Ensaios de Jorge Pieiro
Ensaios de Jorge Pieiro
Ensaios de Jorge Pieiro
“O sertão a gente traz nos olhos, no sangue, nos cromossomos. É uma doença sem cura.”
(Galileia, p. 19)
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Entrevista concedida a Rogério Pereira, em Rascunho – O jornal de literatura do Brasil, sob o título
“Obsessivo pela exatidão”, em jan. 2009. A íntegra da entrevista pode ser recuperada pelo sítio
www.rascunho.rpc.com.br/index.php?ras=secao.php&modelo=2&secao=5&lista=0&subsecao=0&ordem=28
57&semlimite=todos. Acessado em 10 de novembro de 2009.
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Ver nota 1
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Traduziu assim Alfredo Jacques, do original da Milonga de Manuel Flores, do opúsculo Para seis cordas,
1965: “Morir es una costumbre / que sabe tener la gente”. O poema completo em português, em tradução de
Nelson Ascher, encontra-se nas Obras Completas de Jorge Luis Borges, vol. 2, p. 372. Nele, traduziu-se
assim: “Morrer é um desses costumes / Que todo mundo consente.”
A verdade estaria pronta para se revelar, mas o autor preferiu guiar o leitor a outra
incógnita. Ao tratar da possibilidade de não encontrar o cadáver do irmão, a sua ausência
levaria Leonardo a imaginar que Elzira, a única mulher que amara na vida, além da mãe,
teria fugido, não com os ciganos por ele assassinados, mas talvez com o irmão Manoel.
Insere-se neste conto, um exemplo de um drama universal, mas recolhido a um espaço
sertanejo, transtornado pelos ares de uma aristocracia decadente e plena de segredos.
Faca é uma obra do universo mítico, que traz o cheiro de morte entranhado no corpo da
vida.
Essas perspectivas conduziram o mesmo Lucchesi a afirmar que “Esses contos de grande
beleza trazem como que uma paisagem bíblica. Mas é preciso insistir: uma Bíblia sem deus.
O que se costuma chamar de mística seca.”
Assim, é perfeitamente admissível, afirmar que, por ser o sertão lugar fecundo de
misticismos, essa singularidade conduz os seres reais a se metamorfosearem em seres
ficcionais. E dessa mutação, aflora o existencialismo sertanejo.
3.3 Galileia
O romance Galileia é uma obra de retorno, tanto no que diz respeito ao périplo de memória
do autor – muitas vezes confundido com algum narrador –, quanto à locomoção das
personagens de volta ao complexo passado de suas origens. Nele, se mesclam o sertão que
se desfia pelas cidades e as desafia, e a lembrança que provocou o autor, também o
narrador, e provocará o leitor, principalmente, se ele é egresso desse rincão. Galileia simula
o conceito de Guimarães Rosa, quando admite estar o sertão em toda parte. Mas apenas
neste ponto há o entrelace com o autor de Grande sertão: veredas, pois a obra evolui por
outros caminhos estéticos. Podemos insistir com a ideia de que Galileia é o que resta de
uma ancestralidade, que se manifesta sob a forma de ruínas.
Se assim pensamos, revolvemos a dialética confusa entre progresso e modernidade versus
quebra de paradigmas e tradição. E a estupefação nesse sentido se dá, por exemplo, na
visão noturna de uma realidade do novo sertão, quando Adonias diz: “Ficamos em silêncio,
olhando as casas de luzes apagadas, com atenas parabólicas nas cumeeiras dos telhados.”
(p.15) Este sertão é o mesmo que cavalga em motocicletas, que brinca nas lan-houses,
aproximando-se do estranho progresso global, massificado, rumo ao possível retorno à
bárbarie.
Apesar dessas ilusões de progresso carimbadas na realidade e na trama de Galileia, a
perspectiva subjetiva que a obra empresta é a mesma, talvez por conta dos exílios dos três
Galileia, enfim, é obra para reflexões, em que a dicotomia mundo e sertão é revirada.
Após esse trajeto pelas três mais significativas obras em prosa de Ronaldo Correio de Brito,
até este momento, cabe-nos dizer que sua escrita se dá dentro de parâmetros considerados
pós-modernistas, pela utilização de uma série de recursos entrelaçados, tais como: não
linearidade da narrativa; corte cinematográfico; estruturas fragmentárias; realidade precária
e indefinida no espaço existencial das personagens. Alie-se a isto, o estilo do autor ao
explorar abismos textuais, provocando uma espécie de vertigem durante sua recepção; a
presença do cenário mítico na geografia da memória; o tempo oculto; a dureza da
linguagem. Todas essas nuanças completam o imaginário de Ronaldo Correia de Brito.
Esse conjunto de aspectos valida a construção do sertão existencialista do autor como
forma recorrente. As narrativas curtas de Faca e Livro dos Homens estão inseridas nas
páginas do romance Galileia com outros mesmos matizes. As personagens se identificam,
assim como as solidões, os desejos, a sina. Nada muda, a não ser o conceito que o autor
busca repassar, ora de forma explícita, ora de forma velada: o convencimento de que o
mítico e o real são a mesma coisa.
O sertão é uma dicotomia indissolúvel. O recurso é o da memória se avivando para
conseguir o esquecimento. Alguns trechos apontam para isto: “O passado muitas vezes
retorna, cobrando o que é seu” (in “O que veio de longe”, LH, p.9) ou “A verdade é uma só
e atravessa os tempos. (in “O que veio de longe”, LH, p.12), embora seja certo que a
verdade, ela própria, pode ser uma invenção...
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BORGES, J. L. Obras Completas de Jorge Luis Borges. Vol. 2. São Paulo: Globo, 1999.
BRITO, R. C. Faca. São Paulo: Cosac & Naify, 2003;
______. Livro dos homens. São Paulo: Cosac & Naify, 2005;
______. Galiléia. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008;
PEREIRA, Rogério. Obsessivo pela exatidão (Entrevista com Ronaldo Correia de Brito) in
Rascunho – O jornal de literatura do Brasil. Curitiba, jan. 2009.
<www.rascunho.rpc.com.br/index.php?ras=secao.php&modelo=2&secao=5&lista=0&subs
ecao=0&ordem=2857&semlimite=todos.> Acessado em 10 de novembro de 2009.
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Ver Nota 1
E mais, o entrelace entre o urbano e o rural por meio do personagem: “Sabia que era inglês
porque lia e falava perfeitamente aquele idioma. Aprendera no Rio de Janeiro, onde fora
estudar medicina. Voltara antes de ingressar na universidade. O pai merreu de enfarte
fulminante e ele precisou assumir o engenho e as terras.” (in Brincar com veneno, p.44)
“... e baforou no cigarro. Outro vício que a irmã não perdoava. Adquirira na capital, onde
morou seis anos e de onde voltou formada em Farmácia.” (in Rabo-de-burro, p. 102)