Escola Sem Partido

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ESCOLA

“SEM”
PARTIDO
Esfinge que ameaça a educação
e a sociedade brasileira

Gaudêncio Frigotto (Org.)


ESCOLA “SEM” PARTIDO
Esfinge que ameaça a educação
e a sociedade brasileira

Gaudêncio Frigotto
Organizador
Copyright © 2017 Laboratório de Políticas Públicas da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro.

LABORATÓRIO DE POLÍTICAS PÚBLICAS (LPP/UERJ)


Coordenador: Emir Sader
Comitê Gestor: André Lázaro, Gaudêncio Frigotto e Zacarias Gama
Coordenadores Técnicos de Projetos Institucionais: Carmen da Matta e Felipe Campanuci
Bolsista Técnica Proatec/SR-2: Carla Navarro
Bolsistas de Extensão: Carolina Costa, Pedro Gesteira e Viviane Marques
Pesquisadores Assistentes: Carolina Castro e Luciano Cerqueira

CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/NPROTEC

E74 Escola “sem” partido : esfinge que ameaça a educação e a sociedade


brasileira / organizador Gaudêncio Frigotto. Rio de Janeiro :
UERJ, LPP, 2017.
144 p.

ISBN 978-85-92826-07-9
E-ISBN 978-85-92826-06-2

1. Política e educação - Brasil. 2. Educação e Estado - Brasil. I.


Frigotto, Gaudêncio, 1947-

CDU 37.014

2ª reimpressão, 2018.

Editora Executiva e Preparação de Originais: Carmen da Matta


Projeto Gráfico e Diagramação: Pedro Biz
Assistentes de Edição: Carolina Costa e Viviane Marques

Laboratório de Políticas Públicas (LPP-UERJ)


Rua São Francisco Xavier, 524/12.111-Bloco-F/sala 08
Maracanã - CEP 20550-013 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
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<http://www.lpp.uerj.br/>
ESCOLA “SEM” PARTIDO
Esfinge que ameaça a educação
e a sociedade brasileira

Gaudêncio Frigotto
Organizador

Rio de Janeiro
LPP/UERJ
2017
INSTITUIÇÕES DE APOIO
Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE)
Heleno Manoel Gomes Araújo Filho (Presidente)
Marlei Fernandes de Carvalho (Vice-presidente)
Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH)/UERJ
Floriano José Godinho de Oliveira (Coordenador)
Luiz Antonio Saléh Amado (Coordenador Adjunto)
Grupo de Pesquisa Trabalho, História, Educação e Saúde (THESE)
Maria Ciavatta (Coordenadora)
Universidade Federal Fluminense (UFF)
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
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Profissional e Tecnológica (SINASEFE)
Fabiano Godinho Faria (Coordenação Geral)
Cátia Cilene Farago (Coordenação Geral)
Williamis da Silva Vieira (Coordenação Geral)
Sindicato dos Professores do Município do Rio de Janeiro e Região (SinproRio)
Oswaldo Luis Cordeiro Teles (Presidente)

CONSELHO EDITORIAL CONSELHO CIENTÍFICO


André Lázaro (LPP/UERJ e FLACSO-Brasil) Ana María Larrea (FLACSO/Equador)
Antonio Carlos Ritto (IME/UERJ) Cláudio Suasnabar (UNLP/Argentina)
Carmen da Matta (LPP/UERJ) Dalila Andrade (UFMG)
Emir Sader (LPP/UERJ) Giovanni Alves (UNESP)
Felipe Campanuci Queiroz (LPP/UERJ) José Luís Fiori (UFRJ)
Floriano José Godinho de Oliveira (PPFH/UERJ) Laura Tavares (UFRJ)
Gaudêncio Frigotto (PPFH/UERJ) Luisa Cerdeira (IE/Universidade de Lisboa)
Hindenburgo Francisco Pires (IGEOG/UERJ) Marise Nogueira Ramos (FIOCRUZ)
Maria Ciavatta (UFF) Roberto Agustín Follari (UNCuyo/Argentina)
Theotonio dos Santos (UERJ/UFF) Rolf Malungo (UFF)
Zacarias Gama (PPFH/UERJ) Roseli Salete Caldart (ITerra/MST)
Rui Canário (IE/Universidade de Lisboa)
Valdemar Sguissardi (UNIMEP)
Vânia Motta (UFRJ)
Sumário

Apresentação
Resistindo aos dogmas do autoritarismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7
Maria Ciavatta

A gênese das teses do Escola sem Partido: esfinge e ovo da serpente


que ameaçam a sociedade e a educação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17
Gaudêncio Frigotto

O Escola sem Partido como chave de leitura do fenômeno educacional. . . . . . 35


Fernando de Araujo Penna

Breve análise sobre as redes do Escola sem Partido . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49


Betty R. Solano Espinosa e Felipe B. Campanuci Queiroz

Escola sem Partido: o que é, como age, para que serve. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63


Eveline Algebaile

Escola sem Partido: a criminalização do trabalho pedagógico. . . . . . . . . . . . . . 75


Marise Nogueira Ramos

Educação e liberdade: apontamentos para um bom combate


ao Projeto de Lei Escola sem Partido. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87
Amana Mattos, Ana Maria Bandeira de Mello Magaldi, Carina Martins Costa,
Conceição Firmina Seixas Silva, Fernando de Araujo Penna, Luciana Velloso,
Paula Leonardi e Verena Alberti
Escola sem Partido: visibilizando racionalidades, analisando
governamentalidades. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 105
Isabel Scrivano Martins Santa Bárbara, Fabiana Lopes da Cunha
e Pedro Paulo Gastalho de Bicalho

A doxa e o logos na educação: o avanço do irracionalismo . . . . . . . . . . . . . . . . 121


Rafael de Freitas e Souza e Tiago Fávero de Oliveira

Reestruturação curricular no caminho inverso ao do ideário


do Escola sem Partido. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 133
Paulino José Orso
34 ESCOLA “SEM” PARTIDO

OLIVEIRA, Francisco de. Privatização do público, destituição da fala e anu-


lação da política: o totalitarismo neoliberal. In: OLIVEIRA, Francisco de; e
PAOLI, Maria Célia. (Orgs.) Os sentidos da democracia. Políticas do dissenso e
hegemonia global. Petrópolis: Vozes; São Paulo: NEDIC/FAPESP, 1999, p.55-82.

_____. Crítica à razão dualista. O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003.

_____. Entrevista concedida a Fernando Haddad e Leda Paulani. In: Revista


Reportagem, n.41, São Paulo, fev. 2003.

PIKETTY, Thomas. O capital do século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014.

SCHULTZ, Theodoro. O valor econômico da educação. Rio de Janeiro: Zahar,


1962.

_____. Capital humano. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.

SINGER, André. Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador.


São Paulo: Cia. das Letras, 2012.
O Escola sem Partido como chave de leitura do
fenômeno educacional1
Fernando de Araujo Penna*

Meu objetivo na presente palestra é pensar o Escola sem Partido como um


discurso que vem sendo compartilhado desde 2004, quando o movimento foi
criado e que se apresenta, desde então, como uma chave de leitura para enten-
der o fenômeno educacional. Uma chave de leitura que, para nós, educadores,
professores, pesquisadores do campo da Educação é absurda, apresentando
ideias que nos chocam e, muitas vezes, nos levam a rir.
Outra reação igualmente comum é não levar a sério a ameaça apresentada
por esse discurso e os projetos de lei que incorporam suas ideias por ser algo
que, para nós, é muito obviamente contraditório com a legislação educacional
existente. O discurso do Escola sem Partido não foi devidamente enfrentado,
a meu ver, desde o momento em que ele surgiu, em 2004, justamente por
parecer absurdo e sem fundamentos legais para aqueles que conhecem o de-
bate educacional, e também porque ele se espalha com muita força, não em
debates acadêmicos, mas nas redes sociais. Esse discurso utiliza-se de uma
linguagem próxima a do senso comum, recorrendo a dicotomias simplistas
que reduzem questões complexas a falsas alternativas e valendo-se de polariza-
ções já existentes no campo político para introduzi-las e reforçá-las no campo
educacional. Os memes, imagens acompanhadas de breves dizeres, têm uma
grande importância nesse discurso simplista.2 Então, nós não enfrentamos
esse discurso e ele cresceu muito, até que projetos de lei, que incorporam as
suas ideias, fossem apresentados nacionalmente e em vários estados do país
e nos déssemos conta da ameaça real que ele representava.3
Algo que ficou claro para mim, ao longo desse ano, discutindo esse
projeto é que não se trata só da constitucionalidade, da discussão legal.

* Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor Adjunto da
Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF).
1  Transcrição da Aula Magna da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF)
proferida em 14/9/2016. Agradeço à Renata Aquino pelo trabalho de transcrição e verificação das fontes.
2  Para uma análise sobre essas imagens, ver o texto de minha autoria “Ódio aos professores”. Dispo-
nível em: <https://contraoescolasempartidoblog.wordpress.com/2016/06/03/o-odio-aos-professo-
res/>. Acesso em: 15/9/2016.
3  Para conhecer melhor esses projetos e acompanhar a sua tramitação, ver: <https://contraoescola-
sempartidoblog.wordpress.com/vigiando-os-projetos-de-lei/>. Acesso em: 15/9/2016.
36 ESCOLA “SEM” PARTIDO

Talvez o mais importante de tudo seja uma disputa pela opinião pública, o
debate no espaço público, e como essas ideias estão ganhando força dentre
alguns segmentos da sociedade civil. É nesse aspecto que eu quero focar,
na análise do discurso do Escola sem Partido, identificando e discutindo
seus principais elementos. Com essa finalidade, começo afirmando que esse
discurso se apresenta como uma nova configuração, que junta elementos
antigos e novos. Argumentarei que essa chave de leitura do fenômeno
educacional tem quatro características principais: primeiro, uma concep-
ção de escolarização; segundo, uma desqualificação do professor; terceiro,
estratégias discursivas fascistas; e, por último, a defesa do poder total dos
pais sobre os seus filhos.
Vou pautar minha fala agora nesses quatro elementos, pensando esse
discurso de uma maneira mais ampla e analisando como ele é incorporado
nos projetos de lei inspirados na atuação deste movimento.

A CONCEPÇÃO DE ESCOLARIZAÇÃO
O primeiro deles: a concepção de escolarização. E notem que eu não falei
concepção de educação e sim de escolarização. Por quê? Nós temos uma pri-
meira característica dessa concepção que é a afirmação de que o professor não
é educador. Eu vou usar muito aqui o site do Escola sem Partido4 e sua página
de Facebook.5 O site tem uma “biblioteca politicamente incorreta”, na qual
eles indicam apenas quatro livros: os dois últimos são os guias politicamente
incorretos da história do Brasil e da América Latina, mas o primeiro da lista
é o livro Professor não é educador (de autoria de Armindo Moreira). Qual é
a tese desse livro? Uma dissociação entre o ato de educar e o ato de instruir.
O ato de educar seria responsabilidade da família e da religião; então o professor
teria que se limitar a instruir, o que no discurso do Escola sem Partido equi-
vale a transmitir conhecimento neutro, sem mobilizar valores e sem discutir
a realidade do aluno. Vou mostrar mais dados para corroborar essa leitura.
A segunda característica da concepção de escolarização: não se pode
falar sobre a realidade do aluno. O Programa Escola sem Partido – agora
falo do Projeto de Lei usando como referência o PL n° 867/2015,6 que está

4  Disponível em: <www.escolasempartido.org/>. Acesso em: 15/9/2016.


5  Disponível em: <https://m.facebook.com/profile.php?id=336441753173489/>. Acesso em: 15/9/2016.
6 A ficha de tramitação do projeto para conferir o seu inteiro teor encontra-se disponível em:
<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=1050668/>.
Acesso em: 15/9/2016.
GAUDÊNCIO FRIGOTTO 37

tramitando na Câmara dos Deputados – se propõe a proibir a prática da


doutrinação política e ideológica em sala de aula no seu terceiro artigo. Em
nenhum momento do projeto, eles definem o que seria essa tal “doutrinação
política e ideológica”, o que já é um elemento de inconstitucionalidade: como
proibir uma prática sem defini-la claramente? Mas, se nós formos no site,
nós encontramos uma definição bem clara. Lá encontramos dois ícones: um
é “Flagrando o doutrinador”,7 o qual eu vou ler alguns elementos com vocês,
e “Planeje a sua denúncia”,8 no qual ele explica para o aluno como fazer a sua
denúncia anotando o dia, o horário, e coisas assim. Então, o texto flagrando
o doutrinador não passa de uma lista de atividades às quais o aluno deve ficar
atento para reconhecer o professor doutrinador.
Temos aqui uma definição do que seria essa prática: “você pode estar
sendo vítima de doutrinação ideológica quando seu professor se desvia fre-
quentemente da matéria objeto da disciplina para assuntos relacionados ao
noticiário político ou internacional”. Uma dissociação entre o que é a matéria
e o que está acontecendo no mundo, na realidade do aluno. A afirmativa de
que o professor não poderia discutir essa realidade, ele teria que se ater à sua
matéria – e nós sabemos que isso na prática é impossível, porque dialogar com
a realidade do aluno é um princípio educacional estabelecido para tornar o
ensino das disciplinas significativo. “Adota ou indica livros e publicações de
autores identificados com determinada corrente ideológica”: eu sempre faço o
mesmo desafio – gostaria que alguém me indicasse um livro que não é identi-
ficado com uma corrente ideológica. Mas eles operam com outra dissociação
questionável entre ideologia e neutralidade. Terceiro: “impõe a leitura de textos”,
“mostra apenas um dos lados”, o professor de novo como um manipulador. E
se essa é a definição, eu tenho dito isso e insisto aqui novamente, nós temos
que problematizar o discurso deles.
A terceira, e última, característica dessa concepção de escolarização é
a proibição de mobilizar valores de qualquer natureza. Para corroborar essa
minha leitura, trago uma transcrição de uma fala do coordenador do movi-
mento Escola sem Partido em um debate que aconteceu no canal GloboNews:

Um Estado que é laico deve ser neutro com relação a todas religiões.
Acontece que as religiões têm a sua moralidade. A religião cristã,
por exemplo, tem os dez mandamentos, que é um código moral
do cristianismo, certo? Se o Estado que é laico puder usar o seu

7  Disponível em: <http://escolasempartido.org/flagrando-o-doutrinador/>. Acesso em: 15/9/2016.


8  Disponível em: <http://escolasempartido.org/planeje-sua-denuncia/>. Acesso em: 15/9/2016.
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sistema de ensino para promover uma determinada realidade, ele


poderá destruir uma religião. Basta que ele promova conceitos
de moralidade que se choquem com uma religião. A laicidade
do Estado impõe ao Estado que fique longe das questões de mo-
ralidade. (...) Os valores que uma escola deve transmitir aos seus
alunos são os valores ligados ao conhecimento. (...) Os valores
indispensáveis à transmissão do conhecimento e ao cumprimento
da missão essencial da escola, que é formar o indivíduo e formar
aquele profissional que mais tarde vai exercer (...). (Miguel Nagib,
em debate realizado na GloboNews)9

Nagib começa afirmando que o professor não pode falar de nenhum valor
em sala de aula e, pressionado pelos outros debatedores, fala que “só os valores
necessários à transmissão do conhecimento”. Então, aqui eu vejo, pensando
sobre essa concepção de escolarização, algo muito próximo de um neotecni-
cismo. O professor aplica, transmite conhecimento, não discute valores, não
pode falar sobre a realidade do aluno: essa é a concepção de escolarização.
Voltarei à questão dos valores em breve.

A DESQUALIFICAÇÃO DO PROFESSOR
Muito próxima dessa concepção de escolarização, nós temos uma des-
qualificação do professor, que é o segundo elemento que eu gostaria de des-
tacar. Com relação a essa desqualificação do professor, o discurso do Escola
sem Partido é bastante explícito: a afirmativa constante de que nenhum pai
é obrigado a confiar no professor. Vou mostrar um outro vídeo do mesmo
debate para vocês agora, no qual isso é dito explicitamente.

Silvia Moraes – Às vezes eu acho que nós estamos dizendo que os


professores são monstros. Eu não acredito naquele profissional que
se formou para falar sobre preceitos éticos com meus alunos. Eu
acredito que um professor deva estar preparado não só para propor
um tema, mas para ter uma intervenção pedagógica imediata em um
momento de preconceito, discriminação e homofobia. Nós precisamos
confiar nos profissionais que são formados no Brasil.
Miguel Nagib – Nenhum pai é obrigado a confiar em um professor.
Nenhum pai. O professor quando fecha a porta da sala de aula, ele

9  Disponível em: <https://youtu.be/iNSC1rNOz74/>. Acesso em: 15/9/2016.


GAUDÊNCIO FRIGOTTO 39

é o dono do espetáculo. Se ele tiver uma boa formação e tiver bons


princípios, sorte do aluno, mas e se não tiver? Como saber? Não é
verdade? E há uma infinidade de pessoas que são mal preparadas e
que cujos valores – eu nem entro no mérito se são bons ou ruins –
mas que não coincidem com os valores da família. (Debate realizado
pela GloboNews)10

Na fala desses dois debatedores conseguimos perceber duas lógicas bem


diferentes. A pedagoga Silvia Moraes parte de um ponto de vista de uma lógica
profissional: ela vê o professor como detentor do saber profissional, capacitado
para realizar qualquer intervenção pedagógica que julgar necessária. Miguel
Nagib, por sua vez, parte de uma desqualificação do professor: “nenhum pai
é obrigado a confiar no professor, ele fecha a porta da sala de aula e ele faz o
que ele bem entender”. Essa é a lógica que eu estou querendo construir com
vocês: de uma desqualificação do professor. E aqui é interessante que, quando
nós estamos falando sobre essa lógica de desqualificação do professor, ela se
aproxima muito de uma lógica que poderíamos chamar de uma lógica de
mercado, que consiste em pensar a educação como uma relação entre alguém
que está prestando um serviço e um consumidor. Isso é explícito. Miguel Nagib
afirma com todas as palavras que a inspiração do projeto Escola sem Partido
foi o código de defesa do consumidor.

O nosso projeto foi inspirado no código de defesa do consumidor.


O Código de Defesa do Consumidor intervém na relação entre
fornecedores e consumidores para proteger a parte mais fraca, que
é o consumidor, o tomador dos serviços que são prestados pelos
fornecedores. Da mesma maneira, a nossa proposta ela intervém
na relação de ensino-aprendizagem para proteger a parte mais fraca
dessa relação que é o estudante, aquele indivíduo vulnerável, que
está se desenvolvendo. (Miguel Nagib, em Audiência Pública no
Senado Federal realizada em 1/9/2016)11

Nagib afirma, explicitamente, que o projeto é baseado no Código de


Defesa do Consumidor, uma tentativa evidente de pensar a educação como
uma relação de consumo. Retomamos a questão dos valores na educação.
Ele foi articulista durante alguns anos do Instituto Millenium, escreveu

10  Disponível em: <https://youtu.be/iNSC1rNOz74/>. Acesso em: 15/9/2016.


11  Disponível em: <https://youtu.be/jwGErV-1zUo/>. Acesso em: 15/9/2016.
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para o site durante algum tempo e, quando ele estava lá, escreveu um texto
chamado “Por uma escola que promova os valores do Millenium”. Se vocês
procurarem atualmente no site, ele já não é mais articulista, tiraram a ima-
gem dele, e no lugar da autoria dos textos vinculados a ele você vai encontrar
“Comunicação Millenium”.12 Quais são os valores, então, que devem ser
ensinados nessa escola que promova os valores do Millenium? “Propriedade
privada”, “responsabilidade individual” e “meritocracia”. Fica a pergunta: esses
são os valores neutros necessários para transmissão do conhecimento? Me-
ritocracia é um valor neutro necessário para transmissão do conhecimento?
Eu creio que não.
Quem discute isso de uma maneira bastante significativa é um autor cha-
mado Gert Biesta, em um livro intitulado A boa educação na era da mensuração.13
Ele pensa a oposição entre um modelo profissional e um modelo de mercado.
No modelo de mercado, a relação educacional é reduzida a uma relação de
consumo, então o aluno é o consumidor, ele tem direito de demandar o que
ele bem entender do prestador. Biesta afirma que no modelo profissional não
é bem assim, porque nós temos que reconhecer o caráter profissional daquele
que está prestando um serviço, ele tem uma competência para determinar, em
diálogo com a sociedade, como será esse serviço. No caso, eu vejo claramente
a defesa do modelo de mercado. E esse é o segundo aspecto que eu queria
mostrar para vocês.

A DESQUALIFICAÇÃO DO PROFESSOR NO PL N° 867/2015


Agora passo para a análise do Projeto. Como a desqualificação do professor e
o tecnicismo aparecem no Projeto? Usarei aqui como referência o PL n° 867/2015,
apresentado pelo Deputado Izalci Lucas, do PSDB do Distrito Federal, que quer
incluir, entre as Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), o Programa
Escola sem Partido. No projeto, nós temos o artigo 2º, que diz: “A educação
nacional atenderá aos seguintes princípios”. É interessante notar que a nossa
Constituição Federal já determina quais são os princípios que devem orientar
a educação nacional e esses princípios são reafirmados literalmente na LDB.

12  Esse texto e a tentativa de acobertar a sua autoria por parte de Nagib encontra-se disponível em:
<https://contraoescolasempartidoblog.wordpress.com/2016/06/03/a-ideologia-do-escola-sem-par-
tido/>. Acesso em: 15/9/2016.
13  BIESTA, Gert. Good Education in an Age of Measurement. Boulder, CO: Paradigm Publishers,
2010. Apenas o primeiro capítulo do livro foi traduzido para o português: “Boa educação na era da
mensuração”. In: Caderno de Pesquisa, v.42, n.147, São Paulo, p.808-825.
GAUDÊNCIO FRIGOTTO 41

O que eu vou fazer com vocês é um exercício de comparar o que aparece no


projeto com o que aparece na nossa Constituição Federal.
O segundo princípio proposto pelo programa Escola sem Partido é
o “pluralismo de ideias no ambiente acadêmico”. Como aparece na nossa
Constituição? Na Constituição Federal, artigo 206, inciso III: “pluralismo de
ideias e de concepções pedagógicas, e coexistências de instituições públicas
e privadas de ensino”. Então, perceba, eles excluíram intencionalmente algo
que foi unido de maneira não casual nesse princípio constitucional, que é o
pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas. Mas eles cortam o plu-
ralismo de concepções pedagógicas. E se nós continuarmos nesse exercício,
vamos perceber claramente qual é o critério de exclusão. O terceiro princípio
estabelecido no projeto de lei: “a liberdade de aprender como projeção espe-
cífica no campo da educação da liberdade de consciência”. Como aparece na
nossa Constituição? Inciso II, do artigo 206: “liberdade de aprender, ensinar,
pesquisar, divulgar o pensamento, a arte e o saber”. Então eles excluíram o quê?
A liberdade de ensinar. E aí começa a ficar claro qual o critério de exclusão:
eles estão excluindo todas as atribuições vinculadas ao ofício do professor, à
sua atividade profissional, ou melhor dizendo, à docência. Excluíram o plu-
ralismo de concepções pedagógicas, excluíram a liberdade de ensinar, e eles
vão mais longe e propõem a exclusão da liberdade de expressão. Então, na sua
justificação, no item 5, eles afirmam literalmente que “não existe liberdade de
expressão no exercício estrito da atividade docente, sob pena de ser anulada a
liberdade de consciência e crença dos estudantes, que formam em sala de aula
uma audiência cativa”. São nossos prisioneiros. Segundo essa interpretação, o
professor seria a única categoria profissional no Brasil que não teria liberdade
de expressão no exercício da sua atividade profissional.
A desqualificação do professor no projeto aparece como a remoção, até
explicitamente, de todas as atribuições do professor, chegando ao extremo
de excluir a sua liberdade de expressão. Para desconstruir essa falácia, usarei
a mesma referência que eles usam: a Convenção Americana sobre Direitos
Humanos.14 Essa convenção foi assinada pelo Brasil e outros países da Amé-
rica. No artigo 13, “liberdade de pensamento e expressão”, inciso II, está dito
o seguinte: “o exercício do direito previsto no inciso precedente [a liberdade
de pensamento e expressão] não pode estar sujeito a censura prévia, mas a
responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente fixadas nas leis

14  Disponível em: <https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm/>.


Acesso em: 15/9/2016.
42 ESCOLA “SEM” PARTIDO

necessárias para assegurar...” e continua. Mas já há aqui o que me interessava.


“Não pode estar sujeito a censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores”.
Nós temos a liberdade de expressão, nós falamos, mas temos que ser respon-
sabilizados pelo que nós dizemos. Então se eu ofender alguém em sala de aula,
posso ser responsabilizado. Se eu coagir alguém a abandonar sua crença, posso
ser responsabilizado. Se eu não falar da matéria, devo ser responsabilizado pela
escola. Mas dizer que o professor não tem liberdade de expressão para mim é
uma agressão muito grande a todos nós, a todos os professores.

ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS FASCISTAS


Eu parto para o terceiro elemento desta chave de leitura do fenômeno educa-
cional, que são as estratégias discursivas fascistas. E para isso, cito um historiador
chamado Manuel Loff, que veio ao Brasil recentemente e participou de um debate
sobre o Escola sem Partido, voltou para Portugal e escreveu um texto para o jornal
O Público, no qual ele tem uma coluna quinzenal. O texto foi intitulado “Escola
sem Partido? ”. Manuel Loff é historiador da Universidade do Porto e especialista
em fascismo no século XX. Eu vou ler só duas frases do texto dele.

Ao acusar o PT de ter “infiltrado” a escola para nela fazer “dou-


trinação ideológica marxista”, a direita brasileira procede a uma
pobre reprodução do que os antissemitas alemães acusavam os
judeus em 1930. O discurso de hoje nem é sequer simplesmente
de uma espécie de macarthismo-60-anos-depois.15

Ele não está dizendo que o movimento Escola sem Partido seja fascista,
mas que eles usam estratégias discursivas fascistas. E eu vou mostrar isso para
vocês. Primeiro, pelas analogias voltadas à docência, que desumanizam o pro-
fessor. Normalmente, analogias que tratam o professor como um monstro, um
parasita, um vampiro. No próprio “Quem somos” do site escolasempartido.
org.16, como eles se descrevem? “Uma iniciativa conjunta de estudantes e pais
preocupados com o grau de contaminação político-ideológica das escolas bra-
sileiras em todos os níveis de ensino, do básico ao superior”. O professor como
uma contaminação e, na verdade, não são sequer professores segundo eles.
“A pretexto de transmitir aos alunos uma visão crítica da realidade, um exército

15  Disponível em: <https://www.publico.pt/mundo/noticia/escola-sem-partido-1740469/>. Acesso


em: 15/9/2016.
16  Disponível em: <http://escolasempartido.org/quem-somos/>. Acesso em: 15/9/2016.
GAUDÊNCIO FRIGOTTO 43

organizado de militantes travestidos de professores prevalece-se da liberdade de


cátedra e da cortina de segredo das salas de aula para impingir-lhes a sua pró-
pria visão de mundo”. Isso está no “quem somos” do movimento. Eles também
citam um juiz da Suprema Corte norte-americana que fala que “um pouco de
luz de sol é melhor desinfetante”. [grifos meus] Então, é uma “contaminação”,
é um “exército de militantes”, é algo a ser desinfetado da sala de aula.
As analogias desumanizantes são ainda mais agressivas nas redes sociais,
na forma de memes. Imagens com vampiros morrendo com estacas no coração
são compartilhadas acompanhadas dos seguintes dizeres: “a afixação desse
cartaz nas salas de aula – como prevê o PL do Escola sem Partido – terá o
efeito de uma estaca de madeira cravada no coração da estratégia gramsciana
que vampiriza os estudantes brasileiros há mais de 30 anos”17. Atenção ao re-
corte: 30 anos. O recorte não é casual e eles insistem nesse recorte em vários
momentos: 30 anos, grosso modo, é o período da nossa redemocratização.
Então, a educação neutra era aquela que acontecia durante a ditadura militar?
É isso que está sendo dito aqui? Em uma outra imagem, em que eles adaptam
e colam o rosto do Gramsci na estaca, está escrito Escola sem Partido: “Conde
Gramsci, o vampiro que vampiriza a educação brasileira com a ajuda de Paulo
Nosferatu Freire, pode estar com seus dias contados”. Em um outro meme,
podemos ver um carrapato com a estrela do PT – “conheça o famoso carrapato
estrela, o Carrapatus gramscii, o parasita ideológico da educação brasileira”.
E temos aqui essa ideia de que existe uma conspiração: “quem lucra com a
doutrinação nas escolas?”, com uma estrela do PT no fundo.18 Então a ideia
de que é uma conspiração que controla tudo, a escola, o sistema educacional,
está dominado por um grupo, que eles chamam de petistas ou petralhas.

O petismo continua... porque o PT está momentaneamente fora


do poder, mas o petismo continua dominando a máquina do Es-
tado, sobretudo o sistema educacional. (Miguel Nagib em vídeo
compartilhado pelos Revoltados On Line)19

17 Disponível em: <https://www.facebook.com/miguel.nagib.9/posts/425315697673726/>. Acesso


em: 15/2/2017.
18 Parte dessas imagens encontra-se disponível em: <https://contraoescolasempartidoblog.word­
press.com/2016/06/03/o-odio-aos-professores/>. Acesso em: 15/9/2016.
19  O vídeo originalmente foi disponibilizado na página do Facebook do Revoltados On Line, mas
ela foi recentemente apagada desta rede social. O vídeo havia sido salvo e encontra-se disponível em:
<https://youtu.be/LplMeRoMhWA/>. Acesso em: 18/9/2016.
44 ESCOLA “SEM” PARTIDO

É explícito. O Escola sem Partido é um movimento apartidário segundo


eles, mas o foco é claro: o petismo foi retirado da Presidência, mas ele conti-
nua dominando a máquina do Estado, especialmente o sistema educacional.
É essa conspiração, e nós já vimos denúncias de conspirações como essa em
outros contextos. O projeto propõe a criação um canal de denúncia direto
entre os alunos e a Secretaria de Educação que receberia denúncias anônimas
e passaria para o Ministério Público. Esse clima de denuncismo já é muito
forte. Então, eu vejo aqui um discurso de ódio, explicitamente formulado,
voltado aos professores, à docência, e uma tentativa de enquadrar a discussão
educacional dentro de uma polarização mais ampla na nossa política nacional.

A DEFESA DO PODER TOTAL DOS PAIS SOBRE OS FILHOS


Para concluir, nós temos uma defesa do poder total dos pais sobre os filhos.
O lema que eles começaram a usar é chamado “#MeusFilhosMinhasRegras” e
a ideia da “ideologia de gênero”. Eu agora vou mostrar o restante daquele vídeo
que eu acabei de passar um pedaço. Quando foi filmado aquele vídeo? Aquele
vídeo foi filmado no dia 25/5/2016, quando o ainda Ministro interino da Edu-
cação, Mendonça Filho, realizou uma das suas primeiras audiências públicas
com pessoas, grupos vindos de fora, ao atender a sociedade civil. Que grupo era
esse? O grupo Revoltados On Line, que foi composto, inclusive, por Alexandre
Frota. E eles foram levar suas pautas para a educação nacional. A principal das
pautas era a defesa do Escola sem Partido. Eles gravaram um vídeo na frente do
Ministério da Educação contando o feito deles. Além desse vídeo, no mesmo
dia, eles produziram um outro: eles foram ao encontro do advogado Miguel
Nagib e gravaram um vídeo explicando um pouquinho qual era a importância
de defender o Escola sem Partido. Então é esse vídeo que vocês vão ver agora.

A segunda prática ilegal que também se disseminou no sistema


educacional é a usurpação do direito dos pais dos alunos sobre a
sua educação moral, da autoridade moral dos pais sobre os seus
filhos. Também a máquina do Estado, o sistema educacional está
sendo usado para isso, para afrontar a autoridade moral dos pais
dos alunos sobre eles. [E aí, a gente vê, por exemplo, a lei da pal-
mada é uma consequência disso. Tirar a autoridade dos pais, né,
Miguel?] Há um ataque frontal à família. O petismo continua...
porque o petismo não acabou. O PT está momentaneamente fora
do poder, mas o petismo continua dominando a máquina do
Estado e sobretudo o sistema educacional. [Nós já fizemos uma
GAUDÊNCIO FRIGOTTO 45

frase, um slogan: “Não mexam com as nossas crianças. Meus filhos,


minhas regras”]. (Miguel Nagib, em vídeo compartilhado pelos
Revoltados On Line)20

Segundo Miguel Nagib, os professores estariam usurpando a autoridade


moral dos pais. E então, uma dessas pessoas fala no vídeo que um ótimo
exemplo dessa usurpação da autoridade moral dos pais seria a lei da palmada.
Então, ficam as perguntas: a lei da palmada é uma usurpação do direito mo-
ral dos pais? Essa autoridade passa pela violência contra as crianças, é isso?
O movimento Escola sem Partido adota, depois desse vídeo, o lema “#NãoMe-
xamComAsNossasCrianças, #MeusFilhosMinhasRegras”. Uma das imagens
que captura isso, um dos memes, coloca uma “família tradicional” (um homem
e uma mulher, com um filho e uma filha), com os pais segurando um guarda-
-chuva, no qual está escrito “minha família, minhas regras”. Chove sobre eles
uma chuva com as cores do arco-íris, uma referência bastante direta ao que
eles chamam de “ideologia de gênero”. Como eles usam esse termo “ideologia
de gênero”? Seria uma ideologia antifamília, uma tentativa de transformar
os jovens em gays e lésbicas, um ataque à família. Preciso reafirmar aqui que
discutir gênero em sala de aula não é isso. Muito pelo contrário. Se eu tivesse
que tentar sistematizar, é a tentativa de mostrar como as relações entre os
gêneros, homem, mulher e outras configurações, como elas são construídas
historicamente, para desconstruir desigualdades, homofobia, machismo e
coisas assim. Mas eles colocam que seria uma ideologia contra a família.
E aqui, para vocês verem contra o que eles estão argumentando, busquei as
denúncias deles relativas à questão da “doutrinação religiosa” e a de “ideologia
de gênero”. Eu trouxe duas que estão no blog “De olho no livro didático”, de
um membro do Escola sem Partido chamado Orley Silva, se não me engano.
Uma das denúncias mais recentes diz o seguinte: “Candomblé e Umbanda
em livros didáticos de 2016 do MEC para ensino fundamental. Alunos de
escolas públicas e privadas, inclusive confessionais, que estudarem com os
livros didáticos de 2016 do MEC, ou seja, crianças de 6 a 10 anos, serão dou-
trinados sistematicamente no Candomblé e na Umbanda”,21 se é que vocês
podem acreditar nisso. Por que eles estão dizendo que tem doutrinação reli-

20  O vídeo originalmente foi disponibilizado na página de Facebook do Revoltados On Line, mas
ela foi recentemente apagada desta rede social. O vídeo havia sido salvo e encontra-se disponível em:
<https://youtu.be/LplMeRoMhWA/>. Acesso em: 18/9/2016.
21  Disponível em: <http://deolhonolivrodidatico.blogspot.com.br/2016/04/candomble-e-umbanda-
-em-livros.html?m=1/>. Acesso em: 15/9/2016.
46 ESCOLA “SEM” PARTIDO

giosa de Candomblé e Umbanda? Só por conta disso, uma imagem de Xangô


acompanhada da legenda “Xangô: Deus do trovão e da Justiça. O símbolo desse
orixá é um machado de duas lanças chamado oxé. Esse machado representa a
justiça”. Por que isso é doutrinação religiosa de Candomblé e Umbanda? Quando
são apresentados Zeus, Apolo e Afrodite, esses seriam deuses neutros? Perce-
bem? É um ataque a determinadas formas de pensar, determinadas crenças.
Vamos conhecer agora a “temível” ideologia de gênero: “MEC não desiste:
livros de 2016 para crianças de 6 a 10 anos vêm com ideologia de gênero”.22
A denúncia traz um exercício, com o seguinte enunciado: “Vejam os desenhos
que três crianças fizeram para representar suas famílias:” acompanhado de três
desenhos infantis: uma família homoafetiva, uma família inter-racial, de dife-
rentes etnias, e uma família com só uma mãe, que, inclusive, é a configuração
familiar estatisticamente mais comum no Brasil. Qual é a pergunta que eles
faziam diante desses três desenhos infantis? “Com base nos desenhos, pode-
mos dizer que:” e o gabarito da questão múltipla escolha seria “as famílias são
diferentes umas das outras”. Isso seria ideologia de gênero, segundo o Escola
sem Partido. Isso é muito cruel, é muito triste. Eu fico chateado, seriamente
chateado, porque isso aqui, imagina quanto sofrimento não vai trazer para
alunos que não se veem representados. Por que isso é ideologia de gênero? Só
por que traz a representação de diferentes famílias? Afirma que famílias são
diferentes umas das outras? Isso é ideologia de gênero? Então, voltando para
cá, desconstruímos um pouco a ideia de ideologia de gênero. Eu vejo aqui
um ódio à democracia, literalmente, não querer conviver com a diferença na
escola, não querer dialogar com outras crenças.

O PODER TOTAL DOS PAIS SOBRE OS FILHOS NO PL N° 867/2015


Mas eu não queria deixar de mostrar para vocês qual é o fundamento
legal que eles usam para isso. Eu volto ao projeto que está na Câmara dos
Deputados. Aqui, no artigo 2º do PL n° 867/2015, que se propõe a estabele-
cer os princípios que devem orientar a Educação Nacional, eles colocam em
último lugar o “direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral
que esteja de acordo com suas próprias convicções” como princípio que deve
orientar a Educação Nacional. Qual o fundamento deles para isso? E aí eles
vão na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José).

22  Disponível em: <http://deolhonolivrodidatico.blogspot.com.br/2016/01/mec-nao-desiste-livros-


de-2016-para.html?m=1/>. Acesso em: 15/9/2016.
GAUDÊNCIO FRIGOTTO 47

No seu artigo 12, sobre a liberdade de consciência e de religião, está dito ali no
seu inciso IV, “os pais, e quando for o caso, os tutores, têm direito a que seus
filhos ou pupilos recebam educação religiosa e moral que esteja de acordo com
suas próprias convicções”. Então, nós poderíamos falar “opa, quer dizer que
o Escola sem Partido tem razão? Os pais realmente têm essa autoridade total
sobre seus filhos?”. E aí eu, não só eu, outros juristas, eu aprendo com eles,
argumentam o seguinte: a Convenção Americana sobre Direitos Humanos
é – o alvo dela, a sua meta principal – proteger o indivíduo, a família, o espaço
privado, o espaço doméstico, contra intervenções indevidas, especialmente
a intervenção do Estado. Então, realmente, o pai, a família tem o direito de
educar, no espaço privado, os seus filhos de acordo com seus valores. Agora,
qual o equívoco aqui? É quando você pega algo que foi pensado para proteger
o espaço privado contra a intervenção do poder público e habilita uma invasão
do espaço público, da escola pública, pelas vontades privadas. Este é o equí-
voco, aqui está o erro. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos não
está tratando da prestação de serviços. E essa interpretação equivocada, ela
fica clara, sua consequência lógica aparece dentro do próprio projeto. Então
se nós voltarmos lá para aquela proibição, para o projeto, ele tem o artigo 3º,
que fala o seguinte: “ficam vedadas em sala de aula a prática da doutrinação
política e ideológica” – já falamos sobre isso, sem definir o que é essa prática,
então é uma proibição descabida, se observarmos a definição do site, ela é
absurda – “bem como a veiculação de conteúdos ou a realização de atividades
que possam estar em conflito com as convicções religiosas ou morais dos pais
ou responsáveis pelos estudantes”. Essa proibição é impossível de ser aplicada
em uma sala de aula e ela é a consequência lógica dessa interpretação. Como
o professor pode evitar qualquer atividade que possa entrar em contradição
com as crenças daquelas 50, 40 famílias, super-heterogêneas em sala de aula?
É impossível. Então acho que nosso debate tem que partir especialmente da
discussão educacional, o foco, um dos objetivos é a formação para a cidadania,
o convívio com o diferente. Como formar para a cidadania, retomando tudo
que eu já falei, sem dialogar com a realidade do aluno, sem discutir valores, e
agora sem poder contradizer as crenças individuais? E vejam bem, existe um
risco gravíssimo aqui. Porque, como o Miguel Nagib já falou em um dos vídeos,
a Convenção Americana sobre Direitos Humanos está acima da lei ordinária,
abaixo apenas da Constituição. As leis 10.639 e 11.645, que tornam obrigatório
o ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena, se essa interpretação for
legitimada, estão gravemente sob risco. Porque um professor que vai discutir, por
exemplo, religião afro-brasileira, e algum aluno pode dizer “olha, não, não quero
48 ESCOLA “SEM” PARTIDO

ouvir, isso é contra a minha crença”, ele estará respaldado nesse projeto de lei.
Por isso, o Escola sem Partido já foi denunciado à ONU pelo Instituto de
Desenvolvimento de Direitos Humanos como ameaça aos direitos humanos.23

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Então, por que eu adotei essa outra estratégia na apresentação, conversei
mais com vocês sobre o discurso do Escola sem Partido? Nós temos que continuar
pressionando para impedir o avanço, no legislativo, desses projetos, mas algo
que me assusta muito é o fato de esse discurso já estar sendo compartilhado
por parte da nossa sociedade. Muitos acham que os professores devem ser de-
nunciados. Eu tenho viajado muito pelo Brasil, em vários Estados, discutindo
esse projeto e, em absolutamente todos, eu ouvi pelo menos uma narrativa de
professores que foram demitidos, afastados, ameaçados, coagidos, e o que me
assustou muito, professores que falaram para mim explicitamente “Fernando, eu
já não discuto mais Marx em sala de aula. Eu discuto Adam Smith, mas Marx
eu não discuto. Eu não discuto gênero em sala de aula, eu tenho medo de ser
processado”. Então, percebem? Esse discurso já está tendo um impacto muito
grande na realidade na qual nós estamos inseridos. Eu vejo aqui um grande
potencial, o Escola sem Partido é absolutamente ilegítimo, porque ele é um
projeto no seu coração, um projeto de lei que versa sobre a ética profissional
do professor e não inclui esse professor em nenhum momento, seja ao longo
da tramitação ou nas audiências públicas. Por isso, ele é ilegítimo. Mas o que
eu tenho dito, é que nós temos uma oportunidade de levar esse debate para o
espaço público de novo, uma oportunidade de ouro para reafirmar para nós o
que é educar, o que é a Escola Pública, quais são os valores que nós ensinamos
na escola sim e, partindo dos professores em diálogo com a sociedade civil,
discutir a nossa ética profissional, porque é algo também necessário. O que
me preocupa às vezes, quando alguém discute o Escola sem Partido, é falar
“olha, tudo é ideologia”. Sim, sabemos. Mas o “tudo é ideologia” não pode
significar “o professor pode fazer o que ele bem entender em sala de aula”.
Então, acredito que tem que partir dos professores o esforço para a discussão
pública, entre nós eu acho que temos claro, mas temos que levar isso para a
sociedade: quais são os limites éticos da nossa profissão. Uma discussão que
envolva os professores e a sociedade civil: alunos, pais e todos os interessados.

23  Disponível em: <http://iddh.org.br/noticias/iddh-denuncia-programa-escola-sem-partido-a-onu/>.


Acesso em: 18/9/2016.

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