Tese - Analice Da Conceição Leandro Da Silva (2023)

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS

FACULDADE DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGUÍSTICA E LITERATURA

ANALICE DA CONCEIÇÃO LEANDRO DA SILVA

CANTAR PINDORAMA:
INDIOFUTURISMOS NA CANÇÃO BRASILEIRA

MACEIÓ-AL
2023
ANALICE DA CONCEIÇÃO LEANDRO DA SILVA

CANTAR PINDORAMA:
INDIOFUTURISMOs NA CANÇÃO BRASILEIRA

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em


Linguística e Literatura da Universidade Federal de
Alagoas como requisito parcial para a obtenção do
título de Doutora em Estudos Literários, sob a
orientação da Profa. Dra. Ildney Cavalcanti.

MACEIÓ-AL
2023
Às nações indígenas de toda Pindorama.
Ao meu querido povo Fulni-ô.
AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus e à Jurema Sagrada, fontes onde busco força e inspiração para prosseguir.
Aos povos originários, raiz forte, a quem pertence este país e motivo desta tese.
A minha mãe, Anita, e a toda minha família, pelo esforço e apoio em meu percurso estudantil.
O incentivo, o suporte e as broncas deram resultado, viu, mainha?
À Rosa, por ser minha mãemiga em circunstâncias incomuns. Sempre quero contar com você!
A André, Antônio e Raoni, pelo amor e por me fazerem feliz. Por vocês enfrento tudo!
À Célia e Ana Carolina Barros, Manoel Leandro, Gilianne, Vivian Rose Rodrigues e Lays
Amanda Silva, pelo auxílio com as crianças e pelo cuidado comigo.
À Zeza de Liza e à Clara, pela dedicação incansável e terna aos meus filhos. Assim como toda
a equipe da Escola João e Maria.
À equipe da Escola O Verbo tempo integral.
A todas as professoras e professores que passaram por minha vida, seja na mestria, na escola,
na universidade e nos espaços que acolheram meus curumins.
A minha orientadora Ildney Cavalcanti, por tudo e por tanto que não tenho como colocar em
palavras. Eu te admiro como profissional e como pessoa. Que sorte minha ter te encontrado!
A Pedro Kalil Auad, pela coorientação deste trabalho no momento inicial da pesquisa, pelos
livros, conselhos e afetos e pela participação importante na banca de qualificação e de defesa.
A Marcus Vinicius Matias, pela cuidadosa leitura e pelas trocas de conhecimento e pelo
empenho na leitura e observações na banca de qualificação da pesquisa e também na defesa.
A Kall Sales e Alfredo Cordiviola pelas importantes contribuições e pela leitura final da tese.
A Lola Aronovich e Susana Souto pela inspiração e por terem aceitado o convite para a banca.
A Marcelo Marques, Felipe Benicio, Edilane Ferreira e Thathiana Belo, pelas conversas, pela
inspiração, pela amizade, pelo apoio e por continuarem aqui.
Aos amigos Fernando Ayres, Pedro Fortunato, Karoline e Walker Athayde, por fazerem o
caminho ser mais leve e por me ouvirem.
Ao meu pequeno clã: Fernanda Nascimento, Monick Gomes, Marcus Antônio Sobreira Júnior,
pelos 23 anos de parceria e descobertas juntos.
A Paulo Victor Oliveira, Mirian Oliveira e Viviane da Conceição, do Jaça para o coração.
À Wanessa Xú Oliveira, amiga, parteira, jornalista e irmã para tudo o que há.
A todos as pessoas maravilhosas do grupo Literatura & Utopia, pela imensa usina de energia e
conhecimentos que são.
Ao corpo docente, discente e técnico do PPGLL que nunca desistiram de fazer pesquisa em
Alagoas e que não mediram (e não medem) esforços para que o programa continuasse em
funcionamento, mesmo em tempos sombrios.
A João Batista Magalhães e Rafael Gomes, pelo zelo espiritual, e à Marina Rodrigues e a Gary
Bernardes, pelos conselhos, e aos demais irmãos e irmãs de fé pelo carinho.
A Joel Vieira e Pedro Rieger, à Monaíra Mergulhão, Elemir Soares e Jéssica Gonçalves, pelas
conversas na madrugada.
Ao comerciante Duda Silva, pelo apoio diário, especialmente, durante a pandemia.
A Anderson Azevedo, pelos socorros na área da informática que mantiveram meu equipamento
funcionando até o fim.
À equipe do Ceja Paulo Freire pelo incentivo e compreensão.
À paciência e amor dos vizinhos e vizinhas Cláudia, Ronaldo e Pedro Ricardo, Cida Silva e
Cláudio Galvino, pelas trocas e atenções constantes.
À Capes, pelo financiamento desta pesquisa na modalidade DS, apoio que me permitiu
continuar estudando.
Às espécies companheiras Costela, Barbie, Mel, Pepê, Neném, Novinha, Johnny, Britney,
Galinheta, Lili e Lulu, que nos mostram a vida sob outros aspectos.
A todas as pessoas que me inspiraram e que, de alguma forma, estão presentes neste trabalho.
Não posso esquecer deste corpo/espírito, por aguentar o tanto que abusei dele e por sua
iluminação e inquietação que me fazem prosseguir, mesmo quando não sei para onde, só sei
que tenho que seguir em frente.
À Mãe Terra, minha nutriz, minha matriz, meu chão, meu sustento, meu princípio, meu fim.
Deixemos de emitir mentiras e promessas
falsas; acabemos com a poluição das palavras
ocas e lutemos por um futuro e um presente que
possam ser vividos. É sempre necessário
acreditar que o sonho é possível. Que a nossa
utopia seja um futuro na Terra....
Txai Suruí

Depois do último homem ter partido e a sua


lembrança não passar de uma nuvem a pairar
acima das pradarias, a alma do meu povo
continuará a viver nestas florestas e praias,
porque nós as amamos como um recém-nascido
ama o bater do coração de sua mãe.
Cacique Seattle
RESUMO

O cancioneiro popular brasileiro oportuniza a investigação da figuração de povos indígenas e


sua crítica cultural, criando um panorama e ampliando seus estudos. Contextualizada na
convergência entre os Estudos Culturais e os Estudos Críticos da Utopia, esta tese tem como
objetivo gerar novos postulados teóricos dessas representações. Para tanto, analiso no
cancioneiro brasileiro seus discursos poéticos e recorrências temáticas e imagéticas. A partir da
leitura/escuta e análise do corpus, composto por sete canções relacionadas à temática proposta
e selecionadas a partir da de um levantamento mais amplo composto por 80 canções lançadas
entre 1960 e 2022, elaboro 3 eixos analíticos abordados de forma interligada: 1.
indiofuturismos; 2 representações de gênero e 3. relações com a terra. Assim, postulo o conceito
indiofuturismo, com base nas teorizações de Bloch (2005) sobre utopismos, dos conceitos de
hibridismo e de terceiro lugar cultural (BHABHA, 2003), bem como sobre a antropofagia
brasileira (ANDRADE, 1928; 1924), os afrofuturismos estadunidense (DERY, 1994) e o
futurismo indígena (DILLON, 2012). No capítulo introdutório discuto os conceitos basilares da
tese. No segundo capítulo, enfoco as canções “Um índio” (1977), de Caetano Veloso, “Xondaro
Ka’aguy Reguá” (2020), de Kunumi, e “Tubi Tupy” (1999), de Lenine e Rennó, cujas análises
levam à proposta do conceito indiofuturismo. No terceiro capítulo, examino, a figuração da
mulher indígena na canção do Brasil, através do estudo das canções “Indígena futurista” (2022),
de Katu Mirim, e “Mãos Vermelhas” (2019), de Kaê Guajajara, sob o viés dos Estudos de
Gênero, buscando aproximações e diferenças entre as teorias da interseccionalidade
(CRENSHAW, 1986; MENDOZA, 2016; ANZALDÚA, 2016) e o feminismo comunitário
(PAREDES, 2010; 2015; 2018). No quarto capítulo, proponho um escrutínio das questões
ambientais e traço diálogos entre o conceito de bem viver (conforme sistematizado por Acosta,
2016), que parte da filosofia dos povos originários e do ecofeminismo e as canções “Serpente-
Mulher” (2021), de Suraras do Tapajós, e “Amor de índio” (1978), de Beto Guedes (1978),
enfocando as formas pelas quais os campos de estudo citados se imbricam com a ideia de
ancestralidade. Os trabalhos de Canclini (2008), Krenak (2020) e Wisnik (1989; 2019) são
utilizados ao longo do percurso analítico, por suscitarem problematizações que perpassam a
tese. Os resultados das análises demonstram que as manifestações artísticas que nomeio
indiofuturistas estão orientadas pelas visões de mundo indígenas que se contrapõem ao
capitalismo e ao antropoceno. A partir de sua crítica, concluo que o indiofuturismo não está
ligado ao tempo linear, mas às concepções ancestrais de tempo espiralar. Além disso, as análises
coadunam-se com os princípios do bem viver que, por ser um conceito especialmente
importante na América Latina, carrega fortes laços com os povos indígenas locais. As
reivindicações de lutas sociais e ambientais desses povos estão presentes nessas composições,
instigando-nos a pensar novas estratégias de habitar Pacha Mama e Abya Yala em coexistência
respeitosa com todas as demais formas de vida, a partir de conhecimentos ancestrais. Esta tese
contribui com a ampliação dos postulados das citadas áreas de estudo, ao propor o
indiofuturismo, trabalho teórico que está em seu início no Brasil.

Palavras-chave: povos indígenas; utopismos; música popular brasileira; indiofuturismo;


Estudos Culturais.
ABSTRACT

Brazilian popular songs provide an opportunity to investigate the figuration of indigenous


peoples and their cultural criticism, creating a panorama and proposing the expansion of their
studies. Contextualized in the convergences of the fields of Cultural Studies and Critical
Utopian Studies, this thesis aims to generate new theoretical postulates of such representations.
For that, I analyze in the Brazilian repertoire its poetic discourses and thematic and imagery
recurrences. Having as starting points mapping, reading and listening to and analyzing the
corpus, formed by seven songs related to the proposed theme and selected from a wider survey
of 80 songs launched between 1960 and 2022, I elaborated 3 analytical axes addressed in an
interconnected way: 1. indiofuturismo; 2 gender representations and 3. relations with the land.
Thus, I postulate the concept of indiofuturismo, based on Bloch's (2005) theories on utopianism,
the concepts of hybridity and cultural third place (BHABHA, 2003), as well as on American
Afrofuturisms (DERY, 1994), indigenous futurism (DILLON, 2012) and Brazilian
anthropophagy (ANDRADE, 1928; ANDRADE, 1924). In the introductory chapter I discuss
the basic concepts of the thesis. In the second chapter, I focus on the songs “Um Índio” (1977)
by Caetano Veloso, “Xondaro Ka'aguy Reguá” (2020) by Kunumi and “Tubi Tupy” (1999) by
Lenine and Rennó, whose analyses lead to the proposal of the concept of indiofuturismo. In the
third chapter, I approach the figuration of the indigenous woman, by studying "Indígena
futurista" (2022), by Katu Mirim, and "Mãos Vermelhas" (2019), by Kaê Guajajara, from the
perspective of Gender Studies, seeking similarities and differences between theories of
intersectionality (CRENSHAW, 1986; LUGONES, 2014; ANZALDÚA, 2016; MENDOZA,
2016) and community feminism (PAREDES, 2010; 2015; 2018). In the fourth chapter, I
propose a scrutiny of environmental issues and outline dialogues between the concept of bem
viver (as systematized by Acosta, 2016), which is based on the philosophy of indigenous
peoples and ecofeminism, and the songs “Serpente-Mulher” (2021), by Suraras do Tapajós, and
“Amor de Índio” (1978), by Beto Guedes (1978), focusing on the ways in which the
aforementioned fields of study intertwine with the idea of ancestry. The works of Canclini
(2008), Krenak (2020), and Wisnik (1989; 2019) are used throughout the analytical path, as
they raise problematizations that permeate the thesis. The results of the analyses demonstrate
that indiofuturistic songs are guided by indigenous worldviews that oppose capitalism and the
Anthropocene. From this critique, I conclude that indiofuturismo is not linked to linear time,
but to ancestral conceptions of spiral time. In addition, the analyses are in line with the
principles of bem viver which, as an especially important concept in Latin America, has close
ties to the local indigenous peoples. These peoples' social and environmental claims and
struggles are present in these compositions, instigating us to explore new strategies for
inhabiting Pacha Mama and Abya Yala in respectful coexistence with others life forms, based
on ancestral knowledge. This thesis contributes to the expansion of the postulates of the areas
of study mentioned above, by proposing indiofuturismo, which is a theoretical approach still in
development in Brazil.

Keywords: indigenous peoples; utopianisms; Brazilian pop music; indiofuturismo; Cultural


Studies.
RESUMEN

Las canciones populares brasileñas brindan una oportunidad para investigar la figuración de los
pueblos indígenas y su crítica cultural, creando un panorama y proponiendo la expansión de sus
estudios. Contextualizada en las convergencias de los campos de los Estudios Culturales y los
Estudios Utópicos Críticos, esta tesis pretende generar nuevos postulados teóricos de tales
representaciones. Para eso, analizo en el repertorio brasileño sus discursos poéticos y
recurrencias temáticas e imaginarias. Teniendo como puntos de partida mapear, leer y escuchar
y analizar el corpus, formado por siete canciones relacionadas con el tema propuesto y
seleccionadas de un relevamiento más amplio de 80 canciones lanzadas entre 1960 y 2022,
elaboré 3 ejes analíticos abordados de forma interconectada: 1. indiofuturismo; 2
representaciones de género y 3. relaciones con la tierra. Así, postulo el concepto de
indiofuturismo, basado en las teorías de Bloch (2005) sobre el utopismo, los conceptos de
hibridez y tercer lugar cultural (BHABHA, 2003), así como en los afrofuturismos americanos
(DERY, 1994), el futurismo indígena (DILLON, 2012) y antropofagia brasileña (ANDRADE,
1928; ANDRADE, 1924). En el capítulo introductorio discuto los conceptos básicos de la tesis.
En el segundo capítulo, me centro en las canciones “Um Índio” (1977) de Caetano Veloso,
“Xondaro Ka'aguy Reguá” (2020) de Kunumi y “Tubi Tupy” (1999) de Lenine y Rennó, cuyos
análisis conducen a la propuesta del concepto de indiofuturismo. En el tercero capítulo, abordo
la figuración de la mujer indígena, estudiando "Indígena futurista" (2022), de Katu Mirim, y
"Mãos Vermelhas" (2019), de Kaê Guajajara, desde la perspectiva de los Estudios de Género,
buscando similitudes y diferencias entre las teorías de la interseccionalidad (CRENSHAW,
1986; LUGONES, 2014; ANZALDÚA, 2016; MENDOZA, 2016) y el feminismo comunitario
(PAREDES, 2010; 2015; 2018). En el cuarto capítulo, propongo un escrutinio de las cuestiones
ambientales y esbozo diálogos entre el concepto de bem viver (sistematizado por Acosta, 2016),
que se basa en la filosofía de los pueblos indígenas y el ecofeminismo, y las canciones
“Serpiente-Mulher” (2021), de Suraras do Tapajós, y “Amor de Índio” (1978), de Beto Guedes
(1978), centrándose en las formas en que los campos de estudio mencionados se entrelazan con
la idea de ascendencia. Los trabajos de Canclini (2008), Krenak (2020) y Wisnik (1989; 2019)
son utilizados a lo largo del recorrido analítico, pues plantean problematizaciones que permean
la tesis. Los resultados de los análisis demuestran que las canciones indiofuturistas están
guiadas por cosmovisiones indígenas que se oponen al capitalismo y al Antropoceno. De esta
crítica concluyo que el indiofuturismo no está ligado al tiempo lineal, sino a concepciones
ancestrales del tiempo espiral. Además, los análisis están en línea con los principios de bem
viver que, como un concepto especialmente importante en América Latina, tiene estrechos
vínculos con los pueblos indígenas locales. Las reivindicaciones y luchas sociales y ambientales
de estos pueblos están presentes en estas composiciones, invitándonos a explorar nuevas
estrategias para habitar Pacha Mama y Abya Yala en una convivencia respetuosa con otras
formas de vida, a partir de saberes ancestrales. Esta tesis contribuye a la expansión de los
postulados de las áreas de estudio mencionadas anteriormente, al proponer el indiofuturismo,
que es un enfoque teórico aún en desarrollo en Brasil.

Palabras clave: pueblos indígenas; utopismos; música pop brasileña; indiofuturismo; Estudios
culturales.
LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Frame do videoclipe de Amoa-Hi: o menino-xamã vai à árvore que canta............ 24


Figura 2 – The singing ringing tree – A árvore que canta........................................................ 26
Figura 3 – Material promocional de Indígena futurista (2021), de Katú Mirim..................... 42
Figura 4 – Rita Benneditto em performance do álbum Tecnomacumba...................................46
Figura 5 – Caetano Veloso em performance da canção “Um índio”, com participação de
indígenas................................................................................................................................... 50
Figura 6 – Kunumi MC no clipe de “Xondaro ka'aguy reguá”.............................................. 61
Figura 7 – Letreiros de notícias de ataques aos povos indígenas..............................................62
Figura 8 – Óculos de realidade virtual e cachimbo...................................................................63
Figura 9 – Efeitos corpo-natureza no videoclipe “Xondaro ka'aguy reguá”...........................64
Figura 10 – Performance de “Mãos vermelhas”, com participação de DJ Bieta......................86
Figura 11 – Estética cyberpunk de Katú Mirim.........................................................95
Figura 12 – Ilustração do EP Indígena futurista......................................................................103
Figura 13 – Frames de Uma história de amor e fúria.............................................................109
Figura 14 – Mulheres indígenas Suraras Tapajós................................................................... 123
Figura 15 – A Sucuri-verde (E. Murinus) também conhecida como Anaconda canoa
serpente................................................................................................................................... 126
Figura 16 – A canoa serpente..................................................................................................129
Figura 17 – Maracá Guarani adornado com penas de arara ...................................................138
Figura 18 – Guardiões da floresta – patrulheiros Uru Eu-Wau-Wau..................................... 154
Figura 19 – Gráfico sobre área de floresta derrubada na Amazônia.......................................155
LISTA DE CANÇÕES ANALISADAS

“Xondaro ka’aguy reguá” (2020), de Kunimi MC


“Um índio” (1977), de Caetano Veloso
“Tubi tupy” (1999), de Lenine e Carlos Rennó
“Mão vermelhas” (2019), de Kaê Guajajara
“Indígena futurista” (2022), de Katu Mirim
“Serpente mulher” (2021), de Suraras do Tapajós
“Amor de índio” (1978), de Beto Guedes
SUMÁRIO

1 PALAVRAS, IMAGENS E SONS: TRILHAS PARA PINDORAMA........................... 13


1.1 Primeiros tons, primeiros sons, primeiras palavras...................................................13
1.2 Cartografias e geografias: terras e lutas reais e sonhadas, desde Abya Yala à
Pindorama............................................................................................................................19
1.3 Repertórios: diálogos entre as teorias e canções analisadas......................................26
1.4 A imagem dos povos indígenas nas páginas da literatura brasileira........................29
1.5 Mosaico sonoro: múltiplos ritmos do cancioneiro brasileiro....................................34
2 ECOS DO DEVIR: UTOPISMOS E PERSPECTIVAS INDIOFUTURISTAS............40
2.1 Indiofuturismos: proposta de uma definição em devir..............................................41
2.2 Afrofuturismo: conceito, ensaio-manifesto, difusões no campo da música..............43
2.3 Indiofuturismos: uma retomada..................................................................................47
2.4 “Virá que eu vi”: tensões utópicas no índio profético de Caetano Veloso...............50
2.5 O “Guerreiro da floresta do futuro”, de Kunumi MC..............................................59
2.6 O “astronauta tupi”, de Lenine....................................................................................66
2.7 Ao largo do tempo, sementes........................................................................................71
3 PERSPECTIVAS DE GÊNERO SOBRE A FIGURAÇÃO DA MULHER
INDÍGENA..............................................................................................................................73
3.1 Perspectivas feministas de Abya Yala à América Latina..........................................73
3.2 Às cores: tons e vivências em “Mãos Vermelhas”, de Kaê Guajajara.....................80
3.3 “Indígena Futurista”: a furiosa xondaria de Katu Mirim........................................95
4 O BEM VIVER E O ECOFEMINISMO.........................................................................113
4.1 A serpente é parente: a cobra avó nos habita..........................................................118
4.2 “Amor de índio”: bem viver com a terra, fluir no tempo cíclico............................142
5 HORIZONTES INDIOFUTURISTAS: POÉTICAS EM CONSTANTE
FLORESCIMENTO.............................................................................................................159
REFERÊNCIAS....................................................................................................................164
APÊNDICE............................................................................................................................176
13

1 PALAVRAS, IMAGENS E SONS: TRILHAS PARA PINDORAMA

1.1 Primeiros tons, primeiros sons, primeiras palavras

Para a presente tese, reuni um conjunto de canções do repertório musical produzido no


Brasil com o objetivo de analisar as figurações indígenas nele presentes. Tal esforço resultou
num panorama dessas figurações que, ao ser estudado à luz dos Estudos Culturais, Utopismos,
Estudos ecofeministas e de Gênero, revelou particularidades estéticas e temáticas que me
levaram a postular os indiofuturismos.
Os indiofuturismos propõem, enquanto fenômenos artísticos e ferramenta analítica, uma
nova visada nas figurações indígenas nas artes e nos discursos, pois, em pleno século XXI, é
necessário ainda combater os estereótipos e afirmar a pluralidade étnica e cultural dos povos
indígenas. Essa diversidade, por sua vez, é renovadora e questionadora da ideia única de
“índio”, trazendo, em seu cerne, uma ideia de transculturalidade e de terceiro lugar cultural que
se mostra de maneira contundente nas obras analisadas. A relação com a tecnologia é
ressignificada também nesses discursos poéticos por meio do uso de tecnologia digital e sua
representação estética nas obras. Além disso, propicia a proposição de temas sociais e
ambientais cruciais para os povos indígenas e para todos os seres deste planeta. Percebo no
indiofuturismo sua vocação para a interdisciplinaridade, o que abre espaço para a aproximação
com os Estudos Culturais, os utopismos, os Estudos da Ecologia e de Gênero que podem lançar
luz sobre as importantes reinvindicações dos povos originários do Brasil.
O indiofuturismo agenciando o “entre-lugar” cultural, ou seja, abrindo espaço para o
diálogo intercultural que considera também classe e raça nessa construção e valendo-se dos
pressupostos desse hibridismo é capaz de propor e inaugurar novas possibilidades de ser, de
estar e de fazer arte e política, aproximando-se, assim, do campo dos utopismos culturais. A
discussão das estratégias composicionais em canções indiofuturistas termina por situar-se em
uma grande e profícua encruzilhada teórica que suscita um engajamento estético, ético que nos
leva a repensar conceitos sobre identidade, cultura e sociedade, mas que também pode nos
alertar sobre uma mudança de paradigma em relação ao presente e a como temos ocupado e
destruído espaços que, no final das contas, são de vidas interculturais, interespécies e vitais para
a sobrevivência de todos os seres humanos e não humanos que coexistem em nossa “casa
comum” (KRENAK, 2020, p. 82).
É importante ressaltar que o futurismo aqui enlevado diz respeito à estética utilizada por
artistas em suas composições e dialoga, nesse aspecto, com os afrofuturismos, fenômeno
14

cultural que nasce nos Estados Unidos e que exalta, no sentido do seu protagonismo, as ditas
minorias étnicas, notadamente, os afro-americanos. Os afrofuturismos são bastante
influenciados pela estética sci-fi e, posteriormente, Cyberpunk, conseguindo unir essas
projeções super tecnológicas a elementos e narrativas de África de maneira a ressignificar o uso
da tecnologia a favor do fortalecimento e da valorização das memórias e de suas raízes culturais.
Ressalto também que a escolha pela palavra “índio” deu-se de maneira deliberada por
dois motivos: (1) para ressignificar esse vocábulo de maneira política, uma vez que foi
amplamente utilizado de maneira pejorativa e totalizante contra os povos indígenas, mas
também serviu (e ainda serve) para uma unificação estratégica da identidade pluricultural dos
povos originários e (2) para distinguir os indiofuturismo do conceito de indigenous futurisms,
de Grace Dillon que é basilar para esta tese, mas que apresenta algumas diferenças em relação
ao que postulo aqui.
Abro um parêntese para esclarecer a concepção de tecnologia e temporalidade que
permeia todas as análises e que por isso serão retomadas constantemente neste texto. O conceito
proposto por servir como um dos norteadores para o entendimento deste importante eixo da
tese que apresento como uma das características dos indiofuturismos. Para Verzato et al. (2008,
p. 67), algumas concepções de tecnologia são incompletas ou reducionista, como por exemplo,
a concepção intelectualista que

Compreende a tecnologia como um conhecimento prático, derivado direta e


exclusivamente do desenvolvimento do conhecimento teórico científico
através de processos progressivos e acumulativos, onde teorias cada vez mais
amplas substituem as anteriores. Nessa perspectiva, a tecnologia é um
conhecimento prático (pelo menos desde o final do século XIX) derivado
diretamente da ciência, do conhecimento teórico.

Atrelada a essa definição limitante, há outras, também citadas pelos autores: neutralidade,
cientificismo, otimismo e pessimismo científico, utilitarismo etc. O problema do conceito de
tecnologia como intelectualismo é que ele exclui, por exemplo, o empirismo que muitas vezes
está na base do saber tecnológico, em outras palavras, essa visão elitista, propõe que apenas
dentro de laboratórios e universidades é que se desenvolvem tecnologias e ciências. Uma visão
ocidentalizada e, a meu ver, individualista e, muitas vezes1, orientada pelo lucro, uma vez que
considera a tecnologia uma exclusividade dos métodos dos/as cientistas ocidentais, invalidando, com

1
Não se nega que existam cientistas e organizações que fujam a esse modelo, o objetivo aqui não é criticar a
intelectualidade, mas sim o intelectualismo radical. Aqui entendido como uma postura de inflexibilidade e
arrogância frente a quaisquer outras formas de conhecimento que não sejam obtidas pelos seus próprios métodos.
Tal postura caminha para o etnocentrismo e práticas de apagamento cultural.
15

esse argumento, todas as outras formas de fazer, saber e utilizar, como por exemplo as tecnologias e
ciências dos povos tradicionais. E uma das maiores diferenças entre os fazeres científicos dos povos
tradicionais e da sociedade ocidentalizada reside justamente no fato de que o saber dos povos originários
é comunitário, geralmente, coletivo, não sendo propriedade de ninguém, é um bem comum a todos/as.

a idéia de que tecnologia é um conjunto de saberes inerentes ao


desenvolvimento e concepção dos instrumentos (artefatos, sistemas, processos
e ambientes) criados pelo homem através da história para satisfazer suas
necessidades e requerimentos pessoais e coletivos. O conhecimento
tecnológico é o conhecimento de como fazer, saber fazer e improvisar
soluções, e não apenas um conhecimento generalizado embasado
cientificamente. Para a tecnologia é preciso conhecer aquilo que é necessário
para solucionar problemas práticos (saber fazer para quê), e assim,
desenvolver artefatos que serão usados, mas sem deixar de lado todo o aspecto
sócio-cultural em que o problema está inserido (LAYTON, 1988).

A citação acima examina pontos importantes para uma definição de tecnologia. Considero que
a diferenciação entre tecnologia e ciência, a ênfase nos contextos sócio-culturais e o destaque
na criação para satisfação de necessidades pessoais e coletivos, pode promover o diálogo dessa
concepção de tecnologia, num contexto de saberes originários, por isso, utilizo-a como base
para reflexões acerca de tecnologia nos indiofuturismos.
Além disso, é preciso compreender o conceito de tempo para os povos indígenas para
perceber que esse projeto de futuro diz respeito a um futuro-presente espiralar e que ele não
necessariamente pressupõe uma corrida temporal linear tecnológica ou uma disposição ao
“progresso” conforme entendido pelo senso comum como avanço. Isso porque as artes
indiofuturistas propõem-se justamente a se engajarem numa crítica ao consumismo
desenfreado, às desigualdades sociais, raciais e de gênero e, principalmente, à destruição
ambiental que lhes rouba território, identidade e memória em nome de um desenvolvimento
progressista que não é apenas ilógico, mas verdadeiramente suicida por não respeitar os ciclos
da vida e o direito de ser e existir neste planeta. Nas palavras de Ailton Krenak em seu recém-
lançado livro O futuro é ancestral (2022, p. 50-51):

Para começar, o futuro não existe – nós apenas o imaginamos. Dizer que
alguma coisa vai acontecer no futuro não exige nada de nós, pois ele é uma
ilusão. Então, pode se depositar tudo ali como em um jogo de dados.
Infelizmente, desde a modernidade, fomos provocados a nos inserir no mundo
de maneira competitiva. E essa competitividade, estimulada durante séculos,
acabou formando um mundo de jogadores. Se o futuro der certo: “Bingo”!
Mas a verdade é que estamos vivendo cada vez mais a projeção de futuros
muito improváveis embora continuemos preferindo essa mentira ao presente.
16

O futurismo, aqui proposto, constitui-se de visadas e visitas aos imaginários possíveis e


impossíveis de se tornarem reais. Não é isso que importa. Ele pode levar inclusive a recontar e
reescrever o passado, não representa um avante. Ele representa uma volta à ancestralidade que
leva muito mais ao entendimento e à crítica do presente, exaltando saberes das culturas nativas,
do que às propostas de cenários futuros.
O indiofuturismo2 opõe-se ao capitalismo e ao antropoceno e considera também como
seres iguais todas as partes que compõem o “corpo” da Terra. O indiofuturismo é um conceito
calcado no respeito radical às relações, aos animais, minerais, vegetais e entes espirituais que
integram suas visões de mundo. Observando tais postulados, proponho pôr em diálogo teorias
e áreas de estudo que convergem com os pensamentos dos povos originários que estão
mimetizado nas composições que classifico como indiofuturistas. Mobilizando os Utopismos,
os Estudos de Gênero, os Ecofeminismos, Estudos da Música e aproximando esses estudos das
cosmogonias indígenas, da luta de mulheres indígenas e do Sumak Kawsay/Bem Viver, 3
desenvolvo uma série de leituras, organizadas por temas principais balizadores para
compreender e teorizar o indiofuturismo, sua abrangência teórico-analítica e sua vocação para
o diálogo interdisciplinar e coletivista.
O conceito de indiofuturismo inspira-se nos Futurismos Indígenas. O termo foi proposto
por Grace Dillon, uma pessoa nativa Anishinaabe, pesquisadora e professora universitária
radicada nos Estados Unidos. As similaridades entre as duas propostas são a decoloniedade, a
ligação significativa com a terra/território, o reconhecimento das ciências indígenas, as
sabedorias ancestrais e as críticas ao antropoceno como vetor orientador das decisões tomadas
por elites à revelia de conhecimentos tradicionais valiosos para nossa própria sobrevivência
como espécies entre espécies. Dillon, cunhou o termo em 2003 e vêm trabalhando em sua
contínua atualização desde então. Em 2012, ela tomou a decisão de renomear o futurismo
indígena, colocando-o no plural, pois em suas próprias palavras: “Não somos apenas um povo,
somos povos e nossas terras podem abranger mais de uma nação colonizadora. Assim, os
futurismos indígenas tornaram-se um impulso político da descolonização”. A pesquisadora

2
Alternarei entre o singular indiofuturismo e o plural indiofuturismos, pois, a partir do conceito pretendo reunir,
sem reduzir ou unificar os procedimentos artísiticos que se apresentam como plurais, visto que advém de origens
e contestos diversos.
3
Bem Viver é um conceito sistematizado majoritariamente por pensadores ocidentais, tendo origem na filosofia
de Sumak Kawsay de origem Quéchua e do Suma Qamaña dos Aymara. Este denota um conjunto de práticas e
maneiras de viver e conviver bem com os demais seres. No capítulo quatro desta tese, desenvolvo melhor esta
discussão.
17

também realça o fato de que as populações nativas em todo o mundo têm diferentes visões de
mundo e valores que as orientam, assim, seria mais apropriado falar em termos plurais.
Dillon têm sido uma ativista e uma profícua autora e editora no campo das Ficções
científicas, então seu foco ao tratar dos futurismos indígenas tem sido voltado prioritariamente
à escrita criativa e às narrativas nativas que propõem diferentes maneiras de criar mundos
“alternativos”, profundamente arraigados nas ciências indígenas e no enfrentamento do
colonialismo4 continuado promovido pelo capitalismo, inclusive, na indústria literária.
Assim, Dillon encoraja que diversos povos e grupos reapropriem-se de suas narrativas
e as atualizem. Bem como incentiva o diálogo à respeito das artes e ciências indígenas, de forma
que diferentes pessoas sob diferentes perspectivas possam propor futurismo indígenas em seus
próprios termos.
Assim, ao propor o indiofuturismo enfoco a representação de povos e indivíduos
originários especificamente no cancioneiro popular brasileiro, promovendo uma crítica acerca
dessas figurações.
Outro ponto específico que minha tese levanta é a correlação entre o indiofuturismo e o
bem viver (conceito indígena de povos Kéchua e Aymara, habitantes de Abya Yala), visando
ponderar acerca das sabedorias oferecidas por este conceito para a conturbada relação que tem
se estabelecido entre a espécie humana e Pacha Mama ou a Terra. A relação entre futuro
ancestral e bem viver está presente no discurso de Ailton Krenak (2022, p. 60), quando ele
afirma que:

As pessoas antigas têm habilitação de quem passou por várias etapas da


experiência de viver. São contadores de histórias, os que ensinam as
medicinas, a arte, os fundamentos de tudo o que é relevante para ter uma boa
vida. É o que os quéchuas chamam de sumak kawsay e que foi traduzido para
o castelhano como bienvivir, ou bem viver em português.

Tomo por base, portanto, o futuro ancestral para construir minha proposta de indiofuturismo,
uma futuridade calcada nos conhecimentos ancestrais que resgatam formas de bem viver e que
embora sejam saberes antigos, surgem aos olhos da sociedade ocidental como novos e
inventivos, por terem sido subalternizados dentro da lógica racista e tecnicista das sociedades
que se orientam pela ideia de progresso e avanço.

4
Entendo que colonialismo, colonial, índio, indígena, povos originários são palavras insuficientes ainda e que se
constituem num perigoso campo minado conceitual, motivo pelo qual vêm sendo amplamente debatidas e
ressignificadas ao longo do tempo. No entanto, é necessário ainda utilizá-las na ausência de alternativas mais
claras, embora esteja consciente de que não estão isentas de uma disputa de sentidos políticos-culturais.
18

Por último, sustento a necessidade de um olhar mais meticuloso sobre as relações entre
visões indígenas e não indígenas e suas diversas formas de organização social e valores. Ao
veicular tais visões de mundo, objetivo confrontar a perspectiva unilateral ocidental, bem como
enfrentar o apagamento dos saberes, ciências e cosmovisões indígenas no Brasil, um país que
é meramente terra indígena e que foi criado à custa de genocídios, apagamentos, preconceitos
e desvalorização desses mesmos povos originários.
É preciso também mencionar a existência do termo amazonfuturismo que nasce a partir
das obras do artista visual João Queiroz (2019) e das definições do autor Rogério Pietro (2021).
Esse termo diz respeito às representações estéticas e visuais que enfatizam a Amazônia sob o
ponto de vista dos povos indígenas. Imagens indígenas permeadas pela tecnologia e inspiradas
sobretudo pelo estilo Solarpunk e pelo Cyberpunk e pelo movimento afrofuturista. A vocação
prioritariamente estética do amazonfuturismo não desabona sua criatividade e pioneirismo
artísticos, porém leva a um afastamento dos conceitos de Futurismos indígenas e
indiofuturismo, porque busca esquivar-se tanto quanto possível dos confrontos sociais e das
lutas ambientais protagonizadas pelos povos indígenas. Não quero, contudo, afirmar que o
amazonfuturismo seja isento de ideologias sociais e políticas, pois, sendo um movimento ainda
em formação poderá adquirir diferentes feições, dando origem a vertentes diversas de
composição visual e orientação política. O movimento tende a mudar de formas e agendas
aperfeiçoando-se, de acordo com suas necessidades e valores e, claro, com a recepção. Vitor
Castelões Gama, em seu artigo “De onde vem e para onde vai o amazonfuturismo” (2021),
levanta alguns questionamentos sobre o movimento, no sentido de sua tendência ao exotismo e
sua postura pretensamente apolítica. No entanto, creio que essa nomenclatura importante tende
a crescer e a modificar-se junto e de acordo com o contexto e a diversificação de autoria. Assim,
deixo registrada também a ocorrência desse termo que traz movimento e novidade para o
cenário artístico ligado aos povos originários e que representa mais uma expressão inquietante
sobre o imaginário brasileiro em relação ao nosso legado e à existência e resistência indígenas.
Discorro, a partir deste ponto, sobre o meu processo de composição, explicitando
minhas orientações e objetivos e contextualizando ao público leitor, as condições de produção
da pesquisa empreendida e de seu produto: esta tese.
Escrever esta tese foi um desafio intelectual (dadas as condições de produção no Brasil
de 2018-2022) e um prazer pessoal, pois me possibilitou uma maior aproximação com os
saberes e com as artes dos povos originários a quem respeito e admiro profundamente. Meu
posicionamento acadêmico alinha-se (e sempre se alinhou) ao meu posicionamento ético,
político e subjetivo. Escrevo, portanto, em primeira pessoa, do lugar de uma mulher, teórica,
19

trabalhadora, mãe e descendente indígena que acredita em fazer pesquisa com uma seriedade
alegre e leve, sempre me posicionando e falando por mim, pois não acredito em neutralidades
posicionais. Justifico, desse modo, que não posso produzir de outra maneira, pois sou feita de
intelecto, mas também de afetos e de terra.
Meu interesse é abrir um diálogo sobre o que nomeio indiofuturismo, lançando um olhar
sobre algumas composições que foram selecionadas por suas similares características que serão
apontadas adiante - ainda que cada compositora ou compositor consiga transformar o igual em
inédito e o velho no novo através da arte - entrelaçando conhecimentos indígenas e acadêmicos,
entremeados pela invenção.
Esta tese, por ter a premissa de discutir canções apresenta a dificuldade de traduzir para
a linguagem escrita (por isso, sem timbre, sem melodia e sem vibração sonora), tais
particularidades. Esse é o motivo pelo qual recomendo fortemente a audição da trilha sonora
aqui proposta5, que enriquecerá bastante a leitura.
Inicio esse percurso por este capítulo, intitulado “Palavras, imagens e sons: trilhas para
Pindorama”, que se constitui como introdução que lança os conceitos basilares, indica os
critérios de seleção e oferece, ao seu final, um mapa de como organizei os capítulos seguintes.
A seguir, explicito as escolhas e decisões teórico-metodológicas que nortearam esta tese.

1.2 Cartografias e geografias: terras e lutas reais e sonhadas, desde Abya Yala à
Pindorama

Optei por usar a nomenclatura “Abya Yala” (sempre que possível) para designar a
América Latina e “Pindorama”6 para designar o território brasileiro, porque entendo essas
expressões como vozes e nomeações da resistência, mas também porque elas se configuram
como uma comunidade sonhada/imaginada que existe em coalizão e em sobreposição ao
território geográfico-político brasileiro definido por mapas, tratados e guerras.
Benedict Anderson, elaborando o pensamento de Renan, explica que as comunidades
imaginadas partem daquilo que seus membros escolhem lembrar e esquecer simultaneamente.
Em suas palavras, “dentro de um espírito antropológico, proponho a seguinte definição de
nação: uma comunidade política imaginada – e imaginada como sendo intrinsicamente limitada
e, ao mesmo tempo, soberana” (ANDERSON, 2008, p. 32). Penso que a definição de nação
proposta por Anderson pode ser utilizada também para o continente, pois, tanto nação quanto

5
Os links estão disponíveis no apêndice.
6
A partir de agora, não usarei mais as aspas, uma vez que as referências serão explicitadas abaixo.
20

continente estão inclusos no conceito de comunidades imaginadas. No caso de Abya Yala, essa
construção é política e cultural.
Em um movimento de insurgência, os povos indígenas voltam a chamar a América
Latina de Abya Yala, não na esperança de redefinir os mapas atuais, mas recuperando, por meio
da ressignificação, o seu direito de existirem nessa terra e, ao mesmo tempo, criarem uma
espécie de comunidade comum, em que os povos originários possam coexistir, colaborar e se
reconhecer mutuamente. Ao discorrer sobre os sentidos que a expressão Abya Yala condensa,
Carlos Walter Porto-Gonçalves (2009, p. 26) esclarece-nos que

na língua do povo Kuna, significa “Terra madura”, “Terra Viva” ou “Terra em


florescimento” e é sinônimo de América. O povo Kuna é originário da Serra
Nevada no norte da Colômbia, tendo habitado a região do Golfo de Urabá e
das montanhas de Darién e vive atualmente na costa caribenha do Panamá, na
Comarca de Kuna Yala (San Blas). Dessa forma, a expressão “Abya Yala”
vem sendo usada como uma autodesignação dos povos originários do
continente como contraponto à América, expressão que, embora usada pela
primeira vez em 1507 pelo cosmólogo Martin Wakdseemüller, só se consolida
a partir de finais do século XVIII e inícios do século XIX por meio das elites
crioulas com o objetivo de se afirmarem em contraponto aos conquistadores
europeus durante o processo de independência.

Essa afirmação importa não só pelo contraponto, mas pela unidade que constrói em torno desses
povos que se veem irmanados pelo sentimento de pertença às culturas que lhes dão nomes e aos
territórios que lhes dão vida. O simples apagamento do nome “colonial” já implica um
posicionamento étnico e político no emprego dessa expressão, que carrega também sinais de
uma forte conexão desses povos com o território, uma vez que as palavras “madura”, “viva” e
“em florescimento” remetem a um organismo em plena saúde que ecoa também os desejos e os
intentos desses povos em relação ao território em que habitam.
Porto-Gonçalves (2009) afirma que a escolha do nome Abya Yala se dá em
reconhecimento à luta dos Kuna que, entre 1920 e 1930, se rebelaram contra o Estado
colombiano pela demarcação das suas terras, sendo pioneiros na conquista da manutenção do
território e abrindo, assim, precedente para a luta das demais nações indígenas na retomada de
suas terras. Ainda seguindo Porto-Gonçalves (2009, p. 29-30), trago em relevo a citação que
segue sobre a relação entre política-território e naturezacultura (HARAWAY, 2003). O autor
propõe que, para os povos originários,

TERRITÓRIO É NATUREZA + CULTURA. E a luta pelo território se


mostra com todas as suas implicações epistêmicas e políticas. Quando
observamos as regiões de nosso continente que abrigam a maior riqueza em
21

biodiversidade e em água podemos ver o quão estratégicos esses povos são e


tendem cada vez mais a ser diante das novas fronteiras de expansão do capital
(Diaz-Polanco, Ceceña e Ornelas).
Abya Yala se coloca assim como um atrator em torno do que outro sistema
pode se configurar. É isso que os povos originários estão propondo com esse
outro léxico político. Não olvidemos que dar nome próprio é se apropriar. É
tornar próprio um espaço pelo nome que se atribui aos rios, às montanhas, aos
bosques, aos lagos, aos animais, às plantas e por esse meio um grupo social se
constitui como tal constituindo seus mundos de vida, seus mundos de
significação e tornando um espaço seu espaço – um território. A linguagem
territorializa e, assim, entre América e Abya Yala se revela uma tensão de
territorialidades.

Chamo a atenção para o protagonismo político e para o avanço ambiental que jaz na força dessa
renomeação. Trata-se de um protagonismo que passa pelo ato de dar nome e voz às perspectivas
políticas, étnicas e socioambientais que orientam, de modo geral, os povos nativos. Além disso,
esse outro sistema, que se apresenta como horizonte dessa luta, recupera a marcha de uma
esperança militante (BLOCH, 2005) que reivindica, através da luta e da esperança, uma utopia
da continuidade da vida humana de qualidade sobre este planeta.
Ratifico, por fim, que, ao usar a expressão Abya Yala ao invés de América Latina,
recupero a força dessa luta e a potência que ela tem de nos levar a uma maneira de viver que
seja menos danosa, mais harmoniosa e justa nesse já tão golpeado continente e, por extensão,
naquilo que entendo como outros mundos possíveis.
Semelhante ao fato de que Abya Yala passa a ser uma retomada linguística de territórios
que outrora pertenceram aos povos originários e, ao mesmo tempo, um signo da união desses
povos em luta, Pindorama retoma a ideia de um Brasil indígena, um território anterior à
“descoberta” cabralina. A lógica de nomear para recuperar pode ser aplicada ao uso do vocábulo
para fazer referência às terras brasileiras sob o ponto de vista indígena. Embora saibamos que
o Brasil não era uma nação ou território unificado, os povos indígenas escolheram esse nome
para, simbolicamente, unir suas etnias e nações em uma batalha por justiça social e ambiental 7.
Assim, utilizo Pindorama sempre que em relevo estiver a sonhada nação sem males, terra das
palmeiras, que é o horizonte buscado pela luta originária pela terra. De acordo com Aline
Magalhães (2018), Pindorama era como os Tupi-Guaranis chamavam o Brasil antes da chegada
dos portugueses, em 1500. Do Tupi, a palavra pindó-rama, como abreviação de pindó-retama,
significa ‘Terra das Palmeiras’”. Ainda segundo Magalhães (2018, n. p.):

7
Assim como foi feito com a palavra “índio” nos anos 80 e a expressão “povos indígenas” atualmente.
22

Grandeza e diversidade natural estavam presentes também na criação de um


universo mítico deste lugar, que para os povos originários era também
considerada, além de uma ‘Terra boa para plantar’ uma ‘Terra livre de todos
os males’ [...] Os Tupi tinham em Pindorama, o equilíbrio necessário para
definir a terra em que viviam como perfeita, como divina. Pindorama, em uma
análise histórica é sobretudo a terra da Utopia, onde o mal não existia (grifos
meus).

Evidencio, nesse trecho, a dicção utópica e mítica inerente a essa visão de terra sem males, um
lugar em que equilíbrio, abundância e diversidade, características principais e em que a
subjetividade se encontra profundamente ligada à terra, sendo base da ontologia dos povos
originários que, não por acaso, são também chamados povos da terra.
Cantar Pindorama, portanto, é repertoriar as imagens de um topos imaginado e desejado,
é compor e performar este lugar sonhado, figurando seus povos, terras, anseios, maneiras de
vida; é construir com canções um espaço-tempo imagético fronteiriço entre o território que hoje
habitamos e aquele que é vislumbrado pelos povos indígenas. A escuta dessas vozes, de suas
metáforas, referências, recorrências, oportuniza o questionamento da maneira como vivemos e
nos organizamos; o apagamento de imagens, sons e saberes nativos ao longo da história; nossa
relação com o ambiente e com alteridades étnicas, revelando como nos constituímos e nos
representamos por meio da poesia.
Para os Guarani, os seres humanos são sons encarnados, as palavras-almas, e, em sua
visão de mundo, assim como para diversos povos originários, em especial os andinos, a palavra
e a música são sagradas, pois são expressões do divino em ação e em movimento. Há
importância em cultivar a boa palavra, as boas canções e de propagar através do som que se
espalha pelo ar as né’e porã tenondé ou palavras formosas. Segundo Kaká Werá (2021, p. 47),
“[n]a tradição Tupi, existe algo que antecede o natural e interfere em toda a natureza, em suas
forças e, consequentemente, nas divindades que as sustentam: o som e o silêncio. A palavra
tupi significa ‘som-assentado’, ou ‘som-de-pé’”. Pode-se avaliar, então, a importância da
linguagem falada e musicada, assim como seu impacto para esse povo. Ainda de acordo com
Werá (2021, p. 191):

O Grande Espírito torna-se Música Celeste, ritmo e movimento. Desdobra-se


em espíritos Co-criadores, chamados também de Seres-Trovões. Sonha e
manifesta a Morada Terrena. Os Seres-Trovões estabelecem a morada
espiritual nas quatro direções e agora recebem a responsabilidade de gerarem
também palavras-almas, tonalidades de suas essências, para encarnarem na
Terra: ou seja, os seres humanos.
23

Pode-se depreender, da mitologia Guarani, que não só o humano é uma palavra encarnada,
como seus próprios Deuses e seres co-criadores manifestam-se através de sons que são
transmitidos e materializados em vidas na Terra. Percebe-se a indissociabilidade entre gente e
natureza, matéria e espírito, vivente e divindade, estando todos os seres intrincados por uma
substância comum, o som. Considero, portanto, que o som, a palavra e a música não apenas
estão na base da mitologia Guarani, eles são essa base: a essência de tudo o que existe e também
o meio pelo qual outras esferas e dimensões da existência se afetam e se comunicam.
Davi Yanomami Kopenawa também revela traços da cosmovisão oral Yanomami, que
em muito se assemelham à narrativa Guarani. Para ele, as palavras que foram narradas a Bruce
Albert no processo de composição de A queda do céu não eram palavras suas, mas de Omama
(divindade criadora), que ele trazia guardadas no fundo do seu pensamento e da sua alma, “são
palavras antigas, mas os xamãs as renovam o tempo todo. Desde sempre elas vêm protegendo
a floresta e seus habitantes” (2015, p. 65). Aqui vemos, mais uma vez, a palavra (que na
cosmogonia guarani é referida como o verbo) sendo herdada da divindade e sendo valorizada
como uma força capaz de repercutir no mundo para gerar e proteger a vida. Lembro também
que para ambos os povos, os sons tanto das palavras/verbos quanto da música são sagrados. Em
outro trecho relevante para a discussão, lemos:

Assim, há tantos tipos de árvores amoa hi quantos nossos modos de falar


[línguas]. De modo que xapiri [espíritos] que descem na floresta possuem uma
quantidade infindável de cantos diferentes. É por isso, que os xamãs visitantes
de casas distantes podem nos dar a ouvir cantos desconhecidos. Há muitas
dessas árvores amoa hi nos confins das terras dos brancos, para além da foz
dos rios. Sem elas, as melodias de seus músicos seriam fracas e feias. Os
espíritos sabiá levam a eles folhas cheias de desenhos que caíram dessas
árvores de canto. É isso que introduz belas palavras na memória de sua língua,
como ocorre conosco. As máquinas dos brancos [impressoras] fazem delas
pele de imagem [folha impressa] que os cantores olham, sem saber que nisso
imitam coisas vindas do xapiri. Por isso os brancos escutam tanto rádios e
gravadores! Mas nós, xamãs, não precisamos desses papéis de cantos.
Preferimos guardar a voz dos espíritos no pensamento. Assim é. Transmito
essas palavras pois eu mesmo vi, após nossos maiores, os inumeráveis lábios
moventes das árvores de cantos e a multidão dos xapiri se aproximando delas.
Eu as vi de perto, em estado fantasma, depois de meu sogro ter me dado de
beber o pó de yãkoana [planta]. Eu ouvi mesmo suas melodias infinitas se
entrelaçando sem parar (2015, p. 115).

Esse riquíssimo relato reforça a importância da música para os povos originários e, ao mesmo
tempo, nos fornece uma compreensão de como a música está presente na cosmovisão, na
religiosidade e no dia a dia desses povos. É interessante notar que novamente temos um
intermédio da música divina criacional realizado aqui pelos xapiri (espíritos da floresta) e pelas
24

árvores amoa hi; enquanto na narrativa Guarani, pelos cocriadores. O relato de Kopenawa
recupera experiências de sua iniciação xamânica e ele sustenta algo bastante inesperado nesse
trecho: a fonte de inspiração musical de Yanomamis e não indígenas seria a mesma, as árvores
amoa hi ou árvores do canto que existem nos confins do mundo. A existência de axis mundi já
foi estudada por inúmeros mitólogos ao longo dos anos. Duas referências mais conhecidas sobre
o assunto são, provavelmente, Mircea Eliade (2011) e Joseph Campbell (1995), que dedicaram
capítulos de seus escritos à árvore da vida ou eixo do mundo. A figura da axis mundis é
difundida em diversas mitologias religiosas e étnicas: cristianismo, judaísmo, jurema, povos
maias, hindus, vikings etc. Na cosmologia Yanomami, a árvore que canta ressalta ainda mais o
aspecto vivo da música e a ligação dos povos originários com a natureza e sua sabedoria.
Cito ainda duas obras que dialogam com as narrativas acima mencionadas por serem
objetos-performances musicais que ressaltam a importância da música e das cosmovisões que,
em suas riquezas culturais e artísticas, estão na base do nosso fazer musical brasileiro, uma vez
que dos povos tradicionais herdamos não somente traços fenoótípicos, mas, nossa própria
musicalidade tem raízes fincadas nas tradições originárias, o que lhe confere ainda mais beleza
e força e que nos diferencia daquelas compostas em outras terras, pois é carregada também da
originalidade e da idiossincrasia da gente originária dessa terra.
Abaixo, vemos um frame do videoclipe Amoa Hi8, da musicista e historiadora Camila
Lordy, lançando em 2021 com animação de Márcio H. Mota, cuja composição homenageia o
texto de Davi Kopenawa citado anteriormente.

Figura 1 – Frame do videoclipe de Amoa-Hi: o menino-xamã vai à árvore que canta

Fonte: YouTube

8
Ver vídeo completo em: <https://www.youtube.com/watch?v=JXvMNgNbITc&t=1s>.
25

A peça audiovisual é um exemplo de como as narrativas e musicalidades indígenas continuam


influenciando a inventividade sonora nacional. A produção das canções e dos videoclipes, assim
como a produção de um livro disponível em diversos formatos e plataformas como Kobo,
Kindle etc. foram contempladas pelo projeto RespirArte da Funarte e, nas palavras da própria
Lordy (2021, n. p.),

AMOA HI nasceu de uma proposta que fiz para um artista de Brasília, Márcio
H Mota, para interpretar a história do xamã Yanomami, Davi Kopenawa, ao
visitar os confins da Terra onde estão escondidas as árvores com troncos de
lábios que cantam sem parar. Para minha alegria e surpresa, o Márcio
compreendeu tão bem o espírito da história que não precisei acrescentar nada,
só estimular a viagem para um mundo espiritual muito bem traduzido por esse
animador.

Camila Lordy, que se inspirou e se encantou pela narrativa Yanomami, também compôs, em
parceria com Pedro Ito, a faixa intitulada “Ñmandu”, cuja origem é a narrativa mítica dos Tupi-
Guarani e o cerne é a sacralidade do som e a ideia “d’A Grande Escuta”, pois, para os povos
desse grande tronco, o objetivo humano é se tornar um Avaeté ou Abaeté, que “é o ser
verdadeiro que aprendeu a escutar com o coração a melodia escondida em cada corpo, em cada
forma criada pela “Grande Escuta” [natureza divina]. Aprender a escutar é a grande tarefa do
ser humano” (LORDY, 2021, n. p.). Retornarei ao texto de Camila Lordy nas análises, retomo-
o aqui apenas para destacar a riqueza dessas mitologias e sua profunda influência no fazer
artístico, especialmente musical, brasileiro.
Já a obra apresentada a seguir está localizada em uma colina em Burnley, condado de
Lancashire-Inglaterra, e é uma escultura gigante em formato de árvore, formada por milhares
de tubos de aço galvanizado, cujo resultado é a produção de sons parecidos com os de uma
flauta, que ocorrem de acordo com o vento que atravessa os tubos. O nome da peça é “Singing
ringing tree” e foi concebida por Mike Tobin e Anna Liu, no ano de 2006, atraindo turistas e
curiosos/as por sua característica inusitada de produzir música por meio do movimento das
correntes de ar. Uma obra como essa presentifica a música através dos sentidos e pode levantar
o questionamento sobre o que é música e quem faz música. Por ser a peça confeccionada em
formato de árvore, remete à árvore Amoa hi e outras axis mundi e intervenções artísticas9 que

9
Para mais obras artísticas que produzem sons a partir de fontes naturais, cf. “7 esculturas sonoras que permitem
que a natureza seja música”, MDIG (2019) disponível em: <https://www.mdig.com.br/index.php?itemid=36897>.
26

nos levam a questionar os eixos e os sentidos da existência humana por meio da arte e da
mitologia.

Figura 2 – The singing ringing tree – A árvore que canta

Fonte:site Mdig

Assim como a Amoa Hi e a representação artística da “árvore que canta”, temos em nossa
cultura diversas árvores que são sagradas como o baobá, para os povos Yorubá e seus
descendentes; a Jurema, o juazeiro, a sumaúma e a paixiúba para indígenas, entre outras. Além
de serem árvores que simbolizam a axis mundis, também são plantas com propriedades
curativas.
Uma vez que estabeleci, por meio desses diálogos entre os conceitos de palavra, verbo
e música, as fontes e pontes entre o fazer musical e a representação e filosofia cosmogônica e
identitária que partem de povos originários, mas também abarcam e se alastram por diversas
culturas e localidades, passo a apresentar o corpus e como se deu sua seleção na seção que
segue.

1.3 Repertórios: diálogos entre as teorias e canções analisadas

A seleção do corpus deu-se, inicialmente, por meio da busca por palavras-chave nos
portais de pesquisa e pelo escrutínio de letras de canções que tematizavam pessoas, povos ou
culturas indígenas, desde 1900 até o ano de 2021. A pesquisa abrangeu canções gravadas em
LP’s e CD’s, lançadas em plataformas de áudio e vídeo (como Youtube, Spotfy, Deezer etc.) e
27

em sites especializados em músicas e veiculadores de letras de canções encontrado através de


mecanismos de busca online (Google, Yahoo! e Bing). Num primeiro momento, identifiquei
mais de 50 canções cujas letras falavam explícita ou implicitamente sobre pessoas e temas
ligados aos povos originários; selecionei, dentre elas, apenas aquelas que apresentavam
recorrências temáticas/formais que se demonstravam como representativas das identidades,
estéticas, lutas e cosmovisões dos/sobre povos nativos. Nessa etapa, selecionei as seguintes
canções: “Xondaro ka’aguy reguá” (2018), de Kunumi Mc; “Um índio” (1977), de Caetano
Veloso; “Tubi tupy” (1999), de Lenine e Carlos Rennó; “Mãos vermelhas” (2018), de Kaê
Guajajara; “Indígena futurista” (2022), de Katu Mirim; “Serpente mulher” (2021), de Suraras
do Tapajós; “Amor de índio” (1978), de Beto Guedes. Essas peças apresentam uma diversidade
bastante pronunciada, tanto em termos de ritmos quanto de público que alcançam, meios de
produção, de circulação e até de idiomas (há canções em Guarani, por exemplo). Em minha
análise, essa é uma característica benéfica, pois demonstra o hibridismo presente nessa mesma
diversidade e em suas misturas, porém sem torna-se aculturado ou submisso à cultura
dominante. Retrata, além disso, a amplitude do alcance desse cancioneiro e de suas figurações,
possibilitando, também, um espaço dialógico entre teorias que enriquece o debate sobre os
postulados dessas áreas.
Uma vez selecionadas as canções e demonstrada sua relevância em se tratando das
figurações acima mencionadas – por meio das análises –, a criação de um panorama de
representação do/a indígena foi vislumbrada. Ao examinar o corpus em relação às teorias
propostas como marco teórico e observando as características gerais desse conjunto de
peças, busquei evidenciar, por meio de uma leitura decolonialialista, o uso de estratégias como
hibridismo, intertextualidade e paródia na reformulação das imbricadas noções de
natividade/identidade/nacionalidade, especialmente no contexto globalizado em que nos
situamos.
Percebi, no entanto, que a especificidade do corpus demandava uma aproximação entre
as teorias correntes propostas (feminismo/interseccionalidade, hibridismo cultural e identidade)
e as cosmovisões e filosofias indígenas que proporcionassem um entendimento artístico e
ontológico diferenciado, pois, caso tal movimento não fosse realizado, algumas das questões
mais peculiares do corpus (por exemplo, a tendência a representações de subjetividades
coletivas, a ligação com a terra, a relação diferenciada com a natureza, cosmovisões etc.)
poderiam via a ser apagadas ou deformadas em decorrência da abordagem analítica e do
etnocentrismo de uma proposta que não buscasse entender as relações marcadamente
identitárias presentes na seleção em relevo. A partir dessa aproximação entre teorias, foi
28

possível, entre outras contribuições, propor o indiofuturismo para analisar um repertório que
apresenta características únicas, reclamando assim um conceito inédito e mais apropriado ao
seu estudo.
No capítulo que versa sobre os embates de gênero, por exemplo, o estudo desvela a
profunda ligação entre corpo, território e espírito que existe na base da ontologia das mulheres
indígenas, motivo pelo qual a hierarquização das múltiplas opressões por elas sofridas ganha
uma organização diferencial em relação à das mulheres não indígenas. Tal fato mostra-se na
composição artística, dando um maior relevo à mimetização de problemáticas como a
demarcação de terra e a manutenção da cultura, embora a luta contra a violência impulsionada
pelos preconceitos de gênero não seja deixada de lado.
O já mencionado indiofuturismo é outro conceito que nasce das especificidades da
figuração indígena na música popular, uma vez que há um conjunto de canções que tematizam
uma inserção cultural da natividade no presente-futuro do Brasil que, ao mesmo tempo em que
retoma e exalta elementos ancestrais, dialoga com as tecnologias digitais e imprime um caráter
combativo aos discursos poéticos das canções analisadas.
A análise de temáticas relativas à terra e ao modo de ser e viver indígenas revelam
também, diante dessa cosmovisão distinta, uma necessidade de promover diálogos entre as
teorias do Ecofeminismo e do bem viver, unindo e confrontando maneiras de leitura da realidade
ambiental. Esse diálogo se mostra necessário e transversal nesta tese, haja vista, por
exemplo, que o Bem Viver, estando profundamente arraigado na identidade nativa, permeia e
impacta também as noções de poético e de poesia.
Esta tese demonstra, então, que entre as peças constituintes do presente
corpus apresentam-se características heterogêneas e contrastantes, não somente pela diferença
ontológica, mas também na maneira como essa diferença orienta distintamente os fazeres
poéticos, a partir dos eixos temáticos recorrentes, tais como: diferença racial, futurismos,
ancestralidade, ambientalismo/território. Saliento ainda que a diferença ontológica que destaco
é concernente à relação identitária que, para o/a indígena, é prioritariamente coletiva, em
contraponto à visão individualista ocidental. As poéticas indígenas reclamam a necessidade de
uma análise que considere valores diferenciais não calcados no etnocentrismo ou apenas na
visão canônica ocidental de arte que, de maneira geral, é ainda muito afim à crítica acadêmica.
Ademais, composições de indígenas e não indígenas podem ser comportadas numa mesma
poética, se levarmos em consideração o espaço fronteiriço identitário que é, especialmente no
Brasil, provisório e instável, levando, por exemplo, pessoas não indígenas a construírem com
sucesso em sua poética espaços interstícios que se filiam às temáticas e aos modos de dicção
29

indígenas. Considero, por isso, como indígena toda poética (independentemente de sua autoria,
do seu ritmo, do seu idioma ou da temporalidade) que se alinhe aos tropos aqui apresentados e
que se valha da figuração indígena, uma vez que na literatura nativa não existe a eleição de um
cânone poético hierárquico de modo similar ao cânone ocidental.

1.4 A imagem dos povos indígenas nas páginas da literatura brasileira

O trecho a seguir integra o primeiro documento oficial produzido no Brasil, por Pero
Vaz de Caminha, e endereçado ao rei D. Manuel, dando conta das terras recém-achadas, àquela
ocasião nomeadas Terra de Vera Cruz. Esse fragmento em particular narra o primeiríssimo
contato (ao menos de que temos conhecimento) dos colonizadores com os nativos que se
apresentaram ali à praia para testemunhar a chegada de estranhos visitantes em suas terras:
“Eram pardos, todos nus, sem cousa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Nas mãos
traziam arcos com suas setas. Vinham todos rijos sobre o batel; e Nicolau Coelho lhes fez sinal
para que pousassem os arcos. E eles pousaram” (CAMINHA, 1500, p. 2). Os guerreiros
acudiram armados à borda das águas, no entanto, desarmaram-se ao primeiro sinal de que os
forasteiros vinham em “missão de paz”. Mas não é de paz que falam os números que dão conta
da extinção de milhões de pessoas e de suas culturas. Todavia, a descrição de homens e
mulheres pardos e inocentes confraternizando com os recém-chegados sugere reverência e
subserviência dos povos indígenas aos estrangeiros. Essa representação de natividade,
eternizada pela carta de Caminha, entrará para a história influenciando enormemente uma certa
visão estereotipada de indígena brasileiro/a que se perpetua.
A importância desse documento e de suas descrições e elucubrações é imensa, pois é o
primeiro registro de representação dos povos nativos brasileiros que vamos encontrar e
muitos/as brasileiros/as tiveram (e ainda têm) acesso a trechos dessa narrativa, desde a mais
tenra idade, nas salas de aula. No ambiente escolar, também somos expostos/as às
representações de indígenas por meio das canções10 e da literatura voltadas ao público infantil
(a maioria delas reprodutoras dos estereótipos correspondentes à primeira visada de Caminha);
tal construção culmina com a data comemorativa de 19 de abril.
Essas representações, que vão informar o imaginário popular, sofrem mudanças desde
o período colonial, mas mantêm, quase sempre, aspectos estereotipados e cristalizados. Esses
estereótipos estão inscritos na história, uma construção social e discursiva que parte,

10
Somente para citar os exemplos mais famosos: “Curumim Iê Iê”, gravada por Mara Mavilha, “Brincar de
índio”, performada por Xuxa Meghel.
30

obviamente, daquelas camadas sociais cuja produção intelectual/cultural é ouvida, disseminada


e celebrada nos meios sociais. Vivemos, portanto, imersos/as numa construção ideológico-
discursiva que não surge de maneira harmoniosa e diversa, mas, sim, pela associação, pelo
embate e pela assimilação de diversos discursos construídos e reforçados ao longo do tempo e
de acordo com as convenções e hierarquias sociais do contexto de formulação e circulação
desses dizeres. Considerando a arte poética como possível meio/local de criação, assimilação e
disseminação de discursos e imagens, é possível entender como obras ficcionais podem ter
concorrido para a formação da “identidade brasileira” ao longo da nossa jovem história literária
nacional. A concepção de literatura que adoto engloba não somente os gêneros canônicos da
prosa, da poesia e do teatro veiculada por livros, mas também a literatura oral na qual se incluem
as formas como contos, poesia popular e canção, com ênfase nesta última. Ao tratar a canção
como uma manifestação híbrida, adoto as já conhecidas e correntes possibilidades teóricas que
passam a se estender entre literatura e música.
Reconheço que há estudos empreendidos por diversos/as autores/as 11 na literatura
escrita que se ocupam de delinear uma trajetória da construção de identidade nacional e que
mesmo a representação do/a indígena nesse constructo estético tem sido apreciada por eles/as.
No entanto, é preciso ressaltar que as diversas imagens de indígenas que circulam na
literatura/cultura não surgem de forma arbitrária e isenta. De modo geral, cada variação vai
servir aos propósitos socioeconômicos e à orientação política vigente da elite dominante de
cada período histórico. Essa representação constitui um projeto que visa atribuir ao/à indígena
a imagem necessária ao cumprimento dos interesses dessa mesma elite.
A representação do/a indígena pelo colonizador vai, num primeiro momento (por via
das crônicas, das cartas e dos sermões), justificar a colonização para a exploração das riquezas
da terra, pela necessidade cristã de levar, para aqueles povos bárbaros e belos, a civilização e o
conhecimento de Deus, tirando-os do abismo de ignorância em que viviam por inocência;
depois, ela vai se reconfigurando conforme o momento econômico, político e cultural. Mais de
uma vez, na história do país, a figura do/a indígena representou o ideal de ancestralidade e de
natividade, ingrediente indispensável à construção da identidade nacional. 12

11
Cf. Sérgio B. de Holanda (2013), Darcy Ribeiro (1995), Renato Ortiz (1985), Gilberto Freyre (1985), entre
outros.
12
Diversos movimentos políticos e econômicos vão se apropriar da imagem de indígena para pleitear o
cumprimento de suas agendas que, muitas vezes, incluíam como projeto fomentar certa identidade nacional. Pode-
se citar, como exemplo, o movimento integralista propalado por Plínio Salgado, que alardeava a união nacional,
incluindo o uso da figura do índio, do negro e da mulher como bandeiras da união nacional, visando inflamar o
sentimento ufanista na população. De acordo com Rogério Sousa e Silva (2005), “as ideias nativistas foram uma
das principais características do movimento integralista. As culturas indígenas eram vistas como parte essencial
31

Cito, além da carta, algumas obras alinhadas à visão “civilizatória” para demonstrar a
constância da representação indígena e seu papel na formação de uma nacionalidade e de suas
transformações ao longo do tempo. Começo o percurso de citações de obras que se ocuparam
da representação do/a indígena como elemento de identidade nacional pelos poemas: O Uraguai
(1769), de Basílio da Gama, e Caramuru (1781), de Santa Rita Durão, sendo os dois autores de
nacionalidade portuguesa. Situadas dentro da estética neoclássica árcade, e por isso mesmo
muito ligadas ainda à visão estética europeia, as duas obras bebem da fonte de Luís de Camões,
possibilitando a análise intertextual comparativa com os versos épicos de Os Lusíadas (1572).
Elas podem ser destacadas como representativas da questão indígena, antes mesmo das
celebradas peças do Romantismo, que recebem, de maneira geral, mais atenção da crítica.
Também menciono os sermões do Padre Antônio Vieira que se referem à imagem de pessoas
indígenas.13
Contudo, na literatura brasileira, é com o Romantismo que os valores ufanistas nacionais
são levantados (aparentemente) em detrimento dos estrangeirismos. E, retratando “o índio”
como herói mítico, ganham mais força. Além disso, conforme caracterizou Luís Fiorin (2009,
p. 115-116):

Os autores românticos, com especial destaque para Alencar, estiveram na


linha de frente da construção da identidade nacional. Entre todos os livros de
Alencar, o mais importante para determinar esse patrimônio identitário é, sem
dúvida, O guarani. Nele determina-se a paisagem típica do Brasil (o espaço
da eterna primavera, onde não ocorrem cataclismos naturais, como furacões,
tornados, terremotos etc.), a singularidade de sua língua, mas principalmente
o casal ancestral dos brasileiros [...]. Começa-se, no Romantismo, a construir
a noção de que a cultura brasileira se assenta na mistura.

Essa exaltação da miscigenação que começa no Romantismo é retomada pelo Modernismo de


maneira mais visceral, menos eufêmica, com a tentativa de incorporar a figura indígena ao todo
nacional pela antropofagia, contrapondo-se ao ideal romântico e construindo um índio
destemido, antropófago, anti colonizador, defensor das terras, que mimetizava o desconforto
com as práticas colonizadoras e reiterava valores pátrios a partir do exercício da identidade.
Essa reiteração não se dava de modo plácido ou despropositado, mas representava, nesse
contexto, uma “construção identitária, que se assentava também sobre a mistura, pois

da formação brasileira”. O autor ainda aponta para uma certa influência do Modernismo nas ideias integralistas,
apesar de ressaltar também “uma espécie de resgate do Romantismo” no que concerne à ideia de “reinvenção da
nação e na nova independência” a ser promovida pelo movimento, em que “o índio seria o símbolo brasileiro por
excelência”.
13
Cf. Melo (2013) para um estudo sobre a construção da alteridade nativa no discurso religioso.
32

considerava a mestiçagem como o jeito de ser brasileiro” (FIORIN, 2009, p. 120), por meio de
um processo de assimilação e, por conseguinte, modificação do que é significativo e importante
das outras culturas. “Não é sem razão que Oswald de Andrade erigiu a antropofagia como o
princípio constitutivo da cultura brasileira” (FIORIN, 2009, p. 120).
Com uma representação mais próxima à realidade social e mais crítica da condição do
indígena, encontraremos, nas dicções de Antônio Callado (1984), Darcy Ribeiro (1993) e
Guimarães Rosa (2001), uma identificação da pessoa mestiça imersa numa situação identitária
de não pertença. A representação dos/as indígenas nesses autores tende a se afastar da suposta
e alardeada “mistura” harmoniosa de raças e culturas que formaria a identidade nacional. Em
outras palavras, essa linha de representação passa a apresentar heterogeneidades
identitárias/étnicas resultantes da aculturação. A esse respeito, cito Luzia Aparecida dos Santos
(2009), cujo trabalho cuidadoso traça um excelente histórico do trânsito de representação
indígena na literatura.14 Ela ressalta essa característica e, ao mesmo tempo, aponta para a
diferença entre esse tipo de representação, que denomina indigenista, e aquela anteriormente
empreendida pelo movimento Romântico, que é chamada de indianista.
Mais recentemente, autores/as contemporâneos têm tido uma visibilidade um pouco
maior, especialmente no campo da autorrepresentação, construindo suas bases literárias de
maneira plural e a partir do conhecimento direto da realidade desses povos e da ancestralidade
que existe e resiste na oralidade. Alguns nomes que têm se destacado mais fortemente nessa
seara são Davi Kopenawa Yanomami, Daniel Munduruku, Ailton Krenak, Lia Minapoty, Graça
Graúna, Carlos Haky’i, Eliane Potiguara, somente para citar alguns exemplos. Usando as
palavras da escritora Graça Graúna:

A literatura indígena contemporânea é um lugar utópico (de sobrevivência),


uma variante do épico tecido pela oralidade; um lugar de confluência de vozes
silenciadas e exiladas (escritas) ao longo dos mais de 500 anos de colonização.
Enraizada nas origens, a literatura indígena contemporânea vem se
preservando na auto-história de seus autores e autoras e na recepção de um
público-leitor diferenciado, isto é, uma minoria que semeia outras leituras

14
Cf. O Percurso da Indianidade na Literatura Brasileira (2009), obra ao longo da qual Luzia Aparecida Santos
teoriza ocupando-se de criar um panorama de representação indígena ao enfocar diversas obras literárias. Entre
essas obras, estão: A carta do descobrimento, de Pero Vaz de Caminha; Iracema, O guarani e Ubirajara, de José
de Alencar; Os timbiras e I-Juca Pirama, entre outras obras da poética de Gonçalves Dias; alguns poemas
escolhidos das obras de Gregório de Matos e Oswald de Andrade; trechos de Sermões, de Padre Antônio Vieira;
Uraguai, de Basílio da Gama; Macunaíma, de Mário de Andrade; Maíra, de Darcy Ribeiro; Meu Tio o Iauaratê,
de Guimarães Rosa; Quarup, de Antônio Callado; Jupira, de Bernardo Guimarães; Cobra Norato, de Raul Bopp;
Poemas: lírica portuguesa e tupi, de José de Anchieta. As obras citadas foram alvo de análise por parte da autora
mais detidamente, no entanto, em seu livro, ela cita outras obras brasileiras que tematizam a representação do
indígena, fazendo um trabalho extenso e primoroso sobre o tema no campo da teoria literária.
33

possíveis no universo de poemas e prosas autóctones (GRAÚNA, 2013, p.


15).

Dialogando com a citação de Graúna, Ana Cristina Martinez (2021) afirma que, atualmente, há
mais de 60 autores e autoras indígenas nos mais diversos gêneros de escrita, tanto ficcionais
quanto não ficcionais (conto, romance, poesia, ensaios, documentários, autobiografias, entre
outros). Martinez ainda levanta uma problemática importante para a historiografia da literatura
indígena: “A Literatura Indígena sempre existiu, antes, durante e após a eterna invasão e do
‘contato’ de 1500, o que estamos presenciando na atualidade é a ‘captura’ de um instrumento
de poder e dominação ocidental, sendo transformado nas mãos indígenas em instrumento de
resistência e de luta pelos direitos indígenas”. É importantíssimo atentar para o fato de que a
cultura e a literatura já existiam aqui antes da chegada dos europeus.
Outro fato que julgo relevante é a ideia de que os povos indígenas eram povos ágrafos. O
conceito de grafia toma conotações ocidentalizadas a partir da adoção do alfabeto latino como
forma de “traduzir” a palavra falada (sons) em meio escrito (código alfanumérico). Estamos tão
familiarizados/as com a grafia do alfabeto latino como forma de grafar os sons de um idioma
que esquecemos ou ignoramos que as letras que usamos para escrever no mundo ocidental são
também símbolos, grafismos que representam sons, palavras e ideias. Por essa lógica, é possível
considerar o grafismo como uma forma de escrita, que, porém, não é aceita ou reconhecida por
não ser hegemônica.
O advento das publicações de obras de autores/as indígenas que se inicia na década de
1970 e se intensifica após a Constituinte (1988) tem tomado força, fazendo surgir editoras,
eventos e pesquisas que giram em torno de sua produção, construção, circulação e recepção.15
Como já dito, apesar de a literatura indígena ser anterior à colonização, um movimento
de crítica literária e de reconhecimento das obras artísticas e ensaísticas vem sendo construído
dentro e fora da academia para analisar, problematizar e teorizar acerca dessa escrita. Algumas
dessas obras constituem-se como “contra-narrativas” literárias (GRAÚNA, 2013), por serem
textos que reescrevem a representação indígena contradizendo aquelas escritas por autores não
indígenas que, ao ficcionalizarem o/a indígena, o fazem por meio da criação de estereótipos que
se cristalizaram em nossa literatura. A autorrepresentação é também uma estratégia de
“dessilenciamento” (SILVA FILHO, 2019) das vozes de escritores e escritoras nativas que
inserem, na literatura brasileira, novas narrativas e poéticas que falam daqueles/as cujos saberes

15
A respeito da crítica e da historiografia da literatura indígena, recomendo a leitura dos trabalhos de Graça Graúna
(2013), Amanda Machado Alves de Lima (2012), Joel Vieira da Silva Filho (2019), Maria Inês de Almeida (2009),
Janice Thiél (2012) e Ana Cristina Martinez (2021).
34

e artes estavam ainda interditos por desconhecimento e pelo apagamento cultural que nossa
sociedade promove contra as minorias étnicas no país.
Uma vez realizado esse rápido percurso literário, passo agora a discorrer sobre os
conceitos de música popular e definições acerca do cancioneiro e autoria que norteiam a tese e
explicito a maneira como ela está organizada.

1.5 Mosaico sonoro: múltiplos ritmos do cancioneiro brasileiro

Ao assumir a canção como forma literária, parto do pressuposto de que a tensão crítica
que outrora dicotomizava o binômio literatura-cancioneiro já é algo superado,16 especialmente
na área da Literatura Comparada e dos Estudos Culturais, cuja profusão de trabalhos nesse tipo
de corpus literário é significativa. Trabalhos como o de Fábio Cecchetto (2011) evidenciam a
atenção e o acatamento por parte da crítica literária sobre o cancioneiro. Nomes como Roberto
Schwarz, Afrânio Coutinho e Antonio Candido demonstram muito claramente que até entre
críticos que trabalham, preferencialmente, com uma perspectiva literária mais canônica, a
apreciação da canção como objeto literário não é mais causa de contestação. Cecchetto (2011)
é extremamente didático e lúcido ao lançar à luz a categoria música popular brasileira que, de
acordo com o autor, só pode ser considerada popular em oposição à música erudita clássica,
pois é feita e consumida prioritariamente por uma determinada camada populacional que é a
classe média. Tal afirmação, além de destacar o caráter lúdico e lírico da música, especialmente
da MPB, delineia a especificidade dessas composições, que permitem uma leitura analítica pelo
viés do hibridismo tanto de gênero quanto de discurso sociopolítico, favorecendo a discussão
realizada por meio desta tese acerca da representação da identidade nacional, a partir do
elemento indígena.
A canção é, também, uma forma literária que alcança um público bem mais amplo que
a modalidade escrita, uma vez que sua apreciação independe do/a ouvinte ser ou não letrado/a.
Além disso, pela especificidade da oralidade, esta tem um maior apelo/aceitação junto à
população, informando e veiculando o imaginário popular. Isso não implica uma simplificação
do objeto artístico, já que, como em qualquer forma de arte, diferentes peças, autores/as e
épocas vão apresentar diferentes níveis de aprofundamento crítico. Trata-se de ressaltar o
caráter, geralmente, mais expansivo e democratizante da música no Brasil, em que o acesso a
rádios, gravações de áudio e vídeo por meio de mídias digitais e televisivas é muito mais efetivo

16
Destaco, como exemplo disso, a premiação do compositor e cantor Bob Dylan com o Nobel de Literatura e,
mais recentemente, Gilberto Gil sendo eleito para a Academia Brasileira de Letras.
35

que o acesso ao livro.17 Em segundo lugar, o estudo da representação indígena nas canções
populares possibilita análise comparativa do tema nas duas manifestações (literatura escrita e
canção), podendo revelar diálogos, paródias, paráfrases etc. entre elas. Tais especulações
nascem de um levantamento inicial em que recolhi essas canções e da constatação de que alguns
desses procedimentos apresentam-se nesses exemplares. O recorte temporal adotado para a tese
vai desde os anos 1900 até os dias atuais, pois compreende o período em que começam a ser
gravadas as primeiras canções em território nacional e coincide também com o início da
popularização do rádio no Brasil (CALABRE, 2004, p. 2).18 No entanto, nem todas as canções
encontradas foram analisadas, pois primei por dar destaque àquelas que apresentam
recorrências de metáforas e temáticas que compõem o escopo deste trabalho.
No campo da música, embora possa ainda haver alguma ligação com as escolas e com
os movimentos literários que sacodem de tempos em tempos as concepções estabelecidas por
seus/suas predecessores/as, as influências e tendências de representação étnica não obedecem
ou se encaixam em escolas de maneira tão evidente quanto na literatura. Apesar de alguns
movimentos se destacarem na história da música brasileira (como a Bossa Nova, a Tropicália,
a Jovem Guarda, entre outros), é possível considerar esses estilos e essas rupturas sob o grande
guarda-chuva da MPB. O rótulo MPB carrega diferentes acepções, pois, ao mesmo tempo em
que se coloca como popular, apresenta-se, de alguma maneira como elitista, por ser consumida
prioritariamente por pessoas de classe média e alta. Assim, faz-se importante esclarecer o
polêmico conceito de MPB nesse contexto. Nos termos de Cechetto, já mencionado
anteriormente,

esse paradoxo identitário não deixa de revestir-se de um caráter tão lúdico


quanto literário, pois em fingir-se popular, a MPB acaba criando espaços
poéticos – eventualmente fictícios – nos quais desenvolve seu programa.
Neste tempo-espaço inventado, os compositores misturam elementos culturais
de diversas camadas sociais, o que promove um apagamento das fronteiras
entre os elementos que provêm de cada uma delas, amalgamando-os
(CECCHETTO, 2011, p. 5-6).

17
Fundamento minha afirmação em duas pesquisas a respeito do mercado literário e fonográfico. A primeira,
encomendada pelo Instituto Pró-livros, concluiu que a leitura é um hábito de apenas 56% da população; enquanto
a segunda pesquisa, encomendada pela Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão – ABERT,
demonstra que mais de 90% da população tem acesso ao rádio. Acrescento que inúmeras pesquisas têm sido
realizadas motivadas pelo grande aumento do consumo de música proporcionado pelas novas mídias (streaming,
podcast) e pela facilidade no uso de múltiplos dispositivos (como smartphones, reprodutores de mp3,
computadores etc.) para a audição de música.
18
O que concorre para novas e mais acessíveis maneiras de consumir e de fazer circular música no país, dando
maior rotatividade aos discursos veiculados por essas canções.
36

O estudioso problematiza, especialmente, o termo popular, levando em consideração, para isso,


o contexto de composição, difusão e recepção dessas canções pela classe média que, de maneira
geral, defende a qualidade dessas canções como peças de uma cultura mais “refinada” (não raro
frente à comparação que desvaloriza outros estilos musicais). Todavia, tal fenômeno também
revela o caráter carnavalesco e democratizante dessa vertente em que elementos culturais de
diversas camadas sociais aparecem mesclados, criando uma espécie de amálgama. Essa
afirmação encontra respaldo nos estudos sobre a cultura, especialmente se considerarmos a
insistência do discurso da mistura e da miscigenação identitária presente tanto nas obras
culturais/ficcionais quanto nas teorias sobre cultura e identidade brasileiras. O ponto aqui
defendido é que, em grande parte da produção da MPB, o conceito de mestiçagem é uma
constante, pois a consciência do hibridismo revela também, até certo ponto, a consciência da
mistura étnica engendrada pela colonização e, mais recentemente, pela globalização. Não
afirmo, pois não acredito, que a consciência da mistura resulte numa aceitação e num
entendimento mútuo e plácido das matrizes culturais que são parte dela. Apenas realço que o
imaginário cultural e científico brasileiro é permeado por essa concepção.
Partindo dessa concepção de música popular como sinônimo de cancioneiro nacional
brasileiro, analiso canções que se filiam a variados ritmos, do rap ao carimbó, passando pelo
que a termo estrito se considera MPB. Um dos ritmos mais recorrentes nas análises é, com
certeza, o rap, visto que jovens indígenas têm se apropriado da cultura hip hop para performar
suas composições.
A sigla MPB é entendida como um certo jeito de compor e cantar permeado por uma
ideologia levemente mutante (que baila ao sabor do tempo) que engloba desde a bossa nova à
chamada novíssima MPB. Infelizmente, a utilização dessa sigla vem causando disputa e
controvérsia entre os/as críticos/as e confusão entre os/as ouvintes. O rótulo MPB passou a ser
alargado ao ponto de se esgarçar e tornar-se indeterminado, comportando Tom Jobim, Caetano
Veloso, Elis Regina, Ana Cañas, Jorge Vercillo e Lenine sob o mesmo guarda-chuva. Portanto,
ao utilizar a nomenclatura música popular, parto do entendimento de que música popular, no
contexto desta tese, é a música composta, produzida e disseminada prioritariamente em
território nacional, que se diferencia da música erudita e pode abrigar, sob sua nomenclatura,
diversos ritmos (rock, forró, carimbó, tecnobrega, tropicália, bossa nova, rap, reggae, world
music etc.) que têm lugar e público na escuta das massas populares no Brasil. A fim de evitar
entendimentos dúbios, utilizarei a nomenclatura música popular nesse sentido mais abrangente,
dissipando a polissemia no uso dessa expressão.
37

Isso posto, passo à descrição da organização desta tese. No capítulo “Perspectivas de


gênero sobre a figuração da mulher indígena” em que analiso as canções “Indígena futurista”,
de Katu Mirim e “Mãos vermelhas”, de Kaê Guajajara, ambas sob o prisma das relações de
gênero, buscando aproximações e diferenças entre as teorias da interseccionalidade
(LUGONES, 2014; ANZALDÚA, 2016; MENDOZA, 2016) e o feminismo comunitário
(PAREDES, 2010; 2015; 2018). A análise realizada revela uma ligação intrínseca entre corpo,
território e luta das mulheres indígenas na canção de Guajajara, confirmando a necessidade de
aproximação das duas teorias citadas para uma apreciação que englobe os sentidos de
feminismo, gênero e luta por igualdade no contexto da realidade nativa. Já na composição de
Katu Mirim, indígena futurista, a rebeldia e a luta da guerreira contra o colonialismo de raça,
classe, gênero e território, ganha contornos Cyberpunks e dialoga intertextualmente com “O
queres” de Caetano Veloso e com a animação Uma história de amor e fúria (2013), dirigida
por Luiz Bolognesi. A rebeldia e o enfrentamento do sistema colonialista são marcas dessa
guerreira metamorfa que alinha suas forças às forças naturais na defesa de seu território.
Em “Ecos do devir: utopismos e perspectivas indiofuturistas”, postulo o conceito de
indiofuturismo, cuja construção parte das teorizações de Bloch (2005) sobre utopismos, dos
conceitos de hibridismo e da ideia de Terceiro Lugar Cultural (BHABHA, 2003), dos
movimentos artísticos, mais notadamente o afrofuturismo norte-americano (DERY, 1995), e da
antropofagia brasileira (ANDRADE, 1924; 1928) para a criação de um conceito que revela uma
nova tendência e uma dicção diferenciada na figuração indígena na música popular. Para tanto,
analiso as canções “Um índio” (VELOSO, 1977), “Xondaro ka’aguy reguá” (KUNUMI, 2020)
e “Tubi tupy” (LENINE; RENNÓ, 1999), que apresentam um hibridismo cultural pronunciado
e um forte apelo à tecnologia que, aliados à reafirmação identitária e a uma vocação aos
utopismos, acabam por criar uma figuração indiofuturista no contexto musical.
Na última parte desta tese, “O bem viver e o Ecofeminismo”, proponho uma análise da
figuração das questões ambientais no cancioneiro brasileiro e busco traçar um diálogo entre o
conceito de Bem Viver (conforme sistematizado por Acosta, 2016), que parte da filosofia de
povos originários da Abya Yala, e os estudos ecofeministas, discutindo conceitos como
ecologia e sustentabilidade, entre outros. Neste capítulo são analisadas as canções “Serpente-
mulher” (2021) de Suraras do Tapajós e “Amor de índio” (1978) de Beto Guedes. Tais canções,
por meio do hibridismo cultural e interespécies, da reapresentação de valores culturais
indígenas tais como o bem viver e o cuidado com Pacha Mama e por sua concepção espiralar
de tempo são lidas como indiofuturistas. Ademais, realizo aproximações das teorias dos
feminismos e do Ecofeminismo com estudos que nascem dos próprios povos originários, o
38

feminismo comunitário e o bem viver, um trabalho teórico que ainda está em seu início no
Brasil. A relação de inseparabilidade entre os povos indígenas e a terra (território local e o
planeta) fomenta questões acerca do processo de construção da identidade indígena que
remetem às cosmovisões orientadas pelo bem viver e que suscitam importantes diálogos com
os postulados dos estudos ecofeministas como a economia do cuidado, a indissociabilidade
entre ser humano e terra e o equilíbrio.
Finalizo este estudo demonstrando as contribuições dessas teorizações para os campos
teóricos mobilizados e para a própria discussão da identidade nacional brasileira, que é
heterogênea, multifacetada e híbrida, desde sua origem, mesmo tendo passado por inúmeras
reconfigurações desde o advento da invasão de 1500. Desvelo, ainda, a duplicidade identitária
em que se inscreve a identidade do/a indígena “brasileiro/a”, uma vez que este/a se reconhece,
simultaneamente, como cidadã/o do Brasil e de Pindorama, como habitante da Abya Yala e da
América Latina, territórios que coincidem geograficamente, mas que são diversos na construção
de seus imaginários. Tais diferenças tornam-se ainda mais contrastantes, levando em
consideração nossa situação como habitantes da Aldeia Global que se tornou o planeta Terra,
fato que alterou profundamente a nossa relação com a territorialidade e as formas de nos
localizarmos no tempo. Assim, a alteridade das pessoas indígenas encontra-se numa perpétua
fronteira de negociação, seus corpos num eterno campo minado, suas existências em contínuas
lutas por existência. Essa resistência é lida como futurista, pois embora não necessariamente
especule o futuro, abre veredas para que se discuta o presente e para que se revisite o passado,
buscando novos rumos que possam propiciar um futuro adiante. Nomeio, então, como
indiofuturismo o conjunto de canções que apresentam tais características. Seguem suspendendo
o céu e dançando, pensando, amando, produzindo, afetando e sendo afetados/as por nossas
escolhas sobre como e por que nos movemos sobre a face dessa bela e assombrosa rocha azul.
“Projetar-se futuro sem fim” (LENINE; RENNÓ, 1999) é, pois, a maneira de alterar a rota de
nossa própria produção de afetos e sentidos, por vezes, esvaziados pela cosmovisão
homogeneizada da “civilização” ocidental que tem nos levado por caminho extremamente
distópico. Talvez a relação entre os povos indígenas e a terra, aqui mimetizada pelas canções
que compõem o corpus e desvelada pelas análises propostas, possa nos fornecer pistas e “ideias
de como adiar o fim do mundo” (KRENAK, 2018) e, assim, possamos vislumbrar, norteados/as
pela arte indiofuturista (que nos apresenta o novo), tantos horizontes.
39

2 ECOS DO DEVIR: UTOPISMOS E PERSPECTIVAS INDIOFUTURISTAS

A proposta deste capítulo é analisar a representação e autorrepresentação indígena em


um conjunto particular de canções, pelo viés dos Estudos Culturais, enfocando principalmente
peças que apresentam uma orientação de visão espaço-temporal futurista que compreende a
figura indígena como imagem fundante e constante na identidade brasileira, a qual não está
restrita ao passado. Antes, essas imagens se atualizam vertiginosamente, acompanhando a
evolução tecnológica. Para tanto, analiso as canções “Um índio”, de Caetano Veloso (1977),
“Xondaro Ka’aguy Reguá”, de Kunumi MC (2020),19 e “Tubi Tupy”, de Lenine (1999), pois
tais canções apresentam as características principais que elenco como sendo próprias do
indiofuturismo, suscitando um estranhamento pelo hibridismo que mina certas dicotomias e
certos estereótipos, contribuindo para a mudança e atualização dos imaginários em relação à
visão disseminada do que é ser indígena no Brasil. Neste capítulo, enfoco, conforme já
anunciado, canções que revelam traços do que convenciono chamar de indiofuturismo, conceito
em construção sobre o qual disserto mais adiante. Para lançar as bases dessa discussão, parto
do pressuposto da construção identitária nacional, especialmente no que concerne à figuração
dos povos originários na música popular que, especialmente a partir do século XX, passa a
apresentar uma consciência mais evidente do hibridismo.
É importante destacar que aqui tomo emprestado o conceito de Homi K. Bhabha (2003,
p. 165), para quem o “hibridismo é uma problemática de representação e de individuação
colonial que reverte os efeitos da recusa colonialista, de modo que outros saberes ‘negados’ se
infiltrem no discurso dominante e tornem estranha a base de sua autoridade e suas regras de
conhecimento”. Além de uma estética literária, o hibridismo cultural é um princípio norteador
sociopolítico de consciência cultural que não mais sustenta o mito de uma suposta “democracia
racial” ou de uma mestiçagem naturalizada, mas age do lugar do/a mestiço/a, criando novas
metáforas para problematizar e provocar discussões acerca dessa mestiçagem, de suas
consequências e de sua importância identitária contemporânea, tanto para os sujeitos quanto
para as comunidades.
Considerando a aceitação popular (ao menos aparente) de uma identidade híbrida e
partindo de uma concepção de música popular excepcionalmente ampla, que tomo como
premissa, passo a explorar a temática que permeia as canções aqui enfocadas, que é a ideia

19
Werá Jeguaka Mirim, também conhecido como Kunumi MC ou Owerá, é cantor e escritor de origem Guarani
(aldeia Krukutu-Parelheiros – SP) e “Xondaro Ka’aguy Reguá” é um single independente, produzido por Angry
(zeep filmes) e lançado nas mídias sociais de Kunimi em 2020.
40

futurista de índio (com diferentes gradações e nuances). Dessa forma, apresento a seguir a
construção de tal ideia; em seguida, as canções que formam o corpus desta investigação em
diálogo com essa categoria.

2.1 Indiofuturismo: proposta de uma definição em devir

O indiofuturismo como estética ainda está, como partículas na atmosfera, em suspensão,


aumentando e tomando materialidade, principalmente, no pensamento de jovens artistas de
origem indígena em território brasileiro. Todavia, é bom ressaltar que essa estética localiza-se
especificamente no imaginário artístico musical e que sua existência não implica uma corrida
para o futuro, pois está ligada a visão indígena de tempo que retomo adiante. Por outra senda,
a vida dessa ideia aponta para uma inserção e um usufruto da tecnologia pelos povos originários.
Tal situação não poderia ser diferente, uma vez que o produto social do intelecto é um bem que
deveria estar ao alcance de todos/as.
A apropriação das tecnologias pelos povos originários não significa um esquecimento
das origens. Pelo contrário, os meios tecnológicos têm sido utilizados pelos/as jovens artistas
indígenas como uma ferramenta potente de difusão e afirmação cultural e na criação de
narrativas e poéticas que criam outros mundos. Conforme propõe Grace Dillon (2012, p. 10-
11):

[T]odas as formas de futurismo indígena são narrativas de biskaabiiyang, uma


palavra anishinaabemowin que conota o processo de “retorno a nós mesmos”,
que envolve descobrir como alguém é afetado pessoalmente pela colonização,
descartando a bagagem emocional e psicológica carregada de seu impacto, e
recuperando tradições ancestrais para se adaptar em nosso mundo pós-
Apocalipse Nativo. Este processo é muitas vezes chamado de
“descolonização” e, como explica Linda Tuhiwai Smith (Maori), requer
mudanças em vez de imitar os conceitos do Eurooeste. Walking the Clouds
confronta as estruturas do racismo e do colonialismo e a própria cumplicidade
da ficção científica com elas (Smith, 1999). Autores [as] que experimentam
futurismos indígenas podem criar “etnopaisagens” da maneira que Isiah
Lavender sugeriu: mundos distantes do futuro em que o [a] escritor [a] pode
“formular um ambiente imaginário de modo a colocar em primeiro plano a
interseção de raça, tecnologia e poder” (LAVENDER, 2010) ou às vezes, mais
especificamente para as histórias aqui, a interseção de nações indígenas com
outras soberanias, raça, tecnologia e poder.20

20
Todas as traduções são de minha autoria, exceto quando sinalizo o nome da tradutora ou tradutor.
41

Embora Dillon enfoque especificamente narrativas de ficção científica e a criação de


etnopaisagens, pode-se perceber na citação pontos de convergência do Futurismo indígena com
o indiofuturismo. Destaco especialmente, a recuperação do conhecimento ancestral e uso de
tecnologias contemporâneas como uma forma de difusão identitária e poder.
Um exemplo do uso dos meios e da estética indiofuturista é a capa do álbum Indígena
Futurista, de Katú Mirim (figura 3, abaixo), que representa a artista envolta em uma aura de
tecnologia, fazendo uso de óculos visuais e um penteado que remete a personagem Princesa
Lea de Star Wars. Atrás dela uma cidade-cenário que lembra a estética de filmes futuristas como
Blade Runner.
Sabe-se que a posse e o uso de artefato tecnológico (parece até óbvio ter que afirmar)
não apaga culturas orais e ensinamentos ancestrais. Estar imerso/a na tecnologia da informação
nem chega mais a ser um direito nosso atualmente, mas apresenta-se quase como uma
obrigatoriedade, especialmente em tempos pandêmicos, em que as mídias e tecnologias se
tornaram nosso espaço e nossas ferramentas de trabalho e lazer.

Figura 3 – Material promocional de Indígena Futurista (2021), de Katú Mirim

Fonte: Instagram (@katumirim)

A partir da premissa da tecnologia (especialmente a digital) como metáfora de futuro,


passo a discutir o futurismo como movimento artístico, pois é imperativo também lançar
reflexões sobre as mudanças sofridas pelo conceito de futuro e de futurismo. Ainda que tenha
sido decretada a morte do futurismo como movimento no fim do século XX,21 ele continua a

21
Cf. Depois do Futuro, de Franco Berardi (2019).
42

nos assombrar com fantasmas ainda não nascidos. Se na veia do movimento futurista do século
passado corria um sangue esperançoso e pulsante de reviravoltas na constituição e no
direcionamento do futuro, a euforia passou, deixando marcas pessimistas e uma tendência à
distopia nas manifestações artísticas. O consenso é de que a utopia do amanhã deu lugar a uma
aurora apocalíptica. Dizendo de outra maneira, o futurismo como movimento vanguardista e
seu entusiasmo com as máquinas e com o futuro foi sendo paulatinamente solapado por uma
aura de desconfiança com a tecnologia e por uma tendência a uma visão distópica e apocalíptica
do que está por vir.
É preciso esclarecer, no entanto, que esse futurismo artístico do século XX, não se
coaduna com o futurismo aqui proposto a não ser pela nomenclatura escolhida, pois a visão de
tempo e de cultura que os orienta são completamente diferentes. O indiofuturismo segue
postulados contíguos ao conceito de Futurismos indígenas proposto por Grace Dillon,
professora e indígena Anishinaabe que ocupa cátreda em Portland, Oregon, nos Estados Unidos.
Para Dillon, O futurismo indígena parte dos conhecimentos científicos nativos e de suas
próprias cosmovisões para a criação de mundos em que pessoas e povos indígenas estrejam
presentes como protagonistas de suas próprias narrativas, o que pressupõe o reconhecimento
do apagamento identitário, da ferida colonial e da resistência aos vários apocalipses a que os
povos originários sobreviveram, indo além para propor novas alternativas calcadas em
conhecimentos tradicionais. Tendo por base os saberes indígenas, essas autoras e autores
imaginam novos mundos, partindo de seu conhecimento ancestral. Desta forma, tomando como
base histórias de ficção e especulação, a pesquisadora propõe o termo futurismos indígenas para
propor o movimento de descolonizar as ficções de autoria nativa, opondo-se ao antropoceno e
à visão utilitarista das formas de vida neste planeta.
Tenciono, a partir dos postulados de Dillon, expandir essa categoria análitca para
observar e analisar as produções musicais no cancioneiro brasileiro. Contudo, para propor uma
aproximação entre futurismo e cultura indígena brasileira, é preciso ainda explorar, mesmo que
de maneira breve, o afrofuturismo, fenômeno cultural similar ao indiofuturismo no sentido do
seu protagonismo por minoria étnica, de seu entusiasmo com a tecnologia e de seu esforço em
reforçar as heranças culturais dos povos africanos na sociedade estadunidense.

2.2 Afrofuturismo: conceito, ensaio-manifesto, difusões no campo da música


43

Considera-se que o conceito de afrofuturismo tenha surgido entre as décadas de 1950 e


1960 com a publicação de Invisible man, de Ralph Ellison (2010),22 e com as manifestações
artísticas do polivalente Sun-Rá,23 que se constituíram a partir de uma estética amalgamada de
elementos das ancestralidades negras com uma significativa inclusão de elementos tech e sci-
fi, considerando as duas influências como não excludentes. Pode-se afirmar que, em suas
origens, esse movimento artístico indicava uma conciliação entre as origens ancestrais dos
povos negros e um futuro em que a população negra realmente pudesse se inserir. É importante
frisar que o sci-fi, caracterizado aqui como uma das bases do afrofuturismo, tem o papel de não
apenas de apontar para o futuro, mas também de problematizar a questão do embate cultural e
da inserção cultural forçada do elemento negro na cultura dominante como uma espécie de
alien, ou seja, como o estranho, o forasteiro, aquele sem local de encaixe. Assim, valorizando
elementos das culturas originárias e ousando construir mesclas com futurismos como
tecnologias avançadas e viagens espaciais, o movimento abre um espaço para ocupações negras
que fogem ao passadismo a que os não negros, mais notadamente os brancos, quiseram relegar
os povos negros, bem como fizeram com os povos ameríndios. Nessa miscelânea ousada,
inúmeros artistas – como Octavia Butler, Basquiat, Spike Lee, Grace Jones, Janelle Monáe,
Beyoncé, entre outros/as – têm forjado em seus trabalhos essa vertente estética. A cultura pop,
principalmente, tem se mostrado um espaço possível e bastante útil para essas
experimentações24. Portanto, ao mesmo tempo em que insere a história dos povos negros nas
culturas contemporâneas, os afrofuturismos questionam o passado e especulam o futuro,
abrindo um espaço para que a cultura negra possa se perpetuar, se transformar e ser co-partícipe
em um espaço-tempo em que as questões diferenciais da cultura não sejam mais um problema
latente, ou ainda, um conflito incontornável, mas uma solução interessante.
Não obstante, é somente nos anos 90 do século passado que a nomenclatura
afrofuturismo passa a ser reconhecida e registrada sob a autoria de Mark Dery, crítico cultural
com interesse particular na estética Cyberpunk. Em seu ensaio “Black to the future”, presente

22
A primeira publicação data de 1952, pela editora Random House.
23
Nascido no Alabama-EUA, em 1914, Herman Poole Blount (Sun-Rá) foi um compositor, músico, poeta, filósofo
e performer que se destacou como um dos precursores do afrofuturismo e por ter uma discografia
excepcionalmente extensa. Ele faleceu em 1993.
24
O exemplo mais recente dessa estética provavelmente tenha sido a adaptação cinematográfica de Black Panther,
que mescla costumes e leis afroancestrais aliados à tecnologia de ponta de “Wakanda” (país ficcional em que o
enredo tem lugar), o que se mostra igualmente nos figurinos, cenários, objetos de cenas e efeitos especiais. Black
Panther (Dir. Ryan Coogler, 2018) apresenta uma realidade em que um país africano e seus dirigentes (elenco
formado em sua totalidade por atores e atrizes negras) apresentam-se em superioridade tecnológica (e moral) em
relação ao resto do mundo. A composição conta com a representação de uma tecnologia que facilmente colocaria
“Wakanda” como uma superpotência mundial, exceto pelo fato de que seu povo não busca fama ou lucro.
44

na antologia Flame Wars: The Discourse of Cyberculture (1994, p. 181), com foco na produção
literária em ficção especulativa, ele afirma:

A ficção especulativa que trata de temas afro-americanos e aborda


preocupações afro-americanas no contexto da tecnocultura do século XX – e,
mais geralmente, parte de sentidos afro-americanos que se apropriam de
imagens tecnológicas e de um futuro profeticamente melhorado – pode, por
falta de um melhor termo, ser chamada de afrofuturismo.

Um exemplo musical interessante a ser mencionado, no contexto da música brasileira, é o


trabalho de Rita Benneditto, em seu álbum Tecnomacumba (2006).25 Nessa peça, a artista
mescla as manifestações religiosas de povos de origem afroameríndia costuradas por uma forte
influência da música eletrônica e do rock. Como resultado, tem-se uma produção ambientada
em uma paisagem sonora moderna e tecnológica que se vale de temas espirituais que são, muitas
vezes, releituras do hinário religioso imersas nesse novo cenário. É também oportuno citar a
banda O Rappa, que inseriu a temática afro-brasileira (principalmente no campo religioso) em
canções como “Homem Amarelo”, “Lado B, lado A”, “Cristo e Oxalá” e “Reza vela” (2006), 26
em que convergem temas religiosos, hibridação cultural e tecnologia.
Costuma-se creditar cronologicamente, o surgimento do termo afrofuturismo a partir da
anteriormente citada publicação de Dery, Alondra Nelson oferece uma outra perspectiva, mais
conectada aos futurismos étnicos ao afirmar que:

Afrofuturismo nasceu como um termo conveniente para descrever a análise,


crítica e produção cultural que aborda as intersecções entre raça e tecnologia.
Nem um mantra, nem um movimento, o afrofuturismo é uma perspectiva
crítica que inaugura a investigação sobre as muitas sobreposições entre
tecnocultura e histórias da diáspora negra. O afrofuturismo olha para a cultura
popular: jazz, hip-hop e música techno; filmes experimentais; arte-grafite,
nova fotografia para encontrar modelos de expressão que transformam
espaços de alienação em novas formas e processos de potencial criativo,
retomando teorizações sobre o futuro (2019, p. 34).

A autora aborda eixos de interesse que se comunicam com o conceito proposto de


indiofuturismo, bem como com a proposição de futurismo indígena de Grace Dillon, sejam eles:
diáspora, colonização, perspectiva crítica e transformação de espaços de alienação (ou
coloniais) como motor criativo e ponto de partida para a teorização sobre futuros. Outra

25
É o 4º álbum de estúdio de Rita Benneditto, lançado em 2006 pela gravadora Manaxica/Biscoito Fino.
26
Apesar de terem sido lançadas previamente em diferentes álbuns, todas as canções citadas encontram-se reunidas
no álbum Acústico MTV, lançado pela WEA (Warner), em 2006.
45

característica é a compreensão de tempo não linear que observa a existência de um trânsito entre
ancestralidade (relações intergeracionais para Grace Dillon) e o por vir. Ambas pensam seus
futurismos dentro da cultura popular e nas artes provenientes de classes econômicas não
dominantes, assim como faço com o indiofuturismo. No entanto, Dillon enfoca prioritariamente
a produção de ficção científica e especulativa, enquanto Nelson, adota um campo artístico mais
abrangente e em minha pesquisa, tomo como ponto de partida a canção popular, o que não
impede que outras pesquisas sejam empreendidas e os postulados aqui presentes sejam
ampliados e/ou questionados.
Retomando a música brasileira como referente, algumas obras aparecerem de maneira
espaçada temporalmente sem serem categorizadas ainda como afrofuturismos, mas os
elementos que os unem permitem colocá-los sob essa nomenclatura, propiciando uma análise
por esse viés no campo dos Estudos Culturais. O mesmo acontece com a representação de
futurismos nativos que constroem imagens nas canções que analisarei mais adiante.
Alguns dos elementos mais fortes são: a reafirmação de sua cultura ancestral; o uso da
tecnologia tanto na estética visual quanto na composição musical; uma tendência a incorporar
na temática questões sociais e de embate cultural. Esses fatores geram composições com
características híbridas que podem se apresentar na forma de utopismos, uma vez que suscitam
novas maneiras de ser e de agir dentro de uma cultura que se propõe como um terceiro lugar de
inserção cultural. Trata-se de um lugar que já não é mais aquele da origem e nem o do
colonizador, mas se apresenta como uma terceira via ao criar possibilidades para uma
identidade cultural híbrida.
Bastante representativa dessa estética é a artista Rita Benneditto, que pode ser vista, na
imagem abaixo, performando no palco as canções do seu álbum Tecnomacumba:

Figura 4 – Rita Benneditto em performance do álbum Tecnomacumba

Fonte: Site – Rita Benneditto


46

Parto, então, dessas reflexões sobre afrofuturismo para construir uma leitura similar nas
canções que se alinham com essa estética futurista em que a figura indígena brasileira aparece
como temática justamente por perceber, na manifestação brasileira desses futurismos, diversas
similaridades em suas constituições, especialmente entre os elementos que acabo de explicitar.

2.3 Indiofuturismo: uma retomada

Postulo o indiofuturismo enquanto conceito cultural, em diálogo com características


presentes no afrofuturismo como precedente artístico. Adoto a nomenclatura indiofuturismo
entendendo que ela se alinha ao nome dado à manifestação cultural afroamericana citada, mas
ressalto que o termo já foi utilizado pela jovem artista baiana Caru,27 que nomeou precisamente
seu projeto criativo Indiofuturismo, ao redescobrir e se reconectar à sua origem indígena,
gerando singles como “Desapareça” e “Eu, índia”, ambos lançados nas plataformas de mídias
sociais. Em entrevista concedida à Nina Lacerda para a Revista Soul, em novembro de 2016,
Caru afirma: “Não se trata de bater pé no palco ou fazer barulho com a boca. Não é nada
folclórico. Nem fico falando sobre índio no show. [...] é respeitar, agregar, trazer o índio na
letra, em mim, no show e agregá-lo ao futuro – e é aí que as batidas eletrônicas entram” (2016,
p. 18). No entanto, é necessário ressaltar que essa integração com o futuro dá-se de maneiras
diversas nos indiofuturismos. No caso de Caru, ela aparece de maneira estética por meio das
batidas eletrônicas, porém, é necessário esclarecer que a noção que orienta o conceito que
proponho é a de tempo cíclico ou espiralar que não compreende futuro como um vetor temporal
linear e progressivo.
Nesse mesmo sentido de integrar a ancestralidade, as vivências tradicionais e as
influências artísticas contemporâneas, Kunumi MC (também conhecido como Owerá) oferece
sua contribuição a essa estética musical, que é também uma maneira de lutar por espaço e voz.
Em entrevista a Fred di Giacomo, Kunumi ressalta seu engajamento com as causas da luta
indígena (como a demarcação de terras) e explica que articula cânticos e saberes nativos junto
ao rap e à batida eletrônica porque os sujeitos indígenas não estão congelados no tempo; já que,
com a invasão de 1500, a tecnologia não indígena também os alcançou. Assim, ele afirma
utilizar essa mistura de influências para potencializar a mensagem que pretende difundir. Ainda
nessa matéria, lemos o trecho:

27
O trabalho da artista pode ser encontrado em seu site oficial: caruoficial.com.br/.
47

Percebemos que muito da tecnologia indígena que se refere ao conhecimento


milenar da terra, ecologia, sustentabilidade, foi desprezado e perdido. E
apenas agora essas pautas estão em evidência devido às consequências no
mundo, como aquecimento global. Resolvemos fazer um curta-metragem,
escrevemos um texto, que é o argumento da letra de Xondaro Ka'aguy Reguá.
Criamos uma lenda, em guarani, de um guerreiro nascido das águas, para
representar essa nova geração de indígenas que se levantam forte dentro da
arte, educação, medicina, ativismo. Para que as imagens contassem que o
indígena é livre para andar por outras culturas e, mesmo assim, não deixar de
ser indígena. No final, resolvemos que não seria curta, e sim um videoclipe,
pois a música tem o poder de chegar mais longe (KUNUMI, 2020).

Fica evidenciada pela “fala” da dupla Angry28 (que, junto com Kunumi, criou a narrativa
imagética do videoclipe) uma construção que ressalta a inserção cultural da pessoa indígena nas
sociedades e tecnologias ocidentais como forma de resistência e difusão cultural. No final do
trecho, seu discurso converge com o argumento que levantei anteriormente de que a música é
uma das manifestações cuturais mais acessível ao público geral na veiculação de valores,
estéticas e ideologias.
Recentemente, em 2021, a rapper Katú Mirim lançou a canção “Indígena Futurista”,
ambientada em uma paisagem sonora eletrônica e apresentando uma letra contundente que
também lança luz à falsa dicotomia entre tradição étnica e contemporaneidade, cujo refrão
adverte: “Me querem apagada / mas eu vou brilhar / O bicho da mata virou popstar / Nossa terra
é vip / e eles não vão entrar / Aqui nobreza e nós vamos reinar”29. Katú Mirim é rapper, nascida
em Campo Limpo-SP, compositora, modelo, atriz e ativista dos direitos indígenas e
LGBTQIAPN+. De ascendência Boe Bororo, tem conquistado notoriedade com sua música e
seu ativismo, bem como se destacado por sua defesa dos direitos nativos e das políticas de
gênero. Tanto na fala de Kunumi quanto na letra de Katú Mirim, traços de hibridismo cultural
ficam evidentes a partir das imagens de fusão da cultura e tecnologia dos povos originários,
sem que isso represente um apagamento da identidade cultural indígena.
Como se pode constatar pelas incursões desses artistas e suas produções, o
indiofuturismo constrói uma projeção da pessoa indígena que figura nas artes, reconfigurando
as representações cristalizadas e voltadas à natureza, as quais estamos habituados/as a ver, ler
e ouvir quando analisamos a temática indígena. A ligação com a tecnologia e os novos caminhos
da informação no século XXI são importantes, mas há também um movimento de reconstrução

28
Angry é uma dupla engajanada na direção e produção de conteúdo audiovisual formada por Gabriela “Gabe”
Maruyama e Bruno Silva. A peça ganhou a premiação de melhor videoclipe no New York Tri-State Film e o prêmio
M_F_V pela direção de “Xondaro”, tendo sido ainda indicados a diversos prêmios internacionais por esse
videoclipe.
29
Analiso esta a canção no capítulo seguinte.
48

das identidades indígenas que está quase sempre aliado às lutas sociais, políticas e ambientais
que permeiam a realidade da pessoa indígena em nosso país. Dessa forma, eu poderia afirmar
que há, de maneira geral, quatro pontos basilares que reconheço nas obras que identifico como
indiofuturistas: (1) uma forte ligação com a tecnologia, (2) uma (re)afirmação identitária, (3) o
engajamento nas questões sociais e, (4) associada a essa última, uma tendência ao diálogo com
os utopismos, visto que essas composições frequentemente exploram ideias de futuros utópicos
possíveis ou a construção de imagens distópicas no presente e/ou no passado.
Na construção dessa poética, ao utilizar, evocar e reivindicar o direito à tecnologia, à
cidadania e à própria voz, cria-se uma força motriz que mobiliza os conhecimentos tradicionais,
as artes e as lutas políticas de forma entremeada, o que resulta numa estética artística particular
que pode ser ilustrada pela figura “Tubi Tupy”, de Lenine e Rennó: “Canibal tropical / qual o
pau que dá nome à nação, renasci / Natural, analógico e digital / Libertado astronauta tupi”. O
mesmo apelo ao mote tecnológico pode ser ouvido em “O índio”, de Caetano Veloso, em que
o índio “que virá numa velocidade estonteante” a bordo de um objeto voador colorido e
brilhante mostra-se “mais avançado que a mais avançada das tecnologias”. Vitor Pirralho, em
“Tupi fusão”, desde o título, constrói a ideia de mescla e de hibridização da cultura indígena
em versos como: “Pintura rupestre, tinta nanquim / Índio, Nordeste, Tupiniquim / Camisa da
levi's e calça jeans / No lugar de flecha, balas e fuzis”, que desconstroem a ideia de indígena nu
e desarmado da narrativa tradicionalista e colonialista que nos ensinaram por meio dos
dispositivos do Estado. A figura do indígena futurista tem tradições e raízes que se hibridizam
com os novos tempos em que se encontra inserida; admite-se e reivindica-se o direito à
cidadania brasileira, sem que isso represente uma negação de seu núcleo étnico. Um ponto
importantíssimo dessa reivindicação é que ela está sendo construída, literariamente, na
contemporaneidade por jovens artistas de ascendência indígena, em primeira pessoa. Se
levarmos em consideração que, por décadas, a população indígena tem sido exotizada em seus
costumes, em suas artes e religiosidades, e que está sob tutela do Estado no que se refere aos
seus direitos fundamentais, essa retomada de voz tem uma força avassaladora. A construção
dessa identidade é também atravessada pelo campo dos utopismos, uma vez que a figura que se
apresenta no horizonte é sempre um “ainda não” (BLOCH, 2005) que vem se revestindo de
potencialidades, que podem vir a promover transformações no imaginário popular e,
consequentemente, no corpo social.
A seguir, analiso brevemente as canções “Um índio”, “Xondaro Ka’aguy Reguá” e
“Tubi Tupy”, respectivamente de autoria de Caetano Veloso, Kunumi MC (Werá) e Lenine e
49

Rennó, enfocando as características proeminentes que norteiam o conceito em construção de


indiofuturismo que nelas identifico.

2.4 “Virá que eu vi”: tensões utópicas no índio profético de Caetano Veloso

Caetano Emanoel Vianna Telles Velloso, mais conhecido como Caetano Veloso, é
cantor, compositor, escritor, formado em filosofia. Natural da Bahia, inicia sua carreira em
1963, com 47 álbuns lançados, entre discos solos, em grupos e em parcerias. Tendo vencido
inúmeros prêmios e festivais ao longo da carreira (12 vezes vencedor do Grammy Latino, por
exemplo), apresenta consolidada carreira como músico e escritor.

Figura 5 – Caetano Veloso em performance da canção “Um índio”, com participação de indígenas

Fonte: YouTube

A canção “Um índio” configura-se como um clássico do cancioneiro nacional brasileiro,


tendo sido gravada por Caetano Veloso em seu álbum de estúdio Bicho (1977) e regravada,
desde então, pelo próprio artista e por outros/as intérpretes, como: Gal Gosta, Maria Bethânia
e Zé Ramalho. Na imagem acima, vemos o compositor performando a canção na companhia de
representantes de diversas etnias por ocasião do dia da resistência indígena, no Circo Voador,
em 2019. Essa apresentação recente, com vários/as representantes indígenas, corrobora minha
afirmação de que “Um índio” se constitui como um clássico da MPB, lembrado e celebrado até
hoje, 44 anos após seu lançamento.
50

Possivelmente, “Um índio” é a primeira canção que fica conhecida no nicho da MPB
por construir, sob uma perspectiva futurista, a imagem do indígena. Suas metáforas apontam
para uma figura indígena profética que se mostra no domínio de um avançado aparato
tecnológico e que, tragicamente, anuncia o extermínio dos povos indígenas na terra. Vejamos
seus versos:

Um índio

Um índio descerá de uma estrela colorida, brilhante


De uma estrela que virá numa velocidade estonteante
E pousará no coração do hemisfério sul
Na América, num claro instante
Depois de exterminada a última nação indígena
E o espírito dos pássaros das fontes de água límpida
Mais avançado que a mais avançada das mais avançadas das tecnologias

Virá
Impávido que nem Muhammad Ali
Virá que eu vi
Apaixonadamente como Peri
Virá que eu vi
Tranquilo e infalível como Bruce Lee
Virá que eu vi
O axé do Afoxé Filhos de Gandhi
Virá

Um índio preservado em pleno corpo físico


Em todo sólido, todo gás e todo líquido
Em átomos, palavras, alma, cor
Em gesto, em cheiro, em sombra, em luz, em som magnífico
Num ponto equidistante entre o Atlântico e o Pacífico
Do objeto-sim resplandecente descerá o índio
E as coisas que eu sei que ele dirá, fará
Não sei dizer assim de um modo explícito

Virá
Impávido que nem Muhammad Ali
Virá que eu vi
Apaixonadamente como Peri
Virá que eu vi
Tranquilo e infalível como Bruce Lee
Virá que eu vi
O axé do Afoxé Filhos de Gandhi
Virá

E aquilo que nesse momento se revelará aos povos


Surpreenderá a todos não por ser exótico
Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto
Quando terá sido o óbvio (grifos meus)
51

Em um jogo de colagens imagéticas ousado e multicultural, Veloso cria, por meio do discurso
poético de seu eu-lírico “testemunhal”, uma narrativa que une elementos sci-fi e referências
multiculturais, reconfigurando a imagem de indígena, até então mais difundida na música por
suas características “selvagens e primitivas” 30. No argumento basilar do discurso narrativo,
temos que a cosmovisão e a tecnologia apresentadas por esse “índio” são superiores àquelas
compreendidas pelo restante da humanidade (cuja própria maneira de viver aparentemente
conduz à impossibilidade da vida no planeta); e não “por ser exótico”, mas por ser simples,
“tranquilo e infalível” de uma maneira até óbvia, que teria estado encriptada para aqueles/as
que nunca conseguiram alcançá-la.
Primeiramente, aponto as metáforas da tecnologia presentes na canção que configuram
uma esfera e que podem ser lidas como elementos do sci-fi. A “estrela colorida brilhante”, nesse
contexto, pode ser lida como um objeto voador não identificado, uma vez que, além de pousar
em uma localização exata (“num ponto equidistante entre o Atlântico e o Pacífico, no coração
do hemisfério sul, América, num claro instante”), ela também é descrita como um “objeto-sim”
“resplandecente”. Chamam atenção nessa descrição, além da riqueza de cores, seu brilho e a
velocidade estonteante; a precisão de pouso e o vocábulo “objeto-sim” que se coloca como o
transporte desse ser “mais avançado que a mais avançada das tecnologias”.
A chegada desse “outro” que vem do céu em tudo lembra a chegada de um alien,
momento tão imaginado pela literatura e pelo cinema de sci-fi. Esse contato que atesta a
superioridade intelectual, tecnológica e de cosmovisão também se coaduna com as narrativas
que imaginam nosso encontro com os demais habitantes da galáxia. Igualmente, não são raras
as ocasiões em que esse primeiro contato revela aos povos terráqueos suas próprias limitações.
O “índio” viajante do espaço é recuperado por Lenine em “Tubi Tupy”. A intertextualidade fica
clara, especialmente, nos versos: “Sou o índio da estrela, veloz e brilhante que é forte como um
jabuti / o de antes, de agora em diante / e o distante, galáxias daqui”. Na construção de seus
“índios” do espaço, tanto Caetano quanto Lenine utilizam procedimentos similares: ambos
exploram a metáfora espacial; projetam seus “índios” no futuro; valem-se de colagem de
elementos culturais distintos para criar um contexto de hibridismo; constroem o refrão

30
Penso aqui em composições como a marchinha “Índio quer apito” que vincula a pessoa indígena à truculência
e à alienação, “Brincar de índio” que retrata o indígena como um falante de um português macarrônico, marcado
pelo uso de verbos no infinitivo, “Indiozinhos” que retrata os indígenas como frágeis e diminuindo em números”
e no hino de São Paulo, como ameaças a serem domadas: “Em bandeira ou monção/ Doma os índios bravios/
Rompe a selva, abre minas, vara rios!”, além da violência ambiental aí presente e “Índio do Senhor” de Cristina
Mel que desqualifica a fé e ancestralidade indígenas.
52

destacando essas referências e as remetem à ciência para caracterizar a aparição de seus


indígenas e criar uma atmosfera tecnológica.
Caetano, no mesmo refrão, costura menções a Mohamed Ali (boxeador negro e ativista
do pacifismo), Peri31 (o herói puro e apaixonado do romance O guarani, de José de Alencar,
que se sacrifica pela amada), a Bruce Lee (ator especialista em artes marciais) e, por fim, remete
aos Filhos de Ghandy32 (bloco de afoxé que desfila no carnaval baiano desde 1949, composto
por homens que homenageiam o pacifista indiano Mahatma Gandhi). Em face desse panorama,
dialogo com Moraes Neto (2009, p. 69), quando o autor realça a questão da hibridação e da
mestiçagem nessa mesma canção:

Fala-se aqui em mestiçagem, [...] ou seja, traço que caracteriza o


entrecruzamento de culturas e de linguagens, como um entrelaçar-se de
procedimentos textuais que estão interligados à ideia de devoração, desde que
esse modo de pensar a cultura não seja pontuado por uma visão hierárquica.

Veloso, nesse refrão, compõe um mosaico de figuras heróicas e pacifistas de origem não
ocidental, mesclando referências de literatura, cinema, história e cultura pop. No refrão, assim
como na canção como um todo, abundam nomes que formam uma constelação léxica cujo
sentido se direciona para elementos de uma extrema positividade: colorida, brilhante, tranquilo,
infalível, impávido, avançado, estonteante, axé, apaixonadamente, claro, preservado etc. O
auge desse procedimento encontra-se nos versos: “em átomos, palavras, alma, cor, / Em gesto,
em cheiro, em sombra, em luz, em som magnífico”, que criam uma sequência descritiva imensa
e intensa desse “índio”, dentro do que Moraes Neto (2009, p. 70) vai chamar de um

cenário fantástico em que surge esse personagem híbrido, já que constitui a


multiplicidade de um composto transnacional, como uma mistura de signos
da diversidade cultural do planeta, tais como: o negro muçulmano
estadunidense (Muhamad Ali); o indígena brasileiro idealizado pela visão
etnocêntrica colonizadora (Peri); o oriental popularizado pela massificação do
cinema dos EUA (Bruce Lee); a magia do carnaval afro-baiano em
consonância com o pacifismo internacional, prevê a irradiação de um ser que
nos redima enquanto nação que se reduz a um atraso incompreensível e

31
Somente para contextualizar a caracterização de Peri em O guarani, saliento este pequeno trecho: “Onde é que
esse selvagem sem cultura aprendera a poesia simples, mas, graciosa; onde bebera a delicadeza de sensibilidade
que dificilmente se encontra num coração gasto pelo atrito da sociedade?” (ALENCAR, 1996, p. 152).
32
“Instituição cultural e social, fundada em fevereiro de 1949, em Salvador, pouco mais de um ano após o
assassinato de sua personalidade inspiradora: o pacifista indiano Mahatma Gandhi (1869-1948). O bloco foi
fundado, antes do Carnaval de 1949, por estivadores sindicalizados do Porto de Salvador, que integravam o bloco
Comendo Coentro”. O sindicato dos estivadores estava sob intervenção do Governo, que vigiava possíveis focos
de rebelião. Buscando despistar, Almir Fialho, um dos fundadores, sugeriu trocar o "i" por "y" no nome de Gandhi.
Filhos de Gandhy (historia-brasil.com).
53

inaceitável [...] que “virá” com ares completamente tecnologizados [...].


(grifos meus)

Hibridismo, tecnologia, terceiro lugar aparecem na escrita de Moraes Neto, entretanto, o escopo
analítico de seu texto é diretamente perpassado pela antropofagia modernista e pelo conceito
de devoração. Tal conexão me parece muito propositada, uma vez que a antropofagia, assim
como o próprio movimento modernista como um todo, traçou linhas de afinidade com o
movimento futurista do século passado.
No entanto, se por um lado o repertório de escolhas lexicais é farto de atributos positivos
que exaltam esse “índio”; por outro, a mensagem profética que ele carrega continua, além de
encriptada para nós (as coisas que ele dirá, fará / não sei dizer assim / de um modo explícito),
bastante nefasta, já que o visitante dos céus virá somente “depois de exterminada a última nação
indígena / e o espírito dos pássaros das fontes de água límpida”.
Pode-se dizer da melodia que é predominantemente descendente, começando em regiões
agudas e se encaminhando para regiões mais graves, o que leva a uma percepção de um tom
melancólico. Embora isso não se configure como regra, é notável que melodias descendentes
se aproximam mais do tom de lamentação de um anúncio de um cenário distópico do que de
uma entonação festiva. Esse tom, que evoca uma certa tristeza, contrasta com os aspectos
lexicais positivos da letra. Essa dicotomia só é quebrada pelo refrão que é a passagem em que
o eu-lírico testemunha a chegada do índio “virá que eu vi”. Ressalto também que essa mistura
de tempos verbais presente nos versos mimetiza o discurso do vidente, pessoa que vê/vive entre
presente e futuro. Nestes versos, a entonação cresce, tornando-se ascendente. O fato de a
“visão” apenas se realizar quando já não há mais indígenas e natureza preservada leva o
professor Guilherme Wisnik (2019), em sua coluna Espaço em Obra, a interpretar a canção
como uma elaboração de uma espécie de “profecia utópica”, na qual apenas após o estado de
aniquilação da possibilidade de vida no planeta esse “índio” trará a sua mensagem. Wisnik
postula ainda que o viajante do espaço de Caetano se apresenta como a volta do recalcado 33
(utilizando os termos da psicanálise). Leio este acontecimento, o retorno do “índio”, nos
mesmos termos de Ailton Krenak (2020, p. 44-45), para quem:

33
Entendo na referência ao retorno do recalcado que é mencionado por Wisnik ao falar da impossibilidade de
esconder a razão indígena em relação ao nosso modo de lidar com a terra e que se revelará, inevitavelmente, através
da simbologia desse retorno para, finalmente, por meio da catarse, trazer à tona aquela razão que tentamos negar
ou ignorar. No entanto, optei por ler o retorno do índio pela teoria blochiana, que se coaduna com a questão dos
utopismos que balizam minha leitura.
54

Nós podemos habitar esse planeta, mas terá de ser de outro jeito. Senão, seria
como se alguém quisesse ir ao pico do Himalaia, mas pretendesse levar junto
sua casa, a geladeira, o cachorro, o papagaio, a bicicleta. Com uma bagagem
dessas, ele nunca vai chegar. Vamos ter que nos reconfigurar radicalmente
para estarmos aqui. E nós ansiamos por essa novidade. Ela é capaz de nos
surpreender. Terá o sentido da poesia de Caetano Veloso na música “Um
índio’: nos surpreenderá pelo óbvio. De repente, vai ficar claro que precisamos
trocar de equipamento. E – Surpresa! – o equipamento que precisamos para
estar na biosfera é exatamente o nosso corpo.

O trecho acima – destacado do livro A vida não é útil (2020) – é bastante significativo, porque
seu título revela nossa distopia social, econômica e ambiental com uma clareza lancinante. O
primeiro capítulo dessa obra chama-se “Não se come dinheiro” e nos revela, talvez, a mensagem
óbvia que o “índio” virá nos trazer, de que, “depois de exterminada a última nação indígena / e
o espírito dos pássaros de água límpida”, a mesma mensagem ancestral será repetida, mas nos
surpreenderá “por ter podido estar sempre oculta”, mesmo tendo sido tão e tão reiterada.
Continuo ainda reproduzindo Krenak (2020, p. 12-13) porque ele, textualmente, elabora o que,
em minha leitura, entendo como “aquilo que nesse momento se revelará aos povos”:

Hoje de manhã eu vi um indígena norte-americano do conselho dos anciãos


do povo Lakota falar sobre o coronavírus. É um homem de uns setenta e
poucos anos chamado Wakya Um Manee, também conhecido como Vernon
Foster (que é um típico nome norte-americano, pois quando os colonos
chegaram na América, além de proibirem as línguas nativas, eles mudavam o
nome das pessoas). Pois, repetindo as palavras de um ancestral, ele dizia:
‘quando o último peixe estiver na água, quando a última árvore for removida
da terra, só então o homem perceberá que ele não é capaz de comer seu
dinheiro’.

Krenak nos lembra desse antigo provérbio Lakota que é bastante conhecido e, de tão repetido,
perdeu sua capacidade de nos chocar. O “índio” de Caetano virá, então, não para simplesmente
anunciar o fim do mundo, mas para tentar evitá-lo. Para “suspender o céu” que está na iminência
de desabar. Em suas palavras,

[s]uspender o céu é ampliar os horizontes, de todos nós, não só dos humanos.


Trata-se de uma memória, uma herança cultural do tempo em que nossos
ancestrais estavam tão harmonizados com o ritmo da natureza que só
precisavam trabalhar algumas horas por dia para viver. Em todo o resto do
tempo, você podia cantar, dançar, sonhar: o cotidiano era uma extensão do
sonho. E as relações, os contratos tecidos no mundo dos sonhos, continuavam
tendo sentido depois de acordar. Quando pensamos na possibilidade de um
tempo além deste, estamos sonhando com o mundo onde nós, humanos,
teremos que estar reconfigurados para podermos circular. Vamos ter que
produzir outros corpos, outros afetos, sonhar outros sonhos para sermos
acolhidos por esse mundo e nele podermos habitar. Se encararmos as coisas
55

dessa forma, isso que estamos vivendo hoje [a pandemia e a crise ambiental]
não será apenas uma crise, mas uma esperança fantástica, promissora
(KRENAK, 2020, p. 46-47).

Se alinharmos o pensamento do ativista à visão de Bloch (2005), veremos uma similaridade


entre sua proposição de sonho que transpassa o cotidiano e o conceito de sonhar acordado34
que, através dos mecanismos da utopia concreta, pode levar a humanidade ao novum, um
projeto de transformação que se dirige para ações efetivas de mudança. Conforme comenta
Antônio RufinoVieira (2000, p. 7),

[a] esperança não é, para Bloch, conceito negativo que nasce do sentimento
da importância humana; ela se manifesta no próprio movimento do sujeito
para o ainda-não-consciente, o “que ainda-não-veio-a-ser” confrontado com
os antagonismos e contradições do presente. Este confronto confere à
esperança a concretude, pois o seu conteúdo só pode ser encontrado, não em
uma transcendência, onde [sic] os absurdos e o mundo são explicados, mas
nas próprias contradições históricas da humanidade. O novum, assim, deixa
de ser algo puramente esperado, numa atitude cômoda de aguardar, mas é
buscado com afinco, através do esforço construtor, por algo que valha
realmente a pena fazer: uma morada digna do homem.

Em um movimento de condensação que é próprio do fazer poético, a primeira estrofe da


composição aproxima-se da interpretação de Vieira do mecanismo utópico postulado por
Bloch, que parte da busca ativa pelo que ainda-não-veio-a-ser, o qual – impulsionado pela
esperança – caminha em direção ao novum. Ao postular a vinda dessa figura mítica, o discurso
poético estabelece, logo de início, duas premissas: a) a de que a descida do índio não é uma
possibilidade, ela é uma certeza que ainda não se tornou concreta, o que fica manifesto no texto
pelo uso do tempo verbal futuro do presente no modo indicativo “virá”, que explicita ações que
ocorrerão num futuro consequente ao presente do enunciado e pela expressão “que eu vi”, a
qual denota a sustentação da veracidade/validade de um testemunho ocular. Os dois
procedimentos se alinham ao conceito ainda-não-veio-a-ser, de Bloch; b) a exposição das
contradições e dos problemas do presente, que colocam o discurso na esfera da Esperança
informada e concreta, aquela que nasce não da idealização ou da dissimulação das questões do
presente, mas partem dessas mesmas questões, buscando superá-las rumo ao novum, um espaço
melhor que não se realiza por si só, depende de ações humanas.

34
“Ao projetar-se para o futuro, o ‘sonhar acordado’ revelaria uma faculdade humana fundamental: a capacidade
interior de projetar um espaço utópico. Enquanto prenúncio de algo ainda não realizado, nem mesmo claramente
consciencializado, a antecipação deixaria, então, transparecer uma esfera cognitiva ‘pré-consciente’. [...] A
hermenêutica do sonhar acordado dá, pois, origem a uma reflexão sobre a dimensão de uma esfera ‘ainda-não-
consciente’ que anteciparia a utopia do ‘ainda-não-realizado’ num mundo ‘em devir’” (DIAS, 1995, p. 74).
56

Em “Um índio”, o eu-lírico inscreve a concretização da esperança, a partir de uma


consciência antecipatória, nas consequências de um colapso (que se insinua faz muito tempo
pelos próprios padrões de vida adotados pela humanidade) de nossa casa comum que é a Terra.
Até então, o aspecto negativo daquela profecia evidencia-se como uma triste constatação (tanto
no contexto da poesia quanto no mundo real) de que nos encaminhamos para o esgotamento da
vida. Desse modo, aquele que vem (do passado ou do futuro) a bordo da estrela radiante pode
representar a possibilidade de preservação da vida (“em pleno corpo físico”) e, embora não
fique clara qual é a mensagem do índio, ele é o que transcendeu, se lançou para a frente,
antecipando-se ao futuro e abrindo a possibilidade de uma reformulação do presente pós-
apocalíptico em que pousa. Em outras palavras, “depois de exterminada a última nação
indígena’, ainda haverá o “índio” como uma promessa de recomeço, uma vez que
reconheçamos o “óbvio oculto” que nos levou ao fim como uma distopia a ser desmanchada
para que um projeto mais harmonioso possa ser erguido.
Apesar da terrível aniquilação e do confronto com as ações que perpetraram os humanos
na narrativa poética, a sobrevivência do “índio” pode ser lida como a metáfora da ressurreição
pela terra/semente presente no provérbio mexicano: “tentaram nos enterrar, mal sabiam que
éramos sementes”, que é bastante recorrente nos textos que constroem uma figuração dos povos
indígenas e de sua luta. Só para citar alguns exemplos da recorrência dessa metáfora, ela está
presente em: “Mãos Vermelhas”, de Kaê Guajajara (estou renascendo das cinzas); “Tubi Tupy”
(sou semente nascendo das cinzas), de Lenine/Rennó; “Nativa” (da terra renasce que a raiz é
forte) e “Indígena Futurista” (nosso povo nunca morre, a raiz nos salvará), ambas de Katu
mirim. Esse tropo coloca-se então em evidência, por representar a resistência, a ligação com a
terra e o caráter profético da luta pelo modo de viver dos povos indígenas, que é guiado por
uma existência não predatória, não clientelista e não utilitarista do meio ambiente, mas que,
pelo contrário, coloca-se como uma maneira de estar e ser no mundo que irmana pessoas,
animais, minerais e vegetais como coabitantes, filhos/as, irmãos/ãs e responsáveis da/pela
Terra.
Embora apresente as características que elenquei como próprias de composições
indiofuturitas: utopismo; identidade híbrida; referências à tecnologia com possíveis ligações
com elementos sci-fi e trazer à tona questões sociais relevantes (nesse caso, questões
socioambientais), é precisamente neste último ponto que a canção de Veloso se diferencia das
demais que aqui serão apresentadas. Ainda que aponte para a destruição da natureza como fator
de aniquilação da vida, isso apenas se insinua e não aparece nitidamente na forma de uma luta,
no engajamento social ou no combate a essas questões. Não obstante, o simples fato de criar
57

um cenário apocalíptico a partir das consequências de tais ações suscita uma reflexão sobre esse
tema, ao lançar no imaginário o cenário de terra arrasada como herança de um modo predatório
de viver.
Vejo, representada pela vinda do “índio”, a possibilidade do renascer que levaria a Terra
a uma nova existência (assim como na profecia Guarani que apresentarei na análise da canção
de Kunumi MC, na próxima secção). Leio, portanto, nessa canção, indícios de que

[a] esperança, atuando sobre uma realidade objetiva que virá, permite ao
homem [e à mulher] uma saída para o futuro. Bloch deixa claro, porém, que
essa saída não ocorrerá gratuitamente, mas por um processo, onde [sic]
estejam engajados [/as] todos [/as] os [/as] militantes, entre eles [/elas] os /[as]
filósofos [/as], para a construção do devir. Segundo ele, os princípios da
esperança abrem caminho para a compreensão ontológica do ainda-não-
consciente, permitindo verdadeiras antecipações do futuro (VIEIRA, 2007, p.
7, grifos meus).

Assim, a potencialidade utópica que nasce de um movimento dual entre a distopia da destruição
do mundo e a utopia de um recomeço pela via da esperança e da reconfiguração simples, porém
avançada, que parece óbvia e que o profeta nativo virá a revelar para o mundo, situa “Um índio”
no campo da função utópica, mais do que na concretude de seu conteúdo. Citando Bloch (2005,
v. 1, p. 144):

Assim, a função utópica é a única transcendente que restou, e a única que é


digna de permanecer: uma função transcendente sem transcendência. Seu
esteio e correlato é o processo que ainda não resultou no seu conteúdo mais
imanente, o qual está sempre a caminho de se realizar – logo, o qual existe,
ele próprio, em esperança e em intuição objetiva do que-ainda-não-veio-a-ser
como de algo que ainda-não-se-tornou-bom (BLOCH, 2005, v. 1, p. 144).

Veloso cria em/com seu poema, possibilidade de realização do que ainda-não-veio-a-ser que
existe em latência, como quem lança ao solo sementes que brotarão, ocasionalmente, quando o
tempo for exato e dentro do imaginário poético como profecia, ameaça, esperança e promessa,
simultaneamente. Por conseguinte, “Um índio” inaugura possibilidades indiofuturistas que
estão brotando com a nova geração de jovens artistas indígenas que produzem novas
esperanças, transmutando o imaginário colonizado do povo do Brasil em relação aos povos de
Pindorama.
A seguir, examino a construção indiofuturista de “Xondaro Ka’aguy Reguá”, o guerreiro
da floresta em devir de que falam as lendas Guaranis, recontadas por Kunumi MC, um desses/as
novos/as expoentes do futurismo indígena.
58

2.5 O “Guerreiro da floresta do futuro”, de Kunumi MC

A letra de “Xondaro ka’aguy Reguá” (guerreiro da floresta) inicia-se com uma profecia
Guarani que fala de um guerreiro que levará o povo a uma nova existência. O compositor Werá
Jeguaka Mirim é cantor, escritor e ilustrador. Ficou conhecido, primeiramente, por sua
participação na Copa do Mundo de 2014, ao abrir uma faixa com a frase Demarcação já! Na
época, tinha 13 anos de idade. O feito repercutiu na imprensa internacional, mas foi silenciado
no Brasil. É autor de três livros: Kunumi Guarani (2005), Contos dos Curumins Guaranis
(2014) e Kunumi MC: o guerreiro da Copa e suas músicas (2021), sendo os dois últimos em co-
autoria, respectivamente, com seu irmão Tupã Mirim e outros autores e seu pai, Olívio Jekupé.
A canção mescla o rap cantado em guarani (a tradução abaixo apresentada foi disponibilizada
pelo próprio artista) com cântico tradicional dessa etnia e ganha ainda mais sentidos com a
narrativa veiculada pelo videoclipe. Por suas características híbridas, essa composição, que é
perpassada por imagens tech-indígenas – como a apresentada acima, em que o indígena é
caracterizado pelo tradicional cocar, mas apresenta pinturas metalizadas –, figura como peça
exemplar do conceito que aqui proponho sob o nome de indiofuturismo. Para prosseguirmos
com os comentários vejamos a tradução da canção:

“Xondaro Ka’aguy Reguá”

Existe uma lenda Guarani muito antiga,


contada pelo nossos ancestrais.
Ela diz que das águas nascerá um guerreiro
que levará o seu povo a uma nova existência.

Antigamente na floresta havia muitas frutas para comer


Muitas frutas para comer...
Mas os brancos vieram e destruíram
tudo o que Deus criou.

Nós Guaranis sempre existimos,


há mais de 519 anos resistimos
Nativos e originários dessa terra,
Brasil. Desde mil e quinhentos
vivemos em guerra.
Nosso povo foi oprimido e dizimado
por não aceitarmos ser escravizados.
Desprezaram nossa ciência e tecnologia,
conhecimento milenar da floresta.
E agora vemos na TV alertas
59

de aquecimento da terra
Extinções em massa,
e continuam destruindo
nossos rios e nossas matas
E pra você sou eu que estou errado
por usar internet e não andar pelado, isolado…
Pensamento colonial retrógrado e limitado,
pois pra mim ser indígena é me sentir e ser livre,
transito pela arte e preservo minha cultura
Na minha aldeia existe resistência
eu rimo na minha própria língua,
denunciando e lutando pela demarcação
Invadiram as nossas terras...
As florestas para nós indígenas sempre foram sagradas
e tudo isso foi Deus que criou,
Os portugueses vieram e mataram muitos animais,
os pássaros morreram
Não respeitaram a nossa cultura,
destruíram as nossas florestas
e o medo continua instaurado.

Antigamente na floresta havia muitas frutas para comer


Muitas frutas para comer...
Mas os brancos vieram e destruíram
tudo o que Deus criou
Mas os brancos vieram e destruíram
tudo o que Deus criou
Tudo o que Deus criou...

Antigamente na floresta havia muitas frutas para comer


Muitas frutas para comer...
Mas os brancos vieram e destruíram
tudo o que Deus criou
Mas os brancos vieram e destruíram
tudo o que Deus criou
Tudo o que Deus criou...
60

Figura 6 – Kunumi MC no clipe de “Xondaro Ka'aguy Reguá”

Fonte: YouTube

Cantada em Guarani e em primeira pessoa, “Xondaro” propõe a fala coletiva que denuncia as
violências perpetradas contra os povos indígenas e reafirma a luta desses povos por seus direitos
no Brasil xenófobo e pandêmico em que nos situamos atualmente. Assim sendo, a utilização da
primeira pessoa demarca um espaço de fala importantíssimo do ponto de vista identitário. Esse
“eu”, que aí toma a palavra, agrega vários “nós” – os/as jovens artistas e indígenas em situação
de urbanidade, os/as aldeados/as, os/as ancestrais originários/as. É uma voz que toma um espaço
de fala amplo e incomum, tendo em vista que reúne valores do passado e do presente, separados
também pelo espaço físico que ocupam os indivíduos representados pelo eu-lírico, mas que são
reajuntados na tríade indígena-natureza-tecnologia construída em “Xondaro”. Essa mesma
tríade está presente também na canção de Lenine e Rennó (também em primeira pessoa), em
versos como o já citado: “natural, analógico e digital, libertado astronauta Tupy” e “o de antes
de agora em diante”, fazendo a correlação entre a tríade e a questão do espaço-tempo.
A letra da canção tem início a partir da enunciação de uma profecia fictícia do índio que
virá e que “levará seu povo a uma nova existência”. Não há como não perceber um ponto de
intertextualidade com o índio de Caetano Veloso, mas também que Xondaro, guerreiro que
surge como líder salvador de seu povo, é depositário de uma esperança utópica no vir a ser
(BLOCH, 2005), dado que contrasta fortemente com o presente distópico construído na
sequência de imagens emoldurada pela canção. Na associação entre a letra da canção e os
letreiros que aparecem na tela do videoclipe (conforme mostra a imagem 7, na próxima página),
reproduzindo matérias que denunciam violências contra os povos indígenas, é possível
identificar a presença da luta e reivindicação social feita pelo eu-lírico da canção e a denúncia
61

que se mostra como repetição à exaustão da violência sofrida pelos povos e pela natureza desde
a invasão.
Segundo Mara Mendes (2006, p. 75), o vocábulo Xondaro35 é um termo polissêmico em
Guarani que remete a (1) guerreiro, (2) a um gênero musical que anima (3) as manifestações
culturais que mesclam dança e arte marcial de mesmo nome e aos (4) brincantes dessa
manifestação a que se chamam xodaros e xondar(i)as. A prática do Xondaro consiste numa
performance cultural que é realizada no pátio da aldeia e não apresenta segredos e fundamentos
religiosos, assim sendo pode ser realizada de maneira pública.
A atualização do Xondaro com as tecnologias digitais mostra-se na fusão entre os óculos
de realidade virtual e a fumaça do cachimbo (imagem 8), na personificação das forças naturais
(imagem 9) e na letra que denuncia e questiona uma aniquilação da natureza perpetuada desde
que “os brancos vieram e destruíram o que Nhanderu criou” e podem ser lidas como
características do indiofuturismo, conceito que proponho como tese neste trabalho.
Encontramos todos os pontos basilares do conceito nessa composição e, em acréscimo, a letra
expõe, de maneira contundente, o preconceito etnocentrista que faz com que a pessoa indígena
seja colocada em uma posição de constrangimento pelo usufruto das ferramentas digitais
contemporâneas: “E pra você eu que estou errado por usar a internet [...] pensamento colonial,
retrógrado limitado [...]”.

Figura 7 – Letreiros de notícias de ataques aos povos indígenas

Fonte: YouTube

35
Para um maior profundamento sobre o tema, cf. Mendes (2006).
62

Figura 8 – Óculos de realidade virtual e cachimbo

Fonte: YouTube

Há ainda a presença da consciência linguística: “eu sigo rimando em minha própria


língua [Guarani] e lutando pela demarcação”. Continuar falando a própria língua é um ato de
resistência e insurreição contra a colonização continuada que sofrem os povos indígenas no
Brasil. Precisamente por reconhecer isso é que, apesar de não ser falante de Guarani, decidi
analisar esta canção por meio da tradução oferecida pelo próprio autor. Embora não consiga
capturar muitos aspectos relativos aos sentidos, posso afirmar que existe, na performance do
rap de Kunumi, um domínio no trabalho da sonoridade de consoantes na composição. Além
disso, a audição dessa canção permite-nos apreciar uma composição em idioma Guarani que se
apresenta de maneira diferente das canções tradicionais que comumente ouvimos,
descolonizando nossa escuta ao mostrar o idioma em outros usos, fora da aldeia, fora dos rituais.
Anteriormente, na linha temporal da letra, anuncia-se a consciência do trânsito (assim
como em Homi Bhabha, 2003) pelo lugar da identidade que, hibridamente, mescla o original e
contemporâneo, o que está epitomizado em: “pois para mim ser indígena é ser livre, / transito
pelas artes, mas na minha aldeia ainda existe resistência”. De acordo com Bhabha (2003, p. 27),

[o] trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com o “o novo” que não
seja parte de um continnum passado e presente. Ele cria uma ideia do novo
como ato insurgente de tradução cultural. Essa arte não apenas renova o
passado como causa social ou precedente estético; ela renova o passado,
reconfigurando-o como um “entre-lugar” contingente, que inova e interrompe
a atuação do presente. O passado-presente torna-se parte da necessidade, e não
da nostalgia, de viver.
63

Nesse sentido, em alguma medida, a composição consegue aliar aquelas imagens mais
comumente propaladas pelas artes de uma pessoa indígena a elementos naturais (trovão, fogo,
água, vegetação) de uma forma muito eficaz, que se realiza nas imagens do entrelaçamento do
corpo indígena com a natureza (figura 9), a representação da imersão na tecnologia digital
contemporânea, minando o discurso essencialista da figura indígena como natureza (em
oposição à cultura) e provocando, assim, o questionamento da continuidade do pensamento
estereotipado que é ainda resultado da colonização do imaginário e da opressão colonial.
A construção estética do videoclipe, assim como a “estranheza” que a audição de um
rap em Guarani possa provocar no/a ouvinte respondem a uma necessidade de abrir espaços de
diálogos na cultura popular, daqueles saberes e daquelas artes que não foram sequer negados,
mas ignorados ou exoticizados. A existência e resistência cultural dos povos indígenas no atual
cenário brasileiro entram em choque com a perspectiva passadista das narrativas históricas
reproduzidas no ambiente escolar e se colocam como um espaço intervalar. Na imagem abaixo,
vemos a sobreposição corpo-natureza produzida a partir de efeitos especiais que pode ser lida
como uma mimetização da indissociabilidade entre a pessoa inígena e a natureza.

Figura 9 – Efeitos corpo-natureza no videoclipe “Xondaro Ka'aguy Reguá”

Fonte: YouTube
64

Mais uma vez citando Bhabha (2003, p. 35), “[...] a inscrição dessa existência fronteiriça
habita uma quietude no tempo e uma estranheza de enquadramento que cria a imagem
discursiva numa encruzilhada entre história e literatura, unindo a casa ao mundo”. Adiciono
aqui ainda o sentido mediado pela filosofia indígena de que a casa é o mundo. Assim, apesar
de um passado que não se pode mais apagar e de estarem inseridos num presente que lhes
categoriza como o outro, o estrangeiro e o exótico (embora sejam eles os originários), estão em
constante negociação cultural, utilizando as redes sociais como porto e demandando, através da
arte, inclusive, o reconhecimento de sua permanência nesse palco/espaço cultural que lhes é, ao
mesmo tempo, dado e suprimido. Dado, desde que os valores apresentados são passadistas,
saudosistas, folcloristas e se alinham com a visão de “era uma vez o índio”; ou suprimido (não
propriamente negado), ao invisibilizar as produções artísticas indígenas que sejam mais
problematizadoras, questionadoras e políticas, pois tais manifestações podem trazer à tona
aquilo que o status quo dominante veementemente rejeita, a resistência que se afirma:
“sobrevivemos e vamos continuar aqui”, que é a premissa da metáfora da semente que citei
anteriormente.36 Em outras palavras, a arte indígena é, em geral, reconhecida se o indígena se
sujeitar a contá-la de uma perspectiva de “assim é como éramos” e não “assim é como somos”.
A poética de Kunumi questiona o passado-presente (BHABHA, 2003) e insere as
questões intervalares do “entre-lugar”, ao mesmo tempo em que reafirma a tradição, mas não
se esquiva de participar do agora e insere, numa nova roupagem, sua reivindicação pelo
reconhecimento da identidade originária num contexto de luta que sobrepuja o lamento. Nesse
movimento, leio a coragem dos intelectuais que atuam a partir do ainda-não a caminho de um
novum (BLOCH, 2003), que contesta e renova o repertório mais canônico da poética cujo tema
central é o modo de viver e a filosofia dos povos indígenas. Para tanto, Kunumi utiliza-se das
estratégias do hibridismo cultural, da negociação da palavra (mas não dos valores), aliando aos
seus discursos as novas tecnologias que permitem que o dito/cantado viaje veloz como a “estrela
colorida brilhante” da poética velosiana. Assim, ele retoma o que não lhe é dado e costura, com
base nessa estética, novas maneiras e poéticas de falar de si que são menos perpassadas pelo
discurso veladamente racista do nosso país e mais conscientes da realidade que as atravessa,
sem, entretanto, perder o vigor poético que como uma flecha direciona seu alvo para a luta e
para a reconquista.
Essa obra audiovisual é, como a de Caetano, uma elaboração da esperança concreta ou
esperança militante que abre um nicho para a continuidade da cultura indígena no presente e no

36
Cf. página 68.
65

futuro. Especulando sobre a perpetuação da existência indígena por meio de uma diáspora no
cosmos, “Tubi Tupy”, de Lenine, é a próxima canção analisada e apresenta-nos também a
metáfora das sementes indígenas espalhando-se pelo universo.

2.6 O “astronauta tupi”, de Lenine

Lenine (Oswaldo Lenine Macedo Pimentel), natural do Recife-PE, é compositor, cantor,


multi-instrumentista, produtor e ativista ambiental, tendo 13 discos lançados. É seis vezes
vencedor do Grammy Latino, entre outros prêmios. A própria indicação de Lenine aos prêmios
já demonstra sua filiação a um ritmo específico, indicado por melhor álbum pop, rock e MPB.
Lenine segue como músico de estilo inclassificável, apesar disso suas canções têm qualidade
reconhecida pelo público e pela crítica.
A mistura de rock, música eletrônica e ritmos latinos que Lenine promove em sua
música conseguiu cinco indicações para o Vídeo Music Brasil, da MTV, e levou Na Pressão a
vencer, também neste ano, o prêmio de melhor álbum de MPB concedido pela Associação
Paulista dos Críticos de Arte (APCA) (CAESAER, 2000). “Tubi Tupy” – do álbum Na Pressão
(1999), de Lenine – apresenta um índio reconstruído por elementos fragmentários e pós-
modernos, criando uma colagem de caracteres naturais e tecnológicos, como se pode ler acima.
Neste ponto a hibridização entre o indígena e a natureza, dialoga com a análise anterior. A
reconstrução da imagem indígena trabalha elementos que resultam da desconstrução de
imagens anteriores, o que fica claro a partir da observação de alguns procedimentos adotados
pelo autor, a saber: (1) o relato em primeira pessoa – o eu-lírico é o índio que ressurge/renasce
dono da própria voz; (2) o hibridismo – que pode ser lido na representação dos elementos
corvo, carvalho e carvão, os quais representam três reinos da natureza (animal, vegetal e
mineral), apontando para uma identidade mista, também representada pela miscelânea entre
épocas que se evidencia pelo verso “natural, analógico e digital”, que revela três estágios de
desenvolvimento tecnológico experimentados pela humanidade; (3) o refazimento identitário –
recuperado pelo uso dos vocábulos feito, liberto, renasci e nascendo das cinzas, evocando o
surgimento do novo índio, que se integra ao universo contemporâneo, mas que, ao mesmo
tempo, faz parte desse universo desde o Big Bang: “Eu sou feito do resto de estrelas / daquelas
primeiras, depois da explosão”, e continuará fazendo por se projetar pelo futuro e ser
astrounauta do cosmos. Vejamos a letra na íntrega:

“Tubi Tupy”
66

Eu sou feito de restos de estrelas


Como o corvo, o carvalho e o carvão
As sementes nasceram das cinzas
De uma delas depois da explosão
Sou o índio da estrela veloz e brilhante
Que é forte como o jabuti
O de antes, de agora em diante
E o distante, galáxias daqui

Canibal tropical, qual o pau


Que dá nome à nação, renasci
Natural, analógico e digital
Libertado astronauta tupi
Eu sou feito do resto de estrelas
Daquelas primeiras, depois da explosão,
Sou semente nascendo das cinzas
Sou o corvo, o carvalho, o carvão

O meu nome é Tupy


Guaicuru
Meu nome é Peri
De Ceci
Sou neto de Caramuru
Sou Galdino, Juruna e Raoni

E no Cosmos de onde eu vim


Com a imagem do caos
Me projeto futuro sem fim
Pelo espaço num tour sideral
Minhas roupas estampam em cores
A beleza do caos atual
As misérias e mil esplendores
Do planeta Neanderthal
(Grifos meus)

O nome da faixa, “Tubi Tupy”, foi adotado para o álbum de Lenine, no entanto, na
página do letrista da canção, Carlos Rennó,37 o título aparece grafado como “To be Tupi”, grafia
que mais claramente leva a uma referência ao Manifesto antropofágico (ANDRADE, 1928),
“Tupy or not tupy, that’s the question!”, e também ao Manifesto da poesia Pau-Brasil (1924),
cuja intertextualidade é recuperada pelos versos “canibal tropical, qual o pau que dá nome à
nação, renasci”. As ligações da antropofagia brasileira com o hibridismo, o futurismo e os
utopismos colocam-na como mais um elemento intertextual que reforça as características

37
Também é de Carlos Rennó a letra da canção “Demarcação Já!” (2009), que teve videoclipe dirigido por André
D’Elia com apoio do Greenpeace e foi interpretada por inúmeros artistas nacional e internacionalmente
conhecidos, como Gilberto Gil, Lenine, Ney Matogrosso, Criolo, Céu, Chico César, Maria Betânia, Lirinha, Leci
Brandão, Djuena Tikuna, Felipe Cordeiro, Leticia Sabatella, entre outros/as. E, mais recentemente, “Salve-se a
selva”.
67

indiofuturistas dessa canção (visto que os três elementos citados se constituem como pontos
basilares que postulo como recorrentes e constitutivos dos futurismos indígenas). A
antropofagia literária brasileira, que surge como parte do movimento modernista, eleva como
princípio a “deglutição” ou “devoração crítica” que faz o/a poeta ao atravessar culturas, escolas
e espaços-tempos.
O artista constrói, a partir das características que lhe são interessantes, um mosaico
estético-étnico-cultural que exalta as raízes brasileiras (mais notadamente culturas e línguas
indígenas), uma poética que se entende como “verdadeiramente nacional”, pois aquilo que foi
antropofagizado é reajuntado e toma nova dicção na voz poética do/a brasileiro/a que busca
uma autenticidade própria do povo e que valoriza as culturas indígenas como berço cultural das
artes brasileiras. Nas palavras de Sílvio Rocha (2000, p. 6):

Nesse cenário híbrido, não há apenas um pluralismo cultural, e sim uma fusão
problematizadora da noção de identidade, por meio de uma figura em que as
diferenças são superadas pelo fato de ser canibal e astronauta, analógico e
digital. Tanto é que a canção retoma a máxima existencial shakespeariana, “to
be or not to be, that is the question”, parodiada no Manifesto Antropófago
como “tupy or not tupy, that is the question”. Desse modo, o canibalismo
representado pelo personagem lírico de Lenine renasce das cinzas que o
dizimaram, mas agora não mais como ser colonizado, e sim como partícipe do
processo de construção da cultura, em um mundo digital e globalizado. Sendo
canibal, esse sujeito é corvo (devorador), mas também carvalho (devorado);
em verdade, no fim da estrofe, ele se coloca, por meio de aliteração e gradação,
como carvão – resultante do processo de devoração gerador de um novo ser.

É importante destacar, nessa citação, alguns pontos: o hibridismo, a relação com a antropofagia
cultural e a inserção nas tecnologias que Rocha explora, ao tratar dessa canção. São elementos
que eu considero como constituintes do conceito de indiofuturismo, já explicitado
anteriormente.
A melodia dessa canção é ascendente, atingindo seu ponto mais alto com o refrão no
qual o eu-lírico assume as mais diversas identidades. A canção cita as etnias Guaicuru e Tupi,
conhecidas por serem nações guerreiras. Os Guaicuru, especialmente, ficaram conhecidos como
índios cavaleiros por sua ferocidade contra os inimigos. Além disso, fazem alusão aos povos
Juruna, Kayapó e Pataxó, por meio das citações dos nomes de seus líderes. Caramuru faz
referência a Diogo Alvares Correia, português que naufragou na costa da Bahia em território
Tupinamba e que, sendo o único poupado pelos indígenas, viveu entre eles até sua morte, em
1557. Essas menções realçam a assunção dessa autonomeação de maneira bastante incisiva. A
construção do arranjo, com poucos instrumentos aparecendo de forma episódica nos interlúdios,
68

dá um protagonismo muito importante à voz e, consequentemente, ao texto poético cantado. Já


o uso das batidas eletrônicas, contrastando, por exemplo, com o som de um berimbau, reforça
o hibridismo no nível da construção da paisagem sonora, o que é feito também por Kunumi ao
unir cântico tradicional e batida eletrônica. Nesse sentido, eu não poderia deixar de mencionar,
também, o curioso efeito que cria, logo no início da canção, uma atmosfera sideral, que – eu
diria – pode ser lida como o som de uma nave espacial, pois é bastante similar a efeitos
utilizados em filmes de sci-fi, por exemplo.38
A viagem espacial, que tem sido tema recorrente na ficção, mais notadamente na ficção
científica, configura-se como uma jornada de potencial utópico por sua possibilidade de
descortinar novos espaços e novas maneiras de vida e de inteligência. A jornada em “Tubi
Tupy” é também uma jornada de descobrimento, em que o protagonista/herói se despojou das
amarras e roupas impostas pelo colonizador, mas não do caos gerado pelo contato, e que, agora
liberto, se projeta num futuro sem fim, como um viajante sideral. Esse “sem fim” carrega as
sementes da utopia que contrasta com a distópica condição da pessoa indígena no Brasil, uma
vez que pessoas, territórios e culturas têm sido ameaçados e exterminados no nosso presente
apocalíptico. A temática do viajante também liga essa canção à de Caetano Veloso (“Um
índio”). Essa intertextualidade é expressa pelos versos “Sou o índio da estrela veloz e brilhante”,
o que coloca esse “Tubi Tupy” como sendo “o mesmo” índio que “virá”, porém, no caso da
canção aqui em relevo, é o próprio “índio” que figura como eu-lírico e sua chegada não é mais
uma possibilidade futura, mas um acontecimento em curso, trazendo sua mensagem de
afirmação. Ao longo dos 30 versos do poema, a formulação anafórica “(Eu) sou” se repete 8
vezes, “meu nome” é repetida 2 vezes, e temos ainda, as construções que remetem à
pessoalidade desse índio em “minhas roupas”, “me projeto”, “de onde eu vim”, “renasci”. A
reiteração dessa identidade feita em primeira pessoa é a própria mensagem que o viajante traz:
quem é, de onde veio, de que é feito e para onde vai. Tal mensagem abre espaço para a
interpretação da aparição desse “índio” como a realização profética da canção “Um índio” e a
mensagem que ele revela aos povos é a de que ele sempre foi, é e sempre será aquele que
permanece, pois nasceu junto com o cosmos e com os sistemas naturais que lhe compõe; está
aqui desde o princípio dos tempos e sempre estará, pois sempre renasce e “se projeta futuro sem
fim”. Assim, nessa composição, a mensagem do “índio” é a de que ele persevera no cosmos,
apesar do caos e da miséria que imperam no planeta. Ele vem como o “índio” velosiano virá –

38
Ressalto que, para a construção desta análise, utilizo a versão anteriormente referenciada, que é a do álbum Na
Pressão.
69

sideral, celestial, como um navegador dos céus que aporta não no espaço, mas no tempo como
ponto de desembarque. Assim, sua jornada desbrava o tempo e não apenas o espaço.
O diálogo com os textos da tradição e com os fatos da atualidade pode ser lido como
outro movimento de hibridização realizado por meio de uma recuperação de acontecimentos da
atualidade e pela intertextualidade – o texto reverbera nomes de líderes e suas lutas históricas,
ao lado de históricos personagens da ficção. A citação dos nomes/etnias, enfatizada pela
fórmula meu nome é, revela mais que um ato de fala, mas uma postura de apresentação e
autonomeação, que se traduz numa tomada de poder/voz dentro do discurso lírico proposto
pelos autores. Reconheço, nesse movimento, a reafirmação identitária indiofuturista que suscita
também questões sociais mimetizadas pela letra que aponta para o “caos atual” e “as misérias
de mil esplendores, no planeta neandertal”. A hibridização também acontece na representação
do espaço-tempo: “o de antes, de agora em diante e o distante galáxias daqui”, “e no cosmo de
onde eu vim [...] me projeto futuro sem fim, no espaço num tour sideral”; e da diversidade de
nomes citados: personagens históricos e ficcionais, líderes do passado e do presente, e das etnias
citadas como pertença/origem.
A imagem posta aqui é a da condição desse índio como sujeito contemporâneo e do seu
percurso de representação identitária na história da nação, destacando-se o verso “qual o pau
que dá nome à nação, renasci”. Ressalto também a possível alusão aos poemas “Aos Caramurus
da Bahia”, atribuído a Gregório de Matos, e “Caramuru” (1871), de Santa Rita Durão, feita na
canção através dos versos “Sou neto de Caramuru”.
A propósito das menções às etnias Tupy e Guaicuru, aos líderes indígenas Raoni e
Juruna, que se tornaram conhecidos na história recente; e a Galdino Jesus dos Santos, vítima de
homicídio no Distrito Federal no ano de 1997, no trecho: “meu nome é Tupi-Guaicuru / meu
nome é Peri de Ceci / sou neto de Caramuru / Sou Galdino, Juruna e Raoni”, cabe aqui uma
contextualização sobre essas importantes figuras históricas citadas, já que o desconhecimento
de suas trajetórias só corrobora o processo de apagamento identitário perpetrado pelo
colonialismo. Raoni Metuktire, cacique da etnia Caiapó/Yanomami, tornou-se porta-voz da
causa indígena e da ambiental, passando a ser conhecido nacional e internacionalmente após
ter alcançado a mídia por ocasião do lançamento de um documentário sobre sua vida, fato que
recebeu notoriedade do grande público. Com isso, tornou-se embaixador do combate pela
proteção da floresta Amazônica e dos povos indígenas, posicionando-se no mundo todo. Já
Mário Juruna foi ativista dos direitos dos povos indígenas, primeiro indígena eleito deputado e
autor do livro O Gravador de Juruna (1983), no qual relata sua experiência na negociação pelos
direitos indígenas no Brasil na década de 1980. Por último, temos Galdino Jesus dos Santos,
70

líder indígena da etnia Pataxó-hã-hã-hãe que foi assassinado por cinco delinquentes brasilienses
que atearam fogo em seu corpo, enquanto ele dormia em um abrigo de ônibus no Distrito
Federal. Galdino estava na cidade, por ocasião das comemorações do dia do índio, a fim de
reivindicar a proteção das terras Caramuru-Paraguaçu que pertencem ao seu povo e que estavam
sendo ameaçadas por posseiros.
A formulação dos versos “sou sementes nascendo das cinzas” epitomiza a metáfora já
citada da semente que remete ao renascimento e à continuidade das culturas e dos povos
originários. Esse elemento se realiza no viajante utópico de Lenine/Rennó, o qual age como um
semeador do cosmos projetando-se como se projeta a axis mundi com raízes profundas,
sementes fecundas e existência que se traduz em resistência.

2.7 Ao largo do tempo, sementes

Por meio das análises aqui apresentadas, ilustrei e demarquei o conceito de


indiofuturismo, que postulo demonstrando como suas características podem ser capazes de
balizar leituras, criando e movimentando categorias de análises que dialogam com os Estudos
Culturais e Estudos Críticos da Utopia, orientadas também pelo conceito de hibridismo cultural
e pelos futurismos indígenas. Acredito que a contribuição mais importante que o
indiofuturismo, como fenômeno artístico e como ferramenta de leitura da crítica literária, tem
a oferecer é a possibilidade de subsidiar leituras e performances mais descolonizadoras da
presença indígena como fator basilar que se encontra no cerne da discussão sobre a identidade
e a cultura brasileiras, que não está relegada ao passado, mas se coloca no presente-futuro num
movimento espiralar de resistência e permanência.
O indiofuturismo caracteriza-se pela representação indígena artística que faz uso de
meios, artefatos e tropos tecnológicos, reafirmando identidades culturais que se encontram no
“Entre-lugar” cultural, ou seja, no Terceiro Lugar Cultural (uma posição de fronteira e de
negociação). Por meio da hibridização (tanto cultural quanto discursiva), essas canções
constroem dicções e/ou horizontes utópicos/distópicos, revelando uma poética que propicia a
análise crítica cultural. A leitura das estratégias de composição e da temática dessas canções
pode ser mediada pelo conceito de indiofuturismo, dando assim visibilidade para importantes
questões, como identidade, nacionalidade, hibridismo cultural, tecnologias e, ao mesmo tempo,
contribuindo para as áreas de estudo mobilizadas que se encontram numa encruzilhada teórica,
o que privilegia uma estratégia de análise própria dos Estudos Culturais, como a que aqui foi
realizada, uma teorização de fronteira ou transdisciplinar.
71

Outro fator importante é sua postura crítica diante de realidades sociais que, por serem
perpassadas por estereótipos racistas, injustiças sociais e ambientais, suscitam debates acerca
desses temas importantes, tanto para o reconhecimento e o respeito das alteridades indígenas
quanto para questões que são (ou deveriam ser) concernentes a todos/as nós, que é o papel que
os modos de vida indígenas performam como defensores da Terra. Essa nossa casa comum
sofre com os ataques daquelas pessoas e entidades que visam apenas o lucro imediato e que se
colocam numa posição negacionista em relação aos danos que nós, como espécie, estamos
causando às espécies irmãs. Nas cosmovisões dos/as nativos/as de Abya Yala, o rio é nosso
avô; podemos ser irmãos e irmãs da água, filhos e filhas da mesma mãe, a Terra, que nos nutre
e, ao mesmo tempo, agoniza por nossa maneira objetificante e avarenta de tratá-la, causando
danos irreversíveis a todos nós, astronautas/tripulantes dessa nave que se desloca pelo tecido
do cosmos. Enquanto não reconhecermos o/a “indígena” como nosso/a outro/a igual, seremos
vitimados/as, em nossas diferenças, por males criados à imagem e semelhança da nossa
ganância e negligência. Esse alerta está latente nas canções aqui enfocadas, em que figuram
“brancos/as que chegaram e destruíram” aquilo que não pode ser criado, “de fontes de água
límpida e nações indígenas exterminadas”, do caos e das “misérias de mil esplendores” que se
estendem pelo país.
72

3 PERSPECTIVAS DE GÊNERO SOBRE A FIGURAÇÃO DA MULHER INDÍGENA

3.1 Perspectivas feministas de Abya Yala à América Latina

Ao iniciar a escrita da tese, eu propunha tratar das questões de gênero que permeiam
este capítulo pela perspectiva da interseccionalidade, perspectiva construída e sistematizada
também por Kimberleé Crenshaw (2002) seguindo as feministas que produzem teorias a partir
do sul Global. A mim, parecia que o cruzamento entre raça, classe e gênero que produz
opressões duplas, triplas ou múltiplas (quando envolvem, por exemplo, capacitismo, ageísmo,
xenofobia etc.) favoreceria o diálogo de gênero no contexto de raça indígena e de suas inúmeras
etnias sobre classe e condições socioambientais. No entanto, encontrei-me num dilema ao me
questionar sobre o que é o feminismo indígena e o que representa o feminismo para mulheres
indígenas (aldeadas, em contextos urbanos, nascidas na urbanidade) que se encontram numa
multiplicidade de situações potencialmente opressivas, com a colonização cultural continuada,
as religiões, a necropolítica que as afeta diretamente, o racismo institucional e a violência contra
os corpos gendrados (também dentro, mas principalmente fora do território indígena). Comecei
a questionar, diante dessa multiplicidade de opressões sobre pessoas que performam modos de
existência completamente diferentes daqueles que feministas inseridas no contexto acadêmico
experimentam, se o feminismo ocidental – em especial, a interseccionalidade – poderia ser um
viés analítico mais adequado. A partir desse aparato ideológico, somos capazes de teorizar sobre
opressões que se diferenciam das que conhecemos? Somos capazes de falar sobre o que é ser
mulher indígena, tomando como referência o nosso entendimento do que é ser mulher? Em
minha visão, a resposta para tais perguntas não é mais importante do que o exercício de as
formular, mesmo porque os feminismos – que são plurais – podem gerar tais diálogos e embates
“internos” como uma forma de entender as diferenças entre as lutas e alteridades e de traçar um
caminho de luta que aconteça de forma parelha e não antagônica, mas não há a necessidade de
falar pelas mulheres indígenas, já que elas podem falar por si, produzir seus próprios conceitos,
metodologias, agendas e ações. Segundo Kimberleé Crenshaw (2002, p. 177),

A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as


consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos
da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o
patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam
desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças,
etnias, classes e outras. Além disso, a interseccionalidade trata da forma como
ações e políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos,
constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento.
73

Crenshaw enfatiza que as opressões não apenas atingem diferentemente mulheres negras [e de
cor] como também a opressão flui através dos três eixos classe/raça/gênero que não raro se
encontram sobrepostos, criando desigualdades de base que estruturam a sociedade classista,
racista e machista que ainda constitui o padrão encorajado e sustentado pelo capitalismo que
não esqueçamos, é sustentado por esses eixos de opressão e colonização.
Conforme comecei a exercitar a escuta das falas das indígenas sobre suas lutas, ao ouvir
atentamente as questões colocadas pelas parentes de diversas etnias e contextos 39, percebi que
a abordagem do víes feminista no contexto indígena – que já não se apresentava como algo
simples – foi desvelando discussões que trazem a este trabalho perspectivas de diálogos
diversos. Essas discussões enriquecem o debate na busca pela visibilização das diferenças. Ao
invés de apagar o contraditório, busco problematizá-lo, trazendo à luz diferentes maneiras de
lutas de mulheres que não se anulam (ou pelo menos não deveriam).
Em face da leitura do artigo de opinião “Mulheres indígenas querem novo olhar sobre
seu lugar e luta”, de Hamangaí Marcos, deparei-me com a seguinte afirmação:

Eu não me considero feminista, mas compreendo a importância deste


movimento para nós mulheres. Digo isso porque quando o movimento se
refere a nós, indígenas, o feminismo não contempla as nossas lutas e
especificidade que é, principalmente, pela demarcação dos nossos territórios.
Nosso trabalho de base tem um jeito próprio de organização interna que varia
de povo para povo. As mulheres da minha comunidade têm um jeito de se
articular. Nós queremos e precisamos caminhar lado a lado dos nossos
companheiros (MARCOS, 2020, grifos meus).

Mesmo reconhecendo a importância do feminismo para as mulheres como classe “universal”,


a jovem Pataxó Hã-Hã-Hãe entende-se como excluída da agenda feminista não indígena que
não contempla, como uma de suas pautas, a luta pela demarcação dos territórios e,
consequentemente, a proteção dos modos de vida de suas populações, o que é central para as
mulheres indígenas. O que, até então, parecia uma simples questão de ampliar a pauta e
expandir as redes e os movimentos feministas na direção das mulheres indígenas revelou-se,
para mim, como uma questão não apenas de divergência de objetivos, mas de maneiras
completamente diferentes de ver e entender o mundo e as relações de gênero. A divergência

39
Assisti documentários e entrevistas como por exemplo, O programa “Que querem as mulheres?” apresentado
por Heloísa Buarque de Holanda em que as interlocutoras: Thaily Terena, Márcia Kambemba e Marize Viera de
Oliveira debatem questões acerca da luta de mulher indígenas, “Encantadas – 1ª Marcha das Mulheres indígenas
e Margaridas – 2019”, dirigido por Rachel Alvares, a reportagem da TVT em 5 de outubro de 2017 intitulada
“Conheça a luta da mulher indígena”, o documentário “Mulheres Indígenas: Vozes por Direitos e Justiça”, lançado
pela ONU Brasil em março de 2018, em Brasília (DF), entre outros.
74

pode acontecer não apenas entre as feministas ocidentais e as mulheres indígenas, como
também entre as próprias indígenas. É sempre preciso lembrar que o termo “indígena” faz
referência à raça e não às etnias diversas. Por isso, essas mulheres também podem ter diferentes
cosmovisões e filosofias, orientadas por suas culturas. No entanto, entre elas, as especificidades
divergentes podem acabar sendo debatidas e agregadas em torno da luta maior que elas têm em
comum: a demarcação. Tão essencial é essa luta pela terra que a primeira Marcha de Mulheres
Indígenas do Brasil, que ocorreu em 2019 e reuniu 2.500 mulheres indígenas de todo o Brasil,
adotou como tema “Território: nosso corpo, nosso espírito”. Pode-se ler, no documento final da
mobilização, a maneira como essas mulheres de luta se posicionam em relação às desigualdades
de gênero e ao feminismo:

A Marcha das Mulheres Indígenas foi pensada como um processo, iniciado


em 2015, de formação e empoderamento das mulheres indígenas. Ao longo
desses anos dialogando com mulheres de diversos movimentos, nos demos
conta de que nosso movimento possui uma especificidade que gostaríamos
que fosse compreendida. O movimento produzido por nossa dança de luta
considera a necessidade do retorno à complementaridade entre o feminino e o
masculino, sem, no entanto, conferir nenhuma essência para o homem e a
mulher. O machismo é uma epidemia trazida pelos europeus. Assim, o que é
considerado [violência] pelas mulheres não-indígenas pode não ser
considerado violência por nós. Isso não significa que fecharemos nossos olhos
para as violências que reconhecemos que acontecem em nossas aldeias (CIMI,
online).

A leitura do texto citado provocou a necessidade de escolher ainda mais cuidadosamente o


referencial teórico que seria o viés pelo qual eu analisaria a questão de gênero, pois tais teorias
poderiam não só não serem bem recebidas pelas mulheres indígenas, mas também,
principalmente, poderiam levar ao apagamento de questões basilares em sua luta, criando assim
uma análise em que a teoria poderia agir como colonizadora, ao impor uma análise que parte
do pensamento acadêmico ocidental para explicar questões que estão ainda fora do seu escopo,
até porque, como salientei anteriormente, já existem teorizações que partem das próprias
mulheres originárias, as quais são perpassadas por seus próprios conceitos e suas vivências que
não podem e não devem ser ignoradas pela universidade. Além de apagar peculiaridades que
estão no centro da luta das mulheres e dos embates de gênero no contexto indígena, a
possibilidade de distorção das discussões seria enorme, já que a grande e visível distância entre
o aparato teórico e o objeto não é apenas de gradações ideológicas, mas de concepção de mundo
como um todo.
75

Assim, a busca começou por um “feminismo indígena” que partisse das especificidades
dessas mulheres e não apagasse seu protagonismo. Após cada leitura, audição de entrevistas, a
cada fala ouvida40, parecia cada vez mais distante a possibilidade de conciliar numa mesma
sentença as palavras “feminismo” e “indígena”. Ao ouvir, por exemplo, as falas de Taily
Terena, Márcia Kambeba e Marize Viera de Oliveira (Guarani) em entrevista conduzida por
Heloísa Buarque de Holanda para o programa O que querem as mulheres? (Canal Brasil),
comecei a compreender que os papéis de gênero (que são diferentes em cada cultura/etnia) têm
sua relevância na pauta das indígenas, mas as mulheres se localizam como co-protagonistas na
luta pela terra, que é a luta do seu povo. Então, elas não se enxergam como mulheres que fazem
parte de um povo, mas, sim, como o próprio povo. Existe uma noção de que a divisão de papéis
de gênero, o que cabe aos homens e o que cabe às mulheres, é vista como um sistema gerido de
modo complementar, em que cada um/a tem sua importância e função. Dizendo de outro modo,
a experiência de opressão para essas mulheres pode ser muito diversa daquela vivenciada pelas
não indígenas, não somente pela diferença de cosmovisão, mas pela própria diferença dos
conceitos de mulher, corpo e gênero.
Nesse ponto, cabe salientar a fala de Taily Terena, que explica que as mulheres
indígenas estão sujeitas a três tipos de opressão de gênero: externa (perpetrada pelos invasores),
interna (pelos próprios companheiros que já estão tomados pela visão colonial e pelo
adoecimento causado pelo alcoolismo) e ambiental (que ameaça seu território, seu
conhecimento, sua maneira de existir no mundo). Danielly Coletti Duarte (2017, p. 41) parece
corroborar esse mesmo panorama de opressões múltiplas ao afirmar que

a mulher se encontra em situação de vulnerabilidade e ser indígena significa


que seus direitos são ignorados. Infere que, ser uma mulher indígena significa
permanecer constantemente em déficit na luta pela garantia de seus direitos e
pela equidade de oportunidades. Acerca disso, as mulheres indígenas têm
sofrido em seu percurso histórico opressões diversas, vivenciadas tanto nas
reservas indígenas quanto em contexto urbano, como consequência do
contato com a sociedade ocidental. São, portanto, oprimidas nos âmbitos
público e privado (grifos meus).

Além de expressar conformidade com a fala de Taily Terena, Duarte amplia a dimensão desse
conjunto de opressões ao pensar também na esfera dicotômica do público/privado, o que me
leva a considerar também a violência institucional e estatal sofrida por essas mulheres. Assim,
podemos pensar num conjunto de violências que engloba: o machismo e a violência de gênero

40
Cf. nota na página 73.
76

(interna e externa ao contexto comunitário); a violência ambiental; o racismo e a violência


institucional (que se dá no eixo raça/classe/gênero) perpetrada pelo Estado e por seus aparatos
(jurídicos, educacionais, políticos etc.). Vejo, em ambas as afirmações, traços de
interseccionalidade que podem aproximar, portanto, o feminismo do sul global e a luta das
mulheres indígenas, sem apagar suas pautas prioritárias.
Para os feminismos ocidentais, pode parecer de difícil compreensão que a luta das
mulheres indígenas seja, muitas vezes, pautada pela biologia dos corpos que orienta a divisão
de funções/papéis possíveis de serem performados pelos gêneros e que isso possa ser aceito, a
ponto de não ser uma das pautas principais nessas lutas. Há que se considerar que, da
perspectiva da maioria das mulheres indígenas, a relação corpo/território é intrínseca e passa
pelo conjunto de conhecimentos e tradições que orientam sua visão de mundo e,
consequentemente, de gênero. Ainda citando a entrevista conduzida por Heloísa Buarque de
Hollanda, quando esta dirige uma provocação à Taily Terena, questionando sua interlocutora
sobre o que querem as mulheres indígenas, Terena responde:

[...] que os nossos filhos possam viver, isso fazendo aquela oposição entre o
viver e o sobreviver [...] queremos o bem viver que é a ideia de que a gente
viva em equilíbrio [...] por exemplo, nessa questão do feminino, onde que está
o bem viver nessa questão [...] está no equilíbrio entre as funções dos homens
e das mulheres, de respeitar o espaço do homem e da mulher, de respeitar o
universo do homem e da mulher, aí está o bem viver também. [...] Isso já existe
de maneira desenvolvida na nossa filosofia. Isso é filosofia indígena. Claro
que os parentes Aimará/Quéchua deram, digamos assim, fama a este termo,
mas todos os povos têm sua forma de bem viver que aí a gente traduz como
nosso modo de ser (grifos meus).

Destaco a expressão bem viver e a referência aos Aimará e aos Quéchua porque essa alusão
remete diretamente ao feminismo comunitário conceituado por Julieta Paredes.
Desse modo, ao analisar situações que envolvem gênero pela perspectiva interseccional,
por exemplo, é possível afirmar que a identidade racial/étnica é uma categoria orientadora mais
importante para as mulheres indígenas na luta contra a opressão dos seus corpos do que o eixo
de gênero (orientações e políticas). Argumento, então, que é possível aproximar
interseccionalidade e os feminismos indígenas, mas é necessário, todavia, modalizar e
contextualizar constantemente o que cada uma dessas vertentes denota como mulher, corpo,
gênero e feminismo, para que não ocorra uma equalização artificial dos conceitos e das
propostas dessas teorias. Inclusive, ainda é imprescindível delimitar muito precisamente de que
feminismo indígena estamos tratando, para que não incorramos numa homogeneização de
77

visões plurais dos diferentes povos e das diferentes visões, que é tão comum na sociedade
ocidental que tende a entender “indígenas” como membros de uma única cultura, filosofia,
prática e modo de viver. Rememoro, aqui, mais uma vez, que existem diferenças enormes entre
as culturas de cada etnia que se manifestam, por exemplo, na impossibilidade de mulheres
serem cacicas e pajés em alguns povos, enquanto em outros isso é uma realidade cada vez mais
comum (e.g. Dorinha Nawá Pankará, Kôkôti Xikrin, Eunice Antunes Itaty são caciques de suas
respectivas etnias). As orientações sexuais e identidades de gênero também podem ser regidas
por um forte binarismo ou ocorrerem de maneira fluída, a depender da tradição cultural de cada
etnia. Vide o caso de Majur Traytowu, uma mulher trans que assumiu o cacicado41 de sua aldeia
Apido Paru (Tadarimana), em Rondonópolis-MG, sem contestação alguma, uma vez que tais
problematizações sequer chegaram a ser cogitadas como assunto para seu povo, enquanto, em
outras culturas, o binarismo de gênero e a cis-heterossexualidade são vistos como norma,
levando jovens indígenas a uma situação de isolamento social, sofrimento psicológico e até
suicídio.42
A constatação dessa heterogeneidade dos assuntos relativos a gênero (identidade,
orientação e política) entre as etnias indígenas auxilia na compreensão de que não há um
conceito centralizador de gênero, nem um padrão de funções/papéis de gênero que permita
postular o que é uma pessoa LGBTQIAPN+ para indígenas de uma maneira geral. Isso não
significa dizer que não exista preconceito de gênero e violência contra não homens
(especialmente as mulheres) dentro do contexto indígena, assim como também não se pode
negar que existe uma agenda confluente entre certos povos e alianças de mulheres que visam
combater o machismo dentro das aldeias. O que não se pode afirmar é que exista uma
organização mais totalizante que se aproxime das pautas e reivindicações da agenda feminista
não indígena. Por outro lado, tanto as etnias que apresentam uma equidade maior em relação
ao gênero quanto as que apresentam uma formação mais rígida e estreita se aliam na luta pela
terra.
Nesse processo de escuta de mulheres indígenas em seus posicionamentos, encontrei
uma entrevista da cantora Katú Mirim para a coluna Morango, que é veiculada no portal da Uol
(MIRIM, 2019). Nessa conversa, ela expõe suas orientações políticas, em especial as de gênero,
a partir de seu recorte interseccional de mulher rapper indígena e bissexual em contexto urbano.

41
Apesar de ter sido notícia nacional, a identidade de gênero e/ou orientação sexual de Majur nunca constituiu
uma questão a ser debatida entre seu povo. Para mais informações sobre o assunto, consultar Lopes (2021).
42
A esse respeito, recomendo o documentário Terra sem Pecado, dirigido por Marcelo Costa, em que jovens
indígenas falam sobre o preconceito sofrido tanto em suas aldeias quanto nas cidades.
78

Ao ser questionada sobre suas relações com o feminismo e a descolonização, ela aponta dois
caminhos diferentes: a opressão que enfrenta como pessoa inserida no universo e no contexto
da mulher urbana e a postura das parentes aldeadas que estão imersas em um contexto
totalmente diferente. Katú cita Julieta Paredes, que esteve na aldeia Guarani, incentivando o
público a buscar seu trabalho por ser importante para tal debate. Ao notar essa abertura de
diálogo com Paredes, já sinalizada anteriormente pela referência feita também por Taily Terena,
percebi que pode haver uma aproximação maior e mais orgânica entre as teorias. Nos termos
de Paredes, em entrevista à Mariana Malheiros, María Camila Ortiz e Treza Spyer (2019, p.
30), a questão identitária é assim tratada:

[...] nós falamos de comunidade e da comunidade de comunidades, nós não


nos definimos antipatriarcais, nem anticapitalistas, nem anticoloniais. Por
quê? Assim estaríamos reforçando o colonial, o patriarcal. Não... Nós temos
que buscar nos definir com base na nossa proposta e não com base no que
lutamos contra e queremos destruir. Para que vamos reedificá-los? O que
necessitamos é pensar melhor sobre o que é nosso. É a partir do coração que
devemos falar. Por que lutamos? Pela comunidade. O que queremos? Uma
comunidade de comunidades.

Parece-me claro que a diferença se coloca, assim em termos de uma ontologia do nós, ao invés
de uma posição que seja mais profundamente calcada no subjetivismo individual. A visão de
comunidade como sendo uma constante orienta não só as lutas, mas as produções das artistas
indígenas. Nesse ponto percebo um afastamento dos feminismos ocidentais. Por outro lado, ao
se constituir como uma luta de mulheres na Abya Yala, esta atitude aproxima-se das feministas
do sul43 pela geografia e pelo acúmulo de opressões em intersecção impostas pelo patriarcado.
Assim, nas análises que seguem, utilizo tanto a interseccionalidade quanto o feminismo
comunitário como teorias norteadoras para investigar e problematizar as situações perpassadas
pelo gênero em minha leitura.
A rebeldia e a retomada do território são os motores que impulsionam a voz lírica
guerreira em “Índigena futurista” de Katú Mirim. Essa leitura foi subsidiada pelo feminismo
intersecional e pelos estudos culturais. Conforme já indicado, a influência cyber na construção
dessa guerreira metamorfa furiosa, guiou a discussão no rumo das lutas sociais e ambientais e
na crítica e, consequente, insurgência contra o sistema capitalista neocolonialista. A análise

43
E em certa medida, dialoga também com alguns postulados do norte global, através de slogans e orientações
como “a irmandade é poderosa” (Sistehood is poweful), “Mulheres num circuito integrado”, ao colocar o pessoal
como político e ao promover a sororidade entre mulheres diversas. Tais movimentos podem ser entendidos como
uma tentativa de declinar os feminismos num corpo coletivo/comunitário.
79

suscitou diálogos intertextuais e intersemióticos com as canções “O quereres” de Caetano


Veloso e “Caça e caçadora” de Souto Mc e com aspectos do filme Uma história de amor e
fúria.
Já o desejo de resgate e valoração identitária e a luta contra a violência social e
institucionalizadas mimetizadas nas letras do rap de Kaê Guajajara, apresentado por um eu-
lírico em primeira pessoa atestam a combatividade da luta social, racial e de gênero presentes
nas vozes de artistas indígenas e dialogam com o indiofuturismo tanto por essa característica,
quanto pelo uso das tecnologias na produção e nos meios de divulgação. O eu lírico ainda
recupera memórias da violentíssima colonização dos povos indígenas, instigando a
descolonialidade por meio da busca por recontar a triste realidade que envolve a miscigenação
e os preconceitos perpetuados pela sociedade brasileira. Passo a seguir, a análise da canção.

3.2 Às cores: tons e vivências em “Mãos Vermelhas”, de Kaê Guajajara

Inicio esta análise apresentando a cantora/compositora Kaê Guajajara, que é também


ativista, educadora e autora do livro Descomplicando com Kaê Guajajara – o que você precisa
saber sobre os povos originários e como ajudar na luta antirracista (2020). Indígena da etnia
Guajajara, a artista e ativista vive na favela da Maré, em situação de urbanidade, e é parte do
coletivo Maracanã no Rio de Janeiro. Ela vem atuando no campo da música, utilizando as redes
sociais como meio de divulgação e, como influenciadora digital, colabora para a dissolução de
preconceitos contra as pessoas indígenas, utilizando a tecnologia e a internet como ferramentas
para a expansão de pautas indígenas. Suas canções podem ser situadas dentro do universo do
rap, porém, percebe-se que há também uma forte influência, em seus arranjos e em suas batidas,
do funk carioca, da performance vocal do soul e r’n’b e de melodias mais tradicionais indígenas.
No entanto, predominantemente, a musicalidade de Kaê pode ser localizada dentro do ritmo
rap, uma musicalidade que na periferia é de grande acesso e apelo e fideliza fãs. Isso se dá pela
grande popularidade desse ritmo entre os jovens e, principalmente, porque, conforme afirma
Willian Ribeiro (2020, p. 10):

[o] rap é amplamente difundido como uma das manifestações poéticas e


estéticas da cultura Hip Hop, a qual se dissemina a partir dos “guetos norte-
americanos” e se globaliza nos anos 1980/1990. Um dispositivo que mobiliza
ações de cunho social, comumente reconhecido pelos adeptos como
mobilizador e contra hegemônico. Em função de articular sujeitos e vozes da
exclusão, não há rap sem uma dimensão de realidade e desejo de transformar
a sociedade. De uma forma geral, enfatiza: a luta antirracista e violências
80

contra a população negra, contra mulheres, contra jovens pobres e crianças


das camadas populares; a resistência e reexistência nas “favelas, periferias e
quebradas”; relações injustas de trabalho, desigualdades e falta de
oportunidades; críticas às instituições, as quais incluem a escola e a violência
policial; questionamentos à política, aos políticos e à corrupção. O próprio rap
e/ou a cultura Hip Hop podem fazer parte das letras, entre outros assuntos que
visam à valorização da arte de rua, não apenas forma de expressão, mas
transformação da realidade indesejável.

Reconhecida como uma forma cultural de engajamento e instrumento de luta de vozes


excluídas, marginalizadas e silenciadas, o rap, que é parte da cultura Hip Hop, tem sido objeto
de “uma indigenização” (RIBEIRO, 2020) e veículo para manifestações culturais indígenas em
diversas partes do país. As rimas e a estética dessa manifestação cultural têm sido adaptadas
em um movimento de hibridização, passando a apresentar-se como um meio possível de
disseminação da mensagem de seus/suas MC’s e seus povos. O rap é um tipo particular de
composição/performance em que, de modo geral, a identidade do eu-lírico e do/da performer
coincidem, mas embora possa ser a voz de um indivíduo, ela é representativa (ou busca ser) de
sujeitos e comunidades em igual situação de luta, aqueles sujeitos que estão invisibilizados e
silenciados nas esferas sociais. Conforme observado por Ribeiro, há uma tendência à crítica
social do presente/passado e um latente desejo de transformação da realidade nesse gênero
musical. Tais características dialogam com o indiofuturismo e com a utopia, ao abrir espaço
para imaginários coletivos de melhores mundos. Ainda comentando o rap indígena, Ribeiro
caracteriza-o, informando-nos de que

“[o/a] orador [a] é quase sempre um/a indígena ou coletivo (como os Brô
MCs) que transita/m entre a cidade e a aldeia, luta [m] pelo seu povo,
representando “a verdade” e “a comunidade”. A verdade de quem canta é tema
comum no rap, indicando antagonismo em relação ao que é dito por outrem,
como mídia, políticos etc. Desse modo, uma das demandas é o próprio
reconhecimento, performatizando a diferença cultural. A tecnologia e o uso
da língua são destaques, ressaltando que as mudanças e apropriações não os
fazem “menos índios”, pelo contrário, indigenizam a cultura não indígena.
Nesse caso, “a pele”, como em “Corpos Laranjas” (WESCRITOR, 2019),
indica força essencial, mas também “o modo de ser” que inclui a relação
ancestral em que decisões são tomadas pelo invisível ou espiritual, muitas
vezes inacessíveis até mesmo para a comunidade indígena (2020, p. 10).

A citação de Ribeiro esclarece-nos o contexto da “indigenização” do rap e também dialoga com


o conceito de indiofuturismo que proponho nesta tese, apresentando carcatrísticas tais como:
utilização da tecnologia, descolonialismo de identidades, lutas coletivas, relações com a
ancestralidade e o modo de ser ou conjunto de tradições dos povos indígenas que dialoga com
81

o conceito de bem viver. Tais tópicos sendo reconhecidos pelo próprio artista como qualidades
da música produzida por jovens indígenas contemporaneamente, corrobora com as leituras
empreendidas nesta tese.
A mesma hibridização que acontece no rap verifica-se em outros ritmos que não sejam
os cânticos tradicionais dos povos indígenas, mas que, ao serem incorporados musicalmente
por estes, tornam-se híbridos a partir da inserção de elementos tanto sonoros quanto temáticos
e estéticos relativos aos povos nativos.
Com relação a Kaê Guajajara, uma das características mais marcantes em suas
performances é sua voz sinuosa, que se espraia pela canção de maneira suave e caudalosa,
alongando as vogais e fazendo uso de melismas, mesmo ao pronunciar palavras contundentes
– como “genocídio” – que estão no centro das temáticas que constroem letras fortes, repletas
de denúncias da assustadora realidade que presentemente vivenciamos em relação à causa
indígena, mas que também constroem imagens de resistência, possibilidades de imaginar
futuros melhores e empoderamento da mulher indígena, ao tratarem de herança cultural, de
sonhos e do estabelecimento de coalizões para a luta.
Um fato que se destaca nas escolhas profissionais e políticas de Kaê Guajajara é sua
capacidade de buscar e criar parcerias notadamente com outras mulheres indígenas e de outras
etnias não hegemônicas, abrindo espaço para uma discussão tanto de gênero quanto de raça e
classe. Ao realizar performances em parceria com Katú Mirim, Pássaro Preto, Brisa Flow, Dj
Bieta,44 entre outras, e ao iniciar diálogos que demonstram uma consciência interseccional que
busca ir além dos espaços fechados (políticos e acadêmicos) de discussão, a artista expõe seus
posicionamentos, suas orientações e seus anseios de mudança da realidade imposta à pessoa
indígena no Brasil, atualmente.45 Além de serem bandeiras de sua luta enquanto mulher e
cidadã, essas posições se inserem enquanto tropos em suas composições, veiculando assim seus
ideais por meio da arte. Um exemplo disso é a entrevista concedida a Luana Genót (2020) para
o programa Sexta Black, do canal GNT, na qual Kaê discorre sobre questões como opressão de
gênero, a diferenciação entre raça e etnia, violência sexual contra mulheres indígenas e sobre a

44
Escolhi a performance de “Mãos Vermelhas” (disponível online), realizada em 2019, em parceria com Dj Bieta,
como uma produção do projeto Sofar (songs from a room), como referência para esta análise, tanto pela qualidade
sonora da gravação, quanto pelo fato de esteticamente este vídeo demosntrar a união entre mulheres de difentes
origens e a conjugação da estética indígena de Kaê (por meio de seus adereços) com a tecnologia utilizada por
Bieta para mixar a canção.
45
A coalizão entre mulheres no movimento indígena tem ocorrido numa crescente constante que se espalha pelo
país na forma de coletivos, cooperativas, união para militância, encontros e debates etc. A esse respeito, é
interessante conferir o trabalho intitulado “Protagonismo Feminino nos Movimentos indígenas no Brasil” (2020),
de Joselaine Raquel da Silva, que traça um panorama dos diversos movimentos de coalizão de mulheres no
contexto da luta indígena.
82

necessidade de um movimento antirracista de frente ampla que inclua as pautas dos povos
indígenas e, em especial, das mulheres. Destaco essa entrevista, em particular, pois, ao longo
dela, a própria compositora traz à tona situações que estão inscritas na canção que analisarei
nesta seção, tais como: invisibilização da luta indígena, estupro, embranquecimento ou
apagamento racial e figurações carregadas de estereótipos que contribuem para a continuidade
e a propagação do racismo contra pessoas indígenas, além de opressões de classe e de
reafirmação identitária (étnica e de gênero) que se mostram como temas bem demarcados em
sua obra.
A consciência da identidade étnica é uma das temáticas recorrentes nas canções da
artista Kaê Guajajara que, nas redes sociais, apresenta seu trabalho (aqui comentando seu
primeiro EP, Hapohu) como o tecer de

uma linha entre ancestralidade e futurismo indígena, Hapohu vem quebrando


o silêncio e as correntes impostas pelo racismo e a colonização, trazendo à
tona gritos de resistência que atravessam e ecoam meio milênio. Uma ótima
oportunidade disponível em vários meios digitais para conscientizar não
indígenas sobre quem são os verdadeiros donos dessa terra e a que pé estamos.
Do zee'gte (língua do povo Guajajara), Hapohu significa raiz grande, e vem
contando a narrativa de uma indígena em contexto urbano, mostrando a
primeira parte da história sobre a descolonização dos nossos corpos.
Misturando ancestral e atual em forma de música e expressão, a resistência
se renova no momento que se faz urgente o grito por meios digitais, já que o
governo quer ignorar e contribui para nossas lideranças serem mortas, terras
roubadas, crianças separadas das famílias, mulheres estupradas, com a
devastação ambiental e o genocídio (grifos meus).

Como se pode ler no trecho acima, é possível propor um diálogo entre obra de Guajajara com
as teorias e com os conceitos que proponho aqui aparece de maneira muito perceptível (ver
grifos) em seu discurso acerca de seu fazer artístico, pois a artista se apresenta como uma voz
que amplifica e ecoa outras vozes de pessoas de sua raça, etnia, classe e gênero. Entendo que a
descolonização dos corpos, a mistura entre ancestral e atual e o grito por meio digital presentes
em sua proposta coadunam-se com o indiofuturismo. Em suas ações e palavras, Kaê parece
orienta-se pelo famoso estamento feminista “o pessoal é político” (conforme sistematizou Carol
Hanisch em importante artigo de 1970) ao colocar sua vivência e seu fazer profissional como
uma ponte possível para debater questões que lhe são de interesse, autorizada por sua condição
de mulher que se encontra na encruzilhada entre raça e classe para representar artística e
politicamente mulheres indígenas. Portanto, a artista utiliza seu lugar de fala como um lugar de
luta que mobiliza a cultura e a educação para transformar o presente. Analisando a questão do
rap indígena, especificamente das mulheres indígenas que fazem música rap, Ribeiro afirma:
83

Outro destaque no rap indígena é a articulação das mulheres, lembrando a


força do espectro ancestral: “Leoas rugem e nunca fogem/ Vozes que surgem
cada vez mais forte/ Vida ou morte e morrer não é opção/ E as que se foram,
canto pra ressurreição!” (SOUTO MC, 2019)46. A presença de mulheres é
menor em coletivos, mas notória em propostas solo (Katu, Souto MC, Kaê
Guajajara, entre outras), tendo como articulador o enfoque étnico e indígena.
Em alguns casos, cedem parte de sua configuração diferencial para o encontro
equivalente em torno da luta indígena. Mas, marcadores relativos às mulheres
é [sic] parte do repertório: “Quero vê ceis falar que eu sou sexo frágil”
(SOUTO MC, 2019) (2020, p. 16, grifos meus).

Nesse trecho, a caracterização dos eixos temáticos mais recorrentes em raps indígenas de
autoria feminina (a saber: enfoque étnico e indígena [exaltação cultural], luta indígena
[demarcação e direitos] e marcadores relativos às mulheres [ou seja, embates de gênero])
reforça o que já foi dito sobre as hierarquias das lutas de mulheres indígenas cuja temática
ambientalista, de raça e de classe, de maneira geral, se sobressai em relação às representações
da problemática de gênero, mas não as apaga, ao menos nas letras das rappers indígenas. Tais
questões ganham espaço especialmente nas composições de Katu Mirim e Kaê Guajajara 47.
Retomando a entrevista que mencionei anteriormente, quando Kaê discute a questão do
estupro das mulheres indígenas, relata que, por meio de uma conversa com um amigo, foi
alertada sobre um acontecimento histórico que teve um impacto ainda maior sobre seu
conhecimento desse tema. O acontecimento em relevo diz respeito ao Alvará Régio de 4 de
abril de 1755, assinado por D. José I com assessoria de Marquês de Pombal (documento
intitulado “Diretório que se deve observar nas povoações de índios do Pará e Maranhão
enquanto Sua Majestade não mandar o contrário”, mais conhecido como “diretório dos índios”),
em que, entre outras coisas, o monarca prometia aos vassalos que se casassem com indígenas a
posse da terra e tratamento régio especial em questões legais, recomendando, inclusive, a
abolição de termos como caboclos/as aos descendentes de tais “uniões”, pois a prole gerada
pelo casal inter-racial gozaria dos direitos legítimos de cidadania do império. Na prática, para
gozar de tais privilégios, os colonos continuaram a violentar as mulheres indígenas, agora
forçando-as a contrair matrimônio e gerar descendência como consequência dessa violência
continuada. Visavam também cumprir os mandados do rei, buscando seus obséquios e
favoritismos. Abaixo, reproduzo trechos do documento citado:

46
Retornarei a esta canção na análise seguinte, pois, ela também com “índigena futurista”.
47
Canções como “Nativa”, “Retomada”, “Indígena futurista” de Katu Mirim e “Por dentro da Terra”, “Essa Terra
é minha”, “Asas” e “Meu respirar” de Kaê Guajajara são exemplos disso. No mapeamento inicial podemos citar
também “Fique Viva” de Brisa Flow, Retorno de Souto Mc, entre outras.
84

Eu, El Rey. Faço saber aos que este meu Alvará de ley virem, que
considerando o quanto convém que os meus reaes domínios da America se
povoem, e que para este fim póde concorrer muito a communicaçaõ com os
Indios, por meio de casamentos: sou servido declarar que os meus vassallos
deste reino e da America, que casarem com as Indias della, naõ ficaõ com
infamia alguma, antes se faráõ dignos da minha real atençaõ; e que nas terras,
em que se estabelecerem, seráõ preferidos para aquelles lugares e
occupaçoens que couberem na graduaçaõ das suas pessoas, e que seus filhos
e descendentes seráõ habeis e capazes de qualquer emprego, honra, ou
dignidade, sem que necessitem de dispensa alguma, em razão destas alianças,
em que seráõ tambem comprehendidas as que já se acharem feitas antes desta
minha declaração: E outrosim proibo que os ditos meus vassallos casados com
Indias, ou seus descendentes, sejaõ tratados com o nome de Caboucolos, ou
outro similhante, que possa ser injurioso.

Como se pode ver, a institucionalização da violência contra os povos indígenas é perpetuada e


ganha força de decreto régio. Em outras palavras, o estupro, o etnocídio e o genocídio
perpetrados contra os povos nativos, que se inicia com a invasão em 1500, entram para a história
desse país em todas as frentes possíveis: culturais, religiosas e até mesmo legais.
Dito isso, inicio, precisamente por este tópico, a análise da canção “Mãos Vermelhas”,
versão em parceria com DJ Bieta (figura 10), e para tal reproduzo a letra abaixo:

Mãos Vermelhas

Me diz pelo que você luta?


Que ar você respira, senão o meu fôlego?
Que comida você come, senão a que eu dou?
Abra a sua mente antes da sua boca
É o Brasil que ninguém vê

Tic tac, tic tac, o agro não é tech


Não é pop e também mata
Vestem rosa ou azul
Com as mãos manchadas de vermelho

Vejo meus filhos se perguntando


Se você os mata ou se eles se matam
Se você os mata ou se eles matam primeiro

Você não sabe, ninguém viu


Mas ficou cravado na minha memória
Pega no laço e você sabe a história
Legalizam o genocídio

Chamam de pardos para embranquecer


Enfraquecer e desestruturar você
Pra não saber de onde veio
85

E conta a história da bisa


Da sua bisa que era índia
E não é branco, nem preto
Nem indígena o suficiente
Pelos fiscais de id
Ninguém é ilegal em terra roubada

Estou renascendo das cinzas do fogo


Em que queimaram meus ancestrais
Ainda resistimos em tantos tons e vivências

Me diz pelo que você luta?


Que ar você respira, senão o meu fôlego?
Que comida você come, senão a que eu dou?
Abra a sua mente antes da sua boca
É o Brasil que ninguém vê

Tic tac, tic tac, o agro não é tech


Não é pop e também mata
Vestem rosa ou azul
Com as mãos manchadas de vermelho

Vejo meus filhos se perguntando


Se você os mata ou se eles se matam
Se você os mata ou se eles matam primeiro

Figura 10 – Performance de “Mãos Vermelhas”, com participação de DJ Bieta

Fonte: YouTube
86

Não é incomum ouvir de alguém que declara ter ascendência indígena a narrativa da
bisavó que foi “pega no laço” ou “no dente do cachorro”. O que não é muito conhecida ou
divulgada é a origem dessas expressões que remetem a mulheres caçadas (às vezes, por matilhas
ou laçadas por cavaleiros como gado), capturadas, violentadas, aculturadas e afastadas de seus
povos de origem por colonos ou vassalos que seguiam brutalmente a política assimilacionista
portuguesa como orientação e justificativa para tais crimes que, literalmente, eram ações legais
ratificadas pelas políticas imperialistas. Tais violências foram e são continuadas por
garimpeiros, madeireiros, seringueiros e fazendeiros que invadem territórios indígenas e
violentam mulheres. Embora muitas pessoas desconheçam (ou prefiram ignorar) a história
violentíssima por trás da dita “miscigenação”, ela está na origem da hiperssexualização que
recai sobre mulheres indígenas e negras em nosso país. A sociedade brasileira continua
promovendo esse estereótipo por meio de representações culturais, tal como o hábito de
fantasiar-se de “índia” no carnaval. Ao trajar-se com roupas sensuais, as mulheres não indígenas
reforçam a ideia de que o corpo nativo é por si “sexy” e “desfrutável”. Laís Zinha (2003), na
página Visibilidade Indígena, comenta que o estereótipo reforça:

A objetificação [que] faz com que (principalmente) os homens (não-


indígenas) nos enxerguem como seus objetos sexuais e, portanto, sua
propriedade, gerando um ciclo de constantes violências. No Mato Grosso do
Sul, por exemplo, não-indígenas concebiam/concebem mulheres indígenas
como “prostituta” ou “prostituível”. Outro exemplo é a escravidão sexual de
mulheres indígenas como regra no sistema de aviamento no ciclo da borracha².
A naturalização da hipersexualização de mulheres indígenas [que] cria um
cenário de apagamento e invisibilidade em torno de nossas pautas e
reivindicações, prejudicando o avanço do próprio debate referente aos temas.
Além disso, de modo geral, somos excluídas dos dados e estatísticas oficiais.
Criam-se estereótipos sobre as mulheres indígenas, como, por exemplo, de
que o “sexo com índia é mais selvagem”, além das diversas representações
estereotipadas e romantizadas sobre mulheres indígenas em músicas como:
“Índia, seus cabelos nos ombros caídos, negros como a noite que não tem luar,
seus lábios de rosa para mim sorrindo e a doce meiguice do olhar. Índia da
pele morena, sua boca pequena eu quero beijar” ou mesmo na literatura
brasileira: as famosas Gabriela e Iracema.

Além de abordar o tema da objetificação da mulher indígena, às vezes por parte de mulheres
não indígenas, no trecho reproduzido acima, Zinha faz referências aos relatórios da ONU que
traçam um panorama da violência sexual contra mulheres e crianças indígenas e cita, ainda, os
estudos de Simonian (1994) e Meira (2017), que versam respectivamente sobre a violência
contra a mulher indígena e as práticas opressivas e violentas contra os povos indígenas durante
o ciclo da borracha.
87

Reconheço, nessa hipersexualização e nessa objetificação, uma dupla opressão em que


raça e gênero confluem, intensificando a violência contra essas mulheres. Isso fica ainda mais
claro se pensarmos que, em contraponto, as mulheres não brancas, de modo geral, são
consideradas exóticas e recebem adjetivos como “selvagem”, “da cor do pecado”, “tipo
exportação”, entre outros, que demonstram a objetificação de seus corpos e de suas identidades
raciais e étnicas. A canção citada por Zinha é a bela e romântica guarânia “Índia” (1928),
composta pelos paraguaios José Asunción Flores e Manuel Ortiz Guerrero. É uma obra clássica
que entrou para a história do cancioneiro nacional, apesar de sua origem estrangeira, como
exemplar do estereótipo de paixão e sensualidade “despertadas” pela figura da mulher indígena,
permanecendo no imaginário brasileiro. A letra da canção está centrada no relacionamento entre
o eu-lírico e uma índia tupi, em que a mulher não tem uma só palavra. É descrita como uma
mulher sensual, de negros cabelos longos, comparada a elementos naturais que provoca
sentimentos apaixonados no eu-lírico e que será, em breve, abandonada pelo seu admirador
(“Quando eu for embora para bem distante e chegar a hora de dizer-te adeus”), o qual partirá,
mas levará sempre consigo a “imagem” da índia amante, doce, meiga que tem pele morena,
boca pequena e cheiro de flor. Essa canção entra para o cancioneiro brasileiro por meio das
vozes da dupla sertaneja Cascatinha & Inhana (1952), com versão para o português do
compositor José Fortuna, tendo sido regravada por Gal Costa, Roberto Carlos, Marienne de
Castro, Maria Betânia, Leandro e Leonardo, Paula Fernandes, Michel Teló e a lista segue, o
que corrobora a permanência dessa canção em nosso repertório musical e afetivo. Embora
muitas vezes não percebamos, sempre que se fala em “índia”, as imagens dessa canção e as
descrições de Iracema48, de José de Alencar, nos vêm à mente, fazendo recuperar figuras belas,
doces, sensuais e, frequentemente, a menção à “índia” é acompanhada de uma comparação com
a própria terra colonizada ou com elementos naturais, plácidos e passivos.
Tais imagens, plásticas, contrastam com a realidade vivida ainda hoje por mulheres
indígenas. De acordo com a ONU49, uma em cada três mulheres indígenas é estuprada ao longo
de sua vida. O corpo da mulher indígena passa, em nossa curta história como país, de uma posse
material como a terra, as plantas ou animais da colônia a um fetiche, algo exuberante, desejado

48
Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema. Iracema, a virgem dos lábios de
mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna, e mais longos que seu talhe de palmeira. O favo da jati
não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado. Mais rápida que a
corça selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu, onde campeava sua guerreira tribo, da grande
nação tabajara. O pé grácil e nu, mal roçando, alisava apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as primeiras
águas. (ALENCAR, 1885, p. 5)
49
ONU Mulheres (2016).
88

e desfrutável. A nudez, que pode ser um fator cultural corriqueiro dentro de suas culturas, vira
um “chamariz” para aqueles/as que desumanizam ainda hoje suas individualidades, seus corpos,
suas vidas. Não obstante as histórias de mulheres “pegas no laço” ou “no dente do cachorro”
(prática, aliás, que nos legou o vocábulo “aperreado”, ou seja, acossado/a por cães) terem sido
apagadas de seus significados tristes e reais e virado um sinônimo de que a pessoa descende de
“índios legítimos”, a violência contra corpos das mulheres nativas prossegue e, atualmente, tem
se intensificado, visto que as ações e os mecanismos de defesa dos povos indígenas foram
desmontados pela anterior gestão política do Brasil. Então, o ser “pega a laço” virou um selo
de ascendência originária que muitos/as ostentam por ignorância da história dos povos nativos
de Pindorama.
Retornando à análise de “Mãos Vermelhas”:

E contam a história da bisa da sua bisa que era índia


E não é preto nem branco nem indígena
O suficiente pelos fiscais de ID
Ninguém é ilegal em terra roubada

A propósito desse trecho, passo a discutir questões relativas ao apagamento histórico e ao


racismo estrutural que segue sendo reproduzido no país. Um dos modos de representação da
história indígena mais recorrente e que concorre para a invisibilização dos povos no presente é
contar sua história no passado, algo a que We’e’na Tikuna se refere como “era uma vez o índio”.
Tal procedimento acontece de forma repetida e cotidiana em livros e salas de aula, nos
noticiários, no nosso próprio desconhecimento das culturas indígenas que existem ao nosso
redor. A história não é vista como nossa, mas como a história da bisavó da bisavó. Não raro,
deparamo-nos com o discurso de que “índio/a” é alguém que vivia nas matas, caçava e pescava
e morava em ocas; alguém que deve ser lembrado/a em uma data comemorativa, memoriais e
museus. Quando se tem notícias de indígenas que se inserem no ambiente urbano, utilizam
tecnologias, possuem bens de consumo ou frequentam universidades, logo o discurso de
aculturação e de apagamento é acionado, pois fomos informados/as de que “índios/as” são seres
silvícolas, dóceis e amigos dos animais que existiram lá pelos idos de 1500.
Essa é mais uma estratégia do apagamento que se encontra representado também nos
versos “Não é branco, nem preto, nem indígena o suficiente pelos ficais de ID”, que são
aqueles/as que, por meio da repetição desses discursos ou de práticas de apagamento identitário
sistemático, e até institucionalizado, arrogam-se do direito de decidir a pertença étnica das
outras pessoas. Gloria Anzaldúa (2016, p. 417) reflete:
89

Mas eu temo uma unidade que deixa de fora partes de mim, que me
coloniza, isto é, que violenta minha integridade, minha completude, e
que exaure minha autonomia. Por medo, nós também nos policiamos.
Por causa de nossa mestizaje, queers de cor temos mais comunidades
com que lidar (étnicas, de classe, lésbicas brancas, etc.), as quais nos
analisam para determinar se “passamos”.

A relação entre aqueles/as que analisam e os fiscais de ID dá-se por analogia. E como bem
acentua a escritora, ela pode ocorrer até entre as pessoas que supostamente seriam nossos pares.
Essa situação de apagamento parcial ou total de algum dos componentes identitários é um
exemplo de porque a interseccionalidade é necessária. No caso de Anzaldúa, ela não deixa de
ser lésbica ao ser chicana e teme anular qualquer parte de si por essa mania de classificação e
hierarquização que a sociedade impõe, por analogia, pardo/a sendo considerada uma “ausência”
de etnia e um espaço de apagamento identitário é imposto/assumido por aqueles/as que criam
“regras” para ser indígena, preto ou branco. As duas situações revelam uma espécie de não
lugar imposto pela mestiçagem (mestizaje) que cria ausências profundas na identidade das
pessoas que estão/são incluídas nessa categoria. Por um lado, o status quo tem uma definição
rígida e completamente atrasada e racista do que seja pessoa indígena, por outro lado, aqueles/as
que estão no limbo identitário da condição de pardo/a (mestizo/a).
Historicamente, fomos alimentados/as pelas narrativas dos mitos do cadinho cultural,
do país miscigenado, que geram heranças culturais tornadas invisíveis. Esse expediente é
metaforizado nos versos “chamam de pardos para embranquecer, enfraquecer e desestruturar
você, pra não saber de onde veio”.
O caráter provocativo e revelador da letra dessa canção conduz o poema na direção do
desvelamento do fato de que, por trás dessas tristes e coincidentes práticas racistas, há um
projeto sociopolítico que é conduzido por frentes múltiplas: apagamento histórico-cultural,
racismo velado, desvalorização da origem étnica do/a outro/a, cujas condutoras, em posições
de poder, naturalizam essas condutas. Os interesses que guiam essas narrativas de silenciamento
histórico-cultural são introduzidos em versos que aludem às “elites” políticas e econômicas que
gerem o país, o que é evidenciado em trechos como: “o agro não é pop, não é tech e também
mata” e “vestem rosa ou azul com as mãos manchadas de vermelho”. O primeiro representa a
elite econômica que tem interesses na dominação e no uso de terras indígenas para exploração
e lucro através da agricultura e pecuária de alto rendimento, movimentando milhões em
produção e exportação de produtos “da terra” de maneira predatória, promovendo chacinas,
roubando terras e destruindo os povos que se coloquem como “obstáculos” ao atendimento de
90

seus interesses. As notícias de conflitos e invasões de terras indígenas que deixam um rastro de
violência contra as pessoas e contra a terra são abundantes na mídia. Junto com a mineração, o
agro é, atualmente, um dos maiores perpetradores de violência contra os povos nativos. Já o
trecho “vestem rosa ou azul” alude à “elite” política que compactua com tais crimes. Nesse
caso, a referência em particular é a ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos
do governo passado (Jair Bolsonaro) que, em uma de suas inúmeras controversas falas, afirmou
que, com o atual governo: “Uma nova era começou. Meninas vestem rosa e meninos vestem
azul”. É importante salientar que essa mesma pessoa, que ostenta o status de advogada sem
sequer fazer parte da OAB50 e que se diz contra a ditadura da “ideologia de gênero” em sua
postura de ignorância e fundamentalismo, é acusada de ter sequestrado51 uma criança indígena
de etnia Kamayura, que foi levada sob pretexto de realização de tratamento de saúde, mas nunca
foi devolvida ao seu povo, tendo sida “adotada informalmente”, segundo a ministra, o que, na
verdade, configura-se como crime de sequestro e alienação parental. Figuras como a citada
agente política representam uma vertente de agentes públicos que compactuam com assassínios
e extermínios, os quais justificam por uma inclinação fundamentalista religiosa extremamente
conservadora e preconceituosa, que vitima todos/as aqueles/as que não vivem de acordo com
as crenças e os preceitos “morais” destes ditos/as gestores/as da coisa pública. Em um país de
tamanha diversidade cultural, racial, étnica e religiosa, ter o alto escalão administrativo
orientado por uma visão mesquinha, estreita e, por vezes, criminosa como essa leva populações,
que já se encontram acossadas pelos donos do capital que não respeitam sequer seu direito à
existência, a uma situação de abandono e desespero que tem motivado um grande contingente
de jovens ao suicídio, como é o caso dos Guarani-Kaiowá, os quais, em face da perda de suas
terras e da desconfiguração de suas identidades étnicas, têm apresentado ocorrências de morte
por suicídio com uma frequência e em uma quantidade alarmantes.52 Segundo dados do Fundo
das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), o índice de suicídio nas populações indígenas é
três vezes maior do que o observado em outras raças, o que nos leva aos versos: “Vejo meus
filhos se perguntando / Se você os mata ou se eles se matam / Se você os mata ou se eles matam

50
Cf. Folha de São Paulo 2019.Sem diploma Damares já se apresentou como mestre em educaçãoe direito.
51
Cf. El País, 2019: “Ministra Damares é acusada por indígenas de sequestrar criança, diz revista”.
52
Os dados sobre os suicídios na etnia Guarani Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, assustam. Essa região concentra
9% da população indígena do Brasil, dos quais 3% são Guarani Kaiowá (ONU, 2016). O CIMI (Conselho
Indigenista Missionário) tem publicado recorrentes notas na imprensa nacional e internacional a respeito dessa
questão entre os Kaiowá, considerados um dos povos indígenas mais vulneráveis do Brasil, que enfrenta uma
sangrenta guerra em defesa de seus territórios tradicionais, amplamente desassistidos pelo Estado e invisíveis à
população brasileira em geral. Entre 2000 e 2011, foram 555 suicídios (CIMI, 2012). Em 2013, 72 Guarani Kaiowá
do estado do Mato Grosso do Sul, na faixa etária de 15 a 30 anos, cometeram suicídio, atingindo a maior taxa do
mundo (MARQUES; ARMOSTRONG; NEGREIROS, 2018, p. 157).
91

primeiro”. A motivação suicida entre os indígenas foi investigada em inúmeros trabalhos. Aqui,
cito o estudo intitulado “Suicídios Guarani Kaiowá: a ausência do território tradicional como
obstáculo” (2016), em que a autora, Giulianna Pessoa, seguindo os postulados de Ciampa,
cogita uma relação direta entre a perda do sentimento de pertença étnica e as mortes:

a identidade que é produzida pela mesmice: identidade que se finda apenas


nas determinações exteriores do mundo à nossa volta, ou seja, é a produção
de uma identidade pressuposta pelo mundo externo, sem que o indivíduo seja
capaz de criar uma representação sobre si e para si. No caso da identidade de
mesmice, o indivíduo internaliza as representações externas impostas pelo
meio em que vive (social e familiar) e não consegue, neste processo, se
apropriar delas o suficiente para transformá-las em autodeterminação. Vale
lembrar que, para o autor, a condição de mesmice pode ser tão insuportável
para um indivíduo – o qual, por sua vez, não consegue superá-la – que só lhe
resta a autodestruição, cujo final pode ser o suicídio (PESSOA, 2016, p. 6).

Tomando como referência o caso dos Guarani Kaiowá, é possível fazer uma leitura que
arremata algumas das alusões metafóricas presentes na canção. A questão do agronegócio como
um dos propulsores da violência contra os povos indígenas coaduna-se com a menção à figura
da ex-ministra que representa a ideologia dominante, extremista e perpetuadora – pelos meios
institucionais – desse ataque continuado e racista aos povos indígenas. A esse entrelaçamento
de classe (representado pelo poder do capital) e raça (simbolizado pelo racismo histórico que
se encontra entranhado na ideologia política), somam-se os preconceitos e as violências de
gênero mimetizados nas cores atribuídas a homens ou mulheres de maneira sumária e binária
(vestem rosa ou azul) e nos versos que remetem ao estupro das mulheres indígenas (pega no
laço e vocês sabem a história). O eu-lírico, nesse caso, coloca-se como voz que faz a exposição
dessas situações e vai além de denunciar os atos de genocídio e racismo, mostrando as mãos
manchadas de vermelho, metaforizando o derramamento do sangue indígena por esses
indivíduos apontados como culpados.
Ainda enfocando o uso das cores nessa canção, chamo a atenção para os versos: “E não
é branco, nem preto / Nem indígena [...]” e “Chamam de pardos para embranquecer /
Enfraquecer e desestruturar você / Pra não saber de onde veio”. No primeiro trecho, as cores
aludem aos tons de pele das raças citadas, numa tríade que é considerada a origem da
miscigenação racial brasileira, uma mistura criadora do “tipo” brasileiro, o pardo. Enquanto
isso, no segundo, o eu-lírico chama a atenção para o uso do termo como embraquecedor e, ao
mesmo tempo, promotor do apagamento das origens étnicas das pessoas, o que,
consequentemente, cria uma ausência de história e de consciência das questões raciais que
92

enfrentamos atualmente. Gloria Anzaldúa, fala um pouco sobre a classificação conferida pela
sociedade contemporânea, marcada por rótulos e certificações de gênero, raça e classe. Ela
disserta especificamente sobre gênero e a sobreposição de categorias identitárias
interseccionais, ao afirmar que:

Marcar é sempre “rebaixar”. [...] As razões deles são para marginalizar,


confinar e conter. Meu rotular a mim mesma é para que a chicana, a lésbica e
todas as outras pessoas em mim não sejam apagadas, omitidas ou
assassinadas. Nomear é como eu faço minha presença conhecida, como eu
afirmo quem e o que eu sou e como quero ser conhecida. Nomear a mim
mesma é uma tática de sobrevivência (2016, p. 410).

Na análise dos versos “ninguém é ilegal em terra roubada”, é possível interpretar esse
discurso como um alerta para que as pessoas busquem, conheçam e retomem suas origens. Esse
mesmo alerta aparece logo nos primeiros versos, que são construídos em formas de perguntas
diretas: “Me diz pelo que você luta? / Que ar você respira, senão o meu fôlego? / Que comida
você come, senão a que eu dou?”. O fato de a voz lírica endereçar seu discurso diretamente à/ao
ouvinte, usando recursos dialógicos e poéticos na forma interrogativa, procedimento que
reforça esse sentido de construção de um questionamento, levantando tais dúvidas para serem
problematizadas por quem as escuta e enfatiza também a primazia da pessoa nativa na terra
(meu fôlego, comida que eu dou) cujo território e cuja subjetividade foram e continuam sendo
ameaçados pelas práticas de dominação (econômicas, políticas, raciais e sexuais), imperialistas,
e hoje neocoloniais, como consequências da invasão e sua tomada de poder sobre Pindorama.
A metáfora das cores em “Mãos Vermelhas” flui como um rio que vai serpenteando ao
longo do percurso e criando diferentes paisagens e significados. Do sangue às vestimentas que
regulam papéis de gênero, da afirmação da cor da pele ao apagamento identitário, terminando
por desaguar na resistência de múltiplos tons e vivências que representam a luta por um mundo
a cores, em que a dicotomia demarcada pelo preto e branco dá lugar à paleta diversa do ser e
do existir como somos no que ainda restou de Pindorama.
Outro fator que agrega sentidos ao arranjo da composição e que não poderia deixar de
mencionar são os efeitos que a DJ Bieta imprime por meio das distorções e inserção de samples.
Um deles, em especial, causa um efeito de reverberação e eco na voz de Kaê. Um momento
exemplar desse procedimento é a repetição dos versos: “Se você os mata ou se eles se matam /
Se você os mata ou se eles se matam primeiro”. Existe a repetição da frase (eco) que, aliada à
ausência de batida, amplifica e destaca esse momento da canção dos demais, fazendo com que
sua voz reverbere por alguns segundos. O mesmo procedimento é aplicado aos versos finais:
93

“Ainda resistimos em tantos tons e vivências”. É digno de nota também o uso do agogô – tocado
pela DJ – no trecho em que surgem os versos “E conta a história da bisa / Da sua bisa [...] /
Ninguém é ilegal em terra roubada”, o que causa a impressão de um andamento acelerado,
reforçando o sentido de repetição da história que a letra suscita.
Em síntese, considerando de forma global as afirmações e os questionamentos do eu-
lírico, contextualizados pelas referências para as quais ele aponta, temos uma voz poética que
se encontra na encruzilhada interseccional de relações de opressão pelo poder dominante que
se manifesta contra essas questões e se coloca entre as pessoas oprimidas por essa colonização
racial, econômica e de gênero, numa posição de resistência e de renascimento mimetizados,
mais contundentemente nos últimos versos: “Tô renascendo das cinzas do fogo/ Em que
queimaram meus ancestrais/ Ainda resistimos em tantos tons e vivências”. Aqui, encontramos
um estamento forte que se vale da pluralidade de cores e da diferença de modos de vida, fazendo
recuperar também um símbolo de força bastante conhecido e reapropriado nas artes: o mito da
fênix. De acordo com Chevalier e Gheerbant (1994, p. 422), dentre outras acepções, a fênix é
considerada um pássaro sagrado e símbolo de uma vontade irresistível de sobreviver, bem como
da ressurreição e do triunfo da vida sobre a morte. No que concerne ao indiofuturismo, a
composição apresenta a releitura da colonização e de suas consequências, enfatizando sua
continuidade, instigando o público ouvinte a recriar narrativas cristalizadas. A letra performada
no estilo rap, incorpora tecnologias no campo da música (como o sample e o reverb) e o produto
final que é a canção, é divulgado por meio das tecnologias digitais. Esse movimento é feito
enfatizando ainda as questões ancestrais (território) e incentivando uma mudança de
mentalidade colonial (“abra sua mente”) por meio da recuperação da trajetória ancestral e do
apagamento das barbáries cometidas no processo “civilizatório” (“é o Brasil que ninguém vê”).
Ativando a crítica de colonização de gênero, Kaê constrói um texto indiofuturista, combativo e
descolonizador que traça diálogos fortes com o racismo e as questões de classe e, por isso
também, interseccional.
Nesta secção, enfatizei problematizações de gênero na canção “Mãos Vermelhas”, em
que figuram as violências sexual, racial e ambiental que motivaram discussões a partir das
teorizações do chamado feminismo comunitário em aproximação com o feminismo
interseccional das feministas negras, latinas e chicanas. Apresento, a seguir, a canção “Indígena
futurista”, de Katu Mirim, cuja análise, em diálogo com a anterior, suscita discussões em torno
de questões que envolve estereótipos e preconceitos acerca dos/as indígenas, veicula também a
luta da indígena guerreira pelo território e suas relações insurgentes contra os/as agentes do
colonialismo.
94

3.3 “Indígena Futurista”: a furiosa xondaria de Katú Mirim

Um mergulho, mesmo breve, nos textos de Katú Mirim revela alguns vetores muito
claros de seu trabalho: revolta e resistência. Os alvos desses vetores são as narrativas
hegemônicas acerca da população indígena do país e as consequências concretas da colonização
e do racismo. As composições de Katú e outros/as rappers respondem a esta revolta. Em alguns
casos, o seu rap se alinha à crônica, o que pode ser lido como um dos traços característicos do
estilo (BRUM, 2016). Ao ficcionalizar e relatar seu cotidiano: acordar, pegar ônibus, trabalhar
numa megalópole, batalhar pela existência que implica resistência, a artista realiza uma
incursão crítica de revolta e rebeldia da realidade indígena no contexto urbano. Em outros, relata
e denuncia, como em “Aguyjevete” (2020)53 alguns dos incontáveis crimes dos quais é vítima,
em todo lugar e a todo tempo, a população indígena do Brasil.
Na imagem abaixo, vemos a representação da estética indígena futurista de Katu no
tocante à sua performance visual, veiculada em suas redes sociais, unindo elementos Cyberpunk
às representações da cultura indígena para promover uma descolonização da imagem
cristalizada de natividade e da própria noção de futurismo.

Figura 11 – Estética Cyberpunk de Katú Mirim

Fonte: Instagram

53
Ep Nós (2020), disponível no Youtube e Spotify.
95

Katú Mirim é uma denominação Guarani que significa pessoa boa (lembrando que
pessoa, neste caso, refere-se um “ser” bom que não tem gênero e nem espécie), embora a rapper
esteja ligada biologicamente à etnia Boe Bororo, fato que só descobriu na pré-adolescência.
Este dado é importante, na presente discussão, porque explicita de apenas um dos vários
deslocamentos a que foi submetida Katú, que reencontrou a conexão com a ancestralidade
indígena por meio dos Guarani que a reconheceram e a nomearam.
Os “atravessamentos” identitários marcam sua trajetória: por tornar-se filha adotiva de
um pai pastor evangélico e só “descobrir” sua relação e ancestralidade indígena a partir dos 12
anos de idade; por ser lésbica, queer; por ser uma indígena para quem a referência musical mais
imediata não eram cânticos ancestrais e sim o rap, o hip-hop, música produzida e consumida
na periferia de São Paulo. Nesse caso, a relação íntima entre o dado artístico e o dado
sociológico não pode ser ignorada: mais do que o pagode, o samba, o forró – estilos musicais
que, embora oriundos das camadas populares da sociedade brasileira, gozaram e gozam de
espaço privilegiado nos meios de comunicação –, o rap tem seus modos de fazer, sua
estruturação instrumental, seu texto e mensagem referencial ligadas ao âmbito da periferia, dos
guetos e prioritariamente às lutas sociais, raciais, de classe e mais agudamente de gênero.
As questões citadas estão presentes nos trabalhos de Katú que, além da carreira de
cantora, atua também como modelo e faz ativismo ambiental, social e de gênero por meio de
suas plataformas virtuais. A artista está sempre apresentando suas leituras e visões de mundo,
veiculando cultura indígena e repercutindo assuntos de interesse público em relação aos povos
indígenas, a cultura musical, literária e às comunidades LGBTQUIAPN+. Ao apresentar-se
como uma mulher periférica, indígena e lésbica. Katu confronta estereótipos desconstruindo
visões que a constrangem enquanto tal. Essa sobreposição de camadas identitárias tem feito
parte de seu trabalho, não somente como cantora, mas como artista multifacetada atuante em
diversas frentes. As proposições de Katú parecem convergir com o que sustenta Breny Mendoza
(2016, p. 413):

Identidade não é um monte de cubiculozinhos abarrotados, respectivamente


com intelecto, raça, sexo, classe, vocação, gênero. Identidade flui entre, sobre
aspectos de uma pessoa. Identidade é um rio – um processo. Contida dentro
do rio está sua identidade, e ela precisa fluir, mudar para continuar um rio - se
parasse seria um corpo d’água contido, como um lago ou um banhado.

A exemplo de suas letras, suas opiniões são contundentes, ela constrói uma expressão visual
indígena cyberpunk que promove a reflexão sobre as culturas indígenas tanto nas aldeias,
96

quanto na cidade e incentivando a reflexão, ao desestabilizar binarismos e estereótipos sobre


povos originários e sobre as mulheres, promovendo uma dupla descolonização, no ambiente
ainda racista e machista/lgbtfóbico, sendo uma das pioneiras do movimento indígena no rap.
O cyberpunk aparece com uma das influências mais perceptíveis no trabalho de Katú,
portanto, é necessário esclarecer como entendo este conceito. A partir das reflexões de Fábio
Fernandes (2006, p. 54) penso que o cyberpunk não pode ser definido de maneira fechada “por
um conjunto de características específicas demais”, por serem os/as autores/as herdeiros/as de
tradições literárias diversas, contudo o gênero apresenta “um fio condutor no comportamento
dos membros do Cyberpunk”. Tais comportamentos giram em torno das ideias opositoras à
ordem vigente e apontam para narrativas que propõem a promoção mudanças nesse cenário.
Temos, portanto, narrativas insurgentes/rebeldes. Ainda na mesma obra, o autor aponta, a partir
da análise de Neuromancer, de William Gibson (1984), algumas das mais proeminentes
características dessa narrativa exemplar: “a cybercultura, com sua estética hacker, sua música
eletrônica, suas sampleagens culturais, suas tribos urbanas [...]” (FERNANDES, 2006, p. 75).
Esses elementos estão presentes na obra de Katu, conforme demonstrado nesta análise.
Reproduzo a seguir a letra da canção “Indígena futurista” para, em seguida, iniciar sua
análise:

Hey!
Nosso povo nunca morre, a raiz nos salvará
Hey! Olha aqui nunca foi sorte
A escuridão tive que iluminar
Hey! E me jogaram do penhasco
E tive que aprender voar
Hey! E me jogaram na fogueira,
Mas virei água para apagar
E estou de pé com fé
Não vou me arrastar
A minha morte você quer,
Mas não vou te dar
Me querem apagada, mas eu vou brilhar
O bicho da mata virou popstar
Nossa terra é vip e eles não vão entrar
Aqui nobreza e nós vamos reinar
Me querem apagada, mas eu vou brilhar
O bicho da mata virou popstar
Nossa terra é vip e eles não vão entrar
Aqui nobreza e nós vamos reinar
Se não aguenta é melhor abaixar
Fúria da terra, do céu e do mar
Você pensou que eu não iria voltar, voltei
Para lutar até reencarnei
Você pensou que eu ia me calar, mas gritei
97

1, 2, 3 no sistema eu entrei
Me infiltrei para matar o rei
Código da Vinci também decifrei
Olha lá os muros que eu derrubei
Lembrando daqueles que eu não desonrei
E a onça não vai amansar
Então corre que eu vou te caçar
E a dança não vai mais parar
Que hoje los muertos que vão dançar
Tá difícil, mas vou suportar
Na mira da bala e eles vão atirar
Odeiam minha luz, mas vou ofuscar
Me querem parada, mas vou avançar
Na favela o Estado me jogou
Com sequela esqueci quem eu sou
Mas a minha volta olha o que causou
Vou banindo, banindo no canto e no flow54
Me querem apagada, mas eu vou brilhar
O bicho da mata virou popstar
Nossa terra é vip e eles não vão entrar
Aqui é nobreza, nós vamos reinar
Me querem apagada, mas eu vou brilhar
O bicho da mata virou popstar
Nossa terra é vip e eles não vão entrar
Aqui é nobreza, nós vamos reinar
Se não aguenta é melhor abaixar
Fúria da terra, do céu e do mar
E nosso povo nunca morre, a raiz nos salvará
Olha aqui nunca foi sorte
A escuridão tive que iluminar
E me jogaram do penhasco para voar
Me jogaram na fogueira
Mas virei água para apagar
88 a constituição
Mas 1500 foi a invasão
Roubaram as terras com a bíblia na mão
Branca é a cor do ladrão
Tá difícil, mas vou suportar
Tô na mira da bala e eles vão atirar
Odeiam minha luz, mas vou ofuscar
Me querem parada, mas vou avançar
Tá difícil, mas vou suportar
Tô na mira da bala e eles vão atirar
Odeiam minha luz, mas vou ofuscar
Me querem parada, mas vou avançar
Me querem apagada, mas eu vou brilhar
O bicho da mata virou popstar
Nossa terra é vip e eles não vão entrar
Aqui é nobreza, nós vamos reinar
Me querem apagada, mas eu vou brilhar

54
O flow é a habilidade métrica e melódica de cantar seguindo as batidas rítmicas, fazendo assim coincidir
agradavelmente o instrumental e o vocal. O termo vem do inglês e tem o significado de fluir. pode ser entendido
também como a habilidade de rimar e improvisar rápida e sequencialmente sem ficar embaraçado/a. (Red Bull,
2022).
98

O bicho da mata virou popstar


Nossa terra é vip e eles não vão entrar
Aqui é nobreza, nós vamos reinar
Se não aguenta, é melhor abaixar
É melhor abaixar, é melhor abaixar
Se não aguenta, é melhor abaixar
É melhor abaixar, é melhor abaixar
Se não aguenta, é melhor abaixar
É melhor abaixar, é melhor abaixar
(Se não aguenta, é melhor abaixar)
Me infiltrei para matar o rei
(É melhor abaixar, é melhor abaixar)
Olha os muros que eu derrubei
Lembrando daqueles que eu não desonrei

A atuação de Katú Mirim no rap é destaque. Ela é mais um expoente entre jovens
músicos/ as indígenas que perceberam no rap/hip hop, uma ferramenta potente de difusão de
sua mensagem. No entanto, no próprio meio artístico Mirim encontra barreiras: racismo,
machismo, lgbtfobia e desvalorização de seu trabalho. Nesse sentido Mirim afirma que:

O rap dos não indígenas acaba sendo racista, quando não dá oportunidade de
a gente ocupar aquele espaço que nos pertence. A gente vê festivais de rap
onde as pessoas vão fantasiadas de índio, onde não tem indígena, onde os
próprios MC’s acabam fazendo músicas que são racistas com os povos
originários (SELECT, 2022, n. p.).

A própria presença de Katú e de outras mulheres indígenas nos eventos vem


contribuindo para descolonizar o meio artístico, em especial a cena Hip Hop, apontada por ela
como ainda bastante preconceituosa. Mulheres como Brisa Flow, Souto Mc, Andará Mc, Kaê
Guajajara, entre outras, que cresceram na periferia, encontraram, desde cedo, no rap uma
ferramenta de potencialização de suas vozes. Na matéria da revista Select podemos
compreender algumas das razões que atraem jovens da periferia para este ritmo:

Nas comunidades ou no contexto urbano, os jovens indígenas se identificaram


com as letras e perceberam que o rap poderia ser uma ferramenta para veicular
discursos de protesto. A discussão em torno da apropriação de uma linguagem
artística não indígena, nesse contexto, torna-se irrelevante. “A música sempre
foi um idioma muito privilegiado nas trocas, nos rituais e nas guerras na
história da América do Sul. A gente está falando de rap, mas há casos no
Brasil de artistas indígenas fazendo forró, música sertaneja, heavy metal,
cumbia e reggaeton”, observa a professora Deise Lucy Montardo, especialista
em música indígena. “Não é uma novidade. No caso do rap, é recente porque
o gênero é recente. Mas a troca já é antiga. O que é realmente novo é a
visibilidade que a internet propicia” (SELECT, 2022, n. p.).
99

A citação acima, ao mesmo tempo em que contextualiza a forte adesão dos/das jovens
artistas ao rap, elocubra sobre a apropriação deste gênero por indígenas. Entre os muitos
atrativos do gênero, estão a valorização da cultura popular e periférica, a discussão das
questões de classe, de raça e de gênero. O rap tem uma grande difusão através da internet,
conforme salienta Márcia Félix Cortez (2010, p. 30),

a utilização dos meios midiáticos para articulação e criação artística confere,


por sua vez, uma peculiaridade especial às canções de rap, permitindo que se
extrapole conceituações binárias, como culto versus popular e antigo versus
moderno. Tais fenômenos urbanos são teorizados por Canclini (2006) através
da análise dos processos de hibridação intercultural.

Aproveito para explanar sobre a característica híbrida presente nas canções de rap como um
todo, mas aqui, especificamente, sobre o hibridismo entre cultura indígena e cultura popular
periférica. A pauperização do/a indígena brasileiro, a dificuldade de acesso a bens culturais,
sociais e naturais como água encanada, saneamento básico, escolas e universidades, conduzem
muitas vezes os indígenas a uma migração necessária à sobrevivência. Essa situação está
mimetizada nas canções de rap, especificamente das/os MCs indígenas. Na canção aqui
enfocada, os versos “na favela o estado me jogou” e "Tô na mira da bala, eles vão atirar”,
recuperam imagens que continuam se repetindo nas periferias brasileiras.
O eu lírico do texto de Katú transita na instabilidade enunciativa. Por vezes é um eu,
por outras é um nós, o que ocorre, por exemplo, nos versos: “eu vou ofuscar” e “nós vamos
reinar”. Nisso a rapper cria uma voz lírica que busca falar não apenas de si ou de uma
perspectiva pessoal, mas coletiva e compartilhada. Em outras palavras, a voz lírica não deriva
de um indivíduo específico; o que temos é um espaço/lugar de enunciação em que
subjetividades e tempos diferentes se cruzam. Esse movimento de sobrepor vozes e espaços de
tempo espiralar, já abordado na discussão acima, não representa um vetor para o futuro, mas
uma possibilidade de trânsito no espaço-tempo. Por isso, no que se refere aos tempos verbais,
embora nos conectemos ao presente da apreciação e da enunciação poética, não há concentração
significativa no passado, presente ou futuro; há o intercâmbio entre eles, como nos versos: “a
raiz nos salvará”, “me jogaram do penhasco”, e “estou de pé”. E a construção prossegue
alternando entre presente passado e futuro, criando uma poética que faz um contínuo
movimento para frente e para trás no tempo.
No que se refere aos lugares de enunciação, a alternância entre as marcações verbais e
pronominais que individualizam e pluralizam a voz lírica gera uma indistinção entre um eu
100

individualizado e o grupo de que faz parte. A flexão do adjetivo, a exemplo de “Me querem
parada, mas vou avançar”, é a única marcação de gênero apresentada no texto, no entanto é
suficiente para sabermos que a voz lírica declina no feminino, nesta composição e possibilita
entender que o sujeito de ações de resistência e rebeldia como reencarnar para voltar (para a
luta) são performadas por uma guerreira, como exemplo destaco os versos: “Você pensou que
eu não iria voltar, voltei/ Para lutar até reencarnei” a dilatação da personalidade/
individualidade. É essa possibilidade de leitura dupla que marca a complexidade do discurso de
Katú.
Ainda ressaltando os tempos verbais, há uma linha de recorrência em construções no
futuro, quando se trata de posicionamentos desse eu/nós lírico em relação oposicional a um
eles/elas implícito, como: “me querem apagada, mas eu vou brilhar,’, “odeiam minha luz, mas
eu vou ofuscar”, “me querem parada, mas vou avançar”. Esses versos apresentam ações de
continuidade e resistência que, de alguma maneira, desafiam o desejo desse “eles/as” a que o
eu lírico se refere, criando um polo oposto para a voz que ora está no singular e ora no plural.
Tal estrutura discursiva rememora a estratégia de “O quereres”55 (1984) de Caetano Veloso, na
qual Marília Carvalho e Sérgio Freitas (2022, p. 4) leram um discurso de rebeldia. A dupla
afirma que

Nos diversos contextos são também diversas as relações que as músicas e os


músicos estabelecem com a rebeldia. No universo das canções, vê-se a
rebeldia servindo desde mero pretexto para a criação de versos, passando por
manifestações e estilos que a incitam e cultuam, até casos em que a própria
rebeldia parece transmutar-se em texto e som, sendo a atitude rebelde
percebida em diferentes âmbitos da materialidade da canção.

Ao estabelecer o paralelo entre a postura discursiva das duas canções, dialogo com a citação
acima no sentido de localizar a obra de Katú nessa seara uma vez que em suas composições a
rebeldia se estabelece como estilo. Compreendo também que ela se materializa em diversos
âmbitos da canção, no discurso, na repetição opositora da adversativa “mas”, nas próprias
repetições rítmicas que se estabelecem como um looping da batida. Essa rebeldia expressa-se
ainda através dos sentidos de resistência impressos nos versos: “minha volta olha só o que
causou”, “para lutar até reencarnei", “pensou que eu não ia voltar, voltei”. A construção
discursiva teimosa de Katú, encontra-se alinhada novamente à de Caetano, no sentido de que

55
Faixa 7 do álbum Velô (1984), Universal Music.
101

ela é conturbada, tensa, desenvolve-se de maneira oposicional e organiza-se por antíteses. Ao


analisar a canção de Caetano, Nohad Fernandes explicita:

Por toda a letra da canção, as tensões se dispõem em pares metaforizados


antitéticos que revelam a disparidade de desejos. Algumas delas são explícitas,
transparentes; outras, implícitas, com conteúdos opostos que dialogam com
elementos extratextuais, pertencentes à cultura, ao conhecimento de mundo e,
portanto, dependentes do contexto extralingüístico para obterem coerência
(FERNANDES, 2006, p. 5).

O mesmo procedimento é adotado por Katú, mas em sua composição a relação não se dá entre
um par romântico e nem procede de desencontros, mas de antíteses de posturas, valores e
desejos que giram entorno de temáticas do âmbito social. Além disso, o procedimento musical
de repetição adotado por Caetano faz a canção desenvolver-se em ciclos. Em “Índígena
Futurista” esse movimento cíclico pode ser lido também como uma característica do gênero
rap, consequência da utilização de sampler56 que se repete e das batidas eletrônicas.
Ainda a propósito da citação acima, os diálogos extratextuais propostos por Katú, levam
a aspectos que extrapolam a mensagem veiculada pelo texto e criam alguma dificuldade para
uma leitura que se restrinja aos seus traços formais ao trazer para o âmbito da composição dados
explicitamente biográficos, o eu lírico confunde-se com a performer que empresta seu corpo a
esse eu/nós que enuncia. No caso em questão, este corpo busca se alinhar com o traço de
inconformismo, revolta e contestação da mensagem. Em outras palavras, a performance
acrescenta camadas de significado à canção. Se, para além disso, trouxermos à nossa apreciação
e análise o dado visual, a vestimenta, expressão facial e movimento da rapper, então
poderíamos pensar que sua performance integral, mimetiza sua própria existência que é parte
da resistência que canta. Sua presença, seus cabelos, sua maneira de expressão e seu flow
marcantes são elementos desestabilizadores (no mínimo, opositores) da ordem que esse eu/nós
lírico busca atacar. A fusão entre a voz do/a cantor/a e a voz lírica é um traço comum na cultura
Hip Hop e no rap tem a ver com a própria natureza do gênero e com a natureza da performance
associada a ele. Em diálogo com as proposições de Paul Zumthor, Márcia Félix (2010, p. 85)
aponta que:

56
De acordo com Márcia Félix Cortez (2010), “Sampler - Instrumento eletrônico dotado de memória para
armazenar os sons selecionados. Normalmente é acoplado a um mixer e pode conjugar ao mesmo tempo várias
estruturas melódico-musicais, pois é capaz de armazenar até dez sequências musicais a serem utilizadas na
performance dos DJs. Configura-se como um dos mais fecundos recursos da discotecagem, auxiliando a
construção do rap através das colagens”.
102

[a] constatação do uso da voz com função artística e social, revelada nas obras
de Zumthor, nos impulsiona a considerar que existem pessoas com a
capacidade de vocalizar as suas experiências de vida, sejam elas tristes ou
alegres, nos mais diversos lugares. Percebe- se que há no/a MC uma forte
identificação com o seu espaço geográfico para apresentá-lo nas canções e,
muitas vezes, esta representação pode ser relacionada ao que Zumthor
menciona sobre as diversas regiões do mundo nas quais o poder do uso da voz
se comprova, bem como ao fato da poesia oral que é “propícia em sociedades
desprovidas de artes visuais e nas que vivem em meio natural pobre e austero”
(1997, p. 171).

O/A MC está sempre negociando e defendendo posições e propondo-se a rimar sobre suas lutas
e seu território, seja ele o microfone (espaço de fala), a favela (espaço geográfico), ou a
ancestralidade e seus espaços originários (cartografias afetivas e imaginárias). O corpo do/a
cantor/a, ao dar vazão a performance vocal e gestual, pode imbricar-se numa tríade particular
de instâncias performáticas em que o eu lírico, o/a MC e a própria comunidade que ele/ela
representa tornam-se, momentaneamente um/a só voz. Dessa maneira o rap torna-se um espaço
privilegiado de luta social em que a voz dos/das excluídos/as pode ser ouvida.
Retornando à análise das particularidades da canção, a estrutura musical em sua base
instrumental está baseada num beat constante, de andamento rápido, assemelhando-se a um
híbrido entre a dance music e o hip-hop. O canto de Katú desenvolve-se sobre essa base e alterna
entre o flow, o discurso e o coro cantado no refrão.

Figura 12 – Ilustração do EP Indígena futurista

Fonte: Instagram
103

A imagem acima foi lançada nas redes sociais de Katu, na ocasião da divulgação do Ep
“índigena futurista”. A arte é Auá Mendes, uma artista visual transvestigênero57 e manauara.
Auá é proveniente do povo Mura e se inspirou numa estética cyberpunk com motivos indígenas
para compor esta arte em cores marcantes. A figura sem marcação de gênero é retratada de
perfil, apresentando marcas de luta mimetizadas pelos curativos e sua pele apresenta pinturas
corporais indígenas no rosto e pescoço, além de usar um casaco que lembra o estilo militar. O
olho remete a uma espécie de tecnologia eletrônica, possibilitando a leitura desta personagem
como um/a ciborgue e o moicano azul trançado em dread locks remetem à estética punk. Tais
elementos oportunizam elucubrar motivos indiofuturistas tais como hibridismo tanto no que diz
respeito à tecnologia (ciborgue), quanto à cultura (punk + indígena) e quanto ao engajamento
social (representado pela postura e expressão facial combativas e pelos curativos), dialogando
assim com o próprio estilo de Katú e com a canção ao retratar uma pessoa indígena guerreira
futurista.
A voz lírica da guerreira expressa uma força reativa elemental presente nos versos “fúria
da terra, do céu do mar” e “corre que a onça não vai amansar/ então corre que eu vou te caçar.
Aqui podemos recuperar a palavra guarani xondaria (guerreira/soldado). A voz lírica coloca-se
na posição de uma guerreira que tem a capacidade de se hibridizar com elementos e seres
naturais, procedimento que dialoga com o construído pela canção “Serpente-mulher” que
analiso no capítulo seguinte. Se por um lado essa imagem aproxima as duas canções, ela
também aponta divergência no tom e nos motivos para essa hibridização. Enquanto a xondaria
utiliza os elementos para atacar e se defender em sua fúria contra esse “eles” que ela identifica
como o estado e o colonizador e seus aparatos (como a religião dominante e o poder de polícia),
a serpente-mulher apresenta-se como imponente ancestral que carrega ensinamentos culturais
e religiosos dos Borari.
A fúria, revolta e rebeldia são atributos que permeiam toda a obra de Katú, exemplo
disso é seu álbum Revolta que reúne canções como “Jogo sujo”, “Luto”, “Sem silêncio”,
“Clique boom”, entre outras. Ressalto essas como exemplo apenas para referenciar que fazem
parte de um conjunto chamado Revolta, o que destaca o atributo mobilizado nessa análise.
Versos como “me infiltrei para matar o rei”, “Então corre que eu vou te caçar” e “fúria da terra,
do céu, do ar” reforçam os sentidos que aponto, destacados pela constituição enunciativa do
eu/nós contra “eles”, base sobre a qual se constrói a canção. Ainda assim, trata-se aqui de uma

57
Esta é a palavra escolhida pela artista para sua autoidentificação e reflete como ela se identifica quanto à
categoria gênero.
104

voz lírica no feminino, cujos desejos de revolta e raiva se expressam de uma maneira irrefutável.
Ocorre que na sociedade patriarcal a raiva não é um atributo bem aceito nas mulheres
(especialmente as não-brancas), assim como o desejo e o ressentimento, conforme apontou
Eugenia Delamotte (apud SCHWANTES, 2005). Ao construir uma voz lírica guerreira e
furiosa, Katú desafia os padrões de falocentrismo vigentes, especialmente no universo do rap,
reclamando o direito à revolta e à expressão da raiva em mulheres.
Fúria, para além de ser um sentimento entre raiva, justiça e vingança avassaladora, é
também o termo que nomeia as três deusas irmãs da mitologia romana que são responsáveis
pela punição dos crimes que escandalizam os/as deuses/as. São justiceiras implacáveis
conhecidas pelos gregos como Erínias. De acordo com Chevalier e Gheerbrant (1994, p. 435-
436):

As Erínias eram os instrumentos da vingança divina para castigar os erros dos


homens, que elas perseguiram, semeando-lhes o medo no coração. Na
Antiguidade, já eram identificadas à consciência. Interiorizadas, simboliza o
remorso, o sentimento de culpa, de auto destruição daquele que abandona um
sentimento de um pecado que considera inexpiável.[...] “guardiãs das leis da
natureza e da ordem das coisas (física e moral), e por isso puniam todos
aqueles que ultrapassassem seus direitos à custa de outrem, quer entre os
deuses quer entre os homens (grifos meus).

Essa relação entre vingança divina e leis da natureza, pode mediar a leitura desse movimento
da voz lírica de transformação elemental e metamorfose em onça brava 58. A metamorfose
analisada pelos citados autores revela uma “crença na unidade fundamental do ser, sendo as
aparências visíveis um valor ilusório e passageiro” (p. 630). Eles acrescentam ainda que é uma
expressão de desejo, de sanção oriunda do inconsciente profundo que se manifesta pela força
criadora.
Temos aqui o centro temático da canção, a luta pela reparação e pela justiça que tem por
motores: a fúria e a preservação tanto da ancestralidade quanto do território. Neste ínterim, os
movimentos de metamorfose podem representar tanto a conexão com a ancestralidade, quanto
a execução do papel de xondaria/guerreira, motivo pelo qual as forças da guerreira e dos
elementos naturais se fundem nesta luta. A figura da onça é particularmente exemplar ao caçar
aqueles que invadem seu território. É considerada um/a ancestral e um/a guerreira por vários

58
Na literatura contemporânea, esta metáfora tem sido retomada com bastante frequência, especialmente
ressaltando a fúria da mulher. Cf. por exemplo, O som do rugido da onça (2021), de Micheliny
Verunschk, vencedor do prêmio Jabuti em 2022.
105

povos indígenas de Pindorama e de Abya Yala, como se pode ler na citação de Grasiela Porfírio
(2019, p. 560):

Esse grande felino está presente em diversas culturas americanas, do caboclo,


pantaneiro às civilizações Zapotecas do México (1.500 – 700 a.C.) e Mochicas
do Peru (100 a 700 anos atrás) (MIRANDA; JOHN, 2010). Registros como
esses demonstram que o ser humano estabeleceu um estreito laço com a onça-
pintada, que data de milhares de anos. Como descrito em Miranda e John
(2010), a palavra jaguar, que em tupi-guarani significa “aquele que briga”, foi
adotada pelo espanhol, inglês e francês para nomear a onça-pintada. Ainda,
segundo Miranda e John (2010), em mapuche (língua indígena do Chile) e na
Argentina, a onça-pintada é chamada de Nahuel, nos pampas argentinos de el
bicho (o bicho) e na Colômbia mano de lana (mão de lã) em alusão ao seu
andar silencioso.

Como se pode ver o histórico de proximidade entre os povos indígenas e esse animal é imenso.
A palavra tupi-guarani para Jaguar vinculada por Porfírio na citação acima é reveladora para os
sentidos que aqui aponto: aquele/a que luta, guardiã/o. Este trecho atesta também a prevalência
dessa presença na cultura de vários povos andinos, o que demonstra a importância desse felino
em suas cosmovisões. Outro ponto que saliento é a nomenclatura "el bicho” (o bicho, adotada
pelos grupos pampeiros argentinos, pois tal imagem suscita a reflexão sobre os versos “o bicho
da mata virou pop star”. Aqueles seres considerados perigosos e selvagens são exaltados na
cultura pop por meio da arte musical. Pode-se entender uma referência tanto à pessoa indígena
quanto à onça. Tal procedimento de sobreposição revela uma estreita aproximação com a
natureza e uma subversão, pois o/a selvagem que teve (e tem) sua cultura, seu território e sua
existência ameaçados está sendo aclamado. Aponto, ainda, a inversão da relação
predador/presa, uma vez que, o ser humano é que tem caçado onças predatoriamente levando
ao risco de extinção da espécie e tem também destruídos seus territórios. A voz lírica inverte os
papéis colocando a onça como caçadora de pessoas. A sanha predatória do não indígena, levou
a situação de extermínio vários povos tradicionais, sendo que alguns povos foram literalmente
extintos em decorrência do genocídio. A canção em tela dialoga com a composição “Caça e
caçadora” (2019) de Souto Mc no que diz respeito à inversão desses papéis:

Meu espírito é como um casulo


Me transformo, deformo
e as vezes me enclausuro
Voltando mais forte,
sem medo da luta e da morte
eu enfrento e não fujo
Sou leoa e rujo,
Sabendo quem sou nunca mais me anulo,
106

não me deixo levar pelo seu jogo sujo


Tentaram matar a verdade,
tentaram matar minha língua
Quiseram minha identidade,
eles querem “nois” morrendo à míngua
Como as árvores nessa cidade,
renascemos mais fortes ainda.
Nossa força ancestralidade,
não existe quem mate,
o que é terra não finda [...]
Fortaleza, peito de aço!
Não sou mais pega no laço!
Hoje eles que são caça
e eu sou filha de caçador.
(grifos meus)

A paridade entre as canções pode ser demonstrada a partir das nas figuras temáticas:
espiritualidade/ancestralidade, enfrentamento, renascimento, resistência (metáfora da raiz em
Katu) e, por fim, na inversão dos papéis entre caça e caçador, também presentes em “Indígena
futurista” nos versos: “Onça braba não vai amansar/, Então corre que vou te caçar”. Outra
aproximação interessante está no estamento de que o povo indígena não vai ser exterminado,
pois renascerá. Em Souto MC: “Nossa força ancestralidade/, não existe quem mate/, o que é
terra não finda”, e em Katú: “O nosso povo nunca morre/, a raiz nos salvará”. As similaridades
temáticas e discursivas apontam para referências éticas e estéticas que orientam o processo das
compositoras e parecem estar alicerçadas em relação ao resgate de suas ancestralidades. Souto
MC é Kariri e foi criada, assim como Katú, no contexto de urbanidade, em São Paulo. Em suas
diferentes trajetórias, ambas sinalizam para um processo de volta à raiz. Saliento, como mostra
disso os títulos “Retomada” de Katu e “Retorno” de Souto MC59. Essas vozes líricas performam
embates e deparam-se com preconceitos raciais, de gênero e de classe ao trilharem o caminho
inverso, voltando para a conexão ancestral.
Voltando, a análise de índigena futurista, as inversões e polarizações proposta pela letra
da canção denunciam, por um lado as violências e pagamentos contra os povos indígenas; mas
por outro, lado há um levante, uma reação por parte da voz lírica que se projeta sempre no
futuro com insistência e resistência, a partir da reiteração das formulações “eu vou”, “nós
vamos”. Há um movimento aguerrido de esperança contido nas ações guerreiras que podem ser
recuperados também nos versos “estou de pé”, “não vou me arrastar”, “minha morte você quer”,
“mas não vou te dar".

59
“Caroline Souto tem quase 10 anos de rap. Com 25 de vida, a MC originária do bairro da Penha, zona norte
paulistana, teve seu primeiro contato com o hip hop logo na infância. Foi criada em Itaquaquecetuba, grande São
Paulo” (ROSÁRIO, 2020).
107

É possível também recuperar a relação intertextual com a animação Uma história de


amor e fúria (2013) dirigida por Luiz Bolognesi que narra a saga de um guerreiro indígena
imortal que acompanha 600 anos de história do Brasil, desde a colonização até um futuro
distópico. A missão de Abeguar (Tupinambá) é impedir que Anhangá (na trama, um espírito
destruidor) acabe com o futuro e destrua a terra. Para cumprir tal missão, ele não pode ser morto.
Sempre que é fatalmente atingido, transforma-se num pássaro e encarna novamente para
prosseguir com seu destino de lutar contra as forças da destruição. Em vários momentos do
filme, ao ser encurralado em locais de grande altitude, Abeguar (que posteriormente assume
outros nomes) salta transformando-se em um pássaro ou mesmo voando na forma humana.
Ambos (voz lírica e personagem fílmico) são metamorfos (ela onça e ele pássaro), essa
associação com a natureza para a luta, é algo importante pensando no contexto das culturas
indígenas, uma vez que ela pressupõe a sobreposição de natureza e cultura que é estratégica
para a defesa e o ataque contra os agressores/as e invasores/as.
No caso da voz da canção, esse movimento poderia ser lido como essencialista no
tocante à gênero, uma vez que a aproximação entre natureza e mulher no pensamento ocidental,
resultou (quase sempre) num essencialismo reducionista e animalizante que pressupõe que nem
a mulher, nem a natureza tem espaço na cultura que é dirigida, predominantemente por homens.
No entanto o movimento da indígena futurista aponta em sentido contrário, é na união com a
natureza que ela aumenta seu poder para enfrentar a cultura dominante que se impõe sobre sua
visão de mundo em que a natureza é vista como um sujeito e não como objeto e sendo uma
subjetividade cultural (resultante das interações de todos os seres que a compõem), é afetada e
afeta decisões e embates que acontecem no nível social. Entendo, portanto que o movimento
performado por esta mulher futurista pode ser alinhado ao ecofeminismo em seu uso
estratégico, conforme recomenda Izabel Brandão (2020, p 6): “Então, aqui podemos alinhar o
uso de ecofeminismo de forma estratégica, semelhantemente ao essencialismo estratégico, em
um modo contingencial de uso do termo”60. Não se trata, portanto, de identificar uma "essência"
feminina que se alinha com a natureza, mas de perceber sobreposições entre os pares
(mulher/onça, Abeguar/pássaro) numa parceria para uma batalha em comum que não
necessariamente animaliza a mulher ou personifica a natureza. Aqui é necessário adotar o ponto
de vista dos povos originários para compreender que a imbricação naturezacultura
(HARAWAY, 2003) não assume dicções essencialistas, pois nas sociedades indígenas de

60
Retomo a essa discussão no próximo capítulo, Cf. página 125.
108

maneira geral essa separação não existe. Além do mais, a identificação entre mulher e natureza
com fins de relegar a mulher ao natural e o homem ao cultural nos termos de Ortner (2016) não
se sustenta nas cosmovisões indígenas, pois os homens também estão imbricados com
naturezacultura e essa ligação não é vista como hierárquica, moralizante ou segregatória. Tais
posturas hierárquicas têm lugar majoritariamente nas sociedades colonialistas.
Logo abaixo reproduzo três frames do filme: o primeiro no momento em que Abegar
salta do penhasco com Janaína, sua companheira; no segundo quando ele está novamente pronto
para saltar após a morte dela; no terceiro aparecem suas asas de pássaro e no quarto, já em uma
reencarnação futurista de ambos, quando saltam de um arranha céu. É interessante notar que
no caso do filme, apenas Abeguar (que depois reencarna como Balaio, Cau e Jc) é capaz de
alcançar a metamorfose. Janaína que sempre encarna como Janaína mesmo, não apresenta tais
habilidades, sendo salva, alguns pares de vezes, pelo protagonista. Embora ela também esteja
engajada nas lutas e seja retratada como uma boa atiradora e motorista mais à frente. No
momento em que são encurralados em penhascos e afins, ela sempre se abraça ao amado para
voar com ele e poder escapar dos opositores. Talvez o enredo tenha assim se construído para
criar um laço afetivo mais óbvio entre as personagens para construir a história de amor, no
entanto, não deixam de ser importantes essas escolhas. Não irei me aprofundar nelas, pois, meu
interesse aqui está no contraponto oferecido pela voz lírica de indígena a elas. Abaixo pode-se
observar o voo de Abeguar, por vezes, carregando Janaína.

Figura 13 – Frames de Uma história de amor e fúria

Fonte: Google imagens


109

Se o longa-metragem apresenta o amor em contraponto à fúria, a canção apresenta a honra (para


com os ancestrais) em contraponto com o medo (na mira da bala eles vão atirar). Essa é outra
possível ligação entre as obras, pois na última vez em que o personagem principal aparece, ele
está na mira de uma arma à laser mortal e salta levando consigo Janaina. Já a voz lírica de
“Indígena futurista" salta sozinha e enfrenta a colonização continuada de pé.
A demarcação também aparece metaforizada em “Indígena futurista", nos versos
“Nossa terra é vip e eles não vão entrar, aqui nobreza e nós vamos reinar”. Os versos tematizam
a demarcação e a primazia dos/as donos/as da terra que foram roubados/as pelos colonizadores
“em 1500 foi a invasão, / roubaram as terras com a bíblia na mão, / branca é a cor do ladrão”.
Retorno para os primeiros versos que contêm uma metáfora muito importante: “O nosso
povo nunca morre, a raiz nos salvará”. Analisei no segundo capítulo, a metáfora da semente
contida nos versos de Lenine e Rennó: “Sou semente nascendo das cinzas”. No primeiro
capítulo, abordei a importância das axis mundis, epitomizada pela Amoa Hi, a árvore que canta.
E, nesta análise, deparo-me com a metáfora da raiz61. Dentro e fora do contexto indígena a raíz
é uma metáfora para origens e identidades remetendo à ancestralidade e a resistência, já que
das sementes vêm os brotos que enraízam e geram plantas, árvores e frutos. O vocábulo raiz,
além de denotar a parte dos vegetais que mergulha no solo e sustenta, provendo alimentação e
que se fixa na terra promovendo estabilidade para o crescimento, é também uma metáfora
popular que carrega os sentidos de originalidade e de ancestralidade. Krenak explicita o sentido
de raiz profunda como a certeza de sua identidade que permite o trânsito de culturas, sem que
isso necessariamente signifique aculturação. Em seus termos:

Podemos pensar nisso como as árvores. Aquelas que possuem raízes


profundas, lançam seus galhos altos e olham o mundo de uma altura
especial, observam o horizonte de um ponto especial, mas suas raízes
continuam lá, profundas. Podemos voar e ir além. Ter raiz profunda não
significa ficar ensimesmado na sua cultura local, achando que o mundo não
existe. Mas o que não pode fazer é trair essa origem. É preciso capacidade de
fazer o movimento das ondas: provocar uma grande onda que tumultua o
ambiente e ser capaz também de retomar um mergulho na sua identidade
(2010, p. 12).

61
Essa metáfora está também em “Por dentro da terra” (2022), de Kaê Guajajara.
110

Reflito, a partir da citação acima sobre a raiz62 como metáfora para uma ligação com a terra,
com o anterior, com a cultura e com a ancestralidade, pois, é daquela parte invisível fincada na
profunda escuridão que toda a exuberância do mundo em que caminhamos se nutre. A raiz é
uma metáfora potente para a ancestralidade, pois pode ser compreendida por uma relação eterna
e incessante com aquilo ou aqueles/as que estão enterrados/as. Estes entes e seres foram e são
os/as que nos legaram a cultura. Este legado não nos priva de propor novos diálogos e embates
com o mundo exterior, pois no fim podemos recorrer à raiz. Esta também é uma forma de
descolonizar as identidades e se opor ao tão propalado conceito de aculturação. A cultura
continua existindo e pode ser acessada a qualquer momento63. Ela não está represada, nem
guardada em um cofre inacessível. Ela está na raiz e na terra, inclusive as palavras raiz e cultura
(cultivare), aliás estão intimamente ligadas à terra e ao ar e a água, portanto, são palavras que
não podem se desconectar da natureza. Precisam ser pensadas em relação, como faz Donna
Haraway (2005) ao propor o vocábulo naturezacultura, pois essas palavras coexistem, uma vez
que sem natureza não há cultura.
Vejo nisso um diálogo com o tempo espiralar, o tempo que foi, continua sendo e sempre
será e que não necessita de um vetor apontando para qualquer direção que seja. É um tempo de
trânsitos. Este tempo, portanto, está ligado ao “Futuro ancestral” e por conhecermos a terra e
seu conteúdo, Krenak nos adverte a pisar suavemente sobre ela.
Ao reunir, a luta social, a ancestralidade, as tecnologias, o hibridismo, fazendo o
movimento descolonizador por meio da criação de novas narrativas, “Índígena futurista”
dialoga com os eixos do indiofuturismo e apresenta, a partir da metáfora da raiz e da
continuidade da luta, saídas utópicas que revelam alguma esperança de abandonar o cenário
distópico e apocalíptico que descreve e no qual se inscreve.
Neste ponto, “Indígena futurista” abre possibilidades de diálogo com a canção que
analisei anteriormente: “Mãos vermelhas” de Kaê Guajajara, que explicita e metaforiza os
cenários opressivos da racialização misógina e das lutas às quais povos indígenas foram e têm
sido submetidos.
A ligação da pessoa indígena com a terra em contraponto às relações ambientais
construídas pela sociedade ocidental de modo geral norteará a discussão do próximo capítulo,

62
É importante salientar que não consegui encontrar em nenhum dos dicionários de símbolos consultados o
vocábulo “raiz”, o que me chamou atenção uma vez que essa é uma metáfora muito comum é basilar para diversas
culturas e mitologias.
63
Embora nos movimentos de dominação colonial muitos povos tenham sido proibidos de expressar suas culturas,
ela permaneceu e renasceu por meio do retorno às raízes.
111

no qual busco problematizar, a partir das mimetizações desse tema na canção popular, uma
necessária aproximação entre Ecofeminismo e Bem Viver.
112

4 O BEM VIVER E O ECOFEMINISMO

O Bem Viver é uma filosofia de vida que abre as


portas para a construção de um projeto
emancipador. Um projeto que, ao haver somado
histórias de lutas, de resistência e de propostas de
mudança, e ao nutrir-se de experiências locais, às
que deverão somar-se contribuições provenientes
de diversas latitudes, posiciona-se como ponto de
partida para estabelecer democraticamente
sociedades sustentáveis (ACOSTA, 2016, p. 40).

Para vocês entenderem, quando falam de


cosmovisão Yanomami, cosmovisão Guarani, é
exatamente porque essas tradições remontam a
uma narrativa de criação de mundo. Então são
mundos. Para os jovens, o pessoal que está
entrando em contato com o campo da ciência, das
informações sobre a vida no nosso Planeta, eu acho
que é muito importante terem contato com a ideia
de que a Terra é um organismo vivo, que ela não é
uma coisa. E isso, fundamentalmente, distingue o
que é bem-estar do que é Bem Viver. O Bem Viver
não é distribuição de riqueza. Bem Viver é
abundância que a Terra proporciona como
expressão mesmo da vida. A gente não precisa ficar
buscando uma vantagem em relação a nada, porque
a vida é tão próspera que é suficiente para nós todos
(KRENAK, 2020, p. 16-17).

Ampliando a discussão tecida nos capítulos anteriores, crio um panorama ao realizar


aproximações das teorias ecofeministas com estudos que nascem dos próprios povos
originários, que são os feminismos comunitários (PAREDES, 2010) e o Bem Viver (ACOSTA,
2016). O indiofuturismo perpassa essa leitura através das reflexões empreendidas tanto pelas
teorias aqui propostas, quanto principalmente a partir das análises das questões que demonstram
a importância da coexistência entre os seres e das ciências ancestrais como caminhos para o
vislumbre de outras maneiras possíveis de viver e de entender o mundo que não passam pela
exploração e pela dominação como norteadores da existência dos seres humanos. Além disso,
faço novas análises e aprofundo algumas já presentes nos capítulos anteriores, com vistas a
reforçar as características que destaco nas canções e que dialogam com a teorização que serviu
como base referencial. Realço, também, os elementos musicais dessas canções que se
apresentem como relevantes para a leitura proposta, ressaltando aspectos como harmonia,
arranjo, uso dos vocais e dos instrumentais que concorrem para uma visão mais completa do
objeto canção e de sua construção.
113

Neste capítulo, o objetivo é propor uma análise da figuração das questões ambientais no
cancioneiro brasileiro, buscando traçar um diálogo entre o conceito de Bem Viver, que parte da
filosofia de povos originários da Abya Yala, e o Ecofeminismo, discutindo conceitos como
ecologia e sustentabilidade, responsabilidade social e econômica, visando compreender a
necessidade de uma reformatação dos modos de ser e de estar nesse planeta que dialogam com
o indiofuturismo por meio do bem viver e conexão com os saberes ancestrais. Uma
aproximação possível é sinalizada por Alberto Acosta, quando o autor considera que

[q]uando falamos do bem viver, propomos, primeiramente, uma reconstrução


utópica do futuro a partir da visão andina e amazônica. No entanto, esta
aproximação não pode ser excludente ou produzir visões dogmáticas. Deve
complementar-se e ampliar-se, necessariamente, incorporando outros
discursos e outras propostas provenientes de diversas regiões do planeta
espiritualmente aparentadas em sua luta por uma transformação civilizatória
(ACOSTA, 2016, p. 35).

Inicialmente, aponto uma aproximação entre bem viver e ecofeminismo no que diz respeito às
preocupações ambientais, na crítica ao capitalismo, patriarcalismo e antropocentrismo. A partir
da concepção do bem viver, as filosofias andinas e amazônicas permitem questionar a maneira
como coexistimos e os meios e motivações que nos impelem, propondo uma reconfiguração de
atitudes e entendimentos que são capazes de redirecionar, por meio do diálogo, os rumos que
temos tomado e o mundo que estamos construindo. Esse é um dos pontos basilares do
indiofuturismo, a mudança de direção vetorial do tempo para que se possa analisar e abarcar
ciências dos povos tradicionais para investigar o presente em que vivemos e criar novas
possibilidades de futuro.
Outro ponto proposto pelas duas perspectivas críticas consiste uma certa reserva em
relação à crítica acadêmica, conforme explicitam as autoras Maria Mies e Vandana Shiva,
reproduzido abaixo, que salienta o modelo dominante de desenvolvimento:

Partilhamos uma grande parte da crítica dirigida ao paradigma ocidental de


desenvolvimento; rejeitamos os processos de homogeneização resultantes do
mercado mundial e dos processos de produção capitalista. Criticamos também
a divisão dualista entre superestrutura ou cultura e economia ou base. Do
ponto de vista, a preservação da diversidade de formas de vida na Terra e das
culturas das sociedades humanas é uma pré-condição para a manutenção da
vida neste planeta (MIES; SHIVA, 1993, p. 22).

Por isso, retomo a epígrafe deste capítulo para enfatizar que não é surpreendente que certa
reserva exista, uma vez que os meios de produção e reprodução do conhecimento são, em geral,
114

permeados pela ideologia dominante, reiterando, muitas vezes, as relações injustas,


hierarquizadas, conduzidas e financiadas pelo Estado, cujo interesse, sabemos, é o de mercado,
produção e lucro. Além do mais, o Bem Viver aproxima-se prioritariamente dos saberes
práticos e, tendo origem nos povos tradicionais, está muito mais próximo da cosmogonia do
que da academia. Nesse sentido, aproxima-se do Ecofeminismo, pois

[u]ma perspectiva ecofeminista apresenta a necessidade de uma nova


cosmologia que reconhece que a vida na natureza (incluindo os seres
humanos) mantém-se por meio da cooperação, cuidado e amor mútuos.
Somente deste modo estaremos habilitados a respeitar e a preservar a
diversidade de todas as formas de vida, bem como das suas expressões
culturais, como fontes verdadeiras do nosso bem-estar e felicidade. Para
alcançar este fim, as ecofeministas utilizam metáforas como “re-tecer o
mundo”, “curar as feridas”, re-ligar e interligar a “teia”. Este esforço para criar
uma cosmologia e antropologia holísticas, abrangendo toda a vida, deve
implicar necessariamente um conceito de liberdade diferente do utilizado
desde o Iluminismo (MIES; SHIVA, 1993, p. 15).

Embora haja divergências pontuais entre esses dois enfoques, vejo mais pontos de convergência
que são importantes. É possível traçar uma ponte teórica em que esses discursos e essas teorias
encontrem um acesso que possibilite lançar novos questionamentos e propor embates e sínteses
dentro do ambiente acadêmico. Esta tese constitui-se como exemplo disso, inclusive.
Portanto, proponho uma leitura interdisciplinar dos campos de saberes já apontados, de
forma a entrelaçar olhares possíveis às canções como um caminho para analisar suas
peculiaridades da composição e, ao mesmo tempo, discutir questões socioambientais que
dialogam com esses textos. Adotar esse viés plural é também compreender os mecanismos do
próprio Bem Viver, uma vez que, nas palavras de Pablo Sólon (2019, n. p.):

A complementaridade entre bem viver, o decrescimento, os comuns, o


ecofeminismo, os direitos da Mãe Terra, a desglobalização e outras propostas
busca enriquecer cada um desses enfoques, criando interações cada vez mais
complexas que ajudam no processo de construção de alternativas sistêmicas.
O objetivo não é apresentar uma alternativa totalizante, mas desenvolver
múltiplas alternativas holísticas que se entrelacem e se articulem.

É necessário, ainda que brevemente, observar algumas das vertentes citadas no trecho acima.
Tratarei aqui apenas das relações entre os ecofeminismos e o bem viver, no entanto, conforme
indicado por Sólon, as possibilidades de entrelace com outras vertentes são abundantes. A
relação do bem viver com os comuns ou comuneros, por exemplo, é bastante recorrente. De
modo geral,
115

[o]s comuns são um modo particular de relação social com os bens materiais
ou imateriais. Elementos naturais, como a água e o ar, existem como tais, e só
se convertem em comuns quando uma comunidade humana administra suas
relações com esses elementos de maneira coletiva (AGUITON, 2019, n. p.).

Pode-se perceber, então, que os comuns ou comuneros buscam a autogestão comunitária dos
bens comuns e se coadunam com o bem viver, ao postular em um debate comunitário dessas
gestões e das relações das comunidades. Um ponto de divergência está na centralidade na
comunidade humana, a mais destacada das características do antropoceno. No Brasil, uma das
lideranças que tenta promover o movimento dos/as comuns é Manuela D’Ávila 64 (política e
ativista feminista e pelos direitos humanos), que vem articulando uma oitiva de pautas para
estruturar o movimento Comum no país. Um ponto que aproxima comuneros e comuneras do
Ecofeminismo é a economia dos cuidados, não apenas no âmbito familiar, mas o cuidado com
os bens comuns. Além disso, as/os comuns, muitas vezes, reinvindicam a luta pelo
“desenvolvimento sustentável”. O que as/os afasta tanto do bem viver quanto dos defensores e
das defensoras do decrescimento.
O decrescimento, por sua vez, é uma corrente de pensamento que leva em consideração
uma economia mais igualitária, que produz o necessário com o mínimo impacto natural e social.
Já que sabemos que vivemos em um mundo em que “recursos” são finitos, não podemos exigir
que a economia esteja sempre em crescimento, pois o custo social, ambiental e econômico desse
crescimento exorbitante é cobrado em qualidade de vida, saúde e na própria extinção de
espécies e de maneiras de ser e viver. O final desse processo é trágico, para não dizer
apocalíptico. Segundo Leonardo Boff (2013, p. 58), é possível conceituar o decrescimento
econômico da seguinte maneira: “reduzir o crescimento quantitativo para dar mais importância
ao qualitativo, no sentido de preservar recursos que serão necessários às futuras gerações”. O
decrescimento não propõe um empobrecimento material ou uma espécie de comunismo
capitalista, mas propõe estratégias de qualificar os desempenhos econômicos, colocando em
seu centro a vida e a natureza, em substituição ao Pib. Nas palavras de Serge Latouche (2012),

o decrescimento não é um conceito e, em todo caso, não é o oposto simétrico


do crescimento. É um slogan político provocador que visa, principalmente,
enfatizar a importância de abandonar o objetivo de crescimento pelo
crescimento, objetivo desprovido de sentido cujas consequências são
desastrosas para o meio ambiente. Em particular, o decrescimento não é o
crescimento negativo, expressão antinômica e absurda que bem expressa o
domínio exercido pelo imaginário do crescimento.

64
Cf. Manuela lança movimento dos comuns em São Paulo (2020).
116

Como se pode ler acima, o decrescimento surge como alternativa ao crescimento irresponsável
e suicida que loteia a terra, a água, o ar e, consequentemente, a vida dos seres que deles
dependem, como recursos, adotando metas cada vez mais intransponíveis e irrevogáveis para
um sucesso financeiro que ocasionará, futuramente, uma miséria impensável, já que todo o
processo de crescimento é permeado por avanços, recuos e crises. Esse crescimento projetado
pela economia capitalista é a quimera de uma lucratividade ilimitada e infinita que não expõe a
finitude dos “recursos” e a fragilidade das subjetividades que explora no seu percurso.
É importante também entender que, da tradução de Sumak/Kawsay para bem viver,
algumas premissas têm que ser observadas para que não sejam perdidas, pois, o bem viver
indígena não é recursista, nem sustentável e nem desenvolvimentista. Nas palavras de Ailton
Krenak, em seu livro Caminhos para o Bem Viver:

Bem Viver não é definitivamente ter uma vida folgada. O Bem Viver pode ser
a difícil experiência de manter um equilíbrio entre o que nós podemos obter
da vida, da natureza, e o que nós podemos devolver. É um equilíbrio, um
balanço muito sensível e não é alguma coisa que a gente acessa por uma
decisão pessoal. Quando estamos habitando um Planeta disputado de maneira
desigual, e no contexto aqui da América do Sul, do país em que vivemos que
é o Brasil, que tem uma história profundamente marcada pela desigualdade, a
gente simplesmente fazer um exercício pessoal de dizer que vai alcançar o
estado de Buen Vivir, ele é muito parecido com o debate sobre
sustentabilidade, sobre a ideia de desenvolvimento sustentável (2020, p. 8-9).

Mas, o que une esses vieses é um entendimento de que é necessária uma relação diferenciada
com o consumo e com a natureza. Todos/as assumem os impactos e a impossibilidade de
sustentação do atual sistema econômico e todos se articulam comunitariamente (em maior ou
menor escala) em torno de suas lutas, que surgem do reconhecimento dos sofrimentos causados
pelas mazelas do capitalismo e da globalização sobre as sociedades, destruindo suas culturas e
agredindo severamente a natureza.
Explicados os conceitos a serem mobilizados pela análise e em consonância com eles,
apresento o corpus que foi selecionado para compor este capítulo: “Serpente Mulher” (2021),
do grupo Suraras do Tapajós, e “Amor de índio” (1978), de Beto Guedes.
No próximo seguimento, analiso as canções “Serpente Mulher”, das Suraras, cujo foco
recai sobre os ecofeminismos em associação com o sumak kawsay/bem viver e também sobre
o escrutínio das imagens de hibridismo e transformação que caminham junto à mitologia tanto
de povos como Desana, Tikuna, Guarani, entre outros, quanto ao estudo da simbologia por meio
117

de trabalhos de pesquisadores não indígenas como Chevalier e Gheerbrant (1994). Nessa


canção, em especial, ficam evidenciadas: as forças ancestrais indígenas e sua influência no fazer
de suas artistas; a relação com a natureza que impossibilita a separação entre natureza e cultura,
humano e não humano e a grande capacidade que o repertório oral indígena tem de veicular e
perpetuar conhecimentos filosóficos, botânicos, geológicos e literários de seus povos
originários.

4.1 A serpente é parente: a cobra avó nos habita

Depois de muito tempo a bordo da canoa cobra,


gente-peixe foi desembarcando e transformando-se
nos ovos e clãs que habitam a Terra.

(Cadernos Selvagem, 2021).

A conexão existente entre vidas e ancestralidades presentes nos mitos de origem, nas
cosmogonias indígenas, transparece a enredada relação de tudo com o Todo. Toda forma de
vida que existe com todo o mundo que se manifesta nela e a partir dela. A narrativa gerada pela
relação depende de como e do que cada pessoa e cada povo alcança por suas próprias lentes.
É a relação dos povos tradicionais com a terra e com o território, pois, na cosmovisão
dos que vivem na e da terra e com a terra, a pessoa é um território e o território é uma pessoa.
E se a pessoa sem povo não existe, então, o individual é coletivo, na mesma medida em que o
pessoal é político. Shiva argumenta que

[a] terra e a sociedade, a terra e as suas gentes estão intimamente interligadas.


Nas sociedades tribais e camponesas, a identidade cultural e a religiosa
provêm da terra, que é entendida não como um mero “fator de produção”, mas
como a própria alma da sociedade. A terra tem corporizado, para a maioria
das culturas, o lar ecológico e espiritual. É o ventre não apenas da reprodução
da vida biológica, mas também da vida cultural e espiritual; é o compêndio
que condensa todas as fontes de sustento e o “lar” no sentido mais profundo
(SHIVA, 1993, p. 138).

Essa compreensão da terra como “lar” no sentido material e também cultural e espiritual,
presente na afirmação de Shiva, coaduna-se com a visão dos povos tradicionais e também com
as principais premissas do Bem Viver no sentido da noção de pertencimento e de unidade da
vida. Do mesmo modo, ao desafiar a lógica do status quo que entende o território como algo a
ser ocupado e explorado para atender aos interesses de produção e de lucro que regem o sistema
capitalista, fator determinante do antropoceno, uma vez que este, relido por Donna Haraway
118

(2016) como capitaloceno, atinge tudo e todas. A Autora propõe uma desmistificação do
conceito de antropoceno, pois para ela:

o Antropoceno é um termo mais facilmente significativo e utilizável por


intelectuais de classes e regiões ricas; não é um termo idiomático para clima,
tempo, terra, cuidados com o campo, ou alguma coisa do tipo em muitas outras
áreas do mundo, especialmente, mas não apenas, entre os povos indígenas
(2016, p. 49).

Para a autora, o escopo do Antropoceno e o foco do homem (espécie) como o problema a ser
resolvido é uma narrativa fatalista que foi facilmente aceita pelas pessoas que começam a
ecoando sua trama apocalíptica. Mas não é a espécie humana que é o centro do problema, mas
a maneira sistêmica como temos vivido. É importante lembrar que muitas comunidades não
vivem dentro do Antopoceno, vivem para além dele e apenas sofrem suas consequências. Mais
precisamente o problema é de onde vem nossas práticas destrutivas, consumistas e
individualistas. Assim, ela propõe o Capitaloceno.
Entendo que a renomeação da Era não objetiva salvar o humano do paradoxo proposto
pelo Antropoceno, no sentido de eximir suas responsabilidades. mas para propor com a crítica
ao Capitaloceno, uma nova narrativa que seria o Chtuluceno e, ao mesmo tempo, abrir a
possibilidade de enxergar a rede de seres que compõem a vida na terra, descentrando o destino
do planeta desse intenso protagonismo do humano, em suas palavras:

Renovar os poderes da biodiversidade da terra é o trabalho simpoiético e o


jogo do Chthuluceno. especificamente. Ao contrário do Antropoceno ou do
Capitaloceno, o Chthuluceno é composto de contínuas histórias multiespécies
e práticas de tornar-se com tempos que permanecem em jogo, em tempos
precários, nos quais o mundo não acabou e o céu não caiu— ainda. Estamos
em jogo um com o outro. Ao contrário dos dramas dominantes do discurso do
Antropoceno e do Capitaloceno, os seres humanos não são os únicos atores
importantes no Chthuluceno, com todos os outros seres capazes de
simplesmente reagir. A ordem é retecida: os seres humanos são com a e da
terra, e os poderes bióticos e abióticos desta terra são a história principal (p.
72).

A proposta do Cthuluceno é a de uma terceira via que pode ser trilhada, ao superarmos o
Antropoceno e o Capitaluceno. A superação não depende de uma mudança de comportamentos
apenas, mas de uma mudança de paradigmas. Sobretudo, de como entendemos e convivemos
com os outros seres e com nós mesmos/as. Esse é o motivo pelo qual precisamos superar o
Antropoceno e o Capitaloceno, mas sem perder de vista o Cthuluceno que em muito se
aproxima do bem viver.
119

Ao aproximar Haraway e Krenak, não pretendo equacionar ou equalizar suas visões que
apresentam algumas convergências. Esse movimento teórico objetiva o diálogo entre essas
vozes dissonantes para que possamos pensar novas maneiras de pensar e de existir. Portanto,
mais uma vez performo o movimento de promover embates e sínteses que levem à novas
reflexões para além do Antropoceno e do fim do mundo.
Os ecofeminismos são frequentemente alvos de críticas por serem lidos através de uma
visão holística e sacralizante da terra e das relações dos seres que nela habitam, acusados de
apresentarem uma visão “essencialista” que iria de encontro à construção da subjetividade no e
pelo meio social. Embora o campo teórico não se restrinja às características apontadas e
considerando que o ecofeminismo crítico trouxe inúmeras contribuições ao próprio
ecofeminismo, fato que acontece sempre que embates teóricos são levados a sério e
aprofundados por ambos os lados, leio e utilizo como perspectiva de leitura o ecofeminismo
aqui respaldado pelo conceito de essencialismo estratégico pensado por Diana Fuss (2016), a
partir dos postulados de Gayatri Spivak (1985). Nesse mesmo sentido, concordo com Greta
Gaard (2017, p. 784) quando a autora elabora sobre essa questão do essencialismo:

Uso os termos “crítica literária ecofeminista” e “ecocrítica feminista” de


maneira intercambiada, uma vez que detalhar as nuances das distinções entre
essas perspectivas será tema de futuro artigo. As duas abordagens têm
histórias duradouras no interior da ecocrítica. A má representação do
ecofeminismo como tendo uma perspectiva exclusivamente essencialista e a
subsequente dificuldade de reabilitar um termo incorreto tem afastado novas
feministas acadêmicas do ecofeminismo e levado muitas escritoras que já
foram ecofeministas a fugir desta autodescrição e a desenvolver seu raciocínio
dentro de arcabouços teóricos como o da justiça ambiental (cf., por exemplo,
Stein, 2004; Sturgeon, 2009), ecocrítica queer (cf., por exemplo, Mortimer-
Sandilands; Erickson, 2010), feminismo materialista (cf. Material Feminisms,
de Alaimo e Hekman), ou simplesmente ecocrítica feminista (por exemplo,
Alaimo, 2000; ou Stein, 1997). Algumas feministas continuam a utilizar
“ecofeminismo” na esperança de restaurar tanto o termo quanto a história
crítica que ele representa. Todos esses pontos de vista ecológico-feministas
compartilham uma abordagem interseccional que sedimenta natureza,
gênero, raça, classe e sexualidade, ainda que nem todos referenciais tratem
de espécies.

Adoto, portanto, uma perspectiva que abarca da biologia (quando acatada por escolha) à crítica
social de gênero, à ecologia, à classe e à raça, considerando também, como Haraway e outras,
o afeto e a coexistência multiespécies (2003; 2008; 2016), uma vez que essa postura se coaduna
com as visões indígenas a respeito da casa comum a que algumas pessoas chamam Mãe Terra
e outras Pachamama. Essa atitude é, a meu ver, aquilo que mais mobiliza e centraliza a
120

discussão entre as vertentes, uma vez que se trata do ponto fulcral comum em torno do qual
todos e todas nos mobilizamos, visando um amanhã.
Ainda discutindo a questão do essencialismo, recorro ao pensamento de Izabel Brandão
(2020) em seu argumento de um uso estratégico do essencialismo ecofeminista, quando este
não se refere à uma “essência feminina”, mas, sim, ao entendimento de que somos parte da
natureza. Em suas palavras:

Então, aqui podemos alinhar o uso de ecofeminismo de forma estratégica,


semelhantemente ao essencialismo estratégico, em um modo contingencial de
uso do termo. Por essa razão, apoio o uso intercambiado de ecocrítica
feminista com ecofeminismo, entendendo o seu realinhamento de sentido para
uma perspectiva que promova o afastamento do uso do termo apenas voltado
para uma chamada “essência feminina” que, nos termos da
contemporaneidade, não mais nos serve. Não se trata, por exemplo, de
substituir um Deus patriarcal por uma Deusa matriarcal, e sim de entender o
humano como parte integral de uma natureza que é muito maior do que todxs
nós, humanos e não humanos, que, em terminologia mais afim com os dias
atuais, é chamada por Alaimo (2010) de mais-que-humano, dada a sua
inclusão. Somos todxs natureza e a natureza nos é. Existimos nela e ela em
nós (BRANDÃO, 2020, p. 6, grifos meus).

Para o curso desta análise e para os fins a que esta tese se propõe, a visão holística do
ecofeminismo é bastante interessante, pois coaduna-se com as filosofias e cosmovisões
indígenas, sobretudo no que diz respeito às mulheres e à natureza. Se a aproximação, já tão
debatida, entre mulher e natureza foi utilizada pelas forças ativadoras do patriarcado para
desfavorecer e desqualificar ambas, animalizando-as e tornando a mulher escrava da biologia65,
o contrário estrategicamente e em contingência pode também ser realizado, já que dentro do
contexto indígena, a aproximação entre humano e natureza é transcendente e leva à valorização
tanto do ser humano, em particular da mulher, quanto da natureza, justamente por apresentar
esse caráter holístico e integrativo das forças naturais.
A grande maioria das cosmovisões indígenas se organiza em torno do comunitário em
primeiro plano. Tal posicionamento não anula a individualidade, pelo contrário, a salvaguarda,
afirmando-a como diversidade que nos une e nos irmana. O abraço e o respeito às diferenças
nos mostram que, precisamente por conta delas, nos tornamos semelhantes. Não é preciso
homogeneizar pautas e lutas, mas entender que cada uma delas representa o enfrentamento de
diferentes demandas, por grupos diversos, em locais e condições completamente desiguais. o

65
A crítica feminista da cultura vem, desde o importante ensaio de Sherry Ortner (2016) traduzido por Cila
Ankier e Rachel Goreinstein, publicado originalmente em 1973, apontando este carcater reducionista.
121

valor mais importante que temos em comum é a vida e a luta pela continuidade dela neste
planeta. Faço dialogar, portanto, esse conjunto de teorias, cuja principal ideia é a de que
precisamos de equilíbrio e de respeito às questões que dizem respeito à Terra.
Embora esse posicionamento possa parecer utópico e é, no melhor sentido, julgo que as
divergências teóricas devem servir para fortalecer as vertentes conflitantes e nunca para anulá-
las ou neutralizá-las, pois, para isso, já temos o vigente sistema econômico e o patriarcado,
servindo-se de todos os expedientes de nulificação contra nossas identidades, comunidades,
lutas e pautas.
Levando, portanto, em relevo as relações ecológicas extremamente afetivas entre
pessoas indígenas e os ecossistemas concêntricos de que são e se sentem parte, as relações de
gênero e etnia e as questões de cosmovisão religiosa, desenvolvo, nesta subseção, a análise da
canção “Serpente Mulher”, do grupo musical e associação política de luta Suraras do Tapajós,
que veicula o mito ancestral do povo Borari, o qual margeia as águas do Tapajós na região de
Alter do chão, no Pará, entremeando minhas considerações com outras vozes de obras artísticas
e acadêmicas que serpenteiam sobre questões ancestrais, científicas e ecológicas guiadas pela
lógica de que, pelas raízes que se conectam e interpenetram, não há grandes diferenças entre as
temáticas. Elas são apenas braços de um mesmo rio.
Apresento inicialmente o grupo musical Suraras do Tapajós que, atualmente, é
composto por mulheres de diversas etnias, originalmente reunidas pelo Coletivo de Mulheres
Indígenas Suraras do Tapajós, de acordo com a descrição do próprio grupo em sua página:

O Oeste do Pará – região do Baixo Tapajós no Brasil, abrange os municípios


de Aveiro, Belterra e Santarém, na 13 povos indígenas,perspectiva da questão
indígena. Nesse recorte geográfico habitam atualmente a saber: Apiaka,
Arapiun, Arara Vermelha, Borari, KaraPreta, Jaraki, Kumaruara, Munduruku,
Maytapú, Tapajó, Tapuia, Tupinambá e Tupaiú. Em 2016, nessa região, às
margens do Rio Tapajós, jovens mulheres indígenas, preocupadas com a luta
pela defesa dos direitos das mulheres, deram as mãos e criaram o primeiro
coletivo de mulheres indígenas composto por diferentes etnias, denominado
Coletivo de Mulheres Indígenas Suraras do Tapajós. Ao longo de sua
caminhada o grupo foi tomando a frente de várias ações em prol da causa
indígena sem deixar de lado sua ancestralidade e cuidado com a
espiritualidade feminina, de onde vem sua maior força.
No dia 8 de fevereiro de 2020, a organização deu mais um passo importante,
tornou-se Associação de Mulheres Indígenas Suraras do Tapajós. Foi uma
forma de garantirmos mais ainda a nossa autonomia, o direito das nossas
sócias e o crescimento da organização (grifos no original).

A partir das reuniões de mulheres para a discussão de pautas, as artistas foram se reunindo de
maneira informal, performando momentos culturais para a diversão e descontração nos
122

encontros. Assim, foram descobrindo que o poder de suas canções tinha a possibilidade de
alcançar espaços políticos que, muitas vezes, eram negados às suas representantes. Desse modo,
através do carimbó e da dança, as Suraras passaram a veicular sua mensagem, que alçou voo e
abriu portas para espaços públicos importantes, criando acesso para a luta da associação. Em
suas próprias palavras: “Trabalhamos a música como forma de resistência, fazendo com que a
voz dos povos indígenas ecoe muito além de seus territórios”.

Figura 14 – Mulheres indígenas Suraras do Tapajós

Fonte: site Suraras do Tapajós

A escolha da canção em tela deu-se por conta de suas imagens, que mesclam o mito
ancestral e a experiência da vida com a natureza. As metáforas, que circulam em torno das
águas e matas, constroem uma mulher mitológica que é, ao mesmo tempo, natureza e
ancestralidade. Esse hibridismo de representações converge com o pensamento desenvolvido
ao longo deste texto, pois aponta para uma identidade que é construída de dentro da concepção
de vida-terra-natureza, assumindo contornos não antropocêntricos e performada num tempo
espiralar de ciclos e retornos que revelam e ensinam práticas de Bem Viver.

Serpente Mulher – Suraras do Tapajós

No silêncio o remanso das marés


Uma bela Tapuia a se banhar
Seu cabelo negro de boiuna
Sangrou a foz do rio mar

Em sua igara remando imponente


A força do vento espalhou seu cantar
A mãe natureza calou de repente
Ao ver a iara na luz do luar
123

As águas profundas do tapajós


Guardam segredos a se revelar
O rito ancestral do povo Borari
Que a bela tapuia vem nos encantar

Na cuia pitinga ela preparou


Penachos de arara pro seu maracá
O fumo da mata ela consagrou
Em serpente mulher veio se transformar

De início, ouvimos o som de água corrente, referência que recupera o som de um rio, que
permanecerá ao longo do arranjo. Logo em seguida, os curimbós (tambores dos quais derivam
o nome da dança – curi – pau oco e m, bó, furado), o pau de chuva, o banjo e as flautas criam a
atmosfera de andamento moderado e tranquilo, que dialoga de perto com o barulho das águas.
Os quatros primeiros versos, seguindo o andamento da canção, são cantados de modo mais
lento; as vogais se alongam, se espraiam, especialmente nos finais de cada um. Isso colabora
na composição de uma paisagem sonora que ajuda a contar (ou desenhar) a cena da tapuia na
água do rio, tomando banho. No ponto exato em que a voz pronuncia o final do último verso
da estrofe (rio-mar), a marcação rítmica anterior se interrompe, o pau de chuva e as flautas
criam um efeito de expectativa e, logo depois, o andamento se acelera, tomando a forma
instrumental/rítmica mais característica, que conhecemos do carimbó.
Os versos seguintes são cantados e, a partir da repetição do verso “ao ver a Iara na luz
do luar”, temos a alternância dos cantos da cantora e do coro, como em um jogo de
respostas. Esse coro, aliás, reflete uma organização coletiva que remete aos modos de viver em
comunidade. Como dito anteriormente, essas mulheres reúnem-se para traçar pautas e
estratégias de lutas políticas e em associação econômica e formam uma comunidade. Essa
comunidade implica em construir muitas coisas juntas e dividir valores66, como uma associação
de mulheres e nisso entrou a música, a princípio como diversão e descontração e apenas após
as reuniões, mas depois tornou-se um potente meio de ecoar as lutas das Suraras.
Essas três últimas estrofes são repetidas algumas vezes e, embora a canção tenha uma
duração específica (3’47”), nem na narrativa poética cantada por Thaline Karajá e suas
companheiras, nem na forma musical temos elementos marcadamente indicativos do fim da
canção; em outras palavras, a estrutura narrativa dos versos e a estrutura musical poderiam se
estender e se repetir indefinidamente, de modo cíclico. Essas características colaboram, por um

66
“Outra canção intitulada “Guerreira Surara”, do Ep Kiribasawá Yúri Yí-itá (A força que vem das águas) tematiza
essa relação com a repetição constante de nós e nosso em sua letra: “A força que vem das águas/ são nossos
encantados, / invocados por nossas vozes,/ ecoamos nossa luta, /lutamos por nossa terra,/lutamos por nosso rio.
Lutamos pelas vidas do nosso povo. / Nós somos a voz da resistência! /Nós somos as Suraras do Tapajós!”.
124

lado, para que a música se integre a um conjunto maior de práticas coletivas, conforme
enfatizado acima. São situações de dança e festividades, em que o tempo e a duração da
execução podem se estender conforme a necessidade do momento. Por outro lado, tendo em
vista o texto da canção, essa circularidade pode dialogar com um elemento importante da letra:
a imagem da serpente.
Portanto, em diálogo com a circularidade e com o movimento contínuo, a palavra que
guia minha interpretação dessa canção é a transformação, que é uma constante na natureza, é
uma constante do pensamento humano. São seres que se transformam e transformam seu
entorno, que evoluem, no vocábulo darwiniano, mas que vão além da simples evolução
material. Com ela, vem também a evolução do comportamento, pensamento, do pensamento
artístico e espiritual; avançam ou retrocedem, de acordo com as forças e os tempos.
A serpente é uma imagem mítica que é abundante em diversas culturas tradicionais
espalhadas pelo globo terrestre. A apreciação dessa imagem nem sempre se deu de forma
maniqueísta pelas culturas, mas tem sido tradicionalmente interpretada como símbolo de “mal”,
traição ou perigo por culturas ocidentalizadas. Ainda que seja assim, as acepções em torno desse
ser mítico estão quase sempre no campo semiótico do mistério, da sedução, da sabedoria,
transformação e movimento no espaço-tempo.
De acordo com Chevalier e Gheerbrant (2022, p. 893), a serpente encontra-se nas
latências dos mitos de origem da vida, da alma e da libido, sendo, portanto, um vetor entre o
dia e a noite, a realidade e o sonho, é uma hierofania do sagrado natural, não espiritual, mas
material”. Apresenta-se como uma manifestação material do oculto, “[...] uma Coisa primordial
indivisível que não cessa de desenroscar-se, desaparecer e renascer[...]” (CHEVALIER;
GHEERBRANT, 2022, p. 894). É digno de nota que tal simbolismo seja tão profícuo que tenha
merecido doze páginas no dicionário de símbolos da dupla de estudiosos, e que dialoga, nesta
leitura, com a simbologia atribuída também por filósofos indígenas. A imagem abaixo que
mostra uma sucuri, demonstra o porte e, consequentemente, a força desse animal, o que justifica
o fascínio que ele desperta em diversas culturas.
125

Figura 15 – Sucuri-verde (E. Murinus) também conhecida como Anaconda

Fonte: Portal Amazônia

A serpente que muda de tamanho, de pele e até de sexo, um ser que transita pelas águas,
pela terra, pelas rochas e pela vegetação é, com certeza, um signo de encantamento; e sua
habilidade de, às vezes, mover-se graciosamente pelas entranhas da terra remete ao mistério do
útero e do desconhecido. Ainda nas palavras de Chevalier e Gheerbrant (2022, p. 893): “Ou
então abandona os ímpetos masculinos para fazer-se feminina: enrosca-se, beija, abraça, sufoca,
engole, digere e dorme”. Pelo trecho enlevado, percebe-se que a serpente foi lida pelos
dicionaristas como símbolo da noite, do mistério, da sedução e da dualidade entre vida e morte,
num princípio dual fêmea/macho.
Estando presente entre os Desana, Tukano, Borari, Maias, Astecas, Árabes, Celtas,
Sateré-Mawé, na mitologia judaico cristã e em diversas etnias africanas, este símbolo apresenta-
se ligado à Terra e aos movimentos de criação e destruição. Para Solange do Nascimento,
doutora em sociedade e cultura na Amazônia, a imagem mitopoética da serpente apresenta-se
nessas diversas culturas, mantendo, mesmo guardando-se a distância cultural e social entre
esses povos, certas similaridades. Em suas palavras:

Uma outra imagem da serpente no imaginário indígena está relacionada à


canoa da fermentação que faz parte do acervo das histórias míticas narradas
pelos povos que habitam o Alto Rio Negro. Eles acreditam que a grande
serpente trouxe todos os povos em seu interior e, na grande viagem que surge
das profundezas dos rios para a superfície da terra, foi distribuindo seus filhos
por todos os lugares do mundo, no intuito de povoar o próprio mundo
(ANDRELLO, 2012). Esse entendimento, por via de uma linguagem poética,
não se distancia do entendimento cristão (NASCIMENTO, 2018, p. 3).
126

A comparação proposta por Nascimento entre a serpente do paraíso e a canoa da fermentação


ou da transformação é sustentada pela ligação da serpente do imaginário cristão com o princípio
da humanidade e pelo povoamento do mundo pelo primeiro casal mitológico, mas também pela
teoria de que a serpente está metaforizada no nome da própria figura de Eva. Para isso, a
pesquisadora apoia-se na afirmação de Heinrich Krauss e Max Küchler (2007), que associam o
vocábulo “Eva” à “hawwah”, que, em outras línguas semíticas do tempo bíblico, significaria
“serpente”. Seria possível, por essa via, uma interpretação que associa a serpente ao nascimento
da humanidade e não à condenação, pois, “[o] mito judaico, a partir de seu entendimento por
via da etimologia da palavra, desassocia a figura da serpente como obra do mal, de acordo a
tradição religiosa cristã menos erudita, e a coloca como partícipe da criação” (NASCIMENTO,
2018, p. 2-3). Nascimento, que estuda mais detidamente a cultura Sateré-Mawé, evoca a figura
da serpente para esta etnia em especial, de uma perspectiva que se coaduna com a minha leitura
de “Serpente Mulher”, pois, de acordo com a estudiosa:

Para os Sateré-Mawé, a serpente está presente no início da humanidade como


a figura da mulher sedutora que de dia se deitava com o sol e à noite com a
lua, sem que os dois astros percebessem que estavam sendo traídos, e dessa
relação dupla, ela gerou um casal de gêmeos do qual não sabia quem era o pai.
Tupana ou Yurupary? (Yamã, 2007). A figura de Tupana (sol) representa o
dia e as coisas visíveis e a de Yurupary (lua), a noite e as coisas invisíveis, o
mistério. O dia está também relacionado à energia masculina, e a noite à
energia feminina. [...] Não saber quem é o pai, como também não sexuar a
serpente (macho ou fêmea) é permitir à criatividade do pensamento pensar as
origens da humanidade com leveza de espírito, sem a preocupação de uma
ordem cronológica e hereditárias estabelecidas, mas se permitindo pensar a
partir de uma outra lógica menos racional e mais poética (NASCIMENTO,
2018, p. 3).

Apesar da ambivalência resultante do fato de ser essa figura mitológica um híbrido no sentido
de gênero e, ainda que ela resgate uma imagem fálica em nossa cultura ocidental, vem imbuída
pela energia de criação e gestação da vida, sendo assim também associada ao feminino e,
portanto, reconhecida pelos povos indígenas como a “avó do mundo”. Especificamente para os
Sateré-Mawé, a serpente é uma figura de culto presente tanto em mitos que recuperam a criação
quanto a destruição, destruindo assim, por sua dualidade, qualquer maniqueísmo que poderia
se cristalizar em torno de sua imagem. Tal leitura também acorda com os escritos dos já citados
Chevalier e Gheerbrant, quando afirmam que: “Ela brinca com os sexos como com os opostos,
é fêmea e macho, gêmea em si mesma, como tantos deuses criadores que em suas primeiras
representações sempre aparecem como deuses e deusas cósmicos” (2022, p. 893-894).
127

Já para os povos do rio Tapajós, a serpente é representada, majoritariamente, como uma


figura feminina partícipe da formação e transformação da vida na terra, como pode-se
compreender no verso “o mito ancestral do povo Borari”, da serpente-mulher que vem ensinar
os ritos e costumes aos povos ribeirinhos. É importante que se diga que a narrativa mítica é
primordialmente figurativa de como o mundo se dá a conhecer (ELIADE, 2011). Parafraseio
Ailton Krenak, que afirma que a energia se traduz em signos para poder expressar para nós que
só entendemos através de palavras e formas (matéria). Nós pensamos em termos de palavras,
formas e classes inclassificáveis para compreender esses veículos de transmissão. Precisamos,
para entender, pensar em termos de sólido, líquido, gasoso, feminino, masculino, futuro,
passado, bom e mal etc. A ideia de que um símbolo possa ser tão ambíguo revela-se
questionadora, especialmente, se pensarmos a serpente como um signo primordial na história
da humanidade.
Nesse ponto, é importante recuperar a “serpente cósmica” que está na base da construção
semântica e imagética do primeiro episódio da série visual “A flecha”, vídeo que é intitulado
“flecha 1: a canoa e a serpente” (transformado posteriormente nos Cadernos Salvagem), no qual
a canoa de fermentação, mito primordial dos Desana, é recontada e entrelaçada a outros mitos,
num passeio intercultural das simbologias do animal, aqui tomado como figura primordial das
origens de diversos povos e culturas tradicionais. Reproduzo, a seguir, as palavras iniciais dos
cadernos selvagem, as quais rememoram o mito de criação da Terra e apresentam grande
similaridade com alguns mitos ocidentais, como se pode perceber:

Antes o mundo não existia, a escuridão cobria tudo. Enquanto não havia nada,
uma mulher apareceu por si mesma. Ela apareceu sustentando-se no seu banco
de quartzo branco. Ela se chamava Yebá-Buró, a Avó do Mundo. Enquanto
ela estava pensando, no seu quarto de quartzo branco, começou a se levantar
algo, como se fosse uma esfera e em cima dela apareceu uma espécie de pico
e isso aconteceu com o seu pensamento. Não havia ainda luz. A esfera era o
mundo. Ela chamou a esfera de Umuko Wi, a maloca67 do universo. Pensou,
então, em criar um outro ser. Da fumaça mesmo formou-se um ser misterioso
que não tinha corpo. Ele era Deus da terra. De onde ele havia aparecido,
levantou seu bastão cerimonial e o fez subir até o cume do pico do mundo e
era a força dele que subia. E esse adorno ficou brilhando com diversas cores.
Era o sol que acabava de ser criado. Depois, o Deus da terra subiu à superfície
da terra para formar a humanidade. Ele levantou-se no grande lago de leite.
Enquanto ele vinha subindo, o terceiro trovão, desceu nesse lago de leite na
forma de uma jiboia gigantesca. A cabeça da cobra se parecia com a proa de

67
“Maloca é ligada ao universo, na plataforma da Terra, no leito do Rio. Quando o kumu, isto é, benzedor, vai
fazer seus benzimentos antes de uma festa ou antes de construírem uma maloca, ele precisa pedir licença para os
grandes heróis culturais da criação do mundo. Eles quem são os orientadores, os mediadores dos conhecimentos”
(DIAKARA, 2021, p. 4).
128

uma canoa. Era a canoa de transformação, a canoa cobra. Uma canoa cobra
extraterrestre chegou à terra. Para povos do Rio Negro, narradores dessa
memória sobre a origem da vida, a cobra canoa entrou pelas águas; navegou
por mares e rios, tripulada por gente-peixe, liderada pelo Deus da terra. A
cobra canoa veio de um lugar desconhecido para um lugar que nem existia.
Foi uma longa viagem dentro dessa canoa, que tinha a forma de uma cobra
para navegar.

É importante salientar, no trecho acima, que as imbricações entre o que a sociedade ocidental
chama de humanos e não humanos acontecem nessa narrativa de origem de maneira fluída e
numa ausência de distinção entre espécies e figuras mitológicas: deuses, animais mitológicos,
pessoas estão numa longa viagem comunitária de construção e povoamento do planeta. Ela fala
de organismos híbridos que se irmanam, habitam e se transformam de tal maneira que nela as
separações entre natureza e cultura, humano e não humano, ancestralidade e futuro não podem
se sustentar sozinhas. Só existem em relação mútua e sincrônica. A arte abaixo representa a
canoa de transformação movendo-se pelas águas, levando seres humanos para povoar as
margens ribeirinhas, uma cosmovisão de como surgiram os primeiros indígenas.

Figura 16 – A canoa serpente

Fonte: Cadernos Selvagem (2021)

Ainda tratando da canoa, reproduzo as palavras de Jeremy Narby parafraseando o


astrofísico Gustavo Porto de Mello (2019, p. 3-4), que discorre sobre as origens do Universo, a
partir da narrativa científica:
129

E galáxias e planetas se formaram. E então a matéria se tornou capaz de se


auto-organizar. O código de DNA surgiu da autopoiesis, autoconstrução, disse
ele. Somos um processo codificado no DNA que produz proteínas, uma
serpente que morde sua própria cauda. A vida é esse processo de auto-
organização. O universo não para, a vida na Terra evolui e nem sempre será
possível neste planeta.
E Gustavo Porto mencionou a teoria da panspermia, segundo a qual os
cometas de outros sistemas solares carregam moléculas auto-organizadas e
fecundaram mundos. Ele disse que estava convencido de que a serpente e o
DNA sobreviveriam e se projetariam no futuro.
Gostei das duas histórias, a versão Desana com a canoa da serpente cósmica e
o big bang com a serpente de DNA mordendo sua própria cauda auto-poética.
De alguma forma, a avó que fumava a existência do mundo parecia mais fácil
de imaginar. Mas as duas histórias pareciam apontar na mesma direção (grifos
meus).

Concordo com Narby, tanto sobre a importância desse diálogo quanto nas similaridades que
unem essas e outras narrativas, como a narrativa Ashaninka que rememora um Grande Espírito
que criou espíritos na Terra, incluindo os seres humanos que descobriram, na Ayahuasca, uma
chave para transitar e entender as dimensões dos dois mundos que habitamos: o visível e o
essencial de onde vem as coisas.68 O que torna interessante o pensamento de Narby, ao propor
uma roda de conversa em que pajés, antropólogos e astrofísicos pudessem debater e ouvir
múltiplas narrativas criacionais, é a ideia de que as narrativas tradicionais e as científicas não
precisam estar afastadas. Não é necessário considerar que existe A História e as histórias. Todas
trazem termos relevantes a esse grande mistério que as mentes humanas vêm perseguindo ao
longo do tempo que é a origem da vida.
Quero destacar, especialmente, dois aspectos do trecho acima: (1) o primeiro é a
autopoiesis e a autoconstrução propostas pelo astrofísico, que se convertem em uma maneira
de explicar como os átomos se reuniram e a matéria se formou, o que implica numa ideação da
origem do Universo, somos seres autopoéticos, conforme sugerido? Criamos o mundo à nossa
volta por meio de nossas narrativas, sejam elas ancestrais ou científicas? (2) O outro ponto é
que as duas narrativas concordam na figura da serpente cósmica/DNA como a fonte da vida no
planeta. O código genético é uma fonte que codifica e manifesta todas as formas de vida e não
somente a vida humana. O planeta não foi criado para o humano, a vida é que foi criada para o
planeta.

68
É interessante notar, aqui, uma leitura possível através do conceito platônico do mundo das ideias em contraparte
ao mundo sensível, o que, mais uma vez, faz aproximar narrativas e filosofias indígenas de teorias e conhecimentos
“tradicionais” do cânone ocidental.
130

Se insisto nesse ponto é, precisamente, porque, a partir dele, pode-se discutir a questão
e pensar para além do antropoceno que, partindo de uma exacerbada centralidade à
racionalidade e à supremacia da vida humana sobre outros seres habitantes do planeta, chega à
contradição de si, uma vez que sustentar essa ideia é exatamente o que vem nos encaminhando
à autodestruição, enquanto promovemos também a destruição de outros seres.
Ainda a propósito da citação anterior, é necessário examinar a proposta de autopoiesis,
uma vez que estamos tratando de comunidades em que as poéticas se constroem coletivamente.
Neste ponto, as simpoéticas propostas por Haraway (2016) resultam mais adequadas, inclusive
a este encontro em que poéticas de existências de diferentes povos e comunidades se encontram
e se complementam numa rica malha textual. Nas comunidades tradicionais, a
complementaridade e o comunitarismo são prevalecentes em detrimento do individualismo e
da autoconstrução. Assim, vejo a simpoética como uma proposta que se coaduna com a
ancestralidade e os ensinamentos orais em que palavras se unem e sem complementam para
criar comunidades e suas histórias. A vida comunitária e social é simbiótica e implica em afeto
mútuo por parte de seus pares e deles com a ancestralidade e descendência e com as outras
comunidades de seres (humanos ou não), portanto, a construção coletiva, para Haraway (2016)
make with parece mais justa para esta minha leitura.
Retomando a fala de Narby, ele consegue explicitar muito bem esse ponto ao citar o
xamã Ashaninka Moisés Piyãko: “Ele disse que árvores, pássaros e rios sabiam as coisas e que
a civilização moderna estava destruindo a natureza. Ele disse que o povo Ashaninka defende
todos aqueles que vivem na floresta. Ele disse: ‘Nós não destruímos nada, pelo contrário,
plantamos"' (2019, p. 5). A possibilidade de que animais e rios saibam as coisas não me parece
nem um pouco absurda se pensarmos que através do conhecimento do comportamento e do
DNA de animais, das características e composição das águas é que os/as cientistas investigam,
teorizam e tentam entender a vida no planeta. Em outro sentido, a crença de que outros seres
tenham almas, linguagens e saberes abre a possibilidade para um respeito a esses outros seres
que vai exatamente em sentido oposto à arrogância do Humano (HARAWAY, 2016) e ao que
foi feito contra os povos originários durante a colonização. A negativa de que os povos
indígenas tivessem alma, linguagem, saberes, cultura, religião, filosofia foi o que se utilizou
como justificativa para sua aculturação, extermínio, escravização e toda a sorte de violências
físicas e simbólicas que esses povos e seus territórios sofreram e vêm sofrendo desde o primeiro
contato.
Se os seres sabem, a “serpente-mulher” pode ser lida como uma força e uma consciência
que transita entre reinos e espaços-tempos, ensinando e aprendendo coisas como: medicina
131

tradicional (“consagração do fumo da mata”), religião, arte e música (“na cuia-pitinga ela
preparou/penachos de arara pro seu maracá”). Num ritual de integração entre a mulher, a
serpente, as águas e a mata, vemos uma dança entrelaçada que não faz distinção entre humano,
vegetal, mineral e animal, indo justamente na contramão do dito antropoceno para uma visão
que se aproxima da de Donna Haraway, quanto ao Cthuluceno.
A crítica ao antropoceno, feita por diversas vozes dentro e fora da academia, propõe
justamente uma visada analítica sobre as questões ecológicas, epistemológicas, discursivas e
econômicas colocadas por essa “era” da história do planeta, marcada por nossa imensa e veloz
capacidade de destruir os organismos do planeta, incluindo a nós mesmos/as em última
instância, que é motivada por um consumo capitalista e desenfreado dos outros seres pelo
humano, instigado pela ideia de humanidade como dominadora do mundo, em detrimento de
outras formas de vida que enxerga a tudo e a todos como recursos naturais a serem explorados.
Nesse sentido, Donna Haraway tem sido uma crítica e ativista das mais reconhecidas ao
abordar o conceito de antropoceno e o que ele representa para a nossa coexistência na Terra.
Ao criticar esta era geológica, ela ressalta que “o Antropoceno é mais um evento-limite do que
uma época [...]. O Antropoceno marca descontinuidades graves; o que vem depois não será
como o que veio antes” (2016, p. 140). Conforme sintetiza Ildney Cavalcanti (p. 124):

Em síntese, e de modo mais geral, a filósofa opõe-se ao excepcionalismo do


humano, cujos vestígios subjazem ao conceito e aos discursos do
Antropoceno. Neste ponto, Haraway alinha-se a outras críticas feministas5 ao
sublinhar o caráter gendrado do Antropoceno; e, num passo suplementar,
defende, adequadamente, que o Antropos enquanto espécie, por si só, não
forjou as condições do momento vivido e nem consegue abranger toda a sua
complexidade.

Para além da crise e ruptura subjacesntes ao antropoceno e sua proposta do capitaluceno,


Haraway postula o Chtuluceno como uma alternativa coletiva de retecimento de malhas
simpoiéticas e de coexistência, contrapondo-se à trágica narrativa do Antropoceno, o que se
coaduna com a ideia de evitar a “queda do céu” dos povos Yanomami e Krenak. Para esses
povos, de tempos em tempos, o céu pode cair, dando origem a outros mundos ou tempos. Nosso
papel, enquanto seres que vivem e dançam e ouvem e contam história, é justamente o de
sustentar o céu e adiar o fim do mundo. A aproximação entre as duas visões se fortalece, a meu
ver, quando Haraway (2016, p. 140) propõe: “nosso trabalho é fazer com que o Antropoceno
seja tão curto e tênue quanto possível, e cultivar, uns com os outros, em todos os sentidos
imagináveis, épocas por vir que possam reconstituir os refúgios” (grifos meus).
132

Leio, nessa proposta, três convergências com o pensamento e com as filosofias


indígenas: (1) a ideia de um fazer contínuo; (2) o senso de fazer comunitário e (3) a noção de
um tempo por vir que reconstrói, ou seja, que refaz o que antes havia. Esse tempo por vir é
especialmente interessante, pois, para muitas nações e etnias não só indígenas, mas de povos
tradicionalmente ligados à terra e à natureza, o tempo é um evento circular e não linear como é
para as sociedades ocidentais, esta ideia também está presente no Cthuluceno de Haraway, um
tempo que foi, é e continuará sendo. Enquanto os povos originários observam e entendem, em
sua inseparabilidade com a terra, que a vida se desenrola em espiral, para a sociedade ocidental,
a dinâmica do tempo ocorre numa ininterrupta jornada horizontal. Para os povos originários,
portanto, o tempo está sempre dando voltas e se aproximando do que era, enquanto se
encaminha ao que ainda está por vir.
Nessa mesma direção, em um movimento epistemológico, Leda Maria Martins (2021,
n.p.) afirma que:

[...] A ancestralidade é clivada por um tempo curvo, recorrente, anelado; um


tempo espiralar, que retorna, restabelece e também transforma, e que em tudo
incide. Um tempo ontologicamente experimentado como movimentos
contíguos e simultâneos de retroação, prospecção e reversibilidades, dilatação,
expansão e contenção, contração e descontração, sincronia de instâncias
compostas de presente, passado e futuro .

Essa sincronia de instâncias fala da necessidade de um movimento contínuo em torno de si. O


tempo não como arquivo ou memória, mas como movimento vivo e dançante de reviver,
rememorar para recontar e/ou reescrever. A ancestralidade está para o tempo, assim como o
chão está para quem dança. A ancestralidade, vista sob esse aspecto, deixa de ser aquilo que foi
para ser aquilo que sempre é (BLOCH, 2005). Nesse mesmo sentido, pode ser lida em
consonância com os saberes do bem viver e com a ideia de futuro ancestral, proposto por Krenak
(2022).
Na figura ancestral do povo Borari aqui em foco, a mulher e a serpente entrelaçam-se
numa transformação contínua e infinita. Ela não é apenas um ser que se metamorfoseia em
outro, e, ao mesmo tempo, ela é o um e o outro simultaneamente. Ela torna-se um híbrido,
conforme podemos observar nos versos: “O fumo da mata, ela consagrou/ e em serpente-mulher
veio se transformar”. O inusitado desta dança que é mudança está no fato de a tapuia se
transformar em serpente-mulher, aquela que dança com e no tempo, atingindo assim uma
simultaneidade que se espalha em todas as direções: mitológica, corporal, ancestral, futurista,
133

escapando a um sentido “humano” para se espraiar em um sentido existencial acima de limites,


espécies, tempos.
A reversibilidade é um termo a se destacar aqui. Recuperando os versos “em sua igara
remando imponente ... em serpente mulher veio a se transformar”, podemos notar que os
sentidos de canoa da transformação da serpente e o de mulher conduzindo um barco são
intercambiáveis. Além disso, sangrar é sinônimo de drenar, abrir canais. Aqui, temos duas
tecnologias: a navegação da serpente de fermentação (replicação e diversificação do DNA para
povoar de vida a Terra) e a tecnologia que permite a construção e os saberes de navegação da
canoa. Tornando o mitológico no tecnológico e o oposto também sendo válido.
Aproveito essa colocação para reavivar os significados, no sentido de que a tecnologia
é toda a técnica de que nos utilizamos para um determinado fim, visto que nos últimos tempos
adquirimos a noção de que toda tecnologia é digital, esquecendo-nos de que uma colher, um
cavalo ou um guarda-chuva são tecnologias da mesma maneira que um computador, um celular
ou um sistema de inteligência como a Alexa. Baseio-me, então, na definição proposta por
Estéfano Veraszto, Dirceu da Silva, Nonato Assim de Miranda e Fernanda Oliveira Simon.
(2008): “Poderíamos dizer que a tecnologia abrange um conjunto organizado e sistematizado
de diferentes conhecimentos, científicos, empíricos e intuitivos. Sendo assim, possibilita a
reconstrução constante do espaço das relações humanas”. E proponho, ainda nesse sentido,
uma adição nesse conceito, já que, em meu entender, a tecnologia reconstrói constantemente o
espaço das relações entre todos os seres, não apenas humanos, uma vez que as técnicas e a ética
que subjazem a concepção do aparato tecnológico da inventividade humana alteram também as
relações com a natureza.
Fugindo da visão mais mecanicista do termo tecnologia, podemos discutir também a
biotecnologia que, apesar de ser um campo promissor no entendimento de como se organiza a
vida e seus ecossistemas e de como podemos aprender com os mecanismos da vida formas mais
eficientes e menos danosas de nos mantermos vivos/as, têm sido convertida em mais uma
ferramenta de conhecimento, objetivando produzir e lucrar com esses mecanismos e com as
vidas de que eles provêm, pois, de acordo com a ONU Mulheres (2016):

[a] Organização das Nações Unidas (ONU), no Artigo 2 da Convenção sobre


Diversidade Biológica, conceitua Biotecnologia como “qualquer aplicação
tecnológica que utilize sistemas biológicos, organismos vivos, ou seus
derivados, para fabricar ou modificar produtos ou processos para utilização
específica” (grifos meus).
134

Evidencio os sentidos da proposição: aplicar, utilizar, fabricar, modificar, produtos; todos


vocábulos utilitaristas que demonstram os objetivos e os interesses do uso dos conhecimentos
biotecnológicos para a conversão desses conhecimentos em “produção”. Ainda que o discurso
seja de que “está voltada para a busca de soluções para resguardar a saúde, a segurança
alimentar, o uso sustentável da biodiversidade, evitando a degradação do meio ambiente, com
aplicação na agricultura e na produção de insumos industriais” (ABI-ACKEL, 2018, p. 42),
assim como o discurso da sustentabilidade, em muitas ocasiões, essas práticas são subvertidas
em seu propósito e utilizadas para o benefício e lucro de grandes empresas que exploram e
destroem sistemas naturais inteiros na perseguição de seus objetivos capitalistas. Desse mesmo
ramo da ciência que se propõe estudar a vida para conservá-la, surgem alimentos transgênicos
que permitem a expansão das monoculturas de soja, milho e trigo, e consequente destruição de
biomas e extinção de espécies - por parte de grandes corporações como a Monsanto. Apenas
para dar um exemplo brasileiro, a mesma Vale do Rio Doce, cuja bandeira é ser “verde” e
sustentável, ao fim e ao cabo, destruiu duas cidades inteiras e contaminou as águas numa das
maiores tragédias ambientais que este país já viu. Portanto, penso aqui em biotecnologia do
ponto de vista dos povos originários, que conhecem os processos naturais e os utilizam ou
emulam em benefício da vida sem que, no entanto, tais processos convertam-se em agentes de
extirpação dessa mesma vida. Isso se dá por conta da visão integrativa dessas culturas, que
entende que a natureza é parte de nós e nós somos parte dela. A natureza é vista como a vida e
não como um recurso natural a ser exaurido.
Na canção, a figura da serpente-mulher aparece como uma guardiã dos conhecimentos
tradicionais que alinham naturezacultura (HARAWAY, 2003), inserida dentro desta rede viva
de ecossistemas que são o rio e a mata. A descrição de seu mover-se pelas águas e matas,
performando seus ritos e se comunicando com as marés, o silêncio profundo dos segredos do
Tapajós que são buscados em uma atitude de completo respeito porque o rio é a mulher, é a
serpente e é a vida, traduz-se numa narrativa a ser contada para futuras gerações a partir dessa
performance realizada pela Tapuia ancestral metamórfica, que traz os elementos culturais e
religiosos centrais para o povo Borari.
A figura lendária Boiúna é um dos seres mais populares da nossa cultura popular.
Boiuna seria uma cobra gigante com poderes mágicos que iriam desde a habilidade de mudar o
curso dos rios até lançar encantamentos e criar novas espécies para habitarem o rio. Segundo a
narrativa lendária, Boiúna deu à luz dois filhos, a dupla gêmea Maria Caninana e Cobra Norato
ou Honorato. Ambos nasceram com a capacidade metamórfica de ser gente ou cobra. Caninana,
135

no entanto, era cruel, enquanto Honorato tinha um coração puro. Os irmãos engajaram-se numa
luta até a morte. Honorato venceu e, então, decidiu ser gente permanentemente (RICON, 2017).
A lenda foi sendo recontada e readaptada até chegar a essa fórmula mais conhecida que
carrega diversas acepções morais que não parecem ter origem nas mitologias indígenas. No
entanto, a figura de Boiúna pode estar ligada à Anaconda, conforme lemos no fragmento, de
Alexandre Guida Navarro, por sua vez inspirado em estudos anteriores (2021, p. 6):

A associação da Anaconda com uma mulher xamã e divindade criadora é


comum nas tradições orais da Amazônia, segundo Roosevelt (2014). Os povos
indígenas conceberiam a Anaconda como um espírito ancestral perigoso até
os diais atuais. Ela seria um mestre que governa a parte feminina dos cosmos:
as águas e o inframundo (ROOSEVELT, 2014). Schoumatoff (1990)
complementa que a Mulher-Xamã foi a criadora da Terra prístina e da
civilização. Esses pontos de vista também podem ser abordados sob a
manifestação artística que Fénelon Costa (1988, p. 14) chama de “Visão de
Mundo” entre os índios altoxinguanos, ou seja, um “reflexo na arte do que
entendem constituir o real, os portadores de uma cultura em determinado
momento de sua história”.

Seguindo por esse caminho, encontramos uma cosmovisão em que Boiuna/Anaconda poderia
ser uma ancestral dos povos indígenas do alto Xingu, estando presente nas mitologias Desana,
Tukano, Wauja, Tupi-Gavião, Panaré, Wayana, Tariano, Timbira, entre outras etnias.69 Tal
persistência coloca Boiuna/Anaconda no centro das atenções, como uma das figuras ancestrais
mais reconhecidas, e suas múltiplas narrativas como um assunto a ser estudado em vários
campos do saber, como literatura, antropologia, religião e arte (uma vez que os padrões ofídicos
estão presentes em pinturas, cerâmicas e outros artefatos criados por povos indígenas).
No entanto, para a presente análise, interessa-me o recontar do mito ancestral Borari,
que recupera figuras como a boiuna/anaconda de releituras maniqueístas, as quais associam o
feminino ao mal e ao pecado. Uma vez que a serpente-mulher ancestral é reassentada aqui como
uma fonte de conhecimentos originários, ensinando o povo Borari a consagrar o fumo, enfeitar-
se e usar adereços, cozinhar e tocar o maracá. Essas ações estão presentes na conexão com a
natureza: “a mãe natureza calou de repente” e “na cuia pitinga, ela preparou penachos de arara
pro seu maracá, o fumo da mata, ela consagrou e em serpente-mulher veio se transformar”.
Além disso, a canoa da transformação está ligada ao corpo da mulher que transporta as almas

69
Para saber mais sobre a influência da figura ancestral Anaconda em cada um desses povos, confira Navarro,
2021.
136

do mundo material para o mundo que habitamos.70 Aliás, como Jaime Diakara explica, toda
geografia brasileira das regiões em que surgiram os principais troncos indígenas que hoje
habitam o norte do país é ligada ao corpo da mulher, o que sacraliza duplamente a natureza e
os corpos das mulheres que devem ser respeitados em seu papel sagrado, vivo e inviolável.
Aproveito para explorar a referência ao maracá feita nos versos acima. Para tal é
importante destacar que instrumentos de sopro estão na centralidade da musicalidade indígena
(por exemplos, os mais diversos tipos de flauta) e que instrumentos de percussão, como o
maracá e os chocalhos, podem ser entendidos como emuladores do som do chocalho de ofídios.
De acordo com informações do Portal da Fundação Nacional dos Povos Indígenas – Funai:

maracá é um dos instrumentos musicais indígenas mais conhecidos, sendo seu


nome muitas vezes utilizado como uma designação genérica para chocalhos.
Consiste numa cabaça seca e oca com pequenas pedras, caroços ou sementes
em seu interior, colocada na extremidade de um bastão, normalmente feito de
madeira. [...]
Há etnias que acreditam que o maracá possui grande poder espiritual.
Considerado um objeto nobre, é também utilizado pelos pajés em solenidades
e rituais religiosos. Algumas comunidades, por exemplo, acreditam que os
espíritos falam por meio dos maracás. O poder sobrenatural do artefato é
devido não apenas ao som misterioso produzido pelos grãos e pedras nele
contidos, mas também pelas pinturas e gravuras que enfeitam o instrumento
sonoro.

Conforme pode-se ler no trecho citado, a importância do som do maracá é tanto cultural quanto
religiosa, pois seu som carrega a mensagem dos espíritos. Além disso, há a relação entre os
grafismos e adornos que são adicionados ao objeto, como os penachos de arara citados na letra
da canção. O maracá é também chamado de “marca” entre alguns povos indígenas, pois ele é
um instrumento de marcação que determina os ritmos de cânticos e danças. O maracá, assim
como a maior parte dos chocalhos, produz, quando agitado, um som que lembra o guizo de
algumas serpentes. Acredita-se que as serpentes produzam esse som como mecanismo de defesa
quando ameaçadas. Portanto, trata-se de um alerta para outros animais, já que a serpente
raramente ataca sem que esteja se sentindo ameaçada.
Baseando-me em Feliciano Lana (2019 [1980]) e Jaime Diakara (2021), apresento ainda
a ligação do maracá, enquanto palavra, com a segunda maloca da humanidade, a maloca de
Maracá que, de acordo com a cosmovisão Desana, fica em Belém. Citando Diakara (2021, p.

70
“O que é aquele banco de Yebá Buró? É apenas um simples banco sobre o qual nos sentamos? O que representa
a cuia de ipadu? Tudo tem uma profunda simbologia. Quando se fala em Canoa de Transformação, por exemplo,
há uma referência ao corpo da mulher” (DIAKARA, 2021, p. 4).
137

5), “[a] segunda grande maloca, em Belém, alguns vão chamar de maloca de Maracá. Aí que
surgem as primeiras danças, a primeira divisão dos instrumentos musicais. Segundo nossos
antecessores, é por isso que os paraenses são bons em criar música”. A palavra maloca, nesse
contexto, acumula vários significados que giram em torno da palavra lar, origem. Ela é, ao
mesmo tempo, a casa física, a origem espiritual sagrada e o local de onde surgem os povos
indígenas. Esses pontos, geograficamente falando, seriam os locais em que a canoa-serpente ou
canoa da transformação deixou os primeiros humanos em sua viagem cósmica para habitarem
a Terra.
O vocábulo maloqueiro, então, é corrompido em seu sentido atual, convertendo-se de
primeiros ancestrais e heróis e heroínas civilizatórias, pessoas de grande sabedoria, para a
acepção atual de andarilho que comete pequenos delitos, pessoa mal-educada e mal vestida que
não inspira confiança, pessoa que mora em barraco ou moradias improvisadas. Reabilitando,
portanto, a acepção de maloca como lar ou origem sagrada e tendo em vista que, na cosmovisão
Desana, as malocas foram locais de desembarque dos seres que hoje habitam a região, podemos
depreender que a canoa-serpente, ao desembarcar a serpente-mulher na Maloca do Maracá, a
deixou com o dom da música. Tal suposição contribui na leitura sobre a música produzida pela
criatura mágica, nos versos: “a força do vento espalhou seu cantar / a mãe natureza calou de
repente / ao ver a iara à luz do luar”. Essa mesma personagem vem ensinar, através de seu canto,
a utilizar, enfeitar e consagrar o próprio maracá.

Figura 17 – Macaracá Guarani adornado com penas de arara

Fonte: Musicabrasilis
138

A relação do som do maracá com o das cobras, em especial com as famílias jararaca ou surucucu
e cascavel, é interessante por serem estes animais que guisam. As anacondas, por sua vez,
tornam-se ainda mais misteriosas nesse aspecto, já que produzem sons muito parecidos com os
de uma mulher que geme e funga, o que ressalta ainda mais sua identificação com o feminino.
Retomando a questão do feminino, nas cosmogonias indígenas, de maneira geral, esse
papel é tão poderoso quanto vulnerável; ele é considerado bom ou mal em diferentes situações
e contextos (assim como o masculino), e não tem sido preponderante, porque, para grande parte
das mulheres indígenas, há uma luta mais urgente, uma vez que a questão de gênero dentro das
aldeias, de modo geral, é mediada pela preponderância do comunitário. Não significa dizer que
não exista sexismo ou exploração de mulheres no contexto indígena. Existe, mas, conforme
dito por Taily Terrena em entrevista71 à Heloísa Buarque de Holanda: “Há uma relação de
complementaridade entre masculino e feminino. Não há um feminismo, há uma luta de
mulheres. Lutamos juntos com os homens, porque nossa luta é pela Terra”. A seguir, Márcia
Kambemba complementa: “São dois universos, o indígena e o não indígena. Há o decolonial.
Não se pode ler um universo pelo outro, portanto você vai perguntar: ‘você é feminista e ela
[mulher indígena vai responder] não, eu sou guerreira’”; e Marize Guarani arremata: “na
verdade o feminismo tem uma outra conotação pra população aldeada [...] a coisa que é mais
importante é a demarcação da terra”. Vemos relações diferenciadas entre os gêneros. Ouso
afirmar que há uma preponderância da vida comum, comunitária, que permite, ainda que
localizada e temporariamente, uma busca por relações de equilíbrio em questões de gênero em
prol de um bem coletivo maior. Como afirma Taily Terena na mesma entrevista, respondendo
à pergunta “O que querem as mulheres indígenas?”,

[a] gente quer que nossos filhos possam viver. Isso fazendo aquela oposição
entre o sobreviver e o viver. Não só os nossos filhos, mas os filhos dos outros,
por que eu acho que na aldeia, as parentes vão concordar, não temos só os
nossos filhos, somos mães de toda a criançada [...] se tem uma criança perto
de você, você vai cuidar dessa criança. Então essa relação que nossos filhos,
nossas futuras gerações elas possam viver, da maneira que diz a filosofia dos
nossos parentes o Bem Viver. O Bem Viver é a ideia que a gente entre em
equilíbrio e onde está o Bem Viver nessa questão [gênero]? Está no equilíbrio
nas funções e no respeito ao espaço do homem e da mulher.

O mesmo é confirmado por pessoas gays, trans e não binárias indígenas no documentário,
dirigido por Marcelo Costa, Terra sem pecados (2019): “Antes de tudo, antes de ser gay, eu sou

71
“Que querem as mulheres indígenas?” (2020).
139

indígena [...] a questão [orientação] sexual dentro de um povo é debatida como povo [...] a
cidade é um fator muito mais impactante, no sentido do preconceito do que na própria aldeia”,
afirma Alisson Pankararu no documentário. “Nossos rituais, os casamentos, a convivência de
mulheres e homens, dependendo da organização social e de uma comunidade para outra, elas
são super livres assim, porque você não sexualiza o corpo do outro”, sumariza Braulina Baniwa.
Embora todas as pessoas entrevistadas no documentário afirmem ter sofrido preconceito por
orientação sexual ou identificação de gênero também dentro da aldeia, as mesmas pessoas
foram categóricas ao afirmarem que fora da aldeia o preconceito é ainda maior e que é
necessária uma ação de discussão e conscientização de gênero entre os/as aldeados/as. As
pessoas entrevistadas, salientam ainda que boa parte desse preconceito é proveniente de herança
colonial72, especialmente a religiosa (catolicismo e protestantismo). Reproduzo essas falas
apenas para reforçar que, embora o gênero tenha sido alvo de debate e de lutas, para
comunidades indígenas, o primordial tem sido sempre a sobrevivência da Mãe-Terra e da
própria etnia, e o fato de mulheres e homens estarem engajados, lado a lado, nesse mesmo
movimento firmemente.
Assinalo uma leitura que evoca o bem viver na canção “Serpente Mulher”, pois a tapuia,
figura central da narrativa tecida pela canção, vem ensinar ao Borari práticas de integração com
os mistérios do rio e da mata, conforme já observei anteriormente: consagração do fumo, uso
do maracá para fins sagrados etc. Isso nos leva ao entendimento de que a Tapuia poderia ser
identificada com a mulher-xamã, a avó que ensina a maneira de Bem Viver a/os indígenas,
pautada pelo respeito e pelo equilíbrio em todas as relações comunitárias, sejam elas espirituais,
de gênero ou em relação ao meio ambiente.
Retomando a fala de Taily Terena sobre o bem viver, a jovem antropóloga afirma que o
equilíbrio, inclusive na questão de gênero, está na base da filosofia indígena que é o bem viver.
Ainda segundo Terena, os Quéchua e Aymara deram fama a esse conceito, mas todos os povos
têm sua própria filosofia de Bem Viver que se traduz por “nosso modo de ser”. Por isso, Acosta
aborda bons viveres, para expressar que o bem viver, enquanto filosofia, não é (e nem poderia
ser ou perderia seu propósito) um conjunto normativo de regras que promoveriam o equilíbrio
em todos os lugares e tempos. Muito pelo contrário, os “modos de ser” de cada comunidade é
que moldam suas práticas de bem viver. Há que se construir, então, um conjunto de práticas
contextuais e coletivas, baseadas no entendimento de cada comunidade do que é bom, belo,
benéfico e que promove o equilíbrio entre os seres para trazer a todos eles a vida boa. Essa

72
Nesta direção, Cf. María Lugones (2014) em sua análise sobre colonialidade de gênero.
140

construção está profundamente arraigada no pensar em si, no que se é, em como se vive,


portanto, o bem viver parte de uma filosofia de autoconhecimento e de conhecimento da
natureza (instâncias inseparáveis para a cosmovisão dos povos indígenas).
Pode-se dizer, então, complementando o pensamento de Terena, que o bem viver é a
filosofia, ou melhor, as filosofias desenvolvidas ao longo dos tempos pelos povos originários
e, como todas as correntes filosóficas, passa por alterações, de acordo com as circunstâncias e
com a maturação de seus pensamentos e práticas. Isso implica dizer que o bem viver é orgânico,
no sentido de que se atualiza e responde às questões atuais. O bem viver pré-colombiano foi-se
modificando com a interação (violenta) com agentes da dita civilização ocidental. Embora
atualmente mantenha práticas milenares de medicina e religião desenvolvidas pelos ancestrais,
ele, com certeza, precisou modificar-se para abranger, seja; tecnologias e ontologias
emergentes. E incluir questões como industrialização, educação formal, práticas políticas e
econômicas, tecnologias etc.
No entanto, no centro da construção dessa filosofia está o princípio do equilíbrio que, a
meu ver, é bastante simples: é preciso cuidar das relações de maneira profundamente
responsável e respeitosa, pois assim, podemos continuar a ser quem somos e cultivar nossos
saberes em um ambiente sadio, o que implica dizer que, se mantivermos o equilíbrio, estaremos
em condições de alargar nossos saberes e nossas reflexões a fim de implementarmos a vida boa
que só pode ser boa se for boa para todos os seres, no sentido de equidade.
Nesse sentido, uma reflexão importante que pode ser depreendida da análise da letra da
canção é a paridade entre o ser humano e o ser animal, que nos leva à compreensão de que essa
inseparabilidade entre os seres já é, em si, uma das premissas do Bem Viver: não há outro,
porque eu sou o outro. Derrida questiona longamente em suas obras, em especial em O animal
que logo sou (2002), essas questões, quando põe em revista a origem da palavra “animal” e
seus significados, mais detidamente o que significa nomear separadamente uma classe de seres
humanos em contraparte à classe dos animais. Na canção em tela, não há primazia do humano
em detrimento do animal, assim como na maior parte das culturas indígenas não há primazia
do indivíduo, porque a comunidade é um indivíduo e, em última instância, não há natureza
entendida em contrapartida ao humano, porque somos a natureza, a somatória de todos os seres
e de todas forças que existem neste planeta. Entendo, com isso, que cuidar do equilíbrio da
“natureza” é, na verdade, autocuidado, pois é impossível separar o que é natureza e o que é
ontologia. Isso torna impossível separar natureza de cultura, o que irmana todos os seres e reinos
viventes ou não, ditos sensíveis ou não. A natureza, sob esse ponto de vista de equidade,
141

equilíbrio e respeito radicais, seria não apenas orgânica como relacional, ciente e pensante
através daqueles que exercem, a partir dela, essas faculdades.

Precisamos pensar a consciência humana não separada, nem como espécie


superior do resto da natureza, mas como um talento que nos permite aprender
a harmonizar nossas necessidades com o sistema natural que nos rodeia, e do
qual dependemos (GARCIA, 2016, p. 6).

Assim, a consciência não poderia ser vista como instância separada da natureza, uma vez que é
justamente um mecanismo ou uma característica de uma espécie animal ser, portanto,
localizado em uma cadeia natural em coexistência com outros seres dentro de um ecossistema
complexo chamado Planeta Terra, cujo equilíbrio depende das ações de todos os seres que dela
fazem parte.
A partir das proposições feitas até aqui, concluo que “Serpente Mulher” possibilitou,
por meio de sua construção imagética, a discussão do bem viver e do ecofeminismo que passou
também pela pertinência do debate acerca de temporalidades circulares mais afins às filosofias
indígenas Tais aproximações oportunizaram reflexões acerca de saberes indígenas e destacaram
a ligação entre humanos e outros seres. A tecnologia ancestral e seus conhecimentos foram
enfatizados e a temporalidade cíclica, assim como em outras análises da tese, aponta para o
futurismo não porque trate de acontecimentos vindouros, mas por compreender o tempo em
suas voltas e reviravoltas, como alinhamento aos ciclos naturais e, ao mesmo tempo, como
aprendizado e oportunidade de criar. Assim, o indiofuturismo em Serpente-mulher pode ser
identificado com a sabedoria de entendimento do tempo em equilíbrio com as tecnologias e
saberes naturais que resgatam conhecimentos ancestrais e revelam cosmovisões que podem ser
aproximadas e compartilhadas entre diferentes povos e seres.
Seguindo neste mesmo sentido, analiso, na próxima seção, a canção “Amor de índio”,
composta por Beto Guedes, em que abordo as relações cíclicas, o pertencimento e a filiação ao
todo que é a Mãe Terra, a partir das filosofias indígenas, pontos que unem as duas análises.
Além disso, as relações de trabalho e as cosmologias indígenas serão mobilizadas a partir de
sua poética.

4.2 “Amor de índio”: bem viver com a terra, fluir no tempo cíclico

Esta análise enfoca a sacralidade da terra como um pensamento de radical respeito de


que a vida (humana e não humana) que se desenrola como um grande e contínuo desenho
142

comunitário em processo. A palavra radical aqui se coloca num pluriverso de sentidos que
necessita de esclarecimento.
Em um primeiro sentido, a expressão “radical” diz respeito à sua origem mesmo na
palavra raiz. É pertinente observar que tudo o que é radical (para o capitalismo e sua visão
agressiva) é sempre visto como negativo. A raiz que nasce de dentro da terra e se desenvolve a
partir de um crescimento que não é apenas vertical, mas horizontal também, e por horizontal
quero denotar duas coisas: um mesmo plano de atuação e aquilo que busca e constrói horizontes.
Portanto, para mim, o radical deve ser sempre orgânico, pois, do contrário, as raízes morrem e
apodrecem, por falta de condições e de espaço adequado, sadio de desenvolvimento.
Sacralidade como raiz suscita também o debate do “essencialismo”, que tanto tem
ocupado nossa atenção na academia, conforme antecipei acima. No entanto, a polêmica em
torno do termo dá-se, provavelmente, pela acepção religiosa que é dada a ele. Nas palavras de
Mircea Eliade:

O homem das sociedades arcaicas tem a tendência para viver o mais possível
no sagrado ou muito perto dos objetos consagrados. Essa tendência é
compreensível, pois para os “primitivos”, como para o homem de todas as
sociedades pré-modernas, o sagrado equivale ao poder e, em última análise, à
realidade por excelência (ELIADE, 1992, p. 13-14).

Para as sociedades originárias, estar no âmbito do sagrado é estar no fluxo do poder.


Entendendo que o poder aí não significa necessariamente poder sobre os outros seres, mas estar
em alinhamento com fontes poderosas de vida. O próprio mitólogo demarca a palavra primitivo
com o uso de aspas, pois está fazendo uma diferenciação entre formas de organização social
pré-modernas em oposição à sociedade industrial da moderna forma de sociedade que está
posta. Por isso, a meu ver, a palavra primitivo aí é positivamente qualificatória, se
considerarmos minha posição e o alinhamento desta tese às correntes descoloniais e críticas do
antropoceno, visto que este é diametralmente oposto às formas de Bem Viver. Isso dito, analiso
essa proposição como importante para as discussões levantadas, em especial nas últimas linhas
em que se lê: “O sagrado equivale ao poder e, em última análise, à realidade por excelência”.
Pondo em outras palavras, o sagrado é, para aqueles/as que nele estão inseridos/as, a realidade.
De início, já temos uma contestação que pode não ser tão óbvia de ser entendida. As
realidades são diferentes de acordo com as cosmovisões e as maneiras de ler o mundo de cada
povo. O sagrado é uma dessas possíveis divergências de leitura, pois, se para algumas
sociedades ele é inalcançável; para outras, é imprescindível. Nesse sentido, poderíamos
143

comparar o entendimento do sagrado religiosamente pelo cristianismo, em contrapartida


`compreensão pelas sociedades ligadas à Terra. Se, para o cristianismo, o sagrado está para
além da compreensão e do alcance humano, de forma que é necessário fazer uso de
intermediários para acessá-lo, já que está além do alcance humanos; para as sociedades ligadas
à Terra, o sagrado está presente cotidianamente nas relações entre seres vivos e não vivos. Essa
diferença foi reaproveitada pelo capitalismo e pelo antropoceno, ao instrumentalizar a relação
com o sagrado, tornando seculares as relações cotidianas, em especial, com a natureza e com o
meio ambiente.
Podemos nos atentar às relações com o meio ambiente mediadas pelos selos verdes, a
noção de “sustentabilidade” como processo de se poluir menos, ou utilizar produtos com menos
impacto ambiental (lembrando que menor impacto não significa impacto zero) e o turismo
ambiental, que transforma os ecossistemas e as paisagens naturais em produtos
comercializáveis, prometendo políticas de menor geração de lixo e maior respeito aos
ecossistemas visitados. O que eu gostaria de ressaltar nessas práticas é que elas mediam as
relações entre humano e não humano, através de meios menos danosos que, no entanto, não
consideram o não humano como sagrado, mas como necessário para a sobrevivência. Em última
instância, o sagrado é consagrado, é aquilo a que damos o mesmo status de sacralidade que
daríamos a nós mesmos, ou seja, há uma noção de equidade e coexistência. Já o secular, embora
possa ser tratado com algum nível de cuidado ou respeito, pode estar à disposição do humano
para consumo, conveniência e/ou entretenimento. Precisamente nesse ponto está o impacto da
diferença da noção de sacralidade da natureza e dos mecanismos de que o capitalismo lança
mão para reificar o que é dito como natural.
Se insisto nessa discussão entre sagrado e secular é porque esse é o conceito central da
análise da canção que segue. Krenak (2020) observa que muitas pessoas têm vergonha de serem
vistas abraçando uma árvore, mas abraçar veículos automotivos é visto como algo comum e,
inclusive, é uma imagem utilizada pela própria mídia em propagandas de venda de carros. Sem
perceber, naturalizamos o valor afetivo de objetos enquanto objetificamos vidas. E o
capitalismo tem a expertise de fabricar esses valores e falsas necessidades de maneira sutil, pois
disso depende sua continuidade, na valorização da mercadoria (fetiche) e na desvalorização da
vida.
Uma das premissas do capitalismo é a exploração de mão de obra que objetifica a força
de vida e o tempo humano, tornando-os mercadorias que podem ser negociadas, ou mesmo
144

utilizadas à revelia, como é o caso da escravidão que, por muito tempo, serviu (e ainda serve)73
de lastro para o desenvolvimento desse modelo predatório. Isso falando em vidas humanas, pois
animais, minérios, plantas e sistemas naturais inteiros foram (e continuam sendo) devastados
na expansão territorialista e no curso da história do sistema capitalista no chamado “Novo
Mundo”. Essa mácula na história das relações humanas é importante, em especial, ao tratarmos
de povos originários e dos ditos países em desenvolvimento, por ter sido a escravidão e o
assassinato de povos, invasão e devastação de territórios e apagamento de culturas, os pilares
da colonização.
A seguir, reproduzo a letra da canção de autoria de Beto Guedes e Ronaldo Bastos,
lançada no álbum Amor de Índio, na voz de Beto Guedes, em 1978. Esta canção é considerada
um dos clássicos da MPB e já foi regravada inúmeras vezes por diversos intérpretes, tais como
Maria Bethânia, Milton Nascimento, Maria Gadu, Cris Braun, Roupa Nova e, mais
recentemente, foi regravada por Gabriel Sater em parceria com João Carlos Martins. As
diferentes versões vão do jazz até MPB, com influências da música eletrônica. A versão
escolhida para esta análise foi a do próprio Guedes para seu disco homônimo.

Tudo que move é sagrado


E remove as montanhas com tudo cuidado, meu amor
Enquanto a chama arder, todo dia te ver passar
Tudo viver a teu lado
Com o arco da promessa no azul pintado pra durar
A abelha fazendo o mel
Vale o tempo que não voou
Uma estrela caiu do céu
O pedido que se pensou
O destino que se cumpriu
De sentir seu calor e ser todo
Todo dia é de viver
para ser o que for
e ser tudo
Se todo amor é sagrado
E o fruto do trabalho é mais que sagrado, meu amor
A massa que faz o pão
Vale a luz do teu suor
Lembra que o sono é sagrado
E alimenta de horizontes o tempo acordado de viver
No inverno te proteger,
No verão sair pra pescar,
No outono te conhecer,
Primavera poder gostar
No estio me derreter

73
Como exemplo, cito o recente escândalo dos trabalhadores escravizados por vinícolas no Rio Grande do Sul.
Cf. Veja (2023).
145

Pra na chuva dançar e andar junto


O destino que se cumpriu
De sentir teu calor e ser todo

O primeiro verso da canção, “Tudo o que move é sagrado”, já abre margens para a interpretação
da ideia de sacralidade e totalidade da vida, pois, ao utilizar o pronome indefinido tudo, o eu-
lírico engloba todas as formas de vida em sua afirmação, levando-nos a concluir que nessa
proposição animais, vegetais e minerais estejam incluídos naquilo que é considerado sagrado.
Sobre a percepção da Terra enquanto pertinente ao plano do sagrado, Vandana Shiva afirma:
“A terra é, assim, a condição para a regeneração da vida da natureza e da sociedade. Portanto,
a renovação da sociedade envolve a preservação da integridade da terra; implica tratar a terra
como sagrada” (SHIVA, 1993, p. 139). Proponho fazer convergir o pensamento de Shiva com
a construção da sacralidade na canção, na medida em que cada elemento e cada aspecto dessas
vidas são reconhecidos em si e no outro dentro de um respeito e identificação que chega a ser
holístico em sua integralidade. Há, inclusive, uma integração que se insinua no emprego dos
pronomes tudo e todo que remete ao poema de Ricardo Reis, o qual reproduzo a seguir:

Para ser grande, sê inteiro: nada


Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa.
Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive

Temos, nos dois textos, duas instâncias de inteireza. A primeira é o tudo a que toda a existência
se integra (no poema representado pelo grande) e o todo como completude do ser em presença
no tempo e nos ciclos em cuidado. É interessante pontuar essa tendência similar nas duas obras,
pois, na contramão da leitura da identidade na pós-modernidade como construção descontínua
e fragmentária, ambas primam pela unidade e pela continuidade como valores a serem
alcançados. Há semelhança também no uso do imperativo, em uma certa dicção pagã, despida
da culpa cristã e voltada ao lema “carpe diem”, bem como na apreciação das coisas naturais e
de sua perenidade. No entanto, a diferenciação entre a ode de Reis e a canção de Bastos e
Guedes, dá-se, a meu ver, pelo afeto: enquanto o eu-lírico em Reis é impassível e racional, o
eu-lírico em “Amor de índio” é fluído e emocional.
Contudo, essas duas instâncias (ser “tudo” e ser “todo”) não se encontram
contextualizadas em momentos especiais, de encontro espiritual, de ascensão social ou
146

intelectual, mas focadas no cotidiano, nas mínimas coisas da vida “ordinária”. Nesse ponto,
minha atenção analítica dirige-se ao que é considerado sagrado para a sociedade ocidental: o
inalcançável, inatingível, o metafísico, o conhecimento que pode ser meramente admirado e
perseguido, mas jamais repetido, enquanto que, nas sociedades ligadas à natureza, o sagrado
está naquilo que, para os demais, é considerado objeto, recurso, mercadoria. Conjecturando o
valor da natureza para a sociedade ocidental de maneira geral, penso que vemos como
paisagem, lazer e recurso aquilo que os povos originários veem como sagrado, fonte de
sobrevivência e valor familiar. Ainda meditando acerca do todo e tudo, há, na filosofia indígena,
uma profunda ligação entre os seres e sua origem que é o todo. Nas palavras de Werá: “O ciclo
se faz por um círculo, mas um círculo que não se fecha. O mais velho já foi o mais novo e por
isso conhece os caminhos e descaminhos. O mais velho é aquele que permanece no
reconhecimento da memória de que o ser emerge do Todo, mas não se desfaz do Todo” (2021,
p. 60). Essa consciência gera o reconhecimento do Tudo que se traduz numa “ética da unidade
na diversidade”. Ainda citando Werá:

o indivíduo é um microcosmo do Grande Mistério [...] portanto, cada ser e


cada coisa é, em si, uma extensão e um espelho-reflexo do Todo. Isso implica
uma ética profunda, que parte do reconhecimento da unidade na diversidade.
[...] Nosso Pai é o Céu e nossa mãe é a Terra, que por sua vez são nossos
primeiros ancestrais em comum, e honrando-os através da reverência e
gratidão nos mantemos ligados à unidade primordial. [...] Por isso é natural e
espontâneo honrar todas as nossas relações, pois elas se revelam como
extensões de nós mesmos. Pela convivência, gerando complementaridade,
oposição ou conflito, essas relações nos aperfeiçoam e mantêm assim, a
dinâmica evolutiva da parte no Todo e do Todo na parte (2021, p. 60).

Gostaria de sublinhar que ser parte não significa ser igual, daí o autor defender a ética da
diversidade. Além disso, fica claro, a meu ver, que as relações não são harmônicas por si. Elas
podem variar, como dito acima, em polos complementares, opostos ou em conflito. Há
momentos de luta e momentos de união e justamente nisso reside o princípio da unidade na
diversidade. Ele ainda chama a atenção para a importância de honrar todas as relações, pois
somente o reconhecimento da diferença é capaz de aperfeiçoar a percepção de ser parte do
Todo. Essa descrição da ética Guarani cria uma imagem interessante que pode ser traduzida em
um grande tecido (todo) que se constrói a partir das relações entre seus fios (cada parte) que
podemos associar aos versos: “ser tudo” e “ser todo”. O todo é intertecido por cada um de seus
fios. É no todo que cada fio encontra um lugar, um valor e uma função.
147

Outra possível intertextualidade encontra-se nos versos em que aparece a abelha: “a


abelha fazendo mel / vale o tempo que não voou”. É possível fazer uma leitura que conecta a
abelha da canção à Ode “A abelha que voando, freme” de Ricardo Reis, em que o eu-lírico
heteronômico relaciona à abelha, que voando ou pousada sobre uma flor não se distingue dela
e nem da vida, apenas vive, desfruta. Os versos abaixo grifados também suscitam reflexões
nessa conexão que traço entre as duas composições:

A abelha que, voando, freme sobre


A colorida flor, e pousa, quase
Sem diferença dela
À vista que não olha,

Não mudou desde Cecrops.


Só quem vive
Uma vida com ser que se conhece
Envelhece, distinto
Da espécie de que vive.
Ela é a mesma que outra que não ela.
Só nós — ó tempo, ó alma, ó vida, ó morte! —
Mortalmente compramos
Ter mais vida que a vida.

Os versos podem ser interpretados como uma reflexão sobre a indissociabilidade entre vida e
natureza. Apontam também para o centrismo dos humanos como seres pensantes (uma vida que
se conhece) que se arrogam de saber e se consideram mais vivos que a própria vida. Pode-se
ainda tomar os assíndetos “ó tempo, ó alma, ò vida, ó morte!” como exemplos de conhecimentos
que supostamente seriam próprios do ser humano e que o levam à armadilha mortal do
pensamento, que é a consciência arrogante de si como ser superior aos demais.
Apenas para finalizar essa relação entre as duas composições, a ode é uma forma
literária que está geralmente associada às temáticas naturais e à vida como condição sublime de
contemplação do além-humano. Entendo que, nesse sentido, a canção de Guedes pode ser
concebida como uma celebração da vida, que expressa nos versos: “Tudo viver ao seu lado” e
pode, por isso ser comparada à uma ode à condição de estar vivo/a.
Retornando aos versos da canção, nos dois primeiros estabelece-se a linha melódica do
arranjo de Beto Guedes, em que a voz executa um movimento que se baseia em um motivo
melódico de três notas iniciais, referentes ao primeiro verso “tudo que move é sagrado”. Esse
movimento expande-se em um salto melódico ascendente – da nota mais grave a uma mais
aguda – para depois descer “e remove as montanhas” e repetir o motivo melódico inicial (com
todo cuidado). Os motivos melódicos caracterizam-se por “desenhos” de notas que se repetem
148

e, em geral, mantêm a mesma estrutura rítmica. A presença desse motivo acentua o aspecto
cíclico de que já falei, uma vez que “disciplina” as palavras num mesmo desenho/padrão de
notas que vai e vem.
Se pensarmos que os elementos essenciais de uma canção são a melodia e seu texto
verbal, talvez entendamos melhor o porquê de, em geral, desconsiderarmos o arranjo como
parte estruturante de um fonograma. Mas, na verdade, a depender do arranjo, entendido como
a “roupagem” instrumental da peça musical, uma canção pode quase soar “outra”. A velocidade
de execução, o diálogo que se estabelece entre os timbres dos diferentes instrumentos, os
espaços de preenchimento e de silêncio, a inserção de samples de natureza diferente, tudo isso
concorre para que os sentidos do texto sejam reforçados ou direcionados. No caso de “Amor de
índio”, a estética geral do arranjo original de Beto Guedes está relacionada à sonoridade do
Clube da Esquina.74 Os confrades do Clube da Esquina “atualizavam a preocupação bossa-
novista de fundir ritmos regionais com o jazz de orientação mais sofisticada, buscando a criação
de harmonias ricas e o desenvolvimento de práticas (musicais) experimentais” (NAVES, 2004,
p. 44).
O pulso ternário reforça o seguimento cíclico. Diferentemente de ritmos como forró ou
samba, que apresentam pulso binário, a pulsação ternária sugere uma circularidade que pode
sugerir não apenas o fechamento, mas a continuidade. Esse aspecto, por sua vez, pode sublinhar
passagens da letra em que percebemos referências a entendimentos não dicotômicos. Podemos
perceber um exemplo disso na letra da canção que faz apologia ao movimento e à
transformação, mas também ao ócio criativo, ao sonhar, ao dormir, sem deixar de promover um
elogio ao trabalho justo. Nas palavras de Manoel Albuquerque (2012, p. 113),

Também na contramão da História oficial e dominante do período, a canção


“Amor de índio”, de 1978, trouxe uma representação da cultura indígena como
sagração do amor e da liberdade. Uma apologia ao movimento, à
transformação, à superação de obstáculos, com zêlo e dedicação. [...] O fruto
do trabalho é sagrado, o pão com o exato valor do suor, sem exploração: “A
massa que faz o pão vale a luz do teu suor”. O sono também é sagrado, “e
alimenta de horizontes o tempo acordado [...]”. Nas quatro estações, a relação
é envolvida pela proteção, lazer, conhecimento e gostar.

74
O Clube da Esquina era uma confraria de amigos que ser reuniam num pequeno boteco situado na esquina da
Rua Divinópolis com a Rua Paraisópolis, num bucólico bairro de Belo Horizonte chamado Santa Teresa. Fazia
parte dessa confraria, interessada em música, cinema e poesia, Milton Nascimento, Wagner Tiso, Fernando Brant,
Toninho Horta, Beto Guedes, Tavinho Moura, os irmãos Lô e Márcio Borges, Robertinho Silva, Nivaldo Ornelas,
Ronaldo Bastos, Murilo Antunes, Nelson Ângelo e Novelli, entre outros (SOUZA, 2011, p. 4).
149

Há uma harmonização muito interessante entre letra e melodia que é, inclusive, reforçada pelo
arranjo, povoado por instrumentos. A melodia segue cíclica, a letra introduz motivos também
bastante variados que vão harpejando através da execução. Há um movimento de transformação
e retorno muito intenso que mimetiza também as transformações naturais que não acontecem
numa linearidade, mas numa circularidade constante.
Enfocando o arranjo feito originalmente por Guedes para a gravação de 1978, há uma
variedade de instrumentos (duas guitarras, um piano, um órgão, um baixo elétrico, um
sintetizador e bateria) que se revezam na condução das notas em uma ordenação que remete
quase a um coral, pois atuam energética e dinamicamente num movimento bastante próximo ao
jazz em alguns momentos. Embora haja muitos elementos na paisagem sonora da canção, à
medida que os instrumentos entram no andamento, eles se complementam, ao invés de
competirem. Ao final da letra, na parte instrumental, eles se intensificam e a voz de Guedes,
realizando vocalizes, atua como se fosse mais um instrumento no arranjo. Como dito antes, pela
própria natureza cíclica do pulso rítmico ternário, a solução escolhida para o encerramento é a
retirada gradual de cada um dos instrumentos que participam do arranjo e o fade out. A canção
não acaba, continua cíclica. Apenas esmaece e vai diminuindo seu volume até atingir o silêncio
novamente. Pode-se ler essa repetição como um ciclo que não finda, reforçando os motivos e
sentidos cíclicos presentes no texto verbal.
A canção pode ser considerada um hino ao amor, mas também pode ser lida, desde seu
título, como uma ode à boa vida, à natureza e às relações harmoniosas e equilibradas entre os
seres, incluindo-se o ser humano. Nos versos em que as relações de trabalho são evocadas, elas
aparecem em tons de justiça e sacralidade em “o fruto do trabalho é mais que sagrado [...] A
massa que faz o pão, vale a luz do teu suor”, sustentando mais uma vez a premissa do equilíbrio.
Há uma analogia entre o trabalho da abelha e o trabalho do ser humano que faz o pão. Em ambas
as situações, o que fica ressaltado é que há um tempo para o trabalho e um tempo para o ócio,
e que ambos são igualmente sagrados e remetem também à organização social, pois se pode
aproximar a colmeia do proletariado. Em Chevalier e Gheerbrant (2022, p. 47), lemos que

as abelhas não se diferenciam das formigas, como elas símbolo das massas
submetidas a inexorabilidade do destino [...] Operárias da colmeia que, se
pode comparar com maior propriedade a um alegre ateliê do que a uma
sombria usina, as abelhas asseguram a perenidade da espécie.

O trabalho seria, então, uma forma de serviço justo e alegre que garante a sobrevivência e
epitomiza os modos de organização social; e não visto como algo penoso ou inferior ao ócio,
150

sendo que se colocarmos essas proposições dentro da lógica do tudo e do todo, poderemos
entender que se trata de um trabalho de todos para todos para que, assim, o coletivo possa ter
acesso a tudo, resultando em uma forma igualitária de organização social e divisão do trabalho.
Destaco ainda as evocações de fenômenos e corpos celestes: o “arco-íris” e a “estrela
cadente”. Essas imagens podem ser associadas à cosmologia indígena, sugerindo o sentido de
integração do ser humano com a natureza e assim corroborando para a articulação do tema que
perpassa toda a canção. Para muitos povos indígenas, a leitura dos astros e a observação do céu
é uma prática ancestral imprescindível. Lembro que é do céu que Iebá-Buró, a avó do mundo,
pensa a Terra e envia a canoa-serpente para povoá-la. Tupã, um dos mais importantes deuses
tupi-Guarani, é o deus dos céus e dos trovões. Igaci, o sol, e Jaxy, a lua, são também habitantes
do firmamento. O professor Germano Bruno Afonso (2014, p. 1) afirma que:

Pela observação do céu, os indígenas determinavam o tempo das chuvas, do


plantio e da colheita, a duração do dia, mês, ano e das marés. Associam as
fases da Lua com a agricultura local, para o controle natural das pragas.
Desenhavam no céu suas constelações, fazendo do firmamento o esteio de seu
cotidiano. Segundo os pajés, a terra nada mais é do que um reflexo do céu.
Assim, o conhecimento do céu auxilia na sobrevivência em sociedade e está
intrinsicamente ligado à cultura indígena, tais como, em seus mitos, rituais,
músicas, danças e artes. [...] Para determinarem os pontos cardeais e as
estações do ano, os indígenas observam os movimentos aparentes do Sol
utilizando o Gnômon, que consiste de uma haste cravada verticalmente no
solo, da qual se observa a sombra projetada pelo Sol, sobre um terreno
horizontal. Ele é um dos mais simples e antigos instrumentos de Astronomia,
sendo chamado de Kuaray Ra'anga, em guarani e Cuaracy Ra’angaba, em tupi
antigo.

Vê-se que o conhecimento dos astros é uma ciência cultivada pelos povos indígenas e que seu
estudo e sua prática norteiam vários aspectos da vida desses povos, já que a percepção dos
fenômenos e movimentos da terra e dos astros auxilia a prever acontecimentos relacionados a
estas oscilações, pois ocorrem de maneira cíclica. Além disso, a orientação pelas estrelas dentro
da mata é muito útil, pois perde-se os pontos de referência, como rio ou montanha, que deixam
de ser avistados dentro da imensidão verde.
Para os Bororo, as estrelas são os olhos de suas crianças ancestrais que, arteiras e
entediadas, amarraram um cipó no céu, o qual foi cortado e, desde então, as crianças curiosas
observam a terra de lá das grandes alturas. Para esta etnia, portanto, as estrelas são olhos de
curumins (BARROS, 2013). Essa narrativa inverte os pontos de vista, de observadores de
estrelas, os seres humanos seriam, na verdade, observados por elas. Segundo Patrícia Mariuzzo
(2012, p. 63):
151

Para os Guaranis, Nhande Ru Ete, que, em português, significa “Nosso pai


sagrado”, criou quatro deuses que o ajudaram na criação da Terra e de seus
habitantes. O gnômon aponta para Nhande Ru Ete, ou Zênte, ponto mais alto
do céu e indica esses “deuses assistentes”, os pontos cardeais.

Os povos indígenas criaram mais de 100 desenhos de constelações que variam de acordo com
a etnia e os idiomas locais. Observaram o movimento de aproximação da lua e do sol com
Aldebarã e Vênus, sendo capazes de prever eclipses. Sua ligação com os astros é tanto empírica
quanto cosmológica. A relação entre céu e Terra é, para muitos povos, uma relação de
espelhamento. O que acontece ao céu, acontece à Terra (AFONSO, 2014, p. 4). Então, o legado
astronômico indígena, especialmente o brasileiro, é ainda pouco entendido e valorizado pelos
estudiosos acadêmicos, salvo raras exceções, como o citado professor Germano Bruno, o qual
sustentava que os mitos e as lendas são maneiras de transmitir o conhecimento empírico
acumulado pelos indígenas às próximas gerações.
A estrela símbolo celeste de luz e do sagrado tem uma forte ligação com os desejos, em
especial nas línguas latinas, pois a origem da palavra desejo é exatamente de siderum, que
significa das estrelas. Assim, desiderare significa fixar as estrelas e entra para a nossa língua
como desejar ou pedir algo às estrelas. Seguindo esse raciocínio, uma “estrela” que cai na terra
é um pedido que se aproxima de nós. Em várias culturas, há a tradição de fazer um desejo
quando se vê uma estrela cadente. Em francês, é désir; em italiano, desiderio; em espanhol,
deseo e, em inglês, desire. Podemos entender, no contexto indígena, que se céu e terra são
conexos e se o que acontece em cima acontece também embaixo, à “estrela cadente” pode-se
atribuir significado semelhante a chegada de algo do céu. Há, portanto, uma ligação entre a
estrela que cai do céu, o desejo que se pensou e o destino que se cumpre. Para os Tikuna,
tchitacüü, as estrelas “cadentes” são comparadas ao “galho de envira que não quebra, isto é,
que está dependurado, não cai e não morre”. Entendo essa formulação como um testamento de
perenidade. Daí que o pedido que se pensou é eterno e regido pelo destino, inscrito na estrela
que não morre.
Enfocando o símbolo do arco, na mitologia Kaxinawa, temos a narrativa de Iaçá, a
história de uma jovem que se apaixonou por Tupá, filho de Tupã nos céus, mas foi prometida
por sua família à Anhangá nas profundezas da terra. Vendo-se sem saída, a jovem foi forçada
a aceitar, mas fez um último pedido: visitar seu amado Tupá no reino dos céus. Anhangá
assentiu com a condição de que ela fizesse um corte no braço para que pela trilha de seu sangue
ele soubesse por onde ela passou. Tupá, por sua vez, ordenou a Guaraci (O sol), Iuaca (o céu)
152

e Pará (o mar) que acompanhassem sua subida. Mas Iaçá não aguentou a travessia e, em sua
lenta queda de volta, foi deixando um rastro vermelho, ladeado pelo rastro amarelo de Guaraci,
azul-claro de Iuaca e azul-escuro de Pará. Como a descida era longa e inclinada, os rastros
foram se misturando, o sangue com sol virou um rastro laranja, o vermelho com o mar um arco
roxo. Ao voltar a terra, Iaça não resistiu e morreu em uma praia; Guaraci e Pará uniram forças
e misturaram seus arcos amarelo e azul para transladar o corpo até o amado Tupá, formando
assim o arco de cor verde. Apesar do final trágico, o arco-íris para essa cultura acaba por
representar a promessa de um casamento de uma indígena na terra com uma deidade do sol.
Podemos apreender, então, que o arco da promessa é capaz também de simbolizar o amor entre
Iaçá e Tupá. Em várias culturas andinas, o arco-íris, por sua conexão com as águas, está ligado
a deidades e entidades serpentinas. Para Chevalier e Gheerbrant (2020, p. 125), o arco-íris pode
simbolizar a união de dois mundos (águas inferiores e superiores), representando a união de
metades separadas e a restauração da ordem. O arco-íris simboliza também a prevalência da
força do sol que se reestabelece sobre a terra após a chuva (bonança). No caso da canção, é
possível interpretá-lo literalmente como uma aliança, marca de uma promessa duradoura,
escrita no céu que afiança permanecer, “enquanto a chama arder”, ou seja, enquanto houver
vida.
Para finalizar, enfoco a figura das estações do ano. Mais uma referência cíclica que
expressa transformação e mudança, em que o eu-lírico completa um círculo “pra na chuva poder
dançar e andar junto”. Segundo Kaká Werá, a tradição Guarani fala da eterna dança da criação
cósmica que repetimos “para que possamos guiar-nos de acordo com seu ritmo, sua harmonia
[...] Os quatro cantos do movimento de criação são revelados por meio dos ciclos da natureza,
desde que os ventos começaram a soprar, desse espaço-tempo primeiro, gerando um inverno,
um outono, uma primavera e um verão” (WERÁ, 2021, p. 86). Na cosmologia Tikuna, as
estações estão ligadas às constelações e cada estação apresenta atividades propícias para serem
realizadas. Em matéria para o portal Amazônia, Isabelle Lima (2021, n. p.) defende:

Pra se ter ideia do quanto é importante o uso das constelações, os indígenas a


utilizam como forma de agenda do clima para “prever” o melhor momento
para plantar, caçar, pescar e até mesmo engravidar. Na constelação da ema,
que representa o inverno, as mulheres evitam engravidar pois acredita-se que
a criança que nasce nessa época tem poucas chances de sobreviver às
adversidades climáticas.

Assim, em sintonia com os movimentos dos astros e com os ciclos naturais, as rotinas indígenas
são movimentos de mudança e repetição espirais no tempo em que buscam se harmonizar com
153

os movimentos naturais da Mãe Terra, de quem se consideram partícipes guardiões. Aliás, eles
não apenas se consideram, mas, comprovadamente, são. Um trabalho publicado recentemente
na revista científica internacional Nature75 atesta que as práticas dessas comunidades com o
manejo dos polinizadores são fundamentais para o meio ambiente e para o bem-estar do ser
humano em todo o planeta. Os dados são confirmados pela ONU e por inúmeras outras
instituições no Brasil e no mundo. Com base nos estudos da ONU, o instituto Akatu (2022,
n.p.) alerta:

Estima-se que os povos indígenas constituam apenas 5% da população global


e seus territórios ocupem somente 28% da superfície terrestre mundial, mas,
juntamente com famílias ribeirinhas, eles protegem e preservam 80% da
biodiversidade mundial, entre animais, plantas, rios, lagos e áreas marinhas.

Essa defesa passa pelas práticas de Bem Viver difundidas entre os diversos povos indígenas,
pela resistência cultural, utilização de conhecimentos botânicos, agrícolas, astronômicos e,
infelizmente, até mesmo pela estratégia de ter de colocar a própria vida como barreira aos
avanços do invasor. Na imagem abaixo, vemos Ari Eu-Wau-Wau, indígena, guardião da
floresta que, aos 32 anos de idade, foi assassinado nas proximidades de seu território.

Figura 18 – Guardiões da Floresta – patrulheiros Uru Eu-Wau-Wau

Fonte: Brasil de Fato

75
Cf. Hill, R., Nates-Parra, G., Quezada-Euán, J. J. G. et al. (2019).
154

E esta situação não tem melhorado, pois, enquanto escrevo esta tese, o que temos
assistido acontecer no Brasil de 2023 é chocante. O caso mais emblemático é a da crise
humanitária no território Yanomami que não representa caso isolado.Durante toda a gestão do
(felizmente) ex-presidente Jair Bolsonaro, as queimadas, as doenças epidêmicas, a violência
racial e física contra os povos indígenas e a invasão de seus territórios, incentivadas pelas
políticas e pelos discursos desse senhor, aceleraram a tentativa de genocídio dos povos
originários76, bem como promoveram uma destruição imensa na floresta amazônica 77 e em
outros biomas brasileiros78, conforme demonstra o gráfico abaixo (figura 20).

Figura 19 – Gráfico sobre área de floresta derrubada na Amazônia

Fonte: Ecoamazônia

Vivemos um momento de investigação e de expectativa de punições exemplar dos


culpados dessa tragédia tão amplamente anunciada. Além disso, é necessária a implementação
de políticas de proteção ambiental, de assistência de saúde, de disponibilização de recursos e,
sobretudo, de demarcação e fiscalização das terras indígenas pelos órgãos competentes com o
apoio da sociedade brasileira e de todas as nações que reconheçam que estamos caminhando
para o abismo, enquanto destruímos o nosso planeta.
Organizando os elementos de sentido que discuti até o momento, a perenidade, as
maneiras de Bem Viver junto aos ciclos naturais (o ócio, o trabalho, a dança, o tempo cíclico,

76
Cf. “Casos de Violência contra indígenas aumentou 150% no primeiro ano de Bolsonaro”. (VILELA, 2020).
77
Cf. “Desmatamento na Amazônia cresceu 56,6% sob o Governo de Bolsonaro” (GARRIDO, 2022).
78
Cf. “No governo Bolsonaro desmatamento aumentou em todos os biomas, diz estudo” (VERONICZ, 2022).
155

a inteireza de si, a integração com o todo, a observação dos animais e dos astros), chego ao
ponto basilar desta leitura, que é “Amor de índio" pode ser lida como uma metáfora sobre
formas de bem viver com a terra e com os outros seres, uma vida equilibrada e respeitosa que
se vê como parte de um Todo, de um tudo que é orgânico e dialético, no qual tudo se organiza
e flui. Para citar Starhawk: “[t]odas as partes do corpo vivo da terra estão ligadas. Todas as
coisas estão interconectadas, incluindo o humano e mundos naturais. A espiritualidade da terra
tem como base o nosso amor pela natureza, nossa identificação com as estações, ciclos, fauna
e flora” (STARHAWK, 1989, p. 178). As palavras de Starhawk rememoram alguns
fundamentos do Sumak Kawsay/Bem Viver. Para bem viver é preciso saber ser. Isso depende
de um conhecimento profundo de quem se é com tudo o que está ao redor, pois

[...] os humanos não têm o monopólio da posição de agente e sujeito; o mundo


é habitado por diferentes espécies de sujeitos ou pessoas, humanas e não
humanas, que o apreendem segundo pontos de vista distintos... As relações
entre uma sociedade indígena e os componentes de seu ambiente são pensadas
e vividas como relações sociais, isto é, relações entre pessoas, ou ainda, como
uma comunicação entre sujeitos que se interconstituem no ato e pelo ato da
troca – troca que pode ser violenta e mortal, mas que não pode deixar de ser
social (VIVEIROS DE CASTRO, 2005, p. 126-127).

A proposta do Sumak Kawsay/Bem Viver é a de aprender a ser e viver com o Todo sem
distinção de espécies ou atribuição de valores financeiros a seres que recebem, em suas
cosmovisões, valores sagrados. As relações entre os seres e entes, como bem comenta Viveiros
de Castro acima, é uma relação de interconstituição. Na sociedade ocidental, essa relação tem
sido construída à base de sangue, fome e destruição para atender a interesse capitalista e, por
consequência, antropocêntrico, misógino e racista. Esses “valores” também se interconstituem
para conceber um mundo que é um abatedouro lucrativo para alguns, infernal para muitos e
fatal para todos os seres que o habitam. O mais lastimável é que há possibilidades de uma saída
desses infernos instituídos pelo antropoceno, mas tais saberes são inferiorizados e
propositalmente ignorados pela sociedade de consumo, pois, conforme observa Patrícia Pardini:

De acordo com a experiência ameríndia, é da natureza do ser, em qualquer


uma das suas manifestações, diferir de si mesmo, tornando-se outro. Cada ser
é não só o que é, mas também, virtualmente, o que não é. A diferença
(intensiva, de afetos) é interna ao ser, e a alteridade é constitutiva da
identidade. Cada denominação (humanos, animais, plantas, espíritos etc.)
designa menos uma classe ou gênero de seres do que um tipo de experiência,
uma qualidade, um modo de ser ou um ponto de vista, sempre passível de
reversão. Por isso, diríamos que o ser ameríndio é menos um ‘ser’, uma
156

essência, do que um ‘vir-a-ser’, um ‘tornar-se-outro’ (PARDINI, 2020, p. 3-


4).

A transformação constante do ser e de seus horizontes é um movimento e um processo que, a


meu ver, é espiralar e contínuo, assim como o espaço-tempo indígena. A partir das voltas e
revoltas ao que somos, fomos e podemos vir-a-ser, ou, na linguagem blochiana, o ainda-não-
manifesto. Concordo com Arlindenor Predro (2013, n. p.):

O “ainda-não-ser” – categoria fundamental da filosofia blochiana da práxis –


baseia-se na teoria das potencialidades imanentes do ser que ainda não foram
exteriorizadas, mas que constituem uma força dinâmica que projeta o ente para
futuro. Imaginando, os sujeitos “astuciam o mundo”. O futuro deixa de ser
insondável para vincular-se à realidade como expectativa de libertação e
desalienação.
Bloch nos diz que, ao contrário do que a psicanálise freudiana procura ensinar,
não está no passado o único elemento de entendimento do comportamento
humano no “presente-vivido”. Na verdade, no presente, o indivíduo vive já o
futuro, que está presente nas suas ações e comportamentos – isto é, suas
utopias. Quanto menos se tem utopias, menos se vive o futuro no presente,
vivendo-se apenas no campo das ideologias, formatadas pela realidade social
que nos cerca.

As utopias, muitas vezes, estão atreladas às especulações de futuros, às extrapolações do


presente para criar visões (atualmente, com acento mais distópico) do futuro ou à fabulação de
um passado, um tempo, um lugar em que as coisas foram melhores. Mas, o que podemos
entender dessa equação blochiana entre o que se foi e o que ainda não se manifestou é que a
esperança militante manifesta o futuro nas potencialidades do ser, agora, no presente. A utopia
já se encontra em curso, a partir do momento em que ela nasce como potência no pensamento
e no comportamento dos/as utopistas. Para o filósofo, o sonho diurno já é manifestação dessa
utopia, desse vir-a-ser, que vem aflorando, enquanto se constrói. Ele não aparece pronto. É
importante esclarecer essa perspectiva temporal da utopia que considero basilar e que se
coaduna com o pensamento da temporalidade indígena de que não há futuro, pois ele ainda não
aconteceu e depende das escolhas do presente para se tornar presente. Esse é um dos pontos do
indiofuturismo, o pensamento espiralar serve-se do que se aprendeu, projeta sonhos, mas atua
no presente, porque ele é a dimensão da ação concreta. O futuro e o passado são abstrações que
nos servem de referência para agir no imediato. Postulo que para o indiofuturismo, assim como
para o Bem Viver, não há caminhos. Eles são em si o caminho. Para citar o poeta espanhol
Antonio Machado: “caminhante, não há caminho, o caminho se faz ao caminhar” (2010, p. 5).
Portanto, as utopias, o indiofuturismo, o bem viver são urgentes e não podem se perder num
157

emaranhado de abstrações e metas para depois. A Terra está sendo destruída agora, como nos
alerta Patrícia Pardini:

No Brasil, país situado, como se sabe, no Extremo Ocidente, as culturas


indígenas, que resistiram e sobreviveram ao genocídio, são culturas de
resistência (e de ‘re-existência’) – como as culturas de matriz africana, suas
irmãs gêmeas. Resistindo e se mantendo vivas em território próprio, elas
mantêm viva a sua alteridade radical com relação ao Ocidente (ao Estado, ao
Capital): algo inadmissível para o pensamento autoritário. Por isso, continua
em vigor a lógica do genocídio, cujo meio e fim é a tomada das terras
indígenas (PARDINI, 2020, p. 10).

Apesar de todo o mal, resistimos e continuaremos resistindo em todas as frentes, conforme


observa Pardini no trecho acima. Assim, finalizo este capítulo ressaltando a importância de
observarmos expressões de saber como o Sumak Kawsay/Bem Viver, o decrescimento, os
ecofeminismos, a luta de mulheres indígenas, a luta por demarcação, a luta por visibilidade, por
saúde e justiça ambiental como um conjunto estratégico de ideias que podem e devem
entrelaçar-se para a mudança do pensamento dos seres humanos e de sua relação com todos os
outros seres da Terra, da qual somos uma ínfima parte que tem se mostrado mortal para o todo,
em toda a sua arrogância antropocêntrica. É necessário mais do que um punhado de metas
ambientais, tratados que não saem do papel e políticas públicas isoladas para que isso aconteça.
A mudança é paradigmática, devemos ampliar e construir visões de mundo ou
morreremos dentro de nossas limitadas perspectivas junto com tudo o que há nesta nossa casa
comum (KRENAK, 2018). Os povos originários compreendem o seu jeito de ser e de estar no
mundo e têm feito esse movimento de convivência e coexistência há milhares de anos, causando
o mínimo impacto possível. Portanto, é hora de aprendermos com essa academia da floresta.
Não apenas aprender técnicas, mas sobretudo aprender a dançar na ciranda do tempo, contando
e recontando as histórias de reconstrução e celebração da vida. E, para isso, serão necessários
esforços de todos, pois, este é um movimento que depende de cada parte saber que é também
um fio no tecido do todo.
Passo agora às reflexões finais do trabalho, visando sumarizar e discutir os pontos mais
relevantes apresentados pela análise, objetivando não um encerramento dos ciclos, mas uma
recapitulação do que foi feito até o momento com vistas a elencar as contribuições oferecidas
por esse percurso e as possibilidades de continuidade abertas à investigação por outras
pesquisadoras e pesquisadores que desejem contribuir com o estudo do indiofuturismo e com o
panorama das figurações indígenas nas artes.
158

5 HORIZONTES INDIOFUTURISTAS: POÉTICAS EM CONSTANTE


FLORESCIMENTO

Partindo de minhas experiências e inquietações como ouvinte e interessada no estudo


de canções brasileiras, movida pelo desejo de investigar e me aproximar das poéticas
indígenas79, nasce a semente desta tese que brota de uma pergunta bastante simples: como
figuram as pessoas e povos indígenas no cancioneiro nacional? Esta pergunta-semente
encontrou um solo fértil em uma floresta imensa que é música popular e foi alojar-se num
bosque de 80 canções que tematizam a presença indígena nessa grande selva musical, deitando
suas raízes sobre minha eterna curiosidade acerca da fabulação de novos mundos e descoberta
de novos imaginários.
Ao desenvolver-se nesse ecossistema, nutrida pelos Estudos Culturais, a pergunta-
semente, começou a lançar seu broto na forma de algumas constatações que surgiram,
inicialmente, na constatação de recorrências temáticas e imagéticas, tais como: afirmação
étnica, por meio de forte presença de representações de luta social, de gênero e ambiental;
características de hibridismos culturais, com pontes entre tecnologias digitais e ancestrais;
diferentes gêneros do cancioneiro ea presença de uma noção de tempo espiralar, com viagens
espaço-temporais; diálogo com utopismos, sobretudo a partir da noção de bem viver, orientados
por uma esperança de existir e de coexistir em ambientes naturais saudáveis e preservados. Tais
motivos atravessam todo o corpus, conferindo-lhe unidade.
Disso, nasceu o entendimento de que tais atributos confluíram para a formação de um
caule que se encorpava e crescia, enlevando o conjunto de canções aqui estudadas para um
direcionamento comum, que agrupei sob a denominação de indiofuturismo, conceito que
abrange as dimensões ética, estética e política de canções. Alguns pontos deste conceito no
tocante a suas recorrências nas estéticas e temáticas indiofuturistas são: utilização da tecnologia
tanto como ferramenta de produção e difusão de suas obras quanto como estética; afirmação e
reafirmação das identidades culturais indígenas; tematização inerente às lutas sociais
ambientais (como a luta contra discriminação e pela demarcação); e a presença de uma dicção
utópica, visto que essas composições frequentemente exploram ideias de melhores futuros
possíveis ou a construção de imagens distópicas que criticam o presente e/ou o passado.
O indiofuturismo passou então a ser o referente que orientou as análises dessas canções,
propiciando aproximações e diálogos entre teorias de diferentes origens, como bem viver e

79
Percurso que se inicia em 2015, com minha pesquisa de mestrado que analisa a poética das canções/lírios na
Jurema Sagrada, religião de origem indígena.
159

ecofeminismo, hibridismo cultural e afirmação identitária, tecnologia e ancestralidade,


futurismos utópicos e tempo espiralar. Assim, busquei juntar teorias acadêmicas à sabedoria
dos povos originários, como uma forma de compreender melhor os temas presentes nas
canções, respeitando, ao mesmo tempo, as suas particularidades. Este procedimento de
aproximação de teorizações acadêmicas em diálogo com as teorias oriundas dos povos
tradicionais é inspirado também no questionamento de Rubelise da Cunha, ao tratar do teatro
indígena canadense: “Como a experiência de leitura da peça de Tomson Highway [obra
enfocada] demonstra a necessidade de uma abordagem ética centrada nos povos indígenas?”
(CUNHA, 2009, p. 166). Em outras palavras: que procedimentos nós podemos criar para análise
dramática de obras como The Rez Sisters (1986), do referido autor? Problematização
semelhante esteve subjacente à construção do indiofuturismo e direcionou a criação de uma
metodologia dialógica que respeitasse as diferenças entre as poéticas indígenas para que elas
não fossem analisadas apenas pelas lentes críticas geralmente ativadas para leituras do cânone
acadêmico. Concordo com Cunha que é necessário pensar estratégias de análises diversas, uma
vez que estamos tratando de textos que (frequentemente) se afastam de éticas e de estéticas
ocidentalizadas.
O diálogo entre diferentes teorias parte também da vocação interdisciplinar e
transcultural do indiofuturismo, conceito que elaboro a partir de uma rede tecida com muitas
vozes: Homi Bhabha, Alberto Acosta, Ailton Krenak, Ernst Bloch, Donna Haraway, Kaká
Werá, Julieta Paredes, Grace Dillon, Leda Martins entre outros/as, que, apesar de distintos/as
em muitos aspectos, somam-se em pontos de vista, orientações e objetivos em comum, sendo
os principais: compreender a dinâmica da vida e das relações na e com a terra na
contemporaneidade; propor questionamentos e investigações acerca do papel da chamada
humanidade para a construção de bons lugares literários e literais em que possamos conviver;
especular de que maneira as artes e as diferentes culturas podem atuar sobre as pessoas; teorizar
acerca das intrincadas relações propiciadas pelas intersecções e afastamentos culturais numa
sociedade ainda organizada por relações hierarquizadas econômica, social e culturalmente;
arguir sobre o papel que tecnologias, saberes tradicionais e cosmopolitas podem promover em
direção às mudanças paradigmáticas que sejam benéficas para a construção de relações
equilibradas entre os seres que habitam este planeta. Cada uma dessas vozes que formam aqui
um coro teórico e suas questões e teorizações foi relevante para propor a teia dialógica que
construiu esta tese e para a obtenção dos resultados apontados. É preciso ressaltar que tecer essa
rede não foi tarefa fácil, uma vez que os/as teóricos/as aqui referenciados partem de lugares,
tempos e visões de mundo diferenciadas. E uma das maiores dificuldades foi provavelmente,
160

lidar com os diferentes entendimentos de temporalidade, uma vez que a noção de temporalidade
linear não funciona ou não se adequa para a análise dessas canções. Busquei privilegiar a
temporalidade cíclica, sobretudo, destacando vozes indígenas, pois, para muitos desses povos,
a voz é o ser e o ser é o som encarnado (WERÁ, 2021).
O estudo da presença de imagens indígenas em nosso cancioneiro é ainda um caminho
pouco trilhado, que representa um desafio analítico, visto que as diferenças culturais e, por
vezes, a barreira linguística exigem a adoção de estratégias de leituras particulares. Exemplo
disso é a análise da canção “Xondaro ka’aguy reguá” de Kunumi Mc, cuja letra é construída no
idioma Guarani, língua com a qual não possuo familiaridade. Para proceder com a teorização,
precisei trabalhar com a tradução da letra para o português, disponibilizada pelo próprio autor.
A transposição da barreira linguística e cultural exige a negociação e a sensibilidade no trabalho
crítico, sendo esta uma das maneiras pela qual busquei responder ao questionamento proposto
por Cunha. Ainda assim, há toda uma fortuna em canções escritas em guarani e em outros
idiomas a serem estudadas. A construção desta tese apresenta-se como um esforço para
superação dessas barreiras e dá um pequeno passo nesse sentido.
Todo o conjunto de canções selecionado foi analisado pelo viés indiofuturista, mas é
necessário salientar que os indiofuturismos podem ser lido de formas diferentes nas canções.
Obras de autoria indígena suscitam um diálogo mais forte com as teorizações da ecologia e da
interseccionalidade, pois mimetizam como mais vigor questões ambientais e questões de raça,
classe e gênero, até mesmo pelo contexto e pelas subjetividades que as produziram. Alguns
exemplos disso são as análises de “Indígena futurista”, “Xondaro ka’aguy reguá”, “Serpente-
mulher” e “Mãos vermelhas”, em que as vozes líricas tecem relações mais próximas com a
natureza e com os conflitos culturais e ambientais. Já as canções “Um índio”, “Tubi tupy” e
“Amor de índio” são construídas com imagens mais afins às técnicas da poética e da crítica do
cânone ocidental, sendo por isso analisadas por esse viés. Outro fator importante que diferencia
o teor dessas análises é a noção de temporalidade sobre a qual elas são construídas. Embora
todas, de algum modo, estejam em confluência com o tempo cíclico, as canções de autoria
indígena marcam mais intensamente essa relação.
As análises apontam que o conceito construído nesta tese, o indiofuturismo, pode ser
especialmente relevante para atentar para as noções de continuidade e repetição no tempo
espiralar, sobretudo na proposição dos pensares e dos modos de expressão indígenas que podem
e devem ser compreendidos fora das amarras do pensamento ocidental de produção do novo na
linha evolutiva do tempo. A inventividade não está ligada ao futuro necessariamente, como
propõem, de maneira geral, os pensadores e pensadoras ocidentais. A novidade não se esgota
161

na repetição do ciclo, pois ela é fruto da interação do ser com o fenômeno observado dentro de
um determinado contexto. Para dar um exemplo, o sol que vemos no céu é sempre o mesmo,
mas cada pôr-do-sol inspira a novidade em um/a poeta, e isso se repete há milênios. Nem por
isso deixamos de observar cada pôr-do-sol como um fenômeno inédito e presente; nem por isso
deixamos de estudar e descobrir novidades sobre os movimentos solares, a influência do sol
sobre a vida e sobre a Terra.
O velho produz o novo. Avançamos a partir do conhecimento acumulado, tanto quanto
propondo novas questões. Sabemos que a pedagogia grega dá origem ao nosso sistema
acadêmico e, mesmo assim, a despeito de toda sua influência, nunca deixamos de inventar e de
pensar sobre as formas de aprender e de ensinar. Ligar o tempo linear ao avanço/progresso é
uma falácia, pois nunca deixamos para trás o que aprendemos antes, apenas ressignificamos os
conhecimentos e seguimos observando os mesmos fenômenos sob novos pontos de vista; bem
como ligar os tempos circulares e espiralares à primitividade constitui um ato de violência
ontológica e epistemológica. Nossa sociedade corre atrás do futuro como o cavalo corre atrás
da cenoura, mas o “futuro é agora”. Não precisamos correr atrás dele, mas dançar com ele neste
instante para torná-lo presente.
Esta tese apresenta algumas possibilidades para investigações futuras que podem
ampliar o tema aqui enfocado, proporcionando a continuidade do diálogo entre os Estudos
Culturais e as representações indígenas. Penso que algumas delas são: expansão do números de
canções analisadas, pois, como pode ser visto no levantamento apresentado no apêndice 80,
encontrei 80 canções em que figuram imagens indígenas no cancioneiro popular brasileiro; a
criação de novos eixos analíticos, tais como: representação indígena na canção infantil e suas
possíveis implicações no imaginário social sobre indígenas; o estudo de como está representada
a relação entre aldeia e urbanidade nas poéticas de autoria indígena; a investigação do percurso
e das características da autorrepresentação de indígenas na canção popular; investigação da
autorrepresentação da mulher indígena; e estudo mais aprofundado das relações entre as
canções de protesto e lutas indígenas com a distopia. Proponho tais caminhos como convites a
novas pesquisas para a continuidade da investigação dessas representações, ampliando as
teorizações dos Estudos Culturais sobre essa temática, lançando sementes-irmãs nesse bosque
sonoro de Pindorama.
Por fim, penso que a maioria de nós faz pesquisas para que novas possibilidades e
caminhos possam ser vislumbrados e investigados. Pesquisamos, sobretudo, por esperança. E

80
Cf. página 175.
162

sei bem que pesquisar no Brasil distópico dos últimos anos custou muito dessa nossa força-
motriz para construir trilhas para dias melhores. Iremos continuar, iremos lutar, mas desejo que,
no percurso, não nos esqueçamos de celebrar, cantar e dançar com cuidado e com alegria em
comemoração a esta vida nossa, que é parte daquele todo que é a Mãe Terra, Gaia, Planeta Terra
ou como queiram chamar. Sinto que apenas iniciei um caminho carregando esta pequena bolsa
de sementes, para utilizar a metáfora de Ursula Le Guin (2021), mas ele não termina por aqui.
Desejo que, inspirados/as pelas belas metáforas da semente, da raiz e da árvore que podem ser
colhidas nessas poéticas, possamos seguir plantando conhecimentos e horizontes, juntos e
juntas e juntes.
163

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Discografia

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MIRIM, Katu. NÓS. EP.2020.

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176
177

APÊNDICE

APÊNDICE A – LEVANTAMENTO DAS CANÇÕES

Artista (s) Título Ano Gravadora ou Link


suporte
Almir Sater Kikió 1986 WMG https://www.youtu
be.com/watch?v=
SJzqIeVs3s8
Ana Diniz Terra Tupi 2011 ONErpm https://www.youtu
Guarani be.com/watch?v=i
Xnouxlvz0U
Antônio Nóbrega Chegança 1997 Tratore* https://youtu.be/e
(distribuidora) wCnpLF1_CM
Arandu Arakuaa Povo Vermelho 2015 Bandcamp https://www.youtu
be.com/watch?v=
yZV-ib2SJ2M
Baby do Brasil e Todo dia era dia 1981 WEA https://www.youtu
Jorge Ben Jor de índio be.com/watch?v=l
TjmMCFfXi0
Beto Guedes Amor de índio 1978 EMI-Odeon https://www.youtu
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hctNZcWZzmo
Bezerra da Silva Curimim 1998 Universal Music https://www.youtu
Group be.com/watch?v=J
yOm1-c48KQ
Brisa Flow Fique Viva 2018 ONErpm (em https://www.youtu
nome de be.com/watch?v=
brisaflow); wRUzUsTdW0o
LatinAutorPerf
Brôs Mc Koangagua 2022 Independente https://www.youtu
be.com/watch?v=I
BafJlZxT6s
Cacique & Pajé Índio Tupy 1989 Sonora https://www.youtu
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Ky87IED8y9I
Cacique & Pajé Índio do Brasil 2013 Universal Music https://www.youtu
Group be.com/watch?v=
cADMt9LiHyY
Caetano Veloso Um índio 1992 Polygram/Philips https://youtu.be/Q
Lc3z3qdkdE
Caru Eu, índia 2016 Sofar Sounds https://www.youtu
be.com/watch?v=
bFDvBf2rzQE
Caru Desapareça 2016 Sofar Sounds https://www.youtu
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OFf8ta9Z04E
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Cascatinha e Índia 1978 Todamérica https://www.youtu


Inhana be.com/watch?v=
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Celelê Canção dos índios 2010 Celelê/Tratore https://www.youtu
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Chico Buarque Iracema voou 1998 BMG Brasil https://www.youtu
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AqrpGN96OCo
ara Nunes O canto das três 1976 EMI-Odeon https://www.yout
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Cristina Mel O índio do senhor 2012 MK Music https://www.yout
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Djavan Cara de índio 1978 EMI-Odeon https://youtu.be/_
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Djavan Curumim 1989 Luanda Records https://www.yout
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Edvan Fulni-ô Carta do índio 2019 Edivan Fulni-Ô e https://www.yout
Galdino Selo Ambulante ube.com/watch?v
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k
Edvan Fulni-ô Resistência 2020 Edivan Fulni-Ô e https://www.yout
indígena Selo Ambulante ube.com/watch?v
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Edvan Fulni-ô Não sou índio pra 2021 Dist Tratore https://www.yout
gringo ver ube.com/watch?v
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Fafá de Belém Indauê-Tupã 1976 Universal Music https://www.yout
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Gabriel, O Cachimbo da paz 1997 Sony Music https://www.yout
Pensador ube.com/watch?v
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Galinha Indiozinhos 2006 Bromelia https://www.yout
Pintadinha Produções ube.com/watch?v
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Hélio Ziskind Tu tu tu tupi 2013 MCD https://www.yout
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Hélio Ziskind O céu dos índios 2013 MCD https://www.yout
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Kaê Guajajara Por dentro da 2021 Azuruhu https://www.yout
terra ube.com/watch?v
=gcZvckHKfPk
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Kaê Guajajara Essa rua é minha 2020 Azuruhu https://www.yout


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Kaê Guajajara Território 2019 SAKKARA https://www.yout
ancestral ube.com/watch?v
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Kaê Guajajara Asas 2020 Azuruhu https://www.yout
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Kaê Guajajara Ancestralizou 2021 Azuruhu https://www.yout
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Kaê Guajajara Meus olhos 2021 Azuruhu https://www.yout
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Kaê Guajajara Acalanto 2020 Azuruhu https://www.yout
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Kaê Guajajara Meu respirar 2020 Azuruhu https://www.yout
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Kaê Guajajara Amor indígena 2021 Azuruhu https://www.yout
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Kaê Guajajara Revolution 2020 Sakkara https://www.yout
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Katu Mirim Retomada 2019 Not On Label https://www.yout
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Katu Mirim Indígena futurista 2019 Windi Studio Arte https://www.yout
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Katu Mirim Aguyjevete 2020 United Masters https://www.yout
(em nome de ube.com/watch?v
Katú Mirim) =M4czt2327vA
Katu Mirim A força 2019 Independente https://www.yout
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Katu Mirim Nativa 2020 Independente https://www.yout
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Katu Mirim Pemba 2023 Vevo https://www.yout
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=J7miM6GA-oc
Kunumi Xondaro ka’aguy 2018 Independente https://www.yout
Mc/Owerá reguá ube.com/watch?v
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A
Kunumi Jaguatá tenondé 2021 Independente https://www.yout
Mc/Owerá ube.com/watch?v
180

=eWdLDaKUBM
A
Kunumi Nhamandu 2022 Independente https://www.yout
Mc/Owerá ube.com/watch?v
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Kunumi Meu sangue é 2017 Independente https://www.yout
Mc/Owerá vermelho ube.com/watch?v
(Guarani Kaiowá) =GI-nYia9JcU
Kunumi Nunca desistir 2017 Independente https://www.yout
Mc/Owerá ube.com/watch?v
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Kunumi Força de Tupã 2020 Independente https://www.yout
Mc/Owerá ube.com/watch?v
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Kunumi Demarcação já – 2019 Selo Matilha na https://www.yout
Mc/Owerá terra, água e ar Mixtape Matilha ube.com/watch?v
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Legião Urbana Índios 1986 EMI-Odeon https://www.yout
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Lenine Tubi Tupy 1999 BMG https://youtu.be/5


VosXL4h_8Q
Mara Maravilha Curumim lê lê 1991 EMI-Odeon https://www.yout
(sou uma índia) ube.com/watch?v
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Mc Karol Não foi Cabral 2016 Heavy Baile https://www.yout
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Mestre Ambrósio Fuá na casa de 1998 Chaos/Sony https://www.yout
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Milton Benkê 1990 Vevo https://www.yout
Nascimento ube.com/watch?v
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Milton Xamã 2006 Universal Music https://www.yout
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Milton Nozani Na 1990 CBS https://www.yout
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OZ Guarani Jovem liderança Líquido Filmes https://www.palcomp3
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OZ Guarani O índio é forte 2018 Líquido Filmes https://www.palco
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forte/
OZ Guarani Pemomba EME 2017 Líquido Filmes https://www.palco
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eme/
181

OZ Guarani Guerreiro 2017 Líquido Filmes https://www.palco


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OZ Guarani Somos todos da 2017 Líquido Filmes https://www.palco
mesma nação mp3.com.br/ozgu
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OZ Guarani Conflitos do 2017 Líquido Filmes https://www.palco
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OZ Guarani Ensaio Gritos do 2017 Líquido Filmes https://www.palco
Xondaro mp3.com.br/ozgu
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dos-xondaro/
OZ Guarani Indaíz – Jaraguá é 2017 Líquido Filmes https://www.palco
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OZ Guarani Contra a Pec 2017 Líquido Filmes https://www.palco
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Padre Zezinho O canto do índio 1983 Paulinas COMEP https://www.yout
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Palavra cantada Pindorama 1998 Gravadora https://www.yout
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Patati e Patatá Na tribo eles 2009 Spectra Nova https://www.yout
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Souto Mc Altamira 2019 ONErpm https://www.yout
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Souto Mc Caça e caçadora 2019 ONErom https://www.yout
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Souto Mc Rezo 2019 ONErpm https://www.yout
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Souto Mc Retorno 2019 ONErpm https://www.yout
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Vitor Pirralho Tupi fusão 2009 Sururu Music https://youtu.be/rz
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Xuxa Brincar de índio 1988 Som Livre https://youtu.be/2
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Xuxa Caravela de 1996 Som Livre https://www.yout


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