade do insight hegeliano, apesar da “repressão” da intersubjetividade pela
exposição sistemática da obra, é justamente a percepção, auxiliada pelo exame dos escritos “pré-
fenomenológicos” de Hegel, da relação dialética entre uma compreensão “solidária e não-
excludente” da intersubjetividade e uma concepção negativa e limitativa da relação
intersubjetiva629. A “ambivalência” do estatuto supra-individual da efetivação do conceito de
direito (Müller) poderia assim ser compreendida de maneira que o conteúdo formado pelas
relações intersubjetivas que fazem a mediação das configurações comunitárias do espírito
objetivo não se esgotasse na sua subordinação ao movimento da substância ética enquanto
sujeito. Desta maneira, procurando perceber como este conteúdo de relações intersubjetivas se
revela no conflito entre os dois paradigmas de intersubjetividade, poder-se-ia sustentar a tese de
que o ponto de intersecção do que, nas Grundlinien, é compreendido como uma superposição de
esferas sem uma ligação profunda (Roth) está no projeto de institucionalização social de forças
sócio-integrativas ou centrípetas, isto é, efetivação social de nichos de intersubjetividade solidária
que possam fazer frente ao movimento centrífugo de uma intersubjetividade limitativa,
excludente e desagregadora, modelo de intersubjetividade que, entretanto, tem sua gênese
histórica determinada pelo processo de modernização e de intensificação da liberdade subjetiva e
dos direitos individuais. A partir de Jena, a eticidade moderna passa a ser compreendida
conceitualmente como processo de institucionalização normativa de níveis de intersubjetividade
capazes de amortecer o processo de “individualização” decorrente da “modernização”. Sem
dúvida deve ser levada em conta a realização limitada deste processo nas Grundlinien, o qual se
realiza sob os preceitos da auto-efetivação da singularidade espiritual absoluta (Müller).
Entretanto, poder-se-ia ainda conferir ao intento hegeliano seu poder normativo e sua atualidade
pela percepção do jogo entre estas concepções de intersubjetividade.
628
Em seu recente livro sobre a filosofia política de Hegel, Honneth delineia um esboço de re-atualização de caracteres gerais do pensamento
hegeliano. Este trabalho se compreende como uma tentativa indireta de reconstrução, na medida em que, ignorando o que chama de atuais
reservas metodológica e política para com a obra de Hegel, não tenciona uma reconstrução “direta”, ou seja , que pretendesse tornar plausíveis
quer a lógica especulativa, quer o conceito substancial de Estado. Ao invés disso, Honneth procura mostrar como a intersubjetividade latente no
conceito hegeliano de eticidade – que segundo ele teria, num misto de Zeitdiagnose e Gerechtigkeitstheorie, um papel eminentemente terapêutico
em relação às concepções essencialmente modernas da liberdade, mas unilaterais e monológicas, típicas das esferas da pessoa jurídica e do sujeito
autônomo, direito e da moral – pode, por meio da recuperação das relações de reconhecimento recíproco, representar ainda um rico filão para atual
filosofia política, mesmo para autores cuja teoria da justiça tenha sido cunhada pelo modelo kantiano do princípio universalista e formal da moral,
como Habermas e Rawls. Para Honneth, “tudo que Hegel tenha a dizer no tocante aos fundamentos epistemológicos e normativos para seu
próprio conceito de “eticidade”, permanece oculto por detrás dos elementos de sua metodologia e de seu conceito de estado postos em questão.”
Segundo Honneth, de acordo com o paradigma pós-metafísico de pensamento,“nem o conceito hegeliano de estado, nem seu conceito ontológico
de espírito ... parecem ainda hoje em dia serem, de alguma maneira, passíveis de reabilitação.” O objetivo desta reconstrução indireta da
atualidade da filosofia do direito de Hegel no quadro das discussões atuais no campo da filosofia política e da filosofia social é demonstrá-la
“como projeto de uma teoria normativa daquelas esferas de reconhecimento recíproco, cuja manutenção (Aufrechterhaltung) é constitutiva para a
identidade moral de sociedades modernas.” Honneth, Axel – Leiden an Unbestimmtheit. Eine Reaktualisierung der Hegelschen
Rechtsphilosophie, Stuttgart, 2001
629
Em um texto sobre a Introdução das Grundlinien, M. Müller fornece uma interessante interpretação do “estatuto supra-individual” do
“conceito positivo de direito” que incorpora momentos da interpretação de Theunissen e parece abrir, ao mesmo tempo, novas possibilidades de
apreciação da obra de maturidade e de aproximação com a discussão sobre a intersubjetividade feita em Frankfurt e Jena. Partindo da anotação ao
§ 29 e da crítica hegeliana à compreensão negativa do direito defendida por Kant e Fichte, Müller contrapõe o “conceito positivo de direito”,
vinculado à sua “base substancial supra-individual” que reúne as condições comunitárias da realização da liberdade de todos, à concepção
formalista do direito, que tem seu ponto de partida na multiplicidade atomista das vontades individuais e cujo sentido comunitário se vê reduzido à
regulação legal formal pela coerção recíproca dos singulares. À “base substancial” (LFFD § 29) do sentido comunitário ou positivo do conceito de
direito, que se constitui pela suspensão da “vontade singular em seu arbítrio peculiar” (LFFD § 29A) implicada na contradição interna do arbítrio,
Müller relaciona a figura da universalidade imanente às vontades singulares, a qual considera ser o núcleo normativo de uma “sociabilidade
positiva”, um paradigma não limitativo ou excludente de intersubjetividade propiciado pela universalidade imanente da idéia ética enquanto “o
bem vivo”(LFFD §142). Müller considera que, nas Grundlinien, esta “sociabilidade positiva” se relaciona com a “sociabilidade negativa” da
concepção formal do direito como sua condição de possibilidade, isto é, como substrato de relações intersubjetivas orgânicas que torna possível a
socialmente necessária restrição recíproca das esferas de liberdade.
280
Neste sentido, poder-se-ia desenvolver, com base nesta relação dialética entre modelos de
intersubjetividade, a partir das discussões sobre contrato, crime e justiça punitiva no
Systementwurf 1805/06) e nas Grundlinien, a relação entre a intersubjetividade e o teor normativo
de uma racionalidade jurídico-moral de matriz kantiana. Tal investigação poderia funcionar como
preâmbulo para uma melhor apreciação, a partir de uma leitura integrada da filosofia prática de
Hegel, de como o modelo hegeliano de eticidade moderna se constitui através de uma tentativa de
articulação conceitual e social entre uma concepção inclusiva e uma concepção excludente de
relação intersubjetiva. Neste itinerário, este modelo, que data ainda dos primeiros textos de
Frankfurt, teria, apesar das severas imposições metafísicas e substancialistas que se vinculam à
maior ênfase dada por Hegel à submissão do movimento geral do seu conceito de espírito à
necessidade lógico-especulativa de um télos auto-referente em seu conceito de espírito absoluto,
sua concretização mais aguçada na teoria da sociedade civil das Grundlinien, onde se poderia
identificar a articulação da intersubjetividade inclusiva e excludente no processo de “dissolução
ética” da família e de gênese da sociedade civil, por um lado, e nos nexos sociais que antecipam a
emergência conceitual do estado ético, principalmente a “corporação” enquanto ambiente social
que se vincula ao reconhecimento intersubjetivo de elementos da existência singular que
excedem o escopo do reconhecimento da pessoa de direito. É claro que ambos os elementos que
articulam os modelos de intersubjetividade se acham amplamente envolvidos na sistemática geral
do pensamento maduro de Hegel e são, por conseguinte, ulteriormente determinados pelos
momentos lógico-especulativos diretivos da exposição. Entretanto, ainda que no horizonte das
premissas metafísicas do sistema hegeliano, poder-se-ia determinar o teor sócio-filosófico mais
profundo destes desenvolvimentos na seguinte direção: por um lado, o momento social em que,
sob circunstâncias modernas de um embate entre sistema e mundo da vida – para falar em termos
habermasianos – o reconhecimento universal do ser humano como pessoa tem de se sobrepor a
dispositivos sócio-integrativos baseados em uma intersubjetividade participativa; por outro lado,
o momento social em que o reconhecimento de aspectos ligados à existência concreta dos
indivíduos ultrapassa o quadro geral de uma racionalidade jurídico-moral e se dirige a elementos
éticos do bem viver e de uma ética valorativa.
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