Joseph Butler, Da Identidade Pessoal

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Da Identidade Pessoal, Joseph Butler

A questo de saber se viveremos numa condio futura, sendo a mais


importante que se pode colocar, tambm a mais inteligvel que se pode
exprimir na linguagem. Contudo, suscitaram-se estranhas dificuldades sobre o
significado dessa identidade ou mesmidade pessoal, que est implcita na
noo de vivermos agora e numa vida futura, ou em quaisquer dois momentos
sucessivos. E a soluo proposta para estas dificuldades foi mais estranha do
que as prprias dificuldades. Pois alguns explicaram a identidade pessoal de
uma forma que faz a investigao sobre uma vida futura no ter a menor
importncia para ns, as pessoas que a efectuam. E embora poucos homens
possam iludir-se com essas subtilezas, pode ser apropriado examin-las um
pouco.
Ora, se perguntarmos em que consiste a identidade pessoal, a resposta
tem de ser a mesma que questo de saber em que consiste a semelhana ou
a igualdade: que todas as tentativas de a definir s a tornariam confusa. No
h, no entanto, a menor dificuldade em determinar a ideia. Quando
comparamos ou vemos ao mesmo tempo dois tringulos, surge na mente a
ideia de semelhana. Quando pensamos em dois mais dois e em quatro,
surge-nos a ideia de igualdade. Do mesmo modo, quando comparamos a
conscincia do nosso eu, ou a nossa prpria existncia em quaisquer dois
momentos, surge imediatamente na mente a ideia de identidade pessoal. E do
mesmo modo que as duas primeiras comparaes no s nos do as ideias de
semelhana e de igualdade, como ainda nos mostram que dois tringulos so
semelhantes e que dois mais dois igual a quatro, tambm a ltima
comparao no s nos d a ideia de identidade pessoal, como ainda nos
mostra a identidade de ns mesmos nesses dois momentos: o presente,
presume-se, e o momento imediatamente anterior; ou o presente e o momento
de h um ms, um ano ou vinte anos. Por outras palavras, ao reflectir naquilo
que sou eu agora e naquilo que era eu h vinte anos, vejo que so um e o
mesmo eu e no dois.
Mas ainda que a conscincia do que est no passado determine assim a
nossa identidade pessoal para ns mesmos, dizer que esta faz a identidade
pessoal, ou que necessria para sermos as mesmas pessoas, dizer que

uma pessoa nunca existiu num nico momento, nem realizou nenhuma aco,
de que no possa recordar-se ou, na verdade, em que no reflicta. E
devemos realmente considerar auto-evidente que a conscincia da identidade
pessoal pressupe e, portanto, no pode constituir a identidade pessoal,
tal como o conhecimento, em qualquer outro caso, no pode constituir a
verdade: este pressupe a verdade.
Este erro admirvel pode ter surgido do seguinte: estar investido de
conscincia algo inseparvel da ideia de pessoa ou ser inteligente. Pois
podemos exprimir isto inexactamente dizendo que a conscincia faz a
personalidade, do que se poder concluir que esta faz a identidade pessoal.
Contudo, ainda que a conscincia presente daquilo que fazemos e sentimos
presentemente seja necessria para sermos a pessoa que somos agora, a
conscincia presente de aces ou de sensaes passadas no necessria
para sermos as mesmas pessoas que realizaram essas aces ou tiveram
essas sensaes.
A investigao do que faz os vegetais serem os mesmos na acepo
comum da palavra no parece ter nenhuma relao com a investigao da
identidade pessoal, j que a palavra mesmo, quando aplicada aos vegetais e
s pessoas, alm de ser aplicada a objectos diferentes, usada em sentidos
diferentes. Afinal, quando um homem afiana que a mesma rvore permanece
h cinquenta anos no mesmo lugar, ele quer dizer apenas que a mesma para
efeitos de propriedade e para os usos da vida comum, e no que a rvore foi,
durante todo esse tempo, a mesma no sentido filosfico rigoroso da palavra.
Pois ele no sabe se alguma das partculas da rvore presente a mesma que
uma das partculas da rvore que estava no mesmo lugar h cinquenta anos. E
se no partilharem uma nica partcula de matria, no podem ser a mesma
rvore no sentido filosfico apropriado da palavra mesma. Evidentemente, dizer
que o so seria uma contradio nos termos, quando nenhuma parte da sua
substncia e nenhuma das suas propriedades so as mesmas: nenhuma parte
da sua substncia, por suposio; nenhuma das suas propriedades, pois
admite-se que a mesma propriedade no pode ser transferida de uma
substncia para outra. E, portanto, quando dizemos que a identidade ou
mesmidade de uma planta consiste numa continuao da mesma vida,
comunicada sob a mesma organizao a um certo de partculas de matria,

(sejam estas as mesmas ou no), no se pode pensar que a palavra mesma,


aplicada vida e organizao, tem um significado igual, nesta frase, ao da
palavra mesmas, aplicada matria. Num sentido vago e popular, ento, podese dizer legitimamente que a vida, a organizao e a planta so as mesmas,
apesar da perptua mudana das partes. Contudo, numa maneira de falar
rigorosa e filosfica, nenhum homem, nenhum ser, nenhum modo de ser, nem
nenhuma coisa pode ser o mesmo que aquilo com o qual, na verdade, nada
tem em comum. Ora, a mesmidade usada neste ltimo sentido quando
aplicada a pessoas. A identidade destas, portanto, no pode subsistir com a
diversidade de substncias.
A coisa aqui considerada e penso que demonstrativamente
determinada proposta pelo Sr. Locke nas seguintes palavras. Ser que
esta i.e., a mesma pessoa ou eu a mesma substncia idntica? E ele
sugeriu uma resposta questo que muito melhor do que aquela que
formulou. Pois ele define uma pessoa como um ser inteligente pensante, etc., e
a identidade pessoal como a mesmidade de um ser racional.1 A questo, ento,
se o mesmo ser racional a mesma substncia: e a questo no precisa de
resposta, dado que ser e substncia, neste lugar, esto para a mesma ideia. O
fundamento para duvidar de que a mesma pessoa seja a mesma substncia
alegadamente o seguinte: a conscincia da nossa prpria existncia na
juventude e na velhice, ou em quaisquer dois momentos sucessivos, no a
mesma aco individual,2 ou seja, no a mesma conscincia, mas
conscincias sucessivas diferentes. Ora, estranho que isto tenha suscitado
tais confuses. Pois seguramente concebvel que uma pessoa possa ter a
capacidade de saber que um objecto visto agora o mesmo que foi
contemplado antes. Mas neste caso em que, por suposio, se percebe que o
objecto o mesmo, as percepes que se tm dele em quaisquer dois
momentos no podem ser uma e a mesma percepo. E assim, ainda que as
conscincias sucessivas que temos da nossa prpria existncia no sejam a
mesma, so conscincias de uma e a mesma coisa ou objecto: da mesma
pessoa, eu ou agente vivo. V-se que a pessoa de cuja existncia se tem

Locke, Works, Vol. I, p. 146.

Ibid., pp. 146, 147.

conscincia agora e se tinha conscincia h uma hora ou h um ano uma e a


mesma pessoa, e no duas pessoas, pelo que uma e a mesma.
As observaes do Sr. Locke sobre este assunto parecem precipitadas, e
ele parece declarar-se insatisfeito com suposies que faz a seu respeito. 3 Mas
outros deram um desenvolvimento estranho a algumas dessas observaes
precipitadas. Penso que a sua opinio, quando investigada e examinada a
fundo, corresponde ao seguinte. 4 Que a personalidade no uma coisa
permanente, mas passageira; que constantemente vive e morre, comea e
acaba; que, tal como dois momentos sucessivos no podem ser um e o mesmo
momento, ningum pode permanecer a mesma pessoa durante dois
momentos; que, na verdade, a nossa substncia est a mudar constantemente;
que parece no interessar que isto seja ou no assim, j que s a conscincia,
e no a substncia, constitui a personalidade; esta conscincia, sendo
sucessiva,

no

pode

ser

mesma

em

dois

momentos,

nem,

consequentemente, a personalidade que constitui. E disto tem de se seguir


que uma falcia, cometida a nosso prprio respeito, acusar o nosso eu
presente de algo que tenhamos feito, imaginar o nosso eu presente interessado
em algo que nos aconteceu ontem, ou imaginar que o nosso eu presente se
interessar por aquilo que nos acontecer amanh. Pois o nosso eu presente
no realmente o mesmo que o eu de ontem; outro eu ou pessoa
semelhante, que ocupa o seu lugar e que confundido com ele, ao qual outro
eu se seguir amanh. Isto, afirmo, tem de se seguir, pois se o eu ou pessoa
de hoje e o de amanh no forem o mesmo, sendo apenas pessoas
semelhantes, ento a pessoa de hoje no estar realmente mais interessada
naquilo acontecer pessoa de amanh no que aquilo que acontecer a
qualquer outra pessoa. Talvez se possa pensar que esta no uma
representao justa da opinio de que estamos a falar, dado que aqueles que a
defendem admitem que uma pessoa a mesma at onde a sua memria
recua. E, na verdade, eles usam as palavras identidade e mesma pessoa. E a
linguagem no permitir que estas palavras sejam postas de parte: se o
fossem, teramos de pr no seu lugar no sei que ridcula perfrase. Mas eles
3

Ibid., p. 152.

Veja-se uma resposta terceira defesa do Dr. Clarke da sua carta ao Sr. Dodwell, 2.

ed., pp. 44, 56, etc.

no podem, de forma consistente, querer dizer que a pessoa realmente a


mesma. Pois auto-evidente que a personalidade no pode ser realmente a
mesma se, como eles afirmam explicitamente, aquilo em que esta consiste no
o mesmo. E penso que, como eles no podem querer dizer, de forma
consistente, que a pessoa realmente a mesma, parece que dizem que o
apenas num sentido fictcio: s neste sentido afirmam pois isto eles afirmam
que vrias pessoas, seja qual for o seu nmero, podem ser a mesma
pessoa. A simples elucidao desta opinio exp-la despida e com clareza
parece a sua melhor refutao. No entanto, como se diz que lhe dada
muita importncia, acrescento o seguinte.
Em primeiro lugar, esta noo contradiz absolutamente essa convico
certa que, necessariamente e em todo o momento, surge dentro de ns quando
viramos os nossos pensamentos para ns mesmos, quando reflectimos sobre o
passado e olhamos para o que vir. A nossa noo natural das coisas derrota
complemente toda a suposio de que o agente vivo que cada homem se
considera muda diariamente, dando lugar a outro, ou de que h alguma
mudana deste tipo ao longo de toda a nossa vida presente. To-pouco
possvel que uma pessoa, no seu juzo perfeito, altere a sua conduta quanto
sua sade ou aos seus assuntos por suspeitar que, embora v viver amanh,
no ser a mesma pessoa que hoje. E, no entanto, se for razovel agir, no que
respeita a uma vida futura, segundo esta opinio de que a personalidade
passageira, tambm ser razovel agir segundo ela no que respeita ao
presente. Aqui, ento, temos uma opinio igualmente aplicvel religio e s
nossas preocupaes temporais e toda a gente v e sente a sua
inexprimvel absurdidade no segundo caso. Portanto, se algum pode aceit-la
no primeiro caso, isso no pode resultar da razo da coisa, tendo de se dever
antes a uma deslealdade ntima e a uma corrupo secreta do corao.
Em segundo lugar, s um ser e no uma ideia, uma noo ou uma
qualidade capaz de vida e de aco, de felicidade e de misria. Ora, todos
os seres reconhecidamente continuam os mesmos durante todo o tempo da
sua existncia. Consideremos, ento, um ser vivo que existe agora e que est
vivo h algum tempo: este ser vivo tem de ter feito, sofrido e frudo aquilo que
antes fez, sofreu e fruiu (este ser vivo, afirmo, e no outro) de uma forma to
real como faz, sofre e frui aquilo que faz, sofre e frui neste instante. Todas

estas aces, fruies e sofrimentos que se sucedem so aces, fruies e


sofrimentos do mesmo ser vivo. E so-nos antes de toda a considerao do
que ele se recorda ou se esquece, dado que recordar ou esquecer so coisas
que no podem alterar minimamente a verdade das questes de facto relativas
ao passado. E suponha-se que este ser tem poderes limitados de
conhecimento e de memria: no ser mais difcil conceber que ele tenha o
poder de saber que ele prprio o mesmo ser vivo que era h algum tempo, de
recordar alguns dos seus sofrimentos, fruies e aces, e de esquecer outros,
do que conceber que ele saiba, recorde ou esquea qualquer outra coisa.
Em terceiro lugar, qualquer pessoa est consciente de ser agora a
mesma pessoa ou eu que foi at onde a sua memria recua, j que, quando
um indivduo reflecte sobre uma aco passada sua, est to certo da pessoa
que realizou essa aco (nomeadamente ele mesmo, a pessoa que reflecte
agora sobre a aco) como de que a aco foi realizada. Alm disso, a
convico que uma pessoa tem de que uma aco foi realizada (da qual est
absolutamente convicta) surge inteiramente, com muita frequncia, da
conscincia de que ela mesma a realizou. E este ela, pessoa ou eu tem de ser
uma substncia ou uma propriedade de alguma substncia. E se ela, se a
pessoa, for uma substncia, ento a conscincia de que ela a mesma pessoa
ser a conscincia de que ela a mesma substncia. E se a pessoa, ou ela, for
a propriedade de uma substncia, ainda assim a conscincia de que ela a
mesma propriedade ser uma prova to certa de que a sua substncia
permanece a mesma como seria a conscincia de ela permanecer a mesma
substncia, dado que a mesma propriedade no pode ser transferida de uma
substncia para outra.
Todavia, embora tenhamos assim a certeza de que somos agora os
mesmos agentes, seres vivos ou substncias que fomos at onde a nossa
memria recua, pergunta-se se no poderemos estar enganados a este
respeito. E pode-se colocar esta questo no fim de qualquer demonstrao,
dado que uma questo sobre a verdade da percepo por memria. E aquele
que pode duvidar de que, neste caso, se possa confiar na percepo por
memria tambm pode ter a mesma dvida quanto percepo por deduo e
raciocnio que tambm inclui a memria ou, na verdade, quanto
percepo intuitiva. Aqui, ento, no podemos ir mais longe. Pois ridculo

tentar provar a verdade daquelas percepes cuja verdade s poderemos


provar atravs de outras percepes exactamente do mesmo tipo; ou tentar
provar a verdade das nossas faculdades, que s pode ser provada atravs do
uso ou por intermdio das prprias faculdades sob suspeita.

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