Prova Maias

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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA

“JÚLIO DE MESQUITA FILHO”


FCLAr
Prova Escrita - Narrativa Portuguesa I – 1º semestre de 2018
Profa. Renata Soares Junqueira

[email protected]

Ega ergueu-se, atirou um gesto desolado:


— Falhámos a vida, menino!
— Creio que sim... Mas todo o mundo mais ou menos a falha. Isto é, falha-se sempre na
realidade aquela vida que se planeou com a imaginação. Diz-se: "Vou ser assim, porque a beleza está
em ser assim." E nunca se é assim, é-se invariavelmente assado, como dizia o pobre marquês. Às
vezes melhor, mas sempre diferente.
Ega concordou, com um suspiro mudo, começando a calçar as luvas.
O quarto escurecia no crepúsculo frio e melancólico de Inverno. Carlos pôs também o
chapéu: e desceram pelas escadas forradas de veludo cor de cereja, onde ainda pendia, com um ar
baço de ferrugem, a panóplia de velhas armas. Depois, na rua, Carlos parou, deu um longo olhar ao
sombrio casarão, que naquela primeira penumbra tomava um aspecto mais carregado de residência
eclesiástica, com as suas paredes severas, sua fila de janelinhas fechadas, as grades dos postigos
térreos cheias de treva, mudo, para sempre desabitado, cobrindo-se já de tons de ruína.
Uma comoção passou-lhe na alma, murmurou, travando do braço do Ega:
— É curioso! Só vivi dois anos nesta casa, e é nela que me parece estar metida a minha vida
inteira!
Ega não se admirava. Só ali, no Ramalhete, ele vivera realmente daquilo que dá sabor e
relevo à vida — a paixão.
— Muitas outras coisas dão valor à vida... Isso é uma velha ideia de romântico, meu Ega!
— E que somos nós — exclamou Ega. — Que temos nós sido desde o colégio, desde o exame
de Latim? Românticos: isto é, indivíduos inferiores que se governam na vida pelo sentimento, e não
pela razão...
Mas Carlos queria realmente saber se, no fundo, eram mais felizes esses que se dirigiam só
pela razão, não se desviando nunca dela, torturando-se para se manter na sua linha inflexível, secos,
hirtos, lógicos, sem emoção até ao fim...
— Creio que não — disse o Ega. — Por fora, à vista, são desconsoladores. E por dentro, para
eles mesmos, são talvez desconsolados. O que prova que neste lindo mundo ou tem de se ser
insensato ou sem sabor...

No diálogo acima, extraído do romance Os Maias de Eça de Queirós, as personagens Carlos


Eduardo e Ega reconhecem-se românticas depois de terem admitido que falharam os seus projetos de
vida. Nesse contexto, que tipo de relação se estabelece entre "ser romântico" e "falhar a vida"? E de
que maneira essa relação serve ao projeto estético do romancista Eça de Queirós? Qual é, afinal, o
projeto estético de Eça de Queirós? Faça comentários sobre o desenvolvimento desse projeto no
romance Os Maias.
De novo Cristóvão correu o mundo, servindo aos homens. Pelos
descampados e pelos povoados, por longos Invernos, […], corre o mundo,
oferecendo seus braços. Os anos tinham passado, e Cristóvão era mais velho
que os mais velhos carvalhos. […] Mas cada dia o seu coração se enchia
duma ternura maior e mais vaga. Por vezes, sentado numa pedra, à beira
dum caminho, olhava as árvores, os campos […] e sentia então como o
desejo de apertar toda a terra contra seu peito. Depois pensava que sobre ela
viviam tantos miseráveis, tantos humildes, tantos enfermos, - e era um desejo
de sondar até aos últimos recantos aquele mundo e de curar cada dor, matar
cada fome, tornar o mundo alegre, são, perfeito. Eça de Queirós

As culturas portuguesa e europeia no final do século XIX eram marcadas por um conjunto de
correntes de pensamento. Dentre essas ideias, destacavam-se de um lado o Positivismo, que pregava
uma evolução materialista e mecanicista ao bem comum; também existiam as tendências
decadentistas, caracterizadas pelo pessimismo conformado em relação à degenerescência que
caracterizava o mundo, e pelo misticismo – criticavam o fracasso da ciência e a sua promessa de
resolver os problemas da humanidade tanto quanto aos efeitos e às conseqüências que as políticas
econômicas da burguesia capitalista produziam nas relações humanas.
O Positivismo científico e naturalista herdara do racionalismo a crença numa consciência
imparcial e justa que levaria a humanidade ao estado de Bem absoluto. Entretanto, esse ideal
positivista parecia ameaçado pelas novas descobertas das ciências humanas sobre a influência
exercida por diversos elementos aos atos considerados racionais. A crença no conhecimento objetivo
do mundo através da observação e da experimentação, fundamentada na razão e na consciência e
pregada pela modernidade clássica, já não podia mais ser sustentada na segunda metade do século
XIX.
Para Kant, conhecer os objetos em si, ou a coisa em si, através de um aparelho cognitivo já
condicionado pelas “categorias do entendimento”, impossibilitava a imparcialidade do conhecimento
e a neutralidade nas decisões ditas racionais. Para Marx, a consciência dos homens se formava como
um mero produto moldado por sua existência material e social. Tecnicamente, a concepção do
psiquismo como idêntico à consciência caiu por terra com a descoberta da dimensão inconsciente da
mente humana. Para Freud, o comportamento humano se pautava na existência de um saber
inconsciente e autônomo, essa assertiva do pai da psicanálise transformaria numa ilusão a noção
clássica de consciência: o conhecimento imparcial e neutro da realidade. Em certo sentido podemos
afirmar que em muitos aspectos uma característica artística da produção literária de Eça de Queirós é
ultrapassar, sem romper completamente, as bases do racionalismo, do positivismo e do determinismo
em ebulição na sociedade europeia ao final dos oitocentos.
Em 1871, Eça de Queirós, juntamente com Ramalho Ortigão, publicou As Farpas, panfleto
denunciando os males da sociedade portuguesa de seu tempo e que prenunciavam o movimento que
uma parte da intelectualidade portuguesa assumia a época: as doutrinas estéticas do Realismo-
Naturalismo notadamente marcadas pela observação direta da realidade. Ainda que essa não fosse
uma característica determinante do naturalismo de Eça de Queirós, ele se preocupou com a questão.
Em Eça há uma relação muito estreita entre três dimensões que atuam sobre as vidas humanas: o
instinto, a consciência e as pulsões. Maneando nessa tríade o seu olhar, o poeta questiona o seu
tempo e também se posiciona de maneira tanto revoltante aos padrões do pensamento romântico e,
por sua vez, ao estatuto artístico lusitano de forma geral e à literatura portuguesa em particular.
O próprio autor justificaria as conseqüências desta revolta. Para Eça de Queirós, a causa era
patente: estava no modo bruto e rigoroso com que o positivismo tratou tanto a imaginação,
inseparável e legítima companheira do homem, como a razão. A razão e a imaginação que, segundo
o poeta, arrastam as pessoas com lutas por vezes trágicas, ora cômicas, para o seu lado particular e
encontram nesta dupla coabitação alguma felicidade e paz. Assim, dizia ele, Arquimedes tinha por
emblemas na sua porta um compasso e uma lira. Eça de Queirós redigiu um texto para a imprensa
brasileira e o mesmo foi publicado na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, em 1893, em que
expunha suas preocupações e procurava compreender uma certa trajetória; de fato, pode-se ver aí o
esboço de um balanço em tom de autocrítica ao projeto estético queirosiano.
Eça de Queirós ao criticar a suposta autoridade da razão para condenar os “erros” do mundo,
tomou para si a lira e decidido passou a farpear até à morte a alimária pesada e temerosa como quem
fosse um justiceiro destruidor de monstros. Próprio da juventude tamanha confiança e amor à
verdade que anseia por investir contra tudo o que diverge do seu ideal, e que ela portanto considera
Erro, irremissível Erro, fadado à exterminação. (QUEIRÓS, s/db, p. 957, apud ALVES, 2001).
Compasso e lira. Se o primeiro instrumento é de medida espaço-temporal, o segundo é todo ele
expressão da métrica.
Eça de Queirós fez da observação e da medida os procedimentos metodológicos de sua crítica
social com forte tendência reformista, de orientação antirromântica e anti-idealista, tornando o
espaço físico ou social uma categoria narrativa de inegáveis potencialidades de representação. Nesse
sentido, o espaço encerrado numa dada época, portanto, o espaço compassado historicamente pode
ser entendido como signo ideológico para o autor de Os Maias. Crítico de seu tempo e da sociedade
em que vivia, Eça de Queirós trabalhou os edifícios e as construções de maneira a fazer delas
referências históricas e exemplos de arquitetura social. Os espaços públicos dão veracidade à
narrativa, enquanto a descrição dos espaços privados pode ser entendida como crítica política da
sociedade (e intelectualidade) portuguesa. Determinados espaços públicos atuam na caracterização
do espaço narrativo em seus aspectos social, econômico, histórico e interagem com outros signos.
Isso faz com que o espaço literário adquira uma contextura ideológica alinhada à proposta da
Geração de 70, isto é, a de produzir arte com finalidade social - à la Proudhon - de reformar a
sociedade burguesa lisboeta. Está aí o cerne do projeto estético de Eça de Queirós.
Considerando a estratégia literária da descrição, com focalização onisciente e marcas de
subjetividade da intromissão do narrador, o espaço literário pode ser entendido como um paradigma
na perspectiva do projeto estético (realista-naturalista) queirosiano. Ao afirmar a condição militante e
interventora da criação artística, de fazer do romance o grande instrumento de análise de males
sociais e de levar a cabo, de um ponto de vista reformista, uma sistemática reflexão crítica sobre a
sociedade portuguesa na segunda metade do século XIX, a recriação do espaço diegético é o vivo
reflexo de uma visão da “miséria portuguesa”, de um sentimento decadentista em relação a seu país,
que atingiu os mais representativos escritores portugueses da segunda metade do século XIX. Essa
questão simbólica e espacial ganha uma dimensão própria em Eça de Queirós, assemelha-se às
pinturas, às telas de grandes artistas. O espaço de Portugal constitucionalista, regenerador, do Século
XIX: Lisboa é Portugal - gritou o outro [João da Ega]. - Fora de Lisboa não há nada. O país está
todo entre a Arcada e S. Bento!... (QUEIRÓS, epub). Da Arcada, sede do Governo Monarquista até
o Palácio de São Bento, sede do Constitucionalismo - eis o resumo do Portugal contemporâneo
queirosiano.
Há outro espaço público singular em que é imperativa a frequência da nobreza, tanto quanto o
é da burguesia: o Teatro de S. Carlos. O caráter cívico da iniciativa destinada a dotar Lisboa duma
sala pomposa que marcava o poder da classe construtora, a burguesia; estético – o estilo
(neoclássico) escolhido na sequência daquele que a Lisboa pombalina esboçara e que agora assumia
teor erudito: Depois, daí a duas semanas o Alencar, entrando em S. Carlos ao fim do primeiro ato do
“Barbeiro”, ficou assombrado ao ver Pedro da Maia instalado, à frente, ao lado de Maria (...)
(QUEIRÓS, epub).
A importância do espaço na estruturação do texto ficcional queirosiano é percebida como
elemento integralizador, por provocar no leitor a sensação de autenticidade da sua ficção, proposta
pelo Realismo. Para isso, Eça de Queirós buscou, entre outros procedimentos narrativos: a descrição
dos espaços nos quais ocorre a diegese, com o objetivo de mostrar que o espaço físico não é
meramente gratuito ou estético: ele motiva o diálogo, dinamiza a ação, liga-se à vida das
personagens, estabelece uma correlação íntima com a movimentação, projeta-se, muitas vezes, no
comportamento e estado de espírito das personagens.
Dessa perspectiva, a casa dos Maias, o Ramalhete, pode ser entendida como o universo
queirosiano cujos influxos sociais se cristalizaram e moldaram as suas convicções e os seus valores.
Também as suas vontades, seus desejos e a representação de seu projeto. Dos caracteres externos da
propriedade às ornamentações internas da residência dos Maias, tudo ali pode ser pensado como o
concerto das ideias que alimentaram toda a geração de 70. É ali que os jovens, ainda que tivessem
vivido dois ou três anos, perceberam a importância da tradição e da formação tão arraigadas na alma
lusitana e, apesar dos anseios, era como se tivessem vivido por toda a suas existências no velho
Ramalhete. Falharam? Talvez. Mas a derrota do projeto estético de toda uma geração, se não pode
contar com o telhado e a proteção da edificação, certamente repousou suas forças em seus alicerces.
Em Eça de Queirós, o ato estético de narrar apresenta-os como paradigmáticos de uma classe social,
de um tempo sócio-político-cultural e de uma mentalidade, para instituir a necessária compreensão
das forças sociais subjacentes ao espetáculo do cotidiano lisboeta e desnudar seus males para que
dessa terra nua surgisse um dia o desejo de sondar até aos últimos recantos aquele mundo e de curar cada
dor, matar cada fome, tornar o mundo alegre, são, perfeito.

Renaldo Mazaro Jr.

Bibliografia
ALVES, Silvio Cesar dos Santos – “Uma Proposta De Evolução Estética Na Obra De Eça De
Queirós” in
http://perseu.unig2001.com.br/cadernosdafael/vol2_num6/ARTIGO%20SILVIO%20CADERNOS%
206%20NO%20FORMATO%20E%20REVISADO.pdf
FEITOSA, Rosane Gazolla Alves. “A Ficção Queirosiana Nos Espaços Públicos De Lisboa”,
in Patrimônio e Memória, UNESP – FCLAs – CEDAP, v. 5, n.1, p. 3-21 - out. 2009.
MEDEIROS, A., org. Travessias pela literatura portuguesa: estudos críticos de Saramago a
Vieira [online]. Campina Grande: EDUEPB, 2013. ISBN 9788578792794. Available from SciELO
Books <http://books.scielo.org>
QUEIRÓS, Eça de - Os Maias. Episódios da vida romântica – RJ, Zahar, epub
TINKS, Eloi Andre. “A crítica de Eça de Queirós ao clero e à sociedade lisboeta
oitocentista” in Nau Literária: crítica e teoria de literaturas, PPG-LET-UFRGS, Porto Alegre, Vol.
08 N. 02, jul/dez 2012.

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