O Livro Dos Limites Edmond Jabes Lumme PDF
O Livro Dos Limites Edmond Jabes Lumme PDF
O Livro Dos Limites Edmond Jabes Lumme PDF
Pela primeira vez reúnem-se em um só volume os quatro livros que compõem o Livro
dos Limites
I – O PEQUENO LIVRO DA SUBVERSÃO
FORA DE SUSPEITA (1982)
A subversão é o movimento mesmo da escritura: o da
morte.
★
O que é a subversão?
– Talvez, da rosa que te fascina, o mais discreto
espinho.
«Se o que nos retém é o lugar, um entrave, uma humilhante peia terá sido, enfim,
a minha», dissera ele.
Para todo lugar, tu terás tido apenas a esperança de um lugar clemente para além
das areias: miragem do repouso.
Tu não tens criado. A exemplo de Deus, em tua pequena esfera de ação, tu crias
para o instante.
A subversão é pacto de porvir.
«Em seu mais alto período, tão natural, tão inocente é a subversão, que eu seria
tentado a considerá-la como um dos momentos privilegiados do reestabelecimento de
nosso precário equilíbrio», dissera ele ainda.
A ameaça é ilegível.
A subversão odeia a desordem. Ela é, ela mesma, ordem virtuosa oposta a uma
ordem reacionária.
O conhecimento se choca contra a fria extensão da ignorância, como raios solares
no espelho do mar cuja profundidade os estupefica.
É criação.)
Sábios e loucos de meus livros, que me tendes familiarizado com a subversão,
vosso lugar permanece aqui. Nenhures. No meio das areias onde, deitado sem querer
morrer ainda, tenho, geralmente, deixado minhas mãos se abrirem ao vazio.
Profetas subversivos do árido reino aonde fui unir-me a vós, vós tendes
preenchido meus anos com vossas sentenças, alvejado meu céu com vossas questões
insistentes, sepultado minhas certezas sob vossos passos.
«O universo é um livro do qual cada dia é a folha. Nele tu lês uma página de luz
– de despertar – e uma página de sombra – de sono –; uma palavra de aurora e uma
palavra de olvido», havia ele notado.
O deserto não tem nenhum livro.
Caderneta
«Não podemos fazer, com um nó, um outro nó mas, pelo contrário, podemos, com
um fio qualquer, fazer um nó.
«Todo nó, por conseguinte, é único.
«Dá-se o mesmo em nossa relação com Deus, com o homem, com o mundo»,
dissera ele.
Em cada livro, suas vinte e seis letras; em cada letra, seus milhares de livros.
Ele entregou, tremendo, a seu mestre, um caderno repleto de palavras de sua mão:
seu livro.
– Por que tremes? perguntou-lhe o mestre.
– Estas páginas – respondeu ele – como folhas de gelo, queimam-me os dedos.
Tremo de frio.
– Dize-me o que contêm estas páginas, retomou o mestre.
– Eu o ignoro, respondeu ele.
– Se tu não o sabes, quem o saberia? diz, então, o mestre.
– O livro o sabe.
«O que segue está por seguir. Ele não é jamais tributário do que foi mas do que
será», dissera ele.
«Tu pensas para conhecer. Tu nem mesmo conheces teu pensamento», havia ele
escrito.
«O dia está ligado à consciência. O inconsciente é noite opaca.
«Vê quão paradoxais são as vontades de Deus.
«De uma parte, Ele apela ao consciente para desenvolver, em nós, a ideia, o
sentimento da divindade; e, de outra, atingindo de interdito a imagem, Ele nos arremessa
no inconsciente onde Ele reina sem nós», havia ele, por outro lado, notado.
A legibilidade é póstuma.
PEQUENOS LIMITES AO ILIMITADO
Qualquer que seja a distância, esta é sempre concebível: pequena, ela é a presa do
olhar; imensurável, a presa da imaginação.
«A mais longa linha tem, por origem, a mais curta que é, ela mesma, apenas o
desejo inaplacado de ultrapassagem do ponto», havia ele notado.
«Se a sombra é questão à luz, ela é também questão à sombra; se a luz é resposta
à sombra, ela é também resposta à luz. Ó círculo no círculo!» dissera ele.
«A sombra não é a falta, mas o pleno do vazio onde o astro reluz. Negror, negror
do Nada», dissera ele, por outro lado.
O menor clarão é suspeição de universo.
Se Deus fosse o Uno, Ele seria duplo; o único sendo apenas o impensado do Uno
que, tão logo pensado, cessa de ser único.
II
A obra não é jamais cumprida. Ela nos deixa nesse incumprido onde morremos. É
essa parte branca que nos resta, não absolutamente a investir, mas a tolerar. Onde é
preciso nos instalar.
Aceitar o vazio, o nada, o branco. Tudo o que criamos está por trás de nós.
Estou, hoje – de novo – nesse branco, sem falas, sem gestos, sem palavras.
O que está ainda por cumprir, não é jamais senão o que se dá de bom grado por
cumprido: o deserto onde nossa impotência nos recalca.
Ficar pensando que o fim – o termo buscado – é impossível. Consolação, com
certeza, para a maioria dentre nós. Desalento para os desnorteados que o desconhecido
fascina.
Subversiva é a folha onde a palavra crê tomar pé; subversiva é a palavra onde a
folha se abre à sua brancura.
Tu escreves. Tu ignoras todos os conflitos que tua pluma levanta à sua passagem
e dos quais o livro é a cartada.
Subversivo, como Deus pôde pensar que o homem não o seria de nenhum modo
face-a-face com Ele?
Deus criou o homem à imagem de Sua subversão.
A via que leva ao meu livro, é via inaugurada por dez caminhos.
Ele te recorda disso?
A areia, há muito tempo, os engoliu.
Restam apenas indatáveis estrias deslocadas pelo vento;
pois jamais o livro cessa de se aventurar fora do livro.
Estar em seu rastro, é errar sem fim.
– Não há caminho que não possa ser designado pelo dedo; mas, qual mão saberia
tomá-lo?
– Nenhuma, seguramente. Qualquer uma poderia, por outro lado, destruí-lo.
– Que concluir disso senão que nada é poupado pela morte, nem mesmo Deus;
pois pensamento, olhar e mão obram apenas para ela.
«A morte não mata. Nós matamos, a cada instante, para ela», dissera ele.
«Queimada de antiga ausência, viva é, no deserto, a subterrânea luz produzida
pelo esfregar do grão de areia sobre o grão de areia; ó desejo comum de eternidade! Ó
muda centelha de amor em minha alma desolada», escrevera ele.
«Todo livro é dócil objeto dos desejos contraditórios que ele inspira ao livro que o
escreve», dissera ele também.
Ed que o recebera de Emo que o recebera de Nod que o recebera de Don que o
recebera de Seb que o recebera de Jassé que o recebera, ele mesmo, de Bes que o
recebera da boca de Sebaya, dissera:
«Não há livros senão na morte do Livro; pois é sua própria morte que os escreve;
mas, essa escritura é condenada a não ter jamais sepultura.»
E acrescentara: «Para uma definição válida do livro, eu sacrificaria de bom grado
todas as obras do mundo, pois é justamente graças a essa ausência de definição que
nossos livros puderam, até aqui, se impor a nós enquanto enigma a decriptar.»
«O desespero do escritor não é por não poder escrever o livro, mas por ser
constrangido a prosseguir indefinidamente um livro que ele não escreve.
«Dessa dor, eu só terei falado uma vez. Possa, hoje, tua palavra fraterna assumir o
turno da minha», dissera ele também.
★
« Deus é, a um só tempo, salvo e destruído pelo livro. Em sua glória e sua
miséria, o vocábulo no-lo ensina. »
«Escrever o livro consistiria, talvez, pelo viés de cada uma de suas palavras, em
retornar à eternidade o instante lido.»
★
– Quantas páginas tem teu livro?
– Exatamente noventa e seis superfícies planas de solidão. Uma abaixo da outra.
A primeira no topo; a última na base. Tal é o caminhamento da escritura – havia ele
respondido.
E havia acrescentado: «O que me intriga não é absolutamente ter descido, de folha
em folha, todos os passos do livro, mas saber como fiz para me encontrar, de entrada,
sobre o mais alto, o primeiro?»
É do mais longínquo da morte que Deus fala. Por todo tempo, estivéramos à
escuta desse silêncio.
O livro é o ante-termo?
Nesse caso, escreveríamos apenas para a morte; a escritura, chegada ao ponto
onde nada se escreve mais, abandonando-nos ao nada.
«A diferença entre nossos livros e o Livro divino, talvez, seja esta: os primeiros
têm a vida a atravessar para atingir Deus; o segundo, só a morte para chegar até a nós»,
dissera ele.
Livro sobre livro! O Livro sagrado recobre, com sua transparência, o livro
interdito.
Não podemos ler a rasura – dissera ele; mas, podemos imaginar uma leitura do
que foi definitivamente rasurado.
«Leitura da morte.»
Não lemos jamais senão o que falta à leitura total da palavra – dissera ele,
também.
«De sorte que é, cada vez, uma leitura diferente que somos levados a empreender
desta.»
Quem saberia promover a leitura do interdito que tenta levantar toda leitura do
livro?
Só o poderia aquele que, previamente, teria, do silêncio ao silêncio, conduzido o
vocábulo.
Dessa infinita distância que separa a ausência de si mesma, ele poderia fazer,
então, até o inevitável abandono, a leitura arriscada.
«Tu exibes o que não devia ser revelado. De fato, tu deixas entrever, do objeto
circundado, apenas aquilo por trás do qual ele se dissimula.
«E esse por trás do qual pode perfeitamente ser um outro objeto.
«Malicioso interdito», havia ele escrito.
«Deus é pleno de malícia; pois se não podemos ver Seu Rosto, é porque ele é, de
todos os rostos escrutados, o inexibível, o incontemplável pela virtude do qual toda
figura, em sua independência adquirida, acede à sua liberdade de enganar; quer dizer, a
ser, no instante, apreciada por ela mesma enquanto fortuita e fugitiva projeção de um
rosto ignorado», havia ele escrito também.
Deus escapa à mentira por uma mentira mais eloquente que, prestes a denunciar
toda outra mentira, acaba por se impor, ao crente, como sua só verdade.
«O interdito está no interior do dito, não absolutamente tal o caroço no fruto, mas
como o sol na noite que ele abrasa», dissera ele.
«Há o tempo do fazer e o tempo da foice: um mesmo tempo», havia ele notado.
Se queres que tuas palavras sejam as de Deus, tu farás, de teu livro provisório, um
livro de eternidade.
Mas, se assim cremos em Dov Baer de Meseitz, que escreveu: «O Santo bendito
seja Ele reside em cada letra», teu livro, antes de ter sido escrito, era já um livro
eterno .
É graças à sua parte divina que um livro sobrevive a o tempo. Que concluir
disso senão que essa parte di vi na est á em nós, como palavra premonitória de
um tempo em reserva de eternidade.
– Não haveria, assim, mais livro sagrado q u e livro profano: haveria o livro.
Mas, qual livro? O Livro absoluto de Deus, o livro incumprido do
homem?
«Os verdadeiros livros são apenas livros? Eles não são também a brasa
que dorme sob a cinza, como a s palavra s dos sábios?»
Ainda é necessário precisar, aqui, de quais livros se trata. O que é um
verdadeiro livro? E haveria falsos livros?
Os verdadeiros livros, se eles são livros, são também ‘brasa sob a cinza’.
Esse também significaria que seu destino é se consumarem consumando os
outros até não serem mais que a força mesma dessa consumação? Como se a
consumação dos outros livros, longe de derrotá-los, lhes desse, ao contrário,
renovando-o, um vigor a toda prova ?
Os verdadeiros livros, então, s eriam os que con t i n u am a m o rr e r da
morte dos outros?
Mas, talvez, a brasa que av e rm el h a sob a cinza, seja apenas a Palavra
do sábio que sobrevive ao livro?
Os verdadeiros livros, nesse caso, seriam os que cessaram de ser livros,
para não ser mais que Palavra do livro sacrificado; palavra desse sacrifício,
portando o luto de um livro.
... luto de um livro que seria, em suma, apenas luto de um lugar. Mas, o
lugar é , igualmente, Deus através de um de seus inumeráveis nomes.
A que porvir está votada esta Palavra sem lugar ?
Em outros termos, haveria um porvir para o sagrado cuja Palavra
exemplar escapa a toda posse do lugar ?
Se não há lugar para o sagrado que não seja ausência abissal de lugar, o
que é um livro sagrado? Ele não poderia ser senão à medida dessa Palavra, não
ser mesm o senão essa Palavra, a um só tempo fora do tempo e ancorada em um
tempo que se empregaria em vão a consumá-la consumando-se e que, por esse ato,
lhe outorgaria sua estatuto de Palavra audível , legível.
Haveria assim, de um lado, uma Palavra sagrada, livre, soberana e, do
outro, um espaço indefinido que o homem se aplicaria a circunscrever e que
seria, talvez, o livro: livro profano, tributário de nossos vocábulos mas que a
proximidade deles com a Palavra sagrada içaria à altura desta .
O livro seria, então, a empreitada hu m a na mais audaciosa: a que t e r i a
p o r m e t a dar um lugar a uma Palavra única, universal – o sagrado é
impartilhável – que permitiria aos vocábulos, agrupados em torno dela, se
superarem na morte .
O livro, nessa hipótese, seria anterior à Palavra que, ela mesmo sendo
primeiro Palavra silenciosa, seria anterior ao livro que a revela. Palavra do silêncio,
fomentando esse silêncio no seio de toda palavra; m as , igualmente, Palavra
aproximada, captada no recôndito desse silêncio que seria, por um misterioso
retorno às origens, a virgindade do livro.
Haveria, pois, dois livros em um. O livro que está no livro – Livro sagrado,
austero, incaptável – e o que se abre à nossa curiosidade; obra profana mas cuja
transparência, aqui ali, trairia a presença do Livro enterrado nela: limpidez, de
repente, de um vocábulo inspirado, tão aéreo, tão deslumbrado , tão ávido de
duração que ele nos precipitaria, por um breve momento, ao coração de uma
eternidade pressentida, branca, nua; a do verbo divino do qual o verbo, saturado
pelo homem, seria o eco desesperado.
«Povos de pastores», em sua submissão ao mandamento de Yavé, os judeus
se reconhecem em u ma só Palavra: Palavra sagrada, santa; a palavra profana
não tendo direito de cidadão.
Ainda que em língua hebraica sagrado e santo sejam apenas uma mesma
palavra, podemos dizer, verdadeiramente, que o sagrado seja o santo ou
viceversa?
Uma mesma palavra, certamente, mas como uma noz aberta cuja parte
esquerda da casca, por exemplo, seria o sagrado e a parte direita, o santo é
cujo fruto teria o sabor primitivo do silêncio.
Assim o sagrado seria menos o santo que a sacralização de um silêncio
interiorizado, denso de todos os silêncios e o santo, menos o sagrado que a
santidade do dom.
Deus poria, na boca do homem, uma palavra profana? O homem, na boca
de Deus, u m a palavra sagrada ?
Tendo sido a cortante e definitiva resposta, o sagrado é mudo. Ele se situa
ante s e depois da q u e s t ã o .
A escritura, interrogativa até em suas afirmações – sempre em questão – é
nossa fraqueza; é por isso que ela é do domínio do profano.
Arrimado ao instante, o dizer sendo a palavra da abolição de toda palavra,
o absoluto da escritura, considerado como escritura do sagrado, não saberia ser
senão o silêncio do dizer.
Escritura de um fora-de-tempo, sempre fora e, e n t r e t a n t o , legível
através da palavra que ela transcende: u ma ultra-escritura, pois, e mesmo
exagerada que pesaria sobre nossa escritura com seu peso indeterminado de
ausência e que permitiria a esta afrontar, cada vez, seus limites em sua própria
dependência a u m ilimitado do qual ela seria a miserável expressão.
... em sua dependência, por conseguinte, ao silêncio que ela buscaria em vão
varar, não absolutamente para reduzi-lo, mas para sobreviver a ele.
O trajeto do l i v r o a o Livro absoluto, silencioso – uma palavra imutável
não pode ser senão silenciosa – é aquele da palavra personalizada à Palavra
impessoal; assim como o trajeto do Livro absoluto ao livro é o da Palavra de
fogo à palavra em chamas .
Mas, quem traçaria a fronteira?
No começo era o Tudo e o Tudo era o verbo sagrado e o verbo sagrado era
o infinito silêncio que nenhum barulho, nenhum som, nenhum sopro vieram
perturbar.
Uma vez concebido pelo homem, o Tudo se abismou no Nada e o Nada
e r a o vocábulo e o vocábulo e r a o livro e o livro era o turvo.
Desse turvo, conheceremos jamais sua extensão?
O ato de escrever faz pouco caso de toda distância. Elevar o efêmero – o
profano – ao posto do perdurável – o sagrado –, não é a ambição de todo
escritor?
Assim, a escritura, de uma obra a outra, seria apenas o esforço dos vocábulos
para esgotar o dizer – o instante – para se refugiar no indizível, que não é o que
não pode ser dito mas, pelo contrário, o q u e f o i tão intimamente, tão
totalmente dito que ele não diz mais que essa intimidade, essa totalidade
indizível.
O profano e o sagrado seriam, então, apenas o prelúdio e o termo de um
mesmo empenho: o que consiste, para o escritor, em viver a escritura até o
limiar do silêncio onde ela o abandonará; silêncio insustentável donde o
universo surpreendido emerge para se perder, por sua vez, no vocábulo que o
assume .
Se admitimos que o que inquieta, agita, recoloca febrilmente em causa é,
a princípio, profano, poderíamos deduzir que, de uma certa maneira, o sagrado, em
sua persistência desdenhosa, seria, de uma parte, o que nos fixa em nós
mesmos, uma espécie de morte perpetrada da alma e, de outra, a decepcionante
culminância da linguagem, o último vocábulo petrificado.
Além disso, é, em sua relação com o profano e através dele, que o
sagrado se dá a provar, não m ai s como sagrado m a s como sacralização do
profano ébrio de superação; como prolongamento indefinido do minuto e não
como eternidade estranha ao instante ;
pois a morte é da conta do tempo .
Não é, justamente, pela via da palavra impotente a se apropriar do dizer,
que a eternidade toma consciência de sua incompatibilidade com a linguagem?
Ao Deus invisível, fora necessário um Nome impronunciável.
Escrever – ser escrito – seria, pois, sem que nos demos sempre conta disso,
passar do visível – a imagem, a figura, a representação cuja duração é a de uma
aproximação – à não-visibilidade, à não- representação contra as quais luta,
estoico, o objeto; do audível, cuja duração é a de uma escuta, ao silêncio onde,
docilmente, vêm se afogar nossas palavras; do pensamento soberano à soberania
do impensado , remorso e suprem o tormento do verbo.
O sagrado permanece o desapercebido, o dissimulado, o protegido, o
inapagável; é por isso que escrever é também a tentativa suicida de assumir o
vocábulo até seu último apagamento, lá onde ele cessa de ser vocábulo para não ser
mais que rastro realçado – ferida – de uma fatal e comum ruptura: a de Deus
com o homem e a do homem com a Criação.
Passividade divina, irredutível silêncio face à imprevisível e perigosa
aventura da palavra entregue a si mesma .
Anterior ao profano, ele é, de todo limite, a desmedida arbitrária que o repele sem
cessar.
Sagrado. Segredo.
O sagrado se confundiria com o eterno segredo da vida e da morte?
Há um pós-dia, uma pós-noite aos quais dia e noite são invariavelmente
confrontados.
Eles são promessa de aurora e certeza de próximo crepúsculo. Vida e morte,
profano e sagrado, tais céu e terra convencidos de formar um mesmo universo, aí se
cotejam e se entremeiam.
O interdito original confere à não-representação seu caráter sagrado. A língua de
Deus é língua de ausência. O infinito não tolera nenhuma barragem, nenhum muro.
Nós escrevemos contra esse interdito; mas, não é infelizmente para nos chocar
violentamente contra ele? O dizer não é jamais senão desafio ao indizível e o
pensamento senão denúncia do impensado.
No seio do livro, o interdito da figura atinge mortalmente a palavra humana em
sua semelhança com a Palavra divina.
O livro sagrado seria para ler, então, através da recusa, por Deus, do livro do
homem; rejeição que preside sua destruição. Escrever, na esteira ou à sombra do Livro
absoluto, seria, nesse estágio, aceitar essa recusa.
O Livro de Deus permanece o Livro indecriptado cuja cifra é esse rubor vivo,
entre as cinzas de uma verdade condenada, que nos incumbe alimentar indefinidamente.
Escrever, nessa próxima distância, consistiria em recompor, com as palavras do
segredo, um livro destinado a se fundir nas margens e cuja ilegibilidade provisória
permitiria, em sua falta, a leitura infinita de nossas obras.
Um lance de céu está em cada parcela de terra e a tinta reluz, por vezes, de uma
luz mais intensa que a de uma fulgurante manhã.
Deus criou o homem à Sua imagem; depois, apagou esta Se apagando.
O homem, não tendo conhecido o rosto de Deus, não conhecerá jamais, a fortiori,
o seu. Ele sabe somente a dor da perda. Sabe que o que passa por ser seu rosto é, no
fundo, apenas a nostalgia de uma ausência de figura.
A imagem de Deus, seria apenas a de um infinito apagamento? A imagem do
homem, nesse caso, o seria também e a semelhança entre eles, aquela que uma imagem
ausente poderia ter com uma ausência de imagem; semelhança, no fim das contas, do
Nada com o Nada.
Buscar, a despeito de tudo, ter um rosto terá consistido, pois, para a criatura, em
sua tenaz vontade de existir, em inventá-lo.
Mas, toda criação é ligada a uma fração de tempo que, privada de futuro, é, ela
mesma, apagamento.
Então, qual é o rosto que exibimos? Seria ele apenas a imagem de uma imagem
reivindicada que, em nosso nascimento, herdamos?
Por trás dela há, provavelmente, o verdadeiro rosto surgido de seu apagamento e
perpetuamente apagado em seus novos traços: rosto de areia, esculpido na areia.
Podemos interrogar apenas a partir do nada.
O livro se fecha sempre sobre um rosto perdido.
OS TRÊS «ROGOS DE INSERIR»
DO LIVRO DAS SEMELHANÇAS,
RETORNADOS À AREIA
A suspeita O deserto
A inapagável O desapercebido
Deus diz ‘Eu’ . Como o homem poderia, depois d’Ele, dizer ‘Eu’,
falando de si m e s m o ?
– Talvez porque ‘Eu’ seja apenas o vazio que um e outro preenchem. Um
pelo outro.
Pureza do silêncio! Não do silêncio que sabe, que ouviu e repetiu; mas do
silêncio que esqueceu.
Se o impensado é bem o branco, como não deduzir disso que, mais além, um
pensamento se prepara timidamente para nascer.
«E se a palavra-chave não fosse uma palavra mas uma chave da qual cada
palavra poderia s e servir? – I s s o significaria que poderíamos entrar no livro
apenas com a cumplicidade da palavra que detém, em sua posse, a c h a v e da porta
contra a qual teríamos esbarrado: palavra- chave p a r a a circunstância.
«Escrever seria, então, apenas facilitar essa troca de chaves entre as
palavras. É o que chamarei de relação instintiva com o texto», dissera ele ainda.
«É bem evidente – havia ele notado – que a palavra azul evoca a palavra
céu, mas não a revela. A palavra vazio, em contrapartida, o poderia.
«Se escrevo: Antes de ser negro, azul foi o vazio de minha alma, cubro, só
com essa frase, toda a extensão do céu.»
O espaço de uma palavra, nem o homem nem a palavra saberiam cercá-lo: ele é
imaginário.
O evento prevalece.
Só o que nos toca de perto nos preocupa. Nós nos preparamos, na solidão, a
fazer-lhe face.
★
Ele dissera: «O rosto de uma criança, não estando ainda esculpido pela
linguagem, é rosto fora do tempo.
«O tempo do rosto é o tempo de suas rugas.»
Ele dissera também: «O primeiro rosto é terno chamado aos rostos que ele
prefigura; o último, a soma de todos os nossos rostos murchados».
Crer que temos ainda uma coisa a dizer, mesmo quando não temos
mais nada a exprimir.
A palavra nos mantém em vida.
Insensível eternidade!
O céu desaparece no céu e o mar no mar sem provocar a menor turvação
nem inspirar a compaixão.
A perda do instante tem, imediatas ou distantes, consequências apenas para o
que germina ou verga.
Pa ra os céus, para o oceano, a noite não é nem o luto nem o sono mas o
impasse .
O sol joga a eternidade contra o instante .
«Se a verdade existisse, dissera ele, ela teria sido nosso único adversário.
«Felizmente, ela não existe e nós podemos as sim nos inventar inimigos.»
«Povoei a noite de reclames, dissera ele também. Alguns quiseram ver nisso
apenas estrelas tomadas de suas cintilações. »
Toda leitura limita. O texto ilimitado é aquele que suscita, cada vez, uma
nova leitura à qual ele escapa em part e.
O que resta sempre a ler é só sua chance de sobrevivência.
Um livro sem fim pode ter por termo apenas o fim de seus imprevisíveis
prolongamentos.
Pelo quê se define o pensamento ? – Não absolutamente pelo que ele é mas
pelo que ele circunda.
O que chamamos pensamento s e r i a , p o i s , a p e n a s sua capacidade de
circunscrever o que se oferece a ele.
Assim não sabemos jamais até onde pode nos levar sua curiosidade; esta, a
fi m de est ar à altura de nossa fé na li nguagem, subordinando, no mesmo lance,
o pensamento ao êxito imprevisível de sua formulação.
Aquele que tem poder de desfazer, não pode, si mesmo, ser desfeito.
Aquele que se vai – Abraão – para onde ele vai? Tendo partido em busca de
sua identidade, é o outro que ele descobre. Ele sabe de antemão que perecerá por
esse outro na insondável distância que o separa de si mesmo e donde emerge o
rosto de sua solidão.
Podemos pensar o outro? Podemos nos referir apenas à ideia que temos dele.
A relação com o outro seria apenas relação de dois pensamentos estéreis
postados de costas um para o outro, onde o impensado não ousa ainda dar
mostra de seu triunfo?
Assim se dá com a noite e o dia encurralados a perecer por suas próprias
armas .
A idade nos fere. Não sofremos senão sangrentos reveses; mas, no mais
baixo da curva, basta, por vezes, uma centelha de amor para iluminar nossa noite.
Não considerar jamais o saber adquirido senão como uma manifestação da
ironia do Nada .
Ter saber adquirido é, de uma certa maneira, viver sobre o humor salutar
do Nada .
Nós nos teremos servido, para viver e para morrer, da mesma bobinadeira.
«Saber que penetramos no livro apenas após termos sido despossuídos dele.
«Assim, habitamos apenas nossa perda», dissera ele.
– O diálogo é possível?
– Como são possíveis a vida e a morte.
– Eu vivo e morrerei.
– Tu vives de uma impossibilidade de viver que a
morte tornou possível, a fim de poder pôr um fim a ela.
– O fim é impossível onde não há início.
– Toda palavra nasce de uma palavra refluída. A
reboque desse refluxo, nós falamos.
★
(– Que diz ele?
– Ele diz que, quando a vida cessa de interrogar a
morte e a morte de questionar a vida, não há mais
esperança. Há o olvido; o inferno do olvido.
– A paz?
– O inferno da paz. A folha no braseiro.
– Ah preserva teu livro. Ele te protege.
– Fala mais. Não pares.
– Debruçado sobre teu ombro, leio nosso livro. Ah
não te desvies do escrito. Tu és a pluma e a mão.
– A queimadura é leitura. Ela é nosso único bem.
– Por todo o tempo que conseguires decifrar o livro,
ele durará.
★
À questão levantada: «Há um diálogo e como pode ele se estabelecer entre dois
estrangeiros?», ele respondeu: «Haveria um ante-diálogo que seria nossa lenta e febril
preparação ao diálogo. Ignoramos, sem dúvida, como ele se desenrolará e qual forma
tomará, mas sem podermos, entretanto, explicitá-lo temos, de antemão, a convicção de
que este, já, se encetou: diálogo silencioso com um interlocutor ausente.
«Haveria, em seguida, um pós-diálogo – ou pós-silêncio. O que poderíamos ter
dito ao outro, ao curso de nossa troca de palavras – que é, antes, um aprendizado de
palavras – que não diz virtualmente senão esse silêncio; silêncio ao qual nos reenvia toda
palavra insondável, cava, em vão escavada, centrada sobre si mesma.
«Haveria, enfim, o que poderia ter constituído o diálogo propriamente dito,
insubstituível, vital mas que, ai, não terá lugar, iniciando no momento em que nos
despedimos um do outro, recolhidos, ambos, à nossa solidão.»
Um diz: «Eu sou o ponto. Ah eu amaria bem, um dia, descobrir o círculo do qual
devo ser o centro: meu universo.»
O outro diz: «Eu sou o círculo. Ah eu amaria bem, um dia, descobrir o centro que,
à aventura da linha, dá um sentido.»
«Tu sabes por que ficas constrangido diante do mutismo provocante de teu
interlocutor? É porque com ele o jogo é viciado. Ele te impede de falar de ti a ti
mesmo», havia ele escrito.
E havia acrescentado: «Outrem não seria senão nosso rosto de retroca, a máscara
oportuna que, a um só tempo, nos subtrai à sua visão e nos permite enfim livremente
ver?
«É necessário, às pupilas, um caminho novo; à solidão, o fiel apoio de um olhar
cego.
«Tão cara é tua presença, ó doce presente do olho em sua pureza nativa.
Tão vivazes e sólidos – tão verdejantes – são nossos laços secretos.»
... mas, é o corpo abismado que, em sua sequência, enleva o espírito ao vazio ou, o
espírito, na cumeada de sua potência, que precipita o corpo estorvante no nada?
«Somos as vítimas de um grave erro de cálculo, dissera ele; de uma temeridade
abusiva ou de uma negligência fatal.»
★
Quando não te recordares mais de nada, tu começarás a te recordar dos começos
de tua vida, tão antiga, e das coisas.
Está em nosso poder pensar Deus – poder enganador – mas não podemos nos
recordar d’Ele. Não há absolutamente retorno a Deus; Deus está adiante.
«Se Deus não pode entrar em nossas recordações, haveria, pois, uma parte do
homem onde Deus não teria jamais penetrado», dissera ele.
E acrescentara: «Deus não reina totalmente senão sobre a morte.»
A memória é garrafa empalhada da qual a recordação é a rolha.
Faze esta saltar. Tu te inebriarás com seu conteúdo.
Verdade e liberdade não podem, uma sem a outra, se conceber; elas são relvas do
mesmo prado.
Escrever é fazer o Nada pensando fazer o Tudo? Só esse fazer cotidiano, para nós,
terá contado.
★
«O que passou nos deixou o lamento.
«Aquele que é esperado nos trará a esperança?
«O primeiro, tão logo, nos reconheceu. O segundo, recorda-se ainda de nós?
«Passado e porvir são faces obscuras do mesmo dado», dissera ele.
★
E se o diálogo fosse apenas a quebra de um livro anônimo cujas partes buscariam
menos se reconstituir do que marcar a quebra?
Nós nos falamos através de uma quebra cuja origem sempre ignoraremos.
«Isso decorre, dissera ele, de uma certa lógica: o ‘Eu’ para designar o ‘Tu’, o ‘Tu’
para justificar o ‘Eu’ e ‘Ele’ para desaparecer.»
«Quando lançamos uma bala contra um muro, o que se passa? O muro no-la
reenvia; mas, o gesto de apanhar a bala e relançá-la em seguida, segundo as regras do
jogo, varia.
«Passamos da comodidade à dificuldade, do encarniçamento à moleza sem ter,
previamente, procurado por isso.
«Assim se dá com o diálogo», dissera ele.
Haveria dois silêncios em cada silêncio, assim como há duas palavras em cada
uma.
Alces o tom. Suprimas o muro.
Necessário é o nada.
A verdade não é ligada à liberdade, mas não há liberdade que não seja leitura da
verdade.
Há uma escuta da morte de que não podemos tirar proveito – com efeito – senão
na morte.
«A morte, dissera ele, talvez, seja, na virada de uma vida animada, o impasse
deserto onde retine o eco de um diálogo interrompido.»
★
Um jovem homem foi encontrar seu Mestre e lhe diz: «Posso te falar?»
O Mestre lhe respondeu: «Retorna amanhã. Nós falaremos.»
No dia seguinte, apresentando-se de novo a ele, o jovem homem lhe diz: «Posso te
falar?»
Assim como na véspera, o Mestre lhe respondeu: «Retorna amanhã. Nós
falaremos.»
– A falta é origem?
– Toda origem diz a falta.
«À luz, dissera ele, não responde uma luz estrangeira, mas o estranhamento da
sua.»
Se cada instante é o início de um diálogo, a eternidade seria seu fim? Mas, esse
fim não saberia ser um sendo infinito, sendo indefinidamente o fim de um fim inaceitável.
Toda-potência passageira! Duas eternidades se disputam essa espiga.
«A palavra, dissera ele, tal a onda, arrebenta sobre a praia mas é sempre um pouco
de sua espuma que deciframos.»
«O silêncio não está no envelope vazio onde introduzo minha missiva, mas no
sinete de cera ardente que o selará», havia ele notado.
Escrever, falar, não para vencer o medo, mas para não se incrustar nele.
Não ser mais que medos trocados.
Na palavra donde a morte parecia não poder ser desalojada, minha vida se instala,
ocupa o espaço que ela arrumou para si.
Vocábulo adivinho após ter sido divino. Cada letra é grão de oráculo.
A palavra prediz e, por sua vez, é predita – pre-dita.
Deslizamos, do livre afrontamento com o desconhecido, ao fatal encerramento de
uma predição realizada.
O espírito tem também suas correntes.
A liberdade se vive fora de si. Ela está no ato que nos liberta.
Ah tu não és livre onde tu te escondes, mas somente lá onde tu te expões.
«A liberdade engendra a liberdade, dissera ele. E, talvez, seja ela apenas esse
fecundo engendramento.»
«Mas, até onde, acrescentara ele, um espírito livre pode usar essa liberdade que,
em sua fidelidade a si mesma, se volta, cada vez, contra ele?
«É a uma inimiga, sempre melhor armada, que o espírito deve fazer face.
«A liberdade que o anima o enfraquece.»
A vida não tem outra liberdade que ser a vida, e a morte, que ser a morte.
O que será, para se mirar, terá o abismo; por nele se refugiar, encontrará o nada.
Mas, o nada não é o branco. Ele é a imagem infiel, mental que poderíamos ter
dele.
O outro respondera: «Se figuro no livro, é porque meu nome deve estar lá, em
alguma parte, citado.
«Ora, nenhures, encontro rastro desse vocábulo.»
O diálogo recobria seu lugar que permanecera, por muito tempo, desocupado;
refazia, de si mesmo, subitamente, superfície.
Ele leu, uma vez, que um sábio, no deserto, havia conseguido conversar com a
areia.
Impressionado por essa proeza, decidiu, por sua vez, dialogar com a fonte.
Ele ignorava que, no silêncio, exclusiva é nossa voz; pois o que, em si, é lamento
ou canto é, já, palavra distanciada.
A morte fala. A vida é falada.
«Falarei sem me interromper para aquele que não diz mais nada, não para incitá-lo
a me imitar, mas a fim de confortá-lo em seu mutismo. Tão eloquente é seu
silêncio», havia ele notado.
E mais longe: «É sempre o silêncio que fala àquele que lhe sacrifica suas
palavras.»
NESSE LIMITE INSUSPEITO
– Entretanto?
– Tudo me deixa pensar que alcancei esse limite. Tenho o sentimento – talvez seja
apenas uma intuição? – de que o porvir – o que, impudico, se manifesta diante de mim – é
ainda esse imemorial passado enterrado em meus livros.
A memória é mais antiga que a recordação. Nós sabíamos disso, já?
É preciso, para captar o futuro, deliberadamente lhe virar as costas.
– O livro mergulha e se afoga nos livros ainda por escrever que não são senão sua
tentativa reiterada de escapar à morte; quer dizer, à ilegibilidade à qual ele é votado.
– Um livro que decanta, em voz baixa, o desespero de ter sempre sabido que ele
não será absolutamente lido em sua totalidade.
Toda verdadeira leitura é marcada por essa ferida.
Decepção do leitor! O livro a terá tomado também em conta.
– A falta é vertigem do livro. A borda das palavras não pode esperar sobrepujar,
um dia, o abismo.
– A morte se esquece no dito. Ela foge. Infelizmente nenhum dito é assaz forte
para resistir a seu precário destino.
Murmúrio... murmúrio.
– Parece-me que nosso diálogo não rompe o silêncio no qual nós nos debatemos.
O silêncio é menos vulnerável que o livro.
– ... com palavras ainda, mas tão interiorizadas que eles seria audíveis, legíveis
apenas para mim.
Palavras nas palavras sacrificadas, circundadas para além de seu sacrifício.
★
– Então, eu te pergunto, ó minha amada de um imortal instante, se, entre ti e mim,
um diálogo teria sido possível?
Entre nós, uma só palavra poderia ter-se deslizado? E qual podia ser essa palavra?
Ó silêncio! Dirijo-me a mim mesmo, através de ti, e não reconheço minha voz.
Quem fala para nós desde que atingi essa parte do ser onde a água não abebera o
solo, onde a relva cessou de crescer, onde o sol clareia apenas o passado, onde o porvir
está definitivamente mergulhado na noite?
Dize uma palavra. Ah possa minha boca emitir os poucos sons esperados que nos
salvariam da morte.
... pensar novamente consigo que talvez haja uma palavra que se recuse a
capitular. Ajudá-la a sobreviver.
«Se minha questão clama, de tua parte, por uma resposta; esta poderia pretender,
para si só, ter esgotado a questão?
«Se tua resposta clama, de minha parte, por uma questão; esta poderia pretender,
para si só, ter-se desembaraçado da resposta?
«Tudo se passa como se a resposta morresse da questão introduzida e a questão,
da morte prematura da resposta.
«Não interrogamos senão o nada», havia ele notado.
Ele dissera que, quando nos pomos uma questão, somos, de uma certa maneira,
judeus porque o judeu já, mais de uma vez, se pôs a mesma questão.
Ele dissera que, quando, no lugar da questão que nós queríamos nos pôr, nós nos
pomos uma outra a fim de poder em seguida, indiretamente, através desta, nos pôr a
primeira, isso é ser tão judeu quanto pode sê-lo um judeu.
Ele dissera que, quando não temos mais a força nem a vontade de nos pôr
questões, aspirando a gozar de um repouso bem merecido, somos ainda judeus
porque isso prova que temos, tanto quanto ele, estremecido com a questão.
★
★
Deus, dizem-nos, atarefado em amassar a argila donde devia sair o homem,
soprava sobre ela para nela gravar Sua semelhança.
A semelhança da criatura com o Criador está no sopro divino. Ela é o sopro.
Deus é unido ao homem por uma mesma respiração.
Enquanto Ele soprava sobre o monte de greda, Deus sentia o sopro do homem
penetrar n’Ele.
A escritura herdou o sopro. Ela é escritura do sopro.
Deus não podia tolerar que o homem se lhe assemelhasse fora do Livro. Essa
semelhança, desagravada da imagem, é a vida total, a vida na vida.
★
A inteligência separa. O olhar une; mas, há uma inteligência do olhar que divisa,
para reconstituir, em sua fingida aparência, a unidade que ele minou do interior.
O DESERTO
Linguagem alapada que não é a das mãos, nem dos olhos; língua de ultra-gesto,
de além do olhar, do sorriso ou das lágrimas que nos fora necessário aprender! Ah qual
deserto as ressuscitará hoje?
Pensávamos ter atravessado o soturno rincão desolado aonde a palavra nos havia
enlevado, fazendo de nós, ao longo de toda nossa errância, as testemunhas estupefatas de
sua perenidade.
E eis que o silêncio nos introduz em seu reino de vidro, mais vasto à primeira
vista, estilhaçando todo rastro de nossa passagem.
... primitivo silêncio ao qual não escaparemos mais.
Imagem privada de sua eloquência verbal – não dizemos, de uma imagem fiel,
que ela é falante? – não representando mais nada. Amarelada. O olvido teria uma cor? Ah
esse amarelo, cor da areia desperta!
A maior parte de meu passado está lá. O que persiste, a escritura o recupera por
fragmentos.
Escrever, escrever, escrever para se recordar.
«Um livro de peso é mais leve que o azul. Aéreo é o pensamento. A escritura é
legibilidade de seu imperceptível desfraldar», dissera ele.
Nenhuma palavra é banal. Elas o são na medida em que não escapam à usura.
Além disso, não se trata de salvar as palavras da banalidade, mas de ir a elas como a esses
fornos ou a esses moinhos dos quais toda pessoa que faça parte de uma senhoria era
obrigada a se servir mediante tributo.
II
Descida.
Das cinzas
ao infinito.
A morte, assim como o céu, está em baixo. Abaixo da escada. No topo, há o voo,
a alma, a vida.
«O sono é justamente um dos artifícios utilizados pela morte para nos seduzir;
uma maneira – a mais direta – de se fazer aceitar por nós, através do bem-estar que
proporciona o legítimo repouso», dissera ele.
E acrescentara: «O sono, entretanto, não é um antegosto da morte nem a soleira.
Ele é essa doce aleia sombreada que a alma toma, no instante em que se adormece o
corpo.»
A insônia seria, assim, raiva descontrolada da morte por se saber mal amada, ao
invés de sobressalto de vida às voltas com a ciumenta luz.
A menos que ela seja as duas, mas isso suporia uma cumplicidade difícil de
admitir entre rivais resolutas.
Na orla do Nada.)
PÁGINAS REENCONTRADAS
A fala não desemboca sobre o silêncio; mas, sobre uma inicial disponibilidade da
palavra, fundadora do diálogo.
O judeu está em diálogo, assim como nos pomos em condição de escuta: a cada
vez, a ponto de estar.
Ele dissera: «Deus não criou o universo, mas concebeu o espaço. Ó prodigiosa
disponibilidade do vazio.»
E acrescentara: «A ideia sufoca, pois o homem sufoca em seu corpo. Sempre
faltará espaço indispensável a seus plenos desabrochares.
«Divino é, por essência, o pensamento. Daí sua desgraça.»
Sem data
«O Nome impronunciável, notara ele, terá, uma vez ao menos, sido pronunciado
no fogo por nossos nomes em cinzas.»
Sem data
«Ah por que, meu Deus, é preciso que o que é toda simplicidade para Ti, arvore,
para nós, a insondável complexidade?», havia ele exclamado.
Ele havia tão rápido esquecido que ele mesmo era o autor destas linhas: «Deus
disse à Sua criatura: Eu sou Aquele que, da obscuridade, fez a luz e, da humana
complexidade, a simplicidade divina; mas, a luz Me é ainda um enigma e a simplicidade,
um impasse»?
Sem data
«Usar a linguagem da terra para dialogar com o céu e a linguagem do céu para
dialogar com a terra. Depois de Deus, quem o poderia?»
«O sangue do pacto era apenas tinta negra da visibilidade», havia ele notado.
Sem data
Sem data
E Deus disse a Caim: «Que tu fizeste?» pensando: «Que tu fizeste de teu nome
todo respingado do sangue do nome de teu irmão adjunto ao Meu?»
Caim sujou o inviolável Nome do Senhor ao sujar o seu. Seus descendentes
arrastarão, consigo, até o fim dos séculos, o remorso desse ato.
Escrevemos sobre esse remorso.
Sem data
«A lei nos precede, dissera um sábio, mas também se adianta a nós; pois se nosso
passado está em cada palavra da lei – e, por vezes, em seu silêncio – nosso porvir, através
de lágrimas de pesar e de júbilo, assim como a água para certos animais ou vegetais –
está em sua revivescência. »
E acrescentara: «Tenho-me, geralmente, perguntado por que a Lei de Moisés
podia se ler apenas na alegria ou na dor. Minha resposta é esta: porque somos sua
beberagem, assim como ela é nosso duplo horizonte.»
«Minha Lei é minha riqueza e ela é o Livro. Meu livro é minha pobreza e ela é
minha lei», havia ele escrito.
(– O que é a lei?
– A abertura do diálogo.
– O que é o diálogo?
– A abertura da lei.)
«A abelha e a ovelha, dissera ele, são fortuna da Lei. De uma nos vem o mel; da
outra, o leite.»
Mais tarde
– Tu estás aí, responde, tu estás aí? Qual outra certeza teria eu de minha
existência?
«Deus, escrevera ele, não saberá jamais quem Ele é, sendo fundamentalmente Si
mesmo na ausência incomensurável de Si.»
O pós-diálogo
O ser é futuro.
O pensamento não pensa o que ele sabe. Ele pode pensar apenas o que ele ignora.
Ele é a ignorância do Saber que ele enriquecerá ao pensá-lo.
O porvir do espírito é doado.
Criar não é se afirmar mas, através do objeto criado, infirmar a criação; é opô-la a
si mesma onde ela se impõe; é, como nas operações de esmaltagem, fazer recurso ao
recozimento; a negação passando sempre, de uma maneira ou de outra, pelo fogo.
Tu lês a nudez.
«Tu crês descobrir, ensinara um sábio. Tu destrancas invisíveis portas que abrem
sobre cômodos vazios.»
Encontrar a formulação e o tom justo: melhor que uma arte de escrever, uma arte
de viver e morrer.
Entre o feio e o belo, entre o verdadeiro e o falso, entre o bem e o mal, tão
imprecisa é a fronteira, tão flutuante.
O esfiar de um fio.
(«O livro, dissera ele, se apropria de minha vida
mas não a prolongará.
«Ele é já um outro livro.»
Quem quer que tu sejas, entra. O que tenho, impaciente, a te dizer, tu o sabes
desde o primeiro dia e o que tu me responderás, eu mo tenho repetido tantas vezes.
Tu és vinda; não é o essencial? De tão longe, de tão perto que, nos dois casos, eu
não podia te ver – mas eu não te vi? – nem te ouvir – mas não fui inebriado por tua voz?
–; de perto demais, tendo confundido a voz de minha alma com a tua; de longe demais,
tendo, com teu silêncio, envolvido o mundo para devolvê-lo à tua ausência.
Não te mexas mais. De ti, exijo tudo. Tu és o excepcional e o costumeiro.
Onde quer que tu estejas, tu és minha salvação.
«Barras de um instante, palavras alinhadas dos meus livros, a folha teria sido
minha prisão sem os virgens espaços – minha liberdade – que o texto se aplica a
preservar», havia ele escrito.
Aquele que não falava mais, de repente, gritou: «Clarão», e, incomodado por essa
luz intensa, virou as costas para a manhã e fugiu.
Aquele que não falava mais, de repente, gritou: «Precipício», «Noite», e, tragado
por essas palavras, sentiu o chão se abrir sob seus pés e se abismou.
«Escrever, dissera ele, não é colocar no preto sobre o branco mas ser, si mesmo,
esse preto no qual as palavras se põem.»
O DESERTO, II
O desespero incuba a esperança como, no vão de uma montanha, uma águia ferida
pela bala de um caçador, seus ovos vermelhos de sangue.
Não busques teu rosto no de teu vizinho. Tu não verias nem o teu nem o dele.
Tu estarás sempre em atraso com a leitura do livro. Ele é o fruto de seu próprio
deciframento.
Nem objeto de morte, nem projeto de vida, o Nada é um suspiro; a leve ferida de
um sopro.
A vida festeja o rosto; a morte o murcha.
«O que me parece injusto, dissera ele, é que não possamos amar um morto.
Morrer é ser, subitamente, despossuído do amor do qual fomos o objeto durante nossa
vida.
«O falecimento de um ser próximo no-lo torna, de repente, estrangeiro. Choramos
aquele que ele foi e não aquele que ele veio a ser. Toda inclinação, todo apego sendo
sentimento de vida.
«Mas, talvez, a morte não tenha jamais sido outra coisa que decisiva ruptura de
amor.»
«Nós imaginamos a morte tal um torno de bancada, ao passo que ela é pluma de
pardal à discrição do vento», dissera ele igualmente.
– E a solidão do homem?
Nesses confins da renúncia onde os desertos se tocam, o diálogo toma fim, mas o
nada continuará, sem nós, a falar do nada.
Tépido sopro – o da ressurgência da palavra – contra sopro frio – o do insaciado
silêncio.
ANTE-DIZER
Uma palavra estrangeira, que se tornou, desde então, pessoal, tendo feito, de mim,
um estrangeiro, me aproximou de todos os que, diversamente, assumem essa condição;
pois há similitude de pertença – inegável conivência – entre exilados, assim como há
misturas das águas.
A singularidade é subversiva.
Uma mesma espera, no desejo, associa o corpo ao espírito: esse laço é reserva de
vida.
Espera. Esmera.
Meu espírito não é meu corpo mas meu corpo é o de meu espírito.
E se, indefinidamente recomeçada, a morte fosse uma mesma gama de cores, tão
pálidas em certas alturas que, no distanciamento, ninguém saberia jamais qual dentre elas
foi a última?
O universo é sustentado pela forma.
Tu crês tudo ver. Tu não vês nada. Detém-te sobre um detalhe. O olho
compreenderá.
Mas, o que é o detalhe quando ele não representa nada?
Não é o indizível que se exprime, aqui; mas, o dizível do inefável Tudo.
O que é que – ó punhal – com um golpe seco de sua lâmina esfiada, é capaz de
tocar mortalmente um vocábulo, senão a clara consciência que tomamos, subitamente, de
sua inutilidade?
Tu cumprirás o que foi, por Deus, já cumprido e que fora apenas o cumprimento
de Sua solidão.
O livro divino se abre nesse local.
Ele se escreverá após o livro do homem que, à sombra do de Deus, acreditava ter
escrito o seu.
O nome
Deus nomeia. O livro denomina.
O segredo A letra
Se, graças ao espaço que, limitando a palavra a si mesma, a distingue das outras e,
confortando-a em sua dimensão de veículo do pensamento, lhe favorece o desabrochar;
se, graças ao mesmo espaço, mas no interior do vocábulo, a letra, confirmada em sua
plenitude, desposa seu destino de letra, quem pode certificar que esses úteis –
indispensáveis – espaços não lhes parecem, às vezes, excessivos, desmedidos?
Poderíamos, então, imaginar uma palavra só, uma só letra no vazio.
Poderia haver uma solidão da palavra, da letra, cortadas da origem.
A palavra nasce para a palavra. Só há novos nascimentos, contestações renovadas
de sua condição. E o texto, repartições premeditadas dessas contestações, pulverização do
lugar onde Deus, agora, jaz; a denominação evocando apenas a despossessão do sujeito
ou do objeto nomeados.
Frustrado, o homem inventou o signo que era, primeiro, apenas imagem de uma
imagem, representação de um irrepresentável à cata de si mesmo.
Imagem, figura contra as quais o signo reagirá, mais tarde, até aboli-las para
aceder, em seu apogeu, à dignidade de letra.
E se o interesse levado à letra fosse apenas a divina atração exercida, sobre nós,
pelo segredo?
A verdade é secreta. Teremos, em nosso fervor, interpelado a letra enquanto
guardiã do segredo e, através de seu enigma, como criadora da palavra a conquistar.
E se escrever fosse apenas deslastrar a palavra de seu segredo?
E se, ansioso para testar o gênio do homem, Deus tivesse, deliberadamente,
ocultado a letra a fim de poder, um dia, com os olhos de Sua criatura, Se ler no interior
de Seu Nome?
E se, não tendo jamais habitado a palavra, o segredo fosse a palavra mesma?
O Nome dos nomes, em sua incondicional soberania, nos apareceria, tão logo,
como Nome do segredo e segredo do Nome.
Enfermidade da linguagem.
A vida o Ponto
No começo era a vida; depois, a vida se fez verbo. Ocorreu-me, uma vez, de
escrever essa palavra: v’herbal.
O broto de erva é primeiro indício, tímido anúncio do surgimento próximo da
Palavra divina; sua previsível – natural – consequência: a precária chance de uma
escritura antes do escrito.
Deus, em seguida, se calou e a erva secou.
Mas, o deserto era Seu Livro. Ele lhe sacrificou Sua imagem, deixando o cuidado,
a cada vocábulo, de reconstituí-la, um dia.
Os ventos do céu se abateram sobre suas folhas, desafio a seu furor; escavaram
por longo tempo a areia; depois, acalmaram-se, ao fim das devastações.
Tal é a história que me fora contada.
No começo era o traçado sem o rastro. Com Seu index, Deus designou o caminho.
Ele impôs uma direção à leitura – uma ordem – que o homem fará suas, persuadido de tê-
las concebido.
Livro, não da areia, mas de areia, cuja ausência de palavras mantinha em respeito.
– O livro respira por suas letras, como a pele, por seus poros–.
Livro na vacância da palavra que assombram, já, as lendas. O porvir a ele coteja o
passado.
Livro de um nome areado no deserto do nome. Deus aí se desviou, fugindo de Sua
própria morte.
Tal é a história que me fora contada.
No começo teria, pois, havido a chave. O clarão, pela forma que ele tomava,
reforçando-se, assemelhava-se espantosamente à maçã da árvore cobiçada do
Conhecimento, redonda como um ponto; esse ponto do qual o judeu, mais tarde,
adivinhou que ele era vogal antes da vogal, chave do livro antes da chave.
No tempo em que ela era apenas um fruto proibido, Eva foi tomada por ele.
Tendo-o degustado, ela o ofereceu a Adão que o mordiscou.
Sem tê-lo procurado, eles ficaram, bruscamente, em condições de decifrar o
universo.
Irritado com o poder deles que Ele havia, no entanto, considerado lhes conceder,
Deus fechou, sobre eles, o Livro.
Tal é a história que me fora contada.
O Nada. O reatribuído.
Deus é poder mas o poder não é Deus.
Deus é força mas a força não é Deus.
Deus é espírito mas o espírito não é Deus.
Estrangeiro para nós mesmos, a Si-mesmo, Estrangeiro.
A origem não é nem a sombra nem a luz. Ela é o que as desempata para
salvaguardar sua autonomia.
Haveria, assim, para uma um direito adquirido à obscuridade e, para a outra, o
mesmo direito à luz; o privilégio, para esta última, de deter as chaves da claridade; o
encargo, para a sombra, de velar por seus precipícios.
O NÓ E A SUBVERSÃO, I
Deus não é Deus. Deus não é Deus. Deus não é Deus. Ele é. Ele é antes do signo
que o designa. Antes da designação.
Ele é o ante-vazio, o ante-pensamento; logo, o ante impensado também – como se
pudesse haver um ante-nada.
Ele é o ante-grito, o ante-tremor.
Ele é a noite sem noite, o dia sem dia. O ante-olhar. A ante-escuta.
Ele é o ar antes da respiração. O ar inspirado e expirado pelo ar. Não ainda o
vento mas o ar leve, indiferente, em sua ociosidade primeira.
Ó infinito vacante.
Feminina é a potência.
Nossas vias são diversas, incontáveis. E, no entanto, elas são apenas duas: a que
leva ao Tudo que é o Nada e a que leva ao Nada que é o Tudo.
Uma é poeira; a outra, fumaça.
Dou a ler o que eu não tinha lido mas que, sem que eu o soubesse, me leu.
O destino do judeu é ler o que lhe acontece e esquecer o que lhe aconteceu?
Nosso olvido é amassado por dores.
A palavra é coisa em si. É nessa qualidade que ela se impõe ao pensamento; que o
pensamento, por sua vez, a impõe.
Tão esmagador é o peso de nossa irrealidade que se eu devesse, por uma imagem
suplementar, ilustrar a realidade, eu penderia por aquela de um homem curvado,
atravessando, esgazeado, o espaço indeterminável onde a vida se une à morte.
– Não posso conhecer outrem senão através de mim. Mas, quem sou eu?
– O fogo conhece o fogo?
A madeira conhece a madeira?
É, à madeira que ele consome, que o fogo deve o ser fogo; assim como a madeira,
ao fogo que a reduz a cinzas, deve o ter cessado de ser madeira.
Entrar no Pensamento de Deus, é se deixar, pouco a pouco, guiar por ele mas é
também perecer, do livro onde Deus Se escreve.
... lisa é essa parte do pensamento sobre a qual o pensamento, tão logo levantado,
volta a se deitar.
★
Eu não sustentei sempre que a melhor abordagem do judaísmo era inocente?
Penetramos em um livro sem estarmos seriamente preparados para tal. Ao fio da
leitura, nós assumimos isso.
Assim, o judeu abre seu livro esquecido. O olvido está na origem de seu gesto.
Cada palavra, entretanto, lhe relembra precedentes leituras, assim como todo
lugar reencontrado nos confronta com nosso passado.
Mas, essa familiaridade com o texto não exclui a desconfiança.
Um lugar não é jamais idêntico. O que não tínhamos observado nele, emerge da
carência desse olhar que, tornado suspeito, abala, de um só golpe, a confiança que
tínhamos nele.
A palavra não se repete. Ela não rediz jamais senão o que, por ela, foi dito, pois
ela vive.
O livro é vivo. A morte só tem o poder de interromper a leitura.
Aqui, inicia-se a interrogação. Aqui, a inteligência recobra seus direitos
elementares.
Todo comentário do livro é comentário do lugar deserto onde fracassamos.
Disposta na casca do veleiro, ó viagem, a verdade é a preciosa palmeta. O texto é
uma asa projetada ao vento do mar. Nós a seguimos com os olhos, em seus batimentos e
deciframos sua sombra no inflar das vagas e sobre a areia úmida.
O que conta, é nossa vontade de ler. Nossa alegria vem da ideia de que fomos
escolhidos para celebrar o livro; nossa tristeza, de saber, por nós mesmos, que não
poderemos jamais esgotá-lo.
Partilhar com discernimento o que era para conhecer; que foi, de cada um,
insuficientemente conhecido.
O instante é conhecimento. Haveria uma aprendizagem do conhecimento ao qual
o instante emprestaria seu vivido. A eternidade, o que dura na duração, brancura selada
na brancura, é saber diluído no saber: o incomunicável.
Ah quantas folhas imaculadas! Deus as tomaria por eternas? O homem recalcitra.
Ele escreve o minuto efêmero, enterrado na eternidade que lhe escapa. Ele escreve a
abissal ausência.
Substituir, uma pela outra, duas palavras sinônimas, é uma operação delicada;
pois, na maioria das vezes, não levamos em conta tudo o que essas palavras recalcam: o
campo de seu inconsciente.
Predominância da escuta.
Jamais o escritor abre o livro. Como se, de antemão, ele tivesse medo disso, ele o
fecha cada vez que o abre a escritura.
O livro é de essência divina. As palavras aventaram a leitura que Deus, uma vez,
fez dele. Elas chamam, em vão, essa leitura que as revelaria a si mesmas. Mas, Deus está
morto.
Não ouço o tempo que, comigo, entra em minha vida; mas, já, o ouço
distintamente preparar nossa saída.
O tempo, talvez, seja essa invisível presença que, sem o menor esforço, nos
acompanha até a morte: seu monótono trajeto.
Pensar o tempo, é pensar o arrancamento.
Ó solidão! A vida é, de uma beirada à outra da trama cerrada dos dias, apenas
comprimento e finura de um fio: uma meada?
O Percurso
Estar à mão.
Destino. Destino.
Leveza despertada.
Gravidade dormente.
Entrego esta nota da qual jamais ousei me servir: «Eu não creio em Deus. Deus
crê em mim.»
... como o ar, para ter fé em si, tem necessidade de ser respirado; como, para a
estrela, é indispensável saber que ela cintila; como, da terra, o sol espera um sinal de
reconhecimento para a vital claridade que ele espalha;
mas, talvez, eu apenas tenha escrito esta frase a fim de conceder à ausência um
estatuto de presença; ó perene presença de uma ausência incrédula.
Não imites Deus, que morreu por ter querido dar uma resposta ao universo
questionando.
Tu morrerás em tua hora mas de uma resposta à qual tu te terás, contra tua
vontade, aliado e que é a do infinito à eternidade: teu abandono.
Tu eras apenas escritura. Teus escritos ficaram taciturnos. Tão logo, teu coração
cessou de bater.
A palavra é mais breve que o instante.
Nasci, pois, para a escritura entre 1912 e 1984, mais para o início.
Nasci para o judaísmo entre 1912 e 1984, mais para o fim.
É a certos eventos, aos quais não me referirei, desta vez, que devo isso.
Sempre me cativou a imagem; não pelo que ela representa mas pela transparência
à qual, um dia, ela chegará.
Contemplar o Nada.
... mas esses barulhos, esses sons como murmúrios reprimidos do mar; essas
sonoras, ainda que ensurdecidas, manifestações de um ante-mundo em gestação!
Ah quem os encorajou em sua esperança de cumprimento, em sua firme vontade
de nomear, sacrificando seu nome?
Quando o judeu me ensina que me cabe redescobrir a ordem do Livro ao qual dou
vida ao decriptá-lo, não é o judeu que eu sou quem agradece mas o escritor.
Quando o judeu me faz saber que a palavra que leio é, a um só tempo, aquela que
me distancia e me aproxima mais da palavra que devo ler, não é o judeu que eu sou quem
agradece mas o escritor.
Quando o judeu me deixa entender que ler o livro, talvez, seja a melhor maneira
de rogar preces, porque toda prece está em nosso livro, assim como o ouro está em nossas
mãos, não é o judeu que eu sou quem agradece mas o escritor.
E se nossos livros fossem apenas coletâneas, periodicamente postas em dia, de
nossas preces preferidas – essa preferência se justificando, ela mesma, por sua própria
referência ao sagrado –?
Santidade do escrito.
Deus é esse vocábulo inquietante que muitos dentre nós esquecem, do qual outros
se recordam mas que é uma palavra tão ancorada nas palavras que estas, tomando-nos por
confidentes, não hesitam, em voz baixa – em aparte – em declarar o constrangimento que
ela lhes causa; talvez, porque, não podendo ter sentido – existência – senão fora delas, a
palavra Deus as acabrunha esquartejando-as.
Ninguém pode à força restituir a palavra; por vezes, ela nos aterra.
Nossa força e nossas fraquezas são as suas. Ela é nosso futuro, ainda que tendo
seu exclusivo passado.
Nossos amanhãs foram precedidos por nossos braços estendidos. Eles estão
forrados, desde então, de nossas magras mãos cortadas.
O Nada é o laço.
Eles eram cinco. Ao mais jovem, o ancião diz: «Tu és a vogal, a alma»; ao
segundo: «Tu és a consoante, o pilar»; ao terceiro: «Tu és o vocábulo, o universo», ao
quarto: «Tu és o silêncio, o infinito.»
«E tu, perguntaram-lhe eles, quem és tu?»
«Eu sou o livro, respondeu ele; porque, como ele, abro-me sobre meu corpo e
meu espírito; depois, como um enigma, resolvo-me em mim mesmo. Porque, sem vós
quatro, não sou nada.»
O TEMPO O ESCRITO
Fazer recurso ao tempo que sendo apenas o curso do tempo é, a fortiori, privado
de recurso.
O tempo tabula sobre o tempo.
Para melhor preparar o homem para morrer do homem, Deus criou o tempo?
Para deixar o tempo a Deus para morrer de Deus, o homem concebeu a
eternidade?
O instante prevalece sobre a duração, jamais sobre a eternidade que é duração
incontrolável.
Uma vela acesa basta para delimitar o espaço de nossos pensamentos, de nossos
gestos, de nossos escritos.
O olho está na palavra. Ele nos vê. Nossos olhares nos confundem.
O suicídio não é ruptura com o tempo mas pausa voluntária, golpe de parada fatal
em nossa relação com ele.
A morte não escapa ao tempo. Ela preside um morto-tempo, tornado o nosso.
... um morto-tempo que não é um tempo morto mas o tempo eterno do morrer.
A vida é fita colorida do tempo. A morte poderia ser, então, rasgo inevitável da
fita; a usura sendo, habitualmente, sua causa direta.
O livro subversivo é aquele que destroi a ordem estabelecida para impor, pouco a
pouco, a sua.
Escrever não é outra coisa senão a busca por essa ordem; somente a busca.
A subversão faz face à subversão; donde o mal-estar que ela provoca sobre nós.
Esse mal-estar, na realidade, não é um mal-estar mas o mau estado, o mofo do
muro: a realeza amputada de seu reino.
Mas, de qual ordem se trata, então? Provavelmente de uma franja de olvido,
entregue às tesouras da memória.
Emudecer a morte, conceder voz apenas à vida, à cristalina vida quebrada, ébria,
entretanto, de sobreviver.
Espinçar o infinito.
Um ponto reluzente, topical, arrebatado à terra pelo céu, nos dias mais trágicos,
fora nossa estrela. Esse astro se fez, de si mesmo, tão pequeno; tão pequeno que ele
aterrissou sobre nosso peito. Dois corações, doravante, batiam em uníssimo: um, de
sangue; o outro, de luz.
Invejosa obscuridade que buscavas nos esconder o cume, sabias tu que este, sem
que tu o soubesses, podia reluzir para nós? Tu esqueceras que eras também sua sombra?
Ah quantas noites hostis precisamos atravessar para atingir a vista!
Cada grão de poeira se recolhe por trás de sua história; ataca-se ao demencial
projeto de pactuar com a morte a fim, ele também, de se reclamar um livro.
Palavras da recusa. A tinta lhes colore, em vão, suas letras que o desconhecido
perfura.
A transparência se lê na nua transparência à qual ela atingiu; o nada, ó luto, no
recôndito do nada
PORVIR E DEVIR JUDEUS
Nenhum porvir assegurado para o judeu, mas um precário devir do qual ele é o
solitário artesão.
Assim também se dá com o instante rebelde, preso na engrenagem do tempo.
Não peças a Deus para varrer em tua porta. Ele não inventou a vassoura.
Que meio tínhamos nós, para paliar a defecção do dia, senão criar, para nosso uso,
nossa própria luz?
Não vemos, desde então, senão por nós.
... Poderíamos, então, nessa perspectiva, nos arriscar a daí concluir que, estando o
definido a sondar, no seio de um indefinido invasor, Deus poderia ser reconhecimento e
denegação de uma realidade fugidia, negativa, que se afirmaria enquanto objetiva
realidade de Sua suprema negatividade.
O negro, talvez, seja apenas uma infinita brancura sobre uma parte da qual a
sombra se alongou, depois adormeceu.
A CHAVE
O neutro é a abertura.
E, no entanto, abrir é um empenho. Abrimos a
passagem mas recusamos a direção. Queremo-nos
atentos, receptivos.
O que vem é o que devia vir. Não vamos a ele.
Vamos, cegos, vamos...
Optei por aquela que, tendo transposto o maior número de portas, se tinha, de
tanto abri-las, tornado, ela mesma, abertura: como se a abertura fosse, ela também, uma
chave; como se, enfim, a abertura, em um dado momento, assegurasse a si só a passagem,
abrindo-se a si mesma.
O que é lido não é outra coisa senão o que se escreve todos os dias, por nós, nas
faltas do livro: faltas que não são suas margens, mas rastros de palavras sepultadas na
palavra; signo sobre signo, pois, que o olhar, deslumbrado pelo que esses signos
escondem, branqueia por excesso de luz; branqueia como o tempo, o cabelo, até a
transparência.
Assim o judeu se debruça sobre seu livro, sabendo de antemão que esse livro
permanece sempre por arrematar em seus vocábulos e seus silêncios.
Ler, nesse caso, seria, chegado ao cabo de sua semelhança, quebrar, na palavra, as
barreiras de nossas pertenças a fim de torná-la intacta à sua inicial e límpida pureza.
Deus, como prova tangível do apagamento voluntário de Seu Nome, teria Ele
legado, ao povo hebreu, um livro branco?
Mas, como ler essas palavras de brancura senão com o concurso de nossas
palavras? Mas, como ouvir o silêncio de suas páginas senão através de nosso silêncio?
A escuta é leitura da audição.
Uma palavra cabe em alguns signos, ocupa o espaço desses signos. No interior,
ela tem o porte do universo.
Fico pensando, por exemplo, nas transformações que o canto da sinagoga faz a
palavra sofrer. O cantor invoca Deus e, através das modulações que ele tira de cada uma
das letras do Nome divino, passando do soluço à alegria, da revolta ao reconhecimento,
ouvimos, no recolhimento, nossas palavras caladas nessa palavra que o seu silêncio
afeiçoa e que a salmodia nos restitui.
Talvez seja a esse canto que caiba exprimir o indizível: prolongar o indizível do
dito em seu apagamento; pois não apagamos jamais nada. Somos apagados, à medida que
apagamos, por esse eterno apagamento, tão ativo quanto o instante que nos consome
empenhando-nos a vivê-lo.
O sentido de uma palavra, talvez, seja apenas abertura ao sentido.
A palavra ‘Deus’ não tem um sentido, nem vários. Ela é o sentido: a aventura do
sentido e seu desmoronamento.
Referindo-me a tudo isso, eu, uma vez, adiantei que o judaísmo e a escritura são
apenas uma mesma espera, uma mesma esperança, uma mesma usura.
O judeu, no livro, é, ele mesmo, livro. O livro, no judeu, é, ele mesmo, palavras
judias; pois o livro, mais que uma confirmação, é, para este, a revelação de seu judaísmo.
Fazer o livro, para o escritor, é aprender a ler o livro que está no livro: livro de sua
ambição, de sua obsessão.
Pelo quê responde o judeu? Em primeiro lugar, por sua fidelidade ao livro; pois
ela é fidelidade a si mesma.
Nesse perpétuo frente-a-frente com o escrito, ele se reconhece: voz na voz, canto
no canto, palavra na palavra, em nome de uma verdade da qual ele é o frágil e, no
entanto, tão robusto defensor: a um só tempo, carvalho e caniço.
Sua identidade – como o escritor, a sua – o judeu a espera do livro. Além disso, é
menos ao acaso de seu nascimento que ele deve o ser judeu que ao porvir que ele se
esforça em modelar até nos menores detalhes. Aí está seu gênio.
O judaísmo é uma fé que não repousa unicamente sobre a fé, mas na prova que o
faz sofrer indefinidamente o texto de sua fé, sobre cada palavra desse texto que ele
assume, pondo-a, por sua vez, à prova.
Interminável questionamento do qual a morte é o termo.
Talvez, seja por isso que o sétimo dia da semana, considerado como dia de
repouso, poderia ser, igualmente, um dia retirado do livro; retirado do livro mas,
provavelmente, ainda no livro como espaço imaculado, como entrelinha. Nesse dia, o
judeu não está nas palavras do livro mas, a exemplo do andarilho que, em tempos de
grande sol, se refugia sob uma árvore, à sombra destas.
O escritor se aplica a circundar o livro que, já, sem que ele o saiba, o havia
amestrado. Suas páginas despertam nele uma angústia à qual ele não escapará jamais.
Ser o que escrevemos. Escrevemos o que somos. Tal é a cartada.
A questão ao judaísmo é questão ao livro; pois, como formular uma questão senão
pela linguagem? As palavras de nossas interrogações afrontam as palavras das respostas
que só a seus leitores o livro destina.
Todo diálogo é diálogo de palavras. Ele dá existência ao universo e ao homem.
Saído do livro, o questionamento, para o judeu assim como para o escritor, sendo
primordial, ele é, por conseguinte, de uma atualidade abrasadora; de cinco mil anos, para
um; ancorada no futuro, para ambos;
pois o que é a modernidade sem a abertura? – Ela não é mesmo senão isso.
A abertura, para o judeu, foi primeiro a que o deserto oferecia à Palavra de seu
Deus. Abertura indispensável a semelhante Palavra.
Sem o deserto, não teria, talvez, havido, por falta de espaço suficiente a seu
desabrochar, esse judaísmo que, passando pela Palavra de Deus, passa necessariamente
pelo livro;
pois, mais que um rincão desolado, o deserto é terra de silêncio e de escuta; terra
propícia ao silêncio e à infinita escuta, onde o silêncio se embebe de todos os seus ecos e
a escuta, de todas as sonoridades recolhidas no coração desse silêncio; assim como a
morte se inebria das falas da morte e da vida, da leveza aérea da vida, sílex e vento, areia
e céu e nada, nada, nada entre.
Nada além do jorro de uma Palavra autoritária que um sábio recolheu.
A seu povo, Deus manda escutar: «Escuta, Israel...»; mas, escuta o quê? Escuta as
palavras de teu Deus; mas, Deus é ausente e Suas palavras sem voz; pela distância,
cortadas de seus sons. Escuta o silêncio;
pois é nesse silêncio que Deus fala à sua criatura; pois é com uma palavra nutrida
desse silêncio que o judeu responde a seu Deus.
E se fosse para pô-la na boca de um povo receptivo que Deus se tivesse desfeito
de Sua palavra a fim de partilhar, em seguida, sua escuta?
A palavra imperativa está sempre a nascer. Ela dá livre curso às nossas atentas
palavras.
A espera é o levedo da questão, pois ela é, em si, atenção ao desconhecido,
abertura à esperança.
Mas, se, filha do deserto, a questão ao desconhecido fosse, ela mesma, apenas
deserto da questão? Ela não seria mais que solidão de uma questão à questão da solidão:
infinita solidão da questão de Deus à trágica solidão da questão do homem.
Entretanto, privilegiar a questão não é, já, instaurar o diálogo; não é, sem deixá-la
totalmente, escapar em parte à solidão?
Nessa parte libertada, residem nossos laços.
Se o judeu, diante de seu judaísmo, se apresenta só, cada judeu poderia definir
esse judaísmo pela originalidade de suas abordagens, quer dizer, através da leitura que ele
fez de seu livro.
Se o livro – porque livro aberto – autoriza suas diversas abordagens, ele as
justifica no mesmo ato. Essa justificação acarretando inevitavelmente a própria colocação
em questão do leitor.
Ser não atesta senão ter sido. O futuro se apossa do que tem vocação de
prolongamento para inscrevê-lo na duração; transformando-o, insensivelmente, dia a dia.
De sorte que durar não é jamais senão viver, no espanto, essas cotidianas metamorfoses.
Assim às suas diferentes imagens de si mesmo, o judaísmo opõe sua ausência de
imagem.
Ser judeu, ser escritor seria, então, apenas a possibilidade outorgada a cada um de
chegar a essas condições. O além das palavras é ainda o aquém do ser. Amanhã é o cerne
de seu advento.
Não dizemos, aliás, de uma coisa negligenciável, desinteressante, que ela é sem
porvir?
Mas, a qual rosto familiar nos reportar caso se trate de descrever nossos próprios
traços?
E que é um rosto que não deveria sua particularidade senão a todos os rostos que
se reconhecem nele?
E se a lei fosse desejo do livro e o livro, desejo da lei à qual ele deve sua
articulação?
E se a origem fosse apenas o desejo de origem do Livro? Deus seria essa origem?
Bem mais que seus signos, é o silêncio do livro que nós interrogamos: seus signos
sendo apenas rastros enumerados desse silêncio.
Se todos os livros não têm a mesma origem, eles têm, em comum, o mesmo
silêncio.
«Se admitimos – escrevi em uma de minhas obras –que o que inquieta, agita,
recoloca febrilmente em causa é, a princípio, profano, poderíamos deduzir que, de
uma certa maneira, o sagrado, em sua persistência desdenhosa, seria, de uma
parte, o que nos fixa em nós mesmos, uma espécie de morte perpetrada da alma e,
de outra, a decepcionante culminância da linguagem, o último vocábulo petrificado.
«Além disso, é, em sua relação com o profano e através dele, que o
sagrado se dá a provar, não mais como sagrado mas como sacralização do
profano ébrio de superação; como prolongamento indefinido do minuto e não
como eternidade estranha ao instante;
«pois a morte é da conta do tempo .
«Não é, justamente, pela via da palavra impotente a se apropriar do dizer,
que a eternidade toma consciência de sua incompatibilidade com a linguagem?
«Escrever – ser escrito – seria, pois, sem que nos demos sempre conta
disso, passar do visível – a imagem, a figura, a representação cuja duração é a
de uma aproximação – à não-visibilidade, à não- representação contra as quais
luta, estoico, o objeto; do audível, cuja duração é a de uma escuta, ao silêncio
onde, docilmente, vêm se afogar nossas palavras; do pensamento soberano à
soberania do impensado , remorso e suprem o tormento do verbo.
«O sagrado permanece o desapercebido, o dissimulado, o protegido, o
inapagável; é por isso que escrever é também a tentativa suicida de assumir o
vocábulo até seu último apagamento, lá onde ele cessa de ser vocábulo para não ser
mais que rastro realçado – ferida – de uma fatal e comum ruptura: a de Deus
com o homem e a do homem com a Criação.
«Passividade divina, irredutível silêncio face à imprevisível e perigosa
aventura da palavra entregue a si mesma .
«Anterior ao profano, ele é, de todo limite, a desmedida arbitrária que o repele
sem cessar.
«Sagrado. Segredo.
O sagrado se confundiria com o eterno segredo da vida e da morte?
«Há um pós-dia, uma pós-noite aos quais dia e noite são invariavelmente
confrontados.
«Eles são promessa de aurora e certeza de próximo crepúsculo. Vida e morte,
profano e sagrado, tais céu e terra convencidos de formar um mesmo universo, aí se
cotejam e se entremeiam.
«O interdito original confere à não-representação seu caráter sagrado. A língua de
Deus é língua de ausência. O infinito não tolera nenhuma barragem, nenhum muro.
«Nós escrevemos contra esse interdito; mas, não é infelizmente para nos chocar
violentamente contra ele? O dizer não é jamais senão desafio ao indizível e o
pensamento senão denúncia do impensado.»
Deus fazendo de Seu povo, através da Lei, um povo de pastores, Ele fizera dele,
através do livro, um povo de leitores.
Dando, à Sua criatura, Seu livro a ler, Ele exigira desta, em retorno, que ela lhe
ensinasse a relê-lo com olhos humanos.
Assim estaríamos nós, talvez, habilitados a sustentar que se o judeu é judeu pela
escolha de Deus, Deus é judeu por criaturas interpostas.
Donde, para o judeu, a familiaridade com seu Deus que não é jamais ditada pelo
desrespeito mas se deve à singularidade, à especificidade de suas relações; à pontualidade
de suas trocas.
Deus tinha necessidade do homem para que Sua Palavra fosse entendida além de
seu imediato entendimento, até onde o homem está só face a si mesmo e ao homem.
Todo leitor é um escritor em potência. Ele faz, do livro, seu livro. Ele o reescreve
para si mesmo. E que importa se esse livro não vê jamais a luz?! Sobre a transparência de
suas palavras se alinham as palavras impressas do livro sobre o qual ele se debruçou. De
sorte que o livro enterrado no livro é, ora, esse livro sonhado, inigualável, inimitável, ao
qual já fiz alusão e, ora, nesse livro único, o livro que, através de sua articulação e do
essencial de seu dizer, tenta em vão se lhe assemelhar; nosso livro perecível.
É por isso que, meditando, de minha parte, sobre minha condição judia e minha
condição de escritor, eu pude notar: «Acreditei, primeiro, que eu era um escritor; depois,
dei-me conta de que eu era judeu; depois, não mais distingui em mim o escritor do judeu,
pois um e outro são apenas o tormento de uma antiga palavra.»
Reportando-se a essas frases, alguns puderam deduzir delas que eu havia feito, do
judeu, um escritor e, de todo escritor, um judeu; ao passo que eu me havia simplesmente
autorizado a sublinhar a relação comum deles com o texto.
A ninguém, mais que ao judeu, convém essa apropriação: «Ele fala como um
livro.» E não por jogo ou por pedantismo, o que justificaria a ironia de uma tal
observação; mas, porque o judeu não deixa jamais o livro, mesmo quando crê tê-lo
abandonado.
Assim como para o escritor com o escritor, a relação do judeu com o judeu se
concretiza por uma troca de livro.
E se outrem fosse, já, o livro? – Outrem, como livro; livro, como outrem?
Isso não implicaria mais que nós sejamos os avalistas de uma mesma palavra mas
as testemunhas da ressonância que esta tem tido em nós; do vivido, de algum modo,
dessa palavra por trás da qual se desliza nossa própria história.
Vital é o diálogo. O livro dos vivos não pode ser senão o livro do diálogo.
Ele diz indefinidamente essa Palavra com as palavras que a receberam. Ele se
engenha a perdê-la, para melhor reencontrá-la ao cabo de sua perda. Virtude do
comentário judeu que não é jamais vulgar comentário do texto mas aprofundamento de
uma palavra interior confrontada ao indecifrável do texto. Aí, Deus se cala, deixa falar
Sua criatura e toma a medida de sua escuta.
«Entra com tuas palavras, em cada uma de minhas palavras parece nos
recomendar o livro. Tu tens aí teu lugar; um lugar onde posso te acolher com teu passado
e teu porvir; pois tenho a idade do tempo e a ausência de idade da eternidade; pois sou a
eternidade no tempo e o tempo eterno.»
A grandeza do homem está na questão; nas questões que ele é capaz de se pôr,
pondo-as a seus semelhantes. Questões ao universo também.
Há, no texto, um impercebido que nos assombra; uma palavra-chave que nos
obseda.
A morte é um turbilhão de palavras às quais a vida se exercita a dar um sentido,
esquecendo que elas a engolirão.
A história dos judeus é a história do mar tornado areia a fim de que, dessa areia,
da imensidão movediça dessa areia, uma palavra surja e se faça livro.
A certeza, talvez, seja apenas motivação de toda questão. Ela estaria, nesse caso,
na formulação da última questão.
O sono não é, sempre, perda de consciência. Deus adormeceu o mundo para criá-
lo e se adormece na Criação a fim de ser. Si mesmo, por ela, criado.
Fechamos os olhos para nos fundir no universo a fim de sermos despertados por
ele.
Ninguém pode apostar senão sobre o despertar. O porvir do homem está nos
olhos. Ele, talvez, seja apenas a secreta espera de um olhar infinito.
Não exijas do judeu mais do que ele pode consentir. Esse mais é sua ferida.
E, sobretudo, não te arrisques a condená-lo em nome de não sei qual certeza; pois
esta não saberia, no melhor dos casos, ser, para ele, senão um novo motivo de
interrogação.
O homem que trata seu cão, acaba sendo tratado por ele.
Como é livre o nômade! O deserto não lhe pede nada.
Do exílio, um dia, o exilado se desviou. Ele se torna o exilado desse exílio, como
se, ó paradoxo, o exílio fosse o lugar de asilo que ele precisasse, periodicamente, deixar.
Assim, no começo, teria havido o exílio, origem e razão de nossa errância.
Senti-me o exilado do exilado, no dia quando me reconheci judeu.
Mas, a origem é, ela mesma, transmitida.
Ela é o passo que motiva o passo.
OS DOIS LIMITES
Eu tinha, uma vez, imaginado – ocorre-me de crê-lo ainda – que a eternidade era a
via liberada pelo sabre que, irmãs siamesas, havia separado a vida da morte, o dia da
noite.
Via ignorada por nossas vias mas dobrando-as até onde, tendo cessado de se
estender, elas não são mais que escancaro de olvido.
O PARADOXO
O traço tem essa virtude admirável de jamais trair o que ele anula.
A IMAGEM O ESCRITO
O que perco, o que não posso fazer senão perder, tu o recuperarás para mim?
Ah nos associar, nos unir para essa humilde tarefa. Comum é nossa
responsabilidade.
Não escrevemos mais com a poeira. A poeira nos escreve.
Onde não há nada, há Deus: amplidão do Nada.
A LINHA DE HORIZONTE
O vazio não é invisível. Uma imagem poderia lhe ter convindo; mesmo que fosse
aquela de sua invisibilidade.
Ele é a impertinência da não-representação do Nada.
IMAGEM DO EXÍLIO
Negar o Nada.
O LIVRO LIDO; AQUI, INICIA-SE
A LEITURA DO LIVRO
Negar o Nada. Sobre esta frase, eu quis edificar o livro; pois o que é o livro,
senão negar o Nada?
O Nada, obsessão de Deus; o Nada, terror do universo que traem suas miríades de
olhos metamorfoseados em estrelas; o Nada, adversário do homem; o Nada, enfim, rival
do livro.
Frase, em aparência otimista que nos reenvia ao Tudo; a Deus, Totalidade das
Totalidades; ao universo, ao livro; que nos incita a abordá-los separadamente, em sua
Totalidade inacessível.
Mas, o Tudo não era, já, o Nada?
Viver sobre o Nada, da vida partilhada do Tudo.
Morrer ao pé do Tudo, da breve sobrevida do Nada.
Teremos seguido o caminho clareado, para nós, pela palavra judia. Duas frases
nos terão, na errância, acompanhado: Para a respiração: «Deus criou o homem à Sua
imagem»; para a expiração: «... pois pó, tu foste, e pó, voltarás a ser.»
Se, para o homem, a certeza é uma necessidade, em si, ela é apenas vaga resposta
a uma penúltima questão, a última permanecendo em suspenso.
... vaga, tal um terreno vago sobre o qual jamais se elevará um edifício qualquer,
pois ele cairia, tão logo, em ruínas.
«Quem saberia falar em nome do oceano? Quem poderia se gabar de ser o porta-
voz do infinito?
«O cascalho só se dirige ao cascalho, mas com palavras de universo.
«Teria eu pretendido escrever, movido por minhas certezas? – dissera um sábio.
«Escrevo porque não tenho nenhuma.»
«Negação de nossas incisivas questões, o deserto é questão ao Tudo e horizonte
do Nada.»
A HERANÇA, II
Do Livro divino, alguns afirmam que o povo hebreu só ouviu a primeira palavra;
outros, que ele só ouviu a primeira letra.
Moisés era só a poder revelar suas frases, depois suas páginas.
O povo hebreu leu o livro de Moisés, assim como leríamos uma obra da qual nos
fossem comunicadas apenas passagens.
Uma vez o livro inteiramente transmitido, Moisés se calou.
Nesse silêncio, o judeu reconhecera seu Deus.
A HERANÇA, III
«Toda palavra humana é afronta à Palavra divina, não absolutamente porque ela
se ergue, a cada vez, contra ela mas porque força esta a negá-la», havia ele escrito.
E, mais abaixo, sobre a mesma página:
«E se esse encarniçamento de uma em querer substituir ou destruir a outra apenas
fosse, para elas, seu único meio de existir?»
Eva saiu do sono de Adão, despertou junto a ele, segundo o voto de Deus; mulher,
ela também, antes de ter sido criança, não tendo visto seu corpo crescer, se formar, não
tendo assistido ao desabrochar de seu espírito, ceder às voluptuosas vontades do sexo ou
lutar contra.
Eles se olharam sem proferir uma palavra. Que podiam eles se dizer? Eles podiam
apenas se observar, apenas estudar sua diferença.
Aqui, entra em jogo a serpente. Aqui, chega-lhes, até a orelha, a voz maviosa do
réptil que seria, talvez, apenas a voz premente de sua angústia.
Ah essa necessidade de saber que não seria de nenhum modo, de sua parte,
curiosidade mas esperança de cura; pois Deus introduziu, neles, o sofrimento, o mal de
ser. Deus se enganou. Deus errou.
E se o pecado de Eva fosse, de verdade, aquele de Deus que esta, por amor por
Ele, tomou à sua conta? A um só tempo, pecado de amor e louco desejo de se salvar e de
salvar Adão?
A angústia tinha favorecido o ato, apressado o advento de sua liberdade.
Infringir o mandamento de Deus é, para um e para a outra, reencontrar sua
humanidade.
A natureza tomando sua revanche, o pecado de carne se confessará ser apenas
pecado de procriação, glorificação da semente.
Do que nasce, a efêmera eternidade.
GRISADO
Palavras que não tiveram o tempo para enegrecer, tanto sua passagem foi rápida –
teríamos dito em pontilhado. Mas, resta esse tom gris deixado, por elas, sobre a folha;
turva cor, equívoca, familiar, tão cara aos nossos olhos cerrados.
«Quando, de negra que ela era, de uma vez só uma palavra escrita se encontra
gris, é que o infinito da página a branqueou.
«Ó transparência!», dissera ele.
E acrescentara, mais para si mesmo que para os outros:
«A transparência, ah eis o milagre.»
Tudo é pensamento. A poesia poderia bem ser, assim, a expressão de uma dupla
sensibilidade: a do coração e do espírito. Palavra em seu Zênite.
«Tu queres partir. Não sou eu quem saberia te deter. Nem minhas lágrimas, nem a
recordação de nossos risos.»
Voz feminina, voz de minha terra natal, quantas vezes ela se debateu com o
olvido?
Aquele que, de novo, partiu só tinha, por toda bagagem, um livro inacabado.
Ó meu amor.
Um sábio dissera:
«Não houve, para nós, nem partidas nem retornos.
«Houve a longa e difícil travessia do livro.»
Produzir o Nada.
Fazer reluzir.
Com as palavras da língua, o escritor forja palavras novas; não novas palavras,
palavras irrigadas com seu sangue; funda uma segunda língua, amarrada, certamente, por
todas as suas fibras, à primeira mas que, doravante, pertencendo-lhe propriamente, ó
paradoxo, não pertence mais a ninguém. A língua do escritor só se querendo aquela do
livro; a do instante e da duração de uma palavra emancipada.
A palavra oral só é audível no mais perto de seu objeto, do que, considera-se, ela
deve exprime diretamente; a escritura, no mais longe. Uma diz e se cala. A outra se
inquieta com o que ela tem ainda a acrescentar a seu dito. Uma circunda e divulga o que
ela captou. A outra encoraja o dito a se ultrapassar, a fim de circunscrevê-lo, em seguida,
em seu vertiginoso desfraldar.
Não crer que uma escritura em retirada seja uma retirada de uma escritura em
favor de uma outra, portanto, passiva.
O texto vive e morre na palavra mas, dessa morte, não sabemos nada, senão que
ela é posteridade de toda palavra.
«Gravada, a palavra corrói o que ela grava, mármore ou cobre para, por sua vez,
ser corroída por eles.
«Encharcada de tinta, ela dá a beber à folha e morre de sede, com ela», dissera um
sábio.
E acrescentara: «Irmã da crença do livro no livro, ó sede, fé obstinada na
ressurreição da água.»
O SONHO
Ele ofereceu seu livro a seu Mestre, que o leu, o reescreveu e, por sua vez, o
ofereceu a seu Mestre.
O Mestre o leu, o reescreveu e, renovando o gesto de seus discípulos, foi oferecê-
lo a seu Mestre.
O Mestre o leu, o reescreveu e, preocupado, ele também, com o julgamento de seu
Mestre, apressou-se em lho oferecer.
Atentamente, o Mestre o leu e, sentindo-se, por seus quatro discípulos, visado em
seu ensinamento, o lançou ao fogo.
Ao rico que se vangloriava de sua fortuna, o sábio diz: «Tenho pena de ti por tua
pobreza.»
Ao pobre que chorava seu infortúnio, o sábio diz: «Regozijo-me de tua riqueza.»
Como nem um nem outro compreenderam as palavras do sábio, este diz ao rico:
«Tua riqueza te cega; é por isso que a manhã é, para ti, espessas trevas.» Ao pobre, ele
diz: «Tão vastos, por trás de tuas lágrimas, são teus olhos, que o mundo não tardará a se
refugiar neles, em sua total disponibilidade descobrindo aí seu lugar.»
E acrescentou: «A pobreza de Deus é esse olhar liberto da Criação que, vazio, lhe
permite abraçar, de uma vez, as inumeráveis riquezas celestes e terrestres, restituídas a si
mesmas.
«Mas, tenho fome», diz o pobre.
E o sábio soluçou.
A um discípulo que lhe dissera que o Livro divino, talvez, não fosse tão perfeito
quanto se crê, o mestre respondeu:
«O embaraço, com Deus, é que não sabemos, de verdade, se Ele está totalmente
morto ou totalmente vivo.
«Nesse ‘totalmente’ reside seu mistério.»
E acrescentara: «Se Ele está morto, precisamos aceitar Seu Livro como único e lê-
lo consequentemente.
«Mas, se Ele está vivo, estamos no direito de considerar Seu Livro, como uma
primeira obra, abrindo a via para uma segunda obra e nossa leitura só pode assim ser
sensivelmente modificada.»
«E se a Palavra de Deus só tivesse, por supremo objetivo, nos fazer correr esse
risco?
«Ah! ouvir, ver se projetar e, sobre si mesmo, se recurvar o silêncio. Essa, talvez,
seja a mensagem divina.»
«Não há, talvez, livro divino – dissera um outro comentador. Haveria a divina
incondicionalidade de adesão a um livro branco.»
★
A PARTE DO BEM
A questão poderia ter sido meu bem se, ela mesma, não fosse tão desmunida.
Ele havia, outrora, notado: «Levar o passado à sua culminância não é lhe impor
um fim mas, ao porvir, atribuir uma função e, assim, lhe conceder, talvez, um sentido.»
Quebradura de quebras.
A passagem da escritura ao escrito não deixando, por trás de si, rastros, é sempre
original; não absolutamente origem na mas contra a origem. Indetectável começo.
A morte é uma aranha ocupada em fiar sua teia e a palavra, uma mosca capturada
em voo.
Ó nascimento póstumo do livro.
Uma vez escrito, o Mim não é mais que escritura exaustiva do Mim.
Ratificação.
Dispendiosa irrealidade.
Na sombra onde ela jaz, em pé, a vela resvala, atraída pela chama para sua
oscilante luz.
Se ela parece derreter, é apenas uma ilusão de ótica.
Na realidade, a morte irreversivelmente a arrasta para além de sua regressiva
claridade.
Se soubesses quão vulneráveis são nossas moradas, o quão tu mesmo o és, tu com
isso tremerias.
Fraqueza em que a força se aprecia pelo número de proezas. Resistência de toda
fraqueza. Capitulação de toda força.
O homem é tão exposto quanto o livro. Um pela mediação do corpo e do espírito;
o outro, pela via das palavras que o minam.
Poder, assim como fechamos um livro, encerrar, um dia, minha vida, persuadido
de que, no interior desse encerramento, um tesouro está sempre escondido.
Toda possessão nos frustra onde ela nos favorece.
Folha. Folha.
Perecemos do que nos fez ser, bem mais que do que somos.
«Nós sabíamos que possuíamos poucas coisas – escrevera um sábio – mas, a ideia
jamais nos viera de que esse pouco de coisa é ainda o que não possuímos.»
Escritura sob a escritura. Sub-escrever. Não escrever sob; mas, escrever assim
como sub-tendemos o arco. Ó alvo longínquo. Palavras de uma outra memória.
Morrer antes da palavra, abandoná-la à sua morte órfã.
Não teremos nada escrito que não nos tenha sido soprado pelo próprio escrito.
Silenciosa é a escuta. Alguém duvida de que ela era página de escritura sutilizada
ao olho?
Brancura. Brancura.
Ler o que se retira.
Seca! Fome!
A morte tem toda latitude para operar lá onde ela está segura em encontrar o que
ela busca e não lá onde não podemos, infelizmente, mais nada lhe oferecer.
O direito à morte, nessas condições, talvez, seria apenas o direito legítimo de
recusar à eternidade o último dom de si; uma chance de morrer, de nossa firme vontade,
com alguma coisa que nos pertença ainda.
«Minha vida – dissera ele – gasta pela fricção, é um velho cabo enferrujado que se
pui mas que, todavia, não cederá, enquanto o navio dos anos me contar entre os seus
passageiros.»
E acrescentara: «A imagem de uma vida, talvez, seja apenas aquela da usura
contínua de um laço sem defesa: amarreta ou correia.»
À claridade, nenhuma sombra de correntes.
Todo começo se apropria da origem. Ele é, não o já lá, mas a recusa do já.
O lance de dado do trapaceiro.
A noite se conta.
Negro relato.
Vocábulos envoltos de sombra.
Desalento. Desalento.
Branco é o desenlace.
Não deixes as palavras azedarem. Eles têm mesma longevidade que o vinho.
Agrura do mão-de-vaca.
Tu queres tudo pensar, mas teu pensamento não pode pensar tudo.
Entre querer e poder, ó infinito, ó vazio do impensado.
Ó o sol.
Olho só.
Ele dissera: «Imagina o pensamento como uma planta, como uma árvore, como
uma flor, como uma fruta e mesmo tal um broto.»
O homem criou Deus, dotando-o dos mais puros atributos; ele o suprimiu ao lhos
tirar, um a um.
Quem escreve para mim? Que é que, nesse momento, se escreve em meu nome?
Em que distinguir o que eu escrevo, do que uma mão mais pronta – mas, como ela fez
para eliminar a minha? – se engenha a escrever, atribuindo-me essa paternidade?
Há aquele que se cala em mim – comigo – quando me calo.
Há aquele que fala em mim – comigo – quando me exprimo.
É o mesmo homem?
Ponderoso infinito.
O ilimitado O limite
Ele dissera que a rosa era, pela metade, silêncio e, pela metade, perfume. O que a
tornaria tão bela.
Saberemos jamais se é sua beleza que embalsama ou se, para nós, seu perfume
desenhou sua beleza?
«É necessário que tenha havido restrição para que haja liberdade; pois não há
liberdade senão lá onde ela pode se exercer.
«Demos o nome de ‘Liberdade’ ao que é apenas meios postos, por nós, em obra
para sermos livres», dissera ele.
Sabia eu, até aqui, que abrir e fechar contra o impensado, e o livro que se
os olhos, se alongar, se mover, pensar, escreve contra o livro escrito.
sonhar, se calar, escrever, ler, são gestos Existir, pensar, escrever nos
e manifestações da subversão; o empenharia, então, a procurar
despertar vindo abalar a ordem do sono, indiretamente um equilíbrio interior,
o pensamento se encarniçando sobre o face a atos de subversão, equilíbrio que
nada a fim de o suplantar, a palavra seria enfim encontrado ao deixá-los se
rompendo, ao se desfraldar, o silêncio e afrontarem em nós.
a leitura que recoloca, a cada frase, o Nós somos o lugar esquartejado
escrito em questão? desses conflitos. Conseguimos localizá-
Sabia eu, também, que há graus para a los ao espaçá-los e limitá-los no tempo;
subversão, que não somos é o que chamamos: viver, com nós
verdadeiramente subversivos, em nossas mesmos, em harmonia.
relações com outrem, senão quando não
nos aplicamos de modo nenhum a sê-lo e
quando, nesse clima de não-suspeição, (O pequeno livro da
favorecido por nosso comportamento, subversão fora de suspeita)
ninguém, ao nosso redor, se percebe
disso ainda?
A vida se ergue, em todos os
instantes, contra a morte; o pensamento
Três «Rogos de inserir» ou curtos Um livro de mais – não a mais mas de
rogos para recitar, em voz baixa, para mais, como pode haver um grau de mais
fazer recuar os limites do livro para o calor ou então em nossa relação
... em voz subterrânea – em oposição com o escrito e com o infinito.
a voz subterrânea –, a fim de ser ouvida A via onde me embrenhei é aquela
pelos mortos enterrados com seu livro. traçada por meus livros e cada um foi,
por sua vez, benévolo assentador de
Um livro de rogos, talvez, seja apenas divisas.
rogos preferidos do livro. Ao ilimitado, eles foram sacrificados.
Fizemos nossa sua seleção. Àquele que, sentado, a esperava, sem
verdadeiramente a esperar, ela perguntou
Todo pensamento é rogo do espírito; se ele sabia o nome que ela teria querido
todo vocábulo, rogo de um escrito; toda portar para existir.
morte, rogo de eternidade. Diante do mutismo deste, ela se
Rogar preces: arrancar pedras. eclipsou para, por todo o sempre,
desaparecer.
Não busques dobrar a palavra; ela, A causa do fracasso de todo diálogo
já, na passagem, te dobrou. reside em nossa impossibilidade de nos
revelar, tais como somos, a outrem.
«Em um texto – dissera ele – tudo vai Estrangeiro face a estrangeiros.
tão veloz que, não podendo avaliar essa Mas, o diálogo prossegue,
velocidade, nós o cremos fincado à precisamente lá onde, através do silêncio
folha» onde se funda o livro, ele não é mais que
o afrontamento desesperado de duas
E se a subversão fosse, primeiro, por impotentes palavras à cata de sua
si mesma, subvertida? verdade.
Dissabores e despeito do diálogo.
(O Livro do Diálogo, 1984)
Nesse ponto do percurso, necessitei,
«O homem – dissera ele – roga preces por preocupação, provavelmente, de
com palavras de carne e de alma; a precisão, de objetividade – mas,
pedra com palavras de poeira e de céu; podemos ser objetivos? – repensar
a relva, com palavras de gramíneas e de minha relação com o judaísmo e com a
orvalho; o sol, com palavras de escritura.
claridade e de fogo; o mar, com Com um certo judaísmo – teria eu
palavras de sal e de onda; a chama, com bastante sublinhado isso? – passando
palavras de queimadura e de cinzas. pelo livro e se reconhecendo nele.
«E a carne e a alma e a poeira e a Essas páginas poderiam ter tomado a
relva e o orvalho e a claridade e o sal e forma de um diário. Elas têm parte
a onda e a sombra e o fogo e a cinza? ligada com a vida.
«Relva, orvalho, claridade, sal e Toda reflexão é especulativa.
onda, sombra e fogo, poeira e cinza Interrogamos, em primeiro lugar, o que
estão em todo rogo.» – respondeu ele. inventamos.
Um gravador de nigelas não será E quem sabe se essa invenção não é,
jamais um gravador de palavras. si mesma, verdade; único meio, em todo
Livro para a morte contra o livro de caso, de atingir a verdade?
uma vida. Nada é dado. Tudo está a se apreender
– a se aprender.
(O Percurso, 1985)
... uma vez esse ponto litigioso
esclarecido, instantaneamente se Abordar a partilhar por esta questão:
iluminou o percurso. «O que me pertence?»
Balanço de uma vida, referendado
pela morte.
Tudo o que não tem outra existência
que aquela que lhe outorga a partilha.
Um bem selado é um bem perdido.
Dar, oferecer-se para, em retorno,
receber, de outrem, um dom de igual
importância seria, à primeira vista, a
partilha ideal.
Mas, o Tudo é partilhável?
Um sentimento, um livro, uma vida
podem se partilhar em sua integralidade?
Por outro lado, se não podemos tudo
partilhar, o que resta e restará sempre
fora da partilha? O que, no seio do que
nos pertence, não terá jamais sido nosso?
E se partilhássemos apenas o vital
desejo de partilhar, único meio, para nós,
de escapar à nossa solidão, ao nada?
PROLONGAMENTOS
Parte, corre, foge de mim – dissera um sábio a seu discípulo aturdido. Tu não vês
que estou sujeitado à eternidade cuja insensibilidade é incomensurável?
«Em breve, eu terei, também, um coração de pedra.»
«Há – dissera ele – obras que jamais puderam aceder à luz mas das quais as
palavras disseminadas conservam a nostalgia.
«Com esses melancólicos vocábulos nós refazemos, intuitivamente, um livro de
lamentos.»
«O visível – havia ele notado, uma vez – não é negação do invisível mas sua
perversa expressão.
«O chamado do precipício.»
Altas ou mortas, como o mundo e como a vida, o livro tem, ele também, suas
estações.
A subversão não tem nem começo nem fim. Ela é reversão de alianças e
reviravolta de situação.
A armadilha.
Indivisível invisível!
Ver. Primazia
de nossas escolhas.
Ele dissera que, para Deus, tudo se havia tornado tão límpido, que seu olhar,
desde então, atravessava, sem vê-lo, o universo.
Assim, mais nada, doravante, separa Deus de Deus.
(«E a mim, dissera ela, ó meu amante, tu me
quiseste tão ausente que nem mesmo percebes que teu
olhar, transpassando-me como uma flecha, deixa, a
cada vez, de meu corpo, escorrer um pouco de sangue?
Existo apenas para a dor e ela te exclui.»)
Ela não era mais que perfume de mulher; desejo, para o homem, da amada.
Inefável gozo.
Há, de uma parte, o sonho, em sua inocente realidade; da outra, a dura realidade
sobre a qual desemboca o sonho.
Mas, entre as duas?
E se o voto de pureza de toda pedra fosse apenas seu fantasma do cristal, sua
obsessão do incaptável?
E se esse incaptável fosse tudo o que havíamos esperado captar através do que nos
foi permitido abordar, roçar, apalpar?
E se, de nossos vocábulos escoados, um só, o mais tenaz, tivesse sobrevivido;
lucidez do Nada, ao qual somos arrimados?
Não te espantes de ter, às vezes, sangrado ao longo da estrada. O universo é de
vidro. Teu caminho é forrado de cacos que a luz orna de mil cores emprestadas.
A transparência é riqueza do dia.
Mas, não podemos nos abstrair da noite. A noite nega o que se diferencia.
Jamais, ah jamais, tu não terás sido tão só.
Ligação
«As riquezas que tu tens, ao curso dos anos, acumulado, são apenas as que tu tens,
nos mesmos períodos, dilapidado.
Assim, terás tu passado, da pobreza plena, à pobreza privada de seus bens»,
dissera ele.
Humar o humano, perfume da alma.
«O ponto de vista de Deus – dissera ele – é um ponto. O hebreu fez dele uma
vogal a fim de que, graças a ela, toda escritura tendo-se, doravante, tornado legível, em
cada palavra, o ponto de vista fosse lido.»
A vida de uma ideia é a nossa, na medida em que a ideia nos pertence; mas, como
imaginá-la? E, de outra parte, como não imaginá-la?
O silêncio é o laço.
II
A lei que governa o livro não tem nenhum domínio sobre a voz: ela lhe é mesmo
visceralmente submissa.
A voz do livro é mais antiga que sua lei.
Ele comparava a eternidade a uma lâmpada que ninguém teria acendido e que, por
conseguinte, ninguém virá apagar.
Claridade para quem fechou os olhos; obscuridade, para que os abre.
Um grito. A noite, de repente, não é mais que medo incontrolável; infinito tremor
de estrelas onde cintilam nossos antigos pavores.
Se fosse necessária uma imagem ao segredo, eu optaria por aquela de uma mulher
desvelada; unicamente porque são seus véus, uma vez caídos, que a privam de imagem.
Assim, a figura retornada à sua transparência é substituída por uma ausência
infinita de figura; ó zombador nada, indiferente às súplicas de nossas mãos estendidas;
pouco preocupado com as imprevisíveis consequências decorrentes do que não pôde ter
lugar que, jamais, jamais, terá lugar.
Segredo. Degredo.
Eu estava à minha mesa escrevendo. Apesar da hora tardia, eu não tinha sono
algum. No entanto, parece que, uma ou duas vezes, fechei os olhos. Tudo, ao meu redor,
não era mais tão real.
Lá fora, a noite testava seus horizontes, retificava suas fronteiras.
Subitamente, da penumbra, três homens surgiram. Sem esforço, tanto minha
surpresa era grande, apossaram-se de uma parte de minhas folhas.
Um dissera: «Essas páginas são minhas»; os outros dois visitantes: «Estas são
nossas. Nós quase as escrevemos a todas.»
Eu retorqui: «Quase vocês disseram? Talvez, então, eu seja o autor de algumas
dentre elas? Esta mancha em meu indicador provaria isso.»
Eles retomaram: «Essas folhas nos cabem de direito. Viemos de longe para
recuperá-las. Nós te reenviaremos as que tivermos, após exame, rejeitado.»
«Tantos dias e tantas noites, pensei, quando eles partiram, tantos sacrifícios e
lágrimas e tudo isso para um quase e tudo isso para um talvez?»
De novo, eu estava só, apertando contra meu peito um maço de folhas
amarrotadas, tão brancas, tão bizarramente brancas...
IV
Não há morte alegre, mas há uma alegria que enche de felicidade a morte.
Da letra ao vocábulo, frágil passarela religando a realidade do Nada à irrealidade
do Tudo.
E se essa passarela fosse o arco esboçado de um sonho acima do abismo?
Vulnerável, mais que o tempo, seria a eternidade.
«Se eu te visse, eu saberia donde tu vens. Meus olhos estão apontados sobre
tantos séculos», dissera um sábio.
Dormente eternidade.
Verdade de olhos cerrados.
A vida se desfia. Instante.
Mentira euforizante.
Deus sabe o que tu sabes, mas tu não sabes sempre o que Deus sabe.
E, no entanto, és tu que pensas.
«Tu pensas o mundo como a arenícola pensaria o oceano. Deus pensa a criação
assim como, após ter sobrevoado o deserto, a águia poderia pensar um sílex avistado em
meio às areias», dissera ele.
E acrescentara: «Pensar o nada, assim como o verme dos mortos pensa um
cadáver, seu fétido universo.»
«Dos dez fios trançados, dos quais, a princípio, são formados nossos laços, um só
que permanece na sombra é, geralmente, causa de irremediável ruptura», dissera ele.
«O deserto não é a morte. Ele não é, tampouco, a vida. Ele é a prova de viver; a
prova de força empenhada, pela vida, contra a morte militante.
«... como ele fora, outrora, a prova da liberdade e do amor», havia ele notado.
ROSTOS
Teu rosto reflete tua idade. Se tu envelheces, é porque vives. A idade de teu rosto
é a que a morte dá a ele.
Visível, através de seus traços, é tua vida; perceptível, tua morte, através de suas
rugas.
Beleza do que respira; hediondez do que expira.
A hora virá em que, para sempre, teu rosto se desviará de teu passado.
Ele se oporá impiedosamente a si mesmo.
Toda reserva de presente é excedente repisado de passado.
É necessário muito amor para sobreviver ao amor que em seu paroxismo pode,
sem se desdizer, se transformar em ódio: ódio pelo outro no amor louco por si.
Antecipa. Recapitula. Tua vida é tanto o instante passado quanto o instante que o
ultrapassa.
Não aceleres de nenhum modo o passo. Toda pressa seria funesta. Nem recues.
Luz, ar, voz, tua vida vibra.
Tua alma é vida.
II
O que destroi inspira alívio ou lamento; jamais é causa de pavor. O que teima em
perseverar, ao contrário, acachapa por sua insolência.
Tal o zangão, contra a vidraça, o instante se choca com o infinito e perece das
feridas que ele, a si mesmo, infligiu.
«Somos vis blasfemadores – escrevera um sábio. No Livro de Deus interpolamos
cinicamente fragmentos, a cada vez mais largos, de nossas obras.
«Adjunções – nossos únicos bens – face ao bem – o único – de Deus.»
Sonho com esse menino desconhecido cujo nascimento coincidirá com o instante
de minha morte: um instante para a vida e para o nada.
E fico pensando comigo que o habitaremos, ambos, eternamente; eu, assegurando,
nele, a continuidade do que cessou de ser; ele, extraindo dele sua vida.
Fazer a junção entre a vida e a morte, ó lucidez! Ser esse nó reforçado pelo
instante.
E se a morte fosse seu brusco desnodamento?
Fazer a junção entre o que, por não ser, o é sem reserva, e o que, por querer ser
absolutamente, não é mais.
Ó sono. Ó despertar.
Indecisa é a fronteira.
«Do céu à terra, da base ao cimo, o sono segue, na noite, o cego movimento de
nossos olhos e espreita o momento em que a fadiga se apossará deles para enfim reinar
sobre nossa alma e nosso corpo, doravante à sua mercê.
«Mas, singularmente, é o sono que, ao levantar do dia, nos cede novamente
nossas forças», havia ele escrito.
«Nosso poder, por mais estendido que seja, não é jamais senão acessório,
portanto, negligenciável, face ao de Deus.
«E, no entanto, o poder de Deus cessaria, tão logo, de se exercer sobre o mundo,
se, subitamente, lhe fizesse falta o suporte do nosso», havia costume de dizer um sábio a
seus discípulos.
«Restavam tantas coisas a dizer àquele que havia tomado a firme resolução de se
calar, que ele se abriu, uma manhã, as veias, a fim de dissuadir, por esse gesto
espetacular, toda eventual palavra, de fazer ainda apelo a ele.
O LIVRO LIDO
Pouco antes de sua morte, um sábio tomou a decisão de legar, a cada um de seus
discípulos, uma parte de seu bem mais precioso.
Mas, como lidar com isso quando se trata de um livro?
Ele os reúne, em torno de si, e lhes diz: «Cada livro é cinzas recolhidas do livro
único que nossas palavras abrasadas vêm, periodicamente, engrossar.
«Não há leitura do livro. Lemos apenas sua consumação pelo fogo,
incessantemente reanimado, da criação.
«Uma chama é nossa pluma.»
E ele partilhou, entre eles, equitavelmente, um punhado de pó cinza.
«Um sábio cego, um sábio mudo e um sábio atingido de surdez, formariam juntos
três sábios enfermos, se todos três não fossem, na realidade, senão o mesmo sábio: cego,
face a Deus; mudo, face ao Texto e surdo às seduções de nossas frívolas palavras»,
dissera ele.
Pela primeira vez, ele se sentiu sem peso. Aliviado ao extremo. Desagregado.
Ó cinzas de litigiosa imortalidade, na radiosa imortalidade em cinzas de Deus.
«Quando Deus quis destruir a terra, um grande fogo jorrou do chão, arrastando-a
no incêndio.
– Mas, Deus não está morto.
«Quando Deus quis quebrar o mar, uma gigantesca vaga se destacou das outras e,
em seu furor, o carregou.
– Mas, Deus não está morto.
«Quando Deus partiu, ao abri-lo, o livro – ó desolação – uma paisagem de ruínas
se ofereceu a seus olhos.
«E ele se afogou em suas lágrimas.
– Mas, o homem vive ainda.
«Tal é o milagre», diz ele.
O EXEMPLO
Clarão providencial.
Entre fogo e fogo,
onde passam as andorinhas,
onde a passagem é partilha.
Cercada, em sua área estreita, está a Justiça. O juiz aí morre, por vezes, asfixiado.
Abrir, ao aberto, o vão.
Páginas queimadas
I
Caderneta
A questão da subversão
Pequenos limites ao ilimitado
A folha, como lugar de subversão da palavra e da brancura
Fora-de-tempo, o sonho do livro
Da solidão, como espaço de escritura
A ante-morada
O interdito da representação
Os três «Rogo de inserir» do Livro das Semelhanças, retornados à areia
Do pensamento, como criação e destruição do ser através da palavra
Da palavra-chave, como criação e destruição do ser através do pensamento
A ausência, como origem, ou a paciência da última questão
Areia
II – O LIVRO DO DIÁLOGO (1984)
O começo do livro
Diálogo entre a vida e a morte na palavra
Partilha dos lugares
O ante-diálogo, I
O ante-diálogo, II
O SONHO
A FOICE O FALSO
A LINHA DE DEMARCAÇÃO
A PROFECIA O MEDO
O DIREITO À LIBERDADE
Caderneta, I
A SOBRECARGA
O LIVRO
LENDA
NESSE LIMITE INSUSPEITO
A ANTE-QUESTÃO
A QUESTÃO
A SOLIDÃO DA QUESTÃO
A PALAVRA ‘DEUS’
O DESERTO
ALARGAR OS HORIZONTES DA PALAVRA
O DESPERTAR
A INSÔNIA
Caderneta, II
PÁGINAS REENCONTRADAS
O pós-diálogo
O abismo
O DESERTO, II
O diálogo
Ante-dizer
O estrangeiro
Os começos
O relato
O espírito
O nó e a subversão, I
O escrito A escritura
O Percurso
Método
Primeiro passo
O tempo O escrito
O nó e a subversão, II
Porvir e devir judeus
Judaísmo e escritura
A chave
Os dois limites
O paradoxo
A imagem O escrito
A linha de horizonte
Imagem do exílio
O livro lido, aqui, inicia a leitura do livro
O tormento do livro
O Livro
A herança, I
A herança, II
A herança, III
Selagem e sedição
Adão, ou O nascimento da angústia
Grisado
Língua fonte Língua alvo
O sonho
Três lendas
A parte do bem
O ilimitado O limite
A cartada
Prolongamentos
Ligação
Uso
Rostos
Na dependência do limiar
O livro lido
O exemplo
Páginas queimadas
Aurora