Texto Complementar JAMES - RACHELS - Cap7 - 8 - e - 9 - para - Moodle

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Problemas da Filosofia

James Rachels
(Lisboa, Gradiva, 2009)

Capítulo 8 O ataque ao livre-arbítrio


Uma pequena parte do universo está contida dentro da pele de cada um
de nós. Não há qualquer razão para pensar que ela tenha um estatuto físico
especial pelo facto de estar dentro desse limite.
— B. F. Skinner, About Behaviorism (1974)

8.1. As pessoas serão responsáveis pelo que fazem?


Em 1924, dois adolescentes de Chicago, Richard Loeb e Nathan Leopold,
raptaram e assassinaram um rapaz chamado Bobby Franks apenas para
provar que conseguiam fazê-lo. O crime impressionou o público. Apesar da
brutalidade do seu acto, Leopold e Loeb não pareciam especialmente
perversos. Vinham de famílias ricas e eram ambos estudantes excelentes. Aos
dezoito anos, Leopold era o licenciado mais jovem na história da Universidade
de Chicago, e, aos dezanove anos, Loeb era a pessoa mais nova que se tinha
licenciado na Universidade de Michigan. Leopold estava prestes a entrar na
Escola de Direito de Harvard. Como era possível que tivessem cometido um
assassinato absurdo? O seu julgamento iria receber o mesmo tipo de atenção
que o de O. J. Simpson, setenta anos mais tarde.
Os seus pais contrataram Clarence Darrow, o advogado mais famoso da
altura, para os defender. Darrow era conhecido como o paladino das causas
impopulares — tinha defendido sindicalistas, comunistas e um negro acusado
de ter morto um membro de uma turba racista. Três anos depois, no seu caso
mais famoso, defendeu John Scopes, de Tennessee, da acusação de ter
ensinado a evolução numa aula do ensino secundário. Darrow era também o
adversário da pena de morte mais conhecido no país. Em 1902, tendo sido
convidado pelo director da Prisão de Cook County para dar uma conferência
aos presidiários, disse-lhes o seguinte:

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Na verdade, não acredito minimamente no crime. No sentido habitual da
palavra, não existem crimes. Não acredito em qualquer distinção entre as
verdadeiras condições morais das pessoas que estão dentro e das que
estão fora da prisão. São iguais. Do mesmo modo que as pessoas que
estão aqui dentro não poderiam evitar estar aqui, as pessoas que estão lá
fora também não poderiam evitar estar lá fora. Não acredito que as
pessoas estejam na prisão porque o mereçam. Estão na prisão apenas
porque não puderam evitá-lo, devido a circunstâncias que ultrapassam
inteiramente o seu controlo e pelas quais não são minimamente
responsáveis.

Estas ideias iriam figurar proeminentemente na defesa de Leopold e


Loeb.
O público queria sangue. Quando o julgamento começou, o Chicago
Evening Standard saiu com esta manchete:

DARROW PEDE MISERICÓRDIA: MULTIDÕES AMOTINAM-SE


GUARDA DOS PRISIONEIROS COM O BRAÇO PARTIDO E MULHER
DESMAIA POR ESTAR FORA DE SI
MULTIDÃO ENFURECE-SE COM OS GUARDAS; JUIZ CHAMA 20
POLÍCIAS
RECEIA-SE QUE ALGUNS SEJAM MORTOS

Leopold e Loeb tinha já admitido a sua culpa, pelo que o trabalho de


Darrow era apenas mantê-los longe da forca. Não haveria um júri. O juiz
escutaria os argumentos dos advogados e decidiria depois se os réus seriam
enforcados.
Darrow falou mais de doze horas. Não sustentou que os rapazes eram
loucos. Ainda assim, disse, não eram responsáveis pelo que tinham feito.
Darrow apelou a uma nova ideia que os psicólogos tinham proposto,
nomeadamente que o carácter humano é moldado pelos genes do indivíduo e
pelo ambiente. Disse ao juiz: «As pessoas inteligentes sabem agora que todo o
ser humano é o produto de uma hereditariedade infindável que o precede e de
um ambiente infinito que o rodeia».

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Não sei o que levou estes rapazes a realizar esse acto louco, mas sei que
houve uma razão para que o tenham realizado. Sei que não produziram
por si. Sei que qualquer uma de um número infindável de causas que
remontam ao começo pode ter actuado nas mentes destes rapazes —
que vos pedem para enforcar por malícia, ódio e injustiça — porque, no
passado, alguém pecou contra eles.

Os psiquiatras tinham atestado que os rapazes não tinham sentimentos


normais, pois não mostravam qualquer reacção emocional ao seu acto. Darrow
tirou partido disto:

Deveremos censurar Dickie Loeb por causa das forças infinitas que
conspiraram para o formar, das forças infinitas que actuaram na sua
criação muito antes de ele ter nascido, sabendo que, por causa dessas
combinações infinitas, ele nasceu sem [o tipo correcto de emoções]? Se
devemos, então tem de haver uma nova definição de justiça. Deveremos
censurá-lo pelo que não teve e nunca teve?

Darrow descreve Loeb como alguém que na infância esteve privado da


afecto de que um rapaz precisa, tendo passado os dias a estudar e as noites a
ler secretamente histórias de crimes enquanto fantasiava cometer o crime
perfeito e enganar a polícia. Quanto a Leopold, ele era fraco e não tinha
amigos. Cresceu obcecado com a filosofia do «super-homem» de Nietzsche,
desprezando as outras pessoas e querendo desesperadamente provar a sua
superioridade. Depois os dois rapazes conhecerem-se e, juntos, cometeram
um crime que nenhum deles poderia ter cometido sozinho. Porém, estavam
apenas a jogar com a mão que a natureza lhes dera. «A natureza é forte e
impiedosa», concluiu Darrow. «Trabalha de uma forma misteriosa que lhe é
própria e nós somos as suas vítimas. Nós próprios não temos muito a ver com
ela.»
O juiz deliberou durante um mês e depois condenou Leopold e Loeb a
prisão perpétua. Doze anos mais tarde, Richard Loeb, que fora o instigador do
crime, foi morto numa contenda com outro prisioneiro. Nathan Leopold passou
trinta e quatro anos na prisão, durante os quais deu aulas a outros prisioneiros,
ofereceu-se como cobaia para experiências médicas com a malária, dirigiu a
biblioteca da prisão e trabalhou no hospital da prisão. Depois ficar em liberdade
condicional, foi viver para Porto Rico, onde continuou a esforçar-se até ao fim

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da vida por se «tornar novamente um ser humano», sobretudo através de
trabalhos que implicavam ajudar os outros. Morreu em 1971.

8.2. Determinismo
A defesa que Clarence Darrow fez de Leopold e Loeb ocorreu no primeiro
grande julgamento criminal em que se usou a ideia moderna de que nossa
personalidade é o produto da «hereditariedade-mais-ambiente» para alegar
que os réus não eram responsáveis pelas suas acções. Contudo, Darrow não
foi o primeiro a duvidar de que o destino está nas nossas mãos.
Aristóteles preocupou-se com a possibilidade de as leis da lógica
implicarem que não temos controlo sobre o que fazemos. Toda a proposição,
raciocinou, tem de ser verdadeira ou falsa. Por isso, neste momento ou é
verdade que amanhã vamos vestir uma camisa azul, ou é falso que amanhã
vamos vestir uma camisa azul. Se isso é verdade, então nada podemos fazer
para o evitar — afinal, isso irá acontecer. Se isso é falso, então nada podemos
fazer para que aconteça, pois isso não vai acontecer. Seja como for, o futuro
está estabelecido e não temos poder para o mudar. Isto tornou-se conhecido
por problema do Fatalismo. De Santo Agostinho em diante, os teólogos
compreenderam que o pressuposto da omnisciência de Deus cria uma
dificuldade similar. Se Deus sabe tudo, sabe o que vamos fazer amanhã. Mas,
se Deus já sabe o que vamos fazer amanhã, então não podemos agir de outra
forma.
Embora o problema do Fatalismo seja sério, não constitui o desafio mais
preocupante à liberdade humana. A ameaça maior provêm do Determinismo,
que já era conhecido no mundo antigo, mas só se tornou preeminente com a
ascensão da ciência moderna. Dizer que um sistema é determinista é afirmar
que tudo o que nele acontece resulta de causas anteriores, e que logo que as
causas ocorrem os efeitos têm de se seguir inevitavelmente, dadas as
circunstâncias circundantes e as Leis da Natureza. Provavelmente, vemos o
edifício em que vivemos como um sistema determinista. Se as luzes se
apagam, pensamos que isso tem de ter uma causa. Supomos que, logo que a
causa ocorreu, o efeito tinha de se seguir. Se o electricista nos dissesse «isso
pura e simplesmente aconteceu», sem qualquer razão, essa afirmação violaria
a nossa concepção do funcionamento das coisas.

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Com a ascensão da ciência moderna, tornou comum conceber o universo
inteiro como um grande sistema determinista. A natureza consiste em
partículas que obedecem às leis da física, e tudo o que acontece é governado
pelas leis causais invariáveis.
A expressão mais vívida desta ideia foi-nos dada pelo matemático francês
Pierre-Simon Laplace (1749–1827). Em 1819, Laplace afirmou que, se um
observador supremamente inteligente conhecesse a localização e a velocidade
exactas de todas as partículas do universo, bem como todas as leis da física,
conseguiria prever sem margem para dúvidas todos os estados futuros do
universo. Nada o surpreenderia; ele saberia tudo antes de as coisas
acontecerem. Obviamente, nós não conseguimos fazer tais previsões, mas isso
deve-se apenas ao facto de não termos a informação e a inteligência
necessárias.
O universo inclui-nos. Fazemos parte da natureza e aquilo que acontece
dentro da nossa pele está sujeito às mesmas leis físicas que tudo o resto. Os
movimentos dos nossos braços, pernas e língua são desencadeados por
acontecimentos que ocorrem no nosso cérebro, que por sua vez são causados
por outros acontecimentos físicos. Deste modo, o observador perfeito de
Laplace conseguiria prever as nossas acções da mesma forma que prevê tudo
o resto. Na verdade, recuando o suficiente na cadeia causal, ele conseguiria
prever, mesmo antes de termos nascido, se amanhã vamos ou não usar uma
camisa azul. Pode parecer-nos que fazemos as nossas escolhas livre e
espontaneamente, mas Laplace defendeu que a nossa «liberdade» é apenas
uma ilusão criada pela nossa ignorância. Como não nos apercebemos das
causas subjacentes do nosso comportamento, presumimos que este não as
tem.
O que serão exactamente «as causas subjacentes do nosso
comportamento»? Como Clarence Darrow observou, as causas «últimas»
podem ser remotas. Porém, as causas imediatas são acontecimentos que
ocorrem no nosso cérebro. Os acontecimentos neurológicos causam tanto os
nossos estados mentais como os movimentos do nosso corpo.
A ideia de que os nossos estados conscientes são causados por
acontecimentos neurológicos não é mera especulação. Realizam-se por vezes
cirurgias cerebrais apenas com anestesia local, pelo que o paciente pode dizer

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ao cirurgião que experiências está a ter enquanto várias partes do seu cérebro
são sondadas. Como vimos no Capítulo 6, esta técnica foi introduzida há mais
de meio século pelo Dr. Wilder Penfield, que a descreveu vividamente no seu
livro The Excitable Córtex in Conscious Man (1958). Desde então, os
neurocirurgiões utilizam a técnica de Wilder. Sabem que, se sondarmos um
lugar, o paciente sentirá um formigueiro na mão; se sondarmos outro lugar, o
paciente sentirá o cheiro do alho; se sondarmos outro lugar ainda, ele pode
ouvir uma canção dos Guns N’ Roses.
Também é possível induzir acções com a estimulação eléctrica do
cérebro. Jose Delgado, que desenvolveu a sua investigação na Universidade
de Yale há quatro décadas atrás, descobriu que, estimulando várias regiões do
cérebro, conseguia causar todos os tipos de movimentos corporais, incluindo
franzir as sobrancelhas, abrir e fechar os olhos, mover a cabeça, os braços, as
pernas e os dedos. Quando começou a experimentar este procedimento,
usando gatos e macacos, reparou que os animais não se mostravam
surpreendidos nem assustados quando o seu corpo se movia. Aparentemente,
os animais tinham a experiência dos movimentos como se estes fossem
voluntários. Num caso particular, a estimulação do cérebro de um macaco fê-lo
levantar-se e andar. O efeito repetiu-se várias vezes, e em cada uma delas o
animal começou a vaguear, sem surpresa nem desconforto, como se tivesse
decidido passear um pouco.
Alguns filósofos diriam que o procedimento de Delgado não causa
acções, mas apenas movimentos corporais. As acções implicam razões e
decisão, e não apenas movimentos. Mas isto não é tudo. Quando Delgado fez
a sua experiência com seres humanos, eles foram ainda mais complacentes do
que os animais — além de terem feito os movimentos sem surpresa nem
medo, também deram razões para os terem feito. Num paciente, a estimulação
eléctrica do cérebro produziu «um virar de cabeça e um deslocamento lento do
corpo para cada um dos lados numa sequência bem orientada e
aparentemente normal, como se o paciente estivesse à procura de algo».
Repetiu-se isto seis vezes ao longo de dois dias, o que confirmou que a
estimulação produzia efectivamente o comportamento. Mas o paciente, que
ignorava a estimulação eléctrica, considerava a actividade espontânea e
justificava-a com razões. Quando lhe perguntavam «O que está a fazer?», ele

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respondia «Estou à procura dos meus chinelos», «Ouvi um barulho», «Estou
impaciente» ou «Estava a olhar para debaixo da cama».
Será que as nossas decisões também são produzidas por disparos de
neurónios»? Há também alguns resultados experimentais sobre isto, que se
devem ao cientista alemão H. H. Kornhuber. Suponha-se que ficamos quietos e
que, durante o próximo minuto, vamos mover espontaneamente o dedo.
Subjectivamente, podemos estar bastante certos de que a decisão de mover o
dedo está inteiramente sob o nosso controlo. Mas suponha-se agora que nos
ligam alguns eléctrodos no couro cabeludo e nos pedem para repetir a acção.
Um técnico que esteja a olhar para uma electroencenfalografia seria capaz de
observar um padrão característico de actividade cerebral quando movemos o
nosso dedo. A actividade cerebral inicia-se um segundo e meio antes do
movimento, e inicia-se antes de tomarmos a decisão. Olhando para o monitor,
o técnico sabe assim que vamos mover o dedo antes de não o sabermos. A
uma escala reduzida, ele é como o observador perfeito de Laplace. Kornhuber
realizou esta experiência pela primeira vez nos anos 70 do século passado.

8.3. Psicologia
Pode parecer estranho que o argumento básico contra o livre-arbítrio
apele a princípios da física. Afinal, é a psicologia, e não a física, que estuda o
comportamento humano, pelo que podemos interrogar-nos acerca do que a
psicologia tem a dizer. Será que as teorias psicológicas sobre o
comportamento humano deixam espaço para a noção de livre-arbítrio, ou será
que apoiam o Determinismo?
Antes de nos virarmos para a psicologia, no entanto, vale a pena
mencionar como, de várias maneiras, a nossa compreensão de senso comum
dos seres humanos contém já elementos favoráveis ao Determinismo. Cada
um de nós nasceu de pais específicos numa época e num lugar específicos, e
não é preciso pensar muito para compreender que, se essas circunstâncias
tivessem sido diferentes, também nós poderíamos ter sido diferentes. Um
jovem «escolhe» tornar-se corretor de bolsa — será coincidência que o seu pai
tenha sido corretor de bolsa? O que teria ele escolhido se os seus pais
tivessem sido missionários?

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Sabemos também que as condições sociais influenciam as nossas
decisões de formas que escapam à nossa consciência, mas que se revelam
nas estatísticas. As condições sociais influenciam a proporção de pessoas que
decidem tornar-se engenheiras, mudar-se para a Costa Oeste, jogar golfe e
cometer suicídio. (No início dos anos 80 do século passado, por exemplo,
descobriu-se que a taxa de suicídio nos Estados Unidos variava directamente
com a taxa de desemprego. Além disso, em 1986 um estudo mostrou há uma
maior probabilidade de os adolescentes se suicidarem nos dias que se seguem
à cobertura televisiva nacional de histórias de suicídio.) Em cada caso
particular, pode parecer que o indivíduo está a fazer uma escolha livre e
independente. Todavia, se as circunstâncias sociais se alteram, a proporção de
pessoas que tomam essas decisões também muda.
Considere-se um exemplo parecido: nos Estados Unidos, existem hoje
dois milhões de pessoas na prisão, e outros doze milhões irão passar
provavelmente algum tempo atrás das grades em alguma fase da sua vida. (A
América tem a maior taxa de presidiários do mundo.) Um número
desproporcionado dos que estão encarcerados são jovens negros ou
hispânicos do sexo masculino. Talvez alguns destes homens fossem sempre
parar à prisão, mas é óbvio que alguns deles não estariam presos se tivessem
vivido em circunstâncias sociais diferentes. Ao nível do indivíduo, pode parecer
que cada homem «decidiu livremente» infringir a lei. Talvez isso seja verdade.
Ainda assim, é razoável entender que há pessoas dos mais variados tipos que
nunca estiveram na prisão e se consideram moralmente superiores, mas que
simplesmente têm a sorte de nunca ter vivido em condições sociais em que
teriam agido de forma diferente.
Quando pomos de parte as estatísticas e tentamos compreender mais
detalhadamente o comportamento de pessoas específicas, parece que
chegamos sempre a explicações em que a «escolha livre» não têm um papel
importante. A explicação de Darrow para o facto de Leopold e Loeb terem
acabado por matar Bobby Franks é um exemplo. Outro exemplo é o de Eric
Rudolph, acusado pelo FBI de uma série de atentados à bomba, incluindo um
atentado a uma clínica de aborto em Birmingham, Alabama, em Janeiro de
1988, que provocou a morte de um polícia e ferimentos graves numa

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enfermeira. Rudolph desapareceu nas florestas da zona ocidental da Carolina
do Norte, onde conseguiu evitar a captura até 2003.
Por que razão terá ele procedido assim? Se não soubermos mais a seu
respeito, podemos imaginar Rudolph como um homem que odiava tanto o
aborto que estava disposto a usar quaisquer meios para lhe pôr fim. Isto pode
ser verdade em certa medida. Porém, muitas pessoas opõem-se ao aborto,
mas não recorrem a bombas. Por que razão este homem em particular se
tornou letal?
Segundo a Newsweek, «A melhor forma de o entender é, talvez, como o
produto de um caldo paranóica de suprematistas brancos, religiosos fanáticos e
inimigos do governo. A mente e os motivos de Rudolph são difíceis de sondar,
mas o extremismo parece caracterizar a família». Quando Eric tinha treze anos,
o seu pai morreu e a sua família mudou-se de Miami para a Carolina do Norte
rural. Viveram numa estrada de cascalho, perto de uma proprietário de uma
serraria chamado Tom Branham. Branham, um «sobrevivalista» que tinha sido
preso por crime federal de posse de armas e que defendia que o governo não
tinha qualquer autoridade sobre si, interessou-se por Eric e pelo seu irmão,
Daniel, tornando-se um pai substituto dos rapazes. Entretanto, a sua mãe
mudou-se para os Ozarks do Missouri de modo a se juntar a uma comunidade
de separatistas brancos. Quando estava no nono ano, Eric escreveu num
trabalho escolar que o Holocausto nunca ocorrera, usando como fonte de
«investigação» panfletos publicados por grupos de ódio. Por muito que
possamos detestar aquilo em que Eric se transformou, é difícil resistir à
conclusão de que o jovem rapaz nunca teve hipótese de ser diferente.
Quando tentamos entender comportamentos extraordinários, parece
ocorrer-nos sempre uma explicação deste género. Na verdade, essas
explicações parecem necessárias. «Ele pura e simplesmente decidiu fazer
isso» não é de forma alguma uma explicação.

Psicologia clássica. Embora a psicologia não tenha o objectivo de


propor o Determinismo, é difícil evitá-lo como efeito colateral da procura de
explicações científicas do comportamento. Como disse B. F. Skinner:

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Se queremos usar os métodos da ciência no campo dos assuntos
humanos, temos de presumir que o comportamento obedece a leis e está
determinado. Temos de esperar descobrir que aquilo que um homem faz
resulta de condições especificáveis e que, a partir do momento em que
essas condições são descobertas, podemos antecipar, e em certa medida
determinar, as suas acções.

Deste modo, à medida que a ciência da psicologia se desenvolveu, uma


teoria após outra competiu pela aceitação, mas nenhuma delas teve grande
uso para o «livre-arbítrio».
Durante os primeiros dois terços do século XX, a Behaviorismo disputou
com as ideias freudianas o domínio da comunidade dos psicólogos. Freud tinha
procurado entender a conduta humana identificando os motivos inconscientes
da acção. Segundo a sua perspectiva, os processos conscientes de
pensamento e de deliberação não passam de racionalizações de forças mais
profundas que se escondem na psique. Acontecimentos da infância há muito
esquecidos criaram em cada um de nós desejos e impulsos inconscientes que
nos controlam mesmo na idade adulta. Por exemplo, uma mulher tem uma
série de relações com homens abusivos. Cada vez que se livra de um deles,
jura que nunca voltará a cometer o mesmo erro, mas acaba por cometê-lo
repetidamente. Como poderá ela continuar a cometer o mesmo erro? A mulher
parece fazer uma escolha livre cada vez que inicia uma nova relação, mas isso
é uma ilusão. Ela tem uma personalidade masoquista, que se formou na sua
infância quando era espancada por um pai abusivo. Agora, na idade adulta,
restabelece repetidamente a relação com o seu pai, sem que o consiga evitar.
Ela só será capaz de quebrar o padrão quando enfrentar as suas memórias e
sentimentos reprimidos sobre o seu pai, possivelmente depois de anos de
psicanálise.
Os behavioristas rejeitariam tudo isto. Em seu entender, os
pensamentos inconscientes nada contribuem para explicar o comportamento.
Na verdade, nenhum tipo de pensamento entra nas explicações. Explica-se
antes o comportamento de uma pessoa em termos do processo de
condicionamento que o produziu. Temos uma tendência para repetir o
comportamento pelo qual somos recompensados, e uma tendência para não
repetir o comportamento quando as recompensas são suspensas ou quando
somos castigados. Suponha-se que apanhamos um choque eléctrico sempre

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que tocamos numa cerca — depressa deixaremos de lhe tocar. Ou suponha-se
que uma criança recebe comida quando diz «se faz favor», mas não recebe
comida quando não diz «se faz favor». Depressa começará a dizer «se faz
favor» sempre que tiver fome. Estes são exemplos simples. O mundo real é
complexo, mas o princípio é o mesmo para todo o comportamento.
B. F. Skinner, um behaviorista importante que ensinou em Harvard
durante muitos anos, explicou uma vez como se pode demonstrar o processo
de condicionamento num laboratório. Primeiro pomos um pombo numa gaiola
durante alguns dias, alimentando-o sempre através de um pequeno tabuleiro
que se abre electricamente. Depois, quando o pombo já se habituou a comer
do tabuleiro, «Seleccionamos um comportamento relativamente simples que
possa ser livre e rapidamente repetido e que seja fácil de observar e registar.
[…] [O] comportamento de subir a cabeça a uma certa altura é conveniente».
Sempre que o pombo sobe a cabeça a uma certa altura, abre-se o tabuleiro de
comida. «Caso se conduza a experiência de acordo com as especificações, o
resultado é invariável: observamos uma mudança imediata na frequência com
que a cabeça fica a essa altura. […] Num minuto ou dois a postura da ave
mudou, de tal forma que o topo da cabeça raramente fica abaixo da altura que
escolhemos.» Obviamente, o pombo não está consciente da sua mudança de
postura. A alteração do seu comportamento não passa de uma reacção
mecânica a um estímulo.
Os behavioristas sustentaram que toda a nossa conduta é assim.
Teoricamente, pode-se explicar tudo o que fazemos como uma resposta a um
condicionamento prévio, incluindo as nossas acções mais admiráveis e nobres,
bem como as mais vergonhosas. (Se não conseguimos produzir efectivamente
todas as explicações, isso deve-se apenas ao facto de não conhecermos
suficientemente bem as cadeias causais relevantes.) No mesmo ano em que
Clarence Darrow estava a defender Leopold e Loeb, John B. Watson,
frequentemente considerado o pai do Behaviorismo, escreveu o seguinte:

Dêem-me uma dúzia de crianças saudáveis, bem formadas, e o meu


próprio mundo, concebido para que possa criá-las nele. Garanto-vos que
posso escolher uma delas ao acaso e treiná-la para se tornar qualquer
tipo de especialista que eu seleccione: médico, advogado, artista,
comerciante, chefe. E sim, também pedinte e ladrão. Não interessa quais

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são os seus talentos, predilecções, tendências, capacidades, vocações,
nem qual é a raça dos seus ascendentes.

Muitos leitores objectaram que estas ideias violam o nosso sentido de


liberdade e dignidade. Em resposta, Skinner deu a um dos seus livros o título
Beyond Freedom and Dignity.

Será o «carácter» uma questão de sorte? Quando reflectimos nos


defeitos das outras pessoas, pensamos por vezes «Graças a Deus não sou
assim». Vale a pena ponderar a ideia de que as diferenças morais entre os
seres humanos se podem dever sobretudo à sorte. Algumas das experiências
mais famosas de psicologia social sugerem que qualquer um de nós pode
comportar-se mal se tiver o azar de estar nas circunstâncias erradas na altura
errada.
Numa experiência, Philip Zimbardo e os seus colegas montaram uma
prisão simulada na cave do edifício da Universidade de Stanford. Vinte e quatro
voluntários foram distribuídos arbitrariamente por duas categorias: guardas e
prisioneiros. A experiência deveria prolongar-se por duas semanas, mas teve
de ser cancelada cinco dias depois porque os «guardas», que tinham recebido
a prerrogativa de tratar os «prisioneiros» em grande medida como quisessem,
se comportaram com muita brutalidade.
Noutro estudo, Stanley Milgram pediu a voluntários que controlassem um
dispositivo que administrava choques eléctricos cada vez mais fortes a uma
pessoa que estava numa sala adjacente. Supostamente, essa pessoa iria
«aprender», sendo castigada por dar respostas erradas às questões. (Na
verdade, ela era um actor que estava só a fingir sofrer os choques.) Milgram
ficou surpreendido por ter descoberto que todos os voluntários se dispuseram a
administrar choques à outra pessoa, mesmo quando os níveis estavam
rotulados como extremamente perigosos e se ouvia ela gritar e implorar ao
voluntário para parar.
Quando as pessoas ouvem falar destas experiências, sentem
invariavelmente que elas não teriam agido tão mal. É difícil evitar este
sentimento, mas aqueles que participaram nas experiências eram pessoas
comuns como eu ou o leitor. Zimbardo observa que, depois de a experiência

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dos guardas e prisioneiros ter terminado, os «prisioneiros» insistiram que não
teriam sido tão abusivos se tivessem sido guardas. Contudo, sublinha
Zimbardo, não havia qualquer diferença entre os que foram designados
guardas e os que foram designados prisioneiros — a atribuição dos papéis foi
aleatória. A conclusão natural é a que única diferença entre eles residia nas
suas circunstâncias. Aparentemente todos nós — ou, pelo menos, a grande
maioria de nós — temos a capacidade interna de nos comportarmos mal se
estivermos na posição relevante.
Vou mencionar apenas mais um estudo que estabelece uma conclusão
similar: a experiência do «Bom Samaritano» de J. M. Darley e C. D. Batson. No
Evangelho de Lucas, apresenta-se o Bom Samaritano como um modelo de
comportamento decente:

«E quem é o meu próximo?»


Jesus respondeu: «Descia um homem de Jerusalém para Jericó quando
caiu nas mãos de ladrões: eles roubaram-lhe a roupa, espancaram-no e
foram-se embora, deixando-o meio morto. E, por acaso, um certo
sacerdote descia pelo mesmo caminho, mas quando o viu ignorou-o.
Passou também por ali um levita que, tendo chegado àquele lugar,
aproximou-se e observou-o, e depois seguiu o seu caminho.
Mas um certo samaritano, que ia de viagem, chegou junto de si; sentiu
compaixão por ele quando o viu. E, aproximando-se, coseu-lhe as feridas,
deitando-lhes azeite e vinho; e, depois de tê-lo posto na sua montada,
levou-o para uma estalagem e cuidou dele. E de manhã, quando partiu,
tirou dois dinheiros, deu-os ao hospedeiro e disse-lhe: “Cuida dele; e tudo
o que mais gastares eu to pagarei quando voltar”. Qual, pois, destes três
te parece que foi próximo daquele que caiu nas mãos dos ladrões?»
Ele disse: «O que foi misericordioso para com ele».
E Jesus disse-lhe: «Vai e procede da mesma forma».

Segundo a interpretação tradicional desta história, o Samaritano era o


homem com melhor carácter moral — contrariamente ao sacerdote e ao levita,
ele «sentia compaixão». (Por acaso, os samaritanos eram pessoas de baixo
estatuto, enquanto os sacerdotes e os levitas desempenhavam papéis
importantes no Templo.) Será isto verdade? Darley e Batson decidiram
investigar as circunstâncias em que seríamos bons samaritanos, usando
estudantes de teologia de Princeton na sua experiência.
No estudo, os estudantes de teologia começaram por preencher
formulários em que deram informação importante sobre si mesmos, que

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abrangia as suas crenças éticas e religiosas. Disse-se aos estudantes (a um de
cada vez) que tinham de preparar uma breve comunicação sobre ética ou
sobre oportunidades de trabalho e de a entregar noutro edifício. A alguns
estudantes, disse-se que tinham de se apressar, mas a outros disse-se que
dispunham de muito tempo. Preparam-se as coisas de modo a que, no
caminho para o outro edifício, eles se cruzassem com uma pessoa que estava
caída junto a uma porta, nitidamente aflita. Iriam parar para ajudar?
Alguns pararam e outros não, mas descobriu-se que as suas perspectivas
éticas e religiosas não estavam relacionadas com o que fizeram, e que também
não importava se tinham em mente a ética ou as oportunidades de trabalho.
Tudo o que interessava era se pensavam ou não ter tempo para parar. Esta
pequena mudança nas circunstâncias fez toda a diferença entre a conduta
moral exemplar e a insensibilidade.

8.4. Genes e comportamento


Nem o Freudianismo nem o Behaviorismo têm hoje muita influência entre
os psicólogos; ambas as doutrinas fazem agora parte da história da psicologia.
O Behaviorismo ficou fora de moda em parte por sobrestimar muito o papel do
ambiente na formação do comportamento — na verdade, a personalidade
humana não é tão maleável como Watson e Skinner julgavam. Os
investigadores acreditam agora que os nossos genes são igualmente
importantes na formação da nossa personalidade, e os genes não podem ser
alterados por condicionamento, por muito vigoroso que este seja.
Em que medida os nossos genes determinam que tipo de pessoa
somos? Não há uma forma incontroversa de medir isso, nem há uma forma
incontroversa de entender como os genes exercem a sua influência. As
pessoas educadas costumam presumir que os organismos são produto dos
genes mais o ambiente, mas isto é demasiado simples. Uma complicação é o
facto de a imagem ter de acomodar também aquilo que Richard Lewontin
designa por «ruído do desenvolvimento, uma consequência de acontecimentos
aleatórios que ocorrem nas células ao nível das interacções moleculares». Por
exemplo, há uma variação considerável de célula para célula na taxa e número
de moléculas sintetizadas, o que muda a frequência com que as células se
dividem ou migram. Isto pode afectar o desenvolvimento do organismo de

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formas inesperadas. (Do ponto de vista do «livre-arbítrio», obviamente, pouco
importa se um aspecto da nossa personalidade é influenciado pelos genes ou
pelo «ruído do desenvolvimento», dado que o indivíduo não controla nenhum
destes factores.) Podem existir ainda outros factores em acção. De que modo
todos estes elementos interagem para produzir o organismo? Temos algumas
ideias preliminares sobre isto, mas não conhecimento definido. Esta área da
ciência está na sua infância.

Estudos de gémeos. Ainda assim, alguns investigadores tentaram


encontrar formas de avaliar a influência dos factores genéticos na
personalidade humana. Uma estratégia consiste em estudar gémeos idênticos,
especialmente os que foram criados em ambientes diferentes. A ideia é a
seguinte: os genes são responsáveis pelas semelhanças entre esses gémeos,
enquanto outros factores, como o ambiente, são responsáveis pelas suas
diferenças. Estes estudos podem oferecer pelo menos uma ideia aproximada
do grau em que várias características são influenciadas pelos genes.
Na Universidade de Minnesota, há um projecto de investigação em curso
que começou em 1979 e se chama Estudo de Minnesota dos Gémeos Criados
Separadamente. Quando se localizam gémeos deste tipo, faz-se-lhes um
convite para realizarem testes na universidade durante uma semana. Os
investigadores descobriram que os gémeos idênticos criados separadamente
não deixam de ser muito semelhantes. Em alguns casos, as semelhanças são
tão específicas que parecem tiradas da ficção científica.
Entre os gémeos testados contavam-se as «Irmãs Risadinhas», que riam
o tempo todo. Ambas tinham o hábito de apertar o nariz e ambas chamavam a
isso «compressão». Ambas afirmavam ter tornozelos fracos por terem caído
aos quinze anos. Ambas tinham conhecido o seu marido em bailes aos
dezasseis anos. E, embora não gostassem de controvérsias, ambas tinham
trabalhado em mesas de voto.
Havia também os irmãos Jim, que conduziam automóveis do mesmo
modelo e fumavam de cigarros da mesma marca. Ambos tinham oficinas
sofisticadas em casa, onde construíam mobílias em miniatura como
passatempo. Ambos gostavam de deixar pela casa pequenas mensagens de

15
amor às suas mulheres. Tinham dado aos seus filhos os nomes James Alan e
James Allan.
Porém, os gémeos mais impressionantes talvez fossem Jack Yufe e
Oskar Stöhr, cujos ambientes domésticos tinham sido tão diferentes quanto se
pode imaginar. Um dos gémeos fora criado em Trindade pelo seu pai, que era
judeu; o outro, na Alemanha, pela sua avó nazi. Oskar fizera parte da juventude
hitleriana; Jack estivera na marinha israelita. Quando voltaram a encontrar-se,
ambos usavam óculos com armações rectangulares de metal e camisa azul
com dois bolsos e dragonas. Ambos tinham um pequeno bigode. Ambos
gostavam de ler revistas de trás para a frente e despejavam o autoclismo antes
de usarem a sanita. E ambos gostavam do mesmo gracejo estranho, que
consistia em surpreender as pessoas espirrando no elevador.
Estas são curiosidades cativantes, mas não passam disso e não podemos
extrair delas quaisquer conclusões firmes. Em primeiro lugar, seria necessário
recolher e analisar uma enorme quantidade de dados antes de podermos saber
o que concluir. Pense-se, por exemplo, na história da camisa azul com
dragonas. Nas áreas em que Jack e Oskar viviam, quantos homens possuíam
camisas desse tipo? E qual será a probabilidade de dois homens usarem a
mesma camisa no mesmo dia? De um modo mais geral, considerando-se um
grupo de homens da mesma população, qual será a probabilidade de dois
deles, escolhidos aleatoriamente, estarem vestidos de forma similar? E, o que
é o mais importante de tudo, qual será a probabilidade de existir alguma
semelhança notável entre dois desses homens, mesmo que esta não diga
respeito ao modo como estão vestidos? (Tente o seguinte: escolha duas
pessoas ao acaso e veja se não consegue encontrar algumas semelhanças
entre elas.) Seja como for, os críticos objectam também que as próprias
curiosidades devem ser entendidas com precaução, já que é provável que as
histórias sejam exageradas. Além disso, alguns dos gémeos na verdade já se
tinham encontrado antes de os investigadores de Minnesota os terem
estudado.
No entanto, os investigadores não baseiam as suas conclusões nessas
curiosidades. Em vez disso, dão aos gémeos testes psicológicos padrão para
avaliar características como a flexibilidade, a tolerância, o conformismo, o
autodomínio, a integridade, a abertura de espírito, o realismo, a influência

16
social, a alienação, o autoritarismo e a agressividade. Descobre-se que os
gémeos são extraordinariamente parecidos em todos estes aspectos. Têm um
sentido de humor parecido e níveis similares de optimismo e de receio.
Partilham (ou são desprovidos de) talentos similares e têm doenças e
incapacidades mentais similares. Baseando-se nestes estudos, os
investigadores concluíram que os principais componentes da nossa
personalidade se devem em cerca de 50 por cento aos nossos genes.

Será que algumas pessoas nascem más? A ideia de que


características como a agressividade estão ligadas aos nossos genes não
surpreenderá os neurologistas e os psicólogos clínicos, que conhecem há
muito a conexão entre biologia e violência. Experiências com gatos mostram
que ficam selvagens caso se lhes remova uma pequena secção do hipotálamo.
Os seres humanos com danos cerebrais têm por vezes acessos de fúria
incontrolável. Além disso, para que as pessoas que estão predispostas
«naturalmente» para o comportamento violento, há tratamentos eficazes que
incluem lítio e beta-bloqueadores. A conexão genes-neurologia-violência
recebeu uma confirmação adicional em 1995, quando os geneticistas
descobriram que desligar o gene responsável pela produção de óxido nítrico
faz com que ratos normalmente sociáveis se tornem viciosos. (O óxido nítrico é
um neurotransmissor tanto nos ratos como nos seres humanos.) Assim, o facto
de existir algum tipo de conexão entre genes, neurologia e violência está bem
estabelecido.
Alguns investigadores pensam que isto nos diz algo importante sobre a
criminalidade, ainda que esta ideia seja extremamente controversa. A noção
geral de «crime» admite demasiada variação social para ser proveitosa — a
fornicação, o jogo e a heresia, por exemplo, algumas vezes contam como
«crimes» e outras vezes não. Mas suponha-se que nos concentramos na
violência como elemento em tipos particulares de comportamento criminoso,
como o assassínio, a agressão física e a violação. Será que a violência está
«nos genes» de algumas pessoas, mas não de outras? As provas de que isto é
verdade, se não são conclusivas, são pelo menos extremamente sugestivas.
Diversas disposições, incluindo uma propensão para a violência,
contribuem para comportamentos socialmente inaceitáveis. Darrow acreditava

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que Leopold e Loeb tinham «nascido maus» porque tinham nascido sem
sentimentos como os de piedade e empatia. Não podemos conhecer a verdade
precisa acerca de Leopold e Loeb como indivíduos, mas na questão mais geral
Darrow pode ter tido razão. A psicóloga Judith Rich Harris formula a ideia
nestes termos:

Embora já não digamos que algumas crianças nascem más, os factos,


infelizmente, fazem-nos precisar de um eufemismo. Agora os psicólogos
dizem que algumas crianças nascem com um temperamento «difícil» —
são difíceis de educar para os seus pais, difíceis de socializar. Posso
indicar-vos algumas das coisas que tornam uma criança difícil de educar
e de socializar: uma tendência para ser activa, impulsiva, agressiva e para
se enfurecer facilmente; uma tendência para ficar aborrecida com as
actividades quotidianas e para procurar excitação; uma tendência para
não ter medo de se magoar; uma insensibilidade aos sentimentos dos
outros; e, com bastante frequência, uma constituição muscular e um QI
um pouco abaixo da média. Todas estas características têm um
componente genético significativo.

É fácil compreender por que razão estas ideias deram origem a uma
controvérsia. Parece que nos estão a dizer que nada há a fazer por algumas
crianças — elas nasceram más e vão continuar a ser más. Além disso, no
contexto de discussões sobre a criminalidade, estas observações ignoram
completamente o papel dos factores ambientais, como a pobreza e o racismo.
O Behaviorismo, com a sua mensagem optimista «Melhore o ambiente e
melhore a criança», parece estar mais de acordo com uma visão progressista
da sociedade.
Contudo, a ideia de que características como a agressividade e a
insensibilidade «têm um componente genético significativo» não implica que
nada haja a fazer por algumas crianças e que as condições sociais não
importam. Nenhum cientista social acredita que os genes determinam tudo. Os
nossos genes podem predispor-nos, em certos ambientes, a agir de certa
forma, mas o modo como nos comportaremos efectivamente dependerá de
outras coisas. Por isso, a educação e a eliminação da pobreza e do racismo
não deixam de ser importantes. A investigação dos genes apenas ajuda a
explicar por que razão algumas pessoas têm mais facilidade do que outras em
ser virtuosas.

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De modo a evitar estas incompreensões, os cientistas sociais esforçam-se
frequentemente por sublinhar que não estão a subscrever o Determinismo. O
antropólogo John Townsend escreve o seguinte:

Muitos interpretam mal as explicações biosociais. Presumem que essas


explicações são deterministas: que estamos a dizer que os seres
humanos são como os animais, que estamos «programados» para certos
comportamentos e que esses comportamentos instintivos irão emergir
quer queiramos quer não. […] Todos estes pressupostos são falsos.
Enquanto seres humanos, herdámos certas predisposições do nosso
passado evolutivo, mas isso não significa que tenhamos de agir em
função delas.

Porém, apesar destas tranquilizações, continuamos a ter pelo menos


duas razões para nos preocuparmos com que isto significa para a nossa
liberdade.
Em primeiro lugar, mesmo que não estejamos «programados para certos
comportamentos», estão a dizer-nos algo profundamente perturbante. Estão a
dizer-nos que a natureza nos equipa com desejos profundos aos quais só com
dificuldade conseguimos resistir. Se esses desejos se revelarem irresistíveis
em algumas pessoas, é difícil aceitar que isso seja culpa sua. Além disso,
esses desejos estarão connosco para sempre, ou durante tanto tempo que é
como se estivessem sempre connosco, e têm um papel importante na
explicação do nosso comportamento. Isto pode não ser o Determinismo em
sentido estrito, mas parece algo que se lhe assemelha de forma suspeita.
Em segundo lugar, precisamos de explicar por que razão algumas
pessoas, mas não outras, são capazes de resistir aos impulsos que a natureza
lhes deu. Por que razão algumas pessoas, mas não outras, se tornam
assassinas? Será uma questão de escolha? Ou haverá outro aspecto na sua
situação que faz a diferença? Talvez o ambiente entre em cena quando a
biologia deixa de ser importante. Um homem, que foi educado de certa
maneira, é violento; outro homem, que foi educado de maneira diferente, não é
violento. Assim, mesmo que as explicações genéticas não sejam deterministas
por si, quando as combinamos com outras ideias plausíveis acabamos por ficar
com uma imagem global em que o «livre-arbítrio» tem um papel insignificante.

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Dizer que a biologia não nos determina porque o ambiente também é
importante é pouco consolador.

Conclusão. Em suma, a nossa situação parece a seguinte. Os psicólogos


e outros investigadores desenvolveram diversas ideias que ajudam a explicar o
comportamento humano. Cada uma dessas ideias está apoiada por dados
impressionantes, e cada uma delas parece ser pelo menos parte da verdade.
Não sabemos ainda como combinar essas ideias numa perspectiva
abrangente. Ainda assim, a tendência geral não é encorajante no que toca ao
livre-arbítrio. Cada nova descoberta diminui um pouco a nossa confiança.
Quanto mais sabemos sobre as fontes da conduta humana, menos espaço
parece haver para a ideia de escolha livre.

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Capítulo 9 O debate sobre o livre-arbítrio
A vida de um homem é uma linha que ele descreve à superfície da Terra
segundo as ordens da natureza, sendo incapaz de se desviar dela nem que
seja por um instante. […] Ainda assim, apesar das correntes que o prendem,
julga-se que ele é um agente livre.
— Paul Henri Barão d’Holdbach, O Sistema da Natureza (1770)

Senhor, nós sabemos que temos livre-arbítrio e isso arruma a questão.


— Dr. Johnson, in Boswell, A Vida de Samuel Johnson, LL.D. (1791)

9.1. O Argumento Determinista


Perto do fim da sua vida, Isaac Bashevis Singer (1904–1991) concebeu
um conjunto de respostas padrão para as questões que os entrevistadores lhe
faziam. Quando lhe perguntavam qual era a sua filosofia de vida, Singer
respondia: «Acredito no livre-arbítrio. Não tenho escolha».
Singer sabia que este pequeno gracejo colocava uma questão filosófica
séria. É difícil não pensar que temos livre-arbítrio. Quando estamos a decidir o
que fazer, a escolha parece inteiramente nossa. A sensação interior de
liberdade é tão poderosa que podemos ser incapazes de abandonar a ideia de
livre-arbítrio, por muito fortes que sejam as provas da sua inexistência.
E, obviamente, existem bastantes provas de que não há livre-arbítrio.
Quanto mais aprendemos sobre as causas do comportamento humano, menos
provável parece que escolhamos livremente as nossas acções. Nenhuma das
provas nos impõe esta conclusão, mas muitas provas de géneros diferentes
apontam nessa direcção, e o efeito cumulativo é o «livre-arbítrio» parecer cada
vez mais parte de uma forma pré-científica de pensar.
Podemos designar o seguinte por Argumento Determinista:

1. Tudo o que fazemos é causado por forças que não controlamos.


2. Se as nossas acções são causadas por forças que não controlamos,
então não agimos livremente.
3. Logo, nunca agimos livremente.

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Esta linha de pensamento é perturbante por causa do parece implicar
para a responsabilidade individual. Se não somos livres, então parece que não
somos responsáveis pelo que fazemos.
Mas será que o Argumento Determinista é sólido? Embora seja plausível,
há nele muito que pode ser contestado. Vamos examinar duas respostas ao
argumento que defendem o livre-arbítrio de formas diferentes. Uma teoria, o
Libertismo, nega a primeira premissa do argumento e afirma que nem todas as
nossas acções estão causalmente determinadas. Outra teoria, o
Compatibilismo, nega a segunda premissa e afirma que somos livres apesar de
as nossas acções estarem causalmente determinadas. Vamos discutir estas
perspectivas separadamente.

9.2. A resposta libertista


O Libertismo é a perspectiva de que pelo menos algumas das nossas
acções são livres porque, na verdade, não estão causalmente determinadas.
Segundo esta teoria, as escolhas humanas não estão constrangidas da mesma
forma que outros acontecimentos do mundo. Uma bola de bilhar, quando é
atingida por outra bola de bilhar, tem de se mover numa certa direcção a uma
certa velocidade. Não tem escolha. As leis causais determinam rigorosamente
o que irá acontecer. Contudo, uma decisão humana não é assim. Neste preciso
momento, o leitor pode decidir continuar a ler ou parar de ler. Pode fazer
qualquer uma destas coisas e nada o faz escolher uma delas. As leis causais
não têm poder sobre si.
Isto não é muito plausível. Ainda assim, esta forma de pensar foi
defendida por diversos filósofos e propuseram-se vários argumentos a seu
favor.

O argumento da experiência. Podemos começar com a ideia de que


sabemos que somos livres porque cada um de nós apercebe-se imediatamente
de ser livre cada vez que faz uma escolha consciente. Pense novamente no
que está a fazer neste momento: ler uma página que está diante de si. Pode
continuar a ler ou parar de ler. O que irá fazer? Pense na sensação que tem
agora, enquanto pondera estas opções. Não sente constrangimentos. Nada o

22
impede de seguir numa direcção nem o força a fazê-lo. A decisão é sua. A
experiência de liberdade, poder-se-á dizer, é a melhor prova que podemos ter.
Isto pode não parecer muito um argumento, dado que a sua «sensação
de ser livre» pode ser uma ilusão. Talvez se sinta livre apenas porque não está
consciente das forças causais em acção. Ainda assim, considere o seguinte:
antes de rejeitarmos uma crença em que temos uma grande confiança,
devemos dispor de provas da sua falsidade em que tenhamos ainda mais
confiança. E podemos ter uma confiança na nossa experiência de liberdade
maior do que a que poderemos ter em quaisquer argumentos contra o livre-
arbítrio.
Na sua discussão com Boswell, Samuel Johnson avançou esta ideia
quando disse: «Estás mais certo de poder levantar o teu dedo como te
apetecer do que de qualquer conclusão de uma dedução ou raciocínio. […]
Toda a teoria está contra o livre-arbítrio; toda a experiência está a seu favor». E
a experiência, pensava o Dr. Johnson, é mais certa do que meras teorias.
Aqui a ideia geral pode ser inatacável. Quando temos experiência directa
de uma coisa, devemos querer provas muito fortes antes de deixarmos de
acreditar nela. No entanto, o problema é que as provas contra o livre-arbítrio
tendem a destruir a confiança na nossa experiência. Jose Delgado descobriu
que podia levar as pessoas a fazer coisas estimulando electricamente o seu
cérebro, como olhar por cima do seu ombro, e que depois elas davam razões
para o que tinham feito, como «Estava à procura da minha almofada». Os
pacientes de Delgado, que não sabiam que o seu cérebro estava a ser
estimulado, tinham a experiência de que os seus movimentos eram voluntários.
Talvez sejamos como eles. Que diferença existirá entre nós e eles, a não ser o
facto de sabermos qual é, no contexto experimental, o acontecimento
electroquímico que causa a acção, enquanto na vida quotidiana ignoramos o
que está a acontecer no nosso cérebro? Perante estas provas, não faz sentido
insistir, com o Dr. Johnson, que pura e simplesmente sabemos que somos
livres. É preciso um argumento melhor para defender a liberdade.

O argumento de que o universo não é um sistema determinista. O


Determinismo, poder-se-á dizer, não está de acordo com a ciência actual. No
apogeu da física newtoniana, pensava-se que o universo operava estritamente

23
segundo leis causais. Acreditava-se que as Leis da Natureza eram leis causais
que especificavam as condições em que um estado de coisas tinha de se
seguir a outro — o movimento das bolas numa mesa de bilhar era um modelo
para o universo inteiro. Porém, a física newtoniana foi substituída por uma
imagem diferente do funcionamento do universo.
Segundo a mecânica quântica, uma pedra angular da física actual, as
regras que governam o comportamento das partículas sub-atómicas são
irredutivelmente probabilísticas. As leis da teoria quântica não nos dizem
«Dado X, Y tem de se seguir»; dizem-nos antes «Dado X, há uma certa
probabilidade de Y se seguir». Assim, as Leis da Natureza podem dizer-nos
que, em certas condições, uma certa percentagem de átomos radioactivos irá
decair, mas não nos dizem que átomos irão decair. O facto de que uma certa
percentagem vai decair pode estar determinado, mas o facto de que um acto
particular vai decair não está determinado.
Alguns cientistas acreditam, por razões filosóficas, que a teoria quântica
tem de acabar por ser suplantada por uma teoria diferente, ainda
desconhecida, que seja determinista. Consideram repugnante a ideia de que o
universo opera segundo princípios de acaso. Einstein, que fez a célebre a
afirmação «Deus não joga aos dados com o universo», foi um desses
cientistas. No entanto, não se entrevê nenhuma nova teoria e, tanto quanto
sabemos, a teoria quântica está aí para ficar.
Significará isto que não precisamos de nos preocupar com o
Determinismo? Por vezes, saúda-se a teoria quântica como uma boa notícia
para o livre-arbítrio. Se nem tudo está causalmente determinado, diz-se, então
afinal podemos ser livres, já que as nossas acções podem contar-se entre
aquilo que não está determinado.
No entanto, a física quântica na verdade não ajuda muito a defender o
livre-arbítrio. Afinal, as implicações da indeterminação quântica para o
comportamento humano são tão reduzidas que, na prática, não fazem a menor
diferença. Comparemo-las com as implicações da teoria quântica para os
computadores. Os outputs de um computador são determinados pelos seus
inputs e pelo seu programa. A mecânica quântica não implica que devemos
deixar de confiar nos computadores — as operações de um computador,
mesmo que não estejam completamente determinadas, estão suficientemente

24
perto disso para que não haja diferença. Continuamos a obter os outputs
esperados, dados os inputs correctos e o programa correcto. Poder-se-á dizer
algo semelhante dos seres humanos, o que será suficiente para o Argumento
Determinista.

O argumento de que não podemos prever as nossas próprias


decisões. Um tipo de argumento diferente a favor do Libertismo baseia-se na
ideia de que tudo o que está causalmente determinado é previsível, pelo
menos em princípio. Como é óbvio, algo pode estar determinado mas não ser
previsível na prática em virtude de não termos conhecimento suficiente. A
árvore que vejo da janela está cada vez mais inclinada e mais tarde ou mais
cedo vai cair. Não posso prever quando ocorrerá a queda, pois não sei o
suficiente, por exemplo, sobre a árvore, o solo ou a quantidade de chuva que
teremos nos próximos dias. Mas se soubesse todas essas coisas e
compreendesse perfeitamente as Leis da Natureza, poderia presumivelmente
prever quando irá cair a árvore.
Se as acções humanas estão causalmente determinadas, então deve ser
possível, em princípio, prevê-las da mesma forma. Precisamos apenas de
conhecer os factos pertinentes sobre a pessoa, as suas circunstâncias e as leis
causais relevantes.
Mas há aqui um problema. Isto parece plausível apenas se estivermos a
prever o comportamento de outra pessoa. Suponha-se que o nosso amigo,
João, está a decidir se há-de aceitar um emprego noutra cidade. Se tivermos
informação suficiente sobre ele — sobre os acontecimentos que ocorrem no
seu cérebro, entre outras coisas —, poderemos ser capazes de prever qual
será a sua decisão e quando irá tomá-la. Poderemos dizer, por exemplo, que
amanhã às 22:07 João irá decidir aceitar o emprego. Deste modo, saberíamos
o que João iria fazer antes de ele ter agido. Até aqui tudo bem.
No entanto, as coisas são diferentes quando se trata de prever as nossas
próprias decisões. Suponha que é a pessoa que está a tentar decidir se há-de
aceitar o emprego fora da cidade. Se possuir toda a informação relevante sobre
si próprio, será capaz de prever o que irá decidir? Conseguirá prever que irá
continuar a deliberar até amanhã as 22:07, altura em que irá decidir aceitar o
emprego? Esta é uma ideia estranha. Para começar, se souber à partida o que

25
vai decidir, as suas deliberações podem terminar já. Por que razão há-de
continuar a pensar se já sabe o que vai fazer? Mas, nesse caso, a previsão de
que vai continuar a deliberar será falsa. Além disso, o leitor pode ser uma
pessoa maliciosa que detesta ser previsível. Assim, seja qual for a conclusão
atingida acerca do seu comportamento futuro, poderá fazer o contrário apenas
para provar a falsidade da previsão. A previsão, poderemos dizer, derrota-se a
si mesma. Isto parece mostrar que há uma grande diferença entre prever o
comportamento humano e prever outros acontecimentos do mundo físico.
Podemos resumir o argumento desta maneira:

1. Se o comportamento humano está causalmente determinado, então é


previsível em princípio.
2. Mas uma previsão sobre o que alguém irá fazer pode ser contrariada
se a pessoa cujo comportamento está a ser previsto souber qual é a
previsão e escolher agir de outra forma.
3. Logo, nem todas as acções humanas são previsíveis em princípio.
4. E, por isso, nem todas as acções humanas estão causalmente
determinadas.

Este é um argumento inteligente, mas será sólido? Há vários problemas


nele. A primeira coisa que podemos observar é que as pessoas por vezes
prevêem as suas próprias decisões, sem que isso as impeça de continuar a
deliberar. Isto está sempre a acontecer. Podemos prever correctamente que
vamos acabar por recusar o emprego por não ser especialmente atraente,
sabendo que já recusámos empregos melhores fora da cidade. Apesar de
sabermos isto, podemos continuar a ponderar a oferta.
No entanto, é verdade que uma previsão introduz um novo elemento na
situação e as pessoas podem reagir-lhe. Mas isto não significa que o resultado
não esteja determinado. Precisamos apenas de esclarecer o que significa
«previsível» neste contexto. Devemos distinguir dois tipos de previsibilidade:

(a) Previsível por um hipotético observador ideal que permanece fora do


sistema e observa os acontecimentos, mas não interfere neles.
(b) Previsível pelos seres humanos no mundo real.

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O Determinismo implica a previsibilidade no sentido (a), mas não no
sentido (b). Com isto em mente, consideremos o caso em que prevejo que uma
pessoa irá fazer algo e ela faz o oposto só para me contrariar. A minha
previsão pode revelar-se errada. Ainda assim, um observador ideal poderia
saber exactamente o que ia acontecer, incluindo a minha previsão e a resposta
maliciosa dessa pessoa.
Este argumento, então, não prova que o nosso comportamento não esteja
determinado. Mas há mais um argumento para apreciar.

O argumento da responsabilidade. O pressuposto de que temos livre-


arbítrio está profundamente enraizado nas nossas formas habituais de pensar.
Ao reagir a outras pessoas, não conseguimos deixar de as ver como autoras
das suas acções. Consideramo-las responsáveis, censurando-as caso se
tenham comportado mal e admirando-as caso se tenham comportado bem.
Para que estas reacções estejam justificadas, parece necessário que as
pessoas tenham livre-arbítrio.
Outros sentimentos humanos importantes, como o orgulho e a vergonha,
também pressupõem o livre-arbítrio. Alguém que conquista uma vitória ou tem
sucesso num exame pode sentir-se orgulhoso, enquanto alguém que desiste
ou faz batota pode sentir-se envergonhado. Porém, se as nossas acções se
devem sempre a factores que não controlamos, os sentimentos de orgulho e de
vergonha são infundados. Estes sentimentos são uma parte inescapável da
vida humana. Assim, uma vez mais, parece inescapável que nos concebamos
como livres.
Podemos, portanto, raciocinar desta forma:

1. Não conseguimos deixar de admirar ou de censurar as pessoas pelo


que fazem, nem conseguimos deixar de, por vezes, sentir orgulho ou
vergonha do que fazemos.
2. Estas reacções — admiração, censura, orgulho e vergonha — não
seriam apropriadas se as pessoas não tivessem livre-arbítrio.
3. Logo, temos de acreditar que as pessoas têm livre-arbítrio.

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4. Dado que temos de ter essa crença, temo-la de facto: as pessoas têm
livre-arbítrio.

Este é um exemplo daquilo que Immanuel Kant (1724–1804) designou por


«argumento transcendental». Kant, que muitos consideram o maior dos
filósofos modernos, observou que não conseguimos deixar de acreditar em
certas coisas. Sendo assim, não conseguimos deixar de acreditar também
naquilo que é necessário para que essas crenças sejam verdadeiras. Suponha-
se que não conseguimos deixar de acreditar que X. Mas X pressupõe Y. Logo,
disse Kant, não temos escolha: temos de presumir que é verdade que Y.
O problema dos argumentos deste tipo é óbvio: as crenças originais
podem ser falsas, ainda que sejam psicologicamente inescapáveis. Se
soubéssemos que as crenças originais são verdadeiras — que as pessoas são
censuráveis e que orgulho é justificado —, poderíamos concluir que tudo o que
essas crenças implicam também é verdade. Contudo, se não sabemos se as
crenças originais são verdadeiras, não podemos extrair justificadamente
quaisquer conclusões a partir delas. Não podemos concluir que temos livre-
arbítrio a partir do simples facto de o livre-arbítrio ser implicado por crenças que
temos, mas que não constituem conhecimento.

Será que o Libertismo é coerente? Por fim, podemos examinar o


problema de saber se o Libertismo faz algum sentido enquanto perspectiva
positiva sobre o comportamento humano. Para compreender o nosso
comportamento, não basta negar que as nossas acções estão determinadas.
Precisamos também de uma perspectiva positiva acerca da forma como
tomamos decisões.
Se as nossas acções não estão determinadas causalmente, como
surgirão supostamente? O que produzirá ao certo as nossas decisões?
Podemos imaginar que há, dentro de cada um de nós, uma espécie de «ser
mental» cujas decisões não estão constrangidas pelas leis causais — um
controlador fantasmagórico que faz escolhas independentemente daquilo que
ocorre no cérebro. Mas isto não é credível. Vai contra o que a ciência nos diz
sobre o funcionamento das coisas. Não há provas de qualquer tipo da
existência de uma «energia mental» que actue dentro de nós, desligada da

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operação do nosso sistema neurológico. E, mesmo pondo de parte a ciência,
esta especulação parece não passar de um conto de fadas.
No entanto, se não devemos supor que há uma dentro de nós entidade
mental desconectada a controlar as coisas, o que haveremos de pensar? Que
uma parte do cérebro opera à margem da rede causal do mundo? Isto parece
uma tolice, mas é difícil pensar em algo melhor. Parece que não dispomos de
uma perspectiva plausível que dê sentido à «liberdade» dos libertistas. Na
ausência de tal perspectiva, temos de procurar noutro lugar uma solução para
o problema do livre-arbítrio.

9.3. A resposta compatibilista


O Compatibilismo é a ideia de que um acto pode ser simultaneamente
livre e determinado. Isto pode parecer uma contradição, mas, segundo esta
teoria, isso não é verdade. Contrariamente ao que podemos pensar, é possível
aceitar que o comportamento humano está causalmente determinado e pensar
correctamente em nós próprios como agentes livres.
Entre os filósofos, o Compatibilismo é de longe a teoria do livre-arbítrio
mais popular. De uma forma ou de outra, foi a teoria de Hobbes, Hume, Kant e
Mill, e é defendida hoje pela maior parte dos autores que escrevem sobre o
assunto. Isto costuma surpreender as pessoas que não estão familiarizadas
com a literatura filosófica, dado que o livre-arbítrio e o Determinismo parecem
obviamente incompatíveis. De que modo são supostamente consistentes entre
si? Como pode um acto ser livre e estar determinado ao mesmo tempo?
Segundo o Compatibilismo, algumas das acções são obviamente livres e
algumas são obviamente não livres. O que interessa é encontrar a diferença
entre elas. Eis alguns exemplos de acções que não são livres:

 Entregamos a carteira porque um assaltante nos aponta uma arma à


cabeça.
 Vamos ao piquenique na empresa porque o patrão nos disse que
tínhamos de ir.
 Apresentamo-nos para incorporação no exército porque fomos
convocados e mandar-nos-ão para a prisão se não nos
apresentarmos.

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Nestes casos, não estamos a agir livremente porque fomos forçados a
fazer aquilo que não queríamos fazer. Estes são, pelo contrário, casos em que
agirmos livremente:

 Contribuímos com dinheiro para uma organização de beneficência


porque decidimos que essa organização merece o nosso apoio.
 Incitamos a nossa empresa a patrocinar um piquenique porque
pensamos que isso seria muito bom para os empregados. Ficamos
satisfeitos com o assentimento do patrão e ajudamos voluntariamente
a organizar o evento. No dia do piquenique, chegamos mais cedo por
estarmos tão excitados.
 Alistamo-nos no exército porque a perspectiva de ser soldado nos
atrai. Pensamos que essa seria uma boa carreira.

Estas acções são livres porque a nossa escolha se baseia nos nossos
próprios desejos, sem que ninguém nos diga o que temos de fazer. É isto que
significa fazer algo «de livre vontade». Mas repare-se que isto é perfeitamente
compatível com as nossas acções estarem causalmente determinadas pelo
nosso passado, pelos acontecimentos que ocorrem no nosso cérebro e assim
por diante — é mesmo compatível com os nossos desejos serem causados por
factores que não controlamos. Deste modo, o livre-arbítrio e o Determinismo
são compatíveis.
Podemos resumir a ideia básica do Compatibilismo dizendo que «livre»
não significa «não causado» — significa antes algo como «isento de coerção».
Assim, o facto de o nosso comportamento ser ou não ser livre não depende de
se é ou não é causado; depende apenas do modo como é causado.

O livre-arbítrio implica o Determinismo. Será que o Compatibilismo é


uma teoria viável? O argumento básico a seu favor é o que se segue.
Toda a preocupação com o livre-arbítrio começa com a ideia de que se
uma acção é causada, então não pode ser livre. Sem este pressuposto, o
problema do livre-arbítrio não se coloca. A questão, então, é a de saber se este
pressuposto é verdadeiro.
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Se o pressuposto fosse verdadeiro, então, para que fosse livre, um acto
teria de ser não causado. Mas pensemos no que isso significaria. Como seria
um qualquer acontecimento ser não causado? Imagine-se que as bolas de
bilhar deixavam de obedecer às leis causais. O movimento tornar-se-ia
imprevisível, mas apenas porque elas seriam aleatórias e caóticas. Poderiam
fazer ângulos estranhos, saltar ou parar subitamente. Quando fossem atingidas
pela bola branca, poderiam ficar paradas, explodir ou transformar-se em gelo.
Tudo poderia acontecer.
Do mesmo modo, se as acções de uma pessoa se desligassem
subitamente da rede de causas e efeitos, tornar-se-iam aleatórias, caóticas e
imprevisíveis. Um homem que estivesse num passeio poderia saltar para a
estrada em vez de esperar pela luz verde. Ou poderia tirar a roupa, atacar a
pessoa mais próxima, saltar repetidamente ou recitar a Magna Carta. As coisas
seriam assim se o comportamento fosse não causado, mas não é isto que
entendemos por «livre». Não pensamos que quem começasse a comportar-se
dessa forma teria adquirido subitamente livre-arbítrio — pensamos que teria
enlouquecido. As acções livres não são aleatórias e caóticas; são ordenadas e
ponderadas.
Podemos dar mais um passo nesta linha de pensamento. O livre-arbítrio
não é meramente compatível com o Determinismo: o livre-arbítrio exige o
Determinismo. Num mundo aleatório e caótico ninguém seria livre, mas num
mundo que opera de forma ordenada, segundo leis causais, as acções livres e
racionais são possíveis, pois nesse mundo aquilo que o pessoa fizer será
controlado pelo seu carácter e pelos seus desejos.
No entanto, as acções das pessoas seriam previsíveis no mundo
causalmente determinado. Isto não derruba a noção de que seriam livres?
Como é óbvio, as acções das pessoas são frequentemente previsíveis,
apesar do que dissemos sobre as recusas maliciosas de agir em conformidade
com as expectativas. Se conhecemos uma pessoa suficientemente bem,
muitas vezes conseguimos dizer de antemão que tipo de escolhas irá ela fazer.
Tenho uma amiga que vê muitos filmes e sei exactamente de que tipo de filmes
gosta ela. Há anos que observo o seu hábito de ir ao cinema. Se a minha
amiga está a escolher um filme para ver esta noite e eu sei que filmes estão em
exibição, posso prever razoavelmente bem qual deles irá ela escolher.

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Mas será que o facto de eu conseguir prever a sua escolha significa que
ela não é livre? De forma alguma — e consulta a lista de filmes no jornal, pensa
sobre o que quer ver e decide em função disso. Ninguém lhe está a apontar
uma arma à cabeça. Ninguém está a manipulá-la ou a enganá-la. Ninguém
implantou um dispositivo de controlo remoto no seu cérebro. Assim, ela escolhe
«de livre vontade». O facto de eu, conhecendo-a como conheço, conseguir
prever as suas escolhas nada altera. Na verdade, algo estaria errado se eu não
conseguisse prever que ela vai preferir Os Despojos do Dia a McQuade, o
Lobo Solitário.

O problema com o Compatibilismo. Na opinião da maior parte dos


filósofos de hoje, o Compatibilismo tem as melhores hipóteses de salvar o livre-
arbítrio e de proteger a noção de responsabilidade moral do ataque do
Determinismo. Contudo, o Compatibilismo tem um problema grave. O
Compatibilismo afirma que somos livres se as acções decorrem do nosso
carácter e dos nossos desejos não manipulados. O problema é que, em última
análise, o nosso carácter e os nossos desejos são causados por forças que
não controlamos. Este facto é suficiente para colocar em dúvida a nossa
«liberdade». Peter van Inwagen exprime assim esta ideia:

Se o Determinismo é verdadeiro, então as nossas acções são


consequências das leis da natureza e de acontecimentos que ocorreram
num passado remoto. Mas tanto as leis da natureza como aquilo que
aconteceu antes de termos nascido não dependem de nós. Logo, as
consequências destas coisas (incluindo os actos que realizamos agora)
não dependem de nós.

Os compatibilistas concordam que o carácter e os desejos que temos


agora não dependem de nós. Esta concessão parece constituir uma derrota.
Pelo menos, é suficiente para que as pessoas reflexivas se sintam
desconfortáveis, mesmo que a análise compatibilista nos permita continuar a
dizer que somos livres.

9.4. Ética e livre-arbítrio


Muitos filósofos e teólogos vêem uma crise nas implicações deterministas
da ciência moderna. A nossa liberdade, dizem, é essencial à nossa dignidade

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como seres morais. Separa-nos dos animais. Se começamos a conceber-nos
como simples robots, arrastados por forças impessoais, perdemos a nossa
humanidade.
Porém, antes de cedermos a estes receios, temos de perguntar pelas
verdadeiras implicações do Determinismo. As questões mais preocupantes
estão relacionadas com a ética. Se não temos livre-arbítrio, seremos ainda
agentes morais responsáveis? A ética não perderá a sua razão de ser? Mas
talvez a perda do livre-arbítrio não seja assim tão perturbante. Nesse caso, não
teremos razões para a recear, nem necessidade de conceber defesas do livre-
arbítrio.

Deliberar sobre o que é melhor. Para começar, podemos pôr de parte a


ideia de que somos «simples robots» se não temos livre-arbítrio. Não somos
nada como robots. Temos pensamentos, intenções e emoções. Sentimos
felicidade e infelicidade. Amamos os nossos filhos e, se tivermos sorte, eles
também nos amam. Dá-nos prazer ir ao cinema, jogar futebol e ouvir Mozart.
Os robots não são assim. A nossa capacidade de ter estas experiências e
actividades não depende do livre-arbítrio. Mesmo que o nosso comportamento
esteja completamente determinado, tudo isto continuará a ser verdade.
Também somos diferentes dos robots noutro aspecto: temos
frequentemente razões para o que fazemos, e isto não deixará de ser assim se
não tivermos livre-arbítrio. Desde que tenhamos crenças e desejos, e o nosso
comportamento esteja conectado com eles, continuaremos a ser capazes de
agir racionalmente. Continuaremos a perseguir os nossos objectivos como
sempre. Obviamente, o sentido em que os nossos objectivos são «nossos»
terá sofrido uma mudança subtil. Não poderemos já concebê-los como algo
que escolhemos livremente. Vê-los-emos antes como objectivos que resultam
da nossa constituição, do que acontece no nosso cérebro e da influência do
nosso ambiente. Mas o que interessará isso? Os nossos objectivos continuarão
a ser os nossos objectivos e ainda nos importamos com eles.
Sugere-se por vezes que a negação do livre-arbítrio conduziria a uma
atitude fatalista em relação ao futuro: não faria sentido esforçarmo-nos por
mudar as coisas. Mas é óbvio que isto não se segue da negação do livre-
arbítrio. O futuro depende do que fazemos e, se queremos um certo tipo de

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futuro, temos boas razões para fazer o que é necessário para lhe dar origem.
Suponha-se que queremos que as crianças doentes da Nigéria tenham os
cuidados médicos de que precisam e que, por essa razão, contribuímos para
esforços humanitários. Ajudamos a mudar o futuro. E isso faz sentido
seguramente — sem a ajuda, as crianças ficariam pior. Uma vez mais, a
presença ou ausência do livre-arbítrio não faz diferença.
Poderemos deliberar acerca do que fazer se não acreditarmos que temos
livre-arbítrio? Alguns filósofos defenderam que, se acreditamos que não somos
livres, não faz sentido «deliberar». Afinal, deliberar significa tentar decidir, o
esforço de decidir parece pressupor que podemos fazer coisas diferentes. Este
raciocínio parece plausível. Mas o que fazemos realmente quando
deliberamos? Pensamos sobretudo naquilo que queremos e no modo como
diversas acções conduziriam a resultados diferentes. Pensamos nas crianças
da Nigéria, no que é está estar doente e não dispor de ajuda, no modo como o
nosso dinheiro poderia satisfazer as suas necessidades e assim por diante.
Podemos pensar também noutras coisas que poderemos fazer com o dinheiro.
Na ideia de que não tenho livre-arbítrio nada há que me impeça de continuar a
ponderar desta forma.
Logo, a negação do livre-arbítrio não implica o fim da ética. Podemos
continuar a considerar que certas coisas são boas e que outras são más —
mesmo que ninguém tenha livre-arbítrio, não deixa de ser melhor que as
crianças da Nigéria não morram. Além disso, podemos continuar a avaliar as
acções como melhores ou piores em função dos melhores ou piores resultados
que produzem. Mesmo que não tenhamos livre-arbítrio, não deixará de ser bom
contribuir para esforços humanitários.

Avaliar as pessoas como boas ou más. Poderemos continuar a


considerar as pessoas boas ou más se elas não tiverem livre-arbítrio? Pode
parecer surpreendente que diga isto, mas não vejo razão para pensar que não.
Mesmo que tenham livre-arbítrio, as pessoas não deixarão ter virtudes e vícios.
Continuarão a ser corajosas ou cobardes, benevolentes ou cruéis, generosas
ou gananciosas. Um assassino não deixará de ser um assassino — e
continuará a ser mau ser um assassino. Obviamente, pode ser possível
explicar as más acções de uma pessoa como resultado dos seus genes, da

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sua história ou da química do seu cérebro. Isto pode levar-nos a ver essa
pessoa como alguém que teve azar nas circunstâncias que a fizeram tornar-se
naquilo que é. Porém, isto não significa que ela não seja má pessoa.
Precisamos de distinguir (a) a questão de saber se alguém é má pessoa de (b)
a questão de saber como alguém se tornou má pessoa. Uma explicação causal
do carácter de uma pessoa não implica que ela não seja má. Mostra apenas
como ela se tornou má.
Pensemos de novo em Eric Rudolph, que encontrámos no Capítulo 8.
Rudolph foi acusado pelo FBI de ter realizado um atentado à bomba a uma
clínica de aborto, no qual um polícia morreu e uma enfermeira ficou
terrivelmente ferida. A história da vida de Rudolph fornece amplas provas de
que ele não foi responsável por se ter tornado assim. Conhecendo o seu
passado, podemos acabar por considerar que ele apenas teve o azar de ter
tido uma vida infortunada. Como se costuma dizer, graças a Deus que não
somos assim. Contudo, podemos continuar a pensar que Rudolph é um
homem mau, já que, afinal, ele é um assassino. Ele dispôs-se deliberadamente
a maltratar pessoas inocentes. Agora, no entanto, compreendemos melhor o
que o fez ficar assim.

Responsabilidade. Mas, poder-se-á objectar, se as pessoas não têm


livre-arbítrio, então não são responsáveis pelo que fazem. Nesse caso, como
poderemos afirmar que Eric Rudolph, ou seja quem for, é realmente um
homem mau?
É natural supor que, se não temos livre-arbítrio, então não somos
responsáveis. Alguns filósofos pensam que esta conclusão é perturbante a que
devemos resistir, mas outros consideram-na uma ideia esclarecedora que
devemos saudar. Bertrand Russell aceitou esta última perspectiva. Escreveu o
seguinte:

Nenhum homem trata um automóvel tão tolamente como trata outro ser
humano. Quando o carro não arranca, ele não atribui o seu
comportamento irritante ao pecado. Ele não diz: «És um automóvel
perverso e não vou dar-te mais gasolina enquanto não arrancares». Ele
tenta descobrir o que há de errado e consertá-lo.

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Similarmente, pensa Russell, quando uma pessoa se comporta mal
devemos tentar descobrir por que razão isso acontece e lidar com o problema.
Há seguramente alguma verdade nesta ideia, o que se nota especialmente
quando pensamos na lei criminal e nas causas sociais do crime.
Surpreendentemente, no entanto, a noção de senso comum de
responsabilidade revela-se perfeitamente compatível com o Determinismo. Ser
responsável, no sentido comum, significa poder prestar contas pelo que se fez
— podemos ser censurados quando nos comportámos mal e ser louvados
quando nos comportámos bem. Assim, se somos seres responsáveis, têm de
existir algumas condições sob quais sejamos censuráveis por ter feito algo.
Que condições serão essas?
Do ponto de vista do senso comum, parece que há três condições: (1)
temos de ter realizado o acto em questão, (2) o acto tem de ser errado em
algum sentido e (3) temos de não ter uma desculpa para o ter realizado.
A noção de desculpa é crucial. As desculpas são factos que nos tiram o
peso de cima quando fizemos algo de mal. Podemos dizer que foi um acidente,
que não sabíamos o que estávamos a fazer e ou que nos forçaram a agir
dessa forma. Não é possível apresentar uma lista completa de desculpas
legítimas, mas algumas das comuns são as seguintes:

 Engano. Por exemplo, quando saímos da casa de uma certa pessoa,


levámos o seu chapéu-de-chuva por engano — pensámos que era o
nosso. Se tivéssemos levado o chapéu-de-chuva intencionalmente,
isso teria sido censurável.
 Acidente. Enquanto estávamos a conduzir de forma segura, tomando
todas as precauções razoáveis, uma criança pôs-se subitamente à
frente do automóvel — não podíamos ter evitado atropelá-la. Se
tivéssemos tentado atropelá-la, ou mesmo se pudéssemos
razoavelmente tê-lo evitado, poderíamos ser censurados.
 Coerção. Fomos forçados a abrir o cofre para os assaltantes do banco
porque eles nos apontaram uma arma à cabeça. Se o tivéssemos
aberto voluntariamente, poderíamos ser censurados.
 Ignorância. Demos veneno à nossa mulher com a bebida de tomar ao
deitar, mas não sabíamos que era veneno porque as pílulas estavam
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no frasco dos medicamentos e julgávamos que eram aspirina. Se
soubéssemos que eram veneno, seríamos assassinos.
 Insanidade. Sofremos do síndrome de Capgras, uma doença mental
rara que faz as pessoas acreditar que alguém que conhecem —
geralmente um amigo ou um familiar — foi substituído por um
impostor. Assim, não temos culpa do nosso comportamento
objectável. Há muitas outras doenças do género e geralmente
acredita-se que resultam de danos em partes específicas do cérebro.

A lógica do louvor é semelhante à lógica da censura. Uma pessoa é


louvável por ter realizado um certo acto somente se (a) realizou de facto esse
acto, (b) foi bom que o tenha realizado e (c) não estão presentes condições
análogas às desculpas. É curioso que não haja um nome para essas condições
análogas. Temos uma palavra, «desculpas», para as condições que tornam
imprópria a censura, mas não temos uma palavra para as condições
comparáveis que tornam impróprio o louvor. No entanto, é evidente que há
condições similares que funcionam de formas similares. Se fizemos algo
esplêndido apenas por acidente ou por ignorância, não merecemos louvor, o
que aconteceria se tivéssemos realizado deliberadamente o acto. Talvez não
haja uma palavra geral para essas condições porque as pessoas não
costumam tentar evitar ser louvadas. Podemos designá-las por «condições
eliminadoras de crédito».
Deste modo, a concepção de senso comum de responsabilidade diz-nos
que as pessoas são responsáveis pelo que fizeram se não estão presentes
condições de desculpa ou condições eliminadoras de crédito. Nessas
circunstâncias, merecem o louvor se se comportam bem, mas merecem a
censura se se comportam mal. E esta concepção de responsabilidade,
devemos sublinhar, é inteiramente compatível com a possibilidade de o
comportamento estar causalmente determinado.
Podemos resumir tudo isto de duas formas alternativas, o que depende
de considerarmos o Compatibilismo uma teoria viável. Os compatibilistas diriam
que, se essas condições são satisfeitas, então agimos livremente. Porém, os
deterministas podem dizer que não somos livres, mas que não deixamos de ser
responsáveis, dado que a responsabilidade não requer o livre-arbítrio. Correu

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muita tinta neste debate, mas tudo parece suspeitamente não passar de uma
disputa verbal. A ideia essencial é que o facto de o comportamento das
pessoas estar causalmente determinado não implica que elas não sejam
responsáveis pelo que fazem.

Conclusão. O problema do livre-arbítrio é uma das questões filosóficas


mais difíceis, e quem arrisque dar uma opinião a seu respeito deve estar
devidamente consciente da possibilidade de estar enganado. Ainda assim, vale
a pena considerar esta possibilidade: perderemos pouco se deixarmos de nos
conceber como seres com livre-arbítrio. Podemos continuar a ver-nos como
seres inteligentes que agem segundo objectivos, que são capazes de agir bem
ou mal, e podemos continuar a avaliar as pessoas como boas ou más em
função das suas escolhas. Podemos continuar a reagir positiva ou
negativamente aos outros em função daquilo que fazem e do tipo de pessoa
que são. Ao mesmo tempo, no entanto, faremos tudo isto compreendendo
também que, em última análise, as pessoas não controlam o seu carácter ou
os seus desejos. No que respeita ao «livre-arbítrio», isto pode ser tudo o que
há para saber.

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