O Conceito de Liberdade em O Ser e O Nada
O Conceito de Liberdade em O Ser e O Nada
O Conceito de Liberdade em O Ser e O Nada
Belo Horizonte
2008
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ALEX KEINE DE ALMEIDA SEBASTIÃO
Belo Horizonte
2008
FICHA CATALOGRÁFICA
165f.: il
Orientador: Carlos Roberto Drawin
Dissertação (mestrado): Universidade Federal de Minas Gerais,
Departamento de Filosofia
____________________________________________________________________
Prof. Dr. Carlos Roberto Drawin (orientador) – UFMG
____________________________________________________________________
Profa. Dra. Ester Vaisman – UFMG
____________________________________________________________________
Prof. Dr. Luiz Damon Santos Moutinho - UFPR
Aos professores Telma de Souza Birchal e Ivan Domingues, pelo acolhimento desta
dissertação quando ainda era projeto;
É o homem livre? Sob o impulso dessa antiga questão filosófica, busca-se descrever e avaliar
a contribuição dada por Sartre ao construir seu conceito de liberdade em “O Ser e o Nada”. A
Are humans free? Starting from this ancient philosophical question, we try to describe and to
debate on freedom. The dissertation unfolds in three chapters. First, we approach the
theoretical framework of the concept from two distinct sets of reflection - the combination of
of an epistemological impasse generated during the creation of the concept of freedom. Next,
we examine the concept of freedom and its connections with the concepts of consciousness,
facticity and responsibility. Finally, we include the critique of Sartre’s concept of freedom
INTRODUÇÃO................................................................................................................10
CONCLUSÃO................................................................................................................153
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.........................................................................160
10
INTRODUÇÃO
polarização pode ser encontrada, com algumas nuances, na abordagem do tema pela tradição
filosófica.
seria a ausência de constrangimento alheio1. É livre, do latim liber, o homem que, não sendo
escravo ou prisioneiro, pode agir conforme sua própria vontade. Da acepção originária,
expressão “determinismo causal”. A idéia básica é que tudo o que acontece tem uma causa
determinante de uma ação única e inexorável. A conseqüência dessa linha teórica é a negação
máximo, uma ilusão psíquica. Essa parece ser a posição de Spinoza, para quem o que os
homem de quebrar a cadeia causal, subtraindo-se ao jugo das leis da natureza. É a posição de
Kant, para quem, não há conflito entre o determinismo da natureza e a liberdade do homem,
constitui o objeto, mas sim o horizonte da presente dissertação. A eleição desse horizonte
temático não é arbitrária, visto que, ao construir seu conceito de liberdade, Sartre se reporta
inúmeras vezes à oposição entre liberdade e determinismo, analisando como a questão foi
se no âmbito da ontologia, em uma perspectiva fenomenológica, que foi a adotada por Sartre6
3
BLINE, J., Puis-je être libre malgré le determinisme?.
4
REALE, G.; ANTISERI, D., História da filosofia., v.II, pp.913-915
5
SARTRE, J.P., O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica, p.533-681; ed.franc., p.477-601.
6
Filósofo polêmico, Sartre é o representante por excelência do intelectual engajado que faz do saber um
instrumento de intervenção sócio-política. Atuando em várias frentes – filosofia, literatura, teatro -, ele buscou
fazer de sua própria vida um compromisso com a liberdade, tema primordial de seu pensamento. Reaproximar a
filosofia e a vida cotidiana, sem prejuízo do rigor das idéias, foi um de seus grandes méritos. “O Ser e o Nada” é
considerada a mais vigorosa de suas obras filosóficas, dentre as quais, destacam-se também “O Existencialismo é
um Humanismo” (1945) e a “Crítica da Razão Dialética” (1960). Em 21 de junho de 2005, comemorou-se o
centenário de seu nascimento.
7
Concebida durante o período em que Sartre esteve mobilizado na 2ª Guerra Mundial, a obra começou a ser
escrita em 1941 e foi publicada em 1943. Somente em 1945, seu impacto começará a se fazer sentir e ela se
tornará uma das mais populares obras filosóficas jamais escritas. “O Ser e o Nada” constitui o ápice da trajetória
de Sartre no domínio da fenomenologia, que inclui os estudos de psicologia fenomenológica do período de 1934-
1940. Sobre as obras de Sartre, ver CONTAT, M. et RYBALKA, M., Lés écrits de Sartre: chronologie,
bibliographie commentée.
12
ao fenômeno como um progresso notável do pensamento moderno. Ser e aparecer não mais se
contrapõem, pelo contrário, identificam-se. O ser não se esconde atrás de uma aparência
concebida como ilusão, na verdade, ele está na própria aparição; o ser não é algo que se
oculta, mas algo que se revela. Será o ser do fenômeno, ele mesmo, um fenômeno?, interroga-
se Sartre. A princípio, pareceria que sim, mas, sob pena de uma regressão ao infinito, conclui-
nada tem de substancial, sendo pura aparição. A partir dessas considerações, Sartre conclui:
pretendia escapar 9?
A reflexão fica ainda mais complexa quando Sartre parece retroagir e mudar de
direção, afirmando que “o ser transfenomenal da consciência não pode fundamentar o ser
Assim, o ser percebido está frente à consciência, ela não pode alcançá-lo, ele não pode
penetrá-la, e, como está apartado dela, existe apartado de sua própria existência.
8
O ser e o nada, p.28; ed.franc., p.23.
9
Cf. RENAUT, A., Sartre, le dernier philosophe, p. 128.
10
O ser e o nada, p.32; ed.franc., p.26.
11
Cf. MÉSZÁROS, I., A obra de Sartre: busca da liberdade, p. 238.
13
Em sua busca pelo ser, Sartre se depara não com o ser, mas com os seres: o ser-em-si e
o ser-para-si. Trata-se de duas regiões de ser absolutamente distintas. O em-si, enquanto ser
consciência, constitui-se pelo nada; é o que não é e não é o que é. Qual o sentido do ser, na
medida em que compreende essas duas regiões de ser radicalmente cindidas? Como situar a
tenha se dado sem uma prévia explicitação das estruturas da idéia de ação. Dos elementos da
pela intencionalidade da consciência. A ação figura como a possibilidade de vir a ser aquilo
se oporá a ambos os lados. Ao contrário do que propõem os últimos, diz Sartre, toda ação tem
um motivo, visto que, sendo intencional, ela deve ter um fim, que remete a um motivo. Os
deterministas, por sua vez, equivocam-se ao entender motivos e móbeis como suficientes para
originar a ação13. Motivos e móbeis se constituem como tais apenas através de uma atribuição
de significado e de valor pelo agente. Vale dizer, somente após a passagem pelo filtro
transformar em motivos de um ato. Não se trata de algo dado, mas construído através da
liberdade. Nesse sentido, o motivo não tem com o ato uma relação de causa e efeito. Sendo
12
Diferentemente da edição brasileira, optamos por respeitar o texto original e grafar os termos “para-si” e “em-
si” com inicial minúscula.
13
A corrente determinista parece ser uma expressão, na esfera do conhecimento, da atitude da má-fé, descrita por
Sartre como a fuga do para-si, permanentemente confrontado com sua própria liberdade, em busca de refúgio no
em-si.
14
finalidade em vista da qual o ato é produzido. Desse modo, tanto a finalidade intencional
quanto o motivo integram o próprio ato, em uma articulação temporal sintética. O ato, ao
surgir, faz a intermediação presente entre um motivo passado e uma finalidade futura.
la com maior precisão, afirma Sartre. Todavia, ele se depara com uma séria dificuldade: como
descrever algo que não tem essência? Sartre pretende ultrapassar a dificuldade apontando que
a descrição pode visar não a essência, mas sim o próprio existente em sua singularidade.
descrição de sua própria liberdade. Essa solução, no entanto, parece ser criticável, visto que,
além de sua conseqüência solipsista, ela não é efetivamente seguida por Sartre. Com efeito, na
seqüência da exposição sobre a liberdade, Sartre não está tratando apenas de sua própria
para-si. Apesar de negar que seja possível descrever uma liberdade que seja comum ao outro e
a mim, é justamente essa a tarefa que se propõe Sartre. Portanto, parece-me, ele apresenta sim
um conceito de liberdade.
tomar como objeto de conhecimento algo que, não tendo essência, sendo puro nada, não-ser,
estaria avesso a qualquer definição ou conceituação? Esse impasse remete à própria questão
liberdade, para Sartre, está na raiz do ser-para-si. Trata-se não de uma faculdade que se agrega
ao ser do homem, mas sim do próprio homem. Ou o ser humano é inteiramente livre ou não o
é, diz Sartre, extraindo a conseqüência lógica da identificação entre ser humano e liberdade.
15
Assim, como seria absurdo falar que alguém é mais ou menos ser humano, também careceria
Sartre nega com veemência que, por conta da liberdade absoluta, a ação humana seja
ontológica da liberdade construída por Sartre, tem-se uma totalidade, a escolha fundamental,
composta por estruturas parciais, as escolhas derivadas. O significado destas remete sempre
uma invenção do para-si. Se as escolhas derivadas podem ser compreendidas a partir de sua
efetuar uma ruptura nadificadora com o mundo e consigo mesma, afirma Sartre. A realidade
humana é seu próprio nada. Algo de que não se pode escapar e que tem apenas em si mesma
trecho:
Estou condenado a existir para sempre para-além de minha essência, para-além dos
móbeis e motivos de meu ato: estou condenado a ser livre. Significa que não se poderia
encontrar outros limites à minha liberdade além da própria liberdade, ou, se preferirmos,
que não somos livres para deixar de ser livres.17
Estatuir a liberdade como marca do humano não implica a afirmação de uma natureza
humana, de uma essência definidora do homem, mas sim de uma condição humana, no
sentido circunstancial da permanente indefinição do homem, que é aquele ser cujo ser está
14
O ser e o nada, p.559; ed.franc., pp.497-498.
15
A experiência dessa contingência absoluta de nosso ser gera sentimentos como a angústia e o desamparo,
expressos com mestria por Sartre em seu célebre romance “A Náusea”.
16
Gerd Bornheim aponta para um ceticismo existencial. Sartre: metafísica e existencialismo, pp.22-23.
17
O ser e o nada, pp.543-544; ed. franc., p.484.
16
do existencialismo, aponta para o fato de que o homem é aquilo que, a partir de sua
Sartre chama a atenção para o fato de que o fazer do homem se dá no meio do mundo
e que sua liberdade não é uma liberdade de sobrevôo, mas sim uma liberdade situada,
conceito de liberdade construído por Sartre, através da qual ele reelabora os problemas
colocados pelos deterministas. Ela pretende dar conta do principal argumento do senso
existência que lhe são dadas sem a interveniência de sua escolha. Sartre afirma que o mundo,
no qual já nos encontramos lançados, só existe iluminado pelos fins construídos pela
liberdade humana. E esta, por sua vez, pressupõe um mundo já dado e resistente em cujo
interior seja possível a projeção de fins. Assim, não há oposição, mas antes interpenetração
entre liberdade e facticidade. Sem a resistência do mundo não haveria a distância que separa o
para-si dos fins que ele escolhe através de seu projeto. A liberdade sartriana, ainda que
absoluta, não é nem formal, nem abstrata, ela existe sempre em situação. Assim, pode-se
afirmar que “‘ser livre’ não significa ‘obter o que se quis’, mas sim ‘determinar-se por si
Sabe-se que Sartre não chegou a concluir um sistema ético, apesar de toda sua obra
estar estreitamente ligada à questão ética19. Em que medida o caráter inacabado da ética de
Sartre é uma conseqüência da adoção de seu conceito de liberdade? Por que motivos o
18
Ibid., p.595; ed. franc., p.528.
19
SIMONT, J. Sartrean Ethics. In: HOWELLS, C. (Ed.), The Cambridge Companion to Sartre, p.178.
17
asseverando o seguinte:
responsável por tudo, exceto por sua própria responsabilidade. Isso porque ele não é
fundamento de seu ser, nem do ser do mundo, mas “é coagido a determinar o sentido do ser,
nele e por toda parte fora dele”21. O homem não cria o ser, mas, impelido por sua própria
liberdade, cria os valores que constituem sua busca pelo sentido do ser.
*****
liberdade. Têm-se, então, dois focos principais, que deram origem a dois subcapítulos: “A
20
O ser e o nada, p.678; ed.franc., p.598.
21
Ibid., p.681; ed.franc., p.601.
18
múltiplas descrições da liberdade elaboradas por Sartre, e em suas relações com os conceitos
filosofia sartriana e a seu conceito de liberdade. Elegeu-se, então, pela qualidade do debate
que promovem com a obra de Sartre, dois autores de cepas filosóficas bastante distintas:
Maurice Merleau-Ponty e István Mészáros. Recorremos a eles tão somente para pinçar e
entretanto, que o texto original foi fonte de permanente consulta com vistas a controlar a
correção da versão traduzida e, quando necessário, sanar eventuais falhas. Assim, todas as
liberdade em sua descrição mais extensa e detalhada. Mas, visto que o referido conceito
perpassa todo o percurso filosófico sartriano, constituindo, segundo alguns comentadores, seu
22
A propósito, ver Referências Bibliográficas.
19
objetivo aclarar não só algumas noções afins ao conceito de liberdade, como, por exemplo, a
Ressalte-se, todavia, que nosso objetivo aqui não é efetuar uma análise comparativa
das diferentes nuances, ou, até mesmo, diferentes formulações que o conceito sartriano de
liberdade pode apresentar, conforme a obra considerada. Por conta disso, não nos valeremos
de algumas de suas obras mais tardias, como “A Crítica da Razão Dialética” e “O Idiota da
Família”, nas quais o conceito de liberdade tal como construído em “O Ser e o Nada” não
23
Sobre a variação da posição de Sartre no que concerne à liberdade, podemos citar dois de seus próprios
depoimentos: “‘O Ser e o Nada’ é uma obra sobre a liberdade. Naquele momento, eu acreditava, como os velhos
estóicos, que se é sempre livre, mesmo em uma circunstância extremamente desfavorável que pode desembocar
na morte. Sobre esse ponto, eu mudei muito. Penso que há, efetivamente, situações onde não se pode ser livre”
(Entrevista a Simone de Beauvoir, La cérémonie des adieux, p.505); e ainda: “Acredito que um homem pode
sempre fazer qualquer coisa daquilo que fizeram dele. É a definição que eu daria hoje da liberdade: esse pequeno
movimento que faz de um ser social totalmente condicionado uma pessoa que não restitui a totalidade daquilo
que ela recebeu de seu condicionamento; que faz de Genet um poeta, por exemplo, enquanto ele havia sido
rigorosamente condicionado para ser um ladrão” (Sartre par Sartre, in: Situations IX, pp.101-102).
20
CAPÍTULO I
- é uma corrente filosófica em que a existência humana ocupa o papel principal. Kierkegaard
Ferrater Mora que arrola alguns temas freqüentes nesta corrente: “a subjetividade, a finitude, a
sendo que o último recusou ser classificado como tal. O existencialismo é freqüentemente
dividido em duas espécies: a cristã – representada por Jaspers, Marcel, Lavelle – e a atéia –
integrada por Heidegger e Sartre. Importante lembrar que o existencialismo inclui, a par da
ao qual o existencialismo busca dar uma nova resolução. Já entre Platão e Aristóteles, há uma
24
EXISTENCIALISMO. In: FERRATER MORA, J., Dicionário de filosofia, p.963.
21
semântica ao longo da história da filosofia, mas, grosso modo, pode-se entender por essência
o quê de alguma coisa, aquilo que a distingue das demais coisas e a identifica a si mesma,
enquanto por existência, entende-se o fato de que a coisa é. Sartre afirma que, no homem, a
existência precede a essência. Diferentemente das coisas que o rodeiam, o homem não tem o
seu ser já definido em uma essência. O seu ser é sempre posterior ao seu existir, ao seu fazer-
coisas do mundo são reais; elas são, mas elas não existem, no sentido em que se diz que um
entrecruzamento entre o que ele foi, o que ele é e o que ele será. A forma como ele organiza o
seu passado, o seu presente e o seu futuro é a expressão de sua liberdade, de seu fazer-se
homem.
fim e valor a guiar a ação do próprio homem. Cultiva-se a idéia do homem como um universal
homem a base da reflexão filosófica. Todavia, trata-se não de um homem universal, mas sim
do homem singular, que não dispõe de outros fins e valores além daqueles que ele inventa
para si mesmo. Busca-se partir da subjetividade, sem pretender fazer dela um objeto. Sartre
I-1.2. A fenomenologia
Desde 1762, com Lambert, apontado como seu criador, até Husserl, o termo
fenomenologia foi empregado por autores diversos em acepções também diversas. Não há
principal marco na história da fenomenologia, de tal forma que se fala em sentido husserliano
e pós-husserliano de fenomenologia.
Alan Renaut intitula a segunda parte de seu livro “Sartre, le dernier philosophe”, não
algumas idéias estruturantes de suas respectivas filosofias, mas divergem em outros tantos
pontos não menos importantes. Tanto é que eles dão origem a três espécies distintas do gênero
nenhum juízo seria independente do eu que o enuncia. Até mesmo a lógica seria tragada pela
26
Cf. O existencialismo é um humanismo, p.21; ed. franc., pp.74-76.
23
psicologia, à qual passaria a estar submetido todo o conhecimento. Tem-se, então, a instalação
Hume resultante da negação de um dos pilares do criticismo kantiano, qual seja, a distinção
lógica pura, irredutível à psicologia. Husserl aponta a controvérsia entre as duas correntes e se
aproxima muito mais dos logicistas, ao reivindicar a distinção entre a questão da verdade de
existência intencional do objeto tal como caracterizada pelos escolásticos da Idade Média. Em
traduzida simplesmente como existência intencional. Isso porque, o prefixo “in” na palavra
alemã Inexistenz, diferentemente do que ocorre no termo português inexistência, não tem
função negativa. Inexistenz não significa uma não existência, mas sim uma existência em ou
27
O conhecimento é, para Husserl, apenas uma das múltiplas relações que a consciência intencional pode
estabelecer com o mundo. A par de conhecer, a consciência também pode imaginar, desejar, pensar, querer,
sofrer, escolher, etc. Nesse sentido, tem-se “a fenomenologia como uma ciência rigorosa, mas não exata, uma
ciência eidética que procede por descrição, uma ciência que se ocupa de fenômenos, mas com uma atitude
diferente das ciências exatas e empíricas – os seus fenômenos são os vividos da consciência, os atos e os
correlatos dessa consciência” (MAGALHÃES, T.C., Apostila de Filosofia Contemporânea I, p.11).
24
dentro de algo, no caso, uma existência no espírito. O adjetivo intencional exprime a idéia de
aristotélica entre a existência do objeto no espírito e a existência do objeto fora dele. O objeto
se faz presente no espírito do sujeito conhecedor apenas através de sua forma, sem sua
matéria. Isso foi retomado por São Tomás, quando ele afirmou que a forma tem, na realidade
efetiva, unida à matéria, um ser natural, enquanto, em nós, ela tem um ser intencional e
espiritual.
Segundo Renaut,
Kant: “Sobre qual fundamento repousa a relação daquilo que se chama em nós
chegue à ‘representação’ e mesmo à ‘apreensão’ pelo conhecimento, que acabe então por
“Como é que há para nós os objetos, e qual é a relação entre o objeto ‘para nós’ e o objeto em
si?”29. Kant recusou as duas respostas pré-críticas a esta questão: a empirista, que restringe a
28
RENAUT, A. Sartre, le dernier philosophe, p.91.
29
Ibid., p.94.
25
Esta correlação está no centro de todos os vividos da consciência, visto que toda consciência,
sendo intencional, é consciência de alguma coisa. Daí que a fenomenologia se define como
uma pesquisa sobre a essência dos vividos do pensar e do conhecer. Ela é uma análise eidética
dos fenômenos, que permite isolar os invariantes tal como eles emergem das variações.
atitude natural.
Trata-se de uma suspensão da atitude natural frente ao objeto, de um pôr entre parênteses as
crenças usuais, com vistas a alcançar uma pura descrição do que se mostra por si mesmo: o
fenômeno. Operada a redução, o que resta são as essências, ou unidades ideais de significação
que, enquanto tais, não constituem nem realidades metafísicas, nem conceitos.
anteriormente à sua leitura das obras de Husserl e Heidegger. São elas: a contingência da
existência; o sentido desvelado pela aparição do mundo; e o “homem só” como modelo de
acesso à verdade30.
30
Cf. COOREBYTER, V. Sartre face à la phénoménologie, pp.11-14.
31
Sobre a contingência, ver o tópico II.3.2.
26
coisa mesma que vamos buscar seu sentido. Encaixa-se aí o modelo do “homem só”, que, ao
afastar os filtros culturais e sociais, colocando-se sozinho frente à coisa, consegue alcançar a
impossível afastar todo e qualquer filtro no contato com o mundo. Todavia, é importante
estar-se atento para a existência destes filtros, para seus efeitos, e, ainda, para a possibilidade
de suspendê-los ou alterá-los.
Ela constitui um ponto de partida privilegiado para a filosofia. Trata-se de estabelecer uma
ligação mais estreita entre a filosofia e a vida cotidiana, bem como de neutralizar as heranças
científicas, morais e culturais. Daí, aponta Coorebyter, a preferência de Sartre pelos “(...)
filósofos que o marcaram por sua prática de suspensão dos conhecimentos, pelo primado
idealismo)”.33
32
COOREBYTER, V. Op.cit., pp.12-13.
33
Ibid., p.14.
27
certeza vivida de ter que ver com a coisa mesma (...)”.34 Antes mesmo do contato com a
fenomenologia, Sartre é marcado por uma exigência de concretude: o sentido dos fenômenos
deve ser buscado em sua positividade mesma, e não em um eventual númeno por eles
ocultado. Nesse sentido, há um primado da intuição que nos fornece os dados fundamentais a
serem tratados em um processo depurador, seja a redução, como quer Husserl, seja a reflexão,
Assim, mesmo antes do estudo da obra husserliana, em Berlim, nos anos de 1933-34,
algumas das idéias cultivadas por Sartre eram já de teor fenomenológico35. Mais ainda, ele já
A descoberta da obra husserliana por Sartre foi motivada por uma conversa de bar com
Raymond Aron, narrada tanto por este último, em “Mémoires”, quanto por Simone de
Raymond Aron passava o ano no Instituto francês de Berlim e, preparando uma tese sobre
a história, ele estudava Husserl. Quando veio a Paris, ele falou disso a Sartre. Nós
passamos juntos uma noite no Bec de Gaz, na rua Montparnasse; pedimos a especialidade
da casa: os coquetéis de pêssego. Aron apontou seu copo: “você vê, meu caro colega, se
você é fenomenólogo, pode falar deste coquetel, e isso é filosofia!” Sartre empalideceu de
emoção, ou quase: era exatamente o que ele desejava havia anos: falar das coisas tal
como ele as tocava, e que isso fosse filosofia.36
34
Ibid.
35
Também nesse sentido é o entendimento de Juliette Simont, que afirma: “tudo no pensamento ‘pré-
fenomenológico’ do jovem Sartre demandava a fenomenologia (...). Tudo: particularmente, a recusa conjunta e
virulenta do idealismo de seus mestres de filosofia, de um lado, e do positivismo cientificista, de outro” (Jean-
Paul Sartre, pp.12-13).
36
BEAUVOIR, S. La force de l’âge, p.157.
28
nós”37. A novidade trazida por Husserl permitiria fazer progredir a filosofia do sujeito, na
da consciência. Esta foi justamente a diretriz da atividade filosófica de Sartre, dos anos 30 até
“O Ser e o Nada”.
a relação de Sartre a Husserl iria tomar a forma, não de uma descoberta paciente de uma
obra por um jovem autor respeitoso e desejoso de se instruir, mas sim de uma
mobilização de recursos husserlianos a serviço de objetivos tanto próximos (o debate com
o realismo e com o idealismo) quanto afastados (a reflexão sobre a contingência)
daqueles do filósofo das “Investigações Lógicas”.38
No “Diário de uma Guerra Estranha”, Sartre relata seu processo de descoberta das
obras de Husserl e Heidegger. Segundo ele, foram-lhe necessários quatro anos para esgotar
Husserl. Ele havia se tornado um husserliano e deveria permanecê-lo por muito tempo. O que
leu Sartre no período de sua estada em Berlim? A partir das referências de Sartre a Husserl,
1936 e escrito em 1934, parcialmente durante a estada em Berlim. Tal qual Heidegger,
também Sartre censura Husserl por não ter tirado todas as conseqüências da intuição central
37
Ibid.
38
RENAUT, A., op.cit., p.132.
39
Cf. ibid., p.133.
29
Husserl como unificador da consciência seria não só dispensável, mas nocivo, visto que
dois grandes riscos: o retorno ao idealismo e a queda no solipsismo. Assim, como aponta
Coorebyter, Sartre “não será nem um discípulo nem um leitor ortodoxo de Husserl:
aproximando-se da fenomenologia para progredir em sua própria via, ele a tratará como
material destinado não só a servir de trampolim, mas também a sofrer torções ou a conhecer
prolongamentos inesperados”40.
Mundial41. Segundo Sartre, foi problemático estudar Heidegger logo após Husserl, não só
porque ele havia sido tomado pelas perspectivas husserlianas, mas ainda porque a dificuldade
de ler Heidegger em alemão o repelia. Ao voltar-se para Heidegger, Sartre buscava resolver
sua insatisfação com Husserl e munir-se de forças para enfrentar a realidade hostil dos tempos
de guerra. Comparando um a outro, Sartre afirma que Husserl é mais erudito e menos popular,
enquanto Heidegger seria autor de uma filosofia patética, que, ainda que incompreensível à
psicologia. Entretanto, Heidegger ressente não ter encontrado em Husserl o Brentano autor da
40
COOREBYTER, V., op.cit., p.16.
41
Cf. Diário de uma Guerra estranha, p.228; ed. franc., p.408.
42
Cf. ibid.
30
conteúdo e alcance mais profundos teriam escapado ao seu próprio autor. Cumpre apreender a
uma mera faculdade da consciência, mas sim o próprio ser transcendente do Dasein. Trata-se
surgimento do fenômeno como tal, mas na ótica de uma filosofia do sujeito, em que a
consciência husserliana tem ainda resquícios de uma mônada. Há que se interrogar sobre a
espontânea.
Husserl. Enquanto Heidegger afirma que o Dasein pertence já ao ser que, ao se autodesvelar,
faz com que haja um mundo para o Dasein, Husserl entende que a consciência funda ou
Foi durante os anos de prisão (1940-41) que Sartre verdadeiramente se debruçou sobre “Ser e
Tempo”, no mesmo momento em que escrevia “O Ser e o Nada”44. Observa-se que Sartre
43
RENAUT, A., op.cit., p.125.
44
Cf. ibid., p.44.
31
opera uma inversão do projeto heideggeriano. Heidegger pretendia partir da análise do ser do
homem para alcançar a questão do ser em geral, enquanto Sartre aborda a questão do ser em
geral logo na introdução de “O Ser e o Nada”, como ponto prejudicial da análise da existência
desenvolvida por Husserl e farão dela um dos pilares de suas respectivas filosofias, mas de
nada, como liberdade, pretendendo refundar a filosofia do sujeito do lado do sujeito prático46.
Isso porque o sujeito é aquilo que ele faz de si mesmo; ele se constitui a partir de sua ação.
de Sartre: “(...) eu li uma bela frase de Heidegger que poderia se aplicar a mim: ‘A metafísica
Sartre ressalta a imbricação entre a prática da filosofia e a existência daquele que a pratica.
Pode-se ainda perceber na frase citada um viés descentralizador do sujeito, como é habitual
enquanto ser humano? Eis uma questão que não soa sartriana, visto que, para Sartre, cabe
45
Cf. ibid., pp.51-52.
46
Cf. ibid., p.148.
47
Lettres au Castor et à quelques autres, p.39. Note-se que o termo realidade-humana (réalité-humaine),
utilizado com freqüência por Sartre, corresponde, na tradução de Jean Beaufret, ao termo Dasein empregado por
Heidegger em “Ser e Tempo”. Enquanto Sartre parece não fazer distinção entre a realidade-humana e o próprio
homem, Heidegger insiste na não coincidência entre o Dasein e o homem.
32
intencionalidade”, Sartre critica a filosofia francesa de sua época por assimilar os objetos a
conteúdos de consciência. Contra essa filosofia digestiva, Sartre evoca a lição husserliana de
que não se podem dissolver as coisas na consciência. Consciência e mundo são realidades
irredutível ao mundo, mas ela se dirige permanentemente a ele. Assim, a consciência não
possui um interior, um “dentro”, visto que ela nada mais é que um movimento de fuga, um
deslizamento para fora de si. A importante descoberta de Husserl expressa na frase “Toda
nome da filosofia da transcendência. Vale dizer, a consciência não se recolhe a si mesma, ela
intencionalidade efetuado por Husserl, através das noções de hylé, noese e noema. Alguns
comentadores, por sua vez, Coorebyter entre eles, ressaltam tratar-se aí de uma leitura seletiva
da obra husserliana por Sartre. Vale dizer, “o artigo sobre a intencionalidade contorna
Segundo ele, o conhecimento ou pura representação é tão somente uma das várias formas
possíveis da consciência do objeto. O amor, o ódio, o medo, dentre tantas outras vivências
48
COOREBYTER, V., op.cit., p.51.
33
humanas, são também exemplos da intencionalidade pela qual a consciência vai além de si
mesma.
horror, o temor, não são meras reações subjetivas circunscritas ao espírito. São as próprias
coisas que se desvelam como simpáticas, horríveis, temíveis. Sartre acrescenta: “se nós
amamos uma mulher é porque ela é amável”50. Esta mudança de perspectiva implica, segundo
Sartre, uma liberação da vida interior, visto que tudo está fora, no mundo, inclusive nós
mesmos. Neste sentido, ele conclui: “Não é em não sei qual recanto que nós nos
entre os homens”51.
fundamental da experiência, Sartre não defende a troca do idealismo pelo realismo. Se Sartre
destaca o papel das coisas na constituição da realidade, ele assim o faz apenas como reação à
consciência. Ou seja, a tônica não deve ser colocada nem na consciência nem no mundo, mas
49
Uma idéia fundamental da fenomenologia de Husserl: a intencionalidade. In: Situações I, p.31; ed. franc.,
p.32.
50
Ibid.
51
Ibid.
52
MOUILLIE, J.M., Sartre e Husserl: uma alternativa fenomenológica?. In: _____. Sartre et la
phénoménologie, p.78.
34
Husserl por ter feito do noema um irreal. De um lado, Husserl é elogiado por sua formulação
da teoria da intencionalidade, por ter alavancado um retorno às coisas, de outro, ele é criticado
à redução são discretas. Isso não é casual, observa Mouillie. Ao colocar os objetos entre
“longe de abrir a um fenômeno puro com o qual ela se igualaria ontologicamente, abre com o
a liberdade ontológica.
ser e aparecer. O ser não mais está oculto atrás do que aparece, mas ele é a própria aparição,
ou seja, o fenômeno.
53
Ibid., p.86.
35
a quem aparecer, mas é absoluto porque não designa nenhum outro ser que não o seu próprio.
objeto aparece, a cada vez, através de uma aparição finita, ele oferece uma série infinita de
aparições. Nas palavras de Sartre: “a aparição, finita, indica-se a si própria em sua finitude,
mas, ao mesmo tempo, para ser captada como aparição-do-que-aparece, exige ser ultrapassada
até o infinito”54. Esse novo dualismo acaba por reeditar aqueles que haviam sido superados.
Isso porque o objeto passa a ser, em potência, uma fonte de infinitas aparições. Assim, à
aparição atual opõem-se as aparições potenciais, bem como a série infinita das aparições, que,
apenas a desloca. Não se trata mais de investigar o ser por trás do aparecer, mas o ser do
próprio aparecer, ou seja, o ser do fenômeno. “Será ele mesmo uma aparição?”55, interroga-se
fenômeno de ser é a revelação imediata do ser a nós, como ocorre, por exemplo, no tédio, na
náusea. Sartre mostra que não há uma identidade entre o ser do fenômeno e o fenômeno de
ser, mas que não podemos ter acesso ao ser do fenômeno, senão através de nossa apreensão
do fenômeno de ser. Além disso, tanto o fenômeno de ser quanto o ser do fenômeno apontam
para a transfenomenalidade do ser. Assim, o ser do fenômeno não se reduz a uma aparição.
Recorrendo a Berkeley e a Husserl, ainda que para deles discordar, Sartre analisa a
absoluto em relação ao qual todo fenômeno é relativo. Isso não quer dizer que o ser do
54
O ser e o nada, p.17; ed. franc., p.13.
55
Ibid., pp.18-19; ed. franc., p.14.
36
Husserl é infiel ao seu princípio, critica Sartre, ao fazer do noema um irreal e reduzir seu ser a
um ser percebido. Ora, se a subjetividade pressupõe a objetividade, rebate Sartre, ela não a
constitui, apenas a revela. Ou seja, “dizer que a consciência é consciência de alguma coisa é
dizer que ela deve se produzir como revelação-revelada de um ser que não é ela e que se dá
não é e não é o que é. O em-si é opaco, plena positividade, estrangeiro à falta. Diferentemente
essas duas regiões do ser, Sartre formula algumas questões sobre o sentido do ser e sobre uma
solução alternativa ao idealismo e ao realismo que explique as relações entre as duas formas
sob as quais o ser se apresenta. É para buscar responder a essas questões que ele afirma
Pode-se perceber que a filiação fenomenológica de Sartre foi bastante peculiar pelo
fato de não ter implicado uma mera adesão às idéias dos fenomenólogos que o antecederam,
formulações capitais das obras desses dois filósofos, mas tão somente na medida em que tais
56
Ibid., p.35; ed. franc., p.28.
37
fenomenologia, como já visto, Sartre faz caminharem lado a lado a aprendizagem e a crítica,
instrumental fornecido pela fenomenologia. O mundo que se trata de descrever é este mesmo
que nos aparece. E o homem que descreve e é descrito não é outro senão nós mesmos,
encontro com a obra heideggeriana, observa-se em Sartre uma inflexão à ontologia e ele
entram em cena o nada e a liberdade, como noções centrais para a compreensão da realidade-
liberdade construído por Sartre na obra “O Ser e o Nada”. Ao tentar fixar o conceito de
liberdade, Sartre se depara com uma séria dificuldade. Isso porque, segundo ele, a liberdade
não tem essência e apresentar o conceito de um objeto seria, justamente, desvelar a essência
indescritível?”57.
conceito, há descrições que não visam à essência, mas sim ao existente em sua própria
singularidade. Assim, se não se pode descrever a liberdade tout court, como um universal, é
possível descrever a minha própria liberdade, como um objeto singular e distinto da liberdade
certamente, eu não poderia descrever uma liberdade que fosse comum ao outro e a mim;
não poderia, pois considerar uma essência da liberdade. (...) Mas trata-se, de fato, de
minha liberdade. Igualmente, além disso, quando descrevi a consciência, não podia tratar-
se de uma natureza comum a certos indivíduos, mas só de minha consciência, singular, a
qual, como minha liberdade, está além da essência (...).59
Ora, perguntamos, será essa solução apresentada por Sartre fiel ao conjunto do
naquela obra consiste tão somente na liberdade de Jean-Paul Sartre? Parece-nos evidente que
57
O ser e o nada, p.542; ed.franc., p.482.
58
A impossibilidade de um conceito de liberdade para Sartre é análoga à impossibilidade de um conceito de
angústia para Kierkegaard. Vejamos o que nos diz o próprio Sartre a propósito: “Por exemplo, como observou
Jean Wahl, este simples título ‘o conceito de Angústia’ é uma provocação. Pois a angústia, para Kierkegaard,
não pode em caso algum ser objeto de um conceito e, em certa medida, enquanto ela está na origem da livre
opção temporalisante da finitude, ela é fundamento não conceitual de todo conceito. E cada um de nós deve
poder compreender que a palavra ‘angústia’ é universalização do singular, portanto, falso conceito, visto que ele
desperta em nós a universalidade enquanto ela reenvia ao Único, seu fundamento” (L’universel singulier, p.183).
59
O ser e o nada, p.542; ed.franc., p.482.
39
examinar não só o que seja liberdade, mas também o que se entende por conceito. Sartre
entende por conceito uma descrição que visa à essência do objeto. Por isso, ele toma como
um conceito? Qual a relação entre o conceito e o objeto? A essência que seria veiculada
através do conceito é a mesma que estaria presente no objeto? Trata-se de antigas questões de
O termo conceito é marcado pela plurivocidade, aponta Ferrater Mora61. Ele pode ser
empregado em acepções diversas como, por exemplo, noção, idéia e pensamento. Cada um
desses termos por sua vez, também admite uma grande variabilidade semântica, acarretando o
caráter extremamente geral e bastante vago com que se usa a palavra conceito.
Uma das principais correntes semânticas do termo conceito remonta à filosofia antiga,
quando foi freqüente tomar o conceito como um universal que define ou determina a natureza
60
Ibid.
61
CONCEITO. In: FERRATER MORA, J., Dicionário de filosofia, pp.518-522.
40
de uma entidade. Associa-se, então, conceito a essência ou a substância, dois vocábulos que
realista, o conceito tende a ser um universal real – é o realismo das Idéias; enquanto, em
presente na coisa62.
Os escolásticos, por sua vez, tomaram o vocábulo conceptus para exprimir algo
próprio objeto conceituado, ente do mundo. Importante lembrar que na Idade Média, o sentido
de conceito é envolvido pela disputa sobre os universais e variará conforme a posição que
nela se tome63.
Alexander Pfänder é citado por Ferrater Mora como um dos autores modernos que
usou o termo conceito como noção lógica capital e, por isso, contribuiu para a doutrina do
conceito. Para Pfänder, os conceitos são os elementos últimos de todo pensamento, ou, em
palavras, as palavras não são os conceitos, mas tão somente os signos, os símbolos das
significações. Além disso, o conceito pode ser referido não por uma palavra, mas por um
nem o reproduz, sendo apenas seu correlato intencional. Os objetos a que os conceitos podem
se referir são todos os objetos: os reais e os ideais, os metafísicos e os axiológicos. Até mesmo
62
Cf.ibid.
63
Cf.ibid.
64
Cf.ibid.
41
objeto são realidades distintas. Ainda que o conceito vise a captar algo do objeto, ele não é o
objeto. Assim, o conceito de chuva não molha, nem o conceito de cachorro late. Do mesmo
modo, o conceito do nada não é um nada, nem o conceito do vazio é, ele mesmo, vazio.
Aristóteles, passando pela qüididade nos escolásticos, até às unidades ideais de significação
desde Aristóteles se considera como essência o quê de uma coisa, ou seja, não que ela
seja (ou o fato de ser a coisa), mas o que ela é. Por outro lado, considera-se que a essência
é um predicado por meio do qual se diz o que é a coisa, ou se define a coisa. No primeiro
caso, temos a essência como algo real, no segundo como algo lógico (ou conceitual).65
Num primeiro momento, pode-se dizer que a essência presente no conceito é distinta
a essência do objeto, admitida sua existência, será ontológica. É verdade que, via de regra, a
essência veiculada pelo conceito busca representar a essência do objeto, mas, ainda assim, a
essência do conceito não é a essência do objeto. Daí que, mesmo objetos que não tenham uma
ontológica no objeto constituir-se no núcleo do conceito do mesmo objeto. Será isso que
Podemos ir além e perguntarmo-nos se, de fato, a liberdade não teria, além da essência
epistemológica, uma essência ontológica? A dificuldade é a antítese que surge entre a noção
65
ESSÊNCIA. In: FERRATER MORA, J., Dicionário de filosofia, p.897.
42
vazio e a própria liberdade66. Se essência remete ao ser de algo, como identificar uma essência
sustenta que o ser é e que o não-ser não é. Há, aqui, sem dúvida, uma dificuldade lógica.
Essa dificuldade pode ser talvez contornada se tomarmos o não-ser como uma espécie
de ser. Ora, poder-se-ia objetar, isso se choca com a tese sartriana de que o ser é e o não-ser
não é. De fato, em certos momentos, Sartre descreve o não-ser como irredutível ao ser. Por
outro lado, em outros momentos, Sartre toma o não-ser como uma espécie de ser, como uma
do ser-em-si, mas ainda assim um ser. Sob essa perspectiva, já não é tão difícil buscar uma
uma essência não substancial, mas que nos diz algo sobre a especificidade desse ser que é
nada, que é consciência, que é liberdade67. Enfim, a essência do nada, a essência do homem e
a essência da liberdade podem se assentar, justamente, sobre o fato de que o nada, o homem e
a liberdade não possuem uma essência nos moldes em que as coisas a possuem.
O jogador, que precisa ter novamente a percepção sintética de uma situação, a qual lhe
proibiria de jogar, deve reinventar ao mesmo tempo o eu que pode avaliar essa situação e
que está ‘em situação’. Esse eu, com seu conteúdo a priori e histórico é a essência do
homem. (...) A essência é o que foi. A essência é tudo o que se pode indicar do ser
humano pelas palavras: isso é. Por isso, é a totalidade dos caracteres que explicam o ato.68
66
O próprio Sartre aponta para esse problema, por exemplo, quando afirma: “E se perguntarmos que nada é esse
que fundamenta a liberdade, responderemos que não se pode descrevê-lo, visto que ele não é, mas que se pode
ao menos captar seu sentido, enquanto esse nada é sido pelo ser humano em suas relações consigo mesmo” (O
ser e o nada, p.78; ed. franc., p.69).
67
Apesar de definir a liberdade primordialmente como nada, em algumas passagens, Sartre nos fala sobre o ser
da liberdade, como, por exemplo, nesta: “Assim, a liberdade é um ser menor que pressupõe o ser para eludi-lo.
(...) Simplesmente, o surgimento da liberdade se efetua pela dupla nadificação do ser que ela é e do ser no meio
do qual ela é. Naturalmente, a liberdade não é este ser no sentido de ser-em-si” (Ibid., p.598; ed. franc., p.531).
68
Ibid., p.79; ed. franc., p.70.
43
Fica claro que Sartre associa, aqui, a essência do homem ao passado do homem, à sua história,
àquilo que se pode dizer a priori dele, enfim, àquilo que fixa e pré-determina o ser do homem. Ora, a
especificidade do homem, na perspectiva sartriana, é justamente não estar submetido a uma tal
essência. Há um nada que separa o homem de seu passado que faz com que essa essência estática
esteja sempre em suspenso na dinâmica da existência. O homem, enquanto existe, escapa à totalização,
Por outro lado, esse fato mesmo de escapar à fixação em uma essência vem a se tornar uma
característica inerente ao homem. É o que percebe Sartre quando afirma que “a liberdade está sendo
aqui definida como uma estrutura permanente do ser humano”69. Em suma, ao rechaçar uma certa
concepção de essência do homem, Sartre acaba por defender uma outra. O homem não tem uma
essência que lhe possibilite prever seu futuro a partir de seu passado e de seu presente. Sua única
certeza é a ausência de certezas. O que o homem será depende sempre de sua livre invenção. Resta,
humana e o saber? Sartre trata destas interrogações, na obra “Questão de Método”, publicada
subjetiva, em sua dimensão vivida, de ser objeto de um saber. Nesse sentido, há uma
“incomensurabilidade entre o real e o saber”70. Hegel, por sua vez, tem o mérito de ultrapassar
69
Ibid.
70
Questão de método, p.117.
44
constituir um saber absoluto arrisca ignorar aquela mesma singularidade que é a marca do ser
humano.
em um todo dotado de sentido. Por outro lado, ele é fascinado pela singularidade do homem,
pela diferença que faz de cada homem este homem e não outro. Para escapar desse dilema,
Sartre propõe unir Kierkegaard a Hegel e nos apresenta o método progressivo-regressivo, que
explica:
um indivíduo real, um agente livre, não pode ser definido apenas como membro de uma
série, diferenciando-se apenas funcionalmente dos demais; não pode ser um particular no
sentido da lógica analítica, mas deve fazer-se singular, isto é, uma expressão do universal
particularmente modalizada. Isso significa que o sujeito singular expressa o universal que
o constitui quando faz da tarefa da expressão um modo de totalização subjetiva.72
O homem é um ser especial quando tomado como objeto de conhecimento, visto que
a peculiaridade das ciências humanas, como saber não só intelectivo, mas primordialmente
71
Ver, a propósito, o texto de Sartre denominado “L’Universel Singulier”, elaborado por ocasião de uma
comunicação no colóquio “Kierkegaard vivant”, organizado pela UNESCO.
72
SILVA, Franklin Leopoldo e, O imperativo ético de Sartre. In: NOVAES, Adauto (org.). O silêncio dos
intelectuais, pp.157-158.
45
existência75. Justamente por isso, é através dela que se torna possível o conhecimento efetivo
que é fundamental não perder de vista a vivência da liberdade, a experiência do existir como
um ser livre. Não há como escapar a um déficit quando se busca traduzir a existência em
73
A compreensão é um dos conceitos fundamentais da corrente da filosofia conhecida como hermenêutica
filosófica, da qual Heidegger é um dos grandes expoentes. Segundo ele, o Dasein, o ser-aí, carrega consigo uma
pré-compreensão do ser, anterior à explicitação da questão do ser. Nas palavras de Jean Grondin: “a
hermenêutica da facticidade, de Heidegger, quer basicamente ser uma hermenêutica daquilo tudo que trabalha
por detrás da elocução. Ela é uma interpretação da estrutura de cuidado do ser-aí humano, que se expressa antes
e por detrás de cada juízo e cuja forma mais elementar de concretização é a compreensão” (Introdução à
hermenêutica filosófica, p.160). Importante ressaltar que Heidegger recusa qualquer tentativa de assimilação de
sua hermenêutica da existência a uma antropologia.
74
Questão de método, p.1198.
75
“É que, com efeito, a compreensão não é uma qualidade vinda de fora à realidade humana, é sua maneira
própria de existir. (...) Então, eu sou, primeiramente, um ser que compreende mais ou menos obscuramente sua
realidade de homem, o que significa que eu me faço homem ao me compreender como tal” (Esquisse d’une
théorie des émotions, p.21).
76
Sartre no Brasil: a conferência de Araraquara, pp.77-79. A noção de compreensão é buscada por Sartre, em
especial, na Sociologia e na Etnografia.
46
saber77. O que se pode fazer é diminuir este déficit, privilegiando na abordagem da liberdade
liberdade, com a aparição do ser-para-si em meio ao ser-em-si. Não fosse o homem capaz de
nadificar o ser, e ele já não seria livre. Daí que a noção de liberdade esteja marcada pela
negatividade.
De fato, se um objeto pertence à esfera do não-ser, do nada, como dizer o que ele é? Uma
alternativa seria estender a negatividade do objeto para o seu conceito, que descreverá não o
que o objeto é, mas sim o que ele não é. Visto que a liberdade se encontra na esfera do não-
Sartre rechaça a idéia da negatividade como mera oposição entre dois objetos positivos
e alerta para a “(...) tentação de considerar ser e não-ser componentes complementares do real,
modo unidas na produção dos existentes que seria inútil considerá-las isoladamente”79. Sartre
recusa colocar ser e não-ser no mesmo plano. Há que se pensar o não-ser em sua radicalidade,
sem dissolvê-lo, seja no juízo de negação, como fazem alguns lógicos, seja no próprio ser,
juízo de negação, sem efetiva figuração na realidade. Contra Hegel, Sartre insiste em que ser e
não-ser não se identificam nem se confundem, visto que o ser é e o não-ser não é. Sobre a
relação entre o ser e o nada, Sartre é categórico: “(...) o ser é anterior ao nada e o fundamenta.
Entenda-se isso não apenas no sentido de que o ser tem sobre o nada uma precedência lógica,
Apesar de recusar a aproximação hegeliana entre ser e não-ser, Sartre reconhece que
“não há não-ser salvo na superfície do ser”81. E ainda: “se um nada pode existir, não é antes
ou depois do ser, nem de modo geral, fora do ser, mas no bojo do ser, em seu coração, como
um verme”82. Ou seja, na concepção sartriana, ser e não-ser não estão nem tão distantes como
nas “cosmogonias ingênuas”83, nem tão próximos como em Hegel. Sartre pretende pensar o
nada como um componente do real, portanto, contemporâneo do ser, mas dele radicalmente
distinto. Enfim, como no título do filme do cineasta alemão Win Wenders: tão longe e tão
perto...
negação, do vazio, do nada. Seria inútil buscar uma negação absoluta, fora dessa relação.
79
O ser e o nada, p.53; ed.franc., p.46.
80
Ibid., p.58; ed. franc., p.50.
81
Ibid., p.58; ed. franc., p.51.
82
Ibid., p.64; ed. franc., p.56.
83
Ibid., p.57; ed. franc., p.50
48
Portanto, se quisermos investigar a origem do nada, haveremos de nos deter sobre a relação
entre o homem e o mundo, sobre o ser do homem que faz surgir o mundo.
Visto que o homem é o ser pelo qual o nada vem ao mundo, Sartre desliza sua
investigação sobre o nada para o ser do homem. Se o ser só pode gerar ser, e o não-ser, por
sua vez, só pode gerar não-ser, como é possível que o ser do homem esteja na origem do
nada? Se o homem não pode modificar o ser84, ele pode modificar sua relação com o ser,
O nada supõe então a existência de um ser que não é um ser em si e que é seu próprio
nada: a consciência. Desse ponto de vista, Sartre denuncia a insuficiência das concepções
tanto hegeliana quanto heideggeriana do nada, que não se preocupam nem uma nem outra
em fundar a negação na estrutura do ser do Espírito ou do Dasein. Em oposição, Sartre
descobre um ser que escapa ao ser, um ser que é seu próprio nada na medida em que ele
se nadifica.85
Enfim, o nada que Sartre identifica à liberdade, não é nem um nada meramente lógico,
nem um nada absoluto e inefável. Trata-se de um nada que surge no seio do ser e que está
com ele em perpétua relação. É justamente aí, nessa relação que a liberdade mantém com o
84
Na verdade, o homem pode, através da ação, modificar o ente, o mundo, não o ser-em-si, que permanece
inalterado.
85
Une liberté infinie?. In : BARBARAS, R. (coord.), Sartre. Désir et Liberté, p.37.
49
e da essência, visto que a aparência não esconde a essência, mas a revela. Ele afirma: “A
essência de um existente já não é mais uma virtude embutida no seio deste existente: é a lei
manifesta que preside a sucessão de suas aparições, é a razão da série”86. Evocando Duhem,
Sartre aponta que o conceito é a unidade sintética das diversas manifestações de uma
realidade física. Assim, pode-se dizer que, para Sartre, o conceito permanece ligado à idéia de
essência87: não em sua acepção antiga, de substância, mas sim no sentido fenomenológico,
Ao discorrer sobre a liberdade, Sartre afirma: “a liberdade não tem essência. Não está
submetida a qualquer necessidade lógica; dela deve-se dizer o que Heidegger disse do Dasein
destacam-se três caracteres atribuídos por Sartre à liberdade: não ter essência; não estar
submetida a qualquer necessidade lógica; preceder e comandar a essência. Mas, o que faz
peremptoriamente que a liberdade não tem essência e que ela não está submetida a qualquer
Paradoxalmente, o fato de não ter uma essência, pode transformar-se, ele mesmo, na
essência da liberdade. Sartre percebeu este paradoxo e dele tentou escapar de uma forma
liberdade de cada homem individualmente considerado. Entretanto, levada ao limite, essa tese
torna absurda até mesmo a palavra liberdade, em sua função de unificação de múltiplas
realidades, das múltiplas liberdades efetivamente existentes. Pois, ainda que eu distinga a
minha liberdade da sua liberdade, há algo de comum entre elas que me permite chamar ambas
de liberdade. É justamente esse algo em comum que aponta para a possibilidade da construção
do conceito de liberdade.
Assim, consideramos que ele tem parcialmente razão ao destacar a sua liberdade individual
como fonte de suas reflexões. Mas, é também evidente que ele não se restringe à sua
não à liberdade do ser humano Jean-Paul Sartre tão somente, mas à liberdade do ser humano
em geral. Pode-se aqui objetar que não existe algo como “o ser humano em geral”. De fato,
não existe tal como existimos você e eu, mas existe como construto do pensamento, como
fruto de uma atividade de abstração típica do pensar. Isso ocorre com vários entes mundanos,
como por exemplo, a árvore. Não existe na realidade algo como “a árvore”, mas apenas as
inumeráveis árvores individualmente consideradas: esta, aquela, etc. Parece que esbarramos
aqui com a questão dos universais, que tanta polêmica suscitou na Idade Média.
Como aponta Ferrater Mora, várias são as alternativas frente à questão dos universais.
tese segundo a qual não existem as entidades abstratas na realidade, mas apenas como
conceitos de nossa mente, isto é, como idéias abstratas”89. Assim, acreditamos não existir, na
89
UNIVERSAIS. In: FERRATER MORA, J., op.cit., p.2951.
90
O homem e a liberdade só têm existência ideal, enquanto conceitos por nós construídos; o que existe na
realidade são os diversos homens singularmente considerados e suas respectivas liberdades.
51
existência restringe-se ao campo conceitual. Mas, como visto acima, Sartre vai além e rechaça
conceito de liberdade é pontual e não prevalece frente ao conjunto de sua obra, a partir do
qual ficaria clara a construção de um conceito de liberdade. Um tal argumento, ainda que
pertinente, não exclui a importância da referida recusa nem a prudência de examiná-la. Ora, se
essência91 e, para isso, chegou ao extremo de rechaçar até mesmo um conceito de liberdade.
Partindo das premissas de que a liberdade não possui uma essência e de que um conceito
raciocínio é logicamente correto. Pretendemos, todavia, chegar à conclusão oposta, qual seja,
decorrentes das reflexões anteriores acerca das noções de conceito e essência. Ainda que a
liberdade não tivesse uma essência ontológica, ela apresenta, sem dúvida, uma essência
genérica. E mais, podemos apreender na liberdade até mesmo uma essência ontológica,
bastante diversa, certamente, da essência de uma mesa ou de um tinteiro, mas ainda assim
uma essência referida ao ser da liberdade, ao ser que surge como negação do ser, como nada.
Uma essência que é antes vazio de ser do que plenitude de ser; uma essência que é a negação
91
Via de regra, quando Sartre utiliza o termo essência, ele o faz de forma restritiva, referindo-se tão somente à
essência das coisas, do ser-em-si, à essência que fixa, que determina a priori o que alguma coisa é.
52
A inexistência de uma natureza humana é por diversas vezes apontada por Sartre e, em
homem?”, não há resposta universal e previamente determinada92. Isso porque o homem é seu
permanente vir a ser, seu constante fazer-se homem. Mas, pode-se perguntar, não haverá algo
de comum que nos caracteriza a todos como homens? Sartre entende que sim, visto que, “se é
impossível achar em cada homem uma essência universal que seria a natureza humana, existe,
conjunto de limites a priori que esboçam a sua situação fundamental no universo”. Sartre
prossegue: “As situações históricas variam: o homem pode nascer escravo numa sociedade
pagã ou senhor feudal ou proletário. Mas o que não varia é a necessidade para ele de estar no
mundo, de lutar, de viver com os outros e de ser mortal”94. Assim, no seio da liberdade nos
deparamos com a necessidade de ser livre e na base da singularidade de cada homem, com a
contingência na medida em que consiste no poder ser ou não ser da ação humana.
que impede extrair o conseqüente através de uma mera inferência lógica. A ação humana é
sempre possível, nunca necessária. Por outro lado, este caráter humano de não submissão à lei
em sentido ontológico. Trata-se, então, de uma contingência necessária que constitui o cerne
do humano. Nesse sentido, Sartre se refere à liberdade: “como liberdade que é a nossa, como
92
Observa-se uma variação da posição de Sartre nesta questão, visto que, ainda na fase de seus estudos de
psicologia fenomenológica, ele aponta como tarefa da antropologia a definição do que seja o homem e afirma:
“Nós estamos então na situação inversa da dos psicólogos visto que nós partimos dessa totalidade sintética que é
o homem e que nós estabelecemos a essência do homem antes de iniciar na psicologia” (Esquisse d’une théorie
des émotions, p.22, negrito nosso).
93
O existencialismo é um humanismo, p.16; ed. franc., p.59.
94
Ibid., p.16; ed. franc., p.60 (negrito nosso).
53
pura necessidade de fato, ou seja, como um existente que é contingente, mas que não posso
Cada ser humano, pelo fato mesmo de ser livre, estabelece uma relação singular e
única com seu ser, com o mundo e com sua própria liberdade. Essa relação não pode,
evidentemente, ser circunscrita aos limites de um conceito. Entretanto, o fato de não haver ser
humano que não se defronte com a necessidade de escolher como se postar frente ao seu ser,
ao mundo e à sua própria liberdade aponta para a viabilidade de um conceito que capte, a
afirma:
É facilmente compreensível, com efeito, que haja tantas maneiras de existir o próprio
corpo quantos para-sis existam, embora, naturalmente, certas estruturas originárias sejam
invariáveis e constituam em cada qual a realidade-humana (...).97
Fica claro, então, que o próprio Sartre reconhece que a diversidade que faz com que
cada ser humano, dentre os inumeráveis que existem e já existiram, seja único não é
incompatível com a existência de uma semelhança estrutural que permita considerá-los todos
eles como realidades-humanas, como seres desejantes. O mesmo se pode dizer da liberdade:
95
O ser e o nada, p.542; ed. franc., p.483
96
Esse caráter de inexorabilidade da liberdade no homem é um dos sentidos em que Sartre emprega o termo
facticidade, que será examinado no subcapítulo II.3.
97
O ser e o nada, p.562; ed. franc., p.500.
98
Ibid., p.694 ; ed. franc., p.612.
54
ainda que haja tantas liberdades diversas quantos para-sis existam, alguns traços constantes
Enfim, é possível construir um conceito de liberdade, tal como a entende Sartre, como
algo que não tem essência, como algo cuja existência precede e comanda a essência?
Sim, não só é possível como o próprio Sartre construiu um tal conceito. O fato de não
se encontrar na liberdade uma essência ontológica típica das coisas, do ser-em-si, não impede
a apreensão de uma essência ontológica diversa, típica do homem, do ser-para-si. Note-se que,
quando se trata do homem, Sartre evita os termos essência e natureza, preferindo falar em
características invariáveis e, com base nelas, elaborar um conceito de liberdade. Uma destas
porque a liberdade não é um atributo do homem, mas é o próprio ser do homem, o seu nada de
múltiplo. Com isso, não se nega a singularidade radical da liberdade e do próprio ser humano,
favor da compreensão da liberdade. Com isso ele pretende, justamente, chamar a atenção para
a especificidade da liberdade na sua relação com o conhecimento. A liberdade não é algo que
se oferece a ser tomado como um objeto qualquer de conhecimento, mas sim algo sobre o que
o homem já carrega consigo uma autocompreensão. Isso não quer dizer que não seja possível
a produção de um discurso sobre a liberdade, mas esse discurso não apreende totalmente a
liberdade. A liberdade não é passível de ser apreendida, aos moldes dos demais objetos em
geral quando enfeixados em um conceito. A epistemologia é insuficiente para dar conta desta
55
relação de compreensão que o ser-para-si estabelece com sua própria liberdade. Não se trata
de se renunciar a pensar a liberdade, mas sim de se ter atenção para os limites que a
linguagem e a razão antepõem a esse pensar. Algo que, antes de ser pensado, é vivido: assim
CAPÍTULO II
sartriana como um todo. Dentre eles, cite-se Gerd Bornheim, que afirma: “Em certo sentido, é
lícito dizer que a liberdade termina sendo o tema exclusivo e absoluto do pensamento de
realidade-humana de secretar um nada que a isola, Descartes, depois dos estóicos, deu-lhe um
nome: é a liberdade”101. Cabe fazer, aqui, duas observações. Uma é que a liberdade, já em sua
estóicos.
integrantes de seu universo temático. Assim, a liberdade é por ele identificada a vários outros
99
Cf. BEAUVOIR, S., La cérémonie des adieux, p.562.
100
BORNHEIM, G., Sartre: metafísica e existencialismo, p.47.
101
O ser e o nada, p.67; ed. franc., p.59.
102
“A liberdade é precisamente o nada que é tendo sido no âmago do homem e obriga a realidade-humana a
fazer-se em vez de ser” (Ibid., p.545; ed. franc., p.485).
57
para-si110. Cumpre, então, examinar algumas dessas associações e identificações com vistas a
Nada”. Essa parte é intitulada “Ter, fazer e ser” e compõe-se de dois capítulos: o primeiro tem
como título “Ser e fazer: a liberdade” e o segundo, “Fazer e ter”. Iremos aqui nos deter sobre
o primeiro capítulo, cujo título já antecipa que, para Sartre, a liberdade é resultante da
conjugação do ser e do fazer. Daí ser indispensável proceder-se a uma análise ontológica da
agir é modificar a figura do mundo, é dispor de meios com vistas a um fim, é produzir um
complexo instrumental e organizado de tal ordem que, por uma série de encadeamentos e
conexões, a modificação efetuada em um dos elos acarrete modificações em toda a série
e, para finalizar, produza um resultado previsto.111
e afirma não haver ação onde não houver adequação do resultado à intenção. Como condição
da ação, aponta Sartre, está “(...) o reconhecimento de um ‘desideratum’, ou seja, de uma falta
103
“Assim, liberdade, escolha, nadificação e temporalização constituem uma única e mesma coisa” (Ibid., p.574;
ed. franc., p.510).
104
“A contingência de Adão identifica-se com sua liberdade, pois este Adão real está rodeado por uma infinidade
de Adãos possíveis” (Ibid., p.576; ed. franc., p.512). Por outro lado, Sartre observa que “a liberdade não é pura e
simplesmente a contingência na medida em que se volta rumo a seu ser para iluminá-lo à luz de seu fim; é
perpétua fuga à contingência, é interiorização, nadificação e subjetivação da contingência, a qual, assim
modificada, penetra integralmente na gratuidade da escolha” ( Ibid., p.590; ed. franc., p.524).
105
“A liberdade identifica-se com a falta, pois é o modo de ser concreto da falta de ser” (Ibid., p.691; ed. franc.,
p.610).
106
“A liberdade é precisamente o ser que se faz falta de ser. Mas, uma vez que o desejo, conforme
estabelecemos, é idêntico à falta de ser, a liberdade só poderia surgir como ser que se faz desejo de ser (...)”
(Ibid, pp.694-695; ed. franc., p.613).
107
“A liberdade, sendo assimilável à minha existência, é fundamento dos fins que tentarei alcançar, seja pela
vontade, seja por esforços passionais” (Ibid., p.549; ed. franc., p.488).
108
“Angústia, desamparo, responsabilidade, seja em surdina, seja em plena força, constituem, com efeito, a
qualidade de nossa consciência, na medida em que esta é pura e simples liberdade” (Ibid, p.572; ed. franc.,
p.508).
109
“A liberdade não é um ser: é o ser do homem” (Ibid., p.545; ed. franc., p. 485).
110
“Mostramos que a liberdade se identifica com o ser do para-si” (Ibid., p.559; ed. franc., p497).
111
Ibid., p.536; ed.franc., p.477.
58
objetiva, ou ainda de uma negatidade”112. Para que haja ato, é necessário que a consciência se
não é a rigidez de uma situação ou os sofrimentos que ela impõe que constituem motivos
para que se conceba outro estado de coisas, no qual tudo sairá melhor para todos; pelo
contrário, é a partir do dia em que se pode conceber outro estado de coisas que uma luz
nova ilumina nossas penúrias e sofrimentos e decidimos que são insuportáveis.113
Há uma solução de continuidade entre o estado de fato e o ato que impede estabelecer
entre eles uma relação de causalidade. É o nada da consciência que se antepõe ao estado de
fato e torna possível a produção de um ato. O estado de fato, por si mesmo, é incapaz não só
entre um estado de fato e um ato, mas também na própria constituição de um estado de fato.
Assim, conclui Sartre, “(...) a condição indispensável e fundamental de toda ação é a liberdade
do ser atuante”114.
ato, os primeiros a superestimam. Nem tanto ao céu, nem tanto à terra, adverte Sartre. Se por
um lado não há ação sem motivo, por outro, o motivo não é suficiente para gerar uma ação, a
reboque do próprio agente. Sartre resume: “Para ser motivo, com efeito, o motivo deve ser
experimentado como tal”115. Assim, não se pode sequer falar em motivo como algo prévio e
independente do agente. Um estado de fato só se torna motivo se constituído como tal pelo
próprio agente no movimento de projeção de um fim. Resulta daí que motivos, bem como
móbeis, não são causas do ato, mas partes integrantes dele. Há, na ação, uma articulação
112
Ibid., p.537; ed.franc., p.478. Sartre cria o neologismo “negatité” que preferimos traduzir por negatidade, e
não por negatividade, como consta da edição brasileira.
113
Ibid., p.538; ed.franc., p.479.
114
Ibid., p.540; ed. franc., p.480.
115
Ibid., p.540; ed. franc., p.481.
59
sintética entre três pólos: o motivo-móbil, o próprio ato e o fim. Ressalte-se, então, que “é o
significado e de valor pelo agente. Vale dizer, somente após a passagem pelo filtro semântico-
motivos de um ato. Não se trata de algo dado, mas construído através da liberdade. Nesse
sentido, o motivo não tem com o ato uma relação de causa e efeito. Sendo todo ato
em vista da qual o ato é produzido. Desse modo, tanto a finalidade intencional quanto o
motivo integram o próprio ato, em uma articulação temporal sintética117. O ato, ao surgir, faz
Sartre esclarece:
Assim, o móbil ensina o que ele é por seres que “não são”, por existências ideais e pelo
devir. Assim como o futuro retorna ao presente e ao passado para iluminá-los, também é
o conjunto de meus projetos que retrocede para conferir ao móbil sua estrutura de móbil.
É somente porque escapo ao em-si nadificando-me rumo às minhas possibilidades que
este em-si pode adquirir valor de motivo ou móbil. Motivos e móbeis só têm sentido no
interior de um conjunto projetado que é precisamente um conjunto de não-existentes. E
este conjunto é, afinal, eu mesmo enquanto transcendência, eu mesmo na medida em que
tenho de ser eu mesmo fora de mim.118
Cumpre apreender o que seja a liberdade, afirma Sartre. Todavia, como descrever ou
conceituar a liberdade se ela não tem essência, se nela a existência precede e comanda a
essência? Esse impasse com que Sartre se depara foi por nós tratado no capítulo precedente,
onde concluímos pela possibilidade da construção de um conceito de liberdade, ainda que ela
116
Ibid., p.541; ed. franc., p.482.
117
Nas palavras de Franklin Leopoldo e Silva: “Não pode haver causa atuante num passado que já não é e num
futuro que ainda não é. Portanto, nem eficiência nem finalidade no sentido tradicional dos gêneros de
causalidade. Mas a transcendência do para-si para fora de si encontra o motivo do ato na realização do ato”
(Ética e Literatura em Sartre, p.137).
118
O ser e o nada, p.541; ed.franc., p.482.
60
algo que emerge na ordem do fazer, mas que se origina na ordem do ser, do existir. Nesse
sentido, “(...) sou um existente que apreende sua liberdade através de seus atos; mas sou
Assim a liberdade não é um atributo, uma propriedade que se acresce a meu ser, mas, antes, é
meu próprio ser, minha própria existência. No seio dessa existência, minha liberdade se põe
A realidade-humana é o ser pelo qual a negação vem ao mundo. Ela é capaz de efetuar
uma ruptura nadificadora com o mundo e consigo mesma. Segundo Sartre, “(...) a
Dizer que o para-si tem de ser o que é, dizer que é o que não é não sendo o que é, dizer
que nele, a existência precede e condiciona a essência, ou inversamente, segundo a
fórmula de Hegel, que para ele “Wesen ist was gewesen ist” – tudo isso é dizer uma só e
mesma coisa, a saber: que o homem é livre.121
exceto para deixarmos de ser livres. Nas palavras de Sartre: “Estou condenado a existir para
sempre para-além de minha essência, para-além dos móbeis e motivos de meu ato: estou
escolha não alcança o próprio poder de escolha. Mesmo quando escolhemos não escolher,
119
Ibid., pp.542-543; ed. franc., p.483.
120
Ibid., p.543; ed. franc., p.483.
121
Ibid., p.543; ed. franc. p.484.
122
Ibid.
123
Tal qual a liberdade, também a linguagem tem um caráter inexorável. Ao refletir sobre o silêncio do escritor,
Sartre afirma: “Esse silêncio é um momento da linguagem; calar-se não é ser mudo, é recusar-se a falar,
portanto, é falar ainda” (Qu’est-ce que la littérature?, p.30).
61
dos partidários do determinismo, observa Sartre. Trata-se de uma prática inerente ao próprio
homem, visto que “a realidade humana é um ser no qual sua liberdade corre risco, pois ele
tomamos móbeis e motivos por coisas exteriores a nós e encobrimos nossa própria
sociedade”126.
revelação imediata do “nada que está no âmago do homem. A realidade humana é livre
porque não é o bastante, porque está perpetuamente desprendida de si mesma, e porque aquilo
que foi está separado por um nada daquilo que é e daquilo que será”127. Diferentemente do
Considerando que a liberdade é o próprio ser do homem, ou seja, seu nada de ser,
Sartre conclui: “O homem não poderia ser ora livre, ora escravo: é inteiramente e sempre
124
O ser e o nada, p.544; ed. franc. p.484.
125
Ibid.
126
Ibid.
127
Ibid., pp.544-545; ed. franc. p.485.
62
livre, ou não o é”128. A liberdade não é pois um estado ou um atributo que possa estar presente
em alguns homens e não em outros, ou ainda, que, no mesmo homem, esteja ora presente ora
ausente. Se somos todos seres humanos, somos todos livres. E, além disso, se somos humanos
durante toda a vida, somos livres desde seu início até seu fim. Eis a radicalidade do conceito
integralmente presente.
conceito de liberdade construído por Descartes. Partindo da distinção entre uma liberdade
pensamento, Sartre aponta que é sobretudo dessa última que se trata em Descartes. Isso
porque, sendo o mundo, para Descartes, fruto da criação divina, o homem se limita a
descobrir as “relações inteligíveis entre essências já existentes”130. Vale dizer, o homem não
cria o mundo, ele apenas descobre o mundo que Deus criou. Resta ao homem a criação da
verdade, visto que é através do juízo humano que as idéias se tornam verdadeiras ou falsas.
Para Descartes, a liberdade de dizer “não” a tudo o que é falso e de dizer “sim” a tudo
o que é verdadeiro é total e está igualmente presente em todo homem. Nas palavras de Sartre:
“Um homem não pode ser mais homem do que os outros porque a liberdade é igualmente
infinita em cada um”131. Além disso, tal liberdade não é um atributo do homem, mas é o
128
Ibid., p.545; ed. franc. p.485.
129
O texto referido foi publicado pela primeira vez em 1946, como introdução a um volume de fragmentos da
obra de Descartes, sendo, portanto, posterior à publicação de “O Ser e o Nada”. Em 1947, ele foi reproduzido em
Situations I. Cf. CONTAT, M. et RIBALKA, M., Les Écrits de Sartre, p.144.
130
A liberdade cartesiana, in: Situações, I, p.282; ed. franc., p.289.
131
Ibid., p.286; ed. franc., p.293.
63
próprio ser do homem. Sartre enxerga, assim, já em Descartes, alguns pontos capitais de seu
dum ser pelo desenvolvimento da sua essência fora de qualquer ação exterior, embora os
momentos deste desenvolvimento se encadeiem uns nos outros com uma necessidade
rigorosa”133. A liberdade cartesiana acaba por ficar restrita ao processo de busca da verdade e
Sartre: a oposição cartesiana entre a verdade e o erro, entre o bem e o mal, é análoga à
oposição sartriana entre o ser e o nada, visto que é no pólo negativo dessas oposições que se
pode localizar a liberdade do homem. Em Descartes, a verdade e o bem são criações de Deus
e quando o homem lhes dá sua adesão, ele é mero veículo da luz e da graça divinas. Portanto,
segundo Sartre leitor de Descartes, é somente no erro e no mal que a liberdade humana se
afirmaria em sua radicalidade, pois seria justamente aí que o nada de ser do homem
A dúvida atinge todas as proposições que afirmam qualquer coisa fora do nosso
pensamento, o que quer dizer que posso pôr todos os existentes entre parênteses; estou em
pleno exercício da minha liberdade, quando, eu próprio vazio e nada, converto em nada
tudo o que existe.135
132
Ibid., p.290; ed. franc., p.297.
133
Ibid., pp.290-291; ed. franc., pp.297-298.
134
Ibid., p.293; ed. franc., p.300.
135
Ibid., p.293; ed. franc., p.300.
64
sartriana. Ambas permitem ao homem afastar-se da plenitude do ser e exercer sua liberdade.
insere na esfera mais ampla da existência. Sartre exalta essa associação cartesiana entre a
liberdade e a negatividade que se faz tão presente em seu próprio pensamento. A propósito,
Embora esta doutrina se inspire no Epoké estóico, ninguém antes de Descartes tinha
evidenciado a ligação existente entre o livre-arbítrio e a negatividade; ninguém tinha mostrado
que a liberdade não provém do homem na medida em que é, como uma plenitude de existência
entre outras plenitudes num mundo sem lacunas, mas, pelo contrário, na medida em que não é,
na medida em que é finito, limitado.136
Feito o elogio, Sartre passa, ato contínuo, à crítica e aponta as limitações da teoria
para produzir, para criar, visto que essas ações permanecem como prerrogativa exclusiva de
Tal qual a liberdade cristã, também a liberdade cartesiana é uma falsa liberdade, denuncia
Sartre, visto que, por elas, o homem é livre para o mal, mas não para o bem, livre para o erro,
mas não para a verdade. Isso porque, quando o homem age segundo o bem e a verdade, ele
liberdade de Deus, Descartes o faz de forma radical, não a submetendo a nenhuma espécie de
136
Ibid., p.294; ed. franc., p.301.
137
Ibid., p.295; ed. franc., p.302.
65
Sartre percebe, assim, uma profunda afinidade entre a idéia da liberdade em Descartes
desempenha um papel central, seja em sua descrição da liberdade divina, cuja radicalidade é
notável, Sartre encontra alguns traços fundamentais do conceito de liberdade por ele mesmo
construído.
Ele critica a oposição cartesiana da vontade às paixões, por restringir o ato livre ao ato
voluntário, relegando as paixões ao determinismo. Ora, rebate Sartre, uma tal dualidade é
ser. Vale dizer, não há meio termo: ou um ser é determinado, ao modo do ser-em-si, ou ele é
livre, ao modo do ser-para-si. Isso porque, “toda síntese entre dois tipos de existentes é
Esta discussão mostra que são possíveis duas e somente duas soluções: ou bem o homem
é inteiramente determinado (o que é inadmissível, em particular porque uma consciência
determinada, ou seja, motivada em exterioridade, converte-se em pura exterioridade ela
mesma e deixa de ser consciência), ou bem o homem é inteiramente livre.140
138
Ibid., p.299; ed. franc., p.306.
139
O ser e o nada, p.546; ed.franc., p.486.
140
Ibid., p.547; ed. franc. p.486.
66
volições, mas também as paixões, as emoções141. Além disso, “a vontade, longe de ser a
constituir-se como vontade”142. Sartre introduz aqui a noção de uma liberdade originária que
fundamenta a vontade, as paixões e os fins vividos pela realidade humana. Ele esclarece: “Por
liberdade original, claro está, não se deve entender uma liberdade anterior ao ato voluntário
que estas manifestam, cada qual à sua maneira”143. Por outro lado, “a vontade determina-se na
mesmo rumo a seus possíveis”144. Ora, pode-se perguntar, afinal, a liberdade é contemporânea
ou anterior à vontade que ela fundamenta? Parece haver aqui uma ambigüidade no texto
sartriano .
A vontade surge como uma decisão posterior a uma deliberação referente a móbeis e
motivos. Mas, que são móbeis e motivos? Motivo, esclarece Sartre, é “a razão de um ato, ou
seja, o conjunto das considerações racionais que o justificam. (...) o motivo caracteriza-se
comumente como um fato subjetivo. É o conjunto dos desejos, emoções e paixões que me
preferencialmente, por motivos, enquanto o psicólogo, por sua vez, procura identificar os
141
No “Esboço de uma Teoria das Emoções”, Sartre rechaça a concepção corrente, na época, de que a emoção
seria uma conduta inferior comparada à razão ou à vontade. Ele afirma: “nós podemos conceber que a conduta
emocional não é, de modo algum, uma desordem: é um sistema organizado de meios que visam a um fim”
(Esquisse d’une théorie des émotions, p.45).
142
O ser e o nada, p.548; ed. franc. p.487.
143
Ibid., p.549; ed. franc. p.488.
144
Ibid.(negrito nosso).
145
Ibid., p.551; ed. franc. p.490.
146
Ibid., p.552; ed. franc. p.491.
67
móbeis que originaram a ação do sujeito. O mais freqüente, entretanto, é que motivos e
Pode-se opor a essa explicação o fato de que, na prática, é difícil distinguir e separar
razão ou da emoção na origem e no desenrolar de uma ação. Mas não haverá emoção na
própria razão e vice-versa? E, do mesmo modo, não há algo de subjetivo nos motivos e de
objetivo nos móbeis? Com isso não se pretende negar validade à divisão proposta por Sartre,
mas apenas chamar a atenção para seus limites frente a uma realidade mais complexa.
A pedra de toque da abordagem de motivos e móbeis por Sartre é a idéia de que eles
não se constituem por si mesmos previamente à ação, mas são constituídos pelo próprio
agente no bojo da ação. Em outras palavras, é o homem que, ao atribuir um certo significado e
valor a si mesmo e ao mundo que o cerca, constrói os motivos e os móbeis que se revelarão
através de sua ação. Nesse sentido, Sartre afirma: “Em suma, o mundo só dá conselhos se
deliberação voluntária é sempre ilusória. (...) Quando delibero, os dados já estão lançados. (...)
Quando a vontade intervém, a decisão já está tomada, e a vontade não tem outro valor senão o
contemporânea da vontade e uma liberdade anterior à vontade, aqui, ele pende claramente
para essa última. A liberdade se localiza muito antes da volição, na criação de meu projeto
originário, que a vontade vem tão somente refletir, anunciar. Sartre tenta salvaguardar algum
papel à vontade, observando que, se os fins a alcançar já estão postos, cabe à vontade intervir
147
Ibid., p.554; ed. franc. p.492.
148
Ibid., pp.556-557; ed. franc. p.495.
68
sobre a maneira de alcançá-los. Ora, perguntamos, o projeto originário do para-si, para ser
projeto, não deve incluir já uma escolha dos meios, do como alcançar o fim eleito? Em sendo
afirmativa a resposta, já não restará à vontade decidir nem mesmo acerca da maneira de
projeto originário.
e não poderia haver ‘eu-profundo’, a menos que se entenda por isso certas estruturas
transcendentes da psique”149. Mais à frente, entretanto, ele afirma: “Assim, chegamos a uma
liberdade mais profunda que a vontade, simplesmente sendo mais exigentes do que os
psicólogos, ou seja, expondo a questão do porquê, ali onde eles se limitam a constatar o modo
de consciência como volitivo”150. Ora, logo após criticar a oposição da liberdade à vontade,
Tem-se então que, por um lado, a vontade é um dos modos de existência da liberdade.
Nesse sentido, Sartre se esforça por conservar a contemporaneidade entre a liberdade que
fundamenta e a vontade que é fundamentada. Por outro lado, há um afastamento entre vontade
e liberdade e uma distribuição de papéis: a liberdade pertence a um estrato mais profundo que
a vontade; e a liberdade nos responderá acerca do porquê de uma ação, enquanto a vontade
nos revelará tão somente o como dessa mesma ação. Assim, há uma clara oscilação de Sartre
no tratamento da relação entre vontade e liberdade: ora ele as aproxima, chegando quase a
149
Ibid., p.549; ed. franc. p.488.
150
Ibid., p.558; ed. franc. p.496.
151
Segundo Roland Breeur, “A liberdade não se limita, então, à minha vontade, a tal ou qual impulso criativo do
eu profundo: ela é a articulação mesma desta distância ou desta falha interna entre uma consciência infinita e
um eu inerte” (Autour de Sartre, p.187).
69
“‘paradoxo’ da ineficácia das decisões voluntárias”152. Esse paradoxo consiste no fato de que
a vontade, a despeito de sua intensa potência de agir e mudar, poderá contribuir, na verdade,
para nada alterar. Uma vontade que se restrinja às escolhas secundárias, deixará indene o
projeto original. Assim, de nada adiantará querer eliminar esta ou aquela manifestação do
De todo modo, Sartre conclui sua análise da vontade pretendendo ter invalidado a
oposição cartesiana entre vontade e paixões, no que concerne à liberdade. Ele afirma: “a
estrutura própria, que se constitui no mesmo plano dos demais e, nem mais nem menos do que
Sartre chama a atenção para o fato de que a liberdade radical por ele descrita não se
coaduna com uma liberdade arbitrária e irracional. A escolha, ainda que livre e contingente, é
“uma análise regressiva que nos conduza a um projeto inicial”154, aponta Sartre. Ele
exemplifica com a análise da fadiga no decorrer de uma caminhada, que pode ser vivida tanto
como intolerável quanto como recompensadora, dependendo do projeto original em que ela se
insira. A análise parte de um ato ou projeto isolado e regride em direção a atos e projetos
cada vez mais amplos, até alcançar um projeto primeiro, que é “o próprio ser-no-mundo do
para-si, na medida em que este ser-no-mundo é escolha; ou seja, alcançamos o tipo original de
152
O ser e o nada, p.586; ed. franc. p.521.
153
Ibid., p.558; ed. franc. pp.496-497.
154
Ibid., p.560; ed. franc. p.498.
70
nadificação pelo qual o para-si tem-de-ser seu próprio nada”155. O projeto original do para-si
constitui a base da interpretação de todo ato do para-si, mas não é, ele mesmo, passível de ser
interpretado. Ele assume a condição de um axioma, que, apesar de ser a fonte das
demonstrações, não pode ser demonstrado. Aí sim, podemos identificar uma irracionalidade: a
escolha primeira e originária, à qual todas as demais são remissíveis, é irracional, mesmo
Esse método de análise das significações encerradas em um ato ainda está por se
desenvolver, afirma Sartre. Ele reconhece que somente Freud partiu da mesma evidência
originária, ao propor que “um ato não pode limitar-se a si mesmo: remete imediatamente a
estruturas mais profundas”156. Sartre acrescenta: “Freud indaga, como nós, em que condições
é possível que tal pessoa em particular tenha executado tal ação em particular”157. Todavia,
Freud sucumbe a um determinismo não só vertical, mas também horizontal, critica Sartre, por
conceder às estruturas mais profundas da psique, formatadas pelo passado, pela história do
Sartre pretende destacar da psicanálise apenas aquilo que ele julga válido, que é o
método de buscar compreender todo ato humano a partir de uma rede de significados que ele
integra. Há que se fazer algumas adaptações, todavia. Dentre elas, o deslocamento da ênfase
do passado para o futuro captado pelo presente, o que implica afastar qualquer sombra de
mecanismo causal na gênese da ação humana. Acresça-se que o processo interpretativo ocorre
em duas vias. Sartre esclarece: “E a compreensão se faz em dois sentidos inversos: por uma
psicanálise regressiva, remontamos do ato considerado até meu último possível; por uma
155
Ibid., p.564; ed. franc. p.501.
156
Ibid., p.565; ed. franc. p.502.
157
Ibid.
158
Como observou J.-B. Pontalis, Sartre manteve com a psicanálise uma “relação ambígua, feita de uma atração
e uma reticência igualmente profundas” (Situations IX, p.360). Apesar de recusar a existência do inconsciente
proposto por Freud, Sartre denominou de psicanálise existencial o seu próprio método de interpretação do agir
humano. Veja-se, sobre a psicanálise existencial, o tópico II.4.5.
71
progressão sintética, tornamos a descer desse último possível até o ato considerado e
É importante perceber, aponta Sartre, que a articulação entre uma de minhas inúmeras
entre uma coisa qualquer e o mundo. A percepção de um objeto qualquer só é possível sobre
fundo de mundo. Do mesmo modo, não posso projetar minha possibilidade singular, senão
dentre as quais, podem-se citar: ato fundamental de liberdade, escolha originária, escolha
original, escolha fundamental, escolha profunda, projeto originário, projeto original, projeto
Sartre frente a essa noção é um sinal evidente da importância que ele lhe confere no contexto
de sua própria filosofia. Não sem razão, visto tratar-se da fonte de onde jorra o para-si, esse
Essa escolha profunda não é inconsciente161, adverte Sartre. Segundo ele: “Ela se
identifica com a consciência que temos de nós mesmos. Como sabemos, essa consciência só
pode ser não-posicional: é consciência-nós, pois não se distingue de nosso ser”162. Escolha e
consciência são termos que se recobrem. Cabe frisar que, em se tratando da escolha original a
159
O ser e o nada, p.567; ed. franc.pp.504-505.
160
Ibid., p.569; ed. franc. p.506.
161
A propósito da rejeição do inconsciente por Sartre, ver especialmente ibid., pp.95-101; ed. franc., pp.84-89.
162
Ibid., p.569; ed. franc. p.506.
72
consciência não será analítica nem detalhada; não será uma consciência-conhecimento, mas
Meu projeto último e inicial – pois constitui as duas coisas ao mesmo tempo – é sempre,
como veremos, o esboço de uma solução do problema do ser. Mas esta solução não é
primeiro concebida e depois realizada: somos esta solução, fazemo-la existir pelo nosso
próprio comprometimento, e, portanto, só podemos captá-la vivendo-a.163
pergunta se ele poderia ter agido de outro modo. Ele responde que sim, mas sob a condição de
uma alteração de sua própria escolha original que sustenta aquele ato em particular. Ou seja, a
modificação de uma escolha minha não consiste tão somente na modificação daquela escolha,
mas pressupõe a modificação de mim mesmo como um todo integrado de escolhas. Sartre
explica:
Não significa que eu deva necessariamente parar, mas apenas que só posso negar-me a
parar através de uma conversão radical de meu ser-no-mundo, ou seja, por uma brusca
metamorfose de meu projeto inicial, isto é, por outra escolha de mim mesmo e de meus
fins. Tal modificação, além disso, é sempre possível.164
Há então uma perpétua modificabilidade do projeto original que nos revela nossa
liberdade radical e nos provoca angústia. Essa angústia decorre não só do confronto
permanente com a possibilidade de deixarmos de ser o que somos para sermos outro, mas
absoluta de nosso ser. Assim, “captamos nossa escolha como algo não derivado de qualquer
163
Ibid., pp.570-571; ed. franc., p.507.
164
Ibid., p.572; ed. franc. p.509.
73
realidade anterior e, ao contrário, como algo que deve servir de fundamento ao conjunto das
A escolha original é, por um lado, absoluta, porque não há nada que a determine, mas,
por outro, ela é frágil, pois pode ser a todo momento nadificada e substituída por outra
sua alteração. Segundo Sartre, “essa mudança absoluta que nos ameaça do nosso nascimento à
totalidade que sou se tornará fonte da compreensão de todos meus atos ulteriores, mas ela
Para ilustrar sua análise, Sartre recorre à teoria da liberdade de Leibniz, detendo-se
sobre a questão da liberdade de Adão ao colher a maçã. Poderia Adão ter deixado de colher a
maçã? Sartre afirma concordar com Leibniz em que “teria sido possível que não a
colhesse”168. Ele acrescenta: “Mas, para Leibniz como para nós, as implicações desse gesto
são tão numerosas e tão ramificadas que, em última análise, declarar que teria sido possível
que Adão não colhesse a maçã equivale a dizer que teria sido possível outro Adão”169. Sartre
tem como decorrência necessária o ato de colher a maçã. E essa essência, destaca Sartre, não é
escolhida pelo próprio Adão, mas lhe é dada por Deus. Daí que, a liberdade que Leibniz
atribui a Adão se reduz, na verdade, à liberdade de Deus. Enfim, para Leibniz, teria sido
possível que Adão não colhesse a maçã se Deus houvesse criado um outro mundo em que
165
Ibid., pp.572-573; ed. franc. p.509.
166
Ibid., p.573; ed. franc. p.509.
167
Ibid., p.573; ed. franc. p.510.
168
Ibid., p.576; ed. franc. p.512.
169
Ibid., p.576; ed. franc. p.512.
74
houvesse um “outro Adão”, cuja essência acarretasse o deixar de colher a maçã. Ao que Sartre
contrapõe: teria sido possível que Adão não colhesse a maçã, se ele mesmo, Adão, houvesse
escolhido ser um “outro Adão”. Sartre sintetiza: “Para nós, com efeito, é no nível da escolha
de Adão por si mesmo, ou seja, da determinação da essência pela existência, que se coloca o
problema da liberdade”170.
própria, Sartre adverte para os limites teóricos de sua análise diante da infinita complexidade
da realidade. Além disso, a conexão entre uma escolha derivada - um ato em particular - e a
determinismo do projeto originário171. Ainda que fundamente todas as demais escolhas que
integram o para-si, o projeto originário não mantém com elas uma relação de causa e efeito.
Por isso que, ao tratarmos desta relação, não é da intelecção que devemos nos valer, mas da
compreensão172.
secundária pressupõe uma alteração da escolha fundamental, Sartre admite que há algumas
escolhas secundárias cuja alteração é indiferente para a escolha fundamental. Em seu apoio,
Sartre faz referência à noção estóica dos indiferentes. Veja-se, a propósito o seguinte trecho:
cada “isto”deve aparecer sobre fundo de mundo e na perspectiva de minha facticidade, mas
nem minha facticidade nem o mundo permitem compreender por que capto agora esse copo
em vez desse tinteiro como forma destacando-se do fundo. Com relação a tais indiferentes,
nossa liberdade é total e incondicional.173
Essa última frase da citação provoca uma dificuldade interpretativa. Pois, podemos
nos perguntar: e com relação aos não indiferentes, ou seja, aos atos, às escolhas, que não se
170
Ibid., p.577; ed. franc. p.513.
171
“Esses projetos parciais não são determinados pelo projeto global: devem ser, eles próprios, escolhas, e a cada
um deles permite-se certa margem de contingência, imprevisibilidade e absurdo, embora cada projeto, na medida
em que se projeta, sendo especificação do projeto global por ocasião de elementos particulares da situação, seja
sempre compreendido em relação à totalidade de meu ser” (Ibid., p.592; ed. franc., p.526).
172
Sobre a distinção entre intelecção e compreensão, ver o tópico I-2.2.
173
Ibid., p.579 (negrito nosso); ed. franc. p.515.
75
que medida a liberdade de uma escolha classificada como indiferente é maior que a liberdade
de uma escolha não indiferente? Pelo que já foi visto anteriormente, a liberdade em Sartre é
absoluta e não admite graduação. Não faz sentido falar em ato mais ou menos livre que outro,
sendo todo ato igualmente livre. Em não havendo liberdade, simplesmente não há ato, não há
alternativas: ou a frase referida fica esvaziada já que, não só com relação aos atos indiferentes,
mas a todo ato, nossa liberdade é total e incondicional; ou ela contradiz o conjunto da teoria
ao admitir que nossa liberdade pode não ser total e incondicional com relação aos atos não
indiferentes, ou seja, aos atos cuja alteração implique uma alteração do projeto fundamental.
O que está em jogo aqui é um equilíbrio delicado que Sartre pretende sustentar. De um
escolha, desde a indiferente até a fundamental, de outro, em uma perspectiva vertical, cumpre
construir a hierarquia descendente das escolhas, desde a escolha última e inicial até a escolha
derivada indiferente. Vale dizer, em um dos pratos da balança, tem-se a igualdade – toda
escolha é igualmente livre – e, no outro, a diferença – cada escolha ocupa uma posição
Sartre destaca: “em caso algum poderá tratar-se de estabelecer um sistema de compreensão
universal dos possíveis secundários a partir dos possíveis primários, mas, em cada caso, o
sujeito deve fornecer suas pedras de toque e seus critérios pessoais”175. Assim, não é possível
haver um esquema interpretativo a priori, que desconsidere o sujeito cujas escolhas se trata de
174
Ibid., p.580; ed. franc. pp.515-516.
175
Ibid., p.580; ed. franc. p.516.
76
sua relação com a consciência e o ego. Se o homem é livre, onde se origina sua liberdade?
Quando se diz “o homem é livre”, que se entende por homem? Podemos afirmar: Pedro é
livre. Que significa essa afirmativa? Que Pedro enquanto uma estrutura egóica é livre? Ou que
Pedro enquanto consciência é livre? Ou, ainda, que Pedro, tomado simultaneamente como
Sartre afirmou repetidas vezes que a liberdade não é um atributo do homem, algo que
se lhe acrescenta, mas sim seu próprio ser176. Daí, poderia parecer mais correto localizar a
liberdade não neste ou naquele componente do ser humano, mas sim no seu próprio ser, como
síntese indivisível.
onde está o ser do homem. Na tentativa de localizar no homem o seu ser livre, deve-se
examinar o que é o ego, o que é a consciência e como se dá a relação entre eles. Trata-se de
saber como e onde figura a liberdade nesse cenário. Para enfrentar essa empreitada, valeremo-
Sartre se ocupa, justamente, de propor uma nova descrição do ego e de sua relação com a
consciência e com o mundo. Recorreremos, também, a “O Ser e o Nada” para melhor analisar
o papel da liberdade frente às teses avançadas na obra anterior e, também, para apontar
Registramos apenas três ocorrências em toda a obra. A primeira delas é uma referência de
176
“O homem não é primeiro para ser livre depois: não há diferença entre o ser do homem e seu ‘ser-livre’” ( O
ser e o nada, p.68; ed. franc., p.60).
177
Primeira obra filosófica de Sartre, redigida em 1934, por ocasião da viagem a Berlim onde ele estudou a
fenomenologia de Husserl. As reflexões que ele ali desenvolve serão retomadas em “O Ser e o Nada” com
algumas alterações.
77
consciência se assusta com sua própria espontaneidade porque ela a sente além da
liberdade”179. Em nota, Sylvie Le Bon comenta essa afirmação, observando que Sartre não
conferia ainda ao conceito de liberdade a extensão que ele irá conferir em “O Ser e o Nada”,
onde liberdade e consciência são coextensivas. Ainda segundo Le Bon, no ensaio de 1934, a
relação entre liberdade e espontaneidade seria análoga à relação entre o ego e a consciência
Sartre revela da liberdade e de sua relação com a consciência. Todavia, já no ensaio de 34,
consciência. Com efeito, logo em seguida à frase citada, ele comenta um exemplo de Janet
sobre uma jovem esposa que temia abordar outros homens como uma prostituta. Sartre
observa:
Ela se encontrava monstruosamente livre e essa liberdade vertiginosa lhe aparecia por
ocasião desse gesto que ela tinha medo de fazer. Mas essa vertigem só é compreensível
se a consciência aparece repentinamente a si mesma como excedendo infinitamente em
suas possibilidades o Eu que lhe serve em geral de unidade.180
liberdade que não fica aquém da espontaneidade da consciência, mas que com ela se
confunde. Será nessa direção que Sartre irá caminhar para chegar a “O Ser e o Nada”. Mas em
34, o conceito de liberdade ainda está por se desenvolver; seus contornos ainda não estão bem
delineados. Isso talvez explique o fato de Sartre, naquele momento, vacilar quanto à relação
178
“É essa espontaneidade que descreve Bergson em os Dados imediatos, é ela que ele toma pela liberdade, sem
se dar conta que ele descreve um objeto e não uma consciência e que a ligação que ele coloca é perfeitamente
irracional poque o produtor é passivo em relação à coisa criada” (La transcendence de l’ego, p.63).
179
Ibid., p.80.
180
Ibid., p.81(negrito nosso).
78
protagoniza o ensaio de 34. Se nele Sartre se debruça sobre o ego, é tão somente para
subordinação, assevera Sartre. O ego está fora da consciência e é mais um dentre seus vários
objetos. Sartre não pretende elaborar uma egologia, que, segundo ele, constitui tarefa da
consciências, no plural, visadas em um sentido pontual. Em uma nota, ele esclarece: “Eu
empregarei aqui o termo consciência para traduzir a palavra alemã ‘Bewusstsein’ que
consciência de uma cadeira, de uma dor, de uma idéia, etc. Através dessa consideração
impessoal. Vale dizer, a pluralização do termo permitirá a abordagem das diversas espécies
181
Ibid, p.15.
79
caracterizado como absoluto, visto que nele há a fusão entre a aparência e o ser. O fenômeno,
todavia, a par de absoluto, é também relativo no sentido de que o que aparece pressupõe
objeto e consciência não posicional dela mesma. Trata-se de uma totalidade sintética e
individual que somente pode ser limitada por si mesma. A consciência não se afeta por nada
que esteja fora dela. Ela é inacessível, intocável. Se por um lado, a consciência está em
perpétua relação com o exterior, sendo pura intencionalidade, ela está imune a qualquer
interferência desse exterior sobre si mesma. A relação intencional é de mão única: é sempre a
individual, auto-suficiente e absoluta. Uma terceira figura, que tenta conciliar e abarcar as
duas anteriores, é a de um círculo cujos pontos emitem flechas em direção ao exterior. Seria
A distinção radical que opõe fenômeno e consciência é que, enquanto aquele pertence
182
Ibid., p.23.
80
consciência, o ser-para-si. Trata-se de duas regiões do ser em permanente relação, mas cuja
encontramos a conclusão contrária. Como nesta, por exemplo, sobre a relação entre o ser e o
nada:
Significa que o ser é anterior ao nada e o fundamenta. (...) Significa que o ser não tem
qualquer necessidade do nada para se conceber, e que se pode examinar sua noção
exaustivamente sem deparar com o menor vestígio do nada. Mas, ao contrário, o nada,
que não é, só pode ter existência emprestada: é do ser que tira seu ser; seu nada de ser só
se acha nos limites do ser, e a total desaparição do ser não constituiria o advento do reino
do não-ser, mas, ao oposto, o concomitante desvanecimento do nada: não há não-ser
salvo na superfície do ser.183
afirmando que: “O ser surge juntamente com a consciência, ao mesmo tempo em seu âmago e
fora dele, e é a transcendência absoluta na imanência absoluta; não há prioridade do ser sobre
afirmação: “O concreto só pode ser a totalidade sintética da qual tanto a consciência como o
Pensamos ser essa última posição, em que não há prioridade ontológica nem do
que não há um ser anterior ou atrás do fenômeno, mas somente o ser que se revela no
fenômeno mesmo; e que, para que haja revelação e fenômeno, é indispensável a consciência,
conclui-se pela concomitância de fenômeno e consciência. Isso não quer dizer que não
183
O ser e o nada, p.58; ed. franc. pp.50-51.
184
Ibid., p.141; ed. franc. p.127.
185
Ibid., p.43; ed. franc. p.37.
81
houvesse ser antes do surgimento da consciência. Pois como aponta Sartre, “o fenômeno do
Sartre concorda com Kant em que o “Eu penso deve poder acompanhar todas nossas
nada afirma sobre a existência de fato do Eu penso. Há uma tendência perigosa na filosofia
está na origem da unidade de nossas representações ou constitui um fruto dela? Sartre afirma
que essa questão é, na verdade, não de direito, mas de fato, devendo assim ser formulada: “o
Eu que nós encontramos em nossa consciência é tornado possível pela unidade sintética de
nossas representações, ou bem é ele que unifica de fato nossas representações entre si?”188.
Para resolver a questão de fato da relação entre o eu e a consciência, devemos nos valer não
procedimento essencial é a intuição e seu objeto são os fatos. Sartre justifica aqui a escolha do
método fenomenológico através da questão que constitui seu objeto de análise. Ele não
186
Ibid., p.759 ; ed. Franc., p.670.
187
La transcendence de l’ego, p.23.
188
Ibid., p.16.
82
entre eles. Em vista disso, é à fenomenologia que Sartre recorrerá para fazer avançar suas
reflexões.
transcendente que deve tombar sob o golpe da epoké, mas discorda do mestre no que concerne
absoluta?”189. Em sendo negativa a resposta, resultam quatro conseqüências, afirma Sartre: 1ª-
humanidade, enquanto a face ativa do ego; 3ª- o Eu Penso pode acompanhar nossas
representações porque ele aparece sobre um fundo de unidade que ele não contribuiu para
criar e que, ao contrário, esta unidade prévia o torna possível; 4ª- é lícito se perguntar se a
A resposta está em Husserl, ainda que contra o próprio Husserl. Sartre entende que, ao
Husserl torna pessoal a consciência transcendental e entra em contradição com sua própria
ao exterior, pura transcendência, não faz sentido procurar dentro dela algo que lhe garanta
A unidade das mil consciências ativas pelas quais eu somei, somo e somarei dois mais
dois é igual a quatro, é o objeto transcendente ‘dois mais dois é igual a quatro’. Sem a
permanência desta verdade eterna, seria impossível conceber uma unidade real e haveria
tantas operações irredutíveis quantas consciências operatórias. É possível que aqueles que
crêem que “2 mais 2 é igual a 4” é o conteúdo de minha representação sejam obrigados a
189
Ibid., pp.18-19.
83
interior da própria consciência, mesmo porque a consciência não tem um interior. É verdade,
entretanto, que se faz necessário ainda um princípio de unidade na duração temporal que
possibilite o fluxo contínuo das consciências. Esse princípio de unificação temporal não se
encontra nem dentro nem fora da consciência, mas na própria consciência “que se unifica ela
concretas e reais das consciências passadas”191. Sartre faz referência ao artigo “A Consciência
Interna do Tempo”, em que Husserl estuda a unificação subjetiva das consciências, sem
O cogito é pessoal, afirma Sartre. No “Eu penso” há um eu que pensa. Sempre que
lembrar da paisagem que vi ontem no trem, posso me lembrar da própria paisagem ou que eu
via a paisagem. Assim, como afirmou Kant, não haveria uma única de minhas consciências
A par de pessoal, o cogito é também uma operação reflexiva. “Ele é operado por uma
consciência dirigida sobre a consciência, que toma a consciência como objeto”192. A certeza
consciência refletida. Apesar de unidas, trata-se de duas consciências, sendo uma objeto da
190
Ibid., pp.21-22.
191
Ibid., p.22.
192
Ibid., p.28.
84
Contra o cogito pessoal e reflexivo de Descartes e Kant, Sartre propõe um cogito pré-
certo do pseudo Cogito não é ‘eu tenho consciência desta cadeira’, mas ‘há consciência desta
cadeira’. Este conteúdo é suficiente por constituir um campo infinito e absoluto às pesquisas
fenomenológicas”193.
consciência, quando observo uma cadeira, o eu não está na consciência, não é objeto para a
consciência. Todavia, a consciência da cadeira não flutua no espaço, sendo sua produção
sempre ligada a um ser humano, a uma pessoa, nesse exemplo, eu. Por isso, pode-se afirmar,
não simplesmente que há consciência desta cadeira, mas ainda, que eu tenho consciência desta
cadeira. O fato de que o eu não figura em inúmeros momentos da consciência, não implica
que, nesses momentos, a consciência deixe de estar ligada a uma pessoa que produz ou em
“eu”. Quando digo “eu”, posso estar me referindo, em um sentido estrito, ao ego, como
também, em um sentido amplo, à minha pessoa como um todo, que inclui o ego, mas que não
193
Ibid., p.37.
194
Eis uma discussão aqui importante: a consciência é produzida na pessoa ou pela pessoa? Qual a relação entre
a consciência e a pessoa? A pessoa gera a consciência? Ou a pessoa é apenas o meio em que se dá a auto-
produção da consciência? Em Sartre, a consciência é eminentemente auto-poiética, de modo que seria incorreto
atribuir sua criação a qualquer outro ente que não ela mesma. Mas, permanece a questão da relação entre pessoa
e consciência. A pessoa faz parte da consciência ou é a consciência que faz parte da pessoa? A pessoa fazer
parte da consciência é algo incompatível com o pensamento sartriano, visto que nele a consciência é totalmente
esvaziada de qualquer conteúdo. Ela não contém nada, tampouco a pessoa à qual pode ser remetida. Já a
consciência fazer parte da pessoa é uma afirmação possível. Se pensarmos a pessoa como sinônimo de ser-
humano, de realidade-humana, como síntese de consciência, corpo e psique, podemos dizer que a consciência
integra a pessoa, sem esgotá-la. Cumpre ressalvar que para Sartre a consciência não se deixa fixar nos limites da
pessoa humana, ultrapassando-a em certo sentido. Ao tratarmos da relação entre a consciência e o ego, no tópico
II.2.4, voltaremos a abordar a relação entre a consciência e a pessoa.
85
se reduz a ele195. Há aqui uma limitação da linguagem que utiliza o mesmo termo para se
referir a entes distintos. Parece-me que Sartre não esteve atento para isso, o que gera alguma
seus derivados, como por exemplo, os pronomes possessivos “meu”, “minha”. Veja-se, a
propósito, esta passagem: “O Eu sendo objeto, é evidente que eu não poderia jamais dizer:
designativo como se diz, por exemplo: o dia de meu batismo). O Ego não é proprietário da
consciência, ele é seu objeto”196. O fato é que, quando digo minha consciência, não me refiro
necessariamente à consciência do meu ego, pertencente ao meu ego, o que seria uma
referindo à consciência da minha pessoa, integrante do meu ser-para-si, do meu ser como
homem; ou ainda, no limite, coincidente com meu ser-para-si, com meu ser como homem.
o ser humano. Ora, é de uma identificação que se trata: o ser do homem em nada se
distinguindo do ser de sua consciência197; ora, tem-se somente uma interseção, que pode se
dar de dois modos distintos: o ser humano constituindo algo mais amplo do que o ser de sua
195
Veja-se, como exemplo, este trecho de “Esboço de uma teoria das emoções”, em que Sartre utiliza o termo
“eu” na definição da realidade-humana: “Assim, a realidade-humana que é eu (moi) assume seu próprio ser ao
compreendê-lo. Essa compreensão é a minha” (Esquisse d’une théorie des émotions, p.21). Ou ainda, estes
outros, de “O Ser e o Nada”, em que Sartre afirma: “A liberdade é certa liberdade que eu (je) sou. Mas, que sou
eu senão uma negação interna do em-si?” (p.622; ed. franc., p.551); e também que: “Eu (Je) sou o ser que é
como ser cujo ser está em questão em seu ser” (p.681; ed. franc., p.601) . Fica claro que, nos três trechos, o “eu”
utilizado por Sartre, seja como “je”, seja como “moi”, refere-se não ao ego que é um objeto para a consciência,
mas sim à consciência mesma, à realidade-humana, ao ser-para-si.
196
La transcendence de l’ego, p.77.
197
“(...) a consciência é um ser para o qual, em seu próprio ser, está em questão o seu ser enquanto este ser
implica outro ser que não si mesmo” (O ser e o nada, p.35; ed. franc., p.29). Nesse sentido, há uma equivalência,
ressalvadas algumas nuances, entre os seguintes termos que se alternam no decorrer do texto sartriano:
consciência, ser-para-si, realidade-humana, ser humano, homem.
86
consciência198 ou, ao inverso, a consciência não se contendo nos limites do ser humano no
exterioridade199.
cogito pré-reflexivo, Sartre pretende destacar que quem pensa é antes a consciência que o ego.
Não só porque há vários atos de pensamento dos quais o ego está ausente, mas ainda, porque,
mesmo estando presente, não é o ego a origem do pensar, mas sim a consciência. O que
ocorre, quando supomos que o ego esteja na origem do pensamento, é uma mera inversão
consciência não posicional de si mesma. Esse postulado bastante destacado por Sartre pode
consciência o seu caráter absoluto. Qualquer consciência tem consciência de si mesma sem
que para isso ela tenha que se tornar objeto, visto tratar-se de uma consciência não posicional,
independente da reflexão. Para tentar driblar os limites da linguagem, Sartre propõe colocar a
198
“A consciência não é um modo particular de conhecimento, chamado sentido interno ou conhecimento de si:
é a dimensão transfenomenal do sujeito” (Ibid., p.22; ed. franc., p.17). Vale dizer, a consciência é apenas uma
dimensão do sujeito; ela não é o próprio sujeito.
199
“(...) despojo o homem em mim para posicionar-me no terreno absoluto do espectador imparcial, do árbitro.
Este espectador é a consciência transcendental desencarnada, que observa ‘seu’ homem” (Diário de uma guerra
estranha, p.135; ed. franc., p.126).
200
Cf. La transcendence de l’ego, p.63.
201
Cf. O ser e o nada, p.25; ed. franc., p.20.
87
a alteração sofrida por uma consciência que passa de irrefletida a refletida é radical202. Ela se
a sua intencionalidade, a relação a um objeto transcendente. Todavia, ela mesma se torna, por
sua vez, um objeto transcendente para outra consciência, a consciência reflexiva, que lhe
Enquanto a consciência permanece irrefletida, não há lugar para o ego. Nas palavras
de Sartre:
De fato, eu sou então mergulhado no mundo dos objetos; são eles que constituem a
unidade de minhas consciências, que se apresentam com valores, qualidades atrativas e
repulsivas, mas eu, eu desapareci, eu me nadifiquei. Não há lugar para mim nesse nível, e
isso não provém de um acaso, de um déficit momentâneo de atenção, mas da estrutura
mesma da consciência.204
Sartre concede prioridade ontológica ao irrefletido sobre o refletido e aponta que “a reflexão
‘contamina’ o desejo”205, que “minha vida reflexiva contamina ‘por essência’ minha vida
espontânea”206.
somente enquanto permanece irrefletida que uma consciência pode ser considerada
espontânea. A reflexão vem-lhe tirar esse atributo. Mas, considerando que a espontaneidade
202
La transcendence de l’ego, p.29.
203
“Tornar-se refletida, para uma consciência é sofrer profunda modificação em seu ser e perder precisamente a
‘Sebstständigkeit’ que possuía enquanto quase-totalidade” (O ser e o nada, p.210; ed.f ranc., p.188).
204
La transcendence de l’ego, p.32.
205
Ibid., p.42.
206
Ibid, p.43.
88
espontaneidade e a autonomia, ela se torna objeto para uma consciência reflexiva e passa a
concepção mecanicista. Veja-se, a propósito, esta passagem: “Eu tenho pena de Pedro e eu lhe
socorro. Para minha consciência uma só coisa existe nesse momento: Pedro-devendo-ser-
mim como uma força”208. E ainda, esta outra: “Tudo se passa como se nós vivêssemos em
um mundo onde os objetos, além de suas qualidades de calor, de odor, de forma, etc.,
Essas passagens que destacamos parecem ser fruto do entusiasmo de Sartre com o
apelo husserliano para que retornemos às coisas mesmas. Entende-se que essa ênfase nas
coisas, no mundo, é uma reação ao excesso característico da filosofia francesa daquela época,
que, sob um viés epistemológico, tendia reduzir tudo a uma mera representação do sujeito210.
Por outro lado, não recai Sartre, em alguns momentos, no excesso oposto, ao dissolver o
sujeito num entrelaçamento de forças exteriores? Não seria contraditório sustentar a liberdade
207
O estatuto da psique em Sartre é complexo, situando-se numa interseção entre ser-para-si e ser-em-si. Por um
lado, “o psíquico é em-si” (O ser e o nada, p.224; ed. franc., p.200), e por outro, “o psíquico é a objetivação da
unidade ontológica do para-si” (ibid., p.226; ed. franc., p.201). Isso porque “a coesão íntima do psíquico não
passa da unidade de ser do para-si hipostasiada no em-si” (ibid., p.225; ed. franc., p.201).
208
La transcendence de l’ego, p.39 (negrito nosso).
209
Ibid., pp.41-42 (negrito nosso).
210
Ver a esse propósito o texto já referido “Uma idéia fundamental da fenomenologia de Husserl: a
intencionalidade”.
89
síntese permanente do psíquico. A unidade das consciências refletidas se dá sob duas formas:
uma unidade imanente das próprias consciências representada pelo fluxo da Consciência212 e
uma unidade transcendente das ações e dos estados operada pelo ego.
por sua vez, originam afinal o ego. “Mas, como a ordem é invertida por uma consciência que
se aprisiona no Mundo para fugir, as consciências são dadas como emanando dos estados e os
estados como produzidos pelo Ego”213. Ou seja, há uma inversão operada pela própria
O ego não é um habitante da consciência. Segundo Sartre, “(...) o Ego não está nem
formalmente nem materialmente na consciência: ele está fora, no mundo; é um ser do mundo,
como o Ego de outro”214. Eis um dos pilares da obra “A Transcendência do Ego”. Através
dele, Sartre pretende purificar a consciência, liberando-a de qualquer conteúdo. Ela é puro
distingue dos demais entes mundanos, como nesta passagem: “O Eu é um existente. Ele tem
um tipo de existência concreta, diferente sem dúvida daquela das verdades matemáticas, das
significações ou dos seres espaço-temporais, mas tão real quanto”215 ; e ora o iguala a eles,
211
Segundo Sartre, o ego comporta duas faces: uma face ativa, unificadora das ações, que é o ‘Je’, e uma face
passiva, unificadora de estados e qualidades, que é o ‘Moi’. (cf. La transcendence de l’ego, pp.43-44).
212
Em geral o termo consciência é grafado por Sartre com a inicial minúscula. Entretanto, ao se referir ao fluxo
da Consciência (p.44), ele o faz com inicial maiúscula.
213
La Transcendence de l’ego, p.63.
214
Ibid., p.13.
215
Ibid., p.36.
90
existência tem as mesmas características do mundo”216. Fica claro, porém, que, na taxonomia
sartriana, o ego está muito mais próximo do mundo do que da consciência. Tal qual o mundo,
O hábito de Sartre de pensar a realidade sob uma perspectiva dualista, gera, por vezes,
consciência, em direção ao mundo. Mas, o ego e o psíquico não se encaixam muito bem no
mundo, pois, ainda que tenham uma existência real, eles não se igualam aos “seres espaço-
temporais”. Essa distinção é feita pelo próprio Sartre, nos termos da primeira citação do
parágrafo anterior. A intimidade do ego impossibilita que ele possa ser apreendido do mesmo
momento, coloca o ego e o mundo em uma relação não de continência, mas de paralelismo
comparativo, quando ele afirma: “O Ego é para os objetos psíquicos aquilo que o mundo é
para as coisas”. Ou seja, se o mundo é uma síntese das coisas, o ego é uma síntese dos objetos
mundo, seja dos objetos psíquicos, no caso do ego. Nessa direção, Sartre chega mesmo a se
transcendência do ego, afirmando que “(...) como pólo unificador das ‘Erlebnisse’, o Ego é
216
Ibid., p.86.
217
Conf. ibid., p.68.
218
“Esse mundo, presença virtual, objeto provável de minha intenção reflexiva, é o mundo psíquico ou psique”
(O ser e o nada, p.231; ed. franc., p.205).
91
em-si, não para-si”219. Quais as implicações desse desdobramento no que concerne ao nosso
ser-para-si, podemos concluir que o ego não é livre. Em não sendo o ego livre, quando se diz
“Eu sou livre”, trata-se de uma afirmativa falsa? Para responder a essa questão, cumpre fazer
anteriormente220, há uma equivocidade do termo “eu”, que pode se referir tanto ao ego, em
um sentido estrito, como à pessoa em sua totalidade, em um sentido amplo. Sartre emprega o
pronome “eu” em ambos os sentidos: ora ele identifica “eu” a ego, objeto transcendente para a
consciência, classificado como ser-em-si; ora ele associa “eu” a consciência, a realidade-
humana, e, portanto, ao ser-para-si221. Daí que podemos vislumbrar duas respostas à questão,
conforme o significado que se dê ao “eu” que figura como sujeito da afirmativa. Se esse “eu”
for tomado como significando o ego, a resposta será sim, a partir do pensamento sartriano, é
falsa a afirmativa “Eu sou livre”. Por outro lado, será verdadeira a afirmativa, se o “eu” em
questão referir-se não ao ego, mas ao ser humano, à consciência, ao para-si que sou ao modo
consciência, um existente do mundo, concluímos que ele não é livre. Por outro lado, se a
consciência é livre, mas somente enquanto pura espontaneidade, enquanto não contaminada
pela reflexão, ou seja, enquanto consciência impessoal, concluiríamos que tampouco a pessoa,
em sua singularidade, é livre. Esse é um ponto vulnerável no pensamento de Sartre, visto que
poderia desaguar na negação da liberdade da pessoa, do ser humano que ficaria à mercê da
219
Ibid., p.155; ed. franc., p.139.
220
Ver seção II-2.2.
221
Ver nota 195, p.85.
92
Trata-se de uma passagem bastante rica, que reproduzimos apenas para destacar essa
idéia da consciência como espontaneidade impessoal, que me escapa, da qual não sou o
criador e frente à qual minha vontade é reduzida à impotência; essa idéia da consciência que
me angustia porque absoluta e inatingível. Sou essa consciência mesma ou sou seu refém?
irrefletido não o automatismo, mas a espontaneidade, Sartre o toma como locus privilegiado
da liberdade. Tem-se a seguinte aporia: Sou livre, quando não sou eu, quando deixo ser a
consciência. Ou ainda, em outra formulação: meu ato é livre, quando dele eu estou ausente;
222
La Transcendence de l’ego, p.79 (negrito nosso).
223
Ver ibid., p.87; ed. franc., p.77.. O processo de aniquilamento do eu acaba revelando uma consciência
“tranqüila e vazia entre as paredes, libertada do homem que a habitava, monstruosa, porque não é ninguém” (A
náusea, p.248; ed. franc., p.240). Não é sem razão que Roquentin conclui que “essa liberdade se assemelha um
pouco à morte” (Ibid., p.229; ed. franc., p.221).
93
nadificador da reflexão, e que a pessoa somente pode ser definida como livre relação consigo
mesma224. Para que não haja um choque entre a liberdade de uma consciência indomável e a
liberdade da pessoa humana, Sartre pessoaliza a consciência cuja liberdade passa a ser
totalmente apartada do ego, tomado ainda como um objeto transcendente. Segundo Sartre, “o
que confere a um ser a existência pessoal não é a posse de um Ego – que não passa do signo
deslocamento da personalidade que deixa de coincidir com o ego, para ser por ele tão somente
Heidegger, afirmando que: “a consciência é um ser para o qual, em seu próprio ser, está em
questão o seu ser enquanto este ser implica outro ser que não si mesmo”227. É justamente o
Todavia, o ser-para-si não é exclusivamente consciência. Nesse sentido, tem-se que: “O para-
224
Cf. O ser e o nada, p.156; ed. franc. p.140.
225
Ibid.
226
Nesse sentido, “o Ego, sob a dupla forma gramatical do Eu e do Mim, representa nossa pessoa, enquanto
unidade psíquica transcendente” (Ibid., p.221; ed. franc., p.197, negrito nosso).
227
Ibid., p.35; ed. franc., p.29.
94
si deve ser todo inteiro corpo e todo inteiro consciência: não poderia ser unido a um corpo”228.
original”229. Depreende-se daí que Sartre, apesar de conceber o ser-em-si e o ser-para-si como
regiões do ser absolutamente heterogêneas, admite que o para-si traz em seu âmago o em-
si230.
descrito como um existente em oscilação entre o para-si e o em-si. Assim, ora ele é tomado
como “uma estrutura consciente de minha consciência”231, ora como uma “massa de
carne”232. Vê-se, portanto, que, em Sartre, o corpo é um ente fronteiriço, que sustenta a
Retomando nossa questão inicial, parece claro que Sartre localiza na consciência o ser
mero objeto para a consciência e o seu habitat é o mundo. Ele é um elemento perturbador da
liberdade. Ser livre é não ser eu, mas deixar ser a consciência, uma consciência espontânea,
228
Ibid., p.388; ed. franc., p.344.
229
Ibid., p.391; ed. franc., p.348.
230
Nesse sentido, “ser para o para-si é nadificar o em-si que ele é” (ibid, p.543; ed. franc., p.483).
231
Ibid., p.416; ed. franc., p.369.
232
Ibid., p.433; ed. franc., pp.384-385.
95
irrefletida, enfim, livre233. Em “O Ser e o Nada”, Sartre busca contornar essa dificuldade, não
para-si e o mundo ao ser-em-si. Todavia, pode-se perguntar se, a partir das reflexões
sartrianas sobre o corpo e o psíquico, neste incluído o ego, não seria mais adequado descrever
psique, por um lado, são existentes do mundo, pertencentes ao reino do ser-em-si e tomados
como objetos transcendentes pela consciência, por outro, eles são elementos integrantes da
pessoa. Não há dúvida de que é na consciência que Sartre situa a especificidade do ser
Note-se que, para Sartre, a liberdade humana não é em nada diminuída pelo fato de o
para-si ser constituído também por um em-si sempre transcendido. É o que veremos no
233
Nas palavras de Roland Breeur: “Ser livre não equivale a ser eu, mas, ao contrário,a assumir a
impossibilidade de coincidir consigo. E essa impossibilidade não é derivada, ela é originária e reenvia não a uma
supremacia da inteligência sobre o sensível, mas a um excesso da consciência sobre a vida psíquica: o si da
consciência não se amolda ao Eu. Entre o Eu e a consciência, abre-se um abismo, que é o sentido mesmo da
liberdade” (Autour de Sartre, pp.166-167).
234
O próprio Sartre faz referência ao homem como uma totalidade, como uma síntese, que não se esgota na
consciência, ainda que nela encontre o seu núcleo. Vejamos, a propósito, as duas passagens seguintes: “[Não
posso] dizer que sou quem está de pé ou sentado: seria confundir meu corpo com a totalidade idiossincrática da
qual é apenas uma das estruturas” (O ser e o nada, p.107; ed. franc., p.95, negrito nosso) e “À luz dessas
observações, podemos abordar agora o estudo ontológico da consciência, na medida em que não é a totalidade
do ser humano, mas o núcleo instantâneo deste ser” (Ibid., p.118; ed. franc., p.106, negrito nosso).
96
É através da noção de facticidade que Sartre pretende dar conta dos inúmeros aspectos
da existência que parecem constituir obstáculos à liberdade. Não escolhemos nossa família,
nossa carga genética, o lugar e a época onde nascemos, além de outros tantos fatos de nossa
vida. Acrescente-se que, ao agirmos no mundo físico, devemos nos adequar à lei determinista
por nós mesmos. É somente através da eleição de um fim que surge o coeficiente de
adversidade. Sartre exemplifica com um rochedo que pode se constituir tanto em obstáculo, se
“Em si mesmo – se for sequer possível imaginar o que ele é em si mesmo -, o rochedo é
neutro, ou seja, espera ser iluminado por um fim de modo a se manifestar como adversário ou
auxiliar”235.
bruto, anterior à iluminação por um fim humano. Mas, mesmo esse resíduo, observa Sartre,
não pode ser considerado um limite à liberdade, sendo antes uma condição dela. Isso porque,
se ser livre é poder conceber e se empenhar na realização de seus projetos, é preciso haver
uma distinção entre estes dois momentos da ação: a concepção e a realização. “Se bastasse
o possível não se distingue de forma alguma do real”236. Sem essa intermediação do em-si que
separa o para-si de seus fins, já não haveria mais falta, nem ação, nem liberdade. Trata-se, em
235
O ser e o nada, pp.593-594; ed. franc., p.527.
236
Ibid., p.594; ed. franc., p.528.
97
transformar essa ordem através da ação. A inadequação inicial entre o fim projetado e a
O êxito da ação não é incluído por Sartre no conceito de liberdade. Tanto a ação bem
sucedida, em que o fim foi alcançado, quanto a ação fracassada, em que ele não o foi, são
igualmente livres. Contra o senso comum, que associa o ser livre a “obter o que se quis”,
Sartre destaca, em uma fórmula de ressonância kantiana, que ser livre significa “determinar-se
por si mesmo a querer (no sentido de escolher)”. Tem-se então uma oposição entre o conceito
técnico e filosófico de liberdade, como autonomia de escolha238. Ser livre não significa obter
“Nossa descrição da liberdade, por não distinguir o escolher do fazer, nos obriga a
renunciar de vez à distinção entre intenção e ato”240, afirma Sartre. Assim, escolher não se
distinguiria de fazer, nem a intenção se distinguiria do ato. Essa equiparação causa espanto,
visto que ter a intenção de beijar ou de ferir alguém não equivale a efetivamente beijar ou ferir
desejo. Para tanto, ele assevera que a escolha pressupõe um começo de realização. Parece-nos,
campo da ação, do fazer. Onde não houve ação, não houve intenção, nem escolha. Mas,
237
Ibid., p.595; ed. franc., p.528.
238
Cf. ibid., p.595; ed. franc., pp.528-529.
239
“Esta distinção essencial entre liberdade de escolha e liberdade de obter foi percebida certamente por
Descartes, depois do estoicismo” (Ibid., p.596; ed. franc., p.529).
240
Ibid., p.595; ed. franc., p.529.
98
perguntamos, não haverá já escolha no sonho e no desejo, antes mesmo de qualquer ação que
busque satisfazê-los?
uma perspectiva, a facticidade consiste no dado das coisas, do em-si, que será iluminado pela
liberdade241. Ela é o mundo resistente em meio do qual existe a liberdade. Sob a outra, a
facticidade é o fato de que não se pode deixar de ser livre242. Escolhemos tudo, exceto o
próprio escolher, este nos é dado de forma inexorável. A liberdade não é fundamento de si
mesma. Ela é fruto da contingência. Da liberdade não se escapa, o que varia é a relação que
estabelecemos com ela. Ou seja, por um lado, há algo de dado que nos vem do mundo, por
transcendê-lo. O nada somente surge no seio do ser, ou, em outras palavras, a liberdade
somente surge no seio do dado. Resguardando a preeminência ontológica conferida por Sartre
ao ser-em-si, Bornheim aponta haver aqui uma via de mão dupla: se o ser é condição de
surgimento da liberdade, a liberdade, por sua vez, é condição de revelação do ser. Em suas
nada”243.
Facticidade e liberdade são dois lados de uma mesma moeda - a situação. Não é
possível que elas existam desligadas uma da outra. Segundo Sartre, há uma “conexão
241
“O que temos denominado facticidade da liberdade é o dado que ela tem-de-ser e ilumina pelo seu projeto”
(Ibid., p.602; ed. franc., p.534).
242
“Somos uma liberdade que escolhe, mas não escolhemos ser livres: estamos condenados à liberdade (...).
Portanto, se definimos a liberdade como escapar ao dado, ao fato, há um fato do escapar ao fato. É a facticidade
da liberdade” (Ibid., pp.596-597; ed. franc., p.530).
243
BORNHEIM, G., Sartre: metafísica e existencialismo, p.118.
99
não existiria – como poder de nadificação e escolha – e, sem a liberdade a facticidade não
II-3.1. A situação
Não há liberdade abstrata, de sobrevôo, mas somente liberdade concreta, situada no mundo.
ao dado: a situação se define como a relação existente entre a liberdade e o dado, como a
dado por todos os lados, mas apesar disso, somos absolutamente e concretamente livres. Nas
palavras de Sartre: “A realidade humana encontra por toda parte resistências e obstáculos que
ela não criou; mas essas resistências e obstáculos só têm sentido na e pela livre escolha que a
epistemológica, mas sim ontológica, em que há uma síntese entre sujeito e objeto. Segundo
Sartre: “A situação é o sujeito inteiro (ele não é nada mais do que sua situação) e é também a
‘coisa’ inteira (não há jamais nada mais do que as coisas). Se quisermos, é o sujeito
iluminando as coisas pelo seu próprio transcender, ou são as coisas remetendo sua imagem ao
fusão entre a plenitude do ser e o nada segregado pelo homem, de modo que não se pode
244
O ser e o nada, p.609; ed. franc., p541.
245
SITUAÇÃO. In: NOUDELMANN, F. ; PHILIPPE, G., Dictionnaire Sartre, p.465.
246
O ser e o nada, p.602; ed. franc., p.534.
247
Ibid., pp.672-673; ed. franc., p.594.
100
distinguir onde termina uma e onde começa o outro. Daí, que “a situação, produto comum da
Em coerência com seu conceito de liberdade, que não admite graduação – o homem é
privilegiada, seja positivamente, em que o para-si fosse mais livre do que em outras, seja
escravo acorrentado é tão livre quanto seu amo. Essa afirmação nos causa estranhamento
porque tendemos a comparar duas realidades que, em certo sentido, são incomparáveis: a
objetos que passam a ser iluminados pela nossa própria liberdade. Segundo Sartre, “não há
qualquer ponto de vista absoluto que se possa adotar para comparar situações diferentes; cada
pessoa só realiza uma situação: a sua”250. Com o exemplo não se pretende negar que a
individuais, como por exemplo a liberdade de ir e vir, é evidente que o escravo sofre uma
restrição aguda de sua liberdade. Mas, não é dessa liberdade que se trata em Sartre, mas sim,
Sartre descreve cinco grandes estruturas envolvidas na situação: meu lugar, meu
passado, meus arredores, meu próximo e minha morte. Ele procura mostrar que mesmo esses
elementos que constituem o ser-no-mundo do homem, não existem sem a intervenção da sua
liberdade. É somente a partir do fim que o para-si livremente se propõe a perseguir que se
pode falar em algo como seu lugar, seu passado, etc. A significação atribuída pelo para-si ao
em-si bruto com o qual ele se depara é fundamental para a constituição da situação. Um
mesmo espaço geográfico pode dar origem a lugares diversos conforme seja o sentido que lhe
248
Ibid., p.600; ed. franc., p.533.
249
Cf. ibid., p.673; ed. franc., p.594.
250
Ibid., p.674; ed. franc., p.595.
101
é dado pelo para-si que o ocupa. Da mesma forma, um mesmo conjunto de fatos pretéritos
poderá ser enfeixado em diferentes passados, conforme varie o significado que os organiza no
Interessante notar que Sartre não diz o lugar, o passado, os arredores, o próximo e a
morte, mas sim meu lugar, meu passado, meus arredores, meu próximo e minha morte. Isso
não ocorre à toa. As estruturas da situação só passam a existir para mim quando eu as assumo
como sendo minhas. Ao dizer meu lugar e não o lugar, por exemplo, Sartre aponta para a
homem que, através de um banho de sentido, transforma um pedaço bruto do em-si em seu
lugar. Vale dizer, não há primeiro um mundo, para depois surgir a liberdade. O mundo só se
recebo de roldão uma série de elementos que passam a integrar minha realidade sem que, em
atividades de lazer e o mercado econômico local são apenas alguns desses elementos que não
escolhi e que terão influência sobre a minha vida. Não pude escolher nascer em outro lugar,
no sentido de que não pude escolher nascer no Rio de Janeiro ou em Pequim. Mas, por outro
lado, a Belo Horizonte em que nasci, não existe por si mesma. Eu sou livre para construí-la
como meu lugar: um lugar que poderá ser para mim culturalmente interessante ou entediante,
Poderá ser um lugar a ser abandonado ou a ser cultivado. Percebe-se então que Belo
Horizonte não é uma só, mas várias, a partir da livre escolha que faço do meu lugar.
vivi e fui tem algo de irrevogável. Sartre, em diversas passagens, equipara o passado ao ser-
102
em-si. Através do fluxo temporal minha liberdade viva se petrifica e passa a integrar meu
passado. As pegadas estão lá no caminho sem que possa haver volta. O que pode mudar é a
luz com que ilumino as pegadas e, portanto, a maneira como as percebo e as organizo em meu
projeto em direção ao futuro. Ou seja, também o passado está sujeito a ser nadificado pela
liberdade do para-si. Daí que o meu passado não é uma mera seqüência de fatos pretéritos,
mas essa seqüência organizada pelo sentido que eu lhe reservar. Assim, a mesma seqüência
esquecer ou lembrar, inovar ou repetir os fatos que a constituem. Sartre exemplifica com dois
tipos de para-si: o progressivo, que busca sempre superar o passado, e o regressivo, que, ao
fazem parte da minha situação. Elas constituem meus arredores. Por exemplo, tenho um
automóvel que me permite deixar a cidade nos fins-de-semana e estar no campo em pouco
mais de uma hora. Certo dia, o carro quebra em uma estrada de terra em más condições de
tornando mais rápida a viagem, torna-se um obstáculo: tenho que deter o percurso para
reparar a avaria. A resposta que darei à mudança de meus arredores é fruto de minha
carona ou a pé; posso chamar um mecânico e não continuar a viagem enquanto não for
resolvido o problema; posso ligar para a seguradora e retornar a Belo Horizonte; posso tentar
consertar eu mesmo o automóvel; etc. Sartre observa que “a adversidade dos arredores é
meus arredores não acarreta uma alteração já determinada em meu projeto. Certamente não
posso passar ao largo daquela alteração, mas a maneira como ela afetará meu projeto, cabe a
251
Cf. ibid., p.619; ed. franc., pp.548-549.
252
Ibid., p.621; ed. franc., p.550.
103
mim escolher. A mesma alteração dos arredores poderá ser por mim minimizada ou
maximizada; poderei persistir ou renunciar ao meu projeto inicial. Nas palavras de Sartre:
Não significa que seja sempre possível evitar a dificuldade, reparar o dano, mas
simplesmente que a própria impossibilidade de prosseguir em certa direção deve ser
livremente constituída; tal impossibilidade vem às coisas por nossa livre renúncia, em vez
de nossa renúncia ser provocada pela impossibilidade da conduta a cumprir.253
Ao viver em um mundo que não é habitado somente por mim, esbarro com meu
próximo, com o outro, de três formas diversas: através da significação dos utensílios, através
da minha significação e através do próprio outro como pólo originário de tais significações.
Apesar de estar eu mesmo, todo o tempo, criando e atribuindo significação ao mundo que me
rodeia, deparo-me com inúmeras significações que não foram criadas por mim254. Essas
encontro lá, independentes de mim. Pode-se citar, por exemplo, uma placa de entrada, outra
para cumprimentar. Tem-se uma verdadeira teia de significações que parece me enredar e
absorver. Mas, na verdade, essas significações só podem ser captadas pelo para-si em um ato
cristalizadas no mundo poderão ser interpretadas de formas diversas, algumas mais usuais,
outras menos. A significação já objetivada não escapa, portanto, de se tornar objeto de minha
Também o outro com o qual me encontro poderá ser captado sob perspectivas várias.
Segundo Sartre, “o para-si, ao surgir, não padece a existência do outro; está constrangido a
manifestá-la em forma de uma escolha. Pois é através de uma escolha que irá captar o outro
como outro-sujeito ou como outro-objeto”255. Por outro lado, o outro se constitui em limite
real à minha liberdade, na medida em que me toma como objeto a ser transcendido e
253
Ibid., pp.621-622; ed. franc., p.551.
254
Cf. ibid., p.627; ed. franc., p.555.
255
Ibid., p.638; ed. franc., p.565.
104
significado. Sou pelo outro fixado no ser brasileiro, alto, baixo, moderno, antiquado, etc.
Nesse momento, sou tomado não pelo nada que tenho que ser livremente, mas pelo ser
alguma coisa; sofro uma rotulação, uma coisificação. Assim, a liberdade do para-si além de se
limitar por si mesma, também é limitada pela liberdade de outro para-si. De que forma se dá
essa limitação? Sartre explica: “pelo fato da existência do outro, existo em uma situação que
tem um lado de fora, e que, por esse mesmo fato, possui uma dimensão de alienação que não
posso remover de forma alguma, do mesmo modo como não posso agir diretamente sobre
ela”256. Ressalve-se, todavia, que, se por um lado, o modo como o outro me percebe e a
significação que ele me atribui escapam ao meu controle, por outro, sou inteiramente livre
para conferir um peso maior ou menor a essa significação. O sentido que me é dado pelo
outro deverá ser, por sua vez, objeto de minha própria doação de sentido. Não posso escolher
de maneira determinante o modo como o outro me capta, mas tampouco o outro ao me captar
A morte é o último elemento da situação que Sartre se propõe analisar. Ele destaca o
caráter de limite da morte, comparando-a ao acorde final de uma melodia: antes dele, tem-se a
melodia, após, o silêncio. Daí, alguns destacaram a exterioridade da morte em relação à vida e
seu caráter inumano, enquanto outros, ao contrário, conectaram a morte à vida, humanizando-
Não nos deixemos seduzir, alerta Sartre, pela tentação de transformar o que,
inicialmente, afigura-se como um limite à minha liberdade em algo que integre o campo de
ação dessa mesma liberdade. A morte, em verdade, não nos coloca em contato com o
inumano nem com o absoluto, que nos escapam irremediavelmente. Tampouco pode ela, aos
moldes do acorde de resolução de uma melodia, dar sentido à vida. Ao contrário, a morte é
256
Ibid., p.644; ed. franc., p.570.
105
absurda e, ao invés de dar sentido à vida, ela sustenta a carência de sentido da vida. Sartre
conclui, então, contra Heidegger, que: “a morte, longe de ser minha possibilidade própria, é
um fato contingente que, enquanto tal, escapa-me por princípio e pertence originariamente à
minha facticidade”257.
É importante notar ainda que nossa finitude ontológica decorre não do fato da morte,
mas da estrutura do ser-para-si como ser que se anuncia pela livre projeção de seus próprios
fins. Ao me escolher, aqui e agora, limito-me a ser esta realidade-humana que sou, renuncio a
ser outras tantas que poderia ser; ao me fazer este e não outro, eu me faço finito258. Nas
palavras de Sartre:
a realidade-humana continuaria sendo finita, ainda que fosse imortal, porque se faz finita
ao escolher-se humana. Ser finito, com efeito, é escolher-se, ou seja, anunciar a si mesmo
aquilo que se é projetando-se rumo a um possível, com exclusão dos outros. Portanto, o
próprio ato de liberdade é assunção e criação da finitude.259
II.3.2. A contingência
Enquanto, o contingente é o que escapa à relação de causa e efeito e que, por conseqüência, é
necessidade, enquanto a ação humana nos revela sua contingência. Poderíamos, então, ser
Todavia, em Sartre, isso não funciona muito bem. Vejamos por quê.
257
Ibid., p.668; ed. franc., p.590.
258
A propósito, veja-se o que diz Phillipe Cabestan: “Assim, não somente eu não tenho a escolha da escolha,
mas, além disso, eu só tenho direito a uma única escolha: este é, para Sartre, o único verdadeiro limite ou
finitude de minha liberdade” (Une liberté infinie?. In: op. cit, p.40).
259
O ser e o nada, p.669; ed. franc., p.591.
106
quanto ao ser-para-si, ao homem. Isso porque há o que ele chama de “contingência universal
do ser”260. Trata-se do caráter absurdo e injustificável do fato de haver ser. Por que há o ser ao
invés do nada absoluto? Não há resposta. O ser é uma bolha em que a razão pode vicejar, mas
ele mesmo se encontra suspenso no absurdo. É esse absurdo do ser e da existência que se
excessivo do ser que Sartre sintetiza na expressão “de trop”262. Esse excesso é captado por
Apesar da contingência poder ser remetida tanto às coisas quanto ao homem, há uma
distinção fundamental a ser feita. O ser-em-si está imerso na contingência, ele é pura
como projeto, ele introduz a escolha onde antes só havia o absurdo. Na verdade, o ser-para-si
é simultaneamente contingência, visto que o seu ser livre lhe é dado sem que ele tenha podido
escolhê-lo, e superação da contingência, visto que, desde seu nascimento até sua morte, ele é
260
Cf. ibid., p.590; ed. franc., p.524.
261
Cf. pp.187 a 199; ed. franc. pp.180-192.
262
A tradução dessa expressão para o português é árdua e, em geral, insatisfatória. As edições brasileiras de “A
Náusea” e de “O Ser e o Nada” oferecem soluções diversas. Da primeira consta o termo “demais” (p.190),
enquanto da segunda, “supérfluo” (p.40).
263
“Demais, meu cadáver, meu sangue sobre aquelas pedras, entre aquelas plantas ao fundo daquele jardim
risonho. E a carne corroída teria sido demais na terra que a recebesse, e meus ossos, finalmente, limpos,
descarnados, asseados e imaculados, como dentes, também teriam sido demais: eu era demais para a eternidade”
(A náusea, p.190; ed. franc., p.183).
264
“O ser é – sem razão, sem causa e sem necessidade; a própria definição do ser nos apresenta sua contingência
originária” (O ser e o nada, p.755; ed. franc., p.667).
265
Ibid., p.590; ed. franc., p.524.
107
seja, de que ele não escolhe ser livre. Por outro lado, o homem somente se faz livre, enquanto
É porque a liberdade está condenada a ser livre, ou seja, não pode escolher-se como
liberdade, que existem coisas, ou seja, uma plenitude de contingência no âmago da qual
ela mesma é contingência; é pela assunção desta contingência e pelo seu transcender que
pode haver ao mesmo tempo uma escolha e uma organização de coisas em situação; e é a
contingência da liberdade e a contingência do em-si que se expressam em situação pela
imprevisibilidade e a adversidade dos arredores. Assim, sou absolutamente livre e
responsável por minha situação. Mas também jamais sou livre a não ser em situação.266
266
Ibid., pp.625-626; ed. franc., p.554.
108
autor de si mesmo e do mundo que o rodeia, ele é também responsável por ambos.
suscitar alguma polêmica, muito mais o é a afirmação de que o homem é responsável pelo
mundo. Visto que ao longo de minha existência me deparo com situações as mais
imprevisíveis, como pretender que eu seja por elas responsável? Em que sentido sou
responsável pelo mundo? Um acidente de trem, uma enchente ou uma guerra são,
aparentemente, fatos do mundo que vêm ao meu encontro sem que eu nada tenha podido fazer
para evitá-los. Mas, como vimos no subcapítulo anterior, a noção de situação construída por
mundo deve ser por mim mesmo livremente integrado em meu projeto original. Dizer que sou
responsável por uma guerra equivale a dizer, não que eu poderia ter feito com que ela não
surgisse na história, mas sim que posso adotar, diante dela, as mais diversas condutas:
267
Ibid., p.678; ed. franc., p.598.
268
Ibid.
269
As referências de Sartre ao suicídio são contraditórias. Ele o considera ora como uma escolha cuja
possibilidade permanente sustenta a responsabilidade do para-si, ora como um ato absurdo. Como, por exemplo,
nestes dois trechos, respectivamente: “Se sou mobilizado em uma guerra, esta guerra é minha guerra, é feita à
109
Segundo Sartre, “é insensato pensar em queixar-se, pois nada alheio determinou aquilo
que sentimos, vivemos ou somos. Por outro lado, tal responsabilidade absoluta não é
absoluta.
Portanto, não há desculpas. Tudo o que me acontece tem, em certa medida, minha
participação. Se me acontece deste modo e não de outro, é porque assim o escolhi. Até mesmo
meu nascimento, que não pude escolher, visto que não existia antes dele, torna-se fruto de
uma escolha a posteriori. Essa escolha consiste no significado que dou ao fato do meu
nascimento e na maneira como me posiciono em relação a ele. Trata-se da história que recebo
de outros, que aqui estavam antes de meu surgimento, e à qual sou chamado a dar
apreende “como um ser que não é fundamento de seu ser, mas que é coagido a determinar o
só não somos livres para deixarmos de ser livres, também só não somos responsáveis pela
própria responsabilidade, visto que ela não é fruto de uma escolha. Tal qual a liberdade, a
responsabilidade vem a nós de forma inexorável, como algo inerente ao nosso ser-para-si. Nas
minha imagem e eu a mereço. Mereço-a, primeiro, porque sempre poderia livrar-me dela pelo suicídio ou pela
deserção: esses possíveis últimos são os que devem estar sempre presentes a nós quando se trata de enfrentar
uma situação” (Ibid.); “O suicídio é uma absurdidade que faz minha vida soçobrar no absurdo” (Ibid, p.662; ed.
franc, p.584).
270
Ibid.
271
Ibid., p.681; ed. franc., p.601.
110
palavras de Sartre, “sou responsável por tudo, de fato, exceto por minha responsabilidade
Sartre anunciou a elaboração próxima de uma obra sobre a moral, que permitisse tratar as
várias questões suscitadas por sua ontologia fenomenológica. A obra prometida restou
inacabada e, somente em 1983, foi publicada sob o título de “Cadernos para uma Moral”274.
Apesar de Sartre não haver concluído a obra em que ele se debruçou diretamente sobre
ética sartriana. O caráter inconcluso da obra sobre a moral torna-se, inclusive, um elemento
Sartre desde o início. (...) A ausência de um tratado de ética não significa a ausência da Ética
– ou de seu correlato obrigatório, a política”276. Em apoio à sua tese, Silva destaca o fato de
que as críticas formuladas quando da publicação de “O Ser e o Nada” diziam respeito, em sua
maioria, às questões éticas e políticas suscitadas pela ontologia existencial. As críticas foram
as mais diversas e variaram conforme a origem ideológica de seus autores. Assim é que, os
272
Ibid., p.680; ed. franc., p.600.
273
Não distinguimos, neste trabalho, entre os termos “ética” e “moral”. Em “O Ser e o Nada”, Sartre utiliza,
quase exclusivamente, o termo “moral”. Privilegiamos o termo “ética”, entretanto, por sua predominância no
cenário atual, quando se trata de designar a filosofia da conduta, do agir humano em seu aspecto axiológico.
274
Sobre a dificuldade que envolve a elaboração de uma moral, Sartre observa: “Assim, toda Moral que não se
dá explicitamente como impossível hoje contribui para a mistificação e a alienação dos homens. O ‘problema’
moral nasce de que a Moral é para nós, ao mesmo tempo, inevitável e impossível. A ação deve dar-se normas
éticas nesse clima de insuperável impossibilidade” (Saint-Genet: ator e mártir, p.185).
275
A propósito, Juliette Simont observa, referindo-se a Sartre: “se sua moral nunca foi escrita, não será porque a
única moral concebível para um pensamento da liberdade era o próprio itinerário inventivo dessa liberdade, tal
qual ele se desenvolve efetivamente ao longo de toda a obra?” (Jean-Paul Sartre, p.135).
276
SILVA, F.L., Sartre e a Ética. In: ____et al. Homenagem à Les Temps Modernes, p.9.
111
por sua vez, tomavam a obra de Sartre como uma filosofia contemplativa que se rendia ao
culto da subjetividade e à manutenção do status quo burguês. Daí que, “na conferência ‘O
considerações principalmente pelo lado ético, ficando as elucidações ontológicas apenas como
pensamento sartriano de ponta a ponta: a montante, onde, sábia, a atitude ética procura
responder aos ensinamentos da ontologia, mas também a jusante, onde ela motiva uma busca
de lucidez ou de correção como tarefa possível para a liberdade”278. Há, então, uma
duplicidade do locus da ética na obra de Sartre, onde ela figura não só como um saber
subseqüente à ontologia, mas também como uma reflexão antecedente ao exercício autêntico
da liberdade. Isso se dá como indício da existência de dois pólos que sustentam a ética: o
saber e a prática.
Também Juliette Simont assevera que apesar de Sartre não ter produzido um sistema
ético completo, todo seu trabalho está intimamente ligado à problemática ética. Ela cita três
obras e escritos de Sartre dedicados diretamente à ética: os “Cadernos para uma moral”
Nenhum dos três textos foi publicado por Sartre em vida. “Cadernos para uma Moral”, como
já referido, foi postumamente publicado e os outros dois permanecem inéditos. O fato de não
terem sido publicados pelo próprio Sartre é um sinal, segundo Simont, de que nenhum deles
oferecia, a seus olhos, uma solução filosófica satisfatória à questão ética. Ela chama ainda a
atenção para a cronologia das três obras, que foram escritas imediatamente após as duas
grandes obras de Sartre. “Cadernos para uma Moral” sucede “O Ser e o Nada”, enquanto as
277
Ibid., p.10.
278
MOUILLIE, J.-M., Sartre: Conscience, ego e psyche, p.8.
112
isso, Simont conclui que as duas principais obras filosóficas de Sartre suscitaram em si
A ontologia não saberia formular por si mesma prescrições morais. Ela se ocupa
unicamente daquilo que é, e não é possível extrair imperativos de seus indicativos. Ela
deixa entrever, entretanto, o que será uma ética que assumirá suas responsabilidades em
face de uma realidade-humana em situação.280
Assim, a ontologia não é suficiente para gerar, nos moldes do par causa-efeito, uma
ética prescritiva. Mas, dizer que é insuficiente não equivale a dizer que é irrelevante. Ao
contrário, é somente a partir das reflexões ontológicas que será possível elaborar uma ética
adequada ao ser-para-si.
singularidade presentes em Sartre criam dificuldades na construção de uma ética que teria
autonomia moral têm, não só sua origem, mas também seu contrapeso, na razão. A razão é
responsável apenas por si mesmo, mas sim por todos os homens. Quando o homem se
escolhe, ele escolhe também todos os homens. Segundo Sartre, “escolher ser isto ou aquilo é
279
Cf. Sartrean Ethics. In: HOWELLS, C.(Ed.), The Cambridge Companion to Sartre, pp.178-179.
280
O ser e o nada, p.763; ed.franc., pp.673-674.
113
afirmar ao mesmo tempo o valor do que escolhemos, porque nunca podemos escolher o mal, o
que escolhemos é sempre o bem, e nada pode ser bom para nós sem que o seja para todos”281.
Será mesmo tão fácil assim? Discordo de Sartre, neste ponto, e penso que podemos sim
escolher o mal e que nem tudo o que é bom para nós é bom para todos. Arlette Elkaïm-Sartre,
no prefácio à edição francesa, ressalta o caráter redutor da obra, em vista de seu propósito
didático, bem como a presença de contradições que integravam o momento filosófico vivido
por Sartre naquela oportunidade. Isso, certamente, vale menos como censura do que como um
Resta, de todo modo, a idéia de que cada escolha individual carrega uma pretensão à
cristão e não comunista, supondo que a resignação na terra seja a melhor solução, eu estendo
essa solução a todos os trabalhadores. Se me caso e tenho filhos, engajo toda a humanidade na
universalização do ato individual a todo custo. Ora, posso muito bem filiar-me a um sindicato
determinado e não a outro simplesmente porque entendo que ele atende melhor a meus
interesses ou se aproxima mais de minhas convicções. Também posso ser monogâmico sem
pretender que este seja o melhor estilo de vida para todos os homens. Vale dizer, a
meu ver, nem é preciso que esteja. Ademais, a idéia da singularidade, diversas vezes
destacada por Sartre, aponta justamente para isto: o que é bom para mim só eu mesmo posso
determinar. Assim, o que é bom para o outro, só o outro poderá dizer e não eu, através da
minha escolha.
281
O existencialismo é um humanismo, p.7; ed. franc., p.32.
114
Franklin Leopoldo e Silva ressalta que o problema das relações entre a singularidade e
Buscando interpretar a afirmação de Sartre de que a minha escolha deve poder ser
estendida a todos os homens, podemos pensar que isso não quer dizer que os outros homens,
em suas respectivas situações, devessem escolher o que escolhi, mas sim que, todos eles
poderiam estar em minha situação e, portanto, em certo sentido, eu escolho por mim e por
todos eles. Eu, enquanto membro da humanidade, sou o único a me encontrar nesta situação
que é a minha e, por isso, ao fazer minha escolha, toda a humanidade se encontra nela
comprometida. Parece haver aqui algo da idéia de representação: escolho pela humanidade
porque sou o único humano vivenciando exatamente esta situação com a qual me defronto.
enquanto conduta típica do ser-para-si, tem inserção no campo ético. Estar de má-fé é mentir a
si mesmo. Mas será possível mentir a si mesmo? A mentira pressupõe, em geral, alguém que
esconde a verdade e alguém de quem a verdade é escondida. Duas pessoas distintas, portanto.
282
Sartre e a ética. In: :_____et al. Homenagem à Les Temps Modernes, p.15.
115
má-fé. Aquele que está de má-fé, além de saber a verdade que pretende esconder de si mesmo,
tem consciência (de) sua má-fé. Ocorre então uma oscilação permanente entre a boa-fé e o
cinismo, conforme seja, respectivamente, mais obscura ou mais evidente a consciência da má-
fé.
existência de uma mentira que se conta a si mesmo. Sartre aponta essa analogia para criticar a
noção freudiana e seus pressupostos. Ele rejeita a existência do inconsciente e não abre mão
de postular a unidade consciente do psíquico. Para Sartre, não é possível haver um saber
A má-fé é uma conduta de fuga do ser-para-si. Ele busca ocultar sua própria condição
de ser o que não é e de não ser o que é. Ao se valer da má-fé, o homem pretende coincidir
consigo mesmo, ou seja, ser simplesmente o que é. Mas, como se sabe, este modo de ser é o
que caracteriza o ser-em-si, do qual a consciência está ausente. Visto que o nada da
coquete, o garçom e o homossexual, nos exemplos oferecidos por Sartre283. Através da má-fé,
o homem encobre sua falta constitutiva e se rende à facticidade em prejuízo de sua liberdade.
Ele é atropelado pelo mundo e por seu próprio passado que seriam os responsáveis pelo ser
que pressupõe a possibilidade de ser o que se é. Mas, como visto, é característica estrutural do
para-si não ser o que é e ser o que não é, estando sempre afastado de si mesmo pelo seu nada
283
Cf. O ser e o nada, p.101-115; ed. franc., p.89-102.
116
Daí que o ideal de sinceridade é inalcançável, visto que a consciência é avessa à coincidência
consigo mesma.
descreve por uma dupla característica: “considerar os valores como dados transcendentes,
ontológica das coisas para sua simples constituição material”284. O homem afetado pelo
espírito de seriedade busca o ser às cegas, renegando o projeto livre que constitui sua busca.
assume a sua liberdade, o seu nada de ser, e enfrenta a angústia que o acomete. Segundo
Norman Greene, a autenticidade proposta por Sartre é uma virtude existencial que substitui o
vida. “Uma ética baseada em uma visão essencialista do homem tende a tomar a forma de
não pode admitir e não admite. Ao invés disso, ele enfatiza a obrigação de viver de um certo
modo”285. Viver autenticamente, ou ainda, assumir sua liberdade na criação dos valores
um valor ético, segundo Alfred Stern, Sartre se torna vulnerável a sua própria doutrina.
sartriana:
o valor absoluto que ele atribui à autenticidade e sinceridade não pode ser justificado por
sua própria filosofia; pois sabemos que a última não admite nenhum valor de validade
supra-individual, dado antes de uma escolha individual. (...) Segundo esta filosofia, a
aceitação do valor absoluto da autenticidade poderia até ser caracterizada como uma
284
Ibid., p.763; ed.franc., p.674.
285
GREENE, N., Jean-Paul Sartre – The existentialist ethic, p.48
117
de valores pelo próprio agente não seria já uma tomada de posição ética que acaba por fazer
da autenticidade aquilo que ela condena, ou seja, um valor prévio à ação? Em certa medida
sim, mas há aí uma distinção fundamental a ser feita. Se a autenticidade acaba por tomar o
papel de um valor da ética sartriana, ela não é um valor que determine ao sujeito,
heteronomamente, a conduta que dele se espera. Isso porque a autenticidade é um valor que
diz respeito ao quomodo, ao como da ação e não ao seu quid, ao seu conteúdo. Nesse sentido,
referindo-se à escolha do aluno que não sabe se vai à guerra ou se fica ao lado da mãe, Sartre
afirma: “Não há meio algum para julgar. O conteúdo é sempre concreto e por conseguinte
imprevisível; há sempre invenção. A única coisa que conta é saber se a invenção que se faz, se
pela situação histórica e social em que vive. Tem-se, então, duas facetas do engajamento, a
individual e a social, conforme ele se refira mais diretamente à história pessoal do sujeito ou à
autenticidade. Engajar-se, neste sentido, é ser autêntico, comprometer-se com seus próprios
aponta para a superação da alienação que nega a liberdade e paralisa a ação político-social.
Engajar-se é, então, sair da indiferença, exercer o papel de cidadão, ocupar-se dos assuntos da
polis.
286
Apud ibid., p.58.
287
O Existencialismo é um humanismo, p.20.
118
ser humano, de que não se pode escapar, é também, por outro lado, algo que se assume ou que
se oculta, algo que se enfrenta ou de que se foge. Daí que, em Sartre, a liberdade é
método criado por Sartre com o objetivo de analisar o ser humano singularmente considerado,
psicanálise tradicional, criada por Freud. Assim, como Freud, Sartre acredita que todo ato
humano é dotado de um significado a ser alcançado através da análise do próprio agente e não
de causas externas que atuariam sobre ele. Por outro lado, Sartre recusa a noção freudiana de
que possa escapar da consciência. Sartre observa que consciência não equivale a
288
CABESTAN, P; TOMES, A, Sartre, p.52.
289
“De fato, a ontologia deve parar nesse ponto: suas últimas descobertas constituem os princípios primordiais
da psicanálise” (O ser e o nada, p.704; ed. franc., p.621); “A psicanálise existencial é uma descrição moral, já
que nos oferece o sentido ético dos diversos projetos humanos (...)” (Ibid., p.763; ed. franc., p.674).
119
conhecimento e que, portanto, do fato de algo ser consciente não implica necessariamente que
seja conhecido.
permanece presa a uma concepção mecanicista do homem. Frente aos resultados a que chega
o homem é liberdade. Daí que, ao invés de estabelecer relações de causalidade na origem dos
que elas se propõem a explicar: a pessoa em sua singularidade. Após citar um trecho de um
lhe escapam – hereditariedade, educação, meio, constituição fisiológica –, aos quais Sartre se
refere como “os grandes ídolos explicativos de nossa época”291, as análises psicológicas
tradicionais são lacunares. Isso porque, elas se detêm em pontos onde ainda seria necessário
levar adiante a investigação, observa Sartre. É o que acontece com a ambição de Flaubert, que
290
Ibid., p.683; ed. franc., p.603.
291
Ibid., p.685; ed. franc., p.604.
120
Dizem-nos, por exemplo, que Flaubert tinha uma “ambição desmedida”, e toda a
descrição supracitada se apóia nesta ambição original. (...) E, todavia, sentimos
obscuramente que Flaubert não “recebeu” sua ambição. Esta é significante e, portanto,
livre. Nem a hereditariedade, nem a condição burguesa, nem a educação podem explicá-
la; muito menos ainda as considerações fisiológicas sobre o “temperamento nervoso” que
estiveram em moda por algum tempo: o nervo não é significante; é uma substância
coloidal que deve ser descrita em si mesma e não se transcende para se fazer conhecida a
si própria, através de outras realidades, aquilo que é. Não poderia, de modo algum,
portanto, fundamentar uma significação. Em certo sentido, a ambição de Flaubert é um
fato com toda sua contingência – e é verdade que é impossível avançar para-além do fato
-, mas em outro sentido, essa ambição se faz, e nossa insatisfação é garantia de que, para-
além desta ambição, poderíamos captar algo mais, algo como uma decisão radical, a qual,
sem deixar de ser contingente, consistiria no verdadeiro irredutível psíquico.292
Essa decisão radical a que se refere Sartre, como o verdadeiro irredutível psíquico,
corresponde ao projeto original, de que tratamos no item II.1.3. Eis um dos grandes objetivos
converter-se em em-si-para-si, em uma “consciência que fosse fundamento de seu próprio ser-
em-si pela pura consciência que tomasse de si mesma”, ou seja, em Deus294. Ora, pergunta-se
o próprio Sartre, mas como fica então a liberdade se já está a priori estabelecido que o homem
é necessariamente desejo de ser Deus? Ele mesmo responde: “se o sentido do desejo é, em
última análise, o projeto de ser Deus, o desejo jamais é constituído por tal sentido, mas, ao
contrário, representa sempre uma invenção particular de seus fins. (...) O desejo de ser sempre
se realiza como desejo de maneira de ser”295. Vale dizer, há algo no projeto original que é
próprio da realidade-humana que busca superar sua falta constitutiva e tornar-se fundamento
de si mesma. Por outro lado, o modo como isso irá se concretizar em cada pessoa
292
Ibid., pp.685-686; ed. franc., p.605-606.
293
“(...) recusando igualmente a teoria da argila maleável e a do feixe de tendências, iremos descobrir a pessoa
no projeto inicial que a constitui” (Ibid., p.689; ed. franc., p.608).
294
“Pode-se dizer, assim, que o que torna mais compreensível o projeto fundamental da realidade-humana é
afirmar que o homem é o ser que projeta ser Deus. (...) Ser homem é propender a ser Deus; ou, se preferirmos, o
homem é fundamentalmente desejo de ser Deus”. Ibid, p.693; ed. franc., p.612.
295
Ibid., pp.693-694; ed. franc., p.612.
121
individualmente considerada será único, sem igual, apontando para a singularidade e para a
liberdade do sujeito.
Como visto, Sartre critica veementemente a psicologia empírica, por seu viés
existencial seja “um método estritamente objetivo” que, na análise da pessoa humana, revele
sua atitude fundamental, “segundo leis de síntese específicas”296. Tem-se, assim, a busca de
relações fundamentais, não de sexualidade ou de vontade de poder, mas sim de ser, que se
êxito aferido a partir do “número de fatos que sua hipótese permita explicar e unificar, assim
note o quanto o modelo científico da explicação300 está ainda presente no próprio Sartre.
medida irá diferir radicalmente dela”301. Não nos deteremos aqui nessa confrontação
realizada por Sartre. É importante, todavia, apontar uma diferença radical entre a psicanálise
existencial e a psicanálise freudiana: enquanto essa surgiu como uma prática clínica a ser
296
Ibid., p.697; ed. franc., pp.615-616.
297
Ibid., p.695; ed. franc., p.613.
298
Ibid., pp.702-703; ed. franc., p.620.
299
Ibid., p.703; ed. franc., p.620.
300
Sobre a oposição entre explicação e compreensão ver o tópico I.2.2.
301
O ser e o nada, p.696; ed. franc., pp.614-615.
122
aquela surgiu como um método teórico de origem filosófica que foi aplicado por Sartre na
produção de biografias de escritores, a maioria deles já falecidos à época, como, por exemplo,
sujeito, em Sartre a interpretação vem para o primeiro plano e seu resultado – a revelação do
Sartre não deixa de atribuir alguns objetivos práticos à psicanálise existencial, dentre
objetivo real de sua busca, que é o ser como fusão sintética do em-si com o para-si;
familiarizá-lo com sua paixão”303. Assim, a psicanálise existencial seria um caminho ético;
um instrumento para que o homem renunciasse à atitude de má-fé e adotasse uma postura
autêntica, assumindo sua própria liberdade, seu nada de ser. Observe-se, entretanto, que
mesmo esses objetivos práticos surgem ligados exclusivamente a uma teoria analítica
sustentada pela moral sartriana e desconectados de uma prática analítica304. Afinal, Sartre
Esta psicanálise ainda não encontrou o seu Freud; quando muito, pode-se encontrar seus
prenúncios em certas biografias particularmente bem sucedidas. Esperamos poder tentar
alhures dois exemplos, acerca de Flaubert e de Dostoievski. Mas aqui pouco importa que
tal psicanálise exista ou não: para nós, o importante é que seja possível.305
estabelecidos, que pudessem guiar nossas ações. Os valores não podem ser deduzidos do ser;
302
Ibid., p.763; ed. franc., p.674.
303
Ibid., p.764; ed. franc., pp.674-675.
304
Posteriormente, houve a adesão de terapeutas profissionais à psicanálise existencial, seguida da tentativa de se
construir uma prática clínica adequada às grandes linhas do método criado por Sartre. A propósito da psicanálise
existencial sob uma perspectiva clínica, ver “Sartre et la psychanalyse”, de Betty Cannon.
305
Ibid., p.703; ed. franc., p.620.
123
eles são frutos da liberdade humana, que constitui seu único fundamento. Esse fato é fonte de
angústia permanente para o homem que percebe a injustificabilidade dos valores que ele
os valores, por se revelarem por essência a uma liberdade, não podem deixar de fazê-lo
sem deixar de ser ‘postos em questão’, já que a possibilidade de inverter a escala de
valores aparece, complementarmente, como minha possibilidade. A angústia ante os
valores é o reconhecimento de sua idealidade.306
Em vários momentos de sua obra, Sartre aponta para a freqüente presença da moral
nas questões humanas. Ao mesmo tempo, ele rejeita a assimilação desse aspecto moral
tábua de valores previamente estabelecida. A moral autêntica para Sartre é aquela que mostra
ao homem que cabe somente a ele fazer suas próprias escolhas morais e, ao fazê-las, criar-se
Quais são as saídas? Cada personagem não será nada mais que a escolha de uma saída e
não valerá mais que a saída escolhida. É desejável que a literatura se torne moral e
problemática, como esse novo teatro. Moral – não moralizadora: que ela mostre
simplesmente que o homem é também valor e que as questões que ele se põe são
sempre morais. Sobretudo que ela mostre nele o inventor. Em certo sentido, cada
situação é uma ratoeira, paredes para todo lado: eu me expressei mal, não há saídas a
escolher. Uma saída se inventa. E cada um, ao inventar sua própria saída, inventa a si
mesmo. O homem é para ser inventado a cada dia.307
Há uma aproximação entre a moral e a arte no que tange à ausência de valores prévios
que possam nos dar garantias de correção. Não se trata, entretanto, adverte Sartre, de propor
uma moral estética, de simplesmente substituir o bem pelo belo, ou de identificar um ao outro.
Ele explica: “O que há de comum entre a arte e a moral é que, nos dois casos, temos criação e
invenção. Não podemos decidir a priori sobre o que há a fazer”308. E isso não implica uma
gratuidade do ato moral, visto que ele deverá ser sempre remetido à situação concreta e
306
O ser e o nada, p.83; ed. franc., p.73.
307
Qu’est-ce que la littérature?, p.290 (negrito nosso).
308
O existencialismo é um humanismo, p.18; ed. franc., p.66.
124
da ação que Kant postula como sendo o cerne do imperativo categórico, também figura em
diferença é que em Kant temos a razão, presente em todo ser racional, como o lastro que
dos valores, o que nos faz lembrar Nietzsche e sua crítica dos preconceitos morais em
“Genealogia da Moral”, quando ele recusa a transcendência dos valores e destaca que eles são
característica que permite igualar todos os homens e fundamentar uma ação universalizável. É
de uma uniformização que se trata. Já Sartre, elege a liberdade como o elemento que, se por
um lado, iguala todos os homens, visto que todos eles são livres, por isto mesmo, distingue-os
radicalmente, como seres que se fazem singulares a partir da sua própria liberdade. Assim, a
razão kantiana é o instrumento para se encontrar a ação devida, ordenada pela lei prática. Já a
liberdade sartriana não tem serventia para estabelecer a ação devida, visto que a ação moral
será aquela que resulte da criação de valores pelo sujeito e da assunção de sua liberdade. Essa
postulação pode soar temerosa, visto que por demais centrada no próprio agente, sem
considerar o outro, aquele a quem a ação se dirige ou em quem ela repercute. Sartre tenta
própria liberdade, o homem que se reconhece como ser engajado num mundo, como ser-para-
309
Segundo Sartre, “a moral kantiana é o primeiro grande sistema ético que substitui o ser pelo fazer como valor
supremo da ação” (O ser e o nada, p.535; ed. franc., p.475).
310
Sobre essa aproximação da abordagem dos valores em Sartre e em Nietzsche, ver Jean-François Louette,
Sartre contra Nietzsche, Grenoble, PUG, 1996, referido por CABESTAN, Philippe, Une liberté infinie?, in:
BARBARAS, R. (coord.), Sartre. Désir et Liberté, p.37. Sobre a presença de Nietzsche na obra de Sartre, ver
Bernard-Henri Lévy, O século de Sartre, pp.147-153.
125
outro, quer também a liberdade dos outros. A liberdade ainda que absoluta não é onipotente,
considerando que em “O Ser e o Nada”, Sartre aponta antes para a tensão e para o conflito das
relações do ser-para-outro?
Propor uma ética da invenção significa, enfim, colocar a liberdade como origem e
objetivo de toda ação. A liberdade não é só pressuposto da ação moral, mas é também sua
finalidade. Ao juízo ético proposto por Sartre, importa menos se o resultado concreto foi “A”
ou “B”, do que avaliar se houve má-fé ou autenticidade na prática da ação. A ação autêntica,
tendo sido o ato fruto de sua escolha consciente e livremente assumida; do outro lado, um
outro homem que doou sua fortuna aos pobres por acreditar que a generosidade é um valor
divino que compele a humanidade. Pode-se dizer que o primeiro homem agiu autenticamente,
valor transcendente a causa de seu ato. Rejeitar uma ética substancial em nome da liberdade
de cada homem de inventar sua própria ética faz-nos deparar com casos difíceis como esse.
Uma saída, no exemplo citado, seria recorrer à idéia de que a autenticidade pressupõe o
311
A supremacia conferida por Sartre à liberdade sobre todos os demais valores pode ser ilustrada com o
seguinte trecho de Saint Genet: ator e mártir: “E depois, principalmente, se devemos fazer o Mal para atingir
essa liberdade singular, então, novamente, o Mal passa para a posição de meio e é a liberdade que se torna fim. É
ela, é a singularidade, é a solidão que visamos obter, não o Mal por si mesmo” (p.162). Em sua análise da vida
de Jean Genet, Sartre chega a destacar a atração do Mal e a associá-lo à singularidade: “Fazendo o Bem, perco-
me no Ser, abandono a minha singularidade, torno-me sujeito universal. Em relação ao Bem, os homens de boa
vontade são intercambiáveis. (...) Pelo contrário, o Mal precisa de mim para existir. Ele é todo fraqueza. Ou
melhor: ele só é vertiginoso pelo seu nada. (...) E no Mal, que me faz horror, há um motivo para atrair-me: ele
vem de mim mesmo e cessará quando eu quiser; assim, não posso nele me perder. Muito pelo contrário, nele eu
me encontro, nunca estou mais presente a mim mesmo do que nessa consciência acerba de querer o que não
quero” (pp.160-161).
126
outro, o que estaria ausente no assassinato. Resta ainda saber se é desejável e socialmente
viável pretender estatuir uma ética fundada exclusivamente na criação e invenção de cada um,
rejeitando a existência de normas éticas substanciais. Penso que não. Certamente, a defesa
enfática de Sartre por uma ética da invenção tem um papel muito importante, ao chamar a
atenção para a autonomia de cada homem na direção de sua própria conduta - o que, de resto,
já havia feito Kant com sua “revolução copernicana”. Mas, se cada homem, em sua
também cria os seus. Nem sempre uns coincidem com os outros. Pretender privilegiar
previamente os valores individuais em detrimento dos valores sociais é, a meu ver, pouco
prudente.
127
CAPÍTULO III
em 1945, apenas dois anos após a publicação de “O Ser e o Nada”. São vários os pontos de
coincidência temática entre as duas obras, como por exemplo: o homem, o corpo, o outro, a
Freedom”, destaca que Sartre é o principal interlocutor de Merleau-Ponty e que há entre eles
Sartre opera com duas diferentes noções de liberdade, afirma Jon Stewart, sendo que
apenas uma delas é visada pelas críticas de Merleau-Ponty. Há, primeiramente, o sentido
fundamental de liberdade enquanto consciência, que nos distingue das coisas e que é o nosso
312
Maurice Merleau-Ponty nasceu na França em 14 de março de 1908. Foi contemporâneo de Sartre na Escola
Normal Superior em Paris. Tal como Sartre, Merleau-Ponty foi fortemente influenciado pela fenomenologia de
Husserl e pela ontologia de Heidegger. Ele iniciou sua carreira acadêmica como professor no Liceu de Beauvais.
Merleau-Ponty retorna a Paris em 1935 e passa a integrar a Escola Normal Superior. Em 1945, ele se une a
Sartre na fundação da revista Les Temps Modernes. A ruptura entre eles, ocorrida em 1952, tem como motivação
alguns conflitos na condução da revista que surgem como reflexos de divergências políticas. Merleau-Ponty
faleceu, precocemente, em virtude de um ataque do coração, em 03 de maio de 1961. Sobre a relação entre os
dois filósofos franceses, ver o artigo de Sartre intitulado “Merleau-Ponty”, publicado originalmente na revista
Les Temps Modernes, número especial, outubro de 1961, e ver também parte da correspondência entre eles, em
tradução de Renato Janine Ribeiro, publicada como anexo da obra “Experiências do Pensamento”, de Marilena
Chauí.
313
Stewart, J., “Merleau-Ponty’s Criticism of Sartre’s Theory of Freedom”. In: “The debate between Sartre and
Merleau-Ponty”, p.199.
128
modo de ser-no-mundo. Essa noção poderia ser chamada de liberdade ontológica ou liberdade
categórica. Stewart concorda com Merleau-Ponty em que, nesse registro ontológico, a noção
mesma de liberdade estaria ameaçada de tornar-se inútil e vazia. Todavia, aponta Stewart, há
ainda uma noção mais comedida de liberdade em Sartre, que se pode denominar de liberdade
em situação ou liberdade contingente. Esse seria o tipo de liberdade que temos quando
reconhece ambas as noções de liberdade, mas suas críticas são endereçadas tão somente à
Parece-nos equivocada uma tal divisão do conceito de liberdade em Sartre, visto que
ele não distingue entre liberdade ontológica e liberdade situada. Ao contrário, o esforço de
Sartre é mostrar que a liberdade ontológica não é uma liberdade abstrata, mas sim concreta,
para Sartre, a liberdade não admite atenuações, ela surge sempre em sua inteireza. A noção de
situação não vem retirar sua força, restringir seu alcance, mas sim, apontar que a imbricação
o percurso da teoria da liberdade construída por Sartre, da qual destaca os seguintes pontos: 1-
a rejeição de que o homem possa ser livre em algumas ações e determinado em outras; 2- a
mesmo, da idéia de motivação; 4- a afirmação de que a liberdade não pode ser limitada por
129
nada, que não ela mesma. Em seguida, Merleau-Ponty assevera que “esta primeira reflexão
sobre a liberdade teria como resultado torná-la impossível”314. Segundo ele, ao se atribuir, de
modo apriorístico, a liberdade a toda e qualquer ação, a própria idéia de ação livre deixaria de
De fato, para Sartre, toda ação é livre. A liberdade figura como elemento necessário do
conceito de ação. Isso não faz desaparecer a idéia de ação, mas apenas torna uma redundância
a expressão “ação livre” e uma contradição em termos a expressão “ação não-livre”, ou “ação
determinada”. Assim como, por exemplo, é redundante falar em sol luminoso e contraditório
falar em sol escuro, visto que no próprio conceito de sol encontra-se o atributo de emitir luz.
conceito de liberdade faça sentido, deve existir simultaneamente o seu oposto, isto é, não-
liberdade ou limitação”315. Ou seja, a liberdade seria uma espécie de conceito polar que deve
poder ser remetido ao seu conceito oposto, que poderíamos denominar não-liberdade ou
cada um dos elementos só existe e faz sentido se puder ser oposto ao outro.
A não-liberdade continua presente na filosofia sartriana. O que ocorre simplesmente é que ela
é banida da esfera humana e totalmente localizada no ser das coisas, no ser-em-si. Aliás, a
si do ser-em-si.
da idéia oposta, a ausência de liberdade. Mas essa oposição não deve se dar necessariamente
314
MERLEAU-PONTY, M., A Fenomenologia da percepção, p.585.
315
Op.cit., pp.200-201.
130
no interior do próprio conceito de ação. Desde que a liberdade é integrada como elemento
necessário do conceito de ação, como propôs Sartre, já não se pode falar em ação não-livre.
Nem por isso as idéias de ação e de liberdade desaparecem. Simplesmente, onde houver ação,
haverá liberdade. Se não há liberdade, tampouco haverá ação. A ação livre não deixa de
existir. O que ocorre é que toda e qualquer ação é livre e, por isso, como já dito, a expressão
nosso estado de natureza, como a “natureza da consciência que consiste em não ter
natureza”316. Segundo ele, se a liberdade não depender de uma conquista, se ela não for fruto
de um engajamento, enfim, se ela for um dado a priori, como pretende Sartre, haverá um
esvaziamento do conceito de liberdade. Para que o homem seja livre é necessário que ele
possa não ser livre ou ser menos livre. Há que se poder distinguir a liberdade do escravo que
certos trechos, acaba por se aproximar do próprio conceito criticado. Ainda que
implicitamente, mas com freqüência, ele se refere à liberdade como um atributo do homem,
como uma marca antropológica, enfim, justamente como a aquisição contra a qual ele se opôs.
Por exemplo, quando utiliza as expressões “minha liberdade”, “tua liberdade” e “nossa
liberdade”317, a que se refere Merleau-Ponty senão à liberdade presente em todo ser humano?
anulação da liberdade318, como faz Merleau-Ponty, senão reconhecer que a liberdade está
316
Op.cit., p.583.
317
Ibid., p.612.
318
Cf. ibid., pp.698-699.
131
no que concerne à questão da graduação da liberdade. O núcleo duro de sua crítica dirige-se
justamente ao caráter absoluto que Sartre atribui à liberdade. Que a liberdade se faz sempre
presente no homem, parece ser uma conclusão do texto merleau-pontyano. Porém, ela está em
permanente interação com o mundo, que ela modifica e pelo qual ela é modificada. Nessa
A liberdade deve ter um campo, afirma Merleau-Ponty, ou seja, ela se depara sempre
idéia de uma liberdade condicionada. Pensar que a liberdade ou é total ou é nula, como faz
e, portanto, totalmente submetidos às suas leis, inclusive a da causalidade. Por outro lado,
segundo a análise reflexiva, somos pura consciência em oposição ao mundo material, cujas
determinações não nos alcançam. Ora, observa Merleau-Ponty, não somos nem só corpo, nem
consciência nua, mas uma conjunção inextricável de corpo e consciência. Daí que nossa
liberdade que cria os obstáculos à liberdade, afirma Merleau-Ponty, mas ela não o faz de
319
Ibid., p.587.
132
forma absoluta. A liberdade não detém o poder de erigir e levantar obstáculos ex nihilo, ela
atua sempre em conjunção com meu corpo, com meu passado, com meu ambiente, enfim,
inferioridade continuamente retomado durante 20 anos, pode-se afirmar ser pouco provável
que eu mude, assevera Merleau-Ponty. É certo que a liberdade está sempre aí, e com ela, a
poderia fazer quanto a ela qualquer juízo de probabilidade. Se a liberdade fosse absoluta, a
Merleau-Ponty rejeita a total cisão promovida por Sartre entre o ser-para-si e o ser-em-
si, entre a consciência e os fenômenos que a circundam. Enquanto Sartre afirma que a
liberdade só pode ser limitada por si mesma, Merleau-Ponty insiste em que a liberdade é
também limitada e condicionada pelo mundo. A diferença entre eles não é que um proponha
uma liberdade abstrata e o outro uma liberdade concreta. Ambos buscam descrever a
para Sartre, a liberdade, mesmo considerada em sua concretude, não deixa de ser absoluta,
mundo.
Merleau-Ponty é apontada por Jon Stewart, que afirma: “Em termos gerais, não fica de modo
de situação de Sartre”320. De fato, os dois conceitos são muito próximos, visto que ambos
apontam para o caráter concreto da liberdade. A diferença está nas conseqüências retiradas de
cada um deles, o que acaba por distinguir os próprios conceitos. A facticidade sartriana
320
Op.cit., p.208.
133
pontyano, por sua vez, envolve a liberdade e possui a aptidão de influenciar, condicionar,
enfim, de limitar a liberdade. Ou seja, falar em liberdade e seu campo equivale a falar em
liberdade concreta e, portanto, limitada, ao passo que falar em liberdade situada equivale a
falar em liberdade concreta e, ainda assim, absoluta. Ressalve-se que também Merleau-Ponty
acontecimento vem de mim, ou é imposto pelo exterior, não se aplica às nossas relações com
o mundo e com o nosso passado”321. O que há é uma interação entre a liberdade e a situação
que a rodeia. “Nossa liberdade não destrói nossa situação, mas se engrena a ela: nossa
situação, enquanto vivemos, é aberta, o que implica, ao mesmo tempo, que ela reclama modos
de resolução privilegiados e que por si mesma ela é impotente para causar algum”322. Essa
oposição, mas sim a integração entre liberdade e facticidade, no seio da situação. A liberdade
justamente contra o caráter absoluto atribuído por Sartre à liberdade e reivindicar ao mundo
sua cota de participação na produção da ação humana. Mas trata-se, com efeito, de uma falsa
oposição. Como bem sabe Merleau-Ponty, não há liberdade e mundo, como dois elementos
estanques, mas liberdade no mundo, como dois elementos indissociáveis de uma relação. Uma
ação é sempre originada no interior de uma situação, vale dizer, da interação entre o mundo e
a liberdade. Pensar que a ação possa ser reduzida à causalidade, como propõem os
deterministas, é uma proposição possível do ponto de vista teórico, mas imprestável do ponto
de vista prático, visto ser impossível viver sem escolher entre agir ou não agir, entre agir deste
321
Op.cit., p.593.
322
Ibid.
134
modo ou de outro. Por outro lado, propor uma liberdade que fosse infensa à resistência do
mundo implica destruir o próprio conceito de ação, visto que se bastasse imaginar algo para
realizá-lo, como aponta Sartre, cair-se-ia em “um mundo semelhante ao do sonho, em que o
É certo que o sentido e o valor vêm ao mundo sempre através do homem, porém, esse
homem pelo qual surge o sentido, não é um homem fora do mundo, mas já-no-mundo. A
afirma que “precisamos retomar a análise da Sinn-Gebung e mostrar como ela pode ser ao
mesmo tempo centrífuga e centrípeta, já que está estabelecido que não existe liberdade sem
campo”324. Onde se vê uma via de mão única, ele propõe que se veja uma via de mão dupla.
Ou seja, a doação de sentido é um processo que parte tanto do homem em direção ao mundo,
retirar a tônica do indivíduo e em atribuir aos dois termos igual importância. Nessa direção,
ele afirma: “Isso quer dizer que damos seu sentido à história, mas não sem que ela o proponha
a nós. A Sinn-gebung não é apenas centrífuga e é por isso que o sujeito da história não é o
indivíduo. Há troca entre a existência generalizada e a existência individual, cada uma recebe
e dá”325. Merleau-Ponty pretende impor limites à liberdade absoluta proposta por Sartre. Entre
humanidade e o indivíduo uma sua mera engrenagem, e uma subjetividade absoluta, em que a
atuação recíproca.
323
O ser e o nada, p.594.
324
Op.cit., p.590.
325
Ibid., p.603.
135
a liberdade, ele afirma: “Minha liberdade efetiva não está aquém de meu ser, mas diante de
mim, nas coisas”.326 Ou seja, a liberdade não está aquém, mas além de meu ser; ela está não
dentro, mas fora do meu ser, nas coisas. Nesse ponto, não concordamos com ele. Ora, minha
liberdade não está nem aquém, nem além do meu ser, ela está no meu próprio ser, a liberdade
é o meu ser, conforme disse Sartre. É difícil aceitar a afirmação de Merleau-Ponty de que
minha liberdade se encontra nas coisas. Diferente seria afirmar que minha liberdade se revela
através das coisas, no mundo. Ou ainda, que minha liberdade não está nem em mim, nem nas
coisas, mas na interação entre mim e as coisas. Esta última localização da liberdade parece,
inclusive, mais condizente com o conjunto das idéias de Merleau-Ponty sobre a liberdade.
causais, ele atua no mundo e sofre a atuação deste. Merleau-Ponty recusa que nossa liberdade
seja ou total ou nula. Para ele, por nos situarmos no ser, somos, em certa medida,
determinados por sua teia de relações; por outro lado, visto sermos consciências constituintes
de sentido, somos livres. Observa ele: “Estamos misturados ao mundo e aos outros em uma
326
Ibid., p.607.
327
Ibid., p.608.
328
Ibid., p.610.
136
para tentar mostrar que a liberdade ainda que situada, ainda que imbricada com a facticidade,
livre. Ele concorda com várias das idéias de Sartre, mas se recusa a acompanhá-lo na
liberdade pode desviar minha vida de sua direção espontânea, mas por uma série de
deslizamentos, primeiramente esposando-a, e não por alguma criação absoluta”329. Ora, uma
direção espontânea da minha vida é algo que, para Sartre, simplesmente não existe. O
princípio físico da inércia não se aplica à vida humana. Se minha vida tem uma direção x ou
y, é sempre por obra da minha liberdade. Não há, primeiro, uma direção espontânea ou natural
Todas as explicações de minha conduta por meu passado, meu temperamento, meu
ambiente são, portanto, verdadeiras, sob a condição de que os consideremos não como
contribuições separáveis, mas como momentos de meu ser total do qual é-me permitido
explicar o sentido em diferentes direções, sem que alguma vez se possa dizer se sou eu
quem lhes dá seu sentido ou se o recebo deles.330
primeiro é que, se meu passado, meu temperamento e meu ambiente podem situar minha
conduta, eles são insuficientes para explicá-la. Isso porque sem a atuação da liberdade, eles
não passam de meros elementos inertes que me cercam e que são incapazes de originar, por si
sós, qualquer conduta. O segundo ponto é que o sentido que interessa na hermenêutica da
conduta, segundo Sartre, é algo que parte sempre do sujeito e não em direção a ele. Sabe-se
329
Ibid., p.611.
330
Ibid.
137
que o sentido vem ao mundo pelo homem. Ou seja, o homem não pode receber por inércia o
sentido das coisas, é sempre ele a dar a elas um sentido. É verdade, que na interação entre os
homens, pode-se detectar um intercâmbio de sentidos entre eles. Estar no mundo é estar
imerso em um mar de sentidos que surgiram à minha revelia. Todavia, para que se possa
recebê-los é necessário sempre e uma vez mais, dar-lhes sentido331. Ou seja, mesmo os
sentidos criados por outros e com os quais eu me deparo, devem ser por mim re-significados
para que possam operar em minha vida. Não há algo como uma recepção passiva de sentidos,
diria Sartre. Até quando opto por aderir a um certo sentido, não deixo de fazer uma opção,
uma escolha que me põe na origem do sentido que sustenta a minha ação.
331
A esse respeito, ver a descrição do meu próximo como uma das grandes estruturas da facticidade, no
subcapítulo “Liberdade e facticidade”, tópico II.3.1.
138
Em 1979, Mészáros332 publicou o livro “The Work of Sartre: Search for Freedom”,
traduzido para o português, em 1991, com o título “A Obra de Sartre: Busca da Liberdade”333.
Trata-se de uma rica análise da obra do jovem Sartre, abarcando o período que vai dos
primeiros textos de psicologia fenomenológica até “O Ser e o Nada”. Chama a atenção o fato
de que Mészáros, vindo da tradição marxista, tenha tomado como objeto principal de análise
não a “Crítica da Razão Dialética”, mas sim as obras em que Sartre ainda não demonstrava
grande interesse pelo pensamento de Marx. Também é notável o rigor intelectual de Mészáros
que consegue se manter distante tanto da oposição sectarista quanto da apologia acrítica. De
suas palavras emergem, de um lado, a admiração pelo grande pensador e escritor que foi
conjunto. Ele procede a uma verdadeira análise do discurso sartriano, evidenciando seu
modus operandi. Há uma imbricação entre estilo e conteúdo na obra de Sartre, segundo
Mészáros. Para comprovar essa tese, ele disseca o texto de Sartre, em uma leitura atenta que
332
István Mészáros nasceu na Hungria em 1930. Foi discípulo de Georg Luckács, com quem trabalhou no
Instituto de Estética da Universidade de Budapeste. Mészáros é considerado um dos mais importantes filósofos
marxistas da atualidade. A revista “Cult” dedicou-lhe a capa da edição 119, de novembro de 2007, que traz uma
entrevista do filósofo concedida a Ruy Braga e Álvaro Bianchi.
333
A tradução para o português do livro de Mészáros, escrito em inglês, tem como inconveniente acarretar uma
tradução da tradução de trechos da obra de Sartre. Isso porque Mészáros utilizou a versão em inglês de “O Ser e
o Nada”, cujos trechos por ele citados, ao serem traduzidos para o português, ficaram ainda mais distantes do
original em francês.
139
constituíram um dos principais pólos de oposição às idéias sartrianas. Em vista disso, parece-
Sartre.
de cada detalhe em relação à totalidade complexa a que todos eles pertencem”334. Para Sartre,
tanto a filosofia quanto o teatro, cada um a seu modo, ocupam-se do homem. Segundo
Mészáros,
Será mesmo assim? Penso que tanto a filosofia quanto o teatro são modalidades
discursivas, tipos de linguagem criados pelo homem como instrumentos de mediação com a
natureza representacional do teatro, ele toma o termo discurso em sua acepção mais restrita de
“exposição metódica sobre certo assunto”336 e não na acepção mais ampla que abarca
De fato, a filosofia formula, de forma explícita, várias questões que, no teatro, figuram apenas
334
MÉSZÁROS, I., A obra de Sartre: em busca da liberdade, p.20.
335
Ibid., pp.55-56.
336
DISCURSO. In: AURÉLIO, Novo Dicionário da Língua Portuguesa, p.596.
337
Ibid., p.596. Função poética ou poiética no sentido de criadora.
140
de modo implícito. Por outro lado, se, entre a realidade sensível e as determinações mais
gerais do ser, o teatro se constitui numa mediação artística, a filosofia se constitui numa
A produção de Sartre é extensa: artigos, peças teatrais, romances, biografias, contos, obras
O apreço pela síntese é outra forte característica da obra sartriana referida por
Mészáros, que a atribui à busca de Sartre pelas raízes do ser, a um projeto de totalização.
Naturalmente que a análise não está ausente da obra de Sartre, mas ela “assume apenas uma
posição subordinada, como etapa preliminar bem marcada da síntese que virá”339.
está em primeiro plano de praticamente tudo quanto Sartre escreve (...). Ele se recusa
Mészáros atribui isso à subjetividade compulsiva de Sartre. Outra explicação pode ser a forma
como Sartre concebe a relação entre singularidade e universalidade, entre existência e saber.
existência. Assim, qualquer saber que Sartre viesse a produzir, deveria partir de sua própria
experiência existencial. Note-se que o próprio Mészáros reconhece que uma subjetividade
mais intensa não acarreta necessariamente uma menor objetividade na abordagem de uma
338
MÉSZÁROS, I, op.cit., p.22.
339
Ibid., p.39.
340
Ibid., p.43.
141
filosófico é destacada por Mészáros. Tem-se “um conjunto coerente de conceitos intimamente
interligados, cada um deles com seu próprio ‘campo de irradiação’ e pontos de conexão com
todos os outros”341. A exuberância do discurso sartriano, que para muitos pode parecer mero
Mészáros:
Mészáros afirma ter simpatia pela teoria da má-fé de Sartre, na medida em que ela
efetua uma crítica da consciência reificada resultante da adoção das teorias psicológicas
deterministas, incluído aí o inconsciente da psicanálise. Por outro lado, ele aponta a ausência
341
Ibid., p.60.
342
Ibid., p.61.
343
Ibid., p.125.
142
sua contaminação pelo dualismo metodológico que exclui qualquer mediação entre a
intocável, imune a qualquer interferência vinda do exterior. A “coisa no mundo”, por sua vez,
complexo organizado de utensílios, tal como aparece em “Esboço de uma Teoria das
Emoções”. Mészáros insurge-se contra essa concepção e afirma que, na verdade, ela reflete o
mundo como uma totalidade não estruturada, como uma série infinita de utensílios que nada
tem de organizada. Daí resultaria uma impossibilidade da ação social eficaz. Isso porque,
segundo Mészáros,
a mudança radical por meio da ação só é concebível se o mundo for uma totalidade
estruturada na qual alguns elementos constitutivos possuem uma função estratégica
maior do que outros; e a importância estratégica de qualquer fator específico (“utensílio”,
“instituição”, “recurso”) está na proporção direta de sua capacidade de controlar a
estrutura como um todo.345
organização social, do outro lado, o indivíduo isolado tampouco possibilitaria uma tal
o sujeito como um indivíduo isolado, ele está fadado a permanecer prisioneiro da série
infinita. Pois a realidade social só é uma totalidade estruturada em relação a um sujeito
que é, ele mesmo, um todo complexo: o indivíduo social integrado (por meio de sua
classe ou, numa sociedade sem classes, de algum outro modo) na comunidade a que
pertence.346
344
Ibid, p.126.
345
Ibid., p.136.
346
Ibid., p.137.
143
se no dilema entre o mundo determinista e o mundo mágico, critica Mészáros. Para Sartre, a
magia seria não a prevalência circunstancial da emoção sobre a razão, mas sim uma estrutura
existencial do mundo. O caráter mágico que impregna o mundo seria fruto de uma síntese
como por exemplo: para-si, em-si, vertigem da possibilidade, vôo absoluto, espontaneidade
monstruosa. Isso seria uma decorrência do vácuo social em que Sartre articula sua rebelião
Uma das objeções mais freqüentes de Mészáros à filosofia de “O Ser e o Nada” é a sua
reflexão promovida por Sartre em seu ensaio de ontologia fenomenológica não se ocupa da
esfera social ou do homem enquanto ser social. Naturalmente que isso não invalida as idéias
ali apresentadas, mas apenas delineia seus limites. De resto, toda filosofia tem seus limites,
sejam eles mais ou menos pronunciados. O homem é um ser de extrema complexidade que
pode ser estudado sob aspectos os mais variados. Ainda que esteja presente em Sartre a
pretensão de efetuar uma reflexão sobre o todo do ser do homem, esse todo não deixa de estar
referido aos pressupostos teóricos de onde parte o autor. Pressupostos esses que, no caso do
347
Ibid., p.138.
348
Cf. ibid., pp.165-166.
349
Ibid., p.236.
144
Sartre de “O Ser e o Nada”, não conferem à esfera social um papel de destaque na análise do
ser humano.
Esse “si individual” não é nada mais do que um construto filosófico unilateral. O si real,
por contraste, é a unidade dialética entre o indivíduo e as determinações sociais, donde
ambos, individual e não individual; por isso, não pode ter concebivelmente uma mera
“perfeição individual”.350
problemática. Ora, o “si real” que Mészáros define como sendo a unidade dialética entre o
Mészáros chama de “si real” esteja mais próximo da realidade ou seja mais adequado ao
quadro teórico do próprio Mészáros, isso não tem o condão de retirar-lhe seu caráter de
Mészáros reconhece que a pouca atenção dedicada à esfera social constitui não só um ponto
frágil da obra de Sartre, mas também, paradoxalmente, uma condição essencial para a
produção de vários dos insights nela presentes. Concordo com ele, visto que é impossível
real. Quanto maior o número de aspectos abarcados, mais rica será a teoria, porém mais difícil
350
Ibid., p.239. Este trecho da versão em português está truncado. Infelizmente, não foi possível obter a versão
original em inglês para tentar sanar o problema.
145
Ao iniciar sua análise de “O Ser e o Nada”, Mészáros observa tratar-se de uma síntese
compreensão da obra são fruto não de sua complexidade, mas sim de seu tom subjetivo e
abstrato. A sociedade é jogada para segundo plano e só aparece como ilustração do mundo
Husserl, que pretendeu reduzir o ser a seus significados, vale dizer, a conhecimento, Sartre
que o ser é ‘o irredutível evidente por si mesmo’ e, assim, qualquer tentativa de reduzi-lo a
alguma outra coisa, e assim tentar ir além dele, é contraditória em si mesma”352. O objetivo a
homem com sua paixão. Trata-se de tarefa eminentemente prática que envolve tanto a ética
Não há conhecimento puro para Sartre, mas somente conhecimento engajado, que
psicológico pode ser assimilado a uma conduta de fuga frente à angústia gerada pela
postulação de que a produção teórica encontra suas raízes na própria existência humana, na
vida prática.
351
Ibid., p.170.
352
Ibid., p.171.
146
psicanálise existencial, que formam uma área de interseção, representando a ontologia, que
equivale a uma antropologia existencial. Interessante notar que no esquema figurado por
Mészáros, os círculos são dotados de setas que mostram que a ética e a psicanálise existencial
têm tanto sua origem quanto seu destino na ontologia. Há uma via de mão dupla na relação
pelo homem são acolhidos no campo conceitual, na medida em que se afasta a pretensão da
abundante de metáforas. Mais uma vez, Mészáros sublinha que não se trata de um defeito,
mas da especificidade de uma obra que pretende transmitir uma “mensagem filosófica que
não se pode exprimir de nenhuma outra forma”356. Ele contesta a declaração de Sartre de que
a utilização de frases literárias, como por exemplo “O homem é uma paixão inútil”, em uma
obra filosófica, constituiria quebra da confiança do leitor. É justamente esse estilo quase
353
Há quem qualifique até mesmo de tautológica a estrutura conceitual de “O Ser e o Nada”, como é o caso de
Camila Salles Gonçalves, que, referindo-se à prova ontológica exposta por Sartre na introdução à obra, afirma:
“Tal procedimento enseja um comentário geral sobre essa prova tautológica: sua estrutura prenuncia a estrutura
global da obra L’être et le néant, que constitui um amplo desenvolvimento de conceitos colocados no seu início,
à semelhança de axiomas” (Desilusão e história na psicanálise de Sartre, p.45).
354
O próprio Sartre aponta para essa circularidade ontológica, quando afirma: “é da natureza mesma da
consciência existir ‘em círculo’. É o que se pode exprimir nestes termos: toda existência consciente existe como
consciência de existir” (O ser e o nada, p.25; ed. franc., p.20).
355
MÉSZÁROS, I, op.cit., pp.172-173.
356
Ibid., p.176.
147
literário, permeado por metáforas geniais, que confere a grandeza filosófica de “O Ser e o
Nada”.
sobre um fio de arame que divide dois territórios opostos, sintetiza Mészáros. Há um
permanente risco de queda, tanto para o lado do determinismo mecanicista quanto para o lado
verdadeiro desafio.
no interior de “O Ser e o Nada”. Com isso, ele se refere ao fato de que “um quadro conceitual
complexidade se faz presente através de antinomias irresolúveis, como por exemplo: ser/nada,
fé. Além de absolutamente heterogêneos entre si, os pólos dessas antinomias não apresentam
357
Ibid., p.187.
358
Ibid., 197.
148
passagens, critica Mészáros, Sartre não vai além de girar continuamente em círculo através de
jogos de palavras.
observa Mészáros. A preferência por um tipo de comida, a prática de um tipo de esporte, tudo
pode ser objeto da hermenêutica existencialista e ter seu significado ontológico revelado,
“sem deixar espaço algum para ‘surpresas’”359. Mas, por outro lado, Mészáros evidencia a
subjetividade de Sartre busca uma adequação do real à sua construção teórica, e não o
contrário.
resolução dada a problemas filosóficos, mas também de uma busca consciente do próprio
empreendimento intelectual do autor, argumenta Mészáros. Para Sartre, ser original significa
emancipar-se da influência de outros filósofos que tiveram uma presença intensa em sua
formação362. Ao fazer valer sua liberdade como filósofo e escritor, Sartre dá vida a sua própria
teoria e, em particular, à noção de autenticidade, que ocupa posição central em sua ética363.
359
Ibid., p.200.
360
Cf. ibid., pp.210-211.
361
Ibid., p.211.
362
Sobre as influências filosóficas de Sartre, ver o subcapítulo I.1.
363
A propósito da ética sartriana, ver o subcapítulo II.4.
149
longo de sua vida, aponta Mészáros. Como ilustração, ele cita dois trechos de entrevistas
concedidas por Sartre. Na primeira, ocorrida em 1945, o filósofo francês afirma: “o homem é
livre para comprometer-se, mas não é livre a menos que se comprometa para ser livre”; e, na
segunda, datada de 1960, ele declara: “ninguém é livre a menos que todos sejam livres (...) A
posto como condição sine qua non da liberdade. Sou livre, desde que comprometido,
frente à situação não é suficiente para garantir a liberdade. Integrando um problema social
crônico - a fome -, na reflexão sobre a liberdade, Sartre conclui que a liberdade de cada um
Sabe-se que após “O Ser e o Nada”, publicado em 1943, o pensamento sartriano sofre
uma inflexão e passa a se concentrar em questões que lhe eram anteriormente estranhas, nos
campos histórico, social e político365. Essa inflexão irá culminar com a publicação da “Crítica
construído por Sartre é enriquecido com a integração de novos aspectos. A liberdade do outro
deixa de ser apenas limite e ameaça à minha própria liberdade366 e passa a constituir seu
pressuposto. Nesse sentido, Sartre afirma: “Não é admissível, não é concebível que um
homem seja livre se os outros não o são. Se a liberdade é recusada aos outros, ela cessa de ser
364
Apud MÉSZÁROS, I., op. cit. p.22.
365
Como já referido na Introdução, não pretendemos fazer uma análise da evolução do conceito de liberdade ao
longo das obras de Sartre. Apenas apontamos aqui para a existência dessa evolução.
366
Cf. O ser e o nada, pp.337 e 344; ed. franc., pp.301 e 306-307.
150
uma liberdade”367. Além disso, a par de seu caráter ontológico, em que ela é um dado, a
liberdade passa também a ter um caráter histórico-social, em que ela consiste numa conquista.
texto sartriano, uma oscilação entre os pólos extremos da total indeterminação e da total
real, revelada em suas férreas determinações. Resulta daí uma concepção paradoxal que
engloba
paixões quanto a vontade manifestam meu projeto original370. Nesse sentido, a vontade não
tem um status privilegiado no que se refere à relação com a liberdade. Ao contrário, e essa é a
tese de Mészáros, em “O Ser e o Nada”, a liberdade se identifica antes à paixão que à vontade.
Trata-se não de uma paixão qualquer, mas sim da paixão ontológica fundamental da
367
BEAUVOIR, S., La cérémonie des adieux, p.507.
368
Qu’est-ce que la littérature?, p.75.
369
MÉSZÁROS, I., op. cit., p.128.
370
Sobre a questão da liberdade frente à oposição entre vontade e paixões, ver o tópico II.1.2.
371
Cf. MÉSZÁROS, I., op. cit., pp.224-225.
151
segundo o próprio Sartre, como a perda de si mesmo para que um mundo advenha ao em-si372,
filosófica, insistindo na primazia desta ou daquela em prejuízo daquela ou desta, mas sim a
mundo transcendental e passa a figurar como protagonista do mundo empírico. Para descrevê-
liberdade pode ser ‘situada’: isto é concebido de modo que ela não possa ser senão
situada”375. Duas noções que são, a princípio, antitéticas, liberdade e paixão, são aproximadas
e, até mesmo, fundidas por Sartre. Isso só se torna possível porque Sartre esvazia o termo
de Sartre sua radicalidade. A liberdade é absoluta porque tudo aquilo que, em princípio,
poder-lhe-ia ser oposto, em especial a paixão, foi por ela absorvido. Somos livres não só
quando agimos, mas também quando padecemos. O padecer também é uma forma de agir, na
372
“O nosso surgimento é uma paixão, nesse sentido de que nos perdemos na nadificação para que um mundo
exista” (O ser e o nada, p.568; ed. franc., p.505); “Tudo se passa como se houvesse uma paixão do para-si, que
perder-se-ia a si mesmo para que a afirmação ‘mundo’ pudesse chegar ao em-si” (ibid., p.284; ed. franc., p.254).
373
Ibid., p.764; ed. franc., pp.674-675.
374
Op. cit., p.173.
375
Ibid., p.224.
376
Em A liberdade cartesiana, Sartre faz referência à “verdade paradoxal de que há paixões livres”. In:
Situações I, p.296.
152
377
Sartre chega mesmo a afirmar que “sofrer é impossível, porque o homem se define pelo ato” – no original:
“subir est impossible parce que l’homme se définit par l’acte”. (Saint Genet: ator e mártir, p.328; ed. franc.,
p.385). A idéia é que não há phátos que não seja também ato. Afinal, questiona Sartre, “a paixão não é, antes de
tudo, projeto e empreendimento?” (O ser e o nada, p.547; ed. franc., p.487).
153
CONCLUSÃO
Alain Renaut deu a uma de suas obras o título de “Sartre, le dernier philosophe”. Por
que o último? Segundo Renaut, ele seria o último filósofo de um certo estilo marcado pela
dizer o que é o ser. Sartre, o último filósofo a não se abater com a proclamação do fim da
filosofia.
O interesse tanto pelo universal quanto pelo singular caracteriza o percurso sartriano.
primordialmente, do universal que se trata. Sartre pretende ali apreender e descrever alguns
conceitos filosóficos basilares como, por exemplo, os de ser, nada, fenômeno, consciência e
rejeição de uma natureza humana, ele não se restringe ao universal e passa ao singular. Em
suas biografias de Genet, Baudelaire, e Flaubert, ele buscará captar as particularidades que
fazem de cada homem um ser único, sem igual. Ao se debruçar sobre a vida desses homens
que, como ele, eram escritores, Sartre se valerá do método proposto por sua psicanálise
existencial. Assim, como filósofo, Sartre mergulha nas grandes estruturas da realidade-
humana, e como psicanalista existencial, ele reconstitui a história de como essas estruturas se
particularizaram na vida de um determinado ser humano. Temos, então, na obra sartriana, dois
É freqüente ver-se classificar a obra de Sartre como sendo uma filosofia do sujeito.
Como adverte Jean-Marc Mouillie, entretanto, trata-se antes de uma filosofia da consciência
que “não é necessariamente nem diretamente assimilável a uma filosofia do sujeito. Sartre
154
consciência que Sartre busca superar o dualismo sujeito-objeto. Para tanto, ele se ocupa em
geral são objetos transcendentes para a consciência. Apesar de ter sofrido influência de
cogito tradicional pelo que ele chama de cogito pré-reflexivo. Ou seja, onde antes estava o
ego, como origem do pensar, Sartre coloca a consciência. Há, assim, uma tentativa de
conseguiu ou não superar essas limitações é uma questão polêmica. Heidegger e Foucault,
dentre outros, irão criticá-lo justamente por permanecer nos quadros de uma filosofia do
Se, por um lado, é discutível o quanto Sartre conseguiu se descolar das filosofias do
sujeito que o precederam, por outro, é ponto pacífico que seu conceito de liberdade apresenta
liberdade. Sartre se refere explicitamente a esse debate, efetua sua crítica e toma uma posição.
Sem nenhuma hesitação, é do lado da liberdade que se situa Sartre. Ele recusa o determinismo
e aponta tratar-se não só de uma concepção teórica equivocada, mas antes, de uma atitude
Sartre não se limita a aderir a um dos lados do debate. Ele critica tanto os
de ser uma concepção filosófica, é uma conduta de fuga provocada pela angústia da liberdade.
378
Sartre: conscience, ego e psyché, p.5. Também Roland Breeur ressalta que consciência e sujeito não se
confundem na obra sartriana. O sujeito é apenas uma das configurações tomadas pela consciência. A princípio,
no momento pré-reflexivo, a consciência nada tem de um sujeito. Cf. Autour de Sartre, p.200.
379
As posições opostas assumidas por Sartre e por Heidegger em relação ao humanismo podem ser encontradas
em dois opúsculos por eles redigidos, quais sejam, respectivamente, “O Existencialismo é um Humanismo” e
“Carta sobre o Humanismo”.
155
Em suma, Sartre recoloca a questão a partir dos termos de sua filosofia e constrói seu próprio
circunda, que ele é livre. Essa associação direta entre a liberdade e o nada, Sartre reconhece já
do Ser”, Sartre acaba por encontrar o nada e a liberdade. Há uma série de deslizamentos
temáticos em “O Ser e o Nada”. Sartre parte do ser, ou pelo menos, da busca pelo ser, e
observa que, nessa busca, é o fenômeno que encontramos. O fenômeno e a consciência, visto
que aquilo que aparece pressupõe alguém a quem aparecer. A consciência introduz o nada ou
um novo tipo de ser, o ser-para-si que se opõe ao ser-em-si. O ser em sentido forte é o ser-em-
si, o ser das coisas, sobre o qual pouco se pode falar. O ser em sentido fraco380 é o ser-para-si,
o ser do homem, do qual se ocupa a quase totalidade da obra. Sobre o ser do homem, Sartre
assevera que ele é primordialmente um fazer, o que nos remete, então, à liberdade. Uma
liberdade ontológica, que é o próprio ser do homem, seu nada de ser. Sartre insiste em
destacar que a liberdade não é uma faculdade ou propriedade do homem, mas sim, seu próprio
ser. Além disso, a liberdade que ele pretende descrever não é uma liberdade transcendental, de
um sujeito transcendental, mas a liberdade empírica, tal como ela se nos apresenta
cotidianamente.
380
Segundo Sartre o para-si seria uma “doença do ser”, doença ainda mais profunda que o movimento. (Cf. O ser
e o nada, p.757; ed. franc., p.669).
381
A dificuldade de se aceitarem pontos de vista extremados, como o de Sartre, no que concerne à liberdade,
pode ser exemplificada com a seguinte declaração de Jacques Bouveresse: “Há duas posições extremas que me
parecem igualmente insustentáveis: uma que diz que mesmo quando temos a impressão de ser livre, não o
somos, porque mesmo se vivemos em um regime democrático onde as liberdades individuais são razoavelmente
respeitadas, somos, entretanto, controlados, condicionados e determinados, de todas as maneiras possíveis e
imagináveis: essa é um pouco a posição em direção à qual se inclina Foucault em sua crítica da sociedade dita
liberal (pode-se chamar isso de argumento da ‘prisão invisível’); e há uma posição oposta a essa, que é a de
156
descrever a liberdade, como, por exemplo, a de que um prisioneiro também é livre382, a de que
um escravo acorrentado é tão livre quanto seu amo383, ou a de que não há acidentes em uma
vida384, visto que tudo o que acontece ao homem é fruto de sua liberdade. Pode-se perguntar:
à liberdade humana? Não há muito do que nos acontece que simplesmente escapa ao nosso
controle, à nossa liberdade? Não, diria Sartre, para algo nos acontecer, é indispensável que
participemos em alguma medida do acontecimento, ainda que seja no sentido que lhe
atribuiremos.
Ora, pode-se prosseguir questionando, esta doação de sentido, este recuo nadificador
do mundo, está ele totalmente imune a condicionamentos, será este movimento nadificador
totalmente descolado do ser nadificado? Afirma Sartre: sou responsável pela guerra porque
sou livre para dar a ela um sentido meu, particular, que fará dela minha guerra, ainda que seja
para recusá-la. Pergunta-se: este sentido que dou à guerra não poderá ser remetido à minha
família, à minha classe social, ao meu temperamento, enfim, à minha história? Poderá sim ser
remetido a todos esses fatores, responderia Sartre, o que não equivale a dizer que poderá ser
condicionado por eles. A doação de sentido não ocorre fora do mundo, fora do ser, mas sim
no mundo e em meio ao ser. Nem por isso, todavia, a doação de sentido passa a ser regida
Sartre, que consiste em dizer que, mesmo quando você é constrangido a viver sob um regime ditatorial, em um
certo sentido, que é o sentido importante, você ainda é livre. Eu acho essas duas posições igualmente não
razoáveis e mesmo absurdas” (Ce qui reste de la philosophie de Sartre: entrevista a Glória Origgi). Percebe-se,
de fato, que Bouveresse se aproxima do senso comum, fazendo tábula rasa das variações do conceito de
liberdade que sustentam tanto o pensamento de Foucault quanto o de Sartre. Bouveresse não distingue aqui entre
liberdade formal e liberdade material, o que o leva a rejeitar a posição de Foucault, nem entre liberdade política e
liberdade ontológica, o que gera a oposição a Sartre.
382
O ser e o nada, p.595; ed. franc., p.529.
383
Ibid., p.673; ed. franc., p.594.
384
Ibid., p.678; ed. franc., p.599.
385
A aproximação entre o conceito sartriano de liberdade e a liberdade estóica é efetuada pelo próprio Sartre em
algumas passagens já citadas nesta dissertação (ver p.19, p.56 e p.74). Para os estóicos, o homem é sempre livre
e sua felicidade depende exclusivamente dele mesmo. Há uma independência radical do homem em relação aos
eventos externos que lhe acontecem. Com o estoicismo, “o homem é proclamado estruturalmente livre”
(REALE, G.; ANTISERI, D., História da filosofia., v.I, p.265). E mais, essa liberdade é intangível, não podendo
ser abalada pelo mundo que a circunda.
157
consciência e o mundo uma via de mão dupla, em que ambos se afetam reciprocamente. A
consciência modifica o mundo, mas o mundo também modifica a consciência. Em Sartre, isso
não ocorre: é de uma via de mão única que se trata. A consciência é um absoluto, ela não pode
ser alcançada pelo mundo, é sempre ela a se dirigir ao mundo no movimento intencional. Daí,
por Sartre, e apontada por Mészáros, entre liberdade e paixão. Na medida em que a paixão
acaba por ser reduzida a uma escolha, a um ato de liberdade, não há espaço para qualquer
atenuação ou graduação da liberdade humana. Até mesmo quando padece, o homem não
Somos aquilo que fazemos de nós mesmos. O fato de o homem não ter outro ser que
não o seu fazer gera uma conseqüência ética imediata. Sartre aponta que não há resposta
prévia à questão “O que devo fazer?”, haja vista que os valores são fruto da criação do
homem, de cada homem singularmente considerado. Assim, não há garantias de como levar
uma vida boa, não há fundamentos universais, nem tampouco uma tábua de valores. Partindo
Ao longo desta dissertação, foram abordados alguns pontos capitais para a descrição e
refazer sumariamente o percurso até aqui trilhado, prefiro apenas destacar duas questões que
conceito de liberdade; e a outra, sobre o locus da liberdade frente à relação entre o ego e a
consciência. A primeira questão possui uma faceta formal, visto que se refere ao próprio
conceito, numa perspectiva epistemológica. Além disso, ela é prejudicial, na medida em que,
158
conceito. Concluímos que a existência e a singularidade de cada ser humano não se deixam
cingir aos limites de um conceito, o que, todavia, não nos impede de formular o conceito
daquilo que se apresenta em todo homem, como uma marca ontológica: a liberdade.
tenta contornar esse obstáculo atribuindo pessoalidade à consciência através do que ele chama
A liberdade está do lado da consciência e não do ego. Daí que, a afirmativa “Eu sou
livre”, será falsa, se tomarmos o sujeito “eu” como sinônimo de ego, objeto transcendente
para a consciência, ser-em-si. Por outro lado, será verdadeira, se entendermos “eu”, de
Quem sou eu? Sou eu esse ego que é um objeto para a consciência e que, portanto, carece de
liberdade? Ou eu sou a consciência que toma o ego como objeto e que é pura liberdade? Ou,
ainda, em uma solução conciliatória, sou ambos, consciência e ego? Para Sartre, somos
liberdade.
Assim, para assegurar o caráter absoluto da liberdade, Sartre postula a unicidade do ser
humano. Ele recusa tanto a divisão cartesiana entre a vontade e as paixões quanto a divisão
freudiana entre o consciente e o inconsciente. Nos dois casos, há uma divisão no ser do
homem que implica uma liberdade dilacerada. A liberdade estaria presente na vontade, mas
ausente nas paixões; presente no consciente, mas ausente no inconsciente. Sartre rebate
159
afirmando que a liberdade está presente tanto na vontade quanto nas paixões e negando a
existência do inconsciente. Mas, como visto, Sartre também se depara com uma divisão: a da
consciência e do ego. A consciência é livre, mas o ego não. Sartre resolve, então, o problema,
expulsando o ego da consciência e, em certo sentido, do próprio homem, que permanece uno
e integralmente livre.
À pergunta “É o homem livre?”, Sartre responde que sim, o homem é livre. Aliás, o
homem nada mais é do que seu ser livre. O homem é liberdade. A liberdade não é uma
faculdade ou um atributo que venha a se agregar ao homem e que possa se fazer ausente. A
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
I - Fontes primárias*:
*
Entre parênteses está o ano da primeira edição da obra, em sua versão original. Quando for diverso o ano da
edição utilizada, ele é acrescido ao final da referência. Foram listadas somente as obras citadas ou consultadas. A
relação completa das obras de autoria de Sartre, publicadas antes de 1970, pode ser encontrada no repertório
elaborado por Michel Contat e Michel Rybalka, constante da bibliografia secundária. São póstumas as obras cuja
primeira edição é posterior a 1980, ano de falecimento de Sartre.
161
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(1983) Cahiers pour une morale. Paris: Gallimard.
(1983) Carnet de la drôle de guerre. Paris: Gallimard, 1995.
(1983) Lettres au Castor et à quelques autres. Paris: Gallimard.
A imaginação. Trad. Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Abril Cultural, 1978 (Os
pensadores).
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A náusea. Trad. Rita Braga. 3ªed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
Determinação e liberdade. In: Moral e Sociedade: atas do convênio promovido pelo Instituo
Gramsci. Tradução de Nice Rissone. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
Diário de uma guerra estranha. Trad. Aulyde Soares Rodrigues e Guilherme de Freitas
Teixeira. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.
O Existencialismo é um humanismo. Trad. Vergílio Ferreira. São Paulo: Abril Cultural, 1978
(Os pensadores).
Questão de método. Trad. Bento Prado Júnior. São Paulo: Abril Cultural, 1978 (Os
pensadores).
Saint Genet: ator e mártir. Trad. Lucy Magalhães. Petrópolis: Vozes, 2002.
Sartre no Brasil: a conferência de Araraquara. Trad. Luiz Roberto Salinas Fortes – 2ª ed.
bilíngüe – São Paulo: UNESP, 2005.
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Trad. Rui Mário Gonçalves. Lisboa: Publicações Europa-América, 1968.
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NOUDELMANN, François ; PHIIPPE, Gilles. Dictionnaire Sartre. Paris : Honoré Champion,
2004.
**
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obras quanto textos de comentadores, informações biográficas, programações de atividades, etc.. Optei por listar
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