Virtù e Fortuna em Maquiavel A Partir Da Obra O Príncipe'

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Virtù e Fortuna em Maquiavel a partir da obra ‘O Príncipe’

Resumo: O trabalho busca esclarecer dois pontos centrais da Filosofia política de Maquiavel – as figuras da Virtù e da
Fortuna. A virtú deve ser vista como uma forma do livre-arbítrio do governante, sendo a principal variável na condução do
principado. Destaca-se, também, a utilização da variável na contestação aos valores tradicionais. Já a Fortuna constitui-se na
indeterminabilidade de parte dos resultados do governo: ela deve ser dominada, conquistada para o benefício do príncipe.

INTRODUÇÃO

O trabalho estuda duas variáveis fundamentais na Filosofia política de Maquiavel –


Virtù e Fortuna. Esses dois conceitos estabelecem um momento inédito na filosofia política
até então aplicada - a partir deles começa-se a pensar política de forma factual, através da
expressão ‘verdade efetiva das coisas’, ao contrário do pensamento medieval, em que se
abordava o poder a partir de análises religiosas ou morais, espelhando o que deveria fazer o
príncipe, isto é, um fundamento deontológico do poder.

A Virtù trata-se da capacidade do príncipe em controlar as ocasiões e acontecimento


do seu governo, das questões do principado. O governante com grande Virtù constrói uma
estratégia eficaz de governo capaz de sobrestar as dificuldades impostas pela
imprevisibilidade da história. Assim, o político com grande Virtú observa na Fortuna a
probabilidade da edificação de uma estratégia para controlá-la e alcançar determinada
finalidade, agindo frente a uma determinada circunstancia, percebendo seus limites e
explorando as possibilidades perante a mesma. Destaca-se também a estabilidade requerida
por Maquiavel – a virtú seria uma forma de manter a paz e estabilidade do Principado. Outro
ponto importante é acerca da superioridade da vida pública em detrimento da vida privada na
constituição da Virtù. Por fim, destaca-se a contestação dos valores e virtudes da moral cristã
tradicional à época de Maquiavel.

A Fortuna diz respeito às circunstâncias, ao tempo presente e às necessidades do


mesmo: a sorte individual. É, para o filósofo, a ordem das coisas em todas as dimensões da
realidade que influenciam a política. Observa-se que a Fortuna não pode ser vista como um
obstáculo ao governante, mas um desafio político que deve ser conquistado e atraído. O
príncipe que vive despreparado em função da Fortuna apenas atrairia desonra e fracasso, mas
o de Virtù procura utilizá-la, controlá-la da tal forma que lhe possa ser útil. É nesse sentido da
Fortuna que se debruça este trabalho, isto é, procura esclarecer acerca da (in)
determinabilidade da Fortuna.

1 A VIRTÙ

A Virtù de Maquiavel trata-se de um signo valorativo utilizado pelo autor para


refletir a um conhecimento prático, técnico da realidade efetiva das coisas. O sujeito
possuidor da Virtù é o que obtém êxito em obter e manter o poder. Os fundadores do
principado, sujeitos com tal característica, são homens excelentes – dispostos a agir da forma
mais corajosa possível no sentido de se fundar um governo. Segundo Maquiavel, a
manutenção e a obtenção do poder torna-se variável, portanto, conforme seja maior ou menor
1
a Virtù de quem o conquistou. Os homens de Virtù receberam da Fortuna não mais do que a
ocasião, que lhes deu a matéria para introduzirem a forma que lhes aprouvesse, sendo que
aqueles que por Virtù conquistam o poder tendem mais facilmente a conservá-lo. Os mais
organizados teriam conseguido que suas constituições fossem seguras se também
considerassem as armas necessárias para mantê-la. Assim, há homens que enfrentam grandes
dificuldades, defrontando-se em seu caminho com perigos que foram superados. Depois de
vencerem esses perigos e passarem a ser venerados, tendo aniquilado os que tinham inveja de
suas qualidades, tornam-se poderosos, seguros, honrados e felizes, segundo
Maquiavel.[1] (Vide Maquiavel, 2008, pp. 23-26).

Do contrário, aqueles que não possuem a Virtù na aquisição do principado esforçam-


se pouco para conquistá-lo, mas muito para mantê-lo. Todas as dificuldades, a partir daí,
surgem quando já conquistado o principado. Os novos príncipes, que adquirem o poder a par
da Virtù, apóiam-se exclusivamente na vontade de quem lhes concedeu. Diz o autor (2008, p.
27):

Não sabem porque, a menos que sejam homens de grande engenho e Virtù, não é
razoável que saibam comandar tendo sempre vivido como particulares; e não podem porque
não têm forças que lhes possam ser amigas e fiéis. Além disso, os Estado que nascem
subitamente – como todas as outras coisas da natureza que nascem e crescem depressa –
não podem ter raízes e ramificações, de modo que sucumbem na primeira tempestade. A
menos que – como já disse – aqueles que repentinamente se tornaram príncipes sejam de tanta
Virtù que saiba rapidamente preparar-se para conservar aquilo que a Fortuna lhes colocou nos
braços e estabeleçam depois os fundamentos que outros estabeleceram antes de se tornarem
príncipe. (grifo meu)
Também, segundo Maquiavel, os governantes que possuíram os seus principados por
muito tempo, não podem acusar a Fortuna por tê-lo perdido, mas a sua própria indolência (ou
a falta de Virtù) por não terem, em tempos de paz, pensado que as condições estabelecidas
poderiam mudar sua situação de estagnação social e econômica. Segundo Maquiavel (2008,
pg. 118):

Quando chegam os tempos adversos, pensam em fugir e não em defender-se, esperando


que o povo, cansado da insolência dos vencedores, os chame de volta. Este caminho, à falta
de outros, é bom; porém é muito mau ter abandonado outras soluções para adotar esta, porque
não deves jamais querer cair por acreditar que encontrarás alguém para te reerguer, coisa que
ou não acontece ou, quando acontece, não contribui para a tua segurança, pois esta defesa é
vil e não depende de ti. Certamente, as defesas só são boas, seguras e duráveis quando
dependem de ti mesmo e de tua Virtù.
Observa-se, outrossim, que a Virtù não se confunde com a virtude cristã, sendo que
ao príncipe não há restrições, ou não deve importar-se em incorrer na infâmia religiosa dos
vícios necessários para o seu governo. O comportamento do príncipe, pelo menos nos
assuntos acerca do principado, não obedece aos preceitos da moral piedosa tradicional; não
compete ao governante conduzir os assuntos de governo conforme uma deontologia
tradicional, mas conforme apenas à Virtù. Nas palavras do autor (2008, pgs. 73 e 74):

Muitos imaginaram repúblicas e principados que jamais foram vistos e quem nem se
soube se existiram na verdade, porque há tamanha distancia entre como se vive e como se
deveria viver, que aquele que trocar o que se faz por aquilo que se deveria fazer aprende antes
a arruinar-se que a preservar-se; pois um homem que queira fazer em todas as coisas profissão
de bondade deve arruinar-se entre tantos que não são bons. Daí ser necessário a um
2
príncipe, se quiser manter-se, aprender a poder não ser bom e a valer-se ou não disto
segundo a necessidade. (Grifo meu)

(…)
Sei que vão dizer que seriam muito louváveis que um príncipe, dentre todas as
qualidades acima, possuísse as consideradas boas. Não sendo isto, porém inteiramente
possível, devido às próprias condições humanas que não o permitem, ele necessita ser
suficientemente prudente para evitar a infâmia daqueles vícios que lhe tirariam o poder e
guardar-se, na medida do possível, daqueles que lhe fariam perdê-lo; se não o conseguir,
entretanto, poderá, sem grande preocupação, deixar estar.

Também não deverá importa-se de incorrer na infâmia dos vícios sem os quais lhe
seria difícil conservar o poder porque, considerando tudo muito bem, encontrar-se-á alguma
coisa que parecerá Virtù e, sendo praticada, levaria à ruína; enquanto uma outra que parecerá
vício, quem a praticar poderá alcançar segurança e bem-estar.

Ou seja, a Virtù não se importa com aspectos da compaixão e benevolência da


tradição moral cristã. [2]

O príncipe, ainda, não deve sequer se preocupar com a fama de severo que uma
eventual decisão lhe traga, quanto mais os preceitos de uma religião. Segundo Maquiavel,
quando o príncipe está em campanha, no comando de inúmeros soldados, não deve se
preocupar com a fama de cruel, pois a mesma mantém um exército unido e disposto à ação. E
essa fama apenas surge de sua forma desumana de crueldade, que juntamente com outras
várias formas da Virtù, fazem venerável o príncipe. (2008, pg. 81)[3]

Observa-se, entretanto, que apesar de refutar a moral tradicional cristã através da


Virtù, o sistema de Maquiavel não pode ser considerado amoral ou mesmo imoral, mas
simplesmente diverso da moral medieval. Segundo Marilena Chauí (2000, pg. 203), a Virtù
nunca deixou de estar presente também na ética e, como esta surgia inseparável da política, a
mesma oposição se fez presente no pensamento político. Neste, o governante virtuoso é
aquele cujas virtudes não sucumbem ao poderio da caprichosa e inconstante Fortuna. Ainda,
para a autora, Maquiavel retoma essa questão da moralidade, mas lhe imprime um sentido
inteiramente novo. A Virtù do príncipe não consiste num conjunto fixo de qualidades morais
que ele oporá à Fortuna, lutando contra ela. A Virtù é a capacidade do príncipe para ser
flexível às circunstâncias, mudando com elas para agarrar e dominar a Fortuna. Isto é, um
príncipe que agir sempre da mesma maneira e de acordo com os mesmos princípios em todas
as circunstâncias fracassará e não terá Virtù alguma. Para ser senhor da sorte ou das
circunstâncias, deve mudar com elas e, como elas, ser volúvel e inconstante, pois somente
assim saberá agarrá-las e vencê-las.

Conclui a autora (CHAUÍ, 2000, pg. 204):

Em certas circunstâncias, deverá ser cruel, em outras, generoso; em certas ocasiões


deverá mentir, em outras, ser honrado; em certos momentos, deverá ceder à vontade dos
outros, em alguns, ser inflexível. O ethos ou caráter do príncipe deve variar com as
circunstâncias, para que sempre seja senhor delas.
Para Maria Tereza Sadek (1993, pg. 21), Maquiavel recorre aos pensadores clássicos,
investigando os preceitos dominantes em política para fundar o conceito de Virtù. A estratégia

3
argumentativa do pensador está em demonstrar que apesar da quase determinabilidade da
história, a Virtù pode conquistar essa imprevisibilidade da Fortuna, ou seja, uma figura
política pode superar as variações arbitrárias do movimento contingente da história.
Consequentemente, Maquiavel sublinha a indubitável origem do poder na força. A força
continua fundamentando o poder, porém é a Virtù a chave para a excelência e o sucesso do
príncipe. O governo tem que ser capaz de resistir os inimigos e os infortúnios da sorte. “O
homem de Virtù deve atrair os favores da cornucópia, conseguindo, assim, a fama, a honra e a
glória para si e a segurança para seus governados” (SADEK, 1993, pg. 23)

Assim, afirma a autora supra, que a questão trata-se das qualidades valorativas do
príncipe. As qualidades do governante não devem estar atreladas à tradição moral medieval,
mas comportam um novo sistema de preceitos. Para Maquiavel há vícios que são virtudes
para os medievais. Nesse sentido, os ditames da moralidade tradicional não são considerados
e podem levar o príncipe à ruína. Mas dentre os novos valores do príncipe destaca-se a
flexibilidade – a qualidade exigida é de que ele mantenha uma sabedoria de agir conforme as
circunstancias. Ou seja, a Virtù política também exige valores considerados vícios para os
doutores da igreja, da mesma forma que exige as questões da força e graus de irracionalidade.
A Virtù resulta, assim, de uma combinação entre virilidade e natureza animal, “quer como
leão (para aumentar os lobos), quer como raposa (para conhecer os lobos), o que conta é o
triunfo das dificuldades e a manutenção do Estado. Os meios para isso nunca deixarão de ser
julgados honrosos, e todos aplaudirão.” (SADEK, 1993, pg. 23) Ou seja, a política tem uma
ética e uma lógica própria, em que não se enquadra o tradicional moralismo piedoso, mas da
mesma forma não é niilista.

Complementa Maria Tereza Sadek acerca da contestação por parte de Maquiavel de


uma moral tradicional cristã. Nas palavras da autora (1993, pg. 21 e 22):

Não cabe nessa imagem a idéia da virtude cristã que prega uma bondade angelical
alcançada pela libertação das tentações terrenas, sempre à espera de recompensa no céu. Ao
contrário, o poder, a honra e a glória, típicas tentações mundanas, são bens perseguidos e
valorizados; o homem de Virtù pode consegui-los e valorizados. O homem de Virtù pode
consegui-los e por eles luta.
Dessa forma, o poder que nasce da própria natureza humana e encontra seu
fundamento na força é redefinido; não se trata mais apenas da força bruta, da violência, mas
da sabedoria no uso da força, da utilização virtuosa da força; o governante não é, pois,
simplesmente o mais forte – já que este tem condições de conquistar mas não de se manter no
poder -, mas sobretudo o que demonstra possuir Virtù, sendo assim capaz de manter o
domínio adquirido e se não o amor, pelo menos o respeito dos governados.

Conforme Quentin Skinner (1996, pg. 146), a Virtù de Maquiavel apresenta-se como
uma forma extremamente criativa - a forma pela qual o governante mantém seu estado e se
capacita a confrontar seus inimigos. Além, a Virtù está como fundamento da liberdade para
Maquiavel – esta somente pode se conservar promovendo-a, isto é, com o pleno
desenvolvimento político dos cidadãos. Também ela contesta as piedades dominantes, que ao
contrário de serem pacifista, representam para o filósofo florentino apenas uma forma
dissimulada de aquisição do poder, porém, conforme demonstra a história, sem condições de
mantê-lo – daí resulta a dificuldade de conexão entre a Virtù e as exigências da fé cristã[4]. O
autor afirma que existia certa complacência entre os valores propostos pelos republicanos da
época e a religião cristã em relação à Virtù e às virtudes, contudo Maquiavel ataca essas teses
supostamente tranquilizadoras. Se o governante estiver autenticamente empenhado no ideal da
4
Virtù e dedicar-se primordialmente aos valores da república acima de todos os outros, não
poderá supor que será um homem virtuoso e de Virtù necessariamente na mesma proporção
(SKINNER, 1996, pg. 202).

Constitui-se, portanto, em um dilema para o governante – comandar conforme os


ditamente da moral cristã, tradicional, ou através da Virtù. Para Maquiavel a resposta é
indubitável – as metas da liberdade e segurança da república representam os valores mais
elevados. Assim, conclui que não há sentido em utilizar-se dos valores religiosos nos assuntos
políticos. Apesar de que o governante deva comportar-se da forma mais popular possível:
aconselha a utilizar-se de todos os instrumentos da Virtù a nosso alcance, mesmo também a
dissimulação encontrada na tradição medieval. Recomenda que se a liberdade de nossa pátria
exigir que trilhemos o caminho dos malfeitores, fazê-lo sem hesitar é o principal papel
político do príncipe. (SKINNER, 1996, pg. 203).

Enfim, nas palavras de Skinner acerca do conceito de Virtù:

Para Maquiavel, como para os outros humanistas, o conceito de Virtù serve dessa forma
para indicar a qualidade indispensável que capacita um príncipe a vencer as pedras e setas da
enfurecida Fortuna, e a aspirar assim à obtenção da honra, glória e fama; isso se evidencia
com muita nitidez em seu capítulo “Por que os príncipes de Itália perderam seus Estados”.
Aqui ele prevê todos os novos príncipes, se desejam alcançar “a dupla glória” que resultará de
ter fundado um principado novo e de lhe consolidar a existência, que “os únicos meios bons,
certos e duradouros” a utilizar são “aqueles que dependem de tuas próprias ações de tua
Virtù”. O mesmo tom ressurge, ainda mais vigoroso, no capítulo final do Príncipe, na
“exortação” de Maquiavel aos Médici para que ‘livrem a Itália das mãos dos bárbaros”.
Depois de assegurar-lhes que sua ‘ilustre casa’ possui ‘Fortuna e Virtù’, afirma não haver
alguém mais capacitado que eles a conduzir a Itália a sua redenção.
Observa que para Abbagnano (1998, pg. 642), em função da diferença entre o
pensamento da Virtù e as considerações acerca da expressão pejorativa ‘maquiavélico’, segue
a posição mesma da Chauí e Skinner, afirmando a também eticidade sui generis do
pensamento do autor, assim como também não há espaço para uma moral restrita aos
preceitos tradicionais. A posição justifica a má leitura feita em relação à instrumentalidade do
poder em Maquiavel, sendo o resultado da expressão ‘os fins justificam os meios’. Segundo
Abbagnano, a Filosofia política de Maquiavel passou a ser convencionalmente resumida de
que "o fim justifica os meios". Tal máxima, porém, não foi formulada por Maquiavel, que não
considera o Estado como fim absoluto e não o julga dotado de existência superior à do
indivíduo Além disso, Maquiavel tinha grande simpatia pela honestidade e pela lealdade na
vida civil e política; portanto, admirava os Estados regidos por essas virtudes, como os
romanos e dos suíços. Contudo, seu objetivo era formular regras eficazes de governo, tendo
como base a experiência política antiga e nova, considerando que essa eficácia era
independente do caráter moral ou imoral das regras tradicionais. No entanto, Maquiavel
percebeu, segundo Abbagnano, que a moral e a religião podem ser - como às vezes são -
forças políticas que, como todas as outras, condicionam a atividade política e seu êxito;
também que às vezes isso não acontece e que a ação política se mostra eficaz mesmo quando
exercida em sentido contrário ao das leis da moral. Como essa era a realidade mais freqüente
nas sociedades de seu tempo (especialmente a italiana e a francesa)—que ele chama de
"corruptas" - e como Maquiavel tem, sobretudo, em vista a aplicação de suas regras políticas à
sociedade italiana para a constituição de um Estado unificado, explica-se sua insistência em
certos preceitos ‘imorais’ de conduta política, o que acabou sendo mal expresso ou

5
generalizado na máxima de que "o fim justifica os meios", mesmo sendo o pensamento de
Maquiavel oposto a tal máxima.

Para Norberto Bobbio (1998, pg. 87), quanto aos novos principados, assunto da
maior parte do livro, Maquiavel distingue quatro espécies, de acordo com as diferentes
maneiras como o poder pode ser conquistado: a) pela Virtù; b) pela "Fortuna"; c) pela
violência; d) com o consentimento dos cidadãos. Estas quatro espécies podem ser dispostas
em duplas antitéticas: Virtù-"Fortuna"; força-consentimento. Os conceitos de Virtù (coragem,
valor, capacidade, eficácia política) e de "Fortuna" (sorte, acaso, influência das
circunstâncias) têm grande importância para a concepção maquiaveliana da história. Por
Virtù, diz Bobbio, Maquiavel entende a capacidade pessoal de dominar os eventos, de
alcançar um fim objetivado, por qualquer meio. Observa-se que para Maquiavel o que se
consegue realizar não depende nem exclusivamente da Virtù nem só da "Fortuna"; quer dizer:
nem só do mérito pessoal nem apenas do favor das circunstâncias, mas de ambos os fatores,
em partes iguais. Enfim, A diferença entre os principados conquistados pela Virtù e os
conquistados pela "Fortuna" é que os primeiros são mais duradouros; os segundos, que o
príncipe conquista devido a circunstâncias favoráveis, e não pelo próprio mérito, são menos
estáveis, destinados a desaparecer em pouco tempo.

Ainda conforme Bobbio, em relação ao pensamento político medieval existente a


época de Maquiavel, o cristianismo continuava forte nos espíritos da época, e se declarar de
maneira veemente, como o faria Maquiavel, que, além de tudo, estava o soberano totalmente
liberto dos imperativos éticos que regiam os homens comuns, era coisa absolutamente
inaudita em uma Europa ainda ideologicamente bastante ligada aos valores medievais e
constituiu uma reação contrária por parte da Igreja. Neste sentido, afirma Norberto Bobbio
(1994, pg. 14):

Quanto se proclamava que o príncipe estava acima das leis, geralmente não se queria
dizer com isso, que ele estivesse acima das leis divinas e morais. Por meio da teoria do
maquiavelismo são quebrados também esses limites: o príncipe não é mais somente livre dos
vínculos jurídicos, mas também (para usar de uma expressão provocativa), além do bem e do
mal, quer dizer, livre dos vínculos morais que delimitam a ação dos simples mortais. O
maquiavelismo, neste sentido, é a exposição teórica mais audaciosa sobre o absolutismo do
poder estatal.

Observar-se, portanto, a importância da figura da Virtù no pensamento político de


Maquiavel, não podendo negar também a sua preocupação, ainda que em desacordo com a
tradição, com uma ética do príncipe. Ou seja, não há de considerar o pensamento de
Maquiavel como amoral ou imoral, ou designá-lo como niilista, pois possuiria uma filosofia
destituída de valores. O que se encontra no texto do filósofo italiano, entretanto, é um
pensamento valorativo diverso do tradicional, o que por muito tempo (ou mesmo por má-fé)
recebeu a alcunha de niilista. Há, portanto, valores no texto de Maquiavel, contudo, são novos
valores, criativos e transformadores.

6
2 FORTUNA

A figura da Fortuna representa, assim como a Virtù, uma das formas de aquisição do
poder. Contudo, diversamente da Virtù, ela não garante a estabilidade. Para Maquiavel,
aqueles que somente pela Fortuna de outros se tornam príncipes, sem grandes esforços,
encontram sérias dificuldades em manter o principado. Tais apóiam-se exclusivamente na
vontade e na Fortuna de quem lhes concedeu o poder, situação, segundo o autor, volúvel e
instável. Diz Maquiavel que tais homens não sabem nem porque devem manter o principado,
sendo que sempre viveram como particulares. [5] Nas palavras do autor (2008, pg. 28):

Não sabem porquê, a menos que sejam homens de grande engenho e Virtù, não é
razoável que saibam comandar tendo sempre viveu como particulares; e não podem porque
não têm força que lhes possam ser amigas e fiéis. Além disso, os Estado que nascem
subitamente – como todas as outras coisas da natureza que nasce e crescem depressa – não
podem ter raízes e ramificações, de modo que sucumbe na primeira tempestade. Ao menos
que – como já disse – aqueles que repentinamente se tornaram príncipes sejam de tanta Virtù
que saibam rapidamente preparar-se para conservar aquilo que a Fortuna lhes colocou nos
braços e estabeleçam depois os fundamentos que outros estabeleçam antes de se tornarem
príncipes.
A figura da Fortuna é tratada de forma mais exaustiva no vigésimo quinto capítulo da
obra ‘O príncipe’ – ‘De quanto pode a Fortuna nas coisas humanas e de que modo se pode
resistir-lhe’. Para o autor, muitos pensam que as coisas do mundo são governadas por deus ou
pela Fortuna. Contudo, afirma Maquiavel (2008, pgs. 119 ss), há o livre-arbítrio, considerado
como possuidor de metade das responsabilidades. A Fortuna possui metade do arbítrio de
nossas ações, não sendo exclusiva determinante na ação. Um príncipe, logo, que se apoia
exclusivamente na Fortuna tende a fracassar. Maquiavel utiliza-se de uma metáfora
interessante, a do rio caudaloso – nas palavras do autor (2008, pg. 120):

Comparo a sorte a um desses rios impetuosos que, quando se irritam, alagam aas
planícies, arrasam as árvores e as cassas, arrastam terras de um lado para levar a outro: todos
fogem deles, mas cedem ao seu ímpeto, sem poder detê-los em parte alguma. Mesmo assim,
nada impede que, voltando a calma, os homens tomem providências, construam barreiras e
diques, de modo que, quando a cheia se repetir, ou o rio flua por um canal, ou sua força se
torne menos livre e danosa. O mesmo acontece com a Fortuna, que demonstra a sua força
onde não encontra uma Virtù ordenada, pronta para resistir-lhe e volta o seu ímpeto para onde
sabe que não foram erguidos diques ou barreiras para contê-las. Se considerares a Itália, que é
sede e origem dessas alterações, verá que ela é um campo sem diques e sem qualquer defesa;
caso ele fosse convenientemente ordenado pela Virtù, como a Alemanha, a Espanha e a
França, ou esta cheia não teria causado as grandes mudanças que ocorrem, ou estas em sequer
teriam acontecido.
Mesmo, porém, sendo inconsistente e indomável, para Maquiavel ainda assim a
Fortuna poderia ser controlada para o benefício do príncipe. Aqui se associam as variáveis da
Fortuna e da Virtù. Segundo Marilena Chauí (2000, pg. 204), a Fortuna para Maquiavel é
sempre favorável a quem desejar agarrá-la. Oferece-se como um presente a todo aquele que
tiver ousadia para dobrá-la e vencê-la. Portanto, em lugar da tradicional oposição entre a
constância do caráter virtuoso e a inconstância da Fortuna, Maquiavel introduz a Virtù
7
política como astúcia e capacidade para adaptar-se às circunstâncias e aos tempos, como
ousadia para agarrar a boa ocasião e força para não ser arrastado pelas más e a Fortuna como
um problema a ser enfrentado e dominado pelo príncipe.

Para Bobbio (1998, pg. 87), por Fortuna Maquiavel entende o curso dos
acontecimentos que não dependem da vontade humana. Diríamos hoje: o "momento
subjetivo" e o "momento objetivo" do movimento histórico. Entretanto, mesmo não
dependendo da vontade, a Fortuna pode ser domada pelo príncipe de virtú.

Em Skinner, temos a Fortuna em Maquiavel como uma referência do pensamento


renascentista. A forma da Fortuna é encontrada reiteradamente no texto, sendo encontrada em
todo o decorrer da obra - já no início Maquiavel apresenta a Fortuna como sendo uma das
formas de aquisição do poder; também reforça a ideia de que a da Fortuna também pode
auxiliar os principados novos. Contudo, o que o autor mais ressalta, segundo Skinner (1996,
pg. 141), “é o caráter instável da deusa Fortuna, de que resulta ser louco todo aquele que
confiar, por alguma duração de tempo, em seus favores.”

Para Maria Tereza Sadek, Maquiavel parece, no penúltimo capítulo da obra,


concordar com a determinabilidade da ação por parte da Fortuna, contudo, nas palavras da
autora (Sadek, 1993, pg. 22):

No entanto, o desenrolar de sua exposição mostramos, com toda clareza, que se trata de
uma concordância meramente estratégica. Concorda para pode desenvolver os argumentos da
discordância. Assim, após admitir o império absoluto da Fortuna, reserva poucas linhas a
seguir, ao livre-arbítrio pelo menos o domínio da metade das ações humanas. E termina o
capítulo demonstrando a possibilidade da Virtù conquistar a Fortuna. Assim, Maquiavel
monta um cenário no qual a liberdade do homem é capaz de amortecer o suposto poder
incontrastável da Fortuna. Ou melhor dizendo, ao se indagar sobre a possibilidade de se fazer
uma aliança com a Fortuna, esta não é mais um a força impiedosa, mas uma deusa boa, tal
como era simbolizada pelos antigos. Ele é mulher, deseja ser seduzida e está sempre pronta a
entregar-se aos homens bravos, corajosos, aqueles que demonstram ter Virtù.
Enfim, vê-se que a Fortuna não é uma figura política a ser desprezada pelo
governante, mas sim conquistada, administrada através dos preceitos da Virtù. Nesse sentido,
mesmo sob certa determinação histórica, o príncipe, desde que com Virtù pode garantir sua
liberdade dessa dominação e estabelecer seu principado de forma estável sem a interferência
da Fortuna.

CONCLUSÃO

O trabalho procurou destacar a grande relevância dos dois principais conceitos da


filosofia política de Maquiavel – a Virtù e a Fortuna. Resultado de um pensamento efetivo dos
assuntos de estado, Maquiavel expressa através destas variáveis as necessidades de um
governante na obtenção e manutenção do poder, sem influências do moralismo tradicional,
medieval.

A Virtù, como visto, é uma figura utilizada para representar a liberdade, o livre-
arbítrio do governante em relação à imprevisibilidade e determinabilidade da história. Ele, o
8
governante, tem a capacidade, através da Virtù, de superar, controlar as ocasiões e
acontecimento do seu governo; construir uma estratégia capaz de conquistar a Fortuna,
estratégia principalmente regrada pela flexibilidade política. Também a Virtù representa
metade das ações do príncipe. Portanto, vê-se claramente em Maquiavel o espaço da liberdade
em seu modelo, restringindo, contudo, a moralidade e o pensamento medieval, isto é, a virtú
representa um conceito diverso de liberdade de arbítrio do pensamento tradicional.

Já a Fortuna representa uma deusa grega, uma mulher que, segundo Maquiavel,
escolhe entre os mais viris, como maior Virtù, aquele que vai conquistá-la. Refere-se às
circunstâncias, as imprevisibilidade dos acontecimentos e a determinação de parte da história.
A Fortuna não deve ser evitada ou ignorada pelo príncipe, pois é inevitável e sempre presente,
mas deve ser conquistada pelo mesmo. O príncipe não pode depender dela, contudo deve
fazer da mesma sua aliada, controlá-la, não através de uma força imoderada ou impensada,
mas através da habilidade e flexibilidade política.

REFERÊNCIAS

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

BOBBIO, Norberto. Dicionário de Filosofia Política. Trad.: Carmen C. Varriale


etal. 11ª Ed. Brasília: Ed. UNB, 1998.

______________. Teoria das formas de governo. Tradução: Sérgio Bath. 10ª Ed.
Brasília: Ed. UNB, 1994.

CHAUÍ, Marilena. Filosofia. São Paulo: Ed. Ática, 2000.

MAQUIAVEL, Nicolo. O Príncipe. Tradução Maria Goldwasser. São Paulo: Martin


Fontes, 2008.

SADEK, Maria Tereza. Nicolau Maquiavel: o cidadão sem Fortuna, o intelectual sem
Virtù. Os clássicos da política. Org. Francisco C. Weffort. 4ª Ed. São Paulo: Editora Ática,
1993.

SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo:


Companhia das Letras, 1996.

NOTAS
[1]
Complementa Maquiavel (2008, pg. 26): A tão elevados exemplos, quero
acrescentar outro menor, mas que mantém certa relação com eles e que servirá como modelo
a todos os outros semelhantes: é o de Hierão de Siracusa que, de simples cidadão,
transformou-se em príncipe de Siracusa. Também ele nada recebeu da Fortuna senão a
ocasião. Quando estavam os siracusanos subjugados, escolheram-no para capitão e a partir daí
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mereceu tornar-se seu príncipe. Foi de tamanha Virtù, mesmo quando cidadão particular, que
sobre ele se dizia que quod nihil illi deeerat ad regnandum preater regnunt. Hierão extinguiu a
milícia antiga e organizou uma nova, deixou as amizades antigas e contraiu novas, e assim
que teve seus próprios amigos e soldados pode construir, sobre esta base, todo um edifício;
assim teve muito trabalho para conquistá-lo mas pouco para conservá-lo.
[2]
Quando ao principado Eclesiástico, diz Maquiavel (2008, pg. 53): Agora, resta-nos
somente discorrer sobre os principados eclesiásticos, cujas dificuldades são todas anteriores à
sua posse, porque são obtidos ou por Virtù ou por sorte e são mantidos sem uma nem outra,
pois têm por base antigas instituições religiosas, de tamanho poder e natureza tal, que
conservam seus príncipes no governo, qualquer que seja o modo como procedam e vivam.
Somente eles possuem Estados e não os defendem; súditos, e não os governam; e os Estados,
embora não sejam defendidos, não lhes são tomado; e os súditos, embora não sejam
governados, não se preocupam com isso e não podem separar-se deles; logo, só estes
principados são seguros e felizes. Mas, sendo eles regidos por razões superiores, que a mente
humana não pode alcançar, não falareis sobre eles, pois sendo erguidos e mantidos por Deus,
seria homem presunçoso e temerário se discorresse a seu respeito.
[3]
Observa-se, contudo, que apesar de temido entre os soldados, o príncipe jamais se
deve fazer odiado ou desprezado, o que também é um aspecto da Virtù. Segundo Maquiavel,
o governante de Virtù não deve injuriar a comunidade, utilizando-se da Virtù para jamais ser
odiado ou desprezado. (2008, pg.92)

Interessante observar a tradição política dos autores de “espelhos do príncipe”.


[4]

(Vide Skinner, 1996, pg. 139 e 144) Skinner esclarece tal predomínio do pensamento
monárquico e excessivamente ligado à religião em tais autos
[5]
Vide Skinner, 1996, pg. 139 ss. acerca da superioridade da vida pública em
detrimento da vida priva em Maquiavel.

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