Petronilha
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africanidades e educação
A palavra é...
PETRONILHA BEATRIZ GONÇALVES E SILVA *
africanidades
valores, emoções, recursos intelectuais, tradições, criações. As africanidades são geradas por visões de mundo
Por isso, as civilizações podem florescer e extinguir-se, de raiz africana e as geram, também. Para conhecê-las,
mas as culturas, em novos contornos, persistem. estudá-las e compreendê-las é preciso atentar que: há
Antes de prosseguir, é importante salientar que o unidade, assim como há distinções, nas visões de
mundo africano, composto pelos povos e sociedades que mundo geradas no mundo africano; as visões de mundo
vivem no continente africano e também por aqueles que de raiz africana, recriadas sob diferentes condições de
constituem a diáspora na sua diversidade, contém as raí- existência, constituem o único fundamento capaz de
zes das africanidades. De acordo com Mkandawire viabilizar a libertação das desqualificações impingidas
(2005, p.4), a diáspora, tendo em conta suas peculiari- aos negros (CARRUTHERS, 1999, p.29). As diferentes
dades, é a maior fonte de conhecimentos sobre a África, culturas de raiz africana estão ligadas, formando uma
ou melhor, sobre a riqueza de capacidades e conheci- grande teia cujos fios são sustentados pela ancestralida-
mentos que os escravizados levaram consigo e geraram de e pela negritude.
em outros continentes, e que os atuais emigrantes africa- A ancestralidade está na base da história e das cul-
nos continuam levando e gerando. turas de raiz africana. Os ancestrais são os fundadores
Africanidades são, pois, manifestações histórico- dos diversos grupos humanos. Os ancestrais não somen-
culturais diretamente vinculadas a visões de mundo, te fundam comunidades, mas também lhes garantem a
enraizadas em jeitos de ser, viver, pensar e construir vida e a permanência nos tempos e espaços (SOUZA
existências próprias do mundo africano (WALKER, JR., 2004). Assim sendo, ainda que afrodescendentes
2004; SHUJAA e SILVA, 2005). nunca tenham posto os pés no continente de seus ante-
As africanidades contêm conhecimentos, signifi- passados, nem saibam de que povos são oriundos, como
cações que começaram a ser elaboradas no continente acontece com a maior parte dos negros brasileiros, a
antes da chegada dos colonizadores. Foram dolorosa- África para eles é muito mais do que uma idealização,
mente acrescidas durante a travessia do Atlântico forçada pois os ancestrais os mantêm em conexão com o conti-
aos escravizados, bem como no constrangimento desses nente-mãe, com o mundo africano.
seres humanos, reduzidos à condição de objetos, de A negritude, que também cria elos entre as africa-
semoventes. Foram e têm sido relidas na transferência de nidades esparsas pelo mundo, é fruto da experiência de
pensamentos e de tecnologias africanas para territórios descobrir-se negro, no confronto com os povos europeus
não africanos, refeitas nas lutas por reconhecimento e brancos, na desqualificação e opressão dos traficantes e
reparações, no combate ao racismo, na resistência contra senhores de escravizados, das sociedades que valorizam
o embranquecimento de mentes e corpos negros. suas raízes europeias e desprezam as demais, como ainda
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é, infelizmente, o caso da brasileira. O termo negritude É por meio do corpo físico que se manifesta a
foi criado, se fortaleceu e popularizou, chegando ao expressão do corpo inteiro, valendo-se dos gestos, pala-
Brasil, a partir do movimento político e artístico levado vras, posições, posturas para exibir o que a inteligência,
por estudantes negros em Paris, nos anos 1930, notada- os sentimentos e as emoções constroem.
mente por Léopold Senghor, do Senegal, Aimée Senghor diz que, por meio da emoção, o corpo
Cesáire, da Martinica, Leon Damas, da Guiana. “‘vive o imediato da consciência e reage”: dança. “Eu
Segundo Stanilas Adotevi (1972, p.253), a negritude danço, logo, sou”, afirma o poeta, mostrando que com
significa retomada de posse dos negros sobre si mes- seu corpo íntegro e inteiro os africanos expressam pensa-
mos, segurando nas mãos a história de seus povos, as mentos, emoções, conhecimentos (1964, p. 262). Para
suas identidades que os escravizadores e os colonizado- eles e para nós, afrodescendentes, as palavras são um dos
res tentaram suprimir. recursos expressivos, por isso dançar é maneira forte para
Negritude é o termo utilizado pelo movimento reivindicar em greves, saudar um falecido, agradecer um
negro brasileiro para salientar a ascendência africana, as apoio recebido, louvar a Deus, divertir-se.
heranças deixadas pelos escravizados, assim como para Senghor também ensina que se emocionar não
identificar os negros que admitem como proeminente e significa perder a objetividade, a clareza de raciocínio;
a sua ascendência africana e a valorizam. ao contrário, na perspectiva das raízes africanas, é
Para estudar africanidades é necessário abordá-las, “ascenção a um estado superior de conhecimento”. A
tendo presentes compreensões-chave de modos de ser e emoção é uma maneira de apreender o mundo. “É
viver que se enraízam em sabedoria africana. Além de conhecimento integral, pois o sujeito emocionado e o
ancestralidade e negritude, que já vimos, cabe destacar: que o emociona se unem numa síntese indissolúvel”
corpo, emoção, conhecimento. (1964, p.262-264).
O corpo negro na pele, no jeito de se expressar, Os conhecimentos, na perspectiva de raízes africa-
seguindo a matriz africana, explica Oliveira (2007), tem nas, são inferências, ideias derivadas da experiência vivi-
de ser compreendido “a partir dos três princípios funda- da e expressas em afirmações e proposições, em gingados
mentais da cosmovisão africana: diversidade, integração de corpos que dançam, em esculturas, desenhos, pintu-
e ancestralidade.” ras, tecelagens, entre outras formas de expressão. Dzobo
(1992) afirma que os conhecimentos são “chave para se
O corpo é diverso desde sua constituição biológica, viver em plenitude e satisfação”. Assim, continua ele, a
quanto em seus múltiplos significados culturais. É capacidade de compreender faz parte da natureza huma-
integração posto que é a condição de qualquer na, por isso “há que se estar sempre intelectualmente
relação e a base da interação dos seres e da interação alerta, para captar as coisas e seus significados”.
entre eles. É ancestral, pois o corpo é uma anteriori- Conhecer e compreender o ambiente em que se
dade. O corpo ao mesmo tempo é ancestralidade vive, as pessoas com quem se convive, apreender os sig-
como é por ela regido. Ancestralidade é a tradição, e nificados do mundo apontados pelos mais experientes,
não se pode entender o corpo sem tradição, uma vez faz parte, entre africanos e afrodescendentes, do processo
que esta é um baluarte de signos, que significam os para se tornar uma pessoa forte e capaz de fortalecer sua
corpos (p.100). comunidade (SILVA, 1996 e 2005). Do ponto de vista
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E as histórias? Assim como os provérbios, elas religiosas – transportadas pelos escravizados, em seus cor-
visam ajudar cada um a compreender a condição de mu- pos, saberes, sentimentos, espiritualidade, durante quatro
lher e de homem, a conduzir a vida, conviver, a respeitar séculos, como pelas recriações dessas heranças e pela cons-
os mais velhos na sua experiência. Por exemplo, Mãe Stella tituição de novas formas para o ser, viver, conhecer.
de Oxossi, conforme está registrado no livro Expressões de Como e onde identificar africanidades, se, no
Sabedoria – educação, vida, saberes (PRETTO e SERPA, Brasil, tentaram convencer os descendentes de africanos
2002, p. 30), ensina sobre o destino das pessoas, contando que as suas raízes haviam sido esquecidas? Que a sua his-
uma história. Diz ela que antes de nascermos, somos leva- tória se confundia e havia sido perdida na história dos
dos a escolher o nosso Ori. Ori, esclarece, é “cérebro, é escravizadores e dos descendentes destes? Que as suas
espiritual”. Essa escolha “explica a diferença de tempera- manifestações culturais, religiosas seriam exóticas e
mento e sina de cada indivíduo”. O destino escolhido por menos valiosas do que as oriundas do continente euro-
cada um não muda, mas pode ser lapidado, “podemos e peu, embora sejam usadas entre representações do que se
devemos melhorá-lo, é nossa obrigação”. pretende seja a identidade do povo brasileiro?
As histórias também servem para conhecer a his- Para identificar, conhecer e compreender africani-
tória dos antepassados, com ela aprender sobre negros, dades há que conviver com pessoas negras que reconhe-
não negros, sobre as relações étnico-raciais. Com este cem seu pertencimento étnico-racial enraizado na
objetivo o Jayme (SILVA, 2005) reuniu fotografias e África, há que frequentar territórios negros, há que bus-
escreveu narrativas, como a que segue, sobre o antigo car obras de autores e de outros profissionais negros.
bairro Colônia Africana, na capital gaúcha, Porto Alegre: Citando apenas alguns, cabe mencionar na litera-
tura, contistas, novelistas como os do Quilomboje,
A Colônia Africana era povoada por escravos libertos grupo literário criado há 30 anos em São Paulo, por
e por seus descendentes. (...) Mais alemães e italianos intelectuais negros; na História, Beatriz Nascimento,
que ali se estabeleceram com casas de negócios e ofi- Joel Rufino; na Sociologia, Guerreiro Ramos, Clóvis
cinas mecânicas, serralherias. (...) Com a construção Moura; no teatro, Abdias do Nascimento, Theresa
da Paróquia da Piedade, o bairro começou a evoluir. Santos, Ruth de Souza, Lázaro Ramos; na Geografia,
Foram fundadas sociedades bailantes e futibolistas, Milton Santos, Renato Emerson N. dos Santos; nas
como a sociedade Rui Barbosa que era dos descen- artes plásticas, Emmanuel Araújo, Ieda; na música, Luís
dentes de italianos. Naquele tempo estas sociedades Álvares Pinto (1719-1789), Pixinguinha; na dança,
não aceitavam os negros. Por esse motivo os negros Mercedes Baptista, Inaicyra F. dos Santos; na Educação,
criaram as suas sociedades,(...) nas quais se realiza- Antonieta de Barros, Domingas Gonçalves; nas enge-
vam seus encontros festivos,principalmente de músi- nharias, André Rebouças, Edson Moreira; no Direito,
ca, onde se formaram vários maestros. No futebol a Luiz Gama, ministro Joaquim Benedito Barbosa
Colônia Africana foi um celeiro de craques, tanto Gomes; na saúde, Dr. Panatieri de Rio Pardo/RS, Dr.
brancos como negros. Luis Eduardo Barbosa, de São Paulo. Há que frequentar
territórios negros, como quilombos rurais e urbanos,
As africanidades brasileiras são formadas tanto pelas rodas de samba, rodas de poetas negros, museus como o
heranças – conhecimentos, valores, tecnologias, tradições Museu Afro-Brasil em São Paulo, exposições de africani-
dades, sítios eletrônicos. Há que buscar eventos, debates, conhecer e compreender os trabalhos e a criatividade dos
exposições promovidas por entidades do movimento africanos e de seus descendentes no Brasil e de situar tais
negro, por núcleos de estudos afro-brasileiros, por órgãos produções na construção da nação brasileira.
de estado responsáveis pela promoção da igualdade racial. As africanidades fortalecem o pertencimento étni-
As africanidades brasileiras vêm sendo elaboradas co-racial dos negros e também dos não-negros, lhes dão
à medida que os africanos escravizados e seus descenden- informações e energia para lutar contra desigualdades e
tes, ao participar da construção da nação brasileira, vão opressões, para promover reconhecimento da história e
deixando, nos outros grupos étnicos com que convivem, cultura dos africanos e afrodescendentes. A consciência
suas influências e, ao mesmo tempo, recebem e incorpo- negra, segundo Silva (2005), exige esforço para desalie-
ram as daqueles. Diante disso, estudar africanidades bra- nar-se, para deixar de pensar pela cabeça dos que têm
sileiras significa tomar conhecimento, observar, analisar explorado e oprimido os negros. Exige esforço de todos,
um jeito peculiar de ver a vida, o mundo, o trabalho, de negros e não-negros, para construir relações étnico-
conviver e de lutar pela dignidade própria, bem como raciais democráticas, éticas, a partir da história e cultura
pela de todos os descendentes de africanos, mais ainda de dos negros em seus diferentes contextos no continente
todos que a sociedade marginaliza. Significa também africano e na diáspora.