Literatura Comparada e Teatro PDF
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DESENVOLVE O DIÁLOGO
Bia Isabel Noy*
RESUMÉ: Le travail ici présenté a comme objectif pousser une réflexion sur l'espace
ouvert par la Littérature Comparée à autres domaines, dans ce cas le Théâtre, bien comme
créer une pensée sur l'endroit où ces deux champs d'études se rencontrent. Dans cette
proposition c'est dans la brèche, dans intermittence que la Littérature et le Théâtre produisent
un lieu de recherche qui se déplace entre ces deux savoirs, finissant alors par se déplier en
d'autres espaces. La conséquence de cet entrecroisement ce sont les différentes manières de
réflexion qui sont dévoilées. Le non délimiter des frontières permet la sortie des objets de
discussion de leurs territoires et ainsi, trouvant une place dans des espaces non habitués, ils
passent à être vus d'une autre façon. D'ailleurs c'est par la mobilité des espaces de recherche
que des nouveaux endroits de recherche s'installent.
RESUMO: O trabalho aqui apresentado tem como intuito instigar uma reflexão a
propósito do espaço proporcionado pela Literatura Comparada a outras áreas, neste caso o
Teatro, bem como formular uma reflexão sobre o Onde o diálogo entre estes dois campos de
estudo se estabelece. Na presente proposta, é na fenda, na intermitência que Literatura e
Teatro produzem um lugar de pesquisa que transita entre os dois saberes, desdobrando-se em
outros espaços. A consequência deste entrecruzamento são as diferentes maneiras de reflexão
que são desveladas. O não delimitar de fronteiras permite que os objetos de discussão sejam
desterritorializados e desta maneira, localizando-se em espaços não habituais, passam a ser
vistos com outra perspectiva, gerando através desta mobilidade novos lugares de pesquisa.
O trabalho aqui apresentado tem como intuito instigar uma reflexão a propósito do
espaço proporcionado pela Literatura Comparada a outras áreas, neste caso o Teatro, bem
como formular uma reflexão sobre onde se desenvolve o diálogo entre estes dois campos de
estudo. Na presente proposta, é na fenda, na intermitência que Literatura e Teatro produzem
um lugar de pesquisa que transita entre os dois saberes, desdobrando-se em outros espaços. A
consequência deste entrecruzamento são as diferentes maneiras de reflexão que, proveitosas
para ambas áreas de saber, são desveladas.
* Mestre em Artes Cênicas pela Universidade Paris 8 Vincennes-Saint Denis (2008), Doutoranda em Literatura
Comparada pela UFRGS (2011).
A Literatura Comparada está cada dia mais aberta a outras formas de saber e maneiras
de como se relacionar com outras artes. A interdisciplinariedade é foco de grande discussão,
onde a pluralidade segue uma só via: o aumento do conhecimento. O não delimitar fronteiras
permite que os objetos de discussão sejam desterritorializados e desta maneira, localizando-se
em espaços não habituais, passam a ser vistos de outra perspectiva, gerando através desta
mobilidade, novos espaços de pesquisa e novas possibilidades de estudo.
Tanto as Artes Cênicas como a Literatura Comparada são áreas em constante processo
de pesquisa, pensamento e desenvolvimento. É possível fazer teatro de tudo – até uma bula de
remédio pode ser a fonte criadora para uma peça teatral. O Teatro possui características de
criação e adaptação conforme as circunstâncias se apresentam, além de poder ser considerado
como um ponto de mediação, de encontro, onde se relacionam outras áreas do saber, antes
consideradas distintas, como a Psicanálise e a Filosofia. Novos pensamentos teatrais são
considerados a partir de entre-lugares produzidos pelo encontro de saberes. A “Antropologia
Teatral” desenvolvida por Eugênio Barba é um bom exemplo. O pesquisador teatral, fundador
do grupo “Odin Teatret”, foi buscar na Antropologia a base para a sua pesquisa cênica.
Muitos dos conceitos empregados na Literatura Comparada podem ser relocalizados
no Teatro. Isto porque, acredita-se que a Literatura Comparada abrange outras áreas que não
somente a Literatura. Retomando o conceito de Mikhail Bakhtin, cujo o texto é um mosaico,
resultado das absorções do que se vê e do que se escuta, pode-se calcar este pensamento nas
Artes Cênicas. O processo de construção do espetáculo teatral também é um eco das vivências
do ator ou do diretor. Os artistas cênicos servem-se de suas experiências para criar o material
a ser trabalhado no palco. Desta maneira, como na Literatura, o Teatro também é uma fonte de
absorção do que se vive; a obra teatral e a obra literária são então o resultado da vivência e
experiência de seus criadores. O espaço do entrecruzamento da Literatura Comparada e do
Teatro nesta reflexão, buscará ultrapassar as fronteiras tanto disciplinares quanto geográficas,
artísticas e subjetivas. A Literatura Comparada configura-se como um meio de investigação,
onde juntamente com as Artes Cênicas, produzem uma zona limiar. Assim, o limiar é o entre-
lugar produzido pelos saberes da Literatura Comparada e do Teatro, onde, pela interseção, o
convergente e o divergente serão desvelados e permitirão novos e proveitosos diálogos para
ambas as áreas.
Os agentes principais desta reflexão são o comparatista e o ator, cujo o mote em
comum é a criação de espaços, seja para o trabalho textual ou para o trabalho cênico. O
entrecruzamento destas duas artes, que aqui se manifesta apenas como um grão a ser
germinado, apresenta-se fértil em possibilidades que tendem a enriquecer ambas as áreas.
Assim, bem como a Literatura Comparada, a Arte Teatral é um meio propício para a
troca, transferência, criação, sendo um local ideal para a produção de espaços. O fazer teatral
é uma invenção constante de espacialidades, onde o ator estabelece relações (espacialidades)
diretas consigo mesmo, com seu colega de cena, com o público e mesmo com o objeto por ele
manipulado. No palco, como no comparatismo, tudo é passível de interação. Como diz
Michel Foucault, “o espaço se oferece a nós sob forma de relações de posicionamentos”
(1994, p.413), pensamento este que vai de encontro com o de Walter Benjamin em
“Passages”: este último aborda o espaço como passagem, ponto em movimento, em transição.
Exatamente como o espaço teatral.
A Literatura Comparada está cada vez mais aberta a novas formas de saber e maneiras
de como se relacionar com outras artes. A interdisciplinariedade é foco de grande discussão,
onde a pluralidade segue uma só via: o aumento do conhecimento. A tendência dos trabalhos
em literatura comparada é exatamente a de ultrapassar fronteiras, expandir horizontes.
Colocar o Teatro e a Literatura Comparada lado a lado permitirá descobertas de novas
possibilidades tanto pelo ponto de vista cênico como pelo ponto de vista comparatista.
É o espaço criado pela Literatura Comparada que possibilita a inserção do Teatro na
mesma. É nesta espacialidade gerada que se estabelece a interdisciplinariedade, o diálogo, a
troca, o pensamento. A reflexão sobre Literatura/Teatro é dada em um espaço outro, gerado
para tal, comum às duas áreas.
O não delimitar fronteiras abriu “novos objetos de conhecimentos. Isso supõe que os
sujeitos do conhecimento sejam desinstalados de seus territórios e se disponham a atravessar
suas fronteiras, adotando uma mobilidade que os habilita ao diálogo com outros sujeitos e
seus referenciais teóricos” (MARQUES, 1999, p.63). Deste modo, ao desenvolver um diálogo
entre os núcleos da Literatura Comparada e do núcleo Teatral, construiremos uma outra
espacialidade para o estudo. Este lugar é uma zona limiar, que comporta as diferenças e as
similaridades destas duas áreas.
Neste sentido a linha de pesquisa “limiares críticos” abrange a interdisciplinariedade
permitindo uma maior troca de conhecimento, onde as fronteiras entre as disciplinas tornam-
se móveis, ver mesmo diluídas. Sobre esta linha de pesquisa Tania Franco Carvalhal disserta:
Neste contexto [limiares críticos], o tópico da “diluição de fronteiras”, juntamente com
a questão da “contextualização” como dado básico para o entendimento das
especificidades culturais, a compreensão da fronteira como um espaço móvel e sempre
refeito do “híbrido” onde os contatos e as interpenetrações se efetuam, são objetos
concretos de uma reflexão que se ocupa com as transferências, as passagens, as
migrações e as trocas. (1999, p.11)
O onde no palco
A arte teatral tem a capacidade de provocar um certo fascínio, e isso deve-se por sua
efemeridade, pelo momento presente e vivo que ela proporciona, independente de onde o
teatro é realizado: rua ou palco. O teatro vive as palavras e as ações. É considerado uma arte
imediatista pois atinge o espectador no momento presente. O “aqui e agora” do fazer teatral
acarreta uma relação entre ator e espectador onde se estabelece um espaço de interação no
tempo e no espaço presente.
O palco como espaço cênico está provido de figurações. De antemão já se
convencionou este lugar como um local “mágico” de representação. Este espaço, assim como
o espaço inicial de uma futura literatura: uma folha em branco; deve ser preenchido. Georges
Perec fala em preenchimento do espaço da página, onde todas as possibilidades são
exploradas, desde a margem, ao cabeçalho, a nota de rodapé: “J'écris: j'habite ma feuille de
papier, je l'investis, je la parcours. Je suscite des blancs, des espaces (sauts dans le sens:
discontinuités, passages, transitions)” (PEREC, 2000, p.23). O autor fala também de espaços
específicos, como o da cama, “le lit est donc l'espace indivuduel par excellence, l'espace
élémentaire du corps” (PEREC, 2000, p.33). Ou seja, a cama bem como o palco são espaços
reservados para determinadas atividades: dormir e atuar, por exemplo. Cada espaço carrega
consigo uma possibilidade de função/preenchimento característico, e todo espaço está sempre
preenchido por algo, mesmo que este algo seja o vazio.
Peter Brook, diretor e pesquisador de teatro, em seu livro “L'espace Vide” (1977),
parte do princípio de que para a encenação cênica é necessário, primeiramente, um espaço
vazio, para aos poucos habitá-lo. O vazio é um lugar propício para a criação pois ali não se
encontra nenhuma pré definição. Atores e diretor devem estar com seus espíritos abertos para
a criação. Quanto mais disponibilidade os artistas oferecem, melhor é a qualidade do trabalho,
pois as oportunidades surgem sem bloqueios e são exploradas até o limite. Não há nenhuma
barreira ou conceito pré estipulado. O vazio aqui referido não significa necessariamente um
lugar (concreto) vazio, mas sim uma disponibilidade propícia à criação. O espaço vazio é o
interior do ator. Ele, como artista, não se poupa e não gera pudores, não constrói barreiras que
possam frear a arte criativa. Enfim, o ator está vazio pois ele doa-se por inteiro ao trabalho,
deixando-se preencher pouco a pouco com as possibilidades que surgem, habitando assim seu
espaço interior (o personagem) e exterior (o palco).
O edifício teatral é carregado de sensualidade, de mitos, de histórias de toda uma
época e sociedade, tornando-se um espaço nostálgico. Roland Barthes, em “Incidents” (1987),
comenta sobre o “Le Palace”, teatro de prestígio onde a construção por si só não desperta
nenhuma beleza (mesmo possuindo uma arquitetura singular). Contudo, a partir do momento
em que se preenche este espaço com o público, atores, bailarinos, etc, o mesmo ganha vida,
ganha alma. Um teatro só existe com a presença de pessoas, ele só exerce sua função se for
habitado. Do contrário, ele não passa de uma caixa de tijolos, duro, frio e obscuro – um
espaço morto.
Do mesmo modo, o palco, durante o fazer teatral, precisa ser habitado, preenchido,
vivido. Certamente o palco não é o único local possível para o fazer teatral. Pode-se afirmar
que é o mais clássico, o mais utilizado, o mais carregado de charme, com suas cortinas
aveludadas que vêm para emoldurar uma situação irreal. E são justamente estas cortinas
aveludadas que, ao delinear o contorno da cena, determinam o palco como lugar de atuação,
lugar do “faz de conta”, lugar do “tudo é possível”, o lugar a “ser preenchido”. Entretanto,
uma vez abertas, as cortinas instauram uma fronteira móvel e porosa entre palco plateia, a
mesma encontrada na literatura comparada.
O comparatista trabalha com a noção de fronteira móvel, de entrecruzamento e de
irradiação. Não estabelecendo limites fixos, ele tem a possibilidade de análise mais
abrangente pois não há exclusão de vestígios. Os limites são desmarcados, porém as marcas
destes permanecem na tentativa de aproximar outros textos. Tania Franco Carvalhal acentua a
mobilidade da literatura comparada “como forma de investigação que se situa “entre” os
objetos que analisa, colocando-os um em relação ao outro e explorando o nexo entre eles,
além de suas especifidades.” (2010, p. 74). A troca entre os espaços estabelecidos é constante,
mesmo havendo uma fronteira que os delimita. Daniel-Henri Pageaux ao abordar a fronteira
comparatista cita Alberti e seus pensamentos sobre contorno: “la ligne de contour […] doit
finir par promettre autre chose derrière elle et montrer ce qu'elle cache” (PAGEAUX, 2001,
p.13). Assim, na Literatura Comparada, não se lê somente um texto (as folhas que temos em
mãos), porém tudo o que ele carrega consigo, tudo o que está por detrás. Ďurišin já falava de
um tipo de “influência” e com Bakthin o texto literário é construído de maneira
caleidoscópica e polifônica, sendo formado pelo que se absorve e se escuta (CARVALHAL;
2010, p.13).
Retomando a definição de contorno de Alberti, pode-se afirmar que ela se aplica às
cortinas que emolduram o palco teatral, uma vez que elas delimitam o espaço cênico, atuando
no papel da “ligne de contour”. Fechadas elas despertam a curiosidade, a expectativa, a ânsia
de ver por detrás, e ao se abrirem, elas desvelam uma realidade fantástica, um mundo de
possibilidades dentro do jogo cênico. As cortinas aveludadas, são na realidade, a fronteira
visível entre o público e o palco que ao se abrirem cedem lugar à novas fronteiras: maleáveis
e invisíveis.
Após a abertura desta fronteira visível, a separação entre os espaços ainda existe,
contudo, esta começa a se tornar cada vez mais invisível e permeável. O ator, em seu espaço
cênico, ao atuar, instantaneamente, inicia uma permanente troca com o espectador. O público,
por mais que acredite que esteja “protegido” na sua condição de observador, faz parte
ativamente do espetáculo. Todas as reações destes são percebidas pelo artista em cena. O ator
está concentrado no seu jogo sem portanto estar alheio a reação do público. Ator e público
possuem espaços próprios, cuja fronteira é de âmbito comparatista.
Durante a apresentação, o ator se mantém atento ao seu público. Ao sentir certa reação
do espectador (o riso, por exemplo) ele deve adequar-se e assim modificar seu próprio espaço
de atuação. E ainda, se houve o riso, isso significa que a fronteira invisível foi rompida e que
o ator conseguiu atingir o espectador de alguma maneira. Um espaço de irradiação se forma
entre público e ator. A troca entre estes espaços é constante, ou seja, a fronteira entre palco e
plateia é dissolvida interruptamente. As reações que ocorrem durante um apresentação teatral
são o indício de que a barreira invisível que existe entre ambas as partes foi atravessada, prova
que tanto ator como espectador estavam abertos à trocas, consolidando assim um encontro,
próprio do fazer teatral.
O responsável por esta ruptura de fronteiras é o ator. Para melhor desenvolver esta
ideia de ator como ponte entre palco e plateia, ou melhor, de ator como comparatista,
voltemos à Literatura Comparada.
Como exemplifica Pageaux, o comparatista é a figura do alfandegário (2001, p.12).
Ele pondera as fronteiras com o objetivo de atravessá-las, de as colocar em questão, de burlá-
las. O comparatista então atua no papel do intermediário. É o responsável pela travessia, pela
troca, convergência, transformação e confronto entre os objetos de estudo. Para haver esta
circulação de ideias, o comparatista cria um novo espaço de trabalho. Ele é portanto um
produtor de espaços.
Inserindo o ator neste espaço fronteiriço, podemos também submetê-lo à esta mesma
análise. O ator é o responsável pela travessia: é ele quem faz a ponte entre o público e o texto,
público e história, ou ainda, entre o público e o autor do texto. Citando Constantin
Stanislavski, em Nair Dagostini: “A tarefa do ator e de sua técnica artística consiste em
transformar a ideia da obra em acontecimento artístico da cena” (2007; p.70). Ou seja, o ator é
o agente construidor de pontes entre o espectador e o autor. Como o comparatista, ele é um
agente alfandegário que se ocupa com a troca, a transmissão, o confronto, e com a criação e
irradiação de espaços.
Desta maneira, a figura do alfandegário pode ser aplicada ao fenômeno teatral, o ator
passa então a ser visto como o intermediário de dois espaços, cujos os quais as fronteiras são
maleáveis e porosas. Os espaços aqui mencionados são o do ator em cena e o do público.
Cada qual com seu universo, suas percepções, e sua imaginação. A função do ator é
transpassar as barreiras entre seu próprio espaço e aquele do público, pois só assim conseguirá
atingir o espectador.
Ao mesmo tempo em que o ator faz uma ponte entre os dois espaços - o seu de
interpretação e o do público -, um terceiro espaço se concretiza, que é o da interação entre ator
e espectador. Este espaço é como o criado na Literatura Comparada, onde o comparatista gera
uma recomposição de um ou mais espaços literários e ou culturais. É no novo, no limiar que
se constitui a interação entre ator/público, comparatista/texto, ator/comparatista e
público/texto.
Os autores recriam lugares e instituem neles um caráter onírico. Clarice Lispector faz
isso com maestria. Há trechos de seus livros onde a memória, a construção do cenário nos
transporta para um mundo onírico. Como exemplo tomemos “Perto do Coração Selvagem”,
no momento em que Joana chega na casa da tia, desce até a praia e então, pela poesia do
lugar, compreende a morte do pai:
Desceu das rochas, caminhou fracamente pela praia solitária até receber a água nos
pés. De cócoras, as pernas trêmulas, bebeu um pouco de mar. Assim ficou
descansando. Às vezes entrefechava os olhos, bem ao nível do mar e vacilava, tão
aguda era a visão — apenas a linha verde comprida, unindo seus olhos à água
infinitamente. O sol rompeu as nuvens e os pequenos brilhos que cintilaram sobre as
águas eram foguinhos acendendo e apagando. O mar, além das ondas, olhava de
longe, calado, sem chorar, sem seios. Grande, grande. Grande, sorriu ela. E, de
repente, assim, sem esperar, sentiu uma coisa forte dentro de si mesma, uma coisa
engraçada que fazia com que ela tremesse um pouco. Mas não era frio, nem estava
triste, era uma coisa grande que vinha do mar, que vinha do gosto de sal na boca, e
dela, dela própria. Não era tristeza, uma alegria quase horrível... Cada vez que
reparava no mar e no brilho quieto do mar, sentia aquele aperto e depois
afrouxamento no corpo, na cintura, no peito. Não sabia mesmo se havia de rir porque
nada era propriamente engraçado. Pelo contrário, oh pelo contrário, atrás daquilo
estava o que acontecera ontem. Cobriu o rosto com as mãos esperando quase
envergonhada, sentindo o calor de seu riso e de sua expiração ser novamente sorvido.
A água corria pelos seus pés agora descalços, rosnando entre seus dedos, escapulindo
clara clara como um bicho transparente. Transparente e vivo... Tinha vontade de bebê-
lo, de mordê-lo devagar. Pegou-o com as mãos em concha. O pequeno lago quieto
faiscava serenamente ao sol, amornava, escorregava, fugia. A areia chupava-o
depressa-depressa, e continuava como se nunca tivesse conhecido a agüinha. Nela
molhou o rosto, passou a língua pela palma vazia e salgada. O sal e o sol eram
pequenas setas brilhantes que nasciam aqui e ali, picando-a, estirando a pele de seu
rosto molhado. Sua felicidade aumentou, reuniu-se na garganta como um saco de ar.
Mas agora era uma alegria séria, sem vontade de rir. Era uma alegria quase de chorar,
meu Deus. Devagar veio vindo o pensamento. Sem medo, não cinzento e choroso
como viera até agora, mas nu e calado embaixo do sol como a areia branca. Papai
morreu. Papai morreu. Respirou vagarosamente. Papai morreu. Agora sabia mesmo
que o pai morrera. Agora, junto do mar onde o brilho era uma chuva de peixe de água.
O pai morrera como o mar era fundo! compreendeu de repente. O pai morrera como
não se vê o fundo do mar, sentiu. (LISPECTOR, 1998, p. 38/39)
As recomendações cênicas feitas pelo autor nos sugerem, na maioria das vezes,
lugares fechados, que provocam alguma aflição, tanto para o personagem quanto para o
público, e em “Berceuse”, obra anteriormente citada não é diferente.
O Onde profano
Em cena, quando o ator está em estado de criação, ou seja, quando ele desenvolve uma
espacialidade criadora, ele joga. O jogo com o objeto, ou com seu parceiro de cena, se dá pela
improvisação. Improvisação e jogo são dois conceitos intrínsecos; um não existe sem o outro.
E como todo jogo, o cênico também possui suas regras. Estas, contudo, variam conforme o
objetivo do diretor ou do ator. Normalmente, existem dois tipos de jogos teatrais: o jogo com
regra e o jogo livre. No jogo com regras, estas são pré-definidas pelo diretor, levando o ator a
chegar em um lugar pré-pensado - o ator deve cumprir/seguir objetivo preciso. No jogo livre,
ou seja, onde nenhuma regra é estipulada, o ator tem a absoluta liberdade de criação. Não se
sabe onde ele chegará e que caminhos tomará.
Jean Duvignaud (1997), sociólogo francês, foi quem desenvolveu o conceito de jogo
livre. Para ele, jogo livre são todas as manifestações humanamente organizadas que não
possuem explicação nem finalidade. São inúteis se forem analisadas dentro dos padrões da
vida racional cotidiana. Contudo, o jogo livre possui um enorme cunho lúdico e imagético.
Estão na esfera do jogo livre, segundo Duvignaud, os sonhos, os festejos, a criação artística e
o movimento do imaginário.
Este jogo cênico, seja ele com regras ou sem, aqui resumidamente abordado, pode
entrar na mesma esfera do jogo mencionado por Giorgio Agamben, em “Profanações” (2007).
O autor expõe através de Émile Benveniste que “o jogo não só provém da esfera do sagrado,
mas também, de algum modo, representa a sua inversão […] o jogo liberta e desvia a
humanidade da esfera do sagrado” (2007, p.67).
Ao trazer estes pensamentos para a esfera teatral, entende-se que o jogo é um meio
pelo qual o ator pode se desprender dos valores de um mundo real, direcionando-se à uma
espacialidade criativa, onde o fazer de conta, a profanação e a transgressão coexistem.
Segundo Agamben, a profanação é a separação do que seria de uma esfera religiosa
(entre outras) de uma outra onde a negligência é permitida. O autor cita um exemplo muito
próximo a realidade teatral. Um gato, ao brincar com um novelo de lã como se fosse um rato,
desativa o uso cotidiano do novelo, instituindo a ele uma outra utilidade. O mesmo acontece
com as crianças, quando ao brincar com uma folha de papel a transformam em avião, bola,
etc.. O objeto acaba adquirindo novos usos e significações.
Durante um processo de criação teatral, é mais que comum encontrar artistas que
trabalham com objetos em cena. Um dos primeiros exercícios que se faz com os atores é o de
“desconstrução” deste objeto, estando esta desconstrução intimamente ligada a ideia de
profanação de Agamben.
O ator ao jogar com um objeto explora, primeiramente, todos seus sentidos reais.
Como exemplo peguemos um chapéu. Nos exercícios iniciais o chapéu será tratado como tal.
Seu uso será mantido. Contudo, somente pelo fato de estar em um palco teatral, o objeto em
questão já adquire outra proporção. A visibilidade é modificada. Ele já não é mais um chapéu
qualquer pois está no palco a serviço do ator, e dele já se espera outra funcionalidade – já há
uma expectativa.
Em uma segunda etapa, no desenrolar da atividade, passamos a encarar o chapéu como
um outro objeto cujo o uso não é definido. O formato, o peso, e as capacidades por ele
oferecidas são exploradas, levando-nos assim à transgressão; que é a possibilidade gerada
pelo objeto de não exercer somente sua função primeira. No caso do chapéu, através do jogo,
novos sentidos serão a ele atribuídos. Uma vez que se pode transgredir, quer dizer, quando se
aceita que o uso do objeto seja outro que sua funcionalidade original, (mais do que um
protetor para a cabeça no caso do chapéu) está-se no caminho da profanação. A profanação é a
libertação do objeto de seu uso corriqueiro, segundo Agamben, “a criação de um novo só é
possível ao homem se ele desativar o velho uso, tornando-o inoperante.”(2007, p.75). Desta
maneira, nosso chapéu pode por exemplo, virar um banco, uma piscina, um sapato.
Um aspecto interessante sobre a profanação no meio teatral, é que não é somente o
ator quem profana, mas o público também participa deste processo ao interpretar a
transgressão realizada. Ao perceber que um objeto perdeu sua função primeira, o público
juntamente com o artista imagina novos usos para o mesmo. O público se torna cúmplice do
ator em uma espacialidade criada por ambos. Ou seja, pode-se afirmar que os dois encontram-
se em sintonia pois há um espaço de interação criado, e neste espaço o “faz de conta” é
possível, levando desta forma o espectador a profanar juntamente com o ator.
Durante a representação teatral, ator e público desenvolvem uma espécie de
comunhão. O ator, inserido no contexto de seu personagem, carrega consigo o público que por
sua vez se deixa absorver pela magia do faz de conta. Ao penetrar neste universo não-real, o
público comuna com o ator e ambos desenvolvem uma espacialidade conjunta. É nesta
espacialidade que a profanação ocorre. Por parte do ator ela é direta, pois é ele quem
manipula e quem dita o “desuso corriqueiro” do objeto, atribuindo-o um outro, e indireta por
parte do público, pois este ao estabelecer a relação com o ator, passa a crer no desuso
corriqueiro do objeto, acreditando assim em seu novo uso.
Os Ondes
Teve-se nestas páginas uma tentativa de diálogo entre aspectos cênicos, próprios do
Teatro e aspectos literários, provenientes da Literatura Comparada. A conversa entrecruzada
comprovou, em sua breve extensão, que é muito promissor o espaço limiar que se cria quando
se desterritorializa uma teoria colocando-a em confronto com outro domínio. Os saberes da
Literatura Comparada agregam muito a teoria teatral por seu caráter interdisciplinar, para não
dizer mesmo inclusivo.
BIBLIOGRAFIA