Língua (Gem) e Multiculturalismos Capítulo 2020

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Estudos Literários

Bruno Franceschini
Lucas Silvério Martins
Luciana Borges
Vanessa Regina Duarte Xavier (org.)

LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Estudos
Literários

1
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

2
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Estudos
Literários
Conselho Editorial
Ana Cristina Teixeira Bonecker
UFRJ - Univ. Federal do Rio de Janeiro
Assed Naked Haddad
UFRJ - Univ. Federal do Rio de Janeiro
Betina Ribeiro Rodrigues da Cunha
UFU - Univ. Federal de Uberlândia
Carlos Alberto Lopes
ISPA - Instituto Universitário de Ciências
Psicológicas, Sociais e da Vida (Portugal)
Claudia Costa Bonecker
UEM - Univ. Estadual de Maringá
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UaB - Univer. Aberta de Lisboa (Portugal)
Nuno Henriques
UCP - Univer. Católica do Porto (Portugal)
Sérgio Luiz Costa Bonecker
UFRJ - Univ. Federal do Rio de Janeiro
Bruno Franceschini
Lucas Silvério Martins
Luciana Borges
Vanessa Regina Duarte Xavier (org.)

LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Estudos
Literários

Rio de Janeiro, 2020


EDITORA BONECKER
Editora Bonecker Ltda
Rio de Janeiro
1ª Edição
Agosto de 2020

ISBN: 978-65-991480-1-9
Todos os direitos reservados.
É proibida a reprodução deste livro com fins comerciais
sem prévia autorização do autor e da Editora Bonecker.

Projeto Gráfico e Capa: Filipe Chagas

Os autores são responsáveis pela revisão


deste livro.

L755 Lingua(gem) e multiculturalismo: Estudos Literários, volume 2 /


Organizadores Bruno Franceschini, Lucas Silvério Martins, Lu-
ciana Borges, Vanessa Regina Duarte Xavier. – Rio de Janeiro (RJ):
Bonecker, 2020.
564 p. : 16 x 23 cm

Formato: PDF
Inclui bibliografia
ISBN 978-65-991480-1-9

1. Estudos Literários. 2. Estudos da linguagem. 3. Multicultura-


lismo. 4. Cultura. 5. Identidade. I. Título. II. V Simpósio Nacional de
Letras e Linguística e IV Simpósio Internacional de Letras e Linguís-
tica (SINALEL)
CDD 469.8
Sumário
Apresentação .................................................................................... 13
Bruno Franceschini, Lucas Silvério Martins, Luciana Borges e Vanessa Regi-
na Duarte Xavier

Dos livros que fazem o jovem leitor: O papel do


personagem-leitor em narrativas juvenis ........................................ 27
Agatha Camila Ferreira Araújo e Silvana Augusta Barbosa Carrijo

Corpos heterotópicos ou o lugar das personagens


em Van Helsing: O caçador de monstros ........................................... 39
Alisson Cardoso da Silva

O insólito e o onírico em “A mão no ombro”,


de Lygia Fagundes Telles .................................................................. 51
Amanda Letícia Falcão Tonetto

Paulo Leminski: Da vanguarda concretista à expressão


da “várzea” ...................................................................................... 63
Ana Érica Reis da Silva Kühn

O papel de parede amarelo, de Charlotte Perkins Gilman:


Um diálogo entre literatura e direito ............................................... 75
Ana Luiza do Nascimento Paulo e Lilliân Alves Borges

Machado de Assis para jovens: Um encontro do clássico


com a formação do cidadão contemporâneo ................................... 91
Ana Maria Franco
Heloneida Studart em trilogia: A mulher apresentada e
representada em “O estandarte da agonia” .................................. 104
Beatriz Mendes e Madruga

A inserção do romance A festa, de Ivan Ivan Ângelo na


contemporaneidade ........................................................................ 117
Brenno Fernandes Soares e João Batista Cardoso

Abrindo o envelope: Confluências entre o estudo de cartas


e o processo de criação literária ..................................................... 129
Carlos Augusto Moraes Silva, Betina Ribeiro Rodrigues da Cunha e
Aparecida Maria Nunes

Linguagem e multiculturalismo em obras literárias O Cortiço -


Aluísio de Azevedo, e Sertão sem fim - Bariani Ortêncio ............... 145
Daiane Dizielle Meireles Soares e Idelvone Mendes Ferreira

A recepção de Fábula Fingida, de Heleno Godoy, na escola ........... 158


Danielle Lopes Rodrigues e Nismária Alves David

O fazedor de velhos: Reflexões de um adolescente sobre o eu,


a passagem do tempo e a literatura .............................................. 172
Dayse Rodrigues dos Santos e Silvana Augusta Barbosa Carrijo

Cortando a carne: As fronteiras entre o serial killer e o


canibal no cinema .......................................................................... 182
Estela Fiorin e Alexander Meireles da Silva

Figurações contemporâneas do envelhecimento e da velhice


em representações literárias .......................................................... 199
Felipe Matheus de Oliveira Braga e Ulysses Rocha Filho
Do lampejo da vida à escuridão eterna: Amor e morte
em “Venha ver o pôr do sol” .......................................................... 210
Fernanda L. Oliveira Santos e Guilherme Weber Gomes de Almeida

O Senhor dos Anéis: Espaços e lugares fantásticos e


maravilhosos .................................................................................. 221
Francisco de Assis Ferreira Melo e Alexander Meireles da Silva

A leitura de O Tronco em sala de aula ........................................... 238


Geovana Ferreira de Araújo e Nismária Alves David

O objeto mágico na terra das fábulas italianas ............................. 250


Helen Cristine Alves Rocha

Desafios do ensino da literatura .................................................... 266


Igor D’Aguiar Siqueira de Lemos, Danielle Rodrigues Alves e
João Batista Cardoso

Memória e velhice no conto “A rica fazendeira de cacau” ............. 278


Juliana Cristina Ferreira

O fantástico no cinema: Relações e contribuições entre


literatura e cinema ......................................................................... 291
Jullyana Franciely Vieira de Souza

O espaço da literatura de autoria indígena no contexto escolar ... 299


Letícia Santana Stacciarini

“Apagar-me, diluir-me, desmanchar-me”: O (não) lugar do


sujeito na poesia de Paulo Leminski .............................................. 314
Lidiane Alves do Nascimento
Pequena história da república, de Graciliano Ramos:
Entre o real e o imaginário ............................................................ 327
Lilliân Alves Borges

A autobiografia e literatura: Desdobramentos de uma


aproximação ................................................................................... 338
Luana Marques Fidêncio

Entre a doçura dos sonhos e a amargura do real na


narrativa juvenil um sonho no caroço do abacate ......................... 356
Lucas Silvério Martins e Silvana Augusta Barbosa Carrijo

A criação poética de Paulo Henriques Britto .................................. 370


Maísa de Oliveira Mascarenhas e Goiandira de F. Ortiz de Camargo

A representação do feminino da farsa de Inês Pereira .................. 383


Maísa de Oliveira Mascarenhas

Expressividade lírica de Cora Coralina ........................................... 401


Martha Bonach Gomes

As facetas do sucesso na jornada de Harry Potter:


O herói detetive .............................................................................. 413
Milena Lourenço da Silva e Alexander Meireles da Silva

Crônica moderna: Hibridismo entre literatura e jornalismo .......... 427


Moema de Souza Esmeraldo

Geografia, literatura e negritude: Ensino para a diversidade


pelo olhar de Valentina (VASSALO, 2007) ...................................... 443
Mychelle Priscila de Melo
Uma análise retórica do pathos nas pinturas de 1917 de
Anita Malfatti .................................................................................. 458
Nayara Christina Herminia dos Santos

A mulher, os padres da igreja e o seu legado medieval:


Representações misóginas .............................................................. 475
Pedro Carlos Louzada Fonseca e Márcia Maria de Melo Araújo

O relato ditatorial em Azul Corvo, de Adriana Lisboa .................... 487


Renata Rocha Ribeiro

Paródia e resistência ...................................................................... 499


Ricardo Alves dos Santos

O lado sombrio das emoções: Análise do filme


Relatos Selvagens, de Damián Szifron ........................................... 510
Sulivan Charles Barros

Por ensino de literatura responsivo e responsável ........................ 523


Thyago Madeira França

Processo de rememoração em desamparo ..................................... 538


Ulysses Rocha Filho

Beleza fatal: A sobrenaturalização da figura feminina em


“A queda da casa de Usher” e “O carro da semana santa” .......... 549
Yasmin da Silva Rocha
Estudos Literários

Apresentação

O V Simpósio Nacional de Letras e Linguística e IV Simpósio Internacional


de Letras e Linguística (SINALEL), promovido pela Unidade Acadêmica Especial
de Letras e Linguística (UAELL) e pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos da
Linguagem (PPGEL), da Universidade Federal de Goiás/Regional Catalão (UFG/
RC), teve como tema “Língua(gem) e Multiculturalismo”. Nessa perspectiva, faz-se
necessário a discussão acerca das múltiplas questões culturais, que perpassam, neste
interim, a história e a sociedade. Assim, os textos que compõem este volume tratam
da relação dos temas abordados sob a perspectiva dos Estudos Literários no escopo
dos Estudos da Linguagem, das relações multiculturais e da nossa atualidade, em
tempos de um evidente esfacelamento do Estado democrático e do crescente des-
prezo pelas humanidades no cenário nacional.
O presente volume inicia-se com o artigo intitulado Dos livros que fazem o
jovem leitor: o papel do personagem-leitor em narrativas juvenis, de Agatha Camila
Ferreira Araújo e Silvana Augusta Barbosa Carrijo, o qual aborda a apropriação cul-
tural propiciada pela leitura literária realizada durante a juventude, tendo como cor-
pus a obra Os Livros que Devoraram o Meu Pai, do português Afonso Cruz (2011),
cuja temática incide sobre a relação entre texto e leitor. O papel transformador da
leitura pela criança e o adolescente na construção de si e do outro nas mais diversas
práticas sociais em que estão inseridos também é alvo de discussão do texto. Nesse
sentido, destaca-se, ainda, a importância da leitura literária na juventude, possibili-
tando-se ao leitor “enxergar a vida de uma maneira diferente”.

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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Na sequência, em Corpos heterotópicos ou o lugar das personagens em Van


Helsing: o caçador de monstros, de Alisson Cardoso da Silva, a obra fílmica mencio-
nada em seu título é analisada, tendo como foco o insólito sob o qual constrói-se o
horror que matiza os personagens e suas espacialidades. Para tanto, o texto ancora-
se nos conceitos de heterotopia e utopia, de Michel Foucault, e de liso e estriado,
cunhadas por Deleuze e Guattari. Analisa-se também o gênero em que se insere
a narrativa, que consiste em uma releitura da obra de Bran Stoker. Focalizam-se,
portanto, os espaços em que se situa o corpo monstruoso (resultante de uma sim-
biose entre humano e sobrenatural), inabituais e eivados de exagero, como forma de
transgressão do real e da normalidade.
No artigo O insólito e o onírico em “A mão no ombro”, de Lygia Fagundes
Telles, Amanda Letícia Falcão Tonetto analisa “os elementos utilizados pela autora
para a ocorrência do metaempírico e da construção insólita na narrativa, com fo-
co na espacialidade do jardim, cenário principal da história”. Além disso, a autora
apresenta inter-relações do conto que constitui o corpus da investigação com outro
de mesma autoria, a saber, “A caçada”, pois também este usa recursos similares para
causar hesitação e dissolução abrupta do insólito na narrativa. A atmosfera do so-
nho e a realidade empírica estão inter-relacionadas no conto em estudo, cuja análise
perpassa pelos estudos de Freud. O fantástico insurge no sonho do personagem,
permeado por incertezas, medos etc.
Ana Érica Reis da Silva Kühn, no texto Paulo Leminski: da vanguarda con-
cretista à expressão da “várzea”, problematiza a migração da produção poética de
Paulo Leminski, do movimento concretista, voltado para um público “douto”, para
uma “várzea poética”, entendida no texto como o lugar de encontro com um público
maior. Para alcançar tal propósito, ela analisa que o poeta valeu-se da coloquiali-
dade, do humor, da ironia, de temas do cotidiano, de poemas breves a serem lidos
instantaneamente pelo leitor etc. Na produção poética em questão, muitos poemas
constituíram letras de canções, devido à interface música e poesia. Além disso, se-
gundo a autora, o poeta também tece uma crítica ao consumismo exagerado. A
autora conclui, ante o exposto, que o poeta não se dissociou plenamente do concre-
tismo, uma vez que este foi parte importante na formação poética e intelectual dele.
Em O papel de parede amarelo, de Charlotte Perkins Gilman: um diálogo entre
Literatura e Direito, Ana Luiza do Nascimento Paulo e Lilliân Alves Borges refletem

14
Estudos Literários

sobre o papel da mulher “a partir do primeiro grupo de controle do discurso pro-


posto por Michel Foucault em A ordem do discurso – interdição, segregação e Von-
tade de Verdade”. Dialogando com o Direito, propõem-se a demonstrar que o lugar
da mulher em fins do século XIX também encontrava-se delineado no conjunto de
leis então vigentes. Como se vê, o conto selecionado como corpus deste estudo é um
clássico da literatura feminista e revela direitos e deveres diferentes conforme o gê-
nero, em consonância com os padrões da sociais da época. Por conseguinte, mostra
que o discurso da personagem principal do conto é oprimido e silenciado e sua infe-
rioridade em relação às pessoas do gênero masculino era respaldada pela legislação.
O texto seguinte, intitulado Machado de Assis para jovens: um encontro do
clássico com a formação do cidadão contemporâneo, de Ana Maria Franco, tem por
objetivo central “estabelecer relações concretas entre leitura, Literatura e realida-
de por meio de novas abordagens e estratégias no ensino de contos Machadianos”,
atendendo às expectativas dos alunos e estreitando a distância entre os conteúdos
presentes em sala de aula e o seu cotidiano. Assim, o trabalho espera contribuir
com o estímulo à leitura crítica, desenvolvendo o gosto pela leitura aprofundada,
a partir de uma reflexão sobre o ensino de Literatura. A base principal do estudo é
constituída pelos métodos criativo e recepcional de ensino, que preveem um papel
ativo dos alunos no processo de ensino-aprendizagem, uma vez que o seu contexto
de aplicação consistiu em um ambiente de resistência ao texto literário e de falta de
hábito de leitura.
Beatriz Mendes e Madruga, em Heloneida Studart em trilogia: a mulher apre-
sentada e representada em “O estandarte da agonia”, analisa o romance referido,
considerando-se tal obra ficcional à luz do protagonismo da sua autora no movi-
mento feminista. O tema da narrativa é a busca de uma mãe pelo filho desaparecido
durante o período da ditadura militar, razão pela qual esta obra pode ser considera-
da de denúncia. Além disso, há uma importante representação da mulher, dos seus
papéis sociais, expectativas, comportamentos etc. e da sua assimetria em relação ao
masculino. Para a autora, haja vista que arte e política são indissociáveis, a produ-
ção literária em discussão não se desconecta do contexto da sua época e, portanto,
da atuação política. A personagem é obstinada e faz alusão ao desaparecimento do
filho da estilista Zuzu Angel durante o período ditatorial, que nunca foi encontrado.

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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

No texto A inserção do romance A festa, de Ivan Ângelo na contemporanei-


dade, de Brenno Fernandes Soares e João Batista Cardoso, o supramencionado ro-
mance, escrito em um momento de forte censura no Brasil em função da ditadura
militar – o que impediu a sua publicação à época –, é objeto de interface entre his-
tória e ficção. A obra caracteriza-se, segundo os autores, por “uma multiplicidade
de discursos que representam o real, atravessado por uma variedade de narradores
e modos de narrar”, em que a própria composição do romance revela o conturbado
momento político brasileiro. O texto que constitui o corpus desse estudo apresenta-
se como uma simbiose entre a História factual e a História ficcional, ao questionar
e problematizar o golpe pelas vozes de personagens de camadas sociais distintas e
uma maneira muito particular de driblar a censura e difundir-se ao público.
No texto Abrindo o envelope: confluências entre o estudo de cartas e o processo
de criação literária, de Carlos Augusto Moraes Silva, Betina Ribeiro Rodrigues da
Cunha e Aparecida Maria Nunes, tematiza-se a importância do estudo de corres-
pondências para a Teoria e Historiografia Literária, apesar de terem sido relegadas
a segundo plano, durante muito tempo, pela Crítica Literária. Segundo os autores,
são escritos introspectivos e dispostos para o olhar do outro, que ajudam, muitas
vezes, a esclarecer sobre o processo de composição de algumas obras literárias. Por
conseguinte, tais escritos autobiográficos foram alçados à condição de objeto de in-
vestigação, para além de servirem como fontes de informação complementar sobre
alguma composição artística. A análise de cartas trocadas entre Clarice Lispector e
seus destinatários ora empreendida possibilita uma melhor compreensão sobre o
que o processo ficcional representou para a escritora.
Na sequência, Daiane Dizielle Meireles Soares e Idelvone Mendes Ferreira,
no texto Linguagem e multiculturalismo em obras literárias O cortiço – Aluísio de
Azevedo, e Sertão sem fim –Bariani Ortêncio, analisam as obras referidas, sendo a
primeira naturalista e a segunda regionalista, em perspectiva multicultural, com o
intuito de se elencarem diferentes contextos regionais, tais como o rural e o urbano.
Os autores destacam que a paisagem sofre modificações naturais e físicas, que mate-
rializam-se em signos, sendo o povoamento um fator determinante para tal. Desse
modo, as relações sociais e culturais matizam o espaço geográfico ou, nos dizeres
dos autores, “o espaço ocupado é moldado através do tempo pelos sujeitos que nele
atua e pela relação entre sociedade e natureza”.

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Estudos Literários

No artigo A recepção de Fábula Fingida, de Heleno Godoy, na escola, das au-


toras Danielle Lopes Rodrigues e Nismária Alves David é estudado um dos livros
de Heleno Godoy, a saber, Fábula Fingida. O objetivo das autoras, além de analisar
a recepção da supramencionada fábula no ambiente de aprendizagem escolar, tam-
bém foi o de “levar a leitura da obra e observar a recepção desta em sala de aula”,
sendo usada como escola-campo um colégio estadual do município de Pires do Rio
(GO). Assim, ao trabalhar tal literatura em sala de aula, as autoras concluem que a
oportunidade de usar tais materiais fomentaram, nos alunos, a prática de leitura, o
exercício de análise e interpretação, o conhecimento sobre o poeta Heleno Godoy, a
reflexão sobre a linguagem empregada pelo poeta, a discussão sobre o tema aborda-
do no livro e, ainda, uma motivação para o trabalho da escrita criativa dos alunos.
Na sequência, temos o artigo O fazedor de velhos: reflexões de um adolescente
sobre o eu, a passagem do tempo e a literatura, de Dayse Rodrigues dos Santos e Sil-
vana Augusta Barbosa Carrijo. O estudo analisa a obra O fazedor de velhos, de Ro-
drigo Lacerda, buscando identificar o modo como se constrói a identidade do pro-
tagonista da obra e, ainda, indagar sobre a consciência do tempo no personagem, a
influência da Literatura na vida cotidiana e a apologia à leitura de textos literários.
Na conclusão, as autoras destacam a força humanizadora da obra, a multiplicidade
de ferramentas que o autor lança mão para a construção do personagem, a comple-
xidade deste protagonista e, ainda, que “a linearidade dos fatos permite que mesmo
um leitor menos experiente se sinta confortável diante da estrutura composicional
da obra, assim como da contemporaneidade temática”.
Adiante, no artigo intitulado Cortando a carne: as fronteiras entre o serial
killer e o canibal no cinema, de Estela Fiorin e Alexander Meireles da Silva, os au-
tores objetivam “a partir de uma pesquisa exploratória e descritiva, realizar uma
trajetória do serial killer canibal real e sua representação no cinema, relacionando o
tempo e o espaço” das obras Jack Estripador (1888), e o personagem fictício Patrick
Bateman (Psicopata Americano, 2000). Dentre os resultados, os autores destacam a
relação entre as personagens ora citadas e os aspectos tempo-espacial das obras, e,
ainda, uma trajetória linear que pode ser traçada “sobre o canibalismo e como ele se
alastrou nas diferentes partes do mundo, por causa de guerras, rituais e até mesmo
como assassinatos de primeiro grau”.

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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

O artigo Figurações contemporâneas do envelhecimento e da velhice em re-


presentações literárias, de Felipe Matheus de Oliveira Braga e Ulysses Rocha Filho
objetivou analisar os meios como a autora Adélia Prado aborda temas como o enve-
lhecimento e a velhice em sua obra, evidenciando os tabus, preconceitos e a margi-
nalização do espaço literário e social. Fazendo uma análise crítica da obra A duração
do dia (2010), da supracitada autora, os estudiosos observaram, ainda, “os aspectos
verbais e imagéticos da obra, atentando tanto para seu conteúdo textual quanto
para o conteúdo visual, constituintes, juntas, de uma obra complexa e que trata de
assuntos tão relevantes”. Dentre os resultados encontrados estão a percepção de que
a obra configura-se como resistência frente aos preconceitos perpetuados contra
os mais velhos, a presença de multiplicidade de ferramentas promovedoras do dis-
curso literário e a capacidade estética de literatura que reverbera a voz feminina ao
lidar com o envelhecimento e a velhice.
Em seguida encontra-se o artigo Do lampejo da vida à escuridão eterna: amor
e morte em “Venha ver o pôr do sol”, de Fernanda L. Oliveira Santos e Guilherme
Weber Gomes de Almeida. Analisando o conto Venha ver o pôr do sol, de Lygia
Fagundes Telles, os autores tinham por objetivo observar a maneira delicada e pe-
culiar com o qual o conto foi construído e, ainda, indagar sobre “especial ênfase no
fazer narrativo adotado pela autora ao tratar o (des) amor e suas consequências,
[atentando] aos elementos macabros e de suspense que desembocam na morte”. A
partir da revisão bibliográfica sobre a obra e campos epistemológicos afins, os auto-
res realizaram um verdadeiro panorama analítico sobre a obra e sua estrutura, não
raramente perpassada por um tom fantasmagórico, e que evidencia tanto a ruptura
de um amor quanto o cessar de uma vida entregue à morte.
Em sequência encontra-se o artigo O senhor dos anéis: espaços e lugares fan-
tásticos e maravilhosos, de Francisco de Assis Ferreira Melo e Alexander Meireles
da Silva. Neste trabalho os autores pretendem “mostrar o que acontece ‘com’ e ‘nos’
espaços e lugares apresentados em O Senhor dos Anéis”, objetivando analisar o es-
paço e os lugares a partir das construções do fantástico na supracitada obra, evi-
denciando os envolvimentos narrativos. A partir de uma análise literária, os autores
concluem que os espaços presentes na obra constituem elementos da identidade
de alguns dos personagens que, por pertencerem a um lugar, torna aquele espaço

18
Estudos Literários

constituinte de si e de seu grupo. É destacado, ainda, o trabalho narrativo da obra,


evidenciando os meios de construção literária utilizadas pelo autor.
Adiante, é apresentado o artigo A leitura de O Tronco em sala de aula, de
Geovana Ferreira de Araújo e Nismária Alves David. O trabalho, que disserta sobre
a obra O tronco, de Bernardo Élis, “inicia-se com uma breve síntese do enredo de
O Tronco. Depois, comenta-se sobre o contexto histórico-cultural de produção do
referido romance. Por fim, oferece-se o relato das experiências obtidas em sala de
aula, destacando a importância das relações entre Literatura e História, bem como
a relevância do Cinema para a promoção da leitura literária na escola”. Ao con-
cluir, as autoras destacam a importância de apresentar e destacar autores goianos
no ambiente escolar; a discussão sobre a relação entre Literatura e História; o diá-
logo entre literatura e cinema e, por fim, frente ao escasso conhecimento percebido
pelos alunos, no que se refere à Literatura e História de Goiás, as autoras enfatizam
a apreciação dos alunos para com o conto ora apresentado, evidenciando a respon-
sabilidade da formação leitora.
Seguindo a leitura, temos o artigo O objeto mágico na terra das fábulas italia-
nas, de Helen Cristine Alves Rocha. A autora objetiva “analisar o lugar e o espaço
de manifestação do objeto mágico como um ponto de convergência narrativa dos
outros espaços e personagens” do conto A terra onde não se morre nunca, de Italo
Calvino. Outro objetivo da autora foi investigar quais os efeitos que o objeto mágico
desencadeia no contexto textual e a relação com outros espaços da narrativa. Acio-
nando os aportes teóricos necessários para a execução do estudo, a autora conclui
que o conto ora analisado “está dentro do que se conceitua como fantástico modo
ou dentro do que é designado como gênero maravilhoso, se tomarmos o mirante
do fantástico como gênero”, percebendo que os espaços do conto estão interligados
entre se e dão significados à obra.
Continuada a leitura, encontramos o artigo Desafios do ensino da literatura,
de Igor D’ Aguiar Siqueira de Lemos, Danielle Rodrigues Alves e João Batista Car-
doso. O artigo objetiva “traçar uma perspectiva acerca da literatura e suas contribui-
ções contínuas para história do Brasil, bem como, o ensino e sua forma de mediação
em relação à literatura”, destacando a importância da literatura no processo educa-
tivo e a relação entre sujeito e Estado. Ao concluir o artigo, os autores destacam a
importância da mediação de leitura em sala de aula, dando ênfase que o processo

19
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

precisa ser articulado, desenvolvido de modo planejado “é preciso reconfigurar e


reafirmar o poder da literatura, pois, é uma linguagem de expressão artística. Por
meio dela comunicamos o que sentimos, inventamo-nos e reinventamo-nos”.
Em sequência encontra-se o artigo Memória e velhice no conto “A rica fazen-
deira de cacau”, de Juliana Cristina Ferreira. O estudo objetiva “discutir o funciona-
mento e o papel da memória de Dona Agripina, personagem do conto A rica fazen-
deira de cacau, da obra O tempo é chegado (2001), de Euclides Neto”. A metodologia
utilizada é a pesquisa bibliográfica, tendo o conto supracitado como fonte para
identificar as lembranças que são coletivas, mesmo que sejam lembradas por uma
única personagem. Ao concluir o artigo, a autora destaca a construção literária da
obra, evidenciando sua capacidade estética; o discurso histórico fortemente presen-
te; as mudanças na vida da personagem que, construída em um tom humanizador,
retrata dores e alegrias; o poder da memória e a importância para a personagem
que revive cada lembrança, quando em sua velhice, para rememorar sua juventude.
O texto O fantástico no cinema: relações e contribuições entre literatura e ci-
nema, de Jullyana Franciely Vieira de Souza, discute, no âmbito das relações entre
literatura e cinema, as obras adaptadas ao cinema no escopo da Literatura Fantás-
tica ressaltando a importância de gesto analítico para a compreensão de tais obras
em seus aspectos literários e cinematográficos. A autora afirma que, no processo de
transposição de uma obra literária para o cinema, há um deslocamento do verbal
para o imagético, mobilizando outros signos para a construção da narrativa.
Letícia Santana Stacciarini é autora do texto O espaço da literatura de au-
toria indígena no contexto escolar, que visa a apresentação de autores indígenas e
suas contribuições literárias frente à formação do sujeito-leitor em seu percurso de
formação escolar. Stacciarini defende, ainda, que a exposição da literatura indígena
para os discentes em idade escolar é uma importante contribuição para a formação
de cidadãos críticos.
Em “‘Apagar-me, diluir-me, desmanchar-me’: o (não) lugar do sujeito na poe-
sia de Paulo Leminski, Lidiane Alves do Nascimento argumenta que a constituição
do sujeito na obra de Leminski se constitui na relação com o outro, em uma subver-
são da lógica cartesiana. A autora argumenta que o sujeito, por estar em constante
processo de construção, em batimento, também, com o eu lírico, é sempre renovado
pelo poema.

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Estudos Literários

O artigo Pequena História da República, de Graciliano Ramos: entre o real e


o imaginário, de autoria de Lilliân Alves Borges, reflete acerca da construção das
narrativas infantis pelo autor e seus aspectos estéticos para esse público. Borges
conclui que há um diálogo entre as obras do autor em suas questões estéticas, como
a criticidade e a ironia, além da questão do real e de construção da verdade.
Luana Marques Fidencio é a autora do texto A autobiografia e literatura: des-
dobramentos de uma aproximação. Ao longo do capítulo, discute-se o processo de
escrita de uma narrativa autobiográfica no gênero literário conto, tocando nas ques-
tões de ambiguidade e paradoxo nas narrativas ficcionais.
O artigo Entre a doçura dos sonhos e a amargura do real na narrativa juvenil
Um sonho no caroço do abacate, escrito por Lucas Silvério Martins e Silvana Augusta
Barbosa Carrijo, traz uma análise, no âmbito da Literatura Infanto-Juvenil, acerca da
narrativa que aborda a Shoah (o genocídio contra o povo judeu), bem como temas
atinentes a essa temática, como nazismo e o antissemitismo. Para Martins e Carrijo,
a obra em estudo é importante porque estabelece e mantém uma memória universal
da Shoah, frente à historicidade dos fatos, e, também, como um modo de manter
vivo o testemunho de quem vivenciou os males causados pelo antissemitismo.
Maísa de Oliveira Mascarenhas e Goiandira de F. Ortiz de Camargo, autoras
do texto A criação poética de Paulo Henriques Britto, discutem acerca do projeto
poético de Britto, cuja característica estética reside em uma consciência poética agu-
dizada, além da escolha temática e linguagem clara, evidenciando como, por meio
da autossondagem na poemática, se dá o deslocamento do sujeito lírico à linguagem.
Já em A representação do feminino na Farsa de Inês Pereira, também de auto-
ria de Maísa de Oliveira Mascarenhas, o texto tem por objetivo colocar em evidência
questões misóginas na obra em epígrafe. A autora argumenta que, segundo o pensa-
mento vigente à época, a mulher deveria ser submissa ao homem e que a obra de Gil
Vicente encontra-se em uma fase de transição entre a inovação e o conservadorismo.
Martha Bonach Gomes, em seu texto Expressividade lírica de Cora Coralina,
realiza um estudo acerca das questões literárias que permeiam a obra de Cora Co-
ralina e constituem a singularidade de seus poemas, os quais colocam em evidência
o espaço rememorado. Gomes explicita, ainda, a importância da memória na cons-
tituição estética dos poemas coralíneos.

21
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

As facetas do sucesso na jornada de Harry Potter: o herói detetive, escrito por


Milena Lourenço da Silva e Alexander Meireles da Silva, tem por objetivo analisar
os elementos do romance de detetive e do gótico na estrutura mítica da jornada do
herói na obra Harry Potter: e a pedra filosofal. Para os autores, a obra em estudo
galgou sucesso em decorrência do alinhamento entre a questão do maravilhoso e a
jornada do herói, em batimento com a fantasia, a ficção e a realidade, elementos que
compõem o romance de enigma.
O texto Crônica moderna: hibridismos entre literatura e jornalismo, de Moe-
ma de Souza Esmeraldo, traz uma abordagem sobre os modos de se compreender o
gênero crônica, tendo em vista a tentativa de desconstruir os chamados lugares co-
muns conceituais da crítica em relação a essa modalidade de produção, sempre con-
siderada na interface entre a literatura e o jornalismo. O texto apresenta, para além
das principais acepções da crônica, uma defesa de sua especificidade, a qual seria o
próprio hibridismo. Desvalorizada, por vezes, por sua efemeridade e dependência
em relação a acontecimentos externos, ou pela alteração de seus propósitos quando
migra do suporte do jornal ou páginas on line para publicação em livro, a crônica
é lida no texto como tendo sua principal linha de força justamente nesse equilíbrio
frágil entre gênero literário e jornalístico e entre produção estética e midiática.
Mychelle Priscila de Melo, em Geografia, literatura e negritude: ensino para
a diversidade pelo olhar de Valentina (VASSALLO, 2007), toma a constatação da
invisibilidade ou da distorção na representação dos negros e negras nos livros di-
dáticos de Geografia, como ponto de partida para propor uma aproximação entre
negritude, literatura e geografia, por meio do livro literário infantil Valentina, de
Márcio Vassalo. A leitura do livro na educação básica é motivadora da elaboração
de sequências didáticas, no intuito de trabalhar conceitos e conteú¬dos geográficos.
Desse modo, Valentina, protagonista negra criada pelo autor e moradora de uma
favela no Rio de Janeiro, é poeticamente retratada pelos pais como uma princesa,
e seuo cotidiano retratado no livro é o gatilho para a inserção de metodologias de
ensino geográfico. Tal metodologia não apenas pode promover a aprendizagem de
modo mais lúdico e prazeroso, como também é responsável por motivar a discus-
são sobre a diversidade étnica e racial da sociedade brasileira, sobre a desigualdade
social e a geopolítica dos complexos ambientes urbanos nas grandes cidades. Na
sequência desses dois textos que lidam com modalidades de exclusão de gêneros

22
Estudos Literários

literários e diversidade no cânone e no meio escolar, passamos a um texto que dis-


cute também a dificuldade do público mais conservador em receber mudanças de
paradigma na arte.
Desse modo, Uma análise retórica do pathos nas pinturas de 1917 de Anita
Malfatti, de Nayara Christina Herminia dos Santos, cartografa a recepção da obra
dessa artista moderna, a partir da análise retórica de compêndios de cartas, artigos
e notícias publicados em jornais da época versando sobre Malfatti e sua obra, no
intuito de analisar o pathos despertado no público que entrou em contato com as
pinturas da primeira exposição da autora. Sentimentos que vão da “ira, irritação,
indignação, ódio e inveja à compaixão, amizade, devoção e amor por Malfatti” são
abordados por meio dos registros da época. A constatação, auferida por meio da
análise, é que os quadros da pintora modernista, por não corresponderem às expec-
tativas da época, concentraram dois grandes grupos de reações que configuraram a
polêmica artística em torno da exposição. Seus quadros, considerados como origi-
nais e visionários para aqueles em que o pathos relacionado a sentimentos positivos
foi acionado, foram ao mesmo tempo considerados uma degeneração da arte por
aqueles em que sentimentos negativos foram igualmente despertados. Da possibi-
lidade de recepção positiva ou negativa de uma obra de arte, somos conduzidos ao
próximo texto, que discute exclusivamente a negatividade das representações das
mulheres no ambiente sócio-intelectual do Ocidente e suas implicações para a ma-
nutenção da misoginia, mesmo nos tempos atuais.
Pedro Carlos Louzada Fonseca e Márcia Maria de Melo Araújo trazem, no
capítulo A mulher, os padres da igreja e o seu legado medieval: representações mi-
sóginas, um inventário de textos do período medieval os quais formam a base do
pensamento derrogatório sobre as mulheres no ocidente. São citados tratados an-
timatrimoniais, em cuja composição a principal defesa para o celibato masculino
são os malefícios e riscos advindo da proximidade com as mulheres. Textos como
Adversus Jovinianum (Contra Joviniano) (c. 393), no qual São Jerônimo dissuade os
verdadeiros cristãos do casamento ou o livro Walter Map (1140-c. 1209) intitulado
The Letter of Valerius to Ruffinus, against Marriage (A Carta de Valério a Rufino,
contra o casamento) apresentam as mulheres como dotadas de compulsão para fa-
lar ou de severa incontinência sexual, contribuindo para a formação da imagem
negativa das mulheres e da crença em sua baixa capacidade intelectual, incapaci-

23
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

dade para exercício de ofícios religiosos ou políticos bem como sua submissão às
demandas corporais mais baixas. Esse conjunto de textos constitui um ambiente de
autorictas que legitima o pensamento misógino e contamina toda a visão sobre as
mulheres ao longo dos séculos subsequentes, sendo que o capítulo, ao apresentar
essa visão, conclama os leitores e leitoras atuais a terem uma visão reflexiva e revi-
sionista sobre tais construções simbólicas. O texto seguinte também nos conclama
a rever um período fundamental da história recente do Brasil, tantas vezes negado
e invisibilizando, a ditadura civil-militar.
Em O relato ditatorial em Azul Corvo, de Adriana Lisboa, Renata Rocha Ri-
beiro explora a composição do romance a partir das memórias relatadas por Fer-
nando à protagonista, Evagelina (ou Vanja). Partindo de um evento histórico recen-
te da história do Brasil, a ditadura civil-militar, ou os chamados Anos de Chumbo,
o romance revisita mais especificamente a Guerrilha do Araguaia, movimento em
que Fernando havia sido militante. De mistura com a trajetória de Vanja, narrada
de maneira não-linear desde a infância até a vida adulta, a narrativa recompõe esse
período histórico frequentemente esquecido ou tratado superficialmente na maio-
ria dos livros de história para, assim, reconstruir o processo identidade-alteridade
da protagonista que, ao mesmo tempo em recompõe a memória individual da per-
sonagem, também recompões a memória coletiva do país.
Paródia e resistência, texto de Ricardo Alves dos Santos apresenta a leitura
do poema “Iniciação de Jacó”, da obra Bundo e outros poemas (1996), do poeta Wal-
do Motta. Artista contemporâneo influenciado pela poesia marginal dos fins dos
anos 70, este autor apresenta em seu projeto poético a reivindicação de uma poesia
de resistência, capaz de enfrentar os problemas do mundo. O poema tomado para
análise realiza uma paródia de acontecimentos da vida de Jacó, personagem bíbli-
co do Antigo Testamento, ao retratar uma cena de iniciação sexual homossexual.
Apostando no jogo entre sagrado e profano, a análise demonstra como a subversão
do sagrado é construída no deslocamento entre o alto e o baixo ao criar uma cena
sexual, apresentada simbólica e metaforicamente, entre Jacó e Javé.
Sulivan Charles Barros, no capítulo O lado sombrio das emoções: análise do
filme Relatos Selvagens, de Damián Szifron, parte do pressuposto de que o cinema,
como um produto de linguagem, pode ser lido como uma prática discursiva, capaz
de indicar percepções e interpretações diversas da realidade e da sociedade, bem

24
Estudos Literários

como sobre seus indivíduos. No caso específico do cinema latino-americano temas


como “a dominação estrangeira, a exploração colonial, as colonialidades e as desi-
gualdades sociais, a descolonização, o neocolonialismo, o subdesenvolvimento e a
alienação” são motivos recorrentes, uma vez que fazem parte da constituição histó-
rica da América Latina. Especificamente nas seis histórias (ou contos) que fragmen-
tadamente compõem Relatos selvagens, essa realidade macroestrutural é projetada
em situações individuais em que, ao defrontar-se com acontecimentos imprevistos,
os sujeitos perdem o controle de si e caminham sobre a linha tênue que separa a
civilização da barbárie. Tal perda de controle é analisada no texto a partir de pres-
supostos teóricos da psicanálise freudiana, no sentido de mostrar que no desfecho
das histórias relatadas, restaria apenas os atos selvagens.
O texto Por um ensino de literatura responsivo e responsável, de Thyago Ma-
deira França faz a defesa de um ensino de literatura que vise uma escolarização da
literatura que não seja apenas propedêutica ou voltada para o bom desempenho nas
provas escolares, de instâncias institucionais como o IDEB ou competitivas como
o Enem, mas que seja “responsivo e responsável”, capaz de promover o empodera-
mento dos alunos e alunas como leitores de literatura que possuem autonomia. A
partir dos pressupostos da Linguística Aplicada, em cruzamento com as discussões
provenientes das formulações do Círculo de Bakhtin e da Análise do Discurso de
Michel Pêcheux, o texto propõe um letramento literário que empodere e que seja
capaz de transformar a visão dos alunos em relação à literatura, de modo que possa
ser encarada não apenas como um conteúdo chato a ser vencido nas provas, mas
como um diálogo possível com o contexto social, histórico, cultural, político e ideo-
lógico em que estão inseridos.
Processo de rememoração em Desamparo, de Ulysses Rocha Filho percorre os
caminhos da memória da protagonista do romance de Inês Pedrosa, considerando
as experiências individuais conectadas com a memória coletiva na constituição dos
processos narrativos dados em perspectiva por cinco narradores diversos. A alter-
nância dos narradores, presentes na teia ficcional, recompõe a memória da relação
entre Portugal e Brasil, ao mesmo tempo em que retrata a realidade de um país em
crise econômica, tendo como pano de fundo um lugar rural imaginado. Ao contra-
por o presente e passado da protagonista e enfocar o seu não-lugar: portuguesa no
Brasil e brasileira em Portugal, Inês Pedrosa compõe o cenário complexo da me-

25
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

mória e da constituição das identidades tanto do ponto de vista individual quanto


nacional, por meio da narração de fatos relevantes da história portuguesa.
O texto de Yasmin da Silva Rocha, intitulado Beleza fatal: a sobrenaturaliza-
ção da figura feminina em “A queda da Casa de Usher” e “O carro da semana santa”,
é composto pela abordagem de dois contos nos quais personagens femininas são
retratadas e modo sombrio e obscuro, ao mesmo tempo em que estão envolvidas
em situações de transgressão sexual ou moral. A partir de pressupostos do Gótico
e do Decadentismo, bem como da representação das mulheres na mitologia, na era
medieval e vitoriana dos séculos XVIII e XIX, a figura feminina é analisada nos con-
tos do autor norte americano Edgar Allan Poe e do escritor brasileiro João do Rio
considerando a composição sobrenatural das personagens. Enquanto em um dos
contos, a mulher é delicada, frágil e se sobrenaturaliza após ser enterrada viva, no
outro a mulher é independente e subversiva ao receber homens em seu carro para
manter relações sexuais em meio à procissão da quinta-feira santa, algo altamente
profano que, justamente por isso, atiça o imaginário sobre sua aparência como sen-
do monstruosa e deformada.
Desejamos que a leitura dos textos aqui apresentados seja muito proveitosa
e que estudos outros possam ser realizados a partir desta coletânea, possibilitando
leituras da atualidade na perspectiva dos Estudos Literários no interior dos Estudos
da Linguagem. Agradecemos, ainda, às autoras e aos autores pela contribuição para
a elaboração desta publicação, bem como pela partilha do conhecimento.

26
Estudos Literários

Dos livros que fazem o


jovem leitor: O papel do
personagem-leitor em
narrativas juvenis
Agatha Camila Ferreira Araújo 1
Silvana Augusta Barbosa Carrijo 2

A prática da leitura não só transforma a vida do ser humano, mas também


contribui para seu desenvolvimento e, no que diz respeito à formação da criança
e do adolescente, é necessário enfatizar as formas abrangentes de conhecimento
proporcionados para esse público leitor, que ampliem os horizontes favorecendo a
construção de si e do mundo que o cerca através da constituição sócio-histórico-
cultural do jovem leitor. Conforme aborda Coelho (2000, p. 15), diante da realidade
perceptível e provocadora que são as transformações ocorridas no mundo, se faz
necessária nova reflexão acerca da educação e do ensino, pois, é a partir disso que
serão determinados os princípios formadores da sociedade.
Dessa forma, tem-se a literatura juvenil como principal ferramenta para um
processo de formação e, sendo empregada de modo preciso, torna-se um mecanis-
mo gerador de ideias e construtor de indivíduos mais inventivos, críticos e humani-
zados, pois, de acordo com Gregorin (2011, p 32), analisar a Lj, é ligar determinado
tipo de texto às práticas sociais que foram se estabelecendo na sociedade na forma-
ção dos jovens.

1  Graduada em Letras na Universidade Federal de Goiás Regional Catalão e Mestranda em Estudos da


Linguagem (UFG-RC). [email protected]
2  Prª. Drª.Docente da Unidade Acadêmica Especial de Letras e Linguística da Universidade Federal de Goi-
ás, Regional Catalão. [email protected]

27
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Conforme aborda o autor Mikhail Mikhailovich Bakhtin, teórico da cultura


europeu destacado como grande pesquisador da língua humana, intelectual dedi-
cado ao estudo da estética e da literatura, em sua obra Estética da Criação Verbal
(2003), é imprescindível que haja uma associação entre os estudos literários e a
história da cultura, dessa forma, torna-se a literatura um componente inerente da
cultura, o que impossibilita ser referida fora do contexto cultural (BAKHTIN, 2003,
p. 360). O autor destaca então a influência da cultura na literatura e, vice-versa, pois,
é a partir do ato da leitura que ocorre a imersão nos diversos sentidos existentes
nas descobertas literárias, isto é, o exercício de adentrar ao conhecimento histórico
estabelecendo relação contextual que permite entendimento.
O que Arena (2010) considera a respeito da conexão entre literatura e cul-
tura é que, tanto as obras consideradas notáveis, quanto as menos destacadas, re-
sultam das circunstâncias históricas, proporcionadas não somente pelo presente,
mas antes, pelas suas conexões com o passado histórico e, através dessa ligação, o
leitor constitui, em forma de diálogo, os seus aspectos culturais (ARENA, 2010, p.
16). O autor alega que o leitor, através da palavra, detecta a cultura de uma época,
apropria-se da história e cultura do homem, e através desse diálogo entre passado e
presente ocorre o processo de Apropriação cultural, no momento de contato com o
texto. O que caracteriza essa apropriação como importante, é a estratégia da qual o
leitor fará uso, como meio de compreensão do sentido do texto.
O ato da leitura possibilita um maior contato com a cultura do próprio jovem
leitor e a cultura de outras épocas distintas a dele e, assim, a leitura da literatura é
singular, pois, de modo mais completo do que a leitura de qualquer outro texto,
estimula o exercício da mente, a compreensão do real, nos diversos significados,
o entendimento do eu em relação ao outro, ler o mundo em diversos pontos e, es-
pecialmente, estimula o estudo e conhecimento da língua (COELHO, 2000, p.16).
Diante de tais considerações, essa breve análise apresenta características desse pro-
cesso de apropriação cultural e conhecimento adquiridos a partir da leitura literária
na juventude tomando como objeto de investigação uma obra juvenil contemporâ-
nea que tematiza a relação entre texto e leitor, de modo a colocar em evidência tais
processos de construção vivenciadas pelo protagonista.
O português Afonso Cruz, nascido em Figueira da Foz em 1971, é um es-
critor, realizador de filmes de animação, ilustrador e músico. Publicou várias obras

28
Estudos Literários

de ficção que ganharam prêmios e, dentre elas, Os Livros que Devoraram o Meu
Pai (2011), um infanto-juvenil vencedor do Prêmio Literário Maria Rosa Colaço.
Na narrativa, o personagem Elias vive algo novo, acaba de completar doze anos de
idade, e o presente que ganha da avó é a biblioteca que pertencia ao seu falecido Pai
Vivaldo. Um presente mais do que material, não eram somente livros em estantes
que o menino herdou, e sim uma oportunidade de conhecer o pai através dos livros
que pertenceram a ele: “Muito nervoso, recebi aquele presente. Ia finalmente conhe-
cer meu pai, iria atrás dele, percorreria todas as palavras que ele percorreu, haveria
de encontrá-lo por trás de uma frase, entre personagens de um romance qualquer”
(CRUZ, 2011, p. 17).
A narrativa se inicia com uma prévia um tanto misteriosa para quem acaba
de iniciar a leitura, ou seja, desconhece o sentido da história. O autor faz uso de uma
figura de pensamento ligada a figuras de linguagem que distingue o sentido sigiloso
da história a ser contada. Elias descreve da seguinte forma:

...eu poderia dizer que meu pai já não anda neste mundo, em vez de dizer que
morreu de enfarte. Parece um eufemismo: “não anda neste mundo”, em vez
de “morreu”, mas não é. É a verdade objetiva, como vocês vão perceber. Sem
qualquer figura de linguagem (CRUZ, 2011, p.13).

Os sentidos que envolvem a criatividade leitora e a figura do pai na vida do


personagem são estratégias que não só fazem parte da temática da obra como tam-
bém exercem uma função construtiva no perfil do jovem e colaboram para a cons-
trução estética, pois, sendo narrada em primeira pessoa, ou seja, pelo próprio Elias,
a narrativa expressa de modo inerente os sentimentos do protagonista em relação
aos dilemas da vida, como a ligação entre o pai, mãe, avó e amigos.
Considerando tais relações sociais existentes, há representações que o texto
literário se dispõe a trabalhar que podem vir à tona para contribuir no estado consti-
tuinte do adolescente que presume se irá se apossar desse tipo de leitura. Abordando
temas que cinge os mais peculiares dilemas e fases da juventude, a literatura juvenil
contemporânea pode fomentar reflexões acerca da existência humana, os significa-
dos das pessoas na nossa vida e, no geral, exercer função humanizadora no leitor.
O texto literário pode lidar de forma leve e eficiente com temas próprios da
realidade psíquica difíceis como o amor, a violência, separação e abandono e essa

29
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

força significante é capaz de operar mudanças em tais estruturas fazendo com que
o leitor encontre significado na vida. Nas palavras de Gregorin “Busca-se, neste
momento sócio-político e cultural, uma aproximação dialógica entre o fazer peda-
gógico no que tange à literatura para crianças e jovens e o fazer social, visto ser uma
constante a fala de que o aluno é preparado para a vida em sociedade”.
Elias não conheceu pessoalmente o pai e a oportunidade que lhe foi dada foi
significativa para que ele pudesse idealizar sua ligação com Vivaldo. Descobrir uma
mesma paixão foi suficiente para que ele pudesse agir, de certa forma, de modo que
vivenciasse as experiências do pai:

Naquele sótão, eu encontraria todos os livros de meu pai, inclusive A Ilha do


Dr. Moreau, aquele que ele usou para adentrar o mundo da Literatura. Muito
nervoso, recebi aquele presente. Ia finalmente conhecer meu pai, iria atrás
dele, percorreria todas as palavras que ele percorreu, haveria de encontrá-lo
por trás de uma frase, entre personagens de um romance qualquer. Ou assim
acreditava (CRUZ, 2010, p. 17)

Cada leitura feita daquelas obras era uma forma de se imaginar no lugar do
seu pai, de sentir o que ele sentiu ao ler aquelas histórias, de ir a lugares que Vivaldo
passou ao viajar nos textos. À medida que o adolescente se envolve nas leituras,
sua imaginação o acompanha, sua criatividade é aprimorada no decorrer de suas
experiências vividas através do ato da leitura. Conforme Vygotsky afirma, quanto
mais experiências o indivíduo possui, maior será sua capacidade de criação. Elias é
um retrato daquele leitor que Mário Quintana afirma admirar: “O leitor que mais
admiro é aquele que não chegou até a presente linha. Neste momento já interrom-
peu a leitura e está continuando a viagem por conta própria” (QUINTANA,1973),
isso porque a narrativa atrai o leitor pela sua forma de explorar nas obras lidas pelo
personagem os lugares em que se passam.
Elias é um típico leitor viajante, aquele que se insere no mundo da literatura
percorrendo os locais em que essas histórias são contadas de maneira a descrever o
cenário, o espaço social e cultural em suas tradições, seus costumes, e o espaço his-
tórico, como uma viagem ao passado. Sentado na poltrona que seu pai costumava
se sentar para ler, Elias viaja para dentro das histórias:

30
Estudos Literários

Percorri algumas ruas de Londres, cenário do livro de Wells, apreciando os


pequenos gramados e os edifícios de tijolo [...]

O campo surgiu a nossa frente, com seu verde habitual, pontilhado de árvores
e arbustos. Atrás de nós, ficava a fumaça das fábricas dos subúrbios londri-
nos. Subimos colinas, descemos ravinas, percorremos ermos [...]

Nunca fui a São Petersburgo, a cidade russa onde toda essa trama se desenro-
la, mas, mal comecei a ler, senti-me caminhando pela grande avenida Nevski,
com toda a naturalidade (CRUZ, 2010, p. 28, 37, 67).

Quando se trata da apropriação que o leitor faz da cultura através das narrati-
vas, o uso da imaginação fará toda a diferença, fazendo com que o leitor adentre nas
entrelinhas dos enunciados, buscando sentidos mais elevados, ou seja, se transpor-
tando para o espaço da narrativa. Vygotsky (2009, p. 24) afirma que “tendo por base
a narração ou a descrição de outrem, ele [o leitor] pode imaginar o que não viu, o que
não vivenciou diretamente em sua experiência pessoal”. Portanto, é notória a existên-
cia do processo criativo do personagem no decorrer de suas experiências literárias.
Elias passeia por lugares caracterizados pelo narrador dos livros que lê. O
que Vygotsky caracteriza como sendo base de todo exercício de criação, é apresen-
tado nitidamente no perfil leitor do protagonista: “Ignorei o conselho de minha avó
e peguei o trem em São Petersburgo. Lá fui nessa viagem de tantas horas em direção
a Vladivostok” (CRUZ, 2011, p. 75). A leitura feita ocorre em âmbitos na vida cul-
tural, possibilita a criação artística, científica e técnica, sendo assim, toda a criação
do homem, do mundo da cultura e da natureza é objeto da imaginação e criação
humana.(VYGOTSKY, 2009, p. 14). O autor chama de atividade criadora toda a
realização humana criadora de algo novo, tratando-se de reflexos de algum objeto
do mundo exterior, assim como determinadas construções do cérebro e sentimen-
tos que são manifestados pelo ser humano.

31
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Um leitor em construção

A leitura é ao mesmo tempo a construção de um universo


e um refúgio diante da hostilidade do mundo.
Ricardo Piglia

Identifica-se no perfil leitor de Elias um caráter crítico que examina o texto;


mesmo tendo apenas doze anos, assimila as escritas de maneira criativa com total
entrega. Na concepção de Coelho (2000) a fase do leitor crítico é uma etapa de com-
pleto domínio do processo de leitura, ele é capaz de estabelecer relações textuais
e compreender processos de semioses especiais na obra, momento em que o seu
pensamento reflexivo e crítico está em desenvolvimento. Considera-se, portanto, o
caráter leitor de Elias como sendo base para um perfil representativo de competên-
cia leitora a qual se exige as obras que o jovem lê.
As leituras críticas feitas por Elias perpassam todo um manancial literário
de clássicos que ultrapassaram gerações, formando um diálogo entre passado e pre-
sente e, sendo assim, a intertextualidade presente na produção de Afonso Cruz é
demonstrada através da ligação entre esses textos e o personagem, ele consegue
explorar os caminhos da escrita fazendo com que cada leitura suceda a outra. O
conceito intertextualidade criado por Júlia Kristeva denomina a relação que uma
determinada obra estabelece com outra(s) do legado literário que compõe o capital
cultural humano e, resultante do trabalho de Bakhtin sobre o dialogismo ou diálogo
entre textos, define a relação que todo enunciado mantém com outros enunciados
(KRISTEVA, 2005, p. 66). Nesse sentido, compreende-se que essa relação da litera-
tura contemporânea com a literatura dita clássica é uma espécie de jogo de influên-
cias ou mesmo uma valorização à cultura literária, bem como explica Samoyalt:

Assim como uma pessoa se constitui numa relação muito ampla com o outro,
um texto não existe sozinho, é carregado de palavras e pensamentos mais ou
menos conscientemente roubados, sentem-se influencias que o subtendem,
parece sempre possível nele descobrir-se um subtexto [...] Em vez de obedecer
a um sistema codificado muito estrito, a intertextualidade busca mais, hoje,
mostrar fenômenos de rede, de correspondência, de conexão, e fazer dele um
dos principais mecanismos da comunicação literária (SAMOYALT, 2008, p.42).

32
Estudos Literários

Considera-se de suma importância a incorporação desse procedimento nar-


rativo no que diz respeito a tematização da relação leitor e texto, pois, conforme
Samoyalt (2008, p.9) esclarece, a literatura é composta em uma associação com o
mundo, assim como numa relação consigo mesma, sua história, a história de suas
criações e a extensa jornada de suas origens. Na obra de Afonso Cruz nota-se ele-
mentos procedentes da influência pós-moderna na literatura concernente ao pro-
cesso intertextual. Além das leituras feitas pelo personagem de obras influentes da
geração passada como A Ilha do Dr. Moreau de Herbert George Wells, A ilha do
tesouro Robert Louis Stevenson, as histórias de Lao Tsé, Crime e castigo de Fiódor
Dostoievski, entre outros, a narrativa também propõe uma reflexão sobre a impor-
tância da leitura dos clássicos na juventude, assim como, dos procedimentos literá-
rios culturais existentes nessas obras.

O tempo foi passando, parágrafo por parágrafo, e um dia voltei a olhar para
o exemplar de A Ilha do Dr. Moreau. E o li. (CRUZ, 2011, p.26)
[...]
Uma semana depois, encontrei-me de novo sentado com Stevenson. Apesar
de ele ser um grande escritor, cabíamos os dois, com folga, na poltrona que
pertencera a meu pai. Bebi um chá com ele, observando-o na capa, olhos nos
olhos: O Estranho Caso de Dr. Jekyll e do Sr Hyde, lia-se em letras imponen-
tes, de outros séculos (CRUZ, 2011, p 48).

Diante disso, a alusão de tais obras na narrativa funciona como um tributo a


produção artística literária de outros tempos, tendo o procedimento intertextual co-
mo um fator relevante para a memória que a literatura possui de si mesma, pois, con-
forme afirma Calvino (1993, p.11) “Os clássicos são livros que exercem uma influên-
cia particular quando se impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam
nas dobras da memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual”.
Elias apresenta através do contato com os livros herdados do pai, uma co-
nexão mais profunda não só com a leitura dos textos, mas com o significado que a
literatura transmite e o sentimento que surge através desse ato, assim como, a cons-
trução de sua identidade como jovem e como leitor. Em vários momentos na narra-
tiva, o leitor personagem se insere nas leituras adentrando no mundo das histórias,
tal fator aponta para a fantasia, o que de acordo com Antônio Cândido, não é pura,

33
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

e sim alusiva a alguma realidade, pois, sendo fenômeno natural, elenca paisagem,
emoções, ânsia de explicação e dilemas, fatores ocorridos na relação entre fantasia e
realidade, questões que abrangem a função da literatura, que não só contribui com
a formação do homem, mas também satisfaz suas fantasias.
Antônio Cândido compreende a literatura como sendo a competência advin-
da da arte literária de comprovar a humanidade do homem e as contribuições que
desempenha na sociedade:

[...] na medida em que nos interessa também como experiência humana, não
apenas como produção de obras consideradas projeções, ou melhor, trans-
formações de modelos profundos, a literatura desperta inevitavelmente o in-
teresse pelos elementos contextuais. Tanto quanto a estrutura, eles nos dizem
de perto, porque somos levados a eles pela preocupação com a nossa identi-
dade e o nosso destino, sem contar que a inteligência da estrutura depende
em grande parte de se saber como o texto se forma a partir do contexto, até
constituir uma independência dependente (se for permitido o jogo de pala-
vras). Mesmo que isto nos afaste de uma visão científica, é difícil pôr de lado
os problemas individuais e sociais que dão lastro às obras e as amarram ao
mundo onde vivemos (CÂNDIDO, 2012, p. 82).

O jovem leitor vai além da leitura, em sua imaginação ele percorre o espa-
ço descrito pelo russo Dostoiéviski em sua obra Crime e castigo: “Nunca fui a São
Petersburgo, a cidade russa onde toda essa trama se desenrola, mas, mal comecei
a ler, senti-me caminhando pela grande avenida Nevski, com toda a naturalidade”
(CRUZ, 2010, p. 67). Elias conta um pouco da história desse personagem Raskol-
nikov como um narrador onisciente, e um dos seus ideais era ir ao encontro desse
personagem misterioso, que poderia ajudá-lo a encontrar seu pai: “Tinha de encon-
trar um assassino para encontrar meu pai” (CRUZ, 2010, p. 83).
A obra de Robert Louis Stevenson, A Ilha do Tesouro, texto lido por Elias, apre-
senta uma história cheia de mistérios e ação, tem como personagem principal um jo-
vem corajoso que vai em busca de um tesouro, e no decorrer desse processo desvenda
mistérios, enfrenta batalhas e faz grandes descobertas. O texto prende a atenção do
leitor de modo que transmite a sensação de estar vivenciando aqueles acontecimentos:

34
Estudos Literários

A lista era interminável, mas quem o procurava era o Stevenson. Peguei dois
livros dele: A Ilha do Tesouro e O Estranho Caso do Dr. Jekyll e do Sr. Hyde. Ha-
via um terceiro, sobre um tal Florizel, príncipe da Boêmia, mas decidi deixar
este para depois. Folheei os dois primeiros a procura de anotações. Não en-
contrei nenhuma em nenhum deles, e comecei por ler o da Ilha do Tesouro,
por me parecer ter um título mais sugestivo (CRUZ, 2011, p. 43).

O senhor Utterson, advogado, era um homem de compleição severa, jamais


iluminado por um sorriso. Depois, me perdi naquela história que fala de um
homem que, através de uma poção, permite a existência de um alter ego sem
problemas de consciência, capaz de praticar o mal sem que isso lhe tire o
sono. Um lado da personalidade completamente livre de consciência moral.
Chama-se Hyde, esse lado que, em inglês, é homófono de “escondido”. É a
parte negra de cada um de nós, todos temos esse lado mal; até eu, que sou boa
pessoa, o tenho, como se poderá confirmar. Esse meu lado escuro viria a luz
com aquelas trevas todas que o caracterizam (CRUZ, 2011, p. 48).

Para Machado (2002, p. 87), “A ilha do tesouro tem uma fina observação
sobre o processo de curiosidade e do medo [...] um livro que brinca com o medo do
leitor [...] sobre o bem e o mal ambíguos, [...] sobre o fim da inocência e os cami-
nhos do crescimento”. A menção a esse texto feita por Afonso Cruz não é simples
referência a uma obra conhecida e intitulada literatura clássica, e sim, uma grande
demonstração de que Stevenson apresenta um personagem jovem com as caracte-
rísticas do jovem de qualquer época, ou seja, aquele sujeito que vai em busca dos
seus ideais, que sofre, descobre, conquista e além de tudo, experimenta algo novo.
Em se tratando de uma figura representativa da fase juvenil, existem dramatizações
que não só refletem a realidade do leitor, como também o encorajam ao crescimen-
to no processo de desenvolvimento pessoal.
A autora Maria Luiza Bretas em sua obra Cinco diálogos sobre o livro e a
literatura (2013) registra uma entrevista com Michéle Petit em que a autora afirma
que a leitura possibilita o leitor se distanciar do inferno que o rodeia como, por
exemplo, brigas dos pais, no geral, conflitos cotidianos, sendo o livro um porto
seguro para a criança/adolescente, que o serve de companhia diariamente, pro-

35
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

piciando-lhe sentimento de continuidade, que é necessário para a sua construção


(BRETAS, 2013, p. 67).
As considerações acima apresentadas não só remetem à situação a qual o
personagem se encontra, como também à forma como o leitor dessa obra juvenil
pode se enxergar nesse mesmo dilema. Muitas crianças e adolescentes são obriga-
dos a se adaptarem a circunstâncias que acabam lhes rendendo comportamentos
depressivos pelo fato de não terem voz em meio as situações ou até atenção e ouvi-
dos dispostos a compreenderem suas fases e saberem enxergar o processo de transi-
ção no qual muitos se perdem, surgindo assim, uma crise de identidade.
Tais incertezas remetem ao conceito de identidade abordado por Silva em
Identidade e diferença, pois, a literatura pode amenizar as agruras do processo de
transição no qual muitos se perdem chegando até mesmo a vivenciarem uma crise
de identidade. Conforme estudos relacionados a essa construção na juventude, a
cultura possibilita moldar essa identidade, dessa forma, dará sentido à experiência
e contribuirá na construção da identidade desse leitor e o alcance da subjetividade.
No entanto, somos coagidos não somente por essas possibilidades que a cultura
proporciona, mas também, pelas relações sociais. (SILVA, 2000, p. 18).
Dessa forma, é pertinente assegurar que o papel da literatura é substancial
para a formação do indivíduo, no que tange a conhecimento cultural e histórico,
construção cognitiva, processo inventivo, estruturação social e questões relaciona-
das ao desenvolvimento psicológico. Sendo assim, uma maior atenção à construção
do sujeito, no que se refere à aprendizagem é fundamental, e muito mais que isso,
torna-se indispensável para que a vida faça sentido, e seja vista como suficientemen-
te satisfatória.

Considerações finais
Constatamos que a leitura literária faz com que o leitor possa enxergar a vida
de uma maneira diferente. A literatura modifica o olhar sobre o mundo, as pessoas,
e a si mesmo, sendo um passaporte para o descobrimento de outras realidades,
paisagens, modos de viver e pensar a vida e viagem interior. Tudo pela forma como
a leitura literária compartilha sentimentos e situações do outro [o personagem], ou

36
Estudos Literários

a voz que fala, o eu lírico que humaniza e ajusta os laços que compõem a grande
família dos homens (BRETAS, 2013, p. 9).
O leitor encara as dificuldades da vida, faz uma coleta daquilo que irá pro-
duzir conforto em seu interior, e assim, cria oportunidades de alcançar com êxito o
conhecimento de mundo e de si. Considera-se, portanto, que: “... um bom livro deve
ter mais do que uma camada, deve ser um prédio de vários andares (CRUZ, 2011,
p.14). Tais andares remetem a sentidos a serem alcançados que possibilitará a com-
preensão das circunstâncias da vida e irá auxiliar em cada etapa a ser ultrapassada,
cada degrau a ser seguido.

Referências bibliográficas
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instrumento de iniciação da criança no mundo da cultura escrita. In: SOUZA,
Renata Junqueira de. Ler e compreender estratégias de leitura. Campinas SP:
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especialistas franceses: Traduçao de Vera Maria Tietzmann Silva. – Goiânia:
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CRUZ. Afonso. Os livros que devoraram meu pai. São Paulo: Leya, 2011.
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37
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

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São Paulo: Perspectiva, 2005.
MACHADO, Ana Maria. Como e por que ler os clássicos universais desde cedo. Rio de
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_______. La imaginacion y el arte em la infância. Madri – Eapanha: Akal básica de
bolsillo 87, 2007.

38
Estudos Literários

Corpos heterotópicos ou o
lugar das personagens em
Van Helsing: O Caçador de
Monstros
Alisson Cardoso da Silva1

Introdução
“Van Helsing: o caçador de monstros” é uma produção fílmica norte-ameri-
cana de 2004 que faz uma releitura da obra da Bran Stoker. Aqui, o protagonista é
Gabriel Van Helsing um mercenário desmemoriado que trabalha para uma organi-
zação secreta da igreja católica sediada no Vaticano.
No filme, o insólito que impulsiona instauração do horror dá-se em função
do caráter movente, pluriforme, justaposto das espacialidades (corpos e espaços
sociais). Vampiros, lobisomens, monstros de toda a sorte irrompem na narrativa
e merecem especial atenção uma vez que nos permitem questionar que relação po-
de haver entre suas espacialidades corporais, pluriformes, metamórficas, em todo
o caso, desgovernadas, e o posicionamento social ocupado pelos sujeitos. Corpos
peregrinos, espacialidades moventes que deixam ver o caráter transgressor dos su-
jeitos metamorfoseados.
Para tratar do gênero a que se insere a narrativa recorremos aos postulados
de Tzvetan Todorov (2010) e David Roas (2013). Quanto dos espaços, nosso estu-
do pauta-se no conceito de heterotopia e utopia apontadas por Michel Foucault e,
através das leituras da professora doutora Marisa Martins Gama Khalil, as noções
de liso e estriado definidas por Gilles Deleuze e Félix Guattari.

1 [email protected]

39
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Do maravilhoso
A primeira cena a que o expectador é exposto leva-o, de imediato, ao campo
do maravilhoso. Transilvânia, 1887. Enquanto o doutor Frankenstein, ocupado em
suas experiências, acaba de dar vida a um cadáver, ou, mais precisamente, partes
unidas de cadáveres, seu castelo está sendo invadido por moradores que repudiam
suas atividades e o querem morto. Neste momento, confirmando a hipótese do ex-
pectador, surge o conde Drácula, vampiro que busca na criação do doutor Fran-
kenstein a possibilidade de manter viva sua prole.
Segundo a conceituação feita por Todorov (2010), no gênero maravilhoso
os acontecimentos sobrenaturais não produzem efeito algum nem nas persona-
gens nem no leitor implícito. A hesitação fundamental para a definição do gênero
fantástico deve, no maravilhoso, ser de todo ausente. Para David Roas (2013), o
maravilhoso é definido pela inexistência de conflito no contexto no qual os even-
tos sobrenaturais acontecem, (“a realidade”). O maravilhoso é, então, marcado pela
coexistência não problematizada entre o real e o sobrenatural na narrativa. A não
problematização confere aos acontecimentos seu status de verdade e os legitima
sem causar espanto ou admiração para o leitor por não estabelecer conexão ente
o universo real, empírico e o ficcional. Conforme notamos já na primeira cena do
filme, natural e sobrenatural coexistem sem a presença de qualquer questionamen-
to. Ao alçarem uma caçada ao doutor Frankenstein, as personagens estão certas
da possibilidade de concretização e seus experimentos, e por isso o temem. Não
há especulação ou dúvidas quanto ao sucesso de seu trabalho. O monstro é visto
e temido. Mais adiante, ao final da referida cena, ao notar que algumas coisas se
aproximam pelo céu, uma das personagens logo as identifica como sendo vampiros,
fazendo com que os demais presentes corram. A fuga, mais que a identificação, é-
nos a prova de que no contexto em que os fatos são narrados o sobrenatural não só
é natural como também uma ameaça à integridade física.
A aceitação do sobrenatural, a não problematização, movem a narrativa para
um universo distante ao do leitor, o que o impossibilita questionar, estranhar, ou
admirar os acontecimentos. Ao citar Irene Bessière, David Roas aponta para tal
afastamento promovido pelo maravilhoso:

40
Estudos Literários

No conto de fadas, o “era uma vez” situa os elementos narrados fora de toda
a atualidade e impede qualquer assimilação realista. A fada, o elfo, o duende
do conto de fadas se movem em um mundo diferente do nosso, paralelo ao
nosso, o que impossibilita toda contaminação. (Bessière, 1974 p.32 apud Ro-
as, 2013 p. 33)

Como argumenta Roas, os acontecimentos que irão definir a ordem do ma-


ravilhoso arrolam-se em um “espaço muito diferente do lugar em que vive o leitor
(...). O mundo maravilhoso é um lugar totalmente inventado” (Roas, 2013 p. 33-34).
Portanto, para os autores, o maravilhoso está condicionado a uma não similitude
com o mundo no qual o leitor habita.
Em Van Helsing – o caçador de monstros, a história está ambientada em
lugares existentes em nosso mundo: Paris, vaticano, Transilvânia; no entanto, o
funcionamento físico destes espaços é diferente do nosso. Pensemos, por exem-
plo, além de toda a sorte de seres que irrompem nestes espaços com seus corpos
transfigurados, metamorfoseados, na passagem em que, para entrar na fortaleza do
conde Drácula, Van Helsing precisa atravessar um portal que se abre em uma sala,
no antigo castelo do conde. Toda a solidez, a ordenação, a estabilidade do mundo
conhecido pelo expectador é subvertida, levando-o a um lugar outro, diferente, dis-
tante do seu.
Vale ressaltar, ainda, uma espécie de validação científica dos fatos que se per-
cebe na narrativa. Não que a ciência opere certa explicação dos acontecimentos, o
que tiraria a narrativa do campo de maravilhoso; o que ocorre é, em certa medida,
uma legitimação uma vez que o sobrenatural, ora nasce da ciência ora é combatido
por meio dela. Voltemos à primeira cena: a população do vilarejo cerca o castelo do
doutor Frankenstein, um cientista, estudante das ciências naturais que dá os últi-
mos retoques em seus equipamentos. O lugar? Um laboratório científico com todo
o aparato tecnológico (existente na época). Após dar vida à sua criação, o doutor
Frankenstein recebe a visita do conde Drácula, vampiro que busca nos experimen-
tos e no resultado do trabalho do doutor uma maneira de manter viva sua prole.
Um pouco mais a frente, encontramos Carl, um jovem frade, estudioso e inventor,
cujo trabalho é estudar a natureza das diversas criaturas que assolam o mundo e
os métodos mais eficazes de as eliminar, bem como desenvolver instrumentos e

41
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

armas para o combate. Embora religioso, suas atividades estão, também, pautadas
pela lógica científica. Isso tudo faz com que o científico e o insólito, o empírico e o
transcendente se mesclem, se confundam, se legitimem.
Portanto, o que temos, desde o primeiro instante é uma narrativa que se inse-
re em um universo distante ao do leitor, diferente. Um universo maravilhoso. Toda
sorte de criaturas ambienta-se em consonância com seres humanos. Os conflitos
que se desenvolvem neste ambiente não são outros senão os que buscam a estabi-
lidade, a paz, o triunfo do bem sobre o mal neste espaço no qual tudo é possível e,
portanto, natural.

Corpos peregrinos: Espacialidades justapostas


Merecem especial atenção as espacialidades dos corpos e os espaços sociais
presentes na narrativa fílmica “Van Helsing: o caçador de monstros” que, notada-
mente, operam através de deslizamento constante; ao sabor das metamorfoses, sua
pluriformidade os faz mover, reposicionar, peregrinar constantemente.
Para nos auxiliar nesta parte da análise utilizaremos os conceitos de utopia
e heterotopia definidos por Michel Foucault e, através das leituras da professora
doutora Marisa Martins Gama-Khalil, as noções de espaço liso e estriado cunhadas
por Gilles Deleuze e de Félix Guattari.
Para Michel Foucault a nossa “época atual seria talvez de preferência a épo-
ca do espaço. Estamos na época do simultâneo, estamos na época da justaposição,
do próximo e do longínquo, do lado a lado, do disperso.” (FOUCAULT, 2009, p.
411). Isso se dá uma vez que, segundo o filósofo, nossa experiência no mundo está
pautada nas relações, na ligação, na intersecção de pontos que traçam os diferentes
sítios da nossa cultura. Mas de todos estes sítios: ruas, comboios, cafés, cinemas,
etc., interessam ao filósofo os que se relacionam com todos os demais, “mas de um
tal modo que eles suspendem; neutralizam ou invertem o conjunto de relações que
se encontram por eles designadas, refletidas ou pensadas.” (FOUCAULT, 2009, p.
414). Espaços ligados a todos os demais e que, no entanto, os contradiz. “São como
que contraespaços.” (FOUCAULT, 2013, p. 20, grifo do autor). Segundo o filósofo
são estes espaços de dois tipos: as utopias e as heterotopias.

42
Estudos Literários

O primeiro, as utopias, referem-se aos espaços da organização, da perfeição.


São estes espaços “sem lugar real, são posicionamentos que mantêm com o espaço
real da sociedade uma relação geral de analogia direta ou inversa. É a própria socie-
dade aperfeiçoada ou é o inverso da sociedade” (FOUCAULT, 2009, p. 414-15). As
utopias confortam e acomodam por desencadearem espaços lineares, planos.
Já o segundo modo, as heterotopias, tem como princípio a justaposição, a
sobreposição. São espaços reais, que emergem no interior das sociedades e, embo-
ra sua localização possa ser definida, apontada, estão fora de todos os lugares por
serem moventes. “(...) são espécies de contraposícíonamentos, espécies de utopias
efetivamente realizadas nas quais (...) todos os outros posicionamentos reais que
se podem encontrar no interior da cultura estão ao mesmo tempo representados,
contestados e invertidos” (FOUCAULT, 2009, p. 415).
Segundo aponta a professora doutora Marisa Martins Gama-Khalil, pode-
mos comparar aos modos de posicionamentos definidos por Michel Foucault, os
espaços liso e estriado descritos por Gilles Deleuze e Félix Guattari.

O espaço liso, para Deleuze e Guattari (1997), é de natureza peregrina e or-


ganiza-se enquanto superfície que pode alastrar-se em múltiplas direções, já
que os elementos que o constituem são completamente heterogêneos. A com-
posição do espaço liso possui uma propagação descentrada, alcançada através
de mutações sucessivas, desvelando um entrelaçado de linhas e movimentos.
Em função de sua metamorfose contínua, o que determina a ordem do espaço
liso é o acontecimento. Em decorrência de sua heterogeneidade, de sua frag-
mentação e de sua constante metamorfose, o espaço liso pode ser comparado
com espaço heterotópico definido por Foucault. O entrelaçado de superfícies,
linhas e cursos do espaço liso remete ao desenho de um rizoma, uma vez que
“qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve
sê-lo” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 13). O espaço estriado, contraria-
mente, é organizado por intermédio de sedimentações históricas; ele se molda
pela linearidade e organização, e, nesse sentido, pode ser comparado ao espa-
ço da utopia proposto por Foucault. No estriamento, existe a coordenação das
linhas e dos planos, indicando a normatização da vida e a classificação de fun-
ções e lugares dos sujeitos que nele se encontram inseridos. (KHALIL, 2012)

43
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Como nos dá a entender a longa citação, os espaços lisos e os heterotópicos


comungam a instabilidade o deslocamento, a fuga do centro; enquanto as utopias e
os espaços estriados buscam a organização e a estabilidade.
Observando o comportamento dos espaços no filme, vemo-los heterotópicos
e lisos em função de sua movência e seu desgoverno. Tantos os corpos das perso-
nagens ou os espaços sociais operam um entrecruzamento entre o mundo “real”, de
criaturas vivas, e outro sobrenatural. Recorrendo uma outra vez à primeira cena,
temos mostra do comportamento peregrino destas espacialidades. O doutor Fran-
kenstein saqueara túmulos e unira partes de corpos de sete homens; ao ressuscitá
-los, ou ressuscitar em um único corpo estas partes, os que eram humanos antes da
morte, pertencentes ao mundo real, passam a pertencer a um outro plano que não o
anterior; são emendas de um ser cuja existência não se pode dar no mundo natural.
Um segundo exemplo temos no conde Drácula: homem que, após a morte, faz um
pacto com o demônio quem lhe dá asas, um corpo monstruoso e a imortalidade.
No caso do conde Drácula temos um corpo em cuja movência entre os dois planos é
constante uma vez que este, ao contrário do monstro criado pelo doutor, e ao sabor
de sua vontade, assume tanto a forma monstruosa quanto a humana; seu atravessa-
mento se dá através da metamorfose.
Outro sujeito que se encontra cindido entre dois planos é Van Helsing, sua
existência, já no início do filme, dá mostras de seu entrecruzamento. Embora hu-
mano, em sua mente desmemoriada, aparecem flashs de eventos nos quais ele esteve
presente e que ocorreram há séculos. É imortal, portanto, e, embora não pertença
a um plano extranatural, de fato, a condição perene de seu corpo o transporta para
uma zona limítrofe. Mais adiante, entretanto, sua inserção efetiva no plano do so-
brenatural é alcançada. Ao travar luta contra o irmão de Anna Valerius, transforma-
do em lobisomem, é mordido pela besta e passa a carregar, ele mesmo, a maldição.
Para além dos corpos vemos os espaços sociais também moldados ao sabor
da pluriformidade. O antigo castelo do conde Drácula, por exemplo, tem a solidez,
a robustez, a impenetrabilidade (imagens que pululam no nosso imaginário e as
quais acreditamos serem marcas desta sorte de construção) abaladas pela liquidez;
isso porque é no castelo que se encontra o portal, espécie de passagem secreta mís-
tica, que leva ao esconderijo do conde. O covil do monstro ocupa um plano distinto

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Estudos Literários

daquele no qual está assentado o castelo, portanto seu alcance se dá pelo atraves-
sar entre ambos. O castelo é, portanto, fronteira e passagem. É caro ressaltar, neste
ponto da análise, que o portal, aberto no momento em que Van Helsing completa
uma inscrição em um quadro na parede, apresenta-se em forma de espelho. Este
objeto ocupa posição central nos modos de posicionamentos descritos por Michel
Foucault. Segundo o filósofo, há, entre as utopias e as heterotopias,

uma espécie de experiência mista, mediana, que seria o espelho. O espelho,


afinal, é uma utopia, pois é um lugar sem lugar. No espelho, eu me vejo lá
onde não estou, em um espaço irreal que se abre virtualmente atrás da super-
fície, eu estou lá longe, lá onde não estou, uma espécie de sombra que me dá
a mim mesmo minha pró¬pria visibilidade, que me permite me olhar lá onde
estou ausente: utopia do espelho. Mas é igualmente uma heterotopia, na me-
dida em que o espelho existe realmente, e que tem, no lugar que ocupo, uma
espécie de efeito retroativo; é a partir do espelho que me descubro ausente no
lugar em que estou porque eu me vejo lá longe. A partir desse olhar que de
qualquer forma se dirige para mim, do fundo desse espaço virtual que está do
outro lado do espelho, eu retorno a mim e começo a dirigir meus olhos para
mim mesmo e a me constituir ali onde estou: o espelho funciona como uma
heterotopia no sentido em que ele torna esse lugar que ocupo, no momento
em que me olho no espelho, ao mesmo tempo absolutamente real, em relação
com todo o espaço que o envolve, e absolutamente irreal, já que ela é obri-
gada, para ser percebida, a passar por aquele ponto virtual que está lá longe

Desse modo, como já mencionado, o castelo, fixado a um plano “real”, tem


marcada a sua posição fronteiriça e sua ligação, ou melhor dizendo, sua peregrina-
ção para um outro plano, a partir do momento em que nele um espelho-portal se
abre. Heterotopia e utopia, real e insólito, natural e sobrenatural, têm seu ponto de
conexão, sua similitude e junção fixadas e definidas através e pelo espelho-portal
que, ao mesmo tempo em que fragiliza solidez do mundo natural, fortalece a insta-
bilidade do outro. Longe de ser uma zona de limites, o castelo, ou mais especifica-
mente, o espelho, marca o ponto de abertura entre ambos, seu ponto de conexão.
Vale lembrar que quem primeiro experimenta a passagem é o próprio Van Helsing

45
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

que está em vias de se tornar, efetivamente, um pertencente ao plano do sobrena-


tural. O espelho, aqui, representa também o seu ponto de conexão e aderência com
o extranatural.
Desse modo, natural e sobrenatural se confundem, se mesclam, as espaciali-
dades entram em simbiose uma vez que os sujeitos que nelas se inserem as entrecru-
zam, ocupam, um, o lugar do outro, desfazendo, então, toda sorte de balizamento,
de ordenação, estruturação e demarcação que a sociedade impetra.

As anormalidades do corpo: Ou da transgressão


Perseguidos desde o castelo até o que parece ser um moinho, o monstro cria-
do por Frankenstein já agora morto, do alto da torre em chamas, antes de cair com
a derrocada da mesma, grita à multidão quem os persegue perguntando-lhe: “por
quê?”. A resposta, o expectados mais desatento poderia fornecer de imediato. Trata-
se de um monstro, um anormal. Cria e criador, são seres transgressores, deturpam
a “ordem natural” das coisas e, por isso, são execrados e merecem o extermínio. Se-
gundo nos mostra a professora doutora Marisa Martins Gama-Khalil (2013, p. 22),
a transgressão é marca fundamental de toda a literatura, mas sua mostra ver-se-á
demasiada na literatura fantástica2. É no deslocamento, na ausência, na plurifor-
midade, na anormalidade dos corpos e de outros espaços, no seu desgoverno, que
suas marcas se evidenciam. Portanto, como aponta o professor doutor Nilton Mi-
lanez (2013, p. 17), “a metamorfose se dá como resultado de uma transgressão, (...)
o motivo da transformação dos corpos acontece no momento em que se entra no
domínio do interdito.” Desse modo, as anomalias corporais se ligam e evidenciam o
comportamento dos sujeitos e suas atitudes perante a sociedade bem como a quebra
de dos padrões ordenadores impetrados pela lei.
Mas que tipo de desvio as metamorfoses dos sujeitos no filme em análise
nos dão a ver? De acordo com o professor Nilton (2013, p. 11), “a metamorfose
serve como elemento que vai do lado da infração, demonstrando os lugares para o
criminoso e a lei.” Desse modo, um olhar atento às formas as quais se apresentam os

2  Entendido, aqui, como modo e não gênero, o fantástico abriga o maravilhoso, o estranho, o fantástico
puro, etc.

46
Estudos Literários

corpos-espaços na narrativa fornece-nos indícios dos modos de transgressão prati-


cados pelos sujeitos.
Comecemos por observar o conde Drácula, antagonista principal na narra-
tiva e centro de toda a movências articulada pelos heróis em defesa da paz, do bem
e da ordem. Obviamente o conde, em sua condição post-mortem já ultrapassa os
limites da ordem, mas do seu corpo tomamos nota de sua transgressão maior, ou,
melhor dizendo, sua primeira marca transgressora. Após ser assassinado o conde
fez um pacto com o diabo quem lhe deu uma nova vida, para manter essa nova vida,
ele deveria se alimentar de sangue humano. Arrependido por ter gerado tal criatura,
seu pai, o ancestral da família Valerius, foi à Roma pedir perdão; lá ele firmou um
acordo com a igreja, deveria matar seu filho em troca da salvação eterna de toda a
sua família. Não conseguindo tirar a vida do próprio filho, Valérios o baniu, através
de uma porta para uma fortaleza sem saída, mas, então, o diabo lhe conferiu asas.
Do corpo, portanto, do conde temos mostra de dois procedimentos transgressores
seus; o primeiro foi seu rompimento com Deus, aliando-se ao diabo. A partir deste
momento, as “leis divinas” propagadas pela igreja como forma de manter a ordem e
a estabilidade na sociedade são abandonadas pelo conde. O segundo procedimento
transgressor foi ter escapado da prisão a qual seu pai o colocara com o auxílio, no-
vamente, do diabo. Desertor das leis de Deus ele, agora, também rejeita as leis do
homem, foge do cárcere, recusa-se a manter-se, como querem os homens, isolado,
apartado da sociedade tida normal.
Interessante observar um questionamento feito pelo próprio conde Drácula
após ter uma de suas noivas (outro registro transgressor seu, a poligamia) morta
por Van Helsing; injuriado, conversando com as outras duas noivas ele pergunta:
“por que não nos deixam em pás? Nunca matamos mais do que o necessário e me-
nos do que é de direito. Eles podem dizer o mesmo?” O questionamento de Drácula
volta-se contra a lógica da sociedade que o vê como um monstro por seus atos e o
persegue, mas age de maneira talvez pior. O vampiro se alimenta de sangue huma-
no e por isso mata, mas e quanto aos humanos que de sua própria espécie não se
alimenta, no entanto, também a mata?
Outra personagem que também apresenta raciocínio similar é o monstro de
Frankenstein. Em uma de suas cenas ele diz: “Eu não fiz mal a ninguém, mas, mes-
mo assim, a sua gente me quer morto”. A justificativa para o fato é dada mais tarde

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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

pelo jovem frade Carl quando também Van Helsing aponta a bondade da criatura e
seu direito de viver ao que o jovem responde querer, Roma, ele morto, pois, mesmo
não sendo mal, também não é humano. É um ser o qual sua metamorfose revela não
só o seu caráter transgressor, mas o de seu criador. Primeiro ele é biologicamente e
divinamente extraordinário; sua existência dá-se de maneira contrária às leis da na-
tureza e de Deus. Nasce da junção de partes distintas de corpos distintos que, reani-
mados, ganham nova vida a partir da nova forma. Quanto do doutro, vale lembrar
que seu trabalha intenta ser “um triunfo da ciência sobre Deus”. Frankenstein bem
como o conde Drácula, atua em direção oposta às leis e à obediência divinas. Quer
elevar a ciência e seu trabalho aos de Deus; é malquisto, saqueador de túmulos; seus
experimentos e se propósito contrariam a normalidade e a regra sendo, então, um
sujeito marginal, transgressor.
Outro sujeito em cuja metamorfose revela a transgressão é o senhor Hyde,
personagem de O Estranho caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde de Robert Louis Steven-
son, que no filme é caçado por Van Helsing a mando do vaticano. Hyde representa o
lado demoníaco do doutor Jekyll que acredita ser o ser humano possuidor do bem e
do mal concomitantemente. Obviamente que a transformação do doutor no mons-
tro Hyde é a transgressão do médico que, deixa o equilíbrio em razão do exagero,
do desgoverno. Como ensina Nilton Milanez (2009, p. 291) apud Khalil (2013), “o
desgoverno de si é condenado pela sociedade da regra, que em seus códigos de ju-
risprudência” pune os homens “pelas marcas visíveis” da sua “intemperança.”
A mutação representa, ou melhor, expõe o domínio de uma faculdade men-
tal sobre a outra, a temperança, E como aponta Nilton Milanez (2013, p. 12) lendo
Fred Botting (1996) “o excesso é uma forma de transgressão dos limites da realidade
e da possibilidade. Por isso, nesse domínio, se apresentam sementes diabólicas e
incidentes sobrenaturais.” Em função do descomedimento do seu lado mal o doutor
avança os limites do interdito e da normalidade.
A intemperança é, também, o veículo motor da transgressão do protagonista
Van Helsing que também tem seu corpo transfigurado, metamorfoseado. Também
ele avança as zonas limites impostas pela norma e apresenta-se cindido ente o real e
o insólito, entre a lei e a transgressão.
Conforme já apontado anteriormente neste estudo, Van Helsing apresenta,
desde o início da narrativa, existência peculiar uma vez que é perene. Desmemo-

48
Estudos Literários

riado, sua mente apenas formula quadros dispersos de seu passado enigmático. Ao
logo da trama, Van Helsing, em combate com um lobisomem, acaba sendo mor-
dido. O processo de transformação dá-se aos poucos; lentamente a personagem
sofre os efeitos da maldição que lhe ocupa o corpo até a transformação completa
durante um embate contra o conde Drácula. Conforme a linha de observação tecida
nesta última parte de nosso trabalho, a relação das metamorfoses dos corpos com
a transgressão operada pelos sujeitos, temos indícios do caráter discutível de Van
Helsing pelo que opera seu corpo. Sua memória, como afirma o cardeal Jinette, fora
arrancada como castigo por antigos pecados, e durante um curto diálogo com o
conde Drácula, este lhe revela terem sido rivais no passado, e Van Helsing, a mão
esquerda de Deus, o teria assassinado. Assassino, é como o protagonista é também
conhecido; enquanto uns lhe têm prestígio por seus atos, outros o perseguem. Sua
natureza enigmática posta ao lado do caráter dúbio aponta para sua intemperança,
seu descontrole.
Recorro uma última vez às palavras do professor Nilton Milanez. Ao analisar
o corpo de Nogueira, personagem do filme o coronel e o lobisomem, o professor
nos diz que: “o homem transformado em lobisomem apresenta sintomas de não-
controle de suas faculdades mentais”, sendo sua metamorfose “a exteriorização de
aspectos corporais que representam o estado interior de um homem” (MILANEZ,
2013, p. 13). O desgoverno de Van Helsing ganhará materialidade no corpo do lobi-
somem em que se transforma; neste momento, também Van Helsing deixa o equi-
líbrio da razão em função do domínio pleno de seu lado obscuro. Prova máxima
da ausência de domínio de suas faculdades mentais vê-se ao final da cena na qual
trava luta com Drácula; matando drácula, o lobisomem parte para cima de Anna
Valerios, no momento em que esta vai em sua direção com a cura para a maldição.
O resultado do encontro é a morte de Anna.

Conclusão
Isto posto, fica-nos evidente o papel das espacialidades na produção de sen-
tido na narrativa. Espaços que por funcionarem através do exagero, do desgoverno
movem-se em direção oposta à norma, ao habitual. O efeito resultante deste movi-
mento é o horror. O corpo monstruoso é de outra ordem que não a da norma, da

49
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

ordenação, do balizamento. Corpos que, por serem desgovernados, ocupam uma


zona outra, às margens da sociedade da perfeição. Corpos que em seu exagero dão-
nos mostras do caráter transgressor dos sujeitos que os ocupa.

Referências
FOUCAULT, Michel. Outros espaços. In: _______. Ditos e Escritos III: estética,
Literatura, pintura, música e Cinema. Tradução Inês Autran Dourado Barbosa.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. PDF. Disponível em < https://
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TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Tradução Maria Clara Correa
Castello. 4ª – 2ª reimpressão. ed. São Paulo: Perspectiva, 2004.

50
Estudos Literários

O insólito e o onírio em “A
mão no ombro”, de Lygia
Fagundes Telles
Amanda Letícia Falcão Tonetto 1

Neles (nos sonhos) se acumulam imagens que parecem contraditórias e ridícu-


las, perde-se a noção do tempo, e as coisas mais banais podem se revestir de um
aspecto fascinante ou aterrador.
C.G. Jung, 2008a.

O presente trabalho objetiva analisar o conto “A mão no ombro”, do livro Se-


minário dos Ratos, de Lygia Fagundes Telles, autora brasileira cuja obra se faz notar
pelo uso do insólito, do inexplicável, do sobrenatural em suas narrativas. No conto
supracitado, serão analisados os elementos utilizados pela autora para a ocorrência
do metaempírico e da construção insólita na narrativa, com foco na espacialidade
do jardim, cenário principal da história. Como suporte teórico, utilizaremos a defi-
nição de insólito proposta por Lenira Marques Covizzi e o conceito de metaempírico
proposto por Filipe Furtado, além da relação entre o universo onírico e a realidade,
considerada por Sigmund Freud. Ademais, estabeleceremos a relação presente em
“A Caçada”, conto da mesma autora, que apresenta meios semelhantes ao primeiro
para causar a hesitação e consequentemente a irrupção do insólito na narrativa.
“A mão no ombro” narra a história de um homem sonhando que está em um
jardim, onde alguém desconhecido está vindo tocar-lhe o ombro. Durante o sonho,
cenas da infância do personagem se misturam ao presente: o quebra-cabeça que
costumava jogar com o pai e que retratava a cena de uma caçada, e a procissão que
acompanhava junto com sua mãe. Assustado, por intuir que a mão que lhe tocaria

1  Universidade Federal de Uberlândia (UFU)

51
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

o ombro era da morte, acorda imediatamente. Ao acordar, graças ao risco de morte


realizado no sonho, o personagem decide reformular sua vida, de modo a aprovei-
tar as coisas simples, enquanto, de certa forma, prepara-se para morrer. Depois, ao
entrar em seu carro, é transportado inesperadamente para dentro do mesmo jardim
do sonho, mas desta vez, sem medo da mão que estava prestes a tocá-lo.
Nota-se, nesses acontecimentos, a importância do espaço do jardim em
conjunto com elementos insólitos na vida dessa personagem, justificando a aná-
lise dos significados evocados por tal espacialidade. Para Lenira Marques Covizzi
(1978), o insólito é suscitado pelo mundo de linguagem que o texto desencadeia,
pelas inesperadas relações no tecido discursivo. O insólito, na visão de Covizzi, é
assim caracterizado:

O insólito contém uma carga de indefinição própria de seu significado. En-


tra-se em contato com objetos, pessoas, situações até então desconhecidos.
Daí a perplexidade e excitação que provoca. E se [...] é tratado como habitu-
al, nos seus limites de clareza, logicidade, naturalidade e determinação, nu-
ma abordagem inversa ao normalmente esperado, sua carga de estranheza
se multiplica. Podemos ainda caracterizá-lo genericamente como sendo um
fenômeno de inadequação essencial entre partes de um mesmo objeto, entre
origem e fim, constituição e fim, utilidade e fim, ou sua especial significação
e o contexto em que se insere: deslocações, não correspondência entre signi-
ficado intrínseco e operacionalidade, teoria e prática. Enfim, uma disfunção.
(COVIZZI, 1978, p. 26)

No conto em análise, o insólito abrange toda a atmosfera da narrativa, des-


de a simbiose entre a realidade prosaica do protagonista e a realidade onírica, que
emerge por meio do sonho. No âmbito do sonho, o insólito é a marca principal,
espraiando-se por todos os elementos que nele surgem, culminando com a mão
misteriosa que toca o ombro do protagonista.
Ao entrar no jardim, o personagem é dominado por um “sentimento inquie-
tante”, e hesita ao perceber que nunca estivera ali antes, tendo a inesperada sensação
de que algo aconteceria, apesar de não se saber o quê:

52
Estudos Literários

Sentiu-se oco, a sensação de leveza se misturando ao sentimento inquietante


de um ser sem raízes: se abrisse as veias não sairia nenhuma gota de sangue,
não sairia nada. Apanhou um folha. Mas que jardim era esse? Nunca estivera
ali nem sabia como o encontrara. Mas sabia – e com que força – que a rotina
fora quebrada porque alguma coisa ia acontecer, o quê?! Sentiu o coração
disparar. Habituara-se tanto ao quotidiano sem imprevistos, sem mistério. E
agora, a loucura desse jardim atravessado em seu caminho. (TELLES, 1998,
p. 107-108)

Para lidar com esse “sentimento inquietante”, faz-se necessário irmos a uma
noção postulada por Sigmund Freud, a de estranho, inquietante. Para Freud, o
inquietante:

relaciona-se ao que é terrível, ao que desperta angústia e horror, e também


está claro que o termo não é usado sempre num sentido bem determinado,
de modo que geralmente equivale ao angustiante. [...] O inquietante é aquela
espécie de coisa assustadora que remonta ao que é há muito conhecido, ao
bastante familiar. (FREUD, 2010, p. 248-249)

Essa atmosfera misteriosa, mas ao mesmo tempo muito particular remete-


nos ao campo do inquietante, já que o personagem, além do estranho sentimento
de não pertencimento “de um ser sem raízes”, tem também uma sensação que infere
a falta de vida, por causa das veias de onde não sairiam “nenhuma gota de sangue”.
Além disso, apesar de não reconhecer o jardim, consegue pressentir que alguma
coisa muito angustiante aconteceria ali, o que pode indicar que, no sonho, algo de
familiar apavora o personagem.
Depois da sua primeira entrada no insólito jardim, sonho e realidade se mis-
turam, e esse entrelugar pode ser estabelecido a partir da ideia de fronteira, que para
Cassio Hissa:

O que deveria ser demarcação perceptível mostra-se espaço de transição, lu-


gar de interpenetrações, campo aberto de interseções. O que foi concebido
para ser preciso mostra-se vago. O que foi concebido para conter, transforma
o conteúdo em espaço ilimitado, incontido. Para além da linha que demarca,
é exatamente a fronteira que explicita a amplitude ou a complexidade do que

53
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

não foi arquitetado para ser contido ou confinado. O que foi concebido para
“por fim”, para delimitar territórios com precisão como se fosse uma linha
divisória, espraia-se em uma zona de interface e de transição entre dois mun-
dos tomados como distintos. (HISSA, 2002, p. 35-36)

Assim, a fronteira que deveria dividir o sonho da realidade, torna-se um es-


paço de transição quando as lembranças do personagem vêm à tona, de forma que
as imagens dessas memórias compõem a espacialidade do jardim: cenas que ocor-
reram em sua infância e que agora se misturam ao sonho, como podemos conferir
no seguinte trecho:

Começou a assobiar e as primeiras notas da melodia o transportaram ao me-


nino antigo com sua roupa de Senhor dos Passos na procissão da Sexta-feira
Santa. O Cristo cresceu no esquife de vidro, oscilando suspenso sobre as ca-
beças, me levanta, mãe, quero ver! [...] O medo atrofiando a marcha dos pés
tímidos atrás do Filho de Deus, o que nos espera se até Ele?!… A vontade de
que o pesadelo passasse logo e amanhecesse sábado, ressuscitar no sábado!
Mas a hora ainda era a da banda de batas pretas. Das tochas [...] Falta muito,
mãe? A vontade de evasão de tudo quanto era grave e profundo certamente
vinha dessa noite: os planos de fuga na primeira esquina, desvencilhar-se da
coroa de falsos espinhos, da capa vermelha, fugir do Morto tão divino, mas
morto. A procissão seguiu por ruas determinadas, era fácil se desviar dela,
descobriu mais tarde. O que continuava difícil era fugir de si mesmo. No fun-
do secreto, fonte de ansiedade, era sempre noite – os espinhos verdadeiros lhe
espetando a carne, ô! por que não amanhece? Quero amanhecer! (TELLES,
1998, p. 109)

O jardim, então, pode ser considerado uma cronotopia insólita, já que é um


espaço onde os tempos e os elementos espaciais se entrelaçam. Passado e presente
confundem-se entre sonho e realidade, provocando a ambientação insólita. Toma-
se aqui o termo cronotopia das teorias de Mikhail Bakhtin:

A interligação fundamental das relações temporais e espaciais, artisticamente


assimiladas em literatura, chamaremos cronotopo (que significa “tempo-es-

54
Estudos Literários

paço”). Esse termo é empregado nas ciências matemáticas e foi introduzido


e fundamentado com base na teoria da relatividade (Einstein). (BAKHTIN,
1990, p. 211, grifos do autor citado)

Durante toda a narrativa, o jardim é construído de forma a deixar claro que


não há vida dentro dele. Era um jardim abandonado: não havia flores, nem borbo-
letas, nem pássaros, nem formigas. Apenas folhas secas, espinhos, e a aranha que
andava na orelha da estátua. A aranha, apesar de ser o único ser vivo ali presente,
pode representar ao invés da vida, a insurgência do perigo, do abandono, da morte.
O jardim se assemelha, dessa maneira, ao próprio personagem, que se sente como
se não tivesse vida: o sentimento de vazio, de estar oco, não tendo nem mesmo san-
gue em suas veias. Além disso, não se sabe se era dia ou noite: “era uma lua ou um
sol apagado? Difícil saber se estava anoitecendo ou se já era manhã no jardim que
tinha a luminosidade fosca de uma antiga moeda de cobre.” (TELLES, 1998, p. 107).
Todos estes elementos de incerteza e de dúvida entre a vida e a morte, criam um
ambiente misterioso e sombrio, propício para a irrupção do insólito.
Para Michel Foucault (2006), o jardim classifica-se como uma heterotopia,
uma vez que se trata de um lugar real com o poder de justapor vários espaços.
Nos jardins é possível, por exemplo, manipular as condições naturais de maneira a
agrupar plantas ou elementos — como a estátua do conto — que, de outra forma,
jamais ocupariam o mesmo ambiente. Assim, no conto analisado, percebemos essa
heterotopia a partir do momento em que o jardim passa a ser não apenas um es-
paço onde o personagem se encontra, mas também um lugar repleto de memórias
que causam incertezas, lembranças capazes de fazê-lo reviver a infância e percorrer
outros espaços.
Mais à frente, depois de acordar do sonho temendo a morte e reconsiderando
seus hábitos, cogitando até mesmo parar de fumar, o personagem entra em seu carro
e se vê novamente dentro do jardim do sonho, mas desta vez enquanto está acordado:

Entrou no carro, ligou o contato. O pé esquerdo resvalou para o lado, recu-


sando-se a obedecer. Repetiu o comando com mais energia e o pé resistindo.
Tentou mais vezes. Não perder a calma, não se afobar, foi repetindo enquanto
desligava a chave. Fechou o vidro. O silêncio. A quietude. De onde vinha esse

55
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

perfume de ervas úmidas? [...], mas o que é isso, estou no jardim? De novo? E
agora, acordado, espantou-se [...]. Tocou na figueira, sim, outra vez a figueira
[...] (TELLES, 1998, p. 114)

Assim, o personagem transita entre uma cronotopia sólita, uma espaciali-


dade concreta que remete ao mundo objetivo, mecânico (representado pelo carro),
e uma cronotopia insólita, baseada em uma espacialidade natural - que remete à
natureza (a espacialidade do jardim) - e ao mesmo tempo ao mundo subjetivo e
onírico.
A sequência de acontecimentos acima explicita a falta de explicações veri-
ficáveis para que o personagem adentre o universo onírico quando está acordado,
sentindo o cheiro das ervas e conseguindo tocar a figueira do jardim, vivendo um
constante retorno a essa espacialidade marcada pelas memórias. É possível, dessa
forma, relacionar os acontecimentos do conto com conceito de metaempírico pro-
posto por Filipe Furtado. Segundo ele, o metaempírico:

[...] está para além do que é verificável ou cognoscível a partir da experiência,


tanto por intermédio dos sentidos ou das potencialidades cognitivas da men-
te humana, como através de quaisquer aparelhos que auxiliem, desenvolvam
ou supram essas faculdades. (FURTADO, 1980, p. 20)

Ao final do conto, o personagem encontra-se novamente dentro do jardim,


numa “sonolência verde-cinza”:

Preciso dormir, murmurou fechando os olhos. Por entre a sonolência verde-


-cinza viu que retomava o sonho no ponto exato em que fora interrompido.
A escada. Os passos. Sentiu o ombro tocado de leve. Voltou-se. (TELLES,
1998, p. 115)

O verde é uma cor recorrente na escrita de Lygia Fagundes Telles. Essa cor,
que prevalece no jardim, frequentemente é associada a temas felizes e à vida, mas
aqui pode fazer alusão também ao mofo, à decomposição e à morte. Segundo Ga-
ma-Khalil:

Se o verde possui uma ambivalência, a cor cinza também, já que representa

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Estudos Literários

morte, mas também a ressurreição. O cinza é o que sobra depois que o fogo
cessa, é o que sobra do corpo humano, representando, assim, a nulidade, o
niilismo. Mas se as cinzas associam-se ao fim, à morte, encontram-se asso-
ciadas ao eterno retorno, à ressurreição. Como no verde, vida e morte regem
a simbologia da cor cinza. (GAMA-KHALIL, 2017, p. 189)

Dessa forma, o sonho transforma-se em realidade dentro do jardim, enquan-


to a vida mistura-se à morte, provocando uma ambiguidade extrema através do
entrelugar possibilitado pelo encontro insólito entre as duas realidades.
Ao final do conto, não sabemos o que de fato acontece após a mão tocar-lhe o
ombro: seria de fato a morte? Ou o personagem, sonolento, estaria apenas sonhan-
do novamente que estava dentro do jardim? Mas ele não estava acordado quando
entrou no jardim outra vez?
Roger Caillois defende que:

A conivência do sonho e do fantástico é inevitável, pois o sonho, que é sem-


pre misterioso, pode facilmente tornar-se aterrador. Através dele, a pessoa
que dorme se imagina introduzida em um mundo sobrenatural ou, ao con-
trário, alguma coisa de um mundo interdito lhe parece forçar a entrada de sua
consciência. (CAILLOIS, 1978, p. 45)

Logo, percebemos que a autora recorre ao sonho para construir o fantástico,


já que dentro dele é criado um universo misterioso, repleto de ambivalências, incer-
tezas, medos e acontecimentos incomuns. Assim, não é possível encontrar o limite
ficcional entre sonho e realidade, uma vez que os espaços se misturam, de modo a
tornar a narrativa muito mais complexa e incerta. Visto que a hesitação, segundo
Todorov (1980), é a primeira condição para o fantástico e que o insólito na narrativa
irrompe a partir de um sonho ficcional, onde a personagem hesita entre sonho e
realidade, podemos afirmar que o meio obscuro do sonho é a base para o fantásti-
co no conto. O final é deixado em aberto e o leitor é o responsável por desvendar
se todos aqueles acontecimentos ocorreram de fato dentro do universo onírico ou
se são episódios sobrenaturais. De acordo com Cardoso dos Santos (2010), Freud
afirma que há estímulos mentais que permanecem durante o sonho: a) os proces-
sos que foram interrompidos e não chegaram ao fim durante o dia; b) o que ficou

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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

incompleto, sem solução; c) o que ficou reprimido. Desse modo, esses sonhos, que
representam uma continuação do que foi vivido durante o dia, podem apresentar
mais aspectos do fantástico.

Tais sonhos de conteúdo penoso podem desenrolar-se em meio da maior in-


diferença do indivíduo, acompanhar-se de afetos desprazíveis que parecem
justificados por seu conteúdo de representações ou conduzir, por fim, à in-
terrupção do sono mediante o desenvolvimento de angústia. (FREUD apud
SANTOS, 2010, p. 55)

O criador da psicanálise declara que as pessoas que continuam com os pen-


samentos da vigília durante o sono, deparam-se com seus desejos reprimidos, que
se manifestam nos sonhos. Podemos concluir, então, que a angústia vivida pelo
personagem dentro do sonho pode ser advinda de alguma situação que aconteceu
antes do estado onírico, isto é, o personagem poderia estar impaciente, aflito, por
causa de algum problema ou situação a ser resolvida. Dessa forma, constatamos o
surgimento de fatos distorcidos que, no sonho, se misturam à realidade, formando
um universo favorável a manifestações que antes só seriam possíveis na narrativa
fantástica, como a presença de uma pessoa desconhecida que, para o personagem,
pode representar a morte, assim como os seres (a aranha, a estátua) e a espacialida-
de do jardim, que aparenta não ter vida. Para Bachelard (2008, p. 29): “O incons-
ciente permanece nos locais. As lembranças são imóveis, tanto mais sólidas quanto
mais bem espacializadas.” Assim, o sonho, através do jardim, torna-se espaço, já que
se pode “dizer que o espaço é esse conjunto de indicações - concretas ou abstratas -
que constitui um sistema variável de relações” (SANTOS e OLIVEIRA, 2001, p. 67).
Concluímos, então, que Lygia Fagundes Telles transforma esse espaço em fantástico
quando reúne princípios da realidade com a fantasia.
É possível relacionar “A mão no ombro” com “A Caçada”, conto da mesma
autora, presente no livro Antes do Baile Verde. “A Caçada” narra a história de um
homem que é tomado por uma estranha sensação ao ver uma velha tapeçaria nu-
ma loja de antiguidades. A tapeçaria retrata a cena de uma caçada, e o homem se
envolve tanto com a peça que sente como se fizesse parte dela, entrando, assim, em
outra realidade: um espaço diferente em um tempo diferente. O personagem, que

58
Estudos Literários

detesta caçadas, de repente está dentro de uma, e começa a se questionar se ele seria
“o artesão que trabalhou na tapeçaria” ou um dos caçadores retratados na cena, na
tentativa de entender o que estaria fazendo ali dentro.
É comum, às duas narrativas, a incerteza causada pelo espaço onde os per-
sonagens se encontram, já que são espaços fantásticos onde as lembranças se mis-
turam com a realidade, de modo a provocar a hesitação: em “A mão no ombro”, as
lembranças da infância do personagem vêm à tona quando este se encontra dentro
do jardim do sonho, misturando as memórias ao ambiente onírico, enquanto em “A
Caçada”, o personagem tenta, incessantemente, lembrar-se de qual era o seu papel
na cena da tapeçaria que reconhecia de maneira tão evidente. Também é comum
a presença de um caçador, mencionada dentro dessas duas espacialidades. Além
disso, em ambos os contos, a natureza tem influência na ambientação da narrativa,
uma vez que o cenário principal dos contos são um jardim e um bosque. Frequen-
temente os espaços bosque e jardim são projetados por escritores e críticos literários
como metáforas para a ficção, como no livro teórico de Umberto Eco (1994) Seis
passeios pelos bosques da ficção e no conto de Jorge Luis Borges (1999) intitulado “O
jardim das veredas que se bifurcam”.
No primeiro conto, o jardim é comparado ao jogo de quebra-cabeça com a
cena de um caçador escondido em um bosque:

Um jardim inocente. E inquietante como o jogo de quebra-cabeça que o pai


gostava de jogar com ele: no caprichoso desenho de um bosque estava o ca-
çador escondido, tinha que achá-lo depressa para não perder a partida. (TEL-
LES, 1998, p. 108)

No segundo, o personagem, ao se deparar com a velha tapeçaria, observa


também a cena de um caçador escondido entre as árvores do bosque, muito similar
ao quebra-cabeça mencionado anteriormente:

Era uma caçada. No primeiro plano, estava o caçador de arco retesado, apon-
tando para uma touceira espessa. Num plano mais profundo, o segundo ca-
çador espreitava por entre as árvores do bosque, mas esta era apenas uma
vaga silhueta, cujo rosto se reduzira a um esmaecido contorno. Poderoso,
absoluto era o primeiro caçador, a barba violenta como um bolo de serpentes,

59
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

os músculos tensos, à espera de que a caça levantasse para desferir-lhe a seta.


(TELLES, 1999, p. 62)

É possível também relacionar a forma como a morte é tratada nos dois con-
tos. O personagem de “A mão no ombro” sabe que um caçador “familiar” tocaria
seu ombro, e quando o fizesse, ele morreria, de joelhos no chão:

Esse caçador singularmente familiar que viria por detrás, na direção do ban-
co de pedra onde ia se sentar, logo ali adiante tinha um banco. Para não me
surpreender desprevenido (detestava surpresas) discretamente ele dará al-
gum sinal antes de pousar a mão no meu ombro. Então eu me viro para ver.
Estacou. A revelação o fez cambalear, esvaído numa vertigem: agora joelhos
no chão. (TELLES, 1998, p. 108)

Ao mesmo tempo, em “A Caçada”, o desfecho acontece quando o persona-


gem reconhece afinal qual era o seu papel na cena retratada na tapeçaria: a caça.
Resta a ele então apenas a dor e a angústia por ser quem era:

“Não...” - gemeu, de joelhos. Tentou ainda agarrar-se à tapeçaria. E rolou en-


colhido, as mãos apertando o coração. (TELLES, 1999, p. 66)

Através desses elementos em comum, como o jardim, o bosque, o caçador,


a presença das lembranças de ambos os personagens, que os fazem reconhecer os
espaços em que se encontram como ambientes familiares, apesar de não saberem o
porquê, e o sentimento causado por essas memórias, que trazem a angústia de não
compreender o que de fato estaria acontecendo, é possível estabelecer uma intertex-
tualidade entre os dois contos, a fim de destacar tais figuras na irrupção do fantás-
tico nas narrativas, além de perceber como a espacialidade se mostra fundamental
para a construção insólita das narrativas da autora.
Durante meus estudos, pude observar que o elemento que marca o fantástico
na escrita de Lygia Fagundes Telles é a atmosfera obscura que envolve suas narrati-
vas. Podemos afirmar que os principais aspectos de sua ficção são a hesitação e a in-
certeza, que sempre se mostram de maneira marcante, como pudemos verificar nos
dois contos aqui relacionados. Essa hesitação marca o insólito das duas narrativas,
já que ela é provocada por memórias dos personagens, que se misturam ao presente

60
Estudos Literários

e causam a sensação de familiaridade aos ambientes em que se encontram, mesmo


que, como no caso de “A mão no ombro”, o personagem tenha certeza de que nunca
estivera ali antes. Além disso, junto a esse sentimento de familiaridade, ambos os
personagens pressentem que algo assustador acontecerá, apesar de não saberem o
quê, intensificando ainda mais essa inquietação. Essa característica marca também
vários outros contos fantásticos da autora, já que, em sua maioria o desfecho fica
subentendido e aberto a várias possibilidades e interpretações, determinando a am-
bientação insólita que compõe sua obra.

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61
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

FURTADO, Filipe. A construção do fantástico na narrativa. Lisboa: Livros Horizonte,


1980.
HISSA, Cássio Eduardo Viana. A mobilidade das fronteiras: inserções da geografia na
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JUNG, Carl Gustav. O homem e seus símbolos. Concepção e organização de Carl Gustav
Jung. Tradução de Maria Lúcia Pinho. 2. ed. especial. Rio de Janeiro: Nova
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SANTOS, Luis Alberto Brandão; OLIVEIRA, Silvana Pessoa de. Sujeito, tempo e espaço
ficcionais: Introdução à Teoria da Literatura. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
SANTOS, Marli Cardoso dos. O sonho em Machado de Assis: análise dos espaços
fantásticos.2010. Dissertação (Mestrado em Teoria Literária)— Instituto de
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TELLES, Lygia Fagundes. Antes do Baile Verde. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
_______. Seminário dos Ratos. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2008.

62
Estudos Literários

Paulo Leminski:
Da vanguarda concretista à
expressão da “várzea”
Ana Érica Reis da Silva Kühn1

Paulo Leminski estreou no cenário poético sob a batuta da Poesia Concreta


durante a década de 60. O poeta curitibano encontrou pela primeira vez o grupo
Noigandres – constituído por Décio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos – em
um evento sobre poesia de vanguarda que ocorreu em Belo Horizonte. Toninho
Vaz (2001), autor da biografia Paulo Leminski: o bandido que sabia latim, relembra
a ocasião: “quando Leminski leu num jornal a notícia sobre um encontro de poesia
marcado para Minas Gerais. [...] Ele decidiu ir para conhecer de perto o grupo
paulista de Poesia Concreta, editores da revista Noigandres, com os quais tinha pro-
fundas afinidades” (VAZ, 2001, p. 68 – destaques do autor).
Após esse encontro, Leminski estabelece contato com os poetas concretos
e publica na revista de verve concretista Invenção. O poeta contribuiu com poe-
mas na quarta, quinta e última edição da revista. Alguns desses poemas integram
a seção “Invenções”, que faz parte do livro Caprichos e relaxos, publicado em 1983,
uma espécie de antologia das obras de Leminski publicadas até então. Nos poemas
de filiação concretista publicados em “Invenções”, é possível constatar a influência
da vanguarda na dicção poética do jovem Leminski, como podemos verificar no
poema a seguir:

a grave advertência dos portões de bronze


das mansões senhoriais
a advertência dos portões das mansões

1  Universidade Federal de Goiás (UFG), [email protected]

63
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

a advertência dos portões


a advertência
a ânsia.
(LEMINSKI, 1983, p. 149)

O que primeiramente chama atenção no poema é o seu aspecto visual, o mo-


do como os versos estão distribuídos na página em branco, a formar a imagem de
um triângulo invertido. Esse resultado do trabalho do poeta com a linguagem surge
através de uma gradativa redução na quantidade de sílabas poéticas, da maior para
a menor. Assim, no primeiro verso, há um alexandrino clássico; no segundo verso,
uma redondilha maior; no terceiro, um hendecassílabo; no quarto, um octossílabo;
e os dois últimos com quatro e duas sílabas, respectivamente.
A repetição é outro elemento predominante no poema. Ao se apropriar desse
recurso, o poeta elabora o seu discurso crítico a respeito das diferenças de classe.
Emprega a “advertência” como um aspecto que marca uma relação de poder, até que
reste apenas uma “ânsia” como sensação de desgaste ocasionada pelo fator opressor.
A forma do triângulo, sugerida pela organização dos versos, reporta à pirâmide
social, mas aqui a classe mais desprovida, que deveria ser a maior, é oprimida pela
força do poder dos mais nobres, representada pelo verso de maior sílaba.
Há alguns elementos no poema que nos permitem realizar essa leitura, a
“advertência”, que é “grave”, imposta pelos “portões de bronze”, pelas “mansões se-
nhoris” e “pelos portões das mansões”, são todos elementos que representam os que
são detentores de poder e riqueza. Os “portões”, por sua vez, simbolizam a proteção
desses bens, representam o direito sobre propriedade, além de criar uma barreira
que divide a classe mais abastada daquela que não possui bens. A “ânsia” que sente
o poeta é consequência de uma identificação com esse isolamento da classe social
mais pobre, que fica à margem dos portões e sofre com as proibições/advertências
que lhe são impostas. É por meio de um jogo aparentemente sutil com a linguagem,
estabelecido via versos que se intercalam entre a repetição e o fragmento, que Le-
minski tece uma crítica sobre a desigualdade entre as classes sociais.
Ainda, podemos observar, no referido poema, uma possibilidade de dupla
leitura, uma que obedece a ordem dos versos, e que já está dada ao leitor, e outra que
consideraria o último verso como primeiro. Vejamos, então, como ficaria o poema

64
Estudos Literários

conforme essa segunda proposição:

a ânsia
a advertência
a advertência dos portões
a advertência dos portões das mansões
das mansões senhoriais
a grave advertência dos portões de bronze.

Nesse segundo modo de ler, a “ânsia” ainda seria decorrente da “advertência”


imposta pelos portões. Contudo, agora essa sensação já estaria exposta ao leitor no
primeiro verso, sendo o restante do poema uma espécie de explicação para o seu sur-
gimento. É possível observar que há uma mudança na imagem suscitada pelo poe-
ma. Em lugar do triângulo invertido, surge agora um triângulo similar à forma geo-
métrica, que é mais comumente reconhecida e que se assemelha à pirâmide social.
Essa possibilidade de leitura só pode ser concebida graças a característica de
montagem e desmontagem dos poemas concretos. Parte disso também se deve à
ausência de pontuação, o que garante a sensação de independência entre os versos.
Entretanto, a pontuação, apesar de desnecessária, está insinuada no poema através
da proposição dos versos que sugerem pausas. Sobre a irrelevância da pontuação
nos poemas concretos, Augusto de Campos (2006a, p. 33) aponta: “A própria pon-
tuação se torna aqui desnecessária, uma vez que o espaço gráfico se substantiva e
passa a fazer funcionar com maior plasticidade as pausas e os intervalos da dicção”.
Podemos observar ainda, como é típico do Concretismo, que, no poema, a
imagem expressa uma mensagem tanto quanto o conteúdo das palavras. Ambos
formam juntos um todo significativo, de modo que o poema passa a ser considerado
um objeto artístico. Isso ocorre porque “os poemas concretos caracterizar-se-iam por
uma estruturação ótica-sonora irreversível e funcional e, por assim, dizer, geradora
da ideia, criando uma entidade todo-dinâmica” (CAMPOS, A., 2006b, p. 55 – grifos
do autor). Assim, exigem uma atenção quanto aos seus aspectos óticos, acústicos,
sintáticos e gráficos, uma vez que a sua feitura parte do princípio verbivocovisual.
Outro poema, também de cunho concretista, publicado na revista Invenção
e reproduzido em Caprichos e relaxos, exemplifica, mais uma vez, a influência con-
creta no processo criativo leminskiano. Vejamos o poema:

65
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

(LEMINSKI, 1983, p. 150)

O modo como as palavras estão dispostas é o que chama atenção primeira-


mente. O trabalho com a visualidade permite uma leitura quase instantânea. Essa
suposta imediatez consente realizar uma leitura rápida do poema, pois “permite a
comunicação em seu grau + rápido”, como afirma Haroldo de Campos (2006, p. 76).
Ao romper com a tradição do verso, os concretistas propõem que o arranjo
visual das palavras é um modo pelo qual o poema se institui como objeto, realçando

66
Estudos Literários

que a linguagem é o material da poesia. O poema passa a ser estruturado a partir


da justaposição das palavras, não há elementos, como preposições ou verbos, que
possam ocasionar uma ligação entre as palavras. Não obstante, essa relação semân-
tica está implícita no poema, uma vez que todas as palavras pertencem ao mesmo
universo de significação – o consumo.
Leminski (1983) aborda a superioridade das multinacionais – como a “Esso”,
“Texaco” e “Colgate” – relacionando-as ao estatuto de “General”, o que nos permite
inferir duas possíveis leituras. Na primeira, a palavra “General” está relacionada às
empresas “General Motors” e “General eletric”. Na segunda leitura, “General” re-
mete, no poema, às empresas situadas acima desse nome, como “Parker”, “Texaco”,
“Adams”, “Melhoral” etc., sendo essas marcas as que dominam o mercado consumi-
dor, refreando, assim, o desenvolvimento do mercado nacional representado pelas
“casas pernambucanas”. Isso pode ser verificado ainda porque o nome das multina-
cionais está grafado com letras maiúsculas e garrafais, simbolizando sua soberania
no meio industrial, enquanto “casas pernambucanas” aparece em minúscula, com
uma cor mais clara, abaixo da linha de sucessão de todas essas empresas.
O poema também não deixa de suscitar uma crítica, como era típico do es-
tilo leminskiano, sobre o consumo desenfreado, uma consequência do capitalismo.
Muitas vezes, os consumidores adquirem produtos sem ao menos questionar a sua
utilidade. Leminski expõe algumas das marcas que monopolizam o mercado e que
estimulam os consumidores a comprarem sempre mais. À vista disso, elabora o
poema com o intuito de provocar um impacto visual no leitor e, assim, incitar uma
reflexão acerca do consumo consciente.
Além de publicar na revista Invenção, Leminski escreveu o romance Catatau,
que também tem filiação com a vanguarda. Por isso mesmo, se declara herdeiro do
Concretismo: “A coisa concreta está de tal forma incorporada à minha sensibilidade
que costumo dizer que sou mais concreto que eles: eles não começaram concretos,
eu comecei” (LEMINSKI, 1999, p. 208-209).
Domingos Pellegrini (2014), em suas lembranças sobre o amigo, aponta a
semelhança existente entre o poeta curitibano e o grupo Noigandres, retratando
quão representativa a Poesia Concreta foi para a elaboração da poesia leminskia-
na. Vejamos:

67
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

O trio concretista Augusto/ Haroldo de Campos/ Décio Pignatari repetiram


feito mantra a “fenomenologia ‘verbivocovisual’” como receita poética, que
muito conceituaram, mas pouco poetaram. Mas parece definição sintética
perfeita para a poesia de Leminski, que é verbi, palavra e ideia; é voco, voz,
sonoridades espertamente exploradas; e é visual, sempre graficamente atenta,
usando várias tipologias e tamanhos de letras, explorando grafismo. (PELLE-
GRINI, 2014, p. 147 – grifos do autor)

Em meados da década de 70, Leminski começa a viver um embate com os


ideais da vanguarda concretista. Isso ocorre, sobretudo, devido à preocupação do
poeta com relação ao público leitor. Para Leminski, a ortodoxia construtivista e
a planificação, aspectos que regiam a feitura da Poesia Concreta, afastam o leitor
mediano2 da poesia realizada por Noigandres. Nas cartas que enviou ao amigo Régis
Bonvicino, encontramos não só a tensão que Leminski vivia com os preceitos con-
cretistas, como também o desejo de o poeta realizar uma poesia que alcançasse um
“público mais numeroso” (LEMINSKI, 1999, p. 148). Ainda, à vista disso, Leminski
demonstra, em suas epístolas a Bonvicino, o desejo de rejeitar qualquer influência
do Concretismo na sua poesia, como podemos conferir na quadragésima segunda
carta, de 06/11/1978:

(LEMINSKI, 1999, p. 109)

Apesar de manifestar o desejo de “combater” a Poesia Concreta, considera-


mos que Leminski não se desvincula completamente dessa vanguarda, isso porque
ela faz parte da sua formação poética e intelectual. No entanto, a poesia leminskiana
é assinalada pela afirmação e negação do Concretismo. Assim, em lugar de romper
com os concretos, Leminski realiza uma reorientação da sua poesia, tornando-a

2  Consideramos como leitor mediano aquele que lê sem propensões acadêmicas e sem se interessar em
analisar aspectos formais e estilísticos do texto, possivelmente,por desconhecer tais aspectos. Comumente lê
apenas para o seu próprio deleite.

68
Estudos Literários

uma crítica à vanguarda a qual se filiou inicialmente. Dessa maneira, manterá, na


sua poesia, apenas os elementos da Poesia Concreta que favoreçam a comunicabi-
lidade com o público horizontal, a exemplo da concisão, dos jogos sonoros com a
linguagem e da estrutura gráfico-espacial do poema. À vista disso, depreendemos
que Leminski redimensiona os princípios inerentes ao Concretismo, em lugar de
abdicar completamente da vanguarda, como se pode constatar no fragmento da
carta quadragésima segunda, de 06/11/1978, enviada a Bonvicino:

(LEMINSKI, 1999, p. 109)

Em “Sol-te”, uma das seções do livro Caprichos e relaxos, há a presença de


poemas que conservam aspectos da Poesia Concreta, como a estrutura gráfico-es-
pacial. No poema a seguir, extraído de “Sol-te”, podemos observar que o arran-
jo gráfico da palavra “flutua” encena na página o movimento de flutuação e, por
sua vez, representa ao leitor,
de modo visual, o significado
da própria palavra. O poema
concreto, nesse sentido, como
pontuou Haroldo de Campos
(2006, p. 79), passa a ser con-
siderado como um objeto ver-
bal. Vejamos o poema:

(LEMINSKI, 1983, p. 121)

69
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Buscando se aproximar do público mediano, Leminski investe na coloquiali-


dade, no humor, na ironia, nos jogos paronomásticos com a linguagem e nos temas
relacionados ao cotidiano. Tais aspectos são contemplados no poema a seguir:

morreu o periquito
a gaiola vazia
esconde um grito. (LEMINSKI, 1992, p. 133)

Ainda, como forma de buscar diminuir a “falésia” da comunicação (LE-


MINSKI, 1999, p. 142-143) que separa a poesia do leitor, Leminski associa a sua
dicção poética aos elementos da indústria cultural dos mass media, em especial, à
publicidade e à música. A escolha por esses meios de comunicação não é gratuita,
uma vez que eles são um dos que estão mais presentes na vida do homem contem-
porâneo. Segundo Adalberto Müller (2010, p. 17): “lidar com os mass media im-
plicava uma nova modalidade de ação, na conquista de um território que ia muito
além da vanguarda em termos de revolução das formas”. Na oitava missiva enviada
a Bonvicino, de 11/07/1977, Leminski institui alguns veículos essenciais para o pro-
jeto o seu projeto poético:

(LEMINSKI, 1999, p. 45)

Nesse sentido, entendemos que os poemas concisos de Leminski, sobretu-


do aqueles em que prevalecem os trocadilhos, constituídos por frases de impacto,
funcionam não somente como poemas, mas como slogans poéticos. Dentre esses,
podemos citar o seguinte poema:

PRA QUE CARA FEIA?


NA VIDA
NINGUÉM PAGA MEIA.
(LEMINSKI, 1983, p. 131)

70
Estudos Literários

Além dos slogans poéticos, Leminski escreveu poemas que funcionam co-
mo letra de canção, ou vice-versa. Isso é possível porque, em seus poemas, poesia
e melodia estão conectadas. Ademais, atento à conexão entre poesia e música, o
poeta deseja “que seus textos – transformados ou não em canções – transcendam a
mudez da página” (ALEIXO, 2004, p. 290). Para Marcelo Sandmann (1999, p. 13),
Leminski se interessou pela publicidade e pela música, porque eram veículos que
favoreciam a realização de “mensagens que funcionam”, ou seja, que alcançavam
um público maior. Dentre os poemas que migraram para a canção, podemos citar
“para que leda me leia”, publicado no livro Distraídos venceremos:

para que leda me leia


precisa papel de seda
precisa pedra e areia
para que leia me leda

precisa lenda e certeza


precisa ser e sereia
para que apenas me veja

pena que seja leda


quem quer você que me leia

Esse poema já foi musicado duas vezes. Uma por Moraes


Moreira, outra por Itamar Assumpção. Que tal você? (LEMINSKI, 1987, p. 62)

Esse poema-canção, como mencionado por Leminski, fora musicado por


Moraes Moreira e Itamar Assumpção. O cantor baiano, Moraes Moreira, fez duas
versões para essa canção, uma que está no disco Cidadão, de 1991, e que tem ape-
nas o título de “Lêda”; e outra, que tem o ritmo de marchinha carnavalesca, e que
está incluída em 50 Carnavais, de 1997. Já a versão de Itamar Assumpção não está
em nenhum disco do cantor, mas é possível encontrá-la nas plataformas musicais
digitais. Há ainda outra versão feita por Reynaldo Bessa, e incluída no disco Com
os dentes, de 2007. Podemos observar, ainda, que, no poema acima, Leminski incita

71
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

o leitor a criar também a sua própria versão musical. Desse modo, ratifica a relação
entre o poema e a esfera musical.
Consideramos que os recursos aqui mencionados e utilizados por Leminski,
para possibilitar a comunicação e a aproximação da sua poesia com o “público mais
numeroso”, como denominou o próprio poeta, configuram uma expressão poética
relacionada à “várzea”. Essa expressão vinculada à “várzea” pode ser considerada co-
mo um revide pop à produção poética que é destinada apenas a um público douto,
como é o caso da Poesia Concreta.
A “várzea” é constituída pelos elementos que fazem parte dos mass media,
como a publicidade e a música, e por aqueles que possibilitam ao leitor uma com-
preensão quase imediata da poesia, como a coloquialidade, o humor e o trocadilho.
A respeito da importância da “várzea” para a sua poesia, Leminski (1999, p. 208)
declara que a verdade está na “força nos times de várzea, nessa várzea subdesen-
volvida, que eu quero”. Ainda, conforme o poeta, o time da “várzea” pode competir
ao lado dos grandes times, e, para isso, torce: “quero a vitória/ do time de várzea”
(LEMINSKI, 1983, p. 81).
Ao migrar da vanguarda concretista para uma expressão oriunda de uma
“várzea” poética, Leminski não está realizando uma poesia fácil e banal. Essa nova
reorientação pela qual passa a sua dicção está relacionada a um projeto consciente
e de cunho ético e estético, empreendido pelo próprio poeta, e pelo qual coloca a
serviço a sua poesia. Ético porque esse projeto poético é movido pela inquietação
do poeta em diminuir a “falésia” comunicativa que se instalou entre o leitor e a
poesia. Tal “falésia” já havia sido discutida por João Cabral de Melo Neto (2008) na
conferência “Função moderna da poesia”, que fora apresentada no Congresso de
Poesia de São Paulo em 1954, quando o poeta chama atenção para o abismo que se
instalou entre a poesia e o homem moderno:

Apesar de os poetas terem logrado inventar o verso e a linguagem que a vida


moderna estava a exigir, a verdade é que não conseguiram manter ou desco-
brir os tipos, gêneros ou formas de poemas dentro dos quais organizassem os
materiais de sua expressão, a fim de tornarem-na capaz de entrar em comu-
nicação com os homens nas condições que a vida social lhes impõe moder-
namente. (MELO NETO, 2008, p. 737)

72
Estudos Literários

Já, com relação às questões estéticas do projeto poético leminskiano, consi-


deramos que o poeta investe, na sua poesia, em elementos que pudessem propiciar
a comunicação, como já apontamos aqui. Leminski também opta por utilizar for-
mas breves, para que seus poemas pudessem ser lidos quase que instantaneamente
pelo leitor, que poderia memorizar os poemas com mais facilidade e também alçar
uma interpretação.
Ao escolher “jogar” nos times de “várzea”, Leminski realiza uma poesia co-
municativa que, de fato, alcança um público mais amplo. Prova disso é o livro Toda
poesia, publicado em 2013, pela editora Companhia das Letras, sucesso de vendas
no país. Ter optado por essa expressão também fez com que a poesia de Leminski
fosse duramente criticada, a exemplo das considerações de Iumna Maria Simon e
Vinicius Dantas (2011). Ao analisarem a poesia de Carlito Azevedo, Simon e Dantas
(2011, p. 117) consideram que a infantilização da poesia brasileira se deve a poetas
como Leminski, que teria reduzido o elemento poético a jogos com a linguagem:

Carlito Azevedo, por tudo que se viu, fez um esforço notável de desinfan-
tilizar o estado atual da poesia brasileira, posicionando‑se com seu herme-
tismo de circunstância, por assim dizer barroco‑raciocinante, contra a in-
fracomplexidade e a miséria reflexiva dos jogos de linguagem, trocadilhos,
epigramas gráfico-visuais ou festivais paronomásticos que, dos concretistas
aos marginais, culminando na obra de Paulo Leminski, rebaixaram a com-
plexidade do poético a mera jogatina linguística.

Obviamente, a transição da poesia leminskiana do Concretismo para uma


expressão da “várzea” não ocorre sem nenhuma tensão, mas, possivelmente, o êxito
do poeta reside justamente nessa inclinação em assumir a feitura de uma poesia
“aparentemente menor” e que agrade o leitor menos cultivado. Talvez seja exata-
mente aí, como afirmou Leyla Perrone-Moisés (2000, p. 237), que Leminski “ganha
a parada” e conquista a originalidade da sua poesia.

Referências
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André; CALIXTO, Fabiano (org.). A linha que nunca termina: pensando Paulo
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73
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

CAMPOS, Augusto de. Pontos-periferia-poesia concreta. In:_______; PIGNATARI,


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CAMPOS, Haroldo de. Olho por olho a olho nu (manifesto). In: _______; PIGNATARI,
Décio; CAMPOS, Augusto de. Teoria da poesia concreta: textos críticos e
manifestos 1950-1960. São Paulo: Ateliê Editorial, 2006. p. 73-76.
LEMINSKI, Paulo. Toda poesia. 1 ed. São Paulo: Companhia das letras, 2013.
_______; BONVICINO, Régis (org.). Envie meu dicionário: cartas e alguma crítica. São
Paulo: Editora 34, 1999.
_______. La vie en close. São Paulo: Brasiliense, 1992.
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MELO NETO, João Cabral. Da função moderna da poesia. In: Poesia completa e prosa.
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2014.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Leminski, o samurai-malandro. In: Inútil poesia. São Paulo:
Companhia das letras, 2000. p. 234-240.
SANDMANN, Marcelo. Nalgum lugar entre o experimentalismo e a canção popular:
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74
Estudos Literários

O papel de parede amarelo,


de Charlotte Perkins Gilman:
Um diálogo entre literatura e
direito
Ana Luiza do Nascimento Paulo1
Lilliân Alves Borges2

Introdução
O conto O papel de parede amarelo, de Charlotte Perkins Gilman, publicado
no final do século XIX, em 1892, é considerado um clássico da literatura feminis-
ta. Nesse conto, temos uma mulher que “sofrendo dos nervos” é levada durante o
verão para uma casa bem isolada a fim de cuidar de sua enfermidade. Essa mulher
é obrigada pelos médicos e marido a não exercer nenhuma atividade física e men-
tal. Logo, ela se vê presa dentro de uma casa e, o que considera pior, fica instalada
dentro de um quarto infantil, o qual possuía um horrendo papel de parede amarelo.
O papel de parede aflige e angustia a personagem não apenas por ser, em sua
ótica, feio, mas também porque ele instiga a personagem a refletir sobre o seu papel
enquanto mulher. É a partir dessa reflexão que a personagem realiza sobre como a
mulher é vista na sociedade que propomos, com este trabalho, repensar e analisar

1  Graduanda em Direito pela ESAMC campus Uberlândia. Graduada em Design com habilitação em Pro-
gramação Visual. Ex servidora pública da Prefeitura do Município de Joinville, atuando na Secretaria de Segu-
rança. Participante do Grupo de Pesquisas em Espacialidades Artísticas UFU/CNPq. Participante de grupos
de estudos relacionados à literatura feminista.
2  Doutoranda em Estudos Literários na Universidade Federal de Uberlândia – UFU. Mestre em Estudos
Literários pela Universidade Federal de Uberlândia - UFU. Vice-líder do Grupo de Pesquisas em Espaciali-
dades Artísticas UFU/CNPq e integrante do grupo de estudo Nós do insólito: vertentes da ficção, da teoria e
da crítica - UERJ. Estudos com ênfase no espaço literário, narrativa fantástica, com interesse especial sobre a
obra do escritor Graciliano Ramos.

75
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

o papel da mulher a partir do primeiro grupo de controle do discurso proposto


por Michel Foucault em A ordem do discurso – interdição, segregação e Vontade de
Verdade – e como as forças discursivas estão impressas nessa narrativa. Além dis-
so, também possuímos como objetivo, por meio de um diálogo com outra área de
saber - o direito - demonstrar como o papel da mulher vislumbrado no conto pode
ser averiguado em forma de lei, produzindo, portanto, reflexões iniciais quanto ao
Direito aplicado à mulher e sua liberdade.

O papel de parede amarelo


A obra de Gilman apresenta em suas primeiras linhas uma mulher que é
levada a um local bucólico para tratar de uma doença nervosa – como acredita seu
marido – que sendo médico, busca dos recursos da época para tratar a esposa. Nada
obstante, o discurso da mulher é permeado pela influência masculina opressora na
figura do marido, que toma as decisões pela figura feminina de quem detém a posse.
Como podemos observar nos trechos abaixo:

Às vezes imagino que, na minha condição, se tivesse menos contrariedades


e mais convívio social e estímulos... mas John diz que a pior coisa que posso
fazer é pensar na minha condição, e confesso que sempre que faço isso me
sinto mal. (GILMAN, 2016, p. 13)

John é muito atencioso e amável, não permite que eu dê um passo sequer sem
instruções especiais. (GILMAN, 2016, p.15)

Vê-se que o controle é camuflado na figura do “zelo excessivo”; levando a


mulher ao cárcere, ou seja, trancada em uma casa para tratamento de sua doença.
De se submeter à vontade do marido. Que como médico, argumenta que seus ato
são baseados na ciência e no amor: “Disse que eu era sua amada, seu consolo e tudo
que ele tinha, e que devo cuidar de mim mesma por amor a ele e manter-me saudá-
vel”. (GILMAN, A2016, p. 37)
Cabe salientar que as mulheres do século XIX, sofriam severas restrições
quanto à vida jurídica, o próprio movimento sufragista começou a tomar forma no

76
Estudos Literários

final deste mesmo século. O movimento marcou atividades feministas que pleitea-
vam igualdade de direitos, fundamentados na cidadania, educação, direito à pro-
priedade e ao divórcio. Sendo possível perceber na passagem abaixo:

“Pobrezinha!”, disse John, abraçando-me com força. “Pode ficar doente o


quando quiser! Mas agora vamos dormir, para podermos aproveitar as horas
de sol. Falaremos sobre isso pela manhã!”

“Então você não quer ir embora?”, perguntei, triste.

“Ora, como poderia, querida? São apenas mais três semanas, depois faremos
uma pequena e agradável viagem durante alguns dias, enquanto Jennie ter-
mina de arrumar a casa. Estou falando sério, querida, você está melhor!”

“Talvez fisicamente...”, comecei, mas logo me interrompi, porque ele se en-


direitou e lançou-me um olhar tão severo e repreensivo que não pude dizer
mais uma palavra sequer. (GILMAN, 2016, p. 41)

Na citação tem-se as primeiras reflexões sobre os padrões sociais em que a


personagem de Perkins se insere: o mundo carrega deveres e obrigações em pesos
diferentes em relação ao gênero. É notório que a lei é um instituto regulador, cuja
função social está na capacidade de evitar conflitos e normatizar as relações sociais;
contudo tais normatizações adentram à intimidade e conduta matrimonial:

“Minha querida”, disse John. “Eu lhe imploro, pelo amor que tem a mim e ao
nosso bebê, pelo amor que tem a mim e ao nosso bebê, pelo amor que tem
a si mesma, que nem por um momento permita que essa ideia lhe entre na
cabeça! Não há nada tão perigoso, tão fascinante, para um temperamento
como o seu. Trata-se de uma ideia falsa e tola. Não confia em minha palavra
de médico?”

Assim, é claro, não toquei mais no assunto, e sem demora fomos dormir. John
deve ter pensado que adormeci primeiro, mas na verdade fiquei acordada du-
rante horas tentando determinar se os padrões em primeiro e segundo plano
de fato se moviam juntos ou separadamente. (GILMAN, 2016, p. 42)

77
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Percebe-se na obra de Gilman que a personagem não tinha escolhas em seu


próprio lar, como de fazer uma viagem, ajudar nos afazeres de casa e escrever em
seu diário:

Tenho uma agenda com prescrições para cada hora do dia; ele se ocupa por
completo dos meus cuidados, e, portanto sinto-me uma ingrata por não lhe
dar mais valor. (GILMAN, 2016, p. 16)

Lá vem John; preciso pôr isto de lado – ele detesta que eu escreva. (GILMAN,
2016, p.18)

Consoante, Rose Marie Muraro (1971), em capítulo do clássico feminista


“Mística Feminina”, defende que:

Mais do que nunca as grandes indústrias (principalmente as estrangeiras ou


suas subsidiárias brasileiras) utilizam-se entre nós, dos meios de comunica-
ção de massa para ativar nas classes médias o consumo de produtos tanto
mais sofisticados quanto inúteis, seja em vestuário como em comodidades
domésticas. Apenas com uma diferença do caso americano: o nosso país, co-
mo subdesenvolvido que é, se quiser alcançar uma velocidade razoável de
desenvolvimento, precisa poupar, ao menos nesse consumo desnecessário.
MURARO, 1971, p. 7)

Foucault e o discurso de poder


O estudioso Paulo Rodrigues dos Santos, ao se remeter em seu artigo refe-
rente à concepção de poder em Michel Foucault afirma o seguinte:

A concepção de poder em Foucault tem duplo desígnio: seu agenciamento


no campo político, entendido como campo de experiência histórica das lutas
sociais e seu desdobramento no plano ético, ética como liberdade, criada nos
interstícios entre minoridade, maioridade e autonomia. Trata-se de uma con-
cepção renovadora do entendimento do que é o poder e capaz de gerar torção
desestabilizadora nas bases reducionistas que fazem passar a inteligibilidade

78
Estudos Literários

do poder sobre o domínio jurídico e econômico da instância estatal. O poder


em Foucault é pensado como relação, ele raramente usa a palavra poder, mas
a expressão - relações de poder - e quando usa a primeira é sempre no sentido
da segunda. O poder pensado como relações de poder traz a ideia de força.
(DOS SANTOS, 2016, p. 262)

Retomando o início do conto, novamente, traz-se o excerto a seguir:

John ri de mim, é claro, mas isso é de se esperar do casamento.


[...]
John é médico, e talvez – (eu não o diria a vivalma, é claro, mas segredar
apenas ao papel já um grande alívio para minha mente) -, talvez seja por isso
que não recupero mais rápido.
[...]
Se um médico de renome, que vem a ser seu próprio marido...
Meu irmão também é médico, e também de renome, e diz o mesmo. (GIL-
MAN, 2016, p. 12-13)

Evidencia-se aí, o papel da mulher a partir do primeiro grupo de controle do


discurso proposto por Michel Foucault em A ordem do discurso – interdição, segre-
gação e Vontade de Verdade – e como as forças discursivas estão impressas nessa
narrativa. De acordo com Foucault: “em toda a sociedade a produção do discurso é
ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por um certo
número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos,
dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade”.
(FOUCAULT, 2014, p.9)
Pela passagem do conto trazida anteriormente, vemos como o discurso de
autoridade do marido, que é médico, impede a fala da esposa, o que ela pensa sobre
a sua própria doença. Além do marido, temos também o irmão da personagem. Es-
se também oprimi o discurso da mulher. Sua voz é calada, pois ela não representa o
discurso de autoridade, da verdade. Conforme afirma Márcia Tiburi: “essa verdade
patriarcal é poder de morte, violência simbólica e física contra todas as mulheres.”
(TIBURI, 2018, Pág. 51). Vejamos a seguir outra passagem do conto:

79
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Em particular, discordo da opinião deles.


Em particular, acredito que um trabalho adequado, com estímulos e varieda-
de, iria me fazer bem.
Mas o que se pode fazer? (GILMAN, 2016, p. 13, grifo nosso)

Albuquerque (1995) sob a égide foucaultiana, em seu artigo, prediz:

o poder é um conjunto de relações; em vez de derivar de uma superioridade,


o poder produz a assimetria; em vez de se exercer de forma intermitente, ele
se exerce permanentemente; em vez de agir de cima para baixo, submetendo,
ele se irradia de baixo para cima, sustentando as instâncias de autoridade; em
vez de esmagar e confiscar, ele incentiva e faz produzir. (ALBURQUEQUE,
1995, p.)

Somente quem representa o discurso válido, o discurso verdadeiro é quem


tem o direito de falar; e nesse caso, a mulher não possui esse direito, tanto que Jonh
ri dela e isso é esperado em um matrimônio, ou seja, as mulheres são motivo de pia-
das pelos homens. O discurso da mulher é ridicularizado e ela não pode fazer nada,
como podemos constatar na frase: “Mas o que se pode fazer?”. Assim, a mulher é
sujeito interditado, à margem da sociedade, um corpo docilizado constantemente
pelo sistema patriarcal e machista.
De acordo com Maria Berenice Dias no ensaio “A mulher no Código Civil”:

O Código Civil de 1916 era uma codificação do século XIX, pois foi no ano de
1899 que Clóvis Beviláqua recebeu o encarrego de elaborá-lo. Retratava a so-
ciedade da época, marcadamente conservadora e patriarcal. Assim, só podia
consagrar a superioridade masculina. Transformou a força física do homem
em poder pessoal, em autoridade, outorgando-lhe o comando exclusivo da
família. Por isso, a mulher ao casar perdia sua plena capacidade, tornando-se
relativamente capaz, como os índios, os pródigos e os menores. Para traba-
lhar precisava da autorização do marido. (DIAS, s.a, s.p)

No século XIX, a mulher é, praticamente, propriedade do marido, por isso,


ela não decide para onde ir, nem mesmo tem o direito de pensar e falar sobre o que
pensa sobre a sua doença. Nas palavras de Vieira: “A situação da mulher brasileira até

80
Estudos Literários

o século XIX era equivalente a do escravo e a da criança em relação à completa sub-


missão ao homem” (VIEIRA, 2014, p.43). Ademais, segundo o Prof. Marcelo Mello:

[...]constituía até mesmo uma condição inferior à questão escravocrata em


termos de sua importância nos debates públicos e denunciava um atraso so-
ciopolítico maior, já que as leis se aplicavam, em sua maior parte, aos escra-
vos. Algumas das leis criadas para os escravos os tratavam como sujeitos de
direitos e obrigações, enquanto que a situação jurídica da mulher a anulava
como pessoa jurídica ao legitimar sua dependência quase total das figuras
masculinas da famílias: quando solteira o pai, depois do casamento o marido
(MELLO, 1999).

Fato esse que podemos constatar em diversas passagens do conto:

Ele disse que, com o poder de imaginação que tenho e meu hábito de inven-
tar histórias, uma debilidade dos nervos como a minha só pode resultar em
fantasias exaltadas, e que devo usar minha força de vontade e meu bom senso
para controlar essa propensão. É o que tento fazer. (GILMAN, 2016, p.22)

Daí ele me tomou nos braços e me chamou de tolinha. (GILMAN, 2016, p. 21)

A construção da identidade dessa mulher na narrativa pode ser verificada pelo


modo como o marido trata a sua esposa, chamando-a por “tolinha”, “minha menina”,
“pobrezinha”, ou seja, o marido se utiliza do diminutivo para se referir a sua esposa e
isso nos faz depreender dois aspectos: um de inferioridade e outro de infantilização.
A infantilização dessa mulher ocorre pelo uso do diminutivo, pois, normal-
mente, quando nos referimos as crianças, aplicamos as palavras no diminutivo tan-
to no sentido de demonstrar um carinho quanto para mostrar uma incapacidade
intelectual, como se a criança fosse incapaz de entender o mundo e a si mesma. Em
relação ao conto, acreditamos que o uso desse diminutivo para se referir a mulher
possui a característica de diminuí-la enquanto sujeito, colocando-a no espaço da
margem, dos sujeitos que não tem capacidade de compreensão e consequentemente
de terem voz. A mulher então é silenciada, seu discurso é anulado. Essa inferioriza-
ção e infantilização marca o lugar social e discursivo da criança e da mulher, que é o
espaço da exclusão, da margem. Esses aspectos são atestados nas palavras de Vieira:

81
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

“A inferioridade legal feminina continuava como um aspecto normal da legislação


porque era concebida como decorrência natural do gênero.” (VIEIRA, 2014, p.43).

O papel de parede amarelo, o direito e a acepção do movimento


feminista
Enquanto literatura feminista, O Papel de Parede Amarelo reflete uma socie-
dade cujo regime patriarcal não só regia as relações familiares como as sociais. O
discurso de poder e o imperialismo das convicções masculinas estavam presentes
até mesmo na normas, cujas garantias não atendiam às mulheres. Obstadas a opi-
nar, o Direito não as alcançava como ser dotado de direitos e garantias, seu lugar
de fala não era reconhecido e somente ao homem era respondido. A saber que a
misoginia tem reflexos desde épocas antigas, nas quais a visão de mundo filosófica e
tradicional não abarcavam a mulher como digna de reflexão; tal qual se percebe que
para Aristóteles, o nascimento de uma mulher inteligente, um fato contranatural:

Se observarmos o lugar das mulheres na formação dos textos que fazem parte
da história será mais fácil entender isso. Os homens produziram discursos,
apagaram os textos das mulheres e se tornaram os donos do saber e das leis,
inclusive sobre elas. Tudo o que sabemos sobre as mulheres foi contado pelos
homens. Da filosofia à literatura, da ciência ao direito, o patriarcado confirma
a ideia de que todo documento de cultura que restou é um documento de
barbárie. (TIBURI, 2018, p. 48)

No que tange o Direito Constitucional, Morais, 2018, destaca que, “a própria


Declaração dos Direitos Humanos das Nações Unidas, em seu art. 29 afirma que:

[...] toda pessoa tem deveres com a comunidade, posto que somente nela
pode-se desenvolver livre e plenamente sua personalidade. No exercício de
seus direitos e no desfrute de suas liberdades todas as pessoas estarão sujeitas
às limitações estabelecidas pela lei com a única finalidade de assegurar o res-
peito dos direitos e liberdades dos demais, e de satisfazer as justas exigências
da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática.
Estes direitos e liberdades não podem, em nenhum caso, serem exercidos

82
Estudos Literários

em oposição com os propósitos e princípios das Nações Unidas. (MORAES,


2018, p. 71)

Como anteriormente constatado, na narrativa, a personagem não tinha es-


colhas em seu próprio lar, como de fazer uma viagem, ajudar nos afazeres de casa e
escrever em seu diário:

Tenho uma agenda com prescrições para cada hora do dia; ele se ocupa por
completo dos meus cuidados, e, portanto sinto-me uma ingrata por não lhe
dar mais valor. (GILMAN, 2016, p. 16)

Lá vem John; preciso pôr isto de lado – ele detesta que eu escreva. (GILMAN,
2016, p.18)

Como defende Tiburi, 2018, “[...] o romantismo nas relações familiares, que
são muitas vezes as mais cruéis, servem para garantir a função do casamento e da
maternidade”. Logo, ao passo que estas relações são idealizadas como modelo de
ilustre felicidade, oprimem um lado e abonam o outro; desestabilizando a balança
cujo motor propulsor seria a equidade.
Pode-se perceber, portanto, que a personagem do conto é concebida como
incapaz e tal incapacidade é atestada pelas condições de produção do discurso, já
que existiam leis normatizando uma sociedade, na qual a mulher tem o seu direito
atrelado à existência do homem, como o artigo 242 do código civil de 1916, cujo
texto tinha por previsão legal restringir determinados atos da mulher sem autori-
zação do marido.
O artigo 380 do Código Civil Brasileiro de 1916, dá o pátrio poder (na an-
tiguidade, pater: era o poder ilimitado sobre os filhos, enquanto a mãe, totalmente
submissa, nada podia decidir quanto à educação dos filhos) ao marido, ou seja, todo
o poder de decisão sobre os membros da família e tudo aquilo que concerne à ela
é concedido ao homem, como direito de herança, registar os filhos, controle sobre
as finanças.

Na Roma Antiga, a família era considerada unidade política, jurídica, religio-


sa e econômica. Neste momento, as relações de consanguinidade não impor-
tavam para constituição da família, muito menos o afeto. O pater era consi-

83
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

derado o chefe da família em todos os âmbitos. Seu poder era tão absoluto
que nem o próprio Estado chegava a interferir nas decisões feitas por ele no
âmago de seu grupo familiar.” (CORDEIRO, 2016, p. 01).

O Estado Romano praticamente não interferia no grupo familiar, sendo este


de responsabilidade do pater que exercia uma jurisdição paralela a estatal,
autorizada pelo próprio Direito Romano. O homem exercia seu domino na
família, assim como o Imperador o fazia no vasto Domínio Romano, exis-
tindo entre eles, o pater e o Imperador, uma correlação, já que acreditava-se
que a família era a representação celular do Estado.” (RIBEIRO, 2011, p. 01).

Pode-se inferir tal conceito na passagem abaixo:

Art. 380. Durante o casamento, exerce o pátrio poder o marido, como chefe
da família (art. 233), e, na falta ou impedimento seu, a mulher.

Art. 380. Durante o casamento compete o pátrio poder aos pais, exercendo-o
o marido com a colaboração da mulher. Na falta ou impedimento de um dos
progenitores, passará o outro a exercê-lo com exclusividade. (Redação dada
pela Lei nº 4.121, de 1962).

Parágrafo único. Divergindo os progenitores quanto ao exercício do pátrio


poder, prevalecerá a decisão do pai, ressalvado à mãe o direito de recorrer
ao juiz, para solução da divergência. (Incluído pela Lei nº 4.121, de 1962).
(BRASIL, planalto, 2018)

Com o advento da Lei n 4.121/62 (Estatuto da Mulher Casada), o Código Ci-


vil sofreu vultosas mudanças quando o artigo 393 - que retirava da mulher o pátrio
poder em relação aos filhos de casamento anterior quando contraísse novas núpcias
-, teve sua redação alterada proclamando que ao contrair novas núpcias, o pátrio
poder antes restringido, não seria por tal estado retirado.
Além do Código Civil de 1916, pode-se encontrar desde as Ordenações Fili-
pinas e também no código penal de 1940, o conceito de mulher honesta, que estava
ligado aos crimes contra os costumes. É tipo normativo discriminatório. Segundo
Pedro Lenza, em seu livro de Direito Constitucional:

84
Estudos Literários

Este Título sofreu profundas alterações em decorrência da Lei n. 12.015/2009.


Até o nome foi modificado, pois, anteriormente, se chamava “Dos Crimes
Contra os Costumes”. A intenção do legislador foi a de evitar que a interpre-
tação da lei, fundada no nome do Título, continuasse a se dar com base em
hábitos machistas ou moralismos antiquados e eventuais avaliações da socie-
dade sobre estes. (LENZA, 2016, p. 208).

Relevante apontarmos que, até hoje, esse conceito é usado para desclassifi-
car mulheres vítimas de violência sexual. Ou seja, a mulher sempre está à margem
da sociedade, das normas que a regem e, mais do isso, ela é culpada por qualquer
fissura dos padrões normativos discursivos da vontade de verdade da sociedade
patriarcal. Há um momento no conto em que a personagem percebe os padrões
discursivos e como eles são segregatícios:

Á noite, sob qualquer tipo de luz – à luz do crepúsculo, à luz das velas, à luz
de lampiões ou à luz da lua, que é a pior -, transforma-se em grades! Estou
falando aqui do padrão em primeiro plano, e a mulher que se esconde por
trás dele torna-se tão evidente quanto pode ser.

Por muito tempo fui incapaz de distinguir o que era aquela coisa em segundo
plano, aquele subpadrão indistinto, mas agora estou bastante certa de que se
trata de uma mulher. Durante o dia ela é discreta, calada. Imagino que seja o
padrão que a mantenha tão quieta. É intrigante. Faz com que eu fique quieta
durante horas. (GILMAN, 2016, p.45)

Foi no ano de 1899 que Clóvis Beviláqua recebeu o encarrego de elaborar o


Código Civil de 1916, conjurando as expectativas e necessidades do séculos XIX.
Retratava a sociedade da época, marcadamente conservadora e patriarcal, dessarte,
só podia consagrar a superioridade masculina. Transformou a força física do ho-
mem em poder pessoal, em autoridade, outorgando-lhe o comando exclusivo da
família. Por conseguinte, a mulher ao casar perdia sua plena capacidade, tornando-
se relativamente capaz, como os índios, os pródigos e os menores. Para trabalhar,
carecia da autorização do marido. Exterioriza, assim, o artigo 242, que restringia a
pratica de determinados atos da mulher sem a autorização do marido:

85
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Art. 242 - A mulher não pode, sem o consentimento do marido:

I. Praticar atos que este não poderia sem o consentimento da mulher

II. Alienar, ou gravar de ônus real, os imóveis do seu domínio particular,


qualquer que seja o regime dos bens.

III. Alienar os seus direitos reais sobre imóveis de outrem.

IV. Aceitar ou repudiar herança ou legado.

V. Aceitar tutela, curatela ou outro múnus públicos.

VI. Litigar em juízo civil ou comercial, a não ser nos casos indicados nos arts.
248 e 251.

VII. Exercer profissão.

VIII. Contrair obrigações, que possam importar em alheação de bens do casal.

IX. Aceitar mandato.

Os artigos citados deixam indubitável a relegação da mulher ao segundo pla-


no. (BRASIL, planalto, 2018)

A análise das relações de poder deve “[...] tomar como ponto de partida as
formas de resistência contra as diferentes formas de poder.2 [...] Mais que analisar
as relações de poder do ponto de vista da sua racionalidade interna, fazê-lo através
dos antagonismos das estratégias” (FOUCAULT, 2007, p. 3). Os antagonismos so-
ciais, segundo Foucault, estão cristalizados em três principais formas de lutas: - no
campo político - as lutas contra a dominação, as lutas étnicas, sociais e religiosas;
- no campo econômico - as lutas contra a exploração, frente aos processos que sepa-
ram os indivíduos daquilo que produzem; no campo ético as lutas contra as formas
de sujeição, submissão e subjetivação, isso é, contra aquilo que ata o sujeito a si e
o submete a outros. Quanto às lutas de transformação da subjetividade, histori-
camente as que dominam o mundo contemporâneo, Foucault (2007, p. 4) afirma:
“Não basta, dizer que essas são lutas antiautoritárias, é preciso definir o que têm em
comum”. (RODRIGUES DOS SANTOS, 2016.p. 269).
Os movimentos feministas partiram de aspirações de inserção social, busca
por direitos além de deveres; ainda que a palavra “FEMINISMO” tenha ganhado

86
Estudos Literários

moldes de luta mais recentemente. O Movimento Sufragista, por exemplo, postulou


o direito ao Sufrágio – votar e ser votada – como uma forma de às mulheres uma voz.

Rosa Luxemburgo, em sua época, por exemplo, não pensava que o direito ao
voto, a grande questão das sufragistas, fosse solução para os problemas das
mulheres, pois não via como o voto poderia mudar a estrutura da sociedade.
[...] Hoje, sabemos que o direito ao voto só faz sentido se estiver junto ao
direito de sermos votadas em um país como o nosso, no qual as mulheres
ocupam um espaço mínimo nos parlamentos”. (TIBURI, 2018, p. 85).

Diante de tal levante, o Código Eleitoral Brasileiro de 1932 permitiu à mu-


lher exercício do voto aos vinte e um anos de idade, tendo a Constituição Federal de
1934 reduzido aludida idade para dezoito anos. À vista disso, o direito se moldou
às necessidades sociais com o passar dos anos. A norma é mutável e designada a
acompanhar os anseios e evolução social. Como ferramenta de coerção e organiza-
ção estatal e social, fora compelida pelos movimentos feministas a dar às mulheres
direitos e garantias de maneira a promover equidade entre os sujeitos.

Considerações finais
A personagem, ao tentar descobrir no papel de parede amarelo, os padrões
que regem a sociedade, acaba representando o anseio de rompimento desses pa-
drões, vislumbrando as mudanças que estavam começando a surgir na sociedade,
como a obra Uma reivindicação pelos direitos da mulher (1792) de Mary Wollsto-
necraft, em que a autora afirma que a mulher não deve receber apenas uma educa-
ção doméstica e sim ter direito à educação formal, ou seja, ter os mesmos direitos
dos homens. Além disso, temos o início do movimento sufragista, no qual as mu-
lheres começaram a reivindicar o direito ao voto, ou melhor, o direito de terem voz
na sociedade. Desse modo, podemos perceber que as normais - leis são reflexo da
sociedade, de uma vontade de verdade, que no caso do conto e das condições de
produção, na qual ele está inserido, demonstrando as mulheres como sujeitos opri-
midos, subjugadas as normas de uma sociedade patriarcal, mas que estão começan-
do a entender esses papeis e tentando sair deles, os desconstruindo.

87
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Portanto, entendemos as potencialidades de leitura do conto O papel de pa-


rede amarelo de Charlotte Perkins, como em relação a literatura fantástica, pois a
literatura fantástica é o espaço da transgressão em seu grau máximo, mas para este
nosso trabalho, procuramos apresentá-lo a partir de um viés foucaultiano, pontuan-
do o primeiro grupo de controle do discurso, além da possibilidade de uma leitura
das condições de produção do texto narrativo como reflexo de uma sociedade pa-
triarcal, subsidiada por normas advindas do Direito, dialogando, assim, com outra
área do saber.
Reiteramos que ainda em nossa contemporaneidade, o discurso de amor, ca-
rinho e cuidado é utilizado como maneira de diluir a violência do homem contra
a mulher, tornando-a vítima por mais tempo, presa na ilusão de ser cuidada pelo
companheiro. O que se observa no na narrativa O Papel de Parede Amarelo é dis-
curso opressor do marido em relação a esposa, são calcados sob a égide da proteção
patriarcal. Assim, é possível visualizar paralelos, semelhanças entre séculos que se
contrapõem em tecnologia, conquanto não em comportamento.

Referências
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Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 7(1-2): 105-110, outubro de 1995.
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atualizada por Achilles Beviláqua. Rio de Janeiro: Paulo de Azevedo, 1956, v.2.
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_______. Câmara Dos Deputados. Lei nº 4.121, de 27 de agosto de 1962. Disponível em:
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_______. Planalto. LEI nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916. Código Civil dos Estados
Unidos do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/
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88
Estudos Literários

CORDEIRO, Marília Nadir de Albuquerque. A evolução do pátrio poder - poder


familiar.Artigos. Publicado em: 22 de Abril de 2016. Disponível em: http://
www.conteudojuridico.com.br/artigo,a-evolucao-do-patrio-poder-poder-
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DIAS, Maria Berenice. A mulher no Código Civil.Artigo.p.1.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collége de France,
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Sampaio. 24.ed.São Paulo: Edições Loyola, 2014.
GILMAN, Charlotte Perkins, 1860 – 1935. O Papel de Parede Amarelo. Tradução Diogo
Henriques. – 2ª ed. – Rio de Janeiro: José Olympio, 2016.
LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2016. (Coleção
esquematizado®). Direito constitucional I. Título. II. Série, 20. ed. rev., atual. e
ampl.
MELLO, Marcelo Pereira. A Situação Legal da Mulher Brasileira no Século XIX: A
Representação Jurídica da Mulher no Código Civil do Brasil Monárquico.Revista
da Faculdade de Direito da UFF, Niterói, v.3, págs. 193 a 208, 1999.
MORAES, Alexandrede. Direito constitucional. 34. ed.São Paulo: Atlas, 2018. Inclui
bibliografia “Revistae atualizada até a EC n. 99, de 14 dedezembro de 2017.”
RIBEIRO, Simone Clós Cesar. As inovações constitucionais no Direito de Família. Jus
Navigandi. Teresina, ano 7, n. 58, 1 ago. 2002. Disponível em: http://jus.uol.
com.br/revista/texto/3192/as-inovacoes-constitucionais-no-direito-de-familia.
Acesso em: 2018.
SANTOS, Paulo Rodrigues dos. Foucault, M. La vida de los hombres infames. La Plata,
Argentina: Altamira, Segurança, território, população. Curso dado no Collège de
France ( ). São Paulo: Martins Fontes, 2008a.
SANTOS. Paulo Rodrigues dos. A concepção de poder em Michel Foucault. Especiaria -
Cadernos de Ciências Humanas. v. 16, n. 28, jan./jun. 2016, p. 261-280.
TIBURI, Márcia. Feminismo em comum: para todas, todes e todos/ Márcia Tiburi. – 6ª
ed. – Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2018.
VIREIRA, Taís Elaine do Nascimento. Status jurídico da mulher brasileira no século
XIX. Revista Transdisciplinar Logos e Veritas, Vol. 01, nº 01, 2014, pp. 42-46,
ISSN 2318-9614

89
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

WEISSENBERG, Betty Friedan. The Feminine Mystique. Título original americano:


1963; tradução de Áurea B., 1971, da tradução portuguesa. Vozes Limitada.
Petrópolis, Rio de Janeiro.
WOLLSTONECRAFT, Mary. Uma reivindicação pelos direitos da mulher. 1792. Edipro;
1ª ed. (1 de janeiro de 2015).

90
Estudos Literários

Machado de Assis para


jovens: Um encontro do
clássico com a formação do
cidadão contemporâneo
Ana Maria Franco1

Considerações iniciais
Trabalhar com a leitura é, antes de tudo, adentrar em um campo de inesgo-
táveis questionamentos que procuram explicar tanto nossas primeiras tentativas de
compreender o mundo, quanto o uso que fazemos dela ao longo de toda a vida. Em
diversos contextos, sob várias perspectivas e em relação às diferentes interações que
tecemos continuamente, produzimos sentidos constitutivos de nós e do espaço que
nos cerca.
Nós professores temos a função de prepararmos nossos cidadãos críticos
capazes de inferir na organização de uma sociedade mais consciente e democrá-
tica. Logo, devemos ter sempre a consciência de que a educação é uma forma de
intervenção no mundo, ou seja, o professor deve se aproveitar de sua postura de
formador para desenvolver a criticidade de seus alunos, fazê-los desvincular apenas
das disciplinas obrigatórias e desenvolverem pontos de vista sobre diversos assuntos
relacionados, torná-los opinantes e questionadores diante do mundo em que vivem.
A preocupação com o processo de leitura enquanto uma competência eficaz
de compreensão, trouxe, sob diversas epistemes, principalmente nas áreas de Psi-
cologia, Sociologia, Antropologia e Linguística, contribuições relevantes que ampa-
ram os professores em suas práticas em sala de aula.

1  PPGEL/Universidade Federal de Uberlândia, [email protected]

91
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Numa época em que urgia mudanças dado o novo cenário social que se apre-
sentava, os PCNs vieram, como fruto das inúmeras pesquisas, respaldar o ensino.
Levantando pontos basilares, os Parâmetros ressaltam que

não são os avanços do conhecimento científico por si mesmos que produzem


as mudanças no ensino. As transformações realmente significativas – que acon-
tecem raramente – têm suas fontes, em primeiro lugar, na mudança das fina-
lidades da educação, isto é, acontecem quando a escola precisa responder a
novas exigências da sociedade. E, em segundo lugar, na transformação do perfil
social e cultural do alunado: a significativa presença na escola dos filhos do
analfabetismo – que têm hoje a garantia de acesso, mas não de sucesso - defla-
grou uma forte demanda por um ensino mais eficaz. Estes Parâmetros Curricu-
lares Nacionais pretendem contribuir nesse sentido. (BRASIL, 1997, p. 22-23)

Consoante a essa proposta e inscrevendo-nos em um lugar em que as ques-


tões de linguagem ocupam um espaço relevante, o presente artigo visa a estabelecer
relações concretas entre leitura, Literatura e realidade por meio de novas aborda-
gens e estratégias no ensino de contos Machadianos.
Partindo da premissa de que deve haver uma forte relação entre os sujeitos
leitor, autor e o texto, propomos um trabalho com leitura que levante questões de
análise promovendo uma compreensão/interação mais ampla, numa dinamicidade
dialógica que envolva relações entre ideias, vivências e gêneros literários.
Resultante da necessidade de acompanhar os significativos avanços teóricos,
políticos e sociais nos mais diversos campos de conhecimento, nossa proposta or-
ganiza neste trabalho, um exemplo de prática de leitura que responde, pelo menos
parcialmente, às necessidades de professores e alunos de adquirir conhecimentos
construídos por relações concretas destes com os contos de Machado de Assis.
Conforme os PCNs, é fundamental criar práticas de leitura que deem su-
porte às ações cotidianas do professor com seus discentes em sala de aula e que
resultem na competência discursiva do leitor, como bem esclarece o documento ao
propor que

[t]oda educação comprometida com o exercício da cidadania precisa criar


condições para que o aluno possa desenvolver sua competência discursiva.

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Estudos Literários

Um dos aspectos da competência discursiva é o sujeito ser capaz de utilizar a


língua de modo variado para produzir diferentes efeitos de sentido e adequar o
texto a diferentes situações de interlocução oral e escrita (BRASIL, 1998, p. 23).

Então, partimos do pressuposto de que essas novas abordagens devem aten-


der às expectativas dos alunos, romper com paradigmas estereotipados e estreitar
a distância entre os conteúdos aplicados em sala de aula e a realidade, possibilitan-
do-os percorrerem um trajeto que os levem a abrirem espaços ao diferente e cons-
tituírem-se sujeitos autônomos que interfiram e modifiquem o meio em que vivem.
Num processo dinâmico, o leitor deve lançar seu olhar sobre os olhares ou-
tros, coletar informações e (re)significá-las, interpretando, solucionando e buscan-
do respostas para as questões que o mundo lhe exerce e coloca.
Dessa forma, a leitura não pode ser vista como algo estanque, mas como um
lugar de interação, diálogos e de conflitos, como uma ação ativa e dinâmica, como
um processo complexo que visa a compreender e a entender o mundo numa contí-
nua construção de significações.
A palavra deve apresentar-se “como uma arena em miniatura onde se entre-
cruzam e lutam valores sociais de orientação contraditória” (BAKHTIN, 1995, p.
66). E, na eterna busca pela compreensão do mundo, a codificação e a decodificação
tornam-se produtos que revelam a incidência das forças sociais veiculadas pelos
dizeres dos enunciadores.
Nessa mesma esteira teórica, Freire (1984) também observa que o conhe-
cimento não deve ser apresentado como algo parado e estático. Ao contrário, ele
necessita ser “proposto à curiosidade dos alunos de maneira dinâmica e viva [...], os
alunos não têm que memorizar mecanicamente a descrição do objeto, mas apreen-
der sua significação profunda” (FREIRE, 1984, p. 18), fazendo uma leitura que re-
sulte num conhecimento que vai além das linhas escritas no texto.
Na evidência de que um dos principais desafios da escola é ainda proporcio-
nar aos discentes habilidades que desenvolvam uma leitura significativa, este traba-
lho surgiu de nossa experiência em um estágio da disciplina de Prática de Ensino
de Literatura, o qual tínhamos turmas de jovens com diferentes faixas etárias e que
iriam para o curso no contraturno de suas aulas regulares e também aos sábados.
No intuito de discutir o que está sendo feito atualmente no que tange ao ensino de

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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Literatura, demonstraremos propostas que abordem como contos contemporâneos


podem relacionar-se ao dia-a-dia do aluno e refletir sobre nossas práticas diárias
em sala de aula.
Para ilustrar nossa abordagem, selecionamos alguns contos, priorizando os
de Machado de Assis por tratarem de temas interessantes, atuais e cotidianos. Como
contos clássicos e densos, eles exigem um trabalho de concentração e dedicação de
alunos e professores para a análise e compreensão, gerando profundas reflexões nas
relações humanas e salientando fatos relacionados à ética e moral.
Com esse tipo de leitura intentamos, a) demonstrar que textos mais com-
plexos e aparentemente distantes da realidade dos alunos traduzem conhecimentos
atuais; b) fomentar a leitura e a reflexão acerca do ensino de Literatura, reforçando a
viabilidade do ensino de contos; c) apresentar propostas de atividades que contem-
plem os contos analisados em sala de aula; d) relatar vivências adquiridas a partir
da referida proposta de abordagem e e) compreender como essenciais os preceitos
de Paulo Freire (1984) acerca do ato de ler.
Considerando que a competência da leitura cabe, especialmente, ao pro-
fessor de Língua Portuguesa no desenvolvimento de estratégias e mediações entre
leitor e texto para um efetivo processo ensino-aprendizagem, a elaboração de nos-
so trabalho, objetiva, junto aos alunos, a) estimular a leitura crítica e a noção de
determinados valores formadores do caráter humano; b) promover diálogos entre
os contos apresentados e o cotidiano dos alunos; c) aprimorar o gosto pela leitura,
análise, discussão e produção de dinâmicas envolvendo os contos diversos; d) de-
senvolver a habilidade de leitura aprofundada e a capacidade de intervenção como
leitores na obra; e) trabalhar os diversos valores éticos e morais, levando o aluno a
percebê-los também em seu dia-a-dia; e f) favorecer a compreensão, assimilação e
disseminação do conteúdo de um texto.
No imo dos objetivos almejados, pautamo-nos na ideia de que o desenvolvi-
mento do aluno por meio da leitura deve lhe assegurar condições de “agir com per-
severança na busca de conhecimento e no exercício da cidadania” (BRASIL, 1998, p.
7) pela formação de um leitor crítico e consciente no uso eficaz da língua2.

2  O uso eficaz da língua, segundo os PCNs, deve satisfazer necessidades pessoais tais como relacionar-se às
ações efetivas do cotidiano, à transmissão,à busca de informação e ao exercício da reflexão.

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Estudos Literários

Destarte, a presente proposta assenta-se também nos preceitos de Paulo


Freire (1984) ao enfatizar a necessidade de se formar um aluno/leitor/crítico que
consegue ler um livro e também sua realidade, não só pela decodificação, mas pe-
las inferências, críticas, questionamentos e constantes buscas em mudar aquilo que
considerar injusto ou incorreto.
Alvitrando despertar a criticidade e a criatividade do aluno, metodologica-
mente baseamo-nos nos Métodos Criativo e Recepcional de ensino, cuja utilização
de meios diferentes dos tradicionais enfatizam o papel ativo dos participantes do
processo ensino-aprendizagem.
Conforme elenca Bordini e Aguiar (1988), a teoria da recepção tem como
fundamento a ampliação e a transformação dos horizontes de expectativas3 dos
alunos. Por isso, as leituras oferecidas devem apontar para outras perspectivas que
ainda não tinham sido consideradas.
Esse método evidencia uma atitude receptiva que aproxima texto e leitor. Na
fusão dos horizontes de expectativas, vem à tona a historicidade de ambos. Nesse
ínterim, se a obra literária corrobora o sistema de normas e valores do leitor, este
permanece num lugar de conforto.
Caso contrário, se a obra afasta-se do que é admissível ou esperado, o ho-
rizonte de expectativas do leitor entra em conflito com seu sistema de referências
vitais. Instaura-se, então, o desafio, a necessidade de respostas, o investimento de
energias psíquicas na comunicação e a adoção de posturas. Esse processo de recep-
ção se completa quando o leitor inclui ou não os elementos ali veiculados em seu
próprio horizonte de expectativas.
No que tange ao método criativo, Bordini e Aguiar (1993) esclarecem que o
intento é suprimir o espaço de meros receptores e reprodutores de informação do
corpo discente. Há a preocupação em levar os alunos a assumirem uma postura
ativa e participante no processo ensino-aprendizagem que os faça construir seus
próprios conhecimentos e expressá-los livremente.

3  Hans Robert Jauss, estudioso germânico que trabalhou com a teoria da recepção, denomina de horizontes
de expectativas quadros de referências que incluem convenções estético-ideológicas possibilitadoras de pro-
dução e reprodução de um texto. Esses quadros permitem a comunicação e são assim definidos em relação
ao leitor e a obra literária: “A atitude de interação tem como pré-condição o fato de que texto e leitor estão
mergulhados em horizontes históricos, muitas vezes distintos e defasados, que precisam fundir-se para que a
comunicação ocorra” (BORDINI; AGUIAR, 1988, p. 83).

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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Esse método, associado usualmente às práticas artísticas e interativas, tem


como meta o alcance do conhecimento pela apropriação e transformação da reali-
dade na geração do saber. Segundo as autoras, ele “supõe uma relação do homem
com o mundo, em que o alvo não é meramente o conhecimento do que existe, mas
a exploração do existente para a produção de algo novo” (BORDINI; AGUIAR,
1988, p. 62).
As estudiosas confirmam que a leitura deve se converter em atos espontâ-
neos e estimulantes para desencadear verdadeiros momentos aprazíveis, e, “se os
textos devem agradar ao leitor, as atividades de exploração dos mesmos estão com-
prometidas com o fortalecimento desta reciprocidade e não com o seu esvaziamen-
to” (Idem, p. 26).
Nessa perspectiva assenta-se nossa proposta, pois a configuração da leitura
enquanto ato desencadeador de diálogos, de prazer, de questionamentos e rupturas
nas mais variadas relações tecidas cotidianamente, alarga o universo cultural dos
discentes. Ela deve ser um ato que exige réplicas ativas, já que uma verdadeira com-
preensão da linguagem “confunde-se com uma tomada de posição ativa a propósito
do que é dito e compreendido” (BAKHTIN, 1995, p. 99).

A instituição onde o projeto começou, suas peculiaridades e lições


para a nossa prática docente
O projeto foi iniciado como estágio de docência da disciplina “Prática de
Ensino de Literatura”, no qual era fundamental o comprometimento e seriedade
não só na execução, mas no planejamento das aulas, pois elas poderiam mudar a
concepção de um aluno sobre a disciplina e influenciar positiva ou negativamente
em sua vida escolar. O minicurso a ser dado na ICASU seria a nossa oportunidade
de mudar visões negativas sobre a Literatura, por meio de um trabalho sério, com-
prometido com as diretrizes trazidas pela teoria e pensado exclusivamente para a
realidade na qual iríamos atuar.
Ao escolhermos a instituição para atuarmos como docentes, procuramos co-
nhecer melhor aquele contexto e a realidade dos discentes com quem iríamos tra-
balhar e descobrimos que ministraríamos os minicursos de Literatura aos sábados

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Estudos Literários

pela manhã para alunos cursando o Ensino Fundamental e Médio. Descobrimos


também que nossos futuros discentes até então só participavam de cursos de for-
mação profissional dentro da instituição.
Esmiuçando mais as características e posturas da instituição e relembrando
os preceitos de Paulo Freire (1984) que reforça a importância da sensibilidade do
professor em procurar abordar a realidade do aluno em suas aulas, descobrimos
que a ICASU reforça em seus cursos lições de caráter e formação cidadã e foi esta a
justificativa que encontramos para desenvolver um curso de leitura crítica e cidadã
na instituição.
Não funcionaria implantarmos um curso que fugisse totalmente da realidade
dos alunos e o que conseguiríamos provavelmente com tal atitude seria o desinte-
resse e até a ojeriza dos discentes às aulas. A disciplina Literatura de um modo geral
já é tratada com resistência e preconceito pelos alunos e o hábito da leitura não é
uma constante entre eles.
Desenvolvendo um minicurso desvinculado da discussão de teoria literária,
geralmente imposta nas escolas, poderíamos cumprir com o intento de retirar os
preconceitos adquiridos contra a Literatura ao longo da formação escolar e “abrir o
coração” dos alunos para a visão da Literatura como algo agradável e que pode em
muito agregar valores e vivências aos seus leitores. Por meio de aulas dinâmicas e
leves enfocando na leitura dos textos em sala com posteriores discussões orais, diá-
logos com outros textos e com fatos do cotidiano dos alunos, e também a proposta
de brincadeiras e outras atividades descontraídas que se relacionam ao conteúdo
visto, poderíamos motivar nossos alunos não só a terem satisfação em participar
das aulas bem como desenvolver neles o hábito da leitura e o desenvolvimento da
criticidade entendendo que a Literatura pode sim se relacionar à vida deles.
Segundo Cândido (1995, p. 243) “A literatura confirma e nega, propõe e de-
nuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os
problemas.” À luz deste preceito não só passamos a valorizar a importância da litera-
tura na construção da mentalidade de uma sociedade, mas compreendemos que por
meio dela, se houvesse um curso condizente com a realidade dos alunos, poderíamos
fazê-los enxergar a literatura da mesma forma que propõe Cândido, conseguindo
retirar pelo menos de uma parte do nosso corpo discente a resistência à Literatura.

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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Por meio destas reflexões é que compreendemos que os textos a serem traba-
lhados com os alunos também seriam um ponto essencial para o sucesso de nosso
projeto, já que seriam eles os nossos instrumentos para o incentivo à leitura e à
paixão pela literatura e a apresentação da mesma como algo compreensível e de
possível inserção à realidade dos alunos.
Segundo Calvino (1993, p. 10): “Dizem-se clássicos aqueles livros que cons-
tituem uma riqueza para quem os tenha lido e amado; mas constituem uma riqueza
não menor para quem se reserva a sorte de lê-los pela primeira vez para apreciá
-los.” Para muitos alunos este seria o primeiro contato efetivo com a Literatura em
sua forma mais prazerosa e enriquecedora, sem as “algemas” das análises prontas e
a mera obrigação da leitura para processos seletivos e não poderíamos desperdiçar
a oportunidade de conquistar estes leitores.
Dessa forma, Machado de Assis por meio de sua já consagrada como obra
clássica seria um meio rico o suficiente para atingirmos nossos propósitos, e con-
quistarmos novos leitores. Por isso foi efetuada a escolha dele para os alunos de
Ensino Médio e Fundamental que, por meio de seus contos (textos cuja extensão é
condizente para a leitura e interpretação em uma ou duas aulas de cinquenta mi-
nutos), nos auxiliariam a desenvolver a habilidade e o gosto pela leitura crítica em
nossos discentes.
Machado de Assis, apesar de não ser contemporâneo a nós, consegue por
meio de sua obra traduzir formas de pensar e comportamentos atuais, trazendo di-
lemas humanos que se aplicam perfeitamente à realidade vigente. Machado de Assis
trata com maestria dos conflitos humanos e seus valores, sendo seus contos, em sua
maioria, com temáticas e discussões contemporâneas a nós. Mostrar aos alunos que
por trás de uma história presente no conto há a discussão de questões universais
como por exemplo: a mentira, o egoísmo, a covardia, e os conflitos internos do ser
humano quanto às suas ações e crises de consciência sobre elas é revelar a magia da
Literatura em guardar em seu texto uma série de discussões e questões que cabe ao
leitor descobrir e interpretar.
O curso que foi intitulado: “Desenvolvendo uma visão crítica e ética em jovens
leitores por meio de contos” com suas especificidades para o Ensino Fundamental
e Médio, respeitando as diferenças e peculiaridades presentes nestes dois tipos de

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Estudos Literários

público, visa então a conquista de possíveis leitores e a compreensão da Literatura


como algo intimamente ligado ao cotidiano deles e que pode traduzi-lo, explicá-lo,
intervindo em sua realidade ou simplesmente entreter, dependendo da disposição
do leitor para com a obra.
Retomando Antônio Cândido a literatura

[e]stá presente em cada um de nós, analfabeto ou erudito -, como anedota,


causo, história em quadrinho, noticiário policial, canção popular, moda de
viola, samba carnavalesco. Ela se manifesta desde o devaneio amoroso ou
econômico no ônibus até a atenção fixada na novela de televisão ou na leitura
de um romance (CÂNDIDO 1995, p. 242).

E é este sentimento que precisamos sempre buscar em nossos alunos, o de


que a Literatura, ainda que não tenham se atinado, se faz presente em suas vidas
sendo capazes de promover a reflexão sobre valores internos e possibilitando assim
novos olhares sobre o mundo.

Sugestões para uma leitura crítica


A proposta4 teve intuito de trabalhar a Literatura de uma forma prática e di-
ferente da habitualmente empregada pelas redes regulares de Ensino Fundamental
e Médio.
Tendo como meta uma leitura mais aprofundada e que interdiscursivamente
favoreça o diálogo entre os textos e os gêneros literários ou situações vividas pelos
próprios alunos, foram selecionados, dentre os vários contos5, Um apólogo e O en-
fermeiro para exemplificação de nossa proposta.
No conto Um apólogo, após conhecer a vida, a obra e o período em que se
insere o autor, propomos o levantamento de hipóteses sobre a significação das me-
táforas contidas no texto.

4  Cada uma das propostas trabalhadas foram descritas passo a passo, apresentando inclusive, formas de
avaliação segundo a especificidade de cada conto.
5  Dentre os contos estudados no minicurso estão também Como se inventaram os almanaques, Três tesouros
perdidos e Conto de escola.

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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Para exercitar a noção de interdiscursividade, ouvimos e analisamos a letra


da música: “Capitão de Indústria”, interpretada pela banda “Os Paralamas do Suces-
so” observando o dialogismo tecido entre ela e o conto machadiano.
Por meio da brincadeira da “batata quente”, os alunos são levados a aplicar os
resultados da discussão dos textos. Essa atividade consiste no ato de passar entre os
alunos uma caixa contendo perguntas. Essa ação é desenvolvida durante a execução
de uma música. Quando o som for interrompido pelo professor, o aluno que estiver
com a caixa em mãos, deverá abrir a mesma, retirar uma pergunta, ler em voz alta
para a classe e em seguida, responder oralmente. As questões envolverão pontos
discutidos dos dois textos apresentados (sendo eles a música e o conto machadiano)
que requererão a reflexão dos alunos sobre o tema, relacionando o mesmo ao co-
nhecimento de mundo e experiências vividas por eles, promovendo assim, a trans-
posição do conhecimento de sala de aula para a realidade dos discentes.
Os objetivos serão alcançados se nas discussões propostas, após a leitura do
conto e da audição da música, os discentes posicionarem-se sobre os temas propos-
tos, interpretando os textos dados e fazendo ligações com a situação atual. E serão
alcançados também se na atividade da “batata quente” os docentes conseguirem
perceber que os alunos compreenderam a relação entre os dois textos (o conto e a
letra da música) e conseguiram por meio do diálogo entre os mesmos levar estas
reflexões e análises feitas em sala de aula para as questões propostas na brincadeira.
No que diz respeito ao conto O enfermeiro, dividimo-lo em duas partes, uma
anterior e outra posterior ao assassinato do coronel. Após a discussão da sequência
“Bem-aventurados os que possuem, porque eles serão consolados”, da leitura da
primeira parte, das discussões e anotações dos possíveis finais para o conto, será
entregue a 2ª parte do texto, que, lida, tem seus pontos principais levantados e dis-
cutidos, para em seguida, serem relacionados com os finais anotados no quadro e
com os acontecimentos cotidianos.
Ainda, a respeito desse conto, são apresentadas notícias de violência extre-
ma presentes diariamente nos meios de comunicação de massa. O enfoque será na
questão: “o que alguém é capaz de fazer em momentos de fúria ou por dinheiro?”.
Na relação tecida com o cotidiano e a vivência dos discentes, a aplicação de
um teste com treze questões de situações hipotéticas e de múltipla escolha – a, b,
c, e d - aproxima o perfil dos alunos com os personagens do conto em pauta ou até

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Estudos Literários

mesmo com o autor (Machado de Assis). A apresentação dos resultados, lidos pelo
professor, capacita os alunos a julgamentos, reflexões críticas e posicionamentos.
Os objetivos da aula serão alcançados se nas discussões os alunos forem ca-
pazes de produzir reflexões críticas sobre “‘O Enfermeiro” e sobre fatos da própria
vida, tendo capacidade de julgamento sobre o tema principal do conto e da aula.
Também deverão ser capazes de estabelecer ligações com o conto machadiano e te-
cerem reflexões sobre sua postura cotidiana ao relacionarem os perfis apresentados
no resultado com os personagens do conto ou com o próprio autor.
Isso posto, enfatizamos que nossa proposta de leitura e compreensão, ad-
vinda de um uso eficaz da língua proposto pelos PCNs, pontua um trabalho que
alcança a exterioridade e ultrapassa a materialidade escrita. Ela favorece uma atua-
ção ativa do leitor e lhe proporciona múltiplas leituras e sentidos, enfim, exem-
plifica uma prática realmente preocupada com a formação de um leitor crítico e
consciente, cujo exercício da cidadania leve-o a construir, em diversas situações,
seus próprios conhecimentos. Esses, instaurados na dinamicidade, na troca e na
interação, demonstra que não é na imobilidade de formas, estruturas e sentidos que
eles se edificam.

À guisa de uma conclusão


Considerar que uma leitura crítica e reflexiva ainda é um grande desafio para
a maioria dos educandos, suscita-nos a uma imediata necessidade de rever as práti-
cas desenvolvidas em sala de aula. Certamente elas não desafiam os alunos perante
o texto para entendê-lo, extrair-lhe informações, ir além da superfície plana das
linhas escritas, despertar o senso crítico e reflexivo do que leem ou presenciam em
sua realidade cotidiana.
Se nos anos 80 já era visível a necessidade de outra concepção no âmbito
educativo e se urgia mudanças às quais rompessem com um modelo considerado
estrutural e tradicional, porque, no auge de nossos dias, essa problemática ainda
acentua o fracasso escolar como evidencia os exames do ENEM, por exemplo?
Para discutir sobre isso, podemos apontar que, pelos mais diversos motivos,
várias são as justificativas que respondem o porquê dessa questão. Uma delas é que a
forma tradicional estruturalista no ensino da leitura, ainda muito presente nas esco-

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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

las, prioriza os aspectos textuais e retarda a implantação de estudos que respondam


diretamente às exigências sociais.
Outro fator é o grande interesse que os profissionais da educação demons-
tram pela descrição da língua e pelo ensino do texto amparado na gramática ou
nas marcas textuais. Poucos são os professores que realmente trabalham práticas
diferenciadas e inovadoras. Isso se deve, possivelmente, à facilidade na aplicação e
estudo do texto ou a própria falta de formação profissional adequada, o que resulta
na dificuldade de se desvincular do ensino tradicional.
Por fim e mais grave, a falta de políticas sérias e comprometidas com a educa-
ção que ofereçam formação continuada, adequada e que levem os docentes atuantes
em sala de aula a “dialogar” com as propostas educacionais no sentido de “com-
preendê-las” de forma ativa, de modo a garantir que os princípios neles expressos
lhes habilitem a pontualmente exercer uma prática consoante com essas propostas
e com as exigências sociais demandadas.
É imprescindível que as políticas públicas valorizem os professores, propor-
cionem salários dignos que permitam uma carga horária menor, uma qualificação
maior, condições para sua permanência na profissão, atualização de seus conheci-
mentos com a promoção de cursos inovadores e que, enfim, lhes desvinculem de
arraigadas práticas, possibilitando-os utilizar seguramente o que há de “novo” no
âmbito educacional.
É revelador que esses educadores saibam que estão em campos ideológicos
onde há embates e conflitos, mas que saibam também, utilizar as armas que têm
para lutar contra as práticas a que estão aprisionados, que conheçam a função do
que se ensina e o lugar que ocupam para assim, alcançar, junto aos discentes, um
processo educativo mais consciente e reflexivo.
Faltam, portanto, ações mais efetivas, políticas públicas voltadas para as reais
necessidades dos professores, assim como faltam recursos didáticos atualizados que
considerem os frutos das pesquisas educacionais. Também, é imprescindível que
os conhecimentos não sejam aplicados de forma igualitária sem considerar os con-
textos sociais e culturais dos alunos, massificando-os. Tudo isso evidencia que a
realidade, infelizmente, ainda se distancia do objetivo de um uso eficaz da língua.

102
Estudos Literários

Urge, portanto, conceber que é só pela língua que o indivíduo se torna sujeito
e só por meio dela, ele tem condições de refletir sobre si mesmo e sobre o mundo.
Diante de tudo isso, resta ao educador, em meio a tantas adversidades que lhe apre-
sentam, saber ultrapassar as fronteiras do papel e do texto para conduzir os leitores
a infinitas formas de compreensão, numa leitura verdadeiramente crítica e cidadã.

Referências
ASSIS, M. Um apólogo. In: A Cartomante e outros contos. São Paulo, Moderna, 1995.
_______. O enfermeiro. In: A Cartomante e outros contos. São Paulo, Moderna, 1995.
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi
Vieira. São Paulo: Hucitec, 1995.
BRASIL, Parâmetros Curriculares Nacionais: primeiro e segundo ciclos do ensino
fundamental, Língua Portuguesa/Secretaria de Educação Fundamental. –
Brasília: MEC/SEF, 1997, p. 19-27.
_______. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino
fundamental, Língua Portuguesa/Secretaria de Educação Fundamental –
Brasília: MEC/SEF, 1998, p. 17-24.
CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
CÂNDIDO, Antônio. O direito à literatura.In: _______. Vários escritos. São Paulo: Duas
Cidades,1995.
FREIRE, P. A importância do ato de lerem três artigos que se completam. São Paulo:
Cortez, 1984.
SUCESSO, Os Paralamas do. In: 9 Luas, EMI Music, 1996.

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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Heloneida Studart
em trilogia: A mulher
apresentada e representada
em “O estandarte da agonia”
Beatriz Mendes e Madruga1

Introdução
Entre as décadas de 1960 e 1980, enquanto o Brasil atravessava momentos
marcantes do ponto de vista político, outros movimentos sociais tomavam também
lugar, manifestando-se no espaço, na mídia, na arte. Dentre esses movimentos, fi-
guram, por exemplo, a luta proletária, o sindicalismo, o movimento do trabalhador
do campo, o feminismo. Em meio a esse cenário plural, a arte produzida no Brasil
apresentava, ao leitor, vozes, posições, contrastes, tensões, e muitas delas articulavam
esse diálogo entre o político e o artístico, o social e o narrativo. Nesse espaço e tempo,
a narrativa figura como frequentemente o faz: enquanto forma artesanal de comuni-
cação, onde não há interesse em transmitir o “puro em si”, à guisa de transmitir uma
informação ou fazer um relatório de seu tempo (BENJAMIN, 1936, p. 205). Entre-
tanto, diante de tal contexto social e histórico, as informações de seu tempo apare-
cem entrelaçadas à ficção por vezes servindo em denúncia, militância, representação.
A autora aqui sob estudo, Heloneida Studart (1925-2007), publicou a qua-
se totalidade da sua obra ficcional entre as décadas de 1960 e 1980. Nascida em
Fortaleza (CE) e falecida no Rio de Janeiro (RJ), além de escritora, Heloneida Stu-
dart foi também jornalista, sindicalista, deputada pelo Rio de Janeiro por diversos
mandatos, mãe de seis filhos. Sua atuação política foi marcada pelo sindicalismo,

1  PPGEL - UFRN

104
Estudos Literários

meio-ambiente, e pelo feminismo. Seu papel enquanto ativista dessa última frente é
inaugural no Brasil: foi fundadora do Centro da Mulher Brasileira, primeira orga-
nização feminista do país.
Dentre suas obras, figuram romances, livro-reportagem, literatura infantil, en-
saios, biografia. Seus ensaios de vertente feminista incluem: “Mulher, brinquedo do
homem?” (1969); “Mulher, objeto de cama e mesa” (1975); “Mulher, a quem pertence
seu corpo?” (1989). Na sua ficção, são famosos os volumes “Deus não paga em dólar”
(1968); e sua Trilogia da Tortura, composta pelos romances: “O pardal é um pássaro
azul” (1975); “O estandarte da agonia” (1981); “O torturador em romaria” (1986).
O romance “O estandarte da agonia” narra os dias de agonia da mãe Açuce-
na, personagem e narradora, que está em busca do filho Luís, desaparecido durante
a ditadura militar. Açucena vai em busca de seu filho em diferentes quartéis do Rio
de Janeiro, e também em organizações noutras cidades (São Paulo, Belo Horizonte).
Entra em contato com militares, torturador, presos políticos, advogados. Sua traje-
tória é espécie de paráfrase para a busca da estilista Zuzu Angel, cujo filho Stuart
desapareceu de modo semelhante durante a ditadura – e nunca foi encontrado.
É essa obra aqui posta em estudo. Em “O estandarte da agonia”, a narrativa
dá lugar à cena política dos desaparecidos políticos, dos desmandos do governo ci-
vil-militar, da trivialidade da tortura, mas também dá grande espaço para possíveis
representações da mulher. As personagens femininas, seus discursos e os discursos
sobre elas apresentam, ao leitor, diferentes representações sobre a mulher no tempo
e no espaço dessa narrativa. Em leitura detalhada, para além da sequência narrativa
do livro, vê-se um discurso representativo sobre a mulher e seus papéis, comporta-
mentos, expectativas, funções sociais. Esses aspectos serão esmiuçados em catego-
rias de análise, as quais muito se repetem ao longo do texto narrativo.

Referencial teórico
As atuações políticas e artísticas de Heloneida Studart são visivelmente in-
trincadas e articuladas entre si. É inseparável a atuação política (sindical, feminista,
militante) da sua produção literária. Aliás, separar esses dois campos não se assume
como algo necessário ou mesmo aconselhável a se fazer. O fazer artístico apresen-
ta-se como inseparável do fazer político e militante; do mesmo modo que a obra é

105
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

indissociável de seu meio: a arte é social ao depender da ação de fatores do meio


e ao produzir, nos indivíduos, um efeito prático, podendo modificar sua conduta,
concepção de mundo, valores sociais (CANDIDO, 2014, p. 30). Além disso, na aná-
lise aqui empreendida, literatura é concebida como parte inseparável da cultura,
impossível de ser entendida fora do contexto de sua época (BAKHTIN, 2017).
Nesse sentido, o texto de Heloneida é produto inexorável e indissociável de
sua atuação política, bem como do contexto (social, histórico) por ela vivenciado;
ao mesmo tempo, o texto que ela produz também pode, por sua vez, produzir ações
políticas, carregar sentidos e representações políticas diversas. Em Trilogia da Tor-
tura, a militância de oposição à ditadura civil-militar é pujante em quase todas as
cenas narrativas. Mas para além desse aspecto tão visível, há outros pulsando – de
forma latente, muitas vezes – e que podem ser analisados a partir de uma perspec-
tiva dialética como a de CANDIDO (2014), entre o social e o artístico, e mediante
um detalhamento metodológico adequado (BAKHTIN, 2017).
Os sentidos que podem, potencialmente, estar presentes em uma obra, são
passíveis de serem observados em razão de seu contexto de produção e também dos
sentidos que a obra pode ganhar em sua vida posterior. Conforme comenta Bakhtin
(2017, p.14), no seu processo de vida post mortem, as obras se enriquecem com no-
vos significados e novos sentidos, indo além do que foram à época de sua criação.
E por que isso ocorre: o romance é um compêndio de discursos, de vozes históricas
e sociais que se organizam na obra como um todo estilístico; esse total estilístico
traduz, por sua vez, a posição ideológica do autor (BAKHTIN, 2015, p.78), a qual
também é a posição do grupo heterodiscursivo de sua época.

O próprio autor e os seus contemporâneos veem, conscientizam e avaliam


antes de tudo aquilo que está mais próximo do seu dia de hoje. O autor é um
prisioneiro de sua época, de sua atualidade. Os tempos posteriores o libertam
dessa prisão, e a ciência da literatura tem a incumbência de ajudá-lo nessa
libertação. (BAKHTIN, 2017, p. 16)

Atentando a essas possibilidades, o que se vê em “O Estandarte da Agonia” é


o discurso sobre a mulher em diferentes faces: comportamento, vestimenta, expecta-
tiva social, vigilância, autovigilância, julgamento, atitudes. O conteúdo da militância

106
Estudos Literários

política e da discussão social (de classes) também aparece, e justo entre essas fron-
teiras transcorre a vida ainda mais intensa da obra literária (BAKHTIN, 2017, p. 12).
Para dar conta de bem observar e por conseguinte analisar as representações
do feminino que aparecem no romance de H. Studart, fez-se uso das orientações
metodológicas previstas em Bakhtin (2017), donde a interpretação do texto deve
seguir os seguintes atos particulares: a percepção do signo físico; a compreensão do
seu significado geral na língua; compreensão do seu significado no contexto mais
próximo e no contexto mais distante (posto que a obra ganha e perde sentidos ao
longo dos tempos); a compreensão ativo-dialógica. Nesse caminho, compreende-se
primeiro o significado para depois compreender os sentidos latentes no texto; o
significado é eminentemente linguístico, já os sentidos são dialógicos, relacionados
ao contexto, ao leitor, ao ser-evento do enunciado.
A compreensão ativo-dialógica, por sua vez, é o momento da interpretação
criadora, da “percepção visual (contemplação) e da adição por elaboração criado-
ra (BAKHTIN, 2017, p. 64). Nisso significa entender que o momento analítico de
uma obra, conforme aqui empreendemos, de verificar as representações da mulher
presentes no texto de Studart, é essencialmente dialógico: a interpretação feita pelo
leitor é criadora, produtora de sentidos; os sentidos latentes no texto são observados
a partir de um prisma individual, ideológico, contextual muito específico. Lendo
Heloneida Studart nos anos 2000, seguindo essas etapas de método propostas por
Bakhtin (2017), serão verificadas diferentes formas de enxergar e de falar da mu-
lher, de apresentá-la e representá-la.

O estandarte que representa o feminino


Na leitura de “O Estandarte da Agonia”, a representação da mulher manifes-
ta-se em diferentes personagens, diálogos, e discursos. Ao longo da obra, muitas das
representações se repetem, se fazem constante no livro. Dentre elas, cinco diferentes
podem ser por assim dizer categorizadas, tendo suas passagens narrativas reunidas,
observadas, e analisadas para compreendê-las. Cinco das categorias que represen-
tam a mulher nessa obra são: definições binárias de gênero; casamento; maternida-
de; tortura; obstinação. Diferentes trechos narrativos foram eleitos para ilustrarem
tais categorias, e municiar a presente discussão.

107
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

São trechos que exemplificam a representação via definição binária:

- Bobagem. Deve estar por aí com alguma garota. E faz muito bem. É como
dizia Romivaldo, meu pai: “Mulher é a única carne do mundo que não tem
reima.” (p. 08)

(...) e um número incontável de moças lhe telefonava. Isso Pedro compreen-


dia e aprovava. (p. 30)

- Ainda acordada?

- São duas da madrugada, Pedro. É a segunda noite que ele está fora de casa.

- Ele é homem. Se fosse uma filha moça!

Ainda comentou que o pai, Romivaldo, costumava dizer: “Vinho do porto


não é bebida de macho, é bebida de mulher-dama”. (p. 144)

O casamento é outra categoria que aparece com frequência no romance.


Grande parte de sua menção se dá no discurso da mãe da personagem principal, a
mãe de Açucena. Algumas são as passagens que ilustram:

Quando menina, admirava o penhoar verde-cana de minha mãe, confeccio-


nado em seda pura. Ela mesma bordara garças sobre aquele céu verde. Cha-
mava o penhoar “vestido de esperar marido”. (p. 32)

- Você está se esquecendo do seu marido. Pense nele. Que homem gostaria de
ter uma mulher no estado em que você se encontra?

Ela sempre se apresentara ao meu pai formosa e perfumada (...). (p. 62)

- Eu só penso em meu marido. (...) Não sou como certas pessoas que não se
enfeitam nem se perfumam para receber o esposo. (p. 80)

Maternidade é uma categoria não só frequente como de extrema importân-


cia simbólica nessa narrativa, posto que a personagem principal e narradora é uma
mãe em busca do filho desaparecido. Seu papel social “mãe” é o mais definidor des-
sa personagem, sendo a principal forma de referir-se a ela e de ela falar de si mesma.

108
Estudos Literários

- Se me tirou da casa do meu pai, é para me respeitar e dar boa vida. Ameacei
fazer uma loucura. [...] Acho que o desgosto dele começou quando soube que
eu não podia ter filhos. (p. 35)

- Por favor, não minta. Não sou política, não entendo dessas histórias... Sou
apenas uma mãe desesperada. (p. 57)

(...) Depois me disse que as paredes daquele escritório pareciam papel mo-
lhado por estarem encharcadas do pranto de mães como eu. [...] As mães
se tornavam nômades, começavam a uivar à porta dos quartéis e distritos
policiais. (p. 71)

Existe um sádico nesse quartel da Tijuca, que costuma telefonar às mães. Para
dizer mentiras: “Olhe, seu filho foi posto, às dez da manhã, no pau-de-arara”.
“Olhe, sua filha está sendo violentada na sala apelidada boate.” (p. 74)

A tortura é uma categoria importante de ser comentada pois, de acordo com


o observado na narrativa, ela é generificada: torturar mulheres, na ditadura civil-
militar, era muitas vezes uma ação de cunho sexual. A objetificação do corpo fe-
minino aparece nessa categoria, bem como a violência direta contra características
definidoras do feminino, seja no campo físico (estupro, violências sexualizadas de
forma geral), seja no campo simbólico (torturar a maternidade).

(...) Sua coragem só falhara uma vez, quando tinham cortado os bicos dos
peitos de uma sua cliente com tesourinha, e ele vira o sangue correr em dois
jorros infinitos. (p. 71)

- É assim, eles não poupam adolescentes, nem mulheres, nem mesmo bebês.
O que significa torturar um bebê? Está aqui nos meus fichários: bebê supli-
ciado para fazer a mãe falar. (p. 116)

(...) lembrava que Militão costumava a obriga-la a repetir cem vezes: “sou
uma puta”.

- E ela repetia?

- Repetia. Tinha medo de voltar ao pau-de-arara. O Militão costumava chutar


a barriga dela com o bico do sapato. “Pensa que pode sair por aí dando de
graça e achar que não é prostituta? Repita comigo: sou uma puta.” (p. 136)

109
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

A quinta categoria selecionada para esse estudo analítico é a da obstinação.


Na Trilogia de Heloneida Studart, essa é uma categoria salutar em cada uma das
narrativas, pois definidora para muitas das ações das personagens femininas princi-
pais. São alguns os trechos que bem demonstram:

- E eu tenho todos os telefones dele. Se quer, posso ligar para Militão amanhã
e peço que lhe marque um encontro. A senhora irá?

- Eu irei até o inferno – respondi.

- As mulheres são loucas – suspirou. – Qualquer dona de casa pode virar uma
criminosa. Alice era uma boba, uma demonstradora de produtos de beleza.
Quando foi preciso, se comportou na maior temeridade. (p. 96)

- Acho que poderia ter me telefonado de São Paulo. Eu nem sabia onde você
estava.

- Ando atrás de meu filho – respondi, obstinada. (p. 99)

- Dona Açucena, uma outra mãe cujo filho desapareceu, mandou carta ao
presidente dos Estados Unidos.

Ao presidente dos Estados Unidos? Era pouco. Eu me dispunha a mandar


carta ao próprio Deus. (p. 124)

Enquanto o carro rolava em direção à cidade, perguntei a mim mesma se não


fora essa peculiaridade que apavorara Bruno. Uma mulher capaz de tudo,
capaz de um amor mais forte do que a vida ou a morte (...). Apta a enfrentar
o desconhecido, onde todas as apostas são altas demais. (p. 160)

Para discutir a representação da mulher que faz a obra “O Estandarte da


Agonia”, é importante pautar-se sobre a ideia comentada por Butler (2017, p. 18) de
que o sujeito mulheres não é e não deve ser compreendido de um modo estável, per-
manente. O sujeito mulher não possui identidade fixa, e é exatamente o contrário
disso o que se busca, o que se almeja ao fazer crítica feminista, ou ao simplesmente
discutir representação feminina em diferentes espaços:

A identidade do sujeito feminista não deve ser o fundamento da política fe-


minista, pois a formação do sujeito ocorre no interior de um campo de poder

110
Estudos Literários

sistematicamente encoberto pela afirmação desse fundamento. Talvez, para-


doxalmente, a ideia de “representação” só venha realmente a fazer sentido
para o feminismo quando o sujeito “mulheres” não for presumido em parte
alguma. (BUTLER, 2017, p. 25)

Na análise aqui empreendida, utilizamos uma obra publicada em 1981, cujo


conteúdo relaciona-se mais intimamente com seu contexto imediato. Todavia, faz
parte da discussão que aqui se expõe, que a despeito do deslocamento temporal,
o discurso sobre o feminino é representativo para esse contexto imediato e para
outros também: deslocados no tempo e no espaço. A noção de gênero tem cone-
xão com modalidades raciais, classistas, étnicas, sexuais e regionais de identidades
construídas via discurso (BUTLER, 2017, p. 21), e é justo através do discurso obser-
vado que conseguimos ver o que a obra consegue dizer sobre a mulher.
O binarismo aparece na obra não somente para reforçar a diferença entre os
gêneros masculino e feminino, mas também para reforçar no que eles são diferen-
tes: os personagens, em suas falas, indicam a associação do feminino com o frágil, e
do masculino com o resiliente; também demonstram o feminino associado a neces-
sidade de bom comportamento e vigilância, o que não ocorre para o masculino. Es-
se reforço diferenciando os gêneros acontece nessa obra literária porque ele ocorre,
também, no cenário social; a linguagem é responsável não só por definir os gêneros,
como também por manter relevantes as características associadas a cada um.

Os limites da análise discursiva do gênero pressupões e definem por anteci-


pação as possibilidades das configurações imagináveis e realizáveis do gênero
na cultura. [...] as fronteiras analíticas sugerem os limites de uma experiência
discursivamente condicionada. Tais limites se estabelecem sempre nos ter-
mos de um discurso cultural hegemônico, baseado em estruturas binárias
que se apresentam como a linguagem da racionalidade universal. Assim, a
coerção é introduzida naqueilo que a linguagem constitui como o domínio
imaginável do gênero. (BUTLER, 2017, p. 30-31)

A oposição feita entre homens e mulheres, na narrativa de Heloneida, traz


a associação do feminino com o frágil: a bebida adequada à “mulher-dama” (STU-
DART, 1981, p. 74), a voz aflautada e afeminada de um personagem homem. Traz,

111
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

também, a associação do feminino com a vigilância, da moça que deve ser vigia-
da e protegida pela família, na intenção de manter comportamentos tidos como
adequados para o gênero: dormir em casa todas as noites (p. 08), chegar cedo em
casa (p. 08), ter o pai sempre por perto (personagem balconista da loja de doces).
Nessa oposição, também aparece o reforço do que é tido como comportamento
devidamente masculino: relacionar-se com muitas mulheres (p. 30), chegar em casa
tarde ou não dormir sempre em casa. Essas oposições carregam consigo o cunho
heteronormativo, cotejando nesse discurso que o aceitável é, por primazia, que o
desejo seja, também, heterossexual, e que os comportamentos e todo o discurso
consequente sejam binários para que se mantenha tal organização heteronormati-
va. Conforme nos diz Butler (2017, p. 44): “A heterossexualização do desejo requer
e institui a produção de oposições discriminadas e assimétricas entre ‘feminino’ e
‘masculino’, em que estes são compreendidos como atributos expressivos de ‘macho’
e de ‘fêmea’.”
As categorias de casamento e de maternidade aparecem em diferentes mo-
mentos na narrativa de Heloneida, mas são dois grupos intimamente relacionados
quando vamos verificar, na literatura, a ideia burguesa da mulher preparada para
ser esposa e mãe zelosas, e cobrada para continuar sendo, durante casamento e ma-
ternidade, essa mãe e essa esposa com extrema dedicação ao marido, filhos e casa.

Considerada base moral da sociedade, a mulher de elite, a esposa e mãe de


família burguesa deveria adotar regras castas no encontro sexual com o ma-
rido, vigiar a castidade das filhas, constituir uma descendência saudável e
cuidar do comportamento da prole. (D’INCAO, 2013, p. 230)

Essas características de mãe e esposa da família burguesa são comentadas


por Maria Ângela D’Incao (2013) ao relatar a ascensão da burguesia no século XIX
no Brasil. Portanto, o que se observa é a manutenção desses valores que, em 1981,
ano da publicação de “O Estandarte da Agonia”, poderiam ser tido como arcaicos,
mas mantêm-se presentes, mesmo que, na maior parte das vezes, estejam no discur-
so da mãe da personagem principal, e não no discurso da própria Açucena. O fato
de essas ideias serem defendidas pela mãe de Açucena, senhora mais velha, não as
tornam ideias ultrapassadas. São comentários quase nunca contestados por outros
personagens, e poucas vezes contestados pela própria Açucena, que opta mais pelo

112
Estudos Literários

silêncio ou pela reflexão interna do que está sendo dito. Assim sendo, vemos, na
narrativa de Heloneida, a manutenção desses valores na sociedade desse tempo,
mesmo que já um pouco modificados ou um pouco flexibilizados. Ainda assim, é
exigida da personagem principal bem como das demais mulheres desse contexto
sócio-histórico, a imagem materna e matrimonial, o “capital simbólico” necessário
ao marido (D’INCAO, 2013).
A tortura, por sua vez, quando acontecia contra mulheres durante a ditadura
civil-militar, era marcadamente sexualizada, ou, outras vezes, atingia características
tipicamente femininas de modo simbólico (como na passagem onde o torturador
suplicia um bebê para fazer a mãe da criança confessar).

Para Beauvoir – como para Wittig –, a identificação das mulheres com o “se-
xo” é uma fusão da categoria das mulheres com as características ostensi-
vamente sexualizadas dos seus corpos e, portanto, uma recusa a conceder
liberdade e autonomia às mulheres, tal como as pretensamente desfrutadas
pelos homens. (BUTLER, 2017, p. 47-48)

É como se o gênero existisse antes da identidade, especialmente no caso das


mulheres. E, mais ainda no caso delas, trata-se de um gênero em estreita relação
com o sexo, a sexualidade, e, por conseguinte, com um corpo assim objetificado.
Butler (2017) esclarece:

Essa associação do corpo com o feminino funciona por relações mágicas de


reciprocidade, mediante as quais o sexo feminino se torna restrito a seu cor-
po, e o corpo masculino, plenamente renegado, torna-se, paradoxalmente o
instrumento incorpóreo de uma liberdade ostensivamente radical. (p. 35)

Quando a mulher é torturada por um homem, conforme se vê na narrativa


sob estudo, essa tortura aparece generificada: o torturador se opõe à presa política
não somente considerando esses dois papéis, torturador e torturado, militar e preso
político, mas, também, ou principalmente, valendo os papéis do masculino e do
feminino, do homem e da mulher, e, nessa oposição é que se baseia a sua tortura.
O sujeito (masculino) que tortura (um sujeito feminino) duplica seu poder nes-
sa tortura: violenta enquanto autoridade e violenta enquanto homem. É simbólica
essa discussão da tortura mediada pelo gênero, pois vê-se que, enquanto se tenta

113
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

construir e debater o gênero feminino através do discurso, da prática linguageira,


dos nós semânticos possíveis (OLIVEIRA NETO, 2012), é em um contexto de ex-
trema violência e autoritarismo que o discurso inexiste: a violência é física, sexual,
sexualizada, íntima, e esse não é um traço do contexto histórico dessa narrativa. Em
contrário, é uma tendência, ainda, atemporal.
A quinta categoria posta em análise, da obstinação, passa a aparecer mais ve-
zes à medida que a narrativa avança; esse mesmo movimento é observado nas per-
sonagens femininas principais dos outros dois romances da trilogia: Marina, em “O
pardal é um pássaro azul”; Dorinha, de “O torturador em romaria”. A obstinação apa-
rece em Açucena necessária na busca do seu filho, que continua desaparecido e com
ausência quase completa de notícias ou pistas. Trata-se de uma característica muito
simbólica para representar a mulher que a possui, como também para representar, de
modo plural, conforme atenta Butler (2017), as mulheres, e o movimento feminista.
A obstinação da personagem sugere coragem, determinação, e enfrentamen-
to. Açucena vale-se dela para continuar buscando o filho mesmo que precise fazer
isso sozinha, se expondo a perigos, violências e desconhecidos. A sua obstinação e
manutenção da coragem também conseguem indicar o enfrentamento ao marido e
sua aparente tentativa de proteção da família, do emprego, da esposa; e indicam o
enfrentamento de sua mãe, que a culpa pelo desaparecimento do filho, e, mais ain-
da, a culpa por valer-se disso para ser ainda menos presente enquanto mãe, esposa
e dona de casa. Nesse movimento desprendido e obstinado, Açucena revela em seu
comportamento, ações e discurso, o enfrentamento de valores tipicamente associa-
dos ao feminino, da reclusão, do silenciamento, obediência. Não por acaso, é com a
obstinação que Heloneida Studart pinta suas outras personagens mulheres, nos dois
outros romances; essa determinação que elas mantêm em seu objetivo particular
tem um significado ampliado, indicam a valorização de si e de suas ações, inde-
pendência, enfrentamento de valores arcaicos e aprisionadores, indicam, portanto,
também liberdade. Oliveira Neto (2012) contribui para essa discussão:

A condição humana e logo a remodelagem de identidades e de sujeitos carece


de um reordenamento do discurso. O trabalho do feminino será por esse
reordenamento; trabalho de revisão e intercâmbio de modos outros de fazer-
-se sujeito; trabalho de redirecionamento de verdades preestabelecidas. Sua

114
Estudos Literários

formação, enquanto sujeito, se dá pela ordem do ruído, como uma Divara


a questionar a ordem e o real que ela ocupa. Questionar verdades preesta-
belecidas passa por uma série de conflitos, em nada pacíficos, e a ordem de
passividade feminina acaba por se constituir fraco adereço no armário dos
antagonismos verbais construídos pelos homens. (p.112)

A obstinação da personagem cria tensões no romance: tensões em ações,


diálogos, e no próprio discurso romanesco. É nesse movimento, à luz do que diz
Oliveira Neto (2012), e do que se observa na narrativa, que a personagem feminina
ganha espaço, respeito e causa uma desordem necessária e positiva: necessária para
buscar seu filho e tentar fazer justiça; positiva para abrir espaço para tensões de
outras mães, pais, parentes de desaparecidos políticos.

Considerações finais
O que se vê no romance “O estandarte da agonia” vai além de uma narrativa
(baseada em história real) que fala de seu contexto imediato. Nessa obra, Heloneida
Studart dá espaço amplo para representar a mulher, o feminino, de modo plural e
não estável, conforme sugere Butler (2017), de modo a colocar em texto uma po-
tencialidade de sentidos capazes de ser verificados e pensados na vida posterior da
obra (Bakhtin, 2017). A representação da mulher dá-se em aspectos vários, aqui
reunidos em cinco diferentes categorias para ilustrar, servir de exemplo e de discus-
são. Essas categorias reafirmam a pluralidade dessa identidade feminina, ao mesmo
tempo em que servem de reflexão para verificarmos quais ideias elas veiculam –
quais sejam: tradição, conservadorismo, binarismo, objetificação do corpo femini-
no, ideais burgueses de século anterior ao livro.
Reunir e pensar sobre essas categorias promove o debate e a reflexão em
torno da identidade feminina, do conceito de feminino, um gênero cujo debate e
definição é contemporâneo e permeado por tensões dialógicas. O discurso, fora e
dentro da literatura, é grande responsável na construção de tais referências; e aqui,
posto em análise, ele revela o quanto a literatura é, também, ato político, o quanto a
representação literária também é afirmação política. Nesse raciocínio, essa obra de
Heloneida sugere um feminismo transparente, não panfletário nem expressamente

115
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

militante, mas presente, afirmativo, um coadjuvante indispensável para contar essas


histórias: a história de Açucena, a história das mulheres.

Referências
BAKHTIN, Mikhail. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Trad. Paulo
Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2017.
_______. Teoria do romance I: a estilística. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34,
2015.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. Ouro Sobre Azul: Rio de Janeiro, 2014.
CUNHA, Cecília. Uma escritora feminista: fragmentos de uma vida. Estudos Feministas,
v. 16, n.1, Jan./Abr. 2008.
D’INCAO, Maria Ângela. Mulher e família burguesa. IN: Del Priore, História das
Mulheres no Brasil. 10ª. Ed. São Paulo: Contexto, 2013.
STUDART, Heloneida. O estandarte da Agonia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
_______. O pardal é um pássaro azul. Civilização Brasileira: São Paulo, 1975.
_______. O torturador em romaria. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.

116
Estudos Literários

A inserção do romance
A festa, de Ivan Ângelo
na contemporaneidade
Brenno Fernandes Soares1
João Batista Cardoso2

Introdução
O presente artigo parte de uma discussão a respeito das questões verticaliza-
das a respeito da interface entre a História e a Ficção, na narrativa de Ivan Ângelo,
intitulada A Festa (1976). Fazendo esse recorte temático para pensar as questões
políticas, históricas e ficcionais presentes na narrativa em questão. O autor escolhi-
do para direcionar a discussão sobre a temática apresenta uma representatividade
singular, no âmbito de seu engajamento político e social, em um momento histórico
brasileiro bastante conturbado, o que direciona sua prosa de ficção como categori-
zado por alguns críticos, uma das mais expressivas prosas de resistência do período.
O romance (:contos), A Festa (1976), começado a ser escrito, dentro de um
projeto em 1963 e somente finalizado em 1975, portanto, dentro do momento de
forte censura ocasionada pelo golpe militar brasileiro de 1964, impossibilitando a
publicação da narrativa. Dentro desses impasses, percebemos, nesta narrativa, es-
pecificamente, um projeto de criação literária, muito particular, para driblar a cen-
sura e difundir sua obra ao público.
Neste artigo, busco propor uma leitura da narrativa que divide-se aos moldes
da construção do romance em questão. A Festa (1976) está dividida em nove capí-
tulos – ou contos, e aqui busco pensar esses nove contos, em dois grandes quadros.

1 PPGEL/UFG-RC
2 PPGEL/UFG-RC

117
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

O primeiro quadro: Documentário, Bodas de Pérola, Andrea, Corrupção, O Refúgio,


Luta de Classes, Preocupações, onde dentro das narrativas singulares e fragmentadas
desta primeira parte, temos a apresentação de alguns pontos norteadores de perso-
nagens que serão (re)configurados na segunda parte da narrativa que é o Antes da
Festa e o Depois da Festa. Quadros que podem ser lidos independentemente, não
necessariamente seguindo uma linearidade. O romance – ou contos, apresenta uma
diversificação muito singular e representativa de personagens que representam os
vários extratos sociais do Brasil contemporâneo. Uma narrativa que tematiza, pro-
blematiza e questiona o golpe militar vigente, no Brasil. Sinaliza, através de seus
personagens o que antecede e o que sucede o Golpe Militar Brasileiro, colocando
assim, em evidência, a partir do texto literário, o diálogo com o pressuposto teórico-
metodológico, deste artigo.
Portanto, esta pesquisa está dividida em três momentos. O primeiro momen-
to é demarcado para uma rememoração breve, a respeito do Golpe Militar brasilei-
ro e seus desdobramentos na América Latina. Partindo, neste primeiro momento,
de contextualização e rememoração das truculências de um regime ditatorial vi-
gente no país, para que a possamos adentrar ao segundo momento, que é identificar
os elementos que acionam para a interface entre a História, a Política e a Prosa de
Ficção de Ivan Ângelo, na narrativa em questão, partindo dos elementos que fazem
parte da materialidade literária para tecer as malhas deste território movediço que
é identificar os pontos de encontro e de distanciamento do texto literário enquanto
entidade ficcional que tematiza a História e não o contrário. Haja vista as proposi-
ções dos dois momentos mencionados, partimos para a terceira e última discussão,
sobre o modo pelo qual o romance adentra aos espaços da contemporaneidade, em
uma perspectiva global a respeito da literatura contemporânea.

Ditadura Militar Brasileira


É indiscutível que uma Democracia é sempre melhor do que uma ditadura, o
Brasil, entre 1946 e 1964, viveu um período democrático instável. Dentro dessa pro-
posta, a democracia busca entender que a política deve distanciar-se das violências
e conflitos, e traga para discussões que resolvem-se através de eleições. Pela manu-
tenção dos direitos conquistados através das lutas, a Democracia parte do pressu-

118
Estudos Literários

posto de que esses direitos devem ser mantidos e também aprimorados. Entre 1946
e 1964, é sem dúvidas, inquestionável que esses anos que antecedem o Golpe Militar
foram melhores.
O Golpe de 1964, advindo de vários impasses ocorridos entre os anos de
1946 e seus anos subsequentes. Parte de uma proposta que, introduzida no país,
apresentaria uma mudança radical no âmbito da base organizacional da política
vigente no país, até então. A formalização do golpe não foi necessária para que essa
nova organização pudesse iniciar suas truculências. Antes mesmo de formalizá-lo,
uma lista de nomes para serem cassados, foi divulgada, entre eles encontravam-se
os pioneiros da esquerda brasileira, na época e outros que se opuseram ao regime
ditatorial que embora não formalizado, estava vigente no país.
As truculências do golpe militar que assolou a vida dos brasileiros, entre
1964 e 1988, iniciou logo nas primeiras horas, partindo de uma perseguição que
deve ser bastante frisada: violenta. Uma perseguição aos opositores que foram iden-
tificados como esquerdistas, como o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), a
União Nacional dos Estudantes (UNE), as Ligas Camponesas e grupos católicos co-
mo a Juventude Católica (JUC) e a Ação Popular (AP). A quantidade de pessoas que
foram presas aproxima-se ao número de cinco mil, e vale ressaltar que as estatísticas
apontam que esse número de pessoas que foram torturadas e vítimas da brutalidade
desse regime ditatorial, eram pessoas advindas do Nordeste.
Por meio da repressão, a organização do regime ditatorial difundiu-se no
país. A tortura, desde 1964, veio sendo utilizada em todas as medidas, tanto gran-
des, como pequenas, como meios de repressão e perdurou durante todo o regime
ditatorial, com o objetivo de obter informações, intimidar, reprimir e estabelecer o
terror entre as pessoas que se opuseram ao regime vigente. Na medida em que os
atos ocorriam, os mesmos aperfeiçoavam-se. A repressão acabou por atingir as clas-
ses mais populares, que organizavam-se e movimentavam a onda contra o regime
ditatorial vigente.

A interface entre a História, Política e a Ficção


Ao adentrar aos limites que permeiam a discussão a respeito dos três eixos
embrincados aqui – História, Política e Ficção. Comumente deparamo-nos com

119
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

representações literárias que apresentam em suas composições, enquanto forma e


conteúdo, elementos que transitam entre a História factual e a ficional. No campo
da História, podemos te ro uso de várias vozes, pontos de vistas, posições de pri-
vilégios ou não, ou seja, a múltipla perspectiva de um mesmo acontecimento. No
âmbito literário, a fronteira da ficção e não ficção, ainda é algo a ser questionado.
Pensemos primeiro, no âmbito da História, o que delimita um texto enquan-
to entidade científica da História. O pesquisador norte-americano Hyden White,
aponta-nos algumas questões sobre o lugar da História e dos discursos historiográ-
ficos, em sua obra Meta-História, o que rememora a ideia de que dentro dos discur-
sos da História, percebemos uma tendência à poeticidade e às questões referentes
à linguística, e que dentro dessas estruturas conseguimos compreender as várias
formas da consciência histórica. Para o autor supracitado,

Nessa teoria trato o trabalho histórico como o que ele manifestadamente é:


uma estrutura verbal na forma de um discurso narrativo em prosa. As histó-
rias (e filosofias da história também) combinam certa quantidade de “dados”,
conceitos teóricos para explicar esses dados e uma estrutura narrativa que os
apresente como um ícone de conjuntos de eventos presumivelmente ocorri-
dos em tempos passados (WHITE, 1995, p. 12).

Para tanto, ao pensarmos os textos literários, devemos direcionar nossas


análises a partir de um estudo diacrônico e individual, centrando nos aspectos in-
trínsecos à obra. A História, portanto, não deve atingir o princípio de realidade, já
que a mesma falha no processo de reconstituir o passado por meio de elementos
que estão em evidência.
Tendo tais discussões em vista, retomamos ao sentido inicial, sobre a discus-
são a respeito da ficcionalidade literária. Sabemos que a interface entre a história
e a ficção, faz-se presente. Portanto, discutir sobre a mesma, nos rememora algu-
mas questões. A primeira delas, é pensar o modo como a materialidade literária se
constitui enquanto forma linguística. A representação dos textos literários apresen-
tam-nos alguns níveis de realidade, e aqui rememoramos o conceito de imitação de
Aristóteles. Imita-se a realidade, mas qual realidade é essa? Dentro dessa questão,
Italo Calvino, em um ensaio, atribui alguns sentidos e rememora outros, para que
possamos pensar a realidade da ficção. Para Calvino,

120
Estudos Literários

Ao terminar este meu estudo, percebo ter sempre falado de “níveis de reali-
dade”, enquanto o tema do nosso simpósio soa (pelo menos em italiano): “Os
níveis da realidade”. O ponto fundamental de minha comunicação talvez seja
exatamente este: a literatura não conhece a realidade, mas somente níveis.
Se existe a realidade de que os vários níveis não são mais do que aspectos
parciais, ou se existem somente níveis, isto a literatura não pode decidir. A
literatura conhece a realidade dos níveis e esta é uma realidade que conhece,
talvez, melhor de quanto não se chegue a conhecê-la por meio de outros pro-
cedimentos cognitivos. É já muito. (CALVINO, 2009, p. 10)

As representações literárias, não podem estar restritas a uma única verdade.


Pois a mesma não existe. Portanto, categorizar um nível de realidade, através da
mimesis literária, é ineficiente. Assim como as postulações a respeito das categoriza-
ções da História. Os manuais dão conta do macro, o micro apresenta as bifurcações
dos níveis de realidade que perpassam as representações literárias.

Literatura brasileira contemporânea: Reflexos do Golpe Militar na


narrativa de Ivan Ângelo
Ao adentrarmos a discussão a respeito das tendências contemporâneas, é
importante que verticalizemos nossas discussões a respeito deste lugar em que nos
encontramos e falamos sobre ele. Para tanto, o exercício de pensar a literatura brasi-
leira contemporânea, enquanto movimento literário é um desafio. Portanto,
Aganbem (2009) ao esclarecer a primeira concepção de contemporaneidade
retoma uma resposta por Barthes, com base nas anotações do autor em um curso
feito no Collège de France, trazendo ideia de que “[...] o contemporâneo é intempes-
tivo”, sendo essa intempestividade a marca primeira dessa concepção que apresenta
um desdobramento filosófico. Portanto, segundo o autor poderíamos considerar que

(...) é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeita-


mente com este, nem está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse
sentido, inatual; mas exatamente por isso, exatamente através desse desloca-
mento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e
entender o seu tempo (AGAMBEN, 2009, p. 59).

121
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Percebemos a transitoriedade das vertentes que se entrecruzam, sobre a enti-


dade que pretende estar em deslocamento ao seu período, para que possa entender
as particularidades e excentricidades dos ritmos e fluidez dessa contemporaneidade
líquida, sendo aqueles que se propõe a pensar a contemporaneidade, partindo de
um deslocamento e do anacronismo, sendo esses últimos termos mencionados, os
termos base para pensarmos as produções do período, aliados à ideia de intempes-
tividade proposto por Barthes.
A intempestividade que percebemos na contemporaneidade, diz respeito ao
que acontece de modo inesperado, portanto, ao pensarmos as produções literárias
do período contemporâneo visualizamos uma variedade de condições de produ-
ção e consequentemente de produções que dialogam com os clássicos e também
aquelas que buscam distanciar-se do cânone, trazendo em suas composições no
campo da forma e do conteúdo, elementos que as tornem produções características
dessa contemporaneidade marcada pela ruptura e pela multiplicidade que é própria
do próprio tempo histórico. Haja vista as proposições da primeira concepção de
Agamben (2009),

A contemporaneidade, portanto, é uma singular relação com o próprio tem-


po, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias; mais precisa-
mente, essa é a relação com o tempo que a este adere através de uma disso-
ciação e um anacronismo. Aqueles que coincidem muito plenamente com a
época, que em todos os aspectos a esta ordem perfeitamente, não são con-
temporâneos porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem
manter fixo o olhar sobre ela (AGAMBEN, 2009, p. 59).

A ideia de singularidade no campo da literatura contemporânea é pertinente,


por percebermos que embora algumas produções retomem pressupostos de outras
vertentes literárias, como menciona Schollhammer (2009) ao propor uma leitura
sobre as literaturas contemporâneas que representam os extratos sociais das entida-
des ficcionais que transitam no campo urbano, relacionando essas representações
aos pressupostos da corrente literária intitulada realismo. Essa comparação faz-se
necessária ao discutirmos o que encontramos na materialidade dos textos literá-
rios que fazem parte da literatura brasileira contemporânea, para que possamos
identificar o lugar em que desses textos. Percebemos, a priori, que essa concepção

122
Estudos Literários

diz respeito ao direcionamento do olhar para os textos que refletem não apenas às
mazelas sociais que perpassam o tempo histórico materializado nas narrativas, mas
que transcendem esse olhar, e (re)configuram extratos sociais para a formação de
um status quo.
Em continuidade ao levantamento base de conceituação de Agamben sobre
a contemporaneidade, percebemos uma segunda proposta de leitura enviesada por
um olhar filosófico daquilo que pretendemos evidenciar enquanto contemporâneo.
Essa segunda concepção elabora algumas questões que dizem respeito ao que está
representado no campo das produções literárias e o olhar que está sendo direciona-
do a partir das leituras daqueles que se propõem a pensar a respeito de seu próprio
tempo, representando, no campo literário os ritmos de uma sociedade marcada por
esse ritmo acelerado em decorrência da modernização dos espaços urbanos, por-
tanto, “[...] contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para
nele perceber não as luzes, mas o escuro.” (AGAMBEN, 2009, p. 62)
Ao retomarmos essa segunda concepção de contemporaneidade estabelecida
por Agamben, que pouco se distancia da proposta primeira, portanto, complemen-
ta-se, pensamos que“[...] pode dizer-se contemporâneo apenas quem não se deixa
cegar pelas luzes do século e consegue entrever nessas a parte da sombra, a sua
íntima obscuridade.” (AGAMBEN, 2009, p. 63), essa ideia de que aquele que na
materialidade do texto representa os extratos sociais da contemporaneidade, está
redirecionando o olhar para as mazelas sociais existentes e as (re)configuram.
As representações dos grandes centros urbanos, no âmbito da ficção, apon-
tam para o desenvolvimento das múltiplas formas de existência, como destacado
por Pellegrini a respeito do campo social, político, ideológico e estético. Essas quatro
esferas elencadas fazem parte de uma espiral, sendo ela um meio de uniformização
desse caminho estético que é representado na literatura contemporânea. Todavia,
lembramos das proposições de Schollhammer a respeito do papel da representação
na contemporaneidade.

a literatura contemporânea não será necessariamente aquela que representa


a atualidade, a não ser por uma inadequação, uma estranheza histórica que a
faz perceber as zonas marginais e obscuras do presente, que se afastam de sua
lógica. Ser contemporâneo, segundo esse raciocínio, é ser capaz de se orientar

123
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

no escuro e, a partir daí, ter coragem de reconhecer e de se comprometer com


um presente com o qual não é possível coincidir (Schollhammer, 2009 p. 10).

O movimento estabelecido por Schollhammer retoma questões importantes


para a continuidade das discussões a respeito do que a crítica tem proposto como
objeto de investigação na contemporaneidade. O lugar daquele que se propõe pen-
sar a contemporaneidade é exatamente o não lugar para que aquele que busca ex-
planar essa tendência possa reconhecer a impossibilidade de estar inserido em um
presente e impossível de coincidir com o mesmo.
Para darmos andamento às discussões a respeito da interface entre a história
e a ficção, e pensarmos estritamente a relação entra o texto ficcional de Ivan Ângelo
e a sua relação com o golpe militar brasileiro de 1964, este artigo propõe uma leitura
de algumas elementos que acionam, dentro da prosa de ficção de Ivan Ângelo, para
a interface entre a História e a Ficção. Em meio a fragmentação da narrativa, que
pode ser lida como uma junção de contos, a primeira parte, do segundo quadro
Depois da Festa, apresenta ao leitor, alguns elementos que podem ser discutidos.
Ambientada na capital mineira, Belo Horizonte, a narrativa sinaliza os lugares em
que se encontram os personagens e também os respectivos horários. Esses perso-
nagens, ora são os mesmos mencionados nos quadros anteriores, ora novas figuras
(secundárias), que representam as identidades fragmentadas do período. Como
exemplo, temos o personagem retirante Viriato. Personagem esse, que destoa dos
personagem que são eixos modais para essa narrativa (Marcionílio, Carlos Bicalho,
Samuel Freneszi e Andrea), aparecendo como entidade secundária e apresentando
uma denúncia significativa sobre Marcionílio de Mattos. Portanto, o personagem
Viriato, em terceira pessoa, diz

A partir de 1970, que ficou sendo o ano da desgraça, e muito mais conhe-
cido pelo apelido do que pelo nome verdadeiro de 1970, os habitantes de
Curralin’u, interior do sertão de Alagoas, não emigraram mais para os Sul.
Dezessete famílias de Curralin’u emigraram em março daquele ano, cha-
mado de desgraça, para Belo Horizonte, Belerizonte na opinião da maioria.
Voltaram sete famílias e Virato, em agosto; faltavam dez famílias inteiras e
mais treze pessoas das famílias que voltaram, incluindo a mulher de Viriato,

124
Estudos Literários

o contador da história da fuga, da desgraça e da volta; dos treze que faltavam,


nove eram crianças, uma velha de trinta anos, um rapaz, dois pais de família.
(ÂNGELO, 1976, p. 216)

Corridos seis anos, desde que o golpe militar fora instaurado no Brasil, 1970,
como menciona o narrador, ficou conhecido como o ano das desgraças. O momen-
to em que a tortura, legalizada, e a perseguição aos opositores, após a prática, pas-
sou a ser aprimorada e intensificada. Viriato, embora estivesse no mesmo impasse
em que Marcionílio de Mattos, ambos retirantes nordestinos, buscando refúgio em
Belo Horizonte, acompanhado das demais famílias, conta a sua história e dentro de
sua própria história, destoa da constituição política de Marcionílio de Mattos.

Ali ficou confirmado que Marcionílio era o Demônio comunista e o dópis


procuravam os comparsas dele entre os presos. Muitos apanharam, porque
esse dópis são iguais à polícia mesmo, e alguns até sumiram, mas comida era
fartura até duas vezes por dia se comia. (...)Trabalhavam na colheita até meio
de agosto e foram postos no trem de volta para o sertão, com ordens de nunca
mais voltarem a Minas Gerais. Marcionílio? Evaporou-se na prisão o Capeta
mesmo.” (ÂNGELO, 1976, p. 218)

Marcionílio de Mattos, na perspectiva de Viriato, estaria em uma luta sem


causa, sendo considerado um Capeta, e dentro da concepção cristã, algo ruim.
Sendo ele, um personagem que direciona a narrativa e encontra-se na posição de
opositor ao regime e organiza os nordestinos à fuga. Percebemos, na narrativa de
Viriato, o desconhecimento do próprio regime e a própria alienação. Alienação es-
sa, escolhida. Embora estivesse dentro do movimento de luta, encontra-se enquanto
personagem de denúncia, infiltrado no próprio movimento de oposição ao regime
militar vigente no país. Acionando então, para o destino final de Marcionílio de
Mattos, o combatente.

Marcionílio, o frustrado líder camponês que há três meses tentou trazer a


subversão do campo para a cidade, chefiando um verdadeiro regimento de
famintos, em conexão com extremistas da Capital, arrebatou a arma de um
policial, imobilizou a guarda, ganhou o saguão do DOPS e correu pela aveni-

125
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

da Afonso Pena abaixo, atirando em seus perseguidores. Um tiro de um dos


agentes que corriam em sua perseguição atingiu o subversivo na cabeça, que
caiu já sem vida. (ÂNGELO, 1976, p. 219)

Nota que foi publicada pela Polícia Federal em todos os jornais de Belo Ho-
rizonte, como menciona o narrador, a respeito da morte de Marcionílio de Mattos,
um dos personagens que é vítima do regime militar, na narrativa de Ivan Ângelo,
embora tenhamos um relato feito pelos militares, encontramos algumas evidências
de propostas de deslegitimações da luta de Marcionílio Mattos. Propondo que o
mesmo atentou contra as forças armadas e pela segurança dos próprios policiais,
tiveram que alvejá-lo. Marcionílio é a representação dos muitos mortos políticos ao
longo da ditadura militar brasileira, que aniquilou os opositores ao golpe.
Em contraponto com o acontecimento na Praça da Estação, que é um dos
fios condutores da narrativa de Ivan Ângelo, temos o outro momento – a festa, de
fato, em que podemos visualizar a relação com o real. A festa, que ocorre no aparta-
mento de Roberto Miranda, para comemorar o aniversário do mesmo, acaba sendo
invadida por militares, por meio de denúncias. E os horrores, que conseguimos
visualizar através das imagens discursivas feitas pelo narrador, são a representação
daquilo que aconteceu e acontece.

Um grupo de trinta rapazes armados com longos cacetes de madeira invadiu


a festa de aniversário de Roberto em 1971. (...) Quebraram o aparelho de som,
televisão, discos, copos, espelhos, esculturas, quadros, antiguidades, móveis,
privadas, bidês, vidros de perfume, garrafas de bebidas, bibelôs, pratos, ca-
beças rasgaram livros, vestidos, cortinas. (...)Roberto apanhava, sangrando,
e ouvia: “Está pensando que pode debochar da gente e ficar por isso mesmo,
veado?” Veado, comunista, puta eram seus gritos de guerra e excitação. Soou
um apito e todos juntos largaram suas vítimas e desapareceram pela porta,
compactos, poderosos. (ÂNGELO, 1970, p. 220)

Em paralelo com o incêndio na Praça da Estação, a festa acontece, em pri-


meiro momento, como um apontamento para um agrupamento dos personagens
mencionados ao longo da narrativa, um modo de colocá-los em um mesmo lugar e
evidenciar seus destinos e contatos relacionados. Em contraponto com o incêndio

126
Estudos Literários

na Praça da Estação, os personagens que encontram-se na cobertura de Roberto


Miranda, são sujeitos privilegiados, o que denota uma diferença considerável de
classes, sendo esses, os considerados burgueses.

Considerações Finais
Percebemos, na narrativa de Ivan Ângelo, uma multiplicidade de discursos
que representam o real, atravessado por uma variedade de narradores e modos de
narrar, a construção narrativa de A Festa (1976), coloca em questão o fazer literário
na contemporaneidade, por meio das várias significações representativas que per-
passam a narrativa.
A representação do homem, enquanto sujeito que luta contra um regime
ditatorial vigente, sendo representado, metaforicamente, oferece-nos uma signifi-
cação daqueles que opuseram-se ao regime ditatorial vigente de 1964 a 1988. Por
meio da narrativa de Ivan Ângelo, podemos ter uma percepção do caos que fora
instaurado com a queda do regime democrático e a destituição total dos direitos
civis. Apontando, portanto, para uma nova constituição de realidade, sendo perce-
bida por um outro viés. Representa-se o tempo vivido, por meio dos discursos dos
vários extratos sociais, (re)configurados pela ordem desvendada.
O romance pode ser considerado uma metáfora das truculências do regime
ditatorial brasileiro, por meio de sua fragmentação discursiva e através dessa pro-
posta de composição de um romance que é delineada através de uma colagem de
peças de um quebra-cabeças que as peças estão soltas e encaixam-se de acordo com
o direcionamento da fluidez do texto literário, não seguindo aos padrões da linea-
ridade, inovando nos mecanismos discursivos para narrar o inenarrável. Uma obra
crítica e que pode ser considerada, também, auto-reflexiva.

Referências
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Trad. Vinícius
NicastroHonesko. Chapecó: Argos, 2009.
ÂNGELO, Ivan. A Festa. Rio de Janeiro: Geração Editorial, 2007.

127
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

CALVINO, Ítalo. “Os níveis da realidade em literatura”. In: . Assunto encerrado. Discursos
sobre literatura e sociedade. Trad.: Roberta Barni. São Paulo: Companhia das
Letras, 2009.
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 8ª Ed., São Paulo: T.A. Queiros / Publifolha,
2000.
WHITE, Hayden. Meta-história. A imaginação histórica do século XIX. São Paulo:
Edusp, 1995 [1973].
SCHØLLHAMMER, Karl Erik. Ficção brasileira contemporânea. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2009.

128
Estudos Literários

Abrindo o envelope:
Confluências entre o estudo
de cartas e o processo de
criação literária
Carlos Augusto Moraes Silva1
Betina Ribeiro Rodrigues da Cunha2
Aparecida Maria Nunes3

Introdução
Guardar as cartas consigo,
Nunca mostrar a ninguém,
Não as publicar também:
De indiferente ou de amigo,
Guardar ou rasgar. Ao sol
Carta é farol.
(Mário de Andrade, A lição do Guru, Carta a Guilherme
Figueiredo, 17 de Fevereiro de 1945.)

Antes da internet, uma prática comum entre escritores e demais personagens


da vida pública e privada era a troca de correspondências – cartas, telegramas, car-
tões postais, bilhetes, dentre outros. Mas, afinal, o que esses documentos podem nos

1  Doutorando em Estudos Literários pelo Instituto de Letras e Linguística – ILEEL - Universidade Federal
de Uberlândia (UFU), [email protected]
2  Orientadora, Profa. do Programa de Pós-graduação em Estudos Literário – ILEEL - Universidade Federal
de Uberlândia (UFU), [email protected]
3  Coorientadora, Profa. Titular do curso de Letras da Universidade Federal de Alfenas – Universidade Fe-
deral de Alfenas (Unifal), [email protected]

129
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

revelar hoje? Os textos epistolares descortinam informações que ultrapassam dados


biográficos e até mesmo íntimos de autores consagrados, permitindo à Crítica e
Historiografia Literária4 organizar e analisar esse acervo, com o intuito de iluminar
“[...] algumas dúvidas a respeito de obras e autores, bem como servirem como uma
espécie de ‘espelho’ sintomático a refletir determinadas nuances do próprio proces-
so de gestação e criação da obra” (RODRIGUES, 2015, p. 225).
Para Santiago (2006, p. 62), a leitura de cartas escritas aos companheiros de
Letras e familiares, bem como de diários íntimos e entrevistas, tem pelo menos
um objetivo no campo da nova teoria literária: “[...] visa a enriquecer, pelo estabe-
lecimento de jogos intertextuais, a compreensão da obra artística (poema, conto,
romance), ajudando a melhor decodificar certos temas que ali estão dramatizados,
ou expostos de maneira relativamente hermética”.
Sob esse viés, a carta se torna um espaço privilegiado, um locus para a cons-
trução de pensamentos e ideias:

O comungar da carta se espelha no desejo de estar junto, na constante troca


de opinião, nas sugestões contestadas ou aceitas. O “outro”, no diálogo epis-
tolar, concorre muitas vezes para a realização artística funcionando como
termômetro de criação. A carta é “laboratório” onde se acompanha o en-
gendramento do texto literário em filigranas, desvendando-se elementos de
constituição técnica da poesia e seus problemas específicos. Propicia a análise
(gênese e busca do sentido) e torna manifesto as motivações externas que
“precisam a circunstância” da criação. A escrita epistolográfica proporciona
a experimentação linguística e o desvendamento confessional (MORAES,
2001, p. 14).

Nesses termos, Angelides (2001, p. 25) destaca a importância dos estudos das
correspondências para a Teoria e Historiografia Literária, ao enfatizar que:

4  A carta enquanto texto, segundo Moraes (2008, p. 8-9), “[...] atrai também os olhares das mais diversas
áreas do conhecimento, da história à psicologia (e psicanálise), da sociologia e filosofia às artes em geral, das
ciências exatas às biológicas, olhares que desejam captar testemunhos e ideologias, fundamentos artísticos
e científicos, experiências vividas ou imaginárias. Os estudos culturais privilegiam essa voz da intimidade
atravessada por ideologias. Na teoria e nos estudos literários, a carta/texto tanto pode ser ‘material auxiliar’,
ajudando a compreender melhor a obra e a vida literária, quanto escrita que valoriza a função estética/poética;
ou ainda, ‘texto literário’ nas paragens do romance epistolar”.

130
Estudos Literários

[...] é preciso considerar outros fatores decisivos no discurso epistolar, tais


como o assunto, a situação em que o autor se encontra etc. Tudo isso conduz
a forma discurso e contribui para compor suas múltiplas facetas. Algumas de
valor meramente documental, outras de valor estético ou estético documen-
tal. E nessa faixa que abrange o documental e o estético, está muitas vezes
inscrita uma visão do mundo e do próprio fazer literário. Este último aspecto,
ou seja, a concepção do escritor sobre o ato da criação, fornece elementos va-
liosos para os estudos literários. Segundo George Lukács, os problemas mais
íntimos da criação artística podem ser melhor compreendidos através dos
testemunhos imediatos dos grandes artistas, ou seja, através de suas cartas,
diários íntimos etc.

Entretanto, por um longo período, as informações contidas nas correspon-


dências trocadas entre artistas e intelectuais foram relegadas ao segundo plano e
vistas com certa desconfiança pela História e Crítica Literária. Talvez esse precon-
ceito em relação às cartas ocorra pelo fato de que:

[...] no interior de uma cultura falocêntrica a escrita epistolar foi considera-


da pelos críticos literários uma literatura menor. Por sua vez historiadores
entenderam por longos anos as cartas pessoais como uma fonte de pesquisa
inapropriada ao conhecimento histórico (LONTA, 2011, p. 91).

A partir da década de 1980, a crescente publicação de coletâneas de cartas


anotadas e comentadas se destaca como um fenômeno editorial. Não tardou para
que historiadores e críticos literários adotassem uma nova perspectiva de análise
e leitura dos textos epistolares. Essa mudança levou à revalorização do indivíduo,
abrindo um importante espaço para os escritos biográficos e autobiográficos.
De fato, os escritos autobiográficos constituem uma seara de possibilidades
para o estudioso da Literatura. Eles resultam de atividades solitárias de introspec-
ção, o que é chamado de escrita de si, na primeira pessoa, em que o indivíduo as-
sume postura reflexiva em relação à sua história e ao mundo que o circunda, além
de simultaneamente falar de si e se entregar, de forma sincera ou dissimulada, ao
olhar do outro.

131
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Ao analisar as possíveis confluências entre a carta e o diário ao longo do


século XIX, Brigitte Diaz (2014, p. 239) faz importantes considerações acerca da
escrita de si presente no intercâmbio de cartas e que, de algum modo, nos ajuda a
entender a dinâmica das relações instauradas nesse tipo de discurso:

A carta é uma abertura que damos ao outro sobre nós mesmos. Em outras
palavras, ela não é um simples reflexo de si que se oferece para captar o olhar
fascinado daquele que convocamos para este fim, mas, sim, o processo de
escrita pelo qual o sujeito se produz, registrando a presença e o peso de ou-
trem na constituição de sua identidade. A imagem por demais estática do
espelho corre o risco, portanto, de traduzir de forma muito aproximativa a
relação complexa de figuração de si que se instaura na carta e que é, antes,
uma tentativa de inteligibilidade de si do que a simples captação especular.
Distanciada de seu uso primeiro – a conversa com o ausente, a carta convida
a uma pedagogia de si.

O desenvolvimento do gênero autobiográfico remonta ao século XIX, mo-


mento em que preenchia funções bem definidas com a educação do eu ou a fixa-
ção de normas de convivência em determinados meios sociais, além de satisfazer à
busca de intimidade e privacidade que acompanhou a implantação do pensamento
burguês no Ocidente.
Diante disso, Malatian (2009, p.203) discorre que a valorização da experiên-
cia individual pela historiografia tem feito os pesquisadores se interessarem pelas
cartas como objeto de investigação, sem considerá-las apenas como fonte de infor-
mações. Ainda conforme a estudiosa, “[...] as múltiplas possibilidades de sua abor-
dagem e utilização, seja como fonte, seja como objeto, inevitavelmente encontrarão
no caminho as especificidades do gênero epistolar” (ibidem, p. 203).
No campo dos estudos literários, o pesquisador da epistolografia tem, diante
de si, um vasto terreno a ser explorado. No ensaio “Narrador, registro e arquivo”,
Malatian (2009) assevera que a correspondência comporta troca de ideias e elabo-
ração de projetos, além de selar pactos, expor polêmicas e fixar rupturas. Por meio
das missivas, o estudioso pode detectar intrincadas redes de relações sociais que
reúnem seus atores.

132
Estudos Literários

No caso específico de intelectuais, esse diálogo epistolar é particularmente im-


portante, pois envolve a rede profissional, em que há trocas de livros e opiniões acer-
ca de determinados temas e sentimentos diversos, firmando-se estratégias de atuação
entre os pares. Por essa perspectiva, a carta se torna uma importante fonte de pes-
quisa para compreender a circulação das ideias e dos homens nos espaços literários.
De acordo com Moraes (2007, p. 30), a análise das correspondências de escri-
tores, músicos, artistas plásticos e intelectuais de diversos campos do conhecimento
pode ser realizada por três perspectivas de estudo: “[...] recuperar na carta a expres-
são testemunhal que define um perfil biográfico”, o que nos permite apreender que
as “[...] confidências e impressões espalhadas pela correspondência de um artista,
contam a trajetória de uma vida, delineando uma psicologia singular que ajudam a
compreender os meandros da criação literária”; fornecer dados para o pesquisador
“[...] apreender a movimentação nos bastidores da vida artística de um determina-
do período”, uma vez que “[...] as estratégias de divulgação de um projeto estético,
as dissenções nos grupos e os comentários acerca da produção contemporânea aos
diálogos contribuem para que se possa compreender que a cena artística tem raízes
profundas nos bastidores, onde, muitas vezes, situam-se as linhas de força do movi-
mento”; e ver o gênero epistolar como um “[...] arquivo de criação, espaço onde se
encontram fixadas a gênese e as diversas etapas de elaboração de uma obra artística,
desde o embrião do projeto até o debate sobre a recepção crítica favorecendo sua
eventual reelaboração”.
Neste artigo, procura-se positivar o estudo das correspondências trocadas
entre escritores e intelectuais, com o intuito de investigar seu processo criativo e
sua trajetória ficcional. Paralelamente a tal objetivo, tenciona-se problematizar em
que medida o diálogo epistolar, rico em opiniões e sugestões, influenciou ou não a
criação e a gênese de suas obras.
A partir de tais considerações, realizaremos um novo recorte no conjunto de
missivas trocadas entre Clarice Lispector e o escritor Fernando Sabino, especifica-
mente uma carta datada de 1956, na qual os autores abordam impressões sobre a
escrita do romance “A maçã no escuro”. Esse instigante diálogo epistolar descortina
para o leitor e a crítica mais do que um relato de experiências pessoais – as cartas
constituem, de fato, um espaçoprivilegiado de reflexão sobre a literatura e seu pro-
cesso de criação.

133
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Cartas de Clarice para Fernando: Impressões acerca da escrita de “A


maçã no escuro”5
Em “O pacto autobiográfico”, Philipe Lejeune (2008, p. 43), ao pensar as
questões do público e do privado que giram em torno das correspondências, faz a
seguinte indagação: “A quem pertence uma carta?”. Para responder à pergunta feita
pelo estudioso da epistolografia, Vasconcellos (2008) afirma que a missiva enviada
pertence ao portador final, ou seja, ao destinatário, cabendo a ele decidir o melhor
destino para o documento – ler e destruir ou preservá-lo, deixando-o para a posteri-
dade, delegando aos amigos ou herdeiros a defesa da reputação de quem o escreveu.
Ainda segundo a autora, a carta é um “[...] texto que não deve ser publicado, mas
nem sempre se respeita esse estatuto, porque, muitas vezes, é um documento re-
pleto de informações históricas, biográficas, literárias e artísticas” (ibidem, p. 381).
Uma das maiores dificuldades enfrentadas pelos pesquisadores dos textos
autobiográficos, especificamente as cartas, está no acesso aos originais. A família,
na maioria dos casos, é a guardiã desse espólio, não medindo esforços para dificul-
tar o acesso a ele. Contudo, há casos em que o estudioso, com um pouco de sorte
e paciência, terá livre ou parcial acesso aos preciosos acervos. A esse respeito, Pro-
chasson (1998, p. 109) chama a atenção para o cuidado que se deve ter ao utilizar as
cartas como fontes de pesquisa:

Outras vezes, o historiador consegue a abertura parcial e controlada de um


fundo e os papéis são trazidos com prudência, a conta gotas. As informações
íntimas são ocultadas. O arquivo privado perde sua riqueza: tende a se trans-
formar em arquivo público, revelando apenas o mais banal, o mais conve-
niente ou o mais desculpável. Ele deve sustentar a mitologia que a família está
encarregada de proteger. Tanto o historiador como a História que pretende
escrever ficam sob vigilância.

5  Em “A maçã no escuro”, romance de Clarice Lispector publicado em 1961, o narrador onisciente conta o
percurso de Martim que, para se livrar das consequências de um crime supostamente cometido, procura for-
jar um projeto de reinvenção da linguagem convencional. A fuga da personagem, logo após o ato criminoso,
desencadeia um processo de ruptura com o conjunto de elementos e relações que formavam seu mundo até
então. Nesse sentido, a linguagem desempenha um importante papel: convencido de que a linguagem conven-
cional tornava falsos os fenômenos e as coisas, Martim passa a rejeitá-la.

134
Estudos Literários

As mesmas advertências feitas aos historiadores podem ser aplicadas aos es-
tudiosos da Literatura que buscam, nos textos epistolares, respostas acerca da vida
e obra do autor. Existe, na maioria dos acervos disponíveis, o que Malatian (2011,
p. 202) chamou de “Memória consciente” ou “desejo de controle da memória”, de
preservação da imagem pública, e “a manutenção de segredos constitui, com fre-
quência, obstáculos a serem superados na busca das fontes epistolares e se com-
pletam com desejos, explícitos ou não, de exaltação memorialística por parte dos
detentores do acervo”. Assim, é preciso pensar em um ato de memória consciente e
questionar uma possível interferência sobre a espontaneidade do discurso epistolar.
Desde que foram publicadas, as correspondências trocadas entre Clarice Lis-
pector e diversos autores da Literatura se tornaram documentos capazes de elucidar
ou fornecer, aos leitores e estudiosos, pistas do processo criativo da autora de “A
paixão segundo GH”, de 1964. Em “Cartas perto do coração”, de 2001 e “Correspon-
dências”, de 2002 – coletâneas que reúnem parte desse acervo epistolográfico –, di-
versos temas se mesclam de maneira recorrente, como afetos, confissões, notícias da
vida social e política do país. Entretanto, essas temáticas quase sempre convergiam
para os meandros do processo de criação artística, residindo aí, provavelmente, o
valor das correspondências para os estudiosos da Literatura. Tal acervo epistolo-
gráfico expõe, ao grande público, nuances das reflexões de Clarice Lispector sobre
a criação de seus livros. Ademais, as cartas revelam uma autora sensível, atenta às
considerações feitas pelos companheiros de Letras.
Fernando Sabino e Lúcio Cardoso foram, sem dúvida, os destinatários mais
assíduos e amigos muito próximos. Porém, nomes como Carlos Drummond de
Andrade, Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto, Lêdo Ivo e Nélida Pinõn
compõem a vasta galeria de destinatários com quem Clarice se mantinha infor-
mada sobre as novidades no campo da Literatura, trocando impressões acerca da
composição de seus livros.
Ao acompanhar o marido em missões diplomáticas por 15 anos, “[...] Clarice
Lispector morou em diversos países de diferentes continentes, culturas e identida-
des. Período rico em aprendizados, experiências plurais, imagens de si, do outro e
do mundo” (CUNHA, 2012, p. 45). Essa fase é descrita por Clarice como momentos
de prazer ou um angustiante exílio, afastando-a da família, dos amigos e de seu
público leitor.

135
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Nesse contexto de clausura involuntária, as cartas têm a função de manter


os laços afetivos com pessoas queridas em sua cartografia geográfica e sentimental.
As missivas apontam também para a materialidade dos livros publicados, a crítica
complacente ou severa e os leitores que se dispuseram a decifrar, sob diversos pris-
mas, o mistério de seus livros.
Logo após publicar seu primeiro romance (“Perto do coração selvagem”),
Clarice se muda para Belém e posteriormente parte rumo à Europa, para acompa-
nhar o marido diplomata. Assim, todas as informações sobre a recepção e a crítica
do livro de estreia ficam sob responsabilidade de sua irmã, Tânia Kaufman, e dos
amigos escritores, dentre eles Lúcio Cardoso.
Em uma carta de 1944 endereçada a Lúcio, Clarice comenta o artigo6 escrito
pelo amigo e revela certo desânimo diante das duras críticas emitidas por Álvaro
Lins7 acerca do primeiro livro:

Lúcio, você diz no seu artigo que tem ouvido muitas objeções ao livro. Eu
estou longe, não sei de nada, mas imagino. Quais foram? É sempre curioso
ouvir. Imagine que depois que li o artigo de Álvaro Lins, muito surpreendida,
porque esperava que ele dissesse coisas piores, escrevi uma carta para ele,
afinal uma carta boba, dizendo que eu não tinha “adotado” Joyce ou Virgínia
Woolf, que na verdade lera a ambos depois de estar com o livro pronto. Você
lembra que eu dei o título datilografado (já pela terceira vez) para você e disse
que estava lendo o Retrato do Artista e que encontrara uma frase bonita? Foi
você que me sugeriu o título... (MONTERO, 2002, p. 44).

6  O artigo de Lúcio Cardoso se refere à obra “Perto do coração selvagem” e foi publicado no Diário Carioca
em 12 de março de 1944.
7  Em fevereiro de 1944, Álvaro Lins faz uma crítica negativa ao romance de estreia de Lispector, “Perto do
coração selvagem”, considerado por ele “uma experiência incompleta”. A argumentação “[...] funda-se num
conceito de gênero romance, distinto de poesia, romance que, como tal, não permite a invasão exagerada e
indiscriminada do lírico; funda-se em critérios de totalidade, que não aceitam uma obra fragmentária sem
unidade íntima, sem solução final, sem equilíbrio; por critérios de objetividade, que não permitem que uma
personalidade de autora se manifeste com tanta força no romance [...]. É também Álvaro Lins que toca num
ponto delicado e que atormentará Clarice Lispector: a questão da influência [...]. Considera o romance ‘ori-
ginal’ nas nossas letras, embora não o seja na literatura universal, reconhecendo que é a primeira experiência
definida que se faz no Brasil do moderno romance lírico, do romance que se acha dentro da tradição de um
Joyce ou de uma Virgínia Woolf ” (GOTLIB, 1995, p. 1995).

136
Estudos Literários

De fato, o trecho da carta encaminhada ao amigo Lúcio Cardoso revela in-


formações que podem, de algum modo, elucidar questões instigantes para o leitor e
a crítica que busca compreender a trajetória ficcional de Lispector. Fica evidente a
preocupação da autora com a recepção crítica de sua obra, a tal ponto de lhe causar
certo abatimento, colocando em xeque o próprio talento criativo.
Além de Lúcio Cardoso, Clarice mantém intensa troca de correspondências
com Fernando Sabino. O autor de “O encontro marcado”, apesar de ser, assim como
a referida escritora, um escritor iniciante, se torna uma espécie de “tutor”, contri-
buindo não apenas com sugestões acerca dos textos de Lispector, como também
sendo um importante elo entre Clarice e possíveis editores de seus romances.
Nesses termos, a confiança entre os escritores chega ao ponto de Fernando
Sabino tecer comentários desfavoráveis à estrutura de alguns romances de Lispec-
tor. A autora aceita com humildade as críticas do amigo, tendo que revisar mais de
85 páginas do romance “A maçã no escuro”. Em carta de 25 de outubro de 1956,
período em que Clarice residia em Washington, é possível avaliar o quanto ela con-
siderava as observações feitas por Sabino acerca da escrita do referido livro:

Washington, 25 de outubro de 1956, quinta-feira

Fernando,

Eu ia responder logo que recebi sua carta. Mas me deu uma crise de de-
sânimo em relação ao livro, que se tornou geral, então não quis escrever en-
quanto não passasse – sabendo que, com a graça de Deus, ou o desânimo
passaria ou eu passaria por cima dele.

Passei por cima dele. E embora sem crença, comecei a revê-lo. Só que tem
sido lentamente: tenho tido pouco tempo. Não sei como você teve paciência
com ele. Estou com pouca, ele é descozido, e tão mal escrito que muitas vezes
não dá jeito de consertar. Será que você irá ter paciência quando eu mandar
as correções citando página e linha? (As páginas com muita correção eu co-
pio inteiras, para serem substituídas). Me sinto encabulada até de ter pedido
a você para ler, mas enfim...

137
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Recebi carta do Ênio Silveira8, há algum tempo, dizendo que falará do


livro por carta ou pessoalmente (?!). Minha impressão é que, depois de ler,
ele não vai querer publicar. Se for o caso, você podia facilitar-lhe a negativa
para mim, dizendo que ele não precisa me escrever, que bastará dar o recado
por você.

O mesmo, aliás, podia ser feito com Simeão Leal9. Parece-me que ele não
quer publicar e, como é mais fácil adiar “não”, ele adia. Nesse caso, que é que
você acha de eu escrever para ele, dizendo que não precisa mais publicar?

Assim ele ficaria desobrigado até de adiar...

Clarice
(SABINO, 2001, p. 147-148).

A transparência da amizade sincera estabelece um pacto de confiança entre


os escritores. Clarice delega ao amigo a difícil tarefa de revisar os manuscritos de “A
maçã no escuro” e ainda solicita a Fernando Sabino que interfira junto aos possíveis
editores de suas obras. Entretanto, Viotti (2007, p. 25) chama a atenção para uma
característica peculiar do discurso epistolar e que certamente deve ser considerada
pelo estudioso que pretende utilizar as correspondências como fonte de pesquisa:

Esse trabalho de leitura não pode ser ingênuo, pois o discurso das cartas nem
sempre pode ser tomado como verdade. Ele é construído em sujeição a deter-
minadas contingências, que às vezes exigem omissões e exageros indispensá-
veis ao missivista para alcançar os objetivos que almeja.

Ainda segundo o referido autor, assim como qualquer texto biográfico, a car-
ta não está livre do que se chama de “encenação da persona”. Por outro lado, Fou-
cault (2004, p. 156), aludindo à carta 83 enviada por Sêneca a Lucílio, destaca que:

8  Ênio Silveira (18 de novembro de 1925 – 11 de janeiro de 1996) foi um editor brasileiro e militante do
Partido Comunista Brasileiro. Dirigiu por muitos anos a editora Civilização Brasileira. Durante a ditadura
militar, editou numerosas publicações de oposição ao regime.
9  José Simeão Leal foi administrador, diplomata, crítico de arte, jornalista, médico e artista plástico. Em
1946, assumiu o cargo de diretor do Serviço de Documentação, do então Ministério de Educação e Saúde, no
período de 1947 a 1955. À frente desse órgão, tornou-se um incentivador e disseminador da cultura brasileira,
sendo responsável pelo lançamento e pela divulgação de vários talentos como o poeta Thiago de Mello, a
escritora Clarice Lispector e o cenógrafo Tomás Santa Rosa.

138
Estudos Literários

Escrever é, pois, ‘mostrar-se’, dar-se a ver, fazer aparecer o rosto junto ao ou-
tro. E deve-se entender por tal que a carta é simultaneamente um olhar que
se volve para o destinatário (por meio da missiva que recebe, ele sente-se
olhado) e uma maneira de o remetente se oferecer ao seu olhar pelo que de si
mesmo lhe diz. De certo modo, a carta proporciona um face a face.

Portanto, ao analisar a correspondência como fonte de pesquisa, o crítico


levará em conta seu caráter altamente subjetivo e deverá buscar elementos que vão
além da sinceridade do escritor e da veracidade dos fatos. Logo, é necessário “[...]
buscar, nesses documentos, a expressão e a contenção do eu, em seus diversos pa-
péis sociais, em termos de sentimentos, vivências e, principalmente práticas cultu-
rais” (MALATIAN, 2009, p. 204).
As sugestões de Sabino transcendem os aspectos semânticos. Em dezenas de
cartas, o autor se dispõe a revisar os manuscritos da obra sugerindo possíveis títulos,
mudanças de expressões, termos que não lhe soavam bem e modificações estrutu-
rais. Tais alterações podem ser verificadas em carta datada de novembro de 1956, em
que se observam as sugestões feitas por ele e as alternativas propostas por Clarice:

Washington, 12 de novembro de 1956, segunda-feira

Fernando,

Aí vão as correções. Espero que fazê-las não lhe dê muito trabalho ou


amolação. As páginas que tinham correções mais complicadas ou mais tra-
balhadas, eu as copiei de novo: é fácil substituí-las, basta despregar a capa.

Não recebi nenhuma carta de Ênio Silveira, calculo que ele não queira
publicar. Você podia dizer a ele para me escrever? Mesmo que seja para dizer
que não quer.

Rubem está em Washington desde sábado, temos estado constantemente


juntos, ele está ótimo. A visita dele é uma das coisas boas de ultimamente. Aqui
está começando o frio, o que sem se querer, muda a vida da gente. Amanhã
vamos para Boston por dois dias, “a serviço”. Um dia desses, quando eu estiver
mais despreocupada, copio meus três contos e mando para você ler. Não são
bons, são gênero meio engraçadinho, mesmo um que não me parece engraçado.

139
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Fernando, até breve. Diga se as correções vão lhe dar trabalho. Nesse caso,
arranjo outro jeito. Um abraço grande de sua amiga.

Clarice
(SABINO, 2001, p.150).

Vale ressaltar que as notas e a leitura dos originais10 foram remetidas em


setembro de 1956:
Título – Acho bom, mas pouco eufônico. Soou mal a todo mundo que falei,
por causa de “aveia”. Qualquer dos títulos das três partes, para o meu gosto
pessoal, é melhor. “COMO SE FAZ UM HOMEM”, “O NASCIMENTO DO
HERÓI”, “A MAÇÃ NO ESCURO”. Com um pouco de esforço se encontraria
no próprio livro título melhor que o exprimisse. Mas, como disse, questão
de gosto.

- Ainda não decidi sobre o título... Me disseram que cortasse o “A”, ficaria “Veia
no pulso”. Mas não só acho que muda o sentido, como fica muito lítero-musical:
estou enjoada de veias e pulsos. Tive algumas ideias, todas meio ruins. Como:
“O aprendizado”. Ou “A História de Martin”. Vou pensar ainda. Se você tiver
alguma iluminação, me ilumine, estou de luz apagada.

Página 1 a 3 (p. 13, linha 1) – Achei, em duas leituras, dispensável todo “pre-
fácio”. Meio precioso também. Repete coisas que o próprio livro já diz, as
que não diz poderiam ser aproveitadas no texto. Para mim, o livro começa
realmente em: “Começa (esta história) com uma noite...”

- Cortado “prefácio”. Substituída a página 3 (está junto das copiadas) [...] (SA-
BINO, 2001, p. 150).

Transcrevemos aqui apenas um fragmento da referida correspondência que


se estende por impressionantes 30 páginas, possibilitando ao leitor acompanhar,

10  Sabino (2001, p. 150), em nota, esclarece que “[...] caso o leitor de Clarice Lispector se interesse em con-
ferir, tanto as anotações aqui relacionadas, com menção de página dos originais, como as ementas da autora
em resposta, elas se fazem acompanhar de indicação da página e linha correspondente na atual edição do ro-
mance ‘A maçã no escuro’, Editora Rocco, 1998. Quase todas as sugestões foram aceitas. As não mencionadas
diretamente por ela levaram-na a recompor a página inteira: das quatrocentas e poucas dos originais, enviou-
-me em substituição nada menos que oitenta e três, completamente reescritas”.

140
Estudos Literários

com riqueza de detalhes, as sugestões de mudanças sintáticas e semânticas propos-


tas por Sabino e as alternativas encontradas por Clarice para a tessitura do romance
“A maçã no escuro”.
A aceitação quase total das sugestões evidencia a grande influência de Sabi-
no, que confessa constrangimento diante da confiança depositada na avaliação dele:
“[...] fiquei encabulado de ver que você seguiu ao pé da letra demais minhas suges-
tões, fiquei com medo de ter exagerado, pensando até em voltar atrás em alguns
casos” (SABINO, 2001, p. 185).
Seria possível elencar inúmeros exemplos de correspondências cujo tema
central é a troca de ideias, sugestões e críticas ao processo criativo dos autores.
Todavia, por se exigir concisão no gênero artigo, iremos nos ater apenas a alguns
trechos, a fim de ilustrar as nuances do diálogo epistolar mantido entre Clarice Lis-
pector e Fernando Sabino. À medida que a pesquisa for aprofundada se pretende,
na estratégia de leitura, ir além da mera busca de fragmentos que justifiquem as
análises e reflexões. Coaduna-se, pois, com importantes questões levantadas por
Viotti (2007, p. 21):

Em ensaios de crítica literária a carta costuma surgir mais frequentemente


como um complemento, funcionando muitas vezes como a voz do escritor
capaz de corroborar a tese que o crítico apresenta, na função de contracan-
to, por assim dizer, pouco diferindo, por exemplo, da entrevista. No estudo
epistolográfico os papéis se invertem. A carta é o objeto de estudo, é preciso
adotar estratégias distintas, e tomar seu enunciado como ponto de partida,
ao invés de utilizá-lo como meio para atingir finalidades normalmente pré-
-definidas a partir do texto ficcional. Esse ponto de partida, entretanto, pre-
cisa ser significativo a ponto de sugerir hipóteses de reflexão que encontrem
eco no conjunto textual [...].

No âmbito da Teoria e da Historiografia Literária, as cartas sugerem possíveis


leituras e análises da vida e da obra do autor. A delimitação de escopo não impedirá
que o pesquisador da epistolografia recorra a outras fontes de investigação, levando
sempre em consideração os elementos fornecidos pelo texto literário em si, além de
conferir especial atenção às obras comentadas por Clarice em suas correspondências.

141
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Nesse sentido, as cartas comparecem neste estudo como mais um recurso à


disposição do leitor e do crítico para compreender o mistério da criação e a gênese
da obra de Lispector. Diante de tal disponibilidade, não se pretende submeter as
obras a uma análise impositiva e restrita ao universo das correspondências.

Considerações finais
Ao analisar as missivas trocadas entre Clarice Lispector e os destinatários
como um “ponto irradiador” para possíveis leituras e reflexões, ou ainda “[...] consi-
derando as cartas como deflagradoras de informações” (GUIMARÃES, 2004, p. 9),
o estudo que ora se apresenta visou compreender o processo criativo e a trajetória
ficcional da autora de “Água viva”, assim como as possíveis influências que os com-
panheiros de Letras exerceram na gênese de seus livros.
As cartas de Lispector descortinam mais do que um relato de experiências
pessoais; constituem um locus privilegiado de reflexão sobre a literatura e o proces-
so de criação. Tais correspondências revelam uma escritora consciente das ques-
tões que a crítica levantava a respeito do fenômeno literário e demonstram que seu
pensamento sobre a criação artística se encontrava em consonância com grandes
autores do século XX. Portanto, para além do valor histórico, é preciso reconhecer
as cartas de Clarice Lispector e de outros autores de nossa literatura como suporte
para discussão e reflexão sobre o fazer literário, em que sobressai o pensamento
artístico do escritor.

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Estudos Literários

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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

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Pós-graduação em Estudos Literários da Universidade Federal de Minas Gerais,
Belo Horizonte, 2007.

144
Estudos Literários

Linguagem e
multiculturalismo em obras
literárias O Cortiço - Aluísio
de Azevedo, e Sertão sem fim
- Bariani Ortêncio 1

Daiane Dizielle Meireles Soares2


Idelvone Mendes Ferreira3

Introdução
Buscando identificar os diferentes contextos regionais, ao analisar as obras O
Cortiço, de Aluísio de Azevedo, 21ª edição, ano 1974, e Sertão sem fim, de Bariani
Ortêncio, 2ª edição, ano 2000, respectivamente escritores naturalista e regionalista
que retrataram aspectos de paisagens, segundo os seus contextos vividos, propor-
cionando considerável mostra de como a percepção da paisagem, da linguagem e
multiculturalismo pode ser vista e interpretada sob vários aspectos, de acordo com
o método de análise utilizado por quem as observam. O multiculturalismo é uma
expressão que designa “[...] a coexistência de formas culturais ou de grupos ca-
racterizados por culturas diferentes no seio das sociedades modernas.” (SANTOS;
NUNES. 2 003, p. 26).
Assim, nessa acepção perceptiva, as duas obras contextualizam cenários di-
vergentes, em O Cortiço, prevalece o espaço urbano do final do Século XIX (1890),

1  Obras literárias do contexto brasileiro em cenários distintos, analisadas para uso comparativo quanto a
linguagem e multiculturalismo, segundo o contexto da percepção geográfica.
2  PPGG/UFG/RC. Vinculada ao NEPSA/CNPq-UFG, [email protected]
3  PPGG/UFG/RC. Coordenador do NEPSA/CNPq-UFG, [email protected]

145
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

e em Sertão sem fim, prevalece o cenário rural, mais especificamente de um sertão


vinculado a região do Cerrado e suas nuances regionais dos anos 1960.
A análise das duas obras, neste trabalho, é uma tentativa de nortear aqueles
que desejam compreender o caminho da percepção através da linguagem e multi-
culturalismo regionais. De ambas foram retiradas características que, em confor-
midade com a visão dos sujeitos, num engendramento de percepções empíricas e
teóricas, poderão embasar e/ou perceber a descrição da cultura das relações sociais
e ambientais encenadas em cada obra.
Os resultados apresentados são de caráter subjetivo, uma vez que, ao perce-
ber a paisagem, a linguagem e multiculturalismo os pontos de vistas são pessoais e
dependem de variantes como escala, método de análise, experiências de vida, visão
empírica, entre outros aspectos vinculados ao complexo processo da percepção. As
amostras dos resultados obtidos e a interpretação das obras são resultantes dos res-
pectivos contextos analisados.

Paisagens geográficas em O Cortiço - contexto urbano


Para observar aspectos da linguagem, multiculturalismo e socioambientais,
foi imprescindível a observação da paisagem, regional e contextual, que é uma das
categorias de análise da Geografia, que proporcionou um estudo da base teórica e
a análise da linguagem das obras citadas, devem-se embasar tais fundamentações
através da abordagem a partir das experiências de vida dos autores e suas respecti-
vas formações culturais.
A sua obra O Cortiço, Aluísio de Azevedo descreve aspectos de uma paisa-
gem urbana em ascensão, denotando aspectos culturais, ambientais e socioeconô-
micos, que retratam aspectos de um período cultural brasileiro no final do sécu-
lo XIX, além do desenvolvimento das características espaciais do lugar em que é
ambientada a maior parte da história/narrativa, o próprio cortiço, também denota
o desenvolvimento comercial e os aspectos relacionados às transformações do ho-
mem no cenário natural através das suas forças de trabalho e relações sociais e seus
respectivos contextos vividos.
A paisagem também pode ser tudo que o observador visualiza num lance de
vista ou o “[...] conjunto de componentes naturais ou não de um espaço externo que

146
Estudos Literários

pode ser apreendido pelo olhar” (HOUAISS, 2001. p. 2105). A polissemia da paisa-
gem traz consigo muitas definições, dentre essas, como para Santos (2002, p. 66), “A
paisagem é o conjunto de formas que, num dado momento, exprimem as heranças
que representam as sucessivas reações localizadas entre homem e natureza”. O autor,
nesse contexto, agrega à paisagem ao fator da temporalidade na sua constituição.
As mudanças no cenário urbano, e o desenvolvimento deste, demonstram
as modificações na paisagem possibilitadas pelas ações do homem ao longo da sua
trajetória de civilização, desenvolvimento da força de trabalho e em relação aos as-
pectos ambientais e socioeconômicos. Na obra de Azevedo (edição de 1974) é pos-
sível perceber que a paisagem é produzida e reproduzida, através das ações que o
homem, consequenemente a sociedade humana, exerce sobre o território ocupado,
recriando paisagens sucessivas no tempo e espaço.
No cenário do desenvolvimento do cortiço, paisagem de vivência do perso-
nagem João Romão, percebe-se que os aspectos construtivos idealizados por ele fez
com que fossem construídas moradias de baixo valor socioeconômico, levando em
consideração a classe social daquele contexto, com isso, João Romão indiretamente
foi dando origem ao desenvolvimento comercial daquela região, e em suas estala-
gens, acolhendo uma vasta gama de trabalhadores/atores das indústrias e atividades
variadas de serviços daquele entorno e de lavadeiras que eram por ele alocadas.
Além disso, fatores relevantes e o uso de termos lingüísticos descritos no
decorrer da história evidenciam que a paisagem social e econômica daqueles que
ocupavam o espaço narrado eram, em sua maioria, imigrantes e pessoas de classe
econômica baixa, quase todos trabalhadores, num contexto social de exclusão.
Alguns aspectos, citados no decorrer da história narrada, são relevantes para
a percepção da paisagem como sendo uma periferia urbana em precárias condições
de subsistência. A narrativa e linguagem empregada também retratam aspectos dis-
criminatórios étnicos e sociais, como a violência, furtos, entre outros aspectos, pra-
ticados por João Romão que, em seu egoísmo, se rebelava em prol da conquista do
capital, escravidão, mais-valia e empoderamento da força de trabalho, entre outros
aspectos sociais e ambientais que alarmavam aquela população humana sofrida.
Com isso, é perceptível que, através da ação do homem e da sociedade sobre
o território, a paisagem vai sendo modificada para atender aos interesses locais,
“Levando em conta que cada ator social tem seu tempo próprio no espaço. Assim, a

147
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

paisagem é, por conseguinte, objeto, concreto, material, físico e efetivo e é percebida


através dos seus elementos pelos cinco sentidos, é sentida pelos homens afetiva-
mente e culturalmente” (BERINGUIER, 1991. p. 7).
Alguns dos personagens que chegaram a paisagem do cortiço, através dos
processos imigratórios, sentiam necessidade de se adequarem a nova dinâmica so-
cioespacial do lugar e algumas transformações se fizeram necessárias para a adapta-
ção dessas pessoas, como por exemplo, manter hábitos pertencentes as respectivas
culturas de origem, caracterizando elos de resistência social à paisagem vivida.
Os sentimentos de alguém que chega a um novo local de moradia/vivência
podem ser bom ou ruim, em relação ao espaço. Nesse contexto, destacam-se os
sentidos de Topofilia e Topofobia, como pode ser visto nas obras de dois autores:
“O amor pelo lugar fundante é concebido pelo geógrafo como a Topofilia: Os laços
afetivos dos seres humanos com o meio ambiente material.” (TUAN, 1980. p. 107).
“Já a Topofobia, em oposição, é definida como experiências de espaço, lugares e pai-
sagens que são de algum modo desagradáveis ou induzem a ansiedade e depressão.”
(RELPH, 1979. p. 20).
Em relação aos aspectos da Topofilia e Topofobia percebe-se que o perso-
nagem João Romão idealizou as modificações do seu espaço de vivência conforme
seus sonhos e objetivos. Nesse contexto, exemplifica-se o que se denomina por To-
pofilia – o apego ao lugar, enquanto que o personagem Miranda, vizinho de João
Romão, de quem aquele tinha muita inveja pelas prosperidades deste, foi então de-
senvolvendo sintomas de Topofobia, uma vez que Miranda desejava ter parte do
espaço ocupado por João Romão e seu cortiço. A inveja e as desavenças entre os dois
geraram em Miranda sintomas de Topofobia, como mostra Azevedo (1974):

E ao lado o Miranda assustava-se, inquieto com aquela exuberância brutal


de vida, aterrado diante daquela floresta implacável que lhe crescia junto da
casa, por debaixo das janelas, e cujas raízes piores e mais grossas do que ser-
pentes miravam por toda parte, ameaçando rebentar o chão em torno dela,
rachando o solo e abalando tudo. (AZEVEDO, 1974. p. 23).

Os sentidos e a história narrada podem levar o leitor a vários tipos de per-


cepção de uma paisagem contextualizada na obra, sendo que essas variantes podem

148
Estudos Literários

estar acondicionadas a vários fatores como, por exemplo, escala de observação, em-
pirismo, método de análise, objetivos e formação cultural do sujeito/leitor.
Aprofundando ainda mais na obra O Cortiço, pode-ser perceber que as casas
do cortiço foram construídas aos poucos, de acordo com as condições financeiras de
João Romão. Após a construção, em uma lógica de organização do espaço, as casas
foram numeradas, o que remete a uma forma de organização socioespacial e tam-
bém de controle econômico, pois através da numeração dos espaços físicos, João
Romão poderia controlar os pagamentos de aluguel de seus locatários.
Outro aspecto relevante na obra é a linguagem empregada, conforme o tom
coloquial da época, podendo ser evidenciado o tempo espacial dos fatos, no final
do século XIX, em um ambiente urbano formado por diferentes personagens de
origens diversas e seus diferentes costumes.
Outra forma de subsistência e contextualização do espaço é percebida através
da indicação de uma pedreira próxima a um rio, retratando os agravantes da época
para o ambiente e a saúde dos trabalhadores, que não tinham nenhum tipo de apoio
de máquinas, equipamentos e técnicas eficientes para a execução dos trabalhos.
A mina, como é referida na obra, é de exploração de granito (um tipo de
rocha), o que leva a concluir que o espaço onde se passa a história possui solo com
predominância de rochas ígneas intrusivas, que se formaram quando o magma so-
lidificado em grande profundidade, devido ao lento resfriamento, fez com que os
cristais ficassem grandes, por terem tido tempo para se desenvolver, sendo o granito
é um exemplo de rocha intrusiva.
Outra matéria-prima descrita na obra é o Ferro, usado nas oficinas de ferrei-
ros para a confecção de equipamentos para a extração do granito e transformação
desse em matéria-prima diversas, principalmente para a construção civil. Além de
possibilitar a percepção dos aspectos da paisagem física do lugar em questão, a obra
coloca à disposição do leitor fatores que caracterizam ainda mais os atores/perso-
nagens da obra, tais como a indicação de signos e códigos, como as religiosidades,
as superstições, os hábitos e costumes e as migrações evidenciadas na época, o que
imprime à obra e ao lugar uma pluralidade de culturas em um mesmo espaço.
É perceptível, no decorrer da narrativa, casos de Topofobia por parte dos
personagens, pelo fato de alguns lugares terem passado por mudanças. Exemplo

149
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

disso é quando o personagem Jerônimo e sua esposa abdicaram da boa moradia


e regalias do antigo emprego em decorrência da morte do antigo patrão e foram
tentar a vida num novo trabalho, na mina de João Romão e numa nova moradia, no
Cortiço, passando a compor essa complexa paisagem.
Tais observações se deram com base na percepção de um paisagem descrita
na narrativa naturalista de Azevedo (nos idos de 1890), num contexto temporo-es-
pacial especifico, no qual diferentes atores lutavam para sobreviver socialmente num
ambiente adverso e hostil para a grande maioria das pessoas nesse teatro da vida.

Paisagens geográficas em Sertão sem fim - contexto rural


Para análise da obra Sertão sem fim, de Bariani Ortêncio (1960), narrati-
va naturalista e de âmbito regionalista, é necessário comentar alguns aspectos de
percepção das paisagens citadas. Já na primeira página são perceptíveis relatos im-
portantes que contextualizam aspectos da paisagem e da culinária regional, como a
indicação do pequi nas refeições e a caracterização deste como um fruto típico do
Cerrado Brasileiro. As descrições das vestimentas dos atores da história/paisagem
denotam símbolos culturais de quem vive na zona rural, como as roupas adequadas
para montar cavalos e para a lida na roça: “[...] sua camisa xadrez cheia de bolsos e
botões de madrepérola; chapéu preto de abas largas, com filêtes brancos; barba bem
feita, bigode bem aparado e calça tipo colote, franzida, dentro das botas gaúchas:
um verdadeiro ‘cow-boy’ cá das nossas bandas” (ORTÊNCIO, 2000. p. 16-17).
Outro aspecto relevante para a identificação da paisagem e a descrição do ce-
nário rural é a caracterização dos espaços narrados na história, fazendas, depressão
de terreno próximo a mina d’água, entre outras caracterizações. Alguns aspectos
contribuem para contextualizar o tradicionalismo do urbano rural, onde as pessoas
participam mais do cotidiano umas das outras, seja pela troca de produtos ou pela
participação nos acontecimentos financeiros e sociais do lugar. Como por exemplo,
o fato de todos saberem das posses de alguns personagens, ou as moças que ficavam
mal faladas na cidadezinha, também os aspectos da tradição local, como as danças
peculiares da região, dentre as quais a catira e rezas.
Para um leitor, que faz parte desse cenário regional narrado, há uma espécie
de familiarização com a obra, talvez uma sensação topofílica ao lugar. O cenário

150
Estudos Literários

narrado pode muito bem ser o interior de Goiás ou de Minas Gerais, por exemplo,
pela características da cultura, tradições, superstições e da própria linguagem utili-
zada por alguns personagens, como os diversos “uais” pronunciados por Tianinha,
expressão tipicamente mineira. Contudo, quando Tianinha ameaçou contar ao ma-
rido à proposta que Elisbão fizera, tentando convencê-la de seus desejos, fazendo
promessa de ir a Trindade4, percebe-se que os fatos evidenciados estão mais locali-
zados no Estado de Goiás.
É interessante ressaltar que os aspectos evidenciados na paisagem, por vezes,
podem ser similares a mais de uma região geográfica, e que símbolos sociais, am-
bientais e culturais, como a descrição de alguns quitutes5 tradicionais da paisagem
descrita, podem contribuir para a percepção geográfica da paisagem narrada. Nes-
te caso, se tivesse por base apenas a linguagem coloquial e alguns aspectos físicos
evidenciados seriam possíveis confundir a localização, podendo ser em Minas ou
Goiás, dois Estados de culturas e aspectos físicos similares; mas quando pode ser
percebida, no texto, a descrição de locais geográficos específicos fica evidente que a
narração se passa em Goiás, pois além de Trindade, há ainda referência à cidade de
Bela Vista, que fica localizada a 45 quilômetros da capital do Estado, Goiânia.
Na narrativa de Sertão sem fim, diferentemente de O Cortiço, a identificação
da paisagem se dá de forma mais clara e contundente para leitor que anseia por
situar-se no espaço. Além dos fatores preponderantes para a descoberta da paisa-
gem encenada, o Autor aprofunda-se em descrever as fazendas, pomares, terrenos,
criação de gado, fruteiras e demais aspectos físicos e geoambientais que desvendam
a paisagem rural. Aparecem no texto também elementos das condições sanitárias,
como o uso da água, a produção familiar, como por exemplo, a predominância da
criação de porcos e de uma produção básica de subsistência. São também descritos
os hábitos interioranos e fatos das relações sociais e culturais da época, até mesmos
os conflitos sociais em torno de crenças e tradicionalismos e a descrição de entre-
veros familiares.

4  Município Goiano onde se localiza o Santuário do Divino Pai Eterno, sendo realizada a tradicional festa
religiosa em seu louvor, no mês de julho.
5  Tipos de comidas regionais, como o arroz com pequi.

151
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Um caso curioso é o do personagem Izidoro, que mesmo cheio de plurali-


dades de conhecimentos, deixou-se enfeitiçar pela promessa de riqueza propiciada
pelos garimpos em Goiânia, no ano de 1938, a busca incessante por pedras precio-
sas levava homens a exploração nos garimpos sem nenhuma condição de trabalho
favorável, consequentemente de preservação da saúde.
O texto cita vários fatos sobre a ganância no entorno dos garimpos, deixando
claro que se tratava de um dos vícios capitais que alucinavam os atores sociais na
época e, com isso, o desenvolvimento de diversas doenças provenientes das ativida-
des, acidentes do trabalho e violências diversas, onde muitos homens eram atacados
por balas e ponta de faca. Além disso, nas várias paisagens descritas o Autor aborda
sobre aspectos relacionados a religiosidade, crenças, superstições populares e a in-
tegração do real ao imaginário, configurando um intricado sincronismo religioso.
Todas essas descrições da paisagem física, da relação sociedade e natureza, e
os símbolos da paisagem narrada no decorrer do texto, foram preponderantes para
a percepção quanto a localização geográfica descrita, ou seja, o Sertão do Estado de
Goiás e suas ruralidades típicas de um contexto regional.

Reflexões perceptivas
Por intermédio das transformações realizadas nos respectivos espaços pelos
sujeitos/atores, as paisagens vão sendo modificadas de forma a atender as necessi-
dades humanas, sendo que as decisões oriundas desses sujeitos, e as conseqüentes
transformações socioambientais no espaço, são importantes variáveis e podem in-
terferir nas decisões, entre elas, em suas decisões morais, como no exemplo, as de
João Romão. Segundo a teoria de Maslow (1943), como mostra a Figura 1. Nesse
contexto, a hierarquia das necessidades humanas, iniciadas pelas Fisiológicas e su-
cessivamente até a sua realização pessoal, os sintomas de Topofobia e Topofilia to-
mam repercussão, em conformidade com a satisfação dos sujeitos e a ocupação do
espaço. Essa teoria propõe necessidades na seguinte ordem de prioridade.

152
Estudos Literários

Figura 1 - Pirâmide da Teoria das Necessidades de Maslow. Fonte: CHIAVENATO (2005, p. 249).

Como é analisado nos estudos de Maslow (1943), as necessidades dos ato-


res da sociedade humana podem ser Fisiológicas, sendo estas de alimento, roupa,
repouso e habitação; ainda Segurança, onde inclui a proteção contra danos físicos,
emocionais, ameaças externas e ambientais; Sociais, que incluem afeição, aceitação,
amizade e sensação de pertencer a um grupo e a vida associativa do indivíduo junto
com outras pessoas; Estima, que relaciona fatores internos de estima, como respeito
próprio, realização e autonomia; e fatores externos de estima, como status, reconhe-
cimento e atenção; e, por fim, Autorrealização, onde há intenção de tornar-se tudo
aquilo que a pessoa é capaz de ser; inclui crescimento, autodesenvolvimento e al-
cance do próprio potencial e se desenvolver continuamente como criatura humana
ao longo da vida. (CHIAVENATO, 2005. p. 249.
Assim, os atores, que podem ser nativos ou vindos de outras etnias/paisa-
gens, transferem culturas e tradições para o contexto da paisagem que ocupam e
vivenciam, bem como fatores físicos e sociais do espaço ocupado podem influenciar
os atores a modificarem certos comportamentos culturais e sociais, para se adequa-

153
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

rem ao novo espaço, diferente daquele de origem, culminando no ciclo perceptivo


da paisagem e conseqüente possível aculturação. Zaoual (2003), acevera sobre isso:

Nosso mundo contém, em realidade, vários mundos. Quem poderá ignorar


que o mundo é um grande mestiço, a não ser aquele que nunca saiu de seu lu-
gar, ainda que tenha viajado e visitado outras regiões? (ZAOUAL,2003, p. 61)

Além disso, a percepção dos tipos de linguagens empregadas e o reconheci-


mento das culturas diferentes, especificamente na narrativa de Sertão sem fim, dife-
rente de O Cortiço, sendo extraídas destas obras e de uma série de fatos narrados são
propulsores do reconhecimento das diversidades culturais citadas nas respectivas
obras e dos diferentes grupos de atores/sujeitos que nelas atuam, em seu contexto
urbano e/ou rural.

Considerações
O resultado mais contundente nessa análise é a diferenciação da linguagem e
multiculturalismo entre os aspectos urbanos e rurais, evidenciados pelas caracteri-
zações física e de signos, códigos culturais e sociais presentes nas obras pesquisadas.
“É sempre perigoso buscar reduzir a história a um esquema. Mas aqui a simplifica-
ção se impõe, com todos os seus riscos, para apontar o início de um processo e o seu
estágio atual” (SANTOS, 1994. p. 15).
Por meio das obras pesquisadas foi possível compreender que a paisagem
não é somente materializada nas modificações naturais e físicas dos ambientes, co-
mo também pode ser manifestada através do que pode-se chamar de signos, símbo-
los e/ou códigos ambientais, culturais e sociais. Essa representatividade dá-se prin-
cipalmente pelo povoamento do lugar em que, no tempo e no espaço, a paisagem
vai sendo transformada e percebida, e com isso originando identidades próprias ou
singulares, em conformidade com os traços daqueles que a ocupam, sendo possível
identificar a ação humana/cultural que a modifica.
Dessa forma, é possível concluir que a ocupação do espaço influencia na pai-
sagem e que esta pode possuir traços disseminados da cultura daqueles que há ha-
bitam. Embora seja aqui abordada a paisagem, essa é indissociável de outras catego-
rias de análise geográfica, como Território, Região, Espaço e Lugar, categorias essas

154
Estudos Literários

indissociáveis na Ciência Geográfica. Essa associação se dará sempre em conformi-


dade com a escala e objeto de estudo pré-definido, no caso das obras pesquisadas, a
região apresenta aspectos relevantes para a análise do recorte espacial da paisagem.
Nesse entendimento coaduna-se com Santos (1997), quando diz que a paisa-
gem deve ser entendida como sendo

Um conjunto de formas naturais e artificiais. Quanto mais complexa a vida


em sociedade, mais artificial tornam-se as paisagens. No entanto, para trans-
formar o natural em artificial, são necessários instrumentos de trabalhos
fixos além de possuir o domínio das técnicas, materializado na tecnologia.
(SANTOS, 1997. p. 134).

Nas duas obras trabalhadas, O Cortiço e Sertão sem fim, foi possível eviden-
ciar as relações sociais e ambientais dos atores que povoavam o lugar e que deram
vida aos símbolos sociais e culturais presentes nas respectivas paisagens, bem como
fatores ambientais, sociais, econômicos e de produção do trabalho, em seus respec-
tivos contextos de lugar e tempo, que contribuem para a transformação do aspecto
natural para o artificial, através do uso da força de trabalho, de técnicas e métodos
empregados para a exploração dos recursos naturais e transformação em matérias
-primas para o desenvolvimento do capital dos atores socias.
Contribuindo com esse debate, resgata-se as reflexões de Wagner e Mikesell
(2003, p. 36), quando afirmam que “A paisagem cultural é um produto concreto e
característico da interação implicada entre uma determinada comunidade humana,
abrangendo certas preferências e potenciais culturais, e um longo período de evolu-
ção cultural e de muitas gerações de esforço humano”.
Através das abordagens realizadas, ao longo do percurso deste estudo sobre
paisagem e sua percepção, é possível concluir que, para a análise da paisagem, a base
é a escolha do espaço e seu contexto temporal, este pertencente a uma região ou está
contido nela, e o espaço ocupado é moldado através do tempo pelos sujeitos que
nele atua e pela relação entre sociedade e natureza. Com isso vão sendo formadas
relações sociais, culturais e técnicas para a utilização dos recursos naturais, mate-
riais e sociais, disponíveis de acordo com as dinâmicas locais, para uma possível
viabilidade da produção de meios de subsistência dos atores envolvidos.

155
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Tomando como exemplo os respectivos contextos e paisagens das obras ana-


lisadas, percebe-se que o papel do homem é então preponderante para a descoberta
da paisagem, pois os símbolos sociais e culturais são determinantes para que a pai-
sagem encenada possa ser descrita e percebida, concluindo-se que o homem não é
indissociável da paisagem, mas sim que pode ser o ator preponderante para que ela
exista e se transforme.
As reflexões e extração de fatos e detalhes contidos nas obras também pos-
sibilitaram uma análise expressiva em torno da percepção da linguagem e do mul-
ticulturalismo e das identidades dos atores, diferenciando-se entre o urbano e o
rural, configurando suas diferenças e culturas expressas, reforçando ainda mais a
idéia que se tem da produção da cultura de símbolos, idéias, formas e valores que
conduzem crenças a hábitos, comportamentos esses que influenciam em ações e
as diferenças entre uma sociedade/grupo para outro nas diferentes e promissoras
paisagens vividas.

Referências
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BERINGUIER, C.; BERINGUER, P. Manieres paysageres une methode d’etude, des
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HOUAISS, A. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.
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_______. Sertão sem fim. 26. ed. Rio de Janeiro: São José, 2011.
RELPH, E. C. As bases Fenomenológicas da Geografia. In: Geografia, 4 (7), p. 1-25,
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156
Estudos Literários

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da diferença e da igualdade. In: SANTOS, B. de S. (Org.). Reconhecer para liberar: os
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2003 (Série Reinventar a emancipação social: para novos manifestos,v. 3).
SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Edusp,
1979.
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TUAN, YI-FU. Espaço e Lugar. Tradução de Lívia de Oliveira. São Paulo: Difel, 1983.
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ROSENDAHL, Z. (Org.). Introdução à Geografia Cultural. 2.ed. Rio de Janeiro:
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ZAOUAL, H. Globalização e diversidade cultural. Tradução de Michle Thiollent. São
Paulo: Cortez, 2003.

157
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

A recepção de Fábula Fingida,


de Heleno Godoy, na escola
Danielle Lopes Rodrigues1
Nismária Alves David2

Bases teóricas da recepção


Jean-Yves Tadié (1992), em A crítica literária no século XX, especificamente
no capítulo dedicado à “Sociologia da Literatura”, destaca o fato de que uma obra
reflete, manifesta e busca transformar a sociedade. Sociedade essa que antecede a
obra e perdura a existência desta mediante uma sociologia da leitura, realizada pelo
público leitor cujo papel é o de promover a literatura. As partes da sociologia da
literatura que direcionam sua atenção ao público são denominadas sociologia da
leitura e estética da recepção.
Na sociologia da leitura, Q. D. Leavis parte da antropologia e da história do
gosto para estudar o que conferia sucesso a um romance desde o final do século
XVIII, constatando que, à época, livro era entendido como romance. Investigou
quais os livros eram os preferidos da maioria dos ingleses em 1930. Já, naquela pes-
quisa, a referida estudiosa pode constatar que o público leitor de literatura moderna
era pouco numeroso, uma vez que grande parte não interessava nem pela poesia
nem pela crítica. Além disso, o veículo utilizado para se obter conhecimento do
livro era a imprensa.

1  Graduanda em Letras Português/Inglês e suas Respectivas Literaturas pela Universidade Estadual de Goi-
ás – Câmpus Pires do Rio. Bolsista PIBIC/CNPq no período de agosto de 2017 a julho de 2018. escrevadani@
outlook.com
2  Professora Orientadora da Universidade Estadual de Goiás (UEG). Doutora em Letras e Linguística pela
Universidade Federal de Goiás (UFG). Integra a Rede Goiana de Pesquisa em Leitura e Ensino de Poesia, o
Grupo de Estudo e Pesquisa em Literaturas de Língua Portuguesa (GEPELLP/CNPq) e o GT da ANPOLL
Teoria do Texto Poético. Desenvolve o projeto “Núcleo de Estudos Goianos (NEG): os Estudos culturais e a
literatura goiana na escola”, financiado pela FAPEG. [email protected]

158
Estudos Literários

No dizer de Tadié (1992), a desintegração do público foi provocada pela re-


volução industrial e pelos efeitos acarretados pelo desenvolvimento econômico, isso
porque, condicionado aos interesses financeiros, houve a abertura do mercado ao
público de massa que pedia livros de mais fácil compreensão. Por essas razões, Lea-
vis estuda o best-seller segundo o público:

A evolução do romance está ligada à do lazer: público aumentado, editores


industrializados, escritores dispostos a estudar e a abastecer o mercado são
condições essenciais, porém a principal causa da mudança reside na modifi-
cação do meio econômico e social. Essa análise leva-nos a colocar a questão
em termos de declínio ou de progresso; a posição do crítico é clara: adquirir
um best-seller é prejudicar a literatura, da qual o homem da rua está afastado;
[...]; daí o fim da poesia, que não é mais lida, enquanto nos séculos XVII,
XVIII e XIX fora largamente difundida. [...]. O principal problema é o da
linguagem: a do público de massa não conta com recursos artísticos, é cons-
tituída por pensamentos e sentimentos estereotipados, [...]. (TADIÉ, 1992, p.
186-187).

Não se pretende discutir se é benéfico ou não ler best-seller. Há posições que


defendem que é muito melhor o hábito deste tipo de leitura que não ler ou deixar de
ler, pois serve na composição do repertório do leitor que passa a ter, cada vez mais,
condições de realizar avaliações críticas. O ponto a ser destacado aqui é a pouca
prática de leitura de poesia.
Mas antes, deve-se mencionar sobre a estética da recepção que teve em Hans
Robert Jauss um de seus mais importantes representantes. Para este teórico, a obra
compõe-se pelo texto (estrutura dada) e por sua recepção (aquele que a recebe),
portanto, seu sentido constitui-se histórica e socialmente, é mutável. Se, por um
lado, o efeito é estabelecido pelo texto, por outro lado, a recepção é dada pelos re-
ceptores (leitores). Isso explica porque uma obra pode ultrapassar seu tempo e dar
resposta a outro tempo, mantendo sua significação.
Segundo Tadié (1992, p. 190), para a estética da recepção:

A obra implica um “horizonte de expectativa literária”, função dela mesma,


de seu efeito resultante, e um segundo horizonte, social que tem a ver com o

159
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

“código estético” dos leitores. Esses começam a entender o texto por meio do
primeiro ‘horizonte’; porém, introduzem na sua análise, concretizam numa
significação atual um diálogo com sua própria compreensão do mundo, ela
própria determinada pela sua sociedade, sua classe e biografia. [...]

Por meio da estética da recepção, renova-se a história literária, uma vez que
sempre há a possibilidade de se verificar novos aspectos de um autor na relação
estabelecida entre obra e leitor. Como se observa, há a possibilidade de mudança do
texto pelos seus leitores, refletindo a sociologia. Todavia, na teoria da recepção, há
também o entendimento de que o próprio texto estabelece o modo como deve ser
notado, manifestando a poética.
No caso da poética da leitura, pode-se mencionar Wolfgang Iser que elabora
a teoria do efeito estético, conforme a qual o leitor, ao ler, colabora na produção da
intenção do texto. Toda obra possui um leitor pressuposto, o chamado leitor implí-
cito (pertencente à estrutura textual), ou seja, determina-se certo papel a seus possí-
veis leitores (do plano real). Antoine Compagnon (2006, p. 149), comentando sobre
Iser, aponta que o sentido é “um efeito experimentado pelo leitor, e não um objeto
definido, preexistente à leitura”, o texto dá a instrução e o leitor realiza a construção:

A literatura tem, pois, uma existência dupla e heterogênea. Ela existe indepen-
dentemente da leitura, nos textos e nas bibliotecas, em potencial, por assim
dizer, mas ela se concretiza somente pela leitura. O objeto literário autêntico
é a própria interação do texto com o leitor. (COMPAGNON, 2006, p. 149).

Para a realização da leitura, faz-se necessário que o leitor traga o repertório,


como diria Iser, o qual corresponde ao “conjunto de normas sociais, históricas, cul-
turais” (COMPAGNON, 2006, p. 152).
Tadié (1992) aponta outro teórico da poética da leitura – Umberto Eco que,
em vez de considerar o efeito estético, focaliza a compreensão de um texto, median-
te o papel desempenhado pelo leitor como um cooperador dos sentidos (semióti-
ca da leitura), preenchendo as lacunas e resolvendo as contradições. Compagnon
(2006) salienta que os textos mais modernos são indeterminados e, consequente-
mente, exigem mais do leitor para completar os sentidos. Nesses textos, o papel do

160
Estudos Literários

leitor implícito é menos detalhado e, por isso, há a necessidade de uma descrição


mais aberta da leitura.
Voltando à questão da poesia que interessa neste trabalho, convém fazer re-
ferência à poética da poesia. Nesta, destaca-se T. S. Eliot e seu artigo “A tradição e o
talento individual”, no qual postula que a apreciação de um artista (obra individual)
deve ser relacionada aos artistas que o antecederam (tradição). A partir desse con-
ceito, Tadié (1992, p. 272) esclarece: “Cada poeta modifica a tradição e disto deve
estar plenamente consciente; o leitor estará atento não ao poeta, mas à poesia, pois
a emoção encontra-se dentro do poema e não na história do poeta”. Na verdade,
o próprio escritor apresenta-se como leitor de escritores que lhe foram anteriores.

O poeta Heleno Godoy


Heleno Godoy (Heleno Godói de Sousa) nasceu no interior de Goiás, na
cidade de Goiatuba em 1946. Sua mudança para Goiânia ocorreu em 1957, com o
propósito inicial de realizar os estudos ginasiais. Estudou no Colégio Ateneu Dom
Bosco e, depois, no Lyceu de Goiânia. Graduou-se em Letras pela Universidade
Católica de Goiás (UCG) no ano de 1976, concluiu Mestrado na Universidade de
Tulsa, Oklahoma (EUA) em 1981, e Doutorado em Estudos Linguísticos e Literá-
rios em Língua Inglesa pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo (USP) em 2004. Como docente ministrou aulas de Lite-
ratura na Universidade Federal de Goiás (UFG) e também na Universidade Católica
de Goiás (PUC-GO). Além disso, Godoy é sócio fundador da Associação Brasileira
de Crítica Literária, Rio de Janeiro, desde 1986, e é integrante da União Brasileira de
Escritores (UBE) – Seção de Goiás desde o ano de 19683.
Publicou várias obras que passam tanto pelo gênero lírico quanto gênero
narrativo, a saber: Os Veículos (poesia, 1968); As Lesmas (romance, 1969); Relações
(narrativa, 1981); Fábula Fingida (poesia, 1985); A Casa (poesia, 1992); Trímeros
(poesia, 1993); Heleno Godoy: Trinta Anos de Literatura (Livreto com fotos, depoi-
mentos e testemunhos de escritores goianos, 1993); Poemas do GEN: Trinta Anos

3  Os dados biográficos de Heleno Godoy podem ser consultados em Procópio (2011).

161
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

(Depoimentos e antologia, organização, com Miguel Jorge e Reinaldo Barbalho,


1994); O Amante de Londres (contos, 1996); A Feia da Tarde e Outros Contos (1999);
A Ordem da Inscrição (poesia, 2004); e Inventário – Poesia Reunida, Inéditos e Dis-
persos (2015) que reúne seus textos escritos entre 1963 e 2015, cuja organização
foi feita pela professora Solange Fiuza Cardoso Yokozama. Ainda possui diversas
contribuições na área de Crítica Literária, bem como prefácios e artigos em suple-
mentos literários, sendo também tradutor de obras de língua inglesa.
Em Goiás, tem-se a constituição do Grupo de Escritores Novos. Em 1963,
Heleno Godoy foi convidado para participar do GEN, vindo a ser o seu quinto
e último presidente. Apesar de ter tido uma curta duração, somente até 1967, o
GEN realizou diversas atividades, conferências, debates e concursos literários nos
colégios que cooperaram para a propagação da arte das palavras. Além de Godoy,
o grupo contava com autores de renome tais como: Miguel Jorge, José Ferreira da
Silva, Geraldo Coelho Vaz, Yêda Schmaltz, Luiz Fernando Valladares, Maria Helena
Chein, Edir Guerra Malagoni, Natal Neves, Aldair Aires, Emílio Vieira, Ciro Pal-
merston Muniz e Luís Araújo, sendo realmente um marco na história da literatura
goiana. Foi um movimento que propunha a novidade literária, em alternativa ao
veio regionalista predominante, assumindo um papel de grupo revolucionário para
a época e que rendeu autores e obras fundamentais para o campo literário.
Raphaela Pacelli Procópio (2011) em sua Dissertação de Mestrado, intitula-
da como Momentos significativos da poesia de Heleno Godoy: Os veículos, A casa e
Lugar comum e outros poemas (2011), lembra que uma das razões da dissolução
do GEN foi a opção de alguns escritores, como é o caso de Heleno Godoy, por se-
guir os rumos da Poesia-práxis. O próprio poeta Mário Chamie reconheceu o livro
As lesmas (de Godoy) assim como Via Viagem (de Carlos Fernando Filgueiras de
Magalhães) como modelos de manipulação livre e direta da linguagem, dialogando
com a Instauração Práxis (PROCÓPIO, 2011, p. 32).
Gilberto Araújo (2016), em sua resenha “Sinal verde para o poeta Inventário:
poesia reunida, inéditos e dispersos (1963-2015), de Heleno Godoy”, aponta que es-
te escritor, notadamente, em seu primeiro livro de poesias – Veículos (1968) – apro-
xima-se da Poesia-práxis, tanto no que concerne ao tema quanto à estrutura. Araújo
(2016) também reconhece que Godoy é um herdeiro de Fernando Pessoa, Murilo

162
Estudos Literários

Mendes, Rainer Maria Rilke, entre outros. Já Procópio (2011) mostra a aproxima-
ção de Godoy a Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto.
Em concordância com Procópio, Silva (2011, p.1) diz o seguinte sobre o liris-
mo de Godoy: “Seus versos são econômicos, trazem uma dicção muito particular,
mesmo estando em sintonia profunda com suas duas maiores influências: Carlos
Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto”. Por certo, na lírica de Godoy,
é estabelecida uma relação com aspectos culturais e tradicionais ocidentais, sempre
explorando a técnica da linguagem.
Justamente por seguir a esteira de Cabral que Procópio (2011) identifica a
reflexão como uma característica fundamental da lírica de Godoy:

Também parte considerável da poesia de Heleno Godoy se insere na vertente


da poesia moderna marcada pelo apagamento da subjetividade da epider-
me do texto e pela ênfase na objetividade. Trata-se de uma poesia mais do
pensar do que do sentir, antes da razão que da emoção. Desde a publicação
de Os veículos (1968), livro analisado no capítulo anterior, perpassando por
Fábula fingida, Trímeros ou livro das odes, Ordem da inscrição, Sob a pele, A
casa, até chegar a Lugar comum e outros poemas, um livro que aparentemente
destoa dos outros pelo caráter mais pessoal, podemos notar que, para o autor,
escrever decorre da reflexão e não da emoção, o que não quer dizer que esta
seja banida do poema. (PROCÓPIO, 2011, p. 70, grifo nosso).

Com a Instauração Práxis, a poesia goiana pende para o urbano e Godoy


dá exemplos disso. É frequente a exposição da consciência sobre o próprio fazer
poético (metapoesia), adotando uma postura moderna diante da linguagem de
sua construção.

O livro Fábula fingida e a sala de aula


O objeto principal deste estudo é um dos livros de Heleno Godoy, especifica-
mente Fábula Fingida. Trata-se, na verdade, de um recorte da pesquisa “A ‘palavra
cerzida’ em Fábula Fingida, de Heleno Godoy, e sua recepção na escola”, que recebeu
o apoio do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC/CNPq)

163
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

no período de agosto de 2017 a julho de 2018, e esteve vinculado ao projeto Núcleo


de Estudos Goianos (NEG) – Os Estudos Culturais e a Literatura Goiana na Escola4.
Este livro de poesia foi escrito entre os anos de 1976 a 1984 e sua publicação
ocorreu no ano de 1985, pela Editora Nova Fronteira, rendendo ao autor o Prêmio
Bolsa de Publicações José Décio Filho (1984), do CERNE/União Brasileira de Es-
critores – Seção de Goiás. Inicialmente, o intento da referida pesquisa foi buscar
a compreensão das características literárias de Heleno Godoy e as configurações
do trabalho que ele realiza com a linguagem, o qual pode ser bem traduzido pela
imagem poética exposta pelo próprio poeta: a “palavra cerzida”, isto é, o trabalho
consciente com a palavra.
Acerca de Fábula fingida, Araújo (2016, p. 210) cita Godoy:

foram dezessete anos tentando me libertar da linguagem de Chamie, e creio


ter conseguido, embora do resto de sua influência não queira me libertar,
nem mesmo, parcialmente, de sua linguagem, já que ela me obriga a estar
atento na busca da minha própria (p. xi).

Além disso, com a pesquisa, pretendeu-se levar a leitura da obra e observar a


recepção desta em sala de aula. Em específico, o trabalho foi feito com os alunos de
duas turmas do 2º ano do Ensino Médio no Colégio Estadual Rodrigo Rodrigues da
Cunha, localizado na cidade de Pires do Rio (GO). Assim, a investigação realizou-
se em duas etapas: a primeira de caráter bibliográfico e a segunda como pesquisa
de campo.
Como resultados alcançados, constata-se que Fábula Fingida é um livro em
versos que conta uma narrativa, fragmentada em sete argumentos que, por sua vez,
revelam sobre o poeta e o amor. Dessa maneira, é verificável a presença do hibridis-
mo de gêneros, visto que a lírica canta e conta uma história. Alinhado a isso, vale
lembrar que, conforme Staiger (1997, p. 190), “toda obra poética participa em maior
ou menor escala de todos os gêneros e apenas em função de sua maior ou menor
participação, designamo-la lírica, épica ou dramática”.

4  Projeto de Pesquisa financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás (FAPEG), no
período de dezembro de 2016 a dezembro de 2018.

164
Estudos Literários

Por se tratar de sete argumentos, é interessante pensar sobre a simbologia do


número 7. No Dicionário de Símbolos, encontram-se definições acerca do número:
“O número 7 (sete) representa a totalidade, a perfeição, a consciência, a intuição, a
espiritualidade, a vontade e a renovação”. Com base nesses apontamentos, pode-se
dizer que o livro de Godoy sugere o ideal de fechar um ciclo, sendo que o sujeito
lírico está percorrendo uma “viagem” e nela passa por diversas situações. Ademais,
no decorrer da história, são apontados momentos bons e outros nem tanto, sendo
eles: descoberta do sentimento, do desejo, do abandono, a ideia de recomeçar e a
percepção da realidade.
Quanto à composição dos versos, esta também merece atenção. Cada um de
seus argumentos possui vários versos, que costumam somar cerca de doze páginas
cada um. Esses versos não atendem a um padrão de métrica, revelando, assim, a
liberdade criativa do escritor. No “argumento primeiro”, há a presença da metalin-
guagem estabelecida por meio de um diálogo entre o poeta e sua obra, fala-se sobre
o amor e a própria história, conforme se lê a seguir: “meu espaço sou eu mesmo e
meu poema/ o poema: onde cabe meu amor, cabem/ nossas penas, como as escrevo
e cravo” (GODOY, 1985).
Durante o argumento, há confissões do poeta que despertam a afetividade
do leitor. Em certo momento, expressa versos que comentam sobre uma paixão
nascida no meio do trânsito, uma cena aparentemente do dia a dia e que desperta
as emoções. Há a descrição minuciosa e poética dos olhares se cruzando, da rota se
alongando e dos sinais de trânsito com suas cores vermelho e verde. A comparação
entre a cor do carro da outra pessoa e a cor do vinho que estariam bebendo juntos
em um momento especial. A cena é metafórica, pois sugere a ideia de que o amor é
como um momento parado no trânsito, quando fica lado a lado de uma pessoa des-
conhecida, despertando sensações inimagináveis simplesmente pela troca de olha-
res, mas fica a dúvida se poderá se transformar em amor, sendo recíproco ou não.
No “argumento segundo”, há a continuação dessa história em que se destaca
o estado emocional das personagens. Há a insegurança daquele momento onde a
euforia prevalecia no peito. O poeta passa a ver o amor como uma palavra cerzida,
uma colcha de retalhos em que se pode tecer com cuidado cada pedacinho, sem
vida ou sem cor. Esta é a ideia de amor: construir a cada dia, a cada novo momento
juntos. Os versos se seguem com um amor imenso sendo declarado em cada estrofe,

165
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

de forma explícita ou em suas entrelinhas. Vemos o início e tão logo o seu êxtase, o
sentimento se desenrola de uma forma muito rápida e intensa.
Já no “argumento terceiro”, há um estado totalmente diferente, como diria
Miguel Jorge, é revelada a “descida ao inferno”. Todo aquele amor e a idealização
que se tinha fora deixada de lado. O amor tão puro e intenso, que trazia vida ao
personagem se acaba, abandonando-o em sua solidão e, assim, o poeta vai se la-
mentando mais e mais.
No “argumento quarto”, há vestígios de que o que teria acabado o amor teria
sido a rotina, que tem o poder de quebrar o encanto se o amor não for cultivado
diariamente. O poeta compara como eram as coisas no início e como ficaram de-
pois de um tempo. Ele está ferido e seus ferimentos estão ainda abertos, sofrendo
pelo abandono. Há por toda parte as lembranças e uma carência afetiva instalada.
Ele se deixa levar por diversos pensamentos e se queixando do que deveria ter sido o
amor. Desse modo, nos leitores, reflete a imagem daquele sujeito que é abandonado
por outra pessoa.
No “argumento quinto”, o poeta conta os dias que se passaram desde o ocor-
rido e revela, de forma sutil, como se passou, como fora a espera, a esperança de que
as coisas voltassem ao que eram antes. Ao longo do argumento, o poeta demonstra
grande saudade da pessoa amada, faz algumas referências amorosas, mas também
surpreende ao anunciar uma partida. O poeta começa a se livrar do “luto” amoroso
que estava vivenciando e vê a necessidade de seguir em frente.
No “argumento sexto”, o poeta volta a fazer uma reflexão a respeito de tudo o
que aconteceu. Nesse momento, ele percebe que, na verdade, aquele amor nem fora
tão verdadeiro:

argumento sexto
não semearam ventos e colheram
um vendaval, essa nau frágil
o amor, disseram que havia
resistir? Quem há de chorar
no canto, pois se argutos
nautas não foram

166
Estudos Literários

da fábula que chega ao fim


(GODOY, 1985, p. 131)

Dentro do “argumento sexto” há outros versos, citados a seguir, que são cha-
mativos em virtude de demonstrar o abandono sofrido pelo sujeito lírico:

foi só um pedido
sem saber que era o último
o último laço do cadarço
cadastro interrompido
(GODOY, 1985, p. 147)

Assim, nessa sequência, sobreleva o lirismo. Convém destacar o uso das me-
táforas: “o último laço do cadarço” e “cadastro interrompido”. Com isso, quem lê a
obra tende a se sensibilizar com a situação vivida pelo sujeito lírico, em suas des-
venturas no quesito amoroso. Fica evidente a melancolia, comparada com o último
laço do cadarço, sugerindo que o relacionamento chegou ao fim. Além disso, há a
possibilidade de que o leitor se sinta na posição de coautor, percebendo a inquieta-
ção do poeta.
Surge outro sujeito lírico, com novas ideias e sem idealização. Ele tem novos
hábitos, novas perspectivas e pronto para viver novas experiências. O poeta em al-
guns versos refere-se a navegações, a naufrágios e o leitor, ao fazer o papel de coau-
tor, pode relacionar o amor como sendo propenso para navegar ou naufragar, ou
seja, certamente marcado por riscos. Em alguns versos, ainda é identificado certo
ressentimento causado pelo abandono. O poeta termina o argumento notando que
nada daquilo mais importa, nem mesmo os mistérios e as lembranças vividas a dois,
há finalmente essa visão da realidade, ainda que dolorosa.
No sétimo e último argumento, o poeta relembra fragmentos do argumento
primeiro, estabelecendo uma ligação como se o ciclo se repetisse. Novamente estão
ali fazendo companhia um para o outro nessa “viagem”: o poeta e o amor. Há di-
versas indagações sobre o sentimento que sentira durante essa viagem e, de certa
forma, o poeta acaba se sentindo sozinho. Ele relembra os momentos em que tanto
se entregou a aquele sentimento, mas não houvera a reciprocidade. No desfecho do
livro, o argumento se encerra com as queixas que tocam profundamente o leitor:

167
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

eu rolei como pedra e não me amparaste


eu caí como chuva e não me absorveste
eu bati como onda e não me espraiaste
eu soprei como vento e não me protegeste
eu irrompi como vaga e não me enviaste
eu queimei como fogo e não me apagaste
(GODOY, 1985)

Para o crítico Carlos Augusto Silva (2011, p.1), “a poesia de Heleno Godoy é
um estudo da linguagem, um precioso referencial para quem se aventura no árduo
trabalho de recuperar o âmago da vida por via de construções metafóricas”. Miguel
Jorge tece algumas considerações a respeito de Fábula Fingida. Uma delas que po-
demos destacar é: “Uma pulsação racional e um mergulho no inconsciente, uma
viagem acompanhada por mitos, visões, figuras bíblicas, poetas malditos. O mais
importante: uma peregrinação pelo próprio interior do poeta, levando o leitor a
ser coautor: texto razão”. (JORGE, 1985, p. 9). Além desse comentário, Jorge (1985)
acrescenta a possibilidade de o livroser lido como um romance, ainda citou obras
clássicas como Odisseia e Ilíada de Homero, inferindo que a leitura da obra goiana
pudesse seguir no mesmo sentido que essas prestigiadas produções literárias. O
próprio autor goiano fez um comentário sobre sua obra dizendo: Em Fábula Fin-
gida, são abordados o poeta, o poema, a palavra, o amor do poeta e o sujeito lírico
propõe “uma viagem” (GODOY, 1985, p. 19).
Para Araújo (2016, p. 210, grifo nosso):

Com efeito, a fábula enceta solitária viagem amorosa e metalinguística, em


que o eu lírico, ao contrário de Dante, não conta com Beatrizes ou Virgílios:
a origem e o destino se tocam no abismo: “eu rolei como pedra e não me
amparaste / eu caí como chuva e não me absorveste / [...] / eu queimei como
fogo e não me apagaste”.

Pensando nos temas do amor e da metalinguagem que Fábula Fingida foi


levada para a escola. Em sala de aula, na primeira turma pesquisada, 2° “A”, foi pos-
sível perceber que os alunos gostaram do modo como Heleno Godoy escreve, em
especial, de seu vocabulário. Alguns alunos relataram a vontade de conhecer outras

168
Estudos Literários

obras do autor e do quanto foi agradável a leitura de seus poemas. Até mesmo aque-
les que não gostavam tanto de poemas (segundo próprios comentários), ao final da
aula, já tinham outra opinião. Por outro lado, alguns estudantes mencionaram certa
dificuldade de entender o poema, mesmo após discutirmos as palavras desconheci-
das e os possíveis significados das metáforas. Essa dificuldade, sem dúvida, pode ser
explicada pela falta de contato com a linguagem poética.
A experiência da pesquisa na segunda turma, 2° “B”, também foi muito in-
teressante. No início, os alunos ficaram um pouco desconfortáveis, o “novo” lhes
causou receio, mas, à medida que o poema foi lido e interpretado, eles começaram
a se interessar. As interpretações dos versos de Fábula Fingida foram frutíferas. Os
alunos, de modo geral, reconheceram o trabalho de Godoy com muito apreço e
muitos até disseram que iriam ler mais de suas obras. Nesta turma, os alunos se
colocaram na posição de coautores, fizeram realmente uma peregrinação pelo inte-
rior do poeta, caminharam juntos e buscaram sentir na “pele” o que o sujeito lírico
passou no poema narrativo.
Vale destacar que os alunos, todos adolescentes, de modo geral, gostaram
principalmente dos versos em que falava, de forma bastante explícita, sobre o amor e,
inclusive, estes versos foram os mais mencionados no questionário que foi aplicado
a eles. Cabe destacar que o tema amor é de âmbito universal, pertencente a todos os
homens, de todas as épocas e sempre se mantém atual. Como leitores, os alunos ti-
veram a percepção e realizaram a atualização dos sentidos da obra. Na interpretação
da obra, puderam ser projetadas as experiências de vida e as experiências de leitura.
A poesia de Godoy toca a subjetividade e a linguagem, proporciona ao leitor
(re) descobrir a vida e as palavras, evocando aquilo que ora é simples ora é elabora-
do pela dor. Dessa maneira, o ato de ler se realiza como uma criação em conjunto
com o próprio poeta. Quando se pensa na realidade de alunos da rede pública,
sabe-se que a grande maioria tem seu processo de letramento literário ocorrido
basicamente na escola. Assim, o jovem leitor é um sujeito que está sendo formado
em sala de aula. Por essa razão, questiona-se “como incentivar a leitura literária?
Como promover a leitura de autores goianos na escola?”. Levar a poesia de Heleno
Godoy para a sala de aula teve o objetivo de atrair o aluno para a prática da leitura
de poesia que deve ser vista como uma experiência prazerosa, não como obrigação.

169
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Considerações finais
A leitura deve ser compreendida como algo imprescindível na vida. Aquele
que lê pode mudar a si mesmo e pode mudar o mundo. O convite ao aluno pa-
ra ler Heleno Godoy é importante porque chama os jovens leitores a se tornarem
conscientes de sua cultura (goiana), despertarem o sentimento de pertencimento e
adquirirem conhecimento sobre um autor goiano.
Fábula Fingida em sala de aula oportunizou levar o poema para a sala de
aula, a prática de leitura, o exercício de análise e interpretação, a conhecimento
sobre o poeta Heleno Godoy, a reflexão sobre a linguagem empregada pelo poeta,
a discussão sobre o tema abordado no livro. Além disso, propiciou a motivação
para a escrita criativa. Sem dúvida, vê-se a necessidade de os alunos conhecerem
mais sobre o gênero lírico, de interpretar e, até mesmo, de se arriscar a escrevê-lo.
Percebe-se que poemas ainda são vistos como difíceis de compreender e que, por
esse motivo, muitos alunos não têm a iniciativa de procurar por eles. Diante disso,
quando se leva poemas para a sala de aula, é possível fazer com os alunos descu-
bram algum autor ou poema que os faça ver a poesia com outros olhos, com gosto.
Silva (2011) ressalta que Luiz Costa Lima já fez referência às produções li-
terárias do autor goiano no suplemento cultural “Mais!”, publicado na “Folha de S.
Paulo”, em abril de 2006, mencionando sobre o valor poético de Godoy e o “desfa-
vorecimento geográfico no que diz respeito ao conhecimento do público brasileiro”
(SILVA, 2011, p. 1). Com pesquisas como esta aqui apresentada, espera-se colaborar
para que não prevaleça a desvalorização geográfica de caráter literário ainda que
possa haver nos dias de hoje.
Neste trabalho, por fim, pode-se salientar que foi trazida uma breve contri-
buição para a compreensão da singularidade poética de Heleno Godoy para que
fosse divulgado seu nome e, assim, colaborar com aqueles que buscam identificar
as principais vertentes literárias que definem a literatura goiana na contemporanei-
dade. Reconhece-se a relevância de ter levado este poeta para a escola, visto que é,
nesse espaço, que se tem a oportunidade de semear o conhecimento para mais tarde
colher frutos: futuros leitores (e/ou autores) de poesia.

170
Estudos Literários

Referências
ARAÚJO, Gilberto. Sinal verde para o poeta Inventário: poesia reunida, inéditos e
dispersos (1963-2015). In: Fórum de Literatura Brasileira Contemporânea. v. 8,
n. 16 (2016), p. 207-211. Disponível em: <https://revistas.ufrj.br/index.php/flbc/
article/view/17455> Acesso em 07 set. 2018.
DICIONÁRIO DE SÍMBOLOS. Número 7. Disponível em: <https://www.
dicionariodesimbolos.com.br/numero-7/> Acesso em 16 dez. 2017.
COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Tradução
Cleonice Paes Barreto Mourão e Consuelo Fortes Santiago. Belo Horizonte:
Editora da UFMG, 2006.
GODOY, Heleno. Fábula Fingida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
JORGE, Miguel. Da fábula fingida ao texto razão. In: GODOY, Heleno. Fábula Fingida.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
PROCÓPIO, Raphaela Pacelli. Momentos significativos da poesia de Heleno Godoy:
Os veículos, A casa e Lugar comum e outros poemas. 2011. 132 f. Dissertação
(Mestrado em Letras e Linguística) - Universidade Federal de Goiás, Goiânia,
2011. Disponível em: <https://repositorio.bc.ufg.br/tede/handle/tede/5580>
Acesso em 07 set. 2018.
SILVA, Carlos Augusto. Heleno Godoy: a precisão poética. Jornal Opção. Goiânia, Edição
1861 de 6 a 12 mar. 2011. Disponível em: <www.jornalopcao.com.br/posts/
opcao-cultural/heleno-godoy-a-precisao-poetica> Acesso em 12 dez. 2017.
STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais de poética. 3. ed. Tradução Celeste Aída Galeão.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.
TADIÉ, Jean-Yves. A crítica literária no século XX. Tradução Wilma Freitas Ronald de
Carvalho. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1992.

171
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

O fazedor de velhos:
Reflexões de um adolescente
sobre o eu, a passagem do
tempo e a literatura
Dayse Rodrigues dos Santos1
Silvana Augusta Barbosa Carrijo2

Introdução
A passagem do tempo apresenta um protagonismo manifesto na literatura
das sociedades contemporâneas. Conjuntamente, a relação entre o tempo e a busca
pelo eu tem sido tema constante nos processos subjetivos e interativos entre jovens.
Na literatura, temas universais, como esses, podem enriquecer tais reflexões, dando
elementos que nutrem o sentimento de verdade, por trás das ‘mentiras’ do texto. Pa-
ra tanto, a obra literária em análise é O fazedor de velhos, de Rodrigo Lacerda, lança-
do em 2008 e premiado pelo Jabuti no ano seguinte. A escolha de tal obra se justifica
uma vez que possibilita pensar diversas imagens e conceitos relacionados ao tema
já na leitura do próprio título, induzindo o leitor a se interrogar o que seria “fazedor
de velhos”. Privilegiando o eixo da constituição da identidade ficcional juvenil de
Pedro, o protagonista, esse estudo perpassa, ainda, pela consciência do tempo, pela
influência da Literatura na vida cotidiana e a apologia à leitura de textos literários.
A história é narrada por Pedro, um adolescente de dezesseis anos, heterosse-
xual, de classe média, filho caçula de uma professora universitária e um advogado,
morador do Rio de Janeiro, que não sabe qual profissão seguir e procura alternativas

1  Universidade Federal de Goiás – Regional Catalão, [email protected]


2  Universidade Federal de Goiás – Regional Catalão, [email protected]

172
Estudos Literários

para encontrar seu caminho. Ele descobre que os amores e as paixões podem não
ser tão simples, mas não perde a sensibilidade. Nessa busca, conhece o experiente
professor Nabuco, que o orienta fazendo testes e sugere caminhos a seguir para
elucidar essa jornada de autoconhecimento. Quando aparece Mayumi, sobrinha de
Nabuco, ele sente por ela uma nova forma de amor e revê questões pessoais de
natureza diversa. Insatisfeito com a faculdade de História, o jovem encontra na Li-
teratura sua verdadeira vocação e conhece a si mesmo, conseguindo compreender
melhor o que vai acontecendo em sua vida.
Entre algumas ilusões e desilusões de Pedro, a narrativa pode levar à reflexão
sobre o papel que se exerce na sociedade, seja ele racional ou emocional. Por meio
das vivências de Pedro, é possível refletir sobre o papel dos pais/responsáveis na
formação dos filhos, a passagem do tempo, o papel da literatura na vida das pessoas
e em como o tempo pode ou não comprovar como verdadeiros certos valores que
carregamos por toda vida. O próprio título é uma metáfora que reúne todo o con-
teúdo da obra e é na fala do professor Nabuco que o entendemos “Quem aceita frus-
tração, espera, quem espera, pensa. Quem pensa, sente. Quem sente, vive o tempo,
e sabe que ele está passando. Portanto, fica mais velho” (LACERDA, 2017, p. 108).

Relação entre o tempo e a Literatura na vida do protagonista Pedro


O jovem não precisa ter um carimbo social que diga se ele deve exercer essa
ou aquela função, ou ser de um jeito ou de outro, mas sim que cada um cumpra seu
papel social e vivencie a dor e o deleite de ser quem é. Na mesma vertente, a com-
preensão de que os valores, as culturas e as identidades se constroem e se vivem de
acordo com sua contemporaneidade. “A questão da identificação nunca é afirmação
de uma identidade pré-dada, nunca uma profecia autocumpridora – é sempre uma
produção de uma imagem de identidade e a transformação do sujeito ao assumir
aquela imagem” (BHABHA, 2010, p. 76).
Nesse sentido, a afirmação que se faz de si mesmo é interior, individual, sob
uma perspectiva exterior, da sociedade. Quando o sujeito busca a compreensão de
seu eu, ele faz um deslocamento social e de si, provocando uma crise de identidade.
No caso do protagonista, compreender a natureza humana através da leitura do Rei
Lear oportunizou a ele mais do que uma apreciação da arte da palavra, mas também

173
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

aprendizagem sobre seu objeto de pesquisa. O foco narrativo em primeira pessoa per-
mite que se acompanhe cada passo e pensamento do personagem. O narrador relata,
frente ao percurso que escolhera, o que sentira diante de uma decisão que tomou:

Entrei na faculdade de História, que havia sido a minha matéria preferida


durante todo o colégio.

Mas, contrariando as minhas expectativas, o curso me deixou na maior crise.


Eu vivia procurando algum tema pelo qual me apaixonasse de corpo e alma
(LACERDA, 2017, p. 46).

A autorreflexão do estudante espelha uma manifestação da natureza humana


que lhe é inata: quem sou eu? Em suas pesquisas sobre o tema, Pedro lê Shakespeare
e encontra em suas personagens a representação humana sob diversos prismas. As-
sim, ele vai percebendo que o Eu não é fixo e estável, mas, muitas vezes, inacabado,
contraditório ou até mesmo fragmentado, como prerroga Hall (2014). Sobre sua
relação com o velho professor, o jovem relata “toda vez que nos encontrávamos,
me surpreendia de algum jeito. Me fazia sentir coisas que eu não controlava – no
aeroporto, na formatura e, depois, com a tragédia macabra do rei Lear” (LACER-
DA, 2017, p. 66), o que evidencia a forma como o professor interfere na sua zona
de conforto.
Ao falar de sua relação com a leitura, Pedro revela que não sabe ao certo
como começou, mas conta de maneira bem leve e com certa alegria sobre os livros
e autores que costumava ler na infância: “Eu não lembro direito quando meu pai e
minha mãe começaram a me enfiar livros garganta abaixo. Mas foi cedo” (LACER-
DA, 2017, p. 09). A narrativa é permeada de transcrições de trechos de obras de seus
autores preferidos, revelando uma intertextualidade que desafia tanto o leitor apre-
ciador de clássicos quanto o que ainda está em iniciação. Ele fala da mãe, professora
de Literatura e do pai, um amante da literatura russa, que tiveram influência deci-
siva na sua formação como leitor de Literatura. A aparição de Nabuco, um profes-
sor que tem participação importantíssima na descoberta de verdadeira vocação do
protagonista, fomenta ainda mais o apreço à literatura, incentivando-o a ler obras
shakespearianas em busca de respostas:

174
Estudos Literários

Eu estava lá às 2h45, mas era como se fosse outra pessoa. Ao tocar a campai-
nha do sobrado, me senti diferente. É verdade. A peça funcionou para mim
como um buraco de uma fechadura interior, por onde eu olhei e vi mil coisas
escondidas. Nem o bom I-Juca, nem o bom Eça, ninguém me deu, como
o Shakespeare, tamanho soco de humanidade, com tantos vícios, virtudes e
sentimentos (LACERDA, 2017, p. 64).

É durante a leitura de Rei Lear, que o jovem passa a entender as persona-


gens como próximas à sua realidade. Nesse sentido, ele percebe uma expansão da
visão que ele tem das pessoas e se vê refletido no personagem Edmund. Ainda que
decepcionado por se identificar com um vilão, Pedro consegue perceber a densi-
dade da construção desse personagem esférico. Na revelação “Condenava cada um
de seus atos, mas me identificava com a sua ideologia, com todos os seus motivos
essenciais” (LACERDA, 2017, p. 70), é permitido ao leitor conhecer suas impres-
sões diante de sua leitura crítica, inclusive pelo uso da linguagem simples. Candido
(2011) disserta que é necessário que o leitor aceite a verdade da personagem para
viver a história, o que YUNES (2002, p. 20) complementa, discorrendo

do caráter vital, que impele o leitor a colocar-se no lugar do outro, uma em-
patia que o faça encontrar-se com as personagens da obra e consigo mesmo,
no melhor sentido da catarse aristotélica; da verossimilhança que convence
o leitor por mais fantástica que seja a obra e alarga sua percepção de mundo.

Também nessa leitura, Pedro começa a entender algumas características da


natureza humana numa escala cada vez maior e se percebendo parte desse conjun-
to. A ideia que ele tem de si mesmo e o reconhecimento pelo Outro, numa dialética
do mesmo e do diferente, processo experienciado pela leitura de clássicos, pela pas-
sagem do tempo e o amadurecimento literário que vive fazem desse um romance
juvenil de aprendizagem.3
O jovem leitor encontra um texto estruturado em parágrafos, com falas mar-
cadas por travessões. O discurso indireto é bem marcado e facilmente distinguível

3  Embora extremamente relevante, dados os limites do presente trabalho, esse conceito não será abordado
aqui, mas em texto posterior.

175
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

do pensamento do protagonista, o que facilita a leitura sem subjugar o psiquismo


dos que se desafiam à leitura de O fazedor de velhos (2017). As constantes intertex-
tualidades com outras obras literárias aparecem com letras em itálico, uma vez que
são passagens literais delas.

Quando terminei de fazer o seu perfil, fui fisgado por uma sensação desa-
gradável. Estava ao mesmo tempo horrorizado pelas crueldades do Edmund
(personagem do rei Lear), e extremamente atraído por sua filosofia de vida.
[...] Embora fosse praticamente um monstro humano, alguma coisa nele era
um reflexo de mim (LACERDA, 2017, p. 70).

Esse constante contato com a literatura faz Pedro compreender a lógica das
personagens. Este “é o elemento decisivo da verdade dos seres fictícios, o princí-
pio que lhes infunde vida, calor e os faz parecer mais coesos, mais apreensíveis e
atuantes do que os próprios seres vivos” (CANDIDO, 2011, p. 80). E passa até a
compreender as atitudes de Mayumi através das leituras que ela gosta: “O que me
impressionou, na hora, confesso, foi menos a literatura e mais constatar o quanto
aqueles poemas se ajustavam perfeitamente ao espírito de Mayumi. Eram racionais
e materialistas, no melhor sentido do termo” (LACERDA, 2017, p. 70). Dessa for-
ma, ele percebe uma grande verdade refletida através da literatura.
Quando o protagonista relata suas impressões do texto shakespeareano, a
linguagem revela como ele ‘vive’ a leitura: “Ao ouvir isso, Cordélia fica na maior afli-
ção, pois conclui que ele ainda está sem juízo” (LACERDA, 2017, p. 73). A apropria-
ção do discurso do autor lido revela a grande competência linguístico-literária do
protagonista. Tamanha emancipação não o faz preocupar-se veementemente com a
imagem que os outros têm dele e seus conflitos pessoais parecem estar resolvidos.
Incisivamente, a opinião do velho Nabuco era uma das únicas que o fazia reconsi-
derar aspectos sobre si, como é possível depreender no diálogo entre eles:

- O historiador, para entender o homem do passado, precisa recuperar aquilo


que é do homem, aquilo que é do seu tempo. E que só existiu ali; naquele
homem, naquele tempo, daquele jeito, e nunca mais. Você não é assim. Você
deseja passar por cima das diferenças.

Dei um sorriso amarelo. Era uma descrição sintética e precisa.

176
Estudos Literários

- O tempo, para o historiador, tem divisões claras entre passado, presente e


futuro. Para você, no fundo, é como se o ontem e o amanhã não existissem.
Passado, presente e futuro são uma coisa só: o presente.

Como aquilo era verdade! Eu era mesmo neuroticamente preocupado em


ter consciência do presente, de cada momento vivido. Em outras palavras, eu
morria de medo de morrer.

E o velho Nabuco tinha mais verdades para me mostrar, verdades que eu


escondia de mim mesmo.

- Quando você pega um livro para ler – disse ele -, sua postura não é a de
um cientista. Você não lê primeiro para depois saber se concorda com o que
o livro diz ou não. Você já vai para a leitura com a predisposição de aceitar
tudo. Você procura sempre o que é comum a você.

Balancei a cabeça, rindo de me ver dissecado com palavras.

- Isso porque você não se propõe a analisar e criticar o autor. Jamais como um
“objeto” de estudo. Você se propõe a gostar dele. E de quem você gosta você
aceita tudo, menos deslealdade (LACERDA, 2017, p. 115-116).

A autoavaliação por qual Pedro passa reforça seu amadurecimento pessoal e


cultural. Esse espaço de tempo entre o final da adolescência e o início da vida adulta
incorre em descobertas e reconstrução de valores e concepções, bem como a refle-
xão que ele faz da sua vida ao longo da narrativa. Com o último teste de Nabuco, Pe-
dro vive uma situação onírica próxima ao clímax, quando uma sombra o leva para
conhecer seu futuro e o das pessoas de seu convívio. Segundo Wagner (2010), existe
uma necessidade de fantasiar ativamente e de recorrer, quase constante ao meca-
nismo de intelectualização, o qual seria uma forma específica do processo de pen-
samento nessa idade da vida, aspecto bem representado pelas descrições do sonho.
O velho professor sugere que a verdadeira profissão de Pedro é a de escritor
“– É isso mesmo – ele me interrompeu, sorrindo do meu espanto, e completou a
frase escolhendo as palavras: - A sua realidade é ficção” (LACERDA, 2017, p. 130).
Na relação que Pedro tem com Nabuco, de aceitar seus testes para descobrir sua
vocação, consistiu, basicamente, em ensinar a ler não somente o texto, mas também
a realidade. Nabuco foi o adulto ‘eleito’ na vida do jovem para lhe auxiliar nas esco-

177
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

lhas e descobertas durante a adolescência. Ao final da narrativa, já no leito de morte


do professor, num gesto de afetividade e gratidão por suas valiosas contribuições
“Não conseguia para de pensar no professor” (LACERDA, 2017, p. 146).
A partir de então, o protagonista se vê diante de um novo impasse, ao co-
nhecer sua vocação e não saber como lidar com ela “Nos primeiros dias, fiquei
cerimonioso. Os grandes escritores para mim eram deuses. Diante do computador,
fiquei meio sem rumo, combinando palavras, ideias e sentimentos” (LACERDA,
2017, p. 130). Mesmo adulto, a insegurança a respeito de fato que pode mudar a
vida fez Pedro refletir sobre como dar início a essa nova etapa, inclusive literária, da
vida. O novo olhar sobre sua paixão por livros faz “relacionar aspectos psicológicos
do desenvolvimento humano com questões de cunho literário” (WAGNER, 2010, p.
153) consolidando mais uma face da metaliteratura.
Esse lidar com a Literatura como produtor e não mais como consumidor dá
ao rapaz uma nova visão tanto do mundo real quanto do ficcional. Dúvidas quanto
à linguagem e todos os elementos que formam o texto literário permeiam o ima-
ginário do jovem. Inclusive, a concepção de tempo se altera, fazendo-o pensar que
ele é relativo, levando-o a compreender o apelido dado por Mayumi a Nabuco, “Fa-
zedor de velhos”. Diante do desafio da escrita literária, Yunes (2002) reitera que é
necessário articular diversos elementos para ter sensibilidade e respeito com o leitor
durante o ato criativo:

Em todo caso, a obra deve ser considerada em diferentes níveis e convidar o


leitor à releitura. Uma boa história satisfaz as necessidades mais insuspeitas
de quase todo leitor, sem diferenças de idade. Pode não dizer se o mundo real
é bom ou mau, porque nele coabitam a imaginação e o cotidiano, mas a obra
oferece um distanciamento político e poético para contemplá-lo (p. 20).

E Pedro sabe como essa relação texto-leitor é importante, pois se mostrou


não só um leitor voraz, mas crítico e bastante competente para os padrões atuais no
Brasil. Essa bagagem literária, desenvolvida ao longo de toda uma vida o permite ter
consciência crítica frente ao novo desafio.
Nesse sentido, a apologia à leitura do texto literário é feita através da forte
relação que Pedro tem com a Literatura desde a infância. E, por ser uma obra aberta,
em que nada é imposto ao leitor, abre uma gama de reflexões sobre temas essenciais

178
Estudos Literários

ao ser humano. Valorização da sabedoria, cultura, literatura, realização profissional,


amor e respeito, por exemplo, são temas que podem perpassar pelos livros para a
adolescência, podendo ser um convite ao desenvolvimento do conhecimento. Os
doze capítulos sinalizam bem cada etapa por qual o protagonista passa até chegar à
fase adulta. Para Langaro e Bertin (2015, p. 62):

É inexplicável o mundo de reflexões que se estabelece no leitor após a recep-


ção ou contato com a obra literária. As provocações que a literatura estabele-
ce implicam em relações humanas, mudança de ideias e de comportamento,
assim como de perspectiva diante do mundo.

A valorização da sensibilidade e da emoção salta aos olhos nessa obra con-


temporânea da literatura juvenil brasileira. A consciência crítica e estética corro-
bora para que se perceba o enredo e os personagens como protótipos, claramente
distintos dos estereótipos, dando evidência ao pensar em detrimento das previsíveis
e recorrentes narrativas de mercado. Ao “conseguir estabelecer com o leitor um
fluxo recíproco de troca de energias que possibilite a expansão do imaginário, evi-
tando o pedagogismo e o condicionamento das imagens” (TURCHI, 2002, p. 40),
contrariam-se as tendências mercadológicas, que repetem as fórmulas que deram
certo sem preocupação com conexões entre os diversos conhecimentos humanos.

Considerações finais
As questões pessoais que incomodam o protagonista acerca da escolha de
uma profissão que o satisfaça foram tratadas sob a perspectiva do próprio jovem,
justificada pela opção do narrador em primeira pessoa. Dessa forma, os dilemas vi-
vidos aparecem, inclusive, através da voz direta de outros personagens e da maneira
como o próprio Pedro revela seus pensamentos diante da alteridade. A linearidade
dos fatos permite que mesmo um leitor menos experiente se sinta confortável diante
da estrutura composicional da obra, assim como da contemporaneidade temática.
Langaro e Bertin (2015) entendem que o termo velhos, nessa obra, pode re-
meter ao amadurecimento através da literatura, à consciência da passagem do tem-
po, à maturidade advinda da sabedoria e à vivência. Eis a grande metáfora do títu-
lo. Em sua declaração “Envelheci muitos anos em poucas horas. Fiquei muito feliz

179
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

com isso” (LACERDA, 2017, p. 148), Pedro demonstra ter entendido a relatividade
do tempo ao ver o filho pela primeira vez. Todo o percurso trilhado por ele nesse
romance de iniciação evidencia uma grande aprendizagem sobre si, seu perfil pro-
fissional, a passagem do tempo e a relação que o rapaz estabelece com a Literatura.
Recursos narrativos como a intertextualidade, expressa por meio de transcri-
ções de outras narrativas, enriquecem a metalinguagem do texto e exaltam a apolo-
gia à leitura literária. As escolhas linguísticas pela variedade padrão entremeada pe-
la expressões coloquiais e gírias dão autenticidade à reprodução da fala adolescente.
A audácia de imbricar os discursos do narrador com o dos textos que ele lê e com o
dos demais personagem promovem um desafio para os leitores, exigindo-lhes certa
maturidade e experiência com essa arte. A segunda edição da obra é isenta de ilus-
trações e das cores vibrantes da primeira e tem, inclusive, uma capa pouco atraente,
mas a formatação e a qualidade do papel são impecáveis. A contracapa conta com
indicações de Antonio Prata, escritor, Le Monde Diplomatique Brasil e O Estado de
São Paulo, já as orelhas oferecem um breve resumo do livro, os prêmios recebidos e
um pouco sobre o autor, elementos bastante percebidos pelos adolescentes.
Condensar o estudo teórico-literário da obra O fazedor de velhos (2017), em
que se refletiu sobre a construção da identidade, a passagem do tempo e a apologia
à leitura literária pode reverberar nas pesquisas da Literatura Juvenil. Em conso-
nância com temas de interesse desse grupo etário, vê-se também uma formação
humanizadora, através de aspectos imbricados na vida do jovem, de forma a con-
tribuir para o desenvolvimento em que pesem eixos globais de formação, cuidado,
conhecimento e aprendizagem que a fase exige. Nesse sentido, não se esgotam aqui
as possibilidades de estudos teóricos para essa obra de Rodrigo Lacerda, que ainda
tem muito a dizer.

Referências bibliográficas
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de
Lima Reis e Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
CANDIDO, Antonio. A personagem do romance. In: CANDIDO, Antonio [et al.]. A
personagem de ficção. 12 ed. São Paulo: Perspectiva, 2011.

180
Estudos Literários

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomaz Tadeu da


Silva e Guacira Lopes Louro. 12ª ed. Rio de Janeiro-RJ: Lamparina, 2014.
LACERDA, Rodrigo. O fazedor de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
LANGARO, Cleiser Schenatto; BERTIN, Diana Maria Schenatto. A formação
humanizadora pela Literatura em o fazedor de velhos. Revista Trama - Volume
11 - Número 21 - 1º Semestre de 2015
TURCHI, Maria Zaira. O estatuto da arte na literatura infantil e juvenil. In: TURCHI,
Maria Zaira; SILVA, Vera Maria Tietzmann (orgs.) Literatura infanto-juvenil:
leituras críticas. Goiânia: Ed da UFG, 2002.
WAGNER, Tânia Maria Cemin. Adolescência: aspectos psicodinâmicos. In:ZINANI,
Cecil Jeanine Albert; SANTOS, Salete Rosa Pezzi dos (orgs.). Multiplicidade dos
signos: diálogos com a literatura infantil e juvenil. 2ª ed. Caxias do Sul, Rs: Educs,
2010. P. 153 – 167.
YUNES, Eliana. A crítica da literatura infantil: coisa de leitor grande. In: TURCHI,
Maria Zaira; SILVA, Vera Maria Tietzmann (orgs.) Literatura infanto-juvenil:
leituras críticas. Goiânia: Ed da UFG, 2002.

181
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Cortando a carne: As
fronteiras entre o serial killer
e o canibal no cinema
Estela Fiorin1
Alexander Meireles da Silva2

Serial killers acabam descobertos. Esquece aposentadoria.


Mas não pode acabar assim, ainda é cedo. Não estou pronto.3

Introdução
Dentre os tabus mais arraigados da humanidade, o canibalismo ocupa lugar
de destaque, algo que se confirma através de todas as culturas e em variados pe-
ríodos ao longo da história da humanidade. Ele marca o espaço entre o humano e
o monstruoso, entre o Eu e o Outro. O canibalismo horroriza por estar escondido
dentro de cada um, aguardando um contexto em que a circunstância e a situação
nos leve a considerá-lo. Por este motivo, ele sempre marcou presença, não apensar
na História, mas também em narrativas ligadas à Fantasia, ao Gótico e ao Horror,
tanto em obras literárias, quanto em filmes e seriados. Transgressão seria, portanto,
a palavra-chave para entender tal ação. Tratando-se da Modernidade, a transgres-
são ganhou uma outra dimensão, apresentando uma nova criatura gestada na selva
de pedra das grandes cidades: o serial killer.
O serial killer é um assassino diferenciado: de perfil psicopatológico, é um
indivíduo que comete uma série de homicídios durante algum período de tempo,
normalmente deixando sua assinatura e tendo uma maneira de fazê-lo bastante

1 UFG/RC
2 UFG/RC
3  Dexter. Episódio 06, 1ª temporada, em que o serial killer afirma utilizar o pseudônimo Patrick Bateman.

182
Estudos Literários

individual, fato que o diferencia dos assassinos em massa, indivíduos que matam
várias pessoas em questão de horas. Como a pesquisa busca demonstrar, as vítimas
representam um símbolo sobre o qual eles exercem poder e controle, algo relacio-
nado aos tipos de serial killers, sendo eles visionário, missionário, emotivo e sádico.
Neste último, encaixam-se os canibais, sujeitos que matam por desejo e seu prazer
é proporcional ao sofrimento da vítima sob tortura. Quanto as vítimas, estas são
escolhidas ao acaso ou por algum estereótipo com significado simbólico para eles.
A ação da vítima não precipita a ação do assassino, ele tem necessidade de dominar
e as vítimas não são parceiras na realização de fantasias.
Com base nas informações supracitadas, a proposta deste trabalho se justi-
fica pela busca de entendimento dos efeitos da Modernidade sobre o ser humano a
partir das últimas décadas do século XIX em relação ao tema canibalismo, levan-
do-se, portanto, ao entendimento do ser humano nos dias de hoje.
Este trabalho objetiva, a partir de uma pesquisa exploratória e descritiva,
realizar uma trajetória do serial killer canibal real e sua representação no cinema,
relacionando o tempo e o espaço das obras citadas. Para tanto, primeiramente será
realizada uma análise do tema canibalismo como reflexo de uma cultura. Na se-
quência, será analisado como o espaço da cidade promoveu a ascensão de um novo
predador urbano: o serial killer. Posteriormente, serão analisados os personagens
ligados à este universo, em busca de denominadores comuns, para avançarmos ru-
mo aos objetivos.
Ao longo deste processo, serão estabelecidos pontos de contato com questões
da contemporaneidade, no que se refere à relação do monstruoso com as classes
populares. Para tanto, serão contemplados os trabalhos teóricos de pesquisadores
como Jeffrey Jerome Cohen, Fred Botting, Julia Kristeva, Oziris Borges Filho, Gas-
ton Bachelard, entre outros.
Dentro desta delimitação, buscar-se-á analisar as práticas canibais na figura
real de Jack Estripador (1888), e o personagem fictício Patrick Bateman (Psicopata
Americano, 2000). A conclusão esperada é a relação entre as personagens supraci-
tadas, no que tange ao tempo e ao espaço de cada obra.

183
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Canibalismo como reflexo de uma cultura


O canibalismo humano e real é um tabu para o coletivo, que o tem como
algo a repelir. Muitas tribos o fazem como forma de respeito aos entes queridos que
partiram para o plano espiritual, outras comem o adversário morto para adquirir
força. Existe também o canibalismo como forma de alimentação, que se alastrou em
meio à fome e à miséria na Europa (DIEHL; DONNELLY, 2007). Ao final de nossa
análise também trabalharemos com assassinos em série que, por sua vez, eram ca-
nibais descontrolados.

A história do canibalismo: questões histórico-antropológicas


(o canibalismo na cultura)
O canibalismo aparece anteriormente a qualquer relato de antropólogos ou ar-
queólogos. É um conhecimento ou prática enraizado nas culturas, passado de geração
em geração e dotado de diferentes motivações e características ao longo do tempo.
A palavra “canibal” tem origem no idioma arawan, falado por uma tribo da
América do Sul que realizava a prática. Na Pré-História, diversos vestígios de corpos
esquartejados e ossos quebrados levantam a hipótese de que esse tipo de “dieta” foi
presente entre alguns povos de época. O canibalismo pode não ter sido a prática
preferida, mas em tempos de necessidade qualquer carne é melhor do que nenhuma.
Segundo Daniel Diehl e Mark P. Donnelly, em Devorando o vizinho: uma his-
tória do canibalismo, é preciso mais para entender a qual estrutura os ancestrais da
humanidade estavam acostumados. Nas cavernas do monte Longgu, ao sul de Pe-
quim, China, os abundantes vestígios do Homem de Pequim, de 500 mil anos atrás,
oferecem claras evidências de que entre as fontes de alimentação estavam outros
humanos (DIEHL; DONNELLY, 2007, p. 23). Essas evidências são muito similares
às encontradas na região centro-norte da Espanha; outros sítios arqueológicos na
Grã-Bretanha e na Iugoslávia também apresentam indícios da prática canibal.
O termo “antropofagia”, do grego explicado por Heródoto no século V a.C
(antropos, que significa homem, e phagein, comer) é o mais adequado para designar
o homem que devora seu semelhante. Já a origem da palavra “canibal” foi cunhada
pelo grande explorador Cristóvão Colombo depois da sua chegada às ilhas da Índia

184
Estudos Literários

Ocidental, conhecidas como as Pequenas Antilhas, hoje chamadas de Caribe. Nesse


sentido, cumpre transcrever as palavras de Diehl e Donelly:

Entre as tribos das Pequenas Antilhas existia um povo que se referia a si mes-
mo como —cariba||. Os exploradores espanhóis concluíram, erroneamente,
que este era o nome que davam a si próprios, quando na verdade era um
nome descritivo significando —corajoso|| ou —bravo||. Os espanhóis tinham
certa dificuldade em pronunciar —cariba|| e diziam —caniba||. De —caniba||
evoluiu para —canibal||, e uma vez descoberto que os —canibais|| cometiam
o pecado máximo de comer carne humana, o nome dos habitantes dessas
ilhas se recobriu de um significado inteiramente novo e genérico. Nos cinco
séculos seguintes às viagens de Colombo para o Novo Mundo, o termo —ca-
nibal|| tem sido utilizado para difamar quase toda cultura vista como inferior,
para descrever grupos ou indivíduos que consomem ou no passado consu-
miam carne humana (DIEHL; DONELLY, 2007, p. 30-31).

Por vezes o termo não é suficiente para abranger os motivos que levam cer-
tos grupos a consumirem a carne da própria espécie. Sob a classificação ampla de
“antropofagia” há subclassificações, como o “endocanibalismo” – consumir amigos
ou parentes mortos como um ato de respeito – e o “exocanibalismo” – ato de ingerir
inimigos mortos em batalhas ou como sacrifício a uma divindade.
A prática canibal foi praticada por grupos tribais humanos nos quatro can-
tos do mundo, ou seja, existem inúmeras razões básicas que podem explicar por
que uma sociedade praticaria o canibalismo. Pode ser parte de uma cerimônia que
honra os mortos; uma celebração pós-guerra, na qual a bravura do inimigo é absor-
vida; um meio desesperado de se defender da fome extrema ou, ainda, de superar
a deficiência de proteínas da dieta básica; e também pode haver sociedades que o
fazem por apreciarem o sabor da carne. No geral, há um aspecto religioso nesses
procedimentos em que, de uma maneira ou outra, dentro de estruturas sociais, o
canibalismo é aceito. Nessas sociedades, a carne humana tem sido considerada fre-
quentemente pouco mais do que uma forma de prêmio de guerra a ser comparti-
lhada com os vitoriosos.
Ainda em seu livro, Diehl cita que alguns exemplos estão divididos por re-
giões geográficas. Um dos primeiros relatos de canibalismo marcial foi do historia-

185
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

dor Tácito, para quem, segundo seus Anais, guerreiros celtas arrancavam a cabeça
dos inimigos vencidos e davam-nos aos seus sacerdotes, que comiam seus cérebros,
acreditando que seriam impregnados com sua sabedoria.
Em 1520, o conquistador Hernán Cortés que teve contato com os astecas,
quando chegou ao seu destino, se deparou com a prática de canibalismo numa es-
cala inimaginável. Podemos utilizar das palavras de Diehl para melhor entender:

Ao entrar no território asteca, a expedição de Cortés, encontrou corpos semi-


devorados espalhados ao longo da estrada e homens enjaulados aguardando
serem consumidos. [...] A maioria dos atos de canibalismo dos astecas era
realizada em conexão com o sacrifício ritualístico. [...] Nessas cerimônias as
múltiplas vitimas – com frequência em número de centenas ou milhares –
subiam, em procissão, ao topo dos templos no alto das pirâmides, onde seus
peitos eram apertos e seus corações, ainda batendo arrancados. Seus corpos
então eram lançados pirâmide a baixo para serem divididos entre as pessoas,
de acordo com sua classe social (DIEHL; DONELLY, 2007, p. 33, 34).

A conquista espanhola foi tão sangrenta quanto os sacrifícios astecas, Cortés


ainda testemunhou muitos de seus homens serem capturados, torturados e devo-
rados. Por volta de 1530, muitos europeus ainda nutriam a ideia de que índio bom
era índio morto, justamente pelos fatos que se deram a partir do povo asteca. Esse
pensamento também acompanhou o homem ao conquistar o território que hoje
pertence aos Estados Unidos e ao Canadá.
Vê-se, portanto, o canibalismo em suas origens e como ele se manifestou ao
longo dos séculos, não somente por prazer, mas também para concretizar crenças
e para reverenciar deuses, acontecimentos julgados como aceitáveis dentro de de-
terminada cultura. Utilizando ainda o livro Devorando o vizinho: uma história do
canibalismo, é possível encontrar exemplos, justificativas nas quais o canibalismo
também se deu devido à fome e por guerras em vários pontos do planeta, ou seja,
comer carne humana em circunstâncias desastrosas ou extremas com o propósito
de sobrevivência, mesmo que a cultura dos envolvidos não admita tal prática. A
fome desesperada foi um dos fatores que mais causou o ato canibal, quando não há
outra saída, a moralidade é posta de lado (DIEHL; DONNELLY, 2007).

186
Estudos Literários

O Egito medieval (1200-1201) é um dos relatos mais surpreendentes de fome


coletiva. Nesse período, um observador chamado Abd Al-Latif escreveu que mais
de quinhentas pessoas morriam por dia em sua cidade (Cairo). Enlouquecidas pela
fome, primeiramente as pessoas se limitavam a comer apenas os mortos; mais tarde
passaram a devorar uns aos outros. Al-Latif escreveu que testemunhou crianças
serem assadas e vendidas em mercados públicos. As autoridades tentaram conter a
onda de ataques, porém sem sucesso. A prática de comer carne humana passou a ser
tão comum que mesmo depois do término da fome, algumas pessoas continuaram a
ingerir carne humana por puro prazer (DIEHL; DONNELLY, 2007).
Existem exemplos mais comuns quando falamos de antropofagia quando
ligada à fome; esses estão ligados a naufrágios, quando os mais fortes de fato con-
sumiam os mais fracos. Um dos acontecimentos em alto-mar foi em 1816, quando
a embarcação Medusa, uma fragata francesa, inundou e afundou a caminho do Se-
negal. Cerca de 150 pessoas sobreviveram e se agarraram a uma seção intacta do
barco. Durante dias as pessoas agonizaram, morrendo devagar devido a seus feri-
mentos, fome e sede. Inevitavelmente a desordem tomou conta e alguns 15 foram
assassinados; o sangue e a carne foram devorados por seus atacantes. Quando a
balsa foi resgatada, apenas alguns ocupantes ainda estavam vivos.
O desespero os levou a retornarem a seus instintos primitivos, após sofrerem
de difteria e tifo. Segundo o site Terra, em janeiro de 2014, a Rússia comemorou o
aniversário de 70 anos da ruptura do trágico cerco às tropas nazistas à então cidade
de Stalingrado, um dos episódios mais traumáticos da Segunda Guerra Mundial,
que entre 1941 e 1944 matou pelo menos 1 milhão de pessoas [PORTAL TERRA,
2014, [s.p]).
É perceptível, portanto, que existe uma variedade de razões pelas quais in-
divíduos e sociedades se engajam na prática canibal. Primeiramente, mostrou-se o
contexto histórico e antropológico. Depois, foi possível entender as tribos e seus ri-
tuais e, por fim, o canibalismo por sobrevivência, no qual em geral a população con-
dena o consumo de carne humana quando não em situações de pobreza e desordem.
Por quaisquer desses motivos, o canibalismo é compreendido, porém não aceitável.
Um último tipo de canibalismo é o aberrante, realizado por indivíduos da
sociedade que de fato condenam essa prática. Não são casos de desespero, ideologias
ou crenças religiosas aceitáveis. São ações de sociopatas, psicopatas e mentes doentes.

187
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Segundo Nahlah Saimeh4 (2007) em seu artigo Canibalismo: da cultura à


perversão, o ato de comer carne humana, praticado por culturas ancestrais e du-
rante alguns períodos de escassez, representa a concretização de fantasias sexuais
sádicas que indicam problemas na constituição da identidade. Nos dias de hoje, está
sempre associado a indivíduos de alguma forma deslocados na sociedade e quase
sempre portadores de transtornos psíquicos.
Os ataques canibais da modernidade são cometidos por pessoas com trans-
tornos de personalidade, ou seja, os psicopatas. A teoria freudiana acredita que a
agressão nasce dos conflitos internos do indivíduo (CASOY, 2014, p. 19). Psicopa-
tas são os melhores mentirosos e manipuladores. Não sentem remorso ou empatia.
Canibais psicopatas têm maior probabilidade de serem serial killers – classificados
como sádicos –, ou seja, matam por desejo, sentindo prazer diretamente proporcio-
nal à dor da vítima (CASOY, 2014, p. 21).
Diante da informação de que o canibalismo é muito mais antigo que a pró-
pria sociedade em si, que, apesar de ser uma prática desprezada pelas comunidades
num todo, foi aceito devido à falta de alimento ou por conquistas territoriais, passa-
se a discutir essa prática como uma interdição social, ou seja, quando o indivíduo
se utiliza do canibalismo a despeito das regras da comunidade em que está inseri-
do. Também chamada de “antropofagia patológica”, está relacionado a transtornos
mentais e de personalidade, sadismo, a algum tipo de prazer sexual ou até à curio-
sidade. A ingestão de carne humana por assassinos tem vários motivos, alguns se-
melhantes aos rituais do canibalismo praticado por tribos ou que tem a fome como
justificativa. Porém, nesses casos, é considerado homicídio de primeiro grau.
Muitos desses criminosos são considerados serial killers que, segundo Ilana
Casoy, são indivíduos que cometem uma série de homicídios durante algum perío-
do de tempo, com pelo menos alguns dias de intervalo entre esses. O intervalo entre
um crime e outro os diferencia dos assassinos em massa, indivíduos que matam
várias pessoas em questão de horas. As vítimas representam um símbolo sobre o
qual eles exercem poder e controle. Em seu livro Serial killers: louco ou cruel?, Casoy
divide os assassinos em série em quatro grupos: visionário, missionário, emotivo e

4  Médica especialista em medicina legal e diretora do Centro de Pesquisas Forense da Vestfália (Alemanha).

188
Estudos Literários

sádico (CASOY, 2014). Neste último, encaixam-se os canibais, sujeitos que matam
por desejo. Seu prazer é proporcional ao sofrimento da vítima sob tortura. As ví-
timas são escolhidas ao acaso ou por algum estereótipo com significado simbólico
para eles. A ação da vítima não precipita a ação do assassino, ele tem necessidade
de dominar e as vítimas não são parceiras na realização de fantasias. O motivo do
assassinato, no geral, só faz sentido a ele, pois “o crime é a própria fantasia do cri-
minoso, planejada e executada por ele na vida real. A vítima é apenas um elemento
que reforça a fantasia” (CASOY, 2014, p.25). Os assassinos em série também têm sua
dissociação normal, quer dizer, sabem diferenciar sua vida em relação à fantasia:

O que capacita a dissociação é a fantasia. Quanto mais intrincada, maior é


a distância mentalmente criada entre o comportamento criminoso do serial
killer e o verniz superficial de personalidade que ele construiu. Sem esse ver-
niz, serial killers não poderiam viver na sociedade sem serem presos de ime-
diato (CASOY, 2014, p. 27).

O criminoso sabe exatamente o que é humilhante, desrespeitoso, doloroso e


degradante para a vítima, e seu comportamento não é egocêntrico, o seu prazer sim.
Por isso, nem todos são sociopatas ou psicopatas. Sociopatas são pessoas que ficam
nervosas facilmente e se agitam com frequência. Eles são propensos a explosões
emocionais, incluindo acessos de raiva. Vivem à margem da sociedade, incapazes
de manter um emprego estável ou de ficar em um lugar por muito tempo. É difícil,
mas não impossível, para um sociopata, formar ligações com outros. Já os psicopa-
tas são incapazes de formar ligações emocionais, embora muitas vezes eles tenham
personalidades encantadoras. Psicopatas são manipuladores e podem facilmente
ganhar a confiança das pessoas (PSICONLINEWS, 2014, [s.p]). Eles aprendem a
imitar emoções, apesar de sua incapacidade de realmente senti-las, e vão parecer
normais para pessoas inocentes. Os psicopatas têm total controle comportamen-
tal. Kerry Daynes, psicóloga forense, em seu livro Como identificar um psicopata,
diz que os psicopatas podem ser qualquer um, são pessoas destituídas de qualquer
empatia; que cada um tem uma série de problemas emocionais e comportamentos
antissociais (DAYNES, 2012, p. 29).
Essas pessoas ditas psicopatas tentam conseguir tudo o que desejam. De-
monstram falsa preocupação com o outro, sem capacidade de entender sentimen-

189
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

tos alheios. Observando as pessoas, os psicopatas rapidamente entendem como a


reação da futura vítima e as seduzem para equipar uma vida de crimes (DAYNES,
2012, p. 30).
Fazendo uma breve retrospectiva de assassinos em série, primeiramente
citamos Jeffrey Dahmer, um verdadeiro lobo em pele de cordeiro, um psicopata
clássico, nascido em 1960 no estado de Wisconsin, EUA. Em Serial Killers, louco ou
cruel? Ilana Casoy (2014), o descreve como uma criança e adolescente introspectivo
e conturbado, devido a problemas psicológicos da mãe e do alcoolismo do pai. Na
vida adulta, serviu no quartel a pedido do pai. Depois, foi morar com a avó. Sua
violência aumentava conforme seu lado emocional piorava. Nessa época ninguém
sabia que ele era um matador, necrófilo e canibal. Dahmer fez pelo menos 17 víti-
mas e foi sentenciado a prisão perpétua pelo júri. O ritual post mortem era muito
sofisticado; ele guardava em sua casa partes das genitálias, mãos e crânios. “Comia
seus corações e tripas, e fazia croquete de carne humana; adorava fritar os músculos
das vítimas que achava mais atraente e deliciarse com a iguaria” (CASOY, 2014).
Em 1994, foi atacado na prisão e morreu a caminho do hospital. A pedidos
do pai, o corpo foi cremado sem nenhuma cerimônia. No documentário Confissões
de um serial killer5 (1994), Dahmer admite que “quando aconteceu pela primeira
vez eu senti que tinha controle total da minha vida”.
Os serial killers trabalhados neste artigo apresentam-se em dois contextos:
Jack, o Estripador, um assassino em série real, representado no filme From Hell
(2001) e Patrick Bateman, um yuppie americano da década de 1980, representado
no filme Psicopata Americano (2000). A partir das informações supracitadas, será
realizada uma relação entre ambos os psicopatas, inicialmente tratando individual-
mente sobre cada um e, posteriormente, relalcionando-os ao canibalismo social –
canibalismo diretamente ligado à uma luta predatória e à limpeza da sociedade da
época – mostrando tempo e espaço de dois momentos hegemônicos da história:
1888 e a Era Vitoriana, e; 1980 com o apogeu americano.

5  Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ZICLEfdFawk. Acesso em 20 abril 2016.

190
Estudos Literários

Jack, o Estripador
Jack, o Estripador é o pseudônimo mais conhecido para designar um famoso
assassino em série não identificado que atuou na periferia de Whitechapel, distri-
to de Londres, e arredores em 1888. O nome “Jack, o Estripador” se originou de
uma carta6 escrita por alguém que alegava ser o assassino e a qual foi amplamente
divulgada pela imprensa da época. Acredita-se que a carta seja falsa e talvez tenha
sido escrita por jornalistas em uma tentativa de aumentar o interesse sobre o caso e
vender jornais. O homicida também foi chamado de o “Assassino de Whitechapel”
ou “Avental de Couro” enquanto os assassinatos ocorriam, mas alguns jornalistas
contemporâneos ainda utilizam tais denominações.
A estrada de Whitechapel, em East End, era uma região violenta de Londres,
no fim do século 19. O assassinato de prostitutas já era um crime relativamente
frequente antes de o Estripador inaugurar sua trajetória de mortes, em 1888. Ele
sempre agia em vias de acesso à estrada, escuras e vazias.
Além de violenta, East End sofria com racismo e xenofobia, especialmente
contra judeus, o que motivava depoimentos que incriminavam inocentes. Aliada
a altas doses de superstição e ignorância, a investigação foi um desafio. O ator Ri-
chard Mansfield virou suspeito só porque atuou em uma adaptação teatral de O Es-
tranho Caso do Doutor Jekyll e do Senhor Hyde, livro que narra crimes cometidos
na cidade (veja quem eram os outros suspeitos de ser Jack, o Estripador).
Oficialmente, foram cinco vítimas, todas prostitutas: Mary Ann Nichols, An-
nie Chapman, Elizabeth Stride, Catherine Eddowes e Mary Jane Kelly. Os crimes

6  A carta “Dear Boss” foi uma mensagem alegadamente escrita pelo notório assassino em série vitoriano
conhecido como Jack, o Estripador. Foi carimbado e recebido em 27 de setembro de 1888, pela Central News
Agency de Londres. Foi encaminhada para Scotland Yard em 29 de setembro. “Querido Chefe, Eu continuo
ouvindo que a polícia me pegou, mas eles não vão me corrigir ainda. Eu ri quando eles pareciam tão inteligen-
tes e falavam sobre estarem no caminho certo. Aquela piada do “Avental de Couro” me deu ataque de risos.
Estou chateado com as putas e não deixarei de estripá-las até que eu esteja farto. O último foi um trabalho
grandioso. Eu nem dei à senhorita tempo para gritar. Como eles vão me pegar agora? Eu amo meu trabalho e
quero começar novamente. Em breve ouvirão falar de mim com meus joguinhos divertidos. Guardei alguma
substância vermelha em uma garrafa de cerveja de gengibre para escrever, mas estava tão espessa como a cola
e não pude usá-la. A tinta vermelha é apta o suficiente, espero, ha, ha. No próximo trabalho cortarei as orelhas
das senhoritas e as enviarei à polícia para me divertir. Mantenha esta carta em segredo até que eu tenha feito
um pouco mais de trabalho e depois publique-a logo de cara. Minha faca é tão bonita e afiada que quero come-
çar a trabalhar agora mesmo, se eu tiver uma chance. Boa sorte. Sinceramente seu, Jack, o Estripador. Não se
incomode por eu estar dando meu nome profissional. Não estava bem o suficiente para enviar isto antes de ti-
rar toda a tinta vermelha das minhas mãos. Maldita seja. Sem sorte ainda, agora dizem que sou médico, ha, ha.

191
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

aconteceram de 31 de agosto a 9 de novembro de 1888 (os corpos de Elizabeth e de


Catherine foram achados com apenas 45 minutos de diferença). Mas é possível que
Jack tenha matado mais mulheres.
Além dos cinco crimes, há outros seis que a mídia da época (e as especu-
lações futuras) colocou na conta de Jack, mas que não constavam na investigação
oficial. A primeira dessas outras vítimas foi Emma Elizabeth Smith, morta em abril
de 1888. A última foi uma mulher não identificada, em fevereiro de 1891.
O método de Jack era bem definido. Em geral, as vítimas apresentavam muti-
lações no rosto, no abdômen e nos genitais, cortes profundos no pescoço e remoção
de órgãos, como rim, coração e útero. Todos os crimes foram cometidos à noite,
sempre aos fins de semana. À medida que o número de casos aumentava, as mu-
tilações ficavam mais agressivas. Jack usava, provavelmente, facas e instrumentos
cirúrgicos. Mas jamais uma arma foi encontrada na cena dos crimes. Só um miste-
rioso avental.
Duas testemunhas disseram ter visto o assassino. Elas o descreveram como
um homem de pouco mais de 1,60 m, bigode e jaqueta. Em vez da cartola, eterniza-
da na ficção, Jack usaria um chapéu deerstalker, típico modelo usado por caçadores
ingleses. Uma das testemunhas afirmou que ele parecia um estrangeiro – mesmo
sem ter visto seu rosto.
O Estripador teria deixado três cartas. Mas duas delas teriam sido forjadas
por jornalistas para aumentar a publicidade em torno do caso. Ambas mencionam
a alcunha “Jack, o Estripador”, criada pela imprensa. A outra, a mais famosa delas,
chama-se Do Inferno (nome do filme em que Johhny Depp interpreta o investiga-
dor do caso). Uma das passagens mais sombrias dizia: “Envio-lhe metade de um
rim preservado que eu tirei de uma das mulheres. O outro pedaço eu fritei e comi,
foi muito agradável”.
As investigações tiveram a colaboração de um número incomum de gente
para a época. Mais de 2 mil pessoas prestaram depoimento, mais de 300 foram
investigadas e 80 foram detidas para interrogatório. Mas, como os procedimentos
forenses da época eram pouco precisos – sem contar o talento do assassino e o
contexto violento e supersticioso da região -, o caso jamais foi concluído. As inves-
tigações terminaram em novembro de 1891.

192
Estudos Literários

Jack, o Estripador no cinema


Baseado na graphic novel de Alan Moore e Eddie Campbell, From Hell resga-
ta a história de Jack, o Estripador através da jornada de um detetive (Johnny Depp)
viciado em ópio, que tem suas intuições através de sonhos saídos do transe.
Era vitoriana, o ano de 1888, nas ruas de Londres, prostitutas eram assassi-
nadas de maneira brutal, tendo seus órgãos retirados e o pescoço cortado. Cabe ao
inspetor Frederick Abberline desvendar esse mistério, mas o jovem detetive sofre
com a lembrança de uma tragédia pessoal e tem no ópio seu refúgio. Paralelo a isso,
uma misteriosa seita prende e pune uma jovem e todo esse mistério pode ter uma
relação estreita com o Palácio de Buckingham.
A verdadeira identidade de Jack, o Estripador sempre foi um mistério e, por
isso, gerou tantas histórias, versões e suposições. Das mais simples, às mais com-
plexas. Instigado por esse filme, o escritor Russell Edwards diz ter desvendado o
segredo através de um teste de DNA histórico e em seu livro afirma que o homem
por trás do serial killer era Aaron Kosminski, um imigrante polonês de 23 anos,
que trabalhava como barbeiro. Mas, isso não está na trama de Alan Moore e Eddie
Campbell, muito menos no filme dos irmãos Hughes.
Aqui, temos mais uma fantasia, como tantas outras, que vai por um caminho
não visto antes, envolvendo maçonaria, família real e outros mistérios. Não deixa de
ser interessante. Principalmente no início, quando o inspetor começa a investigar
os crimes e vamos mergulhando na Londres da época, suas malezas e as relações
humanas. A realidade da mulher daquela época e a forma como as prostitutas eram
desrespeitadas são retratos de uma sociedade machista e elitista.
Porém, quando as revelações são sendo expostas em tela, o tom sombrio e
gráfico vai ganhando ares exagerados, tornando algumas cenas overs, quase caindo
para o trash. Não que as revelações não fossem críveis, ou mesmo verossímeis, mas
há sempre uma interpretação acima do tom entre os envolvidos e algumas cenas
chegam a beirar o pastelão. Mas, não chega desqualificar o filme como um todo.
A própria construção da estética inicial é muito rica. O jogo de luz e sombras,
a montagem que mostra os crimes, sem mostrar explicitamente, nos dando flashs
que simulam facadas. Tudo é bem instigante e até mesmo, belo. As cenas de transe
do personagem de Johnny Depp também são bem construídas em fotografia, direção

193
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

e montagem, quase como um balé macabro, recheado com flashs de visões. Johnny
Depp, pré-Jack Sparrow, dosa bem a construção de seu personagem, sem grandes
exageros, que faz eco ao Ichabod Crane de A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça.
No século XIX, época em que se passa o filme, o tratamento da sífilis era
realizado com drogas a base de mercúrio, arsênico, bismuto e iodeto, sendo que o
mercúrio causava efeitos colaterais nos enfermos, além de ser um tratamento de alta
toxidade e baixa eficácia. No filme, um dos tipos de preconceitos abordados, é para
com os portadores de sífilis, que como o príncipe tinham que ficar isolados social-
mente. Esse preconceito estava ligado principalmente a promiscuidade, visto que
as prostitutas (ponto discutido no filme) eram fontes potenciais da doença, o que
levaria a sociedade a associar a doença do príncipe com sua relação com prostitutas.
Além disso, o caráter desfigurante da doença faziam com que os seus portadores
fossem ridicularizados e marginalizados socialmente.
O fato do príncipe ser portador da sífilis, no filme, justifica o fato de o médico
da família real (Jack, o estripador em “From Hell”) ter assassinado todas aquelas
prostitutas, visto que o casamento (farsa) do príncipe com Annie, uma prostitu-
ta, faria com que esse segredo fosse revelado pois suas amigas, como testemunhas
do seu casamento, certamente saberiam já que a sífilis é uma doença sexualmente
transmissível e cedo ou tarde os sintomas iriam parecer em Annie e ela iria perce-
bem os sintomas que se manifestando no marido como tremores, déficit cognitivo e
labilidade emocional pois a doença afeta principalmente o Sistema Nervoso Central.
“From Hell” transforma um investigador da polícia em seu personagem cen-
tral, o policial é viciado em ópio, e usa-o para escapar da realidade devido a morte
da sua mulher, e com isso acaba tendo visões durante suas “viagens”, além de pres-
ságios sobre os assassinatos que estava investigando.

Psicopata Americano
Psicopata Americano é um filme estadunidense rodado em 1999 (lançado
em 2000), sendo uma adaptação do polêmico livro do mesmo nome, escrito por
Bret Easton Ellis.

194
Estudos Literários

Patrick Bateman é um yuppie7 que trabalha numa empresa na Wall Street.


Totalmente vaidoso, ele cuida da pele, do corpo, faz exercícios - é o que hoje chama-
mos de metrossexual. Ele, porém, não se sente nem um pouco confortável com con-
corrências, quaisquer que sejam e, no fundo, é frio o suficiente para sentir vontade
de matar sem remoer qualquer sentimento por causa desse pensamento. Vivendo
um relacionamento distante com sua noiva e pensando que as pessoas não o cul-
tuam o suficiente, Patrick começa a matar para satisfazer o seu desejo compulsivo.
O cenário é Manhattan, pleno crescimento econômico em Wall Street, co-
nhecemos Patrick Bateman, funcionário de um banco de investimentos que aparen-
ta ser um homem típico de Wall Street. O filme começa com Bateman reunido com
colegas em um restaurante caro na cidade, estão discutindo onde irão fazer reservas
para jantar (é até um pouco interessante saber já dessa “cena” inicial). Toda a nar-
rativa se passa pelas atividades diárias de Bateman, junto com algumas pessoas que
conhece, idas à restaurantes (sempre com reserva feita), boates (regadas a uso de
drogas sempre que possível) e academia (onde Bateman se gaba por fazer tal núme-
ro de abdominais e flexões) com algumas quebras na estória, onde Bateman explica
seu gosto referente à música pop da época, deixando o expectador com impressão
de ou ser apenas um devaneio qualquer do personagem ou se está contando pra vo-
cê em específico (eu acho mais que a intenção era falar com o expectador mesmo).
Quando está acompanhado de seus colegas, nota-se que as conversas são
bem fúteis, como: qual restaurante eles deverão fazer reserva; qual o melhor modo
de usar tais peças de roupa; quem está com a conta de tal pessoa; quem possui o me-
lhor cartão de visitas e confundindo tal pessoa no restaurante em que estão. Além
disso, Bateman detalha todas as vezes, as roupas que está usando, assim como a das
pessoas com que está interagindo e quase sempre traz à tona o fato de possuir um
cartão American Express platinado.
Quando não está com seus colegas, Bateman busca vítimas para suas ma-
tanças, muitas delas prostitutas ou mendigos da cidade. As prostitutas são atraídas
ao seu apartamento pelo dinheiro fácil, os mendigos são mortos no lugar em que
Patrick os encontra. Os assassinatos não se restringem apenas à essas pessoas, qual-

7  Diz-se de ou jovem executivo, profissionalmente bem remunerado, e que gasta sua renda em artigos de
luxo e atividades caras.

195
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

quer um que desperte o desejo de matança de Bateman “entra pra sua lista” (assim
como no caso de qualquer psicopata). Patrick começa seus assassinatos de maneira
simples, mas conforme progredimos, eles se tornam mais cruéis, complexos e, ouso
dizer, criativos ao próprio modo de Bateman.
Conforme o filme avança, vamos vendo como Patrick perde a sua sanidade,
chegando até a hora de pensarmos se ele não passa de um louco e que nada do que
lemos de fato, aconteceu. A sanidade de Bateman fica tão abalada que começa a
encontrar ossos em lugares improváveis, ser perseguido por coisas estranhas e é
caçado nas ruas da cidade.
Alguns consideram-no bastante violento, mas acredito que esse filme mostre
sangue e agressão na medida certa. Talvez o grande acerto - e isso provavelmente se
deve ao autor do livro em que esse filme foi baseado - seja mostrar Bateman como
um homem extremamente culto, dando-lhe um aspecto de sensatez, principalmen-
te nas cenas em que ele chama as protitutas e antes de cultuar-se e/ou matá-las, ele
discorre sobre discos e músicas famosos, criando um clima de ensinamento e, ao
mesmo tempo, de sedução culta. Logo em seguida, há o contraste e esse é o acerto
do filme. Talvez seja o único acerto, vale ressaltar. Há alguns elementos no filme
cuja finalidade é posta em dúvida, mas acredito que seja apenas causar a dúvida.
Não sabemos ao certo se Bateman é mesmo Bateman, já que há personagens que o
chamam por outro nome e em uma cenas, ao ser chamado por Mark Halberstam,
ele atende por esse nome e sua noiva, interpretada por Reese Whiterspoon, per-
gunta por que o outro o chamou assim. Logo, podemos concluir que há quem o co-
nheça por um nome que não seja Patrick, que ele atende por esse outro nome e que
pessoas próximas dele desconheçam o porquê disso. A somar, há cenas estranhas,
como rastros de sangue imensos, porém imperceptíveis para quaisquer persona-
gens; lençois com manchas de sangue que não chamam a atenção de ninguém e um
final bastante estranho. Isso tudo me fez perguntar se tudo aquilo que aconteceu
com Patrick Bateman foi verdadeiro ou se ele apenas imaginou tudo aquilo.

196
Estudos Literários

Conclusão
Há referências e práticas do canibalismo nas mais diversas épocas e socieda-
des. Desde a pré-história até os dias atuais as pessoas sabem que existem. O que ge-
ralmente não se sabe é a proporção que tomaram e têm tomado na sociedade, sendo
eles canibalismo real ou metafórico. Através da nossa pesquisa fomos capazes de
fazer uma trajetória linear sobre o canibalismo e como ele se alastrou nas diferentes
partes do mundo, por causa de guerras, rituais e até mesmo como assassinatos de
primeiro grau.
O canibalismo relacionado ao crime e à loucura é aquele em que ele aparece
como um elemento a mais dentro de uma situação arbitrária. Sendo assim, quando
relacionado aos rituais podemos chamar de antropofagia, e canibalismo quando
acontece para saciar os desejos e vontades, ou seja, é um ato de crueldade.
Ainda pudemos comparar o ato de comer carne humana, e suas vertentes, com
a ideia de comer o outro, que está camuflada nos contos de fadas. Utilizamos prefe-
rencialmente o livro Devorando o vizinho, uma história do canibalismo, organizado
por Daniel Diehl e Mark P. Donnelly, como embasamento teórico de nosso trabalho.
Para finalizar a pesquisa em torno do canibal, buscamos esse ser nas obras
cinematográficas From Hell e Psicopata Americano. Sem que percebamos, muitas de
nossas personagens favoritas estão relacionadas a crimes de ódio e vingança, esses
que incluem o ato de comer carne humana ou de seu igual.
Crimes e personalidades fortes, malignas e distintas atraem a atenção do pú-
blico. ―A imagem animalesca de devoração exprime a hediondez do crime contra a
humanidade‖ (BRUNEL, 1997, p.761).
Como o objetivo final do trabalho é apresentar as fronteiras entre o serial
killer e o canibalismo no cinema, acreditamos que fomos capazes de concluir que
ambos os filmes se encaixam nas teorias apresentadas.

197
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Referências
CASOY, Ilana. Serial killer: louco ou cruel? Rio de Janeiro: DarkSide Books, 2014.
DAYNES, Kerry. Como identificar um psicopata. Tradução Mirtes Frange de Oliveira
Pinheiro. São Paulo: Cultrix, 2012.
DIEHL, Daniel; DONNELLY, Mark P (Orgs.). Devorando o vizinho: uma história do
canibalismo. Tradução Renato Rezede. São Paulo: Globo, 2007.
FROM HELL. Direção e Produção: Albert Hughes e Allen Hughes; Roteiro: Alan
Moore. Estados Unidos: Twentieth Century-Fox Film Corporation, Underworld
Entertainment, 2001.
O GLOBO. Avião caiu nos Andes e sobreviventes precisaram comer os mortos, em 1972.
2013. Disponível em: <http://acervo.oglobo.globo.com/>. Acesso em: 10 maio
2018.
PORTAL TERRA, Rússia lembra os 70 anos do fim do cerco nazista que levou até ao
canibalismo. 2012. Disponível em <https://www.terra.com.br/noticias/>. Acesso
em: 15 abril 2018.
PSICONLINEWS. Como distinguir um sociopata de um psicopata. 2014. Disponível em:
<http://www.psiconlinews.com>. Acesso em: 20 maio 2018.
PSICOPATA AMERICANO. Direção: Mary Harron. Produção: Edward R. Pressman.
Estados Unidos: Warner Bros, 2000.
ROSOSTOLATO, Breno. Antropofagia: o canibalismo sob a luz da psicologia.
Disponível em: <https://www.campograndenews.com.br/artigos/antropofagia-
o-canibalismo-sob-a-luz-da-psicologia >. Acesso em: 16 abril 2018.
SAIMEH, Nahlah. Canibalismo: da cultura à perversão. Scientific American: mente
e cérebro, 2007. Disponível em: <http://www2.uol.com.br/vivermente/
reportagens/da_cultura_a_perversao.html>. Acesso em: 09 de maio de 2018.

198
Estudos Literários

Figurações contemporâneas
do envelhecimento e da
velhice em representações
literárias
Felipe Matheus de Oliveira Braga1
Ulysses Rocha Filho2

Introdução
O presente artigo tem como principal objetivo investigar a forma como Adé-
lia Prado – poetisa, professora, filósofa e contista brasileira – aborda o tema de
envelhecimento e velhice em sua obra, a fim de evidenciar esse tema retratado que
se encontra repleto de tabus, preconceitos e marginalizado tanto no espaço literário
como no meio social contemporâneo.
A velhice é um assunto carregado de preconceitos, não somente na área lite-
rária como no nosso âmbito social cotidiano, rejeitando o ser idoso nas mais varia-
das formas possíveis, como se fossem objetos descartáveis, que ao atingir uma certa
idade não produz nada além de prejuízos e rendimentos insignificantes em todos
os tipos de serviços que seriam capazes de fazer. São, portanto, seres considerados
incapazes, insuficientes.
Segundo Carmen Lúcia Tindó Secco (1994), observando os estudos de Si-
mone de Beauvoir afirma que “o ocidente, desde a Idade Média, sempre compreen-
deu a idade avançada como um intermediário entre a doença e a saúde”, mostrando
que esse tipo de pensamento preconceituoso, segregando os idosos impedindo a

1  UAELL / UFG – RC, [email protected]


2  UAELL / UFG – RC, [email protected]

199
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

possibilidade de viver em igualdade com todos os outros semelhantes, fadando o


indivíduo a uma quase extinção nos pequenos prazeres que a vida proporciona,
nos desejos que ainda existem dentro de cada um mesmo com o passar do tempo,
descaracterizando-o e perdendo sua identidade como ser.
Porém o que muitos esquecem é que o conceito do termo “velho” nos tempos
antigos é totalmente o contrário do que as pessoas logo associam aos idosos, eles
eram vistos como a própria representação de absoluta sabedoria e experiência, um
conservador de costumes, o grande conselheiro, aquele que repassava suas expe-
riencias em contos e histórias perpetuando-as por gerações, sendo assim o ponto
alto da virtude que um ser pode se encontrar. O que confirma a visão de Beauvoir
(1970) apud Secco (1994):

o que define o sentido e o valor da velhice é o sentido atribuído pelos homens


à existência, é o seu sistema global de valores [...] Segundo a maneira pela
qual se comporta para com os seus velhos, a sociedade desvenda, sem equívo-
cos, a verdade – tantas vezes cuidadosamente mascarada – de seus princípios
e seus fins (BEAUVOIR, 1970, p. 97 apud SECCO, 1994, p. 10).

Com o passar do tempo esse reconhecimento que os idosos possuíam no


trajeto de suas vidas acabaram se perdendo com o passar do tempo, mesmo com
seus feitos na sociedade eles não conseguem obter mérito algum por muitos dos es-
critores na atualidade, onde tais preferem caracterizá-los (quando chegam a ter um
personagem idoso) como os rancorosos, infelizes, doentes e problemáticos, como
Secco (1994) traz em sua obra as palavras de Philippe Ariès (1981) em um de seus
estudos sobre os estágios da vida humana, caracterizando esse marco de rebaixa-
mento do idoso a partir da Idade Média:

O velho, de modo geral, nesta época, deixa de ser celebrado e é considerado


ridículo e decrépito; passa a ser representado pela figura do ancião avarento,
quase sempre a tossir e escarrar. A juventude torna-se o centro dos elogios e
dos motivos literários, pois cabe aos jovens deste período a nobre missão de
resgatar o Santo Sepulcro. A ideologia católica, na Idade Média, assegura, em
geral, aos moços um estatuto privilegiado e relega o velho ao esquecimento
ou ao escárnio (ARIÈS, 1981, apud SECCO, 1994, p.17).

200
Estudos Literários

Um assunto tal qual este, que implica na construção de conceitos levados pa-
ra o cotidiano de indivíduos que carecem de atenção, não pode cair no esquecimen-
to ou banalização. Os reflexos para com os são muitos, pois podem acarretar em
problemas maiores para tais indivíduos, como uma tristeza profunda acompanhada
pela melancolia e depressão e ainda a rejeição enraizada na cultura contemporânea,
que vê o idoso a margem da sociedade, acabando com a vontade de viver ou dificul-
tando uma resistência a esses problemas causados pelo exílio na sociedade. É, pois,
tal trabalho, de relevância não só acadêmica bem como social e moral. Representa
um ganho em diferentes esferas do saber, contribuindo para a inserção do idoso em
discussões pertinentes e que fomentam sua reinserção na sociedade, local de onde
nunca deveriam ter sido marginalizados.
Adélia Prado - poetisa brasileira - exprime em suas obras elementos do co-
tidiano feminino, religioso, erótico e místico com bastante naturalidade, gerando
aos leitores uma certa empatia com os personagens em cada caso distinto em suas
poesias. Mais que isso, a autora consegue tocar em temas considerados de difícil
tratamento, tal como é a velhice, na qual ECCO (1994) afirma que:

Definir a categoria velhice parece, à primeira vista, tarefa bastante simples.


No entanto, é, na realidade, uma questão imensamente complexa, pois impli-
ca múltiplas dimensões: a biológica, a cronológica a psicológica, a existencial,
a cultural, a social, a econômica, a política, entre outras (SECCO, 1994, p.07).

Não sendo a vetustez o único ponto de discussão das obras de Prado, a autora
lança mão da maioria desses elementos citados não somente no que diz respei-
to aos assuntos da terceira idade, mas também em seus outros escritos, sejam eles
personagens explícitos ou aqueles que são deixados de modo subjetivo na história,
cabendo ao leitor formulá-los em sua leitura.
A velhice é retratada em outras obras, de diferentes modos e diferentes visões
sobre o assunto abordado, como Lima Barreto abordando a aposentadoria em Triste
Fim de Policarpo Quaresma (1915); José Lins do Rego apresenta no romance Menino
de Engenho (1932) o Coronel José Paulino, idoso que consegue manter o respeito e
admiração das pessoas de seu convívio por conta de suas propriedades e seus bens,
além de outras duas personagens idosas, sendo elas Totonha e Galdina, a velhice não
é o ponto principal para Lins, mas tem um espaço enorme neste romance; e Clarice

201
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Lispector, denuncia em Ruído de passos e Mas vai chover, contos encontrados no


livro A Via Crucis do Corpo (1974) preconceitos impostos sobre a sexualidade dos
idosos, focando em mulheres coagidas quanto a seus desejos sexuais.
O objetivo da pesquisa que aqui se apresenta é analisar e refletir sobre a obra
A duração do dia (2010), de Adélia Prado, no que se refere aos assuntos pertinentes
ao envelhecer e a velhice. Desta feita, tentaremos localizar a composição e a ação
dos dispositivos estéticos que, agindo com os meios discursivos e vivenciais da con-
formação social, cultural e política, constroem quadros de normas, crenças e valo-
res que refletem sobre o envelhecer e/ou a velhice; seus tabus, o julgamento muitas
vezes velado da sociedade e as tristezas que tal fase da vida, causadas pelos ditos
pontos de limítrofe social, atrelam ao indivíduo. Analisaremos, ainda, os aspectos
verbais e imagéticos da obra, atentando tanto para seu conteúdo textual quanto
para o conteúdo visual, constituintes, juntas, de uma obra complexa e que trata de
assuntos tão relevantes.
Para tanto, realizamos leituras teóricas que elucidam sobre a literatura, o en-
velhecer, e a velhice, contando com aportes tal qual o supracitado de SECCO (1994).
Após a leitura, foi realizada a leitura crítica da obra acionando os teóricos mencio-
nados de modo que a análise pudesse ser fundamentada e construída. Percebeu-se,
neste momento, devido ao percurso de identificação científica e a identificação dos
pesquisadores quanto leitores, uma necessidade de reflexão sobre a obra de Prado,
uma vez que trata dos assuntos pertinentes ao trabalho. Após leituras e discussão
com o professor orientador, seguiu-se para construção da análise que será apresen-
tada a seguir. Superando a barreira de uma análise friamente científica, constitui-se,
logo, como um dever para com assuntos de pertinência não apenas acadêmica bem
como de interesse universal.

Análise da obra A duração do dia (2010), de Adélia Prado


O exemplar premiado de Prado (2010) referido é um compilado com apro-
ximadamente 100 poesias que apresentam com clareza a forma de escrita da autora
brasileira: “Eu só tenho o cotidiano e meu sentimento dele. Não sei de alguém que
tenha mais. O cotidiano em Divinópolis é igual ao de qualquer lugar no mundo, só
que vivido em português” (PRADO, 2010, orelha traseira). Podemos afirmar que

202
Estudos Literários

a simplicidade e os temas do dia a


dia, recheados de encantos e praze-
res, desejos e reflexões, não faltam
nessa obra.
Analisaremos a seguir a ca-
pa que ilustra a obra (Imagem 1),
para dialogando sobre o que pode
simbolizar e o conteúdo que a mes-
ma carrega para a obra literária.

Imagem 1 – Imagem que ilustra a capa da obra


A duração do dia (2010), de Adélia Prado.
Fonte: Elaborada pelo autor René Magritte,
1948, The imaginative faculty.3

Esta ilustração carrega consigo uma série de elementos que dos quais, quanto
mais o indivíduo a observar, mais conseguirá percebê-los; são objetos repletos de
sentidos que abordam significados além do que usualmente são impostos. A vela,
peça em destaque na imagem, é um item simbólico com bastante influência no
quesito religioso, pois em companhia dos ovos e cesto automaticamente nos leva a
lembrar da Páscoa, celebração cristã a qual celebram a ressurreição de Jesus Cristo;
se tratando de Adélia Prado a escolha dessa imagem não seria feita apenas por esse
sentido sagrado.
Ao observar a imagem por outro ângulo, em contrapondo toda graça e san-
tidade, temos o lado profano explícito: a vela agora torna-se o órgão sexual mascu-
lino, ou seja, é fálica, no ápice de sua magnitude de excitação, com o fogo sendo a
glande e escorrendo seu líquido pré ejaculatório por todo objeto. Abaixo temos o

3  Disponível em: <https://biblioklept.org/2015/09/10/the-imaginative-faculty-rene-magritte/>. Acesso em


jun.2018.

203
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

saco escrotal representado pelos ovos e o cesto funcionando assim como os pelos
pubianos. Aproveitando o termo que caracteriza a vida e morte aludido mais acima,
vamos para outro ponto que tais itens nos levam a analisar, a velhice em si: a vela
encontra-se acesa, em seu topo, ainda no estado juvenil desse objeto, condição que
com o passar do tempo ao atingir um certo uso (ou idade, numa metáfora direta)
implicará no término de sua existência. A chama pode ser definida como a própria
vida, em contraste com a escuridão completa no fundo da pintura marcada pela
morte, que cerca este objeto a todo momento, sendo a verdade absoluta de que em
um determinado momento essa “vida” sucumbirá.
Tal imagem de Magritte (1948) não foi escolhida por acaso uma vez que
consegue agregar tantos sentidos e elementos numa só arte visual, possibilitando
a introdução de conteúdos em todos esses temas abordados, e Prado (2010) soube
aproveitar a contento esta ponte para seus feitos, assim como poderá ser entendido
nas poesias selecionadas a seguir:

Abrasada
Só trinta anos tinha minha mãe
e já suspirava:
‘Por que não vai todo mundo pro convento?
Qualquer dia, ô cruz, estes peitinhos,
seus paninhos manchados…’
Por que me deixou órfã, minha mãe?
Apesar de seus olhos tristes
e sua boca selada,
vou me casar assim mesmo.
Só vai lhe doer agora
e não muito.
(PRADO, 2010, p.42)

Aqui é apresentado o monólogo da personagem em questão, apontando os


desejos de sua mãe que acaba falecendo, mas, em oposição revela, suas decisões e
vontades mesmo que sejam contraditórias aos pensamentos de sua progenitora. A
autora coloca em questão as pretensões impostas pela mãe do eu lírico presente,

204
Estudos Literários

talvez por tradições ou motivos relacionados a religião na época, mas os desejos


da protagonista são escolhidos mesmo que seja o oposto do que a idosa almejava.

A necessidade do corpo
Nenhum pecado desertou de mim.
Ainda assim eu devo estar nimbada,
porque um amor me expande.
Como quando na infância
eu contava até cinco para enxotar fantasmas,
beijo por cinco vezes minha mão.
Este é meu corpo,
corpo que me foi dado
para Deus saciar sua natureza onívora.
Tomai e comei sem medo,
na fímbria do amor mais tosco
meu pobre corpo
é feito corpo de Deus.
(PRADO, 2010, p.28)

O eu lírico apresentado nessa poesia mostra sua devoção clara por Deus,
preservando-se de todo tipo de pecado que o mundo poderia oferecer. Por mais
que seus desejos e suas vontades ainda permanecem, não se rendeu às tentações
carnais por seu amor a Cristo, fazendo uma assimilação à uma passagem bíblica
encontrada em I Coríntios capítulo 11 versículo “Tomai, comei; isto é o meu corpo
que é partido por vós; fazei isto em memória de mim”, trecho que é dito novamente
em Mateus capítulo 26 versículo 26: “Tomai, comei; isto é o meu corpo”, ato que
ocorreu no momento da Santa Ceia por Jesus, minutos antes de ser apreendido
pelos pelos guardas do templo.
É perceptível, aqui, o domínio e conhecimento de Adélia referentes à fé cristã
adquirida por suas experiências pessoais, apontando essa dualidade entre os desejos
carnais e a preservação da santidade na poesia, ou seja, uma dicotomia entre sagra-
do e profano.

205
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Mote da Viúva
Sol com chuva
casamento da viúva
que de maneira discreta
oferece docinhos.
O noivo não disfarça a pressa
de ficar a sós com a experiente mulher.
É bom ter calma, até que o último a sair
bata de novo à porta
querendo seu guarda-chuva.
Como de um satélite
que a olhos nus navega devagar,
vê-se a terra lá embaixo,
rios, campinas, cidadezinhas, torres,
entra dia, sai noite,
uma volta completa.
Lambendo o mel da lua a viúva
ensina o homem a raiar.
(PRADO, 2010, p.49)

A autora, nesta poesia, quebra com o tabu de que “o idoso não tem desejo
sexual, não existe mais vigor, estão cansados demais para isso” e ostenta todas as
possibilidades que um indivíduo envelhecido, especificamente a mulher mais velha,
consegue proporcionar aos mais jovens trazendo conhecimento e gozando dos pra-
zeres que a vida, em sua fase avançada, ainda pode oferecer.
“Velho” também tem vida sexual ativa, “velho” também ama, “velho” tam-
bém vive, devemos parar de disseminar comentários opostos e sem fundamentos
para todos os cantos, e quando um dia, alcançar essa certa idade que tanto criticam
na juventude, aí poderão tirar suas próprias conclusões sobre esse assunto, enquan-
to isso deixemos os preconceitos de lado e procuremos compreender mais o lado
dos outros e esquecer do individualismo geral.

206
Estudos Literários

Conclusão
A obra trabalhada no presente artigo configura-se como resistência contra
preconceitos contra idosos, mulheres, e outras forças consideradas em situação de
necessidade de discussão, uma vez que são vítimas de preconceitos, julgamentos
e violências gerados por uma sociedade cada vez mais preconceituosa, e, em não
raras vezes, comandada pela supremacia do homem em suas relações sociais, numa
posição de poder que se eleva acima destes sujeitos mais fracos, reverberando dis-
cursos de exclusão, repulsa, machistas e sexistas.
Em suas poesias, a autora esbanja diversas características literárias a fim de
atingir um maior gozo literário, trabalhando para promover o olhar crítico dos lei-
tores em assuntos que não ainda pouco na contemporaneidade por conta de um
demasiado medo na qual muitas vezes sendo considerado polêmico, com suas refe-
rências que incomodam grupos poderosos, principalmente os religiosos, por tocar
num assunto sagrado com cunhos profanos e carnais.
A obra promove, em seu seio narrativo, diversas ferramentas capazes de ates-
tar seu poder literário, quer sejam a intertextualidade ou a construção visual da
narrativa que, por meio de uma obra de arte, pôde fazer crescer os significados
daquilo que foi narrado por seus personagens onde, em momento algum, a literata
promove qualquer tipo de discurso desrespeitoso a quaisquer grupos, sejam aqueles
dos quais a autora se propõe escrever sobre ou os que ainda são passíveis de uma
subjetividade na leitura, ou seja, os elementos que são criados pelo possível leitor.
A autora, inclusive, promove um pacto literário com tamanha delicadeza que
a verossimilhança se torna irrevogável, na qual a obra literária se torna, pois, um
espelho daquilo que é encontrado na vida real. É, logo, mais uma característica que
evidencia o trabalho estético da autora, uma vez que são sim poesias carregadas de
literatura e, tal como é o poder da literatura, não precisam refletir obrigatoriamente
a realidade, porém, a autora o faz com maestria, tornando-se não apenas uma ar-
ranjadora de letras e sim uma tecelã de vidas. Vidas que cabem em assuntos e tipos
evitados. Vidas que são necessárias serem faladas. Se o sentido da vida é nascer,
crescer, reproduzir e morrer a autora o expande e adiciona o envelhecer também
como um sentido para a vida.

207
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Agradecemos, então, o fomento em forma de bolsa de iniciação científica


por parte da Universidade Federal de Goiás e do Conselho Nacional de Desenvolvi-
mento Científico e Tecnológico (CNPq), responsáveis por incentivar a produção da
ciência em um país que insistentemente se recusa a enxergar os grandiosos horizon-
tes que a ciência pode representar ao futuro. Reconhecemos, ainda, a disponibilida-
de por parte da supramencionada universidade de recursos físicos e pessoal para o
desenvolvimento deste trabalho, além da colaboração da Unidade Acadêmica Espe-
cial de Letras e Linguística para que o mesmo pudesse ser realizado.
Por fim, destacamos que tal pesquisa teve ampla relevância e interesse cientí-
fico comprovada na forma de aceite dos estudos provenientes deste trabalho como
parte integrante das discussões em um evento de nível internacional, tal como o V
Simpósio Nacional e Internacional de Letras e Linguística (V SINALEL), realizado
em maio de 2018.
Além disto, o percurso investigativo aqui trilhado fornece fôlego para que
outros trabalhos possam ser constituídos em futuros eventos ou propostas de pes-
quisa, além da contribuiu para o crescimento humano e profissional do estudante,
propiciando o pensamento crítico de futuros trabalhos a serem constituídos, além
de serem meio de crescimento profissional e intelectual do bolsista, permitindo-o
expandir os horizontes de sua graduação tanto em pesquisa quanto ensino, contri-
buindo para a formação humana do licenciado em Letras e oferecendo ferramentas
de investigação científica que podem suscitar, até mesmo, em futuros trabalhos di-
recionados a estudos a nível de conclusão de curso e/ou pós-graduação.

Referências Bibliográficas
BIBLIA SAGRADA. Tradução ALMEIDA, João Ferreira de. Brasília: Sociedade Bíblica
do Brasil, 1969.
CANDIDO, Antonio. O estudo analítico do poema. 5. ed. São Paulo: Humanitas, 2006.
161 p.
COMPAGNON, Antoine. O trabalho da citação. Trad. Cleonice P. B. Mourão. Belo
Horizonte: Ed. UFMG, 1996.
CURY, Maria Zilda Ferreira. Intertextualidade: uma prática contraditória. In: Cadernos
de linguística e teoria da literatura, Belo Horizonte, nº 8, p. 117-128, dez. 1982.

208
Estudos Literários

FRAZÃO, Dilva. Biografia de Adélia Prado. Disponível em: <https://www.ebiografia.


com/adelia_prado/>. Acesso em: 13 mar. 2018.
GOLDSTEIN, Norma Seltzer. Versos, sons, ritmos. 13. ed. São Paulo: Ática, 2003. 80 p.
(Princípios; 6).
MAGRITTE, Renné. The imaginative faculty. Disponível em: <https://biblioklept.org/
2015/09/10/the-imaginative-faculty-rene-magritte/>. Acesso em 28 jun.2018.
PRADO, Adélia. A duração do dia. Rio de Janeiro: Editora Record, 2010.
SECCO, Carmen Lucia Tindó. Além da Idade da Razão. Rio de Janeiro: Graphia, 1994.

209
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Do lampejo da vida à
escuridão eterna: Amor e
morte em “Venha ver o pôr
do sol” Fernanda L. Oliveira Santos1
Guilherme Weber Gomes de Almeida2

“O escritor escreve, tentando recompor, quem sabe, um mundo


perdido, os amores perdidos, a casa perdida, o paraíso perdido...”
Lygia Fagundes Telles

As vertentes da literatura brasileira têm se revelado prodigiosas, dos primei-


ros escritores aos contemporâneos. Desde suas primeiras manifestações, datadas
de quase meio milênio, ainda que inicialmente marcadas pela influência lusitana,
observamos a relevância de escritores comprometidos com a formação de uma li-
teratura originalmente brasileira, como os canônicos que aparecem em diferentes
recortes e contextos cronológicos, tais que Machado de Assis, Gregório de Matos,
Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa, Ariano Suassuna e nomes não
menos importantes como aqueles que compõem a literatura de autoria feminina no
Brasil – Clarice Lispector, Cecília Meireles, Adélia Prado, Marina Colassanti, Cora
Coralina, Lya Luft e a autora do conto sobre o qual recai nossa especial atenção
neste texto, Lygia Fagundes Telles. Estes e tantos outros autores e autoras contri-
buíram para a consolidação da identidade literária brasileira bem como para nossa
formação cultural.
Ao tratarmos da literatura contemporânea produzida no Brasil – produções
do final do século XX até a primeira metade do século XXI, é possível observar-

1  PPGEL/UFG/RC, [email protected]
2  PPGEL/UFG/RC, [email protected]

210
Estudos Literários

mos uma multiplicidade de características e estilos, dentre os quais salta aos nossos
olhos o fazer literário de Lygia Fagundes Telles. Seu protagonismo literário conce-
deu-lhe notoriedade na esfera mundial por suas narrativas curtas, porém intensas,
fortemente permeadas por uma simbologia profunda, traço peculiar de seu texto
literário. A tessitura de Telles convida o leitor para uma experiência de tensão emo-
cional que é ainda mais intensificada por diálogos bem elaborados e complexos. A
exploração de temas como vingança, amor e morte ressaltam a profundidade dos
sentimentos humanos, ainda mais enaltecidos em momentos de suspense e tensão
narrados pela ficção literária.
Conforme pondera Maria Cristina Castilho Costa (2001), há, na ficção, o
apelo à imaginação, o deslocamento da realidade objetiva para a realidade subje-
tiva, afetiva e significativa fazendo com que se possa estabelecer o vínculo entre a
realidade e o que se vê representado pela ficcionalidade. Esta possibilita ao leitor
distanciarem-se de si próprios, propondo-lhes se transformar imaginariamente em
outros, ocasionando a identificação com o que está sendo representado. Nesse sen-
tido, Mário Vargas Llosa observa com maestria que:

Quando lemos romances, não somos o que somos habitualmente, mas tam-
bém os seres criados para os quais o romancista nos transporta. Esse traslado
é uma metamorfose: o reduto asfixiante que é nossa vida real abre-se e saímos
para ser outros, para viver vicariamente experiências que a ficção transforma
como nossas. Sonho lúcido e fantasia encarnada, a ficção nos completa – a
nós, seres mutilados, a quem foi imposta a atroz dicotomia de ter uma única
vida, e os apetites e as fantasias de desejar outras mil. Esse espaço entre a vida
real e os desejos e as fantasias, que exigem que seja mais rica e mais diversa, é
preenchido pelos livros de ficção (LLOSA, 2004, p. 17).

Ainda que Llosa esteja referindo-se especificamente aos romances, inferimos


da essência de sua ponderação que ao experienciarmos a ficção, em suas manifesta-
ções várias, estaríamos desenvolvendo uma forma peculiar de experimentar a vida,
a qual está presente já nas primeiras manifestações expressivas do indivíduo.
O desenvolvimento da ficcionalidade seria, portanto, fornecedor do substra-
to das identidades individual e coletiva, construindo formas de sentir e experimen-
tar a vida. Desta feita, “Venha ver o pôr do sol” nos convida a experienciar a vida e a

211
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

morte entrecortadas pela vingança. Neste sentido, conforme bem observa Cánovas
e Santos (2013), “a incursão pela ficção de Lygia Fagundes Telles revela constelações
de imagens engendradas pela linguagem simbólica”.
Esta simbologia a que se referem as autoras supramencionadas, vai se desve-
lando já a partir da intitulação do conto. Em uma leitura subliminar, infere-se que
o pôr do sol traz a representação do fim da luz e início da escuridão, o fim da vida
e a premissa da morte para a jovem Raquel, protagonista da história de um amor
fracassado entre ela e Ricardo, seu antigo namorado. Este, ainda ferido emocional-
mente por conta do relacionamento findo, propõe que um encontro aconteça entre
ambos para que estivessem juntos mais uma vez, para contemplarem juntos um
último pôr do sol. Um cemitério abandonado é o lugar onde o encontro ocorre, já
que Raquel estaria agora comprometida com outro homem e não poderia ser vista
na companhia de Ricardo. Cemitério adiante, jazigos, túmulos, caminhos abando-
nados e a catacumba distante e abandonada torna-se o cenário para o qual o ex
-amante e algoz de Raquel a conduz. Entre conversas incertas e memórias dos mo-
mentos que viveram, os jovens se colocam dentro da suposta catacumba da família
de Ricardo, na qual ele mesmo se encarrega de trancafiar e abandonar para sempre,
a antiga namorada. Para ela, o último pôr do sol pois, dali em diante, somente o fim
de sua vida seria sua contemplação derradeira.
O trabalho de Telles é uma verdadeira obra de arte na qual é possível identi-
ficar diferentes nuances da natureza humana que aparecem materializados em uma
linguagem rica em simbologias, sendo que esta é uma das características definiti-
vas da escritora. “As personagens Ricardo e Raquel do conto de Lygia representam
emoções humanas com seus anseios, questionamentos interiores, obsessões e ambi-
guidades” (LOPES, p. 131, 2013). É esta ambiguidade que percebemos em Ricardo,
o jovem sobre o qual recaem os julgamentos do leitor para concluí-lo como sendo
um assassino frio ou demasiadamente apaixonado. Questões como essas nos são
deixadas no decorrer do percurso feito pelo casal, narrado detalhadamente, e que
inserem o leitor na atmosfera lúgubre e tensa da trama. O convite para ver o pôr do
sol, que está simbolicamente representado pela morte de Raquel, o espaço em que
este encontro acontece – no alto de uma colina, num cemitério abandonado, a quie-
tude da tarde, o mato rasteiro. No cemitério, o velho muro arruinado e o portão de

212
Estudos Literários

ferro carcomido pela ferrugem são elementos que denunciam ao leitor a iminência
de um desastre.
A sequência narrativa conduz o leitor, concomitante aos passos do casal, à
penetração no espaço funesto e reduzido às ações do tempo, da ausência de vi-
da e da presença marcante da atmosfera mórbida. Este efeito deve-se à descrição
minuciosa do narrador que lança mão, mais uma vez, de uma descrição rica em
elementos lúgubres. “O mato rasteiro dominava tudo [...], subira pelas sepulturas,
infiltrara-se ávido pelos rachões dos mármores, invadira as alamedas de pedregu-
lhos esverdinhados, como se quisesse com sua violenta força de vida cobrir para
sempre os últimos vestígios da morte.” (TELES, 2008). Toda a tessitura reforça a
aura simbológica do fim, da ausência de vida marcada não somente pelo local que,
por si só, abriga a morte, mas pela falta de zelo e vida exterior, pela “sepultura com
pálidos medalhões de retratos esmaltados”, no “anjinho de cabeça decepada”. (TE-
LES, 2008).
A tensão provocada pela descrição do ambiente permite que se instaure no
leitor um tom de incerteza sobre as intenções de Ricardo. Não se pode julgar com
clareza, antes do desfecho, se o reencontro por ele planejado trata-se de um sim-
ples ato ou se de fato, ele está a cumprir seu papel de assassino. É justamente nesse
contexto que observamos o quão revestido de mistérios a narrativa está. De acordo
com Cánovas e Santos (2013, p. 266), este conto exemplifica um tipo de história que
busca revelar a natureza humana por completo, tendo em vista que Lygia Fagundes
Telles consegue explorar as profundezas da mente e do coração de seus personagens
ao longo da narrativa estabelecendo um elo entre os fatos presentes e passados.

Lygia Fagundes Telles joga com as palavras, com a metáfora do meio tom que
gera a ambiguidade no conto. A autora utiliza-se do caráter condensado do
gênero conto e instiga o leitor a adentrar o universo do texto, a mergulhar no
emaranhado de imagens simbólicas espalhadas pela tessitura da linguagem
literária. (CÁNOVAS, SANTOS, p. 266, 2013).

Esta ambiguidade está fortemente presente em trechos como “Mas é esse


abandono na morte que faz o encanto disto. Não se encontra mais a menor inter-
venção dos vivos, a estúpida intervenção dos vivos.”. (TELES, 2008). Inicialmente,
a fala de Ricardo pode aludir-se apenas à consequência da morte como abandono

213
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

eterno, porém, em uma leitura subliminar, é bastante coerente inferir que Ricardo
refere-se, neste momento, à ação final de abandonar para sempre seu ex-namorada,
de modo que ninguém possa intervir para livrá-la da morte. É possível se observar
o mesmo aspecto também em “Esta a morte perfeita, nem lembrança, nem saudade,
nem o nome sequer. Nem isso”. Estaria Ricardo referindo-se à morte de uma manei-
ra generalizada ou ratificando a ideia que pratica no desfecho da história – Raquel
termina em uma catacumba sem marcação de seu próprio nome, sem passar pelas
cerimônias de pós-morte e, provavelmente não será uma lembrança para seu atual
companheiro que, na certa, não chorará seu desaparecimento inexplicado.
“Venha ver o pôr do sol” transparece a habilidade de Telles em tecer narrati-
vas macabras, mesmo que em uma narrativa sutil. O clima de suspense ao longo da
história abre caminho para uma tragédia de um modo tênue e delicado, tendo em
vista a escolha de palavras que asseguram a riqueza literária ao texto. Nesse sentido,
o processo narratológico contribui significativamente para que apenas inferências
sejam construídas a respeito dos personagens. Este fato é perceptível em momentos
em que se narram os descontentamentos de Ricardo:

- Ele é tão rico assim? - Riquíssimo. Vai me levar agora numa viagem fabulosa
até o Oriente. Já ouviu falar no Oriente? Vamos até o Oriente, meu caro...
Ele apanhou um pedregulho e fechou-o na mão. A pequenina rede de rugas
voltou a se estender em redor dos seus olhos. A fisionomia, tão aberta e lisa,
repentinamente escureceu, envelhecida. Mas logo o sorriso reapareceu e as
rugazinhas sumiram. (TELLES, 2008).

Percebemos que Ricardo pode estar tomado pela raiva emergida a partir do
fim do relacionamento, sentindo-se desprezado por ter sido substituído por um
homem rico, capaz de proporcionar à Raquel o conforto incoerente com as possibi-
lidades dele, no entanto, essa insatisfação do personagem não é claramente revelada
na narrativa. Apenas sinalizações são deixadas, compondo assim, os momentos de
tensão do texto.
O papel do narrador torna-se essencial na narrativa, pois consegue detalhar
cada gesto e pensamento de Ricardo. É a narração que possibilita ao leitor conhecer
melhor o íntimo de Ricardo, mais do que aos pensamentos de Raquel. Esta, por sua
vez, “descrita somente no aspecto físico, se mostra preocupada com sua aparên-

214
Estudos Literários

cia externa, com seu relacionamento amoroso atual, e as consequências que o seu
passado trariam ao presente” (CÁNOVA, SANTOS, p. 276, 2013). Raquel não de-
monstra preocupação com sua integridade no memento do encontro. Em nenhum
momento a postura de Raquel denuncia desconfiança ou qualquer outro fator que
a impedisse de adentrar o cemitério com o antigo companheiro, a não ser o receio
de ser descoberta. Mesmo em sua superficialidade, Raquel revela que ainda ama
Ricardo. “-E eu te amei.. E te amo ainda.” (TELES, 2008), Talvez tenha sido esse o
motivo pelo qual a romântica jovem tenha aceitado a proposta do último encontro.
Observa-se que descrição de Raquel pelo narrador pode ser considerada co-
mo um reflexo da percepção de Ricardo, o que nos permite indagar se o narrador
poderia ser a voz do próprio Ricardo.

No conto aqui analisado, a escritora cria uma espécie de testemunho ao re-


construir uma história, onde o narrador se coloca em uma posição de saber
de tudo e de todos. Este narrador acompanha todo o desenrolar dos fatos e
acaba sendo cúmplice de um crime terrível. Aqui, o (a) leitor (a) não parti-
cipa do acontecimento em si, mas da construção de uma situação e de um
imaginário que acaba nos inserindo na história, tornando quase impossível
saber se participamos ou não deste testemunho construído por Lygia Fagun-
des Telles. Logo, ao final, tanto o narrador quanto o (a) leitor (a) se tornam
testemunhas de um crime frio e bárbaro (MAIA, SOUSA, 2017, p. 251).

As informações prestadas pelo narrador são detalhadas minimamente, dei-


xando-o no lugar de quem pronuncia o que vivenciou.

A luz invadiu um cubículo de paredes enegrecidas, cheias de estrias de antigas


goteiras. No centro do cubículo, um altar meio desmantelado, coberto por
uma toalha que adquirira a cor do tempo. Dois vasos de desbotada opalina
ladeavam um tosco crucifixo de madeira. Entre os braços da cruz, uma ara-
nha tecera dois triângulos de teias já rompidas, pendendo como farrapos de
um manto que alguém colocara sobre os ombros do Cristo. Na parede lateral,
à direita da porta, uma portinhola de ferro dando acesso para uma escada de
pedra, descendo em caracol para a catacumba. Ela entrou na ponta dos pés,
evitando roçar mesmo de leve naqueles restos da capelinha.(TELES, 2008).

215
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Ricardo denuncia, ao cabo de seu crime, que o premeditou e, mais uma vez,
deparamo-nos com a ambiguidade da sequência narrativa que permite ao leitor
construir o perfil do malfeitor. “Mas já disse que o que mais amo neste cemitério
é precisamente este abandono, esta solidão. As pontes com o outro mundo foram
cortadas e aqui a morte se isolou total. Absoluta”. (TELLES, 2008). Obviamente ele
certificou-se em momento anterior ao encontro de que aquele seria o lugar ideal
para que Raquel jamais fosse ouvida ou encontrada. Outras informações ambíguas
que também denunciam a premeditação são reveladas em passagens como “andei
muitas vezes por aqui” (TELLES, 2008).
Ainda no que tange às questões narrativas deste conto, destacamos a utili-
zação dos mistérios e dos movimentos de do personagem para conferir um tom
enigmático e ao mesmo tempo cativante. Assim,

Os reflexos da constituição desses movimentos na obra de Lygia são recor-


rentes, como se pode observar em Venha ver o pôr do sol onde o protagonista
reaparece numa tentativa de reaproximação que leva o leitor a acreditar em
seu ato, mas o cenário fúnebre do cemitério inicia o despertar de dúvidas em
relação às intenções do jovem (LOPES, p. 131, 2013).

Conforme pondera Lopes (2013), a desconfiança do leitor começa a partir


do momento em que se percebe que a proposta do reencontro não é pela simples
tentativa de reaproximação. Após a longa caminhada, a explanação do espaço feita
pelo narrador vai denunciando que aquele trajeto levaria a um caminho funesto.
Destaque-se que desta passagem em diante, o tom de horror do conto fica ainda
mais latente, conforme se vai descrevendo com minúcia o cubículo escuro onde se
encontravam os personagens; as paredes enegrecidas; o ranger da porta ao ser aber-
ta; o acesso para o subsolo; a frieza do lugar, a presença de insetos como aranha e a
escuridão são elementos recorrentes no texto de horror, elencados justamente para
instaurar um clima que preanuncia o trágico.
Diante desta breve análise dos personagens do conto em estudo, nos é pos-
sível compreender que Raquel é possuidora de uma personalidade marcada pela
vaidade, a ponto de não perceber que suas ações provocam reações rancorosas e
magoadas por parte de seu antagonista Ricardo. Este, por sua vez, não sabendo

216
Estudos Literários

lidar com a frustração do abandono, decide pôr fim à vida de sua amada de maneira
calculista e cruel. Neste sentido, observamos que

[...] o motivo que levou Ricardo a prender a jovem na capela do cemitério


pode ser o mesmo que leva um sujeito a atacar ou até destruir o seu objeto
de desejo: a tentativa desesperada de manter-se vivo por meio do ataque à
fonte causadora do sentimento invejoso que nesse funcionamento patológi-
co é sentido como um perseguidor (SILVA, SOARES, HOLLANDA, 2010, p.
338-339).

Dado o momento em que Ricardo e Raquel já estão no subsolo da catacum-


ba, mais uma vez o narrador brinda o leitor com a minúcia de detalhes em sua
narração, deixando pistas cada vez mais evidentes do que estaria prestes a acontecer.
Toda a história criada por Ricardo para justificar a ida até o cemitério e, mais preci-
samente até aquela catacumba, vai se desmantelando à medida em que os detalhes
são revelados. O primeiro deles é quando Raquel percebe que a moça do retrato que
havia sido descrita por Ricardo como sendo sua prima, pessoa com a qual ele che-
gara a conviver, não poderia ser. Isso porque a inscrição abaixo de sua foto datava
de mais de cem anos. “Maria Emília, nascida em vinte de maio de mil e oitocentos
e falecida...” (TELLES, 2008). A partir de então, a narrativa vai desvelando as inten-
ções de Ricardo ao passo em que Raquel também as descobre. “Um baque metálico
decepou-lhe a palavra pelo meio. Olhou em redor. A peça estava deserta. Voltou o
olhar para a escada. No topo, Ricardo a observava por detrás da portinhola fecha-
da. Tinha seu sorriso – meio inocente, meio malicioso”. O personagem de Ricardo,
então, assume claramente sua intenção, até então encoberta, ao trancar a portinhola
da catacumba deixando presa a ex-amamda, encerrando com o girar da chave a pos-
sibilidade de saída para a vida. Desaparece-lhe o ar jovial transparecido no primeiro
momento do encontro e suas expressões vão denunciando, agora, a faceta do algoz
que acaba fazer sua vítima. “Ele já não sorria. Estava sério, os olhos diminuídos. Em
redor deles, reapareceram as rugazinhas abertas em leque.” (TELLES, 2008).
Daí em diante, mais uma vez temos a ambiguidade fortemente presente na
tessitura da autora que conduz seu leitor, através do ato narrativo, à compreensão
do desfecho. “Uma réstia de sol vai entrar pela frincha da porta, tem uma frincha na
porta. Depois, vai se afastando devagarinho, bem devagarinho. Você terá o pôr-do-

217
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

sol mais belo do mundo. A réstia de sol, assim como a vida de Raquel, que estaria
agora por um lampejo, em breve terminará para ceder espaço à escuridão, apenas. A
treva, a ausência da luz da vida para sempre. O “boa noite, meu anjo”, pronunciado
por Ricardo neste momento significa a despedida para sempre, pois está imbuído
da conotação da morte. Artisticamente desenhado, o cruel crime de natureza pas-
sional toma os contornos do fim, de modo que o detalhamento narrado nos mo-
mentos finais torna-se responsável por instaurar a atmosfera de horror diante de do
acontecido. Ricardo abandona friamente a catacumba, deixando presa Raquel, que
tem sua aura tomada por desespero.

Guardando a chave no bolso, ele retomou o caminho percorrido. No breve


silêncio, o som dos pedregulhos se entrechocando úmidos sob seus sapatos.
E, de repente, o grito medonho, inumano: NÃO! Durante algum tempo ele
ainda ouviu os gritos que se multiplicaram, semelhantes aos de um animal
sendo estraçalhado. Depois, os uivos foram ficando mais remotos, abafados
como se viessem das profundezas da terra. Assim que atingiu o portão do
cemitério, ele lançou ao poente um olhar mortiço. Ficou atento. Nenhum ou-
vido humano escutaria agora, qualquer chamado. -Acendeu um cigarro e foi
descendo a ladeira (TELLES, 2008).

O desfecho da narrativa, sendo construído tal como foi, imbuído de sutilezas


mesmo em se tratando de um texto que retoma elementos da literatura de horror,
nos faz pensar inevitavelmente no que acontece depois do desfecho. Isso se deve ao
fato de que o processo que envolve a arte de narrar diz da vida e suas representações.
Neste sentido, consideramos o fato de que, conforme pondera Cândido (2012), a
produção e fruição da literatura baseiam-se numa espécie de necessidade universal
de ficção e de fantasia, que de certo modo é coextensiva ao homem, pois aparece
invariavelmente em sua vida, como indivíduo e como grupo, ao lado da satisfação
das necessidades mais elementares. Seja por via oral, visual ou escrita, a necessidade
de ficção, fantasia e imaginação manifestam-se a cada instante, justificando assim
nosso interesse pelo que ocorre durante e até mesmo depois do desfecho que nos é
apresentado. Seria esta, pois, a função dessas formas de sistematizar o imaginário,
de que a literatura é uma das modalidades mais ricas. Às narrativas que envolvem o

218
Estudos Literários

enigmático, atribui-se, pois, a faculdade de transpor seus receptores para uma esfera
paralela ao mundo efetivo. Através desse tipo de narrativa torna-se possível romper
os limiares e experimentar um outro tipo de realidade, que se manifesta por meio
de formas simbólicas.

Referências
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revistas.iel.unicamp.br/index.php/remate/article/viewFile/3560/3007>. Acesso
em 08 ago. 2015.
CÁNOVAS, Suzana Yolanda L. Machado. SANTOS, Isabel de Souza. A petrificação do
amor em “Venha Ver o Pôr Do Sol”. Interdisciplinar, Edição Especial 90 anos de
Lygia Fagundes Telles, Itabaiana/SE, Ano VIII, v.18, jan./jun. 2013. ISSN 1980-
8879 p. 265-280. Disponível em: <https://seer.ufs.br/index.php/interdisciplinar/
article/viewFile/1493/1316>. Acesso em: 15 abr. 2018.
COSTA, Maria Cristina Castilho. Ficção, comunicação e mídias. São Paulo: Editora
Cenac. São Paulo, Série Ponto Futuro; 12, 2001.
LOPES, Job. O gênero trágico na obra venha ver o pôr do sol de Lygia Fagundes
Telles. Revista Memento V.4, n.1, jan.-jun. 2013. Revista do mestrado em Letras
Linguagem, Discurso e Cultura – UNINCOR. ISSN 2317-6911. p. 128-138.
Disponível em: <http://periodicos.unincor.br/index.php/memento/article/view
/736/pdf>. Acesso em: 15 abr. 2018.
MAIA, Marília Milhomem Moscoso. SOUSA, Sandra Maria Nascimento. “Venha
ver o pôr-do-sol”, de Lygia Fagundes Telles: a memória traumática da morte.
Revista de Literatura, História e Memória Pesquisa em Letras no contexto Latino-
Americano e Literatura, Ensino e Cultura, VOL. 13 - Nº 21 - 2017. ISSN 1983-
1498. Unioeste/Cascavel. P. 249-264. Disponível em: <http://e-revista.unioeste.
br/index.php/rlhm/article/download/16380/11569>. Acesso em: 15 abr. 2018.
PELINSER, André Tessaro. Uma arquetipologia da morte em venha ver o pôr-do-sol, de
Lygia Fagundes Telles. Revista Criação & Crítica, 11, 2013. Qualis B1 ISSN: 1984-
1124. Departamento de Letras Modernas - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas - Universidade de São Paulo Disponível em: <http://www.revistas.usp.
br/criacaoecritica/article/view/58574/68016>. Acesso em: 15 abr. 2018.

219
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

SILVA, André Oliveira. SOARES, Alcimar Miguel. HOLANDA, Carlos L. M. HUMBERG,


Lygia Vampré. Conto literário, Venha ver o pôr-do-sol: uma análise psicanalítica.
Sistema de Información Científica Redalyc. Red de Revistas Científicas de
América Latina y el Caribe, España y Portugal. ConScientiae Saúde, 2010;9(2): p.
331-339. Disponível em: <www.redalyc.org/pdf/929/92915260022.pdf>. Acesso
em: 15. abr. 2018.
TELLES, Lygia Fagundes. Venha ver o pôr do sol. In: Página da Beatrix Arte, Cultura e
Educação. 23 de novembro de 2008. Disponível em: <http://www.beatrix.pro.br/
index.php/venha-ver-o-por-do-sol-lygia-fagundes-telles/>. Acesso em: 10 jul.
2018.

220
Estudos Literários

O senhor dos anéis:


Espaços e lugares fantásticos
e maravilhosos
Francisco de Assis Ferreira Melo1
Alexander Meireles da Silva2

Uma introdução
Neste artigo, temos o intuito de mostrar o que acontece “com” e “nos” es-
paços e lugares apresentados em O Senhor dos Anéis. Em sua narrativa, o espaço
não funciona apenas como complemento do efeito narrativo, numa perspectiva do
fantástico, sem que seja apenas analisado na visão de Todorov (2008), que o entende
como “gênero”, em sua obra basilar, puro e marcado por uma época. Por outro lado,
a abordagem do tema fantástico entendido como um “modo” traz condições para
analisar O Senhor dos Anéis dentro do contexto da Literatura Inglesa. Baseados nis-
so, apresentamos uma análise estética, partindo do pressuposto que se confirmou
de ter a obra de Tolkien características de uma estética gótica, um Fantástico Mara-
vilhoso, apontado por Roas (2014), em obras como a de J. R. R. Tolkien:

Diante do Maravilhoso, o mundo construído no interior do texto fantástico


deve oferecer signos que possam ser interpretados a partir de experiência de
mundo do leitor. Isso lhe permite contrastar as naturezas opostas dos acon-
tecimentos narrados e captar sua relação de conflitos (ROAS, 2014, p. 113).

Dessa forma, a fantasia e o Maravilhoso se insinuam pelas diversas brechas


lançadas pelo narrador. E o fato dessas duas categorias coexistirem em O Senhor dos

1  UFG – Regional Catalão


2  UFG – Regional Catalão, [email protected]

221
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Anéis abre uma terceira possibilidade, que faz uso das duas anteriores, gerando ten-
são, que reflete no comportamento dos personagens. É assim que o Gótico se insta-
la, enquanto os personagens encontram espaços onde sentirão esse medo. Segundo
Delumeau (2009, p. 30-31), “A emoção de medo libera, portanto, uma energia desu-
sada e a difunde por todo organismo. Essa descarga é em si uma reação utilitária de
legítima defesa, mas que o indivíduo, sobretudo sob o efeito das agressões de nossa
época [...]”, como o homem da Terra-Média, que sente dificuldade em empregar
certo discernimento a respeito de seus espaços e lugares, e de seu envolvimento nos
conflitos existentes, tal como a hesitação de Boromir diante da missão de conduzir
Frodo e o Anel até Mordor.

Espaços, lugares fantásticos e maravilhosos do medo


Como visto na introdução, podemos observar que a narrativa se desdobra
em três planos de ação e traz as características de cada um deles: o primeiro espaço
é a luz e a claridade intensa resultante do ambiente campestre do Condado, cheio de
cores vivas e brilhantes, em perfeita harmonia com os pequenos hobbits; o segundo
é a presença da escuridão, permitindo que o terror se instale numa constante usur-
pação da luz e de tudo que possa refleti-la, como acontece a Mordor encoberto por
nuvens negras; o terceiro é representado por um entre-lugar, não chega a ser a luz,
apenas parte dela, envolvido por uma penumbra constante, situação que pode ser
observada em Isengard, controlada por Saruman.
Todos os personagens, cada um a seu tempo, têm que enfrentar esses espaços
e, ao mesmo tempo, desejam voltar ao início, para seus lugares, quando tudo ainda
era seguro. É o desejo de Frodo de voltar para o Condado e para casa; o fracasso
de Boromir em seu contato com o Anel, o desejo de possuí-lo e voltar a Gondor; o
medo de Gandalf, ao descobrir a identidade do Anel, é de sucumbir a ele e ver desa-
parecer o que ele mais ama, a Terra-Média. Esses espaços são construídos segundo
a ordem dos sentimentos que envolvem os personagens.
Esse medo não chega a ser ocasional, pois o narrador está sempre mostrando
elementos que confirmam a presença de quaisquer afirmações que se faça a respei-

222
Estudos Literários

to. Não mencionamos aqui as questões referentes à maneira como o tempo exerce
influência sobre a narrativa, quando esta mostra em suas descrições os espaços e
os lugares em que os eventos ocorrem. “A importância dada ao tempo foi grande
que ensejou, inclusive, o aparecimento de uma filosofia cujo um dos pilares é ele, o
existencialismo, [...] basta lembrarmos a obra capital de Martin Heidegger, O ser e o
tempo” (BORGES FILHO, 2007, p. 12), ou o trabalho de Paul Ricoeur, O tempo na
narrativa (1994), em três volumes.
Esta é uma problemática amplamente debatida, em que se precisa voltar o
olhar para o espaço e o lugar que se acham sob a condição do Gótico aportado pelo
medo. Ainda assim, reconhecer a importância do tempo, implícito em todos os
lugares, responsável por movimentar ideias e esforços, para que se torne acessível a
qualquer desejo de liberdade.

A experiência de espaço e tempo é principalmente subconsciente. Temos um


sentido de espaço porque podemos nos mover, e de tempo porque, como
seres biológicos, passamos fases recorrentes de tensão e calma. O movimento
que nos dá o sentido de espaço é, em si mesmo, a solução da tensão (TUAN,
2013, p. 147).

Esse movimento está escondido numa suposta linearidade do pensamento


dos personagens. Por sua vez, o simples fato de movimentar o corpo pelos lugares
e pelos espaços por que passam, buscando completar suas missões. Isso significa a
existência de certa gama de conhecimento que retrate desejo de liberdade, em que
a tensão criada irá refletir um estado de inquietação. “A vida diária na sociedade
moderna requer que estejamos conscientes do espaço e do tempo como dimensões
separadas e como medidas transponíveis da mesma experiência” (TUAN, 2013, p.
147), que transcende as barreiras desse conhecido, equalizando o mundo moderno
representado pela fala de Frodo: “– Gostaria que isso não tivesse acontecido na mi-
nha época” (TOLKIEN, 2001, p. 52).
Ora, o homem sempre estivera preocupado com as condições dos lugares
e dos espaços por ele modificados, para que o pudessem recebê-lo. Esses espaços
refletem a tensão do homem para o seu tempo físico e psicológico, mencionado por

223
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Frodo ao lembrar as condições de vida no Condado e, depois, o apagamento destas


imagens e a substituição pela aridez já em Mordor, pois “A realidade manifestada é
o universo físico e histórico. Inclui tudo o que é ou foi acessível aos sentidos, tanto
o presente como o passado, porém exclui tudo o que chamamos de futuro” (TUAN,
2013, p. 149), algo que pode ser sentido no diálogo entre Frodo e Sam, ao final da
Sociedade do Anel: “Vamos, e que os outros encontrem uma estrada segura! Passo-
largo cuidará deles. Não acho que os veremos outra vez”. Ao que reponde Sam, de
forma um tanto quanto melancólica: “– Mas pode ser que sim, Sr. Frodo. Pode ser
que sim” (TOLKIEN, 2001, p. 425).
Sam estabelece uma margem de dúvida, pois tanto ele quanto Frodo conhe-
cem o que há para o presente e entendem-no partindo do que já viveram nessa
primeira parte da demanda do Anel. Nesse sentido, parece-nos que o tempo ganha
condições de uma subjetivação, que está entranhada na fala de Sam e, na medida em
que a resposta dada é uma confirmação à suposição lançada por Frodo, é também
outra resposta que implica na relação de sentimentos e nas necessidades humanas
em suas individualidades. Escreveu Yi-Fu Tuan (2012, p. 23) que: “O tempo e a ex-
periência [...] são necessários para o desenvolvimento pleno da visão”, para enxergar
além do mundo plano, uma visão encurtada. O narrador não deixa dúvida sobre
essa ligação e usa o tempo como uma preparação para o leitor, a fim de que este per-
ceba os espaços e a maneira como funcionam os lugares, desde a saída do Condado.
Yi-Fu Tuan (2012) traz o espaço a uma condição de abstração e coloca o lugar em
termos mais concretos, tendo relação com a experiência e dando-lhe certo valor.
Ao pensar sobre questões envolvendo espaço, fica claro a importância que
deve ser dada a essa relação: espaço e lugar na construção do texto literário. O espa-
ço ocupa largamente a narrativa, que se completa quando esses espaços projetados
são definidos como lugares. São ambientes que, de acordo com suas implicações,
norteiam todo processo narrativo reforçado pela construção de mapas elaborados
por Tolkien, para dar credibilidade a todos os espaços e os lugares citados, dando
certa ordem sentimental e geográfica a eles.

224
Estudos Literários

Mapa detalhado do Condado3. Fonte: O Senhor dos Anéis (2001, p. 20).

É preciso levar em conta as relações de sentimentos que sociedades, grupos


e personagens estabelecem com seus espaços. O mapa acima mostra a geografia
do Condado e ajuda a estabelecer um contato mais próximo com os lugares reco-
nhecidos pelos hobbits. Segundo Borges Filho (2007, p. 18), “lugar é o limite que
contorna qualquer corpo. Logo, temos aí uma autonomia do objeto, isto é, o lugar é
dado pelo objeto em si não importando os outros objetos que estão ao redor” e que
existem relações entre um corpo e outros e isso ajuda mostrar, em termos de Con-
dado, a vila do Bolsão e suas tocas descritas detalhadamente pela voz que narra. É a
partir dessa estrutura peculiar que o narrador aproxima o leitor da grande jornada
do Anel. De fato, desde o prólogo, não se percebe que haverá uma grande aventura
e que esses pequenos a protagonizarão.
A simplicidade dada aos hobbits é a simplicidade cotidiana, com suas peque-
nas atividades referentes à vida de qualquer pessoa; não há grandes feitos, jornadas,
criaturas inomináveis, terras ou mares a serem desbravados. É uma vida comum,
pacata para todos, reafirmando o modo de vida no Bolsão. Para Sam, o Bolsão é o

3  Compilado por Christopher Tolkien para O Hobbit e O Senhor dos Anéis.

225
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

seu lugar, é onde ele reconhece uma gama enorme de sentimentos que o capturam.
Frodo, por sua vez, vive uma constante inquietação em relação a esse mesmo lugar. O
que o torna desejoso de experiências, que não vêm sem que haja uma responsabiliza-
ção pelo que se escolhe. Olhar além das fronteiras é alargar o espaço de conhecimen-
to nas três instâncias citadas acima: a sociedade, o grupo e o indivíduo. Mas sempre
que as barreiras são rompidas torna-se difícil, pois significa atravessar o desconhe-
cido, deixando para trás o que é conhecido e entendido como civilizado e seguro.
O espaço desconhecido em relação ao espaço conhecido é muito maior: am-
plo em sua materialidade sentimental, pois se relaciona progressivamente ao medo;
amplo em sua estrutura física, pois existem grandes regiões da Terra-Média des-
conhecidas dos hobbits; temporal, porque a história da Terra-Média cunhada por
Tolkien vem de um caderninho usado por ele a partir de 1917, para construir as
primeiras lendas dessa terra e que ficou conhecido como O Livro dos Contos Per-
didos da Terra-Média. Mais importante do que todas essas fronteiras espaciais na
construção do grande painel da Terra-Média seria ver as relações e as experiências
vividas por todos os personagens de O Senhor dos Anéis. Cada um deles traz sobre
os ombros a responsabilidade do comprometimento ao qual devem se reportar.
Segundo Borges Filho (2007, p. 13), “a literatura nada mais é que a investi-
gação do homem e suas relações com o mundo”. Talvez seja por isso que a narrativa
se preocupe em mostrar o olhar de Frodo para o Condado, levantando questões
psicológicas, complexos que o atormentam ao longo da jornada, reconhecendo pro-
blemáticas relacionadas à geografia, filosofia, história, arquitetura etc. São detalhes
colocados no texto à disposição do leitor mais atento e aquele pouco preocupado
acaba por ser capturado por estas nuances.
Depois que Yi-Fu Tuan (2012) desenvolveu uma pesquisa a respeito de luga-
res e espaços, estudo este que veio complementar um anterior ao qual deu o nome
de Topofilia, que “é o elo afetivo entre a pessoa e o lugar ou o ambiente físico. Difuso
como conceito, vivido e concreto como experiência pessoal” (TUAN, 2012, p. 19),
o espaço e o lugar deixaram de ser apenas um detalhe em um mapa. Borges Filho
(2007) prefere usar o termo Topoanálise, que “não se restringe a análise da vida
íntima, mas abrange também a vida social e todas as relações do espaço com a per-
sonagem seja no âmbito cultural ou natural” (p. 33). Ainda segundo o pesquisador,
“É a investigação do espaço em toda a sua riqueza, em toda a sua dinamicidade na

226
Estudos Literários

obra literária. O topoanalista busca desvendar os mais diversos efeitos de sentido


criados no espaço pelo narrador: psicológicos ou objetivos, sociais ou íntimos, etc.”
(BORGES FILHO, 2007, p. 33).
A questão do espaço em toda história da Terra-Média é algo fundamental,
pois todo espaço, seja ele psicológico, físico, institucional e material, é uma das par-
tes predominantes. As muitas páginas desenhadas por Tolkien reproduzindo toda
topografia constituem-se em uma prova cabal dessa importância. Seria de forma
figurada o “osso” a que Tolkien se referia, entenda-se a geografia, a topografia, os
espaços por assim dizer. Fonstad (2004) comenta, no Atlas da Terra-Média, que

Cada linha foi desenhada por algum motivo, e grande parte das justificativas
foi dada nas respectivas explicações; contudo, o espaço nem de longe permi-
te a inclusão de todo o processo de raciocínio. Entre várias possibilidades,
escolhi as que me parecem mais razoáveis, visto que não pude consultar o
“Velho Cevado” para informações adicionais (FONSTAD, 2004, p. XI, grifo
da autora).

Existe mesmo uma necessidade de se saber posicionar a respeito da Terra-


Média, uma vez que a sua concepção compreende quatro Eras de seu tempo. Cada
olhar indica uma direção e, mesmo escolhido o caminho, podemos afirmar que não
chegamos a ele de forma única. Isso não acontece com este romance, pois os espaços
e os lugares implicam uma série de sentimentos, em que o mais comum é o medo
enquanto posicionamento estético. Na literatura, este se constitui a partir de uma
condição que requer uma leitura gótica, que, por sua vez, funciona bem se for colo-
cada numa perspectiva do Maravilhoso, proveniente de uma condição mais ampla
da Literatura Fantástica, aplicada na construção textual desse romance. Partimos,
portanto, de uma visão macro para uma visão micro, para poder chegar às análises
que interessam, pois a Terra-Média está mudando.
Chama-nos a atenção o fato de estas terras estarem passando por um franco
processo de alteração, onde nada permanecerá da mesma forma, nenhum lugar será
como antes, aos olhos de seus habitantes, mas modificado tragicamente. Os espaços
conhecidos não serão os mesmos e o medo será a tônica de cada passagem. “Como
toda emoção, o medo pode provocar efeitos contrastados segundo os indivíduos e
as circunstâncias ou até reações alternadas em uma mesma pessoa” (DELUMEAU,

227
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

2009, p. 30), exatamente como acontece com Sam, que sente medo de não poder
ajudar e medo de não conseguir acompanhar Frodo. De acordo com Yi-Fu Tuan
(2013, p. 22), “o espaço pode ser experienciado de várias maneiras: como a locali-
zação relativa de objetos ou lugares; como as distâncias e extensões que separam ou
ligam os lugares, e – mais abstratamente – como a área definida por uma rede de
lugares” e que Sam consegue perceber, na medida em que segue pelos muitos cami-
nhos da Terra-Média, enquanto o medo que sente contrasta com uma coragem que
o impulsiona para frente em direção a Mordor.
Nos espaços da Terra-Média, existe uma presença indicando os procedimen-
tos, valorando todas “as coisas” e tudo sofre uma movência que, a princípio, parece
não ser percebida, pois “Os movimentos freqüentemente são dirigidos para, ou re-
pelidos por objetos e lugares” (TUAN, 2013, p. 22). Curiosamente, numa segunda
determinação, as distâncias indicadas ao longo do romance trazem em si uma gama
enorme de possibilidades, pois essa referida distância pode ser medida, por exem-
plo, do Bolsão à estalagem do Pônei Saltitante; da morada dos elfos, em Rivendel, à
Montanha da Perdição perto da Torre de Baradur, onde está o olho de Sauron; e até
mesmo do Bolsão para ele mesmo, não se tratando apenas de um movimento reto,
mas de volta ao princípio, estabelecendo um círculo.
Desde sempre, o homem, assim como a maioria dos animais, concebe sua vi-
da na construção de um espaço em que pode se locomover e se embrenhar em seus
relevos aparecendo e desaparecendo. O mundo, então, passa a ser construído para
ele a partir do que começa a se formar em sua mente como condições de existência.
Sua realidade compreende elementos estruturados da materialidade concreta a qual
deve abstrair em seu consciente de forma inconsciente, para depois ser lembrado
em momentos outros em que busque por elementos que o ajudem a encontrar um
espaço de referência. Assim, as pessoas buscam por suas identificações com luga-
res na vida real, procurando sentir-se inseridas nesses espaços, como acontece na
Terra-Média. Por exemplo, o que se pode saber sobre os hobbits na citação abaixo:

Os hobbits são um povo discreto, mas muito antigo, mais numeroso outrora
do que é hoje em dia. Amam a paz e a tranquilidade e uma boa terra lavra-
da: uma região campestre bem organizada e bem cultivada era seu refúgio
favorito. Hoje, como no passado, não conseguem entender ou gostar de má-

228
Estudos Literários

quinas mais complicadas que um fole de forja, um moinho de água ou um


tear manual, embora sejam habilidosos com ferramentas. Mesmo nos tempos
antigos, eles geralmente se sentiam intimidados pelas “Pessoas Grandes”, que
é como nos chamam, e atualmente nos evitam com pavor e estão se tornando
difíceis de encontrar (TOLKIEN, 2001, p. 1, grifo do autor).

Parece pacata, tranquila, construída a partir de um espaço conhecido pelos


pequenos nos detalhes de cada lugar tipicamente rural. Não há com o que se preo-
cupar, pois a segurança que sentem resulta dos procedimentos e das relações que
mantêm entre si, não há propriamente a necessidade de fugir desse espaço e alterar
a realidade conhecida deles. Viver em um espaço tão ermo como é a Terra-Média
implica aprender sobre esse mundo, compreender como é participar dele e viven-
ciá-lo através das experiências possíveis. Em todos os planos em que se coloca o
ser humano e as outras criaturas, magos, elfos, anões, orcs, Uruk-hais, todos estão
sujeitos às mesmas leis e todos devem recorrer às poucas experiências que têm. Em
se tratando de experiência, Yi-Fu Tuan (2013, p. 18) explica que

implica a capacidade de apreender a partir da própria vivência. Experienciar


é aprender, significa atuar sobre o dado e criar a partir dele. O dado não pode
ser conhecido em sua essência. O que pode ser conhecido é uma realidade
que é um constructo da experiência, uma criação de sentimento e pensamen-
to [...] para experienciar no sentido ativo, e necessário aventurar-se no des-
conhecido e experimentar o ilusório e o incerto. Para se tornar um experto,
cumpre arriscar-se a enfrentar os perigos do novo.

A Terra-Média parece se dividir, movimentada por forças diversas, numa


polarização em que se percebe um constante crescer da escuridão, transformando
as regiões que alcança, ao passo em que a luz cede terreno, assim como numa bipo-
laridade de morte e vida.
De acordo com Yi-Fu Tuan (2012, p. 35), “No esquema cosmológico, a terra
medeia entre as forças do mundo superior e do das profundezas. A ideia de centro
reconcilia as tendências bipolares das direções cardiais”. O que causa a impressão
de que as distanciam e se encurtam num movimento circular e que se faz notar sob
uma condição psicológica, onde as supostas extremidades se engolem tal, como se

229
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

fosse um círculo levando a pensar sobre um falso equilíbrio de forças, partindo e


retornando sempre ao início, sem jamais haver a possibilidade de fuga.
Ainda seguindo o raciocínio de Yi-Fu Tuan (2012, p. 35),

O círculo, um símbolo de totalidade e harmonia, é um motivo recorrente nas


artes das antigas civilizações ocidentais, no pensamento da Grécia antiga, na
arte cristã, nos exercícios alquímicos da Idade Média e nos ritos de purifica-
ção de alguns povos analfabetos.

Assim o é para os povos da Terra-Média, um grande e poderoso círculo na


materialidade do Um Anel. Como representado na mitologia nórdica, o anel de
Odin; a união entre o homem representando um círculo que se fecha entre os dois.
E cada anel trazendo em sua simbologia a significação de vida e morte, salvação e
perdição, não importando a força do poder que emane dele.

Em Eregion, há muito tempo, muitos anéis élficos foram feitos, anéis mágicos,
como se diz. E eram, é claro, de muitos tipos: alguns mais poderosos, outros
menos. Os anéis menos importantes foram apenas ensaios no ofício, que ain-
da não estava totalmente desenvolvido, e para os ourives élficos eram insigni-
ficantes – embora eu os considere um risco para os mortais. Mas os Grandes
Anéis, os anéis de Poder, esses eram perigosos (TOLKIEN, 2001, p. 48).

Objeto este que consegue, desde a sua criação, exercer e influenciar a todos,
pois ele é o Anel que domina a vontade de outros anéis menores. Essa influência
transcende seu tempo de criação, como transcreve a citação:

Três anéis para os Reis-Elfos sob este céu,


Sete para os Senhores-Anões em seus rochosos corredores,
Nove para Homens Mortais, fadados ao eterno sono,
Um para o Senhor do Escuro em seu escuro trono,
Na Terra de Mordor onde as Sombras se deitam.
Um Anel para a todos governar; Um Anel para encontra-los,
Um Anel para a todos trazer e na escuridão aprisiona-los
Na Terra de Mordor onde as Sombras se deitam
(TOLKIEN, 2001, p. 52).

230
Estudos Literários

O Um Anel é um objeto mágico que, depois de ser deixado por Bilbo sob a
proteção de Frodo, tem sua origem pesquisada e decifrada por Gandalf. Seu poder
pode desestabilizar a tranquilidade da realidade da Terra-Média. O que dizer, então,
de quem assume a tarefa de carregá-lo? Assim foi com Sauron, depois com Isildur,
a quem o Anel traiu, ficando perdido nas águas de um rio por muito tempo até ser
novamente encontrado e provocar novas mortes causadas pelo despertar de senti-
mentos ruins, como a inveja e a ambição. Então, a criatura Gollum assume a guarda
do Anel, que fora perdido nas águas do rio Anduin e foge para as cavernas sob as
montanhas, ficando entre o mundo escuro dos orcs e o mundo de esperança dos
homens e outros seres, consumindo e sendo consumido pelo seu Precioso.
Mas novamente o Anel deixa o seu portador, sendo encontrado por Bilbo
bolseiro durante uma aventura inesperada para um hobbit. E, finalmente, o Anel vê
chegada a hora de deixar mais este portador. O simples ato de deixar o Anel depois
de portá-lo por tanto tempo causa a Bilbo sério desconforto. E deixar o Anel é um
momento de impasse, difícil e doloroso, como em um processo de separação que
o fragiliza. Mas tal atitude de abandonar o Anel deixa o velho hobbit debilitado e,
antes da longa jornada dele, é preciso lembrar que está tentando voltar para o seu
dono. Este longo processo destrutivo sofre uma interrupção e a sequência de rou-
bos e mortes por causa dele fica em suspenso. O que, para Bilbo, é um momento
de libertação e muita coragem, quando diz: “– Bem, de qualquer modo eu já me
decidi. Quero ver montanhas de novo, Gandalf – montanhas; e depois encontrar
algum lugar onde possa descansar. Em paz e silêncio” (TOLKIEN, 2001, p. 33, grifo
do autor), para Frodo, é triste e significa separação. Isso o deixa em dúvida sobre o
que deve fazer: “Gostaria que nunca o tivesse encontrado, e que eu não o possuísse
agora! Por que permitiu que eu ficasse com ele? Por que não me obrigou a jogá-lo
fora, ou destruí-lo?” (TOLKIEN, 2001, p. 62). Como visto, Bilbo iniciou o processo
ao possuir o Anel e a Frodo coube a parte mais árdua da jornada, assegurar que o
Anel seria destruído.
Ao abrir mão do Anel, não só alterou a ordem trágica estabelecida pelo obje-
to, mas Bilbo redefiniu todo o destino da Terra-Média. Como é corriqueiro aos hob-
bits, essa informação não chegou aos ouvidos dos hobbits comuns. “Mas mesmo os
mais surdos e os que menos saiam de casa começaram a ouvir histórias estranhas,
e aqueles que tinham negócios nas fronteiras começaram a ver coisas esquisitas”

231
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

(TOLKIEN, 2001, p. 45). Tem-se, então, o início de um jogo de luz e trevas diárias
em todos os lugares e espaços físicos ou psicológicos, espaços esses criados pelo ho-
mem que, para Yi-Fu Tuan (2012), trata-se de um processo que ocorreu em função
de um único evento: a linguagem. Este fato é explicado por ele da seguinte maneira:

Uma linguagem abstrata de sinais e símbolos é privativa da espécie humana.


Com ela, os seres humanos construíram mundos mentais para se relaciona-
rem entre si e com a realidade externa. O meio ambiente artificial que cons-
truíram é um resultado dos processos mentais, de modo semelhante, mitos,
fábulas, taxonomias e ciência. Todas essas realizações podem ser vistas como
casulos que os seres humanos teceram para se sentir confortáveis na natureza
(TUAN, 2012, p. 31).

E, pensando geograficamente, a Terra-Média representa uma série de casulos


que movimentam a realidade daqueles que nela vivem. É, portanto, uma complexi-
dade de casulos formando uma rede em que se entrelaçam cada pedaço e fragmento
de terra que temos que partir para conseguir entender esse intrincado universo, que
é o Bolsão, as florestas dos Elfos, as cavernas dos anões, as planícies dos cavaleiros
e a torre de Mordor. Cada um desses lugares representa a segurança e a estabilidade
para cada grupo de seres, o que faz a leitura desses espaços se aprofundar e com-
plicar ainda mais. Exige do leitor bem mais que simples análises, pois se tratam de
algo mais elaborado para ser pensado, inclusive os modos e as condições de escrita
de O Senhor dos Anéis.
Já para Tolkien, as bases que o ajudaram na composição de seu texto fazem
parte de seu conhecimento, são fontes que estudara a vida toda e se achavam impreg-
nadas em seus estudos e em sua curiosidade quanto aos estudos filológicos. Em uma
das muitas cartas, mais especificamente a de número 25, ele faz o seguinte comentário:

Minha história não é baseada conscientemente em qualquer outro livro –


com exceção de um, e ele não foi publicado: “O Silmarillion”, uma história dos
Elfos, ao qual freqüentes alusões são feitas. Não pensei nos futuros pesquisa-
dores; e, como há apenas um manuscrito, no momento parece haver poucas
chances dessa referência ser utilizada (TOLKIEN, 2006, p. 35. Carta 25).

232
Estudos Literários

O Silmarillion já existia – escrito em muitos cadernos, numa pré-organização


em rascunho feito à mão –, mas não estava pronto para ser publicado. Isso somente
viria a acontecer depois de sua morte e depois de os escritos serem organizados por
seu filho.
É fato que a leitura de O Silmarillion ajuda a elucidar muitas dúvidas que
podem pairar depois de uma primeira leitura de O Senhor dos Anéis, ao mesmo
tempo em que abre espaços para que surja uma infinidade de questões quando da
construção de seu primeiro e principal romance. Para Martins Filho (2002, p. 13),

Em O Silmarillion se condensa a “história” das Três Primeiras Eras do mun-


do, antes do que seria o Domínio dos Homens (Quarta Era), quando se re-
tiram de cena os demais seres falantes que antes povoavam o mundo (elfos,
anões, hobbits, ents, huorns, trolls, orcs, etc). Essas três primeiras eras com-
põem o que Tolkien denominou de Tempos Antigos, formando a sua mito-
logia, à semelhança da grega ou da romana (grifos do autor).

Em um trecho da carta de número 131, escrita para Milton Waldman, Tol-


kien esclarece que teve

uma paixão igualmente básica ab initio pelos mitos (não alegorias!) e pelos
contos de fadas e, acima de tudo, pelas lendas heroicas no limiar dos contos
de fadas e da história, de que há tão pouco no mundo (acessível a mim) para
meu apetite.

Mitos e contos de fadas, como toda arte, devem refletir e conter em solução ele-
mentos de verdade (ou erro) moral e religiosa, mas não explícitos, não na for-
ma conhecida do mundo “real” primário (TOLKIEN, 2006, p. 141. Carta 131).

A menção é importante, pois faz com que se pense seriamente sobre tal
construção. O Senhor dos Anéis tem identidade própria e consegue assegurar seu
espaço, além de fazer o leitor acreditar nos eventos ali dispostos. As relações que
vão acontecendo, como, por exemplo, entre o nobre e o simples, propiciam uma
aproximação maior do leitor, trazendo contornos de verdade ao que se lê sobre
a Terra-Média, seu tempo de ocorrência, o espaço que ocupa e o lugar em que se
acha, como explica Tolkien, na carta 135:

233
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

não é um nome de uma terra imaginária sem relação com o mundo no qual
vivemos (como o Mercúrio de Eddison). É apenas um uso da palavra middel-
-erd (ou erthe) do inglês médio, alterada a partir da palavra Middangeard do
inglês antigo: o nome para as terras habitadas dos Homens “entre os mares”. E
embora eu não tenha tentado relacionar o formato das montanhas e das mas-
sas de terra com o que os geólogos podem dizer ou conjeturar sobre o pas-
sado mais próximo, imaginativamente presume-se que essa “história” ocorra
em um período do verdadeiro Velho Mundo deste planeta (TOLKIEN, 2006,
p. 212. Carta 135, grifos do autor).

O tempo em que ocorre a Terra-Média enquanto história abrange três Eras


relatadas em O Silmarillion, onde A Sociedade do Anel e a guerra do Anel são a parte
final da terceira Era. Esse é o espaço, o tempo e o lugar em que procuramos mostrar
como uma reação física estimulada pelo psicológico ajuda a construir e a conduzir
toda a jornada do Um Anel.
Esse ato se alinha com as colocações de Yi-Fu Tuan (2005, p. 7) sobre o me-
do: “Os medos são experimentados por indivíduos e, nesse sentido, são subjetivos;
alguns, no entanto, são, sem dúvida, produzidos por um meio ambiente ameaçador,
outros não”. O que é bem representado pela fala de Frodo, quando diz: “– Gostaria
que isso não tivesse acontecido na minha época” (TOLKIEN, 2001, p. 52). O medo
não tem um lugar específico, um espaço definido e um tempo para acontecer, o que
é reforçado pela fala de Gandalf:

– Mas ontem à noite lhe falei sobre Sauron, o Grande, o Senhor do Escuro. Os
rumores que ouviu são verdadeiros: ele realmente ressurgiu; deixou seus do-
mínios na Floresta das Trevas e voltou à sua antiga fortaleza na Torre Escura
de Mordor, até vocês hobbits já ouviram esse nome, como uma sombra ron-
dando os limites das velhas histórias. Sempre, depois de uma derrota e uma
pausa, a Sombra toma forma e cresce novamente (TOLKIEN, 2001, p. 52).

Este trecho dá a tônica do que será o final da terceira Era. Ela está em ebuli-
ção e, como visto em O Hobbit, que funciona como um prólogo da guerra do Anel,
algo grande estava em curso para a Terra-Média, com suas grandes e antigas flores-
tas, onde seres sombrios caminhavam fazendo-se vizinhos de povos cuja vida era

234
Estudos Literários

pacata e eminentemente rural. É descrita assim na avaliação de Carter (2003, p. 39):


“É um mundo que está seguindo em direção ao meio-dia da civilização, explorando
gradualmente seus limites e domando seus lugares selvagens, lembrando-se vaga-
mente das civilizações elevadas e nobres”de eras perdidas, de Númenor em meio ao
mar, de Arnor ao norte e de Gondor nas terras do sul.
Este é o tempo ao qual se referia Gandalf e o que se deveria fazer no lugar
tido como lar. É um prefácio do que está por vir e não há como parar o processo.
São cenários e paisagens que se modificam para ser abertos novamente, como algo
grande e inesperado, movido por perguntas a cada novo detalhe que se revela.

Conclusão
Para os hobbits, os espaços que ocupam representam sua identidade. “Espa-
ço e lugar são termos familiares que indicam experiências comuns. Vivemos no es-
paço. Não há lugar para outro edifício no lote. As Grandes Planícies dão a sensação
de espaciosidades” (TUAN, 2013, p. 11). É o lugar onde eles existem enquanto povo,
é a significação, a marcação de suas identidades. “O lugar é segurança e o espaço é
liberdade: estamos ligados ao primeiro e desejamos o outro. Não há lugar como o
lar” (TUAN, 2013, p. 11). A evocação de lugar como sendo o lar mostra o quanto
esse povo pequeno valoriza sua unidade, pois, como é possível ver, logo na introdu-
ção de O Senhor dos Anéis, o narrador desenvolve de forma segura e coerente um
histórico da formação desse povo pequeno, mostrando seus hábitos, costumes e a
fórmula pacata de viver a vida, sempre voltando seu olhar para o que a terra pode
lhe dar para sua subsistência.

O que é lar? É a velha casa, o velho bairro, a velha cidade ou pátria. Os geó-
grafos estudam os lugares. Os planejadores gostam de evocar “um sentido de
lugar”. Estas são expressões comuns. Tempo e lugar são componentes básicos
do mundo vivo, nós os admitimos como certos. Quando, no entanto, pensa-
mos sobre eles, podem assumir significados inesperados e levantam questões
que não nos ocorreria indagar (TUAN, 2013, p. 11, grifos do autor).

O ‘sentido de lugar’, para eles, é muito importante. Sentir-se pertencer, ser


parte, estar integrado à comunidade e saber dela como sua família é, para eles, o

235
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

mais importante. Assim que Frodo e seus amigos se veem forçados a deixar o Bol-
são, tudo quanto conhecem do mundo exterior está dentro dos territórios onde
vivem. Além das divisas, nada sabem. A maneira como escreve Yi-Fu Tuan (2013)
explicando como os indivíduos se relacionam com os espaços em que se encontram
é muito próximo daquilo que o Condado representa para os hobbits: “É a velha casa,
o velho bairro, a velha cidade ou pátria” (TUAN, 2013, p. 11), a toca no Bolsão, pois
estas são as pequenas coisas que dão sentido à vida de um hobbit.
Conhecer, como sabem que conhecem as terras de sua região, dá-lhes essa
força interior, para que vivam de forma simples, assim como o próprio Gandalf
diz que pode se saber tudo que há a respeito deles e no minuto seguinte voltam a
surpreender ao revelar algo mais que não se sabia sobre eles (TOLKIEN, 2001). Ao
preparar o leitor para o que virá, como citado acima, o narrador proporciona uma
diversidade de sentimentos, uma vez que a narrativa inicial vem ocupar lugar quase
que de documento. Retrata a construção e a maneira como o cotidiano de um hob-
bit está envolvido com o lugar comum. É um mundo real de hobbits trabalhando,
vivendo, como deve viver qualquer comunidade, ocupando seus espaços, escolhen-
do seus lugares.

Referências
BORGES FILHO, Ozíris. Espaço e literatura: introdução à topoanálise. Franca-SP:
Ribeirão Gráfica e Editora, 2007.
CARTER, Lin. O Senhor dos Anéis, O mundo de Tolkien.Tradução de Alves Calado. Rio
de Janeiro/São Paulo: Record Editora, 2003.
DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente 1300-1800: uma cidade citiada.
Tradução de Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
FONSTED, Karen Wynn. O Atlas da Terra-Média. Tradução de Ronald Kyrmse. São
Paulo: Martins Fontes, 2004.
ROAS, David. A Ameaça do Fantástico. Tradução de Julián Fuks. São Paulo: Editora
UNESP, 2014.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura Fantástica. Tradução de Maria Clara
Correa Castello. São Paulo: Perspectiva, 2008.

236
Estudos Literários

TOLKIEN, John Ronald Reuel. O Senhor dos Anéis. Tradução de Lenita Maria Rimoli
Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2001. Original de 1954.
_______. As Cartas de J. R. R. Tolkien. Organizado por Humphrey Carpenter. Tradução
Gabriel Blum Oliva. Curitiba-PR: Arte e Letra Editora, 2006.
_______. The Lord of the Rings. London: Harper Collins Publishers, 2007.
TUAN, Yi-Fu. Paisagens do medo. Tradução de Lívia de Oliveira. São Paulo: Editora
UNESP, 2005.
_______. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. Tradução de Lívia de Oliveira.
Londrina: Eduel, 2013.
_______. Topofilia: um estudo de percepção, atitudes e valores do meio ambiente.
Tradução de Lívia de Oliveira. Londrina: Eduel, 2012.

237
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

A leitura de O Tronco em sala


de aula
Geovana Ferreira de Araújo1
Nismária Alves David2

Introdução
Com a constatação da pouca frequência de leituras de Literatura Goiana na
escola, especialmente de obras do importante escritor Bernardo Élis, percebeu-se a
necessidade de propor sua inserção em sala de aula. Para tanto, foi escolhido o pri-
meiro romance de sua autoria, O Tronco, publicado em 1956, e também se recorreu ao
filme homônimo O Tronco, de 1999, dirigido por João Batista de Andrade. Com essas
obras, foi possível estabelecer o profícuo diálogo entre Literatura, História e Cinema.
Trata-se de um trabalho que apresenta alguns dos resultados da pesquisa de
Iniciação Científica intitulada “A leitura de O Tronco em sala de aula: um projeto-in-
tervenção”, que recebeu o apoio do Programa de Bolsas da Universidade Estadual de
Goiás (PBIC/UEG), no período de agosto de 2017 a julho de 2018, e esteve vincula-
da ao projeto Núcleo de Estudos Goianos (NEG) – Os Estudos Culturais e a Literatura
Goiana na Escola3.
O texto, ora apresentado, inicia-se com uma breve síntese do enredo de O
Tronco. Depois, comenta-se sobre o contexto histórico-cultural de produção do re-
ferido romance. Por fim, oferece-se o relato das experiências obtidas em sala de

1  Graduanda em Letras Português/Inglês e suas Respectivas Literaturas pela Universidade Estadual de Goi-
ás – Câmpus Pires do Rio. Bolsista PBIC/UEG no período de agosto de 2017 a julho de 2018, geovanafarau-
[email protected]
2  Professora Orientadora da Universidade Estadual de Goiás (UEG). Doutora em Letras e Linguística pela
Universidade Federal de Goiás (UFG). Integra a Rede Goiana de Pesquisa em Leitura e Ensino de Poesia, o
Grupo de Estudo e Pesquisa em Literaturas de Língua Portuguesa (GEPELLP/CNPq) e o GT da ANPOLL
Teoria do Texto Poético, [email protected]
3  Projeto de Pesquisa financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás (FAPEG), no
período de dezembro de 2016 a dezembro de 2018.

238
Estudos Literários

aula, destacando a importância das relações entre Literatura e História, bem como a
relevância do Cinema para a promoção da leitura literária na escola.

1. O enredo de O Tronco
Narrado em terceira pessoa, o romance O Tronco tem como personagem
principal Vicente Lemes, sobrinho do fazendeiro Pedro Melo. Vicente assume o
cargo de coletor na Vila de São José do Duro, Goiás, por indicação de Artur Melo.
Esta família tem o poder sobre o povo, através de agrados e ameaças. Devido a isso,
o protagonista fica dividido entre agradar os familiares ou cumprir honestamente
as obrigações de seu ofício.
Seu tio se achava dono de tudo e de todos, como no caso do inventário da
viúva em que obrigava constar poucos bens nos registros já que havia tomado parte
para si. O sobrinho achava isso um absurdo, pois o local era pequeno e todos sa-
biam que o morto possuía muito mais bens. Vicente tinha receio de perder o seu
emprego se fosse denunciado sobre a omissão. O governo mandou tropas militares,
e um novo juiz para Vila do Duro. Com a chegada das tropas na cidade, os Melos
se sentiram encurralados e fizeram um acordo com o Juiz Carvalho. No entanto,
o acordo não foi cumprido e, então, a guerra foi declarada entre os militares e os
jagunços que defendiam Artur Melo.
Pedro Melo foi morto por soldados, crime que foi considerado legítima de-
fesa pelo juiz. Artur conseguiu se esconder e se aliou ao cangaço. A polícia prende
os homens da família Melo a um tronco no porão de sua própria casa e, depois, são
executados. Há a cruel execução do menino Hugo Melo. Os cangaceiros atacam
a cidade, comandados pelo jagunço Dorado, travando guerra contra os militares,
resultando em inúmeras mortes. Os soldados fogem. Com chuva e trovões, já sem a
família, Vicente segue pela estrada em direção a Goiás.

2. Contexto histórico-cultural de O Tronco


No romance O Tronco, são narrados fatos reais que aconteceram na Vila do
Duro Goiás (hoje Dianópolis-TO), no período de 1917 a 1919, relacionados à cha-
mada Batalha do Duro. O ápice do enredo é a batalha travada entre os jagunços dos

239
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Melos e as tropas goianas a mando do governo. Na obra, há o retrato da luta por


poder e território travada pela família Melo. Na realidade histórica, havia a família
Wolney, os fazendeiros da região, possuidores de grande extensão de terras e de
gado, detentores de poder sobre o povo.
Nesse sentido, O Tronco estabelece o diálogo com a História. Para Vicentini
(2010), trata-se de “um romance histórico realista”. A referida autora sintetiza o
enredo do romance com as seguintes palavras:

trata-se da luta travada entre um contingente policial e os jagunços a serviço


de um coronel do interior, Artur Melo, destituído das graças do governo esta-
dual de Eugênio Jardim, aliado do oligarca Caiado, Estado de Goiás, no início
do século XX, entre 1917 e 1918. O tronco se refere à estratégia da polícia de
prender alguns reféns ligados à família Melo, para suster o assalto dos jagun-
ços à Vila de São José do Duro, norte do Estado de Goiás e local onde se passa
a maior parte da ação do livro. (VICENTINI, 2010, p. 127-128).

Para a compreensão do contexto histórico do enredo contado (início do sé-


culo XX), foram feitos estudos de Campos (2003) e Palacín (1990). Quando a histó-
ria do livro se passa, estava-se na época do Coronelismo, momento em que os coro-
néis eram grandes fazendeiros que mantinham o poder sobre o povo. A população
era mais rural e com poucos habitantes. A economia era sustentada pela pecuária.
Através desta economia, os coronéis mantinham o poder local, dominavam e explo-
ravam, adquirindo novas propriedades.
A produção de alimentos cultivados no sul de Goiás só passou a existir com
a construção de estradas de ferro. A República Velha era o poder que regia nos
anos de 1909 e o poder político estava sob o comando da família Caiado. Quando
a família Caiado perdeu o poder depois de 15 anos, Pedro Ludovico Teixeira, o
prefeito da capital goiana (Vila Boa de Goiás), construiu a nova capital (Goiânia),
com dificuldade, pois não tinha mão de obra nem matéria prima, pois pouco se
construía em Goiás.
Os fazendeiros tinham seus currais eleitorais e mantinham o voto de cabresto
(compra de voto, ameaças e fraudes). Havia disputas de terras como, por exemplo,
os cangaceiros vindos da Bahia e os índios Caiapós. A extração de ouro foi perden-
do lugar para agropecuária, pois a mineração estava escassa e a agricultura era para

240
Estudos Literários

consumo próprio, uma vez que não tinha como transportar. Após a construção das
linhas férreas, o sul do Estado passa a plantar arroz, e achou mercado porque nos
outros Estados a maioria das terras era para o cultivo de café.
A pesquisa explica o porquê da pobreza e do atraso de Goiás, onde pou-
co saía e pouco entrava, os desvios de verbas federais e a má administração não
permitia o desenvolvimento e aumentava a violência e pobreza. Os Estados mais
desenvolvidos eram: Rio Grande do Sul, Minas Gerais e São Paulo. Política e eco-
nomicamente, possuíam mais eleitores e suas regiões eram mais próximas do porto
marítimo, facilitando a comercialização dos seus produtos.
Como se nota, trata-se de um contexto de isolamento geográfico e, conse-
quentemente, de certo atraso a que Goiás estava subjugado. Segundo Abdala Junior
(1983), O Tronco apresenta uma crítica social. O referido romance mostra as expe-
riências de vida de Bernardo Élis que nasceu em Corumbá de Goiás no dia 15 de
novembro de 19154. Na infância, ele viu a dominação do povo pelas oligarquias de
Goiás e o poder que esta tinha sobre eles. Foi escrivão do Cartório do Crime de Co-
rumbá de Goiás e da Delegacia de Polícia de Anápolis. Por isso, há vestígios da vida
política e militar do autor no romance. Também exibe marcas de seu envolvimento
com o Partido Comunista Brasileiro (PCB), no qual ingressou em 1940 e que fez
com que fosse monitorado.
Vieira Neto (2010, p. 39) salienta:

Bernardo Élis obteve mais espaço para articular seus contos e romances den-
tro de uma estética e linguagem particulares, não se eximindo, em momento
algum, de causar estranheza, desconforto ou encantamento que suas perso-
nagens exprimem, sem abandonar o comprometimento com a urdidura de
uma literatura engajada com as causas políticas e sociais.

Conforme Marchezan e Souza (2014), o tema deste romance focaliza a vio-


lência que resulta da luta pelo poder. Traz muitas marcas autobiográficas e o engaja-
mento político do autor a favor de ideias comunistas, uma vez que realiza a denún-
cia da opressão gerada pelo Coronelismo em terras goianas como um verdadeiro

4  Bernardo Élis faleceu na cidade de Goiânia (GO), no dia 30 de novembro de 1997.

241
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

protesto. Se, de um lado, há os poderosos (representados pelo Governo e pela figura


do coronel), do outro lado, há os sertanejos que são, muitas vezes, oprimidos e aban-
donados em situação degradante, sem nem sequer o mínimo para a sobrevivência.
Ao comentar sobre Bernardo Élis, Vieira Neto (2010, p. 20) assevera: “Sua
arte literária trouxe visibilidade para os sertões de Goiás, sua cultura, sociedade e
povo; a obra bernardiana ainda foi audaz ao denunciar a miséria, opressão e os des-
mandos dos chefes políticos, sem demagogia ou panfletarismo ideológico”.
Ainda, segundo Vieira Neto (2010, p. 23), Bernardo Élis passa efetivamente
a se dedicar à produção literária a partir de 1934, quando escrevia contos e poemas
para jornais locais, e já se mostrava atento ao Modernismo brasileiro, leitor e admi-
rador de escritores como Balzac, Tolstói, Zola e Vitor Hugo, os quais lhe deram o
traço humanista como característica marcante de seus textos.
Há o início da construção da cidade de Goiânia no ano de 1933 e a oficializa-
ção em decreto de sua transferência em 1937, com o evento oficial vindo a ser rea-
lizado em 1942. Isso significou a realização de um projeto de mudança e renovação
para o Estado de Goiás. Isso implicou também na renovação no campo das artes.
Uma das contribuições foi que Bernardo Élis colabora com a fundação da Revista
Oeste em 19425 que tinha como propósito divulgar o Modernismo no Brasil Central.
Em 1944, Élis publica seu primeiro livro Ermos e Gerais (contos), despertan-
do a atenção da Crítica Literária devido a seu talento literário, que já revelava traços
e temas que lhe seriam marcantes como, por exemplo: a linguagem regional, a ora-
lidade6, a realidade, as relações sociais arcaicas, o patriarcalismo, o Coronelismo, os
oprimidos. Realiza, portanto, uma prosa de denúncia. Seu reconhecimento como
escritor foi validado no ano de 1975, quando se tornou o primeiro escritor goiano a
tomar posse na Academia Brasileira de Letras.
A respeito de seu reconhecimento, Élis diz em entrevista concedida ao jornal
O Popular, divulgado no dia 08 de julho de 1997:

5 A Revista Oeste foi fundada pelo Governador do Estado de Goiás Pedro Ludovico em 1942 e circulou
até 1944.
6  Segundo Vieira Neto (2010, p. 51), com os livros Chegou o Governador (1987) e Apenas um violão (1984),
Bernardo Élis traz uma temática mais urbana e distancia-se da linguagem coloquial.

242
Estudos Literários

Eu até consegui demais porque cheguei à Academia Brasileira de Letras. O


meu romance “O Tronco” está na 10ª. edição. Os meus livros todos têm sido
editados. Eu tenho sido muito feliz. Mas eu acho que eu tinha direito a uma
projeção maior no país, embora com 81 anos de idade e adoentado, para di-
vulgar a literatura de Goiás que ainda é muito desconhecida. (CAMARGO,
1997, p. 10).7

Publicado em 1956, no que se refere à sua qualidade estética, de fato, O Tron-


co incorpora muitas conquistas do Modernismo brasileiro, especialmente, no que
se refere à linguagem e à inserção dos costumes locais. Inclusive, em 1968, rendeu
ao escritor o Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, na categoria romance.
Vieira Neto (2010, p. 47) lembra que a publicação de O Tronco se deu num
contexto histórico-cultural de renovação nas artes como é o caso do Neorealismo
no cinema italiano e do Cinema Novo brasileiro, a Bossa Nova na música e o Con-
cretismo na poesia. Neste mesmo ano, também foi publicado Grande Sertão: vere-
das, de João Guimarães Rosa, que renova a prosa regionalista assim como também
Élis fez. Mas, é sabido que Rosa conquistou mais reconhecimento muito antes do
escritor goiano.
Para Abdala Junior (1983), o romance O Tronco possui uma linguagem
popular, que tem como objetivo dramatizar os fatos. O referido crítico relata em
depoimento que Élis dissera: “O Tronco daria um grande filme” por ser de fácil
adaptação. Deveras, virou filme em 1999, dirigido por João Batista de Andrade8. O
livro O Tronco apresenta características de uma narrativa cinematográfica. Confor-
me Vieira Neto (2010, p. 119), “seus diálogos são rápidos e permeiam grandes ações
das personagens em meio às descrições do espaço e da natureza goianas realizadas
de forma precisa”.
Conforme Luiz Gonzaga Marchezan e Eunice Prudenciano de Souza (2014),
O Tronco define Bernardo Élis como um “herdeiro do regionalismo literário da dé-

7  CAMARGO, ECILENE. Bernardo Élis – entre ressentimentos e planos. In: Jornal O Popular. Goiânia, 08
jun. 1997, p. 10, foi citado por Vieira Neto (2010, p. 42).
8  João Batista de Andrade nasceu em Ituiutaba (MG) no dia 01 de dezembro de 1939. Em suas produções,
inter-relacionam-se Literatura, Política e Cinema, segundo Vieira Neto (2010, p. 96). Filia-se ao PCB em 1961,
atuou no Movimento Estudantil da USP e sofreu repressão durante a Ditadura Militar no Brasil.

243
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

cada de 1930, por meio de uma combinação artística, bem calculada, entre a his-
tória de um poder local e a literatura, acusa, julga o domínio exacerbado de um
determinado grupo social numa região goiana” (MARCHEZAN; SOUZA, 2014).
Sem dúvida, a obra de Élis volta seu foco para os seres injustiçados, marginalizados
e oprimidos, os quais sofrem a exploração, os abusos de autoridade, sendo vítimas
da desumanidade dos poderosos.

3. O Tronco em sala de aula: Literatura, História e Cinema


A relevância deste estudo está na interdisciplinaridade, pois reúne Literatura
e História. Teve-se como objetivo estudar o romance O Tronco, de Bernardo Élis,
a fim de propor, executar e analisar um projeto para sua leitura em sala de aula,
compreender as relações entre Literatura e História e pesquisar o Coronelismo em
Goiás, a fim de verificar o conhecimento que alunos do Ensino Médio têm sobre
a literatura e a história de Goiás, notadamente, sobre o Coronelismo tão presente
em terras goianas. A partir disso, colaborar com a visão crítica sobre a realidade
histórica e atual, visando ao desenvolvimento da reflexão dos alunos sobre política
em sentido amplo.
Para alcançar os objetivos desse estudo, realizou-se, inicialmente, uma lei-
tura completa do livro O Tronco. Após a leitura, efetuou-se um levantamento de
informações sobre as relações entre Literatura e História. Certos de que Literatura
e História são campos de saberes distintos, todavia podem se relacionar. De acordo
com Aristóteles (2001, p. 252), não é obra de um poeta dizer o que aconteceu, mas o
que poderia e o que é possível acontecer, segundo o que a verossimilhança é neces-
sária. Considera-se a premissa da importância de se conhecer a História Regional e
a Literatura produzida por autores locais:

Ao abordar os fatos históricos ocorridos no norte de Goiás no final da dé-


cada de 1910, mesmo que transfigurados pela ficção literária, Bernardo Élis
imprimiu ao romance O Tronco um predicado duplo: tirar do esquecimento
um episódio nebuloso da História goiana, chamando a atenção dos estudio-
sos, políticos e principalmente, leitores para a História Local e Regional, bem
diferente daquela oficialmente orquestrada para os manuais escolares; e ao

244
Estudos Literários

mesmo tempo conseguiu efetuar uma percuciente crítica à sociedade goiana


e brasileira na década de 1950, utilizando-se de uma linguagem inovadora
dentro dos próprios padrões estéticos e literários do regionalismo. (VIEIRA
NETO, 2010, p. 48-49).

Depois da contextualização e uma familiarização com o assunto, deu-se iní-


cio a criação do projeto, o qual foi realizado no Colégio Estadual Senador Antônio
de Ramos Caiado, localizado no município de Santa Cruz de Goiás (GO), com uma
turma do 3º Ano do Ensino Médio. Para a realização, teve-se a colaboração da pro-
fessora regente. Trata-se de um projeto constituído por atividades que podem ser
empregadas na escola, fundamentando-se nas discussões teóricas sobre a interface
Literatura e História com o emprego do Cinema como importante recurso didático-
metodológico, como diria Napolitano (2009).
Por isso, foi empregado o filme homônimo O Tronco, completando a tríade
Literatura, História e Cinema. As imagens fílmicas foram fundamentais para cha-
mar a atenção do alunado à leitura deste importante clássico da Literatura Goiana.
Para Marcos Napolitano (2009), em Como usar o cinema em sala de aula, com o uso
do cinema, o professor incrementa sua didática, pois incorpora o filme como algo
mais do que mera ilustração de aulas e de conteúdos.
José Manuel Morán (1995) destaca a importância de usar o vídeo para atrair
os alunos, pois este recurso se relaciona a um contexto de lazer e de entretenimento,
gerando uma expectativa positiva no alunado, a qual deve ser explorada pelo pro-
fessor para ligar com os conteúdos que deseja trabalhar. O autor pontua:

A linguagem audiovisual desenvolve múltiplas atitudes perceptivas: solicita


constantemente a imaginação e reinveste a afetividade com um papel de me-
diação primordial no mundo, enquanto que a linguagem escrita desenvolve
mais o rigor, a organização e a análise lógica. (MORÁN, 1995, p. 29)

Vieira Neto (2010), em sua dissertação de Mestrado O Tronco: obra literária


de Bernardo Élis (1956), fílmica de João Batista de Andrade (1999) e as conexões pos-
síveis entre cinema, literatura e história, aponta:

Para escrever um roteiro cinematográfico a partir de um texto literário, o


roteirista deve possuir, previamente, um conhecimento minucioso acerca da

245
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

obra e do universo de seu autor e da historicidade da época de sua escrita;


contudo, tal conhecimento prévio, obrigatoriamente, deve passar pelas pos-
sibilidades da tradução para a linguagem do cinema. Por isso, um filme que
se origina de uma obra literária, torna-se uma recriação, outra obra artística
elaborada pelo roteirista e o cineasta. (VIEIRA NETO, 2010, p. 17-18).

Dessa maneira, deve ser trabalhada a ideia de que um filme, embora dialo-
gando com o texto literário, não se trata de mera adaptação, mas sim se apresenta
como uma tradução, também fruto da criação artística. Nesse sentido, Vieira Neto
(2010, p. 18) cita Sandra Jatahy Pesavento (2001) que afirma:

Tratando-se de um filme – tradução em imagens da obra literária – a evi-


dência de real é maior ainda. As imagens são convicentes, são muito fortes,
têm o poder de verídico e são capazes de colocar, com vantagem, no lugar
do mundo real. As imagens são, qualitativamente, mais expressivas e mais
marcantes que as palavras.

De fato, as imagens do filme O Tronco chamam sobremaneira a atenção dos


alunos. Especialmente, as cenas violentas que retratam o Massacre de São José do
Duro, fato histórico estudado por Bernardo Élis que lhe serviu como ponto de par-
tida para a realização de seu romance.
Em síntese, foi elaborado o projeto que foi aplicado em sala de aula, contem-
plando o seguinte roteiro. Objetivo: Discutir sobre a interface Literatura e História,
que motive a leitura e a interpretação do romance O Tronco. Conteúdos: romance O
Tronco (de Bernardo Élis, 1956); filme O Tronco (de João Batista de Andrade, 1999);
o Coronelismo em Goiás; vida e obra de Bernardo Élis.
Ao todo, participaram das atividades 21 alunos. Todos assistiram ao filme
O Tronco, que foi exibido pela professora de Língua Portuguesa. Na aula seguinte,
dividiu-se a turma em 3 (três) grupos de alunos. Foi dada uma cartolina para cada
grupo. Todos integrantes leram e juntos decidiram os pontos principais a serem
destacados e, assim, confeccionar os cartazes. Os grupos colocaram palavras ou
frases-chaves daquilo que consideraram mais importante sobre o conteúdo, todos
foram ao quadro-negro e esclareceram suas escolhas aos demais grupos.

246
Estudos Literários

Na ocasião, oportunizou-se a discussão sobre o regionalismo modernista, o


Coronelismo em Goiás, destacando fatos histórico-culturais. Também, comentou-
se sobre a vida de Bernardo Élis e, sobretudo, acerca do enredo de O Tronco. Foi
possível destacar as semelhanças e diferenças entre o romance e o filme, tais como
a retirada e o acréscimo de personagens. Por exemplo, no romance, há a presença
do Juiz Valério Ferreira e, no filme, tem-se a criação do Tenente Catulino; o menino
Hugo é morto no romance, porém sobrevive no filme; no desfecho do romance,
Vicente parte sozinho, no entanto, no filme ele segue com a família.
A partir de Vieira Neto (2010), promoveu-se também a reflexão sobre as
metáforas apresentadas no filme. A primeira é por meio das imagens do jabuti que
caminha lentamente, é revirado para cima pelo juiz ao chegar, e desvirado para bai-
xo por Vicente no final do filme. A segunda é a imagem da justiça, a deusa Themis,
que se encontrava na mesa do juiz e que, após ser quebrada por Vicente indignado
com as injustiças cometidas pelas autoridades, foi remontada pelo Tenente Catuli-
no, ironicamente, depois de ordenar a execução de um soldado traidor.
Constatou-se o envolvimento da turma que fez, com criatividade, os cartazes
e se mostrou bastante curiosa e interessada sobre o assunto trabalhado, fazendo
várias perguntas à professora. Perguntas essas sobre os coronéis, a vida de Élis e o
contexto histórico-cultural da época. Foi estudado também sobre o costume dos
coronéis terem o tronco, um instrumento de tortura, em sua própria casa.
É interessante mencionar a explicação do título O Tronco dado por Vieira
Neto (2010, p. 46):

O título do romance de Bernardo Élis, O Tronco, é ambíguo e alegórico, insi-


nuando a posse de terra pelos grupos familiares e clânicos ou o emprego do
instrumento de tortura aos escravos africanos no Brasil colonial e imperial
em plena época colonial, como forma de punir os desafetos da classe oligár-
quica dominante.

Ainda, esclarecendo sobre o significado da metáfora do título, Vieira Neto


(2010, p. 129) acrescenta:

A cena do assassinato do Coronel Pedro Melo comprova essa ideia e torna-


-se ainda mais impactante quando há um corte e emerge um flashback que

247
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

explica ao espectador suas origens; é uma das alegorias que dão título ao ro-
mance e à versão cinematográfica: a visão do majestoso tronco do carvalho
simbolizava a posse e demarcação das terras e a fonte material para confecção
do ataúde que no dia de sua morte, leva-lo-ia para o solo.

Com o projeto, percebeu-se que grande parte dos alunos não apresenta o
hábito da leitura, principalmente de obras literárias de autores regionais, e quando
o fazem, conforme eles mesmos afirmaram, é somente em sala de aula. No início,
eles se mostraram bem dispersos, mas, com o passar do tempo, mostraram-se bem
empenhados a entender o romance e a participar das atividades propostas. Os alu-
nos confeccionaram os cartazes com criatividade e, quando surgiam dúvidas, expu-
nham à professora. Dessa forma, eles conseguiram alcançar o objetivo da proposta,
conhecendo e compreendendo a relação entre o romance e os fatos históricos e
culturais da época, e reconhecendo a importância de seu autor.

Considerações Finais
Levar o romance O Tronco para a sala de aula mostrou aos alunos a impor-
tância de se valorizar autores goianos, como Bernardo Élis. Também oportunizou
as discussões sobre a relação entre Literatura e História, motivando a prática da
leitura e da interpretação das realidades passada e presente, a fim de desenvolver
uma visão crítica.
Além disso, promover o diálogo da Literatura com o Cinema também se
mostrou bastante proveitoso, pois colocou a narrativa de O Tronco em movimento
com suas imagens audiovisuais, por meio na narrativa fílmica de João Batista de
Andrade, que tanto despertam a atenção do público receptor e se mostra como uma
valiosa ferramenta de reflexão.
Foi possível verificar o escasso conhecimento que os alunos do Ensino Médio
tinham sobre a Literatura e a História de Goiás, notadamente, sobre o Coronelismo.
A partir disso, trabalhar os conteúdos relacionados e colaborar com o olhar crítico
sobre a realidade, com vistas ao desenvolvimento da reflexão dos alunos sobre a
política como um elemento fundamental para a sociedade.

248
Estudos Literários

Enfim, deve-se mencionar que os alunos apreciaram conhecer a obra O


Tronco. A grande maioria dos alunos confessou que não tem o costume de ler lite-
ratura em casa, sendo que a leitura é feita exclusivamente na escola. Isso confirma a
responsabilidade desta instituição de tornar os alunos leitores, levando-os a perce-
berem a importância do ato de ler em suas vidas.

Referências
ABDALA JUNIOR, Benjamin (Org.). Bernardo Élis: seleção de textos, notas, estudos
biográfico, histórico e crítico e exercícios. São Paulo: Abril, 1983. (Literatura
Comentada).
CAMPOS, F. Itami. Coronelismo em Goiás. 2. ed. Goiânia: Vieira, 2003.
ÉLIS, Bernardo. O Tronco. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008.
MARCHEZAN, Luiz Gonzaga; SOUZA, Eunice Prudenciano de. Sobre O tronco,
romance de Bernardo Élis. Guavira Letras, v. 18, n. 1a., p. 19-35, 2014. Disponível
em: <http://hdl.handle.net/11449/124936>. Acesso em 30 mar. 2017.
MORÁN, José Manuel. O vídeo na sala de aula. In: Comunicação e Educação. São Paulo,
jan./abr. 1995, p. 27-35. Disponível em: <https://www.revistas.usp.br/comueduc/
article/view/36131/38851> Acesso em 09 set. 2018.
NAPOLITANO, Marcos. Como usar o cinema na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2009.
PALACÍN, Luiz. G. Coronelismo no extremo norte de Goiás. O padre João e as três
Revolução de Boa Vista. Goiânia: CEGRAF, 1990.
VICENTINI, Albertina. Romance Histórico, Realismo e Lisibilidade n’o Tronco, de
Bernardo Élis. Revista Mosaico, v.3, n.2, p.127-135, jul./dez. 2010. Disponível
em:<http://seer.ucg.br/index.php/mosaico/article/viewFile/1847/1148> Acesso
em 30 mar. 2017.
VIEIRA NETO, Henrique José. O Tronco: obra literária de Bernardo Élis (1956),
fílmica de João Batista de Andrade (1999) e as conexões possíveis entre cinema,
literatura e história. 2010. 197 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Humanas)
- Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2010. Disponível em:<http://
repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/16382/1/henrique.pdf>. Acesso em 08
set. 2018.

249
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

O objeto mágico na terra das


fábulas italianas
Helen Cristine Alves Rocha1

Introdução
O conto fantástico nasceu entre os séculos XVIII e XIX, período no qual es-
távamos em plena especulação filosófica. Para Italo Calvino (2004, p. 9), ele é uma
das produções mais características deste último século e uma das mais significativas
para nós, “já que nos diz muitas coisas sobre a interioridade do indivíduo e sobre a
simbologia coletiva”. Embora tenha um surgimento bem delimitado, sabemos que
antes mesmo de surgirem as designações de narrativas fantásticas, as superstições
já se configuravam como narrativas que causavam certo estranhamento, arrepios e
divertimentos nas pessoas, dada sua natureza repleta de mistério. Como versa An-
tonio Candido (2004, p. 174), não há povo e não há homem que possa viver sem “a
possibilidade de entrar em contado com alguma espécie de fabulação”.
Calvino (1999, p. 7-8), a respeito da circulação mundial dos contos popula-
res, afirma que ela é tecida de acontecimentos bem mais transitórios que a publica-
ção de um livro: “um contador de histórias que pára numa feira, um mercador fo-
rasteiro que pernoita numa estalagem, um escravo vendido num porto do Oriente,
e os acampamentos, cheios de fumo e de conversas, dos soldados pelo mundo em
tantos séculos de guerras”. Como aponta Calvino (1999, p. 8), “por vias imperscru-
táveis, o folclore continua o seu périplo de um continente a outro”. As histórias nar-
radas oralmente foram passadas de geração para geração até se firmarem na escrita,
e foram delas que surgiram outras histórias, as quais têm em seu cerne a magia, a
leitura do real, ou seja, da nossa realidade cotidiana e empírica; daquilo que é per-

1  Doutoranda em Estudos Literários pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU/PPGLET), helen-c@


bol.com.br

250
Estudos Literários

ceptível e/ou acessível, como aponta Filipe Furtado (1980). O conto fantástico tem
como tema a relação entre essa realidade de percepção “e a realidade do mundo do
pensamento que mora em nós e nos comanda” (CALVINO, 2004, p. 9).
Calvino foi escritor atuante, leitor e divulgador dos clássicos literários. Du-
rante toda a sua vida, dedicou-se à atividade escrita e sua extensa produção inclui
contos, romances, ensaios, teoria literária. A partir de 1947, notamos a preferência
do autor por narrativas que contenham o elemento fabuloso e um estilo pessoal
construído na base da narrativa popular: “Durante esse período, pouco a pouco,
o mundo ao meu redor ia se adaptando àquele clima, àquela lógica, todo fato se
prestava a ser interpretado e resolvido em termos de metamorfoses e encantamen-
tos (CALVINO, 2006, p. 15)”. Ele realizou, além da pesquisa das fábulas italianas,
outras sobre os contos orais e literários de outros países, como nas obras Contos
fantásticos do século XIX (2004) e Sobre o conto de fadas (1999). Portanto, nota-se
que seu trabalho como escritor foi também o de conhecer seu objeto de ocupação
com bastante propriedade, a partir de uma pesquisa que mostra o seu gosto pelos
elementos fantásticos.
A pesquisa que engendramos para este artigo tem como escopo uma das
principais obras desse autor. Nosso objetivo é analisar o lugar e o espaço de mani-
festação do objeto mágico como um ponto de convergência narrativa dos outros
espaços e personagens apresentados no conto “A terra onde não se morre nunca”,
presente em Fiabe italiane, riquíssima obra de Italo Calvino. Pretendemos, ainda,
investigar que efeitos o objeto mágico desencadeia no contexto textual e como
acontecem suas correlações magnéticas com outros espaços da narrativa - tendo
em vista que ele é o centro da narrativa, tudo se volta para ele, sai dele e o atravessa
como linhas de fuga. Em Fiabe italiane, nosso olhar centra-se sobre o conto elen-
cado acima porque ele apresenta o espaço do objeto mágico como o mais significa-
tivo da narrativa. A execução deste trabalho se justifica pela ausência de trabalhos
mais aprofundados sobre Fiabe italiane e o objeto mágico, ambos de autoria de Italo
Calvino. Ademais, concordamos com Gama-Khalil (2015, p. 204) quando afirma
que os objetos “ocupam um espaço e se configuram como espaços simbólicos na
vida cotidiana dos homens”. Ela ainda ressalta que, por essa dupla configuração
espacial dos objetos, é substancial à pesquisa a investigação sobre os espaços fic-

251
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

cionais. Logo, a leitura pode trazer, como nas fábulas, um caráter não só educativo,
mas também uma leitura da sociedade empírica com as histórias vivenciadas pelos
personagens, podendo levar o homem a conhecer a si e ao mundo que o rodeia e
propiciar outro modo de olhar para sua realidade imediata.
Para o desenvolvimento deste artigo, iremos ler e analisar obras que tratam
da especificidade da literatura de gênero maravilhoso e fantástico modo, elegendo
como obras básicas os estudos de José Paulo Paes (1985), Tzvetan Todorov (2004),
Filipe Furtado (1980), David Roas (2001), Lenira Covvizi (1978). Para os estudos
sobre Fiabe italiane e o conto, utilizaremos Italo Calvino (1990, 2004, 2006), John
Tolkien (2013), Andre Jolles (1976), Mario Barenghi (2007); Eva Oliveira (2013);
Stefano Calabrese e Sarah Cruso (2008). No que concerne à noção de objeto, recor-
reremos aos textos de Umberto Eco (2013), Italo Calvino (1990) e Abraham Moles
(1981). Dentro dos estudos sobre a linguagem, ideologia e espaço, teremos o auxílio
das obras de Michel Foucault (2006), Michel de Certeau (1994), Marisa Gama-Kha-
lil (2012, 2015), Gilles Deleuze e Félix Guattari (1997). Ademais, pretende-se reali-
zar pesquisa bibliográfica compreendendo: situar Calvino em seu tempo histórico,
social e cultural, além de estudos críticos em torno desse tema.

O conto, o objeto mágico e o maravilhoso


Em uma nota à primeira edição brasileira de Fábulas italianas (CALVINO,
2006, p. 7), Lorenzo Mammì afirma que, em 1954, “o editor italiano Einaudi decidiu
publicar uma antologia de fábulas italianas que pudesse ser comparada às coletâ-
neas francesa e alemã, já clássicas, de Perrault e dos Irmãos Grimm”. Encomendou
a tarefa de escolher e transcrever os contos a Italo Calvino, na época “um escritor
jovem, mas de grande reputação”. Destarte, Calvino recolhe, seleciona e traduz dos
vários dialetos italianos várias fábulas. De fato, o que interessa ao escritor, “em seu
mergulho no mundo da fábula, não é tanto a riqueza das imagens, ou o valor sim-
bólico delas, mas a economia da narração, a capacidade de descrever as situações
mais inverossímeis em pouquíssimas frases” (CALVINO, 2006, p.7). O interesse de
Calvino é pelo objeto mágico, pela rapidez e pela exatidão. Estas são parte das pro-
postas do autor tanto em sua escrita como para a literatura do próximo milênio.
Além da tarefa de reunir todo o material disperso nas várias regiões da Itália, ha-

252
Estudos Literários

via outra mais específica: “dare unità, stilistica e di metodo, al libro” (CALABRESE
& CRUSO, 2008, p. 58-60). Obedecendo a uma exigência editorial, Calvino se viu
diante de uma tarefa difícil, mas mesmo assim decidiu tornar-se “um elo da anôni-
ma cadeia sem fim pela qual as fábulas se perpetuam, elos que não são jamais puros
instrumentos, transmissores passivos” (CALVINO, 2006, p. 19), mas seus verdadei-
ros autores. Ao contar essas histórias, as pessoas as (re)faziam e Calvino resolveu
fazer parte dessa rede de autores, (re)organizando, improvisando e (re)inventando.
Em “A terra onde não se morre nunca” há um jovem que não se agrada em
nada da história de que um dia todos devem morrer: “– Não me agrada muito esta
história de que um dia todos devem morrer: quero procurar a terra onde não se
morre nunca” (CALVINO, 2006, p.98). Assim, ele despede-se de sua mãe, pai, pri-
mos e tios e vai procurar a terra onde não se morre nunca. Andou por dias e meses
perguntando as pessoas que encontrava pelo caminho se sabiam desse lugar, mas
ninguém sabia. Um dia encontrou um velho que empurrava uma carriola cheia de
pedras, e perguntou-lhe sobre a terra onde não se morre nunca. O velho disse para
que ficasse com ele que não morreria enquanto ele não acabasse de transportar
uma montanha de pedras, o que duraria cem anos. O jovem não quis e seguiu seu
caminho. Ao passar por um enorme bosque, encontra outro velho com barba bran-
ca. Este deveria cortar todo o bosque com sua podadeira, o que duraria duzentos
anos, mas o jovem também não quis viver com ele durante esse tempo. Depois de
alguns meses, o jovem chegou à beira-mar e encontrou um velho que observava um
pato beber a água do mar. Enquanto o pato não bebesse toda a água, o velho, nem
o jovem se ficasse com ele, iria morrer, o que duraria trezentos anos. No entanto,
não satisfeito, o jovem segue viagem. Uma noite, ele chega a um palácio magnífico,
um velho de barba branca abre a porta. Estava no lugar certo, na terra onde não se
morria nunca! Passados muitos anos, o jovem resolveu ir ver seus parentes, com
um cavalo branco (do velho) que tinha a virtude de andar como o vento e do qual
não deveria descer para que não morresse. Na viagem, ele passa pelos ossos dos três
velhos que havia encontrado quando estava procurando a terra encantada. Porém,
no lugar do mar encontra um lindo prado, no lugar do bosque um descampado e
no lugar da montanha de pedras havia agora uma planície achatada. Em seguida,
quando chegou em sua terra natal, o jovem não a reconhecia mais, porque mudara
muito: não mais existia sua casa, sua rua; ele perguntou pelos seus parentes, mas

253
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

ninguém nunca ouviu falar sobre. Então, tomou o caminho de volta e, voltando
para o palácio, encontrou um carreteiro no caminho, o qual conduzia uma carroça
cheia de sapatos velhos. O carreteiro pediu sua ajuda para recolocar a roda nos
trilhos. Ao insistir,

O jovem se apiedou dele e desmontou. Ainda estava com um pé no estribo


e outro no chão quando o carreteiro o agarrou por um braço e disse: – Ah!
finalmente o peguei! Sabe quem sou? Sou a morte! Está vendo todos aqueles
sapatos furados ali na carroça? São todos os que me fez gastar para correr
atrás de você. Agora consegui! Todos têm que acabar nas minhas mãos, não
há escapatória! E ao pobre jovem, também a ele só restou morrer. (CALVI-
NO, 2006, p. 101)

A conceituação de literatura fantástica enquanto gênero ainda permanece


controversa e questionável. Os estudiosos têm trabalhado ao longo dos anos para
obter uma definição que melhor se encaixe em narrativas que têm em comum o
componente insólito. Sabemos que Tzvetan Todorov, teórico búlgaro-francês, foi
o pioneiro da tendência que propõe o fantástico como um gênero. Em 1968, em
Introdução à literatura fantástica, o autor organizou, reuniu e discutiu os estudos
anteriores sobre o fantástico, levantando características que definiriam seu gênero
e separando os elementos que caracterizavam outros grupos de narrativas, como o
maravilhoso e o estranho.
Para Todorov (2004), percebemos que fomos transportados ao âmago do
gênero fantástico quando notamos que estamos “[num] mundo que é exatamente
o nosso, aquele que conhecemos, sem diabos, sílfides nem vampiros”, e nele depa-
ramos com “um acontecimento que não pode ser explicado pelas leis deste mesmo
mundo familiar” (TODOROV, 2004, p. 30). Um mundo ipsis litteris ao nosso, con-
siderando-se a representação, imaginação e a escrita, ou seja, coisas que modificam
a percepção da realidade, mas tentam mostrá-la assim como parece ser. Saímos de
uma realidade sem seres sobrenaturais, fantasmas, barulhos sem origens, para um
lugar no qual se produzem acontecimentos que não podem ser explicados e com-
provados cientificamente. O autor ainda aponta que aquele que percebe tal elemen-
to extraordinário no texto deve optar por uma das duas soluções possíveis:

254
Estudos Literários

ou se trata de uma ilusão dos sentidos, de um produto da imaginação e nesse


caso as leis do mundo continuam a ser o que são; ou então o acontecimento
realmente ocorreu, é parte integrante da realidade, mas nesse caso esta rea-
lidade é regida por leis desconhecidas para nós. (TODOROV, 2004, p. 30)

Ou um gênio da lâmpada é uma ilusão, um ser imaginário, ou realmente


existe, exatamente como os outros seres vivos, porém, raramente o encontramos.
Concordamos com José Paulo Paes (1985) quando aponta que o conceito de gênero
fantástico todoroviano é bastante restritivo. Tanto que sua primeira atitude foi a de
excluir dele o maravilhoso do conto de fadas e o estranho. Para Todorov (2004),
faz-se necessário que o texto obrigue o leitor a considerar o mundo das personagens
como um mundo de pessoas vivas e ativas, e a hesitar entre uma explicação natural
e uma explicação sobrenatural dos acontecimentos evocados. O fantástico ocorre
nesta incerteza, pois ao escolher uma ou outra resposta o leitor deixa o fantástico
para entrar no gênero estranho ou maravilhoso. No entanto, se ele permanece nessa
dúvida e ambiguidade, ele entra no gênero fantástico.
Em “Aterra onde não se morre nunca” é o maravilhoso que se instaura. Por-
tanto, há por parte do leitor uma aceitação, ou não, do sobrenatural do texto, visto
que não há leis racionais que expliquem a existência de um lugar onde não se morre
nunca. Ele faz parte de um mundo totalmente imaginário, no qual tudo é possível:
um jovem que decide ir para um lugar onde nunca se morre e, ao encontrá-lo, vive
durante séculos até que, comicamente, é capturado pela morte. Esta, insolitamente,
gastou muitos sapatos indo atrás do jovem e parece estar feliz em encontrá-lo. Sabe-
mos que no mundo prosaico nem essa terra e nem a possibilidade de conversarmos
com a morte, existem. Paes (1985, p. 186) concorda com Todorov quando ressalta
que no conto de fadas o que temos é um mundo imaginário que “não causa surpresa
ao leitor, o qual lhe aceita naturalmente os prodígios”.
Para David Roas (2001),

El mundo maravilhoso es un lugar totalmente inventado en el que las con-


frontaciones básicas que generan lo fantástico (la oposición natural / sobre-
natural, ordinario / extraordinario) no se plantean, puesto que en él todo es
posible – encantamientos, milagros, metamorfosis – sin que los personajes

255
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

de la historia se cuestionen su existencia, lo que hace suponer que es algo


normam, natural. (ROAS, 2001, p. 10, grifo do autor)

É uma questão de aceitabilidade: se temos algo construído e estabelecido


como normal, real, dentro dos parâmetros físicos do espaço dito maravilhoso, acei-
tamos tudo o que ali se manifesta sem fazer questionamentos sobre ser possível ou
impossível. Por isso, vamos conseguir fruir do conto “A terra onde não se morre
nunca” sem questionarmos a possibilidade de ser real ou não, já que ele é cons-
truído com acontecimentos normais de acordo com sua estrutura interna. O que
significa que não o confrontamos com nossa experiência de mundo, pois quando
“lo sobrenatural se convierte en natural, lo fantástico deja passo a lo maravilhoso.”
(ROAS, 2001, p. 10). À vista disso, se uma narrativa aparentemente sobrenatural se
refere à uma ordem já codificada, como o religioso, ela pode não ser percebida co-
mo fantástica ou maravilhosa, tendo em vista que já temos um referente pragmático
que coincide com o referente literário. Mesmo que o real seja colocado de um lado
e o irreal de outro, ou que eles se misturem como numa espécie de naturalização
de ambos, sabemos que o insólito surge como uma problematização do real, como
uma inversão e uma quebra deste. Contudo, também nos contos de fadas há essa
problematização, da mesma forma que em “A terra onde não se morre nunca”, de
Italo Calvino, que se encaixa dentro do gênero maravilhoso, porque não se refere a
nenhuma ordem já codificada, tudo o que acontece está sendo vivido pelo perso-
nagem como natural. Ademais, ele traz o maior medo da humanidade: a morte. Vi-
vemos como se não fôssemos encontrá-la ou procuramos artifícios que amenizem
a ideia de que ela exista, como a clonagem, os produtos contra envelhecimento, os
remédios rejuvenescedores. Portanto, há uma problematização da realidade mesmo
em contos do gênero maravilhoso.
O objeto mágico – a morte e a terra - é aquilo que rompe com os esquemas
da realidade e é o tema principal da narrativa. Irrompe em nosso universo familiar,
até o momento do imprevisto e, consequentemente, do estranhamento que experi-
mentamos quando ocorrem peripécias impossíveis e inadmissíveis: imaginamos a
cena pitoresca da morte em cima de uma carroça e usando sapatos. Esses objetos
assumem atividades e funções comumente não previstas para eles. Segundo Marisa
Gama-Khalil (2015, p. 202), as “inusitadas funções e atividades assumidas pelos

256
Estudos Literários

objetos garantem a irrupção do fantástico nas narrativas”. O problema da realidade


daquilo que vemos – “coisas extraordinárias que talvez sejam alucinações proje-
tadas por nossa mente; coisas habituais que talvez ocultem sob a aparência mais
banal uma segunda natureza inquietante, misteriosa, aterradora – é a essência da
literatura fantástica”, cujos melhores efeitos encontramos “na oscilação de níveis de
realidades inconciliáveis” (CALVINO, 2004, p. 9-10).
Partimos da ideia de que toda representação ou julgamento deve correspon-
der a um objeto abstrato e/ou concreto (ECO, 2013). Consideramos, tal qual Um-
berto Eco (2013), que o objeto é qualquer coisa dotada de certas propriedades e
tomamos por certo que ele existe em um mundo possível: nossa imaginação. Resta
saber que tipo de conteúdo corresponde a certos objetos e qual é o espaço que ele
ocupa. Na narrativa supracitada, a existência de um lugar onde não se morre nunca,
quatro velhos estranhos que oferecem muitos anos de vida a um jovem, a morte, os
sapatos e o cavalo configuram-se como uma sucessão de objetos e acontecimentos
que escapam à norma, encadeados um ao outro e possíveis no imaginário. O conto
popular é, dessa maneira, o “modello di racconto d’avventura e di prova, lineare,
drammatico, fondato su un atteggiamento essenzialmente estrovertito verso la real-
tà e ispirato ad una forte concentrazione simbolica” (BARENGHI, 1988, p. 31-32).
Simbolicamente, o sapato é um objeto que significa conforto, poder, instrumento de
tortura. Analogamente, vemos que se a morte gastou muitos sapatos indo atrás do
jovem é porque passou muito tempo à sua procura. O sapato é um objeto que de-
monstra temporalidade; que o jovem viveu por muito tempo enquanto a morte teve
todo o tempo que precisava para encontrá-lo. A morte não poderia matá-lo junto
ao velho do palácio, porque há ali um encantamento. Então, para poder procurá-lo
capturá-lo de forma confortável precisou usar sapatos. Quando o jovem desce do
cavalo, a morte se torna vitoriosa e o tortura no sentido de lhe tirar aquilo que ele
mais queria: sua vida.
Nesse ínterim, as narrativas orais estão, também, dentro do que Filipe Furta-
do (2015) considera como fantástico modo. O autor encerra, nessa literatura mági-
ca, o fantástico, o maravilhoso e o estranho, sendo caracterizada por abrigar “temas
que traduzem uma fenomenologia meta-empírica”, a qual “está para além do que é
verificável ou cognoscível a partir da experiência, tanto por intermédio dos sentidos
ou das potencialidades cognitivas da mente humana, como através de quaisquer

257
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

aparelhos que auxiliem, desenvolvam ou supram essas faculdades”. A fenomeno-


logia meta-empírica inclui quaisquer tipos de fenômenos sobrenaturais, tanto os
que são explicáveis racionalmente como os que são considerados desconhecidos.
O lugar onde não se morre nunca é um elemento metaempírico, pois ele não existe
no universo real; a morte também, porque é caracterizada como um ser falante, um
carreteiro e ainda usando sapatos. Ela é um fenômeno sobrenatural que faz parte
do universo ficcional, sendo real e possível nele. São os movimentos da morte que
determinam o dos personagens e ela é um dos objetos que estabelecem relações
entre eles. Seus sapatos demonstram seu movimento. Calvino constrói objetos para
onde converge toda a ação narrativa. Os elementos responsáveis pelo mágico, fan-
tástico ou maravilhoso “são usados a critério dos narradores, arranjados conforme
seus desejos e integrados às ‘cores locais’ criando um conteúdo único de forma que
a história seja sempre breve” (OLIVEIRA, 2013, p. 40). Como salientou Calvino
(2007, p. 38-39), “a fábula não desperdiça tempo”. André Jolles (1976, p. 195), no li-
vro As formas simples, define o conto como uma forma simples que “apresenta uma
linguagem que permanece fluida, aberta, dotada de mobilidade e de capacidade de
renovação constante”. Aliás, o conto é originariamente oral, breve, de curta duração
e envolve poucas personagens, como “A terra onde não se morre nunca”.
Calvino (1990, 47-48) expõe com propriedade aquilo que ele entende como
sendo o objeto mágico: um signo “reconhecível que torna explícita a correlação
entre os personagens ou entre os acontecimentos”. Na narrativa supramencionada,
os personagens e os acontecimentos giram em torno do desejo do jovem em encon-
trar um objeto (a terra encantada) e fugir da morte. É a possibilidade de existência
e a aparição real da terra que movimentam e determinam os passos e as relações
entre os personagens. Calvino (1990, p. 47) versa que “em torno do objeto mágico
forma-se como que um campo de forças, que é o campo do conto”. Desse modo,
consideramos que esse campo é o das convergências entre os espaços da narrativa e
o que a torna plurissignificativa. Nela, encontramos muitos objetos mágicos: a terra,
os quatro velhos, o cavalo encantado, a morte, os sapatos. Cada um deles é dotado
de uma propriedade característica, mas todos são campos de forças que se dirigem
para o desejo do personagem em fugir da morte, ou seja, todos se convergem para
a própria morte.

258
Estudos Literários

Para Calvino (1990, p. 48), a partir do momento em que “um objeto com-
parece numa descrição, podemos dizer que ele se carrega de uma força especial,
torna-se como o pólo de um campo magnético, o nó de uma rede de correlações
invisíveis”. Seu simbolismo “pode ser mais ou menos explícito, mas existe sempre.
Podemos dizer que numa narrativa um objeto é sempre um objeto mágico”. O ob-
jeto é um lugar atrativo e sugestivo: um espaço de atravessamentos. Consideramos
que ele também seja o insólito, aquilo que ainda não conhecemos e que sugere, sub
-repticiamente, uma leitura da sociedade. É desse modo que, no final da narrativa
supracitada, temos o triunfo cômico da morte com relação ao jovem: por mais que
tentamos fugir de encontrá-la, ela acaba nos achando. O bom humor também se
torna um objeto mágico. A morte e os sapatos (gastados) simbolizam a finitude, a
limitação não só humana, mas também dos objetos: que o tempo passa e tudo vai
com ele. Quando discorremos sobre objetos, estamos pensando nele como um es-
paço habitante de um lugar e carregado de funções. Objeto no sentido daquilo que
está frente a um sujeito e se relaciona com ele. Por isso, pode ser algo concreto (casa)
ou cognitivo (um desejo, uma fada), mas sempre significado e apreendido pela ima-
ginação; sempre polissêmico. Partindo do pressuposto de que o conto em análise
tem os objetos como um espaço e não só como elementos narrativos, percebemos
que os objetos são significativos na construção ficcional.
O objeto mágico está relacionado ao insólito. Lenira Covizzi (1978) cunhou,
em seu riquíssimo estudo sobre Guimarães Rosa e Jorge Luís Borges, aquilo que
ela entende como insólito: é tudo aquilo que quebra com nosso real; que desloca o
significado esperado sobre o que designamos empiricamente na realidade, como o
meta-empírico. Em Fiabe italiane, acreditamos que o objeto mágico se manifesta
diegeticamente por meio de uma atuação que desvela o insólito. Abraham Moles
(1981, p. 28), teorizando sobre os objetos, ressalta que eles têm “um caráter, senão
passivo, pelo menos submisso à vontade do homem”. No conto que analisamos aqui,
a terra se mostra como submissa à vontade do jovem, que usufrui de sua magia;
enquanto a morte é um objeto transgressor dessa lei de passividade: é ativa e pos-
suidora da vida dele.
Por isso, nosso interesse foi justamente estudar a lógica perdida presente no
mundo das fábulas. Concordamos com Gama-Khalil (2015) quando afirma que a
configuração do espaço nas narrativas fantásticas tem enorme relevo na constitui-

259
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

ção dos sentidos. No caso da narrativa que é o cerne desta pesquisa, o espaço do
objeto mágico é o que provoca situações fantásticas geradas por ele e por sua con-
vergência com os outros espaços. Por isso, é de suma importância investigarmos
as espacialidades ficcionais. No conto que estamos analisando, a importância do
espaço ficcional pode ser entendida desde o seu título, pois ele dá a ver uma locali-
dade na qual é possível viver para sempre. Para Furtado (1980), o espaço construído
pela literatura fantástica é, por essência, híbrido. Por isso, segundo Gama-Khalil
(2012), algumas noções da teoria literária tradicional, como espaço físico e social,
são insuficientes para caracterizar essa hibridez do espaço insólito e, à vista disso,
tomaremos como base, para a análise de “A terra onde não se morre nunca”, as no-
ções de atopia, utopia e heterotopia, de Michel Foucault (2006); e as de espaço liso
e estriado de Deleuze e Guattari (1997) associadas às noções de lugar e espaço de
Michel de Certeau (1998).
Para Foucault (2006), os espaços heterotópicos são lugares delineados na
própria instituição da sociedade, já a utopia configura lugares de uma sociedade
aprimorada e, por isso, espaços irreais, e o espaço intermediário entre esses dois
conceitos é a atopia: ela traz o real e o irreal ao mesmo tempo2. No conto supraci-
tado temos essa experiência, por exemplo: a utopia representada pela ideia de que
podemos ir para uma terra onde nunca morreremos, ou que podemos driblar a
morte; a heterotopia, por termos essa ideia da morte como real e possível; e, por
fim, a atopia: temos um jovem e uma situação real (a morte), mas em um mundo
inventado, e só a obra de arte pode nos proporcionar isso.
Deleuze e Guattari (1997) apontam que o espaço liso se configura como nô-
made e direcional, estabelecendo-se como uma superfície que pode irradiar-se em
variadas direções. Enquanto o espaço estriado é o das sedimentações históricas,
linear. Outro autor que trabalha a questão do espaço é Certeau (1998, p. 201), o qual
propõe como lugar “uma configuração instantânea de posições”. No conto supraci-
tado, temos como lugar: o cavalo, a rua, os sapatos. São lugares estáveis e ligados
entre si por “modalidades” que estabelecem o tipo de passagem de um lugar a outro,
como o estriado: um espaço estável e estratificado. Por outro lado, Certeau (1998,

2  Gama-Khalil (2012) defende a similaridade entre essas noções de Foucault e as de espaço liso e estriado
de Deleuze e Guattari (1997).

260
Estudos Literários

p. 202) alega que o espaço “é o efeito produzido pelas operações que o orientam, o
circunstanciam, o temporalizam”. Por exemplo, temos o cavalo como o lugar, um
ponto de convergência narrativa que é movimentado pelo jovem, espaço que o atra-
vessa; temos os sapatos (lugar) que são usados pela morte (espaço). Dessa maneira,
percebemos que o objeto mágico é um espaço de magnetismo, de operações realiza-
das no lugar. O espaço é como o liso: aberto e não tem pontos de diferenças.
Portanto, percebemos que em “Aterra onde não se morre nunca” o objeto
mágico é um espaço e um lugar que se configura como o cerne da narrativa; aquilo
que a torna plurissignificativa e atraente; aquilo sem o qual a narrativa não faria
sentido. Logo, nosso gosto pela leitura de contos populares, tradição da qual Italo
Calvino também é mestre, está justamente no ponto em que o próprio autor toca:
o prazer de contar; a comunicabilidade; a capacidade imaginativa; a genialidade de
enredos divertidos. Destarte, optamos por verificar os objetos mágicos enquanto
espaços e ponto de convergência narrativa, e como as construções espaciais de-
lineiam o efeito estético do insólito em “A terra nde não se morre nunca”. Como
aponta Calvino (2004, p. 13), é como se “o conto fantástico, mais que qualquer ou-
tro gênero narrativo, pretendesse ‘dar a ver’, concretizando-se numa sequência de
imagens e confiando sua força de comunicação ao poder de suscitar ‘figuras’”. Ao
suscitar a possibilidade do insólito, Calvino mostra um mundo que pretende ser o
nosso, mas que já é outro por inversão deste. O que conta, para o autor, não é tanto a
manipulação da palavra ou a busca pelos lampejos de um pensamento abstrato, mas
a evidência de uma cena que é ao mesmo tempo insólita e complexa.

Considerações finais
A literatura fantástica surgiu na França, no fim do século XVIII, no período
marcado pelo racionalismo e pela fermentação intelectual, em que tudo deveria
passar pelo crivo racional e científico ou não seria admitido como certo e verdadei-
ro. Essa literatura nasceu, portanto, como uma reação, contestando a hegemonia do
racional da época, fazendo surgir o insólito em seu cotidiano. Doravante, hoje ela
desfruta de plena liberdade para fazer o que queira, almejando devolver “ao homem
o sentido do mistério de si mesmo e do mundo, levando a ler metaforicamente o
texto literário como imagem invertida e substituta da realidade, como porta de in-

261
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

gresso a uma supra-realidade onde sonho e desejo [...] retomam a plenitude de seus
direitos” (PAES, 1985, p. 192).
Assim, importou-nos investigar o lugar e o espaço de manifestação do objeto
mágico como um ponto de convergência narrativa dos outros espaços e persona-
gens apresentados no conto “A terra onde não se morre nunca”, de Italo Calvino.
Além disso, procuramos demonstrar que efeitos o objeto mágico desencadeou no
contexto textual e como acontece suas correlações magnéticas com outros espaços
da narrativa.
Para pensarmos a literatura fantástica, começamos pelo clássico estudo de
Todorov (2004), no qual ele nos sugere que o texto constrói o insólito, mas a ade-
são ao fantástico puro, maravilhoso ou estranho estaria nas mãos do leitor. Para o
autor, a “hesitação” produz o fantástico na narrativa, pois o leitor, frente a algo que
esteja no plano do desconhecido, isto é, do insólito, hesitará entre uma explicação
lógica e outra sobrenatural. No caso da narrativa de Italo Calvino, essa hesitação
não acontece de forma efetiva, pois é o maravilhoso que se instala. Portanto, há por
parte do leitor uma aceitação, ou não, do sobrenatural do texto, visto que não há leis
racionais que expliquem um lugar onde não se morre nunca, um cavalo que tem a
virtude de andar como o vento, a morte sendo um carreteiro e usando sapatos, três
velhos enigmáticos que viveram por muitos anos e um velho que pode proporcio-
nar vida eterna a um jovem. Essa hesitação, em nosso ponto de vista, estaria presen-
te no discurso metafórico da literatura fantástica, que faz o leitor movimentar sua
interpretação questionando sua realidade.
O conto que analisamos está dentro do que se conceitua como fantástico
modo ou dentro do que é designado como gênero maravilhoso, se tomarmos o mi-
rante do fantástico como gênero. Esses modelos de narrativas pertencem ao mundo
imaginário e causam surpresa no leitor, uma vez que o insólito, aqui o objeto mági-
co, é o seu elemento principal. Ele deriva de nossa realidade, afetando-a. No gênero
maravilhoso, o receptor tem que aceitar naturalmente o que lhe é proposto, como
um mundo no qual tudo é possível, como já salientamos. Já no fantástico enquanto
modo, temos na narrativa elementos insólitos e sua condição de nunca terem sido
objetos de nossa experiência no mundo real, isso porque tanto os fenômenos sobre-
naturais explicáveis racionalmente como os que são considerados desconhecidos
estão dentro do conjunto de manifestações designado de metaempírico, que está

262
Estudos Literários

relacionado à realidade e está além do que é verificável. Ele é o sobrenatural e tem


função decisiva no desenrolar da ação. Assim, percebemos que todos os objetos
de “A terra onde não se morre nunca” têm um papel significativo no decorrer da
ação. Além disso, Furtado (2015) versa que, além de ser necessário ao fantástico, ao
maravilhoso e ser frequente no estranho, o recurso à temática do sobrenatural na
ficção ultrapassa as fronteiras desses gêneros. Por isso, o modo fantástico abrange
um número maior de textos em relação ao gênero fantástico designado por Todo-
rov, teórico que considera como fantásticas somente as narrativas do século XVIII e
XIX. Diante disso, percebemos que os termos insólito, sobrenatural e metaempírico
aludem a algo que esteja no plano do desconhecido, do irreconhecível, e não no de
nosso empirismo ordinário.
Como aponta Italo Calvino (2006), a literatura fantástica implica a aceitação
de uma lógica que leva para objetos e nexos outros, muito diversos de nossa expe-
riência diária. O fantástico está relacionado ao que criamos em nossa imaginação e
que não faz parte diretamente de nosso real, ou seja, do que vivenciamos diariamen-
te. A morte, o cavalo, os velhos, os sapatos, a carroça, são objetos que fazem parte de
nossa vivência, mas que recebem uma força especial e se tornam um campo mag-
nético; que fazem correlações entre si para tornar o conto ainda mais significativo.
Como espaços heterotópicos, temos o mar, o bosque, a montanha, o palácio,
a carroça, os sapatos, a morte, que são delineados na própria instituição da socieda-
de; aparecem na narrativa com funções diferentes. Com relação à utopia, os lugares
de uma sociedade aprimorada, temos o próprio desejo do jovem em não morrer,
a terra e o velho que proporcionam vida eterna, o cavalo que voa como o vento.
Espaços utópicos, já que irreais. Ademais, é utópico pensarmos em encontrar uma
terra onde nunca se morre, pois a morte é real (heterotópica), ela acontece e ainda
não sabemos lidar com ela. Entre os dois, a atopia: um desejo real de não morrer, a
morte e os vários anos vividos pelo jovem.
Como apontamos anteriormente, Gilles Deleuze e Félix Guattari (1997) pro-
põem o espaço liso como um espaço aberto, infinito. Assim, o espaço percorrido
pelo jovem até chegar ao palácio é um espaço liso, aberto, ele poderia ter optado
por ficar com um dos três velhos que lhe oferecem muitos anos de vida, mas não,
ele irradiou-se em outra direção, preferiu mudar sua natureza humana e poder viver
para sempre, até que foi encontrado pela morte. Ela, bem como o cavalo, o mar, o

263
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

bosque, a montanha, os quatro velhos, o palácio, podem ser vistos como o estriado,
pois são espaços delimitados, distribuídos de acordo com uma rede de significa-
ções, cada um em seu lugar. Enfim, no espaço estriado vimos que há uma separação
das coisas, uma organização de matéria. Dessa maneira, percebemos que o objeto
mágico é um espaço de magnetismo, de operações realizadas no lugar e o espaço
está relacionado ao liso: aberto e não tem pontos de diferenças.
Dessa forma, percebemos esses espaços no conto supracitado de Italo Cal-
vino: espaços que estão ligados entre si e que dão significados à obra. Participamos
de um espetáculo: o narrador expõe a vontade do protagonista como algo - talvez
- incomum para nós e importante de ser relatado; como algo extraordinário e ina-
creditável, como uma ficção. Nota-se que o real e o objeto mágico precisam estar
atrelados desencadeando a imaginação nos sujeitos, distorcendo o mundo para que
possamos vê-lo melhor. O objeto mágico serve ao propósito de tornar o que se
conta interessante. Ele está presente no conto de Calvino porque se configura em
característica atrativa para a perpetuação do fantástico na obra. Por ora, finalizamos
aqui a reflexão empreendida. Longe de esgotar o assunto, o objeto mágico e o conto
já são, por si só, perenes e dignos de constituírem permanente objeto de estudo.

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Estudos Literários

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265
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Desafios do ensino da
literatura
Igor D’ Aguiar Siqueira de Lemos1
Danielle Rodrigues Alves1
João Batista Cardoso1

Introdução
Este estudo pretende traçar uma perspectiva acerca da literatura e suas con-
tribuições contínuas para história do Brasil, bem como, o ensino e sua forma de
mediação em relação à literatura. As conjunturas históricas promoveram uma com-
preensão direcionada as prerrogativas europeias e romper com estes paradigmas é
o caminho para reafirmar a cultura brasileira. A educação deve se relacionar com o
mundo concreto relacionando o abstrato, isto é, a criatividade. Trabalhar o conteú-
do que o aluno vivencia no cotidiano é o caminho para desenvolver a autocrítica, ou
seja, reconhecer seu lugar no espaço e no tempo e ressignificar o mundo a sua volta
é o papel do leitor, papel este que deve englobar todos os indivíduos da sociedade.

Caminho da literatura
Para construir um entendimento sobre a literatura brasileira é necessário o
resgate dos meandros literários do espaço cultural e político de Portugal e percorrer
o caminho rumo ao grito nacionalista do povo brasileiro, tendo em vista, a perspec-
tiva do ensino da literatura nos diversos extratos sociais e as consequências trazidas
dos acontecimentos históricos à contemporaneidade.
O ensino da literatura demonstra-se carregado de preceitos europeus, isto
é, a partir da inserção dos portugueses no território brasileiro a conjuntura da li-

1 UFG/RC

266
Estudos Literários

teratura e suas formas de expressão foram postas aos moldes do letramento em


voga na Europa, especificamente em Portugal do século XVI , as expressões sociais
desenvolviam-se pela perspectiva do homem civilizado e a base para o progresso
era a arrecadação econômica de recursos naturais da colônia em detrimento da
coroa portuguesa, desse modo, os instrumentos para construir a autêntica cultu-
ra em relação aos parâmetros do velho mundo era a prática da implantação do
pensamento europeu no território sul americano, em relação à literatura, Antônio
Cândido (1999):

Portanto, como toda cultura dominante no Brasil, a literatura culta foi aqui
um produto da colonização, um transplante da literatura portuguesa, da qual
saiu a nossa como prolongamento. No país primitivo, povoado por indígenas
na Idade da Pedra, foram implantados a ode e o soneto, o tratado moral e a
epístola erudita, o sermão e a crônica dos fatos. (1999, p. 12-13).

De acordo com Aguiar e Silva (1994, p. 15), “o objeto da ciência de litera-


tura não é a literatura, mas a literariedade, isto é, o que faz de uma determinada
obra uma obra literária”. Tendo em vista as características da literatura, o ponto de
partida para explicar a problemática do ensino da literatura é a especificidade de
ser a literatura um modo de expressão da vida, ou seja, a expressão artística do ser
humano desenvolveu-se sobre a literariedade que o cercava, no caso da literatura
brasileira, o que cercava o indivíduo era o processo de afloramento artístico sobre
a reflexão renascentista e seu prolongamento sobre o espaço latino-americano na
época do colonialismo. Para Alfredo Bosi (2002):

Uma história da literatura brasileira que pretendesse ser verdadeira, isto é, fiel
ao seu objeto, deveria admitir que os textos dispostos no tempo do relógio
não têm nem a continuidade nem a organicidade dos fenômenos da natureza.
Os escritos de ficção, objeto por excelência de uma história da literatura são
individuações descontínuas do processo cultural. Enquanto individuações,
podem exprimir tanto reflexos quanto variações, diferenças, distanciamen-
tos, problematizações, rupturas e, no limite, negações das convenções domi-
nantes no seu tempo. (BOSI, 2002, p. 11-12).

267
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Sendo assim, a busca por uma história fidedigna acerca da literatura brasi-
leira perpassa a subjetividade do leitor da época, ente que desenvolve a cultura do
espaço em que se insere, portanto, admitir divergências sobre as estruturas daquela
época é caráter que está intrínseco ao discurso literário que para Eagleton “discurso
literário torna estranha, aliena a fala comum; ao fazê-lo, porém, paradoxalmente
nos leva a vivenciar a experiência de maneira mais íntima, mais intensa” (EAGLE-
TON, 2006, p. 6). Em concomitância com as evoluções sociais, o uso das letras
sobre as experiências torna a relação leitor e escritor uma constituição do espaço
cultural que para Sartre (1989):

O ato criador é apenas um momento incompleto e abstrato da produção de


uma obra; se o escritor existisse sozinho, poderia escrever quanto quisesse,
e a obra enquanto objeto jamais viria à luz: só lhe restaria abandonar a pe-
na ou cair no desespero. Mas a operação de escrever implica a de ler, como
seu correlativo dialético, e esses dois atos conexos necessitam de dois agentes
distintos. É o esforço conjugado do autor com o leitor que fará surgir esse
objeto concreto e imaginário que é a obra do espírito. Só existe arte por e para
outrem. (SARTRE, 1989, p.37).

Considerando o aspecto do outro em relação a arte, nesta pauta a literatura, o


fator necessário para inserção do plano ideológico português era despertar a luz dos
conhecimentos europeus em solo brasileiro, um exemplo disso é a literatura con-
ceptista do Padre Antônio Vieira com o Sermão da Sexagésima (1655), obra literária
de cunho religioso que refletia a tentativa de inserir a ideologia católica na cultura
brasileira em detrimento do controle sobre os nativos do Brasil.
A literatura possui compromisso com a realidade pois carrega influência do
contexto social, econômico e político no momento de sua criação que para Antônio
Cândido (1993):

obra é uma realidade autônoma, cujo valor está na fórmula que obteve para
plasmar elementos não-literários: impressões, paixões, ideias, fatos, aconte-
cimentos, que são a matéria-prima do ato criador. A sua importância quase
nunca é devida à circunstância de exprimir um aspecto da realidade, social
ou individual, mas à maneira porque o faz (CANDIDO, 1993, p. 33-34)

268
Estudos Literários

Esta maneira de fazer a obra promove anseios sobre o artista criador de lite-
ratura que influi na estrutura usada para determinado objetivo, assim, a esfera que
circunda a história da literatura brasileira passa pelo uso da literatura como ferra-
menta para emancipação ideológica em relação à coroa portuguesa, sendo reflexo
o período literário romântico que eclodiu entre meados do século XVII ao final do
século XIX, que evocara o sentimento nacionalista tomando como fatos históricos
a Independência política do Brasil em 1822, como também, as campanhas abolicio-
nistas do final do século XIX que perpetua até à contemporaneidade.
Perante os contextos históricos, é perceptível a relação entre realidade e lite-
ratura e o peso que a dialética dessa dualidade provoca na estruturação do ensino
atual, resultando na estruturação de uma problemática que envolve vários pilares
que sustentam o Estado, pilares estes que estão representados na literatura e que
recebe determinado tratamento por meio do sistema educacional brasileiro.

Leitura e interpretação, do mundo à palavra


De acordo com Freire (1989) antes da criança ser alfabetizada já há a ocor-
rência da leitura, isto é, o mundo que o cerca é lido e interpretado pela criança, os
espaços sociais perpassam o indivíduo e a leitura do mundo é realizada. A partir
das diversas leituras das diversas experiências de mundo o indivíduo carrega em
si aspectos históricos que influenciarão no processo de letramento literário, para
Freire, “O ato de ler se veio dando na minha experiência existencial. Primeiro, a
“leitura” do mundo do pequeno mundo que movia depois a leitura da palavra que
nem sempre, ao longo de sua escolarização foi à leitura da palavra mundo” (1989,
p.12). Portanto, a função da leitura em primazia é o reconhecimento existencial e
de acordo com Freire, o processo de escolarização deve se direcionar para a relação
indivíduo-mundo, que, por conseguinte, se materializa no que Freire denomina de
“palavra mundo”.
O papel do leitor é a ação de interseccionar a representação simbólica do mun-
do por meio das experiências históricas do mundo, de acordo com Zilberman (1985):

Pois sendo uma imagem simbólica do mundo que se deseja conhecer, ela
nunca se dá de maneira completa e fechada. “Pelo contrário, sua estrutura

269
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

marcada pelos vazios e pelo inacabamento das situações e figuras propostas,


reclama a intervenção de um leitor, o qual preenche essas lacunas, dando vida
ao mundo formulado pelo escritor” (ZILBERMAN, 1985, p. 19)

Em relação ao ensino da literatura, o aparato histórico literário deve ser ob-


servado criticamente relacionando os saberes culturais e sociais que os alunos vi-
venciam e o elo que liga as tramas e os conflitos da humanidade que interage com
os sentidos que tornam a literatura como meio fundamental para desenvolver a
autonomia do ser social, de acordo com Arroyo (1990):

a natureza da literatura infantil, o seu peso específico, é sempre o mesmo e


invariável. Mudam as formas, o revestimento, o veículo de comunicação que
é a linguagem. A fábula de Esopo é imutável desde seu nascimento e desde
que consagrada pelo único critério válido em literatura infantil – o gosto do
leitor infantil – permanecerá despertando interesse até o fim do mundo. Es-
ta realidade específica não pode ser confundida com exercícios intelectuais
ou pedagógicos estritos, fórmulas de moral ou de pureza gramatical, variá-
veis em suas vinculações históricas. Deixa-se bem claro o valor fundamental
do gosto infantil como único critério de aferição da literatura infantil (AR-
ROYO, 1990, p.25).

Para tanto, a importância do ensino da leitura permeia a compreensão do in-


divíduo social como ser transformador do espaço e do tempo que se está inserido, os
conflitos sociais são melhores interpretados se o ente tornar possível o esclarecimen-
to sobre sua subjetividade e as possibilidades de ação que a literatura instrumentali-
za como material para educação humana, de acordo com Antônio Cândido (1989):

A literatura tem sido um instrumento poderoso de instrução e educação, en-


trando nos currículos, sendo proposta a cada um como equipamento inte-
lectual e afetivo. Os valores que a sociedade preconiza, ou os que consideram
prejudiciais, estão presentes nas diversas manifestações da ficção, da poesia e
da ação dramática. A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e
combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os proble-
mas. (CANDIDO, 1989, p. 113).

270
Estudos Literários

Contudo, o uso da literatura carrega em si a problemática histórica de con-


tínuos erros sociais na produção da literatura propriamente dita, tais como: o ma-
chismo, a imposição ideológica e a desvalorização das diferentes culturas. Para o
discernimento do espaço contemporâneo, o uso das obras escritas em épocas que
contrapõem o desenvolvimento da atual conjuntura literária, em que, as visões do
mundo devem repudiar o uso cotidiano preconceituoso de tempos passados, isso
requer a reconfiguração social em detrimento do coletivo que tal obra é lida e me-
diada pelo professor, para Chartier (2002):

Uma história da literatura é, pois, uma história das diferentes modalidades da


apropriação dos textos. Ela deve considerar que o ‘mundo do texto’, usando os
termos de Ricoeur, é um mundo de objetos e de Performances cujos disposi-
tivos e regras permitem e restringem a produção do sentido. Deve considerar
paralelamente que ‘o mundo do leitor’é sempre aquele da ‘comunidade de in-
terpretação’ (segundo a expressão de Stanley Fish) à qual ele pertence e que é
definida por um mesmo conjunto de competências, de normas, de usos e de
interesses. O porquê da necessidade de uma dupla atenção: à materialidade
dos textos, à corporalidade dos leitores (CHARTIER, 2002, p. 255, 257).

Em suma, a literatura é a representação do real e envolve a história e sua ma-


terialidade como forma de expressão de ações passadas e as elaborações possíveis
sobre as interpretações fornecem à contemporaneidade abertura para o imaginativo.

O ensino da literatura
Para falar sobre o ensino da literatura é preciso se debruçar numa trajetória
histórica de como a leitura de livros e a contação de histórias foi parar no currículo
escolar, quais são os objetivos da escolarização da literatura? Como ela se dá nas
escolas? Assim sendo, quais são os erros e acertos desse conteúdo. Para que com
isso possamos perceber e pontuar a importância da literatura dentro e fora da vida
escolar, buscando subsídios para que esta não seja apenas um conteúdo obrigató-
rio desinteressante, em que, as atividades sejam estereotipadas e mecânicas e que
desestimulam o aluno, que, por conseguinte, acaba por aumentar os dados cada
vez maiores da redução de leitores no Brasil. Para além disso, discutiremos o que

271
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

é a literatura infantil e quando a literatura começou a ser fragmentada, censurada


para especificar esses fatos será usado o trabalho de Magda Soares (2011) no livro
“A escolarização da literatura infantil: uma literatura didatizada, pedagogizante e
escolarizada para atender seus próprios fins.”

A literatura infantil no Brasil e nas escolas


A literatura infantil é complexa e densa, o surgimento dessa produção artís-
tica na sociedade e dentro dos ambientes escolares parte de um interesse de uma li-
teratura própria que valorizasse o nacional, de modo que, as adaptações e traduções
de diferentes livros foram e são importantes para o desenvolvimento social, como
reflexo dessa interrelação de trabalhos literários o conceito de infância passou a ser
notado e trabalhado nas esferas institucionais. De acordo com Zilberman (1985):

A Literatura Infantil apresenta, no Brasil, um campo de trabalho tão extenso


e desconhecido, que ocorre com o investigador o que se passou com Cristó-
vão Colombo: pensa-se ter descoberto o caminho para as Índias quando, de
fato, mal tangenciou um continente inexplorado cujo perfil exato ainda está
por ser definido. (ZILBERMAN, 1985, p.9)

Com a conexão das civilizações o conceito social se transfigura e o conceito


de literatura pra infância emerge, como escreve Zilberman (1985) “[...] antes não se
escrevia para elas, porque não existia infância.” (ZILBERMAN, 1985, p. 13). Com
essa importância acerca de desenvolver esse conceito, surge a necessidade de uma
literatura específica para infância, como também, escritas teóricas para mediação
da literatura.
O livro lançado no Brasil com grande repercussão no meio escolar foi o “Li-
vro do Povo”, escrito por Antônio Marques Rodrigues no século XIX. O livro se
trata de acordo com Domingos de Castro PERDIGÃO (1922):

preencher uma lacuna no ensino primário, tiraram-se, em menos de dois


anos, 10.000 exemplares em duas edições, que foram as maiores até então
impressas no Maranhão. É um trabalho consciencioso e de leitura fácil onde
o nosso inolvidável conterrâneo reuniu uma grande soma de conhecimentos

272
Estudos Literários

humanos, próprios para instruir moral e intelectualmente a mocidade. (PER-


DIGÃO, 1922, p. 10-11)

E também foram escritos livros para diversão da infância como Contos In-
fantis, de “Júlia Lopes de Almeida” final do século XVIII e início do século XIX reu-
nindo mais de sessenta narrativas em verso e prosa. Além disso, diversos trabalhos
foram traduzidos para língua portuguesa, o que reafirma a influência europeia na
literatura infantil. Nomes como: “Lewis Carrol” autor de Alice no país das maravi-
lhas, “Collodi” autor de Pinóquio ganharam e ainda hoje tem grande repercussão na
literatura infantil.
A literatura infantil, como já buscamos estabelecer alguns traços desse sur-
gimento artístico no Brasil, estabelecer o conceito de literatura nas escolas é um
interesse de controle intelectual das crianças em relação ao entendimento existen-
cial e social por elas mesmas, ou seja, o senso crítico, em que, a tipologia de livros
das escolas está interessada a levar a criança ao intuito de reconhecer o espaço e o
tempo que a literatura possibilita por meio da interpretação, os objetivos por trás
dessa leitura não é o “ler para ler”, para Zilberman (1985) a mediação do conteúdo
literário disponibilizado pelas escolas “[...] demonstra a falsa inocência do gênero,
[...] sua intenção moralizante [...] revela um manual de instrução.” (ZILBERMAN,
1985, p.20 e 21).
Com o surgimento de diversas correntes pedagógicas surgem críticas à es-
colarização da literatura e mudanças vão ocorrendo no quadro deste ensino, para
Tâmara Cardoso André “É papel da Escola auxiliar na formação de leitores que
produzam sentido por meio de diálogo com diversos gêneros literários.” (ANDRÈ,
2004, p. 19).
São muitos os enfrentamentos feitos e por fazer quando se trata de educação
de literatura, metodologias e didáticas. Ao discorrer da escolarização da literatura
temos Magda Soares (2011) trazendo suas ressalvas para esse ensino que é impor-
tante desde que seja executado da maneira correta. Nisso ela vem pontuar alguns
erros na escolarização da literatura, cito:

O que se pode criticar, o que se deve negar não é a escolarização da literatura,


mas a inadequada, a errônea, a imprópria escolarização da literatura, que se
traduz em sua deturpação, falsificação, distorção, como resultado de uma pe-

273
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

dagogização ou uma didatização mal compreendidas que, ao transformar o li-


terário em escolar, desfigura-o, desvirtua-o, falseia-o. (SOARES, 2011, p. 4-5)

Ou seja, é preciso ter cuidados com o ensino da literatura nas escolas, aten-
tar-se para o prazer da leitura, para o além de uma moral, cada caráter da leitura
é importante no tempo em que se lê, o ambiente, o para quê e o que vem depois.
Aproveitando para dizer que, a leitura por si própria pode ser o fim. Estamos diante
de um desafio grande de superar o cunho avaliativo metido em cada instância e
metro cúbico da escola na leitura.
Para Carlos Drummond de Andrade (1944) acerca da literatura infantil:

O gênero “literatura infantil” tem, a meu ver, existência duvidosa. Haverá


música infantil? Pintura infantil? A partir de que ponto uma obra literária
deixa de construir alimento para o espírito da criança ou do jovem e se dirige
ao espírito do adulto? Qual o bom livro de viagens ou aventuras, destinado a
adultos, que não possa ser dado à criança, desde que vazado em linguagem
simples e isento de matéria de escândalo? Observados alguns cuidados de
linguagem e decência, a distinção preconceituosa se desfaz. Será a criança
um ser à parte, estranho ao homem, e reclamando uma literatura também à
parte? Ou será a literatura infantil algo de mutilado, de reduzido, de desvita-
lizado – porque coisa primária, fabricada na persuasão de que a imitação da
infância é a própria infância. Vêm-me à lembrança as miniaturas de árvores,
com que se diverte o sadismo botânico dos japoneses; não são organismos
naturais e plenos; são anões vegetais. A redução do homem, que a literatura
infantil implica, dá produtos semelhantes. Há uma tristeza cômica no espetá-
culo desses cavalheiros amáveis e dessas senhoras não menos gentis, que, em
visita a amigos, se detêm a conversar com as crianças de colo estas inocentes e
sérias, dizendo-lhes toda sorte de frases em linguagem infantil, que vem a ser
a mesma linguagem de gente grande, apenas deformada no final das palavras
e edulcorada na pronuncia... Essas pessoas fazem oralmente, e sem o saber,
literatura infantil. (ANDRADE, 1944, p. 220.)

Não obstante, seguimos o caminho das pedras, enfrentamos inúmeros de-


safios não somente no contexto da escolarização do ensino, mas no ensino por si

274
Estudos Literários

próprio. Tantos são os desafios, verdades e inverdades subjetivas. Contudo, a escola


é mesmo então uma ressignificação dessa vida. Uma porção de falhas, erros, acer-
tos e dias seguintes. Estamos sempre em dúvida. Que sejamos essas dúvidas então
pontos de partidas para novas respostas começos e meios para um aprendizado sem
fim cito:

O ponto de interrogação
deu um grito de independência
ou morte e saiu andando pela folha
WATANABE, 1992

Considerações finais
Em suma, o caminho para reconfigurar a vida por meio da leitura percorre
o espaço da mediação, isto é, a compreensão pela relação humana sobre o espaço e
o tempo que a leitura possibilita por intermédio da interpretação, o papel que per-
passa as épocas por meio das tramas e conflitos da literatura reflete o conhecimen-
to para viver em sociedade, nesse artigo trouxemos os caminhos da literatura, sua
história, seu sentido, a escolarização da mesma, articulamos com diversos autores
buscando questionar e procurar soluções para que a sociedade seja mais letrada,
o problema não está apenas na escola que faz da literatura uma obrigação, como
também, os suportes que as novas tecnologias do século 21 fornecem ao leitor, nessa
nova geração que já nasce com um aparelho tecnológico na mão. É preciso reconfi-
gurar e reafirmar o poder da literatura, pois, é uma linguagem de expressão artísti-
ca. Por meio dela comunicamos o que sentimos, inventamo-nos e reinventamo-nos.
A configuração do artigo faz uma trajetória da literatura por lazer e também
pela escola, ressaltando que a literatura na escola não pode se diferenciar do prin-
cipal papel social, a literatura para e pela vida, escrevendo eu conto minha vida e
minha história eu espalho pelo papel o que está em minha cabeça. Ler é conhecer,
as palavras têm esse tipo de magia que você lê e recria um mundo diferente. Para
Antônio Cândido (1972):

275
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

A literatura pode formar; mas não segundo a pedagogia oficial. [...], ela age
com o impacto indiscriminado da própria vida e educa com ela. Dado que a
literatura ensina na medida em que atua com toda a sua gama, é artificial que-
rer que ela funcione como os manuais de virtude e boa conduta. E a socieda-
de não pode senão escolher o que em cada momento lhe parece adaptado aos
seus fins, pois mesmo as obras consideradas indispensáveis para a formação
do moço trazem freqüentemente aquilo que as convenções desejariam banir
[...]. É um dos meios por que o jovem entra em contato com realidades que se
tenciona escamotear-lhe. (CÂNDIDO, 1972, p. 805)

Referências
AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel de. Teoria da literatura. 8.ed. Coimbra: Almedina, 1994.
ANDRADE, Carlos, Drummond. Confissões de Minas. Rio de Janeiro: América Editora,
1944.
ANDRÉ, Tâmara Cardoso. Literatura Infantil – Práticas adequadas ajudam a despertar
o gosto pela literatura. Revista do Professor, Porto Alegre, n.78, p. 18-21, abr/jun.
2004.
ARROYO, Leonardo. Literatura Infantil Brasileira. 10ª ed. São Paulo: Melhoramentos,
1990.
CÂNDIDO, Antônio. A literatura e a formação do homem. Ciência e Cultura. São Paulo,
v. 24, n. 9, p. 803-809, 1972.
_______. Direitos humanos e literatura. In.: FESTER, A. C. Ribeiro e outros. São Paulo:
Brasiliense, 1989.
_______. Formação da literatura Brasileira (Momentos decisivos). 7ª ed. Belo Horizonte
– Rio de Janeiro: Ed. Itatiaia, 1993
_______. Iniciação à literatura brasileira: resumo para principiantes. – 3. ed.– São Paulo:
Humanitas/ FFLCH/USP, 1999.
CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre certezas e inquietude. Porto
Alegre, RS: Ed. Universidade/UFRGS, 2002.
BOSI, Alfredo. Por um historicismo renovado. In: _____. Literatura e resistência. São
Paulo: Companhia das Letras, 2002.

276
Estudos Literários

EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. 6.ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2006.
FREIRE, Paulo. A importância do Ato de Ler: três artigos que se completam. São Paulo:
Cortez, 1989.
PERDIGÃO, Domingos de Castro. O que se deve ler: vade-mecum bibliographico. S.
Luiz, do Maranhão: Imprensa Oficial, 1922.
SARTRE, Jean-Paul. Que é a literatura? São Paulo: Ática, 1989 (Trad. Carlos Filipe
Moisés).
SOARES, Magda. A escolarização da literatura infantil e juvenil. In: EVANGELISTA,
Aracy Alves Martins; BRANDÃO, Heliana Maria Brina; MACHADO, Maria
Zélia Versiani (organizadoras). Escolarização da leitura literária. 2ª ed., 3ª reimp.
Belo Horizonte: Autêntica, 2011.
VIEIRA. A. Sermões I. Direção: Pe. Gabriel C. Galanche, SJ e Pe. Danilo Mondoni. São
Paulo: Edições Loyola, 2008.
WATANABE, Lucy. Ponto final feliz. Belo Horizonte: Dimensão, 1992.
ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil na escola. 5. ed.rev. ampl. São Paulo: Global,
1985.

277
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Memória e velhice no conto “A


rica fazendeira de cacau”
Juliana Cristina Ferreira1

O objetivo deste texto é discutir o funcionamento e o papel da memória


de Dona Agripina, personagem do conto “A rica fazendeira de cacau”, da obra O
tempo é chegado (2001), de Euclides Neto, que viveu, em sua juventude, nos tempos
áureos do cacau. Busca-se compreender também aspectos e as consequências do
período em que o chamado “fruto de ouro” entrou em decadência, período em que,
na obra, Dona Agripina já estava idosa, e vivia imersa em suas lembranças, como
forma de sobrevivência.
O título da obra já indica ao leitor que o tempo do derrocamento do cacau
havia chegado, uma vez que o cacau já não trazia mais a riqueza e a prosperidade
para a região. Rocha (2008) comenta que o cacau, ao cair no gosto popular, tornou-
se uma fonte de grande produtividade. Trazida pelos colonos no ano de 1746 e
cultivado na região sul da Bahia, a produtividade cacaueira tornou-se um Eldorado,
gerando riqueza para os proprietários de terras e trabalhos, tanto para os moradores
da região, como também para os imigrantes que se mudavam para as terras cacauei-
ras em busca de uma vida melhor.
O período era conhecido como o período do fruto de ouro, assim chamado
por fazer referência à época em que o cacau gerava riquezas ao sul da Bahia. A produ-
ção de cacau era, assim, uma forma de garantir emprego e moradia, ou, até mesmo,
de propiciar a posse de alguma terra produtora de cacau. Por isso, nesse período, que
vai do final do século XIX até o século XX, vários imigrantes foram para as fazendas
cacaueiras em busca de trabalho. E muitos proprietários dessas fazendas enriquece-
ram com o lucro que a lavoura cacaueira lhes proporcionava. Essa grande riqueza e
o desenvolvimento da região são explicados por Rocha (2006) da seguinte forma:

1  Doutoranda em Estudos Literários pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU).

278
Estudos Literários

Com o estabelecimento e o desenvolvimento da lavoura cacaueira, a região


Sul da Bahia, a partir do final do século XIX e início do XX, passou a ser vista
como um Eldorado. Anualmente, milhares de pessoas chegavam de várias
partes do país, principalmente de Sergipe, atraídos pela fama de riqueza atri-
buída à árvore dos frutos de ouro (ROCHA, 2006, p. 20).

A região Sul da Bahia era comparada a um Eldorado devido a sua grande


produtividade e ao lucro que o cacau gerava naquele local. Esse contexto de pros-
peridade e riquezas fazia com que o desenvolvimento social e econômico crescesse
cada vez mais, gerando empregos e lucros às cidades de Ilhéus, Itabuna, Ipiaú, Beira
Rio, dentre outras. Assim, podemos dizer que a monocultura cacaueira era o moti-
vo do desenvolvimento social e econômico do Sul da Bahia, proporcionando opor-
tunidades de empregos e contribuindo para o desenvolvimento da região.
Como um marco histórico de representação do desenvolvimento sul baiano,
o conto “A rica fazendeira de cacau” apresenta, em sua narrativa, a protagonista Do-
na Agripina, uma fazendeira muito conhecida na região que desfrutou de grandes
riquezas no período áureo. A narrativa mostra a maneira como a personagem vai se
recordando dos momentos vividos no período da monocultura cacaueira, do lucro
gerado com as safras, das joias que comprava, da fazenda cheia de trabalhadores e
até mesmo da comida típica da região. Após lembrar-se de toda essa fartura trazida
pela monocultura, a protagonista lembra-se de que também havia vivenciado o pe-
ríodo do derrocamento do cacau, recordando-se da morte de seu marido, Pelegri-
no, e, consequentemente, da decadência do fruto de ouro.
Apesar de as lembranças serem de Dona Agripina, elas estavam povoadas
de pessoas que haviam vivenciado situações com ela. Assim, de maneira específica,
buscaremos mostrar a maneira como as lembranças da personagem tecem detalhes
da monocultura cacaueira. Para uma melhor compreensão sobre a memória, Hal-
bwchs (2006) explica que a memória individual contribui para a constituição da
memória coletiva.
Dessa maneira, compreendemos que as lembranças de Dona Agripina tecem
o tempo em que o cacau era considerado o fruto de ouro. Nessa época, a persona-
gem era proprietária de uma grande fazenda cacaueira, a fazenda Linda Bela, cujo
nome dizia muito sobre o lugar. A fazenda possuía uma extensa lavoura de cacau,

279
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

e, nela, havia muitos funcionários trabalhando e gerando lucro para a fazendeira e


sua família.
Além de se lembrar dos tempos em que o cacau gerava riqueza à sociedade
sul baiana, Dona Agripina também se recordava do período em que o fruto havia
entrado em decadência, atacado pelo fungo vassoura de bruxa2, que trouxe o empo-
brecimento de muitos fazendeiros produtores de cacau, bem como o desemprego
dos trabalhadores, resultando no empobrecimento da população. Após o declínio
do cultivo do cacau, veio também a morte de seu marido Pelegrino e as dívidas
contraídas com empréstimos bancários e ciganos agiotas. Sem moradia e já idosa,
Agripina foi morar no abrigo. Contudo, a memória dos tempos áureos prevaleceu.
Com uma memória cheia de detalhes dos acontecimentos, Dona Agripina
recordava-se da época em que já havia se mudado para a cidade, mas visitava a
fazenda no período das safras. Ao morar na cidade, a personagem passa a compor
o quadro de burguesia social que estava surgindo nos tempos da modernização
do país nas décadas de 1950 e 1960, período em que as identidades, naquele local,
começavam a entrar em declínio (HALL, 2006). Com o crescimento urbano e o pro-
cesso de imigração campo-cidade, as identidades de sujeitos sofreram mudanças, e
os indivíduos logo passavam de sujeitos rurais a sujeitos citadinos. O deslocamento
do coronel para a cidade representava, assim, o crescimento da burguesia.
Todavia, para que o coronel pudesse manter seu poder, mesmo morando na
cidade, estabelecia um acordo com o trabalhador, para que este cuidasse da pro-
dutividade da fazenda. Geralmente, o trabalhador era um imigrante em busca de
emprego, ou pobre cheio de filhos, que precisava subsistir à fome. Mesmo com o
acordo firmado, as vantagens eram sempre do patrão, que ficava com todo o lucro
gerado nas plantações e pagava um salário aviltante ao trabalhador, conforme apon-
ta Machado (1998).
A relação patrão e empregado era como uma troca de mercadoria, em que
o patrão pagava pelo serviço prestado, enquanto o trabalhador possuía apenas sua
força de trabalho para vender. Mas o lucro gerado com o trabalho era sempre do

2  É uma doença causada pelo fungo Moniliophtora perniciosa, que ataca o cacaueiro, provocando grande
impacto econômico na região produtora de cacau. Ataca principalmente os frutos, os brotos e almofadas
florais, ocasionando queda acentuada na produção, além de morte das partes infectadas.

280
Estudos Literários

patrão, o qual roubava a força de trabalho do empregado e pagava-lhe um salário


abaixo do merecido, tal como apontava Marx (2006). Assim, o trabalho realizado na
fazenda era de exploração, e Dona Agripina recordava-se, de maneira minuciosa, de
todos os detalhes aspectos daquele contexto:

Vinha também pensando no que iria fazer na roça durante aquela tempora-
da. Não queria voltar logo. Estava na força da safra. Cochos, barcaças, estu-
fas coculados. Seria uma diversão pesar cacau com o marido. Já se sentia no
fiel da balança, acertando os 60 quilos, enquanto ele completava uma cuia
para chegar ao peso exato. Os homens, de braços parecendo mundeigos de
virar pedras, pegando as quatro arrobas pelas bocas dos sacos, para costurá-
-los mais forte. Depois as pilhas: cem, duzentos, quinhentos, mil, acomoda-
dos no armazém forrado com tábuas de cedro. Veria seu homem de sorriso
solto, calculando milhões para adquirir mais uma fazenda vizinha. Os lotes
chegando e saindo abarrotados, gemendo sob o peso das oito arrobas. E ela,
sentindo a satisfação dele, feliz também. Pediria dinheiro para comprar mais
joias. Precisava de um correntão de ouro bem pesado, um caroço de milho
de brilhante que vira no mindinho do seu Exupério, que podia até trocar es-
meraldas em platina. Gente de inteira confiança. Ah! que moço lindo, dedos
macios como couro de lontra curtido. Cheiroso. Toda vez que lhe fazia uma
compra mais avultada, recebia presente: uma pedra encastoada nas palavras:

- Só a senhora tem gosto de dinheiro para usar essa beleza. Só a senhora .


Essas tabaroas atrasadas, que andam por aí arrotando riqueza, nem chegam
aos seus pés no gosto pelas coisas finas. Ficam pechinchando, pechinchando,
rogando diferenças como se os maridos fossem alugados. A senhora, não.
Gostou, não olha preço e bate o dinheiro vivo. Daí essas lembrancinhas (EU-
CLIDES NETO, 2001, p. 22).

A grande riqueza da fazenda Linda Bela era gerada por meio do trabalho de
exploração. Os trabalhadores carregavam e descarregavam pilhas de sacas de cacau o
dia todo, subindo as estufas com o peso nas costas. Havia também os trabalhadores
barcaceiros que “sambavam” em cima dos frutos para descaroçá-los. Com o trabalho
de exploração dos empregados, o lucro era certeiro para Dona Agripina e sua famí-

281
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

lia, pois a fazendeira via “seu homem de sorriso solto, calculando os milhões” e já
pensando em ampliar a fazenda com a compra de mais uma fazenda vizinha. E ela
pensava rapidamente em comprar mais joias, “um correntão de ouro bem pesado”. A
fazendeira recordava-se também da beleza do moço que vendia joias e, assim, recor-
dava-se dos momentos vivenciados no passado. Segundo Candau (2012), ao nos lem-
brarmos de nossas experiências passadas, o que “queremos [é] tudo abraçar”, pois de-
sejamos reviver principalmente os momentos que nos trouxeram prazer e felicidade.
Dessa maneira, compreendemos que cada indivíduo possui suas próprias
lembranças, mesmo que sua memória esteja povoada por pessoas com quem ele/
ela vivenciou experiências. Existe a memória individual, advinda do ponto de vista
de cada um, e a memória coletiva, a qual existe pelo fato de sermos sociais. Mesmo
que estejamos sós fisicamente, em nossas lembranças, existem pessoas que tiveram
participação nos momentos que foram por nós vivenciados. As lembranças são co-
letivas, mesmo que somente um indivíduo tenha vivenciado um determinado acon-
tecimento, pois este está inserido em um meio social, cultural e identitátio. Assim,
tudo o que há em suas lembranças estará ligado à sua vida social.
A memória advém das experiências vividas pelo indivíduo e traz detalhes
conforme a intuição e a maneira particular de visão de mundo de cada ser humano,
pois, “na base de qualquer lembrança haveria o chamamento a um estado de cons-
ciência puramente individual que chamamos de intuição sensível” (HALBWACHS,
2006, p. 42). É a partir da vivencia social que constituímos nossa memória indivi-
dual, a qual nos ajuda a perceber o meio em que vivemos e o que acontece ao nosso
redor. Nesse sentido, vamos adquirindo a intuição sensível que se refere ao ponto de
vista de cada um.
Dessa maneira, segundo Halbwachs (2006), por mais individual que possa
ser nossa memória, ela é constituída socialmente, pois vivemos em grupos. Ao vi-
vermos em sociedade, criamos laços e buscamos vínculos de afinidades. Assim, a
memória individual acaba recebendo influência da coletividade, ou seja, o pensa-
mento individual é constituído a partir da vivência em grupo.
Portanto, no conto “A rica fazendeira de cacau”, temos a história coletiva da
monocultura cacaueira a partir da história narrada do ponto de vista de Dona Agripi-
na e de suas lembranças, que vão aparecendo de maneira sequencial. A partir do mo-

282
Estudos Literários

mento em que a personagem se lembrava de que estava se aproximando da fazenda,


já se programava para cozinhar para o marido, agradá-los com seus pratos prediletos:

Ah! A fazenda estava perto, já na divisa. Amarraria o pano na cabeça para


fazer beiju de toda vicissitude, vadiar de meter mandioca no rodicho, só para
dizer que ainda sabia cevar como antigamente. Tomar café quente na boca do
forno, cessar massa, apurar goma. E fazer bolo na cozinha grande de fogão a
lenha de baitinga. Bater ovos na puçulana esmaltada. Assar no forno do quin-
tal. Preparar rabada de vaca gorda com verdura. Geleia de cacau. Infusar licor
de jenipapo, cajá, tangerina, vinho de laranja. Comer jaca dura (EUCLIDES
NETO, 2001, p. 22).

Dessa forma, a personagem recordava-se dos modos de preparar o alimento,


como “fazer beiju”, “cessar massa, apurar goma”, “fazer bolo”, “preparar rabada de
vaca gorda com verdura”. Além do preparo da comida, Dona Agripina lembrava-se
de coisas como tomar café quente na “boca do forno”, cozinhar no fogão a lenha.
Todas essas lembranças são culturais e representam a maneira como é a vida na
fazenda e como é o preparo da comida, incluindo até mesmo o fato de as mulheres
amarrarem lenço na cabeça antes de preparar os alimentos.
Ao pensarmos em cultura, pensemos que as regras e normas, os comporta-
mentos, as crenças e os costumes de uma sociedade específica formam sua cultura
e diferenciam uma sociedade de outra. É uma forma de pertencimento de um indi-
víduo a um determinado grupo social, e sua integração nessa sociedade permite a
ele ser identificado como pertencente a tal sociedade. Assim, segundo Bosi (1992)
a cultura é o conjunto das práticas, das técnicas, dos símbolos, e dos valores que
devem ser transmitidas às novas gerações para garantir a reprodução de um estado
de coexistência social.
Nesse sentido, não só a comida e o modo de preparo dos pratos constituem
a cultura de uma determinada região; outros elementos também são constitutivos
de determinados contextos regionais. A narrativa apresenta também o ato de viajar
a cavalo, como descreve Dona Agripina, no momento em que se recordava de estar
chegando na fazenda. A protagonista lembrava dos tempos do fruto de ouro, quando
cavalgava em seu cavalo pedrês por todas aquelas terras cacaueiras. Era mulher deter-
minada, inteligente, dona de si. Pelas terras da Fazenda cavalgava de forma elegante,

283
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

[u]sava um longo e bordado roupão que ia até aos calcanhares. O arreio tinha
o arco macio de proteção no lado direito, contornando a meia-lua, onde a pa-
troa encostava o volumoso quadril, e, no esquerdo, um gancho bem forrado,
atrás do qual passava a perna, comodamente. Sentava-se de banda, com o pé
canhoto descansando na caçambinha feito uma sapatina, bem diferente das
grandes e pesadas em que os homens se apoiavam dos dois lados (EUCLIDES
NETO, 2001, p. 21).

Nessa descrição, percebemos como a memória de Dona Agripina tece os


fatos como se estivesse revivendo toda a história, na época em que mulher “senta-
va-se de banda” no cavalo, diferentemente dos homens que “se apoiavam dos dois
lados”. Ela recordava-se dos tempos do fruto de ouro e, provavelmente, a calvada
representava sua juventude, o desafio de uma mulher cavalgando, experimentando
aventuras diferentes.
Para Halbwachs (2008), a juventude para o idoso traz recordações de muitas
aventuras vividas. O idoso, já cansado da ação, desvia-se no sentido contrário, ou
seja, está no momento presente lembrando-se de ações que viveu no passado. Esse
passado aparece como se o indivíduo vivesse lá, pelo fato de a vida estar chegando
ao fim, ou seja, pelo fato de o idoso estar mais próximo da morte. Assim, as lem-
branças dão força para que o idoso possa seguir o seu dia a dia.
A memória é feita de práticas que giram em torno da ação. O idoso, liberado
das dificuldades impostas pelo trabalho, pelos familiares e pela existência ativa do
meio social, torna-se capaz de retornar ao passado e revivê-lo na imaginação. No
momento em que o indivíduo ancião menciona momentos em que viveu em sua
infância, ou juventude, não está sonhando, mas, sim, revivendo as experiências.
Quando a voz narrativa mostra Dona Agripina com toda a delicadeza feminina em
seu “cavalo de mulher” (EUCLIDES NETO, 2001, p. 21), ela apresenta também as
ações que a personagem vivenciou em seu passado, mas que, no momento presente,
não poderia reviver, pelo fato de não morar mais na fazenda.
A protagonista lembrava-se de acontecimentos do passado, da época em que
fazia doces e cozinhava no fogão a lenha, o que representa a cultura do meio rural.
Entretanto, “a lembrança corresponde a um acontecimento distante no tempo, a um
momento do nosso passado” (HALBWACHS, 2006, p. 55). Esse momento é lembra-

284
Estudos Literários

do e vivenciado em nossos pensamentos, porque tivemos experiências agradáveis,


vivenciamos algo prazeroso e que permanece em nossa memória.
Os pensamentos vêm à nossa mente, conforme explica Halbwachs (2006),
como correntes sociais que se cruzam em nossos pensamentos e estão ligados intei-
ramente a um ambiente. Em nossa memória, há várias fontes de pensamentos, cada
uma de um determinado momento, porém há uma linearidade em nossas lembran-
ças, pois os momentos são lembrados de tal forma que tenham início, meio e fim,
em relação ao fato ocorrido. Dessa maneira, Dona Agripina

agora voltava a lembrar os derradeiros tempos. O enterro do marido, o inven-


tário das fazendas, cacau afundando no preço, vassoura de bruxa comendo as
roças. Os bancos, ciganos, exportadores levando o resto. Antes já tinham ido
os ouros, platinas, casa morada, gado das fazendas de criação no Gongogi. Os
meninos, por esse mundo meu Deus. Em Beira Rio, somente um, carregado
de filhos, empregado de fazenda. Duas filhas largadas, vendendo perfume
barato e os últimos dotes de carne que restavam nelas (EUCLIDES NETO,
2001, p. 24).

Uma torrente de pensamentos ia surgindo na mente de Dona Agripina, que


se lembrava da morte do marido e da decadência do cacau, devido ao ataque da vas-
soura de bruxa, praga que levou o fruto de outro à decadência. Os bancos, os ciganos
e os comerciantes levaram o restante da riqueza da fazendeira. Como percebemos,
no período do derrocamento do cacau, ocorreu também o depauperamento da rica
fazendeira, pois, com a morte do marido, os exportadores, os bancos e os ciganos,
tomaram sua fortuna, levando-a à pobreza e à desterritorialização, que é o ato de
perder sua moradia, seu território, como comenta Guatari e Rolnik (1996).
O processo de desterritorialização é definido Guatarri e Rolnik (1996) como
a perda de um espaço territorial, processo por meio do qual o indivíduo, ou o grupo
social, inserido num lugar, é obrigado a retirar-se de sua terra, de seu “pedaço de
chão”, mesmo sem ter para onde ir. Este processo acarreta também a mudança iden-
titária do indivíduo, pois a identidade está ligada ao sentimento de pertencimento
(pertencer a um determinado lugar). A perda do território faz com que esse indiví-
duo desterritorializado se encontre obrigado a buscar uma nova forma de sobrevi-

285
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

vência. A perda territorial gera a pauperização e, consequentemente, a mudança da


identidade, conforme aponta Costa (2007).
Assim, Dona Agripina, ao perder suas terras, tornou-se pobre. Como afir-
ma Woodward (2012), nossa identidade é construída por meio das representações
relativas às condições sociais e materiais do meio no qual estamos inseridos, pois
agimos sobre o meio, sobre a matéria, formando objetos peculiares de nossa cultura
identitária. Todavia, essas identidades podem sofrer alterações devido às mudanças
sociais. No conto, Dona Agripina tinha objetos que a identificavam como uma fa-
zendeira “robusta”, usando “botas de couro” para cavalgar. Porém, essas condições
materiais que a identificavam como a rica fazendeira foram modificadas com o de-
clínio do cultivo do cacau. Depois que passou a morar no abrigo, Dona Agripina
encontrava-se “mais magra, pés descalços e feridos no chão de cascalho” (EUCLI-
DES NETO, 2001, p. 24).
Para não se esquecer de que um dia havia sido rica, Dona Agripina gostava
de ser chamada de “minha rica fazendeira de cacau” (EUCLIDES NETO, 2001, p.
24). Era dessa forma carinhosa que a assistente social a chamava quando ia se dirigir
a ela, que, após a decadência do cacau, tinha ido morar num abrigo. Essa forma deli-
cada que a assistente social usava para chamá-la a ajudava, de certa forma, a manter
as lembranças dos tempos bons quando era proprietária da Fazenda Linda Bela.
Durante a leitura do conto, percebemos que o momento em que a protago-
nista se lembra da morte de seu Pelegrino, coincide com o período da decadência
do cacau. A morte de seu marido é percebida também como um “divisor de águas”
na história, representando, a divisão de dois momentos: os tempos áureos do cacau
e sua decadência decorrente do ataque da vassoura de bruxa.
Como mencionado anteriormente, a decadência do cacau ocorreu com a in-
vasão do fungo vassoura de bruxa, provavelmente, devido à falta de cuidados com
as plantações cacaueiras. Com o ataque desse fungo, a ferrugem foi destruindo aos
poucos as folhas das cacaueiras e os frutos começaram a não brotar com abundân-
cia, além de não ficarem com um aspecto viçoso. A monocultura cacaueira, que era
a única renda que gerava lucros na região Sul da Bahia, entrou em decadência, e,
nessa época, segundo Coutinho (1996, p. 70), os produtores “estavam bem de di-
nheiro só para, poucos meses depois, quase mendigavam alguma coisa para comer”.

286
Estudos Literários

O que os proprietários conseguiam de lucro na decadência do cacau, durava pouco


e logo o dinheiro se esgotava, levando-os ao depauperamento.
Para o proprietário, acostumado com os lucros gerados pela lavoura cacauei-
ra, deparar-se com a realidade cruel, a decadência dessa monocultura, gerava um
sentimento de não aceitação dos fatos. Dessa forma, Chauí (1997, p. 12) comenta
que é do ser humano “a decisão de não aceitar como óbvias e evidentes as coisas,
as ideias, os fatos, as situações, os valores, os comportamentos de nossa existência
cotidiana [...] sem antes havê-lo investigado e compreendido”.
Precisamos investigar para compreender melhor as causas e as consequên-
cias dos fatos, como, por exemplo, a decadência do cacau. A obra de Euclides Neto
torna evidente, por exemplo, que a monocultura cacaueira não conseguiria se man-
ter como a única fonte de riqueza da região Sul da Bahia, pois as plantações necessi-
tariam de cuidados e de investimentos, que, provavelmente, não estavam nos planos
dos fazendeiros, que só pensavam nos lucros gerados pelo trabalho de exploração
no cultivo do cacau. Só após a invasão da vassoura de bruxa os proprietários vieram
a se preocupar com o fim dessa monocultura lucrativa.
Com a assustadora decadência do cacau, Dona Agripina, mesmo moran-
do no abrigo, buscava sempre se recordar dos tempos áureos. Sempre que via os
portões do abrigo abertos, ela “podia fugir em busca da fazenda Linda Bela, como
nos velhos tempos, para gozar a fortuna e ver o marido. Continuava muito rica”
(EUCLUDES NETO, 2001, p. 24). A perda da fortuna, das terras e até mesmo do
marido, faziam com que a protagonista, sempre que via o portão do abrigo aberto,
fugisse em busca da fazenda Linda Bela, como se pudesse reviver toda aquela sen-
sação luxuosa e sentir a presença do marido.
A ideia de riqueza em abundância, dinheiro e poder era muito satisfatória
para os proprietários das fazendas. A decadência desse fruto era desesperador, pois
“a natureza humana era tão bárbara naquele território que se tornava inconcebível”
(MATTOS, 1999, p. 61-62). A monocultura do cacau era o motivo do desenvolvi-
mento econômico e social da região Sul da Bahia, pois gerava lucros às fazendas
produtoras de cacau e emprego aos imigrantes que vinham de outras regiões do
Nordeste em busca de sobrevivência.
Como percebemos, antes da morte de Seu Pelegrino, a fazenda Linda Bela,
a riqueza e a fartura geradas pela monocultura cacaueira serviam como aspectos

287
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

para a constituição identitária de Dona Agripina, que era conhecida como a rica
fazendeira de cacau. Após o falecimento de seu marido Pelegrino, a fazenda Linda
Bela foi tomada pelo governo. Em sua velhice e viuvez, Dona Agripina foi morar
no abrigo. Todavia, todo esse processo de produtividade cacaueira e seu posterior
declínio eram revividos pela protagonista que, já idosa, lembrava-se de maneira
detalhada de todas as experiências vividas tanto nos tempos da monocultura, como
de sua decadência.
Diante da análise do conto “A rica fazendeira de cacau”, podemos ter uma
ideia de como eram os tempos do fruto de ouro, da riqueza que o cacau gerava ao
Sul da Bahia e do enriquecimento dos proprietários das lavouras cacaueiras. Todos
esses detalhes do lucro dos proprietários das fazendas são mostrados no conto a
partir do momento em que Dona Agripina vai se lembrando dos detalhes da fazen-
da, das safras de cacau e do marido feliz ao ver o lucro da fazenda no período da
colheita cacaueira.
Todavia, percebemos também como ocorreu a decadência do fruto de ouro
e a destruição das plantações de cacau, devido ao ataque da vassoura de bruxa, um
fungo que enferrujou as folhas das plantas e destruiu os frutos, deixando as plan-
tações doentes. Com a decadência, os proprietários das fazendas perderam o seu
meio lucrativo e empobreceram, levando os funcionários a sofrerem com o desem-
prego que gerava fome e pobreza.
Devido a essa realidade cruel e dolorosa, principalmente para o fazendeiro
que havia perdido sua fortuna com a decadência do cacau, percebemos, no decor-
rer do conto, que Dona Agripina se lembrava dos fatos do passado como se estive
revivendo os bons momentos do fruto de ouro, e ainda se sentia muito feliz quando
os funcionários do abrigo a chamavam de “minha rica fazendeira de cacau”. A pro-
tagonista sentia-se engrandecida e feliz, pois era assim que a chamavam nos tempos
da grande lavoura.
As lembranças de Dona Agripina sempre estiveram povoadas de pessoas, co-
mo os trabalhadores da fazenda, seu marido Pelegrino, seus filhos, o vendedor de
joias, o cavalo pedrês. Mesmo que ela estivesse se recordando desses bons tempos so-
litariamente, sua memória apresentava-se coletiva, devido às pessoas que, um dia, fi-
zeram parte dessas experiências. Compreendemos, então, que a memória é coletiva,
porém existe a memória individual, a qual acrescenta detalhes à memória coletiva.

288
Estudos Literários

Nesse sentido a memória é compreendida como linear, pois, como mostra a


narrativa, a personagem lembra-se primeiramente dos tempos da monocultura ca-
caueira, para, depois, recordar-se dos tempos de sua decadência. As lembranças pos-
suem início, meio e fim, em relação aos acontecimentos, e cada fato lembrado é revivi-
do pela personagem como se estivessem acontecendo no presente. Agripina, estando
já idosa, recordava-se das aventuras que experienciara na juventude, como viajar a
cavalo, cozinhar no fogão a lenha, comprar joias, ver seu marido feliz com a lucrati-
vidade da safra, ou seja, experiências que, agora, restavam apenas em sua memória.

Referências
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CANDAU, Joel. Memória e identidade: do indivíduo às retóricas holísticas. In: ____.
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COSTA, Rogério Haesbaert. O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à
multititerritorialidade. 3 Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.
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EUCLIDES NETO, Euclides José. A rica fazendeira de cacau. In:____. O tempo é
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GUATARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1996.
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MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo. Em torno da autonomia escrava: uma nova
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MATTOS, C. de. O mar na rua do Chile e outras crônicas. Ilhéus: Editus, 1999.

289
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

ROCHA, Lurdes Bertol. A região cacaueira da Bahia: uma abordagem fenomenológica.


Aracaju, SE: UFS/POSGRAD, 2006.
_______. A região cacaueira da Bahia: dos coronéis à vassoura de bruxa: saga, percepção,
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WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual.
In: SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos
culturais. 11. ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2012.

290
Estudos Literários

O fantástico no cinema:
Relações e contribuições entre
literatura e cinema
Jullyana Franciely Vieira de Souza

Introdução
Desde os primórdios da história do cinema (cinematógrafo), existe uma
estreita ligação entre a linguagem cinematográfica e a linguagem literária. Textos
literários adaptados para o cinema são vastos, inclusive a literatura tem alimenta-
do essa indústria e contribuído com seu avanço “evocar as relações entre cinema e
literatura é festejar apoios e apropriações que ambos se fazem reciprocamente, com
a condição de continuarem a existir em suas especificidades. Precisamos de bons
filmes e de bons livros” Marcos Silva (2007, p.19).
O presente artigo tem por objetivo destacar as relações existentes entre lite-
ratura e cinema e relatar sobre obras pertencentes à Literatura Fantástica que foram
adaptadas para o cinema. Sabe-se que é possível acompanhar através das telonas
clássicos pertencentes a esse gênero que encantam espectadores no mundo todo.
Como suporte será utilizada a literatura comparada para nortear o presente traba-
lho através de estudos significativos relacionados à ela. Segundo Brunel:

“Se a literatura comparada é a arte de aproximar a literatura dos outros domí-


nios de expressão ou de conhecimento, ou dos fatos e textos literários entre
si, a fim de melhor os descrever, os compreender e os apreciar, não podemos
negar ao cinema e às imagens pertencendo à mesma família tecnológica – fo-
tografia, televisão, anúncios publicitários – o direito de ocupar um lugar nada
negligenciável na reflexão comparatista” (2004, p. 283).

291
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Dessa forma pretende-se ressaltar que para compreender e apreciar os fenô-


menos culturais mais modernos como o romance cinematográfico (obra narrativa
de grande extensão), deve-se realizar uma análise conjunta e comparativa das res-
pectivas formas de criação: a obra literária e a obra cinematográfica. “Desde que o
cinema é cinema, a literatura tem sido um de seus pontos de partida” Marcos Silva
(2007 p.19).
O cinema, assim, ganha um grande destaque no decorrer dos anos. De acor-
do com Brunel:

“Lendo os numerosos testemunhos de contemporâneos sobre o importante


papel do cinema, que chegou, em alguns casos, a suplantar a literatura nos
processos de aculturação, só podemos lamentar a estreiteza do campo estrita-
mente linguístico no qual se acantonam muitos estudos comparatistas, deixan-
do fugir um meio essencial para compreender a modernidade.” (2004, p. 283)

O autor destacado relata sobre o importante papel do cinema, como a sétima


arte colaborou para a compreensão dos fatores culturais e de que forma se desenvol-
veu com o decorrer dos anos renovando suas características através da modernidade.
Obras primas produzem o reflexo de uma época e assim ganham uma nova
roupagem no sentido de imagens industriais, como os folhetins (suplementos dos
jornais) que possuem o mérito de levantar a discussão coletiva acerca do tema.
Não se pode negar a relação existente entre a literatura e o cinema, inúmeras
obras literárias foram adaptadas para as telas, há aqueles que preferem ler a obra,
existe uma crítica com relação à perda de sentido que acontece quando a lingua-
gem escrita se transforma em linguagem falada. É necessário ressaltar que as duas
formas de criação possuem seu valor e que seja qual for a preferência do público
nenhuma delas se torna irrelevante.
O Gênero Fantástico nasce no ano de 1772 e fascina leitores de todas as ida-
des, a leitura de obras desse gênero proporciona ao indivíduo uma análise: como a
literatura pode passar pelo fantástico e como o realismo é uma exceção.
Há várias possibilidades de sentidos na Literatura Fantástica, tanto em li-
vros quanto em filmes, esse universo mágico permite que leitor/espectador “viaje
na imaginação”, pois nesse gênero há uma dúvida se o que ocorre nas narrativas é
hesitação/incerteza/sonho ou realidade.

292
Estudos Literários

No presente trabalho de conclusão de disciplina serão citadas algumas obras


literárias pertencentes ao Gênero Fantástico que foram reescritas/adaptadas para
o cinema.

Desenvolvimento
Através deste estudo, pode-se perguntar se não compete à literatura com-
parada, já que ela atinge um vasto campo de pesquisa o qual a leva aos sistemas de
interações que analisa colocar novamente nesse horizonte as manifestações da lite-
ratura atual e de delimitar as trocas e as transferências que as unem. Brunel afirma:

“Só ela, a literatura comparada, dispõe das ferramentas necessárias para re-
alizar a investigação sobre as duas frentes simultâneas e para estabelecer as
realizações que definem os comportamentos e as práticas individuais e cole-
tivas, próprias da nossa época e proporcionar assim à literatura comparada
um problema original” (2004, p. 284. Grifo nosso.).

Nessa direção busca-se concluir que é através da literatura comparada que


se pode discutir acerca das formas de criações diferentes (livro/filme), argumen-
tar e comprovar os estudos realizados com as formas de criação em questão. É a
literatura comparada que dá o suporte para aprofundar o tema literatura e cine-
ma. Existe uma relação, seja ela qual for entre as imagens e as palavras. Conforme
Brunel (2004, p. 284), “O próprio Robbe-Grillet, que no início da sua reflexão so-
bre o romance invoca o exemplo do cinema, satisfez-se de em seguida afirmar que
escrever um romance ou rodar um filme são atividades perfeitamente separadas.”
Mas, através dos estudos realizados acerca do tema pode-se concluir que atualmen-
te percebe-se a frequência crescente do trabalho de colaboração entre escritores e
cineastas, a colaboração para o crescimento de ambos.
Através da análise da obra de Brunel pretende-se constatar que filme é uma
reescritura porque interpreta o livro, proporcionando outra leitura. Na relação li-
vro-filme há mudanças consideráveis. O cinema trouxe consigo uma nova forma
de ver o mundo, uma renovação dos romances, acelerando a evolução tendente em
benefício de uma percepção imediata e sintética do real visando permanecer fiel à
dinâmica do tempo vivido. Escrever a respeito de literatura e cinema proporciona

293
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

uma sensação privilegiada de modernidade, não fugindo dos elementos conquista-


dos com a publicação dos textos literários.
A literatura e o cinema caminham unidos numa concepção cultural e a re-
lação existente não desfavorece nenhuma das criações, pois cada uma possui um
valor significativo. As imagens industriais juntam-se à falta de crédito comumente
lançado sobre os objetos da cultura popular, o descrédito que é gerado aos produtos
de série fabricados com um fim lucrativo. Brunel deixa claro que:

“O cinema e mais tarde a televisão, são desde a sua origem, alvo de uma re-
provação de ordem mais moral do que estética. A reflexão sobre as imagens
modernas precedentes de meios de reprodução mecânicos revela frequente-
mente a persistência de uma hierarquização dos objetos culturais, que tem
como efeito a exclusão das análises consagradas à modernidade de um dos
fatores constitutivos essenciais do horizonte onde se inscrevem as obras”
(2004, p. 284).

Não se pode negar a relevância do cinema e a existência de uma relação be-


néfica entre ele e a literatura, visto que a literatura disponibiliza obras primas ao
cinema. Após a Segunda Guerra Mundial, iniciou-se uma nova etapa na qual as
relações antagônicas entre cinema e romance procuram desvanecerem-se não de
influência ou rivalidade, mas buscam trocar experiências entre os dois meios de
expressão. Para desenvolver mais esta etapa, buscando o êxito total os diretores/
cineastas procuram adaptar textos que foram escritos para serem vistos/assistidos,
já que, comprovadamente, sabe-se que existem diferenças entre o trabalho literário
e o cinematográfico, que naturalmente tornam-se necessárias às adaptações. Brunel
ainda afirma:

“Alguns poucos numerosos, como Malraux, Cocteau os Giono transpuseram


pessoalmente os seus romances ou as suas obras teatrais para ecrã e conse-
guiram, deste modo, uma espécie de trajeto complexo que ia das palavras
escritas às imagens, por intermédio de textos que se situam a meio caminho
entre uns e outros: os argumentos ou os guiões técnicos” (2004, p. 286).

A preocupação inicial é saber quais as modificações feitas no texto literário nes-


se processo de reescrita, tendo por objetivo a realização cinematográfica. Esta questão

294
Estudos Literários

só interessa se os dois textos (literário e cinematográfico) pertencem ao mesmo autor


ou também se existe o mesmo universo de criação. Estas modificações tomam como
consequência uma leitura subjetiva que um autor realiza do outro. Por isso os textos
devem pertencer ao mesmo autor ou a um universo de criação semelhante.
Há exemplos de autores que produzem textos especificamente literários, outros
produzem textos para se transformarem em obras cinematográficas. Escritores como
Jean-Paul Charles Aymard Sartre, Jean Cayrol, publicaram textos inicialmente criados
para a realização cinematográfica, que também são denominados cine-romances.
Ainda existe uma preocupação em tentar transmitir a legibilidade dos textos
escritos para as imagens. Ao realizar uma adaptação, do texto literário para o texto
cinematográfico algumas transformações fazem-se necessárias, e a ideia é transfor-
mar palavras em imagens.
Brunel constata que:

“Abstração feita a filmes, estes textos informam de modo privilegiado sobre a


forma como a imagem se pode inscrever no horizonte pragmático da escrita,
ou como ela pode regressar a esta última para lhe servir de ponto de partida.
Vemos que não se trata aqui de confrontar duas formas de arte, mas de per-
manecer no domínio da escrita e de contemplar como esta última corrobora
as trações de uma visualidade ligada às tecnologias icônicas. Deste modo,
circunscreve-se o campo de uma investigação que se quer propriamente lite-
rária.” (2004, p. 287)

Analisando as afirmações acima entende-se que a questão a ser trabalhada


consiste em saber como a escrita, ou seja, o texto literário pode ser interpretado
através de uma leitura subjetiva. Quando há o confronto de imagens e de palavras
deve ser considerado, não sendo necessária a investigação de certas equivalências.
Essa questão norteia este artigo, isto é, a possibilidade de se verificar até que ponto
a relação entre texto e imagem se mantém equivalente. Se as imagens, ao substituir
as descrições do texto original, expressam também aquilo que o autor pretendeu
contar no romance.
As considerações apontadas neste ensaio não possibilitarão realizar conclu-
sões/comparações entre obras literárias e cinematográficas do Gênero Fantástico,

295
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

serão apenas citadas algumas obras que passaram das páginas dos livros para as
telas, a análise comparativa de tais obras poderá ser realizada em outro estudo
futuro. A intenção deste texto é apontar as relações/contribuições existentes entre
obra literária e cinematográfica.
Obras como Drácula, de Bram Stoker, Metamorfose, de Franz Kafka e Fran-
kenstein, de Mary Shelley foram traduzidas para o cinema e percebe-se como o
filme contribuiu para a divulgação do livro. Um indivíduo é capaz de apreciar/inte-
ressar-se pelas duas formas de criação. O interessante é poder ler e assistir e apontar
as semelhanças e diferenças entre ambas.

Considerações finais
A construção deste estudo baseia-se na análise de obras de autores como
Brunel, Queirós, Martin e Brito. Para tal, partir-se-á do pressuposto de que é possí-
vel apontar as diferenças e semelhanças entre as obras literárias e cinematográficas,
visto que o cineasta, antes de tudo, é leitor/tradutor do livro, constrói o sentido do
texto e procura construir sua reescritura fílmica com elementos da visão que tem do
texto de outro autor, assim seria possível afirmar que tradutor é autor.
A crítica literária luta para criar uma barreira entre a escrita e a imagem, a
visualidade postulada pelos meios mecânicos e reprodução da visão surge desvalo-
rizada por uma parte composta pela crítica. Brunel afirma:

“A reflexão sobre a literatura, ao adotar pouco a pouco os critérios e conceitos


metodológicos decalcados dos da linguística, tendeu cada vez mais a consi-
derar a escrita apenas sob o ponto de vista de um sistema de signos elabora-
dos a partir de “geradores”, eles também a maior parte do tempo linguístico.
No caso em que estes últimos são icônicos,é sempre dos pontos de vista dos
jogos possíveis com a relação incerta entre significante e significado que os
utilizamos, abstração feita ao seu enraizamento numa realidade referencial”
(2004, p.285).

Dessa forma a literatura se concretiza na teoria linguística e enfoca a escrita


apenas como parte de um sistema de signos elaborados e esquece-se que a literatura
busca vários significados para uma única palavra.

296
Estudos Literários

Também se deve compreender a desconfiança de qualquer tendência da crí-


tica literária manifestada referente a estas tecnologias da imagem que, na sociedade
moderna são identificadas com a autenticidade objetiva do real.
Para Brunel ( 2004, p. 285), “Nem a vida nem o mundo interessam à critica,
mas pelo contrário, a autonomia irredutível da escrita, enfim libertada da preocu-
pação de reconstituir no leitor a ilusão referencial”.
Inúmeros estudiosos contribuem para espalhar a ideia de que a influência do
cinema sobre o romance se exprime em técnicas de narração objetiva que pertence
a uma retórica realista que tem por meta tornar a realidade descrita mais presente
para o leitor. De acordo com Brunel:

“Não é surpreendente que as novas tentativas do realismo tenham rejeitado


toda a ideia de uma influência deste gênero. Mas os estudos da imagem que
os próprios escritores fizeram da Sétima Arte permite evidenciar a insufici-
ência desta compreensão do cinema que surge estreitamente dependente de
um contexto histórico e estético precisos” (2004, p.285).

Através das afirmações citadas, compreende-se que as novas tentativas ro-


manescas distanciam-se naturalmente do Realismo, buscando não transmitir carac-
terísticas desse estilo literário. O autor também transmite a ideia de que o cinema
ainda busca uma dependência do contexto também estético.
Ao buscar fundamentos do contexto histórico, verifica-se que este contexto é
instável devido à evolução histórica gerada através dos anos e torna a análise quase
impossível, pois a instabilidade resulta em transformações progressivas das relações
mantidas pelos escritores com as imagens modernas.
Vale ressaltar que alguns escritores dos anos 20 acreditavam que estava ocor-
rendo uma evolução dialética1 diante da teoria entre o trabalho literário e o traba-
lho cinematográfico. Alguns ainda criticavam o fato de se afirmar que o cinema não
transmitia as ideias centrais da literatura, o cinema tinha por finalidade apenas a
difusão comercial.

1  Dialética, para Michaelis (2002, p. 715): “1 – a arte de discutir; 2 – argumentação dialogada”.

297
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Através das pesquisas relacionadas à tais autores citados anteriormente será


possível afirmar que, quando se transpõe um texto verbal para o cinema, cujo su-
porte é a tela, as palavras cedem espaço para as imagens. Muito do que seria dito
pela palavra pode agora se matizar de cores, contornos, expressões, sons, enfim no-
vos signos entram no jogo visual para contar a história escrita.
É interessante verificar, se esta mudança de suporte textual representa uma
perda, em termos artísticos, ou pelo contrário, apresenta novas maneiras de se ler
o texto literário. Essa questão norteia este estudo, isto é, verificar até que ponto a
relação entre texto e imagem se mantém equivalente. Se as imagens, ao substituir
as descrições do texto original, expressam também aquilo que o autor pretendeu
contar no romance.
Essa questão norteia este artigo, isto é, a possibilidade de se verificar até que
ponto a relação entre texto e imagem se mantém equivalente. Se as imagens, ao
substituir as descrições do texto original, expressam também aquilo que o autor
pretendeu contar no romance.

Referências
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 3. Ed. São Paulo: Cultrix, 1983.
BRITO, José Domingos de. Literatura e cinema.(Mistérios da criação literária). v.4. São
Paulo: Novera, 2007.
CLERC, Jeanne-Marie; BRUNEL, Pierre. A literatura comparada face às imagens
modernas: cinema, fotografia, televisão.(Compêndio de Literatura). Lisboa:
Calouste Gulbenkian, 2004.
MARTIN, MARCEL. A linguagem cinematográfica. Tradução: Paulo Neves; Revisão
técnica: Sheila Schvartzman. São Paulo: Brasiliense, 2003.
MICHAELIS: moderno dicionário da língua portuguesa. (Dicionário Michaelis). São
Paulo: Melhoramentos, 1998.
MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa, 31 ed. São Paulo: Cultrix, 2001.
VALENTE, A. A linguagem nossa de cada dia. Petrópolis: Vozes, 1997.

298
Estudos Literários

O espaço da literatura de
autoria indígena no contexto
escolar
Letícia Santana Stacciarini1

Introdução
Acredita-se que dentre os maiores desafios da escola estejam os de “reconhe-
cer a diversidade como parte inseparável da identidade nacional” (BRASIL, 1997,
p. 117) e possibilitar o conhecimento da “riqueza representada por essa diversidade
etnocultural que compõe o patrimônio sociocultural brasileiro, investindo na su-
peração de qualquer tipo de discriminação e valorizando a trajetória particular dos
grupos que compõem a sociedade” (BRASIL, 1997, p. 117). Nesse sentido, é impor-
tante que se fale acerca da tendência errônea de

sustentar argumentos de ordem racial/étnica para justificar desigualdades


socioeconômicas, dominação, abuso, exploração de certos grupos humanos.
Historicamente, no Brasil, tentou-se justificar, por essa via, injustiças come-
tidas contra povos indígenas, contra africanos e seus descendentes, desde a
barbárie da escravidão a formas contemporâneas de discriminação e exclusão
destes e de outros grupos étnicos e culturais, em diferentes graus e formas.
A escola deve posicionar-se criticamente em relação a esses fatos, mediante
informações corretas, cooperando no esforço histórico de superação do ra-
cismo e da discriminação. (BRASIL, 1997, p. 133).

Por este motivo, inicialmente, cabe destacar que a aprovação da Lei Federal
11.645/2008 representa um importante marco no sentido da obrigatoridade do “es-

1  PPGEL/UFU, [email protected]

299
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

tudo da história e cultura afro-brasileira e indígena” (art. 26-A) em instituições de


ensino fundamental e médio, tanto de natureza pública quanto privada. Todavia, em
realidade, vê-se que a questão ainda está longe de atingir a notoriedade almejada:
“os desafios enfrentados pelos professores [...] nas escolas são diversos, tais como a
diferença de recursos entre escolas públicas e particulares, a falta de formação dos
docentes sobre o tema tratado e a abordagem, por vezes, estereotipada da história e
da cultura indígena nos livros didáticos” (SANTOS, et al., 2015, p. 7). Além disso,

o verbo no pretérito imperfeito é uma constante, porque de forma geral os


índios “eram”, raramente eles “são”. Costumamos ler nesses livros que os ín-
dios “moravam” em ocas, que o tacape “era” uma de suas armas de guerra. O
pretérito imperfeito imprime a atmosfera mítica que, muitas vezes, ainda se
constrói em torno do índio, apartando-o do momento presente, da realida-
de contemporânea da criança leitora do livro didático. (GAMA-KHALIL &
SOUZA, 2015, p. 227).

Com isso, “ao abordar a autoria de obras literárias, destinadas aos públi-
cos infantil e juvenil, feitas por índios antes do final do século XX, podemos falar
não apenas em uma marginalização, e sim, num quase total apagamento” (GAMA
-KHALIL & SOUZA, 2015, p. 218) e, “apesar dos esforços promovidos por órgãos
federais e instituições diversas para divulgar as culturas indígenas, estas ainda são
uma incógnita para professores e alunos até mesmo nas universidades” (THIÉL,
2013, p. 1176). Destaca-se também que a literatura infantil e juvenil,

até recentemente, não permitiu ao índio o desempenho de papéis significati-


vos e uniformes na construção do imaginário de crianças e jovens. Em mea-
dos do século XX, surgem várias narrativas com personagens indígenas, mas,
na maioria dos casos, […] eles são os antagonistas, obstáculos ao sucesso da
empreitada branca de colonização, compõem a natureza que deve ser doma-
da. (MARTHA, s/d, p. 328).

Frente ao exposto, a presente proposta consiste em apresentar contribuições


literárias de autores indígenas pertinentes para a formação do sujeito durante suas
etapas de formação escolar. De caráter geral, falar-se-á sobre possibilidades temá-
ticas - dentre um emaranhado de conteúdos sensíveis - que podem ser trabalhadas

300
Estudos Literários

nas mais variadas etapas de ensino da educação básica. Sob tais aspectos, “a produ-
ção de autoria indígena para crianças e jovens, marcada por uma série de relações,
revela dinâmica interna e reconhecimento social, aspectos que conferem valor às
obras artísticas” (MARTHA, s/d, p. 329).
Tudo isso posibilita reflexões acerca da história e cultura dos povos indí-
genas. A retratação dos valores, tradições, ancestralidade, memória, dos animais,
mitos, lendas, a demilitação do espaço geográfico, entre outros aspectos, fazem-se
presentes nas obras de autoria indígena e “esses conhecimentos não podem nem
devem ficar restritos ao âmbito das universidades” (THIÉL, 2012, p. 12), já que

a literatura é construída por visões de mundo e, se restringirmos nossas lei-


turas a certos grupos e visões, limitamos também nosso aprendizado e nossa
possibilidade de ver e ler o mundo de uma maneira dinâmica. Portanto, é
fundamental que formemos leitores que possam criar conexões entre saberes,
perceber o lugar ideológico dos discursos, interpretar informações e desen-
volver consciências. (THIÉL, 2012, p. 12).

Indianista, indigenista ou indígena?


Antes mais nada, percebe-se a importância de diferenciar a literatura indígena
da indianista e da indigenista. Isso porque há uma pluralidade de textos relacionados
às tradições europeias e que não devem ser identificados como indígenas. Em suma,
indianista diz respeito “ao movimento literário oitocentista que, a partir de uma
visão idealizada e exótica, inspirou-se em temas da vida dos primitivos americanos,
considerados os povos originais do ‘novo mundo’” (BERNARDES; GAUDÊNCIO;
MELO, 2015, p. 100). “Iracema” (1865) e “O Guarani” (1857) - ambas de José de
Alencar - são exemplos de obras que se inserem em tal classificação. Nesse contexto,

os romances indianistas partem de matéria-prima local para constituir tem-


po, espaço e homem míticos, com o propósito de construir a gênese de uma
nação em um momento de afirmação cultural. Um perfil heroico é traçado
para o índio, o bom selvagem, que vive em comunhão com a natureza e até
mesmo com o colonizador. (THIÉL, 2012, p. 44).

301
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Em contrapartida, para o autor da obra indigenista, “o mundo indígena é o


tema e o índio é informante, mas não agente da narrativa” (THIÉL, 2012, p. 45).
Sendo assim, esta produção “advém de trabalhos de escritores da cultura e elite
ocidental, concentrados no estudo e na abordagem sobre as culturas indígenas, co-
mo forma de questionamento e de denúncia da discriminação, do preconceito e
do etnocentrismo sofridas pelos povos indígenas” (BERNARDES; GAUDÊNCIO;
MELO, 2015, p. 100). O livro “Lendas do índio brasileiro” (1999) consiste em uma
organização de Alberto da Costa e Silva e se insere na literatura indigenista.
Enquanto que “nessas duas categorias, as identidades indígenas foram pensa-
das por autores que, cultural e socialmente, encontravam-se distantes das subjetivida-
des e sensibilidades dos índios” (BERNARDES; GAUDÊNCIO; MELO, 2015, p. 100),
a produção textual indígena, por sua vez, perpassa por “tradições, discursos, modos
de produção e recepção no que tange a sua expressão estético-literária” (THIÉL, 2012,
p. 46). Acerca das duas últimas mencionadas, é importante entender que

tanto as obras indígenas quanto as indigenistas são produzidas no imbrica-


mento cultural; contudo, as textualidades indígenas têm no índio não só um
referente, mas principalmente um agente. Ele escreve tanto para um público-
-alvo índio (para os parentes) quanto para os não índios. (THIÉL, 2012, p. 46).

Além de diversos outros existentes na mesma categoria, é na literatura indí-


gena que se encaixam os escritores apontados no início deste trabalho. Faz-se con-
siderável também o afastamento da terminologia “índio”, pois esta “não reconhece a
diversidade, mas constrói uma essência que permeia todo nativo-americano, inde-
pendentemente da nação ou do grupo linguístico ao qual pertença” (THIÉL, 2012, p.
17). Por tudo isso, autores - não “índios”, mas sim “indígenas” - foram selecionados
frente às suas contribuições possíveis de serem abordadas, por exemplo, em contextos
escolares de instituições as quais visem, dentre outros enfoques, priorizar a formação
do “ser” como “pessoa humana”, capaz de sentir empatia e respeitar o próximo.

Autores indígenas e suas contribuições literárias


A inserção da literatura de autoria indígena desde as primeiras leituras es-
colares, para além de recomendável - tendo em vista à importância de se alongar

302
Estudos Literários

o universo do público leitor - faz-se obrigatória (Lei Federal 11.645/2008). Mesmo


assim, talvez pelo desconhecimento ou pelo costume de se trabalhar principalmen-
te com obras consagradas e/ou indicadas, a abordagem de textos indígenas é pouco
observada ou sequer acontece. O próprio 19 de abril - conhecido como o “Dia do
Índio” - por exemplo, tende a ser comemorado de forma questionável e

mesmo existindo controvérsia sobre a importância e a validade do dia do ín-


dio, este é um dos poucos momentos do ano onde a grande maioria da popu-
lação brasileira é lembrada da existência dos Povos Indígenas, sobretudo por
conta das atividades escolares realizadas nesse período. No entanto, grande
parte das instituições escolares não faz desse dia um momento significativo,
pois não o utilizam para promover debates sobre as questões a respeito da
história dos indígenas no passado e no presente e seus direitos constitucio-
nais e o descumprimento desses direitos pelo Estado e parte da sociedade. Ao
invés disso, muitas escolas trabalham o dia do índio de maneira inadequada,
sob o signo do exótico e do passado, reforçando imagens pejorativas, estig-
mas e preconceituoso contra os indígenas. (TRINDADE, 2013, p. 20).

Dando seguimento, é válido evidenciar que investigações, tanto de autores


indígenas quanto de suas contribuições literárias, apresentam-se relevantes ao am-
biente escolar. Dentre outras possibilidades, elas servem “para entendermos como
[…] concepções do passado continuam presentes na cultura escolar e na sociedade
brasileira” (TRINDADE, 2013, p. 11). Além do mais, possibilitam “reconhecer o
valor da literatura dos povos tradicionais do Brasil […] e que tiveram, por tanto
tempo, ignorada a importância de seus textos na formação do que chamamos de
literatura brasileira” (BICALHO, 2010, p. 207).
Por tudo isso, procurou-se selecionar alguns desses autores - tão somente
uma pequena parte deles - para que fossem ressaltados e tivessem suas temáticas de
grande relevância apresentadas de modo a possibilitar hipóteses de discussões no
ambiente escolar. Dentre eles, está o professor e escritor Daniel Munduruku, muito
conhecido também por seu livros de temáticas indígenas. Possui graduação em psi-
cologia, história e filosofia, é mestre em antropologia social e doutor em educação
- ambas as titulações pela Universidade de São Paulo - bem como pós-doutor em

303
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

literatura pela Universidade de São Carlos. Nasceu em Belém/PA e é pertencente da


etnia indígena munduruku.
Escreveu aproximadamente 52 livros, constantemente ministra oficiais cul-
turais, palestras, entrevistas e, inseridos em seus mais plurais ensinamentos, tam-
bém discorda da intitulação “índio” apontando para a negatividade que tal termi-
nologia carrega. Suas obras apresentam importantes temas os quais merecem ser
expostos e trabalhados inclusive em instituições de ensino fundamental e médio.
Em “Meu Vô Apolinário” (2001), por exemplo, o protagonista deixa claro sua raiva
em ter nascido índio desde o princípio: “para meu despero, nasci com cara de índio,
cabelo de índio […], tamanho de índio” (MUNDURUKU, 2005, p. 11) e uma coisa
acaba levando à outra:

Quando entrei na escola primária, então, foi um deus-nos-acuda. Todo mun-


do vivia dizendo: ‘Olha o índio que chegou à nossa escola’. Meus primeiros
colegas logo se aproveitaram para colocar em mim o apelido de Aritana. Não
preciso dizer que isso me deixou fulo da vida e foi um dos principais motivos
das brigas de rua nessa fase da minha história […]. E por que eu não gostava
que me chamassem de índio? Por causa das ideias e imagens que essa palavra
trazia. Chamar alguém de índio era classificá-lo como atrasado, selvagem,
preguiçoso […]. Para meus colegas só contava a minha aparência... e não o
que eu era e fazia. (MUNDURUKU, 2005, p. 11).

O personagem não chegou a nascer na aldeia, mas era li que vivia seus mo-
mentos de lazer - principalmente pelo contato com o avô - quando ocorriam suas fé-
rias escolares. Assim sendo, ao mesmo tempo em que a cidade, muitas vezes, dava-se
como um espaço atópico - “de incômodo” (GAMA-KHALIL, 2008, p. 47) - a aldeia
se apresentava como um espaço seguro e conhecido. Inclusive, pelo trecho acima,
percebe-se o maciço preconceito sofrido e dificilmente alguém se sentiria confor-
tável ou pertencente a uma ambientação de incessante “bullying” - “um fenômeno
social que configura atitudes específicas de conflitos e agressões repetitivas que le-
vam a consequências graves para todos seus envolvidos” (MEDEIROS, 2012, p. 20).
Como se pode ver, o conteúdo principal deste livro remete-se ao que se
passa incessantemente e, principalmente, no ambiente escolar. Falar e condenar o
“bullying” está muito além do recomendado frente aos transtornos que isso geral-

304
Estudos Literários

mente acaba causando na vida de jovens. E por que não falar a respeito partindo de
contribuições literárias tão significativas? Nesse caminhar interpretativo, “a intera-
ção do leitor com o texto pode fazê-lo construir uma nova maneira de enxergar a
sua própria condição de vida e a de outros” (MEDEIROS, 2015, p. 35003). Tal

encontro pode ser potencializado quando a leitura do texto literário vem ar-
ticulada a um momento de discussão, favorável ao levantamento de questio-
namentos e dúvidas. Dessa maneira, por meio das leituras é possível fazer
um paralelo entre as histórias e a realidade, assim, a partir do encontro com
o texto, o leitor poderá ampliar o seu poder de argumentação a respeito de
assuntos antes desconhecidos, como ocorre em relação ao bullying, fenôme-
no vivenciado por muitos, mas ainda esclarecido e discutido entre poucos.
(MEDEIROS, 2015, p. 35003).

A literata Eliane Potiguara, da mesma forma que muitos outros, contribui


significativamente. Atua como empreendedora social, professora, ativista, poeta,
contadora de histórias etc. É graduada em Letras, em Educação e corresponde a
uma das 52 brasileiras indicadas ao projeto internacional “Mil Mulheres para o Prê-
mio Nobel da Paz”. De origem potiguara, a força com que luta em defesa das causas
indígenas, bem como o destaque que proporciona às vozes das mulheres autóctones
chamam bastante atenção.
Suas obras denunciam a repressão, a violência, valorizam a ancestralidade e,
ao mesmo tempo, são repletas de poética. Em o exemplar “A Cura da Terra” (2015),
por exemplo, os ensinamentos são passados pelos anciãos das aldeias - figuras sem-
pre muito respeitadas - aos jovens os quais estão sendo formados e que buscam
seus avós ou a figura do pajé para saciarem suas curiosidades: “— Mas por que isso
aconteceu, vovó?” (POTIGUARA, 2015, p. 16). O resultado é de uma série de infor-
mações, agora na versão do nativo, combinadas ao texto literário:

— Porque os estrangeiros maus só queriam lucro, e encheram a terra com


algodão, dominaram os antigos guerreiros índios e os fizeram escravos, e ai
de quem não os obedecesse! Aqueles estrangeiros traziam sua própria água
e usavam adubo e maquinários agrícolas na terra. Nossa região foi macha-
da de sangue indígena pela brutalidade de estrangeiros insensíveis, covardes

305
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

e dominadores que impuseram os vícios, a maldade, a mentira, a cobiça, a


competição, o egoísmo e trouxeram sofrimento e divisão para as famílias que
ali nasceram. (POTIGUARA, 2015, p. 17).

Dialogar sobre o processo de dominação e toda a violência gerada serve tam-


bém para trazer aos alunos diferentes versões do que fora repassado. Talvez muitos
ainda não saibam que “aldeias inteiras foram removidas de seus territórios tradicio-
nais e as crianças submetidas à catequização, desrespeitando-se a sua organização
sociocultural” (BRASIL, 1997, p. 153). Embora, mesmo que de modo precário, in-
fluência culturais ainda tenham sido disseminadas, “esse desmantelamento da es-
trutura familiar e dos vínculos comunitários enfraqueceu o sentido de identidade
dos africanos e dos indígenas” (BRASIL, 1997, p. 153).
Assim, a partir da narrativa de suas perspectivas “da História brasileira por
meio de textualidades literárias, os autores indígenas contemporâneos expressam
consciência do poder da escrita para sua inserção como agentes de construção de
um passado, de um presente e possivelmente de um futuro na Grande História na-
cional” (THIÉL, 2012, p. 103). Nota-se aí a literatura também como mecanismo
de circulação do saber e de incentivo a um despertar crítico cidadão. Outro ponto
recorrente nas produções indígenas trata-se da importância com que se fazem pre-
sentes os animais em seus enredos.
Atuando como protagonistas ou não, muitas vezes inclusive, os livros po-
dem parecer (ou realmente são) fábulas. Alguns dos bichos, como a cobra e a onça,
aparecem com maior frequência e logo se vê que são respeitados, temidos e, em
determinadas passagens, descritos como misteriosos, traiçoeiros. De “O Canto do
Uirapuru: uma história de amor verdadeiro” destaca-se: “nas profundezas do rio
Andirá, morava a grande Moi, uma cobra maligna, que apavorava o povo mawé”
(HAKIY, 2015, p. 7).
Já em “Guaynê derrota a cobra grande: uma história indígena” lê-se: “agora
seu amado fora encantado pela grande jararaca da floresta e ela nunca mais volta-
ria a vê-lo” (HAKIY, 2013, p. 21). Compete oportunamente acrescentar que Tia-
go Hakiy - graduado em Biblioteconomia pela UFAM (Universidade Federal do
Amazonas) - é contador de histórias tradicionais indígenas. De Barreirinha/AM,

306
Estudos Literários

ele descende do povo sateré-mawé. Faz parte do Núcleo dos Escritores e Artistas
Indígenas (NEArIn). Na prefeitura municipal de Barreirinha ocupa o cargo de As-
sessor Especial.
Discussões sobre a representatividade dos animais na sociedade moderna
X na realidade indígena podem ser propostas no ambiente escolar a partir de tais
literaturas. Despertar a sensibilidade do público para a questão se faz essencial, pois
o respeito aos bichos, mesmo que em uma sociedade capitalista, faz-se urgente.
De modo paralelo, é considerável dialogar a respeito do elemento espacial
e, mais especificamente, no sentido das aldeias serem tidas como aparentemente
seguras e organizadas e das cidades aparecerem como localidades onde experiên-
cias negativas tendem a acontecer. Com o foco de exemplificação, recorrer-se-à as
narrativas dos autores Graça Graúna - “Criaturas de Ñanderu” (2010) - e de Olívio
Jekupé - “Ajuda do Saci Kamba’i” (2006).
Antes disso, vale esclarecer que Graça Graúna é de São José do Campestre/
RN e formou-se em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco. Defendeu
seu mestrado - “Mitos Indígenas na Literatura Infantil Brasileira” - em 1991 e o
doutorado - “Literatura Indígena Contemporânea no Brasil” - em 2003. É descen-
dente do povo guerreiro Potiguara e já publicou diversas obras. A narrativa dela tem
início com a indígena mais velha da aldeia chamando a todos para ouvirem uma
história que contaria a respeito de “uma criatura que Ñanderu, o Grande Espírito,
pôs no mundo pra sossego de uns e desassossego de outros” (GRAÚNA, 2010, p. 2).
Diz respeito ao relato de um sonho no qual a jovem recebera orientações
para seguir seus caminhos com inteligência. Todavia, o velho sábio que falava “dis-
se-lhe para não se deixar seduzir pelas belas mentiras da cidade grande” (GRAÚNA,
2010, p. 11). Com o tempo, a cunhã adquiriu características de passáros e, como
acabou sendo atraída por tais “belas mentiras” em diversas ocasiões, foi condenan-
da a uma vida triste e solitária:

às vezes aparece com seu canto engaiolado. Mas, para não morrer de triste-
za, voa no pensamento até onde estão as suas crias e os seus parentes. […]
Alguns acreditam que isso é também uma forma de saudade; de tão grande
que é, se alastra pela natureza. Vai ver que é por isso que as pessoas ficam

307
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

tristes quando avistam uma plumagem negra no céu. […] Dizem também
que, mesmo em dia de sol, essa nuvem escura que aparece de vez em quando
é um pássaro preto chorando. (GRAÚNA, 2010, p. 26).

Dessa forma, conforme recorrentemente observado, “ao apresentarem sua


vida na aldeia, recuperando os cantos, mitos, poemas, os índios pretendem valori-
zar o passado como uma forma de criticar o progresso e mostrar os efeitos negativos
da civilização moderna ocidental” (GUESSE, 2014, p. 46). No referido livro, como
a bonita moça, vez ou outra, acabou desviando-se da missão - assim como era da
vontade da natureza - de “proteger com o seu canto e as suas asas os […] parentes,
a […] tradição, a […] ciência e a […] terra” (GRAÚNA, 2010, p. 10), foi condenada
a viver “fora de lugar”, em um espaço deslocado, triste.
O autor Olívio Jekupé - nascido em Novo Itacolomi/PA - é morador da al-
deia Krukutu, em Parelheiros, um distrito localizado na zona sul da cidade de São
Paulo. Em “Ajuda do Saci Kamba’i” escreve a história de Vera, “um indiozinho de 7
anos que sonhava em estudar na cidade e ter também o conhecimento dos jurua”
(JEKUPÉ, 2006, p. 7). Logo no início da narrativa já se sabe das dificuldades as
quais deveriam ser enfrentadas para que isso acontecesse: “para realizar esse desejo,
Vera teria de ir para a cidade grande, onde sempre acontecem acidentes, assaltos e
mortes, como mostram as notícias dos jornais e da televisão” (JEKUPÉ, 2006, p. 7).
O fato é que, tempos depois, encontrando uma melhor forma para isso acon-
tecer, seu pai foi levá-lo à cidade; embora, ainda assim, não estivesse confortável
com aquela mudança. Quando as aulas começaram “alguns garotos olharam pa-
ra ele de maneira diferente. […] Vera pensava ainda que era por causa dos filmes
americanos que passam e sempre mostram o índio como um selvagem, violento,
que só mata” (JEKUPÉ, 2006, p. 11) e, neste ponto, nota-se também a presença dos
estereótipos preconceituosamente impostos.
Assim seus dias se passavam, oscilando entre os estudos na cidade e as visitas
à aldeia até que, no encerramento do ano letivo, o kunumi “saiu da escola feliz por
ter sido aprovado e alegre por saber que voltaria para a aldeia, onde ia rever seus
pais e seu povo” (JEKUPÉ, 2006, p. 19). Neste exato momento, Vera fora atingido
por um carro que trafegava irregularmente, acabou em uma cadeira de rodas por ter

308
Estudos Literários

perdido seus movimentos e, assim como nos dois enredos supracitados, vivenciou a
árdua realidade da cidade, inúmeras as vezes, tão temida por seus parentes.
Meses se passaram, o menino continuava em pleno sofrimento frente a sua
nova condição de vida e foi aí que lhe surgiu a ideia de pedir ajuda ao Kamba’i, um
poderoso saci de acordo com as histórias de seu avô. A recorrência ao universo
mítico também se faz tão presente quanto a retratação das espacialidades atópica/
tópica e a valorização da ancestralidade na literatura indígena, dentre outros. En-
fatiza-se que

suas histórias revelam sua cultura, aspectos de sua vida social, sua visão de
mundo em relação à morte, sexualidade, doenças, criação do universo, sur-
gimento dos seres. Assim, essa literatura que surge possibilita a perpetuação
dos costumes e tradições para as próximas gerações indígenas e também se
apresenta como um meio eficaz de divulgação ‘do diferente’, combatendo o
preconceito. (GUESSE, 2014, p. 48).

A obra “Tupã Mirim: o pequeno guerreiro” (2014), também de Olívio Jeku-


pé, pode ser tomada com subsídio de análise acerca da referida matéria. Nela re-
trata-se a vida de uma criançamuito ativa, mas que possuía algumas dificuldades
em seu dia a dia, pois nascera apenas com o braço esquerdo. Apesar disso, “as pes-
soas da aldeia, os amigos e os parentes não zombavam de Tupã por ser diferente;
na verdade, ficavam chateados, pois sabiam que ele tinha muita vontade de caçar”
(JEKUPÉ, 2014, p. 6).
Mais uma vez aí a aldeia é apresentada como uma ambientação segura, o
que talvez, diferentemente, não ocorreria na realidade da cidade. A crença em seres
espirituais, assim como em diversos outros livros de autoria indígena, também ocu-
pa notoriedade no enredo mencionado. A este respeito entende-se que “o cosmos
indígena é povoado de seres divinos, espirituais, naturais e sobrenaturais” (MENE-
GASSI, 2007, p. 220) e é no encontro com um espírito bondoso que Tupã Mirim
depositava suas esperanças de ajuda.
Aqui também continua latente a marca da valorização dos idosos na reali-
dade indígena. Até mesmo na procura de um ente sobrenatural os ensinamentos
dos mais velhos são levados em consideração: “— Meu avô falou bastante sobre
você […]. — Você é muito legal e parece ser um espírito bom, assim como meu

309
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

avô falava” (JEKUPÉ, 2014, p. 13). Por outro lado, o prestígio com que aos anciãos
são representados nos escritos indígenas, infelizmente, não condiz com a realidade
vivenciada por eles na sociedade capitalista:

em nossa sociedade, ser velho é lutar para continuar sendo homem. Como se
realiza a opressão da velhice? De múltiplas maneiras, algumas explicitamente
brutais, outras tacitamente permitidas. Oprime-se o velho por intermédio
de mecanismos institucionais visíveis (a burocracia da aposentadoria e dos
asilos), por mecanismos psicológicos sutis e quase invisíveis (a tutelagem, a
recusa do diálogo e da reciprocidade que forçam o velho a comportamentos
repetitivos e monótonos, a tolerância de má-fé que, na realidade, é banimen-
to e discriminação), por mecanismos técnicos (as próteses e a precariedade
existencial daqueles que não podem adquiri-las), por mecanismos científicos
(as ‘pesquisas’ que demonstram a incapacidade e a incompetência sociais do
velho). (BOSI, 1994, p. 18).

Contrapor ambas as representações pode ser uma válida oportunidade de


despertar no alunado a sensibilidade para discutir temas que envolvam a terceira
idade, já que “ser velho na sociedade capitalista […] é sobreviver” (BOSI, 1994, p.
19) e isso precisa ser revisto. Por fim, longe de esgostadas todas as possibilidades,
salienta-se também a imprescindibilidade de “decifrar” tal literatura a partir da ob-
servância da riqueza de imagens que acompanham os escritos devendo, com isso,
atentar-se para a posição de destaque que os ilustradores ocupam.

Conclusão
Como visto, muitas são as contribuições proporcionadas a partir da leitura e
estudo de textos indígenas. O fato é que, “como educadores, temos de nos deparar
com a questão da inclusão social e cultural, bem como com o silenciamento ou a
invisibilidade dos grupos indígenas ao longo da história, que devem ser revistos”
(THIÉL, 2012, p. 11). Posto isto, é fundamental que nossos alunos sejam expostos
a uma extensa variedade de produções literárias - incluindo aí, conforme mencio-
nado, a de autoria indígena - pois já se sabe que uma leitura limitada dificilmente
formará um cidadão crítico e conhecedor do mundo.

310
Estudos Literários

Importante ressaltar que, apesar de o professor possuir liberdade para ade-


quar as atividades para cada turma, é recomendável que as leitoras envolvam “ini-
cialmente contextualização, como uma fase pré-leitura, para que façam sentido para
os alunos” (THIÉL, 2012, p. 131). Paralelamente a isso, discussões que envolvam
os estereótipos acerca da imagem do “índio”, a produção de sentidos a partir das
relações entre o texto verbal e o texto não verbal, o entendimento da obra como
indígena e não como indianista ou indigenista representam, tão somente, a menor
parte de um enorme emaranhado de possibilidades as quais poderão ser trabalha-
das. Também não se pode deixar de mencionar sobre a extensa viabilidade de rela-
cionar o contéudo a outras disciplinas escolares:

explorar a riqueza da relação dos povos indígenas com o meio ambiente, os


problemas característicos de regiões de intensa urbanização, distintas formas
de vivência em zonas urbanas e zonas rurais, assim como a busca de aco-
modação mínima, são exemplos de assuntos que possibilitam transversalizar
esse conteúdo em Geografia. Levantar e analisar valores e códigos do espaço
urbano e do espaço rural é uma forma de trabalhar com processos constitu-
tivos dos códigos de representação coletiva, como construção humana. […]
Entender como esses códigos se estruturam de forma diferenciada no espaço
público e no espaço privado traz a necessidade do estudo da historicidade do
conceito de espaço público, assim como sua vinculação a diferentes culturas.
Da mesma forma, propicia oportunidade de compreender que espaços estão
sujeitos a regulamentação, jurídica ou por convenção entre seus usuários, ca-
racterizando espaços de trabalho, lazer, festas, ritos etc. Nesse conteúdo, há
um potencial de transversalizar em História, Geografia e Português. (BRA-
SIL, 1997, p. 151).

O fato é que se faz necessário despertar o olhar para o outro, ao desconheci-


do e - embora a crítica literária e a academia costumem valorizar e promover “obras
que correspondam a modelos do cânone ocidental” (THIÉL, 2012, p. 38) - vale
destacar que “ler somente o que é valorizado […] pode limitar a formação de reper-
tório e conduzir à desqualificação dos textos extraocidentais” (THIÉL, 2012, p. 38).
Apenas conhecendo passa-se a ser capaz de emitir opiniões válidas e, além disso, de

311
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

livrar-se das amarras de uma educação conversadora e/ou voltada tão somente para
os números de aprovações.

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312
Estudos Literários

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313
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

“Apagar-me, diluir-me,
desmanchar-me”: O (não)
lugar do sujeito na poesia de
Paulo Leminski
Lidiane Alves do Nascimento1

O olhar que, por ora, remetemos à poesia de Paulo Leminski é matizado por
questões referentes à identidade do sujeito, isto é, às transmutações da subjetivida-
de circunscritas na epiderme da tessitura poética. Nossas investigações vão sendo
pontuadas a partir do estudo da modernidade, como um movimento cultural que,
embora pareça exaustivamente explorado intelectualmente, ainda se oferece como
um tema possível de indagações mais profundas, a serem engendradas sobre per-
cursos abrangentes.
Os poemas de Paulo Leminski, surgidos na cena literária, em fins dos anos
1960, indo até 1989, disseminados por antologias que se organizaram ao longo do
período em que exerceu intensamente sua atividade literária, e ainda, após a sua
morte prematura, possuem um veio experimental marcado por uma constante aber-
tura para o novo. Eles sinalizam uma poesia multifacetada, que consegue amalga-
mar capricho e relaxo sem perder de vista a consciência crítica de um poeta que, ao
brincar com a linguagem, sabe bem o quanto há de seriedade e labor nessa aventura.
Na obra Caprichos e relaxos, publicada em 1983, resultado da compilação de
alguns livros anteriores do poeta, como Não fosse isso e era menos /não fosse tanto
eera quase e Polonaises, além de alguns dos poemas que fizeram parte da revista
Invenção, ao lado do tom humorístico, situa-se a engenharia da linguagem advinda
da formação concretista de Paulo Leminski. Notifica-se que, tanto através do rigor,

1  Universidade Federal de Uberlândia, [email protected]

314
Estudos Literários

da metalinguagem, modo de exercitar sua paixão pela linguagem, como através da


anarquia e irreverência focadas na liberdade da escrita, a poesia encontra o seu
lugar e solidifica-se.
O projeto da concisão iniciado em Caprichos e relaxos, e que se firmará como
característica peculiar da poesia leminskiana, é intensificado, posteriormente, na
obra Distraídos venceremos, de 1987. Nesta, imprime-se uma poesia questionadora
da função do poeta e da poesia dentro da sociedade dita pós-industrial, corrobo-
rando a busca da função libertadora de sua poesia, na proposta de liberdade da
linguagem concomitante ao reconhecimento da necessidade de pesquisa linguís-
tica, do rigor, coadunando liberdade e disciplina como componentes que seguirão
atuando simultaneamente em seu trabalho poético. O exercício metalinguístico, em
sua obra, enfatiza a prática moderna da consciência literária, o jogo realizado no
campo poético, a desencadear também, com tais instrumentais linguísticos, a sur-
presa e o riso que arrebatam o leitor.
Adiante, outras coletâneas de poemas que emergem na bibliografia do au-
tor prosseguirão na mesma linhagem da obra supracitada, sublinhando o trabalho
denso com a linguagem, a explorar frases feitas, provérbios populares, estabelecen-
do jogos com trocadilhos, desmontagem e montagem de palavras, processos que
evidenciam referências importantes como o já mencionado Concretismo e outras
que tais.
A atitude de confronto e rebeldia em relação, por exemplo, à ditadura da
utilidade instituída pós Revolução Industrial, dará espaço para que, sob o signo da
metalinguagem, se assinale a consciência moderna e o desencanto do sujeito frente
ao mundo e à linguagem, convocando o instrumento cortante da ironia como uma
das armas a serviço da tentativa de se evidenciar teoricamente o descentramento do
“eu”, haja vista a incongruência do poeta incapaz de lidar com a realidade histórica
vigente sob os cânones de uma sociedade considerada, a seus olhos, áspera. Na
esteira de Maciel (1999, p. 24), o poema metalinguístico se afigurará revelador de
“uma paradoxal defesa da poesia, a exaltação da linguagem poética como forma de
assegurar sua sobrevivência numa sociedade em que o poeta se sente minimizado
e condenado ao desterro”.
Dito isso, a hipótese interpretativa que se aventa é a da constituição do sujei-
to lírico descentrado em conjunção com a marginalização da poesia lírica na socie-

315
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

dade moderna. Ao assumir, ele mesmo, sua condição de marginal, o sujeito remete
a um modelo de marginalidade referente à impossibilidade de interagir socialmen-
te. É o que se pode ler em poemas em que o próprio poeta se constitui alvo de sua
ironia, como no exemplo a seguir, em que Leminski se personaliza:

o pauloleminski
é um cachorro louco
que deve ser morto
a pau a pedra
a fogo a pique
senão é bem capaz
o filhadaputa
de fazer chover
em nosso piquenique
(LEMINSKI, 1983, p. 87).

Ao se personalizar em um outro “pauloleminski”, viabilizando a ironia que


faz de si mesmo, é perceptível, por trás da fina cortina do humor, o tom de disso-
nância com o mundo. Na criação de seu personagem, faz uso de adjetivos toscos
“cachorro louco”, “filhadaputa”, os quais, através da imagem irônica, assinalam sua
postura marginal na sociedade, a corroborar a impossibilidade de adaptação, já que
este “pauloleminski” é capaz “de fazer chover em nosso piquenique”, desvelando
uma personalidade louca, de alguém que “desmancha prazeres” e arruína a ordem
das coisas. Não obstante, o sentido despótico de destruição “deve ser morto / a pau
a pedra / a fogo / a pique” seja atenuado em favor da inserção do humor que toma
o próprio sujeito como alvo.
Bosi (2004) interpreta, no sentimento paranoico do sujeito, uma satisfação
mórbida em se apresentar relegado à margem, sob a incompreensão do outro. De
todo modo, o abismo que se cava frente aos modelos apriorísticos avigora a condi-
ção problemática do sujeito em uma sociedade fundada no modo de vida burguês.
Desta feita, o olhar do sujeito poético, sustentado por condições subjetivas diver-
gentes das padronizadas, bem como seu caráter individual e singular, são dissipados
em meio ao ruído da multidão, o que legitima, pois, seu sentimento de exclusão.
Bosi (2004, p. 165) assevera:

316
Estudos Literários

Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de pai-


sagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu
manipular para vender. A propaganda só “libera” o que dá lucro: a imagem
do sexo, por exemplo. Cativante: cativeiro.

Ou quererá a poesia, ingênua, concorrer com a indústria & o comércio, aca-


bando afinal por ceder-lhes as suas graças e gracinhas sonoras e gráficas para
que as desfrutem propagandas gratificantes? A arte terá passado de marginal
a alcoviteira ou inglória colaboracionista?

Uma estratégia possível em resposta a esse estado de coisas, além daquela


que prevê o sujeito “dando as costas” ao mundo e voltando-se para si mesmo, uma
forma de resistir à “coisificação do mundo” adorniana, é a atitude lírica de um sujei-
to que intenta sair de si por vias da dissimulação. O poema supracitado é exemplar
dessa atitude de se dissimular e se fazer outro. Ademais, lembre-se, ainda uma vez,
o caso da heteronímia pessoana. O “sair de si”, desejo de alteridade resultante da
inconstância do “eu” pertencente a uma sociedade que o declinou da sua indivi-
dualidade, é um gesto abalizado por indefinições. O “sair de si”, quiçá, reverbere
as experiências de um sujeito empírico, transfiguradas e ampliadas por um sujeito
lírico que as reporta ao leitor. No fora é que o sujeito se encontra com as coisas, com
a natureza, como se, assim, pudesse dar voz ao universo.
É possível que a abertura ao outro reflita o desejo romântico de se entregar às
experiências intensificadoras e embevecer-se na transgressão do “eu” para além das
condições limítrofes do poder humano. Na experiência subjetiva, “sair de si”, quiçá,
reverbere uma reação aos sentimentos de precariedade e “coisificação”, quando este
sujeito se entrega à avidez de sentir intensamente tudo que lhe é possível, tocando a
plenitude do mundo, conquanto sob a égide da incompletude e perda da unidade.
Assim é que não se pode dissociar a inadequação do sujeito ao modus vivendi insti-
tuído pela sociedade, da lucidez, do mal estar e ciência da crise.
Um exame detido da obra de Leminski permite depreender que o diálogo es-
tabelecido com as tendências poéticas que o formaram não deve ser compreendido
como completa adesão aos movimentos, porque o poeta os absorve como referên-
cias, reutilizando deles os conceitos convenientes à sua poesia. Ver-se-á que o ofício
de poeta se insere na diversidade dos casos modernos em que a poesia é múltipla e

317
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

oscilante entre aderir às tradições e ou contradizê-las (ou relê-las). Por vezes, quan-
do é conveniente a leitura do passado, esta se faz numa retomada com diferença, na
esteira de uma consciência criadora aguçada, que logra empreender a reinvenção
da linguagem, ao perseguir sua dicção própria, imprimindo, pois, no cenário da
literatura, um estilo singular e inconfundível de erigir poesia.
Sob a marca da variação e da multiplicidade, o fazer poético de Leminski
conduz-se pela pesquisa estética da linguagem (metalinguagem) e matiza-se pelas
estranhezas existenciais que caracterizam a modernidade e os sujeitos protagonistas
ambientados nesse cenário. O repertório vasto dos recursos estilísticos utilizados pe-
lo poeta, suas múltiplas vertentes, leva-nos ao desafio de descortinar com nitidez as
nuanças de suas figurações identitárias. Vê-se que o eu-lírico performático e mutável,
suscetível de voltar-se para si mesmo, em um gesto de introversão rebeladora, por
vezes, se dispõe a amalgamar-se às coisas outras, que se vão buscar para “fora de si”,
no encontro com o outro e com elementos que, a priori, são extrínsecos ao poema.
Também, nos poetas contemporâneos, a poesia, cada vez mais, volta-se para
si mesma e para a tradição, sendo que a atitude de lucidez poética frente à lingua-
gem, evidenciadora do descentramento do “eu”, conforme já havia preconizado o
romantismo alemão, se nos apresenta na configuração de um sujeito lírico portador
de uma interioridade vazia. Protagoniza uma crise de sua autonomia e identidade,
uma vez que seu estilo não é mais seu, mas é constituído pela mistura de estilos
outros, precedentes e, muita vez, já valorizados pelo cânone.
É lícito dizer que o sujeito poético, ao perder sua identidade sustentável,
se posiciona à margem, sob a égide de um distanciamento irônico que, por vezes,
quando não redunda na atitude de “dar as costas” à realidade externa, voltando-se
para si mesmo e para o próprio texto, afigura-se numa tal saída de si, conforme
referido. A consciência do descentramento engendra, pois, um sujeito aberto à alte-
ridade, a se apresentar como plural, como quem assume identidades diversas, tran-
sitórias e díspares, corroborando as acepções de Bauman (2005, p. 33), ao afirmar
que “no admirável mundo novo das oportunidades fugazes e das seguranças frágeis,
as identidades ao estilo antigo, rígido e inegociáveis simplesmente não funcionam”.
É interessante observar que, não existindo em sua tessitura poética um su-
jeito que se afirme e se revele na altivez da racionalidade, inscreve-se, por outro
lado, o dimensionamento das fissuras desse sujeito que se nos apresenta de modo

318
Estudos Literários

problemático. Um sujeito que, ao invés de se fixar e fixar sua escrita sob um ponto
de vista determinante, encerrado, ensaia experiências dialógicas, ao imiscuir-se nos
fragmentos de outros, a eles atando seus próprios fragmentos, além de questionar
sua própria voz, sob o eco de outras vozes, e questionar a si e se transformar, se criar
e se recriar nos liames da poesia.
Em Leminski, não estamos diante de um “eu” unívoco, singular, mas de um
sujeito que abarca a alteridade, cônscio da finitude de seus antecessores que pas-
saram e da própria finitude, ao aventar, em última estância, sua condição final. Na
abertura à alteridade, traça-se a evidente experimentação que faz com o que o su-
jeito (substância) se fragmente, pois que seu “eu” interior entrou em fusão com os
outros, com a relação que se nutre com eles.
Uma poesia que tangencia diversos movimentos tradicionais também encon-
trou ressonância na poetização do instante, no versolivrismo, caso do poema seguinte:

acordei bemol
tudo estava sustenido

sol fazia
só não fazia sentido
(LEMINSKI, 1983, p. 89).

No poema supracitado, o jogo da linguagem emitido no trocadilho (bemol


/ bem mal) suscita o prazer lúdico das palavras misturado à dor de uma existência
que se especula e busca os seus sentidos. O sujeito poético não se explicita na ins-
tauração de um “eu”, embora se subentenda na primeira pessoa do verbo “acordar”.
O estado de emoções esboçado não parece ter sido extraído do seu interior, das
emoções mais intimistas, mas aventam um movimento contrário “de fora para den-
tro”, uma vez que o estado das coisas externas é que concorrem para ilustrar a falta
de sentido da existência (“tudo estava sustenido”). Nem mesmo a presença do “sol”
(claro e reluzente) logra desobscurecer a ausência de sentidos constatada. Essa per-
cepção subjetiva da realidade aponta para a cerzidura de um sujeito ensimesmado,
que se recolhe em si mesmo e se projeta “fora de si”, nas coisas que percebe ao redor.
Entenda-se que o próprio teor discursivo do poema, dado em sua brevidade, reflete,
na enunciação poética, o surgimento de uma subjetividade difusa e instável.

319
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Exemplar outro do desencanto do sujeito, para quem o mundo mostra-se


sem sentido, é o poema a seguir:

Podem ficar com a realidade


Esse baixo astral
Em que tudo entra pelo cano
Eu quero viver de verdade
Eu fico com o cinema americano
(LEMINSKI, 2002, p. 51).

Nas investidas contra o mundo moderno e massificado, onde todas as coisas,


incluindo a poesia, são tomadas pela transitoriedade, ainda que através da elabora-
ção da linguagem, da exploração do lúdico, ao brincar com as palavras, aparentan-
do descompromisso, o sujeito intente anular a realidade, se vê, por vezes, impedido
de realizá-la, de modo a explicitar na poesia o conflito direto com a aspereza desse
contexto. O mal-estar, oriundo da consciência plena do sujeito frente sua inadequa-
ção e estranheza, o deixa também ciente dos limites de sua evasão do mundo, já que
não se pode desvencilhar dele totalmente.
Na poesia, inscreve-se ironicamente a possibilidade de construção de outra
realidade por meios que se diferem da mimese e da interioridade platônica. O de-
sejo de deixar de “ser” e existir num mundo de desgosto e desilusão faz com que o
sujeito se mova, através da linguagem literária, bem como do diálogo com outras
artes, tais como o “cinema americano”, em direção à outra realidade com qual se
pode corresponder. Também, em expressões coloquiais que aventam a liberdade
da escrita (“em que tudo entra pelo cano”, “baixo astral”), vê-se, mais uma vez, a
aproximação com a poesia marginal, caminho pelo qual pode traçar o encontro
com uma poética que se perfaz na fuga criativa dos ditames canônicos, propiciando
movimentos de abertura a novos sentidos pouco marcados por concepções interio-
rizadas e românticas do “eu”.
É sabido que o espírito leminskiano, nos conformes da modernidade, se ca-
racterizará pelo experimentalismo de todas as formas, de todos os sons, de todas
as fontes que lhe convém. Portanto, o sujeito dessa poesia se constitui por meio da
experiência, assinalando uma intimidade (eu) que não se diz, mas se constrói na
própria escrita, sem incorrer em fixidez, num tempo em que resta primar pelo tran-

320
Estudos Literários

sitório, em que a transitoriedade se apresenta como o meandro que rege o diálogo


do sujeito com as diversas correntes estéticas.
Ao dissertar sobre o subjetivismo dos poetas brasileiros contemporâneos,
Ítalo Moriconi (1998, p.15) sublinha a existência de um “distanciamento em relação
à posição de um sujeito plenificado e presente a si”, tendo em mira que a questão do
sujeito se coloca sob um constante “desestabilizar-se”, “desconstruir-se”, casos como
o de Ana Cristina César, Francisco Alvim e mesmo Paulo Leminski, poetas que, à
maneira pessoana, ao questionarem o sujeito poético, desvelam o seu lugar ou “não
-lugar” na sociedade contemporânea e no próprio âmbito da linguagem poética. No
tocante ao acervo poético leminskiano, essa reflexividade do “eu” é predominante,
sendo notada em versos como:

apagar-me
diluir-me
desmanchar-me
até que depois
de mim
de nós
de tudo
não reste mais
que o charme.
(LEMINSKI, 1983, p.136).

em que, ao erigir o poema, admitindo-se fragmentado e dividido, o sujeito


nos apresenta o propósito de “apagar-se” na linguagem, associado a uma consciên-
cia dessa impossibilidade, ou a um paradoxal desejo de presentificar-se, na expres-
são de permanência do “charme”, lido nos versos finais.
O jogo da linguagem, que permite extrair a palavra “charme” de “desman-
char-me”, sugere uma identidade que se desmancha, evidenciando a crise que chega
a atingir a epiderme da linguagem. Nos dizeres de João Alexandre Barbosa (1986,
p.27), a própria linguagem do poema torna-se “a afirmação de uma crise da lingua-
gem que, por sua vez, espelha a ruptura para com os mecanismos de representação
da realidade”. Assim, a tentativa de “apagar-se” revela o “charme” do sujeito, que
não pretende se esvair da realidade, mas via linguagem, quer enfrentá-la, extraindo

321
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

o seu peso. Nota-se que, ao incluir o “nós” em seu discurso, o sujeito se expande,
desocupando o seu lugar de exilado. Como se, ainda que se representando em um
reduto solitário e marginal, represente, em adesão, a voz de todos nós.
O processo de desestabilização do sujeito irá, pois, corroborar a perda da ilu-
são da hegemonia do “eu” que, encetada pelos românticos, norteava o ato poético.
Nessa perspectiva, esvaído de seu território comum, de identidade plena e unifica-
da, o sujeito define-se por sua alteridade, por uma pluralidade de identidades, como
é possível ler no poema “Incenso fosse música” em que o “eu” se transmuta em “a
gente”, assinalando também a dessacralização da linguagem poética, mais acessível,
mais próxima ao cotidiano:

isso de querer
ser exatamente aquilo
que a gente é
ainda vai nos levar além
(LEMINSKI, 2002, p. 93).

O sujeito em deslocamento dimensiona suas experiências contraditórias em


relação ao mundo, registrando o seu sentimento de inquietude em busca de uma
identidade e /ou de atribuir sentidos à existência. Ocorre, em outros momentos, de
o sujeito soberano da linguagem tornar-se sujeito a ela, como se pode averiguar, em
Leminski, num processo em que essa subjetividade se oculta e se ausenta, empres-
tando voz ao que é apresentado no poema:

entre os garotos de bicicleta


o primeiro vagalume
de mil novecentos e oitenta e sete
(LEMINSKI, 2002, p. 119).

Hamburger (2007, p.78) preconiza sobre a existência, na modernidade, de


“um eu que se tornou fluido e volátil”, ratificando a questão da identidade descon-
tínua. Essa crise do sujeito relativizado concorre, muita vez, para o projeto de uma
“poesia objetiva”, formulada por uma subjetividade cravada, como dissemos, na al-
teridade. Sintomática dessa perda de estabilização do sujeito é também a opção pelo
poema curto, que, filiado ao prosaico, ao popular, ao humor, buscados no haicai

322
Estudos Literários

japonês, corrobora também o parentesco com Oswald de Andrade. Em Leminski,


tais poemas tendem a valorizar o fragmentário e o aparentemente trivial, a consti-
tuírem formas de captar instantes de um mundo objetivo e exterior, onde o eu-lírico
encontra-se, muita vez, ausente. A elisão do sujeito expressa certa objetividade a
permitir que as coisas possam existir, sem interferência e /ou olhares particulares:

noite sem sono


o cachorro late
um sonho sem dono
(LEMINSKI, 2002, p. 115).

Veja-se que o sujeito, quando sente esboroar sua integridade, assumindo-se


fragmentado, se afugenta na própria linguagem, fazendo dela não mais um espaço
onde, tradicionalmente, se pronuncia a si e/ou se confessa, mas onde se encontra
com o que está “fora”. Quando as palavras e ações do sujeito não traduzem mais com
suficiência o que se passa na alma confrangida, ele vai ao encontro do mundo, dei-
xa-se tomar pela “noite sem sono”, funde-se com as coisas, em um esquema que não
é mais meramente subjetivo nem objetivo, mas uma fusão do “eu” com as coisas,
capaz de transfigurar as distâncias. Assim, revela-se a postura de um sujeito que ob-
serva a si e aos outros, tanta vez, a esgarçar as fronteiras entre o lírico e o narrativo,
como se lê no poema “Round about midnight”:

um vulto suspeito
e o pulo de um susto
à solta no peito
no beco sem saída
caminhos a esmo
o leque de abismos
entre um eco
e seus mesmos
(LEMINSKI, 2000, p. 45).

A perda de uma identidade unívoca e definitiva, mais especificamente, a


perda do “eu”, que caracteriza a crise do sujeito e da própria poesia, compreende
aspecto importante que matiza a poesia moderna e contemporânea. A poesia, ao

323
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

assumir, portanto, a perda da ilusão de um poder superior e sagrado para o ato


poético, vai redesenhando as formas de seu funcionamento no campo literário, em
registros diferentes, que se fixam num cenário de desordem, ou de uma pluralização
de ordens, o que conduz ao fragmentário, rememorando os dizeres de Rosa Maria
Martelo (1999).
No caminho percorrido pela poesia contemporânea, é possível se deparar
com uma variedade de poetas, com uma diversidade de casos a engendrarem uma
poesia múltipla e oscilante entre aderir às tradições e / ou contradizê-las (ou relê
-las). A inclusão de outras vozes confirma a multiplicidade, uma vez que a poesia
tangida pela alteridade sublinha a inevitável ligação com o outro, ainda que mar-
cada por contradições. À luz de Giddens (2002), é sabido que, no contexto da mo-
dernidade, o “eu” tem que ser construído reflexivamente, tarefa realizada em meio
a uma diversidade de opções e possibilidades. No entanto, as múltiplas possibili-
dades, ao invés de fornecerem caminhos fixos e seguros, instauram situações de
dúvida, incerteza, gerando a crise do sujeito.
No tocante ao processo de despersonalização, este não significa que o su-
jeito seja suprimido de todo da linguagem, mas transformado, “deslocando-se o
sujeito referencial para dar voz a um sujeito que tem sua referência no interior do
próprio texto, por meio da estruturação discursiva” (ALVES, 2002, p. 186). Em Le-
minski, corroborando o caráter multifacetado de sua personalidade artística, tanta
vez, ocorre de esse sujeito não se voltar para si e para o próprio texto, mas se nos
apresentar em deslocamento, se edificando sobre uma escrita poética que se (re) faz
como um espaço de troca entre sujeito e mundo. Quando tangida por essa tendên-
cia, a poesia se nos apresenta como uma reabilitação da subjetividade, voltada para
o relato de experiências pessoais e expressão de emoções:

O mar o azul o sábado


Liguei pro céu
Mas dava sempre ocupado
(LEMINSKI, 2002, p.111).

um dia sobre nós também


vai cair o esquecimento

324
Estudos Literários

como a chuva no telhado


e sermos esquecidos
será quase a felicidade
(LEMINSKI, 2000, p. 91).

Do que foi dito, ao longo das nossas discussões sobre o sujeito e suas con-
figurações na poesia contemporânea, deve-se reter que, ao ser subvertida a lógica
cartesiana, temos em mira um sujeito não mais constituído em oposição ao objeto
e em relação com o pensamento, mas, na relação com o outro. A conversão do “eu”
em um “outro”, admitida por Rimbaud, e / ou a dispersão extrema de um “eu” em
vários “outros”, enunciada por Pessoa, corroboram a escrita poética como um lugar
de abertura à pluralidade.
Repisamos que as noções de esgarçamento da unidade, da correspondência,
da sacralização, atribuídas à poesia, adensadas no cenário contemporâneo, trazem
à tona a multiplicidade, a fluidez, a reafirmarem o descentramento do sujeito, a
crise de identidade circunscrita na dúvida entre assumir as referências e afastá-las
para fazer emergir uma dicção própria, uma voz singular. Tendo em vista o quan-
to a questão da identidade subjetiva do texto poético é prenhe de interrogações,
carecendo, pois, ainda de reflexões mais aprofundadas que cumpram respondê-la,
em nossas discussões em torno do eu lírico, salientamos, desse modo, na esteira de
Combe (1999), o fato de esse sujeito se engendrar como matéria textual, uma vez
que está situado em um processo permanente de construção, de modo a sempre ser
renovado pelo poema, fora do qual não se perfaz, sendo nele e por ele erigido.

Referências
ALVES, Ida Maria Santos Ferreira. Diálogos e confrontos na poesia portuguesa pós-60.
Gragoatá. Niterói, RJ, Universidade Federal Fluminense, n. 12, 2002, p. 179-195.
BARBOSA, João Alexandre. As ilusões da modernidade; notas sobre a historicidade da
lírica moderna. São Paulo: Perspectiva, 1986.
BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Entrevista a Benedetto Vecchi. Trad. Carlos Alberto
Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

325
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

BOSI, Alfredo. Poesia-resistência. In: _____. O ser e o tempo da poesia. São Paulo:
Companhia das Letras, 2004.
COMBE, Dominique. La referencia desobrada: el sujeto lírico entre la fición e la
autobiografía. Trad. Angel Abuin Gonzalez. In: ASEGUINOLAZA, F. C. (Org.).
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GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Trad. Plínio Dentzien. Rio de janeiro:
Jorge Zahar Editor, 2002.
HAMBURGER, Michael. Identidades perdidas. In:_____. A verdade da poesia: tensões
na poesia modernista desde Baudelaire. São Paulo: Cosac & Naify, 2007. p. 63-
87.
LEMINSKI, Paulo. Distraídos Venceremos. São Paulo: Brasiliense, 2002.
_______. La vie en close. São Paulo: Brasiliense, 2000.
_______. Caprichos e relaxos. São Paulo: Brasiliense, 1983.
MACIEL, Maria Esther. Poéticas da lucidez: notas sobre os poetas-críticos da
modernidade. In:_____. Vôo transverso: poesia, modernidade e fim do século
XX. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1999.
MARTELO, Rosa Maria. Anos noventa: breve roteiro da novíssima poesia portuguesa.
Via atlântica. São Paulo, n. 3, 1999. p. 224-236.

326
Estudos Literários

Pequena História da
República, de Gracilano
Ramos: Entre o real e o
imaginário
Lilliân Alves Borges1

Considerações iniciais
Em 1939, a revista Diretrizes abre uma chamada para um concurso de lite-
ratura que possuía como tema uma história da República. Esse concurso visava à
produção de obras literárias destinadas ao público infantil. Graciliano Ramos já
havia participado de um concurso literário anterior no ano de 1936 com o conto
“A terra dos meninos pelados”, ganhando o terceiro lugar no concurso. Assim, tam-
bém pensando em participar do concurso da revista Diretrizes, Graciliano Ramos
escreve Pequena História da República. A narrativa é posteriormente compilada no
livro Alexandre e outros heróis em 1962, o qual inclui também os contos A terra dos
meninos pelados e Histórias de Alexandre.
Graciliano Ramos, contudo, destoa do tom proposto pelo concurso e acaba
não participando dele, publicando Pequena História da República somente no ano
de 1962. É, portanto, refletindo a partir dessa narrativa que propomos, com este
trabalho, pensar na forma como Ramos elabora suas narrativas destinadas às crian-
ças, bem como explicitar quais os recursos estéticos utilizados pelo autor para essas
narrativas que se destinam especificamente a um público especial.

1  Doutoranda em Estudos Literários na Universidade Federal de Uberlândia – UFU. Mestre em Estudos


Literários pela Universidade Federal de Uberlândia - UFU. Vice-líder do Grupo de Pesquisas em Espaciali-
dades Artísticas UFU/CNPq e integrante do grupo de estudo Nós do insólito: vertentes da ficção, da teoria e
da crítica - UERJ. Estudos com ênfase no espaço literário, narrativa fantástica, com interesse especial sobre a
obra do escritor Graciliano Ramos.

327
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Pretendemos também mostrar como a crítica literária vem deixando as obras


infantis do autor à margem, afirmando que a mesma destoa do restante de sua pro-
dução literária.

Pequena História da República: Uma narrativa esquecida?


Para começar nossas análises, partimos da citação do posfácio do livro Ale-
xandre e outros heróis, edição do ano de 2011, que foi escrito por Rui Mourão e é
intitulado “Procura do Caminho”:

Avançar além daquele ponto, lhe parecia empreitada quase impossível. Talvez
valesse tentar uma mudança de rota. Recomeçar do zero, pondo de lado o que
fizera até ali. Optando por um campo de experimentações que lhe permitiria
talvez maior descontração, decidiu realizar experiências de literatura para
jovens.

Como nessa fase nem mesmo a narrativa mais longa e mais ambiciosa, “Ale-
xandre”, deve ter-lhe inspirado confiança, a solução que finalmente entreviu
seria a do retorno à linha de pesquisa anterior. (MOURÃO, 2011, p. 204)

A análise feita por Mourão de Alexandre e outros heróis refere-se ao livro


que compila três narrativas infantis de Graciliano Ramos: A terra dos meninos pela-
dos, Histórias de Alexandre e Pequena História da República.
No trecho supracitado, Mourão enfatiza a grandiosidade literária que é a
obra Vidas Secas de Graciliano Ramos, desprezando as suas narrativas infantis, ao
tratá-las como um momento de “descontração” do autor. A caracterização como
“descontração” tem peso bastante pejorativo, é como se as narrativas graciliânica
voltadas ao público infantil não pertencessem ao cânone literário assim como as
outras obras do autor. Assim como Mourão, Osman Lins em 1977 também em pos-
fácio da referida obra, profere crítica semelhante:

As impossíveis Histórias de Alexandre, o impossível relato dos Meninos Pe-


lados e a História – não apenas possível, mas, infelizmente, verdadeira – da
República, escritos no auge das suas forças, nos anos intermédios entre a con-

328
Estudos Literários

clusão da obra romanesca e o início da obra de memorialista, representam


uma espécie de pausa, de recreio, que se concede este escritor severo, sofrido,
tão exigente em relação à forma e tão penetrado do sentido trágico da exis-
tência. O fenômeno não voltará a repetir-se. (LINS, 1977, p.175-176)

Demonstrando essa tentativa de apagamento da literatura infantil de Graci-


liano Ramos, Edmar Monteiro Filho, em sua dissertação denominada O major es-
quecido: Histórias de Alexandre, de Graciliano Ramos (2013), traz a lume uma série
de fatores que fizeram com que a narrativa História de Alexandre não fosse, desde
a sua publicação, considerada positivamente pela crítica. Ressaltamos que mesmo
com todas essas questões, Histórias de Alexandre, é, ainda hoje, o terceiro livro mais
vendido de Graciliano Ramos.
Apesar de a crítica literária não ter se preocupado com a obra Alexandre e
outros heróis, percebemos que Graciliano Ramos, desde o ano de 1920, já tinha uma
proposta estética em mente de como deveria ser uma literatura dirigida a crianças
e jovens, entendemos que o escritor refletia sobre o processo de uma escrita em que
a criança seria o centro, como verificamos em um ensaio publicado pelo autor com
o pseudônimo de J. Calisto:

É triste!

Sofro com o sofrimento delas. E é por isso que detesto o livro infantil. Detes-
to-o cordialmente.

Aquelas coisas maçadoras, pesadas, estopantes, xaroposas, feitas como que


expressamente com o fim de provocar bocejos, revoltam-me. Espanta-me
que escritores componham para a infância pedantices rebuscadas, que as
livrarias se encarregam de fornecer ao público em edições que, à primeira
vista, causam repugnância ao leitor pequenino. (RAMOS, 1977a, p. 66)

A partir do excerto ensaístico de Graciliano Ramos é possível dizer que é a


partir do entendimento da produção literária a qual teve acesso enquanto criança
e posteriormente de uma análise enquanto adulto, escritor e crítico, que Graciliano
Ramos não busca se descontrair – como afirma Mourão – e sim busca produzir uma
literatura em que a criança é o centro de suas atenções estéticas e literárias.

329
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Salientamos que logo no ano de 1921 Monteiro Lobato lançaria a primeira


versão de Reinações de Narizinho, até então, Narizinho arrebitado. De acordo com
Leonardo Arroyo, em seu livro Literatura infantil brasileira (1990):

Monteiro Lobato trazia já com o seu primeiro livro as bases da verdadeira


literatura infantil brasileira: o apelo À Imaginação em harmonia com o com-
plexo ecológico nacional; a movimentação dos diálogos, a utilização ampla
da imaginação, o enredo, a linguagem visual e concreta, a graça na expressão
– toda uma soma de valores temáticos e linguístico que renovava inteiramen-
te o conceito de literatura infantil no Brasil. (ARROYO, 1990, p. 198)

Então, perguntamo-nos como é essa literatura para Graciliano Ramos?


Para responder esta pergunta, primeiramente, enfocaremos as duas primei-
ras narrativas que compõem Alexandre e outros heróis: A terra dos meninos pelados
e Histórias de Alexandre.
Nas duas primeiras narrativas, é possível verificarmos como Graciliano Ra-
mos faz uso da imaginação, do fantástico para atingir o seu público alvo: as crianças.
Tanto em “A terra dos meninos pelados” quanto em “Histórias de Alexandre”,
temos dois personagens-protagonistas que são sujeitos da margem.
Em A terra dos meninos pelados, o menino Raimundo possui um olho preto e
outro azul, além de ser careca. E, devido a isso, seus colegas são rudes com ele, xin-
gam Raimundo, não querem brincar com ele. Portanto, Raimundo busca se livrar
desse espaço hostil, criando na areia em frente de sua casa a terra de Tatipirun. Em
Tatipirun todos os habitantes são crianças, os animais não mordem, carros falam,
voam e, o melhor, todos são iguais a Raimundo.
Nesse espaço utópico, Raimundo cria um mundo fantástico para tentar lidar
com a sua realidade:

Raimundo levantou-se, entrou em casa, atravessou o quintal e ganhou o mor-


ro. Aí começaram a surgir as coisas estranhas que há na terra de Tatipirun,
coisas que ele tinha adivinhado, mas nunca tinha visto. Sentiu uma grande
surpresa ao notar que Tatipirun ficava ali perto de casa. Foi andando na ladei-
ra, mas não precisava subir: enquanto caminhava, o monte ia baixando, bai-

330
Estudos Literários

xando, aplanava-se como uma folha de papel. E o caminho, cheio de curvas,


estirava-se como uma linha. (RAMOS, 1977b, p. 100)

Já, em Histórias de Alexandre, o personagem-protagonista Alexandre é um


morador de uma pequena casa no sertão nordestino, sem dinheiro, fama, além de
ter uma deficiência física: seu olho esquerdo é torto. Contudo, Alexandre, tentando
também suprir as faltas de sua realidade prosaica, inventa, ou melhor, reinventa o
seu passado, o qual adquiri contornos fantasiosos, umas vez que, até mesmo seu
olho torto ganha “poderes mágicos”:

Quando me vi no caco de vidro é que percebi o negócio. Estava com o foci-


nho em miséria: arranhado, lanhado, cortado, e o pior é que o olho esquerdo
tinha levado sumiço. A princípio não abarquei o tamanho do desastre, por-
que só avistava uma banda do rosto. Mas virando o espelho, via o outro lado,
enquanto o primeiro se sumia. Tinha perdido o olho esquerdo, e era por isso
que enxergava as coisas incompletas.
[...]
Se encontrasse meu olho, talvez ele pegasse de novo e tapasse aquele buraco
vermelho que eu tinha no rosto. A vista não ia voltar, certamente, mas pelo
menos eu arrumaria boa figura. (RAMOS, 2016, p.22-23)

Nesse primeiro excerto, podemos observar como a personagem Alexandre


reinventa o modo como seu olho esquerdo ficou torto, já que na história que ele
recria, seu olho esquerdo ficara torto enquanto ele tentava montar uma onça brava
no meio da noite.
Alexandre nos mostra o seu medo de não voltar a enxergar mais com o olho
esquerdo, porém isso não ocorre. Alexandre recupera seu olho, coloca-o novamen-
te em seu rosto e, se antes ele enxergava bem, agora ele vê “as coisas” de uma forma
bem melhor e diferente. Alexandre percebe seu mundo. Nesse momento, ele com-
preende as injustiças sociais, e, assim, na tentativa, mesmo que utópica, de superá
-la, Alexandre vislumbra que, com o seu olho esquerdo torto, ele seja capaz recriar
um passado em que ele era um sujeito poderoso e cheio de dinheiro.
Ao reinventar o passado, Alexandre cria elementos fantásticos, é capaz de
trazer o elemento cômico para a sua vida, como quando sua esposa Cesária de-

331
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

monstrou o desejo de ter um papagaio e Alexandre compra um papagaio não ape-


nas falador, mas um papagaio que pensa igual gente, que tem horror de morar no
interior do Nordeste. Vejamos a seguir uma passagem da narrativa que remete a
esse momento:

“- Está aqui, Cesária, recomendei. Trate bem este vivente, como se ele fosse
cristão. Você nem avalia o que esta coisinha tem no interior”. Cesária experi-
mentou: - “Papagaio real. Vem de Portugal. Currupaco, papaco. Dê cá um bei-
jo. Como vai meu louro?” – “Mal, muito obrigado, respondeu o animal furioso.
Isso não é terra de gente”. Cesária se ofendeu, voltou às boas, viu que o bicho
não queria aprender, já sabia tudo. Sabia, meus amigos, sabia tanto como um
tabelião, mas ali passava muitas horas de língua emperrada. No fim de algumas
semanas nem ligávamos importância a ele. – “Currupaco, papaco. A mulher do
macaco”, dizia Cesária querendo animá-lo. E o bicho respondia sério: - “Deixe
essas tolices, dona. Não sou nenhum trouxa”. (RAMOS, 2016, p. 72)

Ao trazemos essas duas narrativas, possuímos o intuito de demarcar que, em


ambas, Graciliano Ramos usa o fantástico, ou seja, animais falantes, objetos mági-
cos e até mesmo um corpo mágico, o corpo mágico de Alexandre para enveredar e,
de certa forma, desvendar o universo infantil. Relevante apontarmos que o caráter
imaginoso que aqui designamos refere-se ao proposto por Jesualdo Sosa em seu
livro A literatura infantil (1978). Para Sosa, há o caráter imaginoso quando há mais
imaginação do que vida real.
Neste momento os possíveis leitores deste texto poderiam questionar que
Graciliano Ramos, ao dar relevo ao caráter imaginoso em seus textos, não traria ne-
les nenhuma forma de conhecimento, de saber. Mas observamos que isso não ocor-
re. Suas narrativas são repletas de saber, porém, temos que pensar a difusão desse
saber a partir do que preconiza Roland Barthes em seu texto Aula. Neste ensaio,
Barthes afirma que“a literatura faz girar os saberes, não fixa, não fetichiza nenhum
deles; ela lhes dá um lugar indireto, e esse indireto é precioso” (BARTHES, 2013, p.
19). Assim, Graciliano Ramos não dita regras em suas narrativas, foge de uma pos-
tura dogmática; ele permite que a criança, seu potencial leitor, gere seus próprios
sentidos durante a após a leitura de seu texto.

332
Estudos Literários

Essa postura de Graciliano Ramos descortina a sua preocupação ao escrever


literatura. Sua escrita é potencialmente estética, com ênfase na literariedade de seu
texto e não com a possibilidade utilitária que ele poderia vir a servir. Além disso,
notamos um diálogo contínuo com os seus possíveis leitores, sejam eles de qualquer
faixa etária, ou seja, o autor não impõe restrições de idade e nem de público às suas
narrativas. Graciliano Ramos escreve para crianças, jovens e adultos.
Maria Teresa Andruetto em seu livro Por uma literatura sem adjetivos (2012)
esclarece o seguinte: “E já se sabe que correto não é um adjetivo que cai bem na
literatura, pois a literatura é uma arte na qual a linguagem resiste e manifesta sua
vontade de desvio da norma” (ANDRUETTO, 2012, p. 60). A literatura, então, é a
possibilidade de trapacearmos a língua e, quando a trapaceamos, buscamos não
adjetivar um texto e muito menos restringir sua potencialidade de público e de pro-
dução de sentido. Desse modo, Graciliano Ramos com sua produção literária trapa-
ceia a língua, envereda pelo caminho oposto ao da adjetivação de sua literatura, de
possíveis categorizações, o que nos permite vislumbrar uma literatura em si e por si
mesma, isto é, não se trata de especificar se é literatura adulta, juvenil ou literatura
infantil e sim de propiciar aos seus leitores narrativas potencialmente estéticas.
Após analisarmos sucintamente essas duas primeiras narrativas, vamos ao
mote de nosso texto, a narrativa Pequena História da República. Nessa história, Ra-
mos faz uso do caráter imaginoso de modo diferente do que fizera em Histórias de
Alexandre e em A terra dos meninos pelados.
Mesmo não possuindo tão marcadamente esse caráter imaginoso, Gracilia-
no Ramos atinge o público infantil, pois não constrói a sua Pequena História da
República como uma história maçante, nem pedante. Graciliano Ramos descontrói
o livro de História tradicional, seus personagens principais, suas ações, dando a
cada um dos momentos históricos escolhidos pelo autor, o seu olhar graciliânico2.
Seguem dois segmentos do primeiro verbete, “As coisas”:

2  Esse olhar graciliânico é o olhar enviesado, oblíquo, um pouco à maneira do que preconiza Ricardo Piglia,
em seu ensaio “Uma proposta para o novo milênio” (2015): “E este olhar enviesado nos daria uma percepção,
talvez, diferente, específica. Há uma certa vantagem, às vezes, em não estar no centro. Olhar as coisas desde
um lugar levemente marginal” (PIGLICA, 2015.p.1).

333
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Em 1889 o Brasil se diferenciava muito do que é hoje: não possuíamos Ci-


nelândia nem arranha-céus; os bondes eram puxados por burros e ninguém
rodava em automóvel; o rádio não anunciava o encontro do Flamengo com o
Vasco, porque nos faltavam rádio, Vasco e Flamengo. (RAMOS, 1977, p. 126)

As pessoas não voavam, pelo menos no sentido exato do verbo. Figurada-


mente, sujeitos sabidos, como em todas as épocas e em todos os lugares, vo-
avam em cima dos bens dos outros, é claro; mas positivamente, a mil metros
de altura, o vôo era impossível, que Santos Dumont, um mineiro terrível, não
tinha fabricado ainda o primeiro aeroplano, avô dos que por aí zumbem no
ar. (RAMOS, 1977b, p. 126)

Graciliano Ramos insere as crianças e os jovens no momento histórico da


instauração da República, apresenta fatos, cidades, pessoas importantes para o de-
senvolvimento do país, como o de não existirem naquela época arranha-céus, nem
os times de futebol Vasco e Flamengo e também a constatação de que Santos Du-
mont ainda não tinha inventado o avião. Todas essas informações são dadas de
forma indireta, fazendo uso de uma ironia por meio de uma linguagem literária.
Não se tem um texto servindo de pretexto didático.
Ao tratarmos da questão do funcionamento do texto como recurso didático,
remetemo-nos ao livro O texto sedutor na literatura infantil (1986), de Edmir Perrotti.
Nele, o autor propõe a diferenciação entre o discurso estético e o discurso utilitário:

Se o “discurso utilitário” obedece a razões externar ao próprio discurso, va-


le dizer, se se organiza para agir sobre o leitor, o “discurso estético” não “se
orienta para além de si mesmo”, conforme observa Stierle, mas se estrutura
segundo critérios decorrentes de sua própria dinâmica interna, resultando daí
conceitos diferenciadores como “autonomia”, “auto-regulação”, “coerência in-
terna”, “organicidade”, todos eles indicando, em última instância, a preocupa-
ção em centrar o eixo do discurso que no “discurso utilitário” está fixado so-
bre o destinatário – no campo do próprio discurso. (PERROTTI, 1986, p. 15)

Arquitetanto o ponto de vista até este momento apresentado no texto, po-


demos afirmar que Graciliano Ramos “detestava” o livro direcionado às crianças

334
Estudos Literários

que ficava limitado ao discurso utilitário. Compreendendo a tessitura dos textos


de Ramos destinados ao público infantil, é possível dizer que ele considera o dis-
curso utilitário maçante e incompreensível por parte da criança, pois desconsidera
o mundo infantil e a própria criança durante o processo de leitura e suas possíveis
construções de sentido.
Outro ponto importante da narrativa encontra-se no verbete “Os homens”:

Os homens maduros de hoje eram meninos. O Sr. Getúlio Vargas, no Sul,


montava em cabos de vassoura; o Sr. Ministro da Educação vivia longe da
escola, porque ainda não existia. Nesse tempo o chefe de governo, o Sr. D.
Pedro II, Imperador, dispunha de longas barbas brancas respeitáveis e nas
horas de ócio estudava hebraico, língua difícil, inútil à administração e à po-
lítica. Todos os homens notáveis e idosos eram barbudos, conforme se vê em
qualquer história do Brasil de perguntas e respostas. (RAMOS, 1977b, p. 127)

Na passagem, conseguimos verificar como Graciliano Ramos esgarça os li-


mites entre o que está prescrito no livro didático de história e a realidade da criança,
tanto que retrata os “grandes” homens desse momento histórico do Brasil com iro-
nia, mostrando que eles também foram crianças, que brincavam de forma lúdica e,
mais do que isso, Ramos faz uma crítica efetiva de como as crianças são ensinadas
nas escolas: perguntas e respostas. Ademais, podemos vislumbrar que Graciliano
Ramos sugere que os adultos de hoje se esqueceram de que foram criança um dia e,
com isso, podemos suscitar que eles também possam ter esquecido como é o uni-
verso infantil e consequentemente não sabem como escrever para crianças.
Na sua pequena história da República, Graciliano Ramos joga luz na “reali-
dade” da história do Brasil, uma história que não deixa a criança à margem, e sim
no centro da construção de sentido.
Ao analisarmos conjuntamente essas três narrativas, entendemos que Rai-
mundo com um olho azul e outro preto e Alexandre com seu olho esquerdo torto
representam o olhar crítico, enviesado, que Graciliano Ramos utiliza para mostrar a
realidade. Pelos caminhos tortuosos da fantasia, num registro irônico, surge em pa-
radoxo um mundo mais concreto e crítico. É com os olhos de Raimundo e Alexan-
dre que Graciliano cria a Pequena História da República e desconstrói o esquema de
como deve ser um livro de História para crianças, pois seu olhar subjetivo, marcado

335
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

pelas experiências de encarceramento físico e intelectual traduz a visão daqueles


que sempre estiveram à margem da sociedade.
Nesse instante, podemos nos remeter à leitura que Tatiana Salem Levy rea-
liza de Blanchot, em seu livro A experiência de fora: Blanchot, Foucault e Deleuze
(2011), cuja perspectiva nos demonstra que o mundo imaginário não é um lugar à
parte do mundo real. Os dois lugares – real e imaginário – constituem o mesmo es-
paço, logo a literatura fala do mundo real, mas sempre a partir de outra perspectiva.
Nesse mesmo sentido analítico, trazemos Umberto Eco em Seis passeios pelo bosque
da ficção (1994): “[...] Em outras palavras, precisamos adotar o mundo real como
pano de fundo. Isso significa que os mundos ficcionais são parasitas do mundo real”
(ECO, 1994, p. 89).
Dessa forma, entendemos que Graciliano Ramos, utilizando a imaginação,
da fantasia, consegue compreender a potencialidade da literatura como elemen-
to transgressor do discurso e também da realidade, ou seja, a literatura que não é
dogmática, fechada em pressupostos externos, normativa, em outras palavras, uma
literatura que apresenta um discurso estético é capaz, possivelmente, de promover
a reflexão por parte de seus leitores. É um convite a construir “junto com” o autor e
não à margem dele.

Considerações finais
Ao trazermos à tona a narrativa Pequena História da República de Gracilia-
no Ramos, pretendemos demonstrar que há um diálogo contínuo e profícuo entre
a construção de seus personagens e de suas narrativas. Assim, discordamos dos
críticos que desprezaram a obra infantil de Graciliano Ramos, como se Graciliano
Ramos não houvesse refletido sobre as palavras que estava escrevendo.
Desse modo, fizemos um pequeno percurso para entender como Graciliano
Ramos elabora suas narrativas destinadas às crianças, quais os recursos estéticos
utilizados pelo autor, como o uso do caráter imaginoso, a sua preocupação em dar
voz às crianças, destoando, portanto, de uma literatura utilitária, maçante e que des-
considera toda a capacidade de compreensão e metaforização por parte da criança.
Compreendemos, portanto, que não há dispersão ou irreflexão na trajetó-
ria artística de Graciliano Ramos, é possível observar um escritor crítico, irônico,

336
Estudos Literários

que busca trazer a criança para o centro de suas preocupações estéticas, literárias,
mas principalmente, reais; logo, compreendemos que há uma tentativa por parte de
Graciliano Ramos de demonstrar para adultos, jovens e crianças que o mundo não
é feito de uma única verdade.

Referências
ANDRUETTO, María Teresa. Por uma literatura sem adjetivos. Tradução Carmem
Cacciacarro. São Paulo: Editora Pulo do Gato, 2012.
ARROYO, Leonardo. Literatura infantil brasileira. São Paulo: Melhoramentos, 1990.
BARTHES, Roland. Aula: aula inaugural da cadeira de semiologia literária do Colégio
de França, pronunciada dia 7 de janeiro de 1977. Tradução e posfácio de Leyla
Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 2013.
ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. Tradução Hildegard Feist. São
Paulo: Companhia das Letras, 1994.
LEVY, Tatiana Salem. A experiência de fora: Blanchot, Foucault e Deleuze. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
LINS, Osman. O mundo recusado, o mundo aceito e o mundo enfrentado. In: Alexandre
e outros heróis. Rio de Janeiro: Record, 1977.
MONTEIRO FILHO, Edmar. O major esquecido: Histórias de Alexandre, de Graciliano
Ramos. Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto
de Estudos da Linguagem. Campinas, SP : [s.n.], 2013.
MOURÃO, Rui. Procura de Caminho. In: Alexandre e outros heróis. Rio de Janeiro:
Record, 2014.
PERROTTI, Edmir. O texto sedutor na literatura infantil. São Paulo: Ícone,1986.
PIGLIA, Ricardo. Uma proposta para o novo milênio. Tradução de Marcos Visnadi.
Disponível em http://chaodafeira.com/wp-content/upoloads/2016/06/cad02.
pdf. Acesso em: 09 set. 2018.
RAMOS, Graciliano. Linhas Tortas. 5ª ed. Rio de Janeiro, São Paulo: Record, 1977a.
_______, Graciliano. Alexandre e outros heróis. Rio de Janeiro: Record, 1977b.
_______, Graciliano. Histórias de Alexandre. Rio de Janeiro: Record, 2016.
SOSA, Jesualdo. A literatura infantil. São Paulo: Editora Cultrix, 1978.

337
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

A autobiografia e literatura
– Desdobramentos de uma
aproximação Luana Marques Fidencio1

Introdução
Há um pequeno conto de Carlos Drummond de Andrade que ilustra, em
tom humorístico e ácido, o curioso movimento de assimilação que um texto é capaz
de exercer sobre a vida do seu autor. Talvez não se trate exatamente de um movi-
mento assimilatório, mas de sobreposição que os textos de memória podem exercer
sobre a imagem de um sujeito.
Nesse breve conto chamado A idade do espelho, Drummond apresenta um
jovem que aos “vinte anos escreveu suas memórias.” (2012, p. 27). Diz-se de tal jo-
vem que só depois de escrever suas memórias “é que começou a viver.” (2012, p. 27).
A inversão dos passos que conduzem um sujeito à escrita de uma dessas narrativas
autobiográficas enriquece o paradoxo, tornando a história do conto inverossímil e
irônica. A justificativa para o ordenamento inusual da vida do jovem seria de que
ao escrever suas memórias: “logo de saída,” faria com que elas fossem “mais fiéis e
[e que só assim elas teriam] a graça das coisas verdes.” (2012, p. 27).
No trecho logo à frente, se evidencia a cisão entre a ordem da vida e a da es-
crita. A vida flui sem respeitar a estática gravidade das palavras escritas. O narrador
do conto é taxativo sobre a personagem: “Querendo ser honesto, pensou em retifi-
car as memórias à proporção que a vida as contrariava. Mas isto seria falsificação do
que honestamente pretendera (ou imaginara) devesse ser a sua vida. Ele não tinha

1  Mestre em Letras (Universidade Federal de Uberlândia – PPGEL / UFU), doutoranda em Estudos Literá-
rios (UFU) e bolsista CAPES. Este trabalho decorre da pesquisa em desenvolvimento no curso de Doutorado
em Estudos Literários (UFU), [email protected]

338
Estudos Literários

fantasiado coisa alguma.” (ANDRADE, 2012, p. 27). E o narrador arremata: “Pusera


no papel o que lhe parecia próprio de acontecer. Se não tinha acontecido, era certa-
mente traição da vida, não dele.” (2012, p. 27).
O interessante para o presente texto nesse conto é que, antes de escamotear
as graves distâncias que se abrem entre narrativa e vida, ainda nos casos das narrati-
vas de memória ou autobiográficas, a personagem exemplifica talvez o único cami-
nho para o sucesso de quem se coloca numa situação tão paradoxal. Nesse sentido,
a lição breve do escritor mineiro é que unicamente um sujeito capaz de conciliar as
contraditórias relações entre vida vivida e vida escrita seria bem sucedido, de modo
a abraçar, honesta e/ou cinicamente, essas contradições inerentes ao movimento de
viver e escrever a própria vida.
Esse é o caminho que se apresenta no conto, como a grande descoberta do
jovem autobiógrafo: “Em paz com a consciência, ignorou a versão do real, oposta
ao real prefigurado. Seu livro foi adotado nos colégios, e todos reconheceram que
aquele era o único livro de memórias totalmente verdadeiro. Os espelhos não men-
tem.” (2012, p. 27). Ou, como se poderia depreender daí: a síntese da autobiografia
exitosa é a ação de narrar ignorando solene ou cinicamente o real. Essa crença fir-
mada em si de modo tão inabalável, que nem a verdade dos fatos consegue demo-
ver, é a marca que conforma o gênero autobiografia senão desde seu surgimento,
desde que ela foi assim denominada na Europa do século XVIII. E foi essa crença
que moveu o intento de Jean-Jacques Rousseau de legar à posteridade a sinceridade
inaugural do seu projeto autobiográfico Confissões, finalizado em 1770.
Segundo Elizabeth Duque-Estrada, seriam necessários mais uns dois séculos
para que este estatuto de verdade da autobiografia fosse finalmente posto em xe-
que2. E se o gênero autobiografia não desfrutou desde sua consolidação do prestígio
que o cânone devota ao romance, por exemplo, parece que desde o século XX a
delicada balança do prestígio começou finalmente a pender para o lado da autobio-
grafia e dos demais “gêneros menores”. Contudo, se paraliteratura era a forma ge-

2  “Malgrado o seu lugar sempre marginal na tradição da grande literatura, a autobiografia nunca deixou
de ser uma instituição solidamente estabelecida sobre concepções, cuja validade seguiu imperturbada por
um período de mais de 200 anos, mas que a partir de um determinado momento perdeu a sua legitimidade,
transformando-se numa escrita bastarda, sem álibi, desacreditada, e, mais do que isto, impossível” (DUQUE-
-ESTRADA, 2009, p. 21).

339
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

nérica de designar esses gêneros limítrofes que não compartilhavam nem do status
nem das inovações e experimentações que marcam o romance moderno, passaria
a ser também, sobretudo desde a década de 1970 na Europa, o espaço de escrita a
ensejar produções narrativas que iam ao encontro do gosto do público, de modo a
promoverem estrondosos sucessos editoriais em todo mundo.
O fenômeno das escritas (auto)biográficas contudo não se apresenta apenas
de modo a atender ao gosto massivo expresso pelos leitores contemporâneos, ele
vai além e se imbrica à forma narrativa ficcional que desfruta do maior prestígio
entre os gêneros literários, o romance, ensejando uma forma narrativa a qual se
atribui certa inediticidade na história da literatura desde a modernidade. Especifi-
camente nessa literatura do século XX cujo mérito e maldição é exemplificar as con-
sequências das reverberações causadas pelo aceleramento dos processos de cisão
homem-mundo desengatilhados pela modernidade. O artista, em sentido amplo, e
o escritor, em sentido estrito, refletem e reflexionam sobre os efeitos dessa fragmen-
tação dos sujeitos e das identidades em suas obras. Não por acaso, no século XX se
assisti ao surgimento de todas as vanguardas artísticas e à consolidação da cultura
de massas no Ocidente. Um componente interessante desde então se manifesta com
maior amplitude e diversidade na literatura: a presença da primeira pessoa dos au-
tores inscrita nas suas produções artísticas, não com jogos cifrados, não com meios
termos, não com denegações, mas como premissa e promessa para a constituição
das ficções.
Nesse sentido, é interessante recuperar o fato de que o esvaziamento progres-
sivo do prestígio intelectual do gênero autobiográfico se deu assim como o aumento
do seu prestígio popular, enquanto fenômeno editorial da cultura de massas; e que
isso significou também um lento processo de dilapidação da factibilidade autorre-
ferente, da essência autobiográfica.
Por outro lado, ou em paralelo a este fenômeno, o espaço nobre do romance
viu-se, desde os últimos 50 anos, mais e mais tomado pelo massivo gesto praticado
pelos autores de ficção de anunciar a estrepitosa novidade da narrativa de suas vidas.
Eis que, no estado atual das coisas, a literatura contemporânea parece presa ao fascí-
nio que o imbricamento proposital entre vida e obra proporciona sobre os leitores.

340
Estudos Literários

Teorias da autobiografia
Acaso a quem nunca se dedicou à autobiografia pareça que, no passado, sua
definição fora tão evidente quanto um verbete de dicionário. Todavia, esse nunca
foi o caso dessa forma narrativa, ainda que ela tenha desfrutado de um estatuto
inquestionável quando à sua verdade intrínseca durante muito tempo. No presen-
te, no entanto, a autobiografia não conta mais com a crença na transparência de
suas intenções e nem com a evidência dos limites postos entre ela e a ficção. Em O
coração desvelado, quarto volume de A experiência burguesa – Da rainha vitória a
Freud (1999), Peter Gay alertava sobre o fato de que a autobiografia em si já estava
carregada de suas contradições intrínsecas e com as quais ela operou desde sempre:

Uma autobiografia é um ato complexo de linguagem, muitas vezes um triunfo


sobre a ansiedade, adulando, desculpando vangloriando-se, tudo para narrar
uma história pessoal consistente. Mas, ao lado dos outros fatores que levam à
distorção, a simples passagem do tempo com freqüência impingia ao autobi-
ógrafo uma persona enrijecida em máscara. Se Goethe tivesse decidido retra-
tar sua juventude não aos sessenta anos mas aos quarenta, provavelmente se
teria retratado com mais calor, escrevendo livre da armadura do monumento
cultural em que estava se transformando.

Assim, a dupla visão do autobiógrafo pode ser uma armadilha para a credu-
lidade ou uma oportunidade para o observador. Chauteaubriand revisou rei-
teradamente suas Mémoires, omitindo ou embelezando episódios do passado
em função de um auto-retrato idealizado, para mostrar-se mais ético, mais
generoso e mais grandioso do que sua personalidade e a história de sua vida
tornam possível. A sua verdade emergia da necessidade que sentia de mentir.
Já Fontane adotou candidamente uma perspectiva destinada a resolver para
si mesmo certos assuntos inconclusos. Outras pessoas poderiam ter uma vi-
são distante de seu pai, mas Fontane descobriu, e transmitiu aos leitores, a
sua verdade. E isso era o mais importante nas autobiografias, em uma época
que buscava a vida interior, penetrando no núcleo secreto da personagem,
bem mais importante do que o registro preciso e verificável de eventos, em
uma seqüência clara. No ensaio que escreveu sobre o tema, Sir. Leslie Ste-
phen falou pela sua época ao anunciar, com toda confiança: “Ninguém jamais

341
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

escreveu uma autobiografia enfadonha”. Ele tinha razão, porque a verdade


autobiográfica, embora nem sempre óbvia, está sempre presente, a despeito
de toda retórica indiscreta ou insincera --- é um “eu” que se dirige a outros
“eus”. (GAY, 1999, p. 166-167).

Elizabeth M. Duque-Estrada, já mencionada anteriormente, apresenta em


Devires autobiográficos (2009) um panorama bastante abrangente das possibilidades
teóricas para a abordagem da autobiografia em suas principais vertentes. O trabalho
dessa pesquisadora evidencia a velocidade e a diversidade de propostas teóricas que
se apresentam para tratar da autobiografia. Ela também apresenta a multiplicidade
de olhares que essa questão tem suscitado, seja aqui no Brasil, seja no Ocidente de
modo em geral. Afirma que nesses territórios predomina uma verdadeira “turbu-
lência teórica” (DUQUE-ESTRADA, 2009), resultado das divergências, bem como
da profusão, ao limite do paroxismo, das proposições sobre a questão.
Duque-Estrada sintetiza a impossibilidade constitutiva da autobiografia em
poucas linhas, na medida em que esse gênero, por definição, se afirma como uma
promessa que não se pode cumprir, isto é, alardeia-se como na narrativa da verdade
de uma vida, a partir de memórias do observador/testemunha privilegiado frente
aos eventos relevantes que ocorreram nesta existência, ou seja, o próprio sujeito
autoimplicado nessas memórias.
A teoria da autobiografia apresenta autores e teorias principais que devem
ser consideradas antes de qualquer abordagem.Ainda segundo Duque-Estrada, ao
tratar das bases para o entendimento da autorreferência na atualidade, deve-se ter
em vista que:

O esgotamento da noção clássica de subjetividade, um dos fundamentos mais


caros à escrita autobiográfica, deixou atrás de si uma espécie de vácuo teórico
que deu lugar a uma perplexidade perturbada sempre a convocar algum ti-
po de reação, pois se a autobiografia não mais pode fundamentar-se naquilo
que sempre a sustentou, torna-se imperioso estabelecer outros parâmetros
e critérios, para compreendê-la segundo as novas exigências, o que se per-
cebe na proliferação da confusa rede de proposições teóricas que se cruzam
e se chocam no espaço aberto pela crítica contemporânea da subjetividade,

342
Estudos Literários

que buscam, de um modo ou de outro, explicar, confirmar ou mesmo negar


a sua impossibilidade. De fato, a produção em série de novas teorias sobre
a autobiografia testemunha a angústia diante da impossibilidade virtual de
estabelecer critérios relativamente estáveis que deem conta dos seus aspectos
formais. Mais do que isto, observa-se que a igualmente aflita multiplicação de
formulações teóricas nascidas da crítica a estas teorias – que vêm formando a
sua própria autografia, uma história da teoria sobre a autobiografia – somente
amplia este quadro de turbulência teórica. (DUQUE-ESTRADA, 2009, p. 46).

Por definição, a matéria da vida está consideravelmente além das possibi-


lidades da escrita, seja ela de que ordem for. Ao contrário do que a retórica auto-
biográfica clássica alardeava desde as famosas Confissões, de Agostinho, escritas no
século IV, chegando às Confissões de Jean-Jacques Rousseau, no século XVIII, a
vida humana não conta com as figuras de linguagem ou com os recursos dos quais
a escrita está habituada a se utilizar. Sobre as Confissões de Rousseau, Jacy Alves de
Seixas, em Linguagens da perplexidade, afirma:

No século XVIII, Rousseau retoma e relança a problemática das posturas que


supõem, na configuração moderna e contemporânea, sempre, múltiplas im-
posturas – o eu e suas máscaras. Ao fazê-lo, sua linguagem parece hesitar
– ora a afirmação, romântica, da interioridade como lugar do autêntico e do
vínculo com a natureza e integridade perdidas em contraposição às exigên-
cias de artifício do espaço público, lugar das aparências, das máscaras e da
“falsidade” [...]; ora a valorização do espaço público e seus artifícios indis-
pensáveis à realização da democracia e das liberdades do indivíduo-cidadão
[...]. Rousseau enuncia, assim, a própria hesitação como condição institutiva
do indivíduo-camaleão moderno, às voltas com espaços de existência múlti-
plos que se entrecruzam e o desnorteiam, fragmentam e, ao mesmo tempo,
se apresentariam como condição de sua liberdade e autonomia. Imagina um
sujeito fragmentado (no interior de suas múltiplas facetas) ao afirmar, com
acento crítico, que se tornou necessário “se mostrar diferente daquilo que se
era efetivamente. Ser e parecer tornam-se duas coisas completamente dife-
rentes”. (SEIXAS, 2012, p. 284).

343
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Essa hesitação inerente à constituição do sujeito moderno e às suas formas


de constituir narrativas é o subtexto de toda narrativa autobiográfica. Aliás, cabe
novamente a ressalva, tanto o sujeito moderno quanto às narrativas autobiográfi-
cas são polos que se retroabastacem, na medida em que a identidade dos sujeitos
constitui-se também já a partir das formas narrativas estabelecidas, em relação com
os limites expressivos dessas formas de narrar ao mundo e de narrar a própria vi-
da, de se narrar a si mesmo. De modo que a autobiografia, em suas possibilidades,
estaria ainda muito distante de poder materializar uma verdade existencial referen-
cialmente comprovada.
A autobiografia não é capaz de cumprir tal promessa, não pode arcar efetiva-
mente com sua parte prevista no pacto que, segundo Phillippe Lejeune, ela mesma
estabelece com o leitor. Talvez, o teórico da autobiografia, como Lejeune ficou co-
nhecido, tenha proposto mesmo uma definição muito conservadora de autobiogra-
fia: “narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz da sua própria exis-
tência, quando focaliza especialmente sua vida individual, sobretudo a história de
sua personalidade.” (LEJEUNE, 2008, p.08). Ainda assim, quando se trata de teoria
da autobiografia, Lejeune é o detentor de uma das maiores famas, devido à difusão
alcançada pela sua proposição do pacto autobiográfico e pela sua trajetória de mais
de 30 anos dedicados à defesa da autobiografia.
Se na década de 1970 ele propôs o pacto autobiográfico, ou melhor, “consta-
tou a sua existência”3, ele passou as décadas posteriores trabalhando nas tentativas
de suprir suas insuficiências. O teórico ainda atualizou várias vezes as delimitações
do que seria a autobiografia, sempre de modo a considerá-la numa perspectiva mais
abrangente. No mesmo sentido, considera-se aqui importante abordar tais ques-
tões sempre de modo a tentar considerá-las em perspectiva mais ampla e maleável,
tendo em vista as dificuldades teóricas com que inevitavelmente se depara quem
aborda as relações vida e escrita, no interior da produção literária.
Afinal, quando alguém se debruça sobre a questão das narrativas autobiográ-
ficas, geralmente se depara com inúmeras formas de narrativas que se desdobram
para além nas proposições tradicionais do gênero autobiografia e não param de se

3  Lejeune considera que “não [teve] de inventar o pacto autobiográfico, uma vez que ele já existia, só [pre-
cisou] colecioná-lo, batizá-lo e analisá-lo.” (2008, p. 72).

344
Estudos Literários

reconfigurar e aglutinar novas formas, sejam narrativas fílmicas, composições em


verso, pinturas, representações cênicas e performances, documentários, animações,
sejam os web diários e formas similares de narrativas autorreferentes que se consti-
tuem nas novas mídias.
Com a brevidade que caracterizava a forma de definição para a autobiografia
com que operava Phillippe Lejeune4, acredita-se possível tentar definir como ficção
autorreferente ou forma narrativa autorreferente as diversas narrativas de ficção nas
quais estão imbricadas, às vezes até o paroxismo, tanto os recursos narrativos das
autobiografias quanto os recursos narrativos do romance contemporâneo. Não se
ignora aqui a pré-existência desse movimento em direção à autorreferência nas fic-
ções das mais variadas épocas e períodos da literatura desde sua constituição.
Todavia, o que parece se constituir enquanto fenômeno contemporâneo na
literatura, como por exemplo na literatura latino-americana, é justamente a massifi-
cação deste fenômeno geralmente denominado com uma profusão de nomes cujos
mais famosos oscilam entre a presença da autobiografia na ficção e a constituição
duma escrita de autoficção. A autoficção, bem mais ainda que a própria autobio-
grafia, viceja em meio a uma grande turbulência terminológica e disputas teóricas
ainda em aberto.
Interessante refletir que devido a esse tipo de obra, de constituição ambiva-
lente, o eu autoimplicado em sua própria ficção parece encarnar e materializar ao
mesmo tempo um mero reflexo e também uma forma de reação à crise represen-
tacional que afeta a literatura, as demais artes, a história e todas as disciplinas das
humanidades. Frente a tais produções narrativas, o leitor, mesmo quando se trata
do leitor especializado, não é capaz de optar por um polo ou outro, não consegue
deslindar claramente as fronteiras entre verdade autobiográfica e criação literária.

Autobiografia e Literatura
Em se tratando das relações entre autobiografia e literatura, interessante que
este tipo de imbricamento, em medidas variadas, ocorre praticamente desde sempre,

4  “Narrativa em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza sua história indi-
vidual, em particular a história de sua personalidade”. (LEJEUNE, 2008, p.14).

345
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

isso se se situar o sempre onde mais familiarmente se situa o marco de uma literatura
moderna Ocidental, ou seja, no século XVIII. Particularmente na literatura brasilei-
ra, essas relações se deram desde sua constituição, ainda que date de décadas mais re-
centes o interesse mais massivo pela análise das relações estabelecidas entre literatura
e autobiografia. Fábio Figueiredo Camargo, em sua tese A transfiguração narrativa
em João Gilberto Noll (2007), retoma Antonio Candido para lembrar que a autobio-
grafia, em sua relação com a literatura brasileira, possui uma tradição constituída:

Antonio Candido, em “Poesia e ficção na autobiografia” (1989), já apontava


para uma corrente autobiográfica em poetas como Carlos Drummond de An-
drade e Murilo Mendes, e em um prosador como Pedro Nava, reportando-se,
inclusive, a alguns de seus antecessores brasileiros. Autores modernistas, os
escritores escolhidos pelo crítico em seu artigo seguem a tendência moderna
de separar vida e arte no sentido de que quanto menos realista a representa-
ção for, mais perto de uma base essencial da arte eles estariam. Dessa forma,
a autobiografia, direta, sem artifícios literários, deveria ser negada ou cons-
truída de modo que não se parecesse tanto o retratado com o pintor/poeta/
escritor. (CAMARGO, 2007, p. 30).

Ainda Camargo empreende em sua tese um dos percursos que vieram a se


tornar, mais recentemente, o caminho usual das análises dessas relações, isto é, a
mediação crítica diante de uma impossibilidade, ler a vida na obra e a obra na vida
de um autor de literatura:

Não se trata de confundir vida e obra, visto que o próprio autor [Noll] ne-
ga que seus textos “novos” sejam totalmente autobiográficos, mas Phillippe
Lejeune lembra-nos da possibilidade do pacto fantasmático, que seria uma
forma indireta do pacto autobiográfico (LEJEUNE, 1991, 59). Dessa forma,
analisar como a experiência do autor João Gilberto entra na produção da
escrita nolliana é, portanto, não confundir vida e obra, mas tentar perceber
em que espaços a criação literária se faz, principalmente no caso das auto-
biografias ficcionais montadas por João Gilberto Noll, nas quais os sujeitos
narradores escrevem suas próprias histórias e são testemunhas do mundo
contemporâneo. (CAMARGO, 2007, p. 24).

346
Estudos Literários

Talvez seja relevante enfatizar que já a autobiografia, por si mesma, situa-se a


meio caminho entre a derradeira verdade autoconfessada e a forma de ficção mais
efetivamente engendrada na história da literatura. Afinal, pode-se afirmar, com re-
lativa tranquilidade, que perpassa a todos os empreendimentos autobiográficos, em
maior ou menor grau, a mesma ambivalência íntima que tensiona a própria consti-
tuição (sempre instável) dos sujeitos modernos, assim como dos romances.
Se a essas narrativas autobiográficas, de um modo geral, já perpassa essa
mesma ambivalência diante do espelho, a mesma dúvida íntima acerca das próprias
qualidades e delimitações de contornos que aflige o sujeito diante de si mesmo, o
que dizer das formas de narrativas de ficção que estão deliberadamente imbricadas
com as formas de escrita autobiográficas?
E é justamente na esteira desse “pacto fantasmático” que os estudos das re-
lações entre autobiografia e literatura ainda se pautam no presente, mesmo que a
maioria das proposições tratem de termos que tiveram uma difusão e aderência
maior, como no caso do controverso conceito de autoficção e os desencontros que
ele acabou desencadeando. Todavia, a discussão sobre o conceito de autoficção será
aqui apenas mencionada devido ao grau de dispersão suscitado por este conceito,
seus desdobramentos e tentativas de definição.
Uma importante abordagem da autoficção foi empreendida por Diana Klin-
ger em trabalho no qual se apresenta uma abordagem das escritas de si no âmbito
das literaturas latino-americanas contemporâneas (2007). A autoficção, para Klin-
ger, há de ser pensada tendo-se em vista aquilo que se dá na arte da performance –
advinda do terreno da representação teatral e tensionando aí os limites entre repre-
sentação e inscrição do sujeito autoral em sua atuação – na medida em que ambas
as formas se apresentam como “textos inacabados, improvisados, work in progress,
como se o leitor assistisse ‘ao vivo’ ao processo da escrita”. (KLINGER, 2007, p. 56).
Ainda a pesquisadora, no artigo “Escrita de si como performance”, vai afirmar a
importância de:

discutir o conceito de autoficção como um conceito específico da narrativa


contemporânea. A autoficção é pensada como um discurso ambivalente: ela
faz parte da cultura do narcisismo da sociedade midiática contemporânea,
mas se coloca numa linha de continuidade com a crítica estruturalista do su-

347
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

jeito e com a crítica filosófica da representação. Assim, ela tem pontos de con-
tato tanto com a teoria da “performance de gênero” (por exemplo, na obra de
Judith Butler) em que a subjetividade é pensada como “desnaturalização” do
eu, quanto com a arte cênica da performance. Dessa perspectiva, a autoficção
seria uma das formas que assumem a literatura depois do fim do paradigma
moderno das letras. (KLINGER, 2008, p. 11).

Nesse sentido, seria também importante ter em vista a atual impossibilidade


de se pensar as formas narrativas do presente apenas como exceções que compro-
vam a prevalência das fronteiras. De fato, fenômenos como o da autoficção inserem-
se num conjunto de transformações postas em movimento na pós-modernidade. O
modo como a autoficção tem demonstrado êxito em seu gesto, autoproclamado
novo, de desvelar, trazer para a ordem terrena, a intimidade mais profunda da vi-
da do escritor, do artista contemporâneo, torna-se praticamente sinônimo de jogo,
profano, aliás.
Talvez, muito por isso, a recepção crítica do conceito de autoficção e das
narrativas autoficcionais tenha um sentido geral ambíguo. Trata-se de um caso de
difícil sistematização ou consenso crítico. Nesse sentido, a autoficção, desde sua
proposta inicial de conceito que emerge de uma obra de ficção construída justa-
mente para comprová-lo, seja, ao mesmo tempo, vítima e gatilho para as mais va-
riadas posições críticas e dissensos.
É nesse sentido que importa sempre reiterar que o produto das autoficções
não oferece meios, possibilidades reais, de apreensão de um sujeito empírico no
corpo da escrita, ainda que tal forma de narrativa constitua-se como promessa e
proposta de entregar aos leitores uma verdade de vida originária. Mas, que, por
outro lado, pode significar, no interior da cultura contemporânea, uma tentativa de
devolver ao rés-do-chão, ao cotidiano, a figura autoral, por vias de uma profanação
dos limites da ficção e da referencialidade autobiográfica, mantidas separadas du-
rante séculos no interior da tradição literária.
Esse movimento da autoficção também se insere em um momento, no de-
correr do século XX, no qual o interesse pelos objetos do passado tem se tornado
mais e mais patente. Momento também em que, por sua vez, a história não tem con-
seguido propiciar mais respostas categóricas sobre esse passado, ainda que seja cada

348
Estudos Literários

vez maior o grau de fascinação diante desse passado. Ainda que seja, do mesmo
modo, mais e mais perceptível a fascinação pelo eu e suas narrativas autocentradas.
Novamente, Diana Klinger, dirá da autoficção que:

consideramos a autoficção como uma narrativa híbrida, ambivalente, na qual


a ficção de si tem como referente o autor, mas não enquanto pessoa biográfica,
e sim o autor como personagem construído discursivamente. Personagem
que se exibe ‘ao vivo’ no momento mesmo de construção do discurso, ao
mesmo tempo indagando sobre a subjetividade e posicionando-se de forma
crítica perante os seus modos de representação (KLINGER, 2007, p. 67).

Em se tratando dessas formas narrativas, o grau final de indecidibilidade –


quanto ao dentro e fora para onde o eu aponta – que lhes é peculiar, acaba por
imobilizar os leitores num certo vazio, num espaço sem garantias, ou numa arma-
dilha mal disfarçada. Afinal, diante desse tipo de narrativa, enfrenta-se, entre outras
dificuldades, a de conseguir uma síntese, enfrenta-se a dificuldade de estabelecer
uma medida de verificabilidade, isto é, de encontrar qualquer garantia como con-
traponto à grande dose de confiança que o autor-personagem, autoimplicado em
sua narrativa, de sua parte exige dos leitores.
É exatamente essa ambiguidade essencial das narrativas de memória que a li-
teratura enfrenta de modo explícito nas últimas décadas. Afinal, essa primeira pessoa,
num movimento inverso ao da ficcionalização das narrativas autobiográficas, pode
ser lida como agente de uma autobiografização das narrativas literárias, sobretudo dos
romances da literatura latino-americana contemporânea. Exemplo caro à argumen-
tação que se pretende interessada, justamente, nas relações entre memória e ficção,
no interior de certas formas literárias, mas especificamente no interior do romance.
A ambivalência insolúvel inerente ao ser/estar do eu autorreferenciado nes-
sas narrativas do euacaba por nos legar uma matizada coleção de des-encontros,
denegações, imposturas, autoficções e disparates, no que se refere à relação dos ho-
mens, da cultura, do mundo, enfim, com essa forma de escrita autorreferente. Pode-
se afirmar que se está, diante dessa questão, à deriva, munindo-se de conceituação
insuficiente e de objeto cujos contornos são fugidios.
Se for o caso de análise que recai sobre a literatura contemporânea, analisar
os desdobramentos teórico-estéticos do imbricamento entre vida e escrita no inte-

349
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

rior das produções literárias contemporâneas se apresenta como um dos grandes


desafios. Na literatura contemporânea, seja na brasileira, seja na hispano-americana
ou na latino-americana, seja ainda na literatura do Ocidente de um modo em geral,
faz-se notar já com inegável ênfase o encontro entre a ficção e as vidas dos escritores.
Importante se faz refletir sobre a validade de certas proposições e operar al-
gumas distinções para se abordar os sentidos possíveis dessas formas de interpene-
tração estabelecida no encontro da forma do romance com a forma autobiográfica
que se dá no espaço das narrativas autoficcionais. Afinal, no que tange ao universo
ainda em expansão dessas autoficções, esse entranhamento é parte constitutiva das
próprias narrativas e toma sentidos múltiplos a depender da obra e do seu autor.
Ainda nesse sentido, os lugares comuns da crítica não são capazes de res-
ponder minimamente a essa questão da razão de ser que torna a autoficção dotada
de tantos atrativos para os autores de ficção e tão desafiadora para a crítica. A im-
pressão de fazer frente ao vazio é por demais inevitável quando se confronta essas
produções que, se por um lado pode-se circunscrever às últimas três ou quatro
décadas, por outro lado retomam, subvertem, re-atualizam uma relação do sujeito
com a autorreferência que tem tradição tão longa quanto a própria escrita.
De fato, efetivamente poucas são as novidades em se tratando desse fenômeno
de sobreposição entre autobiografia e o romance, talvez apenas a disseminação e su-
cesso, em escala global, e os novos conceitos que, desde os anos 1970, passaram a re-
nomear esse movimento ambíguo, essa confusão das formas narrativas cujas funções
constitutivas são opostas, por definição. Como assinala Adriano Schwartz, em seu
artigo A tendência autobiográfica do romance contemporâneo: Coetzee, Roth e Piglia:

A tendência autobiográfica do romance seria o sintoma literário da exacer-


bação de algo muito mais amplo, que vem progressivamente acontecendo, de
um “condicionamento” do ser humano cujas raízes remontam pelo menos
ao Concílio de Latrão e a imposição da regra da confissão em 1215. A partir
dali, todos os cristãos precisavam relatar os seus pecados com regularidade, o
que significava praticar sistematicamente um exercício de autorreflexão. Essa
obrigação teria, ao se generalizar, modificado a “vida religiosa e psicológica
dos homens e mulheres do Ocidente”, ao mesmo tempo que se valorizava
cada vez mais a própria ideia de indivíduo. E esse fenômeno que, amplamen-

350
Estudos Literários

te disseminado e instaurado na contemporaneidade, Peter Brooks chama de


“modelo confessional” e Beatriz Sarlo, ao estudar outra vertente da questão,
de “guinada subjetiva”. (SCHWARTZ, 2013, p. 85).

Seria lícito perguntar se o emergir em profusão de sujeitos autorreferentes


no interior da ficção, em sentido especular mesmo do tratamento desta relação eu e
escrita, é sintoma do apagamento do sujeito empírico, partindo-se do pressuposto
que algum dia ele foi efetivamente empírico, ou de que assim foi abordado? Cada
perspectiva de análise que se apresenta para abordar a literatura como objeto traz
em seu esquema de operações as marcas de seus embates e aporias. Não seria dife-
rente com a autobiografia, enquanto questão frente ao literário.
Ao se pensar a literatura latino-americana, alguns autores contemporâneos
igualmente interessantes se apresentam como possibilidades para refletir sobre tais
questões: Fernando Vallejo, Julian Herbert, Cecília Gianetti, Silviano Santiago, João
Gilberto Nöll, Mario Bellatin ou César Aira. Neles percebe-se um movimento da
ficção em direção à autorreferência e, ao mesmo tempo, um modo de transmutação
ou, se se quiser, de implosão da mais ínfima possibilidade de crença da veracidade
do eu nesse tipo de empreendimento literário. Afinal, a ficção praticada por tais
autores joga duplamente, tanto com a crença na verdade da presença autorreferente
no território da ficção, quanto com os modos de construção dessa presença autor-
referente no interior de uma narrativa de ficção.
É o caso de Como me tornei freira (2013), romance publicado em 1993 por
César Aira no qual este escritor dilui deliberadamente qualquer possibilidade de
leitura de uma verdade autobiográfica em sentido tradicional. Nesse romance de
Aira um protagonista-narrador-personagem que se apresenta como César Aira nar-
ra episódios assumidos como autobiográficos, assim como memórias de infância,
de modo a não respeitar as fronteiras entre verossímil e inverossímil, entre realismo
e onírico e, para intensificar essa proposital confusão, o sexo desse narrador-prota-
gonista é ambivalente (ora o masculino explicitado no nome César, ora o feminino
em que se narra o protagonista).
Acredita-se que esse tipo de narrativa citada se apresenta na contempora-
neidade como resultado de um longo processo de mudança de regime da subjeti-
vidade, agora em estado bastante avançado. Afinal, as tentativas de conceituar os

351
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

diversos modos pelos quais se dão os movimentos de fusão entre autorreferência


e ficção costumam gravitar em torno das especulações sobre a existência da auto-
ficção como meio de caminho entre a referência autobiográfica pura e a liberdade
ficcional plena.
Todavia, as dificuldades de se conceituar o que de fato seria a autoficção e
as confusões entre o termo e a própria experiência autobiográfica ou mesmo entre
autoficção e escritas de si têm causado um estado de proposições desencontradas e
hipóteses pouco frutíferas sobre os significados mais imediatos, ou mais profundos
para a cultura, desses fenômenos. Acredita-se aqui poder afirmar ao menos que a
autoficção se configura como sendo mais que o fruto da provocação teórico-literária
empreendida por Serge Doubrouvsky frente ao pacto proposto por Lejeune. Afinal,
somando-se essa provocação literária ao alvo dela, o pacto autobiográfico, tem-se o
cerne dessa questão que ainda hoje se desdobra, causando fascínio e perplexidade
na crítica, ao passo que atrai mais e mais escritores dispostos a acrescentar a própria
contribuição à opacidade do debate.
A autobiografia foi abordada aqui de modo a se tentar entender sua relação
com a autoficção e mais, sua relação histórica com a própria literatura, mais espe-
cificamente com a forma narrativa do romance. Relação posta em evidência já de
modo inegável a partir da tradição do romance autobiográfico que se fez perceber,
sobretudo, no decorrer do século XX. Uma das dificuldades da presente abordagem
se referiu justamente à tentativa de definir a autobiografia em contraste com o que
se pretende como a definição da autoficção, tendo em vista a origem e anterioridade
da autobiografia como gênero narrativo estabelecido no interior, na verdade nas
bordas, do cânone literário do Ocidente.
Já a autoficção, enquanto conceito surgido do interesse de nomear um pro-
cedimento utilizado por vários escritores franceses contemporâneos de Serge Dou-
brovsky, apresenta mais dificuldades de definição que a própria autobiografia e tem
sido considera por muitos como o despontar de um novo gênero literário. Nesse
sentido, é bom questionar se a autoficção se apresenta mesmo como um movimen-
to de consolidação de um novo gênero literário ou se se contemporaneamente se
assiste a um desdobramento do romance, de uma canibalização empreendida dos
domínios romanescos sobre as formas narrativas autobiográficas em voga. Afinal, o
romance enquanto gênero narrativo habituou-se ao longo de sua história a deglutir

352
Estudos Literários

diversas formas narrativas como o diário, a epístola e a própria autobiografia em


sua forma tradicional. Quem sabe, seria oportuno perguntar se o romance tem se
utilizado no presente da autoficção e das demais formas de escritas autorreferentes
para reconfigurar-se frente aos interesses e demandas do leitor contemporâneo.
Do mesmo modo, pode-se notar que o romance também parece ter operado
um interessante e indisfarçável enxugamento de sua forma e, nesse sentido, esse
gênero parece ter ainda predado elementos do conto moderno, ou conto breve, e
dele retirado alguns elementos constitutivos, de modo a se redefinir, ainda como
romance, mas agora breve e autorreferente. Por fim, talvez seja lícito perguntar:
estar-se-ia no presente a se testemunhar o surgimento de um gênero narrativo, o
gênero autoficcional, ou se testemunharia mais um dos momentos de reconfigura-
ção da forma do romance?

Considerações finais
Por fim, resta retomar A idade do espelho, de Drummond, para encerrar a
presente reflexão. Afinal, do mesmo modo que a inversão dos passos usuais do pro-
cesso de escrita de uma narrativa autobiográfica proposta no conto, deve-se lembrar
que a ambiguidade e o paradoxo permeiam as reflexões sobre a autobiografia, a
autoficção e as formas autorreferentes nas narrativas ficcionais em sentido geral.
Deve-se ressaltar o fato de que tratar essas formas narrativas obriga a consi-
derar o desvelamento mais e mais evidente de suas relações com a constituição da
literatura, sobretudo a partir das primeiras décadas do século XX. Afinal, desde o
começo do século passado se apresenta, com maior amplitude e diversidade de sen-
tidos, a primeira pessoa dos autores inscrita nas narrativas literárias, fenômeno esse
que vem ainda no presente se intensificando e diversificando.
É assim que os jogos cifrados nas narrativas, os meios termos autorreferentes
e as denegações dão espaço para a primeira pessoa autorreferenciada, inscrita nas
narrativas como mote ou cerne das próprias ficções. Esse fenômeno tem configu-
rado um nicho particular de formas narrativas denominadas como autoficcionais e
denunciam uma relação ambígua das narrativas autobiográficas com as narrativas
literárias, sobretudo com o romance.

353
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Acredita-se que tratar dessas questões implica numa abordagem da cons-


tituição da autobiografia enquanto gênero literário, implica em refletir acerca das
flutuações terminológicas que envolvem as tentativas de definir o conceito de au-
toficção, e ainda considerando sua relação íntima com a definição de pacto auto-
biográfico, proposta por Phillippe Lejeune na década de 1970, na França. Por fim,
acredita-se importante a discussão sobre os limites da autobiografia, em suas rela-
ções com a literatura, e, sobretudo, a reflexão sobre a questão da autoficção tanto em
relação à autobiografia quanto em relação ao romance, ambos gêneros narrativos já
constituídos na tradição literária do ocidente.
Acredita-se ainda que há de se ter em conta que a única forma de sucesso
na tentativa de inscrever a própria vida numa narrativa escrita é através de uma
operação, de um gesto de burla frente à inexorabilidade e imprevisibilidade da vida
humana. Que há de se optar pela fixidez dos registros escritos frente à fluidez da
vida no fluxo do tempo, que há de se perder de vista o rigor de verdade que gravita
em torno das formas narrativas, sobretudo no que diz respeito às formas imbricadas
confessa e deliberadamente na ficção.

Referências
AIRA, Cesar. Como me tornei freira. Trad. Angélica Freitas. Rio de Janeiro: Rocco, 2013.
ANDRADE, Carlos Drummond de, 1902-1987. A imagem no espelho. In: Contos
plausíveis. [posfácio Noemi Jaffe]. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 27.
CAMARGO, Fábio Figueiredo. A transfiguração narrativa em João Gilberto Noll: A céu
aberto, Berkeley em Bellagio e Lorde. (Tese de doutorado, 154 fl). Belo Horizonte:
PUC Minas, 2007.
DUQUE-ESTRADA, Elizabeth M. Devires autobiográficos: a atualidade da escrita de si.
Rio de Janeiro: NAU/Editora PUC-Rio, 2009.
LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Tradução de Jovita
Maria Gerheim Noronha, Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2008.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Livro I (1712-1719). As confissões de Jean-Jacques Rousseau.
Trad. Wilson Lousada. São Paulo: Ediouro, 1987.

354
Estudos Literários

GAY, Peter. O coração desvelado: a experiência burguesa da Rainha Vitória a Freud.


Tradução Sérgio Bath. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
KLINGER, Diana Irene. Escritas de si, escritas do outro: o retorno do autor e a virada
etnográfica: Bernardo Carvalho, Fernando Vallejo, Washington Cucurto, João
Gilberto Noll, César Aira, Silviano Santiago. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007.

355
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Entre a doçura dos sonhos


e a amargura do real na
narrativa juvenil Um sonho
no caroço de abacate
Lucas Silvério Martins1
Silvana Augusta Barbosa Carrijo2

Introdução
É fácil perceber a importância da literatura infantil e juvenil. Seja em termos
sociais, financeiros ou educacionais, como explica Peter Hunt (2010), tal literatura
desponta como, antes de tudo, necessária, pois conversa com um público que care-
ce de cuidados, de discussões e de temas que tão bem a literatura potencialmente
direcionada a crianças e jovens consegue abarcar. Em primeiro lugar, trata-se de
uma literatura rica em, forma e conteúdo, conseguindo reverberar em crianças e
adolescentes assuntos que são importantes ao universo no qual eles estão inseridos.
Mas quando falamos de um universo em que se inserem crianças e adoles-
centes, referimo-nos a que? Qual é esse universo? É um único universo? Trata-se
de uma fórmula mágica que consegue dar conta de todos os temas e visões em uma
única construção? A resposta para tais perguntas se desenrola naquilo que Ricar-
do Azevedo (2004) ilustra ao explicar tais questionamentos. Não falamos, aqui, de
um universo, mas sim de universos. Não entendemos, então, uma criança ou um
adolescente, mas sim crianças e adolescentes respaldados por um plural infinito. É
nesse infinito plural que a literatura infantil e juvenil trabalha. Uma literatura plural

1  UFG/RC/CNPq, [email protected]
2  UFG/RC, [email protected]

356
Estudos Literários

e multifacetada, apresentando suavidade e delicadeza, mas jamais sendo estes sinô-


nimos de banalidade e superficialidade.
A variedade de modos de apresentação, de temas e de construção literária
direcionada a crianças e adolescentes impressiona. Dos assuntos mais corriqueiros
aos temas mais polêmicos; dos papeis de impressão mais simples aos grandiosos
pop-ups ou até mesmo livros em tecnologia 3D. Tudo cabe no imaginário de uma
literatura que carrega nela a possibilidade de expressar gerações e remodelar mun-
dos. Enquanto um autor escreve, torna-se arquiteto de maravilhas universais. Ilus-
trar é conceber o inconcebível e, então, ler é permitir o êxtase, seja ele a improvável
gota que cai no sertão e dela desagua o dilúvio de esperança, ou, ainda, o perder-se
tão em si mesmo que transforma a solidão na mais afável amiga.
Logo, uma literatura tão variada é capaz de refletir algo semelhante expresso
nas falas de Antonio Cândido (2011) (quando explica do papel humanizador da
literatura e que ela é, definitivamente, um direito humano) e de Ricardo Azevedo
(2004), que elucida sobre crianças e adolescentes (são estes humanos como qual-
quer adulto; sofrem, choram, sorriem, esperam). Se humanizar é preciso, a literatu-
ra infantil e juvenil (LIJ) dá conta muito bem da tarefa. É palco de manifestação das
alegrias, mas, também, das lamentações humanas.
Ao tocarmos nos assuntos que são considerados chaves neste artigo, a saber,
a memória e identidade judaicas em páginas da literatura infantil e juvenil, perce-
bemos que a LIJ não só os alcança, mas os leva a novos níveis. Aqui, a maior e mais
forte característica da LIJ salta aos olhos: ela é, antes de tudo, literatura. Mais que
palavras jogadas ao vento, superior a uma aula de história, a literatura é literatura. É
o devir, é o lúdico e é o jogo mais belo que existe: o jogo com as palavras.
Se tentamos definir por números os assuntos que aqui serão discutidos, per-
cebemos que já passaram setenta e três anos desde o fim da Segunda Guerra Mun-
dial. Se definimos por vidas, vemos que a guerra pode até ter acabado, mas a batalha
pela sobrevivência continua em cada olho manchado pelo medo de ser quem é.
Voltando aos números, mais de seis milhões de judeus morreram por serem tão
somente judeus; foram vítimas do antissemitismo, da perseguição religiosa, da lou-
cura nazista. Não raro assistimos a volta de discursos nefastos tais quais aqueles
proferidos por Hitler, inflamando ódio contra um povo. Basta buscar pela marcha
nazista ocorrida em Charlottesville, no estado norte-americano de Virgínia e noti-

357
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

ciada pela BBC em 2017 para que tenhamos certeza de que ecos do totalitarismo
ainda estão por todos os lados.
Da mesma forma que o nazismo ainda ecoa, o discurso dos sobreviventes
tenta ecoar – mais forte e mais alto – como uma súplica para que nada como o
testemunhado a setenta e três anos atrás aconteça novamente. Ainda que aqueles
que testemunharam com seus próprios olhos a mais cruel e impiedosa dor do na-
zismo estejam sendo, gradativamente (e inevitavelmente), colhidos pelas mãos im-
placáveis da morte, as palavras ora testemunhadas são perpetuadas por meio das
ferramentas do eterno, tal qual a literatura se torna. Se é a LIJ um espaço para dis-
cussão, para pensar, e para sentir e se lembrar à humanidade o óbvio, ou seja, que
são humanos (e que erram, e que devem aprender com os erros), parece ser, então,
esta literatura, um espaço válido para as narrativas que falam sobre a Shoah (nome
dado à matança dos judeus), o nazismo, o antissemitismo e a memória dos judeus.
Considerando, então, que tais narrativas aparecem em obras publicadas co-
mo literatura e direcionadas ao público infantil e juvenil, este trabalho se propõe a
investigar de que forma aparecem tais assuntos: seriam uma mera revisão histórica
(ou seja, livros didático-moralizantes) ou são, de fato, obras literárias, com um tra-
balho elaborado de linguagem e que promovem a fruição estética? Qual o leque de
ferramentas literárias dos quais os autores lançam mão e que permitem comprovar
tais afirmações? Existe uma diversidade de códigos que podem ser lidos (textual
e imagético)? Apresentam e reverberam os temas aqui já discutidos? Protegem a
memória universal da Shoah?
Tais perguntas, e ainda outras, serão respondidas na análise que segue es-
te parágrafo, na qual é apreciada uma obra dentre outras tantas garimpadas num
percurso científico intitulado Ora, direis, (não) ouvir judeus? Memória e identidade
judaicas em páginas da literatura infantil e juvenil. A obra, a saber, intitula-se Um
sonho no caroço do abacate, lançada a público em 1995, assinada por Moacyr Scliar.
Para a análise, foi feita pesquisa epistemológica nos campos afins deste trabalho, tais
como a literatura e aqueles que tratam do universo do povo judeu e, então, análise
literária do conteúdo da supramencionada obra. A escolha por analisar tal narrativa
é justificada tanto em seu conteúdo singular quanto no fato de o autor, que é brasi-
leiro, ser internacionalmente reconhecido e de origem judaica.

358
Estudos Literários

A análise: os sonhos, os caroços e os abacates3


A obra Um sonho no caroço do abacate (1995), de Moacyr Scliar, apresenta
a história de um garoto chamado Mardoqueu e sua família, sendo todos Judeus. É
narrada a saída dessa família de terras europeias e a chegada em terras brasileiras,
sendo essa viagem conturbada e a chegada traumatizante.
Apresentando detalhes da vida do protagonista, a obra desenrola-se em
projeções da cultura e crença judaicas em contraste com as descobertas do “novo
mundo”. Traz detalhes do crescimento de um adolescente, as descobertas sexuais
características das fases juvenis e ainda um ambiente de intolerância que extrapola
os limites continentais e acompanha todos de sua família até o Brasil, país do novo
e da mistura.
Contada pelos olhos de um narrador -protagonista da história, os pontos
iniciais da obra apresentam elementos da motivação e condição da fuga da família
de Mardoqueu para o Brasil. Enquanto a vida na Europa caracterizada pela fome,
pobreza e humilhação, a opção de emigrar parecia representar também a de viver.
Ainda que significasse a vida, não era uma opção livre de riscos, visto que há refe-
rências na obra às dificuldades que os Judeus enfrentavam para sair da Alemanha,
não só pela perseguição que sofriam, mas pela resistência de outros países em re-
ceber essas pessoas: “Emigrar foi bem mais difícil do que imaginavam. Os países
relutavam muito em receber judeus” (SCLIAR, 1998, p.10). Brenner (2013, p.302)
elucida que um dos poucos continentes que ainda aceitavam receber os emigrantes
judeus era o Sul-Americano, apesar de certa resistência.
O Brasil, definido como o país do desconhecido – a mãe do protagonista, por
exemplo, acreditava que o país ainda era habitado em sua maior parte por índios
–, era a provável rota de salvação dos judeus que fugiam e partiam em busca da
terra conhecida principalmente pela abundância frutífera e certa facilidade de se
ter alimentos até então considerados raríssimos, como o açúcar. Essa abundância
é um dos motivos do “sonho no caroço do abacate”, expresso no título da obra. A
mãe do protagonista via no abacate, fruta que não existia na Europa, um sonho
de abundância, sendo então esses alimentos representativos da abundância que os

3  Será utilizada para análise a versão publicada em 1998.

359
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

judeus procuravam e não possuíam em seu país. O autor, dessa forma, caracteriza o
Brasil como o representante da esperança de melhora da vida dos judeus. Ainda que
desconhecido, era uma das formas possíveis de sobrevivência.
A viagem para o Brasil é descrita como terrível: “A viagem foi terrível. Eles
viajavam no porão de um cargueiro, amontoados com dezenas de outros emigran-
tes” (SCLIAR, 1998, p.12). Em concordância com Michael Brenner (2013) e Moacyr
Scliar e Márcio Sousa (2003) quando tratam do assunto da imigração judaica, o au-
tor promove na obra elementos que de fato existiram, visto que os supracitados au-
tores trazem em seus livros sobre a história dos judeus o quanto as viagens de navio
eram traumatizantes, por vezes mortíferas, carregadas de tristezas e incertezas. Era
se jogar à morte no desconhecido e impiedoso mar. Essa informação da dificuldade
da viagem aparece, ainda, na narrativa infantil Navio das cores (2009), também de
Moacyr Scliar e ilustrado com belíssimas reproduções de obras de Lasar Segall. Ne-
la, inclusive, duas páginas ilustram um amontoado de pessoas em um navio.
Outra consonância com a realidade aparece quando o autor trata da bar-
reira linguística ao chegar no Brasil, uma vez que os imigrantes não sabiam falar
a Língua Portuguesa, que recebe atenção e é elucidada na obra teórica de Scliar e
Sousa (2003). Aqui o autor apresenta conteúdo sobre a memória diaspórica judaica:
a errância era de extremo trauma. Além da incerteza em ter que fugir de seu país
de origem, essa fuga era em condições desumanas e os lançava em terras onde nem
mesmo a comunicação era possível, a que era adicionada, ainda, a problemática em
conseguir emprego, forçando muitos judeus a recorrerem ao trabalho autônomo.
As dificuldades não eram poucas, contrário a isso, passavam por verdadeira mul-
tiplicação. O pai do protagonista, por exemplo, não tendo sucesso em nenhuma
tentativa de emprego, acaba por vender gravatas na porta de escritórios.
A problemática na vida do adolescente Mardoqueu começa com a escolha
do pai em matricular o filho em uma escola cristã. Aqui o autor não cria apenas um
conflito do menino frente ao novo, mas aprofunda a discussão ao patamar religioso:
não era aceito pelos praticantes do judaísmo uma mistura com o cristianismo, da
mesma forma que praticantes do cristianismo não aceitavam os judeus. A tradição
e religião judaicas trazem fatores tão fortes e intensos para seus praticantes que, na
narrativa, a mãe do protagonista tem um acesso de fúria em uma discussão com o
marido: “ – Você quer me matar! – Gritava. – Você me trouxe da Lituânia para me

360
Estudos Literários

matar aqui, bandido! Você é pior que os nazistas” (SCLIAR, 1998, p.16). E além dis-
so, a decisão de um judeu conviver com a tradição cristã abre caminhos para a into-
lerância, sendo esse um dos principais elementos explorados pelo autor em sua obra.
Esta intolerância aparece de diversas maneiras, em toda a jornada de Mar-
doqueu na nova escola. Logo no primeiro dia de aula, o preconceito e perseguição
são percebidos: “– Não queremos judeus nesse colégio. Você tem uma semana para
desaparecer. Senão – fez um gesto significativo – vamos te capar” (SCLIAR, 1998,
p.23). Na citação apresentada, é claro que o maior problema não era a condição
social do aluno (afinal, o colégio era conhecido como ambiente de pessoas de maior
influência social e Mardoqueu obtém uma vaga graças ao pai que consegue bolsa
de estudos para o filho), mas sim por ser um judeu convivendo no ambiente cristão
e elitizado. Ainda que existissem ataques explícitos ao menino, por vezes o pre-
conceito era materializado por meio de olhares, de conversas, por livros rasgados,
cadernos riscados e outros, conforme é possível observar na leitura da obra. E não
é assim que acontece em nosso mundo, fora das margens do papel? O preconceito
nem sempre é escancarado. Um olhar atravessado e de julgamento pode doer na
mente mais que uma palavra de ameaça escrita num papel.
Em determinado momento da narrativa, o protagonista, chamado pelo ape-
lido Mardo, precisa fazer um trabalho escolar cujo objetivo era desenhar Cristo.
Em tal construção da narrativa, o protagonista vive um monólogo reflexivo onde
condena e culpa a ele mesmo pela perseguição atribuída aos judeus por terem en-
tregue Jesus Cristo para a crucificação. Discute as dores de seus antepassados e faz
reflexão sobre seu passado, em um momento de grande questionamento sobre toda
a tradição milenar judaica e a perseguição por estes sofrida:

Constantemente eu era lembrado de que meus antepassados tinham acusa-


do Cristo, que meus antepassados tinham pedido a morte de Cristo. Uma
culpa que insensivelmente eu ia assumindo – e ampliando: eu era o réu. Eu
tinha vendido Jesus por trinta moedas, eu o tinha conduzido preso, eu o havia
crucificado. Aqueles imensos cravos que o fixavam na cruz? Eu os pregara,
manejando a marreta com cruel diligência. E a dor terrível que ele sentira,
quando o ferro lhe transfixara as carnes, essa dor fora eu quem lhe infligira.
E não adiantava fingir inocência. Cada vez que, em aula, se falava na morte

361
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

de Cristo, olhos acusadores voltavam-se para mim: foi você, judeu Mardo, foi
você quem matou o Divino Mestre, você queria se livrar dele porque preferia a
usura à verdadeira fé. Forno crematório era pouco para os meus crimes; eu ti-
nha de queimar para sempre nas chamas do inferno – onde o meu lugar estava
reservado, o próprio diabo esperando-me impaciente (SCLIAR, 1998, p.28).

Nessa passagem, uma das que mais profundamente discutem a memória e


a identidade judaicas na narrativa, o autor traz à epiderme do texto narrativo uma
tempestade de informações retiradas dos fatos reais atestados pela memória uni-
versal da Shoah. Percebe-se o sentimento de culpa que é ainda hoje imputado aos
judeus, acusados pela traição e morte de Cristo. O trecho apresenta uma reflexão
de como um jovem judeu se sente, considerando a si mesmo culpado por tudo
o que, por séculos, vem sendo acusado. O menino não só conta fatos, mas se faz
contribuinte destes, usando verbos no presente para mostrar que vive ainda tais
dores. A dor destes fatos é pungente e nunca esquecida. Essa afirmação é baseada
nas palavras de Primo Levi (2016) que informa: lembrar, aqui, é doer. Uma dor não
só psicologia, mas, também física.
Sente-se culpado em todos os momentos, quando lhe são lançados olhares
acusatórios, evidenciando novamente a perseguição que os judeus sofrem desde
os tempos bíblicos e, frente a todo o sofrimento aos judeus causado nos tempos
nazistas, o menino os percebe como poucos diante da culpa milenar atribuída a sua
etnia, culpa essa que ele sente. Acredita que forno crematório, a ilustração maior do
ódio nazista, um símbolo do apagar uma raça, transformando-a em cinzas, é pouco
para seus erros. Nesta reflexão é possível perceber como os atos de uma sociedade
podem refletir em um jovem que passa a se culpar mediante tanta acusação: vê-se
como réu e se condena. Nesse trecho, as discussões sobre a memória e a identidade
judaicas são apresentadas de modo singular. É possível perceber, por esse monólogo
reflexivo, o dito fardo carregado pelos judeus em suas milenares gerações: não basta
a sociedade os culpar, eles também se culpam.
Quando enfim consegue se livrar desses pensamentos, o menino não só rea-
liza a pintura da imagem de cristo como ainda ganha um prêmio por tal atitude.
Esse fato é o estopim de mais uma onda de acusações e perseguições ao judeu,
culminando no roubo de sua pintura, sendo deixado no lugar um bilhete em que

362
Estudos Literários

é escrito: “‘Não fico num lugar onde os judeus mandam. Assinado: Jesus Cristo’”
(SCLIAR, 1998, p.29). A perseguição, usando agora de um suposto discurso bíbli-
co, produzido como se o próprio Cristo os escrevesse, chega a um nível extremo: a
violência física.
Em outra passagem da obra, fica ainda mais claro o sentimento de precon-
ceito experimentado por parte de Mardoqueu, que não o queria sentir, mas sente e
expõe o preconceito racial. Caracterizando um momento de discussão concebido
pelo autor e que muito contribui para uma função humanizadora da obra (CANDI-
DO, 2011), é uma passagem em que se mostra que os sentimentos existem e que o
erro não está em sentir o preconceito, mas em não perceberem que é um problema
a ser modificado:
Mas havia problemas. Por incrível que pareça, eu, membro de um grupo ví-
tima de preconceito, tinha de lutar contra meu próprio preconceito, contra a sen-
sação de estranheza e até de desconforto. Hesitei muito, mas acabei contando isto a
ele. Não se zangou, ao contrário: se você tivesse me dito que nunca notou a cor da
minha pele, eu não acreditaria, disse (SCLIAR, 1998, p.35).
Mesmo que o menino sinta tais sentimentos preconceituosos, como o racis-
mo, conta ao amigo em uma passagem cuidadosamente trabalhada pelo autor, que
é percebida num tom não de julgamento, mas de confidencialidade. Um pacto de
amizade é feito ali no momento que Mardoqueu resolve conversar com seu amigo
sobre um fato complicado, tal qual o preconceito, e de difícil tratamento. É possível
perceber, logo, que a ignorância do julgamento racial deu lugar ao entendimento,
que a compreensão se formou a partir do momento que houve diálogo. O cuidado
na concepção de tal passagem narrativa foi essencial para que a obra literária não
fosse penalizada, ou seja, para que não se tocasse no perigoso campo de uso da
literatura como pretexto de algo. A afirmação de que houve cuidado na construção
deste trecho da narrativa se baseia no risco de que, mal trabalhada, tal passagem
sairia de um contexto de fruição estética literária e poderia assumir um discurso
didático-moralizante, o que comprometeria o êxito da construção literária da obra.
Ao promover essa reflexão sem fazer uso de uma doutrinação, o autor demonstra
evidências de trabalho estético, o que legitima a qualidade estética literária da obra.
Inclusive, é destacado ainda um trabalho de linguagem a fim de aproximar a
construção verbal daquela conhecida por jovens. São utilizadas gírias e formações

363
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

coloquiais tais como “mano”, “porra”, “periga a velha ter um treco”. Essas inserções
de linguagem coloquial aproximam o texto verbal a uma realidade próxima àquela
falada por jovens, fazendo com que aconteça uma identificação de maneira mais
satisfatória com o texto apresentado, contribuindo para um pacto literário do leitor
para com a narrativa. Apresentam, ainda, marca na construção textual por parte do
autor, evidenciando trabalho estilístico.
Ainda que a presença do menino negro tenha feito Mardoqueu lembrar des-
sa brincadeira com características estereotipadas de um negro, a continuidade da
narrativa fez com que os dois se unissem em uma amizade contra os preconceitos.
Assim como Mardoqueu, Carlos sofria diariamente preconceitos no novo colégio.
Logo no primeiro dia do garoto na escola, um grupo de meninos falou: “este colégio
está cada vez pior, até negros aceitam” (SCLIAR, 1998, p.32, grifo nosso). Na citação
apresentada, o uso da palavra “até” carrega uma carga preconceituosa que diminui
o objeto a que ela se refere, sendo no caso Carlos. Essa construção textual por parte
do autor demonstra que um negro, para esse grupo de alunos, é um ser inferior, um
alguém menosprezado, que não é digno de estar no espaço.
Ainda que Mardoqueu em um primeiro momento tenha sentido preconcei-
to em relação a Carlos, a construção da amizade dos dois ganha contornos quase
poéticos, concebidos pelas mãos de um autor que tece um sentimento genuíno e de
cumplicidade a partir das diferenças de dois grupos historicamente atacados: am-
bos eram julgados por serem diferentes, os dois tiveram seus antepassados violenta-
mente perseguidos, um e o outro possuem um histórico de tristezas e lutas e sofrem
por suas raízes históricas. Não se uniram por um mero acaso, mas principalmente
por pertencerem à categoria de perseguidos. Acharam em todo o mal que acabam
recebendo da sociedade a força para juntos lutarem. A identidade e a diferença tra-
balham em uníssono para unir tais personagens.
Ao apresentar a irmã para Mardoqueu, este começa a ter que lidar com sen-
timentos de paixão, de desejo e consequentemente com impulsos sexuais. Ao ver a
irmã de Carlos, Mardoqueu se sente atraído, apaixona-se e passa a desejar a menina.
Longe da garota, em sua casa, temos os fatos que comprovam o início da fase de
amadurecimento sexual de Mardoqueu, com as descobertas de desejos e do corpo
através, por exemplo, da masturbação. Ainda que este termo não tenha sido clara-
mente apresentado no texto, é possível ser feita a dedução através de trechos como:

364
Estudos Literários

“Eu voltei para casa – felizmente não havia ninguém – tranquei-me no banheiro,
e lá a possuí, em imaginação, uma, duas, três vezes, em variadas circunstâncias e
posições” (SCLIAR, 1998, p.38).
A relação de Mardoqueu com a irmã de Carlos, chamada Ana Lúcia, desper-
tou a ira de sua família. Nessa construção da narrativa, o autor discute a união de
etnias totalmente diferentes, de culturas contrastantes e de religiões distintas. Aqui
são apresentados, inclusive, os discursos que Ana Lúcia tinha ouvido, quando mais
nova, sobre os judeus terem “parte com o demônio”, ou seja, o autor traz conceitos
que possuem base real para a obra literária, afinal, como afirma Brenner (2013) e
também Hannah Arendt (1989), os judeus sempre foram vistos como um grupo
envolvido em assuntos ocultos Arendt (1989) inclusive ressalta a visão preconcei-
tuosa de que o judeu era um espião e que sempre trama algo de ruim. Para que esse
amor pudesse ser vivido, foi necessário que os personagens passassem por muitos
momentos de grande tensão, sendo o maior o da mãe de Ana Lúcia, que a acusou
de querer deixar seus antepassados, sua cultura e sua identidade para viver com
uma “mulata”.
É nesse momento de tensão que a personagem da mãe de Mardoqueu apre-
senta a carga emocional que a rodeia, mostrando as angústias da personagem que
sempre chora, sempre sofre e parece não ser feliz (lembrando a personagem judia
encontrada no conto A Garota Judia (1855) de Hans Christian Andersen). Em um
primeiro momento, o medo é entendido pelo fato de a personagem se sentir aban-
donada por seus familiares: “ – Meus pais morreram num campo de concentração
– ela disse. – Meus pais, minhas irmãs, todos morreram num campo de concentra-
ção” (SCLIAR, 1998, p.54). Então, percebe-se que ela se sente sozinha e mais que
isso, sente-se triste e culpada por não poder ter salvo seus familiares. Manter a
tradição, para ela, é manter a memória de seus finados parentes, é como uma ho-
menagem a suas vidas:

Eu aprendi a valorizar o judaísmo. O judaísmo representa alguma coisa, você


sabe? Representa alguma coisa. Se não para você, pelo menos para os nazis-
tas. Eles mataram milhões por causa do judaísmo. Eles queriam matar a mim,
e a seu pai, por causa do judaísmo. Então, eu queria conservar esse judaísmo
(SCLIAR, 1998, p.57-58).

365
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Para a mãe de Mardoqueu, casar-se com uma mulher não judia e negra era
como destruir a tradição judaica, destruir seus antepassados, acabar com a memó-
ria daqueles que foram mortos por serem judeus. Por fim, a mãe aceitou o namoro,
e em um dos últimos momentos da obra, enfim é possível entender o desenrolar do
‘sonho no caroço do abacate’.
Ao tomar um sorvete de abacate, a mãe de Mardoqueu enfim entende que
sua cultura não se perdeu, mas sim ganhou novos elementos. O gelado alimento,
nesse momento, é uma metáfora do que representa a cultura, e a ação de tomar esse
sorvete e querer a receita é um modo subjetivo de se representar a mistura de cul-
turas. Se a personagem sofria pelo medo de perder sua cultura, agora ela entendia
que poderia sim manter a sua cultura, mas não se sacrificar para repelir o novo, um
novo que representa o lar, uma nova esperança, uma nova vida. Suas lágrimas não
eram apenas por sua vida, mas por todos aqueles que morreram com sonhos como
os dela: “De repente eu compreendia minha mãe. Sabia por quem chorava: pelos que
tinham morrido nos campos de concentração, pelos que tinham sido perseguidos e
humilhados. Mas chorava também por si mesma, pelos sonhos perdidos” (SCLIAR,
1998, p.73). E o caroço do abacate representava todos os sonhos impossíveis, repre-
sentava o mais impossível de todos os desejos: o desejo de viver. Em uma reflexão
final, Mardoqueu conclui: “também eu tive de atravessar um oceano, também eu
tive de descobrir um país que não conhecia. Ao qual, se tivesse de dar um nome,
chamaria de O País dos Sonhos Improváveis. Sonhos que se ocultam no caroço de
algum inocente abacate” (SCLIAR, 1998, p.75). Assim, o título é justificado, sendo
esse caroço de abacate, conseguido com êxito ser consumido no fim da obra, uma
metáfora para exemplificar que enfim fizeram das terras brasileiras um novo lar.
As ilustrações, sob responsabilidade de César Landucci e Maurício Negro,
apresentam traçados sempre fortes e espessos, em preto e branco, e com elementos
da tradição judaica reproduzidos. Ainda que claramente em segundo plano, esses
contribuem com marcas visuais não descritas no campo verbal, mas que comple-
mentam o texto. Na imagem 1, por exemplo, é possível perceber um símbolo judai-
co que não aparece em momento algum descrito no código textual. Conseguirmos
perceber, assim, que as ilustrações transcendem o texto, dando novos sentidos e
olhares à obra.

366
Estudos Literários

Imagem 1 - Ilustração da obra Um sonho no caroço do abacate (1998) (SCLIAR, 1998, p.24)

Não é possível afirmar que elas possam antecipar o conteúdo dos textos que
acompanham, mas sim que contemplam elementos que são encontrados no campo
verbal, retratando-os em código visual. Se em uma primeira vista podem parecer
confusas, após a leitura do texto que as segue, como em capítulos (ainda que não
haja uma explicita demarcação de unidades), é possível entender o que o ilustrador
tentou representar com esses desenhos. Alguns trazem elementos não só judaicos,
mas também de outras características, como de baianos e até mesmo uma retrata-
ção de como os personagens se veem, como esses se sentem.

Conclusões
Com base no analisado e levando em conta o que foi lido como aporte teóri-
co para estas análises, afirmamos que a obra apresenta potencialidade para propor-
cionar a fruição estético-literária. As evidências para tal afirmação estão na iden-
tificação de múltiplas ferramentas de linguagem literária operadas pelo autor, os
recursos invocados tanto em nível textual quanto imagético e, ainda, uma elaborada
construção narrativa, que faz uso desde expressões coloquiais até passagens umidi-
ficadas na mais bela linguagem poética. Recebe destaque, ainda, o uso de ilustrações

367
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

que complementam o texto, dando o poder de uma nova leitura a partir de constru-
ções realizadas pelo outro autor da obra, ou seja, o ilustrador.
A obra é entendida, por nós, como sendo importante para o estabelecimento
e manutenção da chamada memória universal da Shoah, uma vez que não distorce
os fatos memoriais, mas, sim, são uma chama que arde para manter o testemunho
de tão nefastos acontecimentos e uma rica cultura sempre acesos e lembrados.
É, ainda, um brado para que seja sempre rememorado o legado da Shoah,
cuja pena pelo esquecimento está na possibilidade de dias tão malignos voltarem a
abismar o mundo. Este trabalho, também, é uma tentativa de reverberar e fazer-se
ouvir o testemunho de quem viu, a olhos nus, os horrores que o antissemitismo
testemunhou para que nunca, jamais, sejam novamente replicados.
Destaca-se, ainda, a importância acadêmica do trabalho, cujos frutos foram
apresentados em eventos diversos, tanto nacionais quanto internacionais.
Por fim, mas não menos importante, destacamos e agradecemos ao traba-
lho do autor que, por meio de uma narrativa ímpar, traz à pauta do dia e discute
assuntos importantes e que podem se refletir no futuro. A ele(s), agradecemos por
defenderem a história e por usar como arma a literatura.

Referências bibliográficas
ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
Tradução de: Roberto Raposo.
AZEVEDO, Ricardo. Formação de leitores e razões para a literatura. In: Caminhos para
a formação do leitor. São Paulo: DCL, 2004. p. 37-49.
BRENNER, Michael. Breve história dos judeus. São Paulo: Editora Wmf Martins Fontes,
2013. Tradução de: Marcelo Brandão Cipolla.
CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In:______. Vários escritos. 5. ed. Rio de
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HUNT, Peter. Crítica, teoria e literatura infantil. São Paulo: Cosac Naify, 2010. Tradução
de Cid Knipel.
LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes. 3. ed. São Paulo/rio de Janeiro: Paz e Terra,
2016.

368
Estudos Literários

SCLIAR, Moacyr. Um sonho no caroço do abacate. 5. ed. São Paulo: Global, 1998.
_______; SOUSA, Márcio. Entre Moisés e Macunaíma: os judeus que descobriram o
Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Garamond, 2003.
SENRA, Ricardo. ‘Sou nazista, sim’: o protesto da extrema-direita dos EUA contra
negros, imigrantes, gays e judeus. 2017. Disponível em: <https://www.bbc.com/
portuguese/internacional-40910927>. Acesso em: 19 jul. 2018.

369
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

A criação poética de Paulo


Henriques Britto
Maísa de Oliveira Mascarenhas1
Goiandira de F.Ortiz de Camargo2

Para melhor encaminhamento de nossas reflexões posteriores, é necessário,


primeiramente, elucidarmos alguns dos princípios fundamentais que compõem a
teoria hegeliana a respeito do eu lírico. Hegel (1997) delimita o reduto do lírico na
subjetividade do indivíduo, pois é a interioridade subjetiva que deve ser conside-
rada como fator ao qual a obra lírica deve a sua unidade. Assim, a voz que soa no
poema teria a mesma identidade do sujeito empírico. Nas palavras do filósofo:

Tudo emana do coração e da alma, ou, mais exatamente, das disposições e


situações particulares do poeta. Sendo assim, o conteúdo (e o laço de união
dos diferentes aspectos que tal conteúdo vai assumindo no seu desenvolvi-
mento) não tem, como na épica, a objetividade de um conteúdo substancial.
( HEGEL, 1997, p.514).

Segundo esta perspectiva, o poeta deve utilizar de circunstâncias exteriores


para a sua própria revelação, e, por ser dotado de um mundo subjetivo completo,
deve ainda obedecer, antes de tudo, aos impulsos do próprio espírito, buscando
exprimir o autêntico conteúdo da alma humana. No entanto, não se trata aqui de
uma simples exteriorização individual ou de uma simples designação do objeto pela
primeira palavra direta. Trata-se, enfim, da expressão de uma alma poética, pois a
poesia deve aparecer como reflexo da interioridade do poeta, o qual deve

[...]conservar-se inteiramente livre, visto que não é na circunstância exterior


que encontra o verdadeiro conteúdo de que necessita, mas em si mesmo, e é

1  UFG - Faculdade de Letras, maisa_mascarenhas@hotmail


2  UFG - Faculdade de Letras, [email protected]

370
Estudos Literários

somente sob a influência de suas idéias pessoais e das suas disposições poéti-
cas que decide quais os aspectos do tema que deve apresentar e qual a forma
mais conveniente.(HEGEL,1997, p.518)

Além disso, Hegel (1997) considera que a realidade é responsável por fomen-
tar a imaginação, logo não é arruinada ou desconsiderada no momento da criação.
A finalidade da poesia lírica é, portanto, satisfazer a necessidade de expressão do
foro íntimo do poeta, suas emoções, sentimentos e paixões mediante a linguagem.
A perspectiva hegeliana, remodelada ou questionada, se mantém como referência
paradigmática para a discussões sobre a subjetividade lírica.
Em seu “La referencia desdoblada: el sujeito lírico entre la ficcion e La auto-
biografia”, Domenique Combe (1999) sistematiza um percurso histórico acerca do
conceito de sujeito lírico e tece reflexões a respeito de alguns aspectos circunscritos
a ele, como também a respeito do conceito de verdade e ficção. Partindo da ideia co-
mumente difundida de que o lirismo é a expressão de uma poesia pessoal e intimis-
ta e a subjetividade lírica é essencialmente narcisista, Combe nos relembra de que a
origem da problemática envolvendo esse sujeito pode ser historicamente situada. É
no romantismo alemão que são travadas diversas discussões a respeito do estatuto
do sujeito lírico e que o problema da autenticidade é pensado mais pontualmente.
Devido a esse movimento e ao que ele preconiza, surge a necessidade de descons-
trução da ideia de que o eu lírico e o eu empírico carecem da mesma identidade. A
respeito da relação entre poesia e vivência, Combe lança mão das ideias do filósofo
alemão Wilhelm Dilthey, para o qual há um nexo essencial entre a vida do poeta e o
ato poético. Dessa forma, o conteúdo do poema estaria fundamentado na experiên-
cia de vida do poeta. No entanto, o filósofo ressalta que a obra literária não pode ser
explicada única e exclusivamente pelo acontecimento biográfico.
No seio dessa discussão, Combe resgata algumas ideias encontradas na obra
de Hugo Friedrich Estrutura da Lírica Moderna (1978) para a análise sobre a dico-
tomia entre o sujeito lírico e o sujeito empírico. Sabemos que a consciência de que o
ser humano não é uno, mas sim um feixe de muitas vozes, que implicam um espaço
para a constituição de subjetividades-outras, é própria dos poetas do século XIX,
especialmente os poetas franceses – considerados fundadores da modernidade –
Charles Baudelaire, Arthur Rimbaud e Stephane Mallarmé, que apontavam para a

371
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

poesia também como voz de uma alteridade e que esvaziaram o reduto do lírico de
qualquer informação biográfica. Hugo Friedrich, a respeito da poesia de Baudelaire,
afirma que “com Baudelaire começa a despersonalização da lírica moderna, pelo
menos no sentido que a palavra lírica já não nasce da unidade de poesia e pessoa
empírica, como haviam pretendido os românticos.” (FRIEDRICH, 1978, p. 36). E
comentando o uso da primeira pessoa pelo poeta afirma: “Quase todas as poesias de
As Flores Do Mal falam a partir do eu. Baudelaire é um homem completamente cur-
vado sobre si mesmo. Todavia este homem voltado para si mesmo, quando compõe
poesias, mal olha para seu euempírico.” (Ibid., p. 37). Se Baudelaire mostrou a des-
personalização do eu lírico, separando-o do eu empírico e inscrevendo no espaço
poético a possibilidade de manifestação de subjetividades variadas, Rimbaud – com
sua já antológica afirmação “Eu é um outro”3 – rompeu com a concepção romântica
de sujeito lírico. Mallarmé foi mais além ao enunciar o sujeito lírico e sua voz como
um efeito de linguagem, concebendo-o como uma existência imanente à linguagem
(FRIEDRICH, 1978, p.56). A partir daí, um breve tempo depois foi possível visua-
lizar a fragmentação e mesmo dissolução do sujeito lírico na poesia do século XX.
Isso aparecerá de forma tão intensa que o poeta do modernismo literário americano
T. S. Eliot não só tematizará o esfacelamento humano, como também constituirá
a forma do poema de “verdadeiras colagens de múltiplos empréstimos literários”
(ROSENFIELD, 1999, p. 89).
Segundo Combe (1999), se tentarmos apartar a gênese do sujeito lírico das
relações entre a biografia, estaremos fadados ao fracasso, uma vez que a ficção e a
verdade não podem ser consideradas categorias excludentes, e sim complementa-
res. Nem mesmo o crítico literário está apto a identificar, com exatidão, o que com-
põe o universo ficcional do autor e, ao mesmo tempo, faz parte de sua biografia, ou
seja, o grau de ficção é impossível de ser determinado e dissociado do que é da expe-
riência vivida. Assim, ainda que o leitor continue, espontaneamente, identificando
o sujeito da enunciação lírica com o poeta, provavelmente devido à permanência do
modelo poético romântico, é impossível delimitar o que é puramente ficção e o que
é factual. Nas palavras do autor:

3  Esta afirmação de Rimbaud consta na Carta de Rimbaud a Georges Izambard, de 13 de maio de 1871.
(Poésies, 1984, p. 200).

372
Estudos Literários

O sujeito lírico apareceria como um sujeito autobiográfico ficcionalizado ou


ao menos em vias de ficcionalização - e, reciprocamente, um sujeito fictício
se inscreve na realidade empírica, segundo um movimento pendular que dá
conta de uma ambivalência que desafia toda definição crítica, até a aporia.
(COMBE, 1999, p. 10)

A natureza do sujeito lírico é, portanto, marcada por uma dualidade. Para


Combe (1999), ele se estende do singular ao universal e, na relação existente entre a
referencialidade autobiográfica e a ficção, perpassa, no plano fenomenológico, uma
dupla intencionalidade, tendo em vista que o sujeito empírico encontra, no poema,
a capacidade de universalizar-se e se tornar atemporal. O discurso lírico é forjado
sob esta tensão jamais resolvida e talvez seja exatamente por isso que qualquer ten-
tativa de definição da identidade do sujeito lírico, situado no entre-lugar, parece-
nos demasiado complexa, visto que:

Provavelmente em razão do seu caráter de tensão, e não dialético, que, como


afirma a crítica, o sujeito lírico parece altamente problemático, se não hipo-
tético e inacessível, pois não existe rigorosamente uma identidade do sujeito
lírico, que não poderia se categorizar de maneira estável por consistir preci-
samente em um incessante movimento duplo, do empírico ao transcendental.
(COMBE, 1999, p. 14)

Nota-se que a volatilidade do sujeito lírico é um entrave para a definição da


identidade do mesmo. Em outras palavras, para Combe (1999), o sujeito lírico, criado
no e pelo poema, pode ser considerado portador de uma identidade flutuante, uma
vez que está em eterna construção, sua gênese não é fixa, e sim altamente mutável.
Michel Collot (2004) também sistematizou algumas ideias que também são
fundamentais para a compreensão do sujeito lírico da contemporaneidade. Afas-
tando-se de toda uma tradição calcada na concepção hegeliana do lirismo, segundo
a qual o sujeito lírico apresenta uma subjetividade fechada e o lirismo restringe-se
ao homem individual, Collot considera que o desalojamento do sujeito lírico da
pura interioridade para fora de si na modernidade não se configura como uma ex-
ceção, e sim como uma regra. Por essa razão, o sujeito lírico estaria condenado à
desaparição, projetado em direção ao exterior. Esta “saída de si” ocorre, sobretudo,

373
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

devido à perda de controle dos movimentos interiores, o que torna o sujeito passivo.
Nas palavras de Collot:

Fazendo a experiência de seu pertencimento ao outro- ao tempo, ao mundo


ou à linguagem-, o sujeito lírico cessa de pertencer a si. Longe de ser o sujeito
soberano da palavra, ele se encontra sujeito a ela e a tudo que o inspira. Há
uma passividade fundamental na posição lírica, que pode ser similar a uma
submissão. (COLLOT, 2004, p. 167)

Ao lançar mão desta ideia, a qual evidencia a recusa do lirismo entendido


como expressão de uma subjetividade pessoal, tal como era concebido por Hegel,
Collot, além de desabrigar o sujeito de seu reduto fechado, aproxima-o da alterida-
de experenciada por Rimbaud, poeta que trabalhou inteiramente para destituir o
sujeito de “sua autonomia, de sua soberania e de sua identidade” (COLLOT, 2004,
p. 168). No entanto, embora o sujeito só possa se realizar na palavra, concomitante
e paradoxalmente, a palavra não pertence a ele. Sendo assim, o sujeito pode ser
entendido como uma entidade que, fora de si, ao se abrir para a alteridade, se en-
contra, recuperando a sua verdade mais íntima, e, dessa forma, se aproxima, ainda
de que forma relativa, de uma consciência mais plena de si:

Sua abertura ao mundo e ao outro o torna estranho por dentro- por fora. Ele
não pode, então, reaver a sua verdade mais íntima pelas vias da reflexão e da
introspecção, é fora de si que ele a pode encontrar, não como identidade, mas
como uma ipseidade que, ao invés de excluir, inclui a alteridade. (COLLOT,
2004, p. 167)

Collot enfatiza ainda que, como ocorre em Rimbaud, o movimento de saída


de si realizado pelo sujeito lírico não implica, necessariamente, desaparição do mes-
mo. Ao invés de expressar o seu foro íntimo, o sujeito lírico sai de si e isso possibilita
a ele se encontrar com outro(s) no horizonte do poema – fenômeno que ocorre no
ato da enunciação, quando o sujeito evoca e constrói objetos e se reconstrói.
Essa é a abordagem que melhor contribui para as reflexões em torno das con-
figurações do sujeito lírico na poesia contemporânea, e, no nosso caso específico, na
poesia de Paulo Henriques Britto, visto que na obra dele, assim como na de muitos
outros poetas contemporâneos, verifica-se a construção de poemas e que se nota a

374
Estudos Literários

multiplicidade de subjetividades e a intenção de supressão do sujeito lírico mono-


logante, consagrado pela tradição. Por meio da análise de alguns poemas presentes
na obra de Britto, verificamos a tendência ao fechamento do discurso poético, pois
a linguagem é frequentemente colocada em evidência e voltada para si mesma. O
exercício metalinguístico pode evidenciar o caráter múltiplo do sujeito por trás da
composição poética, que, cindido, revela-se, concomitantemente, crítico e criador
ao sondar a própria arquitetura poemática. Incorporarando à enunciação lírica o
discurso crítico, o poeta põe em diálogo teoria e prática, crítica e criação, que se
espelham e se misturam.
Paulo Henriques Britto construiu uma obra densa, cuja fortuna crítica já é
considerável e cresce cada vez mais. Estreou em 1982, com a publicação de Liturgia
da Matéria, e, posteriormente, publicou Mínima Lírica (1989), Trovar Claro (1997),
Macau (2003), Tarde (2007) e Formas do Nada (2012). Em prosa, escreveu um livro
de contos cujo nome é Paraísos Artificiais (2004). Como tradutor, sua produção é
ainda mais vasta, abrangendo prosa (tanto no campo da literatura quanto do ensaio)
e poesia. Britto já traduziu cerca de 80 livros e ele é atualmente professor da PUC/Rio.
Sabemos que, desde as poéticas clássicas, especialmente a Poética de Aris-
tóteles, que as teorizações sobre o fazer literário acompanham a literatura em suas
diversas manifestações ao longo da história. No século XIX, com os românticos
alemães, esse procedimento passou a ser incorporado ao próprio texto literário,
concebido por eles como instância capaz de coadunar poesia e pensamento. Desse
modo, a consciência criadora, que pensa a construção da obra, ficou muito mais
evidente, seja à margem dos textos literários ou incorporada a eles. Basta consultar-
mos as obras de alguns escritores românticos alemães, entre os quais podemos citar
Schlegel, Schiller, Novalis, Goethe, entre outros, para percebermos que a prática da
reflexão sobre o fazer poético é uma recorrência.
Na modernidade, nota-se uma assimilação e ampliação dessa prática, ou
seja, o ato de debruçar-se sobre a própria composição continuou sendo uma via
fecunda para se alcançar o poético. O ato de refletir sobre minúcias do processo de
criação aponta para a multiplicidade do sujeito que se encontra por trás da obra, o
qual é, por sua vez, criador e crítico da literatura concomitantemente. Poetas como
Mallarmé, Rimbaud e Baudelaire, franceses, o americano Edgar Allan Poe e brasi-
leiros como João Cabral de Melo Neto e Mário de Andrade, lançaram mão deste re-

375
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

curso, ou seja, utilizaram a poesia como espaço para reflexão a respeito dela mesma,
revelando um olhar crítico e reflexivo sobre a própria obra.
No cenário da lírica atual, que é a prática, cada vez mais recorrente, de de-
bruçar-se sobre o próprio processo de composição, atitude que acaba constituindo
o fio condutor do projeto poético de muitos poetas. O exercício metalinguístico
evidencia ainda o caráter múltiplo do sujeito por trás da composição poética, que,
cindido, revela-se, concomitantemente, crítico e criador ao sondar a própria arqui-
tetura poemática. A respeito disso, Maria Esther Maciel (1999) destaca que, apesar
de antiga, a aliança entre a criação e a reflexão, muitos poetas concebem ainda hoje
a poesia como espaço de reflexão crítica e de debate sobre si mesma. Ao estilhaçar a
linguagem e muitas vezes incorporar à enunciação lírica o discurso crítico, o poeta
põe em diálogo teoria e prática, crítica e criação, que se espelham e se misturam.
Nota-se ainda a tentativa de exploração da autossuficiência da linguagem, uma vez
que esta assume, nesse tipo de produção poética, o lugar do sujeito.
A prática de examinar a própria composição poética com um olhar analítico
continua acompanhando muitos poetas contemporâneos. Na obra de Paulo Henri-
ques Britto, por exemplo, o leitor se depara, em inúmeros poemas, com uma relação
dialógica entre exame crítico e criação poética, traduzida em um exercício lúcido de
reflexão na e pela poesia acerca do processo de composição desta, em detrimento da
espontaneidade. Tal via aponta ainda para um descentramento do eu poético, uma
vez que o poeta, ao desdobrar-se em inúmeras subjetividades, incorpora o discurso
crítico à enunciação lírica, conforme afirma Maria Esther Maciel (1999):

A ironia define o sujeito cindido pela consciência da própria cisão. Articula-


-se, assim, como um conceito que, posteriormente, redimensionado à luz das
teorias poéticas do século XX, sob o nome de metalinguagem, constitui a
primeira tentativa de se evidenciar, teoricamente, o descentramento do eu
poético e a crise da ideia da literatura como representação - uma das grandes
contribuições do primeiro romantismo para a formação da poesia e da crítica
modernas. (MACIEL, 1999, p. 20)

A discussão sobre o fazer poético, que perpassa toda a obra de Paulo Henri-
ques Britto, pode ser considerada um dos fios condutores do seu projeto artístico.
Em muitos poemas, a subjetividade do poeta conduz o leitor a uma reflexão crítica

376
Estudos Literários

sobre o ato criador, pois o poeta incorpora à enunciação lírica a sua condição, além
de sujeito artista, de crítico. Assim, crítica e invenção atuam no mesmo espaço, de
forma integrada. Isso pode ser verificado no terceiro poema, numerado com alga-
rismo romano III e inserido no bloco intitulado “Três Lamentos”, composto por três
poemas,presente em Mínima Lírica:

III

Nada nas mãos, nem na cabeça, nada


no estômago, além da sensação vazia
de haver ultrapassado toda a sensação

É em estados assim que se descobre a verdade


que se cometem os grandes crimes, os gestos
mais sublimes, ou então não se faz nada

É como as cobras. As mais silenciosas,


de corpo mais esguio, de cor esmaecida.
destilam o veneno mais perfeito.

Assim também os poemas. Os mais contidos


e lisos, os que menos coisas dizem,
destilam o veneno mais perfeito.
(BRITTO, 1989, p. 30)

Neste poema, é possível percebermos que o poeta lança mão de uma compa-
ração para expressar sua concepção de poema perfeito, o que pode ser comprovado
na terceira e na quarta estrofes. Para o sujeito lírico, fazer um poema perfeito im-
plica na contenção, na economia da linguagem. Os poemas que em uma primeira
leitura nada parecem transmitir, “os mais contidos/ e lisos, os que menos coisas di-
zem/destilam o veneno mais perfeito”, ou seja, são os mais ricos em significados. Tal
concepção é reiterada em diversos poemas que compõem a obra de Britto, nos quais
é possível verificarmos uma “apologia ao silêncio”, ou seja, uma defesa de que é pre-
ciso que a escolha do assunto a ser abordado no poema seja cuidadosamente pen-
sada para que não sejam tematizados assuntos pouco relevantes. No poema “IV”,
retirado de Trovar Claro (1997), o poeta adverte: “Cuidado: todo silêncio é pouco”.

377
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

A exploração da materialidade da linguagem pode evidenciar ainda a exis-


tência de um projeto poético, como pode ser verificado na obra de Paulo Henriques
Britto. Em seu ensaio “Poéticas da lucidez: notas sobre os poetas críticos da mo-
dernidade” (1999), Maria Esther Maciel discute sobre a fusão das funções poética e
metalinguística da linguagem, como também sobre a sondagem que o poeta faz da
arquitetura do poema como um meio de revelação da sua consciência lúcida. Sobre
isso, ela afirma que:

Em decorrência dessa autorreferencialidade, a linguagem geralmente assu-


me, nessa modalidade poética, a condição de sujeito, dando a impressão de
que este se faz e se diz simultaneamente. [...] O que significa dizer que, ao es-
crever o poema, o poeta-crítico o faz consciente de que sua voz silencia para
que a linguagem possa dizer por e apesar dele, por saber que, se é pela lin-
guagem que o sujeito se constitui, é também nela que este se perde enquanto
pessoa: o próprio texto o despoja de sua pessoalidade. (MACIEL,1999, p. 23).

Nesse sentido, ampliando a nossa reflexão, podemos afirmar que, por trás
de um poema metalinguístico, situa-se um sujeito múltiplo, criador e crítico da
literatura ao mesmo tempo. Por essa razão, na poesia de Paulo Henriques, o espaço
da metalinguagem surge também como lugar para a manifestação de mais uma
subjetividade. Ao incorporar ao discurso poético a sua condição de crítico, o poeta
corrobora ainda a ideia de que o processo de elaboração do poema não se dá de
modo gratuito.
Outra configuração do sujeito lírico nos poemas de Paulo Henriques Britto
é o seu ofuscamento no espaço do poema. Nesse sentido, o sujeito lírico esforça-se
para se ausentar e causar no leitor a impressão de que resta no espaço poético ape-
nas a linguagem, a qual se move modulada pelas reflexões sobre os objetos do mun-
do ou sobre a própria poesia. No poema a seguir, tal fenômeno pode ser visualizado:

MATERIAIS

A utilidade da pedra:
fazer um muro ao redor
do que não dá para amar
nem destruir

378
Estudos Literários

A utilidade do gelo:
apaga tudo que arde
ou pelo menos disfarça

A utilidade do tempo:
O silêncio.

(BRITTO, 1989, p. 54)

O poema é enunciado por uma voz não-identificável, produzida na própria


estrutura discursiva. Dessa forma, nota-se que não há um eu que se manifesta expli-
citamente, e isso provoca no leitor a sensação de que esse é um discurso impessoal
que, ao mesmo tempo, se instaura como um saber sobre as coisas do mundo. Há,
no poema “Materiais”, definições das utilidades de três objetos, sendo os dois pri-
meiros palpáveis, a pedra, o gelo, e o terceiro abstrato: o tempo. No entanto, essas
definições são subjetivas, ou seja, há uma ruptura de expectativas: esperamos uma
definição referencial, principalmente para os dois primeiros objetos, mas ela não
se efetiva. Ao revelar o seu modo particular de conceber a pedra, o gelo e o tempo,
o poeta deixa resquícios de sua subjetividade, ainda que tenha ofuscado o sujeito
lírico. Por meio das definições propostas, o escritor deixa transparecer os indícios
de uma subjetividade que, mesmo diluída, ainda paira no poema.
As ideias propostas por Michel Collot em seu ensaio “O sujeito lírico fora da
si” (2004) são válidas para explicar tal fenômeno. Collot admite o deslocamento do
sujeito poético da pura interioridade e sua projeção no mundo, recusando a con-
cepção de lirismo entendida como expressão de um eu, da subjetividade pessoal.
Segundo Collot:

Através dos objetos que convoca e constrói, o sujeito não expressa mais um
foro íntimo e anterior: ele se inventa desde fora e do futuro, no movimento de
uma emoção que o faz sair de si para se reencontrar e se reunir com os outros
no horizonte do poema” (COLLOT, 2004).

Desse modo, fica evidente que o ofuscamento do sujeito lírico explícito não é
empecilho para que se possa vislumbrar algumas marcas de subjetividades, as quais
podem ser captadas por meio de uma análise atenta das construções das imagens.
Além disso,

379
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

é razoável considerar o jogo de deslocamento do eu lírico para fora de si, em


Britto, mais do que uma perspectiva específica de sua lírica, mas um exercício
que também dialoga com uma tradição moderna de constituição do sujeito
lírico moderno, que foge à concepção confessional de lirismo para se lançar
como um eu que se constrói através do outro. (CINTRA, 2009, p.53).

Em seu livro intitulado Seis propostas para o próximo milênio (2001), Italo
Calvino, no capítulo intitulado “Exatidão”, assevera, entre outros aspectos, que a
exatidão, uma característica presente na literatura do século XXI, pode ser definida
de três maneiras, a saber:

1- um projeto de obra bem definido e calculado;

2- a evocação das imagens visuais e nítidas, incisivas, memoráveis;

3- uma linguagem que seja a mais precisa possível como léxico e em sua capa-
cidade de traduzir as nuanças do pensamento e da imaginação. (CALVINO,
2001, p. 71-72)

Tomando as definições de Calvino como ponto de partida, constatamos que


a obra de Paulo Henriques Britto pode ser considerada um projeto poético bem
definido, fruto de uma consciência poética agudizada, um projeto conscientemente
planejado, revelado nas escolhas temáticas e na linguagem clara, precisa, em detri-
mento da espontaneidade. Um dos traços constitutivos da poesia de Paulo Henri-
ques Britto é o deslocamento do sujeito lírico para a linguagem, ou seja, a partir da
autossondagem da estrutura poemática, das constantes meditações sobre o fazer
poético, o poeta, paradoxalmente, se afasta de si e, concomitantemente, volta-se
para o seu poema, fruto de sua própria criação. Nas palavras de Cintra (2009), na
obra do poeta o “sujeito lírico que se faz em movimento contrário ao eu confessio-
nal herdado de uma dicção romântica e neo-romântica, perfazendo um trajeto de
exterioridade de si, para alcançar mais plenamente a expressão deste mesmo eu”.
(CINTRA, 2009, p.47). Nota-se, portanto, em muitos poemas de Britto, a ausência
de um eu que se diz confessadamente, já que “o eu-lírico está sempre além, a escapar
de qualquer apreensão, em um movimento que parte de um exercício de densa au-
tossondagem para a exterioridade”. (CINTRA, 2009, p.46) Esse movimento de saída

380
Estudos Literários

de si, na obra de Britto, aponta ainda para um diálogo com uma tradição moderna
de constituição do sujeito lírico, que se afasta da concepção hegeliana de lirismo.
O sujeito lírico, ao não se revelar explicitamente, é, em muitos poemas, projetado
em direção à linguagem, já que busca entremear-se nas reflexões que envolvem o
próprio ofício poético.

Referências Bibliográficas
BERARDINELLI, Alfonso. Da poesia à prosa. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
BRITTO, Paulo Henriques. Formas do Nada. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
_____. Liturgia da matéria. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982.
_____. Macau. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
_____. Mínima lírica. São Paulo: Duas Cidades, 1989.
_____. Tarde. São Paulo: Companhia das letras, 2007.
_____. Trovar claro. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
CALVINO, Italo. Exatidão. In: _______. Seis propostas para o próximo milênio. 2. Ed. 7.
reimp. Tradução de Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
CAMARGO, Goiandira Ortiz de Camargo. “Subjetividade e Experiência de Leitura
na Poesia Lírica Brasileira Contemporânea”. In: PEDROSA, Celia; ALVES, Ida
(Orgs). Subjetividades em devir. Estudos de poesia moderna e contemporânea.
Rio de Janeiro: 7Letras, 2008. p. 99-107.
CINTRA, Elaine Cristina. O Sujeito Fora de Si em Tarde, de Paulo Henriques Britto.
Itinerários, Araraquara, v.28, p.45-58, 2009.
COLLOT, Michel. O sujeito lírico fora de si. Tradução de Alberto Pucheu. Terceira
Margem. Revista do Programa de Pós-Graduação em Ciência da literatura.
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Centro de Letras e Artes, Faculdade de
Letras, Ano IX, no 11, p. 175-177, 2004.
COMBE, Domenique. La referencia desdoblada; el sujeito lirico entre la ficción e La
autobiografia. In: ASEGUINOLAZA, F.C. (org). Teorias sobre la lírica. Madrid:
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FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da Lírica Moderna. Tradução de Marise Curioni. São
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381
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

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Paulo: Martins Fontes, 1997.
MACIEL, Maria Ester. Poéticas da lucidez: notas sobre os poetas críticos da modernidade.
In: _______. Vôo transverso. Poesia, modernidade e fim de século XX. Rio de
Janeiro; 7 Letras: Belo Horizonte: FALE/UFMG, 1999. p. 19-41.
NUNES, Benedito. A recente poesia brasileira: expressão e forma. In: Novos estudos
CEBRAP, nº. 31. São Paulo, out. 1991. p. 171-183.

382
Estudos Literários

A representação do feminino
na Farsa de Inês Pereira
Maísa de Oliveira Mascarenhas1

Introdução
De acordo com Pedro Fonseca (2017), as origens da misoginia estão relacio-
nadas a vários postulados que acusam a mulher de ser a geradora do mal no mundo.
No contexto da Idade Média, sabemos que os discursos de gênero, na perspecti-
va dos Padres da Igreja, revelam-se bastante marcados por atitudes misóginas, em
consonância com a ideologia dominante na época. Os fundamentos desse discurso
masculinista, que legitima a supremacia do homem, remetem ao episódio da cria-
ção de Adão e Eva, uma vez que o homem teria sido criado primeiramente, enquan-
to a mulher, de acordo com essa perspectiva,

Foi criada como acessório, numa condição secundária que, sendo logo inter-
pretada como subserviente, não deixaria jamais de inferiorizá-la. Estava-se,
assim, justificada a ab origine e a competência e a sabedoria do homem em
dominar e comandar a mulher e o conhecimento da natureza, deles se servi-
do para o seu bem estar. (FONSECA, 2017)

Para melhor encaminhamento das reflexões posteriores, é válido, primeira-


mente, refletirmos sobre os pensamentos de Aristóteles (384-322 a.C) que subesti-
mam a mulher a partir do binômio Forma e Matéria. O sexo masculino, na visão
do filósofo grego, é o responsável por iniciar o processo de geração, posto que é
a Causa Eficiente. Ainda característico desse princípio masculino é ser ele Causa
Formal, isto é, formador da direção seguida pelo processo. Dessa forma, todas as
coisas e os seres seriam essencialmente caracterizados por esse princípio, que age

1  UFG / Faculdade de Letras, maisa_mascarenhas@hotmail

383
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

sobre a Matéria, a qual, por natureza, é feminina. Sintetizando, “o princípio mascu-


lino é identificado com o sêmen masculino, e a Matéria é o resíduo feminino, sus-
tância sanguínea que estarias associada ao sangue menstrual”. ((FONSECA, 2017).
De acordo com esse raciocínio, a transformação em direção à primazia da matéria
geraria um afastamento do ideal masculino. Quanto maior fosse esse afastamento,
maior seria a imperfeição. Logo, considerando que a imperfeição era vista como a
porta aberta para a monstruosidade, a mulher, um macho deformado, uma semente
inativa, possuía uma natureza monstruosa, apesar de ser considerada essencial para
a continuidade da vida.
Essa visão derrogatória e maledicente da figura feminina herdada da Anti-
guidade Clássica, presente em tantas cosmogonias míticas, aparecerá fortemente
marcada no imaginário medieval Ocidental. A partir da Idade Média, nota-se um
recrudescimento dessa visão e podemos observar isso a partir de um breve apanha-
do de alguns discursos da patrística medieval, produzidos pelos primeiros Padres
da Igreja, que reafirmam a demonologização da mulher. Para Tertuliano, a mulher é
a porta do diabo e é por causa dela que o filho de Deus teve que morrer. Eva induziu
Adão ao pecado, já que a serpente pactuou com Eva, presa fácil da luxúria e dotada
de uma natural predisposição para o orgulho e para vaidade. Por essa razão, ela
deveria aceitar como soberano aquele que ela levou a pecar. Na mesma linha de ra-
ciocínio, as mulheres eram definidas como criaturas que possuem um apelo sexual
danoso e que deveria ser reprimido. Em seu livro Decultu feminarun, Tertuliano
afirma, dentro de sua cosmetologia teológica, que a mulher deve ser destituída de
qualquer ornamentação e glamour, para não despertar desejo no homem. Por isso,
ela deve se vestir de maneira discreta, modesta, sem ostentação. Afinal, melhorar
a aparência corresponderia a modificar a criação divina, logo, cometer um pecado
muito grave.
Na esteira dessas ideias, Santo Ambrósio também se dedicou a denigrir a
imagem da mulher a partir da propaganda antimatrimonial, o que pode ser ve-
rificado nos tratados que escreveu em que se percebe clara apologia ao celibato.
Para ele, o casamento era fonte de infelicidade, por isso o celibato deveria ser algo
buscado pelos homens para fugirem da vida doméstica de casado, concebida como
uma verdadeira desgraça. Reforçando a inferioridade do sexo feminino, em con-
sonância com as ideias defendidas por Tertuliano, Santo Ambrósio chama atenção

384
Estudos Literários

para a imperfeição moral e espiritual da mulher e para a sua tendência inata de ser
enganada. Por essa razão, ela deveria obedecer cegamente a seus maridos. Nessa
perspectiva, o homem seria a cabeça da mulher, da mesma maneira que Cristo é a
cabeça do homem.
Endossando todos esses discursos preconceituosos, São João Crisóstomo
defende que a mulher, a grande responsável por arrastar o homem para desobe-
diência a Deus no Paraíso, tende a fazer um barulho incontrolável por natureza,
uma algazarra, uma vez que conversa demais sobre assuntos infrutíferos. Por isso,
São João Crisóstomo recomenda que ela permaneça em silêncio. Nessa perspecti-
va, a mulher, por ser dotada de uma inteligência rasa, superficial, não está a apta a
ensinar coisa alguma e, caso queria aprender sobre algum assunto, deve perguntar
ao seu marido, que tem proeminência em todos os sentidos. Sobre a mulher viúva,
ele afirma que esta, se não se casar novamente, tem o mesmo valor que uma virgem
diante de Deus. A viuvez, nesse sentido, seria o estado ideal para se resgatar a vir-
gindade original.
Essas reflexões misóginas também estão presentes nos dizeres de São Jerôni-
mo, que também propaga uma propaganda antimatrimonialista, pois, para ele, uma
vida devota a Deus não pode ser harmoniosa estando o homem casado. A mulher,
nessa perspectiva, é vista como desgraça para o marido, já que “inunda a casa com
sua chatice constante e sua falação diária expulsa o marido de seu próprio lar, que é
como se fosse a Igreja. (FONSECA, 2017, pp.175). A vida de casado representaria,
dessa forma, uma condenação à infelicidade. Nota-se, portanto, que

Toda essa detratação demonológica e do malefício da mulher não aconteceu


de forma simplesmente despreparada. Foi, sobretudo, um resultado de um
longo processo de difamação discursiva e fatual que, com raízes na antiguida-
de clássica e na antiga tradição judaica, caracterizou os modelos da misoginia
medieval, desde a sua contribuição patrística até a disseminação do seu lega-
do por todo o período medieval. (FONSECA, 2017).

Fica claro, assim, que entre os séculos XII e XVI, a condição das mulheres
era de total subordinação masculina, o que estava fundamentado principalmente
no Cristianismo, religião dominante na Idade Média e no início do Renascimento,
que atuava como o principal meio repressor e condenatório à mulher. Nas palavras

385
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

de Fonseca (2017) “solteiras ou casadas, as mulheres era sempre acessórias às dis-


posições dos homens, vítimas de seus comentários detratores e discriminatórios.”
(FONSECA, 2017, p.95).

Entre a inovação e o conservadorismo: um estudo analítico-crítico da


Farsa de Inês Pereira, de Gil Vicente
À luz das reflexões feitas anteriormente, pretendemos a seguir analisar criti-
camente a Farsa de Inês Pereira, de Gil Vicente, buscando encontrar nela possíveis
traços de conservadorismo que possam remeter à misoginia no tratamento dado à
mulher. Para isso, faremos, primeiramente, breves considerações acerca do autor da
peça e do contexto histórico no qual ele se insere, o qual é essencialmente impor-
tante para a compreensão de algumas características de sua obra.
Gil Vicente foi um grande teatrólogo português do período humanista (1434-
1527) que teve o seu reconhecimento durante o reinado de D. Manuel até por volta
do reinado de D. João III. Embora haja muitas incertezas acerca da sua biografia,
ele nasceu, aproximadamente, em 1465, em Guimarães, faleceu possivelmente em
1536, data de sua última obra, Floresta de Enganos. Sendo assim, uma importante
parte do seu teatro, tão rico e original, está inserida na ideologia do período medie-
val. Gil Vicente era, segundo FREITAS (2014),

Mestre de retórica do rei D. Manuel, sua principal missão foi a de assinalar os


acontecimentos festivos do Reino, como nascimentos, casamentos e entradas
régias, além de participar das celebrações do calendário litúrgico, Natal, Pás-
coa e Paixão. Registros comprovam que foi casado duas vezes: com a primeira
mulher teve dois filhos, Gaspar e Belchior Vicente; após enviuvar, casou-se
com Melícia Rodrigues, com quem teve três filhos, Paula Vicente, Luís Vicen-
te e Valéria Borges. (FREITAS, 2014, p.38)

Sabe-se que Baixa Idade Média foi marcada por uma crise de valores que
atingiu a sociedade e a da Igreja. O teatro de Gil Vicente, caracterizado pelo po-
der da sátira evidente em seus autos, comédias e farsas, é fruto de um período de
transição do fim da Idade Média para o início da Idade Moderna. Nesse contexto, é
nítido o crescimento das cidades, o enfraquecimento do feudalismo e a constituição

386
Estudos Literários

de alianças entre reis e a burguesia. Por isso, a obra desse dramaturgo é fortemente
marcada pela reafirmação da tradição e pelo teor inovador, pois

Teocentrismo e antropocentrismo coexistiram na Baixa Idade Média. O an-


tropocentrismo foi determinante para a ruptura do ―esquema‖ medieval
do mundo, em que Deus era tido como extensão de todas as coisas, prin-
cípio, meio e fim (teocentrismo). A face antropocêntrica do Renascimento
fez emergir a cultura da razão, do experimentalismo e do culto ao homem,
recriando a figura do herói e do sábio. (FREITAS, 2014, p.33)

Gil Vicente viveu nesse contexto histórico, marcado “pelas grandes descober-
tas e ao mesmo tempo pelo ambiente palacino, medieval, religioso e conservador”.
(JÚNIOR, 1994, p.26). O autor utilizou sua obra para retratar a sociedade portugue-
sa de sua época e como meio para denunciar a degradação de costumes na socieda-
de, dentro Igreja e nas famílias. Para alcançar esse objetivo, há a inserção de diversos
tipos humanos nas peças, como a alcoviteira, a velha beata, a moça casadoura, o
escudeiro fanfarrão, o fidalgo decadente, o judeu ganancioso, o padre corrupto, mu-
lher adúltera, o marido traído, entre outros. Entre as 44 peças escritas pelo autor está
a Farsa de Inês Pereira, apresentada pela primeira vez em 1523. A respeito do motivo
para a criação dessa peça, há uma suposição, sem comprovações documentais, de
que, em certa ocasião, Gil Vicente foi acusado de plagiar obras do teatro espanhol
de Juan del Encina. Por essa razão, o dramaturgo pediu para que aqueles que o acu-
savam lhe dessem um tema para que ele pudesse escrever uma peça a respeito desse
tema. Deram-lhe o seguinte ditado popular como tema: Mais vale asno que me leve
que cavalo que me derrube. Sobre esse tema, Gil Vicente teria criado A Farsa de Inês
Pereira, respondendo, dessa forma, àqueles que o acusavam de plágio.
A Farsa de Inês Pereira é composta de três partes, uma sucessão de pequenos
quadros, que formam a unidade de ação. Na primeira parte, é apresentada Inês, seu
cotidiano e seus anseios. Em seguida, é mostrado o momento em que Inês é apre-
sentada, pela alcoviteira Lianor, ao pretendente Pêro Marques, que é recusado pela
protagonista. A segunda parte da peça mostra o casamento de Inês, arranjado por
dois judeus casamenteiros, com o Escudeiro enganador Brás da Mata e o sofrimen-
to da moça devido à postura autoritária do marido. Na terceira parte da peça, Inês,
já viúva, casa-se pela segunda vez com o primeiro pretendente que havia anterior-

387
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

mente recusado e planeja trair o marido, Pero Marques, com um antigo admirador,
nomeado na peça de Ermitão. Experiente e distante das fantasias que nutria no iní-
cio da história, Inês aproveita-se da ingenuidade do segundo marido para ser infiel.
Procedemos, portanto, à análise crítica da obra. Inicialmente, a peça eviden-
cia a figura de Inês Pereira, protagonista da peça, uma moça da vila, solteira enfa-
dada pelo fato de estar em casa cuidando das atividades domésticas, isto é, fiando,
bordando, varrendo. Inês deseja ter liberdade e ser feliz e vê no casamento uma
possibilidade de alcançar a felicidade. A protagonista é uma típica moça frívola que
tem em vista um casamento com um homem que saiba falar bem, dançar, cantar,
em síntese, que seja um verdadeiro trovador. Em suas falas, a personagem consi-
dera o trabalho diário um verdadeiro tormento. As falas de Inês Pereira a seguir
confirmam isso:

INÊS Renego deste lavrar


E do primeiro que o usou;
Ó diabo que o eu dou,
Que tão mau é d’aturar.
Oh Jesu! que enfadamento,
E que raiva, e que tormento,
Que cegueira, e que canseira!
Eu hei-de buscar maneira
D’algum outro aviamento.
Coitada, assi hei-de estar
Encerrada nesta casa
Como panela sem asa,
Que sempre está num lugar?
E assi hão-de ser logrados
Dous dias amargurados,
Que eu possa durar viva?
E assim hei-de estar cativa
Em poder de desfiados?
Antes o darei ao Diabo
Que lavrar mais nem pontada.

388
Estudos Literários

Já tenho a vida cansada


De fazer sempre dum cabo. (VICENTE, 1523)

Inês Pereira aproxima-se da personagem Isabel, da peça de Gil Vicente Quem


tem farelos (1505), obra em que também aparece a figura da moça solteira que vive
dentro de casa, submetida à autoridade da mãe, ocupada com os afazeres domésti-
cos e sem poder ir à rua. Por meio da análise do seguinte fragmento, fica claro que
Inês deseja se casar com um homem “discreto feito farinha”, de bons modos, cul-
to, educado, cavalheiro, que soubesse cantar e dançar, enfim, que fosse um fidalgo
capaz de lhe dar uma vida feliz. Inês deseja um marido que possibilitasse a ela ir à
rua, não ficar presa dentro de casa. A respeito disso, de acordo com os discursos
misóginos da patrística medieval, a vontade feminina de frequentar lugares provém
do desejo inato das mulheres, vaidosas por natureza, de verem e de serem vistas. A
respeito do modelo de homem que julga como ideal, Inês afirma:

Que seja homem mal feito,


Feio, pobre, sem feição,
Como tiver discrição,
Não lhe quero mais proveito.
E saiba tanger viola,
E coma eu pão e cebola.
Siquer uma cantiguinha!
Discreto, feito em farinha,
Porque isto me degola. (VICENTE, 1523)

Movida por essa ilusão, a protagonista ridiculariza e despreza o primeiro


pretendente, Pêro Marques, um simplório camponês que tem boas intenções e é
filho de lavradores ricos, mas que não a agrada por sua rusticidade. A ignorância e
a ingenuidade de Pero Marques são relevadas na linguagem que ele utiliza. Como o
simplório camponês não corresponde ao modelo que Inês idealiza do que seria um
marido bom, ela o rejeita.
A mãe de Inês, outra personagem que se faz presente no início da peça,ao
contrário da filha, é bastante sensata. Suas falas expressam sua aceitação aos valo-
res da época, pois a mãe afirma que se uma jovem que anseia casar não pode ser

389
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

preguiçosa e diz que quando a filha seguir seus conselhos terá muitos pretendentes
para escolher. Percebe-se, dessa forma, que o discurso da mãe é uma reafirmação
dos pensamentos misóginos vigentes na época em que a peça foi escrita e está em
consonância com os discursos da literatura patrística medieval, pois, para a mãe de
Inês, a filha deveria atender às expectativas do homem para conseguir um matrimô-
nio vantajoso. Para isso, não poderia ser preguiçosa:

Mãe:
(...)
Como queres tu casar
com fama de preguiçosa?
(...)
Não te apresses tu, Inês:
«Maior é o ano que o mês».
Quando te não precatares,
virão maridos a pares,
e filhos de três em três. (VICENTE, 1523)

A personagem da mãe, dessa forma, cumpre seu papel de fazer com que Inês
fosse uma boa moça, dentro de uma perspectiva de comportamento tradicional.
De acordo com Tertuliano, em seu discurso moralizante acerca do feminino, a obe-
diência que a mulher deve em relação ao marido, revelado por meio dos cuidados
domésticos, é um ornamento. Sendo assim, atividades como tear, bordar, cuidar
das tarefas domésticas são consideradas, para ele, complementos ornamentais que
agradam mais do que o ouro.
Além disso, a mãe de Inês recomenda a filha que se comporte, diante do fu-
turo marido, o Escudeiro Brás da Mata, com discrição, que não seja sorridente e que
fale o mínimo possível, como pode ser observado no seguinte fragmento:

MÃE Se este escudeiro há-de vir


E é homem de discrição,
Hás-te de pôr em feição,
De falar pouco e não rir
E mais, Inês, não muito olhar

390
Estudos Literários

Por que te julguem por muda,


Porque a moça sesuda
É uma perla pera amar. (VICENTE, 1523).

Na literatura patrística, o topos da prescrição da continência feminina está


presente em várias falas dos fundadores da Igreja. Em uma perspectiva moralizan-
te, Tertuliano afirma que o objetivo principal da mulher deve ser “buscar o brilho
da simplicidade, pintando os olhos com a modéstia e boca com o silêncio”. (FON-
SECA, 2017,p.162). A fala da mulher aparece comumente associada à algazarra, à
tagarelice, por isso é comum que seja recomendado que a mulher que fique em
silêncio. São João Crisóstomo, apoiado em São Paulo, aponta para a necessidade de
regulação da fala feminina e prescreve que a mulher deve aprender com o marido
e permanecer em silêncio, já que sua fala é considerada infrutífera. A respeito das
mulheres, São João Crisóstomo afirma que “elas falam na igreja mais do que nas fei-
ra ou nos banhos, porque nesse lugar sagrado ficam todas ativamente conversando
sobre assuntos infrutíferos, como se ali fossem para mera distração” (FONSECA,
2017, p.161). Segundo o santo, o resultado disso seria “uma balbúrdia total e elas
parecem não conseguir entender que , a menos que fiquem caladas, não podem
aprender nada de útil. (FONSECA, 2017, p.161). A personagem da mãe de Inês Pe-
reira, portanto, reforça esses valores conservadores e esses pensamentos misóginos
em relação à mulher, à medida que sugere que a filha fique em silêncio e obede-
ça ao marido. Para Fonseca (2017), “é surpreendente aqui o tour de force retórico
do discurso de São João Cisóstomo ao naturalizar o silêncio como submissão, por
considerar a mulher, em termos que referência ao gênero, de fala incontrolável por
natureza”. (FONSECA, 2017, p.163). Essa associação de cunho misógino tem suas
raízes no fato do descalabro que a mulher provou no Paraíso, pois Eva, após ter
pactuado com a serpente, induziu Adão ao pecado e o arrastou para ruína. Por essa
razão, a mulher, criatura inclinada à transgressão e passível de ser enganada, deve
permanecer subjugada ao homem.
Além de recomendar que a filha seja recatada, a mãe de Inês sugere à filha
que não olhe demais para o seu pretendente Escudeiro, ordena a filha que volte o
seu olhar para baixo, sugerindo uma postura subserviente coerente com os valores
vigentes na época. Nessa recomendação da mãe de Inês, é possível escutarmos ecos

391
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

de alguns discursos misóginos da literatura patrística medieval, que defendem que


a mulher suscita no homem um desejo danoso mesmo de forma involuntária. Por
meio de sua aparência, ela provoca tal tentação, por isso é considerada perigosa pa-
ra a vista dos homens. A respeito do poder de atração que o olhar feminino exercia
no homem, Bloch(1995) afirma que o olhar feminino, de acordo com os Padres da
Igreja, era fundamental para o exercício da sedução, pois “o desejo entra através
dos olhos e o amor é sempre amor à primeira vista”. Na mesma linha de raciocínio,
São João Crisóstomo defende que o simples ato de contemplar a mulher já causa ao
homem mil malefícios.
A alcoviteira Lianor Vaz é outra personagem feminina presente na peça. Sa-
bemos que na obra de Gil Vicente essa personagem se faz presente em várias peças
e, de modo geral, tem como função arranjar casamentos e encontros amorosos.
Na Farsa de Inês Pereira, Lianor, assim como a mãe de Inês, também reafirma pen-
samentos conservadores, pois reforça que Inês deveria casar-se jovem e que não
deveria perder a oportunidade de contrair um matrimônio, mesmo que não fosse
de sua vontade. Recomenda a Inês, inclusive, que não demore em relação à escolha
do marido. Ao anunciar a Inês um possível pretendente, Lianor ressalta, primeira-
mente, o padrão financeiro do futuro noivo, um rico fidalgo da aristocracia rural
que poderia possibilitar a Inês a mudança em seu status quo:

LIANOR Eu vos trago um bom marido,


Rico, honrado, conhecido.
Diz que em camisa vos quer [...]
Casa, filha, que te preste,
não percas a ocasião.
Queres casar a prazer
No tempo d’agora, Inês?
Antes casa em que te pês,
que não é tempo d’escolher.
Sempre eu ouvi dizer:
«ou seja sapo ou sapinho,
ou marido ou maridinho,

392
Estudos Literários

tenha o que houver mister.»


Este é o certo caminho. (VICENTE, 1523).

A alcoviteira reproduz valores conservadores da época à medida que acon-


selha Inês a se casar rapidamente, sem estabelecer critérios para escolher um bom
marido. Inês, no entanto, rejeita o pretendente Pero Marques que Lianor lhe apre-
senta, devido, sobretudo, a sua rusticidade e a sua ingenuidade. Apenas condição
financeira do futuro noivo não é motivo suficiente para convencer Inês a aceitar o
pedido de casamento, uma vez que ela deseja um marido que tenha bons modos,
que saiba conversar, cantar, dançar e que seja discreto. Por essa razão, ela recusa o
pedido de casamento. Algumas falas da mãe de Inês e da alcoviteira Lianor apa-
recem entremeadas de ditados populares, inclusive o que servirá de mote para a
farsa. Ambas alertam Inês que mais vale um asno que a leve do que um cavalo que
a derrube, conclusão a que a que própria protagonista chegará no final da Farsa:

Mãe: «Mata o cavalo de sela


e bô é o asno que me leva».
Lianor: Filha, «no Chão do Couce
quem não puder andar, choute.»
E «mais quero eu quem me adore
que quem faça com que chore». (VICENTE, 1523)

Na Farsa de Inês Pereira, há outros dois personagens que chamam atenção,


embora sejam homens: Latão e Vidal, os judeus casamenteiros, que exercem papel
semelhante ao da alcoviteira Lianor, pois são eles os responsáveis por arranjar o
segundo pretendente para Inês, Brás da Mata, o Escudeiro charlatão, com quem ela
se casará. De forma maliciosa, eles buscam um noivo para Inês sem se preocupar
com o caráter dele. A inserção dos judeus casamenteiros na obra remete à imagem
cristalizada no nosso imaginário do judeu hábil no comércio:

MÃE Eu não sei quem t’aconselha...


INÊS Enfim, que novas trazeis?
VIDAL O marido que quereis,
De viola e dessa sorte,
Não no há senão na corte

393
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Que cá não no achareis.


Falámos a Badajoz,
Músico, discreto, solteiro.
Este fora o verdadeiro,
Mas soltou-se-nos da noz.
Fomos a Vilhacastim
E falou-nos em latim:
– «Vinde cá daqui a uma hora,
E trazei-me essa senhora».
INÊS Assi que é tudo nada enfim!
VIDAL Esperai, aguardai ora!
Soubemos dum escudeiro
De feição d’atafoneiro
Que virá logo essora,
Que fala... e com’ ora fala! (VICENTE, 1523)

O Escudeiro Brás da Mata é habilidoso com as palavras e, por meio do seu


discurso galanteador, convincente e bem elaborado, encanta Inês e a engana, fingin-
do viver de forma abastada com o objetivo de impressioná-la:

Escudeiro: Antes que mais diga agora,


Deus vos salve, fresca rosa,
e vos dê por minha esposa,
por mulher e por senhora;
Que bem vejo
Nesse ar, nesse despejo,
Mui graciosa donzela,
que vós sois, minha alma, aquela
que eu busco e que desejo.
Obrou bem a Natureza
em vos dar tal condição
que amais a discrição
muito mais que a riqueza.
(...)

394
Estudos Literários

Sei bem ler


e muito bem escrever,
e bom jugador de bola,
e quanto a tanger viola,
logo me ouvireis tanger. ( VICENTE, 1523)

Novamente, podemos observar a presença de ecos de discursos misóginos


na peça, pois Inês age com falta de sabedoria ao escolher o marido. É facilmente
enganada por Brás da Mata, assim como Eva foi enganada pela serpente no Paraíso.
Inês, insensata, despreza as boas intenções do rústico Pêro Marques, o primeiro
pretendente, e casa-se, movida pelo deslumbramento, com Brás da Mata vislum-
brando ascensão na pirâmide social. Isso remete às ideias defendidas por Tertuliano
e por Santo Ambrósio, que reforçam a imperfeição moral e espiritual da mulher e a
sua tendência inata de enganar e de ser enganada. Sendo assim, por ser destituída
de sabedoria e por ter uma inteligência fraca, ela deveria obedecer cegamente a seu
marido. Após casar-se com o Escudeiro, Inês conhece a verdadeira face do esposo.
Ele afirma que ela deve permanecer trancada, reclusa em casa, proíbe a esposa de
ir à igreja e até mesmo de cantar e chega a ameaçá-la fisicamente, em caso de deso-
bediência. Nota-se, assim, que nas falas do Escudeiro reverberam fortes ecos dos
discursos da patrística medieval, pois para Brás da Mata, na mesma perspectiva dos
Padres da Igreja, a esposa deveria ser discreta, obediente, não deveria gozar dos
mesmos direitos que o homem tinha e deveria acatar tudo o que o esposo dissesse:

ESCUDEIRO Vós cantais, Inês Pereira?


Em vodas m’andáveis vós?
Juro ao corpo de Deus
Que esta seja a derradeira!
Se vos eu vejo cantar
Eu vos farei assoviar..
INÊS Bofé, senhor meu marido,
Se vós disso sois servido,
Bem o posso eu escusar.
ESCUDEIRO Mas é bem que o escuseis,
E outras cousas que não digo!

395
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

INÊS Porque bradais vós comigo?


ESCUDEIRO Será bem que vos caleis.
E mais, sereis avisada
Que não me respondais nada,
Em que ponha fogo a tudo,
Porque o homem sesudo
Traz a mulher sopeada.
Vós não haveis de falar
Com homem nem mulher que seja;
Nem somente ir à igreja
Não vos quero eu leixar
Já vos preguei as janelas,
Por que não vos ponhais nelas.
Estareis aqui encerrada
Nesta casa, tão fechada
Como freira d’Oudivelas.
INÊS Que pecado foi o meu?
Porque me dais tal prisão?
ESCUDEIRO Vós buscastes discrição,
Que culpa vos tenho eu?
Pode ser maior aviso,
Maior discrição e siso
Que guardar o meu tisouro? (VICENTE, 1523)

As falas do Escudeiro, assim como as falas da mãe de Inês Pereira, estão


fundamentadas nos discursos patrísticos medievais denegridores da mulher. Para
os Padres da Igreja, a exemplo de São João Crisóstomo, a mulher tinha um intelec-
to fraco, vulnerável, o que a levaria facilmente ao erro. Uma prova disso é que ela
“quando quis ensinar o homem pela primeira vez, o arrastou para a culpa da deso-
bediência e da ruína de tudo” (FONSECA, 2017, p.164). Por essa razão, a mulher,
primeira a cometer o pecado da transgressão da ordem divina, deve se sujeitar aos
desejos do homem, que deve tomar a frente, deve ter proeminência em todos os
sentidos, já que é de criação anterior a da mulher e é moralmente superior a ela.

396
Estudos Literários

Santo Agostinho, revelando também uma postura discriminatória da figura femi-


nina, afirma que a condição natural da mulher é de sujeição em relação ao homem,
uma vez que o homem é a representação da racionalidade e, como tal, deve guiar o
sexo feminino. Ainda que , para Santo Agostinho, a mulher tenha a mesma natureza
que a do homem, está fisicamente sujeitada a ele, os quais devem ser responsáveis
por inspirar princípios de boa conduta. Sobre isso, Fonseca (2017) considera que
para Santo Agostinho

A mulher continua sendo reconhecida como desgovernada e inclinada, por


princípio natural, para a materialidade e para os impulsos desviantes da boa
conduta, necessitando do controle superior dos bons princípios formativos e
naturais da índole do homem. (FONSECA, 2017, p.199)

No final da peça, Inês, após ter atravessado um processo de aprendizagem,


demostra ter consciência da escolha errada que fez e se mostra arrependida de ter
procurado um marido discreto, acreditando que aquele que tivesse um discurso
belo a faria feliz . Após ficar viúva de Brás da Mata, decide novamente se casar para
gozar de uma boa vida, porém afirma que agora será sábia ao escolher um marido:

Nem mouro que chamem Ale:


E assi deve de ser.
Juro em todo meu sentido
Que se solteira me vejo,
Assi como eu desejo,
Que eu saiba escolher marido,
À boa fé, sem mau engano,
Pacífico todo o ano,
E que ande a meu mandar
Havia m’eu de vingar
Deste mal e deste dano! (VICENTE, 1523)

Em seguida, Inês decide se casar com Pêro Marques, o primeiro pretenden-


te que foi recusado. Após ter vivido a péssima experiência do casamento com o
Escudeiro Brás da Mata, Inês tem a certeza de que o simplório Pêro Marques será
um ótimo marido, devido ao fato de ele ser ingênuo. Nota-se que a ingenuidade,

397
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

que outrora foi motivo para Inês ridicularizar e depreciar Pêro Marques, agora é
justamente o traço de personalidade que Inês considera ideal e muito conveniente.
Ela supõe que o rústico filho de lavradores não lhe dará ordens e que, portanto, ela
poderá fazer o que tiver vontade. O personagem Pero Marques remete, metaforica-
mente, ao asno que Inês busca agora:

INÊS Andar! Pêro Marques seja.


Quero tomar por esposo
Quem se tenha por ditoso
De cada vez que me veja.
Por usar de siso mero,
Asno que me leve quero,
E não cavalo folão.
Antes lebre que leão,
Antes lavrador que Nero. (VICENTE, 1523)

Nota-se, por meio da postura de Inês, que há no final da Farsa a desmorali-


zação dos votos do casamento, pois a protagonista se aproveita da ingenuidade do
esposo trai-lo. No final da Farsa, o marido, simplório, não sabe que está levando a
esposa para encontrar o amante, o Ermitão, um antigo pretendente de Inês. Pêro
Marques pode ser a representação da falência da aristocracia rural, em uma época
em que a burguesia estava em ascensão. A figura de Pêro Marques é ridicularizada,
pois ele não exerce a autoridade sobre a esposa e, por isso, ela o engana. É interes-
sante observar a construção da imagem final da peça: Pêro Marques carrega Inês,
literalmente, em seus ombros, rumo a esse encontro. Essa imagem remete ao ditado
dito pela mãe de Inês, pois, nesse momento, a figura do marido corresponde, meta-
foricamente, a do asno.

INÊS «Bem sabedes vós, marido,


Quanto vos amo.
Sempre fostes percebido
Pera gamo.
Carregado ides, noss’amo,
Com duas lousas.»

398
Estudos Literários

PÊRO «Pois assi se fazem as cousas»


INÊS «Bem sabedes vós, marido,
Quanto vos quero.
Sempre fostes percebido
Pera cervo. (VICENTE, 1523)

Considerações finais
O presente artigo mão tem a intenção de reproduzir uma litania da desgraça
a respeito da mulher ao recuperar alguns discursos da patrística medieval. Tam-
bém não tem pretensão estabelecer uma única análise crítica possível para a Farsa
de Inês Pereira. Pretendemos, primeiramente, mostrar o quão rica é a obra de Gil
Vicente, engendrada sob uma tensão, oscilando entre a reprodução de ecos de dis-
cursos misóginos e atitudes que apontam para uma incipiente inovação em relação
a sua época. O objetivo principal deste estudo foi evidenciar que modo traços de
misoginia estão presentes na Farsa de Inês Pereira, de Gil Vicente, considerando que
esse autor vivenciou um período de transição, ou seja, situa-se entre a inovação e o
conservadorismo.
Nessa peça, pode-se notar que alguns discursos da mãe de Inês e da alco-
viteira Lianor Vaz reverberam valores conservadores tradicionais da época. Além
disso, é evidente também que alguns discursos do Escudeiro refletem o pensamento
vigente na época em que a farsa foi escrita, segundo o qual a mulher deve ser sub-
jugada ao homem. Fica claro ainda que a postura de Inês, mesmo aparentemente
transgressora em relação aos costumes da época, já que ela caracteriza, por exemplo,
o trabalho doméstico como odioso; não pode ser considerada sinônimo de comple-
ta renovação, uma vez que Inês não tem consciência de classe, isto é, não é crítica em
relação à condição da mulher de sua época. Ao recusar alguns dos valores vigentes
em sua época, Inês deseja apenas modificar a sua própria condição. Podemos con-
siderar, portanto, a hipótese de que, por trás do cômico, há na Farsa de Inês Pereira
traços de uma visão conservadora em relação ao mulher e uma intenção moralizan-
te. À medida que Inês Pereira engana o marido Pero Marques porque ele é ingênuo,
o autor pode estar sugerindo aos homens que tomem cuidado com a esperteza de
suas esposas, como se fizesse, implicitamente, uma recomendação para os homens

399
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

exercerem sua autoridade em seus lares, caso contrário, poderiam ser vítimas do
que ocorreu com Pêro Marques. Dessa maneira, estaria denigrindo a imagem da
mulher, assim como os Padres da Igreja fizeram em seus discursos misóginos.

Bibliografia
ABDALA JÚNIOR, Benjamin; PASCHOALIN, Maria Aparecida. História social da
literatura portuguesa. 4 ed.São Paulo: Ática, 1994.
ARAÚJO, Márcia Maria de Melo. Mulher medieval e trovadorismo galego-português: o
feminino e a feminização nas cantigas de amigo/ Márcia Maria de Melo, Pedro
Carlos Louzada Fonseca. Goiânia: Ed. Da PUC Goiás, 2015.
FONSECA, Pedro Carlos Louzada. Mulher e misoginia na visão dos Padres da Igreja e do
seu legado medieval. Goiânia: Editora da PUC Goiás, 2017.
FREITAS, Amanda Lopes de. Gênero moralidade: uma análise de Auto da Alma e Auto da
Barca da Glória, de Gil Vicente. 2014.116f. Dissertação (Mestrado). Universidade
Federal de Viçosa, Minas Gerais.
VICENTE, Gil. Farsa de Inês Pereira. 1523. Disponível em: http://www.dominiopublico.
gov.br/download/texto/bv000111.pdf. Acesso em 02 de julho de 2018.

400
Estudos Literários

Expressividade lírica de Cora


Coralina
Marta Bonach Gomes1

Introdução
Cora Coralina2, pseudônimo de ANA LINS DOS GUIMARÃES PEIXOTO
BRETAS (1889-1985). É uma criativa e significativa autodenominação. È uma ban-
deira afetiva e compromissada (PESQUERO, 2003), que foge aos padrões de sua
época. Invento expressivo literário, responsável direta e indiretamente pela dissemi-
nação do seu nome como escritora, teoriza Gilberto Mendonça Teles.
Das lições de Pesquero sobre a questão do cartão de visitas, a apresentação
do pseudônimo de Aninha, ou seja, o desvelamento da sua essência, trouxe ao mo-
mento a importância de salientar: Em todas as culturas, o nome tem um caráter má-
gico e sagrado. Ele tem o poder da palavra, ou seja, representa e é, ao mesmo tempo,
a coisa representada, encarna sua força e realidade. (PESQUERO, 2003). Já fizemos
uma breve referência à criação e pura presença da alma da poetisa. Todo nosso texto
confirma esse pressuposto.
A pertinência em conhecer e sistematizar as peculiaridades do discurso de
Cora Coralina, instiga-nos produzir esse artigo, baseado em seus escritos que faz
entrar em estado de poética, emoções corpóreas que motivam o estado de sensações
de seu texto no sentido performático, que une literatura, verso livre, memória e o
meio ambiente que a eleva a vastidão do Cosmos, fazendo com que ela se confunda
com o todo e com o tudo que compõe a totalidade do universo.

1  PUC-GO, [email protected]
2  Cora Coralina, pseudônimo de Anna Lins dos Guimarães Peixoto Bretas (Cidade de Goiás, 20 de agosto
de 1889— Goiânia, 10 de abril de 1985), foi poetisa e contista brasileira. Considerada uma das mais importan-
tes escritoras brasileiras, ela teve seu primeiro livro publicado em junho de 1965 (Poemas dos Becos de Goiás
e Estórias Mais), quando já tinha quase 76 anos de idade.

401
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Nesse sentido, a pesquisa se propõe a realizar um estudo sob a produção


artística, estética e analítica da singularidade dos poemas coralíneos, a partir da
construção escrita de seus textos poéticos e sob o viés do movimento constante de
atração pelo espaço rememorado (BACHELARD, 1989).
Dessa forma, a carga poética marcada por uma força vinda do coração do
Brasil, que enaltece os ermos goianos, a antiga capital de Goiás, com suas pedras,
seus becos e estórias mais. Serão enaltecidos e caracterizados como a fortuna crítica
e poética da autora da cidade de Goiás.
O tema poético, hodiernamente, tem sido determinado a partir da força de
significação do objeto estético, esse tema, primeiramente não atrai atenção para si
mesmo e, em consequência não existe imitação do real, porém não afirmamos que
ele seja um símbolo.
Nenhum artista se coloca a margem das evoluções dos fenômenos cultu-
rais, a arte é a mediadora entre a abstração da ciência (metodologia científica) e a
sensibilidade humana. Embora a produção desse trabalho não seja refletir sobres
essas complexidades.
Registraremos algumas considerações emergentes, considerando os estudos
advindos de áreas que produzem na percepção da significação estética, no caso ini-
cial um prelúdio artístico que contém uma explosão de desafios.

Maturidade Fecunda de Cora Coralina


Tal consideração nos permite que enfoquemos, sob o ângulo especial, as
obras poéticas de Cora Coralina, a partir de sua técnica inovadora de seus poemas
de versos livres ligados a natureza, sempre modernos e eternos.
Nota-se então que a palavra é a primeira matéria da poesia coralínea, decerto
a arte da poeta é saber lidar com ela, optando, dentre as mais variadas composições
que o conjunto de vocábulos lhe oferece, aquelas que possuem valor por si mesmas,
em termos de se colocar de maneira primária às particularidades que tocam o es-
pírito humano.
Daí a preocupação do leitor deva ser, inerente, encontrando nas palavras to-
dos os significados e sugestões que elas possam ofertar, no vocábulo da palavra,

402
Estudos Literários

nome, e termo, que se possam ser capturadas como sinônimos sobre o caráter ima-
ginário interiorano, simples, dedicado a um leitor sensível.
A poesia narrativa de Cora, pinta quadros na memória e parte do que se ima-
gina, cria para recriar o que é representado pelo signo. A linguagem humana nos
textos escritos coralíneos, ancorados na experiência, cujos ingredientes misturaram
seus atentos olhares às insignificâncias do cotidiano, do próprio espaço à polifonia
de múltiplas vozes que enaltece seus textos, a literatura (popular), que por vezes nos
reforça o poder de uma força vinda do interior.
Assim, a poetisa traça o encantamento entre o eu poético e a obra, pois teve
a grandeza e lucidez para dizer em seus versos (a chave para a compreensão de sua
obra/vida) que trazia dentro de si todas as vidas do universo: mulher do povo, do-
ceira, cabocla velha que lavava suas roupas no rio vermelho... sonhou, amou, fugiu,
fez doce e poesia.
Ocorre-nos, a propósito, registrar que, a escritora saiu da Cidade de Goiás
“Goiás Velho”, antiga capital do Estado, em 1910, com idade de 21 anos, fugindo em
cima de um cavalo, na garupa de um homem casado (desquitado de uma índia) e
vindo de fora, uma forma nada convencional para uma época registrada nos idos da
primeira década do século passado.
Conforme escreveu Gilberto Mendonça Teles para entrevista no Rio de Ja-
neiro no ano de 2017 sobre a saga coralínea: Cantídio Tolentino Bretas Figueiredo
com quem viveu de 1910 a 1934, ano de sua morte: sua mãe foi contra o namoro,
por que ele era desquitado, tinha filhos, inclusive com outra mulher, uma índia.
[Nos seus escritos já anciã, Cora vai dizer que saiu casada].
E embrenharam-se no adito das estradas empoeiradas, deixando sua cidade
para traz, onde foi desaprender Goiás em São Paulo. Foram viver no interior (em
Andradina e Jaboticabal). Assim o que escreveu por lá não foi divulgado.
Quarenta e cinco anos depois (em 1956), retornou sozinha a Goiás, já nos
seus setenta anos e sem livro publicado. Na verdade, esse pensamento que reclama
uma meditação em que o próprio espaço se torna uma visibilidade pensante, lugar
pensante e olhar filosófico.
Nesse ambiente, “Quarenta e cinco anos decorridos. Procurava o passado no
presente e lentamente fui identificando minha gente”. [Voltei] do livro Vintém de

403
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

cobre (UFG,1983); Cora, volta e expressa amor a sua terra, seu jeito goiano e canta o
amor de Aninha a sua cidade; tornando-se então não só a mulher mais importante do
Brasil Central e porque não? – de toda a literatura feminina do Brasil. (TELLES, 2017)
Enclausurada nas paredes centenárias em seu silencioso recolhimento na
Casa Velha da ponte, Cora entregou-se à poesia, acolhida pela lembrança e cercada
pelas pedras e o rio vermelho que corria mansamente, como o sangue em suas veias.
A escritora voltou a sua cidade de Goiás, e começou a sua prosa em tema de
poética, conquistou a literatura feminina em goiás, tudo isso com humana humil-
dade em sua passagem pelo planeta.
O tema poético em movimento de Cora Coralina, transitou quase meio sé-
culo de vida, escreveu, declamou, militou a favor da natureza, dispôs-se a fornecer
pistas ou abrir portas para uma espécie de paradigma (de estilo, de produção, de lo-
calismo cultural, etc.). Se considerarmos a obra publicada já na fase de sua velhice.
Necessita, pois, uma crítica histórica de (re)construção descritiva da obra,
através de uma análise crítica favorecendo seus escritos, mesmo que tenha aconte-
cido pelo caminho de Cora, pedras, conflitos, dramas sociais, contados pela contista
goiana, onde ela soube retirar a matéria, dos seus trabalhos mais autênticos, que
envolvem memória em prosa e poesia; consideramos que habitava em si o lirismo
e humanismo.

Entardecer Poético de Cora Coralina


Ocorre-nos a propósito, registrar a trajetória de tema poético em movimento
de Cora Coralina, transitou por quase meio século de vida (desde a adolescência),
escreveu, declamou, militou a favor dos jovens GEN (Grupos de Escritores Novos)
de Goiânia como ressalta Denófrio (2004):

Contraditoriamente ou não, à época de sua estreia como poetiza, Cora foi


muito apoiada, em Goiás, pelos jovens que se enveredavam pelas vias da
experimentação, ou seja, pela vanguarda goiana daquela época, do que por
aqueles que se encontravam em sua faixa de vigência. Na verdade, ela pre-
feria os jovens. A poetisa declara, em seu poema, “Meu vintém perdido”, seu
respeito constante, gratidão pelos jovens./ Foram eles, o grupo Gen, cheios de

404
Estudos Literários

um fogo novo/ que me promoveram a primeira noite de autógrafos[...] jamais


os esquecerei. (Denófrio, 2004. P.22)

Mas no cenário literário a força jovem se fez notar na entrada inaugural da


poetiza na Literatura em Goiás em que a jovem anciã estreia com maestria. Conse-
quência significativa para a poetisa goiana.
Sua vitalidade é sugada do profundo do ser, enraizada de conotações de tra-
ços lírico e telúrico. Livre, turbulenta, receptiva, de poemas rudes como as pedras e
fragmentos de cada elemento do tempo a autora se enraíza na matéria-pedra.

Expressividade em Movimento: Algumas Aproximações


Entende-se por pós-moderno, como lugar da consciência, do pluralismo de
todos os tipos (religiosos, étnicos, sexuais, artísticos, políticos, culturais...), da cul-
tura híbrida, do verso livre, da ruptura, da reflexividade.
Tais elementos devem atenção e dedicação acadêmico científica para dotá
-los de sentido, modernismo e pós-modernismo são momentos em termos de limi-
tes pouco claros, tanto no tempo como no espaço.
Das lições de Cora, sobre a questão da arte moderna, que nos aponta para
um mundo que há de vir. Consequentemente ela nos abre as portas da casa velha
da ponte, e nos sugere que a arte não se encontra seu termo no mundo fechado da
tecnologia; existe continuidade nesse caminho-poesia.
Poderíamos apresentar aos poucos, cada verso, cada conto, pois é justamente
o novo saber da arte que desponta no horizonte coralíneo. Elegemos o primeiro li-
vro de Cora para homenageá-la nesse discurso: em 1965, Poema dos Becos de Goiás
e Estórias mais, pela Editora José Olímpio, [onde trabalhou entregando livros] e foi
reconhecida a ponto de publicar seu primeiro livro.
Foi ganhando várias edições, universalizando a literatura com tamanha força
e expressão que a escritora os construiu e nos presenteou.
Acrescentaríamos coralineamente que a razão dessa busca, encontra-se tal-
vez, no próprio destino.
Outro ponto de contato com a tardia introdução de Cora no mundo da lite-
ratura, de seus planos literários, seriam a força poética com que dirige seus senti-

405
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

mentos do passado presente cujas dimensões estão para o pertencer da verdade que
acontece na obra. A propósito, escreve Heiddeger (1976): “A essência da verdade se
desvelou como liberdade.”
Nessa perspectiva, o texto é livre e sobretudo, a sua simplicidade de leitura é
agradável, com detalhes típicos do fazer literário com expressividade lírica de um
tempo social e individual entre a palavra e a realidade da teoria do texto.
Também a valorização da autora local ressaltando os valores ficcionistas de
forma simples e contundente a que se reflita no sentido semântico porque adapta,
cria e recria os textos escritos que se cruzam na poesia ao reproduzir a linguagem
bruta do interior goiano, encontrando o melhor de sua expressão artística.

“Despojada, Apedrejada.
Sozinha e perdida nos caminhos incertos da vida.
Eu fui caminhando, caminhando.../
E nas pedras rudes do meu berço
Gravei poemas”
(Semente e fruto. Denófrio 2004, p.242)

Cora nos permite essa reflexão pelo frescor de sua narrativa escrita que abor-
da desde a leitura mais apurada, até a identidade do sujeito lírico, a reflexão cuja
missão é, desde os atos mais rotineiros, até o gosto pelo literário que se expande em
sua poética, uma vez que torna possível mergulhar na complexidade da estética e na
semântica que são colhidos nos versos da poetisa goiana.
Percebe-se em textos coralíneos, a ideia, que sugere a figura da artista, cuja
obra é uma realidade, apreendida pelo conceito de seus versos poéticos.
Cora Coralina, representa a sua vida. Desentranhando-se a descoberta no
transcurso da pesquisa, no que se deva registrar a circularidade da sensibilidade
humana e do cultural.
Poetisa mensageira da liberdade e o que interessa em nossos propósitos, seus
poemas, as estórias como ser humano e vivo, em segunda pessoa, como se estivesse
conversando com ela. Na verdade, é como se a Aninha dos 15 anos estivesse dizen-
do a Cora Coralina dos setenta. (Gilberto, 2017) quando ela se expressa; permite ao
leitor discernir a sua essência:

406
Estudos Literários

“Das Pedras”

Ajuntei todas as pedras


que vieram sobre mim. [grifos]
Levantei uma escada muito alta
e no alto subi.
Teci um tapete floreado
e no sonho me perdi.

Uma estrada,
um leito,
uma casa,
um companheiro.
Tudo de pedra. [grifo nosso]

Entre pedras
cresceu a minha poesia.
Minha vida...
Quebrando pedras
e plantando flores. [grifos]

Entre pedras que me esmagavam


Levantei a pedra rude
dos meus versos. [grifos]
(Meu Livro de Cordel. Coralina, Cora. Ed Global, p. 13, 1987)

Bem poderia se servir das imagens em construção descritiva da obra. A pe-


dras de Cora se diferenciam a cada verso, detalhes, que se encontram nos vãos e no
interior da palavra, justificam as possibilidades de desprender-se das provocações
do caminho.
Assim se explica o caminho positivo de retorno ao passado:

Partindo de um universo mais remoto, alcança-se agora o mais próximo, com


as marcas de um corpo lírico lanhado, que assume o saldo de sua própria

407
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

escolha, tentando reverter ou, ao menos, compensar as suas agruras com as


flores-poemas. Pedra e flor, sobretudo a primeira, são palavras tão reinci-
dentes quanto simbólicas no texto de Cora Coralina. A palavra pedra, no
singular, no plural ou em formas parassinônimas, comparece 86 vezes em sua
obra lírica publicada. Isto sem falar de sua reincidência na prosa, nas entre-
vistas e em falas gravadas. Chegou a dizer que em sua poesia só havia pedra.
(Denófrio. 2004, p.11)

São poemas que revelam e apreendem o ato de preocupação humano e social


da autora. Através de uma análise crítica no intuito de identificar as complexidades
da estrutura textual, permeando nossas concepções referenciais nos caminhos pro-
dutivos da voz poética.
Assim se explica o caminho de retorno ao passado em força originaria de re-
interpretação da palavra, no intuito positivo da caminhante poetisa nessa pesquisa.
Os recursos textuais em forma de metáforas em sua escritura feminina im-
pregnada de lembranças, escrita na segunda pessoa como se fosse a menina de qua-
torze anos contando a anciã de setenta, seus conflitos e dramas sociais.
A busca de diferentes formas e figuras descritos na obra, cria impressões do
que foi completamente vivido, para se reconhecer e se constituir como sujeito de
sua história.

Conclusão
Ao longo do decorrer deste texto, poderíamos aproximar, a título conclusivo
um passeio pela memória filosófica escolhendo a arte poética como matéria refle-
xiva. Permitindo-nos refletir o homem encontrando abrigo no espaço do real e do
irreal, criando o visível pela mente. Eleger o papel da imaginação na obra.
Ao acompanhar a trajetória de Cora, percebemos que a obra solicita de seu
contemplador um mergulho poético [expressão simbólica do ser] de conotação bem
feminina, que se torna real até as bordas... em seus escritos consagrando-a Cânone.
Além disso ao percorrer um caminho no espaço-tempo reconheceremos o
saber humano, na grandiosidade de sua essência e sua relação com a personagem,
desafiando a luz do ser. Nessa confiança o desempenho do artigo dissertativo tex-

408
Estudos Literários

tual, aponta o tema poético em sua pluralidade de formas através do tempo.


Poderíamos acrescentar, a título de conclusão, que a autora goiana, em sua
simplicidade, soube retirar da matéria, os seus trabalhos mais autênticos, que envol-
vem, de cunho específico, memória em prosa e poesia.
Se considerarmos que se estende na palavra as veredas que se aproximam das
dimensões mais sensíveis da vida e rompem com a tradição e confirma movimento
circular da forma da arte e conceitos de emoção na obra da mulher Cora. Concluin-
do com um verso do poema “Minha Cidade”, escolhemos como um marco decisivo
desse caminho e dessa aventura, a repetição do verso inicial:

Eu sou a menina feia


da ponte da Lapa.
Eu sou Aninha.

Fecharemos assim a última parte de nossa reflexão neste contexto, sugerindo


a possibilidade em associar áreas de conhecimento à autobiografia de Cora, a partir
de um período histórico social à condição humana e gerar uma viagem pelas épocas
que circulam por espaços diferentes. Acrescentaríamos apenas uma abordagem de
Telles que vale ressaltar para embasar a pesquisa:

Sentindo-se desprezada pela mãe e pelas irmãs que a tinham como feia e sem
inteligência, alguns de seus textos documentam a luta intima na convivência
com a família, sobretudo com as irmãs mais velhas, as “manas”, como apa-
rece com certo desprezo. Em Poemas dos becos de Goiás e estórias mais (3ª
Edição da UFG), a primeira grande publicação de seus textos, confirma-se
na apresentação da Autora o jogo dialético do seguinte modelo teórico de
Modéstia X Orgulho: de um lado, a Modéstia (“Vai , meu pequeno livro”.);
e de outro Orgulho (“Que possa sobreviver à autora e ter a glória de ser lido
por gerações que hão de vir de gerações que vão nascer”), vendo-se, de início
a figura do disfemismo, isto é da desvalorização por modéstia e, no final, o
orgulho intelectual de imaginar seu livro na eternidade, coisa parecida com
a “Ode VII”, do livro I, de Horácio. Este modelo se documenta em todos os
seus escritos. (TELES, 2017)

409
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Portanto, reina aí a ambiguidade, unindo o convívio familiar, e o libertar-se


do domínio e ao mesmo tempo dispor-se a dominar, a partir de certo momento his-
tórico. A poetisa se apropria do livre uso do que lhe é próprio e parte do princípio
de dona da eternidade e não lhe impeçam o seu direito ao sonho.

Resultados parciais
2017 - Participação do Congresso da ABRALIC, nas Escritas Contemporâneas:
Incursões, avaliações e desafios ao comparativismo;

2017 - Participação no Seminário de Dissertações da Linha de pesquisa: Crítica


literária, tradução e transcriação;

2017 -Participação do Congresso CIELIN, Conferência Internacional de Estudo


da Linguagem. Unb/Brasilia

2017 -Produção de artigo científico e publicação Anais Abralic – Expressividade


Lírica da Poesia de Cora Coralina;

2017 – Participação Congresso Nacional de Ensino de Ciências e Formação de


Professores” - CECIFOP promovido pelo curso de Grupo de Estudos, Pesquisa e
Extensão em Ensino de Ciências e Formação de Professores - GEPEEC, da Uni-
versidade Federal de Goiás, Catalão.

2017/2018 – Participação no Grupo de Estudos de Leitura “As estruturas antro-


pológicas do imaginário” de Gilbert Durand; 2017/2018 Leitura “O imaginário”
de Daniela Perim Rocha Pitta;

2017/2018 Leitura “A imaginação simbólica” de Gilbert Durand;

2018 - Escrevendo o SUMÁRIO e INTRODUÇÃO; 2018 – Analisando e escre-


vendo sobre o poema “ Minha Cidade” Coralina Cora. Poemas Dos Becos de
Goiás e Estórias Mais 2014;

Participação no Jornada de Estudos Brasileiros O Sertão: Imaginário e Materia-


lidades 2018 - Participação no IV Congresso Internacional de Literatura e Eco-
crítica UFAM – Manaus

410
Estudos Literários

Referências

Poética, Lírica e Imaginário


ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Trad. Alfredo Bosi. São Paulo: Martins
Fonte, 1998
ARISTÓTELES. Arte Poética. Tradução de Antonio Pinto de Carvalho. São Paulo:Difel,
1964.
BACHELARD, Gaston. Poética do espaço. Martins Fontes. São Paulo, 1989. (A primeira
edição é de 1957)
BERGSON, Henri. Matéria e memória; ensaio sobre a relação do corpo com o espírito.
Trad. Paulo Neves da Silva. São Paulo: Marins Fontes, l990.
BILAC, Olavo. PASSOS, Tratado de Versificação. Rio de Janeiro: 1905 Editoração
Eletrônica.
BOSI, Ecléia. 1987. Memória e Sociedade, lembranças de velhos. São Paulo: T. A.
Queiroz. _____. BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. SãoPaulo, 1977.
CAMPOS, Maria José Rago. Arte e Verdade. São Paulo: Loyola, 1992.
CORALINA, Cora. Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais. São Paulo. Jose Olympio,
1965
_______. Vila Boa De Goyaz. São Paulo: Global Editora, 2000.
_______. Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais. São Paulo. Jose Olympio, 2014
_______. Vintém de Cobre. São Paulo: Global Editora, 2013.
_______. Tesouro da Casa Velha da Ponte. São Paulo: Global, 2000
_______. Meu Livro de Cordel. São Paulo: Global, 1987.
DENÓFRIO, Darcy França. Cora Coralina. São Paulo: Global, 2004
DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. Trad. Helder Godinho.
São Paulo: Martins Fontes, 2001.
DURAND, Gilbert. O imaginário: ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem.
Trad. Renée Levié. Rio de Janeiro. DIFEL. 1998
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Trad. Laurent Léon Schaffter. São Paulo:
Vértice, l990.

411
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais de poética. Trad. Celeste Aída Galeão. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.
HEIDEGGER, Martin. Os Pensadores. São Paulo:Abrl Cultural, 1979.
PAZ, Octavio. O arco e a Lira. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro. Ed. Nova Fronteira,
1982.
PESQUERO, Ramóm Saturnino. Cora Coralina - O Mito de Aninha. Ed. UFG. Ed.
UCG, 2003
TELES, José Mendonça. No santuário de Cora Coralina. 3 Kelps. Ed Goiânia. 2003.
TELES, Gilberto Mendonça. A Escrituração da Escrita. Editora Vozes
_______. Retórica do Silêncio I: Teoria e Prática do Texto Literário. Rio de Janeiro: Ed.
José Olympio, 1989

Ensaios publicados (Livros), artigos apresentados


BONACH, Martha. Poética das Pedras. Rio de Janeiro: Bonecker. 2018
_______. Entardecer Poético de Cora Coralina. Mauritius: Novas Edições Acadêmicas,
2018.
_______. Voz da Poesia de Cora Coralina. Abralic: p 150, 2017.

Outros Livros e artigos consultados: Critica, Estética e Teoria da Arte


BARTHES, Roland. O Prazer do Texto. São Paulo: Perspectiva S.A 1987
BENJAMIM, Walter. A Modernidade e os Modernos. In Ver. Tempo Brasileiro. Rio de
Janeiro, 1975.
CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras,1990
CAMPOS, Haroldo de. A Arte no Horizonte do Provável. São Paulo: Perspectiva, 1977
COSTA LIMA, Luiz. O controle do Imaginário. São Paulo: brasiliense, 1984.

412
Estudos Literários

As facetas do sucesso na
jornada de Harry Potter:
O herói detetive
Milena Lourenço da Silva1
Alexander Meireles da Silva2

Introdução
Passados 20 anos, a obra Harry Potter: e a pedra filosofal, lançada em 26 de
junho de 1997 por J. K. Rowling, continua exercendo influência no mundo lite-
rário, transformando pontos de vista e inspirando as novas gerações de leitores e
escritores, segundo nota da própria editora Rocco, uma das responsáveis pela dis-
tribuição da saga em solo brasileiro “ [...] a autora criou um universo que desperta a
imaginação sem desprezar referências e relações humanas. “Essa realidade paralela
possibilita que a história nunca acabe[...]” (TORELLI, 2017). Sua serie mostra como
a junção de elementos literários certos são capazes de quebrar barreiras e impor
novos valores ao mundo literário. Mas a pergunta que nós, estudiosos e curiosos
deixamos é: Como uma obra, primeiramente direcionada unicamente a crianças,
caracterizou e redirecionou o modo de pensar no âmbito fantástico universal?
Dentre os fatores principais que apontam para o sucesso da obra de J. K.
Rowling encontra-se o alinhamento entre personagem e leitor –pois Harry Potter
com apenas 10 anos- ,possuía em média a mesma idade do público alvo da autora,
isso propiciou o crescimento não apenas em relação a idade de ambas as partes ,mas
também no amadurecimento e nas descobertas da vida ,assim como os personagens
dos livros os leitores passaram por todas as fazes de transição entre “ser criança” e
“se tornar adulto”, tendo que lidar com problemas ,decepções e desafios.

1 UFG/RC
2  UFG/RC, [email protected]

413
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Essa relação que conecta obra e leitor também se da através de elementos


universais utilizados na construção da narrativa, segundo o doutor em literatura
infantil Peter Hunt, o livro de J. K. Rowling:

Contém muito dos valores e das ideias tradicionais - disciplina, um mundo


paralelo no qual as crianças são importantes, o retrato dos adultos do mundo
real como incompetentes - os trouxas -, um forte apelo para o trabalho em
equipe, amizade, o núcleo familiar, honestidade, lealdade e sacrifício, tudo
em face da crueldade e da maldade. Quase todas essas coisas parecem atender
uma demanda, tanto de crianças quanto de adultos, num tempo em que o
mundo ocidental parece ausente desses elementos. (HUNT, 2010)

De fato podemos considerar assim como Hunt que Harry Potter foi o do
qual a sociedade necessitava no momento, trazendo valores que regem e negligen-
ciam “nosso” mundo, de forma a abordar e conquistar o maior número de leitores,
quebrando as barreiras de separação entre a literatura infantil e a leitura adulta.
De acordo com Massaud Moisés, citando em sua obra o sociólogo e crítico literá-
rio francês Roger Callois,o fantástico “manifesta um escândalo, uma ruptura, uma
irrupção insólita, quase insuportável, no mundo real” (MOISÉS, 1998, p.185), é o
momento onde o leitor se afugenta do mundo real, vivenciando uma experiência
nova em um ambiente onde fatores em que ele acredita e procura, são mais facil-
mente encontrados, onde as mudanças impostas verdadeiramente acontece.
Dentre tantas razões para o sucesso do livro, consideremos a abordagem de J.
K. Rowling em outros gêneros literários, tais como o romance de detetive e o gótico,
apenas para citar alguns. Com base nisso, este trabalho visara analisar a presença de
elementos característicos desses gêneros, assim como o estudo da estrutura mítica
da jornada do herói – jornada esta que fundamenta a própria estrutura da fantasia -
na construção do cenário fantástico empregado em Harry Potter: e a pedra filosofal.

O Herói Detetive
O mundo fantástico traz ao leitor o poder de criar e aperfeiçoar suas esco-
lhas, cria um submundo imaginário do qual se faz querer ser real, como dito Freud:

414
Estudos Literários

Talvez devêssemos dizer: cada criança que brinca comporta-se como um es-
critor, na medida em que cria seu próprio mundo ou, mais exatamente trans-
põe as coisas do seu mundo para uma ordem nova que lhe é agradável (...) O
escritor procedo do mesmo modo que a criança: cria um mundo imaginado,
que leva muito a sério, ou seja, o que dota de grandes qualidades de efeito,
distinguindo-o claramente da realidade. (FREUD, 1907, pag.50)

A fantasia traz esse efeito a literatura, cria um mundo irreal para se tratar do
real, tirando o indivíduo da mesmice de seu cotidiano, ela lhe apresenta a variedade
do inexistente, muitas vezes mais chamativa e com mais significados do que aquilo
que se tem por prescrito.
Enquanto obra de fantasia Harry Potter traz a jornada do herói, fator que
caracteriza e marca presença na tradição da literatura de Fantasia. Tendo desenvol-
vido o termo “jornada do herói” para caracterizar o monomito, Joseph Campbell
trabalhou as ideias do que seriam os conceitos da jornada cíclica de mitos, o mesmo
trabalha com a relação mito e sonho de forma a esclarecer como os mesmos atuam
na psique do indivíduo, onde problemas e soluções se relacionam. Um dos princi-
pais pontos de vista adotado por Campbell na descrição do mito era a utilização do
que o mesmo chamava de literatura do espírito, que capacitava o escritor a contar
uma história ao mesmo tempo em que harmonizava-a com a realidade, por esse
motivo não se cabe um herói perfeito, tudo aquilo que nós, seres humanos e possí-
veis heróis temos em comum, se revelam nos mitos, é a nossa busca do imperfeito
na perfeição que achamos existir, fazendo referência a Campbell na obra O poder do
Mito, Bill Moyers complementa dizendo: “(...) Todos nós precisamos contar nossa
história, compreender nossa história. Todos nós precisamos compreender a morte
e enfrentar a morte...” (MOYERS, 1985, pag. 17) precisamos naturalmente de uma
significação ao conhecimento que possuímos, precisamos compreender o que está
implícito nas entrelinhas e sobretudo necessitamos passar adiante, passar a expe-
riência do fato novo que descobrimos.
A figura do herói traz a possibilidade de melhoria, o mesmo é sempre capaz
de realizar uma ação que se difere do comum, que se eleva em relação aos outros
indivíduos, os mesmos representam o aprofundamento de si mesmos na busca da

415
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

transformação, no entanto nunca perdem sua essência humana e alguns de seus


efeitos, consequentemente, os acompanham.

Além disso, não precisamos correr sozinhos o risco da aventura, pois os he-
róis de todos os tempos a enfrentaram antes de nós. O labirinto é conhecido
em toda a sua extensão. Temos apenas de seguir a trilha do herói, e lá, onde
temíamos encontrar algo abominável, encontraremos um deus. E lá, onde
esperávamos matar alguém, mataremos a nós mesmos. Onde imaginávamos
viajar para longe, iremos ter ao centro da nossa própria existência. E lá, onde
pensávamos estar sós, estaremos na companhia do mundo todo. ” (CAMP-
BELL, 1997, pag.136)

Christopher Vogler em sua obra A jornada do escrito: estruturas míticas para


roteiristas, trabalha com base nessa teoria desenvolvida por Campbell, segundo ele:
“A Jornada do Herói não é uma invenção, mas uma observação. ” (VOGLER, 1998,
pag.11) ,se trata de uma análise do conjunto de elementos que compõe uma estru-
tura e que juntos transformam obras e as potencializa , o autor ainda continua com:

A Jornada do Herói é um padrão que parece se estender em várias dimensões,


descrevendo mais do que uma realidade. Ele descreve de maneira acurada,
entre outras coisas, o processo de efetuar uma jornada, as partes funcionais
necessárias de uma história, as alegrias e os desesperos de ser um escritor, e a
passagem de uma alma pela vida. (VOGLER, 1998, pag.11)

Esse padrão possibilita a escrita de uma obra capaz de fazer o leitor se sentir
atraído e curioso em relação ao desfecho, mesmo que a narrativa em questão traga
à tona tantas outras anteriores. No entanto o que se deve ter em mente é que a Jor-
nada do Herói se trata de uma forma e não uma formula, é notável essa utilização
padronizada em obras de grande sucesso, porém não se tratam de cópias idênticas,
mas de adequações feitas ao que se chama de essência. Ainda hoje, alguns escrito-
res criticam a descrição da jornada por se tratar da análise do processo de criação,
segundo os mesmos: “(...)a arte é um processo inteiramente intuitivo, que nunca
poderá ser controlado por regras inflexíveis e não deveria ser reduzido a uma fór-
mula. ” (VOGLER, 1998, pag.15) segundo o autor, esses escritores estão certos, pois
no fundo, o ato da criação parte exclusivamente do escritor, no entanto de forma

416
Estudos Literários

implícita, todos aderem e se baseiam a uma forma, iremos nos ater a isso para pros-
seguir em nossa análise.
A jornada do herói está presente na maioria das histórias, no entanto essa
aparição nem sempre remete ao padrão mais clássico, ao pé da letra, como percebe-
mos na obra de George Lucas, Star Wars (1977). Uma das obras de grande sucesso
que traz essa teoria e foi responsável por inspirar tantas outras é a intitulada A es-
pada na pedra: o único e eterno rei escrito por T. H. White (1938), que retrata nesse
primeiro livro, a saga do grande rei Arthur. O personagem principal da narrativa é
apelidado de Wart (Arthur), jovem simples, comum, que sem saber suas origens é
deixado por Merlin a Sir Ector, um cavaleiro que o cria como filho. Apesar do trata-
mento que possui, Arthur sabe que jamais irá se igualar à Kay, filho biológico de Sir
Ector, e que o máximo que conseguirá será se colocar à disposição do mesmo, e ser-
vi-lo como um simples escudeiro, tendo de deixar o sonho de ser cavaleiro. Como
um típico jovem a procura de ação, em uma de suas aventuras na floresta, Wart se
encontra com Merlin, um velho mago, que a partir daí se torna seu tutor, sendo res-
ponsável pelo seu aprendizado e desenvolvimento, segundo o personagem Merlin:

Aprender porquê o mundo gira e o quê o faz girar. Essa é a única coisa da
qual a mente nunca ficará exausta, nunca se alienará, pela qual nunca será
torturada, nunca temerá ou desacreditará, e nunca sonhará em voltar atrás.
Aprender é a única coisa para você. (WHITE, 2013)

E nesse sentido Arthur se prepara durante anos, trabalhando em conhecer


tudo aquilo ao seu redor, mesmos sem entender o motivo. Sendo bondoso e pos-
suindo todas as características de um verdadeiro herói mítico ao final da narrativa,
chega o momento em que uma espada cravada em uma pedra mostra o indício de
um novo rei: “Aquele que tirar esta espada desta pedra e bigorna. É por direito o
rei nascido para governar toda a Inglaterra.”(WHITE, 2013) , e em sua subta von-
tade de ajudar seu quase irmão a conseguir ,o mesmo descobre a finalidade de seus
anos de estudos, sendo ele o real herdeiro do trono . Trata-se de uma obra que traz
exatamente o efeito de jornada citada, com cenas bem elaboradas e explicativas,
sendo que toda a narrativa gira em torno da vida, das descobertas e pensamentos de
Arthur, um jovem normal que passa por todos os processos necessarios até chegar
no seu momento de reconhecimento. Notamos as relações entre, “Harry Potter:e a

417
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

pedra filosofal” e “A espada da pedra: o único e eterno rei”, como primeiros exem-
plares das séries, suas narrativas se baseiam na mostra de seus personagens prin-
cipais, nas descobertas que irão caracterizar esses personagens e os cenários onde
os mesmos irão atuar e principalmente na introdução dos protagonistas e assim
futuros grandes hérois o mundo do qual fazem parte, é inegavel que a escrita de T.
H. White influenciou fortemente os livros de Harry Potter assim como em outras
tantas obras de fantasia. Vários críticos compararam o personagem de Rowling,
AlvoDumbledore, com Merlyn, de White, caracterizando o personagem Wart seria
como antepassado em potencial de Harry.
No entanto a jornada no herói não é a única teoria encontrada na obra da au-
tora, o livro é também composto pelo chamado romance de detetive ou romance de
enigma sendo este último caracterizado justamente por sempre envolver um enigma
a ser desvendado. O gênero tem início com Edgar Allan Poe (1809-1849) que funda-
mentou e caracterizou-o em suas próprias obras, dando margem para que se espa-
lhasse e que futuramente outras ramificações do romance policial viessem a surgir.
O romance de enigma surge em uma época em que as cidades se modifica-
vam devido as indústrias, a sociedade tinha o positivismo por obrigação, os jornais
traziam histórias dramáticas, crimes sem solução e as pessoas passava naquele mo-
mento a visualizar os criminosos em sua pior imagem, era o pior inimigo social,
essa junção de fatores e a falta de confiança em seus protetores – os policiais da
época eram ex-infratores recrutados- foi a associação perfeita para o surgimento do
romance de detetive, onde um indivíduo extremamente qualificado, inteligente e
destemido era o responsável por enxergar pistas onde ninguém mais as via e assim
seguindo os enigmas, o mesmo conseguia resolver o mistério e salvar o dia. Criando
uma sequência linear, temos como o primeiro romance policial o conto intitulado
o “Assassinatos na rua Morge” (1841) que possuía em primeira mão, o discurso
diferentes das outras obras então já vistas, e se opunha aos policiais ex-condenados.
Com esssa primeira obra Poe traz a vida ao inusitado protagonista C. August Du-
pin, detetive amador que utiliza de suas investigações para passar o tempo.
Dupin prioriza o rigor lógico as conexões de pensamentos entre ele e o/os
autores dos crimes, e deve ser visto como “uma máquina de raciocínio, esse fator é
um dos caracterizantes do romance de enigma, as intuições devem ser deixadas de

418
Estudos Literários

lado e o pensamento lógico é o prevalecente, assim como o fato de o narrador ser


uma pessoa da qual não conhecemos, um intermediário entre o protagonista e o
leitor, ao fato de que a história se inicia sempre após o crime ter sido cometido ,ou
seja, há a divisão da história em antes e depois do crime levando a imunidade do
detetive, que ocorre pela investigação ser composta de memórias, acarretando na
diminuição das chances de o detetive morrer.
Em seguida partimos para o mais famoso dos detetives: Sherlock Holmes,
criado por Arthur Conan Doyle (1859-1930), que mais uma vez traz inusitadas
mudanças para o gênero. O narrador já existente desde a época de Poe, passa a ter
importância central na obra, uma vez que esse é responsável por ser “o detetive do
detetive”. Em os chamados romances de enigmas, o narrador é essencial uma vez
que estando sempre um passo do detetive protagonista e transfere as informações
nessa ordem para o leitor e assim o suspense que rege a obra e leva ao desfecho se
mantem intacta. Dessa forma Doyle apresenta John Watson, o narrador que além
se seguir os feitos de Sherlock Holmes, ainda tem o poder de selecionar o que será
destino do conhecimento do leitor. Outro fator característico que difere Holmes de
Dupin é a representação do mesmo não somente como máquina de pensar, mas
como homem e assim essa humanização trouxe uma maior aceitação por parte do
público do livro.
Através da jornada do herói que caracteriza as maiores obras de fantasia con-
temporânea e do romance de detetive/enigma que se define por um dos gêneros
mais lidos do mundo, partimos para a compreensão de como essas duas vertentes
literárias transformaram a obra de Harry Potter no sucesso que encontramos nas
prateleiras de todo o mundo hoje.
Seguindo os passos de Campbell podemos analisar a formação do herói na
narrativa, Harry Potter é caracterizado por ser um menino franzino de 11 anos
sem quaisquer talentos aparentes, o garoto após a morte dos pais _do qual achava
ter sido consequência de um acidente_ vive sob custodia dos tios adotivos, que o
maltratam e não o consideram da família, eis que um dia aparentemente comum,
Harry é surpreendido por uma série de cartas direcionadas a ele, as quais os tios
não o permitem ler, após desistir de ler as mesmas, o garoto é apanhado por um
imenso homem-mestiço de gigante- que o apanha e esclarece suas origens, sendo

419
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

ele herdeiro de uma linhagem bruxa e que na verdade seus pais haviam sido mortos
pelo maior bruxo das trevas já existente, sendo ele considerado um herói no mundo
bruxo por ter sobrevivido.
Tendo em mente a caracterização do herói incluindo suas origens, partimos
para os princípios de Vogler, também espelhados em Campbell e assim encon-
tramos passos concretos que constituem a jornada do herói, começamos com o
momento em que o herói é chamado a aventura, mesmo Harry sendo um aluno “co-
mum” na escola de magia e bruxaria Hogwarts, o mesmo parece ter a intuição aflo-
rada quando se trata de situações perigosas, e mesmo com a pouca idade que tem,
o mesmo parece ser o único capaz de resolvê-las efetivamente no final, mesmo que
com ajuda. Mesmo sendo reconhecido pelos seus feitos enquanto ainda bebê, Harry
ainda se encontra relutante em aceitar ser o grande herói que todos acreditam que
ele seja, essa insegurança se estende por toda a narrativa quando o mesmo deve
lidar com situações difíceis, recusando o chamado por não acreditar que é capaz.
Assim como na história do Rei Arthur, Harry Potter também é apresentado
a um mentor, segundo Campbell: “...o primeiro encontro da jornada do herói se
dá com uma figura protetora (que, com frequência, é uma anciã ou um ancião)... ”
(CAMPBELL, 1997, pag.39), Dumbledore, atual diretor, é o encarregado de mostrar
as diretrizes de Harry enquanto sua trajetória destinada, com a sutileza necessária,
o mesmo apresenta seus conhecimentos ao menino do qual são relembrados em
momentos de perigo. A partir do momento em que o jovem garoto é exposto ao
mundo mágico, começam-se os desafios para o mesmo se adequar ao novo mundo:
“A ideia de que a passagem do limiar mágico é uma passagem para uma esfera de re-
nascimento” (CAMPBELL, 1997, pag.49), iniciando-o de fato ao mundo fantástico.
É a partir desse ressurgir que o herói defini seus inimigos, seus aliados e
começa a passar pelos testes a que é exposto. Potter luta com um troll, enfrenta
um cão gigantesco de três cabeças entres outros feitos em que mostra se diferen-
ciar dos outros alunos, segundo Campbell essa é a fase favorita do mito-aventura,
e em todas essas aventuras Harry conta com a parceria de outros dois jovens que o
acompanham fielmente até o final da trama, Hermione Granger a garota geek que
decora todos os tipos de livros e Ronald Weasley filho de uma família humilde,
assim como Harry, não possuem quaisquer que sejam as visíveis características de

420
Estudos Literários

um grande herói, surpreendendo a todos. Em contrapartida seu maior inimigo já


vem predestinado desde o momento em que descobre suas origens, sendo o único a
ter sobrevivido ao grande Lorde Voldemort quando tantos outros bruxos poderosos
não conseguiram.
Chegamos ao ponto da jornada onde o herói deve enfrentar seus fantasmas,
enfrentar o que lhe atormenta, o protagonista encontra depois de tantas aventuras,
depois de ter se introduzido em um mundo completamente novo, a necessidade
de ter seus pais ao seu lado, pois agora já sabendo que morreram para lhe salvar, o
mesmo imagina como sua vida seria se os mesmos estivessem presentes, e olhan-
do para dentro de si mesmo Harry não consegue esclarecer todas as dúvidas que
tem: Porque é considerado um herói? Porque o lorde das trevas escolheu justo sua
família como alvo? Porque justamente ele teve que conviver com os tios que não
suportam sua presença? Esse tipo de questão se enfatizam na vida do protagonista
por expressarem seus principais questionamentos internos, e por se relacionarem a
faze da adolescência em que ele se encontra.
Chega o momento da narrativa em que o herói realmente é testado, e assim
precisa mostrar todo seu poder, sua capacidade. Nessa fase da jornada “(...) se joga
a sorte do herói, num confronto direto com seu maior medo. Ele enfrenta a possibi-
lidade da morte e é levado ao extremo numa batalha contra uma força hostil” (VO-
GLER, 2006, pag.42). Após debaterem o suposto acontecido em Hogwarts, Potter
e seus amigos partem em busca da pedra filosofal, no entanto, para isso precisam
primeiramente passar por diversas provas que os impedem de chegar ao destino,
em cada prova o conhecimento de cada um deles é exaltado ao ser verdadeiramente
necessário, Hermione mostra sua inteligência ao decifrar enigmas, Rony mostra sua
habilidade em jogos de bruxos , e em certo ponto Harry segue a jornada sozinho,
pois sente que a responsabilidade de terminar a missão cabe a ele.
Ao enfrentar o teste e descobrir que Lorde Voldemort permanecera vivo to-
dos aqueles anos, Harry se questiona como a poderosa pedra filosofal misteriosa-
mente parou em seu bolso durante o confronto, sendo mais uma vez exaltado en-
quanto herói uma vez que o objeto magico só apareceria para aquele que a quisesse,
mas que não tivesse a intenção de usá-la. Ao negar entrega-la a Voldemort sabendo
que a mesma lhe proveria imortalidade a fúria do inimigo é desencadeada, resul-
tando em um confronto do qual Harry sai vitorioso e com a pedra em segurança.

421
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Após a batalha o herói é resgatado, e volta a sua rotina completamente trans-


formado pela experiência que sofreu, segundo Vogler: “É uma espécie de exame
final do herói, que deve ser posto à prova, ainda uma vez, para ver se realmente
aprendeu as lições da provação. ” (VOGLER, 2006, pag.45) é o momento em que
o herói olha para seus feitos e percebe as mudanças em seu eu, o aprendizado que
recebeu e como conseguiu vencer seus medos. Ao acordar na ala hospitalar após
ser resgatado, Harry tem um diálogo com seu mentor e percebe a grandiosidade da
situação que havia passado.
Chega-se assim o momento do herói retornar a normalidade da sua vida,
retornando no caso de Harry Potter, ao mundo dos trouxas, levando consigo todo
o conhecimento das aventuras que presenciou no castelo e principalmente sabendo
que agora o mesmo possui um lugar do qual pertence de fato. Campbell já afirmava
que nesse momento, a volta a sua rotina usual não apresente significação ao herói já
que agora o mesmo conhece um mundo diferente e se encaixa perfeitamente nele
como jamais se encaixou naquele que fora criado.
Concluindo todos esses passos, temos a forma completa da jornada do herói,
baseadas nos ritos de passagem do jovem Harry: separação-iniciação-retorno, que
segundo Campbell são as unidades nucleares do monomito.
Concluindo a passagem de Harry enquanto herói passamos a analisar o pro-
tagonista enquanto detetive de suas aventuras. Desde o início Potter, como já dito,
tende a encontrar aventuras com mais facilidade, seu instinto de procurar e desco-
brir a fonte dos problemas ocorridos na escola de magia e bruxaria Hogwarts, nos
leva a caracterizá-lo como o próprio detetive da série. Tendo Harry como o moci-
nho e Voldemort como vilão, temos então linearidade da narrativa onde o protago-
nista se apresenta como aquele que desvenda crimes já ocorridos e que previne que
novos aconteçam, intercedendo e paralisando o antagonista.
Harry Potter, Hermione Granger e Ronald Weasley, são os responsáveis por
desvendarem os mistérios ocorridos na trama. Ao se introduzir no mundo mágico,
Potter inicia uma onda de descobertas que partem de sua própria existência, até
fatos em que o mesmo visto como detetive passa a enxergar aquilo que mais nin-
guém parece ver, tendo a ajuda de seus amigos e aliados para isso. Todos os fatos
que levam a narrativa ao desfecho se relacionam com Potter, o mesmo, já no início,
é o único a saber que a pedra filosofal se encontra na escola por ter presenciado a

422
Estudos Literários

retirada da mesma do cofre no banco dos bruxos, a partir daí o leitor é envolto no
enigma da pedra, Reimão já dizia: “É na esfera do raciocínio que o romance enig-
ma pretende fazer o leitor atuar, é no espaço do intelecto do leitor que o romance
enigma propõe seu desafio. ” (REIMÃO, 1983, pag.78). Os mistérios a se desvendar
se apresentam ao leitor no mesmo momento em que são descobertos pelo prota-
gonista. As pistas são postas e maneira espalhadas e cabe a Harry desvendá-las. A
atenção do mesmo é atraída no momento em que descobre que uma área especifica
do colégio está proibida aos alunos, esse interesse só aumenta quando sem querer
é informado de que um imenso cão de três cabeças se mantem aposto em uma das
salas nessa área, provavelmente guardando algo de muito valor. Como todo deteti-
ve, Harry passa a listar as possibilidades de suspeitos, uma vez que a segurança da
pedra está ameaçada, o principal deles – um de seus professores- apresenta caracte-
rísticas de ter fracassado ao tentar apanhar a joia e isso só aumenta as expectativas
de Harry de estar certo, fazendo-o investigar ainda mais.
Após chegar ao desfecho da narrativa, o detetive que nesse caso, não é expres-
so como uma simples máquina de pensar, mas como personagem real e necessário
da trama, reúne todos os fatos e chega a pré-conclusão do mistério. Junto a seus
aliados, o mesmo parte para a averiguação onde encontra a afirmação daquilo que
haviam suposto, seguindo o caminho já feito pelo criminoso, Harry vai apanhando
as evidencias e criando o correlato de suas afirmações anteriores. Suas conclusões se
mostram precipitadas ao se deparar com o real inimigo, o mesmo se trata de outro
professor que agia sob a influência do lorde das trevas e não do indivíduo a quem o
protagonista demonstra antipatia.
A título de conclusão notamos a deliberada importância de uma obra capaz
de revolucionar a literatura infanto-juvenil do nosso século, a autora J. K. Rowling,
trouxe á sua obra fantástica, a junção de enredo bem elaborado, cenário bem produ-
zido, estrutura de linguagem eficiente e o encanto que a própria fantasia em si traz.
E se tratando de encanto não podemos deixar de comentar sobre o tão co-
nhecido protagonista Harry Potter, bruxinho capaz entreter crianças, jovens e adul-
tos. Fazendo um ponte com o já tão citado Joseph Campbell temos que: “A função
primária da mitologia e dos ritos sempre foi a de fornecer os símbolos que levam o
espírito humano a avançar, opondo-se àquelas outras fantasias humanas constan-
tes que tendem a levá-lo para trás” (CAMPBELL, 1997, pag.9) não encontram-se

423
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

dificuldades em estabelecer uma conexão pessoal com a obra, todos nós temos um
pouco de Harry, sofremos com as mazelas da vida humana assim como ele, e o fato
de o mesmo se auto descobrir e de se reinventar em um mundo fantástico durante
o livro, nos dá a vontade de também realizar mudanças. A ambição por desvendar
mistérios é uma característica humana muito forte, o desconhecido nos atrai e é
possível enxergar isso em Harry, segundo Sandra Lúcia Reimão:

Ao escolhermos um texto policial para devorar lentamente, sentados quieti-


nhos e quentinhos em uma poltrona durante uma tarde de inverno, estamos
escolhendo também o que esperamos desenvolver, o que queremos acrescen-
tar a nós mesmos, com o nosso lazer. (REIMÃO, 1983, pag.86)

Se algo nos atrai, é aquilo que queremos ler, queremos a conexão com um per-
sonagem, com um enredo que mostra que fazemos parte daquilo, que foi feito para
nós e pensando em nós, é por isso se trata de um fenômeno que mexe com os nossos
sentidos, e que mescla o real e o sonho de uma maneira que agrada a nós “trouxas”.
Essa mescla dos diferentes traços literários abordados levou a obra de J. K.
Rowling a atingir o auge do sucesso que realmente se espera de uma grande obra
de fantasia. Se intencionou durante esta pesquisa, analisar e expor a forma como
esse sucesso se deu entremeando um balanço entre os elementos maravilhosos clás-
sicos como aborda a jornada do herói, e também as relações entre fantasia, ficção
e realidade trazidos pelo romance de enigma. É importante salientar que uma das
propostas aqui pesquisadas foi apresentar o caminho para que outros pesquisadores
possam analisar o cenário atual da literatura de Fantasia e em nenhum momento foi
intencionado a retirada de credibilidade de qualquer obra fantástica, uma vez que a
própria pesquisa se consiste na exposição de fatores em comum com outras obras e
vertentes literárias, que ajudaram na construção da mesma.
Com a complexa junção das vertentes, cenários e personagens trabalhados,
vemos como a obra inovou o gênero fantástico, dando gás não apenas para novos
leitores, mas também para que antigas obras fossem relembradas e para que novas
obras surgissem, trazendo cada vez mais a credibilidade para o fantástico.

424
Estudos Literários

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426
Estudos Literários

Crônica moderna:
Hibridismos entre literatura e
jornalismo
Moema de Souza Esmeraldo1

A verdadeira atividade literária não pode ter a pretensão


de desenrolar-se dentro de molduras literárias – isso, pelo
contrário, é a expressão usual de sua infertilidade.
Walter Benjamin, Rua de mão única

Vale principiar a discussão no tocante à preocupação quanto à reflexão con-


ceitual que envolve a crônica moderna no Brasil, a partir dos lugares-comuns ra-
dicados por parte da crítica e aceitos como parâmetros no estudo do gênero literá-
rio. Essa discussão, atualmente, é mais salutar do que apenas reproduzir conceitos
estereotipados, na medida em que revisita a prática da crítica literária e examina
definições que reduzem sua compreensão.
A dificuldade em desmistificar a “crônica” e provocar a necessidade de revisão
da maneira de lidar com essa modalidade escrita. Ao mesmo tempo, repensar a crô-
nica implica percepção tênue do limite entre os textos em prosa. Apenas identificar
características conceituais do texto literário evidencia, na realidade, uma visão ima-
nentista de literatura e dos gêneros correlatos, como o conto, o ensaio ou o romance.
As textualidades possíveis do discurso fluem além de enquadres, e mesmo aquelas
que, porventura, poderiam se instalar nesses compartimentos por um crítico mais
habituado a categorizações, configurariam uma contribuição pouco eficiente.
Para confrontar essa ideia considera-se outras questões pertinentes do estu-
do da crônica modernamente praticada, no Brasil, que passa a sobreviver em jor-
nais e revistas, por isso vive sob a gênese da efemeridade. Esse aspecto, bem como

1  PUC – Rio

427
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

a égide do hibridismo, estaria condicionando a sua existência. Visto por outro lado,
dir-se-ia que a análise dos discursos literário e jornalístico como constituintes des-
liza em todos os discursos sobre o tema. É nessa tensão entre os discursos literário
e jornalístico, excedendo os mitos de seus constituintes, que se produzem as parti-
cularidades da crônica. O que não significa depreciar essa relação “ambígua” entre
a literatura e o jornalismo.
Em se tratando de um texto jornalístico, Jorge de Sá (2002, p. 7), no livro A
crônica, reforça essa feição:

a crônica surge primeiro no jornal, herdando a sua precariedade, esse seu


lado efêmero de quem nasce no começo de uma leitura e morre antes que se
acabe o dia, no instante em que o leitor transforma as páginas em papel de
embrulho, ou guarda recortes que mais lhe interessam num arquivo pessoal.
O jornal, portanto, nasce, envelhece e morre a cada 24 horas.

A desqualificação com base no tempo empregado para o trabalho de ela-


boração é um pretexto subjetivo de validação. A tentativa de desqualificação refe-
re-se a uma concepção imanentista por parte dos críticos brasileiros que reforçam
critérios essencialistas de literatura. Dessa maneira, não é o tempo de preparação
e aperfeiçoamento do texto como fator que, em princípio, inferiorizaria a crônica
diante do romance e da poesia, justificando que essas composições demandariam
um tempo maior.
A “crônica” lida com o efêmero, e justamente esse ponto é um dos mais fortes
de seus predicados, ligado a questões adversas de temporalidade, suporte e condições
de produção. A crônica era publicada em periódicos, cuja efemeridade já era pres-
crita e cuja serventia, aparentemente transitória, não dispunha da reivindicação de
sua perenidade. Não podemos esquecer, porém, que a crônica, como qualquer texto
publicado, pode constar em outro suporte, e isso modifica os protocolos de leitura.
Portanto, para dar prosseguimento à discussão que pensa um recorte sobre
o estudo da crônica abordando aspectos tais como a sua mudança de suporte e
as diferentes materialidades que pode assumir interseccionando práticas escritas,
parte-se das questões do universo comunicacional que implicam a observação do
suporte do texto. Nesse sentido, o livro de Vera Lúcia de Follain Figueiredo Narrati-
vas migrantes: literatura, roteiro e cinema (2010) baseia-se no princípio de que tanto

428
Estudos Literários

a literatura quanto o cinema instituem padrões estéticos dominantes de cada época,


conforme o contexto histórico e tecnológico em que estão inseridos.
Essa proposta interdisciplinar tem como propósito “ultrapassar separações
rígidas entre esferas da cultura que cada vez mais se interseccionam, sinalizando
a necessidade de outros recortes” (Figueiredo, 2010, p. 12). A autora discute ainda
sobre a fronteira tênue entre alta cultura e cultura midiática que se volta para o mer-
cado editorial, ao tomar como base narrativas impressas e audiovisuais sob um en-
foque que admite questões contemporâneas de relevância para os estudos do campo
literário, principalmente no que diz respeito ao deslizamento de narrativas “de um
meio para outro”, “de um suporte para outro”, ou seja, “o trânsito de narrativas por
vários meios e suportes” (Figueiredo, 2010, p. 13).
Comenta também que as narrativas ficcionais publicadas em livros atingem
outro sentido quando veiculadas em fragmentos por meio dos folhetins no suporte
jornal. Sobre a relação entre literatura e jornalismo enfatiza que esse “entrelaça-
mento entre prosa literária e a reportagem está na origem das representações” (Fi-
gueiredo, 2010, p. 13). E a proliferação da “cultura periodística abre caminho para o
surgimento do conto policial e da crônica moderna” (Figueiredo, 2010, p.13). Essas
escritas são determinadas pela prática de leitura instituída pela sua modalidade de
veiculação do texto literário. Contudo, a feição paradoxal da crônica moderna co-
mo modalidade literária, foco deste artigo, evidencia o caráter que o periodismo
impõe à literatura, ao mesmo tempo que questiona a ideia de “gênero menor”.
Na conferência intitulada “O autor como produtor”, Walter Benjamin, já na
década de 1930, chamava a atenção sobre a fusão de formas literárias. Vera Follain
Figueiredo lembra a intenção do filósofo de pôr em relevo a capacidade da imprensa
de ultrapassar as distinções compartimentalizadas dos gêneros. Com o surgimento
da imprensa e dos jornais, passa a existir um novo tipo de leitor, esse leitor moderno
provocou “um novo tipo de escrita, decorrente da circulação acelerada dos textos
e da propagação da leitura extensiva” (Figueiredo, 2010, p. 13). Dessa maneira, os
autores procuram atender a esse leitor extensivo que consome mitos impressos, o
que, segundo a autora, contribui para alterar o modo de escrever. Essa tendência
contemporânea aproximou o autor do público e superou as esferas convencionais
da escrita literária. Assim, Walter Benjamin pondera sobre a prática da escrita:

429
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

um autor que não ensina nada aos escritores não ensina nada a ninguém.
Assim, é decisivo que a produção tenha um carácter de modelo, capaz de,
em primeiro lugar, levar outros produtores à produção e, em segundo lugar,
pôr à sua disposição um aparelho melhorado. E esse aparelho é tanto melhor
quanto mais consumidores levar à produção, numa palavra, quanto melhor
for capaz de transformar os leitores ou espectadores em colaboradores. (..). Já
possuímos um modelo deste gênero, mas só lhe posso fazer aqui uma breve
referência: trata-se do teatro épico de Brecht (Benjamin, 2006b, p. 288).

No decorrer do século XX, tais mudanças promoveram uma revolução na


prática de leitura. A ampliação do mercado de bens culturais caracterizou a ativida-
de do escritor como um profissional que não se restringe apenas a escrever livros.
Assim, outra relação com a escrita estaria sendo criada, “ao se substituir a materiali-
dade do livro pela imaterialidade de textos sem lugar específico” (Figueiredo, 2010,
p. 15). Nesse contexto se dá a modificação da prática de leitura para “modos de ler”
e a “revolução” dos suportes de leitura. Sobre essa revolução, assim comenta Vera
Follain Figueiredo:

a atual revolução dos suportes, modificando a maneira de ler, afeta o modo de


escrever, pois os próprios autores de livros estão inseridos nesse novo contex-
to em que se transformam de modo radical as formas de recepção dos textos
e que toda uma tradição de prática de leitura cede lugar a outros modos de
ler (Figueiredo, 2010, p. 15).

A literatura, então, a partir da invenção da imprensa, cooperou para a con-


vergência dos meios, deixando ainda mais tênues as linhas de divisão entre os vários
campos da produção cultural. Com o aprimoramento da imprensa, muitos escrito-
res tiveram que se adaptar aos novos tempos permeados por um sistema de conven-
ções que circulam entre o mercado editorial, o texto e o leitor. Autores contempo-
râneos, na tentativa de agradar ao público, obtendo sucesso comercial, e, ao mesmo
tempo, mantendo a dimensão crítica da obra, preservam a sua complexidade, utili-
zando a multiplicidade de códigos que se entrecruzam nos textos.
“Unem-se, assim, dois polos que, no modernismo, tendiam a se repelir: a
‘literatura séria’ e a de entretenimento” (Figueiredo, 2010, p. 63). Se a obra literária

430
Estudos Literários

antes era, por definição, difícil de interpretar, em razão de sua estranheza que cau-
sava choque no leitor, a literatura contemporânea desperta a desconfiança do leitor
com mais repertório, sendo a sua dimensão mais complexa justamente por estar
encoberta por uma aparente simplicidade.
Dessa forma, Vera Follain Figueiredo considera que escritores reconhecidos
se encarregam da tarefa de fazer a mediação que põe em xeque a dicotomia alto/
baixo que configurou a estética moderna. Para tanto, recuperam a dimensão do pra-
zer da leitura, que, de certa forma, foi relegada até então à cultura de massa. Então,

as narrativas ficcionais vão recorrer às repetições e às semelhanças, mas tam-


bém vão trabalhar com sutilezas que deixam espaço aberto para o discurso
interpretativo que resgatará seus aspectos diferenciais, nem sempre percebi-
das pelo leitor ingênuo. Evidencia-se, então, o caráter conciliatório dessa arte:
não se trata, agora, de desafiar as exigências do mercado de bens culturais, de
heroicamente rechaçar o sucesso comercial (Figueiredo, 2010, p. 62).

Nesse contexto, o jornal serve de mediação entre o público e o texto literário.


O panorama cultural da atualidade permite a intensificação de suportes e processos
de deslocamentos que se realizam em diversos níveis, afetando, portanto, o conceito
de arte e a sua função na sociedade. O avanço das tecnologias digitais multiplicou a
oferta de produção textual, provocando uma ruptura de hierarquias.

A própria tecnologia digital, multiplicando-se a oferta textual, contribui para


a quebra de hierarquias. Além disso, como os critérios de valoração, na cul-
tura impressa, passavam também pela materialidade, isto é, pelos suportes
(livros, jornais, revistas, cartas, etc.), a continuidade, na tela do computador,
de diversos tipos de textos, não deixa de afetar a hierarquização dos discursos
(Figueiredo, 2010, p. 65).

Figueiredo destaca que, nesse quadro, o lugar ocupado tradicionalmente pe-


la literatura ocidental moderna está sendo alterado em função da relativização dos
pilares da razão mercantil que tenta reduzir a atividade humana à questão mera-
mente econômica. Por isso, vem ganhando proeminência a figura do editor, que cria
projetos e coleções que objetivam atrair o leitor pelo caráter sedutor do tema a que
se propõe a coleção, contando com a participação de escritores consagrados que

431
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

aceitem trabalhar por encomenda. Entre vários exemplos, no Brasil, a publicação


das crônicas de Drummond em livros sobressai na discussão do tema.
Muitos autores, ao aceitarem escrever por encomenda, confirmam o aspec-
to profissional de sua atividade e contrapõem-se à premissa de que a verdadeira
arte deve ser desinteressada. Além disso, reagem de modo produtivo, a partir de
um molde proposto por um determinado editor. O editor assume, então, de forma
explícita, o seu papel como instância de mediação institucional entre o escritor e o
mercado – mediação externa à obra, mas que vai afetar a maneira como o autor se
relaciona com a sua prática escrita.
Nessa discussão, ainda se deve considerar que esses textos circulam pela in-
ternet, em sites que disponibilizam a digitalização de jornais, o que demonstra a
virada dos parâmetros da arte. Cada vez mais, a arte se aproxima do mais popular e
se afasta da noção de idealização do autor, tendendo a ser valorizada a interação do
texto com o leitor. Diminui a distância entre o criador e o público, encurtando-se
o intervalo entre textos do passado e do presente. O desenvolvimento acelerado do
processo de recepção do texto impõe seu tempo à arte e reconfigura as práticas cul-
turais, “pondo em crise a estética fundada na ruptura, fruto de uma época marcada
pela expectativa de construção de um mundo novo, a partir do qual se fazia crítica
do presente” (Figueiredo, 2010, p. 66).
Nessa trilha de pensamento sobre os suportes e a recepção da arte, inclusi-
ve a literária, os estudos contemporâneos de Roger Chartier (1996) propõem uma
teorização que considera, em primeiro plano, a figura do leitor. Ele acredita que a
literatura não é dotada de uma natureza particular, mas pode ser compreendida
como uma construção de sentidos propostos por certos textos. Nesse contexto, a
crônica aproxima-se da definição do que seria um “objeto literário”, pois uma das
particularidades é justamente revelar o significado de pequenos instantes da con-
dição humana.
Chartier afirma que o suporte material é determinante para a efetuação da
prática de leitura. Para o autor, os protocolos que envolvem a história da leitura
privilegiam o levantamento dos usos históricos do livro e das várias formas particu-
lares de impresso. No livro Práticas de leitura (1996), escreve:

432
Estudos Literários

todo autor, todo escrito impõem uma ordem, uma postura, uma atitude de
leitura. Que seja explicitamente afirmada pelo escritor ou produzida meca-
nicamente pela maquinaria do texto, inscrita na letra da obra como também
nos dispositivos de impressão, o protocolo de leitura define quais devem ser a
interpretação correta e o uso adequado do texto (Chartier, 1996, p. 20).

Com o intuito de ponderar sobre o materialismo dos meios, lembra-se da


“ordem do discurso”, na perspectiva de textualização entendida como efeito deter-
minado pela estrutura da língua ou do inconsciente, como sugere Michel Foucault,
ao pensar a importância e a função do discurso no processo de comunicação, bem
como a maneira pela qual o sujeito e o autor se posicionam perante esse discurso.
A prática cultural da leitura implica uma “relação íntima entre o leitor soli-
tário e o livro ou jornal” (Chartier, 1996, p. 19), em que se percebe o contraste entre
grandes leitores e leitores de ocasião. Questionar esta representação comum consis-
te em remontar a história e descobrir modos de leitura diferentes. Isto significa que
uma história das leituras pode concentrar os contrastes que utilizam essa atividade,
a fim de expressar as habilidades de leitura e os estilos de leitura do impresso. Assim,

a circulação dos mesmos objetos impressos, de um grupo social a outro é,


sem dúvida, mais fluida do que sugeria uma divisão sociocultural muito rí-
gida, que fazia da literatura erudita apenas uma leitura das elites e os livros
ambulantes apenas dos camponeses (Chartier, 1996, p. 79).

De fato, hoje, os textos atestam outras formas de manuseio e circulação, nem


mais exclusiva nem necessariamente elitista ou popular. Os mesmos textos são ob-
jetos de múltiplas decifrações socialmente diferentes de usos e empregos. Cabe des-
tacar nesse contexto que “cada leitor a partir de suas próprias referências individuais
e sociais, históricas ou existenciais, dá um sentido mais ou menos singular mais ou
menos partilhado, aos textos de que se apropria” (Chartier, 1996, p. 20).
Nesse caminho de ponderação sobre a prática de leitura, continua a reflexão
da possibilidade de encontro do leitor com o autor fora do texto, mesmo não sendo
uma tarefa fácil, “pois são raras as confidências dos leitores comuns sobre suas lei-

433
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

turas” (Chartier, 1996, p. 20). Nas sociedades do Antigo Regime,2 essas intervenções
podiam ser encontradas em narrativas autobiográficas, ou em correspondências
que poderiam apresentar comentários sobre os livros lidos.
Tais demonstrações do ato de leitura corroboram a constatação de Chartier
(1996, p. 21) de que estes testemunhos de leitura em primeira pessoa podem dar
a dimensão da identidade do leitor, de suas habilidades e usos do impresso. As-
sim, com o intuito de investigar as várias formas e processos de acesso ao escrito,
considera que as aprendizagens de leitura têm um peso respectivo das estruturas
cognitivas e perceptivas do homem e do seu condicionamento histórico e social. O
efeito de “ler” uma imagem, seja uma figura ou uma composição mais complexa,
identifica-se a partir das diferenças entre tipos de percepção.
Entretanto, as estreitas relações de prática de leituras entre textos e imagens,
na tradição ocidental, incitam a colocar duas formas, em que sempre uma se excede à
outra, mas que “articulam o visível sobre o legível” (Chartier, 1996, p.22). Essas ques-
tões revelam alguns pontos que convergem com o estudo da crônica e os protocolos
de leitura desse tipo de prosa curta, produzida para jornais, e que pode ter seu su-
porte alterado quando feita sua passagem para o livro ou derivados de outras mídias.
Chartier constrói juntamente com Pierre Bourdieu (1996), no último capítu-
lo do livro já citado, um diálogo a partir da discussão sobre a leitura como prática
cultural. Chartier coloca que o problema da leitura é um bom exemplo para pensar
sobre as práticas de consumo cultural; Bourdieu distingue a posição do autor e do
leitor, na medida em que os relaciona ao escritor e ao crítico, correspondentemente.
O autor (auctor) “é aquele que produz ele próprio e cuja produção é autorizada”
(Chartier, 1996, p. 232). Por sua vez, o leitor (lector) “é alguém muito diferente, é al-
guém cuja produção consiste em falar das obras dos outros” (Chartier, 1996, p. 232).
Essa divisão seria fundamental para a divisão do trabalho intelectual entre leitor e
crítico. Desse modo, questiona-se sobre o posicionamento do leitor, no sentido de
se realizar uma escrita das práticas de leitura.

2  Chartier delimita como “Antigo Regime francês de leitura” a maneira de ler a produção impressa que igno-
ra seus suportes. Os textos são tomados como portadores de sentido indiferentes à materialidade e se prestam
a escrever a história como objeto manuscrito.

434
Estudos Literários

Assim sendo, Chartier conclui com a ideia de que a capacidade de leitura é


determinada por situações historicamente variáveis. Portanto, seria necessário evi-
tar a tentação da posição universalizante sobre os leitores que somos. No Estrutu-
ralismo, por exemplo, existe a prática de uma leitura interna que considera o texto
por ele mesmo, se procurando nele mesmo a verdade. Nos tempos mais antigos,
os textos sagrados eram lidos com uma intenção alegórica e neles se procuravam,
assim, respostas. Em resposta à questão, Bourdieu explica que

historicizar nossa relação com a leitura é uma forma de nos desembaraçar-


mos daquilo que a história pode nos impor como um pressuposto incons-
ciente. Contrariamente do que se pensa comumente, longe de relativizar ao
historicizá-la, também nos damos um meio de relativizar sua própria prática,
portanto, de escaparmos à relatividade (Chartier, 1996, p. 233).

Essa relatividade de leitura, tendo em vista pressupostos históricos, é perti-


nente também para a discussão sobre a mudança de suporte da crônica. Chartier se
interessa em destacar que a produção do texto e a construção de seus significados
dependem dos momentos diferentes de transmissão. Todavia, as crônicas, quando
reunidas em livro, modificam o caráter de efemeridade do texto, ao receberem uma
perenidade que potencializa a sua leitura. Quando escaparam da contingência da
periodicidade, ao deixarem de ser oferecidas aos pedaços, transformaram-se em
matéria propícia a análise mais sistematizada. Isso significa que, ao se mudar o su-
porte, o espaço de veiculação, transformam-se as expectativas, o tratamento, a con-
figuração, a leitura. E a leitura, como produção de sentido, tem suas condições de
produção, ou seja, constitui-se na interação autor, leitor e texto. Desse modo,

a partir do momento em que é compilado em livro, contudo, tal gênero nar-


rativo resgata sua perenidade, assumindo um caráter organizacional que per-
mite, assim, uma leitura mais atenta e profícua: nessa mudança de suporte,
que implica a mudança de atitude do consumidor, a crônica sai lucrando. As
possibilidades de leitura crítica se tornam mais amplas, a riqueza do texto,
agora liberto de certas referencialidades atua com maior liberdade sobre o
leitor – que passa a ver novas possibilidades interpretativas a partir de cada
releitura (Sá, 2002, p. 85).

435
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Diante dessas considerações, afirma-se a importância da crônica como teci-


do narrativo capaz de resistir ao tempo, seja quando reunida em livro, seja por meio
do resgate de fontes primárias. Tais justificativas de vileza por causa da efemeridade
perdem a razão. Porém, é fato que esse texto é marcado pela brevidade, limitado ao
espaço da coluna do jornal e à aparente simplicidade de uso da linguagem, proble-
matiza a realidade das relações humanas.
Essa narrativa, curta por excelência, quando recebe um tratamento literá-
rio, muitas vezes se vale de recursos linguísticos como o lirismo e o humor para
expressar a importância do instante, porque é o flash do momento presente que
nos projeta em diferentes direções, voltadas para a elaboração de nossa identidade.
A elaboração do diálogo entre o cronista e o leitor é influenciada pela coloquia-
lidade que dá a ver a experiência do cotidiano. Esse dialogismo, que equilibra o
coloquial e o literário, é uma elaboração do diálogo entre o cronista e o leitor. A
conversa espontânea é pretexto para a abordagem do tema ou subtema das crônicas
relacionados aos acontecimentos do dia a dia. Imitando a estrutura das conversas,
o cronista começa com um tema, que se liga a outro tema, objetivo maior de sua
prosa. Mesmo que não utilize diálogo direto com quem lê, o dialogismo permanece
nas entrelinhas, como suporte básico da crônica. Quem fala na crônica é sempre o
próprio cronista, que instaura cumplicidade entre o narrador e o leitor, por meio da
aproximação pela linguagem.
No esforço de continuar desconstruindo alguns conceitos, questiona-se a ne-
cessidade de reforçar o hibridismo, haja vista que é parte da constituição discursiva
de qualquer texto, inclusive entre o literário e o jornalístico. Esse pressuposto também
assevera a relação intrínseca com o jornal, o qual permite, pelo seu formato diversi-
ficado, a aproximação com outros textos, a exemplo do conto, do ensaio e da poesia.
A consistente análise de Maria Cristina Ribas (2013, p. 8), no artigo “Des-
tecendo a rede conceitual da crônica”, em seu recorte pedagógico, mostra que o
termo “crônica” reúne a compreensão da constituição multifacetada do discurso
cronístico. Sendo assim,

deparamo-nos com a insistência de grande parte da crítica na perpetuação


de conceitos e valores que mantêm a crônica circunscrita a um território bas-
tante reduzido; em contrapartida, ressaltamos a importância de um estudo

436
Estudos Literários

teórico-metodológico voltado para a crônica e defendemos que o esforço de


desentranhar uma matriz homogênea que dê conta do gênero limita o debate
a discussões previsíveis e rotulações dicotômicas, num desenho de contornos
ainda fortemente românticos (Ribas, 2013, p. 8).

Pari passu ao hibridismo, Jorge de Sá, ao discutir a ambiguidade da crôni-


ca, confere à “essência jornalística” herdada pela crônica uma visão essencialista
de literatura. Ressalta ainda que “o importante é reconhecer que essa mistura nada
mais é do que uma tendência da literatura contemporânea, numa enriquecedora
confluência de gêneros” (Sá, 2002, p. 26). Nessa perspectiva, particularizar a crônica
como um texto híbrido e fazer a balança pender para um ou outro aspecto dessa
ambiguidade, por conta exclusiva do talento do escritor, é mais uma particulariza-
ção infundada do ponto de vista epistemológico. Isso porque atribui à crônica uma
singularidade que, na verdade, é plural e compartilhada pelos inúmeros gêneros
textuais no cenário discursivo.
Nesse sentido, cabe pensar nos Estudos Culturais3, que tornaram a definição
do objeto literário mais “flexível” nas discussões teóricas a partir dos anos 1990,
no Brasil. Esse projeto teórico é interdisciplinar, e, no presente, a preocupação está
centrada no estudo das mídias. Desse modo, uma conjectura possível nos estudos
culturais é uma ampliação do cânone, do qual a crônica pode fazer parte, ao lado de
outras narrativas classificadas como “marginais”. Os desdobramentos dos Estudos
Culturais admitem a incorporação, no universo da pesquisa, daqueles gêneros des-
cendentes da mídia, além dos menos nobres, como a ficção científica e a literatura
de massa. No entendimento dessa corrente teórica, a relação com a história faz com

3  Essa corrente de estudo se desenvolvera nos anos 1960 como um projeto de abordagem da cultura a partir
de perspectivas críticas e multidisciplinares, como observaremos com base em visões de grandes estudiosos
ingleses, a exemplo de Richard Hoggart e Raymond Williams. Os Estudos Culturais britânicos situam a cultu-
ra no âmbito de uma teoria da produção e reprodução social, especificando os modos como as formas cultu-
rais servem para aumentar a dominação social ou para possibilitar a resistência e a luta contra a dominação.
A sociedade é concebida como um conjunto hierárquico e antagônico de relações sociais caracterizadas pela
opressão das classes, sexos, raças, etnias e estratos nacionais subalternos.
Nos Estados Unidos, esses estudos aparecem na década de 1960, logo em seguida ao pós-Guerra, com o intui-
to de democratizar a cultura, como uma forma de aproximá-la dos processos sociais reais. Um dos fundadores
dessa teoria, o sociólogo jamaicano Stuart Hall, admite a influência de fatores sociais, políticos e culturais
que alteram a forma como o indivíduo recebe as mensagens. Nesse princípio, a recepção da “obra de arte” ou
do texto literário é interpretada e fundamentada a partir de outros significados, relacionados à experiência
individual e cultural.

437
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

que o envolvimento perdure com os textos que “representam a realidade”, oriundos


da oralidade e da memória popular, e todos eles devem receber da academia a mes-
ma atenção das obras consideradas como pertencentes à “alta literatura”.
Antes mesmo da introdução dos Estudos Culturais, as pesquisas acadêmicas
de Todorov (1980) já classificavam o sistema de gêneros como aberto. O estudioso
explicava que a coerência da obra é o que garante o sucesso de uma produção, e não
a obediência a uma regra. Todorov (1980) acrescenta que a mistura dos gêneros se
tornou uma evidência de Modernidade nas escrituras: “atualmente não existe uma
intermediação entre a obra particular e singular e toda a literatura, cuja evolução
está baseada precisamente em fazer de cada obra uma interrogação sobre o próprio
ser da literatura” (Todorov, 1980, p. 43).
Contudo, a discussão apresentada buscou desmontar algumas armadilhas
conceituais e condicionamentos que restringem o estudo do tema. Ainda existe a
resistência a não sair da costumeira zona de conforto, a não abrir mão dos clichês
e definições que restringem a crônica a características similares de efemeridade,
além de se reforçar seu grau menor, seu suposto caráter híbrido e ambíguo, como
decantada herança do seu lado jornalístico. Por causa de tal herança, apresentou-se
a necessidade de relacionar a crônica a partir de seus suportes e modos de leitura.
Passemos, então, a discutir sobre as especificidades do suporte da crônica que se
veiculou no Brasil em jornais e em livros.
O deslizamento de suporte do texto que nasce do jornal e vai para o livro é
uma tendência da literatura contemporânea reconhecida pela polissemia de escri-
tas. Essa diversidade passa a ser um sinal de produtividade analisado pela teoria
literária. A partir dessa perspectiva de mudança de material, o texto se consolida e,
por conseguinte, ultrapassa a efemeridade do jornal. Esse fenômeno chama a aten-
ção para a necessidade de estudos mais específicos sobre tal procedimento, muito
praticado por escritores brasileiros.
Carlos Drummond de Andrade, na nota de abertura do livro Cadeira de ba-
lanço, apresenta ao leitor a obra que reúne crônicas do autor escritas originalmente
para o jornal Correio da Manhã. A atitude de transpor seus textos do jornal para o
livro é comentada a partir de explicações sobre o título do livro: “daí o título do livro,
a que procurei também dar certa arrumação” (Andrade, 1992, p. 11). Drummond
demonstra ter consciência das diferentes materialidades que podem assumir o texto

438
Estudos Literários

e as implicações oriundas da mudança de suporte. Assim como tem clareza que nem
sempre os leitores de jornais são leitores de livros e vice-versa. Portanto, apresentou
suas crônicas com “certa arrumação” quando passaram a circular em livro.
A coletânea de crônicas em livro, por exemplo, não é apenas uma reunião de
textos publicados anteriormente nos jornais, pois, pela sua materialidade, se dife-
rencia a recepção do texto. Ao mudar o suporte, as crônicas se distanciam do jornal
e passam a ter relação direta com o livro, estabelecendo outra sequência narrativa.
Nesse contexto, os textos escolhidos ganham autonomia e deixam de ter relação
com as matérias jornalísticas. Não estão mais sob a égide da efemeridade, tampou-
co estão disponíveis apenas para o consumo imediato. Nessa alteração de formato
material, os fragmentos antigos não se apresentam mais como antes, sendo possui-
dores de significados distintos e pertencentes a um novo formato, no caso, o livro.
Renato Cordeiro (2004), ao analisar a transposição de crônicas de João do
Rio do livro para o jornal, buscou analisar o papel da crônica moderna e do registro
das representações sociais do cotidiano do Rio de Janeiro. Para tanto, equacionou as
relações com o tempo histórico, a partir da natureza jornalística do texto, que tem
no jornal seu principal suporte. Para o pesquisador, as implicações com o tempo
e sua materialidade ganham outra significação “quando há a passagem para outro
suporte, o livro, que rearticula as crônicas, gerando outros modos de contiguida-
de” (Gomes, 2004, p. 12). Esse novo formato Gomes denomina “transmigração”, e
aponta que

a nova estruturação nessa outra materialidade articula outra dimensão tem-


poral e estabelece um novo regime discursivo, não mais considerando apenas
cada crônica, esse gênero volátil, em sua autonomia (descartável como no
jornal), mas materializado nas sequências narrativas, que com os fragmentos
compõem um novo todo, enfeixado num novo objeto, na tentativa de superar
o efêmero e de buscar outra duração, que salve do tempo a escritura, aquela
mesma que se submete à tirania dos dias (Gomes, 2004, p. 12).

Desse modo, partindo da observação do cotidiano, o texto, com seus su-


portes, torna-se veículo de representações sociais, por registrar o testemunho de
perplexidades pessoais e sociais. O cronista é observador, testemunha e historiador
muito atento de sua contemporaneidade, e tem consciência dos fatos e aconteci-

439
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

mentos que configuram o cotidiano. Tal quais os jornalistas, profissionalmente, os


cronistas também são quase sempre repórteres do cotidiano. Vale ressaltar, nova-
mente, que essa simbiose de jornalista, cronista e ficcionista é traço que marca uma
tradição brasileira, e será mais comentado adiante.
Tendo em vista essa tradição, este artigo pinça como exemplo a produção
de crônicas de Carlos Drummond de Andrade, expondo a relação desses textos
que foram publicados apenas em jornal e contextualizando outros textos que foram
transpostos para o livro. No caso de Drummond, verificam-se coletâneas de textos
organizadas pelo próprio autor, além da participação em obras coletivas. Após a sua
morte, coletâneas de crônicas também vieram a público em forma de livro. Muitas
crônicas da coluna “Imagens”, objeto deste estudo, aparecem aleatoriamente, em
edições avulsas, acompanhadas de textos de outros autores.4
Então, para nortear o estudo da crônica drummondiana, considera-se que a
materialidade do texto determina a comunicação, que, até certo ponto, influencia
a estruturação da mensagem comunicacional. Essa premissa básica decorre do en-
tendimento de que, nos estudos da transposição de textos do jornal para o livro, as
relações de comunicação são instrumento para a construção literária, cujo sistema
simbólico-jornalístico permeia a construção do mundo, na medida em que, por
meio da escrita, codifica o mundo social.
Entre os teóricos que versam sobre o tema, a pesquisadora Aline da Silva
Novaes (2015), no artigo “Do jornal ao livro: uma investigação sobre a noção de
materialidade em João do Rio”, levantou questões instigantes para pesquisa a par-
tir de autores como Roger Chartier (1996), por enfatizar, nos seus estudos sobre
a comunicação, a “teoria da materialidade”. Os estudos desse campo teórico são
atrelados às diferentes tecnologias, que transmitem para além dos conteúdos, de-
terminando a própria “forma de pensar de uma cultura, distinguindo-se, assim, os
efeitos da oralidade, da escrita, do advento da eletricidade, da cultura informacio-
nal” (Novaes, 2015, p. 18).

4  Essa distinção foi possível com consulta ao Caderno de Literatura Brasileira, dedicado a Carlos Drum-
mond de Andrade, em 2012, publicação do Instituto Moreira Sales. Na série consta a relação da publicação de
toda a obra de Drummond até a data da edição do livro.

440
Estudos Literários

Buscando desenvolver esse argumento, Novaes (2015) procura identificar


uma linhagem de pensadores que se debruçam sobre a temática da materialidade da
comunicação e a importância dos suportes materiais em suas relações com as tec-
nologias da comunicação. Sem a pretensão de formar uma teoria unificada, destaca
o cuidado em não afirmar que se trata de uma “epistemologia absolutamente nova”,
e questiona a renovação que os estudos do círculo de Hans Gumbrecht trazem para
a questão dos meios. A partir dessas considerações, reforça que

a atenção se volta para a discussão a respeito dos meios. Não seria uma no-
vidade apontar a popularidade do alemão Hans Ulrich Gumbrecht no que se
refere à teoria da materialidade. Tal fato deve-se ao pensamento equivocado
de que seria ele um dos principais pesquisadores e precursores dos estudos
dos meios e teria sido no Departamento de Literatura Comparada na Uni-
versidade de Stanford que se desenvolveram os conceitos fundamentais da
referida teoria (Gumbrecht5 apud Novaes, 2015, p. 17).

Novaes (2015) remete à tradição dos estudos a respeito das tecnologias na


comunicação e se volta para o início da Modernidade, a fim de verificar o impacto
das novas técnicas. Nesse sentido, cita a pesquisadora Simone Pereira de Sá (2004),
a partir do artigo “Explorações da noção de materialidade da comunicação”, e des-
taca o ensaio clássico de Walter Benjamin, A obra de arte na era de sua reprodutibi-
lidade técnica, em que o crítico alemão retrata como a tecnologia altera a percepção
sensorial do homem:

para Benjamin, o que desenvolvimentos tecnológicos díspares, tais como a


luz elétrica, o telefone, os automóveis, o cinema e a fotografia, têm em co-
mum é a produção de uma violenta reestruturação da percepção e da intera-
ção humana – a experiência do choque, do risco corporal e do instante (Sá,
2004, p. 35).

Tanto Aline Novaes (2015) quanto Simone Sá (2004) estavam cientes da re-
levância das abordagens sobre as mudanças na percepção e da interação humana

5  GUMBRECHT, H. U. O campo não hermenêutico ou a materialidade dos meios de comunicação. Cader-


nos do Mestrado/Literatura, Rio de Janeiro, n. 5, 1993.

441
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

influenciadas pelas tecnologias. Assim, desenvolvem suas argumentações a partir


de uma tradição de teóricos que já refletiram a respeito do tema.

Referências
ANDRADE, C. D.A Cadernos de leitura: Carlos Drummond de Andrade. São Paulo:
Companhia das letras, 2012.
_______. Cadeira de balanço. Rio de Janeiro: Record, 2008.
BENJAMIN, W. Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 2011.
_______. O autor como produtor. In: BENJAMIN, W. A Modernidade. Lisboa: Assírio
& Alvim, 2006b.
CHARTIER, R. Práticas da leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 1996.
FIGUEIREDO, V.L. F. Narrativas migrantes: Literatura, roteiro e cinema. Rio de Janeiro,
7 letras, 2010.
GOMES, R. C. Representações sociais e a crônica, seus suportes e as malhas do
tempo: do jornal ao livro. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA
COMUNICAÇÃO – COMUNICAÇÃO, ACONTESIMENTO E MEMÓRIA. Rio de
Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2004. Disponível em:
<http://reposcom.portcom.intercom.org.br/dspace/bitstream/1904/17300/1/
R0543-1.pdf>. Acesso em: 11 mar. 2018.
NOVAES, A. S. Do jornal ao livro: uma investigação sobre a noção de materialidade em
João do Rio. Revista Matraga, Rio de Janeiro, v. 22, n. 37, jul./dez. 2015.
RIBAS, M. C. Por uma revisão conceitual do gênero crônica: entre a montanha e o rés-
do-chão. In: ANAIS CONGRESSO INTERNACIONAL DA ABRALIC, Campina
Grande: Abralic, 2013.
SÁ, J. A crônica. São Paulo: Ática, 1985.
SÁ, S. P. Explorações da noção de materialidade da comunicação. Contracampo – Revista
do Programa de pós-Graduação em Comunicação, Niterói, v. 10, n. 11, 2004.
TODOROV, T. Os gêneros do discurso. São Paulo: Martins Fontes, 1980.

442
Estudos Literários

Geografia, literatura e
negritude: Ensino para a
diversidade pelo olhar de
Valentina (VASSALLO, 2007)
Mychelle Priscila de Melo1

Introdução
Esta proposta didática foi desenvolvida procurando estabelecer uma relação
entre o ensino de Geografia, a Literatura e a Negritude. Negritude é entendida como
a valorização da essência, da cultura e do modo de ser dos afrodescendentes, inclu-
sive com um ato de resistência e de oposição ao racismo (ANDRÉ, 2007). Ao obser-
var e analisar títulos de obras literárias que trazem personagens afrodescendentes
e negros, disponibilizados pelas editoras que atuam no Brasil, é comum perceber a
forma preconceituosa como o tema é tratado pelos autores, em geral, brancos.
Igualmente, ao debruçar sobre os livros didáticos de Geografia, deparamo-
nos com a invisibilidade dos negros. As referências que existem são sempre de-
gradantes e atropelam os sentidos da igualdade racial. Geralmente, os personagens
estão presentes para retratar a pobreza, escravidão, submissão, subserviência, fome,
entre outras situações. Porém, há uma emergência de pesquisase edição de obras
com prospectivas ao empoderamento dos povos negros.
A Negritude é um tema importante no escopo da ciência geográfica, contu-
do nem sempre em evidência. Temos, no Brasil, o caso do geógrafo Milton Santos,
que tratou dos temas da segregação urbana e dos lugares de negros na cidade e na
sociedade. Suas reflexões, via de regra, foram resultantes de sua própria experiên-

1  UFG/RC/PPGG, [email protected]

443
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

cia enquanto homem negro, pois considerava que toda a relação se dava pela pró-
pria forma e aparência do indivíduo negro, que ele veio a designar de corporeidade
(SANTOS, 1996; 1997).
Sem dúvidas, também discursou sobre negritude, afirmando não ser sua es-
pecialidade, mas resultado de sua convivência enquanto sujeito. Admitiu, sobretu-
do, que sofreu humilhações e preconceitos pelo simples fato de possuir um corpo
negro, e, por isso, possuía uma cidadania mutilada (SANTOS, 1996; 1997), não
sendo considerado um cidadão integral pela simples razão de ser um homem negro,
motivo pelo qual, em artigo publicado no Jornal Folha de São Paulo, desabafa:

[...] ser negro no Brasil é frequentemente ser objeto de um olhar vesgo e am-
bíguo. Essa ambiguidade marca a convivência cotidiana, influi sobre o debate
acadêmico e o discurso individualmente repetido é, também, utilizado por
governos, partidos e instituições. (SANTOS, 2000 – Jornal Folha de São Pau-
lo – Caderno Mais, 07 mai.)

Como pode ser visto, o problema do negro na sociedade brasileira é uma


questão aberta e justifica a eleição do tema negritude para propor iniciativas didáti-
cas na educação básica com a finalidade de contribuir com a causa e poder descons-
truir preconceitos e racismos.
Não foi exatamente um estudo literário que conduziu esta pesquisa, mas uma
busca na literatura por uma temática na negritude como forma de dialogar e propor
estudos e conteúdos para aulas de Geografia, partindo de uma obra que possibili-
tasse a construção de estratégias de enfrentamento das questões etino-raciais. Com
o intuito de aumentar nos discentes da educação básica (Ensino Fundamental I) o
gosto pela leitura de temas de negritude, prenhe de conteúdos espaciais possíveis de
fazer uma transposição didática inovadora, é dada a ressignificação das expressões
poéticas do autor, aplicando-lhe significados e conotações geográficas.
A orientação desta pesquisa que propõe estratégias de ensino de conteúdos
geográficos, foi a de cooperar com uma afirmaçãodas questões dos afrodescenden-
tes brasileiros nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Ou seja, pela meta de res-
saltar a presença dos negros brasileiros através das personagens literárias, a partir

444
Estudos Literários

de suas estórias, busca-se inserir temas geográficos, estabelecendo uma tessitura


entre personagens negros, narrativa literária e conceitos geográficos. É pretendido
desenhar e planejar situações de aprendizagem usando as falas de personagens ne-
gros da obra literária infantil Valentina (VASSALLO, 2007), para inserir conteúdos
geográficos, no intuito de tornar a aprendizagem da Geografia mais prazerosa, ao
mesmo tempo em que se insere a negritude em lugar primaz, problematizando e
complexificando o tema.
A metodologia usada para alcançar o objetivo deste estudo apoiou-se no tri-
pé: Negritude, Literatura e Geografia. A partir da definição destes elementos, foi
iniciada a leitura e análise da literatura disponível, examinando, ainda, obras sobre
o ensino de Geografia, sobre alternativas de ensino e aprendizagem, para posterior-
mente começarmos a articular o ensino geográfico e a negritude.
Isto posto, houve a busca por resultados em autores, como D’Almeida (2000),
Lima (1998), Machado (1994), Mandela (2009) e Pinto (2008). De todas as obras
lidas, Valentina (VASSALLO, 2007) foi eleita por conter uma posição afirmativa da
negritude. Nela, o preconceito e as segregações étnico-racial e social estavam sendo
enfrentadas com expressões românticas, graves e profundas, encorajando qualquer
leitor negro a tomar orgulho de sua cor e a pensar em seu lugar enquanto lar, não
importando onde estivesse localizado.
Para estudar Geografia a partir das falas da princesa protagonista, há de se
considerar instigante e estimulador, o fato de o autor da obra Valentina (VASSALLO,
2007) ser um homem branco, nascido no Rio de Janeiro. Durante a fase de análise li-
terária, foi possível compreender que as obras da Literatura Brasileira, dedicadas ao
público infantil, mais utilizadas pelas escolas, e presentes nas bibliotecas escolares,
estão carregadas da supremacia das personagens brancas. Quando os personagens
negros surgem, estão sempre estereotipados como seres inferiorizados e em condi-
ções socioeconômicas de miserabilidade e sob vulnerabilidade do marco legal.
Sendo esta a condição posta, Valentina (VASSALLO, 2007) tornou possível es-
ta-belecer as relações entre Geografia, Literatura e Negritude e, através do cotidiano
das personagens negras, foram criadas propostas metodológicas de ensino prospec-
tivas à igualdade racial, permeadas pelo desvendamento de conteúdos geográficos.

445
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Há geografia em Valentina
Valentina, personagem criada por Márcio Vassallo (2007), é uma princesa
negra que habita um castelo, vizinho de outros castelos, em uma favela de um dos
morros do Rio de Janeiro. Ela mora com os pais, que a consideram uma princesa,
aos quais ela os tem como rei e rainha do castelo em que vive. Seus pais trabalham
fora para garantir o sustento da casa e a princesa não entende o motivo de tal neces-
sidade, uma vez que ocupando este papel majestoso, era incompreensível para ela
essa ausência do castelo e a necessidade do trabalho.
O fenômeno natural do pôr do sol, o horário comercial, o subir e descer do
morro, são trabalhados poeticamente pelo autor, que conduz o leitor diante destes
processos comuns da vida, para uma plataforma elevada de contemplação, desde
os olhos, coração e mente de Valentina. Esta vive em um ambiente sublimado, em
companhia de sua tia muito magra, e em alguns momentos, filosofa sobre pobreza,
riqueza, moda, entre outros assuntos.
Valentina é vestida pelo autor com roupas descoladas, usa tênis cano alto e
enfeites feitos com plástico, além de usar óculos grandes e redondos, e como toda
princesa tem uma sua coroa, a de Valentina é feita de jornal. Ela orgulha-se de ser o
que é e não gosta das roupas que usam as princesas da orla da praia da cidade, e ela
ainda diz que todas se parecem e usam roupas iguais.
Seus costumes e pensamentos encarnam uma idealização do mundo da fave-
la em que o amor familiar é o mesmo que há, se há, em todos os lugares. No castelo
de Valentina o amor da família é a base da felicidade. E, por isso, mesmo Valentina
não aceita a ausência dos pais para irem trabalhar na cidade, para fazer de Valentina
um alguém na vida. Ela nega-se a aceitar isto, pois já se considera alguém. Valentina
já é, não virá a ser.
De um modo prático e romântico, Vassallo (2007) e Valentina questionam
as relações de trabalho como fator de separação das crianças dos seus pais. Porém,
é preciso trabalhar para se reproduzir socialmente. Valentina parece preferir um
mundo sem trabalho e sem sofrimentos, onde as pessoas não são sentenciadas pela
cor da pele que possuem. Prefere entender que a violência e os barulhos das armas
dos que tem poder, são comemorações de eventos cheiros de alegria.

446
Estudos Literários

Assim, até as frestas que tem em sua casa, feitas por tiros das armas dos po-
derosos, tornam-se ambientações em cujos buracos pode-se contemplar a lua e as
estrelas. Esta é Valentina, representada por tantas crianças do mundo real, inseridas
em uma sociedade preconceituosa, discriminante e segregadora, mas que emerge
dos sonhos e fantasias para reivindicar a presença e a incorporação dos negros na
sociedade brasileira.
Feito este breve relato de Valentina (VASSALLO, 2207), serão apresentadas
as análises do texto e os caminhos encontrados nas palavras do autor para fazer a
transposição didática, para o preparo de algumas aulas para alunos do Ensino Fun-
damental I. Logo no primeiro parágrafo da obra já nos deparamos com algumas
expressões literárias e poéticas, que podem ser direcionadas à inserção e estudos de
temas geográficos.
Esta mescla ente Literatura e Geografia e vice-versa, contribui para a cons-
trução de uma metodologia para o ensino de Geografia através de abordagens pou-
co usuais no Ensino Fundamental em geral. Quando o autor expressa frases como:
“[...] na beira do longe [...]” e “[...] depois do bem alto [...]” (VASSALLO, 2007, p.
4), surgem possibilidadespara trabalhar com as crianças os conceitos de altitude,
longitude, latitude (categorias chamadas de coordenadas geográficas) e as escalas,
para que o aluno comece a ter contato com as distâncias, a fim de ter noção do que
é perto, longe e alto.
Embora sejam conceitos produzidos pela ciência, são, também, percepções
de cada sujeito a partir da experiência da corporeidade e da descentração de si ao
ter contato com os objetos e lugares. Sensações como a observação, a percepção, a
análise conceitual e a síntese, através das representações cartográficas, por exemplo,
possibilitam pensar significativamente o espaço geográfico vivido.
As frases “[...] passavam o dia todo fora de casa [...]” e “[...] precisavam tra-
balhar [...]” (VASSALLO, 2007, p. 4), também no primeiro parágrafo, expressam
a condição social dos pais de Valentina, visto que eles eram obrigados a trabalhar
em tempo integral para sobreviver. Esta situação da personagem possibilita a con-
textualização com a realidade dos alunos. A proposta é a de debater com os alunos
sobre as questões do trabalho assalariado, como é a vida nas condições sociais de
pobreza, a importância do convívio familiar, a educação dos pais e as consequências
na formação do caráter de uma criança quando seus pais são ausentes.

447
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Também é possível aprofundar o tema do trabalho assalariado explicando


de forma simples, com linguagem acessível a estes alunos, a hierarquização a que
estão submetidos os proletários, seus salários, os fatores de produção, a dominação
da classe média e alta sobre a classe mais inferior da pirâmide social, o lucro, enfim,
temas associados à dominação branca, rica, sobre os indivíduos negros e pobres,
economicamente falando.
A hierarquia social revelada na obra remete ao modo de vida que as empre-
gadas domésticas, os motoristas, as cabeleireiras e manicures, as babás, os pedrei-
ros, pintores e serventes, as cozinheiras, entre tantos outros profissionais são sub-
metidos. Por serem trabalhadores em uma sociedade branca, racista, acabam não
sendo valorizados, simples-mente porque a grande parte dos indivíduos inseridos
nestas condições de trabalho são negros e pobres, ou pobres e negros.
A indagação da princesa Valentina acerca dos motivos pelos quais “[...] os
pais dela tinham que sair antes de o sol engatinhar [...]” (VASSALLO, 2007, p. 4),
refere-se a uma forma poética do que conhecemos como o nascerdo sol. Deste
simples termo, podemos extrair uma metodologia bastante complexa de saberes
geográficos. A seguir, serão apresentados os fluxogramas que contêm conteúdos
geográficos pautados nos termos poéticos trabalhados por Vassallo (2007), e que
podem ser aplicados dentro de sala de aula com alunos do Ensino Fundamental I.

Transposição da obra para conteúdos de sala


O primeiro fluxograma apresentado é exemplo das inúmeras possibilidades
existentes para trabalhar conceitos e conteúdos geográficos com os alunos da edu-
cação básica. Com essa proposta metodológica, os temas geográficos vão intera-
gindo entre si e com a literatura, formando uma teia, onde inúmeros outros temas
vão se encaixando e se complementando ao longo do desenvolvimento dos saberes.
Por esta proposta, assuntos do cotidiano permitem a intertextualidade com
os movimentos de rotação e translação da Terra, por exemplo, abrangendo a cons-
trução de outros materiais didáticos como um globo terrestre de isopor para expli-
car melhor estes fenômenos, e, ainda, o estudo sobre as estações do ano, solicitando
aos alunos que desenhem algo que represente bem cada estação ou diferenciação
climática, entre outras ideias que possam surgir pela interpretação de cada leitor.

448
Estudos Literários

Fluxograma 1 – Os Movimentos da Terra e as Estações do Ano. Fonte: MELO, M. P., 2018.

Prosseguindo com a leitura da obra, os termos “[...] descer [...]” e “[...] subir
[...]” (VASSALLO, 2007, p. 4), aparecem como representação da rotina vivida pelos
pais da princesa e o local em que estão inseridos: a favela. No contexto da obra lite-
rária, várias músicas que remetam à vida na favela ou à discriminação dos negros,
também podem ser exemplos de proposta, diferentes do fluxograma, que enfatizem
de forma poética o cotidiano de quem vive no morro, além de uma forma de inter-
disciplinaridade.
Na paisagem urbana a favela pode ser classificada como uma área de segre-
gação social, por aqueles que não vivem lá. Mas para aqueles que estão na favela, ali
está o umbigo dos seus mundos, cheio de tudo, lutas, amores, misérias e felicidades.
É um mundo com uma rotina diferente do restante da cidade, por isso requer com-
petências outras que não se demandam ao seu redor.
Outra abordagem que se encaixa perfeitamente em sala, a partir dos termos
literários que dizem respeito à estrutura dos complexos periféricos, é o estudo do
relevo brasileiro, sua classificação, as influências no clima, a geografia física - mon-
tanhas, escarpas, falhas, dobras, depressões, planícies e planaltos, pontos culminan-
tes do Brasil, erosão, dentre outros.

449
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Fluxograma 2 – A influência do relevo. Fonte: MELO, M. P., 2018.

Esta proposta contida no Fluxograma 2 permite trabalhar o conceito de re-


levo, suas representações, os modos de desenhar no mapa as formas da terra, a re-
presentação das altimetrias, os sistemas de curvas de nível, contudo sempre obser-
vando as linguagens dos interlocutores, os sujeitos da educação, alunos do Ensino
Fundamental I.
Os núcleos de habitações, como podemos ver na representação da favela,
retirada de Valentina (VASSALLO, 2007), logo acima, com casinhas em tons de
amarelo e laranja, são rústicos e improvisados em áreas urbanas e suburbanas, ir-
regularmente em terrenos invadidos, em encostas vegetadas e/ou degradadas, sem
infraestrutura, higiene, transporte adequado, áreas de lazer, enfim, condições míni-
mas para a sobrevivência dos moradores.
Mesmo assim pode ser visto pelos moradores como um lugar de acolhida, de
solidariedade e onde se tem ajuda mútua (mutirões). Se esta é uma visão românti-
ca, ou não, da favela, é, contudo, a percepção daqueles que tem na favela o seu lar.
Daqueles que, na favela, construíram e foram construídos pelo lugar, o seu lugar.
Morar próximo a uma encosta pode indicar uma ameaça física para o homem
e/ou para o meio ambiente. Os riscos existentes podem estar relacionados a causas
naturais, quando resultam de eventos espontâneos da natureza, ou induzidos, quan-
do decorrem da intervenção humana. Em decorrência destes problemas, alguns ou-

450
Estudos Literários

tros temas também podem ser levados para a sala de aula, a fim de demonstrar aos
alunos os principais processos naturais de desestabilização de encostas.
A expressão “[...] o castelo de Valentina tinha brilho que transbordava da
sombra [...]” (VASSALLO, 2007, p. 12), revela o quanto os sentimentos puros da
princesa prevalecem sobre todos os problemas encarados pelos moradores de uma
favela, mesmo morando em casa com “[...] porta de asa aberta [...]” (p. 12), ou seja,
uma casa sem portas. Para Valentina, não importa o quão humilde seja sua casa,
pois os sentimentos que ela despejava sobre seu lar fazia com que tudo à sua volta
se tornasse um reino. E esse era seu lugar, tanto que, para ela, sua cama tinha “[...]
cheiro de abraço amarrotado [...]” (p. 12), demonstrando o enorme afeto por cada
detalhe, cada cantinho em sua casa.
As janelas da casa tinham “[...] vista para dentro e cortina que abria ideia
[...]” (VASSALLO, 2007, p. 12). Entende-se aí que o ambiente permitia à princesa
liberar sua imaginação, pois o quarto não possuía janelas, assim como as alcovas,
o que impede a ventilação e permite a presença do mofo. Mesmo assim, Valentina
conseguia ver “[...] um monte de outras paisagens de caber suspiro [...]” (p. 12), e
novamente surge a possibilidade de trabalhar mais uma categoria espacial geográfi-
ca com os alunos do Ensino Fundamental I: a paisagem.

Fluxograma 3 – Conceito de paisagem. Fonte: MELO, M. P., 2018.

451
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Neste sentido, pedir aos alunos que descrevam como eles entendem determi-
nada paisagem, ou que é uma paisagem para eles, utilizando o quadro acima pro-
posto para registrar suas percepções, é uma maneira interessante de abordar con-
ceitos que exploram todos os sentidos, a memória, o diálogo, e outras possibilidades
que o professor achar pertinente para o momento. Uma outra atividade interessante
como proposta metodológica para os alunos seria pedir para eles pensarem em um
dos trajetos que fazem diariamente até a escola, por exemplo, e desta experiência
extraírem o que conseguirem descrever.
A paisagem é tudo aquilo que enxergamos, incluindo também os cheiros,
sons, cores e texturas. Conseguimos através dela, experimentar as sensações a partir
da descrição, e com isso o sujeito relaciona-se com a paisagem em seu movimento
cotidiano do ir e vir, do subir e descer, onde quer que esteja. A forma afetiva do
lugar é um elo importante para inserir conceitos espaciais para os alunos do Ensino
Fundamental I. Estabelecer diretrizes para que o aluno comece a desenvolver seu
senso crítico a partir de um simples desenho da rua onde ele mora, é essencial para
a compreensão da dinâmica de toda a superfície terrestre.
A expressão “[...] longe de tudo [...]” (VASSALLO, 2007, p. 10), que revela a
periferia como um lugar afastado do centro, tal como é na vida real, concretiza a
sensação de que é um lugar ruim para morar, trabalhar, viver; porém mesmo quan-
do os “[...] dragões do lugar apavoravam todo mundo e cuspiam fogo e barulho
para todos os lados [...]” (p. 10), a união e o amor da família acabam derrubando
qualquer apavoramento.
O complexo periférico é altamente abrangente e nele existe uma estrutura
social com imensas diferenças internas. A maioria dos seus habitantes são trabalha-
dores ou desempregados, e uma outra parcela dedica-se às atividades criminosas. A
violência, os conflitos entre bandidos e policiais, que rondam a periferia com muito
medo e desespero, também se tornam temas para serem abordados em sala de aula.
Grande parte dos seus moradores é negra, ou quase negra, e para as classes
médias mais reacionárias, favela é lugar de marginal, de gente que não presta. Esta
mesma gente não tem qualquer cerimônia em explorar o trabalho dos que lá vivem.
A fim de romper com esse pré-conceito de que favela é lugar só de marginalidade,
medo e tristeza, Márcio Vassallo (2007) descreve o “[...] Tudo [...]” (p. 10), como

452
Estudos Literários

sendo o centro de uma grande cidade, mas para a princesa, o Tudo é a periferia
onde ela vive, valorizando suas raízes e passando para o leitor uma imagem positiva
desse lugar.
Outro tema que também está presente na obra é a fome - subnutrição da
classe pobre versus obesidade da classe média a alta. Quando a obra revela que
quem toma conta de Valentina é a tia, “[...] uma donzela de costela aparecida [...]”
(VASSALLO, 2007, p. 8), isso nos remete à uma pessoa magra, cuja origem pode es-
tar nas dificuldades, por serem mal remunerados, que enfrentam para saciar a fome.
É essencial explicar aos alunos sobre esta fome, decorrente de pessoas que
ficam desempregadas, ou que tiveram seus salários reduzidos, ou qualquer outro
fator que as sujeite a situações precárias e agravamento da falta de condições para
alimentar-se com suficiência. Da mesma maneira que os pais da princesa precisa-
vam trabalhar, e ela ficava aos cuidados da tia “[...] com voz de buzina [...]” (VAS-
SALLO, 2007, p. 8), na nossa realidade atual acontece o mesmo, sendo que os pais,
pobres, deixam suas crianças com avós, tios, irmãos, amigos, até mesmo vizinhos,
para conseguirem trabalhar fora de casa e manter o sustento de toda a família.
A produção para o mercado externo vem crescendo cada vez mais enquanto a
diversidade da produção de alimentos dirigida ao mercado interno tem diminuído,
sendo de importância secundária. Paralelamente a isso, milhões de pessoas vivem
em favelas, assim como a Valentina, na periferia das grandes cidades, como São Pau-
lo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, entre outras. As migrações
internas são problemas gerados dentro do território nacional, pois as pessoas des-
locam-se em busca de oportunidades e de superação da situação de miserabilidade.
Nos grandes centros, essas pessoas vão exercer funções mal remuneradas,
inclusive em empregos informais. Quase toda a família trabalha, em alguns casos
inclusive as crianças, frequentemente durante o dia inteiro, e alimentam-se mal,
raramente ingerindo o suficiente para repor as energias desprendidas. Neste ciclo
vicioso, cada vez mais famílias se aglomeram nas cidades, sendo vítimas da pri-
vação/subministração de alimentos, a maléfica subnutrição, também chamada de
fome oculta, caracterizada quando os sujeitos comem apenas alimentos energéticos
e não ingerem proteínas e vitaminas.

453
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Mesmo a tia de Valentina parecendo ser uma pessoa chata, magra, sofrida, re-
clamona e que gosta de gritar, o amor que ela tem pela princesa parece ser extrema-
mente importante para a definição do caráter da princesa. É um sentimento valioso,
de quem cuida dela e de quem não tem palavras para expressar o quanto sua beleza
é expressiva, mesmo em um país onde o padrão de beleza negra não é valorizado.
As características físicas descritas na obra, ainda podem revelar traços im-
portantes de uma criança que sabe superar obstáculos que vão surgindo ao longo da
vida. Valentina “[...] tinha orelha de abano para escutar cochicho de nuvem e perna
comprida para pular pensamento [...]” (VASSALLO, 2007, p. 8), e essas duas expres-
sões aparecem como um exemplo de superação num mundo racialmente dividido.
Crianças com orelhas de abano sofrem bullyingnas escolas e carregam con-
sigo um sentimento de rejeição, assim como as pernas compridas aparentemente
muito magras, que também é motivo de chacota por outros colegas. Cristina Klein
(2011) escreveu uma obra intitulada Bullyingna escola – chacota das orelhas de aba-
no, que retrata a estória de um aluno chamado Bruno que tinha orelhas de abano.
Ele sofria muito com os apelidos que os colegas lhe impunham, até que sua mãe,
juntamente com a escola, uniu forças e venceu o preconceito.
É uma outra proposta interessante, assim como as outras obras escritas por
esta autora, como partes da coleção que trabalha sobre os diversos tipos de bullyin-
gem ambiente escolar. Klein (2011) aborda em sua coleção, temas como o precon-
ceito racial, a agressão física e verbal, o preconceito religioso, roubo de materiais
escolares, preconceito físico, regional, combate à dengue, maledicência e fofocas,
dentre vários outros livros que a autora escreveu para as crianças vencerem seus
obstáculos, aprendendo valores e superando preconceitos.
Na obra Valentina, de Márcio VASSALLO (2007), essas características são
po-eticamente descritas justamente para reafirmar o que a sociedade critica e rejei-
ta. As orelhas de abanosão, na verdade, um privilégio para quem as tem, pois serve
apenas para ouvir coisas boas e as pernas compridas para pular obstáculos, superar
problemas e vencer preconceitos.
A visão que a princesa tem do “[...] lá embaixo [...]”, [...] o tal lugar [...]”
(VASSALLO, 2007, p. 12) que representa o centro do Rio de Janeiro, sugere que
Valentina é uma criança que não tem contato com a mídia. Na casa dela, assim co-

454
Estudos Literários

mo na casa de tantas famílias pobres


brasileiras, não tem televisão. O lugar-
para ela é a periferia. Nenhum outro
lugar lhe traz mais conforto, felicidade
e orgulho.
De tanto falarem, ela foi conhe-
cer o tal do “[...] Tudo [...]” (VASSAL-
LO, 2007, p. 14) pessoalmente. Des-
ceu o morro, e com os próprios pés
e olhos descobriu o centro da cidade.
Como era perigoso Valentina “[...]
descer o castelo sozinha [...]” (p. 14),
os pais a acompanharam e lá ela des-
cobriu o que a mídia transmite – um
mundo consumista embranquecido.
Assim como a princesa per-
cebeu de perto que todas as meninas
eram iguais, vestiam-se e falavam da
mesma forma, gostavam das mesmas
cores e dos mesmos passeios, o mun-
do em que vivemos revela as mesmas
situações. Valentina não se confunde
à extravagância das demais. O livro
traz ilustrações notáveis. Suas vestes
são feitas com papel reciclado, papel
de jornal, plástico, grampos, recortes
e fotografias.

Figura 1 – Valentina. Fonte: VASSALLO, M. 2007.

Valentina (VASSALLO, 2007) não tem título de nobreza, mas é uma prin-
cesa porque a fantasia é criada a partir de seu olhar com relação à sua realidade e
porque seus pais a tratam como tal, dentro de suas limitações e possibilidades. O

455
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

encantamento da história não está nos feitiços, magias ou metamorfoses, mas na


ilusão criada pelo autor de seus pais preservarem a princesa dos riscos de se viver
nas condições que lhes restam por não pertencerem à burguesia do Rio de Janeiro,
que na maioria das vezes, é indiferente a essa questão.

Considerações finais
As relações entre Geografia, Literatura e Negritude, e as análises feitas através
da obra Valentina (VASSALLO, 2007), compreendem a possibilidade de desenvol-
vimento de diferentes metodologias de ensino a partir de textos não-convencionais,
tornando o processo de ensino e aprendizagem mais próximo ao cotidiano e mais
interessante aos alunos, aqui considerados os do Ensino Fundamental I.
Da mesma forma que construímos temas e conceitos geográficos inspirados
em uma obra literária, há inúmeras outras possibilidades para se conduzir uma aula
voltada à promoção de uma educação intercultural. Esta proposta, baseada no res-
peito aos valores do outro, evidencia, com embasamento teórico, a real necessidade
de reposicionamento do negro no espaço. É necessário que todos nós pensemos
em uma educação pautada na autorreflexão crítica, que represente a resistência e
a oposição ao estágio de incertezas e desequilíbrios sociais onde se ressalta a desi-
gualdade social.
Foi constatado que a Geografia e a Literatura podem considerar a temática
negra nas escolas; e, mais do que isso, a Geografia pode utilizar a Literatura Infantil
da negritude para trabalhar seus conceitos. A fim de ancorar o processo de enfren-
tamento do preconceito étnico-racial, subjacente à formação da identidade dos su-
jeitos negros, todos nós podemos estar aliados à produção e reprodução de lugares
que preze a luta pela desconstrução do racismo e das demais formas de segregações.
É importante que desenvolvamos propostas metodológicas que incluam o negro
nos currículos escolares, visto que há escassez de obras com personagens negros
em evidência.
Mais importante que os métodos de ensino, é a escola colocar em prática
durante todo o ano letivo atividades que conduzam o respeito às diversidades, o in-
centivo à integração dos alunos, enfim, que reforcem a importância da manutenção
da igualdade em meio às diferenças. Esta foi e é a grande finalidade deste estudo:

456
Estudos Literários

propor estratégias de ensino de Geografia, que ao mesmo tempo contribua para en-
frentar a desigualdade racial, a invisibilidade do negro na nossa sociedade e utilizar
outras fontes de saberes para dialogar com a Geografia.

Referências
ANDRE, M. C. Psicossociologia e negritude: breve reflexão sobre o “ser negro” no Brasil.
Bol. - Acad. Paul. Psicol., São Paulo , v. 27, n. 2, dez. 2007.
D’ ALMEIDA, G. Bruna e a galinha d’Angola. Rio de Janeiro: Pallas, 2000.
KLEIN, C. Bullying na escola – Chacota das orelhas de abano. Blumenau: Editora Blu,
2001.
LIMA, H. P. Histórias da Preta. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
MACHADO, A. M. Menina Bonita do Laço de Fita. São Paulo: Ática,1994.
MANDELA, N. Meus contos africanos. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
PINTO, Z. A. O menino marrom. São Paulo: Melhoramentos, 2012.
SANTOS, M. Cidadanias mutiladas. In: LERNER, J. (Ed.). O preconceito. São Paulo:
IMESP, 1996/1997, p. 133-144.
______. Ser negro no Brasil hoje. IN: Jornal Folha de São Paulo – Caderno Mais, 07 mai.
1997. São Paulo.
VASSALLO, M. Valentina. 1 ed. São Paulo: Global, 2007.

457
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Uma análise retórica do


pathos nas pinturas de 1917
de Anita Malfatti
Nayara Christina Herminia dos Santos1

Anita Malfatti e a Arte Moderna

A paixão é, talvez mais que a loucura, o arauto de uma


racionalidade impossível.
Michel Meyer

No ano de 1917 a artista plástica brasileira Anita Catarina Malfatti expôs, em


sua segunda individual2, 53 obras, dentre elas pinturas, paisagens, gravuras, aquare-
las, caricaturas e desenhos, obras modernas para a doxa3 da época e, sobretudo, de
tendência expressionista.
A exposição recebeu o título explicativo de Exposição de Pintura Moderna
Anita Malfatti, já que a artista havia acabado de retornar da Europa, após árduo
estudo no campo da arte. O episódio gerou uma grande polêmica artística, pois a
exposição foi incompreensível para o auditório4 da época.

1  Universidade de Franca – UNIFRAN, [email protected]


2  A primeira exposição de Anita Malfatti ocorreu em 1914 e foi intitulada “Exposição de estudos de pintura
Anita Malfatti” elaborada como prova de aptidão para pleitear o Pensionato Artístico do Estado de São Paulo,
bolsa do Governo para a área artística. Foram selecionadas 33 obras (BATISTA, 2006, p. 84-85).
3  As convicções ou reflexões sobre algo, as crenças de cada época, as opiniões vigentes em uma sociedade
em período específico de tempo. Descrita por Barthes como “a Opinião Pública, o Espírito majoritário, o
Consenso pequeno-burguês, a Voz do Natural, a Violência do Preconceito” (apud FIORIN, 2018, p. 107).
4  Conforme Reboul (2004, p. 92-93) “sempre se argumenta diante de alguém. Esse alguém, que pode ser um
indivíduo ou um grupo ou uma multidão, chama-se auditório, termo que se aplica até aos leitores”.

458
Estudos Literários

Por conseguinte, Malfatti é considerada a precursora da Arte Moderna no


Brasil, já que a exposição despertou o pathos5 do auditório, que foi desde ira, irrita-
ção, indignação, ódio e inveja à compaixão, amizade, devoção e amor por Malfatti.
Como exemplos dos pathe de ira, irritação e até ódio, cólera e inveja, pode-se citar a
catilinária expressa pelo artigo A propósito da Exposição Malfatti6, redigido pelo autor
brasileiro Monteiro Lobato, e publicado no jornal Estado de S. Paulo, em 1917 (uma
semana após a exposição de Malfatti), em que a tomava como “louca” e sua obra
como “estranhas psicoses”. O artigo em questão foi publicado anos mais tarde sob o
título de Paranóia e Desmistificação no livro Jeca Tatu. Há mais publicações de críti-
cos, jornalistas e até parentes de Malfatti versando sobre o assunto de forma irascível.
Já como exemplos das paixõesde devoção, amabilidade, amizade e amor ci-
tamos a alcunha de “arte nova, divisora de águas” e “marco inicial do movimento
modernista”7 dada por futuros modernistas que apoiaram Malfatti e suas obras, e
ainda “estopim do modernismo”8. Entre eles temos o poeta parnasiano Correa Jú-
nior, o pintor acadêmico Wasth Rodrigues, o jornalista Arnaldo Simões Pinto e o
pintor Di Cavalcante, esses com assiduidade à exposição confirmada pelo caderno
de assinaturas.
Há ainda artigos publicados pelos escritores Mário de Andrade e Oswald
de Andrade defendendo e apoiando Malfatti e a arte moderna. E um compêndio
de cartas trocadas entre Malfatti e Mário de Andrade publicadas no livro Cartas a
Anita Malfatti (1989), também organizado pela historiadora Batista, que demonstra
o pathos de amor e amizade entre os artistas.
Este trabalho se fundamenta sobre o alicerce teórico da Retórica, com os es-
tudos de autores como Aristóteles (2015), Meyer (2007), Reboul (2004), Perelman e
Olbrechts-Tyteca (2005), Fiorin (2014), McCoy (2010), e da Linguística Textual, com
Koch (2004), Cavalcante (2013), Tavares (1978), além de autores que tratam da retó-
rica da imagem e da pintura, como Barthes (1982) e Carrere e Saborit (2000). Sobre

5 O pathos é a fonte das questões e estas respondem a interesses múltiplos, dos quais são provas as paixões,
as emoções ou simplesmente as opiniões (MEYER, 2007, p. 36).
6  Texto na íntegra no link http://www.mac.usp.br/mac/templates/projetos/educativo/paranoia.html.
7  BATISTA, 2006, p. 17.
8  Expressão de Mário da Silva Brito (BATISTA, 2006, p. 17).

459
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Malfatti, sua obra e o contexto cultural de sua época, consideraremos os trabalhos


de Batista (2006), Anita Malfatti no tempo e no espaço – Biografia e estudo da obra,
e Amaral (1970), além de historiadores das artes plásticas como Gombrich (1950).
Os pathe incitados no auditório da época serão analisados com base em com-
pêndios de cartas, artigos e notícias publicados em jornais da época versando sobre
Malfatti e sua obra. O principal artigo que elenca opiniões irascíveis à Malfatti é o
já citado A propósito de Exposição Malfatti, de Monteiro Lobato. E, para demonstrar
o pathos de apoio, há artigos e cartas de Mário de Andrade e Oswald de Andrade
também publicados em jornais da época.

Retórica da Pintura
Compreenderemos aqui a pintura como um texto retórico dotado de per-
suasão. Pois, conforme Ferreira (2010, p. 49), “todo discurso é, por excelência, uma
construção retórica, uma vez que procura conduzir o auditório numa direção deter-
minada e projetar um ponto de vista, em busca de adesão”.
A pintura pode se manifestar retoricamente por meio de sua função estéti-
ca, agindo por meio de recursos estilísticos, linguísticos e retóricos para despertar
paixões (pathos) e transmitir sentidos diversos por meio do seu discurso (logos). O
logos se refere à linguagem ou à imagem utilizada no discurso, a mensagem que se
passa para o auditório. Conforme Meyer:

O lógos subordina a suas regras próprias o orador e o auditório: ele persuade


um auditório pela força de seus argumentos, ou agrada a esse mesmo audi-
tório pela beleza do estilo, que comove aqueles a quem se dirige. Uma pala-
vra para qualificar o auditório que se quer seduzir, convencer ou encantar:
páthos. O auditório é passivo, ele se submete ao orador como se submete a su-
as próprias paixões, termo cuja etimologia é precisamente páthos, em grego.
Mas é o lógos que faz diferença entre o discurso racional e aquele que provoca
paixões, criando emoções e chegando mesmo a fazer com que a razão seja
esquecida (MEYER, 2007, p. 22).

Dessa forma, por meio do logos, ou seja, por meio do discurso utilizado o
orador persuade seu auditório e, faz isso com a utilização de conceitos e técnicas

460
Estudos Literários

retóricas, já que como prega Aristóteles (2015, p. 62) o grande formulador da teoria
retórica, “entendamos por retórica a capacidade de descobrir o que é adequado a
cada caso com o fim de persuadir”.
Carrere e Saborit correlacionam três concepções irrefutavelmente inter-re-
lacionadas: retórica, pintura, linguagem. Pois, para analisarmos nosso objeto de
estudo, o observaremos como texto (linguagem) e, Meyer nos ampara discorrendo
sobre a necessidade de uma mídia, ou linguagem, com a qual se propaga o discurso,
e essa mídia é sempre uma linguagem que pode ser “falada ou escrita, mas também
pictórica ou visual” (MEYER, 2007, p. 22, grifo nosso).
A pintura como linguagem é provida de efeitos de sentido que expressam
algo intencional ou não do seu pintor, o qual o chamaremos aqui de orador ou ethos,
pois esse diz respeito ao caráter, honra, ou virtude atribuídos ao orador do discurso.
Dessa forma Meyer (2007, p. 26), profere que, do ponto de vista do orador, o deter-
minante para o discurso é se ele agradará o auditório e a maneira utilizada para esse
intuito, pode ser tanto por meio de um discurso agradável ou belo, como por meio
de um argumento racional. Ela desperta emoções e sentimentos no espectador ou
auditório, pois, conforme Reboul quando se argumenta é necessário que haja al-
guém que seja o ouvinte, e como já dito, na teoria retórica, esse alguém é o auditório.
Para Carrere e Saborit (2000, p. 172) não há espectador inocente, ou seja, não
há auditório inócuo, e toda significação de qualquer espetáculo visual do mundo na-
tural ou artificial se produz como resultado de complexas cooperações, com o con-
junto de experiências visuais que o tenha precedido e que o rodeiam, tanto mediante
incorporação consciente como por sua posterior automatização inconsciente.
Ainda para os autores, o primeiro efeito que pretende toda pintura consiste
em persuadir o espectador de sua própria beleza, valor, condição artística (segundo
os paradigmas vigentes em distintas épocas), e desse modo, apresentar-se a si mes-
ma como objeto valioso, portador de conhecimento, transmissor de prestígio, se-
gundo a doxa da época, isto é, as tradições e opiniões vigorantes naquele momento
histórico, cultural, social.
A beleza ou o mover, despertar dos ânimos, ou das paixões se configura como
a função de movere, que faz parte das três ordens de finalidade descritas por Ferrei-
ra. E que conforme o autor (2010, p. 16) possui o intuito de “comover, atingir os sen-
timentos. É o lado emotivo do discurso, aquele que movimenta as paixões humanas”.

461
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Pathos
A exposição de Anita Malfatti, ocorrida em 1917, reverberou em uma grande
polêmica artística, ocasionando o despertar de paixões das mais diversas, atingindo
dois auditórios distintos, os que se indignaram com a audácia da artista e os que a
apoiaram, pois ela trouxe a arte nova para o auditório da época.
O pathos, conforme Meyer (2007, p. 36) é a “fonte das questões e estas res-
pondem a interesses múltiplos, dos quais são provas as paixões, as emoções ou sim-
plesmente as opiniões”.
Para o filósofo Aristóteles (2015, p. 116) “as emoções são as causas que fazem
alterar os seres humanos e introduzem mudanças nos seus juízos, na medida em
que elas comportam dor e prazer, tais como a ira, a compaixão, o medo, e outras
semelhantes e suas contrárias”
Ainda para o estagirita9 (2015, p. 63, grifo nosso), “persuade-se pela dispo-
sição dos ouvintes quando estes são levados a sentir emoção por meio do discurso,
pois os juízos que emitimos variam conforme sentimos tristeza ou alegria, amor
ou ódio”.
Como exemplo de pathos de amabilidade pela artista temos o livro Cartas a
Anita Malfatti (1989) elaborado também pela historiadora Marta Rossetti, com um
compêndio de cartas inéditas trocadas entre a artista e o autor brasileiro Mário de
Andrade, importante modernista da literatura e um dos precursores no movimento
modernista literário brasileiro, que se tornou amigo de Malfatti após sua exposição
e devido a ela.
O autor defendeu a beleza das obras de Malfatti, por meio de seus artigos sobre
o modernismo no Brasil, e na tentativa de avaliar seu sentir sobre a exposição expôs:

Se Anita Manfatti vê uns cabelos brancos e neles sente o verde frustrado das
esperanças partidas, respeite a sua comoção, a sua fantasia e será grande
como foi pintado esse quadro forte. Será incompreendida pelos que só con-
seguem ver cabelos negros, loiros, brancos, ou castanhos, mas despertará um
pensamento vivaz, uma comoção mas funda naquele que souber elevar-se até

9  O filósofo Aristóteles nasceu em Estagira, cidade da Macedônia.

462
Estudos Literários

a idade da artista. Mais vale dois a sentir, que a multidão a aplaudir (BATIS-
TA, 2006, p. 273, grifo nosso).

Para Dondis (2007, p. 64), “a cor tem afinidade com as emoções”, sendo, por-
tanto, instigadora do pathos, despertando paixões no auditório. Por conseguinte, a
autora ainda completa:

A cor está, de fato, impregnada de informação, e é uma das mais penetrantes


experiências visuais que temos todos em comum. Constitui, portanto, uma
fonte de valor inestimável para os comunicadores visuais. [...] Também co-
nhecemos a cor em termos de uma vasta categoria de significados simbólicos.

Já Abreu (2002, p. 31) confirma que “alegria, tristeza, raiva, medo e amor
são nossas cores emocionais básicas”. Dessa forma fica perceptível como a cor se
impregna de conhecimentos, recurso estilístico e retórico bastante utilizado por
Malfatti e movimento artístico denominado fauvismo, pois se utiliza das cores de
forma exacerbada com o intuito de evidenciar sentimentos.
As cartas trocadas entre Mário e Anita revelam uma fase preciosa do mo-
dernismo literário, plástico brasileiro e musical brasileiro, além de contribuir com
a verificação das emoções e opiniões10 despertadas no auditório da época. Além de
haver notícias vinculadas em jornais com falas de autores e modernista, tais como
Oswald de Andrade, Tarsila de Amaral e Menotti.
O escritor Mário de Andrade, em 1917, diria “Parece absurdo, mas aque-
les quadros foram a revelação. E ilhados na enchente de escândalo que tomava a
cidade, nós, três ou quatro, delirávamos de êxtase diante de quadros chamados o
homem amarelo, a mulher do cabelo verde” (BATISTA, 2006, p. 167).
Já em 1928, Mário de Andrade discorreria sobre como Malfatti renovou os
ares da arte, por meio da sua exposição:

O nome de Anita Malfatti já está definitivamente ligado à história das artes


plásticas brasileiras pelo papel que a pintora representou no início do mo-
vimento renovador contemporâneo. Dotada duma inteligência cultivada e

10  Pathos aristotélico.

463
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

duma sensibilidade vasta, ela foi a primeira entre nós a sentir a precisão de
buscar os caminhos mais contemporâneos da expressão artística, de que viví-
amos totalmente divorciados, banzando num tradicionalismo acadêmico que
já não correspondia mais a nenhuma realidade nem brasileira nem interna-
cional (BATISTA, 2006, p. 361).

Mais falas da crítica na época expõe as reações despertadas pelas obras de


Malfatti, como por exemplo, essa passagem do Correio Paulistano: “Essencialmente
moderna, a arte da senhorita Malfatti se distancia consideravelmente dos métodos
clássicos. A figura ressalta, do fundo do quadro, como se nos apresentasse, em cada
traço, quase violento, uma aresta do caráter do retratado” (BATISTA, 2006, p. 202).
Como exemplo do pathos de amabilidade e de amizade despertados, segue a
fim de conhecimento, o artigo escrito por Oswald de Andrade, se opondo ao artigo
de Monteiro Lobato, e publicado no Jornal do Comércio no dia 11 janeiro de 1918,
após o término da exposição:

Encerra-se hoje a exposição da pintora paulista sra. Anita Malfatti, que du-
rante um mês levou ao salão da Rua Líbero Badaró, 111, uma constante ro-
maria de curiosos.

Exigiria longos artigos discutir-se a sua complicada personalidade artística


e o seu precioso valor de temperamento. Numa pequena nota cabe apenas o
aplauso a quem se arroja a expor no nosso pequeno mundo de arte pintura
tão pessoal e tão moderna.

Possuidora de uma alta consciência do que faz, levada por um notável ins-
tinto para a notável eleição dos seus assuntos e da sua maneira, a brilhante
artista não temeu levantar com seus cinquenta trabalhos as mais irritadas
opiniões e as mais contrariantes hostilidades. Era natural que elas surgissem
no acanhamento da nossa vida artística. A impressão inicial que produzem
os seus quadros é de originalidade e de diferente visão. As suas telas chocam
o preconceito fotográfico que geralmente se leva no espírito para as nossas
exposições de pintura. A sua arte é a negação da cópia, a ojeriza da oleografia.

Diante disso, surgem desencontrados comentários e críticas exacerbadas. No


entanto, um pouco de reflexão desfaria, sem dúvida, as mais severas atitudes.

464
Estudos Literários

Na arte, a realidade na ilusão é o que todos procuram. E os naturalistas mais


perfeitos são os que melhor conseguem iludir. Anita Malfatti é um tempe-
ramento nervoso e uma intelectualidade apurada, a serviço de seu século.
A ilusão que ela constrói é particularmente comovida, é individual e forte e
carrega consigo as próprias virtudes e os próprios defeitos da artista.

Onde está a realidade, perguntarão, nos trabalhos de extravagante impressão


que ela expõe?

A realidade existe mesmo nos mais fantásticos arrojos criadores e é isso jus-
tamente o que os salva.

A realidade existe, estupenda, por exemplo, na liberdade com que se en-


quadram na tela as figuras número 11 e número 1; existe, impressionante
e perturbadora, na evocação trágica e grandiosa da terra brasileira que é o
quadro 17; existe, ainda, sutil e graciosa, nas fantasias e estudos que enchem
a exposição.

A distinta artista conseguiu, para o meio, um bom proveito, agitou-o, tirou-o


da sua tradicional lerdeza de comentários e a nós deu uma das mais profun-
das impressões de boa arte (BATISTA, 2006, p. 223-224).

O escrito Oswald ovaciona a coragem de Malfatti em se mostrar para a socie-


dade conservadora da época. Caracteriza os quadros como originais e visionários.
E nesta passagem, o escritor se opõe à escola acadêmica11, e se contrasta ao artigo
de Lobato, dizendo, “A sua arte é a negação da cópia, a ojeriza da oleografia” e que,
devido a isso, surgiram as críticas passionais à obra.
Nesse discurso, Oswald se refere às pinturas O homem amarelo (Fig. 1), obra
icônica da exposição e que mais despertou opiniões, e dessa forma, paixões, tanto
de ira, cólera, ódio, e até inveja, quanto de amizade, amabilidade, devoção e amor
por Malfatti.
Para tanto, como indício do destaque que O homem amarelo obteve, o autor
literário Mário de Andrade concluiu que, “parece absurdo, mas aqueles quadros

11  Arte acadêmica ou academicismo, termo ligado às academias de artes plásticas, onde a criação era pau-
tada na forma artística predeterminada, padronizada e ancorada no ensino prático.

465
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

foram a revelação. E ilhados na enchente de


escândalos que tomaram a cidade, nós, três
ou quatro, delirávamos de êxtase diante de
quadro que se chamavam O homem amarelo,
A mulher de cabelos verdes12”. A enchente de
escândalos a que se referia o autor foi a ocor-
rida na semana da exposição em 1917, pois,
agindo retoricamente, acarretou o despertar
de paixões no auditório da época.

Figura 1 – O homem amarelo. Fonte: Batista, 2006, p. VII.

Ainda como exemplo do alcance da


referida pintura há uma passagem da biogra-
fia de Malfatti que demonstra como o pathos da amizade e da devoção foi desper-
tado em alguns modernistas da época, em especial o escritor Mário de Andrade.

Um sábado apareceu na exposição um rapaz macilento de luto fechado. Vi-


nha com um companheiro, era Mário de Andrade; começo a rir e não podia
parar. Ria alto, descontroladamente. Eu, que já andava com raiva, fui tomar
satisfações. Perguntei: ‘o que está tão engraçado aqui?’ e quando mais eu me
enfurecia, mas ele ria. Dias depois, ele voltou numa chuvarada, respingan-
do agua de todos os lados – só o ataque de riso havia acabado. Deu-me um
cartãozinho. – ‘Sou o poeta Mário Sobral, vim me despedir. Vou sair de São
Paulo’. Então sério e cerimoniosamente ofereceu-me um soneto parnasiano
sobre a tela O homem amarelo e acrescentou: ‘estou impressionado com este
quadro, que já é meu, mas um dia virei busca-lo’ (BATISTA, 2006, p. 220).13

Dessa forma, O Homem Amarelo é uma das obras que, com mais 52, recebeu
elogios e censuras, despertando pathos de ira, cólera, ódio e até inveja, além de de-

12  Batista, 2006.


13  O poema que Mário de Andrade deu à Malfatti infelizmente se perdeu. (BATISTA, 1989, p. 17)

466
Estudos Literários

voção, amabilidade, amizade e amor por parte dos críticos e modernistas da época,
e ressalta-se pelo mesmo motivo; por insipiência da obra.
A obra possui cores da paleta amarela e tons fortes em sua composição, con-
tornos grossos no estilo de traço, que remetem a dois movimentos plásticos: o Fau-
vismo, que se utiliza das cores de forma não naturalista e, o Expressionismo, que se
utiliza de distorções e deformações. A obra possui intertextualidade por derivação
com a obra de Edvard Munch, “O grito”. Nesse sentido, a obra revela a intenção de
Malfatti em apresentar para o auditório brasileiro um novo padrão estético, e com
isso se opõe à doxa da época e reorganiza os valores plásticos de tal sociedade.
As cores fortes do rosto fazem crer que há algo que esse homem está impos-
sibilitado de expressar, dessa forma os seus olhos assumem um profundo sentimen-
to infausto, saudoso e desesperado, olhos que possuem um fundo amarelado, como
alguém que tenha chorado ou que algo tenha caído em seus olhos; Indumentária
utilizada pelo modelo da pintura sugere formalidade, contudo a roupa se mostra de
forma puída, já a pose, retesada e a expressão, nostálgica. As cores fortes, marca da ar-
tista, e a forma de transportar a imagem para fora dos limites da tela revelam ou evo-
cam poder e esteticamente se distingue do que se esperava de uma pintura da época.
Oswald de Andrade se refere também à Lalive (Fig. 2),pintura de uma mu-
lher, em grandes proporções elaborada com
a finalidade de participar do Salão de Belas
Artes, no Rio de Janeiro, e que por isso, pos-
sui elementos que demonstram o quanto a
pintora se conteve nos traços sintéticos e su-
cintos, nas cores mais brandas e suaves, tu-
do elaborado para ser aceita e, assim, expor
a tela; e, por fim, Paisagem de Santo Amaro,
que conforme Oswald, evoca tragicamente e
grandiosamente a terra brasileira, tendo as-
sim, uma temática nacionalista.

Figura 2 – Lalive. Fonte: Enciclopédia Itaú Cultural.14

14  Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra1394/retrato-de-lalive>. Acesso em: 25 ago. 2018.

467
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

A Lalive foi enviada para o Salão Nacional de Belas Artes, em 1917, para
ser aprovada e expor sua individual, possui a temática predileta de Malfatti e sem
as preocupações nacionalistas do momento. Malfatti se contém nessa pintura em
relação as abstrações, as deformações, e também à cor, recorrendo ao mais suave
e a uma cor não utilizada até então: a cor rosa do vestido. Ela se adapta, utilizando
forma sucintas na composição e estrutura e dando concessões à decoração e à “sua-
vização”. As pinceladas são luminosas e há a colocação de enfeites como o colar e
ramagens no sofá. Nos comentários sobre Lalive, na exposição, fizeram um trocadi-
lho com o nome da artista, A. Malfatti / A mal feita.15
A paixão suscitada pelo artigo de Oswald de Andrade é a paixão do amor ou
amizade. Meyer, no prefácio do livro Retórica das Paixões, de Aristóteles (2000, p.
XLIV), elucida que “o amor, ou amizade, é certamente um vínculo de identidade
mais ou menos parcial. É o próprio lugar da conjunção, da associação – ao contrário
do ódio, puramente dissociador”.
Nesse ínterim, percebemos pelo discurso proferido, que o amor ou amizade
se caracteriza por um vínculo com outrem, o que o filósofo Aristóteles complemen-
ta dizendo que “amar é querer para alguém aquilo que pensamos ser uma coisa boa,
por causa desse alguém e não por causa de nós” (ARISTÓTELES, 2015, p. 124).
Para o filósofo Aristóteles o pathos do amor e do ódio são simétricos, assim
como a da calma e a da cólera, e evidenciam a proximidade existente entre os indi-
víduos e, como Aristóteles mesmo elucida, a distância se torna insignificante.

Se a cólera e a calma funcionam, antes de tudo, com base na assimetria, na


diferença entre os protagonistas, que elas anulam, respeitam ou enfrentam
com êxito, o amor é recíproco para Aristóteles. Ele cria a paridade – mas o
ódio, também, sem dúvida é recíproco. A distância entre os indivíduos se
revela insignificante, o que afinal torna o amor e o ódio tão violentos (ARIS-
TÓTELES, 2000, p. XLIV).

Aristóteles (2015, p. 124), nos dá também a definição para a paixão do amor,


aqui sob a alcunha de amizade, onde “é amigo aquele que ama e é reciprocamente

15  BATISTA, Marta Rossetti. Anita Malfatti no tempo e no espaço: Biografia e estudo de obra. São Paulo: Ed.
34; Edusp, 2006, p. 186.

468
Estudos Literários

amado. Consideram-se amigos os que pensam estar mutualmente nestas disposi-


ções. Novamente percebe-se que para que a paixão do amor ou amizade ocorra,
uma vertente é fundamental, sendo ela a reciprocidade.
Para complementar, o estagirita nomeia as formas de amizade, sendo elas o
companheirismo, o parentesco, a familiaridade, e os seus análogos.
Para que o pathos da amizade se reproduza fielmente, conforme o filósofo,
“as causas da amizade são o favor, o fazê-lo sem que seja solicitado e o não divul-
gá-lo, após tê-lo prestado, pois assim parece que se agiu por causa desse amigo e
não por outra razão” (ARISTÓTELES, 2000, p. 27). O seu oposto, o pathos do ódio,
tem sua definição dada por Aristóteles (2000, p. 29), “são causas do ódio a cólera,
o ultraje, a calunia. A cólera, pois, provém daquilo que nos toca pessoalmente, en-
quanto o ódio surge mesmo sem nenhuma ligação pessoal”.
E ainda completa:

A cólera é o desejo de causar desgosto, mas o ódio, o de fazer mal, visto que o
colérico quer notar o desgosto causado, enquanto ao que odeia nada importa.
As coisas que causam desgosto são todas perceptíveis, as que acarretam os
maiores males são as menos perceptíveis: a injustiça e a insensatez, pois a pre-
sença do vício não nos causa nenhum desgosto (ARISTÓTELES, 2007, p. 29).

O pathos da cólera e do ódio são semelhantes em alguns aspectos, principal-


mente no sentimento que desperta, contudo do exposto podemos avaliar as suas
principais diferenças. O ódio se sobressai por ser profundamente mais enraizado no
ser humano, tanto que se pode senti-lo até por coisas e pessoas que não se conhece,
mas que possui para o indivíduo algo que merece o sentimento de ódio.
O estagirita prossegue:

A cólera traz consigo desgosto, mas o ódio não é acompanhado de desgos-


to, visto que o colérico sente desgosto, enquanto aquele que odeia, não. O
primeiro poderia sentir compaixão em muitas circunstâncias, mas o outro,
em nenhuma: um deseja que o causador de sua cólera sofra por seu turno,
enquanto o outro, que ele desapareça (ARISTÓTELES, 2007, p. 29).

469
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Nesse ínterim, percebe-se claramente a distinção entre o indivíduo que odeia


e o que se encoleriza. Já que o primeiro, como nos diz Aristóteles, quer que o objeto
de seu ódio desapareça, sendo que o colérico pode simplesmente deixar de sentir a
cólera e torna-se calmo.
Em seu artigo, Monteiro Lobato discorre:

[...] espécie é formada dos que vêm anormalmente a natureza e a interpretam


à luz das teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas rebeldes, surgi-
das cá e lá como furúnculos da cultura excessiva. São produtos do cansaço e
do sadismo de todos os períodos de decadência; são frutos de fim de estação,
bichados ao nascedouro.

[...] A única diferença reside em que nos manicômios essa arte é sincera, pro-
duto lógico dos cérebros transtornados pelas mais estranhas psicoses; e fora
deles, nas exposições públicas zabumbadas pela imprensa partidária, mas
não absorvidas pelo público que compra, não há sinceridade nenhuma, nem
nenhuma lógica, sendo tudo mistificação pura (BATISTA, 2006, p. 223-224).

O autor segue confabulando sobre como Malfatti se vê como precursora


de uma nova arte, mas que essa arte é anormal e paranoica, comparando-a com
o que se estuda os psiquiatras, e comparando as obras com desenhos frutos de
“estranhas psicoses”.

Embora eles se dêem como novos precursores duma arte a ir, nada é mais
velho de que a arte anormal ou teratológica: nasceu com a paranóia e com a
mistificação. De há muitos já que a estudam os psiquiatras em seus tratados,
documentando-se nos inúmeros desenhos que ornam as paredes internas
dos manicômios. A única diferença reside em que nos manicômios esta ar-
te é sincera, produto ilógico de cérebros transtornados pelas mais estranhas
psicoses; e fora deles, nas exposições públicas, zabumbadas pela imprensa e
absorvidas por americanos malucos, não há sinceridade nenhuma, nem ne-
nhuma lógica, sendo mistificação pura [...].

Enquanto a percepção sensorial se fizer anormalmente no homem, através da


porta comum dos cinco sentidos, um artista diante de um gato não poderá

470
Estudos Literários

“sentir” senão um gato, e é falsa a “interpretação” que o bichano fizer um


“totó”, um escaravelho ou um amontoado de cubos transparentes (BATISTA,
2006, p. 223-224).

Lobato prossegue seu gracejo comunicando que “Estas considerações são


provocadas pela exposição da Sra. Malfatti, onde se notam acentuadíssimas tendên-
cias para uma atitude estética forçada no sentido das extravagâncias de Picasso e
companhia” (BATISTA, 2006, p. 223-224). E avança, despejando mais críticas sobre
o trabalho exposto, de uma forma bastante irascível, o que se percebe pelo uso de
adjetivos pejorativos, sempre de uma forma enfática e persuasiva.
Nesta passagem, o escritor toma as obras como caricaturas na forma e na cor,
já que Malfatti faz uso do expressionismo e do fauvismo.

[...] Sejamos sinceros: futurismo, cubismo, impressionismo e tutti quanti não


passam de outros tantos ramos da arte caricatural. É extensão da caricatura a
regiões onde não havia até agora penetrado. Caricatura da cor, caricatura da
forma - caricatura que não visa, como a primitiva, ressaltar uma idéia cômica,
mas sim desnortear, aparvalhar o espectador. A fisionomia de que sai de uma
destas exposições é das mais sugestivas. Nenhuma impressão de prazer, ou de
beleza denuncia as caras; em todas, porém, se lê o desapontamento de quem
está incerto, duvidoso de si próprio e dos outros, incapaz de racionar, e muito
desconfiado de que o mistificam habilmente (BATISTA, 2006, p. 223-224).

Percebe-se que Lobato também engloba outros precursores da arte moderna,


como o escritor Oswald de Andrade, chamando-o de “elegante, apesar de gordo”. E
ele discorre, “Arte moderna, eis o escudo, a suprema justificação. Na poesia também
surgem, às vezes, furúnculos desta ordem, provenientes da cegueira nata de certos
poetas elegantes, apesar de gordos, e a justificativa é sempre a mesma: arte moder-
na” (BATISTA, 2006, p. 223-224).
Há também a crítica do tio de Malfatti, Dr. Jorge Krug, que nas palavras da
própria artista ficou aborrecido e disse a ela: “Isto não é pintura, são coisas dan-
tescas”. E Malfatti relembra: “Com o correr das semanas, havia tal ódio geral que
um amigo de casa ameaçou meus quadros com a bengala desejando destruí-los”

471
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

(BATISTA, 2006, p. 217), evidenciando o pathos da cólera, que se origina do que


nos toca pessoalmente.
Das doze pinturas só seis foram encontradas, de acordo com a biografia es-
crita por Batista, dentre elas temos Tropical, A mulher dos cabelos verdes, O Japonez,
e A estudante russa.

Figura 3 – Tropical. Fonte: Batista, 2006, p. XI.

Figura 4 – A mulher dos cabelos verdes. Fonte: Batista, 2006,

p. VIII

472
Estudos Literários

Figura 5 – O japonez. Fonte: Batista, 2006, p. VIII. Figura 6 – A estudante russa. Fonte: Batista, 2006, p. V.

Considerações finais
Malfatti se utilizam da explosão de cores e contornos expressivos para trans-
mitir sentimentos e emoções, o que pode ser analisado em todas as pinturas da
exposição de 1917.
A artista convida ao conotativo, ao figurativo, à imaginação, pois transporta
os seus personagens para fora das telas, de forma agressiva e também enfática, se
utilizando de recursos pictóricos, estilísticos, retóricos e linguísticos para persuadir
e despertar o pathos do auditório da época.
O público recebeu a exposição de maneiras diversas, se dividindo em dois
grandes conjuntos de resposta àquele discurso. O auditório que se maravilhou com
tais obras e se descobriram amando, admirando, em êxtase. Sendo levados às paixões
de amizade, amor, admiração, devoção, amabilidade por Malfatti e por sua obra.
Contudo, houve o auditório composto dos que não compreenderam e se de-
sestabilizaram, pois foram tocados em suas paixões de ira, cólera, ódio e até inveja.

473
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Referências
ARISTÓTELES. Retórica. Tradução de Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse
Alberto e Abel dos Nascimento Pena. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2015.
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474
Estudos Literários

A mulher, os padres da Igreja


e o seu legado medieval:
Representações misóginas
Pedro Carlos Louzada Fonseca1
Márcia Maria de Melo Araújo2

O presente capítulo tem como objetivo investigar o fato de que a represen-


tação da mulher no pensamento e na literatura da Idade Média constitui, entre os
estudiosos da matéria, tanto no nível da pesquisa como no do ensino, um importan-
te campo de investigação. Examinando-se as formações históricas e sócio-culturais
dessa representação do feminino, é de se verificar que ela se apresenta constituída
por uma forte disposição androcêntrica, a qual se caracteriza por denegrir e mos-
trar uma visão principalmente misógina da realidade feminina.
Acerca da justificativa do estudo que o trabalho realiza, é de se partir da
verificação preliminar de que os infelizes e ultrajantes pronunciamentos misóginos
constantes no pensamento e na literatura da Idade Média consideraram, enquanto
marcada vertente da mentalidade tradicional da cultura ocidental, a mulher de for-
ma visivelmente preconceituosa e derrogatória, negando principalmente o fato de
ela ser relevada como portadora de faculdades superiores.
Da imensa quantidade de textos misóginos produzidos na Idade Média, pa-
rece ser de referência e influência clássicas, dada a sua adquirida aura de auctoritas,
o antimatrimonial tratado intitulado Liber de nuptiis (Livro sobre o casamento), de
Teofrasto (c. 372-288), com invocada autoridade citado por São Jerônimo (c. 342-
420) em seu livro intitulado Adversus Jovinianum (Contra Joviniano) (c. 393), no
qual o santo dissuade os verdadeiros cristãos do casamento.

1  Universidade Federal de Goiás, [email protected]


2  Universidade Estadual de Goiás, [email protected]

475
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Seguidamente à obra de Teofrasto, comparecem a não menos virulenta obra


antimatrimonial de Walter Map (1140-c. 1209) intitulada The Letter of Valerius to Ruf-
finus, against Marriage (A Carta de Valério a Rufino, contra o casamento) (c. 1180)
e o mais triste dos livros de sabedoria da Bíblia medieval, o Eclesiástico. Para esses
autores e obras, como para tantos outros escritos misóginos surgidos na sua esteira, o
celibato representava não só a superação da desgraçada vida de casado como também
a verdadeira condição de uma vida de excelências morais, intelectuais e espirituais.
Entretanto, se tais obras e autores constituíram-se como distinta referência
para o pensamento e para a literatura medievais de natureza misógina, é de se consi-
derar que a sua tradição encontrava-se já iniciada em textos e autores anteriores, os
quais se representavam como verdadeiras raízes da misoginia medieval, quais sejam,
a antiga lei judaica; Hesíodo (c. 750 a. C.), que já dizia do mal introduzido no mundo
através da mulher; Ovídio (43 a. C.-18 d. C.); Juvenal (princípio do século II); os
antigos estudos de fisiologia de Aristóteles (384-322 a. C.) e de Galeno (131-201), os
quais subestimaram o corpo feminino como deformado e impuro frente à perfeição
do corpo masculino, com as suas eficazes propriedades gerativas e intelectivas.
Por uma espécie de habilidosa correspondência analógica, as condenações da
natureza e da fisiologia femininas correspondiam a pronunciamentos misóginos ins-
truídos pelo entendimento teológico medieval. Por exemplo, e para se citar aqui talvez
o mais influente enciclopedista da Idade Média, Santo Isidoro de Sevilha (c. 570-636),
em seu livro intitulado Etymologiae (Etimologias), comenta sobre o poder destrutivo
e maléfico do mênstruo, evidenciando assim o perigo da realidade ginecológica.
Na patrística medieval, Santo Agostinho (354-430) é um exemplo ilustrativo
da preconceituosa corporeidade da mulher. Apesar de ter levado em consideração
o que Gálatas 3: 26-28 diz acerca da equivalência teológica dos dois sexos, ainda
assim Agostinho considerava a maior predisposição feminina para as solicitudes
materiais e sensoriais, tidas como perturbadoras da serenidade e da espiritualidade
da mente masculina.
Uma das mais urgentes preocupações, especialmente problemática para os
Padres da Igreja, foi a questão de a mulher ser considerada apropriada ou não para
a companhia dos homens. São Paulo, refletindo sobre o assunto, comenta sobre o

476
Estudos Literários

empecilho que o casamento e a família poderiam representar não só para a con-


solidação institucional do cristianismo mas também para o alcance da excelência
mental e espiritual do homem.
Se essa distração matrimonial e familiar podia ser teoricamente evitada,
principalmente entre os mais devotos seguidores religiosos, o que, entretanto, não
deixava de os inquietar era o consenso de a mulher ser um repositório de vícios e
um lascivo convite ao homem para os descaminhos do pecado. Desse modo, nessa
visão essencialmente ultrajante, a mulher, devido ao fato de meramente existir ou
cultivar a sua aparência, foi recorrentemente metaforizada como uma mortífera es-
pada desembainhada e um perigoso poço destapado.
Essa terrível imagística misógina pode ser conferida, entre outras fontes, em
Tertuliano (c. 160-c. 225), em seu livro que trata da aparência das mulheres, e em
The Ancrene Riwle (Guia para Anacoretas), um tratado anônimo em forma de ma-
nual para religiosas reclusas, datado do século XIII ou antes.
Como consequência dessa existência feminina pecaminosa, o tema do impu-
ro e embusteiro olhar da mulher foi frequentemente glosado pelos Padres da Igreja,
a exemplo das advertências de São João Crisóstomo (c. 347-407). Marbod de Ren-
nes (c. 1035-1123) começa o seu tratado sobre a meretriz partindo desse perverso
tema do olhar da mulher. Enfim, a mulher era para essa tradição misógina medieval
um recurso infeliz, uma perpétua fonte de desavenças e de discórdias, conforme
pode ser lido no tratado antimatrimonial intitulado Adversus Jovinianum, de São
Jerônimo, fiel herdeiro dessa e de outras ideias expostas por Ovídio, em seu livro
Amores, e por Juvenal, em sua glosada Sátira VI.
Desse modo, a visão dessa disposição embusteira da mulher, não raras vezes
considerada agenciada pelo diabo, embasava, entre outras ideias acerca de sua im-
propriedade para misteres mais responsáveis, a política do monopólio masculino
no exercício das atividades religiosas mais representantes da fé e da espiritualidade
cristãs (Fig. 1).

477
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Fig. 1: A tentação de São Jerônimo. Belles Heuresde Jean, Duque de Berry, iluminada pelos irmãos Limbourg
(c. 1406-1407). Metropolitan Museum of Art, New York, Cloisters Collection (54.1.1, fo. 186r). A vida no
deserto e a sua vasta solidão calcinada, morada selvagem para os eremitas, fizeram São Jerônimo fantasiar-
-se entre os prazeres de Roma. A imagem sintoniza essa projeção mostrando a tentação de São Jerônimo
por donzelas nubentes dançando de forma insinuante, conforme ele mesmo escreve em sua Epistola 22,
ad Eustochium [Carta 22, a Eustóquio], datada de 384. Disponível em: <http://www.artisoo.com/st-jerome-
-tempted-by-dancing-girls-p-89361.html>. Acesso em: 08 ago 2016. Disponível em: <http://www.cgfaonline-
artmuseum.com/limbourg/p-bfol186.htm>. Acesso em 8/8/2016.

Outro topos da misoginia medieval, que pode ser situado ao lado do traiçoei-
ro olhar da mulher, era-lhe a atribuição do defeito de ser detentora de uma copiosa
e extravagante compulsão para falar, a exemplo do que expõe o livro intitulado The

478
Estudos Literários

Wife of Bath (A esposa de Bath), de Geoffrey Chaucer (c. 1343-1400). Curioso, mas
intrinsecamente explicável dentro das premissas do androcentrismo, é o fato nota-
do de que, associada a essa incontinência verbal, encontra-se outra compulsão pela
qual o feminino era acerbamente censurado e controlado, qual seja, a sua imputada
prodigalidade erótica.
Entretanto, a ascética obsessão de condenar as mulheres de verem e de serem
vistas constituiu um intrigante paradoxo bastante em voga no século XII, qual seja,
a prática de uma adoração cortês e ideal da mulher concomitante à acerba denega-
ção de sua realidade material. Nesse caso, é de se considerar se esse medo do po-
der de erotização e de prodigalidade sexual da mulher não se relacionava com um
complexo de inferioridade do homem, sendo para a sua autoimagem masculinista
simplesmente mais conveniente degradar as mulheres ao nível das mais indecentes
criaturas libidinosas.
Ideias desse tipo, e de que a luxúria do amor efeminava os homens, compa-
recem com incrível insistência no pensamento medieval, a exemplo, do que dizem
Santo Isidoro de Sevilha, em suas Etymologiae; Jehan Le Fèvre (séculos XIV-XV),
em seu livro intitulado Les Lamentations de Matheolus (As lamentações de Mateolo)
(c. 1371-72) e André Capelão (séculos XII-XIII), em seu livro intitulado De amore
(Sobre o amor).
Esse equacionamento aristotélico da mulher ao corpóreo fazia dela, segundo
a ordem política masculinista, apenas suficiente para pequenos bons conselhos e
tomadas de decisão imediata.
É bastante conhecida a redução aristotélica da função da mulher na pro-
criação como responsável pela contribuição da matéria prima, por uma espécie de
semente à espera do princípio formador e animador encontrado no sêmen do ho-
mem. Dessa forma e a fim de se aquilatar o alcance e a propagação dessa influência
de Aristóteles, uma seleção, ainda que sucinta, de pontos surgidos na discussão que
ele faz acerca do sêmen e da espécie de contribuição da mulher na procriação me-
rece ser feita.3

3  Para essa seleção, constante das passagens 726b, 727a, 727b, 728a, 729a, 737a, 738b e 775a, do De genera-
tione animalium, foi utilizada a tradução de A. L. Peck, Aristotle: Generation of animals (1963), cujos trechos
selecionados do original correspondem às páginas 91-93, 97, 101-103, 109, 173-175, 185 e 459-461. Daqui

479
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Aristóteles comenta sobre o sêmen masculino, uma espécie de resíduo nutri-


cional de grande potência, que é obtido graças a uma especial preparação calorífera
que é mais intensa no corpo do macho. Fala, em contrapartida, do resíduo femini-
no, menos preparado, expelido do corpo feminino em maior quantidade fluídica,
como sangue, de valor potencial mais fraco por causa da menor quantidade de calor
que ele diz ser produzido nas fêmeas. E conclui visionariamente misógino que o que
na natureza é menos calórico é mais fraco, e a fêmea corresponde a esta descrição
(ARISTOTLE, 1963, 726b).
Na sequência dos comentários sobre as secreções procriadoras produzidas
pelo macho e pela fêmea, Aristóteles chega aos seus famosos postulados binômicos
sobre “forma / anima” versus “matéria / corpo”. Essas realidades, segundo ele, carac-
terizam, respectivamente, na geração dos descendentes, a contribuição da proprie-
dade formativa e animadora do sêmen masculino, altamente nutriente por causa de
sua natureza calorífera, e a contribuição da propriedade do resíduo nutriente femi-
nino, carente desses atributos. Comenta que a contribuição da fêmea na geração é a
matéria nela usada, explicando que o homem tem maior fertilidade porque prepara
o sêmen num estado final de nutrição. E isso acontece por causa do maior calor
de sua natureza. Portanto, dados esses fatores condicionantes altamente discrimi-
natórios em termos misóginos, conclui Aristóteles que o macho provê a forma e o
princípio do movimento, ao passo que a fêmea provê o corpo, em outras palavras, o
que é material (ARISTOTLE, 1963, 727a, 727b, 728a, 729a).
Continuando nessas reflexões, Aristóteles dá a entender que, na geração dos
animais e na humana, quando o resíduo seminal feminino não é suficientemente nu-
tridor do sêmen masculino surge um descendente do sexo feminino, colocando, des-
sa forma, a genitora como responsável pela não produção de descendentes do sexo
masculino. Segundo ele, o resíduo feminino contém apenas potencialmente, e não
em atualidade, as partes que distinguem os dois sexos (ARISTOTLE, 1963, 737a).
Aristóteles dá a entender ainda que a anima de cada corpo vivo é uma do-
tação do genitor, ao passo que o corpo, a parte física da criatura, vem da genitora,
pois somente o sêmen masculino possui a capacidade de carregar a anima, essência

para frente, as citações referentes a essa edição trarão apenas os números das seções.

480
Estudos Literários

de cada corpo em particular, a qual é impressa na matéria, dando-lhe forma. Nes-


sa breve seleção de pronunciamentos de Aristóteles extraídos do seu livro sobre a
geração dos animais, percebe-se, portanto, uma verdadeira subestimação feminina
em termos de sua contribuição na geração dos animais e da raça humana.
O fisiologismo de Aristóteles deixou um influente, entretanto tendencioso,
legado no pensamento misógino dos mais importantes religiosos da Idade Média,
especialmente quando preocupados com a questão da definição do gênero ligada
às ideias aristotélicas de matéria e forma, as quais foram respectivamente utilizadas
para indicar as propriedades do feminino e do masculino. Apesar da variada gama
de escritos medievais que se basearam – quer de forma mais direta e literal, quer
de maneira mais metafórica, simbólica ou figurativa – nos postulados aristotélicos
fundamentados nessas ideias de qualificação genérica, os escritos de Santo Isidoro
de Sevilha, no século VII (c. 570-636), de Santo Anselmo, no século XI (1033-1109),
e de São Tomás de Aquino, no século XIII (c. 1225-1274), servem para dar uma mos-
tra exemplar e suficiente do tratamento da questão no decorrer do período medieval.
Entretanto, essa opinião nem sempre foi indiscutível e plenamente acatada,
conforme pode ser conferido em um dos mais radicais misóginos da tradição satí-
rica no latim medieval, Jehan Le Fèvre, que acabou por ser de opinião, em seu livro
intitulado Le Livre de Leesce (O livro de Leesce), que, talvez, as mulheres fossem
mantidas fora das profissões legais precisamente porque os homens temiam os seus
talentos marcados por distinta tenacidade e sutileza.
No início deste trabalho, foram mencionadas algumas obras e autores sempre
lembrados, em primeira mão, quando se discute a misoginia medieval. Entretanto,
a tradição literária nesse terreno era o que se pode chamar de bastante enredada,
baseada naquilo que pode ser chamado de auctoritas. Entre os Padres da Igreja dos
seis primeiros séculos depois de Cristo, auctoritas era um extenso conjunto de ci-
tações bíblicas que se emparelhavam com citações provindas da literatura romana.
Entre os escritores de textos misóginos do século XI em diante, auctoritas
significou extratos da primeira onda de textos misóginos como, por exemplo, o
tratado antimatrimonial intitulado Adversus Jovinianum, de São Jerônimo, o qual
foi como que reliberado no século XII; The Letter of Valerius to Ruffinus, against
Marriage, de Walter Map; e o tratado intitulado De amore, de André Capelão.

481
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Além disso, para o contexto da misoginia medieval, esse conceito de aucto-


ritas podia ainda significar, entre outras fontes menos citadas, (1) nefastos pronun-
ciamentos bíblicos antimulher, principalmente oriundos de Provérbios, Eclesiastes
e Eclesiástico; (2) a segunda das narrativas gêmeas da Criação tratada no Gênesis,
junto com o relato da Queda e da punição de Eva; (3) certas histórias de celebrados
heróis bíblicos que se consentiram no pecado do sexo; (4) as epístolas de São Paulo;
(5) máximas ou aforismos de Ovídio, Juvenal, Virgílio e outros; e (6) afirmações
extraídas, com o correr dos tempos, de escritos de Padres da Igreja.
Uma das peculiaridades retóricas do uso desse corpus misógino era a recor-
rência homogênea e ad nauseam de seus exemplos, tornando essa tradição misógi-
na uma intrincada rede de absorventes relações entre textos que tratavam do tema.
Não raramente, as citações eram tomadas fora de seu contexto original, aproveitan-
do-se apenas o que interessava do ponto de vista misógino como, por exemplo, as
do livro de Provérbios, onde uma citação condenatória de uma mulher má ou estra-
nha era escolhida sem se levar em conta que uma passagem a ela adjacente poderia
ser muito bem entendida como um elogio a uma boa mulher.
Entretanto, muito mais desconcertante do que essa descontextualização era
a manipulação de uma citação de forma a extrapolar o seu sentido no contexto
original, ocasionando a difamação da figura feminina. É o caso da parcialidade na
condenação de Betsabá, uma vez que a Bíblia não dá a entender que ela proposita-
damente seduzira o rei Davi, com ele cometendo o pecado do adultério.
Devido a essas corrupções de leituras tomadas à sua fonte original, não é de se
estranhar que a misoginia na literatura medieval dá a impressão de ser constituída de
um verdadeiro arsenal miscelânico de provérbios e de imprecações bíblicas contra as
mulheres, dando a impressão de que os textos que utilizam esse material são exces-
sivamente formulaicos, repetindo vozes ressoantes de incansáveis lugares-comuns.
Além das condenações anteriormente apontadas, era ainda imputado às mu-
lheres o compulsório vício de sempre resmungar, associado a uma incontinência
verbal abusiva e licenciosa, própria de uma língua trocista. A ênfase nessas carac-
terísticas, além das indicações bíblicas, remonta a São João Crisóstomo que, na sua
Homilia IX, acerca da Carta de São Paulo a Timóteo, culpou Eva por arruinar tudo,
no minuto em que ela abriu a boca no Paraíso.

482
Estudos Literários

Comentou-se anteriormente neste trabalho acerca da manipulação das fon-


tes originais da misoginia medieval para fins política e ideologicamente construí-
dos. Entretanto, a recorrência mais consistente a certos termos, motivos e estraté-
gias narrativas não parece fazer do discurso da misoginia medieval um sistema,
com princípios e padrões estruturais presidindo a sua expressão. Não obstante isso,
pelo menos uma característica básica pode ser apontada a respeito dos escritos e
dos tratados misóginos da Idade Média, a saber, que eles, a exemplo do livro Les
Lamentations de Matheolus, de Jehan Le Fèvre, foram estruturados de forma extre-
mamente solta, sendo as denúncias e invectivas contra a mulher colocadas numa
organização sem coerência lógica de seus argumentos.
Apesar dessa falta de estruturação, alguns modelos tradicionais de escrita fo-
ram apropriados pela misoginia medieval. O mais simples deles, derivado provavel-
mente de Ovídio, foi o modelo de catálogo de exemplos ilustrativos. Esse modelo
incluía também a forma de panegírico, em que as boas e virtuosas mulheres bíblicas
serviam como contraste, de efeito retórico negativo, para denegrir as más.
Outro modelo derivava de Juvenal, da sua conhecida Sátira VI que, desa-
conselhando o casamento, catalogava um rol de mulheres romanas satirizadas por
sua inconveniência para o matrimônio. Outro modelo, de forte pode de auctoritas,
dada a sua severidade ancestral, foi o suposto libelo de Teofrasto acerca da ferrenha
e persuasiva dissuasão dos pretendentes ao casamento. Incorporado ao livro intitu-
lado Adversus Jovinianum, de São Jerônimo, tecia ardilosos comentários misóginos.
Ainda outro modelo consistia no recurso expressivo de reclamação em
primeira pessoa utilizado pela linguagem feminina, podendo ser encontrado em
partes do poema narrativo sobre a viúva (século XIII), de Gautier Le Leu; em Les
Lamentations de Matheolus, de Jehan Le Fèvre; e em Il Corbaccio (O Corbacho)
(c. 1355), de Giovanni Boccaccio (1313-1375). A seleção de referências feitas neste
trabalho a propósito da misoginia na Idade Média representa, na realidade, apenas
uma sucinta mostra da enorme quantidade de material sobre o assunto.
Um aspecto interessante, que pode ser considerado quando se estuda a práti-
ca da misoginia no pensamento e na literatura medievais, é aquele que leva em con-
ta que muitas vezes essa postura antimulher quis ser reconhecida como um mero
jogo que se jogava apenas pelo simples costume ou gosto da denúncia, levando-se
à suposição de que a intelectualidade masculinista da Idade Média considerou as

483
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

fórmulas retóricas da misoginia como uma maneira apropriada para mostrar os


seus dotes literários e desportivos.
Talvez nenhum escritor da época tenha chegado tão perto dessa conclusão
como Jehan Le Fèvre que, após declarar que havia esgotado os seus argumentos
lógicos acerca da mulher, ainda assim não conseguiu se isentar de lugares-comuns
e símiles cunhados, desde longa tradição, para representar a sua figura. O que vem
ainda demonstrar que a prática da misoginia medieval poderia tratar-se de um jogo
foram as atitudes de Marbod de Rennes e de Jehan Le Fèvre, os quais, parecendo se
exercitarem retoricamente dialéticos, emparelharam argumentos ofensivos e defen-
sivos acerca da mulher.
O caso da misoginia praticada na Idade Média não passar simplesmente de
um jogo para o exercício de habilidades retóricas, inocentando assim os seus culto-
res, apresenta, entretanto, o risco de se subestimar a questão. Embora não se possa
negar que existiu, no tratamento da misoginia medieval, um elemento de paixão
pelo debate per se, também existiu muito de provocação tendenciosa e política nesse
debate, para que ele seja considerado como uma coisa não séria ou simplesmente
inocente ou jocosa.
Nesse caso, basta ser lembrado que, como saldo desse debate antimulher, re-
sultou, entre outras coisas, a incriminação da responsabilidade feminina na Queda
e no Pecado Original e, daí, a continuação da exclusão da mulher do serviço e da
vida pública.
O que se comentou até aqui neste trabalho, fazendo jus ao que o seu títu-
lo propõe, pode dar a impressão de que o pensamento medieval, em se tratando
da mulher, primou-se exclusivamente por uma monolítica postura misógina. Pelo
contrário, se não perfeitamente concomitante, pelo menos ao lado de uma literatura
radicalmente misógina, existiu uma sua contraparte, acorrendo em defesa da mu-
lher, constituindo como que respostas àquele tipo de literatura.
Portanto, foi a partir de ultrajantes pronunciamentos dos misóginos medie-
vais que uma reação contrária se haveria de se enraizar. Finalmente, dado o fato
de a misoginia medieval parecer ter sido um fenômeno que, intimamente ligado a
valores culturais, constituiu, desafortunadamente, a própria mentalidade da Idade
Média, o presente trabalho começará por preencher os objetivos de seu autor se ele
ajudar a equipar os seus ouvintes para julgarem, por si mesmos, tal assunto.

484
Estudos Literários

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486
Estudos Literários

O relato ditatorial em Azul


Corvo, de Adriana Lisboa1
Renata Rocha Ribeiro2

Introdução
Publicado em 2010 e finalista do Prêmio São Paulo de Literatura no ano de
2011, Azul corvo é o quinto romance3 da escritora carioca Adriana Lisboa e trata,
como aponta a epígrafe, composta por três versos do poema “Estrangeiro”, de Hei-
tor Ferraz, do sentimento de ser/estar estrangeiro: “somos todos estrangeiros/ nesta
cidade/ neste corpo que acorda”.4
Além disso, Azul corvo, como tantas outras narrativas contemporâneas, de-
lineia parte de um evento histórico recente: a ditadura militar no Brasil, mais espe-
cificamente a Guerrilha do Araguaia. Narrado em primeira pessoa e dividido em
quinze capítulos, o romance traça, de maneira não-linear, a trajetória de Evangelina,
cujo apelido é Vanja, de sua infância à vida adulta. Na construção do processo iden-
tidade-alteridade da protagonista, algumas personagens se mostram importantes: a

1  Este trabalho é parte de pesquisa pós-doutoral, em andamento, junto ao Programa de Pós-Graduação em


Estudos Literários da Universidade Federal de Minas Gerais (PósLit/UFMG), sob a supervisão da profa. Dra.
Graciela Ravetti.
2  Professora de Literatura Brasileira e Estágio da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás
(FL/UFG). Professora do Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística, área de Estudos Literários, da
Universidade Federal de Goiás (PPGLL/UFG).
3  Os romances anteriores são: Os fios da memória (1999), Sinfonia em branco (2001), Um beijo de colombina
(2003) e Rakushisha (2007). Depois de Azul corvo, a autora ainda publicou o romance Hanói (2013). É ainda
autora de dois volumes de poemas, duas coletâneas de contos e cinco títulos para o público infantil e juvenil,
além de marcar presença em diversas coletâneas brasileiras e estrangeiras.
4  Este poema foi publicado em 1997, no volume A mesma noite, e reaparece em Coisas imediatas, de 2004,
que reúne os cinco títulos publicados pelo poeta até então. Eis o poema completo: “O café tomado na esquina/
- meio de lado/ a ponto de observar/ a manhã que reproduz/ e se mistura/ em pernas rápidas/ (decomposição
do movimento)// O café pago no caixa/ - troco, obrigado, cigarro na boca/ de mais uma manhã// mais uma
manhã/ trocando olhares/ medindo gestos/ (somos todos estrangeiros/ nesta cidade/ neste corpo que acor-
da)// e não me misturo/ - com essa gente,/ não me misturo.”

487
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

mãe (Suzana), o ex-marido da mãe (Fernando), o pai biológico (Daniel), o vizinho


salvadorenho (Carlos).
Cada uma dessas relações é relevante, portanto, para a delimitação identitá-
ria de Evangelina; porém, o interesse deste trabalho recai sobre a relação que Evan-
gelina trava com Fernando, que assumirá a função paterna na vida da jovem. De
modo mais específico, o que se coloca em foco é o que Fernando repassa a Evange-
lina: suas memórias de militante durante a Guerrilha do Araguaia. Logo, é relevante
averiguar como a memória da ditadura militar brasileira, em um de seus episódios,
é repassada por quem o vivenciou a uma geração posterior.
Nesse sentido, pretende-se entender aqui a memória como o fez Joël Candau
(2016) em Memória e identidade: é a memória, “acima de tudo, uma reconstrução
continuamente atualizada do passado, mais do que uma reconstituição fiel do mes-
mo” (CANDAU, 2016, p. 9, grifos nossos). Evangelina, assim, não reconstitui o pas-
sado, mas o reconstrói a sua maneira e percepção. Ademais, de certa forma, Vanja
se apropria das memórias de Fernando, trazendo-as para a constituição também de
sua identidade, na medida em que também reivindica para si o direito de preencher
as lacunas deixadas para trás. Evangelina se sente no “direito moral” de providen-
ciar para si os detalhes não informados pelas pessoas. É o que afirma quando ouve
de Fernando uma história de um relacionamento dele com uma prostituta:

Mais ou menos na mesma época ele se apaixonou pela primeira prostituta de


sua vida, no instante exato em que ela segurou sua mão e a colocou no decote
da blusa. Ele a pediu em casamento.

Ele não me disse prostituta. Definiu-a certo dia, depois de ter tomado umas
cervejas, como uma moça que trabalhava numa dessas casas de moças, e a
minha imaginação foi completando o resto, foi pescando os significados do silên-
cio dele, pendurados no ar como esses balões de histórias em quadrinhos. Ele
disse que gostou dela, e eu pensei no decote da blusa e achei que podia de fato
ter sido assim, da mesma maneira como pensei algumas outras coisas ao longo
desses anos. Afinal, se as pessoas não me forneciam detalhes, eu tinha o direito
moral de providenciá-los eu mesma. (LISBOA, 2014, p. 60-61, grifos nossos)

488
Estudos Literários

Também é plausível destacar o que Candau considera como a reapropriação


do passado familiar: em relação a esse passado, “cada indivíduo se lança ao mobili-
zar as funções de revivescência e reflexividade. Essa reapropriação é sempre especí-
fica e o sentido que ela confere aos acontecimentos familiares memorizados é irre-
dutivelmente singular, idiossincrático” (CANDAU, 2016, p. 141). A reapropriação
faz com que o indivíduo elabore e narre sua própria história, realizando também a
“aprendizagem da alteridade” (CANDAU, 2016, p. 141).
Como o vínculo que une Fernando e Evangelina se torna familiar, é inte-
ressante recorrer às funções que Anne Muxel (1996) atribui à memória familiar,
em Individu et mémoire familiale. Ainda que, de acordo com a autora, seja difícil
classificar ou explicitar as funções da memória familiar, devido ao fato de a enuncia-
ção de uma memória e de sua rememoração possuir uma “extrema especificidade
individual” (MUXEL, 1996, p. 13), Muxel elenca três funções principais para esta
mesma memória familiar:

– uma função de transmissão, que faz parte da continuidade de uma


história familiar e que se esforça para perpetuar suas particularidades;

– uma função da revivescência ligada à experiência emocional e à vi-


vência pessoal;

– finalmente, uma função de reflexividade, voltada para uma avaliação


crítica de seu destino. (MUXEL, 1996, p. 13, tradução nossa)5

Logo, no processo de transmissão-recebimento de memórias familiares, há a


necessidade da transmissão, para que haja uma espécie de perpetuação; ao transmi-
tir a memória, acontece a revivescência do evento, que perpassa os caminhos afeti-
vos e pessoais, para daí se alcançar a reflexividade que a ação de transmitir carrega
em si, ou seja, uma reavaliação do que aconteceu. É relevante também destacar que,
para Muxel (1996, p. 13), o trabalho da memória não se faz sem o trabalho do es-
quecimento. Ele mesmo possui também suas funções. No romance em questão, há o

5  No original: “– une fonction de transmission, s’inscrivant dans la continuité d’une histoire familiale et
s’attachant à en perpétuer les particularisms; – une fonction de reviviscence lieé à l’expérience affective et au vécu
personel; – enfin une fonction de réflexivité, tournée vers une évaluation critique de sa destinée”.

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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

jogo familiar/particular/individual e coletivo, pois as memórias de Fernando, além


de serem suas, ou seja, individuais, carregam também um sentido de coletividade
por se contextualizarem em um evento histórico importante no cenário brasileiro.
Jeanne Marie Gagnebin, por seu turno, em Lembrar escrever esquecer (2006),
afirma que quem ouve ou lê histórias se converte em testemunha por acolher essas
narrativas de fatos horríveis, bem como em elo no processo transmissional. Dessa
forma, no entendimento da autora, “somente a transmissão simbólica, assumida
apesar e por causa do sofrimento indizível, somente essa retomada reflexiva do pas-
sado pode nos ajudar a não repeti-lo infinitamente, mas a ousar esboçar uma outra
história, a inventar o presente” (GAGNEBIN, 2006, p. 46).

A Guerrilha do Araguaia e a memória afetiva em Azul corvo


Comentar sobre a última ditadura brasileira não é uma tarefa simples. Mes-
mo tendo se passado mais de cinquenta anos desde o Golpe Militar de 1964, ainda
não há um consenso sobre os eventos subsequentes a este fato na seara dos historia-
dores. Daniel Aarão Reis Filho (2015), por exemplo, em “Ditadura no Brasil entre
história e memória”, afirma que os registros históricos sobre a série de acontecimen-
tos que englobam a ditadura têm “recebido diferentes versões e, em muitos mo-
mentos, aparece saturada de memória, também cambiante nestes 50 anos desde seu
advento” (REIS FILHO, 2015, p. 237). Assim, o professor aborda alguns dos pontos
polêmicos referentes à ditadura brasileira, como seu caráter militar; o “sequestro
das esquerdas revolucionárias” (REIS FILHO, 2015, p. 242); a ideia da ditadura co-
mo “ruptura drástica” ou como “parênteses” (REIS FILHO, 2015, p. 246).
Segundo Janaína de Almeida Teles (2013), em “Ditadura e repressão no Brasil
e na Argentina: paralelos e distinções”, o “Brasil teve uma ditadura empenhada em
ações repressivas seletivas, que preservou uma aparente normalidade institucional,
com focos de ação violenta, os quais foram diferentemente orientados conforme o
alvo em questão” (TELES, 2013, p. 8). Ainda de acordo com Teles, até o início da
década de 1970 “a tendência do aparato repressivo era o assassinato de dissidentes
(sobretudo sob tortura), cujo óbito era divulgado como morte em tiroteio, atrope-
lamento ou suicídio e que eram enterrados como indigentes, com nome e causa

490
Estudos Literários

mortis falsos, em cemitérios públicos” (TELES, 2013, p. 13-14). Em seguida, essa


tendência foi trocada pela dos “desaparecimentos forçados”, que não precisavam
ser “explicados pelo governo” (TELES, 2013, p. 14). Assim, naquele momento, “não
interessava divulgar a existência de guerrilhas, tanto para evitar o ‘efeito multipli-
cador da propaganda’ quanto para diminuir a repercussão de violações de direitos
humanos no país e no exterior” (TELES, 2013, p. 14). Isso pode ser observado, por
exemplo, quando Evangelina diz do modo como se estudava a ditadura na escola.
É neste contexto que a Guerrilha do Araguaia se enquadra. Todo o processo
citado por Teles culmina neste evento, uma vez que a autora afirma que a conjuntu-
ra do governo do general Ernesto Geisel (1974-1979)

foi acompanhada por um recrudescimento da repressão à Guerrilha do Ara-


guaia e aos remanescentes da luta armada urbana, bem como pelo aumento
da repressão sobre a oposição não armada, tais como membros do Partido
Comunista Brasileiro (PCB), da Ação Popular Marxista Leninista (AP-ML) e
militantes católicos. (TELES, 2013, p. 14)

Rodrigo Corrêa Diniz Peixoto (2011), em “Memória social da Guerrilha do Ara-


guaia e da guerra que veio depois”, localiza o episódio histórico da seguinte maneira:

A Guerrilha do Araguaia teve lugar nas regiões sudeste do Pará e norte do


então estado de Goiás (atual Tocantins), abrangendo também terras do Ma-
ranhão, na área conhecida como “Bico do Papagaio”. Ocorreu entre meados
da década de 1960, quando os primeiros militantes do Partido Comunista do
Brasil (PC do B) chegaram à região [...], e 1974, quando os últimos guerri-
lheiros foram caçados e abatidos por militares, especialmente treinados para
combater a guerrilha e determinados a não fazer prisioneiros. (PEIXOTO,
2011, p. 480)

Segundo Peixoto, a inspiração da Guerrilha do Araguaia foi a Revolução


Chinesa de 1949: “dos 15 militantes iniciais, chegados à região até 1968, sete teriam
feito cursos de capacitação na China […]”. Além disso, “a guerrilha objetivou lutar
contra a ditadura militar e fomentar, a partir do campo, uma democracia popular
no Brasil.” (PEIXOTO, 2011, p. 482)

491
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

As informações históricas como as dadas por Peixoto se fazem presentes,


de forma mais ou menos subjacente, em Azul corvo. Eurídice Figueiredo (2017),
em A literatura como arquivo da ditadura brasileira, afirma que Lisboa “certamente
consultou arquivos (documentos oficiais do Exército e do Partido Comunista do
Brasil), além de livros [...], a fim de dar as informações necessárias sobre os acon-
tecimentos. Ela reproduz documentos e declarações, além de descrições de lugares
em que ocorreram as mortes” (FIGUEIREDO, 2017, p. 96). Lisboa elege o episódio
da Guerrilha do Araguaia como um dos marcos históricos presentes no romance.
Em uma entrevista6, Lisboa é questionada sobre o que a levou a tratar exatamente
deste evento em seu romance, ao que respondeu:

Era um assunto que me instigava desde adolescente, justamente por ser um


tema evitado. Na escola, a Guerrilha no Araguaia era tratada en passant.
Quando pensei no Fernando como exilado, como alguém que saiu do Brasil
tão desgostoso a ponto de nunca mais voltar, a ditadura foi a primeira coisa
que me veio à cabeça, e o fato de ser um ex-guerrilheiro me pareceu inédito.
(LISBOA, 2010)

De fato, a Guerrilha do Araguaia não foi tão explorada na narrativa brasilei-


ra. Figueiredo (2017) elenca, ao lado de Azul corvo, o romance Palavras cruzadas,
de Guiomar de Grammont, publicado em 2015. Há, também, a narrativa “Trevas
no paraíso”, publicado no volume Trevas no paraíso: histórias de amor e guerra nos
anos de chumbo, de autoria de Luiz Fernando Emediato e organizado por Luiz Ruf-
fato. Emediato escreveu os contos e novelas reunidos nesta coletânea durante os
anos de 1970, ou seja, de uma visão “de dentro”, “durante” os acontecimentos.
Em Azul corvo, a convivência de Vanja e Fernando se dá, inicialmente, na
ordem do imediato, do cotidiano:

Recebi instruções de como usar a máquina de lavar roupa, a secadora, o lava-


-louça, o micro-ondas e o fogão elétrico (era preciso tomar MUITO cuidado

6  Entrevista concedida à revista IstoÉ Gente, edição 580, ano de 2010, realizada por Suzana Uchôa Itiberê. Dis-
ponível em: <https://www.terra.com.br/istoegente/edicoes/580/artigo189292-1.htm>. Acesso em: 01 set. 2018.

492
Estudos Literários

ao usar o fogão elétrico, Fernando repetiu três vezes, e mentalmente eu disse


puta merda Fernando, não sou surda nem burra). (LISBOA, 2014, p. 28)

Com o tempo, Fernando decide dividir com Evangelina seu passado ao con-
tar à menina, então com treze anos, sua vida como guerrilheiro:

Fernando era conhecido como Chico Ferradura quando chegou à Academia


Militar de Pequim, nos anos sessenta. […]

Eu nunca soube de onde veio o codinome. Como é que Fernando virava Chi-
co e ainda por cima ganhava uma Ferradura. Essa foi uma das coisas que ele
não me contou durante o tempo em que moramos juntos, e uma das coisas
que não constavam dos papéis que me deixou examinar, dando de ombros
– aquelas cartas insuficientes e anotações avulsas guardadas numa caixa de
madeira de vinho El Coto de Roja no fundo do armário […].

Mas ele me contou que logo após desembarcar na China e ser recebido por
uma comitiva oficial, em janeiro de 1966, foi convidado, junto com o restante
do grupo de quinze militantes do Partido Comunista do Brasil, para ir à ópe-
ra. (LISBOA, 2014, p. 57-58)

A princípio, Evangelina se coloca como externa à história de Fernando, bem


como da História do Brasil. Confessa que na escola, “durante as aulas de história
do Brasil, tudo era maçante, distante e levemente inverossímil.” (LISBOA, 2014, p.
59-60) Entretanto, admite, ao saber de Fernando sua versão dos fatos, que “as coisas
têm um rosto distinto quando vivemos o pós-elas. Quando nascemos tantos anos
depois. Quando precisamos que nos informem, que nos expliquem, que nos digam
que era óbvio o óbvio que pulou para dentro dos arquivos. As verdades feias foram
ao banheiro e retocaram a maquiagem.” (LISBOA, 2014, p. 59, grifos nossos) Fer-
nando viveu o “pós-elas”: ao ver sua ideologia ruir, teve de reconstruir a vida com o
fantasma de uma pretensa covardia.
Evangelina, por sua vez, faz parte daqueles que nasceram “tantos anos de-
pois” e se transforma no depositário das memórias deste homem que não é “nada
seu”, apenas o ex-marido da mãe, um homem de quem só tinha ouvido falar. Com
o decorrer do tempo e ao terem se transformado, Fernando e Evangelina se unem, a
despeito de qualquer necessidade consanguínea. Evangelina será, para Fernando, a

493
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

responsável por carregar sua memória, por levá-lo adiante, mesmo após a sua morte,
posto que, no presente da enunciação, Fernando já havia morrido. Assim, a menina
cumprirá as funções da memória familiar, nos termos de Muxel (1996): Fernando
transmite suas memórias pessoais a fim de se perpetuar e de passar adiante uma me-
mória coletiva; ao fazê-lo, revive o passado, ao mesmo passo que faz com que Evan-
gelina tenha sua experiência e compreensão diante do fato, em sua própria memória;
a partir daí, Evangelina reflete sobre a matéria narrada, se apropria dela e recria, com
os detalhes de que dispõe e que inventa, a história de Fernando, a sua e também a da
nação. A narração de Evangelina é, entre outras coisas, a manutenção da memória
do pai afetivo e também uma forma peculiar de enxergar o fato histórico dado.
Zilá Bernd e Tanira Soares (2016), em “Modos de transmissão intergeracio-
nal em romances da literatura brasileira atual”, ao citar Candau (2014, p. 140), con-
firmam a ideia de que Evangelina se apropria das memórias de Fernando, uma vez
que afirmam que a menina pratica a memória familiar, que

“serve de princípio organizador da identidade do sujeito em diferentes mo-


dalidades”, incluindo o “compartilhamento da vontade de compartilhar” e o
“jogo da reapropriação do passado familiar”. Constatamos que Vanja pratica
essas duas modalidades, pois encontra em Fernando, pai adotivo da protago-
nista, a vontade de compartilhamento e exercita a reflexão (re)elaborando a
narrativa de sua vida. (BERND; SOARES, 2016, p. 414)

A análise das autoras se mostra bastante interessante, pois localiza Azul corvo
na discussão de manifestações contemporâneas do romance brasileiro que tratam
de transmissão entre gerações, nas expressões de romance memorial, romance de
filiação e romance familiar. Consideram, portanto, o romance de Lisboa como ro-
mance memorial, pois “enfatiza de modo exemplar a busca pela anterioridade co-
mo meio de posicionar-se no mundo e, principalmente, situar-se como sujeito com
uma identidade em contínuo processo de construção e desconstrução” (BERND;
SOARES, 2016, p. 417)
Em Azul corvo, Evangelina nasce em pleno processo de redemocratização
brasileira. Ela não viveu na pele, como Fernando vivera, os desmandos da ditadura,
tampouco foi guerrilheira. Além disso, na ausência dos pais, não recebeu a memó-
ria desse trauma na infância. A memória da ditadura foi impressa nela mais tardia-

494
Estudos Literários

mente, durante a adolescência. Para Figueiredo (2017), o interesse deste romance


recai exatamente no

distanciamento que existe entre a narradora, nascida, como a autora, quase


vinte anos após os fatos narrados, o que reforça a pertinência de continuar a
se falar de um acontecimento tão traumático para a vida nacional. Colocar
no romance, através da memória de um personagem fictício, a tragédia que
representou a guerrilha, aponta para o caráter fantasmático que o Araguaia
representa, o ausente-presente, o morto que volta porque não teve seu sepul-
tamento sacralizado pelos ritos fúnebres. (FIGUEIREDO, 2017, p. 97)

Sobre os dados contidos no romance sobre a guerrilha, observa-se que são


dados pela própria narradora, “já que o personagem [Fernando] não tinha condi-
ções de conhece-los, tendo desertado no momento em que se dá conta de que eles
caminham para a morte” (FIGUEIREDO, 2017, p. 96). Figueiredo (2017) vê nisso
um sentido trágico, uma vez que o herói trágico “vai para a morte por um erro
cometido, consciente (como Antígona) ou inconscientemente (como Édipo), o que
Aristóteles chamou de hamartia” (FIGUEIREDO, 2017, p. 96-97). Fernando, assim,
decidiu ir embora porque percebeu que “não havia mais possibilidade de continuar
o combate” (FIGUEIREDO, 2017, p. 97). Isso é algo que vai assombrá-lo, posto que
uma vez no exterior, nunca mais conseguiu voltar ao Brasil. Evangelina diz que “ele
havia deixado a vida para trás a fim de continuar vivo, anos antes, e essa equação
funcional e ilógica dava choques elétricos todos os dias nas cicatrizes abertas que
ele não guardava do suicídio que não havia tentado cometer” (LISBOA, 2014, p.).
Com os relatos de Fernando e o conhecimento dos eventos, Evangelina tor-
nou-se a herdeira de suas memórias. Tanto é que mesmo depois de ter encontrado
o pai biológico e a avó paterna, já adulta escolhe Fernando para ser seu pai, ainda
que na memória. No desfecho, ao pensar sobre o que mudaria em sua vida, ela diz
que mudaria um único detalhe:

Seria assim a minha versão:

[...] Fernando dirigiu muito mais do que as seis horas habituais entre uma
cidade e outra na autoestrada I-25. Havia neve e gelo na pista. […]

495
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Quando chegou em Albuquerque eu dormia em meu quarto algum sono de


sonhos pequenos, sonhos do tamanho da minha vida, que cabiam (que cabia)
com sobras entre as grades do berço. Ele e minha mãe se abraçaram com a
força da falta que sentiam um do outro. Ele foi para a cama com ela. Mais tar-
de, no meio da madrugada, ela preparou uma sopa e os dois sentaram diante
da árvore de Natal para tomar a sopa.

Era para ser definitivo. E foi. (LISBOA, 2014, p. 297-298)

Evangelina, assim, escolhe como pai aquele com quem compartilhou parte
de sua adolescência, bem como aquele que com ela compartilhou suas memórias.
Evangelina se sente continuação de Fernando, não de Daniel. Mesmo tendo conhe-
cido o pai biológico e mantido contato, Evangelina não tem a mesma ligação que
tem com Fernando. Sobre Daniel, informa:

Estive algumas vezes com meu pai. Fui a Abidjan visita-lo e à sua família.
Falamos um pouco da minha mãe. Não muito. Além de mim, os dois não
chegaram a ter muitas coisas em comum. Nem mesmo memórias. Nem mes-
mo, eu acho, saudades. [...] De tempos em tempos nos falamos por telefone.
(LISBOA, 2014, p. 297)

São as memórias de Fernando de que ela vai se apossar e reapropriar, nos ter-
mos de Candau. E essa apropriação também se dará em outros âmbitos, pois Evan-
gelina trabalhará no mesmo local de Fernando, morará em sua casa e terá um carro
igual ao dele. Ademais, o processo de busca de identidade se fecha quando, mesmo
falando pouco, como Fernando, se percebe pronunciando o inglês sem sotaque:

Tenho um trabalho na Biblioteca Pública de Denver – mas não como segu-


rança. Vendi o Saab 1985 do Fernando e comprei um Saab quinze anos mais
novo porque não entendo de carros e pelo menos Saab era um nome familiar.
Não sou de falar muito. Mas as pessoas já não ouvem sotaque quando falo.
(LISBOA, 2014, p. 297)

A morte de Fernando, cujo corpo “um dia pifou enquanto ele tomava um
café, numa pausa do trabalho” (LISBOA, 2014, p. 294), mostra a Evangelina aquilo

496
Estudos Literários

que era dele e somente dele. Entretanto, de alguma forma, ao tomar conhecimento
dessas coisas, passa a fazer parte também da narradora:

Eu o enterrei, um ex-Fernando debaixo do chão. E junto com ele, sua ex-vida,


suas ex-memórias que, por mais que ele compartilhasse, seriam sempre e so-
mente suas e de mais ninguém. O que ele sentiu na mata, o que ele sentiu no
pub londrino, o que ele sentiu deslizando sobre a lama congelada em Pequim.
O que ele sentiu ao abraçar Manuela/Joana, Suzana, Isabel. O que ele sentiu
antes e depois desses abraços. [...] O que pensou, o que planejou e não fez, o
que prometeu e não cumpriu, o que fez sem ter planejado antes, o que não
desejou e conquistou assim mesmo. (LISBOA, 2014, p. 294)

E dentre esses não-desejos conquistados, pode-se incluir a paternidade, o


vínculo conquistado com Vanja. Logo, o romance mostra que o pertencimento e o
ser estrangeiro vai muito além dos laços consanguíneos e do espaço.
Nesse sentido, morta a mãe e transposta a outro contexto, a intimidade cons-
truída com Fernando e as memórias mais íntimas que ele possuía, as memórias de
sua vida durante a Guerrilha do Araguaia, que ele não havia compartilhado nem
com Susana, fizeram com que Evangelina mudasse totalmente sua trajetória.

Considerações finais
Evangelina recebe as memórias de sua família (consanguínea ou não) e de
seu país. O nó que a faz refletir sobre o passado é a morte da mãe e a ausência de
um pai, ou seja, a destituição e o desconhecimento de uma ancestralidade, mas que
será buscada. Por meio das narrativas de Fernando sobre a Guerrilha do Araguaia,
Evangelina encontra um pai e pode descobrir a história de um Brasil desconhecido,
uma história não-oficial que luta por ser reconhecida. A partir daí, é capaz também
de se reconhecer e de encontrar um lugar no mundo. A reflexão que realiza sobre
sua vida aponta para uma pacificação em relação à ausência paterna e à morte da
mãe. Evangelina, então, é capaz de se apropriar, de reivindicar um passado e se iden-
tificar por meio das memórias que recebe.

497
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Referências
BERND, Zilá; SOARES, Tanira R. Modos de transmissão intergeracional em romances
da literatura brasileira atual. Alea. Rio de Janeiro. v. 18/3. set-dez 2016. p. 405-421.
CANDAU, Joël. Memória e identidade. Trad. Maria Leticia Ferreira. 3 reimp. São Paulo:
Contexto, 2016.
FIGUEIREDO, Eurídice. A literatura como arquivo da ditadura brasileira. Rio de Janeiro:
7 Letras, 2017.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: 34, 2006.
LISBOA, Adriana. Azul corvo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014.
MUXEL, Anne. Individu et mémoire familiale. Paris: Hachette, 1996.
PEIXOTO, Rodrigo Corrêa Diniz. Memória social da Guerrilha do Araguaia e da guerra
que veio depois. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v.
6, n. 3, p. 479-499, set./dez. 2011.
REIS FILHO, Daniel Aarão. Ditadura no Brasil entre história e memória. In: MOTTA,
Rodrigo Patto Sá (Org.). Ditaduras militares: Brasil, Argentina, Chile e Uruguai.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015. p. 237-252.
TELES, Janaína de Almeida. Ditadura e repressão no Brasil e na Argentina: paralelos e
distinções. In: CALVEIRO, Pilar. Poder e desaparecimento: os campos de con-
centração na Argentina. Trad. Fernando Correa Prado. São Paulo: Boitempo, 2013.

498
Estudos Literários

Paródia e resistência
Ricardo Alves dos Santos1

Linda Hutcheon (1991) ao refletir sobre as questões que envolvem o pós-


moderno enfatiza o caráter contraditório deste fenômeno nas artes e nas ciências
humanas. A contradição se dá, basicamente, “na presença do passado” sob o olhar
direcionado ao nosso tempo. Para ela, o humano retorna ao passado para reavaliá
-lo criticamente, estabelecendo “um diálogo irônico” e paródico com o legado da
tradição artística e, obviamente, com os diversos arranjos sociais e políticos cons-
truídos durante nossa historicidade. Desta maneira, o pós-modernismo, caracteri-
zado pelo diverso, procura nos ensinar a (re)conhecer a pluralidade de discursos
que compõem a realidade social.
Conhecer está associado à necessidade de tomar consciência sobre algo e
reconhecer vincula-se, semanticamente, a admitir ou certificar como verdadeiro
um evento. A partir da conscientização e da legitimação da diversidade (social,
cultural) é que poderemos transpor as barreiras das contradições que nos cercam.
Seguindo este viés, avaliar e refletir sobre a produção literária contemporânea é
saber que o terreno em que estamos fincados não é sólido o bastante para criarmos
raízes fecundas sobre quaisquer posicionamentos acerca do estético, do artístico, do
social. Na atualidade, observamos vários discursos emergirem com um intuito de
frisar e destacar condições marginalizadas e desprezadas socialmente. As mulheres,
os LGBTs, os negros, os judeus e os pobres reivindicam seus lugares e a literatura,
neste contexto legitimador, torna-se o local difusor de discursos plurais e consoli-
dador de poéticas de resistência.
Waldo Motta é um exemplo de artista contemporâneo que reivindica seu
espaço literário e social, revelando-nos, através do artístico, mundos subterrâneos,
sonhando com uma “uma poesia que pudesse enfrentar os mais terríveis problemas

1  Doutorando em Estudos Literários pelo Instituto de Letras e Linguística – ILEEL - UFU / Universidade
Federal de Uberlândia, [email protected]

499
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

do mundo” (MOTTA, 2015). O poeta iniciou seu labor literário durante o final da
década de 70 do século passado. Influenciado pela poesia marginal2 deste período,
caracterizada pelo entrelaçamento entre vida e obra, Motta faz uso de suas expe-
riências pessoais e íntimas para construir uma poesia-religião que terá como base
de criação literária um deslocamento dos mitos religiosos, os quais serão o tempo
todo convocados para uma reflexão crítica sobre a condição de vulnerabilidade e
anulamento social do poeta, já que a pobreza, a miséria e a homossexualidade do
autor nutrirão sua lírica desbocada, debochada e subversiva.
Da obra Bundo e outros poemas (1996), selecionamos o poema “Iniciação
de Jacó”. Nesta realização poética, uma cena de iniciação sexual homossexual se
reconstrói em uma linguagem metaforicamente trabalhada, conduzindo-nos ao
caminho da revelação e do encontro com a intimidade decantada de Jacó. A poeti-
cidade e expressividade do poeta deixam-nos, através do sagrado profanado e ero-
tizado, sob a instância das forças misteriosas que operam na articulação do desejo:

INICIAÇÃO DE JACÓ

Numa pedra Jacó buscou o apoio


para a sua cabeça e, como eleito,
descobriu o consolo dos aflitos,
o bálsamo de todo sofrimento,
encontrando a pedra fundamental,
obra-prima e trono do Obreiro.
Aquela noite, na casa de Deus
Jacó entrou, a conhecer o Esposo,
O excelso Esposo dos varões eleitos,
e como eleito ao seu gentil afeto,

2  A produção literária da década de 70 do século passado aproximava-se da vida do autor. Este era contrário
à hierarquização do lugar elevado da poesia, bem como do experimentalismo das correntes vanguardistas,
recorrendo, pois, à ironia como recurso de protesto e de valorização da liberdade e da individualidade. No
prefácio do livro 26 poetas hoje (1998), organizado por Heloísa Buarque de Hollanda, a autora ratifica esta
postura artística dos poetas marginais e afirma que a poesia “desce [...] da torre de prestígio literário e aparece
com uma atuação que, restabelecendo o elo entre poesia e vida, restabelece o nexo entre poesia e público”
(HOLLANDA, 1998, p. 10). Esta postura inflamada e libertária acompanha a produção lírica de Waldo Motta
desde seus primeiros versos, o que deixa claro a necessidade dele de usufruir e exercer sua liberdade, mesmo
que para isto seja necessário afrontar o discurso hegemônico e burguês vigente em nosso tempo.

500
Estudos Literários

do calcanhar à cabeça o conheceu,


corpo e alma transidos de amor.
E em seus mais íntimos recônditos
conhecendo-se Jacó e o Senhor,
aquela noite em Betel,
chamada desde sempre Luz,
cidade templo do Onipotente,
do calcanhar à cabeça, por inteiro,
Conheceu os mais íntimos aposentos
do celeste Esposo, o feliz varão
que o senhor transforma em Israel.
Ali soube Jacó, em grande enlevo
e mui grande alegria, aquela noite,
soube Jacó, em si, a via estreita,
secreta e exclusiva dos eleitos,
que une, pelo reto, a Terra aos céus
e, desvestindo os véus de seus mistérios,
desterra-nos o Céu interior.
(MOTTA, 1996, p. 55).

Jacó3, personagem bíblica, é filho de Isaque e Rebeca e é irmão gêmeo de


Esaú, o primogênito. Jacó recebe este nome pelo fato de ele ter sido o último a nas-
cer, segurando com a mão o calcanhar de Esaú. A vida de Jacó encontra-se explica-
da nos versículos destacados abaixo:

Depois saiu o seu irmão, agarrada sua mão ao calcanhar de Esaú; pelo que
foi chamado Jacó. E Isaque tinha sessenta anos quando Rebeca os deu à luz.
Gênesis 25:26

Cresceram os meninos; e Esaú tornou-se perito caçador, homem do campo;


mas Jacó, homem sossegado, que habitava em tendas.
Gênesis 25:27

3  Sua história é relatada no livro de Gênesis e seu nome, do hebraico Yaakov, significa o suplantador e deriva
da palavra “calcanhar”.

501
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Isaque amava a Esaú, porque comia da sua caça; mas Rebeca amava a Jacó.
Gênesis 25:28

Jacó havia feito um guisado, quando Esaú chegou do campo, muito cansado;
Gênesis 25:29

e disse Esaú a Jacó: Deixa-me, peço-te, comer desse guisado vermelho, por-
que estou muito cansado. Por isso se chamou Edom.
Gênesis 25:30

Respondeu Jacó: Vende-me primeiro o teu direito de primogenitura.


Gênesis 25:31

Ao que disse Jacó: Jura-me primeiro. Jurou-lhe, pois; e vendeu o seu direito
de primogenitura a Jacó.
Gênesis 25:33

Jacó deu a Esaú pão e o guisado e lentilhas; e ele comeu e bebeu; e, levantando-
-se, seguiu seu caminho. Assim desprezou Esaú o seu direito de primogenitura.
Gênesis 25:34

Disse então Rebeca a Jacó, seu filho: Eis que ouvi teu pai falar com Esaú, teu
irmão, dizendo:
[...]
Gênesis 27:6

Traze-me caça, e faze-me um guisado saboroso, para que eu coma, e te aben-


çoe diante do Senhor, antes da minha morte.
Gênesis 27:7

Respondeu, porém, Jacó a Rebeca, sua mãe: Eis que Esaú, meu irmão, é pe-
ludo, e eu sou liso.
Gênesis 27:11

Depois Rebeca tomou as melhores vestes de Esaú, seu filho mais velho, que
tinha consigo em casa, e vestiu a Jacó, seu filho mais moço;
Gênesis 27:15

e pôs o guisado saboroso e o pão que tinha preparado, na mão de Jacó, seu filho.
Gênesis 27:17

502
Estudos Literários

E veio Jacó a seu pai, e chamou: Meu pai! E ele disse: Eis-me aqui; quem és
tu, meu filho?
Gênesis 27:18

Respondeu Jacó a seu pai: Eu sou Esaú, teu primogênito; tenho feito como
me disseste; levanta-te, pois, senta-te e come da minha caça, para que a tua
alma me abençoe.
Gênesis 27:19

Então disse Isaque a Jacó: Chega-te, pois, para que eu te apalpe e veja se és
meu filho Esaú mesmo, ou não.
Gênesis 27:21

chegou-se Jacó a Isaque, seu pai, que o apalpou, e disse: A voz é a voz de Jacó,
porém as mãos são as mãos de Esaú.
Gênesis 27:22

Disse-lhe então seu pai: Traze-mo, e comerei da caça de meu filho, para que
a minha alma te abençoe: E Jacó lho trouxe, e ele comeu; trouxe-lhe também
vinho, e ele bebeu.
Gênesis 27:25

Tão logo Isaque acabara de abençoar a Jacó, e este saíra da presença de seu
pai, chegou da caça Esaú, seu irmão;
Gênesis 27:30

Disse Esaú: Não se chama ele com razão Jacó, visto que já por duas vezes me
enganou? tirou-me o direito de primogenitura, e eis que agora me tirou a
bênção. E perguntou: Não reservaste uma bênção para mim?
Gênesis 27:36

Esaú, pois, odiava a Jacó por causa da bênção com que seu pai o tinha aben-
çoado, e disse consigo: Vêm chegando os dias de luto por meu pai; então hei
de matar Jacó, meu irmão.
Gênesis 27:41

503
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

A história bíblica de Jacó é deslocada nos versos do poeta Waldo Motta. As


palavras “iniciação” e “eleito” nos conduz para uma cena consagrada e elevada de
um ato profano e humano. Apesar das referências sagradas, a iniciação de Jacó se
deu via prazer e sexualidade.
São 28 versos e uma única estrofe na qual se narra o sonho de Jacó, o qual
adentra as moradas do Senhor, ao ser penetrado pelo sagrado. No mito bíblico, Jacó
sonha com uma escada que liga a terra ao céu, e Motta vai utilizar-se de seu poema
como uma escada ascendente assim como ocorre no sonho de Jacó, no entanto, o
poeta traz o objeto de escalada para a enunciação de seu poema, encaminhando-se da
palavra “pedra”, presente no primeiro verso, chegando até o significante “Céu” do úl-
timo verso. A escada é simbólica para a tradição judaico-cristã, pois indicaria a ascese
dos mortais à condição de imortalidade da alma no céu. Motta ao invés de utilizar
a palavra sonho no título, escolhe a expressão “iniciação”, transformando o que é da
ordem do onírico em algo mais palpável, materializado na iniciação mística e sexual
de Jacó. Este é o preferido do Senhor não apenas para ser o grande chefe das tribos de
Israel, mas é o escolhido do afeto do Senhor, o eleito para os deleites sexuais do Se-
nhor. A iniciação de Jacó se deu pela via do prazer sexual, e os dois, tanto Jacó quanto
seu esposo excelso, gozam dos prazeres carnais e místicos concomitantemente.
Deus é denominado no poema como o “Esposo”, o “Senhor”, o “Obreiro”,
destacado como iniciador sexual, o qual garante a Jacó a consumação de seu desejo
descoberto na morada sagrada daquele que proporcionou o contato com o que era
interditado e incompreendido: uma relação sexual entre homens. Assim, o poema
de Waldo Motta profana a história sagrada, o que se liga à sua ação de produzir um
texto terrorista anal: “Texto que confronta diretamente a linguagem heterossexual
hegemônica.”4 (PRECIADO, 2009, p. 138 – Tradução nossa). Tomando o senhor
não apenas como a tradição judaico-cristã demanda, mas como aquele que é dono
do corpo do outro, assim como o que ordena ao outro que se case, que constitua
família e povoe a terra, reproduzindo um povo inteiro que ame e tema seu amo.
É preciso lembrar que Jacó está indo buscar uma esposa para si, e, no poema, ele
encontra um esposo, que o fará, pela via mística, ser o grande patriarca de Israel,

4  “Texto que confronta directamente el lenguaje heterosexual hegemónico.” (PRECIADO, 2009, p. 138)

504
Estudos Literários

o que só será possível a partir de sua união com uma mulher. No entanto, Motta
apresenta a iniciação sexual de Jacó com o Senhor, a qual antecede ao casamento
de Jacó com Lia, sua primeira esposa. Motta, portanto, desloca o sentido mítico,
pois antes da união heterossexual, é da união homossexual que irá se reproduzir a
prole de Jacó. É da união profana de Jacó com Javé que as doze tribos irão surgir.
Motta (re)produz o contrato de fé entre Jacó e Javé como uma relação sexual, indo
na contracorrente da sociedade patriarcal, que não concebe a possibilidade de uma
relação sexual homossexual gerar frutos. Desse modo, o poeta reescreve o mito,
subvertendo completamente a ordem das coisas sagradas. A reprodução da prole se
dá de forma simbólica, antes de se transformar em realidade verossímil dentro do
mito. É como se Motta contasse o que é anterior ao mito ou aquilo que este subsu-
miu, interditou, recalcou para se (re)produzir.
“Profanar significa abrir a possibilidade de uma forma especial de negligên-
cia, que ignora a separação, ou melhor, faz dela um uso particular.” (AGAMBEN,
2007, p. 66). A ação empreendida pelo poeta em “Iniciação de Jacó” coloca em jogo
a passagem do sagrado para o profano, a particularidade da primeira relação se-
xual de Jacó de ordem profana recebe um tratamento sagrado, promovendo uma
“neutralização daquilo que profana”, já que o sagrado, que outrora era elevado e
separado do mundo profano dos humanos, “perde a sua aura e acaba restituído ao
uso” (AGAMBEN, 2007, p. 68). Assim, o artista faz uso do sagrado e do profano
para enfatizar uma ação humana que visa a satisfação do corpo e a descoberta da
sexualidade e do prazer de Jacó.
O local consagrado “Betel”, foi neste lugar que Jacó teve a visão de uma esca-
da que atingia o céu, por onde anjos subiam e desciam, constrói uma visão de pura
energia erótica, já que, no poema “Iniciação de Jacó”, Jacó, ao conhecer o Esposo,
transforma-se em Israel, o que evidencia a tomada de consciência daquilo que Jacó é
enquanto ser. As aflições e os sofrimentos de Jacó são abandonados diante do Senhor.
Assim, profanar “não significa simplesmente abolir e cancelar as separações, mas
aprender a fazer delas um uso novo, a brincar com elas.” (AGAMBEN, 2007, p.75).
O novo uso dado ao elemento sagrado pode ser constatado também a partir
da subversão que o poeta Waldo Motta faz ao parodiar a trajetória de um herói clás-
sico. O tom narrativo é evidenciado pelas marcações espaciais “Numa pedra”, “na
casa de Deus”, “Betel” e “Ali” e temporal “aquela noite” para nos contar uma história

505
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

exemplar de Jacó. A transformação do nosso herói é evidente nos versos “do celeste
Esposo, o feliz varão/ que o Senhor transforma em Israel” e este processo é fruto de
uma revelação e descoberta, Jacó se descobre completamente elevado na medida
em que “os véus de seus mistérios” são descortinados pelo “Esposo”. A revelação de
Jacó se deu por “uma via estreita” e “secreta”, pelo “reto”. A profanação é notada o
tempo todo no poema, criando um campo de tensão permanente “entre natureza e
cultura, privado e público, singular e comum” (AGAMBEN, 2007, p. 75) e, obvia-
mente, entre o sagrado e profano.
Waldo Motta usa da história bíblica de Jacó para empreender um jogo de
ordem erótico. Os versículos bíblicos nos relata uma vida que se iniciou de maneira
opressora e excluída, Jacó queria ser o primogênito e ao enganar seu pai foi jurado
de morte pelo irmão Esaú, tendo que abandonar sua vida familiar. O afastamento
e a mentira fizeram de Jacó um ser angustiado que só obteve acalento quando o
Senhor resolveu ouvir seu clamor e suas aflições.
De certo modo, Jacó teve, no poema, suas aflições resolvidas quando teve
seu desejo sexual reprimido saciado perante o sexo daquele que lhe levou aos céus.
As angústias são transformadas em prazer e gozo e isso de certa forma também nos
remete à necessidade de superá-las. A experiência interior que o sujeito waldia-
no revitaliza a partir da primeira relação homossexual de Jacó, coloca-nos no jogo
recorrente que travamos com as questões que são rotineiramente conduzidas por
elementos proibitivos: a angústia de transgredir o interdito e logo após estarmos
enredados na mesma situação de intimidação. Esta relação paradoxal do interdito é
assim entendida por George Bataille:

Os homens são em um mesmo tempo submetidos a dois movimentos: o ter-


ror, que intimida, e a atração, que comanda o respeito fascinado. O interdito
e a transgressão respondem a esses dois movimentos contraditórios: o in-
terdito intimida, mas a fascinação introduz a transgressão. O interdito e o
tabu não se opõem ao divino senão num sentido, mas o divino é o aspecto
fascinante do interdito: é o interdito transfigurado. (BATAILLE, 1987, p. 64).

Ao infringir o interdito, promovendo um novo olhar para a leitura bíblica, Wal-


do Motta se diferencia do tratamento que, por exemplo, Luís de Camões dá ao fazer
referência a aspectos da vida de Jacó, como podemos ver no soneto transcrito abaixo:

506
Estudos Literários

Sete anos de pastor Jacó servia


Labão, pai de Raquel, serrana bela;
mas não servia ao pai, servia a ela,
e a ela só por prêmio pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia,


passava, contetando-se com vê-la;
porém o pai, usando de cautela,
em lugar de Raquel lhe dava Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos


lhe fora assi negada a sua pastora,
como se a não tivera merecida,

começa de servir outros sete anos,


dizendo: “Mas servira, se não fora
para tão longo amor tão curta a vida.”

(CAMÕES, 2011, p. 118).

Neste soneto, Camões se vale da história bíblica para refletir sobre a persis-
tência do amor e a efemeridade da vida. Ele retoma o episódio em que Labão obriga
Jacó a trabalhar servilmente durante sete anos para que a este fosse concedido o
casamento com a filha daquele, Raquel. Entretanto, Labão engana Jacó, conceden-
do-lhe a mão da filha mais velha, Lia. O amor de Jacó por Raquel é tão grande que
este se submete a mais sete anos de sacrifícios para enfim casar-se com sua amada
Raquel. O uso da passagem bíblica em Camões se serve como argumento para glo-
rificar o amor platônico.
Diferentemente do poeta renascentista, a história de Jacó é percorrida pelo
poeta contemporâneo por via erótica e profana, numa satisfação plena do desejo.
O poema ao se realizar em uma longa estrofe sugere a ideia de prolongamento da
experiência sexual e do desejo. Assim, o erotismo evidenciado no poema “Iniciação
de Jacó”, coloca-nos, parafraseando George Bataille (1987), conscientemente, o ser
em questão, já que a intimidade e a “experiência de dentro” é a energia vital que nos
sustenta frente às angústias e às interdições.

507
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

A paródia5 realizada por Waldo Motta tem uma dependência do modelo


preexistente relatado na bíblia, entretanto a ironia e o humor são suscitados a partir
da subversão e da profanação desempenhada no poema avaliado. Assim, o proibido
passa a evidenciar algo misterioso sublinhado pelo jogo entre o profano e o sagrado,
o poeta toca neste último para libertá-lo e usá-lo de maneira profanada e humana,
deslocando o alto para uma cena sexual de consumação da carne e do prazer.
No cenário contemporâneo, Claudia Roquete-Pinto (2005), em Margem de
Manobra, publica o poema “A escada de Jacó”: “Ela está rindo/ - e gargalhava, até -/
antes do choro convulsivo/ ante o relance/ de céu adquirido – pelo corpo?/ Sim o
corpo era o caminho/ mas outra coisa nela se movera/ e agora erguia seu rodamoi-
nho/ pelos canais,/ enquanto o corpo, o outro,/ tiritava, transitava sem piloto/ do
nulo à súbita doçura,/ ao tigre, ao terremoto,/ à menina que ela tinha sido/ perto
demais da zona de perigo,/ perto do exílio -/ e, um segundo atrás, a escada, os anjos
subindo.” (PINTO, 2005, p. 22). Notamos que tanto em Waldo Motta quanto em
Claudia Roquete-Pinto a intertextualidade com a história de Jacó apresenta uma
tônica erótica. Em “Iniciação de Jacó” de Waldo Motta, Jacó conhece o prazer ad-
vindo de uma experiência sexual e transcendental, no poema “A escada de Jacó”
sugere-nos um elo entre a terra e os Céus, o qual é intermediado pela erotização
do corpo. Portanto, ao valer-se da história de Jacó para sua composição literária, o
poeta capixaba reitera o desejo e o engano que ronda a vida da personagem bíblica.
Jacó se passa por Esaú e deseja o lugar do irmão. Na poesia waldiana, o desejo ho-
moafetivo é descortinado e revelado sendo conduzido por um viés desprovido de
enganação e de ocultação.
A condição homossexual de Waldo Motta é o ponto de partida para seu exer-
cício poético, ele almeja frisar o quanto a sociedade atual se mantém presa a valores
que ferem a dignidade e a integridade de uma parcela da população. Sendo assim, a
poesia torna-se para o poeta um instrumento de vingança, de protesto e de resistên-
cia contra as segregações que imperam em sua experiência de vida.

5  Pensamos, aqui, que a paródia é fundamental no trabalho do poeta Waldo Motta já que ela tem o papel
de transformar uma obra antecedente, “seja para caricaturá-la, seja para reutilizá-la, transformando-a.” (SA-
MOYAULT, 2008, p. 53).

508
Estudos Literários

Referências
AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.
BATAILLE, Georges. O erotismo. Trad. Antônio Carlos Viana. – Porto Alegre: L&PM,
1987.
BÍBLIA. Português. A Bíblia sagrada: antigo e novo testamento. Tradução João Ferreira
de Almeida. 2.ed. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.
CAMÕES, Luís de. Sonetos de Camões. Edição comentada e anotada por Izeti Fragata
Torralvo e Carlos Cortez Minchillo. – Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2011. (Clássicos
Ateliê).
HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria e ficção. Tradução
Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
MOTTA, Waldo. Bundo e outros poemas. Campinas, SP: Editora UNICAMP, 1996.
PINTO, Claudia Roquete. Margem de Manobra. – Rio de Janeiro: Aeroplano Editora,
2005.
PRECIADO, Beatriz. “Terror anal” (Posfácio). In: HOCQUENGHEM, Gui. El deseo
homosexual. Trad. Geoffroy Huard de la Marre. Santa cruz de Tenerife: Melusina,
2009. p. 133-170.
REIS, Leandro. Waldo Motta quebra fronteiras entre o sagrado e o mundano.
Gazeta online, Vitória, ES, 11/03/2015, In: http://www.gazetaonline.com.br/_
conteudo/2015/03/entretenimento/famosos/3891340-waldo-motta-quebra-
fronteiras-entre-o-sagrado-e-o-mundano.html, acesso em: 06/05/2016.
SAMOYAULT, Tiphaine. A intertextualidade. Trad. Sandra Nitrini. São Paulo: Aderaldo
& Rothschild, 2008.

509
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

O lado sombrio das emoções:


Análise do filme Relatos
Selvagens, de Damián Szifron
Sulivan Charles Barros1

Introdução
A compreensão de que a produção audiovisual constitui-se em práticas dis-
cursivas, que conferem sentido ao real e criam modelos de existência e/ou abertura
para a emergência de outras subjetividades, implica em percebê-la como veículo de
comunicação que transmite, de certa forma, uma cultura que, por meio de imagens,
sons e espetáculos, auxiliam na formação de opiniões e de comportamentos sociais
e, ainda, fornecem instrumentos com que as pessoas forjam suas identidades.
O cinema apresenta-se como um campo em que as identidades presentes em
uma dada cultura se expressam e se fazem notar. Ele desempenha o papel de espe-
lho, no sentido de duplicar imagens, e no qual se refletem as mudanças e as intera-
ções identitárias. Para além de problematizar as questões das diferentes identidades,
essa construção artística também propicia novas identificações.
O cinema torna-se, pois, instrumento útil para entendermos como as iden-
tidades, sua legitimação e suas lutas estão presentes em nossa sociedade. Ele se tra-
duz em instância que integra o imaginário de nossa cultura, do que mostramos/
representamos sobre nós, ao mesmo tempo em que colabora para enriquecê-la, de
maneira a reproduzir e a criar novas formulações culturais.
O cinema fala sobre o que sabemos e o que não sabemos ainda, e também
sobre o que não se imaginou que pudesse existir: um universo de possibilidades e de
percursos a serem decodificados. Ele cristaliza o mundo ao representa-lo, ao tempo

1  UnB / UFG

510
Estudos Literários

em que o recria, e inventa outro mundo. Por sua natureza reflexiva, ele resulta capaz
de exibir a realidade social de seu tempo e de um dado momento histórico, de modo
a agir, assim, como instrumento de reflexões sobre as quais se inscrevem as imagens
e as narrativas de uma época.
Ao se pensar a realidade latino-americana, especificamente, torna-se possí-
vel identificar que as manifestações artísticas e culturais mais emblemáticas desse
subcontinente procuram construir uma identidade cultural a partir de seus proble-
mas comuns: a dominação estrangeira, a exploração colonial, as colonialidades e as
desigualdades sociais.
Temas ligados aos problemas comuns dos povos da América Latina, como a
exploração colonial, a descolonização, o neocolonialismo, o subdesenvolvimento e a
alienação, são recorrentes nessas produções cinematográficas e que, por seu turno, en-
volvem um projeto de engajamento político e artístico que tencionam promover uma
rede de trocas e de identidades capazes de criar, consolidar e de fazer circular ideias.
Assim, carece-se de discussão acerca de como esses discursos produzidos
pelo cinema relacionam-se com a identidade cultural dos países pertencentes à
América Latina. A tentativa de esboçar tal conexão – entre cinema e identidade
cultural – implica em compreender que filmes expressam documentos culturais que
projetam imagens do comportamento humano social, por serem ficcionais, mas
que se tornam veículos de representações da realidade. A análise fílmica, nesse sen-
tido, constitui-se em uma das estratégias de estudo da cultura, das identidades e dos
contextos sociais, políticos, econômicos e ideológicos.
Em razão da multiplicidade de olhares possíveis a serem dirigidos a um filme
e da influência dessas perspectivas em seu público, o cinema resulta em um campo
de construção identitária muito particular. Esse campo emerge como depositário
de nossas indagações: quem somos nós? O que mostramos de nós? Como nos ve-
mos? No caso do cinema latino-americano, produções que tratam de nosso povo,
de nossos modos de vida e de nossas concepções identitárias, percorrem e marcam
a história de nossa cinematografia com maior ou menor fôlego e vigor.
Nesse sentido, elegeu-se o filme Relatos Selvagens, de Damián Szifron, para
análise. Seu epicentro localiza-se na subjetividade psicanalítica sobre os persona-
gens e sobre suas histórias. Trata-se de uma obra que nos permite refletir sobre o
modo como as relações humanas comuns encobrem uma imbricada teia de moti-

511
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

vações. Assim, extrapola-se o imediatismo das imagens e pode-se, por meio de um


exercício compreensivo, identificar-se a complexidade da vida mental das persona-
gens em contextos do cotidiano, a exemplo da vingança, rancor, ganância, ódio etc.

Relatos Selvagens e o lado sombrio das emoções


Relatos Selvagens constitui-se em um filme de 2014, com direção do argen-
tino Damián Szifron e em regime de co-produção entre Argentina e Espanha. Sua
narrativa, na contracapa do DVD, apresenta-se da seguinte forma:

TODOS NÓS PODEMOS PERDER O CONTROLE. A desigualdade, a in-


justiça e as cobranças do mundo em que vivemos desenvolvem estresse e de-
pressão em muitas pessoas. Este filme é sobre essas pessoas. Os personagens
de Relatos Selvagens, o filme argentino mais visto na história, cruzam a linha
tênue que divide a civilização da barbárie e se entregam à vertigem de perder
as estribeiras, ao inegável prazer de perder o controle.

Diante de uma realidade crua e imprevisível, os personagens do filme cami-


nham sobre a linha tênue que separa a civilização da barbárie. Uma traição amo-
rosa, o retorno ao passado, uma tragédia ou mesmo a violência de um pequeno
detalhe cotidiano são capazes de empurrar-lhes para um lugar fora de controle.
Essa obra pode ser considerada uma antologia composta por seis histórias in-
dependentes e ligadas por seu assunto central: personagens aparentemente normais
levados a uma espécie de “loucura” temporária pelo absurdo de suas vidas cotidia-
nas. De início, cada um de seus atores integrou uma história curta, mas quando o di-
retor Damian Szifrón os colocou juntos, em um único volume, advertiu-lhes que es-
tavam ligados por um conjunto de questões que traduziu unidade e coesão ao todo.
Na apresentação do filme foram exibidas fotografias de onças, jacarés, gori-
las, elefantes e leões, como um prelúdio das cenas de agressão e de “selvageria” que
integram as seis histórias diferentes, que compõem a narrativa.
O primeiro conto diz respeito a (Gabriel) “Pasternak”. Esse personagem não
aparece em cena, há apenas um vulto que entra na cabine do comandante, tranca a
porta e, posteriormente, sabe-se tratar-se dele. Pelos relatos dos outros, conhece-
se “Pasternak”:

512
Estudos Literários

Desde infância sempre foi mal compreendido, não conseguia aprender nada,
sofria bullying na escola por parte de professores e amigos.

Na adolescência teve uma namorada que o traiu com o único amigo. Ela o
humilhou, ele a amava, era um bom namorado. Ela era tudo o que ele tinha
na vida.

Foi humilhado por um crítico musical que o fez um comentário sobre o seu
mal desempenho o que acabou, segundo ele, com a sua carreira musical.

Sua professora primária, o fez repetir de ano. Ela teria sido injusta com ele e
por isso nunca a perdoou.

Seu psiquiatra, que cobrava as consultas cada vez mais caras, o fez perceber que
os seus pais falharam com ele e que estes eram os principais responsáveis por
seus fracassos e que sempre lhe convencia até então a desistir de suicidar-se.

A comissária de bordo não quis sair com ele.

Ele vai jogar o avião com todos os que lhe fizeram mal contra seus pais. Eles
foram terríveis, não acolheram suas angústias, depositaram suas frustações
em cima dele e por isso Pasternak sente tanto ódio.

Estava sempre a agradar a todos, mas as pessoas sempre o acharam chato,


inconveniente, sem talento e sem inteligência e por isso frente ao sofrimento
de viver é a estratégia é uma só: vingança! Todos foram convidados de uma
forma ou de outra para estarem neste mesmo voo e assim em um assassinato
coletivo e em seu suicídio todos irão colidir com os pais de Pasternak que
neste momento estariam tomando sol no quintal de sua casa.

A partir da apresentação de Gabriel Pasternak pela fala daqueles que, segun-


do sua percepção, lhe fizeram bastante mal, pode-se traçar algumas características
de sua personalidade. Desde a sua infância ele se sentiu rejeitado por todos que pas-
saram por sua vida: mãe, pai, professora, namorada, amigos, psiquiatra, comissária
de bordo... Sua autoestima é baixa, não conseguiu estudar, trabalhar, ou mesmo
firmar relações de amizade e amorosas. Não aprendeu nada muito bem, toca mal,
canta mal, trabalha mal, sente humilhação, vergonha e inferioridade.

513
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Movido pelo ódio e pelo sentimento de vingança, a única possibilidade que


ele encontra de livrar-se de tudo e de todos constitui-se em fretar um avião com
todos os seus “inimigos” e ele, na condição de piloto, conduziria a aeronave para
colidir com a casa de seus pais e que, segundo a fala de seu psiquiatra, em um ato de
desespero e batendo à porta fechada da cabine, seus pais seriam os únicos responsá-
veis por tudo o que aconteceu de ruim em sua vida, e que os demais tripulantes do
voo não teriam culpa de absolutamente nada.
Como espectadores, somos levados a uma cena que é cortada e, na seguinte,
um casal de idosos – os pais de Pasternak – encontram-se sentados na grama verde
do quintal da casa, em um dia tranquilo, o homem lê jornal e, a esposa, um livro,
em uma paisagem cotidiana. O homem então olha para trás, ao ouvir o barulho do
avião. Nota-o distante e, a princípio, não o considera estranho. O avião se aproxima
cada vez mais e, por fim, o homem percebe-o sendo jogado sobre eles.
Em seu livro Luto e Melancolia (1996a), Sigmund Freud disse que a expressão
máxima da pulsão de morte é a melancolia, que leva o sujeito ao suicídio. Nesse
sentido, as angústias de Gabriel Pasternak levaram-no ao plano de vingança contra
todos aqueles que o fizeram sofrer, inclusive a si mesmo.
No segundo conto, intitulado “As ratazanas”, somos levados a um restaurante
de beira de estrada, em uma noite chuvosa, e assistimos à trama com seus três per-
sonagens: Rafael Cuenca, a Garçonete e a Cozinheira.
Rafael Cuenca chega ao restaurante bastante nervoso e, ao deparar-se com a
Garçonete, faz seu pedido e a trata de forma bastante ríspida e humilhante. A Gar-
çonete, por outro lado, reconhece-o como o homem que arruinou a vida de toda a
sua família, visto que ele foi o agiota com o qual o pai dela contraiu uma dívida e,
por esse motivo, suicidou-se. Posteriormente, sua mãe foi assediada por ele, até que
fugiram para o lugar onde ela agora mora. Ao retornar à cozinha, ela desabafa com
a Cozinheira, no seguinte diálogo:

Garçonete: Esse foi o homem que arruinou a vida da minha família. Tenho
raiva dele. E tenho vontade de dizer-lhe umas poucas e boas, mas me sinto tão
impotente que na hora não sai nada da minha boca. Queria fazer justiça, e
que ele devolvesse tudo o que nos fez perder. Não seria capaz de matá-lo, muito

514
Estudos Literários

menos o filho dele, que não tem nada a ver com isso. Deve ser uma vitima assim
como eu e minha família.

Cozinheira: Aquele homem não merece viver. É tão fácil exterminar a vida
dele. É só eliminá- lo. Não atrapalha mais. Além disso, não tenho nada a perder.
Quando eu estava na cadeia era melhor. Sabia que iria ter o que comer e não
me preocupava com nada, pois lá eu não podia matar ninguém porque estava
sempre vigiada. Comigo é: “fez, pagou”. É a lei do Talião. Eu não sinto culpa,
nem remorso.

A Cozinheira sugere que ele seja morto com veneno de rato, que se encontra
na cozinha do restaurante. A Garçonete recursa e diz não ter coragem para fazê-lo.
Ao servi-lo, percebe que o filho de Rafael Cuenca chega e que também irá jantar e,
ao retornar à cozinha, a Garçonete observa que a Cozinheira envenenou a comida,
pois vê a lata de veneno vazia. Ao olhar em direção ao pai e ao filho, que já iniciaram
o jantar, ela retorna à mesa, tenta tirar o prato, é impedida e, diante disso, ela resolve
atirar a comida no rosto de Cuenca. O filho dele começa a passar mal, provavel-
mente pelo efeito do veneno. A Garçonete passa a ser agredida por Rafael Cuenca,
em uma explosão de fúria, até que a Cozinheira sai da cozinha e o esfaqueia. A
Cozinheira resolve as coisas de um jeito simples, atua pelo ódio. Não pensa, mata,
pois sua lógica é amoral.
Cuenca, esfaqueado, cai e derruba a Garçonete. Deitada no chão, ela percebe
que ele perdeu as forças, fechou os olhos. Ele está morto. De repente, levanta ao notar
que estava suja com o sangue dele. A seguir, tem-se a prisão da Cozinheira, que, ao
olhar para a Garçonete, pisca-lhe o olho. O desejo inicial da Garçonete foi realizado.
Nesse sentido, pode-se perceber que a vingança concretizou-se. Mesmo com
o esforço da Garçonete por tentar controlar conscientemente as possíveis conse-
quências do ato, a vingança passou a ser legitimada como forma de por fim aos
outros sentimentos, de vivenciar certas emoções e/ou de mantê-las em sua mente,
e de concluir: é como se o “outro” devesse sentir o que eu sofri! E, neste caso, deve
pagar o preço com a própria morte. Isso se apresenta como um dos funcionamentos
primitivos do animal humano.
O terceiro conto, intitulado “O mais forte”, inicia-se com um carro luxuoso a
percorrer uma autoestrada numa região pouco povoada, e cujo Motorista 1, vestido

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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

elegantemente, aparenta ser rico. A cena seguinte, por sua vez, mostra um carro
velho, sujo, cujo Motorista 2 aparenta desleixo e pode ser identificado como pobre.
Na tentativa de ultrapassar o Motorista 2, o Motorista 1 recebe uma fechada
e essa situação repete-se várias vezes, até que, enfim, este o consegue. Então, imedia-
tamente depois da ultrapassagem, o Motorista 1 faz um sinal obsceno com o dedo
do meio, e xinga o Motorista 2 de negro ressentido, e segue adiante.
Depois disso, as cenas intercalam-se com imagens da estrada, paisagens, dos
carros e dos dois motoristas. De repente, um dos pneus do carro do Motorista 1
fura. Ele encosta o carro ao lado da estrada, desce do carro e percebe o pneu furado
e, irritado, ele o chuta, abre o porta-malas e verifica o equipamento para a troca.
Porém, ao que parece ser pela falta de habilidade, ele prefere telefonar e pedir ajuda.
O enquadramento da cena muda, e vê-se que o carro encontra-se parado próximo a
uma ponte. Com a demora do auxílio que não chega, ele resolve trocar o pneu, mo-
mento em que avista o carro do Motorista 2, que tentou bloquear a ultrapassagem,
e para o qual ele havia feito o gesto obsceno e proferido xingamentos.
Amedrontado, o Motorista 1 retorna ao carro, ainda solevantado para a troca
do pneu, e se tranca, até ser surpreendido pelo Motorista 2 à janela, que lhe pergun-
ta ironicamente: “O que houve? Se assustou?”. Acredito que a maior parte dos teles-
pectadores, são conduzidos pela narrativa, para nos identificarmos com o Motorista
1, o homem rico e apresentado como de “boa aparência”.
O que se sucede no encontro constitui-se em uma série de ataques violentos
contra o carro e, do mesmo modo, contra o seu oposto. Durante as agressões, um
caminhão passa e segue adiante, sem parar. O Motorista 1 liga para a polícia e faz
um pedido de socorro. No entanto, e nesse meio tempo, nenhuma ajuda aparece.
Depois dos atos contra o Motorista 1, em que se inclui defecar e urinar sobre
o seu carro, o Motorista 2 provoca o seu oponente, chamando-o de “cagão”, e volta
para o carro. Nesse momento, o Motorista 1, num ímpeto de fúria, empurra o carro
do Motorista 2 em direção a uma ribanceira, ao lado da ponte. E ao perceber que o
Motorista 2 ainda vive, depois do incidente provocado, evade do local e atravessa
a ponte. Entretanto, para continuar com a vingança, volta ao local na intenção de
matar o Motorista 2. Suas tentativas falham e, por fim, acaba ele por cair também,
acidentalmente, no mesmo lugar no qual jogou o carro de seu oponente.

516
Estudos Literários

O motorista 2, por sua vez, depara-se com o porta-malas do carro novo aber-
to, e tenta entrar. Já no interior do veículo, inicia-se uma luta corporal na qual, ao
final dela, o Motorista 2 tenta enforcar o Motorista 1 com o cinto de segurança, abre
o tanque de combustível e ateia fogo no automóvel. O Motorista 1 consegue livrar-
se do enforcamento e puxa o Motorista 2 para a sua direção. Esse, por conseguinte,
não consegue apagar o fogo no tanque de combustível e, pouco tempo depois, o
carro explode, matando os dois. Nesse momento, além do ajudante de uma segura-
dora de carro, oficiais da polícia aparecem e, ao observarem os corpos abraçados e
carbonizados no carro, perguntam se foi crime passional.
O sadomasoquismo faz-se presente nesse conto, em que dois homens, em
condições distintas de classe social, engalfinham-se numa luta interminável, en-
tremeada de mordidas e de socos. E, por fim, terminam por morrerem abraçados
e por serem identificados pelos policiais como um casal homoafetivo. Com base,
novamente, em Sigmund Freud, a partir de sua obra nominada Notas Psicanalíti-
cas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia (Dematiae Paranoides)
(FREUD, 1996a), compreende-se que o ódio provém do amor transformado em
seu contrário, e que o delírio paranoico constitui-se em uma defesa contra o desejo
homossexual reprimido. Por isso, assiste-se ao término desse conto com os dois
motoristas abraçados, e a suspeita de tratar-se de um crime passional.
O quarto conto intitula-se “Bombinha”. Nele, nos é apresentado Simon Fi-
sher, engenheiro especializado em explosões e que, no seu trabalho, sabe-se da ne-
cessidade do uso constante de cálculos e de previsões.
Depois de um dia de trabalho, coincidentemente no aniversário da filha, Fi-
sher tem o carro rebocado, por estacionar em local não permitido. No entanto, não
havia sinalização no local que o alertasse de tal proibição. Ao tentar retirar o carro,
ele se atrasa no retorno para casa, para o aniversário da filha, e essa situação torna-
se elemento precedente para que sua esposa sugira o divórcio, sob a alegação de que
ele sempre tem uma desculpa para não estar com a família.
Na busca por reaver o veículo rebocado, ele sugere ao atendente da empresa
de reboques que o Estado deve ressarci-lo financeiramente por seus prejuízos e, em
razão disso, o atendente ri dele e segue o protocolo de atendimento, sem conside-
rar a argumentação, sob a alegação de que está ali fazendo o seu trabalho e que ele
está atrapalhando o fluxo da fila. Mesmo assim, Fisher paga a multa, mas pede que

517
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

seja chamado o supervisor, quando o atendente diz-lhe que não há supervisor para
reclamar. O engenheiro, então, reage violentamente, ataca o guichê com um extin-
tor de incêndio e vai preso. A partir dessa sequência de acontecimentos, ele perde
esposa, família, amigos, emprego e reputação.
O ambiente e o sistema corrupto em que Fisher vive tornam-se elementos das
séries complementares que permitem eclodir sua bomba inteira. Ao sair da cadeia e
perceber-se totalmente sozinho e sem nenhuma perspectiva de retorno à vida de an-
tes, ele resolve concretizar um ato de revelia contra o sistema burocrático e obsceno
que interrompeu seus planos e interferiu em sua vida. Ele coloca bombas no carro,
estaciona em local proibido e detona os explosivos dentro da empresa de reboques.
Nas cenas subsequentes, aparecem matérias jornalísticas em mídias impres-
sas e televisivas que o apresenta como possível terrorista, o que o leva novamen-
te para a cadeia. Mas, nesse momento, ele passa a dispor de nova visibilidade e
de reconhecimento por partes dos outros presidiários, pela família e pelos agentes
carcerários, de modo a identifica-lo como “bombinha”, permitir o resgate de sua
autoestima e possibilitar sua reconciliação com o mundo.
É interessante percebermos que quando o engenheiro toma estas atitudes
violentas contra o sistema burocrático e estatal, que o punia de maneira injusta e a
partir do conhecimento adquirido em sua profissão, foi possível mesmo colapsar o
sistema legal, semelhante a um edifício que está sendo demolido no início do conto,
e pelo qual ele seria o responsável, enquanto engenheiro de explosivos.
Para Freud (1996b), esse descontrole emocional relaciona-se a fatores congê-
nitos e hereditários, a experiências infantis, disposição e outros fatores sociais que
desencadeiam esse comportamento. É como se Fisher voltasse às pulsões agressivas
para o exterior, e detonasse metaforicamente o sistema corrupto. A destruição pode
ser identificada como possibilidade de reconstrução de uma sociedade mais justa, e
o cárcere como uma instituição de continência para a agressividade.
O quinto conto intitula-se “A proposta”, em que é apresentada outra dimen-
são da forma como funciona, em termos de corrupção, o sistema judiciário, que
compreendemos como parte do sistema governamental. De início, tem-se um carro
de luxo entrando em uma garagem, com a placa ensanguentada. Em seguida, perce-
be-se que o filho adolescente de um casal da elite, Santiago, atropelou uma mulher

518
Estudos Literários

grávida e fugiu do local, sem prestar socorro a ela. Imediatamente, o advogado da


família foi acionado e chega para averiguar a situação.
O noticiário local informa que a mulher e a criança morrem na ambulância,
a caminho do hospital. Nesse momento, o Sr. Maurício, pai do adolescente, escuta o
cachorro latir e vê o jardineiro, José, trabalhando no gramado. Maurício, ao conver-
sar com seu advogado tem a ideia de oferecer dinheiro a José para que ele assuma
a responsabilidade pelo atropelamento da mulher e da criança que ela carregava
na barriga, no lugar de seu filho. Ele utiliza-se da relação de anos entre José e a sua
família, convoca-o emocionalmente e sugere que ele não ficaria mais que um ano
e meio na cadeia, que teria advogado, assistência jurídica e que sua família teria, a
título de garantia, segurança e educação pelo resto da vida.
Após José aceitar o acordo, o advogado toma a iniciativa para plantar as evi-
dências falsas no veículo, enquanto o filho adolescente e a mãe do rapaz se prepa-
ram para sair da cidade. Em algum desses momentos, Santiago, chora e é abraçado
por José, antes de tentar fugir. No momento da fuga, a polícia chega à residência e
ele é impedido de fugir. Santiago e sua mãe são orientados pelo advogado a per-
manecerem no quarto, o qual se dirige ao portão para receber um dos oficiais de
justiça. O detetive ouve o relato de José, investiga o carro com ele dentro e conclui
que a história é falsa. O advogado pede autorização a Maurício para iniciar uma
negociação com o oficial de justiça.
Depois do decurso de certo tempo, o advogado volta com a proposta de um
milhão de dólares, a serem pagos ao detetive; mais quinhentos mil dólares a serem
pagos a ele e a José que, em seguida, também pede um apartamento em Mar de Ajó.
Posteriormente, sabe-se que a quantia de um milhão não era destinada ao detetive,
e que parte desse valor era para o próprio advogado.
A essa altura, percebermos que a corrupção está presente em diversos níveis
e classes sociais: oficial de justiça, advogado e jardineiro, movidos pelos próprios
interesses. Em um acometimento de surto, Maurício decide que só irá pagar um
milhão ao todo, e, então, firma-se o acordo. José é levado preso, e antes de chegar
à viatura é assassinado pelo marido da mulher grávida falecida, que o ataca com
marretadas. Assim, o conto encerra-se com uma tela escura e latidos do cachorro
da família.

519
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

O conto nos remete à ideia de que a elite se utiliza das classes subalternas pa-
ra atender seus interesses pessoais. Além disso, fica perceptível que, quando os mais
pobres se propõem a participar de certos esquemas da elite, certamente estarão su-
jeitos e assujeitados a serem os mais prejudicados. Nesse caso, em particular, José
paga com a própria vida e provavelmente sua família não irá receber qualquer coisa
do acordo firmado. No fim, torna-se possível compreender que o latido do cachorro
pode-nos remeter, novamente, à desumanidade da elite sobre as classes subalternas.
O último conto, “Até que a Morte nos Separe”, inicia-se com uma festa de
casamento sofisticada, onde tudo segue bem. O casal posa para algumas fotos com
convidados e, em um desses momentos, uma convidada, uma senhora de compor-
tamento estranho, conversa com Romina, a noiva. Ela dá um presente à recém-ca-
sada, faz perguntas sobre a festa, fala da violência no país e, quando Romina tenta
sair, a senhora segura-a pelo braço e pergunta pelos convidados. Nesse momento,
ela percebe o comportamento estranho de seu noivo com uma das convidadas, uma
colega de trabalho.
Romina pega o celular e telefona para um número que havia gravado de uma
mulher que ligava constantemente para o seu noivo. A moça com a qual o seu noivo
conversava atende ao telefone, e daí ela descobre que eles eram amantes.
Depois dessa descoberta, Romina questiona o noivo, Ariel, sobre a mulher, e
pede que ele lhe dê explicações, ao tempo em que valsavam. Em um primeiro mo-
mento, ele nega. Até que, diante de tanta insistência, acaba por assumir o caso com
a moça. Romina entra em surto, sai da festa aos prantos, segue para o último andar
do prédio, encosta-se ao parapeito, e olha para baixo, o que sugere ao espectador
uma tentativa de suicídio. Nesse momento, aparece um dos cozinheiros, que passa
a consolá-la. Ela o beija e mantém relações sexuais com ele, até ser encontrada pelo
noivo. Imediatamente, ela expressa sua raiva e o ameaça de várias formas, e diz que
tirará dele todo o dinheiro e que fará da vida dele um inferno sem fim. Ariel, subi-
tamente, vomita e Romina volta para a festa.
Ao retornar ao salão de festa, Romina volta a dançar com os convidados, até
que segura na mão de Lourdes, a amante de seu noivo, e com ela dança até atirá-la
contra um dos espelhos do local, causando-lhe diversos ferimentos superficiais, nos
termos do médico que a atendeu.

520
Estudos Literários

Após esse incidente, Romina pede que a festa continue, à despeito dos even-
tos “anormais” que ocorrem. Nesse momento, uma das convidadas encontra o anel
escondido no bolo de casamento. Ela diz: “Demonstramos que tudo isso é mentira,
mas o anel é de verdade”. Ariel retorna ao salão e, ao tempo em que tenta cancelar
a festa, afirma que conversou com o advogado da família.
Romina profere provocações à mãe de Ariel, o qual passa a gritar e, poste-
riormente, a chorar no colo da mãe, afirmando que não fez nada comparado ao que
ela está fazendo. Romina continua com os xingamentos direcionados aos dois, até
que a mãe de Ariel tenta estrangulá-la. Ariel passa mal, Romina se corta ao pisar
em cacos de vidro e ambos, Romina e Ariel, choram. Ariel então se levanta, toma
champanhe e, em seguida, pega uma faca, corta um pedaço de bolo e come. Em
continuidade, direciona-se a Romina, convida-a para dançar, beija-a e leva-a para
a mesa, onde fazem amor, enquanto são observados pelos convidados - uns saem
indignados, outros aplaudem.
Nesse conto, percebe-se que o adultério de Ariel foi suficiente para que Ro-
mina se destituísse da figura de pessoa ideal e revelasse um comportamento mons-
truoso, repleto de energia destrutiva (FREUD, 1996c), o que acaba também por ser
prejudicial a si mesma, e isso fica nítido ao final do conto, em que ela apresenta-se
ferida física e emocionalmente.
Muito mais do que se vingar, em resposta às injustiças e corrupção dos siste-
mas político e normativo, identifica-se, nos seis contos apresentados, movimentos
subjetivos em que cada personagem, ao se posicionar perante os contextos impos-
tos, não opera apenas em lógicas racionais, mas, sobretudo, em emoções suscitadas
que beiram a selvageria.

Considerações Finais
O sofrimento psíquico constitui-se em vivência subjetiva, que não se origina,
necessariamente, na realidade exterior, mas encontra-se associado às relações que
estabelecemos com essa realidade, de modo que a solicitação pulsional, exigida pela
organização da vida social, nos conduz a situações nas quais não lidamos apenas
com aspectos relacionados à razão.

521
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

De outro lado, tem-se que o sofrimento permanece ou encontra-se masca-


rado pelos comportamentos defensivos. Esses comportamentos relacionam-se com
o conceito de defesa, como um conjunto de operações do ego, com a finalidade de
reduzir e de suprimir qualquer modificação que ponha em perigo o indivíduo, à
medida que desencadeia uma excitação interna desagradável para o ego e incompa-
tível com o equilíbrio psíquico.
Diante de uma realidade crua e imprevisível, os personagens do filme Relatos
Selvagens caminham sobre a linha tênue que separa a civilização da barbárie. O lado
sombrio das emoções passa a ser acionado, e a perda do equilíbrio em determina-
dos contextos deixa sobrando apenas atos selvagens.
Por outro lado, percebe-se que, em todo o filme, o humor permeia as várias
situações apresentadas, de maneira a suavizar a dureza com que os atos dos perso-
nagens chegam a nós. Isso tende a facilitar o nosso contato, enquanto espectador,
com certa empatia dos personagens, para que possamos compreendê-los e até ser-
mos solidários às suas ações. O humor, neste caso, funciona como luminosidade à
escuridão dos atos sombrios das emoções apresentadas na narrativa fílmica.

Referências Bibliográficas
FREUD, Sigmund. Luto e Melancolia. In: FREUD, Sigmund. Edição Eletrônica Brasileira
das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Versão 2.0. Rio de Janeiro:
Imago Editora, 1996a.
_______. Notas Psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia
(Dematiae Paranoides). In: FREUD, Sigmund. Edição Eletrônica Brasileira das
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Versão 2.0. Rio de Janeiro:
Imago Editora, 1996b.
_______. Os Instintos e as Vicissitudes. In: FREUD, Sigmund. Edição Eletrônica
Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Versão 2.0. Rio de
Janeiro: Imago Editora, 1996c.
Relatos Selvagens. Direção: Damian Szifron. Argentina/Espanha. 2014. 120 min.
SZIFRÓN, Damián. [Entrevista] Damián Szifrón, director de Relatos Selvajes. Ibero
[online]. Disponível em: <http://ibero909.fm/entrevista-damian-szifron-
director-de-relatos-salvajes/>, Acesso em: 16 nov. 2017.

522
Estudos Literários

Por um ensino de literatura


responsivo e responsável
Thyago Madeira França1

Introdução
Sem pretensões demasiadamente românticas de solucionar os problemas do
ensino de literatura na escola pública brasileira, o presente estudo busca, a partir
de um panorama das dificuldades enfrentadas pelos professores e pela própria ma-
nutenção e existência da literatura em sala de aula, refletir sobre caminhos palpá-
veis para uma escolarização responsiva e responsável do discurso literário. Assim,
a proposta que aqui emerge é muito mais uma tomada de posição, ou seja, uma
postura ética dos atores inscritos no processo de ensino-aprendizagem de literatura
(professor, coordenador pedagógico, diretor), do que uma metodologia de ensino.
Defendo que é sim possível o trabalho produtivo e responsável com a literatura,
mesmo numa realidade escolar positivista, em que, na maioria dos casos, o foco são
os números do IDEB e os índices de aprovação.
Bakhtin (2012) defende a concepção de um sujeito sempre social, o qual deve
ter um posicionamento axiológico no mundo, bem como ser responsivo e respon-
sável ao mundo pela linguagem. A partir disso, uma manifestação discursiva (por
exemplo, o ato de leitura literária por parte do aluno-leitor, o ensino da literatura
por parte do professor e a própria escrita literária por parte do autor) emerge neces-
sariamente dentro de um contexto social, histórico, cultural e ideológico, bem como
será sempre um ato responsivo, ou seja, uma tomada de posição. Nesse sentido,
reforço que, se a prática de letramento literário for construída pelo professor com
foco no contexto de inscrição do seu alunado, o texto literário possui um caráter de
empoderamento do aluno-leitor.

1  UFG – Câmpus Morrinhos

523
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Assim, o foco desse texto é incitar reflexões de um ensino de literatura sob a


ótica de um sujeito sempre social, de um sentido sempre social, para que seja pos-
sível idealizar um aluno-leitor de literatura, em seu existir-evento de leitura, capaz
de fazer emergir tomadas de posição axiológica no mundo. Para além da vulgata de
formar um sujeito crítico, entendo que a literatura liberta, que a literatura permite
com que o aluno-leitor se reconheça no mundo enquanto um protagonista de sua
realidade, ainda que essa realidade seja excludente e estigmatizada.
Dessa forma, postulo aqui uma proposta ética de ensino de literatura que
objetive um aluno-leitor ativamente responsivo que, inscrito nas práticas de letra-
mento literário e nos processos de interpelação que emergem do empoderamento
literário, consiga imprimir, nos diversos contextos de inserção social (político, eco-
nômico, cultural, entre outros), traços de autonomia ao seu dizer e as suas ações.
Essa proposta tem como arcabouço teórico a visão transgressiva e contem-
porânea da Linguística Aplicada Indisciplinar organizada por Moita Lopes (2013;
2006), os princípios da filosofia dialógico-polifônica do Círculo de Bakhtin (2012;
2013), bem como, de maneira orgânica e aglutinada às percepções que aqui cons-
truo, os postulados discursivos da Análise do Discurso de Michel Pêcheux (1997;
2006). No entanto aqui não me dedicarei em definições e exposições de natureza
teórica, por entender que o essencial para o presente texto é que os pilares da pro-
posta de empoderamento literário aqui sejam vislumbrados.

Em busca de um letramento literário que empodere


Em linhas gerais, letramento é o conjunto de práticas sociais relacionadas
à escrita, nos diversos contextos sociais. Kleiman (2008) sugere que a proposta de
letramento relativiza a dicotomia “alfabetizado e não-alfabetizado” na educação
inicial, uma vez que, nessa perspectiva, práticas de leitura e escrita vivenciadas em
ambientes não escolares são consideradas como constitutivas do processo de le-
tramento. Kleiman (2006, p.08) ainda postula que o professor é o maior agente de
letramento da sociedade, ou seja, é o “promotor das capacidades e recursos de seus
alunos e suas redes comunicativas para que participem das práticas sociais de letra-
mento, as práticas sociais de letramento”.

524
Estudos Literários

Assim, o professor é o ator indispensável nessas práticas de letramento, não


sendo responsável meramente pelo desenvolvimento de atividades de linguagem,
mas também por promover situações de ensino-aprendizagem que estejam relacio-
nadas a práticas sociais que promovam transformações e deslocamentos em seus
alunos. Nesse âmbito, defendo que uma escolarização responsiva-responsável da
literatura deve estar ancorada nos princípios do letramento.
Para isso, é imprescindível que o professor seja um agente de letramento que
viabilize práticas sociais que promovam um diálogo efetivamente produtivo entre
os textos literários e os alunos-leitores, de modo que a literatura enquanto mani-
festação discursiva transcenda os muros da escola e possa ser reconhecida pelos
alunos para além de uma mera disciplina escolar. A literatura sob essa égide não
servirá somente a interesses escolares, mas estará concatenada a processos de for-
mação e empoderamento de alunos-leitores autônomos, críticos e criativos2.
A partir dessa concepção de letramento, Coenga (2010, p.55) reflete sobre
um letramento literário, como o “conjunto de práticas sociais que usam a escrita
literária, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos espe-
cíficos, para objetivos específicos”. Nesse mesmo tema, Cosson e Junqueira (2011)
reforçam que o letramento literário tem suas particularidades em relação às demais
formas de letramento, por conduzir ao domínio da palavra a partir dela mesma,
bem como por precisar da escola e de processos responsáveis de escolarização para
se concretizar. Para eles, o letramento literário demanda um processo educativo
específico que somente a prática de leitura de textos literários não alcança:

É importante compreender que o letramento literário é bem mais do que uma


habilidade pronta e acabada de ler textos literários, pois requer uma atuali-
zação permanente do leitor em relação ao universo literário. Também não
é apenas um saber que se adquire sobre a literatura ou os textos literários,
mas sim uma experiência de dar sentido ao mundo por meio de palavras que
falam de palavras, transcendendo os limites de tempo e espaço. (COSSON e
JUNQUEIRA, 2011, p.103)

2  Vale ressaltarmos que, em muitos casos, jovens leitores leem famosos best-sellers com centenas de páginas,
ao passo que permanecem resistentes e relutantes às leituras propostas no ambiente escolar da aula de litera-
tura e língua portuguesa.

525
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Nessa perspectiva, entendo que a configuração discursiva (social, histórica,


cultural, ideológica, política e filosófica) do texto literário não pode ser menospre-
zada na construção de práticas de ensino de literatura. Por exemplo, as vozes que
constituem os sujeitos na obra, o envolvimento único que o texto literário propor-
ciona em um mundo estético, a singularidade estética de um mundo possível pro-
posto pelo autor, o diálogo que o mesmo empreende com outros textos, a interdis-
cursividade, bem como os possíveis pontos de intersecção da obra com a realidade
sócio-histórica dos alunos leitores, entre outros fatores.
Da mesma forma, ao estabelecer um olhar para o letramento literário, Pau-
lino (2007, p.14) ainda coloca que “não há como negar o caráter polifônico do dis-
curso literário”, uma vez que “não foi por acaso que Bakhtin escolheu a literatura
para fundamentar sua teoria dialógica da enunciação”. Logo, por conta desse caráter
dialógico-polifônico do discurso literário, bem como de sua capacidade de promo-
ver práticas dialógicas com os alunos-leitores, é imprescindível que as práticas de
letramento literário sejam reconhecidas e defendidas como uma responsabilidade
da escola e da aula de literatura, pois essas têm potencial de construir e reconstruir
a discursividade literária como um objeto de humanização e empoderamento.
Entretanto, se a importância da literatura no processo de (de)formação dos
alunos parece um tanto óbvia, por que então, aparentemente, a literatura parece
estar cada vez mais distante das salas de aula da escola pública? Inicialmente, é
relevante recordar que, na maioria das escolas públicas, a literatura não é mais uma
disciplina autônoma, mas sim parte das competências que são trabalhadas pela dis-
ciplina de Língua Portuguesa. E por isso é mais facilmente “deixada de lado”, caso o
professor esteja atrasado com o cumprimento do conteúdo postulado pelas matri-
zes curriculares e pelos sistemas de avaliação externa.
Outro fator que pode afastar a literatura da escola está no formato das provas
de ingresso ao ensino superior. Se antes a literatura figurava como um conteúdo, en-
gessada pelas tradicionais listas de obras obrigatórias para quase todos os vestibula-
res do país, agora é cobrada de forma interdisciplinar nos diferentes eixos do Exame
Nacional do Ensino Médio (ENEM), prova que substituiu o vestibular tradicional da
maioria das universidades públicas. Fica então a dúvida, se isso significa, na prática
do cotidiano escolar, o fim da literatura enquanto um saber escolar ou uma possibi-

526
Estudos Literários

lidade de que o texto literário possa ser escolarizado de uma forma mais autônoma
e contextualizada nas aulas dos professores de Língua Portuguesa e/ou Literatura.
Não parece ser uma questão fácil de responder. Antes os alunos liam (ou
não!) as obras literárias, em sua maioria canônicas, contempladas nos vestibulares
por meio de listas de livros de literatura, dando-lhes uma visão geral da literatura
e, de certa forma, acesso ao saber literário. Sendo cobrada no vestibular, a literatura
estaria, necessariamente, presente na maioria das turmas de ensino médio, ainda
que de forma impositiva. Trilhando um outro caminho, a literatura no ENEM é
tomada em sentido mais amplo, posta em diálogo com os diversos saberes mobili-
zados no ambiente escolar. Assim, não existe na prova do exame nacional a divisão
fragmentada de disciplinas, estando a literatura presente, de forma interdisciplinar,
em questões dos diversos eixos do conhecimento.
Parece ser uma boa perspectiva para a literatura, desde que seja tomada,
dialogicamente, como um discurso que emana efeitos de sentidos decorrentes de
inúmeras inscrições dos sujeitos e dos discursos em diferentes contextos histórico-
sócio-ideológicos. No entanto, receio que, sem uma escolarização institucionaliza-
da, a literatura será, na maioria das realidades da escola pública, escamoteada, cas-
trada, apagada, uma vez que grande parte das universidades não estabelecem mais
algumas obras como leituras indispensáveis para as provas. Esse diagnóstico faz
emergir uma marginalização cada vez mais acentuada da literatura na escola, sendo
ela sonegada enquanto um conhecimento político essencial à formação dos alunos.
Ainda sobre as dificuldades do ensino de literatura nas escolas públicas do
Brasil, arrisco-me a propor a existência de um possível um círculo vicioso em que
se inscreve grande parte dos acadêmicos dos cursos de licenciatura e, em especial,
os dos cursos de Letras. Frente a um desprestígio social que envolve hoje a carreira
docente, quem mais busca os cursos de licenciatura (como opção mais fácil e nem
sempre como desejo de carreira) são os egressos das escolas públicas, usualmente
de classes sociais desfavorecidas e/ou estigmatizadas.
Logo, via de regra, são justamente os alunos de uma realidade escolar em que
a literatura é utilizada de forma fragmentada pelos livros didáticos e como pretexto
para outras competências (o ensino historiográfico, o ensino da gramática norma-
tiva, o ensino de figuras de linguagem) que serão formados pelos cursos de Letras
para trabalhar a literatura na educação básica dessa mesma escola pública. Para

527
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

agravar esse diagnóstico, os cursos de Letras não costumam priorizar a formação de


professores de literatura para a escola pública, mas enaltecem um estudo acadêmico
da crítica literária canônica que, na maioria dos casos, objetiva formar pesquisado-
res em literatura, em literatura comparada, em crítica literária.
Assim, é bem possível supor que a formação acadêmica e literária de muitos
desses docentes, mesmo que formados em universidade públicas de renome, não
seja suficiente para escolarizar com responsabilidade a literatura, quem dirá trans-
cender as amarras do cânone, combater o lugar irrisório da literatura nas matrizes
e currículos, desvencilhar-se do livro didático enquanto suporte único, bem como
questionar as sugestões de obras e métodos impostos a partir de interesses escusos
de um mercado que envolve editoras, escolas, pré-vestibulares e universidades. É
notório que, na maioria dos casos, os professores dispõem somente do livro di-
dático que, em sua constituição, aborda a literatura, essencialmente, por meio de
fragmentos de textos literários, quando muito trazendo pequenos poemas e contos
integrais. É comum o texto literário mobilizado de forma fragmentada, tomado en-
quanto pretexto para o desenvolvimento de exercícios gramaticais ou para ativida-
des que pouco se relacionam com a leitura e interpretação.
Zilberman (2007, p.249) reforça que os livros didáticos incidem em certo
tipo de “figuração da língua e da literatura que determina o tipo de veiculação que
essas recebem na sociedade e na cultura, por consequência, impõem uma concep-
ção de leitura e de consumo de criações literárias”. Trata-se de uma relação perigosa
e tendenciosa entre o mercado editorial e a disseminação da literatura na escola,
que determina e impõe como, quanto e qual a literatura que figurará como possível
e aceita nas salas de aula das escolas públicas. E é bem provável que essas escolhas
não estejam não visem alçar os alunos-leitores a um protagonismo em suas realida-
des sócio-históricas, bem como empodera-los para que sejam capazes de questionar
e transformar a realidade em que se inscrevem.
Reforço que a postura ética de trabalho com a literatura que daqui emerge não
visa combater as obras canônicas, uma vez que esse processo de disciplinarização es-
tética ou a legitimidade inegável das obras canônicas faz parte da cultura de um povo.
O entrave está nos cânones escolares que, geralmente, estão relacionados a processos
de escolarização restritiva da literatura, organizados e selecionados por profissionais

528
Estudos Literários

que não desenvolveram, como afirma Paulino (2013, p.16), “a cidadania literaria-
mente letrada” e escolhem textos sem se preocupar com a formação de leitores.
Paulino ainda coloca que:

Como já foi demonstrado em trabalhos de especialistas brasileiros em Teoria


Literária [...], o problema está na constituição de padrões escolares de leitu-
ra. Os modos escolares de ler a literatura distanciam-se de comportamentos
próprios da leitura literária, assumindo objetivos práticos, que passam da
morfologia à ortografia sem qualquer mal-estar. Se for perguntado a um pro-
fessor de português no Brasil que tipo de leitor quer formar, possivelmente
a resposta instituirá idealizações distantes das práticas culturais ou destacará
habilidades típicas do letramento funcional, ligadas à leitura de textos básicos
para a vida diária do cidadão. (PAULINO, 2013, p.19)

A escola, nesse sentido, tem se afastado cada vez mais da formação de leitores
literários. Ao citar uma antologia de Machado de Assis organizada por Raymundo
Magalhães Júnior, intitulada Contos fantásticos, Paulino (2013, p.18) demonstra que
grande parte dos cânones escolares promove uma “distorção realizada para atender
a uma demanda escolar de gêneros, que embora aparentemente sejam de natureza li-
terária, têm sua origem mais ligada ao entretenimento televisivo e cinematográfico”.
Dessa forma, o cânone escolar, tomado como aquilo que deve ser lido pelos jo-
vens na escola, representa “um conjunto de produções resultantes de uma atuação de
marketing editorial internalizada pela própria instituição escolar” (PAULINO, 2013,
p.18) e não um conjunto de textos literários organizados para inscrever os alunos-lei-
tores em práticas de letramento literário empoderadoras, dialógicas e libertadoras.
Ainda que essas problemáticas devam ser consideradas como importantes
ao se pensar a literatura na escola, entendo que aqui proponho caminhos para que
o professor de literatura possa promover práticas emancipatórias e empoderadoras
em qualquer um desses cenários. Aliado a isso, muitos outros aspectos do cotidiano
escolar (matrizes curriculares engessadas, provas diagnósticas que não aparentam
se preocupar com o letramento literário, pressão constante para aumento de notas
como o IDEB entre outros) colocam o professor numa situação delicada, quase co-
mo um refém de um sistema escolar público cada vez mais positivista e fissurado
por índices de aprovação mascarados.

529
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Esses fatores parecem configurar um solo um tanto infértil para que a li-
teratura possa germinar enquanto um saber que empodere por meio de práticas
de letramento literário. Entretanto entendo que tais entraves devem potencializar
tomadas de posição de um lugar de luta, em que o professor de literatura, durante
as práticas de letramento literário, também se reconheça como um aprendiz, um
sujeito subversivo que tome o ensino da literatura como forma de humanizar-se,
humanizar os seus alunos e, acima de tudo, empoderá-los e empoderar-se da/pela
literatura que, infelizmente, foi cristalizada como um discurso que representa um
prioritário das elites culturais e econômicas do país.

Caminhos para práticas de empoderamento literário


A partir desse contexto de luta aqui proposto, reforço a necessidade de a li-
teratura ser escolarizada como um discurso que configura instâncias-sujeito, efeitos
de sentidos, modos de subjetivações e posicionamentos ideológicos específicos. E
por isso deve ser reconhecida e defendida (pela escola e pelo professor de literatu-
ra) como um discurso capaz de promover leituras criativas do cotidiano e práticas
sociais que visem o questionamento e a transformação da realidade sócio-histórica
dos alunos-leitores da escola pública, na maioria dos casos inscritos em grupos es-
tigmatizados e/ou em situação de vulnerabilidade econômica. Nessa perspectiva,
qualquer texto literário, independentemente do autor e da obra literária, poderá
promover um ensino de literatura por meio de práticas de letramento literário que
valorizem o potencial de fascinar, instruir, ensinar e, acima de tudo, empoderar os
alunos-leitores a exigirem um protagonismo nos processos de transformação da
realidade social, política, cultural, filosófica em que vivem.
Empoderar está relacionado a uma atitude social de conscientização de gru-
pos sociais, na maioria das vezes estigmatizados ideologicamente, sobre a impor-
tância de seus posicionamentos e luta por direitos. Nessa mesma égide, proponho
em França (2017) o conceito de empoderamento literário como um ato sócio-po-
lítico-formativo e emancipatório em que o sujeito, por meio da linguagem literá-
ria, é interpelado a se inscrever e participar, de maneira responsiva-responsável,
de diferentes práticas sociais. Sob essa égide, o professor de literatura, por meio de
práticas de letramento literário e de escolarização responsável do discurso literário,

530
Estudos Literários

deve contribuir para que os alunos-leitores busquem e almejem tomadas de posição


enquanto sujeitos críticos e, se assim se identificarem, serem capazes de provocar
transformações de diversas naturezas nas esferas sociais e lugares discursivos em
que se inscrevem.
Para tanto, o professor de literatura deve, primeiramente, reconhecer-se e
ser entendido pela comunidade escolar e acadêmica, como o principal agente ca-
talisador dos processos de empoderamento literário. Evidentemente é possível que
o aluno-leitor se empodere pela literatura em situações fora da escola, entretan-
to muitos desses estudantes somente terão acesso à literatura na escola. Por isso a
importância de o professor de literatura se revestir de práticas emancipatórias de
ensino de literatura, que não visem o total desrespeito às normativas das matrizes,
dos currículos e dos livros didáticos, mas sim uma escolarização responsiva e res-
ponsável desse aparato cristalizado da literatura na escola, com foco na construção
de alunos-leitores.
Para a consolidação de pilares de um ensino de literatura que promova o
empoderamento literário, é essencial reforçar que o professor é, antes de tudo, uma
vítima de um sistema educacional perverso, positivista, mercantilista e excludente.
Sob a falácia cristalizada de uma má-formação e incompetência, escondem-se jor-
nadas de trabalho extensas que impedem a maioria dos docentes de buscar quais-
quer formas de formação continuada e/ou estudos acadêmicos que contribuam pa-
ra o seu aprimoramento enquanto profissional. Raramente tal profissional encontra
tempo e condições físico-emocionais de ser um intelectual, um estudioso e, por
isso, as proposições que aqui se configuram levam em consideração as dificuldades
de implementação que os docentes engajados por um trabalho mais responsável
encontrarão para fazer “o diferente”, ou seja, para questionarem os saberes acade-
micamente consolidados e combaterem o tradicional aparato escolar, que focaliza
a produção de mão de obra servil e a reprodução dos processos de preconceito e
exclusão social.
Mesmo face a essa realidade, defendo que é possível que o professor respon-
sável pela literatura na escola se inscreva em algumas posturas teóricas que permi-
tirão um ensino de literatura com tomadas de posição axiológicas mais responsivas
e responsáveis. No entanto, as teorias postas aqui em diálogo e que compõem es-
sa proposta de ensino de literatura não precisam figurar como conteúdos a serem

531
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

estudados pelos professores que objetivarem se inscrever nessa discursividade de


ensino-aprendizagem. Evidentemente o ideal seria que todos os professores de li-
teratura tivessem acesso a teorias que pudessem auxiliar e compor os seus saberes
relacionados à prática docente.
De início, esse ensino deve partir de práticas responsáveis de letramento e es-
colarização que potencializem entre os alunos-leitores tomadas de posição axioló-
gicas que contribuam para que o sujeito tenha melhor percepção dos enfrentamen-
tos e dos processos de interpelação que sofre, ao se inscrever/ser inscrito por uma
classe social, um partido político, uma denominação religiosa, entre outros. Para
tanto, o texto literário deve ser concebido pelo professor como um acontecimento
discursivo que emana fenômenos ideológicos que refletem e refratam os diversos
elementos constituintes da vida social.
Assim, o discurso literário, inscrito em uma prática de letramento, deve dia-
logar com o aluno-leitor que, a partir de sua referencialidade polifônica3, deverá ser
capaz de construir suas ressonâncias dialógicas baseadas nos efeitos provocados
pelo evento de leitura. Por isso é essencial que o ensino de literatura se materialize
por meio de práticas que considerem as questões de classes como constitutivas do
discurso literário, bem como promovam o constante debate acerca de problemas
que ferem os direitos humanos e ampliam a desigualdade social, principalmente
para as populações em situação de vulnerabilidade.
Para tanto, dialogo com a Linguística Aplicada (LA) Indisciplinar organizada
por Moita Lopes (2006; 2013), a qual se organiza como um conjunto de estudos
interdisciplinares engajados em problemas sociais em que a linguagem tem papel
determinante. Aqui a LA representa, além de uma inscrição teórica, uma tomada
de posição ética, política e ideológica em relação à literatura e ao seu ensino, uma
vez que tais estudos estabelecem que cada contexto de pesquisa sobre o processo
de ensino-aprendizagem deve ser analisado pontualmente, de modo a contribuir

3  O conceito de referencialidade polifônica é uma imprescindível tomada de posição desse estudo, pois re-
presenta a “heterogeneidade subjacente às bases discursivas do imaginário sociodiscursivo dos sujeitos. Essa
heterogeneidade, por sua vez, é transpassada por discursos distintos. Dessa maneira, as vozes dos sujeitos são
entrecortadas por várias outras vozes e por vários outros discursos” (SANTOS, 2000, p. 231). Assim, as ins-
tâncias-sujeito inscritas no processo de ensino-aprendizagem de literatura (professor, aluno-leitor, autor, per-
sonagens das obras) devem ser concebidas sempre sob a égide dessa heterogeneidade de vozes sujeitudinais.

532
Estudos Literários

para a reflexão de práticas sociais de ensino-aprendizagem menos excludente. As-


sim, a postura ética frente à linguagem, aos saberes e aos discursos proposta pela
LA permite a proposição de uma transgressão, uma “desaprendizagem” das crenças
arraigadas em torno da tradicional escolarização canônica da literatura.
A LA se coloca como uma antidisciplina que visa “derrubar algumas dessas
cercas disciplinares” (PENNYCOOK, 2006, p.73), “abrir espaço para visões alterna-
tivas ou para ouvir outras vozes” (MOITA LOPES, 2006, p.23) e combater propostas
de políticas públicas para a educação que se pautem pelos interesses “específicos de
uma pequena minoria” (RAJAGOPALAN, 2013, p.159). Da mesma forma, busco
propor um ensino de literatura em que o professor questione e desrespeite algumas
das cercas disciplinares e impositivas do cânone escolarizado, por meio de propos-
tas de letramento literário que mobilizem temas, textos e autores que representem
visões de mundo que dialoguem com a referencialidade polifônica e o contexto só-
cio-histórico dos seus alunos-leitores. Isso pode ser feito com qualquer texto literá-
rio. Por isso reforço que não proponho um método, mas uma postura que permitirá
que o discurso literário não figure como um saber prioritário de uma elite cultural
e/ou econômica.
Ao lançar olhar para o papel da globalização nas relações de ensino-aprendi-
zagem, Kumaravadivelu (2006) entende que os professores devem buscar alternati-
vas para preparar os alunos para enfrentarem o mundo globalizado. A partir desse
diagnóstico um tanto óbvio, lanço mão da teoria dos saberes locais e globais tam-
bém para pensar o ensino de literatura. Para Canagarajah (2005), os saberes globais
representam o conjunto de teorias e práticas institucionalizadas academicamente
por cientistas e pesquisadores especializados. Já os saberes locais representam os di-
versos saberes gerados pelo professor por meio de suas práticas sociais no processo
de ensino-aprendizagem, evidentemente sem o status de conhecimento acadêmico
e científico. Dessa forma, os saberes locais são as inúmeras estratégias mobilizadas
pelo professor em sala de aula, ou seja, as escolhas teóricas, didáticas, metodológi-
cas entre outras.
À luz do ensino de literatura, concebo os saberes globais como todo o apa-
rato canônico e escolarizado, ou seja, as obras escolhidas, as editoras responsáveis
pelos livros didáticos, a crítica literária de renome, a escolarização impositiva de lei-
turas e sentidos possíveis. Em estudos sobre os dizeres de Robertson (1995), Moita

533
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Lopes (2013, p.19) propõe a reflexão sobre um mundo glocalizado, em que o global
e o local se interpelam, se atravessam e se constituem de forma equipolente. Da
mesma forma, entendo que o professor de literatura que se inscreva nessa proposta
indisciplinar, ou seja, a partir de uma visão glocal do discurso literário, poderá se
valer inclusive do cânone para servir a práticas de letramento literário empodera-
doras. Logo, o mesmo texto que serve, eventualmente, como chancela para uma
escolarização canônica, poderá ser um instrumento discursivo de empoderamento
e construção de um protagonismo de alunos-leitores inscritos em grupos estigma-
tizados e em classes menos favorecidas.
Não é segredo que professores e alunos da escola pública, via de regra, repre-
sentam tais grupos e classes menos favorecidas, os quais veem-se constantemente
com suas vozes silenciadas, castradas em suas subjetividades, ou seja, inferiorizadas
pelo discurso acadêmico, político-pedagógico, econômico e canônico. A partir des-
se diagnóstico, reforço a postura ética e política proposta pela LA como constitutiva
dessa proposta de ensino de literatura, pois incita o professor a transgredir e pro-
blematizar a vida social a partir dos textos, para que possa contribuir para que os
alunos-leitores inscritos nas práticas de letramento literário possam se reconhecer
no discurso literário como sujeitos sociais que também fazem parte do mundo ético
e estético retratado na literatura.
Para tanto, sem receitas prontas, o professor de literatura deverá organizar
práticas de letramento que considerem, por exemplo, questões sociais e locais que
constituem a comunidade, questões de gênero, a luta feminista, os inúmeros fatores
que refletem a desigualdade social, os preconceitos raciais entre outras. Esses temas
representam, infelizmente, inscrições discursivas e/ou lugares sociais ocupados por
grande parte dos alunos da escola pública e, por conta disso, não podem ser ignora-
dos por um ensino de literatura que se objetive empoderador e inclusivo.

Considerações finais
Uma comunidade que se coloque sensível às questões sociais, à escola e, por
conseguinte, ao ensino de literatura, tem a obrigação ética de questionar teorias e
saberes os quais, sob diversas justificativas, excluem, silenciam, castram, marginali-

534
Estudos Literários

zam, bem como oferecem vantagens a determinados grupos em detrimento de ou-


tros. Assim, reforço que um ensino de literatura responsivo e responsável está mais
relacionado à postura ética do professor de literatura frente ao texto e à referencia-
lidade polifônica dos alunos-leitores do que ao problema da supremacia do cânone.
Logo, a questão a ser combatida e transgredida é a escolarização canônica,
positivista e excludente que dialoga somente com alunos-leitores que já são leitores
para além das aulas de literatura, ou seja, aqueles que já possuem a prática de leitura
para além da escola. Um letramento literário que empodere se ancora no desejo
de promover práticas produtivas com alunos que não são leitores ou mesmo que
reconheçam no texto literário somente um conteúdo chato a ser vencido nas provas.
Não considero uma tarefa homérica um ensino de literatura que se ancore em
uma escolha responsável dos textos literários, em práticas que tenham a leitura do
texto como objetivo primeiro, bem como em metodologias que estejam em diálogo
com o contexto social, histórico, cultural, político e ideológico dos alunos-leitores.
Para tanto, o professor de literatura deve transgredir os discursos cristalizados que
o colocam como reprodutor de matrizes curriculares e livros didáticos, bem como
transcender uma percepção de uma literatura propedêutica, em que raramente a lei-
tura e a reflexão sobre o texto estão no centro das relações de ensino-aprendizagem.

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537
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Processo de rememoração em
Desamparo
Ulysses Rocha Filho1

O letramento literário se define como práticas sociais que usam a escrita lite-
rária, considerando diversos contextos embora se destaquem no ambiente escolar,
portanto os filmes, seriados, gibis, best-sellers e demais práticas relacionadas, são
consideradas práticas de letramento. Faz-se necessário, analisarmos a prática literá-
ria levando em consideração o interesse do aluno em relação a leitura e a proposta
do autor ao utilizar as obras clássicas que influenciam o educando a busca do co-
nhecimento das obras passadas – o que reverbera em sua forma de narrar, a busca
pela identidade de seus personagens centrais e a alegoria (atemporal) de persona-
gem à margem da vida real.
Sabe-se dos enfoques pedrosinos recorrentes que são ratificados no proces-
so narrativo do romance Desamparo (2016), tais como: a amizade, a memória e o
erotismo nos romances: A Instrução dos Amantes (1992), Nas tuas Mãos (1997),
Fazes-me Falta (2002), A Eternidade e o Desejo (2007), Os Íntimos (2010), Dentro de
Ti Ver o Mar (2012), Desamparo (2015 ). Além dessa constatação, a urgência de uma
narrativa diferenciada, sob diversos ângulos e depoimentos e, não raramente, tipos
textuais diferenciados em suas narrativas espiraladas.
Dessa feita, em Desamparo, novas perspectivas insurgem: processos narra-
tivos sob a ótica de 05 personagens/narradores, a memória coletiva somatizada às
experiências individuais, a (e)migração além do caleidoscópio do “falhanço”/de-
samparo das relações humanas e da “vida” de personagens que se encontram na
fronteira da vida/morte já constantes desde seus primeiros romances.
Um país onde cada um parece existir por conta própria mas sempre muito de-
pendente da opinião dos outros. Um país rural que parece dar uma espécie de imuni-

1  UFG/RC, [email protected]

538
Estudos Literários

dade à humilhação “possibilitada pela ausência de cosmopolitismo”, e onde “a rudeza


da descrença substituía os veludos urbanos da hipocrisia”, com um cenário e histórias
cada vez mais paralisadoras devido à ausência de valores em todas as gerações.
Num momento em que a personagem principal, Jacinta, é atingida pelo mais
infortúnio destino todos são colocados à prova: qualquer habitante de Arrifes de-
seja mostrar ao próximo como sempre cuidou, vigiou e acompanhou a idosa “bra-
sileira”. Vidas de aparência, em que o mais importante é mostrarem o bom coração
aos vizinhos dos lados e aos de cima e de baixo.
A protagonista, Jacinta Sousa, regressa a Portugal depois de uma vida inteira
no Brasil, para uma aldeia (Arrifes) que podia ser qualquer aldeia portuguesa onde
imperam o abandono e a solidão. A relação com os filhos, as memórias da vida que
ficou para trás, a busca por um lugar ao qual se possa pertencer, são os pontos de
referência da personagem e as traves-mestras de um romance forte e atual.
Uma vasta galeria de personagens, direta ou indiretamente relacionada com
as vidas dos três protagonistas do romance, participa da teia de acontecimentos que
se desenvolvem no enredo de Desamparo. O regresso à província de portugueses
urbanos atingidos pelo desemprego, a desconfiança e o medo face aos imigrantes
que procuram Portugal2, a queda de qualidade de vida das populações, a persistên-
cia da secular violência familiar, a quebra de natalidade e o desmantelamento do
Estado social são retratados neste romance.

O cruzamento entre o político e o pessoal, que marca toda a ficção desta


autora, é potenciado neste romance em que ação e reflexão se interpelam
continuamente, criando uma obra intensa, com ritmo e fluência, articulando
ficção e linguagem através de uma escrita clara e despojada, que usa o humor
como perspectiva de observação e de iluminação do pensamento. (PEDRO-
SA, 2016, p. 58).

Os ciclos de partidas e chegadas se repetem na trama de Desamparo: Jacinta


migra para o Brasil com o pai. Meio século depois retorna à Portugal (“a aldeia”)
para cuidar da mãe. Raul abandona o Brasil e aterrissa em Portugal tocado pela falta

2  Como cenário de toda a narrativa – é quase uma personagem –, encontra-se sempre presente o momento
histórico de Portugal no início do século XXI, debatendo-se com uma crise económica sem precedentes.

539
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

de emprego e pelos relacionamentos falidos no Rio de Janeiro. O trânsito carrega as


mazelas existenciais de ambos os sujeitos migrantes.
Em crise diante da rejeição pelo olhar do outro, eles procuram superar os
desencontros e a solidão por meio de estratégias de sobrevivência na sociedade con-
temporânea e cada vez mais desigual:

Havia um novo êxodo da cidade para o campo; empresários na falência que


entregavam as casas e os carros aos bancos e asseguravam, nas capas das re-
vistas, que o regresso à terra era a solução da crise. (PEDROSA, 2016, p. 37).

O enredo é relatado por quatro vozes que se revezam ao longo dos trinta e
cinco capítulos do livro: o narrador, a personagem Jacinta Sousa, o personagem
Raul Sousa e a personagem Clarisse Garcia.
A meio do romance, o filho Raul assume o protagonismo da história e o
leitor depara-se então com o impacto que a morte da mãe tem sobre ele. A vida
de Jacinta e dos seus pais passa a aparecer pontualmente, através das recordações
de Raul. É então que surge a personagem Clarisse, uma ex-jornalista também ela
a recomeçar a vida em Arrifes e que, por via do amor, vai redimir Raul dos seus
fantasmas de culpa e solidão.
Os narradores são vários, alternando ao longo do romance de maneira a de-
senvolver o retrato sem complacências de um país em crise económica (e talvez
outras) que Inês Pedrosa se propôs escrever, tendo como principal pano de fundo
um lugar rural imaginário. “Portugal visto dali é uma paisagem medieval com água
potável e confortos modernos.” É a partir desta aldeia, ou nesta aldeia, que as his-
tórias se cruzam, e são várias, chegadas de outros lugares em Portugal e no Brasil.

Labirintos narrativos: NarraDORES espiralados


A saga de uma mulher que foi arrancada dos braços da mãe e trazida para o
Brasil, aos três anos e, mais de meio século depois, volta a Portugal para conhecê-la.
Vivendo, como todos nós, num tempo em que a insegurança e o medo pare-
cem ditar o ritmo da vida, Jacinta inicia um movimento de retorno que vai definiti-
vamente mudar a sua trajetória.

540
Estudos Literários

No Brasil, eu sempre fui a Portuguesa; em Portugal, passei a ser a Brasileira


– está lá no caderninho da conta da mercearia do meu primo Zé Paulo, que
não me deixa faltar nada porque sabe que eu pago: não está Jacinta Sousa,
está escrito ‘Brasileira’. (PEDROSA, 2016, p. 56)

O romance abre um precedente para refletir sobre a condição dos sujeitos


migrantes marginalizados, as expectativas, os sonhos e as (des)ilusões dos que che-
gam e partem, como é o caso das personagens Jacinta e Raul, Jaciara, Clarisse, Laís
e Carlinhos, migrantes do mesmo romance.

Nas noites de solidão navego pelas redes sociais, crio um personagem cíni-
co, crítico: provoco, insulto, insultam-me, vou procurando fazer que existo
assim», na visão de Raul, que continua a afirmar que há «muito tempo que
não troco ideias ou interajo com um amigo de carne e osso. Onde estarão?
Emigraram? Com a crise parece que sumiram. (PEDROSA, 2016, p. 126)

Inês Pedrosa escreve, a partir da saga de Jacinta, a história recente do Brasil e


de Portugal, dando corpo a um conjunto de personagens inesquecíveis. A migração
física dos sujeitos em Desamparo está atrelada aos fatores íntimos que levam as perso-
nagens a migrar e a encontrar, naquela aldeia específica, o destino (o fado) português.
À exemplo do que ocorrera em A eternidade e o desejo e Dentro de ti ver o
mar, onde os protagonistas têm como destino o Brasil, em Desamparo a persona-
gem principal Jacinta Sousa, também, migra para outro país, refletindo o estado
contemporâneo de Portugal, quer seja, um país simultaneamente amado pela sen-
sibilidade das personagens, sobretudo Jacinta, Raul e Clarisse, e odiado pela racio-
nalidade analítica dos diversos narradores. Um país “desamparado” por uma elite
político-administrativa tecnocrática, no qual contam mais as boas contas orçamen-
tais do que a qualidade de vida dos seus habitantes.
A metodologia de escrita, ainda que emotivamente espontânea, parece resi-
dir num conjunto concêntrico de abordagens, isto é, parte-se de um facto nuclear
(morte de Jacinta de Sousa; fracasso de vida de Raul, seu filho), ampliado posterior
e sucessivamente ao nível local e ao nível da vida do país (neste caso Portugal e
Brasil, já que Jacinta viveu e casou no Brasil e Raul aí nasceu). No entanto, tal como
Rosa Cabral o fizera no romance de 2013 (Dentro de ti ver o mar), a protagonista de

541
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Desamparo “regressa”, por motivos de força maior, a Portugal para resolver os con-
flitos familiares, sendo este último, o destino almejado por Raul, seu filho.
O romance, à semelhança de um mosaico, apresenta as personagens de for-
ma minimalista ao mesmo tempo que procura definir os seus espaços identitários,
descobrindo novos valores (ou procurando entender os antigos). Esta busca de
identidade é feita a par de uma tentativa de redefinir pontos de orientação para as
suas vidas, de acender faróis na longínqua praia dos afetos ao largo da qual navegam
à bolina, isto muito à semelhança de outros romances anteriores dessa autora – te-
mática recorrente nos romances da autora entretanto, sempre diferenciando em sua
apresentação e constituição/reconstituição das personagens envolvidas em eventos
de sua (constante) epopeia.
Os ciclos de partidas e chegadas se repetem na trama de Desamparo: Jacinta
migra para o Brasil com o pai. Meio século depois retorna à Portugal para cuidar da
mãe. Raul abandona o Brasil e aterrissa em Portugal tocado pela falta de emprego
e pelos relacionamentos falidos no Rio de Janeiro. O trânsito carrega as mazelas
existenciais de ambos os sujeitos migrantes.
Em crise diante da rejeição pelo olhar do outro, eles procuram superar os
desencontros e a solidão por meio de estratégias de sobrevivência na sociedade
contemporânea e cada vez mais desigual: “Havia um novo êxodo da cidade para o
campo; empresários na falência que entregavam as casas e os carros aos bancos e
asseguravam, nas capas das revistas, que o regresso à terra era a solução da crise.”
(PEDROSA, 2015a, p. 37).
“Um silêncio em bruto, como se o torno do mundo não tivesse ainda começado
a rodar”, assim principia o romance de Inês Pedrosa em epígrafe, Desamparo. Trata-
se do sétimo romance da escritora portuguesa Inês Pedrosa3 publicado em 16 de
fevereiro de 2015 pelas Publicações Dom Quixote e, também, editado no Brasil em
Agosto de 2016 pela Leya (conforme, podemos perceber, nas respectivas capas, que

3  Inês Pedrosa nasceu em 1962. Licenciada em ciências da comunicação pela Universidade Nova de Lisboa,
trabalhou na imprensa, no rádio e na televisão. Dirigiu a revista Marie Claire entre 1993 e 1996. Foi diretora da
Casa Fernando Pessoa entre 2008 e 2014. Mantém há 13 anos uma crônica semanal no periódico Sol. Tem 23
livros publicados, entre romances, contos, crônicas, biografias e antologias. A sua obra encontra-se publicada
no Brasil, em Portugal, na Espanha, na Itália e na Alemanha. Recebeu o Prêmio Máxima de Literatura com os
romances Nas tuas mãos e Os íntimos.

542
Estudos Literários

perfilam abaixo) e com alusões, alegorias e imagens diferenciadas – em uma, foto de


mulher Jacinta; na outra, representação da cidade/casa:

Este romance principia com a queda de Jacinta Sousa, mulher de idade avan-
çada, no pátio ensolarado da sua casa em Arrifes4 (“A mulher caiu perto da porta,
longe das duas árvores do quintal, sobre a laje ardente, inundada de sol”. p. 07). Le-
vada para o hospital, debate-se em delírios entre a vida e a morte e revisita sua vida,
sua saga, enfim, com o intuito primeiro de se descobrir.
Cabe, de pronto, ressaltar que não se trata de obra meramente autobiográfi-
ca, conforme o narrador relata suas memórias no tempo da narração, rememora seu
passado adormecido e materializa as lembranças desse passado no romance. Nas
histórias narradas/contadas/rememoradas, as experiências vividas pelos sujeitos do
narrado caminham no sentido contrário, da presença para a ausência, adentrando
o esquecimento e também a memória.
Assim, apreende-se os modi operandi sobre os quais esses dois percursos são
encenados nos discursos (ditos autobiográficos) sobre o percurso da lembrança
presente e o percurso do esquecimento passadio.

4  Segundo relatos, a história transcorre em Arrifes, uma pequena povoação a 8 km da Vila de Lagar (uma
milenar cidadela medieval), por sua vez próxima de uma cidade de média dimensão, Termas do Rei.

543
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Arquitetando Memórias
Símbolos de suas gerações, seus personagens encontram-se envolvidos na
tarefa de arquitetar suas vidas, processo em que a memória, entendida na cons-
trução tanto do lembrar como do esquecer, desempenha papel relevante na forma
narrativa e na representação de sua personalidade – sempre desconhecida pelos
envolvidos na teia narrativa mais próxima – com as imbricações entre a memória
individual e social, segundo concepções e aportes teóricos de Maurice Halbwachs
e de Aleida Assmann, que refinam o pensamento do sociólogo francês acerca da
memória coletiva, de forma a descrever melhor sua complexidade.
Para que essa memória seja resgatada, é indispensável o papel dos narradores
(e a forma do narrar, que são plurais) na condução do enredo, penetram no interior
dos personagens e desarticulam o tempo, pois é na descontinuidade temporal que,
muitas vezes, contrapõe o presente e passado memorialístico. Essa é a temática,
sob o olhar das personagens femininas nos romances da escritora portuguesa Inês
Pedrosa e temática dos últimos capítulos desse estudo sobre a autora portuguesa.
Halbwachs (2013) ressalta que os fenômenos de recordação e de localização
das lembranças não podem ser efetivamente analisados se não for levado em consi-
deração os contextos sociais que atuam como base para o trabalho de reconstrução
da memória.
No percurso narrativo de Jacinta, Raul, Clarisse, Alice, do tão “ausente” Ra-
fael ou de Ramiro há uma ausência gritante de auxílio e de proteção. São persona-
gens íntimas de uma boa parcela da população portuguesa, com um cenário e histó-
rias cada vez mais paralisadoras devido à ausência de valores em todas as gerações,
retratada em vários capítulos da obra.
Às portas da morte, a narradora-mor Jacinta rememora sua vida de alegrias
e tristezas no Brasil, a infância infeliz, a indiferença afetiva do pai em simultâneo
com a ausência da mãe, as relações conjugais falhadas, a relação conflituosa com o
filho mais velho, a vida no Rio de Janeiro na primeira metade do século XX. Este é
o retrato, rememorado, de sua vida aparentemente simplória. O que se caracteriza
uma revisitação individual existencialista, na verdade, se metamorfoseia para uma
identificação de caráter universalizante.

544
Estudos Literários

Outro aspecto preponderante, já aludido, na obra pedrosina é a recorrência


da temática da morte e dos diversos papéis que possa representar, como mote da
narrativa e particular alegoria do passado ou ameaça presente no ato narrativo. Em
seu best-seller Fazes-me Falta (2002) uma das personagem/voz narradora está mor-
ta;em Desamparo várias pessoas narram os feitos e fatos da epopeia de Jacinta com
a intenção primeva de se constituir um mosaico daquela senhora; no romance Os
Íntimos, considerado como o “romance masculino” de Inês Pedrosa, vários homens
rememoram, em uma noite de chuva e presos em um jogo de futebol, as agruras da
morte de suas companheiras ou filhas.
Sob esses aspectos pode-se recorrer aos estudos de Sigmund Freud (princi-
palmente no terceiro capítulo) que encontrou, na mitologia, a representação para as
forças opostas, através dos mitos de Eros, o deus grego do amor e Thanatos, o senhor
da morte, em constante dialética.
Sabe-se que a Morte (quase uma personagem nos romances dessa escritora
portuguesa) é uma figura mitológica que tem existido na cultura popular desde o
surgimento dos contadores de histórias. Na mitologia grega, por exemplo, Tânatos
seria o deus Morte, e Hades, o deus do mundo da morte. Em outra vertente, do
lado oposto, Eros, a divindade primordial do amor. Mito será, pois, a narrativa de
uma criação: conta-nos de que modo algo, que não era, começou a ser, conforme
concepção de Mircea Eliade, em seus estudos sobre a constituição do mito na rea-
lidade circunvizinha.

[...] o sagrado e o profano constituem duas modalidades de ser no Mundo,


duas situações existenciais assumidas pelo homem ao longo de sua história.
Estes modos de ser do Mundo não interessam unicamente à história das re-
ligiões ou a sociologia, não constituem apenas o objeto de estudo históri-
co, sociológico, etnológico. Em última instância, os modos de ser sagrado
e profano dependem das diferentes posições que o homem conquistou no
Cosmos e, consequentemente, interessam não só ao filósofo mas também a
todo investigador desejoso de conhecer as dimensões possíveis da existência
humana. (ELIADE, 2001, p.20)

Inês Pedrosa ousa intercalar os discursos díspares de membros de uma mes-


ma família, de épocas e histórias incongruentes e entrecruzando testemunhos que

545
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

ilustram três gerações. O romance, através da memória coletiva, torna-se o registro


de três gerações da história de Portugal nos atribulados anos do Estado Novo sala-
zarista, ou, ainda, no período de guerras de independência das colônias ultramari-
nas que se seguiu ao 25 de Abril.
Retornando á Jacinta Sousa: começou a viver em Portugal para cuidar da mãe
Margarida, após uma estadia de cinquenta anos no Brasil, a viver com o seu pai. O
enredo, como já mencionado, de Desamparo começa com o desmaio de D.ª Jacinta
no pátio da sua casa e seu retorno à terra natal. Em verdade, através de relatos di-
versos, constitui-se a história dessa personagem que situa-se entre a nacionalidade
portuguesa e a brasileira.
Inês Pedrosa buscou, conforme depoimentos, intercalar os discursos díspa-
res de membros de uma mesma família (às vezes, “amigos”), de épocas e histórias
incongruentes a fim de entrecruzar testemunhos a fim de registrar várias gerações
da História recente de Portugal, conforme nos avisa em sua introdução ou motivo
de escrita:

Tenho uma relação muito forte com o Brasil. Comecei muito jovem por ler
prosa e poesia do Brasil, e é outro mar da mesma língua. A história da litera-
tura brasileira e da portuguesa confundem-se. O Padre António Vieira, pelo
qual tenho um enorme fascínio, é português e brasileiro, numa época em que
não havia ainda essa distinção. É uma relação que me interessa trabalhar, e faz
sentido na atualidade porque vemos, desde o século XIX, a emigração de por-
tugueses para o Brasil. Existe agora emigração do Brasil para cá, e tem sido
pouco tratada na literatura. Nós julgamos que somos muito próximos, mas
temos diferenças grandes. Estar no Brasil permite-me olhar para Portugal de
outra maneira e vice-versa. Há um distanciamento que amplia a minha visão
dos dois países. Sinto-me muito do Brasil. O trabalho da língua portuguesa
passa muito por essa ligação, muito mais do que os artigos burocráticos dos
acordos ortográficos, e por um conhecimento e reconhecimento entre as du-
as formas de brincar, trabalhar a aprofundar a língua portuguesa.5

5 https://www.jn.pt/artes/interior/ines-pedrosa-escrever-e-destruir-a-solidao-4439266.html

546
Estudos Literários

Para que essa memória fosse resgatada, tornou-se indispensável o papel dos
narradores (e a forma do narrar, que são plurais) na condução do enredo, pois pe-
netraram no interior dos personagens outros e desarticulam o tempo. Na descon-
tinuidade temporal haverá, sempre, a contraposição do presente com o passado,
mormente designado, memorialístico. Essa é a temática, sob o olhar, não se pode
esquivar dessa máxima, das personagens femininas nos romances da romancista
Inês Pedrosa e temática das últimas linhas desse estudo inicial da obra em relevo.

Bibliografia
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Pedrosa. Alfragide: Texto, 2013.
ASSMANN, Aleida. Memory, individual and collective. In: GOODING, Robert; Tilly,
Charles. The Oxford handbook of contextual political analysis. New York: Oxford,
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de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.
DASTUR, Françoise. A morte: ensaio sobre a finitude. Tradução de Maria Tereza Pontes.
Rio de Janeiro: Difel, 2002.
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins
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III. (Luiz Alberto Hanns, trad). Rio de Janeiro: Imago, 2007
GENETTE, Gérard. Paratextos Editoriais. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009.
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547
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Trad. Constança Marcondes César. Campinas:


Papirus, tomo I, 1994.
RODRIGUES, Tiago dos Santos. A alteridade do real ou da in-condição proletária:
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SOUSA, Roberto Acízelo. Estudos culturais: descrição de um conceito e crítica de sua
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INÊS Pedrosa.com. Disponível em: <http://www.inespedrosa.com/index.html>. Acesso
em 03 junho. 2018.

548
Estudos Literários

Beleza fatal: A
sobrenaturalização da figura
feminina em “A Queda da
Casa de Usher” e “O Carro da
Semana Santa”
Yasmin da Silva Rocha1

Introdução
O presente trabalho é resultado de estudos realizados, nos quais foram con-
siderados aspectos sobre a literatura fantástica, o Gótico, o Decadentismo e a figura
feminina nos contos do autor norte americano Edgar Allan Poe e do escritor bra-
sileiro João do Rio. No desenvolver desta pesquisa, buscaremos mostrar à luz de
textos críticos sobre o Decadentismo e o Gótico, como ocorre a sobrenaturalização
da figura feminina nos contos “A Queda da Casa de Usher” (1839) de Edgar Allan
Poe e “O Carro da Semana Santa” (1910) de João do Rio.
Nos contos a serem trabalhados realizaremos observações sobre as represen-
tações femininas nos contos, à luz das teorias consultadas. Vislumbrando a contri-
buição social do presente trabalho, faremos uma discussão de como no decorrer
dos anos as mulheres foram adquirindo sua força e lugar em uma sociedade co-
mandada por homens. Teremos duas perspectivas diferentes acerca do feminino.
Enquanto em um dos contos, a mulher é delicada e frágil, no outro se trata de ser
independente e subversiva. Os dois contos foram escritos por autores em lugares e

1  Graduada em Letras Português e Inglês, pela Unidade Acadêmica Especial de Letras e Linguística da Univer-
sidade Federal de Goiás – Regional Catalão (UFG - RC). Especialização em Metodologias do Ensino de Língua
Portuguesa e Estrangeira, pelo Centro Universitário Internacional (UNINTER), [email protected]

549
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

épocas diferentes, porém a perspectiva nos contos de ambos será de grande contri-
buição para a presente pesquisa.
Especificamente apontaremos as transformações da tradição gótica inglesa
oitocentista no contexto norte-americano e brasileiro do século XIX, além do diá-
logo existente entre a obra de Poe e a escrita decadentista brasileira de início de
século XX e por fim, analisaremos o espaço ocupado pelas personagens femininas
na literatura e sua reverberação no Brasil da Belle Époque.
Neste sentido, tanto Edgar Allan Poe através da ênfase no racionalismo do
século dezenove, quanto João do Rio por meio do Decadentismo criaram em suas
obras, mulheres que contestavam os valores burgueses patriarcais independente-
mente de seus momentos históricos.

Desenvolvimento: O feminino
A figura feminina como se vê historicamente está sempre representada como
um ser misterioso e instigante, além de ser recorrente para a mulher estar associada
ao profano e causa principal da queda do homem (DOTTIN-ORSINI, 1996, p. 14).
Sendo assim, realizaremos aqui alguns apontamentos sobre como a figura feminina
tem sido constituída e representada em textos ao longo dos anos, assim como sua
representação na mitologia, na era medieval e vitoriana dos séculos XVIII e XIX e,
finalmente, como esses elementos aparecem refletidos na literatura decadentista de
Edgar Allan Poe e João do Rio.
Ao mencionarmossobre a mulher, vemos necessidade de expor a mitologia,
onde encontramos grandes contribuições em sua origem. Temos nessa, o suporte
que necessitamos para introduzir e explanar a nossa teoria de sobrenaturalização,
ocorrida desde então. Para compreender a questão presente nos mitos, iremos des-
tacar suas principais características como ser vivente do sexo feminino. Aqui usare-
mos a mitologia grega e celta, além de fazermos menções do que encontramos em
passagens e mitos cristãos.
A mitologia, mais especificamente, na mitologia grega e celta, podemos
constatar que a base de ambas começa com seres femininos. Para a mitologia grega,
temos Gaia (Gaîa); uma titã, conhecida também como Terra ou Mãe Terra, que faz
parte das Divindades originárias, criada logo após Caos (Kháos). Gaia foi capaz de

550
Estudos Literários

gerar sozinha Urano, Ponto e as Óreas, tendo sido Urano gerado como um ser igual
que a completasse e para a procriação. Este ser representa o princípio da terra e o
começo do universo grego. Como destaca o poema de Hesíodo abaixo:

Sim bem primeiro nasceu Caos, depois também


Terra de amplo seio, de todos sede irresvalável sempre,
dos imortais que têm a cabeça do Olimpo nevado,
e Tártaro nevoento no fundo do chão de amplas vias,
e Eros: o mais belo entre Deuses imortais,
solta-membros, dos Deuses todos e dos homens todos
ele doma no peito o espírito e a prudente vontade.
Do Caos Érebos e Noite negra nasceram.
Da Noite aliás Éter e Dia nasceram,
gerou-os fecundada unida a Érebos em amor.
Terra primeiro pariu igual a si mesma
Céu constelado, para cercá-la toda ao redor
e ser aos Deuses venturosos sede irresvalável sempre. (HESÍODO, 1995, p. 91).

Como podemos ver no poema de Hesíodo, há importância em Gaia, pois ela


foi criadora de diversas divindades que vieram por meio dela e de sua criação. Gaia
é uma personalidade feminina, conhecida por mãe Terra, faz parte das Divindades
Originárias, que após o Caos construiu a humanidade e deu vida a outros deuses.
As Deusas podem ser vistas na mitologia grega, mas elas podem ser chamadas de
Musas ou Musas do Olimpo. Para mostrar todo o talento de canto, dança, alegria e
principalmente, a beleza provenientes das musas que se encontravam no Olimpo.
Hesíodo expõe que a preferência e respeito que todos deveriam ter para com as
virgens de Zeus.
Na mitologia celta, temos Danu. A mais poderosa das deusas celtas, Danu é a
Mãe dos povos da deusa Danu (tuatha de danann). A deusa faz parte das principais
divindades celta, estando somente após os deuses Teutates e Dagda (SHARKEY,
1997, p. 17). Ela é descrita também como tendo três faces ou aspectos, representan-
do os estágios da terra: nascimento, crescimento e morte.
As personalidades celtas, encontradas no decorrer de nossa pesquisa se ca-
racterizam como mulheres independentes e de suma importância para a sociedade.

551
LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Vê-se que são designados com nomes femininos lugares ligados à fertilidade e a
terra. Para os celtas essas representaçõesfemininas estão ligadas à natureza, como
podemos ver na obra Mistérios Celtas de John Sharkey, onde temos diversas re-
presentações. Como exemplo, temos lugares como as colinas Dá Chichanann ou
“peitos de Anu”, que segundo Sharkey é uma deusa possivelmente idêntica a Danu,
a mãe ancestral dos celtas irlandeses, representada por duas colinas. Que se trata
de uma representação dos seios de uma deusa, as colinas as quais estão ligadas à
fertilidade. Vemos que em todas as culturas há mitos acerca da mulher, neste con-
texto, observamos inserida na tradição judaico-cristã o mito envolvendo a primeira
mulher de Adão.
Dentro da tradição judaico-cristã, Lilith surgiu como a primeira mulher de
Adão, criada do mesmo barro original que o primeiro homem, sendo, portanto,
igual a Adão e portadora dos mesmos direitos que seu marido. No entanto, ao bus-
car ser tratada como igual, Lilith foi rechaçada, e se isolou em uma caverna fugindo
de Adão e da História, resultando posteriormente na criação de Eva, esta sim incluí-
da na História como esposa (única) de Adão (HURWITZ, 2006, p. 85).
Nos aspectos sobre a figura da mulher, observamos que a mesma está de
contínua associação e representando vários mistérios. Sendo enxergada como um
homem incompleto ou um ser naturalmente inferior (MACEDO, 1990, p. 45). No
princípio da Idade Média, com diversos combates ocorrendo e o feudalismo cres-
cente, o ambiente ocupado pela mulher ocupava era o lar e suas obrigações restrin-
giam-se a cuidar da casa e da família (RICHARDS, 1993, p. 35). Neste cenário, o
matrimônio tinha como principal meta estabelecer relações de poder entre reinos.
Sendo assim, o casamento era a celebração de um pacto entre duas famílias. A mu-
lher deveria exercer sua já esperada passividade na sociedade, e se sujeitar unir-se
ao rapaz que pagasse pelo dote. Os dotes poderiam chegar a valores altos, o que era
uma vantagem para a família da moça. Nessa época era crescente também o núme-
ro de jovens que eram enviadas por seus pais para conventos.
O casamento era algo importante na vida da mulher, tanto pelo pacto entre
duas famílias, quanto ao fato da união entre um homem e uma mulher. Apesar da
cerimônia e constituição do matrimônio, celebrado pela igreja, esta que também
tinha interesses envolvidos. A união ainda continuava a beneficiar aos homens. O
matrimônio, sacralizado, garantia a estabilidade das relações dominadas sempre pe-

552
Estudos Literários

lo elemento masculino, novamente mostrando a inferioridade da figura feminina


na relação conjugal. De acordo com Macedo (1990, p. 42), a mulher ocidental, go-
zava de um espaço restrito, somente à esfera doméstica e familiar; mesmo limitada
ao ambiente caseiro, e o ser não possuidor de privilégios.
Levando em conta, de como a Igreja Católica Medieval defendia e emoldava
os relacionamentos familiares e casamentos. Havia o interesse da Igreja em não ape-
nas deixar as riquezas em uma só família. O que ocorreu com os Usher, era prática
normal, os pais visando apenas manter para si as riquezas adquiridas pela família.
Então, a solução para não dividir os bens era casando as pessoas de uma mesma
linhagem e mantendo os bens para a família. Corrobora Carneiro:

O pacto matrimonial efetuado entre duas famílias, há que se destacar, privi-


legiava os interesses da estirpe em detrimento dos pessoais, demonstrando o
nítido objetivo da conjugalidade: a continuidade da linhagem. (CARNEIRO,
2006, p. 70)

O discurso proferido pela igreja era totalmente voltado priorizando os ho-


mens, já a mulher considerada um ser abaixo em relação ao homem, cabia zelar e
cuidar do seu marido e família. A igreja de modo inclusivo interferia também nos
casamentos, com seus discursos em relação ao sexo. Em que o sexo para o casal
deveria ser única e exclusivamente para a procriação (RICHARDS, 1993, p. 33).
A Igreja buscava intervir no sexo, com o discurso de que fora criado exclu-
sivamente para a procriação. A instituição buscava inclusive influenciar a maneira
como o ato deveria ser realizado. No trecho de Jeffrey Richards, por exemplo:

Pois a cristandade foi, desde seus primórdios, uma religião negativa quanto
ao sexo. Isso significa dizer que os pensadores cristãos encaravam o sexo, na
melhor das hipóteses, como uma espécie de mal necessário, lamentavelmente
indispensável para a reprodução humana, mas que perturbava a verdadeira
vocação de uma pessoa – a busca da perfeição espiritual, que é, por defini-
ção, não sexual e transcende a carne. É por isso que os ensinamentos cristãos
exaltam o celibato e a virgindade como as mais elevadas formas de vida (RI-
CHARDS, 1993 p. 34).

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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Sendo assim, o sexo não poderia ser usado para mero prazer, sendo conside-
rado por teólogos medievais pecado mortal. Práticas homossexuais, masturbação e
prostituição também eram condenadas. (RICHARDS, 1993, p.34). Em tudo isso o
papel da mulher ainda continuava o mesmo: as mulheres eram herdeiras do pecado
inicial de Eva, que culminaram na expulsão do homem do Paraíso. Então, sobre a
mulher reinava o pecado, por conta de seu caráter maligno intrínseco, a mulher
era um ser o qual precisava ser disciplinado. As mulheres eram minoria na Idade
Média, de acordo com o que pudemos perceber em (RICHARDS, 1993, p.36) se
equivaliam às prostitutas, aos leprosos e homossexuais.
As mulheres viveram e vivem cercadas de preconceitos. No passado a mulher
era aquela que deveria ficar em casa, cuidar do marido, dos filhos e da casa. O ho-
mem era o provedor, o que deveria trabalhar e trazer o sustendo da família. Apesar
de estarem em uma posição sendo um ser inferior ao homem, não impediu o inte-
resse dos homens acerca dos mistérios, tais como o ciclo menstrual e as mudanças
para gestar uma nova vida. Dado esses elementos, podemos notar que o homem,
com o passar dos anos imbuiu a mulher de sobrenaturalidade.
Desta forma, cria-se a imagem de um ser responsável pela decadência do
homem, desde o paraíso quando Eva fora persuadida pelo Diabo para cometer o
pecado, incitando assim a ligação da mulher com seres das trevas. Vemos que o
espaço ocupado pelo ser feminino é descrito como a mulher sendo o ser que seduz
e o ser possuidor de diversos mistérios tal qual a gestação, o período menstrual e as
prostitutas como sendo seres marginalizados responsáveis pela sedução e os envol-
vimentos extraconjugais dos homens.

O Carro da Semana Santa


O conto “O Carro da Semana Santa” nos apresenta uma festividade religiosa,
na qual coisas misteriosas acontecem. A festividade celebrada pela Igreja Católica,
nesta ocasião é a Semana Santa, o lugar onde se passa a narrativa é a cidade do Rio
de Janeiro, à época a capital federal do Brasil. O jovem narrador dá início ao conto
apresentando a atmosfera vivida naquele momento, como as pessoas e comércio se
comportavam durante a festividade da Semana Santa.

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Estudos Literários

Na ocasião, o narrador em primeira pessoa revela a quão profana os jovens


acabavam tornando a festividade. O ambiente explanado pelo próprio narrador era
insólito e cheio de pessoas embriagadas, na chamada quinta-feira santa, segundo
o narrador a cidade se enchia de luxúria e maus instintos. Os rapazes passavam
a beber, a desejar as mulheres e a dar as suas investidas; desta forma ele também
explicita o tom orgíaco encontrado em festividades religiosas. Como podemos ver
no trecho a seguir:

Tomávamos uma mistura repugnante de alcooes variados e tínhamos vindo


cançados de dar encontrões na última igreja. A quinta-feira santa dissolve-
ra na cidade a impalpável essência da luxuria e dos máusinstinctos. Quanta
coisa de profano, de sacrilego, d’horrível haviamos visto no redemoinhar da
turba pela nave dos templos? (RIO, 1910, p. 258).

E completa:

Fúfias dos bairros sórdidos esmolando com a opa das irmandades para o Se-
nhor Morto, bandos de rapazes estabelecendo o arrocho junto do altar-mór
para beliscar as nadegas das raparigas, adolescentes do commercio com os
olhos injetados roçando-se silenciosamente entre as mulheres, e mulheres,
muitas mulheres, raparigas vestidas de branco de azul, de cores vivas, ma-
tronas de luto fechado, pretas quasi apagadas em pannos negros, mestiças
cheirando a ether floral, com gargalhadinhas agudas, o olhar ardente, todas
como que picadas pela tarantula do desejo. (RIO, 1910, p. 258).

Cercado de mistérios, esta semana tão cultuada pelos moradores e religiosos


acabava destacando-se entre os homens pelo carro que ano após ano, ainda aparecia
nesta ocasião. O carro comentado pelos jovens fazia uma verdadeira peregrinação,
de igreja a igreja, procurando apenas mais um de seus alvos. Segundo a tradição re-
ligiosa, durante a semana santa o corpo deve se abster de carne e os prazeres carnais
devem ser evitados.
O narrador conta uma experiência, em quedescreve como surgiu a dúvida,
sobre o que ocorria com o carro, que fazia questão de perambular nos locais da
festividade santa. No trecho a seguir, temos uma das várias observações feitas pelo
narrador do misterioso carro, e seu cortejo pelas ruas e igrejas da cidade.

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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Quando, porém, ia chegando ao Arsenal, lá dei com o carro outra vez, vasto
como um quarto, com o cocheiro impassível e os stores vermelhos. A sombra
cobria a calçada; no céo andava a Lua num estendal d’oiro pallido. Que esqui-
sito peregrinar! que estranha peregrinação! Abriguei-me no desvão de uma
porta. Passaram-se dez minutos assim, e era impossível apagar a anciedade
dos meus nervos para descobrir o enigma. A berlinda parecia tremer a capota
empoeirada sob o sudario do luar. Depois, rodou devagar, como se tivesse
uma alma e estivesse a disfarçar uma acção feia. (RIO, 1910, p. 264).

Ao tentar descobrir o que acontecia dentro do carro, o narrador viu-se per-


guntando ao cocheiro e até oferecendo dinheiro, mas o cocheiro revelou-se ser bem
pago para não deixar que ninguém soubesse o que ocorria dentro do carro. Obser-
vando de longe, acabou vendo que um homem descia do carro misterioso, o jovem o
perseguiu até conseguir descobrir o que de fato acontecia dentro daquele ambiente.
Para sua surpresa, vários rapazes da cidade sabiam e já haviam estado com
a mulher que se encontrava no interior do carro, apesar de nenhum saber de fato a
sua aparência, devido à pouca luz. Todos os rapazes revelaram que o desejo profano
mostrado pela mulher que pagava para estar com eles. Ela passava toda a semana es-
colhendo nas ruas os diversos homens, que mais tarde tornavam-se seus parceiros.

Espantoso. Já ouvi dizer que é uma mulher com bexigas, outr’ora bela. Um
dos convidados conseguiu, disse-me, ver-lhe a cara através do véu. Conta que
é queimada. Mas não. Outros asseguram que tem pustulas. É a lenda. A opi-
nião geral é mesmo a de ser uma formosa senhora de alta posição. Não! não
é nada d’isso. É apenas o horrivel vicio que se não vê, a luxuria exasperada...
(RIO, 1910, p. 268).

A mulher do conto de João do Rio, dispunha de aparência que era totalmente


desconhecida por todos, porém era famosa entre os homens, pela luxúria que era
mostrada pela mulher ao procurar por desconhecidos na rua. Esta mulher que pos-
sivelmente era uma senhora de alta classe, que subverte as recomendações da igreja,
mantendo relações com desconhecidos. Nas ações realizadas por esta mulher, no-
sexpõe os mistérios de suas ações, todas ocorridas durante a festividade religiosa,
considerada santa pelos seguidores do catolicismo.

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Estudos Literários

A mulher desconhecida, como mencionado pelos jovens, pode ser que


apresente traços de doenças contraídas de sua promiscuidade e perversão sexual.
Devido ao fato de ser uma mulher que mantinha relações sexuais com diversos
homens, o preconceito começa a surgir. Assim como vimos no trecho anterior,
onde homens começam a desconfiar da plena saúde da mulher, a qual alguns deles
já haviam se relacionado.
No diálogo e no imaginário dos jovens que apenas observavam a ocasião,
prevalecia a curiosidade. Ninguém sabia sobre a aparência, o nome, o estado civil
ou a classe social da dama, que se encontrava dentro do carro. Somente o que havia
eram especulações, uns falavam da aparência feia, alguns destacavam problemas
advindos de uma vida sexual lasciva. Porém, tudo o que era falado, eram tão-so-
mente especulações, pois ninguém sabia realmente que era a dama. Ela é uma per-
sonagem cujaforça deriva de sua não aparição, visto que o único contato que temos
é com os jovens que já estiveram com ela, dentro do carro.
Diante da postura feminina no conto de João do Rio, temos uma autora que
contribui para nossa pesquisa. A autora da obra O Corpo do Diabo Entre a Cruz e a
Caldeirinha, Silvia Aleixim Nunes colabora explicitando acerca da dupla moral que
os homens são beneficiários, o que lhes permite uma parcela de liberdade sexual e
tolera aos homens que escapam de exigências extremas (NUNES, 2000, p.136-142).
Da mesma forma, a autora corrobora a circunstância: “Para a mulher, no entanto,
a situação seria mais difícil de ser resolvida, já que sobre ela recaem as maiores exi-
gências e essa dupla moral não lhe é concedida.” (NUNES, 2000, p.138).
Neste conto, podemos ver a forma que a sexualidade feminina é encarada,
enquanto o homem pode estar com diversas companheiras, sem que seja julgado
por tal atitude. Se observarmos o fato de a personagem ser uma mulher, que obvia-
mente dispunha de um poder aquisitivo relativamente alto e procurava sua diversão
nas ruas. Sem contar no contexto, que era uma festividade santa, aos olhos da Igreja.
Ao procurar os rapazes nos locais de celebração, esta personagem estava as-
sim desafiando os rapazes e ainda provocando os que ali estavam celebrando esta
festividade santa. A postura devassa adotada por ela, vai a desrespeito à crença das
pessoas ali presente, e contra os costumes adotados pelos fiéis nesta época do ano
nos mostra que esta mulher subverte os princípios católicos e está unicamente a
favor de seus desejos e transformando sua comemoração em algo profano.

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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

— Tudo na vida é luxúria. Sentir é gozar, gozar é sentir até ao espasmo. Nós
todos vivemos na alucinação de gozar, de fundir desejos, na raiva de possuir.
É uma doença? Talvez. Mas é também verdade. Basta que vejamos o povo pa-
ra ver o scio que ruge, um scio vago, impalpavel, exasperante. Um deus morto
é a convulsão, é como um signal de porneia. (RIO, 1910, p. 259).

O carro usado pela mulher à procura de homens para que seus desejos sejam
saciados é também o local que ela usa para manter relações com os rapazes. Naquela
época, carro era exclusivamente para pessoas de alta classe. Sendo assim, podemos
tomar por conhecimento que a dama pertencia à alta sociedade da época.
O espaço neste conto é caracterizado pelo ambiente urbano das igrejas, as
ruas e, sobretudo o mais importante que era o carro usado pela personagem femi-
nina. Depois de escolher o rapaz que lhe mais agradava, a personagem recebia estes
rapazes em seu próprio automóvel. O local era onde ocorria tudo aquilo que era
condenado pela igreja naqueles dias.

A Queda da Casa de Usher


No conto de Edgar Allan Poe, publicado no ano de 1839, o cenário é narrado
em primeira pessoa pelo amigo de Roderick Usher, cujo nome não nos é revelado.
O cenário descrito e que dá nome ao título é a casa onde vive o personagem Rode-
rick Usher e sua irmã gêmea, um local melancólico como descreve o narrador:

Ao longo de todo um dia indolente, escuro e silencioso na estação do outono,


em que nuvens ameaçadoras pairavam baixo no céu, eu atravessara, a cavalo,
um panorama de singular desolação; e por fim divisei ao longe, enquanto
as sombras vespertinas insinuavam-se, toda a melancolia da Casa de Usher.
(POE, 2010, p. 107)

Uma casa antiga, cujo a estrutura já está bastante decadente devido ao tem-
po, assim refletindo também a saúde e linhagem de seus habitantes. A família já
estava em seu fim, pois os únicos da linhagem dos Usher ainda vivos eram Roderick
Usher e sua irmã gêmea Lady Madeline. Os dois viviam juntos, numa casa onde

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Estudos Literários

uma rachadura de estendia do chão ao teto. A rachadura, que condenava a casa dos
Usher, e podia ser vista do lado de fora, assim diz o narrador.
O ambiente sobrenatural descrito pelo narrador faz uma conexão com o mo-
mento ao qual o personagem Usher está vivendo. O dono da casa (ou solar em algu-
mas traduções), está passando por um momento, em que não consegue sair de sua
casa, ver a claridade ou ouvir som muito alto. Lady Madeline, por sua vez, também
tem uma saúde debilitada, a jovem que vagamente aparece ou é citada no conto. Sua
ausência no ambiente da casa é notada pelo amigo de Roderick Usher. Mas o irmão
de Lady Madeline defende, que a ausência deve ser um comportamento normal de
sua irmã.
Em algumas pesquisas, tal como a de (VIEIRA, 2009) podemos observar que
é recorrente os estudiosos apontarem haver entre Roderick Usher e sua irmã Lady
Madeline um relacionamento incestuoso e a decadência de sua linhagem se deve
ao tal ato e estilo de vida levado pela família. Como explicita Vieira em seu artigo:

O incesto é um dos mais antigos tabus da humanidade e nele seria possível


buscar uma explicação para o isolamento dos personagens, para a luta inte-
rior que o narrador descobrira no amigo Roderick, quando afirma: “Havia
momentos, contudo, em que eu pensava que seu espírito, incessantemente
agitado, se achava em luta com algum segredo opressor, que ele não tinha
coragem de divulgar... (VIEIRA, 2009, p. 143)

Devido ao incesto, prática condenada na cultura ocidental no geral, que pro-


vavelmente também fora cometida por antepassados dos Usher, levou ao declínio
toda a linhagem anterior aos irmãos. Não podemos afirmar, de que o incesto era
algo que ocorria entre os irmãos, mas podemos constatar que a prática era comum
à época, e que era praticada pela descendência dos Usher, antes mesmo de Roderick
e Madeline. Vemos que o autor insinuou a possibilidade da prática incestuosa aco-
metida pelos irmãos, no seguinte trecho:

Eu conhecia, também, o fato, muito digno de nota que do tronco da família


Usher, apesar de sua nobre antiguidade, jamais brotara, em qualquer época,
um ramo duradouro; em outras palavras, a família inteira só se perpetuava

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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

por descendência direta e assim permanecera sempre, com variações muito


efêmeras e sem importância. (POE, 2010, p. 109).

Durante a estadia do narrador na casa dos Usher, pode notar a quão debilita-
da estava à saúde de seu amigo Roderick. Porém, misteriosamente acontece a morte
da frágil jovem Lady Madeline, e logo, seguida de um estranho pedido de Roderick,
para que seu amigo ajudasse a enterrá-la na parte inferior da casa. O amigo dos
Usher acredita que o pedido é totalmente estranho, porém Roderick explicou que
este caso poderia atrair olhares de muitos médicos e da distância da residência que
se encontrava o jazigo da família.
O narrador e amigo, acaba acatando o pedido, mesmo percebendo o rubor
na face e seio da jovem decide, mesmo que temporariamente, sepultar o corpo da
jovem irmã de Usher. Ao final do conto, Roderick Usher confirma que a morte de
sua irmã, era na verdade manifestação da doença da qual a jovem sofria. A doença
que Lady Madeleine sofria era a catalepsia, uma doença rara que causa desmaios, é
usada em seus contos para refletir o que a sociedade temia na época. Temia-se que
ocorresse enterros de pessoas vivas.
Este medo/fobia de ser enterrado vivo é chamado de tafofobia, que é uma
neurose que se caracteriza exatamente por este medo. No trecho a seguir, nos mos-
tra como se dá a tafofobia nos dias de hoje.

Tafofobia, significa o medo de ser enterrado vivo, tendo classicamente deter-


minando a necessidade da confirmação da morte do indivíduo. Esse medo
atávico, o mito do enterrado vivo, estará na base da desconfiança que ainda
hoje se mantêm em relação aos métodos utilizados na determinação da mor-
te cerebral e aos conceitos subjacentes, surgindo assim o mito do dador vivo.
(PITA; CARMONA, p. 71, 2004)

Esta neurose era muito comum no passado e ainda era alimentada por diver-
sos relatos e contos. Um dos apoios que esta neurose tinha era o autor Edgar Allan
Poe, que em seus contos é recorrente a referência de pessoas enterradas vivas.
Após ajudá-lo a enterrar o corpo da jovem Lady Madeline. O narrador conta
que depois de algum tempo, passa a ouvir estranhos barulhos vindos do local; ba-

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Estudos Literários

rulhos como: gritos abafados e bramidos selvagens, que cada vez mais passam a ser
ainda mais constante. O narrador passa a temer o ocorrido com a irmã de Roderick.
Em uma noite de tempestade, começa a ler para Roderick, seu livro preferi-
do. Durante a leitura Roderick passou a confessar um crime, o crime que ele havia
cometido ao enterrar a própria irmã viva. Ao ouvir as palavras de Roderick, junta-
mente com passos em direção ao quarto, o narrador passou a ter medo. Ao abrir a
porta do local onde estavam, a imagem de Lady Madeline se figurava. Os irmãos
começaram uma luta corporal e caíram com eles a casa e sua enorme e misteriosa
rachadura desmoronam, não mencionado no conto, porém foi perceptível que os
irmão não sobreviveram. Sendo assim, o fim da linhagem dos Usher.

Os mantos brancos estavam maculados pelo sangue, e toda sua figura lívida
ostentava os sinais da amaríssima batalha. Por um momento ela ficou tre-
mendo e cambaleando de um lado para o outro no limiar da porta; logo, com
um urro grave, caiu sobre a figura do irmão e, nos últimos frêmitos da morte
agonizante, derrubou-o já sem vida ao chão, vítima dos terrores que havia
previsto. (POE, 2008, p. 134).

Após confessar que a enterrou viva, Ruderick Usher e a irmã Lady Madeline,
a moça ainda coberta por talas brancas, maculadas por sangue, cai o irmão. Os dois
irmãos desabam mortos como se numa briga. Assim refletindo ainda sobre os do-
nos da casa, a casa desmorona junto com os proprietários, deixando assim o lugar
onde residiam em ruinas.
O local onde viviam, era a casa de Usher. A casa, onde podemos encontrar
Ruderick Usher e Lady Madeline é de suma importância no conto está presente no
título do mesmo. Dentro de teorias sobre a casa podemos ver que a casa reflete e
muito as atitudes do dono, e neste caso, dos donos.

Casa: Na simbologia de arquitetura, por outro lado, a casa leva não só uma
simbologia global, mas também associações específicas associadas a cada um
dos seus componentes. No entanto, a casa como uma casa desperta associa-
ções fortes, espontâneas com o corpo humano e o pensamento humano (ou a
vida, em outras palavras), como foi confirmado empiricamente por psicana-
listas (CIRLOT, 2001, p. 153, tradução nossa).

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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

Como podemos observar no trecho da obra Dictionary of Symbols, de J. E.


Cirlot, o autor define o simbolismo da casa na literatura, e notamos que ele diz que
a casa não tem uma simbologia para o espaço em si, mas sim significados para cada
um daquilo que compõe a casa. E o autor ainda completa, dizendo no trecho a seguir.

A parte externa da casa significa a aparência do homem: a sua personalidade


ou sua máscara. Os vários andares estão relacionados com os símbolos ver-
ticais e espaciais. (...) Os quartos intercomunicantes falam por si. As escadas
são o elo entre os vários planos da psique, mas o seu significado particular
depende se eles são vistos como ascendente ou descendente. Finalmente, co-
mo já dissemos a associação da casa com o corpo humano, especialmente em
relação às suas aberturas. (CIRLOT, 2001, p. 153, tradução nossa).

Neste trecho podemos ver que, a casa dos Usher está ligada exatamente aos
personagens, refletindo a conduta e a saúde dos habitantes do local. Quanto à aber-
tura que divide a casa ao meio, rachadura esta que pode ser notada de fora da casa
pelo narrador. Encontramos também, a definição para tal fenda, disponível no mes-
mo dicionário de símbolos.

Fratura: Em geral, qualquer estado da matéria ou de forma carrega um sim-


bolismo literal que se limita a transpor para o mundo mental, espiritual ou
psíquica correspondente fenômeno físico. Pode-se veruma clara ilustração
aqui do paralelo entre os dois reinos do visível e do invisível. Naturalmente,
o simbólico significado do objeto seja ampliado em conseqüência. A fratura
pode chegar à fase de destruição absoluta quando se torna simbólica de ruína
espiritual ou morte, como no caso de A Queda da Casa de Usher por Poe.
(CIRLOT, 2001, p. 114, tradução nossa).

Conclusão e considerações finais


Podemos notar que nos contos estudados há o que buscamos e chamamos
pontos de contato, porém a similaridade dos contos fica tão somente em um narra-
dor personagem, que narra e participa da história. Temos duas personagens prin-
cipais distintas, não tem participação com diálogos, descritas como uma presença

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Estudos Literários

ausente, porém são de suma importância para o enredo dos contos. As mulheres
presentes nos dois contos, apresentam uma postura inofensiva, porém ambas dis-
põem de uma beleza fatal que causa a decadência nos contos, para os homens dos
contos e na vida dos seus amantes. Sob o ser do sexo feminino vem a culpa, que a
causa da decadência dos homens com os quais elas convivem, é a causadora de todo
o mal e declínio dos indivíduos do sexo masculino que com elas se encontram.
Por fim, as duas histórias têm um espaço bem delimitado, uma o carro e a
outra a casa, em que ambos os personagens desafiam o defendido pela Igreja Católi-
ca Medieval, uma a postura profana e luxúria apresentada, em relação à festividade.
No conto os irmãos desafiam mantendo uma relação incestuosa, além do fato, que
o irmão enterrou a própria irmã ainda viva.

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CARNEIRO, Cristina Helena. Bruxas e Feiticeiras em Novelas de Cavalaria do Ciclo
Arturiano: O Reverso Da Figura Feminina?:A Família E A Mulher. Dissertação.
Universidade Estadual De Maringá Centro De Ciências Humanas, Letras E Artes
Mestrado Em Letras. Maringá, 2006.
CIRLOT, J. E. A Dictionary of Symbols. London: Routledge, 2001.
CONGRESSO INTERNACIONAL PARA SEMPRE POE, 2009. Belo Horizonte. Anais...
Belo Horizonte: UFMG, 2009. p. 142-148.
DOTTIN-ORSINI, Mireille. A mulher que eles chamavam fatal: textos e imagens da
misoginia fin-de-siècle. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.
HESÍODO, Teogonia, Trad. e Introdução por JAA Torrano. São Paulo: Iluminuras, 1995.
HURWITZ, Siegmund. Lilith: a primeira Eva. São Paulo: Fonte editorial, 2006.
MACEDO, José Rivair. A Mulher na Idade Média. São Paulo: Contexto, 1999. p. 41-90.
NUNES, Silvia Alexim. O corpo do diabo entre a cruz e a caldeirinha: Um estudo sobre
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PITA, Fernando; CARMONA, Cátia. “Morte Cerebral – Do medo de ser enterrado vivo
ao mito do doador vivo”. Acta Médica Portuguesa, vol, 17, 2004, p. 70-75.

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LÍNGUA(GEM) E MULTICULTURALISMO

POE, Edgar Allan. A Queda da Casa de Usher. In: O gato preto e outros contos. São Paulo:
Hedra, 2008. p. 107-135.
RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danação: as minorias na Idade média. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 1993.
RIO, João do. O Carro da Semana Santa. In: Dentro da Noite. Rio de Janeiro, Paris:
Garnier. 1910. p 256-268.
SHARKEY, John. Mistérios Celtas. Madrid: Del Prado, 1997.

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IV Simpósio Internacional de Letras e Linguística
(SINALEL), evento promovido pela Unidade Aca-
dêmica Especial de Letras e Linguística (UAELL) e
pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos da
Linguagem (PPGEL), da Universidade Federal de
Goiás/Regional Catalão (UFG/RC), teve como te-
ma “Língua(gem) e Multiculturalismo”. Nesse senti-
do, mostra-se urgente refletir sobre a multiplicidade
cultural nos mais diversos objetos histórico-sociais,
dentre os quais os linguísticos e literários, e a sua in-
fluência sobre a construção identitária dos sujeitos,
em sua íntima relação com a memória, em tempos
de um evidente esfacelamento do Estado democrá-
tico e do crescente desprezo pelas humanidades no
cenário nacional.

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