Laval, Christian. Intro PDF
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CHRISTIAN LAVAL
A Escola não é
uma empresa
o neo -liberalismo em ataque
ao-ensino público
64655
1~9 6.Ç,J.g
editora
DEDALUS-AceNo-FE PLANTA
IIIIUIDIIII .Ir
INTRODUÇÃO
IX
Introdução
A ESCOLA NÃO É UMA EMPRESA
Quanto ao aspecto educativo em si mesmo, ele se tornou mais A vertente neoliheral da escola
difícil devido às transformações sociais e culturais maiores: com a
O primeiro objetivo dessa obra consiste em trazer à luz a nova
extinção progressiva da reprodução direta dos ofícios e dos lugares
ordem escolar que tende a se impor tanto pelas reformas sucessivas
nas famílias até o peso, cada vez mais decisivo, da indústria da mídia
quanto pelos discursos dominantes; tende a fazer aparecer a lógica
na socialização infantil e adolescente, passando pela incerteza
que subentende as mudanças profundas do ensino. Sem dúvida já são
crescente quanto à validade dos princípios normativos herdados,
conhecidos alguns dos elementos desse novo modelo e percebe-se
assiste-se a um profundo questionamento das relações de transmissão
melhor, graças a trabalhos cada vez mais numerosos, as tendências
entre gerações.
sociais, culturais, políticas e econômicas que dobraram o sistema
O discurso mais corrente sustenta que o conjunto dessas
escolarl. Mas, não se vê sempre muito bem o quadro na sua
tendências e desses sintomas reclama uma "reforma" necessária da
totalidade, com suas coerências e suas incoerências. É o que nós
escola, panacéia, ao mesmo tempo que fórmula mágica, que faz
tentamos fazer aqui, juntando as peças de um quebra-cabeças. Para
geralmente papel de reflexão. Mas, uma "reforma" para construir que
se ater a algumas figuras do discurso dominante, nós devemos nos
tipo de escola e uma escola destinada a que tipo de sociedade? As
perguntar quais relações têm umas com as outras as imagens da
propostas atuais mais estereotipadas sobre a "reforma" não
criança-rei, da empresa divinizada, do gerenciamento educativo, do
constituem mais uma etapa no caminho da transformação social,
estabelecimento descentralizado, do pedagogo não diretivo, do
mas um elemento imposto apenas pela preocupação gestionária de
avaliador científico, da família consumidora. Essas relações são
colmatagem imediata ou ainda objeto de um estranho culto da
pouco visíveis à primeira vista. A construção dessas figuras, suas
"inovação" por ela mesma, separada de toda aposta política clara. No
lógicas e seus argumentos são diversos. Relacionando, entretanto,
entanto, é preciso se esforçar para ultrapassar as críticas da
algumas das principais evoluções desses últimos vinte anos, quer se
bricolagem inovadora e da reforma incessante e se colocar a seguinte
trate da lógica gerencial, do consumismo escolar ou das pedagogias
questão: na série de medidas e contramedidas que afetam a ordem
de inspiração individualista, relacionando-as tanto às
escolar, nos relatórios oficiais que estabelecem os diagnósticos da
transformações econômicas quanto às mutações culturais que
crise, na opinião dos administradores e dos governantes, não haveria
afetaram as sociedades de mercado, é possível perceber por que e
uma certa idéia da escola, um modelo novo de educação que,
como a instituição escolar se adapta sempre mais ao conceito de
conscientemente ou não, os atuais promotores da reforma tendem a
escola neoliberal, cuja configuração geral nós queremos aqui traçar.
traduzir nos fatos, fazendo aparecer uma certa ideologia para a
A escola neoliberal designa um certo modelo escolar que
fatalidade e fazendo de uma certa concepção uma realidade que eles
considera a educação como um bem essencialmente privado e cujo
queriam que fosse "incontornável"? Nós mantemos aqui que uma das
valor é, antes de tudo, econômico. Não é a sociedade que garante a
principais transformações que afetaram o campo educativo nesses
últimos decênios - mas se encontraria também essa mutação em
outros campos sociais - é a monopolização progressiva pela ideologia 1. Cf. em particular os trabalhos pioneiros de Nico H1R1TT com Gerard de SÉLYS, Tableau noir, Résister à Ia
privatisation de l'enseignement, ErO, 8ruxelles, 1998. Les Nouveaux Maftres de l'école, ErO VO éditions,
neoliberal do discurso e da dinâmica reformadora. 8ruxelles, 2000; e L:École prosnruée, Éditions Labor, 8ruxelles, 2001. Cf. 19unlmeme as obras de Yves
CAREIL, De l'école publique à l'école liberale, sociologie d'un changemem, Presses universitaires de Rennes,
1998 e École libérale, école inégale, Nouveaux Regards/Sylle1JSe,Paris, 2002.
x Xl
A ESCOLA NÃO É UMA EM PRESA lntroduçdo
todos os seus membros um direito à cultura, são os indivíduos que a liberdade de circulação financeira, o sistema fiscal favorável às
devem capitalizar recursos privados cujo rendimento futuro será empresas, a fraqueza do direito social e dos sindicatos e o preço das
garantido pela sociedade. Essa privatização é um fenômeno que afeta matérias-primas, se tornou um "fator de atratividade" dos capitais
tanto o sentido do saber, as instituições transmissoras dos valores e cuja importância cresce nas estratégias "globais" das empresas e nas
dos conhecimentos quanto as próprias relações sociais. À afirmação políticas de adaptação dos governos. A esse título, ela se torna entre
da autonomia plena e inteira de indivíduos sem amarras, exceto outros um "indicador de cornpetitivídade" de um sistema econômico
aquelas que eles próprios querem reconhecer, correspondem e sociaP.
instituições que não parecem mais ter outra razão de ser que o As reformas liberais da educação são, portanto, duplamente
serviço dos interesses partículares-. Essa concepção instrumental e guiadas pelo papel crescente do saber na atividade econômica e pelas
liberal, acredita-se, está ligada a uma transformação muito mais geral restrições impostas pela competição sistemática das economias. As
das sociedades e das economias capitalistas. Mais precisamente, duas reformas que, em escala mundial, pressionam para a
tendências se misturam para fazer da escola um trunfo (aposta, descentralização, para a padronização dos métodos e dos conteúdos,
capital) maior de civilização e um lugar de muito fortes tensões. para o novo "gerenciamento" das escolas, para a "profissionalização"
Inicialmente, a acumulação de capital repousa cada vez mais dos professores, são fundamentalmente "competitivity-centred"4. A
nas capacidades de inovação e de formação de mão-de-obra, escola que antigamente encontrava seu centro de gravidade não
portanto em estruturas de elaboração, de canalização e de difusão somente no valor profissional mas também no valor social, cultural
dos saberes ainda amplamente a cargo de cada Estado nacional. Se a e político do saber, valor que era interpretado, de resto, de maneira
eficácia econômica supõe um domínio científico crescente e uma muito diferente segundo as correntes políticas e ideológicas, está
elevação do nível cultural da mão-de-obra, ao mesmo tempo, pelo orientada, pelas reformas em curso, para objetivos de
próprio fato da expansão da lógica da acumulação, o custo competitividade que prevalecem na economia globalizada. Deve-se
consentido pelos orçamentos públicos deve ser minimizado por uma medir bem a ruptura que se opera. A escola, na concepção
reorganização interna ou por uma transferência de encargos para as republicana, era o lugar que devia contrabalançar as tendências
dispersivas e anômicas de sociedades ocidentais cada vez mais
famílias. Sobretudo, a despesa educativa deve ser "rentável" para as
marcadas pela especialização profissional e a divergência de
empresas utilizadoras do "capital humano".
interesses particulares. Ela era principalmente voltada à formação do
A globalização das economias reforça e inflete essa primeira
cidadão, mais do que à satisfação do usuário, do cliente, do
tendência. A educação, da mesma forma que a estabilidade política,
consumidor. O que acontece, inversamente, assim que essa escola é
cada vez mais questionada pelas diferentes formas de privatização e
que ela se reduz a produzir um "capital humano" para manter a
2. A concepção eU,mi,ulI1te da educação tetn uma dupla eUmensão: é ao mesmo tempo ",duarista segunda a idé",
competitividade das economias regionais e nacionais?
de que ela ckl saber, e l.beral no modo de ()rgan.~ação da escola. Se a escola é um msrnnnento de bem-estar
econômico é porque o conhecimenw é visro como wna ferramenta CJue serve um interesse mdividual ou uma soma
de interesses úu1ividuais. A instituição escolar lXlTece s6 existir para [omecer às empresas o caPital humano que
essas necessitam. Mas é, de modo complementar, l.beral pelo lugar que ckl ao merenda educarivo. Se ° 3. Cf. Annie V1NOKUR, "Monaialisation du capital er reconfiguration des systêmes éd"catifs des espaces
conhecimento é IJrimeiramellle, mesmo essencialmente, um recurso privado que engendra Tendas mais importantes
dominés" Informariam er commenraires, nº 118, janejro~nUlrço 2002.
I
e proporciona [)osições sociais vantajosas, deduz-se facilmente que a relação educatwa deve ser regida por Ulna
relação do Cl/)() mercantil ou deve ao menos ImHar o modelo do mercado. 4. Marr", CARNOY, Mondwlisation e. réforme de I'éducatlon : ce que les planificare"" eU"vent saoorr. Unesco,
/999.
XII
XIII
Introduçdo
A ESCOLA NÃO É UMA EMPRESA
A concepção de educação que inspira hoje em dia as disparatadas. "A hipótese antecipa. Ela prolonga a tendência
reformas está longe de ser somente francesa, e ainda se tem muita fundamental do presente?", dizia Henri Lefebvre. Delinear o novo
tendência, quando é questão de educação, a só considerar os debates modelo de escola não significa, no entanto, que na escola de hoje, e
hexagonais. Não sem ter integrado certos traços propriamente especialmente na França, a doutrina liberal seja, desde já, triunfante.
nacionais, ela saiu em grande parte da grande onda neoliberal que Esse modelo, ao menos quando é exposto explicitamente, continua a
penetrou profundamente, desde os anos 1980, as representações e as ser recusado por numerosas pessoas refratárias à nova ideologia,
políticas nos países ocidentais. A "literatura cinza" composta por tanto na França como no mundo inteiro.
múltiplos relatórios oficiais e artigos de experts na França, deve ser Sob outro ponto de vista, seria muito simples pensar que
relacionada à abundante produção das organizações internacionais, todas as dificuldades da escola atual sejam devidas à aplicação dessas
"guardiãs da ortodoxia", se se quer perceber como a "reforma da reformas de inspiração liberal. Para ressaltar apenas alguns
escola" na França participa da nova ordem educativa mundial. Essa fenômenos mais importantes: o aumento dos efetivos do colégio, do
mutação da escola não é o produto de uma espécie de complô, mas liceu e da universidade é uma tendência antiga de nossas sociedades.
de uma constrição ainda mais eficaz uma vez que não há nem mesmo Se é possível pensar que ela desemboca hoje em uma massificação
diversas instâncias responsáveis que se poderiam facilmente mal pensada, mal preparada, muito pouco financiada, não é efeito de
identificar; que o processo é muito difuso e que tem múltiplas uma doutrina toda voltada para resultados programados. A falta de
alternâncias nacionais e internacionais, cujas relações não se vêem meios, a penúria dos professores, a sobrecarga das classes, se
à primeira vista; que ele segue vias muitas vezes técnicas e que ele se testemunham sem dúvida uma lógica de empobrecimento dos
cobre geralmente das melhores intenções "éticas". As organizações serviços públicos, relacionam-se igualmente a uma antiga tradição
internacionais (OMC, OCDE, Banco Mundial, FMI, Comissão das elites econômicas e políticas que, se pagando palavras generosas,
Européia) contribuem para essa constrição transformando as concedem mesquinhamente os meios financeiros quando se trata da
"constatações", as "avaliações", as "comparações" em muitas instituição de crianças das classes populares. Marc Bloch, tirando
ocasiões de fabricar um discurso global que tira sua força cada vez lições das derrotas de 1940, o ressaltava antigamente". Quanto à
mais de sua extensão planetária. Nesse plano, as organizações centralização burocrática que caracteriza a administração do estado,
internacionais, além de seu poderio financeiro, tendem a ter, cada ela engendra há muito tempo um espírito de casta, mantém o
vez mais, um papel de centralização política e de normalização desprezo das esferas superiores com relação a uma base julgada
simbólica considerável. Se as trocas entre sistemas escolares não são incapaz ou imóvel, um autoritarismo de chefe e um fetichismo do
novas, nunca havia sido tão claro que um modelo homogêneo podia regulamento e, no todo, uma iniciação geral dos administrados e dos
se tornar o horizonte comum dos sistemas educativos nacionais e que funcionários que pode tornar por vezes sedutoras certas soluções
seu poder de imposição viria justamente de seu caráter liberais extremas. Enfim, e talvez sobretudo, a escola é atravessada
mund íalíaado>. por uma contradição maior, longa mente exposta por numerosos
XIV XV
A ESCOLA NÃO É UMA EMPRESA Introduçclo
autores, entre as aspirações igualitárias de acordo com o imaginário Mutação ou destruição da escola?
de nossas sociedades e a divisão social em classes, contradição que
não se dá sem acelerar a imposição da concepção liberal da escola Nossa proposta pretende refutar a falaciosa oposição entre
que pretende sobrepujá-Ia e que na realidade a agrava. A força do imobilistas e renovadores. Pretende, igualmente, evitar as teses
novo modelo e a razão pela qual ele pouco a pouco se impõe, alarmistas e catastróficas, às vezes necessárias, mas que desmobilizam
referem-se precisamente à forma como o neoliberalismo se apresenta quando parecem significar que a boa velha escola republicana
à escola e ao resto da sociedade, como a solução ideal e universal a estando morta, "tudo está perdido". A escola coloca questões
todas as contradições e disfunções, enquanto na verdade esse complexas que não se saberia reduzir a itens simplistas ou a
remédio alimenta o mal que ele supostamente cura. Com a diagnósticos muito rápidos, sobretudo quando eles concluem um
imposição desse modelo liberal, a questão escolar não é mais pouco rapidamente, pela morte clínica. Se ela engaja o sentido da
somente o que se denomina "problema social", ela tende a se tornar vida individual e coletiva, se liga passado e futuro e mistura gerações,
uma questão de civilização. Em uma sociedade com poderes de a educação pública é também um campo de forças, um afrontamento
produção notáveis, o acesso universal à cultura escrita, letrada, de grupos e de interesses, uma luta contínua de representações e de
científica e técnica pela educação pública e instituições culturais, se lógicas. As relações de força não são nem essências nem fatalidades.
torna uma utopia irrealizável. No entanto, o que é possível não pode
A questão que nós gostaríamos de colocar nessa obra é sobre o
ser realizado por pelo menos duas razões associadas. A primeira
conteúdo e a dinâmica do modelo escolar que se impõe hoje em dia
refere-se à preeminência da acumulação de capital sobre qualquer
nas sociedades de mercado. Trata-se de adaptar melhor a escola à
outro fim consciente da sociedade. Realizar esse direito universal à
economia capitalista e à sociedade liberal, adaptação que colocaria
cultura suporia, com efeito, um financiamento público ampliado -
cada vez mais em perigo a autonomia da Instituição escolar mas que
sob a forma de imposto ou de cotizações sociais - que contradiria as
não a destruiria, ou bem a uma discussão sobre um caminho mais
políticas liberais de baixa das contribuições obrigatória, baixa que
firme em direção à destruição da escola como tal?
visa a aumentar a despesa privada e a estender a esfera mercantil em
Essa última tese foi proposta por Gilles Deleuze em uma
detrimento da esfera pública. Nesse contexto, o direito à educação
fórmula notável: "Tenta-se nos fazer crer em uma reforma da escola,
não pode se degradar em uma demanda social solvível que se
como uma liquidação."8 Segundo Deleuze, nós deixaríamos as
destinará sempre mais, e de modo muito desigual, a uma educação
sociedades de aprisionamento e de "recomeço" analisadas por
privada. O outro limite relaciona-se à pressão das solicitações
Michel Foucault, nas quais o indivíduo passa, sucessivamente, por
mercantis e de divertimentos audiovisuais que aprisionam o desejo
uma série de instituições descontínuas (família-escola-indústria-
subjetivo na gaiola estreita do interesse privado e do consumo. O
hospital) para entrar nas sociedades de controle total e permanente
livre uso da mercadoria se torna a forma social dominante do prazer
nas quais "não se acaba nunca com nada" e sobretudo não com um
dos sentidos e do espírito. Salvo quando se dispõe de uma célula
controle contínuo que assegura uma flexibilidade e uma
familiar muito protetora, os jovens são facilmente desencaminhados
pela "socíalízação-atomização'' mercantil das alegrias intelectuais e,
em decorrência, entram com mais dificuldade na cultura transmitida
pela escola. Na sociedade de mercado, o consumo ultrapassa a
8. Gil/es DELEUZE, enrrevisUl com Toni Negri, Futur Antérieur, n. /, primovera de /990, retomado em
transmissão. Pourpor/ers, Éditions de Minuit, Poris, /990, p. 237.
XVI XVII
A ESCOLA NÃO É UMA EMPRESA Introdução
disponibilidade ilimitada dos dominados. A análise das recentes resultados e de inovações. A instituição é considerada capaz de se
mutações escolares fornece, ver-se-a, argumentos sólidos à tese da transformar em uma "organização flexível".
desescolasiraçõo, cuja tendência é para uma pedagogização Desvalorização? Mesmo se a educação é mais do que nunca
generalizada das relações sociais. Não se está no "aprendizado ao reconhecida nos discursos oficiais como um fator essencial de
longo de toda a vida", fórmula doravante oficialmente admitida que progresso, só se pode constatar a erosão dos fundamentos e das
diz bem da dilatação da relação pedagógica? O desenvolvimento das finalidades de uma instituição até lá voltada à transmissão da cultura
tecnologias da informação e a individualização da relação com os e à reprodução dos quadros sociais e simbólicos da sociedade no seu
saberes, não são tantos sinais de um inevitável declínío da forma conjunto. Os objetivos que se podem dizer "clássicos" de
escolar? O universo dos conhecimentos e o dos bens e serviços emancipação política e de expansão pessoal que estavam fixados
parecem se confundir, a ponto de serem cada vez mais numerosos para a instituição escolar, são substituídos pelos imperativos
aqueles que não vêem mais a razão de ser da autonomia dos campos prioritários de eficácia produtiva e de inserção profissional. Assiste-
de saber nem a significação tanto intelectual quanto política da se, no plano da escola, à transmutação progressiva de todos os
separação entre o mundo escolar e o das empresas. Com a valores em um único valor econômico.
universalização da conexão mercantil dos indivíduos, parece Desintegração? A introdução de mecanismos de mercado no
chegada a época de um enfraquecimento das formas institucionais funcionamento da escola, através da promoção da "escolha das
que acompanharam a construção dos espaços públicos e dos Estados- famílias", quer dizer, de uma concepção consumidora da autonomia
nações. individual, pressiona a desintegração da instituição escolar. As
A despeito desses sinais mais importantes, deve-se, no diferentes formas de consumo educativo realizam, de modo
entanto, interrogar os limites dessa evolução em função de suas descentralizado e "leve", uma reprodução das desigualdades sociais
próprias conseqüências. Se ela responde bem a certas tendências, a segundo novas lógicas que não têm grande coisa a ver com a "escola
tese do declínio irreversível da instituição escolar não tem alguma única". O novo modelo de escola funciona com a "diversidade", a
coisa de ilusória e específica na visão dos imperativos funcionais da "diferenciação" em função dos públicos e das "demandas".
economia capitalista e das exigências de ordem social? Se nós ainda Essas tendências que conduzem a um novo modelo escolar
não estamos na liquidação brutal da forma escolar como tal, nós não são levadas a termo e nem todas as contradições que elas
assistimos seguramente a uma mutação da instituição escolar que se encerram eclodiram. Sem mesmo falar da resistência dos professores
pode associar a três tendências: uma desinstitucionalização, uma e dos usuários a escola, ao menos para o período presente, é marcada
desvalorização, e uma desintegração. Essas são inseparáveis das que por sua hibridação, mistura curiosa de certos aspectos próprios ao
tendem a uma recomposição de um novo modelo de escola. setor mercantil ("serviço à clientela", espírito "empreendedor",
Desinstitucionalização? A adaptabilidade às demandas e a financiamento privado) e certos modos de comando e de prescrição
fluidez nas respostas que se espera dessa escola, concebida doravante característicos de sistemas burocráticos mais restritivos. Por um lado,
como produtora de serviços, levam a uma liquefação progressiva da essa escola híbrida é, progressivamente, sujeita à lógica econômica
"instituição" como forma social caracterizada por sua estabilidade e da competitividade, tendo ação direta sobre o sistema de controle
sua autonomia relativa. Essa tendência está diretamente ligada ao SOcial visando a elevar o nível de produtividade das populações
modelo de escola como "empresa aprendiz", gerida segundo os ativas. Por esse lado, a escola que se delineia parece cada vez mais
princípios do novo gerenciamento e submetida à obrigação de com uma empresa "a serviço de interesses muito diversos e de uma
XVIII XIX
A ESCOLA NAo É UMA EMPRESA Introduçdo
ampla clientela" para retomar uma fórmula da OCDE, o que a Enfim, posto que se é rapidamente acusado de
conduziu a se diversificar segundo os mercados locais e as "demandas conservadorismo se não se adere com todo o entusiasmo necessário
sociais". Por outro lado, ela aparece como uma megamáquina social aos dogmas modernistas ou, ao contrário, de ser um liquidador da
comandada de cima por um "centro organizador" poderoso e escola republicana se se pensa que certas transformações seriam
diretivo, ele mesmo pilotado por estruturas internacionais e indispensáveis para melhor defender a vocação emancipadora da
intergovernamentais definindo de maneira muito uniforme os escola e tornar o acesso à cultura mais igual, é preciso dizer aqui que
"critérios de comparação", as "boas práticas" gerenciais e a chantagem à modernidade ou a recriminação de traição não
pedagógicas, os "bons conteúdos" correspondentes às competências deveriam mais estar nos debates e análises sobre a escola. Se nos
requeridas pelo mundo econômico. A escola francesa é, sob esse parece indispensável mudar muito a escola e, em certos pontos de
ponto de vista, um bom exemplo desse híbrido de mercado e de maneira radical, nos parece também necessário distinguir
burocracia que alguns tomam por uma evolução "moderna" da
cuidadosamente duas lógicas de transformação. Há uma que busca
instituição.
negar o que está no princípio da educação pública, a apropriação por
Para analisar as mutações da escola francesa em sua lógica de
todos de formas simbólicas e de conhecimentos necessários ao
conjunto, nós tentamos ultrapassar, tanto quanto possível, as
julgamento e ao raciocínio e que promete, no seu lugar, aprendizados
separações de abordagens, de métodos, de disciplinas: o curto termo
dóceis às empresas e voltados para a satisfação do interesse privado.
deve ser colocado em perspectiva histórica, porque o que acontece à
Quem mais é em nome da "igualdade de chances", instaura uma
escola tem raízes profundas; a dimensão nacional, que não pode ser
lógica mercantil que consolida e mesmo intensifica as desigualdades
eliminada em matéria de ensino, deve ser relativizada por
existentes. É nessa vertente que estamos hoje amplamente
comparações necessárias; a função econômica da escola, cada vez
enredados. Há uma outra transformação, toda contrária, que visaria
mais essencial no quadro do novo capitalismo, deve ser relacionada
a melhorar para o maior número de pessoas as condições de
com as mutações sociais, políticas e culturais; as determinações
assimilação e de aquisição dos conhecimentos indispensáveis a uma
econômicas e sociais externas são relacionadas com as evoluções
vida profissional, mas também, muito mais amplamente a uma vida
internas da instituição escolar de natureza organizacional,
intelectual, estética e social tão rica e variada quanto possível,
sociológica ou pedagógica e as restrições ideológicas devem sempre
segundo os ideais que a esquerda carregou muito tempo antes de os
ser relacionadas com as experiências dos indivíduos nas sociedades
esquecer, de escola emancipadora. Ideais que são traídos se a escola
de mercado em construção. Vale dizer que cada um desses aspectos
não é mais do que uma antecâmara de uma vida econômica e
teria merecido um desenvolvimento mais longo, que um livro geral
profissional muito desigual. É essa visão de universalização da
como esse proíbe. Nós procuramos aqui, articular três grandes
cultura que preside aqui a análise do modelo neoliberal da escola.
tendências que correspondem às três partes desse livro: o
envolvimento da escola no novo capitalismo, a introdução das Vale dizer que essa crítica, se é uma prévia, não substitui a
lógicas de mercado no campo educativo, as novas formas e poder construção de uma educação universal digna desse nome, obra
gerencial dentro da escola. Para dizer de outra maneira, na nova necessariamente coletiva.
ordem educativa que se delineia, o sistema educativo está a serviço
da competitividade econômica, está estruturado como um mercado,
deve ser gerido ao modo das empresas.
xx XXI