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II Seminário Internacional Espaços Narrados:

as línguas na construção dos territórios ibero-americanos

Luis Antonio Jorge


Organizador

FAUUSP
São Paulo, 2019
II Seminário Internacional Espaços Narrados
as línguas na construção dos territórios ibero-americanos

O seminário propõe discutir as representações dos espaços e terri-


tórios ibero-americanos, com destaque para o papel das línguas na
constituição dos imaginários, das paisagens e dos seus significados.
A narrativa como forma de reconhecimento, compreensão e
proposição de um devir é, portanto, o foco de interesse do seminário:
as línguas portuguesa, espanhola e nativas configuram os patrimônios
culturais identificados com lugares e sistemas de comunicação de sen-
timentos, percepções e visões de mundos em trânsito e em diálogo
por estes múltiplos territórios.
Conhecer a variedade das narrativas nos seus mais diversos
propósitos, meios, suportes e linguagens é uma forma de abordar os
significados construídos sobre os lugares ibero-americanos.
Voltemos a nossa atenção para as ações produzidas pela consci-
ência inscrita nas línguas ao se confrontarem com o desafio do conhe-
cimento do espaço, do território, da paisagem e do lugar: descrever,
inventariar, discriminar, ordenar, cartografar, valorizar, eleger, formu-
lar, propor, fundamentar, imaginar, visualizar, representar e desenhar.
A viagem é um tema onipresente nos espaços narrados - a pró-
pria narrativa é, antes de tudo, viagem – espaços apresentados pela
perspectiva do narrador a outrem. As línguas, sejam como instru-
mentos de representação dos territórios físicos ou imaginados, sejam
como atividade do pensamento, são essencialmente viagem: trânsito
entre o visto e o imaginado, entre o percebido e o interpretado, entre
a forma e o significado, entre a imagem e a palavra, entre a fala e a
escrita. E sendo viagem, as línguas são, sobretudo, aproximações.
Com igual importância, na proposta deste seminário emerge
um outro tema central: o reconhecimento da valiosa contribuição da
literatura para a arquitetura e o urbanismo, para a sensibilização e
para o entendimento da nossa sociabilidade, das nossas imensas cultu-
ras urbanas, das nossas expressões sobre o morar e o viver, das nossas
cidades e da nossa gente.
Livros, revistas e jornais; romances, crônicas e poesias; ma-
nifestos, discursos e aulas; relatos, descrições e inventários; mapas,
cartas e documentos; pintura, fotografia e cinema – narrativas so-
bre espaços, narrativas sobre nós mesmos, presentes na arquitetura
e no urbanismo.
Sumário

I - As crônicas, os inventários e a literatura


na construção dos lugares
12 Afeto e lugar nas narrativas de Elizabeth Bishop
HelioHerbst
35 Crônicas e anúncios: revelações da mulher moderna na cidade e na casa
Sabrina Fontenele
56 Narrativas urbanas de autoria feminina:?as cidades de Carolina Maria de Jesus
e Conceição Evaristo

Isadora C. T. Monteiro
74 O subúrbio é um folhetim: o Rio de Clara dos Anjos
Francesca Angiolillo
95 Um olhar cartográfico sobre a literatura: percursos pelo Rio de Janeiro
na obra de Lima Barreto

Juliane Porto C. Medeiros


Ana Elisabete A. Medeiros
118 Os biografemas de uma cidade-livro na cartografia machadiana do
Rio de Janeiro
Priscila Fernandes
AndreBalsini
146 A Bahia de Caymmi
Lígia Ferreira de Araujo
Artur Rozestraten
V - Cartografia, desenho e palavra
1036 Lugar, vivência e projeto: narrativas para o desenho em áreas precárias
Marina Grinover
1059 Relato de experiências em trânsito: cartografando Mario de Andrade,
arquitetura e cidade

Volia Regina C. Kato


Maria Isabel Villac
1082 O desastre de Goiânia com o Césio 137: cartografando memórias
ou esquecimentos?

César Bastos M. Vieira


Laura Carvalho Nunes
Diogo Vaz da Silva Júnior

VI - Tradução e trânsito entre linguagens


1104 Sobre espaços e narrativas: a biblioteca como lugar de memória, cultura
e transmutação

Eneida de Almeida
Myrna A. Nascimento
1120 A cidade (d)escrita à exaustão: do inventário urbano chamado
Comédia humana, ao Esgotamento de um lugar parisiense.
Joana Barossi
1149 Metacidade: Brasília lida por Haroldo de Campos
Alexandre Benoit
1168 Arquitetura como literatura: aspectos de uma linguagem em comum
Flavio de Lemos Carsalade
1197 Cidades escritas. Textos habitáveis. - visualidade e lugar literário na paisagem,
cidade e arquitetura

Patricia Andrea S. Osses


Cidades escritas. Textos habitáveis:
visualidade e lugar literário na paisagem, cidade e arquitetura.

Patricia Andrea Soto Osses, Doutora em ArtesVisuais (ECA-USP). Professora Adjunta


em Fotografia/ Departamento de Artes e Letras – UFMS (Universidade Federal do
Mato Grosso do Sul)

Quando forem ao mercado central de Temuco, entrando pela


porta pricipal, vão direto ao fundo pelo corredor da direita.
Na loja da esquina, na última fila rente à parede, frente àque-
le outro quiosque do lado esquerdo, prestem muita atenção.
Ali eu nunca estive.
(Hector Soto, Santiago de Chile, 2007)

A literatura de ficção sempre foi uma maneira introdutória de


me relacionar com um lugar, antes de qualquer dado físico ou
objetivo. A interpretação subjetiva desse lugar, a ocorrência de
acontecimentos que ele porventura tivesse a capacidade de abri-
gar e sua realidade como um depositário de improbabilidades me
pareciam ampliar seu potencial em direção à existências muito
mais instigantes.

Tradução e trânsito entre linguagens 1197


Este processo de pesquisa (que se iniciou na tese de doutora-
do “Entre o livro e o lugar”1) começou com uma pergunta: pode um
discurso literário relativo ao lugar transformar-se em discurso visual?
O desenvolvimento desta questão propicia reflexões na interface lite-
ratura, cinema, música e artes visuais, além de, no exercício de uma
poética própria, o entendimento e a experiência do espaço proposto,
onde lugar físico e lugar ficcional são igualmente princípios ativadores
do processo de criação de trabalhos audiovisuais.
A tese de doutorado tratava da produção de visualidades a partir
do deslocamento a lugares definidos poética, física e geograficamente
pela ficção literária. A investigação aprofundou-se na relação entre vi-
sualidade, texto literário e lugar a partir de dois autores: a Buenos Aires
de Jorge Luis Borges, na Argentina, e a Nevers de Marguerite Duras, na
França. Foi desenvolvida pesquisa bibliográfica, biográfica e geográfica
sobre esses autores a partir de um período de residência em cada lugar,
em intercâmbios com a UBA (Universidad de Buenos Aires) na Argen-
tina e com a Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne na França. A partir
das residências, trabalhou-se na produção de um corpus de obras visuais
relacionado diretamente à situação literário-geográfica experimentada.
No reconhecimento de uma autonomia dos universos constru-
ídos pela ficção, a pesquisa se dirige - agora no âmbito de um projeto
de pós-doutorado assim como no exercício da docência - a um sentido
inverso do encontrado no universo literário: na procura dos lugares
reais a partir dos ficcionais, na constatação de uma memória constru-
ída a partir de um repertório relacionado a lugar, e nas possibilidades
de transformação e permeabilidade dos discursos literário e visual na
construção de uma poética própria.

1 Orientada pelo prof. Dr. Carlos Fajardo e defendida na ECA-USP, Departa-


mento de Artes Visuais, em 2015.

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Cidades escritas.Textos habitáveis: visualidade e lugar literário na paisagem, 1198
cidade e arquitetura.
Evito pensar na literatura como roteiro, ou em sua tradução,
ilustração, apropriação ou citação no universo visual. Prefiro palavras
como intersecção, paralelismo, permeabilidade, reação. Nessa inter-
face literatura-lugar-imagem entra o componente essencial de uma
poética da sensação. No experimentar como uma experiência física e
corpórea de lugar e sua correspondente memória ficcional - constitu-
ída por lembranças alheias ou inventadas relacionadas diretamente a
esse lugar- podem afetar, modificar e construir uma à outra.
Trata-se do deslocamento a lugares onde nunca estive ou dos
que, invisibilizados por um habitar cotidiano, se tornem perceptíveis
e reconhecíveis através de uma memória ficcional e alheia, somada
ao entendimento e à experimentação de seus espaços. A origem des-
se deslocamento está no livro, no conto, no romance, no lugar que
constróem. Num caminho inverso, é também onde pode reverberar
o sentido das imagens.
Penso em um paralelismo permeável: ambos os lugares, o es-
crito e o visível, conversam, tangenciam, se tocam, se reconhecem ou
se repelem, mas não são o mesmo.
Dessa forma, o lugar se configura como ponto de partida para
toda uma discussão literária e visual, seja ele real ou ficcional. Na
produção de um corpus visual decorrente dessas experiências e refle-
xões, a ideia é dar a ver esse lugar modificado, mapeado, entendido,
interpretado como um terceiro lugar.
Como artista visual, meu campo de trabalho se dirige, além
da pesquisa intermidiática possível, ao enunciar de uma questão que
ative tanto a investigação como a produção artístico-literária, desen-
volvendo a pesquisa em torno de uma práxis reflexiva. O processo
de realização das obras vêm a resultar tanto da construção de um
repertório urbano e espacial quanto literário, da experiência dessa
literatura no lugar onde ela se originou, da releitura de textos em

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Cidades escritas.Textos habitáveis: visualidade e lugar literário na paisagem, 1199
cidade e arquitetura.
lugares públicos ou privados que pedem reconhecimento ou reinven-
ção. Surgem a partir da circulação diária e cotidiana nos espaços e
edifícios da cidade, da vivência do idioma e suas especificidades locais,
da busca por uma cidade (ou da parte dela) que contenha uma den-
sidade histórica fundamental. Dessa forma, a ficção sobre o lugar se
configura como um motor de deslocamento, e a literatura funciona
como elemento detonador desse movimento.
Como “posta em lugar do texto” (mis-en-place), na prática de
um percurso literário na cidade de São Paulo e suas relações possíveis
com a cidade em uma experiência artístico-didática2, observaram-se
as diversas relações entre texto e lugar, a citar:
- casa, cidades, ilhas de escritores: a relação do espaço biográ-
fico do escritor com o texto;
- casas e lugares pertencentes à memória ou à história de per-
sonagens fictícios, numa especie de verosimilhança e legitimidade
possível com a ficção;
- lugares que albergam mitos, fábulas ou significados religiosos;
- lugares carregados de historicidade;
- lugares-tema, ou arquétipos de lugar: o porão, a escada, o
armário, o rio, o mar, a escada, a ponte, o cais;
- lugares de forte personalidade, que instigam ficções;
- o nome que atribui sentidos ao lugar e o lugar que adensa os
sentidos do nome.
Vale citar também um repertório téorico-prático no qual esta
pesquisa sedia fortes referências:

2 Disponível no video https://vimeo.com/147978228 . Atividade integrante


do curso ‘Entre o livro e Lugar” (SESC CPF 2016), com as atrizes-leitoras Lilian
de Lima e Karen Menatti.

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Cidades escritas.Textos habitáveis: visualidade e lugar literário na paisagem, 1200
cidade e arquitetura.
- Os Atlas, como livros plenos de lugares em seu interior: Atlas
Mnemosine de Aby Warburg, Atlas de Jorge Luis Borges, Atlas portátil da
America Latina de Graciela Speranza, Atlas des Lieux Maudits de Olivier
Le Carrer, Infinite City: A San Francisco Atlas e Unfathomable City: A New
Orleans Atlas de Rebecca Solnit, Dicionário dos Lugares Imaginários de
Gianni Guadalupi e Alberto Manguel. Incluo também o Atlas Mikro-
mega do artista alemão Gerhard Richter, uma coleção de fotografias,
recortes de periódicos, folhas de papéis e esboços que o artista reuniu
a partir dos anos 60.
- o percurso e o deslocamento como metodologia de pesquisa
e na sua relação com processos artísticos e literários, à luz de referên-
cias como a obra Passagens de Walter Benjamin, Walk Scapes de Fran-
cesco Careri e Reflexões sobre o exílio, de Edward Said.
- Trabalhos anteriores: que constituem tanto referência como
exemplo da produção visual e textual decorrentes de investigações
anteriores.
Apresento a seguir alguns dos trabalhos autorais realizados en-
tre os anos de 2008 e 2018 a partir das possibilidades de relação entre
texto, idioma, lugar e visualidade - em um recorte que contempla os
territórios de línguas portuguesa e espanhola, foco deste certame -
sob três eixos de abordagem:

A casa da origem transformada em livro – Santiago do Chile.


Do catolicismo, do labirinto, do excesso de objetos e memórias, do
pó e da inércia. Do acúmulo sobre o acúmulo. Da ação que faltava aos
cômodos. Do organismo vivo que é sempre uma casa, até o momento
de sua destruição.
Se “Casas são livros de páginas muito grossas”, talvez pudesse dar
o mesmo peso às casas que eu escolhi como aos livros que tinha lido.

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Cidades escritas.Textos habitáveis: visualidade e lugar literário na paisagem, 1201
cidade e arquitetura.
Imagem 1 – Casas são livros de páginas muito grossas, intervenção
sobre fotografia, 2002.

A partir do desejo de portar comigo a velha casa da avó paterna, em


Santiago do Chile, decidi reconstruí-la progressivamente através de
reflexões visuais. Denominada Casapina, repleta de objetos e memó-
rias que, juntamente com o adobe, multiplicavam-lhe o peso e a den-
sidade, a casa revelou-se passível de ser pensada cômodo a cômodo.
Lentamente e por partes, sobre diferentes impressões de ali se estar,
como uma maneira de desenovelar o labirinto que era, de decupá-la
como a um texto que tem demasiadas informações. Cada cômodo
reconstruído como imagem caberia, assim, dentro do capítulo de um
livro, dotado de leveza e portabilidade. Então a casa se transformaria,
um capítulo após o outro, em livro. E eu seria capaz, finalmente, de
carregar a casa comigo, aonde quer que fosse.
A construção poética ocorre como possibilidade de confi-
guração de um espaço cotidiano, ativada pelas suas características
mais peculiares.

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Cidades escritas.Textos habitáveis: visualidade e lugar literário na paisagem, 1202
cidade e arquitetura.
imagem 2 - Patio de Luz, 2007, fotografia de performance, série de 6 imagens.
Em “Cercanías ”, Borges define: “Os pátios árabes, cheios de ancestralidade e eficácia, pois
estão cimentados nas duas coisas mais primordiais que existem: na terra e no céu.”

imagem 3 a e 3b- Sala de Jantar/Comedor, 2007, fotografia, série de 8 imagens.


O uso deste cômodo, onde há mais de 30 anos funciona a loja de pesca da família, teve
sua função original de Sala de Jantar resgatada através de um tradicional almoço de
domingo em família. Foi introduzida uma mesa no meio da loja e preparado um prato
típico da culinária popular chilena, uma cazuela. Sobreposição de funções, usos e tempos.

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Cidades escritas.Textos habitáveis: visualidade e lugar literário na paisagem, 1203
cidade e arquitetura.
imagem 4 – Copa/
Cocina americana,
2009, fotografia, duas
séries, dimensões
variadas.
Ictus e a luz: o
logotipo-arquétipo
da casa. “Os objetos
têm deixado de ser
múltiplos e variados
e singulares para
confundir-se com
as palavras que os
nomeiam - os objetos
essenciais.” ((JL Borges)

imagem 5 - Quarto
de castigo/ Cuarto
de castigo, 2007,
Fotografia, série de 3
imagens.
A parede desse
pequeno quarto
configurava quase
que um mapa, com
os pedaços de adobe
expostos sob a
cor azul desbotada.
As dimensões
reduzidas do lugar, a
posição autoritária
e centralizadora da
lâmpada, afirmativa,
pareciam apenas
precisar da presença
do homem para
acomodar-se à nova
função atribuída.

Tradução e trânsito entre linguagens


Cidades escritas.Textos habitáveis: visualidade e lugar literário na paisagem, 1204
cidade e arquitetura.
imagem 6 - Fachada, 2009,
fotografia, série de 5 imagens.
Uma pele de água foi
sobreposta à calçada
correspondente à fachada da
casa. Só Casapina, solitária, era
dona de um reflexo tão negro
quanto próprio, durante uma
noite. Para tornar-se a única
casa, naquela rua, que possui
um abismo particular.

imagem 7 - El tango del


Pasillo, 2009, vídeo, 6’18”, em
co-autoria com os bailarinos
Gabriela Tapia e Gonzalo
Beltrán. Barrio Brasil, Santiago,
Chile. A campainha da casa toca.
A porta se abre e os bailarinos
dão início ao improviso. O
tango acontece no corredor,
filmado em plano-sequência.
Tal como exige esse espaço aos
movimentos que alberga: que
sejam contínuos e com uma
certa possibilidade de infinito,
ainda que exista claramente
começo, meio e fim. Como em
todos os dramas.

Tradução e trânsito entre linguagens


Cidades escritas.Textos habitáveis: visualidade e lugar literário na paisagem, 1205
cidade e arquitetura.
Ao refletir sobre cada uma das experiências, vejo trabalhos
que, em sua variedade e irregularidade, constituem diversos momen-
tos desse habitar, como resposta a meios e situações às quais respondo
com ações diversas, no esforço de compor um universo particular
dentro da situação da casa. No Chile, o país de origem onde nunca
havia morado, o tema da casa me era naturalmente mais caro e parti-
cular, preenchido de afetos e familiaridade. O habitar começa direta-
mente atado à presença dessa casa carregada de significados herdados,
os quais por vezes se deixam ver, por outras se tornam mais obscuros
e subservientes à situação presente.
A busca de sentido não tem necessariamente a ver com pos-
tulados implicitos na idéia da casa e da arquitetura. A construção e
invenção de sua poética se dá no decorrer da vivência do interior, do
exterior, do que não funciona mais, do que se evapora, do que expõe
em vez de proteger, de um habitar que se reconhece pelo que é, pelo
que pode ser e pelo seu fracasso. Assim, no decorrer do processo,
percebo que não importa o dado sobre a escala da casa, mas a sensa-
ção de me encontrar a uma certa distância do teto, pisando sobre um
chão de madeira que range a cada passo. Onde a casa configure antes
o lugar do desenraizamento que da acomodação, do cansaço e do es-
gotamento antes do repouso. Onde a tipologia e o estilo cedam lugar
a outras formas que se impõem trás a ação do desgaste, do descascado
das paredes, de uma passagem que não estava prevista e foi aberta
obedecendo a normas de dimensões não humanas.
Me parece que todas estas ações tem no seu cerne a mesma
pergunta: é possível habitar desta maneira?
No conto do escritor marroquino Bernard Collet, Elle, si pro-
che de la mer, ele nos conta de uma casa que, ainda que estivesse em
qualquer outro lugar, desmontada, reconstruída, ela sempre perma-
neceria onde é sonhada, dentro desse estreito limite entre a realidade

Tradução e trânsito entre linguagens


Cidades escritas.Textos habitáveis: visualidade e lugar literário na paisagem, 1206
cidade e arquitetura.
e a ficção. Afinal, “ela sabe que é ali onde eu me encontro bem”. Me parece
ser o lugar onde desejo reconstruir estas casas e territórios. Ou onde
me seria possível habitá-los.

Do deslocamento a Buenos Aires a partir dos lugares


contados por Jorge Luis Borges.

BORGEANO, a. adj. (t. borgiano, borgeseano) Relativo à obra


do escritor Jorge Luis Borges. II 2 Lit. Diz-se da literatura sobre
a literatura e das escrituras que citam, parodiam e amplificam
o canon ocidental. II 3 Fil. Diz-se de uma crítica à noção de
realidade que questiona as coordenadas tradicionais de tempo e
espaço. II 4 fig.Aplicado às situações que ocultam, sob uma apa-
rência banal, algo secreto ou enigmático. II 5 Intrincado, para-
doxal. In Cosmópolis, Borges y Buenos Aires. Catálogo, 2002.

A pergunta ao me dirigir a Buenos Aires poderia ser: o que será conhe-


cer uma cidade a partir do pressuposto da impregnação do borgeano?
Convém não reduzir o borgeano, que se modifica continua-
mente, aos tópicos simbólicos que o próprio Borges se encarregou de
renovar – tigres, espelhos, labirintos, espadas, o duplo, a biblioteca.
No catálogo Cosmópolis, encontra-se uma bela definição do que po-
deria ser definido como processo de trabalho, ou simplesmente como
relação estabelecida com a cidade:

Nas cidades que a memória constrói cabem as fragmentadas


paisagens que a vertigem ou a emoção expandem até fazer do
instante uma forma perdurável. A memória do escritor é herda-
da com a credulidade com que se recebem lembranças alheias.
Estudamos essa memórias, as documentamos, as dissecamos,

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cidade e arquitetura.
confiamos no mapa e adentramos no território. No entanto, o
essencial só começa a ser intuído quando aprendemos a liberar-
nos do acúmulo de olhares que não nos pertencem. (...) É então
quando os armazéns rosados, as ruas despovoadas, os pátios
melancólicos ou os atardeceres que se parecem ao amanhecer
adquirem outro sentido. Não recordamos que estavam assim
antes de Borges. Simplesmente nos abandonamos à beleza de
um instante que é intimamente nosso. É quando a Buenos Aires
de Borges pode ser recebida como uma forma emancipada da
sensibilidade poética. O instante é nosso.

No confronto com uma obra ou idéias tão poderosas como as de Bor-


ges, o abordar um lugar pelo viés inicial de um escritor pode ser tão
interessante quanto limitante. Dessa forma o processo exige ao mes-
mo tempo o olhar do outro, pairando a título de memória, e a tábula
rasa, o momento presente do encontro com o novo, a possibilidade
de assombro. Borges sabía que é difícil se emocionar e se assombrar
de memória. Como diz em “O jardim dos Caminhos que se Bifurcam”:

Apesar de meu pai ter morrido, apesar de ter sido um meni-


no num simétrico jardim de Hai Feng, eu, agora, ia morrer?
Depois refleti que toda as coisas nos acontecem, precisamente,
precisamente agora. Séculos de séculos e apenas no presente
ocorrem os fatos; inumeráveis homens no ar, terra e mar, e tudo
o que realmente sucede, sucede a mim...

Uma cidade que foi fundada duas vezes, e ainda uma terceira vez pelo
escritor, que desloca sua origem a Palermo, o bairro da infância. A
topografia borgeana começa por caminhar pelos limites da cidade:
transitar pelas margens, pelas orillas de la urbe, desloca e desenfoca

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Cidades escritas.Textos habitáveis: visualidade e lugar literário na paisagem, 1208
cidade e arquitetura.
o centro, despovoa a cidade. Operação semelhante à realizada com
o país, que se reconhece periférico. A idéia de localismo, porém, é
logo rejeitada: os localismos não deveriam ser descartados apenas por
serem arbitrários, mas também por serem um culto importado da
Europa, uma invenção recente e estéril. “O verdadeiramente nativo
pode e deve prescindir da cor local.” Ele parece dizer que é um erro
se preocupar em ser ou expressar o que por azar ou destino já se é.
A ficção invade a realidade, deixando apenas os detalhes que
possam dotar de verossemelhança a trama. “La realidad cedió en más
de un punto. Lo cierto es que anhelaba ceder.”
Buenos Aires era uma cidade da qual me lembrava quando a vi-
sitei pela primeira vez, na adolescência. Sabia que às vezes o labirinto da
cidade não estava nas ruas nem nas confusões de tempo, mas no comportamento
inesperado das pessoas que ali viviam.3 A cidade aconteceu entre uma bi-
blioteca magistral e vazia e um sebo de livros labiríntico e abarrotado.
O sebo não continha um livro de areia, apesar de ser quase infinito,
mas a (ex-)Biblioteca, que havia sido Nacional e dirigida por Borges
durante 20 anos, parecia muito mais condizente a um bibliotecário
cego sem os seus livros do que com eles.

A língua de Buenos Aires mudava tão rápido que primeiro apa-


reciam as palavras e depois chegava a realidade, e as palavras
continuavam quando a realidade já era passado. O que acon-
tece com as pessoas também acontece com os lugares: a cada
momento mudam de humor, de gravidade, de linguagem. Uma
das expressões comuns do habitante de Buenos Aires é “Aqui não
me acho”, que equivale a dizer:“Aqui não sou eu”.4

3 Tomás Eloy Martinez, trechos de “El cantor de tango”.


4 Tomás Eloy Martinez, trechos de “El cantor de tango”.

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cidade e arquitetura.
Imagem 8 - Biblioteca Universal
de Bolsillo, 2013, Fotografia,
série de 5 imagens. Lugar:
Sebo El Glyptodón. A que
tudo contém, apesar de caber
no bolso e ser facilmente
transportável.
Para chegar às teias de
aranha das estantes, subia-se
por labirintos circulares que
desembocavam, quando se sabia
o caminho, em um corredor
de teto baixo, contíguo a uma
cúpula aberta sobre o abismo de
livros. (MARTINEZ, 2004)

Imagem 9 - Antilope, 2013,


fotografia de instalação, 3
imagens sequenciais.
Ele nos observa desde o fundo
de um corredor em ruínas, em
um zoom que nos aproxima
sequencialmente. Um morador
da biblioteca, como tantos
outros.
Hoy te evoco emocionado, dizia
o tango, e eu sentia que esse
conjuro bastava para desvanecer
os vidros do chão e apagar
as teias de aranhas e o pó.
(MARTINEZ, 2004)

Tradução e trânsito entre linguagens


Cidades escritas.Textos habitáveis: visualidade e lugar literário na paisagem, 1210
cidade e arquitetura.
Imagem 10 a, b, c - Dos Caballos, 2013, fotografia de performance, 7 imagens sequenciais.
Ao cavaleiro em bronze foi emparelhado, simetricamente e sob todos os ângulos das ruas
que ali desembocam, a figura de um cavaleiro em carne e osso.
Em toda grande cidade existe, como se sabe, uma dessas linhas de alta densidade,
semelhante aos buracos negros do espaço, que altera a natureza dos que a atravessam.
(MARTINEZ, 2004)

Imagem 11 - Missing Names, 2013, fotografia de ação, série de 97 imagens. Na grande sala
restaram apenas as estantes, numerosas e cobertas de anos de camadas de pó. A elas
serão devolvidos, senão os livros, pelo menos os nomes de seus autores. As fotografias
registram a ação de escrever, sobre a poeira, os 96 nomes (+1, o de Jorge Luis Borges)
gravados nas colunas da biblioteca.
Caminhamos muito e tive a impressão que nada estava no lugar que deveria estar. Borges
dissera, citando o bispo Berkeley, que, se ninguém percebe uma coisa, ela não tem por
queexistir, esse est percipi. Por um momento senti que essa frase podia definir a cidade
inteira. (MARTINEZ, 2004)

Tradução e trânsito entre linguagens


Cidades escritas.Textos habitáveis: visualidade e lugar literário na paisagem, 1211
cidade e arquitetura.
Imagem 12 - Babel, fotografia de instalação - 20 imagens. Sebo El Glyptodón , 2013.
Espelhos são colocados no interior do sebo, transformando o indefinido em infinito.
(...) Respondi que, fazia muito tempo, eu tinha estudado uma idéia parecida do filósofo escocês
David Hume: A repetição nada muda no objeto repetido, mas sim no espírito que a contempla.
(MARTINEZ, 2004)

Imagem 13 - Hospital, livro (foto-romance), 66 páginas. Hospital Rivadavia, 2014.


Recorte de trechos do livro “El último cantor de tango” de Tomas Eloy Martínez, onde
a personagem central do romance se encontra nas dependências de um hospital em
Buenos Aires. As imagens são dos espaços do mesmo hospital, hoje em ruínas. (frase: Se
movía con lentitud, como si llevara a la rastra todos los sufrimientos de la condición humana)

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Cidades escritas.Textos habitáveis: visualidade e lugar literário na paisagem, 1212
cidade e arquitetura.
Imagem 14 - Sin Palavras, 2013, Vídeo, 4’21”. Músicos Trio Camandulaje - Eva Fiori (voz),
Ignacio Fernández (violão), Álvaro Del Águila (bandoneón). Ex-Biblioteca Nacional de
Argentina. A música empresta o nome ao vídeo: Sin Palabras, que canta ausências na exata
medida da grande sala esvaziada.
Senti que sobre aquela música caía não apenas um passado, mas todos os que a cidade
tinha conhecido desde os tempos mais remotos, quando não passava de um capinzal inútil.
(MARTINEZ, 2004)

De deslocamentos para o lugar do cotidiano, na própria


cidade - São Paulo.

Un hombre se propone la tarea de dibujar el mundo. A lo largo


de los años puebla un espacio con imágenes de provincias, de
reinos, de montañas, de bahías, de naves, de islas, de peces, de
habitaciones, de instrumentos, de astros, de caballos y de perso-
nas. Poco antes de morir, descubre que ese paciente laberinto de
líneas traza la imagen de su cara.”
El hacedor (Emecé, 1960), Jorge Luis Borges

Tradução e trânsito entre linguagens


Cidades escritas.Textos habitáveis: visualidade e lugar literário na paisagem, 1213
cidade e arquitetura.
Propor-se um território desconhecido em oposição ao conhecido,
dentro dos limites da própria cidade de São Paulo. Na ideia de abordar
o lugar a modo de tábula rasa, dentro de uma mesma cidade, no acessar
a tradicional (porém nem sempre em um só sentido) dicotomia centro-
-periferia. Na proposição da errância como experiência estética. Na
possibilidade de examinar o conceito de “ficção” como uma potência
de deslocamento e de produção de imagens a partir da literatura.
Em uma espécie de arqueologia urbana, restituindo sentido a
lugares esquecidos, como a extinta Cinelândia paulista no trabalho
visual-literário Cinema: Ipiranga.
Cinema: Ipiranga foi realizado na cidade de São Paulo a partir
de derivas no centro paulista e da descoberta da extinta Cinelândia
da avenida São João, oculta atrás de cartazes publicitários, transfor-
mada em igrejas evangélicas, cinemas pornô ou estacionamentos,
onde muitas vezes era necessário um esforço de reconstrução mental
e comparativo para encontrar sinais dos antigos cinemas. Cinema: Ipi-
ranga utiliza fotografias produzidas a partir da premissa de registrar
os espaços internos do Cine Ipiranga (fechado e inativo havia sete
anos) sob a luz da projeção dos primeiros filmes realizados na his-
tória do cinema. As projeções escapavam da tela da grande sala para
ocupar saguões, hall de entrada, escadarias e a própria platéia, rea-
bitando o cinema com uma população fantasmática em movimento.
As imagens fotográficas resultantes são acompanhadas de um texto
híbrido, resultado da mescla entre a ficção “A Invenção de Morel”, de
Adolfo Bioy Casares, e um relato autobiográfico, produzido a partir
da experiência no cinema.

CINEMA: IPIRANGA
Ontem à noite, pela centésima vez, entrei na sala vazia. Já
no saguão da entrada posso ver esse público não pagante que

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Cidades escritas.Textos habitáveis: visualidade e lugar literário na paisagem, 1214
cidade e arquitetura.
ainda frequenta o cinema. Esse que o habita. Por sua apari-
ção inexplicável, poderia supor que são efeitos em meu cérebro
do calor da noite passada. Mas aqui não há alucinações nem
imagens: são homens e animais de verdade, ao menos tão de
verdade quanto eu. (…)
Quem sabe por qual destino de condenado à morte eu os obser-
vo, inevitavelmente, o tempo todo. Dançam entre as poltronas,
ricas em ácaros, pulgas e baratas.
Observo com algum fascínio esses abomináveis intrusos, fico
tanto tempo sem ver gente... mas seria impossível observá-los o
tempo todo. Há o perigo que me surpreendam observando-os. E
há também a dificuldade material para vê-los: parecem gigan-
tes fugazes, posso vê-los quando se aproximam dos limites do
balcão superior, como potenciais suicidas. (…)
Temia uma invasão de fantasmas, mas temia mais uma invasão
de vivos. Decidi revistar o cinema, sem encontrar nada, mas
seguia inquieta. Me custava, depois, todo o tempo em que estive
ali, distinguir entre os ecos dos passos, os suspiros, e minha
projeção dos ruídos possíveis. Quando não os ouvia, o silêncio
se tornava muito pior, tão denso quanto esse ar encerrado.5.

Na elaboração de outras escritas, o próprio caráter literário do texto


ficcional de origem em relação com as imagens produzidas exigiu o
desenvolvimento de uma forma escrita de caráter experimental e in-
vestigativo, que acabou por se tornar parte do próprio trabalho visual,
tal a organicidade da relação estabelecida. Outras vezes, apropriações
de textos ficionais são assumidamente mesclados à apresentação das

5 Trechos do texto híbrido entre o relato Cine Ipiranga, de Patricia Osses, e a


ficcção A invenção de Morel, de Adolfo Bioy Casares.

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Cidades escritas.Textos habitáveis: visualidade e lugar literário na paisagem, 1215
cidade e arquitetura.
Imagem 15 a e 15 b: Cinema: Ipiranga, Fotografia de projeção e texto
“Ipiranga”, série de 15 imagens. Lugar: Cine Ipiranga, São Paulo, 2012.

obras, na busca de atender necessidades internas dos trabalhos, para


dar conta de uma narrativa que se iniciou nele mesmo.
Outros lugares cotidianos podem ser Rio de Janeiro, Tours ou
Nevers, na França, locais de tantos outros trabalhos visuais nesse pe-
ríodo. Mas poderiam ser qualquer lugar.

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Cidades escritas.Textos habitáveis: visualidade e lugar literário na paisagem, 1216
cidade e arquitetura.
Poderiam ser ABATON, que é uma cidade de localização va-
riável. Embora acessível, ninguém ainda chegou a ela. Sabe-
se que os viajantes com destino a Abaton vagueiam durante
muitos anos sem jamais conseguir ao menos um vislumbre da
cidade. Alguns, no entanto, viram-na erguer-se de leve, acima
do horizonte, especialmente ao crepúsculo. Inexplicavelmen-
te, essa visão provocou grande alegria em alguns, enquanto
outros sofreram uma dor terrível. (…) Sir Thomas Bulfinch,
que viu os contornos de Abaton quando ia de Glasgow para
Troon, na Escócia, descreveu os muros como “amarelados” e
mencionou uma música distante, algo semelhante à produzi-
da por um cravo, que vinha do interior dos portões. Mas isso
parece improvável.6

É improvável também que dois edifícios conversem. Parecia um


conto: transpor um edifício inteiro a cem metros de seu lugar ori-
ginal. Um edifício precisava ser destruído pra que o outro, exata-
mente igual, existisse. Se eles pudessem conversar durante o breve
momento em que chegaram a co-existir, suas vozes talvez assumis-
sem o timbre de um violoncello. E a conversa se transformaria no
concerto para dois violoncellos, de Vivaldi, pleno e muito claro em
simetrias. Ambos os edifícios siameses, de Paulo Mendes da Rocha,
insistiam em trazer referências mais de uma igreja que de uma ga-
leria. Para uma igreja-galeria parecia fazer muito sentido recorrer
à mais nobre função dos edifícios religiosos: a de amplificar os sons
ali dentro produzidos.
A realidade se parece, assim, com apenas mais uma das ficções
possíveis.

6 Dicionário dos Lugares Imaginários, Manguel e Guadaluppi, ed

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Cidades escritas.Textos habitáveis: visualidade e lugar literário na paisagem, 1217
cidade e arquitetura.
Imagem 16 (díptico) : Concerto para edifício transposto, vídeo, 12’17”.
Músicos: Daniela Paciello (violoncelo 1), Guilherme Faria (violoncelo
2 e piano). Concerto para dois violoncelos em sol menor, de Antonio
Vivaldi. Lugar: Galeria Leme 1, Galeria Leme 2, São Paulo, 2012.

Na sua continuidade pela paisagem urbana, a pesquisa pretende situar


atribuições de sentido a paisagens, cidades, ruas e edificações ao apro-
fundar o repertório literário e ficcional, abrindo o leque de autores a
outras produções e assumindo o percurso como objeto empírico de
investigação e de experimentação. A realização de percursos pretende
a uma “posta em lugar” (mis-en-lieu) ou localização do texto literá-
rio, abrindo ou estendendo o seu campo de significados (cultural, so-
cial, ficcional, simbólico, histórico) e finalmente experimentando um
conceito de “literatura expandida”7. A experiência realizaria a ação

7 PATO, Ana. Literatura expandida, arquivo e citação na obra de Dominique Gonzalez-


Foerster. Editora SESC. São Paulo, 2014. A abordagem pretendida, no entanto,
se dirige a um sentido oposto ao explorado pela autora no seu conceito de “li-
teratura expandida”, da citação e da colagem, e ruma em direção a uma ideia de
“paralelismo permeável” entre obra textual e visual.

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Cidades escritas.Textos habitáveis: visualidade e lugar literário na paisagem, 1218
cidade e arquitetura.
de “corporificar” esse texto, num processo que vai do verbo e da pa-
lavra à fisicalidade, do tempo narrativo (sequencial e linear) e virtual
ao tempo do atual, do presente. Na hibridização da literatura com o
campo de estudos da cidade, espaço e lugar (urbanismo, geografia,
arquitetura, fotografia), a constituição de uma cartografia em torno
de dispositivos ficcionais (contos, romances e histórias) culmina em
incursões pela forma mapa/atlas e em uma produção poética (visual
e escrita) como suportes que abrigam ao mesmo tempo um corpus
textual e um corpus visual.
A reflexão continua, no imaginar em que medida o proces-
so de apreensão e conhecimento de um lugar pode ser aprofundado,
afetado e modificado pelo texto, assim como a experiência literária
pode ser potencializada pelo espaço físico, provocando outras formas.
E como a prática da experiência urbana pode se inserir no contexto
de uma poética do cotidiano, que amplie conteúdos e significados ao
definir lugares como receptáculos de textos, transformando a cidade
em uma grande, vasta e mutável biblioteca viva, a ser experimentada
como tal. Suas ruas, túneis, praças, vielas e edifícios passam, dessa
forma, a conter ficções, poéticas e memórias oriundas do universo
literário, assim como os volumes de uma biblioteca.
Evidenciam-se as práticas criativas a partir do espaço da ci-
dade estabelecendo nexos entre imagem verbal, imagem visual e a
noção de lugar (na sua concepção, construção e acontecimento). No
desenvolver da investigação, procura-se um novo direcionamento no
tipo de texto, que não necessariamente pertence ao lugar por veros-
similhança ou atribuição, mas por designação, encaixe, sobreposição,
paralelismo permeável, atribuição de sentido, interpretação, constru-
ção. O tema se abre tanto para a pesquisa do pensamento sobre as
ideias de “lugar-imagem” e “lugar-texto” na direção de sua potência
desenvolvida pelo cinema, literatura e artes plásticas, como no aden-

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Cidades escritas.Textos habitáveis: visualidade e lugar literário na paisagem, 1219
cidade e arquitetura.
samento de uma produção poética relacionada. O âmbito é de uma
diluição de fronteiras entre as poéticas, vertente assumida nos traba-
lhos anteriores aqui apresentados.
O texto modifica o lugar, o lugar modifica o texto na realiza-
ção de percursos, adotando a deriva como procedimento de criação e
entendimento do território.

A língua que consolida territórios – direções de uma


pesquisa nas bordas: MS
Atualmente resido e leciono no centro-oeste brasileiro, tão distan-
te como idéia na capital paulista, tão recentemente entendido como
território visível no país. Centro e periferia, aqui, tem seu sentido
geográfico invertido em relação a seu protagonismo nacional: centro
(do país, do continente) vira borda, vira importância periférica, num
país voltado para um litoral que contém historicamente ocupações,
densidades e acontecimentos que constituiem seu verdadeiro centro.
Em Goiânia(GO), no desativado edifício do Jóquei Clube - no-
vamente Paulo Mendes da Rocha - alguns saltos ornamentais volta-
ram às piscinas em ruína, há tanto tempo sem água. Uma cidade,
que a setenta anos de sua fundação já flerta com seu estado de ruína,
parece querer nos convencer que somos “Sempre passageiros, nunca re-
sidentes”. Como diria o antropólogo Claude Levi-Strauss, no trabalho
“passageiros residentes”, constituído por frases impressas nos espe-
lhos do Grande Hotel, onde se hospedou em 1936, sobre a recém-i-
naugurada capital:

Nenhuma história, nenhuma duração, nenhum hábito lhe sa-


turara o vazio ou lhe suavizara a rigidez. (...) Sempre passa-
geiros e nunca residentes.

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Cidades escritas.Textos habitáveis: visualidade e lugar literário na paisagem, 1220
cidade e arquitetura.
Imagens 17: Suspensos, instalação em fotolambe – fotografias do acervo
Joquei Clube de Goiás (anos 40), ampliadas e fixadas nas dependências
de suas ruínas. A devolução das imagens a seu lugar de origem.

Imagem 18 a, b, c: passageiros-residentes,
instalação: colagem de letras espelhadas
sobre espelho, Grande Hotel de Goiânia
(hoje desativado). Frase do antropólogo
Claude Levi-Strauss quando hospedado
no hotel (1936).

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Cidades escritas.Textos habitáveis: visualidade e lugar literário na paisagem, 1221
cidade e arquitetura.
Apesar de uma perda de aproximadamente 85% das línguas nativas, o
Brasil segue, ainda, com a maior diversidade lingüística das Américas.
Com a segunda maior população indígena do país (cerca de 15%),
os povos indígenas do Mato Grosso do Sul ocupam apenas 0,6% das
terras demarcadas no Brasil para os povos autóctones.
O seminário internacional Espaços Narrados propõe discutir
as ações produzidas pela consciência inscrita nas línguas portuguesa,
espanhola e nativas da America ao se confrontar com o desafio do
conhecimento do espaço, do território, da paisagem e do lugar. Em
Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul, onde a língua portu-
guesa insiste em ignorar todos os idiomas anteriores - em processo
de apagamento há séculos – as línguas autóctones persistem como
território, muitas vezes como único lugar possível de visibilizar e
definir. Segundo o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, o Mato
Grosso do Sul é a “faixa de Gaza brasileira”, fazendo alusão aos acam-
pamentos de beira de estrada do povo Guarani-Kaiowá, que ocupam
essas faixas na esperança de reaver suas terras sagradas, seu Tekoha.
Territórios estes altamente marcados por conflitos e violações de
direitos humanos.
Encerro estas reflexões visuais introduzindo um próximo ter-
ritório de investigação que apenas começo a compreender, vislum-
brando uma visualidade que entenda esse estreitamento de significa-
dos entre povo, lingua e território, dentro de suas complexidade e
integridade próprias e nomeando aqui esses territórios-idiomas-luga-
res que resistem e permanecem, apesar de tudo, há quinhentos anos:
Atikum, Guarani-Kaiowá, Guarani-Ñandeva, Guató, Kadiwéu, Kini-
quinau, Ofaié e Terena.

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Cidades escritas.Textos habitáveis: visualidade e lugar literário na paisagem, 1222
cidade e arquitetura.
Referências Bibliográficas
BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. São Paulo, Martins Fontes, 1993.
BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte,: Editora UFMG, 2006.
BIOY CASARES, Adolfo. La Invención de Morel. Buenos Aires: Emecé
Editores, 1968.
BORGES, Jorge Luis. Obras Completas. Buenos Aires: Ed. Emecé, 2007.
ELOY MARTINEZ, Tomás. O cantor de tango. Tradução Sérgio Molina - São
Paulo: Companhia das Letras, 2004.
GRAU, Cristina. Borges y la arquitectura. Madrid, Ediciones Catedra - Ensayos
Arte, 1997.
MANGUEL, Alberto e GUADALUPI, Gianni. Dicionário de Lugares Imaginários.
Editora: Companhia das Letras. São Paulo, 2003.
PATO, Ana. Literatura expandida, arquivo e citação na obra de Dominique Gonzalez-
Foerster. Editora SESC. São Paulo, 2014.
PEREC, Georges. Especes d’ espaces. Paris: Editions du Regard, 2006.
SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São Paulo, Compahia das
Letras, 2003.
Cosmópolis, Borges y Buenos Aires – catálogo, 2002, Centro de Cultura
Contemporánea de Barcelona.

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Copyright © 2019 FAU/USP
Todos os direitos reservados. A reprodução não-autorizada desta publicação,
no todo ou em parte, constitui violação de direitos autorais. (Lei 9.610/98)
Capa e composição: Gabriel Pedrosa, Calixto Comporte e Marina Rigolleto

II Seminário Internacional Espaços Narrados: as línguas na construção dos


territórios ibero-americanos. JORGE, Luis Antonio (Org.). São Paulo:
FAU/USP, 2019. 1228 p. : il.

ISBN: 978-85-8089-167-6

Encontro realizado em São Paulo, de 04 a 07 de junho de 2019.


1. Linguagem e línguas 2. Arquitetura 3. Literatura 4. Mapas;
Atlas; Cartografia; Representações gráficas 5. Geografia e História I. Título.

realização

apoio
II Seminário Internacional Espaços Narrados
as línguas na construção dos territórios ibero-americanos

Comissão Organizadora
Agnaldo A. C. Farias
Ana Claudia S. V. Castro
Fernando Paixão
Fernanda Fernandes da Silva
Gabriel Pedrosa
Guilherme T. Wisnik
Íris Kantor
Joana Barossi
Jorge Figueira
Klara Kaiser Mori
Luís Antônio Jorge
Luis Carlos B. Ludmer
Marta V. Bogea
Paulo T. Iumatti
Ana Vaz Milheiro

Comitê Científico
Luís Antônio Jorge – FAU/USP – São Paulo - (presidente)
Ana Maria de Moraes Belluzzo – FAU/USP – São Paulo
Ana Claudia S. V. Castro – FAU/USP – São Paulo
Marta V. Bogea – FAU/USP – São Paulo
Fernando Paixão – IEB/USP – São Paulo
Paulo T. Iumatti – IEB/USP – São Paulo
Iris Kantor – FFLCH/USP – São Paulo
Fraya Frehse – FFLCH/USP – São Paulo
Abílio da Silva Guerra Neto – FAU/UPM – São Paulo
Cecília Rodrigues dos Santos - FAU/UPM – São Paulo
Lucrécia D’Alessio Ferrara – PUC/SP – São Paulo
Margareth Aparecida Campos da Silva Pereira – FAU/UFRJ – Rio de Janeiro
Robert Moses Pechman – IPPUR/UFRJ – Rio de Janeiro
Ana Luiza Nobre – PUC/RJ – Rio de Janeiro
Flávio de Lemos Carsalade – EA-UFMG – Belo Horizonte
Paola Berenstein Jacques – FA-UFBA – Salvador
Angela Prysthon – UFPE – Recife
Maria Stella Martins Bresciani - IFCH/UNICAMP – Campinas
Alex S. Calheiros de Moura – IHD/UnB – Brasília
Carlos Eduardo Comas – UFRGS – Porto Alegre
Maria Madalena A. Cunha Matos - FA/UL – Lisboa
Ana Cristina F. Vaz Milheiro – FA/UL – Lisboa
Pedro António Janeiro – FA/UL – Lisboa
Jorge Figueira – CES/UC – Coimbra
Luís Eugénio da Silva Lage – FAPF/UEM – Maputo
Alejandro Tapia – UAM-Xochimilco – Cidade do México
Luis Antonio Rivera Díaz – UAM-Cuajimalpa – Cidade do México
Mariana Ozuna Castañeda – FFL-UNAM – Cidade do México
Adrián Gorelik – UNQ – Buenos Aires
Graciela Silvestri - Universidad Nacional de La Plata
Jorge Vicente Ramírez Nieto – UNC – Bogotá
Sharif Samir Kahatt Navarrete – PUC Peru - Lima
Victoria Saramago – The University of Chicago
Bruno Carvalho – Faculty of Arts and Sciences – Harvard University

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