Texto 10 - Contos de Fadas
Texto 10 - Contos de Fadas
Texto 10 - Contos de Fadas
Marly Amarilha
Educação - UFRN
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o enredo é mais ágil e menos dramático, tendo em vista que não se decide
sobre o destino final dos personagens. Nas narrativas da HQ os personagens
têm a oportunidade de consolidarem, mais uma vez, seu perfil no universo a
que pertencem: Mônica reafirma sua liderança; Cebolinha reafirma sua
ingenuidade e assim, sucessivamente. As narrativas em quadrinhos
sobrevivem da redundância sobre seus personagens. Os personagens da
Turma da Mônica não passam por metamorfoses profundas como ocorre com
os personagens dos contos de fadas. Cinderela passa de submissa e
explorada a princesa; de desprezada a admirada enquanto Magali continuará a
ser gulosa a cada nova história.
No caso em estudo, foram selecionadas histórias que apresentam
intertextualidade paródica. Lembremos que a intertextualidade se manifesta
pela relação dialógica entre textos que pode ocorrer por alusão, por imitação,
por citação, por inversão e tantos outros procedimentos. A intertextualidade se
torna paródica quando nessa relação se introduz a ironia. E a ironia acrescenta
a carga avaliadora ao modelo imitado. Mas, pode também manter-se em nível
de diversão, desconstruindo padrões estáveis de idéias, argumentos, atitudes
que gera o riso. A paródia é uma intertextualidade transformadora, pois de fato,
muda a relação com os textos dos quais se origina e muda a perspectiva sobre
a trama vivida.
Os pares de histórias selecionados na pesquisa oferecem exemplos
dessa intertextualidade paródica, sendo os contos de fadas as narrativas que
relatam dramas das quais as histórias em quadrinhos são sua reinvenção bem
humorada.
Para facilitar a compreensão da análise que segue, é conveniente
lembrar ao leitor o clássico enredo de Cinderela. Para a pesquisa, escolheu-se
a versão traduzida por Tatiana Belinky a partir do original dos Irmãos Grimm,
que recebeu o título de “A Gata Borralheira”.
Um homem rico fica viúvo com uma filha. Após certo tempo se casa
novamente com uma mulher que tem duas filhas. A nova esposa e suas filhas
rejeitam a menina fruto do primeiro casamento e passam a persegui-la.
Vestiram-na com vestes pobres e a deixaram viver ao lado do fogão e lhe
apelidaram de “Gata Borralheira”. Certa vez, o rei promoveu três bailes em que
todas as moças bonitas do reino foram convidadas para que dentre elas fosse
escolhida uma noiva para o príncipe. A Gata Borralheira foi impedida de ir por
sua família. Entretanto, ajudada por poderes mágicos Borralheira é vestida de
forma deslumbrante, vai para a festa e encanta ao príncipe. Por três noites a
magia se repetiu. Na última, na pressa em deixar o palácio, Borralheira perde
um pé do seu sapato de ouro. Na tentativa de reencontrar a moça de sua
escolha o príncipe empreende uma busca no reino para achar o pé que calçava
o sapato perdido. Depois de algumas tentativas enganosas, o príncipe
finalmente encontra sua noiva.
Na história original, não existe o prazo de validade para o encantamento.
A magia se desfaz no momento que Borralheira decide que é hora de voltar
para casa. A informação de que à meia-noite os efeitos mágicos perderiam
efeito e a invenção da abóbora que se transforma em carruagem são
acréscimos feitos pela versão de Walt Disney para o desenho animado. Na
história de “O porquinho borralheiro” a paródia se faz tomando como referência
a versão de Hollywood. Entretanto, como nossa meta é fazer com que os
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alunos tenham acesso ao patrimônio literário a leitura feita foi do conto em sua
versão original escrita.
Vejamos então, a história que faz paródia à “Gata Borralheira” que é
“Cascão em: O porquinho borralheiro”.
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A Turma da Mônica é um universo ficcional quadrinizado em que domina
o humor. Seus personagens vivem enredos em que ficam evidenciadas suas
fragilidades como criaturas em processo de crescimento. Mônica, a líder de um
grupo de crianças com idade de 8 a 10 anos, aproximadamente, é dominadora
e atrai para si freqüente sentimento de hostilidade. Cascão resiste bravamente
à civilizada prática do banho. Magali se orienta pela gula. Cebolinha, constante
vítima do poder de Mônica, expõe ao mundo sua dislexia. Cada qual com sua
imperfeição, os personagens dessa turma vivem histórias em que fica
sedimentado o conceito aristotélico, de que na comédia o homem se apresenta
em condição desfavorável.
O mesmo não pode ser dito dos personagens que freqüentam os
clássicos contos de fadas. Originários de narrativas populares, criadas para
encantar seu público por longas temporadas de colheita e introduzir as novas
gerações nos conhecimentos da comunidade, os contos de fadas são
narrativas que mostram o homem conduzido pela virtude, pela conformação à
dor, mas é um dia recompensado com a felicidade duradoura. A dignidade com
que o personagem do conto de fada vive seu drama mostra uma criatura
heróica, elevada, expressão aristotélica do homem em sua melhor condição.
Esse paralelo de perspectivas sobre o mesmo enredo possibilita ao leitor a
experiência de contemplar diferentes trajetórias do destino humano e aprender
com elas. O leitor realiza pela leitura de ficção o julgamento que lhe propicia o
avanço sobre a relação com o real, com sua subjetividade e com as escolhas
que a vida poderá exigir.
No estudo comparativo que o desenho da pesquisa propiciou aos
pequenos leitores, a paródia teve papel fundamental. Como se sabe, a paródia
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recria a partir de um modelo original uma história paralela que, ao mesmo
tempo em que imita esse modelo, quebra com expectativas e visões
automatizadas gerando o riso. E essa imitação é justamente um dos recursos
que vinculam o contemporâneo ao passado colaborando para o movimento de
vai e vem que o leitor da paródia faz no ato de ler esse gênero. Provocados
pela leitura do gênero a que eram familiarizados, os quadrinhos, a leitura dos
textos dos contos de fadas tornou-se desejada por aquelas crianças. Fazendo
o trajeto do que conhecem, a HQ, para a descoberta das referências de
histórias ali citadas, os leitores atualizam o patrimônio literário e se tornam
assim, leitores mais competentes. Com razão Hutcheon (1985) afirma que “a
paródia é o guardião do legado artístico, definindo não só onde está a arte,
mas de onde ela veio” (p.97). Por esse percurso metodológico comparativo, a
literatura chegou bem humorada para essa nova geração de leitores.
Essa articulação necessária entre história original e paródia assinala a
relevância de se conhecer os clássicos. A essa questão Ana Maria Machado
(2004, p.80) escreveu:
Conhecer os contos de fadas [...] permite também que se possa
aproveitar plenamente sua ampla descendência, já que esse gênero
foi um dos mais fecundos no imaginário popular. Não apenas em
novelas e filmes que continuam contando a história de Cinderela ou
do Patinho Feio em outra embalagem, mas na própria literatura que a
eles se volta inúmeras vezes...
e acrescentaria, nos quadrinhos também.
Conforme, fica evidenciado a paródia se realiza pelo processo estrutural
de intertextualidade. Em decorrência, exige do leitor sofisticado trabalho
arqueológico de reconhecimento de um texto original ao qual o texto que imita
se opõe e recria. No confronto que se instaura entre esses textos, o texto
paródico ironiza o modelo do qual substrai sua própria existência. Ao repetir o
enredo do conto tradicional em “O porquinho borralheiro” desvela-se um dos
méritos da paródia, a economia narrativa (MACHADO, 2002, p.81). Sendo um
texto dependente de uma matriz, não lhe cabe repetir simplesmente o enredo.
Na abordagem da tradição, a paródia permite-se alusões, citações, inversões e
assim, estabelece com o leitor uma cumplicidade a partir do que compartilham
enquanto repertório textual. A paródia convoca o leitor a estabelecer, com a
brevidade de uma faísca, relações fundamentais para o avanço da narrativa.
Apela, portanto, do ponto de vista cognitivo para a memória do leitor,
instigando-o a acionar processo de leitura multidirecional, pois enquanto
acompanha o desenrolar da história que lê, o leitor deve, continuamente, fazer
inserções do patrimônio literário solicitado. O riso só chegará se as referências
ao texto matriz forem reconhecidas, pois só chegamos ao deleite da imitação
na paródia porque conhecemos os originais.
Como se observa, a paródia coloca em circulação textos que estão no
imaginário do escritor e do leitor e possibilita uma abertura em rede do uso
fertilizante dos clássicos.
Uma estratégia usada pelo autor Maurício de Sousa, como Walt Disney,
quando realiza paródias é a ação performática dos personagens da Turma da
Mônica em enredos clássicos. Isto é, preservando atributos de sua identidade
ficcional na história em quadrinhos, os personagens imitam os enredos
clássicos realizando nesse processo a transfiguração do gênero. Ao assim
agirem, provocam o rebaixamento dos protagonistas tradicionais, como ocorre
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com “O porquinho borralheiro” história que faz homologia com o enredo de “A
Gata Borralheira”. Esse recurso performático é por si só um disfarce paródico
que ao brincar de esconde esconde com o modelo original provoca o retorno a
ele com redobrado interesse, como ocorreu com os sujeitos da nossa pesquisa.
No universo quadrinizado, via de regra, os personagens são
reconhecidos por sua imagem e por atributos caricatos de personalidade que
provocam sua imediata identificação. Esse é o caso da Turma da Mônica.
Como se sabe, Cascão é arredio à água e à higiene. Na história em que é o
personagem principal “O porquinho borralheiro”, Cascão assume o enredo
destinado à Gata borralheira, entretanto, não se constrange de viver entre a
sujeira, pelo contrário, essa condição lhe apetece. Em contraste à sua
congênere, a gata borralheira, que é vítima da sujeira, Cascão carrega para o
desempenho paródico o atributo principal de sua identidade quadrinizada, que
é o desafeto incondicional por qualquer aproximação com limpeza. Entretanto,
mantém do enredo original a condição de desamparo e servidão sendo
continuamente perseguido pelas irmãs adotivas. Enquanto Cinderela vive sua
virtude de maneira triste, Cascão trabalha, age e não quer saber de discurso
condescendente, como é mostrado na seqüência dos quadros 8 a 11. Pelo
contrário, enfrenta com coragem seu destino e se acha no direito de manifestar
seu desejo e mesmo antecipar sua alegria, como, por exemplo, na cena em
que ensaia passos de um forró.
Outro que merece ser comparado no par de histórias é o nome. No
enredo original, a personagem não possui nome. Essa condição anônima
acentua o perfil de subalterna e humilhada de Cinderela, visto que a função
primordial do nome próprio é a individuação do personagem. Essa estratégia
mostra que a personagem sequer alcança a individualidade de ter um nome.
Em contrapartida, recebe das irmãs um apelido pejorativo “gata borralheira” em
referência à situação de trabalhar e dormir junto ao fogão, se sujando de
cinzas. O apelido reafirma a condição social e familiar da personagem. No
quadrinho, “O porquinho borralheiro” é um apelido para um personagem que
tem um nome que é ele próprio um deboche, Cascão. Entretanto, ao contrário
da Borralheira, Cascão ostenta com altivez seu nome que reafirma
positivamente sua identidade, de que é mesmo sujo e gosta de assim ser. Por
outro lado, ele é um menino. Essas duas inversões: no tratamento à identidade,
e à troca de gênero da personagem da narrativa original criam as condições
necessárias ao conflito semântico de onde deriva o riso. Como todo diálogo
implica em disputa, assim também ocorre na intertextualidade paródica. Em
decorrência, no vai e vem do processo de significação da história quadrinizada,
o leitor é surpreendido com uma nova versão do enredo que já cristalizara.
Observa-se nesse processo, que a dependência das referências originais
condiciona a recepção da história em quadrinhos como paródica e, por
conseguinte, condiciona o seu humor.
Um aspecto que entendo participa de forma sutil, mas definidora na
intertextualidade paródica é o ritmo da narrativa. O desenvolvimento das ações
ganha extrema agilidade nos quadrinhos como recurso que dá mobilidade aos
personagens e leveza às situações. Os personagens quadrinizados transitam
de um estado de angústia para a alegria com bastante naturalidade. Não se
conhece profunda auto-piedade e desconsolo no personagem que se
movimenta o tempo todo. Cascão em “O porquinho borralheiro” é um caso. A
despeito de ter os pais seqüestrados, e, portanto, se tornar órfão como a
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Borralheira, poucas vezes a narrativa enfatiza o desamparo em que se
encontra o personagem e aí o ponto de vista do narrador é rejeitado pelo
próprio personagem. Nesse sentido, podemos dizer que os quadrinhos
mostram a “leveza como reação ao peso de viver” (CALVINO, 1990, p. 39).
A Gata Borralheira também tem seus momentos de leveza. Em meio aos
maus tratos e inúmeras solicitações das novas irmãs ela consegue participar
dos bailes oferecidos pelo príncipe. Mas a leveza da Borralheira é conquistada
por força de elementos fantásticos que vêem em seu socorro. Entretanto, até
que experimente esses momentos, a narrativa se recusa a avançar
apresentando sucessivos episódios em que a paciência da personagem é
testada. São as tarefas exigidas pela madrasta e pelas irmãs. Os três bailes do
príncipe. A procura pela moça cujo pé calçara o pequenino sapato de ouro. A
narrativa está impregnada de episódios de angústia, de desamparo, de provas.
Esses elementos dão dramaticidade à história, promovem a duração do
sofrimento da personagem e valorizam seu perfil heróico. Todo esse processo
dá densidade semântica à narrativa, desafia o leitor a explorar
imaginativamente a condição experimentada pela personagem. O ritmo
dramático procura a coincidência da experiência psicológica com a duração da
narrativa. Quando colocadas em confronto, esse par de histórias, uma clássica
e sua paródia, o leitor tem a possibilidade de conhecer as perspectivas de
drama e leveza com que a vida pode se apresentar. Colher dessa experiência
aprendizado, é um tesouro precioso, promove a educação do olhar e das
escolhas através da ficção.
Para nossa surpresa, após o término da pesquisa, em sondagem
exploratória, perguntamos aos alunos de qual modalidade haviam gostado
mais, quadrinhos ou literatura. Muitos preferiram a literatura. Os argumentos
apresentados foram de que “acontecem mais coisas”, “a gente imagina mais”.
Ao que parece, esses aprendizes estão descobrindo que não só de leveza se
faz a vida.
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REFERÊNCIAS
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