Franklin Leopoldo e Silva - O Outro
Franklin Leopoldo e Silva - O Outro
Franklin Leopoldo e Silva - O Outro
Como ocorre e.
F,osona se ocupa, l ilffi:i:: ;:.:::T:,.;,n];::
meiros a encontrar motivo de perplexldade
na relação
entre o mesmo e o outro. A princípio,
duas porlçá.,
absolutamente contrárias traduziram
o impasse: de um
lado, a afirmação absoluta do
ser, necessariamente
sempre o mesmo, sem nenhuma
alteração (parmênides,
c. 530-460 a.C.); de outro,
a afirmação da mudança, da
transformação e da instabilidade
de tudo que existe
(Heráclito, c. 54O-4TO
a.C.). percebe_se a ênfâse,
no pri_
meiro caso, na identidade do ser,
e, no segundo, no
fato de que tudo que é torna_se
ouúo. 0 problema que
os sucessores desses primeiros
filósofos tiveram de en_
frentar consistia no fato de que,
como já dissemos, a
experiência da percepçâo e do p.rrulrr.rrto
indica que,
de algum modo, as duas perspectivas,
embora antagô-
nicas, estâo presentes no nosso
contato com o mundo.
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Foi preciso então, como fez platão (428-348
a.C.), preciso orticulor a oposição para que o conhecimento
nào apenas fixar-se no mesmo
como garantia da ver_ possa superar aquilo que aparece a princÍpio como con-
dade, mas tambem pensar o estatuto
do outro, isto e, o tradição. Articular significa: preservando aquilo que
tipo de realidade relacionado com a diferença.
Essa laz com que algo seja eie mesmo, encontrar, todavia, o
poiaridade apresenta-se de modo
mais intenso na rela_ modo de apreendê-lo como outro, de maneira que o
ção que constitui, por excelência, o antagonismo
dos lugar da diferença não faça desaparecer a identidade.
contrários: o verdadeiro e o falso.
Assim, torna-se possível entender a mudança e a apa-
Como ocorreu em um dos diálogos
escritos por rência, alem da identidade e da realidade. posso, então,
Platão, suponhamos que o filósofo
diz a verdade e que me situar na multiplicidade das imagens sem perder de
o sofista diz o falso. poderemos,
entâo, definir o clis_ vista a unidade da realidade em si mesma. Quando di-
curso do fllósofo como verdadeiro,
entendendo_o como zemos: "isto e uma imagem", queremos dizer que a
real e como expressão da realidade.
Mas o que diremos imagem e, ou existe. Toda a questão está em entender
do discurso do sofista? por ser falso,
será inexistente? esse modo de existência. A fala do sofista e produtora
Assim seria no caso da aflrmação
eterna e necessária de imagens, e seu elemento e a multiplicidade; ele não
do ser na sua imutabilidade, pois
seu contrário só po_ volta seu pensamento para a unidade, e, nesse sentido,
deria acontecer como a negaçâo
do ser. Mas o discurso diz o falso. 0 filósofo, por sua vez, considera as ima-
do sofista está aÍ, e é convincente
para muitos. Será, gens e a multiplicidade das aparências, mas seu obje-
pois, tão real quanto o discurso
verdadeiro? Mas, nesse tivo e atingir a unidade, isto e, a essência ou a realidade.
caso, não teríamos de afirmar
o contrário do ser, quer Para o soflsta, a realidade e sempre outra; para o filó-
dizer, a existência do não_ser?
sofo, essa multiplicidade de outros deve ser questio-
Essa questão delicada, posta pela
relação entre o nada como forma de busca da unidade do mesmo.
filósofo e seu outro, o sofista, abala
profundamente a A experiência imediata e a do movimento e da
tranquilidade lógica com que se
afirmava o ser. será mudança. Se nos ativermos a este mundo percebido, a
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compartilhariamos a mesma natureza. cia do outro da mesma maneira que habito a minha.
A reflexão, isto e, a busca metódica da cefteza no Nesse sentido, se a certeza relativa à própria consciên-
âmbito da própria mente, leva-nos a encontrar com cia for o único ponto de parlida, o sujeito corre o risco
total evidência a existência do Eu. Entretanto, por ser de permanecer encerrado nessa representação originá-
a reflexão a exploração da dimensão subjetiva, ela não ria, absolutamente cefto de si mesmo, mas tambem
pode obter a mesma certeza no que concerne à exis- prisioneiro dessa certeza. Essa situação recebeu, na
tência do outro. Sou imanente a mim mesmo, mas sou Filosofia, a denominação de solipsismo. A proximidade
estranho ao outro, no sentido de que não tenho acesso imediata do sujeito a si mesmo acarreta a distância,
direto à sua consciência. talvez intransponível, entre ele e o outro.
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Quando a filosofia contemporânea afirma, numa ::-.da: tem de construi-la ao longo do processo exis-
de suas vertentes mais imporlantes que e o existencia_ .;:iiai, isto e, da sua história. Nâo há um "si mesmo"
lismo, a precedência da existência em relação à essên_ :ado no inicio; trata-se de algo a ser alcançado, reali-
cia, isto e, uma inversão da perspectiva tradicional. :ado na existência. Nessa trajetória, que deveria ser de
esse quadro tende a ser visto de outra maneira. Na fi_ ,urorrealização, o sujeito depara com a existência de
losofia de Descartes, o sujeito se conhece de modo lutros, ou seja, de outras liberdades, de outros proje-
cefto e evidente quando a reflexão atinge um atributo :os, de outras intenções que procuram, igualmente,
que não pode de forma alguma ser separado clo sujeito,
realizar-se. Náo e dificil entender como se relacionam
constituindo, por isso, a sua essência, aquilo que o de_ dois objetos determinados, por exemplo, dois fenôme-
fine e determina. Numa filosofia existencialista como nos naturais. Mas e quase impossível compreender
a de Jean-Paul Sartre (1905-1980), não se concebe ne_ como se podem relacionar dois sujeitos livres, porque
nhuma essência previa, mas pafie-se da existência, a a liberdade, quando e absoluta, tende a uma expansão
princípio indeterminada; e, no decorrer dessa existên_ indefinida, em princípio incompatÍvel com o fato de
cia, o próprio sujeito, por meio de sua liberdade, defi_ que ela teria de ser limitada por outra liberdade. Tome-
nir-se-á a partir de projetos que formula para si mesmo. mos um exempio célebre, a relação entre o senhor e o
Para que o sujeito possa de fato escolher o caminho escravo. A liberdade do senhor existe na medida da
entre as múltiplas possibilidades que se apresentam, e submissão do escravo; o senhor se aflrma como livre
preciso que a liberdade seja total: e preciso que a sub_ na proporção em que o escravo não o e. Se não tenho
jetividade seja igual à liberdade.
o escravo, perco a minha condição de senhor.
Quando, porem, o ponto de partida e a existência No limite, se a subjetividade e liberdade e se esta
e não a essência, o sujeito continua ainda as voltas e absoluta, como afirma o existencialismo de Sartre,
com ele mesmo, e de um modo mais difÍcil, porque não então só poderia haver um único sujeito livre; todos os
pode contar com uma identidade previamente afir_ outros seriam objetos sobre os quais esse sujeito exer-
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ceria sua liberdade. Assim surge, nesse contexto, o . .,-stência, isto e, na sucessão das escolhas e dos pro-
problema da intersubjetividade: a única possibilidade -:-rrs por meio dos quais tento me constituir a mim
de estabelecer relação com o outro e tomá_lo como :-.sno. Dito de outra maneira, a falta de uma determi-
objeto; a relação verdadeiramente intersubjetiva (entre :,acào essencial faz com que o sujeito jamais esteja "em
sujeitos) seria impossível. Na relação que o outro man_ mas sempre projetado para fora, na direção do que
tem comigo, a sua tiberdade se afirma à medida que a '-".
.ira a ser - para si. Isso equivale a dizer que o sujeito
minha se anula: o outro tende a me determinar, fa_ o que seria "ele mesmo") está sempre em vias de se
zendo de mim um objeto, o que significa a paralisação :ransformar em outro. Assim, cada um não depara ape-
de meu processo existencial numa imagem definitiva. nas com os outros, mas cada sujeito se vê, a cada mo-
0 outro me constitui e me define atribuindo_me de fato mento, diante do outro que está para se tornar.
uma essência que, de direito, não possuo. Essa instabilidade do processo existencial e decor-
Obserue-se que, embora o pensamento de Sartre se rência da identificação entre subjetividade e liberdade.
oponha ao de Descartes na exata medida em que o Como somos o que fazemos de nós mesmos, ou o que
ponto de partida na existência opõerse ao ponto de fazemos com o que fazem de nós, cada determinação
paftida na essência, ambos têm em comum o sujeito que assumimos, cada deflnição que damos de nós mes-
como origem da reflexão; ambos confiam na segu- mos e relativa ao tempo e à situação vivida: a situaçáo
rança oferecida pelo princípio da subjetividade, em_ pode mudar, assim como as significações que atribuí-
bora o entendam de modo diverso. 0 que pocleria nos mos aos fatos e pessoas que constituem a nossa expe-
levar a pensil que adotar o sujeito (o Eu) como princi_ riência. Transformamos a nós mesmos quando interio-
pio equivale a optar pelo solipsismo. rizamos o que está fora de nós; e transformamos o
Do fato de que o Eu não possui essência que o mundo, ao menos na sua significação, quando exterio-
determine decorre ainda outra consequência: não tenho rizamos nossos desejos e nossos projetos. 0 sujeito e
como assegurar a permanência do Eu no processo de uma contínua construção que depende, sempre e âo
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mesmo tempo, dele e dos outros; por isso ele e sempre sr deve entender a instabilidade como uma categoria
outro, puro processo, e nunca algo consolidado. :rt-inidora: ela e o modo pelo qual o sujeito faz a ex-
A ideia de que o sujeito e uma construção, uma :enência de si, a vida subjetiva.
tarefa existencial que porventura nunca chegará ao A noção de experiência e chave importante para a
fim, está presente no pensamento de paul Ricoeur :,:mpreensão do processo de tornar-se sujeito. A reu-
(1913-2005). E o requisito para que tal tarefa seja as_ :,iào de erperiência e subjetiuidade permite, de um
sumida autenticamente e a exclusão dos pressupostos -ado, conferir à noção de experiência uma dimensão
de identidade e de totalidacle. 0 sujeito nunca é idên_ niaior do que a relação objetiva com o mundo: expe-
tico a si mesmo, mas constantemente uem a sel", como riência significa aquilo que se é, e não apenas aquilo
uma existência narrada para si e que se constitui nessa que se faz. Por outro lado, a associação de subjetivi-
trajetória diferenciada. 0 sujeito nunca se constituirá dade com experiência nos leva a considerar o caráter
totalmente como realidade fechada em si mesma, por_ dinâmico da noção de sujeito: não se trata de uma
que a subjetividade não e mais do que a ação de tor_ entidade metafisica, formal ou mesmo psicológica, mas
nar-se sujeito, constantemente reiterada. E a alteridade do modo de ser da realidade humana considerada
faz pafte desse processo, porque a ação de tornar-se como existência. Essa existência, em seu caráter pro-
sujeito inclui a constante alteração de si e nunca a cessual, e contínua alteração de si, constante constitui-
repetição do mesmo. Nesse sentido, o tempo e a histó_ ção de si: passagem ao outro, que faz com que o sujeito
ria não são acidentais: subjetividade, temporalidade e se reconheça no tempo e náo apesar do tempo. E pre-
historicidade não se separam e não há nenhum predi_ ciso tambem entender que o sujeito faz-se outro em
cado capaz de definir o sujeito definitivamente, porque função dos outros, isto e, o processo de tornar-se su-
o seu ser consiste num contínto fazer-se. Fica assim jeito e vivido em regime de intersubjetividade, e a ex-
tambem excluída a estabilidade que, por vezes, se pen- periência subj etiva e sempre exp eriência intersubj etiva.
sou como inerente ao "si mesmo"; por outro lado, não As relações humanas são constitutivas: o que venho a
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ser depende do modo como vivo com os outros, do -n'ersão, questionando a preffogativa do Eu na Mo-
modo como a experiência se desdobra em amor, ami- iernidade, como tambem modifica profundamente o
zade, conflitos e divergências. Assim, se quisermos eor da relação que era vista como a mais importante,
continuar a dizer que o sujeito e ponto de partida, te-
" do sujeito consigo mesmo, passando a considerar que
remos de aceitar que esse ponto de partida acontece a a relação intersubjetivâ e a mais relevante e, mais do
cada momento, na sucessão do processo de reconheci- :Le isso, que, nessa relação, e o outro, e não o Eu, que
mento inseparável da temporalidade. :tsempenha o papel principal. Em outras palavras,
0 ponto de partida pode, entretanto, ser pensado - principio metafísico da identidade e substituído pelo
de outra maneira. A segurança que o sujeito oferece : incipio etico da alteridade.
deriva de que a certeza acerca de si seria a mais ime- Essa aiteração do princípio deixa em plano secun-
diata, porque, por mais problemático que seja o vín- reno o problema teórico do Outro, isto e, a demonstra-
culo com as coisas exteriores, a coincidência de cada :ào de sua existência, sempre necessariamente poste-
sujeito com ele mesmo parece óbvia. No entanto, se :-:,r a demonstração de minha existência. Não e preciso
abandonarmos a busca desse tipo de certeza e conce- r je a presença do outro seja uma evidência; basta que
dermos prioridade à relação com o outro, tomando-a .-. seja uma cetteza vivida e, mais do que isso, algo
como ponto de partida, a presença do outro assume o : *e devo assumir para dar sentido a minha própria
caráter primordial que antes se atribuía a si mesmo. :.--srência. 0 espanto inicial que Descartes teve ao per-
Pafto, então, do fato de que estou sempre em presença :.rer em si a ideia do Deus infinito deu imediatamente
do outro, e isso e originário e inevitável: o outro está -:ar ao exame racional do conteúdo e da proveniên-
sempre diante de mim, e essa presença e tão forte que --; dessa ideia, com a finalidade de entender sua pre-
me constitui. 0 outro está antes do Eu. >.rca em mim. Mas podemos tambem sentir, diante da
Essa perspectiva, que e a de Emmanuel Levinas ::tsenca de outro ser finito, a perplexidade diante da-
(1906-1995), não apenas provoca uma significativa ::r1o que não podemos explicar inteiramente, mas que
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fazer- em primeiro lugar se minha ação atende à exigência de
é, ao mesmo tempo, a força que me constitui ao
responsabilidade para com o outro. Exigência táo radi-
-me ser na relação com ele. Note-se que substituir o
cal que dispensa a reciprocidade: não me responsabi-
ponto de partida no Eu pelo caráter originário da rela-
a questáo mais fácii de ser lizo pelo outro esperando que ele faça o mesmo por mim;
ção com o outro não torna
responsabilizo-me por ele como dever ético absoluto.
resolvida. A presença do outro mantêm-se indecifrável
Compreender que o outro é referência da üda
do ponto de vista teórico. 0 que muda e a significação
moral e principio orientador da existência incide pro-
do principio, que agora e visto no caráter imediato da
fundamente sobre o entendimento da condição hu-
relação e na força com que ela se impõe' E esse o sig-
marla. Já não e a reflexão, no sentido do retorno do
nificado do princÍpio érico de alteridade' Não se trata
sujeito a si mesmo, que fornecerá os parâmetros fun-
de conhecer o outro; trata-se de viver por ele e' tam-
damentais do conhecimento do homem. Trata-se,
bem, de morrer Por ele,
agora, de uma abertura àquele que não sou eu e, no
Essa modificaçào conduz a outra de grande al-
limite, de uma renúncia ao Eu como polo irradiador de
cance. Como, desde o princÍpio' o Eu está constituído
valores. Não é a consciência de si que dá sentido ao
pelo outro, o mais importante não e a liberdade exer-
mundo, mas a consciência do outro que constitui o
cida absolutamente e que encontra o outro como um
critério diretor da existência de cada sujeito, que se
obstáculo que poderia ser vencido pelo procedimento
prio- forma em sua integridade não apenas em relação ao
de objetivação do outro sujeito' Pelo contrário' a
outro, mas em virtude da existência do outro.
ridade do outro faz com que a responsabilidade por ele'
0 alcance da transformaçáo implicada nessa pers-
que assumo como decorrência de sua simples presença'
res- pectiva mostra-se em toda a sua amplitude quando
seja o criterio mais relevante de conduta' Assim' a
no exis- consideramos que esse outro não é, de forma alguma,
ponsabilidade não decorre da liberdade, como
o próximo e o familiar, mas o estranho que devo esfor-
tencialismo, mas a liberdade decorre da responsabilidade'
pois, acerca de tudo que posso fazer, devo considerar çar-me para compreender. Não devo esperff que o
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outro seja à minha imagem e semelhança. Assim, não Conctusão
e a lógica nem a metafísica que nos conduzem a uma
universalidade efetiva, mas o caráter primordial da re-
Iação etica. 0 racionalismo moral, quando aspira à
universalidade, de modo geral o faz em nome da ideia
de humanidade, como em Immanuel Kant (172+-1804)l
os criterios orientadores de minhas ações devem poder
\ questão do outro e um grande testemunho de
ser vistos como universais, pois, do contrário, os mo- -.-. a Fiiosofia não deve ser vista como um exercÍcio
tivos de agir seriam do âmbito do interesse próprio; :-r,.o separado do mundo. Vimos que, desde o início,
assim, todo homem deve ser visto como fim e jamais .-- Platão, o problema se impõe, desafiando as prerro-
coloca
como meio. Mas a universalidade formal da ideia não =;-n-as de um racionalismo formal, porque nos
sustenta a efetiva relação com o outro; pode apenas r.,nte de uma realidade incontornável. Assim, e neces-
fornecer uma lógica da ação. A universalidade real ..no vincular a questão da alteridade às situações con-
aparece, segundo Levinas, na fcLce do outro, isto e, na .:etas em que ela vivenciada e a partir das quais pode
e
presença concreta daquele que e a razáo de minha se tornar objeto de reflexão. Por exemplo, qual a rela-
existência no plano etico. ;ào clue se pode estabelecer entre indivíduo e comuni-
dade? 0 indivíduo se define pelos laços comunitários
que constituem o lastro da singularidade ou a comuni-
clade se define pela reunião deindivíduos movidos pela
necessidade de estabelecer vinculos institucionais e
jurídicos próprios da vida social?
Se entendermos que a realidade humana se define
pelo princípio da individualidade, e que a organizaçào
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social deriva de necessidades pragmáticas que jamais .... aiternativa não nos obriga a perguntar se o
poderão superar o direito naturai do indivíduo a afir-
..rr.rir.ro é.por natureza, inclinado a preselvação da
mar-se em si mesmo, então teremos de considerar a
acie ou a vida em comunidade. Mas e ne-
intersubjetividade concretamente vivida como uma
:->ario refletir acerca do estatuto das relaçôes entre as
rede de ligações extrínsecas reguladas institucional-
:ôs(las. já que a dimensão coletiva e um dado de ex-
mente. A relação com o outro se enceffa na dimensão
:<:-ência, isto e, üvemos em coletividades organizadas,
da sociabilidade estabelecida por acordo ou por con-
:-:er sejamos individualistas ou adeptos do princípio
trato. A solidariedade torna-se uma questão de regras
: , nunitário. Como essas relaçÔes acontecem, desde o
de conveniência. As sociedades modernas, fiutos das
:--i e} privado e pessoal ate a dimensão social e política?
teorias politicas liberais ciássicas, atendem a esse perfii.
iomo sáo vividas, se consideramos que a vida em
Se concordarmos que o indivíduo se define pela co-
a,tmum e secundária e convencional, ou se entendemos
munidade à qual está organicamente vinculado e que o
;ue a relação com os outros e basicamente necessária?
sentido da existência singular e inseparável do contexto
Na verdade, se entendermos que seria necessário
comunitário que o produz e o sustenta, então poderemos
superff a oposição Eu/outro, isto e, o solipsismo ou a
entender que os vÍnculos intersubjetivos são intrinsecos
relação como condição de origem, então talvez devês-
e são üvidos como dimensão essencial da realidade hu-
semos perguntar por aquilo que de fato comparlilha-
mana. A relação com o outro possui a densidade e a
mos e tambem por aquilo que nos sepâra desde a
força dos principios necessariamente vistos como requi-
consciência mais obscura da existência. Talvez venha-
sitos primordiais da existência, a tal ponto que o indiü-
mos a descobrir, assim, que, a princÍpio, não estamos
duo autossuficiente seria uma abstração. As normas de
nem sós, nem numa comunidade já formada, mas que
sociabilidade seriam apenas, no limite, regulações a pos-
nosso modo de ser no mundo envolve ambas as pos-
teriori de uma condição originária. A póli.s grega e a
sibilidades, e que tanto a solidão quanto a vida em
civilização cristã medieval poderiam ser os exemplos.
comum estão de algum modo presentes, imbricadas
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uma na outra, nos primórdios da existência, num mo_ ,+ ristência do outro nào e representada por ana-
e
mento em que a reflexão ainda não elaborou a dicoto_ .om a minha própria existência porque, nesta,
mia entre ser-em-si e ser-com-os-outros. 0 pensador sobra transparência que possa ser atribuída ao
Maurice Merleau-ponty (1908_1961) assinala que. qrüo; na verdade, falta em mim a transparência do
antes de constituir o outro, eu o vivo e ele vive em inteligível, já que o que me constitui tamhem e a ine-
mim, de um modo totalmente aquem da relação su_ ritável opacidade do corpo. E, assim como não sou
jeito-objeto. Antes de ser o polo de uma relação ptrro espirito, mas um conjunto de gestos e comporta-
obje_
tiva, o mundo e a minha experiência do mundo. E o mentos em que se dá a experiência de existir, tambem
outro não o habita de modo objetivo desde o princípio: o outro e captado como esses gestos e comportamentos
a minha experiência do mundo e a minha experiência dos quais não faço a experiência, mas que fazem parte
do outro. Quando Descartes olha pela janela e vê da minha experiência. Sei da existência do outro por-
"capas e chapeus" que apenas provavelmente que a objetividade não e a única forma de contato com
podem
ser tomadas como outros sujeitos, temos de concordar, o que existe além de mim. E preciso reconhecer uma
porque, nesse nivel objetivo, não há mesmo como obüedade: a intersubjetividade e diferente da objetivi-
visar
o outro. Objetivamente, o solipsismo não e refutável; dade. Nesse sentido, a experiência intersutrjetiva nào
mas, tambem, não se trata de refutá_lo; não e preciso consiste em objetivar o outro; se a intersubjetividade é
saber se estou diante de um autômato ou de um
espi_ uma dimensão própria da existência, então é na inter-
rito, assim como não e necessário provar que existe face das experiências subjetivas que reconhecemos a
um
mundo alem de toda experiência de percepção. Não alteridade: o out'ro eunao e um paradoxo porque ele
já
estou interessado em distinguir um espírito cle um 1á está descie sempre, uma vez que não constituimos a
au-
tômato, mas em compreender a vivência de uma situa_ intersubjetividade, mas ela nos constitui'
çâo que me coloca diante de uma outra consciência A natureza pensante do sujeito somente se isola no
encarnada. fundo de si mesmo se entendermos que a certeza sub-
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jetiva traz consigo a incomunicabiiidade
como a sua A não comunicação
>eria, em todo caso, possivel.
condição. Mas, se essa certeza e
a da existência (que a forma de comunicaçâo; o silêncio não e a im-
indubitabilidade do pensamento revera
a Descaftesi. ade da fala, mas a sua recusa. No universr_r
então teremos de convir que o *eu
sou,, traduz o mundo a incomunicabilidade ocorre sobre o
em que o su.jeito existe. Se esse fundo da
mundo está simples_ de comunicar, porque a intersubjetivi-
mente posto diante do sujeito
como objeto, então os e a estrutura da existência. Quando vejo o outro
outros tambem são objetos. Mas,
se se trata do mundo estranho e longínquo, essa constatação e a con-
em que o sujeito existe, a existência
dos outros será -:apartida de outra possibilidade, a de conhecê-lo e
uma experiência antes de ser um
dado objetivo. Assim, .:rá-1o, compartilhar efetivamente o mundo em que
ser no mundo e, muito simplesmente,
escapar do solip_ -,r\-emos.
sismo, que só e afirmado como
condição inevitável se Em suma, assim como se concebe contemporanea-
o sujeito intui sua existência fora
do mundo. A inter- mente que o sujeito não e uma entidade pronta e aca-
subjetividade e a revelação recíproca
dos sujeitos uns bada, porque a subjetividade não e um dom metafÍsico,
aos outros, que ocorre simplesmente
por existirem mas algo a ser realizado, assim tambem a intersubjeti-
num mundo comum. E, na medida
em que esse mundo r.idade torna-se real quando a construímos no processo
comum e a condição pre_reflexiva
da existência, a re- existencial, social e histórico, em meio a toda softe de
lação intersubjetiva e originária.
obstáculos e decepçoes.
Isso não significa que as consciências
estão sempre
abeftas umas as outras, em permanente
comunicação.
Posso sentir no olhar do outro
a distância que ele toma
de mim; posso entrever no seu
silêncio um mundo a
que não tenho acesso. Mas,
mesmo nessas condições,
faço a experiência da ausência
de uma comunicacão
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