Angela Carter Estudo
Angela Carter Estudo
Angela Carter Estudo
contos de fadas
CARTER, Angela. 103 contos de fadas. Tradução Luciano Vieira Machado. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007. 504 p. ISBN 8535910891.
Para a escritora inglesa Angela Carter (1940- as mais difíceis de ilustrar. Podemos observar que as
1992), todos os aspectos da cultura estão em pé de ilustrações fazem parte das histórias e a ausência
igualdade. Em entrevista a John Haffenden, em desse “vocabulário visual” é, sem dúvida, uma perda
1985, afirma: “Se os contos de fadas são a ficção dos nesse novo formato.
pobres, então talvez Paraíso Perdido seja o folclore dos Outro detalhe curioso, na edição brasileira, é um
letrados” (Haffenden, 1985, p. 85, tradução nossa). adesivo na capa, que traz a definição do Observer para
Nessa mesma entrevista, falando a respeito do uso a coletânea: “Uma seleção mundial de histórias [para
do folclore, Carter observa que, na Inglaterra, o adultos] brutais e divertidas”. Sem dúvida, essa é
escritor tem de inventar muito mais do que uma advertência aos leitores de que “essas histórias
Márquez ou Rushdie, já que, naquele país, não há não são para crianças”, conforme observa Corinna
uma classe camponesa supersticiosa e iletrada com Sargood. Ela afirma que muitas pessoas reclamavam
uma rica herança ficcional obscura. com ela que as histórias são inadequadas para
Nas duas coletâneas que organizou para a Virago, crianças. No entanto, penso que a expressão “para
no início da década de 90, Carter reuniu contos adultos”, com certeza, não agradaria à própria
folclóricos das mais variadas regiões: Índia, Carter. Ela não gostava da definição dada pela edição
Marrocos, Palestina, Sibéria, Suriname, Japão, entre norte-americana de The Bloody Chamber,
muitas outras. O primeiro, The Virago Book of Fairy classificando seus contos como “contos de fadas para
Tales, foi publicado em 1990 e reimpresso, nos adultos”, expressão que achava “horrorosa”
Estados Unidos, com o título The Old Wives’ Fairy (Haffenden, 1985, p. 84).
Tale Book. O segundo, publicado em 1992, como Na introdução, Carter declara que não reuniu
The Second Virago Book of Fairy Tales, recebeu, nos esses contos para mostrar que somos todas irmãs sob
Estados Unidos, o título de Strange Things Sometimes a pele, mas quis demonstrar a riqueza e a diversidade
Still Happen. com que o feminino é representado, na prática, pela
Em 2005, a Virago reuniu as duas coletâneas em cultura “não-oficial”: suas estratégias, seus enredos,
Angela Carter’s Book of Fairy Tales, agora publicado, no seu trabalho árduo. Carter ressalta que
Brasil, pela Companhia das Letras, com o título 103 as histórias têm apenas uma coisa em comum: todas
contos de fadas, traduzido por Luciano Vieira giram em torno de uma protagonista. Seja ela
Machado. inteligente, corajosa, boa, estúpida, cruel, sinistra ou
Para quem tem contato com os dois livros na sua tremendamente infeliz, ela está sempre no centro do
palco, tão vasta quanto a vida (Carter, 2007, p. 17).
apresentação inicial, uma primeira coisa salta
imediatamente aos olhos no novo formato: a A reunião dos contos, em grupos, dá a dimensão
ausência das inconfundíveis ilustrações de Corinna dessas protagonistas: “Corajosas, ousadas e obstinadas”,
Sargood, que formam um conjunto precioso com o “Mulheres espertas, jovens astuciosas e estratagemas
texto de Carter. Em entrevista à Cristina Bacchilega desesperados”, “Tolos”, “Boas moças e o que acontece
(2001), publicada originalmente em 1998, Sargood com elas”, “Feiticeiras”, “Famílias infelizes”, “Fábulas
fala de sua “amizade doméstica” de 30 anos com morais” (do primeiro livro) e “Mentes Fortes e
Angela Carter e da forma como trabalharam, em Artimanhas”, “Maquinações: feitiçarias e trapaças”,
conjunto, nos dois livros. Comenta que Carter “Gente bonita”, “Mães e filhas”, “Mulheres casadas”,
gostava mais das histórias impudicas ou engraçadas, “Histórias úteis”, do segundo.
A atividade de Carter como editora desses contos vento e ao sol. Fala dos ritos de passagem, do
revela sua perspicácia no tratamento do feminino, a caminho da mulher e de sua coragem de entrar no
qual pode ser observada em sua própria escrita. Os bosque, saindo do espaço doméstico claustrofóbico.
contos de fadas sempre estiveram presentes na obra Por isso, fala por Angela Carter, cujas personagens
de Carter. No início da carreira, em 1970, a autora femininas buscam o ar livre, o espaço da amplidão, a
publicou Miss Z, the Dark Young Lady e The Donkey zona selvagem.
Prince, contos de fadas feministas, nos quais se
podem observar heroínas que se desdobram em seus Referências
romances e contos. BACCHILEGA, C. In the eye of the fairy tale: Corinna
Dentre os 103 contos que agora chegam ao Brasil, Sargood and David Wheatley talk about working with
podemos escolher um que resume bem o espírito da Angela Carter. In: ROEMER, D.M.; BACCHILEGA, C.
típica heroína carteriana: “Vasilissa the Fair”, (Ed). Angela Carter and the Fairy Tale. Detroit: Wayne State
originalmente inserido em The Second Virago Book of UP, 2001. p. 225-241.
Fairy Tales. O título, em inglês, do conto russo aponta a CARTER, A. 103 contos de fadas. São Paulo: Companhia
plurissignificação e a dificuldade de definição que essas das Letras, 2007.
personagens femininas apresentam, na sua resistência a ESTÉS, C.P. Mulheres que correm com os lobos: mitos e
qualquer enquadramento. O adjetivo “fair”, que tem histórias do arquétipo da mulher selvagem. Tradução
múltiplas acepções, foi aqui traduzido como “a Waldéa Barcellos. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
formosa”, mas, em Mulheres que correm com os lobos HAFFENDEN, J. Novelists in interview. London: Methuen,
(Estés, 1994), a tradutora preferiu, talvez mais 1985.
acertadamente, “a sabida”.
Vasilissa é uma história de iniciação da mulher,
em que ela usa sua intuição para resolver as tarefas Received on January 10, 2008.
que lhe são atribuídas, sem medo de ficar exposta ao Accepted on March 28, 2008.