O Conhecer Militante Do Sujeito Implicado

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O CONHECER MILITANTE DO SUJEITO IMPLICADO:

O DESAFIO EM RECONHECÊ-LO COMO SABER VÁLIDO


Emerson Merhy

Lendo o resultado da pesquisa de um aluno, via, que em um certo momento da sua


análise dos dados ele tinha dificuldades, que não me pareciam articulados a uma escolha
equivocada do método e nem de erros no seu percurso metodológico. Tudo, antes, dava
a noção de que este aluno tinha feito, em termos epistemológico, todos os
procedimentos corretos. Havia considerado inclusive o seu interesse como parte das
discussões iniciais, pois tinha aprendido que não há pesquisa desinteressada e
pesquisador neutro. Mas, a sensação que eu tinha na minha leitura era que algo tinha
escapado. Só a idéia de não neutralidade não resolvia.
Quando tive a oportunidade de conversar com este pesquisador se ele também
tinha percebido aquela dificuldade no momento da análise, percebi que ele ficava com
um certo incômodo para falar disso. Insisti, dizendo que tinha algo mais delicado
acontecendo com ele, pois o estudo parecia que mobilizava algo mais do que suas
opções ideológicas e teóricas. Disse-lhe que a ideia de sujeito interessado não retratava
o que ocorria e que, provavelmente, ele tinha se defrontado consigo mesmo no material.
Sugeri-lhe que a pesquisa tinha-lhe colocado em auto-análise, enquanto sujeito social.
Como esta conversa ocorreu fora das salas escolares, aparentemente em um encontro
informal, o aluno, diante da minha fala, disse: tenho a sensação, e fico irritado com isso,
que os resultados negativos que encontrei na pesquisa foram devido a minha
incapacidade de ser um bom dirigente de equipes de saúde. E continuou dizendo,
descobri que preciso aprender novas ferramentas para atuar e, por isso, não me sinto
bem, diante do que vi no campo de investigação.
Pois bem, este pesquisador estava estudando como tinha se implantado e
desenvolvido um certo modelo de assistência à saúde, num dado lugar, sendo que ele
tinha sido um dos dirigentes e responsáveis por isso. Ou seja, ele tinha sido um dos
apostadores na construção de uma nova modalidade de trabalho em saúde, cuja
centralidade seria as necessidades dos usuários. Acontece que o estudo mostrou, em um
certo momento, que os resultados não eram tão interessantes assim como esperava,
havia encontrado “falhas” neste processo que imputava a si mesmo. E, isso era tão
pesado que não conseguia tratar desta questão de modo mais claro. A pesquisa sangrava
parte de si mesmo, parte do próprio pesquisador. Para melhorar a discussão voltei a falar
da insuficiência da noção de pesquisador interessado, dizendo que todo pesquisador,
como já está consagrado pelas discussões sobre o “fazer ciência”, é, além de sujeito
epistêmico, ou seja, portador de teorias e métodos que lhe permitem se debruçar e
estudar certos objetos da ciência, um sujeito ideológico, um sujeito “cultura”, ou seja,
um sujeito interessado que dá valor a certas coisas e não outras, que tem certas opções e
não outras, que tem certas concepções ideológicas e não outras. Porém, eu disse este
não é o todo do seu problema. O seu problema é que além de sujeito interessado você é
um sujeito implicado. Você é o pesquisador e o pesquisado. E, assim, o analisador e o
analisado. Você é um sujeito militante que pretende ser epistêmico e os desenhos de
investigação que temos como consagrados no campo das ciências não dão conta deste
tipo de processo. Necessitamos pensar melhor sobre isso e encontrar novas pistas.
***
Todos que temos participado de atividades comprometidas com a produção do
conhecimento no campo da saúde, vivemos situações semelhantes quanto à
possibilidade de criar parâmetros metodológicos e científicos que legitimem e validem
aquela produção. Na Saúde Coletiva, no rastro da Saúde Pública em geral, ou mesmo da
Medicina Social Latino-americana, temos trabalhado com dois grandes caminhos
científicos para conformar os processos de investigação. De um lado, o mais consagrado
deles, em termos de reconhecimento e aceitação pelos pares, é composto por estudos
que obedecem a desenhos investigativos, nos quais é claro e fundamental a separação
entre o sujeito do conhecimento e o seu objeto de estudo; de outro lado, ainda
consagrado, mas não tão hegemônico como o anterior, é o conjunto dos estudos que
reconhecem a íntima relação entre sujeito e objeto, criando métodos de pesquisas que
transformam esta “relaçãocontaminação” em componente dos procedimentos
epistemológicos, e que devem ser trabalhados na investigação da forma a mais objetiva
possível.
No primeiro, a possibilidade de positivar a relação sujeito e objeto é dada pela
conformação de um método científico que garanta a objetividade do conhecimento
produzido; no segundo, a incorporação do subjetivo, como constitutivo da íntima
relação entre sujeito e objeto, deve ser operada pelos métodos de estudo para permitirem
o seu tratamento como uma componente qualitativo fundamental, mas objetivável. Em
ambos busca-se a garantia de um método que permita, de algum modo, a construção da
premissa de que o sujeito que se compromete com a produção do conhecimento, só o
fará se for objetivado como sujeito epistêmico, portador de uma maneira precisa de
investigar e de um conjunto de conceitos, que lhe direciona na ação sobre o campo
empírico e na explicação ou compreensão, como garantia da objetividade do
conhecimento produzido, paradigmaticamente imaginado, como aquele que poderá
fazer sentido e significar verdades para os outros, mesmo que estes não saibam disso; e
assim, validando-se como ciência e como conhecimento cientificamente legitimado.
Ler estudos, já clássicos, produzidos no Brasil – ou América Latina – sobre a
produção do conhecimento na Saúde Coletiva, como os livros de Maria Cecília Minayo
(1994) e de Mario Testa (1997), sobre o assunto, sem dúvida instigantes e ricos nas
reflexões propostas, ou nos avanços para o entendimento mais abrangente e crítico
sobre as próprias condições da produção do conhecimento e sua marcante natureza
histórica e social -, não tem permitido resolver de modo mais explícito ou dar conta
plenamente das situações vividas, hoje, neste território de saberes e práticas, por muitas
pesquisas que vem sendo produzidas.
Pois, estas situações não tem se configurado como possíveis de serem capturadas
pela construção pressuposta do sujeito epistêmico, para operar, depois, com garantias de
objetividade e cientificidade, a construção de formas de conhecimentos e de saberes
enquadráveis no campo legitimado e validado como científico. Seja sob a capa da
investigação objetiva das ciências duras, seja sob a das ciências históricas e sociais.
Os desenhos de investigação, reconhecidos como do campo da ciência, já
apontados, têm como aposta comum que a validação do conhecimento produzido se
dará no campo de encontro entre sujeitos epistêmicos, armados com suas teorias e
métodos. Nos estudos da saúde que necessitam abordagens do campo das ciências
históricas e sociais, as reflexões de um autor como Mario Testa são muito ricas, pois
procuram entender a constitutividade destes sujeitos epistêmicos, como situação a
priori de qualquer pesquisa. Testa, neste seu livro Saber enSalud, com uma analítica
sofisticada e brilhante, revela o quanto os sujeitos epistêmicos são subsumidos às
lógicas do poder, da ideologia e dos afetos (fala inclusive do sujeito amoroso neste
processo), nos distintos contextos históricos; sendo estes componentes constitutivos dos
mesmos e, portanto, de seus modos de operar na construção dos conhecimentos e suas
validações. Entretanto, quando procura uma saída para o tema da construção do
conhecimento subsume a necessidade do sujeito epistêmico se impor, dentro do que
“uma certa ciência” tem instituído, ou deve instituir, em nossas sociedades
contemporâneas. O que, de um ponto de vista otimista e amoroso, pode nos convidar a
ver outras ciências sendo feitas, por aí. E é nisso que estamos embarcando nesta
reflexão. A constituição do saber a partir de axiomas apriorísticos???
No Brasil, e creio que em outras partes também, devido a presença cada vez mais
significativa de trabalhadores de saúde, ou mesmo de usuários de serviços, que vêm
participando do processo de Reforma Sanitária – desencadeada desde o período das
lutas pela democratização contra a ditadura militar, de 1964 à 1984, e em
institucionalização como política pública – que buscam parcerias com núcleos de
pesquisadores, da universidade ou de ONGs, para estudar seus próprios processos de
intervenção, na busca da mudança de direcionalidade e dos serviços e das práticas de
saúde, temos vivido situações mais complexas, do que as acima relatadas, no que toca o
tema da produção do conhecimento e a constitutividade dos sujeitos que o produzem.
Isto, porque, nem todos estes trabalhadores colocam para si, como tema de investigação,
questões enquadráveis nos desenhos mais clássicos das ciências duras ou histórico-
sociais. Muitos procuram submeter a processos investigativos o seu próprio agir,
trazendo, com isso, para a análise o seu próprio modo de dar sentido ao que é problema
a ser investigado, no qual também significa claramente a si mesmo e aos outros. Ou
seja, traz antes de qualquer situação epistêmica a sua implicação, criando uma situação
não típica como as investigações a que estamos mais envolvidos; pois, agora, o sujeito
que ambiciona ser epistêmico está explicitamente subsumido na sua implicação, na sua
forma desejante de apostar no agir no mundo de modo militante, não se reduzindo ao
sujeito subsumido ao poder e à lógica ideológica, como o sujeito epistêmico imaginado
pelos procedimentos científicos contemporâneos[1]. Aqui, nestas novas situações, a
conformação do trabalhador como sujeito epistêmico está marcada pressupostamente
pelo seu lugar como sujeito militante implicado.
Por isso, trazemos para o debate estas investigações e o desafio que colocam para
se operar validações de conheceres militantes, tendo como pressuposto que o encontro
para isso não se dá a priori entre sujeitos epistêmicos, mas entre sujeitos implicados,
que podem se reconhecer ou se negar, no outro. O desafio, então, fica pela possibilidade
de operar a produção de saberes que são verdades militantes, que fazem sentido para
certos coletivos e não outros (para agrupamentos que também estão instituídos mas não
no território oficial do científico), mas que permitem aos sujeitos implicados agir sobre
o mundo e determiná-lo, na direção de rumos nem sempre previstos, não
necessariamente subsumidos às lógicas dos poderes, das ideologias e dos afetos
instituídos. Inclusive, este desafio alarga-se, na medida em que devemos imaginar que a
produção da validação de um saber militante, como conhecimento legítimo e saber para
os outros, passa também pela própria exposição dos interlocutores acadêmicos ou
científicos nas suas implicações , não só nos seus interesses. Estes devem assumir como
uma necessidade comunicativa (na linha habermasiana) 1 que o processo de validação
ocorrerá pelos diálogos das várias implicações em jogo, que se reconhecerão dando
1
Ação comunicativa refere-se a uma teoria desenvolvida por Jürgen Habermas - filósofo e sociólogo
alemão. Trata-se de uma análise teórica e epistêmica da racionalidade como sistema operante da
sociedade. Habermas contrapõe-se à ideia de que a razão instrumental constitua a própria racionalização
da sociedade ou o único padrão de racionalização possível, e introduz o conceito de razão comunicativa.
Partindo da perspectiva que nós seres humanos fazemos coisas com as palavras e que a linguagem
constitui uma importante ferramenta de transformação, Habermas argumenta que, através da ação
comunicativa, podemos transformar os aspectos objetivos, subjetivos e sociais do mundo. Seu objetivo é
propor uma alternativa racional à razão instrumental como fundamento da modernidade a partir de uma
ampliação e refinamento da própria ideia de razão. Isso o diferencia dos principais frankfurtianos da
primeira geração, Adorno e Horkheimer, os quais procuraram alternativas fora do âmbito da
racionalidade, a exemplo da arte e do amor. Habermas também cria uma dicotomia entra a ação
estratégica e a ação comunicativa.[1][2].
sentidos entre si, mesmo que se oponham, posicionando-se no espaço público quanto a
este processo de validação do saber e de suas consequências.
As instituições acadêmicas, como as universidades e seus cientistas, têm tido
dificuldade em trabalhar com estas situações, que no nosso núcleo de trabalho – na
Universidade Estadual de Campinas, São Paulo, no Brasil – temos tomado como uma
das questões fundamentais para nossas reflexões, diante das quais temos gerado estudos
abertos a diálogos instigantes e polemizadores com os modos como, classicamente, vêm
se validando o conhecimento científico, no campo da saúde coletiva, no Brasil.
Diálogos com pensadores muito variados, como: Paulo Freire (1975), Carlos Matus
(1996), Habermas (1997), Lourau (1995), e outros como Cecílio (1994) e Campos
(1992), além de Testa (1007) e Minayo (1994), já citados, têm nos permitido refletir
sobre estas questões e apostarem estudos desta natureza, inclusive por estarmos
implicados explicitamente com a busca de um fazer a reforma sanitária brasileira de
modo democrático e justo.
***
Em Paulo Freire (1975), buscamos uma analogia entre a noção de que a cultura
não pode ser externalizada e arrancada do sujeito (coletivo ou individual) que é sempre
um “sabido” por ser portador de saberes, isto porque a cultura lhe é constitutiva, como
uma pele; por isso, este sujeito é também cultura e seu produtor, o que constitui um
pressuposto básico do seu estar e ser no mundo. Procuramos olhar a implicação sob o
mesmo ângulo. Não é possível pensar o sujeito em ação sem sua implicação. Matus
(1996) nos oferta uma reflexão muito ampliadora sobre o sujeito em situação como
cognoscente, inclusive identificando certas zonas de cegueiras como sua
constitutividade, ou mais ainda, afirmando que a própria situação é o modo como o
sujeito recorta interessadamente a realidade, na qual se significa e sob a qual se debruça
com a sua ação e saberes, e a partir da qual não pode “enxergar” um hipotético real
como totalidade. No seu livro Política, Planificação e Governo sistematiza toda esta sua
abordagem, nos brindando com uma reflexão sobre a maneira como vê teoricamente a
produção social, na qual concebe sobre este estado situacional dos sujeitos,
demonstrando porque os atores sociais não podem pretender a plena visão do real. Para
este autor o sujeito é sempre situado, podendo ser um tipo de sujeito em certas situações
e outro tipo em outras. Aspecto muito relevante e bem enfatizado por Mario Testa
(1993), que também afirma sermos muitos tipos de sujeitos ao mesmo tempo, podendo
em certas situações não o sermos efetivamente. Mas, entre estes autores algumas
A ação comunicativa geraria razoabilidade, racionalidade e criticidade, representado uma alternativa à
ação estratégica, que seria voltada apenas para os interesses de um grupo ou indivíduo específico.
Habermas propõe a ação comunicativa como forma de fazer com que todos os envolvidos em uma
deliberação passem a buscar o consenso em torno de uma solução que beneficie a todos igualmente.
Além disso, ele considera que a reflexividade multidimensional aberta pela ação comunicativa e pelos
intercâmbios comunicativos foram essenciais para o deslocamento das estruturas simbólicas do mundo da
vida, tomadas como dadas e encarnadas em estoques culturais, práticas sociais e processos de formação
de personalidade.Habermas também buscou definir as normas universais da ação comunicativa. Segundo
ele, para que o intercâmbio de argumentos, como procedimento para resolução de questões ético-morais,
seja realmente efetivo, faz-se necessário uma aproximação da situação ideal de fala, a qual é caracterizada
por:[3]
- Imparcialidade.
- Expectativa de que todos os participantes transcendam suas preferências iniciais.
- Inclusão de todos os afetados por uma decisão.
- Igualdade, liberdade e facilidade de interação, com ausência de formas de coerção externas e
internas.
- Não restrição de tópicos nas discussões.
- Revisibilidade de resultados.
semelhanças param por aí, pois Mario de forma enfática diz que Carlos Matus com sua
proposta acaba por tecnificar a política, por tentar conceber uma certa maneira dos
atores agirem, com efetividade, na busca da mudança desejada, e associar isto como o
portar um método de agir, denominado pelo próprio Matus de Planejamento Estratégico
Situacional (PES), que lhe daria a capacidadede acumular suficientes poderes para
apostar no êxito de seus projetos mudancistas. Mario Testa (1993) critica, para nós
corretamente, o que consideramos uma grande fragilidade nesta reflexão intrigante de
Matus. Pois, apesar de gerar ideias ricas sobre o sujeito social, suas intencionalidades e
modos de agir na construção da própria realidade, acaba nos sugerindo que há um
método mais correto que outros para garantir que o agir transformador dê certo, e nos
brinda com uma receita para a ação entre atores sociais, em todas as situações que
considera de confronto estratégico, que apostam distintamente nos rumos da realidade,
situacinalmente recortada. Entendemos como contribuição, no debate sobre o sujeito
implicado e sua produção do conhecer militante, partes deste pensamento ofertado por
Carlos Matus, em particular quando entende esta mútua constitutividade do sujeito e da
situação, mas como Testa, de fato, não entendemos como necessário receitar caminhos
para a ação de qualquer sujeito implicado como mais corretos que outros; inclusive
porque consideramos que as implicações de Matus, em relação a esta sua proposta de
um método como o PES, parecem desenhar projetos que vêm, na conformação das
máquinas gestoras de políticas, a necessidade de se constituir elites tecno-políticas
operadoras centrais das mesmas, revelando sua forte inspiração tecnoburocrática.
Consideramos que o que gera de proposições que abrem para os sujeitos situados as
redes de conversas – sobre suas intencionalidades ao recortarem a realidade de formas
positivas ou negativas, permitindo-lhes “olhar” para os outros, que aí estão também
implicados -, um dos momentos fortes das suas propostas, além da noção de que certos
conceitos são poderosas ferramentas por viabilizarem as reflexões dos sujeitos em ação
sobre este processo permitindo- lhes analisarem a si mesmos, através dos seus próprios
agires e intenções. Semelhantemente ao que Castoriadis (1986) diz sobre a teoria no
processo psicanalítico, no qual ela opera como ferramenta a auxiliar a ação analítica e
não para capturá-la em quadros referenciais já constituídos.
Habermas (1997) nas suas propostas sobre a construção social da ação
comunicativa tem nos ajudado a pensar, no debate em questão, a constituição de
processos sociais da validação argumentativa entre atores sociais, dando-nos elementos
para imaginar o encontro de sujeitos sociais e os seus distintos processos de
conformação legítima da verdade argumentativa enquanto situação tipicamente social,
de um para outro e vice- versa. Na ciência e para além dela. É com os analistas
institucionais franceses, entretanto, como Lourau (1995) e Guattari (1992), entre outros,
que mais nos instigamos, pelo fato de terem tomado a implicação (o sujeito implicado,
militante) como parte de seus eixos de reflexão, inclusive esta temática ocupa lugar
nuclear nos trabalhos de Lourau. Se Guattari está centralmente interessado nos grandes
interrogadores, que emergem da ação em transversalidade das instituições em fluxos,
que vão expondo os acontecimentos a novos modos instituintes, Lourau está implicado
com a implicação. Com eles, em particular, nos sentimos estimulados a abrir novas
reflexões sobre o entendimento deste processo de construção do conhecer militante do
sujeito situado, e vamos buscar em um texto de Eduardo Passos Regina Benevides
(2000) ajuda para respaldar nossas reflexões:
“A noção de implicação, trabalhada pelos analistas institucionais, não se resume
a uma questão de vontade, de decisão consciente do pesquisador. Ela inclui uma
análise do sistema de lugares, o assinalamento do lugar que ocupa o pesquisador,
daquele que ele busca ocupar e do que lhe é designado ocupar, enquanto especialista,
com os riscos que isto implica. Melhor seria dizer, então, análise das implicações,
posto que implicado sempre se está. Aquilo para o que as correntes institucionalistas
chamam a atenção é a necessidade da análise das implicações com as instituições em
jogo numa determinada situação. A recusa da neutralidade do analista/pesquisador
procura romper, dessa forma, as barreiras entre sujeito que conhece e objeto a ser
conhecido.” (Passos, et Benevides, 2000, p. 73)
Vejamos como podemos nos aproximar mais desta questão.
***
Como já afirmamos, temos nos envolvido, em particular em alguns centros de
investigação no Brasil, com projetos de estudos que não conseguem ser enquadrados de
forma tão “pura” aos modelos propostos para a conformação do sujeito epistêmico das
ciências, devido as características das reformas sociais realizadas no país e, em
particular na saúde, aos atores implicados com as mesmas que se lançam à busca da
produção de conhecimentos de maneira muito singular, como militante desta reforma
que se quer conhecer, sob diferentes aspectos, mas sempre para deles usufruir nas suas
apostas e ações, como sujeito social seu protagonista. Com isso, têm-se demandado nas
parcerias com pesquisadores das universidades ou núcleos de pesquisas a produção de
um conhecer militante de um sujeito implicado que quer este saber para perceber a si,
enquanto um coletivo em ação transformadora, com êxitos mudancistas ou não,
procurando mapear como isso é ou pode ser possível e, ao mesmo tempo, socializar
estes seus saberes e agires transformadores. Claro que, nestas situações, não estamos
diante de sujeitos que objetivamente constroem questões objetos de conhecimento tão
nítidos para os outros e isoláveis, como quando pesquisamos o comportamento de
variáveis bem conhecidas, matematicamente modeladas, sob a ação planejada e
perturbadora de uma variável a mais a ser introduzida no campo de estudo pelo
pesquisador, que se constitui como o sujeito que busca conhecer a partir desta
experimentação controlada. E, não estamos também, diante de sujeitos que reconhecem
que os seus posicionamentos ideológicos, culturais, afetivos ou equivalentes, compõem
como pressupostos o campo de estudo, o objeto e as próprias intenções em jogo, como
variáveis constitutivas e necessárias de estudos que buscam a compreensão dos atos de
sujeitos sociais envolvidos com as práticas de saúde, com a organização destas enquanto
fenômeno social, ou ainda, a compreensão das redes de determinações estruturais destes
“fenômenos” sociais e históricos, e assim por diante. Estamos, mesmo, é diante de
situações nas quais não é possível ter tão nítido a possibilidade de construção do sujeito
epistêmico como um a priori, como garantia da cientificidade do empreendimento que
busca construir um saber. Por exemplo, como em situações nas quais o sujeito que
propõem o que será conhecido está tão implicado com a situação, que ao interrogar o
sentido das situações em foco, interroga a si mesmo e a sua própria significação
enquanto sujeito de todo estes processos. Enquanto sujeito da ação, enquanto sujeito
interessado e que aposta em certas direções para ela e não outras, enquanto sujeito que
ambiciona ser epistêmico mas que quer produzir conhecimentos e sistematizá-los para si
e para outros, implicado com o seu lugar na ação sob foco. Ou seja, o sujeito que
interroga é ao mesmo tempo o que produz o fenômeno sob análise e, mais ainda, é o que
interroga o sentido do fenômeno partindo do lugar de quem dá sentido ao mesmo, e
neste processo cria a própria significação de si e do fenômeno. Ou mais, ao saber sobre
isso mexe no seu próprio agir, imediatamente e de maneira implicada; chegando ao ato
de intencionar o conhecimento através de um “acontecer nos acontecimentos”, como
algo que, como um processo, emergisse no silêncio do instituído, provocando “ruídos”
no seu modo de dar sentido ao “fenômeno” e a si mesmo, de interrogar – se como o
próprio protagonista do processo sob foco analítico, o que lhe faz colocar a si mesmo
como objeto, nas suas próprias dimensões de sujeito da ação, sujeitado ou não, e
tornando-se mais sujeito da ação com mais ganhos de autonomia neste processo auto-
analítico. O que o faz colocar sob análise os fenômenos que lhe interrogam, a sua
implicação e o seu próprio agir enquanto, e ao mesmo tempo, diferentes tipos de
sujeitos. Este processo não se dá com o mesmo desenho investigativo das formas mais
clássicas de estudos que estamos acostumados e não pode ambicionar o caminho de
gerar antes de tudo o sujeito epistêmico, para depois ter a garantia de que o
conhecimento a ser produzido será validado e legitimado como científico.
Neste processo o conhecer demandado será um conhecer militante, um saber que
não pode deixar de ser singular, ou quase particular, que faça sentido para quem está no
processo sob análise, e que poderá fazer sentido para os outros que compõem o cenário
protagônico em interrogação. Ser vários sujeitos sob análise, será um tema para o
coletivo que destes processos participam. As várias implicações ficam sob foco, os
vários modos de dar sentido e significar o fenômeno sob análise estarão no centro deste
processo de construção do conhecimento. A produção deste saber militante é novo e
auto-análitico, individual e coletivo, particular e público. Opera sob os vários modos de
se ser sujeito produtor do processo em investigação e em última instância interroga os
próprios sujeitos em suas ações protagonizadoras e os desafios de construír em novos
sentidos para os seus modos de agir, individual e coletivo. Interroga e pode repor suas
apostas e modos de ação. Ao passar pela auto-análise das implicações do sujeito,
acorda-o do seu silêncio instituído e abre-se para novos sentidos e significações para os
fenômenos, reconhecendo-se como seu produtor, resignificando a si e os sentidos de
seus fazeres.
Neste tipo de estudo o mais importante do ponto de vista metodológico é a
produção de dispositivos que possam interrogar o sujeito instituído no seu silêncio,
abrindo-o para novos territórios de significação, e com isso, mais do que formatar um
terreno de construção do sujeito epistêmico, aposta-se em processos que gerem ruídos
no seu agir cotidiano, colocando-o sob análise. Aposta-se na construção de dispositivos
auto-analíticos que os indivíduos e os coletivos em ação possam operar e se auto-
analisar.
A investigação, de acordo com Poper ocorre não a partir de uma perspectiva
apriorística, mas de construção e desconstrução, autocrítica e criticamente Por que são
indispensáveis as decisões metodológicas? Isso se dá como aponta o autor, ao fato de
que os enunciados empíricos são suscetíveis a revisão, podendo “ser criticados e
substituídos por enunciados mais adequados”. A decisão metodológica, pois se
circunscreve no fato de que “a atividade científica está condicionada também a uma
lógica epistemológica própria, decorrendo então as divergências teóricas em torno da
interpretação de um mesmo fenômeno”. (NUNES, 1993, p.54). Trata-se de, como
aponta Bachelard (2006), saber direcionar a pergunta. Ao não se pretender trazer
postulados incontestáveis, ou seja, a fabricar “verdades”, a pergunta direcionada ao
cientista acerca do objeto não deve ser “O que é? ”, mas “O que pode ser? [de acordo
com uma ou outra perspectiva].
Em um texto que escrevi junto com outros autores (1997), nos antecipavamos a
partes destas questões:
Entendemos que o cotidiano institucional se expressa como uma dobra (uma
prega) na qual, de um lado, há o “cenário” do mundo das significações, aliás de vários
mundos das significações atravessados e não necessariamente compartilhados pelo
conjunto dos agentes em situação institucional e, do outro lado, e talvez pelo cenário
pouco estruturado dos atravessamentos dos distintos mundos das significações, opera
um mundo distinto, o dos sentidos e sem sentidos, que se mostra através de “falhas”
ocorridas no anterior.
Para pensar nisto, vamos nos reportar à vivência que temos no plano individual
com o sonho, que muitas vezes aparece para nós como um outro, como algo que é
ruidoso, mostrando “falhas” no nosso mundo da identidade, das significações, em que
construímos nosso território existencial como o lugar de uma certa referência identitária
e de desempenho de certos papéis, onde achamos que ali sabemos quem somos e onde
capturamos estes processos diferentes, estranhos. Aí, em um sonho, percebemos que um
outro em nós se revela, mostrando que aquele mundo de significações onde nos
encontramos, definindo-nos e aos outros, pode ser “esburacado”, pois tudo que já tinha
um sentido pode começar a se revelar sem sentido, ou mesmo a mostrar outros sentidos
e, em alguns casos, este outro vem com tal força que a “captura “mostra-se difícil.
Como uma analogia, é possível imaginar, para além deste exemplo, no plano
individual, que este processo ocorre nos lugares/arenas onde somos agentes
institucionais coletivos, no interior de estabelecimentos institucionais como um serviço,
com territórios de significações bem definidos (veja a ideia de contratos exposta
anteriormente), mas nos quais também opera a existência de processos estranhos que
mostram “falhas”, provocando ruídos cotidianamente neste esquema que almeja uma
boa funcionalidade e que, sem dúvida, é muito marcado pela natureza e tipo de arena
que está formada, pelos tipos de agentes em cena e pelos tipos de disputas que neles
estão presentes. Na dobra do sentido e do sem sentido operam estes “outros/estranhos”,
tanto nos planos individuais como coletivos, isto é, há processos ruidosos operando
dentro de cada singularidade, bem como entre elas. Além disso, operam buscando e
possibilitando novos caminhos instituintes, como linhas de fuga do que está
estabelecido, possibilitando a emergência de novos instituídos no mundo das
significações, desterritorializando o anterior para novos e incertos trajetos. Agem como
forças que aparecem “do nada” e se fazem presentes de modo não funcional, causando
estranhamentos no cotidiano.
Estas dobras, das significações e dos sentidos e sem sentidos, são expressões dos
homens enquanto operadores do (e sobre o) mundo na sua busca desejante e criadora,
que dá sentidos para si e para o mundo com suas ações, operando como uma máquina
viva, não definida em todos os seus contornos, como um devir (poder acontecer), como
homens em ação enquanto máquinas desejantes e políticas , criadoras de coisas
substanciais a partir da virtualidade do mundo das coisas, do nada, e sendo, portanto, em
potencial, uma incerteza em ação. Assim, o cotidiano não é, de modo exclusivo, nem de
um lado o aparente/falso e o funcional, em que opera o mundo harmônico das
identidades e papéis; nem do outro o lugar só do dissonante, mas sim uma dobra
expressiva da simultaneidade destes mundos. O cotidiano é o lugar onde há
permanentemente as mútuas invasões dos dois mundos entre si. É, portanto, onde se
produz os “estranhamentos”, os “ruídos”, as “falhas” do mundo com sentido no
instituído, e cheio de significados, onde os acordos e os contratos existem e funcionam,
e ao mesmo tempo onde os instituintes impõem estranhamentos, quebras, linhas de
fuga, novos possíveis em disputas. O homem em ação é paradoxalmente dotado de
sentidos, explícitos e não explícitos, um atuante permanente entre um dito e um não
dito, mas não porque não queira dizer e sim porque não pode e não consegue dizer tudo,
por não ser um “ser pleno de (e da) razão”, por não ser exclusivamente “sujeito
enquanto conhecimento”. Enquanto um sujeito desejante, operando inconscientemente
tentando produzir um mundo para si, é um agente em ação que não pode ser tomado
como o sujeito da razão, consciente, que a tudo pode representar, produzindo em ato, de
modo permanente, o consciente e o inconsciente. Por esta perspectiva, é possível dizer
que debruçar-se sobre um serviço de saúde como uma arena de (e em) disputas, sob a
ótica da informação, é abrir-se para a produção da informação como uma ferramenta
analisadora que pode nos auxiliar para agir nos interstícios dos processos instituídos, ao
mostrar os “ruídos” do mundo dos sentidos e sem sentidos sobre o das significações
permitindo, a partir deste próprio mundo (o das significações), perceber os ruídos
“espontâneos” e “naturais” de situações cotidianas singulares, ou mesmo os ruídos
“provocados”, com pretensão analisadora, que podem possibilitar possíveis aberturas
para processos mais públicos, partilháveis entre os operadores do cotidiano e nos quais
se possa, através de uma certa tecnologia, atuar conformando novos sentidos para o
serviço, enquanto uma certa arena institucional.
Neste terreno reflexivo, junto com outros companheiros, temos pensado a
construção do que denominamos de ferramentas disparadoras de situações auto-
analíticas para os trabalhadores de saúde, nos seus agires cotidiano, nas organizações e
nos serviços de saúde. Temos feito disso uma linha de estudo e investigação e explorado
o mais que podemos as suas possibilidades, enquanto modo de produzir novas formas
de conhecer, que permitam àqueles trabalhadores se posicionarem como sujeitos do
conhecimento, de um novo tipo, ao mesmo tempo que implicados militantemente com e
por este conhecimento produzido. Temos visto que a sua construção epistêmica é
secundária e profundamente marcada por esta implicação, e inclusive lhe impossibilita
de ser enquadrado como alguém que vai a um serviço de saúde estudá-lo, como um
objeto, sob os diferentes ângulos pertinentes e já consagrados da área da Saúde Coletiva
brasileira ou da Medicina Social latino- americana. Dificuldade da construção
epistêmica (a implicação do pesquisador se sobrepõe).
***
As várias possibilidades de participar da construção de estudos marcados por estas
características, no plano acadêmico, têm gerado situações nem sempre tão óbvias e
tranquilas quando estamos no debate em ato com os investigadores implicados ou
mesmo quando estamos em comissões de julgamento sobre a validade do conhecimento
produzido. Aqui, chamamos a atenção para o lugar ocupado por um orientador de uma
investigação, ou mesmo de um julgador, quando passa a ser interrogado pelo próprio
trabalho de investigação realizado na sua própria implicação, o que passa a exigir dele –
orientador ou julgador – uma capacidade de explicitar o jogo de validação também
como sujeito implicado, apesar de aparentemente protegido pelas epistemes que porta,
ao aceitar um diálogo comunicativo, no espaço público do território da ciência, com o
sujeito implicado, militante, que pesquisou. Ocorrendo, então, um encontro entre
sujeitos vindos de distintos lugares , um subsumido ao epistêmico expondo-se em ação
comunicativa com o outro subsumido à implicação militante, tendo como pano de fundo
comum para o encontro as suas implicações como investigadores interessados na
legitimação da produção de um novo conhecer. Com esta postura tenho procurado
participar de um diálogo com pesquisadores militantes, tanto como orientador, quanto
como avaliador, ou até, como militante. Apesar de ainda sentir o caminho muito aberto,
percebo a sua fertilidade. Para exemplificar situações vividas, coloco em cena algumas
das pesquisas realizadas, de orientandos meus, que me permitiram avançar e
compreender melhor as características das produções de conhecimentos, nestas
situações aqui imaginadas. Posso citar os trabalhos de Luiz C. O. Cecilio (1994),
Deborah Carvalho (2000), Mauricio Chakkour (2001), Fernando Chacra (2002),
Consuelo Meneses (1999) e Alzira Jorge (2002), como alguns que podem mostrar isto
que tenho apontado até aqui; mas, neste texto, apresento em particular os trabalhos de
Cecilio e Chakkour. Com a pesquisa do Cecilio (1994) ficou claro, para mim, que a
implicação de um militante, que põe sob foco de estudo o balanço da sua própria
militância, enquanto um dos protagonistas de processos de reformas sociais – como a
vivenciada pela construção do Sistema Único de Saúde, no Brasil -, obriga-o a ter uma
postura mais eclética com as teorias que podem ajudá-lo a compreender a si, neste
processo. E, com ele, passo a ter a noção de que o sujeito implicado na construção de
um conhecer militante carrega, mais do que uma teoria, uma caixa de ferramentas cheia
de “conceitos” e “esquemas explicativos”, que podem lhe abrir várias possibilidades de
significar e resignificar a si mesmo como sujeito da e em ação, que fazem ou não
sentido para si. Além disso, o trabalho do Luiz Cecilio tinha a proposta de se desdobrar
em reflexões que permitissem pensar os modos de agir dos sujeitos implicados com a
reforma sanitária, através da análise de experiências que tinha vivenciado como um dos
componentes de um coletivo sujeito, e assim transformasse o estudo em um
sistematizador e validador de métodos de ação para a mudança em estabelecimentos de
saúde. A sua implicação mostra-se inclusive por colocar em estudo e análise a sua
própria caixa de ferramentas para a ação como militante da saúde, inclusive
compreensiva, construída e partilhada por um coletivo militante da reforma sanitária
brasileira, colocando-a e a si também sob julgamento público. Vale assinalar, que neste
tipo de processo põe em cena sua própria forma de entender analiticamente o ocorrido.
Isto também está sob julgamento. O conjunto das implicações são tantas, que o trabalho
chama-se Inventando a Mudança na Saúde, o que não é pouco; entretanto, é real a
intenção de produzir um saber tecnológico sobre a ação transformadora, neste contexto
brasileiro, que pudesse encontrar um diálogo validador com os outros coletivos sujeitos
tão implicados, quanto, com o fazer a reforma na saúde, mesmo que não perseguindo o
mesmo caminho e método. Sendo também um dos componentes deste coletivo ao qual
pertence o Luiz Cecilio, em particular por participar intimamente das experiências que
submete a análise, dialogar com a sua produção exigiu de mim, também como
orientador, uma exposição de minhas implicações como sujeito militante em relação ao
modo de viver ou ver o próprio protagonismo no interior da reforma em pauta, e assim
me expor também a um diálogo, e como tal público, com ele e com os outros que se
implicavam pela busca da produção de um conhecer militante da luta pela reforma
sanitária no Brasil. Nesta tensão do encontro comunicativo, se vai atrás da validação, ou
não, das significações produzidas, enquanto novos saberes. Se vai atrás de outros que
vêm neste saber como algo que também faça sentido para eles. Busca de sentidos,
dialogia, produção de significações, instrumentalização. Sem dúvida, esta investigação
criava muitas tensões. Uma delas, era marcada pelo caráter pragmático do agir militante
que ia compondo sua caixa de ferramentas, na maior parte das vezes, sem colocar-se em
interrogação, caminhando de mãos dadas com um utilitarismo que poderia ser muito
míope. Um ponto importantíssimo, é o autoquestionamento, a autocrítica. Por outro
lado, na saúde o utilitarismo é um tema pouco simplista, pois quem visa a construção da
saúde como algo cujo valor de uso é dado pela possibilidade de constituir modos de
vida cada vez mais próprio e autônomo, individual e coletivamente, a perspectiva
utilitária é inseparável do próprio projeto político que demarca o agir militante, isto é,
na saúde visa-se colocar em xeque a forma como constrói-se a vida para si em
sociedade e, ao mesmo tempo, como os outros visam a sua vida enquanto seus insumos,
coisa que o capital sabe explorar muito bem. Assim, a saúde sempre tem uma
duplicidade utilitarista, que pode estreitar ou alargar as implicações do agir militante ou
que podem e devem denunciá-lo. Deste modo, a investigação desta época colocava uma
nova temática como desafio: a de interrogar no próprio processo de pesquisa as
implicações sob os seus vários ângulos, ou seja, o de colocar sob análise o sujeito
implicado em suas várias dimensões. Com isso, as pesquisas de agora em diante
deveriam trazer novos componentes: aqueles que além do estudo do sujeito em ação,
principalmente enquanto ator político e governamental, e sua caixa de ferramenta,
deveria também estudar as chances que os mesmos tinham em se interrogar, auto-
analisar, significando ou resignificando suas intencionalidades no plano individual e
coletivo. Colocar-se sob um diálogo com os outros em torno disso. Aparece assim a
oportunidade de construir outras investigações que buscassem também, além do já
descrito, a construção de dispositivos auto-analíticos no campo de estudo,
interrogadores em ato dos encontros das várias implicações em jogo, como veremos
adiante nas pesquisas e trabalhos realizados com Mauricio Chakkour. Mas, com o
estudo do Luiz Cecilio, se fez um dos primeiros grandes exercícios para a construção de
uma nova postura em relação a construção da episteme do sujeito implicado, no nosso
grupo.
Na longa citação de Benevides (2002), apresentada abaixo, encontro muita
identidade com as questões que iam se colocando para nós:
“A ciência possui uma fundação tal como qualquer outra forma de conhecimento,
não se distinguindo por uma pureza ou soberania que transcenda ao mundo sobre o
qual ela produz os seus efeitos de verdade e de objetividade. É neste sentido que
podemos dizer que o conhecimento é uma forma de implicação e de interferência que é
ativa na produção tanto do seu objeto quanto do sujeito de um determinado saber ou
especialismo. Estes dois termos (sujeito/objeto) não explicam o processo cognitivo, mas
devem antes ser explicados por ele. [...] [segundo as] formulações da Biologia do
Conhecimento ou Teoria da Autopoiese de Humberto Maturana e Francisco Varela
[...]. O impacto da Teoria da Autopoiese nos estudos da cognição se deve muito à sua
recusa do modelo da representação [...]. Ao contrário, o organismo e, mais
especificamente, o sistema nervoso, é concebido como um sistema em rede fechada. A
noção de “clausura operacional” busca dar conta desse funcionamento de uma rede
que é espacialmente fechada (fechada informacionalmente, não sendo um sistema
input), embora aberta temporalmente, já que em constante modificação de sua
estrutura. [...] em se assumindo este construtivismo radical, já não podemos nos
contentar com uma explicação do conhecimento assentada no idealismo (fundamento
no sujeito cognoscente) ou no realismo (fundamento no objeto do conhecimento). [...]
No lugar de campo epistemológico pensamos então em um plano de constituições ou de
emergências a partir do qual toda realidade se constrói, desfazendo-se qualquer ponto
fixo ou base de sustentação da experiência. O conhecimento científico não escapa desta
mecânica, estando ele também constituído sem fundamento substancial, sem natureza
mantenedora da sua neutralidade e objetividade. Não podemos, doravante, aceitar a
pretensão de um conhecimento desinteressado que apenas desvela a realidade de seu
objeto. Pois conhecer é estar em um engajamento produtivo da realidade conhecida,
mas também é constituir-se neste engajamento por um efeito de retroação, já que não
estamos imunes ao que conhecemos. Sujeito e objeto se engendram no ato de
conhecimento, não restando nenhuma anterioridade, nenhuma garantia prévia. Em
sendo assim, como nortear nossas escolhas teóricas? Como distinguir os conceitos?
Paira sobre nós a ameaça do relativismo, que constantemente devemos expurgar. Pois
quando abandonamos as garantias do fundamento, o pensamento corre o risco de se
perder na indiferença e no relativismo, como se tudo ou nada valesse. É em reação a
esta ameaça que devemos afirmar nossas escolhas conceituais e definir nossas posições
críticas. Não há indiferença no trabalho com os conceitos quando sabemos que são
operadores de realidade. Neste sentido, eles nos chegam como ferramentas. Um
conceito-ferramenta é aquele que está cheio de força crítica. Ele está, portanto, cheio
de força para produzir crise, desestabilizar. É assim que entendemos a ideia de
“intercessor” (Deleuze, 1990/1992). O conceito é um intercessor quando é capaz de
produzir tal tipo de efeito. [...] Em seu movimento de intercessão os conceitos são
imediatamente ferramentas, porque se constroem num certo regime de forças. Não são
abstratos, não são dados, não são preexistentes. Eles compõem, o tempo todo, um
sistema aberto relacionado a circunstâncias, e não mais a essências. É por isso que
dizemos que precisamos inventar conceitos, criar conceitos que tenham necessidade.
Cada conceito se relaciona a um determinado conjunto de forças, ele é parte de um
plano onde fluxos diversos se atravessam. O que se pode fazer em relação a um
determinado conceito é percorrer suas linhas de constituição, as relações que foi
estabelecendo com as variações dos movimentos.” (Passos e Benevides, 2000, p.76-77)
Na investigação do Chakkour (2001), entre outros trabalhos que realizamos,
minhas implicações ficaram mais a flor da pele; pois, de a muito, estava já envolvido
com ele (como apresentado no texto citado anteriormente) na experimentação e
construção de dispositivos analíticos em estabelecimentos de saúde, com os quais os
trabalhadores – protagonistas cotidiano do modo de fabricar o modelo de atenção nos
serviços – exporiam suas próprias implicações em discussão coletiva, de modo auto-
analítico, para debater e validar suas intenções e modos de agir tecnológico em saúde,
na busca de resignificações . Colocando neste processo sob julgo militante a própria
maneira de incorporar o mundo das necessidades de saúde e as formas de construir
respostas tecnológicas, individualmente e em equipe, para as mesmas, como expressões
reais dos tipos de apostas que procuram se impor nos serviços. Nossa implicação com
este tipo de intervenção estava dada tanto na construção de situações auto-analíticas,
quanto no nosso modo de ver o sentido das ações de saúde como necessariamente
centradas no mundo dos usuários, e como tal apontando para a subordinação dos outros
interesses e suas éticas em torno deste eixo. Como que procurando subordinar as éticas
das políticas, das organizações, das corporações à ética do cuidado em saúde usuário
centrado. Desde textos anteriores (como já mostrei), já vínhamos nos expressando nesta
direção e agora com a sua pesquisa nos aprofundávamos, nisto, mais ainda. A aposta em
uma cartografia, centrada nos próprios trabalhadores, dos serviços de saúde, que os
colocassem no centro da análise como sujeitos implicados, permitindo que se
ressignificassem enquanto os vários sujeitos que são, remetendo-se de um para o outro,
analiticamente, abrindo as possibilidades coletivas de darem novos sentidos para os seus
vários agires, múltiplo, para o campo da saúde como lugar de produção de capacidades
de viver, e de todas as possibilidades que isto pode significar, socialmente. A situação
do sujeito implicado com a ação protagônica não promete a priori a produção do
conhecimento, mas antes de tudo a ação, a construção intencional que dê sentido para o
agir em determinados campos da atividade humana , e como tal opera sem precedência
epistêmica, como muitos sujeitos: sujeito político, pedagógico, epistêmico, dos afetos,
técnico, entre outros. A mobilização para conhecer vem de certos incômodos que a ação
protagônica pode gerar como acontecimento, mobilizando que as várias dimensões do
sujeito interajam para conduzir a um saber militante, igualmente válido e legítimo,
permitindo-lhe compreender “mais” sobre a situação e a ação, para continuar agindo.
Problema: produzir um saber militante legítimo e validado. Neste tipo de processo
a implicação é estruturante do processo, coloca-se sob análise a si mesmo em ação e
intenção. O processo é obrigatoriamente auto analítico. Este processo é inacabado e
desejante, a relação sujeito e objeto é sempre um acontecendo. O incômodo que
mobiliza é também material da análise para possibilitar o conhecimento da mútua
relação: sujeito e objeto em produção, em ato militante. Sempre se repondo, como
instituído e instituinte. O saber operado e produzido como um misto permanente de
conhecimento sobre e conhecimento para. No estudo do Mauricio Chakkour,
procuramos construir e testar ferramentas auto analíticas destes processos no interior de
estabelecimentos de saúde. Para isso, lançamos mão da construção pelo coletivo de
trabalhadores, nestes lugares, de um fluxo dos modos de se operar tecnologicamente a
produção do cuidado por este coletivo, interrogando-o a partir dos vários encontros
gerados, como estranhamento, a que eram expostos se olhados pela ótica da ética de um
cuidado usuário centrado, abrindo territórios de interrogações produzidos em ato por
aquele coletivo, que permitiram submeter a análise as várias implicações em jogo, as
nossas e as de cada um que pertencia protagonicamente ao cenário em investigação.
Esta cartografia podia ir sendo aberta por cada um e por todos em situação
comunicativa, podendo gerar muitas possibilidades de mapeamento. Aliás, cartografar
os serviços de saúde de modo centrado no próprio trabalhador, olhando para a
cartografia gerada a partir das lógicas centradas no usuário, pode ser exatamente este
exercício. Mapear territórios e desterritorializações, que se interrogam, interrogando os
sujeitos em suas várias formas de existência, é a sua intenção, permitindo-nos analisar
estas relações de muitas maneiras. Por exemplo, sob a ótica das situações de potências
que identificamos em cada recorte, o jogo de governabilidade em que estamos. A
identificação de situações problemas ou positivas que mapeamos em cada situação. As
disputas e tensões que as operam. Os modos como os sujeitos se encontram e se
validam. As suas implicações em ato, consigo e com os outros. Isto em si, produz
conhecimento e intervenção, individual e coletiva. Este saber é também em ato e se
implica com o agir militante e, além de poder ser validado em uma ampla rede de
conversação, mais pública. Inclusive a acadêmica.

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Notas de Rodapé ((↑) returns to text)


1. Vale olhar Levy Strauss e sua discussão sobre outras formas de produzir
conhecimentos em seu texto sobre o Pensamento Selvagem, ou mesmo Varella e
sua discussão sobre o conhecimento meditativo e a construção de saberes.(↑)

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