2020 - NOGUEIRA - Patrimônio, Memória e Historiografia - Volume 8

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Patrimônio,

Memória e
Historiografia
Antônio Gilberto Ramos Nogueira (Org.)

COLEÇÃO Organizadoras
HISTÓRIA Ana Rita Fonteles Duarte
E HISTORIOGRAFIA Ana Sara Cortez Irffi
COLEÇÃO Organizadoras
HISTÓRIA Ana Rita Fonteles Duarte
E HISTORIOGRAFIA Ana Sara Cortez Irffi

Patrimônio,
Memória e
Historiografia
Antônio Gilberto Ramos Nogueira(Org.)

Sobral/CE
2020
Patrimônio, Memória e Historiografia
© 2020 copyright by Antônio Gilberto Ramos Nogueira(Org.)
Impresso no Brasil/Printed in Brasil

COLEÇÃO
HISTÓRIA
E HISTORIOGRAFIA

Coordenação
Ana Rita Fonteles Duarte
Ana Sara Cortez Irffi

Conselho Editorial
Antônio Maurício Dias da Costa (UFBA)
Fábio Leonardo Castelo Branco Brito (UFPI)
Flávio Weinstein Teixeira (UFPE)
Francisco Régis Lopes Ramos (UFC)
João Paulo Rodrigues (UFMT)
James Green (Brown University)
Kênia Sousa Rios (UFC)
Paula Godinho (Universidade Nova de Lisboa)

Rua Maria da Conceição P. de Azevedo, 1138


Renato Parente - Sobral - CE
(88) 3614.8748 / Celular (88) 9 9784.2222
[email protected]
[email protected]
www.editorasertaocult.com
Coordenação Editorial e Projeto Gráfico
Marco Antonio Machado
Coordenação do Conselho Editorial
Antonio Jerfson
Número ISBN: 978-65-87429-62-5 Lins de Freitas
- papel
Número ISBN: 978-65-87429-63-2 - e-book - pdf
Doi: 10.35260/87429632-2020 Revisão
Revisão memória
Título: Patrimônio, textual de responsabilidade dos autores
e historiografia
Edição: 1
Ano edição: 2020
Diagramação
Lucas Corrêa Borges
Páginas: 192 (Coleção História
João e Historiografia)
Batista Rodrigues Neto
Autor: Antônio Gilberto Ramos Nogueira (Org.)
Catalogação
LeolghCIP - Catalogação na Publicação
Lima da Silva - CRB3/967

P314 Patrimônio, memória e historiografia./ Antônio Gilberto


Ramos Nogueira. (Org.). – Sobral, CE: Sertão Cult, 2020.

192p. (Coleção História e Historiografia)

ISBN: 978-65-87429-62-5 - papel


ISBN: 978-65-87429-63-2 - e-book - pdf
Doi: 10.35260/87429632-2020

1. Patrimônio. 2. Pesquisa histórica. 3. Memória. 4.


Historiografia. I. Nogueira, Antônio Gilberto
Ramos. II. Título.
CDD 363.69
907.2

Catalogação na publicação: Bibliotecária Leolgh Lima da Silva – CRB3/967

Este e-book está licenciado por Creative Commons


Atribuição-Não-Comercial-Sem Derivadas 4.0 Internacional
Coleção História e
Historiografia
Esta coleção de livros que apresentamos para vocês é mais um pro-
duto de parceria iniciada em 2006, entre programas de pós-graduação
em História das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Em 2020,
com uma rede de colaboração e intercâmbio ampliada, formada por
UFC, UFPE, UFPA, UFMT, UFPI, UFRN, UFBA, UFRPE, UFAM e
Unifap, realizamos, entre 04 e 06 de novembro, o VI Seminário Inter-
nacional História e Historiografia. O evento, que deveria ter ocorrido
presencialmente, em Fortaleza, no Campus do Benfica, na Universida-
de Federal do Ceará, acabou acontecendo de forma remota, por conta
da pandemia de Covid 19. A manutenção do Seminário diz não so-
mente de nosso esforço e ousadia em realizar um trabalho conjunto,
descobrindo e aprofundando temas, debatendo e cruzando aborda-
gens plurais, mas endossa nossa capacidade de resistência.

Os últimos anos trouxeram profundas dificuldades para a so-


brevivência e realização das atividades das universidades públicas
brasileiras, com abruptos cortes de recursos, redução da autonomia
universitária e negação da ciência. Mas, especialmente, para os que
produzem conhecimento na área de Humanas, os desafios são ainda
maiores. Passam por campanhas que envolvem o desprestígio, acu-
sações e perseguição. Para os historiadores brasileiros há um explíci-
ta tentativa de descredenciamento do saber produzido e acumulado
em diferentes âmbitos de sua produção, especialmente em temas do
tempo presente, indiferença por métodos de pesquisa e construção
de narrativas, além da banalização da verdade histórica, reduzida a
versões interessadas sobre o passado.

Os ataques aos historiadores estão diretamente articulados a um


cenário de intensa disputa política em que passados que não passa-
ram são apropriados como instrumentos de mobilização política e
conquista de fiéis. A produção histórica é relativizada por narrativas
que mesclam notícias falsas e manipulação de dados e fatos, capa-
zes de alimentar afetos e ressentimentos, no retrocesso de direitos e
ameaças ao ambiente democrático.

Diante desse cenário, nossa rede de pesquisa sentiu a imperiosa


necessidade de reflexão sobre a conjuntura social e política e, tam-
bém, sobre as possibilidades da História em suas dimensões crítica
e ética. Pesquisadores de várias universidades do Brasil e do mundo
reuniram-se para discutir, sob a luz do tema Os Usos Políticos do
Passado em conferências, mesas e simpósios temáticos, os desafios e
possibilidades de nosso ofício num mundo em turbulência.

A Coleção História e Historiografia traz um panorama atualizado


sobre alguns dos principais temas e áreas de preocupação dos histo-
riadores brasileiros na atualidade. Os textos foram organizados em
10 livros temáticos — 1) Ditadura, fontes históricas e usos do pas-
sado; 2) História, Literatura e Historiografia; 3) História, memória e
Historiografia; 4) História Agrária, migrações e escravidão; 5) His-
tória, espaços e sensibilidades; 6) Experiências atlânticas e História
Ambiental; 7) Intelectuais, usos do passado e ensino de História; 8)
Patrimônio, memória e historiografia; 9) Culturas políticas e usos do
passado e 10) História da saúde e das religiões.

Esperamos que a coleção possa dar visibilidade a trabalhos pro-


duzidos em diálogos, trocas entre pesquisadores dos mais diferentes
lugares e das mais distintas abordagens historiográficas, fortalecendo
o trabalho conjunto entre grupos de pesquisa das instituições envol-
vidas. Desejamos, ainda, que os textos aqui reunidos possam ajudar
a renovar saberes históricos, estimulando historiadores em suas tare-
fas de construção de novos objetos de pesquisa ou em suas atividades
de ensino nas universidades ou redes básicas de ensino, além de pos-
sibilitar, a partir da reflexão crítica, novos futuros possíveis.
Ana Rita Fonteles Duarte
Profa. do Departamento de História e Coordenadora do PPGH - UFC
Tem doutorado em História Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
É professora associada do Departamento de História da Universidade Federal do Ceará
(UFC). Atualmente, coordena o Programa de Pós-Graduação em História da UFC. É mem-
bro do corpo docente do Profhistoria (UFC). Tem experiência nas áreas de História e gê-
nero, história das mulheres, gênero e ditadura no Brasil. Coordena o Grupo de Pesquisas e
Estudos em História e Gênero (GPEHG/UFC/CNPq).

Ana Sara Cortez Irffi


Profa. do Departamento de História e Vice-coordenadora PPGH - UFC
Tem doutorado em História Social pela Universidade Federal do Ceará (UFC). É professora
do Departamento de História da UFC. É vice coordenadora do Programa de Pós-Graduação
em História (UFC). Coordenadora do Laboratório de Pesquisa em História Econômica
e Social - LAPHES. Tem experiência na área de História, com ênfase em História Social,
atuando, principalmente, nos temas: mundos do trabalho, mundo rural, escravidão, História
do Brasil, pesquisa, história e teoria.
Apresentação
Os estudos do patrimônio em interface com as políticas públicas
de memória e os processos de disputas que enredam ambos têm con-
tribuído para renovação da produção historiográfica nas últimas dé-
cadas. O passado, para transformar-se em memória compartilhada,
deve passar por um processo de seleção e reinterpretação, segundo as
sensibilidades culturais, interrogações éticas e políticas do presente
(TRAVERSO, 2012). Nesse contexto, as relações da sociedade com
o seu passado transmutadas em “dever de memória”, “obsessão co-
memorativa” e “inflação patrimonial” (HARTOG, 2013, POULOT,
2006) chamam os historiadores a participarem e refletirem sobre as
apropriações do passado e seus usos sociais no presente. Os usos so-
ciais do passado, consubstanciados pelo imperativo da patrimoniali-
zação e as dinâmicas identitárias contemporâneas, têm desafiado os
pesquisadores que trabalham com as políticas de preservação rela-
cionadas ao patrimônio e à memória a escapar dos excessos do dever
de memória sem, contudo, desconsiderar sua legitimidade.

A proposta dos três simpósios temáticos em questão: História


Pública, memória e patrimônio (Pedro Telles da Silveira — UFRGS),
História e historiografia do patrimônio cultural: espaços simbólicos em
múltiplos olhares e perspectivas (Almir Félix B. de Oliveira — PG-
TUR/UFRN e Christian Dennys M. de Oliveira — DEGEO/UFC) e
Patrimônio cultural e os usos políticos do passado no Brasil contem-
porâneo (Isabel Guillen — UFPE, Patrícia Alcântara — IPHAN-PI e
Antonio Gilberto Ramos Nogueira — GEPPM/UFC) foi trazer para
o debate as diferentes interpretações sobre o passado, presente e fu-
turo que conformam as narrativas concernentes à construção do pa-
trimônio cultural no Brasil. De modo geral, os simpósios reuniram
trabalhos acadêmicos que, à luz das demandas do tempo presente,
buscaram problematizar o campo do patrimônio cultural no Brasil,
a partir de diferentes caminhos. Em comum, está o lugar do patri-
mônio na operação historiográfica, bem como o papel da história na
construção de narrativas contemporâneas do patrimônio.

Coordenados por historiadoras e historiadores de distintas ins-


tituições, tais simpósios acolheram trabalhos cujas problemáticas
historiográficas versaram sobre os processos de patrimonialização
em suas contextualidades históricas, socioculturais, locais e também
teórico-metodológicos. Em perspectiva com os balanços de pesqui-
sas e produções historiográficas sobre o patrimônio, evidenciaram o
papel dos profissionais de história adensados pelo entrecruzamento
entre história pública e patrimônio cultural.

Assim, foram tratadas questões históricas dos processos de cons-


tituição de um campo patrimonial no Brasil, aspectos estruturais da
organização de políticas públicas contemporâneas, bem como dimen-
sões particulares de processos de construção identitária e patrimonial
em contextos locais. Monumentos (Bandeirantes) e a ressignificação
da história foram problematizados com base nos usos políticos do
passado e as produções historiográficas. Os denominados patrimô-
nios difíceis no debate público trouxeram para discussão os processos
de patrimonizalização de espaços que remetem à dor e ao sofrimento.
Também os espaços de memória prisional identificados no Brasil e em
Portugal foram abordados tendo em conta os acervos que constituem
tais espaços, visando potencializar o debate sobre o conceito de pa-
trimônio prisional. No campo da educação patrimonial, as questões
exploradas se deram a partir de perspectivas metodológicas do ensino
de história na educação básica, abordando os monumentos estatuários
(Fortaleza) e o tombamento de conjunto arquitetônico e urbanístico
(Sobral), além do papel do Serviço do Patrimônio História e Artístico
Nacional (SPHAN) no projeto educacional do Ministério da Educa-
ção e Cultura (MEC). O lugar do patrimônio industrial nas cidades
do nordeste (Parnaíba-PI, Recife-PE e região metropolitana) tiveram
leituras fundamentadas nos inventários e processos de tombamentos.
Centros de memória como espaços de recordação foram debatidos
a partir dos acervos e exposições: Memorial da Justiça do Trabalho
do Ceará (MJT-CE) e Sindicato do Comerciários de Fortaleza; Cen-
tro de História, Memória e Documentação (DHDM) do Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Pernambuco (IFPE).
A experiência educativa do Instituto de Memória do Povo Cearense
(IMOPEC) foi analisada com vistas a ressignificar a memória social
e o patrimônio cultural por meio dos movimentos sociais. O mote do
Centenário de nascimento de José de Alencar foi o recurso para pers-
crutar os trabalhos de memória assentados em discursos elogiosos.
Na perspectiva de uma Geografia do Patrimônio Cultural, teve lugar
a investigação do patrimônio carnavalesco do Rio de Janeiro e Per-
nambuco (Recife/Olinda) sob o olhar poético de Mário de Andrade
e Manuel Bandeira. A historicidade do conceito de folclore, cultura
popular e patrimônio imaterial foi abordada tendo como recorte a
experiência do Centro de Referência Cultural do Estado do Ceará
(Ceres) e o Encontro Mestres da Cultura da política dos Tesouros
Vivos da Cultura do Ceará. Os usos do passado na elaboração do pa-
trimônio cultural no gauchismo trouxeram o debate da construção
de regionalidades e territorialidades.

Por fim, vale ressaltar que pesquisadores e pesquisadoras presen-


tes vinculavam-se a instituições de ensino superior de diferentes re-
giões do Brasil, o que contribuiu para amplificar as redes do lugar do
patrimônio na historiografia e qualificar os debates dos simpósios.

Antônio Gilberto Ramos Nogueira


Prof do Departamento de História e do Programa de Pós Graduação em História - UFC
Tem doutorado em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).
Realizou estágio Pós-doutorado no Centro de Investigação em Antropologia-CRIA, Uni-
versidade Nova de Lisboa-UNL e no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de
São Paulo (USP). É professor associado do Departamento de História e do Programa de Pós
Graduação em História Social, da Universidade Federal do Ceará (UFC), e docente do Pro-
fHistória/UFC. É coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisa em Patrimônio e Memória -
GEPPM/UFC/CNPq e coordenador do GT História e Patrimônio Cultural (ANPUH-Brasil)

Referências
HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e expe-
riência do tempo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.
POULOT, Dominique. História do patrimônio no Ocidente. São Pau-
lo: Estação Liberdade, 2009.
TRAVERSO, Enzo. A emergência da memória. O passado, modos de
usar: história, memória e política. Lisboa: Edições UNIPOP, 2012.
Sumário
História pública, patrimônio e memória
“A história ao ar livre”: monumentos estatuários e o Ensino de His-
tória em praça pública / 15
Suor, memória e narrativa: os memoriais da Justiça do Trabalho do
Brasil na pandemia do Novo Coronavírus / 31

História e Historiografia do Patrimônio Cultural espaços


simbólicos em múltiplos olhares e perspectivas
Sob o prisma Amazônico: a preservação do patrimônio cultural bra-
sileiro sem a arte barroca e a arquitetura colonial / 47
Chaminés apagadas: o lugar do patrimônio industrial em Pernambuco
/ 61
Educação patrimonial ou instrução para o patrimônio? O lugar do
SPHAN no projeto educacional do Ministério da Educação (1930-
1945) / 77

Patrimônio Cultural e os usos políticos do passado no Brasil


contemporâneo
A questão da corda: autonomia devota no Círio de Nazaré em Belém
- PA / 95
O Instituto da Memória do Povo Cearense e a militância através do
Patrimônio Cultural / 111
A patrimonialização dos teatros brasileiros nos processos do IPHAN
/ 123
Que a história esteja sempre a seu favor: Usos políticos do patrimô-
nio em Sobral-CE, 1995-1999 / 135
A construção da memória social de José Alencar através dos discur-
sos elogiosos (Fortaleza/CE, 1929) / 151
O Festival da Barranca (desde 1972) e os usos do passado na elabo-
ração do patrimônio cultural no gauchismo / 161
As concepções de “Cultura Popular” no Projeto Literatura de Cordel
do Centro de Referência Cultural do Ceará - CERES (1975-1990)
/ 175

Índice remissivo / 191


História pública,
patrimônio e
memória
“A história ao ar livre”
Monumentos estatuários e o Ensino de
História em praça pública

Liesly Oliveira Barbosa1

Finalidades de um monumento estatuário em


praça pública

A cultura estatuária nas praças da cidade de Fortaleza apresenta


dois momentos. No primeiro momento, que tem início na segunda
metade do século XIX, os monumentos dispostos nas praças repre-
sentavam os ideais de modernidade inspirados nos padrões euro-
peus, sendo assim, tais monumentos eram inspirados nos modelos
greco-romanos. Durante esse primeiro período a cidade passava por
várias mudanças urbanísticas que pretendiam a higienização da ci-
dade, o controle e a disciplinarização urbana e social e o embeleza-
mento da cidade. A segunda fase da cultura estatuária em Fortaleza
se inicia ainda na segunda metade do século XIX e foi consequência
do fortalecimento do nacionalismo e da busca pela formação de uma
identidade nacional. Nesta, podemos perceber o crescimento dos
monumentos históricos e cívicos que celebram a memória comparti-
lhada por alguns grupos de indivíduos da nação.

1 Liesly Oliveira Barbosa. Mestranda do PROFHISTÓRIA — UFC 2020, Bolsista CAPES. Espe-
cialista em Metodologias do Ensino de História pela Universidade Estadual do Ceará e Licen-
ciada e Bacharel pela Universidade Federal do Ceará.

15
Patrimônio, memória e historiografia

É nesse período que percebemos uma tentativa maior de elabo-


ração de uma memória nacional e regional nos espaços urbanos da
cidade, por meio da nomenclatura de suas praças, logradouros e pela
ereção de monumentos dispostos em locais públicos, celebrando he-
róis nacionais e seus grandes feitos. Portanto, os monumentos seriam
utilizados de modo a representar e eternizar as glórias pátrias e teriam
uma função educativa, pois, através dos monumentos se contaria a
história do país e de seus filhos mais ilustres, mártires ou heróis.

É, portanto, nesse contexto que no dia 8 de abril de 1888 é inaugu-


rado em Fortaleza o primeiro monumento estatuário de caráter his-
tórico denominado Monumento Tibúrcio. A estátua em homenagem
ao general cearense, herói das Guerras do Uruguai e do Paraguai,
foi uma iniciativa de seus amigos e admiradores. Ela foi erigida na
antiga Praça de Palácio, que recebeu nova nomenclatura de Praça
General Tibúrcio, após ter sido eleita pela Câmara Municipal para
ser o local onde seria erguido o monumento.

Segundo a nota do jornal Libertador a respeito da idealização do


monumento Tibúrcio,

A história do monumento é muito breve. A 6 de Abril de


1885, poucos dias depois da morte de Tiburcio, alguns de
seus camaradas em palestra saudosa sobre o amigo morto
lembraram a necessidade de perpetuar o seu nome em mo-
numento duradouro. No dia 15 houve a 1ª. Reunião de offi-
ciaes do 14 batalhão de Infanteria para tratar do assumpto
e ficou resolvido realisar a idea por subscripção publica.
Não se tratava de uma estatua de praça, mas de um monu-
mento no cemiterio. O capitão Cândido Leopoldo Esteves,
natural de Santa Catharina, e presentemente enfermo na
côrte, foi quem propoz, e encorajou seus camaradas para
empenharem seus esforços em obra mais digna da patria e
da memoria do inclyto general (LIBERTADOR, 1988, s/p).

A partir deste relato podemos percebemos a mudança de atitude


em relação ao local destinado para celebração da memória. A inten-
16
“A história ao ar livre”:
Monumentos estatuários e o Ensino de História em praça pública

ção era perpetuar a memória do General para a posteridade e até


a data mencionada o local reservado para a criação de monumen-
tos estatuários era o cemitério. Mesmo diante da escolha do local e
do tipo de monumento com o qual o general seria homenageado foi
erigido um outro monumento no cemitério São João Baptista como
consta no relato de Barroso (1962, p. 325), que afirmava que “em vol-
ta do túmulo de Caio Prado se podia ver os sepulcros dos Generais
Sampaio e Tibúrcio, heróis das guerras sulinas”, onde foram depo-
sitados os restos mortais do General Tibúrcio, que posteriormente
foram transladados para a cripta criada sob a sua estátua. Já o monu-
mento no cemitério não foi preservado e atualmente não existe, ape-
nas é encontrada uma placa na parte lateral posterior da capela que
relata as informações referentes à transladação dos restos mortais do
General Tibúrcio. Vale destacar que este local não confere com a des-
crição do memorialista, pois está longe do local mencionado. Nes-
se sentido, surgem tais questões em nossa pesquisa. Será que houve
uma mudança posterior dos restos mortais de Tibúrcio para o local
atual onde não há monumentos? Será que Barroso se enganou na
descrição do túmulo ou na própria existência dele? Para responder
a estes questionamentos seria necessária uma pesquisa mais apro-
fundada. Neste momento, podemos somente levantar tais questões e
refletir sobre o monumento Tibúrcio a partir delas.

Como já foi mencionado anteriormente, a partir do século XIX


surge uma nova atitude em relação à celebração da memória, que
se difunde pela necessidade de formar uma identidade nacional. A
partir deste novo pensamento se faz necessário exaltar a memória
dos grandes heróis e seus grandes feitos e isto deve ocorrer em es-
paços de socialização e grande circulação, como as praças.

As finalidades de criação de um monumento podem ser as mais va-


riadas e, dentre elas, podemos citar: adornar, educar, comemorar fatos
históricos e celebrar memórias individuais ou coletivas. As primeiras
17
Patrimônio, memória e historiografia

esculturas erigidas em praças de Fortaleza foram postas para embele-


zar a principal praça da cidade. Tendo, portanto, a função de adorno.

No tocante aos diferentes usos dos monumentos, a função educa-


tiva passa a ter grande importância para os idealizadores dos monu-
mentos. Segundo Catroga:

Mais do que em qualquer outra cerimônia necromântica, as


comemorações cívicas mobilizam, explicitamente, a memó-
ria, chamando-a a desempenhar a mesma função pedagó-
gica que era atribuída a toda a literatura histórica. Daí que,
também nelas, a morte (o passado) fosse utilizada pela vida
(o presente e o futuro), pois “os homens superiores, pela no-
breza dos seus sentimentos, pelo poder de seu gênio criador,
pela porção de beleza que souberam espalhar prodignamen-
te, pela sua extrema dedicação à causa da humanidade, pelo
relevo das suas obras, onde a verdade esplende, pelo prestí-
gio da sua acção, e pela autoridade da sua palavra, exercem,
ainda depois de sua morte, uma extraordinária influência
social. Os vivos têm de recolher vantagens da obra imorre-
doura dos mortos (CATROGA, 2005, p. 107).

Assim sendo, as homenagens dedicadas aos heróis nacionais são


utilizadas como um instrumento de educação e patriotismo. A fun-
ção educativa dos monumentos pode ser percebida tanto no momen-
to de sua elaboração, quando é destacada pelos idealizadores a neces-
sidade de celebrar a memória para as pessoas de sua época, como
nas utilizações e interpretações realizadas na posteridade, quando os
mais variados setores da sociedade se utilizam da memória já insti-
tuída para discutir a história local.

Cabe, portanto, uma análise minuciosa dos monumentos


com os quais se pretende trabalhar, pois a pesquisa dos
documentos relativos à criação dos monumentos pode
esclarecer muito de seus significados. Vale destacar que:
A partir da análise dos monumentos, podemos interpre-
tar os significados destes no contexto social em que foram
erigidos e tentar entender o que estes representavam para
o imaginário social da época. Como? Por quê? Para que?
E por quem são escolhidos? Pois, sendo então a memó-
18
“A história ao ar livre”:
Monumentos estatuários e o Ensino de História em praça pública

ria interpretada como uma construção social podemos


perceber que não é um mero acaso o ato de selecionar
personagens e fatos que devam ser perpetuados. Vale res-
saltar que o que está em jogo no momento da escolha é o
caráter exemplar do que deve ser rememorado (BARBO-
SA, 2006).

Atualmente, termos como: educação patrimonial e história local


parecem estar em grande evidência no campo historiográfico. Al-
gumas iniciativas trabalham, em aulas de campo, o patrimônio da
cidade na tentativa de preservar a memória local. Porém, não há tra-
balhos de pesquisa mais aprofundados a respeito dos monumentos
que são analisados, levando a interpretações equivocadas a respeito
da memória idealizada pelos criadores da mesma.

Um breve histórico dos dispositivos legais


do ensino de história e a valorização das
celebrações cívicas

Ao destacar as particularidades da área de História, os Parâme-


tros Curriculares Nacionais (PCN) perfazem o percurso histórico
da legislação educacional brasileira desde a criação do decreto de
1827, que é considerado a primeira lei dedicada à educação do Brasil,
abordando as concepções científicas e o processo de instalação das
instituições de ensino do Brasil desde o período do Império.

Segundo os Parâmetros nesses primeiros anos da implantação do


sistema educacional brasileiro, “a História a ser ensinada compreen-
dia História Civil articulada à História Sagrada; enquanto está utili-
zava-se do conhecimento histórico como catequese, um instrumento
de aprender a moral cristã, aquela o utilizava para pretextos cívicos”
(BRASIL, 1997, p. 19).

Assim, é interessante perceber como a sociedade daquela época


se apropriava dos eventos cívicos e atos de celebração nacional, tais
19
Patrimônio, memória e historiografia

como a inauguração de monumentos e festejos cívicos, para destacar


o papel da História como formadora da identidade nacional.

Ainda segundo a lei, somente a partir de 1870 é que se buscou


nos currículos das escolas uma separação entre a História Sagrada e
a História profana influenciada pelo modelo francês que passou a ser
seguido como regulamentação para a disciplina de História. Mas, no
entanto, o que se pode perceber na prática é que a História Sagrada
ainda tinha forte influência. Durante esse período, segundo a lei:

Os programas de História do Brasil seguiam o modelo


consagrado pela história Sagrada, substituindo as narra-
tivas morais sobre a vida dos santos por ações históricas
realizadas pelos heróis considerados construtores da na-
ção, especialmente governantes e clérigos. A ordem dos
acontecimentos era articulada prela sucessão de reis e
pelas lutas contra os invasores estrangeiros, de tal forma
que história culminava com os grandes eventos da In-
dependência e da Constituição do Estado Nacional, res-
ponsáveis pela condução do Brasil ao destino de ser uma
grande nação (BRASIL, 1997, p. 20).

Mesmo após a proclamação da República, o currículo de História


continuava tendo o caráter civilizatório e patriótico. Este fato pode ser
percebido quando da participação das instituições escolares nos diversos
festejos e atos cívicos nacionais ou regionais. Conforme então os PCN´s:

A moral religiosa foi substituída pelo civismo, sendo que os


conteúdos patrióticos não deveriam ficar restritos ao âmbi-
to específico da sala de aula. Desenvolveram-se, nas esco-
las, práticas e rituais como festas e desfiles cívicos, eventos
comemorativos, celebrações de culto aos símbolos da Pá-
tria, que deveriam envolver o conjunto da escola demar-
cando o ritmo do cotidiano escolar. (BRASIL, 1997, p. 21).

Ainda segundo os PCN´s, nas primeiras décadas do século


XX, não houve mudanças significativas no campo metodológico;
porém, com o desenvolvimento das propostas escolanovistas, na
20
“A história ao ar livre”:
Monumentos estatuários e o Ensino de História em praça pública

década de trinta, outras atividades passaram a ser desenvolvidas


em substituição aos processos de memorização dos conteúdos,
tais como: aulas de campo, visitas a museus, realização de maque-
tes etc. Essa abertura a novos espaços da memória foi fundamen-
tal para os estudos voltados para o patrimônio.

O movimento escolanovista se desenvolve no Brasil a partir da in-


fluência da pedagogia norte-americana, principalmente a partir das
ideias do filósofo John Dewey. Nesta proposta, a educação é uma ne-
cessidade social, nela as pessoas devem ser aperfeiçoadas para que se
afirme o prosseguimento na sociedade, ou seja, para que possam am-
pliar seus conhecimentos e ideias. A escolanovista propunha a subs-
tituição das disciplinas de História e Geografia pelos Estudos Sociais,
especialmente no ensino elementar. Ainda na década de trinta, com
a criação do Ministério da Educação e Saúde Pública e da Reforma
Francisco Campos, nome da primeira reforma educacional de caráter
nacional, o Estado centralizou seu poder e o controle sobre o ensi-
no. A educação teve papel importante, pois era usada como aparelho
de dominação do Estado e formadora do sentimento de patriotismo
e de bons cidadãos. Durante o Estado Novo, o Ministro Capanema
reformou o ensino secundário: o mesmo foi dividido em três cursos:
o primário, com duração de quatro anos; o ginasial, com a mesma du-
ração; e o clássico ou científico, com duração de três anos. A formação
docente também passou a ser estruturada a partir das faculdades de
Filosofia, Ciências e Letras, criadas nos primeiros anos da década de
trinta. Nesse contexto, a História tinha como tarefa enfatizar o ensino
patriótico. E para tanto, esta matéria teve sua carga horária ampliada
e a História Geral e a História do Brasil passaram a ser áreas distintas,
sendo privilegiada a História brasileira.

No pós-guerra, a disciplina de História passou a ser fundamental


na formação de cidadãos conscientes de seu papel na sociedade e
para tanto foram dedicados novos estudos para a elaboração da or-
ganização curricular e de materiais didáticos. Propostas inovadoras
21
Patrimônio, memória e historiografia

e conservadoras disputavam o cenário educacional. Nas décadas de


50 e 60 se inicia o processo de substituição da disciplina de História
e Geografia pelos Estudos Sociais, projeto que se concretiza poste-
riormente durante a ditadura militar, com a Lei n. 5.692/71. A ten-
tativa era esvaziar o caráter político e formador de consciência da
disciplina e valorizar o caráter nacionalista e ufanista defendido e
controlado pelo regime civil-militar. Nesse sentido, a disciplina per-
de seu caráter de formador de cidadãos conscientes e passa a formar
indivíduos obedientes ao Estado.

Somente durante o processo de redemocratização, na década de 80,


é que a História passou a ser novamente uma disciplina curricular das
escolas. Este processo foi fruto das discussões que estavam centradas
nos debates historiográficos e a partir deles surgem novas abordagens
e temáticas para o ensino de História. Portanto, a educação patrimo-
nial só pode ser entendida se analisada a partir dos estudos das novas
abordagens históricas que surgiram a partir desse período.

Os parâmetros curriculares nacionais de


história e o ensino de história através dos
monumentos estatuários

Os PCN’s do ensino fundamental I não dedicam à educação pa-


trimonial um capítulo em especial, porém este assunto é trabalhado
dentro dos vários temas abordados para o ensino de História. Isto
pode ser percebido ainda na delimitação dos objetivos gerais do en-
sino fundamental, nos quais, segundo os PCN’s, os alunos devem ser
capazes de “saber utilizar diferentes fontes de informação e recur-
sos tecnológicos para adquirir e construir conhecimentos” (BRASIL,
1997, p. 33). Assim como também nos objetivos gerais de História
para o ensino médio, nos quais é destacada a necessidade de os alu-
nos serem capazes de “utilizar métodos de pesquisa e de produção
22
“A história ao ar livre”:
Monumentos estatuários e o Ensino de História em praça pública

de textos de conteúdo histórico, aprendendo a ler diferentes registros


escritos, iconográficos, sonoros” (BRASIL, 1997, p. 33).

A partir desses objetivos podemos fazer referência à necessidade


da leitura dos vários tipos de documentos históricos para a aquisi-
ção do conhecimento. É fundamental que os alunos possam saber
interpretar a escrita da história, assim como saber ler e interpretar
imagens, músicas, filmes, monumentos, e demais fontes históricas
que possam ser trabalhadas em sala de aula ou em aulas de campo.

Dentre os objetivos de história para o primeiro ciclo tratados na


lei é destacado ainda a necessidade do aluno “identificar alguns do-
cumentos históricos e fontes de informações discernindo algumas de
suas funções” (BRASIL, 1997, p. 40). Neste caso, podemos perceber
que não cabe apenas ao aluno conhecer e conseguir ler o documento,
mas também perceber qual a função do mesmo.

No primeiro ciclo, os eixos temáticos trabalhados são o da Histó-


ria local e o da História do cotidiano. Ambos são aspectos mais pró-
ximos do convívio dos alunos e, portanto, possibilitam a este realizar,
através da observação, comparações para compreender as relações
sociais, econômicas, políticas e culturais do seu tempo, percebendo
nele a influência de outras épocas e outros atores sociais.

Em relação ao segundo ciclo, os PCN´s destacam que, “no primeiro


ciclo, os questionamentos são realizados a partir do entorno do aluno,
com o objetivo de levantar dados, coletar entrevistas, visitar locais públi-
cos, incluindo os que mantêm acervos de informações, como bibliotecas
e museus” (BRASIL, 1997, p. 45). Além disso, os PCN’s fazem referência
à necessidade de o professor criar para os alunos situações que estimu-
lem a aprendizagem, para que os mesmos se sintam motivados a com-
parar as diversas fontes documentais que devem ser trabalhadas com os
alunos no momento da construção do conhecimento. É neste momento
que os alunos podem expressar suas opiniões a respeito do assunto e
criar diferentes explicações para os acontecimentos estudados, possibi-
23
Patrimônio, memória e historiografia

litando assim ao aluno investigar documentos diversos e lançar hipóte-


ses a respeito de suas interpretações a partir dos dados. Em relação aos
objetivos do segundo ciclo, destacamos em relação ao trabalho com os
monumentos a necessidade do aluno “utilizar diferentes fontes de
informação para leituras críticas” (BRASIL, 1997, p. 46)

A lei destinada ao terceiro e quarto ciclo de ensino também ini-


cia com um breve histórico da legislação educacional no Brasil. A lei
apresenta a área de História como fundamental para o aluno enten-
der a realidade em que está inserido. Isto se realiza a partir da análise
dos atos de indivíduos e grupos do passado a partir dos estudos de
âmbito mais restrito como no caso do local, até chegar ao mais amplo,
relativo à escala mundial. Para realizar esta análise a lei propõe o tra-
balho com diferentes fontes e documentos, permitindo-nos destacar
a importância das diferentes linguagens para o ensino de História.

Nessa fase inicial, de caracterização da área de História, a lei não


menciona especificamente os monumentos estatuários como docu-
mentos, porém ela o fará posteriormente em vários momentos quando
tratar dos tipos de documentos que podem ser utilizados pelo professor.

Ademais, nos PCN’s afirma-se que não se aprende história


apenas na sala de aula. Atualmente, temos acesso a uma série de
informações em tempo quase que instantâneo nos mais diversos
setores da sociedade em que vivemos e é a partir desses diversos
contatos que temos os primeiros contatos com a História. A par-
tir da observação do meio e do cotidiano dos ciclos sociais aos
quais estão inseridos e dos quais eles não participam, os alunos
percebem vivências variadas, mudanças e permanências nos cos-
tumes. A esse somatório de informações se acrescentam aquelas
construídas e adquiridas em sala de aula. Estes conhecimentos
escolares somados aos já apreendidos pelos alunos ressignificam
o senso comum pela ampliação dos conteúdos. É, portanto, papel
24
“A história ao ar livre”:
Monumentos estatuários e o Ensino de História em praça pública

do professor mediar os alunos nesse processo de aquisição dos


conhecimentos escolares e ressignificação dos já aprendidos.

Quanto aos objetivos gerais da História, a lei referente ao terceiro


e quarto ciclo de ensino não difere em relação ao nível de primei-
ro e segundo, modificando apenas a escrita do texto, pois destaca
a necessidade de “dominar procedimentos de pesquisa escolar e de
produção de texto, aprendendo a observar e colher informações de
diferentes paisagens e registros escritos, iconográficos, sonoros e ma-
teriais”. (BRASIL, 1998, p. 43).

Outro objetivo que não aparecia no ciclo anterior e pode auxiliar nos
trabalhos com os monumentos é o que se refere ao fato da necessidade
do aluno “compreender que as histórias individuais são partes integran-
tes de histórias coletivas” (BRASIL, 1998, p. 43). Esse objetivo da lei é
fundamental na justificativa da educação patrimonial por meio do es-
tudo das estátuas, pois é a partir da análise das mesmas que compreen-
demos o contexto histórico no qual o indivíduo celebrado está inserido.

Quanto aos objetivos específicos do terceiro e quarto ciclo do en-


sino fundamental destacamos que a lei propõe que ao final de cada
um deles, o aluno seja capaz de utilizar fontes históricas em suas pes-
quisas escolares. Vale destacar que nesse tópico não é explicitado que
tipo de fontes o aluno deve utilizar, porém no decorrer da lei encon-
tramos a menção em relação à utilização de fontes variadas e dentre
elas o trabalho com os monumentos estatuários.

Outro tópico da lei que aborda a questão do trabalho com di-


versas fontes, e dentre elas os monumentos estatuários, é intitula-
do “Orientações e métodos didáticos”. Neste as situações didáticas
propostas pela lei buscam representar as novas teorias da História.
Segundo tais teorias, tudo que é produzido pelo homem pode ser
considerado objeto de análise histórica, porém a utilização dessas
fontes em sala de aula requer que o professor conheça e trabalhe com
algumas abordagens específicas para o trabalho com cada tipo de
25
Patrimônio, memória e historiografia

fonte selecionada. Outro ponto a ser destacado é a necessidade de


confrontar fontes diversas para obter uma maior quantidade de in-
formações, sejam elas complementares ou divergentes. Vale destacar
que o documento deve ser analisado a partir do contexto em que foi
criado para evitar assim os anacronismos.

Os parâmetros referentes ao último nível da educação básica


são apresentados de forma mais objetiva, diferentemente, pois, dos
níveis anteriores. Os PCN’s do ensino médio dedicam a área da
História apenas algumas páginas, enquanto os dos níveis anteriores
são abordados em forma de pequenos livros. Isto deve estar rela-
cionado ao fato de se acreditar que os professores já tenham tido
contato com a lei dos níveis anteriores.

A apresentação da parte referente à História é precedida pelo de-


bate acerca da área onde a mesma está inserida, ou seja, as Ciências
Humanas e suas tecnologias. Assim como nos PCN’s dos níveis an-
teriores à lei inicia a discussão do tema a partir de um histórico da
legislação e da educação brasileira, em relação às disciplinas traba-
lhadas na área. Esse tópico assim como a parte referente à História
é introduzido pela imagem de alunos analisando um monumento
histórico, o que destaca mais uma vez, a importância dos estudos da
história a partir dos monumentos, e, dentre estes, as estátuas, pois
nas duas imagens os alunos observam bustos.

As imagens que ilustram a lei nesse nível de ensino são comple-


mentadas por pequenos textos e, assim, este fato o difere dos ní-
veis anteriores, nos quais são apresentadas apenas figuras. O texto
que complementa a imagem apresentada no início da área dos
conhecimentos de História reforça a importância dos monumen-
tos no ensino desta disciplina. Segundo a lei, “proporcionar aos
alunos o contato ativo e crítico com as praças, edifícios públicos
e monumentos é excelente oportunidade para o desenvolvimento
de uma aprendizagem significativa” (BRASIL, 2002, p. 298). O
26
“A história ao ar livre”:
Monumentos estatuários e o Ensino de História em praça pública

contato direto com o objeto de estudo estimula os alunos e facilita


a aprendizagem. Portanto, é necessária a utilização de diversos tipos
de fontes e para cada uma delas, metodologias específicas.

A lei também destaca a necessidade de analisar os documentos


em seus aspectos objetivos, ou seja, as informações contidas no do-
cumento, mas também em seus aspectos subjetivos, aqueles que não
estão escritos no mesmo, como saber para qual fim aquele documen-
to foi criado, a quem ele representa etc.

A História assim como as demais disciplinas é peça importante


na formação da cidadania, objetivo principal da educação. E para
que esta se realize, a lei destaca a importância do direito à Memória,
pois este faz parte da cidadania cultural, fato que livrará “as novas
gerações da amnésia social que compromete a constituição de suas
identidades individuais e coletivas” (BRASIL, 2002, p. 305).

Dentre as competências e habilidades a serem desenvolvidas em


História, que é o último tópico dos PCN’s da disciplina, podemos
destacar algumas que se relacionam diretamente com o estudo dos
monumentos estatuários, são elas:

Criticar, analisar e interpretar fontes documentais de natu-


reza diversa, reconhecendo o papel das diferentes lingua-
gens, dos diferentes agentes sociais e dos diferentes contex-
tos envolvidos em sua produção; atuar sobre os processos
de construção da memória social, partindo da crítica dos
diversos “lugares de memória” socialmente instituídos e
situar as diversas produções da cultura — as linguagens,
as artes, a filosofia, a religião, as ciências, as tecnologias e
outras manifestações sociais — nos contextos históricos de
sua constituição e significação. (BRASIL, 2002, p. 307).

Ao comparar este tópico com os objetivos propostos nos parâmetros


dos outros níveis de ensino, compreendemos que a lei dedica uma maior
atenção à análise dos diferentes tipos de documentos históricos e dentre
eles, em especial os lugares de memória, portanto, é fundamental para o
27
Patrimônio, memória e historiografia

professor tomar conhecimento da lei e desenvolver trabalhos que envol-


vam os diversos tipos de fonte e dentre elas os monumentos estatuários
em seus programas de ensino. Como já mencionado, as aulas de campo
proporcionam aos alunos uma maior interação com o objeto de estudo,
o que o estimula a construir o conhecimento.

A letra da Lei, portanto, fornece à educação um caminho a seguir,


mas não assegura o seu cumprimento nos espaços escolares. Sendo as-
sim, cabe aos professores proporcionar aos alunos uma educação crítica
que promova a efetivação dos processos de ensino-aprendizagem, per-
mitindo então aos alunos o seu desenvolvimento intelectual e pessoal.

Pesquisar, analisar e estimular o processo de ensino-aprendizagem


parte do trabalho do professor, mas só se realiza plenamente se for per-
cebido pelo aluno como algo importante e necessário para o seu cresci-
mento intelectual e pessoal. Propiciar aos alunos maneiras mais interes-
santes de construir o conhecimento são fundamentais para o sucesso do
processo de desenvolvimento intelectual.

Na perspectiva da educação patrimonial, o Monumento Tibúrcio,


assim como outros monumentos históricos de Fortaleza, apresenta-se
como fontes históricas importantes para a construção do processo de
ensino-aprendizagem. Pois, ao estabelecer as relações entre as fontes que
envolvem o objeto de estudo o aluno é motivado a interpretá-los, e a
partir deles, a construir o próprio conhecimento.

Referências
BARBOSA, Liesly Oliveira. A memória moldada no bronze. O monu-
mento Tibúrcio e a evocação do passado. Monografia (Graduação em
História). Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2006.
BARROSO, Gustavo. À margem da história do Ceará. Fortaleza: Im-
prensa Universitária do Ceará, 1962.
BRASIL. Secretaria da Educação Fundamental. Parâmetros curri-
culares nacionais: história, geografia. Secretaria de Educação funda-
mental. Brasília: MEC/SEF, 1997.

28
“A história ao ar livre”:
Monumentos estatuários e o Ensino de História em praça pública

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curricu-


lares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: intro-
dução aos parâmetros curriculares nacionais. Secretaria de Educação
Fundamental. — Brasília: MEC/SEF, 1998.
BRASIL, Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros cur-
riculares Nacionais: ensino médio. Ministério da Educação, Secretaria
de Educação Média e Tecnologia. — Brasília: MEC; SEMTEC, 2002.
CATROGA, Fernando. Nação, mito e rito: religião civil e comemora-
cionismo (EUA, França e Portugal). Fortaleza: Edições NUDOC / Mu-
seu do Ceará, 2005.

29
Suor, memória e narrativa:
os memoriais da Justiça do Trabalho do
Brasil na pandemia do Novo Coronavírus

Carla Bianca Carneiro Amarante Correia1

Introdução

Em março de 2020 iniciou-se o isolamento social em Fortaleza/CE


devido à pandemia do novo coronavírus. Em detrimento desse contex-
to, os espaços museais, arquivos e afins precisaram fechar suas portas
por tempo indeterminado. Como consequência e medida de contenção
da propagação do vírus, foi decretado isolamento social a partir de 19
de março de 2020, e devido a isso não pude ter contato presencial com
muitas das fontes que vinha visualizando para a pesquisa de mestrado.
No entanto, ao longo do isolamento e em diálogos com Régis Lopes,
orientador de minha pesquisa de mestrado em História Social, surgiram
novas perspectivas e outras possibilidades de fontes que se integram e
constroem relações contemporâneas com as fontes antes alcançadas.
Passei então a pensar os espaços virtuais de memória da Justiça do Tra-
balho e paralelamente outros espaços museais, que necessitaram adap-
tar-se ao atual contexto de distanciamento social em decorrência da cri-

1 Mestranda em História Social na linha de pesquisa de Memória e Temporalidades, do Pro-


grama de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Ceará, através de
fomento via bolsa CAPES. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa e Estudos em História e Gê-
nero (GPEHG/CNPq UFC) e do Grupo de Estudos e Pesquisas em Memória e Patrimônio
(GEPPM/CNPq/UFC).

31
Patrimônio, memória e historiografia

se global de saúde, analisando também quais movimentos foram dados


por essas instituições e quais suas motivações.

Tendo em perspectiva as questões apontadas anteriormente, irei


mobilizar problematizações acerca de como esses memoriais passaram
a apresentar-se no espaço da internet. Quais narrativas eles mobilizam
para o âmbito virtual? É comum ao estarmos “passeando” pelas redes
sociais nos depararmos com conteúdos produzidos pelos memoriais
da Justiça do Trabalho? Os questionamentos que trago se delineiam
a partir da percepção de um movimento de virtualização dos espaços
museais e em que a maioria das instituições de memória da Justiça
do Trabalho, ao que parece, não seguiram este movimento. Como
é possível traçar paralelos com as experiências de outros museus,
como os museus históricos, ao redor do Brasil?

Partindo disso, irei trazer aqui minhas percepções e visões acerca


dessa experiência de virtualização no período da pandemia do novo co-
ronavírus em 2020, traçando uma espécie de depoimento, para pôr no
papel se assim podemos dizer, o afeto e o desejo que existe por trás de
toda pesquisa para além da epistemologia. Pois, parafraseando a filó-
sofa Carla Akotirene “o desafio político [e teórico] é rejeitar quaisquer
expectativas literárias elitistas, jargões acadêmicos, escrita complexa na
terceira pessoa e abstrações científicas paradoxais sob a sombra ilumi-
nista eurocêntrica” (AKOTIRENE, 2019, p. 14), especialmente em um
contexto de intensa crise do capitalismo, e de avanço de políticas neoli-
berais como o que estamos inseridos globalmente na atual conjuntura.

Terei como intuito, consequentemente, apontar as contradições que


nascem das relações com os sujeitos presentes na pesquisa que venho
desenvolvendo no mestrado, pesquisa esta que visa problematizar as
relações que se imbricam por trás e intrinsecamente as exposições pre-
sentes nos Memoriais da Justiça do Trabalho do Ceará e no Sindicato
dos Comerciários de Fortaleza, através de uma fundamentação teórica e
prática da interseccionalidade. O percurso para escrita deste texto se dá
32
Suor, memória e narrativa:
Os memoriais da Justiça do Trabalho do Brasil na pandemia do Novo Coronavírus

ao iniciar o contato com as fontes físicas, que nos dão cheiros e sensações
sobre o momento em que se constrói o MJT-CE. Tomei consciência,
portanto, de outras problemáticas que precediam e que contemporanea-
mente estruturam as contradições presentes não somente no MJT-CE,
mas visíveis em vários outros memoriais da Justiça do Trabalho pelo
Brasil a fora, acerca da relação entre virtual e presencial.

Os movimentos e os não-movimentos de
virtualização dos espaços museais na
pandemia do novo coronavírus

Construção de uma espacialidade virtual pelos


memoriais da Justiça do Trabalho

Na última década deste século muitos espaços museais brasileiros


passaram a utilizar de forma ativa e integrante as suas dinâmicas os
espaços virtuais, especialmente as redes sociais. Dialogando com o tre-
cho acima mencionado, os museus vêm passando por metamorfoses
(VELHO, 1994) latentes e até mesmo involuntárias em seus projetos
(VELHO, 1994) de construção especialmente desde a metade do sécu-
lo XX2. O trecho acima foi retirado de um breve texto produzido pelo
historiador Peter Burke para o jornal Folha de São Paulo, o artigo mes-
mo tendo sido produzido nos anos 90, dialoga de forma intensa com
nossos processos e dinâmicas em diferentes temporalidades.

Ao entendermos os espaços museais como lugares de comunicação,


e deve-se dar o destaque aqui do seu uso historicamente pelas elites

2 Aqui me refiro aos movimentos transcorridos no continente europeu em fins da década de


1960, marcadamente conhecido como “maio de 68”, movimentos esses que questionaram as
ordens institucionais e promoveram deslocamentos das dinâmicas vigentes. Mas me refiro es-
pecialmente às mudanças estruturais no âmbito, não somente, da cultura, ocorridas em detri-
mento das ditaduras instauradas em vários países da América Latina. Esses eventos resultam
em modificações e rompimentos que guardam permanências em nossa construção atual en-
quanto sociedade brasileira (ARANTES. 1991; MENESES, 1992).
33
Patrimônio, memória e historiografia

para comunicar signos e discursos ocultos do poder, devo, entretanto,


destacar também a potência mobilizadora desses espaços, os variados
campos de possibilidades que ali se projetam pois, “naquele espaço, na-
quele período de tempo, cruzaram-se várias trajetórias e trilhas socio-
lógicas e culturais” (VELHO, 1994, p. 19). No contexto da pandemia
do novo coronavírus, assim como outros contextos, tal qual o de onde
Burke se porta a nós, os espaços museais a passaram por adequações
e construções de outros modos de comunicar, mas estes espaços mu-
seais desviaram de forma estrutural de seus projetos? Como se diferem
as narrativas construídas nesses espaços virtuais?

Ao iniciar o movimento de perspectivar outras fontes e adentrar


o espaço virtual com olhos mais atentos, acreditei que seria possível
encontrar variados perfis nas redes sociais, como no Instagram e Fa-
cebook, dos memoriais da Justiça do Trabalho que se espalham pelos
estados brasileiros, no entanto, isso não ocorreu. Esse meu pensa-
mento acaba por derivar de referenciais específicos, como meu pró-
prio consumo individual de conteúdo virtual produzido por museus
que passaram a impulsionar suas redes sociais alcançando outros
públicos e propondo atividades que extrapolam as habitualmente
realizadas, mesmo pondo em perspectiva as limitações presentes no
uso dos espaços virtuais, tanto para quem organiza quanto para os
públicos. Mas também derivou da experiência de contato com os di-
tos “museus virtuais”, fenômeno recente de grande propulsão social.

Em se tratando dos “museus virtuais”, estes em muito se diferem


do fenômeno que estamos vivenciando no atual contexto. Apesar do
conceito de “museu virtual” não ter muito mais do que duas déca-
das, como aponta Diane Lima (2013), o campo da museologia que se
volta para o estudo desta tipologia museal o caracterizou até então
como um espaço, ou não-espaço, como aborda o Pierre Lévy (1996),
que possui suas metodologias e modos de fazer próprios, existindo,
portanto, uma razão para determinados museus serem virtuais e não
34
Suor, memória e narrativa:
Os memoriais da Justiça do Trabalho do Brasil na pandemia do Novo Coronavírus

físicos. Muitos museus virtuais estão somente no ciberespaço, por te-


rem sido pensados no intuito de construir novas formas de dialogar
com os públicos, rompendo com um tradicional espaço físico rela-
cionado à ocupação de um território material, tangível, passando a
se deparar com o espaço virtual, material, intangível e também iden-
tificado por muitos autores como desterritorializado (LIMA, 2013).

Penso, em convergência com Lima, que o cenário de virtualização


dos museus na pandemia não se caracteriza enquanto construções
de museus virtuais, pois a existência dessas ações virtuais em sua
maioria se configura como ações emergenciais de continuidade das
atividades que necessitaram ser interrompidas, uma expressão do
museu físico impossibilitado de ser acessado. Mas não somente, se
caracterizam também como práticas de manutenção de seus respec-
tivos equipamentos físicos que passam por tentativas continuadas
de sucateamento por parte do Estado, e que foram intensificadas no
contexto de acirramento do capitalismo na pandemia4.

Espaços museais que não haviam aderido ao processo de virtua-


lização de suas atividades nas primeiras décadas deste século foram
obrigados, como mencionado anteriormente, a se inserirem nos es-
paços virtuais como as redes sociais, sendo estas os de atividade mais
constante. No entanto, mesmo colocando para análise o contexto de
acirramento do capitalismo que se intensificou nos últimos meses, os
memoriais da Justiça do Trabalho massivamente não aderiram a vir-
tualização, tendo pouquíssima atividade virtual antes e durante a pan-
demia. O que significa no atual contexto a ausência de ações virtuais?

Para contextualizar a relação entre as fontes físicas e digitais, irei


trazer aqui um pouco acerca do contato com o Projeto de Implanta-
ção do Memorial da Justiça do Trabalho do Ceará, datado de 1998,
no transcorrer da experiência do estágio, bem como com outros do-
cumentos administrativos e dissídios coletivos que me geraram incô-
35
Patrimônio, memória e historiografia

modos e questionamentos, especialmente acerca das tensões internas


por domínio da narrativa e construção de uma memória única do
trabalho. Essas disputas se tornam visíveis através dos documentos e
ganham sentindo ao longo do exercício de perceber quem são os e as
protagonistas dessas tensões.

Sobrepõem-se como primeiras as contradições visíveis e incon-


tornáveis acerca da idealizadora do MJT-CE. Através das fontes mui-
to se pode aferir sobre a curadora e organizadora do Projeto de Im-
plantação deste memorial, mulher branca, de classe média alta e que
ocupa um lugar demarcado de poder desde a década de 1970, Walda
Motta mesmo sendo mulher não somente dialoga como constrói ins-
trumentos para domínios de narrativa para as elites cearenses, pois
como aponta Angela Davis em Mulheres, raça e classe, se faz impos-
sível ignorar o caráter interseccional nas problemáticas apontadas.

Os demais memoriais da Justiça do Trabalho no Brasil não se dis-


sociam dessa lógica, e é possível perceber isso em suas construções
virtuais, o cenário da pandemia colocou-me no lugar de encarar ob-
jetivamente essas problemáticas através de outros meios, dedicando
mais atenção a problematizar como o espaço virtual pode ser um
instrumento de reiteração da lógica vigente a partir dos seus silên-
cios. Comecei, então, pesquisando mais sobre como o Memorial da
Justiça do Trabalho do Ceará se apresentava na internet, partindo de
questionamentos como, os memoriais da Justiça do Trabalho estão
na internet? Já possuía um conhecimento prévio sobre este memorial
pois fui estagiária durante dois anos5 nesta instituição e tive contato
direto com a gestão da instituição e observei que o destaque para o
Memorial no âmbito virtual era consideravelmente pequeno.
36
Suor, memória e narrativa:
Os memoriais da Justiça do Trabalho do Brasil na pandemia do Novo Coronavírus

Figura 1 - Site do Memorial da Justiça do Trabalho do Ceará

Disponível em: https://www.trt7.jus.br/memorial/index.php?option=com_content&-


view=category&id=8&Itemid=102
Para compreender as questões acerca da existência ou da ausência
de virtualização das narrativas dos memoriais da Justiça do Trabalho,
é necessário expor algumas das reflexões acerca das mobilizações
que enveredaram na criação destes espaços museais. Ao longo das
últimas décadas do século XX os Tribunais Regionais do Trabalho
no Brasil dedicaram esforços para construção e institucionalização
de uma memória do trabalho através dos memoriais, demarcando
disputas pela apropriação de narrativas hegemônicas acerca da me-
mória do trabalho ao redor do país, no intuito de produzir a prosa da
constrainsurgência (GUHA, 1999).

Essa narrativa contrainsurgente, institucionalizada em espaços mu-


seais teria sido mobilizada em decorrência dos movimentos de tra-
balhadores em resposta ao acirramento das políticas neoliberais em
curso, pois ocorreu um “processo de maior heterogeneização, frag-
mentação e complexificação da classe trabalhadora” (ANTUNES,
2000, p. 62), que enveredou em uma série de conflitos trabalhistas que
marcaram o final do século XX3.

3 A década de 1980 é marcada por uma expansão nas demandas trabalhistas por meio de greves, e
maior prioridade a resolução dos problemas nos locais de trabalho por parte do “novo sindicalis-
37
Patrimônio, memória e historiografia

Ranajit Guha traz na construção de seu conceito de prosa da


contrainsurgência, as investidas por parte do Estado na Índia em
tentativas de supressão e controle dos movimentos campesinos
insurgentes através de discursos ocultos e se utilizando inclusive
dos discursos mobilizados pelos camponeses. Opero esse concei-
to no sentido de problematizar que, com a complexificação das
relações de trabalho e o aumento crescente de greves e ações ope-
rárias, o Estado passou a se utilizar construções de narrativas en-
voltas de discursos ocultos para enquadrar as noções de trabalho
em lugares de manutenção do poder das elites.

Entendendo, portanto, que se engendram disputas, mas como se


configuram essas disputas e propriamente a narrativa incutida nesses
espaços museais que ascendem no transcorrer do final do século XX?
Ao pensarmos que estes espaços operam como espaços de poder com
a intenção de narrar o que é trabalho e quem são os trabalhadores
brasileiros, volto para o ponto inicial de discussão deste artigo, a cons-
trução narrativa dos memoriais no âmbito virtual. Qual a relação exis-
tente entre a forma como se constitui o memorial lá nos anos 1990, e a
forma como esses outros memoriais se mostram na internet?

o que significa, então, no atual contexto a


ausência de ações virtuais?

O espaço virtual como instrumento de reiteração da


lógica vigente a partir dos seus silêncios

Como tracei no tópico anterior, a ausência de mobilizações por


parte dos memoriais da Justiça do Trabalho nos espaços virtuais,
provêm de uma construção anterior interconectada ao projeto de

mo”. Enquanto a década de 90 é marcada por um considerável aumento na procura pela Justiça
do Trabalho, em reação à precarização das condições de trabalho (MATTOS, 2009, p. 120-127).

38
Suor, memória e narrativa:
Os memoriais da Justiça do Trabalho do Brasil na pandemia do Novo Coronavírus

fundação, mas principalmente as metamorfoses pelas quais essas


instituições passaram no transcorrer do início deste século. As ne-
gociações em torno das narrativas internamente aos memoriais, e
externamente referentes ao horizonte de expectativa (KOSELLECK,
2006) para com Justiça do Trabalho, configuraram o uso do espaço
dos memoriais presencialmente como lugares de comemorações e de
visitas “ilustres”, voltados para receber e comunicar sobre os juízes e
desembargadores. A relação existente entre o espaço físico/território
e a ausência de engajamento virtual visível por parte desses espaços
museais, entendendo que a memória possui dinâmicas de ida e volta,
nos levanta a questão, a que eles servem e a quem?

Os memoriais da Justiça do Trabalho ao redor do Brasil se apresen-


tam na internet, mesmo que minimamente, através de uma plataforma
central em comum, os sites oficiais dos Tribunais Regionais do Trabalho.
No entanto, alguns outros memoriais possuem páginas em redes
sociais, e no transcorrer de minha pesquisa fiz um mapeamen-
to destas instituições que não estavam somente nos sites oficiais.
Nesse percurso encontrei alguns perfis nas redes sociais que mui-
to podem nos dizer sobre as dinâmicas institucionais desses espa-
ços de recordação (ASSMANN, 2011).

O primeiro deles, e que mais me chamou a atenção, foi o Memorial


Pontes de Miranda da Justiça do Trabalho em Alagoas (MPM-AL) no
nordeste brasileiro. Esse memorial é um dos únicos a ter em seu nome
a figura de um magistrado do trabalho, mas para além disso, é também
o único a possuir um perfil no site voltado para turismo e viagens, Tri-
pAdvisor, em que neste perfil os públicos visitantes podem pôr suas ava-
liações acerca do espaço e outras informações afins. O perfil, por sua vez,
é pouquíssimo visitado, contendo somente trinta e cinco avaliações, e
39
Patrimônio, memória e historiografia

nessas avaliações são constantes os comentários de que o museu é volta-


do para “um público específico e pouco atraente a turistas”4.
Figura 2 - Perfil no TripAdvisor do Memorial Pontes de Miranda - AL

Disponível em: https://www.tripadvisor.com.br/Attraction_Review-d4376697.


html#REVIEWS.

No transcorrer das pesquisas notei que o único memorial da Justiça


do Trabalho que dispõe de rede social, especificamente um perfil no
Facebook, foi o Memorial da Justiça do Trabalho do Rio Grande do
Sul. Apesar de também possuir um site oficial conectado ao site do
TRT4, o perfil presente da rede social é a primeira resposta de pesquisa
ao Memorial na internet. As ações virtuais por parte do MJT-RS eram
muitas antes da pandemia, e diferentemente dos outros memoriais
mencionados anteriormente, suas atividades durante o período de iso-
lamento social se intensificaram, fazendo com que o museu abrangesse
novos públicos para além dos envolvidos com a Justiça do Trabalho.

Ao promover debates através de lives, oficinas por plataformas de


reunião e outras atividades afins, com temáticas voltadas para o ce-
nário atual do trabalho no Brasil, o MJT-RS pôs em destaque para
outros sujeitos temáticas afloradas no atual cenário, trazendo debates
como as reformas trabalhistas e as novas formas de exploração do

4 Trecho retirado dos comentários do perfil no TripAdvisor do Memorial Pontes de Miranda-AL.

40
Suor, memória e narrativa:
Os memoriais da Justiça do Trabalho do Brasil na pandemia do Novo Coronavírus

trabalho na pandemia, e nos colocando a pensar os outros projetos


que coexistiam dentro desse campo de possibilidade dos museus, e
que vão se modificando a partir das suas interações, pois só se proje-
ta possibilidades a partir do que já se experimenta (VELHO, 1994).
Figura 3 - Perfil no Facebook do Memorial da Justiça do Trabalho do Rio Grande no Sul

Disponível em: https://www.facebook.com/MemorialTRT4/

Considerações finais

Por fim, as experiências de trânsito virtual pelas diversas visualidades


dos memoriais ao redor do Brasil me fizeram perspectivar horizontes de
expectativas outros, sendo estes inclusive acerca das próprias constru-
ções expográficas desses espaços museais. Dedicar tempo, energia e afe-
to a escrita em tempos tão insalubres e desesperançáveis, foi e tem sido
um grande desafio, porém um desafio ainda maior é o de estar disposta a
encarar o passado, e não somente referente aos museus, como dinâmico
e interconectado ao presente e ao futuro.

Os processos de avanço do neoliberalismo na América Latina já


caminham desde a década de 1980, e neste contexto de pandemia as
mobilizações construídas ao longo de quase trinta anos se mostraram
ainda mais bem delineadas (ANTUNES, 2020), sendo no contexto que
delineie neste artigo as reformas trabalhistas e os desmontes dos equipa-
41
Patrimônio, memória e historiografia

mentos culturais, ambas as situações correlacionadas na problemática


da permanência dos memoriais da Justiça do Trabalho.

Espaços museais como o Memorial da Justiça do Trabalho do Rio


Grande do Sul, e vários outros de âmbitos distintos, nos propulsionam
a crer que é possível construir narrativas que coloquem os trabalhado-
res como protagonistas de suas trajetórias, e que destoem nas tentati-
vas homogeneizantes acerca do trabalho e do trabalhador. O MJT-RS se
afasta do projeto pensado para os memoriais em sua fundação, entretan-
to, os demais memoriais antes mencionados permanecem passíveis de
explorar os campos de possibilidades e a afastarem-se desses projetos,
construindo ações e promovendo ações colaborativas. Proponho isto
não no sentido somente de resolução das problemáticas antes aponta-
das, mas como horizonte de expectativa para um cenário de constantes
privatizações em que a Justiça do Trabalho corre constantes riscos. Ao
compreendermos a importância dessas construções narrativas em nos-
sas subjetividades e cotidianos estaremos também dando passos para
reinvindicação de outras narrativas a partir de outras ópticas.

Referências
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Suor, memória e narrativa:
Os memoriais da Justiça do Trabalho do Brasil na pandemia do Novo Coronavírus

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VELHO, G. Projeto e metamorfose: antropologia das sociedades
complexas. 2 ed., Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.

43
História e
Historiografia do
Patrimônio Cultural
espaços simbólicos em
múltiplos olhares e
perspectivas
Sob o prisma Amazônico:
a preservação do patrimônio cultural
brasileiro sem a arte barroca e a
arquitetura colonial
André Luis dos Santos Andrade1

No dia doze de abril de 1940 Rodrigo Melo Franco de Andrade


despachava um ofício para o Interventor Federal do Pará, Doutor
José da Gama Malcher, no qual informava:

[...] tenho a honra de levar ao seu conhecimento para fins


estabelecidos no artº 5 do Decreto- lei nº 25, de 30 de no-
vembro de 1937, que foi determinado o tombamento no
Livro do Tombo a que se refere o artº 4º, nº 1, do citado
Decreto- lei, da Coleção de arqueologia e etnografia do
Museu Paraense Emílio Goeldi, pertencente ao patrimô-
nio do Estado, do qual Vossa Excelência é o alto represen-
tante legal. Rogando a Vossa Excelência se digne acusar
o recebimento da presente notificação, apresento-lhe os
protestos do meu grande apreço (ANDRADE, 1940, p. 3).

O quarto artigo citado pele remetente faz parte do Decreto-Lei


n° 25, de 30 de novembro de 1937, o qual criou o Serviço do Pa-
trimônio Histórico e Artístico Nacional e instituiu o tombamento
dos bens móveis e imóveis cuja conservação seja de interesse do
país e “[...] quer por sua vinculação a fatos memoráveis do Bra-
sil, quer por seu excepcional valor [...]” (IPHAN, 2006, p. 99).

1 Universidade Federal do Pará. Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia


(PPHIST/UFPA). Mestre em Preservação do Patrimônio Cultural Brasileiro pelo Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

47
Patrimônio, memória e historiografia

Dessa maneira, tombar significa inscrever determinado objeto


em um dos quatro Livros do Tombo, nos quais são registrados
os bens que passam a compor o patrimônio cultural brasileiro2.
Nesse caso, o primeiro inciso do quarto artigo versa sobre o Livro
do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, destinado as
“[...] coisas pertencentes às categorias de arte arqueológica, et-
nográfica, ameríndia e popular [...]” (IPHAN, 2006, p. 100). No
documento encaminhado não há informação detalhada sobre a
coleção ou a razão do seu tombamento, uma possível resposta
para essa ausência é apontada por Fonseca:

[...] o rigor nas inscrições não era uma preocupação im-


portante nas primeiras décadas de funcionamento do
Sphan. O principal objetivo era assegurar a proteção dos
bens pelo ato jurídico do tombamento. Mas a priorida-
de nas inscrições no LBA [Livro das Belas Artes] mostra
que, na urgência em proteger, essa era a afinidade eletiva
dos agentes do Sphan em termos de valoração (FONSE-
CA, 2009, p. 114-115).

Outrossim, Chuva (2009), a partir da análise da listagem dos


bens tombados no período de 1938 a 1946, notou que as indica-
ções para o tombamento partiram em sua maioria pelos funcio-
nários do próprio SPHAN, assim como, reitera que nos processos
não é apresentada a razão pelo qual o bem deveria ser registrado
como patrimônio, porém:

A concentração de tombamentos de bens arquitetônicos foi


um dado flagrante e já bastante conhecido, perfazendo um
total, no período, de 93,76%. O patrimônio histórico e artís-
tico nacional constitui-se, portanto, pela arquitetura, sendo
os 6,24% restantes inexpressivos (CHUVA, 2009, p. 206).

2 Rabello (2009) explica que o ato do tombamento e a consequente preservação não visam a
coisa em si, mas o seu significado simbólico e valor cultural para o Estado- Nação. No Brasil os
livros do Tombo são: Livro das Belas-Artes; Livro Histórico; Livro Arqueológico, Etnográfico
e Paisagístico; e Livro das Artes Aplicadas.

48
Sob o prisma Amazônico:
A preservação do patrimônio cultural brasileiro sem a arte barroca e a arquitetura colonial

E não era qualquer bem arquitetônico. A presença de uma rede


mineira de funcionários públicos, principalmente arquitetos, nos
quadros diretivos e colaborativos no SPHAN foi peremptória para
a eleição da produção artística e arquitetônica do século XVIII de
Minas Gerais como a mais importante representação material da
nacionalidade brasileira e que, portanto, serviria como comparativo
paradigmático para o restante do país (CHUVA, 2009).

[...] A arte colonial brasileira tornou-se um locus sim-


bólico para o debate sobre a existência ou não de uma
brasilidade e da especificidade de seu fundamento. [...]
Outra categoria simbólica importante nesta formação
discursiva é o barroco que foi sacralizado como índice
de primordialidade, de exemplaridade na constituição de
nossa tradição cultural, uma vez que foi pensando como
origem (SANTOS, 2018, p. 85).

Santos (2018) nomeia esse grupo de servidores e colaboradores


como a Academia SPHAN, formada por arquitetos modernistas como
os membros mais preeminentes Rodrigo Melo Franco de Andrade, Car-
los Drummond de Andrades, Martins Almeida, Ascânio Lopes, Milton
Campos, Francisco Campos, Abgar Renault, Gustavo Capanema, Pedro
Nava, Emílio Moura, Afonso Arinos de Melo Franco e João Alphonsu,
Mario de Andrade, Sérgio Buarque de Holanda, Manuel Bandeira Pru-
dente de Moraes Neto, Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Alcides da Rocha
Miranda e Portinari. A Academia SPHAN seria responsável por uma
estratégia discursiva que evocava tradição e a modernidade na história
da formação social do Brasil a partir do patrimônio.

O barroco era posto pelo SPHAN de forma intrínseca a cultura brasi-


leira, nesse estilo artístico residiria nossa “autenticidade” e “pureza”, logo
era fundamental a sua reprodução em revistas, jornais, mapas e folhetos.
A escolha da arquitetura colonial e do barroco era sustentada pela defesa
que o órgão contava com intelectuais possuidores de um saber técnico
e imparcial, conforme afirmava Rodrigo Melo Franco de Andrade na
primeira edição da Revista do SPHAN:
49
Patrimônio, memória e historiografia

A publicação desta revista não é uma iniciativa de pro-


paganda do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional [...] O objetivo visado aqui consiste antes de
tudo em divulgar o conhecimento dos valores de arte e
de história que o Brasil possui e contribuir empenhada-
mente para o seu estudo. [...] há necessidade de uma ação
sistemática e continuada com o objetivo de dilatar e tor-
nar mais segura e apurado o conhecimento dos valores
de arte e de história do nosso país. [...] Ela conta com a
contribuição dos doutos nas matérias relacionadas com a
sua familiaridade [...] (ANDRADE, 1937, p. 3).

Igualmente foi fundamental fazer a apologia aos interesses públi-


cos e da ampla sociedade no trabalho realizado: “O SPHAN dispõe-
-se a uma tarefa de interesse indiscutivelmente nacional: a defesa do
patrimônio comum a todos os brasileiros” (ANDRADE, 1987, p. 28).
Não obstante, as falas destinadas ao público geral deixavam de abor-
dar as disputas internas acerca da hegemonia da prática preservacio-
nista, mesmo entre os membros que estiveram envolvidos na formu-
lação do SPHAN as divergências conceituais estavam presentes.

Mário de Andrade, por exemplo, foi chamado pelo Ministro da


Educação e Saúde, Gustavo Capanema, para redigir um anteprojeto
de criação de um serviço do patrimônio. Imbuído das suas viagens
pelo Brasil, mas também de uma visão antropológica ligada ao cul-
turalismo norte-americano, principalmente das concepções de Boas,
Redfield e Herskovits, a ideia de Mário era lançar um Serviço do Pa-
trimônio Artístico Nacional, pois o adjetivo artístico seria capaz de
abarcar as oito categorias patrimoniais de sua proposta: ameríndia,
arqueológica, popular, histórica, erudita nacional, erudita estrangei-
ra, aplicadas nacionais e aplicadas estrangeiras (RUBINO, 2002, p.
146). O intento de Mário, porém, não logrou êxito, pois as práticas
de tombamento adotadas pelo SPHAN foram orientadas, sobretudo,
por arquitetos que viam na unidade cultural brasileira a pedra angu-
lar das nações civilizadas, de modo que:
50
Sob o prisma Amazônico:
A preservação do patrimônio cultural brasileiro sem a arte barroca e a arquitetura colonial

[...] vimos os arquitetos a um só tempo se profissionaliza-


rem, com autonomia em relação a formação em engenha-
ria e belas-artes, e dominarem o campo do patrimônio
como especialistas [...] Essa vertente esteve assentada nas
teses sobre as três raças formadoras da sociedade, graças
à noção de civilização material introduzida por Afonso
Arinos de Melo Franco, que percebia no branco portu-
guês a maior influência, em razão da maior perenidade
dos materiais utilizados nos processos construtivos, e na
presença do negro africano e do índio autóctone influên-
cias de menor envergadura (CHUVA, 2014, p. 154).

Na década de 1930 apenas iniciava a mudança conceitual dos crité-


rios raciais por culturais na hierarquização e no valor da cultura material
brasileira (RUBINO, 2002, p. 145), assim, a seleção dos bens alçados à
categoria de nacionais ainda passará pelo crivo da raça, critério este liga-
do ao processo de formação das nações, como defende Anderson:

[...] a condição nacional [national-ness] é assimilada à cor


da pele, ao sexo, ao parentesco e à época do nascimento —
todas essas coisas que não se podem evitar. E esses “laços
naturais” sente-se algo que poderia ser qualificado como
“a beleza da Gemeinschaft [comunidade]” (ANDERSON,
2008, p. 201).

Rodrigo Melo Franco de Andrade, em 1952, ainda chegou a afirmar


que entre as razões para a tardia preservação do patrimônio brasileiro
está a ausência de vestígios monumentais das grandes civilizações:

O pensamento de proteger o acervo arqueológico do


Brasil se teria manifestado talvez, bem cedo entre nós,
se os colonizadores portugueses encontrassem neste
país, como sucedeu aos castelhanos em outras regiões da
América, restos monumentais de uma civilização mate-
rialmente mais evoluída. [...] Mas a pobreza e a feição ru-
dimentar da civilização autóctone, nesta parte do conti-
nente americano, não suscitaram nem tinham elementos
para sugerir, na época, disposições no sentido de serem
tomadas quaisquer providências com o objetivo de res-
guardar os vestígios da vida social das populações indí-
51
Patrimônio, memória e historiografia

genas que tinham em nosso território aos conquistadores


europeus (ANDRADE, 2012, p. 63).

Posto o barroco, a arquitetura colonial e os portugueses como


principais componentes da nação brasileira, como explicar o tom-
bamento da coleção arqueológica e etnográfica do Museu Paraense
Emílio Goeldi (MPEG)? Para tatearmos possíveis respostas assinala-
mos que três consideráveis obras que analisam a história e os sujei-
tos responsáveis pela política de preservação do patrimônio cultural
brasileiro: O patrimônio em processo: trajetória da política federal
de preservação no Brasil (FONSECA, 2009), Os arquitetos da Me-
mória: sociogênse das práticas de preservação do patrimônio cultural
no Brasil (anos 1930- 1940) (CHUVA, 2009) e O tecido do tempo: o
patrimônio cultural no Brasil e a Academia Sphan (VELOSO, 2018)
reproduzem, com sutis diferenças, a narrativa histórica criada pelo
próprio SPHAN, na qual a origem preservacionista no Brasil começa
com órgão e as experiências anteriores como de menor importância,
pois seriam iniciativas ligadas a poderes locais, regionais e também
seriam ineficientes: “As medidas adotadas pelos Estados não eram,
entretanto, suficientes para assegurar a proteção aos monumentos
históricos e artísticos, nem mesmo dentro de seus respectivos ter-
ritórios” (IPHAN, 1980, p. 10). Rodrigo Melo Franco de Andrade,
também chegou a sustentar que:

A despeito do interesse permanente manifestado pelo


Imperador D. Pedro II em relação aos estudos históri-
cos, seu extenso reinado terminou sem que providência
alguma tivesse sido adotada pelos dois partidos que se re-
vezavam no poder, para o efeito de organizar a proteção
aos monumentos nacionais. Implantado no país o regime
republicano, os novos dirigentes durante quase cinquenta
anos não tomaram, tão pouco, nenhuma iniciativa na-
quele sentido (ANDRADE, 2012, p. 68).

Outro ponto fundamental para ser colocado é que os objetos repre-


sentativos da nacionalidade brasileira não possuem uma relação intrín-
52
Sob o prisma Amazônico:
A preservação do patrimônio cultural brasileiro sem a arte barroca e a arquitetura colonial

seca com a nação, pois são escolhidos a partir dos critérios estabelecidos
pela atuação de grupos de intelectuais nas instituições responsáveis pela
identificação e preservação do patrimônio, desse modo, ao defender o
barroco e a arquitetura colonial como bens a serem preservados porque
estão sob o risco da perda é construída uma narrativa que:

[...] pressupõe uma situação primordial feita de pureza,


integridade e continuidade, situação esta seguida histori-
camente por impureza, desintegração e descontinuidade.
[...] intelectuais nacionalistas tem como propósito funda-
mental a apropriação, preservação e exibição do que eles
consideram como o que pode ser salvo do processo de
destruição e perda do patrimônio cultural da nação [...]
intelectuais nacionalistas associados às políticas de patri-
mônio cultural fazem enquanto colecionam, restauram,
preservam e exibem objetos e atividades culturais obje-
tificadas, associadas a uma suposta existência original ou
primordial da nação (GONÇALVES, 2002, p. 32).

Não obstante, para compreender os diferentes projetos e inicia-


tivas que formaram o processo de composição social da naciona-
lidade brasileira é preciso levar em conta a interlocução entre ex-
periências históricas distintas, assim como, reconhecer que cada
época investirá discursivamente na importância do seu tempo,
instituições e conceitos para legitimar uma ideia de nação, patri-
mônio e Brasil. Dessa forma, uma terceira ponderação relevante
para o melhor entendimento da razão do tombamento da coleção
arqueológica e etnográfica do MPEG é observar, sem estabelecer ou
reproduzir analiticamente escalas de hierarquia como centro/peri-
feria ou regional/nacional, a atuação de instituições e intelectuais na
defesa e preservação de um patrimônio nacional antes da criação
do SPHAN, nesse sentido, destacamos a relevância dos Museus:

No Brasil, o advento dos Museus é anterior ao surgimen-


to das universidades. A formação de cientistas e a pro-
dução científica, sobretudo na segunda metade do século
XIX, tinham nos museus um dos seus principais pontos
de apoio. Por isso mesmo, desde o século retrasado as re-
lações entre os campos do museu e da educação são bas-
53
Patrimônio, memória e historiografia

tantes intensas. De igual modo, a institucionalização dos


museus e da museologia no Brasil antecedem à criação de
um dispositivo legal para a proteção do patrimônio histó-
rico e artístico nacional (CHAGAS, 2006, p. 3).

Nesses termos, ao examinarmos a fundação do Museu Paraen-


se, durante o período Imperial, iremos notar a preocupação com a
formação de coleções etnográficas e antropológicas para arguir uma
filiação civilizatória dos povos originários do Brasil, inclusive, Do-
mingos Soares Ferreira Penna, um dos primeiros cientistas a assumir
a gerência do Museu Paraense esteve à frente da remessa de vários
objetos arqueológicos para compor exposições do Museu Nacional:

Na arqueologia do século XIX, a descrição dos vestígios


materiais de antigas “civilizações” era central. Pinturas e
gravuras rupestres, material cerâmico e lítico carvão e os-
sos — tudo servia para dar base às interpretações e teorias
em jogo. Por esse motivo, nossos primeiros arqueólogos
disputavam a precedência na divulgação de sítios, de
objetos e de informações sobre cidades e monumentos
perdidos. Por sua vez, as coleções de cerâmica, machados
de pedra, tembetás e outros artefatos indígenas desponta-
vam como fundamentais para a comparação de formas,
estilos decorativos, materiais, usos e significados — um
exercício que tinha como fim estabelecer relações, filia-
ções e hierarquias entre as diferentes etnias e entre estas
e a sociedade nacional. [...] Ferreira Penna foi um dos
maiores coletores de vestígios arqueológicos na Amazô-
nia do século XIX. As maiores e principais remessas de
objetos ao Museu Nacional ocorreram entre 1876 e 1882.
Os insistentes pedidos de Ladislau Netto o levaram aos
sambaquis, aos tesos do Marajó (que escavou diversas ve-
zes) e às grutas de Maracá (SANJAD, 2005, p. 96).

Especificamente sobre a cultura material marajoara, Anna Maria Al-


ves Linhares analisou a disputa entre os estudiosos para caracterizar a et-
nia e os objetos arqueológicos a ela atribuída como símbolos brasileiros:

Segundo alguns estudos arqueológicos, o índio Mara-


joara pertencia ao tronco linguístico tupi. Foram os es-
54
Sob o prisma Amazônico:
A preservação do patrimônio cultural brasileiro sem a arte barroca e a arquitetura colonial

tudos feitos no século XIX que motivaram a exaltação


dos grupos vinculados a esse tronco linguístico para que
pudessem figurar como símbolos de identidade. Exata-
mente nesse ponto surge o imbróglio. [...] Os teóricos que
escreveram sobre a cerâmica do Marajó não chegaram a
um consenso sobre a filiação linguística dos índios Mara-
joara. O importante, nesse caso, é apresentar a ideia em
torno da exaltação do índio falante da língua tupi e que
essa disparidade de ideias sobre a filiação linguística des-
se povo nos faz ficar atentos às construções das identida-
des. O que estava em jogo, na verdade, era caracterização
do Brasil enquanto país civilizado a fim de alcançar um
lugar ao lado das “luminosas civilizações” do hemisfério
norte (LINHARES, 2017, p. 37).

Já no período republicano pensar o ethos nacional a partir da


Amazônia também foi algo estendido para o campo das artes. Aldrin
Moura de Figueiredo ao fazer a análise da obra A fundação da cida-
de de Nossa Senhora da Graça de Belém do Grão Pará, da autoria de
Theodoro Braga, nos apresenta a seguinte reflexão:

Como uma espécie de episódio embrionário, o retrato


da fundação de Belém era, por si só e por isso mesmo,
um mito fundador da identidade nacional na Amazônia.
A escolha do tema possuía, em vista de seu significado
histórico, intenções muito evidentes: o nascimento da
capital do Pará legitimava a imagem do luso conquista-
dor e criador dessa Feliz Luzitânia, como resultado desse
encontro de dois povos diferentes. [...] O conceito de fun-
dação estava assim intimamente ligado ao da formação
social da nação — aqui enquadrada a partir da associação
das duas principais raças formadoras da sociedade ama-
zônica, desde seus primeiros tempos. O nascimento da
capital do Pará, tal como foi visualmente descrito pelo ar-
tista, frutificou de um debate muito amplo que imbricava
vários domínios e conhecimentos no campo intelectual,
durante a virada do século XIX. Da história à etnologia,
da arqueologia à literatura, os participantes desses de-
bates encaravam suas obras como parte de uma missão
civilizadora e constituinte de nossa identidade nacional
(FIGUEIREDO, 2001a, p. 91).
55
Patrimônio, memória e historiografia

O Museu Paraense reformula sua atuação na virada do século


XIX para o XX, mas mantém sua preocupação com os ares civiliza-
tórios, ao mesmo tempo em que aprofunda a especialidade das suas
coleções, para tanto foi fundamental a atuação de José Veríssimo e
do suíço Emílio Goeldi:

Já não bastava classificar e dar nomes aos objetos [...], mas


era preciso organizar as coleções de acordo com uma or-
dem genealógica que só a estrita observância das leis da
sistemática seria capaz de dar. Também já não era possível
reunir sob o mesmo teto, dada a complexidade inerente à
conservação e exibição dos objetos, coleções de distinta na-
tureza, como as que existiam no Museu Paraense. Ciente da
progressiva especialização e divisão dos museus, cujo caso
mais conhecido é o do Museu Britânico, desmembrado em
1881, Goeldi propôs a criação de um “Gabinete Histórico”,
talvez sob o encargo da Sociedade de Estudos Paraenses,
para abrigar algumas coleções “que não têm relação al-
guma direta com as ciências naturais”. Eram os casos das
coleções numismática, de armas de fogo, de documentos
históricos, dentre outras, “incompatíveis com o caráter e o
espírito do novo Museu” (SANJAD, 2005, p. 166).

Já próximo de meados do século XX e com a implementação dos


interventores federais a partir do golpe de 1930, Carlos Estevão de
Oliveira ascende a direção do Museu Paraense, de modo que:

Carlos Estevão procurou desenvolver uma série de pro-


jetos, visando tornar o Museu o órgão de fiscalização
das atividades de exploração da flora, fauna e dos usos
do patrimônio histórico e arqueológico da região. [...]
Tomando para si a tarefa de controle dessa situação, aca-
bou por convencer o interventor a decretar uma série de
expedientes para conter a violação da natureza amazô-
nica. Logo em 1931, foram estabelecidas algumas nor-
mas prevenindo a derrubada de matas para roçados e a
retirada de madeira de lei; no ano seguinte, controlava-
-se o saque e a exportação da cerâmica dos povos indí-
genas. [...] Ganhava eco nas instâncias de governo uma
certa ideologia preservacionista, baseada numa noção
extremamente pragmática: a Amazônia como paraíso
natural era conhecida muito mais pelos estrangeiros do
56
Sob o prisma Amazônico:
A preservação do patrimônio cultural brasileiro sem a arte barroca e a arquitetura colonial

que pelos brasileiros, sendo necessário um controle ri-


goroso das fronteiras para impedir a evasão de riquezas
e dilapidação do patrimônio biológico da região (FI-
GUEIREDO, 2001b, p. 187-188).

É durante a gestão de Carlos Estevão que a coleção do MPEG


é tombada, desse modo, mesmo que não haja uma razão explícita
no documento de notificação do tombamento ou que o barroco
e a arquitetura colonial fossem eleitos como os componentes pri-
mordiais da cultura brasileira pela Academia SPHAN, é preciso
olhar para esse longo período de atividade do Museu Paraense
na seleção, identificação e preservação de objetos arqueológicos,
naturais e faunísticos como demarcadores da nacionalidade e ci-
vilidade, pois incorrer a ideia de que:

O exercício de tais ações a partir do Sphan produziu um


universo cotidiano da proteção patrimonial, no contex-
to autoritário do Estado Novo — momento fundador e
constituidor da prática preservacionista oficial no Brasil
-, por meio da atuação dos intelectuais que a engendra-
ram (CHUVA, 2009, p. 56).

É manter uma proximidade com o discurso oficial do SPHAN, o que


pode silenciar ou mesmo reduzir a importância da polissemia social e
temporal que foi pensar a formação do patrimônio cultural brasileiro.

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Patrimônio, memória e historiografia

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59
Chaminés apagadas:
o lugar do patrimônio industrial em
Pernambuco

Maria Clara da Silva Cavalcante1

Judith Alfrey e Tim Putman (2005) propuseram, a pessoas de di-


ferentes países, as seguintes questões: O que é patrimônio industrial?
O que envolve gerir o patrimônio industrial? As respostas recebidas
foram múltiplas, envolviam diversos aspectos e práticas. Estas são
questões complexas e suas respostas são fluídas, pois esse é um deba-
te recente e que ainda vem se desenvolvendo. A discussão internacio-
nal acerca da preservação de bens oriundos da industrialização teve
seus primeiros debates na Inglaterra da década de 1950, enquanto
debate mais amplo e fundamentado.

As destruições ocorridas na Segunda Guerra Mundial somaram-


-se às demolições relacionadas à reestruturação urbana do período
seguinte. As produções acadêmicas iniciais discutiram a importân-
cia do estudo e preservação dos vestígios da industrialização. E, em
alguns países, esses estudos constituíram um campo específico ou
subdisciplina, a Arqueologia Industrial. Até a década de 1960, esses
primeiros estudos surgiam desse reconhecimento da necessidade de
inventariar os remanescentes da industrialização. Dessa forma, os
trabalhos na Europa, entre as décadas de 1960 e 1970, davam ênfase

1 Universidade Federal de Pernambuco, Doutoranda, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pes-


soal de Nível Superior (CAPES).

61
Patrimônio, memória e historiografia

aos aspectos descritivos e não analíticos (MENEGUELLO, 2011, p.


1823), e ainda contavam com pouca base teórica.

Os textos mais antigos sobre Arqueologia Industrial, como Indus-


trial Archaeology: an introduction de Kenneth Hudson, publicado
pela primeira vez em 1963, busca fazer uma distinção entre a Indus-
trial Archaeology e o estudo direcionado para a preservação dos “mo-
numentos”, apontando a recorrência do entendimento equivalente
dessas esferas. Pensá-las como sinônimos impossibilitava a aceitação
desse, aparentemente muito híbrido, “campo de produção” (HUD-
SON, 2015, tradução nossa)2.

Segundo Palmer e Neaverson (1998), apesar do curto espaço de


tempo, a Arqueologia Industrial significaria coisas distintas para
diferentes grupos. Profissionais sem formação em Arqueologia
que se dedicam a museus, preservação, restauração de remanes-
centes da indústria, ou preocupados com seu registro histórico,
comumente se consideram ‘arqueólogos industriais’. A diversida-
de de concepções gerou debate, e seria um consenso, talvez ainda
não tão consolidado, de que a Arqueologia industrial seria “o es-
tudo sistemático de estruturas e artefatos a fim de ampliar nosso
entendimento sobre o passado industrial” (PALMER; NEARVER-
SON, 2001, p. 1, tradução nossa)3.

A dificuldade em distinguir os dois campos consistiria principal-


mente das circunstâncias a partir das quais a Arqueologia Industrial
se popularizou, tomando como seu escopo a descrição detalhada e
a defesa pela preservação dos vestígios da Revolução Industrial no
Reino Unido e, também em outros países da Europa. O termo po-
pularizado pelo historiador Michael Rix fazia referência especifica-

2 “Field of activity”.
3 “Systematic study of structures and artefacts as a means of enlarging our understanding of the
industrial past”.

62
Chaminés apagadas:
O lugar do patrimônio industrial em Pernambuco

mente à Arqueologia, e enfatizava o que poderia ser compreendido a


partir do estudo dos vestígios físicos da industrialização.

O uso da palavra archaeology teria inspirado The Council for British


Archaeology (CBA), em 1959, a formar um comitê de pesquisa e con-
vocar uma reunião pública com recomendações e cobrando a criação
urgente de medidas de registro e proteção dos remanescentes do início
da industrialização (PALMER; NEAVERSON, 2001, p. 1-2). As demo-
lições que ocorrem nesse período impulsionaram diversas iniciativas,
agregando muitos estudiosos amadores, além de iniciativas voluntá-
rias com o intuito de salvaguardar os vestígios para que fossem larga-
mente estudados. A Arqueologia Industrial aparece então, ao longo do
século XX, como âmbito de agentes voltados para a preservação.

Em The Industrial Heritage: managing resources and uses, Judith


Alfrey e Tim Putman afirmam que “historical studies have not been
as much use in heritage management as might have been expected”
(2005, p. 4). Os autores mencionam a tentativa de abranger uma his-
tória total, referindo-se à Escola de Annales, e a predominância de
abordagens nacionalistas, como fatores que dificultaram o uso das
contribuições historiográficas para interpretação do patrimônio in-
dustrial. No entanto, frente ao foco inicial de valorização da indústria
com ênfase na inovação tecnológica e indústria pesada, percebido
na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, as chamadas histories from
below trazem à tona a experiência do trabalho, a influência da in-
dustrialização na vida de mulheres e sua participação nas mudanças.

Como aponta Falconer (2006, p. 4), havia a recorrência do ter-


mo “monumento” nos títulos de conferências ao longo da década de
1970. No entanto, a década seguinte tem uma ampliação da esfera
de interesse, e o termo Industrial Heritage aparece com frequência.
O debate sobre o Patrimônio industrial acontecia paralelamente ao
sobre a noção de Patrimônio Cultural, que ocorre a partir da década
de 1960. Abrindo, assim, espaço para a ampliação do conceito de
63
Patrimônio, memória e historiografia

patrimônio, e uma abordagem menos restrita aos valores estéticos ou


aspectos técnicos, pois as pessoas que operam as máquinas têm vida
e sentimento, e “são parte da industrialização tanto quanto as máqui-
nas e os produtos” (OLIVEIRA, 2015, p. 203). Dando-se destaque,
assim, também à memória do trabalho e das cidades industriais.

The International Commitee for the Conservation of the Industrial


Heritage (1978), a partir de inúmeros debates ao redor do mundo,
firmou a Carta de Nizhny Tagil, em 2003, estabelecendo a impor-
tância desses edifícios e estruturas, os processos, ferramentas e a
paisagem em que se inscrevem. O patrimônio industrial, segundo a
Carta, consiste em vestígios da cultura industrial que possuem valor
histórico, tecnológico, social, arquitetônico ou científico. Esses ves-
tígios englobam, além dos edifícios destinados à produção, a pró-
pria maquinaria, oficinas, armazéns, a transmissão e utilização de
energia, meios de transporte, estruturas e infraestruturas, e locais de
atividades sociais como as habitações, espaços de culto, lazer e edu-
cação. Apenas em 1978, a UNESCO reconhece pela primeira vez um
remanescente industrial como patrimônio mundial.

No Brasil, desde a criação da Carta de Nizhny Tagil (TICCIH,


2003), formou-se o Comitê Provisório pela Preservação do Patrimô-
nio Industrial no Brasil, tornando-se fixo em 2004. O país, entretanto,
“não possui um inventário nacional de seu patrimônio industrial e
mesmo a documentação relativa à atividade da indústria encontra-se
apenas parcialmente organizada” (MENEGUELLO, 2011, p. 1829),
apesar da proteção legal de vestígios da industrialização remontar à
década de 1960. Em 1964, o Iphan tombou os remanescentes da Real
Fábrica de Ferro São João de Ipanema em Iperó, São Paulo.

Haviam se passado quase trinta anos desde o primeiro


tombamento de exemplar de produção industrial, a Fá-
brica de Ferro Patriótica de São Julião, localizada nos ar-
redores de Ouro Preto e fundada pelo barão de Eschwege
em 1812, inscrita no livro do Tombo Histórico em 30 de
64
Chaminés apagadas:
O lugar do patrimônio industrial em Pernambuco

junho de 1938, ou seja, ainda dentro do reconhecimento


promovido pelos modernistas da imagem de patrimônio
nacional associada às Minas Gerais e à riqueza propor-
cionada pela exploração do ouro; e da série de engenhos
tombados na década de 1940, num momento de desagre-
gação deste modo de exploração da cana-de-açúcar no
nordeste brasileiro (MENEGUELLO, 2011, p. 1824).

Entretanto, essas são iniciativas mais isoladas e sem uma sistemática


voltada para essa categoria de patrimônio específica. E os debates aca-
dêmicos acerca desse tema são mais tardios (MENEGUELLO, 2011, p.
1824). Em 1976, Warren Dean publica A fábrica São Luiz de Itu: um
estudo de Arqueologia Industrial, que é seguido por outros trabalhos so-
bre industrialização. Os debates desse período contam também com as
contribuições de nomes como Ruy Gama, Philip Gunn, Telma Correia,
Edgar De Decca, Maria Auxiliadora de Decca, Ulpiano Bezerra de Me-
neses e Odilon Nogueira de Matos e Bandeira Júnior, cujos trabalhos
apresentavam e discutiam a presença e importância de indústrias no
país, desde usinas e engenhos a fábricas nas cidades grandes.

A partir de debates e acordos internacionais, e propostas de âmbito


nacional, a Constituinte de 1988 ampliava a noção de patrimônio his-
tórico e artístico para patrimônio cultural na legislação brasileira. O
foco da política patrimonial não seria apenas a preservação do “imóvel
inserido na paisagem que o emoldurava, mas, sobretudo, inferir-lhe
o nexo na trama de representações do espaço que lhe era afeto, fosse
rural ou urbano” (PINSKY; LUCA, 2013, p. 287).

A cidade aparece nessa circunstância como um conjunto passível


de ser preservado. Sendo o patrimônio urbano um objeto não estáti-
co por excelência e que, a partir dos anos 1960, vai se consolidando.
O processo contínuo de aprofundamento desse debate abriu caminho
para a valorização de artefatos até então considerados ‘menores’, como
a chamada arquitetura de base, conjuntos arquitetônicos e paisagens
construídas que passaram a ser reconhecidos por suas especiais quali-
dades compositivas e ambientais (RUFINONI, 2011, p. 17).
65
Patrimônio, memória e historiografia

Apesar dos debates e da introdução de novas bases que funda-


mentam a proteção do patrimônio industrial, a absorção dessas
novidades não significa uma definição clara e ampla das diretrizes
junto aos órgãos responsáveis pela preservação em âmbito jurídico.
Os bens referentes ao aparato ligado à indústria, incluindo vias de
transporte, fábricas, galpões e as vilas, são complexas redes interliga-
das, e “sua salvaguarda isolada é insuficiente para a compreensão da
rede de recebimento de matéria-prima, produção e escoamento que
definem a atividade industrial” (MENEGUELLO, 2011, p. 1820).

Nas cartas de Veneza e de Washington e na Declaração de


Amsterdã surgem recomendações para o patrimônio em deba-
te. Entre as quais estaria a conservação integrada. No entanto, as
propostas de intervenção e uso do patrimônio industrial apresen-
tam posturas distantes dos estudos e diretrizes internacionais. “As
propostas projetuais [...] evidenciam estratégias de apropriação
urbana bastante agressivas, repercussões diretas dos modos e mé-
todos predominantemente de produção da cidade contemporâ-
nea” (RUFINONI, 2011, p. 15).

Segundo Harvey, os projetos de revitalização urbana estão vinculados


ao fenômeno de “empresariamento da gestão urbana” (apud VASSALLO;
CICALO, 2015, p. 263), onde as cidades assumem um comportamento
empresarial, incluindo a busca de novas formas de financiamento. A sal-
vaguarda dos remanescentes das indústrias, dessa forma, enfrenta mui-
tos desafios. “Além da localização geralmente privilegiada, essas antigas
áreas industriais representam reservas potenciais de terreno urbano
ocioso, degradado e de baixo custo” (RUFINONI, 2011, p. 15), desper-
tando interesse tanto do setor público quanto privado.

As dificuldades, porém, são ainda mais amplas. A diversidade e


complexidade de edifícios e espaços que o compõem o patrimônio
industrial representam uma série de obstáculos para a correta apreen-
são de suas especificidades como as relações travadas entre espaços
66
Chaminés apagadas:
O lugar do patrimônio industrial em Pernambuco

construídos, codificações sociais e expressividades estéticas, a devida


apreensão de suas características evolutivas, composição formal e inte-
gração com o entorno. Ademais o próprio impasse inicial de defender
sua caracterização como bem cultural.

Em termos dos órgãos de preservação estaduais ou mes-


mo municipais, a importância dos espaços de trabalho e
da produção redefine-se; muitas vezes associados a afe-
tividades locais, ou definidores dos aspectos urbanos de
bairros ou mesmo cidades, os espaços fabris ou ferroviá-
rios são reconhecidos como partes da realidade urbana
que não podem simplesmente ser obliterados (MENE-
GUELLO, 2011, p. 1826).

Em alguns casos, histórias e tradições locais podem se converter


em capital simbólico e atraentes mercadorias, principalmente para o
mercado do turismo. As especificidades podem mostrar diversas di-
ferenças. E a própria valorização ou não de determinadas histórias é
um desses contrapontos presente no Brasil e bastante comum ao nos
debruçarmos sobre as memórias em torno do patrimônio industrial.

Para além do reconhecimento do valor cultural, podemos questio-


nar a própria construção desses significados. Encarar o patrimônio
industrial como representativo da economia envolve a questão da per-
da ou desaparecimento de uma forma de produção. Segundo Ferrei-
ra (2009), essas tecnologias utilizadas nas últimas décadas do século
XIX, e na primeira metade do século XX, vão se tornando obsoletas na
metade seguinte. “Os vestígios materiais e imateriais dessas atividades
são testemunhos de mudanças culturais que acompanham os modelos
produtivos que se sucedem” (FERREIRA, 2009, p. 23). Entretanto, a
rede ligada a essa produção envolve muitas outras tramas, toda uma
rotina de trabalho, sociabilidades, hábitos cotidianos, práticas de lazer.

Ainda segundo Ferreira (2009, p. 23), “o discurso patrimonial


transformou em uma visão aceitável e consumível” o processo pro-
dutivo industrial, e “oculta ou dissimula aqueles traços que evoca-
67
Patrimônio, memória e historiografia

riam os sinais de sofrimento inerente a alguns processos produtivos”.


A fábrica deixaria de ser fábrica para dar espaço às representações
feitas sobre ela. O sofrimento, a disciplina, as péssimas condições de
trabalho, a baixa remuneração, e tantos outros pontos, os quais po-
dem ser qualificados como negativos, dão espaço ao “progresso” e
notoriedade econômica (FERREIRA, 2009, p. 22).

Os bairros e vilas operárias, ou as cidades empresas, compuseram


parte da urbanização de diversos locais no Brasil do século XX. O
período conhecido como Encilhamento (1890-1891) (STEIN, 1979,
p. 95) foi marcado pelo boom do setor industrial no início dos anos
1890. A euforia da especulação, a liberação de grande quantidade de
crédito, e as relações com o Estado favoreceram, de forma abrangen-
te, a indústria têxtil algodoeira. A ampliação da atuação do setor in-
dustrial viria acompanhada do surgimento de muitas fábricas novas,
em diversas regiões do Brasil. Algumas dessas empresas, fundadas
entre os anos de 1890 e 1892, seriam consideradas, posteriormente,
grandes fábricas têxteis do país.

Em Pernambuco, a indústria têxtil algodoeira esteve presente, em


quase todo o século XX, como atividade de destaque no setor indus-
trial. Em 1905, Pernambuco já contava com oito fábricas têxteis. Paul
Singer (1979) destaca a relação entre industrialização e urbanização das
cidades de Pernambuco. Fábricas como as da Companhia de Tecidos
Paulista, da Macaxeira e a Tacaruna passam a ser elemento que impul-
siona a urbanização. A concepção de urbano da modernidade está liga-
da qualitativamente à produção industrial, com a construção de outro
modelo de cidade, concretizando espacialmente, ideologias técnicas,
econômicas, políticas e sociais (DEZEN-KEMPTER, 2011, p. 87).

A Fábrica da Macaxeira (Apipucos) e a Fábrica Paulista foram fun-


dadas ainda no ano de 1891, próximas a fontes de água, o Açude de
Apipucos e o rio Timbó, respectivamente. A fábrica da Macaxeira ainda
esteve próxima à Estrada de Ferro do Recife/Limoeiro. E ambas conta-
68
Chaminés apagadas:
O lugar do patrimônio industrial em Pernambuco

vam com um vasto território disponível para a instalação das plantas


fabris e dos demais instrumentos necessários para a produção, escoa-
mento de mercadoria e acomodação de mão de obra. A Fábrica Taca-
runa foi instalada em 1894, inicialmente como uma refinaria de açúcar,
conhecida como Usina Beltrão, com fornecimento de água do Rio Be-
beribe, apesar de estar totalmente localizada no Recife (ROCHA, 2012).

Em seu momento de auge, entre as décadas de 1940 e 1950, essas


fábricas atraíram grande quantidade de pessoas para as áreas próxi-
mas, e imprimiram marcas nessas cidades. A organização do traba-
lho fabril e a vida nestes núcleos envolveu um violento processo de
adaptação do trabalhador: assimilar novos hábitos domésticos, de la-
zer, aceitar uma distribuição de atividades diárias regida pelo tempo
linear do relógio, submeter-se à disciplina da fábrica e da escola, do
padre, do vigia e do médico (CORREIA, 2013).

Apesar da busca por rios, dada a importância da água para o pro-


cesso produtivo, regiões com matas para o fornecimento de lenha, e
a disponibilidade de infraestrutura, a ocupação dos espaços para a
produção das grandes indústrias, principalmente em áreas mais iso-
ladas, era acompanhada da criação de estruturas próprias, e da cons-
trução de vida social entrelaçada ao cotidiano fabril. Desenvolven-
do-se, assim, uma relação íntima com as transformações espaciais,
a criação de lugares e as maneiras de viver e se apropriar da cidade.
Dessa forma, a atividade industrial consistiu em um importante ele-
mento de estruturação espacial.

Atualmente, as metrópoles experimentam uma reestruturação


produtiva, vivenciam uma desconcentração industrial em contrapar-
tida a uma centralização dos serviços ligados à gestão e ao financeiro
(PADUA, 2015). Esses processos impactam profundamente o tecido
urbano constituído pelas estruturas produtivas que foram consolida-
das ao longo do século XX. No Brasil, essa reestruturação, que já vi-
nha acontecendo durante as décadas finais do século, intensificou-se
69
Patrimônio, memória e historiografia

na década de 1990, coincidindo com a ampliação dos desmontes dos


núcleos industriais, a partir da década de 1980.

A indústria têxtil de Pernambuco foi alvo de duas intervenções,


durante a década de 1970, na tentativa de modernização das empre-
sas tradicionais (OLIVEIRA, 2014). No entanto, em meio ao cenário
de difusão de ideias e políticas neoliberais, crise fiscal e financeira
que passava a economia brasileira, boa parte dessas fábricas encer-
raram suas atividades na década de 1990. E, diante da construção
da cidade contemporânea, os espaços de desindustrialização tendem
a ficar descontextualizados e vistos como obsoletos e improdutivos.

Os três núcleos industriais mencionados nesse artigo apresentam


diferenças e semelhanças em relação ao processo de preservação e à
gestão dos bens. A Fundação de Desenvolvimento da Região Metro-
politana do Recife - FIDEM traçou, em 1978, um plano de preser-
vação dos sítios históricos da Região Metropolitana do Recife, onde
os remanescentes desses núcleos industriais aparecem inseridos em
zonas de interesse de preservação. Também foram contempladas por
leis de preservação em âmbito municipal: a instituição dos Imóveis
Especiais de Preservação (IEPs).

O edifício considerado principal da Fábrica Tacaruna passa à


proteção estadual, a partir do ano de 1994. Em Paulista, a antiga
residência dos industriais Lundgren torna-se o primeiro edifício
da vila operária a ser tombado pela Fundação do Patrimônio His-
tórico e Artístico de Pernambuco, em 2002, seguido das chaminés
das duas fábricas da CTP e prédio administrativo, em 2012. Re-
centemente, a Igreja Santa Isabel, localizada no centro de Paulista
também foi tombada. Já a Fábrica da Macaxeira tem apenas um
dos edifícios classificado enquanto IEP, sem proteção ou diretrizes
da FUNDARPE. A predominância da proteção legal de elementos
isolados desponta como ponto em comum dessa preservação insti-
tucional, seja ela municipal ou estadual.
70
Chaminés apagadas:
O lugar do patrimônio industrial em Pernambuco

Com o declínio da atividade industrial do setor têxtil, os elementos


que compõem a vila operária vão sendo modificados a fim de moderni-
zar e reavivar os parques industriais, e após o fechamento das fábricas,
as vilas sofrem outras “descaracterizações físicas” e/ou ficam submetidas
ao abandono. Segundo Paula Aragão Souza (2013), o inventário de vi-
las operárias da Região Metropolitana do Recife, feito pelo FIDEM, te-
ria, no caso de Paulista, indicado itens isolados justamente em torno da
condição de integridade dos bens. Interpretação que também pode ser
estendida aos vestígios das fábricas da Macaxeira e a Tacaruna.

Mesmo que a proteção legal dos vestígios da industrialização ain-


da seja uma questão relevante, devido à raridade e pouca sistema-
tização da ação sobre esse tipo de bem. O “tombamento”, ou reco-
nhecimento legal está longe de ser garantia de conservação física de
um edifício e de continuidade da memória a que se remete. Não que
está permaneça estática e intocada, contudo, os sentidos construídos
precisam de políticas públicas e de um esforço de outros atores para
sua valorização. Nesse sentido, autores como Cristina Meneguello
consideram que “o caminho para a valoração do patrimônio indus-
trial não pode residir exclusivamente na atuação dos órgãos gover-
namentais de preservação, mas na atuação da sociedade organizada”
(MENEGUELLO, 2011, p. 1826). E para além do “tombamento”, as
ações em torno dos usos e ressignificações desse patrimônio mere-
cem atenção e debates mais amplos.

Em Industrial Archaeology: Future Directions e Industrial He-


ritage Re-tooled: The TICCIH guide to Industrial Heritage Con-
servation, livros compostos por artigos de autores de diferentes
nacionalidades, é possível perceber a multiplicidade de debates,
os quais ainda discutem a legislação, a valorização, a opinião pú-
blica e a necessidade de compreender os atributos culturais e as
especificidades locais. No entanto, assim como no Brasil, a pro-
teção legal não significa garantia de conservação e, também não
assegura o uso adequado de remanescentes materiais.
71
Patrimônio, memória e historiografia

Dessa forma, as problemáticas mais atuais do patrimônio indus-


trial discutidas internacionalmente estão relacionadas ao uso adapta-
do, o planejamento urbano e gestão patrimonial. Esses âmbitos en-
volvem os movimentos de regeneração urbana que visam desenvolver
áreas em declínio. Os projetos, dependendo do país, tendem a pensar
em demolições, baseando-se em diversos argumentos, a partir dos
quais o valor histórico ou cultural dos vestígios industriais é minimi-
zado ou negado. No entanto, com ou sem proteção legal, projetos que
visam reutilizar prédios ou outras estruturas nem sempre têm como
ponto de partida esses valores, buscando maximizar o lucro voltado
para o mercado turístico ou destacar apenas atributos arquitetônicos.

A opinião pública se faz extremamente importante nesse proces-


so, pois a significação desses bens pode se transformar, e sem dúvida,
uma concepção mais tradicional do patrimônio, ainda arraigada na
ideia de monumento e elementos isolados pode influenciar o ponto
de vista da população, e da comunidade afetadas pelas possíveis in-
tervenções. Apesar de legalmente se referir à conservação de bens
materiais, os edifícios e estruturas geralmente não correspondem a
parâmetros de excepcionalidade arquitetônica, além de passar por
modificações para se modernizar durante seu processo evolutivo,
desafiando noções mais tradicionais de integridade e autenticidade.
Deve-se ressaltar, ainda, o valor de uma cultura industrial, na esfera
do trabalho, de costumes cotidianos, na construção de muitas cida-
des, além de questões como identidade local. O uso adaptado pouco
fundamentado e baseado principalmente no lucro possibilita o es-
quecimento desses valores.

Seguem-se caminhos diferentes quanto às intervenções dos


remanescentes aqui discutidos: os vestígios das Fábricas da CTP
estão integrando um Shopping Center e um condomínio residen-
cial, no entanto, apenas o antigo prédio administrativo ganhou
um uso adaptado para suas estruturas. Inserido na área externa
do Paulista Northway Shopping, o prédio foi utilizado como restau-
72
Chaminés apagadas:
O lugar do patrimônio industrial em Pernambuco

rante e, também espaço de eventos. Na Macaxeira, o prédio admi-


nistrativo e galpões, inclusive alguns que nem estavam relacionados
como IEPs, e a área arborizada ao redor da fábrica receberam um uso
voltado a proporcionar serviços públicos e lazer à comunidade em
que está inserida: o Parque Urbano da Macaxeira (BARRETO, 2015).
Enquanto as tentativas de transformar a Fábrica Tacaruna em um
centro cultural, não se concretizaram de forma efetiva.

Dessa maneira, muitas questões podem ser feitas: Até que ponto
os projetos de intervenção consideraram o valor de uso, em contra-
ponto ao valor de troca? Qual a importância de um novo uso para
a conservação física desses bens e de seu valor simbólico? Os novos
usos estariam propiciando uma gentrificação desses espaços? Faz-se
necessário o aprofundamento da discussão sobre a construção das
leis patrimoniais no Brasil e em Pernambuco, entrecruzando esse
processo à influência internacional, analisando a que ponto a abor-
dagem de sua conservação inclui os critérios de influência mundial,
como a Carta de Nizhny Tagil e, Princípios de Dublin, construído
conjuntamente pelo ICOMOS e TICCIH.

Quais especificidades locais contribuem ou não para a valori-


zação desses bens? Como a especulação imobiliária, projetos de
regeneração urbana agiram sobre os conjuntos desde sua desativa-
ção e como essa “descaracterização” é abordada na prática? Como
seus projetos de uso foram pensados e realizados? E sem dúvida,
faz-se necessário pensar a participação ou uso da comunidade em
que estão inseridos nesse processo de valorização, apropriação e
construção do patrimônio industrial. A partir do aprofundamen-
to dessa análise, buscando responder essas questões, espera-se
compreender qual o lugar legado ao patrimônio industrial na di-
nâmica urbana contemporânea na metrópole pernambucana, que
ainda conta com outros remanescentes abandonados, esquecidos,
ou em constante disputa por sua preservação e memória.
73
Patrimônio, memória e historiografia

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76
Educação patrimonial ou
instrução para o patrimônio?
O lugar do SPHAN no projeto
educacional do Ministério da Educação
(1930- 1945)

Pedro Henrique da Silva Paes1

Introdução

Entre as interpretações sobre a atuação do IPHAN no desenvolvi-


mento das políticas de patrimônio no Brasil durante o regime ditatorial
varguista (1937-1945), a de Maria Cecília Londres Fonseca2 (2017) se
mostra como inovadora e representativa ainda em 1997 por realizar
uma abordagem sociológica através da teoria weberiana e pela própria
autora se localizar no interior da instituição desde o período em que

1 Graduado em História pela Universidade Federal do Ceará (UFC), Especialista em Ensino de


Ciências Humanas pelo Instituto Federal do Ceará (IFCE) e mestrando em história pela Univer-
sidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). E-mail: [email protected].
2 Maria Cecília Londres Fonseca é doutora em Sociologia pela Universidade de Brasília, mem-
bro do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural do IPHAN e sócia do IHGB. Entre 1976
e 1979 foi pesquisadora do Centro de Referência Nacional de Cultura (CRNC) fundado por
Aluísio Magalhães com o objetivo de “criar um banco de dados sobre a cultura brasileira, um
centro de documentação que utilizasse as formas modernas de referenciamento e possibilitas-
se a identificação e o acesso aos produtos culturais brasileiros” (FONSECA, 2017, p. 153). Seu
estudo sociológico, Patrimônio em processo (2017), fortemente influenciado pela concepção
de “Instituição” weberiana defendido em 1994 na UNB configura-se como a principal refe-
rência bibliográfica que defende o lugar do IPHAN na consolidação das políticas culturais de
preservação do patrimônio nacional. Apesar de seu estudo se limitar à atuação da instituição
entre as décadas de 70 e 80, na publicação de 1997 são adicionadas reflexões em torno da atua-
ção dos modernistas entre as décadas de 20 e 30 para que fossem comparados ao grupo criador
do CNRC (Aluísio Magalhães, Severo Gomes e Wladimir Murtinho).

77
Patrimônio, memória e historiografia

Aluízio Magalhães ocupou o cargo de diretor da instituição. Em seu es-


tudo sobre a estrutura institucional do Serviço de Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional (SPHAN) e os agentes que atuaram na instituição,
a socióloga pondera a relação entre patrimônio e educação no período:

A atividade desenvolvida por esse grupo de intelectuais


no SPHAN gozou de uma surpreendente autonomia den-
tro do MES. Desde o início, a área do patrimônio ficou a
margem do propósito de exortação cívica que caracteriza-
va a atuação do ministério na área educacional. A cultura
produzida pelo SPHAN sequer era articulada com os con-
teúdos dos projetos educacionais ou com os instrumentos
de persuasão ideológica do Estado Novo; esses conteúdos
eram mais compatíveis com a vertente ufanista do mo-
dernismo. Durante o Estado Novo, o SPHAN funcionou
efetivamente como um espaço privilegiado, dentro do
Estado, para a concretização de um projeto modernista
[Grifo nosso] (FONSECA, 2017, p. 102).

Em 1937 as políticas educacionais tinham trilhado um curtíssimo


percurso e as políticas de patrimônio estavam se estruturando insti-
tucionalmente no interior do Estado primeiramente com a criação
da Inspetoria de Monumentos Nacionais e depois com o SPHAN.
Junto ao serviço, foram criados órgãos responsáveis entre muitas coi-
sas pela propaganda e pelos meios de comunicação (Departamento
de Imprensa e Propaganda- DIP), pelo livro, incentivo as artes e se-
gurança nacional. Neste momento, os vários ministérios disputavam
por essas novas instituições com a intenção de utilizá-las para atin-
gir seus objetivos. Vislumbramos, por exemplo, que o Ministério da
Educação e Saúde Pública e o Ministério da Justiça mantiveram em-
bates para submeter os meios de comunicação a sua tutela. Enquanto
os educadores reconheciam o potencial dos programas de rádio na
promoção de uma consciência escolar e as revistas e livros como pos-
síveis materiais didáticos, os homens das leis ligados ao Ministério
da Justiça viam a propaganda e os meios de comunicação a partir da
questão de segurança nacional (BARBALHO, 1998).
78
Educação patrimonial ou instrução para o patrimônio?
O lugar do SPHAN no projeto educacional do Ministério da Educação (1930- 1945)

Vale ressaltar, que neste período os intelectuais modernistas que


participaram da Semana de Arte Moderna como Mario de Andrade,
Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Plínio Salgado e Menotti Del
Picha se emparelharam em projetos modernistas distintos e conflitan-
tes. O movimento verde-amarelo, por exemplo, ligado ao nacionalismo
de caráter ufanista e autoritário se diferenciou dos movimentos pau-
-brasil e antropofágico concebidos com a publicação dos respectivos
manifestos em 1924 e 1928 por Oswald de Andrade. Já no interior
do Ministério da Educação e Saúde Pública estes projetos de nação
estiveram cravados nas gestões de Francisco Campos (1930-1932)
e Gustavo Capanema. O primeiro, amparado intelectualmente pelo
movimento verde-amarelo, se empenhou em desenvolver uma edu-
cação integrada nacionalmente que permitisse a criação do espírito
patriótico da população brasileira e o segundo, apoiado pelo movi-
mento integrado por Mario de Andrade, Carlos Drummond de An-
drade, Rodrigo Melo Franco de Andrade e Lúcio Costa, se preocu-
pou, principalmente, em “centralizar diretrizes administrativas de
ensino, fixar normas para a implantação de um modelo de ensino
em todo o Brasil e expor uma cultura geral para a formação de uma
consciência patriótica e humanística” (PAES, 2019, p.).

Nesse sentido, entendemos que a inserção do SPHAN ao Mi-


nistério de Educação e Saúde Pública obedece a objetivos políticos
e a critérios técnicos que sustentam a importância do patrimônio
histórico e artístico em projetos pedagógicos propostos pelas políti-
cas educacionais do ministro Gustavo Capanema entre 1934 e 1945.
Com nossa pesquisa torna-se perceptível que os modernistas ligados
ao SPHAN tinham certa independência na formulação de seus cri-
térios no que diz respeito ao tombamento, mas existia determinada
compatibilidade entre o projeto de educação do MES e o projeto de
nação do SPHAN. Diante disso, como se firmou a associação entre
Patrimônio e Educação no período do Estado Novo?
79
Patrimônio, memória e historiografia

Já em 1980, década em que o SPHAN comemorava 50 anos de atua-


ção, a instituição estabeleceu marcos de sua memória a partir da pu-
blicação Proteção e revitalização do patrimônio cultural no Brasil: Uma
trajetória. A partir desta publicação, a memória institucional passou
a ser dividida em “fase heroica”, período em que Rodrigo de Andrade
permanece na direção do SPHAN junto aos modernistas como Mário
de Andrade, Lúcio Costa e Carlos Drummond de Andrade, e “fase mo-
derna”, período em que Aluísio Magalhães assume a direção da insti-
tuição. Segundo Márcia Chuva (2009), esta interpretação está ligada as
necessidades políticas do período e dificultam reflexões críticas sobre
o processo de construção e transformação do conceito de patrimônio.

Em nossa pesquisa, sobretudo quando salientamos a importância


da publicação Educação patrimonial: Histórico, conceitos e processos
(2014), percebemos que o IPHAN continua adotando esses marcos
para construir uma memória oficial e institucional como forma de
legitimação política das competências técnicas atribuídas ao órgão.
Nesse sentido, ao criar narrativas de origem do conceito de Educação
Patrimonial, a instituição recorre aos supostos heróis modernistas,
formulando uma interpretação em que as práticas e propostas para a
educação já se alinhavam com tal conceito e não descarta um traba-
lho reflexivo entre passado e presente ou entre instrução e educação.

Entendemos os conceitos de “educação” e de “instrução” a partir


da diferenciação de José Carlos Libâneo (2013). Nesta concepção,
“instrução se refere à formação intelectual, formação e desenvolvi-
mento das capacidades cognoscitivas mediante o domínio de cer-
to nível de conhecimentos sistematizados” (LIBÂNEO, 2013, p. 23).
Enquanto, educação se conceitua pelo processo de desenvolvimento
da “personalidade social e do caráter, implicando uma concepção de
mundo, ideais, valores, modos de agir, que se traduzem em convic-
ções ideológicas, morais, políticas, princípios de ação frente a situa-
ções reais e desafios da vida prática” (LIBÂNEO, 2013 p. 23).
80
Educação patrimonial ou instrução para o patrimônio?
O lugar do SPHAN no projeto educacional do Ministério da Educação (1930- 1945)

Atento a estes dois eixos interpretativos, procuramos estabelecer


posição diante de estudos especializados sobre o patrimônio cultu-
ral durante a fase heroica do SPHAN (1937-1967) e com a própria
memória oficial do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional. O debate pré-estabelecido nesta introdução será ponto de
partida para primeiro refletir sobre a relação entre patrimônio e edu-
cação, ressaltando o projeto de educação idealizado pelos intelectuais
preocupados com a preservação do patrimônio via SPHAN. Junto a
isto, procuramos diferenciar as tímidas propostas educacionais liga-
das à instituição, definida por nós como instrução para o patrimônio.

Portanto, nosso objetivo é entender como o SPHAN estabele-


ceu suas preocupações com a formação dos cidadãos em meio ao
regime ditatorial de Vargas. Como veremos nas próximas refle-
xões, as práticas educacionais projetaram-se discursivamente, ou
seja, através de projetos que não vingaram como os museus pro-
vidos de estrutura educacional idealizada por Mário de Andrade
em seu Anteprojeto de criação do SPHAN. Por outro lado, o pro-
jeto educacional do serviço também se dá de maneira concreta e
eficaz através do tombamento e sua difusão nas publicações do
patrimônio, assim como os respectivos usos da preservação do
patrimônio material pelos materiais didáticos.

Educação e identidade no anteprojeto de


mário de andrade (1936)

O anteprojeto de Mário de Andrade é um documento solicita-


do pelo ministro Gustavo Capanema com o intuito de formalizar a
criação do Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e
estrutura-lo enquanto responsável pela preservação do patrimônio
brasileiro. Neste documento, o autor de Macunaíma propõe a criação
de um instrumento capaz de reconhecer o valor histórico das obras
artísticas brasileiras, frear o desenvolvimento urbano, favorecendo
81
Patrimônio, memória e historiografia

a existência do tradicional e do moderno em um mesmo espaço e


promover ações efetivas e eficazes para a proteção e promoção do
patrimônio histórico e artístico, ou seja, através do tombamento.

No Anteprojeto idealizado pelo escritor Mario de Andrade, o pa-


trimônio deveria ser divulgado, transformado em elemento inteligível
para ser difundido na mentalidade do ser brasileiro. Uma das funções
do SPHAN, segundo esse documento, seria o de “fazer os serviços de
publicidade necessários para a propagação e conhecimento do patri-
mônio artístico nacional” (BRASIL, 1980). Mario de Andrade tam-
bém destaca a atuação de museus nacionais no processo de difusão
do patrimônio nacional, principalmente aqueles de natureza móvel e
ainda propõe a criação de museus responsáveis por divulgar os bens
culturais que já estão sob a chancela de proteção do Estado. Dentre
outros objetivos do SPHAN estaria o de determinar os bens tombados,
conservar, defender e enriquecer o patrimônio brasileiro.

O anteprojeto desenvolvido por Mário de Andrade traz mui-


tas inovações no que diz respeito ao que considerar “cultura”. Por
exemplo, no capítulo II do referente documento Mario salienta a
importância das obras ditas populares e eruditas, fomentando o en-
tendimento que qualquer manifestação artística e cultural do “povo”
brasileiro representava símbolos constituidores da identidade nacio-
nal devendo ser preservados. Nesta concepção, o patrimônio brasi-
leiro se constituiria, além dos bens materiais, os bens imateriais. Em
suas viagens etnográficas pelo Norte e Nordeste entre 1927 e 1929,
Mario de Andrade registra através de fotografias, áudios e depoi-
mentos as várias manifestações imateriais do Brasil 3.

O anteprojeto de criação do SPHAN elaborado por Mário de An-


drade não vigorou e o Decreto-lei 25/37 o substituiu como lei que
regulamenta o patrimônio nacional, limitando o que deveria ser
preservado e adaptando o direito à propriedade privada a realidade

3 Ver: ANDRADE, Mário de. O turista aprendiz. Brasília: IPHAN. 2015.

82
Educação patrimonial ou instrução para o patrimônio?
O lugar do SPHAN no projeto educacional do Ministério da Educação (1930- 1945)

brasileira. Entretanto, os debates decorrentes da elaboração do ante-


projeto e a experiência de Mário de Andrade no registro da cultura
popular no qual possui respectivo papel do fomento a educação não
foram desperdiçados. O Departamento de Cultura do Município de
São Paulo, criado em 1935 e coordenado pelo autor de Macunaíma
entre 1935-1944, absorveu suas intenções de proteger o patrimônio
nacional, tangível e intangível, estimulando e desenvolvendo políti-
cas educacionais (NOGUEIRA, 2005).

O projeto pedagógico cultural de Mário de Andrade quando diretor


do Departamento de Cultura do Município de São Paulo gira em torno
do que ficou conhecido como Divisão de Educação e Recreio voltado
principalmente para crianças de operários e com o objetivo de promover
uma consciência para a identidade brasileira, assim como se utilizar da
suposta tradição para criar iniciativas de educação e lazer. Nesse sentido,
Mario de Andrade por meio do Departamento enfatizava a importância
dos meios de comunicação e a criação de bibliotecas populares como
instrumentos de alcance às massas e sua respectiva formação cultural
através das letras (NOGUEIRA, 2005). Segundo Nogueira:

Nota-se que o caráter pedagógico do departamento, “edu-


cação totalizadora de sua gente”, centralizava as ações da
Divisão de Educação e Recreio a partir de duas frentes que
tinham como foco a criança: a prática da educação infantil
e a diversão pública. Nos dois casos a preocupação cons-
tante era moldar os filhos dos proletários da cidade (mi-
grante e imigrante) de acordo com o “controle dos poderes
públicos” para a constituição de uma sociedade moderna
e civilizada. [...] Também a preocupação com a construção
de uma identidade paulista e brasileira justifica a direção
dessas ações. A pluralidade de etnias e suas respectivas iden-
tidades, ameaçava o projeto homogeneizador da elite diri-
gente, por isso era necessário resgatar e reinventar práticas
culturais populares que estava se perdendo nesse amálgama
cultural da cidade. Somente a partir das festas e brinquedos
tradicionais essa população poderia ser incorporada no
projeto nacional dos intelectuais do Departamento. (NO-
GUEIRA, 2005, p. 214) [Grifo Nosso].
83
Patrimônio, memória e historiografia

Portanto, a função social do projeto de educação do Departamen-


to de Cultura do Município de São Paulo estava vinculada a intenção
de disciplina da classe trabalhadora e entendia o patrimônio como
meio de alfabetização artística e histórica, assim como uma lição de
patriotismo. Conhecer o patrimônio nacional, nesse sentido, era re-
conhecer as datas, fatos e personalidades importantes para história
do Brasil e incitar o desejo pela arte no cidadão brasileiro.

O projeto de educação do sphan e os usos


pedagógicos do patrimônio

A ideia de memória brasileira é discutida desde o advento do Ro-


mantismo e com a criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasilei-
ro e do Arquivo Nacional ainda no século XIX, quando o Brasil inde-
pendente necessitava se constituir enquanto Nação. Buscar a essência
da brasilidade era a principal discussão entre os intelectuais interessa-
dos na construção de uma identidade nacional, acirrando o debate em
torno do que deveria ser lembrado. O patrimônio, nesse sentido, se
firma como espaço disputado entre diversos projetos de nação.

Já na década de 20 do século XX, influenciados pelo fervor


das manifestações políticas e pelo centenário da independência
que estimulou o exercício da questão nacional, intelectuais de vá-
rias posições iniciam projetos em torno da preservação do pas-
sado nacional. Com a experiência da Semana de Arte Moderna
em 1922 os modernistas, sobretudo aqueles ligados ao movimen-
to paulista, procuram definir a identidade brasileira a partir do
dinamismo cultural provocado pela miscigenação. Esses intelec-
tuais influenciaram o processo de institucionalização da memória
nacional no século XX, sobretudo a partir da criação do Serviço
de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional em 1937. Com a
criação do SPHAN o Ministério da Educação elabora um novo
84
Educação patrimonial ou instrução para o patrimônio?
O lugar do SPHAN no projeto educacional do Ministério da Educação (1930- 1945)

instrumento pedagógico responsável entre muitas coisas pela va-


lorização do sentimento patriótico brasileiro.

Durante o Estado Novo, o SPHAN desempenha um importante


papel nas políticas culturais em âmbito federal. Vinculado ao Minis-
tério de Educação, a instituição foi responsável por estudar, catalogar
e proteger o patrimônio cultural brasileiro com o intuito de construir
uma identidade nacional. Sua constituição foi alvo de disputa entre
o Estado que ansiava em construir legitimidade a partir da forma-
ção de uma identidade homogênea e os intelectuais modernistas que
viam no patrimônio uma forma de contribuir nos estudos sobre a
cultura brasileira. Segundo Maria Cecília Londres Fonseca (2009), o
SPHAN se constitui a partir da dicotomia entre o “movimento cul-
tural renovador”, promovido pelo debate da Semana de Arte Moder-
na em 1922, e o “Estado Autoritário” Varguista, formando “espaço
privilegiado, dentro do Estado, para a concretização de um projeto
modernista” (FONSECA, 2009, p. 98).

Segundo a Lei n° 378 de 13 de Janeiro de 1937, o SPHAN tem a


“finalidade de promover, em todo o país e de modo permanente, o
tombamento, a conservação, o enriquecimento e o conhecimento do
patrimônio histórico e artístico nacional” (BRASIL, 1980) [Grifo Nos-
so]. A proposta da vinculação do SPHAN ao Ministério de Educação
constitui na transformação dos lugares e objetos móveis considera-
dos históricos e de riqueza artística em instrumentos pedagógicos
responsáveis por narrar a “evolução” da civilização brasileira. Assim,
em 1936, segundo Gustavo Capanema, “montou-se o aparelho de al-
cance nacional, destinado a exercer ação energética e permanente
[...] para conservar e enriquecer o nosso patrimônio histórico e artís-
tico e ainda para torná-lo conhecido” (BRASIL, 1980).

A educação durante a Era Vargas tinha o intuito de construir


uma nação civilizada, limitando-se em divulgar os trabalhos cien-
tíficos produzidos por uma grade restrita de intelectuais. O patri-
85
Patrimônio, memória e historiografia

mônio, enquanto vestígio do passado que deveria ser preservado e


divulgado, por exemplo, atende as demandas dos intelectuais liga-
dos ao SPHAN, majoritariamente arquitetos que durante a primeira
fase da instituição construíram uma noção de memória em pedra e
cal (CHUVA, 2009). Preservar o patrimônio nacional significou o
empreendimento brasileiro de se adequar as demandas dos países
ocidentais “civilizados” que desde a Revolução Francesa procuravam
construir legislações, programas e instituições capazes de promover
a proteção do passado nacional.

Entretanto, não bastava adequar à realidade brasileira às deman-


das estrangeiras a partir de políticas específicas para preservação do
patrimônio brasileiro, mas era necessário “civilizar o povo” por meio
de uma instrução nacional. Rodrigo de Andrade, diretor do SPHAN
entre 1937 e 1967, afirma:

O departamento visa justamente divulgar o mais possí-


vel as nossas relíquias históricas e artísticas, educando o
povo no seu conhecimento. Evidentemente não seria re-
comendável apenas uma obra para eruditos. As massas
precisam saber também destes assuntos (ANDRADE,
1987, p, 27) [Grifo Nosso].
O SPHAN dispõe-se a uma tarefa de interesse indiscuti-
velmente nacional: a defesa do patrimônio comum a to-
dos os brasileiros. Tudo deve ser feito do princípio visto
que a própria noção do interesse geral precisa de ser
compreendida por todos e não apenas por uma elite.
Para um fim comum o esforço deverá ser comum. Este es-
pírito de proteção aos testemunhos da história e da arte
merece acolhida entre todas as classes, merece divulga-
ção e cabe aos órgãos de publicidade emprestar sua co-
laboração, difundindo de todas as maneiras o gosto pelas
coisas que, só elas, conseguem impor-se eternamente à
admiração (ANDRADE, 1987, p. 29) [Grifo Nosso].

A partir dos depoimentos de Rodrigo de Andrade percebemos


como a necessidade pela preservação do patrimônio histórico e artísti-
co nacional permeia as preocupações educacionais do Estado Varguis-
ta. Educação e Patrimônio, nesse sentido, são elementos civilizatórios
86
Educação patrimonial ou instrução para o patrimônio?
O lugar do SPHAN no projeto educacional do Ministério da Educação (1930- 1945)

uma vez que seriam recursos para a divulgação do passado brasileiro


e seus usos obedeceriam a interesses de legitimidade política, assim
se firmam como conceitos historicamente construídos e categorias
complementares e indissociáveis do processo de imaginação das co-
munidades (ANDERSON, 2008).

Os dois segmentos de discurso destacados acima apresentam


ideias similares sobre o papel do patrimônio na formação de uma
nação erudita e sobre a divulgação das “relíquias históricas e artís-
ticas” nacionais, lê-se de forma enciclopédica interessada em pro-
por um inventário sem outro fim o de reunir testemunhos dos fatos
mais memoráveis. O conceito de cultura adotado pelos modernistas
ligados ao SPHAN era influenciado pelas ideias ilustradas do Ilumi-
nismo, onde o “acúmulo” de informações e conteúdo determinava o
nível civilizatório de uma sociedade. É comum nos dois depoimen-
tos de Rodrigo Melo Franco de Andrade a súplica da participação
dos meios de comunicação no processo de divulgação dos trabalhos
do SPHAN, assim como os sentidos e valores atribuídos aos bens
culturais reconhecidos como patrimônio nacional.

Em 1934, Ariosto Espinheira publica o livro Rádio e Educação no


qual discute o lugar dos meios de comunicação de massa, sobretudo
o rádio, no processo de formação da população brasileira, ressaltan-
do que ao alcançar uma considerável parcela da população as progra-
mações e informações devem servir a um projeto de construção da
civilização nacional. No campo das políticas públicas, ainda durante
a Era Vargas (1930-1945) e influenciado pelas ideias pioneira de Ro-
quette-Pinto 4, registramos o Serviço de Radiodifusão Educativa e o
Instituto Nacional de Cinema Educativo que operavam essas mídias
em favor da instrução e formalização de uma identidade nacional.

Já na década de 1950, como aponta Gomes (2015), a emissora


Rádio Nacional, potente meio de comunicação de massa, dedicava
parte de sua programação para programas educativos. Nesse período

4 Sobre as iniciativas de Roquette-Pinto em criar emissoras educativas ainda na década de 20 do


século XX, ver MODESTO (2009);
87
Patrimônio, memória e historiografia

o rádio detinha um público amplo e diversificado interessado em


se informar e se divertir. Ao analisar o programa História de Chi-
nelo, a historiadora indica que a mensagem cultural passada por
estes programas tinham a característica de serem breves, educati-
vos e agradáveis no qual a curiosidade seria um recurso de atrair a
atenção dos ouvintes através de músicas e historietas, assim apre-
sentando ensinamentos específicos (GOMES, 2015).

Relacionando Educação e Patrimônio, podemos problemati-


zar os nuances da “educação nacional” 5 durante a Era Vargas,
sobretudo durante o período que ficou conhecido como Estado
Novo. No Brasil, segundo os intelectuais que estavam à frente do
processo de patrimonialização, o “povo” precisava tomar cons-
cientização pela preservação do patrimônio que se fazia de forma
enciclopédica e sob o ponto de vista das elites. O “povo”, nesse
sentido, deveria absorver representações simbólicas hierarquiza-
das. Nesse período a casa grande, os sobrados, os grandes templos
católicos e as fortificações militares eram as construções arquite-
tônicas mais privilegiadas em detrimento as senzalas e as cons-
truções vernaculares dos quilombos e comunidades indígenas.

A iniciativa pedagógica do SPHAN consiste na disciplina do


espírito dos cidadãos brasileiros. Através do tombamento, das
publicações do patrimônio e da súplica a outros meios de comu-
nicação, a instituição procura atingir objetivos na política educa-
cional. Entre estes, elencamos, a partir da leitura de nossas fontes,
os seguintes objetivos: estimular os cidadãos a viajar para que ex-
plorem o espaço e as joias artísticas do Brasil, civilizar o espírito

5 Para Poulot (2009), a educação no século XIX vai ser caracterizada por dois conceitos a “ins-
trução pública” e a “educação nacional”, segundo a divisão de Rabaut Saint-Étienne, “a pri-
meira deve fornecer esclarecimentos, enquanto a segunda suscita virtudes” (POULOT, 2009,
p. 85). A educação nacional seria uma criação moderna que acompanha o desenvolvimento
dos Estados Nacionais no século XIX. O monumento nesse projeto de nação tem lugar privile-
giado na construção do sentimento patriótico, de um lado o sentimento nostálgico de outro a
deslegitimação do antigo regime. No Brasil, o período colonial contempla esse “espaço da sau-
dade” e o período imperial e da “República Velha” seriam os períodos desmoralizados frente
ao discurso legitimador do governo Vargas;

88
Educação patrimonial ou instrução para o patrimônio?
O lugar do SPHAN no projeto educacional do Ministério da Educação (1930- 1945)

a partir da arte, construir um sentimento de nacionalismo e aper-


feiçoar o saber adquirido na escola.

Referenciando o discurso de Gustavo Capanema em homenagem


ao colégio Pedro II, compreendemos de como o patrimônio histórico
e artístico pode ser utilizado no processo de educação do “novo ho-
mem” brasileiro. O ministro indica que a difusão do patrimônio deve
vir a partir de iniciativas extraescolares com a finalidade de divertir a
população, estimular as massas ao sentimento patriótico e à criação
artística, assim como localizar o cidadão em uma comunidade atra-
vés do espírito nacional (HORTA, 2010). No discurso de Capanema
fica evidente o valor educativo do patrimônio e o seu aspecto lúdico
frente às atividades desenvolvidas em sala de aula naquele momen-
to. Além de conservar e promover uma produção de teor técnico e
científico para o patrimônio nacional, a SPHAN deveria desenvolver
atividades que integrasse os espaços e os bens móveis materiais à po-
pulação que deveria tomar consciência da preservação.

O tombamento é um instrumento de preservação do patrimônio


histórico e artístico material previsto pelo anteprojeto de Mário de
Andrade e oficialmente regulado pelo Decreto-lei n° 25 de 30 de No-
vembro de 1937. A partir do tombado, um bem material, seja de na-
tureza móvel ou imóvel, passa a ser considerado patrimônio nacio-
nal. Nesse sentido, uma construção arquitetônica ou um bem móvel
6
passa a contribuir na narrativa histórica proposta pelo SPHAN.
Entendendo o patrimônio como recurso da construção da narrativa
histórica e o tombamento como meio de atribuição de valor (GON-
ÇALVES 2016), podemos reconhecer o papel dos bens materiais na
formação de recursos pedagógicos no ensino de história, ressaltan-
do o significado atribuído ao conceito de história e a importância
dada à disciplina no projeto educacional brasileiro durante a Era

6 Entre os bens materiais móveis temos vários exemplos. Entre eles: coleções arqueológicas, pin-
turas, esculturas, gravuras e qualquer outro documento de caráter histórico ou artístico nos
quais são possíveis seus respectivos transportes e reintegração no especo de armazenamento.
89
Patrimônio, memória e historiografia

Vargas, ou seja, de reconhecer a evolução da civilização brasileira, for-


mar uma identidade nacionalista e reforçar o poder dos grupos do-
minantes uma vez que os bens tombados, assim como o currículo de
história para o ensino secundário, privilegiam a aristocracia, a igreja
católica e o militarismo (NADAI, 1993; CHUVA, 1998).

Entre as publicações do patrimônio temos as revistas do SPHAN


que se dedicam na divulgação dos trabalhos da instituição, dos bens
tombados em âmbito federal, assim como da descrição de possíveis
bens que poderiam se tornar patrimônio nacional, formalizando
deste modo verdadeiros guias produzidos àqueles interessados em
conhecer a história e a arte brasileira. Entre 1937 e 1945 foram publi-
cadas nove edições da revista nas quais procuraram trazer um pouco
das várias regiões do Brasil, desde a técnica de Aleijadinho no in-
terior de Minas Gerais até a arquitetura colonial do Piauí passando
pelas decorações de malocas indígenas no Amazonas, demonstrado
o projeto de integração nacionalista. Além das revistas ainda temos
as seguintes publicações: Mocambos do Nordeste (1937) de Gilberto
Freyre, Guia de Ouro Preto (1938) de Manoel Bandeira, Arte Indíge-
na da Amazônia (1940) de Heloísa Torres.

Associando as iniciativas educacionais do SPHAN ao con-


ceito de “instrução” percebemos que a população brasileira, en-
quanto receptora do discurso de patrimonialização, foi mantida
como passiva neste processo. Dentro do serviço de proteção ao
patrimônio foi se preservando determinado modelo de arte e a
história dos grupos dominantes foi sendo privilegiada em detri-
mento a vida cotidiana do povo brasileiro que produz arte, edifica
construções vernaculares e possui outra relação com o patrimô-
nio diferente dos arquitetos do SPHAN. Nesse sentido, a prática
educacional estabelecida pelos modernistas preocupados com a
preservação elegia o seu conceito de arte para dissipar de forma
acrítica e sem que os interesses do povo fossem ponderados.
90
Educação patrimonial ou instrução para o patrimônio?
O lugar do SPHAN no projeto educacional do Ministério da Educação (1930- 1945)

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Patrimônio, memória e historiografia

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92
Patrimônio Cultural
e os usos políticos
do passado no Brasil
contemporâneo
A questão da corda: autonomia
devota no Círio de Nazaré em Belém - PA
Thamires Beatriz Braga Barros1

Introdução

As festividades religiosas estão presentes no Brasil desde o período


colonial, por conta das expedições jesuíticas que a cada dia conquista-
vam novos adeptos (DEL PRIORE, 1994). Desde esse período são iden-
tificadas festas religiosas por todo o território Luso Brasileiro, as santas
e os santos católicos possuem uma importância muito grande aos seus
devotos e isso acaba propiciando modelos que são seguidos pela popu-
lação em vários segmentos de sua vida (ALVES, 2005, p. 73).

A igreja católica, assim como a Igreja Metodista analisada por


Thompson (2001), sempre possuiu aspectos de dominação em
relação a seus fiéis. Thompson cita que a dominação religiosa
acontecia com muitos conflitos por conta da sua autoridade e de
sua doutrina (THOMPSON, 2001, p. 203-225). Segundo o autor,
a dominação e a imposição a ela sempre foram eixo central do
desenvolvimento histórico de toda sociedade.

Em relação a essa dominação e a sua imposição Certeau (1979)


explica que as instituições, como a Igreja católica, constroem o sa-
ber histórico, e o historiador deve ter o cuidado de perceber essa

1 Mestranda em História social da Amazônia — PPHIST/UFPA. Lattes: http://lattes.cnpq.


br/7505316409639024

95
Patrimônio, memória e historiografia

dualidade entre a linguagem técnica (vinda das instituições) e a po-


pular (vinda das camadas baixas das sociedades), e ainda segundo
ele, a desconstrução deve começar pelas relações de poder, pois elas
que moldam as formas de dominação.

Através disso é importante ressaltar que apesar do sistema de


dominação que a Igreja católica manteve ao longo dos tempos,
não existe apenas a intervenção dela para que as pessoas profes-
sem sua fé, mas muitas das camadas populares passam a adotar
essa religião a incrementando com suas devoções e a partir dela,
guiando seus comportamentos (GEERTZ, 2008).

Segundo Chartier (1991, p. 173-191), a forma como as pessoas veem


o que lhes é repassado e reproduzem a sua maneira, é a forma como a
cultura se propaga nos diferentes meios, e é através dessa propagação
que vem à tona a proximidade com a qual o povo vê seu padroeiro. Em
Belém e nas regiões do interior é muito comum essa proximidade das
pessoas com Nossa Senhora de Nazaré, intitulando-a de “Nazica”, “Mãe-
zinha”, “Nazi”, pessoas viajando do interior para a capital para “visitar sua
mãe”, ou “ir à festa da mãezinha”, essa relação que a cultura tem com os
participantes dela é que dão forças para a sua continuidade.

Segundo o Dossiê do Instituto do Patrimônio Histórico e Artís-


tico Nacional (IPHAN, 2006), apesar de o Círio ter sido oficializado
em 1793 pelo estado e pela igreja como uma forma de afirmar seu
poder e autoridade, ele nunca deixou de ter um caráter popular, per-
cebido através da participação de brancos, índios, negros e mestiços,
impregnando sua cultura a aquele ritual que estava sendo apresenta-
do, que perpassava as instituições, podendo encontrar uma mistura
de diversas culturas dentro do Círio e do arraial.

É através disso que se percebe a força que a população tem den-


tro das festividades religiosas, como exemplo o Círio de Nazaré, a
maior festividade religiosa do estado do Pará, nessa manifestação os
paraenses tomam para si os significados e tradições da festividade e
96
A questão da corda:
Autonomia devota no Círio de Nazaré em Belém - PA

o propagam de uma forma que não se deixam as tradições morrer,


como ressalta Alves (1980, p. 21), se a sociedade sai do seu habitual
para viver o “extraordinário de eventos ritualizados” é porque esse
acontecimento tem muito a ver com tal corpo social.

Autonomia devota

Importante ponto a ressaltar é o de a população participante da festi-


vidade não ser apenas um elemento passivo dentro do círio, eles tomam
o poder de interferir na organização da Igreja católica, muitas das vezes
impondo suas vontades acima das ordens religiosas, como nos mostra
Thompson (2001), que através das manifestações populares as pessoas
conseguem expressar seus desejos perante um sistema dominante.

As análises dos movimentos populares foram muitas vezes ao


longo da história, feitos em relação às questões de dominação de
classe. Thompson (2001) aponta que o objetivo não deve ser analisar
a dominação como ponto central das transformações que ocorrem
em determinadas sociedades. Isto negligenciaria a visão analítica do
processo pelo qual passa a cultura popular. Segundo o autor, teorias
marxistas que fazem a análise do processo apenas pelo viés econô-
mico, acabam deixando de lado análises pautadas na “autonomia dos
movimentos políticos e culturais” (THOMPSON, 2001, p. 203-225).

Esse tipo de análise economicista acaba omitindo de alguma forma a


análise da cultura popular. Os períodos estudados devem ser compreen-
didos por ambos os lados, para que não haja uma visão fragmentada do
processo2, por isso se faz necessário compreender os embates por dois
víeis, um vindo das instituições eclesiásticas e outro vindo das camadas
populares que adotam símbolos próprios para sua devoção.

2 Segundo Thompson, a classe operária não foi um resultado apenas da industrialização e da


chegada de fábricas de algodão, mas que também o meio e as relações sociais foram necessá-
rias, e devem ser levadas em conta quando se for fazer uma análise da formação do movimento
operário no século XVIII (THOMPSON, 1987).
97
Patrimônio, memória e historiografia

Exemplo disso foi o embate que ocorreu em 1926 quando a igreja


católica decidiu pela retirada da corda que puxa a berlinda, que era utili-
zada desde 1855 para evitar os constantes atoleiros que a berlinda sofria
durante a procissão, substituindo-a então por um andor a ser levado
nos ombros dos fiéis (Jornal A Província do Pará, 1885, p. 3).

A pressão popular foi tão grande acerca da decisão de retirar esse


símbolo que houve uma grande confusão entre os fiéis que acompa-
nhavam o Círio, pois já havia se tornado tradição entre eles o sacri-
fício de puxar a berlinda pela corda, sendo essa uma forma de pagar
promessas à santa. Os devotos se impuseram perante as ordens de
retirada da corda, soltaram os animais que foram colocados para pu-
xar a berlinda e foram atreladas cordas para puxarem a imagem santa
(Jornal Folha do Norte, 1931, p. 1).

A ideia da retirada da corda era a de agilizar a procissão que se-


gundo os responsáveis pela organização da festa, era a corda a prin-
cipal responsável por esse atraso, ela foi muitas vezes desatrelada da
berlinda para que a procissão chegasse mais rápido a seu destino, o
que é curioso, já que a utilização da corda se deu justamente para
evitar os atrasos da procissão por conta dos atoleiros que ocorriam
no percurso por conta da chuva e da lama que se acumulava.

Segundo Monteiro (2018), a corda foi introduzida no ano de 1855


por conta da inundação que ocorreu na Rua da Praia (atual Avenida
Boulevard Castilho França). Para evitar o atoleiro da berlinda, que
era puxada por bois e cavalos, os diretores da festa passaram uma
corda em volta pedindo que os fiéis ajudassem a puxar do mercado
do Ver-O-Peso até o largo das Mercês, e nos anos que se seguiram
isso se tornou uma medida preventiva até não ser mais uma necessi-
dade e virar uma tradição da população de puxar a santa pela corda
(MONTEIRO, 2018, p. 153-155).

Em 1885 a corda foi então oficialmente introduzida no Círio


de Nazaré, com o objetivo de aprimorar a procissão, já que até
98
A questão da corda:
Autonomia devota no Círio de Nazaré em Belém - PA

então a berlinda da santa era puxada por cavalos e isso causava


muita confusão durante o percurso por conta do controle dos ani-
mais e as fezes que ficavam pelo caminho e eram espalhados pelas
pessoas que seguiam a procissão (BONNA, 2001, p. 53-55).

Porém nos últimos tempos a cidade mudou e já não era mais ne-
cessária a utilização de cordas para puxar a Berlinda, só que nesse
tempo o símbolo foi ressignificado, passando a ter para o devoto um
significado para além da sua função inicial.

O principal responsável pela retirada da corda do Círio foi o Arcebis-


po D. João Irineu Joffily, que desde 1924, quando chegou a Belém, vindo
de Manaus, se surpreendeu com a forma com a qual o Círio era realiza-
do na capital do estado do Pará, principalmente com a questão referente
à corda e a berlinda que transportava a santa (ROCQUE, 1981).

Segundo Rocque (1981), o Arcebispo publicou em 1926 uma cir-


cular de nº 4 onde o mesmo relembrara os boatos ocorridos no ano an-
terior de que o Círio iria se extinguir, e na época D. Irineu publicou no
jornal A Palavra suas impressões sobre o Círio e sobre as modificações
que pretendia realizar, dentre essas impressões ele diz ter gostado do
Círio como uma “vibrante manifestação de fé”, mas que pretendia tor-
ná-la ordenada e corrigir as irregularidades (ROCQUE, 1981, p. 88).

As intenções de D. Irineu eram, segundo o que foi publicado na


Circular de nº 4, evitar os atropelos e amontoados de gente que acon-
teciam durante a procissão, que segundo o arcebispo, era uma atitu-
de nada católica (BONNA, 2001, p. 47-49), porém a decisão pela re-
tirada da corda causou um grande alvoroço entre a população devota
de Nossa Senhora de Nazaré.

Houve então muitas manifestações a favor e contra as normas de


D. Irineu, uma série de Jornais como A Palavra, O Estado do Pará e
O Correio Brasiliense teciam elogios a reforma do Arcebispo, princi-
palmente o Correio que era um órgão pertencente ao governo, sob o
99
Patrimônio, memória e historiografia

apoio do governador do estado Dionísio Bentes, que como retribui-


ção ao apoio recebia elogios nos jornais pertencentes a igreja católica.

Os jornais que se posicionaram a favor das reformas faziam críti-


cas à população que não a aceitava, dizendo que estes estariam indo
contra os princípios da igreja e falando que as bases da igreja deve-
riam ser a obediência e a humildade. Por outro lado, jornais como
Folha do Norte começaram a publicar em seus artigos severas críti-
cas às reformas, concordando com algumas coisas, porém duramen-
te atacando as decisões referentes à retirada da corda e da Berlinda
da santa (ROCQUE, 1981, p. 90-92).

Diversos artigos e cartas foram publicados em jornais pelo estado,


a grande maioria assinada por pseudônimos, os motivos podem ser
diversos, como medo de se posicionar, ou medo de retaliação, e até
mesmo algum tipo de receio de sua figura pública ser atacada por
conta de suas colocações. Além disso, há também a possibilidade de
uma mesma pessoa seja a autora dos textos e queira dar a impressão
de que essas ideias circulavam pelos escritos de várias pessoas.

No dia 04 de outubro a Folha publicou uma carta aberta pedin-


do ao senador Eurico Valle que falasse com o Dr. Dionísio Bentes,
o governador do estado, para este falar com D. Irineu, apelando
para o desconhecimento do Arcebispo em relação à cultura lo-
cal. Um abaixo-assinado de mais de três mil pessoas foi levado
ao arcebispo pedindo para que a corda continuasse presente na
procissão, porém não foi atendido.

Nas vésperas da realização do Círio os jornais, pró ou contra as


reformas, publicavam artigos incentivando as pessoas a manterem
a calma e a ordem, para que tumultos e manifestações não ocor-
ressem, porém foi inevitável. Dionísio Bentes colocou a polícia nas
ruas para manter a ordem do Arcebispo à força (Dossiê IPHAN,
2006, p. 24-25), porém, segundo Rocque, Belém parecia mais uma
praça de guerra, houve vários choques entre a população romeira e
100
A questão da corda:
Autonomia devota no Círio de Nazaré em Belém - PA

os soldados, pessoas pisoteadas, espancamentos, pessoas apedreja-


das, entre outros fatos (ROCQUE, 1981, p. 101-102).

Esse embate ficou conhecido como “a questão da corda”, e estava


diretamente relacionada à separação da igreja e do estado durante a
transição da velha e da nova República3. O jornal O Estado publicou
uma matéria dizendo que o Círio não era uma manifestação essen-
cialmente católica, por conta disso seria essencial que sua organização
partisse de uma autoridade arquidiocesana, porém também concor-
dava que há no Círio uma parte profana que pertence ao povo, a seus
credos religiosos, e que também é parte essencial dessa manifestação
religiosa, onde é “assegurado ao povo o direito de se reunir livremente
e dar vazão ao seu legitimo contentamento” (ROCQUE, 1981, p. 101).

Pantoja (2006, p. 75) cita que as formas de se organizar as festas


de santo podem revelar uma estratégia de controle de determinado
grupo sobre o outro, transformando o espaço em território onde os
grupos se rivalizam ou se aliam de acordo com seus interesses e con-
textos aos quais são colocados.

Segundo Thompson (2001), autores franceses, seguidos por Fer-


nand Braudel, analisavam uma “mentalidade popular” involuntária,
porém o autor procura analisar o “Movimento Voluntarista”, onde o
povo possui autonomia para fazer e refazer a sua cultura. Segundo o
mesmo autor, isso ocorre através do enfraquecimento da igreja (que
nesse caso se deu por conta da revolução puritana) que gera uma cul-
tura pagã autônoma, onde as pessoas possuem a liberdade de moldar
sua própria cultura (THOMPSONN, 2001, p. 212-214).

Thompson ressalta também que os fenômenos sociais e culturais


não devem ser vistos com distanciamento dos fenômenos econômi-

3 Outras modificações apresentadas por ele eram: abolir homens que não comprovado pobreza, iam
descalços e sem paletó, a dança dos marujos, os anjos a carro ou cavalo, animais escoteiros, reno-
vação das diretorias da festividade a cada ano, fim de teatros e cinemas imorais, entre outros. Ver:
ROCQUE, Carlos. História do Círio e da Festa de Nazaré. Editora Mitograph. Belém do Pará, 1981.
101
Patrimônio, memória e historiografia

cos, pois eles estão presos a mesma “rede de relações”. A burguesia,


segundo Thompson, se tornava dominante por conta das relações
de poder a ele associado, as leis eram feitas para favorecer a gentry,
e obedecia aos interesses de classe, dando a eles a legitimação que
precisam (THOMPSON, 2001, p. 212-214), porém nem sempre fun-
cionava da melhor forma, já que por vezes a pressão da plebe era tão
grande que a gentry tinha que voltar atrás em suas decisões para não
correr o risco de macular sua imagem.

O autor ressalta ainda que a dominação e imposição nem sempre


possui explicação economicista, haja vista que os embates da plebe
muita das vezes se dão pelo fato de não se aceitar normas que lhes são
impostas, o autor diz que é preciso levar a sério a autonomia dos acon-
tecimentos políticos ou culturais, pois só em último caso é visto como
determinados pelos acontecimentos econômicos (THOMPSON, 2001,
p. 207-209), ou seja, essa relação entre ordem e obediência não preci-
sa necessariamente ser determinado pelo viés econômico, ele também
não é determinante no caso de recusa ou aceitação da ordem imposta.

No caso das ordens dadas por D. Irineu, seu título de arcebispo


e sua superioridade econômica, haja vista que os grandes nomes da
política estavam lhe apoiando, não foram requisitos suficientes para
a aceitação das normas impostas à população.

Pantoja (2006, p. 84) ressalta que a tensão que envolve esse sím-
bolo (a corda) pode ser vista como uma forma de as pessoas se ma-
nifestarem, se apropriando do símbolo durante a procissão e contra-
riando o controle que é imposto pela diretoria da festa de Nazaré. A
questão da corda só foi resolvida em 1931, depois de muitas pressões
dos fiéis sobre a igreja e até mesmo pressão vinda do Interventor do
estado, o tenente Magalhães Barata, que assumiu em 1930.

Segundo Rocque (1981, p. 107-108), a Revolução que acabou com


a velha república fez o ambiente mudar completamente, Barata go-
vernava imponente e não deixava suas vontades serem desobedeci-
102
A questão da corda:
Autonomia devota no Círio de Nazaré em Belém - PA

das, ele assumiu as lutas populares e aos poucos começou a trabalhar


pela volta do círio tradicional, chegando até a ameaçar deixar seu
cargo caso os pedidos da população em retornar a corda e a berlinda
não fossem atendidos (Jornal Folha do Norte, 1931).

Segundo o Dossiê IPHAN I (2006, p. 24-25), a renúncia de Dom


Irineu Joffily em 1931, levantou hipóteses de que o motivo do ocorri-
do com a questão da corda tivesse ligação com o conflito entre as au-
toridades laicas e eclesiásticas. Enquanto seu sucessor, o arcebispo D.
Antônio de Almeida Lustosa não chegava à Belém, ficou responsável
pela arquidiocese o vigário capitular monsenhor Argemiro Pantoja,
o qual foi entrevistado pela Folha do Norte e disse que continuaria
com as ordens de D. Irineu de manter o Círio da forma como apre-
sentada na circular de nº 4, pois para ele eram as decisões corretas a
serem tomadas (ROCQUE, 1981, p. 107-108).

O estado, sob o comando de Magalhães Barata, assumiu a conci-


liação entre igreja e devotos a pedido de uma comissão criada para
coordenar a ação de restabelecimento do círio tradicional, Barata en-
tão apelou para o núncio apostólico do Rio de Janeiro, na figura do
cardeal Dom Sebastião Leme e ao Vaticano através do Ministério do
Exterior Mello Franco.

Vários foram também os apoiadores de Barata, como o Instituto


Histórico e Geográfico do Pará, a Associação paraense de Imprensa,
e até o jornal O Estado do Pará, que havia apoiado D. Irineu (ROC-
QUE, 1981, p. 109-111). Segundo o Dossiê do IPHAN, deve se res-
saltar não apenas a intervenção de Magalhães Barata nessa questão,
mas também a autonomia dos fiéis do “catolicismo popular paraen-
se”, que pretendiam até fazer o tombamento da corda para declará-la
patrimônio cultural paraense, preservando assim ela das tentativas
de mudança (IPHAN, 2006, p24-25).

Pelas ordens do telegrama enviado pelo ministro de Exterior e do


Núncio apostólico, o coronel Miranda Pombo e Abelardo Condurú,
103
Patrimônio, memória e historiografia

a mando de Barata, foram entregar o ofício à diretoria da festa, para


pedir a preparação do Círio tradicional, porém monsenhor Argemi-
ro Pantoja não recebeu os visitantes. No mesmo dia o padre Leopol-
do M. Gerosa, presidente da diretoria da festa de Nazaré, mandou a
resposta a Pombo, dizendo que monsenhor Pantoja não havia permi-
tido a entrega dos carros e assessórios antes de receber a resposta de
um telegrama urgente que havia sido enviado ao Núncio Apostólico
(ROCQUE, 1981, p. 112-115).

Houve então um encontro do monsenhor Argemiro Pantoja com o


Interventor Magalhães Barata, onde o monsenhor recusou a realização
do Círio tradicional seguindo as informações dadas pelo telegrama en-
viado pelo Núncio Apostólico. Inúmeras manifestações surgiram em
prol do interventor, foi marcado então a realização de uma manifesta-
ção popular que se tornou um mini Círio, seguindo os moldes tradi-
cionais pelas ruas de Belém (ROCQUE, 1981, p. 117-118).

Na mesma noite ocorreram várias manifestações populares, até


que no fim da tarde o secretário do Monsenhor Argemiro Pantoja
comunicou que o núncio apostólico havia autorizado a realização do
Círio da forma com a qual o povo clamava, no dia da realização do
círio de 1931 estavam de volta corda e berlinda.

D. Antônio de Almeida Lustosa assumiu o cargo de arcebispo em


17 de dezembro de 1931 e deu a questão por encerrado, sendo que até
os dias atuais se mantém a tradição de puxar a santa pela corda, porém
até os dias atuais ainda surgem conflitos referentes a esse símbolo, mas
ainda com os conflitos os fiéis não permitem que ele seja retirado4.

Isso mostra como a autonomia dos devotos faz com que o círio
ocorra, pois não se é aceito tudo o que se impõe pela igreja na procis-

4 Atualmente há uma grande discussão em relação à corda, pois muitos devotos acabam pas-
sando mal durante o percurso precisando de cuidados médicos, e correm também o risco
de serem pisoteados pela multidão que acompanha o Círio, mas para além disso, a maior
justificativa encontrada pela igreja é em relação às pessoas que estão levando facas e estiletes
para cortar a corda e assim levar um pedaço dela como lembrança, haja vista a periculosidade
que é manipular um objeto afiado em meio a uma multidão , acabando saindo muitas pessoas
feridas. Ver: Op. cit. PANTOJA, 2006.

104
A questão da corda:
Autonomia devota no Círio de Nazaré em Belém - PA

são, os próprios fiéis conseguiram a liberdade de escolher as formas


com as quais querem expressar sua religiosidade e fé e por meio de
manifestações conseguiram atingir o apoio das camadas altas do go-
verno, se aproveitando do enfraquecimento da igreja.

Através da manifestação popular, os desejos dos fiéis foram aten-


didos, já que a imposição da Igreja Católica em relação a suas devo-
ções não foi aceito. Bonna cita que tudo foi uma grande jogada de
Marketing bem elaborada e que deu certo (BONNA, 2001, p. 65-72),
porém, apesar de um governo tido como populista trabalhar para
que essa imposição da igreja mude, a população devota de Nazaré foi
a principal força para que essa luta começasse, onde a reivindicação
popular foi o principal eixo de partida para tudo o que se sucedeu.

Há também, como mostrado por Thompson, a questão do enfra-


quecimento das instituições, com o enfraquecimento da igreja, a do-
minação sai de suas mãos e passa para a mão das camadas populares
que acabam agregando a sua cultura à religião que seguem. Segundo
o Autor, há uma obediência à instituição eclesiástica, mas já não é
profunda, e a cultura popular da plebe escapa totalmente ao controle
do clero, e a gentry favorece essas expressões populares para garantir
o apoio da plebe (THOMPSON, 2001).

Dentro da questão da corda, num momento de ruptura com o


Estado, a igreja enfraqueceu e a população teve a oportunidade de se
manifestar e conseguir apoio do na figura de Magalhães Barata, que
possa ter agido em relação aos seus próprios interesses para conquis-
tar o apoio daquelas pessoas.

Segundo Thompson (2001), a plebe não era organizada como o


movimento operário e nem possuía consciência de classe para ser
como tal, porém sua participação em questões políticas e sociais era
evidente através de manifestações, protestos e revoltas que faziam
com que os governantes repensassem a forma que a lei estava sendo
105
Patrimônio, memória e historiografia

imposta, e isso demonstrava também a força que a plebe tinha nas


decisões, mesmo não sendo um movimento unificado, eles se junta-
vam em momentos que poderiam ser decisivos e faziam com que sua
força valesse para seus interesses.

Em relação à dominação da Igreja católica sobre as camadas po-


pulares, deve-se analisar não apenas as instituições, mas as pessoas
que dela participam, a autonomia que possuem para se expressar
dentro de um sistema dominante e os meios e artifícios encontrados
para impor suas vontades em relação aos que possuem o poder sobre
elas para analisar as formas de resistência perante a dominação den-
tro dessa manifestação religiosa que é o Círio de Nazaré.

Segundo Alves (1980), a festa tem uma parte ordenada que segue as
normas da diretoria da festa e são por essas normas que a festa obtém
êxito e ordem, mas também é uma festa popular, com arraias e procis-
sões, onde as pessoas se manifestam da sua forma. Segundo Thomp-
son (2001), a cultura popular não pode ser compreendida a partir da
imposição hegemônica de dominação de classe, pois a mentalidade
popular permite que o povo faça e refaça sua cultura à sua maneira.

Os símbolos dentro do Círio também são de intensa força para


os fiéis, pois é disso que o círio é feito, de um amplo sistema de
relações sociais que assumem importância e significação (ALVES,
1980, p. 14), os quais a população segue e respeita, exemplo disso
foi que no ano de 1931, durante os preparativos para o círio da-
quele ano, a berlinda saiu do colégio Gentil Bittencourt para um
galpão situado na Avenida Gentil Bittencourt de canto com a Rua
Quintino Bocaiuva, para a aplicação dos itens necessários para a
trasladação, segundo o jornal Folha do Norte, vários fiéis acom-
panharam o trajeto da berlinda pelas ruas de Belém com certo
apreço e respeito, mesmo que dentro dela não tivesse nenhuma
imagem santa (Jornal Folha do Norte, 1931, p. 1).
106
A questão da corda:
Autonomia devota no Círio de Nazaré em Belém - PA

Considerações finais

A população, sendo grande maioria dentro da festividade do Cí-


rio de Nazaré, pode ser vista então não apenas recebendo a domina-
ção vinda das instituições através das relações de poder, mas também
criando seus próprios artifícios culturais, dando significado a eles e
os moldando de acordo com seus interesses.

Quando essas representações costumeiras lhe são retirados, há re-


volta e imposição, é ai que seus interesses são demonstrados e fazem
com que as instituições recuem em suas decisões. Percebe-se então que
essa agitação popular como mostra Thompson (2001), pesa sobre a po-
lítica e a estrutura de poder vigente quando essas pessoas dec se organi-
zar para reivindicar seus interesses perante a dominação imposta.

O Círio de Nazaré pode então ser percebido também como um


campo de conflitos e imposições sobre um poder dominante onde
ordem e desordem se encontram e conflitam entre si, onde se per-
cebe as profissões de fé, mas também as tentativas de controle epis-
copal em relação à cultura popular. Esses embates dão a noção de
que quando a liberdade de decisão e de expressão (popular) lhes são
tiradas, elas podem também a qualquer momento ser modificadas.

A imposição das instituições perante as classes menores não


deve ser base para se compreender a mentalidade social das ca-
madas populares, é uma via de mão dupla, onde é necessário com-
preender ambos os lados da questão para assim se revelar o todo.
Excluir a forma como a população se manifesta, vendo somente o
lado da imposição, é apagar a história da formação desse povo, e
ver também as instituições somente através dos participantes dela
não é suficiente para compreender seus movimentos.
107
Patrimônio, memória e historiografia

Fontes
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A Província do Pará. 13 de outubro de 1885. p. 3.
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ROCQUE, Carlos. História do Círio e da Festa de Nazaré. Editora Mi-
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108
A questão da corda:
Autonomia devota no Círio de Nazaré em Belém - PA

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operária inglesa: A Maldição de Adão. Volume II. Rio de Janeiro. Paz e
Terra, 1987, p. 11-38.

109
O Instituto da Memória do Povo
Cearense e a militância através
do Patrimônio Cultura
Ana Cristina de Sales1

Introdução

“Apagar a memória de um povo é o caminho mais seguro


para estabelecer a sua dominação. No Ceará, a história
oficial tem priorizado a trajetória das classes dominantes,
esquecendo as variadas formas de resistência das classes
trabalhadoras...” (RAÍZES, Nº 1, 1992, p. 01).

O processo de apagamento da memória pela história e a im-


prensa oficial faz parte de uma longa discussão, de uma relação
nem sempre possível, mas necessária, entre a memória e a his-
toriografia, cabendo ao pesquisador elucidar o papel político e
social que a memória tem para a história e vice-versa. Aqui, a re-
lação história e memória é apresentada a partir do entendimento
da memória, enquanto potencializadora de ações humanas e de
transformação política e social. É também uma fonte para a histó-
ria, que não diferente de outras, exigem do pesquisador um olhar
sensível para com o passado e as ações que se dão no presente.

1 Doutoranda em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará — UFC; http://lattes.


cnpq.br/8195081707238814; Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior — CAPES; [email protected].

111
Patrimônio, memória e historiografia

Numa sociedade sem referências históricas, cada vez mais se coloca


a importância da lembrança, de uma memória que seja política, social
e culturalmente diversa, que coloque em relevo o questionamento de
cristalizações do passado e da imposição de memórias incontestáveis.

A memória, que é um dos pilares teóricos e políticos do Insti-


tuto da Memória do Povo Cearense - IMOPEC, é compreendida
como um processo de produção e reelaboração de significados.
É um fenômeno individual e social, construído processualmente
nas relações (SILVA, 2002).

Nesse sentido, busco analisar no texto a experiência educativa


promovida pelo IMOPEC, problematizando as ações desenvolvidas
e as lutas perseguidas pela instituição, a fim de ressignificar a memó-
ria social e o patrimônio cultural. O IMOPEC é uma instituição de
memória que atuou no Estado do Ceará a partir de 1988 e finalizou
suas atividades em 2015. Tinha como prerrogativa a luta pela me-
mória social e ambiental, bem como, o patrimônio cultural cearense.

Como fonte, utilizei o Boletim Raízes e a Revista Propostas Alterna-


tivas, meios de informações impressos, pensado e produzido pelo Ins-
tituto. O boletim Raízes destacou-se como principal difusor de ideias e
ações, entrou em circulação a partir de 1992, que tinha como proposta
primeira “provocar a discussão e o aprofundamento de questões signi-
ficativas para o Movimento Popular, na contribuição para o resgate das
formas de resistência ao modelo econômico e cultural que há 500 anos
vem sendo imposto ao povo latino-americano” (IMOPEC, 2001, p. 04).

A Revista Propostas Alternativas foi outra ferramenta difundida pelo


IMOPEC a partir de 1992, publicação sob o registro ISSN 1677-6631.
Cada edição apresentou um tema sobre o Ceará, entrelaçando-a com
questões globais, nacionais e regionais (IMOPEC, 2015). O grupo liga-
do ao IMOPEC nutria a esperança que por meio de suas publicizações,
levariam “um mundo novo”, mais justo e sem desigualdades sociais.
112
O Instituto da Memória do Povo Cearense e a militância
através do Patrimônio Cultural

As fontes indicaram que o instituto se destacou como cumpridor


de importante papel político-social, tendo na sua composição uma
variada gama de sujeitos e assumindo diferenciadas frentes de resis-
tência e lutas, desde que correspondesse às necessidades e à defesa de
interesses dos menos favorecidos.

A arte de lembrar e os fazeres do imopec

Na década de 1980, a discussão sobre o patrimônio e a memória fize-


ram parte da pauta de diversos movimentos sociais, temas antes tratados
pela esfera do Estado “e dos intelectuais que dirigiam as agências de pre-
servação histórica. A partir de então, tais proposições difundiram-se pela
sociedade civil, sendo reinterpretados e utilizados por grupos e associa-
ções civis como um instrumento de luta política” (GONÇALVES, 2015,
p. 213). Essas ponderações aconteceram em meio à virada antropológica
e cultural, favorecida pelo contexto da redemocratização brasileira.

O debate sobre o direito à memória foi reconhecido pela Cons-


tituição de 1988, que desloca a atribuição de valor cultural do Esta-
do para a sociedade. Nesse contexto, as concepções de patrimônio
e memória, foram traçadas num campo de disputas, contestações e
dissensos, através da participação de variados atores sociais, a exem-
plo, os marginalizados e silenciados pelos discursos hegemônicos.

Françoise Choay em seu livro “A alegoria do patrimônio”, coloca


em centro a definição de patrimônio e suas políticas de preservação
voltadas a monumentalização. Na sua acepção, patrimônio é “uma
bela e antiga palavra, estava na origem, ligada às estruturas familia-
res, econômicas e jurídicas de uma sociedade estável, enraizada no
espaço e no tempo. Requalificada por diversos adjetivos que fizeram
dela um conceito “nômade”... (CHOAY, 2017, p. 11)”.

“Patrimônio” está entre as palavras que usamos com


mais frequência no cotidiano. Falamos dos patrimônios
econômicos e financeiros, dos patrimônios imobiliários;
113
Patrimônio, memória e historiografia

referimo-nos ao patrimônio econômico e financeiro de


uma empresa, de um país, de uma família, de um indiví-
duo; usamos também a noção de patrimônios culturais,
arquitetônicos, históricos, artísticos, etnográficos, eco-
lógicos, genéticos; sem falar nos chamados patrimônios
intangíveis, de recente e oportuna formulação no Brasil.
Parece não haver limite para o processo de qualificação
dessa palavra (GONÇALVES, 2009, p. 25).

Nogueira (2014, p. 49) acentua que os sentidos “múltiplos atri-


buídos à palavra patrimônio a dotaram de uma complexidade con-
ceitual que vozes simultâneas, entrelaçadas e distintas repertoriam os
diversos usos da palavra para dizer coisas muitas vezes diferentes e
nem sempre harmoniosas entre si”.

De início o termo foi associado à formação dos Estados Nacionais.


No século XIX, o ideário desencadeado pela Revolução Francesa, possi-
bilitou que o significado de patrimônio fosse estendido para o campo do
privado. A concepção de bem comum e de que alguns bens formam a ri-
queza material e moral do conjunto de uma nação (ABREU, 2009, p. 35).

A emergência da noção de patrimônio, como bem coleti-


vo associado ao sentimento nacional, dá-se inicialmente
num viés histórico e a partir de um sentimento de perda.
Era preciso salvar os vestígios do passado, ameaçados de
destruição... uma nova história heroica das nações passou
a ser construída, em que não mais os indivíduos — reis,
líderes, heróis — eram os sujeitos. A partir de então, o
novo sujeito da história era o povo (Idem, p. 35).

A ideia de nação, através de uma concepção de povo segmenta-


do, conferiu status ideológico ao conceito de patrimônio, por meio
da institucionalização de práticas específicas. O medo da perda fez
colocar no centro do debate a necessidade de sua preservação.

O cenário brasileiro herdou da experiência francesa a pers-


pectiva do patrimônio, fundada nos valores nacionais e monu-
mentais. Os debates articulados sobre a nação tiveram diferentes
114
O Instituto da Memória do Povo Cearense e a militância
através do Patrimônio Cultural

sentidos e significados desde o Império. Contudo, foi no Estado


Novo que a nação e a identidade nacional compuseram as políti-
cas de Estado (CHUVA, 2012, p. 67).

A partir da década de 1970 houve uma ampliação significativa


das atribuições das instituições de memória e preservação cultural
e da própria noção de patrimônio, multiplicaram-se o universo das
práticas culturais e medidas de salvaguarda, a fim de preservar cele-
brações e festas, saberes e ofícios, formas de expressão, lugares e tudo
aquilo que se encaixa na categoria de patrimônio imaterial (CHUVA,
2012, p. 67). A nova configuração possibilitou a “desmaterialização”
do patrimônio (NOGUEIRA, 2014, p. 66).

Novas possibilidades passaram a ser discutidas, as identidades lo-


cais e suas singularidades ganharam ênfase, destacando-se as expe-
riências coletivas e cotidianas. No entanto, o debate ainda se voltava
ao campo do discurso, sendo revertido como aponta Fonseca (2017,
p. 14), a partir do artigo 216 da Constituição Federal de 1988, que
assegura a necessária participação da sociedade juntamente com o
Estado, na preservação do patrimônio cultural.

Com a “politização” da prática de preservação, novos agentes se


dispuseram a atuar como mediadores dos grupos sociais marginaliza-
dos, evidenciando-se o papel dos movimentos sociais nessa empreita-
da. Nas últimas décadas do século XX, impulsionou-se uma imensa
construção de memórias. Nessa configuração, o campo do patrimô-
nio cultural sofreu enorme ampliação e mudanças significativas para
lidar com esse mundo saturado de memórias (CHUVA, 2012, p. 73).

Diferentes grupos viram na área da cultura “marginal” formas de


resistência, “seu objetivo último era justamente de ampliar o alcance
da política federal de patrimônio, no sentido de democratizá-lo e colo-
cá-lo a serviço da construção da cidadania” (FONSECA, 2017, p. 20).
115
Patrimônio, memória e historiografia

Os movimentos sociais foram fundamentais na concepção de ci-


dadania democrática, reivindicando direitos na sociedade e contes-
tando antigas hierarquias sociais, que ditavam e ditam lugares fixos
na sociedade para os cidadãos. Nessa luta, buscava-se democratizar
o regime político e as práticas que conduzem à exclusão e à desigual-
dade (OLIVEIRA, 2008, p. 38).

O IMOPEC surge nesse cenário, a favor da democratização e em prol


dos grupos marginalizados. O instituto denunciava os desmandos do
chamado governo de mudanças no Estado do Ceará e a política neoli-
beral difundida e posta em prática no país. Assim, o Instituto fazia uso
de suas publicizações a fim de levantar questionamentos e semear cons-
ciência crítica. Vale ressaltar que a década de 80 do século passado, foi
um dos mais férteis períodos vividos pelos movimentos sociais e comu-
nitários, na luta pelo direito à educação e a dignidade humana, direitos
assegurados e legitimados na Constituição Federal de 1988.

A proposta do IMOPEC foi gestada em Fortaleza, capital do Ceará,


durante três anos, de 1985 a 1987, por meio de reuniões, conversas in-
formais e debates. Nessas ocasiões, foram definidos os objetivos e ela-
borados seu estatuto, que via a necessidade de formulação de um novo
projeto de sociedade para o Brasil, que fosse não excludente e que a
cidadania e a dignidade humana estivessem na base de emergência dos
novos sujeitos sociais. A instituição procurou reunir nomes comba-
tivos e atuantes do movimento social cearense, cujos enfretamentos
estavam ligados sob a ótica dos excluídos do campo e da cidade.

Em 1988, ano de sua legalização, passou a atuar a partir de dois eixos


centrais de trabalhos, o viés cultural e o ambiental. As questões voltadas
a cultura tiveram destaque em todo percurso da instituição, cujo obje-
tivo consistia em resgatar e divulgar as experiências de organizações de
cunho popular. A forma como as comunidades se reunia e debatia suas
fraquezas e potencialidades, segundo o IMOPEC, era um processo im-
portante na conquista da cidadania. Com isso, o instituto através de suas
116
O Instituto da Memória do Povo Cearense e a militância
através do Patrimônio Cultural

ações, buscava conscientizar os grupos das políticas públicas e de seus


impactos perante àquelas realidades, políticas essas, que tiveram graves
impactos de natureza sociocultural e ecológica. Destacaram-se como
exemplos, a construção da Barragem do Castanhão2 e o Programa
de Desenvolvimento do Turismo no Ceará3 — PRODETUR.

A área de abrangência do IMOPEC, foi o Estado do Ceará. Entre-


tanto, a presença maior se deu no Vale do Jaguaribe, onde colaborou
na criação de associação de moradores e de duas casas de memória,
realizando seminários, dentre outras ações. O Sul cearense, a capital e a
região metropolitana também se destacaram como expoentes de lutas
do IMOPEC. Nesses espaços, várias lideranças ligadas aos movimentos
sociais enveredaram pela recuperação da memória dos acontecimen-
tos, pessoas e lugares, evitando o esquecimento de populações e agrupa-
mentos humanos. O registro através de fotografias, depoimentos, docu-
mentários, casas de memória, boletins, revistas e etc., contribuíram para
fortalecer o sentimento de pertença e reconstrução da identidade social.

O boletim Raízes, nº 58, de 2007, ao retratar no texto Estação da


Parangaba: memória, conflito e mobilização social4, levanta os seguin-
tes questionamentos: Como decidir sobre o que deve ser preservado
sem consultar àqueles a quem isso realmente interessa? Como demo-
lir um prédio de alto valor sem consulta aos que têm seus referenciais
simbólicos, temporais, afetivos e espaciais?

2 A Barragem do Castanhão, é uma grande obra hídrica de 6,8 bilhões de metros cúbicos de
água, no Estado do Ceará, concebida dentro da política do governo de mudanças. Provocou
a remoção da população residente na área urbana e rural do Município de Jaguaribara. O
IMOPEC, lutou juntamente com a população com a finalidade de preservar a identidade e a
memória daquele povo.
3 O Porto do Pecém está localizado na Região Metropolitana de Fortaleza. Sua construção come-
çou em 1995, por solicitação do Governo do Ceará em parceria com o Governo Federal, a obra
trouxe a possibilidade de diminuição de tempo de trânsito entre o Brasil, os Estados Unidos e
a Europa. Os governos viam com bons olhos a obra do Pecém, na tentativa de atrativos maio-
res para conquistar e impulsionar as exportações brasileiras. Já o IMOPEC lutava em nome das
famílias de pescadores artesanais e moradores de comunidades próximas ao litoral, pois, junta-
mente com o porto aumentou a exclusão social e expropriação da cultura das populações nativas.
4 Ver mais em texto de GOMES, Alexandre; NETO, João Paulo Vieira. Estação da Parangaba:
memória, conflito e mobilização social. In: Boletim Raízes/IMOPEC, n. 58, 2007, p. 05-07.
117
Patrimônio, memória e historiografia

Pensar em políticas que dizem respeito ao Patrimônio Cultural,


leva em consideração a época e a quem tem interesse de preservação,
dentro de seus limites e prioridades, isso tendo em vista os conflitos
e disputas em torno do passado, através de interrogações que per-
mitam refletir sobre o que preservar, como lembrar e o que lembrar,
conjecturando tensões e relações sociais vividas cotidianamente, em
constante dinâmica de transformação, de dominação e de resistência
nos diversos níveis e espaços, entre grupos e indivíduos de determi-
nada formação social (RAÍZES, Nº 58, 2007, p. 07).

A arte de lembrar como meio de transformação política e social,


se torna efetiva quando existe a mobilização popular, imbricada de
desejo de representatividade e pertença, na qual, os sujeitos são de-
safiados a assumir uma postura de resistência diante do momento
histórico e pactuar sobre a própria identidade.

Nesse sentido, ao longo de 27 anos de atuação, o IMOPEC desen-


volveu algumas propostas junto à população cearense, dentre elas,
destacaram-se em relação ao patrimônio cultural:
✓ Curso de Formação à Distância, intitulado: Memória e Patri-
mônio Cultural do Ceará;
✓ Promoção de sete encontros estaduais a partir do curso de For-
mação à Distância;
✓ Criação de três Jogos Pedagógicos, são eles: Bingo Cultural do
Ceará, Trilha da Cultura Cearense e Descobrindo o Ceará;
✓ Participou de Atos públicos (pelo tombamento da Estação da
Parangaba/Fortaleza e contra a transposição do Rio São Francisco);
✓ Movimento em defesa do Sítio Fundão em Crato;
✓ Participou na criação do Instituto Terramar;
✓ Implementou três Casas de Memória (em Jaguaribara, Jaguare-
tama e Porteiras);
✓ Criação do Centro de Documentação Patativa do Assaré;
118
O Instituto da Memória do Povo Cearense e a militância
através do Patrimônio Cultural

✓ Ampliação do conceito de cultura por meio das discussões no


Curso de Formação à Distância;
✓ Participação política de agentes culturais etc.

A experiência educativa difundida pelo IMOPEC através dos


movimentos sociais, possibilitou uma vasta discussão e um con-
junto de ações. Além dos pontos citados, destacou-se também, a
revista Propostas Alternativas, que dedicou seis volumes a questão
da memória e do patrimônio (Memória e Patrimônio Cultural do
Ceará I e II; Memória e Patrimônio Natural do Ceará I e II; Memó-
ria e Patrimônio Imaterial do Ceará I e II). Os exemplares trazem
textos de graduados e pós-graduados em nível de mestrado e dou-
torado, com temáticas caras ao povo cearense.

Já o boletim Raízes traz inúmeras problemáticas ligadas a memó-


ria e ao patrimônio cultural. Certa vez, o boletim foi nomeado de
“história urgente”, por trazer assuntos que circulavam rapidamente e
sem perder a qualidade da informação. Seus textos eram organizados
em formato de pequenos artigos e resenhas, ao todo foram 64 publi-
cações, as quais estão disponíveis na Casa de Memória em Porteiras,
Sul do Ceará, no Centro de Memória da Faculdade de Filosofia Dom
Aureliano Matos - FAFIDAM, Campus da Universidade Estadual do
Ceará - UECE de Limoeiro do Norte/CE e em acervos pessoais.

Desse modo, o instituto lança luz sobre a história e a resistência


popular no Ceará, através da problematização da realidade, da sensibi-
lização e da intervenção social a partir de diversas ações e atividades.

Considerações finais

A partir do que foi apresentado no texto, percebe-se que o


IMOPEC norteou suas lutas a partir de uma postura política,
combatendo as desigualdades sociais e o esquecimento de popu-
lações inteiras do campo e da cidade, desenvolvendo ações que
119
Patrimônio, memória e historiografia

remetem a história, a memória e o patrimônio cultural do Ceará,


aludindo as lutas sociais e os processos de perda, silenciamentos
e esquecimentos dos bens culturais dos cearenses.

No intuito de preservar a história e a memória de agrupamen-


tos humanos, o IMOPEC elegeu como uma de suas prerrogativas
o patrimônio cultural. Nessa perspectiva, questões alusivas à me-
mória, à história e suas expressões culturais foram relevantes para
a difusão de materiais impressos e audiovisuais. Desse modo, é
possível inferir que o Instituto construiu práticas educativas pau-
tadas no desejo de semear consciências críticas e tomadas de ini-
ciativas caras aos direitos culturais e sociais dos sujeitos.

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120
O Instituto da Memória do Povo Cearense e a militância
através do Patrimônio Cultural

INSTITUTO DA MEMÓRIA DO POVO CEARENSE. Boletim Raí-


zes. Fortaleza, ano 24, n. 64, jan./jun. 2015.
INSTITUTO DA MEMÓRIA DO POVO CEARENSE. Boletim Raí-
zes. Fortaleza, Ano 1, n. 01, jan./mar. 1992
INSTITUTO DA MEMÓRIA DO POVO CEARENSE. Boletim Raí-
zes. Fortaleza, Ano 10, n. 34, jan./mar. 2001.
INSTITUTO DA MEMÓRIA DO POVO CEARENSE. Boletim Raí-
zes. Fortaleza, Ano 15, n. 58, abr./jun. 2007.
INSTITUTO DA MEMÓRIA DO POVO CEARENSE. Revista Pro-
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121
A patrimonialização dos
teatros brasileiros nos
processos do IPHAN
Eduardo Roberto Jordão Knack1

Introdução

O presente trabalho resulta do projeto “Patrimônio histórico e


modernização urbana em Pelotas/RS: 1960-1990”, realizado durante
o pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Memória So-
cial e Patrimônio Cultural da Universidade Federal de Pelotas. Esse
projeto buscava analisar os processos de patrimonialização dos bens
tombados em Pelotas no período referido em duas escalas diferentes:
os bens tombados em nível local (legislação municipal) e os bens
tombados em nível federal pelo Instituto do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional (IPHAN). Entre os objetivos estavam observar
como ocorriam os diálogos entre o poder local e o IPHAN, a atribui-
ção de valor aos bens tombados pelas diferentes esferas e sua rela-
ção com a modernização urbana que assolava a cidade (processo de
verticalização, especulação e valorização da área central, criação de
bairros operários) e ameaça o patrimônio edificado.

1 Graduado e Mestre em História pela Universidade de Passo Fundo; Doutor em História pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; Pós-Doutorado pelo Programa de Pós-
-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural da Universidade Federal de Pelotas;
Professor Adjunto na Unidade Acadêmica de História da Universidade Federal de Campina
Grande. Link para o Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/0830455050602866. E-mail: knac-
[email protected].

123
Patrimônio, memória e historiografia

Durante a pesquisa desse projeto, ao analisar o processo de tom-


bamento do Teatro Sete de Abril de Pelotas (PROCESSO Nº 640-T-
63, 1963), foi encontrado o pedido elaborado pelo Serviço Nacional
de Teatro (SNT), como elemento de ativação patrimonial (PRATS,
1983) do tombamento desse imóvel. Esse pedido despertou o inte-
resse em empreender o atual projeto de pesquisa, visto que a partir
de uma revisão bibliográfica não foi encontrado nenhum trabalho
específico sobre essa solicitação. Em 1963 o SNT envia uma carta ao
diretor do IPHAN (na época Serviço do Patrimônio Histórico e Ar-
tístico Nacional — SPHAN), solicitando o tombamento de 15 teatros
brasileiros, em diferentes estados do país com a seguinte justificativa:

Transmito a V.s. uma relação de teatros do Brasil que por


seu valor histórico ou artístico carecem de conservação
e preservação, solicitando a V.s. que promova junto aos
poderes competentes a sua inclusão no livro tombo do
Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
[...] O conjunto desses teatros é da mais alta significação
histórica e artística pois, precisamente por essas casas de
espetáculo, se poderá reconstituir em grande parte o que
tem sido o desenvolvimento da atividade teatral em todo
o país, razão essa que os integra no patrimônio cultural
do país (PROCESSO Nº 640-T-63, 1963, p. 1).

O SNT solicitou o tombamento dos teatros: 1 - Teatro Amazonas


(Amazonas); 2 - Teatro da Paz (Pará); 3 - Teatro Artur de Azevedo
(Maranhão); 4 - Teatro 4 de Setembro (Piauí); 5 - Teatro José de Alen-
car (Ceará); 6 - Teatro Aberto Maranhão (Rio Grande do Norte); 7 -
Teatro Santa Rosa (Paraíba); 8 - Teatro Santa Izabel (Pernambuco); 9
- Teatro Deodoro (Alagoas); 10 - Teatro 7 de Setembro - Penedo (Ala-
goas); 11 Teatros de Ouro Preto (Minas Gerais); 12 - Teatro de Sabará
(Minas Gerais); 13 - Teatro de Friburgo (Rio de Janeiro); 14 - Teatro
João Caetano - Itaboaraí (Rio de Janeiro); 15 - Teatro 7 de Abril - Pe-
lotas (Rio Grande do Sul). (PROCESSO Nº 640-T-63, 1963, p. 2).
124
A patrimonialização dos teatros brasileiros
nos processos do IPHAN

Questões envolvendo a patrimonialização dos


teatros

Além do papel da atribuição de valor aos bens preservados, tam-


bém constitui elemento central do problema de pesquisa o papel
do tombamento enquanto instrumento de preservação. De acordo
com Fonseca (2005), o tombamento é o principal instrumento de
preservação do SPHAN desde sua fundação, em 1937, e foi apropria-
do pela sociedade de diferentes maneiras, gerando consequências
positivas e negativas. Podem resultar em benefícios para economias
locais, ou constituir entrave para seu desenvolvimento, pode acabar
desembocando em uma teatralização, espetacularização da história
e da cultura, ou valorizar a memória e a identidade de grupos sociais
(PRATS, 2005; DE VARINE, 2012).

Dessa forma, também importa para a problemática da pesqui-


sa a relação da patrimonialização desses teatros com a memória
dos atores locais envolvidos com os bens - por isso a percepção
dos valores atribuídos por sujeitos localizados em diferentes es-
calas (local, com os grupos que se interessaram pela preservação
dos bens; regional, se houve a participação de atores relacionados
aos estados; e nacional, envolvendo a atuação do SPHAN). O diá-
logo estabelecido entre essas diferentes esferas, as negociações ex-
postas nos processos de patrimonialização entre atores locais e o
SPHAN e sua contribuição para construção das justificativas para
deferir ou indeferir o tombamento constituem um dos aspectos
do problema, juntamente com as tensões existentes em qualquer
trabalho de memória (POLLAK, 1992), envolvendo a seleção de
elementos da memória como importantes nas justificativas para o
tombamento, e outros que foram esquecidos.

Concordando com Prats (2005), são diferentes interesses que


estão em jogo quando ações de preservação da memória são de-
sencadeadas. A preservação é orientada por discursos que defi-
125
Patrimônio, memória e historiografia

nem seus critérios, que atribuem valor e, dessa forma, constroem


o patrimônio. Ao analisar esse conjunto de teatros indicados para
o tombamento em 1963, é importante problematizar quais foram
esses critérios, quais eram os interesses e tensões envolvidos em
seu processo de patrimonialização (observados nos diálogos entre
SNT, SPHAN e atores locais) para questionar a própria eficácia do
tombamento enquanto instrumento de preservação. Isso levando
em consideração, como já indicado, que alguns desses teatros rece-
beram parecer negativo, o que gera um questionamento sobre os cri-
térios, o discurso, o valor atribuído aos bens pelo SPHAN, bem como
nas relações estabelecidas entre os sujeitos envolvidos nos processos.

Os processos analisados apresentam, portanto, diferentes atores


(SPHAN, SNT, atores locais, incluem ainda recortes de imprensa,
depoimentos de munícipes, políticos e eruditos e fotografias). Nesse
sentido, é possível entender esses processos como “fontes dialógicas”,
que seriam “aquelas que envolvem, ou circunscrevem dentro de si,
vozes sociais diversas” (BARROS, 2013, p. 104). A diversidade das
vozes nos processos envolvem especialmente, a relação emotiva dos
sujeitos que “vivem” os teatros, os atores locais, gestores desses es-
paços, ou mesmo políticos locais que tendem a exaltar esses bens, e,
por outro lado, o olhar técnico do SPHAN, que estabelece alguns cri-
térios como base para seus pareceres. Em alguns momentos o olhar
técnico prevalece, mas em outros recua e cede espaços.

Elucidar essas questões permite, além de compreender um recorte


da história da preservação do patrimônio nacional brasileiro, refletir,
questionar e propor sugestões para políticas públicas de preservação
patrimonial não apenas ao nível federal, mas em diferentes escalas,
pois o tombamento foi adotado como instrumento por estados e mu-
nicípios brasileiros, constituindo instrumento de preservação por
excelência. O tema do trabalho gira em torno da atribuição de va-
lor ao conjunto de teatros brasileiros selecionados nessa lista, que os
ativou enquanto patrimônio histórico cultural. Dos cinco processos
126
A patrimonialização dos teatros brasileiros
nos processos do IPHAN

encontrados até o momento, dois tiveram parecer negativo e não for-


ma tombados pelo SPHAN. Isso justificativa pesquisar qual foi o va-
lor atribuído, as justificativas presentes nos pareceres do SPHAN para
entender e questionar o papel do tombamento enquanto instrumento
de preservação do patrimônio, pois o que o presente trabalho procura
abordar é, justamente, qual era a noção de patrimônio defendida pelo
SPHAN e como foi aplicado nesses diferentes casos. Também é impor-
tante observar como os atores locais que estavam gerindo esses teatros
e/ou envolvidos com sua preservação dialogaram com o SPHAN.

Conforme Poulot (2009, p. 12) bem coloca, “a história do patri-


mônio é amplamente a história da maneira como uma sociedade
constrói seu patrimônio”. Portanto, é importante tecer algumas con-
siderações sobre essa trajetória da história da construção, da atribui-
ção de valor e dos sentidos políticos do patrimônio (em sua relação
intrínseca com a memória) para perceber como ele exprime a expe-
riência temporal das sociedades que empreendem (ou empreende-
ram) processo de patrimonialização de seus bens (materiais e imate-
riais) culturais. É importante trilhar o caminho definido por Poulot
(2012, p. 30): observar o “olhar erudito sobre obras e objetos mate-
riais”, o que possibilita perceber a “historicização de uma sociedade”
e sua relação com os “regimes de historicidade” em uma dimensão
“ética e da estética” sobre o papel desempenhado pelos sujeitos que
se debruçaram sobre a seleção, a preservação e a “emancipação ou a
denegação” do patrimônio.

Para isso é importante tecer algumas considerações sobre as duas


entidades envolvidas na solicitação de tombamento dos teatros, o
SNT e o SPHAN. O SNT foi criado em 1937 (Decreto-Lei n°92)
por Getúlio Vargas, atendendo princípios de centralização política
e cultural de seu governo. A função desse serviço era estimular a
produção teatral brasileira, amparar companhias de teatro, se en-
volver na construção de novos espaços destinados aos espetáculos e
estimular seu estudo e ensino. Em 1960, com a criação do Conselho
127
Patrimônio, memória e historiografia

Nacional de Cultura o SNT experimentou um momento positivo,


tendo uma verba maior que a área do patrimônio (CAMARGO,
2017b). Mas “as incertezas do campo político refletiram-se dire-
tamente na administração do SNT, que ficou sob o comando de
três diretores entre 1961 e abril de 1964: Clóvis Garcia, Edmundo
Moniz e Roberto Freire” (CAMARGO, 2017, p. 218).

Não obstante as incertezas do período, que trouxe instabilidade


na direção do SNT, com constante trocas de gestores, o início da dé-
cada de 1960 marca uma atuação que buscava conhecer a situação
dos teatros brasileiros, incluindo programas de desenvolvimento re-
gional dessas atividades e até programas de construção, reformas e
preservação dos teatros. Com o fim do governo Jânio Quadros, Ed-
mundo Moniz assume o SNT e deu continuidade para algumas das
atividades empreendidas/propostas pela gestão anterior, destacando,
para o presente trabalho, os planos de conservação e construção de
teatros. (CAMARGO, 2017b). Fazia parte da política da entidade co-
nhecer, reconhecer e fortalecer o teatro nas diferentes regiões brasi-
leiras, essa solicitação dos tombamentos está inserida nessa lógica.

A preocupação com a preservação do patrimônio nacional tam-


bém data do governo Vargas, como bem esclarecido por diferentes
autores que se debruçaram sobre o tema (apenas para citar alguns:
CHUVA, 2009; FUNARI, PELEGRINI, 2006; FONSECA, 2005). De
acordo com Chuva (2009), o passado buscado pela nação que emer-
gia com o Estado Novo evitava problemas da história recente, especi-
ficamente, questões como a escravidão e o genocídio dos povos indí-
genas. “No Brasil, designou-se como patrimônio histórico e artístico
nacional, basicamente, aquilo que foi classificado como arquitetura
tradicional do período colonial, representante ‘genuína’ das origens
da nação” (CHUVA, 2009, p. 48).

Esses critérios orientam o tombamento dos bens patrimoniais


brasileiros — a busca pela originalidade do passado colonial forma-
128
A patrimonialização dos teatros brasileiros
nos processos do IPHAN

va uma visão essencialista do passado e do valor atribuído aos bens.


Tal perspectiva, evitando conflitos e tensões da história brasileira,
construía uma história via seu patrimônio marcada pela harmonia,
ordem e sem problemas. Fonseca (2005, p. 188) indica que na década
de 1960 estilos recentes passam a entrar no rol dos bens tombados
pelo SPHAN, mas no caso dos teatros, o princípio da não interferên-
cia pautou o critério para deferimento dos bens. Em alguns proces-
sos, essa justificada é apresentada para o deferimento do pedido de
tombamento, como no exemplo do Teatro da Paz, no Pará:

Na praça da República, ou melhor, no Largo da Pólvora,


levanta-se o Teatro da Paz. O destaque de formas e har-
monias produzido pela série de colunas gregas da fachada
principal e das laterais, emprestam ao nobre edifício uma
sensação de serena beleza da Vida que ele promete fixar
nos domínios da arte cênica. O Teatro da Paz é produto
do gosto neo-clássico introduzido no Brasil por Grandjean
de Montigny, no início do século dezenove. Sua arquitetu-
ra guarda, intacta, este princípio, sem qualquer concessão
a outros estilos. Possue o equilíbrio e a majestade de um
templo grego (PROCESSO Nº 671-T-62, 1962, p. 35)2.

Conforme Fonseca (2005) esclarece, é possível perceber a in-


trodução de outros estilos no campo de tombamento dos bens
patrimoniais a partir de 1960. No entanto, a originalidade, ou o
princípio de não interferência e descaraterização da construção
original continua sendo um critério importante para deferir ou
não os teatros. No caso, a justificava enviada ao SPHAN apela
para a preservação de um estilo neoclássico que se apresentava
“intacto”. O valor histórico atribuído ao bem estava centrado na
não descaracterização. As discussões sobre o “valor” dos monu-
mentos têm Rigel (2013) um precursor: “o sentido e a importân-
cia dos monumentos não cabem às próprias obras em virtude da

2 O processo de tombamento do Teatro da Paz inicia em 1962, pois já existia mobilização de


atores locais para sua preservação, pois o mesmo se encontrava fechado e com riscos de desca-
racterização e/ou danos em sua estrutura. No entanto, ele é incluído na solicitação do SNT em
1963. Seu processo foi deferido, a fazer o patrimônio artístico e histórico nacional.
129
Patrimônio, memória e historiografia

sua determinação originária, mas somos nós, modernos, quem


lhos atribui” (RIGEL, 2013, p. 14). Partindo desse pressuposto,
Rigel se dedica a elucidar os valores atribuídos aos monumentos
que, em sua época, identificou como valor de antiguidade, histó-
rico, artístico, de memória intencional, de uso, de novidade. Es-
ses valores eram configuravam os discursos sobre o patrimônio
(PRATS, 1983) que estavam presentes e orientavam as ações de
estados e agentes da preservação, como restauradores, historiado-
res, artistas, eruditos, entre outros.

Suas considerações são retomadas por autores como Choay


(2006; 2007), Poulot (2011) e Fonseca (2005). Esses autores re-
conhecem a importância das considerações de Rigel. É possível
reconhecer a originalidade como um valor atribuído aos bens
tombados nesse momento — a preservação das características
originais da construção. Esse era um parâmetro que pautava as
discussões presentes nesse conjunto de processos de tombamen-
to dos teatros. No entanto, os diálogos traçados pelos envolvi-
dos com o tombamento dos teatros muitas vezes superava esse
parâmetro e recomendações do próprio SPHAN, como mostra o
exemplo do Teatro Amazonas, nas palavras do diretor do SPHAN
Rodrigo Melo Franco de Andrade:

Em verdade, embora a edificação aludida seja obra de arqui-


tetura muito expressiva do período e do meio eufórico ama-
zonense em que foi produzida, justificando-se plenamente
sua preservação cuidadosa e, bem assim, o convênio reco-
mendado entre o Ministério da Educação e Cultura e o Es-
tado do Amazonas, para execução dos serviços porventura
necessários em proveito do Teatro, este não possui, entretan-
to, nem a ancianidade venerável que lhe empreste os requi-
sitos de um monumento nacional, nem se acha vinculado
diretamente a fato ou passagem de significação excepcional
da história do país (PROCESSO Nº 693-T-63, 1963, p. 6).
130
A patrimonialização dos teatros brasileiros
nos processos do IPHAN

Aparece na comunicação do diretor do SPHAN ao Ministério da


Educação e Cultura outros elementos que poderia favorecer o deferi-
mento do tombamento da edificação, como o valor de “ancinidade”,
ou seja, a própria antiguidade da construção poderia contribuir para
uma “originalidade” ao se vincular a um passado remoto; sua relação
com fatos de “significação excepcional da história do país” também
poderia interferir. Em ambos os casos desses valores, o parâmetro da
não interferência não parece ser afetado. No entanto, outro ponto que
a presente pesquisa objetiva explorar, são as pressões tensões entre
grupos interessados na patrimonialização desses bens e os valores de-
fendidos pelo SPHAN como critério para sua inscrição no livro tom-
bo. O Teatro Amazonas acaba sendo tombado, revelando a atuação
dos atores envolvidos com aquele processo, que conseguiram mobili-
zar representantes no Congresso Nacional para o desfecho favorável.

Outro caso que revela essas tensões, observados nas comunica-


ções trocadas entre diferentes sujeitos/instâncias nos processos do
IPHAN, é o do Teatro 7 de Abril no Rio Grande do Sul. Essa edifi-
cação havia sofrido profundas alterações em sua fachada, como fica
explícito na documentação que compõem o processo. No parecer fa-
vorável de Lygia Martins Costa, com anuência de Lucio Costa, consta
a dificuldade em aprovar devido à falta de um conjunto fotográfico
mais consistente do edifício para análise (especialmente da área in-
terna, que corria o risco de sofrer alterações devido ao funcionamen-
to de um cinema naquele período). No entanto, que, no entendimen-
to dos dois, o aspecto interno estava quase intacto, já no que tange
à fachada “a documentação remetida demonstra modificações mais
sérias e mais trabalhosas” (PROCESSO Nº 640-T-63, 1963, p. 81).

O Teatro 7 de Abril foi fundado em 1831, sofreu alterações na


fachada em 1916, quando elementos de Art-Nouveau e Art Decó
começam a aparecer na arquitetura pelotense. O parecer só foi fa-
vorável devido à intervenção do poder público local, que se com-
prometeu, com ajuda do MEC, a começar uma obra de restauração
131
Patrimônio, memória e historiografia

(uma reforma, na verdade), para devolver o prédio a suas condições


“originais”. Foi só com essa condição de devolver ao teatro “o estilo
sóbrio e elegante” que lhe conferiu o arquiteto alemão Eduardo Von
Kretschmar, com “as referências estrangeiras” próprias de Pelotas e
do Rio Grande do Sul que o SPHAN, na posição de Lygia Martins e
Lucio Costa, concederam parecer favorável.

Considerações finais

Partindo da concepção de que os processos analisados constituem


uma “fonte dialógica” (BARROS, 2013), é possível observar diferentes
tipos de relações com os teatros em questão. Os atores locais alimenta-
vam valores baseados nas relações emotivas, enquanto os técnicos do
SPHAN pautavam seus pareceres a partir da documentação enviada e
anexada nos processos, levando em consideração critérios estabeleci-
dos como a busca da originalidade das características arquitetônicas
e a não interferência nas construções. No entanto, conforme os pro-
cessos revelam, os critérios apresentados como técnicos, em alguns
casos, se tornavam mais flexíveis. A hipótese sustentada pela presente
pesquisa, com base nos processos já analisados, é de que o maior en-
volvimento, empenho e capacidade de mobilização política poderia
fazer a diferença na emissão do parecer favorável, no entanto, é neces-
sário continuar a análise da documentação para aprofundar mais essa
conclusão, bem como para refletir sobre o tombamento enquanto ins-
trumento adequado para a preservação da memória patrimonial

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132
A patrimonialização dos teatros brasileiros
nos processos do IPHAN

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133
Patrimônio, memória e historiografia

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PROCESSO Nº 693-T-63. Rio de Janeiro, IPHAN, 1963. (Arquivo Central
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RIEGEL, Aloïs. O culto moderno dos monumentos. Lisboa: Edições 70,
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134
Que a história esteja sempre
a seu favor: Usos políticos do
patrimônio em Sobral-CE, 1995-1999
Edcarlos da Silva Araujo1

Introdução

Analisamos como se deu a construção política, social e cultural


do patrimônio em Sobral-CE e como se produziu e produz a história
do município através das edificações presentes em seu sítio histórico
tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
— IPHAN em 1999. Almejando compreender como as disciplinas:
História e a Arquitetura e o Urbanismo, foram mobilizadas na cria-
ção de um projeto para a patrimonialização de Sobral, que pudesse
justificar perante o IPHAN a necessidade do tombamento. Mas esta-
mos falando da preservação de qual passado? Que história as poligo-
nais do tombamento preservam em Sobral?

A história pensada para a preservação valoriza o fato de Sobral


ter sido uma das cidade mais importantes da zona norte do estado
do Ceará, tendo desde o século XVIII movimentado a economia
do estado, seja pela criação do gado, pela produção de algodão ou
pelas indústrias instaladas em seu território. Muitas são as marcas
dos processos socioeconômicos que Sobral passou e que ainda

1 Mestrando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte — UFRN, bolsista
CAPES. http://lattes.cnpq.br/1909512371815873. [email protected].

135
Patrimônio, memória e historiografia

podem ser encontradas visivelmente ao caminhar pela cidade, es-


pecialmente em seu centro. Pode-se avistar em algumas esquinas
casarões com oitão enobrecido, vários sobrados, casas com facha-
das em estilo Art déco ou Art nouveau, bem como pequenas casas
térreas típicas do século XVIII, ligadas por um traçado urbano
que se adaptou ao longo do tempo.

Sobral ainda hoje possui muitos exemplares materiais que nos


contam um pouco da sua história de desenvolvimento, entretanto,
em determinado momento a população citadina passou a enten-
der que muitas dessas edificações estavam sumindo e dando lugar
a outras mais modernas. O centro de Sobral estava passado por um
processo acelerado de desenvolvimento nos anos 1990, em que cada
vez mais comércios surgiam. A constante derrubada de prédios an-
tigos mobilizou alguns setores da sociedade que viam na destruição
das edificações a mutilação de seu passado. O estopim para ações
populares em defesa das edificações foi deflagrado com o início da
demolição do antigo Solar dos Figueiredos, um sobrado construído
por volta dos anos 1860, localizado no centro da cidade, do lado do
Museu Dom José e à frente do Teatro São João.

Intelectuais, políticos, historiadores e diversos outros moradores


se uniram na produção de um abaixo-assinado que foi enviado ao
IPHAN em 1996, como denúncia dos atos de destruição das edifi-
cações, mas que, sobretudo, pedia a instituição que analisasse a pro-
posta de realizar um tombamento na cidade. Alguns desses políticos
e intelectuais interessados na patrimonialização de Sobral também
estavam presentes na campanha política para as eleições municipais
de 1996, muitos ao lado da chapa do engenheiro civil Cid Ferreira
Gomes e do arquiteto Edilson Pontes Aragão, que concorria como
oposição e sagrou-se vitoriosa no pleito. No ano seguinte já no co-
mando da Prefeitura de Sobral, Cid Gomes e Edilson Aragão move-
ram esforços para levar adiante a preservação da história de Sobral,
com a nomeação do advogado Clodoveu Arruda para a pasta da cul-
136
Que a história esteja sempre a seu favor:
Usos políticos do patrimônio em Sobral-CE, 1995-1999

tura, colocou-se em prática um plano para identificar os bens cultu-


rais de Sobral e pensar sua preservação.

Assim, chegou-se a figura do arquiteto Campelo Costa que reuniu


um equipe de arquitetos e historiadores que realizou um “Levantamen-
to e delimitação de áreas de valor histórico e cultural em Sobral”, ocor-
rido durante o ano de 1997, com recursos aprovados na Lei Estadual de
Incentivo à Cultura n° 12.464 de junho de 1995. O material produzido
foi unido aos estudos que os arquitetos Márcia Sant’Anna e Domingos
Linheiro da Superintendência Regional do IPHAN-CE estavam fazen-
do em Sobral, em decorrência do abaixo-assinado, e foi enviado ao
IPHAN sob o título de Estudo de Tombamento Federal do Conjunto
Urbanístico da Cidade de Sobral, como a proposta do tombamento.

Conceitos para o patrimônio

É sabido que as décadas iniciais de atuação do Serviço do Patrimô-


nio Histórico e Artístico Nacional — SPHAN criado em 1937 durante
o governo de Getúlio Vargas (1882-1954) foram bastante significativas
para a preservação de exemplares materiais, especialmente aqueles que
puderam representar o patrimônio da nação, por serem vinculados a
fatos ditos importantes da história do Brasil, na visão dos legisladores.
É necessário compreender que esta noção de patrimônio foi elabo-
rada por um grupo de intelectuais modernistas, entre eles Mário de
Andrade (1893-1945), Gustavo Capanema (1900-1985), ministro da
Educação e Saúde Pública, órgão sob o qual o SPHAN estava ligado,
bem como Rodrigo Melo Franco de Andrade (1898-1969) que assume
a diretoria do SPHAN em 1937 e permanece até o final dos anos 60.

Com o Decreto n° 25 de 1937 do SPHAN posto em prática, pode-


-se observar as igrejas barrocas do período colonial surgindo como
o exemplo dos bens que deveriam ser entendidos como patrimônio
nacional, no discurso elaborado pelos homens que forjaram a insti-
137
Patrimônio, memória e historiografia

tuição, pois quando Rodrigo de Andrade assumiu o SPHAN a “atua-


ção dos modernistas ligados a Rodrigo se voltou, sobretudo, para
a preservação da arquitetura colonial” (BRITO, 2017, p. 44). Nesse
sentido, a respeito dos sítios urbanos, “as cidades coloniais mineiras
foram reconhecidas por estes intelectuais do SPHAN como símbolos
do passado arquitetônico nacional” (BRITO, 2017, p. 44). Nessas cir-
cunstâncias as cidades mineiras foram entendidas como um modelo
do que seria o patrimônio urbano, tendo a cidade de Ouro Preto
como uma expoente desse cenário.

Nesse contexto, foi por meio da elite paulista através de seus in-
telectuais que se formou essa noção de patrimônio abarcada pela lei,
que via nas cidades coloniais mineiras uma continuidade da narra-
tiva bandeirante, que entendia São Paulo como a origem do territó-
rio brasileiro e assim viram nas regiões de minas, sendo descobertas
também pelos bandeirantes, um ponto de continuidade com a nar-
rativa estabelecida de origem, definindo os bens dessa região como
uma arte e arquitetura genuinamente brasileiras.

O que provocou, na concepção de Marins (2016), a noção pre-


dominante de que a arquitetura monumental seria parte do ethos da
nação. Mas o que se esconde por trás disso é uma herança muitas
vezes autoritária e excludente na escolha de nosso bens culturais.
Ponto que também já foi criticado por Fonseca (2003), ao considerar
as políticas de patrimônio conservadoras e elitistas, pela escolha dos
critérios de avaliação para o tombamento.

Houve uma nítida uma valorização do patrimônio monumental.


Pautado pela singularidade dos bens e em seu valor nacional por meio
da memória que em tese resguardavam. Dois tópicos pareciam muito
caros a Rodrigo de Andrade, no que se trata de elementos que poderiam
ajudar a definir a cultural nacional, sendo eles, a arte e a religiosidade,
fatores fundamentais a se observar na prática patrimonial elaborada.
Haveria em sua visão contribuições da religiosidade para a formação da
138
Que a história esteja sempre a seu favor:
Usos políticos do patrimônio em Sobral-CE, 1995-1999

nação, como resultado disto diversas igrejas barrocas foram tombadas


isoladamente no Rio de Janeiro, Salvador e Olinda em conjuntos urba-
nos que não eram tão homogêneos como os de Minas. Em união a isto
o barroco das igrejas católicas e sobretudo o mineiro foi para Rodrigo
um dos maiores símbolos da produção artística brasileira.

É evidente que os estudos direcionados a essas áreas tombadas


fomentaram concepções para a preservação de núcleos urbanos, um
exemplo disto é a experiência com a cidade de Ouro Preto que aju-
dou a estabelecer parâmetros destinados a outras cidades. A gestão
de Rodrigo no SPHAN foi denominada por Fonseca (1997) como a
“fase heroica” do órgão, na qual se elaborou um princípio definidor
do entendimento do que seria o tombamento de núcleos urbanos,
abarcado pelo significado de “cidade-monumento”, que carregava o
peso de acautelar bens que resguardavam a estética e o passado na-
cional, que fariam parte do patrimônio. Podemos compreender esse
conceito como um esforço em preservar exemplares do barro colo-
nial o que também significou o detrimento de estilos europeus como
o neoclássico e ecletismo, elegendo assim um molde de cidade his-
tória tido como padrão para a proteção. (DUARTE JUNIOR, 2012)

Os primeiros anos da prática do SPHAN, foram para Rubino (2002)


um verdadeiro entrave de caráter político envolvendo instituições e in-
telectuais na busca por uma identificação e ordenamento do patrimô-
nio brasileiro “para que tanto o moderno como o colonial prevaleces-
sem sobre o ecletismo e o neocolonial” (RUBINO, 2002, p. 15), como
já demonstramos. Contudo, a autora também afirma que os conceitos
e práticas de preservação se modificaram ao longo do séc. XX, assim
não podemos entender como estáticas as relações entre os interesses
de preservação do IPHAN e dos grupos que cindem a sociedade.

Fonseca (1997), também investiu pesquisas na intenção de verificar


a prática patrimonial no Brasil pelo IPHAN nas gestões que sucedem
Rodrigo, denominando de “fase moderna” os anos de 1967 a 1990,
139
Patrimônio, memória e historiografia

podendo ser entendido nessa concepção como um momento em que


se vê um alargamento do conceito de patrimônio cultural. Através da
inclusão no rol dos bens culturais, manifestações da cultura popular de
grupos historicamente marginalizados, entram na instituição também
uma maior variedade de profissionais, o que pode indicar uma mu-
dança nas metodologias de seleção.

Chuva aponta que a virada dos anos 1980 para 1990, foi palco
para percebermos a “força dos movimentos sociais, trazendo à luz
sujeitos que por diferentes estratégias foram colocados na invisibili-
dade” (CHUVA, 2017, p. 84). Isto corrobora para a inserção de outras
práticas e sujeitos nos atos de patrimonialização. Chuva argumenta
ainda que a força desses movimentos sociais e a transformação dos
quadros do IPHAN, com a entrada de diferentes profissionais, como
sociólogos e educadores do Centro Nacional de Referência Cultural
— CNRC, arquitetos e economistas do Programa das Cidades His-
tóricas — PCH e historiadores oriundos da Fundação Nacional Pró-
-Memória, fizeram com que os bens a serem patrimonializados e os
enfoques sobre eles se transformassem.

Os anos 1990 no IPHAN nos apresentam uma nova configuração


de patrimônio, pautada pela Constituição de 1988, que atualiza o pa-
trimônio cultural, em suas várias facetas. Entram em cena novos obje-
tos, problemas e abordagens que evidenciam mudanças nas bases que
formam o patrimônio no país. Um aspecto relevante desse período é a
noção de “cidade-documento”, nessa concepção as cidades históricas
“passavam a ser vistas como um documento impresso no território
que deveria ser preservado para a produção de conhecimento sobre a
história da ocupação do território brasileiro” (CHUVA, 2017, p. 96).

Identificamos em nossas hipóteses que é esse o caminho que o


projeto patrimonial de Sobral parece seguir, ao buscar valorizar a
história do urbanismo, observando como o espaço se desenvolveu ao
longo de sua formação até os dias atuais, buscando dar mais visibili-
140
Que a história esteja sempre a seu favor:
Usos políticos do patrimônio em Sobral-CE, 1995-1999

dade ao seu papel na formação do território nacional, como um do-


cumento da formação e da produção do espaço urbano. (SANT’AN-
NA, 2014). Essa abordagem compreende a cidade histórica como um
organismo vivo e dinâmico. Não estando presa ao passado e apenas
protegida da destruição, mas sendo vista como um bem do presente,
disposta para a apropriação de vários grupos e sujeitos.

O valor histórico no tombamento de sobral

Neste momento nos interessa refletir sobre as continuidades e


rupturas na prática de preservação do IPHAN, se observamos por
um longo tempo os bens sendo mais valorizados por seu valor artís-
tico, passamos nas últimas décadas do séc. XX a considerar também
com mais importância o valor histórico dos bens. Essas mudanças
que vão se instalando aos poucos, são fruto das alterações de sujeitos
à frente dos órgãos de preservação, da atuação popular na busca do
reconhecimento de suas histórias.

É importante refletimos sobre ser recente o fato de historiado-


res integrarem os quadros da área de preservação do patrimônio
cultural dentro do IPHAN e por sua vez “[...] produzindo parece-
res especificamente sobre o valor histórico dos bens propostos para
tombamento” (FONSECA, 1997, p. 224). O que podemos verificar
até pela equipe que compunha a 4ª Coord. Regional do IPHAN-CE
que não possuía historiadores nos seus quadros, na época do pro-
cesso de tombamento de Sobral. Neste caso avaliar os profissionais
envolvidos na elaboração de documentos como o Estudo de Tom-
bamento, é também um caminho para confirmar nossas hipóteses
da importância da história na produção do texto. Ainda apontando
algumas considerações de Fonseca, que escreve nos anos 1990, so-
bre essas mudanças metodológicas:
141
Patrimônio, memória e historiografia

Na verdade, essa linha de interpretação é muito recente


na instituição, e suas consequências práticas, em termos
de mudanças na valorização dos bens e nas condutas vi-
sando à proteção — que deixam assim de ser tarefa ex-
clusiva dos arquitetos — ainda não podem ser avaliadas
(FONSECA, 1997, p. 230).

Situações como estas que Fonseca apontou só vem a mudar e po-


der ser melhor entendidas por pesquisadores e refletidas na sociedade,
anos mais tarde com a consolidação de tombamentos como o de Sobral,
que anunciam mudanças nesse cenário. Contrariando à posição inicial
do SPHAN, que muitas vezes visualizava os tombamentos de núcleos
históricos mediante o número expressivo de bens excepcionais verifi-
cados, ao invés da história de desenvolvimento do conjunto urbano.

Dessa maneira, a utilização da História enquanto disciplina capaz de


legitimar o acautelamento de bens patrimoniais para o IPHAN, é algo
que foi sendo construído lentamente ao longo do século XX, para que
já no final deste século, pudéssemos ter projetos como o de Sobral que
investem nessa área. Haja vista considerarmos que o Estudo de Tom-
bamento de Sobral, começa com a Secretaria da Cultura de Sobral, por
meio de seu secretário Clodoveu Arruda, buscando recursos para a
realização do “Levantamento e delimitação de áreas de valor histórico
e cultural” em Sobral, ou seja, montando uma equipe de arquitetos e his-
toriadores comandados por Campelo Costa, que visava estudar o espaço
urbano, para definir quais bens seriam enquadrados como de valor his-
tórico e cultural e não exclusivamente ou com maior relevância, analisar
a situação arquitetônica do conjunto, tanto que se define a proposta com
uma área da cidade e não apenas bens isolados.

No tombamento de Sobral, o conjunto urbano como um todo é


que é proposto a preservação, pois são vários os períodos históricos,
das diferentes edificações que expressam uma parte da história local,
o que representa o processo de desenvolvimento da cidade, um dos
142
Que a história esteja sempre a seu favor:
Usos políticos do patrimônio em Sobral-CE, 1995-1999

pontos que agora passa a ter mais valorização nos pareceres de tom-
bamento, o que podemos verificar a partir deste trabalho.

Mediante a realização do trabalho que compôs o Estudo, começamos


a examinar a importância da História na realização do empreendimento.
Verificamos que no caso dos estudos históricos sobre a evolução urbana
de Sobral, a equipe realizou inicialmente uma triagem bibliográfica e dos
arquivos, tanto documentais, fotográficos, cartográficos entre outros.
Observamos também a bibliografia consultada para a realização de
todo o Estudo, no intuito de verificar as fontes e autores empregados.

Notamos muitas obras que dissertam sobre a cidade de Sobral, in-


cluindo textos de José Liberal de Castro, Pe. Francisco Sadoc de Araú-
jo, Dom José Tupinambá da Frota e outros padres/historiadores locais,
mas também há obras que tentam ver Sobral dentro de um contexto
mais amplo, como os textos de Maria Auxiliadora Lemenhe, citada
pelo seu trabalho a respeito das vilas coloniais no Ceará, temos tam-
bém a obra A trajetória da indústria têxtil no Ceará (1989) de Elizabeth
Fiúza Aragão. Além destas, a obra Formação do Brasil Contemporâneo
(1986) de Caio Prado Jr, também é citada. Já sobre as fontes citadas
no texto, algumas são, o Atlas do Ceará (1986), o Atlas Industrial do
Ceará s/d, também faz parte desse rol de fontes números da Revista do
Instituto do Ceará. Também foi realizada uma análise dos sujeitos so-
ciais envolvidos em processos materiais importantes para o desenvol-
vimento da região, como é o caso de Dom José Tupinambá da Frota.

Visualizamos o emprego de autores e fontes próprias do trabalho


do historiador, sendo manipuladas no texto para dar validade ao do-
cumento que se elaborava. Acreditamos que estas etapas do trabalho
serviram para entender como os processos históricos deixaram suas
marcas no espaço urbano. O que resultou na seleção das áreas para a
preservação terem, como apresenta o documento decorrido “[...] de
estudos sobre os processos socioeconômicos e históricos de formação
e desenvolvimento da cidade [...]” (4ªCR/IPHAN. Vol. I, 1997, p. 6).
143
Patrimônio, memória e historiografia

Além disso, os estudos históricos feitos resultaram num texto deno-


minado “Histórico e Evolução Urbana” de 24 páginas que integra o Vo-
lume I do Estudo, tomando mais de um terço do documento. Podemos
considerá-lo como uma síntese de uma parte da história de Sobral,
que é claro, recorta e apresenta aquilo que é mais conveniente às suas
intenções, que no caso tem como objetivo colocar o maior número de
informações que leve a uma análise positiva sobre o tombamento.

O texto leva os que não conhecem à cidade a um passeio que é


capaz de introduzir o leitor ao meio urbano de Sobral. Demarcando
momentos e períodos de ocupação da cidade, levando como foco
principal a alteração urbana por meio de sua economia, marca que
toma conta da maior parte dos estudos históricos realizados e ex-
postos no documento. O texto também considera a importância de
alguns lugares, principalmente na região central de Sobral, por con-
terem ainda traços de seu núcleo inicial.

Os estudos históricos realizados também aparecem mais vezes na


composição dos mapas, e nos textos sobre as “Tipologias das Edifi-
cações” e na “Justificativa da Proposta”. No item “Tipologia das Edi-
ficações” temos melhor demarcado a questão de períodos históricos,
relacionados por ciclos econômicos que assim influenciaram direta-
mente o desenvolvimento da cidade. Pontuando quatro ciclos (gado,
comercial, algodão, industrial) dentro de três séculos. Apresentando
aspectos da economia e das edificações construídas em cada um deles.

Na “Justificativa da Proposta de Tombamento do Conjunto Urba-


nístico da Cidade de Sobral”, elaborada pela equipe da 4ª Coord, o item
de maior importância do Estudo, por centralizar as indicações do tom-
bamento para o Conselho Consultivo do IPHAN, além de mais uma
vez termos uma síntese da história de Sobral, podemos destacar os
elementos que comprovam a importância da preservação da cidade:
144
Que a história esteja sempre a seu favor:
Usos políticos do patrimônio em Sobral-CE, 1995-1999

[...] a história da ocupação do território do Ceará — que


se confunde, em grande parte, com a da colonização do
sertão nordestino — não pode ser compreendida sem a
história da formação dos seus primeiros núcleos urbanos
e econômicos, entre os quais Sobral surge como um dos
mais significativos. Essa importância é ainda mais realça-
da pelo fato de que a cidade se manteve sempre na van-
guarda econômica, política e cultural do estado ao lon-
go de dois séculos, produzindo bens que são de grande
valor documental para o registro desse processo (4ªCR/
IPHAN. Vol. II, 1997, p. 111).

Tratar a história de ocupação territorial de Sobral como uma


amostra da ocupação de parte dos sertões do Nordeste é uma me-
todologia eficaz para a proposta, pois demonstra como Sobral pas-
sou por esse processo e ainda hoje teria como “provar” através das
marcas materiais desse passado, suas edificações, como o local foi
um palco no qual se pôde apresentar a formação não só do Ceará,
mas de uma parte significativa do país. E ao demarcar a questão eco-
nômica, mostra-se que Sobral é importante porque no passado teve
condições propícias para o desenvolvimento de uma arquitetura que
pudesse representar os momentos por quais passou.

Em suma, o que norteia a proposta de proteção do nú-


cleo histórico de Sobral e, em última análise, a justifica,
é a necessidade e a oportunidade de reconhecê-lo e pre-
servá-lo como um dos mais importantes documentos
do urbanismo colonial nesta região e da história do des-
bravamento e da ocupação do sertão nordestino (4ªCR/
IPHAN. Vol. II, 1997, p. 115).

Somado a tal argumentação, conseguimos pontuar também o fato


de que desde a “Apresentação” do Estudo, realizada no Volume I, a
tônica da proposta deixava claro seguir princípios que viam a cida-
de histórica passar “[...] progressivamente, a ser compreendida mais
como um testemunho da evolução urbana da organização social e
menos como uma obra de arte” (4ªCR/IPHAN. Vol. I, p. 5). Enten-
dendo que conjuntos urbanos devem ser objetos culturais, que não
145
Patrimônio, memória e historiografia

estariam vinculados apenas à arte e à arquitetura, mas que poderiam


e deveriam estar ligados a outras ciências como à história, à etnogra-
fia, à arqueologia dentre outras disciplinas. O que foi retomado na
justificativa do tombamento, quando afirma-se:

[...] a área urbana selecionada como objeto patrimonial


deve conter em seu espaço urbano uma alta concentração
de informações históricas relevantes para diversas áreas
do conhecimento humano. Ela deve ser um registro vivo
de processos históricos e sociais que construíram e cons-
troem o Brasil em seus aspectos mais essenciais” (4ªCR/
IPHAN. Vol. II, 1997, p. 116).

Segundo Duarte Junior, há uma relação enfática entre o urbanis-


mo e a história da cidade, está posta “[...] muito acima dos crité-
rios artísticos, valorização extremada essa traduzida na proteção de
uma extensa área urbana e de um grande número de imóveis, sub-
metida agora aos rigores do aparato federal de preservação cultural”
(DUARTE JÚNIOR, 212, p. 318).

Quando todas essas observações são unidas percebemos as im-


plicações do projeto patrimonial de Sobral, que usa a seu favor sua
configuração urbana proveniente de sua história para se justificar
enquanto patrimônio, inserido em um quadro histórico nacional
de desenvolvimento do Nordeste brasileiro, mas para além disso,
notamos a composição de um trabalho focado em uma metodolo-
gia que ganhava força naquele momento e sendo creditada como
válida pelo IPHAN, o que evidencia também as mudanças no órgão.

Ainda podemos suscitar mais uma questão, pois, segundo Via-


na (2017), nos últimos anos a “memória local” tem se ampliado
e se ressignificado, abrindo margem para a atribuição de novos
sentidos a objetos, referindo-se especificamente ao “patrimônio
local”, o autor aponta que é possível perceber um “novo culto ao
passado”, que se desmembra do viés político e cívico e passa a
valorizar mais, em alguns casos, os “tempos áureos”, que podem
146
Que a história esteja sempre a seu favor:
Usos políticos do patrimônio em Sobral-CE, 1995-1999

ser identificados, como os tempos de pujança econômica, que no


caso de Sobral conseguimos visualizar, serem tempos atrelados as
atividades da pecuária e da produção do algodão. Um indicativo
deste cenário seria “[...] uma procura por edificações e objetos
que possam lembrar a atividade econômica e a vida do lugar nes-
ses tempos de prosperidade” (VIANA, 2017, p. 125). Uma pro-
cura que visa a sua preservação, em Sobral através da principal
instância possível, o tombamento via IPHAN.

E para dar validade a elaboração dessas narrativas têm-se as edifi-


cações do sítio histórico tombado como testemunhas de pedra do pas-
sado de Sobral. Dessa maneira, os prédios, praças e locais funcionam
como um aporte que fundamenta o discurso. Com base nas considera-
ções de Assmann (2011) compreendemos que esses espaços ganham o
sentido de monumentos e são usados num processo de rememoração.
Numa cena em que a memória de fato atua como uma provedora de
respostas. E que assim pode restituir provas palpáveis para serem utili-
zadas na atualidade. Que neste caso, foi operacionalizada pelos profis-
sionais que elaboraram o Estudo de Tombamento de Sobral, no ato de
recortar e apresentar partes da história do município.

Considerações finais

Quando narramos o processo de patrimonialização de Sobral, esta-


mos narrando também as práticas patrimoniais do IPHAN e não ape-
nas nos anos 1990, mas traçando caminhos que nos fazem entender
como se deu até esse momento o tombamento de bens imóveis no Bra-
sil, para que em 1999, Sobral pudesse ter seu sítio histórico reconhe-
cido, inclusive de uma forma em que se sobrepõe o valor histórico ao
artístico, o que poderia levar ao fracasso da empreitada caso fosse rea-
lizada durante as décadas iniciais da prática patrimonial do SPHAN.

Sobral, desde o período colonial teve seu desenvolvimento ligado


a processos socioeconômicos, como a criação do gado, o cultivo do
147
Patrimônio, memória e historiografia

algodão, até um período mais recente em que as indústrias chegam na


região. Sendo assim a área definida como patrimônio na cidade não
apresenta um conjunto urbano como o escolhido em Ouro Preto, li-
gado apenas a um estilo arquitetônico e a um período histórico, mas
mostra-se como uma mistura de várias edificações de pelo menos três
séculos que contam sobre várias épocas que à cidade passou, registran-
do partes da história de desenvolvimento do sertão nordestino.

No caso de Sobral, notamos os arquitetos e historiadores trabalhan-


do no Estudo para a escolha da área de tombamento na intenção de
demarcar a importância da história da cidade como uma forma de a
partir dela podermos conhecer uma parte dos processos de desenvol-
vimento do sertão nordestino. Em tese a história do centro de Sobral
resguardaria bens materiais que poderiam nos ajudar a reconhecer
uma parte desse passado e da memória do país.

Desse modo, tal proposta inserida, no que entendemos como


uma período de alargamento da concepção do que seria o patrimô-
nio cultural, consegue lograr êxito, pelo fato de reconhecer as especi-
ficidades do local e elaborar um discurso que ressalta os pontos que
pesam positivamente a favor da cidade, demarcando sua história e as
espacialidades formadas ao longo de pelo menos três séculos, nesse
processo, usando a história a seu favor.

Referências

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148
Que a história esteja sempre a seu favor:
Usos políticos do patrimônio em Sobral-CE, 1995-1999

CHUVA, Márcia. Possíveis narrativas sobre duas décadas de patrimô-


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ROCHA, Raimundo Nonato Araújo da. Natal/RN: EDUFRN, 2017.

149
A construção da memória
social de José Alencar através
dos discursos elogiosos
(Fortaleza/CE, 1929)
Frederico de Andrade Pontes1

No livro “Reminiscências”, o autor Visconde de Taunay nos traz


memórias e escritos relacionados a momentos e experiências vividas
no campo político e intelectual da capital do Brasil, principalmente
no período que atravessa as décadas de 1860 a 1900. Entre os depoi-
mentos e recordações, Taunay cita o escritor José de Alencar, que em
dado momento de desânimo expressa sua preocupação com a pos-
sibilidade de faltar reconhecimento futuro acerca de sua vida e obra
literária, segundo Taunay, José de Alencar assim diz: “Vocês acham
que chegarei a posteridade?”.

A preocupação de Alencar, ao que nos parece, não gerou nele ape-


nas o medo do esquecimento, fez nascer também ações para garantir
de alguma forma a perpetuação da memória da sua vida e obra, como
é o caso da escrita de sua autobiografia, “Como e porque sou romancis-
ta”. Acreditamos que esse foi um dos primeiros passos de um processo
de monumentalização2 da memória do escritor. Um processo que ainda

1 Mestre em História (UECE), diretor da Casa de José de Alencar/UFC, integrante do Grupo de


Estudo e Pesquisa em Patrimônio e Memória/GEPPM/UFC
2 Apesar do termo monumentalização ser recorrente na historiografia, especialmente quando
tem-se como objeto de estudo monumentos, em especial esculturas, entendemos a monumen-

151
Patrimônio, memória e historiografia

hoje perdura no sentido de promover e preservar sua memória, e que


se desenvolveu especialmente na cidade de Fortaleza, capital cearense.

Considerado um dos grandes romancistas brasileiros, o trabalho


de construção da memória social em torno da vida e obra do cea-
rense José de Alencar permitiu que, mesmo após 143 anos de seu
falecimento, não só sua existência permaneça sendo constantemente
lembrada, como também permitiu que sua principal obra, Iracema,
conquistasse ao seu lado o olimpo da posteridade.

O processo de monumentalização do escritor José de Alencar


atravessa tempos e espaços, todos eles trazem consigo um forte in-
dício da influência dos atores inseridos não só no campo intelectual,
como também do campo político. Por sua vez, esses atores expres-
savam formas de como esses segmentos percebiam e construíam as
estratégias de perpetuação da memória dos seus pares e também das
instituições que representavam.

Como bem sabemos, memória também é poder. Perpetuar e sa-


cralizar a memóriade certos personagens significa carregar valores,
sentidos, símbolos, não só da memória monumentalizada, mas tam-
bém dos grupos e personagens vinculados à construção dessa me-
mória social. E nesse sentido, legitima também a preservação de um
determinado domínio no espaço político, cultural ou social.

A aceitação indiscriminada da sacralização de determinados ob-


jetos indica a incorporação, pela sociedade, de um conjunto de ideias
e pensamentos. “Essas representações ligam-se a sentimentos pro-
fundos e generalizados, que são disputados por diferentes grupos,
os quais, lutam para associar a eles ideias e crenças de conteúdos
diversos” (SANTOS, 2003, p. 130).

talização não apenas materializando-se enquanto escultura ou lugar de memória, mas como
algo e forma que dá sentido à perpetuação, legado e sacralização de determinada memória.

152
A construção da memória social de José Alencar através dos
discursos elogiosos (Fortaleza/CE, 1929)

O interesse pela pessoa do escritor e do artista aumenta na


medida que o campo intelectual e artístico adquire autonomia e
correspondentemente se eleva o status dos produtores de bens
simbólicos (BOURDIEU, 2007, p. 100-105). Nesse sentido, pen-
sar a monumentalização de José de Alencar em Fortaleza é refletir
sobre as historicidades do pensar o conceito de memória social e
as estratégias de perpetuação dessas memórias.

É perceber as formas singulares que determinados grupos cultu-


rais possuem para fabricar novas tradições, comemorações e cultos.
É igualmente pensar sobre a construção e invenção de novos lugares
de memória, sejam monumentos, locais ou espaços urbanos que fa-
zem referência ao imaginário e a perpetuação da memória do escri-
tor Jose de Alencar e dos inventores desses espaços de sacralização
da memória do autor de O Guarani.

No culto aos “brasileiros ilustres” a atividade literária passou a


ocupar papel central, uma vez que a língua era considerada o subs-
trato da nacionalidade. “Sendo assim, aqueles que a ela se dedicavam
conquistavam o status diferenciado de construtores da nação, em
torno dos quais a República tratou de difundir uma aura de respeita-
bilidade e admiração” (GONTIJO, 2006, p. 29).

As primeiras manifestações e ações realizadas para preservar


e perpetuar a memória do escritor são alinhadas com essa per-
cepção do escritor como construtor da nacionalidade. Pois nessa
perspectiva, ressalta-se que Alencar perseguiu, através de sua li-
teratura, uma representação, uma ideia, um projeto de Brasil atra-
vés da expressão literária.

Na prática se observa que as narrativas discursivas elogiosas procu-


ravam explicitar uma ideia de distinção que se referia a uma espécie de
diferenciação de determinado bem ou agente com base em certas ca-
racterísticas de originalidade, de competências raras em determinado
social. Essa distinção como estratégia de valorização e perpetuação de
153
Patrimônio, memória e historiografia

determinadas memórias será claramente percebida nos discursos elo-


giosos que procuravam naturalizar a necessidade de perpetuar a memó-
ria do escritor José de Alencar como um exemplar “homem de letras”.

“A figura do “homem de letras” permitia associar as ideias de cul-


tura e nação, materializando a noção de “Brasil culto”, tão cara aos
projetos civilizadores desde o segundo reinado...” (GONTIJO, 2006, p.
23). A implementação desse projeto civilizador exigiu a constituição
de agentes sociais capazes de atuar como construtores, portadores e
disseminadores de nacionalidade.

Na realidade, nos parece que as práticas iniciais de construção de


um panteão de heróis nacionais e lá incluídos os “homens de letras”
possuem certa influência da cultura europeia, em especial quando
se percebe como estratégia de legitimação dos novos Estados-Nação
que floresciam naquelas paragens.

“O interesse por figuras ilustres cresceu na Europa ao longo do sé-


culo XIX, abrindo espaço para a construção de galerias de heróis na-
cionais, figuras representativas dos valores de um país ou de um dado
momento da história pátria” (ENDERS, 2014, p. 47). Esse crescimento
se deve a uma conjunção de fatores entre os quais o fortalecimento das
nações — sustentado pela invenção de tradições e pela identificação de
símbolos capazes de representá-la — e a afirmação do individualismo.

Não obstante, nos interessa aqui identificar um processo de mo-


numentalização específico e singular, pois não somente se monu-
mentalizou a memória do escritor, mas também a da sua principal
obra. Aqui entendemos como processo de monumentalização as
ações e estratégias relacionadas às construções narrativas, tradições,
celebrações, esculturas, objetos, edificações e espaços que possuem
por finalidade potencializar o poder de perpetuação da memória de
determinado personagem ou acontecimento.
154
A construção da memória social de José Alencar através dos
discursos elogiosos (Fortaleza/CE, 1929)

No caso analisado, podemos visualizar claramente essas ações,


desde uma escultura em praça pública, passando pelos nomes de
espaços urbanos, coleções, equipamentos culturais, comemorações,
entre outras que contribuem para a perpetuação da memória social
de Alencar na cidade de Fortaleza.

Nesse artigo, temos o objetivo de apresentar de forma sucinta ape-


nas uma ação que consideramos exemplar no sentido de confirmar a
existência do processo de monumentalização de José de Alencar, em
Fortaleza: as comemorações do centenário de nascimento do escritor
em 1929. A primeira ação relevante deste processo na cidade.

E para sermos mais específicos, firmaremos essa análise apenas em


um aspecto inserido nos mecanismos de construção dessa memória
social durante as comemorações do centenário. Ao analisar trechos e
discursos apresentados nos jornais O Povo3 e O Nordeste4, percebemos
claramente a estratégia do discurso elogioso como formar de potencia-
lizar o reconhecimento do autor em relação a necessidade se perpetuar
e sacralizar sua memória. Dessa forma promovendo a distinção dessa
memória, assim como fortalecendo seu capital simbólico.

Vale ressaltar que essa estratégia foi importada da Europa. Na


França setecentista, o elogio era um gênero oratório bastante utiliza-
do e valorizado. Era o gênero que se dedicava a vangloriar os indiví-
duos que, diferindo dos reis e santos, pertenciam a “uma república de
talentos”, uma coletividade de cidadãos notáveis que se destacavam
por mérito próprio no mundo do pensamento, das letras, da política,
dos negócios da guerra etc... (ENDERS, 2014, p. 41).

Naquele primeiro de maio de 1929, em dois importantes veículos


da imprensa fortalezense identificamos uma enorme produção de

3 O Povo foi fundado em 7 de janeiro de 1928 pelo jornalista, odontólogo, poeta e político De-
mócrito Rocha.
4 Fundado em junho de 1922, sob os auspícios da Arquidiocese de Fortaleza, então administra-
da por Dom Manuel da Silva Gomes.
155
Patrimônio, memória e historiografia

discursos e imagens que fazem referência ao escritor José de Alencar


e suas obras. Apesar de O Nordeste e outros jornais da cidade tra-
zerem diversas notícias sobre o centenário, foi o Jornal O Povo que
mais repercutiu o acontecimento, todas as 14 páginas daquela edição
especial foram dedicadas ao escritor de Iracema.

Além de anunciar toda a programação das celebrações e festivi-


dades, o jornal trouxe diversos artigos que versavam sobre a vida
do escritor, as origens de sua família, suas obras literárias etc... Em
especial, destacamos os inúmeros elogios que corroboram a ideia
de legitimação da figura de José de Alencar como monumento a ser
celebrado e sua memória perpetuada pelo povo cearense.

A obra de José de Alencar é uma epopeia de brasilidade


após-descobrimento, o primitivo caldeamento das gran-
des raças, os dramas guerreiros e sentimentais, que se de-
senrolaram no seio das tribos
Mais do que um homem de letras, elle foi o consubstan-
ciador daquela phase indecisa da nossa formação históri-
ca, na obra de confraternização dos primitivos habitantes
da terra da santa cruz com a posteridade hyper-civilizado
do Brasil porvindouro
Foi elle o creador, foi elle que, a inúbia dos nossos avós,
clarinou a reação nativista incorruptível e grandiosa que
hoje empolga a alma nacional
O bronze, que a geração hodierna alevanta, agora na pra-
ça pública, é o “veredictum” do primeiro século, é a con-
sagração antecipada à que lhe virá depois, na apotheose
universal dos homens de todas as terras, quando mais
rescenderem os aromas balsâmicos das selvas americanas
(Primeira página, JORNAL OPOVO, 01/05/1929).

Nos trechos selecionados acima percebemos elementos discursi-


vos que fazem alusão à diversos aspectos que caracterizam uma for-
ma de fundamentar e ao mesmo tempo legitimar a necessidade de
perpetuar a memória de determinado personagem e assim fundar
uma nova tradição de comemorações e homenagens coletivas para a
lembrança da memória dessa pessoa.
156
A construção da memória social de José Alencar através dos
discursos elogiosos (Fortaleza/CE, 1929)

Ao refletir sobre a ideia de distinção em Bourdieu, compreen-


demos que esse discurso busca transparecer a qualidade excepcio-
nal e competência rara de Alencar, servindo também para fortale-
cer a legitimidade dessa monumentalização. Podemos identificar,
por exemplo, a exaltação das qualidades individuais e singulares
do escritor, a associação direta do escritor com a construção da
identidade da nação brasileira e a justa homenagem de toda a so-
ciedade, homenagem materializada na escultura de bronze erigi-
da em praça pública.

Para compreender as especificidades desse processo de monu-


mentalização, é necessário compreender a historicidade de tais pro-
cessos no Brasil. Na realidade, o culto a determinados indivíduos foi
alimentado por uma sólida tradição herdada do Império: a do elogio
do “grande homem”, fenômeno europeu, que adquiriu características
próprios no cenário nacional.

“O Brasil era visto como um grande artifício dessas vontades


individuais, como um produto desses homens com qualidades aci-
ma do normal” qualidades que as tornavam capazes de materializar
valores, ideias ou instituições a serem lembradas e comemoradas”
(GONÇALVES, 2000, p. 135).

Não obstante, os discursos elogiosos não se restringiam apenas


ao escritor. Outro personagem se notabilizou durante a campanha
de arrecadação de fundos para a construção da estátua de José de
Alencar na praça Marquês de Herval. O monumento ao escritor José
de Alencar foi uma iniciativa da Associação Cearense de Imprensa
(ACI), e a proposta foi do presidente da ACI e um de seus fundado-
res, jornalista Gilberto Câmara. Vejamos o que diz trecho do Jornal
O Nordeste ao se referir ao “Homem da estátua”:
157
Patrimônio, memória e historiografia

Todos alegres, hoje, não há duvida. Mas alguém, certa-


mente, mais alegre que todos. Alguem que entoa, a pleno,
seu triunfar, te “veni, vici”. A esse jovem cearense, cuja
a alma idealista não conheceu o desanimo no propósi-
to de fazer qual é hoje este 1º. de maio, bem cabem as
honras que a coletividade costuma tributar aos homens-
-dynamos, aos heroes da vontade, à alma decidida dos
que enfrentam a vida contra a propria vida (JORNAL O
NORDESTE, 01/05/1929, p. 04).

O jornalista Gilberto Câmara de certa forma se constitui como


um importante “construtor da memória”, pois ele, atuando dentro da
Academia Cearense de Imprensa, vislumbrou a ideia de iniciar uma
campanha de arrecadação de fundos para ereção de uma estátua em
homenagem à memória do escritor.

Para isso, viajou pelo Ceará e outros estados brasileiros, a fim de


sensibilizar instituições, personalidades políticas, empresários e in-
telectuais renomados da necessidade de homenagear e preservar a
memória de José de Alencar. Ele iniciou uma campanha pública de
arrecadação amplamente divulgada nos jornais da época. Na realida-
de, nos parece que a ação capitaneada pelo presidente da ACI reflete
a necessidade de fortalecer o campo intelectual no qual a classe de
jornalistas estava inserida.

Retomando a questão do gênero discursivo do elogio, um outro


aspecto também foi bastante destacado, José de Alencar como um
“homem de letras” exemplar. A exaltação do “homem de letras” é
muito presente, “um monumento que vai do elogio dos “grandes
homens” à construção do herói como um dos símbolos da nação,
reservando espaço entre esses para aqueles que se dedicavam às
atividades do pensamento e da escrita, identificados pela expressão
genérica “Homens de Letras”” (CATROGA, 1998, p. 340).
158
A construção da memória social de José Alencar através dos
discursos elogiosos (Fortaleza/CE, 1929)

Vejamos então alguns trechos do discurso do cearense 5Gusta-


vo Barroso durante a cerimônia de inauguração do monumento de
Alencar. Barroso representava, oficialmente, naquela ocasião, a Aca-
demia Brasileira de Letras:

Que estranho poder teve, de que força colossal dispôs este


homem que ai vêdes imortalizado no bronze eterno, chum-
bado ao granito indestrutível e cravado no coração da nobre
terra cearense como um marco millerario da imortalidade?
[...] Sim, que estranho poder teve, de que força colossal
dispôs? Porventura comandou guerreiros? Governou
esquadras? Discutiu na penumbra dos bastidores inter-
nacionais grandes questões diplomáticas? Administrou
impérios? Dominou povos? Atirou nações contra nações?
Não. Nem empenhou o spectro nem fez correr o oiro,
nem brando a espada. Manejou somente um instrumen-
to mais leve que o escopro e mais sutil que o pincel. Sua
pena descerrou os vôos da imaginação e mostrou-nos os
mundos(JORNAL O NORDESTE, 03/05/1929, p. 06).

Ao elogiar Alencar, Gustavo Barroso faz referência à importância


dos escritores. Dos homens que também merecem ser lembrados e sua
memória perpetuada assim como a dos grandes governantes e generais
que se destacaram na história. O discurso de Barroso corrobora um
processo que transformou “homens de Letras” em símbolos nacionais.

Ao pincelar pequenas gotas de tinta sobre a gigantesca tela que se


abre em torno da monumentalização de José de Alencar podemos
perceber que existe uma grande quantidade de aspectos relaciona-
dos aos mecanismos e ações ligadas ao processo de construção da
memória social de José de Alencar em Fortaleza.

Não somente os discursos elogiosos, mas outras tantas estratégias e


ações relacionadas às comemorações do centenário e vinculadas às ho-
menagens que iniciadas em 1929, seguem até os dias atuais na capital

5 Advogado, professor, político, contista, folclorista, cronista, ensaísta e romancista brasileiro.


Acadêmico da ABL, foi o primeiro diretor do Museu Histórico Nacional.
159
Patrimônio, memória e historiografia

cearense. Como por exemplo: o tombamento federal de sua casa natal,


os monumentos de Iracema, nomes de ruas e bairros, entre outras.

As formas que determinados grupos sociais construíam e preser-


vavam “monumentos” para uma memória social do povo cearense
tem na monumentalização da memória do escritor José de Alencar
um processo histórico exemplar, portanto um campo de pesquisa
que se abre e deve ser amplamente explorado.

Referências
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo, SP:
Perspectiva, 2007.
CATROGA, Fernando. “Ritualizações da história”. In: CATROGA, Fer-
nando; TORGAL, Luís Reis e MENDES, José Amado. História da his-
tória em Portugal, séculos XIX e XX. S.l., Temas & Debates, [1998],
vol. II, p. 339-348.
ENDERS, Armelle, Os vultos da nação. Fábrica de heróis e formação
dos brasileiros. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2014.
GONÇALVES, João Felipe. Enterrando Rui Barbosa: um estudo de caso
da construção fúnebre de heróis nacionais na Primeira República. Estu-
dos Históricos — Dossiê Heróis Nacionais, Rio de Janeiro, vol. 14, n.
25, 2000, p. 135-161.
GONTIJO, Rebeca. O velho vaqueano: Capistrano de Abreu, da his-
toriografia ao historiador. Tese apresentada ao programa de Pós-Gra-
duação em História da Universidade Federal Fluminense como requi-
sito parcial para a obtenção do grau de doutor na área de concentração:
história social. Niterói. 2006.
SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. Museu Imperial: a construção do
Império pela República. In: ABREU, Regina; CHAGAS, Mário (Org).
In: Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro:
DP&A, 2003.
TAUNAY, Visconde de. Reminiscências. 2 ed., Rio de Janeiro: Francis-
co Alves & Cia.,1923.

160
O Festival da Barranca (desde
1972) e os usos do passado
na elaboração do patrimônio
cultural no gauchismo
Natali Braga Spohr1

Introdução

Este ensaio faz parte dos estudos no curso de doutorado em an-


damento no Programa de Pós-Graduação em História-UFSM, na
linha de pesquisa Memória e Patrimônio, onde dedico-me a anali-
sar e escrever sobre um evento chamado Festival da Barranca, que
ocorreu ininterruptamente2, de 1972 até 2019, anualmente e sempre
na Semana Santa, no município de São Borja, Rio Grande do Sul,
nas margens do Rio Uruguai, marco de delimitação da fronteira do
Brasil com a Argentina. O evento é espaço de significativa e extensa
produção de música e poesia, e dele participam cantores, composito-
res, poetas, ficcionistas e memorialistas, além de pessoas ligadas ao
meio artístico regional, políticos e produtores rurais.

1 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa


Maria-UFSM/RS. Link do Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/6417158845525412.Endere-
ço eletrônico: [email protected].
2 A edição de 2020 do Festival da Barranca foi adiada para depois da pandemia de Coronavírus,
de modo que este foi o primeiro ano desde a criação do evento em que ele não é realizado.

161
Patrimônio, memória e historiografia

Os objetivos pretendidos neste texto dizem respeito às reflexões


acerca dos usos do passado na elaboração do patrimônio cultural no
“gauchismo”, que conforme Maria Eunice Maciel (2005) é entendido
como um termo muito genérico que indica “tudo o que se refere ao
gaúcho” — gentílico para sul-rio-grandenses e também tipo social —,
e suas implicações na contemporaneidade, de modo que, tais inferên-
cias são decorrentes das observações de um acontecimento que, por
meio século influencia e atua na construção do que é tido como patri-
mônio cultural nestes lados mais meridionais do Brasil, pois eventos
culturais como o Festival da Barranca são (re)definidores de ideários
e de pertencimento coletivo, uma vez que neles são vivenciados com-
portamentos, ideias, símbolos e práticas sociais, enfim, um amálgama
que faz parte da formação da cultura de uma determinada sociedade.

A construção do mito, o festival da barranca e


a patrimonialização

Na entrada do século XX, a consolidação da república no Brasil


trouxe a busca pela definição de uma identidade nacional e nesse ín-
terim, os regionalismos passam a ser evidenciados. No caso do Rio
Grande do Sul, a mística do “centauro dos pampas”, a obra do escri-
tor e jornalista Araújo Porto Alegre, a criação do Instituto Histórico e
Geográfico do Rio Grande do Sul - IHGRGS em 1920, a literatura de
Simões Lopes Neto e de Dante de Laytano, são as bases para as inves-
tidas dos secundaristas Luiz Carlos Barbosa Lessa, João Carlos Dávila
Paixão Cortes e Glaucus Saraiva, criarem posteriormente, em 1966, o
Movimento Tradicionalista Gaúcho, o MTG. Para Tau Golin (1983), o
tradicionalismo pode até ser inserido dentro da cultura popular, mas é
produzido pela elite latifundiária e agropastoril, que por deter poten-
cial de dominação, influencia as manifestações culturais e deste modo,
somente representa a realidade de uma minoria oligárquica.
162
O Festival da Barranca (desde 1972) e os usos do passado na elaboração
do patrimônio cultural no gauchismo

Quando acionamos identidades que remetem às tradições do


gauchismo, de acordo com Oliven (1992; 1992b), não escapamos
do arquétipo da campanha gaúcha, localizada na região sudoeste
do Rio Grande do Sul e que faz fronteira com o nordeste argentino
e com o norte uruguaio, assim como do gaúcho, tipo social hu-
mano, habitante típico desta região, e segundo Leal (1992, p. 148),
“gaúchos são necessariamente homens, e virilidade é condição de
ser gaúcho. O gaúcho tem o domínio sobre o selvagem, identifican-
do a si próprio com o selvagem, com a força, com poder e natureza”.

Neste contexto, os espaços de produção de significados, como o


galpão e a estância são lugares onde tradicionalmente se elaboram
noções do que é ser homem, e sobretudo, do que é ser gaúcho. No
folclore da cultura gaúcha, como por exemplo no mito da Salamanca
do Jarau3, fica evidenciada uma sociedade onde a segregação entre o
masculino e o feminino tem contornos estruturais. Em suma, na nar-
rativa, a sedutora princesa — salamandra é também uma caverna es-
cura que devora homens; o homem gaúcho, herói desta história, deve
resistir aos vários acontecimentos, todos perigosas, mas ao mesmo
tempo, fascinantes (LEAL, 1989, p. 2009; 2012).

Nas décadas de 70 e 80 do século XX, os festivais nativistas pas-


sam a fazer parte da sociedade no Rio Grande do Sul, muito por
conta das já citadas iniciativas anteriores. O primeiro dos festivais
foi a Califórnia Canção Nativa, cuja edição inicial ocorreu em de-

3 “Em tempos remotos, na terra dos espanhóis, do outro lado do mar, havia uma cidade chama-
da Salamanca, onde os mouros eram mestres nas artes da magia e em uma caverna escura eles
guardavam uma vara de condão mágica que era também uma fada velha e uma bela princesa
moura. Depois de muitas guerras, os mouros, fingindo ser cristãos, vieram para os pampas. A
princesa Salamanca, na forma de vara de condão, encontra anhangá-pitã e outras divindades
e figuras míticas indígenas e se transforma em teiniaguá, uma salamandra ou uma lagartixa
fêmea mítica. A teiniaguá muda sua forma, de bela princesa em salamandra: de uma bela filha
de um chefe Guarani em uma serpente. Ela seduz os homens e vive dentro da montanha do
Jarau, em uma gruta escura na qual estão guardados tesouros mouros. Os homens aos quais ela
seduz entram na caverna, jamais retornam da caverna escura do Jarau. Aos gaúchos que vão ao
Jarau ela diz: “eu sou a princesa moura encantada que tem o conhecimento secreto e que faz
feliz aos poucos homens que sabem que a alma é um peso entre mandar e ser mandado [...].
Os homens temem e me desejam porque eu sou a rosa dos tesouros escondidos dentro da casa
do mundo.” (cf. LOPES NETO, 2011 [1912]).
163
Patrimônio, memória e historiografia

zembro de 1971, na cidade de Uruguaiana, distante em torno de du-


zentos quilômetros de São Borja, município em que ocorre o Fes-
tival da Barranca. Inspirados pelo festival pioneiro, Apparício Silva
Rillo, José Lewis Bicca, Antonio Augusto Fagundes (Nico Fagun-
des) e Carlos Castilhos, ou como muitos ouviram deles, “um espíri-
to”, criou/criaram a Barranca, como também é chamado o festival.

E aí aconteceu. Por acaso, repito, contrariando os racio-


nalistas. A gente estava no “Pesqueiro da Bomba”, no Rio
Uruguai, na Semana Santa de 1972. Havia tomado umas
que outras, alguém falou na Califórnia da Canção aconte-
cida em primeira edição no dezembro anterior, em Uru-
guaiana, quando uma voz (acho que do Passaronga, outros
acham que outro, há quem jure que de um espírito) suge-
riu: - E se a gente fizesse o nosso festival? Aqui mesmo, no
improviso, na barranca do rio?... (RILLO, 1985, n.p.).

Mesmo que o acampamento já inicie na metade da Semana


Santa, o tema proposto aos compositores é conhecido na noite de
sexta-feira, para ser apresentado na noite de sábado, de modo que
os participantes têm vinte e quatro horas para elaborar a obra. As
premiações são, Cigarra de Acampamento, para aquele que canta
por mais tempo e anima o grupo; O Comendador, para quem al-
cançar um alto grau alcoólico, porém sem ser qualificado como um
“borracho” inconveniente; Troféu Quá Quá, premia a música irre-
verente e com humor; Troféu Sérgio Jacaré, para a melhor letra e
Troféu Apparício Silva Rillo, ao primeiro lugar. Ainda, na Barranca
há uma moeda própria, chamada de “manduca”, em homenagem a
Cláudio Oraindi Rodrigues, primeiro jurado do festival.

Como disse Homi K. Bhabha (1998), a cultura é construída e


a tradição, inventada. A tradição do Festival da Barranca foi es-
tabelecida pelos usos do passado no decorrer do tempo e durante
quase meio século, mesmo que gêneros e estilos artísticos se mis-
turaram e evoluíram o evento mantém o modelo adotado desde a
164
O Festival da Barranca (desde 1972) e os usos do passado na elaboração
do patrimônio cultural no gauchismo

primeira edição, é restrito aos convidados, em média de trezentos


ao ano e, a proibição da participação das mulheres. Ressalta-se
que as obras produzidas durante as edições permanecem inéditas
ao final do evento, uma vez que as músicas e as poesias não são
registradas em gravações.

Em A Invenção das Tradições, Eric Hobsbawm e Terence Ran-


ger (1997, p. 9) estabelecem um conceito para tradição, onde
apontam que a ideia de recorrência presente tanto nas tradições
inventadas ou recriadas são dispositivos acionados com o intuito
de tornar a prática crível enquanto legado.

O termo “tradição inventada” é utilizado num sentido am-


plo, mas nunca indefinido. Inclui tanto as “tradições” real-
mente inventadas, construídas e formalmente instituciona-
lizadas, quanto as que surgiram de maneira mais difícil de
localizar num período limitado e determinado de tempo —
às vezes coisa de poucos anos apenas — e se estabeleceram
com enorme rapidez. [...] Por “tradição inventada” entende-
-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por re-
gras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza
ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas
de comportamento através da repetição, o que implica, au-
tomaticamente; uma continuidade em relação ao passado.

O Festival da Barranca é considerado uma manifestação de re-


levância cultural do Rio Grande do Sul e integra o Calendário
Oficial de Eventos do Estado (Lei 14.850/2016). Em 29 de março
de 2018, o prefeito de São Borja assinou a Lei 5.332 que institui
o Festival da Barranca como Patrimônio Cultural Imaterial do
município e em 21 de maio de 2019, os deputados estaduais do
Partido Democrático Trabalhista (PDT), Eduardo Loureiro e Luiz
Marenco, protocolaram na Assembleia Legislativa o projeto de lei
que declara o Festival da Barranca como integrante do Patrimô-
nio Cultural Imaterial do Rio Grande do Sul.
165
Patrimônio, memória e historiografia

François Hartog, no texto intitulado Tempo e patrimônio, publi-


cado em 2006 no Brasil, reflete sobre o movimento de patrimonia-
lização e o compreende como uma crise de tempo vivenciada pela
sociedade contemporânea, e o que resulta disso é um olhar museo-
lógico sobre aquilo que nos cerca. Nesta perspectiva o patrimônio
“define menos o que se possui, o que se tem e se circunscreve mais
ao que somos, sem sabê-lo, ou mesmo sem ter podido saber. O pa-
trimônio se apresenta então como um convite à anamnese coletiva”
(HARTOG, 2006, p. 6). Porém, como ressalta Hartog, esse apreço
pelo passado não reforça uma identidade segura de si, mas uma
identidade que arrisca a se apagar ou a ser completamente apagada.

Os usos do passado e o anacronismo do mito

No gauchismo, a ideologia do masculino, do heroico, do galpão e


da estância são tidos como representativos dessa identidade. Trata-se
do discurso dominante, o qual manifesta que os usos da memória no
presente resultam no fato de que “certas identidades têm sido histori-
camente silenciadas e desautorizadas no sentido epistêmico, e outras
são fortalecidas” (COLLINS, 2016 apud RIBEIRO, 2017, p. 25). O que
de acordo com Foucault (2016), significa que esse discurso é um sis-
tema que estrutura determinado imaginário social, pois falamos de
poder e de controle, “de deixar viver ou de deixar morrer”, no sentido
de que a invisibilização, também mata.

Para Guazzelli (2018), a cultura do gauchismo manifesta “um pas-


sado em que as mulheres estiveram sempre imiscuídas nas relações
sociais de lugares onde predominam imagens de virilidade” (p. 243),
como se esse passado se constituísse, conforme apontado por Maciel
(2001) numa “garantia de veracidade”, pois é nele que são buscados os
elementos que marcarão ou definirão uma dada identidade, de modo
que nele “antiguidade” e “autenticidade” se confundem.
166
O Festival da Barranca (desde 1972) e os usos do passado na elaboração
do patrimônio cultural no gauchismo

Acerca disso, a violinista e etnomusicóloga Clarissa Ferreira (2016),


no texto intitulado Até quando só eu lírico masculino? Sobre o Festival
da Barranca e a proibição de mulheres há 45 anos, expressa:

Somos excluídas dessa e muitas outras vivências. A nós,


mulheres, só nos cabe como nos poemas e músicas gaú-
chas, esperar em casa e admirar tão grande feito masculi-
no. Apesar de não vivermos mais no século XIX, as ideias
ainda permanecem e as situações se repetem. Ainda con-
tinuamos a esperar que os homens nos deem licença ou
permissão para que possamos nos expressar. A liberdade
da mulher, o direito de ir e vir feminino nas veredas da
música gaúcha só vai ainda até onde os homens permitem.

Em 2017, Shana Müller, cantora e apresentadora do programa


Galpão Crioulo, exibido pela RBS TV, filial da Rede Globo, escreve
para o site do programa um ensaio onde reflete sobre o texto de Cla-
rissa Ferreira e dentre os vários desabafos, expressa: “não faz muito
que tomamos mate no galpão e deixamos a cozinha” e sentencia, “não
sou china, nem égua, nem quero que o velho goste”. Dentro deste
contexto, Clarissa Ferreira, no ano de 2018, publica em seu canal no
YouTube, chamado Gauchismo Líquido, a canção Manifesto Líquido4,
onde aborda as questões feministas dentro da cultura do gauchismo.

eu que me renda
desse destino de prenda
contemporânea gueixa gaucha
dar-se feito oferenda
contam em mito e lenda
argumentos que repreenda
numa tapera ou casca
onde o espaço compreenda
a essência do cair da lágrima
consentem ser matéria prima
terços, costuras, rendas
donas de esperas
tudo que oprima
aquele ingênuo protótipo campesina

4 Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=H17vxkapfHI&gt Acesso em: 01 maio 2019.


167
Patrimônio, memória e historiografia

livres galopam centauros


não há atenção que se prenda
(como no olhar da Salamanca pela fenda)
nesse mito ocidental cansado de um caubói,
um “gaucho” ou um cossaco semi bárbaro
anti intelectual
mais dos mesmos arquétipos
estilo patriarcal
os anos (re)inventam verdades
o tempo modifica os cultos
mantêm fôrmas de vaidades
antigo dogma oculto
defendido como tradicional
opressores oprimindo doma (ir)racional
simbólicas atrocidades
inventando adjetivos
tendo prenda como regalo
suprimento narcísico do peão
dona de um corpo não seu
sem discussão
que hoje se narra
dispensa homenagens de autopromoção
interesseira confissão
romântica agressão
harmonizada dominação
simbólica submissão
trocadilhos de coisificação
prenda tem voz!
conteúdo que adenda
cerne que acenda
sapiência que não omito
trago e evoco noutro mito
medo masculino antigo
deusa Métis intuição!

Clarissa Ferreira (2019), ao refletir sobre sua arte, relata


“atualmente eu defino minha música como um pós-gauchismo.
Acho que é uma apropriação dessa música [gauchesca], afinal, eu
também faço parte dela, também quero falar sobre ela. Também
quero tocar milonga e chacareira”, uma vez que, conforme Djami-
la Ribeiro (2017), quando nos referimos a lugar de fala, falamos
de locus social, ou seja, de localização social, daí a importância
de acreditar na quebra do silêncio instituído e de questionar os
168
O Festival da Barranca (desde 1972) e os usos do passado na elaboração
do patrimônio cultural no gauchismo

limites da representação, bem como de criar espaços de autorre-


presentação, e sobretudo, lugares de enunciação e cumplicidade.
Pois falar significa, para além de emitir palavras, poder existir.

Miguel Bicca5, justifica que seria complicado organizar o even-


to para mais de trezentas pessoas, referindo-se às mulheres que
fossem acompanhar os convidados do Festival da Barranca, o
que demonstra aquilo que foi observado por Simone de Beauvoir
(1949 apud RIBEIRO, 2017) “a mulher não é definida em si mes-
ma, mas em relação ao homem e através do lugar do homem”.

O ambiente da Barranca é muito descontraído, despreo-


cupado, todo mundo aproveitando o festival, então muitas
vezes a gente vê um cara que já está meio bêbado, urinar
atrás de uma árvore, ao invés de ir ao banheiro, e essa si-
tuação ficaria complicada se tivessem mulheres no festival.

Tau Golin (1987, p. 129), professor e jornalista, que participou de


algumas edições do evento, escreve na obra Por baixo do poncho: con-
tribuição à crítica da cultura gauchesca, que a Barranca é uma catarse,

Bebe-se enquanto o fígado aguentar; come-se (com condi-


mentos variados), até adquirir o direito de passar a semana
seguinte enfastiado e pedinte de sopinhas; canta-se, como
se o desafio fosse quem, nesse calhandar-se, não fica afôni-
co. Pouco se dorme. A regra é aproveitar o máximo.

Nessa mesma obra, Tau Golin pontua que como “acontecimento


‘fechado’, menos de uma centena de homens passam a ser a referência
(esse estado se corrige, ou as minorias vão estar sempre na ribalta)” e
prossegue, pois mesmo que “contem, revelem, expliquem, para o gran-
de público, o festival está envolto numa mística” (Idem, p. 128) e ainda
mais sob à luz de questões trazidas pelo contexto da “modernidade

5 Miguel Bicca, irmão de José Lewis Bicca. Ver: VIGNA, R. Festival da Barranca, um marco da
música regional gaúcha. Jornal do Comércio, 26 abr. 2019. Disponível em:http://www.jornal-
docomercio.com/_conteudo/especiais/reportagem_cultural/2019/04/680833-festival-da-bar-
ranca-um-marco-da-musica-regional-gaucha.html&gt Acesso: 27 abr. 2020.
169
Patrimônio, memória e historiografia

líquida” (BAUMAN, 1998) em torno do fato de o Festival da Barranca


ser um evento sexista, o evento figura como um dos mais representa-
tivos acontecimentos onde se elabora o patrimônio cultural gaúcho.

Diante disso, de acordo com Hall (2006, p. 29), considera-se que


“os mitos fundadores são por definição trans históricos: não apenas
estão fora da história, mas são fundamentalmente a-históricos. São
anacrônicos e têm a estrutura de uma dupla inscrição. Seu poder
redentor encontra-se no futuro, que ainda está por vir”. E quiçá este
futuro, com o decorrer dos processos históricos e das mudanças
provenientes dos diálogos, e assim como indica Ribeiro (2017), no
exercício de deslocamento do pensamento hegemônico e da ressig-
nificação das identidades, sejam de raça, gênero, classe, seja possí-
vel, então, construir novos lugares de fala.

Conclusões preliminares

Com a contemporaneidade, questões como a hibridização cul-


tural e as pautas feministas ficam evidenciadas e suscitam pergun-
tas, como onde se encaixam aqueles que não são representados pela
masculinidade? E em tempos de empoderamento feminino, como
identificar-se com um espaço ou patrimônio “proibido”? Questões
tais, que a partir de incursões como a que se buscou realizar atra-
vés do trabalho empreendido, permitem pensar sobre a construção
das identidades e a legitimação delas como representativas. Assim,
este ensaio atua na tentativa de “revisar as pedagogias nacionalistas
ou ‘nativistas’” (BHABHA, 1998, p. 241) e, portanto, numa perspec-
tiva pós-colonial, busca analisar os usos do passado na elaboração
do gauchismo e consequentemente, do patrimônio cultural gaúcho.
Como Foucault e Ribeiro, entende-se que é fundamental pensar a
existência de um sistema de poder que inviabiliza, impede e invalida
os saberes produzidos por grupos subalternizados.

A cultura tem por condição sine qua non ser produção irregular
e incompleta, ademais de que, no contexto em análise, o anacro-
170
O Festival da Barranca (desde 1972) e os usos do passado na elaboração
do patrimônio cultural no gauchismo

nismo do mito e a figura desistorizada do outro, tornam a cultura,


por vezes, desconfortável. Ainda mais quando ocorre a institucio-
nalização dessa cultura como representativa através dos patrimô-
nios oficializados, os quais deveriam tentar contemplar o maior
número de pessoas e não privilegiar discursos uníssonos (ou se-
riam caducos?). Pois assim como Nestor Canclini (1994), que por
ocasião de seus estudos sobre o patrimônio cultural e a construção
do imaginário nacional no México, num momento em que as ciên-
cias sociais vivenciavam uma reconceitualização, considera-se que
o patrimônio deveria se portar “em oposição a uma seletividade que
privilegia os bens culturais produzidos pelas classes hegemônicas”.

Finalmente, é mister tomar o patrimônio como uma arena de


acordos e conflitos de valores, avaliações e proposições, que expli-
citem que ele é, além de uma construção social, uma prática emi-
nentemente política. Neste contexto, pensar para quem é o patri-
mônio, mesmo em meio às lembranças e aos esquecimentos que o
transpõem, se constitui numa maneira de exercitar a democracia e a
compreensão que há uma pluralidade de narrativas identitárias que
fazem parte da nação, e assim, poder atuar num sentido a promover
a descolonialização dos patrimônios, uma vez que a imagem desta
nação está a todo tempo sendo redimensionada, reescrita e repensa-
da e para tanto, sublinha-se a importância do trabalho historiográfi-
co para a reconstrução dessas narrativas.

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Gama e Cláudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. Título origi-
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Patrimônio, memória e historiografia

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173
As concepções de “Cultura
Popular” no Projeto Literatura
de Cordel do Centro de
Referência Cultural do Ceará -
CERES (1975-1990)
Ulysses Santiago de Carvalho1

Introdução

Na construção do território cearense, a denominada poesia


popular foi, recorrentemente, evocada como um elemento de
representatividade da sua cogitada identidade cultural. Recente-
mente, por exemplo, no ano de 2018, a declaração da literatura de
cordel como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil, feita pelo
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN),
apresentou o Ceará como um dos núcleos mais importantes de
produção e consumo dessa manifestação artístico-popular.

Dessa forma, neste texto, trataremos das significações atribuí-


das à chamada literatura de cordel na sua figuração, pelo Centro
de Referência Cultural do Ceará — CERES (1975-1990), como
símbolo da “cultura cearense”. Além disso, analisaremos, sucin-

1 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) da Universidade Federal do


Ceará (UFC). Pesquisa financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq). Endereço eletrônico: [email protected].

175
Patrimônio, memória e historiografia

tamente, as concepções de “cultura popular” dos intelectuais do


CERES que embasaram essas significações do cordel, consideran-
do os deslocamentos de sentidos, ao longo do século XX, dessa
expressão, já explicitados por autores como Rocha (2009).

Portanto, a exemplo de Durval Muniz de Albuquerque (2013),


nos propomos, brevemente, a problematizar e desnaturalizar a con-
sagração de identidades culturais regionais analisando a atuação de
estudiosos do campo de conhecimento acerca da cultura das classes
populares. Pretendemos, afinal, como sugere Koselleck (2006, p.
104), historicizar as referências conceituais do CERES, com os seus
usos políticos, para apreendermos, ao menos parcialmente, alguns
dos “espaços de experiência” e “horizontes de expectativa” do pe-
ríodo de término da Ditadura Civil-Militar (1964-1985) do Brasil.

A instrumentalização do campo da cultura


pelo estado e a implantação do ceres

O Centro de Referência Cultural do Ceará (CERES), órgão vinculado


à Secretaria de Cultura do Estado do Ceará (SECULT), funcionou, apro-
ximadamente, entre 1975-1990. Sob a justificativa de preservar a memó-
ria dos cearenses, supostamente ameaçada por determinados fatores da
“modernidade”, promoveu inventariações e estudos sobre as manifesta-
ções artísticas da designada “cultura popular”. Esses trabalhos, dentro
da história das ações preservacionistas direcionadas às expressões artís-
tico-culturais das classes populares cearenses, particularizaram-se pela
maior preocupação em registrar não apenas os produtos, mas sim os
processos criativos dos detentores dos bens culturais.

Em seu tempo de funcionamento, o CERES foi composto por


um grupo de intelectuais que se modificou constantemente. Des-
se conjunto, participaram indivíduos com formações acadêmicas,
profissionais e/ou políticas bastante diferenciadas entre si, como
Oswald Barroso, Rosemberg Cariry, Sylvia Porto Alegre, Edvar
176
As concepções de “Cultura Popular” no Projeto Literatura de Cordel do Centro
de Referência Cultural do Ceará - CERES (1975-1990)

Costa, Roberto Aurélio Lustosa, Maurício Albano, José Carlos Mat-


tos e Otávio Menezes. A esses membros efetivos, é imprescindível
salientar que se juntaram ainda importantes colaboradores, como
Gilmar de Carvalho e Francisco de Sousa Nascimento.

Esses intelectuais desenvolveram as atividades do CERES a partir de


três projetos. O primeiro, nomeado de Projeto Artesanato, selecionou
cidades cearenses, tanto do interior quanto do litoral2, para que nelas
realizasse o registro de objetos feitos artesanalmente, à base de couro,
palha, barro, ferro ou madeira, como a xilogravura. Ademais, para com-
preender o saber-fazer inerente aos artesãos, analisou e documentou
também suas conjunturas socioeconômicas.

No Ceará, tais registros foram pioneiros em virtude do uso de instru-


mentos audiovisuais. Além de anotações e até mesmo questionários, o
CERES documentou o “meio popular” através de fotografias, captações
sonoras e vídeos. Esperava-se transpor para esses materiais, tidos como
imperecíveis, o estado vigente da “cultura popular”, antes que esta, por
interferência de algumas circunstâncias históricas, como o avanço da ur-
banização, da indústria cultural e da globalização, fosse reestruturada e
perdesse um presumido caráter tradicional.

Contínuo ao Projeto Artesanato, e adotando os mesmos procedi-


mentos, surgiu o Projeto Literatura de Cordel. Assente no objetivo geral
de “registrar a situação atual e levantar subsídios para uma política de
defesa, preservação e promoção da literatura de cordel”, o Projeto Litera-
tura de Cordel possuía sete objetivos específicos, dos quais destacamos:

[...] - Identificar as raízes da literatura de cordel no Nordes-


te; - Levantar o estado atual do processo de criação desse
gênero literário no Ceará, quanto aos poetas e xilógrafos
em atividade; e ao acervo de livretos em circulação, classifi-
cando-os segundo a temáticas e formas poéticas; - Verificar
o quadro de editoras e gráficas, pessoal ocupado e processo

2 Dentre os locais percorridos, constam, em publicação do Jornal O Povo, de 1979, a respeitos


dos trabalhos do CERES, os municípios de Aquiraz, Beberibe, Cascavel, Viçosa, Tianguá, São
Benedito, Ibiapaba, Guaraciaba do Norte, Crateús, Sobral, São Luiz do Curu, Quixadá, Maran-
guape, Barbalha, Jaguaruana, Canindé, Caridade e Fortaleza. Ver: JORNAL O POVO. Pesquisa
Cultural no Ceará — Um Caminho que o Ceres Encontrou. Fortaleza, 14 jan. 1979.
177
Patrimônio, memória e historiografia

de impressão utilizados na editoração das obras; - Levantar


a situação dos direitos autorais e do sistema de comerciali-
zação, quanto às formas como esta se realiza, pessoal ocu-
pado e público atingido [...] (CEARÁ, 1976, p. 2).

Esse levantamento se explicaria pela ausência de pesquisas sobre


as condições de existência dos “cordeis cearenses”, gênero literário
que, lamentavelmente, estaria perdendo sua autenticidade por culpa
dos modernos aparelhos de comunicação:

No Estado do Ceará ainda não houve um estudo sobre


a literatura de cordel, mesmo sabendo-se que significa
uma das formas de expressão popular. Por outro lado, é
sabido que os modernos meios de comunicação de massa
exercem influência [...] que deforma a originalidade da li-
teratura de cordel, sendo justo medidas necessárias à sua
defesa (CEARÁ, 1976, p. 3)

Dessa forma, para a efetuação do Projeto Literatura de Cordel,


a equipe do CERES dirigiu-se, exclusivamente, para as cidades de
Juazeiro do Norte, Barbalha e Crato, pertencentes à região Cariri. A
limitação a essa área deveu-se, sobretudo, à presença da Tipografia
São Francisco, criada desde a década de 1930, por José Bernardo
da Silva. A gráfica juazeirense, graças a proeminência na impressão
de folhetos, principalmente na década de 1950, com o espólio de
João Martins de Athayde, e, conforme demonstra Rosilene Alves
de Melo (2003), por ser também um espaço de formação de corde-
listas e editores, ajudou a notabilizar a zona sul do Ceará como um
exímio território de produção e consumo de cordéis.

A pesquisa de campo nessa área resultou, então, na coleta de mais


de 700 exemplares de folhetos, na rodagem de filmes curtos e na entre-
vista de poetas, editores e vendedores. Além disso, o CERES montou
uma pequena biblioteca, especializada em literatura popular em verso
do Nordeste, e estabeleceu contatos com outros estudiosos ligados à
temática, como os da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
178
As concepções de “Cultura Popular” no Projeto Literatura de Cordel do Centro
de Referência Cultural do Ceará - CERES (1975-1990)

Em 1978, o Projeto de Difusão da Literatura de Cordel, adja-


cente ao Projeto Literatura de Cordel, pretendeu divulgar o ma-
terial cordelístico coligido, objetivando possibilitar “a pesquisa e
o estudo, em seus diversos níveis, das diferentes manifestações da
literatura popular nordestina” (CEARÁ, 1978, p. 1). O trabalho difu-
sor se daria com a preparação de eventos e a distribuição de publica-
ções do próprio CERES a instituições estudantis ou entidades de pes-
quisa; não à toa, o interesse do plano em atingir, como público-alvo,
“estudantes do nível médio e universitários que lidem com o assunto”
e “pesquisadores e estudiosos em geral” (CEARÁ, 1978, p. 8).

Após a execução do Projeto Literatura de Cordel, sucedeu-se ainda,


no final da década de 1980, a terceira e última empreitada do CERES:
o Projeto Festas e Folguedos. Na ocasião, os esforços, já muito redu-
zidos, acima de tudo por falta de verbas, concentraram-se no registro
das comemorações, especialmente as de cunho religioso, e das danças
dramáticas cearenses, que não deixou, a propósito, de se atentar aos
modos de vida e às significações dadas pelos organizadores e brincan-
tes a essas manifestações culturais. Assim, foram documentados, por
exemplo, a Festa de Nossa Senhora das Dores, de Juazeiro do Norte; a
Festa de São Francisco, de Canindé; e o Bumba-Meu-Boi, de Fortaleza.

De acordo com o historiador Antonio Gilberto Ramos Nogueira,


havia uma correlação entre o CERES e o Centro Nacional de Refe-
rência Cultural (CNRC), também de 1975:

Essa ideia de inventariar e registrar a memória da cultura


popular, almejando alcançar as condições sociais de pro-
dução e o processo criativo, tem sua versão estadualiza-
da no Centro de Referência Cultural do Ceará — CERES
(1975-1990). À semelhança do CNRC, surge motivado
pelo alarde de que “a cultura popular corria perigo”. Diante
da ameaça de descaracterização do artesanato, em meio às
influências externas, demandas mercadológicas e cursos
de formação de artesãos, surgiu a necessidade de promover
o registro do saber-fazer popular e da memória da cultura
tradicional popular do Estado (NOGUEIRA, 2014, p. 58).
179
Patrimônio, memória e historiografia

Acalentado pelo designer pernambucano, Aloísio Magalhães, o


CNRC, sob a égide do Ministério da Indústria e do Comércio (MIC) e
da Universidade de Brasília (UNB), tencionou, por intermédio dos seus
programas de Mapeamento do Artesanato Brasileiro, Levantamento
Sociocultural, História da Ciência e da Tecnologia do Brasil e Levan-
tamento da Documentação Sobre o Brasil, perscrutar as referências
culturais dos produtos brasileiros, sobretudo artesanais, em meio ao seu
dinamismo. Com as informações, prontamente disponibilizadas a em-
presas, projetos e estudiosos em geral, visava-se aperfeiçoar as técnicas
brasileiras para a elaboração de planos econômicos que permitissem um
“desenvolvimento harmonioso” entre o “moderno” e o “tradicional” e,
desse modo, impedissem uma “invasão” da indústria estrangeira.

Os trabalhos do CNRC, endossando uma ideia de cultura desestag-


nada, viva e múltipla, exploraram e registraram, com expertos de várias
áreas e equipamento de audiovisual, processos de produção de utensílios
artesanais, sobretudo aqueles relacionados à subsistência da população
mais pobre. A pesquisa seria útil não apenas para empilhar amostras de
peças artesanais em benefício do provimento de um identitarismo na-
cionalista, mas para conhecer e investir em suas etapas de criação, con-
siderando e acatando sempre as necessidades e as opiniões dos artífices.

À semelhança do CNRC, portanto, o CERES, ao privilegiar a in-


vestigação do processo criativo das manifestações artístico-popula-
res, evidenciando a atuação e os sentidos de seus detentores, operou
com uma concepção de cultura mutável e atualizável, isto é, como
uma dimensão definida e redefinida historicamente. Além disso, a
averiguação do status socioeconômico dos artistas populares serviria
para a identificação de atividades econômicas simples a receberem
fácil investimento governamental e serem transformadas, sobretudo,
em atrativos para o turismo cultural do Ceará.

Esse aproveitamento econômico da esfera cultural foi característica


marcante do contexto histórico de emergência do CERES, constituindo-
180
As concepções de “Cultura Popular” no Projeto Literatura de Cordel do Centro
de Referência Cultural do Ceará - CERES (1975-1990)

-se, de fato, em políticas públicas da Ditadura Civil-Militar (1964-1985)


do Brasil. A Política Nacional de Cultura (PNC), implantada em 1975,
durante o governo de Geisel (1974-1979), associou fortemente, por
exemplo, o desenvolvimento cultural ao econômico do país:

O atual estágio do desenvolvimento brasileiro não pode


dispensar a fixação de objetivos culturais bem delineados.
O desenvolvimento não é um fato de natureza puramente
econômica. Ao contrário, possui uma dimensão cultural
que, não respeitada, compromete o conjunto. A plenitude
e a harmonia do desenvolvimento só podem ser atingidas
com a elevação da qualidade dos agentes do processo que
a integram (BRASIL, 1975, p. 9).

Desse jeito, o impulso a um mercado nacional de bens simbólicos,


inclusive com o auxílio da chamada indústria cultural, ambicionava,
entre outros fins, o incremento da arrecadação monetária de cidades,
notadamente aquelas com deficiências orçamentárias, e a amenização
das disparidades econômicas entre as regiões brasileiras. A nível esta-
dual, observamos o Plano de Desenvolvimento Econômico do Ceará -
PLANDECE (1975), procurando, também com o usufruto econômico
do domínio cultural, a solução para problemas pecuniários similares.

Dividido com propostas para cada departamento governamental,


o PLANDECE, implementado no mandato de Adauto Bezerra (1975-
1978), reservou significativas funções à Cultura. Dentre elas, citamos
a reafirmação de uma identidade cearense e a obtenção de lucros com
elementos do patrimônio cultural ou do folclore. Foi para o atendi-
mento dessas e de outras demandas, portanto, que nasceu o CERES.

Por detrás dessa aplicação econômica do âmbito cultural, é in-


dispensável salientarmos ainda a subsistência de uma vontade, por
parte do regime civil-militar, em fomentar um nacionalismo que
possibilitasse, como já explanou Marilena Chauí (2014, p. 85), uma
integração nacional que, por sua vez, asseguraria uma hipotética se-
gurança nacional contra adversários ideológicos do poder público.
181
Patrimônio, memória e historiografia

O nacionalismo induzido pela administração civil-militar, forja-


do, principalmente, pelo Conselho Federal de Cultura (CFC), ins-
talado em 19663, fundamentou-se em uma acepção de cultura não
acumulativa, porém essencialista. Exaltando a mestiçagem do “povo
brasileiro”, assumida de maneira mais positiva desde os primeiros
governos de Getúlio Vargas (1930-1945), a essência dessa cultura so-
breviria da sociabilização, ocorrida durante o período colonial, entre
brancos, negros e indígenas. Na contemporaneidade, essa essência se
acharia, particularmente, em uma idealizada “cultura popular”, per-
cebida como guardiã de uma tradição. Nessa perspectiva, portanto,
em sua proteção, a cultura brasileira seria objeto de um rígido con-
servacionismo, que almejaria deixar intacta sua conjecturada áurea.

Como veremos a seguir, em oposição, justamente, à direção ci-


vil-militar, alguns intelectuais do CERES, como Oswald Barroso4 e

3 O Conselho Federal de Cultura foi uma comissão deliberativa, cujas finalidades eram, sobretudo,
engendrar as políticas públicas culturais, reaparelhar órgãos estaduais e municipais de cultu-
ra, encorajar a criação de conselhos congêneres nos estados, ofertar financiamentos e levantar
campanhas. Aglutinando intelectuais de perfil mais conservador, provenientes de instituições
como o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e a Academia Brasileira de Letras, o CFC se
incumbiu, a partir das suas câmaras de Letras, Artes, Ciências Humanas e Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional, de configurar uma cultura “oficial”, apta a satisfazer as vontades políticas
da gestão pública civil-militar. Dentre os intelectuais que compuseram a primeira delegação do
CFC, destacamos os nomes de Gilberto Freyre e Manuel Diégues Júnior, na câmara de Ciências
Humanas; Ariano Suassuna, na de Artes; Afonso Arinos, Rodrigo Mello Franco e Pedro Calmon,
na de Patrimônio; Josué Montello, Rachel de Queiroz e Guimarães Rosa, na de Letras.
4 Nascido em Fortaleza, a 23 de dezembro de 1947, Raimundo Oswald Cavalcante Barroso, filho
de Antônio Girão Barroso, possui graduação, de 1986, em Comunicação Social; mestrado e
doutorado, de 1997 e 2007, em Sociologia; e pós-doutorado em Teatro, de 2014. A essa car-
reira acadêmica, Oswald Barroso atrelou uma artística, dedicada às artes plásticas, à poesia e,
sobretudo, ao teatro. Suas obras, de modo geral, refletiram sobre a “cultura popular cearense”, o
potencial político da “arte popular”. Em meados da década de 1960, ainda como secundarista,
inseriu-se em grupos de esquerda, envolvendo-se, principalmente, em ações educativas, de
instrução política, destinadas às associações de trabalhadores rurais e urbanos. Como mili-
tante político, primeiramente pela Ação Popular (AP) e, depois, pelo Partido Comunista do
Brasil (PCdoB), sofreu com as prisões causadas pela atroz repressão da Ditadura Civil-Militar
(1964-1985). Na mais agonizante de suas detenções, ocorrida em 1974, quando dirigia uma
célula do PCdoB em Recife, ficou enclausurado por meses, padecendo com cruéis torturas.
Na década de 1990, tornou-se gestor cultural, atuando, por exemplo, como diretor do Teatro
José de Alencar, de 1990-1992, do Teatro Boca Rica, de 1995-2002, e do Museu da Imagem e
do Som - Ceará, de 1999-2002. Dentre os seus livros, destacamos Almanaque Poético de Uma
Cidade do Interior (1982), Histórias Populares — Teatro (O Reino da Luminura) e Literatura
de Cordel (1984), Romeiros (1989), Reis de Congo (1997), Memória do Caminho (2006), Entre
Risos, Ritos e Batalhas (2012) e Ceará Mestiço (2019).

182
As concepções de “Cultura Popular” no Projeto Literatura de Cordel do Centro
de Referência Cultural do Ceará - CERES (1975-1990)

Rosemberg Cariry5 , defenderam outras compreensões a respeito da


“cultura popular”, bem como dos métodos de sua salvaguarda. Pode-
remos apreender esses outros entendimentos avaliando os dois volu-
mes da Antologia da Literatura de Cordel (1978/1980), pertencentes
ao programa de publicações do CERES6, e o livro Cultura Insubmissa
(1982), lançado, exclusivamente, por Barroso e Cariry.

As concepções de “cultura popular” nas


publicações dos intelectuais do ceres e os usos
da literatura de cordel no combate à ditadura
civil-militar

A Antologia da Literatura de Cordel (1978/1980), a partir da com-


pilação de cordéis eleitos como mais representativos, desejou cons-
truir uma memória e firmar uma identidade cearense. Com sua pre-
disposição pedagógica, essa espécie de obra-monumento, dedicada
a enaltecer os folhetos, mas igualmente os poetas populares como
emblemas de uma “cearensidade”, apresenta um relato, escrito, ano-
nimamente, por Oswald Barroso7, sobre a história dessa manifesta-
ção literária popular no Nordeste.

5 Nascido na cidade de Farias Brito, a 04 de agosto de 1953, Antônio Rosemberg de Moura, mais
conhecido como Rosemberg Cariry, é formado em Filosofia, mas notabilizou-se como cineas-
ta. Suas obras cinematográficas dedicam-se, em geral, a retratar a “cultura popular cearense”,
notadamente a partir do meio sertanejo. Na década de 1980, foi entusiasta de determinados
movimentos culturais cearenses, como o Nação Cariri e o Siriará. Em 1995, foi laureado, pelo
mérito de seus registros fílmicos das manifestações culturais do Ceará, com o Prêmio Rodrigo
Melo Franco de Andrade, concedido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Na-
cional (IPHAN). Dentre seus longas-metragens, destacamos O Caldeirão da Santa Cruz do
Deserto (1986), Corisco e Dadá (1996), Juazeiro, A Nova Jerusalém (2001), Cine Tapuia (2006)
e Patativa do Assaré — Ave Poesia (2007).
6 O programa de publicações do CERES foi composto por sete obras: Caderno de Cultura I
(1979), Caderno de Cultura II (1987), Caderno de Cultura III (1989), Antologia da Literatura
de Cordel Vol. I (1978), Antologia da Literatura de Cordel Vol. II (1980), Literatura Popular
em Questão (1982) e A Cerâmica Utilitária e Decorativa do Ceará (1980).
7 No livro Cultura Insubmissa (1982), o mesmo texto aparece assinado por Oswald Barroso.
183
Patrimônio, memória e historiografia

Após mencionar uma expansão, na década de 1950, seguida de


um declínio, em 1960, da produção de cordéis, o autor anuncia, para
1970, uma modesta retomada das tiragens:

Um fato é inegável: a partir do início da década de 70,


algo de novo acontece com a literatura de folhetos, no
Nordeste. Ela está nos rádios e até na televisão. Surge um
número cada vez maior de estudos, fazem-se filmes sobre
a sua temática e a linguagem do cordel invade ramos da
cultura chamada “erudita”. Antigos poetas voltam a es-
crever, enquanto surgem novos. As tiragens aumentam,
a rede de distribuição cresce, a xilogravura popular está
nos salões de artes plásticas. Alguns cordeis sobre aconte-
cimentos recentes conseguem grandes tiragens e sucesso
junto ao público (ANTOLOGIA DA LITERATURA DE
CORDEL, 1978, p. 21).

Não obstante, o autor põe em dúvida a qualidade, digamos assim,


dessa recuperação, na medida em que esta se daria pelo advento de
um novo público consumidor, não popular, empenhado em ‘estrutu-
rar uma ‘cultura nacional’ a partir de elementos da cultura popular”.
Os novos compradores, dentre os quais “artistas, colecionadores, tu-
ristas, curiosos despertados pela televisão, estudantes, educadores,
políticos e comerciantes” (ANTOLOGIA DA LITERATURA DE
CORDEL, 1978, p. 22), estariam, lastimavelmente, se aproximando
dos poemas populares com falsas concepções:

O novo público emergente tem procurado o cordel, qua-


se sempre, como elemento “folclórico”, no sentido vulgar
de sua compreensão, isto é, de coisa arcaica, tradicional
e exótica. Poucas vezes procura o cordel como elemento
vivo de nossa cultura, que reflete um pensamento popu-
lar e atual sobre a realidade (ANTOLOGIA DA LITERA-
TURA DE CORDEL, 1978, p. 22).

Os novos apreciadores estariam, pois, interferindo em um apa-


rente modelo tradicional de comercialização dos cordéis, isto é,
aquele que, supostamente, se organizaria apenas entre os popula-
184
As concepções de “Cultura Popular” no Projeto Literatura de Cordel do Centro
de Referência Cultural do Ceará - CERES (1975-1990)

res, e na própria criatividade dos artistas. Por meio de encomendas,


por exemplo, esses novos clientes estariam modificando e adaptando
o estilo dos cordéis aos seus gostos contestáveis. Por um lado, nos
aspectos textuais, estariam requisitando a reescrita de histórias clás-
sicas, referentes a narrativas medievais, julgadas obsoletas por Barro-
so. Por outro lado, no que concerne aos aspectos físicos dos livretos,
estariam requisitando, para a ilustração das capas, a utilização da xi-
logravura, mesmo que, do ponto de vista financeiro ou estético, não
fosse benéfico para o “povo”.

Ora, qualquer interferência nesse sentido seria desconhe-


cer o cordel como uma literatura viva, que se transforma e
se desenvolve, em paralelo com as necessidades populares
e com as manifestações dessas necessidades. Tendências
como estas se nos afiguram perigosas, pois poderiam fazer-
-se em detrimento das verdadeiras necessidades populares.
Esse novo público, procurando no cordel não um meio de
expressão e comunicação próprio, mas um elemento “fol-
clórico”, estaria interferindo nos folhetos populares (AN-
TOLOGIA DA LITERATURA DE CORDEL, 1978, p. 23).

Diante disso, Oswald Barroso acusa o novo público de “descaracte-


rização do cordel”. Em seu pensamento, essa descaracterização ocorre-
ria, curiosamente, não com a assimilação de traços mais modernos, mas
com reabilitação, não espontânea, de atributos do passado. Percepções
da cultura como uma dimensão temporalmente estática foram, portan-
to, taxadas, pejorativamente, por Barroso, como “folclóricas”.

Tentando afastar-se de conceitos “folclóricos”, e, consequente-


mente, das práticas de alguns estudiosos folcloristas, o intelectual
do CERES aderiu, preferencialmente, à noção de “cultura popular”
para a designação das manifestações artísticas das classes popu-
lares. Essa sua noção de “cultura popular”, mais remetente à uma
ideia de mobilidade temporal e transformação social, contemplou,
mais enfaticamente, em aparente sintonia com as renovações teó-
ricas da Antropologia na década de 1980, descritas, por exemplo,
185
Patrimônio, memória e historiografia

por Ortner (2011, p. 440), a ação, a sensibilidade e a logicidade dos


próprios sujeitos inseridos em uma determinada cultura.

No livro Cultura Insubmissa (1982), publicado, exclusivamente, por


Oswald Barroso e Rosemberg Cariry8, são pormenorizadas as concep-
ções de cultura e literatura popular difundidas pela Antologia. Refletin-
do sobre a precária situação econômica das camadas sociais populares
na base de uma sociedade hierarquizada e desigual, os autores conce-
bem suas manifestações artísticas como ferramentas de ataque a siste-
mas políticos comandados pelas elites, como a Ditadura Civil-Militar.

No primeiro artigo da seção temática do livro reservada à litera-


tura popular, escrito, unicamente, por Barroso e intitulado Literatura
Popular e Comunicação9 , o cordel é qualificado como um canal de
informações a serviço do “povo”, contraposto aos meios de comuni-
cação de massa. Em meados da década de 1970, esse tipo de jornal
popular versificado estaria captando e incentivando o novo cresci-
mento das mobilizações sociais contra o governo ditatorial. Assim
sendo, seriam, para Barroso, poemas como o de Antônio Moreira da
Silva, sobre os problemas dos lavradores de Canindé, ou o de Manoel
Marques de Mesquita, sobre a luta dos camponeses de Tauá, que me-
receriam os maiores elogios, exatamente por exprimirem uma cons-
ciência das carências e dos sofrimentos dos mais pobres.

No último artigo do Cultura Insubmissa, novamente escrito por


Barroso e denominado Por Uma Nova Arte e Literatura Popular10,
o alcance e a transmissão dessa consciência são indicadas, de fato,
como premissas para que a arte, em geral, e, em específico, a litera-

8 O livro trata-se de uma coletânea de artigos já publicados, em jornais ou revistas, pelos dois
autores. Dividida por seções temáticas, atinentes a várias dimensões da vida e da arte “po-
pular”, como religiosidade, música, dança e artesanato, a obra dedica uma, especificamente,
a literatura popular. Por conta de uma nota de agradecimento ao CERES, acreditamos que a
maior parte das reflexões da obra sejam decorrentes das experiências do Projeto Artesanato e
do Literatura de Cordel.
9 Texto originalmente publicado no Jornal Philos, em novembro de 1979.
10 Texto publicado, originalmente, no Jornal Nação Cariri, em setembro de 1982.

186
As concepções de “Cultura Popular” no Projeto Literatura de Cordel do Centro
de Referência Cultural do Ceará - CERES (1975-1990)

tura popular desempenhassem seus pressupostos papeis revolucio-


nários de mudança da sociedade capitalista:

A história nos tem mostrado que, apesar da miséria e da


repressão, o povo brasileiro soube manter viva a luta por
uma arte e literatura próprias e resiste às tentativas de
estrangulamento e dominação completa de sua cultura.
Contudo, a qualidade ainda insuficiente de seu nível de
organização e consciência o tem impedido de fazer desta
arte e literatura instrumento eficaz e poderoso de expres-
são de seus verdadeiros interesses, na luta pela transfor-
mação revolucionária de nossa sociedade (BARROSO;
CARIRY, 1982, p. 257/258).

Nesse último texto, Oswald Barroso se propõe ainda a pensar a


contribuição dos intelectuais no esclarecimento, digamos assim, do
“povo” acerca das injustiças sociais. Enquanto indivíduos pertencen-
tes, geralmente, à classe média urbana, os intelectuais deveriam, de
maneira horizontal, trocar conhecimentos com os agentes populares
para uma aprendizagem mútua. Entretanto, discrepando com esse
ideal, notamos atitudes como a exposta, indiretamente, no trecho aci-
ma, em que o integrante do CERES parece julgar o grau de consciência
dos populares, discursando como um vanguardista.

Foi com esse tendência instrutora que, em 1986, por exemplo, du-
rante as rememorações dos 50 anos de extermínio da comunidade do
Caldeirão11, o Grupo Independente de Teatro Amador (GRITA), ao
qual Barroso também pertencia, promoveu um grande evento no Tea-
tro José de Alencar e no da Empresa Cearense de Turismo (EMCE-
TUR), composto por debates e muitas apresentações artísticas, para
saudar e estimular discussões “conscientizadoras” sobre a “experiência

11 Acampada em 1926, nos arredores da cidade do Crato, a comunidade do Caldeirão, guiada


pelo beato José Lourenço e apadrinhada por Pe. Cícero, foi um assentamento camponês que,
professando ideais católicos de fraternidade e caridade, concebeu um meio de subsistência
equitativo e quase autossuficiente, contrastante com a ordem capitalista. Por não satisfazer a
ortodoxia católica e ser encarada como uma insurreição comunista, o sítio do Caldeirão foi,
em 1936/37, brutalmente atacado pelas forças militares do país.
187
Patrimônio, memória e historiografia

socialista” dos camponeses no sul do Ceará12. A antiga vivência de co-


letivização da terra pelos camponeses católicos foi tomada, nessa in-
vestida mnemônica, como um passado exemplar, iluminativo para as
querelas contemporâneas em torno da desejada reforma agrária, bem
como para a construção de um sonhado modelo de sociedade. No
jogo da (re)significação dos fatos históricos, portanto, o que um dia já
foi desqualificado como um messianismo ignorante e contraventor, é
projetado, nessas rememorações, como o lampejo inspirador de uma
revolução popular contra o sistema capitalista.

Como adendo, cabe ainda destacarmos que, dentro da progra-


mação do evento, Barroso publicou, com o selo da própria SECULT,
seu livro A Irmandade da Santa Cruz do Deserto, cujo conteúdo reu-
nia uma peça teatral homônima, uma outra, chamada O Pão, e uma
ópera, chamada Moacir das Sete Mortes13. Engajando politicamente
a arte em benefício de uma “clarividência” para o “povo”, o texto dra-
matúrgico de A Irmandade da Santa Cruz do Deserto, todo escrito
de maneira versificada, demonstrou uma determinada preocupação
historiográfica, qual seja, a de “vocalizar” as classes populares em
uma nova narração da história do Ceará.

Referências
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Ato Inaugural” — Procedimentos e Práticas dos Estudos de Folclore e de
Cultura Popular. São Paulo: Intermeios, 2013.
ANTOLOGIA DA LITERATURA DE CORDEL. Fortaleza: SECULT,
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CARIRY, Rosemberg; BARROSO, Oswald. Cultura Insubmissa: Es-

12 O POVO. Grita e Caldeirão: Unindo Arte à Conscientização. Fortaleza, 18 nov. 1986.


13 Em 1986, Rosemberg Cariry também lançou seu documentário O Caldeirão da Santa Cruz do
Deserto. Ver: O CALDEIRÃO da Santa Cruz do Deserto. Direção de Rosemberg Cariry. Rio
de Janeiro/Ceará: Cariry Produções Artísticas, 1986. (78min).

188
As concepções de “Cultura Popular” no Projeto Literatura de Cordel do Centro
de Referência Cultural do Ceará - CERES (1975-1990)

tudos e Reportagens. Fortaleza, CE: Secretaria de Cultura e Desporto,


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ROCHA, Gilmar. Cultura Popular: do Folclore ao Patrimônio. Media-
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189
Índice remissivo
Amazônia, 47, 55, 56, 58, 90, 95.
Cidade [s], 15, 16, 18, 19, 54, 58, 64, 65, 66, 68, 69, 70, 74, 83,
99, 116, 119, 123, 135, 136, 138, 139, 140, 141, 142, 143, 144,
145, 146, 148, 149, 152, 155, 156, 163, 164, 177, 178, 181, 183,
187.
Círio de Nazaré, 96, 98, 106, 107, 108.
Corda, 98, 99, 100, 101, 102, 103, 104, 105.
Cultura, 15, 27, 33, 49, 51, 54, 57, 64, 72, 77, 78, 79, 82, 83, 85,
87, 91, 96, 97, 100, 101, 105, 106, 107, 115, 116, 117, 119, 121,
125, 140, 154, 162, 163, 164, 166, 167, 169, 170, 171, 172, 175,
176, 177, 179, 180, 182, 183, 184, 185, 186, 187.
Cultura popular, 83, 97, 105, 106, 107, 140, 162, 176, 177, 179,
182, 183, 184, 185.
Discursos elogiosos, 157, 159.
Educação, 18, 19, 21, 22, 25, 26, 27, 28, 53, 78, 79, 80, 81, 83,
84, 85, 88, 89, 116.
Espaços museais, 31, 32, 33, 34, 37, 38, 39, 41.
Festival da Barranca, 161, 162, 164, 165, 167, 169, 170, 172.
IMOPEC, 112, 113, 116, 117, 118, 119, 120.
Instrução, 80, 81, 86, 87, 90, 92, 182.
José de Alencar, 151, 152, 153, 154, 155, 156, 157, 158, 159, 160,
182, 187.
Literatura de cordel, 175, 177, 178, 183.
Memória, 15, 16, 17, 18, 19, 21, 27, 28, 31, 32, 36, 37, 39, 42, 43,
58, 59, 64, 71, 73, 74, 76, 80, 81, 84, 86, 91, 111, 112, 113, 115,

191
Patrimônio, memória e historiografia

117, 119, 120, 121, 125, 127, 130, 132, 133, 138, 146, 147, 148,
151, 152, 153, 154, 155, 156, 158, 159,160, 166, 179, 183, 196.
Memória social, 27, 152, 153, 155, 159, 160.
Patrimônio, 15, 19, 21, 48, 49, 50, 51, 52, 53, 54, 56, 57, 58, 59,
61, 63, 64, 65, 66, 67, 71, 72, 73, 74, 75, 77, 78, 79, 80, 81, 82,
83, 84, 85, 86, 87, 88, 89, 90, 91, 92, 103, 112, 113, 114, 115, 118,
119, 120, 121, 123, 124, 126, 127, 128, 129, 130, 133, 135, 137,
138, 139, 140, 141, 146, 148, 149, 160, 162, 166, 170, 171, 181,
196.
Patrimônio cultural, 48, 52, 53, 57, 58, 59, 65, 74, 80, 85, 103,
112, 115, 118, 119, 120, 124, 133, 140, 141, 149, 162, 170, 171,
181, 196.
Patrimônio industrial, 61, 64, 66, 67, 73.
Pernambuco, 61, 68, 70, 73, 75, 124.
Serviço Nacional de Teatro, 124, 132, 133.
SPHAN, 48, 49, 50, 52, 53, 57, 58, 59, 78, 79, 80, 81, 82, 84, 85,
86, 87, 88, 89, 90, 91, 124, 125, 126, 127, 129, 130, 131, 132,
137, 138, 139, 142, 147.
Teatro, 127, 128, 132, 133, 182.
Teatros, 101, 124, 125, 126, 127, 128, 129, 130, 132.
Trabalhador, 42, 69.
Usos do passado, 91, 162, 164, 166, 170.

192
Realização

Apoio

Este livro foi composto em fonte Minion Pro,


em e-book formato pdf, com 192 páginas
Dezembro de 2020
Livro com artigos apresentados no VI Seminário Inter-
nacional História e Historiografia. Os trabalhos aqui re-
unidos fizeram parte dos Simpósios Temáticos “História
pública, patrimônio e memória”, “História e Historio-
grafia do Patrimônio Cultural espaços simbólicos em
múltiplos olhares e perspectivas” e “Patrimônio Cultu-
ral e os usos políticos do passado no Brasil contempo-
râneo”. Os textos aqui reunidos têm como objetivo trazer
para o debate as diferentes interpretações sobre o passado,
presente e futuro que conformam as narrativas concernen-
tes à construção do patrimônio cultural no Brasil.

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