Tese - Analice Da Conceição Leandro Da Silva (2023)
Tese - Analice Da Conceição Leandro Da Silva (2023)
Tese - Analice Da Conceição Leandro Da Silva (2023)
FACULDADE DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGUÍSTICA E LITERATURA
CANTAR PINDORAMA:
INDIOFUTURISMOS NA CANÇÃO BRASILEIRA
MACEIÓ-AL
2023
ANALICE DA CONCEIÇÃO LEANDRO DA SILVA
CANTAR PINDORAMA:
INDIOFUTURISMOs NA CANÇÃO BRASILEIRA
MACEIÓ-AL
2023
Às nações indígenas de toda Pindorama.
Ao meu querido povo Fulni-ô.
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus e à Jurema Sagrada, fontes onde busco força e inspiração para prosseguir.
Aos povos originários, raiz forte, a quem pertence este país e motivo desta tese.
A minha mãe, Anita, e a toda minha família, pelo esforço e apoio em meu percurso estudantil.
O incentivo, o suporte e as broncas deram resultado, viu, mainha?
À Rosa, por ser minha mãemiga em circunstâncias incomuns. Sempre quero contar com você!
A André, Antônio e Raoni, pelo amor e por me fazerem feliz. Por vocês enfrento tudo!
À Célia e Ana Carolina Barros, Manoel Leandro, Gilianne, Vivian Rose Rodrigues e Lays
Amanda Silva, pelo auxílio com as crianças e pelo cuidado comigo.
À Zeza de Liza e à Clara, pela dedicação incansável e terna aos meus filhos. Assim como toda
a equipe da Escola João e Maria.
À equipe da Escola O Verbo tempo integral.
A todas as professoras e professores que passaram por minha vida, seja na mestria, na escola,
na universidade e nos espaços que acolheram meus curumins.
A minha orientadora Ildney Cavalcanti, por tudo e por tanto que não tenho como colocar em
palavras. Eu te admiro como profissional e como pessoa. Que sorte minha ter te encontrado!
A Pedro Kalil Auad, pela coorientação deste trabalho no momento inicial da pesquisa, pelos
livros, conselhos e afetos e pela participação importante na banca de qualificação e de defesa.
A Marcus Vinicius Matias, pela cuidadosa leitura e pelas trocas de conhecimento e pelo
empenho na leitura e observações na banca de qualificação da pesquisa e também na defesa.
A Kall Sales e Alfredo Cordiviola pelas importantes contribuições e pela leitura final da tese.
A Lola Aronovich e Susana Souto pela inspiração e por terem aceitado o convite para a banca.
A Marcelo Marques, Felipe Benicio, Edilane Ferreira e Thathiana Belo, pelas conversas, pela
inspiração, pela amizade, pelo apoio e por continuarem aqui.
Aos amigos Fernando Ayres, Pedro Fortunato, Karoline e Walker Athayde, por fazerem o
caminho ser mais leve e por me ouvirem.
Ao meu pequeno clã: Fernanda Nascimento, Monick Gomes, Marcus Antônio Sobreira Júnior,
pelos 23 anos de parceria e descobertas juntos.
A Paulo Victor Oliveira, Mirian Oliveira e Viviane da Conceição, do Jaça para o coração.
À Wanessa Xú Oliveira, amiga, parteira, jornalista e irmã para tudo o que há.
A todos as pessoas maravilhosas do grupo Literatura & Utopia, pela imensa usina de energia e
conhecimentos que são.
Ao corpo docente, discente e técnico do PPGLL que nunca desistiram de fazer pesquisa em
Alagoas e que não mediram (e não medem) esforços para que o programa continuasse em
funcionamento, mesmo em tempos sombrios.
A João Batista Magalhães e Rafael Gomes, pelo zelo espiritual, e à Marina Rodrigues e a Gary
Bernardes, pelos conselhos, e aos demais irmãos e irmãs de fé pelo carinho.
A Joel Vieira e Pedro Rieger, à Monaíra Mergulhão, Elemir Soares e Jéssica Gonçalves, pelas
conversas na madrugada.
Ao comerciante Duda Silva, pelo apoio diário, especialmente, durante a pandemia.
A Anderson Azevedo, pelos socorros na área da informática que mantiveram meu equipamento
funcionando até o fim.
À equipe do Ceja Paulo Freire pelo incentivo e compreensão.
À paciência e amor dos vizinhos e vizinhas Cláudia, Ronaldo e Pedro Ricardo, Cida Silva e
Cláudio Galvino, pelas trocas e atenções constantes.
À Capes, pelo financiamento desta pesquisa na modalidade DS, apoio que me permitiu
continuar estudando.
Às espécies companheiras Costela, Barbie, Mel, Pepê, Neném, Novinha, Johnny, Britney,
Galinheta, Lili e Lulu, que nos mostram a vida sob outros aspectos.
A todas as pessoas que me inspiraram e que, de alguma forma, estão presentes neste trabalho.
Não posso esquecer deste corpo/espírito, por aguentar o tanto que abusei dele e por sua
iluminação e inquietação que me fazem prosseguir, mesmo quando não sei para onde, só sei
que tenho que seguir em frente.
À Mãe Terra, minha nutriz, minha matriz, meu chão, meu sustento, meu princípio, meu fim.
Deixemos de emitir mentiras e promessas
falsas; acabemos com a poluição das palavras
ocas e lutemos por um futuro e um presente que
possam ser vividos. É sempre necessário
acreditar que o sonho é possível. Que a nossa
utopia seja um futuro na Terra....
Txai Suruí
Las canciones populares brasileñas brindan una oportunidad para investigar la figuración de los
pueblos indígenas y su crítica cultural, creando un panorama y proponiendo la expansión de sus
estudios. Contextualizada en las convergencias de los campos de los Estudios Culturales y los
Estudios Utópicos Críticos, esta tesis pretende generar nuevos postulados teóricos de tales
representaciones. Para eso, analizo en el repertorio brasileño sus discursos poéticos y
recurrencias temáticas e imaginarias. Teniendo como puntos de partida mapear, leer y escuchar
y analizar el corpus, formado por siete canciones relacionadas con el tema propuesto y
seleccionadas de un relevamiento más amplio de 80 canciones lanzadas entre 1960 y 2022,
elaboré 3 ejes analíticos abordados de forma interconectada: 1. indiofuturismo; 2
representaciones de género y 3. relaciones con la tierra. Así, postulo el concepto de
indiofuturismo, basado en las teorías de Bloch (2005) sobre el utopismo, los conceptos de
hibridez y tercer lugar cultural (BHABHA, 2003), así como en los afrofuturismos americanos
(DERY, 1994), el futurismo indígena (DILLON, 2012) y antropofagia brasileña (ANDRADE,
1928; ANDRADE, 1924). En el capítulo introductorio discuto los conceptos básicos de la tesis.
En el segundo capítulo, me centro en las canciones “Um Índio” (1977) de Caetano Veloso,
“Xondaro Ka'aguy Reguá” (2020) de Kunumi y “Tubi Tupy” (1999) de Lenine y Rennó, cuyos
análisis conducen a la propuesta del concepto de indiofuturismo. En el tercero capítulo, abordo
la figuración de la mujer indígena, estudiando "Indígena futurista" (2022), de Katu Mirim, y
"Mãos Vermelhas" (2019), de Kaê Guajajara, desde la perspectiva de los Estudios de Género,
buscando similitudes y diferencias entre las teorías de la interseccionalidad (CRENSHAW,
1986; LUGONES, 2014; ANZALDÚA, 2016; MENDOZA, 2016) y el feminismo comunitario
(PAREDES, 2010; 2015; 2018). En el cuarto capítulo, propongo un escrutinio de las cuestiones
ambientales y esbozo diálogos entre el concepto de bem viver (sistematizado por Acosta, 2016),
que se basa en la filosofía de los pueblos indígenas y el ecofeminismo, y las canciones
“Serpiente-Mulher” (2021), de Suraras do Tapajós, y “Amor de Índio” (1978), de Beto Guedes
(1978), centrándose en las formas en que los campos de estudio mencionados se entrelazan con
la idea de ascendencia. Los trabajos de Canclini (2008), Krenak (2020) y Wisnik (1989; 2019)
son utilizados a lo largo del recorrido analítico, pues plantean problematizaciones que permean
la tesis. Los resultados de los análisis demuestran que las canciones indiofuturistas están
guiadas por cosmovisiones indígenas que se oponen al capitalismo y al Antropoceno. De esta
crítica concluyo que el indiofuturismo no está ligado al tiempo lineal, sino a concepciones
ancestrales del tiempo espiral. Además, los análisis están en línea con los principios de bem
viver que, como un concepto especialmente importante en América Latina, tiene estrechos
vínculos con los pueblos indígenas locales. Las reivindicaciones y luchas sociales y ambientales
de estos pueblos están presentes en estas composiciones, invitándonos a explorar nuevas
estrategias para habitar Pacha Mama y Abya Yala en una convivencia respetuosa con otras
formas de vida, a partir de saberes ancestrales. Esta tesis contribuye a la expansión de los
postulados de las áreas de estudio mencionadas anteriormente, al proponer el indiofuturismo,
que es un enfoque teórico aún en desarrollo en Brasil.
Palabras clave: pueblos indígenas; utopismos; música pop brasileña; indiofuturismo; Estudios
culturales.
LISTA DE FIGURAS
cultural que nasce nos Estados Unidos e que exalta, no sentido do seu protagonismo, as ditas
minorias étnicas, notadamente, os afro-americanos. Os afrofuturismos são bastante
influenciados pela estética sci-fi e, posteriormente, Cyberpunk, conseguindo unir essas
projeções super tecnológicas a elementos e narrativas de África de maneira a ressignificar o uso
da tecnologia a favor do fortalecimento e da valorização das memórias e de suas raízes culturais.
Ressalto também que a escolha pela palavra “índio” deu-se de maneira deliberada por
dois motivos: (1) para ressignificar esse vocábulo de maneira política, uma vez que foi
amplamente utilizado de maneira pejorativa e totalizante contra os povos indígenas, mas
também serviu (e ainda serve) para uma unificação estratégica da identidade pluricultural dos
povos originários e (2) para distinguir os indiofuturismo do conceito de indigenous futurisms,
de Grace Dillon que é basilar para esta tese, mas que apresenta algumas diferenças em relação
ao que postulo aqui.
Abro um parêntese para esclarecer a concepção de tecnologia e temporalidade que
permeia todas as análises e que por isso serão retomadas constantemente neste texto. O conceito
proposto por servir como um dos norteadores para o entendimento deste importante eixo da
tese que apresento como uma das características dos indiofuturismos. Para Verzato et al. (2008,
p. 67), algumas concepções de tecnologia são incompletas ou reducionista, como por exemplo,
a concepção intelectualista que
Atrelada a essa definição limitante, há outras, também citadas pelos autores: neutralidade,
cientificismo, otimismo e pessimismo científico, utilitarismo etc. O problema do conceito de
tecnologia como intelectualismo é que ele exclui, por exemplo, o empirismo que muitas vezes
está na base do saber tecnológico, em outras palavras, essa visão elitista, propõe que apenas
dentro de laboratórios e universidades é que se desenvolvem tecnologias e ciências. Uma visão
ocidentalizada e, a meu ver, individualista e, muitas vezes1, orientada pelo lucro, uma vez que
considera a tecnologia uma exclusividade dos métodos dos/as cientistas ocidentais, invalidando, com
1
Não se nega que existam cientistas e organizações que fujam a esse modelo, o objetivo aqui não é criticar a
intelectualidade, mas sim o intelectualismo radical. Aqui entendido como uma postura de inflexibilidade e
arrogância frente a quaisquer outras formas de conhecimento que não sejam obtidas pelos seus próprios métodos.
Tal postura caminha para o etnocentrismo e práticas de apagamento cultural.
15
esse argumento, todas as outras formas de fazer, saber e utilizar, como por exemplo as tecnologias e
ciências dos povos tradicionais. E uma das maiores diferenças entre os fazeres científicos dos povos
tradicionais e da sociedade ocidentalizada reside justamente no fato de que o saber dos povos originários
é comunitário, geralmente, coletivo, não sendo propriedade de ninguém, é um bem comum a todos/as.
A citação acima examina pontos importantes para uma definição de tecnologia. Considero que
a diferenciação entre tecnologia e ciência, a ênfase nos contextos sócio-culturais e o destaque
na criação para satisfação de necessidades pessoais e coletivos, pode promover o diálogo dessa
concepção de tecnologia, num contexto de saberes originários, por isso, utilizo-a como base
para reflexões acerca de tecnologia nos indiofuturismos.
Além disso, é preciso compreender o conceito de tempo para os povos indígenas para
perceber que esse projeto de futuro diz respeito a um futuro-presente espiralar e que ele não
necessariamente pressupõe uma corrida temporal linear tecnológica ou uma disposição ao
“progresso” conforme entendido pelo senso comum como avanço. Isso porque as artes
indiofuturistas propõem-se justamente a se engajarem numa crítica ao consumismo
desenfreado, às desigualdades sociais, raciais e de gênero e, principalmente, à destruição
ambiental que lhes rouba território, identidade e memória em nome de um desenvolvimento
progressista que não é apenas ilógico, mas verdadeiramente suicida por não respeitar os ciclos
da vida e o direito de ser e existir neste planeta. Nas palavras de Ailton Krenak em seu recém-
lançado livro O futuro é ancestral (2022, p. 50-51):
Para começar, o futuro não existe – nós apenas o imaginamos. Dizer que
alguma coisa vai acontecer no futuro não exige nada de nós, pois ele é uma
ilusão. Então, pode se depositar tudo ali como em um jogo de dados.
Infelizmente, desde a modernidade, fomos provocados a nos inserir no mundo
de maneira competitiva. E essa competitividade, estimulada durante séculos,
acabou formando um mundo de jogadores. Se o futuro der certo: “Bingo”!
Mas a verdade é que estamos vivendo cada vez mais a projeção de futuros
muito improváveis embora continuemos preferindo essa mentira ao presente.
16
2
Alternarei entre o singular indiofuturismo e o plural indiofuturismos, pois, a partir do conceito pretendo reunir,
sem reduzir ou unificar os procedimentos artísiticos que se apresentam como plurais, visto que advém de origens
e contestos diversos.
3
Bem Viver é um conceito sistematizado majoritariamente por pensadores ocidentais, tendo origem na filosofia
de Sumak Kawsay de origem Quéchua e do Suma Qamaña dos Aymara. Este denota um conjunto de práticas e
maneiras de viver e conviver bem com os demais seres. No capítulo quatro desta tese, desenvolvo melhor esta
discussão.
17
também realça o fato de que as populações nativas em todo o mundo têm diferentes visões de
mundo e valores que as orientam, assim, seria mais apropriado falar em termos plurais.
Dillon têm sido uma ativista e uma profícua autora e editora no campo das Ficções
científicas, então seu foco ao tratar dos futurismos indígenas tem sido voltado prioritariamente
à escrita criativa e às narrativas nativas que propõem diferentes maneiras de criar mundos
“alternativos”, profundamente arraigados nas ciências indígenas e no enfrentamento do
colonialismo4 continuado promovido pelo capitalismo, inclusive, na indústria literária.
Assim, Dillon encoraja que diversos povos e grupos reapropriem-se de suas narrativas
e as atualizem. Bem como incentiva o diálogo à respeito das artes e ciências indígenas, de forma
que diferentes pessoas sob diferentes perspectivas possam propor futurismo indígenas em seus
próprios termos.
Assim, ao propor o indiofuturismo enfoco a representação de povos e indivíduos
originários especificamente no cancioneiro popular brasileiro, promovendo uma crítica acerca
dessas figurações.
Outro ponto específico que minha tese levanta é a correlação entre o indiofuturismo e o
bem viver (conceito indígena de povos Kéchua e Aymara, habitantes de Abya Yala), visando
ponderar acerca das sabedorias oferecidas por este conceito para a conturbada relação que tem
se estabelecido entre a espécie humana e Pacha Mama ou a Terra. A relação entre futuro
ancestral e bem viver está presente no discurso de Ailton Krenak (2022, p. 60), quando ele
afirma que:
Tomo por base, portanto, o futuro ancestral para construir minha proposta de indiofuturismo,
uma futuridade calcada nos conhecimentos ancestrais que resgatam formas de bem viver e que
embora sejam saberes antigos, surgem aos olhos da sociedade ocidental como novos e
inventivos, por terem sido subalternizados dentro da lógica racista e tecnicista das sociedades
que se orientam pela ideia de progresso e avanço.
4
Entendo que colonialismo, colonial, índio, indígena, povos originários são palavras insuficientes ainda e que se
constituem num perigoso campo minado conceitual, motivo pelo qual vêm sendo amplamente debatidas e
ressignificadas ao longo do tempo. No entanto, é necessário ainda utilizá-las na ausência de alternativas mais
claras, embora esteja consciente de que não estão isentas de uma disputa de sentidos políticos-culturais.
18
Por último, sustento a necessidade de um olhar mais meticuloso sobre as relações entre
visões indígenas e não indígenas e suas diversas formas de organização social e valores. Ao
veicular tais visões de mundo, objetivo confrontar a perspectiva unilateral ocidental, bem como
enfrentar o apagamento dos saberes, ciências e cosmovisões indígenas no Brasil, um país que
é meramente terra indígena e que foi criado à custa de genocídios, apagamentos, preconceitos
e desvalorização desses mesmos povos originários.
É preciso também mencionar a existência do termo amazonfuturismo que nasce a partir
das obras do artista visual João Queiroz (2019) e das definições do autor Rogério Pietro (2021).
Esse termo diz respeito às representações estéticas e visuais que enfatizam a Amazônia sob o
ponto de vista dos povos indígenas. Imagens indígenas permeadas pela tecnologia e inspiradas
sobretudo pelo estilo Solarpunk e pelo Cyberpunk e pelo movimento afrofuturista. A vocação
prioritariamente estética do amazonfuturismo não desabona sua criatividade e pioneirismo
artísticos, porém leva a um afastamento dos conceitos de Futurismos indígenas e
indiofuturismo, porque busca esquivar-se tanto quanto possível dos confrontos sociais e das
lutas ambientais protagonizadas pelos povos indígenas. Não quero, contudo, afirmar que o
amazonfuturismo seja isento de ideologias sociais e políticas, pois, sendo um movimento ainda
em formação poderá adquirir diferentes feições, dando origem a vertentes diversas de
composição visual e orientação política. O movimento tende a mudar de formas e agendas
aperfeiçoando-se, de acordo com suas necessidades e valores e, claro, com a recepção. Vitor
Castelões Gama, em seu artigo “De onde vem e para onde vai o amazonfuturismo” (2021),
levanta alguns questionamentos sobre o movimento, no sentido de sua tendência ao exotismo e
sua postura pretensamente apolítica. No entanto, creio que essa nomenclatura importante tende
a crescer e a modificar-se junto e de acordo com o contexto e a diversificação de autoria. Assim,
deixo registrada também a ocorrência desse termo que traz movimento e novidade para o
cenário artístico ligado aos povos originários e que representa mais uma expressão inquietante
sobre o imaginário brasileiro em relação ao nosso legado e à existência e resistência indígenas.
Discorro, a partir deste ponto, sobre o meu processo de composição, explicitando
minhas orientações e objetivos e contextualizando ao público leitor, as condições de produção
da pesquisa empreendida e de seu produto: esta tese.
Escrever esta tese foi um desafio intelectual (dadas as condições de produção no Brasil
de 2018-2022) e um prazer pessoal, pois me possibilitou uma maior aproximação com os
saberes e com as artes dos povos originários a quem respeito e admiro profundamente. Meu
posicionamento acadêmico alinha-se (e sempre se alinhou) ao meu posicionamento ético,
político e subjetivo. Escrevo, portanto, em primeira pessoa, do lugar de uma mulher, teórica,
19
trabalhadora, mãe e descendente indígena que acredita em fazer pesquisa com uma seriedade
alegre e leve, sempre me posicionando e falando por mim, pois não acredito em neutralidades
posicionais. Justifico, desse modo, que não posso produzir de outra maneira, pois sou feita de
intelecto, mas também de afetos e de terra.
Meu interesse é abrir um diálogo sobre o que nomeio indiofuturismo, lançando um olhar
sobre algumas composições que foram selecionadas por suas similares características que serão
apontadas adiante - ainda que cada compositora ou compositor consiga transformar o igual em
inédito e o velho no novo através da arte - entrelaçando conhecimentos indígenas e acadêmicos,
entremeados pela invenção.
Esta tese, por ter a premissa de discutir canções apresenta a dificuldade de traduzir para
a linguagem escrita (por isso, sem timbre, sem melodia e sem vibração sonora), tais
particularidades. Esse é o motivo pelo qual recomendo fortemente a audição da trilha sonora
aqui proposta5, que enriquecerá bastante a leitura.
Inicio esse percurso por este capítulo, intitulado “Palavras, imagens e sons: trilhas para
Pindorama”, que se constitui como introdução que lança os conceitos basilares, indica os
critérios de seleção e oferece, ao seu final, um mapa de como organizei os capítulos seguintes.
A seguir, explicito as escolhas e decisões teórico-metodológicas que nortearam esta tese.
1.2 Cartografias e geografias: terras e lutas reais e sonhadas, desde Abya Yala à
Pindorama
Optei por usar a nomenclatura “Abya Yala” (sempre que possível) para designar a
América Latina e “Pindorama”6 para designar o território brasileiro, porque entendo essas
expressões como vozes e nomeações da resistência, mas também porque elas se configuram
como uma comunidade sonhada/imaginada que existe em coalizão e em sobreposição ao
território geográfico-político brasileiro definido por mapas, tratados e guerras.
Benedict Anderson, elaborando o pensamento de Renan, explica que as comunidades
imaginadas partem daquilo que seus membros escolhem lembrar e esquecer simultaneamente.
Em suas palavras, “dentro de um espírito antropológico, proponho a seguinte definição de
nação: uma comunidade política imaginada – e imaginada como sendo intrinsicamente limitada
e, ao mesmo tempo, soberana” (ANDERSON, 2008, p. 32). Penso que a definição de nação
proposta por Anderson pode ser utilizada também para o continente, pois, tanto nação quanto
5
Os links estão disponíveis no apêndice.
6
A partir de agora, não usarei mais as aspas, uma vez que as referências serão explicitadas abaixo.
20
continente estão inclusos no conceito de comunidades imaginadas. No caso de Abya Yala, essa
construção é política e cultural.
Em um movimento de insurgência, os povos indígenas voltam a chamar a América
Latina de Abya Yala, não na esperança de redefinir os mapas atuais, mas recuperando, por meio
da ressignificação, o seu direito de existirem nessa terra e, ao mesmo tempo, criarem uma
espécie de comunidade comum, em que os povos originários possam coexistir, colaborar e se
reconhecer mutuamente. Ao discorrer sobre os sentidos que a expressão Abya Yala condensa,
Carlos Walter Porto-Gonçalves (2009, p. 26) esclarece-nos que
Essa afirmação importa não só pelo contraponto, mas pela unidade que constrói em torno desses
povos que se veem irmanados pelo sentimento de pertença às culturas que lhes dão nomes e aos
territórios que lhes dão vida. O simples apagamento do nome “colonial” já implica um
posicionamento étnico e político no emprego dessa expressão, que carrega também sinais de
uma forte conexão desses povos com o território, uma vez que as palavras “madura”, “viva” e
“em florescimento” remetem a um organismo em plena saúde que ecoa também os desejos e os
intentos desses povos em relação ao território em que habitam.
Porto-Gonçalves (2009) afirma que a escolha do nome Abya Yala se dá em
reconhecimento à luta dos Kuna que, entre 1920 e 1930, se rebelaram contra o Estado
colombiano pela demarcação das suas terras, sendo pioneiros na conquista da manutenção do
território e abrindo, assim, precedente para a luta das demais nações indígenas na retomada de
suas terras. Ainda seguindo Porto-Gonçalves (2009, p. 29-30), trago em relevo a citação que
segue sobre a relação entre política-território e naturezacultura (HARAWAY, 2003). O autor
propõe que, para os povos originários,
Chamo a atenção para o protagonismo político e para o avanço ambiental que jaz na força dessa
renomeação. Trata-se de um protagonismo que passa pelo ato de dar nome e voz às perspectivas
políticas, étnicas e socioambientais que orientam, de modo geral, os povos nativos. Além disso,
esse outro sistema, que se apresenta como horizonte dessa luta, recupera a marcha de uma
esperança militante (BLOCH, 2005) que reivindica, através da luta e da esperança, uma utopia
da continuidade da vida humana de qualidade sobre este planeta.
Ratifico, por fim, que, ao usar a expressão Abya Yala ao invés de América Latina,
recupero a força dessa luta e a potência que ela tem de nos levar a uma maneira de viver que
seja menos danosa, mais harmoniosa e justa nesse já tão golpeado continente e, por extensão,
naquilo que entendo como outros mundos possíveis.
Semelhante ao fato de que Abya Yala passa a ser uma retomada linguística de territórios
que outrora pertenceram aos povos originários e, ao mesmo tempo, um signo da união desses
povos em luta, Pindorama retoma a ideia de um Brasil indígena, um território anterior à
“descoberta” cabralina. A lógica de nomear para recuperar pode ser aplicada ao uso do vocábulo
para fazer referência às terras brasileiras sob o ponto de vista indígena. Embora saibamos que
o Brasil não era uma nação ou território unificado, os povos indígenas escolheram esse nome
para, simbolicamente, unir suas etnias e nações em uma batalha por justiça social e ambiental 7.
Assim, utilizo Pindorama sempre que em relevo estiver a sonhada nação sem males, terra das
palmeiras, que é o horizonte buscado pela luta originária pela terra. De acordo com Aline
Magalhães (2018), Pindorama era como os Tupi-Guaranis chamavam o Brasil antes da chegada
dos portugueses, em 1500. Do Tupi, a palavra pindó-rama, como abreviação de pindó-retama,
significa ‘Terra das Palmeiras’”. Ainda segundo Magalhães (2018, n. p.):
7
Assim como foi feito com a palavra “índio” nos anos 80 e a expressão “povos indígenas” atualmente.
22
Evidencio, nesse trecho, a dicção utópica e mítica inerente a essa visão de terra sem males, um
lugar em que equilíbrio, abundância e diversidade, características principais e em que a
subjetividade se encontra profundamente ligada à terra, sendo base da ontologia dos povos
originários que, não por acaso, são também chamados povos da terra.
Cantar Pindorama, portanto, é repertoriar as imagens de um topos imaginado e desejado,
é compor e performar este lugar sonhado, figurando seus povos, terras, anseios, maneiras de
vida; é construir com canções um espaço-tempo imagético fronteiriço entre o território que hoje
habitamos e aquele que é vislumbrado pelos povos indígenas. A escuta dessas vozes, de suas
metáforas, referências, recorrências, oportuniza o questionamento da maneira como vivemos e
nos organizamos; o apagamento de imagens, sons e saberes nativos ao longo da história; nossa
relação com o ambiente e com alteridades étnicas, revelando como nos constituímos e nos
representamos por meio da poesia.
Para os Guarani, os seres humanos são sons encarnados, as palavras-almas, e, em sua
visão de mundo, assim como para diversos povos originários, em especial os andinos, a palavra
e a música são sagradas, pois são expressões do divino em ação e em movimento. Há
importância em cultivar a boa palavra, as boas canções e de propagar através do som que se
espalha pelo ar as né’e porã tenondé ou palavras formosas. Segundo Kaká Werá (2021, p. 47),
“[n]a tradição Tupi, existe algo que antecede o natural e interfere em toda a natureza, em suas
forças e, consequentemente, nas divindades que as sustentam: o som e o silêncio. A palavra
tupi significa ‘som-assentado’, ou ‘som-de-pé’”. Pode-se avaliar, então, a importância da
linguagem falada e musicada, assim como seu impacto para esse povo. Ainda de acordo com
Werá (2021, p. 191):
Pode-se depreender, da mitologia Guarani, que não só o humano é uma palavra encarnada,
como seus próprios Deuses e seres co-criadores manifestam-se através de sons que são
transmitidos e materializados em vidas na Terra. Percebe-se a indissociabilidade entre gente e
natureza, matéria e espírito, vivente e divindade, estando todos os seres intrincados por uma
substância comum, o som. Considero, portanto, que o som, a palavra e a música não apenas
estão na base da mitologia Guarani, eles são essa base: a essência de tudo o que existe e também
o meio pelo qual outras esferas e dimensões da existência se afetam e se comunicam.
Davi Yanomami Kopenawa também revela traços da cosmovisão oral Yanomami, que
em muito se assemelham à narrativa Guarani. Para ele, as palavras que foram narradas a Bruce
Albert no processo de composição de A queda do céu não eram palavras suas, mas de Omama
(divindade criadora), que ele trazia guardadas no fundo do seu pensamento e da sua alma, “são
palavras antigas, mas os xamãs as renovam o tempo todo. Desde sempre elas vêm protegendo
a floresta e seus habitantes” (2015, p. 65). Aqui vemos, mais uma vez, a palavra (que na
cosmogonia guarani é referida como o verbo) sendo herdada da divindade e sendo valorizada
como uma força capaz de repercutir no mundo para gerar e proteger a vida. Lembro também
que para ambos os povos, os sons tanto das palavras/verbos quanto da música são sagrados. Em
outro trecho relevante para a discussão, lemos:
Esse riquíssimo relato reforça a importância da música para os povos originários e, ao mesmo
tempo, nos fornece uma compreensão de como a música está presente na cosmovisão, na
religiosidade e no dia a dia desses povos. É interessante notar que novamente temos um
intermédio da música divina criacional realizado aqui pelos xapiri (espíritos da floresta) e pelas
24
árvores amoa hi; enquanto na narrativa Guarani, pelos cocriadores. O relato de Kopenawa
recupera experiências de sua iniciação xamânica e ele sustenta algo bastante inesperado nesse
trecho: a fonte de inspiração musical de Yanomamis e não indígenas seria a mesma, as árvores
amoa hi ou árvores do canto que existem nos confins do mundo. A existência de axis mundi já
foi estudada por inúmeros mitólogos ao longo dos anos. Duas referências mais conhecidas sobre
o assunto são, provavelmente, Mircea Eliade (2011) e Joseph Campbell (1995), que dedicaram
capítulos de seus escritos à árvore da vida ou eixo do mundo. A figura da axis mundis é
difundida em diversas mitologias religiosas e étnicas: cristianismo, judaísmo, jurema, povos
maias, hindus, vikings etc. Na cosmologia Yanomami, a árvore que canta ressalta ainda mais o
aspecto vivo da música e a ligação dos povos originários com a natureza e sua sabedoria.
Cito ainda duas obras que dialogam com as narrativas acima mencionadas por serem
objetos-performances musicais que ressaltam a importância da música e das cosmovisões que,
em suas riquezas culturais e artísticas, estão na base do nosso fazer musical brasileiro, uma vez
que dos povos tradicionais herdamos não somente traços fenoótípicos, mas, nossa própria
musicalidade tem raízes fincadas nas tradições originárias, o que lhe confere ainda mais beleza
e força e que nos diferencia daquelas compostas em outras terras, pois é carregada também da
originalidade e da idiossincrasia da gente originária dessa terra.
Abaixo, vemos um frame do videoclipe Amoa Hi8, da musicista e historiadora Camila
Lordy, lançando em 2021 com animação de Márcio H. Mota, cuja composição homenageia o
texto de Davi Kopenawa citado anteriormente.
Fonte: YouTube
8
Ver vídeo completo em: <https://www.youtube.com/watch?v=JXvMNgNbITc&t=1s>.
25
AMOA HI nasceu de uma proposta que fiz para um artista de Brasília, Márcio
H Mota, para interpretar a história do xamã Yanomami, Davi Kopenawa, ao
visitar os confins da Terra onde estão escondidas as árvores com troncos de
lábios que cantam sem parar. Para minha alegria e surpresa, o Márcio
compreendeu tão bem o espírito da história que não precisei acrescentar nada,
só estimular a viagem para um mundo espiritual muito bem traduzido por esse
animador.
Camila Lordy, que se inspirou e se encantou pela narrativa Yanomami, também compôs, em
parceria com Pedro Ito, a faixa intitulada “Ñmandu”, cuja origem é a narrativa mítica dos Tupi-
Guarani e o cerne é a sacralidade do som e a ideia “d’A Grande Escuta”, pois, para os povos
desse grande tronco, o objetivo humano é se tornar um Avaeté ou Abaeté, que “é o ser
verdadeiro que aprendeu a escutar com o coração a melodia escondida em cada corpo, em cada
forma criada pela “Grande Escuta” [natureza divina]. Aprender a escutar é a grande tarefa do
ser humano” (LORDY, 2021, n. p.). Retornarei ao texto de Camila Lordy nas análises, retomo-
o aqui apenas para destacar a riqueza dessas mitologias e sua profunda influência no fazer
artístico, especialmente musical, brasileiro.
Já a obra apresentada a seguir está localizada em uma colina em Burnley, condado de
Lancashire-Inglaterra, e é uma escultura gigante em formato de árvore, formada por milhares
de tubos de aço galvanizado, cujo resultado é a produção de sons parecidos com os de uma
flauta, que ocorrem de acordo com o vento que atravessa os tubos. O nome da peça é “Singing
ringing tree” e foi concebida por Mike Tobin e Anna Liu, no ano de 2006, atraindo turistas e
curiosos/as por sua característica inusitada de produzir música por meio do movimento das
correntes de ar. Uma obra como essa presentifica a música através dos sentidos e pode levantar
o questionamento sobre o que é música e quem faz música. Por ser a peça confeccionada em
formato de árvore, remete à árvore Amoa hi e outras axis mundi e intervenções artísticas9 que
9
Para mais obras artísticas que produzem sons a partir de fontes naturais, cf. “7 esculturas sonoras que permitem
que a natureza seja música”, MDIG (2019) disponível em: <https://www.mdig.com.br/index.php?itemid=36897>.
26
nos levam a questionar os eixos e os sentidos da existência humana por meio da arte e da
mitologia.
Fonte:site Mdig
Assim como a Amoa Hi e a representação artística da “árvore que canta”, temos em nossa
cultura diversas árvores que são sagradas como o baobá, para os povos Yorubá e seus
descendentes; a Jurema, o juazeiro, a sumaúma e a paixiúba para indígenas, entre outras. Além
de serem árvores que simbolizam a axis mundis, também são plantas com propriedades
curativas.
Uma vez que estabeleci, por meio desses diálogos entre os conceitos de palavra, verbo
e música, as fontes e pontes entre o fazer musical e a representação e filosofia cosmogônica e
identitária que partem de povos originários, mas também abarcam e se alastram por diversas
culturas e localidades, passo a apresentar o corpus e como se deu sua seleção na seção que
segue.
A seleção do corpus deu-se, inicialmente, por meio da busca por palavras-chave nos
portais de pesquisa e pelo escrutínio de letras de canções que tematizavam pessoas, povos ou
culturas indígenas, desde 1900 até o ano de 2021. A pesquisa abrangeu canções gravadas em
LP’s e CD’s, lançadas em plataformas de áudio e vídeo (como Youtube, Spotfy, Deezer etc.) e
27
possível, entre outras contribuições, propor o indiofuturismo para analisar um repertório que
apresenta características únicas, reclamando assim um conceito inédito e mais apropriado ao
seu estudo.
No capítulo que versa sobre os embates de gênero, por exemplo, o estudo desvela a
profunda ligação entre corpo, território e espírito que existe na base da ontologia das mulheres
indígenas, motivo pelo qual a hierarquização das múltiplas opressões por elas sofridas ganha
uma organização diferencial em relação à das mulheres não indígenas. Tal fato mostra-se na
composição artística, dando um maior relevo à mimetização de problemáticas como a
demarcação de terra e a manutenção da cultura, embora a luta contra a violência impulsionada
pelos preconceitos de gênero não seja deixada de lado.
O já mencionado indiofuturismo é outro conceito que nasce das especificidades da
figuração indígena na música popular, uma vez que há um conjunto de canções que tematizam
uma inserção cultural da natividade no presente-futuro do Brasil que, ao mesmo tempo em que
retoma e exalta elementos ancestrais, dialoga com as tecnologias digitais e imprime um caráter
combativo aos discursos poéticos das canções analisadas.
A análise de temáticas relativas à terra e ao modo de ser e viver indígenas revelam
também, diante dessa cosmovisão distinta, uma necessidade de promover diálogos entre as
teorias do Ecofeminismo e do bem viver, unindo e confrontando maneiras de leitura da realidade
ambiental. Esse diálogo se mostra necessário e transversal nesta tese, haja vista, por
exemplo, que o Bem Viver, estando profundamente arraigado na identidade nativa, permeia e
impacta também as noções de poético e de poesia.
Esta tese demonstra, então, que entre as peças constituintes do presente
corpus apresentam-se características heterogêneas e contrastantes, não somente pela diferença
ontológica, mas também na maneira como essa diferença orienta distintamente os fazeres
poéticos, a partir dos eixos temáticos recorrentes, tais como: diferença racial, futurismos,
ancestralidade, ambientalismo/território. Saliento ainda que a diferença ontológica que destaco
é concernente à relação identitária que, para o/a indígena, é prioritariamente coletiva, em
contraponto à visão individualista ocidental. As poéticas indígenas reclamam a necessidade de
uma análise que considere valores diferenciais não calcados no etnocentrismo ou apenas na
visão canônica ocidental de arte que, de maneira geral, é ainda muito afim à crítica acadêmica.
Ademais, composições de indígenas e não indígenas podem ser comportadas numa mesma
poética, se levarmos em consideração o espaço fronteiriço identitário que é, especialmente no
Brasil, provisório e instável, levando, por exemplo, pessoas não indígenas a construírem com
sucesso em sua poética espaços interstícios que se filiam às temáticas e aos modos de dicção
29
indígenas. Considero, por isso, como indígena toda poética (independentemente de sua autoria,
do seu ritmo, do seu idioma ou da temporalidade) que se alinhe aos tropos aqui apresentados e
que se valha da figuração indígena, uma vez que na literatura nativa não existe a eleição de um
cânone poético hierárquico de modo similar ao cânone ocidental.
O trecho a seguir integra o primeiro documento oficial produzido no Brasil, por Pero
Vaz de Caminha, e endereçado ao rei D. Manuel, dando conta das terras recém-achadas, àquela
ocasião nomeadas Terra de Vera Cruz. Esse fragmento em particular narra o primeiríssimo
contato (ao menos de que temos conhecimento) dos colonizadores com os nativos que se
apresentaram ali à praia para testemunhar a chegada de estranhos visitantes em suas terras:
“Eram pardos, todos nus, sem cousa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Nas mãos
traziam arcos com suas setas. Vinham todos rijos sobre o batel; e Nicolau Coelho lhes fez sinal
para que pousassem os arcos. E eles pousaram” (CAMINHA, 1500, p. 2). Os guerreiros
acudiram armados à borda das águas, no entanto, desarmaram-se ao primeiro sinal de que os
forasteiros vinham em “missão de paz”. Mas não é de paz que falam os números que dão conta
da extinção de milhões de pessoas e de suas culturas. Todavia, a descrição de homens e
mulheres pardos e inocentes confraternizando com os recém-chegados sugere reverência e
subserviência dos povos indígenas aos estrangeiros. Essa representação de natividade,
eternizada pela carta de Caminha, entrará para a história influenciando enormemente uma certa
visão estereotipada de indígena brasileiro/a que se perpetua.
A importância desse documento e de suas descrições e elucubrações é imensa, pois é o
primeiro registro de representação dos povos nativos brasileiros que vamos encontrar e
muitos/as brasileiros/as tiveram (e ainda têm) acesso a trechos dessa narrativa, desde a mais
tenra idade, nas salas de aula. No ambiente escolar, também somos expostos/as às
representações de indígenas por meio das canções10 e da literatura voltadas ao público infantil
(a maioria delas reprodutoras dos estereótipos correspondentes à primeira visada de Caminha);
tal construção culmina com a data comemorativa de 19 de abril.
Essas representações, que vão informar o imaginário popular, sofrem mudanças desde
o período colonial, mas mantêm, quase sempre, aspectos estereotipados e cristalizados. Esses
estereótipos estão inscritos na história, uma construção social e discursiva que parte,
10
Somente para citar os exemplos mais famosos: “Curumim Iê Iê”, gravada por Mara Mavilha, “Brincar de
índio”, performada por Xuxa Meghel.
30
11
Cf. Sérgio B. de Holanda (2013), Darcy Ribeiro (1995), Renato Ortiz (1985), Gilberto Freyre (1985), entre
outros.
12
Diversos movimentos políticos e econômicos vão se apropriar da imagem de indígena para pleitear o
cumprimento de suas agendas que, muitas vezes, incluíam como projeto fomentar certa identidade nacional. Pode-
se citar, como exemplo, o movimento integralista propalado por Plínio Salgado, que alardeava a união nacional,
incluindo o uso da figura do índio, do negro e da mulher como bandeiras da união nacional, visando inflamar o
sentimento ufanista na população. De acordo com Rogério Sousa e Silva (2005), “as ideias nativistas foram uma
das principais características do movimento integralista. As culturas indígenas eram vistas como parte essencial
31
Cito, além da carta, algumas obras alinhadas à visão “civilizatória” para demonstrar a
constância da representação indígena e seu papel na formação de uma nacionalidade e de suas
transformações ao longo do tempo. Começo o percurso de citações de obras que se ocuparam
da representação do/a indígena como elemento de identidade nacional pelos poemas: O Uraguai
(1769), de Basílio da Gama, e Caramuru (1781), de Santa Rita Durão, sendo os dois autores de
nacionalidade portuguesa. Situadas dentro da estética neoclássica árcade, e por isso mesmo
muito ligadas ainda à visão estética europeia, as duas obras bebem da fonte de Luís de Camões,
possibilitando a análise intertextual comparativa com os versos épicos de Os Lusíadas (1572).
Elas podem ser destacadas como representativas da questão indígena, antes mesmo das
celebradas peças do Romantismo, que recebem, de maneira geral, mais atenção da crítica.
Também menciono os sermões do Padre Antônio Vieira que se referem à imagem de pessoas
indígenas.13
Contudo, na literatura brasileira, é com o Romantismo que os valores ufanistas nacionais
são levantados (aparentemente) em detrimento dos estrangeirismos. E, retratando “o índio”
como herói mítico, ganham mais força. Além disso, conforme caracterizou Luís Fiorin (2009,
p. 115-116):
da formação brasileira”. O autor ainda aponta para uma certa influência do Modernismo nas ideias integralistas,
apesar de ressaltar também “uma espécie de resgate do Romantismo” no que concerne à ideia de “reinvenção da
nação e na nova independência” a ser promovida pelo movimento, em que “o índio seria o símbolo brasileiro por
excelência”.
13
Cf. Melo (2013) para um estudo sobre a construção da alteridade nativa no discurso religioso.
32
considerava a mestiçagem como o jeito de ser brasileiro” (FIORIN, 2009, p. 120), por meio de
um processo de assimilação e, por conseguinte, modificação do que é significativo e importante
das outras culturas. “Não é sem razão que Oswald de Andrade erigiu a antropofagia como o
princípio constitutivo da cultura brasileira” (FIORIN, 2009, p. 120).
Com uma representação mais próxima à realidade social e mais crítica da condição do
indígena, encontraremos, nas dicções de Antônio Callado (1984), Darcy Ribeiro (1993) e
Guimarães Rosa (2001), uma identificação da pessoa mestiça imersa numa situação identitária
de não pertença. A representação dos/as indígenas nesses autores tende a se afastar da suposta
e alardeada “mistura” harmoniosa de raças e culturas que formaria a identidade nacional. Em
outras palavras, essa linha de representação passa a apresentar heterogeneidades
identitárias/étnicas resultantes da aculturação. A esse respeito, cito Luzia Aparecida dos Santos
(2009), cujo trabalho cuidadoso traça um excelente histórico do trânsito de representação
indígena na literatura.14 Ela ressalta essa característica e, ao mesmo tempo, aponta para a
diferença entre esse tipo de representação, que denomina indigenista, e aquela anteriormente
empreendida pelo movimento Romântico, que é chamada de indianista.
Mais recentemente, autores/as contemporâneos têm tido uma visibilidade um pouco
maior, especialmente no campo da autorrepresentação, construindo suas bases literárias de
maneira plural e a partir do conhecimento direto da realidade desses povos e da ancestralidade
que existe e resiste na oralidade. Alguns nomes que têm se destacado mais fortemente nessa
seara são Davi Kopenawa Yanomami, Daniel Munduruku, Ailton Krenak, Lia Minapoty, Graça
Graúna, Carlos Haky’i, Eliane Potiguara, somente para citar alguns exemplos. Usando as
palavras da escritora Graça Graúna:
14
Cf. O Percurso da Indianidade na Literatura Brasileira (2009), obra ao longo da qual Luzia Aparecida Santos
teoriza ocupando-se de criar um panorama de representação indígena ao enfocar diversas obras literárias. Entre
essas obras, estão: A carta do descobrimento, de Pero Vaz de Caminha; Iracema, O guarani e Ubirajara, de José
de Alencar; Os timbiras e I-Juca Pirama, entre outras obras da poética de Gonçalves Dias; alguns poemas
escolhidos das obras de Gregório de Matos e Oswald de Andrade; trechos de Sermões, de Padre Antônio Vieira;
Uraguai, de Basílio da Gama; Macunaíma, de Mário de Andrade; Maíra, de Darcy Ribeiro; Meu Tio o Iauaratê,
de Guimarães Rosa; Quarup, de Antônio Callado; Jupira, de Bernardo Guimarães; Cobra Norato, de Raul Bopp;
Poemas: lírica portuguesa e tupi, de José de Anchieta. As obras citadas foram alvo de análise por parte da autora
mais detidamente, no entanto, em seu livro, ela cita outras obras brasileiras que tematizam a representação do
indígena, fazendo um trabalho extenso e primoroso sobre o tema no campo da teoria literária.
33
Dialogando com a citação de Graúna, Ana Cristina Martinez (2021) afirma que, atualmente, há
mais de 60 autores e autoras indígenas nos mais diversos gêneros de escrita, tanto ficcionais
quanto não ficcionais (conto, romance, poesia, ensaios, documentários, autobiografias, entre
outros). Martinez ainda levanta uma problemática importante para a historiografia da literatura
indígena: “A Literatura Indígena sempre existiu, antes, durante e após a eterna invasão e do
‘contato’ de 1500, o que estamos presenciando na atualidade é a ‘captura’ de um instrumento
de poder e dominação ocidental, sendo transformado nas mãos indígenas em instrumento de
resistência e de luta pelos direitos indígenas”. É importantíssimo atentar para o fato de que a
cultura e a literatura já existiam aqui antes da chegada dos europeus.
Outro fato que julgo relevante é a ideia de que os povos indígenas eram povos ágrafos. O
conceito de grafia toma conotações ocidentalizadas a partir da adoção do alfabeto latino como
forma de “traduzir” a palavra falada (sons) em meio escrito (código alfanumérico). Estamos tão
familiarizados/as com a grafia do alfabeto latino como forma de grafar os sons de um idioma
que esquecemos ou ignoramos que as letras que usamos para escrever no mundo ocidental são
também símbolos, grafismos que representam sons, palavras e ideias. Por essa lógica, é possível
considerar o grafismo como uma forma de escrita, que, porém, não é aceita ou reconhecida por
não ser hegemônica.
O advento das publicações de obras de autores/as indígenas que se inicia na década de
1970 e se intensifica após a Constituinte (1988) tem tomado força, fazendo surgir editoras,
eventos e pesquisas que giram em torno de sua produção, construção, circulação e recepção.15
Como já dito, apesar de a literatura indígena ser anterior à colonização, um movimento
de crítica literária e de reconhecimento das obras artísticas e ensaísticas vem sendo construído
dentro e fora da academia para analisar, problematizar e teorizar acerca dessa escrita. Algumas
dessas obras constituem-se como “contra-narrativas” literárias (GRAÚNA, 2013), por serem
textos que reescrevem a representação indígena contradizendo aquelas escritas por autores não
indígenas que, ao ficcionalizarem o/a indígena, o fazem por meio da criação de estereótipos que
se cristalizaram em nossa literatura. A autorrepresentação é também uma estratégia de
“dessilenciamento” (SILVA FILHO, 2019) das vozes de escritores e escritoras nativas que
inserem, na literatura brasileira, novas narrativas e poéticas que falam daqueles/as cujos saberes
15
A respeito da crítica e da historiografia da literatura indígena, recomendo a leitura dos trabalhos de Graça Graúna
(2013), Amanda Machado Alves de Lima (2012), Joel Vieira da Silva Filho (2019), Maria Inês de Almeida (2009),
Janice Thiél (2012) e Ana Cristina Martinez (2021).
34
e artes estavam ainda interditos por desconhecimento e pelo apagamento cultural que nossa
sociedade promove contra as minorias étnicas no país.
Uma vez realizado esse rápido percurso literário, passo agora a discorrer sobre os
conceitos de música popular e definições acerca do cancioneiro e autoria que norteiam a tese e
explicito a maneira como ela está organizada.
Ao assumir a canção como forma literária, parto do pressuposto de que a tensão crítica
que outrora dicotomizava o binômio literatura-cancioneiro já é algo superado,16 especialmente
na área da Literatura Comparada e dos Estudos Culturais, cuja profusão de trabalhos nesse tipo
de corpus literário é significativa. Trabalhos como o de Fábio Cecchetto (2011) evidenciam a
atenção e o acatamento por parte da crítica literária sobre o cancioneiro. Nomes como Roberto
Schwarz, Afrânio Coutinho e Antonio Candido demonstram muito claramente que até entre
críticos que trabalham, preferencialmente, com uma perspectiva literária mais canônica, a
apreciação da canção como objeto literário não é mais causa de contestação. Cecchetto (2011)
é extremamente didático e lúcido ao lançar à luz a categoria música popular brasileira que, de
acordo com o autor, só pode ser considerada popular em oposição à música erudita clássica,
pois é feita e consumida prioritariamente por uma determinada camada populacional que é a
classe média. Tal afirmação, além de destacar o caráter lúdico e lírico da música, especialmente
da MPB, delineia a especificidade dessas composições, que permitem uma leitura analítica pelo
viés do hibridismo tanto de gênero quanto de discurso sociopolítico, favorecendo a discussão
realizada por meio desta tese acerca da representação da identidade nacional, a partir do
elemento indígena.
A canção é, também, uma forma literária que alcança um público bem mais amplo que
a modalidade escrita, uma vez que sua apreciação independe do/a ouvinte ser ou não letrado/a.
Além disso, pela especificidade da oralidade, esta tem um maior apelo/aceitação junto à
população, informando e veiculando o imaginário popular. Isso não implica uma simplificação
do objeto artístico, já que, como em qualquer forma de arte, diferentes peças, autores/as e
épocas vão apresentar diferentes níveis de aprofundamento crítico. Trata-se de ressaltar o
caráter, geralmente, mais expansivo e democratizante da música no Brasil, em que o acesso a
rádios, gravações de áudio e vídeo por meio de mídias digitais e televisivas é muito mais efetivo
16
Destaco, como exemplo disso, a premiação do compositor e cantor Bob Dylan com o Nobel de Literatura e,
mais recentemente, Gilberto Gil sendo eleito para a Academia Brasileira de Letras.
35
que o acesso ao livro.17 Em segundo lugar, o estudo da representação indígena nas canções
populares possibilita análise comparativa do tema nas duas manifestações (literatura escrita e
canção), podendo revelar diálogos, paródias, paráfrases etc. entre elas. Tais especulações
nascem de um levantamento inicial em que recolhi essas canções e da constatação de que alguns
desses procedimentos apresentam-se nesses exemplares. O recorte temporal adotado para a tese
vai desde os anos 1900 até os dias atuais, pois compreende o período em que começam a ser
gravadas as primeiras canções em território nacional e coincide também com o início da
popularização do rádio no Brasil (CALABRE, 2004, p. 2).18 No entanto, nem todas as canções
encontradas foram analisadas, pois primei por dar destaque àquelas que apresentam
recorrências de metáforas e temáticas que compõem o escopo deste trabalho.
No campo da música, embora possa ainda haver alguma ligação com as escolas e com
os movimentos literários que sacodem de tempos em tempos as concepções estabelecidas por
seus/suas predecessores/as, as influências e tendências de representação étnica não obedecem
ou se encaixam em escolas de maneira tão evidente quanto na literatura. Apesar de alguns
movimentos se destacarem na história da música brasileira (como a Bossa Nova, a Tropicália,
a Jovem Guarda, entre outros), é possível considerar esses estilos e essas rupturas sob o grande
guarda-chuva da MPB. O rótulo MPB carrega diferentes acepções, pois, ao mesmo tempo em
que se coloca como popular, apresenta-se, de alguma maneira como elitista, por ser consumida
prioritariamente por pessoas de classe média e alta. Assim, faz-se importante esclarecer o
polêmico conceito de MPB nesse contexto. Nos termos de Cechetto, já mencionado
anteriormente,
17
Fundamento minha afirmação em duas pesquisas a respeito do mercado literário e fonográfico. A primeira,
encomendada pelo Instituto Pró-livros, concluiu que a leitura é um hábito de apenas 56% da população; enquanto
a segunda pesquisa, encomendada pela Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão – ABERT,
demonstra que mais de 90% da população tem acesso ao rádio. Acrescento que inúmeras pesquisas têm sido
realizadas motivadas pelo grande aumento do consumo de música proporcionado pelas novas mídias (streaming,
podcast) e pela facilidade no uso de múltiplos dispositivos (como smartphones, reprodutores de mp3,
computadores etc.) para a audição de música.
18
O que concorre para novas e mais acessíveis maneiras de consumir e de fazer circular música no país, dando
maior rotatividade aos discursos veiculados por essas canções.
36
feminismo comunitário e o bem viver, um trabalho teórico que ainda está em seu início no
Brasil. A relação de inseparabilidade entre os povos indígenas e a terra (território local e o
planeta) fomenta questões acerca do processo de construção da identidade indígena que
remetem às cosmovisões orientadas pelo bem viver e que suscitam importantes diálogos com
os postulados dos estudos ecofeministas como a economia do cuidado, a indissociabilidade
entre ser humano e terra e o equilíbrio.
Finalizo este estudo demonstrando as contribuições dessas teorizações para os campos
teóricos mobilizados e para a própria discussão da identidade nacional brasileira, que é
heterogênea, multifacetada e híbrida, desde sua origem, mesmo tendo passado por inúmeras
reconfigurações desde o advento da invasão de 1500. Desvelo, ainda, a duplicidade identitária
em que se inscreve a identidade do/a indígena “brasileiro/a”, uma vez que este/a se reconhece,
simultaneamente, como cidadã/o do Brasil e de Pindorama, como habitante da Abya Yala e da
América Latina, territórios que coincidem geograficamente, mas que são diversos na construção
de seus imaginários. Tais diferenças tornam-se ainda mais contrastantes, levando em
consideração nossa situação como habitantes da Aldeia Global que se tornou o planeta Terra,
fato que alterou profundamente a nossa relação com a territorialidade e as formas de nos
localizarmos no tempo. Assim, a alteridade das pessoas indígenas encontra-se numa perpétua
fronteira de negociação, seus corpos num eterno campo minado, suas existências em contínuas
lutas por existência. Essa resistência é lida como futurista, pois embora não necessariamente
especule o futuro, abre veredas para que se discuta o presente e para que se revisite o passado,
buscando novos rumos que possam propiciar um futuro adiante. Nomeio, então, como
indiofuturismo o conjunto de canções que apresentam tais características. Seguem suspendendo
o céu e dançando, pensando, amando, produzindo, afetando e sendo afetados/as por nossas
escolhas sobre como e por que nos movemos sobre a face dessa bela e assombrosa rocha azul.
“Projetar-se futuro sem fim” (LENINE; RENNÓ, 1999) é, pois, a maneira de alterar a rota de
nossa própria produção de afetos e sentidos, por vezes, esvaziados pela cosmovisão
homogeneizada da “civilização” ocidental que tem nos levado por caminho extremamente
distópico. Talvez a relação entre os povos indígenas e a terra, aqui mimetizada pelas canções
que compõem o corpus e desvelada pelas análises propostas, possa nos fornecer pistas e “ideias
de como adiar o fim do mundo” (KRENAK, 2018) e, assim, possamos vislumbrar, norteados/as
pela arte indiofuturista (que nos apresenta o novo), tantos horizontes.
39
19
Werá Jeguaka Mirim, também conhecido como Kunumi MC ou Owerá, é cantor e escritor de origem Guarani
(aldeia Krukutu-Parelheiros – SP) e “Xondaro Ka’aguy Reguá” é um single independente, produzido por Angry
(zeep filmes) e lançado nas mídias sociais de Kunimi em 2020.
40
futurista de índio (com diferentes gradações e nuances). Dessa forma, apresento a seguir a
construção de tal ideia; em seguida, as canções que formam o corpus desta investigação em
diálogo com essa categoria.
20
Todas as traduções são de minha autoria, exceto quando sinalizo o nome da tradutora ou tradutor.
41
21
Cf. Depois do Futuro, de Franco Berardi (2019).
42
nos assombrar com fantasmas ainda não nascidos. Se na veia do movimento futurista do século
passado corria um sangue esperançoso e pulsante de reviravoltas na constituição e no
direcionamento do futuro, a euforia passou, deixando marcas pessimistas e uma tendência à
distopia nas manifestações artísticas. O consenso é de que a utopia do amanhã deu lugar a uma
aurora apocalíptica. Dizendo de outra maneira, o futurismo como movimento vanguardista e
seu entusiasmo com as máquinas e com o futuro foi sendo paulatinamente solapado por uma
aura de desconfiança com a tecnologia e por uma tendência a uma visão distópica e apocalíptica
do que está por vir.
É preciso esclarecer, no entanto, que esse futurismo artístico do século XX, não se
coaduna com o futurismo aqui proposto a não ser pela nomenclatura escolhida, pois a visão de
tempo e de cultura que os orienta são completamente diferentes. O indiofuturismo segue
postulados contíguos ao conceito de Futurismos indígenas proposto por Grace Dillon,
professora e indígena Anishinaabe que ocupa cátreda em Portland, Oregon, nos Estados Unidos.
Para Dillon, O futurismo indígena parte dos conhecimentos científicos nativos e de suas
próprias cosmovisões para a criação de mundos em que pessoas e povos indígenas estrejam
presentes como protagonistas de suas próprias narrativas, o que pressupõe o reconhecimento
do apagamento identitário, da ferida colonial e da resistência aos vários apocalipses a que os
povos originários sobreviveram, indo além para propor novas alternativas calcadas em
conhecimentos tradicionais. Tendo por base os saberes indígenas, essas autoras e autores
imaginam novos mundos, partindo de seu conhecimento ancestral. Desta forma, tomando como
base histórias de ficção e especulação, a pesquisadora propõe o termo futurismos indígenas para
propor o movimento de descolonizar as ficções de autoria nativa, opondo-se ao antropoceno e
à visão utilitarista das formas de vida neste planeta.
Tenciono, a partir dos postulados de Dillon, expandir essa categoria análitca para
observar e analisar as produções musicais no cancioneiro brasileiro. Contudo, para propor uma
aproximação entre futurismo e cultura indígena brasileira, é preciso ainda explorar, mesmo que
de maneira breve, o afrofuturismo, fenômeno cultural similar ao indiofuturismo no sentido do
seu protagonismo por minoria étnica, de seu entusiasmo com a tecnologia e de seu esforço em
reforçar as heranças culturais dos povos africanos na sociedade estadunidense.
22
A primeira publicação data de 1952, pela editora Random House.
23
Nascido no Alabama-EUA, em 1914, Herman Poole Blount (Sun-Rá) foi um compositor, músico, poeta, filósofo
e performer que se destacou como um dos precursores do afrofuturismo e por ter uma discografia
excepcionalmente extensa. Ele faleceu em 1993.
24
O exemplo mais recente dessa estética provavelmente tenha sido a adaptação cinematográfica de Black Panther,
que mescla costumes e leis afroancestrais aliados à tecnologia de ponta de “Wakanda” (país ficcional em que o
enredo tem lugar), o que se mostra igualmente nos figurinos, cenários, objetos de cenas e efeitos especiais. Black
Panther (Dir. Ryan Coogler, 2018) apresenta uma realidade em que um país africano e seus dirigentes (elenco
formado em sua totalidade por atores e atrizes negras) apresentam-se em superioridade tecnológica (e moral) em
relação ao resto do mundo. A composição conta com a representação de uma tecnologia que facilmente colocaria
“Wakanda” como uma superpotência mundial, exceto pelo fato de que seu povo não busca fama ou lucro.
44
na antologia Flame Wars: The Discourse of Cyberculture (1994, p. 181), com foco na produção
literária em ficção especulativa, ele afirma:
25
É o 4º álbum de estúdio de Rita Benneditto, lançado em 2006 pela gravadora Manaxica/Biscoito Fino.
26
Apesar de terem sido lançadas previamente em diferentes álbuns, todas as canções citadas encontram-se reunidas
no álbum Acústico MTV, lançado pela WEA (Warner), em 2006.
45
característica é a compreensão de tempo não linear que observa a existência de um trânsito entre
ancestralidade (relações intergeracionais para Grace Dillon) e o por vir. Ambas pensam seus
futurismos dentro da cultura popular e nas artes provenientes de classes econômicas não
dominantes, assim como faço com o indiofuturismo. No entanto, Dillon enfoca prioritariamente
a produção de ficção científica e especulativa, enquanto Nelson, adota um campo artístico mais
abrangente e em minha pesquisa, tomo como ponto de partida a canção popular, o que não
impede que outras pesquisas sejam empreendidas e os postulados aqui presentes sejam
ampliados e/ou questionados.
Retomando a música brasileira como referente, algumas obras aparecerem de maneira
espaçada temporalmente sem serem categorizadas ainda como afrofuturismos, mas os
elementos que os unem permitem colocá-los sob essa nomenclatura, propiciando uma análise
por esse viés no campo dos Estudos Culturais. O mesmo acontece com a representação de
futurismos nativos que constroem imagens nas canções que analisarei mais adiante.
Alguns dos elementos mais fortes são: a reafirmação de sua cultura ancestral; o uso da
tecnologia tanto na estética visual quanto na composição musical; uma tendência a incorporar
na temática questões sociais e de embate cultural. Esses fatores geram composições com
características híbridas que podem se apresentar na forma de utopismos, uma vez que suscitam
novas maneiras de ser e de agir dentro de uma cultura que se propõe como um terceiro lugar de
inserção cultural. Trata-se de um lugar que já não é mais aquele da origem e nem o do
colonizador, mas se apresenta como uma terceira via ao criar possibilidades para uma
identidade cultural híbrida.
Bastante representativa dessa estética é a artista Rita Benneditto, que pode ser vista, na
imagem abaixo, performando no palco as canções do seu álbum Tecnomacumba:
Parto, então, dessas reflexões sobre afrofuturismo para construir uma leitura similar nas
canções que se alinham com essa estética futurista em que a figura indígena brasileira aparece
como temática justamente por perceber, na manifestação brasileira desses futurismos, diversas
similaridades em suas constituições, especialmente entre os elementos que acabo de explicitar.
27
O trabalho da artista pode ser encontrado em seu site oficial: caruoficial.com.br/.
47
Fica evidenciada pela “fala” da dupla Angry28 (que, junto com Kunumi, criou a narrativa
imagética do videoclipe) uma construção que ressalta a inserção cultural da pessoa indígena nas
sociedades e tecnologias ocidentais como forma de resistência e difusão cultural. No final do
trecho, seu discurso converge com o argumento que levantei anteriormente de que a música é
uma das manifestações cuturais mais acessível ao público geral na veiculação de valores,
estéticas e ideologias.
Recentemente, em 2021, a rapper Katú Mirim lançou a canção “Indígena Futurista”,
ambientada em uma paisagem sonora eletrônica e apresentando uma letra contundente que
também lança luz à falsa dicotomia entre tradição étnica e contemporaneidade, cujo refrão
adverte: “Me querem apagada / mas eu vou brilhar / O bicho da mata virou popstar / Nossa terra
é vip / e eles não vão entrar / Aqui nobreza e nós vamos reinar”29. Katú Mirim é rapper, nascida
em Campo Limpo-SP, compositora, modelo, atriz e ativista dos direitos indígenas e
LGBTQIAPN+. De ascendência Boe Bororo, tem conquistado notoriedade com sua música e
seu ativismo, bem como se destacado por sua defesa dos direitos nativos e das políticas de
gênero. Tanto na fala de Kunumi quanto na letra de Katú Mirim, traços de hibridismo cultural
ficam evidentes a partir das imagens de fusão da cultura e tecnologia dos povos originários,
sem que isso represente um apagamento da identidade cultural indígena.
Como se pode constatar pelas incursões desses artistas e suas produções, o
indiofuturismo constrói uma projeção da pessoa indígena que figura nas artes, reconfigurando
as representações cristalizadas e voltadas à natureza, as quais estamos habituados/as a ver, ler
e ouvir quando analisamos a temática indígena. A ligação com a tecnologia e os novos caminhos
da informação no século XXI são importantes, mas há também um movimento de reconstrução
28
Angry é uma dupla engajanada na direção e produção de conteúdo audiovisual formada por Gabriela “Gabe”
Maruyama e Bruno Silva. A peça ganhou a premiação de melhor videoclipe no New York Tri-State Film e o prêmio
M_F_V pela direção de “Xondaro”, tendo sido ainda indicados a diversos prêmios internacionais por esse
videoclipe.
29
Analiso esta a canção no capítulo seguinte.
48
das identidades indígenas que está quase sempre aliado às lutas sociais, políticas e ambientais
que permeiam a realidade da pessoa indígena em nosso país. Dessa forma, eu poderia afirmar
que há, de maneira geral, quatro pontos basilares que reconheço nas obras que identifico como
indiofuturistas: (1) uma forte ligação com a tecnologia, (2) uma (re)afirmação identitária, (3) o
engajamento nas questões sociais e, (4) associada a essa última, uma tendência ao diálogo com
os utopismos, visto que essas composições frequentemente exploram ideias de futuros utópicos
possíveis ou a construção de imagens distópicas no presente e/ou no passado.
Na construção dessa poética, ao utilizar, evocar e reivindicar o direito à tecnologia, à
cidadania e à própria voz, cria-se uma força motriz que mobiliza os conhecimentos tradicionais,
as artes e as lutas políticas de forma entremeada, o que resulta numa estética artística particular
que pode ser ilustrada pela figura “Tubi Tupy”, de Lenine e Rennó: “Canibal tropical / qual o
pau que dá nome à nação, renasci / Natural, analógico e digital / Libertado astronauta tupi”. O
mesmo apelo ao mote tecnológico pode ser ouvido em “O índio”, de Caetano Veloso, em que
o índio “que virá numa velocidade estonteante” a bordo de um objeto voador colorido e
brilhante mostra-se “mais avançado que a mais avançada das tecnologias”. Vitor Pirralho, em
“Tupi fusão”, desde o título, constrói a ideia de mescla e de hibridização da cultura indígena
em versos como: “Pintura rupestre, tinta nanquim / Índio, Nordeste, Tupiniquim / Camisa da
levi's e calça jeans / No lugar de flecha, balas e fuzis”, que desconstroem a ideia de indígena nu
e desarmado da narrativa tradicionalista e colonialista que nos ensinaram por meio dos
dispositivos do Estado. A figura do indígena futurista tem tradições e raízes que se hibridizam
com os novos tempos em que se encontra inserida; admite-se e reivindica-se o direito à
cidadania brasileira, sem que isso represente uma negação de seu núcleo étnico. Um ponto
importantíssimo dessa reivindicação é que ela está sendo construída, literariamente, na
contemporaneidade por jovens artistas de ascendência indígena, em primeira pessoa. Se
levarmos em consideração que, por décadas, a população indígena tem sido exotizada em seus
costumes, em suas artes e religiosidades, e que está sob tutela do Estado no que se refere aos
seus direitos fundamentais, essa retomada de voz tem uma força avassaladora. A construção
dessa identidade é também atravessada pelo campo dos utopismos, uma vez que a figura que se
apresenta no horizonte é sempre um “ainda não” (BLOCH, 2005) que vem se revestindo de
potencialidades, que podem vir a promover transformações no imaginário popular e,
consequentemente, no corpo social.
A seguir, analiso brevemente as canções “Um índio”, “Xondaro Ka’aguy Reguá” e
“Tubi Tupy”, respectivamente de autoria de Caetano Veloso, Kunumi MC (Werá) e Lenine e
49
2.4 “Virá que eu vi”: tensões utópicas no índio profético de Caetano Veloso
Caetano Emanoel Vianna Telles Velloso, mais conhecido como Caetano Veloso, é
cantor, compositor, escritor, formado em filosofia. Natural da Bahia, inicia sua carreira em
1963, com 47 álbuns lançados, entre discos solos, em grupos e em parcerias. Tendo vencido
inúmeros prêmios e festivais ao longo da carreira (12 vezes vencedor do Grammy Latino, por
exemplo), apresenta consolidada carreira como músico e escritor.
Figura 5 – Caetano Veloso em performance da canção “Um índio”, com participação de indígenas
Fonte: YouTube
Possivelmente, “Um índio” é a primeira canção que fica conhecida no nicho da MPB
por construir, sob uma perspectiva futurista, a imagem do indígena. Suas metáforas apontam
para uma figura indígena profética que se mostra no domínio de um avançado aparato
tecnológico e que, tragicamente, anuncia o extermínio dos povos indígenas na terra. Vejamos
seus versos:
Um índio
Virá
Impávido que nem Muhammad Ali
Virá que eu vi
Apaixonadamente como Peri
Virá que eu vi
Tranquilo e infalível como Bruce Lee
Virá que eu vi
O axé do Afoxé Filhos de Gandhi
Virá
Virá
Impávido que nem Muhammad Ali
Virá que eu vi
Apaixonadamente como Peri
Virá que eu vi
Tranquilo e infalível como Bruce Lee
Virá que eu vi
O axé do Afoxé Filhos de Gandhi
Virá
Em um jogo de colagens imagéticas ousado e multicultural, Veloso cria, por meio do discurso
poético de seu eu-lírico “testemunhal”, uma narrativa que une elementos sci-fi e referências
multiculturais, reconfigurando a imagem de indígena, até então mais difundida na música por
suas características “selvagens e primitivas” 30. No argumento basilar do discurso narrativo,
temos que a cosmovisão e a tecnologia apresentadas por esse “índio” são superiores àquelas
compreendidas pelo restante da humanidade (cuja própria maneira de viver aparentemente
conduz à impossibilidade da vida no planeta); e não “por ser exótico”, mas por ser simples,
“tranquilo e infalível” de uma maneira até óbvia, que teria estado encriptada para aqueles/as
que nunca conseguiram alcançá-la.
Primeiramente, aponto as metáforas da tecnologia presentes na canção que configuram
uma esfera e que podem ser lidas como elementos do sci-fi. A “estrela colorida brilhante”, nesse
contexto, pode ser lida como um objeto voador não identificado, uma vez que, além de pousar
em uma localização exata (“num ponto equidistante entre o Atlântico e o Pacífico, no coração
do hemisfério sul, América, num claro instante”), ela também é descrita como um “objeto-sim”
“resplandecente”. Chamam atenção nessa descrição, além da riqueza de cores, seu brilho e a
velocidade estonteante; a precisão de pouso e o vocábulo “objeto-sim” que se coloca como o
transporte desse ser “mais avançado que a mais avançada das tecnologias”.
A chegada desse “outro” que vem do céu em tudo lembra a chegada de um alien,
momento tão imaginado pela literatura e pelo cinema de sci-fi. Esse contato que atesta a
superioridade intelectual, tecnológica e de cosmovisão também se coaduna com as narrativas
que imaginam nosso encontro com os demais habitantes da galáxia. Igualmente, não são raras
as ocasiões em que esse primeiro contato revela aos povos terráqueos suas próprias limitações.
O “índio” viajante do espaço é recuperado por Lenine em “Tubi Tupy”. A intertextualidade fica
clara, especialmente, nos versos: “Sou o índio da estrela, veloz e brilhante que é forte como um
jabuti / o de antes, de agora em diante / e o distante, galáxias daqui”. Na construção de seus
“índios” do espaço, tanto Caetano quanto Lenine utilizam procedimentos similares: ambos
exploram a metáfora espacial; projetam seus “índios” no futuro; valem-se de colagem de
elementos culturais distintos para criar um contexto de hibridismo; constroem o refrão
30
Penso aqui em composições como a marchinha “Índio quer apito” que vincula a pessoa indígena à truculência
e à alienação, “Brincar de índio” que retrata o indígena como um falante de um português macarrônico, marcado
pelo uso de verbos no infinitivo, “Indiozinhos” que retrata os indígenas como frágeis e diminuindo em números”
e no hino de São Paulo, como ameaças a serem domadas: “Em bandeira ou monção/ Doma os índios bravios/
Rompe a selva, abre minas, vara rios!”, além da violência ambiental aí presente e “Índio do Senhor” de Cristina
Mel que desqualifica a fé e ancestralidade indígenas.
52
Veloso, nesse refrão, compõe um mosaico de figuras heróicas e pacifistas de origem não
ocidental, mesclando referências de literatura, cinema, história e cultura pop. No refrão, assim
como na canção como um todo, abundam nomes que formam uma constelação léxica cujo
sentido se direciona para elementos de uma extrema positividade: colorida, brilhante, tranquilo,
infalível, impávido, avançado, estonteante, axé, apaixonadamente, claro, preservado etc. O
auge desse procedimento encontra-se nos versos: “em átomos, palavras, alma, cor, / Em gesto,
em cheiro, em sombra, em luz, em som magnífico”, que criam uma sequência descritiva imensa
e intensa desse “índio”, dentro do que Moraes Neto (2009, p. 70) vai chamar de um
31
Somente para contextualizar a caracterização de Peri em O guarani, saliento este pequeno trecho: “Onde é que
esse selvagem sem cultura aprendera a poesia simples, mas, graciosa; onde bebera a delicadeza de sensibilidade
que dificilmente se encontra num coração gasto pelo atrito da sociedade?” (ALENCAR, 1996, p. 152).
32
“Instituição cultural e social, fundada em fevereiro de 1949, em Salvador, pouco mais de um ano após o
assassinato de sua personalidade inspiradora: o pacifista indiano Mahatma Gandhi (1869-1948). O bloco foi
fundado, antes do Carnaval de 1949, por estivadores sindicalizados do Porto de Salvador, que integravam o bloco
Comendo Coentro”. O sindicato dos estivadores estava sob intervenção do Governo, que vigiava possíveis focos
de rebelião. Buscando despistar, Almir Fialho, um dos fundadores, sugeriu trocar o "i" por "y" no nome de Gandhi.
Filhos de Gandhy (historia-brasil.com).
53
Hibridismo, tecnologia, terceiro lugar aparecem na escrita de Moraes Neto, entretanto, o escopo
analítico de seu texto é diretamente perpassado pela antropofagia modernista e pelo conceito
de devoração. Tal conexão me parece muito propositada, uma vez que a antropofagia, assim
como o próprio movimento modernista como um todo, traçou linhas de afinidade com o
movimento futurista do século passado.
No entanto, se por um lado o repertório de escolhas lexicais é farto de atributos positivos
que exaltam esse “índio”; por outro, a mensagem profética que ele carrega continua, além de
encriptada para nós (as coisas que ele dirá, fará / não sei dizer assim / de um modo explícito),
bastante nefasta, já que o visitante dos céus virá somente “depois de exterminada a última nação
indígena / e o espírito dos pássaros das fontes de água límpida”.
Pode-se dizer da melodia que é predominantemente descendente, começando em regiões
agudas e se encaminhando para regiões mais graves, o que leva a uma percepção de um tom
melancólico. Embora isso não se configure como regra, é notável que melodias descendentes
se aproximam mais do tom de lamentação de um anúncio de um cenário distópico do que de
uma entonação festiva. Esse tom, que evoca uma certa tristeza, contrasta com os aspectos
lexicais positivos da letra. Essa dicotomia só é quebrada pelo refrão que é a passagem em que
o eu-lírico testemunha a chegada do índio “virá que eu vi”. Ressalto também que essa mistura
de tempos verbais presente nos versos mimetiza o discurso do vidente, pessoa que vê/vive entre
presente e futuro. Nestes versos, a entonação cresce, tornando-se ascendente. O fato de a
“visão” apenas se realizar quando já não há mais indígenas e natureza preservada leva o
professor Guilherme Wisnik (2019), em sua coluna Espaço em Obra, a interpretar a canção
como uma elaboração de uma espécie de “profecia utópica”, na qual apenas após o estado de
aniquilação da possibilidade de vida no planeta esse “índio” trará a sua mensagem. Wisnik
postula ainda que o viajante do espaço de Caetano se apresenta como a volta do recalcado 33
(utilizando os termos da psicanálise). Leio este acontecimento, o retorno do “índio”, nos
mesmos termos de Ailton Krenak (2020, p. 44-45), para quem:
33
Entendo na referência ao retorno do recalcado que é mencionado por Wisnik ao falar da impossibilidade de
esconder a razão indígena em relação ao nosso modo de lidar com a terra e que se revelará, inevitavelmente, através
da simbologia desse retorno para, finalmente, por meio da catarse, trazer à tona aquela razão que tentamos negar
ou ignorar. No entanto, optei por ler o retorno do índio pela teoria blochiana, que se coaduna com a questão dos
utopismos que balizam minha leitura.
54
Nós podemos habitar esse planeta, mas terá de ser de outro jeito. Senão, seria
como se alguém quisesse ir ao pico do Himalaia, mas pretendesse levar junto
sua casa, a geladeira, o cachorro, o papagaio, a bicicleta. Com uma bagagem
dessas, ele nunca vai chegar. Vamos ter que nos reconfigurar radicalmente
para estarmos aqui. E nós ansiamos por essa novidade. Ela é capaz de nos
surpreender. Terá o sentido da poesia de Caetano Veloso na música “Um
índio’: nos surpreenderá pelo óbvio. De repente, vai ficar claro que precisamos
trocar de equipamento. E – Surpresa! – o equipamento que precisamos para
estar na biosfera é exatamente o nosso corpo.
O trecho acima – destacado do livro A vida não é útil (2020) – é bastante significativo, porque
seu título revela nossa distopia social, econômica e ambiental com uma clareza lancinante. O
primeiro capítulo dessa obra chama-se “Não se come dinheiro” e nos revela, talvez, a mensagem
óbvia que o “índio” virá nos trazer, de que, “depois de exterminada a última nação indígena / e
o espírito dos pássaros de água límpida”, a mesma mensagem ancestral será repetida, mas nos
surpreenderá “por ter podido estar sempre oculta”, mesmo tendo sido tão e tão reiterada.
Continuo ainda reproduzindo Krenak (2020, p. 12-13) porque ele, textualmente, elabora o que,
em minha leitura, entendo como “aquilo que nesse momento se revelará aos povos”:
Krenak nos lembra desse antigo provérbio Lakota que é bastante conhecido e, de tão repetido,
perdeu sua capacidade de nos chocar. O “índio” de Caetano virá, então, não para simplesmente
anunciar o fim do mundo, mas para tentar evitá-lo. Para “suspender o céu” que está na iminência
de desabar. Em suas palavras,
dessa forma, isso que estamos vivendo hoje [a pandemia e a crise ambiental]
não será apenas uma crise, mas uma esperança fantástica, promissora
(KRENAK, 2020, p. 46-47).
[a] esperança não é, para Bloch, conceito negativo que nasce do sentimento
da importância humana; ela se manifesta no próprio movimento do sujeito
para o ainda-não-consciente, o “que ainda-não-veio-a-ser” confrontado com
os antagonismos e contradições do presente. Este confronto confere à
esperança a concretude, pois o seu conteúdo só pode ser encontrado, não em
uma transcendência, onde [sic] os absurdos e o mundo são explicados, mas
nas próprias contradições históricas da humanidade. O novum, assim, deixa
de ser algo puramente esperado, numa atitude cômoda de aguardar, mas é
buscado com afinco, através do esforço construtor, por algo que valha
realmente a pena fazer: uma morada digna do homem.
34
“Ao projetar-se para o futuro, o ‘sonhar acordado’ revelaria uma faculdade humana fundamental: a capacidade
interior de projetar um espaço utópico. Enquanto prenúncio de algo ainda não realizado, nem mesmo claramente
consciencializado, a antecipação deixaria, então, transparecer uma esfera cognitiva ‘pré-consciente’. [...] A
hermenêutica do sonhar acordado dá, pois, origem a uma reflexão sobre a dimensão de uma esfera ‘ainda-não-
consciente’ que anteciparia a utopia do ‘ainda-não-realizado’ num mundo ‘em devir’” (DIAS, 1995, p. 74).
56
um cenário apocalíptico a partir das consequências de tais ações suscita uma reflexão sobre esse
tema, ao lançar no imaginário o cenário de terra arrasada como herança de um modo predatório
de viver.
Vejo, representada pela vinda do “índio”, a possibilidade do renascer que levaria a Terra
a uma nova existência (assim como na profecia Guarani que apresentarei na análise da canção
de Kunumi MC, na próxima secção). Leio, portanto, nessa canção, indícios de que
[a] esperança, atuando sobre uma realidade objetiva que virá, permite ao
homem [e à mulher] uma saída para o futuro. Bloch deixa claro, porém, que
essa saída não ocorrerá gratuitamente, mas por um processo, onde [sic]
estejam engajados [/as] todos [/as] os [/as] militantes, entre eles [/elas] os /[as]
filósofos [/as], para a construção do devir. Segundo ele, os princípios da
esperança abrem caminho para a compreensão ontológica do ainda-não-
consciente, permitindo verdadeiras antecipações do futuro (VIEIRA, 2007, p.
7, grifos meus).
Assim, a potencialidade utópica que nasce de um movimento dual entre a distopia da destruição
do mundo e a utopia de um recomeço pela via da esperança e da reconfiguração simples, porém
avançada, que parece óbvia e que o profeta nativo virá a revelar para o mundo, situa “Um índio”
no campo da função utópica, mais do que na concretude de seu conteúdo. Citando Bloch (2005,
v. 1, p. 144):
Veloso cria em/com seu poema, possibilidade de realização do que ainda-não-veio-a-ser que
existe em latência, como quem lança ao solo sementes que brotarão, ocasionalmente, quando o
tempo for exato e dentro do imaginário poético como profecia, ameaça, esperança e promessa,
simultaneamente. Por conseguinte, “Um índio” inaugura possibilidades indiofuturistas que
estão brotando com a nova geração de jovens artistas indígenas que produzem novas
esperanças, transmutando o imaginário colonizado do povo do Brasil em relação aos povos de
Pindorama.
A seguir, examino a construção indiofuturista de “Xondaro Ka’aguy Reguá”, o guerreiro
da floresta em devir de que falam as lendas Guaranis, recontadas por Kunumi MC, um desses/as
novos/as expoentes do futurismo indígena.
58
A letra de “Xondaro ka’aguy Reguá” (guerreiro da floresta) inicia-se com uma profecia
Guarani que fala de um guerreiro que levará o povo a uma nova existência. O compositor Werá
Jeguaka Mirim é cantor, escritor e ilustrador. Ficou conhecido, primeiramente, por sua
participação na Copa do Mundo de 2014, ao abrir uma faixa com a frase Demarcação já! Na
época, tinha 13 anos de idade. O feito repercutiu na imprensa internacional, mas foi silenciado
no Brasil. É autor de três livros: Kunumi Guarani (2005), Contos dos Curumins Guaranis
(2014) e Kunumi MC: o guerreiro da Copa e suas músicas (2021), sendo os dois últimos em co-
autoria, respectivamente, com seu irmão Tupã Mirim e outros autores e seu pai, Olívio Jekupé.
A canção mescla o rap cantado em guarani (a tradução abaixo apresentada foi disponibilizada
pelo próprio artista) com cântico tradicional dessa etnia e ganha ainda mais sentidos com a
narrativa veiculada pelo videoclipe. Por suas características híbridas, essa composição, que é
perpassada por imagens tech-indígenas – como a apresentada acima, em que o indígena é
caracterizado pelo tradicional cocar, mas apresenta pinturas metalizadas –, figura como peça
exemplar do conceito que aqui proponho sob o nome de indiofuturismo. Para prosseguirmos
com os comentários vejamos a tradução da canção:
de aquecimento da terra
Extinções em massa,
e continuam destruindo
nossos rios e nossas matas
E pra você sou eu que estou errado
por usar internet e não andar pelado, isolado…
Pensamento colonial retrógrado e limitado,
pois pra mim ser indígena é me sentir e ser livre,
transito pela arte e preservo minha cultura
Na minha aldeia existe resistência
eu rimo na minha própria língua,
denunciando e lutando pela demarcação
Invadiram as nossas terras...
As florestas para nós indígenas sempre foram sagradas
e tudo isso foi Deus que criou,
Os portugueses vieram e mataram muitos animais,
os pássaros morreram
Não respeitaram a nossa cultura,
destruíram as nossas florestas
e o medo continua instaurado.
Fonte: YouTube
Cantada em Guarani e em primeira pessoa, “Xondaro” propõe a fala coletiva que denuncia as
violências perpetradas contra os povos indígenas e reafirma a luta desses povos por seus direitos
no Brasil xenófobo e pandêmico em que nos situamos atualmente. Assim sendo, a utilização da
primeira pessoa demarca um espaço de fala importantíssimo do ponto de vista identitário. Esse
“eu”, que aí toma a palavra, agrega vários “nós” – os/as jovens artistas e indígenas em situação
de urbanidade, os/as aldeados/as, os/as ancestrais originários/as. É uma voz que toma um espaço
de fala amplo e incomum, tendo em vista que reúne valores do passado e do presente, separados
também pelo espaço físico que ocupam os indivíduos representados pelo eu-lírico, mas que são
reajuntados na tríade indígena-natureza-tecnologia construída em “Xondaro”. Essa mesma
tríade está presente também na canção de Lenine e Rennó (também em primeira pessoa), em
versos como o já citado: “natural, analógico e digital, libertado astronauta Tupy” e “o de antes
de agora em diante”, fazendo a correlação entre a tríade e a questão do espaço-tempo.
A letra da canção tem início a partir da enunciação de uma profecia fictícia do índio que
virá e que “levará seu povo a uma nova existência”. Não há como não perceber um ponto de
intertextualidade com o índio de Caetano Veloso, mas também que Xondaro, guerreiro que
surge como líder salvador de seu povo, é depositário de uma esperança utópica no vir a ser
(BLOCH, 2005), dado que contrasta fortemente com o presente distópico construído na
sequência de imagens emoldurada pela canção. Na associação entre a letra da canção e os
letreiros que aparecem na tela do videoclipe (conforme mostra a imagem 7, na próxima página),
reproduzindo matérias que denunciam violências contra os povos indígenas, é possível
identificar a presença da luta e reivindicação social feita pelo eu-lírico da canção e a denúncia
61
que se mostra como repetição à exaustão da violência sofrida pelos povos e pela natureza desde
a invasão.
Segundo Mara Mendes (2006, p. 75), o vocábulo Xondaro35 é um termo polissêmico em
Guarani que remete a (1) guerreiro, (2) a um gênero musical que anima (3) as manifestações
culturais que mesclam dança e arte marcial de mesmo nome e aos (4) brincantes dessa
manifestação a que se chamam xodaros e xondar(i)as. A prática do Xondaro consiste numa
performance cultural que é realizada no pátio da aldeia e não apresenta segredos e fundamentos
religiosos, assim sendo pode ser realizada de maneira pública.
A atualização do Xondaro com as tecnologias digitais mostra-se na fusão entre os óculos
de realidade virtual e a fumaça do cachimbo (imagem 8), na personificação das forças naturais
(imagem 9) e na letra que denuncia e questiona uma aniquilação da natureza perpetuada desde
que “os brancos vieram e destruíram o que Nhanderu criou” e podem ser lidas como
características do indiofuturismo, conceito que proponho como tese neste trabalho.
Encontramos todos os pontos basilares do conceito nessa composição e, em acréscimo, a letra
expõe, de maneira contundente, o preconceito etnocentrista que faz com que a pessoa indígena
seja colocada em uma posição de constrangimento pelo usufruto das ferramentas digitais
contemporâneas: “E pra você eu que estou errado por usar a internet [...] pensamento colonial,
retrógrado limitado [...]”.
Fonte: YouTube
35
Para um maior profundamento sobre o tema, cf. Mendes (2006).
62
Fonte: YouTube
[o] trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com o “o novo” que não
seja parte de um continnum passado e presente. Ele cria uma ideia do novo
como ato insurgente de tradução cultural. Essa arte não apenas renova o
passado como causa social ou precedente estético; ela renova o passado,
reconfigurando-o como um “entre-lugar” contingente, que inova e interrompe
a atuação do presente. O passado-presente torna-se parte da necessidade, e não
da nostalgia, de viver.
63
Nesse sentido, em alguma medida, a composição consegue aliar aquelas imagens mais
comumente propaladas pelas artes de uma pessoa indígena a elementos naturais (trovão, fogo,
água, vegetação) de uma forma muito eficaz, que se realiza nas imagens do entrelaçamento do
corpo indígena com a natureza (figura 9), a representação da imersão na tecnologia digital
contemporânea, minando o discurso essencialista da figura indígena como natureza (em
oposição à cultura) e provocando, assim, o questionamento da continuidade do pensamento
estereotipado que é ainda resultado da colonização do imaginário e da opressão colonial.
A construção estética do videoclipe, assim como a “estranheza” que a audição de um
rap em Guarani possa provocar no/a ouvinte respondem a uma necessidade de abrir espaços de
diálogos na cultura popular, daqueles saberes e daquelas artes que não foram sequer negados,
mas ignorados ou exoticizados. A existência e resistência cultural dos povos indígenas no atual
cenário brasileiro entram em choque com a perspectiva passadista das narrativas históricas
reproduzidas no ambiente escolar e se colocam como um espaço intervalar. Na imagem abaixo,
vemos a sobreposição corpo-natureza produzida a partir de efeitos especiais que pode ser lida
como uma mimetização da indissociabilidade entre a pessoa inígena e a natureza.
Fonte: YouTube
64
Mais uma vez citando Bhabha (2003, p. 35), “[...] a inscrição dessa existência fronteiriça
habita uma quietude no tempo e uma estranheza de enquadramento que cria a imagem
discursiva numa encruzilhada entre história e literatura, unindo a casa ao mundo”. Adiciono
aqui ainda o sentido mediado pela filosofia indígena de que a casa é o mundo. Assim, apesar
de um passado que não se pode mais apagar e de estarem inseridos num presente que lhes
categoriza como o outro, o estrangeiro e o exótico (embora sejam eles os originários), estão em
constante negociação cultural, utilizando as redes sociais como porto e demandando, através da
arte, inclusive, o reconhecimento de sua permanência nesse palco/espaço cultural que lhes é, ao
mesmo tempo, dado e suprimido. Dado, desde que os valores apresentados são passadistas,
saudosistas, folcloristas e se alinham com a visão de “era uma vez o índio”; ou suprimido (não
propriamente negado), ao invisibilizar as produções artísticas indígenas que sejam mais
problematizadoras, questionadoras e políticas, pois tais manifestações podem trazer à tona
aquilo que o status quo dominante veementemente rejeita, a resistência que se afirma:
“sobrevivemos e vamos continuar aqui”, que é a premissa da metáfora da semente que citei
anteriormente.36 Em outras palavras, a arte indígena é, em geral, reconhecida se o indígena se
sujeitar a contá-la de uma perspectiva de “assim é como éramos” e não “assim é como somos”.
A poética de Kunumi questiona o passado-presente (BHABHA, 2003) e insere as
questões intervalares do “entre-lugar”, ao mesmo tempo em que reafirma a tradição, mas não
se esquiva de participar do agora e insere, numa nova roupagem, sua reivindicação pelo
reconhecimento da identidade originária num contexto de luta que sobrepuja o lamento. Nesse
movimento, leio a coragem dos intelectuais que atuam a partir do ainda-não a caminho de um
novum (BLOCH, 2003), que contesta e renova o repertório mais canônico da poética cujo tema
central é o modo de viver e a filosofia dos povos indígenas. Para tanto, Kunumi utiliza-se das
estratégias do hibridismo cultural, da negociação da palavra (mas não dos valores), aliando aos
seus discursos as novas tecnologias que permitem que o dito/cantado viaje veloz como a “estrela
colorida brilhante” da poética velosiana. Assim, ele retoma o que não lhe é dado e costura, com
base nessa estética, novas maneiras e poéticas de falar de si que são menos perpassadas pelo
discurso veladamente racista do nosso país e mais conscientes da realidade que as atravessa,
sem, entretanto, perder o vigor poético que como uma flecha direciona seu alvo para a luta e
para a reconquista.
Essa obra audiovisual é, como a de Caetano, uma elaboração da esperança concreta ou
esperança militante que abre um nicho para a continuidade da cultura indígena no presente e no
36
Cf. página 68.
65
futuro. Especulando sobre a perpetuação da existência indígena por meio de uma diáspora no
cosmos, “Tubi Tupy”, de Lenine, é a próxima canção analisada e apresenta-nos também a
metáfora das sementes indígenas espalhando-se pelo universo.
“Tubi Tupy”
66
O nome da faixa, “Tubi Tupy”, foi adotado para o álbum de Lenine, no entanto, na
página do letrista da canção, Carlos Rennó,37 o título aparece grafado como “To be Tupi”, grafia
que mais claramente leva a uma referência ao Manifesto antropofágico (ANDRADE, 1928),
“Tupy or not tupy, that’s the question!”, e também ao Manifesto da poesia Pau-Brasil (1924),
cuja intertextualidade é recuperada pelos versos “canibal tropical, qual o pau que dá nome à
nação, renasci”. As ligações da antropofagia brasileira com o hibridismo, o futurismo e os
utopismos colocam-na como mais um elemento intertextual que reforça as características
37
Também é de Carlos Rennó a letra da canção “Demarcação Já!” (2009), que teve videoclipe dirigido por André
D’Elia com apoio do Greenpeace e foi interpretada por inúmeros artistas nacional e internacionalmente
conhecidos, como Gilberto Gil, Lenine, Ney Matogrosso, Criolo, Céu, Chico César, Maria Betânia, Lirinha, Leci
Brandão, Djuena Tikuna, Felipe Cordeiro, Leticia Sabatella, entre outros/as. E, mais recentemente, “Salve-se a
selva”.
67
indiofuturistas dessa canção (visto que os três elementos citados se constituem como pontos
basilares que postulo como recorrentes e constitutivos dos futurismos indígenas). A
antropofagia literária brasileira, que surge como parte do movimento modernista, eleva como
princípio a “deglutição” ou “devoração crítica” que faz o/a poeta ao atravessar culturas, escolas
e espaços-tempos.
O artista constrói, a partir das características que lhe são interessantes, um mosaico
estético-étnico-cultural que exalta as raízes brasileiras (mais notadamente culturas e línguas
indígenas), uma poética que se entende como “verdadeiramente nacional”, pois aquilo que foi
antropofagizado é reajuntado e toma nova dicção na voz poética do/a brasileiro/a que busca
uma autenticidade própria do povo e que valoriza as culturas indígenas como berço cultural das
artes brasileiras. Nas palavras de Sílvio Rocha (2000, p. 6):
Nesse cenário híbrido, não há apenas um pluralismo cultural, e sim uma fusão
problematizadora da noção de identidade, por meio de uma figura em que as
diferenças são superadas pelo fato de ser canibal e astronauta, analógico e
digital. Tanto é que a canção retoma a máxima existencial shakespeariana, “to
be or not to be, that is the question”, parodiada no Manifesto Antropófago
como “tupy or not tupy, that is the question”. Desse modo, o canibalismo
representado pelo personagem lírico de Lenine renasce das cinzas que o
dizimaram, mas agora não mais como ser colonizado, e sim como partícipe do
processo de construção da cultura, em um mundo digital e globalizado. Sendo
canibal, esse sujeito é corvo (devorador), mas também carvalho (devorado);
em verdade, no fim da estrofe, ele se coloca, por meio de aliteração e gradação,
como carvão – resultante do processo de devoração gerador de um novo ser.
É importante destacar, nessa citação, alguns pontos: o hibridismo, a relação com a antropofagia
cultural e a inserção nas tecnologias que Rocha explora, ao tratar dessa canção. São elementos
que eu considero como constituintes do conceito de indiofuturismo, já explicitado
anteriormente.
A melodia dessa canção é ascendente, atingindo seu ponto mais alto com o refrão no
qual o eu-lírico assume as mais diversas identidades. A canção cita as etnias Guaicuru e Tupi,
conhecidas por serem nações guerreiras. Os Guaicuru, especialmente, ficaram conhecidos como
índios cavaleiros por sua ferocidade contra os inimigos. Além disso, fazem alusão aos povos
Juruna, Kayapó e Pataxó, por meio das citações dos nomes de seus líderes. Caramuru faz
referência a Diogo Alvares Correia, português que naufragou na costa da Bahia em território
Tupinamba e que, sendo o único poupado pelos indígenas, viveu entre eles até sua morte, em
1557. Essas menções realçam a assunção dessa autonomeação de maneira bastante incisiva. A
construção do arranjo, com poucos instrumentos aparecendo de forma episódica nos interlúdios,
68
38
Ressalto que, para a construção desta análise, utilizo a versão anteriormente referenciada, que é a do álbum Na
Pressão.
69
sideral, celestial, como um navegador dos céus que aporta não no espaço, mas no tempo como
ponto de desembarque. Assim, sua jornada desbrava o tempo e não apenas o espaço.
O diálogo com os textos da tradição e com os fatos da atualidade pode ser lido como
outro movimento de hibridização realizado por meio de uma recuperação de acontecimentos da
atualidade e pela intertextualidade – o texto reverbera nomes de líderes e suas lutas históricas,
ao lado de históricos personagens da ficção. A citação dos nomes/etnias, enfatizada pela
fórmula meu nome é, revela mais que um ato de fala, mas uma postura de apresentação e
autonomeação, que se traduz numa tomada de poder/voz dentro do discurso lírico proposto
pelos autores. Reconheço, nesse movimento, a reafirmação identitária indiofuturista que suscita
também questões sociais mimetizadas pela letra que aponta para o “caos atual” e “as misérias
de mil esplendores, no planeta neandertal”. A hibridização também acontece na representação
do espaço-tempo: “o de antes, de agora em diante e o distante galáxias daqui”, “e no cosmo de
onde eu vim [...] me projeto futuro sem fim, no espaço num tour sideral”; e da diversidade de
nomes citados: personagens históricos e ficcionais, líderes do passado e do presente, e das etnias
citadas como pertença/origem.
A imagem posta aqui é a da condição desse índio como sujeito contemporâneo e do seu
percurso de representação identitária na história da nação, destacando-se o verso “qual o pau
que dá nome à nação, renasci”. Ressalto também a possível alusão aos poemas “Aos Caramurus
da Bahia”, atribuído a Gregório de Matos, e “Caramuru” (1871), de Santa Rita Durão, feita na
canção através dos versos “Sou neto de Caramuru”.
A propósito das menções às etnias Tupy e Guaicuru, aos líderes indígenas Raoni e
Juruna, que se tornaram conhecidos na história recente; e a Galdino Jesus dos Santos, vítima de
homicídio no Distrito Federal no ano de 1997, no trecho: “meu nome é Tupi-Guaicuru / meu
nome é Peri de Ceci / sou neto de Caramuru / Sou Galdino, Juruna e Raoni”, cabe aqui uma
contextualização sobre essas importantes figuras históricas citadas, já que o desconhecimento
de suas trajetórias só corrobora o processo de apagamento identitário perpetrado pelo
colonialismo. Raoni Metuktire, cacique da etnia Caiapó/Yanomami, tornou-se porta-voz da
causa indígena e da ambiental, passando a ser conhecido nacional e internacionalmente após
ter alcançado a mídia por ocasião do lançamento de um documentário sobre sua vida, fato que
recebeu notoriedade do grande público. Com isso, tornou-se embaixador do combate pela
proteção da floresta Amazônica e dos povos indígenas, posicionando-se no mundo todo. Já
Mário Juruna foi ativista dos direitos dos povos indígenas, primeiro indígena eleito deputado e
autor do livro O Gravador de Juruna (1983), no qual relata sua experiência na negociação pelos
direitos indígenas no Brasil na década de 1980. Por último, temos Galdino Jesus dos Santos,
70
líder indígena da etnia Pataxó-hã-hã-hãe que foi assassinado por cinco delinquentes brasilienses
que atearam fogo em seu corpo, enquanto ele dormia em um abrigo de ônibus no Distrito
Federal. Galdino estava na cidade, por ocasião das comemorações do dia do índio, a fim de
reivindicar a proteção das terras Caramuru-Paraguaçu que pertencem ao seu povo e que estavam
sendo ameaçadas por posseiros.
A formulação dos versos “sou sementes nascendo das cinzas” epitomiza a metáfora já
citada da semente que remete ao renascimento e à continuidade das culturas e dos povos
originários. Esse elemento se realiza no viajante utópico de Lenine/Rennó, o qual age como um
semeador do cosmos projetando-se como se projeta a axis mundi com raízes profundas,
sementes fecundas e existência que se traduz em resistência.
Outro fator importante é sua postura crítica diante de realidades sociais que, por serem
perpassadas por estereótipos racistas, injustiças sociais e ambientais, suscitam debates acerca
desses temas importantes, tanto para o reconhecimento e o respeito das alteridades indígenas
quanto para questões que são (ou deveriam ser) concernentes a todos/as nós, que é o papel que
os modos de vida indígenas performam como defensores da Terra. Essa nossa casa comum
sofre com os ataques daquelas pessoas e entidades que visam apenas o lucro imediato e que se
colocam numa posição negacionista em relação aos danos que nós, como espécie, estamos
causando às espécies irmãs. Nas cosmovisões dos/as nativos/as de Abya Yala, o rio é nosso
avô; podemos ser irmãos e irmãs da água, filhos e filhas da mesma mãe, a Terra, que nos nutre
e, ao mesmo tempo, agoniza por nossa maneira objetificante e avarenta de tratá-la, causando
danos irreversíveis a todos nós, astronautas/tripulantes dessa nave que se desloca pelo tecido
do cosmos. Enquanto não reconhecermos o/a “indígena” como nosso/a outro/a igual, seremos
vitimados/as, em nossas diferenças, por males criados à imagem e semelhança da nossa
ganância e negligência. Esse alerta está latente nas canções aqui enfocadas, em que figuram
“brancos/as que chegaram e destruíram” aquilo que não pode ser criado, “de fontes de água
límpida e nações indígenas exterminadas”, do caos e das “misérias de mil esplendores” que se
estendem pelo país.
72
Ao iniciar a escrita da tese, eu propunha tratar das questões de gênero que permeiam
este capítulo pela perspectiva da interseccionalidade, perspectiva construída e sistematizada
também por Kimberleé Crenshaw (2002) seguindo as feministas que produzem teorias a partir
do sul Global. A mim, parecia que o cruzamento entre raça, classe e gênero que produz
opressões duplas, triplas ou múltiplas (quando envolvem, por exemplo, capacitismo, ageísmo,
xenofobia etc.) favoreceria o diálogo de gênero no contexto de raça indígena e de suas inúmeras
etnias sobre classe e condições socioambientais. No entanto, encontrei-me num dilema ao me
questionar sobre o que é o feminismo indígena e o que representa o feminismo para mulheres
indígenas (aldeadas, em contextos urbanos, nascidas na urbanidade) que se encontram numa
multiplicidade de situações potencialmente opressivas, com a colonização cultural continuada,
as religiões, a necropolítica que as afeta diretamente, o racismo institucional e a violência contra
os corpos gendrados (também dentro, mas principalmente fora do território indígena). Comecei
a questionar, diante dessa multiplicidade de opressões sobre pessoas que performam modos de
existência completamente diferentes daqueles que feministas inseridas no contexto acadêmico
experimentam, se o feminismo ocidental – em especial, a interseccionalidade – poderia ser um
viés analítico mais adequado. A partir desse aparato ideológico, somos capazes de teorizar sobre
opressões que se diferenciam das que conhecemos? Somos capazes de falar sobre o que é ser
mulher indígena, tomando como referência o nosso entendimento do que é ser mulher? Em
minha visão, a resposta para tais perguntas não é mais importante do que o exercício de as
formular, mesmo porque os feminismos – que são plurais – podem gerar tais diálogos e embates
“internos” como uma forma de entender as diferenças entre as lutas e alteridades e de traçar um
caminho de luta que aconteça de forma parelha e não antagônica, mas não há a necessidade de
falar pelas mulheres indígenas, já que elas podem falar por si, produzir seus próprios conceitos,
metodologias, agendas e ações. Segundo Kimberleé Crenshaw (2002, p. 177),
Crenshaw enfatiza que as opressões não apenas atingem diferentemente mulheres negras [e de
cor] como também a opressão flui através dos três eixos classe/raça/gênero que não raro se
encontram sobrepostos, criando desigualdades de base que estruturam a sociedade classista,
racista e machista que ainda constitui o padrão encorajado e sustentado pelo capitalismo que
não esqueçamos, é sustentado por esses eixos de opressão e colonização.
Conforme comecei a exercitar a escuta das falas das indígenas sobre suas lutas, ao ouvir
atentamente as questões colocadas pelas parentes de diversas etnias e contextos 39, percebi que
a abordagem do víes feminista no contexto indígena – que já não se apresentava como algo
simples – foi desvelando discussões que trazem a este trabalho perspectivas de diálogos
diversos. Essas discussões enriquecem o debate na busca pela visibilização das diferenças. Ao
invés de apagar o contraditório, busco problematizá-lo, trazendo à luz diferentes maneiras de
lutas de mulheres que não se anulam (ou pelo menos não deveriam).
Em face da leitura do artigo de opinião “Mulheres indígenas querem novo olhar sobre
seu lugar e luta”, de Hamangaí Marcos, deparei-me com a seguinte afirmação:
39
Assisti documentários e entrevistas como por exemplo, O programa “Que querem as mulheres?” apresentado
por Heloísa Buarque de Holanda em que as interlocutoras: Thaily Terena, Márcia Kambemba e Marize Viera de
Oliveira debatem questões acerca da luta de mulher indígenas, “Encantadas – 1ª Marcha das Mulheres indígenas
e Margaridas – 2019”, dirigido por Rachel Alvares, a reportagem da TVT em 5 de outubro de 2017 intitulada
“Conheça a luta da mulher indígena”, o documentário “Mulheres Indígenas: Vozes por Direitos e Justiça”, lançado
pela ONU Brasil em março de 2018, em Brasília (DF), entre outros.
74
pode acontecer não apenas entre as feministas ocidentais e as mulheres indígenas, como
também entre as próprias indígenas. É sempre preciso lembrar que o termo “indígena” faz
referência à raça e não às etnias diversas. Por isso, essas mulheres também podem ter diferentes
cosmovisões e filosofias, orientadas por suas culturas. No entanto, entre elas, as especificidades
divergentes podem acabar sendo debatidas e agregadas em torno da luta maior que elas têm em
comum: a demarcação. Tão essencial é essa luta pela terra que a primeira Marcha de Mulheres
Indígenas do Brasil, que ocorreu em 2019 e reuniu 2.500 mulheres indígenas de todo o Brasil,
adotou como tema “Território: nosso corpo, nosso espírito”. Pode-se ler, no documento final da
mobilização, a maneira como essas mulheres de luta se posicionam em relação às desigualdades
de gênero e ao feminismo:
Assim, a busca começou por um “feminismo indígena” que partisse das especificidades
dessas mulheres e não apagasse seu protagonismo. Após cada leitura, audição de entrevistas, a
cada fala ouvida40, parecia cada vez mais distante a possibilidade de conciliar numa mesma
sentença as palavras “feminismo” e “indígena”. Ao ouvir, por exemplo, as falas de Taily
Terena, Márcia Kambeba e Marize Viera de Oliveira (Guarani) em entrevista conduzida por
Heloísa Buarque de Holanda para o programa O que querem as mulheres? (Canal Brasil),
comecei a compreender que os papéis de gênero (que são diferentes em cada cultura/etnia) têm
sua relevância na pauta das indígenas, mas as mulheres se localizam como co-protagonistas na
luta pela terra, que é a luta do seu povo. Então, elas não se enxergam como mulheres que fazem
parte de um povo, mas, sim, como o próprio povo. Existe uma noção de que a divisão de papéis
de gênero, o que cabe aos homens e o que cabe às mulheres, é vista como um sistema gerido de
modo complementar, em que cada um/a tem sua importância e função. Dizendo de outro modo,
a experiência de opressão para essas mulheres pode ser muito diversa daquela vivenciada pelas
não indígenas, não somente pela diferença de cosmovisão, mas pela própria diferença dos
conceitos de mulher, corpo e gênero.
Nesse ponto, cabe salientar a fala de Taily Terena, que explica que as mulheres
indígenas estão sujeitas a três tipos de opressão de gênero: externa (perpetrada pelos invasores),
interna (pelos próprios companheiros que já estão tomados pela visão colonial e pelo
adoecimento causado pelo alcoolismo) e ambiental (que ameaça seu território, seu
conhecimento, sua maneira de existir no mundo). Danielly Coletti Duarte (2017, p. 41) parece
corroborar esse mesmo panorama de opressões múltiplas ao afirmar que
Além de expressar conformidade com a fala de Taily Terena, Duarte amplia a dimensão desse
conjunto de opressões ao pensar também na esfera dicotômica do público/privado, o que me
leva a considerar também a violência institucional e estatal sofrida por essas mulheres. Assim,
podemos pensar num conjunto de violências que engloba: o machismo e a violência de gênero
40
Cf. nota na página 73.
76
[...] que os nossos filhos possam viver, isso fazendo aquela oposição entre o
viver e o sobreviver [...] queremos o bem viver que é a ideia de que a gente
viva em equilíbrio [...] por exemplo, nessa questão do feminino, onde que está
o bem viver nessa questão [...] está no equilíbrio entre as funções dos homens
e das mulheres, de respeitar o espaço do homem e da mulher, de respeitar o
universo do homem e da mulher, aí está o bem viver também. [...] Isso já existe
de maneira desenvolvida na nossa filosofia. Isso é filosofia indígena. Claro
que os parentes Aimará/Quéchua deram, digamos assim, fama a este termo,
mas todos os povos têm sua forma de bem viver que aí a gente traduz como
nosso modo de ser (grifos meus).
Destaco a expressão bem viver e a referência aos Aimará e aos Quéchua porque essa alusão
remete diretamente ao feminismo comunitário conceituado por Julieta Paredes.
Desse modo, ao analisar situações que envolvem gênero pela perspectiva interseccional,
por exemplo, é possível afirmar que a identidade racial/étnica é uma categoria orientadora mais
importante para as mulheres indígenas na luta contra a opressão dos seus corpos do que o eixo
de gênero (orientações e políticas). Argumento, então, que é possível aproximar
interseccionalidade e os feminismos indígenas, mas é necessário, todavia, modalizar e
contextualizar constantemente o que cada uma dessas vertentes denota como mulher, corpo,
gênero e feminismo, para que não ocorra uma equalização artificial dos conceitos e das
propostas dessas teorias. Inclusive, ainda é imprescindível delimitar muito precisamente de que
feminismo indígena estamos tratando, para que não incorramos numa homogeneização de
77
visões plurais dos diferentes povos e das diferentes visões, que é tão comum na sociedade
ocidental que tende a entender “indígenas” como membros de uma única cultura, filosofia,
prática e modo de viver. Rememoro, aqui, mais uma vez, que existem diferenças enormes entre
as culturas de cada etnia que se manifestam, por exemplo, na impossibilidade de mulheres
serem cacicas e pajés em alguns povos, enquanto em outros isso é uma realidade cada vez mais
comum (e.g. Dorinha Nawá Pankará, Kôkôti Xikrin, Eunice Antunes Itaty são caciques de suas
respectivas etnias). As orientações sexuais e identidades de gênero também podem ser regidas
por um forte binarismo ou ocorrerem de maneira fluída, a depender da tradição cultural de cada
etnia. Vide o caso de Majur Traytowu, uma mulher trans que assumiu o cacicado41 de sua aldeia
Apido Paru (Tadarimana), em Rondonópolis-MG, sem contestação alguma, uma vez que tais
problematizações sequer chegaram a ser cogitadas como assunto para seu povo, enquanto, em
outras culturas, o binarismo de gênero e a cis-heterossexualidade são vistos como norma,
levando jovens indígenas a uma situação de isolamento social, sofrimento psicológico e até
suicídio.42
A constatação dessa heterogeneidade dos assuntos relativos a gênero (identidade,
orientação e política) entre as etnias indígenas auxilia na compreensão de que não há um
conceito centralizador de gênero, nem um padrão de funções/papéis de gênero que permita
postular o que é uma pessoa LGBTQIAPN+ para indígenas de uma maneira geral. Isso não
significa dizer que não exista preconceito de gênero e violência contra não homens
(especialmente as mulheres) dentro do contexto indígena, assim como também não se pode
negar que existe uma agenda confluente entre certos povos e alianças de mulheres que visam
combater o machismo dentro das aldeias. O que não se pode afirmar é que exista uma
organização mais totalizante que se aproxime das pautas e reivindicações da agenda feminista
não indígena. Por outro lado, tanto as etnias que apresentam uma equidade maior em relação
ao gênero quanto as que apresentam uma formação mais rígida e estreita se aliam na luta pela
terra.
Nesse processo de escuta de mulheres indígenas em seus posicionamentos, encontrei
uma entrevista da cantora Katú Mirim para a coluna Morango, que é veiculada no portal da Uol
(MIRIM, 2019). Nessa conversa, ela expõe suas orientações políticas, em especial as de gênero,
a partir de seu recorte interseccional de mulher rapper indígena e bissexual em contexto urbano.
41
Apesar de ter sido notícia nacional, a identidade de gênero e/ou orientação sexual de Majur nunca constituiu
uma questão a ser debatida entre seu povo. Para mais informações sobre o assunto, consultar Lopes (2021).
42
A esse respeito, recomendo o documentário Terra sem Pecado, dirigido por Marcelo Costa, em que jovens
indígenas falam sobre o preconceito sofrido tanto em suas aldeias quanto nas cidades.
78
Ao ser questionada sobre suas relações com o feminismo e a descolonização, ela aponta dois
caminhos diferentes: a opressão que enfrenta como pessoa inserida no universo e no contexto
da mulher urbana e a postura das parentes aldeadas que estão imersas em um contexto
totalmente diferente. Katú cita Julieta Paredes, que esteve na aldeia Guarani, incentivando o
público a buscar seu trabalho por ser importante para tal debate. Ao notar essa abertura de
diálogo com Paredes, já sinalizada anteriormente pela referência feita também por Taily Terena,
percebi que pode haver uma aproximação maior e mais orgânica entre as teorias. Nos termos
de Paredes, em entrevista à Mariana Malheiros, María Camila Ortiz e Treza Spyer (2019, p.
30), a questão identitária é assim tratada:
Parece-me claro que a diferença se coloca, assim em termos de uma ontologia do nós, ao invés
de uma posição que seja mais profundamente calcada no subjetivismo individual. A visão de
comunidade como sendo uma constante orienta não só as lutas, mas as produções das artistas
indígenas. Nesse ponto percebo um afastamento dos feminismos ocidentais. Por outro lado, ao
se constituir como uma luta de mulheres na Abya Yala, esta atitude aproxima-se das feministas
do sul43 pela geografia e pelo acúmulo de opressões em intersecção impostas pelo patriarcado.
Assim, nas análises que seguem, utilizo tanto a interseccionalidade quanto o feminismo
comunitário como teorias norteadoras para investigar e problematizar as situações perpassadas
pelo gênero em minha leitura.
A rebeldia e a retomada do território são os motores que impulsionam a voz lírica
guerreira em “Índigena futurista” de Katú Mirim. Essa leitura foi subsidiada pelo feminismo
intersecional e pelos estudos culturais. Conforme já indicado, a influência cyber na construção
dessa guerreira metamorfa furiosa, guiou a discussão no rumo das lutas sociais e ambientais e
na crítica e, consequente, insurgência contra o sistema capitalista neocolonialista. A análise
43
E em certa medida, dialoga também com alguns postulados do norte global, através de slogans e orientações
como “a irmandade é poderosa” (Sistehood is poweful), “Mulheres num circuito integrado”, ao colocar o pessoal
como político e ao promover a sororidade entre mulheres diversas. Tais movimentos podem ser entendidos como
uma tentativa de declinar os feminismos num corpo coletivo/comunitário.
79
“[o/a] orador [a] é quase sempre um/a indígena ou coletivo (como os Brô
MCs) que transita/m entre a cidade e a aldeia, luta [m] pelo seu povo,
representando “a verdade” e “a comunidade”. A verdade de quem canta é tema
comum no rap, indicando antagonismo em relação ao que é dito por outrem,
como mídia, políticos etc. Desse modo, uma das demandas é o próprio
reconhecimento, performatizando a diferença cultural. A tecnologia e o uso
da língua são destaques, ressaltando que as mudanças e apropriações não os
fazem “menos índios”, pelo contrário, indigenizam a cultura não indígena.
Nesse caso, “a pele”, como em “Corpos Laranjas” (WESCRITOR, 2019),
indica força essencial, mas também “o modo de ser” que inclui a relação
ancestral em que decisões são tomadas pelo invisível ou espiritual, muitas
vezes inacessíveis até mesmo para a comunidade indígena (2020, p. 10).
o conceito de bem viver. Tais tópicos sendo reconhecidos pelo próprio artista como qualidades
da música produzida por jovens indígenas contemporaneamente, corrobora com as leituras
empreendidas nesta tese.
A mesma hibridização que acontece no rap verifica-se em outros ritmos que não sejam
os cânticos tradicionais dos povos indígenas, mas que, ao serem incorporados musicalmente
por estes, tornam-se híbridos a partir da inserção de elementos tanto sonoros quanto temáticos
e estéticos relativos aos povos nativos.
Com relação a Kaê Guajajara, uma das características mais marcantes em suas
performances é sua voz sinuosa, que se espraia pela canção de maneira suave e caudalosa,
alongando as vogais e fazendo uso de melismas, mesmo ao pronunciar palavras contundentes
– como “genocídio” – que estão no centro das temáticas que constroem letras fortes, repletas
de denúncias da assustadora realidade que presentemente vivenciamos em relação à causa
indígena, mas que também constroem imagens de resistência, possibilidades de imaginar
futuros melhores e empoderamento da mulher indígena, ao tratarem de herança cultural, de
sonhos e do estabelecimento de coalizões para a luta.
Um fato que se destaca nas escolhas profissionais e políticas de Kaê Guajajara é sua
capacidade de buscar e criar parcerias notadamente com outras mulheres indígenas e de outras
etnias não hegemônicas, abrindo espaço para uma discussão tanto de gênero quanto de raça e
classe. Ao realizar performances em parceria com Katú Mirim, Pássaro Preto, Brisa Flow, Dj
Bieta,44 entre outras, e ao iniciar diálogos que demonstram uma consciência interseccional que
busca ir além dos espaços fechados (políticos e acadêmicos) de discussão, a artista expõe seus
posicionamentos, suas orientações e seus anseios de mudança da realidade imposta à pessoa
indígena no Brasil, atualmente.45 Além de serem bandeiras de sua luta enquanto mulher e
cidadã, essas posições se inserem enquanto tropos em suas composições, veiculando assim seus
ideais por meio da arte. Um exemplo disso é a entrevista concedida a Luana Genót (2020) para
o programa Sexta Black, do canal GNT, na qual Kaê discorre sobre questões como opressão de
gênero, a diferenciação entre raça e etnia, violência sexual contra mulheres indígenas e sobre a
44
Escolhi a performance de “Mãos Vermelhas” (disponível online), realizada em 2019, em parceria com Dj Bieta,
como uma produção do projeto Sofar (songs from a room), como referência para esta análise, tanto pela qualidade
sonora da gravação, quanto pelo fato de esteticamente este vídeo demosntrar a união entre mulheres de difentes
origens e a conjugação da estética indígena de Kaê (por meio de seus adereços) com a tecnologia utilizada por
Bieta para mixar a canção.
45
A coalizão entre mulheres no movimento indígena tem ocorrido numa crescente constante que se espalha pelo
país na forma de coletivos, cooperativas, união para militância, encontros e debates etc. A esse respeito, é
interessante conferir o trabalho intitulado “Protagonismo Feminino nos Movimentos indígenas no Brasil” (2020),
de Joselaine Raquel da Silva, que traça um panorama dos diversos movimentos de coalizão de mulheres no
contexto da luta indígena.
82
necessidade de um movimento antirracista de frente ampla que inclua as pautas dos povos
indígenas e, em especial, das mulheres. Destaco essa entrevista, em particular, pois, ao longo
dela, a própria compositora traz à tona situações que estão inscritas na canção que analisarei
nesta seção, tais como: invisibilização da luta indígena, estupro, embranquecimento ou
apagamento racial e figurações carregadas de estereótipos que contribuem para a continuidade
e a propagação do racismo contra pessoas indígenas, além de opressões de classe e de
reafirmação identitária (étnica e de gênero) que se mostram como temas bem demarcados em
sua obra.
A consciência da identidade étnica é uma das temáticas recorrentes nas canções da
artista Kaê Guajajara que, nas redes sociais, apresenta seu trabalho (aqui comentando seu
primeiro EP, Hapohu) como o tecer de
Como se pode ler no trecho acima, é possível propor um diálogo entre obra de Guajajara com
as teorias e com os conceitos que proponho aqui aparece de maneira muito perceptível (ver
grifos) em seu discurso acerca de seu fazer artístico, pois a artista se apresenta como uma voz
que amplifica e ecoa outras vozes de pessoas de sua raça, etnia, classe e gênero. Entendo que a
descolonização dos corpos, a mistura entre ancestral e atual e o grito por meio digital presentes
em sua proposta coadunam-se com o indiofuturismo. Em suas ações e palavras, Kaê parece
orienta-se pelo famoso estamento feminista “o pessoal é político” (conforme sistematizou Carol
Hanisch em importante artigo de 1970) ao colocar sua vivência e seu fazer profissional como
uma ponte possível para debater questões que lhe são de interesse, autorizada por sua condição
de mulher que se encontra na encruzilhada entre raça e classe para representar artística e
politicamente mulheres indígenas. Portanto, a artista utiliza seu lugar de fala como um lugar de
luta que mobiliza a cultura e a educação para transformar o presente. Analisando a questão do
rap indígena, especificamente das mulheres indígenas que fazem música rap, Ribeiro afirma:
83
Nesse trecho, a caracterização dos eixos temáticos mais recorrentes em raps indígenas de
autoria feminina (a saber: enfoque étnico e indígena [exaltação cultural], luta indígena
[demarcação e direitos] e marcadores relativos às mulheres [ou seja, embates de gênero])
reforça o que já foi dito sobre as hierarquias das lutas de mulheres indígenas cuja temática
ambientalista, de raça e de classe, de maneira geral, se sobressai em relação às representações
da problemática de gênero, mas não as apaga, ao menos nas letras das rappers indígenas. Tais
questões ganham espaço especialmente nas composições de Katu Mirim e Kaê Guajajara 47.
Retomando a entrevista que mencionei anteriormente, quando Kaê discute a questão do
estupro das mulheres indígenas, relata que, por meio de uma conversa com um amigo, foi
alertada sobre um acontecimento histórico que teve um impacto ainda maior sobre seu
conhecimento desse tema. O acontecimento em relevo diz respeito ao Alvará Régio de 4 de
abril de 1755, assinado por D. José I com assessoria de Marquês de Pombal (documento
intitulado “Diretório que se deve observar nas povoações de índios do Pará e Maranhão
enquanto Sua Majestade não mandar o contrário”, mais conhecido como “diretório dos índios”),
em que, entre outras coisas, o monarca prometia aos vassalos que se casassem com indígenas a
posse da terra e tratamento régio especial em questões legais, recomendando, inclusive, a
abolição de termos como caboclos/as aos descendentes de tais “uniões”, pois a prole gerada
pelo casal inter-racial gozaria dos direitos legítimos de cidadania do império. Na prática, para
gozar de tais privilégios, os colonos continuaram a violentar as mulheres indígenas, agora
forçando-as a contrair matrimônio e gerar descendência como consequência dessa violência
continuada. Visavam também cumprir os mandados do rei, buscando seus obséquios e
favoritismos. Abaixo, reproduzo trechos do documento citado:
46
Retornarei a esta canção na análise seguinte, pois, ela também com “índigena futurista”.
47
Canções como “Nativa”, “Retomada”, “Indígena futurista” de Katu Mirim e “Por dentro da Terra”, “Essa Terra
é minha”, “Asas” e “Meu respirar” de Kaê Guajajara são exemplos disso. No mapeamento inicial podemos citar
também “Fique Viva” de Brisa Flow, Retorno de Souto Mc, entre outras.
84
Eu, El Rey. Faço saber aos que este meu Alvará de ley virem, que
considerando o quanto convém que os meus reaes domínios da America se
povoem, e que para este fim póde concorrer muito a communicaçaõ com os
Indios, por meio de casamentos: sou servido declarar que os meus vassallos
deste reino e da America, que casarem com as Indias della, naõ ficaõ com
infamia alguma, antes se faráõ dignos da minha real atençaõ; e que nas terras,
em que se estabelecerem, seráõ preferidos para aquelles lugares e
occupaçoens que couberem na graduaçaõ das suas pessoas, e que seus filhos
e descendentes seráõ habeis e capazes de qualquer emprego, honra, ou
dignidade, sem que necessitem de dispensa alguma, em razão destas alianças,
em que seráõ tambem comprehendidas as que já se acharem feitas antes desta
minha declaração: E outrosim proibo que os ditos meus vassallos casados com
Indias, ou seus descendentes, sejaõ tratados com o nome de Caboucolos, ou
outro similhante, que possa ser injurioso.
Mãos Vermelhas
Fonte: YouTube
86
Não é incomum ouvir de alguém que declara ter ascendência indígena a narrativa da
bisavó que foi “pega no laço” ou “no dente do cachorro”. O que não é muito conhecida ou
divulgada é a origem dessas expressões que remetem a mulheres caçadas (às vezes, por matilhas
ou laçadas por cavaleiros como gado), capturadas, violentadas, aculturadas e afastadas de seus
povos de origem por colonos ou vassalos que seguiam brutalmente a política assimilacionista
portuguesa como orientação e justificativa para tais crimes que, literalmente, eram ações legais
ratificadas pelas políticas imperialistas. Tais violências foram e são continuadas por
garimpeiros, madeireiros, seringueiros e fazendeiros que invadem territórios indígenas e
violentam mulheres. Embora muitas pessoas desconheçam (ou prefiram ignorar) a história
violentíssima por trás da dita “miscigenação”, ela está na origem da hiperssexualização que
recai sobre mulheres indígenas e negras em nosso país. A sociedade brasileira continua
promovendo esse estereótipo por meio de representações culturais, tal como o hábito de
fantasiar-se de “índia” no carnaval. Ao trajar-se com roupas sensuais, as mulheres não indígenas
reforçam a ideia de que o corpo nativo é por si “sexy” e “desfrutável”. Laís Zinha (2003), na
página Visibilidade Indígena, comenta que o estereótipo reforça:
Além de abordar o tema da objetificação da mulher indígena, às vezes por parte de mulheres
não indígenas, no trecho reproduzido acima, Zinha faz referências aos relatórios da ONU que
traçam um panorama da violência sexual contra mulheres e crianças indígenas e cita, ainda, os
estudos de Simonian (1994) e Meira (2017), que versam respectivamente sobre a violência
contra a mulher indígena e as práticas opressivas e violentas contra os povos indígenas durante
o ciclo da borracha.
87
48
Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema. Iracema, a virgem dos lábios de
mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna, e mais longos que seu talhe de palmeira. O favo da jati
não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado. Mais rápida que a
corça selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu, onde campeava sua guerreira tribo, da grande
nação tabajara. O pé grácil e nu, mal roçando, alisava apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as primeiras
águas. (ALENCAR, 1885, p. 5)
49
ONU Mulheres (2016).
88
e desfrutável. A nudez, que pode ser um fator cultural corriqueiro dentro de suas culturas, vira
um “chamariz” para aqueles/as que desumanizam ainda hoje suas individualidades, seus corpos,
suas vidas. Não obstante as histórias de mulheres “pegas no laço” ou “no dente do cachorro”
(prática, aliás, que nos legou o vocábulo “aperreado”, ou seja, acossado/a por cães) terem sido
apagadas de seus significados tristes e reais e virado um sinônimo de que a pessoa descende de
“índios legítimos”, a violência contra corpos das mulheres nativas prossegue e, atualmente, tem
se intensificado, visto que as ações e os mecanismos de defesa dos povos indígenas foram
desmontados pela anterior gestão política do Brasil. Então, o ser “pega a laço” virou um selo
de ascendência originária que muitos/as ostentam por ignorância da história dos povos nativos
de Pindorama.
Retornando à análise de “Mãos Vermelhas”:
Mas eu temo uma unidade que deixa de fora partes de mim, que me
coloniza, isto é, que violenta minha integridade, minha completude, e
que exaure minha autonomia. Por medo, nós também nos policiamos.
Por causa de nossa mestizaje, queers de cor temos mais comunidades
com que lidar (étnicas, de classe, lésbicas brancas, etc.), as quais nos
analisam para determinar se “passamos”.
A relação entre aqueles/as que analisam e os fiscais de ID dá-se por analogia. E como bem
acentua a escritora, ela pode ocorrer até entre as pessoas que supostamente seriam nossos pares.
Essa situação de apagamento parcial ou total de algum dos componentes identitários é um
exemplo de porque a interseccionalidade é necessária. No caso de Anzaldúa, ela não deixa de
ser lésbica ao ser chicana e teme anular qualquer parte de si por essa mania de classificação e
hierarquização que a sociedade impõe, por analogia, pardo/a sendo considerada uma “ausência”
de etnia e um espaço de apagamento identitário é imposto/assumido por aqueles/as que criam
“regras” para ser indígena, preto ou branco. As duas situações revelam uma espécie de não
lugar imposto pela mestiçagem (mestizaje) que cria ausências profundas na identidade das
pessoas que estão/são incluídas nessa categoria. Por um lado, o status quo tem uma definição
rígida e completamente atrasada e racista do que seja pessoa indígena, por outro lado, aqueles/as
que estão no limbo identitário da condição de pardo/a (mestizo/a).
Historicamente, fomos alimentados/as pelas narrativas dos mitos do cadinho cultural,
do país miscigenado, que geram heranças culturais tornadas invisíveis. Esse expediente é
metaforizado nos versos “chamam de pardos para embranquecer, enfraquecer e desestruturar
você, pra não saber de onde veio”.
O caráter provocativo e revelador da letra dessa canção conduz o poema na direção do
desvelamento do fato de que, por trás dessas tristes e coincidentes práticas racistas, há um
projeto sociopolítico que é conduzido por frentes múltiplas: apagamento histórico-cultural,
racismo velado, desvalorização da origem étnica do/a outro/a, cujas condutoras, em posições
de poder, naturalizam essas condutas. Os interesses que guiam essas narrativas de silenciamento
histórico-cultural são introduzidos em versos que aludem às “elites” políticas e econômicas que
gerem o país, o que é evidenciado em trechos como: “o agro não é pop, não é tech e também
mata” e “vestem rosa ou azul com as mãos manchadas de vermelho”. O primeiro representa a
elite econômica que tem interesses na dominação e no uso de terras indígenas para exploração
e lucro através da agricultura e pecuária de alto rendimento, movimentando milhões em
produção e exportação de produtos “da terra” de maneira predatória, promovendo chacinas,
roubando terras e destruindo os povos que se coloquem como “obstáculos” ao atendimento de
90
seus interesses. As notícias de conflitos e invasões de terras indígenas que deixam um rastro de
violência contra as pessoas e contra a terra são abundantes na mídia. Junto com a mineração, o
agro é, atualmente, um dos maiores perpetradores de violência contra os povos nativos. Já o
trecho “vestem rosa ou azul” alude à “elite” política que compactua com tais crimes. Nesse
caso, a referência em particular é a ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos
do governo passado (Jair Bolsonaro) que, em uma de suas inúmeras controversas falas, afirmou
que, com o atual governo: “Uma nova era começou. Meninas vestem rosa e meninos vestem
azul”. É importante salientar que essa mesma pessoa, que ostenta o status de advogada sem
sequer fazer parte da OAB50 e que se diz contra a ditadura da “ideologia de gênero” em sua
postura de ignorância e fundamentalismo, é acusada de ter sequestrado51 uma criança indígena
de etnia Kamayura, que foi levada sob pretexto de realização de tratamento de saúde, mas nunca
foi devolvida ao seu povo, tendo sida “adotada informalmente”, segundo a ministra, o que, na
verdade, configura-se como crime de sequestro e alienação parental. Figuras como a citada
agente política representam uma vertente de agentes públicos que compactuam com assassínios
e extermínios, os quais justificam por uma inclinação fundamentalista religiosa extremamente
conservadora e preconceituosa, que vitima todos/as aqueles/as que não vivem de acordo com
as crenças e os preceitos “morais” destes ditos/as gestores/as da coisa pública. Em um país de
tamanha diversidade cultural, racial, étnica e religiosa, ter o alto escalão administrativo
orientado por uma visão mesquinha, estreita e, por vezes, criminosa como essa leva populações,
que já se encontram acossadas pelos donos do capital que não respeitam sequer seu direito à
existência, a uma situação de abandono e desespero que tem motivado um grande contingente
de jovens ao suicídio, como é o caso dos Guarani-Kaiowá, os quais, em face da perda de suas
terras e da desconfiguração de suas identidades étnicas, têm apresentado ocorrências de morte
por suicídio com uma frequência e em uma quantidade alarmantes.52 Segundo dados do Fundo
das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), o índice de suicídio nas populações indígenas é
três vezes maior do que o observado em outras raças, o que nos leva aos versos: “Vejo meus
filhos se perguntando / Se você os mata ou se eles se matam / Se você os mata ou se eles matam
50
Cf. Folha de São Paulo 2019.Sem diploma Damares já se apresentou como mestre em educaçãoe direito.
51
Cf. El País, 2019: “Ministra Damares é acusada por indígenas de sequestrar criança, diz revista”.
52
Os dados sobre os suicídios na etnia Guarani Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, assustam. Essa região concentra
9% da população indígena do Brasil, dos quais 3% são Guarani Kaiowá (ONU, 2016). O CIMI (Conselho
Indigenista Missionário) tem publicado recorrentes notas na imprensa nacional e internacional a respeito dessa
questão entre os Kaiowá, considerados um dos povos indígenas mais vulneráveis do Brasil, que enfrenta uma
sangrenta guerra em defesa de seus territórios tradicionais, amplamente desassistidos pelo Estado e invisíveis à
população brasileira em geral. Entre 2000 e 2011, foram 555 suicídios (CIMI, 2012). Em 2013, 72 Guarani Kaiowá
do estado do Mato Grosso do Sul, na faixa etária de 15 a 30 anos, cometeram suicídio, atingindo a maior taxa do
mundo (MARQUES; ARMOSTRONG; NEGREIROS, 2018, p. 157).
91
primeiro”. A motivação suicida entre os indígenas foi investigada em inúmeros trabalhos. Aqui,
cito o estudo intitulado “Suicídios Guarani Kaiowá: a ausência do território tradicional como
obstáculo” (2016), em que a autora, Giulianna Pessoa, seguindo os postulados de Ciampa,
cogita uma relação direta entre a perda do sentimento de pertença étnica e as mortes:
Tomando como referência o caso dos Guarani Kaiowá, é possível fazer uma leitura que
arremata algumas das alusões metafóricas presentes na canção. A questão do agronegócio como
um dos propulsores da violência contra os povos indígenas coaduna-se com a menção à figura
da ex-ministra que representa a ideologia dominante, extremista e perpetuadora – pelos meios
institucionais – desse ataque continuado e racista aos povos indígenas. A esse entrelaçamento
de classe (representado pelo poder do capital) e raça (simbolizado pelo racismo histórico que
se encontra entranhado na ideologia política), somam-se os preconceitos e as violências de
gênero mimetizados nas cores atribuídas a homens ou mulheres de maneira sumária e binária
(vestem rosa ou azul) e nos versos que remetem ao estupro das mulheres indígenas (pega no
laço e vocês sabem a história). O eu-lírico, nesse caso, coloca-se como voz que faz a exposição
dessas situações e vai além de denunciar os atos de genocídio e racismo, mostrando as mãos
manchadas de vermelho, metaforizando o derramamento do sangue indígena por esses
indivíduos apontados como culpados.
Ainda enfocando o uso das cores nessa canção, chamo a atenção para os versos: “E não
é branco, nem preto / Nem indígena [...]” e “Chamam de pardos para embranquecer /
Enfraquecer e desestruturar você / Pra não saber de onde veio”. No primeiro trecho, as cores
aludem aos tons de pele das raças citadas, numa tríade que é considerada a origem da
miscigenação racial brasileira, uma mistura criadora do “tipo” brasileiro, o pardo. Enquanto
isso, no segundo, o eu-lírico chama a atenção para o uso do termo como embraquecedor e, ao
mesmo tempo, promotor do apagamento das origens étnicas das pessoas, o que,
consequentemente, cria uma ausência de história e de consciência das questões raciais que
92
enfrentamos atualmente. Gloria Anzaldúa, fala um pouco sobre a classificação conferida pela
sociedade contemporânea, marcada por rótulos e certificações de gênero, raça e classe. Ela
disserta especificamente sobre gênero e a sobreposição de categorias identitárias
interseccionais, ao afirmar que:
Na análise dos versos “ninguém é ilegal em terra roubada”, é possível interpretar esse
discurso como um alerta para que as pessoas busquem, conheçam e retomem suas origens. Esse
mesmo alerta aparece logo nos primeiros versos, que são construídos em formas de perguntas
diretas: “Me diz pelo que você luta? / Que ar você respira, senão o meu fôlego? / Que comida
você come, senão a que eu dou?”. O fato de a voz lírica endereçar seu discurso diretamente à/ao
ouvinte, usando recursos dialógicos e poéticos na forma interrogativa, procedimento que
reforça esse sentido de construção de um questionamento, levantando tais dúvidas para serem
problematizadas por quem as escuta e enfatiza também a primazia da pessoa nativa na terra
(meu fôlego, comida que eu dou) cujo território e cuja subjetividade foram e continuam sendo
ameaçados pelas práticas de dominação (econômicas, políticas, raciais e sexuais), imperialistas,
e hoje neocoloniais, como consequências da invasão e sua tomada de poder sobre Pindorama.
A metáfora das cores em “Mãos Vermelhas” flui como um rio que vai serpenteando ao
longo do percurso e criando diferentes paisagens e significados. Do sangue às vestimentas que
regulam papéis de gênero, da afirmação da cor da pele ao apagamento identitário, terminando
por desaguar na resistência de múltiplos tons e vivências que representam a luta por um mundo
a cores, em que a dicotomia demarcada pelo preto e branco dá lugar à paleta diversa do ser e
do existir como somos no que ainda restou de Pindorama.
Outro fator que agrega sentidos ao arranjo da composição e que não poderia deixar de
mencionar são os efeitos que a DJ Bieta imprime por meio das distorções e inserção de samples.
Um deles, em especial, causa um efeito de reverberação e eco na voz de Kaê. Um momento
exemplar desse procedimento é a repetição dos versos: “Se você os mata ou se eles se matam /
Se você os mata ou se eles se matam primeiro”. Existe a repetição da frase (eco) que, aliada à
ausência de batida, amplifica e destaca esse momento da canção dos demais, fazendo com que
sua voz reverbere por alguns segundos. O mesmo procedimento é aplicado aos versos finais:
93
“Ainda resistimos em tantos tons e vivências”. É digno de nota também o uso do agogô – tocado
pela DJ – no trecho em que surgem os versos “E conta a história da bisa / Da sua bisa [...] /
Ninguém é ilegal em terra roubada”, o que causa a impressão de um andamento acelerado,
reforçando o sentido de repetição da história que a letra suscita.
Em síntese, considerando de forma global as afirmações e os questionamentos do eu-
lírico, contextualizados pelas referências para as quais ele aponta, temos uma voz poética que
se encontra na encruzilhada interseccional de relações de opressão pelo poder dominante que
se manifesta contra essas questões e se coloca entre as pessoas oprimidas por essa colonização
racial, econômica e de gênero, numa posição de resistência e de renascimento mimetizados,
mais contundentemente nos últimos versos: “Tô renascendo das cinzas do fogo/ Em que
queimaram meus ancestrais/ Ainda resistimos em tantos tons e vivências”. Aqui, encontramos
um estamento forte que se vale da pluralidade de cores e da diferença de modos de vida, fazendo
recuperar também um símbolo de força bastante conhecido e reapropriado nas artes: o mito da
fênix. De acordo com Chevalier e Gheerbant (1994, p. 422), dentre outras acepções, a fênix é
considerada um pássaro sagrado e símbolo de uma vontade irresistível de sobreviver, bem como
da ressurreição e do triunfo da vida sobre a morte. No que concerne ao indiofuturismo, a
composição apresenta a releitura da colonização e de suas consequências, enfatizando sua
continuidade, instigando o público ouvinte a recriar narrativas cristalizadas. A letra performada
no estilo rap, incorpora tecnologias no campo da música (como o sample e o reverb) e o produto
final que é a canção, é divulgado por meio das tecnologias digitais. Esse movimento é feito
enfatizando ainda as questões ancestrais (território) e incentivando uma mudança de
mentalidade colonial (“abra sua mente”) por meio da recuperação da trajetória ancestral e do
apagamento das barbáries cometidas no processo “civilizatório” (“é o Brasil que ninguém vê”).
Ativando a crítica de colonização de gênero, Kaê constrói um texto indiofuturista, combativo e
descolonizador que traça diálogos fortes com o racismo e as questões de classe e, por isso
também, interseccional.
Nesta secção, enfatizei problematizações de gênero na canção “Mãos Vermelhas”, em
que figuram as violências sexual, racial e ambiental que motivaram discussões a partir das
teorizações do chamado feminismo comunitário em aproximação com o feminismo
interseccional das feministas negras, latinas e chicanas. Apresento, a seguir, a canção “Indígena
futurista”, de Katu Mirim, cuja análise, em diálogo com a anterior, suscita discussões em torno
de questões que envolve estereótipos e preconceitos acerca dos/as indígenas, veicula também a
luta da indígena guerreira pelo território e suas relações insurgentes contra os/as agentes do
colonialismo.
94
Um mergulho, mesmo breve, nos textos de Katú Mirim revela alguns vetores muito
claros de seu trabalho: revolta e resistência. Os alvos desses vetores são as narrativas
hegemônicas acerca da população indígena do país e as consequências concretas da colonização
e do racismo. As composições de Katú e outros/as rappers respondem a esta revolta. Em alguns
casos, o seu rap se alinha à crônica, o que pode ser lido como um dos traços característicos do
estilo (BRUM, 2016). Ao ficcionalizar e relatar seu cotidiano: acordar, pegar ônibus, trabalhar
numa megalópole, batalhar pela existência que implica resistência, a artista realiza uma
incursão crítica de revolta e rebeldia da realidade indígena no contexto urbano. Em outros, relata
e denuncia, como em “Aguyjevete” (2020)53 alguns dos incontáveis crimes dos quais é vítima,
em todo lugar e a todo tempo, a população indígena do Brasil.
Na imagem abaixo, vemos a representação da estética indígena futurista de Katu no
tocante à sua performance visual, veiculada em suas redes sociais, unindo elementos Cyberpunk
às representações da cultura indígena para promover uma descolonização da imagem
cristalizada de natividade e da própria noção de futurismo.
Fonte: Instagram
53
Ep Nós (2020), disponível no Youtube e Spotify.
95
Katú Mirim é uma denominação Guarani que significa pessoa boa (lembrando que
pessoa, neste caso, refere-se um “ser” bom que não tem gênero e nem espécie), embora a rapper
esteja ligada biologicamente à etnia Boe Bororo, fato que só descobriu na pré-adolescência.
Este dado é importante, na presente discussão, porque explicita de apenas um dos vários
deslocamentos a que foi submetida Katú, que reencontrou a conexão com a ancestralidade
indígena por meio dos Guarani que a reconheceram e a nomearam.
Os “atravessamentos” identitários marcam sua trajetória: por tornar-se filha adotiva de
um pai pastor evangélico e só “descobrir” sua relação e ancestralidade indígena a partir dos 12
anos de idade; por ser lésbica, queer; por ser uma indígena para quem a referência musical mais
imediata não eram cânticos ancestrais e sim o rap, o hip-hop, música produzida e consumida
na periferia de São Paulo. Nesse caso, a relação íntima entre o dado artístico e o dado
sociológico não pode ser ignorada: mais do que o pagode, o samba, o forró – estilos musicais
que, embora oriundos das camadas populares da sociedade brasileira, gozaram e gozam de
espaço privilegiado nos meios de comunicação –, o rap tem seus modos de fazer, sua
estruturação instrumental, seu texto e mensagem referencial ligadas ao âmbito da periferia, dos
guetos e prioritariamente às lutas sociais, raciais, de classe e mais agudamente de gênero.
As questões citadas estão presentes nos trabalhos de Katú que, além da carreira de
cantora, atua também como modelo e faz ativismo ambiental, social e de gênero por meio de
suas plataformas virtuais. A artista está sempre apresentando suas leituras e visões de mundo,
veiculando cultura indígena e repercutindo assuntos de interesse público em relação aos povos
indígenas, a cultura musical, literária e às comunidades LGBTQUIAPN+. Ao apresentar-se
como uma mulher periférica, indígena e lésbica. Katu confronta estereótipos desconstruindo
visões que a constrangem enquanto tal. Essa sobreposição de camadas identitárias tem feito
parte de seu trabalho, não somente como cantora, mas como artista multifacetada atuante em
diversas frentes. As proposições de Katú parecem convergir com o que sustenta Breny Mendoza
(2016, p. 413):
A exemplo de suas letras, suas opiniões são contundentes, ela constrói uma expressão visual
indígena cyberpunk que promove a reflexão sobre as culturas indígenas tanto nas aldeias,
96
Hey!
Nosso povo nunca morre, a raiz nos salvará
Hey! Olha aqui nunca foi sorte
A escuridão tive que iluminar
Hey! E me jogaram do penhasco
E tive que aprender voar
Hey! E me jogaram na fogueira,
Mas virei água para apagar
E estou de pé com fé
Não vou me arrastar
A minha morte você quer,
Mas não vou te dar
Me querem apagada, mas eu vou brilhar
O bicho da mata virou popstar
Nossa terra é vip e eles não vão entrar
Aqui nobreza e nós vamos reinar
Me querem apagada, mas eu vou brilhar
O bicho da mata virou popstar
Nossa terra é vip e eles não vão entrar
Aqui nobreza e nós vamos reinar
Se não aguenta é melhor abaixar
Fúria da terra, do céu e do mar
Você pensou que eu não iria voltar, voltei
Para lutar até reencarnei
Você pensou que eu ia me calar, mas gritei
97
1, 2, 3 no sistema eu entrei
Me infiltrei para matar o rei
Código da Vinci também decifrei
Olha lá os muros que eu derrubei
Lembrando daqueles que eu não desonrei
E a onça não vai amansar
Então corre que eu vou te caçar
E a dança não vai mais parar
Que hoje los muertos que vão dançar
Tá difícil, mas vou suportar
Na mira da bala e eles vão atirar
Odeiam minha luz, mas vou ofuscar
Me querem parada, mas vou avançar
Na favela o Estado me jogou
Com sequela esqueci quem eu sou
Mas a minha volta olha o que causou
Vou banindo, banindo no canto e no flow54
Me querem apagada, mas eu vou brilhar
O bicho da mata virou popstar
Nossa terra é vip e eles não vão entrar
Aqui é nobreza, nós vamos reinar
Me querem apagada, mas eu vou brilhar
O bicho da mata virou popstar
Nossa terra é vip e eles não vão entrar
Aqui é nobreza, nós vamos reinar
Se não aguenta é melhor abaixar
Fúria da terra, do céu e do mar
E nosso povo nunca morre, a raiz nos salvará
Olha aqui nunca foi sorte
A escuridão tive que iluminar
E me jogaram do penhasco para voar
Me jogaram na fogueira
Mas virei água para apagar
88 a constituição
Mas 1500 foi a invasão
Roubaram as terras com a bíblia na mão
Branca é a cor do ladrão
Tá difícil, mas vou suportar
Tô na mira da bala e eles vão atirar
Odeiam minha luz, mas vou ofuscar
Me querem parada, mas vou avançar
Tá difícil, mas vou suportar
Tô na mira da bala e eles vão atirar
Odeiam minha luz, mas vou ofuscar
Me querem parada, mas vou avançar
Me querem apagada, mas eu vou brilhar
O bicho da mata virou popstar
Nossa terra é vip e eles não vão entrar
Aqui é nobreza, nós vamos reinar
Me querem apagada, mas eu vou brilhar
54
O flow é a habilidade métrica e melódica de cantar seguindo as batidas rítmicas, fazendo assim coincidir
agradavelmente o instrumental e o vocal. O termo vem do inglês e tem o significado de fluir. pode ser entendido
também como a habilidade de rimar e improvisar rápida e sequencialmente sem ficar embaraçado/a. (Red Bull,
2022).
98
A atuação de Katú Mirim no rap é destaque. Ela é mais um expoente entre jovens
músicos/ as indígenas que perceberam no rap/hip hop, uma ferramenta potente de difusão de
sua mensagem. No entanto, no próprio meio artístico Mirim encontra barreiras: racismo,
machismo, lgbtfobia e desvalorização de seu trabalho. Nesse sentido Mirim afirma que:
O rap dos não indígenas acaba sendo racista, quando não dá oportunidade de
a gente ocupar aquele espaço que nos pertence. A gente vê festivais de rap
onde as pessoas vão fantasiadas de índio, onde não tem indígena, onde os
próprios MC’s acabam fazendo músicas que são racistas com os povos
originários (SELECT, 2022, n. p.).
A citação acima, ao mesmo tempo em que contextualiza a forte adesão dos/das jovens
artistas ao rap, elocubra sobre a apropriação deste gênero por indígenas. Entre os muitos
atrativos do gênero, estão a valorização da cultura popular e periférica, a discussão das
questões de classe, de raça e de gênero. O rap tem uma grande difusão através da internet,
conforme salienta Márcia Félix Cortez (2010, p. 30),
Aproveito para explanar sobre a característica híbrida presente nas canções de rap como um
todo, mas aqui, especificamente, sobre o hibridismo entre cultura indígena e cultura popular
periférica. A pauperização do/a indígena brasileiro, a dificuldade de acesso a bens culturais,
sociais e naturais como água encanada, saneamento básico, escolas e universidades, conduzem
muitas vezes os indígenas a uma migração necessária à sobrevivência. Essa situação está
mimetizada nas canções de rap, especificamente das/os MCs indígenas. Na canção aqui
enfocada, os versos “na favela o estado me jogou” e "Tô na mira da bala, eles vão atirar”,
recuperam imagens que continuam se repetindo nas periferias brasileiras.
O eu lírico do texto de Katú transita na instabilidade enunciativa. Por vezes é um eu,
por outras é um nós, o que ocorre, por exemplo, nos versos: “eu vou ofuscar” e “nós vamos
reinar”. Nisso a rapper cria uma voz lírica que busca falar não apenas de si ou de uma
perspectiva pessoal, mas coletiva e compartilhada. Em outras palavras, a voz lírica não deriva
de um indivíduo específico; o que temos é um espaço/lugar de enunciação em que
subjetividades e tempos diferentes se cruzam. Esse movimento de sobrepor vozes e espaços de
tempo espiralar, já abordado na discussão acima, não representa um vetor para o futuro, mas
uma possibilidade de trânsito no espaço-tempo. Por isso, no que se refere aos tempos verbais,
embora nos conectemos ao presente da apreciação e da enunciação poética, não há concentração
significativa no passado, presente ou futuro; há o intercâmbio entre eles, como nos versos: “a
raiz nos salvará”, “me jogaram do penhasco”, e “estou de pé”. E a construção prossegue
alternando entre presente passado e futuro, criando uma poética que faz um contínuo
movimento para frente e para trás no tempo.
No que se refere aos lugares de enunciação, a alternância entre as marcações verbais e
pronominais que individualizam e pluralizam a voz lírica gera uma indistinção entre um eu
100
individualizado e o grupo de que faz parte. A flexão do adjetivo, a exemplo de “Me querem
parada, mas vou avançar”, é a única marcação de gênero apresentada no texto, no entanto é
suficiente para sabermos que a voz lírica declina no feminino, nesta composição e possibilita
entender que o sujeito de ações de resistência e rebeldia como reencarnar para voltar (para a
luta) são performadas por uma guerreira, como exemplo destaco os versos: “Você pensou que
eu não iria voltar, voltei/ Para lutar até reencarnei” a dilatação da personalidade/
individualidade. É essa possibilidade de leitura dupla que marca a complexidade do discurso de
Katú.
Ainda ressaltando os tempos verbais, há uma linha de recorrência em construções no
futuro, quando se trata de posicionamentos desse eu/nós lírico em relação oposicional a um
eles/elas implícito, como: “me querem apagada, mas eu vou brilhar,’, “odeiam minha luz, mas
eu vou ofuscar”, “me querem parada, mas vou avançar”. Esses versos apresentam ações de
continuidade e resistência que, de alguma maneira, desafiam o desejo desse “eles/as” a que o
eu lírico se refere, criando um polo oposto para a voz que ora está no singular e ora no plural.
Tal estrutura discursiva rememora a estratégia de “O quereres”55 (1984) de Caetano Veloso, na
qual Marília Carvalho e Sérgio Freitas (2022, p. 4) leram um discurso de rebeldia. A dupla
afirma que
Ao estabelecer o paralelo entre a postura discursiva das duas canções, dialogo com a citação
acima no sentido de localizar a obra de Katú nessa seara uma vez que em suas composições a
rebeldia se estabelece como estilo. Compreendo também que ela se materializa em diversos
âmbitos da canção, no discurso, na repetição opositora da adversativa “mas”, nas próprias
repetições rítmicas que se estabelecem como um looping da batida. Essa rebeldia expressa-se
ainda através dos sentidos de resistência impressos nos versos: “minha volta olha só o que
causou”, “para lutar até reencarnei", “pensou que eu não ia voltar, voltei”. A construção
discursiva teimosa de Katú, encontra-se alinhada novamente à de Caetano, no sentido de que
55
Faixa 7 do álbum Velô (1984), Universal Music.
101
O mesmo procedimento é adotado por Katú, mas em sua composição a relação não se dá entre
um par romântico e nem procede de desencontros, mas de antíteses de posturas, valores e
desejos que giram entorno de temáticas do âmbito social. Além disso, o procedimento musical
de repetição adotado por Caetano faz a canção desenvolver-se em ciclos. Em “Índígena
Futurista” esse movimento cíclico pode ser lido também como uma característica do gênero
rap, consequência da utilização de sampler56 que se repete e das batidas eletrônicas.
Ainda a propósito da citação acima, os diálogos extratextuais propostos por Katú, levam
a aspectos que extrapolam a mensagem veiculada pelo texto e criam alguma dificuldade para
uma leitura que se restrinja aos seus traços formais ao trazer para o âmbito da composição dados
explicitamente biográficos, o eu lírico confunde-se com a performer que empresta seu corpo a
esse eu/nós que enuncia. No caso em questão, este corpo busca se alinhar com o traço de
inconformismo, revolta e contestação da mensagem. Em outras palavras, a performance
acrescenta camadas de significado à canção. Se, para além disso, trouxermos à nossa apreciação
e análise o dado visual, a vestimenta, expressão facial e movimento da rapper, então
poderíamos pensar que sua performance integral, mimetiza sua própria existência que é parte
da resistência que canta. Sua presença, seus cabelos, sua maneira de expressão e seu flow
marcantes são elementos desestabilizadores (no mínimo, opositores) da ordem que esse eu/nós
lírico busca atacar. A fusão entre a voz do/a cantor/a e a voz lírica é um traço comum na cultura
Hip Hop e no rap tem a ver com a própria natureza do gênero e com a natureza da performance
associada a ele. Em diálogo com as proposições de Paul Zumthor, Márcia Félix (2010, p. 85)
aponta que:
56
De acordo com Márcia Félix Cortez (2010), “Sampler - Instrumento eletrônico dotado de memória para
armazenar os sons selecionados. Normalmente é acoplado a um mixer e pode conjugar ao mesmo tempo várias
estruturas melódico-musicais, pois é capaz de armazenar até dez sequências musicais a serem utilizadas na
performance dos DJs. Configura-se como um dos mais fecundos recursos da discotecagem, auxiliando a
construção do rap através das colagens”.
102
[a] constatação do uso da voz com função artística e social, revelada nas obras
de Zumthor, nos impulsiona a considerar que existem pessoas com a
capacidade de vocalizar as suas experiências de vida, sejam elas tristes ou
alegres, nos mais diversos lugares. Percebe- se que há no/a MC uma forte
identificação com o seu espaço geográfico para apresentá-lo nas canções e,
muitas vezes, esta representação pode ser relacionada ao que Zumthor
menciona sobre as diversas regiões do mundo nas quais o poder do uso da voz
se comprova, bem como ao fato da poesia oral que é “propícia em sociedades
desprovidas de artes visuais e nas que vivem em meio natural pobre e austero”
(1997, p. 171).
O/A MC está sempre negociando e defendendo posições e propondo-se a rimar sobre suas lutas
e seu território, seja ele o microfone (espaço de fala), a favela (espaço geográfico), ou a
ancestralidade e seus espaços originários (cartografias afetivas e imaginárias). O corpo do/a
cantor/a, ao dar vazão a performance vocal e gestual, pode imbricar-se numa tríade particular
de instâncias performáticas em que o eu lírico, o/a MC e a própria comunidade que ele/ela
representa tornam-se, momentaneamente um/a só voz. Dessa maneira o rap torna-se um espaço
privilegiado de luta social em que a voz dos/das excluídos/as pode ser ouvida.
Retornando à análise das particularidades da canção, a estrutura musical em sua base
instrumental está baseada num beat constante, de andamento rápido, assemelhando-se a um
híbrido entre a dance music e o hip-hop. O canto de Katú desenvolve-se sobre essa base e alterna
entre o flow, o discurso e o coro cantado no refrão.
Fonte: Instagram
103
A imagem acima foi lançada nas redes sociais de Katu, na ocasião da divulgação do Ep
“índigena futurista”. A arte é Auá Mendes, uma artista visual transvestigênero57 e manauara.
Auá é proveniente do povo Mura e se inspirou numa estética cyberpunk com motivos indígenas
para compor esta arte em cores marcantes. A figura sem marcação de gênero é retratada de
perfil, apresentando marcas de luta mimetizadas pelos curativos e sua pele apresenta pinturas
corporais indígenas no rosto e pescoço, além de usar um casaco que lembra o estilo militar. O
olho remete a uma espécie de tecnologia eletrônica, possibilitando a leitura desta personagem
como um/a ciborgue e o moicano azul trançado em dread locks remetem à estética punk. Tais
elementos oportunizam elucubrar motivos indiofuturistas tais como hibridismo tanto no que diz
respeito à tecnologia (ciborgue), quanto à cultura (punk + indígena) e quanto ao engajamento
social (representado pela postura e expressão facial combativas e pelos curativos), dialogando
assim com o próprio estilo de Katú e com a canção ao retratar uma pessoa indígena guerreira
futurista.
A voz lírica da guerreira expressa uma força reativa elemental presente nos versos “fúria
da terra, do céu do mar” e “corre que a onça não vai amansar/ então corre que eu vou te caçar.
Aqui podemos recuperar a palavra guarani xondaria (guerreira/soldado). A voz lírica coloca-se
na posição de uma guerreira que tem a capacidade de se hibridizar com elementos e seres
naturais, procedimento que dialoga com o construído pela canção “Serpente-mulher” que
analiso no capítulo seguinte. Se por um lado essa imagem aproxima as duas canções, ela
também aponta divergência no tom e nos motivos para essa hibridização. Enquanto a xondaria
utiliza os elementos para atacar e se defender em sua fúria contra esse “eles” que ela identifica
como o estado e o colonizador e seus aparatos (como a religião dominante e o poder de polícia),
a serpente-mulher apresenta-se como imponente ancestral que carrega ensinamentos culturais
e religiosos dos Borari.
A fúria, revolta e rebeldia são atributos que permeiam toda a obra de Katú, exemplo
disso é seu álbum Revolta que reúne canções como “Jogo sujo”, “Luto”, “Sem silêncio”,
“Clique boom”, entre outras. Ressalto essas como exemplo apenas para referenciar que fazem
parte de um conjunto chamado Revolta, o que destaca o atributo mobilizado nessa análise.
Versos como “me infiltrei para matar o rei”, “Então corre que eu vou te caçar” e “fúria da terra,
do céu, do ar” reforçam os sentidos que aponto, destacados pela constituição enunciativa do
eu/nós contra “eles”, base sobre a qual se constrói a canção. Ainda assim, trata-se aqui de uma
57
Esta é a palavra escolhida pela artista para sua autoidentificação e reflete como ela se identifica quanto à
categoria gênero.
104
voz lírica no feminino, cujos desejos de revolta e raiva se expressam de uma maneira irrefutável.
Ocorre que na sociedade patriarcal a raiva não é um atributo bem aceito nas mulheres
(especialmente as não-brancas), assim como o desejo e o ressentimento, conforme apontou
Eugenia Delamotte (apud SCHWANTES, 2005). Ao construir uma voz lírica guerreira e
furiosa, Katú desafia os padrões de falocentrismo vigentes, especialmente no universo do rap,
reclamando o direito à revolta e à expressão da raiva em mulheres.
Fúria, para além de ser um sentimento entre raiva, justiça e vingança avassaladora, é
também o termo que nomeia as três deusas irmãs da mitologia romana que são responsáveis
pela punição dos crimes que escandalizam os/as deuses/as. São justiceiras implacáveis
conhecidas pelos gregos como Erínias. De acordo com Chevalier e Gheerbrant (1994, p. 435-
436):
Essa relação entre vingança divina e leis da natureza, pode mediar a leitura desse movimento
da voz lírica de transformação elemental e metamorfose em onça brava 58. A metamorfose
analisada pelos citados autores revela uma “crença na unidade fundamental do ser, sendo as
aparências visíveis um valor ilusório e passageiro” (p. 630). Eles acrescentam ainda que é uma
expressão de desejo, de sanção oriunda do inconsciente profundo que se manifesta pela força
criadora.
Temos aqui o centro temático da canção, a luta pela reparação e pela justiça que tem por
motores: a fúria e a preservação tanto da ancestralidade quanto do território. Neste ínterim, os
movimentos de metamorfose podem representar tanto a conexão com a ancestralidade, quanto
a execução do papel de xondaria/guerreira, motivo pelo qual as forças da guerreira e dos
elementos naturais se fundem nesta luta. A figura da onça é particularmente exemplar ao caçar
aqueles que invadem seu território. É considerada um/a ancestral e um/a guerreira por vários
58
Na literatura contemporânea, esta metáfora tem sido retomada com bastante frequência, especialmente
ressaltando a fúria da mulher. Cf. por exemplo, O som do rugido da onça (2021), de Micheliny
Verunschk, vencedor do prêmio Jabuti em 2022.
105
povos indígenas de Pindorama e de Abya Yala, como se pode ler na citação de Grasiela Porfírio
(2019, p. 560):
Como se pode ver o histórico de proximidade entre os povos indígenas e esse animal é imenso.
A palavra tupi-guarani para Jaguar vinculada por Porfírio na citação acima é reveladora para os
sentidos que aqui aponto: aquele/a que luta, guardiã/o. Este trecho atesta também a prevalência
dessa presença na cultura de vários povos andinos, o que demonstra a importância desse felino
em suas cosmovisões. Outro ponto que saliento é a nomenclatura "el bicho” (o bicho, adotada
pelos grupos pampeiros argentinos, pois tal imagem suscita a reflexão sobre os versos “o bicho
da mata virou pop star”. Aqueles seres considerados perigosos e selvagens são exaltados na
cultura pop por meio da arte musical. Pode-se entender uma referência tanto à pessoa indígena
quanto à onça. Tal procedimento de sobreposição revela uma estreita aproximação com a
natureza e uma subversão, pois o/a selvagem que teve (e tem) sua cultura, seu território e sua
existência ameaçados está sendo aclamado. Aponto, ainda, a inversão da relação
predador/presa, uma vez que, o ser humano é que tem caçado onças predatoriamente levando
ao risco de extinção da espécie e tem também destruídos seus territórios. A voz lírica inverte os
papéis colocando a onça como caçadora de pessoas. A sanha predatória do não indígena, levou
a situação de extermínio vários povos tradicionais, sendo que alguns povos foram literalmente
extintos em decorrência do genocídio. A canção em tela dialoga com a composição “Caça e
caçadora” (2019) de Souto Mc no que diz respeito à inversão desses papéis:
A paridade entre as canções pode ser demonstrada a partir das nas figuras temáticas:
espiritualidade/ancestralidade, enfrentamento, renascimento, resistência (metáfora da raiz em
Katu) e, por fim, na inversão dos papéis entre caça e caçador, também presentes em “Indígena
futurista” nos versos: “Onça braba não vai amansar/, Então corre que vou te caçar”. Outra
aproximação interessante está no estamento de que o povo indígena não vai ser exterminado,
pois renascerá. Em Souto MC: “Nossa força ancestralidade/, não existe quem mate/, o que é
terra não finda”, e em Katú: “O nosso povo nunca morre/, a raiz nos salvará”. As similaridades
temáticas e discursivas apontam para referências éticas e estéticas que orientam o processo das
compositoras e parecem estar alicerçadas em relação ao resgate de suas ancestralidades. Souto
MC é Kariri e foi criada, assim como Katú, no contexto de urbanidade, em São Paulo. Em suas
diferentes trajetórias, ambas sinalizam para um processo de volta à raiz. Saliento, como mostra
disso os títulos “Retomada” de Katu e “Retorno” de Souto MC59. Essas vozes líricas performam
embates e deparam-se com preconceitos raciais, de gênero e de classe ao trilharem o caminho
inverso, voltando para a conexão ancestral.
Voltando, a análise de índigena futurista, as inversões e polarizações proposta pela letra
da canção denunciam, por um lado as violências e pagamentos contra os povos indígenas; mas
por outro, lado há um levante, uma reação por parte da voz lírica que se projeta sempre no
futuro com insistência e resistência, a partir da reiteração das formulações “eu vou”, “nós
vamos”. Há um movimento aguerrido de esperança contido nas ações guerreiras que podem ser
recuperados também nos versos “estou de pé”, “não vou me arrastar”, “minha morte você quer”,
“mas não vou te dar".
59
“Caroline Souto tem quase 10 anos de rap. Com 25 de vida, a MC originária do bairro da Penha, zona norte
paulistana, teve seu primeiro contato com o hip hop logo na infância. Foi criada em Itaquaquecetuba, grande São
Paulo” (ROSÁRIO, 2020).
107
60
Retomo a essa discussão no próximo capítulo, Cf. página 125.
108
maneira geral essa separação não existe. Além do mais, a identificação entre mulher e natureza
com fins de relegar a mulher ao natural e o homem ao cultural nos termos de Ortner (2016) não
se sustenta nas cosmovisões indígenas, pois os homens também estão imbricados com
naturezacultura e essa ligação não é vista como hierárquica, moralizante ou segregatória. Tais
posturas hierárquicas têm lugar majoritariamente nas sociedades colonialistas.
Logo abaixo reproduzo três frames do filme: o primeiro no momento em que Abegar
salta do penhasco com Janaína, sua companheira; no segundo quando ele está novamente pronto
para saltar após a morte dela; no terceiro aparecem suas asas de pássaro e no quarto, já em uma
reencarnação futurista de ambos, quando saltam de um arranha céu. É interessante notar que
no caso do filme, apenas Abeguar (que depois reencarna como Balaio, Cau e Jc) é capaz de
alcançar a metamorfose. Janaína que sempre encarna como Janaína mesmo, não apresenta tais
habilidades, sendo salva, alguns pares de vezes, pelo protagonista. Embora ela também esteja
engajada nas lutas e seja retratada como uma boa atiradora e motorista mais à frente. No
momento em que são encurralados em penhascos e afins, ela sempre se abraça ao amado para
voar com ele e poder escapar dos opositores. Talvez o enredo tenha assim se construído para
criar um laço afetivo mais óbvio entre as personagens para construir a história de amor, no
entanto, não deixam de ser importantes essas escolhas. Não irei me aprofundar nelas, pois, meu
interesse aqui está no contraponto oferecido pela voz lírica de indígena a elas. Abaixo pode-se
observar o voo de Abeguar, por vezes, carregando Janaína.
61
Essa metáfora está também em “Por dentro da terra” (2022), de Kaê Guajajara.
110
Reflito, a partir da citação acima sobre a raiz62 como metáfora para uma ligação com a terra,
com o anterior, com a cultura e com a ancestralidade, pois, é daquela parte invisível fincada na
profunda escuridão que toda a exuberância do mundo em que caminhamos se nutre. A raiz é
uma metáfora potente para a ancestralidade, pois pode ser compreendida por uma relação eterna
e incessante com aquilo ou aqueles/as que estão enterrados/as. Estes entes e seres foram e são
os/as que nos legaram a cultura. Este legado não nos priva de propor novos diálogos e embates
com o mundo exterior, pois no fim podemos recorrer à raiz. Esta também é uma forma de
descolonizar as identidades e se opor ao tão propalado conceito de aculturação. A cultura
continua existindo e pode ser acessada a qualquer momento63. Ela não está represada, nem
guardada em um cofre inacessível. Ela está na raiz e na terra, inclusive as palavras raiz e cultura
(cultivare), aliás estão intimamente ligadas à terra e ao ar e a água, portanto, são palavras que
não podem se desconectar da natureza. Precisam ser pensadas em relação, como faz Donna
Haraway (2005) ao propor o vocábulo naturezacultura, pois essas palavras coexistem, uma vez
que sem natureza não há cultura.
Vejo nisso um diálogo com o tempo espiralar, o tempo que foi, continua sendo e sempre
será e que não necessita de um vetor apontando para qualquer direção que seja. É um tempo de
trânsitos. Este tempo, portanto, está ligado ao “Futuro ancestral” e por conhecermos a terra e
seu conteúdo, Krenak nos adverte a pisar suavemente sobre ela.
Ao reunir, a luta social, a ancestralidade, as tecnologias, o hibridismo, fazendo o
movimento descolonizador por meio da criação de novas narrativas, “Índígena futurista”
dialoga com os eixos do indiofuturismo e apresenta, a partir da metáfora da raiz e da
continuidade da luta, saídas utópicas que revelam alguma esperança de abandonar o cenário
distópico e apocalíptico que descreve e no qual se inscreve.
Neste ponto, “Indígena futurista” abre possibilidades de diálogo com a canção que
analisei anteriormente: “Mãos vermelhas” de Kaê Guajajara, que explicita e metaforiza os
cenários opressivos da racialização misógina e das lutas às quais povos indígenas foram e têm
sido submetidos.
A ligação da pessoa indígena com a terra em contraponto às relações ambientais
construídas pela sociedade ocidental de modo geral norteará a discussão do próximo capítulo,
62
É importante salientar que não consegui encontrar em nenhum dos dicionários de símbolos consultados o
vocábulo “raiz”, o que me chamou atenção uma vez que essa é uma metáfora muito comum é basilar para diversas
culturas e mitologias.
63
Embora nos movimentos de dominação colonial muitos povos tenham sido proibidos de expressar suas culturas,
ela permaneceu e renasceu por meio do retorno às raízes.
111
no qual busco problematizar, a partir das mimetizações desse tema na canção popular, uma
necessária aproximação entre Ecofeminismo e Bem Viver.
112
Neste capítulo, o objetivo é propor uma análise da figuração das questões ambientais no
cancioneiro brasileiro, buscando traçar um diálogo entre o conceito de Bem Viver, que parte da
filosofia de povos originários da Abya Yala, e o Ecofeminismo, discutindo conceitos como
ecologia e sustentabilidade, responsabilidade social e econômica, visando compreender a
necessidade de uma reformatação dos modos de ser e de estar nesse planeta que dialogam com
o indiofuturismo por meio do bem viver e conexão com os saberes ancestrais. Uma
aproximação possível é sinalizada por Alberto Acosta, quando o autor considera que
Inicialmente, aponto uma aproximação entre bem viver e ecofeminismo no que diz respeito às
preocupações ambientais, na crítica ao capitalismo, patriarcalismo e antropocentrismo. A partir
da concepção do bem viver, as filosofias andinas e amazônicas permitem questionar a maneira
como coexistimos e os meios e motivações que nos impelem, propondo uma reconfiguração de
atitudes e entendimentos que são capazes de redirecionar, por meio do diálogo, os rumos que
temos tomado e o mundo que estamos construindo. Esse é um dos pontos basilares do
indiofuturismo, a mudança de direção vetorial do tempo para que se possa analisar e abarcar
ciências dos povos tradicionais para investigar o presente em que vivemos e criar novas
possibilidades de futuro.
Outro ponto proposto pelas duas perspectivas críticas consiste uma certa reserva em
relação à crítica acadêmica, conforme explicitam as autoras Maria Mies e Vandana Shiva,
reproduzido abaixo, que salienta o modelo dominante de desenvolvimento:
Por isso, retomo a epígrafe deste capítulo para enfatizar que não é surpreendente que certa
reserva exista, uma vez que os meios de produção e reprodução do conhecimento são, em geral,
114
Embora haja divergências pontuais entre esses dois enfoques, vejo mais pontos de convergência
que são importantes. É possível traçar uma ponte teórica em que esses discursos e essas teorias
encontrem um acesso que possibilite lançar novos questionamentos e propor embates e sínteses
dentro do ambiente acadêmico. Esta tese constitui-se como exemplo disso, inclusive.
Portanto, proponho uma leitura interdisciplinar dos campos de saberes já apontados, de
forma a entrelaçar olhares possíveis às canções como um caminho para analisar suas
peculiaridades da composição e, ao mesmo tempo, discutir questões socioambientais que
dialogam com esses textos. Adotar esse viés plural é também compreender os mecanismos do
próprio Bem Viver, uma vez que, nas palavras de Pablo Sólon (2019, n. p.):
É necessário, ainda que brevemente, observar algumas das vertentes citadas no trecho acima.
Tratarei aqui apenas das relações entre os ecofeminismos e o bem viver, no entanto, conforme
indicado por Sólon, as possibilidades de entrelace com outras vertentes são abundantes. A
relação do bem viver com os comuns ou comuneros, por exemplo, é bastante recorrente. De
modo geral,
115
[o]s comuns são um modo particular de relação social com os bens materiais
ou imateriais. Elementos naturais, como a água e o ar, existem como tais, e só
se convertem em comuns quando uma comunidade humana administra suas
relações com esses elementos de maneira coletiva (AGUITON, 2019, n. p.).
Pode-se perceber, então, que os comuns ou comuneros buscam a autogestão comunitária dos
bens comuns e se coadunam com o bem viver, ao postular em um debate comunitário dessas
gestões e das relações das comunidades. Um ponto de divergência está na centralidade na
comunidade humana, a mais destacada das características do antropoceno. No Brasil, uma das
lideranças que tenta promover o movimento dos/as comuns é Manuela D’Ávila 64 (política e
ativista feminista e pelos direitos humanos), que vem articulando uma oitiva de pautas para
estruturar o movimento Comum no país. Um ponto que aproxima comuneros e comuneras do
Ecofeminismo é a economia dos cuidados, não apenas no âmbito familiar, mas o cuidado com
os bens comuns. Além disso, as/os comuns, muitas vezes, reinvindicam a luta pelo
“desenvolvimento sustentável”. O que as/os afasta tanto do bem viver quanto dos defensores e
das defensoras do decrescimento.
O decrescimento, por sua vez, é uma corrente de pensamento que leva em consideração
uma economia mais igualitária, que produz o necessário com o mínimo impacto natural e social.
Já que sabemos que vivemos em um mundo em que “recursos” são finitos, não podemos exigir
que a economia esteja sempre em crescimento, pois o custo social, ambiental e econômico desse
crescimento exorbitante é cobrado em qualidade de vida, saúde e na própria extinção de
espécies e de maneiras de ser e viver. O final desse processo é trágico, para não dizer
apocalíptico. Segundo Leonardo Boff (2013, p. 58), é possível conceituar o decrescimento
econômico da seguinte maneira: “reduzir o crescimento quantitativo para dar mais importância
ao qualitativo, no sentido de preservar recursos que serão necessários às futuras gerações”. O
decrescimento não propõe um empobrecimento material ou uma espécie de comunismo
capitalista, mas propõe estratégias de qualificar os desempenhos econômicos, colocando em
seu centro a vida e a natureza, em substituição ao Pib. Nas palavras de Serge Latouche (2012),
64
Cf. Manuela lança movimento dos comuns em São Paulo (2020).
116
Como se pode ler acima, o decrescimento surge como alternativa ao crescimento irresponsável
e suicida que loteia a terra, a água, o ar e, consequentemente, a vida dos seres que deles
dependem, como recursos, adotando metas cada vez mais intransponíveis e irrevogáveis para
um sucesso financeiro que ocasionará, futuramente, uma miséria impensável, já que todo o
processo de crescimento é permeado por avanços, recuos e crises. Esse crescimento projetado
pela economia capitalista é a quimera de uma lucratividade ilimitada e infinita que não expõe a
finitude dos “recursos” e a fragilidade das subjetividades que explora no seu percurso.
É importante também entender que, da tradução de Sumak/Kawsay para bem viver,
algumas premissas têm que ser observadas para que não sejam perdidas, pois, o bem viver
indígena não é recursista, nem sustentável e nem desenvolvimentista. Nas palavras de Ailton
Krenak, em seu livro Caminhos para o Bem Viver:
Bem Viver não é definitivamente ter uma vida folgada. O Bem Viver pode ser
a difícil experiência de manter um equilíbrio entre o que nós podemos obter
da vida, da natureza, e o que nós podemos devolver. É um equilíbrio, um
balanço muito sensível e não é alguma coisa que a gente acessa por uma
decisão pessoal. Quando estamos habitando um Planeta disputado de maneira
desigual, e no contexto aqui da América do Sul, do país em que vivemos que
é o Brasil, que tem uma história profundamente marcada pela desigualdade, a
gente simplesmente fazer um exercício pessoal de dizer que vai alcançar o
estado de Buen Vivir, ele é muito parecido com o debate sobre
sustentabilidade, sobre a ideia de desenvolvimento sustentável (2020, p. 8-9).
Mas, o que une esses vieses é um entendimento de que é necessária uma relação diferenciada
com o consumo e com a natureza. Todos/as assumem os impactos e a impossibilidade de
sustentação do atual sistema econômico e todos se articulam comunitariamente (em maior ou
menor escala) em torno de suas lutas, que surgem do reconhecimento dos sofrimentos causados
pelas mazelas do capitalismo e da globalização sobre as sociedades, destruindo suas culturas e
agredindo severamente a natureza.
Explicados os conceitos a serem mobilizados pela análise e em consonância com eles,
apresento o corpus que foi selecionado para compor este capítulo: “Serpente Mulher” (2021),
do grupo Suraras do Tapajós, e “Amor de índio” (1978), de Beto Guedes.
No próximo seguimento, analiso as canções “Serpente Mulher”, das Suraras, cujo foco
recai sobre os ecofeminismos em associação com o sumak kawsay/bem viver e também sobre
o escrutínio das imagens de hibridismo e transformação que caminham junto à mitologia tanto
de povos como Desana, Tikuna, Guarani, entre outros, quanto ao estudo da simbologia por meio
117
A conexão existente entre vidas e ancestralidades presentes nos mitos de origem, nas
cosmogonias indígenas, transparece a enredada relação de tudo com o Todo. Toda forma de
vida que existe com todo o mundo que se manifesta nela e a partir dela. A narrativa gerada pela
relação depende de como e do que cada pessoa e cada povo alcança por suas próprias lentes.
É a relação dos povos tradicionais com a terra e com o território, pois, na cosmovisão
dos que vivem na e da terra e com a terra, a pessoa é um território e o território é uma pessoa.
E se a pessoa sem povo não existe, então, o individual é coletivo, na mesma medida em que o
pessoal é político. Shiva argumenta que
Essa compreensão da terra como “lar” no sentido material e também cultural e espiritual,
presente na afirmação de Shiva, coaduna-se com a visão dos povos tradicionais e também com
as principais premissas do Bem Viver no sentido da noção de pertencimento e de unidade da
vida. Do mesmo modo, ao desafiar a lógica do status quo que entende o território como algo a
ser ocupado e explorado para atender aos interesses de produção e de lucro que regem o sistema
capitalista, fator determinante do antropoceno, uma vez que este, relido por Donna Haraway
118
(2016) como capitaloceno, atinge tudo e todas. A Autora propõe uma desmistificação do
conceito de antropoceno, pois para ela:
Para a autora, o escopo do Antropoceno e o foco do homem (espécie) como o problema a ser
resolvido é uma narrativa fatalista que foi facilmente aceita pelas pessoas que começam a
ecoando sua trama apocalíptica. Mas não é a espécie humana que é o centro do problema, mas
a maneira sistêmica como temos vivido. É importante lembrar que muitas comunidades não
vivem dentro do Antopoceno, vivem para além dele e apenas sofrem suas consequências. Mais
precisamente o problema é de onde vem nossas práticas destrutivas, consumistas e
individualistas. Assim, ela propõe o Capitaloceno.
Entendo que a renomeação da Era não objetiva salvar o humano do paradoxo proposto
pelo Antropoceno, no sentido de eximir suas responsabilidades. mas para propor com a crítica
ao Capitaloceno, uma nova narrativa que seria o Chtuluceno e, ao mesmo tempo, abrir a
possibilidade de enxergar a rede de seres que compõem a vida na terra, descentrando o destino
do planeta desse intenso protagonismo do humano, em suas palavras:
A proposta do Cthuluceno é a de uma terceira via que pode ser trilhada, ao superarmos o
Antropoceno e o Capitaluceno. A superação não depende de uma mudança de comportamentos
apenas, mas de uma mudança de paradigmas. Sobretudo, de como entendemos e convivemos
com os outros seres e com nós mesmos/as. Esse é o motivo pelo qual precisamos superar o
Antropoceno e o Capitaloceno, mas sem perder de vista o Cthuluceno que em muito se
aproxima do bem viver.
119
Ao aproximar Haraway e Krenak, não pretendo equacionar ou equalizar suas visões que
apresentam algumas convergências. Esse movimento teórico objetiva o diálogo entre essas
vozes dissonantes para que possamos pensar novas maneiras de pensar e de existir. Portanto,
mais uma vez performo o movimento de promover embates e sínteses que levem à novas
reflexões para além do Antropoceno e do fim do mundo.
Os ecofeminismos são frequentemente alvos de críticas por serem lidos através de uma
visão holística e sacralizante da terra e das relações dos seres que nela habitam, acusados de
apresentarem uma visão “essencialista” que iria de encontro à construção da subjetividade no e
pelo meio social. Embora o campo teórico não se restrinja às características apontadas e
considerando que o ecofeminismo crítico trouxe inúmeras contribuições ao próprio
ecofeminismo, fato que acontece sempre que embates teóricos são levados a sério e
aprofundados por ambos os lados, leio e utilizo como perspectiva de leitura o ecofeminismo
aqui respaldado pelo conceito de essencialismo estratégico pensado por Diana Fuss (2016), a
partir dos postulados de Gayatri Spivak (1985). Nesse mesmo sentido, concordo com Greta
Gaard (2017, p. 784) quando a autora elabora sobre essa questão do essencialismo:
Adoto, portanto, uma perspectiva que abarca da biologia (quando acatada por escolha) à crítica
social de gênero, à ecologia, à classe e à raça, considerando também, como Haraway e outras,
o afeto e a coexistência multiespécies (2003; 2008; 2016), uma vez que essa postura se coaduna
com as visões indígenas a respeito da casa comum a que algumas pessoas chamam Mãe Terra
e outras Pachamama. Essa atitude é, a meu ver, aquilo que mais mobiliza e centraliza a
120
discussão entre as vertentes, uma vez que se trata do ponto fulcral comum em torno do qual
todos e todas nos mobilizamos, visando um amanhã.
Ainda discutindo a questão do essencialismo, recorro ao pensamento de Izabel Brandão
(2020) em seu argumento de um uso estratégico do essencialismo ecofeminista, quando este
não se refere à uma “essência feminina”, mas, sim, ao entendimento de que somos parte da
natureza. Em suas palavras:
Para o curso desta análise e para os fins a que esta tese se propõe, a visão holística do
ecofeminismo é bastante interessante, pois coaduna-se com as filosofias e cosmovisões
indígenas, sobretudo no que diz respeito às mulheres e à natureza. Se a aproximação, já tão
debatida, entre mulher e natureza foi utilizada pelas forças ativadoras do patriarcado para
desfavorecer e desqualificar ambas, animalizando-as e tornando a mulher escrava da biologia65,
o contrário estrategicamente e em contingência pode também ser realizado, já que dentro do
contexto indígena, a aproximação entre humano e natureza é transcendente e leva à valorização
tanto do ser humano, em particular da mulher, quanto da natureza, justamente por apresentar
esse caráter holístico e integrativo das forças naturais.
A grande maioria das cosmovisões indígenas se organiza em torno do comunitário em
primeiro plano. Tal posicionamento não anula a individualidade, pelo contrário, a salvaguarda,
afirmando-a como diversidade que nos une e nos irmana. O abraço e o respeito às diferenças
nos mostram que, precisamente por conta delas, nos tornamos semelhantes. Não é preciso
homogeneizar pautas e lutas, mas entender que cada uma delas representa o enfrentamento de
diferentes demandas, por grupos diversos, em locais e condições completamente desiguais. o
65
A crítica feminista da cultura vem, desde o importante ensaio de Sherry Ortner (2016) traduzido por Cila
Ankier e Rachel Goreinstein, publicado originalmente em 1973, apontando este carcater reducionista.
121
valor mais importante que temos em comum é a vida e a luta pela continuidade dela neste
planeta. Faço dialogar, portanto, esse conjunto de teorias, cuja principal ideia é a de que
precisamos de equilíbrio e de respeito às questões que dizem respeito à Terra.
Embora esse posicionamento possa parecer utópico e é, no melhor sentido, julgo que as
divergências teóricas devem servir para fortalecer as vertentes conflitantes e nunca para anulá-
las ou neutralizá-las, pois, para isso, já temos o vigente sistema econômico e o patriarcado,
servindo-se de todos os expedientes de nulificação contra nossas identidades, comunidades,
lutas e pautas.
Levando, portanto, em relevo as relações ecológicas extremamente afetivas entre
pessoas indígenas e os ecossistemas concêntricos de que são e se sentem parte, as relações de
gênero e etnia e as questões de cosmovisão religiosa, desenvolvo, nesta subseção, a análise da
canção “Serpente Mulher”, do grupo musical e associação política de luta Suraras do Tapajós,
que veicula o mito ancestral do povo Borari, o qual margeia as águas do Tapajós na região de
Alter do chão, no Pará, entremeando minhas considerações com outras vozes de obras artísticas
e acadêmicas que serpenteiam sobre questões ancestrais, científicas e ecológicas guiadas pela
lógica de que, pelas raízes que se conectam e interpenetram, não há grandes diferenças entre as
temáticas. Elas são apenas braços de um mesmo rio.
Apresento inicialmente o grupo musical Suraras do Tapajós que, atualmente, é
composto por mulheres de diversas etnias, originalmente reunidas pelo Coletivo de Mulheres
Indígenas Suraras do Tapajós, de acordo com a descrição do próprio grupo em sua página:
A partir das reuniões de mulheres para a discussão de pautas, as artistas foram se reunindo de
maneira informal, performando momentos culturais para a diversão e descontração nos
122
encontros. Assim, foram descobrindo que o poder de suas canções tinha a possibilidade de
alcançar espaços políticos que, muitas vezes, eram negados às suas representantes. Desse modo,
através do carimbó e da dança, as Suraras passaram a veicular sua mensagem, que alçou voo e
abriu portas para espaços públicos importantes, criando acesso para a luta da associação. Em
suas próprias palavras: “Trabalhamos a música como forma de resistência, fazendo com que a
voz dos povos indígenas ecoe muito além de seus territórios”.
A escolha da canção em tela deu-se por conta de suas imagens, que mesclam o mito
ancestral e a experiência da vida com a natureza. As metáforas, que circulam em torno das
águas e matas, constroem uma mulher mitológica que é, ao mesmo tempo, natureza e
ancestralidade. Esse hibridismo de representações converge com o pensamento desenvolvido
ao longo deste texto, pois aponta para uma identidade que é construída de dentro da concepção
de vida-terra-natureza, assumindo contornos não antropocêntricos e performada num tempo
espiralar de ciclos e retornos que revelam e ensinam práticas de Bem Viver.
De início, ouvimos o som de água corrente, referência que recupera o som de um rio, que
permanecerá ao longo do arranjo. Logo em seguida, os curimbós (tambores dos quais derivam
o nome da dança – curi – pau oco e m, bó, furado), o pau de chuva, o banjo e as flautas criam a
atmosfera de andamento moderado e tranquilo, que dialoga de perto com o barulho das águas.
Os quatros primeiros versos, seguindo o andamento da canção, são cantados de modo mais
lento; as vogais se alongam, se espraiam, especialmente nos finais de cada um. Isso colabora
na composição de uma paisagem sonora que ajuda a contar (ou desenhar) a cena da tapuia na
água do rio, tomando banho. No ponto exato em que a voz pronuncia o final do último verso
da estrofe (rio-mar), a marcação rítmica anterior se interrompe, o pau de chuva e as flautas
criam um efeito de expectativa e, logo depois, o andamento se acelera, tomando a forma
instrumental/rítmica mais característica, que conhecemos do carimbó.
Os versos seguintes são cantados e, a partir da repetição do verso “ao ver a Iara na luz
do luar”, temos a alternância dos cantos da cantora e do coro, como em um jogo de
respostas. Esse coro, aliás, reflete uma organização coletiva que remete aos modos de viver em
comunidade. Como dito anteriormente, essas mulheres reúnem-se para traçar pautas e
estratégias de lutas políticas e em associação econômica e formam uma comunidade. Essa
comunidade implica em construir muitas coisas juntas e dividir valores66, como uma associação
de mulheres e nisso entrou a música, a princípio como diversão e descontração e apenas após
as reuniões, mas depois tornou-se um potente meio de ecoar as lutas das Suraras.
Essas três últimas estrofes são repetidas algumas vezes e, embora a canção tenha uma
duração específica (3’47”), nem na narrativa poética cantada por Thaline Karajá e suas
companheiras, nem na forma musical temos elementos marcadamente indicativos do fim da
canção; em outras palavras, a estrutura narrativa dos versos e a estrutura musical poderiam se
estender e se repetir indefinidamente, de modo cíclico. Essas características colaboram, por um
66
“Outra canção intitulada “Guerreira Surara”, do Ep Kiribasawá Yúri Yí-itá (A força que vem das águas) tematiza
essa relação com a repetição constante de nós e nosso em sua letra: “A força que vem das águas/ são nossos
encantados, / invocados por nossas vozes,/ ecoamos nossa luta, /lutamos por nossa terra,/lutamos por nosso rio.
Lutamos pelas vidas do nosso povo. / Nós somos a voz da resistência! /Nós somos as Suraras do Tapajós!”.
124
lado, para que a música se integre a um conjunto maior de práticas coletivas, conforme
enfatizado acima. São situações de dança e festividades, em que o tempo e a duração da
execução podem se estender conforme a necessidade do momento. Por outro lado, tendo em
vista o texto da canção, essa circularidade pode dialogar com um elemento importante da letra:
a imagem da serpente.
Portanto, em diálogo com a circularidade e com o movimento contínuo, a palavra que
guia minha interpretação dessa canção é a transformação, que é uma constante na natureza, é
uma constante do pensamento humano. São seres que se transformam e transformam seu
entorno, que evoluem, no vocábulo darwiniano, mas que vão além da simples evolução
material. Com ela, vem também a evolução do comportamento, pensamento, do pensamento
artístico e espiritual; avançam ou retrocedem, de acordo com as forças e os tempos.
A serpente é uma imagem mítica que é abundante em diversas culturas tradicionais
espalhadas pelo globo terrestre. A apreciação dessa imagem nem sempre se deu de forma
maniqueísta pelas culturas, mas tem sido tradicionalmente interpretada como símbolo de “mal”,
traição ou perigo por culturas ocidentalizadas. Ainda que seja assim, as acepções em torno desse
ser mítico estão quase sempre no campo semiótico do mistério, da sedução, da sabedoria,
transformação e movimento no espaço-tempo.
De acordo com Chevalier e Gheerbrant (2022, p. 893), a serpente encontra-se nas
latências dos mitos de origem da vida, da alma e da libido, sendo, portanto, um vetor entre o
dia e a noite, a realidade e o sonho, é uma hierofania do sagrado natural, não espiritual, mas
material”. Apresenta-se como uma manifestação material do oculto, “[...] uma Coisa primordial
indivisível que não cessa de desenroscar-se, desaparecer e renascer[...]” (CHEVALIER;
GHEERBRANT, 2022, p. 894). É digno de nota que tal simbolismo seja tão profícuo que tenha
merecido doze páginas no dicionário de símbolos da dupla de estudiosos, e que dialoga, nesta
leitura, com a simbologia atribuída também por filósofos indígenas. A imagem abaixo que
mostra uma sucuri, demonstra o porte e, consequentemente, a força desse animal, o que justifica
o fascínio que ele desperta em diversas culturas.
125
A serpente que muda de tamanho, de pele e até de sexo, um ser que transita pelas águas,
pela terra, pelas rochas e pela vegetação é, com certeza, um signo de encantamento; e sua
habilidade de, às vezes, mover-se graciosamente pelas entranhas da terra remete ao mistério do
útero e do desconhecido. Ainda nas palavras de Chevalier e Gheerbrant (2022, p. 893): “Ou
então abandona os ímpetos masculinos para fazer-se feminina: enrosca-se, beija, abraça, sufoca,
engole, digere e dorme”. Pelo trecho enlevado, percebe-se que a serpente foi lida pelos
dicionaristas como símbolo da noite, do mistério, da sedução e da dualidade entre vida e morte,
num princípio dual fêmea/macho.
Estando presente entre os Desana, Tukano, Borari, Maias, Astecas, Árabes, Celtas,
Sateré-Mawé, na mitologia judaico cristã e em diversas etnias africanas, este símbolo apresenta-
se ligado à Terra e aos movimentos de criação e destruição. Para Solange do Nascimento,
doutora em sociedade e cultura na Amazônia, a imagem mitopoética da serpente apresenta-se
nessas diversas culturas, mantendo, mesmo guardando-se a distância cultural e social entre
esses povos, certas similaridades. Em suas palavras:
Apesar da ambivalência resultante do fato de ser essa figura mitológica um híbrido no sentido
de gênero e, ainda que ela resgate uma imagem fálica em nossa cultura ocidental, vem imbuída
pela energia de criação e gestação da vida, sendo assim também associada ao feminino e,
portanto, reconhecida pelos povos indígenas como a “avó do mundo”. Especificamente para os
Sateré-Mawé, a serpente é uma figura de culto presente tanto em mitos que recuperam a criação
quanto a destruição, destruindo assim, por sua dualidade, qualquer maniqueísmo que poderia
se cristalizar em torno de sua imagem. Tal leitura também acorda com os escritos dos já citados
Chevalier e Gheerbrant, quando afirmam que: “Ela brinca com os sexos como com os opostos,
é fêmea e macho, gêmea em si mesma, como tantos deuses criadores que em suas primeiras
representações sempre aparecem como deuses e deusas cósmicos” (2022, p. 893-894).
127
Antes o mundo não existia, a escuridão cobria tudo. Enquanto não havia nada,
uma mulher apareceu por si mesma. Ela apareceu sustentando-se no seu banco
de quartzo branco. Ela se chamava Yebá-Buró, a Avó do Mundo. Enquanto
ela estava pensando, no seu quarto de quartzo branco, começou a se levantar
algo, como se fosse uma esfera e em cima dela apareceu uma espécie de pico
e isso aconteceu com o seu pensamento. Não havia ainda luz. A esfera era o
mundo. Ela chamou a esfera de Umuko Wi, a maloca67 do universo. Pensou,
então, em criar um outro ser. Da fumaça mesmo formou-se um ser misterioso
que não tinha corpo. Ele era Deus da terra. De onde ele havia aparecido,
levantou seu bastão cerimonial e o fez subir até o cume do pico do mundo e
era a força dele que subia. E esse adorno ficou brilhando com diversas cores.
Era o sol que acabava de ser criado. Depois, o Deus da terra subiu à superfície
da terra para formar a humanidade. Ele levantou-se no grande lago de leite.
Enquanto ele vinha subindo, o terceiro trovão, desceu nesse lago de leite na
forma de uma jiboia gigantesca. A cabeça da cobra se parecia com a proa de
67
“Maloca é ligada ao universo, na plataforma da Terra, no leito do Rio. Quando o kumu, isto é, benzedor, vai
fazer seus benzimentos antes de uma festa ou antes de construírem uma maloca, ele precisa pedir licença para os
grandes heróis culturais da criação do mundo. Eles quem são os orientadores, os mediadores dos conhecimentos”
(DIAKARA, 2021, p. 4).
128
uma canoa. Era a canoa de transformação, a canoa cobra. Uma canoa cobra
extraterrestre chegou à terra. Para povos do Rio Negro, narradores dessa
memória sobre a origem da vida, a cobra canoa entrou pelas águas; navegou
por mares e rios, tripulada por gente-peixe, liderada pelo Deus da terra. A
cobra canoa veio de um lugar desconhecido para um lugar que nem existia.
Foi uma longa viagem dentro dessa canoa, que tinha a forma de uma cobra
para navegar.
É importante salientar, no trecho acima, que as imbricações entre o que a sociedade ocidental
chama de humanos e não humanos acontecem nessa narrativa de origem de maneira fluída e
numa ausência de distinção entre espécies e figuras mitológicas: deuses, animais mitológicos,
pessoas estão numa longa viagem comunitária de construção e povoamento do planeta. Ela fala
de organismos híbridos que se irmanam, habitam e se transformam de tal maneira que nela as
separações entre natureza e cultura, humano e não humano, ancestralidade e futuro não podem
se sustentar sozinhas. Só existem em relação mútua e sincrônica. A arte abaixo representa a
canoa de transformação movendo-se pelas águas, levando seres humanos para povoar as
margens ribeirinhas, uma cosmovisão de como surgiram os primeiros indígenas.
Concordo com Narby, tanto sobre a importância desse diálogo quanto nas similaridades que
unem essas e outras narrativas, como a narrativa Ashaninka que rememora um Grande Espírito
que criou espíritos na Terra, incluindo os seres humanos que descobriram, na Ayahuasca, uma
chave para transitar e entender as dimensões dos dois mundos que habitamos: o visível e o
essencial de onde vem as coisas.68 O que torna interessante o pensamento de Narby, ao propor
uma roda de conversa em que pajés, antropólogos e astrofísicos pudessem debater e ouvir
múltiplas narrativas criacionais, é a ideia de que as narrativas tradicionais e as científicas não
precisam estar afastadas. Não é necessário considerar que existe A História e as histórias. Todas
trazem termos relevantes a esse grande mistério que as mentes humanas vêm perseguindo ao
longo do tempo que é a origem da vida.
Quero destacar, especialmente, dois aspectos do trecho acima: (1) o primeiro é a
autopoiesis e a autoconstrução propostas pelo astrofísico, que se convertem em uma maneira
de explicar como os átomos se reuniram e a matéria se formou, o que implica numa ideação da
origem do Universo, somos seres autopoéticos, conforme sugerido? Criamos o mundo à nossa
volta por meio de nossas narrativas, sejam elas ancestrais ou científicas? (2) O outro ponto é
que as duas narrativas concordam na figura da serpente cósmica/DNA como a fonte da vida no
planeta. O código genético é uma fonte que codifica e manifesta todas as formas de vida e não
somente a vida humana. O planeta não foi criado para o humano, a vida é que foi criada para o
planeta.
68
É interessante notar, aqui, uma leitura possível através do conceito platônico do mundo das ideias em contraparte
ao mundo sensível, o que, mais uma vez, faz aproximar narrativas e filosofias indígenas de teorias e conhecimentos
“tradicionais” do cânone ocidental.
130
Se insisto nesse ponto é, precisamente, porque, a partir dele, pode-se discutir a questão
e pensar para além do antropoceno que, partindo de uma exacerbada centralidade à
racionalidade e à supremacia da vida humana sobre outros seres habitantes do planeta, chega à
contradição de si, uma vez que sustentar essa ideia é exatamente o que vem nos encaminhando
à autodestruição, enquanto promovemos também a destruição de outros seres.
Ainda a propósito da citação anterior, é necessário examinar a proposta de autopoiesis,
uma vez que estamos tratando de comunidades em que as poéticas se constroem coletivamente.
Neste ponto, as simpoéticas propostas por Haraway (2016) resultam mais adequadas, inclusive
a este encontro em que poéticas de existências de diferentes povos e comunidades se encontram
e se complementam numa rica malha textual. Nas comunidades tradicionais, a
complementaridade e o comunitarismo são prevalecentes em detrimento do individualismo e
da autoconstrução. Assim, vejo a simpoética como uma proposta que se coaduna com a
ancestralidade e os ensinamentos orais em que palavras se unem e sem complementam para
criar comunidades e suas histórias. A vida comunitária e social é simbiótica e implica em afeto
mútuo por parte de seus pares e deles com a ancestralidade e descendência e com as outras
comunidades de seres (humanos ou não), portanto, a construção coletiva, para Haraway (2016)
make with parece mais justa para esta minha leitura.
Retomando a fala de Narby, ele consegue explicitar muito bem esse ponto ao citar o
xamã Ashaninka Moisés Piyãko: “Ele disse que árvores, pássaros e rios sabiam as coisas e que
a civilização moderna estava destruindo a natureza. Ele disse que o povo Ashaninka defende
todos aqueles que vivem na floresta. Ele disse: ‘Nós não destruímos nada, pelo contrário,
plantamos"' (2019, p. 5). A possibilidade de que animais e rios saibam as coisas não me parece
nem um pouco absurda se pensarmos que através do conhecimento do comportamento e do
DNA de animais, das características e composição das águas é que os/as cientistas investigam,
teorizam e tentam entender a vida no planeta. Em outro sentido, a crença de que outros seres
tenham almas, linguagens e saberes abre a possibilidade para um respeito a esses outros seres
que vai exatamente em sentido oposto à arrogância do Humano (HARAWAY, 2016) e ao que
foi feito contra os povos originários durante a colonização. A negativa de que os povos
indígenas tivessem alma, linguagem, saberes, cultura, religião, filosofia foi o que se utilizou
como justificativa para sua aculturação, extermínio, escravização e toda a sorte de violências
físicas e simbólicas que esses povos e seus territórios sofreram e vêm sofrendo desde o primeiro
contato.
Se os seres sabem, a “serpente-mulher” pode ser lida como uma força e uma consciência
que transita entre reinos e espaços-tempos, ensinando e aprendendo coisas como: medicina
131
tradicional (“consagração do fumo da mata”), religião, arte e música (“na cuia-pitinga ela
preparou/penachos de arara pro seu maracá”). Num ritual de integração entre a mulher, a
serpente, as águas e a mata, vemos uma dança entrelaçada que não faz distinção entre humano,
vegetal, mineral e animal, indo justamente na contramão do dito antropoceno para uma visão
que se aproxima da de Donna Haraway, quanto ao Cthuluceno.
A crítica ao antropoceno, feita por diversas vozes dentro e fora da academia, propõe
justamente uma visada analítica sobre as questões ecológicas, epistemológicas, discursivas e
econômicas colocadas por essa “era” da história do planeta, marcada por nossa imensa e veloz
capacidade de destruir os organismos do planeta, incluindo a nós mesmos/as em última
instância, que é motivada por um consumo capitalista e desenfreado dos outros seres pelo
humano, instigado pela ideia de humanidade como dominadora do mundo, em detrimento de
outras formas de vida que enxerga a tudo e a todos como recursos naturais a serem explorados.
Nesse sentido, Donna Haraway tem sido uma crítica e ativista das mais reconhecidas ao
abordar o conceito de antropoceno e o que ele representa para a nossa coexistência na Terra.
Ao criticar esta era geológica, ela ressalta que “o Antropoceno é mais um evento-limite do que
uma época [...]. O Antropoceno marca descontinuidades graves; o que vem depois não será
como o que veio antes” (2016, p. 140). Conforme sintetiza Ildney Cavalcanti (p. 124):
no entanto, era cruel, enquanto Honorato tinha um coração puro. Os irmãos engajaram-se numa
luta até a morte. Honorato venceu e, então, decidiu ser gente permanentemente (RICON, 2017).
A lenda foi sendo recontada e readaptada até chegar a essa fórmula mais conhecida que
carrega diversas acepções morais que não parecem ter origem nas mitologias indígenas. No
entanto, a figura de Boiúna pode estar ligada à Anaconda, conforme lemos no fragmento, de
Alexandre Guida Navarro, por sua vez inspirado em estudos anteriores (2021, p. 6):
Seguindo por esse caminho, encontramos uma cosmovisão em que Boiuna/Anaconda poderia
ser uma ancestral dos povos indígenas do alto Xingu, estando presente nas mitologias Desana,
Tukano, Wauja, Tupi-Gavião, Panaré, Wayana, Tariano, Timbira, entre outras etnias.69 Tal
persistência coloca Boiuna/Anaconda no centro das atenções, como uma das figuras ancestrais
mais reconhecidas, e suas múltiplas narrativas como um assunto a ser estudado em vários
campos do saber, como literatura, antropologia, religião e arte (uma vez que os padrões ofídicos
estão presentes em pinturas, cerâmicas e outros artefatos criados por povos indígenas).
No entanto, para a presente análise, interessa-me o recontar do mito ancestral Borari,
que recupera figuras como a boiuna/anaconda de releituras maniqueístas, as quais associam o
feminino ao mal e ao pecado. Uma vez que a serpente-mulher ancestral é reassentada aqui como
uma fonte de conhecimentos originários, ensinando o povo Borari a consagrar o fumo, enfeitar-
se e usar adereços, cozinhar e tocar o maracá. Essas ações estão presentes na conexão com a
natureza: “a mãe natureza calou de repente” e “na cuia pitinga, ela preparou penachos de arara
pro seu maracá, o fumo da mata, ela consagrou e em serpente-mulher veio se transformar”.
Além disso, a canoa da transformação está ligada ao corpo da mulher que transporta as almas
69
Para saber mais sobre a influência da figura ancestral Anaconda em cada um desses povos, confira Navarro,
2021.
136
do mundo material para o mundo que habitamos.70 Aliás, como Jaime Diakara explica, toda
geografia brasileira das regiões em que surgiram os principais troncos indígenas que hoje
habitam o norte do país é ligada ao corpo da mulher, o que sacraliza duplamente a natureza e
os corpos das mulheres que devem ser respeitados em seu papel sagrado, vivo e inviolável.
Aproveito para explorar a referência ao maracá feita nos versos acima. Para tal é
importante destacar que instrumentos de sopro estão na centralidade da musicalidade indígena
(por exemplos, os mais diversos tipos de flauta) e que instrumentos de percussão, como o
maracá e os chocalhos, podem ser entendidos como emuladores do som do chocalho de ofídios.
De acordo com informações do Portal da Fundação Nacional dos Povos Indígenas – Funai:
Conforme pode-se ler no trecho citado, a importância do som do maracá é tanto cultural quanto
religiosa, pois seu som carrega a mensagem dos espíritos. Além disso, há a relação entre os
grafismos e adornos que são adicionados ao objeto, como os penachos de arara citados na letra
da canção. O maracá é também chamado de “marca” entre alguns povos indígenas, pois ele é
um instrumento de marcação que determina os ritmos de cânticos e danças. O maracá, assim
como a maior parte dos chocalhos, produz, quando agitado, um som que lembra o guizo de
algumas serpentes. Acredita-se que as serpentes produzam esse som como mecanismo de defesa
quando ameaçadas. Portanto, trata-se de um alerta para outros animais, já que a serpente
raramente ataca sem que esteja se sentindo ameaçada.
Baseando-me em Feliciano Lana (2019 [1980]) e Jaime Diakara (2021), apresento ainda
a ligação do maracá, enquanto palavra, com a segunda maloca da humanidade, a maloca de
Maracá que, de acordo com a cosmovisão Desana, fica em Belém. Citando Diakara (2021, p.
70
“O que é aquele banco de Yebá Buró? É apenas um simples banco sobre o qual nos sentamos? O que representa
a cuia de ipadu? Tudo tem uma profunda simbologia. Quando se fala em Canoa de Transformação, por exemplo,
há uma referência ao corpo da mulher” (DIAKARA, 2021, p. 4).
137
5), “[a] segunda grande maloca, em Belém, alguns vão chamar de maloca de Maracá. Aí que
surgem as primeiras danças, a primeira divisão dos instrumentos musicais. Segundo nossos
antecessores, é por isso que os paraenses são bons em criar música”. A palavra maloca, nesse
contexto, acumula vários significados que giram em torno da palavra lar, origem. Ela é, ao
mesmo tempo, a casa física, a origem espiritual sagrada e o local de onde surgem os povos
indígenas. Esses pontos, geograficamente falando, seriam os locais em que a canoa-serpente ou
canoa da transformação deixou os primeiros humanos em sua viagem cósmica para habitarem
a Terra.
O vocábulo maloqueiro, então, é corrompido em seu sentido atual, convertendo-se de
primeiros ancestrais e heróis e heroínas civilizatórias, pessoas de grande sabedoria, para a
acepção atual de andarilho que comete pequenos delitos, pessoa mal-educada e mal vestida que
não inspira confiança, pessoa que mora em barraco ou moradias improvisadas. Reabilitando,
portanto, a acepção de maloca como lar ou origem sagrada e tendo em vista que, na cosmovisão
Desana, as malocas foram locais de desembarque dos seres que hoje habitam a região, podemos
depreender que a canoa-serpente, ao desembarcar a serpente-mulher na Maloca do Maracá, a
deixou com o dom da música. Tal suposição contribui na leitura sobre a música produzida pela
criatura mágica, nos versos: “a força do vento espalhou seu cantar / a mãe natureza calou de
repente / ao ver a iara à luz do luar”. Essa mesma personagem vem ensinar, através de seu canto,
a utilizar, enfeitar e consagrar o próprio maracá.
Fonte: Musicabrasilis
138
A relação do som do maracá com o das cobras, em especial com as famílias jararaca ou surucucu
e cascavel, é interessante por serem estes animais que guisam. As anacondas, por sua vez,
tornam-se ainda mais misteriosas nesse aspecto, já que produzem sons muito parecidos com os
de uma mulher que geme e funga, o que ressalta ainda mais sua identificação com o feminino.
Retomando a questão do feminino, nas cosmogonias indígenas, de maneira geral, esse
papel é tão poderoso quanto vulnerável; ele é considerado bom ou mal em diferentes situações
e contextos (assim como o masculino), e não tem sido preponderante, porque, para grande parte
das mulheres indígenas, há uma luta mais urgente, uma vez que a questão de gênero dentro das
aldeias, de modo geral, é mediada pela preponderância do comunitário. Não significa dizer que
não exista sexismo ou exploração de mulheres no contexto indígena. Existe, mas, conforme
dito por Taily Terrena em entrevista71 à Heloísa Buarque de Holanda: “Há uma relação de
complementaridade entre masculino e feminino. Não há um feminismo, há uma luta de
mulheres. Lutamos juntos com os homens, porque nossa luta é pela Terra”. A seguir, Márcia
Kambemba complementa: “São dois universos, o indígena e o não indígena. Há o decolonial.
Não se pode ler um universo pelo outro, portanto você vai perguntar: ‘você é feminista e ela
[mulher indígena vai responder] não, eu sou guerreira’”; e Marize Guarani arremata: “na
verdade o feminismo tem uma outra conotação pra população aldeada [...] a coisa que é mais
importante é a demarcação da terra”. Vemos relações diferenciadas entre os gêneros. Ouso
afirmar que há uma preponderância da vida comum, comunitária, que permite, ainda que
localizada e temporariamente, uma busca por relações de equilíbrio em questões de gênero em
prol de um bem coletivo maior. Como afirma Taily Terena na mesma entrevista, respondendo
à pergunta “O que querem as mulheres indígenas?”,
[a] gente quer que nossos filhos possam viver. Isso fazendo aquela oposição
entre o sobreviver e o viver. Não só os nossos filhos, mas os filhos dos outros,
por que eu acho que na aldeia, as parentes vão concordar, não temos só os
nossos filhos, somos mães de toda a criançada [...] se tem uma criança perto
de você, você vai cuidar dessa criança. Então essa relação que nossos filhos,
nossas futuras gerações elas possam viver, da maneira que diz a filosofia dos
nossos parentes o Bem Viver. O Bem Viver é a ideia que a gente entre em
equilíbrio e onde está o Bem Viver nessa questão [gênero]? Está no equilíbrio
nas funções e no respeito ao espaço do homem e da mulher.
O mesmo é confirmado por pessoas gays, trans e não binárias indígenas no documentário,
dirigido por Marcelo Costa, Terra sem pecados (2019): “Antes de tudo, antes de ser gay, eu sou
71
“Que querem as mulheres indígenas?” (2020).
139
indígena [...] a questão [orientação] sexual dentro de um povo é debatida como povo [...] a
cidade é um fator muito mais impactante, no sentido do preconceito do que na própria aldeia”,
afirma Alisson Pankararu no documentário. “Nossos rituais, os casamentos, a convivência de
mulheres e homens, dependendo da organização social e de uma comunidade para outra, elas
são super livres assim, porque você não sexualiza o corpo do outro”, sumariza Braulina Baniwa.
Embora todas as pessoas entrevistadas no documentário afirmem ter sofrido preconceito por
orientação sexual ou identificação de gênero também dentro da aldeia, as mesmas pessoas
foram categóricas ao afirmarem que fora da aldeia o preconceito é ainda maior e que é
necessária uma ação de discussão e conscientização de gênero entre os/as aldeados/as. As
pessoas entrevistadas, salientam ainda que boa parte desse preconceito é proveniente de herança
colonial72, especialmente a religiosa (catolicismo e protestantismo). Reproduzo essas falas
apenas para reforçar que, embora o gênero tenha sido alvo de debate e de lutas, para
comunidades indígenas, o primordial tem sido sempre a sobrevivência da Mãe-Terra e da
própria etnia, e o fato de mulheres e homens estarem engajados, lado a lado, nesse mesmo
movimento firmemente.
Assinalo uma leitura que evoca o bem viver na canção “Serpente Mulher”, pois a tapuia,
figura central da narrativa tecida pela canção, vem ensinar ao Borari práticas de integração com
os mistérios do rio e da mata, conforme já observei anteriormente: consagração do fumo, uso
do maracá para fins sagrados etc. Isso nos leva ao entendimento de que a Tapuia poderia ser
identificada com a mulher-xamã, a avó que ensina a maneira de Bem Viver a/os indígenas,
pautada pelo respeito e pelo equilíbrio em todas as relações comunitárias, sejam elas espirituais,
de gênero ou em relação ao meio ambiente.
Retomando a fala de Taily Terena sobre o bem viver, a jovem antropóloga afirma que o
equilíbrio, inclusive na questão de gênero, está na base da filosofia indígena que é o bem viver.
Ainda segundo Terena, os Quéchua e Aymara deram fama a esse conceito, mas todos os povos
têm sua própria filosofia de Bem Viver que se traduz por “nosso modo de ser”. Por isso, Acosta
aborda bons viveres, para expressar que o bem viver, enquanto filosofia, não é (e nem poderia
ser ou perderia seu propósito) um conjunto normativo de regras que promoveriam o equilíbrio
em todos os lugares e tempos. Muito pelo contrário, os “modos de ser” de cada comunidade é
que moldam suas práticas de bem viver. Há que se construir, então, um conjunto de práticas
contextuais e coletivas, baseadas no entendimento de cada comunidade do que é bom, belo,
benéfico e que promove o equilíbrio entre os seres para trazer a todos eles a vida boa. Essa
72
Nesta direção, Cf. María Lugones (2014) em sua análise sobre colonialidade de gênero.
140
equilíbrio e respeito radicais, seria não apenas orgânica como relacional, ciente e pensante
através daqueles que exercem, a partir dela, essas faculdades.
Assim, a consciência não poderia ser vista como instância separada da natureza, uma vez que é
justamente um mecanismo ou uma característica de uma espécie animal ser, portanto,
localizado em uma cadeia natural em coexistência com outros seres dentro de um ecossistema
complexo chamado Planeta Terra, cujo equilíbrio depende das ações de todos os seres que dela
fazem parte.
A partir das proposições feitas até aqui, concluo que “Serpente Mulher” possibilitou,
por meio de sua construção imagética, a discussão do bem viver e do ecofeminismo que passou
também pela pertinência do debate acerca de temporalidades circulares mais afins às filosofias
indígenas Tais aproximações oportunizaram reflexões acerca de saberes indígenas e destacaram
a ligação entre humanos e outros seres. A tecnologia ancestral e seus conhecimentos foram
enfatizados e a temporalidade cíclica, assim como em outras análises da tese, aponta para o
futurismo não porque trate de acontecimentos vindouros, mas por compreender o tempo em
suas voltas e reviravoltas, como alinhamento aos ciclos naturais e, ao mesmo tempo, como
aprendizado e oportunidade de criar. Assim, o indiofuturismo em Serpente-mulher pode ser
identificado com a sabedoria de entendimento do tempo em equilíbrio com as tecnologias e
saberes naturais que resgatam conhecimentos ancestrais e revelam cosmovisões que podem ser
aproximadas e compartilhadas entre diferentes povos e seres.
Seguindo neste mesmo sentido, analiso, na próxima seção, a canção “Amor de índio”,
composta por Beto Guedes, em que abordo as relações cíclicas, o pertencimento e a filiação ao
todo que é a Mãe Terra, a partir das filosofias indígenas, pontos que unem as duas análises.
Além disso, as relações de trabalho e as cosmologias indígenas serão mobilizadas a partir de
sua poética.
4.2 “Amor de índio”: bem viver com a terra, fluir no tempo cíclico
comunitário em processo. A palavra radical aqui se coloca num pluriverso de sentidos que
necessita de esclarecimento.
Em um primeiro sentido, a expressão “radical” diz respeito à sua origem mesmo na
palavra raiz. É pertinente observar que tudo o que é radical (para o capitalismo e sua visão
agressiva) é sempre visto como negativo. A raiz que nasce de dentro da terra e se desenvolve a
partir de um crescimento que não é apenas vertical, mas horizontal também, e por horizontal
quero denotar duas coisas: um mesmo plano de atuação e aquilo que busca e constrói horizontes.
Portanto, para mim, o radical deve ser sempre orgânico, pois, do contrário, as raízes morrem e
apodrecem, por falta de condições e de espaço adequado, sadio de desenvolvimento.
Sacralidade como raiz suscita também o debate do “essencialismo”, que tanto tem
ocupado nossa atenção na academia, conforme antecipei acima. No entanto, a polêmica em
torno do termo dá-se, provavelmente, pela acepção religiosa que é dada a ele. Nas palavras de
Mircea Eliade:
O homem das sociedades arcaicas tem a tendência para viver o mais possível
no sagrado ou muito perto dos objetos consagrados. Essa tendência é
compreensível, pois para os “primitivos”, como para o homem de todas as
sociedades pré-modernas, o sagrado equivale ao poder e, em última análise, à
realidade por excelência (ELIADE, 1992, p. 13-14).
utilizadas à revelia, como é o caso da escravidão que, por muito tempo, serviu (e ainda serve)73
de lastro para o desenvolvimento desse modelo predatório. Isso falando em vidas humanas, pois
animais, minérios, plantas e sistemas naturais inteiros foram (e continuam sendo) devastados
na expansão territorialista e no curso da história do sistema capitalista no chamado “Novo
Mundo”. Essa mácula na história das relações humanas é importante, em especial, ao tratarmos
de povos originários e dos ditos países em desenvolvimento, por ter sido a escravidão e o
assassinato de povos, invasão e devastação de territórios e apagamento de culturas, os pilares
da colonização.
A seguir, reproduzo a letra da canção de autoria de Beto Guedes e Ronaldo Bastos,
lançada no álbum Amor de Índio, na voz de Beto Guedes, em 1978. Esta canção é considerada
um dos clássicos da MPB e já foi regravada inúmeras vezes por diversos intérpretes, tais como
Maria Bethânia, Milton Nascimento, Maria Gadu, Cris Braun, Roupa Nova e, mais
recentemente, foi regravada por Gabriel Sater em parceria com João Carlos Martins. As
diferentes versões vão do jazz até MPB, com influências da música eletrônica. A versão
escolhida para esta análise foi a do próprio Guedes para seu disco homônimo.
73
Como exemplo, cito o recente escândalo dos trabalhadores escravizados por vinícolas no Rio Grande do Sul.
Cf. Veja (2023).
145
O primeiro verso da canção, “Tudo o que move é sagrado”, já abre margens para a interpretação
da ideia de sacralidade e totalidade da vida, pois, ao utilizar o pronome indefinido tudo, o eu-
lírico engloba todas as formas de vida em sua afirmação, levando-nos a concluir que nessa
proposição animais, vegetais e minerais estejam incluídos naquilo que é considerado sagrado.
Sobre a percepção da Terra enquanto pertinente ao plano do sagrado, Vandana Shiva afirma:
“A terra é, assim, a condição para a regeneração da vida da natureza e da sociedade. Portanto,
a renovação da sociedade envolve a preservação da integridade da terra; implica tratar a terra
como sagrada” (SHIVA, 1993, p. 139). Proponho fazer convergir o pensamento de Shiva com
a construção da sacralidade na canção, na medida em que cada elemento e cada aspecto dessas
vidas são reconhecidos em si e no outro dentro de um respeito e identificação que chega a ser
holístico em sua integralidade. Há, inclusive, uma integração que se insinua no emprego dos
pronomes tudo e todo que remete ao poema de Ricardo Reis, o qual reproduzo a seguir:
Temos, nos dois textos, duas instâncias de inteireza. A primeira é o tudo a que toda a existência
se integra (no poema representado pelo grande) e o todo como completude do ser em presença
no tempo e nos ciclos em cuidado. É interessante pontuar essa tendência similar nas duas obras,
pois, na contramão da leitura da identidade na pós-modernidade como construção descontínua
e fragmentária, ambas primam pela unidade e pela continuidade como valores a serem
alcançados. Há semelhança também no uso do imperativo, em uma certa dicção pagã, despida
da culpa cristã e voltada ao lema “carpe diem”, bem como na apreciação das coisas naturais e
de sua perenidade. No entanto, a diferenciação entre a ode de Reis e a canção de Bastos e
Guedes, dá-se, a meu ver, pelo afeto: enquanto o eu-lírico em Reis é impassível e racional, o
eu-lírico em “Amor de índio” é fluído e emocional.
Contudo, essas duas instâncias (ser “tudo” e ser “todo”) não se encontram
contextualizadas em momentos especiais, de encontro espiritual, de ascensão social ou
146
intelectual, mas focadas no cotidiano, nas mínimas coisas da vida “ordinária”. Nesse ponto,
minha atenção analítica dirige-se ao que é considerado sagrado para a sociedade ocidental: o
inalcançável, inatingível, o metafísico, o conhecimento que pode ser meramente admirado e
perseguido, mas jamais repetido, enquanto que, nas sociedades ligadas à natureza, o sagrado
está naquilo que, para os demais, é considerado objeto, recurso, mercadoria. Conjecturando o
valor da natureza para a sociedade ocidental de maneira geral, penso que vemos como
paisagem, lazer e recurso aquilo que os povos originários veem como sagrado, fonte de
sobrevivência e valor familiar. Ainda meditando acerca do todo e tudo, há, na filosofia indígena,
uma profunda ligação entre os seres e sua origem que é o todo. Nas palavras de Werá: “O ciclo
se faz por um círculo, mas um círculo que não se fecha. O mais velho já foi o mais novo e por
isso conhece os caminhos e descaminhos. O mais velho é aquele que permanece no
reconhecimento da memória de que o ser emerge do Todo, mas não se desfaz do Todo” (2021,
p. 60). Essa consciência gera o reconhecimento do Tudo que se traduz numa “ética da unidade
na diversidade”. Ainda citando Werá:
Gostaria de sublinhar que ser parte não significa ser igual, daí o autor defender a ética da
diversidade. Além disso, fica claro, a meu ver, que as relações não são harmônicas por si. Elas
podem variar, como dito acima, em polos complementares, opostos ou em conflito. Há
momentos de luta e momentos de união e justamente nisso reside o princípio da unidade na
diversidade. Ele ainda chama a atenção para a importância de honrar todas as relações, pois
somente o reconhecimento da diferença é capaz de aperfeiçoar a percepção de ser parte do
Todo. Essa descrição da ética Guarani cria uma imagem interessante que pode ser traduzida em
um grande tecido (todo) que se constrói a partir das relações entre seus fios (cada parte) que
podemos associar aos versos: “ser tudo” e “ser todo”. O todo é intertecido por cada um de seus
fios. É no todo que cada fio encontra um lugar, um valor e uma função.
147
Os versos podem ser interpretados como uma reflexão sobre a indissociabilidade entre vida e
natureza. Apontam também para o centrismo dos humanos como seres pensantes (uma vida que
se conhece) que se arrogam de saber e se consideram mais vivos que a própria vida. Pode-se
ainda tomar os assíndetos “ó tempo, ó alma, ò vida, ó morte!” como exemplos de conhecimentos
que supostamente seriam próprios do ser humano e que o levam à armadilha mortal do
pensamento, que é a consciência arrogante de si como ser superior aos demais.
Apenas para finalizar essa relação entre as duas composições, a ode é uma forma
literária que está geralmente associada às temáticas naturais e à vida como condição sublime de
contemplação do além-humano. Entendo que, nesse sentido, a canção de Guedes pode ser
concebida como uma celebração da vida, que expressa nos versos: “Tudo viver ao seu lado” e
pode, por isso ser comparada à uma ode à condição de estar vivo/a.
Retornando aos versos da canção, nos dois primeiros estabelece-se a linha melódica do
arranjo de Beto Guedes, em que a voz executa um movimento que se baseia em um motivo
melódico de três notas iniciais, referentes ao primeiro verso “tudo que move é sagrado”. Esse
movimento expande-se em um salto melódico ascendente – da nota mais grave a uma mais
aguda – para depois descer “e remove as montanhas” e repetir o motivo melódico inicial (com
todo cuidado). Os motivos melódicos caracterizam-se por “desenhos” de notas que se repetem
148
e, em geral, mantêm a mesma estrutura rítmica. A presença desse motivo acentua o aspecto
cíclico de que já falei, uma vez que “disciplina” as palavras num mesmo desenho/padrão de
notas que vai e vem.
Se pensarmos que os elementos essenciais de uma canção são a melodia e seu texto
verbal, talvez entendamos melhor o porquê de, em geral, desconsiderarmos o arranjo como
parte estruturante de um fonograma. Mas, na verdade, a depender do arranjo, entendido como
a “roupagem” instrumental da peça musical, uma canção pode quase soar “outra”. A velocidade
de execução, o diálogo que se estabelece entre os timbres dos diferentes instrumentos, os
espaços de preenchimento e de silêncio, a inserção de samples de natureza diferente, tudo isso
concorre para que os sentidos do texto sejam reforçados ou direcionados. No caso de “Amor de
índio”, a estética geral do arranjo original de Beto Guedes está relacionada à sonoridade do
Clube da Esquina.74 Os confrades do Clube da Esquina “atualizavam a preocupação bossa-
novista de fundir ritmos regionais com o jazz de orientação mais sofisticada, buscando a criação
de harmonias ricas e o desenvolvimento de práticas (musicais) experimentais” (NAVES, 2004,
p. 44).
O pulso ternário reforça o seguimento cíclico. Diferentemente de ritmos como forró ou
samba, que apresentam pulso binário, a pulsação ternária sugere uma circularidade que pode
sugerir não apenas o fechamento, mas a continuidade. Esse aspecto, por sua vez, pode sublinhar
passagens da letra em que percebemos referências a entendimentos não dicotômicos. Podemos
perceber um exemplo disso na letra da canção que faz apologia ao movimento e à
transformação, mas também ao ócio criativo, ao sonhar, ao dormir, sem deixar de promover um
elogio ao trabalho justo. Nas palavras de Manoel Albuquerque (2012, p. 113),
74
O Clube da Esquina era uma confraria de amigos que ser reuniam num pequeno boteco situado na esquina da
Rua Divinópolis com a Rua Paraisópolis, num bucólico bairro de Belo Horizonte chamado Santa Teresa. Fazia
parte dessa confraria, interessada em música, cinema e poesia, Milton Nascimento, Wagner Tiso, Fernando Brant,
Toninho Horta, Beto Guedes, Tavinho Moura, os irmãos Lô e Márcio Borges, Robertinho Silva, Nivaldo Ornelas,
Ronaldo Bastos, Murilo Antunes, Nelson Ângelo e Novelli, entre outros (SOUZA, 2011, p. 4).
149
Há uma harmonização muito interessante entre letra e melodia que é, inclusive, reforçada pelo
arranjo, povoado por instrumentos. A melodia segue cíclica, a letra introduz motivos também
bastante variados que vão harpejando através da execução. Há um movimento de transformação
e retorno muito intenso que mimetiza também as transformações naturais que não acontecem
numa linearidade, mas numa circularidade constante.
Enfocando o arranjo feito originalmente por Guedes para a gravação de 1978, há uma
variedade de instrumentos (duas guitarras, um piano, um órgão, um baixo elétrico, um
sintetizador e bateria) que se revezam na condução das notas em uma ordenação que remete
quase a um coral, pois atuam energética e dinamicamente num movimento bastante próximo ao
jazz em alguns momentos. Embora haja muitos elementos na paisagem sonora da canção, à
medida que os instrumentos entram no andamento, eles se complementam, ao invés de
competirem. Ao final da letra, na parte instrumental, eles se intensificam e a voz de Guedes,
realizando vocalizes, atua como se fosse mais um instrumento no arranjo. Como dito antes, pela
própria natureza cíclica do pulso rítmico ternário, a solução escolhida para o encerramento é a
retirada gradual de cada um dos instrumentos que participam do arranjo e o fade out. A canção
não acaba, continua cíclica. Apenas esmaece e vai diminuindo seu volume até atingir o silêncio
novamente. Pode-se ler essa repetição como um ciclo que não finda, reforçando os motivos e
sentidos cíclicos presentes no texto verbal.
A canção pode ser considerada um hino ao amor, mas também pode ser lida, desde seu
título, como uma ode à boa vida, à natureza e às relações harmoniosas e equilibradas entre os
seres, incluindo-se o ser humano. Nos versos em que as relações de trabalho são evocadas, elas
aparecem em tons de justiça e sacralidade em “o fruto do trabalho é mais que sagrado [...] A
massa que faz o pão, vale a luz do teu suor”, sustentando mais uma vez a premissa do equilíbrio.
Há uma analogia entre o trabalho da abelha e o trabalho do ser humano que faz o pão. Em ambas
as situações, o que fica ressaltado é que há um tempo para o trabalho e um tempo para o ócio,
e que ambos são igualmente sagrados e remetem também à organização social, pois se pode
aproximar a colmeia do proletariado. Em Chevalier e Gheerbrant (2022, p. 47), lemos que
as abelhas não se diferenciam das formigas, como elas símbolo das massas
submetidas a inexorabilidade do destino [...] Operárias da colmeia que, se
pode comparar com maior propriedade a um alegre ateliê do que a uma
sombria usina, as abelhas asseguram a perenidade da espécie.
O trabalho seria, então, uma forma de serviço justo e alegre que garante a sobrevivência e
epitomiza os modos de organização social; e não visto como algo penoso ou inferior ao ócio,
150
sendo que se colocarmos essas proposições dentro da lógica do tudo e do todo, poderemos
entender que se trata de um trabalho de todos para todos para que, assim, o coletivo possa ter
acesso a tudo, resultando em uma forma igualitária de organização social e divisão do trabalho.
Destaco ainda as evocações de fenômenos e corpos celestes: o “arco-íris” e a “estrela
cadente”. Essas imagens podem ser associadas à cosmologia indígena, sugerindo o sentido de
integração do ser humano com a natureza e assim corroborando para a articulação do tema que
perpassa toda a canção. Para muitos povos indígenas, a leitura dos astros e a observação do céu
é uma prática ancestral imprescindível. Lembro que é do céu que Iebá-Buró, a avó do mundo,
pensa a Terra e envia a canoa-serpente para povoá-la. Tupã, um dos mais importantes deuses
tupi-Guarani, é o deus dos céus e dos trovões. Igaci, o sol, e Jaxy, a lua, são também habitantes
do firmamento. O professor Germano Bruno Afonso (2014, p. 1) afirma que:
Vê-se que o conhecimento dos astros é uma ciência cultivada pelos povos indígenas e que seu
estudo e sua prática norteiam vários aspectos da vida desses povos, já que a percepção dos
fenômenos e movimentos da terra e dos astros auxilia a prever acontecimentos relacionados a
estas oscilações, pois ocorrem de maneira cíclica. Além disso, a orientação pelas estrelas dentro
da mata é muito útil, pois perde-se os pontos de referência, como rio ou montanha, que deixam
de ser avistados dentro da imensidão verde.
Para os Bororo, as estrelas são os olhos de suas crianças ancestrais que, arteiras e
entediadas, amarraram um cipó no céu, o qual foi cortado e, desde então, as crianças curiosas
observam a terra de lá das grandes alturas. Para esta etnia, portanto, as estrelas são olhos de
curumins (BARROS, 2013). Essa narrativa inverte os pontos de vista, de observadores de
estrelas, os seres humanos seriam, na verdade, observados por elas. Segundo Patrícia Mariuzzo
(2012, p. 63):
151
Os povos indígenas criaram mais de 100 desenhos de constelações que variam de acordo com
a etnia e os idiomas locais. Observaram o movimento de aproximação da lua e do sol com
Aldebarã e Vênus, sendo capazes de prever eclipses. Sua ligação com os astros é tanto empírica
quanto cosmológica. A relação entre céu e Terra é, para muitos povos, uma relação de
espelhamento. O que acontece ao céu, acontece à Terra (AFONSO, 2014, p. 4). Então, o legado
astronômico indígena, especialmente o brasileiro, é ainda pouco entendido e valorizado pelos
estudiosos acadêmicos, salvo raras exceções, como o citado professor Germano Bruno, o qual
sustentava que os mitos e as lendas são maneiras de transmitir o conhecimento empírico
acumulado pelos indígenas às próximas gerações.
A estrela símbolo celeste de luz e do sagrado tem uma forte ligação com os desejos, em
especial nas línguas latinas, pois a origem da palavra desejo é exatamente de siderum, que
significa das estrelas. Assim, desiderare significa fixar as estrelas e entra para a nossa língua
como desejar ou pedir algo às estrelas. Seguindo esse raciocínio, uma “estrela” que cai na terra
é um pedido que se aproxima de nós. Em várias culturas, há a tradição de fazer um desejo
quando se vê uma estrela cadente. Em francês, é désir; em italiano, desiderio; em espanhol,
deseo e, em inglês, desire. Podemos entender, no contexto indígena, que se céu e terra são
conexos e se o que acontece em cima acontece também embaixo, à “estrela cadente” pode-se
atribuir significado semelhante a chegada de algo do céu. Há, portanto, uma ligação entre a
estrela que cai do céu, o desejo que se pensou e o destino que se cumpre. Para os Tikuna,
tchitacüü, as estrelas “cadentes” são comparadas ao “galho de envira que não quebra, isto é,
que está dependurado, não cai e não morre”. Entendo essa formulação como um testamento de
perenidade. Daí que o pedido que se pensou é eterno e regido pelo destino, inscrito na estrela
que não morre.
Enfocando o símbolo do arco, na mitologia Kaxinawa, temos a narrativa de Iaçá, a
história de uma jovem que se apaixonou por Tupá, filho de Tupã nos céus, mas foi prometida
por sua família à Anhangá nas profundezas da terra. Vendo-se sem saída, a jovem foi forçada
a aceitar, mas fez um último pedido: visitar seu amado Tupá no reino dos céus. Anhangá
assentiu com a condição de que ela fizesse um corte no braço para que pela trilha de seu sangue
ele soubesse por onde ela passou. Tupá, por sua vez, ordenou a Guaraci (O sol), Iuaca (o céu)
152
e Pará (o mar) que acompanhassem sua subida. Mas Iaçá não aguentou a travessia e, em sua
lenta queda de volta, foi deixando um rastro vermelho, ladeado pelo rastro amarelo de Guaraci,
azul-claro de Iuaca e azul-escuro de Pará. Como a descida era longa e inclinada, os rastros
foram se misturando, o sangue com sol virou um rastro laranja, o vermelho com o mar um arco
roxo. Ao voltar a terra, Iaça não resistiu e morreu em uma praia; Guaraci e Pará uniram forças
e misturaram seus arcos amarelo e azul para transladar o corpo até o amado Tupá, formando
assim o arco de cor verde. Apesar do final trágico, o arco-íris para essa cultura acaba por
representar a promessa de um casamento de uma indígena na terra com uma deidade do sol.
Podemos apreender, então, que o arco da promessa é capaz também de simbolizar o amor entre
Iaçá e Tupá. Em várias culturas andinas, o arco-íris, por sua conexão com as águas, está ligado
a deidades e entidades serpentinas. Para Chevalier e Gheerbrant (2020, p. 125), o arco-íris pode
simbolizar a união de dois mundos (águas inferiores e superiores), representando a união de
metades separadas e a restauração da ordem. O arco-íris simboliza também a prevalência da
força do sol que se reestabelece sobre a terra após a chuva (bonança). No caso da canção, é
possível interpretá-lo literalmente como uma aliança, marca de uma promessa duradoura,
escrita no céu que afiança permanecer, “enquanto a chama arder”, ou seja, enquanto houver
vida.
Para finalizar, enfoco a figura das estações do ano. Mais uma referência cíclica que
expressa transformação e mudança, em que o eu-lírico completa um círculo “pra na chuva poder
dançar e andar junto”. Segundo Kaká Werá, a tradição Guarani fala da eterna dança da criação
cósmica que repetimos “para que possamos guiar-nos de acordo com seu ritmo, sua harmonia
[...] Os quatro cantos do movimento de criação são revelados por meio dos ciclos da natureza,
desde que os ventos começaram a soprar, desse espaço-tempo primeiro, gerando um inverno,
um outono, uma primavera e um verão” (WERÁ, 2021, p. 86). Na cosmologia Tikuna, as
estações estão ligadas às constelações e cada estação apresenta atividades propícias para serem
realizadas. Em matéria para o portal Amazônia, Isabelle Lima (2021, n. p.) defende:
Assim, em sintonia com os movimentos dos astros e com os ciclos naturais, as rotinas indígenas
são movimentos de mudança e repetição espirais no tempo em que buscam se harmonizar com
153
os movimentos naturais da Mãe Terra, de quem se consideram partícipes guardiões. Aliás, eles
não apenas se consideram, mas, comprovadamente, são. Um trabalho publicado recentemente
na revista científica internacional Nature75 atesta que as práticas dessas comunidades com o
manejo dos polinizadores são fundamentais para o meio ambiente e para o bem-estar do ser
humano em todo o planeta. Os dados são confirmados pela ONU e por inúmeras outras
instituições no Brasil e no mundo. Com base nos estudos da ONU, o instituto Akatu (2022,
n.p.) alerta:
Essa defesa passa pelas práticas de Bem Viver difundidas entre os diversos povos indígenas,
pela resistência cultural, utilização de conhecimentos botânicos, agrícolas, astronômicos e,
infelizmente, até mesmo pela estratégia de ter de colocar a própria vida como barreira aos
avanços do invasor. Na imagem abaixo, vemos Ari Eu-Wau-Wau, indígena, guardião da
floresta que, aos 32 anos de idade, foi assassinado nas proximidades de seu território.
75
Cf. Hill, R., Nates-Parra, G., Quezada-Euán, J. J. G. et al. (2019).
154
E esta situação não tem melhorado, pois, enquanto escrevo esta tese, o que temos
assistido acontecer no Brasil de 2023 é chocante. O caso mais emblemático é a da crise
humanitária no território Yanomami que não representa caso isolado.Durante toda a gestão do
(felizmente) ex-presidente Jair Bolsonaro, as queimadas, as doenças epidêmicas, a violência
racial e física contra os povos indígenas e a invasão de seus territórios, incentivadas pelas
políticas e pelos discursos desse senhor, aceleraram a tentativa de genocídio dos povos
originários76, bem como promoveram uma destruição imensa na floresta amazônica 77 e em
outros biomas brasileiros78, conforme demonstra o gráfico abaixo (figura 20).
Fonte: Ecoamazônia
76
Cf. “Casos de Violência contra indígenas aumentou 150% no primeiro ano de Bolsonaro”. (VILELA, 2020).
77
Cf. “Desmatamento na Amazônia cresceu 56,6% sob o Governo de Bolsonaro” (GARRIDO, 2022).
78
Cf. “No governo Bolsonaro desmatamento aumentou em todos os biomas, diz estudo” (VERONICZ, 2022).
155
a inteireza de si, a integração com o todo, a observação dos animais e dos astros), chego ao
ponto basilar desta leitura, que é “Amor de índio" pode ser lida como uma metáfora sobre
formas de bem viver com a terra e com os outros seres, uma vida equilibrada e respeitosa que
se vê como parte de um Todo, de um tudo que é orgânico e dialético, no qual tudo se organiza
e flui. Para citar Starhawk: “[t]odas as partes do corpo vivo da terra estão ligadas. Todas as
coisas estão interconectadas, incluindo o humano e mundos naturais. A espiritualidade da terra
tem como base o nosso amor pela natureza, nossa identificação com as estações, ciclos, fauna
e flora” (STARHAWK, 1989, p. 178). As palavras de Starhawk rememoram alguns
fundamentos do Sumak Kawsay/Bem Viver. Para bem viver é preciso saber ser. Isso depende
de um conhecimento profundo de quem se é com tudo o que está ao redor, pois
A proposta do Sumak Kawsay/Bem Viver é a de aprender a ser e viver com o Todo sem
distinção de espécies ou atribuição de valores financeiros a seres que recebem, em suas
cosmovisões, valores sagrados. As relações entre os seres e entes, como bem comenta Viveiros
de Castro acima, é uma relação de interconstituição. Na sociedade ocidental, essa relação tem
sido construída à base de sangue, fome e destruição para atender a interesse capitalista e, por
consequência, antropocêntrico, misógino e racista. Esses “valores” também se interconstituem
para conceber um mundo que é um abatedouro lucrativo para alguns, infernal para muitos e
fatal para todos os seres que o habitam. O mais lastimável é que há possibilidades de uma saída
desses infernos instituídos pelo antropoceno, mas tais saberes são inferiorizados e
propositalmente ignorados pela sociedade de consumo, pois, conforme observa Patrícia Pardini:
emaranhado de abstrações e metas para depois. A Terra está sendo destruída agora, como nos
alerta Patrícia Pardini:
79
Percurso que se inicia em 2015, com minha pesquisa de mestrado que analisa a poética das canções/lírios na
Jurema Sagrada, religião de origem indígena.
159
lidar com os diferentes entendimentos de temporalidade, uma vez que a noção de temporalidade
linear não funciona ou não se adequa para a análise dessas canções. Busquei privilegiar a
temporalidade cíclica, sobretudo, destacando vozes indígenas, pois, para muitos desses povos,
a voz é o ser e o ser é o som encarnado (WERÁ, 2021).
O estudo da presença de imagens indígenas em nosso cancioneiro é ainda um caminho
pouco trilhado, que representa um desafio analítico, visto que as diferenças culturais e, por
vezes, a barreira linguística exigem a adoção de estratégias de leituras particulares. Exemplo
disso é a análise da canção “Xondaro ka’aguy reguá” de Kunumi Mc, cuja letra é construída no
idioma Guarani, língua com a qual não possuo familiaridade. Para proceder com a teorização,
precisei trabalhar com a tradução da letra para o português, disponibilizada pelo próprio autor.
A transposição da barreira linguística e cultural exige a negociação e a sensibilidade no trabalho
crítico, sendo esta uma das maneiras pela qual busquei responder ao questionamento proposto
por Cunha. Ainda assim, há toda uma fortuna em canções escritas em guarani e em outros
idiomas a serem estudadas. A construção desta tese apresenta-se como um esforço para
superação dessas barreiras e dá um pequeno passo nesse sentido.
Todo o conjunto de canções selecionado foi analisado pelo viés indiofuturista, mas é
necessário salientar que os indiofuturismos podem ser lido de formas diferentes nas canções.
Obras de autoria indígena suscitam um diálogo mais forte com as teorizações da ecologia e da
interseccionalidade, pois mimetizam como mais vigor questões ambientais e questões de raça,
classe e gênero, até mesmo pelo contexto e pelas subjetividades que as produziram. Alguns
exemplos disso são as análises de “Indígena futurista”, “Xondaro ka’aguy reguá”, “Serpente-
mulher” e “Mãos vermelhas”, em que as vozes líricas tecem relações mais próximas com a
natureza e com os conflitos culturais e ambientais. Já as canções “Um índio”, “Tubi tupy” e
“Amor de índio” são construídas com imagens mais afins às técnicas da poética e da crítica do
cânone ocidental, sendo por isso analisadas por esse viés. Outro fator importante que diferencia
o teor dessas análises é a noção de temporalidade sobre a qual elas são construídas. Embora
todas, de algum modo, estejam em confluência com o tempo cíclico, as canções de autoria
indígena marcam mais intensamente essa relação.
As análises apontam que o conceito construído nesta tese, o indiofuturismo, pode ser
especialmente relevante para atentar para as noções de continuidade e repetição no tempo
espiralar, sobretudo na proposição dos pensares e dos modos de expressão indígenas que podem
e devem ser compreendidos fora das amarras do pensamento ocidental de produção do novo na
linha evolutiva do tempo. A inventividade não está ligada ao futuro necessariamente, como
propõem, de maneira geral, os pensadores e pensadoras ocidentais. A novidade não se esgota
161
na repetição do ciclo, pois ela é fruto da interação do ser com o fenômeno observado dentro de
um determinado contexto. Para dar um exemplo, o sol que vemos no céu é sempre o mesmo,
mas cada pôr-do-sol inspira a novidade em um/a poeta, e isso se repete há milênios. Nem por
isso deixamos de observar cada pôr-do-sol como um fenômeno inédito e presente; nem por isso
deixamos de estudar e descobrir novidades sobre os movimentos solares, a influência do sol
sobre a vida e sobre a Terra.
O velho produz o novo. Avançamos a partir do conhecimento acumulado, tanto quanto
propondo novas questões. Sabemos que a pedagogia grega dá origem ao nosso sistema
acadêmico e, mesmo assim, a despeito de toda sua influência, nunca deixamos de inventar e de
pensar sobre as formas de aprender e de ensinar. Ligar o tempo linear ao avanço/progresso é
uma falácia, pois nunca deixamos para trás o que aprendemos antes, apenas ressignificamos os
conhecimentos e seguimos observando os mesmos fenômenos sob novos pontos de vista; bem
como ligar os tempos circulares e espiralares à primitividade constitui um ato de violência
ontológica e epistemológica. Nossa sociedade corre atrás do futuro como o cavalo corre atrás
da cenoura, mas o “futuro é agora”. Não precisamos correr atrás dele, mas dançar com ele neste
instante para torná-lo presente.
Esta tese apresenta algumas possibilidades para investigações futuras que podem
ampliar o tema aqui enfocado, proporcionando a continuidade do diálogo entre os Estudos
Culturais e as representações indígenas. Penso que algumas delas são: expansão do números de
canções analisadas, pois, como pode ser visto no levantamento apresentado no apêndice 80,
encontrei 80 canções em que figuram imagens indígenas no cancioneiro popular brasileiro; a
criação de novos eixos analíticos, tais como: representação indígena na canção infantil e suas
possíveis implicações no imaginário social sobre indígenas; o estudo de como está representada
a relação entre aldeia e urbanidade nas poéticas de autoria indígena; a investigação do percurso
e das características da autorrepresentação de indígenas na canção popular; investigação da
autorrepresentação da mulher indígena; e estudo mais aprofundado das relações entre as
canções de protesto e lutas indígenas com a distopia. Proponho tais caminhos como convites a
novas pesquisas para a continuidade da investigação dessas representações, ampliando as
teorizações dos Estudos Culturais sobre essa temática, lançando sementes-irmãs nesse bosque
sonoro de Pindorama.
Por fim, penso que a maioria de nós faz pesquisas para que novas possibilidades e
caminhos possam ser vislumbrados e investigados. Pesquisamos, sobretudo, por esperança. E
80
Cf. página 175.
162
sei bem que pesquisar no Brasil distópico dos últimos anos custou muito dessa nossa força-
motriz para construir trilhas para dias melhores. Iremos continuar, iremos lutar, mas desejo que,
no percurso, não nos esqueçamos de celebrar, cantar e dançar com cuidado e com alegria em
comemoração a esta vida nossa, que é parte daquele todo que é a Mãe Terra, Gaia, Planeta Terra
ou como queiram chamar. Sinto que apenas iniciei um caminho carregando esta pequena bolsa
de sementes, para utilizar a metáfora de Ursula Le Guin (2021), mas ele não termina por aqui.
Desejo que, inspirados/as pelas belas metáforas da semente, da raiz e da árvore que podem ser
colhidas nessas poéticas, possamos seguir plantando conhecimentos e horizontes, juntos e
juntas e juntes.
163
REFERÊNCIAS
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https://jornal.usp.br/atualidades/colunista-utiliza-a-cancao-um-indio-para-prever-risco-de-
destruicao-das-nacoes-indigenas/. Acesso em: 30 out. 2021.
WISNIK, José Miguel. O som e o sentido: uma outra história das músicas. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989.
ZINHA, Laís. Um pouco sobre etnocídio e porque não estamos falando de genocídio em seu
sentido literal. Facebook. 10 jan. 2018. Disponível em:
<https://www.facebook.com/notes/la%C3%ADs-zinha/um-pouco-sobre-etnoc%C3%ADdio-
e-po> . Acesso em: 20 fev. 2019.
APÊNDICE
=eWdLDaKUBM
A
Kunumi Nhamandu 2022 Independente https://www.yout
Mc/Owerá ube.com/watch?v
=7J9_vSKWtSc
Kunumi Meu sangue é 2017 Independente https://www.yout
Mc/Owerá vermelho ube.com/watch?v
(Guarani Kaiowá) =GI-nYia9JcU
Kunumi Nunca desistir 2017 Independente https://www.yout
Mc/Owerá ube.com/watch?v
=lS57jZVY-vM
Kunumi Força de Tupã 2020 Independente https://www.yout
Mc/Owerá ube.com/watch?v
=oMmb8ArW_38
Kunumi Demarcação já – 2019 Selo Matilha na https://www.yout
Mc/Owerá terra, água e ar Mixtape Matilha ube.com/watch?v
=6yIpJtfNVeg
Legião Urbana Índios 1986 EMI-Odeon https://www.yout
ube.com/watch?v
=nM_gEzvhsM0