Resenha Os Anormais

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Os anormais

FOUCAULT, Michel. So Paulo: Martins Fontes, 2001. Michel Foucault (1926-1984) foi admitido no Collge de France em 1970, sucedendo Jean Hyppolite na ctedra ento recm-criada de Histria dos Sistemas de Pensamento. A principal atribuio de um professor desta instituio aberta de ensino oferecer um curso anual, no qual exponha semanalmente o estgio atual de suas pesquisas. Os treze cursos que Michel Foucault ofereceu no Collge de France entre 1971 e 1984 esto sendo publicados a partir de suas notas pessoais e gravaes realizadas por aqueles que os assistiram, disponibilizando uma fonte que permite lanar nova luz sobre suas obras, complementarmente aos Ditos e Escritos, que renem todos os artigos e entrevistas produzidos pelo autor entre 1954 e 1984. O livro Os Anormais consiste na transcrio das onze aulas do curso ministrado por Foucault em 1975. Os cursos que o precederam foram Thorie e Institutions pnales (1972), La socit punitive (1973) e Le pouvouir psychiatrique (1974), que em seu conjunto, abordam desde os procedimentos jurdicos tradicionais da punio no medievo at a lenta formao de um saber intimamente relacionado a um poder de normalizao. precisamente no ano em que profere o curso Os Anormais que Foucault publica aquele que certamente o seu livro mais conhecido no Brasil, Vigiar e Punir (1975). No curso Em Defesa da Sociedade (1976), o autor passa a identificar os mecanismos pelos quais, desde o fim do sculo XIX, desenvolvido o princpio da necessidade de defesa social contra aqueles indivduos ou classes considerados perigosos. Neste sentido, pode-se observar como, cada vez mais, o seu pensamento est preocupado com o governo dos vivos ou, como ele afirmar posteriormente, as formas de poder e saber que tornam os indivduos sujeitos (FOUCAULT, 1995). O curso apresenta uma reconstruo genealgica do conceito de anormal, erigido durante o sculo XIX, que inicialmente se d em meio ao embate entre os saberes jurdico e penal, at irse encaminhando para uma psiquiatrizao do desejo e da sexualidade, j no fim do sculo XIX. Permeando essa reconstruo, Foucault, a todo o momento, apresenta elementos que servem para definir: as diferentes personagens que antecedem o anormal, os dispositivos que servem sua definio, a raridade ou a frequncia da aplicao desta noo e a tecnologia de poder que lhe corresponde. A primeira aula do curso inicia pela funo do exame psiquitrico de imputabilidade penal, uma prtica discursiva que sobrepe a medicina mental e o direito penal tornando ambos alheios s suas prprias regras especficas, compondo um discurso grotesco que, ao mesmo tempo, tem o poder de matar e o de produzir verdade. Desta forma, o exame psiquitrico tem um triplo papel, ele replica tanto o delito prenunciado, na medida em que monta um quadro no qual so rememoradas uma mirade de caractersticas pessoais que no infringem lei alguma, mas que em seu conjunto acabam sendo indcios que permitem antever o delito, quanto o ru com o delinquente, na medida em que esse exame reconstitui todos os antecedentes do ru, ele tem por efeito fazer com que o suposto autor do crime se parea com o seu crime, antes mesmo de t-lo cometido. Por fim, o exame psiquitrico acaba corroborando o carter constitutivamente criminoso da personalidade do ru, na medida em que Descrever seu carter delinqente, descrever o fundo das condutas criminosas ou paracriminosas que ele vem trazendo consigo desde a infncia, evidentemente contribuir para faz-lo passar da condio de ru ao estatuto de condenado (2001, p. 27). Na segunda aula, Foucault trata predominantemente da relao tensa e ambgua entre a Medicina e o Direito no tocante ao julgamento da sanidade mental em matria criminal. A partir do momento em que, no incio do sculo XIX, o alienista passa a ter um papel no tribunal, h uma progressiva tendncia indistino entre os papis do mdico e do juiz nos tribunais. Forma-se uma rea limtrofe entre as duas disciplinas, representada pelos crimes para os quais no havia qualquer explicao racional e nos quais o agente no sofria influncia de delrios.

Este tipo de situao originar um movimento amplo no alienismo francs: Pinel (1800) identificar as manias sem delrio, Esquirol fala nas monomanias (1838). Contudo, ser apenas com Baillarger que, em meados do sculo XIX, se desenvolve o que Focault chama de princpio de Baillarger (2001, p. 199), segundo o qual a ocorrncia de delrios deixa de ser o indicativo para a loucura, que passa a ser definida pelo eixo do voluntrio-involuntrio, ou seja, um crime impulsivo, fruto de um automatismo, mesmo que sem carter delirante e sobre o qual o agente nada pode dizer, pode ser entendido como uma alienao, no caso uma monomania impulsiva. Ainda nesta segunda aula, Foucault esboa aquilo que se tornar a sua influente interpretao do poder enquanto um poder positivo Na terceira aula, Foucault apresenta as trs figuras que constituem o terreno do discurso sobre o anormal: o monstro humano, o indivduo a ser corrigido e a criana masturbadora. Segundo Foucault o monstro humano aquele que constitui (...) em sua existncia mesma e em sua forma, no apenas uma violao das leis da sociedade, mas uma violao das leis da natureza (2001, p. 69). O monstro humano combina o impossvel com o proibido e, durante boa parte do medievo, serve como o grande modelo de todas as pequenas discrepncias. Mesmo sendo o princpio de inteligibilidade de todas as formas da anomalia, o monstro , em si, ininteligvel ou dotado de uma inteligibilidade tautolgica. Neste contexto, o anormal , no fundo, um monstro cotidiano, um monstro banalizado (2001, p. 71). J o indivduo a ser corrigido caracterstico dos sculos XVII e XVIII e habita a famlia e suas relaes com instituies vizinhas. Enquanto o monstro sempre uma exceo e remonta ao domnio da teratologia, a existncia do indivduo a ser corrigido um fenmeno normal, ele espontaneamente incorrigvel, o que demanda a criao de tecnologias para a reeducao, uma forma de sobrecorreo que lhe permita a vida em sociedade. A partir da figura do indivduo a corrigir possvel a germinao daquilo que, no final do sculo XIX emergir em meio aos domnios disciplinares como o saber sobre o crime: a criminologia. Por fim, h a figura da criana masturbadora, que data da passagem do sculo XVIII para o XIX e envolve exclusivamente a famlia burguesa entendida como um dispositivo de poder responsvel por velar pela masturbao: (...) o segredo universal, o segredo compartilhado por todo mundo, mas que ningum comunica a ningum (2001, p. 74). A criana masturbadora, o onanista ser a figura que acabar, no final do sculo XIX, por encobrir as demais e deter o essencial dos problemas que giram em torno da anomalia. Virtualmente qualquer patologia mental, debilidade fsica ou vcio moral poderia ser desencadeado devido prtica do onanismo segundo o iderio mdico burgus vitoriano. Embora Foucault discorra de modo mais detalhado nas aulas seguintes sobre o monstro humano e as diferentes nuances da anormalidade at advento da figura do onanista, ele no dedica a mesma ateno ao indivduo a corrigir. Isso no chega a ser espantoso uma vez que, durante o curso, no ms de fevereiro de 1975, ele lanou a obra Vigiar e Punir, na qual desenvolve algumas idias que esto apresentadas apenas em esboo nas aulas do curso e discorre detalhadamente sobre as prticas punitivas e a construo do criminoso enquanto delinquente. Mesmo que o prprio Foucault no refira o seu estudo sobre o nascimento da priso durante este curso, a leitura de ambos serve para complementar os temas abordados, tornando menos evidentes eventuais lacunas de um trabalho com o outro. De toda forma, essas trs figuras vo permanecer claramente delimitadas somente at meados do sculo XIX. Aps o desenvolvimento da noo de degenerao (dgnrescence) por Morel (1857), toda sorte de

anormalidades atribuda a uma fonte orgnica difusa que perturba constitutivamente as funes mentais e/ou fsicas de certos indivduos e, de modo cada vez mais grave, de seus herdeiros biolgicos. Essa teoria da degenerao a me de todas as teorias eugnicas que iro desenvolver-se no perodo vitoriano, especialmente as conhecidas discusses evolucionistas spencerianas que se apiam em Darwin para identificar estigmas fsicos da anormalidade como indicativos de uma criminalidade, como o caso da escola italiana de Lombroso e seus discpulos. Por mais que o louco criminoso tenha feito a sua apario inicial nos tribunais atravs de manifestaes monstruosas como a de Charlotte Cornier (2001, p. 141-142) ou o conhecido caso do fratricida Pierre Rivire (2003), ele passa a ser gradativamente definido por meio da associao de loucura a perigo. Essa associao estabelecida inicialmente pela legislao francesa que regula as instituies de tratamento mental em 1838, uma vez que, com as internaes ex officio, o vnculo loucura-perigo criado sem necessidade da mediao terica anteriormente exercida pela monomania, segundo Foucault, a partir de ento: No se precisa mais monomanacos. A demonstrao poltica que se buscava na constituio epistemolgica da monomania, essa necessidade poltica agora, pela administrao, satisfeita e mais que satisfeita (2001, p. 179). De modo geral, no curso Os Anormais Foucault reconstitui o modo pelo qual a psiquiatria se desalieniza, adotando o princpio do instinto como substituto ao delrio na identificao da loucura, ao mesmo tempo em que se apia na teoria da degenerao de Morel para definir etiologicamente o objeto da psiquiatria enquanto tal. A partir deste movimento, a psiquiatria produz os seus efeitos de poder, de um modo mais geral na sociedade como um todo, pois se erige como cincia dos anormais e das condutas anormais. Segundo o autor: No ser mais simplesmente nessa figura excepcional do monstro que o distrbio da natureza vai perturbar e questionar o logo da lei. Ser em toda parte, o tempo todo, at nas condutas mais nfimas, mais comuns, mais cotidianas, no objeto mais familiar da psiquiatria, que esta encarar algo que ter, de um lado, estatuto de irregularidade em relao a uma norma e que dever ter, ao mesmo tempo, estatuto de disfuno patolgica em relao ao normal (2001, p. 205). Desta maneira, a psiquiatria permite definir polticas profilticas de defesa social contra a degenerao, polticas que, em sua forma extrema, podem ser encontradas no nazismo e no fascismo, como Foucault prope na ltima aula de Em Defesa da Sociedade (1976). Em suma, Os Anormais ocupa um lugar importante na transio de Foucault, do estudo das estratgias do poder em suas manifestaes mais repressivas e disciplinares voltadas majoritariamente para os indivduos, para um momento no qual as estratgias do governo das populaes, baseado num certo biopoder sero o foco principal deste autor. Referncias FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder. In: DREYFUS, Hubert L. e RABINOW, Paul. Michel Foucault: uma Trajetria Filosfica. Para Alm do Estruturalismo e da Hermenutica. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1995. ___. Em Defesa da Sociedade. So Paulo: Martins Fontes, 2002. ___. Vigiar e Punir. 21 ed. Petrpolis: Vozes, 1999. ___. (org.). Eu, Pierre Rivire, que degolei minha me, minha irm e meu irmo. Rio de Janeiro: Graal, 2003. ___. Le Pouvoir Psychiatrique. Paris: Gallimard/Seuil, 2003

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