Língua (Gem) e Multiculturalismos Capítulo 2020
Língua (Gem) e Multiculturalismos Capítulo 2020
Língua (Gem) e Multiculturalismos Capítulo 2020
Bruno Franceschini
Lucas Silvério Martins
Luciana Borges
Vanessa Regina Duarte Xavier (org.)
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Estudos
Literários
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Estudos
Literários
Conselho Editorial
Ana Cristina Teixeira Bonecker
UFRJ - Univ. Federal do Rio de Janeiro
Assed Naked Haddad
UFRJ - Univ. Federal do Rio de Janeiro
Betina Ribeiro Rodrigues da Cunha
UFU - Univ. Federal de Uberlândia
Carlos Alberto Lopes
ISPA - Instituto Universitário de Ciências
Psicológicas, Sociais e da Vida (Portugal)
Claudia Costa Bonecker
UEM - Univ. Estadual de Maringá
Ilana Zalcberg Renault
INCA - Instituto Nacional de Câncer
Isabel Andrade
ENSP/UNL - Escola Nacional de Saúde
Pública da Univ. Nova de Lisboa (Portugal)
Karl Schurster Veríssimo de Sousa Leão
UPE - Univ. de Pernambuco
Magali Christe Cammarota
UFRJ - Univ. Federal do Rio de Janeiro
Manuel José Brandão Sá
P.PORTO - Politécnico do Porto (Portugal)
Maria Madalena G. Rosário Carvalho
UaB - Univer. Aberta de Lisboa (Portugal)
Nuno Henriques
UCP - Univer. Católica do Porto (Portugal)
Sérgio Luiz Costa Bonecker
UFRJ - Univ. Federal do Rio de Janeiro
Bruno Franceschini
Lucas Silvério Martins
Luciana Borges
Vanessa Regina Duarte Xavier (org.)
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Estudos
Literários
ISBN: 978-65-991480-1-9
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ISBN 978-65-991480-1-9
Apresentação
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dade para exercício de ofícios religiosos ou políticos bem como sua submissão às
demandas corporais mais baixas. Esse conjunto de textos constitui um ambiente de
autorictas que legitima o pensamento misógino e contamina toda a visão sobre as
mulheres ao longo dos séculos subsequentes, sendo que o capítulo, ao apresentar
essa visão, conclama os leitores e leitoras atuais a terem uma visão reflexiva e revi-
sionista sobre tais construções simbólicas. O texto seguinte também nos conclama
a rever um período fundamental da história recente do Brasil, tantas vezes negado
e invisibilizando, a ditadura civil-militar.
Em O relato ditatorial em Azul Corvo, de Adriana Lisboa, Renata Rocha Ri-
beiro explora a composição do romance a partir das memórias relatadas por Fer-
nando à protagonista, Evagelina (ou Vanja). Partindo de um evento histórico recen-
te da história do Brasil, a ditadura civil-militar, ou os chamados Anos de Chumbo,
o romance revisita mais especificamente a Guerrilha do Araguaia, movimento em
que Fernando havia sido militante. De mistura com a trajetória de Vanja, narrada
de maneira não-linear desde a infância até a vida adulta, a narrativa recompõe esse
período histórico frequentemente esquecido ou tratado superficialmente na maio-
ria dos livros de história para, assim, reconstruir o processo identidade-alteridade
da protagonista que, ao mesmo tempo em recompõe a memória individual da per-
sonagem, também recompões a memória coletiva do país.
Paródia e resistência, texto de Ricardo Alves dos Santos apresenta a leitura
do poema “Iniciação de Jacó”, da obra Bundo e outros poemas (1996), do poeta Wal-
do Motta. Artista contemporâneo influenciado pela poesia marginal dos fins dos
anos 70, este autor apresenta em seu projeto poético a reivindicação de uma poesia
de resistência, capaz de enfrentar os problemas do mundo. O poema tomado para
análise realiza uma paródia de acontecimentos da vida de Jacó, personagem bíbli-
co do Antigo Testamento, ao retratar uma cena de iniciação sexual homossexual.
Apostando no jogo entre sagrado e profano, a análise demonstra como a subversão
do sagrado é construída no deslocamento entre o alto e o baixo ao criar uma cena
sexual, apresentada simbólica e metaforicamente, entre Jacó e Javé.
Sulivan Charles Barros, no capítulo O lado sombrio das emoções: análise do
filme Relatos Selvagens, de Damián Szifron, parte do pressuposto de que o cinema,
como um produto de linguagem, pode ser lido como uma prática discursiva, capaz
de indicar percepções e interpretações diversas da realidade e da sociedade, bem
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de ficção que ganharam prêmios e, dentre elas, Os Livros que Devoraram o Meu
Pai (2011), um infanto-juvenil vencedor do Prêmio Literário Maria Rosa Colaço.
Na narrativa, o personagem Elias vive algo novo, acaba de completar doze anos de
idade, e o presente que ganha da avó é a biblioteca que pertencia ao seu falecido Pai
Vivaldo. Um presente mais do que material, não eram somente livros em estantes
que o menino herdou, e sim uma oportunidade de conhecer o pai através dos livros
que pertenceram a ele: “Muito nervoso, recebi aquele presente. Ia finalmente conhe-
cer meu pai, iria atrás dele, percorreria todas as palavras que ele percorreu, haveria
de encontrá-lo por trás de uma frase, entre personagens de um romance qualquer”
(CRUZ, 2011, p. 17).
A narrativa se inicia com uma prévia um tanto misteriosa para quem acaba
de iniciar a leitura, ou seja, desconhece o sentido da história. O autor faz uso de uma
figura de pensamento ligada a figuras de linguagem que distingue o sentido sigiloso
da história a ser contada. Elias descreve da seguinte forma:
...eu poderia dizer que meu pai já não anda neste mundo, em vez de dizer que
morreu de enfarte. Parece um eufemismo: “não anda neste mundo”, em vez
de “morreu”, mas não é. É a verdade objetiva, como vocês vão perceber. Sem
qualquer figura de linguagem (CRUZ, 2011, p.13).
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força significante é capaz de operar mudanças em tais estruturas fazendo com que
o leitor encontre significado na vida. Nas palavras de Gregorin “Busca-se, neste
momento sócio-político e cultural, uma aproximação dialógica entre o fazer peda-
gógico no que tange à literatura para crianças e jovens e o fazer social, visto ser uma
constante a fala de que o aluno é preparado para a vida em sociedade”.
Elias não conheceu pessoalmente o pai e a oportunidade que lhe foi dada foi
significativa para que ele pudesse idealizar sua ligação com Vivaldo. Descobrir uma
mesma paixão foi suficiente para que ele pudesse agir, de certa forma, de modo que
vivenciasse as experiências do pai:
Cada leitura feita daquelas obras era uma forma de se imaginar no lugar do
seu pai, de sentir o que ele sentiu ao ler aquelas histórias, de ir a lugares que Vivaldo
passou ao viajar nos textos. À medida que o adolescente se envolve nas leituras,
sua imaginação o acompanha, sua criatividade é aprimorada no decorrer de suas
experiências vividas através do ato da leitura. Conforme Vygotsky afirma, quanto
mais experiências o indivíduo possui, maior será sua capacidade de criação. Elias é
um retrato daquele leitor que Mário Quintana afirma admirar: “O leitor que mais
admiro é aquele que não chegou até a presente linha. Neste momento já interrom-
peu a leitura e está continuando a viagem por conta própria” (QUINTANA,1973),
isso porque a narrativa atrai o leitor pela sua forma de explorar nas obras lidas pelo
personagem os lugares em que se passam.
Elias é um típico leitor viajante, aquele que se insere no mundo da literatura
percorrendo os locais em que essas histórias são contadas de maneira a descrever o
cenário, o espaço social e cultural em suas tradições, seus costumes, e o espaço his-
tórico, como uma viagem ao passado. Sentado na poltrona que seu pai costumava
se sentar para ler, Elias viaja para dentro das histórias:
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O campo surgiu a nossa frente, com seu verde habitual, pontilhado de árvores
e arbustos. Atrás de nós, ficava a fumaça das fábricas dos subúrbios londri-
nos. Subimos colinas, descemos ravinas, percorremos ermos [...]
Nunca fui a São Petersburgo, a cidade russa onde toda essa trama se desenro-
la, mas, mal comecei a ler, senti-me caminhando pela grande avenida Nevski,
com toda a naturalidade (CRUZ, 2010, p. 28, 37, 67).
Quando se trata da apropriação que o leitor faz da cultura através das narrati-
vas, o uso da imaginação fará toda a diferença, fazendo com que o leitor adentre nas
entrelinhas dos enunciados, buscando sentidos mais elevados, ou seja, se transpor-
tando para o espaço da narrativa. Vygotsky (2009, p. 24) afirma que “tendo por base
a narração ou a descrição de outrem, ele [o leitor] pode imaginar o que não viu, o que
não vivenciou diretamente em sua experiência pessoal”. Portanto, é notória a existên-
cia do processo criativo do personagem no decorrer de suas experiências literárias.
Elias passeia por lugares caracterizados pelo narrador dos livros que lê. O
que Vygotsky caracteriza como sendo base de todo exercício de criação, é apresen-
tado nitidamente no perfil leitor do protagonista: “Ignorei o conselho de minha avó
e peguei o trem em São Petersburgo. Lá fui nessa viagem de tantas horas em direção
a Vladivostok” (CRUZ, 2011, p. 75). A leitura feita ocorre em âmbitos na vida cul-
tural, possibilita a criação artística, científica e técnica, sendo assim, toda a criação
do homem, do mundo da cultura e da natureza é objeto da imaginação e criação
humana.(VYGOTSKY, 2009, p. 14). O autor chama de atividade criadora toda a
realização humana criadora de algo novo, tratando-se de reflexos de algum objeto
do mundo exterior, assim como determinadas construções do cérebro e sentimen-
tos que são manifestados pelo ser humano.
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Um leitor em construção
Assim como uma pessoa se constitui numa relação muito ampla com o outro,
um texto não existe sozinho, é carregado de palavras e pensamentos mais ou
menos conscientemente roubados, sentem-se influencias que o subtendem,
parece sempre possível nele descobrir-se um subtexto [...] Em vez de obedecer
a um sistema codificado muito estrito, a intertextualidade busca mais, hoje,
mostrar fenômenos de rede, de correspondência, de conexão, e fazer dele um
dos principais mecanismos da comunicação literária (SAMOYALT, 2008, p.42).
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Estudos Literários
O tempo foi passando, parágrafo por parágrafo, e um dia voltei a olhar para
o exemplar de A Ilha do Dr. Moreau. E o li. (CRUZ, 2011, p.26)
[...]
Uma semana depois, encontrei-me de novo sentado com Stevenson. Apesar
de ele ser um grande escritor, cabíamos os dois, com folga, na poltrona que
pertencera a meu pai. Bebi um chá com ele, observando-o na capa, olhos nos
olhos: O Estranho Caso de Dr. Jekyll e do Sr Hyde, lia-se em letras imponen-
tes, de outros séculos (CRUZ, 2011, p 48).
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e sim alusiva a alguma realidade, pois, sendo fenômeno natural, elenca paisagem,
emoções, ânsia de explicação e dilemas, fatores ocorridos na relação entre fantasia e
realidade, questões que abrangem a função da literatura, que não só contribui com
a formação do homem, mas também satisfaz suas fantasias.
Antônio Cândido compreende a literatura como sendo a competência advin-
da da arte literária de comprovar a humanidade do homem e as contribuições que
desempenha na sociedade:
[...] na medida em que nos interessa também como experiência humana, não
apenas como produção de obras consideradas projeções, ou melhor, trans-
formações de modelos profundos, a literatura desperta inevitavelmente o in-
teresse pelos elementos contextuais. Tanto quanto a estrutura, eles nos dizem
de perto, porque somos levados a eles pela preocupação com a nossa identi-
dade e o nosso destino, sem contar que a inteligência da estrutura depende
em grande parte de se saber como o texto se forma a partir do contexto, até
constituir uma independência dependente (se for permitido o jogo de pala-
vras). Mesmo que isto nos afaste de uma visão científica, é difícil pôr de lado
os problemas individuais e sociais que dão lastro às obras e as amarram ao
mundo onde vivemos (CÂNDIDO, 2012, p. 82).
O jovem leitor vai além da leitura, em sua imaginação ele percorre o espa-
ço descrito pelo russo Dostoiéviski em sua obra Crime e castigo: “Nunca fui a São
Petersburgo, a cidade russa onde toda essa trama se desenrola, mas, mal comecei
a ler, senti-me caminhando pela grande avenida Nevski, com toda a naturalidade”
(CRUZ, 2010, p. 67). Elias conta um pouco da história desse personagem Raskol-
nikov como um narrador onisciente, e um dos seus ideais era ir ao encontro desse
personagem misterioso, que poderia ajudá-lo a encontrar seu pai: “Tinha de encon-
trar um assassino para encontrar meu pai” (CRUZ, 2010, p. 83).
A obra de Robert Louis Stevenson, A Ilha do Tesouro, texto lido por Elias, apre-
senta uma história cheia de mistérios e ação, tem como personagem principal um jo-
vem corajoso que vai em busca de um tesouro, e no decorrer desse processo desvenda
mistérios, enfrenta batalhas e faz grandes descobertas. O texto prende a atenção do
leitor de modo que transmite a sensação de estar vivenciando aqueles acontecimentos:
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Estudos Literários
A lista era interminável, mas quem o procurava era o Stevenson. Peguei dois
livros dele: A Ilha do Tesouro e O Estranho Caso do Dr. Jekyll e do Sr. Hyde. Ha-
via um terceiro, sobre um tal Florizel, príncipe da Boêmia, mas decidi deixar
este para depois. Folheei os dois primeiros a procura de anotações. Não en-
contrei nenhuma em nenhum deles, e comecei por ler o da Ilha do Tesouro,
por me parecer ter um título mais sugestivo (CRUZ, 2011, p. 43).
Para Machado (2002, p. 87), “A ilha do tesouro tem uma fina observação
sobre o processo de curiosidade e do medo [...] um livro que brinca com o medo do
leitor [...] sobre o bem e o mal ambíguos, [...] sobre o fim da inocência e os cami-
nhos do crescimento”. A menção a esse texto feita por Afonso Cruz não é simples
referência a uma obra conhecida e intitulada literatura clássica, e sim, uma grande
demonstração de que Stevenson apresenta um personagem jovem com as caracte-
rísticas do jovem de qualquer época, ou seja, aquele sujeito que vai em busca dos
seus ideais, que sofre, descobre, conquista e além de tudo, experimenta algo novo.
Em se tratando de uma figura representativa da fase juvenil, existem dramatizações
que não só refletem a realidade do leitor, como também o encorajam ao crescimen-
to no processo de desenvolvimento pessoal.
A autora Maria Luiza Bretas em sua obra Cinco diálogos sobre o livro e a
literatura (2013) registra uma entrevista com Michéle Petit em que a autora afirma
que a leitura possibilita o leitor se distanciar do inferno que o rodeia como, por
exemplo, brigas dos pais, no geral, conflitos cotidianos, sendo o livro um porto
seguro para a criança/adolescente, que o serve de companhia diariamente, pro-
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Considerações finais
Constatamos que a leitura literária faz com que o leitor possa enxergar a vida
de uma maneira diferente. A literatura modifica o olhar sobre o mundo, as pessoas,
e a si mesmo, sendo um passaporte para o descobrimento de outras realidades,
paisagens, modos de viver e pensar a vida e viagem interior. Tudo pela forma como
a leitura literária compartilha sentimentos e situações do outro [o personagem], ou
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a voz que fala, o eu lírico que humaniza e ajusta os laços que compõem a grande
família dos homens (BRETAS, 2013, p. 9).
O leitor encara as dificuldades da vida, faz uma coleta daquilo que irá pro-
duzir conforto em seu interior, e assim, cria oportunidades de alcançar com êxito o
conhecimento de mundo e de si. Considera-se, portanto, que: “... um bom livro deve
ter mais do que uma camada, deve ser um prédio de vários andares (CRUZ, 2011,
p.14). Tais andares remetem a sentidos a serem alcançados que possibilitará a com-
preensão das circunstâncias da vida e irá auxiliar em cada etapa a ser ultrapassada,
cada degrau a ser seguido.
Referências bibliográficas
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instrumento de iniciação da criança no mundo da cultura escrita. In: SOUZA,
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São Paulo: Perspectiva, 2005.
MACHADO, Ana Maria. Como e por que ler os clássicos universais desde cedo. Rio de
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SAMOYALT, Tiphaine. A Intertextualidade. Tradução Sandra Nitrini. São Paulo:
Hucitec, 2008.
SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais.
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VYGOTSKY, L.S., Imaginação e criatividade na infância. Tradução: Voobrajenie e
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_______. La imaginacion y el arte em la infância. Madri – Eapanha: Akal básica de
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Estudos Literários
Corpos heterotópicos ou o
lugar das personagens em
Van Helsing: O Caçador de
Monstros
Alisson Cardoso da Silva1
Introdução
“Van Helsing: o caçador de monstros” é uma produção fílmica norte-ameri-
cana de 2004 que faz uma releitura da obra da Bran Stoker. Aqui, o protagonista é
Gabriel Van Helsing um mercenário desmemoriado que trabalha para uma organi-
zação secreta da igreja católica sediada no Vaticano.
No filme, o insólito que impulsiona instauração do horror dá-se em função
do caráter movente, pluriforme, justaposto das espacialidades (corpos e espaços
sociais). Vampiros, lobisomens, monstros de toda a sorte irrompem na narrativa
e merecem especial atenção uma vez que nos permitem questionar que relação po-
de haver entre suas espacialidades corporais, pluriformes, metamórficas, em todo
o caso, desgovernadas, e o posicionamento social ocupado pelos sujeitos. Corpos
peregrinos, espacialidades moventes que deixam ver o caráter transgressor dos su-
jeitos metamorfoseados.
Para tratar do gênero a que se insere a narrativa recorremos aos postulados
de Tzvetan Todorov (2010) e David Roas (2013). Quanto dos espaços, nosso estu-
do pauta-se no conceito de heterotopia e utopia apontadas por Michel Foucault e,
através das leituras da professora doutora Marisa Martins Gama Khalil, as noções
de liso e estriado definidas por Gilles Deleuze e Félix Guattari.
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Do maravilhoso
A primeira cena a que o expectador é exposto leva-o, de imediato, ao campo
do maravilhoso. Transilvânia, 1887. Enquanto o doutor Frankenstein, ocupado em
suas experiências, acaba de dar vida a um cadáver, ou, mais precisamente, partes
unidas de cadáveres, seu castelo está sendo invadido por moradores que repudiam
suas atividades e o querem morto. Neste momento, confirmando a hipótese do ex-
pectador, surge o conde Drácula, vampiro que busca na criação do doutor Fran-
kenstein a possibilidade de manter viva sua prole.
Segundo a conceituação feita por Todorov (2010), no gênero maravilhoso
os acontecimentos sobrenaturais não produzem efeito algum nem nas persona-
gens nem no leitor implícito. A hesitação fundamental para a definição do gênero
fantástico deve, no maravilhoso, ser de todo ausente. Para David Roas (2013), o
maravilhoso é definido pela inexistência de conflito no contexto no qual os even-
tos sobrenaturais acontecem, (“a realidade”). O maravilhoso é, então, marcado pela
coexistência não problematizada entre o real e o sobrenatural na narrativa. A não
problematização confere aos acontecimentos seu status de verdade e os legitima
sem causar espanto ou admiração para o leitor por não estabelecer conexão ente
o universo real, empírico e o ficcional. Conforme notamos já na primeira cena do
filme, natural e sobrenatural coexistem sem a presença de qualquer questionamen-
to. Ao alçarem uma caçada ao doutor Frankenstein, as personagens estão certas
da possibilidade de concretização e seus experimentos, e por isso o temem. Não
há especulação ou dúvidas quanto ao sucesso de seu trabalho. O monstro é visto
e temido. Mais adiante, ao final da referida cena, ao notar que algumas coisas se
aproximam pelo céu, uma das personagens logo as identifica como sendo vampiros,
fazendo com que os demais presentes corram. A fuga, mais que a identificação, é-
nos a prova de que no contexto em que os fatos são narrados o sobrenatural não só
é natural como também uma ameaça à integridade física.
A aceitação do sobrenatural, a não problematização, movem a narrativa para
um universo distante ao do leitor, o que o impossibilita questionar, estranhar, ou
admirar os acontecimentos. Ao citar Irene Bessière, David Roas aponta para tal
afastamento promovido pelo maravilhoso:
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No conto de fadas, o “era uma vez” situa os elementos narrados fora de toda
a atualidade e impede qualquer assimilação realista. A fada, o elfo, o duende
do conto de fadas se movem em um mundo diferente do nosso, paralelo ao
nosso, o que impossibilita toda contaminação. (Bessière, 1974 p.32 apud Ro-
as, 2013 p. 33)
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armas para o combate. Embora religioso, suas atividades estão, também, pautadas
pela lógica científica. Isso tudo faz com que o científico e o insólito, o empírico e o
transcendente se mesclem, se confundam, se legitimem.
Portanto, o que temos, desde o primeiro instante é uma narrativa que se inse-
re em um universo distante ao do leitor, diferente. Um universo maravilhoso. Toda
sorte de criaturas ambienta-se em consonância com seres humanos. Os conflitos
que se desenvolvem neste ambiente não são outros senão os que buscam a estabi-
lidade, a paz, o triunfo do bem sobre o mal neste espaço no qual tudo é possível e,
portanto, natural.
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daquele no qual está assentado o castelo, portanto seu alcance se dá pelo atraves-
sar entre ambos. O castelo é, portanto, fronteira e passagem. É caro ressaltar, neste
ponto da análise, que o portal, aberto no momento em que Van Helsing completa
uma inscrição em um quadro na parede, apresenta-se em forma de espelho. Este
objeto ocupa posição central nos modos de posicionamentos descritos por Michel
Foucault. Segundo o filósofo, há, entre as utopias e as heterotopias,
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2 Entendido, aqui, como modo e não gênero, o fantástico abriga o maravilhoso, o estranho, o fantástico
puro, etc.
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pelo jovem frade Carl quando também Van Helsing aponta a bondade da criatura e
seu direito de viver ao que o jovem responde querer, Roma, ele morto, pois, mesmo
não sendo mal, também não é humano. É um ser o qual sua metamorfose revela não
só o seu caráter transgressor, mas o de seu criador. Primeiro ele é biologicamente e
divinamente extraordinário; sua existência dá-se de maneira contrária às leis da na-
tureza e de Deus. Nasce da junção de partes distintas de corpos distintos que, reani-
mados, ganham nova vida a partir da nova forma. Quanto do doutro, vale lembrar
que seu trabalha intenta ser “um triunfo da ciência sobre Deus”. Frankenstein bem
como o conde Drácula, atua em direção oposta às leis e à obediência divinas. Quer
elevar a ciência e seu trabalho aos de Deus; é malquisto, saqueador de túmulos; seus
experimentos e se propósito contrariam a normalidade e a regra sendo, então, um
sujeito marginal, transgressor.
Outro sujeito em cuja metamorfose revela a transgressão é o senhor Hyde,
personagem de O Estranho caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde de Robert Louis Steven-
son, que no filme é caçado por Van Helsing a mando do vaticano. Hyde representa o
lado demoníaco do doutor Jekyll que acredita ser o ser humano possuidor do bem e
do mal concomitantemente. Obviamente que a transformação do doutor no mons-
tro Hyde é a transgressão do médico que, deixa o equilíbrio em razão do exagero,
do desgoverno. Como ensina Nilton Milanez (2009, p. 291) apud Khalil (2013), “o
desgoverno de si é condenado pela sociedade da regra, que em seus códigos de ju-
risprudência” pune os homens “pelas marcas visíveis” da sua “intemperança.”
A mutação representa, ou melhor, expõe o domínio de uma faculdade men-
tal sobre a outra, a temperança, E como aponta Nilton Milanez (2013, p. 12) lendo
Fred Botting (1996) “o excesso é uma forma de transgressão dos limites da realidade
e da possibilidade. Por isso, nesse domínio, se apresentam sementes diabólicas e
incidentes sobrenaturais.” Em função do descomedimento do seu lado mal o doutor
avança os limites do interdito e da normalidade.
A intemperança é, também, o veículo motor da transgressão do protagonista
Van Helsing que também tem seu corpo transfigurado, metamorfoseado. Também
ele avança as zonas limites impostas pela norma e apresenta-se cindido ente o real e
o insólito, entre a lei e a transgressão.
Conforme já apontado anteriormente neste estudo, Van Helsing apresenta,
desde o início da narrativa, existência peculiar uma vez que é perene. Desmemo-
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riado, sua mente apenas formula quadros dispersos de seu passado enigmático. Ao
logo da trama, Van Helsing, em combate com um lobisomem, acaba sendo mor-
dido. O processo de transformação dá-se aos poucos; lentamente a personagem
sofre os efeitos da maldição que lhe ocupa o corpo até a transformação completa
durante um embate contra o conde Drácula. Conforme a linha de observação tecida
nesta última parte de nosso trabalho, a relação das metamorfoses dos corpos com
a transgressão operada pelos sujeitos, temos indícios do caráter discutível de Van
Helsing pelo que opera seu corpo. Sua memória, como afirma o cardeal Jinette, fora
arrancada como castigo por antigos pecados, e durante um curto diálogo com o
conde Drácula, este lhe revela terem sido rivais no passado, e Van Helsing, a mão
esquerda de Deus, o teria assassinado. Assassino, é como o protagonista é também
conhecido; enquanto uns lhe têm prestígio por seus atos, outros o perseguem. Sua
natureza enigmática posta ao lado do caráter dúbio aponta para sua intemperança,
seu descontrole.
Recorro uma última vez às palavras do professor Nilton Milanez. Ao analisar
o corpo de Nogueira, personagem do filme o coronel e o lobisomem, o professor
nos diz que: “o homem transformado em lobisomem apresenta sintomas de não-
controle de suas faculdades mentais”, sendo sua metamorfose “a exteriorização de
aspectos corporais que representam o estado interior de um homem” (MILANEZ,
2013, p. 13). O desgoverno de Van Helsing ganhará materialidade no corpo do lobi-
somem em que se transforma; neste momento, também Van Helsing deixa o equi-
líbrio da razão em função do domínio pleno de seu lado obscuro. Prova máxima
da ausência de domínio de suas faculdades mentais vê-se ao final da cena na qual
trava luta com Drácula; matando drácula, o lobisomem parte para cima de Anna
Valerios, no momento em que esta vai em sua direção com a cura para a maldição.
O resultado do encontro é a morte de Anna.
Conclusão
Isto posto, fica-nos evidente o papel das espacialidades na produção de sen-
tido na narrativa. Espaços que por funcionarem através do exagero, do desgoverno
movem-se em direção oposta à norma, ao habitual. O efeito resultante deste movi-
mento é o horror. O corpo monstruoso é de outra ordem que não a da norma, da
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Referências
FOUCAULT, Michel. Outros espaços. In: _______. Ditos e Escritos III: estética,
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Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. PDF. Disponível em < https://
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e no cinema / organização Nilton Milanez, Jamille da Silva Santos. Vitória da
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TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Tradução Maria Clara Correa
Castello. 4ª – 2ª reimpressão. ed. São Paulo: Perspectiva, 2004.
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Estudos Literários
O insólito e o onírio em “A
mão no ombro”, de Lygia
Fagundes Telles
Amanda Letícia Falcão Tonetto 1
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Estudos Literários
Para lidar com esse “sentimento inquietante”, faz-se necessário irmos a uma
noção postulada por Sigmund Freud, a de estranho, inquietante. Para Freud, o
inquietante:
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
não foi arquitetado para ser contido ou confinado. O que foi concebido para
“por fim”, para delimitar territórios com precisão como se fosse uma linha
divisória, espraia-se em uma zona de interface e de transição entre dois mun-
dos tomados como distintos. (HISSA, 2002, p. 35-36)
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Estudos Literários
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perfume de ervas úmidas? [...], mas o que é isso, estou no jardim? De novo? E
agora, acordado, espantou-se [...]. Tocou na figueira, sim, outra vez a figueira
[...] (TELLES, 1998, p. 114)
O verde é uma cor recorrente na escrita de Lygia Fagundes Telles. Essa cor,
que prevalece no jardim, frequentemente é associada a temas felizes e à vida, mas
aqui pode fazer alusão também ao mofo, à decomposição e à morte. Segundo Ga-
ma-Khalil:
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Estudos Literários
morte, mas também a ressurreição. O cinza é o que sobra depois que o fogo
cessa, é o que sobra do corpo humano, representando, assim, a nulidade, o
niilismo. Mas se as cinzas associam-se ao fim, à morte, encontram-se asso-
ciadas ao eterno retorno, à ressurreição. Como no verde, vida e morte regem
a simbologia da cor cinza. (GAMA-KHALIL, 2017, p. 189)
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
incompleto, sem solução; c) o que ficou reprimido. Desse modo, esses sonhos, que
representam uma continuação do que foi vivido durante o dia, podem apresentar
mais aspectos do fantástico.
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Estudos Literários
detesta caçadas, de repente está dentro de uma, e começa a se questionar se ele seria
“o artesão que trabalhou na tapeçaria” ou um dos caçadores retratados na cena, na
tentativa de entender o que estaria fazendo ali dentro.
É comum, às duas narrativas, a incerteza causada pelo espaço onde os per-
sonagens se encontram, já que são espaços fantásticos onde as lembranças se mis-
turam com a realidade, de modo a provocar a hesitação: em “A mão no ombro”, as
lembranças da infância do personagem vêm à tona quando este se encontra dentro
do jardim do sonho, misturando as memórias ao ambiente onírico, enquanto em “A
Caçada”, o personagem tenta, incessantemente, lembrar-se de qual era o seu papel
na cena da tapeçaria que reconhecia de maneira tão evidente. Também é comum
a presença de um caçador, mencionada dentro dessas duas espacialidades. Além
disso, em ambos os contos, a natureza tem influência na ambientação da narrativa,
uma vez que o cenário principal dos contos são um jardim e um bosque. Frequen-
temente os espaços bosque e jardim são projetados por escritores e críticos literários
como metáforas para a ficção, como no livro teórico de Umberto Eco (1994) Seis
passeios pelos bosques da ficção e no conto de Jorge Luis Borges (1999) intitulado “O
jardim das veredas que se bifurcam”.
No primeiro conto, o jardim é comparado ao jogo de quebra-cabeça com a
cena de um caçador escondido em um bosque:
Era uma caçada. No primeiro plano, estava o caçador de arco retesado, apon-
tando para uma touceira espessa. Num plano mais profundo, o segundo ca-
çador espreitava por entre as árvores do bosque, mas esta era apenas uma
vaga silhueta, cujo rosto se reduzira a um esmaecido contorno. Poderoso,
absoluto era o primeiro caçador, a barba violenta como um bolo de serpentes,
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
É possível também relacionar a forma como a morte é tratada nos dois con-
tos. O personagem de “A mão no ombro” sabe que um caçador “familiar” tocaria
seu ombro, e quando o fizesse, ele morreria, de joelhos no chão:
Esse caçador singularmente familiar que viria por detrás, na direção do ban-
co de pedra onde ia se sentar, logo ali adiante tinha um banco. Para não me
surpreender desprevenido (detestava surpresas) discretamente ele dará al-
gum sinal antes de pousar a mão no meu ombro. Então eu me viro para ver.
Estacou. A revelação o fez cambalear, esvaído numa vertigem: agora joelhos
no chão. (TELLES, 1998, p. 108)
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Estudos Literários
Referências
BACHELARD, Gaston. A Poética do espaço. Tradução de Antonio de Pádua Danesi.
2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
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de Aurora Fornoni Bernardini et al. São Paulo: HUCITEC, 1990.
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Roger; GRUNEBAUM, G.E. Von. O sonho e as Sociedades Humanas. Rio de
Janeiro: Francisco Alves, 1978. p. 27-50.
COVIZZI, Lenira Marques. O insólito em Guimarães Rosa e Borges. São Paulo: Ática, 1978.
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São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
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Morta; tradução, Inês Autran Dourado Barbosa. - 2.ed. - Rio de Janeiro: Forense
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Colucci. Rio de Janeiro: Bonecker, 2017.
FREUD, Sigmund (1919). O Inquietante. In: História de uma neurose infantil (“o homem
dos lobos”), Além do Princípio do Prazer e outros textos (1917-1920). São Paulo:
Companhia das Letras, 2010. p. 248-249.
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Estudos Literários
Paulo Leminski:
Da vanguarda concretista à
expressão da “várzea”
Ana Érica Reis da Silva Kühn1
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Estudos Literários
a ânsia
a advertência
a advertência dos portões
a advertência dos portões das mansões
das mansões senhoriais
a grave advertência dos portões de bronze.
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Estudos Literários
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2 Consideramos como leitor mediano aquele que lê sem propensões acadêmicas e sem se interessar em
analisar aspectos formais e estilísticos do texto, possivelmente,por desconhecer tais aspectos. Comumente lê
apenas para o seu próprio deleite.
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Estudos Literários
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
morreu o periquito
a gaiola vazia
esconde um grito. (LEMINSKI, 1992, p. 133)
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Estudos Literários
Além dos slogans poéticos, Leminski escreveu poemas que funcionam co-
mo letra de canção, ou vice-versa. Isso é possível porque, em seus poemas, poesia
e melodia estão conectadas. Ademais, atento à conexão entre poesia e música, o
poeta deseja “que seus textos – transformados ou não em canções – transcendam a
mudez da página” (ALEIXO, 2004, p. 290). Para Marcelo Sandmann (1999, p. 13),
Leminski se interessou pela publicidade e pela música, porque eram veículos que
favoreciam a realização de “mensagens que funcionam”, ou seja, que alcançavam
um público maior. Dentre os poemas que migraram para a canção, podemos citar
“para que leda me leia”, publicado no livro Distraídos venceremos:
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
o leitor a criar também a sua própria versão musical. Desse modo, ratifica a relação
entre o poema e a esfera musical.
Consideramos que os recursos aqui mencionados e utilizados por Leminski,
para possibilitar a comunicação e a aproximação da sua poesia com o “público mais
numeroso”, como denominou o próprio poeta, configuram uma expressão poética
relacionada à “várzea”. Essa expressão vinculada à “várzea” pode ser considerada co-
mo um revide pop à produção poética que é destinada apenas a um público douto,
como é o caso da Poesia Concreta.
A “várzea” é constituída pelos elementos que fazem parte dos mass media,
como a publicidade e a música, e por aqueles que possibilitam ao leitor uma com-
preensão quase imediata da poesia, como a coloquialidade, o humor e o trocadilho.
A respeito da importância da “várzea” para a sua poesia, Leminski (1999, p. 208)
declara que a verdade está na “força nos times de várzea, nessa várzea subdesen-
volvida, que eu quero”. Ainda, conforme o poeta, o time da “várzea” pode competir
ao lado dos grandes times, e, para isso, torce: “quero a vitória/ do time de várzea”
(LEMINSKI, 1983, p. 81).
Ao migrar da vanguarda concretista para uma expressão oriunda de uma
“várzea” poética, Leminski não está realizando uma poesia fácil e banal. Essa nova
reorientação pela qual passa a sua dicção está relacionada a um projeto consciente
e de cunho ético e estético, empreendido pelo próprio poeta, e pelo qual coloca a
serviço a sua poesia. Ético porque esse projeto poético é movido pela inquietação
do poeta em diminuir a “falésia” comunicativa que se instalou entre o leitor e a
poesia. Tal “falésia” já havia sido discutida por João Cabral de Melo Neto (2008) na
conferência “Função moderna da poesia”, que fora apresentada no Congresso de
Poesia de São Paulo em 1954, quando o poeta chama atenção para o abismo que se
instalou entre a poesia e o homem moderno:
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Estudos Literários
Carlito Azevedo, por tudo que se viu, fez um esforço notável de desinfan-
tilizar o estado atual da poesia brasileira, posicionando‑se com seu herme-
tismo de circunstância, por assim dizer barroco‑raciocinante, contra a in-
fracomplexidade e a miséria reflexiva dos jogos de linguagem, trocadilhos,
epigramas gráfico-visuais ou festivais paronomásticos que, dos concretistas
aos marginais, culminando na obra de Paulo Leminski, rebaixaram a com-
plexidade do poético a mera jogatina linguística.
Referências
ALEIXO, Ricardo. No corpo da voz: a poesia-música de Paulo Leminski. In: DICK,
André; CALIXTO, Fabiano (org.). A linha que nunca termina: pensando Paulo
Leminski. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004. p. 289-296.
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
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Estudos Literários
Introdução
O conto O papel de parede amarelo, de Charlotte Perkins Gilman, publicado
no final do século XIX, em 1892, é considerado um clássico da literatura feminis-
ta. Nesse conto, temos uma mulher que “sofrendo dos nervos” é levada durante o
verão para uma casa bem isolada a fim de cuidar de sua enfermidade. Essa mulher
é obrigada pelos médicos e marido a não exercer nenhuma atividade física e men-
tal. Logo, ela se vê presa dentro de uma casa e, o que considera pior, fica instalada
dentro de um quarto infantil, o qual possuía um horrendo papel de parede amarelo.
O papel de parede aflige e angustia a personagem não apenas por ser, em sua
ótica, feio, mas também porque ele instiga a personagem a refletir sobre o seu papel
enquanto mulher. É a partir dessa reflexão que a personagem realiza sobre como a
mulher é vista na sociedade que propomos, com este trabalho, repensar e analisar
1 Graduanda em Direito pela ESAMC campus Uberlândia. Graduada em Design com habilitação em Pro-
gramação Visual. Ex servidora pública da Prefeitura do Município de Joinville, atuando na Secretaria de Segu-
rança. Participante do Grupo de Pesquisas em Espacialidades Artísticas UFU/CNPq. Participante de grupos
de estudos relacionados à literatura feminista.
2 Doutoranda em Estudos Literários na Universidade Federal de Uberlândia – UFU. Mestre em Estudos
Literários pela Universidade Federal de Uberlândia - UFU. Vice-líder do Grupo de Pesquisas em Espaciali-
dades Artísticas UFU/CNPq e integrante do grupo de estudo Nós do insólito: vertentes da ficção, da teoria e
da crítica - UERJ. Estudos com ênfase no espaço literário, narrativa fantástica, com interesse especial sobre a
obra do escritor Graciliano Ramos.
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
John é muito atencioso e amável, não permite que eu dê um passo sequer sem
instruções especiais. (GILMAN, 2016, p.15)
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Estudos Literários
final deste mesmo século. O movimento marcou atividades feministas que pleitea-
vam igualdade de direitos, fundamentados na cidadania, educação, direito à pro-
priedade e ao divórcio. Sendo possível perceber na passagem abaixo:
“Ora, como poderia, querida? São apenas mais três semanas, depois faremos
uma pequena e agradável viagem durante alguns dias, enquanto Jennie ter-
mina de arrumar a casa. Estou falando sério, querida, você está melhor!”
“Minha querida”, disse John. “Eu lhe imploro, pelo amor que tem a mim e ao
nosso bebê, pelo amor que tem a mim e ao nosso bebê, pelo amor que tem
a si mesma, que nem por um momento permita que essa ideia lhe entre na
cabeça! Não há nada tão perigoso, tão fascinante, para um temperamento
como o seu. Trata-se de uma ideia falsa e tola. Não confia em minha palavra
de médico?”
Assim, é claro, não toquei mais no assunto, e sem demora fomos dormir. John
deve ter pensado que adormeci primeiro, mas na verdade fiquei acordada du-
rante horas tentando determinar se os padrões em primeiro e segundo plano
de fato se moviam juntos ou separadamente. (GILMAN, 2016, p. 42)
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Tenho uma agenda com prescrições para cada hora do dia; ele se ocupa por
completo dos meus cuidados, e, portanto sinto-me uma ingrata por não lhe
dar mais valor. (GILMAN, 2016, p. 16)
Lá vem John; preciso pôr isto de lado – ele detesta que eu escreva. (GILMAN,
2016, p.18)
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Estudos Literários
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
O Código Civil de 1916 era uma codificação do século XIX, pois foi no ano de
1899 que Clóvis Beviláqua recebeu o encarrego de elaborá-lo. Retratava a so-
ciedade da época, marcadamente conservadora e patriarcal. Assim, só podia
consagrar a superioridade masculina. Transformou a força física do homem
em poder pessoal, em autoridade, outorgando-lhe o comando exclusivo da
família. Por isso, a mulher ao casar perdia sua plena capacidade, tornando-se
relativamente capaz, como os índios, os pródigos e os menores. Para traba-
lhar precisava da autorização do marido. (DIAS, s.a, s.p)
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Estudos Literários
Ele disse que, com o poder de imaginação que tenho e meu hábito de inven-
tar histórias, uma debilidade dos nervos como a minha só pode resultar em
fantasias exaltadas, e que devo usar minha força de vontade e meu bom senso
para controlar essa propensão. É o que tento fazer. (GILMAN, 2016, p.22)
Daí ele me tomou nos braços e me chamou de tolinha. (GILMAN, 2016, p. 21)
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Se observarmos o lugar das mulheres na formação dos textos que fazem parte
da história será mais fácil entender isso. Os homens produziram discursos,
apagaram os textos das mulheres e se tornaram os donos do saber e das leis,
inclusive sobre elas. Tudo o que sabemos sobre as mulheres foi contado pelos
homens. Da filosofia à literatura, da ciência ao direito, o patriarcado confirma
a ideia de que todo documento de cultura que restou é um documento de
barbárie. (TIBURI, 2018, p. 48)
[...] toda pessoa tem deveres com a comunidade, posto que somente nela
pode-se desenvolver livre e plenamente sua personalidade. No exercício de
seus direitos e no desfrute de suas liberdades todas as pessoas estarão sujeitas
às limitações estabelecidas pela lei com a única finalidade de assegurar o res-
peito dos direitos e liberdades dos demais, e de satisfazer as justas exigências
da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática.
Estes direitos e liberdades não podem, em nenhum caso, serem exercidos
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Estudos Literários
Tenho uma agenda com prescrições para cada hora do dia; ele se ocupa por
completo dos meus cuidados, e, portanto sinto-me uma ingrata por não lhe
dar mais valor. (GILMAN, 2016, p. 16)
Lá vem John; preciso pôr isto de lado – ele detesta que eu escreva. (GILMAN,
2016, p.18)
Como defende Tiburi, 2018, “[...] o romantismo nas relações familiares, que
são muitas vezes as mais cruéis, servem para garantir a função do casamento e da
maternidade”. Logo, ao passo que estas relações são idealizadas como modelo de
ilustre felicidade, oprimem um lado e abonam o outro; desestabilizando a balança
cujo motor propulsor seria a equidade.
Pode-se perceber, portanto, que a personagem do conto é concebida como
incapaz e tal incapacidade é atestada pelas condições de produção do discurso, já
que existiam leis normatizando uma sociedade, na qual a mulher tem o seu direito
atrelado à existência do homem, como o artigo 242 do código civil de 1916, cujo
texto tinha por previsão legal restringir determinados atos da mulher sem autori-
zação do marido.
O artigo 380 do Código Civil Brasileiro de 1916, dá o pátrio poder (na an-
tiguidade, pater: era o poder ilimitado sobre os filhos, enquanto a mãe, totalmente
submissa, nada podia decidir quanto à educação dos filhos) ao marido, ou seja, todo
o poder de decisão sobre os membros da família e tudo aquilo que concerne à ela
é concedido ao homem, como direito de herança, registar os filhos, controle sobre
as finanças.
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
derado o chefe da família em todos os âmbitos. Seu poder era tão absoluto
que nem o próprio Estado chegava a interferir nas decisões feitas por ele no
âmago de seu grupo familiar.” (CORDEIRO, 2016, p. 01).
Art. 380. Durante o casamento, exerce o pátrio poder o marido, como chefe
da família (art. 233), e, na falta ou impedimento seu, a mulher.
Art. 380. Durante o casamento compete o pátrio poder aos pais, exercendo-o
o marido com a colaboração da mulher. Na falta ou impedimento de um dos
progenitores, passará o outro a exercê-lo com exclusividade. (Redação dada
pela Lei nº 4.121, de 1962).
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Estudos Literários
Relevante apontarmos que, até hoje, esse conceito é usado para desclassifi-
car mulheres vítimas de violência sexual. Ou seja, a mulher sempre está à margem
da sociedade, das normas que a regem e, mais do isso, ela é culpada por qualquer
fissura dos padrões normativos discursivos da vontade de verdade da sociedade
patriarcal. Há um momento no conto em que a personagem percebe os padrões
discursivos e como eles são segregatícios:
Á noite, sob qualquer tipo de luz – à luz do crepúsculo, à luz das velas, à luz
de lampiões ou à luz da lua, que é a pior -, transforma-se em grades! Estou
falando aqui do padrão em primeiro plano, e a mulher que se esconde por
trás dele torna-se tão evidente quanto pode ser.
Por muito tempo fui incapaz de distinguir o que era aquela coisa em segundo
plano, aquele subpadrão indistinto, mas agora estou bastante certa de que se
trata de uma mulher. Durante o dia ela é discreta, calada. Imagino que seja o
padrão que a mantenha tão quieta. É intrigante. Faz com que eu fique quieta
durante horas. (GILMAN, 2016, p.45)
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
VI. Litigar em juízo civil ou comercial, a não ser nos casos indicados nos arts.
248 e 251.
A análise das relações de poder deve “[...] tomar como ponto de partida as
formas de resistência contra as diferentes formas de poder.2 [...] Mais que analisar
as relações de poder do ponto de vista da sua racionalidade interna, fazê-lo através
dos antagonismos das estratégias” (FOUCAULT, 2007, p. 3). Os antagonismos so-
ciais, segundo Foucault, estão cristalizados em três principais formas de lutas: - no
campo político - as lutas contra a dominação, as lutas étnicas, sociais e religiosas;
- no campo econômico - as lutas contra a exploração, frente aos processos que sepa-
ram os indivíduos daquilo que produzem; no campo ético as lutas contra as formas
de sujeição, submissão e subjetivação, isso é, contra aquilo que ata o sujeito a si e
o submete a outros. Quanto às lutas de transformação da subjetividade, histori-
camente as que dominam o mundo contemporâneo, Foucault (2007, p. 4) afirma:
“Não basta, dizer que essas são lutas antiautoritárias, é preciso definir o que têm em
comum”. (RODRIGUES DOS SANTOS, 2016.p. 269).
Os movimentos feministas partiram de aspirações de inserção social, busca
por direitos além de deveres; ainda que a palavra “FEMINISMO” tenha ganhado
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Estudos Literários
Rosa Luxemburgo, em sua época, por exemplo, não pensava que o direito ao
voto, a grande questão das sufragistas, fosse solução para os problemas das
mulheres, pois não via como o voto poderia mudar a estrutura da sociedade.
[...] Hoje, sabemos que o direito ao voto só faz sentido se estiver junto ao
direito de sermos votadas em um país como o nosso, no qual as mulheres
ocupam um espaço mínimo nos parlamentos”. (TIBURI, 2018, p. 85).
Considerações finais
A personagem, ao tentar descobrir no papel de parede amarelo, os padrões
que regem a sociedade, acaba representando o anseio de rompimento desses pa-
drões, vislumbrando as mudanças que estavam começando a surgir na sociedade,
como a obra Uma reivindicação pelos direitos da mulher (1792) de Mary Wollsto-
necraft, em que a autora afirma que a mulher não deve receber apenas uma educa-
ção doméstica e sim ter direito à educação formal, ou seja, ter os mesmos direitos
dos homens. Além disso, temos o início do movimento sufragista, no qual as mu-
lheres começaram a reivindicar o direito ao voto, ou melhor, o direito de terem voz
na sociedade. Desse modo, podemos perceber que as normais - leis são reflexo da
sociedade, de uma vontade de verdade, que no caso do conto e das condições de
produção, na qual ele está inserido, demonstrando as mulheres como sujeitos opri-
midos, subjugadas as normas de uma sociedade patriarcal, mas que estão começan-
do a entender esses papeis e tentando sair deles, os desconstruindo.
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Referências
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Estudos Literários
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Estudos Literários
Considerações iniciais
Trabalhar com a leitura é, antes de tudo, adentrar em um campo de inesgo-
táveis questionamentos que procuram explicar tanto nossas primeiras tentativas de
compreender o mundo, quanto o uso que fazemos dela ao longo de toda a vida. Em
diversos contextos, sob várias perspectivas e em relação às diferentes interações que
tecemos continuamente, produzimos sentidos constitutivos de nós e do espaço que
nos cerca.
Nós professores temos a função de prepararmos nossos cidadãos críticos
capazes de inferir na organização de uma sociedade mais consciente e democrá-
tica. Logo, devemos ter sempre a consciência de que a educação é uma forma de
intervenção no mundo, ou seja, o professor deve se aproveitar de sua postura de
formador para desenvolver a criticidade de seus alunos, fazê-los desvincular apenas
das disciplinas obrigatórias e desenvolverem pontos de vista sobre diversos assuntos
relacionados, torná-los opinantes e questionadores diante do mundo em que vivem.
A preocupação com o processo de leitura enquanto uma competência eficaz
de compreensão, trouxe, sob diversas epistemes, principalmente nas áreas de Psi-
cologia, Sociologia, Antropologia e Linguística, contribuições relevantes que ampa-
ram os professores em suas práticas em sala de aula.
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Numa época em que urgia mudanças dado o novo cenário social que se apre-
sentava, os PCNs vieram, como fruto das inúmeras pesquisas, respaldar o ensino.
Levantando pontos basilares, os Parâmetros ressaltam que
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
2 O uso eficaz da língua, segundo os PCNs, deve satisfazer necessidades pessoais tais como relacionar-se às
ações efetivas do cotidiano, à transmissão,à busca de informação e ao exercício da reflexão.
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Estudos Literários
3 Hans Robert Jauss, estudioso germânico que trabalhou com a teoria da recepção, denomina de horizontes
de expectativas quadros de referências que incluem convenções estético-ideológicas possibilitadoras de pro-
dução e reprodução de um texto. Esses quadros permitem a comunicação e são assim definidos em relação
ao leitor e a obra literária: “A atitude de interação tem como pré-condição o fato de que texto e leitor estão
mergulhados em horizontes históricos, muitas vezes distintos e defasados, que precisam fundir-se para que a
comunicação ocorra” (BORDINI; AGUIAR, 1988, p. 83).
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Por meio destas reflexões é que compreendemos que os textos a serem traba-
lhados com os alunos também seriam um ponto essencial para o sucesso de nosso
projeto, já que seriam eles os nossos instrumentos para o incentivo à leitura e à
paixão pela literatura e a apresentação da mesma como algo compreensível e de
possível inserção à realidade dos alunos.
Segundo Calvino (1993, p. 10): “Dizem-se clássicos aqueles livros que cons-
tituem uma riqueza para quem os tenha lido e amado; mas constituem uma riqueza
não menor para quem se reserva a sorte de lê-los pela primeira vez para apreciá
-los.” Para muitos alunos este seria o primeiro contato efetivo com a Literatura em
sua forma mais prazerosa e enriquecedora, sem as “algemas” das análises prontas e
a mera obrigação da leitura para processos seletivos e não poderíamos desperdiçar
a oportunidade de conquistar estes leitores.
Dessa forma, Machado de Assis por meio de sua já consagrada como obra
clássica seria um meio rico o suficiente para atingirmos nossos propósitos, e con-
quistarmos novos leitores. Por isso foi efetuada a escolha dele para os alunos de
Ensino Médio e Fundamental que, por meio de seus contos (textos cuja extensão é
condizente para a leitura e interpretação em uma ou duas aulas de cinquenta mi-
nutos), nos auxiliariam a desenvolver a habilidade e o gosto pela leitura crítica em
nossos discentes.
Machado de Assis, apesar de não ser contemporâneo a nós, consegue por
meio de sua obra traduzir formas de pensar e comportamentos atuais, trazendo di-
lemas humanos que se aplicam perfeitamente à realidade vigente. Machado de Assis
trata com maestria dos conflitos humanos e seus valores, sendo seus contos, em sua
maioria, com temáticas e discussões contemporâneas a nós. Mostrar aos alunos que
por trás de uma história presente no conto há a discussão de questões universais
como por exemplo: a mentira, o egoísmo, a covardia, e os conflitos internos do ser
humano quanto às suas ações e crises de consciência sobre elas é revelar a magia da
Literatura em guardar em seu texto uma série de discussões e questões que cabe ao
leitor descobrir e interpretar.
O curso que foi intitulado: “Desenvolvendo uma visão crítica e ética em jovens
leitores por meio de contos” com suas especificidades para o Ensino Fundamental
e Médio, respeitando as diferenças e peculiaridades presentes nestes dois tipos de
98
Estudos Literários
4 Cada uma das propostas trabalhadas foram descritas passo a passo, apresentando inclusive, formas de
avaliação segundo a especificidade de cada conto.
5 Dentre os contos estudados no minicurso estão também Como se inventaram os almanaques, Três tesouros
perdidos e Conto de escola.
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
100
Estudos Literários
mesmo com o autor (Machado de Assis). A apresentação dos resultados, lidos pelo
professor, capacita os alunos a julgamentos, reflexões críticas e posicionamentos.
Os objetivos da aula serão alcançados se nas discussões os alunos forem ca-
pazes de produzir reflexões críticas sobre “‘O Enfermeiro” e sobre fatos da própria
vida, tendo capacidade de julgamento sobre o tema principal do conto e da aula.
Também deverão ser capazes de estabelecer ligações com o conto machadiano e te-
cerem reflexões sobre sua postura cotidiana ao relacionarem os perfis apresentados
no resultado com os personagens do conto ou com o próprio autor.
Isso posto, enfatizamos que nossa proposta de leitura e compreensão, ad-
vinda de um uso eficaz da língua proposto pelos PCNs, pontua um trabalho que
alcança a exterioridade e ultrapassa a materialidade escrita. Ela favorece uma atua-
ção ativa do leitor e lhe proporciona múltiplas leituras e sentidos, enfim, exem-
plifica uma prática realmente preocupada com a formação de um leitor crítico e
consciente, cujo exercício da cidadania leve-o a construir, em diversas situações,
seus próprios conhecimentos. Esses, instaurados na dinamicidade, na troca e na
interação, demonstra que não é na imobilidade de formas, estruturas e sentidos que
eles se edificam.
101
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
102
Estudos Literários
Urge, portanto, conceber que é só pela língua que o indivíduo se torna sujeito
e só por meio dela, ele tem condições de refletir sobre si mesmo e sobre o mundo.
Diante de tudo isso, resta ao educador, em meio a tantas adversidades que lhe apre-
sentam, saber ultrapassar as fronteiras do papel e do texto para conduzir os leitores
a infinitas formas de compreensão, numa leitura verdadeiramente crítica e cidadã.
Referências
ASSIS, M. Um apólogo. In: A Cartomante e outros contos. São Paulo, Moderna, 1995.
_______. O enfermeiro. In: A Cartomante e outros contos. São Paulo, Moderna, 1995.
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi
Vieira. São Paulo: Hucitec, 1995.
BRASIL, Parâmetros Curriculares Nacionais: primeiro e segundo ciclos do ensino
fundamental, Língua Portuguesa/Secretaria de Educação Fundamental. –
Brasília: MEC/SEF, 1997, p. 19-27.
_______. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino
fundamental, Língua Portuguesa/Secretaria de Educação Fundamental –
Brasília: MEC/SEF, 1998, p. 17-24.
CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
CÂNDIDO, Antônio. O direito à literatura.In: _______. Vários escritos. São Paulo: Duas
Cidades,1995.
FREIRE, P. A importância do ato de lerem três artigos que se completam. São Paulo:
Cortez, 1984.
SUCESSO, Os Paralamas do. In: 9 Luas, EMI Music, 1996.
103
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Heloneida Studart
em trilogia: A mulher
apresentada e representada
em “O estandarte da agonia”
Beatriz Mendes e Madruga1
Introdução
Entre as décadas de 1960 e 1980, enquanto o Brasil atravessava momentos
marcantes do ponto de vista político, outros movimentos sociais tomavam também
lugar, manifestando-se no espaço, na mídia, na arte. Dentre esses movimentos, fi-
guram, por exemplo, a luta proletária, o sindicalismo, o movimento do trabalhador
do campo, o feminismo. Em meio a esse cenário plural, a arte produzida no Brasil
apresentava, ao leitor, vozes, posições, contrastes, tensões, e muitas delas articulavam
esse diálogo entre o político e o artístico, o social e o narrativo. Nesse espaço e tempo,
a narrativa figura como frequentemente o faz: enquanto forma artesanal de comuni-
cação, onde não há interesse em transmitir o “puro em si”, à guisa de transmitir uma
informação ou fazer um relatório de seu tempo (BENJAMIN, 1936, p. 205). Entre-
tanto, diante de tal contexto social e histórico, as informações de seu tempo apare-
cem entrelaçadas à ficção por vezes servindo em denúncia, militância, representação.
A autora aqui sob estudo, Heloneida Studart (1925-2007), publicou a qua-
se totalidade da sua obra ficcional entre as décadas de 1960 e 1980. Nascida em
Fortaleza (CE) e falecida no Rio de Janeiro (RJ), além de escritora, Heloneida Stu-
dart foi também jornalista, sindicalista, deputada pelo Rio de Janeiro por diversos
mandatos, mãe de seis filhos. Sua atuação política foi marcada pelo sindicalismo,
1 PPGEL - UFRN
104
Estudos Literários
meio-ambiente, e pelo feminismo. Seu papel enquanto ativista dessa última frente é
inaugural no Brasil: foi fundadora do Centro da Mulher Brasileira, primeira orga-
nização feminista do país.
Dentre suas obras, figuram romances, livro-reportagem, literatura infantil, en-
saios, biografia. Seus ensaios de vertente feminista incluem: “Mulher, brinquedo do
homem?” (1969); “Mulher, objeto de cama e mesa” (1975); “Mulher, a quem pertence
seu corpo?” (1989). Na sua ficção, são famosos os volumes “Deus não paga em dólar”
(1968); e sua Trilogia da Tortura, composta pelos romances: “O pardal é um pássaro
azul” (1975); “O estandarte da agonia” (1981); “O torturador em romaria” (1986).
O romance “O estandarte da agonia” narra os dias de agonia da mãe Açuce-
na, personagem e narradora, que está em busca do filho Luís, desaparecido durante
a ditadura militar. Açucena vai em busca de seu filho em diferentes quartéis do Rio
de Janeiro, e também em organizações noutras cidades (São Paulo, Belo Horizonte).
Entra em contato com militares, torturador, presos políticos, advogados. Sua traje-
tória é espécie de paráfrase para a busca da estilista Zuzu Angel, cujo filho Stuart
desapareceu de modo semelhante durante a ditadura – e nunca foi encontrado.
É essa obra aqui posta em estudo. Em “O estandarte da agonia”, a narrativa
dá lugar à cena política dos desaparecidos políticos, dos desmandos do governo ci-
vil-militar, da trivialidade da tortura, mas também dá grande espaço para possíveis
representações da mulher. As personagens femininas, seus discursos e os discursos
sobre elas apresentam, ao leitor, diferentes representações sobre a mulher no tempo
e no espaço dessa narrativa. Em leitura detalhada, para além da sequência narrativa
do livro, vê-se um discurso representativo sobre a mulher e seus papéis, comporta-
mentos, expectativas, funções sociais. Esses aspectos serão esmiuçados em catego-
rias de análise, as quais muito se repetem ao longo do texto narrativo.
Referencial teórico
As atuações políticas e artísticas de Heloneida Studart são visivelmente in-
trincadas e articuladas entre si. É inseparável a atuação política (sindical, feminista,
militante) da sua produção literária. Aliás, separar esses dois campos não se assume
como algo necessário ou mesmo aconselhável a se fazer. O fazer artístico apresen-
ta-se como inseparável do fazer político e militante; do mesmo modo que a obra é
105
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
106
Estudos Literários
política e da discussão social (de classes) também aparece, e justo entre essas fron-
teiras transcorre a vida ainda mais intensa da obra literária (BAKHTIN, 2017, p. 12).
Para dar conta de bem observar e por conseguinte analisar as representações
do feminino que aparecem no romance de H. Studart, fez-se uso das orientações
metodológicas previstas em Bakhtin (2017), donde a interpretação do texto deve
seguir os seguintes atos particulares: a percepção do signo físico; a compreensão do
seu significado geral na língua; compreensão do seu significado no contexto mais
próximo e no contexto mais distante (posto que a obra ganha e perde sentidos ao
longo dos tempos); a compreensão ativo-dialógica. Nesse caminho, compreende-se
primeiro o significado para depois compreender os sentidos latentes no texto; o
significado é eminentemente linguístico, já os sentidos são dialógicos, relacionados
ao contexto, ao leitor, ao ser-evento do enunciado.
A compreensão ativo-dialógica, por sua vez, é o momento da interpretação
criadora, da “percepção visual (contemplação) e da adição por elaboração criado-
ra (BAKHTIN, 2017, p. 64). Nisso significa entender que o momento analítico de
uma obra, conforme aqui empreendemos, de verificar as representações da mulher
presentes no texto de Studart, é essencialmente dialógico: a interpretação feita pelo
leitor é criadora, produtora de sentidos; os sentidos latentes no texto são observados
a partir de um prisma individual, ideológico, contextual muito específico. Lendo
Heloneida Studart nos anos 2000, seguindo essas etapas de método propostas por
Bakhtin (2017), serão verificadas diferentes formas de enxergar e de falar da mu-
lher, de apresentá-la e representá-la.
107
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
- Bobagem. Deve estar por aí com alguma garota. E faz muito bem. É como
dizia Romivaldo, meu pai: “Mulher é a única carne do mundo que não tem
reima.” (p. 08)
- Ainda acordada?
- São duas da madrugada, Pedro. É a segunda noite que ele está fora de casa.
- Você está se esquecendo do seu marido. Pense nele. Que homem gostaria de
ter uma mulher no estado em que você se encontra?
Ela sempre se apresentara ao meu pai formosa e perfumada (...). (p. 62)
- Eu só penso em meu marido. (...) Não sou como certas pessoas que não se
enfeitam nem se perfumam para receber o esposo. (p. 80)
108
Estudos Literários
- Se me tirou da casa do meu pai, é para me respeitar e dar boa vida. Ameacei
fazer uma loucura. [...] Acho que o desgosto dele começou quando soube que
eu não podia ter filhos. (p. 35)
- Por favor, não minta. Não sou política, não entendo dessas histórias... Sou
apenas uma mãe desesperada. (p. 57)
(...) Depois me disse que as paredes daquele escritório pareciam papel mo-
lhado por estarem encharcadas do pranto de mães como eu. [...] As mães
se tornavam nômades, começavam a uivar à porta dos quartéis e distritos
policiais. (p. 71)
Existe um sádico nesse quartel da Tijuca, que costuma telefonar às mães. Para
dizer mentiras: “Olhe, seu filho foi posto, às dez da manhã, no pau-de-arara”.
“Olhe, sua filha está sendo violentada na sala apelidada boate.” (p. 74)
(...) Sua coragem só falhara uma vez, quando tinham cortado os bicos dos
peitos de uma sua cliente com tesourinha, e ele vira o sangue correr em dois
jorros infinitos. (p. 71)
- É assim, eles não poupam adolescentes, nem mulheres, nem mesmo bebês.
O que significa torturar um bebê? Está aqui nos meus fichários: bebê supli-
ciado para fazer a mãe falar. (p. 116)
(...) lembrava que Militão costumava a obriga-la a repetir cem vezes: “sou
uma puta”.
- E ela repetia?
109
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
- E eu tenho todos os telefones dele. Se quer, posso ligar para Militão amanhã
e peço que lhe marque um encontro. A senhora irá?
- As mulheres são loucas – suspirou. – Qualquer dona de casa pode virar uma
criminosa. Alice era uma boba, uma demonstradora de produtos de beleza.
Quando foi preciso, se comportou na maior temeridade. (p. 96)
- Acho que poderia ter me telefonado de São Paulo. Eu nem sabia onde você
estava.
- Dona Açucena, uma outra mãe cujo filho desapareceu, mandou carta ao
presidente dos Estados Unidos.
110
Estudos Literários
111
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
também, a associação do feminino com a vigilância, da moça que deve ser vigia-
da e protegida pela família, na intenção de manter comportamentos tidos como
adequados para o gênero: dormir em casa todas as noites (p. 08), chegar cedo em
casa (p. 08), ter o pai sempre por perto (personagem balconista da loja de doces).
Nessa oposição, também aparece o reforço do que é tido como comportamento
devidamente masculino: relacionar-se com muitas mulheres (p. 30), chegar em casa
tarde ou não dormir sempre em casa. Essas oposições carregam consigo o cunho
heteronormativo, cotejando nesse discurso que o aceitável é, por primazia, que o
desejo seja, também, heterossexual, e que os comportamentos e todo o discurso
consequente sejam binários para que se mantenha tal organização heteronormati-
va. Conforme nos diz Butler (2017, p. 44): “A heterossexualização do desejo requer
e institui a produção de oposições discriminadas e assimétricas entre ‘feminino’ e
‘masculino’, em que estes são compreendidos como atributos expressivos de ‘macho’
e de ‘fêmea’.”
As categorias de casamento e de maternidade aparecem em diferentes mo-
mentos na narrativa de Heloneida, mas são dois grupos intimamente relacionados
quando vamos verificar, na literatura, a ideia burguesa da mulher preparada para
ser esposa e mãe zelosas, e cobrada para continuar sendo, durante casamento e ma-
ternidade, essa mãe e essa esposa com extrema dedicação ao marido, filhos e casa.
112
Estudos Literários
silêncio ou pela reflexão interna do que está sendo dito. Assim sendo, vemos, na
narrativa de Heloneida, a manutenção desses valores na sociedade desse tempo,
mesmo que já um pouco modificados ou um pouco flexibilizados. Ainda assim, é
exigida da personagem principal bem como das demais mulheres desse contexto
sócio-histórico, a imagem materna e matrimonial, o “capital simbólico” necessário
ao marido (D’INCAO, 2013).
A tortura, por sua vez, quando acontecia contra mulheres durante a ditadura
civil-militar, era marcadamente sexualizada, ou, outras vezes, atingia características
tipicamente femininas de modo simbólico (como na passagem onde o torturador
suplicia um bebê para fazer a mãe da criança confessar).
Para Beauvoir – como para Wittig –, a identificação das mulheres com o “se-
xo” é uma fusão da categoria das mulheres com as características ostensi-
vamente sexualizadas dos seus corpos e, portanto, uma recusa a conceder
liberdade e autonomia às mulheres, tal como as pretensamente desfrutadas
pelos homens. (BUTLER, 2017, p. 47-48)
113
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
114
Estudos Literários
Considerações finais
O que se vê no romance “O estandarte da agonia” vai além de uma narrativa
(baseada em história real) que fala de seu contexto imediato. Nessa obra, Heloneida
Studart dá espaço amplo para representar a mulher, o feminino, de modo plural e
não estável, conforme sugere Butler (2017), de modo a colocar em texto uma po-
tencialidade de sentidos capazes de ser verificados e pensados na vida posterior da
obra (Bakhtin, 2017). A representação da mulher dá-se em aspectos vários, aqui
reunidos em cinco diferentes categorias para ilustrar, servir de exemplo e de discus-
são. Essas categorias reafirmam a pluralidade dessa identidade feminina, ao mesmo
tempo em que servem de reflexão para verificarmos quais ideias elas veiculam –
quais sejam: tradição, conservadorismo, binarismo, objetificação do corpo femini-
no, ideais burgueses de século anterior ao livro.
Reunir e pensar sobre essas categorias promove o debate e a reflexão em
torno da identidade feminina, do conceito de feminino, um gênero cujo debate e
definição é contemporâneo e permeado por tensões dialógicas. O discurso, fora e
dentro da literatura, é grande responsável na construção de tais referências; e aqui,
posto em análise, ele revela o quanto a literatura é, também, ato político, o quanto a
representação literária também é afirmação política. Nesse raciocínio, essa obra de
Heloneida sugere um feminismo transparente, não panfletário nem expressamente
115
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Referências
BAKHTIN, Mikhail. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Trad. Paulo
Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2017.
_______. Teoria do romance I: a estilística. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34,
2015.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. Ouro Sobre Azul: Rio de Janeiro, 2014.
CUNHA, Cecília. Uma escritora feminista: fragmentos de uma vida. Estudos Feministas,
v. 16, n.1, Jan./Abr. 2008.
D’INCAO, Maria Ângela. Mulher e família burguesa. IN: Del Priore, História das
Mulheres no Brasil. 10ª. Ed. São Paulo: Contexto, 2013.
STUDART, Heloneida. O estandarte da Agonia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
_______. O pardal é um pássaro azul. Civilização Brasileira: São Paulo, 1975.
_______. O torturador em romaria. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.
116
Estudos Literários
A inserção do romance
A festa, de Ivan Ângelo
na contemporaneidade
Brenno Fernandes Soares1
João Batista Cardoso2
Introdução
O presente artigo parte de uma discussão a respeito das questões verticaliza-
das a respeito da interface entre a História e a Ficção, na narrativa de Ivan Ângelo,
intitulada A Festa (1976). Fazendo esse recorte temático para pensar as questões
políticas, históricas e ficcionais presentes na narrativa em questão. O autor escolhi-
do para direcionar a discussão sobre a temática apresenta uma representatividade
singular, no âmbito de seu engajamento político e social, em um momento histórico
brasileiro bastante conturbado, o que direciona sua prosa de ficção como categori-
zado por alguns críticos, uma das mais expressivas prosas de resistência do período.
O romance (:contos), A Festa (1976), começado a ser escrito, dentro de um
projeto em 1963 e somente finalizado em 1975, portanto, dentro do momento de
forte censura ocasionada pelo golpe militar brasileiro de 1964, impossibilitando a
publicação da narrativa. Dentro desses impasses, percebemos, nesta narrativa, es-
pecificamente, um projeto de criação literária, muito particular, para driblar a cen-
sura e difundir sua obra ao público.
Neste artigo, busco propor uma leitura da narrativa que divide-se aos moldes
da construção do romance em questão. A Festa (1976) está dividida em nove capí-
tulos – ou contos, e aqui busco pensar esses nove contos, em dois grandes quadros.
1 PPGEL/UFG-RC
2 PPGEL/UFG-RC
117
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
118
Estudos Literários
posto de que esses direitos devem ser mantidos e também aprimorados. Entre 1946
e 1964, é sem dúvidas, inquestionável que esses anos que antecedem o Golpe Militar
foram melhores.
O Golpe de 1964, advindo de vários impasses ocorridos entre os anos de
1946 e seus anos subsequentes. Parte de uma proposta que, introduzida no país,
apresentaria uma mudança radical no âmbito da base organizacional da política
vigente no país, até então. A formalização do golpe não foi necessária para que essa
nova organização pudesse iniciar suas truculências. Antes mesmo de formalizá-lo,
uma lista de nomes para serem cassados, foi divulgada, entre eles encontravam-se
os pioneiros da esquerda brasileira, na época e outros que se opuseram ao regime
ditatorial que embora não formalizado, estava vigente no país.
As truculências do golpe militar que assolou a vida dos brasileiros, entre
1964 e 1988, iniciou logo nas primeiras horas, partindo de uma perseguição que
deve ser bastante frisada: violenta. Uma perseguição aos opositores que foram iden-
tificados como esquerdistas, como o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), a
União Nacional dos Estudantes (UNE), as Ligas Camponesas e grupos católicos co-
mo a Juventude Católica (JUC) e a Ação Popular (AP). A quantidade de pessoas que
foram presas aproxima-se ao número de cinco mil, e vale ressaltar que as estatísticas
apontam que esse número de pessoas que foram torturadas e vítimas da brutalidade
desse regime ditatorial, eram pessoas advindas do Nordeste.
Por meio da repressão, a organização do regime ditatorial difundiu-se no
país. A tortura, desde 1964, veio sendo utilizada em todas as medidas, tanto gran-
des, como pequenas, como meios de repressão e perdurou durante todo o regime
ditatorial, com o objetivo de obter informações, intimidar, reprimir e estabelecer o
terror entre as pessoas que se opuseram ao regime vigente. Na medida em que os
atos ocorriam, os mesmos aperfeiçoavam-se. A repressão acabou por atingir as clas-
ses mais populares, que organizavam-se e movimentavam a onda contra o regime
ditatorial vigente.
119
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
120
Estudos Literários
Ao terminar este meu estudo, percebo ter sempre falado de “níveis de reali-
dade”, enquanto o tema do nosso simpósio soa (pelo menos em italiano): “Os
níveis da realidade”. O ponto fundamental de minha comunicação talvez seja
exatamente este: a literatura não conhece a realidade, mas somente níveis.
Se existe a realidade de que os vários níveis não são mais do que aspectos
parciais, ou se existem somente níveis, isto a literatura não pode decidir. A
literatura conhece a realidade dos níveis e esta é uma realidade que conhece,
talvez, melhor de quanto não se chegue a conhecê-la por meio de outros pro-
cedimentos cognitivos. É já muito. (CALVINO, 2009, p. 10)
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
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Estudos Literários
diz respeito ao direcionamento do olhar para os textos que refletem não apenas às
mazelas sociais que perpassam o tempo histórico materializado nas narrativas, mas
que transcendem esse olhar, e (re)configuram extratos sociais para a formação de
um status quo.
Em continuidade ao levantamento base de conceituação de Agamben sobre
a contemporaneidade, percebemos uma segunda proposta de leitura enviesada por
um olhar filosófico daquilo que pretendemos evidenciar enquanto contemporâneo.
Essa segunda concepção elabora algumas questões que dizem respeito ao que está
representado no campo das produções literárias e o olhar que está sendo direciona-
do a partir das leituras daqueles que se propõem a pensar a respeito de seu próprio
tempo, representando, no campo literário os ritmos de uma sociedade marcada por
esse ritmo acelerado em decorrência da modernização dos espaços urbanos, por-
tanto, “[...] contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para
nele perceber não as luzes, mas o escuro.” (AGAMBEN, 2009, p. 62)
Ao retomarmos essa segunda concepção de contemporaneidade estabelecida
por Agamben, que pouco se distancia da proposta primeira, portanto, complemen-
ta-se, pensamos que“[...] pode dizer-se contemporâneo apenas quem não se deixa
cegar pelas luzes do século e consegue entrever nessas a parte da sombra, a sua
íntima obscuridade.” (AGAMBEN, 2009, p. 63), essa ideia de que aquele que na
materialidade do texto representa os extratos sociais da contemporaneidade, está
redirecionando o olhar para as mazelas sociais existentes e as (re)configuram.
As representações dos grandes centros urbanos, no âmbito da ficção, apon-
tam para o desenvolvimento das múltiplas formas de existência, como destacado
por Pellegrini a respeito do campo social, político, ideológico e estético. Essas quatro
esferas elencadas fazem parte de uma espiral, sendo ela um meio de uniformização
desse caminho estético que é representado na literatura contemporânea. Todavia,
lembramos das proposições de Schollhammer a respeito do papel da representação
na contemporaneidade.
123
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
A partir de 1970, que ficou sendo o ano da desgraça, e muito mais conhe-
cido pelo apelido do que pelo nome verdadeiro de 1970, os habitantes de
Curralin’u, interior do sertão de Alagoas, não emigraram mais para os Sul.
Dezessete famílias de Curralin’u emigraram em março daquele ano, cha-
mado de desgraça, para Belo Horizonte, Belerizonte na opinião da maioria.
Voltaram sete famílias e Virato, em agosto; faltavam dez famílias inteiras e
mais treze pessoas das famílias que voltaram, incluindo a mulher de Viriato,
124
Estudos Literários
Corridos seis anos, desde que o golpe militar fora instaurado no Brasil, 1970,
como menciona o narrador, ficou conhecido como o ano das desgraças. O momen-
to em que a tortura, legalizada, e a perseguição aos opositores, após a prática, pas-
sou a ser aprimorada e intensificada. Viriato, embora estivesse no mesmo impasse
em que Marcionílio de Mattos, ambos retirantes nordestinos, buscando refúgio em
Belo Horizonte, acompanhado das demais famílias, conta a sua história e dentro de
sua própria história, destoa da constituição política de Marcionílio de Mattos.
125
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Nota que foi publicada pela Polícia Federal em todos os jornais de Belo Ho-
rizonte, como menciona o narrador, a respeito da morte de Marcionílio de Mattos,
um dos personagens que é vítima do regime militar, na narrativa de Ivan Ângelo,
embora tenhamos um relato feito pelos militares, encontramos algumas evidências
de propostas de deslegitimações da luta de Marcionílio Mattos. Propondo que o
mesmo atentou contra as forças armadas e pela segurança dos próprios policiais,
tiveram que alvejá-lo. Marcionílio é a representação dos muitos mortos políticos ao
longo da ditadura militar brasileira, que aniquilou os opositores ao golpe.
Em contraponto com o acontecimento na Praça da Estação, que é um dos
fios condutores da narrativa de Ivan Ângelo, temos o outro momento – a festa, de
fato, em que podemos visualizar a relação com o real. A festa, que ocorre no aparta-
mento de Roberto Miranda, para comemorar o aniversário do mesmo, acaba sendo
invadida por militares, por meio de denúncias. E os horrores, que conseguimos
visualizar através das imagens discursivas feitas pelo narrador, são a representação
daquilo que aconteceu e acontece.
126
Estudos Literários
Considerações Finais
Percebemos, na narrativa de Ivan Ângelo, uma multiplicidade de discursos
que representam o real, atravessado por uma variedade de narradores e modos de
narrar, a construção narrativa de A Festa (1976), coloca em questão o fazer literário
na contemporaneidade, por meio das várias significações representativas que per-
passam a narrativa.
A representação do homem, enquanto sujeito que luta contra um regime
ditatorial vigente, sendo representado, metaforicamente, oferece-nos uma signifi-
cação daqueles que opuseram-se ao regime ditatorial vigente de 1964 a 1988. Por
meio da narrativa de Ivan Ângelo, podemos ter uma percepção do caos que fora
instaurado com a queda do regime democrático e a destituição total dos direitos
civis. Apontando, portanto, para uma nova constituição de realidade, sendo perce-
bida por um outro viés. Representa-se o tempo vivido, por meio dos discursos dos
vários extratos sociais, (re)configurados pela ordem desvendada.
O romance pode ser considerado uma metáfora das truculências do regime
ditatorial brasileiro, por meio de sua fragmentação discursiva e através dessa pro-
posta de composição de um romance que é delineada através de uma colagem de
peças de um quebra-cabeças que as peças estão soltas e encaixam-se de acordo com
o direcionamento da fluidez do texto literário, não seguindo aos padrões da linea-
ridade, inovando nos mecanismos discursivos para narrar o inenarrável. Uma obra
crítica e que pode ser considerada, também, auto-reflexiva.
Referências
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Trad. Vinícius
NicastroHonesko. Chapecó: Argos, 2009.
ÂNGELO, Ivan. A Festa. Rio de Janeiro: Geração Editorial, 2007.
127
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
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Civilização Brasileira, 2009.
128
Estudos Literários
Abrindo o envelope:
Confluências entre o estudo
de cartas e o processo de
criação literária
Carlos Augusto Moraes Silva1
Betina Ribeiro Rodrigues da Cunha2
Aparecida Maria Nunes3
Introdução
Guardar as cartas consigo,
Nunca mostrar a ninguém,
Não as publicar também:
De indiferente ou de amigo,
Guardar ou rasgar. Ao sol
Carta é farol.
(Mário de Andrade, A lição do Guru, Carta a Guilherme
Figueiredo, 17 de Fevereiro de 1945.)
1 Doutorando em Estudos Literários pelo Instituto de Letras e Linguística – ILEEL - Universidade Federal
de Uberlândia (UFU), [email protected]
2 Orientadora, Profa. do Programa de Pós-graduação em Estudos Literário – ILEEL - Universidade Federal
de Uberlândia (UFU), [email protected]
3 Coorientadora, Profa. Titular do curso de Letras da Universidade Federal de Alfenas – Universidade Fe-
deral de Alfenas (Unifal), [email protected]
129
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Nesses termos, Angelides (2001, p. 25) destaca a importância dos estudos das
correspondências para a Teoria e Historiografia Literária, ao enfatizar que:
4 A carta enquanto texto, segundo Moraes (2008, p. 8-9), “[...] atrai também os olhares das mais diversas
áreas do conhecimento, da história à psicologia (e psicanálise), da sociologia e filosofia às artes em geral, das
ciências exatas às biológicas, olhares que desejam captar testemunhos e ideologias, fundamentos artísticos
e científicos, experiências vividas ou imaginárias. Os estudos culturais privilegiam essa voz da intimidade
atravessada por ideologias. Na teoria e nos estudos literários, a carta/texto tanto pode ser ‘material auxiliar’,
ajudando a compreender melhor a obra e a vida literária, quanto escrita que valoriza a função estética/poética;
ou ainda, ‘texto literário’ nas paragens do romance epistolar”.
130
Estudos Literários
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
A carta é uma abertura que damos ao outro sobre nós mesmos. Em outras
palavras, ela não é um simples reflexo de si que se oferece para captar o olhar
fascinado daquele que convocamos para este fim, mas, sim, o processo de
escrita pelo qual o sujeito se produz, registrando a presença e o peso de ou-
trem na constituição de sua identidade. A imagem por demais estática do
espelho corre o risco, portanto, de traduzir de forma muito aproximativa a
relação complexa de figuração de si que se instaura na carta e que é, antes,
uma tentativa de inteligibilidade de si do que a simples captação especular.
Distanciada de seu uso primeiro – a conversa com o ausente, a carta convida
a uma pedagogia de si.
132
Estudos Literários
133
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
5 Em “A maçã no escuro”, romance de Clarice Lispector publicado em 1961, o narrador onisciente conta o
percurso de Martim que, para se livrar das consequências de um crime supostamente cometido, procura for-
jar um projeto de reinvenção da linguagem convencional. A fuga da personagem, logo após o ato criminoso,
desencadeia um processo de ruptura com o conjunto de elementos e relações que formavam seu mundo até
então. Nesse sentido, a linguagem desempenha um importante papel: convencido de que a linguagem conven-
cional tornava falsos os fenômenos e as coisas, Martim passa a rejeitá-la.
134
Estudos Literários
As mesmas advertências feitas aos historiadores podem ser aplicadas aos es-
tudiosos da Literatura que buscam, nos textos epistolares, respostas acerca da vida
e obra do autor. Existe, na maioria dos acervos disponíveis, o que Malatian (2011,
p. 202) chamou de “Memória consciente” ou “desejo de controle da memória”, de
preservação da imagem pública, e “a manutenção de segredos constitui, com fre-
quência, obstáculos a serem superados na busca das fontes epistolares e se com-
pletam com desejos, explícitos ou não, de exaltação memorialística por parte dos
detentores do acervo”. Assim, é preciso pensar em um ato de memória consciente e
questionar uma possível interferência sobre a espontaneidade do discurso epistolar.
Desde que foram publicadas, as correspondências trocadas entre Clarice Lis-
pector e diversos autores da Literatura se tornaram documentos capazes de elucidar
ou fornecer, aos leitores e estudiosos, pistas do processo criativo da autora de “A
paixão segundo GH”, de 1964. Em “Cartas perto do coração”, de 2001 e “Correspon-
dências”, de 2002 – coletâneas que reúnem parte desse acervo epistolográfico –, di-
versos temas se mesclam de maneira recorrente, como afetos, confissões, notícias da
vida social e política do país. Entretanto, essas temáticas quase sempre convergiam
para os meandros do processo de criação artística, residindo aí, provavelmente, o
valor das correspondências para os estudiosos da Literatura. Tal acervo epistolo-
gráfico expõe, ao grande público, nuances das reflexões de Clarice Lispector sobre
a criação de seus livros. Ademais, as cartas revelam uma autora sensível, atenta às
considerações feitas pelos companheiros de Letras.
Fernando Sabino e Lúcio Cardoso foram, sem dúvida, os destinatários mais
assíduos e amigos muito próximos. Porém, nomes como Carlos Drummond de
Andrade, Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto, Lêdo Ivo e Nélida Pinõn
compõem a vasta galeria de destinatários com quem Clarice se mantinha infor-
mada sobre as novidades no campo da Literatura, trocando impressões acerca da
composição de seus livros.
Ao acompanhar o marido em missões diplomáticas por 15 anos, “[...] Clarice
Lispector morou em diversos países de diferentes continentes, culturas e identida-
des. Período rico em aprendizados, experiências plurais, imagens de si, do outro e
do mundo” (CUNHA, 2012, p. 45). Essa fase é descrita por Clarice como momentos
de prazer ou um angustiante exílio, afastando-a da família, dos amigos e de seu
público leitor.
135
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Lúcio, você diz no seu artigo que tem ouvido muitas objeções ao livro. Eu
estou longe, não sei de nada, mas imagino. Quais foram? É sempre curioso
ouvir. Imagine que depois que li o artigo de Álvaro Lins, muito surpreendida,
porque esperava que ele dissesse coisas piores, escrevi uma carta para ele,
afinal uma carta boba, dizendo que eu não tinha “adotado” Joyce ou Virgínia
Woolf, que na verdade lera a ambos depois de estar com o livro pronto. Você
lembra que eu dei o título datilografado (já pela terceira vez) para você e disse
que estava lendo o Retrato do Artista e que encontrara uma frase bonita? Foi
você que me sugeriu o título... (MONTERO, 2002, p. 44).
6 O artigo de Lúcio Cardoso se refere à obra “Perto do coração selvagem” e foi publicado no Diário Carioca
em 12 de março de 1944.
7 Em fevereiro de 1944, Álvaro Lins faz uma crítica negativa ao romance de estreia de Lispector, “Perto do
coração selvagem”, considerado por ele “uma experiência incompleta”. A argumentação “[...] funda-se num
conceito de gênero romance, distinto de poesia, romance que, como tal, não permite a invasão exagerada e
indiscriminada do lírico; funda-se em critérios de totalidade, que não aceitam uma obra fragmentária sem
unidade íntima, sem solução final, sem equilíbrio; por critérios de objetividade, que não permitem que uma
personalidade de autora se manifeste com tanta força no romance [...]. É também Álvaro Lins que toca num
ponto delicado e que atormentará Clarice Lispector: a questão da influência [...]. Considera o romance ‘ori-
ginal’ nas nossas letras, embora não o seja na literatura universal, reconhecendo que é a primeira experiência
definida que se faz no Brasil do moderno romance lírico, do romance que se acha dentro da tradição de um
Joyce ou de uma Virgínia Woolf ” (GOTLIB, 1995, p. 1995).
136
Estudos Literários
Fernando,
Eu ia responder logo que recebi sua carta. Mas me deu uma crise de de-
sânimo em relação ao livro, que se tornou geral, então não quis escrever en-
quanto não passasse – sabendo que, com a graça de Deus, ou o desânimo
passaria ou eu passaria por cima dele.
Passei por cima dele. E embora sem crença, comecei a revê-lo. Só que tem
sido lentamente: tenho tido pouco tempo. Não sei como você teve paciência
com ele. Estou com pouca, ele é descozido, e tão mal escrito que muitas vezes
não dá jeito de consertar. Será que você irá ter paciência quando eu mandar
as correções citando página e linha? (As páginas com muita correção eu co-
pio inteiras, para serem substituídas). Me sinto encabulada até de ter pedido
a você para ler, mas enfim...
137
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
O mesmo, aliás, podia ser feito com Simeão Leal9. Parece-me que ele não
quer publicar e, como é mais fácil adiar “não”, ele adia. Nesse caso, que é que
você acha de eu escrever para ele, dizendo que não precisa mais publicar?
Clarice
(SABINO, 2001, p. 147-148).
Esse trabalho de leitura não pode ser ingênuo, pois o discurso das cartas nem
sempre pode ser tomado como verdade. Ele é construído em sujeição a deter-
minadas contingências, que às vezes exigem omissões e exageros indispensá-
veis ao missivista para alcançar os objetivos que almeja.
Ainda segundo o referido autor, assim como qualquer texto biográfico, a car-
ta não está livre do que se chama de “encenação da persona”. Por outro lado, Fou-
cault (2004, p. 156), aludindo à carta 83 enviada por Sêneca a Lucílio, destaca que:
8 Ênio Silveira (18 de novembro de 1925 – 11 de janeiro de 1996) foi um editor brasileiro e militante do
Partido Comunista Brasileiro. Dirigiu por muitos anos a editora Civilização Brasileira. Durante a ditadura
militar, editou numerosas publicações de oposição ao regime.
9 José Simeão Leal foi administrador, diplomata, crítico de arte, jornalista, médico e artista plástico. Em
1946, assumiu o cargo de diretor do Serviço de Documentação, do então Ministério de Educação e Saúde, no
período de 1947 a 1955. À frente desse órgão, tornou-se um incentivador e disseminador da cultura brasileira,
sendo responsável pelo lançamento e pela divulgação de vários talentos como o poeta Thiago de Mello, a
escritora Clarice Lispector e o cenógrafo Tomás Santa Rosa.
138
Estudos Literários
Escrever é, pois, ‘mostrar-se’, dar-se a ver, fazer aparecer o rosto junto ao ou-
tro. E deve-se entender por tal que a carta é simultaneamente um olhar que
se volve para o destinatário (por meio da missiva que recebe, ele sente-se
olhado) e uma maneira de o remetente se oferecer ao seu olhar pelo que de si
mesmo lhe diz. De certo modo, a carta proporciona um face a face.
Fernando,
Não recebi nenhuma carta de Ênio Silveira, calculo que ele não queira
publicar. Você podia dizer a ele para me escrever? Mesmo que seja para dizer
que não quer.
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Fernando, até breve. Diga se as correções vão lhe dar trabalho. Nesse caso,
arranjo outro jeito. Um abraço grande de sua amiga.
Clarice
(SABINO, 2001, p.150).
- Ainda não decidi sobre o título... Me disseram que cortasse o “A”, ficaria “Veia
no pulso”. Mas não só acho que muda o sentido, como fica muito lítero-musical:
estou enjoada de veias e pulsos. Tive algumas ideias, todas meio ruins. Como:
“O aprendizado”. Ou “A História de Martin”. Vou pensar ainda. Se você tiver
alguma iluminação, me ilumine, estou de luz apagada.
Página 1 a 3 (p. 13, linha 1) – Achei, em duas leituras, dispensável todo “pre-
fácio”. Meio precioso também. Repete coisas que o próprio livro já diz, as
que não diz poderiam ser aproveitadas no texto. Para mim, o livro começa
realmente em: “Começa (esta história) com uma noite...”
- Cortado “prefácio”. Substituída a página 3 (está junto das copiadas) [...] (SA-
BINO, 2001, p. 150).
10 Sabino (2001, p. 150), em nota, esclarece que “[...] caso o leitor de Clarice Lispector se interesse em con-
ferir, tanto as anotações aqui relacionadas, com menção de página dos originais, como as ementas da autora
em resposta, elas se fazem acompanhar de indicação da página e linha correspondente na atual edição do ro-
mance ‘A maçã no escuro’, Editora Rocco, 1998. Quase todas as sugestões foram aceitas. As não mencionadas
diretamente por ela levaram-na a recompor a página inteira: das quatrocentas e poucas dos originais, enviou-
-me em substituição nada menos que oitenta e três, completamente reescritas”.
140
Estudos Literários
141
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Considerações finais
Ao analisar as missivas trocadas entre Clarice Lispector e os destinatários
como um “ponto irradiador” para possíveis leituras e reflexões, ou ainda “[...] consi-
derando as cartas como deflagradoras de informações” (GUIMARÃES, 2004, p. 9),
o estudo que ora se apresenta visou compreender o processo criativo e a trajetória
ficcional da autora de “Água viva”, assim como as possíveis influências que os com-
panheiros de Letras exerceram na gênese de seus livros.
As cartas de Lispector descortinam mais do que um relato de experiências
pessoais; constituem um locus privilegiado de reflexão sobre a literatura e o proces-
so de criação. Tais correspondências revelam uma escritora consciente das ques-
tões que a crítica levantava a respeito do fenômeno literário e demonstram que seu
pensamento sobre a criação artística se encontrava em consonância com grandes
autores do século XX. Portanto, para além do valor histórico, é preciso reconhecer
as cartas de Clarice Lispector e de outros autores de nossa literatura como suporte
para discussão e reflexão sobre o fazer literário, em que sobressai o pensamento
artístico do escritor.
Referências
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142
Estudos Literários
143
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
144
Estudos Literários
Linguagem e
multiculturalismo em obras
literárias O Cortiço - Aluísio
de Azevedo, e Sertão sem fim
- Bariani Ortêncio 1
Introdução
Buscando identificar os diferentes contextos regionais, ao analisar as obras O
Cortiço, de Aluísio de Azevedo, 21ª edição, ano 1974, e Sertão sem fim, de Bariani
Ortêncio, 2ª edição, ano 2000, respectivamente escritores naturalista e regionalista
que retrataram aspectos de paisagens, segundo os seus contextos vividos, propor-
cionando considerável mostra de como a percepção da paisagem, da linguagem e
multiculturalismo pode ser vista e interpretada sob vários aspectos, de acordo com
o método de análise utilizado por quem as observam. O multiculturalismo é uma
expressão que designa “[...] a coexistência de formas culturais ou de grupos ca-
racterizados por culturas diferentes no seio das sociedades modernas.” (SANTOS;
NUNES. 2 003, p. 26).
Assim, nessa acepção perceptiva, as duas obras contextualizam cenários di-
vergentes, em O Cortiço, prevalece o espaço urbano do final do Século XIX (1890),
1 Obras literárias do contexto brasileiro em cenários distintos, analisadas para uso comparativo quanto a
linguagem e multiculturalismo, segundo o contexto da percepção geográfica.
2 PPGG/UFG/RC. Vinculada ao NEPSA/CNPq-UFG, [email protected]
3 PPGG/UFG/RC. Coordenador do NEPSA/CNPq-UFG, [email protected]
145
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
146
Estudos Literários
pode ser apreendido pelo olhar” (HOUAISS, 2001. p. 2105). A polissemia da paisa-
gem traz consigo muitas definições, dentre essas, como para Santos (2002, p. 66), “A
paisagem é o conjunto de formas que, num dado momento, exprimem as heranças
que representam as sucessivas reações localizadas entre homem e natureza”. O autor,
nesse contexto, agrega à paisagem ao fator da temporalidade na sua constituição.
As mudanças no cenário urbano, e o desenvolvimento deste, demonstram
as modificações na paisagem possibilitadas pelas ações do homem ao longo da sua
trajetória de civilização, desenvolvimento da força de trabalho e em relação aos as-
pectos ambientais e socioeconômicos. Na obra de Azevedo (edição de 1974) é pos-
sível perceber que a paisagem é produzida e reproduzida, através das ações que o
homem, consequenemente a sociedade humana, exerce sobre o território ocupado,
recriando paisagens sucessivas no tempo e espaço.
No cenário do desenvolvimento do cortiço, paisagem de vivência do perso-
nagem João Romão, percebe-se que os aspectos construtivos idealizados por ele fez
com que fossem construídas moradias de baixo valor socioeconômico, levando em
consideração a classe social daquele contexto, com isso, João Romão indiretamente
foi dando origem ao desenvolvimento comercial daquela região, e em suas estala-
gens, acolhendo uma vasta gama de trabalhadores/atores das indústrias e atividades
variadas de serviços daquele entorno e de lavadeiras que eram por ele alocadas.
Além disso, fatores relevantes e o uso de termos lingüísticos descritos no
decorrer da história evidenciam que a paisagem social e econômica daqueles que
ocupavam o espaço narrado eram, em sua maioria, imigrantes e pessoas de classe
econômica baixa, quase todos trabalhadores, num contexto social de exclusão.
Alguns aspectos, citados no decorrer da história narrada, são relevantes para
a percepção da paisagem como sendo uma periferia urbana em precárias condições
de subsistência. A narrativa e linguagem empregada também retratam aspectos dis-
criminatórios étnicos e sociais, como a violência, furtos, entre outros aspectos, pra-
ticados por João Romão que, em seu egoísmo, se rebelava em prol da conquista do
capital, escravidão, mais-valia e empoderamento da força de trabalho, entre outros
aspectos sociais e ambientais que alarmavam aquela população humana sofrida.
Com isso, é perceptível que, através da ação do homem e da sociedade sobre
o território, a paisagem vai sendo modificada para atender aos interesses locais,
“Levando em conta que cada ator social tem seu tempo próprio no espaço. Assim, a
147
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
148
Estudos Literários
estar acondicionadas a vários fatores como, por exemplo, escala de observação, em-
pirismo, método de análise, objetivos e formação cultural do sujeito/leitor.
Aprofundando ainda mais na obra O Cortiço, pode-ser perceber que as casas
do cortiço foram construídas aos poucos, de acordo com as condições financeiras de
João Romão. Após a construção, em uma lógica de organização do espaço, as casas
foram numeradas, o que remete a uma forma de organização socioespacial e tam-
bém de controle econômico, pois através da numeração dos espaços físicos, João
Romão poderia controlar os pagamentos de aluguel de seus locatários.
Outro aspecto relevante na obra é a linguagem empregada, conforme o tom
coloquial da época, podendo ser evidenciado o tempo espacial dos fatos, no final
do século XIX, em um ambiente urbano formado por diferentes personagens de
origens diversas e seus diferentes costumes.
Outra forma de subsistência e contextualização do espaço é percebida através
da indicação de uma pedreira próxima a um rio, retratando os agravantes da época
para o ambiente e a saúde dos trabalhadores, que não tinham nenhum tipo de apoio
de máquinas, equipamentos e técnicas eficientes para a execução dos trabalhos.
A mina, como é referida na obra, é de exploração de granito (um tipo de
rocha), o que leva a concluir que o espaço onde se passa a história possui solo com
predominância de rochas ígneas intrusivas, que se formaram quando o magma so-
lidificado em grande profundidade, devido ao lento resfriamento, fez com que os
cristais ficassem grandes, por terem tido tempo para se desenvolver, sendo o granito
é um exemplo de rocha intrusiva.
Outra matéria-prima descrita na obra é o Ferro, usado nas oficinas de ferrei-
ros para a confecção de equipamentos para a extração do granito e transformação
desse em matéria-prima diversas, principalmente para a construção civil. Além de
possibilitar a percepção dos aspectos da paisagem física do lugar em questão, a obra
coloca à disposição do leitor fatores que caracterizam ainda mais os atores/perso-
nagens da obra, tais como a indicação de signos e códigos, como as religiosidades,
as superstições, os hábitos e costumes e as migrações evidenciadas na época, o que
imprime à obra e ao lugar uma pluralidade de culturas em um mesmo espaço.
É perceptível, no decorrer da narrativa, casos de Topofobia por parte dos
personagens, pelo fato de alguns lugares terem passado por mudanças. Exemplo
149
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
150
Estudos Literários
narrado pode muito bem ser o interior de Goiás ou de Minas Gerais, por exemplo,
pela características da cultura, tradições, superstições e da própria linguagem utili-
zada por alguns personagens, como os diversos “uais” pronunciados por Tianinha,
expressão tipicamente mineira. Contudo, quando Tianinha ameaçou contar ao ma-
rido à proposta que Elisbão fizera, tentando convencê-la de seus desejos, fazendo
promessa de ir a Trindade4, percebe-se que os fatos evidenciados estão mais locali-
zados no Estado de Goiás.
É interessante ressaltar que os aspectos evidenciados na paisagem, por vezes,
podem ser similares a mais de uma região geográfica, e que símbolos sociais, am-
bientais e culturais, como a descrição de alguns quitutes5 tradicionais da paisagem
descrita, podem contribuir para a percepção geográfica da paisagem narrada. Nes-
te caso, se tivesse por base apenas a linguagem coloquial e alguns aspectos físicos
evidenciados seriam possíveis confundir a localização, podendo ser em Minas ou
Goiás, dois Estados de culturas e aspectos físicos similares; mas quando pode ser
percebida, no texto, a descrição de locais geográficos específicos fica evidente que a
narração se passa em Goiás, pois além de Trindade, há ainda referência à cidade de
Bela Vista, que fica localizada a 45 quilômetros da capital do Estado, Goiânia.
Na narrativa de Sertão sem fim, diferentemente de O Cortiço, a identificação
da paisagem se dá de forma mais clara e contundente para leitor que anseia por
situar-se no espaço. Além dos fatores preponderantes para a descoberta da paisa-
gem encenada, o Autor aprofunda-se em descrever as fazendas, pomares, terrenos,
criação de gado, fruteiras e demais aspectos físicos e geoambientais que desvendam
a paisagem rural. Aparecem no texto também elementos das condições sanitárias,
como o uso da água, a produção familiar, como por exemplo, a predominância da
criação de porcos e de uma produção básica de subsistência. São também descritos
os hábitos interioranos e fatos das relações sociais e culturais da época, até mesmos
os conflitos sociais em torno de crenças e tradicionalismos e a descrição de entre-
veros familiares.
4 Município Goiano onde se localiza o Santuário do Divino Pai Eterno, sendo realizada a tradicional festa
religiosa em seu louvor, no mês de julho.
5 Tipos de comidas regionais, como o arroz com pequi.
151
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Reflexões perceptivas
Por intermédio das transformações realizadas nos respectivos espaços pelos
sujeitos/atores, as paisagens vão sendo modificadas de forma a atender as necessi-
dades humanas, sendo que as decisões oriundas desses sujeitos, e as conseqüentes
transformações socioambientais no espaço, são importantes variáveis e podem in-
terferir nas decisões, entre elas, em suas decisões morais, como no exemplo, as de
João Romão. Segundo a teoria de Maslow (1943), como mostra a Figura 1. Nesse
contexto, a hierarquia das necessidades humanas, iniciadas pelas Fisiológicas e su-
cessivamente até a sua realização pessoal, os sintomas de Topofobia e Topofilia to-
mam repercussão, em conformidade com a satisfação dos sujeitos e a ocupação do
espaço. Essa teoria propõe necessidades na seguinte ordem de prioridade.
152
Estudos Literários
Figura 1 - Pirâmide da Teoria das Necessidades de Maslow. Fonte: CHIAVENATO (2005, p. 249).
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Considerações
O resultado mais contundente nessa análise é a diferenciação da linguagem e
multiculturalismo entre os aspectos urbanos e rurais, evidenciados pelas caracteri-
zações física e de signos, códigos culturais e sociais presentes nas obras pesquisadas.
“É sempre perigoso buscar reduzir a história a um esquema. Mas aqui a simplifica-
ção se impõe, com todos os seus riscos, para apontar o início de um processo e o seu
estágio atual” (SANTOS, 1994. p. 15).
Por meio das obras pesquisadas foi possível compreender que a paisagem
não é somente materializada nas modificações naturais e físicas dos ambientes, co-
mo também pode ser manifestada através do que pode-se chamar de signos, símbo-
los e/ou códigos ambientais, culturais e sociais. Essa representatividade dá-se prin-
cipalmente pelo povoamento do lugar em que, no tempo e no espaço, a paisagem
vai sendo transformada e percebida, e com isso originando identidades próprias ou
singulares, em conformidade com os traços daqueles que a ocupam, sendo possível
identificar a ação humana/cultural que a modifica.
Dessa forma, é possível concluir que a ocupação do espaço influencia na pai-
sagem e que esta pode possuir traços disseminados da cultura daqueles que há ha-
bitam. Embora seja aqui abordada a paisagem, essa é indissociável de outras catego-
rias de análise geográfica, como Território, Região, Espaço e Lugar, categorias essas
154
Estudos Literários
Nas duas obras trabalhadas, O Cortiço e Sertão sem fim, foi possível eviden-
ciar as relações sociais e ambientais dos atores que povoavam o lugar e que deram
vida aos símbolos sociais e culturais presentes nas respectivas paisagens, bem como
fatores ambientais, sociais, econômicos e de produção do trabalho, em seus respec-
tivos contextos de lugar e tempo, que contribuem para a transformação do aspecto
natural para o artificial, através do uso da força de trabalho, de técnicas e métodos
empregados para a exploração dos recursos naturais e transformação em matérias
-primas para o desenvolvimento do capital dos atores socias.
Contribuindo com esse debate, resgata-se as reflexões de Wagner e Mikesell
(2003, p. 36), quando afirmam que “A paisagem cultural é um produto concreto e
característico da interação implicada entre uma determinada comunidade humana,
abrangendo certas preferências e potenciais culturais, e um longo período de evolu-
ção cultural e de muitas gerações de esforço humano”.
Através das abordagens realizadas, ao longo do percurso deste estudo sobre
paisagem e sua percepção, é possível concluir que, para a análise da paisagem, a base
é a escolha do espaço e seu contexto temporal, este pertencente a uma região ou está
contido nela, e o espaço ocupado é moldado através do tempo pelos sujeitos que
nele atua e pela relação entre sociedade e natureza. Com isso vão sendo formadas
relações sociais, culturais e técnicas para a utilização dos recursos naturais, mate-
riais e sociais, disponíveis de acordo com as dinâmicas locais, para uma possível
viabilidade da produção de meios de subsistência dos atores envolvidos.
155
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
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156
Estudos Literários
157
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
1 Graduanda em Letras Português/Inglês e suas Respectivas Literaturas pela Universidade Estadual de Goi-
ás – Câmpus Pires do Rio. Bolsista PIBIC/CNPq no período de agosto de 2017 a julho de 2018. escrevadani@
outlook.com
2 Professora Orientadora da Universidade Estadual de Goiás (UEG). Doutora em Letras e Linguística pela
Universidade Federal de Goiás (UFG). Integra a Rede Goiana de Pesquisa em Leitura e Ensino de Poesia, o
Grupo de Estudo e Pesquisa em Literaturas de Língua Portuguesa (GEPELLP/CNPq) e o GT da ANPOLL
Teoria do Texto Poético. Desenvolve o projeto “Núcleo de Estudos Goianos (NEG): os Estudos culturais e a
literatura goiana na escola”, financiado pela FAPEG. [email protected]
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Estudos Literários
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
“código estético” dos leitores. Esses começam a entender o texto por meio do
primeiro ‘horizonte’; porém, introduzem na sua análise, concretizam numa
significação atual um diálogo com sua própria compreensão do mundo, ela
própria determinada pela sua sociedade, sua classe e biografia. [...]
Por meio da estética da recepção, renova-se a história literária, uma vez que
sempre há a possibilidade de se verificar novos aspectos de um autor na relação
estabelecida entre obra e leitor. Como se observa, há a possibilidade de mudança do
texto pelos seus leitores, refletindo a sociologia. Todavia, na teoria da recepção, há
também o entendimento de que o próprio texto estabelece o modo como deve ser
notado, manifestando a poética.
No caso da poética da leitura, pode-se mencionar Wolfgang Iser que elabora
a teoria do efeito estético, conforme a qual o leitor, ao ler, colabora na produção da
intenção do texto. Toda obra possui um leitor pressuposto, o chamado leitor implí-
cito (pertencente à estrutura textual), ou seja, determina-se certo papel a seus possí-
veis leitores (do plano real). Antoine Compagnon (2006, p. 149), comentando sobre
Iser, aponta que o sentido é “um efeito experimentado pelo leitor, e não um objeto
definido, preexistente à leitura”, o texto dá a instrução e o leitor realiza a construção:
A literatura tem, pois, uma existência dupla e heterogênea. Ela existe indepen-
dentemente da leitura, nos textos e nas bibliotecas, em potencial, por assim
dizer, mas ela se concretiza somente pela leitura. O objeto literário autêntico
é a própria interação do texto com o leitor. (COMPAGNON, 2006, p. 149).
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Estudos Literários
Mendes, Rainer Maria Rilke, entre outros. Já Procópio (2011) mostra a aproxima-
ção de Godoy a Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto.
Em concordância com Procópio, Silva (2011, p.1) diz o seguinte sobre o liris-
mo de Godoy: “Seus versos são econômicos, trazem uma dicção muito particular,
mesmo estando em sintonia profunda com suas duas maiores influências: Carlos
Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto”. Por certo, na lírica de Godoy,
é estabelecida uma relação com aspectos culturais e tradicionais ocidentais, sempre
explorando a técnica da linguagem.
Justamente por seguir a esteira de Cabral que Procópio (2011) identifica a
reflexão como uma característica fundamental da lírica de Godoy:
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
4 Projeto de Pesquisa financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás (FAPEG), no
período de dezembro de 2016 a dezembro de 2018.
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
de forma explícita ou em suas entrelinhas. Vemos o início e tão logo o seu êxtase, o
sentimento se desenrola de uma forma muito rápida e intensa.
Já no “argumento terceiro”, há um estado totalmente diferente, como diria
Miguel Jorge, é revelada a “descida ao inferno”. Todo aquele amor e a idealização
que se tinha fora deixada de lado. O amor tão puro e intenso, que trazia vida ao
personagem se acaba, abandonando-o em sua solidão e, assim, o poeta vai se la-
mentando mais e mais.
No “argumento quarto”, há vestígios de que o que teria acabado o amor teria
sido a rotina, que tem o poder de quebrar o encanto se o amor não for cultivado
diariamente. O poeta compara como eram as coisas no início e como ficaram de-
pois de um tempo. Ele está ferido e seus ferimentos estão ainda abertos, sofrendo
pelo abandono. Há por toda parte as lembranças e uma carência afetiva instalada.
Ele se deixa levar por diversos pensamentos e se queixando do que deveria ter sido o
amor. Desse modo, nos leitores, reflete a imagem daquele sujeito que é abandonado
por outra pessoa.
No “argumento quinto”, o poeta conta os dias que se passaram desde o ocor-
rido e revela, de forma sutil, como se passou, como fora a espera, a esperança de que
as coisas voltassem ao que eram antes. Ao longo do argumento, o poeta demonstra
grande saudade da pessoa amada, faz algumas referências amorosas, mas também
surpreende ao anunciar uma partida. O poeta começa a se livrar do “luto” amoroso
que estava vivenciando e vê a necessidade de seguir em frente.
No “argumento sexto”, o poeta volta a fazer uma reflexão a respeito de tudo o
que aconteceu. Nesse momento, ele percebe que, na verdade, aquele amor nem fora
tão verdadeiro:
argumento sexto
não semearam ventos e colheram
um vendaval, essa nau frágil
o amor, disseram que havia
resistir? Quem há de chorar
no canto, pois se argutos
nautas não foram
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Estudos Literários
Dentro do “argumento sexto” há outros versos, citados a seguir, que são cha-
mativos em virtude de demonstrar o abandono sofrido pelo sujeito lírico:
foi só um pedido
sem saber que era o último
o último laço do cadarço
cadastro interrompido
(GODOY, 1985, p. 147)
Assim, nessa sequência, sobreleva o lirismo. Convém destacar o uso das me-
táforas: “o último laço do cadarço” e “cadastro interrompido”. Com isso, quem lê a
obra tende a se sensibilizar com a situação vivida pelo sujeito lírico, em suas des-
venturas no quesito amoroso. Fica evidente a melancolia, comparada com o último
laço do cadarço, sugerindo que o relacionamento chegou ao fim. Além disso, há a
possibilidade de que o leitor se sinta na posição de coautor, percebendo a inquieta-
ção do poeta.
Surge outro sujeito lírico, com novas ideias e sem idealização. Ele tem novos
hábitos, novas perspectivas e pronto para viver novas experiências. O poeta em al-
guns versos refere-se a navegações, a naufrágios e o leitor, ao fazer o papel de coau-
tor, pode relacionar o amor como sendo propenso para navegar ou naufragar, ou
seja, certamente marcado por riscos. Em alguns versos, ainda é identificado certo
ressentimento causado pelo abandono. O poeta termina o argumento notando que
nada daquilo mais importa, nem mesmo os mistérios e as lembranças vividas a dois,
há finalmente essa visão da realidade, ainda que dolorosa.
No sétimo e último argumento, o poeta relembra fragmentos do argumento
primeiro, estabelecendo uma ligação como se o ciclo se repetisse. Novamente estão
ali fazendo companhia um para o outro nessa “viagem”: o poeta e o amor. Há di-
versas indagações sobre o sentimento que sentira durante essa viagem e, de certa
forma, o poeta acaba se sentindo sozinho. Ele relembra os momentos em que tanto
se entregou a aquele sentimento, mas não houvera a reciprocidade. No desfecho do
livro, o argumento se encerra com as queixas que tocam profundamente o leitor:
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Para o crítico Carlos Augusto Silva (2011, p.1), “a poesia de Heleno Godoy é
um estudo da linguagem, um precioso referencial para quem se aventura no árduo
trabalho de recuperar o âmago da vida por via de construções metafóricas”. Miguel
Jorge tece algumas considerações a respeito de Fábula Fingida. Uma delas que po-
demos destacar é: “Uma pulsação racional e um mergulho no inconsciente, uma
viagem acompanhada por mitos, visões, figuras bíblicas, poetas malditos. O mais
importante: uma peregrinação pelo próprio interior do poeta, levando o leitor a
ser coautor: texto razão”. (JORGE, 1985, p. 9). Além desse comentário, Jorge (1985)
acrescenta a possibilidade de o livroser lido como um romance, ainda citou obras
clássicas como Odisseia e Ilíada de Homero, inferindo que a leitura da obra goiana
pudesse seguir no mesmo sentido que essas prestigiadas produções literárias. O
próprio autor goiano fez um comentário sobre sua obra dizendo: Em Fábula Fin-
gida, são abordados o poeta, o poema, a palavra, o amor do poeta e o sujeito lírico
propõe “uma viagem” (GODOY, 1985, p. 19).
Para Araújo (2016, p. 210, grifo nosso):
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Estudos Literários
obras do autor e do quanto foi agradável a leitura de seus poemas. Até mesmo aque-
les que não gostavam tanto de poemas (segundo próprios comentários), ao final da
aula, já tinham outra opinião. Por outro lado, alguns estudantes mencionaram certa
dificuldade de entender o poema, mesmo após discutirmos as palavras desconheci-
das e os possíveis significados das metáforas. Essa dificuldade, sem dúvida, pode ser
explicada pela falta de contato com a linguagem poética.
A experiência da pesquisa na segunda turma, 2° “B”, também foi muito in-
teressante. No início, os alunos ficaram um pouco desconfortáveis, o “novo” lhes
causou receio, mas, à medida que o poema foi lido e interpretado, eles começaram
a se interessar. As interpretações dos versos de Fábula Fingida foram frutíferas. Os
alunos, de modo geral, reconheceram o trabalho de Godoy com muito apreço e
muitos até disseram que iriam ler mais de suas obras. Nesta turma, os alunos se
colocaram na posição de coautores, fizeram realmente uma peregrinação pelo inte-
rior do poeta, caminharam juntos e buscaram sentir na “pele” o que o sujeito lírico
passou no poema narrativo.
Vale destacar que os alunos, todos adolescentes, de modo geral, gostaram
principalmente dos versos em que falava, de forma bastante explícita, sobre o amor e,
inclusive, estes versos foram os mais mencionados no questionário que foi aplicado
a eles. Cabe destacar que o tema amor é de âmbito universal, pertencente a todos os
homens, de todas as épocas e sempre se mantém atual. Como leitores, os alunos ti-
veram a percepção e realizaram a atualização dos sentidos da obra. Na interpretação
da obra, puderam ser projetadas as experiências de vida e as experiências de leitura.
A poesia de Godoy toca a subjetividade e a linguagem, proporciona ao leitor
(re) descobrir a vida e as palavras, evocando aquilo que ora é simples ora é elabora-
do pela dor. Dessa maneira, o ato de ler se realiza como uma criação em conjunto
com o próprio poeta. Quando se pensa na realidade de alunos da rede pública,
sabe-se que a grande maioria tem seu processo de letramento literário ocorrido
basicamente na escola. Assim, o jovem leitor é um sujeito que está sendo formado
em sala de aula. Por essa razão, questiona-se “como incentivar a leitura literária?
Como promover a leitura de autores goianos na escola?”. Levar a poesia de Heleno
Godoy para a sala de aula teve o objetivo de atrair o aluno para a prática da leitura
de poesia que deve ser vista como uma experiência prazerosa, não como obrigação.
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Considerações finais
A leitura deve ser compreendida como algo imprescindível na vida. Aquele
que lê pode mudar a si mesmo e pode mudar o mundo. O convite ao aluno pa-
ra ler Heleno Godoy é importante porque chama os jovens leitores a se tornarem
conscientes de sua cultura (goiana), despertarem o sentimento de pertencimento e
adquirirem conhecimento sobre um autor goiano.
Fábula Fingida em sala de aula oportunizou levar o poema para a sala de
aula, a prática de leitura, o exercício de análise e interpretação, a conhecimento
sobre o poeta Heleno Godoy, a reflexão sobre a linguagem empregada pelo poeta,
a discussão sobre o tema abordado no livro. Além disso, propiciou a motivação
para a escrita criativa. Sem dúvida, vê-se a necessidade de os alunos conhecerem
mais sobre o gênero lírico, de interpretar e, até mesmo, de se arriscar a escrevê-lo.
Percebe-se que poemas ainda são vistos como difíceis de compreender e que, por
esse motivo, muitos alunos não têm a iniciativa de procurar por eles. Diante disso,
quando se leva poemas para a sala de aula, é possível fazer com os alunos descu-
bram algum autor ou poema que os faça ver a poesia com outros olhos, com gosto.
Silva (2011) ressalta que Luiz Costa Lima já fez referência às produções li-
terárias do autor goiano no suplemento cultural “Mais!”, publicado na “Folha de S.
Paulo”, em abril de 2006, mencionando sobre o valor poético de Godoy e o “desfa-
vorecimento geográfico no que diz respeito ao conhecimento do público brasileiro”
(SILVA, 2011, p. 1). Com pesquisas como esta aqui apresentada, espera-se colaborar
para que não prevaleça a desvalorização geográfica de caráter literário ainda que
possa haver nos dias de hoje.
Neste trabalho, por fim, pode-se salientar que foi trazida uma breve contri-
buição para a compreensão da singularidade poética de Heleno Godoy para que
fosse divulgado seu nome e, assim, colaborar com aqueles que buscam identificar
as principais vertentes literárias que definem a literatura goiana na contemporanei-
dade. Reconhece-se a relevância de ter levado este poeta para a escola, visto que é,
nesse espaço, que se tem a oportunidade de semear o conhecimento para mais tarde
colher frutos: futuros leitores (e/ou autores) de poesia.
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Estudos Literários
Referências
ARAÚJO, Gilberto. Sinal verde para o poeta Inventário: poesia reunida, inéditos e
dispersos (1963-2015). In: Fórum de Literatura Brasileira Contemporânea. v. 8,
n. 16 (2016), p. 207-211. Disponível em: <https://revistas.ufrj.br/index.php/flbc/
article/view/17455> Acesso em 07 set. 2018.
DICIONÁRIO DE SÍMBOLOS. Número 7. Disponível em: <https://www.
dicionariodesimbolos.com.br/numero-7/> Acesso em 16 dez. 2017.
COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Tradução
Cleonice Paes Barreto Mourão e Consuelo Fortes Santiago. Belo Horizonte:
Editora da UFMG, 2006.
GODOY, Heleno. Fábula Fingida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
JORGE, Miguel. Da fábula fingida ao texto razão. In: GODOY, Heleno. Fábula Fingida.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
PROCÓPIO, Raphaela Pacelli. Momentos significativos da poesia de Heleno Godoy:
Os veículos, A casa e Lugar comum e outros poemas. 2011. 132 f. Dissertação
(Mestrado em Letras e Linguística) - Universidade Federal de Goiás, Goiânia,
2011. Disponível em: <https://repositorio.bc.ufg.br/tede/handle/tede/5580>
Acesso em 07 set. 2018.
SILVA, Carlos Augusto. Heleno Godoy: a precisão poética. Jornal Opção. Goiânia, Edição
1861 de 6 a 12 mar. 2011. Disponível em: <www.jornalopcao.com.br/posts/
opcao-cultural/heleno-godoy-a-precisao-poetica> Acesso em 12 dez. 2017.
STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais de poética. 3. ed. Tradução Celeste Aída Galeão.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.
TADIÉ, Jean-Yves. A crítica literária no século XX. Tradução Wilma Freitas Ronald de
Carvalho. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1992.
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
O fazedor de velhos:
Reflexões de um adolescente
sobre o eu, a passagem do
tempo e a literatura
Dayse Rodrigues dos Santos1
Silvana Augusta Barbosa Carrijo2
Introdução
A passagem do tempo apresenta um protagonismo manifesto na literatura
das sociedades contemporâneas. Conjuntamente, a relação entre o tempo e a busca
pelo eu tem sido tema constante nos processos subjetivos e interativos entre jovens.
Na literatura, temas universais, como esses, podem enriquecer tais reflexões, dando
elementos que nutrem o sentimento de verdade, por trás das ‘mentiras’ do texto. Pa-
ra tanto, a obra literária em análise é O fazedor de velhos, de Rodrigo Lacerda, lança-
do em 2008 e premiado pelo Jabuti no ano seguinte. A escolha de tal obra se justifica
uma vez que possibilita pensar diversas imagens e conceitos relacionados ao tema
já na leitura do próprio título, induzindo o leitor a se interrogar o que seria “fazedor
de velhos”. Privilegiando o eixo da constituição da identidade ficcional juvenil de
Pedro, o protagonista, esse estudo perpassa, ainda, pela consciência do tempo, pela
influência da Literatura na vida cotidiana e a apologia à leitura de textos literários.
A história é narrada por Pedro, um adolescente de dezesseis anos, heterosse-
xual, de classe média, filho caçula de uma professora universitária e um advogado,
morador do Rio de Janeiro, que não sabe qual profissão seguir e procura alternativas
172
Estudos Literários
para encontrar seu caminho. Ele descobre que os amores e as paixões podem não
ser tão simples, mas não perde a sensibilidade. Nessa busca, conhece o experiente
professor Nabuco, que o orienta fazendo testes e sugere caminhos a seguir para
elucidar essa jornada de autoconhecimento. Quando aparece Mayumi, sobrinha de
Nabuco, ele sente por ela uma nova forma de amor e revê questões pessoais de
natureza diversa. Insatisfeito com a faculdade de História, o jovem encontra na Li-
teratura sua verdadeira vocação e conhece a si mesmo, conseguindo compreender
melhor o que vai acontecendo em sua vida.
Entre algumas ilusões e desilusões de Pedro, a narrativa pode levar à reflexão
sobre o papel que se exerce na sociedade, seja ele racional ou emocional. Por meio
das vivências de Pedro, é possível refletir sobre o papel dos pais/responsáveis na
formação dos filhos, a passagem do tempo, o papel da literatura na vida das pessoas
e em como o tempo pode ou não comprovar como verdadeiros certos valores que
carregamos por toda vida. O próprio título é uma metáfora que reúne todo o con-
teúdo da obra e é na fala do professor Nabuco que o entendemos “Quem aceita frus-
tração, espera, quem espera, pensa. Quem pensa, sente. Quem sente, vive o tempo,
e sabe que ele está passando. Portanto, fica mais velho” (LACERDA, 2017, p. 108).
173
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
aprendizagem sobre seu objeto de pesquisa. O foco narrativo em primeira pessoa per-
mite que se acompanhe cada passo e pensamento do personagem. O narrador relata,
frente ao percurso que escolhera, o que sentira diante de uma decisão que tomou:
174
Estudos Literários
Eu estava lá às 2h45, mas era como se fosse outra pessoa. Ao tocar a campai-
nha do sobrado, me senti diferente. É verdade. A peça funcionou para mim
como um buraco de uma fechadura interior, por onde eu olhei e vi mil coisas
escondidas. Nem o bom I-Juca, nem o bom Eça, ninguém me deu, como
o Shakespeare, tamanho soco de humanidade, com tantos vícios, virtudes e
sentimentos (LACERDA, 2017, p. 64).
do caráter vital, que impele o leitor a colocar-se no lugar do outro, uma em-
patia que o faça encontrar-se com as personagens da obra e consigo mesmo,
no melhor sentido da catarse aristotélica; da verossimilhança que convence
o leitor por mais fantástica que seja a obra e alarga sua percepção de mundo.
3 Embora extremamente relevante, dados os limites do presente trabalho, esse conceito não será abordado
aqui, mas em texto posterior.
175
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Quando terminei de fazer o seu perfil, fui fisgado por uma sensação desa-
gradável. Estava ao mesmo tempo horrorizado pelas crueldades do Edmund
(personagem do rei Lear), e extremamente atraído por sua filosofia de vida.
[...] Embora fosse praticamente um monstro humano, alguma coisa nele era
um reflexo de mim (LACERDA, 2017, p. 70).
Esse constante contato com a literatura faz Pedro compreender a lógica das
personagens. Este “é o elemento decisivo da verdade dos seres fictícios, o princí-
pio que lhes infunde vida, calor e os faz parecer mais coesos, mais apreensíveis e
atuantes do que os próprios seres vivos” (CANDIDO, 2011, p. 80). E passa até a
compreender as atitudes de Mayumi através das leituras que ela gosta: “O que me
impressionou, na hora, confesso, foi menos a literatura e mais constatar o quanto
aqueles poemas se ajustavam perfeitamente ao espírito de Mayumi. Eram racionais
e materialistas, no melhor sentido do termo” (LACERDA, 2017, p. 70). Dessa for-
ma, ele percebe uma grande verdade refletida através da literatura.
Quando o protagonista relata suas impressões do texto shakespeareano, a
linguagem revela como ele ‘vive’ a leitura: “Ao ouvir isso, Cordélia fica na maior afli-
ção, pois conclui que ele ainda está sem juízo” (LACERDA, 2017, p. 73). A apropria-
ção do discurso do autor lido revela a grande competência linguístico-literária do
protagonista. Tamanha emancipação não o faz preocupar-se veementemente com a
imagem que os outros têm dele e seus conflitos pessoais parecem estar resolvidos.
Incisivamente, a opinião do velho Nabuco era uma das únicas que o fazia reconsi-
derar aspectos sobre si, como é possível depreender no diálogo entre eles:
176
Estudos Literários
- Quando você pega um livro para ler – disse ele -, sua postura não é a de
um cientista. Você não lê primeiro para depois saber se concorda com o que
o livro diz ou não. Você já vai para a leitura com a predisposição de aceitar
tudo. Você procura sempre o que é comum a você.
- Isso porque você não se propõe a analisar e criticar o autor. Jamais como um
“objeto” de estudo. Você se propõe a gostar dele. E de quem você gosta você
aceita tudo, menos deslealdade (LACERDA, 2017, p. 115-116).
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
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Estudos Literários
Considerações finais
As questões pessoais que incomodam o protagonista acerca da escolha de
uma profissão que o satisfaça foram tratadas sob a perspectiva do próprio jovem,
justificada pela opção do narrador em primeira pessoa. Dessa forma, os dilemas vi-
vidos aparecem, inclusive, através da voz direta de outros personagens e da maneira
como o próprio Pedro revela seus pensamentos diante da alteridade. A linearidade
dos fatos permite que mesmo um leitor menos experiente se sinta confortável diante
da estrutura composicional da obra, assim como da contemporaneidade temática.
Langaro e Bertin (2015) entendem que o termo velhos, nessa obra, pode re-
meter ao amadurecimento através da literatura, à consciência da passagem do tem-
po, à maturidade advinda da sabedoria e à vivência. Eis a grande metáfora do títu-
lo. Em sua declaração “Envelheci muitos anos em poucas horas. Fiquei muito feliz
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
com isso” (LACERDA, 2017, p. 148), Pedro demonstra ter entendido a relatividade
do tempo ao ver o filho pela primeira vez. Todo o percurso trilhado por ele nesse
romance de iniciação evidencia uma grande aprendizagem sobre si, seu perfil pro-
fissional, a passagem do tempo e a relação que o rapaz estabelece com a Literatura.
Recursos narrativos como a intertextualidade, expressa por meio de transcri-
ções de outras narrativas, enriquecem a metalinguagem do texto e exaltam a apolo-
gia à leitura literária. As escolhas linguísticas pela variedade padrão entremeada pe-
la expressões coloquiais e gírias dão autenticidade à reprodução da fala adolescente.
A audácia de imbricar os discursos do narrador com o dos textos que ele lê e com o
dos demais personagem promovem um desafio para os leitores, exigindo-lhes certa
maturidade e experiência com essa arte. A segunda edição da obra é isenta de ilus-
trações e das cores vibrantes da primeira e tem, inclusive, uma capa pouco atraente,
mas a formatação e a qualidade do papel são impecáveis. A contracapa conta com
indicações de Antonio Prata, escritor, Le Monde Diplomatique Brasil e O Estado de
São Paulo, já as orelhas oferecem um breve resumo do livro, os prêmios recebidos e
um pouco sobre o autor, elementos bastante percebidos pelos adolescentes.
Condensar o estudo teórico-literário da obra O fazedor de velhos (2017), em
que se refletiu sobre a construção da identidade, a passagem do tempo e a apologia
à leitura literária pode reverberar nas pesquisas da Literatura Juvenil. Em conso-
nância com temas de interesse desse grupo etário, vê-se também uma formação
humanizadora, através de aspectos imbricados na vida do jovem, de forma a con-
tribuir para o desenvolvimento em que pesem eixos globais de formação, cuidado,
conhecimento e aprendizagem que a fase exige. Nesse sentido, não se esgotam aqui
as possibilidades de estudos teóricos para essa obra de Rodrigo Lacerda, que ainda
tem muito a dizer.
Referências bibliográficas
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de
Lima Reis e Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
CANDIDO, Antonio. A personagem do romance. In: CANDIDO, Antonio [et al.]. A
personagem de ficção. 12 ed. São Paulo: Perspectiva, 2011.
180
Estudos Literários
181
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Cortando a carne: As
fronteiras entre o serial killer
e o canibal no cinema
Estela Fiorin1
Alexander Meireles da Silva2
Introdução
Dentre os tabus mais arraigados da humanidade, o canibalismo ocupa lugar
de destaque, algo que se confirma através de todas as culturas e em variados pe-
ríodos ao longo da história da humanidade. Ele marca o espaço entre o humano e
o monstruoso, entre o Eu e o Outro. O canibalismo horroriza por estar escondido
dentro de cada um, aguardando um contexto em que a circunstância e a situação
nos leve a considerá-lo. Por este motivo, ele sempre marcou presença, não apensar
na História, mas também em narrativas ligadas à Fantasia, ao Gótico e ao Horror,
tanto em obras literárias, quanto em filmes e seriados. Transgressão seria, portanto,
a palavra-chave para entender tal ação. Tratando-se da Modernidade, a transgres-
são ganhou uma outra dimensão, apresentando uma nova criatura gestada na selva
de pedra das grandes cidades: o serial killer.
O serial killer é um assassino diferenciado: de perfil psicopatológico, é um
indivíduo que comete uma série de homicídios durante algum período de tempo,
normalmente deixando sua assinatura e tendo uma maneira de fazê-lo bastante
1 UFG/RC
2 UFG/RC
3 Dexter. Episódio 06, 1ª temporada, em que o serial killer afirma utilizar o pseudônimo Patrick Bateman.
182
Estudos Literários
individual, fato que o diferencia dos assassinos em massa, indivíduos que matam
várias pessoas em questão de horas. Como a pesquisa busca demonstrar, as vítimas
representam um símbolo sobre o qual eles exercem poder e controle, algo relacio-
nado aos tipos de serial killers, sendo eles visionário, missionário, emotivo e sádico.
Neste último, encaixam-se os canibais, sujeitos que matam por desejo e seu prazer
é proporcional ao sofrimento da vítima sob tortura. Quanto as vítimas, estas são
escolhidas ao acaso ou por algum estereótipo com significado simbólico para eles.
A ação da vítima não precipita a ação do assassino, ele tem necessidade de dominar
e as vítimas não são parceiras na realização de fantasias.
Com base nas informações supracitadas, a proposta deste trabalho se justi-
fica pela busca de entendimento dos efeitos da Modernidade sobre o ser humano a
partir das últimas décadas do século XIX em relação ao tema canibalismo, levan-
do-se, portanto, ao entendimento do ser humano nos dias de hoje.
Este trabalho objetiva, a partir de uma pesquisa exploratória e descritiva,
realizar uma trajetória do serial killer canibal real e sua representação no cinema,
relacionando o tempo e o espaço das obras citadas. Para tanto, primeiramente será
realizada uma análise do tema canibalismo como reflexo de uma cultura. Na se-
quência, será analisado como o espaço da cidade promoveu a ascensão de um novo
predador urbano: o serial killer. Posteriormente, serão analisados os personagens
ligados à este universo, em busca de denominadores comuns, para avançarmos ru-
mo aos objetivos.
Ao longo deste processo, serão estabelecidos pontos de contato com questões
da contemporaneidade, no que se refere à relação do monstruoso com as classes
populares. Para tanto, serão contemplados os trabalhos teóricos de pesquisadores
como Jeffrey Jerome Cohen, Fred Botting, Julia Kristeva, Oziris Borges Filho, Gas-
ton Bachelard, entre outros.
Dentro desta delimitação, buscar-se-á analisar as práticas canibais na figura
real de Jack Estripador (1888), e o personagem fictício Patrick Bateman (Psicopata
Americano, 2000). A conclusão esperada é a relação entre as personagens supraci-
tadas, no que tange ao tempo e ao espaço de cada obra.
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
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Estudos Literários
Entre as tribos das Pequenas Antilhas existia um povo que se referia a si mes-
mo como —cariba||. Os exploradores espanhóis concluíram, erroneamente,
que este era o nome que davam a si próprios, quando na verdade era um
nome descritivo significando —corajoso|| ou —bravo||. Os espanhóis tinham
certa dificuldade em pronunciar —cariba|| e diziam —caniba||. De —caniba||
evoluiu para —canibal||, e uma vez descoberto que os —canibais|| cometiam
o pecado máximo de comer carne humana, o nome dos habitantes dessas
ilhas se recobriu de um significado inteiramente novo e genérico. Nos cinco
séculos seguintes às viagens de Colombo para o Novo Mundo, o termo —ca-
nibal|| tem sido utilizado para difamar quase toda cultura vista como inferior,
para descrever grupos ou indivíduos que consomem ou no passado consu-
miam carne humana (DIEHL; DONELLY, 2007, p. 30-31).
Por vezes o termo não é suficiente para abranger os motivos que levam cer-
tos grupos a consumirem a carne da própria espécie. Sob a classificação ampla de
“antropofagia” há subclassificações, como o “endocanibalismo” – consumir amigos
ou parentes mortos como um ato de respeito – e o “exocanibalismo” – ato de ingerir
inimigos mortos em batalhas ou como sacrifício a uma divindade.
A prática canibal foi praticada por grupos tribais humanos nos quatro can-
tos do mundo, ou seja, existem inúmeras razões básicas que podem explicar por
que uma sociedade praticaria o canibalismo. Pode ser parte de uma cerimônia que
honra os mortos; uma celebração pós-guerra, na qual a bravura do inimigo é absor-
vida; um meio desesperado de se defender da fome extrema ou, ainda, de superar
a deficiência de proteínas da dieta básica; e também pode haver sociedades que o
fazem por apreciarem o sabor da carne. No geral, há um aspecto religioso nesses
procedimentos em que, de uma maneira ou outra, dentro de estruturas sociais, o
canibalismo é aceito. Nessas sociedades, a carne humana tem sido considerada fre-
quentemente pouco mais do que uma forma de prêmio de guerra a ser comparti-
lhada com os vitoriosos.
Ainda em seu livro, Diehl cita que alguns exemplos estão divididos por re-
giões geográficas. Um dos primeiros relatos de canibalismo marcial foi do historia-
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
dor Tácito, para quem, segundo seus Anais, guerreiros celtas arrancavam a cabeça
dos inimigos vencidos e davam-nos aos seus sacerdotes, que comiam seus cérebros,
acreditando que seriam impregnados com sua sabedoria.
Em 1520, o conquistador Hernán Cortés que teve contato com os astecas,
quando chegou ao seu destino, se deparou com a prática de canibalismo numa es-
cala inimaginável. Podemos utilizar das palavras de Diehl para melhor entender:
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Estudos Literários
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
4 Médica especialista em medicina legal e diretora do Centro de Pesquisas Forense da Vestfália (Alemanha).
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Estudos Literários
sádico (CASOY, 2014). Neste último, encaixam-se os canibais, sujeitos que matam
por desejo. Seu prazer é proporcional ao sofrimento da vítima sob tortura. As ví-
timas são escolhidas ao acaso ou por algum estereótipo com significado simbólico
para eles. A ação da vítima não precipita a ação do assassino, ele tem necessidade
de dominar e as vítimas não são parceiras na realização de fantasias. O motivo do
assassinato, no geral, só faz sentido a ele, pois “o crime é a própria fantasia do cri-
minoso, planejada e executada por ele na vida real. A vítima é apenas um elemento
que reforça a fantasia” (CASOY, 2014, p.25). Os assassinos em série também têm sua
dissociação normal, quer dizer, sabem diferenciar sua vida em relação à fantasia:
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
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Estudos Literários
Jack, o Estripador
Jack, o Estripador é o pseudônimo mais conhecido para designar um famoso
assassino em série não identificado que atuou na periferia de Whitechapel, distri-
to de Londres, e arredores em 1888. O nome “Jack, o Estripador” se originou de
uma carta6 escrita por alguém que alegava ser o assassino e a qual foi amplamente
divulgada pela imprensa da época. Acredita-se que a carta seja falsa e talvez tenha
sido escrita por jornalistas em uma tentativa de aumentar o interesse sobre o caso e
vender jornais. O homicida também foi chamado de o “Assassino de Whitechapel”
ou “Avental de Couro” enquanto os assassinatos ocorriam, mas alguns jornalistas
contemporâneos ainda utilizam tais denominações.
A estrada de Whitechapel, em East End, era uma região violenta de Londres,
no fim do século 19. O assassinato de prostitutas já era um crime relativamente
frequente antes de o Estripador inaugurar sua trajetória de mortes, em 1888. Ele
sempre agia em vias de acesso à estrada, escuras e vazias.
Além de violenta, East End sofria com racismo e xenofobia, especialmente
contra judeus, o que motivava depoimentos que incriminavam inocentes. Aliada
a altas doses de superstição e ignorância, a investigação foi um desafio. O ator Ri-
chard Mansfield virou suspeito só porque atuou em uma adaptação teatral de O Es-
tranho Caso do Doutor Jekyll e do Senhor Hyde, livro que narra crimes cometidos
na cidade (veja quem eram os outros suspeitos de ser Jack, o Estripador).
Oficialmente, foram cinco vítimas, todas prostitutas: Mary Ann Nichols, An-
nie Chapman, Elizabeth Stride, Catherine Eddowes e Mary Jane Kelly. Os crimes
6 A carta “Dear Boss” foi uma mensagem alegadamente escrita pelo notório assassino em série vitoriano
conhecido como Jack, o Estripador. Foi carimbado e recebido em 27 de setembro de 1888, pela Central News
Agency de Londres. Foi encaminhada para Scotland Yard em 29 de setembro. “Querido Chefe, Eu continuo
ouvindo que a polícia me pegou, mas eles não vão me corrigir ainda. Eu ri quando eles pareciam tão inteligen-
tes e falavam sobre estarem no caminho certo. Aquela piada do “Avental de Couro” me deu ataque de risos.
Estou chateado com as putas e não deixarei de estripá-las até que eu esteja farto. O último foi um trabalho
grandioso. Eu nem dei à senhorita tempo para gritar. Como eles vão me pegar agora? Eu amo meu trabalho e
quero começar novamente. Em breve ouvirão falar de mim com meus joguinhos divertidos. Guardei alguma
substância vermelha em uma garrafa de cerveja de gengibre para escrever, mas estava tão espessa como a cola
e não pude usá-la. A tinta vermelha é apta o suficiente, espero, ha, ha. No próximo trabalho cortarei as orelhas
das senhoritas e as enviarei à polícia para me divertir. Mantenha esta carta em segredo até que eu tenha feito
um pouco mais de trabalho e depois publique-a logo de cara. Minha faca é tão bonita e afiada que quero come-
çar a trabalhar agora mesmo, se eu tiver uma chance. Boa sorte. Sinceramente seu, Jack, o Estripador. Não se
incomode por eu estar dando meu nome profissional. Não estava bem o suficiente para enviar isto antes de ti-
rar toda a tinta vermelha das minhas mãos. Maldita seja. Sem sorte ainda, agora dizem que sou médico, ha, ha.
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
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Estudos Literários
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
e montagem, quase como um balé macabro, recheado com flashs de visões. Johnny
Depp, pré-Jack Sparrow, dosa bem a construção de seu personagem, sem grandes
exageros, que faz eco ao Ichabod Crane de A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça.
No século XIX, época em que se passa o filme, o tratamento da sífilis era
realizado com drogas a base de mercúrio, arsênico, bismuto e iodeto, sendo que o
mercúrio causava efeitos colaterais nos enfermos, além de ser um tratamento de alta
toxidade e baixa eficácia. No filme, um dos tipos de preconceitos abordados, é para
com os portadores de sífilis, que como o príncipe tinham que ficar isolados social-
mente. Esse preconceito estava ligado principalmente a promiscuidade, visto que
as prostitutas (ponto discutido no filme) eram fontes potenciais da doença, o que
levaria a sociedade a associar a doença do príncipe com sua relação com prostitutas.
Além disso, o caráter desfigurante da doença faziam com que os seus portadores
fossem ridicularizados e marginalizados socialmente.
O fato do príncipe ser portador da sífilis, no filme, justifica o fato de o médico
da família real (Jack, o estripador em “From Hell”) ter assassinado todas aquelas
prostitutas, visto que o casamento (farsa) do príncipe com Annie, uma prostitu-
ta, faria com que esse segredo fosse revelado pois suas amigas, como testemunhas
do seu casamento, certamente saberiam já que a sífilis é uma doença sexualmente
transmissível e cedo ou tarde os sintomas iriam parecer em Annie e ela iria perce-
bem os sintomas que se manifestando no marido como tremores, déficit cognitivo e
labilidade emocional pois a doença afeta principalmente o Sistema Nervoso Central.
“From Hell” transforma um investigador da polícia em seu personagem cen-
tral, o policial é viciado em ópio, e usa-o para escapar da realidade devido a morte
da sua mulher, e com isso acaba tendo visões durante suas “viagens”, além de pres-
ságios sobre os assassinatos que estava investigando.
Psicopata Americano
Psicopata Americano é um filme estadunidense rodado em 1999 (lançado
em 2000), sendo uma adaptação do polêmico livro do mesmo nome, escrito por
Bret Easton Ellis.
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Estudos Literários
7 Diz-se de ou jovem executivo, profissionalmente bem remunerado, e que gasta sua renda em artigos de
luxo e atividades caras.
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
quer um que desperte o desejo de matança de Bateman “entra pra sua lista” (assim
como no caso de qualquer psicopata). Patrick começa seus assassinatos de maneira
simples, mas conforme progredimos, eles se tornam mais cruéis, complexos e, ouso
dizer, criativos ao próprio modo de Bateman.
Conforme o filme avança, vamos vendo como Patrick perde a sua sanidade,
chegando até a hora de pensarmos se ele não passa de um louco e que nada do que
lemos de fato, aconteceu. A sanidade de Bateman fica tão abalada que começa a
encontrar ossos em lugares improváveis, ser perseguido por coisas estranhas e é
caçado nas ruas da cidade.
Alguns consideram-no bastante violento, mas acredito que esse filme mostre
sangue e agressão na medida certa. Talvez o grande acerto - e isso provavelmente se
deve ao autor do livro em que esse filme foi baseado - seja mostrar Bateman como
um homem extremamente culto, dando-lhe um aspecto de sensatez, principalmen-
te nas cenas em que ele chama as protitutas e antes de cultuar-se e/ou matá-las, ele
discorre sobre discos e músicas famosos, criando um clima de ensinamento e, ao
mesmo tempo, de sedução culta. Logo em seguida, há o contraste e esse é o acerto
do filme. Talvez seja o único acerto, vale ressaltar. Há alguns elementos no filme
cuja finalidade é posta em dúvida, mas acredito que seja apenas causar a dúvida.
Não sabemos ao certo se Bateman é mesmo Bateman, já que há personagens que o
chamam por outro nome e em uma cenas, ao ser chamado por Mark Halberstam,
ele atende por esse nome e sua noiva, interpretada por Reese Whiterspoon, per-
gunta por que o outro o chamou assim. Logo, podemos concluir que há quem o co-
nheça por um nome que não seja Patrick, que ele atende por esse outro nome e que
pessoas próximas dele desconheçam o porquê disso. A somar, há cenas estranhas,
como rastros de sangue imensos, porém imperceptíveis para quaisquer persona-
gens; lençois com manchas de sangue que não chamam a atenção de ninguém e um
final bastante estranho. Isso tudo me fez perguntar se tudo aquilo que aconteceu
com Patrick Bateman foi verdadeiro ou se ele apenas imaginou tudo aquilo.
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Estudos Literários
Conclusão
Há referências e práticas do canibalismo nas mais diversas épocas e socieda-
des. Desde a pré-história até os dias atuais as pessoas sabem que existem. O que ge-
ralmente não se sabe é a proporção que tomaram e têm tomado na sociedade, sendo
eles canibalismo real ou metafórico. Através da nossa pesquisa fomos capazes de
fazer uma trajetória linear sobre o canibalismo e como ele se alastrou nas diferentes
partes do mundo, por causa de guerras, rituais e até mesmo como assassinatos de
primeiro grau.
O canibalismo relacionado ao crime e à loucura é aquele em que ele aparece
como um elemento a mais dentro de uma situação arbitrária. Sendo assim, quando
relacionado aos rituais podemos chamar de antropofagia, e canibalismo quando
acontece para saciar os desejos e vontades, ou seja, é um ato de crueldade.
Ainda pudemos comparar o ato de comer carne humana, e suas vertentes, com
a ideia de comer o outro, que está camuflada nos contos de fadas. Utilizamos prefe-
rencialmente o livro Devorando o vizinho, uma história do canibalismo, organizado
por Daniel Diehl e Mark P. Donnelly, como embasamento teórico de nosso trabalho.
Para finalizar a pesquisa em torno do canibal, buscamos esse ser nas obras
cinematográficas From Hell e Psicopata Americano. Sem que percebamos, muitas de
nossas personagens favoritas estão relacionadas a crimes de ódio e vingança, esses
que incluem o ato de comer carne humana ou de seu igual.
Crimes e personalidades fortes, malignas e distintas atraem a atenção do pú-
blico. ―A imagem animalesca de devoração exprime a hediondez do crime contra a
humanidade‖ (BRUNEL, 1997, p.761).
Como o objetivo final do trabalho é apresentar as fronteiras entre o serial
killer e o canibalismo no cinema, acreditamos que fomos capazes de concluir que
ambos os filmes se encaixam nas teorias apresentadas.
197
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Referências
CASOY, Ilana. Serial killer: louco ou cruel? Rio de Janeiro: DarkSide Books, 2014.
DAYNES, Kerry. Como identificar um psicopata. Tradução Mirtes Frange de Oliveira
Pinheiro. São Paulo: Cultrix, 2012.
DIEHL, Daniel; DONNELLY, Mark P (Orgs.). Devorando o vizinho: uma história do
canibalismo. Tradução Renato Rezede. São Paulo: Globo, 2007.
FROM HELL. Direção e Produção: Albert Hughes e Allen Hughes; Roteiro: Alan
Moore. Estados Unidos: Twentieth Century-Fox Film Corporation, Underworld
Entertainment, 2001.
O GLOBO. Avião caiu nos Andes e sobreviventes precisaram comer os mortos, em 1972.
2013. Disponível em: <http://acervo.oglobo.globo.com/>. Acesso em: 10 maio
2018.
PORTAL TERRA, Rússia lembra os 70 anos do fim do cerco nazista que levou até ao
canibalismo. 2012. Disponível em <https://www.terra.com.br/noticias/>. Acesso
em: 15 abril 2018.
PSICONLINEWS. Como distinguir um sociopata de um psicopata. 2014. Disponível em:
<http://www.psiconlinews.com>. Acesso em: 20 maio 2018.
PSICOPATA AMERICANO. Direção: Mary Harron. Produção: Edward R. Pressman.
Estados Unidos: Warner Bros, 2000.
ROSOSTOLATO, Breno. Antropofagia: o canibalismo sob a luz da psicologia.
Disponível em: <https://www.campograndenews.com.br/artigos/antropofagia-
o-canibalismo-sob-a-luz-da-psicologia >. Acesso em: 16 abril 2018.
SAIMEH, Nahlah. Canibalismo: da cultura à perversão. Scientific American: mente
e cérebro, 2007. Disponível em: <http://www2.uol.com.br/vivermente/
reportagens/da_cultura_a_perversao.html>. Acesso em: 09 de maio de 2018.
198
Estudos Literários
Figurações contemporâneas
do envelhecimento e da
velhice em representações
literárias
Felipe Matheus de Oliveira Braga1
Ulysses Rocha Filho2
Introdução
O presente artigo tem como principal objetivo investigar a forma como Adé-
lia Prado – poetisa, professora, filósofa e contista brasileira – aborda o tema de
envelhecimento e velhice em sua obra, a fim de evidenciar esse tema retratado que
se encontra repleto de tabus, preconceitos e marginalizado tanto no espaço literário
como no meio social contemporâneo.
A velhice é um assunto carregado de preconceitos, não somente na área lite-
rária como no nosso âmbito social cotidiano, rejeitando o ser idoso nas mais varia-
das formas possíveis, como se fossem objetos descartáveis, que ao atingir uma certa
idade não produz nada além de prejuízos e rendimentos insignificantes em todos
os tipos de serviços que seriam capazes de fazer. São, portanto, seres considerados
incapazes, insuficientes.
Segundo Carmen Lúcia Tindó Secco (1994), observando os estudos de Si-
mone de Beauvoir afirma que “o ocidente, desde a Idade Média, sempre compreen-
deu a idade avançada como um intermediário entre a doença e a saúde”, mostrando
que esse tipo de pensamento preconceituoso, segregando os idosos impedindo a
199
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
200
Estudos Literários
Um assunto tal qual este, que implica na construção de conceitos levados pa-
ra o cotidiano de indivíduos que carecem de atenção, não pode cair no esquecimen-
to ou banalização. Os reflexos para com os são muitos, pois podem acarretar em
problemas maiores para tais indivíduos, como uma tristeza profunda acompanhada
pela melancolia e depressão e ainda a rejeição enraizada na cultura contemporânea,
que vê o idoso a margem da sociedade, acabando com a vontade de viver ou dificul-
tando uma resistência a esses problemas causados pelo exílio na sociedade. É, pois,
tal trabalho, de relevância não só acadêmica bem como social e moral. Representa
um ganho em diferentes esferas do saber, contribuindo para a inserção do idoso em
discussões pertinentes e que fomentam sua reinserção na sociedade, local de onde
nunca deveriam ter sido marginalizados.
Adélia Prado - poetisa brasileira - exprime em suas obras elementos do co-
tidiano feminino, religioso, erótico e místico com bastante naturalidade, gerando
aos leitores uma certa empatia com os personagens em cada caso distinto em suas
poesias. Mais que isso, a autora consegue tocar em temas considerados de difícil
tratamento, tal como é a velhice, na qual ECCO (1994) afirma que:
Não sendo a vetustez o único ponto de discussão das obras de Prado, a autora
lança mão da maioria desses elementos citados não somente no que diz respei-
to aos assuntos da terceira idade, mas também em seus outros escritos, sejam eles
personagens explícitos ou aqueles que são deixados de modo subjetivo na história,
cabendo ao leitor formulá-los em sua leitura.
A velhice é retratada em outras obras, de diferentes modos e diferentes visões
sobre o assunto abordado, como Lima Barreto abordando a aposentadoria em Triste
Fim de Policarpo Quaresma (1915); José Lins do Rego apresenta no romance Menino
de Engenho (1932) o Coronel José Paulino, idoso que consegue manter o respeito e
admiração das pessoas de seu convívio por conta de suas propriedades e seus bens,
além de outras duas personagens idosas, sendo elas Totonha e Galdina, a velhice não
é o ponto principal para Lins, mas tem um espaço enorme neste romance; e Clarice
201
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
202
Estudos Literários
Esta ilustração carrega consigo uma série de elementos que dos quais, quanto
mais o indivíduo a observar, mais conseguirá percebê-los; são objetos repletos de
sentidos que abordam significados além do que usualmente são impostos. A vela,
peça em destaque na imagem, é um item simbólico com bastante influência no
quesito religioso, pois em companhia dos ovos e cesto automaticamente nos leva a
lembrar da Páscoa, celebração cristã a qual celebram a ressurreição de Jesus Cristo;
se tratando de Adélia Prado a escolha dessa imagem não seria feita apenas por esse
sentido sagrado.
Ao observar a imagem por outro ângulo, em contrapondo toda graça e san-
tidade, temos o lado profano explícito: a vela agora torna-se o órgão sexual mascu-
lino, ou seja, é fálica, no ápice de sua magnitude de excitação, com o fogo sendo a
glande e escorrendo seu líquido pré ejaculatório por todo objeto. Abaixo temos o
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
saco escrotal representado pelos ovos e o cesto funcionando assim como os pelos
pubianos. Aproveitando o termo que caracteriza a vida e morte aludido mais acima,
vamos para outro ponto que tais itens nos levam a analisar, a velhice em si: a vela
encontra-se acesa, em seu topo, ainda no estado juvenil desse objeto, condição que
com o passar do tempo ao atingir um certo uso (ou idade, numa metáfora direta)
implicará no término de sua existência. A chama pode ser definida como a própria
vida, em contraste com a escuridão completa no fundo da pintura marcada pela
morte, que cerca este objeto a todo momento, sendo a verdade absoluta de que em
um determinado momento essa “vida” sucumbirá.
Tal imagem de Magritte (1948) não foi escolhida por acaso uma vez que
consegue agregar tantos sentidos e elementos numa só arte visual, possibilitando
a introdução de conteúdos em todos esses temas abordados, e Prado (2010) soube
aproveitar a contento esta ponte para seus feitos, assim como poderá ser entendido
nas poesias selecionadas a seguir:
Abrasada
Só trinta anos tinha minha mãe
e já suspirava:
‘Por que não vai todo mundo pro convento?
Qualquer dia, ô cruz, estes peitinhos,
seus paninhos manchados…’
Por que me deixou órfã, minha mãe?
Apesar de seus olhos tristes
e sua boca selada,
vou me casar assim mesmo.
Só vai lhe doer agora
e não muito.
(PRADO, 2010, p.42)
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Estudos Literários
A necessidade do corpo
Nenhum pecado desertou de mim.
Ainda assim eu devo estar nimbada,
porque um amor me expande.
Como quando na infância
eu contava até cinco para enxotar fantasmas,
beijo por cinco vezes minha mão.
Este é meu corpo,
corpo que me foi dado
para Deus saciar sua natureza onívora.
Tomai e comei sem medo,
na fímbria do amor mais tosco
meu pobre corpo
é feito corpo de Deus.
(PRADO, 2010, p.28)
O eu lírico apresentado nessa poesia mostra sua devoção clara por Deus,
preservando-se de todo tipo de pecado que o mundo poderia oferecer. Por mais
que seus desejos e suas vontades ainda permanecem, não se rendeu às tentações
carnais por seu amor a Cristo, fazendo uma assimilação à uma passagem bíblica
encontrada em I Coríntios capítulo 11 versículo “Tomai, comei; isto é o meu corpo
que é partido por vós; fazei isto em memória de mim”, trecho que é dito novamente
em Mateus capítulo 26 versículo 26: “Tomai, comei; isto é o meu corpo”, ato que
ocorreu no momento da Santa Ceia por Jesus, minutos antes de ser apreendido
pelos pelos guardas do templo.
É perceptível, aqui, o domínio e conhecimento de Adélia referentes à fé cristã
adquirida por suas experiências pessoais, apontando essa dualidade entre os desejos
carnais e a preservação da santidade na poesia, ou seja, uma dicotomia entre sagra-
do e profano.
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Mote da Viúva
Sol com chuva
casamento da viúva
que de maneira discreta
oferece docinhos.
O noivo não disfarça a pressa
de ficar a sós com a experiente mulher.
É bom ter calma, até que o último a sair
bata de novo à porta
querendo seu guarda-chuva.
Como de um satélite
que a olhos nus navega devagar,
vê-se a terra lá embaixo,
rios, campinas, cidadezinhas, torres,
entra dia, sai noite,
uma volta completa.
Lambendo o mel da lua a viúva
ensina o homem a raiar.
(PRADO, 2010, p.49)
A autora, nesta poesia, quebra com o tabu de que “o idoso não tem desejo
sexual, não existe mais vigor, estão cansados demais para isso” e ostenta todas as
possibilidades que um indivíduo envelhecido, especificamente a mulher mais velha,
consegue proporcionar aos mais jovens trazendo conhecimento e gozando dos pra-
zeres que a vida, em sua fase avançada, ainda pode oferecer.
“Velho” também tem vida sexual ativa, “velho” também ama, “velho” tam-
bém vive, devemos parar de disseminar comentários opostos e sem fundamentos
para todos os cantos, e quando um dia, alcançar essa certa idade que tanto criticam
na juventude, aí poderão tirar suas próprias conclusões sobre esse assunto, enquan-
to isso deixemos os preconceitos de lado e procuremos compreender mais o lado
dos outros e esquecer do individualismo geral.
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Estudos Literários
Conclusão
A obra trabalhada no presente artigo configura-se como resistência contra
preconceitos contra idosos, mulheres, e outras forças consideradas em situação de
necessidade de discussão, uma vez que são vítimas de preconceitos, julgamentos
e violências gerados por uma sociedade cada vez mais preconceituosa, e, em não
raras vezes, comandada pela supremacia do homem em suas relações sociais, numa
posição de poder que se eleva acima destes sujeitos mais fracos, reverberando dis-
cursos de exclusão, repulsa, machistas e sexistas.
Em suas poesias, a autora esbanja diversas características literárias a fim de
atingir um maior gozo literário, trabalhando para promover o olhar crítico dos lei-
tores em assuntos que não ainda pouco na contemporaneidade por conta de um
demasiado medo na qual muitas vezes sendo considerado polêmico, com suas refe-
rências que incomodam grupos poderosos, principalmente os religiosos, por tocar
num assunto sagrado com cunhos profanos e carnais.
A obra promove, em seu seio narrativo, diversas ferramentas capazes de ates-
tar seu poder literário, quer sejam a intertextualidade ou a construção visual da
narrativa que, por meio de uma obra de arte, pôde fazer crescer os significados
daquilo que foi narrado por seus personagens onde, em momento algum, a literata
promove qualquer tipo de discurso desrespeitoso a quaisquer grupos, sejam aqueles
dos quais a autora se propõe escrever sobre ou os que ainda são passíveis de uma
subjetividade na leitura, ou seja, os elementos que são criados pelo possível leitor.
A autora, inclusive, promove um pacto literário com tamanha delicadeza que
a verossimilhança se torna irrevogável, na qual a obra literária se torna, pois, um
espelho daquilo que é encontrado na vida real. É, logo, mais uma característica que
evidencia o trabalho estético da autora, uma vez que são sim poesias carregadas de
literatura e, tal como é o poder da literatura, não precisam refletir obrigatoriamente
a realidade, porém, a autora o faz com maestria, tornando-se não apenas uma ar-
ranjadora de letras e sim uma tecelã de vidas. Vidas que cabem em assuntos e tipos
evitados. Vidas que são necessárias serem faladas. Se o sentido da vida é nascer,
crescer, reproduzir e morrer a autora o expande e adiciona o envelhecer também
como um sentido para a vida.
207
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Referências Bibliográficas
BIBLIA SAGRADA. Tradução ALMEIDA, João Ferreira de. Brasília: Sociedade Bíblica
do Brasil, 1969.
CANDIDO, Antonio. O estudo analítico do poema. 5. ed. São Paulo: Humanitas, 2006.
161 p.
COMPAGNON, Antoine. O trabalho da citação. Trad. Cleonice P. B. Mourão. Belo
Horizonte: Ed. UFMG, 1996.
CURY, Maria Zilda Ferreira. Intertextualidade: uma prática contraditória. In: Cadernos
de linguística e teoria da literatura, Belo Horizonte, nº 8, p. 117-128, dez. 1982.
208
Estudos Literários
209
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Do lampejo da vida à
escuridão eterna: Amor e
morte em “Venha ver o pôr
do sol” Fernanda L. Oliveira Santos1
Guilherme Weber Gomes de Almeida2
1 PPGEL/UFG/RC, [email protected]
2 PPGEL/UFG/RC, [email protected]
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Estudos Literários
mos uma multiplicidade de características e estilos, dentre os quais salta aos nossos
olhos o fazer literário de Lygia Fagundes Telles. Seu protagonismo literário conce-
deu-lhe notoriedade na esfera mundial por suas narrativas curtas, porém intensas,
fortemente permeadas por uma simbologia profunda, traço peculiar de seu texto
literário. A tessitura de Telles convida o leitor para uma experiência de tensão emo-
cional que é ainda mais intensificada por diálogos bem elaborados e complexos. A
exploração de temas como vingança, amor e morte ressaltam a profundidade dos
sentimentos humanos, ainda mais enaltecidos em momentos de suspense e tensão
narrados pela ficção literária.
Conforme pondera Maria Cristina Castilho Costa (2001), há, na ficção, o
apelo à imaginação, o deslocamento da realidade objetiva para a realidade subje-
tiva, afetiva e significativa fazendo com que se possa estabelecer o vínculo entre a
realidade e o que se vê representado pela ficcionalidade. Esta possibilita ao leitor
distanciarem-se de si próprios, propondo-lhes se transformar imaginariamente em
outros, ocasionando a identificação com o que está sendo representado. Nesse sen-
tido, Mário Vargas Llosa observa com maestria que:
Quando lemos romances, não somos o que somos habitualmente, mas tam-
bém os seres criados para os quais o romancista nos transporta. Esse traslado
é uma metamorfose: o reduto asfixiante que é nossa vida real abre-se e saímos
para ser outros, para viver vicariamente experiências que a ficção transforma
como nossas. Sonho lúcido e fantasia encarnada, a ficção nos completa – a
nós, seres mutilados, a quem foi imposta a atroz dicotomia de ter uma única
vida, e os apetites e as fantasias de desejar outras mil. Esse espaço entre a vida
real e os desejos e as fantasias, que exigem que seja mais rica e mais diversa, é
preenchido pelos livros de ficção (LLOSA, 2004, p. 17).
211
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
morte entrecortadas pela vingança. Neste sentido, conforme bem observa Cánovas
e Santos (2013), “a incursão pela ficção de Lygia Fagundes Telles revela constelações
de imagens engendradas pela linguagem simbólica”.
Esta simbologia a que se referem as autoras supramencionadas, vai se desve-
lando já a partir da intitulação do conto. Em uma leitura subliminar, infere-se que
o pôr do sol traz a representação do fim da luz e início da escuridão, o fim da vida
e a premissa da morte para a jovem Raquel, protagonista da história de um amor
fracassado entre ela e Ricardo, seu antigo namorado. Este, ainda ferido emocional-
mente por conta do relacionamento findo, propõe que um encontro aconteça entre
ambos para que estivessem juntos mais uma vez, para contemplarem juntos um
último pôr do sol. Um cemitério abandonado é o lugar onde o encontro ocorre, já
que Raquel estaria agora comprometida com outro homem e não poderia ser vista
na companhia de Ricardo. Cemitério adiante, jazigos, túmulos, caminhos abando-
nados e a catacumba distante e abandonada torna-se o cenário para o qual o ex
-amante e algoz de Raquel a conduz. Entre conversas incertas e memórias dos mo-
mentos que viveram, os jovens se colocam dentro da suposta catacumba da família
de Ricardo, na qual ele mesmo se encarrega de trancafiar e abandonar para sempre,
a antiga namorada. Para ela, o último pôr do sol pois, dali em diante, somente o fim
de sua vida seria sua contemplação derradeira.
O trabalho de Telles é uma verdadeira obra de arte na qual é possível identi-
ficar diferentes nuances da natureza humana que aparecem materializados em uma
linguagem rica em simbologias, sendo que esta é uma das características definiti-
vas da escritora. “As personagens Ricardo e Raquel do conto de Lygia representam
emoções humanas com seus anseios, questionamentos interiores, obsessões e ambi-
guidades” (LOPES, p. 131, 2013). É esta ambiguidade que percebemos em Ricardo,
o jovem sobre o qual recaem os julgamentos do leitor para concluí-lo como sendo
um assassino frio ou demasiadamente apaixonado. Questões como essas nos são
deixadas no decorrer do percurso feito pelo casal, narrado detalhadamente, e que
inserem o leitor na atmosfera lúgubre e tensa da trama. O convite para ver o pôr do
sol, que está simbolicamente representado pela morte de Raquel, o espaço em que
este encontro acontece – no alto de uma colina, num cemitério abandonado, a quie-
tude da tarde, o mato rasteiro. No cemitério, o velho muro arruinado e o portão de
212
Estudos Literários
ferro carcomido pela ferrugem são elementos que denunciam ao leitor a iminência
de um desastre.
A sequência narrativa conduz o leitor, concomitante aos passos do casal, à
penetração no espaço funesto e reduzido às ações do tempo, da ausência de vi-
da e da presença marcante da atmosfera mórbida. Este efeito deve-se à descrição
minuciosa do narrador que lança mão, mais uma vez, de uma descrição rica em
elementos lúgubres. “O mato rasteiro dominava tudo [...], subira pelas sepulturas,
infiltrara-se ávido pelos rachões dos mármores, invadira as alamedas de pedregu-
lhos esverdinhados, como se quisesse com sua violenta força de vida cobrir para
sempre os últimos vestígios da morte.” (TELES, 2008). Toda a tessitura reforça a
aura simbológica do fim, da ausência de vida marcada não somente pelo local que,
por si só, abriga a morte, mas pela falta de zelo e vida exterior, pela “sepultura com
pálidos medalhões de retratos esmaltados”, no “anjinho de cabeça decepada”. (TE-
LES, 2008).
A tensão provocada pela descrição do ambiente permite que se instaure no
leitor um tom de incerteza sobre as intenções de Ricardo. Não se pode julgar com
clareza, antes do desfecho, se o reencontro por ele planejado trata-se de um sim-
ples ato ou se de fato, ele está a cumprir seu papel de assassino. É justamente nesse
contexto que observamos o quão revestido de mistérios a narrativa está. De acordo
com Cánovas e Santos (2013, p. 266), este conto exemplifica um tipo de história que
busca revelar a natureza humana por completo, tendo em vista que Lygia Fagundes
Telles consegue explorar as profundezas da mente e do coração de seus personagens
ao longo da narrativa estabelecendo um elo entre os fatos presentes e passados.
Lygia Fagundes Telles joga com as palavras, com a metáfora do meio tom que
gera a ambiguidade no conto. A autora utiliza-se do caráter condensado do
gênero conto e instiga o leitor a adentrar o universo do texto, a mergulhar no
emaranhado de imagens simbólicas espalhadas pela tessitura da linguagem
literária. (CÁNOVAS, SANTOS, p. 266, 2013).
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
eterno, porém, em uma leitura subliminar, é bastante coerente inferir que Ricardo
refere-se, neste momento, à ação final de abandonar para sempre seu ex-namorada,
de modo que ninguém possa intervir para livrá-la da morte. É possível se observar
o mesmo aspecto também em “Esta a morte perfeita, nem lembrança, nem saudade,
nem o nome sequer. Nem isso”. Estaria Ricardo referindo-se à morte de uma manei-
ra generalizada ou ratificando a ideia que pratica no desfecho da história – Raquel
termina em uma catacumba sem marcação de seu próprio nome, sem passar pelas
cerimônias de pós-morte e, provavelmente não será uma lembrança para seu atual
companheiro que, na certa, não chorará seu desaparecimento inexplicado.
“Venha ver o pôr do sol” transparece a habilidade de Telles em tecer narrati-
vas macabras, mesmo que em uma narrativa sutil. O clima de suspense ao longo da
história abre caminho para uma tragédia de um modo tênue e delicado, tendo em
vista a escolha de palavras que asseguram a riqueza literária ao texto. Nesse sentido,
o processo narratológico contribui significativamente para que apenas inferências
sejam construídas a respeito dos personagens. Este fato é perceptível em momentos
em que se narram os descontentamentos de Ricardo:
- Ele é tão rico assim? - Riquíssimo. Vai me levar agora numa viagem fabulosa
até o Oriente. Já ouviu falar no Oriente? Vamos até o Oriente, meu caro...
Ele apanhou um pedregulho e fechou-o na mão. A pequenina rede de rugas
voltou a se estender em redor dos seus olhos. A fisionomia, tão aberta e lisa,
repentinamente escureceu, envelhecida. Mas logo o sorriso reapareceu e as
rugazinhas sumiram. (TELLES, 2008).
Percebemos que Ricardo pode estar tomado pela raiva emergida a partir do
fim do relacionamento, sentindo-se desprezado por ter sido substituído por um
homem rico, capaz de proporcionar à Raquel o conforto incoerente com as possibi-
lidades dele, no entanto, essa insatisfação do personagem não é claramente revelada
na narrativa. Apenas sinalizações são deixadas, compondo assim, os momentos de
tensão do texto.
O papel do narrador torna-se essencial na narrativa, pois consegue detalhar
cada gesto e pensamento de Ricardo. É a narração que possibilita ao leitor conhecer
melhor o íntimo de Ricardo, mais do que aos pensamentos de Raquel. Esta, por sua
vez, “descrita somente no aspecto físico, se mostra preocupada com sua aparên-
214
Estudos Literários
cia externa, com seu relacionamento amoroso atual, e as consequências que o seu
passado trariam ao presente” (CÁNOVA, SANTOS, p. 276, 2013). Raquel não de-
monstra preocupação com sua integridade no memento do encontro. Em nenhum
momento a postura de Raquel denuncia desconfiança ou qualquer outro fator que
a impedisse de adentrar o cemitério com o antigo companheiro, a não ser o receio
de ser descoberta. Mesmo em sua superficialidade, Raquel revela que ainda ama
Ricardo. “-E eu te amei.. E te amo ainda.” (TELES, 2008), Talvez tenha sido esse o
motivo pelo qual a romântica jovem tenha aceitado a proposta do último encontro.
Observa-se que descrição de Raquel pelo narrador pode ser considerada co-
mo um reflexo da percepção de Ricardo, o que nos permite indagar se o narrador
poderia ser a voz do próprio Ricardo.
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Ricardo denuncia, ao cabo de seu crime, que o premeditou e, mais uma vez,
deparamo-nos com a ambiguidade da sequência narrativa que permite ao leitor
construir o perfil do malfeitor. “Mas já disse que o que mais amo neste cemitério
é precisamente este abandono, esta solidão. As pontes com o outro mundo foram
cortadas e aqui a morte se isolou total. Absoluta”. (TELLES, 2008). Obviamente ele
certificou-se em momento anterior ao encontro de que aquele seria o lugar ideal
para que Raquel jamais fosse ouvida ou encontrada. Outras informações ambíguas
que também denunciam a premeditação são reveladas em passagens como “andei
muitas vezes por aqui” (TELLES, 2008).
Ainda no que tange às questões narrativas deste conto, destacamos a utili-
zação dos mistérios e dos movimentos de do personagem para conferir um tom
enigmático e ao mesmo tempo cativante. Assim,
216
Estudos Literários
lidar com a frustração do abandono, decide pôr fim à vida de sua amada de maneira
calculista e cruel. Neste sentido, observamos que
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
sol mais belo do mundo. A réstia de sol, assim como a vida de Raquel, que estaria
agora por um lampejo, em breve terminará para ceder espaço à escuridão, apenas. A
treva, a ausência da luz da vida para sempre. O “boa noite, meu anjo”, pronunciado
por Ricardo neste momento significa a despedida para sempre, pois está imbuído
da conotação da morte. Artisticamente desenhado, o cruel crime de natureza pas-
sional toma os contornos do fim, de modo que o detalhamento narrado nos mo-
mentos finais torna-se responsável por instaurar a atmosfera de horror diante de do
acontecido. Ricardo abandona friamente a catacumba, deixando presa Raquel, que
tem sua aura tomada por desespero.
218
Estudos Literários
enigmático, atribui-se, pois, a faculdade de transpor seus receptores para uma esfera
paralela ao mundo efetivo. Através desse tipo de narrativa torna-se possível romper
os limiares e experimentar um outro tipo de realidade, que se manifesta por meio
de formas simbólicas.
Referências
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revistas.iel.unicamp.br/index.php/remate/article/viewFile/3560/3007>. Acesso
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amor em “Venha Ver o Pôr Do Sol”. Interdisciplinar, Edição Especial 90 anos de
Lygia Fagundes Telles, Itabaiana/SE, Ano VIII, v.18, jan./jun. 2013. ISSN 1980-
8879 p. 265-280. Disponível em: <https://seer.ufs.br/index.php/interdisciplinar/
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COSTA, Maria Cristina Castilho. Ficção, comunicação e mídias. São Paulo: Editora
Cenac. São Paulo, Série Ponto Futuro; 12, 2001.
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Telles. Revista Memento V.4, n.1, jan.-jun. 2013. Revista do mestrado em Letras
Linguagem, Discurso e Cultura – UNINCOR. ISSN 2317-6911. p. 128-138.
Disponível em: <http://periodicos.unincor.br/index.php/memento/article/view
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MAIA, Marília Milhomem Moscoso. SOUSA, Sandra Maria Nascimento. “Venha
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Revista de Literatura, História e Memória Pesquisa em Letras no contexto Latino-
Americano e Literatura, Ensino e Cultura, VOL. 13 - Nº 21 - 2017. ISSN 1983-
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br/index.php/rlhm/article/download/16380/11569>. Acesso em: 15 abr. 2018.
PELINSER, André Tessaro. Uma arquetipologia da morte em venha ver o pôr-do-sol, de
Lygia Fagundes Telles. Revista Criação & Crítica, 11, 2013. Qualis B1 ISSN: 1984-
1124. Departamento de Letras Modernas - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas - Universidade de São Paulo Disponível em: <http://www.revistas.usp.
br/criacaoecritica/article/view/58574/68016>. Acesso em: 15 abr. 2018.
219
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
220
Estudos Literários
Uma introdução
Neste artigo, temos o intuito de mostrar o que acontece “com” e “nos” es-
paços e lugares apresentados em O Senhor dos Anéis. Em sua narrativa, o espaço
não funciona apenas como complemento do efeito narrativo, numa perspectiva do
fantástico, sem que seja apenas analisado na visão de Todorov (2008), que o entende
como “gênero”, em sua obra basilar, puro e marcado por uma época. Por outro lado,
a abordagem do tema fantástico entendido como um “modo” traz condições para
analisar O Senhor dos Anéis dentro do contexto da Literatura Inglesa. Baseados nis-
so, apresentamos uma análise estética, partindo do pressuposto que se confirmou
de ter a obra de Tolkien características de uma estética gótica, um Fantástico Mara-
vilhoso, apontado por Roas (2014), em obras como a de J. R. R. Tolkien:
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Anéis abre uma terceira possibilidade, que faz uso das duas anteriores, gerando ten-
são, que reflete no comportamento dos personagens. É assim que o Gótico se insta-
la, enquanto os personagens encontram espaços onde sentirão esse medo. Segundo
Delumeau (2009, p. 30-31), “A emoção de medo libera, portanto, uma energia desu-
sada e a difunde por todo organismo. Essa descarga é em si uma reação utilitária de
legítima defesa, mas que o indivíduo, sobretudo sob o efeito das agressões de nossa
época [...]”, como o homem da Terra-Média, que sente dificuldade em empregar
certo discernimento a respeito de seus espaços e lugares, e de seu envolvimento nos
conflitos existentes, tal como a hesitação de Boromir diante da missão de conduzir
Frodo e o Anel até Mordor.
222
Estudos Literários
to. Não mencionamos aqui as questões referentes à maneira como o tempo exerce
influência sobre a narrativa, quando esta mostra em suas descrições os espaços e
os lugares em que os eventos ocorrem. “A importância dada ao tempo foi grande
que ensejou, inclusive, o aparecimento de uma filosofia cujo um dos pilares é ele, o
existencialismo, [...] basta lembrarmos a obra capital de Martin Heidegger, O ser e o
tempo” (BORGES FILHO, 2007, p. 12), ou o trabalho de Paul Ricoeur, O tempo na
narrativa (1994), em três volumes.
Esta é uma problemática amplamente debatida, em que se precisa voltar o
olhar para o espaço e o lugar que se acham sob a condição do Gótico aportado pelo
medo. Ainda assim, reconhecer a importância do tempo, implícito em todos os
lugares, responsável por movimentar ideias e esforços, para que se torne acessível a
qualquer desejo de liberdade.
223
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
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Estudos Literários
225
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
seu lugar, é onde ele reconhece uma gama enorme de sentimentos que o capturam.
Frodo, por sua vez, vive uma constante inquietação em relação a esse mesmo lugar. O
que o torna desejoso de experiências, que não vêm sem que haja uma responsabiliza-
ção pelo que se escolhe. Olhar além das fronteiras é alargar o espaço de conhecimen-
to nas três instâncias citadas acima: a sociedade, o grupo e o indivíduo. Mas sempre
que as barreiras são rompidas torna-se difícil, pois significa atravessar o desconhe-
cido, deixando para trás o que é conhecido e entendido como civilizado e seguro.
O espaço desconhecido em relação ao espaço conhecido é muito maior: am-
plo em sua materialidade sentimental, pois se relaciona progressivamente ao medo;
amplo em sua estrutura física, pois existem grandes regiões da Terra-Média des-
conhecidas dos hobbits; temporal, porque a história da Terra-Média cunhada por
Tolkien vem de um caderninho usado por ele a partir de 1917, para construir as
primeiras lendas dessa terra e que ficou conhecido como O Livro dos Contos Per-
didos da Terra-Média. Mais importante do que todas essas fronteiras espaciais na
construção do grande painel da Terra-Média seria ver as relações e as experiências
vividas por todos os personagens de O Senhor dos Anéis. Cada um deles traz sobre
os ombros a responsabilidade do comprometimento ao qual devem se reportar.
Segundo Borges Filho (2007, p. 13), “a literatura nada mais é que a investi-
gação do homem e suas relações com o mundo”. Talvez seja por isso que a narrativa
se preocupe em mostrar o olhar de Frodo para o Condado, levantando questões
psicológicas, complexos que o atormentam ao longo da jornada, reconhecendo pro-
blemáticas relacionadas à geografia, filosofia, história, arquitetura etc. São detalhes
colocados no texto à disposição do leitor mais atento e aquele pouco preocupado
acaba por ser capturado por estas nuances.
Depois que Yi-Fu Tuan (2012) desenvolveu uma pesquisa a respeito de luga-
res e espaços, estudo este que veio complementar um anterior ao qual deu o nome
de Topofilia, que “é o elo afetivo entre a pessoa e o lugar ou o ambiente físico. Difuso
como conceito, vivido e concreto como experiência pessoal” (TUAN, 2012, p. 19),
o espaço e o lugar deixaram de ser apenas um detalhe em um mapa. Borges Filho
(2007) prefere usar o termo Topoanálise, que “não se restringe a análise da vida
íntima, mas abrange também a vida social e todas as relações do espaço com a per-
sonagem seja no âmbito cultural ou natural” (p. 33). Ainda segundo o pesquisador,
“É a investigação do espaço em toda a sua riqueza, em toda a sua dinamicidade na
226
Estudos Literários
Cada linha foi desenhada por algum motivo, e grande parte das justificativas
foi dada nas respectivas explicações; contudo, o espaço nem de longe permi-
te a inclusão de todo o processo de raciocínio. Entre várias possibilidades,
escolhi as que me parecem mais razoáveis, visto que não pude consultar o
“Velho Cevado” para informações adicionais (FONSTAD, 2004, p. XI, grifo
da autora).
227
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
2009, p. 30), exatamente como acontece com Sam, que sente medo de não poder
ajudar e medo de não conseguir acompanhar Frodo. De acordo com Yi-Fu Tuan
(2013, p. 22), “o espaço pode ser experienciado de várias maneiras: como a locali-
zação relativa de objetos ou lugares; como as distâncias e extensões que separam ou
ligam os lugares, e – mais abstratamente – como a área definida por uma rede de
lugares” e que Sam consegue perceber, na medida em que segue pelos muitos cami-
nhos da Terra-Média, enquanto o medo que sente contrasta com uma coragem que
o impulsiona para frente em direção a Mordor.
Nos espaços da Terra-Média, existe uma presença indicando os procedimen-
tos, valorando todas “as coisas” e tudo sofre uma movência que, a princípio, parece
não ser percebida, pois “Os movimentos freqüentemente são dirigidos para, ou re-
pelidos por objetos e lugares” (TUAN, 2013, p. 22). Curiosamente, numa segunda
determinação, as distâncias indicadas ao longo do romance trazem em si uma gama
enorme de possibilidades, pois essa referida distância pode ser medida, por exem-
plo, do Bolsão à estalagem do Pônei Saltitante; da morada dos elfos, em Rivendel, à
Montanha da Perdição perto da Torre de Baradur, onde está o olho de Sauron; e até
mesmo do Bolsão para ele mesmo, não se tratando apenas de um movimento reto,
mas de volta ao princípio, estabelecendo um círculo.
Desde sempre, o homem, assim como a maioria dos animais, concebe sua vi-
da na construção de um espaço em que pode se locomover e se embrenhar em seus
relevos aparecendo e desaparecendo. O mundo, então, passa a ser construído para
ele a partir do que começa a se formar em sua mente como condições de existência.
Sua realidade compreende elementos estruturados da materialidade concreta a qual
deve abstrair em seu consciente de forma inconsciente, para depois ser lembrado
em momentos outros em que busque por elementos que o ajudem a encontrar um
espaço de referência. Assim, as pessoas buscam por suas identificações com luga-
res na vida real, procurando sentir-se inseridas nesses espaços, como acontece na
Terra-Média. Por exemplo, o que se pode saber sobre os hobbits na citação abaixo:
Os hobbits são um povo discreto, mas muito antigo, mais numeroso outrora
do que é hoje em dia. Amam a paz e a tranquilidade e uma boa terra lavra-
da: uma região campestre bem organizada e bem cultivada era seu refúgio
favorito. Hoje, como no passado, não conseguem entender ou gostar de má-
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Estudos Literários
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Em Eregion, há muito tempo, muitos anéis élficos foram feitos, anéis mágicos,
como se diz. E eram, é claro, de muitos tipos: alguns mais poderosos, outros
menos. Os anéis menos importantes foram apenas ensaios no ofício, que ain-
da não estava totalmente desenvolvido, e para os ourives élficos eram insigni-
ficantes – embora eu os considere um risco para os mortais. Mas os Grandes
Anéis, os anéis de Poder, esses eram perigosos (TOLKIEN, 2001, p. 48).
Objeto este que consegue, desde a sua criação, exercer e influenciar a todos,
pois ele é o Anel que domina a vontade de outros anéis menores. Essa influência
transcende seu tempo de criação, como transcreve a citação:
230
Estudos Literários
O Um Anel é um objeto mágico que, depois de ser deixado por Bilbo sob a
proteção de Frodo, tem sua origem pesquisada e decifrada por Gandalf. Seu poder
pode desestabilizar a tranquilidade da realidade da Terra-Média. O que dizer, então,
de quem assume a tarefa de carregá-lo? Assim foi com Sauron, depois com Isildur,
a quem o Anel traiu, ficando perdido nas águas de um rio por muito tempo até ser
novamente encontrado e provocar novas mortes causadas pelo despertar de senti-
mentos ruins, como a inveja e a ambição. Então, a criatura Gollum assume a guarda
do Anel, que fora perdido nas águas do rio Anduin e foge para as cavernas sob as
montanhas, ficando entre o mundo escuro dos orcs e o mundo de esperança dos
homens e outros seres, consumindo e sendo consumido pelo seu Precioso.
Mas novamente o Anel deixa o seu portador, sendo encontrado por Bilbo
bolseiro durante uma aventura inesperada para um hobbit. E, finalmente, o Anel vê
chegada a hora de deixar mais este portador. O simples ato de deixar o Anel depois
de portá-lo por tanto tempo causa a Bilbo sério desconforto. E deixar o Anel é um
momento de impasse, difícil e doloroso, como em um processo de separação que
o fragiliza. Mas tal atitude de abandonar o Anel deixa o velho hobbit debilitado e,
antes da longa jornada dele, é preciso lembrar que está tentando voltar para o seu
dono. Este longo processo destrutivo sofre uma interrupção e a sequência de rou-
bos e mortes por causa dele fica em suspenso. O que, para Bilbo, é um momento
de libertação e muita coragem, quando diz: “– Bem, de qualquer modo eu já me
decidi. Quero ver montanhas de novo, Gandalf – montanhas; e depois encontrar
algum lugar onde possa descansar. Em paz e silêncio” (TOLKIEN, 2001, p. 33, grifo
do autor), para Frodo, é triste e significa separação. Isso o deixa em dúvida sobre o
que deve fazer: “Gostaria que nunca o tivesse encontrado, e que eu não o possuísse
agora! Por que permitiu que eu ficasse com ele? Por que não me obrigou a jogá-lo
fora, ou destruí-lo?” (TOLKIEN, 2001, p. 62). Como visto, Bilbo iniciou o processo
ao possuir o Anel e a Frodo coube a parte mais árdua da jornada, assegurar que o
Anel seria destruído.
Ao abrir mão do Anel, não só alterou a ordem trágica estabelecida pelo obje-
to, mas Bilbo redefiniu todo o destino da Terra-Média. Como é corriqueiro aos hob-
bits, essa informação não chegou aos ouvidos dos hobbits comuns. “Mas mesmo os
mais surdos e os que menos saiam de casa começaram a ouvir histórias estranhas,
e aqueles que tinham negócios nas fronteiras começaram a ver coisas esquisitas”
231
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
(TOLKIEN, 2001, p. 45). Tem-se, então, o início de um jogo de luz e trevas diárias
em todos os lugares e espaços físicos ou psicológicos, espaços esses criados pelo ho-
mem que, para Yi-Fu Tuan (2012), trata-se de um processo que ocorreu em função
de um único evento: a linguagem. Este fato é explicado por ele da seguinte maneira:
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Estudos Literários
uma paixão igualmente básica ab initio pelos mitos (não alegorias!) e pelos
contos de fadas e, acima de tudo, pelas lendas heroicas no limiar dos contos
de fadas e da história, de que há tão pouco no mundo (acessível a mim) para
meu apetite.
Mitos e contos de fadas, como toda arte, devem refletir e conter em solução ele-
mentos de verdade (ou erro) moral e religiosa, mas não explícitos, não na for-
ma conhecida do mundo “real” primário (TOLKIEN, 2006, p. 141. Carta 131).
A menção é importante, pois faz com que se pense seriamente sobre tal
construção. O Senhor dos Anéis tem identidade própria e consegue assegurar seu
espaço, além de fazer o leitor acreditar nos eventos ali dispostos. As relações que
vão acontecendo, como, por exemplo, entre o nobre e o simples, propiciam uma
aproximação maior do leitor, trazendo contornos de verdade ao que se lê sobre
a Terra-Média, seu tempo de ocorrência, o espaço que ocupa e o lugar em que se
acha, como explica Tolkien, na carta 135:
233
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
não é um nome de uma terra imaginária sem relação com o mundo no qual
vivemos (como o Mercúrio de Eddison). É apenas um uso da palavra middel-
-erd (ou erthe) do inglês médio, alterada a partir da palavra Middangeard do
inglês antigo: o nome para as terras habitadas dos Homens “entre os mares”. E
embora eu não tenha tentado relacionar o formato das montanhas e das mas-
sas de terra com o que os geólogos podem dizer ou conjeturar sobre o pas-
sado mais próximo, imaginativamente presume-se que essa “história” ocorra
em um período do verdadeiro Velho Mundo deste planeta (TOLKIEN, 2006,
p. 212. Carta 135, grifos do autor).
– Mas ontem à noite lhe falei sobre Sauron, o Grande, o Senhor do Escuro. Os
rumores que ouviu são verdadeiros: ele realmente ressurgiu; deixou seus do-
mínios na Floresta das Trevas e voltou à sua antiga fortaleza na Torre Escura
de Mordor, até vocês hobbits já ouviram esse nome, como uma sombra ron-
dando os limites das velhas histórias. Sempre, depois de uma derrota e uma
pausa, a Sombra toma forma e cresce novamente (TOLKIEN, 2001, p. 52).
Este trecho dá a tônica do que será o final da terceira Era. Ela está em ebuli-
ção e, como visto em O Hobbit, que funciona como um prólogo da guerra do Anel,
algo grande estava em curso para a Terra-Média, com suas grandes e antigas flores-
tas, onde seres sombrios caminhavam fazendo-se vizinhos de povos cuja vida era
234
Estudos Literários
Conclusão
Para os hobbits, os espaços que ocupam representam sua identidade. “Espa-
ço e lugar são termos familiares que indicam experiências comuns. Vivemos no es-
paço. Não há lugar para outro edifício no lote. As Grandes Planícies dão a sensação
de espaciosidades” (TUAN, 2013, p. 11). É o lugar onde eles existem enquanto povo,
é a significação, a marcação de suas identidades. “O lugar é segurança e o espaço é
liberdade: estamos ligados ao primeiro e desejamos o outro. Não há lugar como o
lar” (TUAN, 2013, p. 11). A evocação de lugar como sendo o lar mostra o quanto
esse povo pequeno valoriza sua unidade, pois, como é possível ver, logo na introdu-
ção de O Senhor dos Anéis, o narrador desenvolve de forma segura e coerente um
histórico da formação desse povo pequeno, mostrando seus hábitos, costumes e a
fórmula pacata de viver a vida, sempre voltando seu olhar para o que a terra pode
lhe dar para sua subsistência.
O que é lar? É a velha casa, o velho bairro, a velha cidade ou pátria. Os geó-
grafos estudam os lugares. Os planejadores gostam de evocar “um sentido de
lugar”. Estas são expressões comuns. Tempo e lugar são componentes básicos
do mundo vivo, nós os admitimos como certos. Quando, no entanto, pensa-
mos sobre eles, podem assumir significados inesperados e levantam questões
que não nos ocorreria indagar (TUAN, 2013, p. 11, grifos do autor).
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
mais importante. Assim que Frodo e seus amigos se veem forçados a deixar o Bol-
são, tudo quanto conhecem do mundo exterior está dentro dos territórios onde
vivem. Além das divisas, nada sabem. A maneira como escreve Yi-Fu Tuan (2013)
explicando como os indivíduos se relacionam com os espaços em que se encontram
é muito próximo daquilo que o Condado representa para os hobbits: “É a velha casa,
o velho bairro, a velha cidade ou pátria” (TUAN, 2013, p. 11), a toca no Bolsão, pois
estas são as pequenas coisas que dão sentido à vida de um hobbit.
Conhecer, como sabem que conhecem as terras de sua região, dá-lhes essa
força interior, para que vivam de forma simples, assim como o próprio Gandalf
diz que pode se saber tudo que há a respeito deles e no minuto seguinte voltam a
surpreender ao revelar algo mais que não se sabia sobre eles (TOLKIEN, 2001). Ao
preparar o leitor para o que virá, como citado acima, o narrador proporciona uma
diversidade de sentimentos, uma vez que a narrativa inicial vem ocupar lugar quase
que de documento. Retrata a construção e a maneira como o cotidiano de um hob-
bit está envolvido com o lugar comum. É um mundo real de hobbits trabalhando,
vivendo, como deve viver qualquer comunidade, ocupando seus espaços, escolhen-
do seus lugares.
Referências
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Ribeirão Gráfica e Editora, 2007.
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Londrina: Eduel, 2013.
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Tradução de Lívia de Oliveira. Londrina: Eduel, 2012.
237
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Introdução
Com a constatação da pouca frequência de leituras de Literatura Goiana na
escola, especialmente de obras do importante escritor Bernardo Élis, percebeu-se a
necessidade de propor sua inserção em sala de aula. Para tanto, foi escolhido o pri-
meiro romance de sua autoria, O Tronco, publicado em 1956, e também se recorreu ao
filme homônimo O Tronco, de 1999, dirigido por João Batista de Andrade. Com essas
obras, foi possível estabelecer o profícuo diálogo entre Literatura, História e Cinema.
Trata-se de um trabalho que apresenta alguns dos resultados da pesquisa de
Iniciação Científica intitulada “A leitura de O Tronco em sala de aula: um projeto-in-
tervenção”, que recebeu o apoio do Programa de Bolsas da Universidade Estadual de
Goiás (PBIC/UEG), no período de agosto de 2017 a julho de 2018, e esteve vincula-
da ao projeto Núcleo de Estudos Goianos (NEG) – Os Estudos Culturais e a Literatura
Goiana na Escola3.
O texto, ora apresentado, inicia-se com uma breve síntese do enredo de O
Tronco. Depois, comenta-se sobre o contexto histórico-cultural de produção do re-
ferido romance. Por fim, oferece-se o relato das experiências obtidas em sala de
1 Graduanda em Letras Português/Inglês e suas Respectivas Literaturas pela Universidade Estadual de Goi-
ás – Câmpus Pires do Rio. Bolsista PBIC/UEG no período de agosto de 2017 a julho de 2018, geovanafarau-
[email protected]
2 Professora Orientadora da Universidade Estadual de Goiás (UEG). Doutora em Letras e Linguística pela
Universidade Federal de Goiás (UFG). Integra a Rede Goiana de Pesquisa em Leitura e Ensino de Poesia, o
Grupo de Estudo e Pesquisa em Literaturas de Língua Portuguesa (GEPELLP/CNPq) e o GT da ANPOLL
Teoria do Texto Poético, [email protected]
3 Projeto de Pesquisa financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás (FAPEG), no
período de dezembro de 2016 a dezembro de 2018.
238
Estudos Literários
aula, destacando a importância das relações entre Literatura e História, bem como a
relevância do Cinema para a promoção da leitura literária na escola.
1. O enredo de O Tronco
Narrado em terceira pessoa, o romance O Tronco tem como personagem
principal Vicente Lemes, sobrinho do fazendeiro Pedro Melo. Vicente assume o
cargo de coletor na Vila de São José do Duro, Goiás, por indicação de Artur Melo.
Esta família tem o poder sobre o povo, através de agrados e ameaças. Devido a isso,
o protagonista fica dividido entre agradar os familiares ou cumprir honestamente
as obrigações de seu ofício.
Seu tio se achava dono de tudo e de todos, como no caso do inventário da
viúva em que obrigava constar poucos bens nos registros já que havia tomado parte
para si. O sobrinho achava isso um absurdo, pois o local era pequeno e todos sa-
biam que o morto possuía muito mais bens. Vicente tinha receio de perder o seu
emprego se fosse denunciado sobre a omissão. O governo mandou tropas militares,
e um novo juiz para Vila do Duro. Com a chegada das tropas na cidade, os Melos
se sentiram encurralados e fizeram um acordo com o Juiz Carvalho. No entanto,
o acordo não foi cumprido e, então, a guerra foi declarada entre os militares e os
jagunços que defendiam Artur Melo.
Pedro Melo foi morto por soldados, crime que foi considerado legítima de-
fesa pelo juiz. Artur conseguiu se esconder e se aliou ao cangaço. A polícia prende
os homens da família Melo a um tronco no porão de sua própria casa e, depois, são
executados. Há a cruel execução do menino Hugo Melo. Os cangaceiros atacam
a cidade, comandados pelo jagunço Dorado, travando guerra contra os militares,
resultando em inúmeras mortes. Os soldados fogem. Com chuva e trovões, já sem a
família, Vicente segue pela estrada em direção a Goiás.
239
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
240
Estudos Literários
consumo próprio, uma vez que não tinha como transportar. Após a construção das
linhas férreas, o sul do Estado passa a plantar arroz, e achou mercado porque nos
outros Estados a maioria das terras era para o cultivo de café.
A pesquisa explica o porquê da pobreza e do atraso de Goiás, onde pou-
co saía e pouco entrava, os desvios de verbas federais e a má administração não
permitia o desenvolvimento e aumentava a violência e pobreza. Os Estados mais
desenvolvidos eram: Rio Grande do Sul, Minas Gerais e São Paulo. Política e eco-
nomicamente, possuíam mais eleitores e suas regiões eram mais próximas do porto
marítimo, facilitando a comercialização dos seus produtos.
Como se nota, trata-se de um contexto de isolamento geográfico e, conse-
quentemente, de certo atraso a que Goiás estava subjugado. Segundo Abdala Junior
(1983), O Tronco apresenta uma crítica social. O referido romance mostra as expe-
riências de vida de Bernardo Élis que nasceu em Corumbá de Goiás no dia 15 de
novembro de 19154. Na infância, ele viu a dominação do povo pelas oligarquias de
Goiás e o poder que esta tinha sobre eles. Foi escrivão do Cartório do Crime de Co-
rumbá de Goiás e da Delegacia de Polícia de Anápolis. Por isso, há vestígios da vida
política e militar do autor no romance. Também exibe marcas de seu envolvimento
com o Partido Comunista Brasileiro (PCB), no qual ingressou em 1940 e que fez
com que fosse monitorado.
Vieira Neto (2010, p. 39) salienta:
Bernardo Élis obteve mais espaço para articular seus contos e romances den-
tro de uma estética e linguagem particulares, não se eximindo, em momento
algum, de causar estranheza, desconforto ou encantamento que suas perso-
nagens exprimem, sem abandonar o comprometimento com a urdidura de
uma literatura engajada com as causas políticas e sociais.
241
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
5 A Revista Oeste foi fundada pelo Governador do Estado de Goiás Pedro Ludovico em 1942 e circulou
até 1944.
6 Segundo Vieira Neto (2010, p. 51), com os livros Chegou o Governador (1987) e Apenas um violão (1984),
Bernardo Élis traz uma temática mais urbana e distancia-se da linguagem coloquial.
242
Estudos Literários
7 CAMARGO, ECILENE. Bernardo Élis – entre ressentimentos e planos. In: Jornal O Popular. Goiânia, 08
jun. 1997, p. 10, foi citado por Vieira Neto (2010, p. 42).
8 João Batista de Andrade nasceu em Ituiutaba (MG) no dia 01 de dezembro de 1939. Em suas produções,
inter-relacionam-se Literatura, Política e Cinema, segundo Vieira Neto (2010, p. 96). Filia-se ao PCB em 1961,
atuou no Movimento Estudantil da USP e sofreu repressão durante a Ditadura Militar no Brasil.
243
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
cada de 1930, por meio de uma combinação artística, bem calculada, entre a his-
tória de um poder local e a literatura, acusa, julga o domínio exacerbado de um
determinado grupo social numa região goiana” (MARCHEZAN; SOUZA, 2014).
Sem dúvida, a obra de Élis volta seu foco para os seres injustiçados, marginalizados
e oprimidos, os quais sofrem a exploração, os abusos de autoridade, sendo vítimas
da desumanidade dos poderosos.
244
Estudos Literários
245
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Dessa maneira, deve ser trabalhada a ideia de que um filme, embora dialo-
gando com o texto literário, não se trata de mera adaptação, mas sim se apresenta
como uma tradução, também fruto da criação artística. Nesse sentido, Vieira Neto
(2010, p. 18) cita Sandra Jatahy Pesavento (2001) que afirma:
246
Estudos Literários
247
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
explica ao espectador suas origens; é uma das alegorias que dão título ao ro-
mance e à versão cinematográfica: a visão do majestoso tronco do carvalho
simbolizava a posse e demarcação das terras e a fonte material para confecção
do ataúde que no dia de sua morte, leva-lo-ia para o solo.
Com o projeto, percebeu-se que grande parte dos alunos não apresenta o
hábito da leitura, principalmente de obras literárias de autores regionais, e quando
o fazem, conforme eles mesmos afirmaram, é somente em sala de aula. No início,
eles se mostraram bem dispersos, mas, com o passar do tempo, mostraram-se bem
empenhados a entender o romance e a participar das atividades propostas. Os alu-
nos confeccionaram os cartazes com criatividade e, quando surgiam dúvidas, expu-
nham à professora. Dessa forma, eles conseguiram alcançar o objetivo da proposta,
conhecendo e compreendendo a relação entre o romance e os fatos históricos e
culturais da época, e reconhecendo a importância de seu autor.
Considerações Finais
Levar o romance O Tronco para a sala de aula mostrou aos alunos a impor-
tância de se valorizar autores goianos, como Bernardo Élis. Também oportunizou
as discussões sobre a relação entre Literatura e História, motivando a prática da
leitura e da interpretação das realidades passada e presente, a fim de desenvolver
uma visão crítica.
Além disso, promover o diálogo da Literatura com o Cinema também se
mostrou bastante proveitoso, pois colocou a narrativa de O Tronco em movimento
com suas imagens audiovisuais, por meio na narrativa fílmica de João Batista de
Andrade, que tanto despertam a atenção do público receptor e se mostra como uma
valiosa ferramenta de reflexão.
Foi possível verificar o escasso conhecimento que os alunos do Ensino Médio
tinham sobre a Literatura e a História de Goiás, notadamente, sobre o Coronelismo.
A partir disso, trabalhar os conteúdos relacionados e colaborar com o olhar crítico
sobre a realidade, com vistas ao desenvolvimento da reflexão dos alunos sobre a
política como um elemento fundamental para a sociedade.
248
Estudos Literários
Referências
ABDALA JUNIOR, Benjamin (Org.). Bernardo Élis: seleção de textos, notas, estudos
biográfico, histórico e crítico e exercícios. São Paulo: Abril, 1983. (Literatura
Comentada).
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romance de Bernardo Élis. Guavira Letras, v. 18, n. 1a., p. 19-35, 2014. Disponível
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em:<http://seer.ucg.br/index.php/mosaico/article/viewFile/1847/1148> Acesso
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VIEIRA NETO, Henrique José. O Tronco: obra literária de Bernardo Élis (1956),
fílmica de João Batista de Andrade (1999) e as conexões possíveis entre cinema,
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- Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2010. Disponível em:<http://
repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/16382/1/henrique.pdf>. Acesso em 08
set. 2018.
249
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Introdução
O conto fantástico nasceu entre os séculos XVIII e XIX, período no qual es-
távamos em plena especulação filosófica. Para Italo Calvino (2004, p. 9), ele é uma
das produções mais características deste último século e uma das mais significativas
para nós, “já que nos diz muitas coisas sobre a interioridade do indivíduo e sobre a
simbologia coletiva”. Embora tenha um surgimento bem delimitado, sabemos que
antes mesmo de surgirem as designações de narrativas fantásticas, as superstições
já se configuravam como narrativas que causavam certo estranhamento, arrepios e
divertimentos nas pessoas, dada sua natureza repleta de mistério. Como versa An-
tonio Candido (2004, p. 174), não há povo e não há homem que possa viver sem “a
possibilidade de entrar em contado com alguma espécie de fabulação”.
Calvino (1999, p. 7-8), a respeito da circulação mundial dos contos popula-
res, afirma que ela é tecida de acontecimentos bem mais transitórios que a publica-
ção de um livro: “um contador de histórias que pára numa feira, um mercador fo-
rasteiro que pernoita numa estalagem, um escravo vendido num porto do Oriente,
e os acampamentos, cheios de fumo e de conversas, dos soldados pelo mundo em
tantos séculos de guerras”. Como aponta Calvino (1999, p. 8), “por vias imperscru-
táveis, o folclore continua o seu périplo de um continente a outro”. As histórias nar-
radas oralmente foram passadas de geração para geração até se firmarem na escrita,
e foram delas que surgiram outras histórias, as quais têm em seu cerne a magia, a
leitura do real, ou seja, da nossa realidade cotidiana e empírica; daquilo que é per-
250
Estudos Literários
ceptível e/ou acessível, como aponta Filipe Furtado (1980). O conto fantástico tem
como tema a relação entre essa realidade de percepção “e a realidade do mundo do
pensamento que mora em nós e nos comanda” (CALVINO, 2004, p. 9).
Calvino foi escritor atuante, leitor e divulgador dos clássicos literários. Du-
rante toda a sua vida, dedicou-se à atividade escrita e sua extensa produção inclui
contos, romances, ensaios, teoria literária. A partir de 1947, notamos a preferência
do autor por narrativas que contenham o elemento fabuloso e um estilo pessoal
construído na base da narrativa popular: “Durante esse período, pouco a pouco,
o mundo ao meu redor ia se adaptando àquele clima, àquela lógica, todo fato se
prestava a ser interpretado e resolvido em termos de metamorfoses e encantamen-
tos (CALVINO, 2006, p. 15)”. Ele realizou, além da pesquisa das fábulas italianas,
outras sobre os contos orais e literários de outros países, como nas obras Contos
fantásticos do século XIX (2004) e Sobre o conto de fadas (1999). Portanto, nota-se
que seu trabalho como escritor foi também o de conhecer seu objeto de ocupação
com bastante propriedade, a partir de uma pesquisa que mostra o seu gosto pelos
elementos fantásticos.
A pesquisa que engendramos para este artigo tem como escopo uma das
principais obras desse autor. Nosso objetivo é analisar o lugar e o espaço de mani-
festação do objeto mágico como um ponto de convergência narrativa dos outros
espaços e personagens apresentados no conto “A terra onde não se morre nunca”,
presente em Fiabe italiane, riquíssima obra de Italo Calvino. Pretendemos, ainda,
investigar que efeitos o objeto mágico desencadeia no contexto textual e como
acontecem suas correlações magnéticas com outros espaços da narrativa - tendo
em vista que ele é o centro da narrativa, tudo se volta para ele, sai dele e o atravessa
como linhas de fuga. Em Fiabe italiane, nosso olhar centra-se sobre o conto elen-
cado acima porque ele apresenta o espaço do objeto mágico como o mais significa-
tivo da narrativa. A execução deste trabalho se justifica pela ausência de trabalhos
mais aprofundados sobre Fiabe italiane e o objeto mágico, ambos de autoria de Italo
Calvino. Ademais, concordamos com Gama-Khalil (2015, p. 204) quando afirma
que os objetos “ocupam um espaço e se configuram como espaços simbólicos na
vida cotidiana dos homens”. Ela ainda ressalta que, por essa dupla configuração
espacial dos objetos, é substancial à pesquisa a investigação sobre os espaços fic-
251
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
cionais. Logo, a leitura pode trazer, como nas fábulas, um caráter não só educativo,
mas também uma leitura da sociedade empírica com as histórias vivenciadas pelos
personagens, podendo levar o homem a conhecer a si e ao mundo que o rodeia e
propiciar outro modo de olhar para sua realidade imediata.
Para o desenvolvimento deste artigo, iremos ler e analisar obras que tratam
da especificidade da literatura de gênero maravilhoso e fantástico modo, elegendo
como obras básicas os estudos de José Paulo Paes (1985), Tzvetan Todorov (2004),
Filipe Furtado (1980), David Roas (2001), Lenira Covvizi (1978). Para os estudos
sobre Fiabe italiane e o conto, utilizaremos Italo Calvino (1990, 2004, 2006), John
Tolkien (2013), Andre Jolles (1976), Mario Barenghi (2007); Eva Oliveira (2013);
Stefano Calabrese e Sarah Cruso (2008). No que concerne à noção de objeto, recor-
reremos aos textos de Umberto Eco (2013), Italo Calvino (1990) e Abraham Moles
(1981). Dentro dos estudos sobre a linguagem, ideologia e espaço, teremos o auxílio
das obras de Michel Foucault (2006), Michel de Certeau (1994), Marisa Gama-Kha-
lil (2012, 2015), Gilles Deleuze e Félix Guattari (1997). Ademais, pretende-se reali-
zar pesquisa bibliográfica compreendendo: situar Calvino em seu tempo histórico,
social e cultural, além de estudos críticos em torno desse tema.
252
Estudos Literários
via outra mais específica: “dare unità, stilistica e di metodo, al libro” (CALABRESE
& CRUSO, 2008, p. 58-60). Obedecendo a uma exigência editorial, Calvino se viu
diante de uma tarefa difícil, mas mesmo assim decidiu tornar-se “um elo da anôni-
ma cadeia sem fim pela qual as fábulas se perpetuam, elos que não são jamais puros
instrumentos, transmissores passivos” (CALVINO, 2006, p. 19), mas seus verdadei-
ros autores. Ao contar essas histórias, as pessoas as (re)faziam e Calvino resolveu
fazer parte dessa rede de autores, (re)organizando, improvisando e (re)inventando.
Em “A terra onde não se morre nunca” há um jovem que não se agrada em
nada da história de que um dia todos devem morrer: “– Não me agrada muito esta
história de que um dia todos devem morrer: quero procurar a terra onde não se
morre nunca” (CALVINO, 2006, p.98). Assim, ele despede-se de sua mãe, pai, pri-
mos e tios e vai procurar a terra onde não se morre nunca. Andou por dias e meses
perguntando as pessoas que encontrava pelo caminho se sabiam desse lugar, mas
ninguém sabia. Um dia encontrou um velho que empurrava uma carriola cheia de
pedras, e perguntou-lhe sobre a terra onde não se morre nunca. O velho disse para
que ficasse com ele que não morreria enquanto ele não acabasse de transportar
uma montanha de pedras, o que duraria cem anos. O jovem não quis e seguiu seu
caminho. Ao passar por um enorme bosque, encontra outro velho com barba bran-
ca. Este deveria cortar todo o bosque com sua podadeira, o que duraria duzentos
anos, mas o jovem também não quis viver com ele durante esse tempo. Depois de
alguns meses, o jovem chegou à beira-mar e encontrou um velho que observava um
pato beber a água do mar. Enquanto o pato não bebesse toda a água, o velho, nem
o jovem se ficasse com ele, iria morrer, o que duraria trezentos anos. No entanto,
não satisfeito, o jovem segue viagem. Uma noite, ele chega a um palácio magnífico,
um velho de barba branca abre a porta. Estava no lugar certo, na terra onde não se
morria nunca! Passados muitos anos, o jovem resolveu ir ver seus parentes, com
um cavalo branco (do velho) que tinha a virtude de andar como o vento e do qual
não deveria descer para que não morresse. Na viagem, ele passa pelos ossos dos três
velhos que havia encontrado quando estava procurando a terra encantada. Porém,
no lugar do mar encontra um lindo prado, no lugar do bosque um descampado e
no lugar da montanha de pedras havia agora uma planície achatada. Em seguida,
quando chegou em sua terra natal, o jovem não a reconhecia mais, porque mudara
muito: não mais existia sua casa, sua rua; ele perguntou pelos seus parentes, mas
253
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
ninguém nunca ouviu falar sobre. Então, tomou o caminho de volta e, voltando
para o palácio, encontrou um carreteiro no caminho, o qual conduzia uma carroça
cheia de sapatos velhos. O carreteiro pediu sua ajuda para recolocar a roda nos
trilhos. Ao insistir,
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Para Calvino (1990, p. 48), a partir do momento em que “um objeto com-
parece numa descrição, podemos dizer que ele se carrega de uma força especial,
torna-se como o pólo de um campo magnético, o nó de uma rede de correlações
invisíveis”. Seu simbolismo “pode ser mais ou menos explícito, mas existe sempre.
Podemos dizer que numa narrativa um objeto é sempre um objeto mágico”. O ob-
jeto é um lugar atrativo e sugestivo: um espaço de atravessamentos. Consideramos
que ele também seja o insólito, aquilo que ainda não conhecemos e que sugere, sub
-repticiamente, uma leitura da sociedade. É desse modo que, no final da narrativa
supracitada, temos o triunfo cômico da morte com relação ao jovem: por mais que
tentamos fugir de encontrá-la, ela acaba nos achando. O bom humor também se
torna um objeto mágico. A morte e os sapatos (gastados) simbolizam a finitude, a
limitação não só humana, mas também dos objetos: que o tempo passa e tudo vai
com ele. Quando discorremos sobre objetos, estamos pensando nele como um es-
paço habitante de um lugar e carregado de funções. Objeto no sentido daquilo que
está frente a um sujeito e se relaciona com ele. Por isso, pode ser algo concreto (casa)
ou cognitivo (um desejo, uma fada), mas sempre significado e apreendido pela ima-
ginação; sempre polissêmico. Partindo do pressuposto de que o conto em análise
tem os objetos como um espaço e não só como elementos narrativos, percebemos
que os objetos são significativos na construção ficcional.
O objeto mágico está relacionado ao insólito. Lenira Covizzi (1978) cunhou,
em seu riquíssimo estudo sobre Guimarães Rosa e Jorge Luís Borges, aquilo que
ela entende como insólito: é tudo aquilo que quebra com nosso real; que desloca o
significado esperado sobre o que designamos empiricamente na realidade, como o
meta-empírico. Em Fiabe italiane, acreditamos que o objeto mágico se manifesta
diegeticamente por meio de uma atuação que desvela o insólito. Abraham Moles
(1981, p. 28), teorizando sobre os objetos, ressalta que eles têm “um caráter, senão
passivo, pelo menos submisso à vontade do homem”. No conto que analisamos aqui,
a terra se mostra como submissa à vontade do jovem, que usufrui de sua magia;
enquanto a morte é um objeto transgressor dessa lei de passividade: é ativa e pos-
suidora da vida dele.
Por isso, nosso interesse foi justamente estudar a lógica perdida presente no
mundo das fábulas. Concordamos com Gama-Khalil (2015) quando afirma que a
configuração do espaço nas narrativas fantásticas tem enorme relevo na constitui-
259
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
ção dos sentidos. No caso da narrativa que é o cerne desta pesquisa, o espaço do
objeto mágico é o que provoca situações fantásticas geradas por ele e por sua con-
vergência com os outros espaços. Por isso, é de suma importância investigarmos
as espacialidades ficcionais. No conto que estamos analisando, a importância do
espaço ficcional pode ser entendida desde o seu título, pois ele dá a ver uma locali-
dade na qual é possível viver para sempre. Para Furtado (1980), o espaço construído
pela literatura fantástica é, por essência, híbrido. Por isso, segundo Gama-Khalil
(2012), algumas noções da teoria literária tradicional, como espaço físico e social,
são insuficientes para caracterizar essa hibridez do espaço insólito e, à vista disso,
tomaremos como base, para a análise de “A terra onde não se morre nunca”, as no-
ções de atopia, utopia e heterotopia, de Michel Foucault (2006); e as de espaço liso
e estriado de Deleuze e Guattari (1997) associadas às noções de lugar e espaço de
Michel de Certeau (1998).
Para Foucault (2006), os espaços heterotópicos são lugares delineados na
própria instituição da sociedade, já a utopia configura lugares de uma sociedade
aprimorada e, por isso, espaços irreais, e o espaço intermediário entre esses dois
conceitos é a atopia: ela traz o real e o irreal ao mesmo tempo2. No conto supraci-
tado temos essa experiência, por exemplo: a utopia representada pela ideia de que
podemos ir para uma terra onde nunca morreremos, ou que podemos driblar a
morte; a heterotopia, por termos essa ideia da morte como real e possível; e, por
fim, a atopia: temos um jovem e uma situação real (a morte), mas em um mundo
inventado, e só a obra de arte pode nos proporcionar isso.
Deleuze e Guattari (1997) apontam que o espaço liso se configura como nô-
made e direcional, estabelecendo-se como uma superfície que pode irradiar-se em
variadas direções. Enquanto o espaço estriado é o das sedimentações históricas,
linear. Outro autor que trabalha a questão do espaço é Certeau (1998, p. 201), o qual
propõe como lugar “uma configuração instantânea de posições”. No conto supraci-
tado, temos como lugar: o cavalo, a rua, os sapatos. São lugares estáveis e ligados
entre si por “modalidades” que estabelecem o tipo de passagem de um lugar a outro,
como o estriado: um espaço estável e estratificado. Por outro lado, Certeau (1998,
2 Gama-Khalil (2012) defende a similaridade entre essas noções de Foucault e as de espaço liso e estriado
de Deleuze e Guattari (1997).
260
Estudos Literários
p. 202) alega que o espaço “é o efeito produzido pelas operações que o orientam, o
circunstanciam, o temporalizam”. Por exemplo, temos o cavalo como o lugar, um
ponto de convergência narrativa que é movimentado pelo jovem, espaço que o atra-
vessa; temos os sapatos (lugar) que são usados pela morte (espaço). Dessa maneira,
percebemos que o objeto mágico é um espaço de magnetismo, de operações realiza-
das no lugar. O espaço é como o liso: aberto e não tem pontos de diferenças.
Portanto, percebemos que em “Aterra onde não se morre nunca” o objeto
mágico é um espaço e um lugar que se configura como o cerne da narrativa; aquilo
que a torna plurissignificativa e atraente; aquilo sem o qual a narrativa não faria
sentido. Logo, nosso gosto pela leitura de contos populares, tradição da qual Italo
Calvino também é mestre, está justamente no ponto em que o próprio autor toca:
o prazer de contar; a comunicabilidade; a capacidade imaginativa; a genialidade de
enredos divertidos. Destarte, optamos por verificar os objetos mágicos enquanto
espaços e ponto de convergência narrativa, e como as construções espaciais de-
lineiam o efeito estético do insólito em “A terra nde não se morre nunca”. Como
aponta Calvino (2004, p. 13), é como se “o conto fantástico, mais que qualquer ou-
tro gênero narrativo, pretendesse ‘dar a ver’, concretizando-se numa sequência de
imagens e confiando sua força de comunicação ao poder de suscitar ‘figuras’”. Ao
suscitar a possibilidade do insólito, Calvino mostra um mundo que pretende ser o
nosso, mas que já é outro por inversão deste. O que conta, para o autor, não é tanto a
manipulação da palavra ou a busca pelos lampejos de um pensamento abstrato, mas
a evidência de uma cena que é ao mesmo tempo insólita e complexa.
Considerações finais
A literatura fantástica surgiu na França, no fim do século XVIII, no período
marcado pelo racionalismo e pela fermentação intelectual, em que tudo deveria
passar pelo crivo racional e científico ou não seria admitido como certo e verdadei-
ro. Essa literatura nasceu, portanto, como uma reação, contestando a hegemonia do
racional da época, fazendo surgir o insólito em seu cotidiano. Doravante, hoje ela
desfruta de plena liberdade para fazer o que queira, almejando devolver “ao homem
o sentido do mistério de si mesmo e do mundo, levando a ler metaforicamente o
texto literário como imagem invertida e substituta da realidade, como porta de in-
261
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
gresso a uma supra-realidade onde sonho e desejo [...] retomam a plenitude de seus
direitos” (PAES, 1985, p. 192).
Assim, importou-nos investigar o lugar e o espaço de manifestação do objeto
mágico como um ponto de convergência narrativa dos outros espaços e persona-
gens apresentados no conto “A terra onde não se morre nunca”, de Italo Calvino.
Além disso, procuramos demonstrar que efeitos o objeto mágico desencadeou no
contexto textual e como acontece suas correlações magnéticas com outros espaços
da narrativa.
Para pensarmos a literatura fantástica, começamos pelo clássico estudo de
Todorov (2004), no qual ele nos sugere que o texto constrói o insólito, mas a ade-
são ao fantástico puro, maravilhoso ou estranho estaria nas mãos do leitor. Para o
autor, a “hesitação” produz o fantástico na narrativa, pois o leitor, frente a algo que
esteja no plano do desconhecido, isto é, do insólito, hesitará entre uma explicação
lógica e outra sobrenatural. No caso da narrativa de Italo Calvino, essa hesitação
não acontece de forma efetiva, pois é o maravilhoso que se instala. Portanto, há por
parte do leitor uma aceitação, ou não, do sobrenatural do texto, visto que não há leis
racionais que expliquem um lugar onde não se morre nunca, um cavalo que tem a
virtude de andar como o vento, a morte sendo um carreteiro e usando sapatos, três
velhos enigmáticos que viveram por muitos anos e um velho que pode proporcio-
nar vida eterna a um jovem. Essa hesitação, em nosso ponto de vista, estaria presen-
te no discurso metafórico da literatura fantástica, que faz o leitor movimentar sua
interpretação questionando sua realidade.
O conto que analisamos está dentro do que se conceitua como fantástico
modo ou dentro do que é designado como gênero maravilhoso, se tomarmos o mi-
rante do fantástico como gênero. Esses modelos de narrativas pertencem ao mundo
imaginário e causam surpresa no leitor, uma vez que o insólito, aqui o objeto mági-
co, é o seu elemento principal. Ele deriva de nossa realidade, afetando-a. No gênero
maravilhoso, o receptor tem que aceitar naturalmente o que lhe é proposto, como
um mundo no qual tudo é possível, como já salientamos. Já no fantástico enquanto
modo, temos na narrativa elementos insólitos e sua condição de nunca terem sido
objetos de nossa experiência no mundo real, isso porque tanto os fenômenos sobre-
naturais explicáveis racionalmente como os que são considerados desconhecidos
estão dentro do conjunto de manifestações designado de metaempírico, que está
262
Estudos Literários
263
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
bosque, a montanha, os quatro velhos, o palácio, podem ser vistos como o estriado,
pois são espaços delimitados, distribuídos de acordo com uma rede de significa-
ções, cada um em seu lugar. Enfim, no espaço estriado vimos que há uma separação
das coisas, uma organização de matéria. Dessa maneira, percebemos que o objeto
mágico é um espaço de magnetismo, de operações realizadas no lugar e o espaço
está relacionado ao liso: aberto e não tem pontos de diferenças.
Dessa forma, percebemos esses espaços no conto supracitado de Italo Cal-
vino: espaços que estão ligados entre si e que dão significados à obra. Participamos
de um espetáculo: o narrador expõe a vontade do protagonista como algo - talvez
- incomum para nós e importante de ser relatado; como algo extraordinário e ina-
creditável, como uma ficção. Nota-se que o real e o objeto mágico precisam estar
atrelados desencadeando a imaginação nos sujeitos, distorcendo o mundo para que
possamos vê-lo melhor. O objeto mágico serve ao propósito de tornar o que se
conta interessante. Ele está presente no conto de Calvino porque se configura em
característica atrativa para a perpetuação do fantástico na obra. Por ora, finalizamos
aqui a reflexão empreendida. Longe de esgotar o assunto, o objeto mágico e o conto
já são, por si só, perenes e dignos de constituírem permanente objeto de estudo.
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264
Estudos Literários
265
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Desafios do ensino da
literatura
Igor D’ Aguiar Siqueira de Lemos1
Danielle Rodrigues Alves1
João Batista Cardoso1
Introdução
Este estudo pretende traçar uma perspectiva acerca da literatura e suas con-
tribuições contínuas para história do Brasil, bem como, o ensino e sua forma de
mediação em relação à literatura. As conjunturas históricas promoveram uma com-
preensão direcionada as prerrogativas europeias e romper com estes paradigmas é
o caminho para reafirmar a cultura brasileira. A educação deve se relacionar com o
mundo concreto relacionando o abstrato, isto é, a criatividade. Trabalhar o conteú-
do que o aluno vivencia no cotidiano é o caminho para desenvolver a autocrítica, ou
seja, reconhecer seu lugar no espaço e no tempo e ressignificar o mundo a sua volta
é o papel do leitor, papel este que deve englobar todos os indivíduos da sociedade.
Caminho da literatura
Para construir um entendimento sobre a literatura brasileira é necessário o
resgate dos meandros literários do espaço cultural e político de Portugal e percorrer
o caminho rumo ao grito nacionalista do povo brasileiro, tendo em vista, a perspec-
tiva do ensino da literatura nos diversos extratos sociais e as consequências trazidas
dos acontecimentos históricos à contemporaneidade.
O ensino da literatura demonstra-se carregado de preceitos europeus, isto
é, a partir da inserção dos portugueses no território brasileiro a conjuntura da li-
1 UFG/RC
266
Estudos Literários
Portanto, como toda cultura dominante no Brasil, a literatura culta foi aqui
um produto da colonização, um transplante da literatura portuguesa, da qual
saiu a nossa como prolongamento. No país primitivo, povoado por indígenas
na Idade da Pedra, foram implantados a ode e o soneto, o tratado moral e a
epístola erudita, o sermão e a crônica dos fatos. (1999, p. 12-13).
Uma história da literatura brasileira que pretendesse ser verdadeira, isto é, fiel
ao seu objeto, deveria admitir que os textos dispostos no tempo do relógio
não têm nem a continuidade nem a organicidade dos fenômenos da natureza.
Os escritos de ficção, objeto por excelência de uma história da literatura são
individuações descontínuas do processo cultural. Enquanto individuações,
podem exprimir tanto reflexos quanto variações, diferenças, distanciamen-
tos, problematizações, rupturas e, no limite, negações das convenções domi-
nantes no seu tempo. (BOSI, 2002, p. 11-12).
267
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Sendo assim, a busca por uma história fidedigna acerca da literatura brasi-
leira perpassa a subjetividade do leitor da época, ente que desenvolve a cultura do
espaço em que se insere, portanto, admitir divergências sobre as estruturas daquela
época é caráter que está intrínseco ao discurso literário que para Eagleton “discurso
literário torna estranha, aliena a fala comum; ao fazê-lo, porém, paradoxalmente
nos leva a vivenciar a experiência de maneira mais íntima, mais intensa” (EAGLE-
TON, 2006, p. 6). Em concomitância com as evoluções sociais, o uso das letras
sobre as experiências torna a relação leitor e escritor uma constituição do espaço
cultural que para Sartre (1989):
obra é uma realidade autônoma, cujo valor está na fórmula que obteve para
plasmar elementos não-literários: impressões, paixões, ideias, fatos, aconte-
cimentos, que são a matéria-prima do ato criador. A sua importância quase
nunca é devida à circunstância de exprimir um aspecto da realidade, social
ou individual, mas à maneira porque o faz (CANDIDO, 1993, p. 33-34)
268
Estudos Literários
Esta maneira de fazer a obra promove anseios sobre o artista criador de lite-
ratura que influi na estrutura usada para determinado objetivo, assim, a esfera que
circunda a história da literatura brasileira passa pelo uso da literatura como ferra-
menta para emancipação ideológica em relação à coroa portuguesa, sendo reflexo
o período literário romântico que eclodiu entre meados do século XVII ao final do
século XIX, que evocara o sentimento nacionalista tomando como fatos históricos
a Independência política do Brasil em 1822, como também, as campanhas abolicio-
nistas do final do século XIX que perpetua até à contemporaneidade.
Perante os contextos históricos, é perceptível a relação entre realidade e lite-
ratura e o peso que a dialética dessa dualidade provoca na estruturação do ensino
atual, resultando na estruturação de uma problemática que envolve vários pilares
que sustentam o Estado, pilares estes que estão representados na literatura e que
recebe determinado tratamento por meio do sistema educacional brasileiro.
Pois sendo uma imagem simbólica do mundo que se deseja conhecer, ela
nunca se dá de maneira completa e fechada. “Pelo contrário, sua estrutura
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
270
Estudos Literários
O ensino da literatura
Para falar sobre o ensino da literatura é preciso se debruçar numa trajetória
histórica de como a leitura de livros e a contação de histórias foi parar no currículo
escolar, quais são os objetivos da escolarização da literatura? Como ela se dá nas
escolas? Assim sendo, quais são os erros e acertos desse conteúdo. Para que com
isso possamos perceber e pontuar a importância da literatura dentro e fora da vida
escolar, buscando subsídios para que esta não seja apenas um conteúdo obrigató-
rio desinteressante, em que, as atividades sejam estereotipadas e mecânicas e que
desestimulam o aluno, que, por conseguinte, acaba por aumentar os dados cada
vez maiores da redução de leitores no Brasil. Para além disso, discutiremos o que
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
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Estudos Literários
E também foram escritos livros para diversão da infância como Contos In-
fantis, de “Júlia Lopes de Almeida” final do século XVIII e início do século XIX reu-
nindo mais de sessenta narrativas em verso e prosa. Além disso, diversos trabalhos
foram traduzidos para língua portuguesa, o que reafirma a influência europeia na
literatura infantil. Nomes como: “Lewis Carrol” autor de Alice no país das maravi-
lhas, “Collodi” autor de Pinóquio ganharam e ainda hoje tem grande repercussão na
literatura infantil.
A literatura infantil, como já buscamos estabelecer alguns traços desse sur-
gimento artístico no Brasil, estabelecer o conceito de literatura nas escolas é um
interesse de controle intelectual das crianças em relação ao entendimento existen-
cial e social por elas mesmas, ou seja, o senso crítico, em que, a tipologia de livros
das escolas está interessada a levar a criança ao intuito de reconhecer o espaço e o
tempo que a literatura possibilita por meio da interpretação, os objetivos por trás
dessa leitura não é o “ler para ler”, para Zilberman (1985) a mediação do conteúdo
literário disponibilizado pelas escolas “[...] demonstra a falsa inocência do gênero,
[...] sua intenção moralizante [...] revela um manual de instrução.” (ZILBERMAN,
1985, p.20 e 21).
Com o surgimento de diversas correntes pedagógicas surgem críticas à es-
colarização da literatura e mudanças vão ocorrendo no quadro deste ensino, para
Tâmara Cardoso André “É papel da Escola auxiliar na formação de leitores que
produzam sentido por meio de diálogo com diversos gêneros literários.” (ANDRÈ,
2004, p. 19).
São muitos os enfrentamentos feitos e por fazer quando se trata de educação
de literatura, metodologias e didáticas. Ao discorrer da escolarização da literatura
temos Magda Soares (2011) trazendo suas ressalvas para esse ensino que é impor-
tante desde que seja executado da maneira correta. Nisso ela vem pontuar alguns
erros na escolarização da literatura, cito:
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Ou seja, é preciso ter cuidados com o ensino da literatura nas escolas, aten-
tar-se para o prazer da leitura, para o além de uma moral, cada caráter da leitura
é importante no tempo em que se lê, o ambiente, o para quê e o que vem depois.
Aproveitando para dizer que, a leitura por si própria pode ser o fim. Estamos diante
de um desafio grande de superar o cunho avaliativo metido em cada instância e
metro cúbico da escola na leitura.
Para Carlos Drummond de Andrade (1944) acerca da literatura infantil:
274
Estudos Literários
O ponto de interrogação
deu um grito de independência
ou morte e saiu andando pela folha
WATANABE, 1992
Considerações finais
Em suma, o caminho para reconfigurar a vida por meio da leitura percorre
o espaço da mediação, isto é, a compreensão pela relação humana sobre o espaço e
o tempo que a leitura possibilita por intermédio da interpretação, o papel que per-
passa as épocas por meio das tramas e conflitos da literatura reflete o conhecimen-
to para viver em sociedade, nesse artigo trouxemos os caminhos da literatura, sua
história, seu sentido, a escolarização da mesma, articulamos com diversos autores
buscando questionar e procurar soluções para que a sociedade seja mais letrada,
o problema não está apenas na escola que faz da literatura uma obrigação, como
também, os suportes que as novas tecnologias do século 21 fornecem ao leitor, nessa
nova geração que já nasce com um aparelho tecnológico na mão. É preciso reconfi-
gurar e reafirmar o poder da literatura, pois, é uma linguagem de expressão artísti-
ca. Por meio dela comunicamos o que sentimos, inventamo-nos e reinventamo-nos.
A configuração do artigo faz uma trajetória da literatura por lazer e também
pela escola, ressaltando que a literatura na escola não pode se diferenciar do prin-
cipal papel social, a literatura para e pela vida, escrevendo eu conto minha vida e
minha história eu espalho pelo papel o que está em minha cabeça. Ler é conhecer,
as palavras têm esse tipo de magia que você lê e recria um mundo diferente. Para
Antônio Cândido (1972):
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
A literatura pode formar; mas não segundo a pedagogia oficial. [...], ela age
com o impacto indiscriminado da própria vida e educa com ela. Dado que a
literatura ensina na medida em que atua com toda a sua gama, é artificial que-
rer que ela funcione como os manuais de virtude e boa conduta. E a socieda-
de não pode senão escolher o que em cada momento lhe parece adaptado aos
seus fins, pois mesmo as obras consideradas indispensáveis para a formação
do moço trazem freqüentemente aquilo que as convenções desejariam banir
[...]. É um dos meios por que o jovem entra em contato com realidades que se
tenciona escamotear-lhe. (CÂNDIDO, 1972, p. 805)
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
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Estudos Literários
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
2 É uma doença causada pelo fungo Moniliophtora perniciosa, que ataca o cacaueiro, provocando grande
impacto econômico na região produtora de cacau. Ataca principalmente os frutos, os brotos e almofadas
florais, ocasionando queda acentuada na produção, além de morte das partes infectadas.
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Estudos Literários
Vinha também pensando no que iria fazer na roça durante aquela tempora-
da. Não queria voltar logo. Estava na força da safra. Cochos, barcaças, estu-
fas coculados. Seria uma diversão pesar cacau com o marido. Já se sentia no
fiel da balança, acertando os 60 quilos, enquanto ele completava uma cuia
para chegar ao peso exato. Os homens, de braços parecendo mundeigos de
virar pedras, pegando as quatro arrobas pelas bocas dos sacos, para costurá-
-los mais forte. Depois as pilhas: cem, duzentos, quinhentos, mil, acomoda-
dos no armazém forrado com tábuas de cedro. Veria seu homem de sorriso
solto, calculando milhões para adquirir mais uma fazenda vizinha. Os lotes
chegando e saindo abarrotados, gemendo sob o peso das oito arrobas. E ela,
sentindo a satisfação dele, feliz também. Pediria dinheiro para comprar mais
joias. Precisava de um correntão de ouro bem pesado, um caroço de milho
de brilhante que vira no mindinho do seu Exupério, que podia até trocar es-
meraldas em platina. Gente de inteira confiança. Ah! que moço lindo, dedos
macios como couro de lontra curtido. Cheiroso. Toda vez que lhe fazia uma
compra mais avultada, recebia presente: uma pedra encastoada nas palavras:
A grande riqueza da fazenda Linda Bela era gerada por meio do trabalho de
exploração. Os trabalhadores carregavam e descarregavam pilhas de sacas de cacau o
dia todo, subindo as estufas com o peso nas costas. Havia também os trabalhadores
barcaceiros que “sambavam” em cima dos frutos para descaroçá-los. Com o trabalho
de exploração dos empregados, o lucro era certeiro para Dona Agripina e sua famí-
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
lia, pois a fazendeira via “seu homem de sorriso solto, calculando os milhões” e já
pensando em ampliar a fazenda com a compra de mais uma fazenda vizinha. E ela
pensava rapidamente em comprar mais joias, “um correntão de ouro bem pesado”. A
fazendeira recordava-se também da beleza do moço que vendia joias e, assim, recor-
dava-se dos momentos vivenciados no passado. Segundo Candau (2012), ao nos lem-
brarmos de nossas experiências passadas, o que “queremos [é] tudo abraçar”, pois de-
sejamos reviver principalmente os momentos que nos trouxeram prazer e felicidade.
Dessa maneira, compreendemos que cada indivíduo possui suas próprias
lembranças, mesmo que sua memória esteja povoada por pessoas com quem ele/
ela vivenciou experiências. Existe a memória individual, advinda do ponto de vista
de cada um, e a memória coletiva, a qual existe pelo fato de sermos sociais. Mesmo
que estejamos sós fisicamente, em nossas lembranças, existem pessoas que tiveram
participação nos momentos que foram por nós vivenciados. As lembranças são co-
letivas, mesmo que somente um indivíduo tenha vivenciado um determinado acon-
tecimento, pois este está inserido em um meio social, cultural e identitátio. Assim,
tudo o que há em suas lembranças estará ligado à sua vida social.
A memória advém das experiências vividas pelo indivíduo e traz detalhes
conforme a intuição e a maneira particular de visão de mundo de cada ser humano,
pois, “na base de qualquer lembrança haveria o chamamento a um estado de cons-
ciência puramente individual que chamamos de intuição sensível” (HALBWACHS,
2006, p. 42). É a partir da vivencia social que constituímos nossa memória indivi-
dual, a qual nos ajuda a perceber o meio em que vivemos e o que acontece ao nosso
redor. Nesse sentido, vamos adquirindo a intuição sensível que se refere ao ponto de
vista de cada um.
Dessa maneira, segundo Halbwachs (2006), por mais individual que possa
ser nossa memória, ela é constituída socialmente, pois vivemos em grupos. Ao vi-
vermos em sociedade, criamos laços e buscamos vínculos de afinidades. Assim, a
memória individual acaba recebendo influência da coletividade, ou seja, o pensa-
mento individual é constituído a partir da vivência em grupo.
Portanto, no conto “A rica fazendeira de cacau”, temos a história coletiva da
monocultura cacaueira a partir da história narrada do ponto de vista de Dona Agripi-
na e de suas lembranças, que vão aparecendo de maneira sequencial. A partir do mo-
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Estudos Literários
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
[u]sava um longo e bordado roupão que ia até aos calcanhares. O arreio tinha
o arco macio de proteção no lado direito, contornando a meia-lua, onde a pa-
troa encostava o volumoso quadril, e, no esquerdo, um gancho bem forrado,
atrás do qual passava a perna, comodamente. Sentava-se de banda, com o pé
canhoto descansando na caçambinha feito uma sapatina, bem diferente das
grandes e pesadas em que os homens se apoiavam dos dois lados (EUCLIDES
NETO, 2001, p. 21).
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Estudos Literários
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
para a constituição identitária de Dona Agripina, que era conhecida como a rica
fazendeira de cacau. Após o falecimento de seu marido Pelegrino, a fazenda Linda
Bela foi tomada pelo governo. Em sua velhice e viuvez, Dona Agripina foi morar
no abrigo. Todavia, todo esse processo de produtividade cacaueira e seu posterior
declínio eram revividos pela protagonista que, já idosa, lembrava-se de maneira
detalhada de todas as experiências vividas tanto nos tempos da monocultura, como
de sua decadência.
Diante da análise do conto “A rica fazendeira de cacau”, podemos ter uma
ideia de como eram os tempos do fruto de ouro, da riqueza que o cacau gerava ao
Sul da Bahia e do enriquecimento dos proprietários das lavouras cacaueiras. Todos
esses detalhes do lucro dos proprietários das fazendas são mostrados no conto a
partir do momento em que Dona Agripina vai se lembrando dos detalhes da fazen-
da, das safras de cacau e do marido feliz ao ver o lucro da fazenda no período da
colheita cacaueira.
Todavia, percebemos também como ocorreu a decadência do fruto de ouro
e a destruição das plantações de cacau, devido ao ataque da vassoura de bruxa, um
fungo que enferrujou as folhas das plantas e destruiu os frutos, deixando as plan-
tações doentes. Com a decadência, os proprietários das fazendas perderam o seu
meio lucrativo e empobreceram, levando os funcionários a sofrerem com o desem-
prego que gerava fome e pobreza.
Devido a essa realidade cruel e dolorosa, principalmente para o fazendeiro
que havia perdido sua fortuna com a decadência do cacau, percebemos, no decor-
rer do conto, que Dona Agripina se lembrava dos fatos do passado como se estive
revivendo os bons momentos do fruto de ouro, e ainda se sentia muito feliz quando
os funcionários do abrigo a chamavam de “minha rica fazendeira de cacau”. A pro-
tagonista sentia-se engrandecida e feliz, pois era assim que a chamavam nos tempos
da grande lavoura.
As lembranças de Dona Agripina sempre estiveram povoadas de pessoas, co-
mo os trabalhadores da fazenda, seu marido Pelegrino, seus filhos, o vendedor de
joias, o cavalo pedrês. Mesmo que ela estivesse se recordando desses bons tempos so-
litariamente, sua memória apresentava-se coletiva, devido às pessoas que, um dia, fi-
zeram parte dessas experiências. Compreendemos, então, que a memória é coletiva,
porém existe a memória individual, a qual acrescenta detalhes à memória coletiva.
288
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
290
Estudos Literários
O fantástico no cinema:
Relações e contribuições entre
literatura e cinema
Jullyana Franciely Vieira de Souza
Introdução
Desde os primórdios da história do cinema (cinematógrafo), existe uma
estreita ligação entre a linguagem cinematográfica e a linguagem literária. Textos
literários adaptados para o cinema são vastos, inclusive a literatura tem alimenta-
do essa indústria e contribuído com seu avanço “evocar as relações entre cinema e
literatura é festejar apoios e apropriações que ambos se fazem reciprocamente, com
a condição de continuarem a existir em suas especificidades. Precisamos de bons
filmes e de bons livros” Marcos Silva (2007, p.19).
O presente artigo tem por objetivo destacar as relações existentes entre lite-
ratura e cinema e relatar sobre obras pertencentes à Literatura Fantástica que foram
adaptadas para o cinema. Sabe-se que é possível acompanhar através das telonas
clássicos pertencentes a esse gênero que encantam espectadores no mundo todo.
Como suporte será utilizada a literatura comparada para nortear o presente traba-
lho através de estudos significativos relacionados à ela. Segundo Brunel:
291
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
292
Estudos Literários
Desenvolvimento
Através deste estudo, pode-se perguntar se não compete à literatura com-
parada, já que ela atinge um vasto campo de pesquisa o qual a leva aos sistemas de
interações que analisa colocar novamente nesse horizonte as manifestações da lite-
ratura atual e de delimitar as trocas e as transferências que as unem. Brunel afirma:
“Só ela, a literatura comparada, dispõe das ferramentas necessárias para re-
alizar a investigação sobre as duas frentes simultâneas e para estabelecer as
realizações que definem os comportamentos e as práticas individuais e cole-
tivas, próprias da nossa época e proporcionar assim à literatura comparada
um problema original” (2004, p. 284. Grifo nosso.).
293
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
“O cinema e mais tarde a televisão, são desde a sua origem, alvo de uma re-
provação de ordem mais moral do que estética. A reflexão sobre as imagens
modernas precedentes de meios de reprodução mecânicos revela frequente-
mente a persistência de uma hierarquização dos objetos culturais, que tem
como efeito a exclusão das análises consagradas à modernidade de um dos
fatores constitutivos essenciais do horizonte onde se inscrevem as obras”
(2004, p. 284).
294
Estudos Literários
295
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
serão apenas citadas algumas obras que passaram das páginas dos livros para as
telas, a análise comparativa de tais obras poderá ser realizada em outro estudo
futuro. A intenção deste texto é apontar as relações/contribuições existentes entre
obra literária e cinematográfica.
Obras como Drácula, de Bram Stoker, Metamorfose, de Franz Kafka e Fran-
kenstein, de Mary Shelley foram traduzidas para o cinema e percebe-se como o
filme contribuiu para a divulgação do livro. Um indivíduo é capaz de apreciar/inte-
ressar-se pelas duas formas de criação. O interessante é poder ler e assistir e apontar
as semelhanças e diferenças entre ambas.
Considerações finais
A construção deste estudo baseia-se na análise de obras de autores como
Brunel, Queirós, Martin e Brito. Para tal, partir-se-á do pressuposto de que é possí-
vel apontar as diferenças e semelhanças entre as obras literárias e cinematográficas,
visto que o cineasta, antes de tudo, é leitor/tradutor do livro, constrói o sentido do
texto e procura construir sua reescritura fílmica com elementos da visão que tem do
texto de outro autor, assim seria possível afirmar que tradutor é autor.
A crítica literária luta para criar uma barreira entre a escrita e a imagem, a
visualidade postulada pelos meios mecânicos e reprodução da visão surge desvalo-
rizada por uma parte composta pela crítica. Brunel afirma:
296
Estudos Literários
297
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Referências
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VALENTE, A. A linguagem nossa de cada dia. Petrópolis: Vozes, 1997.
298
Estudos Literários
O espaço da literatura de
autoria indígena no contexto
escolar
Letícia Santana Stacciarini1
Introdução
Acredita-se que dentre os maiores desafios da escola estejam os de “reconhe-
cer a diversidade como parte inseparável da identidade nacional” (BRASIL, 1997,
p. 117) e possibilitar o conhecimento da “riqueza representada por essa diversidade
etnocultural que compõe o patrimônio sociocultural brasileiro, investindo na su-
peração de qualquer tipo de discriminação e valorizando a trajetória particular dos
grupos que compõem a sociedade” (BRASIL, 1997, p. 117). Nesse sentido, é impor-
tante que se fale acerca da tendência errônea de
Por este motivo, inicialmente, cabe destacar que a aprovação da Lei Federal
11.645/2008 representa um importante marco no sentido da obrigatoridade do “es-
1 PPGEL/UFU, [email protected]
299
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Com isso, “ao abordar a autoria de obras literárias, destinadas aos públi-
cos infantil e juvenil, feitas por índios antes do final do século XX, podemos falar
não apenas em uma marginalização, e sim, num quase total apagamento” (GAMA
-KHALIL & SOUZA, 2015, p. 218) e, “apesar dos esforços promovidos por órgãos
federais e instituições diversas para divulgar as culturas indígenas, estas ainda são
uma incógnita para professores e alunos até mesmo nas universidades” (THIÉL,
2013, p. 1176). Destaca-se também que a literatura infantil e juvenil,
300
Estudos Literários
nas mais variadas etapas de ensino da educação básica. Sob tais aspectos, “a produ-
ção de autoria indígena para crianças e jovens, marcada por uma série de relações,
revela dinâmica interna e reconhecimento social, aspectos que conferem valor às
obras artísticas” (MARTHA, s/d, p. 329).
Tudo isso posibilita reflexões acerca da história e cultura dos povos indí-
genas. A retratação dos valores, tradições, ancestralidade, memória, dos animais,
mitos, lendas, a demilitação do espaço geográfico, entre outros aspectos, fazem-se
presentes nas obras de autoria indígena e “esses conhecimentos não podem nem
devem ficar restritos ao âmbito das universidades” (THIÉL, 2012, p. 12), já que
301
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
302
Estudos Literários
303
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
O personagem não chegou a nascer na aldeia, mas era li que vivia seus mo-
mentos de lazer - principalmente pelo contato com o avô - quando ocorriam suas fé-
rias escolares. Assim sendo, ao mesmo tempo em que a cidade, muitas vezes, dava-se
como um espaço atópico - “de incômodo” (GAMA-KHALIL, 2008, p. 47) - a aldeia
se apresentava como um espaço seguro e conhecido. Inclusive, pelo trecho acima,
percebe-se o maciço preconceito sofrido e dificilmente alguém se sentiria confor-
tável ou pertencente a uma ambientação de incessante “bullying” - “um fenômeno
social que configura atitudes específicas de conflitos e agressões repetitivas que le-
vam a consequências graves para todos seus envolvidos” (MEDEIROS, 2012, p. 20).
Como se pode ver, o conteúdo principal deste livro remete-se ao que se
passa incessantemente e, principalmente, no ambiente escolar. Falar e condenar o
“bullying” está muito além do recomendado frente aos transtornos que isso geral-
304
Estudos Literários
mente acaba causando na vida de jovens. E por que não falar a respeito partindo de
contribuições literárias tão significativas? Nesse caminhar interpretativo, “a intera-
ção do leitor com o texto pode fazê-lo construir uma nova maneira de enxergar a
sua própria condição de vida e a de outros” (MEDEIROS, 2015, p. 35003). Tal
encontro pode ser potencializado quando a leitura do texto literário vem ar-
ticulada a um momento de discussão, favorável ao levantamento de questio-
namentos e dúvidas. Dessa maneira, por meio das leituras é possível fazer
um paralelo entre as histórias e a realidade, assim, a partir do encontro com
o texto, o leitor poderá ampliar o seu poder de argumentação a respeito de
assuntos antes desconhecidos, como ocorre em relação ao bullying, fenôme-
no vivenciado por muitos, mas ainda esclarecido e discutido entre poucos.
(MEDEIROS, 2015, p. 35003).
305
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
306
Estudos Literários
ele descende do povo sateré-mawé. Faz parte do Núcleo dos Escritores e Artistas
Indígenas (NEArIn). Na prefeitura municipal de Barreirinha ocupa o cargo de As-
sessor Especial.
Discussões sobre a representatividade dos animais na sociedade moderna
X na realidade indígena podem ser propostas no ambiente escolar a partir de tais
literaturas. Despertar a sensibilidade do público para a questão se faz essencial, pois
o respeito aos bichos, mesmo que em uma sociedade capitalista, faz-se urgente.
De modo paralelo, é considerável dialogar a respeito do elemento espacial
e, mais especificamente, no sentido das aldeias serem tidas como aparentemente
seguras e organizadas e das cidades aparecerem como localidades onde experiên-
cias negativas tendem a acontecer. Com o foco de exemplificação, recorrer-se-à as
narrativas dos autores Graça Graúna - “Criaturas de Ñanderu” (2010) - e de Olívio
Jekupé - “Ajuda do Saci Kamba’i” (2006).
Antes disso, vale esclarecer que Graça Graúna é de São José do Campestre/
RN e formou-se em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco. Defendeu
seu mestrado - “Mitos Indígenas na Literatura Infantil Brasileira” - em 1991 e o
doutorado - “Literatura Indígena Contemporânea no Brasil” - em 2003. É descen-
dente do povo guerreiro Potiguara e já publicou diversas obras. A narrativa dela tem
início com a indígena mais velha da aldeia chamando a todos para ouvirem uma
história que contaria a respeito de “uma criatura que Ñanderu, o Grande Espírito,
pôs no mundo pra sossego de uns e desassossego de outros” (GRAÚNA, 2010, p. 2).
Diz respeito ao relato de um sonho no qual a jovem recebera orientações
para seguir seus caminhos com inteligência. Todavia, o velho sábio que falava “dis-
se-lhe para não se deixar seduzir pelas belas mentiras da cidade grande” (GRAÚNA,
2010, p. 11). Com o tempo, a cunhã adquiriu características de passáros e, como
acabou sendo atraída por tais “belas mentiras” em diversas ocasiões, foi condenan-
da a uma vida triste e solitária:
às vezes aparece com seu canto engaiolado. Mas, para não morrer de triste-
za, voa no pensamento até onde estão as suas crias e os seus parentes. […]
Alguns acreditam que isso é também uma forma de saudade; de tão grande
que é, se alastra pela natureza. Vai ver que é por isso que as pessoas ficam
307
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
tristes quando avistam uma plumagem negra no céu. […] Dizem também
que, mesmo em dia de sol, essa nuvem escura que aparece de vez em quando
é um pássaro preto chorando. (GRAÚNA, 2010, p. 26).
308
Estudos Literários
perdido seus movimentos e, assim como nos dois enredos supracitados, vivenciou a
árdua realidade da cidade, inúmeras as vezes, tão temida por seus parentes.
Meses se passaram, o menino continuava em pleno sofrimento frente a sua
nova condição de vida e foi aí que lhe surgiu a ideia de pedir ajuda ao Kamba’i, um
poderoso saci de acordo com as histórias de seu avô. A recorrência ao universo
mítico também se faz tão presente quanto a retratação das espacialidades atópica/
tópica e a valorização da ancestralidade na literatura indígena, dentre outros. En-
fatiza-se que
suas histórias revelam sua cultura, aspectos de sua vida social, sua visão de
mundo em relação à morte, sexualidade, doenças, criação do universo, sur-
gimento dos seres. Assim, essa literatura que surge possibilita a perpetuação
dos costumes e tradições para as próximas gerações indígenas e também se
apresenta como um meio eficaz de divulgação ‘do diferente’, combatendo o
preconceito. (GUESSE, 2014, p. 48).
309
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
avô falava” (JEKUPÉ, 2014, p. 13). Por outro lado, o prestígio com que aos anciãos
são representados nos escritos indígenas, infelizmente, não condiz com a realidade
vivenciada por eles na sociedade capitalista:
em nossa sociedade, ser velho é lutar para continuar sendo homem. Como se
realiza a opressão da velhice? De múltiplas maneiras, algumas explicitamente
brutais, outras tacitamente permitidas. Oprime-se o velho por intermédio
de mecanismos institucionais visíveis (a burocracia da aposentadoria e dos
asilos), por mecanismos psicológicos sutis e quase invisíveis (a tutelagem, a
recusa do diálogo e da reciprocidade que forçam o velho a comportamentos
repetitivos e monótonos, a tolerância de má-fé que, na realidade, é banimen-
to e discriminação), por mecanismos técnicos (as próteses e a precariedade
existencial daqueles que não podem adquiri-las), por mecanismos científicos
(as ‘pesquisas’ que demonstram a incapacidade e a incompetência sociais do
velho). (BOSI, 1994, p. 18).
Conclusão
Como visto, muitas são as contribuições proporcionadas a partir da leitura e
estudo de textos indígenas. O fato é que, “como educadores, temos de nos deparar
com a questão da inclusão social e cultural, bem como com o silenciamento ou a
invisibilidade dos grupos indígenas ao longo da história, que devem ser revistos”
(THIÉL, 2012, p. 11). Posto isto, é fundamental que nossos alunos sejam expostos
a uma extensa variedade de produções literárias - incluindo aí, conforme mencio-
nado, a de autoria indígena - pois já se sabe que uma leitura limitada dificilmente
formará um cidadão crítico e conhecedor do mundo.
310
Estudos Literários
311
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
livrar-se das amarras de uma educação conversadora e/ou voltada tão somente para
os números de aprovações.
Referências
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A literatura indígena no contexto escolar: algumas considerações. In: MELO,
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_______. Tupã Mirim: o pequeno guerreiro. São Paulo: Texto Editores, 2014.
312
Estudos Literários
313
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
“Apagar-me, diluir-me,
desmanchar-me”: O (não)
lugar do sujeito na poesia de
Paulo Leminski
Lidiane Alves do Nascimento1
O olhar que, por ora, remetemos à poesia de Paulo Leminski é matizado por
questões referentes à identidade do sujeito, isto é, às transmutações da subjetivida-
de circunscritas na epiderme da tessitura poética. Nossas investigações vão sendo
pontuadas a partir do estudo da modernidade, como um movimento cultural que,
embora pareça exaustivamente explorado intelectualmente, ainda se oferece como
um tema possível de indagações mais profundas, a serem engendradas sobre per-
cursos abrangentes.
Os poemas de Paulo Leminski, surgidos na cena literária, em fins dos anos
1960, indo até 1989, disseminados por antologias que se organizaram ao longo do
período em que exerceu intensamente sua atividade literária, e ainda, após a sua
morte prematura, possuem um veio experimental marcado por uma constante aber-
tura para o novo. Eles sinalizam uma poesia multifacetada, que consegue amalga-
mar capricho e relaxo sem perder de vista a consciência crítica de um poeta que, ao
brincar com a linguagem, sabe bem o quanto há de seriedade e labor nessa aventura.
Na obra Caprichos e relaxos, publicada em 1983, resultado da compilação de
alguns livros anteriores do poeta, como Não fosse isso e era menos /não fosse tanto
eera quase e Polonaises, além de alguns dos poemas que fizeram parte da revista
Invenção, ao lado do tom humorístico, situa-se a engenharia da linguagem advinda
da formação concretista de Paulo Leminski. Notifica-se que, tanto através do rigor,
314
Estudos Literários
315
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
dade moderna. Ao assumir, ele mesmo, sua condição de marginal, o sujeito remete
a um modelo de marginalidade referente à impossibilidade de interagir socialmen-
te. É o que se pode ler em poemas em que o próprio poeta se constitui alvo de sua
ironia, como no exemplo a seguir, em que Leminski se personaliza:
o pauloleminski
é um cachorro louco
que deve ser morto
a pau a pedra
a fogo a pique
senão é bem capaz
o filhadaputa
de fazer chover
em nosso piquenique
(LEMINSKI, 1983, p. 87).
316
Estudos Literários
317
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
oscilante entre aderir às tradições e ou contradizê-las (ou relê-las). Por vezes, quan-
do é conveniente a leitura do passado, esta se faz numa retomada com diferença, na
esteira de uma consciência criadora aguçada, que logra empreender a reinvenção
da linguagem, ao perseguir sua dicção própria, imprimindo, pois, no cenário da
literatura, um estilo singular e inconfundível de erigir poesia.
Sob a marca da variação e da multiplicidade, o fazer poético de Leminski
conduz-se pela pesquisa estética da linguagem (metalinguagem) e matiza-se pelas
estranhezas existenciais que caracterizam a modernidade e os sujeitos protagonistas
ambientados nesse cenário. O repertório vasto dos recursos estilísticos utilizados pe-
lo poeta, suas múltiplas vertentes, leva-nos ao desafio de descortinar com nitidez as
nuanças de suas figurações identitárias. Vê-se que o eu-lírico performático e mutável,
suscetível de voltar-se para si mesmo, em um gesto de introversão rebeladora, por
vezes, se dispõe a amalgamar-se às coisas outras, que se vão buscar para “fora de si”,
no encontro com o outro e com elementos que, a priori, são extrínsecos ao poema.
Também, nos poetas contemporâneos, a poesia, cada vez mais, volta-se para
si mesma e para a tradição, sendo que a atitude de lucidez poética frente à lingua-
gem, evidenciadora do descentramento do “eu”, conforme já havia preconizado o
romantismo alemão, se nos apresenta na configuração de um sujeito lírico portador
de uma interioridade vazia. Protagoniza uma crise de sua autonomia e identidade,
uma vez que seu estilo não é mais seu, mas é constituído pela mistura de estilos
outros, precedentes e, muita vez, já valorizados pelo cânone.
É lícito dizer que o sujeito poético, ao perder sua identidade sustentável,
se posiciona à margem, sob a égide de um distanciamento irônico que, por vezes,
quando não redunda na atitude de “dar as costas” à realidade externa, voltando-se
para si mesmo e para o próprio texto, afigura-se numa tal saída de si, conforme
referido. A consciência do descentramento engendra, pois, um sujeito aberto à alte-
ridade, a se apresentar como plural, como quem assume identidades diversas, tran-
sitórias e díspares, corroborando as acepções de Bauman (2005, p. 33), ao afirmar
que “no admirável mundo novo das oportunidades fugazes e das seguranças frágeis,
as identidades ao estilo antigo, rígido e inegociáveis simplesmente não funcionam”.
É interessante observar que, não existindo em sua tessitura poética um su-
jeito que se afirme e se revele na altivez da racionalidade, inscreve-se, por outro
lado, o dimensionamento das fissuras desse sujeito que se nos apresenta de modo
318
Estudos Literários
problemático. Um sujeito que, ao invés de se fixar e fixar sua escrita sob um ponto
de vista determinante, encerrado, ensaia experiências dialógicas, ao imiscuir-se nos
fragmentos de outros, a eles atando seus próprios fragmentos, além de questionar
sua própria voz, sob o eco de outras vozes, e questionar a si e se transformar, se criar
e se recriar nos liames da poesia.
Em Leminski, não estamos diante de um “eu” unívoco, singular, mas de um
sujeito que abarca a alteridade, cônscio da finitude de seus antecessores que pas-
saram e da própria finitude, ao aventar, em última estância, sua condição final. Na
abertura à alteridade, traça-se a evidente experimentação que faz com o que o su-
jeito (substância) se fragmente, pois que seu “eu” interior entrou em fusão com os
outros, com a relação que se nutre com eles.
Uma poesia que tangencia diversos movimentos tradicionais também encon-
trou ressonância na poetização do instante, no versolivrismo, caso do poema seguinte:
acordei bemol
tudo estava sustenido
sol fazia
só não fazia sentido
(LEMINSKI, 1983, p. 89).
319
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
320
Estudos Literários
apagar-me
diluir-me
desmanchar-me
até que depois
de mim
de nós
de tudo
não reste mais
que o charme.
(LEMINSKI, 1983, p.136).
321
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
o seu peso. Nota-se que, ao incluir o “nós” em seu discurso, o sujeito se expande,
desocupando o seu lugar de exilado. Como se, ainda que se representando em um
reduto solitário e marginal, represente, em adesão, a voz de todos nós.
O processo de desestabilização do sujeito irá, pois, corroborar a perda da ilu-
são da hegemonia do “eu” que, encetada pelos românticos, norteava o ato poético.
Nessa perspectiva, esvaído de seu território comum, de identidade plena e unifica-
da, o sujeito define-se por sua alteridade, por uma pluralidade de identidades, como
é possível ler no poema “Incenso fosse música” em que o “eu” se transmuta em “a
gente”, assinalando também a dessacralização da linguagem poética, mais acessível,
mais próxima ao cotidiano:
isso de querer
ser exatamente aquilo
que a gente é
ainda vai nos levar além
(LEMINSKI, 2002, p. 93).
322
Estudos Literários
um vulto suspeito
e o pulo de um susto
à solta no peito
no beco sem saída
caminhos a esmo
o leque de abismos
entre um eco
e seus mesmos
(LEMINSKI, 2000, p. 45).
323
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
324
Estudos Literários
Do que foi dito, ao longo das nossas discussões sobre o sujeito e suas con-
figurações na poesia contemporânea, deve-se reter que, ao ser subvertida a lógica
cartesiana, temos em mira um sujeito não mais constituído em oposição ao objeto
e em relação com o pensamento, mas, na relação com o outro. A conversão do “eu”
em um “outro”, admitida por Rimbaud, e / ou a dispersão extrema de um “eu” em
vários “outros”, enunciada por Pessoa, corroboram a escrita poética como um lugar
de abertura à pluralidade.
Repisamos que as noções de esgarçamento da unidade, da correspondência,
da sacralização, atribuídas à poesia, adensadas no cenário contemporâneo, trazem
à tona a multiplicidade, a fluidez, a reafirmarem o descentramento do sujeito, a
crise de identidade circunscrita na dúvida entre assumir as referências e afastá-las
para fazer emergir uma dicção própria, uma voz singular. Tendo em vista o quan-
to a questão da identidade subjetiva do texto poético é prenhe de interrogações,
carecendo, pois, ainda de reflexões mais aprofundadas que cumpram respondê-la,
em nossas discussões em torno do eu lírico, salientamos, desse modo, na esteira de
Combe (1999), o fato de esse sujeito se engendrar como matéria textual, uma vez
que está situado em um processo permanente de construção, de modo a sempre ser
renovado pelo poema, fora do qual não se perfaz, sendo nele e por ele erigido.
Referências
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326
Estudos Literários
Pequena História da
República, de Gracilano
Ramos: Entre o real e o
imaginário
Lilliân Alves Borges1
Considerações iniciais
Em 1939, a revista Diretrizes abre uma chamada para um concurso de lite-
ratura que possuía como tema uma história da República. Esse concurso visava à
produção de obras literárias destinadas ao público infantil. Graciliano Ramos já
havia participado de um concurso literário anterior no ano de 1936 com o conto
“A terra dos meninos pelados”, ganhando o terceiro lugar no concurso. Assim, tam-
bém pensando em participar do concurso da revista Diretrizes, Graciliano Ramos
escreve Pequena História da República. A narrativa é posteriormente compilada no
livro Alexandre e outros heróis em 1962, o qual inclui também os contos A terra dos
meninos pelados e Histórias de Alexandre.
Graciliano Ramos, contudo, destoa do tom proposto pelo concurso e acaba
não participando dele, publicando Pequena História da República somente no ano
de 1962. É, portanto, refletindo a partir dessa narrativa que propomos, com este
trabalho, pensar na forma como Ramos elabora suas narrativas destinadas às crian-
ças, bem como explicitar quais os recursos estéticos utilizados pelo autor para essas
narrativas que se destinam especificamente a um público especial.
327
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Avançar além daquele ponto, lhe parecia empreitada quase impossível. Talvez
valesse tentar uma mudança de rota. Recomeçar do zero, pondo de lado o que
fizera até ali. Optando por um campo de experimentações que lhe permitiria
talvez maior descontração, decidiu realizar experiências de literatura para
jovens.
Como nessa fase nem mesmo a narrativa mais longa e mais ambiciosa, “Ale-
xandre”, deve ter-lhe inspirado confiança, a solução que finalmente entreviu
seria a do retorno à linha de pesquisa anterior. (MOURÃO, 2011, p. 204)
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Estudos Literários
É triste!
Sofro com o sofrimento delas. E é por isso que detesto o livro infantil. Detes-
to-o cordialmente.
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Estudos Literários
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
“- Está aqui, Cesária, recomendei. Trate bem este vivente, como se ele fosse
cristão. Você nem avalia o que esta coisinha tem no interior”. Cesária experi-
mentou: - “Papagaio real. Vem de Portugal. Currupaco, papaco. Dê cá um bei-
jo. Como vai meu louro?” – “Mal, muito obrigado, respondeu o animal furioso.
Isso não é terra de gente”. Cesária se ofendeu, voltou às boas, viu que o bicho
não queria aprender, já sabia tudo. Sabia, meus amigos, sabia tanto como um
tabelião, mas ali passava muitas horas de língua emperrada. No fim de algumas
semanas nem ligávamos importância a ele. – “Currupaco, papaco. A mulher do
macaco”, dizia Cesária querendo animá-lo. E o bicho respondia sério: - “Deixe
essas tolices, dona. Não sou nenhum trouxa”. (RAMOS, 2016, p. 72)
332
Estudos Literários
2 Esse olhar graciliânico é o olhar enviesado, oblíquo, um pouco à maneira do que preconiza Ricardo Piglia,
em seu ensaio “Uma proposta para o novo milênio” (2015): “E este olhar enviesado nos daria uma percepção,
talvez, diferente, específica. Há uma certa vantagem, às vezes, em não estar no centro. Olhar as coisas desde
um lugar levemente marginal” (PIGLICA, 2015.p.1).
333
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
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Estudos Literários
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Considerações finais
Ao trazermos à tona a narrativa Pequena História da República de Gracilia-
no Ramos, pretendemos demonstrar que há um diálogo contínuo e profícuo entre
a construção de seus personagens e de suas narrativas. Assim, discordamos dos
críticos que desprezaram a obra infantil de Graciliano Ramos, como se Graciliano
Ramos não houvesse refletido sobre as palavras que estava escrevendo.
Desse modo, fizemos um pequeno percurso para entender como Graciliano
Ramos elabora suas narrativas destinadas às crianças, quais os recursos estéticos
utilizados pelo autor, como o uso do caráter imaginoso, a sua preocupação em dar
voz às crianças, destoando, portanto, de uma literatura utilitária, maçante e que des-
considera toda a capacidade de compreensão e metaforização por parte da criança.
Compreendemos, portanto, que não há dispersão ou irreflexão na trajetó-
ria artística de Graciliano Ramos, é possível observar um escritor crítico, irônico,
336
Estudos Literários
que busca trazer a criança para o centro de suas preocupações estéticas, literárias,
mas principalmente, reais; logo, compreendemos que há uma tentativa por parte de
Graciliano Ramos de demonstrar para adultos, jovens e crianças que o mundo não
é feito de uma única verdade.
Referências
ANDRUETTO, María Teresa. Por uma literatura sem adjetivos. Tradução Carmem
Cacciacarro. São Paulo: Editora Pulo do Gato, 2012.
ARROYO, Leonardo. Literatura infantil brasileira. São Paulo: Melhoramentos, 1990.
BARTHES, Roland. Aula: aula inaugural da cadeira de semiologia literária do Colégio
de França, pronunciada dia 7 de janeiro de 1977. Tradução e posfácio de Leyla
Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 2013.
ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. Tradução Hildegard Feist. São
Paulo: Companhia das Letras, 1994.
LEVY, Tatiana Salem. A experiência de fora: Blanchot, Foucault e Deleuze. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
LINS, Osman. O mundo recusado, o mundo aceito e o mundo enfrentado. In: Alexandre
e outros heróis. Rio de Janeiro: Record, 1977.
MONTEIRO FILHO, Edmar. O major esquecido: Histórias de Alexandre, de Graciliano
Ramos. Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto
de Estudos da Linguagem. Campinas, SP : [s.n.], 2013.
MOURÃO, Rui. Procura de Caminho. In: Alexandre e outros heróis. Rio de Janeiro:
Record, 2014.
PERROTTI, Edmir. O texto sedutor na literatura infantil. São Paulo: Ícone,1986.
PIGLIA, Ricardo. Uma proposta para o novo milênio. Tradução de Marcos Visnadi.
Disponível em http://chaodafeira.com/wp-content/upoloads/2016/06/cad02.
pdf. Acesso em: 09 set. 2018.
RAMOS, Graciliano. Linhas Tortas. 5ª ed. Rio de Janeiro, São Paulo: Record, 1977a.
_______, Graciliano. Alexandre e outros heróis. Rio de Janeiro: Record, 1977b.
_______, Graciliano. Histórias de Alexandre. Rio de Janeiro: Record, 2016.
SOSA, Jesualdo. A literatura infantil. São Paulo: Editora Cultrix, 1978.
337
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
A autobiografia e literatura
– Desdobramentos de uma
aproximação Luana Marques Fidencio1
Introdução
Há um pequeno conto de Carlos Drummond de Andrade que ilustra, em
tom humorístico e ácido, o curioso movimento de assimilação que um texto é capaz
de exercer sobre a vida do seu autor. Talvez não se trate exatamente de um movi-
mento assimilatório, mas de sobreposição que os textos de memória podem exercer
sobre a imagem de um sujeito.
Nesse breve conto chamado A idade do espelho, Drummond apresenta um
jovem que aos “vinte anos escreveu suas memórias.” (2012, p. 27). Diz-se de tal jo-
vem que só depois de escrever suas memórias “é que começou a viver.” (2012, p. 27).
A inversão dos passos que conduzem um sujeito à escrita de uma dessas narrativas
autobiográficas enriquece o paradoxo, tornando a história do conto inverossímil e
irônica. A justificativa para o ordenamento inusual da vida do jovem seria de que
ao escrever suas memórias: “logo de saída,” faria com que elas fossem “mais fiéis e
[e que só assim elas teriam] a graça das coisas verdes.” (2012, p. 27).
No trecho logo à frente, se evidencia a cisão entre a ordem da vida e a da es-
crita. A vida flui sem respeitar a estática gravidade das palavras escritas. O narrador
do conto é taxativo sobre a personagem: “Querendo ser honesto, pensou em retifi-
car as memórias à proporção que a vida as contrariava. Mas isto seria falsificação do
que honestamente pretendera (ou imaginara) devesse ser a sua vida. Ele não tinha
1 Mestre em Letras (Universidade Federal de Uberlândia – PPGEL / UFU), doutoranda em Estudos Literá-
rios (UFU) e bolsista CAPES. Este trabalho decorre da pesquisa em desenvolvimento no curso de Doutorado
em Estudos Literários (UFU), [email protected]
338
Estudos Literários
2 “Malgrado o seu lugar sempre marginal na tradição da grande literatura, a autobiografia nunca deixou
de ser uma instituição solidamente estabelecida sobre concepções, cuja validade seguiu imperturbada por
um período de mais de 200 anos, mas que a partir de um determinado momento perdeu a sua legitimidade,
transformando-se numa escrita bastarda, sem álibi, desacreditada, e, mais do que isto, impossível” (DUQUE-
-ESTRADA, 2009, p. 21).
339
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
nérica de designar esses gêneros limítrofes que não compartilhavam nem do status
nem das inovações e experimentações que marcam o romance moderno, passaria
a ser também, sobretudo desde a década de 1970 na Europa, o espaço de escrita a
ensejar produções narrativas que iam ao encontro do gosto do público, de modo a
promoverem estrondosos sucessos editoriais em todo mundo.
O fenômeno das escritas (auto)biográficas contudo não se apresenta apenas
de modo a atender ao gosto massivo expresso pelos leitores contemporâneos, ele
vai além e se imbrica à forma narrativa ficcional que desfruta do maior prestígio
entre os gêneros literários, o romance, ensejando uma forma narrativa a qual se
atribui certa inediticidade na história da literatura desde a modernidade. Especifi-
camente nessa literatura do século XX cujo mérito e maldição é exemplificar as con-
sequências das reverberações causadas pelo aceleramento dos processos de cisão
homem-mundo desengatilhados pela modernidade. O artista, em sentido amplo, e
o escritor, em sentido estrito, refletem e reflexionam sobre os efeitos dessa fragmen-
tação dos sujeitos e das identidades em suas obras. Não por acaso, no século XX se
assisti ao surgimento de todas as vanguardas artísticas e à consolidação da cultura
de massas no Ocidente. Um componente interessante desde então se manifesta com
maior amplitude e diversidade na literatura: a presença da primeira pessoa dos au-
tores inscrita nas suas produções artísticas, não com jogos cifrados, não com meios
termos, não com denegações, mas como premissa e promessa para a constituição
das ficções.
Nesse sentido, é interessante recuperar o fato de que o esvaziamento progres-
sivo do prestígio intelectual do gênero autobiográfico se deu assim como o aumento
do seu prestígio popular, enquanto fenômeno editorial da cultura de massas; e que
isso significou também um lento processo de dilapidação da factibilidade autorre-
ferente, da essência autobiográfica.
Por outro lado, ou em paralelo a este fenômeno, o espaço nobre do romance
viu-se, desde os últimos 50 anos, mais e mais tomado pelo massivo gesto praticado
pelos autores de ficção de anunciar a estrepitosa novidade da narrativa de suas vidas.
Eis que, no estado atual das coisas, a literatura contemporânea parece presa ao fascí-
nio que o imbricamento proposital entre vida e obra proporciona sobre os leitores.
340
Estudos Literários
Teorias da autobiografia
Acaso a quem nunca se dedicou à autobiografia pareça que, no passado, sua
definição fora tão evidente quanto um verbete de dicionário. Todavia, esse nunca
foi o caso dessa forma narrativa, ainda que ela tenha desfrutado de um estatuto
inquestionável quando à sua verdade intrínseca durante muito tempo. No presen-
te, no entanto, a autobiografia não conta mais com a crença na transparência de
suas intenções e nem com a evidência dos limites postos entre ela e a ficção. Em O
coração desvelado, quarto volume de A experiência burguesa – Da rainha vitória a
Freud (1999), Peter Gay alertava sobre o fato de que a autobiografia em si já estava
carregada de suas contradições intrínsecas e com as quais ela operou desde sempre:
Assim, a dupla visão do autobiógrafo pode ser uma armadilha para a credu-
lidade ou uma oportunidade para o observador. Chauteaubriand revisou rei-
teradamente suas Mémoires, omitindo ou embelezando episódios do passado
em função de um auto-retrato idealizado, para mostrar-se mais ético, mais
generoso e mais grandioso do que sua personalidade e a história de sua vida
tornam possível. A sua verdade emergia da necessidade que sentia de mentir.
Já Fontane adotou candidamente uma perspectiva destinada a resolver para
si mesmo certos assuntos inconclusos. Outras pessoas poderiam ter uma vi-
são distante de seu pai, mas Fontane descobriu, e transmitiu aos leitores, a
sua verdade. E isso era o mais importante nas autobiografias, em uma época
que buscava a vida interior, penetrando no núcleo secreto da personagem,
bem mais importante do que o registro preciso e verificável de eventos, em
uma seqüência clara. No ensaio que escreveu sobre o tema, Sir. Leslie Ste-
phen falou pela sua época ao anunciar, com toda confiança: “Ninguém jamais
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
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Estudos Literários
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
3 Lejeune considera que “não [teve] de inventar o pacto autobiográfico, uma vez que ele já existia, só [pre-
cisou] colecioná-lo, batizá-lo e analisá-lo.” (2008, p. 72).
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Estudos Literários
Autobiografia e Literatura
Em se tratando das relações entre autobiografia e literatura, interessante que
este tipo de imbricamento, em medidas variadas, ocorre praticamente desde sempre,
4 “Narrativa em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza sua história indi-
vidual, em particular a história de sua personalidade”. (LEJEUNE, 2008, p.14).
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
isso se se situar o sempre onde mais familiarmente se situa o marco de uma literatura
moderna Ocidental, ou seja, no século XVIII. Particularmente na literatura brasilei-
ra, essas relações se deram desde sua constituição, ainda que date de décadas mais re-
centes o interesse mais massivo pela análise das relações estabelecidas entre literatura
e autobiografia. Fábio Figueiredo Camargo, em sua tese A transfiguração narrativa
em João Gilberto Noll (2007), retoma Antonio Candido para lembrar que a autobio-
grafia, em sua relação com a literatura brasileira, possui uma tradição constituída:
Não se trata de confundir vida e obra, visto que o próprio autor [Noll] ne-
ga que seus textos “novos” sejam totalmente autobiográficos, mas Phillippe
Lejeune lembra-nos da possibilidade do pacto fantasmático, que seria uma
forma indireta do pacto autobiográfico (LEJEUNE, 1991, 59). Dessa forma,
analisar como a experiência do autor João Gilberto entra na produção da
escrita nolliana é, portanto, não confundir vida e obra, mas tentar perceber
em que espaços a criação literária se faz, principalmente no caso das auto-
biografias ficcionais montadas por João Gilberto Noll, nas quais os sujeitos
narradores escrevem suas próprias histórias e são testemunhas do mundo
contemporâneo. (CAMARGO, 2007, p. 24).
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Estudos Literários
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
jeito e com a crítica filosófica da representação. Assim, ela tem pontos de con-
tato tanto com a teoria da “performance de gênero” (por exemplo, na obra de
Judith Butler) em que a subjetividade é pensada como “desnaturalização” do
eu, quanto com a arte cênica da performance. Dessa perspectiva, a autoficção
seria uma das formas que assumem a literatura depois do fim do paradigma
moderno das letras. (KLINGER, 2008, p. 11).
348
Estudos Literários
vez maior o grau de fascinação diante desse passado. Ainda que seja, do mesmo
modo, mais e mais perceptível a fascinação pelo eu e suas narrativas autocentradas.
Novamente, Diana Klinger, dirá da autoficção que:
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Estudos Literários
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
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Estudos Literários
Considerações finais
Por fim, resta retomar A idade do espelho, de Drummond, para encerrar a
presente reflexão. Afinal, do mesmo modo que a inversão dos passos usuais do pro-
cesso de escrita de uma narrativa autobiográfica proposta no conto, deve-se lembrar
que a ambiguidade e o paradoxo permeiam as reflexões sobre a autobiografia, a
autoficção e as formas autorreferentes nas narrativas ficcionais em sentido geral.
Deve-se ressaltar o fato de que tratar essas formas narrativas obriga a consi-
derar o desvelamento mais e mais evidente de suas relações com a constituição da
literatura, sobretudo a partir das primeiras décadas do século XX. Afinal, desde o
começo do século passado se apresenta, com maior amplitude e diversidade de sen-
tidos, a primeira pessoa dos autores inscrita nas narrativas literárias, fenômeno esse
que vem ainda no presente se intensificando e diversificando.
É assim que os jogos cifrados nas narrativas, os meios termos autorreferentes
e as denegações dão espaço para a primeira pessoa autorreferenciada, inscrita nas
narrativas como mote ou cerne das próprias ficções. Esse fenômeno tem configu-
rado um nicho particular de formas narrativas denominadas como autoficcionais e
denunciam uma relação ambígua das narrativas autobiográficas com as narrativas
literárias, sobretudo com o romance.
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Referências
AIRA, Cesar. Como me tornei freira. Trad. Angélica Freitas. Rio de Janeiro: Rocco, 2013.
ANDRADE, Carlos Drummond de, 1902-1987. A imagem no espelho. In: Contos
plausíveis. [posfácio Noemi Jaffe]. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 27.
CAMARGO, Fábio Figueiredo. A transfiguração narrativa em João Gilberto Noll: A céu
aberto, Berkeley em Bellagio e Lorde. (Tese de doutorado, 154 fl). Belo Horizonte:
PUC Minas, 2007.
DUQUE-ESTRADA, Elizabeth M. Devires autobiográficos: a atualidade da escrita de si.
Rio de Janeiro: NAU/Editora PUC-Rio, 2009.
LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Tradução de Jovita
Maria Gerheim Noronha, Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2008.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Livro I (1712-1719). As confissões de Jean-Jacques Rousseau.
Trad. Wilson Lousada. São Paulo: Ediouro, 1987.
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Estudos Literários
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Introdução
É fácil perceber a importância da literatura infantil e juvenil. Seja em termos
sociais, financeiros ou educacionais, como explica Peter Hunt (2010), tal literatura
desponta como, antes de tudo, necessária, pois conversa com um público que care-
ce de cuidados, de discussões e de temas que tão bem a literatura potencialmente
direcionada a crianças e jovens consegue abarcar. Em primeiro lugar, trata-se de
uma literatura rica em, forma e conteúdo, conseguindo reverberar em crianças e
adolescentes assuntos que são importantes ao universo no qual eles estão inseridos.
Mas quando falamos de um universo em que se inserem crianças e adoles-
centes, referimo-nos a que? Qual é esse universo? É um único universo? Trata-se
de uma fórmula mágica que consegue dar conta de todos os temas e visões em uma
única construção? A resposta para tais perguntas se desenrola naquilo que Ricar-
do Azevedo (2004) ilustra ao explicar tais questionamentos. Não falamos, aqui, de
um universo, mas sim de universos. Não entendemos, então, uma criança ou um
adolescente, mas sim crianças e adolescentes respaldados por um plural infinito. É
nesse infinito plural que a literatura infantil e juvenil trabalha. Uma literatura plural
1 UFG/RC/CNPq, [email protected]
2 UFG/RC, [email protected]
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Estudos Literários
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
ciada pela BBC em 2017 para que tenhamos certeza de que ecos do totalitarismo
ainda estão por todos os lados.
Da mesma forma que o nazismo ainda ecoa, o discurso dos sobreviventes
tenta ecoar – mais forte e mais alto – como uma súplica para que nada como o
testemunhado a setenta e três anos atrás aconteça novamente. Ainda que aqueles
que testemunharam com seus próprios olhos a mais cruel e impiedosa dor do na-
zismo estejam sendo, gradativamente (e inevitavelmente), colhidos pelas mãos im-
placáveis da morte, as palavras ora testemunhadas são perpetuadas por meio das
ferramentas do eterno, tal qual a literatura se torna. Se é a LIJ um espaço para dis-
cussão, para pensar, e para sentir e se lembrar à humanidade o óbvio, ou seja, que
são humanos (e que erram, e que devem aprender com os erros), parece ser, então,
esta literatura, um espaço válido para as narrativas que falam sobre a Shoah (nome
dado à matança dos judeus), o nazismo, o antissemitismo e a memória dos judeus.
Considerando, então, que tais narrativas aparecem em obras publicadas co-
mo literatura e direcionadas ao público infantil e juvenil, este trabalho se propõe a
investigar de que forma aparecem tais assuntos: seriam uma mera revisão histórica
(ou seja, livros didático-moralizantes) ou são, de fato, obras literárias, com um tra-
balho elaborado de linguagem e que promovem a fruição estética? Qual o leque de
ferramentas literárias dos quais os autores lançam mão e que permitem comprovar
tais afirmações? Existe uma diversidade de códigos que podem ser lidos (textual
e imagético)? Apresentam e reverberam os temas aqui já discutidos? Protegem a
memória universal da Shoah?
Tais perguntas, e ainda outras, serão respondidas na análise que segue es-
te parágrafo, na qual é apreciada uma obra dentre outras tantas garimpadas num
percurso científico intitulado Ora, direis, (não) ouvir judeus? Memória e identidade
judaicas em páginas da literatura infantil e juvenil. A obra, a saber, intitula-se Um
sonho no caroço do abacate, lançada a público em 1995, assinada por Moacyr Scliar.
Para a análise, foi feita pesquisa epistemológica nos campos afins deste trabalho, tais
como a literatura e aqueles que tratam do universo do povo judeu e, então, análise
literária do conteúdo da supramencionada obra. A escolha por analisar tal narrativa
é justificada tanto em seu conteúdo singular quanto no fato de o autor, que é brasi-
leiro, ser internacionalmente reconhecido e de origem judaica.
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Estudos Literários
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
judeus procuravam e não possuíam em seu país. O autor, dessa forma, caracteriza o
Brasil como o representante da esperança de melhora da vida dos judeus. Ainda que
desconhecido, era uma das formas possíveis de sobrevivência.
A viagem para o Brasil é descrita como terrível: “A viagem foi terrível. Eles
viajavam no porão de um cargueiro, amontoados com dezenas de outros emigran-
tes” (SCLIAR, 1998, p.12). Em concordância com Michael Brenner (2013) e Moacyr
Scliar e Márcio Sousa (2003) quando tratam do assunto da imigração judaica, o au-
tor promove na obra elementos que de fato existiram, visto que os supracitados au-
tores trazem em seus livros sobre a história dos judeus o quanto as viagens de navio
eram traumatizantes, por vezes mortíferas, carregadas de tristezas e incertezas. Era
se jogar à morte no desconhecido e impiedoso mar. Essa informação da dificuldade
da viagem aparece, ainda, na narrativa infantil Navio das cores (2009), também de
Moacyr Scliar e ilustrado com belíssimas reproduções de obras de Lasar Segall. Ne-
la, inclusive, duas páginas ilustram um amontoado de pessoas em um navio.
Outra consonância com a realidade aparece quando o autor trata da bar-
reira linguística ao chegar no Brasil, uma vez que os imigrantes não sabiam falar
a Língua Portuguesa, que recebe atenção e é elucidada na obra teórica de Scliar e
Sousa (2003). Aqui o autor apresenta conteúdo sobre a memória diaspórica judaica:
a errância era de extremo trauma. Além da incerteza em ter que fugir de seu país
de origem, essa fuga era em condições desumanas e os lançava em terras onde nem
mesmo a comunicação era possível, a que era adicionada, ainda, a problemática em
conseguir emprego, forçando muitos judeus a recorrerem ao trabalho autônomo.
As dificuldades não eram poucas, contrário a isso, passavam por verdadeira mul-
tiplicação. O pai do protagonista, por exemplo, não tendo sucesso em nenhuma
tentativa de emprego, acaba por vender gravatas na porta de escritórios.
A problemática na vida do adolescente Mardoqueu começa com a escolha
do pai em matricular o filho em uma escola cristã. Aqui o autor não cria apenas um
conflito do menino frente ao novo, mas aprofunda a discussão ao patamar religioso:
não era aceito pelos praticantes do judaísmo uma mistura com o cristianismo, da
mesma forma que praticantes do cristianismo não aceitavam os judeus. A tradição
e religião judaicas trazem fatores tão fortes e intensos para seus praticantes que, na
narrativa, a mãe do protagonista tem um acesso de fúria em uma discussão com o
marido: “ – Você quer me matar! – Gritava. – Você me trouxe da Lituânia para me
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Estudos Literários
matar aqui, bandido! Você é pior que os nazistas” (SCLIAR, 1998, p.16). E além dis-
so, a decisão de um judeu conviver com a tradição cristã abre caminhos para a into-
lerância, sendo esse um dos principais elementos explorados pelo autor em sua obra.
Esta intolerância aparece de diversas maneiras, em toda a jornada de Mar-
doqueu na nova escola. Logo no primeiro dia de aula, o preconceito e perseguição
são percebidos: “– Não queremos judeus nesse colégio. Você tem uma semana para
desaparecer. Senão – fez um gesto significativo – vamos te capar” (SCLIAR, 1998,
p.23). Na citação apresentada, é claro que o maior problema não era a condição
social do aluno (afinal, o colégio era conhecido como ambiente de pessoas de maior
influência social e Mardoqueu obtém uma vaga graças ao pai que consegue bolsa
de estudos para o filho), mas sim por ser um judeu convivendo no ambiente cristão
e elitizado. Ainda que existissem ataques explícitos ao menino, por vezes o pre-
conceito era materializado por meio de olhares, de conversas, por livros rasgados,
cadernos riscados e outros, conforme é possível observar na leitura da obra. E não
é assim que acontece em nosso mundo, fora das margens do papel? O preconceito
nem sempre é escancarado. Um olhar atravessado e de julgamento pode doer na
mente mais que uma palavra de ameaça escrita num papel.
Em determinado momento da narrativa, o protagonista, chamado pelo ape-
lido Mardo, precisa fazer um trabalho escolar cujo objetivo era desenhar Cristo.
Em tal construção da narrativa, o protagonista vive um monólogo reflexivo onde
condena e culpa a ele mesmo pela perseguição atribuída aos judeus por terem en-
tregue Jesus Cristo para a crucificação. Discute as dores de seus antepassados e faz
reflexão sobre seu passado, em um momento de grande questionamento sobre toda
a tradição milenar judaica e a perseguição por estes sofrida:
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
de Cristo, olhos acusadores voltavam-se para mim: foi você, judeu Mardo, foi
você quem matou o Divino Mestre, você queria se livrar dele porque preferia a
usura à verdadeira fé. Forno crematório era pouco para os meus crimes; eu ti-
nha de queimar para sempre nas chamas do inferno – onde o meu lugar estava
reservado, o próprio diabo esperando-me impaciente (SCLIAR, 1998, p.28).
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Estudos Literários
é escrito: “‘Não fico num lugar onde os judeus mandam. Assinado: Jesus Cristo’”
(SCLIAR, 1998, p.29). A perseguição, usando agora de um suposto discurso bíbli-
co, produzido como se o próprio Cristo os escrevesse, chega a um nível extremo: a
violência física.
Em outra passagem da obra, fica ainda mais claro o sentimento de precon-
ceito experimentado por parte de Mardoqueu, que não o queria sentir, mas sente e
expõe o preconceito racial. Caracterizando um momento de discussão concebido
pelo autor e que muito contribui para uma função humanizadora da obra (CANDI-
DO, 2011), é uma passagem em que se mostra que os sentimentos existem e que o
erro não está em sentir o preconceito, mas em não perceberem que é um problema
a ser modificado:
Mas havia problemas. Por incrível que pareça, eu, membro de um grupo ví-
tima de preconceito, tinha de lutar contra meu próprio preconceito, contra a sen-
sação de estranheza e até de desconforto. Hesitei muito, mas acabei contando isto a
ele. Não se zangou, ao contrário: se você tivesse me dito que nunca notou a cor da
minha pele, eu não acreditaria, disse (SCLIAR, 1998, p.35).
Mesmo que o menino sinta tais sentimentos preconceituosos, como o racis-
mo, conta ao amigo em uma passagem cuidadosamente trabalhada pelo autor, que
é percebida num tom não de julgamento, mas de confidencialidade. Um pacto de
amizade é feito ali no momento que Mardoqueu resolve conversar com seu amigo
sobre um fato complicado, tal qual o preconceito, e de difícil tratamento. É possível
perceber, logo, que a ignorância do julgamento racial deu lugar ao entendimento,
que a compreensão se formou a partir do momento que houve diálogo. O cuidado
na concepção de tal passagem narrativa foi essencial para que a obra literária não
fosse penalizada, ou seja, para que não se tocasse no perigoso campo de uso da
literatura como pretexto de algo. A afirmação de que houve cuidado na construção
deste trecho da narrativa se baseia no risco de que, mal trabalhada, tal passagem
sairia de um contexto de fruição estética literária e poderia assumir um discurso
didático-moralizante, o que comprometeria o êxito da construção literária da obra.
Ao promover essa reflexão sem fazer uso de uma doutrinação, o autor demonstra
evidências de trabalho estético, o que legitima a qualidade estética literária da obra.
Inclusive, é destacado ainda um trabalho de linguagem a fim de aproximar a
construção verbal daquela conhecida por jovens. São utilizadas gírias e formações
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
coloquiais tais como “mano”, “porra”, “periga a velha ter um treco”. Essas inserções
de linguagem coloquial aproximam o texto verbal a uma realidade próxima àquela
falada por jovens, fazendo com que aconteça uma identificação de maneira mais
satisfatória com o texto apresentado, contribuindo para um pacto literário do leitor
para com a narrativa. Apresentam, ainda, marca na construção textual por parte do
autor, evidenciando trabalho estilístico.
Ainda que a presença do menino negro tenha feito Mardoqueu lembrar des-
sa brincadeira com características estereotipadas de um negro, a continuidade da
narrativa fez com que os dois se unissem em uma amizade contra os preconceitos.
Assim como Mardoqueu, Carlos sofria diariamente preconceitos no novo colégio.
Logo no primeiro dia do garoto na escola, um grupo de meninos falou: “este colégio
está cada vez pior, até negros aceitam” (SCLIAR, 1998, p.32, grifo nosso). Na citação
apresentada, o uso da palavra “até” carrega uma carga preconceituosa que diminui
o objeto a que ela se refere, sendo no caso Carlos. Essa construção textual por parte
do autor demonstra que um negro, para esse grupo de alunos, é um ser inferior, um
alguém menosprezado, que não é digno de estar no espaço.
Ainda que Mardoqueu em um primeiro momento tenha sentido preconcei-
to em relação a Carlos, a construção da amizade dos dois ganha contornos quase
poéticos, concebidos pelas mãos de um autor que tece um sentimento genuíno e de
cumplicidade a partir das diferenças de dois grupos historicamente atacados: am-
bos eram julgados por serem diferentes, os dois tiveram seus antepassados violenta-
mente perseguidos, um e o outro possuem um histórico de tristezas e lutas e sofrem
por suas raízes históricas. Não se uniram por um mero acaso, mas principalmente
por pertencerem à categoria de perseguidos. Acharam em todo o mal que acabam
recebendo da sociedade a força para juntos lutarem. A identidade e a diferença tra-
balham em uníssono para unir tais personagens.
Ao apresentar a irmã para Mardoqueu, este começa a ter que lidar com sen-
timentos de paixão, de desejo e consequentemente com impulsos sexuais. Ao ver a
irmã de Carlos, Mardoqueu se sente atraído, apaixona-se e passa a desejar a menina.
Longe da garota, em sua casa, temos os fatos que comprovam o início da fase de
amadurecimento sexual de Mardoqueu, com as descobertas de desejos e do corpo
através, por exemplo, da masturbação. Ainda que este termo não tenha sido clara-
mente apresentado no texto, é possível ser feita a dedução através de trechos como:
364
Estudos Literários
“Eu voltei para casa – felizmente não havia ninguém – tranquei-me no banheiro,
e lá a possuí, em imaginação, uma, duas, três vezes, em variadas circunstâncias e
posições” (SCLIAR, 1998, p.38).
A relação de Mardoqueu com a irmã de Carlos, chamada Ana Lúcia, desper-
tou a ira de sua família. Nessa construção da narrativa, o autor discute a união de
etnias totalmente diferentes, de culturas contrastantes e de religiões distintas. Aqui
são apresentados, inclusive, os discursos que Ana Lúcia tinha ouvido, quando mais
nova, sobre os judeus terem “parte com o demônio”, ou seja, o autor traz conceitos
que possuem base real para a obra literária, afinal, como afirma Brenner (2013) e
também Hannah Arendt (1989), os judeus sempre foram vistos como um grupo
envolvido em assuntos ocultos Arendt (1989) inclusive ressalta a visão preconcei-
tuosa de que o judeu era um espião e que sempre trama algo de ruim. Para que esse
amor pudesse ser vivido, foi necessário que os personagens passassem por muitos
momentos de grande tensão, sendo o maior o da mãe de Ana Lúcia, que a acusou
de querer deixar seus antepassados, sua cultura e sua identidade para viver com
uma “mulata”.
É nesse momento de tensão que a personagem da mãe de Mardoqueu apre-
senta a carga emocional que a rodeia, mostrando as angústias da personagem que
sempre chora, sempre sofre e parece não ser feliz (lembrando a personagem judia
encontrada no conto A Garota Judia (1855) de Hans Christian Andersen). Em um
primeiro momento, o medo é entendido pelo fato de a personagem se sentir aban-
donada por seus familiares: “ – Meus pais morreram num campo de concentração
– ela disse. – Meus pais, minhas irmãs, todos morreram num campo de concentra-
ção” (SCLIAR, 1998, p.54). Então, percebe-se que ela se sente sozinha e mais que
isso, sente-se triste e culpada por não poder ter salvo seus familiares. Manter a
tradição, para ela, é manter a memória de seus finados parentes, é como uma ho-
menagem a suas vidas:
365
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Para a mãe de Mardoqueu, casar-se com uma mulher não judia e negra era
como destruir a tradição judaica, destruir seus antepassados, acabar com a memó-
ria daqueles que foram mortos por serem judeus. Por fim, a mãe aceitou o namoro,
e em um dos últimos momentos da obra, enfim é possível entender o desenrolar do
‘sonho no caroço do abacate’.
Ao tomar um sorvete de abacate, a mãe de Mardoqueu enfim entende que
sua cultura não se perdeu, mas sim ganhou novos elementos. O gelado alimento,
nesse momento, é uma metáfora do que representa a cultura, e a ação de tomar esse
sorvete e querer a receita é um modo subjetivo de se representar a mistura de cul-
turas. Se a personagem sofria pelo medo de perder sua cultura, agora ela entendia
que poderia sim manter a sua cultura, mas não se sacrificar para repelir o novo, um
novo que representa o lar, uma nova esperança, uma nova vida. Suas lágrimas não
eram apenas por sua vida, mas por todos aqueles que morreram com sonhos como
os dela: “De repente eu compreendia minha mãe. Sabia por quem chorava: pelos que
tinham morrido nos campos de concentração, pelos que tinham sido perseguidos e
humilhados. Mas chorava também por si mesma, pelos sonhos perdidos” (SCLIAR,
1998, p.73). E o caroço do abacate representava todos os sonhos impossíveis, repre-
sentava o mais impossível de todos os desejos: o desejo de viver. Em uma reflexão
final, Mardoqueu conclui: “também eu tive de atravessar um oceano, também eu
tive de descobrir um país que não conhecia. Ao qual, se tivesse de dar um nome,
chamaria de O País dos Sonhos Improváveis. Sonhos que se ocultam no caroço de
algum inocente abacate” (SCLIAR, 1998, p.75). Assim, o título é justificado, sendo
esse caroço de abacate, conseguido com êxito ser consumido no fim da obra, uma
metáfora para exemplificar que enfim fizeram das terras brasileiras um novo lar.
As ilustrações, sob responsabilidade de César Landucci e Maurício Negro,
apresentam traçados sempre fortes e espessos, em preto e branco, e com elementos
da tradição judaica reproduzidos. Ainda que claramente em segundo plano, esses
contribuem com marcas visuais não descritas no campo verbal, mas que comple-
mentam o texto. Na imagem 1, por exemplo, é possível perceber um símbolo judai-
co que não aparece em momento algum descrito no código textual. Conseguirmos
perceber, assim, que as ilustrações transcendem o texto, dando novos sentidos e
olhares à obra.
366
Estudos Literários
Imagem 1 - Ilustração da obra Um sonho no caroço do abacate (1998) (SCLIAR, 1998, p.24)
Não é possível afirmar que elas possam antecipar o conteúdo dos textos que
acompanham, mas sim que contemplam elementos que são encontrados no campo
verbal, retratando-os em código visual. Se em uma primeira vista podem parecer
confusas, após a leitura do texto que as segue, como em capítulos (ainda que não
haja uma explicita demarcação de unidades), é possível entender o que o ilustrador
tentou representar com esses desenhos. Alguns trazem elementos não só judaicos,
mas também de outras características, como de baianos e até mesmo uma retrata-
ção de como os personagens se veem, como esses se sentem.
Conclusões
Com base no analisado e levando em conta o que foi lido como aporte teóri-
co para estas análises, afirmamos que a obra apresenta potencialidade para propor-
cionar a fruição estético-literária. As evidências para tal afirmação estão na iden-
tificação de múltiplas ferramentas de linguagem literária operadas pelo autor, os
recursos invocados tanto em nível textual quanto imagético e, ainda, uma elaborada
construção narrativa, que faz uso desde expressões coloquiais até passagens umidi-
ficadas na mais bela linguagem poética. Recebe destaque, ainda, o uso de ilustrações
367
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
que complementam o texto, dando o poder de uma nova leitura a partir de constru-
ções realizadas pelo outro autor da obra, ou seja, o ilustrador.
A obra é entendida, por nós, como sendo importante para o estabelecimento
e manutenção da chamada memória universal da Shoah, uma vez que não distorce
os fatos memoriais, mas, sim, são uma chama que arde para manter o testemunho
de tão nefastos acontecimentos e uma rica cultura sempre acesos e lembrados.
É, ainda, um brado para que seja sempre rememorado o legado da Shoah,
cuja pena pelo esquecimento está na possibilidade de dias tão malignos voltarem a
abismar o mundo. Este trabalho, também, é uma tentativa de reverberar e fazer-se
ouvir o testemunho de quem viu, a olhos nus, os horrores que o antissemitismo
testemunhou para que nunca, jamais, sejam novamente replicados.
Destaca-se, ainda, a importância acadêmica do trabalho, cujos frutos foram
apresentados em eventos diversos, tanto nacionais quanto internacionais.
Por fim, mas não menos importante, destacamos e agradecemos ao traba-
lho do autor que, por meio de uma narrativa ímpar, traz à pauta do dia e discute
assuntos importantes e que podem se refletir no futuro. A ele(s), agradecemos por
defenderem a história e por usar como arma a literatura.
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Tradução de: Roberto Raposo.
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369
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
370
Estudos Literários
somente sob a influência de suas idéias pessoais e das suas disposições poéti-
cas que decide quais os aspectos do tema que deve apresentar e qual a forma
mais conveniente.(HEGEL,1997, p.518)
Além disso, Hegel (1997) considera que a realidade é responsável por fomen-
tar a imaginação, logo não é arruinada ou desconsiderada no momento da criação.
A finalidade da poesia lírica é, portanto, satisfazer a necessidade de expressão do
foro íntimo do poeta, suas emoções, sentimentos e paixões mediante a linguagem.
A perspectiva hegeliana, remodelada ou questionada, se mantém como referência
paradigmática para a discussões sobre a subjetividade lírica.
Em seu “La referencia desdoblada: el sujeito lírico entre la ficcion e La auto-
biografia”, Domenique Combe (1999) sistematiza um percurso histórico acerca do
conceito de sujeito lírico e tece reflexões a respeito de alguns aspectos circunscritos
a ele, como também a respeito do conceito de verdade e ficção. Partindo da ideia co-
mumente difundida de que o lirismo é a expressão de uma poesia pessoal e intimis-
ta e a subjetividade lírica é essencialmente narcisista, Combe nos relembra de que a
origem da problemática envolvendo esse sujeito pode ser historicamente situada. É
no romantismo alemão que são travadas diversas discussões a respeito do estatuto
do sujeito lírico e que o problema da autenticidade é pensado mais pontualmente.
Devido a esse movimento e ao que ele preconiza, surge a necessidade de descons-
trução da ideia de que o eu lírico e o eu empírico carecem da mesma identidade. A
respeito da relação entre poesia e vivência, Combe lança mão das ideias do filósofo
alemão Wilhelm Dilthey, para o qual há um nexo essencial entre a vida do poeta e o
ato poético. Dessa forma, o conteúdo do poema estaria fundamentado na experiên-
cia de vida do poeta. No entanto, o filósofo ressalta que a obra literária não pode ser
explicada única e exclusivamente pelo acontecimento biográfico.
No seio dessa discussão, Combe resgata algumas ideias encontradas na obra
de Hugo Friedrich Estrutura da Lírica Moderna (1978) para a análise sobre a dico-
tomia entre o sujeito lírico e o sujeito empírico. Sabemos que a consciência de que o
ser humano não é uno, mas sim um feixe de muitas vozes, que implicam um espaço
para a constituição de subjetividades-outras, é própria dos poetas do século XIX,
especialmente os poetas franceses – considerados fundadores da modernidade –
Charles Baudelaire, Arthur Rimbaud e Stephane Mallarmé, que apontavam para a
371
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
poesia também como voz de uma alteridade e que esvaziaram o reduto do lírico de
qualquer informação biográfica. Hugo Friedrich, a respeito da poesia de Baudelaire,
afirma que “com Baudelaire começa a despersonalização da lírica moderna, pelo
menos no sentido que a palavra lírica já não nasce da unidade de poesia e pessoa
empírica, como haviam pretendido os românticos.” (FRIEDRICH, 1978, p. 36). E
comentando o uso da primeira pessoa pelo poeta afirma: “Quase todas as poesias de
As Flores Do Mal falam a partir do eu. Baudelaire é um homem completamente cur-
vado sobre si mesmo. Todavia este homem voltado para si mesmo, quando compõe
poesias, mal olha para seu euempírico.” (Ibid., p. 37). Se Baudelaire mostrou a des-
personalização do eu lírico, separando-o do eu empírico e inscrevendo no espaço
poético a possibilidade de manifestação de subjetividades variadas, Rimbaud – com
sua já antológica afirmação “Eu é um outro”3 – rompeu com a concepção romântica
de sujeito lírico. Mallarmé foi mais além ao enunciar o sujeito lírico e sua voz como
um efeito de linguagem, concebendo-o como uma existência imanente à linguagem
(FRIEDRICH, 1978, p.56). A partir daí, um breve tempo depois foi possível visua-
lizar a fragmentação e mesmo dissolução do sujeito lírico na poesia do século XX.
Isso aparecerá de forma tão intensa que o poeta do modernismo literário americano
T. S. Eliot não só tematizará o esfacelamento humano, como também constituirá
a forma do poema de “verdadeiras colagens de múltiplos empréstimos literários”
(ROSENFIELD, 1999, p. 89).
Segundo Combe (1999), se tentarmos apartar a gênese do sujeito lírico das
relações entre a biografia, estaremos fadados ao fracasso, uma vez que a ficção e a
verdade não podem ser consideradas categorias excludentes, e sim complementa-
res. Nem mesmo o crítico literário está apto a identificar, com exatidão, o que com-
põe o universo ficcional do autor e, ao mesmo tempo, faz parte de sua biografia, ou
seja, o grau de ficção é impossível de ser determinado e dissociado do que é da expe-
riência vivida. Assim, ainda que o leitor continue, espontaneamente, identificando
o sujeito da enunciação lírica com o poeta, provavelmente devido à permanência do
modelo poético romântico, é impossível delimitar o que é puramente ficção e o que
é factual. Nas palavras do autor:
3 Esta afirmação de Rimbaud consta na Carta de Rimbaud a Georges Izambard, de 13 de maio de 1871.
(Poésies, 1984, p. 200).
372
Estudos Literários
373
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
devido à perda de controle dos movimentos interiores, o que torna o sujeito passivo.
Nas palavras de Collot:
Sua abertura ao mundo e ao outro o torna estranho por dentro- por fora. Ele
não pode, então, reaver a sua verdade mais íntima pelas vias da reflexão e da
introspecção, é fora de si que ele a pode encontrar, não como identidade, mas
como uma ipseidade que, ao invés de excluir, inclui a alteridade. (COLLOT,
2004, p. 167)
374
Estudos Literários
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
curso, ou seja, utilizaram a poesia como espaço para reflexão a respeito dela mesma,
revelando um olhar crítico e reflexivo sobre a própria obra.
No cenário da lírica atual, que é a prática, cada vez mais recorrente, de de-
bruçar-se sobre o próprio processo de composição, atitude que acaba constituindo
o fio condutor do projeto poético de muitos poetas. O exercício metalinguístico
evidencia ainda o caráter múltiplo do sujeito por trás da composição poética, que,
cindido, revela-se, concomitantemente, crítico e criador ao sondar a própria arqui-
tetura poemática. A respeito disso, Maria Esther Maciel (1999) destaca que, apesar
de antiga, a aliança entre a criação e a reflexão, muitos poetas concebem ainda hoje
a poesia como espaço de reflexão crítica e de debate sobre si mesma. Ao estilhaçar a
linguagem e muitas vezes incorporar à enunciação lírica o discurso crítico, o poeta
põe em diálogo teoria e prática, crítica e criação, que se espelham e se misturam.
Nota-se ainda a tentativa de exploração da autossuficiência da linguagem, uma vez
que esta assume, nesse tipo de produção poética, o lugar do sujeito.
A prática de examinar a própria composição poética com um olhar analítico
continua acompanhando muitos poetas contemporâneos. Na obra de Paulo Henri-
ques Britto, por exemplo, o leitor se depara, em inúmeros poemas, com uma relação
dialógica entre exame crítico e criação poética, traduzida em um exercício lúcido de
reflexão na e pela poesia acerca do processo de composição desta, em detrimento da
espontaneidade. Tal via aponta ainda para um descentramento do eu poético, uma
vez que o poeta, ao desdobrar-se em inúmeras subjetividades, incorpora o discurso
crítico à enunciação lírica, conforme afirma Maria Esther Maciel (1999):
A discussão sobre o fazer poético, que perpassa toda a obra de Paulo Henri-
ques Britto, pode ser considerada um dos fios condutores do seu projeto artístico.
Em muitos poemas, a subjetividade do poeta conduz o leitor a uma reflexão crítica
376
Estudos Literários
sobre o ato criador, pois o poeta incorpora à enunciação lírica a sua condição, além
de sujeito artista, de crítico. Assim, crítica e invenção atuam no mesmo espaço, de
forma integrada. Isso pode ser verificado no terceiro poema, numerado com alga-
rismo romano III e inserido no bloco intitulado “Três Lamentos”, composto por três
poemas,presente em Mínima Lírica:
III
Neste poema, é possível percebermos que o poeta lança mão de uma compa-
ração para expressar sua concepção de poema perfeito, o que pode ser comprovado
na terceira e na quarta estrofes. Para o sujeito lírico, fazer um poema perfeito im-
plica na contenção, na economia da linguagem. Os poemas que em uma primeira
leitura nada parecem transmitir, “os mais contidos/ e lisos, os que menos coisas di-
zem/destilam o veneno mais perfeito”, ou seja, são os mais ricos em significados. Tal
concepção é reiterada em diversos poemas que compõem a obra de Britto, nos quais
é possível verificarmos uma “apologia ao silêncio”, ou seja, uma defesa de que é pre-
ciso que a escolha do assunto a ser abordado no poema seja cuidadosamente pen-
sada para que não sejam tematizados assuntos pouco relevantes. No poema “IV”,
retirado de Trovar Claro (1997), o poeta adverte: “Cuidado: todo silêncio é pouco”.
377
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Nesse sentido, ampliando a nossa reflexão, podemos afirmar que, por trás
de um poema metalinguístico, situa-se um sujeito múltiplo, criador e crítico da
literatura ao mesmo tempo. Por essa razão, na poesia de Paulo Henriques, o espaço
da metalinguagem surge também como lugar para a manifestação de mais uma
subjetividade. Ao incorporar ao discurso poético a sua condição de crítico, o poeta
corrobora ainda a ideia de que o processo de elaboração do poema não se dá de
modo gratuito.
Outra configuração do sujeito lírico nos poemas de Paulo Henriques Britto
é o seu ofuscamento no espaço do poema. Nesse sentido, o sujeito lírico esforça-se
para se ausentar e causar no leitor a impressão de que resta no espaço poético ape-
nas a linguagem, a qual se move modulada pelas reflexões sobre os objetos do mun-
do ou sobre a própria poesia. No poema a seguir, tal fenômeno pode ser visualizado:
MATERIAIS
A utilidade da pedra:
fazer um muro ao redor
do que não dá para amar
nem destruir
378
Estudos Literários
A utilidade do gelo:
apaga tudo que arde
ou pelo menos disfarça
A utilidade do tempo:
O silêncio.
Através dos objetos que convoca e constrói, o sujeito não expressa mais um
foro íntimo e anterior: ele se inventa desde fora e do futuro, no movimento de
uma emoção que o faz sair de si para se reencontrar e se reunir com os outros
no horizonte do poema” (COLLOT, 2004).
Desse modo, fica evidente que o ofuscamento do sujeito lírico explícito não é
empecilho para que se possa vislumbrar algumas marcas de subjetividades, as quais
podem ser captadas por meio de uma análise atenta das construções das imagens.
Além disso,
379
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Em seu livro intitulado Seis propostas para o próximo milênio (2001), Italo
Calvino, no capítulo intitulado “Exatidão”, assevera, entre outros aspectos, que a
exatidão, uma característica presente na literatura do século XXI, pode ser definida
de três maneiras, a saber:
3- uma linguagem que seja a mais precisa possível como léxico e em sua capa-
cidade de traduzir as nuanças do pensamento e da imaginação. (CALVINO,
2001, p. 71-72)
380
Estudos Literários
de si, na obra de Britto, aponta ainda para um diálogo com uma tradição moderna
de constituição do sujeito lírico, que se afasta da concepção hegeliana de lirismo.
O sujeito lírico, ao não se revelar explicitamente, é, em muitos poemas, projetado
em direção à linguagem, já que busca entremear-se nas reflexões que envolvem o
próprio ofício poético.
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FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da Lírica Moderna. Tradução de Marise Curioni. São
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381
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
382
Estudos Literários
A representação do feminino
na Farsa de Inês Pereira
Maísa de Oliveira Mascarenhas1
Introdução
De acordo com Pedro Fonseca (2017), as origens da misoginia estão relacio-
nadas a vários postulados que acusam a mulher de ser a geradora do mal no mundo.
No contexto da Idade Média, sabemos que os discursos de gênero, na perspecti-
va dos Padres da Igreja, revelam-se bastante marcados por atitudes misóginas, em
consonância com a ideologia dominante na época. Os fundamentos desse discurso
masculinista, que legitima a supremacia do homem, remetem ao episódio da cria-
ção de Adão e Eva, uma vez que o homem teria sido criado primeiramente, enquan-
to a mulher, de acordo com essa perspectiva,
Foi criada como acessório, numa condição secundária que, sendo logo inter-
pretada como subserviente, não deixaria jamais de inferiorizá-la. Estava-se,
assim, justificada a ab origine e a competência e a sabedoria do homem em
dominar e comandar a mulher e o conhecimento da natureza, deles se servi-
do para o seu bem estar. (FONSECA, 2017)
383
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
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Estudos Literários
para a imperfeição moral e espiritual da mulher e para a sua tendência inata de ser
enganada. Por essa razão, ela deveria obedecer cegamente a seus maridos. Nessa
perspectiva, o homem seria a cabeça da mulher, da mesma maneira que Cristo é a
cabeça do homem.
Endossando todos esses discursos preconceituosos, São João Crisóstomo
defende que a mulher, a grande responsável por arrastar o homem para desobe-
diência a Deus no Paraíso, tende a fazer um barulho incontrolável por natureza,
uma algazarra, uma vez que conversa demais sobre assuntos infrutíferos. Por isso,
São João Crisóstomo recomenda que ela permaneça em silêncio. Nessa perspecti-
va, a mulher, por ser dotada de uma inteligência rasa, superficial, não está a apta a
ensinar coisa alguma e, caso queria aprender sobre algum assunto, deve perguntar
ao seu marido, que tem proeminência em todos os sentidos. Sobre a mulher viúva,
ele afirma que esta, se não se casar novamente, tem o mesmo valor que uma virgem
diante de Deus. A viuvez, nesse sentido, seria o estado ideal para se resgatar a vir-
gindade original.
Essas reflexões misóginas também estão presentes nos dizeres de São Jerôni-
mo, que também propaga uma propaganda antimatrimonialista, pois, para ele, uma
vida devota a Deus não pode ser harmoniosa estando o homem casado. A mulher,
nessa perspectiva, é vista como desgraça para o marido, já que “inunda a casa com
sua chatice constante e sua falação diária expulsa o marido de seu próprio lar, que é
como se fosse a Igreja. (FONSECA, 2017, pp.175). A vida de casado representaria,
dessa forma, uma condenação à infelicidade. Nota-se, portanto, que
Fica claro, assim, que entre os séculos XII e XVI, a condição das mulheres
era de total subordinação masculina, o que estava fundamentado principalmente
no Cristianismo, religião dominante na Idade Média e no início do Renascimento,
que atuava como o principal meio repressor e condenatório à mulher. Nas palavras
385
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Sabe-se que Baixa Idade Média foi marcada por uma crise de valores que
atingiu a sociedade e a da Igreja. O teatro de Gil Vicente, caracterizado pelo po-
der da sátira evidente em seus autos, comédias e farsas, é fruto de um período de
transição do fim da Idade Média para o início da Idade Moderna. Nesse contexto, é
nítido o crescimento das cidades, o enfraquecimento do feudalismo e a constituição
386
Estudos Literários
de alianças entre reis e a burguesia. Por isso, a obra desse dramaturgo é fortemente
marcada pela reafirmação da tradição e pelo teor inovador, pois
Gil Vicente viveu nesse contexto histórico, marcado “pelas grandes descober-
tas e ao mesmo tempo pelo ambiente palacino, medieval, religioso e conservador”.
(JÚNIOR, 1994, p.26). O autor utilizou sua obra para retratar a sociedade portugue-
sa de sua época e como meio para denunciar a degradação de costumes na socieda-
de, dentro Igreja e nas famílias. Para alcançar esse objetivo, há a inserção de diversos
tipos humanos nas peças, como a alcoviteira, a velha beata, a moça casadoura, o
escudeiro fanfarrão, o fidalgo decadente, o judeu ganancioso, o padre corrupto, mu-
lher adúltera, o marido traído, entre outros. Entre as 44 peças escritas pelo autor está
a Farsa de Inês Pereira, apresentada pela primeira vez em 1523. A respeito do motivo
para a criação dessa peça, há uma suposição, sem comprovações documentais, de
que, em certa ocasião, Gil Vicente foi acusado de plagiar obras do teatro espanhol
de Juan del Encina. Por essa razão, o dramaturgo pediu para que aqueles que o acu-
savam lhe dessem um tema para que ele pudesse escrever uma peça a respeito desse
tema. Deram-lhe o seguinte ditado popular como tema: Mais vale asno que me leve
que cavalo que me derrube. Sobre esse tema, Gil Vicente teria criado A Farsa de Inês
Pereira, respondendo, dessa forma, àqueles que o acusavam de plágio.
A Farsa de Inês Pereira é composta de três partes, uma sucessão de pequenos
quadros, que formam a unidade de ação. Na primeira parte, é apresentada Inês, seu
cotidiano e seus anseios. Em seguida, é mostrado o momento em que Inês é apre-
sentada, pela alcoviteira Lianor, ao pretendente Pêro Marques, que é recusado pela
protagonista. A segunda parte da peça mostra o casamento de Inês, arranjado por
dois judeus casamenteiros, com o Escudeiro enganador Brás da Mata e o sofrimen-
to da moça devido à postura autoritária do marido. Na terceira parte da peça, Inês,
já viúva, casa-se pela segunda vez com o primeiro pretendente que havia anterior-
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mente recusado e planeja trair o marido, Pero Marques, com um antigo admirador,
nomeado na peça de Ermitão. Experiente e distante das fantasias que nutria no iní-
cio da história, Inês aproveita-se da ingenuidade do segundo marido para ser infiel.
Procedemos, portanto, à análise crítica da obra. Inicialmente, a peça eviden-
cia a figura de Inês Pereira, protagonista da peça, uma moça da vila, solteira enfa-
dada pelo fato de estar em casa cuidando das atividades domésticas, isto é, fiando,
bordando, varrendo. Inês deseja ter liberdade e ser feliz e vê no casamento uma
possibilidade de alcançar a felicidade. A protagonista é uma típica moça frívola que
tem em vista um casamento com um homem que saiba falar bem, dançar, cantar,
em síntese, que seja um verdadeiro trovador. Em suas falas, a personagem consi-
dera o trabalho diário um verdadeiro tormento. As falas de Inês Pereira a seguir
confirmam isso:
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preguiçosa e diz que quando a filha seguir seus conselhos terá muitos pretendentes
para escolher. Percebe-se, dessa forma, que o discurso da mãe é uma reafirmação
dos pensamentos misóginos vigentes na época em que a peça foi escrita e está em
consonância com os discursos da literatura patrística medieval, pois, para a mãe de
Inês, a filha deveria atender às expectativas do homem para conseguir um matrimô-
nio vantajoso. Para isso, não poderia ser preguiçosa:
Mãe:
(...)
Como queres tu casar
com fama de preguiçosa?
(...)
Não te apresses tu, Inês:
«Maior é o ano que o mês».
Quando te não precatares,
virão maridos a pares,
e filhos de três em três. (VICENTE, 1523)
A personagem da mãe, dessa forma, cumpre seu papel de fazer com que Inês
fosse uma boa moça, dentro de uma perspectiva de comportamento tradicional.
De acordo com Tertuliano, em seu discurso moralizante acerca do feminino, a obe-
diência que a mulher deve em relação ao marido, revelado por meio dos cuidados
domésticos, é um ornamento. Sendo assim, atividades como tear, bordar, cuidar
das tarefas domésticas são consideradas, para ele, complementos ornamentais que
agradam mais do que o ouro.
Além disso, a mãe de Inês recomenda a filha que se comporte, diante do fu-
turo marido, o Escudeiro Brás da Mata, com discrição, que não seja sorridente e que
fale o mínimo possível, como pode ser observado no seguinte fragmento:
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que outrora foi motivo para Inês ridicularizar e depreciar Pêro Marques, agora é
justamente o traço de personalidade que Inês considera ideal e muito conveniente.
Ela supõe que o rústico filho de lavradores não lhe dará ordens e que, portanto, ela
poderá fazer o que tiver vontade. O personagem Pero Marques remete, metaforica-
mente, ao asno que Inês busca agora:
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Estudos Literários
Considerações finais
O presente artigo mão tem a intenção de reproduzir uma litania da desgraça
a respeito da mulher ao recuperar alguns discursos da patrística medieval. Tam-
bém não tem pretensão estabelecer uma única análise crítica possível para a Farsa
de Inês Pereira. Pretendemos, primeiramente, mostrar o quão rica é a obra de Gil
Vicente, engendrada sob uma tensão, oscilando entre a reprodução de ecos de dis-
cursos misóginos e atitudes que apontam para uma incipiente inovação em relação
a sua época. O objetivo principal deste estudo foi evidenciar que modo traços de
misoginia estão presentes na Farsa de Inês Pereira, de Gil Vicente, considerando que
esse autor vivenciou um período de transição, ou seja, situa-se entre a inovação e o
conservadorismo.
Nessa peça, pode-se notar que alguns discursos da mãe de Inês e da alco-
viteira Lianor Vaz reverberam valores conservadores tradicionais da época. Além
disso, é evidente também que alguns discursos do Escudeiro refletem o pensamento
vigente na época em que a farsa foi escrita, segundo o qual a mulher deve ser sub-
jugada ao homem. Fica claro ainda que a postura de Inês, mesmo aparentemente
transgressora em relação aos costumes da época, já que ela caracteriza, por exemplo,
o trabalho doméstico como odioso; não pode ser considerada sinônimo de comple-
ta renovação, uma vez que Inês não tem consciência de classe, isto é, não é crítica em
relação à condição da mulher de sua época. Ao recusar alguns dos valores vigentes
em sua época, Inês deseja apenas modificar a sua própria condição. Podemos con-
siderar, portanto, a hipótese de que, por trás do cômico, há na Farsa de Inês Pereira
traços de uma visão conservadora em relação ao mulher e uma intenção moralizan-
te. À medida que Inês Pereira engana o marido Pero Marques porque ele é ingênuo,
o autor pode estar sugerindo aos homens que tomem cuidado com a esperteza de
suas esposas, como se fizesse, implicitamente, uma recomendação para os homens
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
exercerem sua autoridade em seus lares, caso contrário, poderiam ser vítimas do
que ocorreu com Pêro Marques. Dessa maneira, estaria denigrindo a imagem da
mulher, assim como os Padres da Igreja fizeram em seus discursos misóginos.
Bibliografia
ABDALA JÚNIOR, Benjamin; PASCHOALIN, Maria Aparecida. História social da
literatura portuguesa. 4 ed.São Paulo: Ática, 1994.
ARAÚJO, Márcia Maria de Melo. Mulher medieval e trovadorismo galego-português: o
feminino e a feminização nas cantigas de amigo/ Márcia Maria de Melo, Pedro
Carlos Louzada Fonseca. Goiânia: Ed. Da PUC Goiás, 2015.
FONSECA, Pedro Carlos Louzada. Mulher e misoginia na visão dos Padres da Igreja e do
seu legado medieval. Goiânia: Editora da PUC Goiás, 2017.
FREITAS, Amanda Lopes de. Gênero moralidade: uma análise de Auto da Alma e Auto da
Barca da Glória, de Gil Vicente. 2014.116f. Dissertação (Mestrado). Universidade
Federal de Viçosa, Minas Gerais.
VICENTE, Gil. Farsa de Inês Pereira. 1523. Disponível em: http://www.dominiopublico.
gov.br/download/texto/bv000111.pdf. Acesso em 02 de julho de 2018.
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Estudos Literários
Introdução
Cora Coralina2, pseudônimo de ANA LINS DOS GUIMARÃES PEIXOTO
BRETAS (1889-1985). É uma criativa e significativa autodenominação. È uma ban-
deira afetiva e compromissada (PESQUERO, 2003), que foge aos padrões de sua
época. Invento expressivo literário, responsável direta e indiretamente pela dissemi-
nação do seu nome como escritora, teoriza Gilberto Mendonça Teles.
Das lições de Pesquero sobre a questão do cartão de visitas, a apresentação
do pseudônimo de Aninha, ou seja, o desvelamento da sua essência, trouxe ao mo-
mento a importância de salientar: Em todas as culturas, o nome tem um caráter má-
gico e sagrado. Ele tem o poder da palavra, ou seja, representa e é, ao mesmo tempo,
a coisa representada, encarna sua força e realidade. (PESQUERO, 2003). Já fizemos
uma breve referência à criação e pura presença da alma da poetisa. Todo nosso texto
confirma esse pressuposto.
A pertinência em conhecer e sistematizar as peculiaridades do discurso de
Cora Coralina, instiga-nos produzir esse artigo, baseado em seus escritos que faz
entrar em estado de poética, emoções corpóreas que motivam o estado de sensações
de seu texto no sentido performático, que une literatura, verso livre, memória e o
meio ambiente que a eleva a vastidão do Cosmos, fazendo com que ela se confunda
com o todo e com o tudo que compõe a totalidade do universo.
1 PUC-GO, [email protected]
2 Cora Coralina, pseudônimo de Anna Lins dos Guimarães Peixoto Bretas (Cidade de Goiás, 20 de agosto
de 1889— Goiânia, 10 de abril de 1985), foi poetisa e contista brasileira. Considerada uma das mais importan-
tes escritoras brasileiras, ela teve seu primeiro livro publicado em junho de 1965 (Poemas dos Becos de Goiás
e Estórias Mais), quando já tinha quase 76 anos de idade.
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
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Estudos Literários
nome, e termo, que se possam ser capturadas como sinônimos sobre o caráter ima-
ginário interiorano, simples, dedicado a um leitor sensível.
A poesia narrativa de Cora, pinta quadros na memória e parte do que se ima-
gina, cria para recriar o que é representado pelo signo. A linguagem humana nos
textos escritos coralíneos, ancorados na experiência, cujos ingredientes misturaram
seus atentos olhares às insignificâncias do cotidiano, do próprio espaço à polifonia
de múltiplas vozes que enaltece seus textos, a literatura (popular), que por vezes nos
reforça o poder de uma força vinda do interior.
Assim, a poetisa traça o encantamento entre o eu poético e a obra, pois teve
a grandeza e lucidez para dizer em seus versos (a chave para a compreensão de sua
obra/vida) que trazia dentro de si todas as vidas do universo: mulher do povo, do-
ceira, cabocla velha que lavava suas roupas no rio vermelho... sonhou, amou, fugiu,
fez doce e poesia.
Ocorre-nos, a propósito, registrar que, a escritora saiu da Cidade de Goiás
“Goiás Velho”, antiga capital do Estado, em 1910, com idade de 21 anos, fugindo em
cima de um cavalo, na garupa de um homem casado (desquitado de uma índia) e
vindo de fora, uma forma nada convencional para uma época registrada nos idos da
primeira década do século passado.
Conforme escreveu Gilberto Mendonça Teles para entrevista no Rio de Ja-
neiro no ano de 2017 sobre a saga coralínea: Cantídio Tolentino Bretas Figueiredo
com quem viveu de 1910 a 1934, ano de sua morte: sua mãe foi contra o namoro,
por que ele era desquitado, tinha filhos, inclusive com outra mulher, uma índia.
[Nos seus escritos já anciã, Cora vai dizer que saiu casada].
E embrenharam-se no adito das estradas empoeiradas, deixando sua cidade
para traz, onde foi desaprender Goiás em São Paulo. Foram viver no interior (em
Andradina e Jaboticabal). Assim o que escreveu por lá não foi divulgado.
Quarenta e cinco anos depois (em 1956), retornou sozinha a Goiás, já nos
seus setenta anos e sem livro publicado. Na verdade, esse pensamento que reclama
uma meditação em que o próprio espaço se torna uma visibilidade pensante, lugar
pensante e olhar filosófico.
Nesse ambiente, “Quarenta e cinco anos decorridos. Procurava o passado no
presente e lentamente fui identificando minha gente”. [Voltei] do livro Vintém de
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
cobre (UFG,1983); Cora, volta e expressa amor a sua terra, seu jeito goiano e canta o
amor de Aninha a sua cidade; tornando-se então não só a mulher mais importante do
Brasil Central e porque não? – de toda a literatura feminina do Brasil. (TELLES, 2017)
Enclausurada nas paredes centenárias em seu silencioso recolhimento na
Casa Velha da ponte, Cora entregou-se à poesia, acolhida pela lembrança e cercada
pelas pedras e o rio vermelho que corria mansamente, como o sangue em suas veias.
A escritora voltou a sua cidade de Goiás, e começou a sua prosa em tema de
poética, conquistou a literatura feminina em goiás, tudo isso com humana humil-
dade em sua passagem pelo planeta.
O tema poético em movimento de Cora Coralina, transitou quase meio sé-
culo de vida, escreveu, declamou, militou a favor da natureza, dispôs-se a fornecer
pistas ou abrir portas para uma espécie de paradigma (de estilo, de produção, de lo-
calismo cultural, etc.). Se considerarmos a obra publicada já na fase de sua velhice.
Necessita, pois, uma crítica histórica de (re)construção descritiva da obra,
através de uma análise crítica favorecendo seus escritos, mesmo que tenha aconte-
cido pelo caminho de Cora, pedras, conflitos, dramas sociais, contados pela contista
goiana, onde ela soube retirar a matéria, dos seus trabalhos mais autênticos, que
envolvem memória em prosa e poesia; consideramos que habitava em si o lirismo
e humanismo.
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Estudos Literários
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mentos do passado presente cujas dimensões estão para o pertencer da verdade que
acontece na obra. A propósito, escreve Heiddeger (1976): “A essência da verdade se
desvelou como liberdade.”
Nessa perspectiva, o texto é livre e sobretudo, a sua simplicidade de leitura é
agradável, com detalhes típicos do fazer literário com expressividade lírica de um
tempo social e individual entre a palavra e a realidade da teoria do texto.
Também a valorização da autora local ressaltando os valores ficcionistas de
forma simples e contundente a que se reflita no sentido semântico porque adapta,
cria e recria os textos escritos que se cruzam na poesia ao reproduzir a linguagem
bruta do interior goiano, encontrando o melhor de sua expressão artística.
“Despojada, Apedrejada.
Sozinha e perdida nos caminhos incertos da vida.
Eu fui caminhando, caminhando.../
E nas pedras rudes do meu berço
Gravei poemas”
(Semente e fruto. Denófrio 2004, p.242)
Cora nos permite essa reflexão pelo frescor de sua narrativa escrita que abor-
da desde a leitura mais apurada, até a identidade do sujeito lírico, a reflexão cuja
missão é, desde os atos mais rotineiros, até o gosto pelo literário que se expande em
sua poética, uma vez que torna possível mergulhar na complexidade da estética e na
semântica que são colhidos nos versos da poetisa goiana.
Percebe-se em textos coralíneos, a ideia, que sugere a figura da artista, cuja
obra é uma realidade, apreendida pelo conceito de seus versos poéticos.
Cora Coralina, representa a sua vida. Desentranhando-se a descoberta no
transcurso da pesquisa, no que se deva registrar a circularidade da sensibilidade
humana e do cultural.
Poetisa mensageira da liberdade e o que interessa em nossos propósitos, seus
poemas, as estórias como ser humano e vivo, em segunda pessoa, como se estivesse
conversando com ela. Na verdade, é como se a Aninha dos 15 anos estivesse dizen-
do a Cora Coralina dos setenta. (Gilberto, 2017) quando ela se expressa; permite ao
leitor discernir a sua essência:
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Estudos Literários
“Das Pedras”
Uma estrada,
um leito,
uma casa,
um companheiro.
Tudo de pedra. [grifo nosso]
Entre pedras
cresceu a minha poesia.
Minha vida...
Quebrando pedras
e plantando flores. [grifos]
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Conclusão
Ao longo do decorrer deste texto, poderíamos aproximar, a título conclusivo
um passeio pela memória filosófica escolhendo a arte poética como matéria refle-
xiva. Permitindo-nos refletir o homem encontrando abrigo no espaço do real e do
irreal, criando o visível pela mente. Eleger o papel da imaginação na obra.
Ao acompanhar a trajetória de Cora, percebemos que a obra solicita de seu
contemplador um mergulho poético [expressão simbólica do ser] de conotação bem
feminina, que se torna real até as bordas... em seus escritos consagrando-a Cânone.
Além disso ao percorrer um caminho no espaço-tempo reconheceremos o
saber humano, na grandiosidade de sua essência e sua relação com a personagem,
desafiando a luz do ser. Nessa confiança o desempenho do artigo dissertativo tex-
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Estudos Literários
Sentindo-se desprezada pela mãe e pelas irmãs que a tinham como feia e sem
inteligência, alguns de seus textos documentam a luta intima na convivência
com a família, sobretudo com as irmãs mais velhas, as “manas”, como apa-
rece com certo desprezo. Em Poemas dos becos de Goiás e estórias mais (3ª
Edição da UFG), a primeira grande publicação de seus textos, confirma-se
na apresentação da Autora o jogo dialético do seguinte modelo teórico de
Modéstia X Orgulho: de um lado, a Modéstia (“Vai , meu pequeno livro”.);
e de outro Orgulho (“Que possa sobreviver à autora e ter a glória de ser lido
por gerações que hão de vir de gerações que vão nascer”), vendo-se, de início
a figura do disfemismo, isto é da desvalorização por modéstia e, no final, o
orgulho intelectual de imaginar seu livro na eternidade, coisa parecida com
a “Ode VII”, do livro I, de Horácio. Este modelo se documenta em todos os
seus escritos. (TELES, 2017)
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Resultados parciais
2017 - Participação do Congresso da ABRALIC, nas Escritas Contemporâneas:
Incursões, avaliações e desafios ao comparativismo;
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Estudos Literários
Referências
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais de poética. Trad. Celeste Aída Galeão. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.
HEIDEGGER, Martin. Os Pensadores. São Paulo:Abrl Cultural, 1979.
PAZ, Octavio. O arco e a Lira. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro. Ed. Nova Fronteira,
1982.
PESQUERO, Ramóm Saturnino. Cora Coralina - O Mito de Aninha. Ed. UFG. Ed.
UCG, 2003
TELES, José Mendonça. No santuário de Cora Coralina. 3 Kelps. Ed Goiânia. 2003.
TELES, Gilberto Mendonça. A Escrituração da Escrita. Editora Vozes
_______. Retórica do Silêncio I: Teoria e Prática do Texto Literário. Rio de Janeiro: Ed.
José Olympio, 1989
412
Estudos Literários
As facetas do sucesso na
jornada de Harry Potter:
O herói detetive
Milena Lourenço da Silva1
Alexander Meireles da Silva2
Introdução
Passados 20 anos, a obra Harry Potter: e a pedra filosofal, lançada em 26 de
junho de 1997 por J. K. Rowling, continua exercendo influência no mundo lite-
rário, transformando pontos de vista e inspirando as novas gerações de leitores e
escritores, segundo nota da própria editora Rocco, uma das responsáveis pela dis-
tribuição da saga em solo brasileiro “ [...] a autora criou um universo que desperta a
imaginação sem desprezar referências e relações humanas. “Essa realidade paralela
possibilita que a história nunca acabe[...]” (TORELLI, 2017). Sua serie mostra como
a junção de elementos literários certos são capazes de quebrar barreiras e impor
novos valores ao mundo literário. Mas a pergunta que nós, estudiosos e curiosos
deixamos é: Como uma obra, primeiramente direcionada unicamente a crianças,
caracterizou e redirecionou o modo de pensar no âmbito fantástico universal?
Dentre os fatores principais que apontam para o sucesso da obra de J. K.
Rowling encontra-se o alinhamento entre personagem e leitor –pois Harry Potter
com apenas 10 anos- ,possuía em média a mesma idade do público alvo da autora,
isso propiciou o crescimento não apenas em relação a idade de ambas as partes ,mas
também no amadurecimento e nas descobertas da vida ,assim como os personagens
dos livros os leitores passaram por todas as fazes de transição entre “ser criança” e
“se tornar adulto”, tendo que lidar com problemas ,decepções e desafios.
1 UFG/RC
2 UFG/RC, [email protected]
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
De fato podemos considerar assim como Hunt que Harry Potter foi o do
qual a sociedade necessitava no momento, trazendo valores que regem e negligen-
ciam “nosso” mundo, de forma a abordar e conquistar o maior número de leitores,
quebrando as barreiras de separação entre a literatura infantil e a leitura adulta.
De acordo com Massaud Moisés, citando em sua obra o sociólogo e crítico literá-
rio francês Roger Callois,o fantástico “manifesta um escândalo, uma ruptura, uma
irrupção insólita, quase insuportável, no mundo real” (MOISÉS, 1998, p.185), é o
momento onde o leitor se afugenta do mundo real, vivenciando uma experiência
nova em um ambiente onde fatores em que ele acredita e procura, são mais facil-
mente encontrados, onde as mudanças impostas verdadeiramente acontece.
Dentre tantas razões para o sucesso do livro, consideremos a abordagem de J.
K. Rowling em outros gêneros literários, tais como o romance de detetive e o gótico,
apenas para citar alguns. Com base nisso, este trabalho visara analisar a presença de
elementos característicos desses gêneros, assim como o estudo da estrutura mítica
da jornada do herói – jornada esta que fundamenta a própria estrutura da fantasia -
na construção do cenário fantástico empregado em Harry Potter: e a pedra filosofal.
O Herói Detetive
O mundo fantástico traz ao leitor o poder de criar e aperfeiçoar suas esco-
lhas, cria um submundo imaginário do qual se faz querer ser real, como dito Freud:
414
Estudos Literários
Talvez devêssemos dizer: cada criança que brinca comporta-se como um es-
critor, na medida em que cria seu próprio mundo ou, mais exatamente trans-
põe as coisas do seu mundo para uma ordem nova que lhe é agradável (...) O
escritor procedo do mesmo modo que a criança: cria um mundo imaginado,
que leva muito a sério, ou seja, o que dota de grandes qualidades de efeito,
distinguindo-o claramente da realidade. (FREUD, 1907, pag.50)
A fantasia traz esse efeito a literatura, cria um mundo irreal para se tratar do
real, tirando o indivíduo da mesmice de seu cotidiano, ela lhe apresenta a variedade
do inexistente, muitas vezes mais chamativa e com mais significados do que aquilo
que se tem por prescrito.
Enquanto obra de fantasia Harry Potter traz a jornada do herói, fator que
caracteriza e marca presença na tradição da literatura de Fantasia. Tendo desenvol-
vido o termo “jornada do herói” para caracterizar o monomito, Joseph Campbell
trabalhou as ideias do que seriam os conceitos da jornada cíclica de mitos, o mesmo
trabalha com a relação mito e sonho de forma a esclarecer como os mesmos atuam
na psique do indivíduo, onde problemas e soluções se relacionam. Um dos princi-
pais pontos de vista adotado por Campbell na descrição do mito era a utilização do
que o mesmo chamava de literatura do espírito, que capacitava o escritor a contar
uma história ao mesmo tempo em que harmonizava-a com a realidade, por esse
motivo não se cabe um herói perfeito, tudo aquilo que nós, seres humanos e possí-
veis heróis temos em comum, se revelam nos mitos, é a nossa busca do imperfeito
na perfeição que achamos existir, fazendo referência a Campbell na obra O poder do
Mito, Bill Moyers complementa dizendo: “(...) Todos nós precisamos contar nossa
história, compreender nossa história. Todos nós precisamos compreender a morte
e enfrentar a morte...” (MOYERS, 1985, pag. 17) precisamos naturalmente de uma
significação ao conhecimento que possuímos, precisamos compreender o que está
implícito nas entrelinhas e sobretudo necessitamos passar adiante, passar a expe-
riência do fato novo que descobrimos.
A figura do herói traz a possibilidade de melhoria, o mesmo é sempre capaz
de realizar uma ação que se difere do comum, que se eleva em relação aos outros
indivíduos, os mesmos representam o aprofundamento de si mesmos na busca da
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Além disso, não precisamos correr sozinhos o risco da aventura, pois os he-
róis de todos os tempos a enfrentaram antes de nós. O labirinto é conhecido
em toda a sua extensão. Temos apenas de seguir a trilha do herói, e lá, onde
temíamos encontrar algo abominável, encontraremos um deus. E lá, onde
esperávamos matar alguém, mataremos a nós mesmos. Onde imaginávamos
viajar para longe, iremos ter ao centro da nossa própria existência. E lá, onde
pensávamos estar sós, estaremos na companhia do mundo todo. ” (CAMP-
BELL, 1997, pag.136)
Esse padrão possibilita a escrita de uma obra capaz de fazer o leitor se sentir
atraído e curioso em relação ao desfecho, mesmo que a narrativa em questão traga
à tona tantas outras anteriores. No entanto o que se deve ter em mente é que a Jor-
nada do Herói se trata de uma forma e não uma formula, é notável essa utilização
padronizada em obras de grande sucesso, porém não se tratam de cópias idênticas,
mas de adequações feitas ao que se chama de essência. Ainda hoje, alguns escrito-
res criticam a descrição da jornada por se tratar da análise do processo de criação,
segundo os mesmos: “(...)a arte é um processo inteiramente intuitivo, que nunca
poderá ser controlado por regras inflexíveis e não deveria ser reduzido a uma fór-
mula. ” (VOGLER, 1998, pag.15) segundo o autor, esses escritores estão certos, pois
no fundo, o ato da criação parte exclusivamente do escritor, no entanto de forma
416
Estudos Literários
implícita, todos aderem e se baseiam a uma forma, iremos nos ater a isso para pros-
seguir em nossa análise.
A jornada do herói está presente na maioria das histórias, no entanto essa
aparição nem sempre remete ao padrão mais clássico, ao pé da letra, como percebe-
mos na obra de George Lucas, Star Wars (1977). Uma das obras de grande sucesso
que traz essa teoria e foi responsável por inspirar tantas outras é a intitulada A es-
pada na pedra: o único e eterno rei escrito por T. H. White (1938), que retrata nesse
primeiro livro, a saga do grande rei Arthur. O personagem principal da narrativa é
apelidado de Wart (Arthur), jovem simples, comum, que sem saber suas origens é
deixado por Merlin a Sir Ector, um cavaleiro que o cria como filho. Apesar do trata-
mento que possui, Arthur sabe que jamais irá se igualar à Kay, filho biológico de Sir
Ector, e que o máximo que conseguirá será se colocar à disposição do mesmo, e ser-
vi-lo como um simples escudeiro, tendo de deixar o sonho de ser cavaleiro. Como
um típico jovem a procura de ação, em uma de suas aventuras na floresta, Wart se
encontra com Merlin, um velho mago, que a partir daí se torna seu tutor, sendo res-
ponsável pelo seu aprendizado e desenvolvimento, segundo o personagem Merlin:
Aprender porquê o mundo gira e o quê o faz girar. Essa é a única coisa da
qual a mente nunca ficará exausta, nunca se alienará, pela qual nunca será
torturada, nunca temerá ou desacreditará, e nunca sonhará em voltar atrás.
Aprender é a única coisa para você. (WHITE, 2013)
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
pedra filosofal” e “A espada da pedra: o único e eterno rei”, como primeiros exem-
plares das séries, suas narrativas se baseiam na mostra de seus personagens prin-
cipais, nas descobertas que irão caracterizar esses personagens e os cenários onde
os mesmos irão atuar e principalmente na introdução dos protagonistas e assim
futuros grandes hérois o mundo do qual fazem parte, é inegavel que a escrita de T.
H. White influenciou fortemente os livros de Harry Potter assim como em outras
tantas obras de fantasia. Vários críticos compararam o personagem de Rowling,
AlvoDumbledore, com Merlyn, de White, caracterizando o personagem Wart seria
como antepassado em potencial de Harry.
No entanto a jornada no herói não é a única teoria encontrada na obra da au-
tora, o livro é também composto pelo chamado romance de detetive ou romance de
enigma sendo este último caracterizado justamente por sempre envolver um enigma
a ser desvendado. O gênero tem início com Edgar Allan Poe (1809-1849) que funda-
mentou e caracterizou-o em suas próprias obras, dando margem para que se espa-
lhasse e que futuramente outras ramificações do romance policial viessem a surgir.
O romance de enigma surge em uma época em que as cidades se modifica-
vam devido as indústrias, a sociedade tinha o positivismo por obrigação, os jornais
traziam histórias dramáticas, crimes sem solução e as pessoas passava naquele mo-
mento a visualizar os criminosos em sua pior imagem, era o pior inimigo social,
essa junção de fatores e a falta de confiança em seus protetores – os policiais da
época eram ex-infratores recrutados- foi a associação perfeita para o surgimento do
romance de detetive, onde um indivíduo extremamente qualificado, inteligente e
destemido era o responsável por enxergar pistas onde ninguém mais as via e assim
seguindo os enigmas, o mesmo conseguia resolver o mistério e salvar o dia. Criando
uma sequência linear, temos como o primeiro romance policial o conto intitulado
o “Assassinatos na rua Morge” (1841) que possuía em primeira mão, o discurso
diferentes das outras obras então já vistas, e se opunha aos policiais ex-condenados.
Com esssa primeira obra Poe traz a vida ao inusitado protagonista C. August Du-
pin, detetive amador que utiliza de suas investigações para passar o tempo.
Dupin prioriza o rigor lógico as conexões de pensamentos entre ele e o/os
autores dos crimes, e deve ser visto como “uma máquina de raciocínio, esse fator é
um dos caracterizantes do romance de enigma, as intuições devem ser deixadas de
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Estudos Literários
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
ele herdeiro de uma linhagem bruxa e que na verdade seus pais haviam sido mortos
pelo maior bruxo das trevas já existente, sendo ele considerado um herói no mundo
bruxo por ter sobrevivido.
Tendo em mente a caracterização do herói incluindo suas origens, partimos
para os princípios de Vogler, também espelhados em Campbell e assim encon-
tramos passos concretos que constituem a jornada do herói, começamos com o
momento em que o herói é chamado a aventura, mesmo Harry sendo um aluno “co-
mum” na escola de magia e bruxaria Hogwarts, o mesmo parece ter a intuição aflo-
rada quando se trata de situações perigosas, e mesmo com a pouca idade que tem,
o mesmo parece ser o único capaz de resolvê-las efetivamente no final, mesmo que
com ajuda. Mesmo sendo reconhecido pelos seus feitos enquanto ainda bebê, Harry
ainda se encontra relutante em aceitar ser o grande herói que todos acreditam que
ele seja, essa insegurança se estende por toda a narrativa quando o mesmo deve
lidar com situações difíceis, recusando o chamado por não acreditar que é capaz.
Assim como na história do Rei Arthur, Harry Potter também é apresentado
a um mentor, segundo Campbell: “...o primeiro encontro da jornada do herói se
dá com uma figura protetora (que, com frequência, é uma anciã ou um ancião)... ”
(CAMPBELL, 1997, pag.39), Dumbledore, atual diretor, é o encarregado de mostrar
as diretrizes de Harry enquanto sua trajetória destinada, com a sutileza necessária,
o mesmo apresenta seus conhecimentos ao menino do qual são relembrados em
momentos de perigo. A partir do momento em que o jovem garoto é exposto ao
mundo mágico, começam-se os desafios para o mesmo se adequar ao novo mundo:
“A ideia de que a passagem do limiar mágico é uma passagem para uma esfera de re-
nascimento” (CAMPBELL, 1997, pag.49), iniciando-o de fato ao mundo fantástico.
É a partir desse ressurgir que o herói defini seus inimigos, seus aliados e
começa a passar pelos testes a que é exposto. Potter luta com um troll, enfrenta
um cão gigantesco de três cabeças entres outros feitos em que mostra se diferen-
ciar dos outros alunos, segundo Campbell essa é a fase favorita do mito-aventura,
e em todas essas aventuras Harry conta com a parceria de outros dois jovens que o
acompanham fielmente até o final da trama, Hermione Granger a garota geek que
decora todos os tipos de livros e Ronald Weasley filho de uma família humilde,
assim como Harry, não possuem quaisquer que sejam as visíveis características de
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Estudos Literários
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
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Estudos Literários
retirada da mesma do cofre no banco dos bruxos, a partir daí o leitor é envolto no
enigma da pedra, Reimão já dizia: “É na esfera do raciocínio que o romance enig-
ma pretende fazer o leitor atuar, é no espaço do intelecto do leitor que o romance
enigma propõe seu desafio. ” (REIMÃO, 1983, pag.78). Os mistérios a se desvendar
se apresentam ao leitor no mesmo momento em que são descobertos pelo prota-
gonista. As pistas são postas e maneira espalhadas e cabe a Harry desvendá-las. A
atenção do mesmo é atraída no momento em que descobre que uma área especifica
do colégio está proibida aos alunos, esse interesse só aumenta quando sem querer
é informado de que um imenso cão de três cabeças se mantem aposto em uma das
salas nessa área, provavelmente guardando algo de muito valor. Como todo deteti-
ve, Harry passa a listar as possibilidades de suspeitos, uma vez que a segurança da
pedra está ameaçada, o principal deles – um de seus professores- apresenta caracte-
rísticas de ter fracassado ao tentar apanhar a joia e isso só aumenta as expectativas
de Harry de estar certo, fazendo-o investigar ainda mais.
Após chegar ao desfecho da narrativa, o detetive que nesse caso, não é expres-
so como uma simples máquina de pensar, mas como personagem real e necessário
da trama, reúne todos os fatos e chega a pré-conclusão do mistério. Junto a seus
aliados, o mesmo parte para a averiguação onde encontra a afirmação daquilo que
haviam suposto, seguindo o caminho já feito pelo criminoso, Harry vai apanhando
as evidencias e criando o correlato de suas afirmações anteriores. Suas conclusões se
mostram precipitadas ao se deparar com o real inimigo, o mesmo se trata de outro
professor que agia sob a influência do lorde das trevas e não do indivíduo a quem o
protagonista demonstra antipatia.
A título de conclusão notamos a deliberada importância de uma obra capaz
de revolucionar a literatura infanto-juvenil do nosso século, a autora J. K. Rowling,
trouxe á sua obra fantástica, a junção de enredo bem elaborado, cenário bem produ-
zido, estrutura de linguagem eficiente e o encanto que a própria fantasia em si traz.
E se tratando de encanto não podemos deixar de comentar sobre o tão co-
nhecido protagonista Harry Potter, bruxinho capaz entreter crianças, jovens e adul-
tos. Fazendo um ponte com o já tão citado Joseph Campbell temos que: “A função
primária da mitologia e dos ritos sempre foi a de fornecer os símbolos que levam o
espírito humano a avançar, opondo-se àquelas outras fantasias humanas constan-
tes que tendem a levá-lo para trás” (CAMPBELL, 1997, pag.9) não encontram-se
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
dificuldades em estabelecer uma conexão pessoal com a obra, todos nós temos um
pouco de Harry, sofremos com as mazelas da vida humana assim como ele, e o fato
de o mesmo se auto descobrir e de se reinventar em um mundo fantástico durante
o livro, nos dá a vontade de também realizar mudanças. A ambição por desvendar
mistérios é uma característica humana muito forte, o desconhecido nos atrai e é
possível enxergar isso em Harry, segundo Sandra Lúcia Reimão:
Se algo nos atrai, é aquilo que queremos ler, queremos a conexão com um per-
sonagem, com um enredo que mostra que fazemos parte daquilo, que foi feito para
nós e pensando em nós, é por isso se trata de um fenômeno que mexe com os nossos
sentidos, e que mescla o real e o sonho de uma maneira que agrada a nós “trouxas”.
Essa mescla dos diferentes traços literários abordados levou a obra de J. K.
Rowling a atingir o auge do sucesso que realmente se espera de uma grande obra
de fantasia. Se intencionou durante esta pesquisa, analisar e expor a forma como
esse sucesso se deu entremeando um balanço entre os elementos maravilhosos clás-
sicos como aborda a jornada do herói, e também as relações entre fantasia, ficção
e realidade trazidos pelo romance de enigma. É importante salientar que uma das
propostas aqui pesquisadas foi apresentar o caminho para que outros pesquisadores
possam analisar o cenário atual da literatura de Fantasia e em nenhum momento foi
intencionado a retirada de credibilidade de qualquer obra fantástica, uma vez que a
própria pesquisa se consiste na exposição de fatores em comum com outras obras e
vertentes literárias, que ajudaram na construção da mesma.
Com a complexa junção das vertentes, cenários e personagens trabalhados,
vemos como a obra inovou o gênero fantástico, dando gás não apenas para novos
leitores, mas também para que antigas obras fossem relembradas e para que novas
obras surgissem, trazendo cada vez mais a credibilidade para o fantástico.
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Estudos Literários
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425
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
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Estudos Literários
Crônica moderna:
Hibridismos entre literatura e
jornalismo
Moema de Souza Esmeraldo1
1 PUC – Rio
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
a égide do hibridismo, estaria condicionando a sua existência. Visto por outro lado,
dir-se-ia que a análise dos discursos literário e jornalístico como constituintes des-
liza em todos os discursos sobre o tema. É nessa tensão entre os discursos literário
e jornalístico, excedendo os mitos de seus constituintes, que se produzem as parti-
cularidades da crônica. O que não significa depreciar essa relação “ambígua” entre
a literatura e o jornalismo.
Em se tratando de um texto jornalístico, Jorge de Sá (2002, p. 7), no livro A
crônica, reforça essa feição:
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Estudos Literários
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
um autor que não ensina nada aos escritores não ensina nada a ninguém.
Assim, é decisivo que a produção tenha um carácter de modelo, capaz de,
em primeiro lugar, levar outros produtores à produção e, em segundo lugar,
pôr à sua disposição um aparelho melhorado. E esse aparelho é tanto melhor
quanto mais consumidores levar à produção, numa palavra, quanto melhor
for capaz de transformar os leitores ou espectadores em colaboradores. (..). Já
possuímos um modelo deste gênero, mas só lhe posso fazer aqui uma breve
referência: trata-se do teatro épico de Brecht (Benjamin, 2006b, p. 288).
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Estudos Literários
antes era, por definição, difícil de interpretar, em razão de sua estranheza que cau-
sava choque no leitor, a literatura contemporânea desperta a desconfiança do leitor
com mais repertório, sendo a sua dimensão mais complexa justamente por estar
encoberta por uma aparente simplicidade.
Dessa forma, Vera Follain Figueiredo considera que escritores reconhecidos
se encarregam da tarefa de fazer a mediação que põe em xeque a dicotomia alto/
baixo que configurou a estética moderna. Para tanto, recuperam a dimensão do pra-
zer da leitura, que, de certa forma, foi relegada até então à cultura de massa. Então,
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
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Estudos Literários
todo autor, todo escrito impõem uma ordem, uma postura, uma atitude de
leitura. Que seja explicitamente afirmada pelo escritor ou produzida meca-
nicamente pela maquinaria do texto, inscrita na letra da obra como também
nos dispositivos de impressão, o protocolo de leitura define quais devem ser a
interpretação correta e o uso adequado do texto (Chartier, 1996, p. 20).
433
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
turas” (Chartier, 1996, p. 20). Nas sociedades do Antigo Regime,2 essas intervenções
podiam ser encontradas em narrativas autobiográficas, ou em correspondências
que poderiam apresentar comentários sobre os livros lidos.
Tais demonstrações do ato de leitura corroboram a constatação de Chartier
(1996, p. 21) de que estes testemunhos de leitura em primeira pessoa podem dar
a dimensão da identidade do leitor, de suas habilidades e usos do impresso. As-
sim, com o intuito de investigar as várias formas e processos de acesso ao escrito,
considera que as aprendizagens de leitura têm um peso respectivo das estruturas
cognitivas e perceptivas do homem e do seu condicionamento histórico e social. O
efeito de “ler” uma imagem, seja uma figura ou uma composição mais complexa,
identifica-se a partir das diferenças entre tipos de percepção.
Entretanto, as estreitas relações de prática de leituras entre textos e imagens,
na tradição ocidental, incitam a colocar duas formas, em que sempre uma se excede à
outra, mas que “articulam o visível sobre o legível” (Chartier, 1996, p.22). Essas ques-
tões revelam alguns pontos que convergem com o estudo da crônica e os protocolos
de leitura desse tipo de prosa curta, produzida para jornais, e que pode ter seu su-
porte alterado quando feita sua passagem para o livro ou derivados de outras mídias.
Chartier constrói juntamente com Pierre Bourdieu (1996), no último capítu-
lo do livro já citado, um diálogo a partir da discussão sobre a leitura como prática
cultural. Chartier coloca que o problema da leitura é um bom exemplo para pensar
sobre as práticas de consumo cultural; Bourdieu distingue a posição do autor e do
leitor, na medida em que os relaciona ao escritor e ao crítico, correspondentemente.
O autor (auctor) “é aquele que produz ele próprio e cuja produção é autorizada”
(Chartier, 1996, p. 232). Por sua vez, o leitor (lector) “é alguém muito diferente, é al-
guém cuja produção consiste em falar das obras dos outros” (Chartier, 1996, p. 232).
Essa divisão seria fundamental para a divisão do trabalho intelectual entre leitor e
crítico. Desse modo, questiona-se sobre o posicionamento do leitor, no sentido de
se realizar uma escrita das práticas de leitura.
2 Chartier delimita como “Antigo Regime francês de leitura” a maneira de ler a produção impressa que igno-
ra seus suportes. Os textos são tomados como portadores de sentido indiferentes à materialidade e se prestam
a escrever a história como objeto manuscrito.
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
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Estudos Literários
3 Essa corrente de estudo se desenvolvera nos anos 1960 como um projeto de abordagem da cultura a partir
de perspectivas críticas e multidisciplinares, como observaremos com base em visões de grandes estudiosos
ingleses, a exemplo de Richard Hoggart e Raymond Williams. Os Estudos Culturais britânicos situam a cultu-
ra no âmbito de uma teoria da produção e reprodução social, especificando os modos como as formas cultu-
rais servem para aumentar a dominação social ou para possibilitar a resistência e a luta contra a dominação.
A sociedade é concebida como um conjunto hierárquico e antagônico de relações sociais caracterizadas pela
opressão das classes, sexos, raças, etnias e estratos nacionais subalternos.
Nos Estados Unidos, esses estudos aparecem na década de 1960, logo em seguida ao pós-Guerra, com o intui-
to de democratizar a cultura, como uma forma de aproximá-la dos processos sociais reais. Um dos fundadores
dessa teoria, o sociólogo jamaicano Stuart Hall, admite a influência de fatores sociais, políticos e culturais
que alteram a forma como o indivíduo recebe as mensagens. Nesse princípio, a recepção da “obra de arte” ou
do texto literário é interpretada e fundamentada a partir de outros significados, relacionados à experiência
individual e cultural.
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
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Estudos Literários
e as implicações oriundas da mudança de suporte. Assim como tem clareza que nem
sempre os leitores de jornais são leitores de livros e vice-versa. Portanto, apresentou
suas crônicas com “certa arrumação” quando passaram a circular em livro.
A coletânea de crônicas em livro, por exemplo, não é apenas uma reunião de
textos publicados anteriormente nos jornais, pois, pela sua materialidade, se dife-
rencia a recepção do texto. Ao mudar o suporte, as crônicas se distanciam do jornal
e passam a ter relação direta com o livro, estabelecendo outra sequência narrativa.
Nesse contexto, os textos escolhidos ganham autonomia e deixam de ter relação
com as matérias jornalísticas. Não estão mais sob a égide da efemeridade, tampou-
co estão disponíveis apenas para o consumo imediato. Nessa alteração de formato
material, os fragmentos antigos não se apresentam mais como antes, sendo possui-
dores de significados distintos e pertencentes a um novo formato, no caso, o livro.
Renato Cordeiro (2004), ao analisar a transposição de crônicas de João do
Rio do livro para o jornal, buscou analisar o papel da crônica moderna e do registro
das representações sociais do cotidiano do Rio de Janeiro. Para tanto, equacionou as
relações com o tempo histórico, a partir da natureza jornalística do texto, que tem
no jornal seu principal suporte. Para o pesquisador, as implicações com o tempo
e sua materialidade ganham outra significação “quando há a passagem para outro
suporte, o livro, que rearticula as crônicas, gerando outros modos de contiguida-
de” (Gomes, 2004, p. 12). Esse novo formato Gomes denomina “transmigração”, e
aponta que
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
4 Essa distinção foi possível com consulta ao Caderno de Literatura Brasileira, dedicado a Carlos Drum-
mond de Andrade, em 2012, publicação do Instituto Moreira Sales. Na série consta a relação da publicação de
toda a obra de Drummond até a data da edição do livro.
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Estudos Literários
a atenção se volta para a discussão a respeito dos meios. Não seria uma no-
vidade apontar a popularidade do alemão Hans Ulrich Gumbrecht no que se
refere à teoria da materialidade. Tal fato deve-se ao pensamento equivocado
de que seria ele um dos principais pesquisadores e precursores dos estudos
dos meios e teria sido no Departamento de Literatura Comparada na Uni-
versidade de Stanford que se desenvolveram os conceitos fundamentais da
referida teoria (Gumbrecht5 apud Novaes, 2015, p. 17).
Tanto Aline Novaes (2015) quanto Simone Sá (2004) estavam cientes da re-
levância das abordagens sobre as mudanças na percepção e da interação humana
441
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
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442
Estudos Literários
Geografia, literatura e
negritude: Ensino para a
diversidade pelo olhar de
Valentina (VASSALLO, 2007)
Mychelle Priscila de Melo1
Introdução
Esta proposta didática foi desenvolvida procurando estabelecer uma relação
entre o ensino de Geografia, a Literatura e a Negritude. Negritude é entendida como
a valorização da essência, da cultura e do modo de ser dos afrodescendentes, inclu-
sive com um ato de resistência e de oposição ao racismo (ANDRÉ, 2007). Ao obser-
var e analisar títulos de obras literárias que trazem personagens afrodescendentes
e negros, disponibilizados pelas editoras que atuam no Brasil, é comum perceber a
forma preconceituosa como o tema é tratado pelos autores, em geral, brancos.
Igualmente, ao debruçar sobre os livros didáticos de Geografia, deparamo-
nos com a invisibilidade dos negros. As referências que existem são sempre de-
gradantes e atropelam os sentidos da igualdade racial. Geralmente, os personagens
estão presentes para retratar a pobreza, escravidão, submissão, subserviência, fome,
entre outras situações. Porém, há uma emergência de pesquisase edição de obras
com prospectivas ao empoderamento dos povos negros.
A Negritude é um tema importante no escopo da ciência geográfica, contu-
do nem sempre em evidência. Temos, no Brasil, o caso do geógrafo Milton Santos,
que tratou dos temas da segregação urbana e dos lugares de negros na cidade e na
sociedade. Suas reflexões, via de regra, foram resultantes de sua própria experiên-
1 UFG/RC/PPGG, [email protected]
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
cia enquanto homem negro, pois considerava que toda a relação se dava pela pró-
pria forma e aparência do indivíduo negro, que ele veio a designar de corporeidade
(SANTOS, 1996; 1997).
Sem dúvidas, também discursou sobre negritude, afirmando não ser sua es-
pecialidade, mas resultado de sua convivência enquanto sujeito. Admitiu, sobretu-
do, que sofreu humilhações e preconceitos pelo simples fato de possuir um corpo
negro, e, por isso, possuía uma cidadania mutilada (SANTOS, 1996; 1997), não
sendo considerado um cidadão integral pela simples razão de ser um homem negro,
motivo pelo qual, em artigo publicado no Jornal Folha de São Paulo, desabafa:
[...] ser negro no Brasil é frequentemente ser objeto de um olhar vesgo e am-
bíguo. Essa ambiguidade marca a convivência cotidiana, influi sobre o debate
acadêmico e o discurso individualmente repetido é, também, utilizado por
governos, partidos e instituições. (SANTOS, 2000 – Jornal Folha de São Pau-
lo – Caderno Mais, 07 mai.)
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Estudos Literários
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Há geografia em Valentina
Valentina, personagem criada por Márcio Vassallo (2007), é uma princesa
negra que habita um castelo, vizinho de outros castelos, em uma favela de um dos
morros do Rio de Janeiro. Ela mora com os pais, que a consideram uma princesa,
aos quais ela os tem como rei e rainha do castelo em que vive. Seus pais trabalham
fora para garantir o sustento da casa e a princesa não entende o motivo de tal neces-
sidade, uma vez que ocupando este papel majestoso, era incompreensível para ela
essa ausência do castelo e a necessidade do trabalho.
O fenômeno natural do pôr do sol, o horário comercial, o subir e descer do
morro, são trabalhados poeticamente pelo autor, que conduz o leitor diante destes
processos comuns da vida, para uma plataforma elevada de contemplação, desde
os olhos, coração e mente de Valentina. Esta vive em um ambiente sublimado, em
companhia de sua tia muito magra, e em alguns momentos, filosofa sobre pobreza,
riqueza, moda, entre outros assuntos.
Valentina é vestida pelo autor com roupas descoladas, usa tênis cano alto e
enfeites feitos com plástico, além de usar óculos grandes e redondos, e como toda
princesa tem uma sua coroa, a de Valentina é feita de jornal. Ela orgulha-se de ser o
que é e não gosta das roupas que usam as princesas da orla da praia da cidade, e ela
ainda diz que todas se parecem e usam roupas iguais.
Seus costumes e pensamentos encarnam uma idealização do mundo da fave-
la em que o amor familiar é o mesmo que há, se há, em todos os lugares. No castelo
de Valentina o amor da família é a base da felicidade. E, por isso, mesmo Valentina
não aceita a ausência dos pais para irem trabalhar na cidade, para fazer de Valentina
um alguém na vida. Ela nega-se a aceitar isto, pois já se considera alguém. Valentina
já é, não virá a ser.
De um modo prático e romântico, Vassallo (2007) e Valentina questionam
as relações de trabalho como fator de separação das crianças dos seus pais. Porém,
é preciso trabalhar para se reproduzir socialmente. Valentina parece preferir um
mundo sem trabalho e sem sofrimentos, onde as pessoas não são sentenciadas pela
cor da pele que possuem. Prefere entender que a violência e os barulhos das armas
dos que tem poder, são comemorações de eventos cheiros de alegria.
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Estudos Literários
Assim, até as frestas que tem em sua casa, feitas por tiros das armas dos po-
derosos, tornam-se ambientações em cujos buracos pode-se contemplar a lua e as
estrelas. Esta é Valentina, representada por tantas crianças do mundo real, inseridas
em uma sociedade preconceituosa, discriminante e segregadora, mas que emerge
dos sonhos e fantasias para reivindicar a presença e a incorporação dos negros na
sociedade brasileira.
Feito este breve relato de Valentina (VASSALLO, 2207), serão apresentadas
as análises do texto e os caminhos encontrados nas palavras do autor para fazer a
transposição didática, para o preparo de algumas aulas para alunos do Ensino Fun-
damental I. Logo no primeiro parágrafo da obra já nos deparamos com algumas
expressões literárias e poéticas, que podem ser direcionadas à inserção e estudos de
temas geográficos.
Esta mescla ente Literatura e Geografia e vice-versa, contribui para a cons-
trução de uma metodologia para o ensino de Geografia através de abordagens pou-
co usuais no Ensino Fundamental em geral. Quando o autor expressa frases como:
“[...] na beira do longe [...]” e “[...] depois do bem alto [...]” (VASSALLO, 2007, p.
4), surgem possibilidadespara trabalhar com as crianças os conceitos de altitude,
longitude, latitude (categorias chamadas de coordenadas geográficas) e as escalas,
para que o aluno comece a ter contato com as distâncias, a fim de ter noção do que
é perto, longe e alto.
Embora sejam conceitos produzidos pela ciência, são, também, percepções
de cada sujeito a partir da experiência da corporeidade e da descentração de si ao
ter contato com os objetos e lugares. Sensações como a observação, a percepção, a
análise conceitual e a síntese, através das representações cartográficas, por exemplo,
possibilitam pensar significativamente o espaço geográfico vivido.
As frases “[...] passavam o dia todo fora de casa [...]” e “[...] precisavam tra-
balhar [...]” (VASSALLO, 2007, p. 4), também no primeiro parágrafo, expressam
a condição social dos pais de Valentina, visto que eles eram obrigados a trabalhar
em tempo integral para sobreviver. Esta situação da personagem possibilita a con-
textualização com a realidade dos alunos. A proposta é a de debater com os alunos
sobre as questões do trabalho assalariado, como é a vida nas condições sociais de
pobreza, a importância do convívio familiar, a educação dos pais e as consequências
na formação do caráter de uma criança quando seus pais são ausentes.
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
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Estudos Literários
Prosseguindo com a leitura da obra, os termos “[...] descer [...]” e “[...] subir
[...]” (VASSALLO, 2007, p. 4), aparecem como representação da rotina vivida pelos
pais da princesa e o local em que estão inseridos: a favela. No contexto da obra lite-
rária, várias músicas que remetam à vida na favela ou à discriminação dos negros,
também podem ser exemplos de proposta, diferentes do fluxograma, que enfatizem
de forma poética o cotidiano de quem vive no morro, além de uma forma de inter-
disciplinaridade.
Na paisagem urbana a favela pode ser classificada como uma área de segre-
gação social, por aqueles que não vivem lá. Mas para aqueles que estão na favela, ali
está o umbigo dos seus mundos, cheio de tudo, lutas, amores, misérias e felicidades.
É um mundo com uma rotina diferente do restante da cidade, por isso requer com-
petências outras que não se demandam ao seu redor.
Outra abordagem que se encaixa perfeitamente em sala, a partir dos termos
literários que dizem respeito à estrutura dos complexos periféricos, é o estudo do
relevo brasileiro, sua classificação, as influências no clima, a geografia física - mon-
tanhas, escarpas, falhas, dobras, depressões, planícies e planaltos, pontos culminan-
tes do Brasil, erosão, dentre outros.
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Estudos Literários
tros temas também podem ser levados para a sala de aula, a fim de demonstrar aos
alunos os principais processos naturais de desestabilização de encostas.
A expressão “[...] o castelo de Valentina tinha brilho que transbordava da
sombra [...]” (VASSALLO, 2007, p. 12), revela o quanto os sentimentos puros da
princesa prevalecem sobre todos os problemas encarados pelos moradores de uma
favela, mesmo morando em casa com “[...] porta de asa aberta [...]” (p. 12), ou seja,
uma casa sem portas. Para Valentina, não importa o quão humilde seja sua casa,
pois os sentimentos que ela despejava sobre seu lar fazia com que tudo à sua volta
se tornasse um reino. E esse era seu lugar, tanto que, para ela, sua cama tinha “[...]
cheiro de abraço amarrotado [...]” (p. 12), demonstrando o enorme afeto por cada
detalhe, cada cantinho em sua casa.
As janelas da casa tinham “[...] vista para dentro e cortina que abria ideia
[...]” (VASSALLO, 2007, p. 12). Entende-se aí que o ambiente permitia à princesa
liberar sua imaginação, pois o quarto não possuía janelas, assim como as alcovas,
o que impede a ventilação e permite a presença do mofo. Mesmo assim, Valentina
conseguia ver “[...] um monte de outras paisagens de caber suspiro [...]” (p. 12), e
novamente surge a possibilidade de trabalhar mais uma categoria espacial geográfi-
ca com os alunos do Ensino Fundamental I: a paisagem.
451
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Neste sentido, pedir aos alunos que descrevam como eles entendem determi-
nada paisagem, ou que é uma paisagem para eles, utilizando o quadro acima pro-
posto para registrar suas percepções, é uma maneira interessante de abordar con-
ceitos que exploram todos os sentidos, a memória, o diálogo, e outras possibilidades
que o professor achar pertinente para o momento. Uma outra atividade interessante
como proposta metodológica para os alunos seria pedir para eles pensarem em um
dos trajetos que fazem diariamente até a escola, por exemplo, e desta experiência
extraírem o que conseguirem descrever.
A paisagem é tudo aquilo que enxergamos, incluindo também os cheiros,
sons, cores e texturas. Conseguimos através dela, experimentar as sensações a partir
da descrição, e com isso o sujeito relaciona-se com a paisagem em seu movimento
cotidiano do ir e vir, do subir e descer, onde quer que esteja. A forma afetiva do
lugar é um elo importante para inserir conceitos espaciais para os alunos do Ensino
Fundamental I. Estabelecer diretrizes para que o aluno comece a desenvolver seu
senso crítico a partir de um simples desenho da rua onde ele mora, é essencial para
a compreensão da dinâmica de toda a superfície terrestre.
A expressão “[...] longe de tudo [...]” (VASSALLO, 2007, p. 10), que revela a
periferia como um lugar afastado do centro, tal como é na vida real, concretiza a
sensação de que é um lugar ruim para morar, trabalhar, viver; porém mesmo quan-
do os “[...] dragões do lugar apavoravam todo mundo e cuspiam fogo e barulho
para todos os lados [...]” (p. 10), a união e o amor da família acabam derrubando
qualquer apavoramento.
O complexo periférico é altamente abrangente e nele existe uma estrutura
social com imensas diferenças internas. A maioria dos seus habitantes são trabalha-
dores ou desempregados, e uma outra parcela dedica-se às atividades criminosas. A
violência, os conflitos entre bandidos e policiais, que rondam a periferia com muito
medo e desespero, também se tornam temas para serem abordados em sala de aula.
Grande parte dos seus moradores é negra, ou quase negra, e para as classes
médias mais reacionárias, favela é lugar de marginal, de gente que não presta. Esta
mesma gente não tem qualquer cerimônia em explorar o trabalho dos que lá vivem.
A fim de romper com esse pré-conceito de que favela é lugar só de marginalidade,
medo e tristeza, Márcio Vassallo (2007) descreve o “[...] Tudo [...]” (p. 10), como
452
Estudos Literários
sendo o centro de uma grande cidade, mas para a princesa, o Tudo é a periferia
onde ela vive, valorizando suas raízes e passando para o leitor uma imagem positiva
desse lugar.
Outro tema que também está presente na obra é a fome - subnutrição da
classe pobre versus obesidade da classe média a alta. Quando a obra revela que
quem toma conta de Valentina é a tia, “[...] uma donzela de costela aparecida [...]”
(VASSALLO, 2007, p. 8), isso nos remete à uma pessoa magra, cuja origem pode es-
tar nas dificuldades, por serem mal remunerados, que enfrentam para saciar a fome.
É essencial explicar aos alunos sobre esta fome, decorrente de pessoas que
ficam desempregadas, ou que tiveram seus salários reduzidos, ou qualquer outro
fator que as sujeite a situações precárias e agravamento da falta de condições para
alimentar-se com suficiência. Da mesma maneira que os pais da princesa precisa-
vam trabalhar, e ela ficava aos cuidados da tia “[...] com voz de buzina [...]” (VAS-
SALLO, 2007, p. 8), na nossa realidade atual acontece o mesmo, sendo que os pais,
pobres, deixam suas crianças com avós, tios, irmãos, amigos, até mesmo vizinhos,
para conseguirem trabalhar fora de casa e manter o sustento de toda a família.
A produção para o mercado externo vem crescendo cada vez mais enquanto a
diversidade da produção de alimentos dirigida ao mercado interno tem diminuído,
sendo de importância secundária. Paralelamente a isso, milhões de pessoas vivem
em favelas, assim como a Valentina, na periferia das grandes cidades, como São Pau-
lo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, entre outras. As migrações
internas são problemas gerados dentro do território nacional, pois as pessoas des-
locam-se em busca de oportunidades e de superação da situação de miserabilidade.
Nos grandes centros, essas pessoas vão exercer funções mal remuneradas,
inclusive em empregos informais. Quase toda a família trabalha, em alguns casos
inclusive as crianças, frequentemente durante o dia inteiro, e alimentam-se mal,
raramente ingerindo o suficiente para repor as energias desprendidas. Neste ciclo
vicioso, cada vez mais famílias se aglomeram nas cidades, sendo vítimas da pri-
vação/subministração de alimentos, a maléfica subnutrição, também chamada de
fome oculta, caracterizada quando os sujeitos comem apenas alimentos energéticos
e não ingerem proteínas e vitaminas.
453
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Mesmo a tia de Valentina parecendo ser uma pessoa chata, magra, sofrida, re-
clamona e que gosta de gritar, o amor que ela tem pela princesa parece ser extrema-
mente importante para a definição do caráter da princesa. É um sentimento valioso,
de quem cuida dela e de quem não tem palavras para expressar o quanto sua beleza
é expressiva, mesmo em um país onde o padrão de beleza negra não é valorizado.
As características físicas descritas na obra, ainda podem revelar traços im-
portantes de uma criança que sabe superar obstáculos que vão surgindo ao longo da
vida. Valentina “[...] tinha orelha de abano para escutar cochicho de nuvem e perna
comprida para pular pensamento [...]” (VASSALLO, 2007, p. 8), e essas duas expres-
sões aparecem como um exemplo de superação num mundo racialmente dividido.
Crianças com orelhas de abano sofrem bullyingnas escolas e carregam con-
sigo um sentimento de rejeição, assim como as pernas compridas aparentemente
muito magras, que também é motivo de chacota por outros colegas. Cristina Klein
(2011) escreveu uma obra intitulada Bullyingna escola – chacota das orelhas de aba-
no, que retrata a estória de um aluno chamado Bruno que tinha orelhas de abano.
Ele sofria muito com os apelidos que os colegas lhe impunham, até que sua mãe,
juntamente com a escola, uniu forças e venceu o preconceito.
É uma outra proposta interessante, assim como as outras obras escritas por
esta autora, como partes da coleção que trabalha sobre os diversos tipos de bullyin-
gem ambiente escolar. Klein (2011) aborda em sua coleção, temas como o precon-
ceito racial, a agressão física e verbal, o preconceito religioso, roubo de materiais
escolares, preconceito físico, regional, combate à dengue, maledicência e fofocas,
dentre vários outros livros que a autora escreveu para as crianças vencerem seus
obstáculos, aprendendo valores e superando preconceitos.
Na obra Valentina, de Márcio VASSALLO (2007), essas características são
po-eticamente descritas justamente para reafirmar o que a sociedade critica e rejei-
ta. As orelhas de abanosão, na verdade, um privilégio para quem as tem, pois serve
apenas para ouvir coisas boas e as pernas compridas para pular obstáculos, superar
problemas e vencer preconceitos.
A visão que a princesa tem do “[...] lá embaixo [...]”, [...] o tal lugar [...]”
(VASSALLO, 2007, p. 12) que representa o centro do Rio de Janeiro, sugere que
Valentina é uma criança que não tem contato com a mídia. Na casa dela, assim co-
454
Estudos Literários
Valentina (VASSALLO, 2007) não tem título de nobreza, mas é uma prin-
cesa porque a fantasia é criada a partir de seu olhar com relação à sua realidade e
porque seus pais a tratam como tal, dentro de suas limitações e possibilidades. O
455
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Considerações finais
As relações entre Geografia, Literatura e Negritude, e as análises feitas através
da obra Valentina (VASSALLO, 2007), compreendem a possibilidade de desenvol-
vimento de diferentes metodologias de ensino a partir de textos não-convencionais,
tornando o processo de ensino e aprendizagem mais próximo ao cotidiano e mais
interessante aos alunos, aqui considerados os do Ensino Fundamental I.
Da mesma forma que construímos temas e conceitos geográficos inspirados
em uma obra literária, há inúmeras outras possibilidades para se conduzir uma aula
voltada à promoção de uma educação intercultural. Esta proposta, baseada no res-
peito aos valores do outro, evidencia, com embasamento teórico, a real necessidade
de reposicionamento do negro no espaço. É necessário que todos nós pensemos
em uma educação pautada na autorreflexão crítica, que represente a resistência e
a oposição ao estágio de incertezas e desequilíbrios sociais onde se ressalta a desi-
gualdade social.
Foi constatado que a Geografia e a Literatura podem considerar a temática
negra nas escolas; e, mais do que isso, a Geografia pode utilizar a Literatura Infantil
da negritude para trabalhar seus conceitos. A fim de ancorar o processo de enfren-
tamento do preconceito étnico-racial, subjacente à formação da identidade dos su-
jeitos negros, todos nós podemos estar aliados à produção e reprodução de lugares
que preze a luta pela desconstrução do racismo e das demais formas de segregações.
É importante que desenvolvamos propostas metodológicas que incluam o negro
nos currículos escolares, visto que há escassez de obras com personagens negros
em evidência.
Mais importante que os métodos de ensino, é a escola colocar em prática
durante todo o ano letivo atividades que conduzam o respeito às diversidades, o in-
centivo à integração dos alunos, enfim, que reforcem a importância da manutenção
da igualdade em meio às diferenças. Esta foi e é a grande finalidade deste estudo:
456
Estudos Literários
propor estratégias de ensino de Geografia, que ao mesmo tempo contribua para en-
frentar a desigualdade racial, a invisibilidade do negro na nossa sociedade e utilizar
outras fontes de saberes para dialogar com a Geografia.
Referências
ANDRE, M. C. Psicossociologia e negritude: breve reflexão sobre o “ser negro” no Brasil.
Bol. - Acad. Paul. Psicol., São Paulo , v. 27, n. 2, dez. 2007.
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2001.
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MACHADO, A. M. Menina Bonita do Laço de Fita. São Paulo: Ática,1994.
MANDELA, N. Meus contos africanos. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
PINTO, Z. A. O menino marrom. São Paulo: Melhoramentos, 2012.
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IMESP, 1996/1997, p. 133-144.
______. Ser negro no Brasil hoje. IN: Jornal Folha de São Paulo – Caderno Mais, 07 mai.
1997. São Paulo.
VASSALLO, M. Valentina. 1 ed. São Paulo: Global, 2007.
457
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
458
Estudos Literários
5 O pathos é a fonte das questões e estas respondem a interesses múltiplos, dos quais são provas as paixões,
as emoções ou simplesmente as opiniões (MEYER, 2007, p. 36).
6 Texto na íntegra no link http://www.mac.usp.br/mac/templates/projetos/educativo/paranoia.html.
7 BATISTA, 2006, p. 17.
8 Expressão de Mário da Silva Brito (BATISTA, 2006, p. 17).
459
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Retórica da Pintura
Compreenderemos aqui a pintura como um texto retórico dotado de per-
suasão. Pois, conforme Ferreira (2010, p. 49), “todo discurso é, por excelência, uma
construção retórica, uma vez que procura conduzir o auditório numa direção deter-
minada e projetar um ponto de vista, em busca de adesão”.
A pintura pode se manifestar retoricamente por meio de sua função estéti-
ca, agindo por meio de recursos estilísticos, linguísticos e retóricos para despertar
paixões (pathos) e transmitir sentidos diversos por meio do seu discurso (logos). O
logos se refere à linguagem ou à imagem utilizada no discurso, a mensagem que se
passa para o auditório. Conforme Meyer:
Dessa forma, por meio do logos, ou seja, por meio do discurso utilizado o
orador persuade seu auditório e, faz isso com a utilização de conceitos e técnicas
460
Estudos Literários
retóricas, já que como prega Aristóteles (2015, p. 62) o grande formulador da teoria
retórica, “entendamos por retórica a capacidade de descobrir o que é adequado a
cada caso com o fim de persuadir”.
Carrere e Saborit correlacionam três concepções irrefutavelmente inter-re-
lacionadas: retórica, pintura, linguagem. Pois, para analisarmos nosso objeto de
estudo, o observaremos como texto (linguagem) e, Meyer nos ampara discorrendo
sobre a necessidade de uma mídia, ou linguagem, com a qual se propaga o discurso,
e essa mídia é sempre uma linguagem que pode ser “falada ou escrita, mas também
pictórica ou visual” (MEYER, 2007, p. 22, grifo nosso).
A pintura como linguagem é provida de efeitos de sentido que expressam
algo intencional ou não do seu pintor, o qual o chamaremos aqui de orador ou ethos,
pois esse diz respeito ao caráter, honra, ou virtude atribuídos ao orador do discurso.
Dessa forma Meyer (2007, p. 26), profere que, do ponto de vista do orador, o deter-
minante para o discurso é se ele agradará o auditório e a maneira utilizada para esse
intuito, pode ser tanto por meio de um discurso agradável ou belo, como por meio
de um argumento racional. Ela desperta emoções e sentimentos no espectador ou
auditório, pois, conforme Reboul quando se argumenta é necessário que haja al-
guém que seja o ouvinte, e como já dito, na teoria retórica, esse alguém é o auditório.
Para Carrere e Saborit (2000, p. 172) não há espectador inocente, ou seja, não
há auditório inócuo, e toda significação de qualquer espetáculo visual do mundo na-
tural ou artificial se produz como resultado de complexas cooperações, com o con-
junto de experiências visuais que o tenha precedido e que o rodeiam, tanto mediante
incorporação consciente como por sua posterior automatização inconsciente.
Ainda para os autores, o primeiro efeito que pretende toda pintura consiste
em persuadir o espectador de sua própria beleza, valor, condição artística (segundo
os paradigmas vigentes em distintas épocas), e desse modo, apresentar-se a si mes-
ma como objeto valioso, portador de conhecimento, transmissor de prestígio, se-
gundo a doxa da época, isto é, as tradições e opiniões vigorantes naquele momento
histórico, cultural, social.
A beleza ou o mover, despertar dos ânimos, ou das paixões se configura como
a função de movere, que faz parte das três ordens de finalidade descritas por Ferrei-
ra. E que conforme o autor (2010, p. 16) possui o intuito de “comover, atingir os sen-
timentos. É o lado emotivo do discurso, aquele que movimenta as paixões humanas”.
461
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Pathos
A exposição de Anita Malfatti, ocorrida em 1917, reverberou em uma grande
polêmica artística, ocasionando o despertar de paixões das mais diversas, atingindo
dois auditórios distintos, os que se indignaram com a audácia da artista e os que a
apoiaram, pois ela trouxe a arte nova para o auditório da época.
O pathos, conforme Meyer (2007, p. 36) é a “fonte das questões e estas res-
pondem a interesses múltiplos, dos quais são provas as paixões, as emoções ou sim-
plesmente as opiniões”.
Para o filósofo Aristóteles (2015, p. 116) “as emoções são as causas que fazem
alterar os seres humanos e introduzem mudanças nos seus juízos, na medida em
que elas comportam dor e prazer, tais como a ira, a compaixão, o medo, e outras
semelhantes e suas contrárias”
Ainda para o estagirita9 (2015, p. 63, grifo nosso), “persuade-se pela dispo-
sição dos ouvintes quando estes são levados a sentir emoção por meio do discurso,
pois os juízos que emitimos variam conforme sentimos tristeza ou alegria, amor
ou ódio”.
Como exemplo de pathos de amabilidade pela artista temos o livro Cartas a
Anita Malfatti (1989) elaborado também pela historiadora Marta Rossetti, com um
compêndio de cartas inéditas trocadas entre a artista e o autor brasileiro Mário de
Andrade, importante modernista da literatura e um dos precursores no movimento
modernista literário brasileiro, que se tornou amigo de Malfatti após sua exposição
e devido a ela.
O autor defendeu a beleza das obras de Malfatti, por meio de seus artigos sobre
o modernismo no Brasil, e na tentativa de avaliar seu sentir sobre a exposição expôs:
Se Anita Manfatti vê uns cabelos brancos e neles sente o verde frustrado das
esperanças partidas, respeite a sua comoção, a sua fantasia e será grande
como foi pintado esse quadro forte. Será incompreendida pelos que só con-
seguem ver cabelos negros, loiros, brancos, ou castanhos, mas despertará um
pensamento vivaz, uma comoção mas funda naquele que souber elevar-se até
462
Estudos Literários
a idade da artista. Mais vale dois a sentir, que a multidão a aplaudir (BATIS-
TA, 2006, p. 273, grifo nosso).
Para Dondis (2007, p. 64), “a cor tem afinidade com as emoções”, sendo, por-
tanto, instigadora do pathos, despertando paixões no auditório. Por conseguinte, a
autora ainda completa:
Já Abreu (2002, p. 31) confirma que “alegria, tristeza, raiva, medo e amor
são nossas cores emocionais básicas”. Dessa forma fica perceptível como a cor se
impregna de conhecimentos, recurso estilístico e retórico bastante utilizado por
Malfatti e movimento artístico denominado fauvismo, pois se utiliza das cores de
forma exacerbada com o intuito de evidenciar sentimentos.
As cartas trocadas entre Mário e Anita revelam uma fase preciosa do mo-
dernismo literário, plástico brasileiro e musical brasileiro, além de contribuir com
a verificação das emoções e opiniões10 despertadas no auditório da época. Além de
haver notícias vinculadas em jornais com falas de autores e modernista, tais como
Oswald de Andrade, Tarsila de Amaral e Menotti.
O escritor Mário de Andrade, em 1917, diria “Parece absurdo, mas aque-
les quadros foram a revelação. E ilhados na enchente de escândalo que tomava a
cidade, nós, três ou quatro, delirávamos de êxtase diante de quadros chamados o
homem amarelo, a mulher do cabelo verde” (BATISTA, 2006, p. 167).
Já em 1928, Mário de Andrade discorreria sobre como Malfatti renovou os
ares da arte, por meio da sua exposição:
463
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
duma sensibilidade vasta, ela foi a primeira entre nós a sentir a precisão de
buscar os caminhos mais contemporâneos da expressão artística, de que viví-
amos totalmente divorciados, banzando num tradicionalismo acadêmico que
já não correspondia mais a nenhuma realidade nem brasileira nem interna-
cional (BATISTA, 2006, p. 361).
Encerra-se hoje a exposição da pintora paulista sra. Anita Malfatti, que du-
rante um mês levou ao salão da Rua Líbero Badaró, 111, uma constante ro-
maria de curiosos.
Possuidora de uma alta consciência do que faz, levada por um notável ins-
tinto para a notável eleição dos seus assuntos e da sua maneira, a brilhante
artista não temeu levantar com seus cinquenta trabalhos as mais irritadas
opiniões e as mais contrariantes hostilidades. Era natural que elas surgissem
no acanhamento da nossa vida artística. A impressão inicial que produzem
os seus quadros é de originalidade e de diferente visão. As suas telas chocam
o preconceito fotográfico que geralmente se leva no espírito para as nossas
exposições de pintura. A sua arte é a negação da cópia, a ojeriza da oleografia.
464
Estudos Literários
A realidade existe mesmo nos mais fantásticos arrojos criadores e é isso jus-
tamente o que os salva.
11 Arte acadêmica ou academicismo, termo ligado às academias de artes plásticas, onde a criação era pau-
tada na forma artística predeterminada, padronizada e ancorada no ensino prático.
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Dessa forma, O Homem Amarelo é uma das obras que, com mais 52, recebeu
elogios e censuras, despertando pathos de ira, cólera, ódio e até inveja, além de de-
466
Estudos Literários
voção, amabilidade, amizade e amor por parte dos críticos e modernistas da época,
e ressalta-se pelo mesmo motivo; por insipiência da obra.
A obra possui cores da paleta amarela e tons fortes em sua composição, con-
tornos grossos no estilo de traço, que remetem a dois movimentos plásticos: o Fau-
vismo, que se utiliza das cores de forma não naturalista e, o Expressionismo, que se
utiliza de distorções e deformações. A obra possui intertextualidade por derivação
com a obra de Edvard Munch, “O grito”. Nesse sentido, a obra revela a intenção de
Malfatti em apresentar para o auditório brasileiro um novo padrão estético, e com
isso se opõe à doxa da época e reorganiza os valores plásticos de tal sociedade.
As cores fortes do rosto fazem crer que há algo que esse homem está impos-
sibilitado de expressar, dessa forma os seus olhos assumem um profundo sentimen-
to infausto, saudoso e desesperado, olhos que possuem um fundo amarelado, como
alguém que tenha chorado ou que algo tenha caído em seus olhos; Indumentária
utilizada pelo modelo da pintura sugere formalidade, contudo a roupa se mostra de
forma puída, já a pose, retesada e a expressão, nostálgica. As cores fortes, marca da ar-
tista, e a forma de transportar a imagem para fora dos limites da tela revelam ou evo-
cam poder e esteticamente se distingue do que se esperava de uma pintura da época.
Oswald de Andrade se refere também à Lalive (Fig. 2),pintura de uma mu-
lher, em grandes proporções elaborada com
a finalidade de participar do Salão de Belas
Artes, no Rio de Janeiro, e que por isso, pos-
sui elementos que demonstram o quanto a
pintora se conteve nos traços sintéticos e su-
cintos, nas cores mais brandas e suaves, tu-
do elaborado para ser aceita e, assim, expor
a tela; e, por fim, Paisagem de Santo Amaro,
que conforme Oswald, evoca tragicamente e
grandiosamente a terra brasileira, tendo as-
sim, uma temática nacionalista.
467
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
A Lalive foi enviada para o Salão Nacional de Belas Artes, em 1917, para
ser aprovada e expor sua individual, possui a temática predileta de Malfatti e sem
as preocupações nacionalistas do momento. Malfatti se contém nessa pintura em
relação as abstrações, as deformações, e também à cor, recorrendo ao mais suave
e a uma cor não utilizada até então: a cor rosa do vestido. Ela se adapta, utilizando
forma sucintas na composição e estrutura e dando concessões à decoração e à “sua-
vização”. As pinceladas são luminosas e há a colocação de enfeites como o colar e
ramagens no sofá. Nos comentários sobre Lalive, na exposição, fizeram um trocadi-
lho com o nome da artista, A. Malfatti / A mal feita.15
A paixão suscitada pelo artigo de Oswald de Andrade é a paixão do amor ou
amizade. Meyer, no prefácio do livro Retórica das Paixões, de Aristóteles (2000, p.
XLIV), elucida que “o amor, ou amizade, é certamente um vínculo de identidade
mais ou menos parcial. É o próprio lugar da conjunção, da associação – ao contrário
do ódio, puramente dissociador”.
Nesse ínterim, percebemos pelo discurso proferido, que o amor ou amizade
se caracteriza por um vínculo com outrem, o que o filósofo Aristóteles complemen-
ta dizendo que “amar é querer para alguém aquilo que pensamos ser uma coisa boa,
por causa desse alguém e não por causa de nós” (ARISTÓTELES, 2015, p. 124).
Para o filósofo Aristóteles o pathos do amor e do ódio são simétricos, assim
como a da calma e a da cólera, e evidenciam a proximidade existente entre os indi-
víduos e, como Aristóteles mesmo elucida, a distância se torna insignificante.
15 BATISTA, Marta Rossetti. Anita Malfatti no tempo e no espaço: Biografia e estudo de obra. São Paulo: Ed.
34; Edusp, 2006, p. 186.
468
Estudos Literários
A cólera é o desejo de causar desgosto, mas o ódio, o de fazer mal, visto que o
colérico quer notar o desgosto causado, enquanto ao que odeia nada importa.
As coisas que causam desgosto são todas perceptíveis, as que acarretam os
maiores males são as menos perceptíveis: a injustiça e a insensatez, pois a pre-
sença do vício não nos causa nenhum desgosto (ARISTÓTELES, 2007, p. 29).
469
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
[...] A única diferença reside em que nos manicômios essa arte é sincera, pro-
duto lógico dos cérebros transtornados pelas mais estranhas psicoses; e fora
deles, nas exposições públicas zabumbadas pela imprensa partidária, mas
não absorvidas pelo público que compra, não há sinceridade nenhuma, nem
nenhuma lógica, sendo tudo mistificação pura (BATISTA, 2006, p. 223-224).
Embora eles se dêem como novos precursores duma arte a ir, nada é mais
velho de que a arte anormal ou teratológica: nasceu com a paranóia e com a
mistificação. De há muitos já que a estudam os psiquiatras em seus tratados,
documentando-se nos inúmeros desenhos que ornam as paredes internas
dos manicômios. A única diferença reside em que nos manicômios esta ar-
te é sincera, produto ilógico de cérebros transtornados pelas mais estranhas
psicoses; e fora deles, nas exposições públicas, zabumbadas pela imprensa e
absorvidas por americanos malucos, não há sinceridade nenhuma, nem ne-
nhuma lógica, sendo mistificação pura [...].
470
Estudos Literários
471
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
p. VIII
472
Estudos Literários
Figura 5 – O japonez. Fonte: Batista, 2006, p. VIII. Figura 6 – A estudante russa. Fonte: Batista, 2006, p. V.
Considerações finais
Malfatti se utilizam da explosão de cores e contornos expressivos para trans-
mitir sentimentos e emoções, o que pode ser analisado em todas as pinturas da
exposição de 1917.
A artista convida ao conotativo, ao figurativo, à imaginação, pois transporta
os seus personagens para fora das telas, de forma agressiva e também enfática, se
utilizando de recursos pictóricos, estilísticos, retóricos e linguísticos para persuadir
e despertar o pathos do auditório da época.
O público recebeu a exposição de maneiras diversas, se dividindo em dois
grandes conjuntos de resposta àquele discurso. O auditório que se maravilhou com
tais obras e se descobriram amando, admirando, em êxtase. Sendo levados às paixões
de amizade, amor, admiração, devoção, amabilidade por Malfatti e por sua obra.
Contudo, houve o auditório composto dos que não compreenderam e se de-
sestabilizaram, pois foram tocados em suas paixões de ira, cólera, ódio e até inveja.
473
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Referências
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Alberto e Abel dos Nascimento Pena. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2015.
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Fig. 1: A tentação de São Jerônimo. Belles Heuresde Jean, Duque de Berry, iluminada pelos irmãos Limbourg
(c. 1406-1407). Metropolitan Museum of Art, New York, Cloisters Collection (54.1.1, fo. 186r). A vida no
deserto e a sua vasta solidão calcinada, morada selvagem para os eremitas, fizeram São Jerônimo fantasiar-
-se entre os prazeres de Roma. A imagem sintoniza essa projeção mostrando a tentação de São Jerônimo
por donzelas nubentes dançando de forma insinuante, conforme ele mesmo escreve em sua Epistola 22,
ad Eustochium [Carta 22, a Eustóquio], datada de 384. Disponível em: <http://www.artisoo.com/st-jerome-
-tempted-by-dancing-girls-p-89361.html>. Acesso em: 08 ago 2016. Disponível em: <http://www.cgfaonline-
artmuseum.com/limbourg/p-bfol186.htm>. Acesso em 8/8/2016.
Outro topos da misoginia medieval, que pode ser situado ao lado do traiçoei-
ro olhar da mulher, era-lhe a atribuição do defeito de ser detentora de uma copiosa
e extravagante compulsão para falar, a exemplo do que expõe o livro intitulado The
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Estudos Literários
Wife of Bath (A esposa de Bath), de Geoffrey Chaucer (c. 1343-1400). Curioso, mas
intrinsecamente explicável dentro das premissas do androcentrismo, é o fato nota-
do de que, associada a essa incontinência verbal, encontra-se outra compulsão pela
qual o feminino era acerbamente censurado e controlado, qual seja, a sua imputada
prodigalidade erótica.
Entretanto, a ascética obsessão de condenar as mulheres de verem e de serem
vistas constituiu um intrigante paradoxo bastante em voga no século XII, qual seja,
a prática de uma adoração cortês e ideal da mulher concomitante à acerba denega-
ção de sua realidade material. Nesse caso, é de se considerar se esse medo do po-
der de erotização e de prodigalidade sexual da mulher não se relacionava com um
complexo de inferioridade do homem, sendo para a sua autoimagem masculinista
simplesmente mais conveniente degradar as mulheres ao nível das mais indecentes
criaturas libidinosas.
Ideias desse tipo, e de que a luxúria do amor efeminava os homens, compa-
recem com incrível insistência no pensamento medieval, a exemplo, do que dizem
Santo Isidoro de Sevilha, em suas Etymologiae; Jehan Le Fèvre (séculos XIV-XV),
em seu livro intitulado Les Lamentations de Matheolus (As lamentações de Mateolo)
(c. 1371-72) e André Capelão (séculos XII-XIII), em seu livro intitulado De amore
(Sobre o amor).
Esse equacionamento aristotélico da mulher ao corpóreo fazia dela, segundo
a ordem política masculinista, apenas suficiente para pequenos bons conselhos e
tomadas de decisão imediata.
É bastante conhecida a redução aristotélica da função da mulher na pro-
criação como responsável pela contribuição da matéria prima, por uma espécie de
semente à espera do princípio formador e animador encontrado no sêmen do ho-
mem. Dessa forma e a fim de se aquilatar o alcance e a propagação dessa influência
de Aristóteles, uma seleção, ainda que sucinta, de pontos surgidos na discussão que
ele faz acerca do sêmen e da espécie de contribuição da mulher na procriação me-
rece ser feita.3
3 Para essa seleção, constante das passagens 726b, 727a, 727b, 728a, 729a, 737a, 738b e 775a, do De genera-
tione animalium, foi utilizada a tradução de A. L. Peck, Aristotle: Generation of animals (1963), cujos trechos
selecionados do original correspondem às páginas 91-93, 97, 101-103, 109, 173-175, 185 e 459-461. Daqui
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para frente, as citações referentes a essa edição trarão apenas os números das seções.
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Estudos Literários
Introdução
Publicado em 2010 e finalista do Prêmio São Paulo de Literatura no ano de
2011, Azul corvo é o quinto romance3 da escritora carioca Adriana Lisboa e trata,
como aponta a epígrafe, composta por três versos do poema “Estrangeiro”, de Hei-
tor Ferraz, do sentimento de ser/estar estrangeiro: “somos todos estrangeiros/ nesta
cidade/ neste corpo que acorda”.4
Além disso, Azul corvo, como tantas outras narrativas contemporâneas, de-
lineia parte de um evento histórico recente: a ditadura militar no Brasil, mais espe-
cificamente a Guerrilha do Araguaia. Narrado em primeira pessoa e dividido em
quinze capítulos, o romance traça, de maneira não-linear, a trajetória de Evangelina,
cujo apelido é Vanja, de sua infância à vida adulta. Na construção do processo iden-
tidade-alteridade da protagonista, algumas personagens se mostram importantes: a
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Ele não me disse prostituta. Definiu-a certo dia, depois de ter tomado umas
cervejas, como uma moça que trabalhava numa dessas casas de moças, e a
minha imaginação foi completando o resto, foi pescando os significados do silên-
cio dele, pendurados no ar como esses balões de histórias em quadrinhos. Ele
disse que gostou dela, e eu pensei no decote da blusa e achei que podia de fato
ter sido assim, da mesma maneira como pensei algumas outras coisas ao longo
desses anos. Afinal, se as pessoas não me forneciam detalhes, eu tinha o direito
moral de providenciá-los eu mesma. (LISBOA, 2014, p. 60-61, grifos nossos)
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5 No original: “– une fonction de transmission, s’inscrivant dans la continuité d’une histoire familiale et
s’attachant à en perpétuer les particularisms; – une fonction de reviviscence lieé à l’expérience affective et au vécu
personel; – enfin une fonction de réflexivité, tournée vers une évaluation critique de sa destinée”.
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6 Entrevista concedida à revista IstoÉ Gente, edição 580, ano de 2010, realizada por Suzana Uchôa Itiberê. Dis-
ponível em: <https://www.terra.com.br/istoegente/edicoes/580/artigo189292-1.htm>. Acesso em: 01 set. 2018.
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Estudos Literários
Com o tempo, Fernando decide dividir com Evangelina seu passado ao con-
tar à menina, então com treze anos, sua vida como guerrilheiro:
Eu nunca soube de onde veio o codinome. Como é que Fernando virava Chi-
co e ainda por cima ganhava uma Ferradura. Essa foi uma das coisas que ele
não me contou durante o tempo em que moramos juntos, e uma das coisas
que não constavam dos papéis que me deixou examinar, dando de ombros
– aquelas cartas insuficientes e anotações avulsas guardadas numa caixa de
madeira de vinho El Coto de Roja no fundo do armário […].
Mas ele me contou que logo após desembarcar na China e ser recebido por
uma comitiva oficial, em janeiro de 1966, foi convidado, junto com o restante
do grupo de quinze militantes do Partido Comunista do Brasil, para ir à ópe-
ra. (LISBOA, 2014, p. 57-58)
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
responsável por carregar sua memória, por levá-lo adiante, mesmo após a sua morte,
posto que, no presente da enunciação, Fernando já havia morrido. Assim, a menina
cumprirá as funções da memória familiar, nos termos de Muxel (1996): Fernando
transmite suas memórias pessoais a fim de se perpetuar e de passar adiante uma me-
mória coletiva; ao fazê-lo, revive o passado, ao mesmo passo que faz com que Evan-
gelina tenha sua experiência e compreensão diante do fato, em sua própria memória;
a partir daí, Evangelina reflete sobre a matéria narrada, se apropria dela e recria, com
os detalhes de que dispõe e que inventa, a história de Fernando, a sua e também a da
nação. A narração de Evangelina é, entre outras coisas, a manutenção da memória
do pai afetivo e também uma forma peculiar de enxergar o fato histórico dado.
Zilá Bernd e Tanira Soares (2016), em “Modos de transmissão intergeracio-
nal em romances da literatura brasileira atual”, ao citar Candau (2014, p. 140), con-
firmam a ideia de que Evangelina se apropria das memórias de Fernando, uma vez
que afirmam que a menina pratica a memória familiar, que
A análise das autoras se mostra bastante interessante, pois localiza Azul corvo
na discussão de manifestações contemporâneas do romance brasileiro que tratam
de transmissão entre gerações, nas expressões de romance memorial, romance de
filiação e romance familiar. Consideram, portanto, o romance de Lisboa como ro-
mance memorial, pois “enfatiza de modo exemplar a busca pela anterioridade co-
mo meio de posicionar-se no mundo e, principalmente, situar-se como sujeito com
uma identidade em contínuo processo de construção e desconstrução” (BERND;
SOARES, 2016, p. 417)
Em Azul corvo, Evangelina nasce em pleno processo de redemocratização
brasileira. Ela não viveu na pele, como Fernando vivera, os desmandos da ditadura,
tampouco foi guerrilheira. Além disso, na ausência dos pais, não recebeu a memó-
ria desse trauma na infância. A memória da ditadura foi impressa nela mais tardia-
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Estudos Literários
[...] Fernando dirigiu muito mais do que as seis horas habituais entre uma
cidade e outra na autoestrada I-25. Havia neve e gelo na pista. […]
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Evangelina, assim, escolhe como pai aquele com quem compartilhou parte
de sua adolescência, bem como aquele que com ela compartilhou suas memórias.
Evangelina se sente continuação de Fernando, não de Daniel. Mesmo tendo conhe-
cido o pai biológico e mantido contato, Evangelina não tem a mesma ligação que
tem com Fernando. Sobre Daniel, informa:
Estive algumas vezes com meu pai. Fui a Abidjan visita-lo e à sua família.
Falamos um pouco da minha mãe. Não muito. Além de mim, os dois não
chegaram a ter muitas coisas em comum. Nem mesmo memórias. Nem mes-
mo, eu acho, saudades. [...] De tempos em tempos nos falamos por telefone.
(LISBOA, 2014, p. 297)
São as memórias de Fernando de que ela vai se apossar e reapropriar, nos ter-
mos de Candau. E essa apropriação também se dará em outros âmbitos, pois Evan-
gelina trabalhará no mesmo local de Fernando, morará em sua casa e terá um carro
igual ao dele. Ademais, o processo de busca de identidade se fecha quando, mesmo
falando pouco, como Fernando, se percebe pronunciando o inglês sem sotaque:
A morte de Fernando, cujo corpo “um dia pifou enquanto ele tomava um
café, numa pausa do trabalho” (LISBOA, 2014, p. 294), mostra a Evangelina aquilo
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Estudos Literários
que era dele e somente dele. Entretanto, de alguma forma, ao tomar conhecimento
dessas coisas, passa a fazer parte também da narradora:
Considerações finais
Evangelina recebe as memórias de sua família (consanguínea ou não) e de
seu país. O nó que a faz refletir sobre o passado é a morte da mãe e a ausência de
um pai, ou seja, a destituição e o desconhecimento de uma ancestralidade, mas que
será buscada. Por meio das narrativas de Fernando sobre a Guerrilha do Araguaia,
Evangelina encontra um pai e pode descobrir a história de um Brasil desconhecido,
uma história não-oficial que luta por ser reconhecida. A partir daí, é capaz também
de se reconhecer e de encontrar um lugar no mundo. A reflexão que realiza sobre
sua vida aponta para uma pacificação em relação à ausência paterna e à morte da
mãe. Evangelina, então, é capaz de se apropriar, de reivindicar um passado e se iden-
tificar por meio das memórias que recebe.
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Referências
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centração na Argentina. Trad. Fernando Correa Prado. São Paulo: Boitempo, 2013.
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Estudos Literários
Paródia e resistência
Ricardo Alves dos Santos1
1 Doutorando em Estudos Literários pelo Instituto de Letras e Linguística – ILEEL - UFU / Universidade
Federal de Uberlândia, [email protected]
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
do mundo” (MOTTA, 2015). O poeta iniciou seu labor literário durante o final da
década de 70 do século passado. Influenciado pela poesia marginal2 deste período,
caracterizada pelo entrelaçamento entre vida e obra, Motta faz uso de suas expe-
riências pessoais e íntimas para construir uma poesia-religião que terá como base
de criação literária um deslocamento dos mitos religiosos, os quais serão o tempo
todo convocados para uma reflexão crítica sobre a condição de vulnerabilidade e
anulamento social do poeta, já que a pobreza, a miséria e a homossexualidade do
autor nutrirão sua lírica desbocada, debochada e subversiva.
Da obra Bundo e outros poemas (1996), selecionamos o poema “Iniciação
de Jacó”. Nesta realização poética, uma cena de iniciação sexual homossexual se
reconstrói em uma linguagem metaforicamente trabalhada, conduzindo-nos ao
caminho da revelação e do encontro com a intimidade decantada de Jacó. A poeti-
cidade e expressividade do poeta deixam-nos, através do sagrado profanado e ero-
tizado, sob a instância das forças misteriosas que operam na articulação do desejo:
INICIAÇÃO DE JACÓ
2 A produção literária da década de 70 do século passado aproximava-se da vida do autor. Este era contrário
à hierarquização do lugar elevado da poesia, bem como do experimentalismo das correntes vanguardistas,
recorrendo, pois, à ironia como recurso de protesto e de valorização da liberdade e da individualidade. No
prefácio do livro 26 poetas hoje (1998), organizado por Heloísa Buarque de Hollanda, a autora ratifica esta
postura artística dos poetas marginais e afirma que a poesia “desce [...] da torre de prestígio literário e aparece
com uma atuação que, restabelecendo o elo entre poesia e vida, restabelece o nexo entre poesia e público”
(HOLLANDA, 1998, p. 10). Esta postura inflamada e libertária acompanha a produção lírica de Waldo Motta
desde seus primeiros versos, o que deixa claro a necessidade dele de usufruir e exercer sua liberdade, mesmo
que para isto seja necessário afrontar o discurso hegemônico e burguês vigente em nosso tempo.
500
Estudos Literários
Depois saiu o seu irmão, agarrada sua mão ao calcanhar de Esaú; pelo que
foi chamado Jacó. E Isaque tinha sessenta anos quando Rebeca os deu à luz.
Gênesis 25:26
3 Sua história é relatada no livro de Gênesis e seu nome, do hebraico Yaakov, significa o suplantador e deriva
da palavra “calcanhar”.
501
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Isaque amava a Esaú, porque comia da sua caça; mas Rebeca amava a Jacó.
Gênesis 25:28
Jacó havia feito um guisado, quando Esaú chegou do campo, muito cansado;
Gênesis 25:29
e disse Esaú a Jacó: Deixa-me, peço-te, comer desse guisado vermelho, por-
que estou muito cansado. Por isso se chamou Edom.
Gênesis 25:30
Ao que disse Jacó: Jura-me primeiro. Jurou-lhe, pois; e vendeu o seu direito
de primogenitura a Jacó.
Gênesis 25:33
Jacó deu a Esaú pão e o guisado e lentilhas; e ele comeu e bebeu; e, levantando-
-se, seguiu seu caminho. Assim desprezou Esaú o seu direito de primogenitura.
Gênesis 25:34
Disse então Rebeca a Jacó, seu filho: Eis que ouvi teu pai falar com Esaú, teu
irmão, dizendo:
[...]
Gênesis 27:6
Respondeu, porém, Jacó a Rebeca, sua mãe: Eis que Esaú, meu irmão, é pe-
ludo, e eu sou liso.
Gênesis 27:11
Depois Rebeca tomou as melhores vestes de Esaú, seu filho mais velho, que
tinha consigo em casa, e vestiu a Jacó, seu filho mais moço;
Gênesis 27:15
e pôs o guisado saboroso e o pão que tinha preparado, na mão de Jacó, seu filho.
Gênesis 27:17
502
Estudos Literários
E veio Jacó a seu pai, e chamou: Meu pai! E ele disse: Eis-me aqui; quem és
tu, meu filho?
Gênesis 27:18
Respondeu Jacó a seu pai: Eu sou Esaú, teu primogênito; tenho feito como
me disseste; levanta-te, pois, senta-te e come da minha caça, para que a tua
alma me abençoe.
Gênesis 27:19
Então disse Isaque a Jacó: Chega-te, pois, para que eu te apalpe e veja se és
meu filho Esaú mesmo, ou não.
Gênesis 27:21
chegou-se Jacó a Isaque, seu pai, que o apalpou, e disse: A voz é a voz de Jacó,
porém as mãos são as mãos de Esaú.
Gênesis 27:22
Disse-lhe então seu pai: Traze-mo, e comerei da caça de meu filho, para que
a minha alma te abençoe: E Jacó lho trouxe, e ele comeu; trouxe-lhe também
vinho, e ele bebeu.
Gênesis 27:25
Tão logo Isaque acabara de abençoar a Jacó, e este saíra da presença de seu
pai, chegou da caça Esaú, seu irmão;
Gênesis 27:30
Disse Esaú: Não se chama ele com razão Jacó, visto que já por duas vezes me
enganou? tirou-me o direito de primogenitura, e eis que agora me tirou a
bênção. E perguntou: Não reservaste uma bênção para mim?
Gênesis 27:36
Esaú, pois, odiava a Jacó por causa da bênção com que seu pai o tinha aben-
çoado, e disse consigo: Vêm chegando os dias de luto por meu pai; então hei
de matar Jacó, meu irmão.
Gênesis 27:41
503
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
4 “Texto que confronta directamente el lenguaje heterosexual hegemónico.” (PRECIADO, 2009, p. 138)
504
Estudos Literários
o que só será possível a partir de sua união com uma mulher. No entanto, Motta
apresenta a iniciação sexual de Jacó com o Senhor, a qual antecede ao casamento
de Jacó com Lia, sua primeira esposa. Motta, portanto, desloca o sentido mítico,
pois antes da união heterossexual, é da união homossexual que irá se reproduzir a
prole de Jacó. É da união profana de Jacó com Javé que as doze tribos irão surgir.
Motta (re)produz o contrato de fé entre Jacó e Javé como uma relação sexual, indo
na contracorrente da sociedade patriarcal, que não concebe a possibilidade de uma
relação sexual homossexual gerar frutos. Desse modo, o poeta reescreve o mito,
subvertendo completamente a ordem das coisas sagradas. A reprodução da prole se
dá de forma simbólica, antes de se transformar em realidade verossímil dentro do
mito. É como se Motta contasse o que é anterior ao mito ou aquilo que este subsu-
miu, interditou, recalcou para se (re)produzir.
“Profanar significa abrir a possibilidade de uma forma especial de negligên-
cia, que ignora a separação, ou melhor, faz dela um uso particular.” (AGAMBEN,
2007, p. 66). A ação empreendida pelo poeta em “Iniciação de Jacó” coloca em jogo
a passagem do sagrado para o profano, a particularidade da primeira relação se-
xual de Jacó de ordem profana recebe um tratamento sagrado, promovendo uma
“neutralização daquilo que profana”, já que o sagrado, que outrora era elevado e
separado do mundo profano dos humanos, “perde a sua aura e acaba restituído ao
uso” (AGAMBEN, 2007, p. 68). Assim, o artista faz uso do sagrado e do profano
para enfatizar uma ação humana que visa a satisfação do corpo e a descoberta da
sexualidade e do prazer de Jacó.
O local consagrado “Betel”, foi neste lugar que Jacó teve a visão de uma esca-
da que atingia o céu, por onde anjos subiam e desciam, constrói uma visão de pura
energia erótica, já que, no poema “Iniciação de Jacó”, Jacó, ao conhecer o Esposo,
transforma-se em Israel, o que evidencia a tomada de consciência daquilo que Jacó é
enquanto ser. As aflições e os sofrimentos de Jacó são abandonados diante do Senhor.
Assim, profanar “não significa simplesmente abolir e cancelar as separações, mas
aprender a fazer delas um uso novo, a brincar com elas.” (AGAMBEN, 2007, p.75).
O novo uso dado ao elemento sagrado pode ser constatado também a partir
da subversão que o poeta Waldo Motta faz ao parodiar a trajetória de um herói clás-
sico. O tom narrativo é evidenciado pelas marcações espaciais “Numa pedra”, “na
casa de Deus”, “Betel” e “Ali” e temporal “aquela noite” para nos contar uma história
505
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
exemplar de Jacó. A transformação do nosso herói é evidente nos versos “do celeste
Esposo, o feliz varão/ que o Senhor transforma em Israel” e este processo é fruto de
uma revelação e descoberta, Jacó se descobre completamente elevado na medida
em que “os véus de seus mistérios” são descortinados pelo “Esposo”. A revelação de
Jacó se deu por “uma via estreita” e “secreta”, pelo “reto”. A profanação é notada o
tempo todo no poema, criando um campo de tensão permanente “entre natureza e
cultura, privado e público, singular e comum” (AGAMBEN, 2007, p. 75) e, obvia-
mente, entre o sagrado e profano.
Waldo Motta usa da história bíblica de Jacó para empreender um jogo de
ordem erótico. Os versículos bíblicos nos relata uma vida que se iniciou de maneira
opressora e excluída, Jacó queria ser o primogênito e ao enganar seu pai foi jurado
de morte pelo irmão Esaú, tendo que abandonar sua vida familiar. O afastamento
e a mentira fizeram de Jacó um ser angustiado que só obteve acalento quando o
Senhor resolveu ouvir seu clamor e suas aflições.
De certo modo, Jacó teve, no poema, suas aflições resolvidas quando teve
seu desejo sexual reprimido saciado perante o sexo daquele que lhe levou aos céus.
As angústias são transformadas em prazer e gozo e isso de certa forma também nos
remete à necessidade de superá-las. A experiência interior que o sujeito waldia-
no revitaliza a partir da primeira relação homossexual de Jacó, coloca-nos no jogo
recorrente que travamos com as questões que são rotineiramente conduzidas por
elementos proibitivos: a angústia de transgredir o interdito e logo após estarmos
enredados na mesma situação de intimidação. Esta relação paradoxal do interdito é
assim entendida por George Bataille:
506
Estudos Literários
Neste soneto, Camões se vale da história bíblica para refletir sobre a persis-
tência do amor e a efemeridade da vida. Ele retoma o episódio em que Labão obriga
Jacó a trabalhar servilmente durante sete anos para que a este fosse concedido o
casamento com a filha daquele, Raquel. Entretanto, Labão engana Jacó, conceden-
do-lhe a mão da filha mais velha, Lia. O amor de Jacó por Raquel é tão grande que
este se submete a mais sete anos de sacrifícios para enfim casar-se com sua amada
Raquel. O uso da passagem bíblica em Camões se serve como argumento para glo-
rificar o amor platônico.
Diferentemente do poeta renascentista, a história de Jacó é percorrida pelo
poeta contemporâneo por via erótica e profana, numa satisfação plena do desejo.
O poema ao se realizar em uma longa estrofe sugere a ideia de prolongamento da
experiência sexual e do desejo. Assim, o erotismo evidenciado no poema “Iniciação
de Jacó”, coloca-nos, parafraseando George Bataille (1987), conscientemente, o ser
em questão, já que a intimidade e a “experiência de dentro” é a energia vital que nos
sustenta frente às angústias e às interdições.
507
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
5 Pensamos, aqui, que a paródia é fundamental no trabalho do poeta Waldo Motta já que ela tem o papel
de transformar uma obra antecedente, “seja para caricaturá-la, seja para reutilizá-la, transformando-a.” (SA-
MOYAULT, 2008, p. 53).
508
Estudos Literários
Referências
AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.
BATAILLE, Georges. O erotismo. Trad. Antônio Carlos Viana. – Porto Alegre: L&PM,
1987.
BÍBLIA. Português. A Bíblia sagrada: antigo e novo testamento. Tradução João Ferreira
de Almeida. 2.ed. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.
CAMÕES, Luís de. Sonetos de Camões. Edição comentada e anotada por Izeti Fragata
Torralvo e Carlos Cortez Minchillo. – Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2011. (Clássicos
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HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria e ficção. Tradução
Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
MOTTA, Waldo. Bundo e outros poemas. Campinas, SP: Editora UNICAMP, 1996.
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2009. p. 133-170.
REIS, Leandro. Waldo Motta quebra fronteiras entre o sagrado e o mundano.
Gazeta online, Vitória, ES, 11/03/2015, In: http://www.gazetaonline.com.br/_
conteudo/2015/03/entretenimento/famosos/3891340-waldo-motta-quebra-
fronteiras-entre-o-sagrado-e-o-mundano.html, acesso em: 06/05/2016.
SAMOYAULT, Tiphaine. A intertextualidade. Trad. Sandra Nitrini. São Paulo: Aderaldo
& Rothschild, 2008.
509
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Introdução
A compreensão de que a produção audiovisual constitui-se em práticas dis-
cursivas, que conferem sentido ao real e criam modelos de existência e/ou abertura
para a emergência de outras subjetividades, implica em percebê-la como veículo de
comunicação que transmite, de certa forma, uma cultura que, por meio de imagens,
sons e espetáculos, auxiliam na formação de opiniões e de comportamentos sociais
e, ainda, fornecem instrumentos com que as pessoas forjam suas identidades.
O cinema apresenta-se como um campo em que as identidades presentes em
uma dada cultura se expressam e se fazem notar. Ele desempenha o papel de espe-
lho, no sentido de duplicar imagens, e no qual se refletem as mudanças e as intera-
ções identitárias. Para além de problematizar as questões das diferentes identidades,
essa construção artística também propicia novas identificações.
O cinema torna-se, pois, instrumento útil para entendermos como as iden-
tidades, sua legitimação e suas lutas estão presentes em nossa sociedade. Ele se tra-
duz em instância que integra o imaginário de nossa cultura, do que mostramos/
representamos sobre nós, ao mesmo tempo em que colabora para enriquecê-la, de
maneira a reproduzir e a criar novas formulações culturais.
O cinema fala sobre o que sabemos e o que não sabemos ainda, e também
sobre o que não se imaginou que pudesse existir: um universo de possibilidades e de
percursos a serem decodificados. Ele cristaliza o mundo ao representa-lo, ao tempo
1 UnB / UFG
510
Estudos Literários
em que o recria, e inventa outro mundo. Por sua natureza reflexiva, ele resulta capaz
de exibir a realidade social de seu tempo e de um dado momento histórico, de modo
a agir, assim, como instrumento de reflexões sobre as quais se inscrevem as imagens
e as narrativas de uma época.
Ao se pensar a realidade latino-americana, especificamente, torna-se possí-
vel identificar que as manifestações artísticas e culturais mais emblemáticas desse
subcontinente procuram construir uma identidade cultural a partir de seus proble-
mas comuns: a dominação estrangeira, a exploração colonial, as colonialidades e as
desigualdades sociais.
Temas ligados aos problemas comuns dos povos da América Latina, como a
exploração colonial, a descolonização, o neocolonialismo, o subdesenvolvimento e a
alienação, são recorrentes nessas produções cinematográficas e que, por seu turno, en-
volvem um projeto de engajamento político e artístico que tencionam promover uma
rede de trocas e de identidades capazes de criar, consolidar e de fazer circular ideias.
Assim, carece-se de discussão acerca de como esses discursos produzidos
pelo cinema relacionam-se com a identidade cultural dos países pertencentes à
América Latina. A tentativa de esboçar tal conexão – entre cinema e identidade
cultural – implica em compreender que filmes expressam documentos culturais que
projetam imagens do comportamento humano social, por serem ficcionais, mas
que se tornam veículos de representações da realidade. A análise fílmica, nesse sen-
tido, constitui-se em uma das estratégias de estudo da cultura, das identidades e dos
contextos sociais, políticos, econômicos e ideológicos.
Em razão da multiplicidade de olhares possíveis a serem dirigidos a um filme
e da influência dessas perspectivas em seu público, o cinema resulta em um campo
de construção identitária muito particular. Esse campo emerge como depositário
de nossas indagações: quem somos nós? O que mostramos de nós? Como nos ve-
mos? No caso do cinema latino-americano, produções que tratam de nosso povo,
de nossos modos de vida e de nossas concepções identitárias, percorrem e marcam
a história de nossa cinematografia com maior ou menor fôlego e vigor.
Nesse sentido, elegeu-se o filme Relatos Selvagens, de Damián Szifron, para
análise. Seu epicentro localiza-se na subjetividade psicanalítica sobre os persona-
gens e sobre suas histórias. Trata-se de uma obra que nos permite refletir sobre o
modo como as relações humanas comuns encobrem uma imbricada teia de moti-
511
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
512
Estudos Literários
Desde infância sempre foi mal compreendido, não conseguia aprender nada,
sofria bullying na escola por parte de professores e amigos.
Na adolescência teve uma namorada que o traiu com o único amigo. Ela o
humilhou, ele a amava, era um bom namorado. Ela era tudo o que ele tinha
na vida.
Foi humilhado por um crítico musical que o fez um comentário sobre o seu
mal desempenho o que acabou, segundo ele, com a sua carreira musical.
Sua professora primária, o fez repetir de ano. Ela teria sido injusta com ele e
por isso nunca a perdoou.
Seu psiquiatra, que cobrava as consultas cada vez mais caras, o fez perceber que
os seus pais falharam com ele e que estes eram os principais responsáveis por
seus fracassos e que sempre lhe convencia até então a desistir de suicidar-se.
Ele vai jogar o avião com todos os que lhe fizeram mal contra seus pais. Eles
foram terríveis, não acolheram suas angústias, depositaram suas frustações
em cima dele e por isso Pasternak sente tanto ódio.
513
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Garçonete: Esse foi o homem que arruinou a vida da minha família. Tenho
raiva dele. E tenho vontade de dizer-lhe umas poucas e boas, mas me sinto tão
impotente que na hora não sai nada da minha boca. Queria fazer justiça, e
que ele devolvesse tudo o que nos fez perder. Não seria capaz de matá-lo, muito
514
Estudos Literários
menos o filho dele, que não tem nada a ver com isso. Deve ser uma vitima assim
como eu e minha família.
Cozinheira: Aquele homem não merece viver. É tão fácil exterminar a vida
dele. É só eliminá- lo. Não atrapalha mais. Além disso, não tenho nada a perder.
Quando eu estava na cadeia era melhor. Sabia que iria ter o que comer e não
me preocupava com nada, pois lá eu não podia matar ninguém porque estava
sempre vigiada. Comigo é: “fez, pagou”. É a lei do Talião. Eu não sinto culpa,
nem remorso.
A Cozinheira sugere que ele seja morto com veneno de rato, que se encontra
na cozinha do restaurante. A Garçonete recursa e diz não ter coragem para fazê-lo.
Ao servi-lo, percebe que o filho de Rafael Cuenca chega e que também irá jantar e,
ao retornar à cozinha, a Garçonete observa que a Cozinheira envenenou a comida,
pois vê a lata de veneno vazia. Ao olhar em direção ao pai e ao filho, que já iniciaram
o jantar, ela retorna à mesa, tenta tirar o prato, é impedida e, diante disso, ela resolve
atirar a comida no rosto de Cuenca. O filho dele começa a passar mal, provavel-
mente pelo efeito do veneno. A Garçonete passa a ser agredida por Rafael Cuenca,
em uma explosão de fúria, até que a Cozinheira sai da cozinha e o esfaqueia. A
Cozinheira resolve as coisas de um jeito simples, atua pelo ódio. Não pensa, mata,
pois sua lógica é amoral.
Cuenca, esfaqueado, cai e derruba a Garçonete. Deitada no chão, ela percebe
que ele perdeu as forças, fechou os olhos. Ele está morto. De repente, levanta ao notar
que estava suja com o sangue dele. A seguir, tem-se a prisão da Cozinheira, que, ao
olhar para a Garçonete, pisca-lhe o olho. O desejo inicial da Garçonete foi realizado.
Nesse sentido, pode-se perceber que a vingança concretizou-se. Mesmo com
o esforço da Garçonete por tentar controlar conscientemente as possíveis conse-
quências do ato, a vingança passou a ser legitimada como forma de por fim aos
outros sentimentos, de vivenciar certas emoções e/ou de mantê-las em sua mente,
e de concluir: é como se o “outro” devesse sentir o que eu sofri! E, neste caso, deve
pagar o preço com a própria morte. Isso se apresenta como um dos funcionamentos
primitivos do animal humano.
O terceiro conto, intitulado “O mais forte”, inicia-se com um carro luxuoso a
percorrer uma autoestrada numa região pouco povoada, e cujo Motorista 1, vestido
515
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
elegantemente, aparenta ser rico. A cena seguinte, por sua vez, mostra um carro
velho, sujo, cujo Motorista 2 aparenta desleixo e pode ser identificado como pobre.
Na tentativa de ultrapassar o Motorista 2, o Motorista 1 recebe uma fechada
e essa situação repete-se várias vezes, até que, enfim, este o consegue. Então, imedia-
tamente depois da ultrapassagem, o Motorista 1 faz um sinal obsceno com o dedo
do meio, e xinga o Motorista 2 de negro ressentido, e segue adiante.
Depois disso, as cenas intercalam-se com imagens da estrada, paisagens, dos
carros e dos dois motoristas. De repente, um dos pneus do carro do Motorista 1
fura. Ele encosta o carro ao lado da estrada, desce do carro e percebe o pneu furado
e, irritado, ele o chuta, abre o porta-malas e verifica o equipamento para a troca.
Porém, ao que parece ser pela falta de habilidade, ele prefere telefonar e pedir ajuda.
O enquadramento da cena muda, e vê-se que o carro encontra-se parado próximo a
uma ponte. Com a demora do auxílio que não chega, ele resolve trocar o pneu, mo-
mento em que avista o carro do Motorista 2, que tentou bloquear a ultrapassagem,
e para o qual ele havia feito o gesto obsceno e proferido xingamentos.
Amedrontado, o Motorista 1 retorna ao carro, ainda solevantado para a troca
do pneu, e se tranca, até ser surpreendido pelo Motorista 2 à janela, que lhe pergun-
ta ironicamente: “O que houve? Se assustou?”. Acredito que a maior parte dos teles-
pectadores, são conduzidos pela narrativa, para nos identificarmos com o Motorista
1, o homem rico e apresentado como de “boa aparência”.
O que se sucede no encontro constitui-se em uma série de ataques violentos
contra o carro e, do mesmo modo, contra o seu oposto. Durante as agressões, um
caminhão passa e segue adiante, sem parar. O Motorista 1 liga para a polícia e faz
um pedido de socorro. No entanto, e nesse meio tempo, nenhuma ajuda aparece.
Depois dos atos contra o Motorista 1, em que se inclui defecar e urinar sobre
o seu carro, o Motorista 2 provoca o seu oponente, chamando-o de “cagão”, e volta
para o carro. Nesse momento, o Motorista 1, num ímpeto de fúria, empurra o carro
do Motorista 2 em direção a uma ribanceira, ao lado da ponte. E ao perceber que o
Motorista 2 ainda vive, depois do incidente provocado, evade do local e atravessa
a ponte. Entretanto, para continuar com a vingança, volta ao local na intenção de
matar o Motorista 2. Suas tentativas falham e, por fim, acaba ele por cair também,
acidentalmente, no mesmo lugar no qual jogou o carro de seu oponente.
516
Estudos Literários
O motorista 2, por sua vez, depara-se com o porta-malas do carro novo aber-
to, e tenta entrar. Já no interior do veículo, inicia-se uma luta corporal na qual, ao
final dela, o Motorista 2 tenta enforcar o Motorista 1 com o cinto de segurança, abre
o tanque de combustível e ateia fogo no automóvel. O Motorista 1 consegue livrar-
se do enforcamento e puxa o Motorista 2 para a sua direção. Esse, por conseguinte,
não consegue apagar o fogo no tanque de combustível e, pouco tempo depois, o
carro explode, matando os dois. Nesse momento, além do ajudante de uma segura-
dora de carro, oficiais da polícia aparecem e, ao observarem os corpos abraçados e
carbonizados no carro, perguntam se foi crime passional.
O sadomasoquismo faz-se presente nesse conto, em que dois homens, em
condições distintas de classe social, engalfinham-se numa luta interminável, en-
tremeada de mordidas e de socos. E, por fim, terminam por morrerem abraçados
e por serem identificados pelos policiais como um casal homoafetivo. Com base,
novamente, em Sigmund Freud, a partir de sua obra nominada Notas Psicanalíti-
cas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia (Dematiae Paranoides)
(FREUD, 1996a), compreende-se que o ódio provém do amor transformado em
seu contrário, e que o delírio paranoico constitui-se em uma defesa contra o desejo
homossexual reprimido. Por isso, assiste-se ao término desse conto com os dois
motoristas abraçados, e a suspeita de tratar-se de um crime passional.
O quarto conto intitula-se “Bombinha”. Nele, nos é apresentado Simon Fi-
sher, engenheiro especializado em explosões e que, no seu trabalho, sabe-se da ne-
cessidade do uso constante de cálculos e de previsões.
Depois de um dia de trabalho, coincidentemente no aniversário da filha, Fi-
sher tem o carro rebocado, por estacionar em local não permitido. No entanto, não
havia sinalização no local que o alertasse de tal proibição. Ao tentar retirar o carro,
ele se atrasa no retorno para casa, para o aniversário da filha, e essa situação torna-
se elemento precedente para que sua esposa sugira o divórcio, sob a alegação de que
ele sempre tem uma desculpa para não estar com a família.
Na busca por reaver o veículo rebocado, ele sugere ao atendente da empresa
de reboques que o Estado deve ressarci-lo financeiramente por seus prejuízos e, em
razão disso, o atendente ri dele e segue o protocolo de atendimento, sem conside-
rar a argumentação, sob a alegação de que está ali fazendo o seu trabalho e que ele
está atrapalhando o fluxo da fila. Mesmo assim, Fisher paga a multa, mas pede que
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
seja chamado o supervisor, quando o atendente diz-lhe que não há supervisor para
reclamar. O engenheiro, então, reage violentamente, ataca o guichê com um extin-
tor de incêndio e vai preso. A partir dessa sequência de acontecimentos, ele perde
esposa, família, amigos, emprego e reputação.
O ambiente e o sistema corrupto em que Fisher vive tornam-se elementos das
séries complementares que permitem eclodir sua bomba inteira. Ao sair da cadeia e
perceber-se totalmente sozinho e sem nenhuma perspectiva de retorno à vida de an-
tes, ele resolve concretizar um ato de revelia contra o sistema burocrático e obsceno
que interrompeu seus planos e interferiu em sua vida. Ele coloca bombas no carro,
estaciona em local proibido e detona os explosivos dentro da empresa de reboques.
Nas cenas subsequentes, aparecem matérias jornalísticas em mídias impres-
sas e televisivas que o apresenta como possível terrorista, o que o leva novamen-
te para a cadeia. Mas, nesse momento, ele passa a dispor de nova visibilidade e
de reconhecimento por partes dos outros presidiários, pela família e pelos agentes
carcerários, de modo a identifica-lo como “bombinha”, permitir o resgate de sua
autoestima e possibilitar sua reconciliação com o mundo.
É interessante percebermos que quando o engenheiro toma estas atitudes
violentas contra o sistema burocrático e estatal, que o punia de maneira injusta e a
partir do conhecimento adquirido em sua profissão, foi possível mesmo colapsar o
sistema legal, semelhante a um edifício que está sendo demolido no início do conto,
e pelo qual ele seria o responsável, enquanto engenheiro de explosivos.
Para Freud (1996b), esse descontrole emocional relaciona-se a fatores congê-
nitos e hereditários, a experiências infantis, disposição e outros fatores sociais que
desencadeiam esse comportamento. É como se Fisher voltasse às pulsões agressivas
para o exterior, e detonasse metaforicamente o sistema corrupto. A destruição pode
ser identificada como possibilidade de reconstrução de uma sociedade mais justa, e
o cárcere como uma instituição de continência para a agressividade.
O quinto conto intitula-se “A proposta”, em que é apresentada outra dimen-
são da forma como funciona, em termos de corrupção, o sistema judiciário, que
compreendemos como parte do sistema governamental. De início, tem-se um carro
de luxo entrando em uma garagem, com a placa ensanguentada. Em seguida, perce-
be-se que o filho adolescente de um casal da elite, Santiago, atropelou uma mulher
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Estudos Literários
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
O conto nos remete à ideia de que a elite se utiliza das classes subalternas pa-
ra atender seus interesses pessoais. Além disso, fica perceptível que, quando os mais
pobres se propõem a participar de certos esquemas da elite, certamente estarão su-
jeitos e assujeitados a serem os mais prejudicados. Nesse caso, em particular, José
paga com a própria vida e provavelmente sua família não irá receber qualquer coisa
do acordo firmado. No fim, torna-se possível compreender que o latido do cachorro
pode-nos remeter, novamente, à desumanidade da elite sobre as classes subalternas.
O último conto, “Até que a Morte nos Separe”, inicia-se com uma festa de
casamento sofisticada, onde tudo segue bem. O casal posa para algumas fotos com
convidados e, em um desses momentos, uma convidada, uma senhora de compor-
tamento estranho, conversa com Romina, a noiva. Ela dá um presente à recém-ca-
sada, faz perguntas sobre a festa, fala da violência no país e, quando Romina tenta
sair, a senhora segura-a pelo braço e pergunta pelos convidados. Nesse momento,
ela percebe o comportamento estranho de seu noivo com uma das convidadas, uma
colega de trabalho.
Romina pega o celular e telefona para um número que havia gravado de uma
mulher que ligava constantemente para o seu noivo. A moça com a qual o seu noivo
conversava atende ao telefone, e daí ela descobre que eles eram amantes.
Depois dessa descoberta, Romina questiona o noivo, Ariel, sobre a mulher, e
pede que ele lhe dê explicações, ao tempo em que valsavam. Em um primeiro mo-
mento, ele nega. Até que, diante de tanta insistência, acaba por assumir o caso com
a moça. Romina entra em surto, sai da festa aos prantos, segue para o último andar
do prédio, encosta-se ao parapeito, e olha para baixo, o que sugere ao espectador
uma tentativa de suicídio. Nesse momento, aparece um dos cozinheiros, que passa
a consolá-la. Ela o beija e mantém relações sexuais com ele, até ser encontrada pelo
noivo. Imediatamente, ela expressa sua raiva e o ameaça de várias formas, e diz que
tirará dele todo o dinheiro e que fará da vida dele um inferno sem fim. Ariel, subi-
tamente, vomita e Romina volta para a festa.
Ao retornar ao salão de festa, Romina volta a dançar com os convidados, até
que segura na mão de Lourdes, a amante de seu noivo, e com ela dança até atirá-la
contra um dos espelhos do local, causando-lhe diversos ferimentos superficiais, nos
termos do médico que a atendeu.
520
Estudos Literários
Após esse incidente, Romina pede que a festa continue, à despeito dos even-
tos “anormais” que ocorrem. Nesse momento, uma das convidadas encontra o anel
escondido no bolo de casamento. Ela diz: “Demonstramos que tudo isso é mentira,
mas o anel é de verdade”. Ariel retorna ao salão e, ao tempo em que tenta cancelar
a festa, afirma que conversou com o advogado da família.
Romina profere provocações à mãe de Ariel, o qual passa a gritar e, poste-
riormente, a chorar no colo da mãe, afirmando que não fez nada comparado ao que
ela está fazendo. Romina continua com os xingamentos direcionados aos dois, até
que a mãe de Ariel tenta estrangulá-la. Ariel passa mal, Romina se corta ao pisar
em cacos de vidro e ambos, Romina e Ariel, choram. Ariel então se levanta, toma
champanhe e, em seguida, pega uma faca, corta um pedaço de bolo e come. Em
continuidade, direciona-se a Romina, convida-a para dançar, beija-a e leva-a para
a mesa, onde fazem amor, enquanto são observados pelos convidados - uns saem
indignados, outros aplaudem.
Nesse conto, percebe-se que o adultério de Ariel foi suficiente para que Ro-
mina se destituísse da figura de pessoa ideal e revelasse um comportamento mons-
truoso, repleto de energia destrutiva (FREUD, 1996c), o que acaba também por ser
prejudicial a si mesma, e isso fica nítido ao final do conto, em que ela apresenta-se
ferida física e emocionalmente.
Muito mais do que se vingar, em resposta às injustiças e corrupção dos siste-
mas político e normativo, identifica-se, nos seis contos apresentados, movimentos
subjetivos em que cada personagem, ao se posicionar perante os contextos impos-
tos, não opera apenas em lógicas racionais, mas, sobretudo, em emoções suscitadas
que beiram a selvageria.
Considerações Finais
O sofrimento psíquico constitui-se em vivência subjetiva, que não se origina,
necessariamente, na realidade exterior, mas encontra-se associado às relações que
estabelecemos com essa realidade, de modo que a solicitação pulsional, exigida pela
organização da vida social, nos conduz a situações nas quais não lidamos apenas
com aspectos relacionados à razão.
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Referências Bibliográficas
FREUD, Sigmund. Luto e Melancolia. In: FREUD, Sigmund. Edição Eletrônica Brasileira
das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Versão 2.0. Rio de Janeiro:
Imago Editora, 1996a.
_______. Notas Psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia
(Dematiae Paranoides). In: FREUD, Sigmund. Edição Eletrônica Brasileira das
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Versão 2.0. Rio de Janeiro:
Imago Editora, 1996b.
_______. Os Instintos e as Vicissitudes. In: FREUD, Sigmund. Edição Eletrônica
Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Versão 2.0. Rio de
Janeiro: Imago Editora, 1996c.
Relatos Selvagens. Direção: Damian Szifron. Argentina/Espanha. 2014. 120 min.
SZIFRÓN, Damián. [Entrevista] Damián Szifrón, director de Relatos Selvajes. Ibero
[online]. Disponível em: <http://ibero909.fm/entrevista-damian-szifron-
director-de-relatos-salvajes/>, Acesso em: 16 nov. 2017.
522
Estudos Literários
Introdução
Sem pretensões demasiadamente românticas de solucionar os problemas do
ensino de literatura na escola pública brasileira, o presente estudo busca, a partir
de um panorama das dificuldades enfrentadas pelos professores e pela própria ma-
nutenção e existência da literatura em sala de aula, refletir sobre caminhos palpá-
veis para uma escolarização responsiva e responsável do discurso literário. Assim,
a proposta que aqui emerge é muito mais uma tomada de posição, ou seja, uma
postura ética dos atores inscritos no processo de ensino-aprendizagem de literatura
(professor, coordenador pedagógico, diretor), do que uma metodologia de ensino.
Defendo que é sim possível o trabalho produtivo e responsável com a literatura,
mesmo numa realidade escolar positivista, em que, na maioria dos casos, o foco são
os números do IDEB e os índices de aprovação.
Bakhtin (2012) defende a concepção de um sujeito sempre social, o qual deve
ter um posicionamento axiológico no mundo, bem como ser responsivo e respon-
sável ao mundo pela linguagem. A partir disso, uma manifestação discursiva (por
exemplo, o ato de leitura literária por parte do aluno-leitor, o ensino da literatura
por parte do professor e a própria escrita literária por parte do autor) emerge neces-
sariamente dentro de um contexto social, histórico, cultural e ideológico, bem como
será sempre um ato responsivo, ou seja, uma tomada de posição. Nesse sentido,
reforço que, se a prática de letramento literário for construída pelo professor com
foco no contexto de inscrição do seu alunado, o texto literário possui um caráter de
empoderamento do aluno-leitor.
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
524
Estudos Literários
2 Vale ressaltarmos que, em muitos casos, jovens leitores leem famosos best-sellers com centenas de páginas,
ao passo que permanecem resistentes e relutantes às leituras propostas no ambiente escolar da aula de litera-
tura e língua portuguesa.
525
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
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Estudos Literários
lidade de que o texto literário possa ser escolarizado de uma forma mais autônoma
e contextualizada nas aulas dos professores de Língua Portuguesa e/ou Literatura.
Não parece ser uma questão fácil de responder. Antes os alunos liam (ou
não!) as obras literárias, em sua maioria canônicas, contempladas nos vestibulares
por meio de listas de livros de literatura, dando-lhes uma visão geral da literatura
e, de certa forma, acesso ao saber literário. Sendo cobrada no vestibular, a literatura
estaria, necessariamente, presente na maioria das turmas de ensino médio, ainda
que de forma impositiva. Trilhando um outro caminho, a literatura no ENEM é
tomada em sentido mais amplo, posta em diálogo com os diversos saberes mobili-
zados no ambiente escolar. Assim, não existe na prova do exame nacional a divisão
fragmentada de disciplinas, estando a literatura presente, de forma interdisciplinar,
em questões dos diversos eixos do conhecimento.
Parece ser uma boa perspectiva para a literatura, desde que seja tomada,
dialogicamente, como um discurso que emana efeitos de sentidos decorrentes de
inúmeras inscrições dos sujeitos e dos discursos em diferentes contextos histórico-
sócio-ideológicos. No entanto, receio que, sem uma escolarização institucionaliza-
da, a literatura será, na maioria das realidades da escola pública, escamoteada, cas-
trada, apagada, uma vez que grande parte das universidades não estabelecem mais
algumas obras como leituras indispensáveis para as provas. Esse diagnóstico faz
emergir uma marginalização cada vez mais acentuada da literatura na escola, sendo
ela sonegada enquanto um conhecimento político essencial à formação dos alunos.
Ainda sobre as dificuldades do ensino de literatura nas escolas públicas do
Brasil, arrisco-me a propor a existência de um possível um círculo vicioso em que
se inscreve grande parte dos acadêmicos dos cursos de licenciatura e, em especial,
os dos cursos de Letras. Frente a um desprestígio social que envolve hoje a carreira
docente, quem mais busca os cursos de licenciatura (como opção mais fácil e nem
sempre como desejo de carreira) são os egressos das escolas públicas, usualmente
de classes sociais desfavorecidas e/ou estigmatizadas.
Logo, via de regra, são justamente os alunos de uma realidade escolar em que
a literatura é utilizada de forma fragmentada pelos livros didáticos e como pretexto
para outras competências (o ensino historiográfico, o ensino da gramática norma-
tiva, o ensino de figuras de linguagem) que serão formados pelos cursos de Letras
para trabalhar a literatura na educação básica dessa mesma escola pública. Para
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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
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Estudos Literários
que não desenvolveram, como afirma Paulino (2013, p.16), “a cidadania literaria-
mente letrada” e escolhem textos sem se preocupar com a formação de leitores.
Paulino ainda coloca que:
A escola, nesse sentido, tem se afastado cada vez mais da formação de leitores
literários. Ao citar uma antologia de Machado de Assis organizada por Raymundo
Magalhães Júnior, intitulada Contos fantásticos, Paulino (2013, p.18) demonstra que
grande parte dos cânones escolares promove uma “distorção realizada para atender
a uma demanda escolar de gêneros, que embora aparentemente sejam de natureza li-
terária, têm sua origem mais ligada ao entretenimento televisivo e cinematográfico”.
Dessa forma, o cânone escolar, tomado como aquilo que deve ser lido pelos jo-
vens na escola, representa “um conjunto de produções resultantes de uma atuação de
marketing editorial internalizada pela própria instituição escolar” (PAULINO, 2013,
p.18) e não um conjunto de textos literários organizados para inscrever os alunos-lei-
tores em práticas de letramento literário empoderadoras, dialógicas e libertadoras.
Ainda que essas problemáticas devam ser consideradas como importantes
ao se pensar a literatura na escola, entendo que aqui proponho caminhos para que
o professor de literatura possa promover práticas emancipatórias e empoderadoras
em qualquer um desses cenários. Aliado a isso, muitos outros aspectos do cotidiano
escolar (matrizes curriculares engessadas, provas diagnósticas que não aparentam
se preocupar com o letramento literário, pressão constante para aumento de notas
como o IDEB entre outros) colocam o professor numa situação delicada, quase co-
mo um refém de um sistema escolar público cada vez mais positivista e fissurado
por índices de aprovação mascarados.
529
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Esses fatores parecem configurar um solo um tanto infértil para que a li-
teratura possa germinar enquanto um saber que empodere por meio de práticas
de letramento literário. Entretanto entendo que tais entraves devem potencializar
tomadas de posição de um lugar de luta, em que o professor de literatura, durante
as práticas de letramento literário, também se reconheça como um aprendiz, um
sujeito subversivo que tome o ensino da literatura como forma de humanizar-se,
humanizar os seus alunos e, acima de tudo, empoderá-los e empoderar-se da/pela
literatura que, infelizmente, foi cristalizada como um discurso que representa um
prioritário das elites culturais e econômicas do país.
530
Estudos Literários
531
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
3 O conceito de referencialidade polifônica é uma imprescindível tomada de posição desse estudo, pois re-
presenta a “heterogeneidade subjacente às bases discursivas do imaginário sociodiscursivo dos sujeitos. Essa
heterogeneidade, por sua vez, é transpassada por discursos distintos. Dessa maneira, as vozes dos sujeitos são
entrecortadas por várias outras vozes e por vários outros discursos” (SANTOS, 2000, p. 231). Assim, as ins-
tâncias-sujeito inscritas no processo de ensino-aprendizagem de literatura (professor, aluno-leitor, autor, per-
sonagens das obras) devem ser concebidas sempre sob a égide dessa heterogeneidade de vozes sujeitudinais.
532
Estudos Literários
533
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Lopes (2013, p.19) propõe a reflexão sobre um mundo glocalizado, em que o global
e o local se interpelam, se atravessam e se constituem de forma equipolente. Da
mesma forma, entendo que o professor de literatura que se inscreva nessa proposta
indisciplinar, ou seja, a partir de uma visão glocal do discurso literário, poderá se
valer inclusive do cânone para servir a práticas de letramento literário empodera-
doras. Logo, o mesmo texto que serve, eventualmente, como chancela para uma
escolarização canônica, poderá ser um instrumento discursivo de empoderamento
e construção de um protagonismo de alunos-leitores inscritos em grupos estigma-
tizados e em classes menos favorecidas.
Não é segredo que professores e alunos da escola pública, via de regra, repre-
sentam tais grupos e classes menos favorecidas, os quais veem-se constantemente
com suas vozes silenciadas, castradas em suas subjetividades, ou seja, inferiorizadas
pelo discurso acadêmico, político-pedagógico, econômico e canônico. A partir des-
se diagnóstico, reforço a postura ética e política proposta pela LA como constitutiva
dessa proposta de ensino de literatura, pois incita o professor a transgredir e pro-
blematizar a vida social a partir dos textos, para que possa contribuir para que os
alunos-leitores inscritos nas práticas de letramento literário possam se reconhecer
no discurso literário como sujeitos sociais que também fazem parte do mundo ético
e estético retratado na literatura.
Para tanto, sem receitas prontas, o professor de literatura deverá organizar
práticas de letramento que considerem, por exemplo, questões sociais e locais que
constituem a comunidade, questões de gênero, a luta feminista, os inúmeros fatores
que refletem a desigualdade social, os preconceitos raciais entre outras. Esses temas
representam, infelizmente, inscrições discursivas e/ou lugares sociais ocupados por
grande parte dos alunos da escola pública e, por conta disso, não podem ser ignora-
dos por um ensino de literatura que se objetive empoderador e inclusivo.
Considerações finais
Uma comunidade que se coloque sensível às questões sociais, à escola e, por
conseguinte, ao ensino de literatura, tem a obrigação ética de questionar teorias e
saberes os quais, sob diversas justificativas, excluem, silenciam, castram, marginali-
534
Estudos Literários
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536
Estudos Literários
537
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Processo de rememoração em
Desamparo
Ulysses Rocha Filho1
O letramento literário se define como práticas sociais que usam a escrita lite-
rária, considerando diversos contextos embora se destaquem no ambiente escolar,
portanto os filmes, seriados, gibis, best-sellers e demais práticas relacionadas, são
consideradas práticas de letramento. Faz-se necessário, analisarmos a prática literá-
ria levando em consideração o interesse do aluno em relação a leitura e a proposta
do autor ao utilizar as obras clássicas que influenciam o educando a busca do co-
nhecimento das obras passadas – o que reverbera em sua forma de narrar, a busca
pela identidade de seus personagens centrais e a alegoria (atemporal) de persona-
gem à margem da vida real.
Sabe-se dos enfoques pedrosinos recorrentes que são ratificados no proces-
so narrativo do romance Desamparo (2016), tais como: a amizade, a memória e o
erotismo nos romances: A Instrução dos Amantes (1992), Nas tuas Mãos (1997),
Fazes-me Falta (2002), A Eternidade e o Desejo (2007), Os Íntimos (2010), Dentro de
Ti Ver o Mar (2012), Desamparo (2015 ). Além dessa constatação, a urgência de uma
narrativa diferenciada, sob diversos ângulos e depoimentos e, não raramente, tipos
textuais diferenciados em suas narrativas espiraladas.
Dessa feita, em Desamparo, novas perspectivas insurgem: processos narra-
tivos sob a ótica de 05 personagens/narradores, a memória coletiva somatizada às
experiências individuais, a (e)migração além do caleidoscópio do “falhanço”/de-
samparo das relações humanas e da “vida” de personagens que se encontram na
fronteira da vida/morte já constantes desde seus primeiros romances.
Um país onde cada um parece existir por conta própria mas sempre muito de-
pendente da opinião dos outros. Um país rural que parece dar uma espécie de imuni-
1 UFG/RC, [email protected]
538
Estudos Literários
2 Como cenário de toda a narrativa – é quase uma personagem –, encontra-se sempre presente o momento
histórico de Portugal no início do século XXI, debatendo-se com uma crise económica sem precedentes.
539
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
O enredo é relatado por quatro vozes que se revezam ao longo dos trinta e
cinco capítulos do livro: o narrador, a personagem Jacinta Sousa, o personagem
Raul Sousa e a personagem Clarisse Garcia.
A meio do romance, o filho Raul assume o protagonismo da história e o
leitor depara-se então com o impacto que a morte da mãe tem sobre ele. A vida
de Jacinta e dos seus pais passa a aparecer pontualmente, através das recordações
de Raul. É então que surge a personagem Clarisse, uma ex-jornalista também ela
a recomeçar a vida em Arrifes e que, por via do amor, vai redimir Raul dos seus
fantasmas de culpa e solidão.
Os narradores são vários, alternando ao longo do romance de maneira a de-
senvolver o retrato sem complacências de um país em crise económica (e talvez
outras) que Inês Pedrosa se propôs escrever, tendo como principal pano de fundo
um lugar rural imaginário. “Portugal visto dali é uma paisagem medieval com água
potável e confortos modernos.” É a partir desta aldeia, ou nesta aldeia, que as his-
tórias se cruzam, e são várias, chegadas de outros lugares em Portugal e no Brasil.
540
Estudos Literários
Nas noites de solidão navego pelas redes sociais, crio um personagem cíni-
co, crítico: provoco, insulto, insultam-me, vou procurando fazer que existo
assim», na visão de Raul, que continua a afirmar que há «muito tempo que
não troco ideias ou interajo com um amigo de carne e osso. Onde estarão?
Emigraram? Com a crise parece que sumiram. (PEDROSA, 2016, p. 126)
541
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Desamparo “regressa”, por motivos de força maior, a Portugal para resolver os con-
flitos familiares, sendo este último, o destino almejado por Raul, seu filho.
O romance, à semelhança de um mosaico, apresenta as personagens de for-
ma minimalista ao mesmo tempo que procura definir os seus espaços identitários,
descobrindo novos valores (ou procurando entender os antigos). Esta busca de
identidade é feita a par de uma tentativa de redefinir pontos de orientação para as
suas vidas, de acender faróis na longínqua praia dos afetos ao largo da qual navegam
à bolina, isto muito à semelhança de outros romances anteriores dessa autora – te-
mática recorrente nos romances da autora entretanto, sempre diferenciando em sua
apresentação e constituição/reconstituição das personagens envolvidas em eventos
de sua (constante) epopeia.
Os ciclos de partidas e chegadas se repetem na trama de Desamparo: Jacinta
migra para o Brasil com o pai. Meio século depois retorna à Portugal para cuidar da
mãe. Raul abandona o Brasil e aterrissa em Portugal tocado pela falta de emprego
e pelos relacionamentos falidos no Rio de Janeiro. O trânsito carrega as mazelas
existenciais de ambos os sujeitos migrantes.
Em crise diante da rejeição pelo olhar do outro, eles procuram superar os
desencontros e a solidão por meio de estratégias de sobrevivência na sociedade
contemporânea e cada vez mais desigual: “Havia um novo êxodo da cidade para o
campo; empresários na falência que entregavam as casas e os carros aos bancos e
asseguravam, nas capas das revistas, que o regresso à terra era a solução da crise.”
(PEDROSA, 2015a, p. 37).
“Um silêncio em bruto, como se o torno do mundo não tivesse ainda começado
a rodar”, assim principia o romance de Inês Pedrosa em epígrafe, Desamparo. Trata-
se do sétimo romance da escritora portuguesa Inês Pedrosa3 publicado em 16 de
fevereiro de 2015 pelas Publicações Dom Quixote e, também, editado no Brasil em
Agosto de 2016 pela Leya (conforme, podemos perceber, nas respectivas capas, que
3 Inês Pedrosa nasceu em 1962. Licenciada em ciências da comunicação pela Universidade Nova de Lisboa,
trabalhou na imprensa, no rádio e na televisão. Dirigiu a revista Marie Claire entre 1993 e 1996. Foi diretora da
Casa Fernando Pessoa entre 2008 e 2014. Mantém há 13 anos uma crônica semanal no periódico Sol. Tem 23
livros publicados, entre romances, contos, crônicas, biografias e antologias. A sua obra encontra-se publicada
no Brasil, em Portugal, na Espanha, na Itália e na Alemanha. Recebeu o Prêmio Máxima de Literatura com os
romances Nas tuas mãos e Os íntimos.
542
Estudos Literários
Este romance principia com a queda de Jacinta Sousa, mulher de idade avan-
çada, no pátio ensolarado da sua casa em Arrifes4 (“A mulher caiu perto da porta,
longe das duas árvores do quintal, sobre a laje ardente, inundada de sol”. p. 07). Le-
vada para o hospital, debate-se em delírios entre a vida e a morte e revisita sua vida,
sua saga, enfim, com o intuito primeiro de se descobrir.
Cabe, de pronto, ressaltar que não se trata de obra meramente autobiográfi-
ca, conforme o narrador relata suas memórias no tempo da narração, rememora seu
passado adormecido e materializa as lembranças desse passado no romance. Nas
histórias narradas/contadas/rememoradas, as experiências vividas pelos sujeitos do
narrado caminham no sentido contrário, da presença para a ausência, adentrando
o esquecimento e também a memória.
Assim, apreende-se os modi operandi sobre os quais esses dois percursos são
encenados nos discursos (ditos autobiográficos) sobre o percurso da lembrança
presente e o percurso do esquecimento passadio.
4 Segundo relatos, a história transcorre em Arrifes, uma pequena povoação a 8 km da Vila de Lagar (uma
milenar cidadela medieval), por sua vez próxima de uma cidade de média dimensão, Termas do Rei.
543
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Arquitetando Memórias
Símbolos de suas gerações, seus personagens encontram-se envolvidos na
tarefa de arquitetar suas vidas, processo em que a memória, entendida na cons-
trução tanto do lembrar como do esquecer, desempenha papel relevante na forma
narrativa e na representação de sua personalidade – sempre desconhecida pelos
envolvidos na teia narrativa mais próxima – com as imbricações entre a memória
individual e social, segundo concepções e aportes teóricos de Maurice Halbwachs
e de Aleida Assmann, que refinam o pensamento do sociólogo francês acerca da
memória coletiva, de forma a descrever melhor sua complexidade.
Para que essa memória seja resgatada, é indispensável o papel dos narradores
(e a forma do narrar, que são plurais) na condução do enredo, penetram no interior
dos personagens e desarticulam o tempo, pois é na descontinuidade temporal que,
muitas vezes, contrapõe o presente e passado memorialístico. Essa é a temática,
sob o olhar das personagens femininas nos romances da escritora portuguesa Inês
Pedrosa e temática dos últimos capítulos desse estudo sobre a autora portuguesa.
Halbwachs (2013) ressalta que os fenômenos de recordação e de localização
das lembranças não podem ser efetivamente analisados se não for levado em consi-
deração os contextos sociais que atuam como base para o trabalho de reconstrução
da memória.
No percurso narrativo de Jacinta, Raul, Clarisse, Alice, do tão “ausente” Ra-
fael ou de Ramiro há uma ausência gritante de auxílio e de proteção. São persona-
gens íntimas de uma boa parcela da população portuguesa, com um cenário e histó-
rias cada vez mais paralisadoras devido à ausência de valores em todas as gerações,
retratada em vários capítulos da obra.
Às portas da morte, a narradora-mor Jacinta rememora sua vida de alegrias
e tristezas no Brasil, a infância infeliz, a indiferença afetiva do pai em simultâneo
com a ausência da mãe, as relações conjugais falhadas, a relação conflituosa com o
filho mais velho, a vida no Rio de Janeiro na primeira metade do século XX. Este é
o retrato, rememorado, de sua vida aparentemente simplória. O que se caracteriza
uma revisitação individual existencialista, na verdade, se metamorfoseia para uma
identificação de caráter universalizante.
544
Estudos Literários
545
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Tenho uma relação muito forte com o Brasil. Comecei muito jovem por ler
prosa e poesia do Brasil, e é outro mar da mesma língua. A história da litera-
tura brasileira e da portuguesa confundem-se. O Padre António Vieira, pelo
qual tenho um enorme fascínio, é português e brasileiro, numa época em que
não havia ainda essa distinção. É uma relação que me interessa trabalhar, e faz
sentido na atualidade porque vemos, desde o século XIX, a emigração de por-
tugueses para o Brasil. Existe agora emigração do Brasil para cá, e tem sido
pouco tratada na literatura. Nós julgamos que somos muito próximos, mas
temos diferenças grandes. Estar no Brasil permite-me olhar para Portugal de
outra maneira e vice-versa. Há um distanciamento que amplia a minha visão
dos dois países. Sinto-me muito do Brasil. O trabalho da língua portuguesa
passa muito por essa ligação, muito mais do que os artigos burocráticos dos
acordos ortográficos, e por um conhecimento e reconhecimento entre as du-
as formas de brincar, trabalhar a aprofundar a língua portuguesa.5
5 https://www.jn.pt/artes/interior/ines-pedrosa-escrever-e-destruir-a-solidao-4439266.html
546
Estudos Literários
Para que essa memória fosse resgatada, tornou-se indispensável o papel dos
narradores (e a forma do narrar, que são plurais) na condução do enredo, pois pe-
netraram no interior dos personagens outros e desarticulam o tempo. Na descon-
tinuidade temporal haverá, sempre, a contraposição do presente com o passado,
mormente designado, memorialístico. Essa é a temática, sob o olhar, não se pode
esquivar dessa máxima, das personagens femininas nos romances da romancista
Inês Pedrosa e temática das últimas linhas desse estudo inicial da obra em relevo.
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547
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
548
Estudos Literários
Beleza fatal: A
sobrenaturalização da figura
feminina em “A Queda da
Casa de Usher” e “O Carro da
Semana Santa”
Yasmin da Silva Rocha1
Introdução
O presente trabalho é resultado de estudos realizados, nos quais foram con-
siderados aspectos sobre a literatura fantástica, o Gótico, o Decadentismo e a figura
feminina nos contos do autor norte americano Edgar Allan Poe e do escritor bra-
sileiro João do Rio. No desenvolver desta pesquisa, buscaremos mostrar à luz de
textos críticos sobre o Decadentismo e o Gótico, como ocorre a sobrenaturalização
da figura feminina nos contos “A Queda da Casa de Usher” (1839) de Edgar Allan
Poe e “O Carro da Semana Santa” (1910) de João do Rio.
Nos contos a serem trabalhados realizaremos observações sobre as represen-
tações femininas nos contos, à luz das teorias consultadas. Vislumbrando a contri-
buição social do presente trabalho, faremos uma discussão de como no decorrer
dos anos as mulheres foram adquirindo sua força e lugar em uma sociedade co-
mandada por homens. Teremos duas perspectivas diferentes acerca do feminino.
Enquanto em um dos contos, a mulher é delicada e frágil, no outro se trata de ser
independente e subversiva. Os dois contos foram escritos por autores em lugares e
1 Graduada em Letras Português e Inglês, pela Unidade Acadêmica Especial de Letras e Linguística da Univer-
sidade Federal de Goiás – Regional Catalão (UFG - RC). Especialização em Metodologias do Ensino de Língua
Portuguesa e Estrangeira, pelo Centro Universitário Internacional (UNINTER), [email protected]
549
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
épocas diferentes, porém a perspectiva nos contos de ambos será de grande contri-
buição para a presente pesquisa.
Especificamente apontaremos as transformações da tradição gótica inglesa
oitocentista no contexto norte-americano e brasileiro do século XIX, além do diá-
logo existente entre a obra de Poe e a escrita decadentista brasileira de início de
século XX e por fim, analisaremos o espaço ocupado pelas personagens femininas
na literatura e sua reverberação no Brasil da Belle Époque.
Neste sentido, tanto Edgar Allan Poe através da ênfase no racionalismo do
século dezenove, quanto João do Rio por meio do Decadentismo criaram em suas
obras, mulheres que contestavam os valores burgueses patriarcais independente-
mente de seus momentos históricos.
Desenvolvimento: O feminino
A figura feminina como se vê historicamente está sempre representada como
um ser misterioso e instigante, além de ser recorrente para a mulher estar associada
ao profano e causa principal da queda do homem (DOTTIN-ORSINI, 1996, p. 14).
Sendo assim, realizaremos aqui alguns apontamentos sobre como a figura feminina
tem sido constituída e representada em textos ao longo dos anos, assim como sua
representação na mitologia, na era medieval e vitoriana dos séculos XVIII e XIX e,
finalmente, como esses elementos aparecem refletidos na literatura decadentista de
Edgar Allan Poe e João do Rio.
Ao mencionarmossobre a mulher, vemos necessidade de expor a mitologia,
onde encontramos grandes contribuições em sua origem. Temos nessa, o suporte
que necessitamos para introduzir e explanar a nossa teoria de sobrenaturalização,
ocorrida desde então. Para compreender a questão presente nos mitos, iremos des-
tacar suas principais características como ser vivente do sexo feminino. Aqui usare-
mos a mitologia grega e celta, além de fazermos menções do que encontramos em
passagens e mitos cristãos.
A mitologia, mais especificamente, na mitologia grega e celta, podemos
constatar que a base de ambas começa com seres femininos. Para a mitologia grega,
temos Gaia (Gaîa); uma titã, conhecida também como Terra ou Mãe Terra, que faz
parte das Divindades originárias, criada logo após Caos (Kháos). Gaia foi capaz de
550
Estudos Literários
gerar sozinha Urano, Ponto e as Óreas, tendo sido Urano gerado como um ser igual
que a completasse e para a procriação. Este ser representa o princípio da terra e o
começo do universo grego. Como destaca o poema de Hesíodo abaixo:
551
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Vê-se que são designados com nomes femininos lugares ligados à fertilidade e a
terra. Para os celtas essas representaçõesfemininas estão ligadas à natureza, como
podemos ver na obra Mistérios Celtas de John Sharkey, onde temos diversas re-
presentações. Como exemplo, temos lugares como as colinas Dá Chichanann ou
“peitos de Anu”, que segundo Sharkey é uma deusa possivelmente idêntica a Danu,
a mãe ancestral dos celtas irlandeses, representada por duas colinas. Que se trata
de uma representação dos seios de uma deusa, as colinas as quais estão ligadas à
fertilidade. Vemos que em todas as culturas há mitos acerca da mulher, neste con-
texto, observamos inserida na tradição judaico-cristã o mito envolvendo a primeira
mulher de Adão.
Dentro da tradição judaico-cristã, Lilith surgiu como a primeira mulher de
Adão, criada do mesmo barro original que o primeiro homem, sendo, portanto,
igual a Adão e portadora dos mesmos direitos que seu marido. No entanto, ao bus-
car ser tratada como igual, Lilith foi rechaçada, e se isolou em uma caverna fugindo
de Adão e da História, resultando posteriormente na criação de Eva, esta sim incluí-
da na História como esposa (única) de Adão (HURWITZ, 2006, p. 85).
Nos aspectos sobre a figura da mulher, observamos que a mesma está de
contínua associação e representando vários mistérios. Sendo enxergada como um
homem incompleto ou um ser naturalmente inferior (MACEDO, 1990, p. 45). No
princípio da Idade Média, com diversos combates ocorrendo e o feudalismo cres-
cente, o ambiente ocupado pela mulher ocupava era o lar e suas obrigações restrin-
giam-se a cuidar da casa e da família (RICHARDS, 1993, p. 35). Neste cenário, o
matrimônio tinha como principal meta estabelecer relações de poder entre reinos.
Sendo assim, o casamento era a celebração de um pacto entre duas famílias. A mu-
lher deveria exercer sua já esperada passividade na sociedade, e se sujeitar unir-se
ao rapaz que pagasse pelo dote. Os dotes poderiam chegar a valores altos, o que era
uma vantagem para a família da moça. Nessa época era crescente também o núme-
ro de jovens que eram enviadas por seus pais para conventos.
O casamento era algo importante na vida da mulher, tanto pelo pacto entre
duas famílias, quanto ao fato da união entre um homem e uma mulher. Apesar da
cerimônia e constituição do matrimônio, celebrado pela igreja, esta que também
tinha interesses envolvidos. A união ainda continuava a beneficiar aos homens. O
matrimônio, sacralizado, garantia a estabilidade das relações dominadas sempre pe-
552
Estudos Literários
Pois a cristandade foi, desde seus primórdios, uma religião negativa quanto
ao sexo. Isso significa dizer que os pensadores cristãos encaravam o sexo, na
melhor das hipóteses, como uma espécie de mal necessário, lamentavelmente
indispensável para a reprodução humana, mas que perturbava a verdadeira
vocação de uma pessoa – a busca da perfeição espiritual, que é, por defini-
ção, não sexual e transcende a carne. É por isso que os ensinamentos cristãos
exaltam o celibato e a virgindade como as mais elevadas formas de vida (RI-
CHARDS, 1993 p. 34).
553
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO
Sendo assim, o sexo não poderia ser usado para mero prazer, sendo conside-
rado por teólogos medievais pecado mortal. Práticas homossexuais, masturbação e
prostituição também eram condenadas. (RICHARDS, 1993, p.34). Em tudo isso o
papel da mulher ainda continuava o mesmo: as mulheres eram herdeiras do pecado
inicial de Eva, que culminaram na expulsão do homem do Paraíso. Então, sobre a
mulher reinava o pecado, por conta de seu caráter maligno intrínseco, a mulher
era um ser o qual precisava ser disciplinado. As mulheres eram minoria na Idade
Média, de acordo com o que pudemos perceber em (RICHARDS, 1993, p.36) se
equivaliam às prostitutas, aos leprosos e homossexuais.
As mulheres viveram e vivem cercadas de preconceitos. No passado a mulher
era aquela que deveria ficar em casa, cuidar do marido, dos filhos e da casa. O ho-
mem era o provedor, o que deveria trabalhar e trazer o sustendo da família. Apesar
de estarem em uma posição sendo um ser inferior ao homem, não impediu o inte-
resse dos homens acerca dos mistérios, tais como o ciclo menstrual e as mudanças
para gestar uma nova vida. Dado esses elementos, podemos notar que o homem,
com o passar dos anos imbuiu a mulher de sobrenaturalidade.
Desta forma, cria-se a imagem de um ser responsável pela decadência do
homem, desde o paraíso quando Eva fora persuadida pelo Diabo para cometer o
pecado, incitando assim a ligação da mulher com seres das trevas. Vemos que o
espaço ocupado pelo ser feminino é descrito como a mulher sendo o ser que seduz
e o ser possuidor de diversos mistérios tal qual a gestação, o período menstrual e as
prostitutas como sendo seres marginalizados responsáveis pela sedução e os envol-
vimentos extraconjugais dos homens.
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Estudos Literários
E completa:
Fúfias dos bairros sórdidos esmolando com a opa das irmandades para o Se-
nhor Morto, bandos de rapazes estabelecendo o arrocho junto do altar-mór
para beliscar as nadegas das raparigas, adolescentes do commercio com os
olhos injetados roçando-se silenciosamente entre as mulheres, e mulheres,
muitas mulheres, raparigas vestidas de branco de azul, de cores vivas, ma-
tronas de luto fechado, pretas quasi apagadas em pannos negros, mestiças
cheirando a ether floral, com gargalhadinhas agudas, o olhar ardente, todas
como que picadas pela tarantula do desejo. (RIO, 1910, p. 258).
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Quando, porém, ia chegando ao Arsenal, lá dei com o carro outra vez, vasto
como um quarto, com o cocheiro impassível e os stores vermelhos. A sombra
cobria a calçada; no céo andava a Lua num estendal d’oiro pallido. Que esqui-
sito peregrinar! que estranha peregrinação! Abriguei-me no desvão de uma
porta. Passaram-se dez minutos assim, e era impossível apagar a anciedade
dos meus nervos para descobrir o enigma. A berlinda parecia tremer a capota
empoeirada sob o sudario do luar. Depois, rodou devagar, como se tivesse
uma alma e estivesse a disfarçar uma acção feia. (RIO, 1910, p. 264).
Espantoso. Já ouvi dizer que é uma mulher com bexigas, outr’ora bela. Um
dos convidados conseguiu, disse-me, ver-lhe a cara através do véu. Conta que
é queimada. Mas não. Outros asseguram que tem pustulas. É a lenda. A opi-
nião geral é mesmo a de ser uma formosa senhora de alta posição. Não! não
é nada d’isso. É apenas o horrivel vicio que se não vê, a luxuria exasperada...
(RIO, 1910, p. 268).
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— Tudo na vida é luxúria. Sentir é gozar, gozar é sentir até ao espasmo. Nós
todos vivemos na alucinação de gozar, de fundir desejos, na raiva de possuir.
É uma doença? Talvez. Mas é também verdade. Basta que vejamos o povo pa-
ra ver o scio que ruge, um scio vago, impalpavel, exasperante. Um deus morto
é a convulsão, é como um signal de porneia. (RIO, 1910, p. 259).
O carro usado pela mulher à procura de homens para que seus desejos sejam
saciados é também o local que ela usa para manter relações com os rapazes. Naquela
época, carro era exclusivamente para pessoas de alta classe. Sendo assim, podemos
tomar por conhecimento que a dama pertencia à alta sociedade da época.
O espaço neste conto é caracterizado pelo ambiente urbano das igrejas, as
ruas e, sobretudo o mais importante que era o carro usado pela personagem femi-
nina. Depois de escolher o rapaz que lhe mais agradava, a personagem recebia estes
rapazes em seu próprio automóvel. O local era onde ocorria tudo aquilo que era
condenado pela igreja naqueles dias.
Uma casa antiga, cujo a estrutura já está bastante decadente devido ao tem-
po, assim refletindo também a saúde e linhagem de seus habitantes. A família já
estava em seu fim, pois os únicos da linhagem dos Usher ainda vivos eram Roderick
Usher e sua irmã gêmea Lady Madeline. Os dois viviam juntos, numa casa onde
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Estudos Literários
uma rachadura de estendia do chão ao teto. A rachadura, que condenava a casa dos
Usher, e podia ser vista do lado de fora, assim diz o narrador.
O ambiente sobrenatural descrito pelo narrador faz uma conexão com o mo-
mento ao qual o personagem Usher está vivendo. O dono da casa (ou solar em algu-
mas traduções), está passando por um momento, em que não consegue sair de sua
casa, ver a claridade ou ouvir som muito alto. Lady Madeline, por sua vez, também
tem uma saúde debilitada, a jovem que vagamente aparece ou é citada no conto. Sua
ausência no ambiente da casa é notada pelo amigo de Roderick Usher. Mas o irmão
de Lady Madeline defende, que a ausência deve ser um comportamento normal de
sua irmã.
Em algumas pesquisas, tal como a de (VIEIRA, 2009) podemos observar que
é recorrente os estudiosos apontarem haver entre Roderick Usher e sua irmã Lady
Madeline um relacionamento incestuoso e a decadência de sua linhagem se deve
ao tal ato e estilo de vida levado pela família. Como explicita Vieira em seu artigo:
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Durante a estadia do narrador na casa dos Usher, pode notar a quão debilita-
da estava à saúde de seu amigo Roderick. Porém, misteriosamente acontece a morte
da frágil jovem Lady Madeline, e logo, seguida de um estranho pedido de Roderick,
para que seu amigo ajudasse a enterrá-la na parte inferior da casa. O amigo dos
Usher acredita que o pedido é totalmente estranho, porém Roderick explicou que
este caso poderia atrair olhares de muitos médicos e da distância da residência que
se encontrava o jazigo da família.
O narrador e amigo, acaba acatando o pedido, mesmo percebendo o rubor
na face e seio da jovem decide, mesmo que temporariamente, sepultar o corpo da
jovem irmã de Usher. Ao final do conto, Roderick Usher confirma que a morte de
sua irmã, era na verdade manifestação da doença da qual a jovem sofria. A doença
que Lady Madeleine sofria era a catalepsia, uma doença rara que causa desmaios, é
usada em seus contos para refletir o que a sociedade temia na época. Temia-se que
ocorresse enterros de pessoas vivas.
Este medo/fobia de ser enterrado vivo é chamado de tafofobia, que é uma
neurose que se caracteriza exatamente por este medo. No trecho a seguir, nos mos-
tra como se dá a tafofobia nos dias de hoje.
Esta neurose era muito comum no passado e ainda era alimentada por diver-
sos relatos e contos. Um dos apoios que esta neurose tinha era o autor Edgar Allan
Poe, que em seus contos é recorrente a referência de pessoas enterradas vivas.
Após ajudá-lo a enterrar o corpo da jovem Lady Madeline. O narrador conta
que depois de algum tempo, passa a ouvir estranhos barulhos vindos do local; ba-
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rulhos como: gritos abafados e bramidos selvagens, que cada vez mais passam a ser
ainda mais constante. O narrador passa a temer o ocorrido com a irmã de Roderick.
Em uma noite de tempestade, começa a ler para Roderick, seu livro preferi-
do. Durante a leitura Roderick passou a confessar um crime, o crime que ele havia
cometido ao enterrar a própria irmã viva. Ao ouvir as palavras de Roderick, junta-
mente com passos em direção ao quarto, o narrador passou a ter medo. Ao abrir a
porta do local onde estavam, a imagem de Lady Madeline se figurava. Os irmãos
começaram uma luta corporal e caíram com eles a casa e sua enorme e misteriosa
rachadura desmoronam, não mencionado no conto, porém foi perceptível que os
irmão não sobreviveram. Sendo assim, o fim da linhagem dos Usher.
Os mantos brancos estavam maculados pelo sangue, e toda sua figura lívida
ostentava os sinais da amaríssima batalha. Por um momento ela ficou tre-
mendo e cambaleando de um lado para o outro no limiar da porta; logo, com
um urro grave, caiu sobre a figura do irmão e, nos últimos frêmitos da morte
agonizante, derrubou-o já sem vida ao chão, vítima dos terrores que havia
previsto. (POE, 2008, p. 134).
Após confessar que a enterrou viva, Ruderick Usher e a irmã Lady Madeline,
a moça ainda coberta por talas brancas, maculadas por sangue, cai o irmão. Os dois
irmãos desabam mortos como se numa briga. Assim refletindo ainda sobre os do-
nos da casa, a casa desmorona junto com os proprietários, deixando assim o lugar
onde residiam em ruinas.
O local onde viviam, era a casa de Usher. A casa, onde podemos encontrar
Ruderick Usher e Lady Madeline é de suma importância no conto está presente no
título do mesmo. Dentro de teorias sobre a casa podemos ver que a casa reflete e
muito as atitudes do dono, e neste caso, dos donos.
Casa: Na simbologia de arquitetura, por outro lado, a casa leva não só uma
simbologia global, mas também associações específicas associadas a cada um
dos seus componentes. No entanto, a casa como uma casa desperta associa-
ções fortes, espontâneas com o corpo humano e o pensamento humano (ou a
vida, em outras palavras), como foi confirmado empiricamente por psicana-
listas (CIRLOT, 2001, p. 153, tradução nossa).
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Neste trecho podemos ver que, a casa dos Usher está ligada exatamente aos
personagens, refletindo a conduta e a saúde dos habitantes do local. Quanto à aber-
tura que divide a casa ao meio, rachadura esta que pode ser notada de fora da casa
pelo narrador. Encontramos também, a definição para tal fenda, disponível no mes-
mo dicionário de símbolos.
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ausente, porém são de suma importância para o enredo dos contos. As mulheres
presentes nos dois contos, apresentam uma postura inofensiva, porém ambas dis-
põem de uma beleza fatal que causa a decadência nos contos, para os homens dos
contos e na vida dos seus amantes. Sob o ser do sexo feminino vem a culpa, que a
causa da decadência dos homens com os quais elas convivem, é a causadora de todo
o mal e declínio dos indivíduos do sexo masculino que com elas se encontram.
Por fim, as duas histórias têm um espaço bem delimitado, uma o carro e a
outra a casa, em que ambos os personagens desafiam o defendido pela Igreja Católi-
ca Medieval, uma a postura profana e luxúria apresentada, em relação à festividade.
No conto os irmãos desafiam mantendo uma relação incestuosa, além do fato, que
o irmão enterrou a própria irmã ainda viva.
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