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Rev Bras Psiquiatr 2003;25(2):110-3

Atualização

Síndrome de Rett
Rett syndrome
José Salomão Schwartzman
Programa de Pós-graduação em Distúrbios do Desenvolvimento da Universidade Presbiteriana Mackenzie. São Paulo, SP, Brasil

Resumo A partir do que já se conhece sobre a síndrome de Rett, este artigo focaliza as informações mais recentes da
literatura internacional sobre os aspectos genéticos e etiológicos desta condição, bem como sobre a sua identi-
ficação clínica e laboratorial, neuropatologia, eletrofisiologia, e evolução clínica (epilepsia, distúrbios respira-
tórios, distúrbios autonômicos e aspectos nutricionais), enfatizando, ainda, que, embora até recentemente tida
como condição que afetava apenas o sexo feminino, também pode estar presente no sexo masculino, ainda que
com fenótipo diverso.

Descritores Síndrome de Rett. Deficiência mental. Deficiência múltipla. Epilepsia. Genética clínica.

Abstract This article is focus on the currently knowledge about Rett syndrome, based on the more recent information in
the international literature on genetic and epidemiological aspects of this condition, as well as on its clinical and
laboratory diagnosis, neuropathology, electrophysiology. and clinical outcome (epilepsy, respiratory disorders,
autonomic disturbances and nutritional aspects). Although it has been known as a female condition, nowadays
it is described the possibility of affected males with a different phenotype.

Keywords Rett syndrome. Mental retardation. Multiple handicap. Epilepsy. Clinical genetics.

Introdução rios definidos pelo Rett Syndrome Diagnostic Criteria Work Group8
1
Andreas Rett identificou, em 1966, uma condição caracteri- (1988) ou os propostos pelo DSM-IV-R9 (2002) (Tabela).
zada por deterioração neuromotora em crianças do sexo femi- O diagnóstico da SR, até pouco tempo, era exclusivamente
nino, quadro clínico bastante singular, acompanhado por clínico, existindo ainda critérios para o diagnóstico de quadros
hiperamonemia, tendo-o descrito como uma “Atrofia Cerebral atípicos da SR,10 que somente devem ser firmados após os 10
Associada à Hiperamonemia”. anos de idade. Na atualidade, a descrição de uma alteração
A condição por ele descrita somente passou a ser melhor genética identificável em aproximadamente 80% dos casos (ver
conhecida após a publicação do trabalho de Hagberg et al,2 no a seguir) sugere que esse recurso deva ser utilizado na elabora-
qual foram descritas 35 meninas, e a partir do qual foi sugerido ção final do diagnóstico.
o epônimo de síndrome de Rett (SR). A presença da hipera-
monemia não foi confirmada como um sinal habitual da sín- Quadro clínico
drome. Admite-se, na atualidade, uma prevalência da doença A doença evolui de forma previsível, em estágios, que fo-
estimada entre 1:10.000 e 1:15.000 meninas,2 sendo uma das ram nomeados por Hagberg & Witt-Engerström11 (1986) da
causas mais freqüentes de deficiência mental severa que afeta seguinte forma: o primeiro deles, denominado estagnação
o sexo feminino. precoce, inicia-se entre seis e 18 meses e caracteriza-se por
No Brasil, a SR foi inicialmente identificada por Rosemberg uma parada no desenvolvimento, desaceleração do cresci-
et al3,4 (1986, 1987). mento do perímetro craniano, diminuição da interação soci-
Desde então, vários trabalhos foram publicados no Brasil,5-7 al com conseqüente isolamento. Esse estágio tem a duração
divulgando o quadro clínico e tornando possível a identifica- de alguns meses.
ção de algumas centenas de meninas afetadas. O segundo, rapidamente destrutivo, inicia-se entre um e
Para o diagnóstico clínico da SR podem ser utilizados os crité- três anos de idade e tem a duração de semanas ou meses.

Recebido em 13/8/2002. Revisado em 31/3/2002. Aceito em 11/4/2003.

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Tabela - Critérios diagnósticos para Transtorno de Rett (299.80).


Todos os quesitos abaixo
Desenvolvimento pré-natal e perinatal aparentemente normal
Desenvolvimento psicomotor aparentemente normal durante os primeiros cinco meses de vida
Perímetro cefálico normal ao nascer
Início de todas as seguintes características após o período normal de desenvolvimento:
Desaceleração do crescimento cefálico entre a idade de 5 a 48 meses
Perda de habilidades manuais voluntárias anteriormente adquiridas entre a idade de cinco e 30 meses, com o desenvolvimento subseqüente de movimentos
estereotipados das mãos (p. ex., gestos como torcer ou lavar as mãos)
Perda do envolvimento social no início do transtorno (embora em geral a interação se desenvolva posteriormente)
Incoordenação da marcha ou dos movimentos do tronco
Desenvolvimento das linguagens expressiva ou receptiva severamente comprometido, com severo retardo psicomotor

Uma rápida regressão psicomotora domina o quadro, com a palavras inteligíveis, 55% deixaram de falar após ter adquiri-
presença de choro imotivado e períodos de extrema do fala, 15% retinham algumas palavras e 6% do total conti-
irritabilidade, comportamento tipo autista, perda da fala e nuavam a fazer uso apropriado de frases.
aparecimento dos movimentos estereotipados das mãos, com Crises epilépticas são de ocorrência comum. Podem assu-
subseqüente perda da sua função práxica; disfunções respira- mir várias formas e, eventualmente, demonstrar grande resis-
tórias (apnéias em vigília, episódios de hiperventilação e ou- tência à medicação antiepiléptica habitual. Afirmar a real pre-
tras) e crises convulsivas começam a se manifestar. Em algu- valência de epilepsia nessas pacientes é difícil, porque elas
mas crianças há perda da fala que já estava eventualmente podem apresentar outras manifestações paroxísticas que são,
presente. Distúrbios do sono são comuns. muito freqüentemente, confundidas com epilepsia. Hagberg
Entre os dois e dez anos de idade instala-se o terceiro está- et al,15 por exemplo, afirmam que nas séries por eles acompa-
gio: o pseudo-estacionário, no qual ocorre certa melhora de nhadas, a ocorrência de epilepsia pôde ser comprovada em
alguns dos sinais e sintomas, inclusive do contato social. Os 94% dos casos. A média de idade da população era de 20
distúrbios motores são evidentes, com presença de ataxia e anos, variando entre quatro e 58 anos. Freqüentemente crises
apraxia, espasticidade, escoliose e bruxismo. Os trabalhos es- de perda de fôlego, crises hipoxêmicas seguindo episódios
trangeiros referem que nessa fase é muito comum ocorrer per- de apnéia são diagnosticadas erroneamente como epilepsia, o
da de peso, apesar de ingesta normal. Todavia, em pesquisa que pode contribuir para prevalências superestimadas de epi-
conduzida no Brasil, Schwartzman12 não encontrou desnutri- lepsia nessas crianças.5
ção entre as crianças examinadas. Ao contrário do que se po- O eletroencefalograma é, em geral, grosseiramente anormal,
deria esperar, várias das pacientes apresentavam sobrepeso. exceção feita, eventualmente, às primeiras fases da doença. À
Crises de perda de fôlego, aerofagia e expulsão forçada de ar e medida que a condição evolui do estágio I para o III, observa-
saliva ocorrem com freqüência. remos lentificação progressiva do ritmo de base com surgimento
O quarto estágio, que se inicia por volta dos dez anos de de ondas pontiagudas projetando-se, em geral, nas regiões cen-
idade, é o da deterioração motora tardia, ocorrendo lenta pro- tro-parietais. No estágio III podem surgir descargas com o pa-
gressão dos déficits motores, com presença de escoliose e se- drão espícula-onda lenta, mais facilmente observada durante o
vera deficiência mental. Epilepsia pode se tornar menos im- sono. No estágio IV pode haver uma certa melhora no traçado
portante, e as poucas pacientes que ainda retêm a deambulação com diminuição dos elementos epileptiformes. As espículas
gradualmente terão prejuízos crescentes, acabando por ter que centrais tendem a diminuir após os dez anos de idade e podem
utilizar cadeiras de rodas. Observa-se, nesse período, a ser bloqueadas pela movimentação passiva dos dedos da mão
superposição de sinais e sintomas decorrentes de lesão do contralateral.16
neurônio motor periférico aos prejuízos já presentes. Presença A sobrevida na SR pode ser limitada, sobrevindo a morte,
de coreo-atetose é comum nessa fase. em geral, em decorrência de um quadro infeccioso ou durante
Apesar de ser habitual afirmar-se que as meninas com SR o sono (morte súbita). Outro fator que pode limitar tanto a qua-
são normais ao nascimento e demonstram um desenvolvimen- lidade de vida como o tempo de sobrevida, consiste nos pro-
to normal até os seis ou dezoito meses de idade, sabe-se hoje blemas respiratórios crônicos decorrentes de problemas secun-
que em grande parte dos casos, senão em todos, há na verdade dários à escoliose, que pode chegar a comprometer seriamente
um atraso no desenvolvimento motor com hipotonia muscular a expansão pulmonar.
e prejuízo no engatinhar, que são os sinais iniciais.13 No quadro clínico da SR podemos observar algumas alte-
A fala está sempre muito comprometida e, muitas vezes, rações que permitem supor algum tipo de disfunção
totalmente ausente. Algumas crianças chegam a falar, dei- autonômica. Julu et al17 estudaram, sob este ponto de vista,
xando de fazê-lo à medida que a deterioração avança. Algu- 17 meninas com a SR. Demonstraram que o tono vagal cardí-
mas poucas adquirem alguns vocábulos isolados. Apenas um aco era 65% inferior ao de meninas controles. Esses valores
trabalho refere a presença de “frases apropriadas” em casos são similares aos observados em recém-nascidos normais.
de SR.14 Estudo que se baseou no exame de uma amostra com- Cada uma das meninas Rett apresentou, pelo menos, seis al-
posta por 265 pacientes com quadros clássicos e atípicos de terações no ritmo respiratório. O tono vagal cardíaco era su-
SR e pôde comprovar que, 30% delas nunca desenvolveram primido no ápice da atividade simpática, tanto durante os

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períodos de hiperventilação, quanto nos de perda de fôlego, Patologia


levando a um desequilíbrio com risco de arritmias cardíacas Do ponto de vista neuropatológico, é fato a desaceleração
e possivelmente morte súbita. do crescimento craniano que ocorre a partir do terceiro mês.
O lobo frontal, o núcleo caudado e o mesencéfalo são as
Genética regiões encefálicas nas quais foram observadas as maiores
A grande maioria dos casos de SR é composta de casos reduções. Começam a surgir evidências de que a SR pode-
isolados dentro de uma família, exceção feita à ocorrência ria estar relacionada a uma deficiência pós-natal no desen-
em irmãs gêmeas; porém, casos familiares têm sido observa- volvimento das sinapses; mas restaria, ainda, conhecer o
dos. Costumava-se considerar a SR como uma desordem do- defeito básico presente.29
minante ligada ao cromossomo X, em que cada caso repre- Com o conhecimento da mutação encontrada no gene
sentaria uma mutação fresca, com letalidade no sexo mascu- MECP2, um grupo de pesquisadores do Texas produziu um
lino. Foram observados casos nos quais meninos, irmãos de camundongo transgênico com uma mutação truncada no gene
meninas com a SR, nasciam com uma doença encefalopática MECP2.27 Os animais não aparentam anormalidades até apro-
com óbito precoce.18 ximadamente a sexta semana, quando surge um tremor ao er-
Nessa perspectiva, alguns poucos casos foram descritos nos guer-se o animal pela cauda. Após oito meses, alterações na
quais um fenótipo similar ao da SR foi observado em meni- pelagem, presença de convulsões e mioclonias podem ser ob-
nos.18-21 Em geral, constituíam apenas um sugestivo do diag- servadas. Interessante que, após essa idade, o animal produz
nóstico, com sinais e sintomas presentes de forma bastante uma série de movimentos estereotipados das patas dianteiras
atípica e parcial. quando suspenso pela cauda. O mecanismo pelo qual a altera-
Em 1998,22 foi descrito um caso de um menino que, na oca- ção desse gene parece determinar o fenótipo do quadro ainda
sião, tinha dois anos e nove meses de idade, apresentando não está completamente compreendido. Porém, observou-se
fenótipo integral da SR na sua forma clássica. Esse menino, que, nesses animais, um aumento da acetilação de um grupo de
apresenta cariótipo XXY, caracterizando, portanto, uma as- histonas, comprometendo a arquitetura da cromatina em deter-
sociação das síndromes de Klinefelter com a SR, ocorrência minadas regiões cerebrais, principalmente do córtex e do
com uma probabilidade da ordem de uma para dez a 15 mi- cerebelo. Conseqüência desse processo poderia ser uma maior
lhões de nascimentos. acessibilidade do DNA por diferentes fatores transcricionais,
Apenas um ano após, em 1999, foram descritas pela primei- o que implicaria na interferência da expressão de diversos genes.
ra vez mutações no gene MeCP2 em pacientes com a SR.23,24 Os estudos agora procuram compreender quais seriam os dife-
Interessante que após a descrição dessas mutações do rentes genes que estariam desregulados pela ação dessa altera-
MECP2, foi realizada a pesquisa para esse marcador no meni- ção da proteína MeCP2.
no anteriormente referido, no qual havia sido descrita a associ-
ação do fenótipo Rett e XXY. Foi encontrada uma mutação Diagnóstico diferencial
nesse gene, confirmando tratar-se, realmente, da SR.25 Dependendo da fase em que se encontra a SR, várias con-
Estudos mais recentes indicam que cerca de 75% a 80% de dições deverão ser levadas em consideração entre os diag-
pacientes com a forma clássica da SR têm mutações no gene nósticos diferenciais: patologias fixas, como a paralisia cere-
MECP2.26 Considera-se que a proteína MeCP2, produzida pelo bral e outras encefalopatias fixas; síndrome de Angelman;
gene, funciona como repressor global de transcrição. Como autismo infantil; e várias doenças metabólicas (por ex.
essa proteína possui alguns diferentes sítios de ação, acredita- lipofuccionoses).
se que as diferentes mutações encontradas no gene seriam res-
ponsáveis pelos diferentes fenótipos observados nos portado- Conclusão
res de SR.27 Sabemos, hoje, que alguns meninos portadores A síndrome de Rett é uma das causas mais freqüentes de
das mesmas mutações podem sobreviver, apresentando um deficiência múltipla severa no sexo feminino. Pelo conjun-
quadro encefalopático totalmente distinto do quadro clínico to de suas características, trata-se de quadro que deve inte-
clássico da SR no sexo feminino.28 Também se aceita que a ressar todos os profissionais da área da saúde, especialmen-
pesquisa de mutações no gene MECP2 esteja justificada em te pediatras, para o encaminhamento e diagnóstico precoce,
meninos com formas severas de encefalopatia que não tenham e especialistas que atendam pessoas com distúrbios neuropsi-
alguma etiologia claramente definida. quiátricos severos.

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