Ensaios de Jorge Pieiro

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Seminário  Avançado  de  Arte    
Migrações  -­  A  Literatura  cearense:  entre  a  terra  e  a  água.  
18  nov.  2009                    

O sertão existencialista de Ronaldo Correia de Brito

por Jorge Pieiro


Escritor

“O sertão a gente traz nos olhos, no sangue, nos cromossomos. É uma doença sem cura.”
(Galileia, p. 19)

1. as frestas do não lugar: solo ao solo


Entre as terras e as águas, a sensação da imensidão, a clareza da pequenez e o instinto de
sobrevivência feliz. Ao pisar a terra, dela entrevê-se o rumo da gota e sua invisível cor,
imersa no filete, na corrente, no rio descendo ao mar, e nele, os movimentos, os mistérios,
as seduções e os perigos.
Ao entrar em águas, sem poder pisar sobre elas, só a terra é sentida sob a lâmina doce ou
salgada, terra úmida, porosa, movediça...
O que chamamos terra é solo e o que chamamos água é o que o encobre e umedece.
Mas terra também é de onde partimos ou aonde chegaremos. É o esboço da memória, da
lembrança reinventada pelo desejo de perenidade no tempo. É para quem lida com a
palavra o continente de todas as ações. E o mar, a profundeza, o gozo e a sensualidade do
grande planeta.
Sobre a terra, ou dela proveniente, o lugar mítico de que faz uso e consumo o literato e o
leitor: o sertão é um desses lugares, o avesso do litoral, do mar. O sertão é a chave para
outros movimentos, também de mistérios, de seduções, de perigos...
É deste solo antagônico ao fluido, ao marítimo, à geografia infinita, que se inventa e se
recria toda a mítica e a complexa existência dos espaços e personagens criados ou revistos
pelo cearense Ronaldo Correia de Brito (Saboeiro-CE, 1950), sobre quem alguns aspectos a
seguir trataremos.

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2. entre o dragão e o leão: arcabouços de uma trajetória
Ronaldo Correia de Brito traz na complexidade da sua existência, tão comum aos seres
humanos, o arquétipo lendário do primeiro Moacir – filho de Iracema e de Martins Soares
Moreno, da prosa poética de Alencar –, uma vez que, desde o sertão de Saboeiro, logo se
exilou, a princípio, na cidade do Crato, lugar que, no plano existencial, foi seminal para o
escritor. Foi ali, por intermédio do cinema, que todo um arcabouço de revelações ficou
marcado na memória. Não é à toa que o autor do festejado romance Galileia compare a sua
segunda cidade – pelo deslumbramento diante do que via nas três salas de cinema
existentes –, com a Rimini, cidade natal de Federico Fellini.
Foi ali, no Crato, ainda criança, que tomou vista de tantas outras realidades, para em
seguida, partir mais uma vez, adolescente, vislumbrando estudar medicina na cidade do
Recife, onde vive há cerca de 40 anos.
O percurso, primeiro de deslocamento e logo de aparente fixação resolvida no espaço
geográfico, no entanto, tornara-o um andarilho em volta de si mesmo e de seus entornos,
pelas ruas da cidade do Recife. Talvez por conta disso, logo, a primeira incursão no
universo literário, com a publicação do seu primeiro conto “Lua Cambará” (1970), que
viraria filme sete anos depois. A partir daí, a trajetória de sua escrita, e de sua relação com
o ato de escrever, a torná-lo refém de “altas cargas de tensão e sofrimento”.1
Este suposto andarilho, ao distanciar-se de suas raízes, vai mantendo conflitos com a
memória. Isto levou-o a afirmar que escreve com uma perspectiva: livrar-se da memória,
para transformá-la em esquecimento, talvez com o intuito de “demonstrar que o homem é
sempre o mesmo, onde quer que ele esteja, apesar de preso a questões locais”.2
Assim, desde sua Saboeiro natal, no sertão cearense dos Inhamuns, o escritor e médico
Ronaldo Correia de Brito é mais conhecido como autor dos elogiados livros de contos Faca
(Cosac Naify, 2003) e O Livro dos Homens (Cosac Naify, 2005). E, mais ainda, pelo seu
primeiro romance, Galileia (Objetiva/Alfaguara, 2008), considerado pela crítica um dos
melhores livros do ano na literatura brasileira, que o levou a ganhar o Prêmio Cidade de

1
Entrevista concedida a Rogério Pereira, em Rascunho – O jornal de literatura do Brasil, sob o título
“Obsessivo pela exatidão”, em jan. 2009. A íntegra da entrevista pode ser recuperada pelo sítio
www.rascunho.rpc.com.br/index.php?ras=secao.php&modelo=2&secao=5&lista=0&subsecao=0&ordem=28
57&semlimite=todos. Acessado em 10 de novembro de 2009.
2
Ver nota 1

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São Paulo, em 2009. É autor ainda dos contos de As noites e os dias (Bagaço, 1997) e da
novela infanto-juvenil O pavão misterioso (Cosac Naify, 2004). Em 2007, foi escritor
residente e professor visitante na Universidade de Berkeley (Califórnia). Além disso,
trabalha no teatro como dramaturgo e encenador, e seu espetáculo mais famoso, criado em
parceria com Assis Brasil e Antônio Madureira, chama-se Baile do Menino Deus, que há 25
anos é encenado por todo o Brasil. Escreveu, durante seis anos, a coluna “Entremez” na
revista Continente Multicultural, e atualmente colabora com o portal Terra, com edições
especiais da revista Entrelivros e com o jornal O Estado de S. Paulo.

3. o sertão de todo lugar: existencialismo e morte.


O argentino Jorge Luis Borges disse que morrer é um costume que sabe ter toda a gente.3
Como em quase todos os segredos de sua genialidade, permitiu-se enxergar, sem fazer uso
da vista que lhe faltava, e ironizar o sentido mais trágico da existência. Sabemos que a
morte espreita os que a esperam, os que se desprevinem, os que se remediam, os que se
compadecem. Somos todos vítimas de seu misterioso desejo.
Em qualquer época, em qualquer lugar, os costumes e as culturas tratam de preservar
dinâmicas várias, com o intuito de resguardar o sofrimento infalível provocado pela
presença dessa senhora de todos os pesadelos. Se o seu reino é o do fim do mundo, dê-se a
ela o nosso último momento...
Há, porém, que se indagar o motivo pelo qual a morte é surpreedida, muitas vezes, pelo
desafiante desejo de não temê-la, ou mais, de torná-la objeto de consumo, banal, como
ocorre na vida de uns tantos habitantes dos confins da terra. E por qual razão as histórias
desse povo se reproduzem, transformam-se, reavaliam-se e seguem seu compromisso de
perpetuar o pesadelo?
Não há verdades absolutas, apenas conjecturas. Existe a literatura que molda, especifica,
presentifica e conduz-nos a algumas respostas sobre esse emblemático mistério do convívio
de nossos e todos os dias. Melhor prazer é percebê-la, enquanto não tarda e tenhamos que
voltar ao pó.

3
Traduziu assim Alfredo Jacques, do original da Milonga de Manuel Flores, do opúsculo Para seis cordas,
1965: “Morir es una costumbre / que sabe tener la gente”. O poema completo em português, em tradução de
Nelson Ascher, encontra-se nas Obras Completas de Jorge Luis Borges, vol. 2, p. 372. Nele, traduziu-se
assim: “Morrer é um desses costumes / Que todo mundo consente.”

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A morte, tema eterno e consequência terminal da existência, é um motivo sempre presente
na obra de Ronaldo Correia de Brito. Tudo o que há entre o nascimento e a morte é apenas
a marca de sinas e de abandonos, ruínas das lembranças...
Neste pequeno ensaio, seguem-se algumas nuanças que demarcam as fronteiras dessa
singularidade existencial, entrevista no não lugar da memória de autor a partir de seu
passado distante em solo sertanejo, conduzidas pela observação em torno das citadas obras:
Faca, Livro dos Homens e Galileia.

3.1 Um rosário de mortes: Faca


Faca é um livro que enrijece o espírito. Talvez, aos menos acostumados a esses desígnios,
podem os contos parecer duros, sofridos, exóticos até. No entanto, para quem conhece a
realidade dos sertões nordestinos, sua sina, seus segredos, mitos e mistérios, é possível que
se embeveça com tanta sinceridade e competência. De pronto, urge alertar: não estamos
diante de mais um escritor regionalista, ou retrocedemos à escritura dos anos 30, ou
deparamo-nos com a criação de mundos impossíveis. Faca é o próprio manuseio de uma
arte que nunca se destrói ou será destruída, pois representa a mitologia de uma cultura.
Onze narrativas ocupam o imaginário do leitor. Há sempre uma esperança em cada linha,
porém o que se define é, invariavelmente, uma desgraça. Mesmo quando o texto se desvia
para um momento cômico, como em “O dia em que Otacílio Mendes viu o sol”, o cheiro de
morte se espalha pelos aposentos da memória. E desfiam-se mortes pressentidas,
anunciadas, delirantes, compensadas, escolhidas, vingadas...
Os relatos são de origens arcaicas, porém têm marcas esteticamente atualizadas. Além
disso, os contos reavivam o “entulho de um tempo apagado da memória”, e traz, nelas, a
expressão silenciosa, como a da senhora Morte, de mulheres poderosas, tais como: Cícera
Candoia, Inácia Leandro, dos contos homônimos; e mais, Francisca Justina (de “Faca”),
Aldenora Morais (de “A escolha”), ou mesmo Delmira (de “Mentira de amor”).
Da coletânea, exemplificamos com “Redemunho”. O conto transporta-nos para uma
situação que beira a inverossimilhança, mas surpreende-nos pela estratégia do autor na
condução e conclusão da trama. Nele, uma família de antigos fidalgos, reduzida a mãe e
filho – abandonado pela mulher Elzira – vive em pleno sertão na precariedade da música
tocada ao piano antigo, em ranço de nobreza e assolada pelo fantasma de uma mentira: a de

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que Elzira fugira com ciganos. A cena final é desesperadora, mas a provável definição de
toda uma desgraça. Depois de perguntar por que a mãe nunca chorara a morte do irmão, em
rompante de loucura, Leonardo age:

Um esturro de animal ferido ameaçou os alicerces da casa. Com


uma força desmedida, Leonardo partiu a tecla do piano e atirou-a no
rosto da mãe, esperando assistir sua morte. Correu para o quarto de
ferramentas, voltando com uma enxada. A terra estava seca da
estiagem, mas ele cavaria com afinco, revolvendo o mármore da
sepultura dos avós. A mãe tivera forças para enterrar seu irmão. Mais
forças teria ele para desenterrá-lo, se estivesse ali. (p. 50/51)

A verdade estaria pronta para se revelar, mas o autor preferiu guiar o leitor a outra
incógnita. Ao tratar da possibilidade de não encontrar o cadáver do irmão, a sua ausência
levaria Leonardo a imaginar que Elzira, a única mulher que amara na vida, além da mãe,
teria fugido, não com os ciganos por ele assassinados, mas talvez com o irmão Manoel.
Insere-se neste conto, um exemplo de um drama universal, mas recolhido a um espaço
sertanejo, transtornado pelos ares de uma aristocracia decadente e plena de segredos.
Faca é uma obra do universo mítico, que traz o cheiro de morte entranhado no corpo da
vida.

3.2 Livro dos Homens


Nos 13 contos de Livro dos Homens, encontramos os mesmo temas recorrentes: a
manifestação de conflitos de toda ordem, a morte, a fragilizada existência, o silêncio e a
solidão. Marco Lucchesi, na orelha da obra revela que ali se representa “Um Brasil
profundo, mas livre de cores locais”. Esta é exatamente a estratégia do autor, ao romper
com a tradicionalidade do sertão – até mesmo porque este lugar sem limites já não é mais o
mesmo –, evitando tornar-se continuador ou diluidor de uma vertente regionalista.
Completa Lucchesi que na obra se acentua “Uma palavra plural, embora incisiva. Uma
imagem penetrante, de alta densidade poética, servindo ao espaço ficcional de onde surge e
para onde volta. O excesso está na vida de suas personagens.”

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Nesta obra, mostram-se as fontes de água e terra, o espaço geográfico em suas contradições
perenes, que podemos estender à própria contradição da existência dos habitantes desses
vales. Diz o narrador que o rio Jaguaribe é “caudaloso no inverno, e de “areias limpas e
quentes na seca” (in “O que veio de longe”, p. 8). Assim é o sertanejo: seco, porém pleno
de esperanças e de fidelidade.
Tudo é sertão em volta do traçado narrativo. No entanto, a fonte da narrativa enseja ser, por
exemplo, o desejo de liberdade da mulher, em troca de quem estar por vir de longe,
protocolizando o antagonismo subjetivo entre a liberdade e a escravidão (in “Eufrásia
Menezes”). Ou o desejo de transformar em exílio – na palavra, que seja –, tudo aquilo que
poderia ter sido e que não foi. Eis um trecho: “Você já sabe ler. Aprenda a enxergar por trás
das palavras. Assim você descobre a vontade que procura, e talvez não morra agora.” (in
“Qohélet”, p. 31). Ou, ainda, a real constatação, não mais um desejo, de que tudo aquilo
que diz respeito ao sertão transformou-se em mito. Daí, o repasse ao outro, ao narrador, de
uma certeza de autor em relação ao sertanejo que, invariável e atemporalmente, é sempre
transformado em ser mitológico, guerreiro de mistérios, carregando sobre os ombros
arquétipos, ancestralidade e saberes envolvidos. Esta faceta podemos encontrar no conto “A
peleja de Sebastião Candeia”, quando a personagem trava uma luta com o insondável, o
invisível, numa peripécia típica da literatura fantástica:

Em contorções e gemidos, a língua silvando na boca, Sebastião


fez-se réptil, seduzindo outra serpente. Agarrava-se ao barro do chão,
num abraço extremoso. O corpo, atirado para os lados, ameaçava
partir-se. Incansável, prosseguiu na dança. Abria os braços e pernas,
movimentava os quadris. Parecia querer fecundar a terra. Lutava
para não ser arrastado ao reinado da morte. (...)
Ninguém soube marcar o tempo que Sebastião dançou, tentando
acalmar a Serpente-dragão e o Jacaré. Até cair exausto e ser
levado para casa, onde continuou em silêncio, os olhos perdidos na
serra.
Ganhara a batalha, dançando. Os monstros dormiriam para
sempre.

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A Virgem desapareceu do altar e nunca mais foi encontrada. Seu
papel de mediadora já não tinha propósito.
Nem significava amarra a idade de Sebastião. Ele podia muito,
outra vez. (p. 63/64)

Essas perspectivas conduziram o mesmo Lucchesi a afirmar que “Esses contos de grande
beleza trazem como que uma paisagem bíblica. Mas é preciso insistir: uma Bíblia sem deus.
O que se costuma chamar de mística seca.”
Assim, é perfeitamente admissível, afirmar que, por ser o sertão lugar fecundo de
misticismos, essa singularidade conduz os seres reais a se metamorfosearem em seres
ficcionais. E dessa mutação, aflora o existencialismo sertanejo.

3.3 Galileia
O romance Galileia é uma obra de retorno, tanto no que diz respeito ao périplo de memória
do autor – muitas vezes confundido com algum narrador –, quanto à locomoção das
personagens de volta ao complexo passado de suas origens. Nele, se mesclam o sertão que
se desfia pelas cidades e as desafia, e a lembrança que provocou o autor, também o
narrador, e provocará o leitor, principalmente, se ele é egresso desse rincão. Galileia simula
o conceito de Guimarães Rosa, quando admite estar o sertão em toda parte. Mas apenas
neste ponto há o entrelace com o autor de Grande sertão: veredas, pois a obra evolui por
outros caminhos estéticos. Podemos insistir com a ideia de que Galileia é o que resta de
uma ancestralidade, que se manifesta sob a forma de ruínas.
Se assim pensamos, revolvemos a dialética confusa entre progresso e modernidade versus
quebra de paradigmas e tradição. E a estupefação nesse sentido se dá, por exemplo, na
visão noturna de uma realidade do novo sertão, quando Adonias diz: “Ficamos em silêncio,
olhando as casas de luzes apagadas, com atenas parabólicas nas cumeeiras dos telhados.”
(p.15) Este sertão é o mesmo que cavalga em motocicletas, que brinca nas lan-houses,
aproximando-se do estranho progresso global, massificado, rumo ao possível retorno à
bárbarie.
Apesar dessas ilusões de progresso carimbadas na realidade e na trama de Galileia, a
perspectiva subjetiva que a obra empresta é a mesma, talvez por conta dos exílios dos três

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protagonistas, Adonias, Ismael e Davi que retornam para presenciar a ruína do patriarca
Raimundo Caetano. O conflituoso médico Adonias – o autor também é médico, mas a
máscara é vital para as personas – observa: “Tudo se assemelha ao passado, até os
caminhos repetidos e o silêncio dos mortos, fantasmas que andaram como ando, ansioso e
de humor deprimido.” (p. 7) Na verdade, as mudanças se dão apenas fisicamente, os
conflitos são universais, e as marcas do passado daqueles que retornam se multiplicam em
sentimentos diversos, chegando mesmo a produzir o grande sofrimento pela decepção da
realidade que se desfaz, e que, em vez de gerar beleza, eterniza a dor e abala o
esquecimento.
Gera-se a crise pela memória desfeita, assim: “Onde estão os caminhos abertos pelos
antigos, os que elegeram essa terra para morar, trazendo rebanhos e levantando currais?
Procuro o rio Jaguaribe e ele é apenas um leito de areia, lembrança adormecida de águas
que se recolhem na seca, e transbordam renascidas na estação das chuvas.” (p. 8)
A existência passa a ser revolvida em cada uma das personagens. As cicatrizes voltam a
sangrar. Parece insinuar que os fracos fogem do sertão e para ele não podem mais voltar,
mas como castigo, jamais poderão esquecê-lo: “Para o avô Raimundo Caetano somos um
bando de fracos, fugimos em busca das cidades como as aves de arribação voam para a
África.” (p. 16)
E novamente o estigma, que pode ser resgatado de uma fala de Ismael, o primo bastardo de
Adonias, descendente de índios kanela, do Maranhão, que se exilara na Noruega, onde
tivera problemas com a polícia: “Mas ninguém procura os lugares porque são bonitos ou
feios. As pessoas saem atrás da sobrevivência.” (p. 73)
Davi, que vive em São Paulo –, depois de viver na França e em Nova Iorque – é irmão por
parte de pai de Ismael. É o mais dissimulado, embora querido por todos. Usa a máscara que
esconde segredos. É o homossexual que contracena com todos os estereótipos do universo
sertanejo e, por isso mesmo, o despreza. Ele se distancia dos outros dois. Passa o tempo a
escrever o que Adonias classificou de bestiário, e a quem deixou páginas e páginas
impressas. Diz Adonias que Davi “veio para alimentar o culto que os tios celebram à sua
falsa imagem de gênio.” (p. 185)
Eis um trecho da confissão narcísica de Davi:

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Para mim, França e Nova Iorque significaram apenas um desfecho de
adolescência, ato final do drama que você presenciou. Posso lhe falar
muitas coisas, a minha agenda sexual é interessante, mas corro o risco
de contar o que não interessa, destoando do personagem Davi que
todos se habituaram a imaginar. Espero que seu romance seja mais
picante que a minha biografia, embora duvide que você seja capaz de
escrever algo que não entedie.” (p. 185)

Galileia, enfim, é obra para reflexões, em que a dicotomia mundo e sertão é revirada.

4. o recurso do método: circularidades

Após esse trajeto pelas três mais significativas obras em prosa de Ronaldo Correio de Brito,
até este momento, cabe-nos dizer que sua escrita se dá dentro de parâmetros considerados
pós-modernistas, pela utilização de uma série de recursos entrelaçados, tais como: não
linearidade da narrativa; corte cinematográfico; estruturas fragmentárias; realidade precária
e indefinida no espaço existencial das personagens. Alie-se a isto, o estilo do autor ao
explorar abismos textuais, provocando uma espécie de vertigem durante sua recepção; a
presença do cenário mítico na geografia da memória; o tempo oculto; a dureza da
linguagem. Todas essas nuanças completam o imaginário de Ronaldo Correia de Brito.
Esse conjunto de aspectos valida a construção do sertão existencialista do autor como
forma recorrente. As narrativas curtas de Faca e Livro dos Homens estão inseridas nas
páginas do romance Galileia com outros mesmos matizes. As personagens se identificam,
assim como as solidões, os desejos, a sina. Nada muda, a não ser o conceito que o autor
busca repassar, ora de forma explícita, ora de forma velada: o convencimento de que o
mítico e o real são a mesma coisa.
O sertão é uma dicotomia indissolúvel. O recurso é o da memória se avivando para
conseguir o esquecimento. Alguns trechos apontam para isto: “O passado muitas vezes
retorna, cobrando o que é seu” (in “O que veio de longe”, LH, p.9) ou “A verdade é uma só
e atravessa os tempos. (in “O que veio de longe”, LH, p.12), embora seja certo que a
verdade, ela própria, pode ser uma invenção...

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O retorno após o contato com a cidade maior é outro fator recorrente, como se a fazer
refletir as palavras do velho patriarca Raimundo Caetano, de Galileia. Se fugir é motivo de
fraqueza, retornar com outra visão e outras habilidades é o desprezo pela própria condição,
ou talvez o conflito para todos aqueles que convivem com a situação de deslocados na vida.
Enfim, encerremos esta introdução ao sertão existencialista de Ronaldo Correia de Brito,
com suas próprias palavras: “O meu sertão é complexamente urbano. Seus personagens,
neuroticamente urbanos, sofrem uma doença grave, que mina a saúde mental de todos eles:
adequar o mundo arcaico que herdaram, ao mundo globalizado em que se viram inseridos
de forma brutal, num intervalo de tempo muito curto.”4
Assim, também habitamos as páginas do autor, nesse não lugar, típico solo de outra terra...
da realidade, da memória.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BORGES, J. L. Obras Completas de Jorge Luis Borges. Vol. 2. São Paulo: Globo, 1999.
BRITO, R. C. Faca. São Paulo: Cosac & Naify, 2003;
______. Livro dos homens. São Paulo: Cosac & Naify, 2005;
______. Galiléia. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008;
PEREIRA, Rogério. Obsessivo pela exatidão (Entrevista com Ronaldo Correia de Brito) in
Rascunho – O jornal de literatura do Brasil. Curitiba, jan. 2009.
<www.rascunho.rpc.com.br/index.php?ras=secao.php&modelo=2&secao=5&lista=0&subs
ecao=0&ordem=2857&semlimite=todos.> Acessado em 10 de novembro de 2009.
 
 
   
 
 
 
 
 
 
 
 
 
4
Ver Nota 1

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OUTRAS CITAÇÕES PARA ILUSTRAR A PALESTRA:

E mais, o entrelace entre o urbano e o rural por meio do personagem: “Sabia que era inglês
porque lia e falava perfeitamente aquele idioma. Aprendera no Rio de Janeiro, onde fora
estudar medicina. Voltara antes de ingressar na universidade. O pai merreu de enfarte
fulminante e ele precisou assumir o engenho e as terras.” (in Brincar com veneno, p.44)

A mescla do impossível sertão na personagem deslocada: “Quando desceram o caixão para


dentro da cova enlameada, minha prima Lúcia começou a cantar a ‘Lacrimosa’, apesar da
chuva forte abafando os seus agudos e da extravagância de um Réquiem de Mozart no meio
daquela gente inculta. Os nascidos no campo ainda guardavam na memória um pedaço de
bendito ou incelência. Sabiam que se encomendam os defuntos com rezas e cantos, antes de
partirem para o outro mundo e nunca voltarem – assim esperávamos todos. Tio Alexandre
já nos envergonhara bastrante em uma única vida e não tinha por que nos submeter a mais
vexames. A prima, lírica formada num conservatório carioca, vestida a caráter debaixo do
aguaceiro que os guarda-chuvas não conseguiam conter, soava uma nota acima da nossa
existência ;provinciana, pobre e inculta.” (in Mexicanos, p.87-88)

“... e baforou no cigarro. Outro vício que a irmã não perdoava. Adquirira na capital, onde
morou seis anos e de onde voltou formada em Farmácia.” (in Rabo-de-burro, p. 102)

A estratégia do narrador em mesclar o local com o global e o atemporal:


“Perseguia o ritual da matança do porco, no dia em que celebravam a ressurreição do
Cristo. Com um machado, partiram o espinhaço em dois. Os cachorros enchiam a barriga
de tripas e bofes. Os urubus, sentindo o cheiro de carne, sobrevoavam o arruado de casas.
Pedindo licença para iniciar a brincadeira, o Mestre mandoou que desligassem a televisão.
Lá de dentro, vozes masculinas protestaram. Em Mônaco, a corrida de carros estava
começando.” (in Cravinho, p.127-128)
“Duas vizinhas chegaram de mototáxi. Eram cantadeiras de coco, com passagem pela
Bélgica, França e Holanda. A cachaça rolou novamente. Os urubus, quando viram que nada
sobrara pra eles, voaram à procura de outras carniças.” (in Cravinho, p.132)

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