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A SUBVERSÃO DO ESTEREÓTIPO CHAPEUZINHO VERMELHO NO CONTO A

COMPANHIA DOS LOBOS DE ANGELA CARTER

THE SUBVERSION OF THE RED SQUIBBY STEREOTYPE IN THE TALE THE


ANGEL CARTER WOLF COMPANY

Cassiana Ximenes Carneiro 1


Márton Tamás Gémes2
RESUMO
Angela Carter reescreve o conto Chapeuzinho Vermelho na versão A Companhia dos Lobos.
Sob a influência do feminismo, Carter ressalta a sexualidade da personagem e subverte o
conto levando a personagem a abandonar a função de vítima passiva e assumir a função de
agente de sua história. O novo enredo do conto proporciona uma nova identidade para
Chapeuzinho Vermelho dentro de uma sociedade que idealiza, predominantemente, valores
masculinos. Porém, para que se trace um novo perfil para a personagem, faz-se necessário
retroceder às versões de Charles Perrault e dos irmãos Grimm.

Palavras-chave: identidade; sexualidade; subversão.

ABSTRACT
Angela Carter rewrites the Little Red Riding Hood story in The Company of Wolves. Under
the influence of feminism, Carter emphasizes the sexuality of the character and subverts the
story taking the character to abandon the function of passive victim and to assume the
function of subject of her own history. The new plot of the story provides a new identity for
Little Red Riding Hood within a society that predominantly idealizes masculine values.
However, to draw a new profile for the character, it is necessary to go back to the versions of
Charles Perrault and Grimm.

Keywords: identity; sexuality; subversion.

INTRODUÇÃO
Falar de contos remete às civilizações passadas, tradições, crenças populares. Através
do estudo dos contos é possível seguir uma trilha inversa na história e encontrar os vestígios
dos padrões sociais que serviram de base para a formação social e comportamental dos dias
atuais.
Assim, o presente trabalho tem como escopo uma análise do conto contemporâneo A
Companhia dos Lobos de Angela Carter, no qual faz uma releitura da personagem
Chapeuzinho Vermelho em contrapartida com as versões clássicas de Charles Perrault e dos
irmãos Grimm e, mais distante ainda, versões da tradição oral. Com a reescrita surgem

1
Graduada em Letras Habilitação em Língua Inglesa, pela Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA) – Sobral/CE. E-
mail [cassi06@live.com].
2
Doutor em Lusitanistik pela Universität zu Köln/Alemanha. Prof. Adjunto do Curso de Letras da Universidade Estadual
Vale do Acaraú (UVA) – Sobral/CE. E-mail [mgemes@hotmail.com].
7
questionamentos sobre as razões que levam escritores a revisitarem os clássicos e que novos
sentidos se constroem nesses textos.
Este trabalho tem por base o estudo da estrutura dos contos definida por Propp
(2006); Darnton (1986) e Mendes (2000) que fazem um levantamento sobre a história da
origem e da evolução dos contos e seus principais autores; Greer (1970), Hirata (2009) e
Oliveira (1992), estudiosas da figura feminina na sociedade, dentre outros autores.
O presente artigo consiste em verificar as funções da personagem Chapeuzinho
Vermelho nas versões de Perrault e dos irmãos Grimm, constituídas pelo modelo normativo
do sistema patriarcal e, a oposição a essas normas na versão de Carter, que subverte os
preceitos dominantes do patriarcado tornando a própria personagem uma agente subversiva.
A análise deste trabalho, também procura traçar a nova identidade da personagem
engendrada em linhas contemporâneas e sob a influência dos movimentos feministas a partir
dos recursos narrativos e da ação. E, através desta análise, procura apresentar uma resposta
válida para questionamentos sobre as necessidades de serem criadas novas versões dos contos
clássicos de tempos em tempos.

Chapeuzinho Vermelho numa perspectiva patriarcal

Os contos maravilhosos marcaram a história evolutiva de diferentes povos em


diferentes nações. A tradição oral foi o veículo no qual os contos ganharam espaço e se
disseminaram para mais tarde, no advento da escrita, compor um cânone literário. Uma
referência da identidade, costumes e vivências de povos que deixaram o legado de transferir
saberes através da arte narrativa.

Além disso, lembremo-nos de que toda uma série de mitos dos mais antigos deixa
entrever uma construção similar, e de que certos mitos apresentam esta construção
numa forma extraordinariamente pura. São, ao que parece, a fonte que deu origem
ao conto. (PROPP, 2006, p.98-99)

Dentre os contos, Chapeuzinho Vermelho tem se destacado e sofrido reformulações


constantemente. Um dos primeiros contos narrados para crianças, ele nem sempre retratou a
história de uma menininha doce enganada pelo ardiloso lobo e salva pelo corajoso caçador
como todos conhecem na versão dos irmãos Grimm. Numa versão coletada pelo historiador
norte-americano Robert Darnton e publicada na sua obra O Grande Massacre de Gatos, é
relatada uma história de canibalismo e erotismo explícito de uma garota anônima. (1986,
p.21-22)

8
Em 1697, Charles Perrault publicou sua versão na obra Histórias ou contos do tempo
passado com moralidades, denominada posteriormente como Contos da Mamãe Gansa, num
período em que nascia a literatura infantil a partir da adaptação dos contos folclóricos orais
para a versão escrita (MENDES, 2000, p.64). Perrault, que de acordo com Darnton, “foi o
primeiro a citar o capuz vermelho”, (1986, p.31) suavizou a história retirando a ação
canibalesca, na qual a garota é induzida pelo lobo a comer a carne e beber o sangue de sua
avó e, reproduz de forma implícita o erotismo, pois, na versão oral, coletada por Darnton, a
garota tira as roupas e as atira na lareira a mando do lobo. Depois de se despir, é convidada a
deitar-se com ele na cama da avó.
De acordo com Darnton (1986), as versões orais faziam parte das histórias contadas
por aldeões franceses ao redor da lareira durante os longos invernos no século XVII e
retratava a crueza e o modo de vida hostil que eles levavam. A infância não era considerada
ou preservada e a preocupação com a formação da criança só se deu a partir da ascensão
social da burguesia no advento da Revolução Industrial.
Perrault reescreveu os contos selecionados da tradição oral de sua época
(DARNTON, 1986, p.24) e deu a eles uma nova roupagem acrescida de moralidade e, ao
fazer isso, ele atribuiu um direcionamento educativo aos contos que antes tinham como
principal função a interação. Segundo Mariza Mendes em Em busca dos Contos Perdidos,
Perrault “não via com bons olhos a tradição pagã” (2000, p.41). Ele considerava alguns mitos
da literatura greco-romana “de menor valor que os contos franceses, porque não continham
uma moral dignificante, nem mesmo uma moral inteligível” (p.41). Católico da Contra-
Reforma, Perrault adicionou uma moral ao final de cada conto com o propósito educativo
dentro da moralidade cristã, como, por exemplo, no conto Chapeuzinho Vermelho (2016):

Vimos que os jovens,


Principalmente as moças,
Lindas, elegantes e educadas,
Fazem muito mal em escutar
Qualquer tipo de gente,
Assim, não será de estranhar
Que, por isso, o lobo as devore.
Eu digo o lobo porque todos os lobos
Não são do mesmo tipo.
Existe um que é manhoso,
Macio, sem fel, sem furor.
Fazendo-se de íntimo, gentil e adulador,
Perseguem as jovens moças
Até em suas casas e seus aposentos.
Atenção, porém!
As que não sabem
Que esses lobos melosos
De todos eles são os mais perigosos.
9
Perrault deu o nome de Chapeuzinho Vermelho à personagem principal do conto;
“sua avó lhe mandou fazer um pequeno capuz vermelho que ficava muito bem na menina. Por
causa dele, ela ficou sendo chamada, em toda parte, de Chapeuzinho Vermelho.”
(PERRAULT, 2016). Estudiosos procuram explicar o significado para o capuz vermelho que
deu nome a personagem. O psicanalista Erich Fromm (1983) acreditava que há uma
simbologia nele. Em sua leitura psicanalítica, o capuz vermelho simboliza a menstruação, e “a
história diz respeito à confrontação de uma adolescente com a sexualidade adulta.”
(DARNTON, 1986, p.23) Darnton critica a interpretação psicanalítica de Fromm sobre o
capuz vermelho, pois acredita ser “apenas criações literárias de Perrault” e chama de
“cegueira diante da dimensão histórica dos contos populares” o fato de Erich Fromm (1983) e
Bruno Bettelheim (1980) atribuir ao conto apenas dimensões de análises de simbologia e
descartarem a sua historicidade. Bettelheim identifica, na condução do lobo à casa da avó,
uma espécie de analogia à morte da mãe e o lobo, a representação do pai remetendo, dessa
forma, à teoria do Complexo de Electra: o de concorrer com a mãe pela posse do pai. Darnton
esclarece que os contos devem ser encarados como “documentos históricos” por terem sido
oriundos do folclore e contar histórias do povo.
Independentemente de o conto ser percebido sob um ponto de vista psicanalítico ou
histórico, a versão de Perrault tem como objetivo instruir as crianças a lidarem com situações
embaraçosas. Chapeuzinho Vermelho pode ser considerado uma parábola de estupro por se
tratar de uma situação em que fica subentendida a relação sexual entre a menina e o lobo; “-
Ponha a torta e o potezinho de manteiga sobre a caixa de pão e venha se deitar comigo.
Chapeuzinho Vermelho tirou o vestido e foi para a cama, ficando espantada de ver como sua
avó estava diferente ao natural.” (PERRAULT, 2016) A expressão “ao natural”, indica a
nudez da “avó”. A moral reforça a conotação da relação sexual da narrativa descrita de forma
implícita. A versão de Perrault foi reformulada com metáforas e simbolismos, tornando-a leve
se comparada com a versão oral do folclore apresentada por Darnton, que além de
canibalismo, há também o strip-tease da menina antes que o lobo a devore, explicitando o
erotismo no conto.

- Onde ponho meu avental?


- Jogue no fogo. Você não vai mais precisar dele.
Para cada peça de roupa – corpete, saia, anágua e meias – a menina fazia a mesma
pergunta. E, a cada vez, o lobo respondia:
- Jogue no fogo. Você não vai mais precisar dela. (DARNTON, 1986, p.22)

10
Porém, mesmo com metáforas, simbolismos e a exclusão da crueza muito comum na
forma de narrar dos camponeses que “não precisavam de nenhum código secreto para falar de
tabus” (DARNTON, 1986, p.27), o conto é tecido com o objetivo de relatar uma situação de
experiência sexual entre uma menina e um adulto. Isso pode ser percebido a partir das funções
dos personagens do conto. “Por função compreende-se o procedimento de um personagem,
definido do ponto de vista de sua importância para o desenrolar da ação.” (PROPP, 2006,
p.22) Propp identifica e classifica as funções dos contos, funções essas que são elementos
permanentes e compõem a natureza dos contos maravilhosos. Mesmo as funções se repetindo
em todos os contos, elas passam uma mensagem particular em cada conto. Dentre algumas
funções classificadas por Propp, a “transgressão da proibição 3 ” por parte de Chapeuzinho
Vermelho e o “dano”, causado pelo Lobo, compõem os principais fatores na conotação sexual
do conto.

Quando atravessava o bosque, ela encontrou compadre Lobo que logo teve vontade
de comer a menina. Mas não teve coragem por causa de uns lenhadores que estavam
na floresta. O Lobo perguntou para onde ela ia. A pobrezinha, que não sabia como é
perigoso parar para escutar um Lobo, disse para ele.

Apesar do formato invólucro da narrativa, a conotação sexual é evidente. Mais


adiante, após deitar-se na cama com a “avó” e admirar-se com a sua forma física, percebe-se
claramente a figura de um homem.

- Minha avó, como você tem braços grandes!


[...] pernas grandes!
[...] orelhas grandes!
[...] olhos grandes!
[...] dentes grandes!
- É pra te comer.
E dizendo estas palavras, o Lobo saltou para cima de Chapeuzinho Vermelho e a
devorou.

Sobre o processo de evolução do conto Chapeuzinho Vermelho a partir da tradição


oral, passando pela reformulação de Perrault e se inserindo na tradição alemã, e
consequentemente coletado pelos irmãos Grimm, Darnton conclui que:

Ela mudou consideravelmente suas características, ao passar da classe camponesa


francesa para o quarto do filho de Perrault e daí partir para a publicação,
atravessando depois o Reno e voltando para a tradição oral, mas, desta vez, como
parte da diáspora huguenote, dentro da qual retornou sob a forma de livro mas,
agora, como produto da floresta teutônica, em lugar das lareiras das aldeias do
tempo do Antigo Regime, na França. (DARNTON, 1986, p.24-25)

3
Esta e todas as seguintes funções são de Propp (2006)

11
Em 1812, os irmãos Jacob e Wilhelm Grimm, publicaram outra versão de
Chapeuzinho Vermelho. Nessa versão, as referências sexuais foram removidas e adicionada
outra personagem. O caçador, que introduz mais uma função no conto: o “castigo do
agressor”. Também fica evidente a função “proibição” quando a mãe diz: “comporte-se no
caminho e de modo algum saia da estrada” (GRIMM, 2016). A moral ao final da história da
versão de Perrault também foi removida, porém, as instruções dadas pela mãe somadas com o
desfecho da história, culminam numa lição a partir de uma experiência vivida pela
personagem, que ela é capaz de assimilar por si só quando diz: “enquanto eu viver, nunca
mais vou desobedecer minha mãe e desviar do caminho nem andar na floresta sozinha e por
minha conta.” (GRIMM, 2016). Além da mensagem que a narrativa projeta sobre a
desobediência e suas consequências, há também uma ênfase à punição da maldade do vilão
quando o lobo se dá mal e acaba morto pelo caçador. A punição do mal é uma característica
presente na maioria dos contos e, compõe sua estrutura fundamental.
Ao analisar as três versões citadas no desenrolar dessa análise, versões essas que
forjaram a identidade de Chapeuzinho Vermelho como é entendida e transmitida até os dias
atuais, é fácil perceber os elementos permanentes que constituem tal identidade. Elementos
constituídos a partir das funções da personagem e pelo enredo do conto, com o propósito de
construir um motivo, culminando num estereótipo, uma referência feminina que tem apenas
um destino: ser devorada pelo lobo. Não importa se ela é anônima ou recebeu uma alcunha
que a identifique. Não importa se ela tem um final feliz e aprende a lição da obediência. Ela
será sempre uma figura tola e vulnerável, de fácil manipulação. Sem um herói, que no sistema
patriarcal será sempre um homem, Chapeuzinho Vermelho não terá chance de salvação.

Chapeuzinho Vermelho é a história duma menina no limiar da debilidade mental,


que a mãe irresponsável manda através de bosques infestados de lobos para ir levar à
avó cestos de bolos. Com tais pressupostos, não é para admirar o fim que encontra.
Mas tanta estupidez, que jamais seria atribuída a um garoto, repousa na confiança
que sempre há de aparecer no momento exato um caçador corajoso e cheio de
habilidade, pronto a salvar do lobo tanto a avó como a netinha. (BELOTTI, 1987,
p.102-103)

Esse é o destino que lhe foi conferido pelo patriarcado. Um arquétipo feminino no
qual moças bonitas e tolas são presas fáceis para lobos.

Chapeuzinho Vermelho numa perspectiva feminista

12
A escritora inglesa Angela Carter, retomou os contos de Perrault em Bluebeard
(2011). Reconhecida por emprestar características consideradas feministas, góticas, eróticas e
com tendências ao realismo fantástico dos seus contos, Carter reescreveu os contos clássicos
em The Bloody Chamber (1979), denominado em português O Quarto do Barba-Azul. Nessa
obra, Carter reescreveu em duas versões o clássico Chapeuzinho Vermelho como O
Lobisomem e A Companhia dos Lobos. Sob a influência do pós-modernismo e dos
movimentos feministas dos anos 70, a escritora libertou a personagem do estereótipo imposto
pelo discurso patriarcal subvertendo os arranjos narrativos e agregando atributos subversivos
à personagem. A partir de então, nas duas versões, a personagem toma as rédeas de seu
destino e se torna heroína de si mesma.
Apesar de haver duas versões do conto clássico desenvolvidos por Carter, será
analisada, nesse estudo, apenas a versão A Companhia dos Lobos por causa da dimensão da
concepção feminina na qual a personagem tomou forma. O conto é narrado em dois
segmentos. No primeiro segmento, a narrativa é mais descritiva, esboçando as características
físicas e a personalidade dos lobos; relata histórias ocorridas outrora, advertindo sobre os
perigos de cruzar com um lobo. O segundo é o momento do encontro da jovem com o lobo.
No enredo, o narrador toma uma posição diferente do primeiro, relatando um acontecimento
em andamento.
Carter desenvolve o conto de uma forma brilhante, como um caleidoscópio, ela faz
uso das marcas alegóricas da versão de Perrault e dos irmãos Grimm e resgata, também, o
folclore francês ao usar características das narrativas da tradição oral dos camponeses do
século XVII.
A narrativa minuciosa e com riqueza de detalhes no início do conto revela os
horrores que espreitam na floresta e nas montanhas e o infortúnio da terrível investida dos
lobos. “Of all the teeming perils of the night and the forest, ghosts, hobglobins, ogres that grill
babies upon gridirons, witches that fatten their captives in cages for cannibal tables, the wolf
is worst for he cannot listen to reason. 4” (CARTER, 1995, p.110-111) O principal agressor, da
versão de Carter, é uma figura mitológica muito comum do folclore; o lobisomem, que se
confunde em meio aos lobos da floresta.

4
“De todos os abundantes perigos da noite e da floresta fantasmas, gnomos, ogros que grelham crianças, bruxas
que engordam as suas vítimas em gaiolas para mesas canibais o lobo é o pior porque não pode ouvir razão.”
(CARTER, disponível em: <http://home.iscte-iul.pt/~fgvs/AC.pdf> acesso em 2016; todas as traduções da obra
de Carter em seguida são oriundos desse site)
13
So this hunter dug a pit and put a duck in it, for bait, all alive-oh; [...] The hunter
jumped down after him, slit his throat, cut off all his paws for a trophy. And then no
wolf at all lay in front of the hunter but the bloody trunk of a man, headless, footless,
dying, dead5. (CARTER, 1995, p.111)

O lobo do conto clássico representa o estuprador, sua personalidade irracional e


animalesca. Carter se apropria da figura folclórica do lobisomem para representar o paralelo
entre o homem e o bicho.

The wolf is carnivore incarnate and he’s as cunning as he is ferocious [...] slavering
jaws; the lolling tongue [...] worst of all, the Wolf may be more than he seems. [...]
his torso is a man’s but his legs and genitals are a wolf’s. And he has a wolf’s heart. 6
(CARTER, 1995, p.110-113)

Enquanto que nos contos clássicos a descrição das personagens é bastante


superficial, apesar de suficientemente adequada para a distinção de seus motivos, Carter
descreve ricamente suas personagens. Normalmente, o herói ou heroína é introduzido na parte
preparatória dos contos clássicos. Carter inicia o conto relatando a terrível ferocidade dos
lobos.
Carter também descreve minuciosamente o espaço e o tempo em que a história se
passa, configurando um contexto realístico a partir dos detalhes. Além da descrição espaço-
temporal, há a descrição da situação das pessoas, contextualizando o espaço sociocultural.

The grave-eyed children of the sparse village always carry knives with them when
they go out to tend the little flocks of goat that provide the homesteads with acrid
Milk and rank, maggoty cheeses. Their knives are half as big as they are, the blades
are sharpened daily. 7 (CARTER, 1995, p.111)

A descrição detalhada dos espaços e das personagens é uma característica do estilo


de escrita pós-moderna, que tem como característica, também, revisitar obras clássicas e
reproduzi-las num paralelo de fantasia e realidade. “O pós-modernismo está ancorado aqui: na

5
Então este caçador escavou um fosso e pôs nele um pato como isca bem vivo. [...] O caçador saltou atrás dele,
cortou-lhe a garganta, cortou-lhe todas as patas como troféu. E então não era de todo um lobo que jazia perante o
caçador, mas o tronco sanguinolento de um homem sem cabeça e sem pés, agonizante, morto.
6
O lobo é Carnívoro incarnado e é tão matreiro quanto feroz [...] mandíbulas salivantes; a língua pendente [...]
pior de tudo, o lobo pode ser mais do que aparenta. [...] seu torso é de homem, mas as pernas e genitais são de
lobo. E tem coração de lobo.
7
As crianças com olhos fúnebres nas aldeias esparsas trazem sempre consigo facas quando saem para tratar dos
pequenos rebanhos de cabras que fornecem a cada família leite ácido assim como queijo rançoso e bichado. As
facas têm a metade do seu tamanho e são afiadas diariamente.

14
insustentável leveza de não crer nem na realidade nem na ficção.” (OLIVEIRA, 1995, p.70-
71)
Propp discorre sobre a influência da realidade na transformação das personagens dos
contos em suas diferentes versões.

A vida real cria sempre figuras novas, brilhantes, coloridas, que se sobrepõem aos
personagens imaginários; o conto sofre a influência da realidade histórica
contemporânea, do epos dos povos vizinhos, e também da literatura e da religião,
tanto dos dogmas cristãos como das crenças populares locais. O conto guarda em
seu seio traços do paganismo mais antigo, dos costumes e ritos da Antiguidade.
(PROPP, 2006, p.85)

Em relação à estrutura do conto de Carter, são perfeitamente aceitáveis todas as


modificações empreendidas por ela, pois, de acordo com Propp:

O narrador é livre e aplica sua criatividade nos seguintes domínios:


1. Na escolha das funções que omite ou que utiliza.
2. Na escolha do meio graças ao qual (...) se realiza a função. Este é, certamente, o
caminho que leva, como já observamos, à criação de novas variantes, novos enredos,
novos contos.
3. O narrador é completamente livre na escolha da nomenclatura e dos atributos dos
personagens. [...]
4. O narrador é livre para escolher os meios que lhe oferece a língua. (Id., p.112-
113)

No primeiro segmento do conto, são narradas várias histórias ocorridas na aldeia. O


narrador experimenta a antiga prática oral de contar histórias. Experiências com lobos,
lobisomens e bruxas, lendas de como surge um lobo, se nascido ou transformado pelo
demônio, enfatizam a crença popular do folclore. É nesse contexto que a jovem que
representa Chapeuzinho Vermelho no conto A Companhia dos Lobos, terá sua própria
experiência com o tal.

It is midwinter and the robin, the friend of man, sits on the handle of the gardener’s
spade and sings. It is the worst time in all the year for wolves but this strong-minded
child insists she will go off through the wood. She is quite sure the wild beasts
cannot harm her although, well-warned, she lays a carving knife in the basket her
mother has packed with cheeses.8 (CARTER, 1995, p.113)

Mais uma vez a personagem tem diante de si funções a cumprir, mas dessa vez, com
novos atributos. Sagaz, destemida e disposta a encarar os perigos da floresta e de posse de
uma identidade mais específica: “Her breasts have just begun to swell [...] she has Just started

8
É solstício de Inverno e o pisco, amigo do homem, pousa no cabo da pá do jardineiro e canta. É o pior tempo de
todo o ano com respeito a lobos, mas esta criança de espírito forte insiste em atravessar o bosque. Ela tem a
certeza de que as feras não podem fazer-lhe mal, embora - bem avisada - ponha uma faca de trinchar na cesta
que a sua mãe encheu de queijos.
15
her woman’s bleeding, the clock inside her that will strike, henceforward, once a month. She
stands and moves within the invisible pentacle of her own virginity. 9” (CARTER, 1995, 113-
114) Não se trata mais de uma menina, mas de uma jovem mulher com suas definições
sexuais. Enquanto o lobo sempre foi a representação da sexualidade masculina, Carter
contempla a personagem feminina com seus atributos sexuais devidos e negados há tanto
tempo, pois no conto clássico a personagem feminina é a representação de um ser assexuado.

A obra de Carter trata consistentemente de representações da exploração física de


mulheres nas culturas falocêntricas, de mulheres alienadas de si mesmas a partir do
olhar masculino, e por outro lado, de mulheres que lançam mão de sua sexualidade e
reagem, de mulheres perturbadas e até mesmo empoderadas por sua própria
violência. (MAKINEN apud FUNCK, 2002, p.22)

É no vigor da adolescência que a personagem de Carter cumpre seu papel em uma


sociedade patriarcal, consciente de si, deixa-se guiar por seu espírito livre. No clássico de
Perrault, ela recebe a missão de visitar a avó, desta vez, é ela que toma a decisão de sair. Em
posse de uma faca, ela acredita ser capaz de se defender.

When she heard the freezing howl of a distant wolf, her practised hand sprang to the
handle of her knife, but she saw no sign of a wolf at all, nor of a naked man, neither,
but then she heard a clattering among the brushwood and there sprang on the path a
fully clothed one, a very handsome young one, in the green coat and wideawake hat
of a Hunter, laden with carcasses of game birds.10” (CARTER, 1995, p.114)

Carter usa o recurso da ironia ao agregar o lobo ao caçador; o vilão e o herói


fundidos tal qual o lobo e o homem de Perrault e dos Grimm. Ele é jovem e interessante além
de belo. Sem indício de perigo, a jovem dá-lhe crédito. O jovem matreiro e audaz inicia seu
jogo de sedução e a garota se deixa levar. Logo, se tornam amigos! O cortês caçador mostra-
lhe uma bússola que sempre leva consigo a fim de guiar-lhe em suas caçadas; afinal, o lobo é
um caçador! Numa versão camponesa da tradição oral, o lobo pergunta para a ingênua garota
“Por que caminho você vai, o dos alfinetes ou o das agulhas?” (DARNTON, 1986, p.22) É
difícil dizer se Carter inseriu a bússola para fazer referência aos contos da tradição oral ou se
foi mera coincidência. O fato é que haverá outros indicadores da miscigenação do texto de
Carter com diferentes versões, resgatando as origens de Chapeuzinho Vermelho desde suas

9
“Os seus seios começaram há pouco a inchar [...] ela acaba de começar o seu fluxo de mulher, o relógio dentro
dela que doravante tocará uma vez por mês. Ela ergue-se e move-se dentro do pentagrama invisível da sua
própria virgindade.”
10
“Quando ela ouviu o uivo enregelante de um lobo distante, a sua mão destra saltou para o cabo da faca, mas
não viu qualquer sinal de lobo, nem mesmo dum homem nu, embora então ouvisse uma restolhada no mato e
visse saltar para o carreiro um homem completamente vestido, jovem e muito bem parecido, ostentando o casaco
verde e o chapéu de feltro com abas largas de um caçador, carregado com pássaros mortos.”
16
raízes mais remotas. Após o deslumbre e a desconfiança da jovem em relação à função da
bússola, a aposta.
Is it a bet? he asked her. Shall we make a game of it? What will you give me if I get
to your grandmother’s house before you? What would you like? she asked
disingenuously. A kiss.11” (CARTER, 1995, p.115)

Assim, cada um segue por um caminho diferente, mas com o mesmo objetivo; o de
chegar à casa da avó, porém, cada um com interesses diferentes, mas com um fim em comum;
ele quer chegar o mais rápido possível para garantir sua refeição e o beijo ou, quem sabe, sexo
com a garota, pois se ele quisesse apenas a refeição, nada o impedia de devorar a garota
naquele momento, na floresta. Já ela queria chegar o mais tarde possível na casa da avó para
garantir que perderia a aposta, mas ganharia o beijo do belo jovem ou, quem sabe, também
sexo, pois ela já apresenta impulsos sexuais.
A avó, que já não tem o viço da juventude e os anos a aproxima da morte será a
refeição, pois não serve mais para os prazeres do lobo. Quando o jovem caçador chega à casa
da avó da garota, ela logo percebe tratar-se de um lobo. Na companhia da avó, apenas a Bíblia
e sua impotência diante do lobo feroz. Foi devorada em sua própria cama como que para
ceder o lugar à neta. Depois que o lobo organiza toda a bagunça, a garota chega à casa da avó.
Ela fica desapontada ao imaginar que o jovem caçador não estava lá, mas não demorou muito
para ela perceber o que de fato tinha acontecido.

Now a great howling rose up all around them, near, very near, as close as the kitchen
garden, the howling of a multitude of wolves; she knew the worst wolves are hairy
on the inside and she shivered, in spite of the scarlet shawl she pulled more closely
round herself as if it could protect her although it was as red as the blood she must
spill. 12” (CARTER, 1995, p.117)

O sangue que ela está destinada a verter, tal qual representado pelo seu xale
vermelho, se refere ao sangue que derramará com sua morte se devorada pelo lobo ou da
ruptura do seu hímen se se deitar com o lobo. Ao perceber sua situação, ela toma a posição de
agente da história deixando de lado a possibilidade de vítima passiva. Segue-se, mais uma
vez, uma revisitação ao conto de uma época em que as pessoas de aldeias distantes “não
precisavam de nenhum código secreto para falar de tabus” (Darnton, 1986, p.27).

11
É uma aposta? perguntou ele. Fazemos disto um jogo? O que me dá se eu chegar à casa da sua avó antes de si?
De que gostaria? perguntou ela com falsa candura. De um beijo.
12
Agora um grande uivo ergueu-se em redor deles, perto, muito perto, tão próximo quanto a janela da cozinha, o
uivo de uma multidão de lobos; ela sabia que os piores lobos são peludos por dentro e estremeceu, apesar do xale
escarlate que apertou mais em torno de si, como se a pudesse proteger apesar de ser vermelho como o sangue
que ela está destinada a verter.
17
What shall I do with my shawl?
Throw it on the fire, dear one. You won’t need it again. [...]
What shall I do with my blouse?
Into the fire with it, too, my pet.
The thin muslin went flaring up the chimney like a magic bird and now off came her
skirt, her woollen stockings, her shoes, and on to the fire they went, too, and were
gone for good.13” (CARTER, 1995, p.117-118)

Depois de tirar toda a roupa, tomou a iniciativa de se aproximar do “lobo” e começou


a despi-lo.

What big arms you have.


All the better to hug you with.
Every wolf in the world now howled a prothalamion outside the window as she
freely gave the kiss she owed him.”14 (CARTER, 1995, p.118)

Se há uma simbologia de morte e renascimento no ato de a garota queimar as roupas


antes de deitar-se com o lobo, como acontece na versão oral, Carter não poupa o lobo em sua
versão. Antes, Carter põe as duas personagens em situação de igualdade quando a personagem
demonstra reciprocidade ao seu parceiro.
Em 1984, Neil Jordan produziu o filme A Companhia dos Lobos no qual Angela
Carter é co-roteirista. No filme, a avó narra as histórias dos lobos para sua neta, Rosaleen.
Uma noite, Rosaleen acorda e ouve seus pais durante a relação sexual e na manhã seguinte
pergunta a sua mãe se o pai a machucava porque o pai parecia com a fera que a avó
costumava descrever, no que a mãe retrucou: “Prestas demasiada atenção à tua avó. Ela sabe
muito, mas não sabe tudo. Se há uma fera nos homens, esta tem o seu par nas mulheres.”
(roteiro do filme A Companhia dos Lobos, disponível em:<http://home.iscte-
iul.pt/~fgvs/AC.pdf>) No final do filme, após a garota deitar-se com o lobo, ela mesma torna-
se uma loba. Na versão escrita, Carter não encerra a história com a famosa frase “e eles foram
felizes para sempre”, porém, tudo acaba bem. “See! sweet and sound she sleeps in granny’s
bed, between the paws of the tender wolf. 15” (CARTER, 1995, p.118)

13
O que faço com o meu xale?
Deita-o para o fogo, querida. Não vais precisar mais dele.
[...] O que faço com a minha blusa?
Para o fogo também, minha boneca.
A fina musselina foi a arder pela chaminé acima como um pássaro mágico e agora ela tirou a saia, as meias de lã,
os sapatos e tudo isto foi também para o fogo e perdido para sempre.
14
Que grandes braços tens.
Para melhor te abraçar.
Todos os lobos do mundo uivaram agora um cântico matrimonial fora da janela quando ela lhe deu de livre
vontade o beijo que lhe devia.
15
“Vejam! Doce e incólume, ela dorme na cama da vovó entre as patas do lobo terno.”
18
[...] as paródias de Angela Carter deslocam a leitura para um outro lugar, para fora
das práticas dominantes de representação, ou seja, das narrativas do desejo
masculino. Ao permitir que as mulheres de seus contos sejam violentas, sexualmente
ativas e até mesmo perversas, Carter explode os mitos da feminilidade como
passiva, domesticada e sob controle. (FUNCK, 2002, p.24)

Os contos clássicos ainda não tinham passado por uma adaptação essencialmente
feminina. Moldados a partir do ideal masculino, as mulheres sempre se posicionavam
passivas e como se não fossem dotadas de sexualidade. Carter desconstrói esse ideal feminino
a partir da subversão das personagens dotando-as de potencial sexual, eloquência e erotismo
em suas releituras.

Uma nova identidade para Chapeuzinho Vermelho

Penelope Eckert e Sally McConnell-Ginet, em seu ensaio Comunidades de práticas:


lugar onde co-habitam linguagem, gênero e poder, publicado em Linguagem. Gênero.
Sexualidade: clássicos traduzidos, defendem que linguagem e gênero são partes integrantes e
indissociáveis da identidade do indivíduo e que “linguagem interage com outros sistemas
simbólicos – vestimenta, adornos corporais, modos de movimentos, olhar, toque...” (2010,
p.97). Com base nesses pressupostos, será esboçada a identidade da personagem que
representa Chapeuzinho Vermelho no conto A Companhia dos Lobos de Angela Carter a
partir dos enunciados narrativos. Porém, para se alcançar um melhor embasamento para a
discussão da identidade da personagem, é interessante ressaltar a importância conceitual da
linguagem no ato da fala como indicador de posição de poder e identidade no meio social.

Enquanto a sociolinguística tradicionalmente pressupõe que as pessoas falam como


falam pelo fato de serem quem (já) são, a abordagem pós-moderna sugere que as
pessoas são quem elas são pelas (entre outras coisas) forma como falam.
(CAMERON, 1998, p.132)

A expressão “entre outras coisas” pode estar diretamente relacionada às atitudes e a


forma de lidar com situações e o uso da linguagem corporal como indicador de passividade ou
atividade do sujeito social.
O conto de Carter não traz muitos enunciados diretos da personagem, mas pelo
discurso narrativo é possível reconhecer a personalidade livre dos preceitos ideológicos,
passivo e assexuado que adornam a personagem de Perrault e dos Grimm.

It is the worst time in all the year for wolves but this strong-minded child insists she
will go off through the wood. [...] Her father might forbid her, if he were home, but

19
he is away in the forest, gathering Wood, and her mother cannot deny her. 16 ”
(CARTER, 1995, p.113-114)

A mãe não consegue dizer-lhe “não”, ou talvez a garota - de comportamento


subversivo às normas tradicionais - não aceite um “não” e aproveita a ausência do pai - que
representa o controle sobre sua natureza feminina - para sair e experimentar os desafios e
mistérios que o mundo lhe reserva, apesar de bem avisada dos perigos.

Na teoria feminista, o patriarcalismo é definido como o controle e a repressão da


mulher pela sociedade masculina e parece constituir a forma histórica mais
importante da divisão e opressão social. É um vazio conjunto universal de
instituições que legitimam e perpetuam o poder e a agressão masculina.
(BEAUVOIR apud MAURÍCIO, p.55-56)

As regras sociais vigentes são um construto do poder masculino que há milênios se


instaurou de forma aberta e opressora e também com estágios dissimulados e insinuosos
através dos mitos e contos. Assim, aos poucos, criou-se o modelo ideal de sociedade em que a
mulher foi constituída como um ser inferior, perpetuada como “sexo frágil”, dominada pelo
“macho”.
Com o advento do feminismo, que há décadas luta contra a opressão masculina,
pelos direitos igualitários entre homens e mulheres, e tenta quebrar o mito de que a mulher é
um ser de segunda classe, muitas escritoras, influenciadas pelo fenômeno, reescrevem as
histórias e criam outro desfecho a partir do princípio - da pedra fundamental - que relegou a
mulher dos seus verdadeiros dotes, abnegou-a de sua sexualidade, subjetividade, obstruindo,
assim, sua identidade legítima perante a sociedade.

Como tal, tudo que nos é imposto constantemente é que a puberdade é um inferno. É
um inferno tanto para meninos como para meninas, mas para os meninos é uma
questão de ajustar-se a mudanças físicas que significam a presença de sexo e
genitalidade [...] Para a menina é uma questão diferente: ela tem de chegar à postura
feminina de passividade e ausência de sexo. Mal aparece o cabelo pubiano, ela tem
de aprender a escondê-lo. A menstruação tem de ser suportada e dissimulada. Ela
tem sido tão protegida contra a aceitação de seu corpo como sexual, que sua
menstruação a atinge como uma odienta violação de sua integridade física...
(GREER, 1974, p.103-104)

É neste cenário que a personagem Chapeuzinho Vermelho foi criada, caracterizada,


estereotipada e recaracterizada para satisfazer uma necessidade social masculina e agora
feminina, pois “assim como o mito, cada conto de fada que herdou seus motivos vai

16
“É o pior tempo de todo o ano com respeito a lobos, mas esta criança de espírito forte insiste em atravessar o
bosque.[...]O pai poderia tê-la proibido, se estivesse em casa, mas está na floresta a apanhar lenha e a mãe não
consegue dizer-lhe não.”
20
transmitindo, de geração em geração, os seus significados pedagógicos, psicológicos e
ideológicos.” (MENDES, 2000, p.42)

Naturalizadas, as mulheres não foram incorporadas ou tornadas significativas na


cultura humana/masculina. O confinamento do sexo feminino em uma relação
limitada com apenas alguns aspectos do meio ambiente, fruto da diferenciação
sexual, traduziu-se em desigualdade de status e poder, tornando-se hierarquia que,
por seu caráter invariante, passou a ser percebida como um dado do comportamento
humano, inscrita no corpo e por ele ditado, e que as representações mitológicas e
ideológicas só fizeram confirmar. (OLIVEIRA, 1992, p.40)

Portanto, partindo do princípio de que Chapeuzinho Vermelho, a partir da moral de


Charles Perrault, é caracterizada como um tipo que não é de se estranhar que o lobo a devore,
Carter a justifica como alguém que age de acordo com sua sexualidade e libido natural;
alguém que escolheu iniciar a vida sexual e por isso, ela sai da posição de vítima passiva e se
coloca como ser autônomo e atuante; passa de objeto de desejo do lobo para sujeito ativo de
sua história. Segundo Riot-Sarcey “a mulher só pode aceder à autonomia transgredindo as
normas do grupo, por definição coercivas.” (apud LAKOFF, 2010, p.187) A personagem não
é mais uma criança e está prestes a iniciar um novo ciclo de vida. Se o lobo é maléfico no
ponto de vista social, ela também o será por deixar de ser vítima e tornar-se cúmplice do ato
libidinoso e condenável numa sociedade patriarcal. Por isso, um estereótipo depreciativo lhe
vem bem a calhar. O que Carter pretende, no mínimo, é chamar atenção para a questão da
natureza feminina de Chapeuzinho Vermelho e quebrar o conceito de que a mulher não dispõe
de libido incontida e sexualidade tal qual o sexo masculino.
“He laughed with a flash of white teeth when he saw her and made her a comic yet
flattering little bow; she’d never seen such a fine fellow before [...] 17 ” (CARTER, 1995,
p.114) A jovem logo se interessa pelo rapaz e se deixa levar pelo seu jogo de sedução.
Quando ele pergunta o que ela daria a ele se ele chegasse primeiro na casa da avó, o narrador
alerta sobre uma falsa candura por parte da jovem ao perguntar para ele do que ele gostaria. O
rapaz pede um beijo. Com a intenção de garantir que ele ganhe a aposta, ela se demora no
caminho até a casa da avó. Quando chega a casa e descobre que ele era, na verdade, o
malfeitor feroz de que tanto tinha sido avisada já era tarde demais. Ela se encontra em perigo,
mas não em um perigo que ela não possa se sobressair, principalmente porque ela demonstra
ser feita de matéria similar de seu oponente, e sabendo que o medo não a ajudaria em nada,
ela deixou de ter medo e tomou para si a poder de conduzir a situação.

17
“Ele riu com um brilho de dentes brancos assim que a viu e fez-lhe uma pequena vênia, cômica, mas cortês.
Nunca ela tinha visto um tão belo rapaz antes.”
21
O que define uma relação de poder é um modo de ação que não atua direta e
imediatamente sobre os outros, mas que atua sobre sua própria ação. Uma ação
sobre a ação, sobre ações eventuais, futuras ou presentes. (FOUCAULT apud
HIRATA, 2009, p.184)

A jovem despiu-se, aproximou-se do “lobo”, pagou-lhe o beijo que devia por


vontade própria e quando o “lobo” disse que seus dentes enormes serviam para comê-la, ela
riu dele, na cara dele, pois ela não era carne de ninguém; arrancou-lhe as roupas e atirou-as ao
fogo, ao que os ossos de sua avó debaixo da cama se agitaram furiosamente, mas ela não lhes
prestou qualquer atenção.
Na versão de Carter, a avó tem um papel mais concreto no conto. Caracterizada
como uma mulher devota que tem a Bíblia como companhia, é a representação da moralidade
cristã e também do logocentrismo, do interdito, da lei (patriarcal). A resposta dos ossos da avó
simboliza a reprovação do ato por parte do sistema repressor e moralista do patriarcado em
detrimento da atitude da jovem e, o fato de a jovem ter ignorado a reação dos ossos de sua
avó, indica o caráter subversivo da personagem aos padrões de hierarquia social, conduta e
moral.
Chapeuzinho Vermelho dos contos clássicos é uma personagem “coisificada” e muda
que representa apenas um estereótipo de conduta feminina, idealizado pelo poder masculino
como forma de dominação da natureza feminina. A subversão do conto Chapeuzinho
Vermelho em A Companhia dos Lobos cria uma fissura no estereótipo e conduz o início de
uma nova identidade para a personagem; alguém “empoderada” de autonomia para agir de
acordo com sua sexualidade, que expressa sua autonomia através da linguagem e do gênero
que a identifica como ser social atuante que tem o controle de seu próprio destino; alguém que
sai da posição de dominação, passividade e vitimização.

Considerações finais

Ângela Carter revisita o conto Chapeuzinho Vermelho na versão A Companhia dos


Lobos. Os contos clássicos na versão de Perrault e dos irmãos Grimm têm seus motivos
organizados dentro de um sistema normativo de conduta idealizada pelo patriarcado. A versão
de Carter segue sob influências pós-modernas e os movimentos feministas. A personagem
Chapeuzinho Vermelho, que por tantas vezes foi reformulada, representa uma figura feminina
no círculo social de épocas diferentes. O idealismo patriarcal apresenta um modelo feminino
desprovido de sexualidade e muda representando apenas um motivo, um ideal, um
estereótipo. Os movimentos feministas refletiram um grito de liberdade e reconhecimento da
22
mulher como ser atuante e capacitado. Chapeuzinho Vermelho, de Carter, traz à luz as
potencialidades femininas que foram omitidas nos contos clássicos, principalmente no que se
refere à sexualidade, e deixa de ser apenas uma representação estereotipada para ter uma
identidade, mesmo que ela ainda carregue as marcas do estereótipo. Carter escreveu uma
versão contemporânea de Chapeuzinho Vermelho ressaltando a sexualidade feminina e o
poder de atuação.

REFERÊNCIAS

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CARTER, Angela. The bloody chamber and other stories. London: Vintage, 1995.

______. Bluebeard. London: Penguin Classics, 2011.

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DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural


francesa. Trad. Sônia Coutinho. Rio de Janeiro: Graal, 1986.

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Disponível em: http://www.revistagenero.uff.br/index.php/revistagenero/article/view/254.
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GREER, Germaine. A mulher eunuco. Trad. E.Malheiros. São Paulo: Editora Artenova,
1970.
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HIRATA, Helena; LABORIE, Françoise; DOARÉ, Hélène Le; SENOTIER, Danièle.


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23
MENDES, Mariza B. T. Em busca dos contos perdidos: O significado das funções
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por ele. Trad. Waldéa Barcellos. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.

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