E Se Eu Fosse Puta

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s entada no ônibus a caminho de casa, quase madrugada,
noite vazia e fria, celular em mãos, é assim que ganham
corpo meus relatos, é assim que ganham cor, ganham vida. O
que acabei de viver, tudo ainda fresco na memória, a maquia-
gem borrada, gosto de camisinha na boca, o cheiro do cliente
em meu rosto não importa o que eu faça, o seu cheiro de ho-
mem já tão diferente do meu – serão os hormônios? Palavras-
-chave marcantes vindo à tona assim que me ponho a escrever,
dentes, línguas, dedos, lábios, uma puxando a outra meio que
naturalmente, o texto saindo do encontro delas mas também
desde antes, desde eu já na rua tramando amores, namorando
olhares: travesti que se descobre escritora ao tentar ser puta e
puta ao bancar a escritora.
Não havia luz, só cheiro ali no mato, o matel, e as
muitas, muitas camisinhas usadas pelo chão fazendo clep à
medida que caminhávamos atrás dum cantinho vazio, eu de
salto pisando a terra, ele empurrando a moto. Não havia luz,
mas assim que ele abaixou a cueca houve cheiro, o de suor,
de homem, me invadindo as narinas, dando água na boca. É
ali que a gente trabalha, todas, todas, no escurinho onde der,
atrás do abacateiro, ou dentro do carro do cliente quando há
carro, ou no quarto do motel, pensão, se se dispõem a pagar
a mais. O mais das vezes não, e meu cliente, o primeiríssimo
que tive, veio de moto e dizia só ter mesmo aqueles vinte
reais na carteira (até abriu pra eu ver), um oralzinho só, com
pressa, mas no capricho.
Segunda vez que eu tentava estrear, toda insegura ainda,
sem saber o que esperar de mim, quanto mais dum cliente,
agoniada com o fracasso da primeira vez. Não tem curso ou
livro que te ensine nada, é tudo na marra, tudo na cara e co-
ragem. Mãos que não paravam quietas, olhar fugidio, friozi-
nho percorrendo o corpo não tão coberto quanto deveria, os
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pés doendo, eu aprendendo a equilibrar no salto, gaguejando
preço, medo de não parecer merecer tudo isso que eu dizia
cobrar. “Tudo isso?”, vinte reais, imagina! Bem bicho do mato
mesmo, meu charme talvez, porque em menos de meia hora já
pararam vários e, dessa vez, mesmo gaguejando, acabei fisgan-
do fácil o primeiro. Carne nova atrai atenção, me disseram...
quem diabos era a travesti novata, a de roupas comportadas?
E lá fui eu abrindo o zíper do rapaz com essa habilidade
que esqueci de esquecer, a boca buscando o fundo através do
pau sem nem relar os dentes durante o entra-e-sai, garganta
profunda, engasgando, atravessando a glote. “Calma que assim
eu gozo”, me disse após poucos segundos, em seguida emen-
dando um “que boca!”. Boca de quem faz com gosto, boca de
quem faz feliz mesmo escorrendo lágrimas dos olhos – qual o
espanto quando me vi excitada, qual o espanto quando descu-
bro ereção num membro que já parecia morto? O cheiro forte
mexeu com a minha libido, confesso, nós dois no escuro, eu
lambiscando, engolindo a cabecinha dele por não conseguir
conter a vontade. Camisinha pra quê? Quem nunca? Era o pri-
meiro cliente, primeiro de muitos, tesão de eu não me aguen-
tar, ele pagando antecipado e eu só precisando fazer o que já
sabia de cor dos banheirões e dark rooms da vida. A diferença é
que eu agora era paga, finalmente paga, meus bons dons sendo
reconhecidos. Quanto mesmo? Vinte reais, metade do que vale
esse livro, mas naquele momento isso pouco importava, e nem
hoje importa, até porque o livro só existe hoje por conta desses
vinte reais que eu vali um dia, que eu um dia aceitei.
E ele gostou de mim, do transe em que entrei, meu pri-
meiro oral, eu descobrindo o sexo, o prazer, seis meses depois
de me assumir Amara. Mas não era só gozo o que ele queria,

20 queria beijo também e perguntou se podia e me tirou do transe


pra sentir seu gosto em meus lábios e dizer o quanto me achou

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mulher, o quanto me achou bonita, tudo o que eu precisava
nesses primeiros passos de puta, nesses primeiros de Amara.
Beijei então sua boca de homem, homem que nem de longe
corresponderia aos padrões de beleza vigentes (esse sempre o
meu padrão, padrão algum, quem quiser me querer desde que
anônimo, e por isso achei que me daria bem como puta), beijei
aquele e o outro e o depois dele, todos. E dessa vez não tive
nojo ou mal-estar depois, não me incomodou a boca máscula,
a saliva quente, barba me arranhando o rosto: uma vez travesti,
estar com homens era tão mais simples, tudo fazendo eu me
sentir mais eu, mais mulher.
Meu brinquedo querendo crescer, a calcinha apertada
igual nunca vi antes, eu não entendendo nada, e lá vai o clien-
te procurar meu corpo sob o vestido, abaixar minha calcinha
até a coxa pra ver o que eu tinha endurecendo, apalpar minha
bunda, e nada de tocar meu pau, nadinha, eu divertida com a
ideia. Conduziu minha cabeça então de volta ao seu e daí ao
gozo um instante, eu dando o meu melhor pra segurar a von-
tade de beber: fiz ele tirar na hora H e leitar meu rosto, a boca
entreaberta provando o gostinho de leve no que escorria, ele
deliciado com a cena. Antes de partir, ainda pegou meu núme-
ro e fez questão de ligar ali mesmo pra garantir que era o meu.
Prometeu voltar, nunca mais o vi.
Vinte minutos, nem tanto, e eu já de volta à rua, euforia
gritando, ainda em choque com o que descobri em mim, essa
talvez vocação pra ganhar dindim dando tesão: meus primei-
ros reais na rua, enfim puta, o dever cumprido, emoção bas-
tante pra uma noite só, quase pensando em já voltar pra casa.
Vejo no espelhinho o borrão do lápis ao redor do olho (oral
com gozo na cara, queria o quê?), arrumo o que dá, mas nem
bem voltei e agora me para um carro, o cara querendo o que
puder ter, tudo o que der, com os quinze que ele tem no bolso.
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– Que rosto lindo, feminino, e ainda por cima carinhosa.
Beija também? Ah, então faz por quinze pra mim, vai... vou
cuidar de você, sei o que você precisa.
Gostei dele me paquerando assim, meu cabelo curtinho
ainda, primeiros dias que eu me permitia sair sem peruca, aí
avisei que era quase virgem, dia de estreia na zona, ele ok, e
acabei topando pela experiência. Subi no carro e fomos pro
terreno baldio, eu desde o princípio com a mão em sua virilha
avaliando o material. Pau enorme, uma tora na grossura: exer-
citei todos os músculos da boca pra não deixar ele tocar meus
dentes e ir o mais fundo possível (sem camisinha outra vez,
nem tentei evitar). O cheirinho de recém-lavado no pau, sabo-
nete, foi só a coisa que me frustrou, pois sou doida com suor
de macho. Valeu mesmo assim e me empenhei, mas ele que-
ria mais, me comer, e eu, doida de vontade de descobrir se eu
conseguiria, deixei. Descemos do carro, tudo se desenrolando,
agora eu deitada de costas no capô, minhas pernas enlaçando
seu corpo, a céu aberto, outras fazendo o mesmo a uns tantos
metros dali. Gel, camisinha, dedo, mais gel, força, força e não
era possível, simplesmente não era. Aquilo não foi feito pra cu,
pensei, e ainda descobriria que nem era o maior da noite.
Ele então tira a camisinha entendendo a situação e eu
o chupo e masturbo até ele gozar gostoso meio em meu ros-
to, meio na boca entreaberta, não sem antes ele me chupar,
eu terrivelmente excitada até com isso. Prometi mais largu-
ra a próxima vez e ele jurou voltar. Se despediu com selinho
na boca (esqueci de contar o quanto a gente se beijou, o
quanto ele foi carinhoso) e partiu me deixando ali no escu-
rinho do matel, limpando com retalhos de papel higiênico
o rosto e o cu lambrecados: os quinze reais ele já tinha me

22 dado quando entrei no carro, antes mesmo que eu precisas-


se cobrar. Fácil, fácil.

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O terceiro foi diferente. Nos conhecemos no dia ante-
rior, ele caidinho pelo meu jeitão comportado (a travesti “cren-
te”, apelido que me deu por conta das minhas roupas), aí pega
meu número e liga umas quinze vezes até conseguir me en-
contrar. Desesperado por mim e olha que nem fiz por onde.
Tive que desligar o telefone enquanto atendia os outros dois,
tal a insistência do rapaz. Me livrei do segundo, um tapa na
maquiagem e corri até onde esse terceiro estava, uma casa que
alugava quartos, espécie improvisada de motel, ele com uma
cerveja à mão. Me ofereceu um gole da própria lata, recusei,
ele quis começar um diálogo, saber do meu namorado (?!), se
não fica puto com meu trabalho (?!), primeiro dia na zona,
eu virjona de tudo dando trela, ele aproveitando pra me fazer
um pedido mambembe de namoro, o primeiro que recebi, “ai,
mas acabamos de nos conhecer”, enrolação e mais enrolação,
até que perguntei irritada se aquilo era mesmo um programa.
– Pode ser sim, quer ir pro quarto já?
– Seria bom, mas nem combinamos valores…
– Você cobra quanto?
– Quarenta.
Com ele fiz a linha romance, como dizem na rua, e
a coisa durou mais de hora, único cliente de que ainda me
lembro o nome (saímos várias vezes depois), único que ja-
mais regateou preço ou desmereceu meu trabalho. Tirou
minha roupa assim que girou a chave e já veio pra cima de
mim, bafão de cerveja gritando, mas nem liguei, porque era
ali naqueles braços viris de pedreiro que eu ia aprendendo a
me sentir mulher, a abraçar, beijar como mulher. Sua língua
me fazia sua, invadia a minha boca sem precisar permissão,
mãos ásperas correndo meu corpo, eu quietinha deixando
ele se sentir no controle, gostando desse gozo até então tão
desconhecido pra mim.
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Deitados na cama, braços e pernas se atabalhoavam,
tudo ao natural, livre de hierarquias, quem manda, quem obe-
dece, sem premeditação ou vontade de acabar mais rápido.
Não quis saber do meu pau em momento algum, mesmo ele
duro, mas só do que em mim era fêmea: os peitos, que ele aca-
rinhava com boca e mão sôfregas, daí a bunda também, com
fervor, e o cuzinho apertado, onde ele passeava os dedos. Fui
junto apalpando o volume no jeans dele, tremor pelo corpo
inteiro só de imaginar aquela neca dentro de mim, já que não
dei nem conta da menorzinha antes.
Tadinha, sofri, mas, antes de sofrer, tesão, inimaginá-
vel tesão sentindo o cheiro de homem naquele pau, vendo ele
brincar com os limites da minha garganta, olhos lacrimejando,
nariz escorrendo, todo um cuidado pra não devolver o almo-
ço: tem como ser mais feliz? Por mim a gente ficava até o fim
nessa felicidade (dia seguinte a dor de garganta reinou lem-
brando o tanto que abusei do oral), mas lógico que ele queria
mais. Avisei que seria a primeira em mais de um ano, desejo e
medo em meus olhos, ele prometendo ir com calma pra eu não
me assustar e lá fomos nós.
Fiquei de bruços na cama e ele veio de língua no meu
cu, gostinho de KY da tentativa frustrada de dar pro segundo
cliente talvez fazendo ele acreditar que eu fosse uma bela duma
mentirosa (acham que dá tempo de tomar banho, acham que
eu ganho pra isso?), mas se foi o que ele pensou, nem tchum,
porque parecia se divertir horrores, e eu não menos. Depois de
se fartar com a linguona, veio cheio de graça querendo esfre-
gar sem capuz a piroca no meu edi, pedindo o famoso “na por-
tinha só”, “só um pouquinho dentro”, vocês sabem, homens.
Um enérgico ninanão de resposta e ele nem ousou mais.

24 Abri então o sachê de lubrificante do postinho, besuntei


bem a área onde ele adentraria e fui encaixar no bilau a cami-

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sinha que me deram grátis junto do sachê. Quem disse que
cabia! Chamei a outra de tora, mas foi essa a primeira na vida
que vi não caber no capuz… imagina o desespero e justo na es-
treia, eu toda virgem. Já acostumado talvez, ele de pronto pega
a bendita com dois dedos de cada lado da argola, esgarça bem
a boca dela e vai desenrolando ao longo do espeto. E eu vendo
aquela cena, minha cara, nossa… ou a camisinha arrebenta ou
arrebentam minhas pregas, não tinha opção fora as duas.
Qual o espanto quando um ano e meio depois descubro
que a dor que senti todas as vezes que dei depois dessa tinha a
ver com uma fissura anal? Demorei pra me dar conta de que eu
precisava de um médico e fui deixando pau atrás do outro ir só
piorando a coisa por achar que era frescura minha ou falta de
dedicação. Dois meses de pomada cara pra tudo ficar melhor,
três aplicações diárias, mas quase acabei foi na mesa de cirurgia.
Por pouco. Como eu disse antes, não tem manual ou curso que te
ensine nada, nem médico sabe direito o que recomendar.
Mas, voltando à cena, ponho-me frango assado na cama
e chamo ele pra cima de mim, luz somente a que entrava da rua
pela janela ajudando a distinguir os corpos. E ele vem, encai-
xa a cabecinha atrás e começa a forçação, negociando comigo
cada centímetro do doloroso avanço. Várias, várias posições,
todas doendo horrivelmente, mas talvez laceada já das investi-
das do anterior, ele uma hora enfim entra. E quando entrou, aí
sim, ai, passou a meter com gosto, eu simplesmente deixando,
toma meu corpo, vai, faz o que quiser, querendo provar pra
mim mesma que eu dava conta: tesão, digo, ereção já não ha-
via, só dor e desejo de superação, o que não era pouco.
Uma hora ele percebe o martírio e para com a pene-
tração, tirando a camisinha pra que eu voltasse a me dedicar
àquilo em que sou melhor, chupar, engolir. Ideia mágica, fiquei
até outra vez excitada (agora também, reescrevendo a histó-
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ria), e entre boquete e punheta acabou se esporrando em meu
rosto, eu brincando de lambiscar o leite com a pontinha da lín-
gua – ai de mim! Começamos a nos vestir, ele todo carinhoso
ainda, eu ainda anestesiada, bem sem jeito buscando oportu-
nidade certa de cobrar, quando ele então me oferece por livre e
espontânea vontade a nota de cinquenta e, ao me ver fingindo
buscar troco, faz um gesto pra eu não me preocupar com isso.
Nos despedimos, saí pra contar ao mundo.
Excitada com cada um dos três, pouco importava grana
ou rosto. Dar prazer foi meu destino amargo, dar, mas também
receber. E se sentir prazer naquilo com que se trabalha for cri-
tério pra escolher profissão, a minha já está escolhida. E se eu
fosse puta? Bom, agora eu era.

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