Escola Sem Partido
Escola Sem Partido
Escola Sem Partido
“SEM”
PARTIDO
Esfinge que ameaça a educação
e a sociedade brasileira
Gaudêncio Frigotto
Organizador
Copyright © 2017 Laboratório de Políticas Públicas da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro.
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/NPROTEC
ISBN 978-85-92826-07-9
E-ISBN 978-85-92826-06-2
CDU 37.014
2ª reimpressão, 2018.
Gaudêncio Frigotto
Organizador
Rio de Janeiro
LPP/UERJ
2017
INSTITUIÇÕES DE APOIO
Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE)
Heleno Manoel Gomes Araújo Filho (Presidente)
Marlei Fernandes de Carvalho (Vice-presidente)
Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH)/UERJ
Floriano José Godinho de Oliveira (Coordenador)
Luiz Antonio Saléh Amado (Coordenador Adjunto)
Grupo de Pesquisa Trabalho, História, Educação e Saúde (THESE)
Maria Ciavatta (Coordenadora)
Universidade Federal Fluminense (UFF)
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Escola Politécnica Joaquim Venâncio (EPJV/FIOCRUZ)
Sindicato Nacional dos Servidores Federais da Educação Básica,
Profissional e Tecnológica (SINASEFE)
Fabiano Godinho Faria (Coordenação Geral)
Cátia Cilene Farago (Coordenação Geral)
Williamis da Silva Vieira (Coordenação Geral)
Sindicato dos Professores do Município do Rio de Janeiro e Região (SinproRio)
Oswaldo Luis Cordeiro Teles (Presidente)
Apresentação
Resistindo aos dogmas do autoritarismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7
Maria Ciavatta
* Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor Adjunto da
Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF).
1 Transcrição da Aula Magna da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF)
proferida em 14/9/2016. Agradeço à Renata Aquino pelo trabalho de transcrição e verificação das fontes.
2 Para uma análise sobre essas imagens, ver o texto de minha autoria “Ódio aos professores”. Dispo-
nível em: <https://contraoescolasempartidoblog.wordpress.com/2016/06/03/o-odio-aos-professo-
res/>. Acesso em: 15/9/2016.
3 Para conhecer melhor esses projetos e acompanhar a sua tramitação, ver: <https://contraoescola-
sempartidoblog.wordpress.com/vigiando-os-projetos-de-lei/>. Acesso em: 15/9/2016.
36 ESCOLA “SEM” PARTIDO
Talvez o mais importante de tudo seja uma disputa pela opinião pública, o
debate no espaço público, e como essas ideias estão ganhando força dentre
alguns segmentos da sociedade civil. É nesse aspecto que eu quero focar,
na análise do discurso do Escola sem Partido, identificando e discutindo
seus principais elementos. Com essa finalidade, começo afirmando que esse
discurso se apresenta como uma nova configuração, que junta elementos
antigos e novos. Argumentarei que essa chave de leitura do fenômeno
educacional tem quatro características principais: primeiro, uma concep-
ção de escolarização; segundo, uma desqualificação do professor; terceiro,
estratégias discursivas fascistas; e, por último, a defesa do poder total dos
pais sobre os seus filhos.
Vou pautar minha fala agora nesses quatro elementos, pensando esse
discurso de uma maneira mais ampla e analisando como ele é incorporado
nos projetos de lei inspirados na atuação deste movimento.
A CONCEPÇÃO DE ESCOLARIZAÇÃO
O primeiro deles: a concepção de escolarização. E notem que eu não falei
concepção de educação e sim de escolarização. Por quê? Nós temos uma pri-
meira característica dessa concepção que é a afirmação de que o professor não
é educador. Eu vou usar muito aqui o site do Escola sem Partido4 e sua página
de Facebook.5 O site tem uma “biblioteca politicamente incorreta”, na qual
eles indicam apenas quatro livros: os dois últimos são os guias politicamente
incorretos da história do Brasil e da América Latina, mas o primeiro da lista
é o livro Professor não é educador (de autoria de Armindo Moreira). Qual é
a tese desse livro? Uma dissociação entre o ato de educar e o ato de instruir.
O ato de educar seria responsabilidade da família e da religião; então o professor
teria que se limitar a instruir, o que no discurso do Escola sem Partido equi-
vale a transmitir conhecimento neutro, sem mobilizar valores e sem discutir
a realidade do aluno. Vou mostrar mais dados para corroborar essa leitura.
A segunda característica da concepção de escolarização: não se pode
falar sobre a realidade do aluno. O Programa Escola sem Partido – agora
falo do Projeto de Lei usando como referência o PL n° 867/2015,6 que está
Um Estado que é laico deve ser neutro com relação a todas religiões.
Acontece que as religiões têm a sua moralidade. A religião cristã,
por exemplo, tem os dez mandamentos, que é um código moral
do cristianismo, certo? Se o Estado que é laico puder usar o seu
Nagib começa afirmando que o professor não pode falar de nenhum valor
em sala de aula e, pressionado pelos outros debatedores, fala que “só os valores
necessários à transmissão do conhecimento”. Então, aqui eu vejo, pensando
sobre essa concepção de escolarização, algo muito próximo de um neotecni-
cismo. O professor aplica, transmite conhecimento, não discute valores, não
pode falar sobre a realidade do aluno: essa é a concepção de escolarização.
Voltarei à questão dos valores em breve.
A DESQUALIFICAÇÃO DO PROFESSOR
Muito próxima dessa concepção de escolarização, nós temos uma des-
qualificação do professor, que é o segundo elemento que eu gostaria de des-
tacar. Com relação a essa desqualificação do professor, o discurso do Escola
sem Partido é bastante explícito: a afirmativa constante de que nenhum pai
é obrigado a confiar no professor. Vou mostrar um outro vídeo do mesmo
debate para vocês agora, no qual isso é dito explicitamente.
para o site durante algum tempo e, quando ele estava lá, escreveu um texto
chamado “Por uma escola que promova os valores do Millenium”. Se vocês
procurarem atualmente no site, ele já não é mais articulista, tiraram a ima-
gem dele, e no lugar da autoria dos textos vinculados a ele você vai encontrar
“Comunicação Millenium”.12 Quais são os valores, então, que devem ser
ensinados nessa escola que promova os valores do Millenium? “Propriedade
privada”, “responsabilidade individual” e “meritocracia”. Fica a pergunta: esses
são os valores neutros necessários para transmissão do conhecimento? Me-
ritocracia é um valor neutro necessário para transmissão do conhecimento?
Eu creio que não.
Quem discute isso de uma maneira bastante significativa é um autor cha-
mado Gert Biesta, em um livro intitulado A boa educação na era da mensuração.13
Ele pensa a oposição entre um modelo profissional e um modelo de mercado.
No modelo de mercado, a relação educacional é reduzida a uma relação de
consumo, então o aluno é o consumidor, ele tem direito de demandar o que
ele bem entender do prestador. Biesta afirma que no modelo profissional não
é bem assim, porque nós temos que reconhecer o caráter profissional daquele
que está prestando um serviço, ele tem uma competência para determinar, em
diálogo com a sociedade, como será esse serviço. No caso, eu vejo claramente
a defesa do modelo de mercado. E esse é o segundo aspecto que eu queria
mostrar para vocês.
12 Esse texto e a tentativa de acobertar a sua autoria por parte de Nagib encontra-se disponível em:
<https://contraoescolasempartidoblog.wordpress.com/2016/06/03/a-ideologia-do-escola-sem-par-
tido/>. Acesso em: 15/9/2016.
13 BIESTA, Gert. Good Education in an Age of Measurement. Boulder, CO: Paradigm Publishers,
2010. Apenas o primeiro capítulo do livro foi traduzido para o português: “Boa educação na era da
mensuração”. In: Caderno de Pesquisa, v.42, n.147, São Paulo, p.808-825.
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Ele não está dizendo que o movimento Escola sem Partido seja fascista,
mas que eles usam estratégias discursivas fascistas. E eu vou mostrar isso para
vocês. Primeiro, pelas analogias voltadas à docência, que desumanizam o pro-
fessor. Normalmente, analogias que tratam o professor como um monstro, um
parasita, um vampiro. No próprio “Quem somos” do site escolasempartido.
org.16, como eles se descrevem? “Uma iniciativa conjunta de estudantes e pais
preocupados com o grau de contaminação político-ideológica das escolas bra-
sileiras em todos os níveis de ensino, do básico ao superior”. O professor como
uma contaminação e, na verdade, não são sequer professores segundo eles.
“A pretexto de transmitir aos alunos uma visão crítica da realidade, um exército
20 O vídeo originalmente foi disponibilizado na página de Facebook do Revoltados On Line, mas
ela foi recentemente apagada desta rede social. O vídeo havia sido salvo e encontra-se disponível em:
<https://youtu.be/LplMeRoMhWA/>. Acesso em: 18/9/2016.
21 Disponível em: <http://deolhonolivrodidatico.blogspot.com.br/2016/04/candomble-e-umbanda-
-em-livros.html?m=1/>. Acesso em: 15/9/2016.
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No seu artigo 12, sobre a liberdade de consciência e de religião, está dito ali no
seu inciso IV, “os pais, e quando for o caso, os tutores, têm direito a que seus
filhos ou pupilos recebam educação religiosa e moral que esteja de acordo com
suas próprias convicções”. Então, nós poderíamos falar “opa, quer dizer que
o Escola sem Partido tem razão? Os pais realmente têm essa autoridade total
sobre seus filhos?”. E aí eu, não só eu, outros juristas, eu aprendo com eles,
argumentam o seguinte: a Convenção Americana sobre Direitos Humanos
é – o alvo dela, a sua meta principal – proteger o indivíduo, a família, o espaço
privado, o espaço doméstico, contra intervenções indevidas, especialmente
a intervenção do Estado. Então, realmente, o pai, a família tem o direito de
educar, no espaço privado, os seus filhos de acordo com seus valores. Agora,
qual o equívoco aqui? É quando você pega algo que foi pensado para proteger
o espaço privado contra a intervenção do poder público e habilita uma invasão
do espaço público, da escola pública, pelas vontades privadas. Este é o equí-
voco, aqui está o erro. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos não
está tratando da prestação de serviços. E essa interpretação equivocada, ela
fica clara, sua consequência lógica aparece dentro do próprio projeto. Então
se nós voltarmos lá para aquela proibição, para o projeto, ele tem o artigo 3º,
que fala o seguinte: “ficam vedadas em sala de aula a prática da doutrinação
política e ideológica” – já falamos sobre isso, sem definir o que é essa prática,
então é uma proibição descabida, se observarmos a definição do site, ela é
absurda – “bem como a veiculação de conteúdos ou a realização de atividades
que possam estar em conflito com as convicções religiosas ou morais dos pais
ou responsáveis pelos estudantes”. Essa proibição é impossível de ser aplicada
em uma sala de aula e ela é a consequência lógica dessa interpretação. Como
o professor pode evitar qualquer atividade que possa entrar em contradição
com as crenças daquelas 50, 40 famílias, super-heterogêneas em sala de aula?
É impossível. Então acho que nosso debate tem que partir especialmente da
discussão educacional, o foco, um dos objetivos é a formação para a cidadania,
o convívio com o diferente. Como formar para a cidadania, retomando tudo
que eu já falei, sem dialogar com a realidade do aluno, sem discutir valores, e
agora sem poder contradizer as crenças individuais? E vejam bem, existe um
risco gravíssimo aqui. Porque, como o Miguel Nagib já falou em um dos vídeos,
a Convenção Americana sobre Direitos Humanos está acima da lei ordinária,
abaixo apenas da Constituição. As leis 10.639 e 11.645, que tornam obrigatório
o ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena, se essa interpretação for
legitimada, estão gravemente sob risco. Porque um professor que vai discutir, por
exemplo, religião afro-brasileira, e algum aluno pode dizer “olha, não, não quero
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ouvir, isso é contra a minha crença”, ele estará respaldado nesse projeto de lei.
Por isso, o Escola sem Partido já foi denunciado à ONU pelo Instituto de
Desenvolvimento de Direitos Humanos como ameaça aos direitos humanos.23
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Então, por que eu adotei essa outra estratégia na apresentação, conversei
mais com vocês sobre o discurso do Escola sem Partido? Nós temos que continuar
pressionando para impedir o avanço, no legislativo, desses projetos, mas algo
que me assusta muito é o fato de esse discurso já estar sendo compartilhado
por parte da nossa sociedade. Muitos acham que os professores devem ser de-
nunciados. Eu tenho viajado muito pelo Brasil, em vários Estados, discutindo
esse projeto e, em absolutamente todos, eu ouvi pelo menos uma narrativa de
professores que foram demitidos, afastados, ameaçados, coagidos, e o que me
assustou muito, professores que falaram para mim explicitamente “Fernando, eu
já não discuto mais Marx em sala de aula. Eu discuto Adam Smith, mas Marx
eu não discuto. Eu não discuto gênero em sala de aula, eu tenho medo de ser
processado”. Então, percebem? Esse discurso já está tendo um impacto muito
grande na realidade na qual nós estamos inseridos. Eu vejo aqui um grande
potencial, o Escola sem Partido é absolutamente ilegítimo, porque ele é um
projeto no seu coração, um projeto de lei que versa sobre a ética profissional
do professor e não inclui esse professor em nenhum momento, seja ao longo
da tramitação ou nas audiências públicas. Por isso, ele é ilegítimo. Mas o que
eu tenho dito, é que nós temos uma oportunidade de levar esse debate para o
espaço público de novo, uma oportunidade de ouro para reafirmar para nós o
que é educar, o que é a Escola Pública, quais são os valores que nós ensinamos
na escola sim e, partindo dos professores em diálogo com a sociedade civil,
discutir a nossa ética profissional, porque é algo também necessário. O que
me preocupa às vezes, quando alguém discute o Escola sem Partido, é falar
“olha, tudo é ideologia”. Sim, sabemos. Mas o “tudo é ideologia” não pode
significar “o professor pode fazer o que ele bem entender em sala de aula”.
Então, acredito que tem que partir dos professores o esforço para a discussão
pública, entre nós eu acho que temos claro, mas temos que levar isso para a
sociedade: quais são os limites éticos da nossa profissão. Uma discussão que
envolva os professores e a sociedade civil: alunos, pais e todos os interessados.