Nas Teias Da Fortuna - Patricia Melo Sampaio
Nas Teias Da Fortuna - Patricia Melo Sampaio
Nas Teias Da Fortuna - Patricia Melo Sampaio
UFRN - CERES
http://www.seol.com.br/mneme/
[email protected]
Professora Adjunta do Departamento de História da
Universidade Federal do Amazonas,
Mestre e Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense
Resumo
A presença de escravos africanos na Amazônia, tradicionalmente, é tratada como acessória e pouco
significativa pela historiografia. Analisando um conjunto de fontes seriadas (inventários post-mortem
e escrituras públicas) de Manaus, capital da Província do Amazonas no século XIX, o artigo busca
iluminar o lugar desses sujeitos sociais no espaço da produção e, principalmente, seu papel na
configuração das fortunas da cidade no curso do Oitocentos.
Era madrugada alta. Duas silhuetas deslizavam silenciosamente pelas ruas. Passo nervoso, respiração
entrecortada, voz em sussurro. Em breve, o sol nasceria. João se preocupava em esconder o rosto e
Alexandrina, com seus olhos grandes, prestava atenção ao caminho e às sombras.
O caminho que seguiriam era longo mas, aparentemente, seguro. Afinal, eles não se atreveriam a
atravessar floresta e rios sem nenhuma direção, sem destino certo. A ansiedade era grande, mas era quase
impossível não imaginar a incredulidade, seguida da fúria de Pereira Carneiro quando o dia amanhecesse.
Fugidos. Livres.
Alexandrina e João Mulato eram jovens. De altura mediana, olhos pardos, dentes falhos e pouco falante,
João tinha gravada no rosto a palavra miaçua e, segundo seu dono só soltava a língua quando estava ébrio.
Alexandrina, por sua vez, era alta, de fala e passos descansados e andava jogando o corpo para os lados.
Certamente, não naquela noite.i
Afinal, o dia 26 de março de 1856 amanheceu em Belém, capital da Província do Pará, e o comerciante
Pereira Carneiro, dez dias depois de tentativas frustradas, foi aos jornais tentar recuperar seus escravos.
Fez publicar seu anúncio também no jornal que circulava em Manaus, capital da vizinha Província do
Amazonas e nele, além de descrevê-los, o proprietário assegurou que João Mulato tinha fugido para o Rio
Negro onde era muito conhecido porque tinha sido criado lá, quando era escravo do Tenente Cordeiro.ii
Não foi possível descobrir o que aconteceu com João e Alexandrina. Preferimos acreditar que não foram
capturados, que encontraram uma rota segura e um outro lugar para viver. De qualquer maneira, o anúncio
chamou a atenção e colocou várias questões. Além das características físicas de João Mulato, descrito
como “quase tapuio”, do uso da marca em nheengatu no seu rosto, a longa rota estabelecida talvez seja a
mais inquietante. Difícil não se perguntar porque ele voltou para onde se sabia e se podia “ler” em seu rosto
que era escravo. Por outro lado, é possível que seu dono estivesse errado e João tenha tomado o caminho
de um dos muitos quilombos que existiam no Pará, mas essa é trilha de outro trabalho.iii
De todo modo, os dados disponíveis eram insuficientes para acompanhar a trajetória do casal e assim
resolvemos tentar compreender algumas questões relativas à escravidão na região amazônica, em certa
medida, respeitando a possível rota de fuga de João e Alexandrina. Afinal, o que significava ser escravo e
ser proprietário de escravos na Província do Amazonas e, mais especialmente na cidade de Manaus, sua
capital, no século XIX?
Esse quadro, segundo Almeida, coloca os limites da extensão da política escravista da Coroa Portuguesa
na região. Somente a partir da segunda metade do século XVIII, é que se verifica um aumento importante
do número de escravos negros introduzidos na Amazônia, já dentro do contexto das medidas pombalinas,
através da mediação da Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão (1755-1778).
O número reduzido de escravos africanos e seu impacto modesto nos quadros da produção econômica
regional configuram algumas das ressalvas que cercam a presença africana na região amazônica que assim
será tratada pela historiografia local, inclusive, durante o século XIX. Apesar da região estar inserida em um
império escravista, o tratamento dado aos escravos continuou a ser acessório, limitando-se a registrar essa
presença reduzida e importância limitada, especialmente na Província do Amazonas. v
Em artigo recente sobre a presença negra na Amazônia de meados do XIX, Luís Balkar Pinheiro aponta
para as limitações de abordagem encontradas na produção historiográfica e conclui que um de seus
principais desdobramentos é o fato de que “o ocultamento da presença negra na Amazônia continua efetivo,
mantendo incólume uma das mais graves distorções na escrita da história da região.”vi
Certamente, exceções importantes a esse conjunto marcado pelo silêncio e pelo caráter fragmentário são
os trabalhos de Manuel Nunes Pereira, Vicente Salles, Anaíza Vergolino-Henry, Arthur Napoleão Figueiredo
e Colin MacLachlan. Mais recentes, fundamental não esquecer as alentadas pesquisas de Rosa Acevedo,
Eurípedes Funes, Flávio Gomes e José Bezerra Neto.vii
Por outro lado, não restam dúvidas de que o número de escravos disponíveis na região só irá sofrer
aumento significativo quando a Companhia de Comércio pombalina iniciou suas atividades no tráfico
atlântico e, da mesma forma, não há o que questionar quanto à predominância do uso da mão-de-obra dos
índios no decorrer do século XVIII. Ainda assim, é fundamental que se reconheça que a presença crescente
de africanos no Pará ativa e coloca em movimento questões mais amplas que não podem ter suas
dimensões avaliadas apenas em função do número de escravos disponíveis porque, o que está em jogo, é
a própria montagem e reiteração de uma sociedade escravista cuja lógica de reprodução não se limita ao
número de almas disponíveis nos plantéis, mas antes se traduz na reiteração de relações de subordinação
e poder que dão vida ao próprio sistema. Isso, sem dúvida, é uma realidade importante que deve ser
adequadamente considerada. Para além dessa questão, a recuperação historiográfica das práticas de
insurgência adotadas pelos escravos no Pará, iluminam outras faces dessa sociedade carregada de
tensões, e, no limite, vêm demonstrar mais uma vez que as avaliações sobre a escravidão não podem ser
balizadas apenas pela leitura de números modestos.
Mas antes de cair nas malhas da escravidão é necessário, para os fins deste texto, entender os caminhos
da Fortuna e, em particular, as formas pela quais se construiu a riqueza na região no século XIX. Com essa
finalidade, recorreu-se a 233 inventários post-mortem da 2ª Vara de Família do Estado do Amazonas (1840-
1890) e a 682 escrituras públicas de compra/venda e hipotecas do Cartório de 1º Ofício de Manaus,
referentes ao mesmo período. viii
Entre os primeiros resultados surpreendentes dos inventários, está a prioridade na concentração dos ativos
em escravos até meados da década de 1860, contrariando, em princípio, a historiografia insistia no caráter
acessório da mão-de-obra escrava, corroborada inclusive pelo fato da abolição no Amazonas ter ocorrido
ainda em 1884. ix
Como já se indicou, eram escassas leituras quanto ao lugar dos escravos na em uma sociedade que
sobrevivia, majoritariamente, do uso do trabalho indígena. Este era, possivelmente, um outro fator que
terminava por contribuir para o obscurecimento dos escravos no espaço urbano de Manaus e seus
arredores. A forte presença indígena desviava a discussão do fator trabalho para outra direção, fazendo-nos
esquecer dos negros de ganho, das “vendedeiras”, dos oficiais especializados (pedreiros, carpinteiros,
sapateiros, lavradores), dos serviçais domésticos. Isto é, praticamente fez-nos esquecer que, apesar de
área “marginal” do Império Brasileiro como já quis a historiografia, a região também era escravista.
Os inventários constituíram evidências que possibilitaram um dimensionamento mais correto do lugar
desses sujeitos. Além de iluminar a vida desses homens e mulheres, ajudaram na compreensão do próprio
significado da propriedade escrava na região porque sua importância não residia na quantidade de africanos
que aqui existiam, mas sim na forma pela qual faziam parte das fortunas da cidade. É evidente que isto não
altera o fato de que a economia da região estava fundada no uso da mão-de-obra indígena e que dela
dependeu por praticamente todo o século XIX, reforçando o caráter não capitalista e não exclusivamente
escravista das relações econômicas na região.
Contudo, diante dos novos dados, a questão da mão-de-obra escrava não parecia ser tão simples como
fazia crer a historiografia; apesar de confirmar argumentos conhecidos quanto ao número de cativos
disponíveis, os números revelaram uma população escrava plenamente inserida em um intrincado
mecanismo de acumulação mercantil que subsistiu na região por todo o século XIX, para além da precoce
abolição em 1884. É essa complexidade que vamos tentar compreender.
Uma primeira constatação que emergiu do estudo da composição das fortunas de Manaus no século XIX foi
sua evidente restrição de capitais. Isso pode se tornar mais sugestivo quando comparamos com o estudo
realizado por João Fragoso para o Rio de Janeiro, quando uma única fortuna registrada naquele trabalho, -
o caso do negociante Marcolino Antônio Leite, possuidor de um monte-mor de 306:568$261 réis -, pode
corresponder a aproximadamente um terço da fortuna líquida total registrada em todo o período que
trabalhamos.
Uma segunda evidência característica é a alta preponderância das dívidas passivas comprometendo entre
25 e 40 % dos ativos registrados no ano. O detalhamento da composição das fortunas pode demonstrar
graduais modificações nos padrões de investimento dos inventariados, porém persistem os altos níveis de
endividamento que chega a alcançar o índice de 42,7 % da riqueza declarada em algumas faixas de fortuna.
1838-1844 14 8.96 5.70 15.91 4.46 3.02 0.90 42.42 18.63 4.548,21 2.00 6.42
1845-1849 28 12.10 12.86 32.44 8.75 3.46 1.19 25.68 3.52 5.716,55 2.52 38.94
1850-1854 24 14.43 11.60 22.13 7.45 2.46 1.93 37.41 2.59 10.922,87 4.81 33.95
1855-1859 24 19.41 13.86 26.59 6.31 2.55 1.65 20.45 9.18 12.525,43 5.51 30.07
1860-1864 14 34.61 6.87 24.50 3.95 1.71 0.51 21.10 6.75 19.007,03 8.36 10.68
1865-1869 18 41.79 4.82 24.50 2.08 1.12 0.65 22.67 2.37 14.026,80 6.17 28.55
1870-1874 28 29.73 7.27 34.79 12.35 1.11 0.56 10.55 3.64 40.049,11 17.62 27.58
1875-1879 20 50.56 4.46 28.81 5.73 1.78 0.30 7.03 1.33 21.979,40 9.67 42.74
1880-1884 12 41.39 4.27 26.66 16.09 2.46 0.17 6.39 2.56 13.621,98 5.99 34.73
1885-1889 15 38.15 3.63 35.98 6.78 1.44 0.11 0.00 13.92 46.071,75 20.25 28.00
1890-1894 26 52.10 2.03 20.26 14.45 1.34 0.24 0.00 9.59 38.868,86 17.1 15.16
Uma análise da composição dos ativos agregada à variável profissão indica a predominância dos setores
ligados ao comércio que detinham, para todo o período analisado, 47,36 % dos ativos registrados,
referendando as conclusões já existentes quanto à participação do setor na economia da região.
Os maiores índices de ativos registrados são aqueles relativos aos escravos, pelo menos até os anos de
1850-1854. A partir daí, se agregarmos os valores percentuais registrados em Comércio e Dívidas Ativas,
estes responderão pela maior participação percentual pelo menos até as décadas de 1886-1869, quando os
índices relativos a Prédios Urbanos superam aqueles relativos ao capital usurário e mercantil. Na verdade,
a preponderância destes índices é significativa, chegando a responder por até 45 % da riqueza total
indicando que estamos diante de fortes mecanismos de acumulação mercantil.
O decréscimo da participação dos escravos na composição das fortunas é bastante evidente entre as
décadas de 1860-1884. A participação de Dinheiro e Jóias é pequena durante todo o período - apenas nas
décadas de 1885-1889, há um registro superior a 13 %.
Os dados relativos ao aumento de investimentos em Prédios Urbanos são bastante sugestivos porque
demonstram que o crescimento da cidade não está exclusivamente relacionado, como querem alguns
setores da historiografia, ao período de expansão comercial da borracha. Os índices são, no mínimo,
intrigantes ao indicar um movimento ascendente para os investimentos imobiliários na cidade já a partir das
décadas de 1845-1849.
A pequena participação dos Bens Rurais na composição destes ativos remete-nos para a reafirmação
daquilo que já indicamos como transferência de capital da agricultura para o setor mercantil e também
reforça a questão relativa à necessidade de uma pequena inversão de capital para a reprodução da
produção agrícola. Somente nas décadas de 1870-1874 e 1880-1884, quando contamos com o registro de
inventários de proprietários de seringais, é que estes índices ultrapassam os 10 %.
Em linhas gerais, a composição das fortunas de Manaus neste período indica que estamos diante de uma
sociedade marcada pelo predomínio do capital mercantil, com uma frágil divisão social do trabalho que pode
ser observada pela inexistência de registro de atividades manufatureiras, com uma circulação monetária
restrita, sugerindo uma economia regional com fortes traços não-capitalistas. xiv
Para além destas preocupações, ficou claro que esta sociedade é caracterizada pela desigualdade na
pobreza. As diferenças sociais são bastante acentuadas configurando a existência de uma hierarquia social
onde os possuidores dispõem de mecanismos de controle social muito evidentes. Contudo, é ainda mais
interessante observar as diferenças internas que se produzem no interior desse grupo possuidor onde os
elementos que aparentemente garantem a reprodução do sistema e a reiteração de uma ordem social
hierarquizada não estão limitados ou restritos a questões de natureza puramente econômica.
Tabela 02: Distribuição da Riqueza Inventariada em Manaus por faixas de fortunas : 1840-1890
Fortunas £ A B A B A B A B A B A B
0 - 200 69.05 27.84 47.91 8.79 28.13 3.25 20.84 1.48 7.40 0.25 7.70 0.61
201- 500 21.43 30.11 20.83 14.23 18.75 6.03 27.08 6.39 29.63 3.99 15.38 3.69
501-1.000 4.76 13.04 12.50 18.03 31.25 22.79 16.67 9.07 14.81 5.56 30.77 16.11
1.001-5.000 4.76 29.00 18.75 58.95 18.75 47.62 29.17 51.70 37.04 36.8 42.31 57.43
5.001-10.000 0.00 0.00 0.00 0.00 3.13 20.30 6.25 31.36 7.41 27.19 3.85 22.17
+ de 10.000 0.00 0.00 0.00 0.00 0.00 0.00 0.00 0.00 3.70 26.22 0.00 0.00
Total de 100.0 100.0 100.0 100.0 100.0 100.0 100.0 100.0 100.0 100.0 100.0 100.0
Inventários 42 48 32 48 27 26
13 - 45 Anos 52,1
+ de 45 Anos 10,4
Aproximadamente 60,5 % dos inventários não possuem escravos o que vem confirmar a visualização de
uma sociedade que possui formas de produção não-capitalistas, mas também não inteiramente escravistas.
Comparando com as informações do final do século XVIII para a Capitania de São Paulo, verificamos que
existe uma forte proximidade entre esses indicadores.xv
O quadro que se delineia para o final do século XVIII naquela Capitania é caracterizado pelo predomínio de
uma produção de forte base familiar, com a complementação do trabalho cativo. Desta forma, estaríamos,
no dizer de Fragoso, diante de uma realidade que sugere a presença de unidades camponesas, como
constata a partir da análise da distribuição de escravos por fogos em São Paulo, onde os dados indicam que
72,7 % deles não possuíam escravos e 41,2 % dos lavradores/senhores possuíam de um a dois cativos,
correspondendo a pouco mais de 11 % dos escravos.
Guardadas as devidas proporções de tempo, espaço e fontes, os números aqui analisados não se
distanciam muito dessa mesma conformação, como podemos observar a partir dos dados da tabela 04.
01 – 04 15,0 % 54,5 %
05 – 19 60,1% 39,7 %
A distribuição de escravos por proprietário, em 1869, indica que 75,5 % dos proprietários possuem de 1 a 4
escravos, representando 35,5 % dos cativos. O controle da maioria dos cativos está nas faixas posteriores;
agregando-se os valores da segunda e terceira faixa, significa dizer que mais de 45 % dos inventários
controlam 84, 2 % dos cativos registrados. Os dados da Capitania de São Paulo indicam que, naquela
Capitania, 28,2 % dos senhores controlavam praticamente 65 % da mão de obra cativa.
Chamamos a atenção para o fato de que, também na província do Amazonas, o setor que detinha o maior
número de cativos estava ligado à agricultura. Esta constatação não poderia deixar de ser agregada à forte
possibilidade de existir, no contexto do setor agrícola, mecanismos de acumulação que lhe permitia o
acesso ao mercado para adquirir escravos. Essa situação persiste até meados da década de 1850
indicando a possibilidade de uma capacidade relativa do setor agrícola em gerar renda suficiente para
investir em uma mercadoria de alto custo que, contraditoriamente, não seria empregada na produção
agrícola. A existência de vinculações com o mercado são evidenciadas quando analisamos a composição
dos ativos dos senhores de escravos.
O predomínio do capital mercantil e usurário é uma das características desta sociedade desigual e
hierarquizada, mas é no detalhamento e na distribuição desta riqueza pelos grupos sócio-profissionais que
podemos obter elementos de concretude para uma análise mais próxima de sua diversidade.
Nas duas décadas posteriores, o controle dos comerciantes é ainda mais visível. Em 1860, chegam a deter
77,5 % das fortunas registradas e 46,4 % dos escravos. Em 1870, representam 50,4 % da fortuna e
possuem 48,8 % dos cativos. Nesse mesmo período, caem os percentuais de propriedade escrava entre os
agricultores de 25 % para 13 %.
Nos anos de 1880, o quadro até aqui traçado sofre alterações interessantes. Desde a década de 1870,
começam a surgir os índices de participação daqueles inventários ligados a atividades extrativas
(proprietários de seringais declarados). Em 1880, este setor aparece concentrando 56,2 % dos escravos
declarados nos inventários, seguindo-se os agricultores, possuidores de 37,5 % dos escravos, enquanto os
comerciantes possuem apenas 6,2 % dos cativos.
O quadro delineado nos anos 80 sugere que o grupo ligado basicamente (ainda que não de forma
exclusiva) às atividades extrativistas, poderia ter utilizado a propriedade escrava como forma acessória de
investimento de capital. Por outro lado, os comerciantes já estão avançando na diversificação destes
investimentos, abandonando a inversão de capitais em escravos negros e dirigindo-se para outros setores
como, por exemplo, a aquisição de prédios urbanos.
Os dados das escrituras públicas apontam na mesma direção. A predominância dos bens urbanos e dos
cativos tanto nas escrituras de compra/venda quanto nas hipotecas configurou um determinado padrão. Nas
operações de compra/venda, os bens urbanos respondem por 62 % e os negócios envolvendo cativos, 23
%. Nas hipotecas, os bens urbanos significam 61 %, enquanto as hipotecas de escravos representam 14 %.
Isso significa que, para um homem do XIX, possuir esses bens era condição fundamental para habilitar-se a
freqüentar o mercado e também fazer frente às suas dívidas. Essa última possibilidade é uma questão
crucial na região onde persistem altos índices de endividamento conforme já apontado. xvi
A valorização da propriedade escrava é uma tendência importante, verificada especialmente entre 1861 -
1870. Nas décadas seguintes, uma tendência de queda sugere tanto a proximidade e intensificação dos
movimentos abolicionistas quanto uma modificação/reorientação das prioridades de investimento dos
proprietários.
Estabelecendo uma análise comparativa entre os ativos dos inventários de proprietários e de não-
proprietários de escravos, revela-se a direção da lenta, mas definitiva mudança que esses senhores de
almas imprimiram aos seus padrões de investimento. Entre os anos de 1838 a 1844, configuram-se como
um grupo que possui 44,8 % dos seus ativos em escravos, ligados ao comércio (mas ainda não
estreitamente), com um pequeno investimento em prédios urbanos, com uma certa liquidez devido à
disponibilidade de moeda registrada neste período. Os Bens rurais, apesar de referenciarem as atividades
produtivas da maior parte deste grupo, representa apenas 4,72 %. Os seus níveis de endividamento são
inferiores ao grupo que não possui escravos neste mesmo período.
Entre 1845 e 1849, verifica-se o crescimento dos índices relativos a Prédios Urbanos, Dívidas Ativas e
Comércio. Os escravos representam ainda parte significativa destas fortunas com 33,3 %. Cresce também
o índice de Dívidas Passivas, alcançando 28 %. Entre os não-proprietários, as Dívidas Ativas
representam 42,7 % da fortuna e o endividamento alcança o índice assustador de 72%.
Como já indicamos, a tendência para o investimento em Prédios Urbanos é acentuada nas décadas
posteriores, crescendo paralelamente às Dividas Ativas e aos índices de participação do Comércio. Estes
dados corroboram as considerações anteriores, indicando a forte presença e participação do setor ligado ao
capital mercantil.
Comparando a persistência dos altos níveis de endividamento dos não-proprietários de escravos com
aqueles registrados entre os proprietários, acreditamos que essa relação desigual é mais um indicador, não
só da transferência de capital da agricultura para o setor mercantil, mas também da desigualdade social
existente na região, apontando para a existência de outros mecanismos de acumulação: o recurso à usura e
ao endividamento progressivo, criando aquilo que foi denominado de mercado cativo.
Além de controlarem a maior parte dos cativos, os agricultores detêm também a maior média de escravos
por inventário: 4,8 indivíduos. A média de investimento que os agricultores realizam em mão-de-obra
escrava chegava até a um terço do seu monte-mor. Entre os comerciantes, estes valores são bem mais
baixos; possuem uma média de 2,6 escravos e investem em média 12,3% dos seus ativos na sua aquisição.
Uma conclusão se impõe aqui: o setor agrícola conseguia gerar renda suficiente para fazer frente à
aquisição de uma mercadoria bastante cara e que não seria empregada diretamente na produção agrícola:
o Censo de 1872 indica que menos de um quarto da população escrava estava vinculada à lavoura.
Estas considerações indicam um dos caminhos pelos quais o capital mercantil conseguia apropriar-se de
parcela do excedente produzido pelo setor agrícola, devido ao próprio caráter não-capitalista das formas de
produção utilizadas na região que não se reproduziam inteiramente via mercado.
Lavradores 22.7
Manuais/Mecânicas 6.9
Criados/Jornaleiros 3.1
Encontramos ainda situações onde são declaradas as profissões dos escravos e que podem abranger
desde os serviços urbanos especializados (sapateiro, ferreiro, carpinteiro, marceneiro, calafate, alfaiate) até
sua ocupação na lavoura.
Os inventários também revelam a importância do recurso ao aluguel de cativos como forma de obter renda.
Em 1862, o inventário de Alexandrino Magno Taveira do Pau Brasilxvii registra entre seus ativos, junto aos
aluguéis de suas casas na cidade, o recebimento de aluguéis de seus escravos. No inventário de João
Fleury da Silva (1856), também surgem nos autos de prestação de contas do tutor dos herdeiros, o
recebimento de aluguéis dos cativos que realizavam atividades especializadas.
Além dos aluguéis, os escravos também podiam ser empregados como “negros de ganho”, vendedores de
produtos variados nas ruas da cidade, como registram alguns viajantes. A partir do final da década de 1860,
as referências a estas “vendedeiras” começam a surgir com mais freqüência nos inventários; no caso de
Antônia Joaquina do Carmo (1874)xviii, viúva de um comerciante e proprietário de sítio, a maior parte das
rendas domésticas provêm do aluguel de vários de seus 24 escravos e das vendas realizadas. No inventário
de Angélica Maria Joaquina (1867), aparentemente, todos os rendimentos domésticos eram oriundos do
aluguel de suas escravas.
Os dados de inventários e escrituras públicas permitem assegurar que a importância da propriedade
escrava na região possui direção definida: indica não só a capacidade de acumulação e reinvestimento do
setor que a detém mas também informa a própria possibilidade de qualificar-se no mercado para adquirir
crédito, credibilidade e status.
Essa dimensão permite recolocar a questão da escravidão em áreas não majoritariamente escravistas,
relativizando os dados numéricos e mesmo a inserção produtiva direta dessa população. É possível tratar a
questão adotando o próprio sistema escravista como linha de força e pensar a propriedade escrava não
apenas em termos econômicos, mas também do ponto de vista da lógica interna do sistema que permite a
propriedade de almas e que, através dela, reitera suas relações de desigualdade.
Estas são apenas algumas das possibilidades de releitura que os inventários proporcionam com relação à
presença dos africana na Província do Amazonas. Os dados que levantamos deixam evidente que não é
possível referendar totalmente a avaliação tradicional quanto à sua insignificante presença no contexto da
economia desta área.
Escravos da “Cidade Sagrada” ou pequenas notas sobre o quase final dessas histórias
A abolição da escravidão na Província do Amazonas ocorreu, aparentemente sem maiores tensões, em
1884. A partir de 1866, após aprovação da Assembléia Legislativa Provincial, entra em vigor um termo
aditivo ao orçamento que reservava uma quantia anual de dez contos de réis para realizar a emancipação
progressiva, dando prioridade para a libertação das crianças.
Até 1870, surgiram iniciativas semelhantes e, neste mesmo ano, fundou-se a Sociedade Emancipadora
Amazonense, composta pelos melhores representantes da sociedade local, com a finalidade de agilizar a
libertação dos escravos da Província. Em abril de 1871, a Assembléia Legislativa aprovava a sua “Lei do
Ventre Livre”. Em abril de 1884, aprovou-se uma nova lei criando a verba de 300 contos de réis para
consumar a liberdade e, em maio de 1884, com a libertação dos últimos escravos, Manaus transformava-se,
na palavra emocionada do Presidente da Província, em uma “cidade sagrada”. Ao ler o discurso do
presidente Souto não pude deixar de perguntar: Será que um certo casal assistiu cerimônias oficiais da
liberdade? Se João e Alexandrina estivessem em Manaus naquela manhã, teriam 64 e 56 anos
respectivamente.xix
Ao que tudo indica, a libertação dos escravos foi sendo construída, de forma progressiva, com a
colaboração dos proprietários que, naquele momento, já haviam modificado substantivamente seus
investimentos, formando sociedades e Clubs emancipadores, escrevendo artigos virulentos contra a
escravidão na grande imprensa, incentivando as ações abolicionistas da maçonaria, fundando jornais
dedicados à causa e, em alguns casos, abrindo mão das indenizações garantidas pela leixx.
Evidentemente, a abolição não coloca um ponto final nas nossas histórias de escravidão, mas para esse
texto, considerei importante tomá-la como ponto “quase final” considerando, principalmente as estratégias
do setor mercantil e sua ligação com o processo de acumulação. Nesse aspecto, o fim legal da escravidão é
um marco importante porque já não é mais possível negociar almas, talvez só consciências como se dizia
em Manaus, em finais do século XIX.
As informações que obtivemos até aqui indicaram que, embora sem uma participação percentual
significativa, os escravos representaram, além de um mecanismo de obtenção de renda para sustentação
de seus senhores, uma forma de investimento de capital no contexto de uma sociedade pobre e desigual
onde as opções de investimento eram restritas.
Em alguns casos, a propriedade escrava pode mesmo ser interpretada como um mecanismo de poupança,
de maneira análoga ao investimento realizado na aquisição de jóias em outras regiões do país. É importante
não esquecer aqui um importante aspecto ligado à manutenção de um certo status social que era parte
inerente à lógica de um império escravista.
As relações escravistas persistiram na região ainda que não tenham chegado a constituir-se em seu eixo
fundamental para a obtenção de mão-de-obra. Para além de sua persistência enquanto relação de
produção, está em jogo a própria reiteração de uma hierarquia social excludente que se reproduz, também,
via diferenciação étnica, reservando aos negros, índios, mestiços e tapuios, o papel de cidadãos de 3ª
classe, em uma sociedade profundamente marcada pela pobreza, pela desigualdade e pelas relações de
dependência.
A visualização da população cativa, através dos inventários e escrituras públicas, também serviu para
indicar as possibilidades de acumulação existentes no interior do setor agrícola, antes considerado como
incapaz de gerar renda suficiente para sua própria reprodução interna e, aqui, aparece como o setor que
mais investe na aquisição de uma mão-de-obra bastante cara e que não era empregada totalmente na
produção agrícola.
A realidade indicada pelos inventários, além de esclarecer certas lacunas da historiografia regional, vem ao
encontro dos resultados dos trabalhos mais recentes, realizados dentro desta perspectiva na produção
historiográfica brasileira contemporânea. Aponta para a existência de mercados não-capitalistas marcados
pelo predomínio do capital mercantil que coexistem com formas camponesas de organização da produção
ao lado do escravismo. Por fim, demonstra também que, mesmo uma área periférica do Império Brasileiro
como já foi definida a Amazônia, possuía articulações internas ainda marcadas pelo caráter e pela lógica do
sistema escravista.
Não foi possível ir mais longe e, pelo estado incipiente da pesquisa nessa linha na Província do Amazonas,
pedimos desculpas ao Basílio, Gertrudes, Margarida, Maximina, Antônio, Manoel, Felícia, Justa, Júlia,
Pedro, Julião... Muitas vezes só foi possível trabalhar com percentuais, mas sabemos da humanidade que
existe por trás dos números e das muitas histórias que ainda precisam ser contadas.
Uma versão deste texto foi apresentada no I Encontro Trabalhadores e Sociedades Agrárias no Grão-Pará,
séculos XVIII e XIX, promovido pelo NAEA/ UFPA/CNPq, em setembro de 1998.
Miaçua significa escravo em Nheengatu, uma variante da língua-geral utilizada na região até os dias de
hoje. Cf. Freire, José R. B. “Da ‘fala-boa’ ao português na Amazônia brasileira”. Amazônia em Cadernos.
Revista do Museu Amazônico, Manaus, n.º 6, pp. 1-66, jan/dez. 2000.
Estrella do Amazonas, n.º 140, 16 de abril de 1856, p. 4 - BNRJ - Seção de Obras Raras.
Referimo-nos ao importante trabalho de Gomes, Flávio dos Santos. A Hidra e os Pântanos: quilombos e
mocambos no Brasil (sécs. XVIII e XIX). Campinas - Tese de Doutorado - Unicamp, 1997.
Almeida, M.ª Regina C. “Trabalho Compulsório na Amazônia, séculos XVII - XVIII”. Arrabaldes, Ano I, n.º 2,
set./dez, 1988, pp. 101-115.
Um balanço historiográfico mais recente está em Bezerra Neto, José Maia. Escravidão Negra no Grão-Pará,
séc. XVIII-XIX. Belém: Paka-Tatu, 2001.
Pinheiro, Luís Balkar S. P. “De mocambeiro a cabano: Notas sobre a presença negra na Amazônia na
primeira metade do século XIX.” Terra das Águas – Núcleo de Estudos Amazônicos – UnB, Brasília:
Paralelo 15, 1999, p. 149.
Pereira, Manuel Nunes. “A introdução do Negro na Amazônia”. Boletim Geográfico, n.º 77, 1949, pp. 509-
515; Salles, Vicente. O Negro no Pará. Rio de Janeiro: FGV/UFPA, 1971; Vergolino-Henry, Anaíza e
Figueiredo, Arthur Napoleão. A presença africana na Amazônia colonial: uma notícia histórica. Belém:
APP/SECULT, 1990; MacLachlan, Colin M.. “African Slave Trade and Economic Development in Amazonia,
1700-1800” in Toplin, Robert B. Slavery and Race Relations in Latin America. Westport, Connecticut/
London, England: Grenwood Press, 19, p. 112-145; Acevedo Marin, Rosa. Du Travail Esclave au Travail
Libre: Le Para sous le regime colonial et sous l’empire ( XVIIe – XIXe siècles) Doctorat de Troisième Cycle –
EHSS, Paris, 1985; Funes, Eurípedes. Nasci nas matas, nunca tive senhor: História e memória dos
mocambos do Baixo Amazonas. Tese de Doutorado – USP, São Paulo, 1995; Gomes, Flávio dos Santos. A
Hidra e os Pântanos. op. cit.
Uma análise preliminar das escrituras públicas foi realizada por Maquiné, Dillings B. Flutuações da Riqueza.
Relatório final do PIBIC/CNPq. Manaus - Universidade do Amazonas, 1998. (mimeo).
Esta avaliação não pertence apenas à historiografia mais recente: em 1865, já era possível ver em Tavares
Bastos: “A abolição da escravidão pode passar pelo Pará e pelo Alto Amazonas sem afetar a base da sua
prosperidade. O mais valioso produto da exportação dessas províncias é a goma-elástica; pois bem, não é o
escravo que a prepara, é o índio. Digo o mesmo da quase totalidade dos gêneros que se exportam pelo
Pará.” Bastos, Aureliano C. Tavares. O Vale do Amazonas. 2ª ed. SP: Cia Ed. Nacional, 1937. p. 368.
Uma discussão mais ampla das questões aqui apresentadas está em Sampaio, Patrícia Melo. Os Fios de
Ariadne: tipologia de fortunas e hierarquias sociais. Manaus, 1840-1880. Manaus: EDUA, 1997.
A noção de “mosaico de formas de produção não-capitalistas” foi empregada por Fragoso, João Luís
Ribeiro. Homens de Grossa Aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790
- 1830). RJ: Arquivo Nacional, 1992. Na região que estudamos, essa noção foi extremamente útil e permitiu
a elaboração de uma tipologia das unidades de produção, no que diz respeito à configuração das relações
de trabalho. Quanto ao conceito de economia camponesa, cf. Ciro F. S. Cardoso. Escravo ou camponês?
SP: Brasiliense, 1988, p. 56.
Reis, Arthur. História do Amazonas Belo Horizonte: Itatiaia, 1989, Dias, Ednéia. A Ilusão do Fausto.
Manaus: Valer, 1998, Pinheiro, Mª Luiza Ugarte. A Cidade sobre os ombros. Manaus: EDUA, 1999 e
Vainfas, Ronaldo. Dicionário do Brasil Imperial. RJ: Objetiva: 2002.
Amazonas – Relatórios de Presidente de Província. (1852-1889) Manaus, 1906, 5 volumes e
Recenseamento da População do Império do Brazil a que se procedeu no dia 1 de agosto de 1872. RJ:
Leuzinger e Filhos, 1873-1876, v. 1, pp. 1-68.
Existem registros fragmentários de atividades manufatureiras nos inventários, basicamente o registro de
pequenos engenhos de cana e alambiques para a fabricação de aguardente.
Fragoso, João L. R., op. cit., 1992:115-118
Cf. Maquiné, Dillings. Op. Cit. 1998: p. 22 -23.
Autos de Inventário dos Bens de Alexandrino Magno Taveira do Pau Brasil - 1862. Acervo da 2ª Vara de
Família. APAM
Autos de Inventário de Antônia Joaquina do Carmo - 1874. Acervo da 2ª Vara de Família. APAM.
Sobre a trajetória do rápido movimento abolicionista em Manaus, ver Reis, Arthur C. Ferreira. História do
Amazonas. 2ª ed. BH: Itatiaia/ SP/Edusp, 1989 e Conrad, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil.
RJ: Civilização Brasileira, 1978.
Existem informações, ainda não analisadas, de que a Maçonaria tenha colaborado nesse processo de
abolição progressiva viabilizando a compra de cartas de alforria.
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