Antrop. Visual

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 401

Olhar In(com)formado

Teorias e práticas da
Antropologia Visual
Una mirada in (con) formada
Teorías y prácticas de la Antropología Visual

Mariano Báez Landa


Gabriel O. Alvarez
Organizadores
Universidade Federal de Goiás Comissão Editorial da Coleção Diferenças
Luis Felipe Kojima Hirano
Reitor
Camila Azevedo de Moraes Wichers
Edward Madureira Brasil
Alexandre Ferraz Herbetta
Vice-Reitora Carlos Eduardo Henning
Sandramara Matias Chaves Janine Helfst Leicht Collaço
Pró-Reitora de Graduação
Flávia Aparecida de Oliveira Conselho Editorial da Coleção Diferenças
Pró-Reitor de Pós-Graduação Centro-oeste: Ellen Woortman (UnB); Maria Luiza
Laerte Guimarães Ferreira Júnior Rodrigues Souza (UFG) e Joana Fernandes (UFG)
Norte: Deise Montardo (UFAM); Gersem Baniwa
Pró-Reitor de Pesquisa e Inovação
(UFAM), Marcia Bezerra (UFPA)
Jesiel Freitas Carvalho
Nordeste: Renato Athias (UFPE), Julie Cavinac
Pró-Reitora de Extensão e Cultura (UFRN), Osmundo Pinho (UFRB)
Lucilene Maria de Sousa Sudeste: José Guilherme Cantor Magnani (USP),
Pró-Reitor de Administração e Finanças Jorge Villela (UFSCAR) e Sérgio Carrara (UERJ)
Robson Maia Geraldine Sul: Sônia Maluf (UFSC), Cornelia Eckert
Pró-Reitor de Desenvolvimento Institucional e Recursos (UFRGS) e Jorge Eremites (UFPEL)
Humanos
Everton Wirbitzki da Silveira
Pró-Reitora de Assuntos da Comunidade Universitária
Maisa Miralva da Silva

Conselho Editorial da Editora da Imprensa


Universitária (*iU)
Coordenação Editorial – Conselho Editorial
Alice Maria Araújo Ferreira
Antonio Corbacho Quintela (Presidente)
Bruna Mundim Tavares (Secretária)
Divina Aparecida Anunciação Vilhalva
Fabiene Riâny Azevedo Batista (Secretária)
Igor Kopcak
Joana Plaza Pinto
João Pires
Pamora Mariz Silva de F. Cordeiro
Revalino Antonio de Freitas
Salustiano Álvarez Gómez
Sigeo Kitatani Júnior
Olhar In(com)formado: Teorias e
práticas da Antropologia Visual

Mariano Báez Landa


Gabriel O. Alvarez
(Org.)

Una mirada in (con) formada. Teorías


y prácticas de la Antropología Visual.

Mariano Báez Landa


Gabriel O. Alvarez
(Org.)
© Editora Imprensa Universitária, 2017.
© Mariano Báez Landa; Gabriel O. Alvarez (Org.), 2017.

Projeto gráfico, editoração eletrônica e capa


Géssica Marques

Imagem de capa
Fotografia por Gabriel O. Alvarez. Ticuna, Umariaçu, 2000.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

L253o Landa, Mariano Báez


Olhar in(com)formado: teorias e práticas na antropologia visual /
Mariano Báez Landa; Gabriel O. Alvarez (Org.). – Goiânia : Editora
da Imprensa Universitária, 2017.
401 p. : 81 il.

Inclui referências

ISBN: 978-85-93380-25-9

1. Estudos antropológicos. 2. Exploração audiovisual. 3. Etno-


grafia. I. Título.

CDU 81:572:37.015.2
Catalogação na fonte: Natalia Rocha CRB1 3054
A Coleção Diferenças é fruto da parceria entre o PPGAS/UFG
e o CEGRAF, que visa a publicação de coletâneas, traduções, teses e
dissertações dos docentes, discentes e pesquisadores não apenas do
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFG, mas
também de outros programas de pós-graduação que dialogam com as
nossas linhas de pesquisa. Essa iniciativa pretende contribuir para a di-
vulgação da produção antropológica contemporânea, desde o Centro-
-Oeste estendendo-se a outras regiões do Brasil, com a diversificação
dos meios de publicação de etnografias, de investigações em diferentes
campos de conhecimento antropológico e de traduções de textos clás-
sicos e inovadores da reflexão antropológica.
Apresentação
Olhar In(com)formado: Teorias e
práticas da Antropologia Visual

Mariano Báez Landa (CIESAS)


Gabriel O. Alvarez (PPGAS/UFG)

Roberto Cardoso de Oliveira se referia ao trabalho do antropó-


logo como olhar, escutar, escrever. Um olhar informado teoricamente
e um escutar orientado para a fusão de horizontes de comunicação no
trabalho de campo, e a inscrição da experiência do campo numa narra-
tiva etnográfica. Ao evocar o autor no título desta coletânea realizamos
um jogo de palavras entre o olhar informado, que remete à teoria e uma
atitude inconformada que se relaciona à procura de novos horizontes
antropológicos com as metodologias da antropologia visual. Teorias
no plural, uma vez que com as crises das meta-narrativas a antropologia
se liberou dos grilhões do positivismo e sua procura por um saber ob-
jetivo, universal, ahistórico enunciado na forma de leis científicas. Esse
inconformismo com os parâmetros positivistas permitiu a emergência
de uma antropologia preocupada com a compreensão, com o retrato de
experiências locais, que tem certa universalidade, com saberes histori-
camente construídos e ancorados em tradições acadêmicas nacionais.
Uma antropologia dialógica que valora os momentos reflexivos (Car-
doso de Oliveira 1988). A antropologia visual não é um frio registro
objetivo, pelo contrário procura se construir como um complexo modo
de comunicação, que envolve valores, empatia e emoções.

6
Hoje a antropologia visual alcançou sua maturidade, deixando
de ser um método auxiliar para ganhar autonomia e desenvolvimentos
teóricos em pé de igualdade com as várias antropologias adjetivadas.
Os meios audiovisuais na prática etnográfica são da maior importância
para a produção e criação do conhecimento antropológico. A inscri-
ção da experiência etnográfica numa narrativa audiovisual não é uma
construção ingênua e tem como pano de fundo complexas questões
teórico-metodológicas.
Esta coletânea reúne artigos de autores brasileiros, mexicanos ou
que tem trânsito no Brasil. Neste sentido a coletânea apresenta as prin-
cipais tendências na antropologia visual fruto de diálogos e encontros
realizados no Brasil e no México, desde o 1º MOVE no PPGAS-UFG
Goiânia 2010, e os Encontros de Cine e Vídeo Etnográfico e Docu-
mental Xalapa 2010, Oaxaca 2012 e Porto Alegre 2014.
O trabalho de Cornelia Eckert e Maria Luiza Carvalho da Rocha,
realiza uma cartografia dos diferentes centros que trabalham antropo-
logia visual no Brasil. O trabalho detalha as diferentes comunidades
de comunicação aglutinadas em núcleos e redes que participam deste
modo de fazer antropologia. A autora apresenta autores chaves e tra-
balhos exemplares para realizar esta tarefa. Este panorama apresenta o
que seja, quiçá, um dos paradoxos deste campo disciplinar na academia
brasileira. Sua institucionalização na forma de núcleos e laboratórios
que funcionam nos principais centros universitários e ao mesmo tem-
po uma baixa institucionalização como cursos específicos.
Neste diálogo, o trabalho de José Ribeiro apresenta a experiência
do curso de mestrado em antropologia visual que funciona na Univer-
sidade Aberta de Portugal. Este curso, na modalidade de educação a
distância é um dos cursos de pós-grado institucionalizado na Europa. No
contexto europeu existem outros cursos de antropologia visual, como o

7
mestrado em antropologia visual na universidade de Barcelona e os cur-
sos de pós-graduação oferecidos em Manchester (mestrado e doutora-
do) e na Noruega. A apresentação do José Ribeiro e a formação da equipe
da Universidade Aberta de Portugal levam a incluir no campo da antro-
pologia visual novos horizontes abertos pela revolução digital, como a
exploração do mundo virtual, um horizonte eminentemente audiovisual,
e a realização de etnografias nos ambientes dos jogos de computação.
A antropologia visual amplia o campo da antropologia e tem
desdobramentos na metodologia de pesquisa, na forma de inscrever as
narrativas etnográficas, no campo de reflexões sobre o fazer etnografia
e a recepção do trabalho por parte do grupo; nos estudos de recepção
e na reflexão realizada a partir de mídias e produtos audiovisuais; nas
transformações introduzidas pelas tecnologias digitais e sua apropriação
por parte de culturas tradicionais.
Gabriel O. Alvarez, no seu artigo, retoma a metáfora de Roberto
Cardoso de Oliveira sobre o fazer antropológico: olhar, escutar e es-
crever, para provocativamente propor que o “olhar”, nesta metáfora se
relaciona com o estilo na antropologia e com a construção do problema
teórico. Para o autor, a prática da antropologia visual como metodologia
se centra no escutar, quando com a câmera tentamos registrar a tradição
a partir dos seus símbolos, performances, rituais, complexas formas de
comunicação que são a matéria prima a partir da qual inscrevemos a
etnografia. Mas fazer antropologia visual, não é sair filmando despreo-
cupadamente para realizar um bonito filme. Fazer antropologia visual
é fazer antropologia com a câmera como médio de inserção no campo.
A câmera abre novas possibilidades de inserção como observador par-
ticipante e permite a criação de diversos canais de troca com o grupo.
O produto audiovisual, tem como pano de fundo uma discussão an-
tropológica, um problema teórico, esse olhar teoricamente informado.

8
O autor apresenta os resultados da sua pesquisa Xamanismo e política
em Huautla, desenvolvida em parceria com CIESAS, na que explorou
a tradição mazateca a partir dos recursos da antropologia visual. Para
dar conta destes diferentes níveis o autor apresenta os diferentes clipes
produto da pesquisa e o problema teórico, antropológico que sustenta
a composição do material audiovisual.
Renato Athias, no seu trabalho, reflexiona sobre a experiência de
trabalhar uma ficção etnográfica junto aos professores indígenas Bani-
wa em São Gabriel da Cachoeira. O autor reflexiona sobre os diferentes
momentos do processo de produção do filme. No artigo ressalta um
primeiro momento reflexivo, onde os baniwas constroem o roteiro do
filme a partir da performance de um mito, que possui variações entre os
diferentes grupos da etnia. A construção do mito a ser atuado implicou
também um segundo momento, onde esse mito foi performado pelos
professores. A diferencia do momento anterior, as atuações fluíram sem
dificuldade, uma vez que o texto tradicional é conhecido pelos perfor-
mers. Com os recursos disponíveis os jovens baniwas representaram o
mito, personificaram animais, ressaltando o caráter social dos mesmos
nas cosmologias amazônicas. A atuação do mito, as performances per-
mite um trabalho de campo onde a câmera opera como disparador do
trabalho coletivo, na atuação e na avaliação do material. Esta dimensão
coletiva muda a relação que a antropologia tradicional construía com
a estratégia do informante chave. Como ressalta Renato Athias, para-
fraseando Jean Rouch, o uso da câmera e a dimensão compartilhada
permitem levantar um tipo de informação qualitativamente diferente
da que emprega a antropologia tradicional. O audiovisual se encontra
mais próximo das culturas tradicionais que o texto escrito, permite um
registro mais preciso dos gestos, dos objetos símbolos, das performan-
ces. Performances e rituais são poderosos aparelhos comunicacionais,

9
dificilmente redutíveis a um texto escrito, mas são susceptíveis de serem
inscritos com recursos audiovisuais e uma metodologia compartilhada.
Alex Vailati apresenta reflexões sobre a realização de um docu-
mentário sobre a Isicathamiya, uma performance, coral, tradicional na
África do Sul. Esta performance musical foi registrada pelo autor na sua
pesquisa na África do Sul. A prática da antropologia visual valora o me-
mento da restituição, quando o pesquisador apresenta seu produto ao
grupo. Neste momento reflexivo, Alex Vailati coloca o dilema entre o
estilo antropológico, câmara na mão, edição sem efeitos visuais, que se
contrapõe ao estilo dos vídeos de Isicathamiya, com abundantesefeitos
visuais e uma sintaxe de videoclipe.
Da prática da antropologia visual como metodologia de pesqui-
sa, a câmera participante e a edição compartilhada pretendem alcançar
como horizonte uma antropologia compartilhada, um produto que
respeite o ponto de vista do outro, considerado como co-autor da pes-
quisa antropológica.
A análise de conteúdo como campo da antropologia visual é o eixo
do artigo de Carmen Rial no qual analisa os estereótipos que estruturam
as mídias publicitarias, com estereótipos de gênero, idade, raça e seu
impacto no público receptor destes conteúdos. Ao analisar a presença
de estereótipos raciais na publicidade se centra num exemplo que con-
trasta a imagem do japonês e do negro como polos que reproduzem a
ideologia de hierarquias sociais, ancoradas na raça, no Brasil. O artigo
analisa também como o discurso de guerra estruturou a mídia americana
depois dos atentados terroristas do 11 de setembro. A analise se centra
na invisibilidade de parte desta “guerra ao terror”, o circo de horrores
criado pelos militares nos centros de tortura, os estupros e humilhações
a que foram submetidos os prisioneiros desta guerra extraterritorial.
Esta análise indica o estupro como uma das estratégias de guerra sofrida

10
pelas mulheres, tanto no oriente médio, como na África e na guerra dos
Balcãs. Estas imagens de horror são censuradas na guerra de imagens que
criam as narrativas heroicas sobre a guerra. A autora analisa as fotos de
estupros de soldados americanos com mulheres muçulmanas e as múlti-
plas significações por traz destas fotografias de guerra, onde as mulheres
tornaram-se vítimas da cruel lógica pretoriana.
Luis Felipe Hirano, na sua análise, entra no campo de pensamen-
to social brasileiro, não a partir da obra de um autor, prática tradicional
da antropologia. Neste caso a estratégia escolhida é analisar a obra de
um ator, o Grande Otelo, ator negro, que com suas performances deu
cara a um Brasil invisibilizado na alta cultura.
Alexandre Fleming e Claudia Turra Magni reflexionam sobre a
experiencia da autora numa oficina de produção de filmes etnobiográ-
ficos. Ao relatar a experiência destas oficinas na França, focaliza o caso
de uma migrante africana retratada no filme A oferenda de Sabia. Neste
artigo se problematiza o trabalho colaborativo na antropologia visual a
partir de três abordagens: a antropologia compartilhada, a estética da
recepção e a restituição. No trabalho a autora contrasta dois momen-
tos, o registro compartilhado com Sabia uma jovem africana de 30 anos
que frequentou a oficina oferecida numa associação de moradores sem
teto. O segundo momento, da edição aconteceu num outro contexto,
no Brasil, com uma comunidade de interpretação ancorada na acade-
mia. Na filmagem, no momento dialógico o filme etnobiográfico per-
formado por Sabia é um ritual pelos seus filhos mortos. O filme coloca
em diálogo duas lógicas, a da sociedade francesa da qual se autoexcluiu
depois da morte do filho, e a da tradição animista africana, presente na
performance do ritual que permite-lhe trabalhar o luto. Ao se centrar
na recepção, junto a um público alvo de 300 alunos, a análise destaca,
por um lado, o estranhamento com as práticas animistas africanas, que

11
tentam traduzir para o contexto brasileiro dos cultos afro-brasileiros;
por outro lado, isto contrasta com a empatia em relação à maternidade
e a dor pela perda do filho.
Verónica Vásquez Valdés apresenta uma experiência de etnografia
visual junto aos índios totonacos no México. A autora, com formação
em artes visuais e antropologia, apresenta a discussão sobre a semiótica
na fotografia e como os princípios teóricos foram usados para analisar
a experiência das fotografias realizadas pelos indígenas. Cabe destacar o
papel da fotografia nestas culturas tradicionais, onde as fotos dos mortos
enfeitam paredes e altares. A expêriencia com estes fotógrafos indígenas
foi catalogada e analisada levando em conta a análise semiótica das foto-
grafias e revela concordâncias e dissonâncias com a fotografia ocidental.
A forma de olhar indígena, onde prevalece o eixo horizontal, aparece
refletido nas fotografias; os gestos do corpo, o distanciamento; a leitura
dos altares a partir da tradição cultural. Por outro lado, alguns aspectos
como o enquadramento a partir do retângulo áureo e certas caraterísticas
da composição da imagem.
O trabalho de Cuxy e Herbetta assinala a recepção dos filmes a
partir do ponto de vista nativo. O trabalho traz uma série de críticas
culturais do ponto de vista dos Krahô, o como se autodenominam
mehi. Num trabalho dialógico, o antropólogo e o realizador indígena
criticam o olhar do branco, Cupe, sobre os rituais indígenas. Uma das
críticas focaliza um filme realizado por brancos que focaliza a figura
do palhaço ritual dos Krahô. O que na lógica do editor de cinema faz
sentido por motivos estéticos produz uma dissonância com o público
nativo. Do ponto de vista nativo, a mistura de palhaços registrados em
rituais registrado em diferentes aldeias atrapalha a compreensão do
ritual. A lógica da tradição Krahô demanda outro tipo de narrativa,
centrada num ritual numa única aldeia, focalizar nos símbolos do ritual

12
antes que no rol de um dos performers. A crítica se apresenta assim
como uma forma de diálogo que permite que os Krahô construam sua
própria narrativa audiovisual do ritual.
Mariano Báez Landa, em seu artigo, aponta para as transforma-
ções do mundo contemporâneo, com a mudança dos discursos inte-
gracionistas do estado nação do século XX; a revolução digital que
permite trabalhar narrativas audiovisuais de forma compartilhada; e
no projeto das universidades interculturais no México, criadas em re-
giões de população maioritariamente indígena. Com as mudanças na
tecnologia da comunicação não se pode pensar um projeto nacional
culturalmente homogêneo, pelo contrário as novas condições criam
circuitos fragmentados onde saberes tradicionais, línguas indígenas
e cosmovisões se difundem nas redes e plataformas de comunicação
tentando expandir a conectividade de coletivos e movimentos que
procuram uma revitalização cultural.
A partir dos trabalhos reunidos neste livro podemos enxergar uma
antropologia visual informada e inconformada com práticas da antropo-
logia de matriz colonial. Os trabalhos aqui reunidos interpelam à antro-
pologia, sua forma de inserção no campo; a antropologia visual como
metodologia orientada para um saber compartilhado, que presta especial
atenção aos momentos reflexivos. Uma antropologia preocupada com
a compreensão e reflexão, tanto no campo, como na academia, na sua
institucionalização, na criação de novas comunidades de comunicação,
interculturais, ancoradas na troca de saberes. Uma antropologia que
pode tomar seu campo de reflexão a partir da experiência, da análise de
filmes, publicidades, espaços virtuais, num mundo em que as populações
tradicionais se apropriam das tecnologias audiovisuais. Uma antropolo-
gia visual inconformada com formas coloniais da disciplina, que desloca
o eixo no estilo de fazer antropologia.

13
Presentación
Una mirada in (con) formada. Teorías
y prácticas de la antropología visual.

Mariano Báez Landa (CIESAS)


Gabriel Omar Alvarez (PPGAS-UFG)

Roberto Cardoso de Oliveira se refería al trabajo del antropólogo


como mirar, escuchar, escribir. Una mirada informada teóricamente,
un escuchar orientado hacia la fusión de horizontes de comunicación
en el trabajo de campo, y una inscripción de la experiencia del campo
en una narrativa etnográfica. Al evocar al autor en el título de este libro,
hacemos un juego de palabras entre la mirada que se remite a la teoría y
una actitud inconformada que se relaciona con la búsqueda de nuevos
horizontes antropológicos con las metodologías de la antropología
visual. Teorías en el plural, una vez que con las crisis de las meta-na-
rrativas la antropología se liberó de los grilletes del positivismo y su
búsqueda por un saber objetivo, universal, ahistórico enunciado en la
forma de leyes científicas. Este inconformismo con los parámetros po-
sitivistas permitió la emergencia de una antropología preocupada por
la comprensión, con el registro de experiencias locales, que tiene cierta
universalidad, con saberes históricamente construidos y anclados en
tradiciones académicas nacionales. Una antropología dialógica que
valora los momentos reflexivos (Cardoso de Oliveira 1988). La antro-
pología visual no es un frío registro objetivo, por el contrario procura

14
construirse como un complejo modo de comunicación intercultural,
que involucra valores, empatía y emociones.
Hoy la antropología visual alcanzó su madurez, dejando de ser
un método auxiliar para ganar autonomía y desarrollo teórico en pie
de igualdad con las varias antropologías adjetivadas. Los medios audio-
visuales en la práctica etnográfica son de la mayor importancia para la
producción y creación del conocimiento antropológico. La inscripción
de la experiencia etnográfica en una narrativa audiovisual no es una
construcción ingenua y tiene como telón de fondo complejas cuestio-
nes teórico-metodológicas.
Este libro reúne artículos de autores brasileños, mexicanos o
que tienen tránsito por Brasil. Presenta las principales tendencias en la
antropología visual, fruto de diálogos y encuentros realizados en Brasil
y México desde el 1º MOVE en el PPGAS-UFG Goiânia 2010, y los
últimos Encuentros Internacionales de Cine y Video Etnográfico y
Testimonial Xalapa 2010, Oaxaca 2012 y Porto Alegre 2014.
Cornelia Eckert y Maria Luiza Carvalho da Rocha, realizan una
cartografía de los diferentes centros que trabajan antropología visual
en Brasil. El trabajo detalla las diferentes comunidades de comunica-
ción aglutinadas en núcleos y redes que participan de este modo de
hacer antropología. Se reseñan autores claves y trabajos ejemplares
para realizar esta tarea. Este panorama presenta lo que es, quizá, una de
las paradojas de este campo disciplinario en la academia brasileña, su
institucionalización en forma de núcleos y laboratorios que funcionan
en los principales centros universitarios pero que no llegan a constituir
programas y cursos específicos.
En este diálogo, el trabajo de José Ribeiro presenta la experiencia
del curso de maestría en antropología visual que funciona en la Uni-
versidad Abierta de Portugal. Este curso, en la modalidad de educación

15
a distancia, es uno de los cursos de postgrado institucionalizado en
Europa. En el contexto europeo existen otros cursos de antropología
visual, como la maestría en antropología visual en la universidad de
Barcelona y los cursos de posgrado ofrecidos en Manchester (maestría
y doctorado) y en Noruega. La presentación de José Ribeiro y la forma-
ción del equipo de la Universidad Abierta de Portugal llevan a incluir
en el campo de la antropología visual nuevos horizontes abiertos por
la revolución digital, como la exploración del mundo virtual, un hori-
zonte eminentemente audiovisual, y la realización de etnografías en los
ambientes de los juegos de computación.
La antropología visual amplía el campo de la antropología y tiene
desdoblamientos en la metodología de investigación, en la forma de
inscribir las narrativas etnográficas, en el campo de reflexiones sobre
el quehacer etnográfico y la recepción del trabajo por parte del gru-
po; también en los estudios de recepción y en la reflexión realizada a
partir de medios y productos audiovisuales y en las transformaciones
introducidas por las tecnologías digitales y su apropiación por parte de
culturas tradicionales.
Gabriel O. Alvarez retoma la metáfora de Roberto Cardoso de
Oliveira sobre el quehacer antropológico: mirar, escuchar y escribir,
para provocativamente proponer que la “mirada” en esta metáfora se
relaciona con un estilo de hacer antropología y con la construcción del
problema teórico. Para el autor, la práctica de la antropología visual
como metodología se centra en el escuchar, cuando con la cámara in-
tentamos registrar la tradición a partir de sus símbolos, performances,
rituales, complejas formas de comunicación que son la materia prima
a partir de la cual inscribimos la etnografía. Pero hacer antropología
visual, no es salir filmando despreocupadamente para realizar una her-
mosa película. Hacer antropología visual es hacer antropología con la

16
cámara como medio de inserción en el campo. La cámara abre nuevas
posibilidades de inserción como observador participante y permite la
creación de diversos canales de intercambio con el grupo. El producto
audiovisual, tiene como telón de fondo una discusión antropológica, un
problema teórico, esa mirada teóricamente informada. El autor presen-
ta los resultados de su investigación Xamanismo y política en Huautla,
desarrollada a partir de una estancia en CIESAS, en la que exploró la
tradición mazateca a partir de los recursos de la antropología visual.
Para dar cuenta de estos diferentes niveles el autor presenta varios clips
producto de la investigación y el problema teórico, antropológico que
sostiene la composición del material audiovisual.
Renato Athias reflexiona sobre la experiencia de trabajar una fic-
ción etnográfica junto a los profesores indígenas Baniwa en San Gabriel
de la Cachoeira. El autor reflexiona sobre los diferentes momentos del
proceso de producción de la película. En el artículo resalta un primer
momento reflexivo, donde los baniwas construyen el guión de la pelí-
cula a partir de la performance de un mito, que posee variaciones entre
los diferentes grupos de la etnia. La construcción del mito a ser actuado
implicó también un segundo momento, donde ese mito fue ejecutado
por los profesores. A diferencia del momento anterior, las actuaciones
fluyeron sin dificultad, una vez que el texto tradicional es conocido
por los ejecutantes. Con los recursos disponibles los jóvenes baniwas
representaron el mito, personificaron animales, resaltando el carácter
social de los mismos en las cosmologías amazónicas. La actuación del
mito, las performances, permite un trabajo de campo donde la cámara
opera como disparador del trabajo colectivo, en la actuación y en la eva-
luación del material. Esta dimensión colectiva cambia la relación que
la antropología tradicional construía con la estrategia del informante
clave. Como resalta Renato Athias, parafraseando a Jean Rouch, el uso

17
de la cámara y la dimensión compartida permiten levantar un tipo de
información cualitativamente diferente de la que emplea la antropo-
logía tradicional. El audiovisual se encuentra más cerca de las culturas
tradicionales que el texto escrito, permite un registro más preciso de
los gestos, de los objetos símbolos, de las performances. Las actuacio-
nes y rituales son poderosos aparatos comunicacionales, difícilmente
reductibles a un texto escrito, pero son susceptibles de ser inscritos con
recursos audiovisuales y una metodología compartida.
Alex Vailati presenta reflexiones sobre la realización de un docu-
mental sobre la Isicathamiya, una actuación musical, coral tradicional
que fue registrada por el autor en su investigación en Sudáfrica. La
práctica de la antropología visual valora el recuerdo de la restitución,
cuando el investigador presenta su producto al grupo. En este momen-
to reflexivo, Alex Vailati plantea el dilema entre el estilo antropológico,
cámara en la mano, edición sin efectos visuales, que se contrapone al
estilo de los vídeos de Isicathamiya, con abundantes efectos visuales y
una sintaxis de videoclip.
De la práctica de la antropología visual como metodología de in-
vestigación, la cámara participante y la edición compartida pretenden
alcanzar como horizonte una antropología compartida, un producto
que respete el punto de vista del otro, considerado como coautor de la
investigación antropológica.
El análisis de contenido como un campo de la antropología visual
es el eje del artículo de Carmen Rial en el que analiza los estereotipos
que estructuran los medios publicitarios, género, edad, raza y su impacto
en el público receptor de estos contenidos. Al analizar la presencia de
estereotipos raciales en la publicidad brasileña, se centra en un ejemplo
que contrasta la imagen del japonés y del negro como polos que repro-
ducen la ideología de jerarquías sociales ancladas en la raza. El artículo

18
analiza también cómo el discurso de guerra estructuró a los medios
estadounidenses tras los atentados terroristas del 11 de septiembre. El
análisis se centra en la invisibilidad de parte de esta “guerra al terror”, el
circo de horrores creado por los militares en los centros de tortura, las
violaciones y humillaciones a que se sometieron los prisioneros de esta
guerra extraterritorial. Este análisis indica la violación como una de las
estrategias de guerra sufridas por las mujeres, tanto en el Oriente Medio,
como en África y en la guerra de los Balcanes. Estas imágenes de horror
son censuradas en la guerra de imágenes que crean las narrativas heroicas
sobre la guerra. La autora analiza las fotos de violaciones de soldados
estadounidenses perpretadas contra mujeres musulmanas y las múltiples
significaciones que traen estas fotografías de guerra, donde las mujeres se
convirtieron en víctimas de la cruel lógica pretoriana.
Luis Felipe Kojima Hirano, en su análisis, entra en el campo del
pensamiento social brasileño, no a partir de la obra de un autor, prácti-
ca tradicional de la antropología, sino del trabajo de un actor llamado
Grande Otelo, actor negro, que con sus actuaciones dio visibilidad a
un Brasil negado para la alta cultura. La perspectiva de Luis Hirano es
desarrollar una antropología del trabajo de actores y directores.
Alexandre Fleming y Claudia Turra Magni reflexionan sobre la
experiencia de la autora en un taller de producción de películas etnobio-
gráficas. Al relatar la experiencia de estos talleres en Francia, se centra
en el caso de una migrante africana retratada en la película La ofrenda
de Sabía. En este artículo se problematiza el trabajo colaborativo en la
antropología visual a partir de tres abordajes: la antropología compar-
tida, la estética de la recepción y la restitución. En el trabajo la autora
contrasta dos momentos, el registro compartido con Sabia una joven
africana de 30 años que frecuentó el taller ofrecido en una asociación de
moradores sin techo. El segundo momento, de la edición se produjo en

19
otro contexto, en Brasil, con una comunidad de interpretación anclada
en la academia. En la filmación, en el momento dialógico la película etno-
biográfica desempeñada por Sabia es un ritual por sus hijos muertos. La
película pone en diálogo dos lógicas, la de la sociedad francesa de la que
se autoexcluyó después de la muerte del hijo, y la de la tradición animista
africana, presente en la performance del ritual que le permite trabajar el
duelo. Al centrarse en la recepción, junto a un público de 300 alumnos, el
análisis destaca, por un lado, el extrañamiento con las prácticas animistas
africanas, que intentan traducir al contexto brasileño de los cultos afro-
brasileños; por otro lado, esto contrasta con la empatía en relación a la
maternidad y el dolor por la pérdida del hijo.
Verónica Vásquez Valdés presenta una experiencia de etno-
grafía visual junto a los indios totonacos en México. La autora, con
formación en artes visuales y antropología, presenta la discusión
sobre la semiótica en la fotografía y cómo los principios teóricos
fueron usados para​​ analizar la experiencia fotográfica realizada por
los indígenas. Cabe destacar el papel de la fotografía en estas culturas
tradicionales, donde las fotos de los muertos adornan paredes y al-
tares. La experiencia con estos fotógrafos indígenas fue catalogada y
analizada teniendo en cuenta el análisis semiótico de su obra y revela
concordancias y disonancias con la fotografía occidental. La forma de
mirar indígena, donde prevalece el eje horizontal, aparece reflejado
en las fotografías; los gestos del cuerpo, el distanciamiento; la lectura
de los altares a partir de la tradición cultural.
El trabajo de Cuxy y Herbetta señala la recepción de las películas
desde el punto de vista nativo. El trabajo trae una serie de críticas cultu-
rales desde el punto de vista de los Krahô, el cómo se autodenominan
mehi. En un trabajo dialógico, el antropólogo y el realizador indígena
critican la mirada del blanco, cupe, sobre los rituales indígenas. Una de

20
las críticas se centra en una película realizada por blancos que enfoca la
figura del payaso ritual de los Krahô. Lo que en la lógica del editor de
cine tiene sentido por motivos estéticos, produce una disonancia con
el público nativo, que considera que la mezcla de payasos registrados
en rituales de diferentes aldeas obstaculiza la comprensión del mismo.
La lógica de la tradición Krahô demanda otro tipo de narrativa, centra-
da en un ritual en un solo pueblo, enfocarse en los símbolos del ritual
antes que en el rol de uno de los ejecutantes. La crítica se presenta así
como una forma de diálogo que permite que los Krahô construyan su
propia narrativa audiovisual.
Mariano Báez Landa apunta en su trabajo las transformaciones
del mundo contemporáneo, con el cambio de los discursos integracio-
nistas del estado nación del siglo XX; la revolución digital que permite
trabajar narrativas audiovisuales de forma compartida; y el fenómeno
de las universidades interculturales en México, creadas en regiones de
población mayoritariamente indígena. Con los cambios en la tecnolo-
gía de la comunicación no se puede pensar un proyecto nacional cul-
turalmente homogéneo, por el contrario las nuevas condiciones crean
circuitos fragmentados donde los saberes tradicionales, las lenguas
indígenas y las cosmovisiones se difunden en las redes y plataformas
de comunicación tratando de expandir la conectividad de colectivos y
movimientos que buscan una revitalización cultural.
A partir de los trabajos reunidos en este libro podemos ver una
antropología visual informada e inconformada con prácticas de una
disciplina de matriz colonial. Los textos interpelan a la antropología y
su forma de inserción en el campo; la antropología visual, como meto-
dología orientada hacia un saber compartido, presta especial atención
a los momentos reflexivos, es una antropología preocupada por la
comprensión y la reflexión, tanto en el campo, como en la academia, en

21
su institucionalización, en la creación de nuevas comunidades de co-
municación intercultural que busquen un diálogo franco y cabal entre
distintos saberes, que puede formar su campo de reflexión a partir de la
experiencia, del análisis de películas, publicidades, espacios virtuales,
en un mundo en que las poblaciones tradicionales se apropian de las
tecnologías audiovisuales para resistir y trascender. Una antropología
visual inconformada con formas coloniales de la disciplina, desplaza el
eje en el estilo de hacer antropología.

22
Sumário

25 PROJETOS, DESAFIOS E CONSOLIDAÇÃO DE UMA LINHA DE


PESQUISA NO BRASIL: ANTROPOLOGIA AUDIOVISUAL
Ana Luiza Carvalho da Rocha
Cornelia Eckert

102 PESQUISA E ENSINO EM ANTROPOLOGIA,


ANTROPOLOGIA VISUAL, ANTROPOLOGIA DIGITAL
José da Silva Ribeiro

145 ANTROPOLOGÍA VISUAL, PERFORMANCES Y HERMENÉUTICA:


EXPERIENCIA DE VER, ESCUCHAR Y PARTICIPAR
EN HUAUTLA DE JIMENEZ (OAXACA, MÉXICO)
Gabriel O. Alvarez

195 ETNOCINEMA, CINEMA INDÍGENA E ANTROPOLOGIA


VISUAL – NOTAS SOBRE ESTRATÉGIAS
METODOLÓGICAS DO FAZER AUDIOVISUAL
Renato Athias

211 O PROCESSO DOCUMENTAL: UMA EXPLORAÇAO


AUDIOVISUAL DA ISICATHAMIYA
Alex Vailati

226 GUERRA DE IMAGENS


Carmen Rial

256 POR UMA ANÁLISE DO ATOR NEGRO NO


CINEMA: NOTAS SOBRE A INTERPRETAÇÃO DE
GRANDE OTELO EM RIO, ZONA NORTE
Luis Felipe Kojima Hirano
293 LEMBRAR, SENTIR E PENSAR: REALIZAÇÃO E
CIRCULAÇÃO DO FILME ETNOBIOGRÁFICO
Alexandre Fleming Câmara Vale
Claudia Turra-Magni

322 MÁS ALLÁ DEL RECUERDO: EL USO DE LA


FOTOGRAFÍA EN EL PUEBLO TOTONACO
Verónica Vázquez Valdés

361 A IMAGÉTICA MEHI: REFLEXÕES INICIAIS SOBRE


RITMOS E IMAGENS CUPE E KRAHÔ
Joel Cuxy
Alexandre Herbetta

379 ANTROPOLOGÍA AUDIOVISUAL Y


COMUNICACIÓN INTERCULTURAL
Mariano Báez Landa
PROJETOS, DESAFIOS E CONSOLIDAÇÃO
DE UMA LINHA DE PESQUISA NO BRASIL:
ANTROPOLOGIA AUDIOVISUAL

Ana Luiza Carvalho da Rocha1


Cornelia Eckert 2

1 Doutora em Antropologia Social com a tese “Le sanctuaire du désordre, l’art de


savoir-vivre des tendres barbars sous les Tristes Tropiques”. Tese de doutorado,
Paris V, Sorbonne, 1994 e pós-doutorado no “Laboratoire d’Anthropologie Vi-
suelle et Sonoredu Monde Contemporaine”, Université Paris VII, em 2001, na
Frei Universität de Berlin, em 2013, e no Centre Pierre Neville/Université Evry
Val d’Essonne/Pari, 2014. Atua como professora colaboradora no Programa de
Pós-Graduação em Antropologia Social/PPGAS/IFCH, da Universidade Fede-
ral do Rio Grande do Sul/UFRGS, e como professora do quadro permanente da
Universidade Feevale/RS, no Programa de Pós-Graduação em Diversidade cul-
tural e Inclusão social e de Processos de Manifestações Culturais. Pesquisadora
do CNPq. Participa do Grupo de Pesquisa Metropolização de Desenvolvimento
Regional/FEEVALE/RS (Novo Hamburgo); do Núcleo de Antropologia Visu-
al/Navisual); do Núcleo de Pesquisa em Culturas Contemporâneas (Nupecs) e
do Banco de Imagens e Efeitos Visuais/Biev/Laboratório de Antropologia So-
cial/Instituto de Filosofia e Ciências Humanas/IFCH/UFRGS (Porto Alegre).
2 Doutora em Antropologia Social com a tese “Une ville autrefois minière: La Grand-
-Combe. Etude d’Anthropologie Sociale. Tome I, II, III”. Tese de doutorado, Paris V,
Sorbonne, 1992 e pós-doutorado no “Laboratoire d’Anthropologie Visuelle et So-
noredu Monde Contemporaine”, Université Paris VII, em 2001, e na Frei Universi-
tät de Berlin, em 2013. Atua como professora no Departamento de Antropologia,
no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, do IFCH, e no Programa
de Pós-Graduação em Ecologia, UFRGS. Pesquisadora do CNPq. Coordena o Nú-
cleo de Antropologia Visual, participa do Núcleo de Pesquisa em Culturas Con-
temporâneas (Nupecs) no IFCH e no Projeto Banco de Imagens e Efeitos Visuais
(Laboratório de Antropologia Social) UFRGS, Porto Alegre.

25
Resumo: O artigo trata da formação do campo conceitual em
Antropologia Audiovisual no Brasil. Aborda, especificamente, a
pesquisa etnográfica com imagens e, através delas, a produção de
conhecimento antropológico na área. A partir do diálogo entre
as produções nacionais e estrangeiras, procura repertoriar a plu-
ralidade de experiências em núcleos de pesquisa neste campo de
conhecimento.
Palavras-chave: Antropologia audiovisual. Antropologia da ima-
gem. Antropologia visual.

Abstract: This article deals with the formation of the conceptual


field in Audiovisual Anthropology in Brazil. It specifically address-
es to ethnographic research with images and, through them, the
production of anthropological knowledge in the area. From the
dialogue between national and foreign productions, it seeks to
reflect the plurality of experiences in research centers in this field
of knowledge.
Keywords: Audiovisual Anthropology. Anthropology of the im-
age. Visual Anthropology.

INTRODUÇÃO

Escrevemos este artigo a partir do contexto acadêmico; mais


precisamente, de nossas atuações como professoras e pesquisadoras
de Antropologia visual (ou audiovisual), da imagem e da antropolo-
gia urbana no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
(PPGAS) do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em Porto
Alegre, Brasil. Neste cenário, coordenamos dois núcleos de pesquisa:
o Núcleo de Antropologia Visual (Navisual) e o Banco de Imagens e

26
Efeitos Visuais (Biev), em que formamos gerações de alunos desde os
anos 90. Nesta trajetória, já descrita em artigos e livros (ECKERT; RO-
CHA, 2006, 2012, 2013, 2014, 2015), enfatizamos uma relação mais
do que constante na formação de novas gerações de pesquisadores em
antropologia: a participação sistemática desta nova geração estudantil
em projetos de caráter público.
O que têm em comum os alunos e as alunas de antropologia
como Fernanda Rechenberg, Paula Biazus, Diogo Dubiella, Douglas
Rosa e Siloé Amorim, afora serem brasileiros, terem seus endereços
publicados em facebook, terem seus curriculum integrado ao sistema
Lattes/CNPq? Elas e eles partilham de uma trajetória acadêmica com
ênfase em antropologia e receberam, em sua formação, o incentivo pe-
culiar da pesquisa em antropologia com linguagens audiovisuais.
Fernanda Rechenberg foi bolsista de Antropologia Visual no
projeto Biev e pesquisadora no Navisual, aluna de mestrado e douto-
rado (RECHENBERG, 2007; RECHENBERG, 2012). Neste período,
atuou em oficinas de editais públicos, financiados pela prefeitura mu-
nicipal, sobre a memória coletiva da população negra em Porto Alegre
com vistas a difundir este patrimônio de narrativas imagéticas da vida
cotidiana em bairros da cidade. Sua atuação na vida pública foi tema de
interpretação em sua tese de doutorado. Hoje, atua como professora
de Antropologia Visual na Universidade de Alagoas e no Museu Théo
Brandão (Maceió, AL).

27
Figura 1 - Imagens e trajetos revelados

Fonte: Rechenberg, 2012.

Paula Biazus foi bolsista de Antropologia Visual no Biev (2003-


2007) ao mesmo tempo em que atuava como professora de fotografia
pinhole em editais públicos ou oficinas do coletivo Grupo Lata Mágica.
Trabalhando com crianças e adultos residentes em periferias pobres na
cidade de Porto Alegre, teve sua experiência relatada e interpretada em
sua dissertação de mestrado (BIAZUS, 2006). Hoje, Paula segue neste
coletivo e é professora universitária em Lajeado/RS.

28
Figura 2 - A lata faz foto? Ah, então a lata é mágica!

Fonte: Biazus, 2006.

Figura 3 - A lata faz foto? Ah, então a lata é mágica!

Fonte: Biazus, 2006.

29
Siloé Amorim, durante a graduação realizada no México e o mes-
trado no curso Multimeios da Universidade de Campinas (Unicamp),
já era um militante da causa indígena quando passou a atuar como
pesquisador no Laboratório Antropologia Visual (Aval) em Alagoas.
Por volta de 1998, líderes do movimento de ressurgência dos índios do
alto sertão alagoano (kalankó, karuazu, koupnka, katokinn) solicitaram
que ele os ajudasse filmando e fotografando os inúmeros eventos dos
grupos. Aos poucos, o antropólogo percebeu que era testemunha e
guardião da memória de um movimento ímpar de sua história. Dispôs-
-se, então, a realizar sua dissertação (AMORIM, 2003) e, logo após,
sua tese de doutorado (AMORIM, 2010), esta última pelo PPGAS/
UFRGS, na linha de pesquisa de antropologia visual e da imagem, ten-
do por projeto a organização e a informatização deste material imagéti-
co, num processo de colaboração e devolução ao movimento indígena
de seu patrimônio etnológico.

Figura 4 - Os kalankó, karuazu, koupnka, katokinn

Fonte: Amorim, 2010.

30
Recentemente ingressados no mestrado de antropologia da PP-
GAS, UFRGS, os alunos Diogo e Douglas Dubiella já consolidaram
suas atuações em políticas públicas na graduação. Diogo, que fez gra-
duação em Ciências Sociais e defendeu seu trabalho de conclusão com
produção fílmica, atua em coletivo de arte e é aluno de mestrado em
antropologia na linha de pesquisa de Antropologia Visual. Desenvol-
veu seu trabalho de conclusão de curso com uma instalação etnográfica
intitulada As mulheres e a fibra: uma instalação etnográfica (DUBIEL-
LA, 2015). Esta instalação, composta de uma exposição de fotografias,
objetos, fibras (reciclagem de pets), expressa com muita sensibilidade
o trabalho das mulheres interlocutoras. Faz parte do trabalho de con-
clusão um filme etnográfico em que as mulheres, organizadas em uma
rede de trabalho informal, são protagonistas, além de ajudarem o autor
a divulgar sua pesquisa. Com o apoio da equipe do Navisual e com o
consentimento do IFCH, a instalação ocupou um dos corredores do
instituto por seis meses. Na defesa do trabalho e na abertura da ex-
poetnografia, as mulheres do grupo Arte & Mãe, moradoras do bairro
Bom Jesus, em Porto Alegre, foram convidadas para expor seu trabalho
comunitário e a experiência de serem interlocutoras de uma etnografia
fílmica partilhada no espaço acadêmico.

31
Figura 5 - Fibras de Garrafa Pet

Fonte: Dubiella, 2015.

Douglas Jacinto da Rosa, kaingang, é atualmente o representante


do estado do Rio Grande do Sul no Conselho Nacional de Política
Indigenista (CNPI/MJC). Graduou-se pela Universidade Federal do
Paraná (UFPR), onde atuou no projeto PET-litoral-Indígenas, um
programa de educação tutorial e conexões de saberes do Ministério da
Educação no Brasil (FREITAS, 2015). Sua formação em Antropologia
Visual (arte, grafismo, música, patrimônio) se entrecruza com múlti-
plas disciplinas como ecologia, gestão ambiental, etnologia indígena e
linguística, política e saúde, etc.
Como relata a coordenadora do projeto PET-litoral-Indígenas,
Ana Elisa de Castro Freitas, orientadora do trabalho de conclusão de
curso do referido aluno, ela própria formada nos quadros do PPGAS/
UFRGS e pesquisadora atuante do Navisual, seus alunos indígenas
transitam entre as coletividades de pertencimento e a academia, entre
múltiplos mundos, ocupando cada vez mais papéis de gestão dos quais

32
antes estavam ausentes e trazem para “o campo da academia categorias
de entendimento”, chaves de classificações êmicas, ampliando a com-
preensão fenomenológica da vida indígena e da vida humana como um
todo (FREITAS, 2015).

Figura 6 - Intelectuais indígenas e a construção


da universidade pluriétnica no Brasil

Fonte: Freitas, 2015.

Poderíamos nos dedicar a um amplo inventário sobre as traje-


tórias de pesquisadores com atuação no Navisual e no Biev, além de
outros núcleos e linhas de pesquisa em âmbito nacional que atuam na
forma de rede de trocas de conhecimento na área da antropologia. Por
enquanto, limitamo-nos a este pequeno rol como introdução a este
artigo, o que nos permite focar, no caso do Brasil, os esforços de for-
mação de pesquisadores no campo da Antropologia Audiovisual, em

33
particular dos que atuam em políticas públicas, com vistas a fortalecer a
luta de seus interlocutores por reconhecimento social e cultural a partir
do entendimento de seu processo de autogestão e autodeterminação.
Nos termos empregados por Cardoso de Oliveira (1998, p.
191-192), com base nos conceitos apelianos3, podem-se interpretar
estas novas modalidades de produção do conhecimento antropoló-
gico como parte de uma ação comunicativa que transcorre, em geral,
num contexto intersubjetivo de argumentação, do qual resultam novas
discursividades no campo da antropologia, tendo por base o reconhe-
cimento de redes com preocupações éticas. São redes que se destacam
por um processo de intersubjetividade, o que, segundo o autor, e de
acordo com Wittgenstein, é um “jogo de linguagem” em que se observa
a exigência de consenso sobre regras e normas de argumentação
intersubjetivamente válidas entre grupos reais – a comunidade dos
antropólogos e a de seus parceiros de pesquisa.
O conhecimento antropológico nos moldes de cooperação
seguiria, assim, uma ética discursiva pela qual os antropólogos e seus
interlocutores de pesquisa se reconhecem mutuamente portadores dos
mesmos direitos de produção de conhecimento sobre si e o mundo4.

3 Inspirando-nos no que aponta Roberto Cardoso de Oliveira, em sua obra O


trabalho do antropólogo, estamos hoje assistindo, na prática da formação dos an-
tropólogos audiovisuais, à criação de uma rede comunicativa que reúne antro-
pólogos e seus parceiros de pesquisa, com a possibilidade de se tornar uma co-
munidade argumentativa. Isto dependerá de conseguirmos situar a produção do
conhecimento antropológico através do uso das linguagens audiovisuais como
atividade pública, que reuniria os dois polos da comunicação.
4 Para o caso das questões de ensino-aprendizagem de uma ética discursiva nas
produções audiovisuais do Biev e Navisual, ver a publicação Antropologia visual
em suas aprendizagens: pesquisa, ensino e questões éticas, Revista Iluminuras,
Publicação Eletrônica do Banco de Imagens e Efeitos Visuais - NUPECS/LAS/
PPGAS/IFCH e ILEA/UFRGS, v. 5, n. 11, 2004. Disponível em: <http://seer.
ufrgs.br/index.php/iluminuras>.

34
Nesta medida, as diversas linhas narrativas, poéticas, estéticas, emoti-
vas e sensíveis que resultam desse processo se apresentariam, no caso
dos povos indígenas, como resultado de uma reinvenção das relações
entre eles e a universidade (FREITAS, 2015).
Ao se manifestar como “teoria vivida” (PEIRANO, 2006), a
Antropologia Audiovisual no Brasil se conforma ao campo de conhe-
cimento em que a formação estimula a atuação dos pesquisadores e
é por ela estimulada, desde a academia, em políticas públicas, permi-
tindo que os “fatos etnográficos” e suas interpretações circulem como
formas de conhecimento não somente entre os muros universitários,
mas sobretudo nos múltiplos mundos públicos. Sobre este assunto,
importa ressaltar que, para se pensar o ensino e a pesquisa dos aportes
audiovisuais aplicados ao campo da produção de conhecimento antro-
pológico, é preciso reconhecer, hoje, tanto na esfera nacional quanto
na mundial, a pluralidade de experimentos em núcleos de pesquisa
e ensino (intensamente relacionadas com ações de política cultural,
como festivais e mostras de vídeos, exposições fotográficas, instalações
e construção de acervos em redes, coletivos, ONG, contemplados com
oficinas, cursos, ateliês, debates, atividades comentadas, etc.).
A exemplo das experiências locais do Navisual e do Biev na
UFRGS5, podemos reconhecer no país esta disposição de atuação em
núcleos de formação e pesquisa em Antropologia Visual e da Imagem.
Queremos aqui explorar esta performance como configuradora de
práticas e saberes que respondem aos desafios de construir projetos
de cooperação intra e extramuros universitários. Antes disso, porém,

5 Sobre o tema, ver o artigo das autoras: Antropologia da imagem no Brasil: ex-
periências fundacionais para a construção de uma comunidade interpretativa,
Revista Iluminuras, Publicação Eletrônica do Banco de Imagens e Efeitos Visuais
– NUPECS/LAS/PPGAS/IFCH, v. 17, n. 41, 2016. Disponível em: <http://
seer.ufrgs.br/index.php/iluminuras>.

35
propomos uma breve retomada da construção deste campo de conhe-
cimento, significativamente transdisciplinar, didaticamente aberto ao
diálogo e a ações extramuros universitários, propício à produção com-
partilhada entre interlocutores destes estudos e as pesquisas de ação
ética que a disciplina sustenta.

1 Antropologia audiovisual, um conhecimento com imagens

Pode-se, de certa forma, argumentar que a produção de conhe-


cimento com imagens, e através delas, sempre se colocou como ars (do
latim: maneira de ser e de proceder) ou como tékne (segundo os gregos,
meios de criar, fabricar ou produzir algo), inovadoras na antropologia,
contribuindo significativamente para um processo efetivo de descolo-
nização do pensamento intelectual antropológico ao problematizar a
natureza política da representação audiovisual do Outro6.
Desde que Margareth Mead (1975), juntamente com Gregory
Bateson, defendeu a capacidade heurística das imagens no campo da
construção do pensamento antropológico a partir de sua experiência
de pesquisa etnográfica com fotografias todo antropólogo que empre-
ga meios audiovisuais em seu trabalho de campo reconhece o vigor da
Antropologia Visual na perturbação das formas canônicas e dos relatos

6 Ver, a respeito, o artigo de ROCHA, Ana Luiza C. da. Tecnologias audiovisuais


na construção de narrativas etnográficas, um percurso de investigação. Revista
Iluminuras - Publicação Eletrônica do Banco de Imagens e Efeitos Visuais - NU-
PECS/LAS/PPGAS/IFCH, v. 5, n. 11, 2004. Disponível em: <http://seer.ufrgs.
br/index.php/iluminuras>.

36
de experiências etnográficas com base na cultura do espaço livreiro7.
Sobre este tema nos debruçamos em outros artigos especialmente de-
dicados à etnografia em outras linguagens, tais como as utilizadas nas
redes digitais e eletrônicas na produção do conhecimento antropológi-
co (ECKERT; ROCHA, 2006).
No Brasil, a linha de pesquisa em Antropologia Visual encontra-
-se consolidada. Assim o expressam inúmeras publicações recentes de
pesquisadores da rede de antropologia visual ou audiovisual, ou visual
e sonora, ou das visualidades e sonoridades, etc. (PEIXOTO, 1995,
1998; CAIUBY NOVAES, 2012; MONTE-MÓR; ECKERT, 1995).
É por considerar a área de conhecimento já consolidada que,
talvez, nos seja permitido indagar, como o fez Sarah Pink (2006), so-
bre o futuro da Antropologia Visual no Brasil, ou mesmo na América
Latina, tendo como contexto as trocas e parcerias acadêmicas com
nossos países vizinhos – Argentina, Chile, Uruguai, Colômbia e Peru.
Na realidade, para abordar o futuro da Antropologia Audiovisual a
autora citada faz uma revisão da trajetória desta área disciplinar em
perspectiva internacional, levando em consideração a qualidade
crítica que a afetou nas últimas décadas no cinema, na fotografia e
nas sonoridades. Para o caso específico deste suporte, a inspiração
acadêmica está mais vinculada a uma produção teórica, conceitual e
metodológica da etnomusicologia (SACHS, 1930; SCHAEFFNER,
1932; SCHAFER, 1977; SEEGER, 1987).

7 A respeito do assunto, ver ROCHA, Ana Luiza C. da. As Novas Tecnologias e o


Campo dos Saberes em Antropologia e As práticas políticas na escrita antropo-
lógica, etnografia em hipertextos e a produção de conhecimento em Antropolo-
gia, ambos os artigos publicados na Revista Iluminuras - Publicação Eletrônica do
Banco de Imagens e Efeitos Visuais - NUPECS/LAS/PPGAS/IFCH/UFRGS, v.
1, n. 1, 2000 e v. 7, n. 16, 2006, respectivamente, e disponíveis on-line: <http://
seer.ufrgs.br/index.php/iluminuras>.

37
Relativamente ao cinema etnográfico (sem citar o de autores
latino-americanos), é comum, na formação de todo antropólogo que
opera no campo da Antropologia Audiovisual, fazer referência a uma
tradição associada a trajetórias de antropólogos cineastas europeus,
americanos e australianos, tais como Jean Rouch, Jean Arlaud, Claudi-
ne de France, David e Judith MacDougall, Patsy Asch, Tim Asch, John
Marshall, Asen Balikci, Luc de Heusch, Peter Crawford, Ian Dunlop,
Robert Gardner, dentre outros.
No campo da produção fotográfica, os nomes mais citados são,
certamente, os de Edward Sheriff Curtis, John Collier e, evidentemen-
te, os de Gregory Bateson e Pierre Verger.

38
Figura 7 - Um Mensageiro Entre Dois Mundos

Fonte: VERGER, Pierre. Um Mensageiro Entre Dois Mundos (Filme). Diretor:


Lula Buarque de Hollanda. 82 min,1998, Brasil, UFRJ.

Estamos nos referindo ao momento inaugural das guerras colo-


niais e seus efeitos sobre o deslocamento do discurso sobre a alteridade
no centro das produções intelectuais e acadêmicas em antropologia.
Um instante singular, no qual o etnógrafo será levado a enfrentar os
dilemas da construção de uma nova ordem mundial, levando-o a se
confrontar cada vez mais com a representação da figura humana do
descolonizado como ser despersonalizado, aculturado, rejeitado, in-
fantilizado, ou até mesmo desumanizado, como aponta Frantz Fanon
(1968) em sua obra Os condenados da terra.
Impossível não reconhecer o contexto de violência no momento
de derrocada dos grandes impérios coloniais do século XX, o qual pre-
cede o trajeto de conformação de um “novo espírito antropológico”, nos

39
termos de Gilbert Durand (1984), à prática da disciplina antropológica
em escala mundial.
De acordo com Jean Paul Sartre, pelo que dele cita Fanon no
prefácio de sua obra, estaríamos diante do “indigenato de elite”. Cai por
terra a invenção de um Outro qualquer à sua imagem e semelhança.
Dessa forma, escreve Sartre: “As bocas passaram a abrir-se sozinhas; as
vozes amarelas e negras falavam ainda do nosso humanismo, mas para
censurar a nossa desumanidade” (1968, p. 2-3).
Estamos nos referindo aos primórdios de uma comunidade in-
terpretativa que está às voltas com o que hoje se denomina “crise das re-
presentações” e, em decorrência, da “emergência de paradigmas reflexi-
vos”, “descolonizadores”, rumo à produção do campo de conhecimento
antropológico. Isto, numa clara alusão à importância de se descontruir
os processos de empoderamento dos saberes e fazeres científicos no
Ocidente moderno e das racionalidades daí derivadas.
Voltamos a nos referir a Sarah Pink, que em 2006 tratava, em es-
pecial, de uma Antropologia Audiovisual orientada a um projeto inter-
disciplinar mais “colaborativo”, em que as linguagens audiovisuais dos
antropólogos procuravam se ligar, se relacionar e se somar aos saberes
e fazeres de seus parceiros de pesquisa.
Este certamente é também o caso da obra de Jean Rouch, um dos
pais fundadores, no campo da produção da Antropologia Visual8, do
filme etnográfico e do conceito de antropologia compartilhada (parta-
gée). Poderíamos dizer, neste sentido, que se tratava de um momento,
no trajeto de formação do campo conceitual da antropologia, em que
o etnógrafo (fotógrafo ou cineasta) se engajava em promover a interati-
vidade entre as diferentes culturas no processo dialógico (antropologia

8 A propósito, ver GONÇALVES, Marco Antônio. O real imaginado: etnografia,


cinema e surrealismo em Jean Rouch. Rio de Janeiro: Topbooks, 2008. 

40
compartilhada) com os seus interlocutores de pesquisa, partindo de uma
promoção de novas formas de participar na construção do conhecimen-
to antropológico. Não versava, necessariamente, de promover uma troca
de conhecimento entre os dois lados (antropologia colaborativa), no
esforço de desmontar as táticas do colonialismo e seu complexo jogo de
relações que unem os antropólogos a seus parceiros de pesquisa.
Não resta dúvida que os conceitos de compartilhamento e de
colaboração se inter-relacionam, isto em razão de ambos se basearem,
no caso da prática do conhecimento antropológico, em diálogos in-
terculturais. Entretanto, vale a pena refletir sobre como tais conceitos
refletem os processos diferenciados de produção de narrativas etnográ-
ficas audiovisuais. No primeiro caso, como afirma Davenport (1998),
estaríamos nos reportando a uma ação comunicacional intercultural,
motivada pela intenção voluntária, e unilateral, de um autor que de-
tém um conhecimento com alguém que não o possui9. No segundo
caso, poderíamos considerar, conforme Argyle (1991), que estamos
operando com a prática da etnografia audiovisual como parte de uma
ação comunicacional intercultural de interesse comum a seus autores,
considerados co-realizadores10.
Apontamos, propositadamente, para esta diferenciação; não por
questões semânticas fúteis, mas para enfatizar o quanto de deslocamen-
to epistemológico implicou para a Antropologia Audiovisual despren-
der-se de seu instante “compartilhado” para o outro, o “colaborativo”.
Este “desprendimento” obriga a prática antropológica, ou o ofí-
cio do etnógrafo, ao diálogo intercultural mais sistemático

9 DAVENPORT, Thomas H. Ecologia da informação: por que só a tecnologia não


basta para o sucesso na era da informação. São Paulo: Futura, 1998.
10 ARGYLE, Michael. Cooperation, basisofsociability. London: Routledge, 1991.

41
É por meio dele que produzir imagens do Outro ultrapassa o pro-
pósito da partilha comum de um sistema de representações para atingir,
no esforço de produzir benefícios mútuos, a feição do conhecimento
que resulta de uma cooperação entre ele e seus parceiros de pesquisa.

2 Política acadêmica e gestão do


conhecimento antropológico

Ao reunir a produção bibliográfica que configura a consolidação


de uma rede interpretativa no Brasil na produção de saberes e fazeres
na área da Antropologia Audiovisual, percebe-se igualmente uma forte
correlação entre a produção intelectual sob a forma de revistas e livros,
a organização de eventos científicos e a constituição da Antropologia
Visual ou Audiovisual em inúmeros programas de pós-graduação no
país como parte de uma luta por uma política acadêmica em prol da vi-
sibilidade e legitimidade desta forma de produção de conhecimento no
campo antropológico, a qual possibilita arranjos mais compartilhados
e de cooperação.
Perscrutar o percurso da Antropologia Visual no Brasil é dar conta
do importante papel das associações científicas, tais como a Associação
Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs),
com reuniões anuais; e a Associação Brasileira de Antropologia (ABA),
com reuniões bianuais; que cedo se tornaram arenas de ação de pes-
quisadores que trabalham com imagens com o objetivo de criar uma
política científica específica para a área da Antropologia Visual. Ambas
as associações tiveram um papel fundamental no reconhecimento de
que os pesquisadores que atuavam nessa área formavam uma rede de
interpretação com demanda de recursos e subsídios junto às organi-

42
zações de fomento ao desenvolvimento de pesquisas e ensino11 em
programas de pós-graduação, tanto quanto junto a organismos não-go-
vernamentais12. Os encontros regulares entre pesquisadores brasileiros
com atuação nesta área foram responsáveis pela formação de uma ativa
rede de antropólogos(as) que têm por característica, ainda nos dias
atuais, uma intensa troca intelectual, seja sob a forma de permuta de
produções entre núcleos, laboratórios e centros de pesquisa, seja de
intercâmbio em eventos científicos, em defesas de dissertações e teses.
Conforme apontamos anteriormente, a década de 1980 foi um
momento privilegiado na abertura da pesquisa antropológica para a pro-
dução audiovisual no país, com repercussões nas formas de construir o
conhecimento em antropologia. Emergem, neste período, nos centros de
pesquisa e programas de pós-graduação, os primeiros cursos universitá-
rios voltados a essa prática e os novos instrumentos audiovisuais.
Dentre os cursos propostos nos sistemas curriculares, destaca-se
a oficina desenvolvida em 1982 pela antropóloga Ana Luiza Fayet em
formação na Universidade de Brasília/UnB, fruto de sua pesquisa de
mestrado sobre a vida e o trabalho de catadores de lixo da periferia de
Brasília. Desse trabalho resultou a produção do audiovisual em coau-
toria com o fotógrafo e antropólogo Milton Guran. Na sequência, em
1984, Maria Eugênia Brandão A. Nunes (Universidade Católica de
Goiás/UCG) desenvolve o curso de especialização Recursos Audiovi-
suais em Etnologia, que se constituía numa revisitação da obra de an-
tropólogos precursores que, no Brasil, haviam utilizado o instrumento
fotográfico ou fílmico em suas pesquisas de campo. A destacar, dentre
eles, a obra de Wolf Jesco von Puttkamer (1919-1994).

11 Especialmente a Coordenação de Aperfeiçoamento do Ensino Superior/Capes e


o Conselho Nacional para o Desenvolvimento Científico/CNPq.
12 Ver mais em: <http://www.videonasaldeias.org.br/2009/index.php>.

43
Figura 8 - Brasília sob o olhar de Jesco

Figura 9 – Linguagem fotográfica e informação

Fonte: Guran, 2000.

44
A expansão da disciplina, por seu turno, nos anos 1990, vem as-
sociada à demanda de jovens estudantes por esta linha de pesquisa nos
processos institucionais de formação que estimulam a criação de cen-
tros de pesquisa em Antropologia Visual. Em 1992, na XXIa Reunião
Anual da Anpocs, esta associação abre espaço à iniciativa de organiza-
ção de uma mostra de vídeos etnográficos, acompanhada de debates,
preferencialmente na presença de seus diretores e equipe participante.
Tal iniciativa, que projeta a formação de uma rede de pesquisado-
res na área audiovisual nas ciências sociais no Brasil, se deve à liderança
das pesquisadoras Bela Feldman-Bianco (Unicamp/SP) e Ana Galano
(UFRJ/RJ), pioneiras nos esforços de promover, de uma forma mais
abrangente e duradoura, a produção sistemática de pesquisa audiovi-
sual nos cursos de antropologia nos moldes do que aqui denominamos
comunidade de argumentação, seguindo Roberto Cardoso de Oliveira
(1985) quando trata do tema dos diversos estilos do fazer antropológico.
Um exemplo deste processo foi a realização, em 1993, do se-
minário temático “Ciências Sociais & Imagem”, ocasião em que se
inaugurou um grupo de trabalho sobre “Usos da imagem nas Ciências
Sociais”. Na trilha da popularização da pesquisa com imagens no cam-
po das ciências sociais, o GT se reapresenta nas reuniões da Anpocs.
De 1994 a 1996, segue sob a coordenação de Bela Feldman-Bianco e
Ana Maria Galano. Para consolidar a continuidade do debate, as pes-
quisadoras organizaram, em 1996, a formação da rede de Antropologia
Visual em uma reunião da Anpocs. Ampliava-se a abrangência da rede
brasileira de antropólogos audiovisuais, agora com a participação de
pesquisadoras das mais diversas universidades. Registra-se o esforço
do pesquisador Mauro Koury (1997), da UFPB/PB, ao elaborar uma
enquete sobre a produção audiovisual na pesquisa social brasileira.

45
Figura 10 - Usos da imagem nas Ciências Sociais

Fonte: Koury, 1997.

Figura 11 - Imagem e Memória

Fonte: Koury, 1997.

46
Figura 12 - Imagens & Ciências Sociais

Fonte: Koury, 1997.

Os pesquisadores desta rede de antropólogos, sociólogos, cien-


tistas sociais e cientistas políticos passaram a compor a Comissão de
Imagem e Som da Anpocs, com a responsabilidade de articular propos-
tas temáticas de mesas redondas e estimular a participação sistemática
dos membros associados em grupos de trabalho de produção audiovi-
sual em ciências sociais, mostras de filmes, documentários, exposições
fotográficas e sessões de pesquisas sonoras.
Por ocasião da XIXa edição da Reunião Brasileira de Antropolo-
gia ocorrida em 1993, em Niterói/RJ, na gestão do presidente Silvio
Coelho dos Santos (UFSC/SC), foi organizada pela primeira vez uma
mesa de debates sobre questões éticas na pesquisa audiovisual em

47
antropologia. Dela participaram Patrícia Monte-Mór, Renato Athias,
Cornelia Eckert, Clarice Peixoto e Etienne Samain, entre outros. En-
tretanto, foi na reunião da ABA realizada em Salvador/BA (1996) e
organizada sob a presidência do antropólogo João Pacheco de Oliveira
Filho (UFRJ/RJ), que foi promovido o primeiro prêmio para vídeo
etnográfico, alcunhado de Prêmio Pierre Verger.
O esforço de agenciamento da Antropologia Visual, mais uma
vez, está sob a batuta de Bela Feldman-Bianco, apoiada pelo orga-
nizador do evento, o antropólogo Carlos Caroso. Nesta ocasião, na
presidência da comissão de avaliação estava o antropólogo e cineasta
francês Marc Henri Piault (CNRS/França). O primeiro documentá-
rio premiado se intitulava “Yãkwá, O Banquete dos Espíritos”, sob a
direção da antropóloga Virgínia Valadão (1952-1998), produzido no
âmbito do projeto “Vídeo nas Aldeias”, na época vinculado ao Centro
de Trabalho do Indigenista de São Paulo.

Figura 13 - Vídeos nas Aldeias

Fonte: Valadão, 1998.

48
Naquele momento, integravam a programação inúmeras atividades
sobre o tema do uso de recursos audiovisuais para a produção do conhe-
cimento em antropologia. Sob a coordenação de Clarice Peixoto e Cor-
nelia Eckert, formaram-se grupos de trabalho, mesas redondas, oficinas
de vídeo etnográfico, mostras livres de fotografias e mostras de vídeos. O
troféu do prêmio só foi criado na gestão de Miriam Pillar Grossi, por oca-
sião da XXVa Reunião Brasileira de Antropologia/RBA, em Goiânia/GO,
quando a presidente da comissão do Prêmio Pierre Verger, a antropóloga
Ana Luiza Carvalho da Rocha, apresentou a estatueta Fatumbi, criada
pelo escultor e artista plástico Nico Rocha (Porto Alegre/RS).
Não por acaso foram lançados dois livros, organizados sob a for-
ma de coletânea, por meio dos quais se divulgava, na rede brasileira de
antropólogos audiovisuais, a produção destes momentos efervescentes
de debate na área. Referimo-nos, primeiramente, à publicação de Desa-
fios das Imagens: fotografia, iconografia e vídeo nas ciências sociais, orga-
nizada por Bela Feldman-Bianco e Miriam Moreira Leite (1998). Esta
obra faz, em sua apresentação, uma homenagem à Associação Nacional
de Pesquisadores em Ciências Sociais/Anpocs, como instituição que
cria um importante espaço acadêmico de circulação de conhecimento
da pesquisa com imagens, com o apoio de Alícia Abreu e Flávio Pieruc-
ci, então membros da diretoria da instituição. A obra também aponta
outras mostras de vídeos e fotografias, jornadas e seminários que foram
fundamentais para a consolidação da Antropologia Visual como área
de produção de conhecimento.

49
Figura 14 - Desafios das Imagens

Fonte: Feldman-Bianco; Leite, 1998.

Outra publicação que destacamos é o livro Imagem em foco, or-


ganizado por Cornelia Eckert e Patrícia Monte-Mór (1999), com os
resultados das pesquisas apresentadas no grupo de trabalho de Antro-
pologia Visual desenvolvido na XXIa Reunião Brasileira de Antropo-
logia, em Vitória/ES, na gestão da presidente Mariza Correa. Neste
livro, a antropóloga e cineasta Virgínia Valadão relata o processo de
construção do seu documentário premiado.

50
Figura 15 - Imagem em foco

Fonte: Eckert; Monte-Mór, 1999.

Em mais uma reunião da Anpocs, em 1999, em uma assem-


bleia da ABA, institucionaliza-se o Comitê de Antropologia Visual,
criado na gestão do presidente Ruben George Oliven (UFRGS), que
responde favoravelmente à reivindicação encaminhada durante o
evento, em Caxambu/MG (1999), tendo por primeira coordenadora
a antropóloga Patrícia Monte-Mór (2000-2002), seguida de Cornelia
Eckert (2002-2004), Renato Athias e Carmen Rial (2004-2006), Re-
nato Athias (2006-2008), Clarice Peixoto (2008-2010), Claudia Turra

51
Magni (2010-2012), Paula Morgado (2012-2014) e Marcos Alexandre
dos Santos Albuquerque (2014-2016).

3 A rede interpretativa da antropologia visual no Brasil

Pensar um futuro para a Antropologia Audiovisual brasileira (e/


ou latino-americana) significa abordar o potencial de colaboração e
agregação com que vem sendo praticado o uso dos recursos audiovi-
suais na formação das mais recentes gerações de pesquisadores de an-
tropologia. Debruçando-nos sobre a produção dos diversos núcleos de
pesquisa, encontramos uma produção sistemática de trabalhos audio-
visuais baseados em práticas diversificadas de produção de etnografias
audiovisuais politicamente engajadas na convergência entre a pesquisa
e o ensino, como testemunha, a respeito do tema, o livro Antropologia
visual: perspectivas de ensino e pesquisa (2014), organizado por Ana Lú-
cia Camargo Ferraz e João Martinho de Mendonça.

52
Figura 16 - Antropologia visual

Fonte: Ferraz; Mendonça, 2014.

Certamente, durante o percurso, precisaremos levar em conta


o acesso dos pesquisadores em seus processos de formação em tais
núcleos, aos recursos tecnológicos cada vez mais sofisticados e interati-
vos obtidos por eles por meio de financiamento de fundações e institui-
ções municipais, estaduais e nacionais de amparo à pesquisa (CNPq,
CAPES). Da mesma forma, devemos pensar o compromisso de muitos
destes pesquisadores na produção de conhecimento no âmbito da an-
tropologia, tendo por campo de investigação o processo de acesso às
etnografias audiovisuais pelo uso de tecnologias de livre circulação de
informações, tais como blogs, sites, etc.
Não muito tempo atrás, quando nós, pesquisadores brasileiros
de antropologia e sociologia, nos encontrávamos bianualmente nas
reuniões brasileiras de antropologia (Reunião Brasileira de Antropolo-

53
gia/RBA), reuniões latino-americanas, como a Reunião de Antropolo-
gia Mercosul (RAM), ou anualmente na reuniões de pesquisadores em
ciências sociais (Anpocs), ou, ainda, em outros eventos criados desti-
nados a congregar pesquisadores na área da Antropologia Audiovisual
(mostras de filme etnográfico, jornadas de antropologia visual, etc. ),
tínhamos por meta discutir um sentido comum de produção audiovi-
sual ainda emergente.
Tratava-se de refletir sobre uma política singular em defesa dos
processos de produção de etnografias audiovisuais no âmbito da distri-
buição de saberes e fazeres que abarcasse o campo da produção antro-
pológica brasileira, que incluísse vídeos etnográficos, ensaios etnofo-
tográficos ou fotoetnográficos, etnografias em hipermídias, etnografias
sonoras, etc. Naquele momento, final dos anos 1980, tratava-se de dar
visibilidade, na academia brasileira, às diferentes maneiras de se fazer
pesquisas etnográficas no Brasil pelo uso de recursos audiovisuais por
meio da promoção de encontros entre núcleos de pesquisa das mais
diversas universidades do país.
Fruto desses encontros, mostras, simpósios e seminários foi a
profusão de publicações, na década seguinte, destinadas a sistematizar
as práticas da Antropologia Audiovisual brasileira, envolvendo o diálo-
go com obras estrangeiras traduzidas para a língua portuguesa. Todavia,
essa produção intelectual brasileira dispunha, paradoxalmente, do es-
paço livreiro como lugar no qual a comunidade interpretativa defendia
sua emancipação e autonomia em relação às formas mais tradicionais
de expressão do pensamento antropológico, como o registro escrito.
É interessante registrar que, em decorrência deste instante
inaugural da Antropologia Audiovisual brasileira como parte integran-
te da formação acadêmica do antropólogo no Brasil, este campo foi
incluído no ensino de graduação de ciências sociais e/ou antropolo-

54
gia tanto quanto do ensino de pós-graduação. A partir de então, toda
produção intelectual no formato de livros, revistas e artigos sobre o
assunto começa a ser incorporada a todo um processo acadêmico de
ensino-aprendizagem mais ortodoxo.
Concomitantemente aos encontros sistemáticos que reuniam
antropólogos oriundos de diversas instituições acadêmicas e à criação
de disciplinas em programas de pós-graduação em antropologia social
e graduação em ciências sociais, assiste-se à consolidação do campo da
Antropologia Audiovisual no Brasil pela disseminação dos postulados de
uma antropologia compartilhada no sistema de práticas promovidas por
organizações da sociedade civil que vinham atuando, principalmente, na
defesa das minorias étnicas, como, por exemplo, o Projeto Vídeo nas Al-
deias, do Centro de Trabalho Indigenista (em São Paulo, na época, CTI).
Na esteira do trajeto de uma política de visibilidade para o campo
da Antropologia Audiovisual no Brasil, criam-se as primeiras linhas de
pesquisa nos programas de pós-graduação em antropologia social, res-
ponsável pela formação de um número significativo de pesquisadores.
Sobre o tema, inúmeras publicações acabaram sendo produzidas nos
anos subsequentes, no esforço de se refletir sobre os saberes e fazeres
da Antropologia Audiovisual no país na forma de revistas (PEIXOTO,
1995; ECKERT; GODOLPHIM, 1995) e os mais diversos livros (EC-
KERT; MONTE-MÓR, 1999; FELDMAN-BIANCO; MOREIRA
LEITE, 1998); mais recentemente, ainda sob esta influência, foram
produzidos os estudos de Cornelia Eckert e Ana Luiza C. da Rocha
(2016) e Sylvia Caiuby Novaes (2010).

55
Figura 17 - Envelhecimento e imagem

Fonte: Peixoto, 1995.

56
Figura 18 - A preeminência da imagem e do imaginário nos
jogos da memória coletiva em coleções etnográficas

Fonte: Eckert; Rocha, 2016.

57
Figura 19 - Escritura da imagem

Fonte: Novaes, 2010.

Naquele momento, tratava-se de tornar manifestos os “campos


semânticos” de um percurso intelectual (DE CERTEAU, 1996) a res-
peito do qual podemos delinear não apenas um discurso sobre saberes
e fazeres da Antropologia Visual no Brasil com base na dinâmica de
núcleos de pesquisa, mas a inserção progressiva dos antropólogos em
ONG, fundações, institutos e associações em torno das quais os movi-
mentos sociais no país se organizavam. O esforço em torno da promo-
ção de uma política de visibilidade para as produções de Antropologia
Audiovisual por uma parcela da comunidade interpretativa de antropó-
logos brasileiros converge com o instante da cena cultural nacional em

58
que se consolidava o processo de redemocratização, tradicionalmente
avesso a toda ordem de conflitos (sociais, sexuais, étnicos, raciais, etc. ).
Por um lado, nos anos 80, conforme aponta Ruben Oliven
(1989), os antropólogos que pautavam suas pesquisas no uso dos
recursos audiovisuais compartilhado com seus parceiros de pesquisa
enfrentavam alguns dilemas éticos no tratamento da violência fun-
dacional no coração da cultura brasileira. Referimo-nos aqui às suas
preocupações com as formas de produção e geração da imagem do
Outro e os mecanismos neocoloniais de promover sua subordinação e
exploração, numa polarização de saberes eruditos e saberes populares.
Operando com recursos tecnológicos que derivam da inserção do país
numa nova ordem mundial, a da globalização, os antropólogos “her-
deiros dos anos de chumbo”, tanto quanto outros intelectuais e artistas
dialogavam com referências cognitivas acerca da “cultura popular” (na
visão do oprimido colonial, ao qual atribuem a identidade da cultura
brasileira) como inferior, submissa, ou alienada, conforme destaca
Renato Ortiz (1985). Por outro, nos anos 90, a antropologia, a meio
caminho entre a reflexividade acadêmica e a reflexividade política, en-
tra em sintonia com o processo de redemocratização do Brasil.
Arriscamo-nos a afirmar que a produção da Antropologia Audiovi-
sual brasileira confronta, neste instante preciso, a unidade totalizante dos
discursos de dominação e de poder associada às formas de expressão da
“situação colonial” na construção da identidade nacional do país, patriar-
cal, branca, escravocrata, elitista e católica em seu teor, que se fragmenta
em discursividades plurais de inúmeros herdeiros das brutalidades dos
“oprimidos coloniais” (FANON, 1968 ) de outras épocas.
Nos anos subsequentes, em decorrência dos saberes e práticas da
Antropologia Audiovisual já clássicos, o advento das tecnologias agrega
um valor fundamental. Numa civilização da imagem e do consumo da

59
imagem do Outro, com o desenvolvimento tecnológico das mídias
digitais e eletrônicas, sua disseminação irrestrita na prática acadêmi-
ca amplifica a capacidade dos antropólogos em compartilhar, criar e
prover conhecimento13 com base num processo dialógico intercultural,
tendo por suporte a colaboração com os parceiros de pesquisa, antes
denominados “informantes”.
Os temas da cidadania, dos direitos humanos e das minorias,
da exclusão social, entre outros, invadem a cena pública da sociedade
brasileira e se desdobram em inúmeros movimentos sociais relevantes,
nos quais os antropólogos, cada vez mais, passam a atuar juntamente
com seus parceiros de pesquisa. No campo da Antropologia Audiovi-
sual brasileira, prossegue o reexame dos discursos científicos e estéticos
sobre a alteridade, agora numa crítica cada vez mais eficiente e eficaz à
racionalidade do discurso antropológico ocidental. O caso do CTI de
São Paulo foi exemplar, neste sentido. Criado em 1979, abrigou um dos
mais importantes projetos de produção audiovisual junto aos grupos
indígenas no Brasil, o projeto Vídeo nas Aldeias (1986), que se trans-
formou, nos anos mais recentes, em uma ONG, com sede em Olinda/
PE, ameaçado em sua continuidade, desde 2016, por cortes financeiros
de apoio ao projeto por instituições brasileiras.

13 A respeito, ver, RIBEIRO, José da Silva. Antropologia visual, práticas antigas e


novas perspectivas de investigação. Revista de Antropologia, v. 48, n. 2, p. 613-
648, 2005.

60
Figura 20 - Vídeo nas Aldeias

Fonte: Vincent Carelli, 1986.

4 Consolidação de um campo científico

Atualmente, as produções com imagens conformam, no Brasil,


um campo científico de envergadura. Nos programas de mestrado e
doutorado em antropologia proliferam os cursos de Antropologia Vi-
sual, Antropologia Audiovisual, Antropologia Fílmica, Fotoetnografia
(ACHUTTI, 1997, 2004), Antropologia e Imagem Visual e Sonora, etc.
O reconhecimento da pesquisa e do ensino da antropologia visual no
Brasil atinge um grau de solidez no momento em que este campo de co-
nhecimento, pela mobilização dos pesquisadores da área, passa a integrar
oficialmente a política científica de fomento à pesquisa e ensino (Capes e
CNPq), sendo o movimento acompanhado de uma produção de artigos

61
e livros fundamentais para a sua consolidação nos moldes de uma rede
interdisciplinar de pesquisadores e professores atuantes na área.
Neste percurso, as primeiras publicações eram recebidas com
ansiedade pelos professores de Antropologia Visual, dada a carência
de bibliografia para o desenvolvimento de programas de aulas. Desta-
camos a publicação “Caderno de textos, Antropologia Visual” (1987),
por conter os debates ocorridos no II Festival Latino-Americano de
Cinema dos Povos Indígenas, organizado por Cláudia Meneses (Mu-
seu do Índio/RJ), por Patrícia Monte-Mór (UFRJ) e Milton Guran
(UnB). Participaram da publicação professores e pesquisadores do
Programa de Pós-Graduação em Multimídia/Unicamp; dentre eles,
dois expoentes da pesquisa na interface da antropologia e fotografia no
país, Etienne Samain e Fernando de Tacca. A publicação aborda os de-
safios do campo da pesquisa em antropologia visual no Brasil, com foco
no tratamento da questão indígena no contexto nacional, apontando as
diferenças, por exemplo, no uso de fotografias em trabalhos antropo-
lógicos e em documentários com finalidade testemunhal e ilustrativa.

62
Figura 21 - Caderno de textos, Antropologia Visual

Fonte: Meneses; Monte-Mór; Guran, 1987.

Acompanhando as primeiras iniciativas de publicações sobre a


pesquisa antropológica com imagem, surgem outras dedicadas ao de-
bate em torno da pesquisa em acervos fotográficos e fílmicos para o
campo dos estudos precursores de antropologia e etnologia no Brasil.
Como parte dessa linhagem editorial, constam os estudos sobre o uso
das fotografias de acervos incorporados à pesquisa científica. Dentro
dela, destacamos o livro de Miriam Moreira Leite (1983), da USP/
SP, como paradigmático sobre o tema da memória coletiva no Brasil.
A obra trata das contribuições dos estudos dos álbuns de famílias de
imigrantes de diversas origens vindos para São Paulo (1880-1930).

63
Figura 22 - Retratos de Família

Fonte: Leite, 1983.

No diálogo com as novas tendências do mercado editorial, des-


pontam as primeiras publicações dos antropólogos que refletem sobre
as contribuições de obras fílmicas, como a de Luiz Thomaz Reis, militar
que atuou no projeto de pacificação do projeto Marechal Rondon junto
às sociedades indígenas brasileiras na década de 1890 para o campo da
produção antropológica audiovisual no Brasil, vindo a constituir tema
da tese de doutoramento de Fernando de Tacca (2001). Na mesma
perspectiva, importantes publicações colocam em destaque a produ-
ção de fotografia de precursores de estudos etnológicos e populações
afro-brasileiras, como as obras de Claude Lévi-Strauss (1994) sobre os
bororo no Brasil, Darcy Ribeiro (1996), Luiz de Castro Faria (2001) e
Pierre Verger (2002).

64
Figura 23 - A imagética da Comissão Rondon

Fonte: Tacca, 2001.

Concomitantemente à consolidação do campo intelectual da


Antropologia Visual no Brasil, ocorria seu processo de inserção no
cenário internacional, com atuação expressiva de Patrícia Monte-Mór
e José Inácio Parente (Interior Produções Ltda.), em 1993, à frente
da organização da 1a Mostra Internacional do Filme Etnográfico, que
reuniu no Rio de Janeiro intelectuais, cineastas e antropólogos de des-
taque nacional e internacional do cinema etnográfico (Brasil, Estados
Unidos, França, Inglaterra, Alemanha, Argentina, Canadá, Cuba, Japão,
Peru, entre outros).

65
Figura 24 - Cinema e antropologia

Fonte: Monte-Mór; Parente, 1993.

Com inspiração em festivais, como o Bilan du film ethnographi-


que/França, dirigido por Jean Rouch, o Margaret Mead film and vídeo
festival e o Native american film festival/EUA, e seguindo os passos do
gênero francês documentaire sur le grand écran, foram destaque da 1a
Mostra as produções pioneiras de Luiz Thomaz Reis e o projeto “Ví-
deo nas Aldeias” do CTI/SP, de Vincent Carelli, Dominique Gallois
e Virgínia Valadão, ao lado dos filmes etnográficos de Robert Flaherty
(Estados Unidos), Marcel Griaule (França), John Grierson (Inglater-
ra), Jean Rouch (França), Robert Gardner (Estados Unidos), Tim Ash
(Estados Unidos), John Marshall (Estados Unidos) e David MacDou-
gall (Estados Unidos), entre outros.

66
Figura 25 - 2ª Mostra internacional do filme etnográfico

Além do tradicional catálogo, esta mostra dá origem a uma


publicação organizada por Patrícia Monte-Mór e José Inácio Parente
(1994), que reunia os principais tópicos debatidos durante os seminá-
rios que compunham a programação do festival. A partir da experiência
bem-sucedida, novas edições do festival prosseguem até os dias atuais,
sempre apresentando filmes etnográficos clássicos e contemporâneos.
De 1995, podemos destacar o lançamento do periódico científico
“Cadernos de Antropologia e Imagem”, organizado por Patrícia Monte-
-Mór e Clarice Peixoto (ambas da UERJ/RJ), com importantes artigos
de antropólogos visuais brasileiros e de pesquisadores e profissionais
da área da produção audiovisual do cenário internacional, traduzidos
para a língua portuguesa. O periódico desempenhou importante papel

67
ao promover a circulação da produção de conhecimento na área da An-
tropologia Visual, fomentando de forma efetiva o acesso à bibliografia
especializada nos cursos de graduação e em programas de pós-gradua-
ção brasileiros. Material igualmente riquíssimo para os pesquisadores
envolvidos com o estudo temático em diversos núcleos de pesquisa
em Antropologia Audiovisual no país, como São Paulo, Rio de Janeiro,
Porto Alegre, Recife, Florianópolis, Natal, Goiânia, Fortaleza e, mais
recentemente, Brasília, Belém, Manaus, Salvador, Niterói, Pelotas, Rio
Tinto e João Pessoa, e outros.

Figura 26 - Cadernos de Antropologia e Imagem

Fonte: Monte-Mór; Peixoto, 1995.

68
As jornadas que reúnem latino-americanos igualmente pro-
movem o debate da rede de pesquisadores. Primeiramente citamos a
iniciativa da 1a e a 2a Jornadas de Antropologia Visual, realizadas em
Porto Alegre/RS, respectivamente nos anos 1992 e 1994. Mas já a
partir de 1995, as jornadas se transformam em grupos de trabalhos/
GTs, simpósios, mesas, exposições e mostras (vídeo, som, multimídia)
nas Reuniões de Antropologia do Mercosul (RAM). Assim, desde a 1a
Reunião de Antropologia Mercosul/RAM, realizada em Tramandaí/
RS/Brasil e na 2a Reunião de Antropologia Mercosul/RAM, que trans-
correu em Piriápolis/Uruguai, as jornadas de Antropologia Visual são
uma constante nestes eventos internacionais (no Brasil, na UFRGS,
UFSC e UFPR), no Uruguai e na Argentina. Mais recentemente, o
mesmo processo é dinamizado nas Reuniões Equatoriais de Antropo-
logia, em sua quarta edição, realizadas em universidades nas Regiões
Norte e Nordeste do Brasil.

Figura 27 - 1a Jornada de Antropologia Visual

69
Figura 28 - 2a Jornada de Antropologia Visual

5 Da produção escrita, circulação do conhecimento

As fecundas “interlocuções transdisciplinares”, no que se refere


ao uso de linguagens visuais nas pesquisas em ciências sociais ocorridas
durante os grupos de trabalho nos eventos nacionais, resultaram em fru-
tíferas publicações. Nos programas de pós-graduação em antropologia
social, a linha de pesquisa de antropologia visual passa a receber incenti-
vos nas estruturas curriculares.
O campo da antropologia visual se consolida, em especial, pelo
alargamento de núcleos que despontam como importantes centros de
estudos sobre o uso dos recursos audiovisuais na pesquisa antropológica
do país e, em seu âmbito, as inúmeras publicações. Pioneiro no Brasil, o
Laboratório de Imagem e Som em Antropologia (Lisa) é fundado, em

70
1991, por Sylvia Caiuby Novaes e Miriam Moreira Leite no contexto da
USP/SP. Nesse laboratório, temos a publicação de Sylvia Caiuby Novaes
(1993). A antropóloga divulga sua experiência de trabalho de campo
com as sociedades brasileiras, especialmente os bororo (coletivo indíge-
na que habita o estado do Mato Grosso, no Brasil), abordando o contato
de tais populações com outras sociedades e as mudanças socioculturais
daí decorrentes. No Rio Grande do Sul, o Navisual foi criado em 1992,
como projeto integrante do Laboratório de Antropologia Social (LAS/
PPGAS/UFRGS), sendo reconhecido, em ata de 1994, pelo Departa-
mento de Antropologia como núcleo de antropologia visual. Desde
então, tem sido coordenado por Cornelia Eckert.

Figura 29 - Revista Horizontes Antropológicos

Fonte: Eckert; Godolphim, 1995.

71
Como fruto dos debates transcorridos ao longo de jornadas de
Antropologia Visual, vários papers foram publicados em um volume da
Revista Horizontes Antropológicos, do PPGAS/UFRGS, dedicado ao
tema da antropologia visual (ECKERT; GODOLPHIM, 1995), com ar-
tigos de uma nova geração de pesquisadores. Na linha editorial, mencio-
namos o livro organizado por Luiz Eduardo Achutti (1998), a partir de
um simpósio promovido pela Secretaria Municipal de Cultura de Porto
Alegre/RS, cujo tema foi o ato fotográfico. A obra oferece importantes
reflexões de várias gerações de fotógrafos, antropólogos, sociólogos e
comunicólogos sobre o uso da fotografia na prática das ciências sociais.

Figura 30 – Ensaios sobre o Fotográfico

Fonte: Achutti, 1998.

72
A tradição de vincular evento científico em antropologia visual a
alguma publicação impressa ou eletrônica passa a ser uma assertiva ver-
dadeira. É importante, porém, considerar que o diálogo não se restrin-
ge a uma comunidade de antropólogos. Antes, a pesquisa com imagem
é cada vez mais interdisciplinar. Várias publicações testemunham esta
onda de trocas como uma linha editorial eficaz. Neste campo, destaca-
mos a coletânea organizada por Etienne Samain (2004), reunindo 26
ensaios de profissionais de diferentes áreas de conhecimento por seus
esforços em decifrar os múltiplos significados do uso da fotografia na
tradição da pesquisa antropológica desde suas origens.
A política editorial de dissertações e teses defendidas nos pro-
gramas de pós-graduação brasileiros teve, sem dúvida, um papel signi-
ficativo na divulgação de trabalhos com pesquisas etnográficas e etno-
lógicas com produção de imagens visuais e sonoras. No Programa de
Pós-Graduação em Antropologia Social (UFRGS), citamos a primeira
dissertação do programa, de Ondina Fachel Leal (1986). Fotografias
integram as interpretações dos dados de campo. O trabalho traz um
capítulo no qual as imagens captadas pela etnógrafa dialogam com suas
interpretações acerca do lugar da televisão no mundo dos objetos dos
aficionados da “novela das oito” nas diversas camadas sociais, em Porto
Alegre/RS, publicada no mesmo ano sob a forma de livro.
No Nordeste do Brasil, através de uma iniciativa da Fundação
Waldemar de Alcântara, com apoio da Secretaria da Cultura e Des-
portos do Ceará, na coleção Teses Cearenses, é publicada a obra de
Eymard Porto (1993), resultado de dissertação orientada por Bela
Feldman-Bianco (professora na Unicamp/SP).
Anos mais tarde, seguindo a mesma trilha de sua orientadora
Ondina Fachel Leal, Luiz Eduardo Achutti (1997) defende uma dis-
sertação em Antropologia Visual junto ao PPGAS/UFRGS. Com o

73
estudo fotoetnográfico sobre cotidiano, lixo e trabalho em uma vila de
reciclagem em Porto Alegre/RS, cria na instituição uma nova tendên-
cia de pesquisa acompanhada de imagens visuais e sonoras.
No campo do pensamento antropológico, o expressivo aumen-
to de publicações acadêmicas sob o prisma da produção audiovisual
acompanha, nas últimas décadas do século passado, as preocupações
dos investigadores com temas sobre a memória dos grupos sociais e
as transformações que atingiam a sociedade brasileira: os processos de
metropolização, as transformações do espaço público, etc. Um exemplo
desta tendência é a publicação de Antônio A. Arantes (2000), professor
na Unicamp/SP. O autor aborda a construção social do espaço público
no contexto paulistano sob o prisma da preservação do patrimônio
cultural e da formação da nação.
Em 2002, Rosane de Andrade, sob a orientação de Carmen Jun-
queira (PUC/SP), apresenta uma tese que tem por objeto a obra do
antropólogo francês Pierre Verger e sua produção fotográfica no Brasil.
Outro exemplo bem-sucedido de publicação de trabalho universitário
na área de Antropologia Visual é a obra de André Alves (2004), de
excelente qualidade gráfica, produto da dissertação defendida na
Unicamp/SP sob a orientação de Etienne Samain e que, inspirado na
tradição batesoniana de construção de pranchas fotográficas sequen-
ciais e estruturais, retrata a vida e o trabalho dos catadores de carangue-
jos nos mangues próximos a Vitória/ES.
A publicação de teses e dissertação fortalece definitivamente o
campo intelectual da antropologia visual. Crescem as obras resultan-
tes de teses de doutorado defendidas no exterior, como as de Milton
Guran (2000), na EHESS/França, Clarice Peixoto (2000), defendida
na EHESS/França, Luiz Eduardo Achutti (2004), defendida na Uni-
versidade Paris 7/França e, no Brasil, de Fraya Frehse (2005), na USP/

74
SP, e Gabriel Alvarez (2009) na UnB/DF. A primeira obra tem por base
um acervo fotográfico sobre as ruas de São Paulo; a segunda, a partir
de uma pesquisa em etnologia, problematiza os recursos audiovisuais
como metodologia de estudo e traz anexados dois CDs, com os filmes
realizados durante seu trabalho de campo.

Figura 31 - Fotoetnografia

Fonte: Achutti, 2004.

6 A consolidação da antropologia audiovisual


e a rede de pesquisadores

A chegada do novo século aporta uma novidade de política cientí-


fica importante: a já citada formação do grupo de trabalho Antropologia
Visual da Associação Brasileira de Antropologia (ABA). Após o sucesso

75
do Prêmio Pierre Verger em vídeo etnográfico, durante a Reunião Brasi-
leira de Antropologia em 2002, foi lançada a primeira edição do Concur-
so de Ensaios Fotográficos baseado em pesquisas etnográficas14.
Definitivamente consolidada como campo de investigação
científica, a Antropologia Visual constituirá uma tendência de linha de
pesquisa na maioria dos programas de pós-graduação em antropolo-
gia ou em ciências sociais. Em Santa Catarina, consolida-se o Núcleo
de Antropologia Visual/Navi (UFSC), criado em 1998, coordenado
por Carmen Silvia Rial. Encontramos a mesma tendência nas Regiões
Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Citemos, entre outras, a iniciativa do
Laboratório de Antropologia Visual (Aval, da Universidade Federal de
Alagoas/Ufal), que promove o Encontro de Antropologia Visual sob a
coordenação de Silvia Martins, Siloé Amorim e Fernanda Rechenberg;
no Laboratório de Antropologia e Imagem (LAI) da Universidade Fe-
deral do Ceará (UFC), que promove o Ciclo Internacional de Diálogos
em Antropologia e Imagem sob a coordenação de Peregrina Campe-
lo. Em Recife, atua o Laboratório de Antropologia Visual do Núcleo
Imagem e Som & Ciências Humanas (UFPE/PE), sob a liderança de
Renato Athias. Esta equipe é responsável pela promoção do Festival
Anual do Filme Etnográfico do Recife/PE. A cidade de Rio Tinto
(Universidade Federal da Paraíba/UFPB) tem sua história e tradição
pesquisada pelo AVAEDOC – Grupo de Pesquisa Antropologia Visual,
Artes, Etnografias e Documentários, sob coordenação de João Marti-
nho Braga de Mendonça; em Natal, o Núcleo de Antropologia Visual
(Navis) é coordenado por Lisabete Coradini (Universidade Federal do
Rio Grande do Norte/UFRN).

14 Para outras informações sobre a ABA, recorrer a <www.abant.org.br>; para co-


nhecer o histórico do comitê e sua atuação, sugerimos o blog <http://antropolo-
giavisualaba.blogspot.de/>.

76
Mais recentemente, foram criados novos núcleos. Em 2001, em
Brasília (UnB/DF), a pesquisa com imagens foi empreendida pelo
Laboratório de Imagens e Registro de Interações Sociais (Iris); em
Goiânia (UFG/GO) a linha de pesquisa em antropologia audiovisual
é coordenado por Gabriel Alvarez; e, em Niterói (UFF/RJ), o grupo
de antropologia visual é coordenado por Ana Lúcia Ferraz. Outros pro-
gramas, mesmo sem um núcleo específico na área, promovem eventos
anuais. Assim, em Belo Horizonte/MG, Ruben Caixeta de Queiroz
(UFMG/MG) é cofundador e coorganizador do Festival do Filme
Documentário e Etnográfico (FORUMDOC. BH ).
Acompanhando esta tendência de organização de rede de antropó-
logos visuais em núcleos e grupos, os debates acadêmicos estimulam cada
vez mais a publicação de coletâneas e estudos sobre temas diversos. Entre
elas, destacam-se as publicações organizadas por Mauro Koury (2001) e
Sylvia Caiuby Novaes (2004), reunindo os resultados dos últimos anos
de pesquisas com imagens em vários centros e núcleos de universidades
do país. Na ocasião, uma das motivações que conduziam ao debate inter-
no da rede referia-se às modalidades da produção audiovisual no âmbito
dos programas de pós-graduação. A discussão se encaminha, em 2004,
para a realização de um seminário temático na Anpocs, do qual resulta a
publicação organizada por José de Souza Martins/USP, Cornelia Eckert
/UFRGS e Sylvia Caiuby Novaes/USP (2005).
Da mesma forma, a nova rede de pesquisadores audiovisuais
avança com estudos que revisitam a obra dos pais fundadores da pesqui-
sa antropológica com imagens. Inaugurando esta perspectiva, temos a
publicação do artigo de Etienne Samain (1995), que retoma Bronislaw
Malinowski e, posteriormente, revisita Gregory Bateson (2005) e, mais
recentemente, Aby Warburg (2011). Seguem esta tendência de revisão o
livro de autoria de Edgar Teodoro da Cunha e de Andréa Barbosa (2006),

77
tratando dos momentos inaugurais da formação do campo da pesquisa
em antropologia como disciplina em seus laços com a história do nasci-
mento do cinema (Robert Flaherty, Vertov, etc. ), no esforço de situá-lo
nas experiências contemporâneas com o uso dos recursos audiovisuais
na pesquisa etnográfica (entre eles, Jean Rouch e David MacDougall).
Prosseguindo nesta mesma direção, destacamos o trabalho de
Marco Antônio Gonçalves/UFRJ sobre a obra de Jean Rouch (GON-
ÇALVES, 2005), e, posteriormente, do mesmo autor, em companhia
de Scott Head (GONÇALVES; HEAD, 2009), tendo como inspiração
a obra de Marilyn Strathern (1990) sobre a metáfora do corpo na
prática etnográfica e em suas estratégias narrativas. No mesmo ano,
aparece a publicação organizada por Andréa Barbosa, Rose S. G. Hijiki
e Edgar T. Cunha (2009) composta por uma coletânea de artigos de
pesquisadores brasileiros e estrangeiros interessados nas aproximações
entre a pesquisa com imagens na área da produção de conhecimento
das ciências sociais.

78
Figura 32 - O real imaginado

Fonte: Gonçalves, 2005.

79
Figura 33 - Diveres imagéticos

Fonte: Gonçalves; Head, 2009.

No campo da produção fotográfica, aprofundam-se os estudos


sobre o lugar que ela ocupa numa civilização de consumo de imagens,
em particular nas publicações impressas. Entre os exemplos de revisita
crítica ao mercado das imagens no Brasil, encontramos as publicações
de Fernando de Tacca (2001, 2004), que aborda as reportagens foto-
gráficas de jornalistas que criaram um contexto imaginário em torno da
prática do culto afro-brasileiro. Outra expressão desta tendência foi o
volume especial da Revista de Estudos Amazônicos (2007), que publi-

80
cou os resultados de trabalhos apresentados e discutidos na Ia Mostra
Amazônica de Filme Etnográfico (2006), sob a organização de Selda
Vale da Costa (UFAM), em colaboração com o Núcleo de Antropolo-
gia Visual/Navi (UFSC), dedicado à reflexão acerca da representação
da região da amazônica no cinema documentário e etnográfico.

Figura 34 - Imagens do sagrado

Fonte: Tacca, 2009.

81
Figura 35 - Revista de Estudos Amazônicos

Fonte: Revista de Estudos Amazônicos, 2007.

7 Expansão das produções para as


redes digitais e eletrônicas

A política de expansão do sistema web e o incentivo político à pu-


blicação de revistas eletrônicas por instituições de pesquisa financiadas
no Brasil adotaram um novo estilo na produção de periódicos destinados
a ampla divulgação e circulação da produção audiovisual no Brasil.

82
Na área das publicações eletrônicas, destacam-se duas revistas
com mais de dez anos de tradição na divulgação da produção intelec-
tual nacional e internacional na área da Antropologia Visual. A primei-
ra, a Revista Studium/Unicamp (<http://www. studium. iar. unicamp.
br/>), foi criada em 1999, sob a coordenação de Fernando de Tacca,
junto ao Laboratório de Media e Tecnologias de Comunicação/
Unicamp. A segunda publicação de referência é a Revista Eletrônica
Iluminuras, do BIEV (<http://seer. ufrgs. br/iluminuras>), do PP-
GAS/UFRGS, criada em 2000 por Ana Luiza Carvalho da Rocha e
Cornelia Eckert.

Figura 36 - Revista Iluminuras

Fonte: Rocha; Eckert, 2000.

83
Em 2015 e 2016, insurgem novas revistas ou procedentes de nú-
cleos de antropologia visual, ou da interface com outros temas, demons-
trando a facilidade de sua circulação quando incentivadas pelos sistemas
de avaliação das instituições financiadoras. Listamos, nessa categoria, a
Revista Visagem (<http://www. ppgcs. ufpa. br/revistavisagem/>), da
Universidade Federal do Pará; a Revista Gesto, Imagem e Som (<http://
www. revistas. usp. br/gis>), GIS da USP; os dossiês na Revista Tessitu-
ras (<https://periodicos. ufpel. edu. br/ojs2/index. php/tessituras>) e
na Revista de Antropologia e Arqueologia, ambas da UFPEL/RS.
Importante referendar que a Revista Vivência (<http://www.
revistavivencia. org. br/>), que atende ao programa de pós-graduação
em antropologia da UFRN/RN, apresenta um volume organizado por
Lisabete Coradini (2001), com predominância de artigos sobre o uso
do vídeo e de imagens eletrônicas na construção de narrativas visuais
na pesquisa antropológica. A publicação resultou de inúmeros debates
ocorridos entre os grupos de trabalho nas reuniões bianuais da ABA.

84
Figura 37 - Revista Vivência

Fonte: Revista Vivência, 2001.

Com a preocupação constante com a produção audiovisual no


Brasil, em 2008, a ABA, em comemoração aos dez anos do Prêmio
Pierre Verger, reuniu, sob a coordenação de Claudia Turra Magni
(UFPel/RS) e Clarice Peixoto (UERJ), todos os ensaios fotográficos e
vídeos etnográficos premiados entre 1996 e 2008, em uma única cole-
ção composta por 18 vídeos etnográficos (em seis DVDs) e 13 ensaios
fotográficos (em um CD-ROM), depois disponibilizados a todos os
usuários da internet através do portal da instituição. No mesmo ano,
cria-se junto ao já tradicional Grupo de Trabalho de Antropologia
Visual (GTAV), no site da ABA, sob a coordenação de Clarice Peixo-
to, e desenvolvido, na época, pelo antropólogo Rafael Devos, o blog

85
<http://antropologiavisualaba. blogspot. com. br/>, que reúne todos
os núcleos, laboratórios e grupos de pesquisa do país que atuam na área,
apresentando uma bibliografia básica de antropologia visual, com um
link da produção audiovisual da associação para os usuários da internet.

Figura 38 - Perre Verger

Fonte: Turra; Peixoto, 2008.

No esforço de tornar acessíveis as produções na área da Antro-


pologia Visual a um grande público interessado, alguns deles parceiros
das investigações conduzidas pelos próprios antropólogos, assim como
o do Biev (<www. biev. ufrgs. br>), surgem outros sites, como o do Lisa
(<http://www. lisa. usp. br/>), que apresentam on-line suas produções
audiovisuais, em sua maioria com legendas em inglês. Incorporando
a blogosfera como importante espaço de divulgação dos meandros da
pesquisa etnográfica, a produção audiovisual em antropologia no Bra-
sil segue uma tendência universal.
Desta convergência de mídias para a produção de conhecimento
da área audiovisual, podemos mencionar blogs ligados aos usos das

86
redes digitais e eletrônicas como parte integrante da pesquisa audio-
visual contemporânea no país. O primeiro é o blog Método etnográfico
(<http://metodoetnografico. blogspot. com. br/>), criado em 2009
por Gabriel Alvarez (UFG), dirigido preferencialmente aos alunos
em processo de aprendizagem dos usos dos recursos audiovisuais na
pesquisa antropológica. O segundo é o blog do projeto Habitantes do
Arroio (<http://habitantesdoarroio. blogspot. com. br/>), junto ao
Biev/UFRGS, que emprega a blogosfera como parte de circulação e
geração de dados da pesquisa sobre a memória ambiental do arroio
Dilúvio, na intenção de promover uma comunidade ética em defesa
da sustentabilidade de usos das águas urbanas em Porto Alegre/RS
(criação em 2009). Citamos, ainda, por resgatar importantes coleções
fotográficas de antropólogos pioneiros, o blog promovido por Renato
Athias (UFPE/PE), também de 2009, intitulado Imagens e Palavras
(<http://renatoathias. blogspot. com. br/>), e o blog do Grupo de
Trabalho sobre Escrita do Biev, O livro do etnógrafo (<http://Bievu-
frgs. blogspot. com. br/>), no esforço de divulgar nas redes mundiais
de computadores os dilemas da prática da etnografia no contexto da
pesquisa antropológica contemporânea.

8 Refletindo um percurso: Navisual e Biev

Mais de vinte anos de pesquisa se passaram desde a criação do


Projeto Banco de Imagens e Efeitos Visuais/Biev, resultado da parceria
de pesquisa de Ana Luiza Carvalho da Rocha e Cornelia Eckert do
Navisual (projetos também do PPGAS/ IFCH/ UFRGS), além da im-
plantação do ensino de Antropologia Visual e da Imagem no programa
de pós-graduação em antropologia e graduação em Ciências Sociais da
UFRGS. A pesquisa em Antropologia Visual para nós, hoje, certamente
é mais que o registro dos múltiplos deslocamentos e experiências de

87
Alteridades. O presente consta em experiências engajadas e compar-
tilhadas com os interlocutores (grupos, coletivos, redes que partilham
um tempo etnográfico com buscas efetivas de circulação da produção
nos grupos que as produziram).

Figura 39 - Projeto Banco de Imagens e Efeitos Visuais/Biev

No projeto Biev/UFRGS, inaugurado em 1997, que trata da for-


mação de acervos e da gestão eletrônica de documentos etnográficos
multimídia na produção do conhecimento na área da antropologia vi-
sual, as pesquisas se desdobraram em inúmeros projetos que abarcam a
produção de coleções etnográficas multimídia e/ou etnografias hiper-
textuais15. Destacamos, sobre o tema da etnografia, a partir de coleções
etnográficas, o Projeto Memória Ambiental Porto Alegre (2012) e o
Projeto Etnografias da Memória do Trabalho (2009), transformando-
-os em espaços de divulgação e circulação da base de dados multimídia
que reúnem pesquisas sobre itinerários urbanos, memória coletiva e
formas de sociabilidade no mundo contemporâneo.

15 A respeito dos temas de coleções etnográficas e do método de convergência para


a produção de uma etnografia da duração, ver as publicações: ECKERT, C.; RO-
CHA, Ana Luiza C. Etnografia da Duração: antropologia das memórias coletivas
nas coleções etnográficas. Porto Alegre: MarcaVisual, 2013. ECKERT, C.; RO-
CHA, Ana Luiza C. A Preeminência da Imagem e do Imaginário nos Jogos da Memó-
ria Coletiva. Brasília: ABA Publicações, 2015.

88
Figura 40 - Projeto Banco de Imagens e Efeitos Visuais/Biev

A partir de um exercício constante da prática de etnografia com au-


diovisuais no contexto das modernas sociedades complexas, que temos
definido por etnografia da duração (ECKERT; ROCHA, 2015), preocu-
pamo-nos cada vez mais com a difusão, na web, de uma multiplicidade
de coleções etnográficas sobre a memória coletiva e o patrimônio etno-
lógico no mundo contemporâneo, sempre explorando a interface entre
as linhas de pesquisa em antropologia urbana, sociedades complexas, de
trabalho, em visualidades e imagens que problematizam o viver urbano a
partir das rítmicas temporais pensadas e vividas por seus habitantes.
No caso da pesquisa com as tecnologias digitais e eletrônicas, não
se trata tão somente de acumular imagens ou de ilustrar experiências de

89
pesquisas etnográficas nas grandes metrópoles, mas, ao contrário, de
as mostrar como parte de um patrimônio da humanidade (DURAND,
1984). Num tal contexto, intrigante e instigante, criador (pesquisador
e seus parceiros de pesquisa) e criatura (as imagens) se reúnem como
parte de um contexto interpretativo de ressonância de símbolos. Espé-
cie de lugar de narração (topos) em que se apresentam continuidades e
sínteses impessoais, o tratamento metodológico que orienta a constru-
ção de coleções etnográficas pela via do estudo da duração, nos moldes
do pensamento bachelardiano (BACHELARD, 1963), retoma alguns
temas fortes por nós já enfrentados, que é o da compreensão da dialéti-
ca temporal que tece os jogos da memória tendo por foco o estudo da
solidariedade entre o tempo vivido (subjetivo, intransitivo, pensado) e
o tempo do mundo (objetivo, concreto) na tessitura do Tempo.
No que se refere às nossas experiências docentes conduzidas
no Navisual, mais dedicado à formação de pesquisadores na área da
Antropologia Audiovisual, ou ainda nas disciplinas de Antropologia
Visual que ministramos no Programa de Pós-Graduação em Antropo-
logia Social da UFRGS, e a muitos outros programas nos quais fomos
convidadas a ministrar cursos e oficinas, a cada semestre, a cada ano
enfrentamos um novo desafio. Sempre se trata de um projeto de for-
mação a ser construído por um coletivo com interesse mútuo nessa
área disciplinar com o objetivo de instrumentalizar a etnógrafos a ética
da pesquisa nas metrópoles contemporâneas por meio do reconheci-
mento da estética dos seus movimentos, dos fluxos e ritmos temporais
cotidianos de seus habitantes.
Mas, seja no Biev, seja no Navisual, ou ainda nas disciplinas de
antropologia visual que ministramos, a cada exercício, as situações-
-problema propostas aos(as) alunos(as) apontam para um campo
de conceitos da Antropologia Visual e da Imagem, sendo cada um/a

90
levado/a a confrontar suas pesquisas com rupturas epistêmicas no
plano da prática antropológica. Neste sentido, desde a primeira aula,
e a primeira saída de campo, alertamos nossos(as) alunos(as) quanto
à obediência aos preceitos éticos da prática antropológica numa nova
ordem mundial globalizada.
Desenvolvemos, em especial, a reflexão a respeito da prática da
Antropologia Audiovisual como experiência estética tanto quanto ética
( JEAN ARLAUD, 2004 apud ECKERT; ROCHA, 2016). Na forma-
ção de nossos alunos, sempre em workshops e seminários, os desafios
do registro das situações de campo, a divisão das funções dentro do
grupo, as delimitações de onde e quando registrar os dados de campo
apresentam-se, a cada dia, como uma provocação didática para que
repensem os procedimentos técnicos a serem adotados pela equipe.
Neste sentido, a escolha dos dispositivos técnicos acaba por levá-los a
refletir acerca dos dispositivos dramáticos e cênicos que conformam o
ambiente psicossocial que se apresenta à sua escuta, à sua observação,
contemplação e interação. Para cada momento dessa experiência, a
equipe precisa definir as diferentes linguagens audiovisuais no tra-
tamento conceitual do problema a ser investigado. Um problema de
investigação que os(as) aprendizes de antropólogos(as) audiovisuais
descobrem à medida em que aprendem concretamente as condições de
uso dos recursos audiovisuais na produção de seus dados etnográficos.
Experiências lógicas e dramáticas derivam de sua inserção pro-
gressiva no campo, no diálogo com seus interlocutores; a cada retorno,
nos momentos de troca de aprendizagens das oficinas, revelam-se desco-
bertas, tanto para nós quanto para eles, sobre as experiências singulares
que representam a vida cotidiana dos habitantes das grandes metrópoles
brasileiras, sempre mediadas pela presença compartilhada da equipe de
pesquisadores e dos equipamentos em suas rotinas nos espaços públicos.

91
Compartilhamos, assim, com os(as) alunos(as) em processo de
formação, o estudo das obras da cultura humana em suas formas criati-
vas. Imersos na arte de compor, com e pelas imagens, construímos um
patrimônio humano com base em nossa interpretação estética sobre
como configurar culturas, traduzir figuras, interpretar estilos e gêneros.
Esta liberdade criativa, que pluraliza o viver humano (em nosso caso, o
urbano), nos parece embalar um projeto de Antropologia Audiovisual
no Brasil. Se não para muitos, pelo menos para nós.
Neste processo, o compromisso com a partilha e/ou restituição
da experiência etnográfica com os interlocutores e sua divulgação, a
formação de uma comunidade de sentidos, talvez seja, para nós, o papel
mais promissor da adesão à Antropologia Audiovisual em seu papel de
cooperação na pesquisa no contexto das metrópoles contemporâneas.
A prática da Antropologia Audiovisual se manifesta, nos preceitos da
obra A partilha do sensível (2005), de Jacques Rancière, como um ato
de conhecimento ao mesmo tempo que um ato político.
Para este autor, o ato da escrita (para nós, aqui, a escrita com a
imagem, e através dela) é ato de partilha do sensível (modos do fazer,
modos do ser e do dizer), parte de uma ação coletiva na busca do re-
conhecimento da qualidade criativa e imaginativa dos interlocutores
e seus papéis políticos, sobremaneira públicos. Para nós, a produção
imagética segue sendo entendida como partilha do sensível. Conside-
ramos ser do campo da produção de conhecimento em antropologia e
da realização de etnografia com as imagens e através delas que gestos
de restituição da palavra do Outro se consolidam como ação ética e
política de ressonância de imagens dos interlocutores e de si. O mais
gratificante é observar as gerações que se formaram em antropologia
audiovisual desempenharem importantes mediações, papéis e atua-

92
ções ao lado de pessoas, grupos, redes, comunidades ou coletivos que
aceitam participar das aventuras antropológicas mais colaborativas.
Entre os desafios, projetos, trocas, almejamos que este senso de
partilha seja o mote que conduza ao espraiamento da linha de pesqui-
sa. Uma linha a ser ultrapassada para promover reciprocidades intra e
extramuros, oportunizando mais trajetórias estudantis e profissionais
como as citadas na abertura deste artigo, não como tipos ideais, mas
como projetos transformadores. Propostas não conformistas, antes
desafiadoras de suas formas de cooperação para produzir Antropologia
Audiovisual, derrubando cada vez mais os muros entre o dentro e o
fora, amenizando os limites burocráticos da circulação do conhecimen-
to, democratizando as formas de aprendizagem, ampliando as ações
públicas e, sobretudo, ampliando as pesquisas com imagens para que
estas nos orientem a uma Antropologia Audiovisual no futuro, sem
esquecer de revisitar o processo de construção das interpretações an-
tropológicas para que elas não se eternizem como verdades, antes, para
que liberem o potencial de imaginar, de criar e de transformar.

REFERÊNCIAS

ACHUTTI, Luiz Eduardo Robson. Fotoetnografia da Biblioteca Jardim. Porto


Alegre: Tomo Editorial/UFRGS, 2004.

ACHUTTI, Luiz Eduardo Robson. Ensaios (sobre o) fotográfico. Porto Alegre:


Secretaria Municipal da Cultura/PMPA, 1998.

ACHUTTI, Luiz Eduardo Robson. Fotoetnografia: um estudo antropológico


visual sobre cotidiano, lixo e trabalho. Porto Alegre: Tomo Editorial, 1997.

ALVAREZ, Gabriel. Sateteria Tradição e Política – Sateré Mawé. Manaus: Editora


Valer/CAPES, 2009.

93
ALVES, André; SAMAIN, Etienne. Os argonautas do mangue precedido de Bali-
nesecharacter (re)visitado. Campinas, SP: Ed. Unicamp;/ São Paulo: Imprensa
Oficial do Estado de São Paulo, 2004.

AMORIM, Siloé. Índios ressurgidos: a construção da auto-imagem: os


Tumbalala, os Kalanko, os Karuazu, os Catokinn e os Koiupanka. 2003. 200f.
Dissertação (Mestrado em Multimeios) – Programa de Pós-Graduação em Mul-
timeios, Universidade de Campinas, Unicamp, Campinas, São Paulo, 2003.

AMORIM, Siloé. Os kalankó, Karuazu, Kolupanká e Katokinn: resistência e ressur-


gência indígena no alto sertão alagoano. 2010. 426f. Tese (Doutorado) – Programa
de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Porto Alegre, RS, 2010.

ANDRADE, Rosane de. Fotografia e Antropologia, olhares fora-dentro. São Paulo:


Editora da PUC-SP, 2002.

ARANTES, Antônio Augusto. Paisagens paulistanas. Campinas, SP: Editora da


Unicamp, 2000.

ARGYLE, Michael. Cooperation, basis of sociability. London: Routledge, 1991.

ARLAUD, Jean. O cinema é como uma dança (entrevista). Produção: Banco


de Imagens e Efeitos Visuais/Núcleo de Antropologia Visual. Duração: 25 min.
Formato: NTSC/ mini-DV. Realização:Rafael Devos, Olavo Marques, Ana Luiza
Carvalho da Rocha, Cornelia Eckert, João Castelo Branco, Peri Carvalho, Flávio
Abreu da Silveira. Edição: Rafael Devos, Ana Luiza Carvalho da Rocha, Olavo
Marques, Jean Arlaud. Porto Alegre, BIEV, PPGAS, IFCH, UFRGS, 2004.

BACHELARD, Gaston. La Dialectique de ladurée. Paris: PUF, 1963.

BARBOSA, Andréa; CUNHA, Edgar Teodoro da (Ed.). Antropologia e Imagem.


Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006.

94
BARBOSA, Andréa; CUNHA, Edgar Teodoro da; HIKIJI, Rose SatikoGitirana
(Ed.). Imagem-Conhecimento. Campinas, SP: Papirus, 2009.

BATESON, Gregory; MEAD, Margareth. Balinese Character: a photographic


analysis. New York: New York Academy of Sciences, 1942.

BIAZUS, Paula. “A lata faz foto? Ah, então a lata é mágica?”: estudo etnográfico
sobre itinerários urbanos e a circulação de imagens e olhares em oficinas de foto-
grafia pinhole. 2006. 161f. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas, Porto Alegre, RS, 2006.

CAIUBY, Novaes Sylvia; ECKERT, Cornelia; MARTINS, José S. (Ed.). O imagi-


nário e o poético nas Ciências Sociais. Bauru, SP: EDUSC, 2005.

CAIUBY, Novaes Sylvia; ECKERT, Cornelia; MARTINS, José S. (Ed.). Brasil


em Imagens: caminhos que marcam e antecedem a antropologia visual no Brasil.
In: DIAS DUARTE, Luiz Fernando (Ed.). Horizontes das Ciências Sociais no
Brasil/Anpocs. São Paulo: Instituto Ciência Hoje, Editora Barcarola e Discurso
Editorial, 2010. p. 457-487.

CAIUBY, Novaes Sylvia; ECKERT, Cornelia; MARTINS, José S. (Ed.). Escritu-


ras da Imagem. São Paulo: FAPESP, 2004.

CAIUBY, Novaes Sylvia; ECKERT, Cornelia; MARTINS, José S. (Ed.). Jogo de


espelhos. São Paulo: EDUSP, 1993.

CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. Estilos de Antropologia. Campinas, SP:


Editora da Unicamp, 1995.

CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. O trabalho do antropólogo. São Paulo:


Unesp, Paralelo 15, 1998.

CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. Sobre o Pensamento Antropológico. Rio de


Janeiro: Edições Tempo Brasileiro/CNPq, 1985. p. 201.

95
CASTRO FARIAS, Luis. Um Outro Olhar: Diário da Expedição à Serra do Nor-
te. São Paulo: Ed. Ouro sobre Azul, 2001.

DAVENPORT, Thomas H. Ecologia da informação: por que só a tecnologia não


basta para o sucesso na era da informação. São Paulo: Futura, 1998.

DE CERTEAU, Michel. A invenção do quotidiano. Petrópolis, RJ: Ed Vozes, 1996.

DUBIELLA, Diogo Francisco. As mulheres e a fibra: uma instalação etnográfica.


2015. 60f. Monografia (Bacharelado em Ciências Sociais) – Instituto de Filosofia
e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre,
2015.

DURAND, Gilbert. Les structures anthropologiques de l´imaginaire. Paris: Dunod,


1984.

ECKERT, C.; ROCHA, Ana Luiza C. da. A Preeminência da Imagem e do Imagi-


nário nos Jogos da Memória Coletiva. Brasília: ABA Publicações, 2015.

ECKERT, C.; ROCHA, Ana Luiza C. da. Antropologia da e na cidade, interpre-


tações sobre as formas da vida urbana. 1. ed. Porto Alegre: Marca Visual, 2014. v.
1. 296p.

ECKERT, C.; ROCHA, Ana Luiza C. da. Etnografia da Duração: antropologia


das memórias coletivas nas coleções etnográficas. Porto Alegre: Marca Visual,
2013.

ECKERT, C. et al. Etnografia de rua. Estudos Urbanos. Porto Alegre: Ed. UFRGS,
2012.

ECKERT, Cornelia; ROCHA, Ana Luiza Carvalho da. Jean Arlaud: etnografía
fílmica con el otro y la ética de la reciprocidad. In: VAILATI, Alex; GODIO,
Matias; RIAL, Carmen (Org.). Antropologia audiovisual na prática. 1. ed. Floria-
nópolis: Cultura e Barbárie, 2016. p. 271-304.

96
ECKERT, C.; ROCHA, Ana Luiza C. da. O fazer antropológico na web coleções
etnográficas e etnografia intertextual. Revista Iluminuras - Publicação Eletrôni-
ca do Banco de Imagens e Efeitos Visuais - NUPECS/LAS/PPGAS/IFCH/
UFRGS, v. 7, n. 16, 2006. Disponível em: <http://seer. ufrgs. br/index. php/
iluminuras/>. Acesso em: 10 out. 2014.

ECKERT, C.; ROCHA, Ana Luiza C. da; GODOLPHIM, Nuno. Antropologia


Visual. Revista Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, a. 1, v. 2. Porto Alegre:
Editora da UFRGS/UFRGS, 1995.

ECKERT, C.; ROCHA, Ana Luiza C. da; MONTE-MÓR, Patrícia. Imagem


em foco, novas perspectivas em antropologia. Porto Alegre: Editora da UFRGS/
UFRGS, 1999.

FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,


1968.

FELDMAN-BIANCO, Bela; MOREIRA LEITE, Miriam. Desafios da Imagem:


Fotografia, Iconografia e Vídeo nas Ciências Sociais. Campinas, SP: Papirus,
1998.

FERRAZ, Ana Lúcia Camargo; MENDONÇA, João Martinho (Org.). Antropo-


logia visual: perspectivas de ensino e pesquisa. Brasília, DF: ABA, 2014.

FREHSE, Fraya. O Tempo das Ruas na São Paulo de Fins do Império. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 2005.

FREITAS, Ana Elisa C. (Org.). Intelectuais indígenas e a construção da universi-


dade pluriétnica no Brasil: povos indígenas e os novos contornos do programa
de educação tutorial/conexões de saberes. 1. ed. Rio de Janeiro: E-papers, 2015.

GONÇALVES, Marco Antonio; HEAD, Scott (Org.). Devires imagéticos – A


etnografia, o outro e suas imagens. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009.

97
GONÇALVES, Marco Antonio; HEAD, Scott (Org.). O real imaginado – etno-
grafia, cinema e surrealismo em Jean Rouch. Rio de Janeiro: Topbooks, 2008.

GURAN, Milton. Agudás: os “brasileiros” do Benin. Rio de Janeiro: Ed. Nova


Fronteira/ Ed. Gama Filho, 2000.

KOURY, Mauro. Imagem e Memória, ensaios em Antropologia Visual. Rio de Janei-


ro: Garamond, 2001.

KOURY, Mauro. Usos da Imagem nas Ciências Sociais – Pesquisadores. Grupo


interdisciplinar de Estudos e Pesquisas sobre Imagem. João Pessoa: Manufatura,
1997.

LEAL, Ondina Fachel. A leitura social da novela das oito. Petrópolis, RJ: Vozes,
1986.

LÉVI-STRAUSS, Claude. Saudades do Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1994.

MALINOWSKI, Bronislaw. Argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo: Abril


Cultural, 1978.

MENESES, Claudia; GURAN, Milton Etalli (Ed.). Cadernos de textos, Antropolo-


gia Visual. Rio de Janeiro: Museu do Indio, 1987.

MCDOUGALL, David. Transcultural cinema. Princeton: Princeton University


Press, 1998.

MEAD, Margaret. Visual Anthropology in a discipline of words. In: HOCK-


INGS, Paul (Ed.). Principles of Visual Anthropology. Mouton: TheHague, 1975.
p. 3-10.

MONTE-MÓR, Patrícia; PARENTE, José Inácio (Ed.). Cinema e antropologia:


horizontes e caminhos da antropologia visual. Rio de Janeiro: Interior Pro-
duções, 1994.

MONTE-MÓR, Patrícia; PARENTE, José Inácio (Ed.). Sobre Cadernos de An-


tropologia e Imagem. Revista de Estudos Históricos, História e Imagem, São Paulo,

98
v. 2, n. 34, 2013. Disponível em: <http://bibliotecadigital. fgv. br/ojs/index.
php/reh/issue/view/301>. Acesso em: 26 nov. 2013.

OLIVEN, R. G. Violência e cultura no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 1989.

ORTIZ, R. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1985.

PEIRANO, Mariza. A teoria vivida e outros ensaios de Antropologia. Rio de Janei-


ro: Jorge Zahar Editor, 2006.

PEIXOTO, Clarice Ehlers. Antropologia e filme etnográfico: um travelling no


cenário literário da antropologia visual. BIB. Revista Brasileira de Informação Bi-
bliográfica em Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 48, p. 91-116, 1999.

PEIXOTO, Clarice Ehlers. Antropologia visual no Brasil. Cadernos de Antropolo-


gia e Imagem (UERJ), Rio de Janeiro, v. 1, p. 75-80, 1995.

PINK, Sarah. The future of visual anthropology: engaging the senses. New York:
Taylor & Francis e-Library, 2006.

RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: EXO


Experimental/ Editora 34, 2005.

RECHENBERG, Fernanda. Vamo falá do nosso Lami: estudo antropológico so-


bre memória coletiva, cotidiano e meio ambiente no bairro Lami, Porto Alegre.
2007. 200f. Dissertação (Mestrado em Programa de Pós Graduação em Antro-
pologia Social) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, 2007.

RECHENBERG, Fernanda. Imagens e trajetos revelados: estudo antropológico


sobre fotografia, memória e a circulação das imagens junto a famílias negras em
Porto Alegre. 2012. 380f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Instituto
de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
Porto Alegre, 2012.

99
RIBEIRO, Darcy. Diários Índios – os Urubus- Kaapor. São Paulo: Cia das Letras,
1996.

RIBEIRO, José da Silva. Antropologia visual, práticas antigas e novas perspec-


tivas de investigação. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 48, n. 2, p. 613-648,
dez. 2005.

RIBEIRO, José da Silva; VEDANA, Viviane Vedana et al. As fontes escritas do


pensamento antropológico, seus dilemas e desafios – um ensaio. Revista Iluminu-
ras – kPublicação Eletrônica do Banco de Imagens e Efeitos Visuais – NUPECS/
LAS/PPGAS/IFCH/UFRGS, v. 9, n. 21, 2008. Disponível em: <http://seer.
ufrgs. br/index. php/iluminuras/>. Acesso em: 10 maio 2014.

RIBEIRO, José da Silva et al. A desterritorialização dos saberes e fazeres antropo-


lógicos e o desentendimento no corpo de verdade da letra. Revista Iluminuras –
Publicação Eletrônica do Banco de Imagens e Efeitos Visuais – NUPECS/LAS/
PPGAS/IFCH/UFRGS, v. 9, n. 22, 2008. Disponível em: <http://seer. ufrgs.
br/index. php/iluminuras/>. Acesso em: 11 maio 2014.

RIBEIRO, José da Silva et al. Tecnologias audiovisuais na construção de narra-


tivas etnográficas, um percurso de investigação. Revista Iluminuras – Publicação
Eletrônica do Banco de Imagens e Efeitos Visuais – NUPECS/LAS/PPGAS/
IFCH e ILEA/UFRGS, v. 5, n. 11, 2004. Disponível em: <http://seer. ufrgs. br/
index. php/iluminuras/>. Acesso em: 11 maio 2014.

RIBEIRO, José da Silva et al. A antropologia das formas sensíveis: entre o visível
e o invisível, a floração de símbolos. Horizontes Antropológicos, v. 1, n. 2, p. 85-92,
1995.

SAMAIN, Etienne. “Ver” e “Dizer” na tradição etnográfica: Bronislaw Malinows-


ki e a fotografia. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, a. 1, n. 2, p. 23-60, jul./
set. 1995.

SAMAIN, Etienne. O fotográfico. São Paulo: Senac, 2004.

100
SAMAIN, Etienne. O Fotográfico. São Paulo: Editora HUCITEC/CNPq, 2005.

SAMAIN, Etienne. As “Mnemosyne(s)” de Aby Warburg: Entre Antropologia,


Imagens e Arte. Revista Poiésis, PPGE, Universidade do Sul de Santa Catarina,
Santa Catarina, n. 17, p. 29-51, jul. 2011.

SOUTY, Jerome. Pierre Fatumbi Verger: do olhar livre ao conhecimento iniciáti-


co. Rio de Janeiro: Terceiro Nome, 2012.

STRATHERN, Marilyn. Artifacts of history: Events and the interpretation of


images. In: SIIKALA, Jukka (Ed.). Culture and history in the Pacific. Helsinki:
Transactions of the Finnish Anthropological Society, 1990. p. 25-44.

TACCA, Fernando de. A Imagética da Comissão Rondon. Campinas, SP: Papirus,


2001.

TACCA, Fernando de; REIS, Luiz Thomaz. Etnografias Fílmicas Estratégicas.


In: TEIXEIRA, Francisco Elinaldo (Ed.). Ensaios sobre o Documentário Brasileiro.
São Paulo: Summus Editorial, 2004.

VERGER, Pierre. Orixás – Deuses Iorubás na África e no Novo Mundo. Salvador:


Editora Corrupio, 2002.

101
PESQUISA E ENSINO EM
ANTROPOLOGIA, ANTROPOLOGIA
VISUAL, ANTROPOLOGIA DIGITAL

José da Silva Ribeiro1

Resumo: Em vinte anos de ensino superior à distância, tenho me


confrontado com a facilidade dos estudantes em referir e reprodu-
zir saberes e com uma grande dificuldade em construí-los, a partir
de práticas de terreno, de fontes primárias ou da utilização dos
saberes na resolução de problemas. Teses, dissertações e trabalhos
apresentam-se assim desequilibrados entre a revisão da literatura e

1 Doutor em Ciências Sociais (Antropologia) e Mestre em Comunicação Edu-


cacional Multimédia pela Universidade Aberta. Licenciado em Filosofia pela
Universidade do Porto. Fez Estudos Superiores em Cinema e Vídeo na Escola
Superior Artística do Porto. Professor de Antropologia, Antropologia Visual, An-
tropologia Virtual, Métodos e Técnicas de Investigação em Antropologia, Media
e mediações culturais e de Cinema. Pesquisador do Centro de Estudos das Mi-
grações e das Relações Interculturais (CEMRI) da Universidade Aberta onde é
Responsável pelo Laboratório de Antropologia Visual/Media e mediações cultu-
rais, do Grupo de Estudos de cinema e Narrativas Digitais e da Linha de pesquisa
Cultura Visual e Educação – Faculdade de Artes Visuais, Universidade Federal
de Goiás. Realiza trabalho de campo em Cabo Verde e nas periferias urbanas de
Lisboa e Porto, no Brasil, em Cuba e na Argentina. Coorganizador da Conferên-
cia Internacional de Cinema de Viana do Castelo, do Seminário Internacional
Imagens da Cultura/ Cultura das Imagens. Coordenador da rede Imagens da
Cultura/ Cultura das Imagens; participante e membro fundador da Rede Inter-
nacional de Grupos de Investigação em Educação e Tecnologia. Professor visi-
tante das Universidades de São Paulo, Presbiteriana Mackenzie, Múrcia, Savoie
e, atualmente, da Universidade Federal de Goiás. Membro do Conselho Editorial
de Revistas científicas internacionais.

102
a caracterização do estado da arte, a formulação de um problema
relevante de investigação, o tratamento das fontes primárias e a re-
flexão teórica. Constato, também, que este problema é igualmente
identificado por instituições acadêmicas que, perante problemas
semelhantes, propõem um ensino experiencial da antropologia ou
a relevância do contacto com o real para, a partir dele, passar à refle-
xão teórica. Também a lei Decreto-Lei nº 74/2006 (PORTUGAL,
2006), que em Portugal institui o Processo de Bolonha, reconhece
a necessidade da transição de um sistema de ensino baseado na
ideia da transmissão (consumo) de conhecimentos, para uma ideia
mais empreendedora ou mais ativa, de um sistema baseado no de-
senvolvimento de competências. Reconhece, ainda, que esta é uma
questão crítica central em toda a Europa, com particular expressão
em Portugal. Proponho-me caracterizar a situação e inventariar al-
gumas respostas que ensaiamos, ensaiei com os tutores das discipli-
nas, na relação entre a investigação, ensino e extensão universitária
– ação e integração dos saberes na realidade social e cultural.
Palavras-chave: Ensino da Antropologia Visual. Ensino experien-
cial. Desenvolvimento de competências. Descritores de Dublin.

1 Introdução ou razões de partida

Esta reflexão surge das dificuldades expressas pelos estudantes


que se materializam nos textos ou nos filmes, por eles produzidos, no
âmbito das disciplinas (UCs – Unidades Curriculares) de antropologia
e antropologia visual, nos 3 ciclos de ensino superior. Constata-se que
os estudantes fazem por vezes uma exaustiva revisão bibliográfica e a
escrita dos trabalhos finais são, sobretudo, resultado dessa revisão bi-
bliográfica. A definição clara de um problema a investigar ou inscrito
nos materiais de ensino que dificilmente é identificado. O trabalho de

103
campo, mesmo que realizado durante muito tempo, não tem produzido
resultados suficientemente construídos ou elaborados. A escrita final
dos textos, exames e outras provas, a apresentação final de trabalhos – 1º
ciclo e 2º ciclo –, ensaios de dimensão e aprofundamento diferentes, as
dissertações de mestrado e teses de doutoramento, são, geralmente, des-
proporcionados e compostos por uma longa revisão bibliográfica. Os
trabalhos de campo, embora os dados sejam razoavelmente elaborados,
caracterizam-se por uma precária definição da problemática e por um
deficiente tratamento dos dados, realmente relevantes. As dificuldades
sentidas e expressas pelos estudantes ou emergentes dos trabalhos não
são muito diferentes das que senti, quando, depois de uma carreira como
professor do ensino básico e secundário, tive de confrontar-me com a
realização de uma dissertação de mestrado e uma tese de doutoramento.
Este facto sensibilizou-me para o problema e mobilizou-me na procura
de ferramentas, que permitam superar esta dificuldade ou, pelo menos,
reduzir o seu impacto, na formação dos estudantes.
Passarei a inventariar alguns casos paradigmáticos desta situação.
Como professor de Antropologia e Antropologia Visual, observo que
muito do trabalho realizado pelos estudantes desenvolve-se em torno
dos filmes e esses trabalhos são frequentemente baseados nas suas
leituras, análise e produção. Verifico, nos textos apresentados, que os
estudantes privilegiam a extensa colagem de referências e o filme fica
quase invisível nos ensaios. Não ignoro a importância da teoria para
a compreensão e análise e que a relação entre a experiência de visio-
namento, visionamento repetido e a teoria fílmica não é uma simples
colagem. Constitui uma forma de simulação da situação do trabalho de
campo – o confronto com os dados, a sua organização –, montagem e
interpretação fundamentada, o real e o imaginado, o real e sua interpre-
tação. A antropologia instituiu também o cinema como terreno.

104
Estas constatações são comuns a muitos outros colegas, em muito
outros contextos institucionais. Timothy Asch, da Universidade do Sul
da Califórnia, afirma: “Descobri que a tarefa mais difícil de todas, para
os estudantes, era definir um problema e investigá-lo” (ASCH, 1992b,
p. 120). Os estudantes, segundo o mesmo autor, têm necessidade de
segurança e de estabilidade normativa:

a necessidade de um manual prático que aborde os


diferentes aspetos de produção de documentários
etnográficos. Tarefa difícil de realizar, por ser de-
masiado morosa e suscetível de pouca flexibilidade
dos programas e discussão com os alunos, antes da
realização do curso. No entanto, os alunos preferem
um programa claramente definido e que tenha sido
experimentado, a um programa que seja objeto de
contínuas modificações (ASCH, 1992a, p. 124).

O problema é igualmente identificado no projeto Digital An-


thropology Resources for Teaching (DART), desenvolvido no âmbito
da cooperação da Universidade de Columbia com a London School
of Economics – LSE. Este projeto apontava para o ensino experiencial
da antropologia, aproximação dos estudantes à experiência de trabalho
de campo, remetendo esta prática para a utilização de fontes primá-
rias, decorrentes da investigação, organizadas em repositórios digitais
– notas de campo, entrevistas, registos áudio e vídeo, bases de dados
disponibilizadas aos estudantes, como materiais de formação. A teoria
antropológica desempenhava nesse processo de formação a função de
ferramenta intelectual, exigida aos estudantes, para tratar essas fontes
primárias. O projeto criava uma situação de ligação entre investigação
e ensino, entre estudantes de pós-doutoramento, cujos dados da in-
vestigação eram disponibilizados e integrados na formação inicial dos

105
novos estudantes. Assim, DART projetou uma série de ferramentas e
recursos digitais que permitiam aos estudantes de iniciação (gradua-
ção) vivenciarem o processo gradual, através do qual os antropólogos
desenvolviam a sua compreensão durante o trabalho de campo, con-
frontarem-se com diferentes interpretações de uma cultura ao longo
dos tempos, orientando-os para elaborarem as articulações entre para-
digmas gerais e as práticas culturais específicas em estudo.
O antropólogo do MIT, Michael Fischer em Futuros Antropológi-
cos, redefinindo a cultura na era tecnológica (2011), identifica estes mes-
mos problemas e as respostas encontradas por alguns autores. Embora
toda a obra dê um contributo importante na identificação e resolução
deste problema e na atualização da definição do conceito de sociedade
e cultura na era tecnológica, referirei apenas o contributo de Kant e
sua releitura, por diversos autores, na abordagem desta problemática.
Kant privilegiava a experiência do mundo real e por isso alternava o
seu curso de antropologia com o de Geografia. Lidava, segundo Fischer
(2011), com o problema pedagógico de que os estudantes universitá-
rios não tinham experiência e maturidade necessárias para tornar o
conhecimento dos seus cursos filosóficos aplicáveis nas suas vidas:

Quando eu reconheci, imediatamente nas minhas


aulas durante a carreira académica, que existia uma
grande negligência entre os estudantes jovens, que
eles aprendiam cedo a raciocinar, sem possuir co-
nhecimento histórico suficiente que pudesse tomar
o lugar da [falta] de experiência, decidi tornar a his-
tória da condição presente da Terra ou da geografia,
em seu sentido mais amplo, uma síntese simples e
agradável, que poderia servir para prepará-los para a
razão prática… (FISCHER, 2011, p. 144).

106
Argumentar-se-á que os estudantes de ensino a distância terão
uma maior maturidade, experiência e sentido prático da vida, que os
transportam para as situações de aprendizagem. Assim poderá ser e é
com alguns estudantes, mas não na generalidade. Kant definia também
o cosmopolitismo: “a antropologia deveria interessar um público cres-
centemente esclarecido, aberto a uma reflexão aberta e cosmopolita”
(FISCHER, 2011, p. 153). Um acentuado etnocentrismo e por vezes
ausência de formas de comparabilidade (virtualização da aprendi-
zagem) poderá surgir, já que o ensino on-line da antropologia carece
da experiência de alteridade, do conhecimento e reconhecimento do
outro e que a virtualização das aprendizagens não proporciona estas
experiências reais. Este parece não ser o problema. Fischer, citando Ian
Haking, refere que os átomos, como para nós as redes, “são reais na
medida em que os atores humanos podem usá-los ou em que as suas
formas, representadas ou instrumentalizadas, possam efetuar mudan-
ças no mundo, sem inquietações a respeito de uma possível verificação
ontológica” (FISCHER, 2011, p. 150).
Este problema, relevante na antropologia, como o afirma Vale de
Almeida “o belíssimo oxímoro “observação participante”, remete para
uma forma de conhecimento marcadamente experiencial e intersubje-
tiva”, é comum a outras disciplinas (e talvez resolvido nas áreas tecnoló-
gicas). No denominado Processo de Bolonha, última reforma do ensino
superior na Europa, aparece também identificado este problema.
A legislação que institui em Portugal o processo de Bolonha,
decreto-lei nº 74/2006, refere que se torna necessário a “transição de
um sistema de ensino baseado na ideia da transmissão de conhecimen-
tos, para um sistema baseado no desenvolvimento de competências”. É
pois reconhecida, quer pela repetição insistente desta necessidade de

107
mudança – o decreto-lei repete cinco vezes esta afirmação –, quer pela
sua formulação explícita:

a questão central no Processo de Bolonha, como a


da mudança do paradigma de ensino de um modelo
passivo, baseado na aquisição de conhecimentos,
para um modelo baseado no desenvolvimento de
competências, onde se incluem quer as de natureza
genérica – instrumentais, interpessoais e sistémicas
– quer as de natureza específica, associadas à área de
formação, e onde a componente experimental e de
projeto desempenham um papel importante (POR-
TUGAL, 2006, art. 60).

Considera, ainda, que o modelo de ensino baseado na transmis-


são-aquisição de conhecimentos é “questão crítica central em toda a
Europa, com particular expressão em Portugal”. Se corretamente iden-
tificado o problema, talvez seja nesta transição ou transformação que
poderemos identificar a natureza da mudança e perspetivar o desenvol-
vimento de “boas práticas”.
Que ações a desenvolver na resolução deste problema? Como
entender essa passagem “da transmissão de conhecimentos para o
desenvolvimento de competências”? Como definir as competências e
níveis de competências? Como criar situações em que a componen-
te experimental (experiencial) e de projeto desempenhem um papel
importante na formação? Como proporcionar aos estudantes situações
que permitam superar o etnocentrismo e a valorização da intersubje-
tividade, da diversidade cultural, da interculturalidade, do cosmopoli-
tismo? Que materiais produzir, inventariar e integrar no processo de
ensino/aprendizagem, de modo a dar resposta às dificuldades encon-
tradas? Como superar a tendência natural para uma aprendizagem pas-

108
siva (modelo passivo e investimento mínimo indispensável à passagem
nas provas) e propor uma atitude ativa e empreendedora (apaixonada,
de descoberta e que se confronta com o risco) nos processos de ensino
e ensino on-line?

2 Definição de competências

Bernard Rey refere a dimensão construtivista e antropológica do


conceito de competências. Construtivista, porque as competências são
construídas a partir de situações-problema que o professor deve criar.
Antropológica, na medida em que estas competências não se inscre-
vem numa visão utilitarista, ao serviço do uso concreto e imediato. Elas
encontram-se inscritas na sua dimensão cultural e articulam-se com
interrogações basilares, que lhes atribuem sentido. A noção de com-
petência conserva traços do mundo laboral – capacidade individual
de adaptação a situações inéditas e, consequentemente, o domínio de
processos e a capacidade de os mobilizar para um problema inédito. No
ensino, articulam-se a tensão de duas competências específicas de cada
um dos sistemas – atingir os objetivos finais de formação (capacidade
reflexiva) e a capacidade de dar resposta a situações inéditas (a ação).
Parecem consensuais algumas vantagens de um ensino baseado
no desenvolvimento de competências. Apontam-se algumas: desfrag-
mentação e sentido da globalidade da formação, motivação para a
aprendizagem ativa, atribuição de uma finalidade aos saberes acadê-
micos; contribuição para tornar a aprendizagem numa transformação
profunda dos estudantes; contribuindo para a redução da seletividade
acadêmica (escolar) e da “cultura de insucesso” (REY et al., 2005).
Constitui um desafio e uma tarefa de dificuldade acrescida para
professores e investigadores: identificar competências, investigar e
produzir materiais que possam ser integrados no ensino, desenvolver

109
metodologias adequadas à sua concretização, proceder à sua avaliação
acadêmica e de inserção no processo social. Esta “transição de um sis-
tema de ensino baseado na ideia da transmissão de conhecimentos para
um sistema baseado no desenvolvimento de competências” (PORTU-
GAL, 2006, art. 60), de pôr em prática este novo paradigma ou modelo
de ensino para que aponta o Processo de Bolonha, é, em nosso enten-
der e nos documentos do Processo de Bolonha, o cerne da mudança
do ensino superior na Europa e que traz encargos acrescidos e novas
atitudes para os intervenientes no processo – professores, investigado-
res, estudantes e instituições de ensino e de investigação.
Identificamos três vias simultâneas neste desafio. A primeira
focaliza a proximidade em relação ao campo, às situações de pesquisa,
isto é, privilegia um ensino experiencial resultante de uma aproximação
entre investigação e ensino, manifesta sobretudo na ideia de ação e de
resolução de problemas. A segunda via é a de desenvolvimento de for-
mas de aprendizagem colaborativa – as comunidades de prática poderão
ter neste contexto um particular interesse no desenvolvimento de uma
aprendizagem colaborativa, a utilização das tecnologias digitais com suas
extraordinárias potencialidades de comunicação, de reconfiguração do
espaço-tempo e de novas linguagens (ou de estabelecer novas ligações
entre elementos constitutivos das linguagens), de tratar maior quantida-
de de informação e de recolha, armazenamento e tratamento de infor-
mação, de “convergência cultural”. Estes constituem instrumentação in-
dispensável para esta mudança. Finalmente, a aprendizagem centrada na
procura de soluções ou resolução de problemas remete necessariamente
para questões de natureza interdisciplinar, que abordarei mais abaixo.
É conveniente recordar o que Ben Shneiderman do Human-
Computer Interaction Laboratory da Universidade de Maryland refere
acerca da nova educação: acentua o pensamento crítico, estratégias analí-

110
ticas, o trabalho em rede (amigos, colegas, familiares, cidadãos, mercado)
e estes exigem o aprimorar de capacidades de comunicação e criativida-
de. A nova informática poderá contribuir para este objetivo, a partir de
quatro atividades fundamentais, entendidas de forma complementar:

1. Atividades de recolha de informação pré-elaborada nas


bases documentais (bibliotecas, bases de dados, websites,
recursos abertos) e de factos e situações do quotidiano
(observação, registo e tratamento da informação). Para tal
a necessidade de ferramentas para avaliar a validade dos
recursos e dados encontrados (qualidade e diversidade da
informação e das suas fontes).

2. Atividades de relacionamento, incentivo ao trabalho de


grupo, desenvolvimento de atividades de comunicação,
sociabilidade, exigências de autonomia e trabalho do aluno.
Trabalho de grupos e colaboração.

3. Atividades de criação, isto é, a fusão entre a aprendizagem e o


trabalho criativo ou realização criativa. Desenvolvimento de
projetos ambiciosos.

4. Finalmente a doação/dádiva. Esta enfatiza os projetos


orientados para serviços que venham a ser significativos (e
úteis) para alguém fora da própria aula ou situação de ensino.
Salientámos a importância da extensão universitária nas múl-
tiplas formas de intervir na sociedade, não apenas de uma
forma crítica, mas também criativa.

Na definição de competência, articulamos três níveis de com-


petências. Competências elementares ou processuais como teorias,
métodos e técnicas de investigação que permitam desenvolver ações

111
parcelares – realizar a observação, fazer entrevistas2, escrever notas de
campo e o diário de campo, organizar informação, consultar e saber
utilizar a informação local (fontes documentais primárias) e global
(fontes documentais secundárias) e a utilização das tecnologias de do-
cumentação – câmaras fotográficas, de vídeo, microfones e gravadores
áudio, programas informáticos, etc.
Bernard Rey (2005) define um segundo grau de competências,
que denomina competências elementares interpretativas (ou de enqua-
dramento) da situação. No exercício que estamos a fazer de definição de
competências, no âmbito da antropologia, da antropologia visual ou da
antropologia digital, as competências de segundo graus poderão situar-se
a nível da “simulação” ou antecipação – elaborar um projeto de pesquisa,
realizar as escolhas – problemática, campo, métodos, técnicas e tecno-
logias, definir estratégias, preparar a passagem ao terreno, reunir as con-
dições para uma consequente realização, ou de realização de exercícios
parcelares – analisar um filme, proceder à análise de dados, previamente
fornecidos. Estas competências de segundo grau exigem uma vasta gama
de competências elementares e as escolhas autónomas mais convenien-
tes, face a uma situação inédita. Exige, pois, o exercício (ação, atividade,
tarefa) das competências elementares (procedimento automatizado), o
confronto e interpretação da situação e a realização autónoma de esco-
lhas perante uma situação nova – situação ou enquadramento.
As competências complexas, ou de terceiro grau, estão orientadas
para o saber escolher e combinar, adequadamente, diversas competên-
cias elementares, a fim de a ultrapassar ou dar resposta a uma situação
nova e complexa. Estas competências englobam um forte componente

2 Prefiro dizer conversas ou as mais diversas formas de interlocução e não entre-


vistas uma vez que estas tendem a ser autoritárias ou a orientar demasiado as
respostas.

112
interdisciplinar3 e a capacidade de desenvolver uma ação coerente – ela-
borar um ensaio, fazer uma dissertação ou uma tese, uma programação
cultural, uma intervenção local, a realização de um filme, etc.

3 Não é simples, nem pacífico o debate em torno da interdisciplinaridade. Em


primeiro lugar, porque há um consenso em torno do disciplinar. Este funciona como
forma clássica de produção de uma cultura com uma linguagem – jargão próprio de
cada disciplina; métodos de investigação específicos; regras e constrangimentos
institucionais – formação e investigação organizada em disciplinas; reconhecimen-
to ou aceitação dos limites – dificuldade ou impossibilidade de um investigador se
tornar perito de diversas disciplinas. Disciplinar remete também para um processo
disciplinador que assegura que as disciplinas se alinhem (HACKING, 2003), se
organizem no conjunto dos saberes, definam suas fronteiras, relações interdisci-
plinares privilegiadas, necessariamente flutuantes (flexíveis e fluidas) ao longo do
tempo. Em segundo lugar, há uma multiplicidade de conceitos em torno da discipli-
naridade (pluridisciplinaridade, multidisciplinaridade e interdisciplinaridade) ou,
para além desta, a transdisciplinaridade. A transdisciplinaridade induz na ideia de
algo que está para além da disciplinaridade, através, ou ao revés, da disciplinaridade
na procura de uma linha de reflexão (ou da problematização) acerca de problemas
concretos. Sugere a ideia de passagem (de prática liminar) de saber transversal es-
timando sinergias de encontro entre disciplinas e uma atividade transformadora e
formadora de novos campos de pesquisa. Finalmente, o discurso sobre a interdis-
ciplinaridade e a transdisciplinaridade são ricos em paradoxos e a sua prática, por
vezes, oportunista (SPERBER, 2003) ou exclusivamente voltada para a valorização
económica da pesquisa (PESTRE, 2003).

113
Quadro 1 - Gaus de competência

Níveis de competências Descrição de atividades

Competências elementares Teorias, métodos e técnicas de investigação, ações


ou processuais (1º grau) parcelares – realizar a observação, fazer entrevista,
escrever notas de terreno e o diário de campo,
organizar informação, consultar e saber utilizar a
informação local (fontes documentais primárias) e
global (fontes documentais secundárias) e a utilização
das tecnologias de documentação – câmaras
fotográficas, de vídeo, microfones e gravadores áudio,
programas informáticos, etc.
Competências elementares Realizar uma “simulação” ou antecipação – elaborar
interpretativas (2º grau) um projeto de pesquisa, realizar as escolhas – pro-
blemática, terreno, métodos, técnicas e tecnologias,
definir estratégias, preparar a passagem ao terreno,
reunir as condições para uma consequente realização,
ou de realização de exercícios parcelares – analisar
um filme, proceder à análise de dados previamente
fornecidos.
Competências complexas Saber escolher e combinar, adequadamente, diversas
(3º grau) competências elementares, a fim de a ultrapassar
ou dar resposta a uma situação nova e complexa –
elaborar um ensaio, desenvolver/realizar um projeto.
Estudo de casos/situações, pesquisa online numa
dupla perspetiva: de procura de recursos de formação,
de investigação das dinâmicas sociais e culturais
tecnologicamente mediadas.

Fonte: Elaborado pelo autor baseado em REY (2005).

114
Vejamos estas competências complexas na realização de uma
dissertação:

em primeiro lugar é exigido ao investigador um


percurso original; confronto com o novo, com uma
nova situação e com a definição de uma problemá-
tica; em segundo lugar é uma passagem para outro
lugar, o terreno/campo, onde o antropólogo vai
viver essa experiência única, que pressupõe uma se-
paração da situação anterior; uma crise de adaptação
ao terreno; uma concentração de intenções, uma
densificação de objetivos e a definição de estratégias
e realização de ações orientadas para a concretização
desses objetivos; a conclusão de um percurso através
da apresentação de resultados esperados, suscetíveis
de o credibilizar para a reentrada na instituição com
um status diferente do da partida; em terceiro lugar,
em consequência desta passagem, o antropólogo
mergulha numa fase liminar de grande exigência
psicossocial em que o seu estatuto é ambíguo, o seu
percurso sujeito a múltiplas turbulências e provas,
no meio das quais vive e constrói a experiência de
terreno, numa situação de negociação e consenso,
base comum de compreensão, entre oponentes ou
participantes no processo. Finalmente, este período
liminar é um período de intenso trabalho de pro-
dução, passagem da experiência de terreno ao texto
e ao filme, através do qual, o antropólogo espera
transmitir o conhecimento adquirido a outrem, cre-
dibilizar-se de forma a obter o reconhecimento para
a reentrada, através de um ato de instituição, na tribo
dos antropólogos ou dos antropólogos cineastas.
As produções do antropólogo inserem-se nas con-
venções narrativas ou discursivas autorizadas pela
antropologia, que em períodos de turbulência e crise

115
das representações se tornam instáveis e suscetíveis
de novas experiências na escrita, no audiovisual e
sobretudo no potencial comum para o desenvolvi-
mento de uma ciência antropológica audiovisual”
(RIBEIRO, 2001, p. 39).

3 Componente experiencial no ensino on-line

O primeiro objetivo das Disciplinas, Unidades Curriculares, aci-


ma referidas, tem sido o de aproximar a antropologia do quotidiano dos
estudantes. Para muitos estudantes a antropologia é ainda o estudo de
pequenas “comunidades”, de sociedades longínquas, exóticas, de primi-
tivos, de “nativos”. Focalizamos a antropologia como uma abordagem
da mudança, isto é, o que permanece e o que muda nas sociedades e nas
culturas. O próprio conceito de comunidade é questionado a partir do
que é referido no modelo pedagógico como “comunidade de aprendi-
zagem” e a “observação participante” que os estudantes frequentam ou
nas comunidades virtuais para onde são remetidos nas atividades de
“trabalho de Campo em ambientes virtuais” na Disciplina Dinâmicas
Sociais e Culturais na Era Digital.
Em Antropologia Visual (1º ciclo) tentamos colocar os estudan-
tes no contexto do atual desenvolvimento das tecnologias digitais. Este
contexto permite uma retrospetiva do filme etnográfico e da antropolo-
gia visual – os históricos constrangimentos econômicos, tecnológicos
e epistemológicos e a sua superação. Na apresentação da disciplina é
referido que “o desenvolvimento das tecnologias digitais veio resolver,
em parte, estes condicionamentos e estrangulamentos. Estão, assim,
criadas condições para o desenvolvimento desta área e de práticas de
antropologia visual e sonora”. E no Plano da disciplina – Unidade Cur-
ricular –, contextualizam-se assim as condições de desenvolvimento da

116
Antropologia Visual: “as práticas da antropologia visual estiveram, du-
rante muito tempo, condicionadas por fatores exteriores à investigação
antropológica: tecnológicos e, consequentemente, económicos e polí-
ticos” (RIBEIRO, 2016). O desenvolvimento das tecnologias digitais
veio resolver, em parte, estes condicionamentos e estrangulamentos.
Tal aconteceu também noutras áreas relacionadas com a antropologia
visual. Segundo a jovem realizadora iraniana Samira Makhmalbaf:
“Três métodos de controlo externos reprimiram o processo criativo
dos cineastas do passado: o político, o financeiro e o tecnológico. Hoje,
com a revolução digital, a câmara pode ignorar essas formas de contro-
lo e ficar à disposição do realizador”. O mesmo acontece na relação dos
Novos Media (media digitais) com as práticas da antropologia visual.
Há atualmente mais oportunidades para o desenvolvimento das práti-
cas da disciplina. Temos, porém, consciência que essas oportunidades
criaram maior exigência e complexidade decorrentes da utilização
de mais informação, resultante da prática acumulada universalmente
disponível, da aferição e avaliação das práticas por instituições interna-
cionais, da apresentação/exposição públicas dos resultados (textuais,
visuais, audiovisual, multimédia e hipermédia). As tecnologias digitais
trouxeram, também, novas problemáticas à disciplina:

as imagens digitais são os terrenos da experiência de


um pensamento que, baseando-se no olho e no vi-
sível, desenvolve reflexos visuais. No fundo, as ima-
gens já não precisam de referentes para existirem,
traduzindo simplesmente propriedades em formas e
cores. Abrindo ao contrário – simultaneamente – a
via de um novo realismo, os computadores conferem
um impulso à parte ficcional da ciência” (SICARD,
2006, p. 303).

117
Vejamos a este respeito Machinima Fieldnotes4 e o retrato do
antropólogo enquanto avatar5 de Débora Krischke Leitão.
Compreende-se, pois, que a Antropologia Visual, embora pratica-
da de forma explícita ou implícita desde finais do século XIX, tenha tido
algumas dificuldades no seu desenvolvimento e reconhecimento. São
atualmente múltiplos os fatores que contribuíram para o seu desenvolvi-
mento e estado atual: 1. Libertação dos constrangimentos tecnológicos,
econômicos e políticos; 2. Fundamentação epistemológica e o conse-
quente desenvolvimento de boas práticas (estudos e filmes, produções
audiovisuais, multimédia e hipermédia) e de autores/realizadores de re-
ferência reconhecidos pela academia (práticas e reflexão acumuladas e
comunicadas); 3. O relevo que a “cultura visual” e “cultura visual digital”
adquirem na sociedade contemporânea; 4. A abertura das instituições
de ensino superior à sociedade e às problemáticas das sociedades con-
temporâneas; 5. Maior circulação das obras audiovisuais (multimédia
e hipermédia) de referência, com a organização de videotecas (media-
tecas) nas universidades, a sua divulgação nos canais televisivos e mais
recentemente a edição em DVD e/ou divulgação através da Internet
– Youtube, Internet Archive, referências frequentes na escrita antropo-
lógica (ou nas ciências sociais); 6. O desenvolvimento de competências
profissionalizantes (realização de documentários, exposições, páginas
web, programação cultural na área da fotografia, do cinema e da cultura
visual e da cultura visual digital, trabalho nos arquivos – memória visual
das sociedades e das culturas) suscetíveis de criar empregabilidade, no
âmbito das práticas desenvolvidas na disciplina; e 7. Há muitas outras
razões que os estudantes encontram à saída de uma especialização em

4 Disponível em: <http://machinimafieldnotes.blogspot.pt/>.


5 Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=jAM3RZNXIDY&featu-
re=player_embedded>.

118
antropologia visual e que se encontram inventariadas em publicações
antigas e mais recentes (PINK, 2007; RIBEIRO, 2005, 2006).
Só em 2001 a American Anthropological Association definiu
uma série de produções audiovisuais frequentemente integradas na
investigação antropológica e publica uma proposta elaborada pela SVA
– Society for Visual Anthropology para o estabelecimento de critérios
de avaliação e integração desta produção nos currículos acadêmicos
dos antropólogos e considera que

os media visuais etnográficos (principalmente o


filme, o vídeo, a fotografia e os meios multimédia
digitais) desempenham um papel significativo na
produção e na aplicação do conhecimento antropo-
lógico, constituindo também uma parte integrante
das ofertas de cursos desta disciplina. Os antropó-
logos envolvidos na produção de trabalhos visuais
produzem contribuições académicas valiosas para a
disciplina. Os antropólogos incluem também, cada
vez mais, produções de media visuais como parte
dos seus curricula vitae (AAA, 2003).

Este reconhecimento é reafirmado em 2015, reconhecida a neces-


sidade da sua expansão para além do documento original, filme etnográ-
fico e da fotografia, definindo ainda elementos a ter em consideração na
avaliação dos meios de comunicação visual na criação e na disseminação
do conhecimento antropológico. Apresenta assim as seguintes atividades
no âmbito do que denomina media visuais etnográficos:

1) filmes de pesquisa e documentação que acrescen-


ta ao histórico e/ou registo etnográfico, ou é usado
para análise posterior (como a descrição linguística)
ou outros tipos de produção de conhecimento (tais
como dança e arte); (2) media etnográficos que con-

119
tribuem para o debate teórico e desenvolvimento;
(3) a inovação em novas formas de media; (4) media
concebidos para melhorar o ensino; (5) media pro-
duzidos para transmissão televisiva e outras formas
de comunicação de massa; (6) media feito com e/ou
para o benefício de uma determinada comunidade,
governo ou negócios; (7) curadoria de festivais de
cinema e media; e/ou (8) curadoria de exposições
de media visuais etnográficos e arte (AAA, 2017).

Na abertura da disciplina de Antropologia Geral, contextualiza-


-se o desenvolvimento da antropologia e alerta-se os estudantes para a
sua pertinência e contemporaneidade

A antropologia não é uma ciência das sociedades


longínquas e exóticas, nem mesmo das pequenas
comunidades ou das sociedades simples. Nascida na
segunda metade do século XVIII interessou-se pelo
Homem (άνθρωπος, anthropos) como objeto de
estudo (λόγος, logos), no século XIX acompanhou
a expansão colonial, industrial, científica e tecnoló-
gica europeia. Nessa época, os antropólogos debru-
çaram-se sobre as sociedades ditas “primitivas” ou
“longínquas”, como numa situação de laboratório,
para compreenderem a organização “complexa” das
suas próprias sociedades. Após a descolonização, a
Antropologia regressa aos países de onde partira,
mas fica também por lá afirmando, num e noutro
lado, a sua pertinência e contemporaneidade. Nesta
disciplina abordaremos os conceitos fundamentais
da disciplina, os seus contextos, a sua dimensão
integrativa, tendo em consideração as múltiplas di-
mensões do ser humano em sociedade, o seu projeto
social e cultural e os princípios metodológicos. Cen-
trar-nos-emos numa antropologia geral para a nossa

120
época”. Sublinha-se a ideia de que se trata “de uma
forma de conhecimento caracterizada pela abertura
e pela alegria, que Bergson identificava com a ciên-
cia. Trata-se de uma forma de conhecimento, sempre
mutante, urgentemente necessário, no mundo de
hoje (FISCHER, 2011, p. 72).

Os conceitos centrais de cultura e sociedade são abordados nesta


perspetiva de sociedades mutantes, de processos sociais em contínua
reconfiguração e a noção de cultura e de desafio à análise cultural, como
“desenvolvimento de instrumentos de tradução e mediação para ajudar a
tornar visíveis as diferenças de interesse, de acesso, de poder, de necessida-
des, de desejos e ainda de perspetiva filosófica” (FISCHER, 2011, p. 19).
Remete-se nesta disciplina para as áreas emergentes da antropo-
logia, imbricadas no quotidiano das pessoas e consequentemente, tam-
bém, dos estudantes: “antropologia do consumo”, “antropologia visual”,
“antropologia digital”, “antropologia do turismo”, “antropologia da saúde”,
sem esquecer o enquadramento tradicional da antropologia. Apontamos,
assim, para a antropologia como “ciência integrante”, mas também como
abordagem interdisciplinar. Colocamos assim ao estudante três questões
fundamentais enunciadas por Augé (2007, p. 27-28):

a mudança como objeto de estudo, a interdiscipli-


naridade, a relação antropologia/comunicação e
consequentemente as tecnologias integradas neste
binómio [a etnologia ou antropologia] considera
que o mundo mudou e que é essa mudança que é
preciso estudar. Terão, hoje, ainda sentido certas dis-
tinções disciplinares? Quando fala de antropologia,
não estará a evocar investigações muito próximas
das da sociologia ou daquilo a que hoje chamamos
ciências da comunicação?

121
Na disciplina Dinâmicas Sociais e Culturais Na Era Digital (2º
ciclo) dá-se continuidade às questões da Antropologia Geral e da An-
tropologia Visual focalizando as mudanças e reconfigurações sociais e
culturais, na era digital. Esta disciplina tem como objetivos:

explorar novos terrenos/ campos da antropologia,


adequar as metodologias de pesquisa aos novos ter-
renos/ campos, aprofundar o debate (antropológico
e interdisciplinar) em torno das mudanças tecnoló-
gicas, mas sobretudo das mudanças socioculturais
resultantes destas e, através da investigação empíri-
ca, procurar dar respostas a questões fundamentais
como as seguintes: qual a relação entre a tecnologia
e a cultura nas sociedades contemporâneas? Que
tipos de sociedades são gerados pelas novas tecno-
logias? Que tipo de grupos sociais se forma à sua
volta? Como é que a adoção massiva das novas tec-
nologias reconfigura ou afeta as identidades sociais,
a perceção que as culturas, classes e grupos têm
de si mesmos e dos outros, das suas interações, da
natureza humana, da vida, da cultura, das utopias?
Como mudam as formas de relação (interação),
comunicação, aprendizagem e transmissão de sabe-
res, pensamento, atuação, entretenimento, trabalho,
participação política?

Há neste campo um trabalho importante a realizar – o de estabe-


lecer competências específicas de cada ciclo, de prever o seu desenvol-
vimento ao longo dos três ciclos de estudo no Ensino Superior, de as
adaptar às áreas e situações de ensino sem perder de vista os contextos
de desenvolvimento atual do ensino superior decorrente do Processo
de Bolonha. O projeto europeu Tuning focaliza estes objetivos na
medida em que “procura comparar métodos e conteúdos de ensino

122
europeus e aposta na convergência e na sintonia, procurando definir
perfis profissionais comparáveis e contribuir, através da possibilidade
de tornar os diplomas mais facilmente legíveis em termos dos seus
conteúdos, para a empregabilidade no mercado de emprego europeu”
(descritores de Dublin). No âmbito deste trabalho não ignoramos esta
problemática, no entanto, não a desenvolvemos para não tornar muito
extensa esta reflexão. Deixamos, no entanto, os descritores de Dublin,
documento que nos serve de referência nesta questão:

123
Quadro 2 - Descritores DUBLIN
1º Ciclo 2º Ciclo 3º Ciclo
Atribuição do grau aos Atribuição do grau aos Atribuição do grau aos
estudantes que tenham estudantes que tenham estudantes que tenham
atingido: atingido: atingido:
Conhecimento e capaci- Conhecimento e capaci- Conhecimento e capaci-
dade de compreensão dade de compreensão dade de compreensão
Tenham demonstrado Tenham demonstrado Demonstrem uma capa-
possuir conhecimentos e possuir conhecimentos e cidade de compreensão
capacidade de compreen- capacidade de compreen- sistemática do domínio
são a um nível que: são a um nível que: científico de estudo;
Sustentando-se nos Sustentando-se nos Dominem as competên-
conhecimentos de nível conhecimentos de nível cias, aptidões e métodos
secundários, os desenvol- de 1º ciclo, os desenvolva de investigação associados
va e aprofunde; e aprofunde; ao domínio científico.
Corresponda e se apoie Permita e constitua a base
em livros de texto de de desenvolvimento e/ou
avançado; aplicações originais, no-
Em alguns domínios da meadamente em contexto
área de estudo, se situe ao de investigação.
nível dos conhecimentos
de ponta na área científica
respetiva.
Aplicação de conhecimen- Aplicação de conhecimen- Aplicação de conhecimen-
tos e compreensão tos e compreensão tos e compreensão

124
Saibam aplicar os conheci- Saibam aplicar os Demonstrem a capacidade
mentos e a capacidade de conhecimentos e a capa- para conceber, projetar,
compreensão adquiridas, cidade de compreensão e adaptar e realizar uma
de forma a evidencia- resolução de problemas investigação significativa
rem uma abordagem em situações novas e não respeitando as exigências
profissional ao trabalho familiares, em contextos impostas pelos padrões
desenvolvido na sua área alargados e multidis- de integridade académica;
vocacional. ciplinares, ainda que Realizem uma quantidade
relacionados com a sua significativa de trabalho
área de estudo. de investigação original
que contribua para o
alargamento das fronteiras
do conhecimento, parte da
qual mereça a divulgação
nacional ou internacional
em publicações sujeitas a
“referee”.
Realização de julgamento Realização de julgamento Realização de julgamento
/tomada de decisões /tomada de decisões /tomada de decisões

125
Comprovem capacidade Demonstrem a capacidade Sejam capazes de analisar
de resolução de problemas para integrar conhecimen- criticamente, avaliar e
no âmbito da sua área de tos, lidar com questões sintetizar ideias novas e
estudo, e de constituírem complexas, desenvolver complexas.
e fundamentarem a sua soluções ou emitir juízos
própria argumentação. em situações de informa-
Mostrem capacidade de ção limitada ou incom-
recolher, selecionar e pleta, incluindo reflexões
interpretar informação sobre as implicações e
relevante, particularmente responsabilidades éticas
na sua área de estudo, que e sociais que resultem
os habilite a fundamen- ou condicionem essas
tarem as soluções que soluções e esses juízos.
preconizem e os juízos
que emitem, incluindo
na análise os aspetos
sociais científicos e éticos
relevantes.
Comunicação Comunicação Comunicação
Sejam dotados de Sejam capazes de comuni- Sejam capazes de comu-
competências que lhes car as suas conclusões – e nicar com os seus pares, a
permitam comunicar os conhecimentos e os ra- restante comunidade aca-
informação, ideias, pro- ciocínios a elas subjacen- démica e com a sociedade
blemas e soluções, tanto a tes – quer a especialistas, em geral sobre a área em
públicos constituídos por quer a não especialistas, que é especializado.
especialistas como não de uma forma clara e sem
especialistas. ambiguidades.

126
Competências de au- Competências de au- Competências de au-
toaprendizagem toaprendizagem toaprendizagem
Tenham desenvolvido Tenham desenvolvido as Seja capaz de, numa
as competências que competências que lhes sociedade baseada no
lhes permitam uma permitam uma aprendiza- conhecimento, promover,
aprendizagem ao longo da gem ao longo da vida, de em contexto académico e/
vida, com elevado grau de um modo fundamental- ou profissional, o progres-
autonomia. mente auto-orientado e so tecnológico, social ou
autónomo. cultural.

Fonte: Ministério da ciência e do ensino superior de Portugal.

4 Alteridade, comparabilidade e compreensão do outro

A alteridade, comparabilidade e compreensão do outro, “o de-


senvolver instrumentos de tradução e mediação para ajudar a tornar
visíveis as diferenças” (FISCHER, 2011, p. 72), constitui um dos gran-
des problemas do ensino da antropologia. Identificamos três situações
diferenciadas entre os estudantes: 1) etnocentrismo exacerbado resul-
tante, em meu entender, de falta de “relação diferenciada e relacional
da cultura”; 2) uma relação paternalista com o outro; e 3) identificação
com o outro (“auto-absorção” – Davies, “rendição à cultura estudada”
– Hammersley e Atkinson, “indigenização do antropólogo” – Kilani).
Pretende-se desenvolver nos estudantes uma cultura reflexiva,
não só como tomada de consciência de si na relação com o outro, mas
também da influência do antropólogo no processo da construção do co-
nhecimento e alertar para o que Fischer (2011) chama de “instituições
sociais reflexivas” ou formas sociais de reflexividade, isto é, formas de
apropriação/integração nos grupos, instituições, sociedades e culturas
estudadas e as consequências pessoais, éticas e políticas decorrentes

127
desta situação. Duas questões se revelam aqui fundamentais na forma-
ção do antropólogo: a “educação sentimental” referida por Geertz – “uti-
lização das emoções para fins cognitivos [...] assistir a uma briga de galos
ou dela participar é, para o balinês, uma espécie de educação sentimen-
tal” (GEERTZ, 1991, p. 317). É no terreno de experiências partilhadas,
em que o conhecimento antropológico surge de um processo dialógico
entre observador e observados, que o antropólogo faz o seu processo de
aprendizagem contínua. Não se trata apenas da gestão de um conjunto de
textos e regras, de técnicas e procedimentos, mas de uma

descoberta pessoal das possibilidades práticas, técni-


cas e teóricas, guiadas por especialistas, que insistem
mais em que se encontre o seu próprio estilo, do que
em aprender procedimentos. Isto teve como conse-
quência pôr em causa os meus pontos de vista sobre
a antropologia, muito mais profundo do que tinha
previsto (PINK, 2007, p. 124).

Vejamos como o escritor e antropólogo e escritor Ruy Duarte de


Carvalho caracteriza esta situação no mesmo ano da publicação de Wri-
ting Culture: “Nós estamos, do ponto de vista de uma ética profissional
e intelectual, do lado daqueles para quem, em relação a um trabalho
como este, a noção de autor se torna ambígua, desde que o texto integre
a participação de outrem” (apud VALE DE ALMEIDA, 2008).
Não se trata nesse processo e na relação antropológica da identifi-
cação entre «Eles» e o «Nós», em colocar os dois termos como iguais,
mas questionar o investigador acerca do modo como constrói a relação
com o outro, (objeto) sujeito da investigação e através delas a relação
entre historicidades, estruturas sociais, culturas, sociedades. Não se
espera a identificação do investigador com as pessoas estudadas, nem a
substituição do saber localmente construído, utilizado, socializado (nas

128
interações e nas estruturas sociais locais) – o saber nativo pelo saber do
antropólogo, global, inserido em redes de interações e estruturas sociais
mais amplas de debate teórico. “Inventar o outro, é compreender-se a si
mesmo como vivendo num mundo em que se pode, por contraste com o
outro, delinear os contornos” (KILANI, 1994, p. 15).
O conhecimento antropológico rege-se, cada vez mais, por um
contexto, no qual o antropólogo e seu interlocutor se dedicam a estabe-
lecer uma base comum de compreensão. O que se cria nesse encontro é
uma espécie de lugar intermediário entre duas culturas. É “um momen-
to de pensamento intercultural” (CLIFFORD, 1988, p. 529). É nesse
sentido, que é preciso repensar o processo social e intelectual a partir do
qual surgem as descrições e se constrói o texto etnográfico. Atribuindo
assim à palavra «dada» o seu sentido etimológico de «coisa dada»
(CLIFFORD, 1988, p. 529)), de coisa trocada entre dois sujeitos; e
“à cultura – tanto a do antropólogo, quanto a do interlocutor – a sua
dimensão dinâmica de construção, de negociação e de contestação dos
pontos de vista” (KILANI, 1994, p. 34).

5 Materiais de ensino

Parto para o trabalho docente on-line da ideia de que qualquer


modelo pedagógico de ensino a distância é, antes de mais, a estrutura
de base da organização de um sistema de aprendizagem. Após o curso
de formação, baseado no modelo da Universidade Aberta, escrevi no-
tas acerca desta experiência, que entendo necessário transcrever aqui
“No início de uma experiência docente em ensino on-line não haverá
espaço para grande criatividade. Será então recomendável seguir o mais
rigorosamente possível, sem grande inovação e criatividade, o modelo
pedagógico proposto e adotado (ex. modelo pedagógico da Universida-
de Aberta) ou as boas práticas desenvolvidas por professores mais expe-

129
rientes”. O e-learning “é ainda fluído e em estado de mudança”. Assim, os
modelos ou as boas práticas poderão servir de âncora para que o professor
se possa agarrar e, de algum modo, fundamentar ou firmar a sua prática.
A inexperiência pode não permitir estar atento aos pontos crí-
ticos, nem poder dar respostas flexíveis ou enfrentar o imprevisto da
interação on-line. Só o desenvolvimento de sucessivas experiências
poderá contribuir para criar uma base de dados (explícita ou implí-
cita) ativa de experiências acumuladas, que permitam dar respostas
mais adequadas às situações imprevistas. Como na escrita, nas artes,
no ensino presencial, poderemos dizer que será necessário conhecer
bem a gramática (regras) para desenvolver uma prática correta (para
isto as normas orientadoras e o conhecimento teórico são boas ferra-
mentas – uma boa cartilha dos princípios básicos e fundamentais). A
inovação ou a adequação a situações problemáticas, novas e complexas
só surgirá depois da incorporação das regras básicas e de experiências
acumuladas e refletidas.
Hubert e Stuart Dreyfus sintetizam cinco estágios de desenvolvi-
mento da aprendizagem que, embora generalistas e não referenciadas
ao professor a ao antropólogo, esclarecem a atividade do professor, as
práticas de trabalho de campo em antropologia. Quando nos depara-
mos com uma situação particular procedemos em primeiro lugar como
novatos/iniciantes, depois como iniciantes avançados e só posterior-
mente nos tornamos competentes e proficientes. Nestes estágios há
sobretudo uma decisão analítica. O estado mais avanção de aprendi-
zagem ou de ação, embora suponha decisões racionais (lógicas) in-
corpora cada vez mais a intuição baseada quer na experiência, quer no
envolvimento nas situações de ensino ou de investigação.

130
Quadro 3 - Ciclo de Estágios da Aquisição de
Habilidades Hubert e Stuart Dreyfus

Nível de Habili- Comprometi-


Componentes Perspetiva Decisão
dade mento
Descontextuali-
Iniciante Nenhuma Analítica Distanciado
zados
Iniciante avan- Descontextualiza-
Nenhuma Analítica Distanciado
çado dos e situacionais
Compreensão
e decisão
Descontextualiza-
Competente Escolhida Analítica distanciadas.
dos e situacionais
Envolvido com
os resultados
Compreensão
Descontextualiza- Experien- envolvida e
Proficiente Analítica
dos e situacionais ciada decisão distan-
ciada
Descontextualiza- Experien-
Expert Intuitiva Envolvido
dos e situacionais ciada

Fonte: Elaborado pelo autor baseado em DREYFUS e DREYFUS, 1988.

Há, no entanto, alguns instrumentos utilizáveis neste contexto


das experiências iniciais do docente on-line: 1) o bom senso e as ex-
periências anteriores do professor (decorrentes de qualquer situação
de ensino à distância ou presencial); 2) a confiança e diligência, mas
também a humildade [oposta à arrogância, ao procurar nos outros, ou
nos contextos, as razões dos nossos fracassos expressos numa diver-
sidade de expressões, que conhecemos] para a procura de soluções e

131
respostas a situações críticas; 3) o diálogo entre colegas na resolução
de problemas, na formação contínua, na investigação, e na partilha de
informação; 4) sobretudo, parece de singular relevância ser-se capaz de
superação, inovação e perseverança típica dos pioneiros num terreno
estranho (RIBEIRO, 2008).
Neste contexto, e partindo dos pressupostos acima enunciados,
optamos na disciplina de Antropologia Geral (importante a colabora-
ção de alguns tutores), herdada de um outro docente, por manter os ma-
teriais tradicionais de ensino a distância (Manual): 1) ir introduzindo
informação (textos, filmes, sites), que possam contribuir para abertura a
novas temáticas ou questionamentos (áreas emergentes da antropologia,
Cultura e análise cultural como sistemas experimentais – FISCHER, 2011)
e, simultaneamente, 2) introduzir ferramentas de utilização sistemática
– um software de criação de mapas mentais, que permita aos estudantes
sistematizar a informação, proceder a uma análise minuciosa dos textos
e de outros materiais e esquematizar a estrutura dos trabalhos e apre-
sentar, fornecer um modelo de elaboração ensaio a utilizar na realização
das provas de avaliação; e 3) estimular o uso sistemático de recursos
educacionais abertos (REA) – sites, bases de dados, Youtube6, Lugar do
Real, etc. O contributo dos tutores, investigadores integrados no Grupo
de Pesquisa Laboratório de Antropologia Visual/ Media e Mediações
Culturais, pode ganhar, neste processo, um maior relevo, na medida em
que pode trazer para o processo de ensino, não só a interlocução com o
professor responsável pela disciplina, mas também novas temáticas e a
elaboração conjunta de materiais, provenientes da sua investigação. O

6 Ver Cliphistoria – Canal Youtube de recursos audiovisuais para o ensino da His-


toria de Espanha através de clips de filmes e ao tempo uma reivindicação do cine-
ma espanhol e latino-americano de Manolo Gonzalez em <http://www.youtube.
com/user/cliphistoria?feature=results_main>.

132
trabalho docente pode tornar-se, assim, num processo de integração de
investigação no ensino, possível numa próxima etapa.
A introdução de materiais e situações mais inovadoras foram rea-
lizadas no 2º ciclo e no doutoramento. No 2º ciclo, com a introdução
de base de dados – Imagens e sonoridades das migrações7 e o Portal Lu-
gar do Real8, Lisa Antropologia9 – nas disciplinas de Antropologia das
Imagens e Dinâmicas sociais e culturais na era digital com a iniciação
ao trabalho de campo em ambientes virtuais, sobretudo o SecondLife
onde os então estudantes de doutoramento (Paula Justiça e Casimiro
Pinto) mantêm a atividade Imagens da Cultura/Cultura das Imagens.
No doutoramento em antropologia, especialidade antropologia
visual, foi sobretudo proposto o desenvolvimento de contactos com
os investigadores que trabalham temáticas semelhantes às dos douto-
randos. Partiu-se de projetos de cooperação internacional, gerados no
âmbito do programa ERASMUS, a que se deu continuidade na rede, no
seminário e nas publicações Imagens da Cultura/Cultura das Imagens.

6 Ligação investigação ensino

As disciplinas referidas nesta reflexão foram geradas, construí-


das ou reconfiguradas no Laboratório de Antropologia Visual, Grupo
de Investigação do Centro de Estudos das Migrações e das Relações
Interculturais. A Antropologia Visual é introduzida na Universidade
Aberta desde a sua fundação pelo Reitor/Fundador, Armando Rocha
Trindade, em 1990, ao acolher o Symposium S13 do Intercongresso
The Social Roles of Anthropology. Esta atividade foi antecedida e con-
tinuada pela Maria Beatriz Rocha Trindade, primeiro, com as equipas

7 Disponível em: <http://ism.itacaproject.com/>.


8 Disponível em: <http://lugardoreal.com/>.
9 Disponível em: <http://vimeo.com/lisausp>.

133
do Museu de Etnografia e, posteriormente, com a produção de filmes e
a realização da disciplina de Sociologia das Migrações. Aí se ensaiaram
os primeiros passos de ligação entre investigação e ensino e a criação
de guiões de leitura dos filmes (videogramas e audiogramas) que, mais
tarde, é desenvolvida na Base de Dados Imagens e Sonoridades das
Migrações (<Itacaproject.com>).
Na corrente americana de antropologia visual, a produção de fil-
mes foi, durante muito tempo, orientada para o ensino da antropologia.
Considera assim uma metodologia de investigação, de comunicação
dos resultados e sua integração no ensino. A disciplina Antropologia
Visual foi introduzida na formação em 1994, no Mestrado em Rela-
ções Interculturais. É no Centro de Estudos da Migrações e Relações
Interculturais (CEMRI), criado em 1989, unidade de investigação
científica e de desenvolvimento, formalmente reconhecida pela então
Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica, em 1994, que
se desenvolveu a investigação, as práticas pedagógicas e a produção de
materiais de ensino de muitas Unidades Curriculares dos cursos de
Ciências Sociais. Isto é particularmente relevante para as disciplinas
referidas neste trabalho – Antropologia Visual, Métodos e Técnicas
de Investigação Antropológica, Antropologia e Imagens, Antropologia
Geral, Dinâmicas Sociais e Culturais na era Digital.
O Laboratório de Antropologia Visual ou grupo de Investigação
em Antropologia Visual, uma área de Investigação/grupo de Investiga-
ção do CEMRI, criado no início de 1998, orientou seus objetivos: para
a promoção e a utilização das tecnologias informáticas, do som e da
imagem, na pesquisa em Ciências Sociais (e em Arte e Comunicação) e
a sua fundamentação teórica, metodológica, ética e política; a produção
de materiais audiovisuais, multimédia e hipermédia concebidos e/ou
realizados por investigadores em Ciências Sociais; o desenvolvimento

134
de redes de cooperação nacional e internacional. Estes três objetivos
contribuíram para criação das Unidades Curriculares acima referidas
e a produção dos materiais de formação – manuais, bases de dados,
produção audiovisual.

7 Atitude ativa e empreendedora nos


processos de ensino on-line

O despertar de uma atitude ativa, da parte dos estudantes de


ensino on-line, depende de variáveis para nós ainda desconhecidas.
Refiro, de novo, às notas decorrentes da formação inicial de docentes,
para o ensino on-line. Não esqueçamos, também, que há variáveis a
considerar exteriores às disciplinas ou matérias a ensinar: 1) estas
são frequentemente da responsabilidade da estrutura e nem sempre
estarão bem integradas nos cursos, de que fazem parte. Alguns autores
referem, que as mudanças no ensino exigem uma mudança na cultura
institucional10; 2) não esqueçamos, também, que estamos em Portugal
com uma população adulta com um deficit de utilização das tecnolo-
gias, com hábitos de focalização de interesse mais nos resultados da
avaliação, do que no saber, no desenvolvimento de competências [a
não ser as de realização dos exames], no trabalho académico. E que,
na nossa época, há uma acentuada mudança de valores na sociedade
e na cultura, mas também nas gerações. Caracterizamos essa mudança
com alguns tópicos: 1) apetência para uma recompensa imediata de

10 A este respeito Beltran afirma “la UOC se ha configurado como una organización
fractal que da respuesta a las necesidades de innovación que requiere una orga-
nización universitaria en red y en la Red. Esta especificidad ha requerido nuevas
formas de relación entre los actores universitarios, una concepción diferente de la
administración de los recursos, incluyendo el conocimiento, otras articulaciones
creativas entre investigación y docencia, otras formas de aprehender y de relacio-
narse con el entorno, nuevos liderazgos, diferentes procesos de trabajo y formas
alternativas de gobierno” (BELTRAN, 2009, on-line).

135
um esforço, se o curso não responde às necessidades sentidas e não
se pressentem recompensas imediatas (emprego, saídas profissionais,
boas remunerações etc.) abandona-se, larga-se. Isto acontece em mui-
tas outras situações da vida social atual, tornando-se, de certa forma,
uma dimensão cultural da nossa época; 2) o entretenimento e o diver-
timento, sobretudo nos estudantes mais jovens, são mais apelativos,
que o esforço, o sofrimento, o trabalho, mesmo que estes conduzam
a melhores oportunidades; o seu maior interesse está mais orientado
para o imediato; 3) o trabalho e o ensino on-line, baseado nas tecnolo-
gias, vão ao encontro dos mais jovens, habituados a usá-las sobretudo
nos jogos. Desta situação decorrem inúmeras perguntas: A estrutura-
ção dos conteúdos aproveita esta sinergia, esta disponibilidade, esta
capacidade instalada? O que sabemos e utilizamos como novas formas
de estruturação de conteúdos (menos monolíticos) será uma forma de
“os modificar facilmente em resposta à necessidade dos estudantes? a
flexibilidade é um custo, a personificação do produto é mais cara, que
a estandardização” (RIBEIRO, 2008); e 4) as tecnologias respondem
a necessidades e a motivações dos jovens e mesmo dos adultos, nas
sociedades atuais – interesse pela autoexpressão, autorrealização susce-
tíveis de serem exploradas no e-learning? (RIBEIRO, 2008).
Essas são algumas das perguntas que nos parecem definir agendas
de investigação e observação de comportamentos e atitudes, perante o
ensino on-line. Algo parece óbvio. Constatamos que os estudantes das
disciplinas obrigatórias são percentualmente mais passivos, que os das
disciplinas optativas, os estudantes de 2º ciclo mais ativos do que os do
primeiro ciclo. No entanto, faltam instrumentos de análise para estudar
essas situações e essa generalização altera-se de ano para ano, de turma
para turma, sem se saber quais são realmente os fatores que contribuem
para essas situações.

136
Não poderemos esquecer o que Fischer refere acerca da antropo-
logia e da análise cultural:

Exige esforços generosos para dar conta do “ponto


de vista do nativo” de uma forma que os nativos
reconheçam como correta e que enseje o contexto
do trabalho dos intérpretes, nativos ou não. Também
contribui para a poética e política do crescimento
vital dos entendimentos culturais. ‘Os antropólogos
encontram-se entre aqueles que fazem contribuições
deste tipo. Aspiram, não só a ampliar e a intensificar
a cultura popular, mas em justapor diferentes cultu-
ras – sejam elas culturas vocacionais, culturas de di-
ferentes religiões e do próprio secularismo, culturas
científicas ou culturas nacionais – de forma que apor-
tem uma perspetiva crítica, comparativa, algo que
permita, cada vez mais, tornar transparentes, visíveis
ou confiáveis as redes de transposições e mudanças,
que os pressupostos e reconhecimentos culturais so-
frem através das redes…. Trata-se de uma forma de
conhecimento infletida por um cálido engajamento
com as pessoas e orientada por uma perspetiva de
joalheiro em direção ao detalhe e à precisão. Trata-se
de uma forma de conhecimento caracterizada pela
abertura e pela alegria que Bergson identificava com
a ciência. Trata-se de uma forma de conhecimento,
sempre mutante, urgentemente necessário no mun-
do de hoje (FISCHER, 2011, p. 72).

Conclusões ou novas interrogações?

Será que poderemos concluir alguma coisa a partir da reflexão e


partilha com os colegas das inquietações e das práticas de ensino da an-
tropologia? Perante um modelo pedagógico de organização do ensino
on-line entende-se que há mais algo a fazer no âmbito das áreas científi-

137
cas específicas. No caso da antropologia questionamo-nos sobre a natu-
reza e atualidade do saber antropológico, como este pode ser ensinado
e apreendido, como poderemos ligar a investigação e o ensino, como o
saber antropológico rompe os contextos de ensino e cada vez mais se
torna um conhecimento disponível para as pessoas, grupos e sociedades
estudadas. Prevalecem as interrogações e a procura de caminhos.
A natureza específica da disciplina e do conhecimento, que se
deseja que os alunos possam desenvolver, cria alguma especificidade na
utilização das tecnologias digitais? Como podem as tecnologias digitais
contribuir para o desenvolvimento da formação em antropologia, do en-
sino experiencial (baseado na experiência) de modo a ter em conta dois
dos mais importantes vetores de desenvolvimento desta área de saber – o
trabalho de campo (experiência do trabalho de campo), a construção
intercultural dos saberes e a consequente produção textual (criação/
produção de narrativas multissemióticas) –, a disseminação e utilização
dos saberes? Esse processo de ensino remeter-nos-á para modelos ou
paradigmas antropológicos ou de investigação em antropologia?
É consensual que a utilização mais frequente das tecnologias
digitais se situa essencialmente no âmbito de consulta ou recolha de
informação já existente – utilização da Internet ou das bibliotecas
e arquivos, e do armazenamento, organização e processamento da
informação de modo a obter um produto final – preparação para exame
ou produção de um ensaio. Em situações mais elaboradas de utilização
das tecnologias digitais, estarão formas criativas de produção visual,
audiovisual e a sua integração com a escrita (hipermedia, transmedia,
web-documentário, storytelling).
A inclusão das tecnologias digitais como forma inovadora capaz de
incorporar uma multiplicidade de estratégias interativas, que permitam o
desenvolvimento de um ensino/aprendizagem personificado e baseado

138
na experiência (mesmo que em parte diferida) passa, em nosso entender,
por criar e explorar modelos de ensino/aprendizagem, em que os dados
resultantes da investigação possam ser partilhados com os estudantes.
Assim, o acesso aos dados (fonte primárias – notas de campo, registos
visuais e sonoros), o trabalho colaborativo em rede, a aprendizagem e
o trabalho criativo de utilização das fontes (e da teoria) na criação dis-
cursiva estimularão o pensamento crítico, as estratégias analíticas e a
corresponsabilização pela obtenção e partilha dos resultados.
Essas conclusões apoiam-se e inspiram-se em trabalhos recentes
de antropologia cognitiva e de teorias construtivistas em educação
em que se abordam diversos modos de aquisição do conhecimento
e do desenvolvimento conceptual (ULRICNEISSER, 1983; DAN
SPERBER; DIERDRE WILSON, 2001; JEAN LAVE; ETIENNE-
WENGER, 1991; MAURICE BLOCH, 1991; TIM INGOLD, 2000;
H. GARDNER, 1995; VYGOTSKY, 1974; SHNEIDERMAN, 2006)
e centram-se mais na aquisição de processos de cognição, de desenvol-
vimento de competências, de produção de conhecimento que na sua
transmissão/aquisição.
Os caminhos a percorrer, na criação de novos modelos e utiliza-
ção de recursos na formação em antropologia, passam por uma estreita
colaboração entre os professores e os especialistas em tecnologias ou
pela formação dos antropólogos em tecnologias (a antropologia visual
desenvolveu no âmbito da utilização da fotografia e do cinema essas
duas formas) e pela centralidade da investigação (do processo de in-
vestigação – do terreno ao texto, ao discurso) ou desenvolvimento de
projetos no processo de aprendizagem. Reforçamos a inseparabilidade
entre a investigação e o ensino, mesmo que esta crie nas instituições
e na provável atitude dos alunos, algumas turbulências ou mudanças
profundas (número de alunos, compatibilização entre a investigação

139
e o ensino, capital humano e tecnológico, autoridade do professor,
responsabilidade do estudante, mentalidade decorrente do processo
autoritário de transmissão de saber).
Embora a antropologia utilize uma grande diversidade de méto-
dos (e técnicas) de pesquisa, o trabalho de campo e a observação par-
ticipante continuam a ocupar uma insubstituível centralidade, a que os
estudantes só residualmente acedem. Acresce ainda que esta atividade
central no processo de pesquisa é, por si só, responsável por uma gran-
de variedade de informação (dados) suscetível de poder ser utilizada
pelos estudantes como recursos de aprendizagem: notas interativas de
campo, entrevistas visuais (vídeo), fotografias, diários de campo, liga-
ções (links) a arquivos digitais e à literatura secundária, organizadas de
forma interativa. Assim, as notas interativas de campo serão tópicos na-
vegáveis, que permitam aos estudantes descobrir processos, pelos quais
os dados brutos de campo são transformados, pela análise e síntese, em
formas publicáveis; as ligações à literatura existente serão estabelecidas
pelas notas de campo, tornando explícita a pertinência da etnografia
específica de, por exemplo, uma cena da vida familiar quotidiana, a uti-
lização de um jogo, uma prática ritual com o debate teórico. Também
as diversas inscrições de terreno – fotografias digitais, entrevistas em
vídeo, diários de bordo e notas de campo, música, modelo de design de
investigação, poderão ser utilizados de modo a permitir que os estudan-
tes preparem melhor os seus trabalhos, adquiram, o mais aprofundada-
mente possível, a experiência de trabalho de campo em antropologia
e criem ferramentas (conceptuais e tecnológicas), que lhes permitam
desenvolver o seu trabalho de campo, identificar problemáticas, criar
instrumentos analíticos de uma maneira mais ativa (interativa), mais
pertinente, mais significativa.

140
REFERÊNCIAS

AAA. Guidelines for the Evaluation of Ethnographic Visual Media. Disponível


em: <http://www.americananthro.org/ConnectWithAAA/Content.aspx?Item
Number=1941>. Acesso em: ago. 2003.

AAA. Guidelines for the Evaluation of Ethnographic Visual Media. Disponível


em: <http://www.americananthro.org/ConnectWithAAA/Content.aspx?Item
Number=1941>. Acesso em: set. 2017.

ANTROPOLOGIA GERAL. Disponível em: <http://www.moodle.univab.pt/


moodle/course/view.php?id=44301>. Acesso em: 15 set. 2016.

ANTROPOLOGIA VISUAL. Disponível em: <http://www.moodle.univ-ab.


pt/moodle/course/view.php?id=60761>. Acesso em: 15 set. 2016.

AUGÉ, M. Para que Vivemos?. Lisboa: 90º Editora, 2007.

ASCH, T. “Comment j’enseigne l’Anthropologie Visuelle”. CinemAction – demain


le cinéma ethnographique, Paris, n. 64, p. 122-127, 1992a.

ASCH, T. La Formation de Antropólogos Visuales – la evolución del programa


de la Universidad del Sur de Califórnia para la educación de antropólogos visua-
les e etnocineastas. In: Fundamentos de Antropología. Granada, 1992b. p. 114-120.

BELTRAN, I. S. Por qué la UOC puede concebirse como una organización


fractal?. 2009. Disponível em: <http://www.uoc.edu/web/esp/art/uoc/isa-
las0902/isalas0902.html>. Acesso em: 15 maio 2012.

CANCLINI, N. G. Diferentes, Desiguales y Desconectados. Barcelona: Gedisa,


2004.

CLEMENT, Jean. Du texte à l’hypertexte: vers une épistémologie de la discur-


sivité hypertextuelle. 2000. Disponível em: <http://www.educnet.education.fr/
dossier/livrelec/lecture.htm>. Acesso em: 15 maio 2012.

141
CLIFFORD, J. Predicament of Culture: Twentieth. Century Ethnography, Lite-
rature, and Art. Cambridge: Harvard University Press, 1988.

Comissão de Avaliação Externa de Antropologia. Relatório Síntese Global. 2004.


Disponível em: <http://www.utl.pt/universidade/Ensino/Licenciaturas/ava-
liacao/Docs/4ano/antropologia_RAE.pdf>. Acesso em: 15 jun. 2017.

CULTURE VISUELLE. Media social d’enseignement e de recherche. Disponível


em: <http://culturevisuelle.org/>. Acesso em: 15 jun. 2017.

DEWEY, John. Experience and Education. New York: Collier Books, 1938.

Dinâmicas Sociais e Culturais na Era Digital. Disponível em: <http://www.


moodle.univ-ab.pt/moodle/course/view.php?id=56051>. Acesso em: 20 jun.
2016.

DREYFUS, H. L.; DREYFUS, S. E. Expertise Intuitiva. Belo Horizonte: Fabrefac-


tum Editora, 2012.

ELSAESER, T. Cinema digital, apresentação, acontecimento tempo em Cinema


Digital. Porto: 2001.

FISCHER, M. Futuros Antropológicos, redefinindo a cultura na era tecnológica. Rio


de Janeiro: Zahar, 2011.

GINSBURG, F. Não necessariamente o filme etnográfico: traçando um futuro


para a antropologia visual. Imagens em Foco, Novas Perspectivas em Antropologia,
p. 31-54, 1999.

GEERTZ, C. La Interpretación de las Culturas. 1. ed. México: Gedisa, 1991.

ITACAPROJECT. Disponível em: <http://www.itacaproject.com/>. Acesso


em: 15 jun. 2017.

JENKINS, H. Cultura da Convergência. São Paulo: Aleph, 2009.

142
JENKINS, H. The work of Theory in the Age of Digital Transformation. 2003.
Disponível em: <http://web.mit.edu/21fms/www/faculty/henry3/pub/digi-
taltheory.htm>. Acesso em: 15 jun. 2017.

JOPLIN, L. On defining experiential education. In: WARREN, K.; SAKOFS,


M.; HUNT, J. S. Jr. (Eds.). The Theory of Experiential Education. Boulder, CO:
Association for Experiential Education, 1995. p. 15-22.

KILANI, M. L’Invention de l’Autre, Essais sur le discours anthropologique. Lau-


sanne: Éditions Payot, 1994.

LEJEUNE, P. O Lacto Autobiográfico – De Rousseau à Internet. Belo Horizonte:


UFMG, 2014

LUCKNER, J. L.; NADLER, R. S. Processing the Experience: Strategies to En-


hance and Generalize Learning. Dubuque: Kendall/Hunt Publishing Co, 1992.

MANOVICH, L. El Lenguaje de los Nuevos Médios de Comunicación: la imagem


en la era digital. Barcelona: Paidós, 2005.

MINARELLI, J. A. Empregabilidade: o caminho das pedras. São Paulo: Editora


Gente, 1995.

PINK, S. Doing Visual Ethnography. Londres: SAGE Publications, 2007.

PORTUGAL. Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior. Decreto-Lei


nº 74/2006, artigo nº 60, de 24 de março de 2006. Lisboa: Diário Oficial, 2006.

REY, B. et al. As Competências na Escola. Vila Nova de Gaia: Gailivro, 2005.

RIBEIRO, J. da S. Antropologia Visual: da minúcia do olhar ao olhar distanciado.


Porto: Afrontamento, 2004.

______. “Antropologia Visual: práticas antigas e novas perspectivas de investi-


gação”. Comunicação apresentada no Seminário Internacional Imagens da Cultu-
ra/ Cultura das Imagens. Universidade Aberta, 2005. (CD-ROM).

143
______. Colá S. Jon. Oh que Sabe! as imagens, as palavras ditas e a escrita de uma
experiência ritual e social. Porto: Afrontamento, 2004.

______. Experiência vivida num processo de ensino online, A Página daEdu-


cação, n. 192 e 193, 2008 disponível em: <http://www.apagina.pt/?aba=7&-
cat=182&doc=13344&mid=2>. Acesso em: 15 jun. 2017.

______. Métodos e Técnicas de Investigação em Antropologia. Lisboa: Universida-


de Aberta, 2003.

______. Reflexões sobre as imagens da cultura no contexto do Processo de Bolonha.


Imagenes de la Cultura/Cultura de Las imagenes. Múrcia: EDITUM, 2007. p.
31-48.

SHRUM, W.; DUQUE, R.; BROWN, T. Digital video as research practice:


Methodology for the millennium. Journal of Research Practice, v. 1, n. 1, p. 1-19,
2005. Article M4. Disponível em: <http://rp.icaap.org/content/v 1.1/shrum.
html>. Acesso em: 15 jun. 2017.

SICARD, M. A. Fábrica do Olhar - Imagens de Ciência e Aparelhos de Visão.


Lisboa: Edições 70, 2006.

THE ASSOCIATION FOR EXPERIENTIAL EDUCATION. Disponível em:


<http://www.aee.org/>. Acesso em: 15 jun. 2017.

WENGER, E. Comunidades de Práctica, aprendizagem, significado e identidade.


Barcelo: Paidós, 2001.

WULF, C. Rituels. Performativité et dynamique des pratiques sociales. Hermes,


Paris, n. 43, p. 9-20, 2005.

144
ANTROPOLOGÍA VISUAL, PERFORMANCES
Y HERMENÉUTICA: EXPERIENCIA DE VER,
ESCUCHAR Y PARTICIPAR EN HUAUTLA
DE JIMENEZ (OAXACA, MÉXICO)1

Gabriel O. Alvarez2

Resumen: Este artículo aborda los siguientes temas: la antropolo-


gía visual como estrategia metodológica para la observación parti-
cipante en el trabajo de campo; las performances como actualiza-
ción de la tradición; la perspectiva de la antropología, compartida,
como práctica de la traducción cultural. El proyecto Mazatecos:
chamanismo y política, tuvo entre sus propósitos comprender y
traducir la tradición mazateca, privilegiando el análisis de rituales
y performances. Este grupo, localizado en la sierra mazateca, entre
los estados de Oaxaca, Puebla y Veracruz, fue mundialmente co-
nocido a partir de la divulgación de los rituales con “niños santos”

1 Este trabajo es producto del proyecto Mazatecos: chamanismo y política, desar-


rollado en colaboración con el PPGAS/UFFSC, CIESAS, y PPGAS/UFG. El
mismo contó con financiamiento parcial del PROCAD/casadinho Antropología,
Ciudadanía y Diferencia (CNPq/CAPES). Agradezco a Jean Langdon, que fue mi
supervisora durante la estadía de pós-doctorado en el PPGAS/UFSC y a Marga-
rita Dalton, mi supervisora durante mi vinculación como investigador huésped
en el CIESAS Pacífico Sur, de Oaxaca. Un agradecimiento especial para Miguel
Bartolomé y Alicia Barabas del INAH y Mariano Báez Landa del CIESAS por el
estímulo para realizar este trabajo.
2 Profesor Doctor (Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social de la Uni-
versidade Federal de Goiás).

145
realizados por María Sabina. A pesar de la proyección de la figura
de María Sabina faltó una reflexión sobre la tradición mazateca y el
papel del chaman en esta tradición, su lugar en la sociedad. Duran-
te la investigación registramos diversos rituales cívico-religiosos
en Huautla y prestamos especial atención a la participación de dos
chjota-chjine,-chamanes, hombres de conocimiento-: la abuela Ju-
lieta Casimiro y el Profesor Alfonso. Como método privilegiamos
las performances, registradas con una perspectiva de antropología
visual, participante.
Palabras clave: Xamanismo. Performance. Antropología Visual.

Antropología de la experiencia y registro audiovisual

Las consideraciones de Cardoso de Oliveira (1998) sobre el


quehacer del antropólogo permiten reflexionar teóricamente sobre la
experiencia etnográfica en el campo de la antropología visual. En este
trabajo, Roberto Cardoso de Oliveira analizalos diversos momentos
interpretativos en la práctica antropológica a partir de la metáfora de:
mirar, escuchar y escribir. El autor señala que el mirar es una mirada in-
formada teóricamente; el escuchar se relaciona con el proceso de fusión
de horizontes de comunicación en el trabajo de campo; el escribir es
transformar la experiencia etnográfica en una narrativa que después
de publicada crea un tercer momento interpretativo cuando llega a las
manos del público.
Algunos de los colegas que desde el campo de la antropología
visual dialogan con este planteo teórico, has centrado sus reflexiones
sobre la cuestión imagética en el “mirar”. En este debate propongo
desplazar el eje para reflexionar sobre la práctica de la antropología
visual para el “escuchar”, el momento interpretativo que acontece du-
rante el trabajo de campo. Cardoso de Oliveira, cuando nos habla del

146
“mirar”, no se refiere a los datos sensoriales, ni a la cuestión imagética,
para él, el mirar está relacionado con la Weltanschauund de Dilthey,
la visión de mundo, informada por una tradición, en el caso del an-
tropólogo, por una tradición teórica (CARDOSO DE OLIVEIRA,
1988). Una tradición teórica, que implica una forma de ver el mundo,
una serie de cuestiones teóricas a ser respondidas en el trabajo de
campo, una forma de hacer antropología. En Alvarez (2016) reflexio-
né sobre el “mirar”, como tradición teórica, el estilo de hacer una
antropología compartida a partir de la antropología visual inspirada
en las experiencias de Jean Rouch, con la cámara participante, la im-
portancia del personaje y la edición compartida.
En este trabajo me centraré en el segundo momento interpre-
tativo, el “escuchar”. Para Cardoso de Oliveira (1998), este escuchar
se relaciona con el proceso de fusión de horizontes de comunicación
inspirado en la hermenéutica de Gadamer y en la lógica de la acción
comunicativa de Habermas (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1998; CAR-
DOSO DE OLIVEIRA, R; CARDOSO DE OLIVEIRA, L. R., 1996;
HABERMAS, 1989). Como señalé en otra oportunidad el problema
de este modelo es que trabaja en el plano del discurso y no contempla
otras formas de comunicación, como los rituales y las performances
(ALVAREZ, 2000).
Esa dimensión intersubjetiva, que implica una fusión de hori-
zontes de comunicación difícilmente pueda ser realizadapor medio de
entrevistas y cuestionarios. Las entrevistas, que usamos en consultorías,
pueden permitir la creación de etnografías sucias. Una verdadera etno-
grafía envuelve la fusión de horizontes construida durante la experiencia
del trabajo de campo, envuelve intercambios, sentimientos, empatía,
sufrimientos (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1998).

147
La fusión de horizontes de comunicación se da en el plano de
la experiencia. La experiencia envuelve pensamientos, sentimientos y
voluntad. La misma se relaciona con el Weltanschauund de Diltey, la
imagen de mundo, que implica creencias, conocimientos, envuelve
juicios de valor y significados. La tradición – como visión de mundo
– es continuamente sujeta a revisión a partir de performances, como
experiencias colectivas. Las personas participan de la tradición y la
reevalúan a partir de las performances (TURNER, 1988).
Las performances como perspectiva analítica nos llevaron a tomar
en cuenta determinados elementos. Las performances son la actuación,
la exhibición de un comportamiento autorizado frente a un público. Esto
implica, por un lado, la competencia comunicacional del performer. Por
otro lado, la evaluación del público, que juzga si la performance fue ejecu-
tada de forma cierta. Otro punto es la experiencia en relevo, la experien-
cia emergente de la performance, que envuelve intensidad, emociones,
placeres, una dimensión estética. Finalmente, y no menos importante, los
marcadores de la performance, que indican el inicio y la finalización de
las mismas (BAUMAN, 1975; LANGDON, 2006).
La performance es estética mas es también política. La perfor-
mance envuelve también las condiciones de acceso, que en ocasiones
envuelve una estructura institucional, criterios de inclusión. Esto en-
vuelve también la legitimidad del actor que ejecuta la performance y la
competencia (conocimiento) y habilidad para ejecutar la performance
con suceso. Finalmente, las performances envuelven valores que expre-
san lo que es importante para el grupo (BAUMAN; BRIGGS, 2006).
Este punto nos coloca, como antropólogos, otra cuestión, cómo
participamos de estas performances. Cualquier fotógrafo puede sacar
fotos de una procesión o de una fiesta, pero un antropólogo que realiza
observación participante, tiene que saber quién son los participantes,

148
cuales son los símbolos y sus significados. Cuando uno fotografía para
el grupo, son los participantes que nos indican a quien fotografiar: “esos
son los padrinos”, “aquel es pariente”, “ese otro tiene tal cargo”, o nos
explican el significado de los símbolos, su exégesis. Los intercambios
crean vínculos a partir de los cuales participamos del mundo social.
La experiencia de fotografiar para el grupo trae toda una serie de
informaciones que pasarían desapercibidas para un observador exter-
no. Si el grupo nos reconoce como su fotógrafo, nos permite también un
acceso privilegiado para que podamos realizar el registro. Por otro lado,
este envolvimiento crea contrapartidas y obligaciones y el fotógrafo/
antropólogo que se incorpora como participante, tiene que acompañar
todas las obligaciones de las fiestas o procesiones, que pueden durar
varios días. El observador participante tiene la obligación de participar
y la obligación de retribuir por medio del producto de su trabajo, una
imagen digna del grupo.
Hacer antropología visual, en mi entender, es hacer antropología
usando los medios audiovisuales no solo como herramienta de regis-
tro, sino como forma de relacionamiento. El producto del trabajo del
antropólogo se hace sensible para el grupo y permite entrar en una serie
de intercambios. En la forma en que trabajamos estos intercambios en
el trabajo de campo está el arte de cada antropólogo.
Existe una discusión sobre el retorno del material a las comuni-
dades, que supone una expropiación y restitución de imágenes (RO-
CHA; ECKERT, 2015). En mis investigaciones, siempre que posible
hice entrega del producto al grupo con el cual trabajé. Restituimos una
imagen digna, una narrativa en la que el grupo se sienta representado a
partir de un horizonte de creación de una antropología compartida. El
tema en este apartado no es la restitución, sino como nos relacionamos
con las personas a través del registro audiovisual.

149
No se puede usar la cámara como un arma. Las personas se inco-
modan al ser apuntadas con la lente de la cámara, por un desconocido,
que evidentemente no pertenece al grupo. Uno comienza a fotografiar
y después devuelve el producto para las personas del grupo. Cuando las
personas comienzan a ver los resultados preliminares y los resultados
comienzan a ser interesantes para el grupo se abren las puertas para
diferentes ciclos de intercambio. Son los intercambios que generan
relaciones sociales y nos permiten un diálogo más profundo.
Fueron varios ciclos de intercambios que me abrieron la puerta
para diversos aspectos de la tradición mazateca. El interés en la filma-
ción de las peleas de gallo me introdujo en el grupo de los galleros de
Huautla. El más afortunado de todos fue con la abuela Julieta. Ella me
pidió para que registrase la mayordomía del Señor de las Tres Caídas,
en la cual ella sería la hermandad principal. Como intercambio yo le
pedí que me enseñara como era el trabajo tradicional con “niños san-
tos”, como ella lo había aprendido con su suegra, Doña Regina. Este
intercambio me abrió las puertas para dos campos importantes, uno el
sistema de cargos religiosos y sus performances, el otro, el conocimien-
to del linaje sobre los rituales con niños santos. Acompañé a la abuela
Julieta a lo largo de toda la mayordomía del Señor de las Tres Caídas,
así como varias otras mayordomías que hacen parte de la religiosidad
mazateca. Por otro lado, este intercambio me abrió también las puertas
para los rituales con niños santos y pasé a auxiliar a la abuela en más
de una oportunidad. Este intercambio creó otro, en el cual todas las
mañanas bajaba desde el barrio de La Cruz para lo de la abuelita en
el centro. En el camino compraba un pan calentito para tomar un café
de olla con la abuela Julieta, mientras comentábamos los rituales de la
noche anterior y otras conversas.

150
La performance tiene que ser “escuchada” para ser interpretada.
Podemos fotografiar o filmar estas performances a partir de la obser-
vación directa, como fotógrafos, más para comprenderla tenemos que
adquirir la competencia comunicativa y esta solo se logra a través del
“escuchar” orientado por la búsqueda de fusión de horizontes de co-
municación. Necesitamos conocer la tradición para interpretar los sím-
bolos de las performances. Las performances son la tradición puesta en
escena, nos habla a partir de la manipulación de símbolos.
Turner (1975) define el símbolo ritual como la menor unidad que
mantiene las propiedades del ritual. Entre sus características destaca la
polisemia y la polarización de sentidos. Los símbolos, en las performan-
ces son objetos manipulados pelos actores sociales. Estos objetos-sím-
bolos permean las diferentes performances tradicionales, tienen una
gramaticalidad explorada en el filme. Los símbolos tradicionales, sus per-
formances, pasan de generación en generación, son menos susceptibles
de manipulación que el discurso de una entrevista.
Una vez que tenemos el material bruto comenzamos el trabajo de
edición durante el trabajo de campo. En este primer momento realiza-
mos los cortes y esbozamos una narrativa que testamos una y otra vez
con los mazatecos que participaron en el proyecto. La performance tiene
una duración que no puede trasladarse mecánicamente para el público.
Debemos realizar una traducción, llevando en cuenta una compresión
del tiempo con la menor perdida de sentido. Los comentarios sobre
los clips presentados en el campo introducen también una dimensión
reflexiva. El público mazateco comentó, agregó informaciones, mostró
aprobación, realizó críticas, corrigió al antropólogo video-maker a par-
tir de la interpretación que hacen del material audiovisual.
Trabajamos cada clip como una unidad de sentido en la que in-
tentamos sintetizar la performance registrada en el trabajo de campo.

151
Estos clips fueron testados a partir de la exhibición, primero en el cam-
po y después en la academia, para realizar ajustes, ver donde reforzar el
sentido o traducir un símbolo mediante alguna frase escrita en el vídeo.
Después de trabajar los clips individualmente, pasamos a mon-
tarlos para crear una narrativa. En este caso, iniciamos por rituales
individuales, -rituales de pedimiento y rituales con “niños santos”, para
pasar después para performances colectivas: fiesta de los muertos,
mayordomías, marcha de reyes, la faena, informe de gobierno y termi-
namos con las elecciones.
Estas performances, manipulan símbolos, que se bañan de sen-
tido en la tradición mazateca. En este caso, la fotografía gana sentido a
partir del conocimiento de la tradición cultural, una mirada informa-
da, teóricamente, más principalmente a partir de la experiencia. En la
experiencia, en el registro desde una posición participante, podemos
realizar un ejercicio de traducción a partir de la narrativa audiovisual.
La performance necesita de traducción. En el caso del film editado lo
resolví por medio de legendas, sintéticas, que orientan la interpretación
del espectador. Estas reflexiones apuntan a la necesidad de construir
una trama que envuelva el vídeo con: los problemas teóricos de la inves-
tigación; la contextualización del material a partir de la exegesis nativa;
y la evocación del trabajo de campo. Los clips ganan otra dimensión
interpretativa al ser explicitados los problemas teóricos confrontados
con la experiencia del trabajo de campo.
La fotografía/ vídeo nos permitieron registrar la manipulación
de objetos símbolos, que tienen que ser interpretados y traducidos para
un público más amplio. Esta traducción se da en el plano del discurso, o
en un lenguaje natural, ni matematizado, ni imagético. Esto me llevó a
pensar en la necesidad de agregar una voz que agregue información, en
lenguaje natural. La voz del antropólogo, no como narrador omnisciente,

152
sino como narrador experiente. Una narración que agregue información
aprendida a partir de la experiencia de campo, del proceso de fusión de
horizontes de comunicación a partir de la convivencia y la participación.
En la segunda parte de este trabajo presentaremos el material
dividido en clipes y realizaremos una contextualización a partir de las
referencias teóricas y de la experiencia del trabajo de campo. Por una
cuestión de economía de tiempo con el lector seré sintético, una vez
que cada uno de los apartados merecería un capítulo en sí mismo, (que
están en elaboración). Al mismo tiempo me extenderé lo necesario
para hacer antropología.

Huautla, tierra de águilas y de chamanes

Diversos motivos nos llevaron a elegir Huautla para la realización


del trabajo de campo. Tanto por problemas teóricos como por la histo-
ria de la ciudad, Huatla se presentó como el lugar indicado para trabajar
el tema del chamanismo, en el contexto de una tradición cultural y su
relación con la política.
Mircea Eliade [1951]fue el primero a sistematizar los relatos
sobre chamanismo para delimitarlo como un fenómeno específico
diferente de la religión. El enfoque prestó especial atención al chama-
nismo como forma de éxtasis religiosos, que envuelve los sueños y en
ocasiones el consumo de alucinógenos. El marco analítico privilegio
la figura del chaman, que a través de sus viajes en el inframundo y el
supramundo, opera como intermediario con el mundo de los seres
sobrenaturales con propósitos específicos. Esta característica sirvió
como marcador para diferenciar el chamanismo de otros fenómenos
religiosos como los rituales de posesión. El chamanismo también
implica entrenamiento en las técnicas del éxtasis y el aprendizaje de
una serie de conocimientos tradicionales, técnicas, identificación de

153
los espíritus, genealogías, lenguajes secretos. El chamanismo envuelve
entrenamientos para acumular poder místico para uso personal y so-
cial. El concepto de chamanismo se estructuro inicialmente a partir de
las experiencias de grupos siberiano. Como categoría pasó a aglutinar
una serie de experiencias diversas, como el chamanismo de las tierras
bajas sudamericanas y en México (BARTOLOMÉ; BARABAS, 2013;
LANGDON, 1992).
El chamanismo no está necesariamente relacionado con “socie-
dades primitivas”, ni puede ser reducido al campo de los fenómenos
religiosos. El chamanismo también es político, como los registra la
literatura sobre diversos grupos tupí. Diversas sociedades que tuvieron
desenvolvimiento del estado en Mesoamérica también presentan la
figura del chaman como mediador con seres no humanos, dueños del
lugar. En diversas sociedades indígenas de México, como mayas, mix-
tecos y mazatecos el chaman ocupa también un lugar en la estructura
política. En la práctica, la categoría de chamanismo se transformó en
una clasificación colonial que envolvía una serie de prácticas diversas.
El chamanismo como modo performático tiene que ser analizado al
interior de las diferentes tradiciones culturales (BARTOLOMÉ; BA-
RABAS, 2013; LANGDON, 2003).
Los chamanes son depositarios de una serie de saberes tradi-
cionales y de prácticas, al mismo tiempo en que son una construcción
ideológica de su propia sociedad. Los chamanes son actores del texto
de su propia cultura. Para Bartolomé y Barabas (2013), una de las cla-
ves del chamanismo en México son los sueños. Los sueños entendidos
como una realidad paralela, como un estado de conciencia con alto
valor emocional y afectivo. El sueño es considerado como un estado li-
minar que da acceso a otra dimensión de la realidad. Una temporalidad
paralela que sobrepone presente, pasado y futuro, un espacio habitado

154
por seres extrahumanos como los dueños del lugar. Los autores señalan
como otra de las características del chamanismo en Mesoamérica, la
transformación del chaman en su nahual, su transformación en animal
que recibe poderes de los dueños del lugar. El chamán es el responsable
por la relación entre los hombres y las entidades extrahumanas. Como
señaló Barabas (2006) esta relación, marcada por diversos rituales está
orientada por la lógica del don, en que los hombres realizan sus ofren-
das a las entidades como forma de obtener reciprocidad. Los dueños
del lugar son entidades territoriales, seres extraordinarios, por veces se
manifiestan en forma antropomorfa. Son entidades ambivalentes, que
tanto pueden beneficiar como perjudicar a quienes se adentran en sus
dominios. Son cultuados en cuevas específicas en las montañas, en na-
cientes de agua y accidentes naturales (BARABAS, 2006; BARTOLO-
MÉ BARABAS, 2013; CARRERA GONZALES; VAN DOESBURG,
1992; INCHAUSTEGUI, 1977, 1994, 2000; MANRIQUE ROSADO
2010; FEINBERG 2003).
En la década de 1960 el interés por el chamanismo fue renovado
a partir de las publicaciones de Carlos Castaneda ([1968] 2001) sobre
Don Juan y de la publicación de los trabajos de Wasson (1957) sobre
Maria Sabina. Estos trabajos despertaron el interés de jóvenes de secto-
res medios que exploraban estados de conciencia alterados en la época.
En tanto que el personaje de Don Juan aparece como un difuso cha-
man yaqui, Maria Sabina y sus rituales con “niños santos” ganaron una
concretitud cuando se reveló que fueron registrados en Huautla. Nadie
conoce a Don Juan, pero millares viajaron a Huautla para experimentar
los niños santos (LANGDON, 1992).
Algunos autores afirman que los mazatecos son una sociedad
chamánica (BARTOLOMÉ; BARABAS, 2013; BARABAS, 2006;
MANRIQUE ROSADO, 2013). ¿Pero qué es ser chaman en Huaut-

155
la? El chamanismo en Huautla es multifacetado. La traducción más
próxima para la categoría colonial de chaman sería la categoría nativa
de chjota-chjine, persona de conocimiento. Inchaustegui, nos habla de
tres tipos de chjota-chjine: el maestro, el que cura y el que enseña. El
maestro es el que participaba del consejo de ancianos y a partir de la
interpretación de las fuerzas sobrenaturales, los chikones, establecía lo
que tiene que ser realizado por la comunidad. Los que curan por su vez
se dividen de acuerdo a las técnicas que emplean, los que trabajan los
niños santos, los que hacen limpias con huevos, los que confeccionan
los bultos sagrados, los que hacen lectura de velas, los chupadores, los
hueseros. Los que enseñan, finalmente, es una característica de todos
ellos, una vez que la traducción de chjota-chjine literalmente significa
hombre de conocimiento. Creo que esta tipología de Inchaustegui nos
llama la atención para diversos aspectos de la labor de los chjota-chjines
y que los mismos no son excluyentes. Otra categoría que también esta-
ría incluído sería la de teej’e, el brujo, aquel que utiliza este conocimien-
to para hacer el mal al irritar las entidades para indisponerlos con sus
víctimas (BARABAS, 2006; BOEGE, 1988; INCHAUSTEGUI, 1977,
1994; MANRIQUE ROSADO, 2010, 2013).
La organización tradicional de los mazatecos contaba con un
Consejo de Ancianos, compuesto por los hombres que habían pasado
por todo el sistema de cargos. Este consejo de ancianos indicaba el pre-
sidente, que era confirmado en asamblea. Frecuentemente el principal
del consejo de ancianos era un chjota-chjine (BOEGE, 1988, p. 225;
NEIBURG, 1984; GARCÍA DORANTES, 1996). Cuando pregunté
por el tema a la abuelita, ella respondió: “el consejo de ancianos traba-
jaba con mucho copal y muchas velas”. El consejo de ancianos, como
indica Boege (1988), al evocar lo sagrado, envuelve los antepasados,
muertos.

156
El chamanismo hace parte de la identidad de Huautla. No fue
difícil contactar diversos “chamanes” durante el trabajo de campo y rea-
licé diversas ceremonias que incluyeron limpias, rituales de pedimiento
y rituales con niños santos con más de una decena de chjota-chjines a lo
largo del trabajo de campo. Por una limitación natural, uno no puede
desdoblarse, se acaba priorizando una u otra familia, con la cual esta-
blecemos un intercambio más profundo. En el caso específico de esta
investigación focalicé en dos chjota-chjines que presentan caracteres
diferentes y permitieron explorar diversos aspectos del chamanismo en
Huautla: el profesor Alfonso y la abuela Julieta.
Uno de los chjota-chjine que acompañamos durante el trabajo de
campo es la abuela Julieta. La abuelita, tiene más de 80 años, fue con-
temporánea de Maria Sabina y es una de las chamanes más prestigiosas
de Huautla. Fue una de las primeras, junto con Maria Sabina, a abrir los
rituales con niños santos para los güeros – como son llamados los blan-
cos en la región –. La abuela Julieta tiene reconocimiento internacional
y es una de las 13 Abuelas del Mundo, Consejo que reúne chamanes
de diversas partes del mundo y que tiene el apoyo, reconocimiento de
la ONU (SCHAFER, 2012). Por su centralidad, y por el vínculo que
desarrollamos con ella, describiremos esta experiencia con mayor pro-
fundidad en otro trabajo, en elaboración.
El otro chjota-chjine, profesor Alfonso tiene 55 años y participa de
la vida política del municipio. Él estudió en las escuelas del INI y de joven
consiguió empleo como profesor. Se especializó en el área de historia y
es casado con la profesora Beatriz, hija de un expresidente de Huautla.
El prof. Alfonso fue regidor de Educación y Cultura, actualmente es
asesor del regidor; presidente de la Comisión Pueblo Mágico; participa
de la vida política de Huautla y es Secretario General del Partido de la
Revolución Democrática, PRD. El mismo me repitió en más de una

157
oportunidad que tiene 55 años y está hace 35 años en el camino del cono-
cimiento. Durante la fiesta de los muertos, cuando visitamos el panteón
de su familia me indicó el túmulo de su madre y me confidencia: “fue
ella que me inició en el camino del conocimiento”. A partir de ahí él fue
aprendiendo con diferentes chjota-chjines tradicionales, que viven en las
sierras, a varias horas a pie por senderos de montaña. Las entrevistas que
me concedió fueron extremadamente didácticas y salía de las mismas,
literalmente, con bibliografía abajo del brazo.
En el video iniciamos con la presentación de un ritual de pedi-
mento y la invocación del ritual de los niños santos. Los rituales son una
puerta de acceso a la cosmología del grupo. Ritual y representaciones
son dos caras de la misma moneda (LEACH, 1966, 199;, TAMBIAH,
1985; BARABAS, 2006). El ritual de pedimiento en el nindon Tokoxo
indica algunas de las características de esta civilización agrícola. Entre
las mismas podemos indicar el uso del cacao como moneda tradicional,
uso del copal y velas, la orientación a partir de cinco puntos cardinales,
el quinto es el que indica el eje inframundo-supramundo, la existencia
de los dueños del lugar.
Para los mazatecos, todo lugar tiene dueño y uno tiene que pedir
permiso a los dueños del lugar. Los rituales permiten la construcción
de una relación dadivosa con las entidades. Uno tiene que pedir por
las plantaciones realizadas y agradecer por los frutos que va a colectar.
Con este motivo se encienden velas y se paga con granos de cacao. El
incienso comunica y purifica, lleva nuestras ofrendas y deseos. Durante
el ritual de pedimientos ofrecimos un guajolote. En la exegesis nativa, el
guajolote sería nuestro interprete “porque habla muchas lenguas”.
Estos rituales suponen una cosmología. Para los mazatecos, el
mundo sería como una mesa con pilares en los cuatro puntos cardinales.
El eje Este-Oeste, marca el lugar de dónde venimos, donde el sol apare-

158
ce como metáfora que indica el camino del Este, con el nacimiento para
el Oeste, con la muerte. Cabe notar que los muertos son enterrados
con los pies para el este y la cabeza para el oeste. El quinto eje conecta
el supramundo con el inframundo. El supramundo está compuesto por
13 mesas, que son una metáfora de los niveles recorridos a lo largo de
la vida. Estos niveles aparecen representados en el arco del altar de los
muertos, que está adornado con 13 ramos de cempasúchil. Los diver-
sos niveles del supramundo estarían habitados por los santos y ángeles,
siendo que en el 13 se encuentra el padre eterno con un guajolote
que danza sobre una mesa de plata. Inchaustegui señala que la figura
del padre eterno es prehispánica y que no debe ser confundida con la
representación católica Inchaustegui (1977). El inframundo está for-
mado por siete pisos o andares. Este inframundo está poblado por los
chikones, los dueños del lugar y por el mundo de los muertos. Existen
portales que conectan estas dimensiones. Estos portales son los altares,
los cementerios, las montañas, en especial las cuevas en las montañas
(BARABAS, 2006). El ritual de pedimiento fue realizado en una de las
cuatro cuevas el cerro de la adoración.
Durante el ritual se nombra diferentes montañas, como cerro
de la adoración, cerro rabón, entre otros. En estos casos los lugares
son una forma de invocar los dueños del lugar, el cerro de la Adora-
ción, con el chikon Tokoxo, el cerro Rabón, chikon Chjo’onn´da
vj´e, esposa del chikon Tokoxo, también conocida como la vieja Isabel.
La cueva de las Regaderas es la residencia del chikon Chato, repre-
sentado como mitad hombre y mitad chivo; el chikon Njao Naé, del
viento, cultuado en la cueva del chivato; el chikon Mangui, dueño de
debajo de la tierra, guardián del mundo de los muertos. Para los ma-
zatecos, así como para otros grupos mesoamericanos, los muertos no
van al cielo, ellos habitan en el inframundo. Los muertos emprenden

159
el camino hacia el mundo de los muertos que demora siete años, pues
son siete los niveles del inframundo.
La fiesta de los muertos en Huautla será abordado con mayor
detalle en otro artículo, en elaboración. Cabe destacar que está fiesta
coincide con la época de la cosecha, un periodo de abundancia, donde el
intercambio de alimento entre familias, entre vivos y muertos, crea una
performances de la cosmología mazateca. Los altares de muertos, las ve-
ladas en el panteón y los huehuentones expresan la cosmología mazateca.
Los altares tienen comida y bebida para alimentar el alma de los
muertos, que regresa del inframundo, pues llegan con hambre y sed
después de viajar por los siete niveles del inframundo. Las velas son
como bastones que dan soporte a los espíritus, para los muertos son
ofrecidas 13 velas, o múltiplo de 13, lo que transforma as veladas en
el cementerio en un cielo de velas.Durante la fiesta de los muertos son
realizadas velas en el panteón, el día 1 para el alma de los que murieron
niños, el día 2 para los adultos y los viejos. Las veladas son realizadas a
la tarde hasta el atardecer y durante la noche hasta la madrugada.
Los huehuentones (del nahual huehue = viejo), o chajma (en ma-
zateco: gente del ombligo), representan el espíritu de los ancestrales,
este festejo comienza el 27 de octubre, días antes de la fiesta de los
muertos (QUINTANAR MIRANDA, 2004; BARABAS, 2006). Esta
performances de los huehuentones, es abierta con un ritual en el pan-
teón, al mediodía del 27 de octubre. Esa noche, los diversos grupos de
huehuentones salen del panteón, y se dirigen a la iglesia en una procesión
encabezada por las hermandades. Las hermandades, en Huautla, son
la parte femenina de la iglesia, las mujeres que cuidan de los diferentes
santos y participan de las mayordomías. Una de estas hermandades está
representada por la abuela Julieta. El profesor Alfonso, como político
envuelto en el proyecto Pueblo Mágico acompaño toda la performance.

160
Después de la misa en la iglesia, los huehuentones se dirigen al palacio de
gobierno, donde reciben la autorización de las autoridades. Las danzas
se inician en la presidencia y se dispersan por las diversas callecitas de
Huautla, visitando los altares de los muertos.
Fui convidado a participar de un grupo de huehuentones y recorrí
las calles de Huautla performando un huehuenton. Las personas nos pa-
raban en la calle, pidiendo músicas e intercambiando comida y bebida.
A menudo nos convidaban para entrar en casa que no estaban en el tra-
yecto del grupo para cantar y danzar frente al altar de muertos. Después
de bailar y recibir alimentos, la danza de agradecimiento, que expresa la
alegría de los viejos por la recepción, retribuyendo la comida y bebida
en esa larga y festiva jornada. Como huehuentón dancé, bebí y comí en
esas performances. En determinado momento, con un pan de muertos
en la mano, me di cuenta que la comida que recibimos es la misma que
está presente en los altares de muertos. “Claro güero, si representamos los
espíritus de los viejos” me dice un colega del grupo.
El carácter colectivo de estas performances, con miles de per-
sonas participando dan un carácter social a estas performances. Los
huehuentones, los altares, los cuetes para saludar a los muertos son una
performance que coloca en escena la cosmología mazateca. Queremos
evitar aquí el falso dilema de las culturas auténticas. Toda tradición se
modifica, inclusive para permanecer siendo la misma. La performance
hace sensible la tradición, nos permite registrarla. No podemos esperar
que la tradición permanezca inalterada cuando mudan las condiciones
tecnológicas y materiales. Bartolomé (2008) y Barabas (2006) colo-
can esto en términos teóricos al afirmar que los pueblos indígenas de
México pasaron por un proceso de reconfiguración étnica, en el cual
una tradición mesoamericana, pre-hispánica fue reconfigurada por la

161
colonia con la introducción de la iglesia y el municipio castellano, que
fueron reinterpretados a partir de la tradición pre-existente.
Una sociedad que tiene una cosmología orientada por la división
entre el supramundo y el inframundo, habitado por dueños del lugar,
chikones y muertos, contempla el lugar social del chaman como me-
diador con las entidades no humanas, en el caso de Huautla, ese lugar
se desdobla, con los rituales individuales y con lo colectivo en un plano
político. El buen vivir mazateco se orienta por la relacione dadivosa, el
intercambio con las familias, el intercambio con los muertos, con los
chikones, los dueños del lugar.

CLIP 1 CHAMANISMO
https://youtu.be/Fb18H8B35Hw

Huautla y sus transformaciones

Barabas y Bartolomé (1999) proponen el concepto de configu-


raciones étnicas para describir la dinámica que modeló los grupos indí-
genas en México. Los autores señalan que el substrato tradicional me-

162
soamericano sufrió transformaciones con las imposiciones religiosas y
políticas durante el periodo colonial y su integración al estado nacional.
Entre las imposiciones coloniales, el catolicismo y el sistema de cargos,
inspirado en el municipio castellano del siglo XVII fueron reinterpreta-
dos por las poblaciones indígenas a partir de la tradición mesoamerica-
na (BARABAS; BARTOLOMÉ, 1999; BARABAS, 2006).
Antes de la conquista española los mazatecos sufrieron la domi-
nación azteca. Las tradiciones mazatecas hablan de 12 familias, locali-
zadas espacialmente en los diferentes barrios de Huautla. Posiblemente
esas familias fueron la base sobre la cual los aztecas organizaron los cal-
pulli, clanes cónicos con una serie deobligaciones, entre ellas el trabajo
comunitário (AGUIRRE BELTRAN apud FABREGAS, 1997). Con la
Colonia se impuso el modelo del municipio, colaborando con la frag-
mentación interna de los grupos y el refuerzo de las identidades locales.
Los sistemas de cargos, o cargo system, fueron largamente discuti-
dos en la antropología. Para Wolf (2003), el sistema de cargos estaba en
la base del campesinado mexicano como grupo corporado, cerrado al
exterior. El sistema de fiestas era visto como un mecanismo nivelador,
que consumía el excedente y evitaba la acumulación. Otros autores
apuntaron a que el sistema en realidad operaba realizando una transfe-
rencia de recursos de los campesinos para los comerciantes y la iglesia.
Una de las principales características del sistema es el deber de ocupar
diferentes cargos en servicios laboriosos para poder asumir puestos
más altos a partir del reconocimiento de su desempeño. Lo que diver-
sos actores señalaron es la orientación comunitária de los sistemas de
cargos y la importancia que tienen las fiestas y ceremonias (CHANCE;
TAYLOR, 1985; GONZÁLEZ DE LA FUENTE; SALAS QUINTA-
NAL, 2012; GUARDINO, 2000; WOLF, 2003).

163
El sistema de cargos combina una serie de obligaciones cívi-
co-religiosas, que las personas desempeñan a lo largo de su vida. En
la juventud ejercían el cargo de topil o mensajero. Todos los hombres
tenían la obligación de participar de las faenas anuales organizadas por
el municipio. Entre los cargos religiosos estaba el cargo de mayordomo,
con la obligación de organizar las fiestas para cultuar el santo, a la moda
mazateca. Otro cargo religioso eran las hermandades religiosas, las
mujeres que tienen a su cargo el cuidado de los santos de la iglesia y la
obligación de participar, junto de los mayordomos y el consejo parro-
quial, de la preparación de las mayordomias. Los cargos políticos eran
los de regidores y presidentes del municipio. La asamblea se presenta
como el órgano soberano.
Tradicionalmente existía entre los mazatecos el consejo de ancia-
nos, formado por los principales de las diferentes familias, aquellos que
habían pasado por todo el sistema de cargos. El consejo de ancianos
tenía un importante papel político-religioso para definir los rumbos
políticos y elegía el presidente, que era confirmado en asamblea.
Varios de los autores mencionados centraron su atención en la
estructura del sistema de cargos. Bartolomé (2008) señaló la impor-
tancia del sistema de cargo para la formación de la persona en las so-
ciedades indígenas. Un anciano es aquel que pasó por todo el sistema
de cargos. Nuestro interés fue en como los cargos son performados,
más antes tenemos que contextualizar las mudanzas por las que pasó
Huautla en los últimos cincuenta años.
Sobre ese Huautla de antes de 1960, la abuelita Julita cuenta que
su hijo más viejo, Jorge, – hoy con 60 años – iba descalzo a la escuela
hasta los cinco años. En Huautla no había camiones ni automóviles,
todo era a pie o en lomo de burro. Para entrar y salir de Huautla eran
utilizados los “caminos reales”, senderos en la montaña que eran reco-

164
rridos a pie o con burros y el trayecto demoraba más de un día para lle-
gar en Tehuacán, en la zona de la cañada y dos días o más para Tuxtepec
en la mazateca baja. En esa época las principales diversiones eran las
corridas de caballos y las luchas de gallos. Las mayordomías marcaban
las obligaciones religiosas.
Huautla, que era una villa mazateca de 8.000 habitantes a 1.700
m de altitud, aislada, a la que solo se llegaba a pie o lomo de burro pasó
por importantes transformaciones a partir de la década de 1960. Uno
de los actores centrales en esta transformación fue la creación del Cen-
tro Regional del INI, fundado por Carlos Inchaustegui en 1960. Los
informes describen las acciones ejecutadas para la implementación de
acciones en las áreas de salud e higiene; educación; infra-estructura,
como construcción de caminos, energía eléctrica, agua corriente; orga-
nización de cooperativas de productores de café.
Inchaustegui, en sus informes, describe ese Huautla de casa de
adobe y piso de tierra. Las cabañas no tenían sanitarios y el agua era
transportada desde el río por medio de burros. En sus informes recla-
ma de la dificultad de encontrar una vivienda adecuada para el fun-
cionamiento del Centro del INI, y las dificultades para transportar los
materiales de construcción. El presidente municipal y algunos pocos
mazatecos eran bilingües.La mayor parte de la población era monolin-
güe, solo hablaba mazateco. (INI/Inchaustegui).
A partir de la década de 1960, los trabajos de Wasson colocan
Huautla en el centro del debate de sobre chamanismos y alucinógenos
a partir de la descripción de los rituales de María Sabina (FEINBERG,
2003; GARCÍA CERQUEDA, 2014; WASSON, 1957). Con la divul-
gación de los trabajos de Wasson, millares de hippies fueron a Huautla
en busca de experiencias psicodélicas, inclusive astros del rock como
John Lennon, los Rolling Stones, Led Zepelin, Jim Morrison según

165
cuentan los populares. En esa época Huautla tenía una pensión y el
Hotel Olímpico. Frente a la resistencia de la población local los hippies
acampaban en Puente de Hierro, a 11 km de Huautla, cerca de las
cascadas y de la cueva del chato. Algunos mazatecos iban hasta puente
de hierro para vender productos para los extranjeros (ALCANTARA,
2015; GARCÍA CERQUEDA, 2014). Doña Julieta en esa época era
conocida como Mamá Julia y bajaba a vender camisas bordadas, miel y
niños santos. Muchas veces eses intercambios no envolvía dinero.
Doña Regina, suegra de la abuelita Julieta también trabajaba con
los niños santos, inclusive fue con ella que Inchaustegui y su esposa
experimentaron por primera vez los “niños santos”. Omar, uno de los
hijos de la abuela Julieta, cuenta Wasson llegó en Huautla procurando
Doña Regina, más que el presidente municipal llevó los investigadores
con Maria Sabina. La abuela Julieta fue una de las primeras a abrir los
rituales para los muchachos, esos güeros que venían de tan lejos para
experimentar los niños santos.
Entre 1967 y 1974, las autoridades expulsaron los hippies y el
ejército creó retenes para impedir la llegada de extranjeros en Huautla,
solo los mazatecos podían pasar. A pesar de los retenes, muchos hippies
encaraban largas caminadas para llegar a Huautla. Esta restricción fue
levantada a inicios de la década de 1980 (GARCÍA CERQUEDA,
2014; FEINBERG, 2003).
Otras mudanzas, en el campo político, acompañaron estas trans-
formaciones. En Huautla el consejo de ancianos entró en crisis en la
década de 1970, cuando la población se polariza entre el PRI y el PPS
y la ciudad pasó a decidir el acceso a los cargos cívicos por medio del
sistema de partidos políticos. En Huautla un sistema de cargos bien
amarrado hasta la década de 1970 comenzó a ser erodido. Este sistema
envolvía cargos cívico-religiosos. Con la introducción del sistema de

166
partidos políticos, por un lado se rompió formalmente con la relación
entre cargos cívicos y cargos religiosos, por otro lado se erosionó el
Consejo de Ancianos. Con la introducción del sistema de partidos, la
polarización llevó primero a una división del Consejo de Ancianos, con
un Consejo del PRI y un Consejo del PPS. Posteriormente las decisio-
nes pasaron para el sistema de partidos con la desarticulación de los
consejos. Al abordar la performance de los cargos políticos volveremos
sobre este punto.
Por otro lado, el sistema de cargos estaba apoyado en los hom-
bres del municipio, con su aflojamiento, las mujeres ganaron participa-
ción en el escenario político. Los sistemas de cargos tradicionales no
permitían la participación de las mujeres en los cargos de gobierno. En
los sistemas normativos internos en la actualidad, las mujeres tienen
mayor participación y han desempeñado cargos políticos antes reser-
vados a los hombres (DALTON, 2003).
A pesar de los cambios, existen ciertas continuidades, las tradicio-
nes mudan para permanecer las mismas. A pesar de los cargos no estar
firmemente amarrados como en el pasado, en Huautla continúan exis-
tiendo cargos religiosos con las mayordomías y sus fiestas, así como car-
gos políticos, que son performados siguiendo un calendario tradicional.

167
CLIP INI
https://youtu.be/bymb4S4ciYk

Las mayordomías

En Huautla continúan los cargos religiosos y los cargos cívicos.


Los cargos son actuados en performances, en esta sección analizaremos
las performances de los cargos religiosos. Las mayordomías para los
mazatecos, envuelve una forma tradicional de entender el poder: estar al
servicio de la comunidad. Esto se hace evidente en las mayordomías y en
la importancia que dan a la convivencia como forma de cultuar al santo.
Existe en Huautla todo un sistema de mayordomías. A lo largo
del año son realizadas las mayordomías de los diferentes santos de la
iglesia, entre los que podemos mencionar San Juan Evangelista, patro-
no de Huautla; de la Virgen de Guadalupe; natividad de María; San
Pedro; Santa Cruz; San Isidro Labrador; el Señor de las Tres Caídas
entre otras. Existen también varias mayordomías de la Santa Cruz, de

168
la virgen de Juquilla, el Cristo Negro y otras realizadas en las iglesias de
las distintas comunidades y poblados.
La mayordomia es la forma que tienen los mazatecos de adorar el
santo. La misma incluye la liturgia, procesiones, limpias y purificacio-
nes, la convivencia y la fiesta. La mayordomía, así como las procesiones,
supone un momento liminar, más la liminaridad tiene una estructura
(TURNER, 1974). Centrémonos en las mayordomías relacionadas
con la iglesia de Huautla. La organización de las mayordomías revela
una estructura formada por el consejo parroquial; las hermandades
(de mujeres) y los mayordomos. El concejo parroquial, con el consen-
timiento de los padres y del ayuntamiento designa a los mayordomos
y distribuye las diferentes hermandades. Las hermandades son la rama
femenina de esta organización. Las hermandades son las mujeres, una
docena, que se organizan para cuidar de los diferentes santos, así cada
una de las hermanas cuida del santo que le es designado por el consejo
parroquial. El consejo designa también a los mayordomos que partici-
paran de la mayordomía anual.
Durante el trabajo de campo pudimos observar las fases preli-
minares y la mayordomía propiamente dicha. En la fase preliminar
son designados los mayordomos en la iglesia, donde reciben el título.
Después acontecen las reuniones de organización. Registramos la re-
unión que ocurrió en la casa de la Hermandad. Una vez acertados los
detalles de la organización de la mayordomía, tiene lugar la publicidad,
donde los mayordomos recorren el pueblo para colocar los carteles con
la programación. Ellos van acompañados por una banda de vientos y
aprovechan la ocasión para pedir donativos para la fiesta. Durante este
periodo previo se organizan también otras actividades para colectar
dinero, como rifas, vendas de comida, peleas de gallos.

169
La mayordomía se inició con la visita de las hermandades a la casa
del mayordomo principal para adornar la cruz. En esta oportunidad, las
hermandades se encuentran en la iglesia y se dirigen en procesión a la
casa del Mayordomo primero, donde los mayordomos las esperan con
un arco de carrizo adornado. Las Hermandades llegan y comienzan a
elaborar los ramos de flores en forma de cruz que adornaran el altar.
El Mayordomo coloca la primera cruz de flores en el altar, después las
diferentes hermandades pasan a adornar el altar, cada una colocando su
ramo de flores. A continuación los mayordomos encienden las velado-
ras, que son colocadas frente al altar. Después del rosario se comparte
la comida entre los presentes, unos tamalitos que encierran el intercam-
bio entre hermandades, mayordomos y el santo. Está todo pronto para
la labra de velas que acontecerá al día siguiente. Un día antes se realizó
la matanza, donde los mayordomos abatieron dos cabezas de ganado
para ser consumidas durante la fiesta.
La labra de cera si inicia con la primera misa del día. Ese día, des-
pués de la ceremonia religiosa, el mayordomo recibió un crucifijo que
después de la misa es llevado, en procesión a la casa del mayordomo.
Una banda, tocando dianas, acompaña el cotejo, que es anunciando
con cohetes. Al llegar en la casa del mayordomo, son recibidos con una
lluvia de pétalos de flores.
Las velas de cera virgen de abeja tienen un significado especial
para los mazatecos. Estas velas son usadas en procesiones religiosas y
en rituales tradicionales. La vela tiene el simbolismo de la luz, que sirve
para orientar los espíritus. Durante rituales chamánicos son usadas cua-
tro velas en cruzero que simbolizan los puntos cardinales. Una quinta
vela es colocada en el medio para simbolizar el quinto punto cardinal,
que conecta supramundo e inframundo. Para trabajar con los muertos
son usadas 13 velas de cera de abeja.

170
La convivencia, la música, la comida compartida con el santo y
con el pueblo es la forma como los mazatecos cultuan al santo. En la co-
cina las mujeres que participan de la mayordomía preparan la comida.
En un lugar un poco más resguardado, es realizada la labra de cera. En
la casa y en la calle se montan mesas para recibir al pueblo. Una banda
de música suena de fondo. La comida es servida por los mayordomos.
Después de la labra de velas, que serán distribuidas el último día
de la mayordomía, se inicia el culto con la imagen milagrosa. El culto al
Señor de las Tres Caídas, se originó en Otátitlan y se celebra también
en Santa María Ixcatlán (BARABAS, 2006; GARCÍA DORANTES,
1996). En 1943 vecinos de Huautla encomendaron una réplica de la
imagen para la Catedral de la ciudad. El presidente municipal de la
época no quería la imagen por temor de que deje a Huautla sin lluvia,
porque el culto proviene de una ciudad de la zona de la Cañada, calien-
te y seca. “Tuvieron que ir a Oaxaca, a hablar con el obispo, para traer la
imagen a la iglesia” – cuenta abuela Julieta. La imagen del Santo, es una
réplica, tamaño natural de Jesús, caído, con la cruz, rumbo al calvario.
Vestir al Santo. La concentración se realiza en la casa del mayor-
domo principal. Encabezados por la Hermandad, los mayordomos
parten en procesión para la iglesia cargando las ropas nuevas para el
Santo. Después de la misa, reciben la bendición del padre y retiran la
imagen de la vitrina en que está expuesto cotidianamente. Con pro-
funda fe y reverencia, tocando la imagen milagrosa, cambian las ropas
del Santo y de la réplica. Se forman largas filas de fieles para tocar el
santo. Unos llevan ramas de plantas aromáticas, utilizadas para limpias
y purificaciones, otros llevan algodón, para curar los enfermos. El
contacto con la imagen actúa por contagio, las personas tocan al santo
para impregnar su poder milagroso. Después de renovar las ropas, la
imagen es colocada en un altar de destaque y la réplica, algo menor,

171
pasa a ser objeto de culto durante el novenario. Barabas (2006) llamó la
atención para las religiones étnicas, cuando los símbolos católicos son
interpretados a partir de tradiciones mesoamericanas más antiguas. En
esta interpretación los santos se bañan de sentido a partir de los dueños
del lugar. El culto a las entidades territoriales está en la base del culto a
los santos patronos.
Durante el novenario, la imagen, precedidas de estandartes es
llevada en procesión por las calles de la ciudad. Durante nueve días la
imagen sale de la iglesia después de la misa y es llevada en procesión a la
casa donde será realizado el Rosario. Después de la adoración el santo
retorna a la iglesia para volver a salir en procesión después de la liturgia.
En las casas es recibido con comida y bebidas, tamales, pozole, caldos.
Una banda de música acompaña la procesión por el espacio público de
la ciudad. A medida que avanza el novenario aumenta el número de
participantes. Los últimos a recibir el santo son la casa de la herman-
dad, donde tiene lugar una convivencia antes de que el santo parta para
la iglesia y la casa del mayordomo principal, donde se encierra el culto
con una gran fiesta.
La convivencia es el momento liminar de la fiesta. La casa y la
calle se transvisten para recibir al santo y al pueblo. Abundante comida
es compartida con el santo y los participantes. En la casa de la abuelita
fueron preparados 250 kg de pollo con mole y centenas de tamales.
Pasó un millar de personas, campesinos, cargadores del mercado,
feriantes, profesores, autoridades municipales. Las personas llegan y
van hasta el santo para realizar su purificación, después van a las mesas
para compartir la comida. Toda la familia colaboró para el suceso de la
fiesta, inclusive contó con apoyo financiero de un amigo de la familia.
Cuando la abuela Julieta recibió el cargo de la hermandad, consultó a
sus hijos antes de aceptar la responsabilidad. La decisión fue tomada

172
con el apoyo de sus seis hijos que viven en Huautla y participaron del
trabajo sirviendo a los participantes.
Después del novenario hay una noche de vigilia y una gran fiesta
pública, con fuegos artificiales. Una gran torre de fuegos fue montada
frente a la iglesia, una manifestación del arte popular mexicano. Toritos
soltando fuegos corretean entre el público en la plaza. Esa es una noche
de fiesta en homenaje al santo.
Después del novenario es realizado el via cruci, con la imagen
original, recorriendo las diversas estaciones distribuidas en la casa de
vecinos de Huautla. En esta oportunidad la imagen es acompañada
por los padres y una multitudinaria procesión con fieles de diversos
orígenes. Barabas (2006) apunta el carácter multiétnico del culto y su
importancia para la creación de redes territoriales. Nuestra observa-
ción reveló también que el núcleo duro de la organización – consejo
parroquial, hermandades y mayordomos – son mazatecos y parte del
culto durante la liturgia tiene que ser realizado en la lengua.
La mayordomía del Señor de las Tres Caídas fue una gran perfor-
mance en que los cargos religiosos fueron actuados y deben ser actua-
dos por mazatecos. La entrega de los mayordomos y las hermandades,
de servir al pueblo como forma de servir al santo envuelve un tipo de
poder, de entrega por el otro. El poder como el ejercicio de la capacidad
organizativa delegada por la comunidad.
El catolicismo es interpretado a partir de la tradición mesoa-
mericana. No es extraño que en una lectura de la biblia un chamán
interprete que cristo fue un gran curador. Para los mazatecos no existe
contradicción entre chamanismo y catolicismo. En el caso analizado, la
hermandad principal fue performada por la Abuela Julieta, la chaman
más conocida de Huautla. A continuación veremos que los cargos polí-
ticos también son performáticamente actuados.

173
CLIP MAYORDOMIA
https://youtu.be/tm0EejCaK4I

Performances de los cargos políticos

Toda sociedad performa el poder por medio de ceremonias y


rituales. Las performances tienen un carácter estético mas también son
un acto político, tienen que ser ejecutadas por la persona que ocupa
una posición determinada (BAUMAN; BRIGGS, 2006). A pesar de
las mudanzas en el sistema de cargos cívico-religiosos, en Huautla,
continúan existiendo los cargos y los mismos son performados en
ceremonias que aparecen inscritos en el calendario agrícola-ritual ma-
zateco: la marcha de reyes; la faena; informe de gobierno (GARCÍA
DORANTES, 1996).
La marcha de reyes es una performance que entrelaza los cargos
cívicos y religiosos. Al finalizar la mayordomía del Niño Dios, en el día
de Reyes, la imagen es llevada en procesión a la iglesia. Esta procesión
es encabezada por el presidente municipal y los regidores. Las auto-

174
ridades participan, cargando sus bastones de mando. Estos bastones,
en la tradición mazateca, simbolizan el apoyo del consejo de ancianos
(BOEGE, 1988). Después de la misa, el presidente municipal realiza
un discurso en la iglesia, en el que pide unión para trabajar por el bien
común y que reine la paz en el municipio (GARCÍA DORANTES,
1996). Después de la misa es repartida la rosca de reyes y juguetes para
los niños. Esta marcha representa el inicio del ciclo de gobierno.
Tradicionalmente en Huautla el presidente municipal era de-
signado por el consejo de ancianos, confirmado en una asamblea y el
cargo tenía una duración anual. En 1953 la duración de los cargos cívi-
cos pasó a ser de tres años (GARCÍA DORANTES, 1996). Durante el
periodo en que el PRI tuvo hegemonía en el sistema político mexicano,
el sistema tradicional se articuló con el sistema de partidos. El candida-
to indicado por el consejo de ancianos era inscripto en la lista del PRI,
conciliando la indicación del consejo con las formalidades del sistema
político nacional.
Este sistema entró en crisis en la década de 1970 con la polari-
zación política que dividió el consejo de ancianos: un consejo de an-
cianos del PRI y otro consejo de ancianos del PPS. El Partido Popular
Socialista, de inspiración comunista, que era oposición al Partido de
la Revolución Institucional. Algunos relatos apuntan que Inchaustegui
fue quien promovió o apoyo el PPS en Huautla.
A pesar de las mudanzas en el sistema político, tanto en la du-
ración del mandato, como en la forma de acceso al cargo, la marcha
de reyes es performada anualmente. El registro de la performance en
el vídeo indica que el bastón de mando es el símbolo dominante de
la marcha. Puede estar ausente algún regidor o su suplente, pero los
bastones están presentes, cargados por algún auxiliar. Los bastones
representan la autoridad construida con el apoyo de los ancianos. An-

175
tiguamente era el Consejo de Ancianos quien entregaba el bastón de
mando a las nuevas autoridades, hoy son los expresidentes. De acuerdo
a nuestra interpretación, la marcha de reyes performa la relación entre
los cargos cívicos y religiosos.
La segunda performance registrada en el vídeo es la faena, el
trabajo colectivo XA-BAZEN. El trabajo comunitario es una tradición
prehispánica que adquirió diversas formas en México. En algunas loca-
lidades de la ciudad de Oaxaca la participación de los vecinos es obliga-
toria, o pode ser dispensada mediante algún pago en dinero. En Huautla
existen diversas faenas, como por ejemplo las que son convocadas para
limpiar el barrio antes de las fiestas; para limpiar el mercado, realizada
por los que mantienen sus puestos en la feria; la faena para limpiar el
panteón antes de la fiesta de los muertos. En este vídeo focalizamos la
gran faena anual que se realiza a inicio de año para limpiar los linderos
del municipio. La primera faena, registrada en el vídeo, limpia el lindero
con Chilchotla, una segunda faena limpia los linderos con Mazatlán.
En Huautla, la faena moviliza millares de mazatecos. El símbolo
dominante es la concha, el sonido del caracol que convoca la población,
para el trabajo colectivo. En otros contextos, el sonido de la concha
también indicaba el llamado para la guerra. El día de la faena, antes de
la salida del sol, se reúnen los hombres que participaran del trabajo.
Después de un pan con café se organizan los dos grupos. El que va pri-
mero, con los machetes, y el que le sigue con las azadas, limpiando. Los
grupos avanzan coordinadamente, al sonido de conchas y cuernos que
marcan esta jornada de trabajo comunitario.
Durante la faena, prevalece la fusión entre el pueblo y las autori-
dades, todos tienen que participar y demostrar empeño en el trabajo. En
ese hormiguero humano se mesclan autoridades, vecinos de la ciudad
de Huautla y los caracterizados de las comunidades. Tradicionalmen-

176
te, participar de la faena era una de las condiciones para participar del
sistema de cargos. La movilización y participación en la faena, también
expresa el apoyo de los ancianos para las autoridades que están en los
cargos cívicos. Si los bastones de mando representaban el apoyo de los
linajes, ese compromiso se hace sensible con la participación de los
hombres de la familia en la faena. Boege (1988) señalo que sin el apoyo
de los cabezas de los linajes no sería posible movilizar la población para
participar de la faena.
El ciclo anual de performances del sistema de cargos político se
cierra con el informe de gobierno, realizado a finales de diciembre. En
esta performance el lugar central es ocupado por las autoridades, que
prestan cuentas de las realizaciones de año fiscal frente a la asamblea
formada por los ciudadanos, tanto de la ciudad, como de las agencias
municipales en la parte rural. En la abertura se saluda la presencia de
expresidentes en la plaza. En su informe, como en una prestación de
cuentas frente al pueblo, el presidente enumera las realizaciones en las
diversas áreas de gobierno. La vestimenta, el bastón de mando, mar-
can la oposición entre el pueblo y el ocupante del cargo, que tiene su
performance evaluada por sus realizaciones. Este momento también
comporta las performances de la oposición.
En su discurso el presidente enumeró los caminos construidos,
las escuelas, las obras de la red de agua, y la política de desarrollo ancla-
da en la tradición mazateca. En este punto ganó destaque el proyecto
Pueblo Mágico, programa de la Secretaria de Turismo que incluyó la
ciudad en un nuevo proyecto turístico. Este programa pretende pro-
yectar Huautla como polo de turismo místico y religioso. El comité es
presidido por el profesor Alfonso. La abuela Julieta fue prestigiada en el
discurso del presidente, lo que inicia la importancia del lugar social del
chamán en la sociedad mazateca.

177
El informe de gobierno aparece como a performance de una
asamblea, un simulacro, si comparado con las asambleas tradicionales
de los indígenas mexicanos, que pueden durar días. A pesar del carácter
de simulacro, son también una oportunidad para que la oposición per-
forme su papel. Durante el informe de gobierno registramos también
un protesto de los partidarios de MORENA, que no incluimos en la
versión final del clip por cuestiones de tiempo y narrativa.
Es innegable que acontecieron cambios importantes en el sistema
político. A pesar de estas transformaciones los cargos fueron performa-
dos en un idioma simbólico tradicional. Los símbolos/objetos, como
bastones, conchas, velas, tienen un valor estético y un significado polí-
tico. La manipulación de estos símbolos/objetos permite comprender
las performances de los cargos. Las ceremonias, por su vez, expresan
diversas dimensiones del ejercicio del cargo. No es gratuito, que el presi-
dente inicie cíclicamente su mandato como mayordomo y se iguale a la
población en la faena. Esta actitud contrasta con la asamblea, el informe
de gobierno, cuando empuña el bastón de mando para dar cuenta de las
realizaciones, una prestación de cuentas a la población.
Sobre la participación de Doña Julieta y del profesor Alfonso,
podemos destacar por un lado la participación de Alfonso en el gru-
po político de la presidencia. El ya ejerció el cargo de corregidor y en
el momento del trabajo de campo, era presidente del Comité Pueblo
Mágico. En relación a la Abuela Julieta, destacamos que fue citada
en el discurso del presidente durante el informe de gobierno, lo que
confirma la importancia de la figura del chamán para la identidad de
Huautla. Cabe señalar que durante el trabajo de campo acompañamos
diversos homenajes a la Abuela Julieta, lo que refuerza su importancia
en el espacio público.

178
CLIP DE CEREMONIAS POLÍTICAS
https://youtu.be/bVRnRcXRIlg

Las elecciones para la presidencia municipal

Las elecciones marcan la principal mudanza política. A lo largo


del texto enumeramos algunas de las mudanzas en el sistema de cargo,
como la duración de los mandatos, la introducción del sistema de par-
tidos políticos y la polarización que llevó a la disolución del Consejo
de Ancianos. En Huautla, las elecciones por el sistema de partidos
políticos son realizadas desde 1971. En las agencias y en las rancherías
continúan organizando el gobierno de acuerdo a los usos y costumbres
Está opción gana un nuevo contexto cuando en 1995 el estado
de Oaxaca reconoce el derecho de los pueblos indígenas a organizar su
gobierno de acuerdo al sistema de usos y costumbres, hoy conocido
como Regímenes Normativos Internos. Las poblaciones indígenas de
México distribuidas en diversos municipios con población mayoritaria-
mente rural están gobernados por lo que se denomina como Sistemas

179
Normativos Internos o “usos y costumbres”. El gobierno por Sistemas
Normativos Internos consiste en un sistema tradicional, de influencia
hispánica, incorporado y resinificado por las poblaciones tradicionales.
Esta forma de organización reconoce el sistema de cargos por el que pa-
san los habitantes del poblado y las asambleas como órgano soberano
(BARABAS, 2006; BARTOLOMÉ, 2006; BRISSAC, 2008; CANEDO
VASQUEZ, 2008).
El sistema de usos y costumbres fue reconocido oficialmente en
el estado de Oaxaca en el año de 1995. Entre los municipios mazatecos
13 eligieron mantener el sistema de cargos y 8 eligieron el pleito elec-
toral por el sistema de partidos políticos (BRISSAC, 2008). El sistema
de usos y costumbres en el caso de los Mazatecos, estaba organizado en
torno de un consejo de ancianos, que habían pasado por todo el sistema
de cargos. En el caso de Huautla, este sistema entró en crisis al ser po-
larizado por el sistema partidario, creando un consejo de ancianos del
PRI y otro del PPS, lo que llevó a su posterior disolución (BRISSAC,
2008; BARTOLOMÉ, 2006, p. 87). En cuanto a la relación con otras
esferas de poder, como el gobierno estadual o federal, Bartolomé señala
que las mismas están marcadas por la ambivalencia entre el caciquismo,
análogo al coronelismo brasileño y la procura por autonomía por parte
de las comunidades (BARTOLOMÉ, 2006).
El hecho de Huautla no adherir a la reforma política abierta para
las poblaciones indígenas abre diversas cuestiones. ¿Los huautlecos son
menos indígenas por haber mantenido el sistema de partidos políticos?
La respuesta es una rotunda negativa. Huautla es un centro urbano de
una civilización tradicional campesina. Como agrupamiento urbano
enfrenta nuevos desafíos que intenta resolver en sus propios términos
simbólicos. A pesar de Huautla ser una ciudad de más de 30.000 habi-
tantes, es en la región de Huautla donde mejor se conserva, por tradi-

180
ción oral, el calendário agrícola tradicional, es donde las mayordomías
tienen mayor participación de la población (CARRERA-GARCÍA et
al., 2012; CARRERA GONZALES; VAN DOESBURG, 1992; QUIN-
TANAR MIRANDA; MALDONADO ALVARADO, 1999). Antes de
juzgar a partir de un deber ser, nos preguntamos: ¿en qué idioma habla
el sistema de partidos en Huautla?
Acompañamos el proceso electoral en 2016. El mismo fue pola-
rizado entre el candidato de la situación, del PRD/PAN y la oposición
que se alineó con el candidato de MORENA. Otros candidatos del PRI,
del PT y de MILPA, agrupación independiente también participaron
del pleito. En el vídeo focalizamos el cierre de campaña de los dos prin-
cipales partidos, más performances similares a las registradas también
fueron ejecutadas por los candidatos de los otros partidos políticos.
La principal diferencia entre los candidatos estaba dada en el
plano del discurso, con el candidato del PRD/PAN invocando la
unión y el trabajo colectivo, encuanto que el candidato de la oposición
criticaba la suntuosidad de la mansión construida por el presidente
municipal e insinuaba desvío de recursos. Cabe destacar que ambos
centraron sus discursos en valores tradicionales, el trabajo colectivo
y la austeridad. Otra diferencia fue que en cuanto el candidato de la
oposición centró sus esfuerzos en la población urbana, el candidato
de la situación foco sus esfuerzos en el pueblo de las agencias, las po-
blación campesina tradicional.
Priorizamos la performances por sobre el discurso, por entender
que la performances nos es sólo estética, ella es política y tiene una
intertextualidad que se apoya en los símbolos tradicionales. Ambas
campañas cerraron con una marcha cívica. La marcha se transformó
en una demostración pública de apoyo por parte de los electores, esto

181
se hizo más evidente cuando los mazatecos asistían las filmaciones y
comentaban la participación de los que estaban registrados en el vídeo.
Las marchas cívicas tuvieron un recorrido similar, se iniciaron en
el plano de salida, la carretera que lleva al nindon Tokoxo y se dirigieron
hacia la plaza frente al palacio municipal. Al trabajar estas performances
en la edición, se destacan aspectos simbólicos, presentes en también
en las otras performances analisadas. La marcha cívica con las mujeres
abriendo el camino, así como las procesiones religiosas con las her-
mandades; las mujeres vistiendo los huipiles con los colores clásicos de
Huautla; el caracol, como llamado al trabajo colectivo y al combate; el
discurso en la plaza, mismo lugar en que se realiza el informe de go-
bierno, la presencia de antiguos presidentes, que ecoan el consejo de
ancianos. Las performances de la campaña de los partidos políticos en-
vuelven objetos símbolos presentes en las performances tradicionales,
símbolos de una tradición cultural, que se transforma, para permanecer
mazateca.
No conseguí registrar, mas fui informado que los candidatos
realizaron rituales de pedimento en el nindon Tokoxo. El presidente co-
mentó en una conversa informal, que en la época de las elecciones pasó
dos meses sin mantener relaciones sexuales, debido a “los trabajos”. Los
rituales de pedimento, así como los rituales con niños santos envuelven
restricciones sexuales, uno debe mantener el cuerpo limpio.
Después de las elecciones subí el nindon Tokoxo y encontré algo
extraño entre las ofrendas en la cueva. Entre las ofrendas, que tienen un
padrón producto de la performance ritual, aparecieron algunas como
símbolos invertidos. En la cueva había una ofrenda en que los granos de
cacao estaban dentro de un saco plástico y con excrementos de perro
depositados encima del saco. Entre las velas me llamó la atención unas
veladoras invertidas. Las veladoras no podrían ser encendidas, el cacao

182
no se disolvería, no llegarían al Tokoxo. Esos símbolos eran un índice
de brujería. Esta lectura fue confirmada en conversas en el patio de la
abuela Julieta y en la casa del profesor Alfonso. La brujería, los Teej´e
trabajan haciendo un ritual invertido, en nombre de la persona que
quieren perjudicar. Desaconsejan hacer eso, porque a largo plazo, todo
tiene un precio, no se puede jugar con los dueños del lugar.
Durante la campaña, el profesor Alfonso, como secretario general
del PRD ocupó un lugar central, al lado del candidato de la alianza del
partido. Él fue responsable por la movilización de millares de campe-
sinos mazatecos de las agencias. Acompañó al candidato durante toda
la performance, envolviendo su familia. Su esposa realizó uno de los
discursos más emocionantes en el palco.
La abuela Julieta estaba atenta al debate político. A sus ochenta
años acudió a las urnas para depositar su voto. Ella se puso feliz cuando
el presidente, ahora como candidato a diputado se refirió a ella en su
discurso, como una de las abuelas del mundo, representante de México
en el Concejo Mundial de las 13 Abuelas. Un reconocimiento de su
prestigio en una performances política, la identidad de Huautla está
entrelazada con la figura del “chaman”. Coloco el término entre aspas
porque los resultados de esta investigación revelan una multiplicidad
de papeles desempeñados por los “chamanes”.
La observación a lo largo del año, nos permitió identificar que
los candidatos del PRD/PAN y MORENA participaron de las perfor-
mances que tradicionalmente eran condiciones de acceso al sistema
de cargos: la faena y la mayordomía. Esto indica que, a pesar de las
transformaciones con la introducción del sistema de partidos políticos,
la política, en Huautla es actuada con símbolos y performances maza-
tecas. A pesar de las mudanzas en la tradición, las estrategias performá-
ticas emplearon símbolos tradicionales y su gramática. Si conseguimos

183
entender este despliegue de símbolos conseguimos “escuchar” las
performances, comprenderlos mazatecos y su visión de mundo.

CLIP ELECCIONES
https://youtu.be/cel4jvkXqHc

El vídeo hizo sensible la tradición por medio del registro de las


performances, mas necesitó de la voz experiente, que colocamos como
contexto. Esta voz fue construida con una mirada teórica y escuchada,
balbuceada en el trabajo de campo.
Retomamos la metáfora de Cardoso de Oliveira. El mirar se rela-
ciona con el problema teórico, con el mirar informado por la tradición
antropológica. El escuchar no se da en el plano del discurso, se da en el
plano de la experiencia. El saber intersubjetivo no es intersubjetividad
pura, es una intersubjetividad mediada por la experiencia.
El video antropológico implica mucho más que el haber estado
allí. La antropología como arte de la traducción cultural implica que el

184
antropólogo tiene que aprender los símbolos de una tradición cultural
por medio de la experiencia y traducirlos para un público más amplio.
Las performances registradas y editadas con técnicas de audio
y vídeo aparecen como una narrativa susceptible de diversas camadas
de significados. Los símbolos, sean palabras, objetos, ofrendas ganan
sentido al interior de una tradición cultural, mas tienen una intertex-
tualidad que permite trasmitirlos para un público más amplio.
Existe una continuidad entre rituales, ceremonias y fiestas, to-
das ellas son performadas, actuadas, envuelven discursos, emociones,
símbolos, envuelven el cuerpo de los participantes. Trabajar estas per-
formances con los recursos de la antropología visual permitió abordar
la materialidad de los símbolos, como los objetos-símbolos son mani-
pulados durante las performances, como orientan redes de relaciones
sociales. Al mismo tiempo, enfrentamos las limitaciones del vídeo para
realizar una traducción más profunda de estos símbolos, por lo que en
la segunda parte de este trabajo recurrimos a un estilo híbrido, un ensa-
yo antropológico-videográfico en el que articulamos el discurso escrito y
el vídeo para traducir la tradición mazateca para un público más amplio.
Las tradiciones son actualizadas en las performances, lo que
permite diluir el problema de la autenticidad. Feinberg (2003, 2006)
analiza las diferentes formas de invocar el pasado entre los mazatecos.
En su trabajo comparó el discurso de García Dorantes, que invoca el
carácter tradicional campesino de los mazatecos, con el discurso de
Juvenal sobre los hippies en los años dorados de Huautla. Ambos son
igualmente auténticos. La tradición es viva, se transforma. A modo de
ejemplo, la música tradicional de los casamientos mazatecos, “La flor
de naranjo”, tiene autor y está históricamente datada, fue escrita por
José Guadalupe García Parra en 1910. La tradicional mayordomía del
Señor de las tres Caídas es realizada en Huautla desde 1944. Alcantara

185
(2015) afirma que el neo-chamanismo se inició cuando Wasson experi-
mentó los niños santos con María Sabina. Compartimos con Langdon
(2007) la critica el uso de la categoría neo-chamanismo como forma de
estigmatizar diversas prácticas chamánicas como no tradicionales. De
acuerdo con la autora debemos encuadrar estas prácticas como otras
modalidades de chamanismo.
Existen diversos chamanismos. A nivel individual encontramos
una gran variación en la ejecución de las performances chamánicas. En
Huautla el chamanismo fue representado a partir de la figura de María
Sabina. En el ámbito público la Abuela Julita performa esa represen-
tación del chaman. En la tradición mazateca el chamanismo también
es político, en el sentido de participación en el sistema de gobierno,
el profesor Alfonso representó este papel. En la tradición mazateca
existen diversas representaciones del chamanismo. Mas que preguntar-
nos sobre el falso dilema chamanismo vs neo-chamanismo, debemos
preguntarnos por la intertextualidad del chamanismo en Huautla. Este
tema será desenvuelto en un próximo trabajo.

Referencias

ALCANTARA, S. P. En busqueda del Ndi Xijto: Turismo y neochamanismo en la


sierra mazateca, Oaxaca. Tesis de licenciatura em Etnologia, Escuela Nacional de
Antropología e Historia (mimeo). México DF: INAH-ENAH, 2015.

ALVAREZ, G. O. Antropología visual compartida: prácticas y límites. In: VAI-


LATI, A.; GODIO, M.; RIAL, C. (Org.) Antropologia audiovisual na prática.
Desterro, Florianópolis: Cultura e Barbarie, 2016.

BARABAS, A. Dones, dueños y santos. Ensayo sobre religiones en Oaxaca. Méxi-


co: CONACULTA-INAH, 2006.

186
BARABAS, A.; BARTOLOMÉ, M. (Coord.). Configuraciones étnicas en Oaxaca.
Perspectivas etnográficas para las autonomías. Mesoetnías. México: INAH/INI,
1999. v. II.

BARABAS, A.; BARTOLOMÉ, M. (Coord.). Etnicidad y pluralismo cultural: la


dinámica étnica en Oaxaca. México D.F.: INAH, 1990. (Colección Regiones)

BARABAS, A.; BARTOLOMÉ, M.; MALDONADO, B. (Org.). Los pueblos


indígenas de Oaxaca. Atlas etnográfico. México: INAH/FCE, 2004.

BARTOLOMÉ, M. La Tierra Plural: sistemas interculturales em Oaxaca. México:


INAH, 2008.

BARTOLOMÉ, M. (Coord). Visiones de La diversidad. Relaciones interétnicas


e identidades indígenas en el México actual. México: CONACULTA-INAH,
2006.

BARTOLOMÉ, M.; BARABAS, A. La presa Cerro de Oro y El Ingeniero El Gran


Dios. México: CONACULTA-INAH, 1990.

BARTOLOMÉ, M.; BARABAS, A. (Coord.). Los sueños y los días, xamanismo y


nahualismo en el México actual. México: INAH, 2013.

BARTOLOMÉ, M.; BARABAS, A. Os sonhos e os dias. Xamanismo no Mé-


xico atual. Mana [online], v. 19, Rio de Janeiro, p. 07-33, 2013. Disponible en:
<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-93132013000100001&script=s-
ci_arttext>. Acceso en: 15 ago. 2015.

BAUMAN, R. Verbal Art as Performance. American Anthropology, v. 77, n. 2, jun.


1975.

BAUMAN, R.; BRIGGS, C. L. Poética e Performace como perspectiva crí-


tica sobre a Linguagem e a vida social. Ilha, revista de Antropologia, v. 8, n. 2,
2006. Disponible en: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/ilha/article/
view/18230/17095>. Acceso en: 15 ago. 2015.

187
BOEGE, E. Contradicciones en la identidad étnica mazateca, construyendo un
objeto de estudio. Nueva Antropología, México, v. XIII, n. 43, p. 61-81, 1992.

BOEGE, E. Los mazatecos ante la nación: Contradicciones de la identidad étnica


en el México actual. México: Siglo XXI Editores, 1988.

BOEGE, E. Memoria histórica y acción política de los campesinos mazatecos.


Cuadernos de investigación, n. 2, 1982. Cuicuilco, México: Escuela Nacional de
Antropología e Historia - Instituto Nacional de Antropología e Historia, 1982.

BRIGGS, C. L. The Politics of Discursive Authorityy in Research on the “In-


vention of Tradition”. Cultural Anthropology, Resisting Identities, v. 11, n. 4, p.
435-469, 1996.

BRISSAC, S. G. T. Mesa de flores, misa de flores: os mazatecos e o catolicismo no


México contemporâneo. Tese de Doutorado, UFRJ/MN/PPGAS. Disponible
en: <http://www.neip.info/downloads/s_brissac_mesa_de_flores.pdf>. 2008.

CANEDO VASQUEZ, G. Una conquista indígena. Reconocimiento de mu-


nicípios por usos y costumbres en Oaxaca (México). In: CIMADAMORE,
A. (Comp.). La economía política de la pobreza. Buenos Aires: Clacso, 2008.
Disponible en: <http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/clacso/crop/
cimada/Vasquez.pdf>. Acceso en: ago. 2015.

CARDOSO DE OLIVEIRA, R. Caminhos da Identidade. Ensaios sobre etnicida-


de e multiculturalismo. São Paulo: Editora UNESP; Brasília: Paralelo 15, 2006.

CARDOSO DE OLIVEIRA, R. O trabalho do antropólogo. São Paulo: Editora


Unesp; Brasília: Paralelo 15, 1998.

CARDOSO DE OLIVEIRA, R. Sobre o pensamento antropológico. Rio de Janeiro:


Tempo Brasileiro; Brasília: CNPq, 1988.

188
CARDOSO DE OLIVEIRA, R.; CARDOSO DE OLIVEIRA, L. R. Ensaios An-
tropológicos sobre Moral e Ética. Rio de Janeiro: Biblioteca Tempo Universitário,
1996.

CARRERA-GARCIA, S. et al. Calendario Agrícola Mazateco, Milpa y estratégia


alimentaria campesina en territorio de Huautepec, Oaxaca. Agricultura, Sociedad
y Desarrollo, v. 9, n. 4, 2012. Disponible en: <http://132.248.9.34/hevila/Agri-
culturasociedadydesarrollo/2012/vol9/no4/6.pdf>. Acceso en: 15 ago. 2017.

CARRERA GONZALES, F.; VAN DOESBURG, S. Chan-chaon-yoma, el calen-


dario agrícola Mazateco. Huautla: mimeo, 1992.

CASTANEDA, C. [1968]. Las enseñanzas de Don Juan: una forma yaqui de co-
nocimiento. México: FCE, 2001.

CERQUEDA GARCÍA, M. Efemérides de la mazateca alta. Oaxaca: Fondo Edi-


torial IEEPO, 2003.

CHANCE, J.; TAYLOR, W. Cofradias and cargos: an historical perspective on


te Mesoamerican civil-religious hierarchy. American Ethnologist, v. 12, n. 1, 1985.
Disponible en: <http://www.jstor.org/stable/644412>. Acceso en: 15 ago.
2017.

CLIFFORD, J. Returns: becomings indigenous in the Twenty-First century.


Cambridge: Harvard University Press, 2013.

DALTON, M. El agua y las mil formas de nombrarla: el Centro Mazateco de


Invetigaciones. América Indígena, México, v. L, n. 2-3, abr./sep. 1990.

DALTON, M. Zapotecas, chinantecas y mestizas: mujeres presidentas muni-


cipales en Oaxaca. Revista Anthropologicas, Recife, PPGA/UFPE, v. 14, n. 1-2.
2003.

FABREGAS, A. Ensayos Antropológicos 1990-1997. Chiapas: Universidad de


Ciencias y Artes del Estado de Chiapas, 1997.

189
FEINBERG, B. “I Was There” Competing Indigenous Imaginaries of the past and
the future in Oaxaca’s Sierra Mazateca. Journal of Latin American Anthropology, v.
11, p. 109-137, 2006.

FEINBERG, B. The devil´s book of culture. History, mushrooms and caves in sout-
ner Mexico. Austin: University of Texa Press, 2003.

GARCIA CERQUEDA, O. Huautla, tierra de magia, de hongos... y de hippies.


1960-1975. Puebla: Benemérita Universidad Autónoma de Puebla, 2014.

GARCIA DORANTES, R. Chan chaon Kjoatsjoale naxinándá yoma. Calendário


agrícola, ritual y festivo de los mazatecos. México: INI, 1996.

GONZÁLEZ DE LA FUENTE, I. Comunidad, sistema de cargos y proyecto


social. Una propuesta analítica de las sociedades locales en México. Revista
Iberoamericana de antropología, v. 6, n. 1. Disponible en: <http://www.aibr.org/
antropologia/06v01/articulos/060104.pdf>. Acceso en: 15 ago. 2017.

GONZÁLEZ DE LA FUENTE, I.; SALAS, Q. Community projects in the era


of globalization: The case of a local rural society in Mexico. Anthropological Note-
books, v. 18, n. 1, 2012. Disponible en: <http://www.drustvo-antropologov.si/
AN/PDF/2012_1/Anthropological_Notebooks_XVIII_1_delaFuente.pdf>.
Acceso en: ago. 2015.

GUARDINO, P. Me ha cabido en la fatalidad. Gobierno indígena y gobierno


republicano en los pueblos indígenas: Oaxaca 1750-1850. Desacatos, n. 5, 2000.
Disponible en: <http://desacatos.ciesas.edu.mx/index.php/Desacatos/article/
viewFile/1226/1074>. Acceso en: 15 ago. 2017.

GUZMAN, G. Análisis del conocimiento de los hongos sagrados entre los ma-
zatecos después de 54 años. Etnoecológica, v. X, n. 1, p. 21-36, 2014. Disponible
em: < http://www.etnoecologica.com.mx/pdf/EE10(1).21-36.pdf>. Acceso
en: ago. 2015.

190
HABERMAS, J. Consciência Moral e Agir Comunicativo. Rio de Janeiro: Bibliote-
ca Tempo Universitário 84; Edições Tempo Brasileiro Ltda., 1989.

HABERMAS, J. Mudança estrutural da esfera pública. Rio de Janeiro: Editora


Tempo Brasileiro, 1984.

INCHAUSTEGUI, C. Entorno enemigo. Los mazatecos y sus sobrenaturales.


Desacatos, n. 5, 2000. Disponible en: <http://www.redalyc.org/articulo.oa?i-
d=13900510&iCveNum=1146>. Acceso en: 15 ago. 2017.

INCHAUSTEGUI, C. La mesa de Plata. Cosmología y curandeirismo en la Ma-


zateca de Oaxaca. Oaxaca, México: IOC, 1994.

INCHAUSTEGUI, C. Relatos del mundo mágico mazateco. México DF: INAH,


1977.

LANGDON, E. J. New perspectives of shamanism in Brazil. Schamanisms and


neo-shamanism as dialogical categories. Civilizations, v. 61, n. 2, p. 19-35, 2013.

LANGDON, E. J. Performance e sua diversidade como Paradigma Analítico:


a contribuição da abordagem de Bauman e Briggs. Ilha, revista de Antropologia,
UFSC, Florianópolis, v. 8, n. 1, 2., 2006. Disponible en: <https://periodicos.
ufsc.br/index.php/ilha/article/view/18229/17094>. Acceso en: 15 ago. 2017.

LANGDON, E. J. Shaman and shamanisms: reflections on anthropological di-


lemmas of modernity. Vibrant, v. 4, n. 2, p. 27-48, 2007.

LANGDON, E. J. Shamanism and Anthropology. In: LANGDON; BAER (Co-


ord.). Portals of Power. Shamanism in South America. Albuquerque: University
of New Mexico Press, 1992.

LANGDON, E. J. The performance of diversity: chamanism as a performative


mode. GIS, v. 1, n. 1, p. 09-39, 2016.

LANGDON, E. J. Xamãs e xamanismo: reflexões autobiográficas e intertextuais


sobre a antropologia. Ilha, revista de Antropologia, UFSC, Florianópolis, v. 11, n.

191
2, 2009. Disponible en: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/ilha/article/
view/2175-8034.2009v11n1-2p161>. Acceso en: ago. 2015.

LEACH, E. R. Sistemas políticos da Alta Birmânia. São Paulo: EDUSP, 1996.

LEACH, E. R. Ritualization in man in relation to conceptual and social develop-


ment. Philosophical Transactions of the Royal Society of London, Series B, v. 251, n.
772, p. 403-408, 1966.

MANRIQUE ROSADO, L. Cosmovisión y geografía sagrada Mazateca. In:


BARABAS, A.; BARTOLOMÉ, M. Dinámicas culturales, religions y migración en
Oaxaca. México: INAH, 2010.

MANRIQUE ROSADO, L. Porque también somos espíritus. Entidades aními-


cas y sus enferemedades entre los mazatecos. In: BARTOLOMÉ, M.; BARABAS,
A. (Coord.). Los sueños y los días, xamanismo y nahualismo em el México actual.
México: INAH, 2013.

MANRIQUE ROSADO, L. Viajando por los caminos del xamanismo mazateco:


el chjota chjine y el tje’e”. In: BARTOLOMÉ, M.; BARABAS, A. (Coord.) Los sue-
ños y los días, xamanismo y nahualismo en el México actual. México: INAH, 2013a.

NEIBURG, F. G. Identidad y conflicto en la sierra mazateca. El caso del Consejo


de Ancianos de San José Tenango. México: Instituto Nacional de Antropología
e Historia, 1984.

PEIRANO, M. G. S. A favor da Etnografia. Brasília: Ed. da Universidade de Bra-


sília, 1992.

PEIRANO, M. G. S. O dito e o feito: ensaios de antropologia dos rituais. Rio de


Janeiro: Relume-Dumara, 2001.

PENAGOS BELMAN, E. El consumo de maíz en la construcción de la persona


mazateca. Cuicuilco, México, Nueva Época, v. 7, n. 18, en./ab. 2000. Disponible

192
en: <http://www.redalyc.org/pdf/351/35101811.pdf>. Acceso en: 15 ago.
2017.

PEREZ QUIJADA, J. Tradiciones de chamanismo em la Mazateca Baja. Revista


Alteridades, México, UNAM- Iztapalapa, n. 12, 1996.

QUINTANAR MIRANDA, M. C. Los huehuentones de Santa María Chilchot-


la. Una tradición mazateca. In: BARABAS, A.; BARTOLOMÉ, M.; MALDO-
NADO, B. (Org.). Los pueblos indígenas de Oaxaca. Atlas etnográfico. México:
INAH/FCE, 2004.

QUINTANAR MIRANDA, M. C.; MIRANDA ALVARADO, B La gente de


nuestra lengua. El grupo etnolingüístico chjota énna (mazatecos). In: BARABAS,
A.; BARTOLOMÉ, M. (Coord.). Configuraciones étnicas en Oaxaca. Perspectivas
etnográficas para las autonomías. Mesoetnías. México: INAH/INI, 1999. v. II.

ROCHA, A. L. C. da; ECKERT, C. A preeminência da imagem e do imaginário nos


jogos da memória coletiva em coleções etnográficas. Brasília: ABA, 2015.

SCHAFER, C. La voz de las trece Abuelas. Ancianas indígenas aconsejan al mun-


do. Barcelona: Ediciones Luciernaga, 2012.

TAMBIAH, S. J. Culture, Thought and Social Action: an anthropological perspec-


tive. Cambridge: Harvard University Press, 1985.

TAUSSIG, M. Xamanismo, colonialism e homem selvage. São Paulo: Paz e Terra,


1987.

TURNER, V. Dramas, Field, and Metaphors. Symbolic action in Human Society.


Ithaca; London: Cornell University Press, 1974.

TURNER, V. From ritual to theatre: The human seriousness of play. New York:
Perform Arts Journal, 1982.

TURNER, V. W. Schism and continuity in an African society. A study of Ndembu


village life. Manchester: University Press, 1972.

193
TURNER, V. W. The Anthropology of performance. New York: PajPubl, 1988.

TURNER, V. The Forest of Symbols. Aspect of Ndembu Ritual. Ithaca; London:


Cornell University Press, 1975.

VIVEIROS DE CASTRO, E. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac


&Naify, 2002.

WASSON, R. G. Seeking the magic mushroom. Life, p. 100-120, may 13, 1957.

WOLF, E. In: FELDMAN-BIANCO, B.; RIBEIRO, G. L. Antropologia e Poder.


Contribuições de Eric R. Wolf. Brasília: Editora da Universidade de Brasília; São
Paulo: Editora Unicamp, 2003.

194
ETNOCINEMA, CINEMA INDÍGENA E
ANTROPOLOGIA VISUAL – NOTAS
SOBRE ESTRATÉGIAS METODOLÓGICAS
DO FAZER AUDIOVISUAL

Renato Athias1

Resumo: Este trabalho propõe debater questões sobre estratégias


metodológicas num campo que poderíamos chamar de “cinema
indígena” e terá como ponto departida a etnoficção intitulada:
“Procurando o sono”, produzido em 2012, cuja realização foi
compartilhada com um grupo de professores Baniwa e Kuripako
do Curso de Licenciatura em Educação Indígena da Universida-
de Federal do Amazonas (UFAM) do Campus de São Gabrielda
Cachoeira. O filme foi gravado em Tunuí, aldeia Baniwa do Rio
Içana e as filmagens aconteceram em julho de 2011, e a edição final
realizada em abril de 2012. Esta foi mais uma produção fílmica que
se enquadra no modelo que chamamos de “narrowcasting”, que se
contrapõe ao broadcasting da indústria do cinema. O texto procu-
ra revelar questões metodológicas do fazer da antropologia visual.
Palavras-chave: Baniwa. Kuripako. Etnocinema. Cinema Indíge-
na. Norrowcasting. Antropologia Visual.

1 Professor no Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Coordenador do


Laboratório de Antropologia Visual da Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE). E-mail: [email protected]

195
Preâmbulo

Este trabalho propõe debater questões sobre estratégias metodo-


lógicas num campo que poderíamos chamar de “cinema indígena”, tal
como já discutido por outros autores, France (2000); Himpele (2008);
Pelegrino (2008), e terá como ponto de partida o filme Procurando o sono,
produzido em 2012, cuja realização foi compartilhada com um grupo de
alunos do Curso de Licenciatura em Educação Indígena da Universidade
Federal do Amazonas (UFAM) do Câmpus de São Gabriel da Cachoei-
ra. O filme foi gravado em Tunuí, aldeia Baniwa do Rio Içana.
As filmagens aconteceram em julho de 2011 e a edição final rea-
lizada em abril de 2012. Esta foi mais uma produção fílmica que se en-
quadra no modelo “narrowcasting”, que se contrapõe ao broadcasting
da indústria do cinema, pois, dificilmente essas produções audiovisuais
atingem um público muito grande. De acordo com Flera (2003), as
produções que se enquadram nessa categoria de “narrowcasting” tem
sido tradicionalmente entendido como a divulgação de informações
(geralmente via Internet, rádio, jornal ou televisão) para um público
restrito e especializado. Produções visuais não destinadas para uma
grande audiência. Estas produções fílmicas visam, em geral, grupos
específicos e são realizadas para serem usadas principalmente por gru-
pos interessados em produções audiovisuais sobre os povos indígenas.
Geralmente, são veiculadas pela televisão, porém, quase sempre em
horários fora dos picos de audiência.
Mas, o que nos interessa aqui seria abordar as questões que en-
volvem a produção desse tipo de material imagético. Portanto, funda-
mentalmente, desde seu viés metodológico, este trabalho procura con-
tribuir com uma discussão sobre a utilização das técnicas audiovisuais
como instrumento de observação, transcrição, tradução e interpretação
antropológica de processos rituais, bem como, a transformação de his-

196
tórias orais, recitos mitológicos em uma narrativa audiovisual para ser
visualizada em meios digitais. Uma demanda do que podemos chamar
cinema antropológico, do ponto de vista da pesquisa e do envolvimen-
tos de grupos dos interesses de grupos indígenas e pesquisadores no
campo da etnologia.
O cinema indígena, ou Etnoficção como estamos classificando,
nesse texto é um filme cujo texto está sendo narrado em primeira pes-
soa com atores indígenas. Então os indígenas participam na construção
do texto que foi transformado em imagens e que são visualizados em
diferentes espaços.
Devo dizer que a primeira “etnoficção” como chamamos aqui
neste texto foi realizada por Edward S. Curtis e por membros da etnia
Kwakwaka’wakw, da região do Estreito Queen Charlotte, na costa cen-
tral de British Columbia, Canadá. O filme foi intitulado: “In the Land
of the Head Hunters”, porém, também conhecido “In the Land of the
War Canoes”. Esse filme foi exibido pela primeira vez em 1914, com o
som ao vivo de uma orquestra. Em 1999, foi selecionado pela Bibliote-
ca do Congresso para preservação no National Film Registry dos EUA
como sendo “culturalmente, historicamente e esteticamente significa-
tivo”. Pode-se dizer que este filme foi o primeiro longa-metragem cujo
elenco consistiu inteiramente de indígenas da América do Norte. Esse
é o primeiro longa-metragem feito na British Columbia, é o filme mais
longo e mais antigo realizado no Canadá. O segundo filme, oito anos
mais tarde, foi o Nanook do Norte de Robert Flaherty, que, creio, é
mais conhecido por estar sempre presentes nos cursos introdutórios
de antropologia Visual.
O filme “In the Land of the Head Hunters” foi exibido em Nova
York, Seattle, Washington, em dezembro de 1914, com uma orquestra
ao vivo de uma obra musical de John J. Braham. Pois, ele teve acesso

197
a gravações musicais em cilindros de cera de músicas originais dos
Kwakwaka’wakw, e a campanha promocional na época sugeriu que sua
partitura era de sons originas do referido dos Kwakwaka’wakw. Embora
elogiado pela crítica na ocasião, o filme foi um fracasso comercial.
Em 1911, Edward Curtis tinha já muita experiência com o ci-
nema, pois anos antes ele havia criado uma apresentação com slides/
imagens e a música, como acompanhamento ao vivo das imagens. Ele
chamou de “The Indian Picture Opera”. Ele usava projetores estereoscó-
picos, onde dois desses projetores estavam estrategicamente colocados
passando as imagens em uma única na tela. Esse foi, talvez, o prelúdio
para Curtis entrar na era do cinema.
No Brasil, acredito que foi a partir da década de 1990 que a
organização “Vídeo nas Aldeias” começou a produzir esse gênero de
filmes e trabalhar especificamente com narrativas orais indígenas, com
a participação de indígenas na produção do filme e das performances.
Poderíamos aqui registrar o filme de Dominique Galois e Vicent Car-
relli intitulado “Segredos da Mata”, que mostra as histórias orais trans-
formadas em narrativas imagéticas.

Considerações etnográficas

De início, apresento algumas considerações etnográficas que são


relevantes e que nos ajudam a compreender essa produção visual e seu
contexto cultural e étnico. Para isso, vou me valer de um conjunto de
informações presentes na tese de livre docência do Prof. Robin Wrigth
(1996). Segundo o autor, os povos que habitam a região do Rio Içana
da bacia hidrográfica do Alto Rio Negro, pertencem à família linguística
Arawak: os Baniwa são em maior número, em seguida vêm os Kuripako,
por fim vem outros grupos menos numerosos. Cada um desses povos
possui um território próprio indicado pelo criador e demiurgo Nhiãpe-

198
rikuli e também por Kuwai. Esse processo de territorialização é muito
comum entre os povos indígenas dessa região, onde o transformador
do mundo organiza cada povo, cada grupo e subgrupo (chamado tam-
bém de fratria) em um lugar determinado nesse imenso território. Por-
tanto, cada fratria, além de ter um nome próprio, está territorializada,
ou seja, suas terras estão associados aos irmãos ancestrais, fundadores
míticos das fratrias e dos clãs, e a organização que Nhiãperikuli criou
para serem seguidas pelos atuais Baniwa e Kuripako.
Todos esses povos têm suas organizações sociais voltadas para
um território determinado e possuem uma noção peculiar de hierarquia
que se faz presente no cotidiano, em geral dada pela ordem de nasci-
mento dos irmãos. Em cada aldeia encontram-se todos os irmãos com
suas mulheres, estas, por sua vez, são provenientes de outras aldeias e
de outros clãs, indo morar na aldeia de seu marido. Essa característica
mostra um grupo social que faz parte de um sistema patrilinear, cada
um com um nome próprio, altamente hierarquizado e territorializado.
O conhecimento, o saber, é específico e pertence a cada da um
dos clãs. São compartilhados com outros apenas em situações deter-
minadas. O conjunto de histórias que compõe o entendimento cos-
mogônico dos grupos Baniwa e Kuripako está associado a vários mitos
envolvendo as aventuras dos heróis míticos Nhiãpiriculi e Kuwai nesse
mundo. Essas narrativas mitológicas dão base ao conhecimento e ao
entendimento desses povos. E essas narrativas são muito específicas de
cada grupo, havendo sempre mudanças na ordem dos acontecimentos
dependendo daquele que está narrando.
O filme Procurando o sono é a representação do entendimento
dos Baniwa e dos Kuripako sobre o aparecimento da noite no mundo
atual. Essas histórias possuem várias versões, e cada um dos grupos
tem a sua própria, de modo que não existe uma versão “canônica” desse

199
mito. Assim, cada grupo procura difundir, contar, narrar utilizando
elementos que fortalecem o clã daquele que narra. Para realizar o filme,
os alunos Kuripako e Baniwa, que participaram da produção, passaram
muitas horas reunidos, procurando uma versão comum que iria ser re-
presentada e, posteriormente, filmada. Esse aspecto é interessante, pois
na versão filmada percebem-se principalmente os elementos comuns
às diversas narrativas. Em relação a esse processo de negociação das
versões para se chegar a uma narrativa comum, é interessante refletir
sobre a questão da identidade, levando-se em consideração o que Car-
los Brandão já assinalava em Somos as águas puras (1994):

O que está por baixo de tudo é a maneira como as


religiões de um mesmo campo compartilham desi-
gualmente uma mesma lógica de símbolos e senti-
dos do sagrado. Penso que o que importa considerar
é como cada uma delas enfrenta, na outra, a questão
de sua própria identidade (BRANDÃO, 1994, p.
187).

Cinema e Antropologia Visual

No presente texto, a categoria cinema indígena está em questão, e


o que aqui tenho colocado no mesmo patamar que a categoria de “etno-
ficção”, outros autores colocariam em uma outra categoria, denominada
“Media Indígena Global”, utilizada em vários artigos, principalmente
a partir dos anos 1980, fortemente marcados pela forma como lidam
com a construção e o fortalecimento da identidade étnica e a relação
com o Estado na produção fílmica – que me parece ser a tônica dos
capítulos organizados por Wilson e Stewart no livro Global Indigenous
Media: Cultures, Poetics, and Politics (2008) e que eventualmente a
produção dos filmes de Vídeo nas Aldeias (embora não todos), am-

200
plamente conhecidos, poderiam se enquadrar nessa categoria “mídia
indígena”. Certamente, esse movimento do cinema indígena tem a ver
com as novas tecnologias, com as possibilidades atuais, como alguns
antropólogos têm colocado em suas observações. No caso do Brasil,
penso que está, sobretudo, associado às possibilidades de se manifes-
tarem publicamente que surgiram depois da Constituição Federal de
1988. Essa, talvez, seja a principal motivação para o crescimento das
produções indígenas no Brasil.
A produção de filmes por índios também tem sido analisada atra-
vés de paradigmas dos estudos culturais, em que o foco central recai
sobre as questões relacionadas à globalização (KNOPF, 2008). São
também objeto das Ciências Sociais e mesmo da Comunicação Social,
aspecto que não nos interessa debater aqui. Interessa menos ainda com-
parar essas produções umas com as outras, o que não é, evidentemente,
o caso – tarefa que, aliás, acredito ser realmente de difícil realização,
sobretudo quando as produções são de povos completamente diferen-
tes linguística e culturalmente.
Chamo a atenção para o debate em torno do Cinema Navajo, já
amplamente comentado por Worth e Adair (1972), e as perspectivas
que essas produções puseram para a antropologia visual a propósito de
um cinema em primeira pessoa. Talvez a categorial Cinema Indígena
esteja mais associada à produção de imagens em primeira pessoa, a
uma discussão sobre o que os índios colocam para eles mesmos. Daí a
necessidade de ver tais produções dentro da perspectiva de “Narrow-
casting”. Na realidade, são produções fílmicas que têm um endereço, e
são feitas muito mais para dentro do que para serem visualizadas fora
do espaço social do grupo.
Assim, nosso principal argumento é que as produções compar-
tilhadas indígenas, categorizadas em cinema indígena ou etnoficção,

201
estão voltadas para o interior do grupo. Discutem ideias, visões e enten-
dimentos entre os indígenas que participam da produção, e, sobretudo,
negociam as versões e o entendimento através das imagens. Pode-se
dizer que as etnoficções são propriamente organizadas e desenvolvidas
para dentro, com uma linguagem apropriada dos processos de nego-
ciação de versões e visões sobre um contexto e sobre um aspecto do
cotidiano que merece uma discussão mais ampla.
Tais produções colocam-nos, ainda, a possibilidade de discutir
o que entendemos por “ponto de vista”, ou a perspectiva indígena na
produção visual. Nesse ponto, nos aproximamos da concepção discuti-
da por Cliford Geertz (1989) no capítulo intitulado “Pessoa, tempo e
conduta em Bali”, que integra o famoso Interpretação das Culturas. Nele,
o autor insiste no “ponto de vista dos nativos”, e inicia o capítulo dis-
cutindo a “natureza social do pensamento”. Como ele mesmo assinala,

O pensamento humano é rematadamente social: so-


cial em sua origem, em suas funções, social em suas
formas, social em suas aplicações. Fundamental-
mente, é uma atividade pública – seu habitat natural
é o pátio da casa, o local do mercado e a praça da
cidade (GEERTZ, 1989, p. 149).

Em sua obra O Saber Local (1997), Geertz nos convida a conhe-


cer uma abordagem antropológica singular, desde o ponto de vista dos
interlocutores, insistindo em uma questão epistemológica, isto é, na
necessidade de os antropólogos “verem o mundo” do ponto de vista
dos nativos. E aí se dá uma descrição dos processos de negociação so-
bre aquilo que os índios desejam mostrar aos antropólogos ou a outros
pesquisadores. Nesse sentido, o cinema indígena traz o ponto de vista
dos índios que o produzem, tal como descrito em A Sociologia do Rito,
de Jean Cazeneuve (1971), e as performances no rito.

202
“Procurando o sono”

Este foi o título dado pelos participantes Baniwa e Kuripaco


no processo de discussão e realização do filme. Como apontado an-
teriormente, a grande discussão durante o processo de realização foi
justamente a negociação para encontrar uma versão do mito de cria-
ção que pudesse ser aceita por todas as fratrias dos povos Kuripako e
Baniwa, presentes no processo. Nesse sentido, para dar uma dimensão
performática ao mito, também foram necessários vários momentos
de discussão na elaboração de um roteiro em que se pudesse ver essa
performance. Gostaria de poder colocar muito mais detalhes nessa
descrição, tal como sugere Geertz (1980), sobre a escrita etnográfica e
a autoridade etnográfica, porém o conteúdo aqui colocado coloca em
evidência o que se considera importante para o debate, alguns aspectos
assinalados por Reyna (1996).
O roteiro elaborado conjuntamente levou em conta a forma
como os pássaros e os “bichos” iriam estar postos no processo de
apresentação e as capacidades de cada um para trazer à noite. Nesse
aspecto, não se trata somente de falar, mas de representar, ou seja, de
atuar a história. Cada um dos personagens representa um pássaro que
se encontra com o dono da noite e depois a trazem para as suas aldeias,
momento em que começam a existir noite e dia, separadamente. Por
conseguinte, o aspecto dramático tem uma importância fundamental
nesse tipo de filme.
A dramatização, a performance foi um espetáculo de gestos, de
objetos e manipulações feitos para que fosse compreendida a história
que havia sido negociada entre eles. Nesse sentido, as palavras, as ves-
timentas, o cenário, os gestos precisam igualmente passar por um pro-
cesso coletivo. Quanto ao figurino, tendo em vista a situação em que

203
nos encontrávamos na aldeia, não teria sido melhor do que o escolhido,
dando, assim, vida aos animais.
Ainda considerando a dimensão da performance, acredita-se que
a imagem em movimento, o filme, é um instrumento mais apto para dar
conta de uma discussão e provocar reações nas pessoas que o assistem.
E a narrativa dramática do tema do filme permite colocar os obser-
vadores, a audiência, em uma posição de compreender o que se está
propondo na narrativa negociada, nesse caso, da história mitológica da
separação entre o dia e a noite.
Após assistir várias vezes o filme, percebi que a narrativa imagéti-
ca construída pelos Baniwa e Kuripako permite registrar e, sobretudo,
reconstituir uma delimitação espaço-temporal de um continuum em
que as manifestações se dão, através dos gestos, das palavras, do cenário,
criando um diálogo com o que Geertz designa como “entendimento do
entendimento cultural”. E esse aspecto é perceptível nas imagens que
integram Procurando o sono. A descrição, a imagem daquele que é filma-
do, adquire uma interlocução e põe em evidência aspectos simbólicos
presentes na sequência fílmica. O importante, diz Geertz (1997, p. 89),
“é descobrir junto com eles, que diabo eles estão fazendo”.
Os filmes produzidos por índios que contam uma história basea-
da em um mito, tal como esse que estamos analisando, evidenciam a
abertura de uma nova relação na troca de informações entre os pares.
Isso graças às potencialidades do novo “meio”, que, segundo Claudine
de France (1998), dá origem a uma nova proposta na “chamada antro-
pologia exploratória”, possibilitando o entendimento das performances
segundo três fatores.

São eles: a) a existência de processos repetidos; b)


a possibilidade técnica de repetir o registro contí-
nuo destes processos; c) e de repetir, no próprio

204
local da filmagem, o exame da imagem, ou seja, a
observação diferida do processo estudado (FRAN-
CE, 1998, p. 342).

Filme e Performance

A análise desse filme nos permite também discutir as questões


colocadas por Claudine de France sobre a análise fílmica, em que se
codificou chamar de inserção, primeira etapa de uma metodologia ana-
lítica e de observação de filmes. Com relação ao aspecto da inserção,
pode-se perceber como a performance foi elaborada e como é desen-
volvida no contexto maior da realização do filme. É possível perceber
ainda que essa performance faz parte de uma narrativa cuidadosamente
preparada, mesmo tendo um figurino adaptado a uma compreensão
mínima sobre os personagens. Evidentemente, essa questão nos leva a
pensar em um equipamento que fosse ligeiro e que ficasse fixo, uma vez
que os participantes estariam atuando, representando um texto.
Um outro aspecto, já convencionado, da análise fílmica diz res-
peito a observar a composição da fase liminar e a sua “mise-en-scene”.
Em produções do cinema indígena, tal como definimos, concerne ao
modo pela qual se dá a encenação, à maneira como os índios atuam no
cenário e como os personagens desenvolvem a narrativa relacionada
com a ação, ou seja, os movimentos coordenados dos atores, incidentes
que precisam acontecer em torno deles, cenário, objetos, acessórios etc.
A encenação, que regulamenta todos os detalhes, tem o efeito de garan-
tir o jogo de cada ator e a harmonia geral da representação da narrativa.
Usualmente, alcança-se um resultado à custa de grande habilidade e
experiência, inúmeras repetições e confiança mútua, que se dá entre
atores postos para jogar juntos. No entanto, as repetições para realizar

205
Procurando o sono não foram muitas, isso porque todos conheciam a
história e possuíam um conhecimento acumulado sobre esse mito.
Uma consideração importante se refere às filmagens deste gêne-
ro de documentário, que deve possibilitar que qualquer movimento
do cinegrafista esteja associado à narrativa, melhor dizendo, aos mo-
vimentos dos seres participantes dela. São procedimentos que o fotó-
grafo deve adotar como observador da performance. Logo, decisões,
acertos e erros são deliberações do grupo com qual se está trabalhando.
Jean Rouch (1975) já havia mencionado esse aspecto ao discutir seus
filmes, principalmente aquele voltado para o rito de circuncisão.
Estar com a câmara na produção de Procurando o sono foi pos-
sível, especialmente, por ter conhecimento dos detalhes da história e
ter visto as repetições. A câmara ficou solta, buscando enquadrar os
personagens e o desenvolvimento da performance tal como havia sido
discutido na elaboração roteiro. Nesse caso, privilegiou-se o ritmo, os
momentos, a forma de encadeamento e ordenamento da representa-
ção do mito. Isso nos levou realizar certos registros que permitissem
mostrar todos os agentes, impedindo a fragmentação e as sequências
espetaculares. Procuramos fazer coincidir o tempo fílmico com o tem-
po da narrativa, de forma a dar uma possibilidade de interpretação, em
outras palavras, os cortes foram mínimos.
Não foram feitas muitas observações sobre o impacto desse
filme numa audiência indígena. O que pudemos perceber, quando da
primeira exibição, foi um grande silêncio, que mostrou o interesse geral
da audiência em relação à narrativa da separação entre a noite e o dia. É
possível imaginar o interesse, pois era a primeira vez que uma narrativa
oral, que sempre fora contada por uma pessoa, tinha os personagens
animados. Esse fato suscitou muitos comentários sobre como se con-

206
seguiu fazer com que um grupo de adultos e crianças permanecesse em
silêncio durante a construção imagética de uma história mitológica.

Produção Antropológica

O filme Procurando o sono permite discutir alguns elementos


sobre prática antropológica e a presença no campo, entre os índios. Ele
nos estimula a pensar em formas novas de coletar dados antropológi-
cos, e que, diante da situação atual, seria preciso abandonar as formas
tradicionais da pesquisa antropológica e buscar novos procedimentos,
que as imagens fílmicas permitiriam desenvolver. Na produção aqui
analisada, perguntamo-nos o que este suporte pode oferecer para nos
levar a interpretações sobre as narrativas míticas, nesse caso, sobre a
separação entre o dia e a noite entre os Baniwa e os Kuripaco.
Esses anos, ao longo dos quais procuramos trabalhar essas ques-
tões, nos levam a buscar maneiras de lidar com o diálogo e os pontos
de convergência entre esses dois territórios: o cinema e a antropologia.
Essa produção nos possibilitou lançar alguma luz sobre a seguinte
questão, já formulada por outros pesquisadores, notadamente por Jean
Rouch: Como podem os filmes fornecer informações que escapam à
antropologia escrita?
Procurando uma resposta para essa pergunta, vimos que o cinema
pode introduzir a uma visão nova sobre os diferentes aspectos da pesqui-
sa antropológica, sobretudo com relação às possibilidades de registro e
ao estudo das performances coletivas, além de possibilitar a participação
de um número maior de colaboradores, para além do mero informante.
Construir a narrativa desse filme implicou entender como os processos
de compreensão mítica são vividos pelos índios – no grupo havia muitas
mulheres que, sem dúvida nenhuma, conheciam o mito, no entanto, elas
não estavam a par de muitos detalhes que os homens possuíam. Esse tipo

207
de filme pode captar as sutilezas, e estas poderiam ser apreendidas por
todos aqueles que conheciam a narrativa negociada para a encenação. De
outra parte, a filmagem permite a preservação da integridade dos gestos,
das atitudes, das reações, e dos ritmos.
Com essa produção, ficou demonstrada também a maneira como
as imagens animadas apresentam os diversos espaços onde os animais,
representados pelos atores, se situam no mundo humano, enfatizando
as relações sociais presentes nos comportamentos animais, pois, no
mundo mítico, animais e humanos utilizam-se das mesmas estratégias,
não havendo, portanto, uma “separação” entre comportamento animal
e humano. Nesse sentido, a filmagem garante o registro que a observa-
ção direta, não instrumentalizada, dificilmente poderia realizar. E isso
nos lança para a discussão sobre as vantagens da observação fílmica
comparada ao resultado de uma observação direta, o que não significa
desprezar a observação direta. Entretanto, a câmera e o trabalho com
ela, juntamente com o grupo com o qual se está trabalhando, leva-nos a
uma profundidade que “um informante” não teria como superar.
Talvez outro aspecto importante sobre o qual essa produção
visual me levou a pensar diga respeito aos desdobramentos provoca-
dos pela narrativa imagética em questão. Esse registro visual põe em
evidência uma versão consolidada de um mito que tem muitas versões.
Assim, da mesma forma que a escrita do mito se limita a uma única
versão, uma produção visual sobre um mito pode levar a um congela-
mento de uma única versão.
Essas são algumas das questões suscitadas pelo filme Procurando o
sono, e que nos pareceram ser importante compartilhar a fim de contri-
buir para o debate sobre o cinema indígena e a produção antropológica.

208
Filme Renato Athias
VÍDEO: https://youtu.be/2giYHf8dYFk

Referências

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Somos as águas puras. Campinas, SP: Papirus,


1994.

CAZENEUVE, Jean. Sociologiedurite. Paris: PressesUniversitaires de France,


1971.

FRANCE, Claudine de. Antropologia Fílmica – Uma Gênese difícil, mas pro-
missora. In: Do filme etnográfico à antropologia fílmica. Trad. Marcius S. Freire.
Campinas, SP: Editora Universitária Unicamp, 2000.

FRANCE, Claudine de. Cinema e Antropologia. Trad. Marcius S. Freire. Campi-


nas, SP: Editora universitária Unicamp, 1998.

FLERA, Aguie. Mass Media Communication in Canada. Scarborough: Thompson


Nelson, 2003.

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.

209
______. Negara, The Theatre State in Nineteenth-Century Bali. Princenton: Prin-
centon University Press, 1980.

______. O saber local. Novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis:


Vozes, 1997.

HIMPELE, Jeff D. Circuits of Culture. Media, Politics and Indigenous Identity in the
Andes. Minneapolis, London: University of Minnesota Press, 2008.

PELLEGRINO, Sílvia Pizzolante. Imagens e Substâncias como Vínculos de Perten-


cimento: as Experiências Wajãpi e Yanomani. 2008. 208f. Tese (Doutorado em
Ciências Sociais) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.

REYNA, Carlos Francisco Perez. A memória e o gesto: descrição videográfica de


uma técnica artesanal. 1996. 195f. Dissertação (Mestrado em Multimeios) –
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 1996.

ROUCH, Jean. The camera and man. In: HOCKINGS, Paul (Org.). Principles of
visual anthropology. The Hague: Mouton Publishers, 1975.

WILSON, Pamela; STEWART, Michelle. Global Indigenous Media: Cultures,


Poetics, and Politics. Durham, NC: Duke University, 2008.

WORTH, Sol; ADAIR, John. Through Navajo Eyes. An Exploration in Film Com-
munication and Anthropology. Bloomington, London: Indiana University Press,
1972.

WRIGHT, Robin. Aos que vão nascer: uma etnografia religiosa dos índios Bani-
wa. 1996. 290f. Tese (Livre Docência) – Universidade Estadual de Campinas,
Campinas, 1996.

210
O PROCESSO DOCUMENTAL:
UMA EXPLORAÇAO AUDIOVISUAL
DA ISICATHAMIYA1

Alex Vailati2

Resumo:Nos anos quarenta, na África do Sul, se intensificou a


estruturação do regime segregacionista chamado de apartheid. Os
migrantes negros vindos das áreas rurais que chegavam às cidades
eram obrigados a morar em espaços urbanos separados, determi-
nados por raça. Nesses espaços era presente também a separação
baseada no sexo, então, homens e mulheres tinham que morar em
bairros separados. Neste contexto foi criada a Isicathamiya, uma
performance baseada na dança e no canto coral, em que bandas
de homens, cada sábado à noite, competiam entre eles. Essa per-
formance continuou a ser praticada em toda a época do apartheid,
que acabou com a transição democrática em 1994. Hoje em dia
a Isicathamiya é ainda amplamente praticada, e está sendo ressig-
nificada em relação às transformações da sociedade sul-africana
contemporânea. É aqui proposta a exploração da Isicathamiya,
realizada por meio da etnografia da produção do documentário

1 Este artigo é uma reedição do trabalho publicado em VAILATI, A. Baixar ou le-


vantar a voz. Uma exploração audiovisual da Isicathamiya. Visagem, v. 2, n. 2, p.
186-198, 2016.
2 Doutor. Universidade Federal de Santa Catarina. Professor Doutor, Programa de
Pós-Graduação em Antropologia, Departamento de Museologia e Antropologia,
Universidade Federal de Pernambuco.

211
etnográfico Slow Walker, realizado entre 2011 e 2012, no centro
da cidade de Durban. Por meio da produção do audiovisual e da
sua restituição, foi possível analisar a difícil relação entre a conti-
nuidade da Isicathamiya com o seu passado e a sua transformação,
necessária aos olhos de vários performers, para adaptá-la ao mer-
cado musical contemporâneo. Além disso, a análise da recepção
evidenciou a potencialidade que o audiovisual tem de se inserir em
redes urbanas e de possibilitar uma reflexão sobre o conflito social.
Palavras-chave: Documentario. Africa do Sul. Zulu. Isicathamiya.

1 INTRODUÇÃO

Um dos marcos históricos mais significativos pela performance


analisada neste artigo foi provavelmente a cerimônia de conferir o
Prêmio Nobel a Nelson Mandela, que aconteceu em 1993. A banda
musical escolhida para acompanhar o leader antiapartheid do African
National Congress foi Ladysmith Black Mambazo, os mais conhecidos
performers de Isicathamiya.
Os Ladysmith Black Mambazo, nome traduzível como “O Ma-
chado Negro da cidade de Ladysmith”, são uma banda globalmente re-
conhecida como testemunha da música sul-africana e africana. Seja do
ponto de vista nacional, em particular em relação ao sucesso entre os
africanos negros, seja internacionalmente, os Ladysmith Black Mam-
bazo se afirmam como os representantes da música negra na época do
apartheid. Nos anos oitenta, o período mais conflitante da luta antia-
partheid, os Ladysmith eram uma banda que tocava capilarmente nas
cidades e nos contextos rurais do país. Por intermédio da colaboração
com o músico estadunidense Paul Simon e a realização do famoso dis-
co Graceland, eles ganharam um sucesso internacional que ainda hoje
continua, em particular no contexto norte-americano.

212
Figura 1 - Os Ladysmith Black Mambazo, o mais famoso grupo
de Isicathamiya, com o cantor americano Paul Simon

Fonte: ROLLING STONE, 1987.

Começando com esse tipo de circulação mundial, o objetivo


deste artigo é assumir como ponto de observação os contextos onde a
Isicathamiya é hoje praticada na África do Sul. A transição democrática
que começou em 1994, depois do fim do regime do apartheid, teve
claramente amplas consequências na sociedade sul-africana. Se por
um lado o ideal de “nação arco-íris”, proposto pelos líderes atuantes no
partido African National Congress, permitiu uma transição pacífica, por
outro lado essa transição foi necessariamente ligada a uma forte abertu-
ra ao mercado internacional e com este ao neoliberalismo.

213
Esses processos se refletem na dimensão local da Isicathamiya.
Longe das luzes das mídias internacionais encontramos hoje, seja nas
áreas rurais, seja em contextos urbanos, muitos espaços sociais onde
essa performance tem forte relevância simbólica. O ponto de obser-
vação proposto neste trabalho será um desses espaços localizado na
cidade de Durban, terceira cidade sul-africana e capital do estado de
KwaZulu-Natal, na costa oriental da África do Sul. Como nas outras
metrópoles, em Durban acontecem com regularidade, na noite de
cada sábado, competições entre bandas. Normalmente realizadas em
espaços marginais, essas competições são uma das heranças contempo-
râneas mais relevantes desse gênero musical.
Entre o ano 2011 e 2013 realizei um documentário sobre um
desses espaços que, como veremos, é talvez o mais relevante da história
de Durban. Neste artigo, a Isicathamiya é analisada através da autoet-
nografia da produção audiovisual. A realização do documentário, além
de permitir o compartilhamento da descrição etnográfica, é também
uma ferramenta para visibilizar os conflitos presentes nas múltiplas
narrações construídas sobre um específico objeto cultural. Além disso,
o laço entre produção e etnografia da produção permite uma reflexão
sobre a polifonia da narração (BACHTIN, 2010) e sobre a relação en-
tre independência das vozes dos personagens e as dinâmicas de poder
são ligadas à produção de um audiovisual.

2 ISICATHAMIYA

A metrópole de Durban ainda conserva a herança da época do


apartheid, dos bairros divididos com base na etnicidade dos seus habi-
tantes. A transição política e o fim do regime segregacionista transfor-
maram essa infraestrutura urbana, impondo, como acontece na maioria

214
de espaços urbanos, as diferenças econômicas como novo parâmetro
de diferenciação dos espaços urbanos.
Antigamente, o centro da cidade de Durban era um espaço “bran-
co”, onde os negros só podiam entrar com uma permissão oficial, que
lhes consentia trabalhar. Nos anos quarenta foi criado o primeiro espaço
de agregação para negros no centro da cidade: o Durban Bantu Social
Centre3. Este foi criado num momento de movimentação sindical com o
objetivo de regulamentar – e controlar – a agregação de negros. Todavia
esse espaço se tornou um lugar de intensa atividade política. Por meio de
entrevistas não gravadas em audiovisual, descobrimos que reuniões clan-
destinas organizadas por várias entidades políticas eram realizadas nas
salas do prédio. Muitas vezes eram disfarçadas com atividades culturais
desenvolvidas no salão: exibições de cinema, encontros de boxe e, para
voltar ao tema deste artigo, competições de Isicathamiya.

Figura 2 - O Durban Bantu Social Centre nos anos trinta

Fonte: CELE, 2011.

3 Bantu é uma palavra que em várias línguas significa humanidade. Na retórica ra-
cista do apartheid esta era traduzida pela palavra “negro” e geralmente era utiliza-
da em sentido depreciativo.

215
Como na maioria dos contextos urbanos sul-africanos, os traba-
lhadores migrantes moravam em bairros caraterizados por uniformida-
de de “raça” denominados, na linguagem comum, “townships”. “Raças”
que eram simplificadas por uma classificação racialista, eram na realida-
de caraterizadas por uma enorme diversidade e complexidade cultural.
Nos anos quarenta, começou a se desenvolver esse estilo de música e
dança que hoje é chamado de Isicathamiya. Essa performance, como
aconteceu em outros casos (MITCHELL, 1956), era uma reelaboração
de várias danças diferentes praticadas na área rural, que no mundo ur-
bano eram ressignificadas. Não só os símbolos dos povos africanos en-
travam nesse processo, mas também aqueles do dominador, o branco,
cuja roupa social foi adotada pelas primeiras bandas. Sem a pretensão
de analisar historicamente as transformações deste gênero, o objetivo
aqui é contextualizá-lo na contemporaneidade.
A palavra Isicathamiya significa, literalmente, “caminhar com
passos de gato” para não ser ouvido. Também o estilo de música, a
capela, é caraterizado para ser cantado quase murmurado, mantendo
a uniformidade das vozes dos coros. Coros geralmente eram constituí-
dos de 5 até 20 cantores, divididos em várias tonalidades. Essa ideia de
não fazer barulho nasce nos albergues onde a Isicathamiya foi praticada
na época do apartheid. As performances aconteciam, como hoje, de
noite. Daí a necessidade de “não levantar a voz” para deixar dormir os
trabalhadores que não participavam como performers ou como públi-
co nas competições.

216
Figura 3 - O YMCA Hostel na contemporaneidade

Fonte: VAILATI, 2012.

O Durban Bantu Social Centre, que nos anos setenta passa


para a gestão da associação cristã Youth Male Christian Association
(YMCA), é hoje um albergue para trabalhadores de baixa camada
social. Todavia, no salão utilizado para várias atividades, todos os sába-
dos à noite aconteciam competições de Isicathamiya, que chegavam a
agrupar pelo menos cem performers por sábado. O investimento, seja
econômico, de tempo dos performers, da maioria das pessoas de baixa
camada social que se dedicam a essa música, é impressionante. Enten-
der as dimensões simbólicas e materiais desse investimento e investigar
a abrangência dessa sugestiva performance foram as justificativas que
sustentaram a produção do documentário Slow Walker (2012).

217
3 TROUBLE-SHOOTING

A tentativa de criar uma representação audiovisual dos perfor-


mers de Isicathamiya foi, todavia, um grande desafio. Não obstante a
relevância que essa performance teve no exterior, sendo os Ladysmith
Black Mambazo os mais importantes representantes desse estilo, na
África do Sul foi uma música colocada geralmente em segundo plano.
O mercado musical, já voltado a outros estilos de música mais hetero-
nômicos, deixou a Isicathamiya na área da música “tradicional”. Neste
sentido, embora o gênero seja amplamente praticado, ele dificilmente
consegue ter uma visibilidade social e mediática ampla. Como conse-
quência, a Isicathamiya, além de alguns eventos como a competição
anual nacional, continua sendo marginal aos canais de financiamento
cultural, estadual e de particulares.
Essas reflexões, que encontramos nas palavras dos performers,
foram fundamentais para pensar o documentário como uma ferra-
menta em primeiro lugar construtiva de um imaginário global, cons-
truído através de narrações heteronômicas. A Isicathamiya, gênero
muitas vezes associado à ideia de “tradicionalidade” e de “africanida-
de”, aparece várias vezes no cinema hollywoodiano. Neste sentido é
suficiente lembrar o famoso filme de animação da Disney, The Lion
King (ALLERS; MINKOFF, 1994), que tem como trilha sonora uma
música escrita nos anos trinta por Salomon Linda, um famoso Isica-
thamiya performer de Durban.

218
Figura 4 - Os Evening Birds, 1941 (da esquerda):
Solomon Linda, Gilbert Madondo, Boy Sibiya, Gideon
Mkhize, Samuel Mlangeni e Owen Sikhakhane

Fonte: ERLMANN, 1996.

Se no imaginário essa música se liga à imagem de África Rural,


normalmente veiculada nas propagandas turísticas, no documentário
é utilizada para acompanhar a trajetória, uma camera-car, que sai dos
bairros ricos da cidade de Durban e chega até as periferias, onde os
performers da camada social baixa moram.
Todavia essas tentativas de quebras foram recebidas em sentidos
contrastantes pelos mesmos performers que aparecem no documentário.
Isso se tornou muito claro no momento da primeira restituição do docu-
mentário. A minha tentativa de respeitar a polifonia que se encontrava
entre os performers, sobre o que este estilo teria que ser para se tornar
mais relevante, criou vários conflitos no momento da restituição. Essas

219
vozes diferentes propunham diferentes projetos políticos pela Isicatha-
miya, que se refletiam no estilo musical-performativo adotado. Em uma
entrevista, sucessiva à restituição do documentário, um dos protagonis-
tas questionou essa necessidade de manter a Isicathamiya como algo
“tradicional”. Se antigamente, na época da apartheid, os cantos eram de
volume baixo, porque eram feitos em lugares onde outros trabalhadores
estavam dormindo, hoje em dia é necessário “levantar as nossas vozes”.

Figuras 5 e 6 - Duas bandas de Durban: os Real Solution e os Messanger A

Fonte: Vailati, 2012.

220
A narrativa do filme sublinear mostra a diferença entre vários
grupos, alguns mais “tradicionalistas” e outros cujo objetivo é “moder-
nizar” a Isicathamiya. Um foco sobre duas bandas, os “Real Solution” e
os “Messanger A”, nos permite ver as diferenças musicais que refletem
essas escolhas e as diferenciam entre os projetos políticos das duas
bandas. Os primeiros, dependendo de um reconhecimento institucio-
nal, de natureza quase museal, e os outros querendo uma afirmação da
Isicathamiya no mercado musical e do entretenimento.
A restituição, então, foi um momento de conflitualidade e de
manifestações. No plano dos conteúdos, a ética etnográfica que adotei,
colocando as múltiplas posições e opiniões no mesmo plano, lidou
com as críticas ao documentário. Não adotar uma posição clara gerou
reprovação da maioria dos performers. Em segundo lugar, no plano
linguístico, a adoção de um estilo baseado na câmera a mão e a total
ausência de efeitos visuais, que contrasta com os clipes autoproduzidos
pelas bandas, foi percebido como uma diminuição da força sonora e
visual da Isicathamiya. Se o objetivo do trabalho de estimular o debate
social sobre um objeto foi atingido, o documentário, que foi positiva-
mente recebido no mundo da academia e do cinema, não foi utilizado
pelos atores sociais como meio de reivindicação política.

4 CONCLUSÕES

Se o filme pode ser considerado como um objeto “em si” e estu-


dado por múltiplos reflexos que o receptor projeta nele, também tem
que ser considerado um artefato, feito para ser visto, que tem agência
e consequências políticas. Em particular nos estudos urbanos, esse
resultado cada vez mais complexo considera os aspectos relativos à re-
cepção das imagens. Na época da fluidez e da liquidez é mais complexo
investigar a audiência dos audiovisuais. A partir dessa observação será

221
depois possível contextualizar reflexões mais amplas sobre a circulação
do audiovisual. Como reporta Herzfeld:

A visão tem consequências praticas: é a nossa


orientação ética que irá determinar, pelo menos em
uma certa medida, se esta irá beneficiar as pessoas
com quem nos trabalhamos ou se irá reproduzir as
rígidas dicotomias através das quais e os privilégios
e os status quo são mantidos. Entre varias barreiras,
provavelmente a mais perigosa é aquela que separa
as nossas preocupações acadêmicas do mundo no
qual este são embutidas (HERZFELD, 2011, p. 330,
tradução minha). 4

A necessidade de tornar complexa a análise dos múltiplos con-


tatos com o objeto audiovisual que circula, complica e problematiza
também a prática da autoetnografia da produção, que todavia é aqui
pensada como um ponto de partida para qualquer reflexão mais ampla
e menos indexical, em sentido peirceano, em relação ao contexto de
produção das imagens.
Claramente, como a história da Antropologia Visual demonstra,
as consequências de uma produção documentária têm que ser analisa-
das a longo prazo. Mas a importância da utilização da ferramenta antro-
pológica no momento da produção e nas fases sucessivas da divulgação
é bem evidenciada neste parcial percurso autoetnográfico, prática que
teria que ser ligada a qualquer produção audiovisual. A área das repre-

4 Vision has practical consequences; it is our ethical predilections that will deter-
mine, at least to some extent, whether these will benefit the people with whom
we work or reproduce the rigid antinomies through which privilege maintains
the structural status quo.Among those barriers, perhaps the most dangerous is
that which separates our academic preoccupations from the world in which they
are embedded. (Original)

222
sentações visuais, nesse momento histórico, parece ser cada vez mais
um campo de batalha relevante pelos processos políticos e sociais, e
só por meio de uma interconexão entre contexto de realização e imagi-
nário global, em que as imagens são jogadas, será possível propor uma
conscientização ética do universo da produção.

Slow Walker
CLIP https://youtu.be/bh0ebpjvqLw

REFERÊNCIAS

ALLERS, Roger; MINKOFF, Rob. The Lion King. 1994.

APPADURAI, Arjun. Grassroots Globalization and the Research Imagination.


Public Culture, Durham, n. 12, v. 1, p. 1-19, 2000.

BACHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. São Paulo: Forense,


2010.

BANKS, M.; RUBY, J. (Org.). Made to be seen. Perspective on the History of Visual
Anthropology. Chicago, London: University of Chicago Press, 2011.

223
BROWN, Duncan. Voicing the Text: South African oral poetry and performance.
Cape Town: Oxford University, 1998.

CELE, Mwelela. A brief History of Durban Bantu Social Centre. The Thinker, n.
33, p. 34-38, 2011.

COPLAN, David. Popular Culture and Performance in Africa. Critical Arts, n. 3,


v. 1, p. 1-9, 1983.

ECKERT, Cornelia; ROCHA, Ana Luiza Carvalho da. Etnografias do Trabalho,


Narrativas do Tempo. Porto Alegre: Marcavisual, 2013.

ERLMANN, Veit. Nightsong: Performance, Power, and Practice in South Africa.


Chicago: University of Chicago, 1996.

GINSBURG, Faye. Indigenous Media: Faustian Contract or Global Village?.


Cultural Anthropology, n. 6, p. 92-112, 1991.

GUNNER, Imogen. ‘Walking Like a Cat’: Post-Apartheid Auto/Biographies In


The Changing Sounds Of Isicathamiya. Master’s Thesis, University of Limerick,
2003.

GUNNER, Liz; GWALA, Mafika (Ed.). Musho! Zulu Popular Praises. East Lan-
sing: Michigan State University, 1991.

HERZFELD, Micheal. Ethical and Epistemic Reflections on/of Anthropologi-


cal Vision. In: BANKS, M.; RUBY, J. (Org.). Made to be seen. Perspective on the
History of Visual Anthropology. Chicago, London: University of Chicago Press,
2011. p. 313-333.

JAMES, Deborah. Songs of the Women Migrants: Performance and Identity in


South Africa. Edinburgh: Edinburgh University Press, 1999.

MACDOUGALL, David. Transcultural Cinema. Princeton: Princeton Universi-


ty Press, 1998.

MARSHALL, John. A Kalahari Family. 2005.

224
MITCHELL, J. Clyde. Kalela Dance. Aspects of Social Relationships among Ur-
ban Africans in Northern Rhodesia. Manchester: Manchester University Press,
1956.

PINK, Sarah (Org.). Visual Interventions. Applied Visual Anthropology. New


York: Oxford: Berghahn, 2007.

ROGOSIN, Lionel. Come Back Africa. 1956.

ROUCH, Jean; MORIN, Edgar. Chronique d’un été. 1960.

RUBY, J. Picturing Culture: Explorations of Film and Anthropology. Chicago:


University of Chicago Press, 2000.

TOMASELLI, Keyan. Appropriating Images. The Semiotics of Visual Represen-


tation. Højbjerg: Intervention Press, 1996.

TURNER, Terence. Defiant Images. The Kayapo appropriation of video. Anthro-


pology Today, n. 8, v. 6, p. 5-16, 1992.

VAILATI, Alex. Slow Walker. 2012.

VAILATI, Alex. Seeing in Distance. Video production among rural South Afri-
can youth. Visual Anthropology, n. 27, v. 1-2, p. 91-104, 2014.

225
GUERRA DE IMAGENS

Carmen Rial1

Resumo: O capítulo aborda um dos grandes silêncios da mídia


global: o caso dos estupros de mulheres nas guerras. Trata também
das representações estereotipadas de diferenças sociais na mídia,
analisando o caso dos estupros de muçulmanas por soldados e
mercenários norte-americanos no Iraque, através da análise das
imagens dessas violências. O mediascape contemporâneo é um
dos mais prolixos. No entanto, silêncios permanecem como estes –
e outros – estupros de guerra. Com uma abordagem antropológica
do significado da guerra, o artigo enfoca também a participação e
as imagens das mulheres neste espaço masculino que é a guerra.
Palavras-chave: Mídia. Fotografia. Gênero. Estereótipo. Guerra.
Estupro. Violência.

Revisito aqui duas incursões que fiz à análise da mídia, através


dos artigos: “Japonês está para TV assim como mulato para cerveja - es-
tereótipos raciais na publicidade brasileira” (RIAL, 1995) e “Guerra de
Imagens, imagens da guerra” (RIAL, 2007), este último sobre os estu-
pros no Iraque e seu quase silêncio na mídia. Embora tratem de temas
muito diversos, ambos apontam para as representações estereotipadas
de diferenças sociais na mídia, no primeiro caso de raça, no segundo de
gênero, etnia e religião.

1 Professora do Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa


Catarina.

226
A análise de publicidades2 – e de como elas acionam estereótipos
de gênero, raça, geração – tem sido um tema bastante explorado na
antropologia, desde o estudo precursor Gender and Advertisements de
Goffman (1979). Para ficar apenas com alguns trabalhos importantes
realizados na Unicamp, lembro o de Guita Debert, que analisou os es-
tereótipos da velhice, em 2003, e o de Iara Beleli sobre as construções
de gênero, sexualidade e raça na publicidade, em 2005. No Brasil, como
apontou Debert (2003), jovens aparecem mais nos anúncios, ficando
os/as velho/as praticamentes reduzidos a anúncios de seguros ou de
convênios de saúde, ou simbolizando a solidão (como em anúncios
de telefonia) e a incompetência (não conhecem um novo produto),
ao contrário de outros países, europeus principalmente, nos quais
aparecem plenamente inseridos na vida cotidiana. Com o passar dos
anos, Debert (2003) notou mudanças nesse padrão: realizou um vídeo
sobre a presença dos velhos na publicidade brasileira e nele aparecem
algumas exceções, como o comercial de uma marca de margarina em
que a “vovó” é flagrada pela família na cama com um desconhecido e
se justifica dizendo: “nós vamos casar...”. Já Beleli (2007, p. 194) buscou
apreender “como a propaganda reifica ou desestabiliza noções de gê-
nero e sexualidade percebidas como tradicionais”, analisando anúncios
publicados em revistas de entretenimento e vencedoras de concursos
de publicidade. E conclui que “a propaganda distingue categorias de
pessoas e orienta modos de ser e viver, centrando sua eficácia na aten-
ção que ela desperta no consumidor” (BELELI, 2007, p. 211).
Iniciei o texto “Japonês está para TV assim como mulato para
cerveja: imagens da publicidade no Brasil” (RIAL, 1995) reconhecen-
do, como Goffman (1979), os limites das análises de peças publicitá-
rias e concordando com sua afirmação de que o sucesso de um estudo

2 Publicidade e propaganda são usadas aqui como sinônimos.

227
assim exigiria somente um pouco de “perversidade e astúcia, e um lote
importante de fotografias” (GOFFMAN, 1979, p. 24, tradução minha).
Goffman (1979) vai mais além quando diz que as análises não são mais
do que uma “reação puramente subjetiva”, saldo de uma “subjetividade
flutuante”, o modelo resultado é “não representativo”, e que “pode-se
dizer qualquer coisa de uma coleção de imagens”, pois “uma coleção
deste tipo não prova nada sobre o social” (GOFFMAN, 1979, p. 36-
37). E assim continua. Essas observações antecipam possíveis críticas
e parecem autodefesas diante de colegas sociólogos preocupados com
representatividade da amostra e uma objetividade extrema. Hoje soam
datadas, pelo menos entre os que reconhecem a subjetividade, como
parte do método na antropologia. Embora devam ser consideradas, não
impediram que o estudo de Goffman (1979) – e os das autoras citadas
acima – tenham chegado a conclusões instigantes. Não há dúvida que
a subjetividade esteve presente na leitura das imagens que escolhi para
analisar – e poderia ser de outro modo?
Para além dos limites apontados por Goffman (1979), existem
outros a serem considerados nas análises de imagens publicitárias e de
textos da mídia em geral. Por exemplo, muito pouco pode ser deduzi-
do acerca do efeito (ou “influência”, como preferem alguns) que essas
imagens publicitárias têm ou poderiam vir a ter sobre outros leitores;
e ainda menos sobre que se passa no mundo real, com as pessoas, nos
seus comportamentos, práticas, estilos de vida e construções de subje-
tividades. Isso demandaria uma pesquisa de recepção, pois sabemos que
imagens e textos de modo geral – as imagens sendo uma forma possível
de um texto, podem ser lidas diversamente por diferentes receptores
(ECO, 1968). Acrescento, portanto, essa outra advertência: nos dois
ensaios aqui evocados não há nada sobre a recepção, pois não estava
interessada em analisá-la. Considero que esse é um campo bastante

228
desenvolvido na América Latina – especialmente na comunicação,
bem menos na antropologia – e que estudos de recepção devem ser
levados adiante, até para matizar conclusões de análises como as que
aqui proponho.

Japonês...

O pressuposto do artigo “Japonês está para TV assim como mulato


para cerveja – estereótipos raciais na publicidade brasileira” era a admis-
são da importância heurística da publicidade como um meio de entender
imaginários sociais. Ou seja, a ideia de que os textos publicitários – com-
postos por signos icônicos e mensagens linguísticas (BARTHES, 1964)
– não resultam de absolutas arbitrariedades dos/as seus/suas autores/
as. Ao contrário, são expressões de valores sociais mais do que “criações”
absolutamente idiossincráticas individuais. Ou seja, reconhecia que a
construção de um texto publicitário, como Barthes bem demonstrou na
Réthorique de l’image de 1964, é sempre intencional.
A eleição ao acaso de um grande número de peças publicitárias
não procurava alcançar uma legitimidade estatística, tornando sua in-
terpretação mais persuasiva, pois sabemos que a análise de uma única
imagem pode ser valiosa. Usei várias ocorrências do mesmo tema para
mostrar não a mesma coisa como pregavam os frankfurtianos (ADOR-
NO; HORKHEIMER, 1969), que viam nos produtos da indústria
cultural sempre o mesmo, enfatizando a repetição, mas para atentar para
as diferenças sutis que o tema apresentava e os seus significados. Estava
interessada em perceber as variações nas séries, tal como propõe Umber-
to Eco (1989), o que se mostrou revelador das lentas, mas perceptíveis,
transformações durante o período estudado.
A primeira constatação de minha leitura de anúncios televi-
sivos no período (1994-1995 e 1998-2000) era previsível. Índios/

229
as, negros/as, mulatos/as ficavam de fora da esmagadora maioria de
nossas peças publicitárias. Os comerciais veiculados em rede nacio-
nal privilegiam brancos/as.
De fato, sabia disso antes de começar, pois numa entrevista sobre
a globalização com um publicitário da MacCan-Erickson em São Paulo,
ele tinha me dito que o principal empecilho à importação de textos publi-
citários norte-americanos não era de ordem legislativa, e sim o fato de os
anúncios americanos incluírem quase sempre pretos/as em um padrão
julgado inaceitável no Brasil. Isso obrigava as sucursais brasileiras das
agências publicitárias a adaptarem os anúncios a um suposto racismo do
consumidor brasileiro – os regravavam-nos branqueando-os.
Evidentemente, estava diante de valores étnicos/raciais diversos
e era impossível não os relacionar com as ricas discussões nos Estados
Unidos em torno da necessidade de se redesenhar o espaço social dan-
do voz a minorias (étnicas, sexuais, e outras), que antes eram abafadas
pelos representantes hegemônicos da nação. Vejamos rapidamente
como se expressavam essas diferenças raciais nas publicidades brasilei-
ras pesquisadas.
Índio/as foram quase totalmente esquecidos: apenas duas vezes
observei sua presença, e nas duas tratava-se de caricaturas. No primeiro
comercial, havia um “índio” (cocar, seminu) entre pessoas de diversos
locais no mundo, que desciam correndo uma duna, atraídos pelo
barulho dos chicletes Adams. No segundo, a caricatura era ainda mais
grosseira. O “índio” era configurado seguindo convenções pictóricas
do séc. XVI. Pele levemente escura, quase nu, rosto pintado de branco,
andava aos pulos com as pernas abertas em arco, perseguindo um
grupo desesperado de homens e mulheres brancos. Havia um caldeirão
ao fundo que indicava: era um canibal. Os brancos se perguntavam por
que não haviam pensado antes em adquirir um seguro Bamerindus...

230
O riso era o objetivo do comercial e, para obtê-lo, se lançou mão de
estereótipos colonialistas3.
Já os/as pretos/as foram representados em comerciais em situa-
ções nas quais o corpo era o central: apareciam geralmente como força de
trabalho – carregadores, motoristas, empregadas domésticas. Ou como
mães. Eram trabalhadores: não havia pretos/as em comerciais de auto-
móvel, mas eram mecânicos de revendedoras de pneu; não havia pretas
como manequins anunciando roupas, mas lavando-as; não havia pretas
comprando nos supermercados, mas cozinhando, e assim por diante.
As mulheres pretas, quando não estavam num trabalho domés-
tico, apareciam invariavelmente representadas ao lado de uma criança.
A criança atestava sua condição de mãe, a maternidade sendo outra
das imagens tradicionalmente ligadas à mulher preta no Brasil desde
á escravidão e ao uso das negras como amas de leite para os brancos,
amantes ou/e reprodutoras de força de trabalho escravo4.
Havia algum espaço para os pretos/celebridades – futebolistas,
atores, cantores. Sendo 1994 um ano de Copa do Mundo, mas não
apenas por isso – a grande maioria dos pretos aparecia em anúncios
testemunhais, relacionados com o futebol. Eram bem conhecidos, ce-
lebridades da bola – o que não era novo, pois remonta as publicidades
com Leônidas da Silva, o primeiro futebolista e o primeiro preto a fazer
propaganda no Brasil, por ter vendido, em 1939, seu apelido Diamante

3 As representações de índios na publicidade continuam sendo caricatural. Um


anúncio recente da rede de postos Ypiranga os mostra a cavalo, vestidos como
índios de filmes norte-americanos, com lança na mão, cocares de penas, jaquetas
e calças com franjas.
4 Por exemplo, em um anúncio da Poupança da Caixa Econômica Federal, uma
mulher preta, jovem aparecia ao lado de uma criança. A mesma campanha colo-
cou no ar mulheres brancas, mas elas apareciam desacompanhadas. Dispensavam
crianças, pois sua presença no espaço público não gerava suspeita, como no caso
das pretas e mulatas na rua.

231
Negro para a marca de chocolate Lacta, na que é considerada a primeira
operação de marketing no país, em que o jogador recebeu um cachê de
2 ou 3 mil réis (cerca de 3 mil reais em 2015, diferentes fontes apontam
diferentes valores na conversão). Na televisão brasileira, o primeiro
preto em comercial foi o cantor Wilson Simonal, contratado pela Shell
no final dos anos 1960.
Anúncios multiétnicos/raciais – como, mais tarde, os da Ben-
neton (FINCO, 1996) – não tinham espaço entre os que analisei. Os
poucos pretos e mulatos só apareciam no que era ideologicamente
considerado seus domínios – futebol, música, dança, bebida, comida.
E com mais frequência um pouco antes, durante e logo depois da Copa
do Mundo. Ou seja, o Brasil do cotidiano era mostrado com uma fron-
teira racial claramente definida. Porém, quando se tratava de represen-
tar a “nação brasileira”, os pretos/as entravam em cena misturando-se
aos brancos. E a Copa do Mundo era um desses momentos. Como
bem refletia a música de fundo usada no anúncio das sandálias Rider,
filmado em Los Angeles em 1994 (Copa nos EUA) e em Paris em 1998
(Copa na França): “Chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu
valor” – “bronzeada” sendo uma metáfora conhecida para se referir a
outras cores de pele que não a branca.
Quer dizer, a presença constante em momentos em que se evoca
a nacionalidade e o expurgo sistemático do preto/a e do/a mulato/a da
publicidade parece mostrar que o Brasil que se confronta com outros,
esse era preto, branco e mulato; e o Brasil que vivenciamos todos os dias,
que compra pasta de dente e refrigerante, neste, o lugar dos/as pretos/
as era o de trabalhadores braçais ou de estrelas futebolísticas e musicais.
Em outras palavras, no Brasil de todos os dias a publicidade bra-
sileira estava imersa nas teorias racistas do início do século passado,
bem expressas em uma quadrinha popular, citada por FREYRE (1984):

232
“Branca é pra casar, mulata pra fornicar, e negra pra cozinhar”. Não está-
vamos longe da classificação das raças segundo determinadas aptidões
elaboradas por Gobineau (1967), na qual os/as negros/as aparecem
como inferiores aos/as brancos/as nos itens de “intelecto” e “manifesta-
ções morais”, mas superam os/as brancos/as em “propensões animais”, o
que, colocado em termos contemporâneos, seria maior capacidade física.
Nos momentos especiais, quando o Brasil precisava se representar como
uma nação, tínhamos a contraface dessas teorias, o pensamento mistifi-
cador de uma democracia racial, visão idílica de um encontro de raças.
E os japoneses? Se os mulatos/as e pretos/as, apareciam sempre
movendo o corpo em gestos amplos, japoneses/as eram representados
numa quase imobilidade: mexiam a cabeça apenas. O comercial da
Sharp é, nesse sentido, exemplar. Cinco cabecinhas japonesas apare-
cem na tela – o resto do corpo permanece invisível.
Japoneses/as, mulatos/as e pretos/as apareciam assim em si-
tuações opostas no discurso publicitário. Mulatos/as e pretos/as são
representados antes de tudo como corpo, um corpo com capacidade
física superior ao do branco (“dionisíaco se opondo ao branco apolí-
neo” – como nos diz FREYRE (1945, p. 432) em outra passagem) e
que ingressa em desvantagem numa hierarquia social na qual o valor
maior está relacionado à razão. Por isso mesmo, quando a hierarquia
social dominante se inverte em momentos ritualísticos como é o caso
da Copa do Mundo (e poderia ser o do carnaval, que ficou de fora aqui),
o/a preto/a e seu corpo se distingue.
Isso mudou nos últimos anos? Penso que sim, consequência pre-
visível de uma atenção crescente à política de representação por parte
de grupos organizados e do movimento social. Hoje seria difícil imagi-
nar um comercial como o da Petrobrás – e termino esta parte com um
anúncio da Petrobrás porque, pelos estereótipos raciais e de gênero que

233
aciona, o considero um escândalo: o anúncio mostra um frentista que,
ao abrir o capô de um caminhão, se depara com minúsculos homens
musculosos, predominantemente mulatos e pretos, que aparecem no
lugar das peças do motor. O frentista lhes pergunta “que óleo vai?”. A
resposta é um primor de machismo (“o óleo tal, você pensa que nós
somos mulherzinha?”). Em seguida, o de pele mais escura entre eles
completava, com uma conotação sexual explícita: “Também, olha só
o tamanho do pistão”, e a continuavam nas falas finais, cantando: “Em
cabina pequena, sempre cabe uma morena”.

A invisibilidade dos estupros

Nesta segunda parte, gostaria de tratar de outro artigo, que inte-


grou uma pesquisa mais abrangente sobre as imagens televisivas no pós
11 de setembro, na qual comparei as transmissões dos acontecimentos
transmitidos globalmente e ao vivo por diferentes canais televisivos,
nacionais e estrangeiros. Estarei, pois, tratando de uma leitura de ima-
gens, enfocando especialmente relações de gênero, em um gênero, o
jornalístico, que tem sido pouco abordado, porque em geral as análises
das representações de relações de gênero na mídia têm privilegiado
o cinema narrativo, as telenovelas e as publicidades seja por meio da
metodologia que for: estudos de audiência, pesquisas de produção,
análises de texto, etnográficas de tela, ou outras (RIAL, 2004).
A cobertura jornalística do evento 11 de setembro é tomada aqui
como um ponto de ruptura no mediascape (APPADURAI, 1990), na
medida em que instaura modos de lidar com as notícias, guiados por
interesses externos ao campo jornalístico. E isso, especialmente, nos
Estados Unidos, onde se promulga o chamado USA Patriotic Act, acrô-
nimo para Uniting and Strengthening America by Providing Appropriate
Tools Required to Intercept and Obstruct Terrorism. O que me importa

234
enfatizar neste texto é que essa lei de “segurança nacional” alterou
profundamente as relações dos jornalistas com os acontecimentos,
especialmente com guerras, pela instauração de censuras diversas e re-
tiradas de prerrogativas (como o direito dos jornalistas de acompanha-
rem qualquer missão militar). Seria longo desenvolver aqui, mas não
são poucos os que apontam a importância da divulgação das imagens
da Guerra do Vietnã para o fim da guerra, o mesmo não tendo sido
possível nas guerras norte-americanas posteriores.
“Alguém aqui foi estuprada e fala inglês?”. A frase é uma citação
da autobiografia do jornalista norte-americano Edward Behr, e, ironi-
camente, aponta a pressa de jornalistas enquadrados no que se costuma
chamar de sensacionalismo. Lendo-a, se poderia pensar que os estu-
pros de guerra fossem notícias recorrentes. Bem ao contrario, eles se
constituem em um dos grandes silêncios da mídia.

A guerra5

O binômio mulher e guerra não remete exclusivamente ao rapto,


como em muitas sociedades tradicionais, mas também ao casamento
e à domesticidade forçada, à troca de favores sexuais por proteção ou

5 Tratarei basicamente de guerras em sociedades moderno-contemporâneas. A


bibliografia antropológica sobre a guerra em sociedades tradicionais é extensa.
Há menos desses estudos por antropólogos em sociedades complexas moder-
no-contemporâneas – o fabuloso On War, de Carl Von Clausewitz (1982), livro
clássico sobre guerra, insere-se no campo da sociologia política –, mas é preciso
assinalar que etnografias foram apropriadas por Estados em guerra, sejam a re-
velia de seus autores (CONDOMINAS, 1957) ou com sua concordância (BE-
NEDICT, 1972). A ponto de, reconhecendo a ameaça dessa apropriação e suas
consequências nefastas para as populações etnografadas, a respeitada Associação
Americana de Antropologia (AAA), em uma de suas reuniões que coincidiram
com a guerra no Vietnã, sugeriu aos seus associados medidas para evitar que os
conhecimentos etnográficos sobre o Vietnã e o Camboja pudessem vir a ser usa-
dos contra as populações daqueles países.

235
bens necessários à sobrevivência, à prostituição obrigatória e ao estu-
pro6, tal como observados em diversas situações, tempos e em regiões
do mundo tão diversas quanto Uganda, Libéria, Angola, China, Coréia
e América Latina. O livro de Karima Guenivet (2001) fornece inúme-
ros exemplos de constrangimentos afligidos às mulheres em situações
de conflito armado, em diferentes momentos históricos e contextos
culturais. Em Angola, jovens raptadas são dadas em casamento aos re-
beldes, como retribuição às suas contribuições ao combate; se o com-
batente morre, a jovem é casada com outro e assim por diante. Grupos
rebeldes, como o Sendero Luminoso, na América Latina, utilizariam as
mulheres para cozinhar, cuidar dos feridos e lavar a roupa. Elas podem
também ser constrangidas a contribuir sexualmente ao “esforço de
guerra”, prostituindo-se – uma prostituição forçada em que, diferen-
temente da escravidão sexual, o combatente se torna um proxeneta e
ganha dinheiro que será reinvestido na guerra.
Se por um lado não há novidade no fato de as mulheres conti-
nuarem sendo objeto de agressões por parte dos inimigos (e também
dos aliados), por outro, é uma extraordinária novidade o seu recente

6 Entendemos estupro aqui tal como é definido em um relatório das Nações Uni-
das: “a introdução pela força, pela imposição ou violência de um objeto qualquer,
entre os quais, mas não exclusivamente, um pênis na vagina ou no ânus da vítima,
ou um pênis na boca da vítima, esta podendo ser tanto em um homem como uma
mulher” (COOMARASWAMY, 1998, tradução minha). Desse modo, estupro
refere-se aqui ao que em inglês se diz rape e em francês viol. Não corresponde,
portanto, à noção jurídica brasileira de estupro (artigo 213 do Código Penal) se-
gundo a qual estupro é “constranger mulher à conjunção carnal, mediante violên-
cia ou grave ameaça”, mas em que está prevista a introdução do pênis na vagina,
desconsiderando outras formas de violação, como a introdução de outros objetos
na vagina ou do pênis, no ânus ou na boca. Essas outras formas de agressão sexual
são consideradas pelo Código Penal como “atentado violento ao pudor” (artigo
214). “[...] durante a invasão da Bélgica, as agressões sexuais cometidas por sol-
dados alemães foram tão frequentes que levaram à conclusão de que foram não
somente toleradas pelos oficiais, mas encorajadas” (TESCARI, 2005, p. 39).

236
protagonismo na luta. Os estudos realizados sobre guerras entre nações
e conflitos armados mostram a ascensão das mulheres ao palco de luta,
não mais como butim e sim integrando e dirigindo exércitos. Inicial-
mente como enfermeiras, para depois pegar em armas, como quando
de sua participação na luta armada da esquerda em alguns de países na
América Latina (WOLFF, 2006), incorporando-se em exércitos nacio-
nais (o de Israel, muito cedo) dirigindo prisões (EISENSTEIN, 2004),
como mártires em atentados a bomba (na Palestina e na Chechênia) ou
em cargos de chefia (Ministra da Defesa na França e no Chile, Ministra
de Segurança Nacional nos Estados Unidos).

O estupro

Também não é um fato novo os estupros de guerra, nem a sua alta


frequência. Porém, o que espanta é o grande silêncio em torno do tema,
mesmo quando se trata de estupros perpetrados por homens em uni-
formes conhecidos e próximos, como os do exército norte-americano,
ocorridos no Iraque. Estupros nessas circunstâncias aos poucos estão
sendo denunciados, ainda assim, em relatórios pouco lidos das Nações
Unidas, livros e artigos acadêmicos, muito mais do que no mediascape
(APPADURAI, 1990).
Durante a Primeira Guerra Mundial, os soldados alemães utili-
zaram o estupro, entre outras atrocidades, para impor terror às popu-
lações locais7. Apesar de terem sido apontados estupros em massa de
mulheres francesas e belgas, “no interesse da diplomacia na Europa”
(TESCARI, 2005, p. 40), esses atos nunca foram a julgamento. Du-
rante a Segunda Guerra Mundial, a utilização do estupro foi corrente,

7 Pouco se sabe sobre esses estupros, pois “a maior parte dos depoimentos disponí-
veis é oriunda dos julgamentos de Nuremberg, no qual somente as potências do
Eixo foram julgadas” (TESCARI, 2005, p. 29).

237
na França, na Rússia e nos outros territórios ocupados. Porém, esses
atos foram divulgados de maneira maniqueísta, negando-se terem sido
praticados pelos dois campos, pelos países do Eixo tanto quanto pelos
países aliados. Tanto é assim que estima-se que entre vinte e cem mil
mulheres tenham sido violadas quando da tomada de Berlim pelos
soviéticos em 19458.
Muitos estupros cometidos por soldados nazistas contra mu-
lheres judias ficaram na obscuridade, pois, dada a lei para Proteção
do Sangue e da Honra Alemães promulgada em 1935, era vedado o
contato entre alemães e judias. Já, entre os aliados, o ato chegou a ser
oficializado, pois, nos contratos dos mercenários marroquinos que lu-
taram no exército francês na Itália, era explicitamente dada a permissão
para pilhar e estuprar em território inimigo (TESCARI, 2005, p. 46).
O estupro e a escravidão sexual foram correntes também na Ásia,
e até hoje aguardam reparação as mais de duzentas mil chinesas, co-
reanas, filipinas, malaias, indonésias, tailandesas, birmanas, mulheres
da então Nova Guiné, de Hong Kong e de Macau, que serviram como
“confort women” para os integrantes do exército japonês.
O Tribunal Militar Internacional para o Extremo Oriente, estabe-
lecido pelos aliados em Tóquio para julgar os criminosos de guerra, jul-
gou 28 casos de estupro e pela primeira vez estabeleceu “o estupro como
um crime de guerra. Comandantes foram considerados responsáveis por
agressões sexuais cometidas por soldados sob seu comando”, mas não se
considerou nenhum caso de confort women (TESCARI, 2005, p. 46).

8 No dia 27 de junho de 1996, pela primeira vez na história, o tribunal penal inter-
nacional da Haia qualifica a violação contra as mulheres cometida em tempos de
guerra como “crime contra a humanidade” na sequência do processo de Foca. Vé-
ronique Nahoum-Grappe, antropóloga do Centro de Estudos Transdisciplinares
(CETSAH), trabalhou sobre os lugares do genocídio e testemunha sobre esses
novos crimes de guerra.

238
No caso mais trágico, que ficou conhecido como “the rape of
Nanking”, cerca de vinte mil mulheres foram estupradas e mutiladas
em Nanking durante o primeiro mês de ocupação japonesa na China,
em dezembro de 1937 (TESCARI, 2005, p. 41). O modo encontrado
então pelo governo japonês para evitar novos estupros em massa foi
estabelecer prostíbulos nos territórios ocupados, recrutando prosti-
tutas, mas também mulheres enganadas por promessas de trabalho,
raptadas ou coagidas, que eram assim estupradas diariamente (COO-
MARASWANY, 1998).
Os japoneses não foram os únicos a adotar essa prática. Os ame-
ricanos, durante a Guerra do Vietnã e antes no Japão, estabeleceram
bordéis para os militares, incentivados pelo Pentágono. Isso se somava
à violência sexual cometida pelos soldados americanos de modo gene-
ralizado no Vietnã, onde, segundo testemunho de veteranos, “o estupro
de vietnamitas era ‘procedimento operacional padrão’” (TESCARI,
2005, p. 48).
Durante a guerra de independência, em Bangladesh em 1971,
entre 250 e 400 mil bengalesas teriam sido violadas por soldados
paquistaneses, das quais, cerca de 30 mil engravidaram (UNITED
NATIONS, 1995); na Indonésia, o esporte favorito dos soldados mo-
bilizados no Timor era violar as mulheres diante de seus maridos e de
seus filhos (GUENIVET, 2001, p. 46).
Durante a invasão do Kuwait pelo Iraque, em 1990, calcula-se
que mais de cinco mil kuwaitianas tenham sido violadas (UNITED
NATIONS, 1992). Na Nigéria, outras mulheres conheceram o mesmo
massacre em nome da Jihad (GUENIVET, 2001, p. 12). Na luta pela
independência de Moçambique, em meados dos anos 1970, mutila-
ções e violências sexuais cometidas pelos guerrilheiros aterrorizaram
a população civil; mulheres foram raptadas, escravizadas e tiveram

239
filhos de seus algozes. Na Libéria, as agressões sexuais da guerra civil
iniciada em 1989 são ainda praticadas; em Serra Leoa, soldados do
governo e rebeldes têm raptado e escravizado sexualmente mulheres e
meninas, e médicos estimam que cerca de 80% delas contraem doenças
sexualmente transmitidas (UNITED NATIONS, 2002; TESCARI,
2005, p. 4). Na República de Ruanda (onde as estimativas de mulheres
estupradas variam entre 15 mil e 500 mil), no Congo, na República da
Guiné, no Timor Leste e no Timor Oeste... Os casos se sucedem em um
interminável rosário de atrocidades raramente denunciadas na mídia.
O estupro de mulheres tornou-se arma de guerra. Foi assim na
Guerra dos Balcãs, onde pela primeira se teve conhecimento de um
projeto estatal incentivando o estupro como um projeto de “limpeza
étnica”, inicialmente denunciado por Roy Gutman (1992). De fato,
a guerra na ex-Iuguslávia ensinou ao mundo que o estupro poderia
ser não apenas o “repouso” e o butim do guerreiro – o que já é, em
si, insuportável –, mas se tornar objeto de um programa sistemático,
constituindo-se numa arma de guerra e um elemento de uma estratégia
militar desejada, consciente e determinada. Assim como Gutman, a an-
tropóloga francesa Véronique Nahoum-Grappe (2003) tem refletido
sobre esses estupros e mostrado que a violação sistemática constitui,
hoje, um dado novo e inaceitável:
Às atrocidades “habituais” cometidas por todos os exércitos
do mundo (violações, torturas, pilhagens...), o regime de Milosevic
acrescentou a violação organizada em campos previstos para esse
efeito, e de acordo com modalidades precisas (NAHOUM-GRAPPE,
2003, p. 32).
No caso dos estupros perpetrados nos conflitos da ex-Ioguslávia,
o objetivo era bem preciso: apagar a linhagem natural da população per-
seguida, introduzindo o sangue estrangeiro conquistador sob a forma de

240
uma criança que a mulher não desejou e que não pode suprimir. Trata-se
no sentido estrito de apagar uma linhagem fazendo na mulher a criança
do inimigo. Nos “campos de violação”, como ficaram conhecidos os lo-
cais onde esse crime era perpetrado de modo sistemático, tratava-se de
conservar a mulher violada em vida e de impedi-la de abortar. Elas eram
mantidas prisioneiras ali até atingirem os seis meses de gravidez (GUE-
NIVET, 2001), num genocídio de uma nova espécie, e paradoxal, no qual
se busca matar uma identidade não apenas pela exterminação direta, mas
também e, sobretudo, preservando a vida da vítima mulher.
Voluntários ou forçados, os torturadores de Milosevic aplicaram
escrupulosamente esse princípio. Tratava-se, por meio da violação
política, não somente “serbacisar” o sangue não sérvio, mas também
destruir a identidade e a honra das populações visadas, sujando o que
elas tinham como o mais caro9. “O violador diz à mulher Bósnia que
viola: ‘Terás uma criança sérvia’“ (TESCARI, 2005, p. 16). Como os
fascistas espanhóis que pichavam sobre os muros: “Morreremos talvez,
mas as vossas mulheres darão nascimento a crianças fascistas!” (NAH-
OUM-GRAPPE, 2003).
Num caso como no outro, o estupro é uma mensagem dos vence-
dores aos vencidos. Desse modo, se novidade há nos estupros de guerra
é o fato de essa agressão ser usada politicamente, a sua “estatização”, o
fato de serem geridos por autoridades militares. Esse tipo de violação tem
uma intenção perfeitamente genocida – e é assim exatamente porque
não se mata. Ele atinge diretamente a mulher estuprada, e gera vítimas
indiretas, pois atinge a honra de toda a família, ou mesmo da nação.
Estupros por parte de militares ocorreram e se efetuam também
em lugares mais próximos de nós. Durante as ditaduras militares na

9 Sobre a participação das mulheres na luta armada no Brasil, ver Wolff (2006);
Goldenberg (1997); Costa et al.(1980)

241
América Latina, nas décadas de 1970 e 80, o estupro era uma das prá-
ticas de tortura sistemática e as agressões sexuais não se restringiam às
mulheres – também homens militantes de esquerda foram metodica-
mente estuprados e até castrados. O silêncio em relação às agressões
sexuais envolvendo homens foi e é ainda maior do que os estupros
implicando mulheres, como se, nesses casos, a vergonha da vítima
fosse ainda maior, e é significante que, entre os numerosos estupros
de homens que se imagina terem ocorrido, só tenha vindo a público
o caso de um padre – ou seja, de um homem, porém, sem uma honra
viril a exibir10. Com a militarização de Chiapas a partir de 1995, têm
sido denunciados frequentes estupros da parte das tropas governistas
contra populações indígenas.
Lá como aqui, estamos inseridos em lógicas de honra e nas quais
muitas vezes as vítimas impõe-se um silêncio constrangido, pois revelar
sua vitimização poderia ser insuportável para os seus companheiros de
esquerda, eles também compartilhando os mesmos códigos de honra e
virilidade dos torturadores11. Um caso cabal de não imagem, de silên-
cio no mediascape; mas também aí não há novidade.
Difícil entender esse silêncio no mediascape, dado os intensos
fluxos de informações contemporâneos; um silêncio que contrasta

10 Gabeira (1980a, b). Agradeço a Miriam Grossi por esse (e outros) comentários
a este artigo. Como mostra Wolff, a propósito das relações e gênero entre guerri-
lheiros e guerrilheiras, “o fato de os homens começarem a ajudar na cozinha, re-
nunciando a um dos símbolos máximos de seu papel de ‘macho’, e de as mulheres
começarem a ter uma sexualidade mais livre, não alterava tão significativamente
assim as relações de poder entre homens e mulheres” (WOLFF, 2008, p. 128,
tradução minha).
11 Isso quando não há uma reversão total do significado do ato, com os estupradores
passando a ser vistos como heróis, como ocorreu com os jogadores de futebol do
Grêmio Foot-Ball Porto-Alegrense, presos por estupro na Suíça, na década de
1980, e recebidos como heróis em Porto Alegre depois de obterem a liberdade
(RIAL; GROSSI, 1987).

242
com a ampla divulgação de imagens e narrativas de torturas na prisão
de Abud Grahib ou com a divulgação (não tão ampla) das torturas
no campo de concentração de Guantânamo. Nos dois casos, quando
de caráter sexual, foram tratadas sob o termo menos contundente de
“humilhações”. Difícil de compreender o silêncio, não fosse ele per-
versamente o eco do silêncio das próprias vítimas. O silêncio parece
ser o escudo dos estupros e sua dupla violência, pois ao abuso físico
soma-se a autoculpabilização da vítima, fazendo com que prefiram, elas
também, o silêncio protetor dos estupradores12.
Ou seja, tudo se passa no silêncio e no anonimato, bem ao con-
trário do que ocorreu com a célebre afro-muçulmana Mina, quando os
ocidentais foram clamados, em campanhas humanista em sua defesa
com ampla repercussão no mediascape, a salvá-la da brutalidade dos
homens afro-muçulmanos prontos a lapidá-la, tendo assim seu nome e
sua história amplamente difundidos.
Não é, portanto, o estupro que é silenciado, mas alguns estupros.
Bem ao contrário, os tropos do estupro (e do resgate) foram calcados no
imaginário ocidental pelo cinema, desde os seus inícios: O nascimento
de uma nação, O último dos moicanos, Ao rufar dos tambores, Rastros de
ódio apresentam todos cenas nas quais as mulheres são ameaçadas de
estupro e resgatadas das mãos de homens negros. Como bem mostram
Ella Shohat e Robert Stam: no âmbito do discurso colonial, os tropos
do resgate ocupam um lugar estratégico em relação à batalha da repre-
sentação. O imaginário ocidental não apenas vê metaforicamente a ter-
ra colonizada como a mulher que deve ser resgatada da sua desordem
mental e da desordem do meio ambiente, mas prioriza narrativas de
resgate mais literais, sobretudo de mulheres ocidentais e não ociden-

12 “Em uma cena do filme O Sheik, mulheres árabes – algumas delas negras – literal-
mente lutam para conquistar o homem oriental” (SHOHAT; STAM, 2006, p. 63).

243
tais sob o domínio de árabes polígamos, negros libidinosos e “machos”
latinos (SHOHAT; STAM, 2006, p. 63).
Ou seja, não são todas as mulheres em risco de serem estupradas
e merecedoras de resgates. As mulheres orientais não necessitam salva-
ção, pois são vistas e retratadas como apresentando um enorme apetite
sexual13, o que torna o estupro impossível:
A dicotomia quente/frio sugere três axiomas interdependentes
em relação à política sexual do discurso colonial. Em primeiro lugar,
acredita-se que a interação sexual entre homens negros e árabes e
mulheres brancas somente pode acontecer através do estupro (visto
que, naturalmente, mulheres brancas não desejam homens negros ou
árabes). O segundo axioma afirma que a interação sexual entre homens
brancos e mulheres negras ou árabes não pode resultar em estupro
(pois mulheres negras ou árabes são naturalmente “quentes” e desejam
o senhor branco). Finalmente, a terceira premissa sustenta que a inte-
ração entre homens e mulheres de descendência negra ou árabe não
pode resultar em estupro visto que ambos são “quentes” por natureza
(SHOHAT; STAM, 2006).

Os estupros na guerra do Iraque

Quem ouviu falar do estupro de uma inglesa quando de sua visita a


parentes em Bagdá? Ou do estupro de uma menina de apenas nove anos
perpetrado por soldados norte-americanos (ou por mercenários do exér-

13 Contrariando a tradição de silêncio, duas mulheres sunitas revelaram na TV ira-


quiana seus estupros por soldados xiitas na zona militar controlada pelos ameri-
canos e pela polícia iraquiana. Harith al-Dhari, cabeça da Associação Sunita de
Escolas Muçulmanas, revelou conhecer centenas de casos de estupro que não fo-
ram a público nos últimos dois anos: “As famílias das vítimas estão preocupadas
com sua honra e reputação, então elas se preservam e oram para que deus um dia
as vingue”, disse à televisão iraquiana Al-Sharqiya” (http://www.estadao.com.br/
ultimas/mundo/noticias/2007/fev/23/86.htm).

244
cito norte-americano)? Há dezenas de narrativas, a maioria proveniente
das próprias mulheres estupradas no Iraque, com descrições detalhadas
das agressões e precisões dos abusos sexuais, em relatórios de observa-
dores das Nações Unidas e de ONGs (como a Cruz Vermelha e a Human
Rights Watch) que, estranhamente, permanecem ausentes do tão loquaz
mediascape. Muitas das mulheres iraquianas (árabes e muçulmanas) estu-
pradas por homens ocidentais, no entanto, não têm nome, não se fala das
atrocidades cometidas contra elas e seus algozes permanecem incógnitos
embora vistam uniformes com insígnias reconhecíveis. A violência con-
tra as mulheres nos conflitos armados aparece como uma preocupação
restrita a uma parte bem localizada da comunidade internacional, próxi-
ma do ideário do movimento feminista.
A mídia eletrônica e impressa cala, com fugazes exceções. A re-
vista norte-americana Newsweek, em maio de 2004, revelou e forneceu
precisões sobre a existência de fotos mantidas em segredo que incluem
“um soldado americano fazendo sexo com uma prisioneira iraquiana,
e soldados norte-americanos assistindo a iraquianos terem sexo com
jovens homens”. Essas fotos teriam sido vistas pelos congressistas ame-
ricanos quando das investigações iniciais do escândalo dos abusos de
Abu Ghraib. Consideradas mais impróprias do que as das outras tortu-
ras, não foram abertas a imprensa.
Ora, o material que usei na pesquisa sobre os estupros no Iraque
estava disponível para qualquer um que quisesse acessá-lo na internet.
As fotos (sim, há fotos desses estupros) circularam no espaço ciberné-
tico, difundidas a partir de sites pornográficos localizados na Hungria
e nos Estados Unidos. Eu as acessei através do site de um servidor bem
conhecido, o AOL, que manteve o link no ar por um dia antes de reti-
rá-lo, mas elas foram publicadas também no site de um jornal antiame-
ricano do México, La Voz de Aztlan (CIENFUEGOS, 2004), no dia 6

245
de maio de 2004. E republicadas no The Boston Globe, jornal do grupo
New York Time, no dia 12 de maio de 2004 – e quase imediatamente
desacreditadas pelo editorial de Martin Baron, que considerou sua pu-
blicação um erro por não terem sido “autentificadas pelas autoridades
norte-americanas”.
Conforme lemos nas matérias desses jornais, centenas dessas
e de outras horríveis fotos de estupro circularam no Iraque, entre os
soldados ocidentais, trocadas como se fossem inocentes baseball cards,
figurinhas de jogadores de basebol.
O que vemos nas seis fotos? Como analisá-las?
Uma das fotos mostra o estupro de duas mulheres vestidas de
preto, cometido por três homens com uniformes de soldados norte-a-
mericanos, um dos soldados seria reconhecível como da inteligência
norte-americana e ou outros dois como soldados mercenários a serviço
do exército dos Estados Unidos no Iraque, segundo o jornal. Portanto,
os estupros foram realizados por, no mínimo, quatro pessoas: os três
homens que aparecem na imagem e uma quarta pessoa, que bateu a
foto, a uma distância muito próxima por se tratar possivelmente de uma
câmera digital.
Minha primeira observação, o que primeiro me fere – o punctum,
diria Barthes (1981) –, é a absoluta serenidade emocional dos ho-
mens, revelada por suas posturas corporais. Estão calmos, controlados,
como se estivessem realizando uma tarefa burocrática. Não se trata
aqui, portanto, de soldados tornados momentaneamente insanos pelo
álcool, pela onipotência e ou pela impunidade garantida; não se trata
do estereótipo disseminado que associa o estupro aos impulsos dos
soldados sexualmente frustrados por uma longa abstinência sexual. Há
uma tranquilidade bizarra nos seus gestos, uma sobriedade que con-
trasta fortemente com o desespero registrado no rosto das mulheres.

246
E que contrasta também com a satisfação sádica que líamos nos rostos
dos soldados que torturavam em Abu Ghraib. Aqui, ao contrário, não
há irrupção de uma irracionalidade extática, a libido não parece ter se
apossado de seus corpos; há moderação, refreamento. O foco perma-
nente preciso, vemos o contorno dos seus corpos, como se os movi-
mentos fossem comedidos e econômicos. Essa indiferença que beira o
aborrecimento me interpelou agudamente, causando uma estranheza
profunda. Ela contrasta com o desvairado sofrimento das mulheres,
cabelos desalinhados, olhos semiabertos, boca escancarada.
Minha segunda observação nas fotos a que tive acesso é a pro-
ximidade dos corpos masculinos, a relação homoerótica que se esta-
belece ali. Na primeira foto, vemos dois homens em pé, um em frente
ao outro, a mulher agachada entre eles, a mão de um deles segurando
a cabeça da mulher contra o sexo do outro homem. Essa proximidade
aparece igualmente em outras fotos. Na segunda foto, de novo, a mão de
um homem segura a cabeça da mulher contra o sexo de outro homem.
Enquanto na foto que numerei como seis, um dos homens penetra a
mulher por trás, outro a obriga a fazer sexo oral com a ajuda das mãos
de um terceiro. O ritmo do primeiro, cada vez que a penetra, repercute
no segundo e no terceiro. O corpo objetivado da mulher é mediação de
uma relação homoerótica entre eles.
Um terceiro ponto que convém ressaltar nas fotos concerne
um detalhe que me intrigou por muito tempo: por que nas fotos que
encontrei de mulheres estupradas elas estão sempre vestindo preto?
A pergunta seria irrelevante para um país onde a religião muçulmana
predominasse. Mas não era o caso. O Iraque, antes da invasão norte-
-americana, era um Estado laico. As mulheres eram livres para usarem
trajes, muitas eram formadas em universidades e ocupavam postos
importantes na academia de ciências e no governo, sendo o porte do

247
véu e do chador pouco comum durante o regime ditatorial de Sadam
Hussein. Então, por que as mulheres estupradas eram sempre escolhi-
das entre as muçulmanas mais ortodoxas?
Os relatos das vítimas que li nos relatórios das Nações Unidas e
de agentes de ONGs não explicavam muito. Eles indicavam que nos es-
tupros a escolha da vítima parecia ter sido feita ao acaso: por exemplo,
a mulher que seria vítima de estupro estava conversando com outras
mulheres na porta de sua casa, era abordada por soldados em uniforme,
os soldados a raptavam na frente das outras mulheres e partiram em
um jipe do exército, sem explicações. As mulheres desapareciam por
algumas horas ou por dias e depois, se retornavam, vinham feridas e
com marcas de tortura.
Por que então a escolha das mulheres vestidas com o chador nas
fotos?
As hipóteses a que cheguei também não me contentaram ple-
namente. Poderia ser uma coincidência fundada na precaução de não
serem apanhados: os soldados prefeririam sequestrar mulheres nos
bairros populares, de periferia, por serem áreas menos vigiadas pelas
forças de segurança, exatamente onde as que usam o chador estão mais
presentes.
Seria porque era mais fácil raptá-las do que no centro de Bagdá,
teoricamente sujeito a um maior controle? Ou será que a escolha se de-
via ao fato dessas mulheres, por serem provenientes de famílias ortodo-
xas, presumivelmente seriam mais submissas, se calariam temendo as
represálias dos homens da família? Sabe-se que em sistemas fundados
em códigos de honra masculinos, as mulheres estupradas podem vir a
ser sacrificadas pelos próprios familiares, muitas preferindo cometer o
suicídio, e fornecendo assim uma garantia maior de segurança para os
seus algozes.

248
Essas suposições, fundadas em uma lógica de ordem prática, não
me eram suficientes, não pareciam, de fato, justificar a escolha. Foi só
mais tarde que percebi que os estupradores precisavam dessa roupa,
marca religiosa e étnica, para localizar o seu ato sádico. O chador fun-
cionava aqui como símbolo do Iraque, marca diacrítica de identidade
cultural. Antes de tudo, o traje preto servia para territorializar o estu-
pro. Tinha assim uma função próxima das torres de mesquita, ou as
palmeiras e plantas exóticas, usadas pelos jornalistas estrangeiros no
Iraque como fundo nas suas reportagens ou os coletes beges cheios de
bolsos a la Indiana Jones, que vestem para indicar que estão em países
do Terceiro Mundo, poeirentos, de uma natureza excessiva, perigosos.
O chador, somado ao uniforme dos soldados, localiza o estupro: trata-
-se de um ato de guerra, em um país árabe – religião e etnia sendo aqui,
como em muitas outras vezes, confundidas.
Ok. O preto da roupa das mulheres e o uniforme fazem do estu-
pro um ato de guerra. Ainda assim, caberia perguntar: o que ganham os
estupradores estabelecendo essa violência como um estupro de guerra?
E o fotografando?
A roupa preta, muçulmana, atribui ao estupro o seu caráter único,
o seu hic e nunc. Não se trata de um estupro qualquer (se é que é possível
pensarmos nesses termos em relação a uma violência tão aguda), come-
tido em uma rua deserta ou mesmo no interior do espaço doméstico,
como os milhares que ocorrem diariamente no mundo hoje. O chador
transforma a foto em algo único, um troféu, e com isso lhe acrescenta
valor. Tudo se passa como se, por não se tratar de um estupro qualquer,
por sua raridade, o ato ganhasse valor no campo dos bens simbólicos
(BOURDIEU, 1974). Um valor que não é apenas simbólico, mas
também de troca, uma vez que no sórdido mercado semelhante ao dos
snuffs (filmes de assassinatos reais) essas fotos ganham valor ao serem

249
assim identificadas. A Guerra do Iraque torna as fotos simbolicamente
mais carregadas de sentidos e, consequentemente, economicamente
mais lucrativas. Tornam-se um bem com valor econômico.
Outra consequência não menos perversa da veiculação nos sites
pornográficos é a renovação perpétua da violência sofrida fisicamente.
Sim, pois a cada acesso aos sites essas mulheres são novamente vítimas
do estupro, agora de modo virtual, um estupro voyeurístico cometido
pelos milhares de receptores ativos das imagens. E como as imagens
são disponibilizadas em sites de acesso pago, as mulheres continuem a
trabalhar para os seus algozes, tal qual o gênio da lâmpada de Aladim na
evocação precisa de Leach (1980).
A foto-troféu é lembrança do triunfo sexual, de um poder fálico
absoluto, numa relação de substituição. E, mais do que isso, é troféu
que, ad infinitum, multiplicando os estupros, multiplica as vitórias na
forma de dinheiro e de prestígio, pois, não nos esqueçamos, elas circu-
lam entre os soldados como figurinhas raras de beisebol.

O sacrifício

Mas, e as mulheres estupradas, por que se suicidavam, como


constava em alguns dos relatórios?
Entendo o suicídio das mulheres iraquianas como um sacrifício,
no sentido antropológico do termo atribuído por Leach (1980, p. 312-
6), no qual o ato de sacrifício serve para limpar o sacrificador da sujeira
na qual se encontra momentaneamente. Como todo sacrifício, esses
suicídios apresentam os elementos de uma operação que purifica, que
purga o imundo, que extirpa o que contamina. Quando a sujeira pene-
tra de modo profundo, como a que atingiu essas mulheres, quando é
incorporada, é o seu próprio corpo que tem de ser dado ao sacrifício.

250
Honra, sacrifício. É sobre esse imaginário que o feminismo, en-
quanto cosmopolítica libertária, deve agir, sabendo, no entanto, que
não conta com a cumplicidade dos meios de comunicação, pois, ainda
que o mediascape seja fragmentado e lugar de lutas políticas identitárias
de representação, ele encerra grandes silêncios. O estupro no Iraque,
estupro em guerras, é apenas um dentre eles.

Pós-escrito

Escrever sobre temas da atualidade revela-se uma tarefa especial-


mente difícil pelo constante movimento dos acontecimentos. Ainda
que tenha tentado manter atualizado o texto acima, alterações impor-
tantes ocorreram desde a data do final de sua escritura, em 2005. A mais
significativa, certamente, foi a condenação do grupo de soldados ame-
ricanos (Steven Green, James Barker e Paul Cortez) que participaram
do estupro de AbeerQassin al-Janabi, uma menina de 14 anos, poste-
riormente assassinada junto com sua família na cidade de Mahmudiya,
ao sul de Bagdá.14 O julgamento desses soldados americanos recebeu
cobertura mundial, o que incluiu uma aparição no Jornal Nacional, da
Rede Globo, sob a manchete estridente de uma condenação exemplar
de 100 anos de prisão. O que não foi dito é que, por um acordo prévio,
o estuprador condenado à pena centenária não ficará mais do que 10
anos recluso e que a “prisão” é, de fato, uma base militar onde possi-
velmente ele poderia estar morando se continuasse a prestar o serviço
militar. Seja como for, vítimas (e algozes) finalmente começam a ter

14 “O prefeito iraquiano, Sr. Fadhil, disse que o corpo da vítima de estupro, Abeer
Qasem Hamzeh, tinha múltiplos ferimentos de balas e queimaduras. Sua irmã,
Hadeel, foi baleada na cabeça, disse ele, lendo um informe do hospital; seu pai,
Qasem Hamzeh Rasheed, que estava perto de seus 45 anos, sofreu trauma crania-
no; e sua mãe, Fakhariya Taja Muhassain, foi baleada várias vezes” (CLOUDE-
SEMPLE, 2006, tradução de Maria Isabel de Castro Lima).

251
nomes. A denúncia desses estupros no mediascape, porém, permanece
eventual e fugaz.

Referências

ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. A indústria cultural: o iluminismo


como mistificação de massas. In: LIMA, Luiz Costa. Teoria da cultura de massa.
São Paulo: Paz e Terra, 1969. p. 364.

APPADURAI, Arjun. Disjuncture and Difference in the Global Cultural Econo-


my. In: FEATHERSTONE, Mike (Ed.). Global Culture. Londres: Sage Publica-
tions, 1990. p. 295-310.

BARTHES, Roland. Rhétorique de l’image. Communications, Paris, v. 4, n. 1, p.


40-51, 1964.

BEHR, Edward. “Anyone Here Been Raped And Speaks English?”: A Foreign Co-
rrespondent’s Life Behind the Lines. London: Hamish Hamilton, 1987. p. 316.

BELELI, Iara. Corpo e identidade na propaganda. Revista Estudos Feministas,


Florianópolis, v. 15, n. 1, p. 193-215, 2007.

BELELI, Iara. Marcas da diferença na propaganda brasileira. 2005. 176f. Tese


(Doutorado em Ciências Sociais) – Universidade de Campinas, Campinas, SP,
2005.

BENEDICT, Ruth. O crisântemo e a espada: padrões da cultura japonesa. São


Paulo, Perspectiva, 1972.

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo, Perspectiva,


1974.

BOURDIEU, Pierre. Surlatélévision. Paris: Liber Éditions, 1996.

CIENFUEGOS, Ernesto. Rape of Iraqi Girls by US Mercenaries and Soldiers


was Rampant in Baghdad, 2004. Disponível em: <http://www.shiachat.com/

252
forum/topic/73477-rape-of-iraqi-girls-by-us-mercenaries/>. Acesso em: 18 fev.
2018.

CLAUSEWITZ, Carl Von. [1832]. On War. Londres: Penguin Classics, 1982.

CLOUD, David S.; SEMPLE, Kirk. Ex-G.I. Held in 4 Slaying sand Rape in Iraq.
New York Times, 4 jul. 2006.

CONDOMINAS, Georges. Nous avons mangé la Forêt. Paris: Mercure de France,


1957.

COOMARASWAMY, Radhika. Report of the Special Rapporteur on violence


against women, its causes and consequences, Ms. Radhika Coomaraswamy, submitted
in accordance with Commission resolution 1997/44. United Nations, 26 January
1998. E/CN.4/1998/54. Disponível em: <http://www.refworld.org/docid/
3b00efbd24.htm>. Acesso em: 12 fev. 2018.

COSTA, Albertina de Oliveira et al. (Org.). Memórias das mulheres do exílio. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1980.

DEBERT, Guita. O Velho na Propaganda. Cadernos Pagu, Campinas, SP, v. 21,


p.133-156, 2003.

ECO, Umberto. Obra Aberta. São Paulo: Editora Perspectiva, 1968.

ECO, Umberto. Sobre os espelhos e outros ensaios. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1989. p. 156.

EISENSTEIN, Zillah. Sexual Humiliation, Gender Confusion and the Horrorsat


Abu Ghraib, 2004. Disponível em: <http://www.peacewomen.org/news/Iraq/
June04/abughraib.html>. Acesso em: dez. 2004.

FINCO, Henrique. O Paradoxo Benetton: um estudo antropológico da publicidade.


1996. 215f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Centro de Filoso-
fia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis,
1996.

253
FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. 23. ed. Rio de Janeiro: José Olympio,
1984.

FREYRE, Gilberto. Sociologia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1945. v. 1.

GABEIRA, Fernando. O crepúsculo do macho: depoimento. 6. ed. Rio de Janeiro:


Codecri, 1980a.

GABEIRA, Fernando. O que é isso, companheiro? Rio de Janeiro: Nova Fronteira,


1980b.

GOBINEAU, Arthur. [1853-5]. Essais url’in égalité des races humaines. Paris:
Éditions Pierre Belfond, 1967. Disponível em: <http://www.congoforum.be/
upldocs/essai_inegalite_races_2.pdf>. Acesso em: 12 fev. 2018.

GOFFMAN, Erving. Gender Advertisements. Londres: Macmillan, 1979.

GUENIVET, Karima. Violences sexuelles: la nouvelle arme de guerre. Paris:


Éditions Michalon, 2001.

GUTMAN, Roy. The Rapes of Bosnia: we Want to World to Know – Systematic


Assaulton Thousands of Muslims. Newsday, 2 ago. 1992.

LEACH, Edmund. La nature de la guerra. L’Unité de l’homme. Paris: Gallimard,


1980. p.299-320.

NAHOUM-GRAPPE, Véronique. Du revê de Vengeance à la haine politique. Paris:


Buchet/Chastel, 2003.

RIAL, Carmen. Antropologia e mídia: breve panorama das teorias de comuni-


cação. Antropologia em Primeira Mão, v. 9, n. 74, p. 4-74, 2004.

RIAL, Carmen. Guerra de imagens e imagens da guerra: estupro e sacrifício na


Guerra do Iraque. Revista Estudos Feministas, v. 15, n. 1, p. 131-151, 2007. ht-
tps://dx.doi.org/10.1590/S0104-026X2007000100009

254
RIAL, Carmen. Japonês está para TV assim como mulato para cerveja: imagens
da publicidade no Brasil. Antropologia em Primeira Mão, Florianópolis, v.1, n. 8,
p. 1-17, 1995. Disponível em: <http://apm.ufsc.br/files/2011/07/08-japones.
pdf>. Acesso em: 18 fev. 2018.

RIAL, Carmen.; GROSSI, Miriam. Os estupradores que viraram heróis. Mulhe-


rio, v. 32, p. 3-4, 1987.

SHOHAT, Ella; STAM, Robert. Crítica da imagem eurocêntrica. Multiculturalismo


e representação. São Paulo: Cosac Naify, 2006.

TESCARI, Adriana S. Violência sexual contra a mulher em situação de conflito ar-


mado. Porto Alegre: Sérgio A. Fabris Editor, 2005.

UNITED NATIONS. Report of the Special Rapporteur on the Situation of Human


Rights in Kuwait underIraqi Occupation. Doc. E/CN.4/1992/26 (22 nov. 1994).

UNITED NATIONS. Report of the Special Rapporteur on Violence against Women,


its Causes and Consequences. Doc. E/ CN.4/1995/42. 22 nov. 1994.

UNITED NATIONS. Report of the Special Rapporteur on Violence against


Women, its Causes and Consequences. Doc. E/ CN.4/2002/83. 11 feb. 2002.

WOLFF, Cristina Scheibe. Le genre dans la guérilla: jeux de genre dans la lutte
armée au Brésil des années 1960-1970. In: BERGÉRE, Marc; CAPDEVILA,
Luc. (Dirs.). Genre et événement. Du masculin et du féminin en histoire des crises et
desconflits. Rennes: PressesUniversitaires de Rennes, 2006. p. 119-136.

255
POR UMA ANÁLISE DO ATOR NEGRO NO
CINEMA: NOTAS SOBRE A INTERPRETAÇÃO
DE GRANDE OTELO EM RIO, ZONA NORTE1

Luis Felipe Kojima Hirano2

[...] sem ele, Espírito da Luz Soares, por assim dizer,


não existiria, [...] sem a sua compreensão desse
personagem, profundamente humano, o filme não
valeria nada. Otelo soube dar os necessários e indis-
pensáveis matizes ao drama de um homem que sofre
e que é ao mesmo tempo, a expressão da alegria de
seu povo. (Nelson Pereira dos Santos, 1957)3

Resumo: Esse artigo propõe uma análise dos atores e atrizes no


cinema tendo como estudo de caso o diálogo entre Nelson Pereira
dos Santos e Grande Otelo no filme Rio Zona Norte. Busco, as-
sim, em um primeiro momento apresentar um método de análise
do ator/atriz no cinema. Posteriormente examino detidamente

1 Esse capítulo é uma versão modificada e reduzida do artigo intitulado O gestus


social em Rio Zona Norte: notas para um diálogo entre ator e diretor na análise cine-
matográfica, publicado na Revista Tomo, n. 25, jul./dez. 2014.
2 Professor Adjunto da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de
Goiás, Coordenador do Programa de Antropologia Social da mesma universida-
de. Bacharel em Ciências Sociais e Doutor em Antropologia Social pela Universi-
dade de São Paulo.
3 Entrevista que Nelson Pereira dos Santos concedeu a Giovanni para o Jornal Di-
ário da Noite apud FABRIS, 1998, p. 198.

256
a interpretação de Grande Otelo no filme Rio Zona Norte e a
recepção da crítica. Após esse percurso, conclui-se a importância
do ator como co-autor do filme Rio Zona Norte, trazendo quiça
novas contribuições para análises fílmicas que partam também do
intérprete de cinema.
Palavras-chave: Análise do ator. Relações raciais. Grande Otelo.
Nelson Pereira dos Santos.

Abstract: This article aims to analyze the role of the actors in cin-
ema utilizing as a case study the dialogue between Grande Otelo
and Nelson Pereira dos Santos in the feature film Rio Zona Norte.
First of all, I present a method of analyses of the actors in cinema.
Secondly, I analyze in detail Grande Otelo’s interpretation in his
role in Rio Zona Norte, as well as the newspaper critics that the film
received at the time. To sum up, Grande Otelo could be considered
a co-author of the film Rio Zona Norte. Therefore, bringing new
contributions for cinematic interpretation.

Das críticas da época às de Glauber Rocha (2003), da análise


pormenorizada de Mariarosario Fabris (1994) aos recentes estudos
que discutem a representação do negro no cinema, como o de Robert
Stam (2008), Noel Carvalho e Carolinne Silva (2013), Rio Zona Nor-
te já recebeu avaliações de diferentes olhares e perspectivas teóricas;
pretendo trazer mais contribuições para essas interpretações, ao levar a
sério o depoimento de Nelson Pereira dos Santos, citado acima, sobre o
papel fundamental de Grande Otelo na composição do filme. Noutras
palavras, procuro deslindar a performance de Grande Otelo para refle-
tir mais a fundo sobre este ator e o diretor Nelson Pereira dos Santos,
que trabalham para desconstruir estereótipos em torno da população
negra, rompendo com caracterizações correntes nos filmes realizados

257
até então. Por sua performance, Grande Otelo fornece profundidade a
seu personagem, o sambista Espírito; já o diretor consegue propor uma
nova imagem do negro através da construção do roteiro, dos enquadra-
mentos e da montagem.
Ao assumir tal ponto de partida, procuro agregar mais um nível
às análises do estereótipo racial: para além da representação, procuro
visualizar a agência (BHABHA, 2007) dos atores negros frente aos
papéis que lhe são fornecidos. Trata-se, assim, de um esforço para
compreender quais são as estratégias e contribuições dos intérpretes
afrodescedentes para se contraporem ao processo de estereotipia racial,
fazendo frente a um mercado que reproduzia e reproduz assimetrias
raciais na distribuição desigual e desproporcional de papéis entre intér-
pretes brancos e afrodescendentes.
O estereótipo é produzido por, ao menos, dois fatores: 1) pela
distribuição desigual e desproporcional de papéis entre brancos/as e
negros/as; 2) pela repetição de algumas características exageradas, seja
positiva ou negativamente. Assim, como explica Stuart Hall (1997),
a população afrodescendente tem sido historicamente representada
como extremamente preguiçosa/extremamente batalhadora, extrema-
mente sensual/extremamente feia, forte/fraca, etc. A mesma distribui-
ção desigual, por sua vez, permitiu que o branco fosse representado de
inúmeras maneiras, a ponto de transformar sua racialidade/cor invisí-
vel (DYER, 1997). Dito de outro modo, o ator branco, quando atua,
não representa sua raça, mas sim o homem universal. Já o/a intérprete
negro ou negra tendem a ser vistos/as pelo público como alguém que
representa não apenas o dilema de uma personagem qualquer, mas
todo o seu grupo racial. Assim, seja qual for sua atitude, boa ou má,
ela acaba sendo imediatamente associada a todos os negros e negras
como um processo metonímico (BHABHA, 2007). Por sua vez, o ator

258
branco tem a liberdade de poder viver uma enorme variedade de papéis
desvinculados de sua raça/sexo – privilégio que mantém o poder desse
ator frente a qualquer minoria, seja racial, de gênero, ou sexual.
Rio Zona Norte é, assim, um filme emblemático por combinar,
por um lado, a interpretação excepcional de Grande Otelo, que dá vida
aos dilemas e alegrias do personagem Espírito. Por outro, porque Nel-
son Pereira dos Santos abre espaço para que o ator exerça seu potencial
dramático, subaproveitado na maioria de suas interpretações anteriores
– por exemplo, nas chanchadas. Ao mesmo tempo, o longa é um marco
na busca de princípios formais que expressam uma visão crítica do
diretor frente à indústria fonográfica do Rio de Janeiro, o papel do inte-
lectual e a exploração do compositor de sambas das periferias cariocas.
Divido o artigo em três partes. Na primeira faço uma discussão
breve sobre a análise da performance dos atores no cinema – uma di-
mensão ainda pouco destacada nas investigações fílmicas. Em seguida,
passo a um exame do filme e da atuação dos atores. Por fim, discuto as
críticas que o filme e Grande Otelo receberam.

Observações sobre a performance do ator no cinema

A perspectiva adotada nesse artigo muda a ênfase usual das aná-


lises sobre o cinema ao abordar uma obra cinematográfica do ponto
de vista do ator em diálogo com o diretor, elenco, demais membros
da equipe e seu público. Sendo assim, é necessária uma metodologia
que acompanhe tal perspectiva, focalizando a contribuição do próprio
intérprete em Rio, Zona Norte. Com isto em mente, detenho-me um
pouco mais na discussão sobre o papel do ator no cinema.
Embora seja comum ver a crítica jornalística e os comentários do
dia a dia avaliarem os filmes a partir da performance dos atores e atrizes,
mais do que das opções de edição, enquadramento e direção, o reconhe-

259
cimento acadêmico do papel dos intérpretes no cinema é recente. Na
crítica acadêmica, tem prevalecido a tendência a favorecer o estudo da
direção, analisando a montagem, enquadramento, fotografia e som. Os
trabalhos que enfocam o artista/estrela costumam enfatizá-lo apenas
como produto da indústria cinematográfica, sem qualquer margem de
agência. Em parte, conforme as conclusões de Baron e Carnicke (2008),
isso ocorre por conta do predomínio das investigações de cunho estru-
turalista, como as de Christian Metz, que concede pouquíssima impor-
tância ao ator na significação cinematográfica. O mesmo tende a ocorrer
num tipo de análise que define o intérprete de cinema apenas pela ausên-
cia de funções em relação ao teatro, como a de Walter Benjamin.
O debate é por demais complexo e cheio de meandros que
extrapolam os objetivos deste artigo. Aqui, interessa apresentar argu-
mentos que sustentem a hipótese de que um filme pode ser analisado
também a partir da performance do ator. Para tanto, primeiro, discuto a
importância do intérprete ao fornecer sentido à narrativa fílmica e, em
seguida, exponho dados que descrevem a especificidade do trabalho do
intérprete no cinema.
Baron e Carnicke (2008) traçam uma genealogia dessa dis-
cussão, demonstrando como o próprio cineasta russo Lev Kuleshov,
cujos experimentos4 foram utilizados como evidência científica de que
apenas a montagem significava no cinema, reconheceria, em 1934, que
o papel do ator era fundamental na linguagem cinematográfica. Ao co-
mentar uma experiência pouco conhecida, realizada entre 1916 e 1917,
4 Refiro-me especificamente ao experimento que foi denominado de “Efeito Ku-
leshov”, em que o diretor justapunha cenas com um mesmo rosto, sem expressão
evidente, a objetos diferentes, tais como uma mulher no caixão, uma tigela de
sopa e uma criança brincando. Cada uma dessas justaposições era lida pelos es-
pectadores de modos diferentes: a primeira significava tristeza, a segunda fome
e a terceira solidão. A conclusão de Kuleshov era de que os significados dessas
cenas não eram tributários ao rosto, mas à montagem com outros objetos.

260
ele descobriu que utilizando dois atores, um mais hábil que o outro, e
intercalando cenas desses intérpretes numa mesma sequência de ima-
gens, o resultado semântico era diferente. Kuleshov concluiu que, por
meio da montagem clássica,5 “não é sempre possível alterar o trabalho
semântico de um ator” (KULESHOV, 1974, p. 192).
No mesmo artigo, o autor reconhece a importância da perfor-
mance do intérprete, condenando cineastas como Pudovkin, por terem
perdido a habilidade de trabalhar com atores e darem demasiada ênfase
à montagem clássica. Por fim, o realizador reconhece seu equívoco em
trabalhos anteriores, quando deu um papel exclusivo à montagem no
processo semântico do filme. Passava a entender que: “quando uma
ideia precisa ser expressada sobretudo no trabalho do ator, é necessário
trabalhar em cima do ator [...]. Em nenhum caso, alguém pode assumir
que todo o problema cinematográfico está na montagem. [...] a quali-
dade dos filmes nunca depende inteiramente na montagem” (KULE-
SHOV, 1974, p. 95). Convém lembrar que os primeiros experimentos
de Kuleshov foram realizados num momento em que o cinema buscava
afirmar sua singularidade como forma6 artística diversa do teatro, pin-
tura e literatura, por meio da montagem clássica.
A ideia de montagem ganha outra dimensão nos escritos de
Christian Metz (2010), para quem, grosso modo, o processo de signi-
ficação no cinema ocorre pela identificação do espectador com o olhar
da câmera, dentro de uma mesma cadeia discursiva. Tal perspectiva
enfatiza apenas o sentido do filme a partir de seu encadeamento lógico,

5 A definição de montagem é simples: trata-se de colar planos, ou seja, fragmentos


de película, uns após os outros, numa ordem determinada. Confira, nesse senti-
do: AUMONT; MARIE, 2003.
6 Forma, na acepção empregada no decorrer do artigo, significa: “princípio de or-
ganização da expressão em uma obra, em vista de um efeito de sentido ou afeto”
(KULESHOV, 1974, p. 134).

261
realizado pela edição, desconsiderando, como demonstram Baron e
Carnicke (2008), que a seleção dos enquadramentos, montagem e du-
ração das cenas, em muitos casos, é decorrente das performances dos
atores.7 A correlação lógica da trama, portanto, não depende apenas da
montagem, mas de uma incorporação dos gestos, de uma adequação da
performance à estrutura do filme.
Walter Benjamin (1987) define o intérprete de cinema pela sua au-
sência, quer de habilidades ao representar a si mesmo, quer por alienar-se
de si no momento em que seu corpo se imprime em imagem, a ser expor-
tada para qualquer lugar. Baseando-se em toda uma geração de teóricos
que encontrou na montagem clássica a essência cinematográfica – como
é o caso de Pirandello e Rudolf Arnheim –, Benjamin conclui que o ator
nada mais é do que um acessório manipulado pela indústria de cinema.8
O filósofo marxista morreria um ano antes de ver posta em prática a radi-
calização no uso do plano-sequência9 empreendida por Orson Welles em
Cidadão Kane (1941), que revolucionou o cinema.
Como analisa André Bazin, Welles, com formação no teatro,
construiu a direção a partir do ator (BAZIN, 2006, p. 83-84). Diferen-

7 Baron e Carnicke, Reframing screen performance.


8 Tal análise é compreensível, considerando o momento em que o filósofo escre-
veu seu texto seminal; afinal, o nazismo recrudescia nesse período, fazendo uso
dos aparatos cinematográficos como principal meio de estetizar a política. Ele
próprio sofria perseguições por conta de sua origem judaica e daria fim à vida
bastante melancólico com as possibilidades da arte num mundo em guerra.
9 Trata-se de “um plano bastante longo e articulado para representar o equivalente
de uma sequência [uma cena]” (AUMONT; MARIE, 2003, p. 231).

262
temente da decupagem tradicional,10 o diretor estadunidense procurou
privilegiar a profundidade de planos e longas sequências, em que os
efeitos dramáticos são alcançados pelo desenrolar de uma cena contí-
nua, que valoriza a interação entre os intérpretes e o cenário.
As longas-sequências e a profundidade de planos foram dilatadas
com o Neo-Realismo italiano e, posteriormente, com a Nouvelle Vague e
o Cinema Novo, produzindo, nos termos de Bazin, um abalo sísmico na
linguagem cinematográfica e conformando as principais características
do assim chamado cinema moderno. Toda essa transformação traz um
novo calibre para o intérprete de cinema, exigindo dele uma atuação
mais contínua, atenta aos diferentes elementos da cena, e ajustando
seus diversos movimentos em um mesmo enquadramento da câmera.
Como veremos a seguir, Rio, Zona Norte se nutre dessa transformação,
especialmente pelo diálogo que trava com o Neo-Realismo italiano.
Se com essas transformações ainda é verdade que o ator de ci-
nema representa a si mesmo, como afirmou Walter Benjamin, isso não
significa que a exigência seja menor quanto à habilidade do intérprete
cinematográfico. Os processos de incorporação dos personagens tanto
no cinema quanto no teatro exigem habilidades específicas, como a per-
sonalização mais constante, no caso do primeiro, e a despersonalização,
no caso do segundo (MCDONALD, 2008). Entretanto, nem sempre
um ator consegue personalizar um personagem. Tal procedimento se
torna mais explícito nas adaptações literárias para o cinema. Geralmen-
te, o que ocorre é uma incongruência entre a imaginação que criamos

10 Tipo de encadeamento lógico dos sentidos do filme, largamente utilizado no ci-


nema silencioso, que se baseia exclusivamente nas sequências curtas da monta-
gem clássica. A atuação dos atores era toda dividida em diferentes tomadas para
depois ganhar sentido na sala de edição. Welles, explorando a tecnologia sonora,
faria o inverso: o sentido do filme viria principalmente da ação do ator em cena –
daí, os longos planos-sequência. A edição teria o papel de enfatizar essa ação.

263
em torno do personagem do livro e o intérprete. São raros os casos em
que o ator se cola de tal modo ao personagem que, depois de ver o filme,
não conseguimos imaginar nenhuma outra figura quando voltamos a
folhear o livro. É o que ocorre com Grande Otelo, quando personifica
Macunaíma (1969) na adaptação cinematográfica da obra de Mário
de Andrade. Basta dizer que o efeito assemelhado não ocorre quando
Paulo José interpreta o mesmo personagem em sua fase branca.
Há ainda outras diferenças que explicitam a especificidade do
intérprete de cinema. Em primeiro lugar, se o movimento da câmera,
por um ângulo, seleciona, por outro, possibilita um olhar mais atento
do espectador a cada detalhe da expressão facial, da força utilizada na
musculatura e das veias saltadas, entre outros aspectos que, dependen-
do da distância que se está do palco, são imperceptíveis para a plateia de
teatro. Em segundo lugar, a descontinuidade da produção cinematográ-
fica costuma demandar do ator a capacidade de imaginar a totalidade,
para conferir expressividade ao mínimo detalhe captado pela câmera
e redimensionado na tela de cinema. Tal habilidade de mapear o todo
também é necessária quando o intérprete filma a cena sem a presença
dos outros atores que compõem a mesma sequência.11
Em terceiro lugar, as opções de movimento precisam caber mili-
metricamente no enquadramento do diretor, assim como é importante
o meneio na medida correta para que seu redimensionamento na écran
mantenha o ritmo e o volume que a cena requer. Por mais que o diretor
descreva sentimentos, desejos, emoções e a alma do personagem, seja
com palavras ou gestos, cabe apenas ao ator interpretar e incorporar tais
elementos a seu corpo para dar vida ao papel, como ensinava em seu

11 É verdade que alguns diretores usam como tática o desconhecimento do ator no


desenrolar da trama, nesse sentido, nem sempre é exigido ao ator o mapeamento
geral da trama.

264
manual Josephine Dillon, professora de técnica de atuação na chamada
Era dos Estúdios de Hollywood: “as lentes das câmeras e as lentes dos
olhos humanos veem apenas o corpo e o vestuário exterior do ator, não
veem o seu pensamento, a sua emoção, as suas esperanças e sonhos”
(DILLON, 1940, p. 55).
Por fim, a estrutura de poder da produção de um filme não é está-
tica. O ator pode valer-se de espaços exíguos para ganhar proeminência
em uma cena, chegando por vezes a conseguir abertura para dar palpi-
tes no enquadramento e iluminação, entre outros aspectos.12 Grande
Otelo, por exemplo, conseguia sugerir cenas e colocar composições
de sua autoria nos filmes do diretor José Carlos Burle; já com Watson
Macedo, o diálogo era mais difícil. Oscarito tinha tal autonomia na
Atlântida, que conseguiu expulsar José Carlos Burle da empresa, pois
ele não quis filmar uma cena cômica em close-up. O ator continuou e a
cena foi refeita para atender seu pedido (AUGUSTO, 2005). Ruth de
Souza conhecia todas as técnicas de direção e iluminação teatral e cine-
matográfica, aprendidas em seus estágios nas universidades de Ohio,
Howard e Washington, o que lhe permitia reconhecer os momentos
em que a iluminação contribuía para lhe dar destaque no palco e na tela
(SOUZA, 1979). Fred Astaire tinha tal poder na estrutura cinemato-
gráfica, que escolhia os enquadramentos e editava suas cenas de dança.
Com isso, é reconhecido por ter criado um estilo intimista de musical,
diverso dos números caleidoscópicos de Busby Berkeley. Como será
discutido a seguir, Nelson Pereira dos Santos, apesar dos parcos recur-
sos que tinha à sua disposição, dialogava bastante com seus atores.

12 Não se trata de desconsiderar o frequente desnível de poder entre o realizador e


o ator, mas de reconhecer que nos meandros da direção de ator, há uma margem
de ação do intérprete para incorporar em gestos os objetivos do diretor.

265
Se os principais argumentos a favor de uma análise da perfor-
mance do ator no cinema estão claros, importa, agora, introduzir meios
e formas de como mapear os gestos, as expressões faciais, o direcio-
namento do olhar, a impostação da voz. Conforme Baron e Carnick
(2008), a verossimilhança de uma interpretação se constitui no uso da
musculatura corporal e da voz num ritmo, frequência, fluxo e força que
dão materialidade precisa aos conflitos do enredo dentro dos limites
do aparato cinematográfico. Nesse sentido, há que atentar para: 1) o
uso do espaço do ator no enquadramento da cena; 2) o tempo: a ve-
locidade e o ritmo dos gestos numa sequência fílmica; e 3) o peso e
a força no uso do corpo, na contração e relaxamento da musculatura.
Tais procedimentos corporais de uso do espaço e do tempo sinalizam
o modo como o ator incorpora o enredo, revelando nas minúcias dos
gestos os conflitos pessoais do personagem no filme.
Além disso, as técnicas de atuação devem ser vistas em diálogo
com tradições como as de Stanislavsky e Brecht, que foram adotadas
nas correntes e gêneros cinematográficos ao longo do século XX.13
Atentar para as convenções, tanto de técnicas de interpretação quan-
to dos movimentos e gêneros cinematográficos é fundamental, pois
elas dão pesos diferentes ao trabalho de ator. Rio, Zona Norte, nessa
perspectiva, é um filme interessante de ser analisado, justamente pelo
jogo câmera-ator empreendido por Nelson Pereira dos Santos e pela

13 Vide as análises de Baron e Carnick (2008) de Romeu e Julieta em épocas distin-


tas, mostrando as diferenças nas interpretações dos atores. Na análise do filme Os
sete samurais, de Kurosawa, e a adaptação do mesmo roteiro para faroeste ame-
ricano em The Magnificent Seven, ficam patentes as diferenças culturais na apren-
dizagem e nos significados das expressões – no filme de Kurosawa, é marcante
a utilização de expressões do teatro Nô e a movimentação de palco do teatro de
bonecos do Kabuki, diferentemente da adaptação americana. Baron e Carnicke,
Reframing screen performance.

266
atuação singular de Grande Otelo, bem recebida pela crítica da época e
por análises posteriores.

O diálogo ator-câmera em Rio, Zona Norte

Ao som de um pout-pourri alegre, que caminha para um tom


melodioso, a câmera em plongée enquadra a Avenida Presidente Var-
gas, com carros e transeuntes passando. Surgem os primeiros créditos:
Nelson Pereira dos Santos apresenta: Grande Otelo em Rio, Zona Norte.
Em leve movimento para direita descortina-se a Praça Major Valô e,
em seguida, um contra-plongée dirigido para o alto deixa ver a torre da
Estação Central do Brasil. Primeiro corte. De cima para baixo, dentro
do terminal, a filmadora registra passageiros enfileirados, comprando
bilhetes. Segundo corte. Do vagão, as lentes cinematografam diferentes
feições de trabalhadores na plataforma, esperando o próximo veículo
em direção aos subúrbios da assim chamada “cidade maravilhosa”.
Terceiro corte. Da janela do trem em movimento, avistam-se casebres
simples e construções decadentes, próximas ao Morro da Providên-
cia. Quarto corte. Na Avenida Francisco Bicalho, atravessada por um
córrego pavimentado e ladeada por coqueiros, os créditos retornam.
Jece Valadão, Paulo Goulart, Maria Petar... aparecem escritos por sobre
imagens de favelas e pequenas indústrias nas encostas da ferrovia.
Quinto corte. Um vagão cruza o caminho e, logo depois, um ho-
mem branco com certa idade, portando camisa amassada e desabotoada
– provavelmente um morador de rua – salta os trilhos, aproximando-se
das lentes da câmera, e agacha para ajudar um homem negro, caído de
frente para o chão. Outros dois brancos, mais bem vestidos, chegam
para olhar. O primeiro explica o que aconteceu; um deles vai embora, o
outro tenta ir, mas é segurado pelo braço. Enquanto isso, um negro che-
ga correndo e ajuda a carregar o acidentado. Num esforço entre os três,

267
o levantam. Descortina-se o rosto do ator Grande Otelo, desacordado.
Enquanto a vítima é levada para longe dos trilhos, a câmera focaliza um
amontoado de papéis amassados. O que parecia ser o morador de rua
pega o almaço e retorna para ver o agonizado. O rosto de Otelo ocupa
quase a totalidade do quadro. Ele mexe o pescoço vagarosamente e, aos
poucos, abre os olhos, ainda inconsciente. O som de um trem passando
é sobreposto ao “som subjetivo” de um tamborim, um pandeiro e, em
seguida, a um coro de sambistas. O samba antecede o próximo corte:
em câmera subjetiva, através das lembranças de Otelo, focaliza-se o ator
dando uma gargalhada gostosa, quando seu Figueiredo chama Espírito,
nome de seu personagem, para animar a festa.
Esses são os primeiros minutos de Rio, Zona Norte, de Nelson
Pereira dos Santos. A partir dessas cenas, o filme intercala o flashback
de Espírito e as sequências em que se desenrola seu socorro. A câmera
subjetiva, na altura dos olhos de Grande Otelo, mormente em contra-
-plongée, medeia as imagens na perspectiva de Espírito, que vê o mundo
que o rodeia de baixo para cima. Suas reminiscências começam numa
noite de festa no morro, na Escola de Samba Unidos da Laguna. Ani-
mado, ele canta Mexi com ela, composição de sua autoria que chama a
atenção de Maurício ( Jece Valadão), um compositor, e Moacyr (Paulo
Goulart), um violinista, ambos da mesma emissora de rádio. O primei-
ro, Espírito já conhece, pois com ele tentara lançar algumas músicas,
sem êxito, ao passo que o segundo, não. Moacyr, de formação erudita,
diz que sonha criar um balé com sambas “autênticos”, mas que, para se
sustentar, vende seus vinte anos de estudo, dedicando-se ao acompa-
nhamento de arranjos genéricos das paradas de sucesso.
Tanto Maurício quanto Moacyr convidam Espírito para conver-
sar na emissora de rádio – o primeiro quer emplacar Mexi com ela e o se-
gundo, pensar numa parceria com o compositor. A proposta reacende

268
os sonhos de Espírito e de seus membros diletos da comunidade, como
a afilhada Gracinda, o compadre Honório, e Figueiredo, o dono da
vendinha onde o sambista faz “biscates”. Porém, mais do que desfrutar
o sucesso de seus partidos-altos sendo entoados pela diva do rádio, Ân-
gela Maria, Espírito também pretende utilizar o dinheiro da venda das
canções para terminar de construir uma casa própria e um armazém,
em conjunto com Honório, para ter estabilidade e conseguir de volta a
guarda do filho, Norival. Na mesma noite, o sambista cai nas graças de
Adelaide (Malu), uma negra de pele clara, empregada doméstica que
passa a morar com ele, trazendo junto seu bebê. A união dos dois e o
apego a uma criança pequena reacendem as expectativas de Espírito de
constituir uma nova família e reescrever de outro modo a sua história.
Na emissora de rádio, Espírito encontra Moacyr. A conversa en-
tre os dois é interrompida pela esposa do violinista e eles marcam de
conversar em outra ocasião. O sambista também encontra Maurício,
que se mostra preocupado com a intromissão do músico na relação en-
tre os dois. Maurício então o apresenta ao cantor negro Alaor da Costa
(Zé Kétti) e propõe uma parceria a três como condição para lançar
Mexi com ela. Espírito não se mostra feliz com a ideia de dividir sua
própria composição, mas acaba aceitando em troca de dinheiro, pois se
encontra numa situação financeira instável e precária. É então conven-
cido a tentar emplacar no mercado fonográfico com esse samba, antes
de tentar o sucesso individual.
Na festa de batismo do filho de Adelaide, os convidados sin-
tonizam a emissora e ouvem felizes Mexi com ela, na voz de Alaor da
Costa. Mas, para o espanto de todos, quando a música termina Espírito
não é creditado – Maurício e o cantor são os únicos autores citados
pelo locutor. Ademais, como nota, o sambista Alaor deturpou o ritmo
do partido-alto para um bolero. Gracinda, Figueiredo e o compadre

269
revoltam-se e incentivam Espírito a protestar na rádio. Adelaide, de-
cepcionada com o novo companheiro, com quem esperava ascender
socialmente, o critica porque não tem “nem dinheiro, nem gaita”.
A trama se inverte e os sonhos de Espírito caminham para a tra-
gédia. Sua relação com Adelaide estremece, ainda mais com o retorno
inesperado de Norival, que logo na chegada rouba a venda de Figuei-
redo. Para piorar a situação, o compositor precisa ceder às pressas sua
casa, quase pronta, aos irmãos de Honório, que foram desalojados.
Adelaide vai embora. Maurício enrola mais uma vez Espírito e, em tro-
ca de dinheiro, consegue que o sambista assine um termo que retira sua
autoria de Mexi com ela. Ao voltar para casa sem os direitos pelo samba,
é surpreendido com partida de Adelaide e por um bando de moleques
que assassina Norival por vingança. Diante da morte do filho, apenas a
criação do samba Fechou o paletó consegue dar-lhe alento e força para
continuar a busca de reescrever sua história, como se os versos e refrãos
lhe servissem de projetor aos sonhos futuros. Maurício vai ao enterro
para convencer Espírito a assinar outros termos e logo se interessa pela
música, mas dessa vez Espírito se revolta, o derruba e diz: “não, Maurí-
cio! Esse samba... esse samba é só meu, eu vou gravar ele sozinho e há
de ser com a Ângela Maria!”.
No dia seguinte, Espírito encontra a cantora dando autógrafos aos
fãs na emissora de rádio e cria coragem para falar com a diva, que inter-
preta seu samba com grande entusiasmo e interesse. Numa das cenas
mais emblemáticas do filme, começa a cantar e batucar Fechou o paletó
numa caixa de fósforo, enquanto ela escuta, tomando café. Num jogo de
olhares entre Ângela Maria e Espírito, em campo-contracampo, plongée e
contra-plongée, e em plano aberto mostrando os fãs ao redor da dupla, a
cantora aos poucos se deixa envolver pela música, ouvindo o sambista e
lendo a letra no papel amassado que ele lhe entregara. Ela mexe a cabe-

270
ça e os ombros em ritmo de partido-alto, chega um violonista na hora,
compõe-se o arranjo. Espírito cresce em sua interpretação, a cada verso,
na mesma proporção que os fãs da diva, que estão a sua volta, também
se animam. A câmera fecha no rosto de Espírito outra vez e ouvimos a
voz de Ângela Maria cantar o verso e o refrão: “céu estrelado, lua pra-
teada, muitos sambas, grande batucada, o morro estava em festa quando
alguém caiu, com a mão no coração sorriu, morreu Malvadeza Durão, o
criminoso ninguém viu”. Numa montagem vertical, que justapõe som e
imagem, ouve-se Ângela Maria cantando, e sua voz contraposta ao rosto
de Espírito, que modula a sua alegria abrindo o sorriso na cadência do
samba, seus olhos, sobrancelhas, a musculatura da testa e todo o seu
corpo movem-se no ritmo da canção expressando a satisfação por vis-
lumbrar que seu sonho voltava a se realizar. Nota-se, que em toda essa
sequência Grande Otelo quase não pisca, olhando para Ângela Maria,
balanceando suas pupilas e enfatizando os termos da letra da música.14
Ângela Maria considera a composição “fabulosa” e pede para Es-
pírito trazer a música em partitura de piano. Desprovido de meios para
transpor seu conhecimento para a pauta musical, Espírito vai à casa de
Moacyr, para pedir-lhe ajuda. O violinista recebe-o de maneira entusias-
mada e o apresenta a três amigos intelectuais como “o maior sambista
vivo”. Espírito dá uma canja com Fechou o paletó, que eles apreciam, com
olhares analíticos e sem ceder os seus gestos ao som, mantendo as mãos
cerradas entre si. Logo, começam a discutir a característica estética da
música e a possibilidade de fazer um balé com suas composições, sem
“estilização”. Chega uma amiga de Moacyr, revoltada com a montagem
de uma peça teatral, e os intelectuais esquecem do samba. Espírito, des-

14 Manter os olhos abertos em toda uma sequência em close é uma estratégia dos
atores e atrizes, justamente porque isso fortalece a atenção do espectador no ator
(BORDWELL, 2013).

271
locado na conversa, no canto do sofá, resolve partir. Moacyr vai atrás dele
e pede que volte outro dia para escrever a partitura do samba.
Em direção à Central do Brasil, Espírito pega o trem de volta para
a zona norte. As mesmas cenas que iniciam o filme de dentro do vagão
são repetidas, mas agora intercaladas com a imagem de Espírito, que
compõe um outro samba a partir da conversa que ouviu dos passageiros.
A intenção de Nelson Pereira dos Santos nessa sequência é convidar o es-
pectador, agora ciente da história de Espírito, a rever as mesmas cenas, na
perspectiva do compositor, que viaja pendurado na porta do trem lotado,
até que cai nos trilhos. O flashback fecha o ciclo e voltamos ao registro
do presente: em câmera subjetiva, vemos Moacyr e Honório observando
se Espírito dá algum sinal de vida após a operação de emergência para
salvá-lo. São os últimos sinais do sambista, que sucumbe.
Na última cena do filme, Moacyr e Honório caminham cabisbai-
xos numa rua escura. Moacyr levanta a cabeça abre a boca e fecha, hesita
e pergunta: “você conhece os sambas do Espírito?”. Honório diz: “um
pouco [...] se você quiser podemos ir lá no morro muita gente conhece
alguns sambas de Espírito”. “Alguns...”; “uns três ou quatro, os melhores”.
Se nas chanchadas o uso da justaposição entre campo e contra-
campo, câmera objetiva e subjetiva é escasso, utilizado apenas na troca
de olhares entre casais apaixonados, ou para introduzir um número
musical, em Rio, Zona Norte tais recursos são centrais e aplicados de
modo radical para coligir visões e posições diferentes entre as perso-
nagens. Nesse jogo dialógico, inclui-se o espectador, que é convidado
a ver em vários momentos a realidade na altura dos olhos de Espírito,
em contra-plongée, e na altura daqueles que o veem – como Maurício,
Moacyr e Ângela Maria, entre outros personagens mais altos –, em
plongée. No cinema clássico, esses enquadramentos de baixo para cima
são empregados para engrandecer e o de cima para baixo, para dimi-

272
nuir. Nelson Pereira dos Santos vale-se desse mecanismo para destacar
as desigualdades sociais entre as personagens: aqueles que detêm os
meios para estabelecer-se nas emissoras de rádio e o sambista do mor-
ro, destituído de capital simbólico, social e cultural para tanto.
Como analisa Mariarosaria Fabris (1994), o contra-plongée e o
plongée são articulados, em Rio, Zona Norte, respectivamente às câme-
ras subjetiva e objetiva. O uso alternado desses recursos se desvelaria
um nível narrativo em que Nelson Pereira discute a relação entre uma
História oficial e uma história subterrânea da população das periferias
do Rio de Janeiro, no quadrante norte da cidade (FABRIS, 1994, p.
190). Por um lado, a câmera objetiva que olha Espírito do alto e nar-
ra o enredo no tempo presente, isto é, no desenrolar do socorro do
sambista, mostra a cada sequência como aqueles que o auxiliam – do
morador de rua ao policial e os médicos – o veem como um “pingente”,
“sem nome e documento” (nos termos do próprio filme). Por outro, o
flashback inicia-se com a câmera subjetiva, de baixo, que transforma o
“pingente” em “pessoa”, com identidade e uma rede de relações (DA
MATTA, 1997). Noutros termos, Nelson Pereira dos Santos lança mão
dos princípios formais para contrastar a História com “h” maiúsculo,
que resume-se aos registros de óbito do Estado e manchetes de jornais,
que dizem: “um pingente morre nos trilhos do trem”. O contraste é mo-
bilizado por meio daquilo que Fabris denomina “história subterrânea”,
ou seja, a história do ponto de vista de um compositor, portador de
uma “cultura autêntica e sem estilização”, segundo o filme.
Os planos de conjunto, quando Espírito está entre Moacyr e sua
esposa ou amigos, sinalizam, no meneio de cada intérprete, proximidades
e distanciamentos, o olhar de aprovação, de desdém e a contemplação
analítica da classe média em relação ao sambista do morro. Há todo um
jogo nos enquadramentos, que articulam uma visão de estrutura social

273
internalizada na forma do filme e na interpretação dos atores. Os close-ups
em Espírito não são apenas um meio de colocar o personagem no cen-
tro da narrativa, mas um espaço aberto para que, a partir do seu gestual,
Grande Otelo expresse todo conflito social inscrito em seu personagem.
Grande Otelo aproveita ao máximo esse espaço, ao cadenciar
com cuidado toda a série de emoções de seu personagem no decorrer
do filme: alegria, seriedade, paixão, tristeza, alívio e tensão, encarnados
no retesar de sua musculatura, no movimentar pesado dos braços em
momentos dramáticos e na soltura de seus gestos em situações de con-
forto e felicidade.
Os enquadramentos abrem espaço para que Grande Otelo exer-
cite sua verve dramática, pouco comum nos filmes em sua trajetória
até então. Dos títulos que encenou antes de Rio, Zona Norte, conta-se
nos dedos de uma mão aqueles que permitiram um grau similar de ex-
pressão dramática ao ator: Moleque Tião (1943), Também somos irmãos
(1949) e Dupla do barulho (1953),15 os dois primeiros dirigidos por
José Carlos Burle e o último por Carlos Manga. É, pois, no interstício
do diálogo cineasta-intérprete, que Nelson Pereira dos Santos se revela
um grande diretor de atores e que Grande Otelo expõe sua atuação
singular, fazendo jus ao parco espaço que o campo cinematográfico lhe
forneceu para interpretar um papel de modo a extrapolar aquilo que se
esperava para os atores negros.
É conhecido e evidente o diálogo entre as primeiras produções
de Nelson Pereira e o Neo-Realismo italiano. Note-se que, antes de Rio,
Zona Norte, o cineasta foi criticado por Rio, 40 graus (1955); para Alex
Viany, ele teria negligenciado a tradição cinematográfica local, como
mostra Fabris (1994). É importante perceber que mesmo Roma, cidade
aberta (1945), de Roberto Rossellini, obra inaugural do Neo-Realismo,

15 Para uma análise desses filmes, ver Hirano, 2013b.

274
ligava-se à cultura popular italiana ao escalar Anna Magnani e Aldo
Fabrizi, ambos artistas renomados no teatro de variedades e em filmes
de sucesso nos anos 1930 e 1940 (FABRIS, 1994). Logo, em reação
à crítica, em Rio, Zona Norte o diretor procura conectar-se também à
produção realizada no Brasil de então, ou seja, as chanchadas e o Rea-
lismo Carioca de Alex Viany, Alinor Azevedo e Burle (FABRIS, 1994).
A eleição de Grande Otelo como ator principal, a trama com números
musicais e o fato de uma das locações ser uma emissora de rádio, apon-
tam para uma conversa manifesta com a produção carioca anterior.
No entanto, Rio, Zona Norte produz uma referência radicalmente
crítica à chanchada e à indústria fonográfica que a sustenta. De modo
similar ao que ocorre em Abismo de um sonho, de Fellini (1952), em que
uma fã se desilude com seu herói de fotonovelas quando tem a chance de
conhecê-lo pessoalmente, Nelson Pereira dos Santos faz uso das cenas
musicais e da rádio para mostrar sua dimensão ideológica no sentido
marxista: busca produzir uma imagem condizente com a realidade dos
meios de produção. Nesses termos, o mito do sucesso inesperado das
pessoas das classes baixas, construído pelas rádios e pelas chanchadas,
revela sua faceta mais dura em Rio, Zona Norte: mesmo que talentoso,
Espírito não dispõe dos meios e capital necessários para emplacar suas
composições e, por isso, é espoliado até a desintegração total de sua fa-
mília e sua própria morte trágica. Se nas chanchadas as personagens de
Grande Otelo logravam êxito via golpes de sorte e malandragens, agora
acontecia o inverso: mais do que mostrar o precipício de um sonho,
Nelson Pereira dos Santos declara o fim iminente do “samba autêntico”.
Na voz lacônica de Honório, emerge ao final a referência a apenas “três
ou quatro sambas” de Espírito conhecidos no morro. Espírito, aliás, é
avesso à malandragem e aos golpes de sorte, de modo que estes não se
apresentam como meios viáveis para alguém como ele.

275
Em termos musicais, há uma contraposição entre o samba de
partido-alto, criado nos morros, tendo como instrumento principal
as caixas de fósforos, e os arranjos orquestrados das rádios, que trans-
formavam composições como Mexi com ela em boleros. Em tempos
anteriores, Orson Welles buscara explorar o mesmo tipo de contraste
em It’s all true, com vistas a mostrar a diversidade do carnaval, mas
também as segregações existentes (BENAMOU, 2007; STAM, 2008;
HIRANO, 2013 e 2016). No entanto, em Rio, Zona Norte a oposição
entre um tipo de arranjo e outro ganhava sentido dialético, tornando-se
uma formalização sonora para as lutas de classe.
Nelson Pereira dos Santos não se contentou em fazer um retrato
esquemático da sociedade, descarnado de qualquer relação visceral.
Ele baseou todo o argumento e o roteiro do filme em longas conversas
com Zé Ketti, amigo desde as filmagens de Rio, 40 graus, com quem
dividia o apartamento na época. Foi o sambista quem lhe comentou o
sistema de venda de canções. Além disso, o diretor viveu no morro du-
rante alguns meses a fim de melhor captar as particularidades daquele
contexto para o filme (SALEM, 1987).
Penso que Rio, Zona Norte compõe de maneira complexa a inter-
secção entre raça e classe. Não se trata apenas de uma representação do
negro como povo bom, generoso e ingênuo,16 pois em todas as classes
retratadas, há personagens bons e maus, lineares e multidimensionais.
Espírito é talentoso e de boa índole. No decorrer da trama, é
ludibriado por Maurício, mas desenvolve uma consciência da explora-
ção, muda de estratégia e consegue, por conta própria, apresentar sua
canção a Ângela Maria. Dessa maneira, o personagem é distinto daque-
les vividos pelo ator nas chanchadas, mais próximos da definição de
malandro de Antonio Candido: tipos esvaziados de lastro psicológico,

16 Vide, a tal respeito, Carvalho (2005).

276
caracterizados apenas pelos solavancos do enredo (CANDIDO, 1993, p.
23), oscilando entre a ordem e a desordem. Em Rio, Zona Norte, são as
experiências da vida que agregam novas características à personagem.
A película também faz outro uso da dimensão corporal de Otelo,
diferente daquela empregada pelas chanchadas: a baixa estatura e o rosto
arredondado, mostrados com frequência em primeiro plano, favorecem a
identificação e certa comiseração do público com relação a Espírito. Tais
predicados não são empregados para infantilizá-lo, pois a composição de
seu personagem é cercada de elementos que lhe dão integridade e ma-
turidade: Espírito não é apenas pai, mas também padrinho, preocupa-se
com o destino do filho e faz companhia para a afilhada, Gracinda. Como
notou Robert Stam (2008), é quase inexistente a figura do pai negro nos
filmes hollywoodianos e brasileiros. A construção de um personagem
complexo também se expressa no projeto de vida de Espírito: ele preten-
de ter uma casa e negócio próprio para conseguir a tão esperada guarda
do filho, de modo que o sucesso de seus sambas significa mais um meio
para a realização de um sonho factível.
A construção do filme expressa um modelo de estrutura social
em que Espírito tem pouca margem de negociação, destituído de capi-
tal social e econômico o compositor é quase obrigado a entregar seus
sambas a Maurício. Tal construção, contudo, não retira a margem de
agência da personagem, que reluta em dividir suas canções – o que só
aceita fazer mediante as pressões financeiras. Mais do que ingenuidade,
ou ausência de característica psíquica fixa, é a própria desigualdade
social que obriga o sambista a tomar tal atitude.
O cantor Alaor da Costa é o simétrico inverso de Espírito. Ambos
são negros, de tez escura, mas o primeiro se integra à indústria cultural
e, em parceria com Maurício (de pele clara), rouba os sambas do com-
positor do morro. Quando Espírito entra em seu camarim, Alaor sequer

277
estende a mão para ele. Ao mostrar dois personagens da mesma cor,
em posições tão diferentes na estrutura de classes e no campo cultural,
Nelson Pereira dos Santos enriquece seu retrato realista, despojando-o
de essencialismos, estereotipia racial e evitando relações metonímicas
entre cor e índole dos personagens.
Igualmente, os moradores da assim chamada Zona Norte se distin-
guem tanto nas características étnico-raciais quanto nos valores morais.
Honório, Gracinda e Figueiredo são brancos e todos solidários entre si.
A esposa de Figueiredo e Adelaide são pardas. A primeira, generosa; a
segunda, interesseira. Norival e o filho de Adelaide são negros. No bando
que assassina o filho de Espírito, há um menino branco, um preto e um
pardo. Além de matarem gente da própria classe social, eles roubam Es-
pírito. Não há, portanto, apenas um retrato condescendente do povo: há
conflitos e disputas internas, que solapam o próprio estrato econômico.
Assim, se há um certo determinismo no longa-metragem, ele
se escora na estrutura de classes. Mas tal procedimento não se desen-
volve de forma caricatural. Entre aqueles que trabalham na rádio, há
os de má índole, Alaor e Maurício, mas também os de boas intenções,
como Moacyr e Ângela Maria. No entanto, Nelson Pereira dos Santos
critica o paternalismo do violinista e da diva do rádio com relação a
Espírito. De acordo com o filme, ambos procuram ajudar o sambista,
mas não conseguem despojar-se da própria posição de classe e ver as
reais condições do compositor. Moacyr, por exemplo, pergunta qual o
seu telefone, mas não percebe que esse é um bem material escasso na
periferia, que ele não possui; e o convida para passar na rádio e em sua
residência, mas tampouco nota que o preço do deslocamento da Zona
Norte para a região central custa um dia de trabalho do sambista. Ânge-
la Maria, por sua vez, entusiasma-se com Fechou o paletó, mas é incapaz
de perceber que Espírito não tem meios para transpor sua música para

278
a partitura. Assim, ninguém se salva na pequena burguesia de Rio, Zona
Norte. Entre o povo, apesar das gangues, há formas de solidariedades
inexistentes nas classes média e alta.
O desenho da estratificação social no longa-metragem de Nelson
Pereira mostra aquilo que Marcelo Ridenti identifica nas manifestações
de esquerda, em meados da década de 1950 e nos anos 1960 e 1970, a
saber, um romantismo revolucionário:

buscava no passado elementos para a construção da


utopia do futuro. Não era, pois, um romantismo no
sentido da perspectiva anticapitalista prisioneira do
passado, geradora de uma utopia irrealizável na prá-
tica. Tratava-se de romantismo, sim, mas revolucio-
nário. De fato, visava-se resgatar um encantamento
da vida, uma comunidade inspirada no homem do
povo, cuja essência estaria no espírito do camponês e
do migrante favelado a trabalhar nas cidades – como
fica claro nas palavras do cineasta Nelson Pereira dos
Santos: ‘Naquela época, a favela era um ambiente
semi-rural. Você pode reparar no filme [Rio, Zona
Norte] que todas as casas têm um espaço, não estão
grudadas umas nas outras. A maioria das casas tinha
um quintal, com alguma criação, uma hortaliça. As
pessoas estavam reproduzindo condições de existên-
cia que tinham no campo, fora da cidade. [...] Não
se tratava de propor a mera condenação moral das
cidades e a volta ao campo, mas sim de pensar – com
base na ação revolucionária a partir do campo – a
superação da modernidade capitalista cristalizada
nas cidades, tidas no final dos anos 60 (RIDENTI,
2000, p. 25).

Tendo essa perspectiva em mente, é possível enriquecer ainda


mais a interpretação de Rio, Zona Norte. Por um ângulo, a pequena

279
burguesia, mesmo a intelectual, é paternalista e alienada – por exem-
plo, aquela caracterizada pela personagem de Moacyr e seus amigos.
Por outro, no desfecho do filme cabe ao violinista – que durante toda
a trama postergou a ajuda a Espírito, pois estava muito ocupado com
os caprichos do seu meio – resgatar os “três ou quatro sambas” do
compositor. O filme termina com a insinuação de que ele quiçá poderá
criar uma arte revolucionária, sem, no entanto, suplantar a possibili-
dade de cair na estilização, que tanto repudia. As ambiguidades de
Moacyr aprofundam seu lastro psicológico: ele próprio é um alterego
de Nelson Pereira dos Santos, com quem o diretor se identifica e, ao
mesmo tempo, alguém que ele confronta. Dessa maneira, o cineasta
joga a responsabilidade de alavancar a “cultura autêntica” para mover
a história sobre sua própria classe. Mas também hesita, pois não tem
certeza se esse é o caminho certo para a utopia. O epílogo condena
Moacyr por ter perdido a chance de aprender com o compositor em
vida. Contudo, também abre caminho para que ele faça algo com as
canções do sambista. Mas além de arrogar para sua própria classe um
papel transformador, Nelson Pereira inverte de modo sugestivo a rela-
ção entre intelectual e povo, como a alcunha do personagem de Grande
Otelo sinaliza: Espírito da Luz Soares é “um nome escolhido a dedo,
pois na umbanda, o Espírito da Luz é um espírito superior, mais puro,
que comanda os espíritos sem luz –, com sua morte agônica, a dar a
Moacyr a consciência da urgência dessa operação de resgate e integra-
ção” (FABRIS, 1994, p. 197).
Com Rio, 40 graus e Rio, Zona Norte, ao fazer um retrato crítico
sobre a indústria cultural – seja a fonográfica, em termos diegéticos, ou
a cinematográfica, no uso da linguagem –, Nelson Pereira estabelece
a figura do cineasta engajado, de esquerda, que tornará o cinema uma
forma privilegiada de diagnóstico das contradições do capitalismo

280
periférico e, quiçá, de sinalização de caminhos para a utopia, transfor-
mando os termos e hierarquias no campo cinematográfico brasileiro.
Os realizadores de cinema até então, tais como Adhemar
Gonzaga, Humberto Mauro, Ruy Costa, Luiz de Barros, José Carlos
Burle, Alinor Azevedo, Moacyr Fenelon, Alex Viany e Carlos Manga
– e mesmo diretores da Vera Cruz, como Alberto Cavalcanti e Lima
Barreto –, entre outros, têm cada um a seu modo um objetivo, por as-
sim dizer, nacionalista e comercial, para a produção cinematográfica.
Todos almejam que o cinema brasileiro seja capaz de revelar a face que
consideram verdadeira do país. Alguns, como Humberto Mauro, Car-
los Manga, Cavalcanti e Barreto, com maior conhecimento da técnica
cinematográfica clássica do que outros. Entre eles, Moacyr Fenelon,
Alinor Azevedo e Carlos Burle, fundadores da Atlântida, mas também
Humberto Mauro, ganham relevância ao buscar um retrato digno das
classes populares, por vezes estabelecendo aproximações com a ima-
gem cunhada pelo Partido Comunista. Entretanto, não perseguem uma
teleologia da história, nem procuram dar vazão ao diálogo entre forma
e conteúdo, como o faz Nelson Pereira dos Santos. Não que este cineas-
ta não nutrisse ideais nacionalistas, mas seu cinema é fruto do projeto
de resgatar um “Brasil autêntico”, transformando não apenas o campo
cinematográfico, mas também as estruturas sociais do país, rumo a uma
sociedade mais igualitária e justa. Se os demais buscavam “descobrir”
o Brasil, apostando em qualidades que o tornassem distinto como na-
ção e coerente com o status quo vigente, Nelson Pereira procurou em
seus primeiros filmes uma “brasilidade” capaz de propiciar a revolução
socialista – uma “brasilidade revolucionária”, como define Ridenti, que
apostava “nas possibilidades da revolução brasileira, nacional-demo-
crática ou socialista, que permitiria realizar as potencialidades de um
povo e de uma nação” (RIDENTI, 2010, p. 10).

281
Ao unir engajamento político e cinema, Nelson Pereira dos San-
tos consegue reunir à sua volta jovens também ligados à esquerda, que
se tornam expoentes do Cinema Novo, dando continuidade e renova-
ção a suas ideias por meio de um projeto mais ambicioso, em que elas
foram a pedra de toque fundamental. Não obstante, o êxito de Nelson
Pereira pode compreender-se na medida em que, em pleno pós-Se-
gunda Guerra Mundial – o período democrático de 1945 a 1964 –, é
capaz de sintetizar, em sua direção cinematográfica, condições sociais e
culturais bem diversas da geração que o antecedeu.17

A recepção de Rio, Zona Norte: elogios e críticas


a Nelson Pereira dos Santos e Grande Otelo

Financiado com a bilheteria de Rio, 40 graus e com verba da Co-


lumbia, Rio, Zona Norte tem algumas sequências realizadas nos estúdios
da Flama e artistas de sucesso no elenco, como Grande Otelo e Ângela
Maria. Apesar disso, a produção era independente, como fica indicado
nos créditos do filme, encabeçados pelo próprio diretor. Malgrado o
apoio técnico, as condições continuam precárias. O aluguel do estúdio
não é barato e as películas virgens são escassas demais para gastá-las
com ensaios do elenco.
Lançado ao final de 1957, o filme tem pouca bilheteria e divide
a crítica entre aqueles que atacam a utilização de imagens em estado
praticamente bruto e outros que reconhecem o valor do filme frente à
produção das chanchadas. Grade Otelo ganha destaque em quase to-
das as críticas. Na Tribuna da Imprensa, o crítico diz: “Autor instintivo,
quase sem treinamento pré-direcional [...], inspirado no Neo-Realismo
italiano, mas sem a maturidade dos bons cultores do movimento [...]”

17 Faço uma análise pormenorizada da trajetória de Nelson Pereira dos Santos, no


Capítulo 6 de minha tese de doutorado. Ver Hirano (2013b).

282
(apud SALEM, 1987, p. 136). Paulo Emílio Salles Gomes escreve uma
crítica similar em O Estado de S. Paulo, mas reconhece a poesia de uma
sequência interpretada por Grande Otelo:

Nelson Pereira dos Santos foi talvez vítima da ilusão de


que esse estilo [neo-realista] o dispensasse da necessi-
dade laboriosa de estilização e da procura cuidadosa
das convenções mais adequadas aos seus propósitos.
Ele simplesmente dispôs numa certa ordem os mate-
riais, quase em estado bruto [...]. Essa fita fracassada
contém momentos que, bem estudados, poderão
provocar uma tomada de consciência sobre as sutis e
misteriosas exigências do cinema e contribuir para o
desenvolvimento da tendência neo-realista brasileira.
Penso sobretudo na sequência em que o personagem
interpretado por Grande Otelo acorda, levanta-se, faz
a toalete e recebe a noiva. [...], os movimentos do ator,
as palavras que troca com a noiva, o comportamento
com a criança e sobretudo a extraordinária presença
táctil dos objetos de uso corrente ou da ornamentação
humilde do barracão, criam uma harmonia interior e
comunicam uma doçura que conferem a essa sequên-
cia modesta uma consistência artística rara no cinema
brasileiro. (GOMES, 1982 [1958], p. 351-352)

O crítico de A Noite, Van Jafa, ao contrário de Paulo Emílio, con-


sidera a montagem do filme de “linguagem difícil para o espectador
comum, critica a carência de dramaticidade, mas arremata: Rio, Zona
Norte tem a melhor e mais autêntica qualidade que um filme pode ter:
É CINEMA” ( JAFA, 1957, p. 3-6). Em relação a Grande Otelo, este
comentarista afirma apenas que “está bastante convincente” ( JAFA,
1957, p. 3-6). O crítico Alberto Shatovsky rechaça o filme, mas elogia o
protagonista dizendo: “o que se extrai de Rio, Zona Norte é praticamen-

283
te o personagem e o intérprete Grande Otelo. O personagem válido
como figura de um quadro social popular. O intérprete, integrando-se
perfeitamente no personagem, numa demonstração cabal de que é um
dos mais sensíveis atores brasileiros” (apud FABRIS, 1994, p. 198).
O Diário carioca concorda com os que dizem que o filme apre-
senta deficiências na captação de som e composição de algumas cenas,
mas também faz a mais elogiosa dentre as críticas recebidas pelo longa:

Três méritos não podem ser negados ao diretor Nel-


son Pereira dos Santos, como produtor-argumentis-
ta-diretor (portanto o autor do filme), nesta segunda
experiência procurando levar para o cinema um tema
de sensível correspondência com a realidade carioca:
que ele conseguiu dar autenticidade física e psicológi-
ca aos tipos que criou; que conseguiu, através de um
ritmo propositadamente lento, integrar os persona-
gens do drama narrado no ambiente de pessimismo
ao qual reagem com otimismo peculiar aos que estão
acostumados a sofrer; e que, elaborando a crônica
sofrida de um compositor que só a custo conseguiu
sucumbir às circunstâncias adversas que a vida lhe re-
servou, enfrentou o risco de desagradar a plateia como
protagonista, não colocando um galã propício à fácil
sensibilização do grande público. [...]. O grande ator
negro, Otelo, tem nesta interpretação simultaneamen-
te a maior da sua carreira no cinema e a maior inter-
pretação de um ator no cinema brasileiro. Controlado
e dócil à direção, mas sobretudo espontâneo e sensível
por natureza e devoção, está exato no mínimo detalhe,
do gesto à palavra e à expressão. Particularmente nos
momentos em que contracena com Jece Valadão ou
Paulo Goulart, atores também profissionais como ele,
o filme começa a crescer. (OTTONI, 1957, p. 7, grifos
meus).

284
O primeiro ponto a destacar nessa crítica é a denominação de
Nelson Pereira dos Santos como “autor” do filme, termo cunhado pela
Nouvelle Vague para designar cineastas que, dentro ou fora da indústria
cinematográfica, mantêm, de um filme para outro, uma mise-en-scène pró-
pria, ou seja, uma maneira idiossincrática de dispor e enquadrar os ele-
mentos em cena. Longe do padrão industrial dos filmes de Hollywood,
da Cinédia e da Sonofilmes, em que as funções de diretor, argumentista e
produtor são enquadradas em princípios de produtividade na divisão do
trabalho, nos filmes de Nelson ele assina todas as etapas, inclusive a mon-
tagem. A crítica do Diário também difere das anteriores ao reconhecer
que o cineasta optou, por conta e risco, por escalar um não galã, evitando
o uso de um recurso que seria mais propício à fácil sensibilização do grande
público. Grande Otelo conquista a simpatia da plateia por meio de outros
predicados – em geral, em papéis cômicos – e, aos olhos do cinema do
período, seu talento para o drama não era visto como um chamariz de
bilheteria. Por fim, o crítico, assim como fizera Paulo Emílio, reconhece
uma interpretação de gestual poético do ator principal.
Segundo Fabris, o próprio Nelson Pereira dos Santos destaca o
papel fundamental de Grande Otelo, conforme menciona a epígrafe
neste artigo, a ponto de “atribuir-lhe a parceria na realização do filme”
(SANTOS, 1957 apud FABRIS, 1994, p. 198).
Otelo faz um papel singular em Rio, Zona Norte, distanciando-se
de estereótipos das chanchadas e assumindo novas dimensões com
relação a Também somos irmãos e Amei um bicheiro. Como mencionado
outrora, ele é pai, padrinho e homem honesto, de maturidade inexis-
tente em seus papéis anteriores. No decorrer da trama, o ator modula
alegria e tristeza, esperança e decepção em gestos sutis, num crescendo
de enorme dramaticidade. A personagem de homem maduro, entre-
tanto, não desbanca sua persona de moleque malandro e Otelo conti-

285
nua, até a década de 1960, fazendo papéis que reforçam esse tipo nas
chanchadas, ao lado de Ankito. De modo análogo, seu reconhecimento
pelo Cinema Novo, em 1968, virá por meio de uma persona similar,
reatualizada em Macunaíma.
A destreza de Grande Otelo na interpretação de Espírito se torna
mais marcante quando lembramos que o ator só foi conhecer o samba
carioca aos 17 anos, momento em que passou a atuar como malandro
e sambista nas peças da Companhia de Teatro de Revistas de Jardel
Jércolis. Conforme é possível ver nas críticas da época (DOURADO,
2005; CABRAL, 2007; BRITO, 2011; HIRANO, 2013), levou cerca
de dois anos para ele conseguir arrancar palmas da plateia com uma
interpretação convincente, após treinos diuturnos e aprendizagem na
boemia da Lapa, especialmente no Elite Clube, casa famosa de gafieira
no centro do Rio de Janeiro. Não era para menos, Grande Otelo nasceu
em Minas Gerais e passou a infância e adolescência na cidade de São
Paulo, sob a tutela de famílias brancas abastadas. Na infância, quando
fez sucesso na Companhia Negra de Revistas, foi interpretando monó-
logos e árias – e não como sambista.
Esses dados biográficos de Grande Otelo são importantes ao re-
velar não apenas o esmero do ator como cantor de óperas e declamador
de densos monólogos aos nove anos de idade, desbancando possíveis
visões reducionistas, mas também ao mostrar que sua singularidade
está em observar, aprender e encarnar de forma sem igual outros mo-
dos de vida diferentes do seu.
As críticas de jornais ao Rio, Zona Norte coroam a interpretação
de Grande Otelo, que desponta como um dos maiores atores do Brasil.
Mas depois desse filme, demora para o ator ser aclamado novamente.
A dívida acumulada coloca Nelson em difícil situação e o diretor vê-se
obrigado a retomar o emprego de jornalista de segundo escalão e fazer

286
documentários encomendados. No entanto, esse filme e, especialmen-
te, Rio, 40 graus são reconhecidos pela geração de jovens que dá início
ao Cinema Novo. Carlos Diegues (2001) afirma que foi assistindo a
Rio, 40 graus que ele vislumbrou a possibilidade de ser cineasta. Glau-
ber Rocha é mais enfático, na Revisão crítica do cinema brasileiro:

Assim como eu, naquele tempo tateando a crítica,


despertei violentamente do ceticismo e me decidi a
ser diretor de cinema brasileiro nos momentos que
estava assistindo Rio, 40 graus, garanto que oitenta
por cento dos novos cineastas brasileiros sentiram o
mesmo impacto. Naquela época não conhecíamos
Humberto Mauro; havia dignidade em Nelson Pe-
reira dos Santos; Cavalcanti nos parecia uma estrela
distante; Lima Barreto um monstro agressivo e men-
tiroso; Mário Peixoto um mito. (ROCHA, 2003, p.
103-104)

Glauber considerava Rio, Zona Norte mais profundo, tecendo


elogios à atuação de Grande Otelo no filme:

Rio, Zona Norte é dissonante no conjunto, não tem


a forma definida de Rio, 40 graus. Mas aí a ‘dialética
de jornal’ evolui para uma penetração mais aguda: o
homem brasileiro deixava de ser uma categoria pura-
mente de classe. Homem de classe, mas homem com
implicações existenciais. ‘Espírito’, o sambista de Rio,
Zona Norte, vivido excepcionalmente por Grande
Otelo, é a pobreza, a ingenuidade, o servilismo e o ta-
lento dos negros sambistas da Zona Norte; sonhado-
res e românticos, sofridos e esmagados pelo império
do rádio. (ROCHA, 2003, p. 108)

287
Mas se Rio, Zona Norte ainda dialoga com a cinematografia bra-
sileira anterior, a nova geração tem a liberdade de experimentar outros
caminhos, negando qualquer relação com as chanchadas e demais pro-
jetos de cinema industrial no Brasil. Artistas vinculados aos musicais
carnavalescos e à Vera Cruz, como Grande Otelo, Oscarito, Ankito,
Eliana Macedo, Vera Regina, Anselmo Duarte e Ruth de Souza, entre
outros, não mais serão escalados por essa nova geração. Apesar dos elo-
gios de Glauber Rocha, Otelo vivencia um período de ocaso no auge do
cinemanovismo. Uma nova leva de atores negros, com interpretações
diferentes de Grande Otelo, entra em cena: Antonio Pitanga, Zózimo
Bulbul, Eliezer Gomes e Luíza Maranhão, entre outros, ganham as telas
de cinema, não só como afirmações de uma beleza negra, mas simboli-
zando uma estética de engajamento na primeira fase do Cinema Novo.

Referências

ALMEIDA, Heloísa Buarque. Cinema em São Paulo: hábitos e representação


do público (anos 40/ 50 e 90). 1995. Dissertação (Mestrado em Antropologia
Social) – Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Faculdade de Fi-
losofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1995.

ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. Metrópole e Cultura: São Paulo no


meio século XX. Bauru, SP: Edusc, 2001.

AUGUSTO, Sérgio. Este mundo é um pandeiro. São Paulo: Companhia das Letras,
2005.

AUMONT, Jaques; MARIE, Michel. Dicionário Teórico e crítico de cinema. São


Paulo: Papirus, 2003.

288
AUTRAN, Arthur. O Pensamento Industrial Cinematográfico Brasileiro. 2004. 288
f. Tese (Doutorado em Multimeios) – Instituto de Artes, Universidade Estadual
e Campinas, Campinas, SP, 2004.

BARON, Cynthia; CARNICKE, Sharon Marie. Reframing screen performance.


Michigan: University of Michigan Press, 2008.

BAZIN, André. Orson Welles. Rio de Janeiro: JZE, 2006.

BENAMOU, Catherine L. It’s All True: Orson Welles’s Pan-American Odyssey.


Los Angeles: University of California Press, 2007.

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In:


______. Obras escolhidas: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Editora
Brasiliense, 1987.

BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.

BORDWELL, David. A Arte do cinema: uma introdução. São Paulo: Edusp/


Editora da Unicamp, 2013.

BRITO, Deise Santos. Um ator de fronteira: uma análise da trajetória do ator


Grande Otelo no teatro de revista brasileiro entre as décadas de 20 e 40. 2011.
151f. Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas) – Escola de Comunicação e
Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.

CABRAL, Sérgio. Grande Otelo: uma biografia. São Paulo: Editora 34, 2007.

CANDIDO Antonio. Dialética da malandragem. In:_____. O discurso e a cida-


de. Rio Janeiro: Duas cidades, 1993. p. 19-54.

CARVALHO, Noel dos Santos. Cinema e representação racial: o cinema negro


de Zózimo Bulbul. Tese (Doutorado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Sociais, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.

COHAN, Steven. Hollywood Musicals. New York: Routledge, 2002.

289
DAMATTA, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis. Rio de Janeiro: Rocco,
1997.

DIEGUES, Cacá. A vocação cinematográfica no Brasil. Entrevista com Cacá


Diegues. Revista Continental, 01/04/2001. Disponível em: <http://www.
revistacontinente.com.br/index.php/component/content/article/139.html>.
Acesso em: 04 abr. 2013.

DILLON, Josephine. Modern acting: a guide for stage, screen and radio. New
York: Prentice-Hall, 1940.

DOURADO, Ana Karicia Machado. Fazer rir fazer chorar: a arte de Grade Otelo.
2005. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2005.

DYER, Richard. White: Essays on race and culture. Londres: Routledge, 1997.

GALVÃO, Maria Rita. Burguesia e Cinema: o caso da Vera Cruz. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1981.

GOMES, Paulo Emílio. Rascunhos e exercícios. In: ______. Críticas de Cinema


no Suplemente o Literário. Rio de Janeiro: Paz e Terra 1982. v. 1.

HALL, Stuart (Org.). Representation: cultural representation and signifying


practices. Londres: Sage, 1997.

HIRANO, Luis Felipe Kojima. IMAGENS DE MÁ VIZINHANÇA: Its all true,


de Orson Welles, e a desconstrução racial na forma cinematográfica. Política &
Trabalho, (On-line), v. 44, p. 124-143, 2016.

HIRANO, Luis Felipe Kojima. O olhar oposicional e a forma segregada: raça,


gênero, sexualidade e corpo na cinematografia hollywoodiana e brasileira (1930-
1950). Revista Aceno, v. 2, n. 3, 2015.

HIRANO, Luis Felipe Kojima. O imaginário da branquitude à luz da trajetória de


Grande Otelo: raça, persona e estereótipo em sua perfomance artística. Afro-Ásia,

290
Salvador, n. 48, 2013a. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?scrip-
t=sci_arttext&pid=S0002-05912013000200003&lng=en&nrm=iso>. Acesso
em: 02 dez. 2017. http://dx.doi.org/10.1590/S0002-05912013000200003.

HIRANO, Luis Felipe Kojima. Uma interpretação do cinema brasileiro através


de Grande Otelo: raça, corpo e gênero em sua performance cinematográfica
(1917-1993). 2013b. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo,
2013. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8134/
tde-14112013-122614/>. Acesso em: 12 fev. 2017.

JAFA, Van. Crítica do filme Rio Zona Norte. A NOITE, 27/11/1957, 2ª Caderno
p. 3-6.

KULESHOV, Lev. Kuleshov on film: writings of Lev Kuleshov. Los Angeles: Uni-
versity of California Press, 1974.

MATTOS, Carlos Alberto. Cacá Diegues fala sobre os cinco filmes que são faróis de
carreira. Disponível em: <http://www.carlosdiegues.com.br/destaques_integra.
asp?idA=122>. Acesso em: 04 abr. 2013.

MCDONALD, Paul. Film acting. In: HILL, John; GIBSON, Pamela Church. The
Oxford Guide to Film Studies. Oxford: Oxford University Press, 2008.

METZ, Christian. A significação no cinema. São Paulo: Perspectiva, 2010.

OTTONI, Décio Vieira. Cinema: Rio Zona Noite. Diário Carioca, 21/11/1957,
p. 7.

PONTES, Heloisa. Intérpretes da metrópole. São Paulo: Edusp, 2011.

RIDENTI, Marcelo. Brasilidade revolucionária. São Paulo: Editora Unesp, 2010.

RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à


era da TV. Rio de Janeiro: Record, 2000.

291
ROCHA, Glauber. [1963]. Revisão crítica do cinema brasileiro. São Paulo: Cosac
Naify, 2003.

SALEM, Helena. Nelson Pereira dos Santos: o sonho possível do cinema brasilei-
ro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987.

SCHVARZMAN, Sheila. Humberto Mauro e as imagens do Brasil. São Paulo:


Editora Unesp, 2004.

SOUZA, Ruth de. Depoimento para posteridade no Museu da Imagem e do Som.


Rio de Janeiro, 27 jun. 1979, entrevista concedida para Neuza Amaral, Jacira
Silva, Rui Silva, Alex Viany, José Carlos Monteiro, Salviano Cavalcanti de Paiva.

STAM, Robert. Multiculturalismo tropical. São Paulo: Edusp, 2008.

292
LEMBRAR, SENTIR E PENSAR:
REALIZAÇÃO E CIRCULAÇÃO DO
FILME ETNOBIOGRÁFICO

Alexandre Fleming Câmara Vale1


Claudia Turra-Magni2

Resumo: No presente artigo, buscamos refletir sobre algumas das


consequências heurísticas, éticas e políticas da implicação episte-
mológica do vídeo na experiência etnográfica. Indagamos sobre
seu potencial de agenciamento no que tange à intersubjetividade,
à autoria e aos afetos, no processo de realização e circulação de
imagens documentais. Partiremos de um filme etnobiográfico e
sua recepção, como exemplo de tessitura colaborativa, existencial
e afetiva entre a protagonista do filme e sua realizadora, bem como
seus efeitos de recepção junto a estudantes de antropologia.

Abstract: In this article we seek to reflect on some of the heuristic,


ethical and political consequences of the epistemological impli-
cation of the video in ethnographic experience. Investigating the
potential of the video when dealing with questions like intersub-
jectivity, authorship and affections, we intend to unveil some of

1 Professor da Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, Brasil. Coordenador do


Laboratório de Estudos da Oralidade.
2 Professora da Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, Brasil. Coordenadora do
Laboratório de Ensino, Pesquisa e Produção em Antropologia da Imagem e do
Som (LEPPAIS).

293
the logic sunderlying the processes of realization and circulation
of documentary images. The article focuses on an ethnobiographic
film and its reception as an example of a collaborative, existential and
affective change between the protagonist of the film and its director,
as well as its effects of reception with in anthropology students.

Introdução

Neste artigo, discutiremos a potencialidade do filme na pesquisa


etnográfica, a partir das trocas que ele promove, seja durante a sua realiza-
ção, seja no quadro da circulação destas imagens no âmbito do ensino da
antropologia e de diálogos acadêmicos. Tomaremos um filme etnobio-
gráfico e sua recepção como exemplo de tessitura colaborativa, existen-
cial e afetiva entre a protagonista e a realizadora, alunos de antropologia
e os coautores deste artigo. Buscamos, assim, refletir sobre algumas das
consequências heurísticas, éticas e políticas da implicação epistemológi-
ca do vídeo na experiência etnográfica, indagando sobre seu potencial de
agenciamento no que tange à intersubjetividade, à autoria e aos afetos, no
processo de realização e circulação de imagens documentais.
Se Geertz (2001) está correto ao se referir ao trabalho de campo
como uma “experiência completa”, seria possível que ela atinja certa
maturidade quando investida da estética do processo documental, pen-
sado em termos da recepção e transmissão da experiência etnográfica?
Poder-se-ia, ainda, pensar que nas discussões em torno do lugar situa-
do (política de posição) daquele ou daquela que descreve culturas, a
construção da empatia e o controle das transferências – fundamentais
para o encontro etnográfico – ganhem contornos meta-reflexivos
quando mediados pelos procedimentos e processos compartilhados de
fabricação, compartilhamento e recepção das imagens? As situações de
recepção e apropriação de imagens implicariam em uma transição em

294
termos de uma autoridade dialógica, para além da monologia inques-
tionada do antropólogo/a, mais explícita, porque mais acessível, nas
experiências de recepção de imagens do que na de textos?
Ora, o estado atual do conhecimento em torno das maneiras
como os espectadores e espectadoras respondem a um filme etnográ-
fico, destaca Jay Ruby (2000, p. 181-182) é bastante limitado e, em si
mesmo, uma tarefa difícil. Somente nos últimos trinta anos, quando
algumas teorias da recepção tornaram-se populares na antropologia, é
que o lugar do espectador e/ou leitor passou a ser considerado como
uma tarefa válida de investigação. A opinião doutra sobre a recepção,
destaca o autor, oscilou entre enxergar espectadores e espectadoras
como entidades passivas, ou seja, vítimas de mensagens hegemônicas
e opressoras, ou de representá-los/as como únicas entidades responsá-
veis pela construção de significados.
Na busca de aprofundar estas questões, discutiremos sobre os
avanços que as premissas da recepção, pensadas em termos de compar-
tilhamento e dialogia, aportaram à Antropologia. Em seguida, aborda-
remos um caso empírico, fruto de uma pesquisa de doutorado (MAG-
NI, 2011), por meio de uma experiência etnobiográfica, realizada em
uma Oficina de Vídeo para pessoas sem-domicílio fixo na França, da
qual resultaram dois filmes colaborativos: A Oferenda, de autoria de
uma participante desta Oficina, e um metavídeo, A Oferenda de Sabiá,3
de autoria da antropóloga (co-autora deste artigo). Este segundo filme,
apresentado a um público acadêmico brasileiro, no contexto do ensi-
no introdutório à Antropologia, fornecerá elementos para refletirmos
sobre a recepção e apropriação de imagens etnográficas. Trata-se aqui
de pensar em que sentido o trabalho colaborativo no filme etnobiográ-
fico possibilitou-nos problematizar experiências políticas e afetivas de

3 Acessível em: <https://vimeo.com/108809610>.

295
recepção e aprendizado, para além da “fé tocante” do antropólogo e da
antropóloga.

Antropologia compartilhada, circulação, restituição


e estética da recepção do filme etnográfico

A pesquisa colaborativa, a restituição e a recepção de achados


etnográficos constituem processos que emergiram em resposta às exi-
gências éticas e políticas das experiências de pesquisa, na esteira dos
debates teóricos sobre a crise da autoridade e da representação em
antropologia (CLIFFORD; MARCUS, 1986). O método colaborativo
tornou-se uma condição incontornável da antropologia acadêmica e
aplicada. Seus antecedentes históricos remontam à proposta rouchia-
na de uma “antropologia compartilhada” e, especialmente no caso da
antropologia visual, sinalizam para um tipo de conhecimento sobre
a alteridade que não se expresse apenas ou fundamentalmente pela
palavra escrita, mas que, tomando o trabalho de campo como uma ati-
vidade coletiva, implique na observância dos processos participativos
de “representificação” (MENEZES, 2004) e reflexividade dos grupos
e indivíduos/personagens (pensados aqui em termos etnobiográficos)
concernidos na pesquisa imagética.
O empenho colaborativo tem contribuído de forma decisiva,
seja na multiplicação de projetos de restituição para os interlocutores
da pesquisa e para nossos consortes na academia, seja na difusão de
filmes etnográficos para um público amplo e para alunos/as de antro-
pologia em formação, o que foi facilitado pelo acesso crescente às tec-
nologias da informação e da comunicação. Tal processo, que envolveu
estratégias discursivas de identificação de problemáticas de pesquisas,
bem como a devolução e transmissão de achados etnográficos (vistos

296
como “objetos de saber”) na forma de textos, imagens e sons, constitui
o interesse central do artigo que ora apresentamos.
Figuramos assim três abordagens teóricas do que denominamos
de trabalho colaborativo com imagens, o saber, a antropologia com-
partilhada, a estética da recepção e a restituição, tomadas como abor-
dagens afins e compondo um “cenário de interpelação” (BUTLER,
2007) para a autoridade etnográfica. O esforço colaborativo realizado
em A Oferenda de Sabiá insere-se nos dois primeiros casos, visto que a
restituição almejada tornou-se inviável, como veremos adiante.
Se os antropólogos querem utilizar o filme para transmitir seu
conhecimento para outros, como destacou Ruby (2000, p. 181), faz-se
necessário aprender mais sobre a construção de significados realizada
pelas suas audiências, o que significa conduzir estudos etnográficos
sobre a recepção fílmica em Antropologia. Esses estudos afinam ele-
tivamente com uma reviravolta central na experiência estética con-
temporânea. Canclini (1998), por exemplo, identifica no programa de
uma estética da recepção, o “giro paradigmático” em nossos empreen-
dimentos atuais de conhecimento. “Analisar a arte”, diz o autor, “já
não é analisar apenas obras, mas as condições textuais e extratextuais,
estéticas e sociais em que a interação entre os membros do campo gera
e renova o sentido” (CANCLINI, 1998, p. 151). O autor destaca que
os historiadores que analisam a “fortuna crítica” existente nas reelabo-
rações experimentadas por uma obra ou por estilo, como por exemplo,
o estilo rouchiano (embora o autor não se refira a tal estilo), “também
vêem a arte ‘como uma relação: a relação entre um objeto e todos os
olhares que tenham sido lançados sobre ele na história’ e que o tenham
‘transformado incessantemente’” (CANCLINI, 1998, p. 151).
A ideia de uma experiência relacional e de um sentido renovado
a partir dos vários olhares lançados sobre uma pesquisa antropológica

297
textual ou imagética que se encontra no cerne da proposta de uma an-
tropologia compartilhada, bem como na reelaboração ou diálogo desta
com a antropologia da recepção e da restituição. Nesse sentido, vale
lembrar o trabalho de Paul Henley (2009, p. 318-320) que, referindo-se
ao caráter inovador das descobertas de Jean Rouch, falava, por exem-
plo, do quanto o antropólogo-cineasta regozijava-se quando um filme
nascia de outro, ou seja, a partir da “situação de recepção” ou “visiona-
mento” das imagens realizados junto aos seus/suas “interlocutores/as”,
para falar em termos mais atuais. Certamente não é gratuito também
o fato de Henley ter identificado Jean Rouch como uma espécie de
“profeta precoce” de algumas das proposições da celebrada reviravolta
pós-moderna na antropologia americana e inglesa, especialmente no
que tange ao seu interesse pela experiência subjetiva de seus sujeitos,
seu ceticismo em relação à objetividade científica e seus métodos au-
torreflexivos e colaborativos.
Valendo-se da recepção para pensar a teoria literária, James Clif-
ford (1998) ressalta que paradigmas de experiência e interpretação estão
dando lugar a paradigmas de discurso, diálogo e polifonia e que tal subs-
tituição implica em uma ruptura com o que denomina de “autoridade
monológica”. Ora, se Clifford está correto ao dizer que a “eficácia de um
texto em fazer sentido depende menos das intenções pretendidas do au-
tor do que da atividade criativa de um leitor” (CLIFFORD, 1998, p. 57),
podemos dizer que no caso das imagens, a atividade criativa de espec-
tadores e espectadoras mostra-se, não apenas mais acessível do que no
texto escrito, mas implica na possibilidade de uma construção dialógica
de consenso em torno daquilo que é ou não inteligível ou representável a
respeito de um determinado grupo ou indivíduo. Afinal, continua o autor
(CLIFFORD, 1998, p. 57) “a multiplicação das leituras possíveis reflete

298
o fato de que a consciência ‘etnográfica’ não pode mais ser considerada
como monopólio de certas culturas e classes sociais no Ocidente”.
Assim, esse giro paradigmático voltado para o leitor ou para o
receptor é o objeto central de nossa inquietação no que se refere à esté-
tica da recepção, pensada especificamente a partir do filme A Oferenda
de Sabiá. A perspectiva de uma autoridade etnográfica monológica será
colocada em cheque, uma vez que tal recepção, tanto nos efeitos, quanto
nas interpelações que suscita, é considerada como “não-controlada” e
“multissubjetiva”, e ganha coerência através de atos específicos de leitura
ou visionamentos imagéticos. Referindo-se à Barthes, Clifford (1998, p.
57) destaca ainda que: “se um texto é uma trama de citações retiradas de
inumeráveis centros de cultura, então a unidade de um texto repousa, não
em sua origem, mas em seu destino”. E é tal destino, pensado em termos
de contextos de colaboração, recepção e restituição realizadas entre
pares, que abre para a heteroglossia dos vários pontos de vista, trazendo
para o centro da cena a intersubjetividade de toda fala. Tais contextos
podem fornecer pistas para sair do impasse e sugerir um modelo discur-
sivo de prática etnográfica para além do monologismo, como veremos na
experiência da co-autora deste artigo, tanto no momento da produção
de seu filme e diálogo com sua interlocutora, quanto na experiência de
recepção vivenciada ao exibir esse filme para uma plateia de estudantes
universitários de um país diferente daquele onde foi produzido.

A Oferenda de Sabiá: bastidores de um filme etnobiográfico

Com bases nas considerações acima, revisitaremos um dos filmes


resultante de uma pesquisa de doutorado (MAGNI, 2011) desenvolvida
no quadro dos “Espaços Solidariedade Inclusão” (ESI) de associações
parisienses engajadas no “combate à exclusão”, a partir de um trabalho de
campo de longa duração (entre 1998 e 2002), cujas formas emergiram de

299
agenciamentos imagéticos de existência vivenciados de maneira compar-
tilhada e em situações específicas de recepção e troca. Como já referido
inicialmente, trata-se de um filme realizado no âmbito de uma oficina de
vídeo para pessoas ditas “SDF” (Sans-Domicile Fixe), em que os partici-
pantes apresentavam e desenvolviam seus projetos fílmicos, individual
ou coletivamente, sob orientação de um educador social.
A Oferenda de Sabiá foi pensado como um metafilme etnográfi-
co, em que a protagonista, Sabiá, uma bela e eloquente mulher negra
de 30 anos, filha de mãe camaronesa e de pai mauritaniano, acolhida
nesta associação, projeta e registra as imagens de seu próprio filme, A
Oferenda, no qual ela representa a doação de seus filhos, falecidos, aos
ancestrais, a partir de uma cosmovisão animista. Simultaneamente,
em diálogo com a câmera da antropóloga, ela fornece as chaves para a
compreensão de seu filme, a ser editado “sem palavras”, somente com
a trilha sonora a música Desafinado, de João Gilberto, a qual ela elege
por considerar dissonante as imagens geradas por essa sua primeira
experiência com a câmera.
Apesar de seu empenho no projeto e da densidade do encontro
etnográfico gerado nessas circunstâncias, Sabiá era pouco assídua na
associação e acabou não retornando para editar as imagens, função que
foi assumida pela antropóloga, conforme as diretrizes apresentadas pela
realizadora, durante a Oficina de Vídeo. Assim, apesar dos inúmeros
esforços, não foi possível restituir a ela o seu próprio filme, A Oferenda,
editado na França, durante o trabalho de campo, tampouco o filme et-
nográfico, A Oferenda de Sabiá, editado no Brasil, quase dois anos após
a finalização do doutorado. O que abordaremos aqui, primeiramente,
é a dialogia e as trocas estabelecidas nos “bastidores” das filmagens e,
posteriormente, a recepção desse filme entre acadêmicos brasileiros.

300
A noção de etnobiografia4 ajuda a compreender esse filme cola-
borativo, assim como iluminar o propósito de Sabiá, declarado na reu-
nião da Oficina de Vídeo da Associação, em que ela manifesta o desejo
de que seu projeto tenha um “efeito terapêutico”:5

Eu quero me exorcizar, eu acho... Sim é isso! [...] Há


um momento, uma etapa da vida, em que se deve
fazer uma oferenda, como, por exemplo, quando
uma mãe perde um filho. Se ela encara o fato como
uma oferenda – a morte dessa criança – ela sofre
menos, porque, de fato, esta criança passa a estar
em toda parte. Ela é oferecida, ela está lá. Então ela
não está morta.

No dia da gravação, realizada na sala da Associação, ela leva vá-


rios objetos, através dos quais pretende, em imagens tomadas a partir
de câmera na mão, performatizar a doação da filha falecida (posterior-
mente, ela revela ter perdido duas crianças) aos ancestrais. Sobre uma
mesa, ela coloca um tripé de câmera como armação para dispor uma
manta amarelo-ouro (indumentária usada pelas mulheres Bambara para
que os outros possam “resistir à sua beleza”, após darem à luz), e no vão
desta estrutura, ela posiciona os seguintes objetos: uma máscara de ce-

4 Inspirado em obras dos cineastas Jorge Prelorán e Jean Rouch, Marco Antônio
Gonçalves (2008) discorre sobre a noção de etnobiografia como meio de romper
com a dicotomia entre o individual e o coletivo, o sujeito e a cultura, a subje-
tividade e a objetividade, sem tratar o indivíduo como epifenômeno do social,
tampouco situá-lo ideologicamente como centro das sociedades ocidentais. É na
construção de um etno-diálogo que não esteja calcado na dualidade entre pesqui-
sador e pesquisado, que se torna possível realizar uma etnobiografia: “produto e
construto de uma relação que altera percepções no processo mesmo de sua cria-
ção”, fruto de uma relação complexa “entre indivíduos situados em suas respec-
tivas culturas, tendo como pano de fundo suas representações culturais sobre a
alteridade” (GONÇALVES, 2008, p. 206-207).
5 Todas as transcrições foram traduzidas pela autora deste artigo.

301
râmica de três olhos, pertencente à sua avó camaronesa, representando
os ancestrais; um cinto de búzios, símbolo da natividade no Mali; uma
bijuteria em metal em forma de pássaro, tirada de seu colar Dogon, figu-
rando o totem da oferenda, e dois vidros de perfume similares a um cor-
po humano, da marca Organza, de Givenchy, sendo um grande e cheio,
posicionado de pé, e outro pequeno e vazio, deitado sobre um boné
tuaregue azul, evocando a mãe que vela seu filho. Após fazer experimen-
tações com filtros da câmera, Sabiá conclui as filmagens, desmanchando
a estrutura sob a manta e fazendo um travelling em torno da mesa onde
reposiciona alguns dos objetos. Para a câmera da antropóloga, ela decla-
ra: “Então eu gostaria que, em imagem, isso fosse transportado, como se
eu levasse este Organza vazio ao Comodoro”, pois “eu perdi um filho, faz
três anos, então achei que seria bom oferecê-lo”.

Porque nós somos animistas, cremos nos ancestrais.


[...] Por exemplo, na tradição da tribo de minha mãe
– ela é Shomon – na morte de alguém, de fato não se
morre: a gente revive na água. Encontramos todos
nossos ancestrais na água.

No restabelecimento da reciprocidade com os ancestrais, re-


presentado pela agência destes objetos, animados pelas imagens da
câmera, ela resignifica a perda da filha como condição de reequilíbrio
pessoal. E afirma:

É preciso dar, antes de receber. [...] Eu não acredi-


tava nisso e tive que comprovar pela minha própria
degradação... (risos) [...] A gente dá, a gente recebe.
O sol nos dá sua energia pra que a gente possa viver
corretamente, com a boa vitamina de todos os dias.
E nós, essa energia, nós a damos também aos outros.
E a finalidade, então…, é fazer o bem, é estar bem,

302
estar bem consigo pra ficar bem com os outros: é
preciso dar – mesmo o mais caro a si próprio – às
vezes um filho... [...] Nada nos pertence. Eu aprendi
isso quando perdi a Débora. [...] É um pouco fatalis-
ta, mas nem tanto assim! Isso ajuda a desdramatizar
uma separação, a não sofrer tanto.

Assim, ao narrar a gênese atribuída ao sofrimento que a teria


conduzido à condição de “SDF”, a perda da filha, e resignificá-la pela
cosmovisão animista, este projeto fílmico parece fornecer as condições
para que Sabiá atualize sua trajetória de vida, marcada pela ruptura com
o sentido da maternidade, valor supremo em sua cultura de origem.
Seu relato etnobiográfico, potencialmente transformador, resulta desta
experiência compartilhada, inseparável do processo seletivo, criativo,
ético e estético, envolvendo construções e modelagens de sua memória
em sua relação com os interlocutores e com as intenções imanentes às
experiências intercambiáveis do encontro etnográfico.
Através d’A Oferenda, Sabiá nos apresenta a “imagetização” da
trajetória que a levou à condição de “exclusão social”, apoiada em uma
narrativa fílmica em que os objetos agenciam o trânsito intercultural e
a relação com não-humanos. Ou, dito de outra maneira, o etno-diálogo
que Sabiá agencia no momento da produção de suas imagens, sinaliza
para a coexistência de duas ordens de subjetivação, uma individualista,
própria da sociedade francesa, na qual se insere, e outra holista, passível
de reatualizar-se nos vidros de perfume Organza, da Givenchy...
O projeto de Sabiá, construído a partir de um conhecimento
sensível e de uma experiência sensorial com a câmera, transforma o
momento da filmagem em evento de superação do luto, na medida em
que o filme mimetiza, se sobrepõe ou se confunde com o próprio ritual
de passagem de sua filha e de doação desta aos ancestrais, restabelecen-

303
do o equilíbrio de trocas preconizado por uma cosmovisão ancestral,
em meio a uma sociedade laica e excludente. Nesse contexto complexo,
tradição e modernidade se confrontam, e o filme não se limita a repre-
sentar uma realidade, mas a provocar a sua transformação.
Estamos diante de um filme-ritual, que deve seu legado a Os
Mestres Loucos, de Jean Rouch. Tanto durante o trabalho de campo,
quanto durante a edição, os efeitos das experiências de antropologias
compartilhadas com elementos na memória de antropólogas e an-
tropólogos, que são reatualizados nos contextos de recepção no qual
nossos projetos de vida são mostrados.

A circulação do filme etnobiográfico e a


potencialidade de diálogos infinitos

Depois de A Oferenda ter sido editada pela antropóloga, durante


o trabalho de campo na França, conforme orientações de Sabiá, que já
não participava mais da Oficina de Vídeo, a edição do outro filme, A
Oferenda de Sabiá, só pôde ocorrer no Brasil, dois anos após a conclusão
da tese. Por coincidência, esse meta-filme foi editado pela antropóloga
e pela operadora de edição, poucos meses depois de ambas terem dado
à luz seus próprios filhos. Nestas condições de trabalho, diálogos e tro-
cas afetivas e informativas, a narrativa fílmica de Sabiá, com uma pers-
pectiva holista sobre a maternidade, distinta daquela gestada em nossa
cultura individualista e antropocêntrica, foi acolhida por estas duas
mulheres como uma epifania, evidenciando a potência transformadora
do encontro etnobiográfico, mediado pela imagem e fundado no poder
da empatia, do afeto e da sensualidade cinematográfica, inspirados pela
obra rouchiana (STOLLER apud GONÇALVES, 2008, p. 67).
Mas, conforme proposta deste artigo, para além da agência so-
bre a antropóloga, ateremo-nos aqui sobre o impacto desse filme em

304
uma circunstância específica de ensino, quando A Oferenda de Sabiá
foi apresentada em um dos três encontros presenciais de uma disci-
plina introdutória de Antropologia, em regime de Ensino à Distância,
ministrada pela realizadora do documentário, na cidade de Porto Ale-
gre, Rio Grande do Sul. O público desse Cine-Clube era composto por
cerca de trezentos alunos de diversos cursos de graduação (Nutrição,
Terapia Ocupacional, Fisioterapia, Educação Física, Administração
de Negócios Internacionais e Direito). A sessão do filme, diretamente
relacionada ao programa de ensino, foi precedida pela apresentação
da pesquisa e seguida de um exercício escrito pelos alunos, os quais
serão aqui analisados a partir de uma mostra de cem destes manus-
critos, sem identificação de autoria. Importa, portanto, considerar
que a análise dessa recepção deve levar em conta a complexidade
desse processo comunicacional, limitado pela capacidade de extro-
versão e textualização dos significados construídos pelos intérpretes,
estrangeiros e estranhos ao contexto etnografado. Enquanto poucos
comentários foram muito bem redigidos e outros revelaram extrema
dificuldade de expressão, a maioria de qualidade mediana, apresenta-
va um texto em forma de resenha, com comentários que denotavam
“efeitos de recepção” envolvendo interesse, surpresa e reflexividade
diante do que acabavam de assistir. O que era central naquela expe-
riência de recepção e apropriação dos filmes etnográficos propostos,
além dos fins didáticos da disciplina, era uma abertura de horizontes
em torno da maneira como a antropóloga havia conduzido o proces-
so. Ora, se como já destacamos anteriormente, quem vê, não vê tanto,
mas vê tanto quanto pode pensar, lembrar e sentir a respeito do que
vê, interessava-nos interpelar como essa experiência “não-controla-
da” e “multisubjetiva” de recepção poderia contribuir por meio da
multiplicação de visionamentos, para trabalhos subsequentes, levan-
do-se em conta que, como antropólogas e antropólogos, sempre nos
depararemos com os dilemas da autoridade e da assinatura.
Passando ao conteúdo destes comentários, primeiramente é pos-
sível inferir que o caráter polifônico e colaborativo das imagens não foi
claramente percebido por todos, havendo certa ambiguidade quando se
referiam à sua “autoria”, sem atentar para o fato de que neste meta-filme,
de autoria da antropóloga, há outro filme, de autoria da protagonista
do primeiro. Essa sutileza foi destacada por poucos alunos: “O vídeo
é uma filmagem de outra filmagem [...]”; “Este documentário traz dois
níveis de linguagens artísticas, a de quem produziu e a de quem foi
entrevistado. Essa interação resulta em um apanhado cultural grande,
porque mescla pensamentos diferentes”.
A dimensão biográfica da obra, no entanto, é claramente assimi-
lada, como se percebe por vários comentários do tipo: o vídeo “retrata
a vida de Sabiá”, “resgata a sua trajetória pessoal”, apresenta a sua “histó-
ria” ou “estória”, propondo a “releitura de sua vida”; “Muito interessante
a ideia de observar uma mulher com uma história de vida tão culta e tão
comovente como a de Sabiá”.
Também é unânime o estranhamento diante da alteridade: “[...]
deu pra analisar como é estar em outro lugar, são sociedades completa-
mente diferentes da nossa”. Lembremos que diferentes níveis de estra-
nhamento atingem o receptor brasileiro, ao deparar-se, simultaneamente,
com aspectos socioculturais da cultura francesa, e de tradições culturais
e religiosas díspares de ex-colônias africanas, como o animismo e o isla-
mismo, que Sabiá diferencia claramente em seu testemunho para a antro-
póloga. O filme “mostra a estrutura social do país, e como os moradores
e rua da França são ‘melhor’ tratados que no Brasil” – é uma afirmação
que demonstra o estranhamento do público brasileiro diante do Estado
de Bem-Estar Social francês (apesar de sua franca desestruturação).

306
O que mais me chamou a atenção é que Sabiá, por ser
moradora de rua, possui cultura diferente dos daqui
do Brasil, que passam seu dia drogados, dormindo em
qualquer ponto. Sabiá, com estas oportunidades que
está tendo, terá possibilidades de ter emprego e um lar.

Apesar desta relativização, alguns se sensibilizaram com a condi-


ção de Sabiá: “Eu vi nesse filme a exclusão de uma mulher, mas não é só
com ela, é com milhares de pessoas, ela é só um exemplo”.
Ao se referiram aos destinatários da doação feita por Sabiá, que
ela designa como “ancestrais”, os acadêmicos brasileiros investiram
numa tradução cultural condizente com o seu universo cosmológico,
usando termos como “orixás”, “santos”, “ser superior”, “ser divino”,
“deus”, “criador de tudo e todos”. Os limites dessa tradução cultural
ficam mais evidentes, quando se percebe que a concepção de “animis-
mo”, explicitada pela protagonista em A Oferenda de Sabiá, foi raramen-
te mencionada, sendo substituída por outros desígnios mais familiares
ao público brasileiro, como “religiosidade” e/ou “mística”.
As ideias mais consolidadas, fruto de um preparo por textos e
discussões que guiavam o programa da disciplina, foram as de: diver-
sidade cultural, variedade de crenças, multiplicidade de valores e de
identidades culturais, diferenças de éticas e de regras de vida, etc. Essas
noções estão presentes em praticamente todos os manuscritos, e o fil-
me permitiu essa contemplação por uma ótica positiva, enriquecedora
e reflexiva do encontro entre as culturas: “É bom ver o mundo por
outros olhos.” “A cultura ajuda a compreender o mundo e relacionar-se
socialmente. [...] A cultura é uma simbologia – música, objetos, etc.
que transmitem um significado diferente para cada espectador. [...] A
cultura aproxima as pessoas, proporciona a troca e o aprendizado, abre
um novo mundo, cria novas expectativas”.

307
Se de um lado, o público demonstrou estranheza e fascínio diante
das práticas e representações culturais desconhecidas, por outro lado,
ele manifestou extrema familiaridade com a dor da perda de um ente
querido, estabelecendo grande empatia com Sabiá: “Perda de filho é
motivo de sofrimento para todas as mães do mundo”. Variações desta
frase apareceram nos manuscritos, demonstrando a ideia vigente de
estarmos diante de um sentimento universal.
Da mesma forma, houve consenso quanto à ideia de que somente
através da simbolização, da arte e da ritualização, por mais distintas
que se apresentem nas sociedades humanas, seria possível expressar e
sublimar este sentimento, compartilhado pelos seres humanos, de per-
da de uma pessoa amada: “A arte é um meio de se comunicar [...] em
qualquer parte do mundo”. O “poder da arte” é percebido e explicitado
em termos dos elementos que compõem o seu ritual:

Além das imagens e sons, percebe-se que a seleção


dos objetos foi criteriosa – cada objeto possui um
significado. O exemplo do frasco de perfume vazio,
representando a situação humana apresentada, um
corpo vazio, sem a alma, nos fazendo refletir sobre
os antepassados, para mim, foi o mais forte e emo-
cionante.

As representações e práticas associadas a estes objetos teriam a


capacidade de agenciar a “transformação do sofrimento em força”, na
medida em que “ela, através da simbologia, se insere de novo no mun-
do”. O aspecto terapêutico do projeto fílmico e do ritual, já anunciado
por Sabiá na Oficina de Vídeo é reconhecido pelas alunas do curso de
Terapia Ocupacional, que identificam o “momento criativo” da prota-
gonista, a partir do qual, o profissional é capaz de definir o procedimen-
to a ser adotado com o paciente: “através da subjetividade da pessoa,

308
podemos entender sua forma de compreender e de se expressar no
mundo”. Este momento criativo aparece, portanto, como potência para
o reestabelecimento do equilíbrio pessoal de sua realizadora, quebrado
pelas rupturas enunciadas, contribuindo ainda para a sua reinserção so-
cial: “O ritual foi um ato de exorcização, e o vídeo, um ato de integração
social [...] o vídeo seria também uma espécie de ponte, de libertação”.
Apesar da identificação com o modo de sublimar a sua perda,
através da arte e do ritual, alguns estudantes associaram as represen-
tações e práticas de Sabiá às sociedades tribais a que, de fato, ela faz
menção em sua narrativa. No entanto, o convívio destas tradições com
a modernidade foi visto com espanto por alguns, na medida em que, ao
final do vídeo, Sabiá declara para a câmera da antropóloga que, como
meio de ampliar as suas chances no mercado de trabalho, gostaria de
colocar seu vídeo na WEB. Em que pese as limitações da internet para
o grande público, no início do milênio, algumas pessoas consideraram
“[...] um paradoxo o fato da moça fazer a oferenda com costumes an-
tigos e, ao mesmo tempo, estar se profissionalizando na era digital”.
“Agora ela quer levar sua ‘oferenda’ para a WEB; ela é muito ousada de
criar, de fazer a oferenda e divulgar em lugar tão amplo”.
Ressalte-se, por fim, que o mote deste ritual, a oferenda, tema
caro aos estudos antropológicos sobre a dádiva ao longo da história
desta disciplina, é o que gera maior unanimidade na recepção, através
de inúmeros comentários e reflexões: “Uma das frases mais marcantes
do documentário é: ‘é preciso dar para receber’”; “Algo que mais me
chamou a atenção foi a frase dita: ‘a gente dá, a gente recebe’”; “Não
somos donos de nada”; “É interessante que Sabiá tem um pensamento
grandioso, se levar em consideração todo seu sofrimento pela perda dos
filhos. Ela diz que se deve dar aos outros sem esperar retorno: ‘Nada nos
pertence’”; “Ela oferta a filha perdida aos 23 anos, e nós o que vamos

309
ofertar? Do que vamos nos desprender para realmente deixar as nossas
vidas egoístas e sermos felizes?”.
Na narrativa fílmica, a importância do dom e da reciprocidade
está presente tanto nas relações humanas (quando ela enfatiza a neces-
sidade de sair do isolamento, próprio da pessoa excluída socialmente)
quanto nas relações com os não humanos, seja pela oferenda aos an-
cestrais, seja pela explicação sobre a ética animista, em que Sabiá pre-
coniza lugar e respeito a todo ser existente na natureza, “Fazer o bem,
estar bem consigo e com os outros”. A simplicidade e profundidade de
seu objetivo, ao reestabelecer tais relações de troca com humanos e
não humanos, é partilhada por todo o público, indistintamente, e ecoa
na sala, mesmo que um oceano e quase uma década separem aquele
público do universo em que transcorreu o trabalho de campo e a magia
do encontro etnográfico.
Assim, a eficácia deste filme-ritual, associada ao caráter simbóli-
co de seus componentes, seria igualmente capaz de transpor as lacunas
de comunicação entre diferentes culturas: “O documentário utiliza
de linguagem simbólica para nos mostrar ritos da cultura africana, o
que é uma boa opção de apresentação de culturas diferentes”. Daí a
importância das “imagens para relatar um fenômeno cultural, fugindo
ao tradicional discurso científico”.

À guisa de conclusão: para além dos segredos


roubados ou das autoridades incontestáveis

Quando Rouch passou a exibir seus filmes, não apenas os afri-


canos começaram a compreender de forma mais clara seus objetivos,
mas se tornaram parte constitutiva das aventuras cinematográficas do
antropólogo. A produção de um filme etnográfico e seu visionamento
podem, como aconteceu em A Oferenda e A Oferenda de Sabiá, interpe-

310
lar uma autoridade etnográfica monológica, precisamente no sentido
em que, como dizia o próprio Rouch:

O conhecimento não é um segredo roubado para ser


consumido nos templos Ocidentais de aprendizado,
mas algo para ser atingido por meio de uma busca
infindável na qual os sujeitos etnográficos e o etnó-
grafo se engajam em um caminho que alguns de nós
estamos agora chamando de antropologia comparti-
lhada (ROUCH, 1997, p. 227).

Rouch certamente não falaria hoje que os “nativos”, talvez, “etno-


-pensem”. Afinal, a hermenêutica ajudou no despertar da antropologia
de seu sono dogmático e não é gratuito podermos falar que “somos
todos nativos”, que interpretamos interpretações ou mesmo falar de
uma antropologia “reversa” ou “simétrica”. Os projetos colaborativos
em antropologia, especialmente aqueles vinculados a uma antropolo-
gia da restituição e à estética da recepção, na esteira dos trabalhos de
Rouch, levantam questões fundamentais para pensar nossa experiência
etnográfica contemporânea.
A busca pelo receptor real ou a ideia da restituição demarca assim
uma distinção qualitativa em relação a termos como “difusão”, “propa-
gação” ou “transmissão”, no que se refere à circulação do conhecimento
no processo de pesquisa antropológica. Compartilhamento, recepção e
restituição, tomados como constitutivos desse giro estético paradigmá-
tico na experiência contemporânea, sinalizam aqui para a revitalização
da experiência colaborativa de pesquisa, própria do filme exploratório
(DE FRANCE, 1998), sugerindo a renovação de um questionamento
ético, epistemológico e prático no que tange ao conhecimento gerado
pelo trabalho de campo e ao uso que dele é feito, tanto pelo/a antropó-
logo/a, quanto por seus/suas interlocutores/as. Ao contrário de uma

311
perspectiva vertical e hierárquica do conhecimento, tais noções apos-
tam na horizontalidade das relações, não no sentido de uma idealização
do interlocutor/a “em vias de se tornar antropólogo/a”, mas no sentido
do reconhecimento do valor de uma produção coletiva e compartilha-
da de saberes.
Tal como podemos observar a partir das narrativas de A Oferen-
da de Sabiá sobre a abertura dialógica fundamental operada, tanto na
produção do filme quanto em sua recepção, o sentido de autoridade
etnográfica redimensiona-se a partir da ideia do “encontro”. Nesses pro-
cessos, a utilização das imagens não prescinde de uma reflexão crítica
acerca do lugar que ocupa aquele que se “apropria” do material fílmico.
MacDougall (1998) propõe uma visão diferenciada em relação aos rea-
lizadores que enxergam a produção audiovisual como uma maneira de
“retirar algo” das pessoas concernidas no processo fílmico, como fonte
de controle e poder. Mesmo que tal perspectiva de extração do conhe-
cimento não esteja ausente de sua proposta de abordagem do processo
de filmagem, ele entende tal experiência como proposição, aprendizado,
provocação e partilha: como horizontalidade dialógica que opera no
registro da interlocução e não da passividade do outro tomado como
mero “informante” ou público passivo. Essa atitude, reforçada pela
ideia de que nesse processo está implícito um tipo de aprendizado que
habilita o antropólogo a ser ensinado pelas circunstâncias enquanto
partilha delas distingue, por exemplo, a produção de um filme etnográ-
fico do documentário (TORRESAN, 2013).
Talvez Geertz (2001) tenha razão ao dizer que, numa pesquisa
de campo, é uma ficção (não uma falsidade) o fato de que “nós” e “eles/
as” somos membros de uma mesma comunidade moral, mas tal fato
não impede, pelo menos não deveria impedir, a possibilidade de que
pudéssemos estabelecer um “diálogo com” em vez de um “discurso

312
sobre” suas experiências e modos de vida. Nesse sentido, o trabalho
de campo e os processos de produção e recepção fílmicos – pensados
fundamentalmente como modos de aprendizagens recíprocas –, não
existem como abstrações, não existem sem sujeitos concretos em si-
tuações sociais específicas, com os quais compartilhamos experiências,
vivências e empatias fulgurantes. O fato de que o uso de uma câmera no
trabalho de campo deva ser pensado como catalizador de relações e não
como um mero instrumento de coleta de material empírico, implica
também que sua introdução no contexto de uma pesquisa é dependen-
te de uma série de fatores e não pode se dar de forma irrefletida. O
resultado desse trabalho não apenas intensifica a dimensão ética das
experiências de pesquisa – na medida também em que o registro visual
possui um alcance mais amplo do que o registro escrito –, mas atua
como mediação privilegiada no conhecimento da experiência subjetiva
de nossos/as interlocutores/as.
Infelizmente, ou felizmente, não há prescrições ou fórmulas para
a forma com a qual a câmera poderá proporcionar o tipo de apren-
dizado exigido pela prática da antropologia visual. Cada contexto de
pesquisa é tributário de relações de poder e dominação que lhes são
próprios, dialoga com as instâncias da lei e da ordenação social e supõe
a habilidade do pesquisador em fazer valer a identificação transcultural
que o processo de empatia supõe; ao mesmo tempo em que exige dele
ou dela uma constante vigilância crítica em torno do que será figurado
nas imagens. O ideal é que os interlocutores participem em todos os
momentos da produção do trabalho, opinando sobre a representação
que pretendem dar de si próprios. A restituição implica naquilo que
existe de “contratual” entre pesquisadores/as e interlocutores/as; é
parte integrante de todo o processo de pesquisa e não apenas um a

313
posteriori. Entretanto, dependendo do contexto da pesquisa, essa parti-
cipação não é possível, como foi o caso em A Oferenda de Sabiá.
Além disso, é preciso arcar com o ônus de possíveis conflitos
de interpretações que a perspectiva da recepção (seja aos próprios
interlocutores da pesquisa, seja a públicos diversos) colocam em cena.
Ela pode indicar uma quebra na empatia ou abalar a crença de uma
experiência mimética e de identificação recíproca. Mais do que um
dado relacional, a recepção é também uma experiência territorializada,
ou seja, tributária da lógica social e simbólica que anima o contexto
espacial e histórico no qual as relações estão inseridas. Se a antropo-
logia sempre prezou por uma abordagem da experiência de pesquisa
na perspectiva de uma relação de empatia, traduzida na habilidade em
se colocar “no lugar do outro”, então, a problemática da recepção e da
restituição, devem ser pensadas nesses termos. Ou seja, tais processos
não devem ser analisados apenas pelo ponto de vista do antropólogo e
das consequências da relação que ele ou ela estabelece com seus inter-
locutores/as.
Na pesquisa em ciências sociais, a reflexividade, a transmissão e
a restituição devem ser tomadas como âncoras do trabalho antropoló-
gico de campo e como marcadores conceituais para pensar a ideia de
autoria ou de autorias. A autoria implica em compreender os fenôme-
nos, não como “reflexo do real”, mas como uma construção do espírito
que levanta problemas. Isso envolve “vigilância crítica” em relação aos
lugares de enunciação do pesquisador. Como esses lugares afetam a
produção do conhecimento antropológico? Como eles devem ser
pensados no momento da produção fílmica? A discussão sobre a autoria
inclui necessariamente uma reflexão sobre a autoridade etnográfica e
sobre como essa última se constrói no tríplice movimento que envolve
empatia, distanciamento e controle das transferências, pensados a

314
partir das demandas ou solicitações de nossos/as interlocutores/
as, entendendo-se aí, tanto os sujeitos pesquisados quanto outros
receptores dessa comunicação.
Mesmo reconhecendo que o trabalho de campo é uma atividade
coletiva, deve-se atentar também para a sua assimetria fundamental,
aquilo que poderíamos denominar, com Geertz (2001), de “ironia
antropológica”, entendida aqui como experiência assimétrica e passível
de envolver relações de poder. Nesse sentido, o interesse do pesquisa-
dor deve voltar-se, em um primeiro momento, para a maneira como
se estabelece o contrato e as negociações de interesses – nem sempre
convergentes – entre pesquisadores e seus interlocutores. E, em segui-
da, para os “lugares silenciados” no processo que envolve as estratégias
de campo e os lugares de enunciação do pesquisador. Como contornar
essas assimetrias? Como tentar garantir que a inspiração do observador
se aproxime de forma fidedigna (o uníssono, de que falava Rouch) da
inspiração coletiva que ele observa? Como pensar a importância do
envolvimento dos/as protagonistas na construção dos significados e
sentidos de um texto ou de um filme?
A tematização dos desdobramentos dos resultados da pesquisa
talvez indique um caminho para contornar tais problemas. Ela é perce-
bida pelos antropólogos como uma restrição recente. A restituição, por
exemplo, raramente se aplicava aos trabalhos de campo tradicionais,
realizados além-mar, quando a distância geográfica e o não acesso aos
resultados do trabalho pelas comunidades concernidas, desempenhava
o papel de garantir uma objetividade inquestionável em relação aos
achados de campo. Na passagem de uma etnologia das sociedades de
tradição oral para as sociedades da escrita, da informação e da comu-
nicação, os antigos “informantes” agora se “informam” literalmente a
respeito do que é dito sobre eles a partir do acesso aos trabalhos etno-

315
gráficos, sejam eles textuais ou fílmicos. Eles e elas interpelam os feitos
antropológicos, produzem seus “intelectuais orgânicos”, criam suas
modalidades de controle em relação ao que é escrito ou visto sobre eles
e nos interpelam sobre as consequências de nossas revelações.
A preocupação fundamental com a reflexividade é o que permite
ao pesquisador gestar um tipo de escuta e de olhar atentos às demandas
ou solicitações de seus/suas colaboradores/as. Essas solicitações emer-
gem no contato direto e de longa duração e interpelam o pesquisador,
descentrando o “esquema referencial operativo” ou as disposições não
questionadas do “capital simbólico” que o pesquisador/a carrega con-
sigo quando vai a campo. Como nos lembra Barros (2014, p. 6), “os
projetos de pesquisa são desenhados distantes do campo, respondendo
a interesses e dinâmicas da academia e/ou do tipo de debate suscitados
pelas experiências e contextos socioculturais dos pesquisadores”. Sem
“vigilância crítica” não há, segundo Barros (2014, p. 6), como “olhar a
si mesmo durante todo o processo da pesquisa”, “flexionar-se” ou re-
tornar constantemente “à problematização sobre a autotransformação
durante suas próprias ações”. Dito de outra maneira, a restituição que é
realizada para nossos pares, não pode mais deixar de ser informada pela
restituição realizada para nossos/as interlocutores/as e para públicos
mais amplos. A objetivação do sujeito da objetivação demanda uma
interpelação ao próprio saber antropológico e à maneira como ele con-
cebe a alteridade. Em que sentido a restituição e a estética da recepção
poderiam contribuir nessa interpelação?
No início desse texto, tomando como referência a ideia de Geertz
(2001) sobre o trabalho de campo como uma “experiência completa”,
indagamos sobre a possibilidade de tal experiência ter mais chances de
atingir sua maturidade quando mediada pela experiência estética do pro-
cesso fílmico. Sem pretender criar novas regras para a produção do conhe-

316
cimento antropológico, acreditamos, como Geertz, que, além de ser uma
experiência completa, o trabalho de campo é portador de ensinamentos, e
o uso da câmera, mediado por experiências de restituição e recepção, tem
o potencial de incitar a dimensão coletiva e participativa da construção
do conhecimento. As experiências que sucederam A Oferenda de Sabiá
constituíram, para nós, casos exemplares de trocas culturais intensas.
Deste modo, podemos reincidir sobre o argumento exposto
anteriormente, fruto do encontro etnobiográfico: as imagens de Sabiá,
em seu filme, A Oferenda, assim como as metaimagens com as quais elas
dialogam, no filme A Oferenda de Sabiá, da antropóloga, não se limitam
a contemplar e registrar uma realidade, mas agem sobre ela, sobre a
protagonista e sobre a antropóloga, estendendo-se ainda, tal agência,
à recepção de um público longínquo, que reinterpreta e faz reverberar
seus múltiplos sentidos. Nas palavras de Marc Piault (2000, p. 270),
essa elaboração dialógica do conhecimento possibilita uma “hiperce-
nografia do possível ou do provável”, na medida em que “a experiência
[...] está sujeita à interpretação permanente (em potencial) do público
e à reinterpretação crítica daqueles que foram os protagonistas”.
A opção por uma prosa de estilo simples, realista e comparti-
lhada, tal como a realizada em A Oferenda de Sabiá é mais equânime
em relação ao leitor-espectador, e não obstrui sua habilidade de atingir
uma avaliação independente. Quando se fala em autoria, deve-se ter o
cuidado, como adverte Henley (2009, p. 123), em não reduzir “os sujei-
tos do filme e o mundo que habitam a meros hóspedes da virtuosidade
cinematográfica de seu realizador”. O esforço em operar no registro de
“colaborações comprometidas” e de “entendimentos de imaginários
em suas consequências” (MARCUS, 2009), nos ensina que a história
de nossos sujeitos é mais importante do que a do realizador do filme. O
vídeo cria uma rede de comunicação onde cineasta e sujeitos se criam

317
e se recriam numa relação de autonomia que afetará igualmente outras
plateias. A autoria é fruto desse processo colaborativo que, mediado
por uma estética ou uma estilística da restituição e da recepção, não
prescinde do reconhecimento mútuo e do respeito às experiências que
intentamos, com liberdade e ousadia, representar.

A oferenda de Sabiá
CLIP: https://vimeo.com/108809610

Referências

BARROS, Denise. “Reflexões sobre as interações (e demandas) que se organi-


zam à margem do fazer acadêmico no trabalho de campo”. Simpósio Transnacio-
nalidade, pesquisa de campo e visualidades, 29 Reunião Brasileira de Antropologia.
Natal, 2014. mimeo.

BERGIER, Bertrand. Repères pour une restitution des résultats de la recherche en


sciences sociales. Intérêts et limites. Paris: Harmattan, 2000.

318
BOURDIEU, Pierre; WACQUANT, Loic.. Réponses. Pour une anthropologie
réflexive. Paris: Seuil, 1992.

BUTLER, Judith. Le Récit de soi. Paris: PUF, 2007.

CAILLÉ, Alain. Antropologia do Dom. O terceiro paradigma. Petrópolis: Vozes, 2002.

CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair


damodernidade. Trad. Heloísa P. Cintrão e Ana Regina Lessa. 2.ed. São Paulo:
Edusp, 1998.

CLIFFORD, James. A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século


XX. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1998.

CLIFFORD, James; MARCUS, George (Org.). Writing Culture: The Poetics and
Politics of Ethnography. Berkeley: University of California Press, 1986.

DE FRANCE, Claudine. Cinema e Antropologia. Campinas, SP: Editora da Uni-


camp, 1998.

DE LARGY HEALY, Jessica. “Pour une anthropologie de la restitution. Archives


culturelles et transmissions des savoirs en Australie”. 2011. Cahiers d’ethnomusi-
cologie [En ligne]. Disponível em: <http://ethnomusicologie.revues.org/1747>.
Acesso em: 31 dez. 2013.

FLAHERTY, Frances. National Educational Television. Flaherty and Film, En-


trevista com Robert Gardner, 1960. In: Extras do filme Louisiana Story, Magnus
Opus. 1948.

FULCHIGNONI, Enrico. Entretien de Jean Rouch. In: Jean Rouch: Une rétro-
spective. Paris: Ed. Pascal-Emmannuel Gallet, 1981.

GEERTZ, Clifford. Nova luz sobre a antropologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2001.

GONÇALVES, Marco Antônio. O Real Imaginado: etnografia, cinema e surrea-


lismo em Jean Rouch. Rio de Janeiro: Topbooks, 2008.

319
GONÇALVES, Marco Antônio; MARQUES, Roberto; CARDOSO, Vânia Z.
(Org.). Etnobiografia: subjetivação e etnografia. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012.

HENLEY, Paul. The adventure of the real: Jean Rouch and the craft of ethnograph-
ic film. Chicago: The University of Chicago Press, 2009.

JAUSS, Hans Robert. Pour une esthéthique de la réception. Paris: Gallimard, 1990.

MACDOUGALL, David. Significado e Ser. In: BARBOSA, Andréa et al (Org.).


Imagem-Conhecimento: Antropologia, cinema e outros diálogos. São Paulo: Pa-
pirus, 2009.

______. Transcultural cinema. Princeton: Princeton University Press, 1998.

MAGNI, Claudia Turra. Images du Même et de l’autre: ethnographie des ateliers


artistiques pour des personnes sans domicile à Paris. Saarbrucken, Alemanha:
Editions Universitaires Européenes, 2011.

MAGNI, Claudia Turra; CONNORD, Sylvaine (Org.). DOSSIÊ ESPECIAL:


Restituição e difusão pela Imagem em Antropologia. Tessituras, Pelotas, v. 2, n.
2, 2014.

MARCUS, George. A Estética contemporânea do trabalho de campo na arte e


na antropologia: experiências em colaboração e intervenção. In: BARBOSA, An-
dréa et al (Org.). Imagem-Conhecimento: Antropologia, cinema e outros diálogos.
São Paulo: Papirus, 2009.

MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. Forma e razão da troca nas sociedades
arcaicas. In: Sociologia e antropologia. São Paulo: Editora Cosacnaify, 2003. p.
185-314.

MENEZES, Paulo. O Cinema Documental como Representificação: verdades e


mentiras nas relações (im)possíveis entre representação, documentário, filme etno-
gráfico, filme sociológico e conhecimento. In: NOVAES, Sylvia Caiuby et al. Escri-
turas da Imagem. São Paulo: Fapesp: Editora da Universidade de São Paulo, 2004.

320
PIAULT, Marc Henri. Anthropologie et Cinéma. Paris: Nathan, 2000.

ROUCH, Jean. Ciné-ethnography. Edited and translated by Steven Feld. Min-


neapolis: University of Minnesota Press, 2003.

______. [1971]. Essai sur les avatars de la personne du possédé, du magician,


du sorcier, du cineaste et de l’ethnographe. In: Les Hommeset les dieux du fleuve:
essai ethnographique sur les populations Songhay du moyen Niger. Paris: Edi-
tions Artcom, 1997. p. 211-2276.

______.Introduction à la camera et les hommes. In: DE FRANCE, Claudine.


Pour une anthropologie visuelle. Paris: EHESS/Mouton, 1979.

______. 2000. O comentário improvisado na imagem. Entrevista com Jean


Rouch. In: DE FRANCE, Claudine. De filme etnográfico à antropologia fílmica.
Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2000. p. 125-131.

RUBY, Jay. The Viewer Viewed: the reception of ethnographic films. In: ______.
Picuturing Culture: explorations of film and anthropology. Chicago: The Univer-
sity of Chicago Press, 2000. p. 181-194.

TORRESAN, Angela. Os percalços de um cinema etnográfico: o exemplo do


Centro Granada de Antropologia Visual. Simpósio Transnacionalidade, pesquisa de
campo e visualidades, 29 Reunião Brasileira de Antropologia. Natal, 2014. mimeo.

VALE, Alexandre Fleming Câmara. No escurinho do cinema: cenas de um público


implícito. São Paulo/Fortaleza: Annablume/SECULT, 2000.

______. Por uma estética da restituição: notas sobre o uso do vídeo na pesquisa
antropologia. Tessituras, Pelotas, v. 2, n. 2, p. 162-200, 2014.

______. Verbete “Anthropologie”. In: TIN, Louis-Georges (Dir.). Dictionnaire


de l’homophobie. Paris: P. U. F, 2003.

6 Publicado originalmente em 1971, La notion de personne en Afrique Noire. Paris:


Centre National de Recherches Scientifiques.

321
MÁS ALLÁ DEL RECUERDO: EL USO DE LA
FOTOGRAFÍA EN EL PUEBLO TOTONACO

Verónica Vázquez Valdés1

Resumen: El trabajo aborda el análisis de la fotografía como un


texto desde una perspectiva teórica basada en la semiótica y en una
metodología participativa de diseño propio, para el análisis de la
cultura visual entre los totonacos, un pueblo étnico originario de
México. A lo largo del trabajo se muestran los referentes teóricos
metodológicos empleados así como la estrategia de fotografía par-
ticipativa en la que los totonacos tomaron sus propias imágenes. Al
final se analizan las imágenes para buscar la comprensión de la cul-
tura visual propia del grupo originario mencionado confrontando
lo encontrado con los parámetros de la cultura visual occidental.
Palabras clave: Cultura visual. Fotografía. Totonacos. Semiótica.
Pueblos originarios.

Abstract: The paper presents the analysis of photography as a text


from a theoretical perspective based on semiotics and on a parti-
cipatory methodology of my own design, for the analysis of visual

1 Académica de la BUAP (PTC-FCCom). Doctora en Historia y Etnohistoria


(ENAH) Maestra y Licenciada en Comunicación (UNAM). Cuenta con Especia-
lidad en Fotografía y Diplomado Antropología Visual. Su producción académica se
basa en la investigación social desde la fotografía como fuente de información pri-
maria, abordando los fenómenos de la memoria y la reproducción cultural. Miem-
bro del SNI del CONACYT (México). E-mail: [email protected].
mx; [email protected]; [email protected]. <www.ima-
genymemoria.org.mx>, <www.research.buap.mx>, www.deance.org.mx.

322
culture among the Totonacs, an ethnic people originally from Me-
xico. Throughout the work are shown the theoretical methodolo-
gical references employed as well as the participatory photography
strategy in which the Totonacs took their own images. In the end,
the images are analyzed to search for the understanding of the vi-
sual culture of the original group mentioned, confronting what is
found with the parameters of Western visual culture.
Keywords: Visual culture. Photography. Totonacs. Semiotics.
Native peoples.

Con el devenir del tiempo la fotografía ha sido utilizada por


científicos para ilustrar sus investigaciones, por reporteros gráficos para
registrar sucesos históricos, por comunicólogos para mostrar parte de
la representación de la realidad, por antropólogos y sociólogos para re-
gistrar la vida de las personas de las regiones estudiadas. Es por ello que
cuando nos enfrentamos al uso de la fotografía en nuestras investiga-
ciones nos debemos de preguntar con qué finalidad la vamos a emplear,
ya sea como uso exclusivo de la simple ilustración, para mostrar sucesos
históricos y contemporáneos, como herramienta metodológica en la
investigación, o como principal fuente de investigación.
En este trabajo la fotografía se aplica teórica y metodológicamen-
te para interpretar la cultura visual de uno de los pueblos originarios de
México, los totonacos, sobre todo los que habitan en la Sierra Norte del
estado de Puebla.
Así mismo, en este texto se presenta el análisis fotográfico de la
vida cotidiana y festividades de los totonacos registrada por ellos mis-
mos, con un modelo semiótico tetradimensional. Mediante dicho aná-
lisis, se enuncian elementos de la cultura visual que no necesariamente
corresponden a las generalizaciones hechas desde la cultura occidental.

323
En otras palabras, este modelo nos permite interpretar la percepción
visual de los totonacos.

La percepción visual

En este apartado es necesario definir el concepto de percepción


como “el fruto de una combinación entre las capacidades innatas, la
maduración del sistema nervioso y el aprendizaje. [... ] La psicología
genética ha estudiado con particular atención, las fases sucesivas que
atraviesa la evolución de la percepción y de la inteligencia de los seres
humanos desde su nacimiento”. (Gubern, 1987, p. 15-16). Pero en este
trabajo no nos dedicaremos a analizar este tipo de fases.
Sólo me enfocaré a la percepción visual y para ello retomo a Gon-
zález (1997) quien señala que:

La visión consiste en un proceso según el cual los


objetos producen una cierta distribución de luz en el
ojo, la cual entra por la pupila, se filtra a través de la
lente del cristalino y se proyecta en la retina, donde
una red de fibras nerviosas transmite este flujo de
luminosidad por medio de un conjunto de células
hasta los receptores sensibles a la luz y al color, desde
donde se transporta al cerebro. [...] Hasta ese pun-
to, el proceso por el cual percibimos las imágenes
visuales es uniforme para todos los seres humanos.
Hasta este lugar del proceso, la visión puede estu-
diarse desde un punto de vista fisiológico, óptico,
neurológico, etc. Pero a partir de allí, deja de ser un
fenómeno natural para convertirse en un fenómeno
cultural. (p. 13-14)

Además, González (1997) señala que cuando se hace presente


la imagen se dan tres aspectos. En primer lugar, la percepción visual es

324
un proceso que supone un conjunto de expectativas sobre las cuales
se hacen hipótesis, que posteriormente se validan o invalidan. Tales
expectativas están impregnadas por nuestro conocimiento del mundo
y de las demás imágenes que hemos visto; por lo cual puede decirse que
el acto de percepción visual no se da de forma aislada, sino que existen
siempre anticipaciones y prejuicios. Por lo anterior, ver, es comparar lo
que se espera ver con lo que realmente se percibe.
En segundo lugar, debido a que una imagen nunca puede repre-
sentarlo todo, el espectador tiene que llenar las lagunas de la represen-
tación, es decir, lo no representado, con su saber y con sus prejuicios.
Finalmente, el tercer aspecto es que, esta facultad de proyección del
espectador se sustenta en la existencia de ciertos esquemas perceptivos
almacenados en la memoria de cada uno de nosotros.
Por otra parte, Gubern (1987) afirma que la percepción visual
busca la significación semántica de los estímulos, fijando el recono-
cimiento en los patrones invariables de las figuras (los elementos
comunes a la serie icónica /hombre/, /mujer/, /perro/, etcétera.), a
partir de los cuales, se puede apreciar todas sus variables. Sin embargo,
argumenta que los fenómenos que definen la percepción son:

1) La identificación ó reconocimiento perceptual del


estímulo. En ésta, el observador asimila el estímulo
por asociación, de acuerdo con su experiencia ante-
rior.

2) La diferenciación. En ella el sujeto descubre en


el estímulo las particularidades que lo diferencian o
asemejan a otro estímulo.

Así mismo, para Román Gubern (1987)

325
Una percepción visual normal y correcta detecta la
identidad genérica (lo constante o invariante) del
estímulo, a pesar de sus accidentes o cualidades varia-
bles. En primer lugar existen atributos visibles e inva-
riables de una categoría de seres u objetos. Estos serán
los que permitan distinguir visualmente, por ejemplo,
al ser humano de otros bípedos. Y en segundo lugar
existen atributos visibles accidentales y diferencia-
dores dentro de una categoría del ser humano. Esos
atributos nos permiten individualizar al sujeto, iden-
tificándolo entre otros congéneres. Mientras otros
atributos visibles accidentales actuarán propiamente
como predicados de aquel sujeto, informándonos
de aspectos suyos tan inestables como su postura, su
expresión, su ropa, etcétera. (p. 30)

En conclusión, percibir visualmente es “usar todas las capacida-


des del sistema visual, las capacidades de organización de la realidad, y
confrontar los datos percibidos con los esquemas percibidos almacena-
dos.” (González, 1997, p. 15)

La representación mediante la imagen

La representación significa la sustitución de un original ausente.


Aun en representaciones en vivo, como en el caso de las obras teatrales en
donde los actores están presentes, se sustituye una acción de la vida real.
Sin embargo, González (1997) argumenta que el problema fun-
damental de la representación se puede concentrar en el fenómeno de
las relaciones entre el mundo y la imagen, entre el objeto representado
y el objeto que representa.
Por ende, Gubern (1987) propone tres categorías de los estímu-
los visuales. En primer lugar se encuentran los estímulos procedentes
del mundo natural visible, es decir, de los seres, productos y fenóme-

326
nos de la naturaleza. En segundo lugar, están los productos culturales
visibles, entes artificiales fabricados por el ser humano, por ejemplo:
edificios, vehículos, armas, trajes o uniformes, la escritura, imágenes
icónicas fijas o móviles, las señalizaciones, etcétera. Y en tercer lugar,
los estímulos visuales que se sitúan entre lo natural y lo cultural, donde
se toma en cuenta la expresividad gestual, que utiliza como instrumen-
to o soporte al cuerpo para llevar a cabo una codificación social.
Gubern (1997) enfatiza que toda representación icónica es, an-
tes que nada, signo de una ausencia: la del objeto o sujeto representado
y al que sustituye simbólicamente en el plano de la información. (p.59)
Así mismo, Gubern (1997) propone que:

Toda representación icónica es la simbolización


de un referente, real o imaginario, mediante unas
configuraciones artificiales (dibujo, barro de una
escultura, etcétera), que lo sustituyen en el plano de
la significación y le otorgan una potencialidad co-
municativa. Lo icónico deja de serlo, naturalmente,
cuando rompe toda relación representativa de un
referente real o imaginario, sin que importe en cam-
bio que tal referente tenga entidad lingüística (sea
denominable) o no. (p. 59-63)

Cabe señalar que las representaciones icónicas se han desarrollado


históricamente, sometidas a una triple presión genética: la imitativa o
mimética de las formas visibles (base del isoformismo), la simbólica (que
implica un mayor nivel de abstracción o de subjetividad) y la convención
iconográfica arbitraria, propia de cada contexto cultural preciso.
La imagen fotográfica puede contener una, dos o las tres cate-
gorías al mismo tiempo, debido a que no existen categorías puras, sin
embargo, se puede apreciar en muchos casos la predominancia de una

327
categoría sobre las otras. A continuación muestro algunos ejemplos de
dichas categorías para entender su proceso, mediante fotografías toma-
das por algunos totonacos de San Pedro Petlacotla. La representación
icónica imitativa se refiere a aquellas representaciones que conservan la
esencia del objeto representado pero no lo reproducen exactamente, de
ahí la referencia del isomorfismo.
Haciendo una analogía con la geología, dos elementos isomorfos
son aquellos cuerpos de diferente composición química e igual forma
cristalina; del mismo modo una representación icónica conserva la for-
ma más elemental pero difiere en la composición.
En esta fotografía muestra la predominancia de una representación
icónica imitativa, debido a que estas dos figuras antropomorfas de pie-
dra representan a los antepasados de los totonacos de la Sierra Norte de
Puebla.

Foto #1: Jorge Flores, figuras de piedra, San Pedro Petlacotla, Pue., 2004

328
La representación simbólica necesita de un mayor proceso men-
tal y no tiene una relación tan directa entre el objeto representado y el
ícono. Un candelabro de siete brazos nos remite a la tradición judía y al
encontrarlo en un libro o en la pared de un edificio nos remite a la pre-
sencia de judíos, al igual que la silueta de un pescado en la entrada de
un templo o en la parte trasera de un vehiculo nos remite a la presencia
de creyentes cristianos. En ninguno de los dos casos hay una relación
de forma entre el objeto o la idea representada y el ícono, en estos ca-
sos necesitamos de una reflexión mayor y un conocimiento previo del
referente del ícono. De este modo opera la abstracción y la subjetividad
del ícono sin que sea totalmente arbitrario ya que existe un referente
previo acerca del icono (el candelabro o el pescado).

Foto #2: Lucía Allende, día de la Virgen de Guadalupe, San Pedro Petlacotla,
Pue., 2003.

Esta anterior fotografía es un ejemplo de la representación sim-


bólica, ya que nos remite a la religión católica debido a los elementos

329
que nos proporciona esta imagen como son: los cuadros de la Virgen
de Guadalupe y el Sagrado Corazón y la estatuilla de San Judas Tadeo.
Por otra parte, la convención iconográfica arbitraria, como su
nombre lo dice es un común acuerdo social (explícito o no) que opera
en su contexto cultural; se dice que la relación entre el objeto repre-
sentado y el ícono es arbitraria por que no hay ningún referente entre
ambos más que el que se acuerda o se reconoce socialmente.
Un ejemplo de convención iconográfica arbitraria es la paloma
blanca referente de la paz, una paloma por si misma no nos hace re-
ferencia a ninguna situación social en lo absoluto, aun si la paloma es
blanca, pero fue designada arbitrariamente como el elemento represen-
tativo de esta posibilidad humana.

Foto #3 Juana Soto, altar totonaco de Todos Santos, San Pedro Petlacotla, Pue.,
2003.

330
Esta fotografía es otro ejemplo de la convención iconográfica
arbitraria, ya que cualquier persona mexicana que la observe podría su-
poner que se trata de un altar de muertos aún cuando no haya estado en
la Sierra Norte de Puebla. Esto se debe a que en el territorio nacional, el
culto a los muertos es una práctica extendida, si bien las manifestacio-
nes son diversas, las similitudes se hacen presentes en algunos elemen-
tos que la integran, como el caso de la flor de cempasúchil, el adornar
con flores una mesa o la presencia del incensario. Sin embargo solo la
gente que proviene de la Sierra Norte de Puebla o tiene conocimiento
de su cultura, sabe que se trata de una ofrenda dedicada a un varón,
puesto que en el costado derecho se encuentra un morral de yute, el
cual denota esta condición; de ser una ofrenda femenina tendría una
servilleta bordada en ese lugar.

La fotografía interpretada como texto visual

Vilches (1984) señala que la noción de texto se halla amplia-


mente teorizada por la lingüística textual y la pragmática, que la han
seleccionado como objeto de análisis. Por ende, argumenta que el texto
debe ser considerado como el medio privilegiado de las intenciones
comunicativas. Es a través de la textualidad donde es realizada no sólo
la función pragmática de la comunicación, sino también, donde es re-
conocida por la sociedad.
Por otra parte, Eco (1981) enfatiza que el texto es una máquina
semántico- pragmática que pide ser actualizada en un proceso interpreta-
tivo, cuyas reglas de generación coinciden con las propias reglas de inter-
pretación. Bajo esta perspectiva Lotman (1979) afirma que las novelas,
los programas de televisión, las informaciones periodísticas, las fotos y las
pinturas, pueden ser estudiados como textos.

331
Vilches (1984) arguemnta que el texto puede ser, asimismo,
estudiado como un conjunto de procedimientos que determinan un
continuo discursivo, es decir, como una representación semántico-
sintáctica. Una fotografía puede ser estudiada como un texto visual,
a partir de destacar las marcas sintácticas (su plano propiamente
expresivo o significante), y el semema actualizado (su significado
denotado).
Para Vilches (1984):

La coherencia textual en la imagen es una propiedad


semántica-perceptiva del texto y permite la interpre-
tación (la actualización por parte del destinatario)
de una expresión con respecto a un contenido, de
una secuencia de imágenes en relación con su signifi-
cado. La coherencia no es solamente un principio de
identificación semántica (qué se ve), sino que tiene
también una función de distribución coordinada
de la información visual en el nivel de la expresión.
Desde el punto de vista de la lectura de la imagen, un
texto puede describirse como una unidad sintácti-
co/semántico/pragmática que viene interpretada en
el acto comunicativo mediante la competencia del
destinatario. (p. 34)

Semiótica de la fotografía

La ciencia que estudia el origen, formación, uso y razón de ser


de los signos en el seno de la vida social fue denominada semiología
por Ferdinand de Saussure y también por Mounin, Prieto y Guiraud,
entre otros. Sin embargo, Pierce, Morris, Sebeok y Umberto Eco la han
llamado semiótica, pues consideran que la semiótica trabaja con los

332
símbolos y con los signos, que constituyen las diferentes clases de có-
digos, en su calidad de expresión cultural de cada grupo o comunidad.
Los términos de semiología y semiótica denominan en la actuali-
dad una misma disciplina, utilizando los europeos el primer término y
los estadounidenses el segundo.
Aquí nos enfocaremos a la semiótica de la fotografía, la cual
“se vertebra en la semiótica de la imagen. [...] Cuatro líneas de la se-
miótica aplicada, cuyas bases se encuentran en los trabajos de Peirce,
Hjelmslev, Greimas y Barthes dominan la investigación sobre la foto-
grafía. Los trabajos de Brög, (1979) y Schmalriede (1981) siguen la
tradición de Peirce y de la escuela de Stuttgart de Max Bense (1965).
La semiótica glosemática de Hjelmslev fundamenta los trabajos de Lin-
dekens (1971; 1973; 1976 y 1978). Floch se orienta por la semiótica
estructural de Greimas (Floch 1980; 1985; 1986), y Barthes se cuenta
como uno de los clásicos de la semiótica de la fotografía (Barthes 1961;
1964a; 1980a, b).” (Santaella: Nöth, 2003: 99)
Asimismo, Barthes es considerado como el pionero en desarrollar
estudios semióticos de la fotográfica, en sus dos artículos “El mensaje
fotográfico” (1961) y “La retórica de la imagen” (1964), publicados
hoy en día en el libro Lo obvio y lo obtuso.
En el primer artículo, Barthes argumenta que la fotografía de
prensa es un mensaje. Este autor enfatiza que en la fotografía, el men-
saje denotado, al ser absolutamente analógico (es decir privado de un
código), es además continuo, y no tiene por objeto intentar hallar las
unidades significantes del primer mensaje; por el contrario, el mensaje
connotado comprende efectivamente un plano de la expresión y un
plano del contenido: significantes y significados. Esto obliga, por tanto,
a un auténtico desciframiento. En el segundo artículo, Barthes analiza

333
un anuncio publicitario de Panzani (paquetes de pasta), resaltando el
mensaje lingüístico, la imagen denotada y la imagen connotada.
Respecto a la imagen fotográfica, Barthes (1986) señala que “no
es real, pero, al menos, es el analogon perfecto de la realidad, y precisa-
mente esta perfección analógica es lo que define a la fotografía delante
del sentido común. Y así queda revelado el particular estatuto de la
imagen fotográfica: es un mensaje sin código. De esta proposición se
hace imprescindible deducir de inmediato un corolario importante: el
mensaje fotográfico es un mensaje continuo.” (p. 13)
Cuando Barthes (1986) señala que la imagen fotográfica es un
mensaje sin código, se refiere únicamente a la pura denotación, rela-
cionada directamente con su analogon, el mensaje como tal. En otras
palabras, como diría Dubois (1986) es ahí, y sólo ahí entre la luz que
emana del objeto y la huella que deja sobre la película, donde el hom-
bre no interviene y no puede intervenir so pena de modificar el carácter
fundamental de la fotografía. Hay ahí una falla, un instante de olvido de
los códigos, un index casi puro. Pero fuera de ello, fuera del acto mismo
de la exposición, la foto es inmediatamente (re)-tomada, (re)-inscrita
en los códigos. Por ende, Barthes hace hincapié en su reactivación y
su inscripción en y por los códigos de connotación. Más tarde en su
texto “La cámara lúcida”, señala que es evidente que hay códigos que
vienen a modificar la lectura de la foto, lo que llama studium. Pero nada
puede evitar que la fotografía sea en primer lugar una emanación de lo
real pasado. Y por eso la foto conmueve al sujeto, es por su poder de
contingencia que apunta (punctum) al espectador.
Dubois (1986) afirma que:

La fotografía, antes de cualquier otra consideración


representativa, antes aún de ser una «imagen» que
reproduce las apariencias de un objeto, de una per-

334
sona o de un espectáculo del mundo, pertenece en
primer lugar, esencialmente, al orden de la huella,
del rastro, de la marca y del depósito. En este sentido
la fotografía pertenece a toda una categoría de signos
que el filosófico y semiótico norteamericano Charles
Sanders Peirce llamó index por oposición a icono y a
símbolo. ( p. 55-56)

Para Pierce (1974) un ícono es:

Un signo que se refiere al objeto al que denota me-


ramente en virtud de caracteres que le son propios,
y que posee igualmente exista o no exista tal obje-
to. Es verdad que al menos que haya realmente un
objeto, el ícono no actúa como signo; pero esto no
guarda relación alguna con su carácter como signo.
Cualquier cosa, sea lo que fuere, cualidad, individuo
existente o ley, es un ícono de alguna otra cosa, en la
medida en que es como esa cosa y en que es usada
como signo de ella.

Un index es un signo que se refiere al Objeto que


denota en virtud de ser realmente afectado por aquel
objeto. [...] En la medida en que el index es afectado
por el objeto, tiene, necesariamente, alguna cualidad
en común con el objeto, y es en relación con ella
como se refiere al objeto. En consecuencia, un index
implica alguna suerte de ícono, aunque un ícono
muy especial; y no es el mero parecido con su objeto,
aun en aquellos aspectos que lo convierten en signo,
sino que se trata de la efectiva modificación del signo
por el objeto.

Un símbolo es un signo que se refeiere al objeto


que denota en virtud de una ley, usualmente una

335
asociación de ideas generales que operan de modo
tal que son la causa de que el símbolo se interprete
como referido a dicho objeto. En consecuencia, el
símbolo es, en sí mismo, un tipo general o ley, esto
es, un legisigno. (p. 30-31)

Santaella y Nöth (2003) enfatizan que:

Peirce define al signo fotográfico con respecto a su


relación con el objeto (la segundidad del signo), por
un lado como un ícono, por otro como índice. Así,
las fotos son, en cierto modo, exactamente como
los objetos que representan y, por lo tanto, icónicas.
Por otro lado, mantienen una ligazón física con su
objeto, lo que las vuelve indiciales, porque la imagen
fotográfica está obligada físicamente a corresponder
punto por punto con la naturaleza.

Otro aspecto de la foto que Peirce interpreta se-


mióticamente es la posibilidad de su reproducción
técnica. A partir de la perspectiva de la primeridad,
define el negativo fotográfico como un legisigno,
dado que, de un único negativo, se pueden reprodu-
cir innumerables copias como réplicas del mismo.
En su unicidad, cada copia es, entonces, un sinsigno.

Con respecto a su terceridad, es decir, a la cuestión


de si un signo puede actuar sólo como una palabra
(rhema) o también como una proposición (dicente)
o hasta como una conclusión, Peirce argumenta que
la imagen fotográfica es como un predicado que
hace una afirmación sobre el objeto representado.
(p. 102-103)

336
Por lo tanto, Peirce afirma que un signo es una cosa que nos
permite conocer alguna cosa más. “El signo, así, no es la simple repre-
sentación de una realidad, sino que, gracias al intérprete, es también la
posibilidad implícita de decir lo otro”. (Pericot, 2002, p. 22)
Por lo tanto, Morris (1985) distingue en la semiosis tres dimen-
siones: sintaxis, semántica y pragmática. La sintaxis, considerada como
el estudio de las relaciones sintácticas de los signos entre sí haciendo
abstracción de las relaciones de los signos con los objetos o con los in-
térpretes. La semántica se ocupa de la relación de los signos con sus de-
signata y, por ello, con los objetos que pueden denotar o que, de hecho,
denotan. La pragmática es la relación de los signos con sus intérpretes.
Para Morris (1985)

La sintaxis habla de las reglas de formación y trans-


formación, pero las reglas son modos posibles de
conducta e implican la noción de intérprete; «re-
gla» es, por consiguiente, un término pragmático.
La semántica alude explícitamente sólo a los signos
como objetos o situaciones que designan, pero
no existe una relación de ese tipo sin reglas de uso
semántico, y esto supone de nuevo, implícitamente,
la noción de intérprete. La pragmática sólo se ocupa
directamente de los signos interpretados, pero «in-
térprete» e «interpretante» no pueden definirse sin
usar «vehículo sígnico» y «designatum», de forma
que todos estos términos son términos estrictamen-
te semióticos. (p. 101)

Por ende, en este trabajo me son necesarias y útiles estas tres


dimensiones de la semiosis; la sintaxis relacionada con la percepción,
la semántica relacionada con el contenido visual y la pragmática en
relación con el texto y su contexto.

337
La fotografía entre los totonacos

México se ha caracterizado por su diversidad biológica y étnica


entre todas las naciones del mundo, sin embargo es la diversidad cul-
tural, reflejada en sus étnias, la que más destaca en el devenir de los
tiempos. Los totonacos son un grupo étnico mexicano de origen pre-
hispánico. Hoy día habitan una porción que incluye parte de los estados
de Puebla y Veracruz.
Navarrete (2008) argumenta que la diversidad de lenguas,
orígenes, formas de vida y ecosistemas se traduce en una inagotable
diversidad cultural. Además, señala que México es un país cultural y
étnicamente plural, como lo ha sido desde hace miles de años. Esta plu-
ralidad es una realidad viviente y dinámica que se ha adaptado a todos
los cambios experimentados en nuestro país.
Mondragón (2010) enfatiza que:

Existe una estrecha relación lingüística entre la


lengua y la cultura, es decir, entre la forma en que se
estructuran el habla cotidiana, la cosmovisión y las
costumbres. En ese sentido, el mantenimiento del
uso cotidiano y persistente de las lenguas originales
de los pueblos indígenas de México, como una es-
trategia de sobrevivencia cultural -y física- de larga
duración, ha sido uno de los principales obstáculos
para la implantación de los proyectos encaminados a
integrar culturalmente a las comunidades indígenas
en la “sociedad nacional”, y a impulsar tanto en la
Colonia, como en el México independiente, posre-
volucionario y contemporáneo. (p. 221)

Con el paso del tiempo han existido diversas maneras para des-
cribir esta diversidad cultural desde la postura geopolítica territorial,

338
espacial, estatal, sobre cómo analizar, describir e informar dicha diver-
sidad en México a partir de diversas instituciones como el INI, CDI,
INAH, INALI, por mencionar algunas.
De acuerdo con el Censo de Población 2010, en México hay
unos 16 millones de indígenas; de ellos, cerca de 7 millones hablan
español y alguna de las lenguas nacionales, mientras que un millón son
monolingües. Según, INEGI, Puebla tiene una población de 1 539 819
millones habitantes en el censo de 2010 dentro de 217 municipios.
En en el Catálogo de Lenguas Indígenas Nacionales del Instituto
Nacional de Lenguas Indígenas (2008) se menciona que en México se
hablan 68 lenguas que tienen 364 variantes lingüísticas pertenecientes
a 11 familias.
En el artículo 2 de la Ley de derechos, cultura y desarrollo de
los pueblos y comunidades indígenas del Estado de Puebla señala lo
siguiente:

El Estado de Puebla tiene una composición pluri-


cultural y multilingüística, sustentada originalmente
en sus Pueblos y Comunidades Indígenas Náhuas,
Totonacas o Tutunakuj, Mixtecas o Ñuu Savi, Te-
pehuas o Hamaispini, Otomíes o Hñähñü, Popolo-
cas o N’guiva y Mazatecas o Ha shuta enima, que se
asentaron en el territorio del Estado de Puebla desde
la época precolombina y conservan instituciones
sociales, económicas, culturales y políticas, que les
son propias.

Con base en lo anterior, se puede decir que los totonacos repre-


sentan el 44% de la población indígena de la Sierra Norte de Puebla y
el Totonacapan, según CDI (2006, p. 48). Los totonacos son un grupo
étnico mexicano de origen prehispánico. Hoy día habitan una porción

339
que incluye parte de los estados de Puebla y Veracruz. Su territorio era
más extenso a la llegada de los europeos, que en el tiempo actual; sin
embargo aún sigue siendo considerable.
Entre montañas verdes con frutos tropicales, ríos con abundan-
te agua y animales tropicales extraños al ojo citadino, se encuentra el
Totonacapan, que no es sino la región que han habitado los miembros
del pueblo totonaco desde tiempos inmemoriales. Sus límites han sido
modificados y sus poblaciones han sido testigos de grandes aconteci-
mientos sociales y han protagonizado algunas escenas de la historia
nacional (Deance:Vázquez, 2010, p. 40).
Es por ello que en este trabajo nos enfocaremos en los totonacos
del pueblo totonaco de San Pedro Petlacotla, perteneciente al Munici-
pio de Tlacuilotepec, en el estado de Puebla en México.
En esta región, la mayoría de sus habitantes tiene por lo menos
una fotografía en su casa, ya sea de sus abuelos, padres o hijos. Las per-
sonas suelen guardarlas en un forro de plástico y las colocan en sus alta-
res. Cabe señalar que los altares familiares son un aspecto fundamental
de la cultura totonaco, ya que desde ahí se busca la protección de todos
los miembros de la familia teniendo las fotografías cerca de los santos y
los mantienen con ofrendas y veladoras constantemente.
Otras personas enmarcan sus fotografías y son colocadas en el
interior de la casa, por lo regular cerca de los altares. Las personas que
no tienen la costumbre de los altares las suelen colocar en su habitación
de dormir, y las fotos que no enmarcan, las guardan en una bolsa de
plástico transparente dentro de una caja de cartón.
¿Quién les ha tomado estas fotografías?, ¿Cómo las han adquiri-
do?... Cuentan las personas mayores, que antes no tenían fotógrafo en
la comunidad, por lo que tenían que caminar a la Ceiba para tomarse la
foto o en su defecto ir a Pantepec o Villa Juárez, a muchos kilómetros

340
de distancia. Si no encontraban al fotógrafo se iban a otros lugares aún
más alejados como: Huauchinango o Poza Rica. En eventos religiosos
como boda, bautizo, confirmación, primera comunión y quince años,
solían ir a la Iglesia de la Ceiba y a su vez aprovechaban para tomarse la
foto del recuerdo.
Hoy en día esto no ha cambiado mucho, ya que siguen yendo a la
Iglesia de la Ceiba para celebrar los eventos religiosos ya mencionados,
debido a que no tienen un sacerdote fijo en la comunidad. Las perso-
nas de San Pedro Petlacotla suelen conseguir padrinos de velación, de
transporte para la quinceañera, de bebida, de conjunto, de pastel y por
supuesto de fotografía. Los padrinos de fotografía con anticipación avi-
san al fotógrafo de la Ceiba o al fotógrafo de la comunidad respecto al
evento para que tome fotografías en la iglesia, y posteriormente acuden
al estudio fotográfico en donde se hacen algunas tomas fotográficas a la
quinceañera, a los novios y padrinos, etcétera.
Desde el año de 1991 la comunidad de San Pedro Petlacotla
cuenta con un fotógrafo llamado Armando Rosas Maldonado. Nació
en Huachinango, Puebla. Estudió ocho años en el Ejército Mexicano en
Coahuila, donde aprendió fotografía. Su primer trabajo de fotografía
fue precisamente en el ejército, donde tomaba fotografías al goberna-
dor y a las personas que les entregaban despensas.
Llegó a vivir a San Pedro Petlacota en enero del año 1991, con la
finalidad de vivir de la fotografía, por lo que empezó a tomar fotos en
las clausuras de las escuelas. Actualmente toma fotografías de tamaño
infantil a 200 alumnos.
Más adelante, Armando acude a otras comunidades aledañas a
San Pedro Petlacotla para realizar trabajo de fotografía como Plan de
Ayala, Tacubaya, Palo Blanco, Itzatlán, La Lagunilla, San José, Dos
Arroyos, Ula, Jalpan, El Pochote, Zacatal, San Antonio y La Esperanza.

341
Actualmente, Armando es muy conocido en la comunidad de
San Pedro Petlacota, las personas le encargan que tome fotografías en
sus fiestas religiosas, cumpleaños, rituales de partera, rituales de cos-
tumbre y altares de todos santos.

Modelo tetradimensional para el análisis


de imágenes fotográficas

La fotografía es una imagen que reproduce las apariencias de


un objeto, de una persona o de una situación del mundo, por ende, la
semiótica permite analizar a la fotografía mediante tres dimensiones:
sintáxis, semántica y pragmática. En el siguiente modelo de análisis
fotográfico se presenta una muestra metodológica de las fotografías
tomadas por totonacos de San Pedro Petlacotla del Municipio de Tla-
cuilotepec, Puebla, trabajo en el cual se les dio una cámara fotográfica
a 16 personas2 de dicha localidad para que ellos mismos registraran su
cultura y su vida desde la manera propia de percibir el mundo, privi-
legiando los momentos que a su parecer eran de mayor importancia,
así como los encuadres y planos que ellos decidieran usar sin ningún
tipo de adiestramiento al respecto, pues lo que es importante para mí
o para los miembros de mi cultura, no es necesariamente importante
para ellos.

2 Dos mujeres adultas, dos mujeres jóvenes, dos mujeres adolescentes, dos niñas, dos
hombres adultos, dos hombres jóvenes, dos hombres adolescentes y dos niños.

342
Semántica

Temas

Vida cotidiana Festividades

Desarrollo
Actividades Actividades
Preparativos de
laborales de esparcimiento
la fiesta

Actantes

Personas
Animales
Cosas
Acciones
Autor/Fotógrafo Lugar

Pragmática

• Nombre
Comentarios sobre las fotografías
• Edad y otras circunstancias
• Sexo
• Ocupación o cargo
en la comunidad
• Semblanza del fotógrafo • Qué querían
• Qué tomaron
• Por qué lo tomaron
• Motivaciones
• Secuencia fotográfica

Sintaxis

Características técnicas Elementos básicos


de la imagen
• Eje
• Puntos áureos
• Tipo de cámara y marca • Color
• Lente • Planos generales,
• Flash integrado intermedios y
• Tipo de película (color; b/n; cortos
• ASA; exposiciones) • Angulación normal,
• Fecha de producción picado y
• Número de fotos contrapicado
• Condiciones de luz (sol
pleno,
nublado claro, sombras
al
descubierto)

Figura 1: Modelo tetradimensional para el análisis de imágenes fotográficas


(Vázquez, 2015:71)

Este modelo se encuentra dividido en cuatro dimensiones: 1)


autor/fotógrafo; 2) sintaxis; 3) semántica y 4) pragmática. A conti-
nuación se describe cada dimensión de dicho modelo tomando como
referente a una de las fotógrafas totonacas.
En la dimensión del autor/fotógrafo, se indica el relato de los
datos personales de los autores/fotógrafos que participaron en está
investigación como son; nombre, rasgos físicos, edad, sexo, ocupación
y actividades que desempeñan en la comunidad, es decir, se realiza una
breve semblanza del fotógrafo.

343
Foto #4 Verónica Vázquez Valdés, Lucía Allende, partera tradicional, San Pedro
Petlacotla, Pue., 2004.

Doña Lucía Allende mujer delgada y de apariencia madura, con una


sonrisa perenne en la cara y una preocupación constante en la mente. Mujer
totonaco que habla bien el español aunque la lengua que más usa es totona-
co; madre de muchos hijos ella misma los parió sola. A los tres más pequeños
ya no les enseñó el totonaco. Fue capacitada como partera del sector salud
pero como es una mujer muy sensible, no soportó las envidias y los regaños,
debido a que sufría mucho, se retiró. Es la partera tradicional más respetada
y reconocida de toda la región e inclusive la visitan mestizos de poblados y
ciudades aledañas.
Ella trata de ver por todos sus hijos ya sea directa o indirectamente,
con ayuda tangible o con ayuda espiritual, cuida a cuatro nietas, como si

344
fueran sus hijas, ya que le fueron encargadas. Recibe a todos sus parientes
consanguíneos o políticos con muchísimo gusto, es una mujer abnegada,
sumisa e increíblemente noble, tiene compasión a todos, las personas pobres
hasta los animales enfermos, es muy solidaria y trabajadora.
Tiene animales de corral y milpa. Su mayor afición es bordar, cocinar,
mirar los paisajes de la naturaleza, escuchar los sonidos de los pájaros y el
viento, además de pensar y soñar con personas y tierras lejanas.
Continuando con las dimensiones del modelo, en la dimensión
sintaxis se describen las características técnicas de la cámara fotográfica
y los elementos básicos de la imagen.
Las características técnicas se pueden describir de la siguiente
manera:
CARACTERÍSTICAS TÉCNICAS
Tipo de cámara fotográfica: cámara pocket, marca Vivitar de 35mm.
Tipo de lente: gran angular de 28mm. Enfoque fijo.
Flash: incorporado a la cámara, con la función manual.
Visor: tipo galileano, inverso con campo grande.
Tipo de película: Rollo de color, marca kónica, de 36 exposiciones fotográficas.
ASA: 400°.
Exposición: velocidad de obturación 1/100 de seg. y f/8.
Fecha de producción fotográfica: diciembre de 2003.
Número de fotos: 31 fotografías.
Tabla 1. Sintaxis: Características técnicas

a) Tipo de cámara fotográfica y la marca, para está investigación


se utilizó una cámara automática pocket, marca Vivitar de 35mm. A los
16 totonacos se les enseñó las pocas funciones de la cámara fotográfica:
cómo encenderla, cómo apagarla, cómo utilizar la función de flash y del

345
disparador. Les indiqué que siempre utilizaran la función de flash en-
cendido, pues me di cuenta que el interior de las casas es muy obscuro
y no saldría la imagen fotográfica y por otro lado, en lugares exteriores,
el flash serviría como luz de relleno.
Sin embargo la única indicación que se les hizo a cada uno de los
colaboradores de manera idéntica: “Al tomar una foto, abre la cámara
(tapa del obturador) enciende el flash y en cuanto esté el foquito en
verde, aprietas el botón (botón disparador).
b) Tipo de lente, la cámara Vivitar tenía integrado un lente gran
angular de 28mm. Enfoque fijo. Y el visor era tipo galileo, inverso con
campo grande. Por lo que se les indicó a los 16 totonacos que: “Te aviso
que lo que veas por la ventanita (ventana del visor) es lo que saldrá en
tu foto, tal cual y como lo veas.”
Este rubro es importante pues existe una gran variedad de lentes
fotográficos como: el normal 50mm., el cual presenta un ángulo de
cobertura visual parecido al ojo humano; gran angular 28mm, muestra
un ángulo de cobertura visual mayor al ojo humano, los objetos se ven
más pequeños; telefoto 135mm., indica un ángulo visual más reducido,
aumenta el tamaño del sujeto principal, a costa de abarcar menos; zoom
28- 80mm., es un objetivo de longitud variable, con varios lentes (normal,
gran angular y telefoto); teleconvertidores (3x) da un resultado similar al
telefoto, la diferencia es que se acopla entre el objetivo y la cámara; y el
ojo de pez, es un objetivo gran angular extremo, cuyo ángulo de cobertu-
ra visual es capaz de fotografías de 120°, 180° a 220°;
c) Flash, incorporado a la cámara Vivitar con la función manual.
Sin embargo, en otras cámaras puede estar independiente. Lucía Allen-
de realizó sus tomas fotográficas en la noche y gracias al flash se logró
el registro visual.

346
d) Tipo de película, puede ser blanco y negro o color de 35 mm,
en este caso se utilizó la película de color para observar cuáles colores
predominan en la cultura de los totonacos; marca se utilizaron Kónica,
Kodak o Fuji; ASA es la capacidad que tienen las películas para poder
captar una imagen con determinada cantidad de luz, existen películas
fotográficas con ASA 25°, 50, 100°, 200° y 400°, en esta investigación se
utilizó el ASA 400º debido a las condiciones de luz de la región totona-
ca; número de exposiciones: es la cantidad de tomas fotográficas que trae
cada rollo fotográfico, pueden ser de 12, 24 y 36 exposiciones. Lucía
utilizó un rollo de color, marca konica, de 36 exposiciones fotográficas
y con ASA 400°.
e) Fecha de producción fotográfica: aquí se registra el día, mes,
año y lugar donde se realizaron las tomas fotográficas y finalmente; el
número de fotos tomadas. Lucía Allende realizó sus fotografías en el mes
de diciembre de 2003.

ELEMENTOS BÁSICOS DE LA IMAGEN

Eje: 28 fotografías las tomó en eje horizontal y tres en plano vertical.

Puntos áureos: 26 fotografías coincidieron con los puntos áureos y cinco no


coincidieron.
Color: los colores más destacados en estas fotografías fueron: amarillo, blanco, verde,
café y azul.

Planos: 28 fotografías fueron tomadas en plano general y tres en plano intermedio.

Angulación: 30 fotografías fueron tomadas en angulación normal y una en angulación


contrapicado.
Condición de luz: las 31 fotografías fueron tomadas con luz artificial. Lucía tomó las 31
fotografías en la noche.
Tabla 2. Sintaxis: Elementos básicos de la imagen

347
En este apartado se consideran los siguiente elementos:
a) Tercios de la imagen: Toda imagen se crea en torno a los
denominados puntos fuertes. Para obtener estos puntos se
divide en tercios que corresponden, a la tercera parte de la
misma. En donde se cruzan estas divisiones, ubicamos los
llamados puntos fuertes de la imagen, esto es llamado por
Dondis como rectángulo dorado.

b) Puntos áureos o sección Áurea: Según Aparici y García (1998)


los cuatro puntos (A, B, C y D) que marcan otras tantas in-
tersecciones entre las líneas paralelas y perpendiculares, se
convierten en los «puntos de fuerza» que habrán de tenerse
presentes a la hora de situar los centros de interés de cualquier
imagen. Esta teoría de los puntos fuertes es la denominada
«Sección Áurea» que, desde los clásicos griegos, es la base de
la proporción geométrica. Euclides, en su búsqueda por hallar
la división ideal entre las dos mitades de una recta, llegó a de-
finir el concepto de «media dorada» (más adelante llamada
Proporción Divina y a partir del siglo XIX, Sección Áurea).

Como se puede observar en la tabla 2, Lucía Allende de las 31


fotografías que realizó coincidieron 26 fotografías con los puntos áu-
reos. Este gran número de fotografías corrobora la teoría de los puntos
áureos en donde, de la misma manera en que una persona occidental
lo hace, los fotógrafos totonacos encuadraron sus actantes en la sección
áurea. Podemos concluir que la teoría de los puntos áureos, se puede
aplicar a diversas culturas que no necesariamente tengan el referente
occidental.

c) Eje: existen dos tipos de eje: el vertical (arriba/abajo) y el


horizontal(izquierda/derecha).

348
Lucía Allende tomó 28 fotografías en eje horizontal y sólo
tres en eje vertical. Este promedio de fotografías tomas en
eje horizontal es probable que se deba a la comodidad por
agarrar la cámara fotográfica en forma horizontal. Aunque
otra posibilidad sea que los totonaco de SPP están acostum-
brados a percibir las imágenes visuales de izquierda a derecha
y no de arriba a bajo o de forma vertical.

d) Color: Este elemento se encuentra cargado de información y


tiene tres dimensiones: el matiz, es el color mismo o croma;
saturación, se refiere a la pureza de un color respecto al gris; y
brillo, va de la luz a la oscuridad.

Los colores resaltados en las fotografías de Lucía Allende fueron


amarillo, blanco, verde, café y azul, según Ichón (1990) el simbo-
lismo de los colores asociados a los elementos, sin consideración de
orientación, es de gran nitidez en ciertos accesorios rituales: el blanco
representaba a las nubes; el verde al agua, a la lluvia; el rojo o el rosa
al arco iris; los vientos son representados por los diversos colores del
espectro. En fin, Lucía registró estos colores debido a sus actividades
como partera.

e. Planos. El concepto de plano, según Aparici y García (1998),


se establece siempre tomando como referencia de unidad de
medida la figura humana. Para la captación de objetos, monu-
mentos, escenarios, etcétera, se aplica la misma nomenclatura
tomando el objeto protagónico como referente de medida.
A partir de la persona u objeto que se toma como unidad de
medida, se desprenden los siguientes planos:
Planos generales: son informativos. Sirven para mostrar
una localización concreta y para situar al espectador. Den-

349
tro de este rubro tenemos: Gran Plano General (G.P.G.)
en él predomina el entorno sobre los actantes (personas,
animales, cosas, acciones y lugar), los cuales pueden formar
parte del encuadre. Plano general, muestra la acción por
completo de los actantes. Limita la presencia del entorno
con respecto al G.P.G.
Planos intermedios: sirven para relacionar a los actantes entre
sí, se aproximan más a una visión objetiva de la realidad. Son
a su vez más expresivos que informativos. e) Plano America-
no: También denominado Plano Tres Cuartos. El personaje
o personajes aparecen encuadrados hasta las rodillas. f) Pla-
no Medio: El personaje o personajes aparecen encuadrados
a la altura de la cintura. Individualiza al personaje, lo que lo
diferencia del Plano Americano.
Planos Cortos: sirven para detallar a los personajes. Primer
Plano: el encuadre incluye la cabeza, el cuello y parte de
los hombros del personaje. Exhibe la interioridad del per-
sonaje y tiene gran carga de subjetividad. Plano Detalle: el
encuadre presenta un fragmento del objeto o del personaje
que interesa resaltar.

Cabe mencionar que con Lucía, de las 31 fotografías realizadas,


28 fotografías fueron tomadas en plano general y tres en plano inter-
medio. Esto significa que no hubo mucho acercamiento físico de los
fotógrafos hacia sus actantes fotografiados. Se puede interpretar que,
en la cultura totonaco, no existe tanto contacto físico o acercamiento
entre las personas, en comparación con otras culturas.
Esto se hace evidente en la cotidianidad tanto en los saludos
de cortesía como en las relaciones afectivas de cualquier tipo ya sea
filiales, fraternales o conyugales, en donde el contacto físico se evita.

350
De hecho, el saludo de mano entre los totonaco es apenas un ligero
roce entre las palmas.

f) La angulación. Aquí se manejan tres tipos:


Normal: (a la altura de los ojos del observador) Este es un
tipo de angulación estándar. Es el más próximo a una visión
“objetiva” de la realidad.
Picada o Ángulo picado: (desde una posición más elevada
del punto de vista normal) Este tipo de ángulo puede tener
una utilización funcional.
Contrapicado: (desde una posición por debajo de los ojos
del observador) Se utiliza para engrandecer al objeto o per-
sonaje.

Lucía realizó 30 fotografías en angulación normal y sólo una en


angulación contrapicado. Este gran número de fotografías se debe a
que este tipo de angulación es más próximo a una visión más aproxi-
mada a la que naturalmente tiene el ojo humano según Aparici y García
(1998). En otras palabras, esta angulación se realiza cuando se sostiene
la cámara fotográfica de forma muy natural, de pie y a la altura de los
ojos en forma recta (ángulo de 90º).

g) Condición de luz: puede ser con luz natural o luz artificial


(flash).

Lucía realizó todas las 31 fotografías durante la noche y utilizó luz


artificial. Tal vez porque Lucía está muy vinculada con la comunidad
mediante rituales y festividades religiosas, o también quizás se deba a
que en la cultura totonaco, la noche tiene que ver con la Luna, Papa´,
según Ichon (1990) es como una divinidad secundaria, está ligada a la
del Sol, contra quien ella ha luchado por la dominación del mundo, y

351
por quien ha sido vencida. La Luna es un hombre: “El hombre de todas
las mujeres”. Este interviene en la formación del feto para determinar
el destino del niño. Es decir, la Luna está asociada al agua y a la idea
de la fecundidad, y es ella quien provoca la concepción. La Luna está
ligada, además, a las ideas de la magia y de la contra magia a la vez. Las
operaciones mágicas se hacen siempre de noche, a la luz de la luna.
La tercera dimensión es la semántica, la cual está dividida en dos
vertientes: 1) vida cotidiana y 2) festividades.

Actividades Laborales: No. de Fotos: 0

Vida Cotidiana
No. de Fotos:7
Actividades de Esparcimiento: No. de Fotos: 7
Nietas, hija y esposo posando para la fotografía
en casa de Lucía. Amiga de Lucía posando para
la fotografía.
TEMA
Preparativos: No. de Fotos: 0

Desarrollo de la fiesta: No. de Fotos: 24


Árbol de navidad, nacimiento, nicho de la Virgen
Festividad de Guadalupe de la calle de SPP. Procesión de la Virgen
No. de Fotos: 24
de Guadalupe de SPP a la Ceiba. Integrantes de la
danza de voladores posando para la fotografía frente
al cuadro de la Virgen de Guadalupe. Personas bailándole
a la Virgen de Guadalupe.

Tabla 3. Semántica: Temas

La primera vertiente consta de actividades laborales y actividades


de esparcimiento. Con respecto a las actividades laborales, se incluyen
no sólo las que perciben una remuneración económica sino además
aquellas que son una obligación, ya sea social o familiar, como los que-
haceres domésticos, los estudios escolares, los mandados, etcétera. En

352
las actividades de esparcimiento se tomó en cuenta aquellas actividades
de descanso, de entretenimiento, deportivas y diversión.
Lucía realizó siete tomas fotográficas de sus familiares dentro de
su casa como actividades de esparcimiento y no registró ninguna acti-
vidad laboral, pero cabe mencionar que después de hacer este ejercicio
fotográfico se apropió de la cámara y comenzó a registrar con fotogra-
fías parte de su trabajo como partera.
Con respecto a la vertiente de festividades, Lucía realizó 24 foto-
grafías respecto a la festividad de la Virgen de Guadalupe.
En esta dimensión se manejó además el concepto de “actante”
término utilizado por Vilches (2002) el cual comprende a personas,
animales y cosas, y además, se refiere a términos que por cualquier razón
participan en el proceso narrativo sea que realizan el acto o que lo sufran.

Familiares: esposo, hijos (as), niños (as), amiga,


yerno, consuegra
Personas Conocidos: curanderos, integrantes de la danza de
Voladores y ella misma.

______________
Animales

Altar religioso totonaco (cuadros de santos


católicos y de la Virgen de Guadalupe, veladoras,
Cosas
ACTANTES incensario.

Procesión de la Virgen de Guadalupe, baile


Acciones de las flores a la Virgen de Guadalupe.

Casa de Lucía Allende, calle principal de San


Lugar Pedro Petlacotla.

Tabla 4: Actantes

353
La mayoría de los actantes que registró Lucía fueron relaciona-
dos con la festividad de la Virgen de Guadalupe.

Foto #5 Lucía Allende, Nietas en la cocina, San Pedro Petlacotla, Pue., 2003.

Foto #6 Lucía Allende, Fiesta de la Virgen de Guadalupe, San Pedro Petlacotla,


Pue., 2003.

354
La cuarta dimensión se habla sobre la pragmática. En ésta están
presentes los comentarios sobre las fotografías que fueron tomadas
por los 16 fotógrafos totonaco de SPP del Municipio de Tlacuilotepec,
Puebla. Con ello se definió qué querían tomar, qué tomaron, por qué lo
tomaron, qué motivaciones existieron, etcétera. Además, es necesario
considerar de cada fotógrafo: la edad, el sexo y la ocupación o cargo que
ocupa en la comunidad.
Así mismo, según Van Dijk (1989) indica que hay que tener en
cuenta que la pragmática se dedica al análisis de los actos de habla y,
más en general, al de las funciones de los enunciados lingüísticos y de
sus características en los procesos de comunicación. En un principio,
la pragmática fue uno de los tres componentes de la semiótica, la cual
se ocupa principalmente de los signos y de sus sistemas (en símbolos,
significados y comunicaciones) que representa un componente a lado
de la sintaxis (el análisis de las relaciones entre signos) y de la semán-
tica (el análisis de las relaciones signos, significados y realidad). Por
eso, la pragmática se considera como una descripción de las relaciones
entre signos y quienes lo emplean. Así pues la pragmática se ocupa de
las condiciones y reglas para la idoneidad de enunciados (o actos de
habla) para un contexto determinado. En resumen se puede decir que
la pragmática estudia las relaciones entre el texto y su contexto.
Por tanto, esta dimensión se puede narrar de la siguiente manera.
La participación de Lucía trascendió al proyecto de investigación, in-
cluyéndose en mi vida, dejando una huella imborrable en mi corazón,
en mi memoria. Siempre me trató como una hija y en ocasiones muy
especiales me concedió más confianza que a sus propias hijas; sin em-
bargo tiene vergüenza de su condición de origen totonaco, lo que se
reflejó en cierta inseguridad para tomar las fotografías, dando en múlti-

355
ples ocasiones la cámara a algún pariente para que tomara la foto en su
lugar, pues ella no se sentía capaz de hacerlo bien.
Lucía Allende realizó sus tomas fotográficas sobre la procesión
de la Virgen de Guadalupe que se lleva a cabo en el mes diciembre y
sobre el altar totonaco que tiene en su casa. Lucía aprecia mucho su al-
tar totonaco debido a que sus hijos le han traído poco a poco imágenes
y cuadros de santos católicos, por lo que decidió fotografiar a su hija,
nietas y esposo frente a él. Por otra parte, Lucía fotografió la cocina de
su casa porque le gusta mucho cocinar.
Respecto a las fotografías de la procesión de la Virgen de Guada-
lupe, Lucía Allende le pidió de favor a su hija de 10 años y a su yerno de
28 años que las tomaran ya que se sentía insegura y le daba pena que la
vieran las personas de la comunidad de SPP. Por ende, Lucía les indicó
que cosas debían fotografiar, que en este caso sería a los integrantes de
la danza de Los Voladores, a la curandera tradicional de SPP y a ella
misma con sus nietas, hijas y nieto. La finalidad de estas fotografías para
Lucía era tener un recuerdo de su familia frente al nicho católico que se
encuentra a un costado de la casa de su yerno.
Además, Lucía quería tenerse de recuerdo, por lo que aparece en
ocho fotografías, en una de ellas se encuentra a lado de un árbol de
navidad ubicado en la calle principal de SPP, en otras, está bailándole a
la Virgen de Guadalupe. Las demás fotografías Lucía está con su familia
y una amiga, pero lo destacable, es que están a lado del cuadro de la
Virgen de Guadalupe.
Cabe señalar que una vez terminadas las tomas fotográficas, a
Lucía le dio la inquietud de seguir tomando fotografías, principalmen-
te realizar un registro fotográfico de la actividad que desempeña en la
comunidad, la de partera.

356
Finalmente, después de analizar 456 fotografías de los 16 fotó-
grafos del grupo étnico totonaco mediante el modelo tetradimensional
para el análisis de imágenes fotográficas, llegué a las siguientes reflexio-
nes:

a) Los totonacos con experiencia migratoria, reflejaron mayor


diversidad en la elección de planos, ángulos y eje al tomar sus
fotos, debido al contacto constante de una cultura visual más
diversificada, presente en las ciudades y en las comunicacio-
nes de cobertura nacional e internacional como pueden ser:
prensa, anuncios espectaculares, revistas, medios electróni-
cos, etcétera. Entonces podemos decir que la reproducción
de las imágenes fotográficas están altamente correlacionadas
con las experiencias visuales previas.

b) Los totonacos están acostumbrados a percibir las imáge-


nes visuales de izquierda a derecha y no de arriba a bajo o
de forma vertical. Debido a que el promedio de fotografías
tomadas en eje horizontal fue de 78.3%. Posiblemente, este
promedio también se deba a la comodidad por agarrar la cá-
mara fotográfica en forma horizontal.

c) La teoría de los puntos áureos, se puede aplicar a diversas cul-


turas que no necesariamente tengan el referente occidental,
ya que el 90.6% de las tomas realizadas por los totonacos en-
cuadraron sus actantes en la sección áurea. Cabe enfatiza que
la «Sección Áurea» o puntos fuertes que, desde los clásicos
griegos, es la base de la proporción geométrica. Euclides, en
su búsqueda por hallar la división ideal entre las dos mitades
de una recta, llegó a definir el concepto de «media dorada»
(más adelante llamada Proporción Divina y a partir del siglo

357
XIX, Sección Áurea). Por lo tanto, en el 2000, Dondis señala
que se obtiene la Sección Áurea diseccionando un cuadro y
usando la diagonal de una de sus mitades como radio para
ampliar las dimensiones del cuadrado hasta convertirlo en
rectángulo áureo. Se llega a la proporción a:b=c:a.

d) En la cultura totonaca, no existe tanto contacto físico o


acercamiento entre las personas, en comparación con otras
culturas y esto se refleja en las fotografías tomadas en plano
general por los totonacos con un 86.4%. Esto se hace eviden-
te en la cotidianidad tanto en los saludos de cortesía como
en las relaciones afectivas de cualquier tipo ya sea filiales,
fraternales o conyugales, en donde el contacto físico se evita.
De hecho, el saludo de mano entre los totonaco es apenas un
ligero roce entre las palmas.

e) Para los totonacos es mejor realizar sus actividades laborales


y de esparcimiento en el día, a la luz del Sol. Tal vez se deba
a que en la cultura totonaco el Sol, Chichiní, es el gran dios
totonaco, el Creador y el Dueño del Maíz. Tiene a sus órde-
nes, directamente o por medio de Aktsini, dios del Agua, a
los Truenos y a los Vientos, según afirma Ichon en 1990. El
promedio de las fotografías realizadas en el día fue 71.4% y
en la noche el 28.6%.

Se puede decir que la fotografía para los totonacos es un ele-


mento de estatus, ya que no todos tienen acceso a ella. Quien registra
un evento mediante la fotografía, tiene el poder y la legitimidad de
ese recuerdo. Además, en la cultura de los totonacos se valora más la
presencia entera físicamente de los actantes y no tanto la composición
estética occidental de la fotografía, como son los primeros planos. Por

358
lo que, considero que este trabajo contribuye a la difusión visual en
zonas rurales, especialmente indígenas, para lograr mayor eficiencia en
los trabajos de comunicación visual. Por lo anterior, pienso que cuando
vayamos a realizar un trabajo visual para las culturas amerindias, de-
bemos cuestionarnos primero cómo es la percepción visual entre esas
culturas para poder llevar a cabo, de la manera más efectiva, cualquier
propaganda, publicidad, campaña o elemento visual que desee trans-
mitir un mensaje.

Referencias

BARTHES, R. “La retórica de la imagen” en Lo obvio y lo obtuso. Imágenes, gestos,


voces. Barcelona: Paidós, 1986.

CÁRDENAS, A. et al. Nuestras Lenguas. México: SEP/Dirección General de


Educación Indígena, 2004.

CDI. Regiones indígenas de México. México: Comisión Nacional para el Desarro-


llo de los Pueblos Indígenas/Programa de las Naciones Unidas para el Desarro-
llo, 2006.

DUBOIS, P. El acto fotográfico. Barcelona: Paidós, 1986.

DUQUESNOY, M., et al. Un acercamiento a los pueblos indígenas de Puebla. En


Los pueblos indígenas de Puebla. Atlas Etnográfico. México: Gobierno del Estado
de Puebla/Instituto Nacional de Antropología e Historia, 2010. p. 71-118.

ECO, U. Lector in fabula. Barcelona: Lumen, 1987.

GONZÁLEZ O, C. Apuntes acerca de la representación. México: UNAM, 1997

GUBERN, R. La mirada opulenta. Exploración de la iconosfera contemporánea.


Barcelona: GGMassMedia, 1987.

ICHON, A. La religión de los totonacas de la sierra. México: INI, 1973.

359
LOTMAN, Y. Semiótica de la cultura. Madrid: Cátedra, 1979.

MORRIS, C. Fundamentos de la teoría de los signos. Barcelona: Paidós, 1985.

PEIRCE, C. La ciencia de la semiótica. Buenos Aires, Argentina: Nueva Visión


Buenos Aires, 1974.

PERICOT, J. Mostrar para decir. La imagen en contexto. Barcelona: Universidad


Autónoma de Barcelona, 2002.

MONDRAGÓN, J. El uso de la lengua indígena y la educación. Del integracio-


nismo estatal a las alternativas indígenas. En: Los pueblos indígenas de Puebla.
Atlas Etnográfico, México: Gobierno del Estado de Puebla/Instituto Nacional
de Antropología e Historia, 2010. p. 217-260.

NAVARRETE, F. Los pueblos indígenas de México. México: CDI, 2008.

SANTAELLA, L.:WINFRIED, N. Imagen: Comunicación, semiótica y medios.


Kassel: Edition Reichemberger, 2003.

VÁZQUEZ VALDÉS, V. Diversas miradas: La imagen fotográfica y su análisis para la


investigación social. Imagen, memoria y patrimonio. México: El Errante/BUAP, 2015.
VILCHES, L. La lectura de la imagen. Prensa, cine, televisión. Barcelona: Paidós,
1984.

PUEBLA, cuarto estado con mayor población indígena en México. Recuperado de:
<http://www.e-consulta.com.mx/nota/2015-08-10/sociedad/puebla-cuar-
to-estado-con-mayor-poblacion-indigena-en-mexico>. Acceso en: 10 ago. 2015.

LAS 364 variantes de las lenguas indígenas nacionales, con ALGÚN riesgo de
desaparecer: INALI. Recuperado de: <http://www.inali.gob.mx/en/comunica-
dos/451-las-364-variantes-de-las-lenguas-indigenas-nacionales-con-algun-ries-
go-de-desaparecer-inali.html>. Acceso en: 31 mar. 2015.

360
A IMAGÉTICA MEHI: REFLEXÕES
INICIAIS SOBRE RITMOS E
IMAGENS CUPE E KRAHÔ 1

Joel Cuxy2
Alexandre Herbetta3

1 Uma versão deste texto foi originalmente publicado na Revista Articulando e


Construindo Saberes editada no Núcleo Takinahakỹ de Formação Superior In-
dígena, volume 1, número 1.
2 É professor na Escola Indígena 19 de abril da aldeia Manoel Alves Pequeno em
território Krahô. Egresso do Curso de Licenciatura Intercultural do Núcleo Taki-
nahakỹ de Formação Superior Indígena da Universidade Federal de Goiás. É
membro do Comitê Krahô-Apinajé.
3 É professor do Núcleo Takinahakỹ de Formação Superior Indígena e do Progra-
ma de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Goiás.
É orientador do Comitê Krahô-Apinajé.

361
Resumo: O texto aqui apresentado é parte de um debate realizado
atualmente no Comitê Krahô-Apinajé do Núcleo Takinahakỹ de
Formação Superior Indígena (NTFSI) da Universidade Federal de
Goiás (UFG), tanto nas etapas de estudos em Goiânia quanto nas
etapas em Terra Indígena. Neste diálogo coletivo, apresentam-se
trechos das falas e reflexões de dois membros do comitê, os quais
buscam pensar sobre a estética da imagem entre os mehi. Desta
forma, identificam-se aspectos interessantes sobre a produção, o
uso e a difusão de imagens entre os Krahô, os Apinajé e os cupe
(não indígenas), os quais têm relação direta com os modos de vida
de cada população. Além disso, procura-se entender a importância
da autoria na produção das respectivas imagens. Note-se que um
dos objetivos do referido comitê é a produção de material didático
com conteúdo audiovisual, problematizando-se a predominância
da escrita nos contextos escolares.
Palavras-chave: Imagem. Autoria. Material didático.

Abstract: The text presented here is part of a debate developed in


the Krahô-Apinajé Committee at Núcleo Takinahakỹ de Forma-
ção Superior Indígena (NTFSI) in the Goiás Federal University
(UFG) which occurs in Goiânia as in Indigenous Land. In this col-
lective dialogue, we present excerpts from speeches and reflections
of two members of the Committee, which seek to think about the
aesthetics of the image among mehi. Thus, it identifies interesting
aspects of the production, use and dissemination of images among
Krahô, Apinajé and cupe (not indigenous), which are directly
related to the lifestyles of each population. Furthermore, we look
to understand the importance of authorship in the production of
respective images. Note that one of Committee goals is the pro-

362
duction of teaching materials with audiovisual content, problema-
tizing the predominance of writing in school contexts.
Keywords: Image. Author. Teaching material.

No Núcleo Takinahakỹ de Formação Superior Indígena (NTFSI)


da Universidade Federal de Goiás (UFG) cada população indígena tra-
balha em um comitê, responsável por orientar a produção das atividades
como o trabalho extraescolar e o relatório de estágio, desenvolvidas ao
longo do Curso de Licenciatura Intercultural (Pimentel, 2010, 2013),
cujo objetivo é a formação, em nível superior, de docentes indígenas.
Estes coletivos são responsáveis também por refletir sobre o mundo con-
temporâneo, a interculturalidade e a educação escolar indígena.
A partir da Constituição brasileira de 1988, algumas leis surgi-
ram para regulamentar a educação escolar diferenciada. Nesse cenário,
alguns cursos superiores de licenciatura para professores indígenas sur-
giram no final da década de 1990. O NTFSI tem origem em 2007. Essa
política, segundo o PPP do Curso de Educação Intercultural da UFG,
“rompeu com a anterior, que visava à integração gradativa e ‘harmôni-
ca’ dos índios à sociedade não-indígena” (2006, p. 8).
O Comitê Krahô-Apinajé, aqui em foco, busca contribuir para a
construção de uma educação escolar diferenciada nas comunidades em
questão. Para isso busca criar estratégias culturais adequadas a partir e
através dos campos de estudo da escola e da interculturalidade. É o que
Carneiro da Cunha (2016, p. 9) chama de política cultural indígena.
Acreditamos que o desenvolvimento da educação escolar indígena
requerido tem a ver com a relação entre os regimes de conhecimento
e as regras de convivência de cada população, e as dinâmicas próprias
dos modelos escolares. Conforme Cohn (2016, p. 314) “o debate sobre

363
as políticas culturais e, inclusive, sobre os regimes de conhecimento
indígenas não pode ser feito, hoje, sem passar pela escola”.
Os integrantes do Comitê são os professores Júlio Kamêr, Sheila
Maxy Apinajé, Aparecida Apinajé, Rogério Kamer, Gilberto Katán,
Gilberto Apinajé, Diana Apinajé, Emílio Nindjô Apinajé, Maria Dos
Reis Paxlé, Maria Célia Kreré, José Eduardo Apinajé, Davi Wamimen,
Cassiano Apinajé, Silivan Apinajé, Percília Apinajé, Ana Rosa Apinajé,
Taís Pocuhto, Juliana Terkwyj, Joel Cuxy, Gregório Huhte, Edvaldo
Paraty, Leonardo Tupen, Ariel Pepha, Andre Cohtat, Ovídio Kunry
Krahô, Dodanin Piiken e Alexandre Herbetta.
O trabalho apresentado neste texto é fruto dos debates realiza-
dos nas etapas de estudo em terra indígena, dinâmica central do curso.
Trata-se, portanto, de algo coletivo. Mais especificamente, apresenta-se
parte de um diálogo entre dois integrantes do comitê – Cuxy e Herbet-
ta – acerca do potencial pedagógico que existe na produção e circula-
ção de imagens, questionando-se a autoria da produção e, inclusive, a
predominância da escrita em contextos escolares.
Este diálogo aconteceu – e ainda acontece – ao longo de
uma série de outros eventos, não sendo portanto resultado de uma
só conversa. É uma conversa esticada como falamos. Esta dinâmica é
responsável ainda pela produção, por parte de Cuxy, de um filme que
tem como base os modos próprios de produção audiovisual mehi e que
circula como materal didático nas escolas Krahô (na íntegra: https://
www.youtube.com/watch?v=Cel-MtJ0xKQ&t=315s).
Uma questão chave das reflexões do comitê é justamente a da
produção de um material didático que realmente tome como base os
saberes indígenas e se afaste do material didático que chega na aldeia
hoje. Chama a atenção do comitê que há ainda uma enorme quantida-
de de material produzido por indígenas e não indígenas fora de con-

364
texto. Em outras palavras, que tomam como base uma epistemologia
ocidental. Nos chama a atenção igualmente que apesar dos entraves e
dificuldades, o processo em tela se afasta intensamente das experiên-
cias anteriores da educação escolar indígena no país. Neste contexto,
segundo Grupioni:

como um movimento pendular pode-se dizer que a


escola se moveu num longo percurso do passado aos
dias de hoje de algo que foi imposto aos índios a uma
demanda que é atualmente por eles reivindicada. Uti-
lizada no passado para aniquilar culturalmente estes
povos, hoje tem sido vista como um instrumento que
pode lhes trazer de volta o sentimento de pertenci-
mento étnico, resgatando valores, práticas e histórias
esmaecidas pelo tempo e pela imposição de outros
padrões socioculturais (2006, p. 44).

Lembro-me que na etapa de outubro de 2013 na aldeia Mariazi-


nha na TI Apinajé chegamos a conclusão de que normalmente o que se
tem em termos de material didático são tentativas que na maior parte
dos casos tem como base uma estrutura que está mais próxima dos
modos de pensar do não indígena. Chamamos isso de “modelo enci-
clopédico” e “de gaveta”.
Isto porque, em primeiro lugar, muitas vezes mesmo quando é
realizado por professores indígenas, vem no formato bastante similar
ao do material do “branco”, qual seja, tem um tema geral, como por
exemplo, “a mitologia” e uma série de conteúdos relacionado a ele. É
como uma enciclopédia! Por exemplo, quando fala de mitologia faz
um apanhado de narrativas que se consideram míticas sem ao menos
questionar a categoria “mito”.

365
Em outras palavras tem como matriz o regime disciplinar. Para
Lewis Gordon (2011), o regime disciplinar aponta para um modo
de produção e organização do conhecimento vinculado aos saberes
ocidentais e à noção de modernidade, reforçando categorias como hie-
rarquia e descontextualizando a realidade. Nesse sentido, para o autor
a disciplina reduz os saberes ao ocidental e fortalece a noção de poder.
O termo “gaveta” apareceu no sentido de se referir ao fato de
que tais livros trazem em si limitações a outras epistemologias, pois
fecham a proposta de estudo no grande tema em tela e são realizados
basicamente a partir da escrita. Nesta direção, para Ladeira é equivo-
cado posicionar “a escrita como o lugar/espaço indispensável para a
manutenção da cultura de um povo” (2016, p. 439). Segundo a mesma
autora (idem, p. 445), a escrita para os Timbira (como os Krahô e os
Apinajé) se dá “como recurso de comunicação com os brancos”.
Nestes momentos conversamos sempre com base e em relação
às pesquisas e ao estágio docência realizados pelos professores indí-
genas do comitê. O trabalho extraescolar de Julio Kamêr (2013), por
exemplo, aponta para outra epistemologia. Ele tem como centro a ideia
de que para proteger o território Apinajé das queimadas e assim man-
ter seus recursos naturais protegidos e garantir sua sustentabilidade, é
preciso cantar as músicas tradicionais. A partir daí, Kamêr cria práticas
pedagógicas intra e interculturais relacionadas ao tema, e aponta para
sua importância na matriz curricular nativa.
A pesquisa de Gregório Huhte Krahô (2014) também se apoia nes-
te outro modo de pensar. Ela trata da musicalidade. Para ele, ao estudar a
música nativa, os alunos têm contato com outros domínios culturais e sa-
beres, como a história, a geografia, o território e até mesmo a matemática.
Para Huhte, “desde sempre, o mundo Krahô tem a ver com a relação en-
tre a esquematização de dominar músicas e estudo de matemática local”.

366
Sua pesquisa aponta para a importância da noção de exatidão – presente
na música – para o modo de ser Krahô e para a sustentabilidade da vida.
Huhte diz ainda que “as músicas são da natureza e devem ser cantadas
de maneira exata para a sustentabilidade. Aprendemos a cantar pelos
pássaros, árvores, rio, céu e outras espécies. Não tem música inventada.
Sempre é o mesmo ritmo de cantar, dançar, pular”.
Note-se que nas pesquisas mencionadas há uma outra lógica pre-
sente. Esta trata de associação de temas. Assim, por exemplo, não é possí-
vel falar em mito sem falar em canto, em dança, em culinária, em pintura,
em corpo, em saúde e, assim, sucessivamente. Elas apontam igualmente
para outras relações como entre a música e a natureza e problematizam
dicotomias ocidentais como a divisão entre cultura e natureza.
Note-se ademais que o formato que ainda prepondera nos
materiais didáticos é o do texto escrito em detrimento da linguagem
audiovisual, que possui na opinião do comitê grande potencial para o
ensino e a aprendizagem, tanto para quem a utiliza em processos de
produção de recursos pedagógicos como em sua exibição. Para Ladeira
(2016, p. 446) “apesar da extrema pressão e incentivo para uma pro-
dução de textos descritivos ou narrativos, na língua portuguesa ou na
língua Timbira, que viessem a provocar internamente uma demanda
pela leitura, esse fato não se concretiza”.
Nesta direção, se há uma pressão pela escrita vinda dentre outros
espaços, pela relação com a universidade e com o Estado-nação, os pró-
prios acadêmicos chamam a atenção para a possibilidade e potencial do
uso do audiovisual na produção de material didático. Joel Cuxy Krahô
membro do comitê, inclusive, se debruça sobre a questão e traz inúme-
ras reflexões interessantes sobre a imagética mehi (CUXY, 2014).
A ideia deste texto é, portanto, seguindo Carneiro da Cunha
(2016, p. 9), refletir sobre “os modos como as políticas dos índios, para

367
os índios e que se valem dos índios se entrelaçam e se conjugam para
produzir efeitos”.

***

Cuxy: Eu tô gostando de filmar. Iniciei em abril de 2014. A câ-


mera é do Museu do Rio de Janeiro – do projeto “PRODOCULT –
PROGRAMA DE DOCUMENTAÇÃO DE LÍNGUA E CULTURA”.
Iniciei na Aldeia Pé de Côco/Krahô quando me pegaram de surpresa.
Com o apoio de Dodanin comecei a filmar todas as festas. De repente
ganhei essa câmera sem ter noção de nada, de mexer. Bruno me deu
umas aulas. Na primeira vez que filmei me senti mal. A câmera estava
pesada. Fui me acostumando.
No início a imagem era tremida. Filmei as Festas Pohy, Pre Parti,
Par Capé, Awaje, Pàrcahaàc, Pohiy Pry, as entrevistas de Secundo,
Ismael, Katan, alguns momentos como a defesa de TCC de Gilberto
Katan, a inauguração do Núcleo Takinahakỹ, um sonho de Secundo,
algumas atividades do Núcleo Takinahakỹ, a história do Wyhty, a

368
história do Parti, os resguardos dos filhos no casamento, algumas
pinturas e corridas, os Jogos Indígenas na aldeia Manoel Alves, a
maratona na aldeia (16 km), um intercâmbio na aldeia Krahô-Canela,
um professor Krahô dando aula na língua para os Krahô-Canela.
Meus objetivos são o de produzir material audiovisual sobre a
cultura mehi, registrar todas as festas resgatando algumas coisas como,
por exemplo, o casamento, refletir sobre a produção e as possibilidades
do material audiovisual e produzir material didático para todas as esco-
las Krahô. De modo geral, quero incentivar meu povo e os jovens que
estão indo para a cultura do cupe a continuarem mehi.
Hoje, o jovem já tem mais conhecimento na letra, se a pessoa não
souber o escrito a filmagem pode ajudar. Se esquecer na escrita, com a
filmagem tem mais facilidade para aprender. A escrita é mais para orien-
tar, relembrar. Na escrita não vai reconhecer o todo, só alguns detalhes.
A filmagem complementa o conhecimento. Na filmagem vai ver
o gesto, a dança, a pintura, identificar pintura e o partido diferente,
objetos como o chapéu.

369
Herbetta: É interessante notar nesta discussão que eu também
gosto de produzir conteúdo audiovisual. Eu busco utilizar a imagem
em todas as etapas de estudo do NTFSI como meio de registrar e re-
fletir as experiências do curso. Além de ter apreço por produzir boas
imagens, ao menos de meu ponto de vista. Muitas imagens inclusive
são apenas registros para mim mesmo.
Ao longo destes períodos, especialmente nas aldeias, tento atra-
vés da fotografia marcar alguns momentos importantes e usar estas
imagens no material didático produzido para estudo – como abaixo.
Desta forma, insiro as imagens produzidas no material a ser trabalhado
tentando trazer a experiência cotidiana do momento para a discussão.
Quase sempre estou com minha câmera fotográfica à mão ou
pendurada no pescoço tentando achar um bom enquadramento. Claro
que, neste processo, sigo meus códigos culturais quando escolho a cena.
Os indígenas também geralmente levam suas câmeras e/ou ce-
lulares e costumam registrar os eventos. Quase nunca trocamos ideias
sobre as imagens registradas, o que é uma pena.

370
A foto acima, que ilustra uma atividade, sobre um jogo de futebol
feminino na aldeia Mariazinha, levou para a discussão os momentos
cotidianos vividos na aldeia e buscou discutir a importância deles em
relação aos saberes que vêm de fora. A partir da imagem discutiu-se,
por exemplo, o uso das regras tradicionais em atividades que muitas
vezes aprenderam fora da aldeia, como o futebol. Tal discussão buscou
uma reflexão sobre esta relação, qual seja, o uso de regras tradicionais
em outras instituições, como a escola.
Assim, a partir da imagem, uma de nossas questões era se a escola
ou a dinâmica escolar tomava como base as regras ditas tradicionais.

371
Às vezes as imagens rendem boas discussões, às vezes, não. Em
uma das etapas de campo, em abril de 2014, tive a oportunidade de
fotografar um dos eventos que sempre ocorrem paralelamente às eta-
pas. Estes eventos são parte importante destes períodos de estudo pois
estimulam o diálogo entre as outras pessoas que vivem na comunidade,
os convidados indígenas ou não e nós, professores da UFG. Eles geram
uma profunda troca de conhecimentos e afetos intensificando os mo-
mentos em questão e difundem as ideias do curso.
Neste momento dois professores Apinajé estavam participando
de uma etapa de estudos na aldeia Manoel Alves Pequeno/TI Krahô-
lândia e foram convidados a “ganharem nome” entre os Krahô, ou seja,
eles iriam ser batizados no pátio. Prato cheio para um fotógrafo, mesmo
um amador!
Um deles me pediu então que fotografasse o evento, já que eles
participariam. Fiquei bastante feliz, pois tinha ali autorização para che-
gar bem perto das cenas e para participar mais intensamente.
Eu tinha em mãos uma máquina relativamente simples, uma
PENTAX X-5 digital com zoom, o que me permite fotografar com
poucos limites quantitativos, já que o suporte é digital e a qualidade da
imagem é razoável.
Dessa forma procuro fotografar bastante – quantitativamente –
de modo que vou, na prática, identificando melhores enquadramentos,
luz, personagens e possibilidades. É como se no ato de fotografar – na
prática mesmo – fosse reconhecendo um pouco a dinâmica corporal e
cultural das pessoas e do cenário.
Fotografo muitas vezes a mesma cena, variando os elementos
mencionados acima até entender quais são as possibilidades da ima-
gem. É um processo. É como se fotografar fosse aprender.
Normalmente a melhor foto demora um pouco a acontecer.

372
Cuxy: Eu gravo as coisas em processo, tenho que economizar a
fita de gravação. Gravo os momentos principais, em ordem. Cada fita
tem 63 minutos. Numero fita por fita, fita 1, fita 2, fita 3… 4. Classifico
cada filmagem/fita pondo os nomes para não esquecer. É difícil. Ne-
nhuma fita dura a noite inteirinha. Fico com medo de a festa acontecer
e a fita ou a bateria acabar na metade. A câmera também não tem flash
e tripé, ou seja, perde-se muito material.
Na aldeia, não tem igualmente energia elétrica o tempo inteiro.
Além disso, não tenho ainda a informação para fazer todos os proce-
dimentos do filme, como passar material para o computador, editar e
outras coisas. Não é fácil.
A Festa da Batata, por exemplo, comecei a filmar a iniciação. An-
tes das pessoas chegarem, tem que fazer aquecimento. Dois dias antes.
Corre e aquece o corpo. Quando chega o dia, gravei no pátio o pessoal
cantando na direção do local onde está a tora. Em seguida, à tarde,

373
filmei a pessoa que vai avisando onde estão as pessoas que pertencem
ao Hotxa. Depois a cantoria. Posteriormente, filmei cedinho o pessoal
com a tora. E depois, a pessoa que vai casar.
Não gravei a troca de paparuto. Não deu tempo, não dei conta de
gravar todos os momentos. Depois, filmei o começo de outra cantoria e as
pessoas jogando a batata nos outros. Filmei também a fogueira de novo,
para realizar o Hotxa. A filmagem foi até o Hotxa, pois as fitas acabaram.
Por isso é importante que a filmagem seja feita em dois. A PrumK-
wyj me ajudou na aldeia Pé de Côco, dividimos o trabalho. Ela gravou
uma parte, eu outra. Depois, pode-se montar a filmagem, pois às vezes
as coisas acontecem ao mesmo tempo. Não tem condições de gravar o
mesmo acontecimento. A festa é dividida em dois grupos, então não dá
conta de gravar os dois momentos ao mesmo tempo.

***

Herbetta: Para mim é ótimo fotografar, como disse, nas aldeias,


pois a distinção cultural me é bastante atraente enquanto interesse
etnográfico e imagético. Gosto de capturar os detalhes que marcam
a diferença cultural. Nada melhor do que estas etapas de imersão no
campo. No evento do batismo pude então fazer uma série grande de
fotos, buscando os melhores enquadramentos, do banho, do pátio, do
corte de cabelo.
As fotos que ilustram este texto são todas imagens deste batismo.
Me detive nos detalhes, como se pode notar, tão distintos de mi-
nha cultura. Não me ocupei propriamente com a narrativa do evento.
Com a ordem das coisas. Com o contexto, em planos mais gerais.
Sei que há métodos da antropologia visual que levam isto em
consideração. Mas meu objetivo foi apenas o de capturar imagens in-

374
teressantes esteticamente e etnograficamente falando, que marcassem
normas culturais distintas, como abaixo. Imagens isoladas, portanto.
Fragmentos do todo.
É interessante destacar que quando exibi as fotos que tirei do
evento para os professores Apinajé a reação foi de desaprovação. Eles
não gostaram das fotografias! Lembro-me que argumentaram que elas
não mostravam nada, ou melhor, não mostravam a divisão de partidos
entre os Krahô, as pessoas que participaram, o cenário de maneira ge-
ral. Ignorava-se, na opinião deles, a organização social.
Eles criticaram igualmente o fato de que as imagens focavam ape-
nas os detalhes e que com estes detalhes não se entendia o que estava
acontecendo realmente.
Não quiseram as fotos.

375
Cuxy: O importante para o mehi é a ordem das coisas. Cupe não
conhece as festas tradicionais. Quando o filme vem editado de fora, vem
tudo errado. O final da festa vem antes, o início depois. Nós conhecemos
bem, temos mais noção da ordem. É importante saber a ordem das coi-
sas. Não tem hora fixa, tem ordem. Cupe tem hora, mehi tem ordem.
Além disso, nós já conhecemos onde a coisa acontece. Tudo é na
língua. A decisão sai do pátio na língua. Cupe não entende.
Nós que filmamos e temos que ficar atentos ao local decidido.
Por exemplo, na filmagem da Festa da Batata os partidos ficam sepa-
rados, Wacmejé e Catamjé. Devemos então conhecer as pinturas para
identificar o que é uma boa imagem para o mehi.
Uma boa imagem explica marcas da cultura, como por exemplo,
a pintura, o corte de cabelo. Quanto mais marcas melhor. Isso aponta o
rumo da cultura para os mais jovens.
Há filmes sobre os Krahô feitos por cupe que não focam nas mar-
cas da cultura. Isola por exemplo o Hotxa, que representa uma parte,
do resto do ritual. Mistura as aldeias. Mostra metade de uma aldeia,
depois outra aldeia, como se fosse uma aldeia só. Gostamos de ordem.
Os filmes cupe interrompem a ordem das coisas para, por exem-
plo, colocar momentos de entrevista dos mehi.
A diferença entre as festas de cupe e mehi é muito grande. Na
festa do cupe, usa-se roupa perfumada, todo mundo é cheio de poré
(dinheiro) e tem acidente, crime, muita bebida, tudo é pago. Na festa
de mehi, se festeja, se pinta, corta o cabelo, aprende as coisas, canta,
dança, pega todos os processos. Quando a festa acontece na aldeia, os
jovens dançam com o cantador. Tem história, mito. A pessoa tem que
estar atenta, rola cantoria, historiador, chamador.
Tem um ritmo próprio. Tudo é compartilhado.
A filmagem de mehi e cupe é diferente.

376
Filmar é um modo de aprender e ensinar.

Referências

CARNEIRO DA CUNHA, Manuela; CESARINO, Pedro de Niemeyer. Políticas


culturais e povos indígenas. São Paulo: Editora Unesp, 2016.

COELHO DE SOUZA, Marcela. In: CARNEIRO DA CUNHA, Manuela;


CESARINO, Pedro de Niemeyer. Políticas culturais e povos indígenas. São Paulo:
Editora Unesp, 2016.

COHN, Clarice. In: CARNEIRO DA CUNHA, Manuela; CESARINO, Pedro


de Niemeyer. Políticas culturais e povos indígenas. São Paulo: Editora Unesp, 2016.

CUXY, Joel. Produção audiovisual mehi: o material didático entra a escrita e


audiovisual. Projeto Extraescolar (Graduação em Licenciatura Intercultural) –
Núcleo Takinahakỹ de Formação Superior Indígena, Universidade Federal de
Goiás, Goiânia, 2014.

377
GORDON, Lewis. Shifting the Geography of Reason in an Age of Disciplinary
Decadence. TRANSMODERNITY – Journal of peripherical cultural production
of the luso-hispanico world, 2011.

GRUPIONI, L. D. B. Contextualizando o campo da formação de professores


indígenas no Brasil. In: GRUPIONI, L. D. B. (Org). Formação de professores indí-
genas: repensando trajetórias. Brasília: MEC, 2006. p.44.

HUHTE KRAHÔ, Gregorio. Formas exatas de ser Krahô: a relação entre a música
e a matemática. Palestra apresentada ao NTFSI/UFG, 2014.

KAMER APINAJÉ, Julio. Sustentabilidade: entre cantos e queimadas no territó-


rio Apinajé. 2013. 49 f. Projeto Extraescolar (Graduação em Licenciatura Inter-
cultural) – Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2013.

PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO DO CURSO DE LICENCIATURA


INTERCULTURAL INDÍGENA. Goiânia: NTFSI/UFG – UNIVERSIDADE
FEDERAL DE GOIÁS, 2006.

PIMENTEL, M. do S. Reflexão político-pedagógica sobre educação bilíngue.


Em: ______; BORGES, M. V. (Org.). Cidadania, interculturalidade e formação
de docentes. Goiânia: UCG, 2010. p. 8-12.

______. A pedagogia da esperança na construção de práticas pedagógicas con-


textualizadas e emancipatórias. In: ______; BORGES, M. V. (Org.). Educação
intercultural experiências e desafios políticos pedagógicos. Goiânia: Prolind/Secad-
-MEC, (2013).

WALSH, Catherine. Pedagogias Decoloniales: Prácticas insurgentes de resistir,


(re) existir y (re) vivir. Ecuador/Quito: Ediciones Abya Ayala, 2013. Serie Pen-
samiento Decolonial.

378
ANTROPOLOGÍA AUDIOVISUAL Y
COMUNICACIÓN INTERCULTURAL

Mariano Báez Landa1

Resumo: Este trabalho enfoca a relação entre a antropologia au-


diovisual e comunicação intercultural, para desenvolver pesquisas
sobre tecnologias digitais e comunicação intercultural, aplicando
etnografias audiovisuais participativas para estimular a produção
de jovens pertencentes a segmentos que não são visíveis na socie-
dade mexicana.

Abstract: This paper focuses on the relationship between audio-


visual anthropology and intercultural communication, to develop
research on digital technologies and intercultural communication,
applying participatory audiovisual ethnographies to encourage the
production of young people belonging to segments that are not
visible in Mexican society.

1.1 La práctica de la antropología por otros medios

La antropología tiene en la etnografía su principal instrumento


para el estudio de las culturas. La práctica etnográfica trabajó origi-
nalmente con imágenes producidas por los sentidos del investigador.

1 Mariano Báez Landa, profesor-pesquisador titular em CIESAS unidade Golfo


em Xalapa, Ver. México. Coordenador do Taller Miradas Antropológicas. Actual-
mente é responsável institucional da Cátedra Internacional Roberto Cardoso de
Oliveira do CIESAS.

379
Rápidamente nuestra disciplina incorporó tecnologías audiovisuales
para escalar su capacidad de registro etnográfico como una verdadera
extensión y expansión de sus sentidos. Así antropólogos, etnógrafos,
viajeros, documentalistas comenzamos a utilizar el grabador de soni-
dos junto con las primeras cámaras de cine y fotografía ya desde finales
del siglo XIX (Haddon 1898 Expedición Estrecho de Torres; Flaherty
filma material etnográfico entre inuits de Canadá entre 1920-22 y Bald-
win Spencer filma y fotografía aborígenes del norte australiano entre
1910-20; Mead y Bateson filman y graban en Bali durante la década de
1930).

Flaherty 1922, durante la filmación de Moana

380
La construcción y desarrollo de esta interfase tecnológica en la
práctica de la antropología constituye la ampliación y fortalecimiento
de su capacidad para representar la diversidad humana. El problema es
que esa capacidad se ha desplegado, casi siempre, desde una posición
que representa intereses, es decir, la utilización de filtros subjetivos y
culturales que norman esa práctica de observación, descripción y ex-
plicación de los fenómenos de la vida humana.
Scott Robinson (1998) ha planteado que el oficio tradicional
de la antropología visual ha sido ser cómplice de la expropiación de
las imágenes de los otros utilizando un marco interpretativo de matriz
colonial. Dicha expropiación se lleva a cabo mediante la violación de la
intimidad cultural de los diferentes. Todo registro cultural de los otros
es agresivo por su base hegemónica y los representados-interpretados
muchas veces no llegan a comprender su utilidad última, pese al carác-
ter de denuncia que algunos materiales adoptan.
Las maneras de representar y construir la diversidad humana res-
ponden a racionalidades también diversas y muchas veces en tensión.
Esto representa un imperativo ético-político que nos obliga a distinguir
las estrategias de representación encaminadas a mantener las jerarquías
y asimetrías en una sociedad, y aquellas que pretenden contribuir a
la transformación del sistema de relaciones sociales basado en la re-
producción de la desigualdad, la injusticia, la violencia y el poder. El
trabajo científico, académico y artístico no escapa a las influencias de
la teoría, la ideología, la posición política, los intereses y los valores del
sujeto científico o artístico.
Se precisa ensayar metodologías que permitan producir inter-
conocimientos, es decir, lograr experiencias disciplinares y prácticas
sociales colaborativas que logren trazar mapas de conocimientos inter-
culturales e interepistémicos.

381
MBL, 2015

1.2 Etnografía, medios audiovisuales


y educación intercultural

La diversidad étnica y cultural de México solo ha conseguido


edificar hasta hoy una sociedad fragmentada, donde las diferencias
socioculturales se expresan básicamente como desigualdades que im-
piden una integración nacional.
Moisés Sáenz (1932) subrayó, desde la década de los años 30
del siglo pasado, la importancia que tienen las comunicaciones en los
procesos de integración social y en el impulso que pueden aplicarle a
las acciones de reconocimiento, respeto y convivencia de la diversidad
cultural. Conocido como el verdadero artífice de las llamadas Misiones
Culturales, las que proyectó como equipos multidisciplinarios que

382
trabajaran en forma itinerante, dentro de grandes regiones rurales,
consideró en un principio a la educación como el gran instrumento
emancipador del indio, que derrumbaría las particularidades culturales
que fragmentaban a la sociedad nacional. Proyectó la famosa Estación
Experimental de Incorporación del Indio, título de un efímero proyecto que
él mismo denominó de investigación-acción antropológica, y que llevó
a cabo entre 1932-33 en Carapan, poblado purhépecha, ubicado en la
Cañada de los 12 Pueblos del estado de Michoacán. El objetivo principal
era instalar un centro de observación, de experimentación y de acción,
para estudiar el proceso de asimilación del indio, y ensayar métodos de
incorporación a la sociedad mexicana (1936).
Desde el punto de vista de Sáenz, el rasgo de asimilación-in-
corporación mas importante era el mestizaje, y éste se encontraba
directamente relacionado con el desarrollo de las comunicaciones. No
obstante, estaba convencido de que dicho mestizaje avanzaba por un
camino diferente al proceso de la nacionalidad, porque tenía la certeza
de que México era un panorama viviente de pueblos y culturas, donde
el mestizaje no había sido un factor de unidad, sino de contraposiciones
y conflictos, una patología originada por la conquista y que formaba
parte del mexicano típico, con toda la carga cultural, étnica, social y
económica que esto implicaba (1939).
Profundamente impactado por los raquíticos resultados de su
proyecto en Carapan, llegó a concluir que la llamada incorporación
del indio era una acción que solo intentaba obligarlo a negarse y ser
absorbido por la civilización occidental.
Integrar un solo México, con todos sus componentes, pasó a ser
la tarea central del nuevo pensamiento indianista de Sáenz. Su tesis
central consideraba necesario fusionar lo indio y lo occidental en un
proyecto original de nación. El vehículo integrador sería un programa

383
de comunicación intercultural, que impulsara una reinterpretación
de los diversos rasgos culturales, para replantear el proceso de inte-
gración nacional.
Integrar para Sáenz era mexicanizar, y visto de esta manera la in-
tegración nacional se convertía en la antítesis del indigenismo, porque
se desplazaba la premisa de que el problema nacional era la existencia
del indio, y se afirmaba que el verdadero problema era la situación frag-
mentaria y el aislamiento en que vivian distintos grupos de mexicanos.
El indigenismo solo colocaba al indio en una reserva teórica y práctica
de la integración nacional, cuando en realidad es un factor normal de
la nacionalidad, y no su negación. La tarea integradora debía lograr una
unificación material, espiritual y política; perfilar una identidad nacio-
nal armónica; garantizar respeto a la diversidad cultural y regional; una
homogeneización racial y una comunidad espiritual con gran calidad
ética. Habló de una reconstrucción social y cultural, que la educación,
por sí misma, no podría lograr, ya que entendía que en México existe
una oposición esencial entre la escuela y la cultura, porque mientras la
escuela instruye, homogeniza, establece normas y pautas para civilizar,
es decir, uniformar, materializar y universalizar; la cultura refleja la
calidad especial de un grupo humano, muestra sus particularidades y
diversidad, sus mecanismos de identidad, el molde singular que contie-
ne a la carne y la sangre de un pueblo (1939).
Decíamos arriba que para Sáenz la integración nacional debía ser
planteada como una fusión de horizontes culturales que diera como
resultado un nuevo proyecto de nación y una renovada civilización.
Consideraba más necesario un programa de comunicación intercul-
tural que un proyecto educativo, debido a la contradicción esencial
que observaba entre el formato escolar hegemónico y universalizante,
y la cultura de los pueblos originarios. No obstante, acreditaba en la

384
necesidad de una estandarización lingüística basada en el castellano,
que permitiese la comunicación franca entre las distintas culturas que
integrarían al México nuevo.

MBL, 2016

Hoy en día, cerca de un millón de jóvenes mexicanos proce-


dentes de hogares de baja renta constituyen la demanda potencial de
educación superior en México. De ellos sólo el 20 por ciento logran
realizar estudios universitarios.
La población indígena de México representa poco más del 10%
de la población nacional. Sin embargo, se estima que apenas un 1% de
la matrícula de educación superior es indígena.

• 75% de los niños y jóvenes de 15 a 19 años no asiste a la es-


cuela (educación media y superior).

385
• La cobertura de educación superior en su caso es 5 veces
inferior al promedio nacional.

• Menos de 2% de los jóvenes indígenas asiste a universidades


interculturales e institutos tecnológicos.

• La asistencia a las instituciones de educación superior es has-


ta 60 veces inferior a la de los jóvenes con mayores ingresos.

• La inversión promedio por alumno en las universidades


interculturales es de 1,200 dólares anuales, mientras que en
promedio en las universidades públicas estatales es de 5,200
dólares2, lo que demuestra una política diferenciada de carác-
ter discriminatorio.

• El estado mexicano destinó 5% del gasto federal a la educa-


ción pública en 2015.

MBL, 2016

2 México ocupa el penúltimo lugar de la OCDE en inversión pública por alumno


(UNESCO; World Bank).

386
Las universidades interculturales mexicanas son proyectos edu-
cativos que surgieron impulsados por la Secretaría de Educación Públi-
ca a partir del año 2000 durante el sexenio de Vicente Fox, por cierto
el primer presidente mexicano que rompió la hegemonía del PRI, la
máquina institucional que consolidara el presidente Cárdenas 60 años
atrás. Debe anotarse aquí la excepción de la Universidad Autónoma
Indígena de México (UAIM) en Sinaloa, que fue creada originalmente
como un proyecto de docencia e investigación etnológica en 1982. Las
demás universidades interculturales dependen primordialmente del
financiamiento estatal y federal, así como de las decisiones que tomen
sobre ellas los gobernantes. Su propósito institucional es explorar mo-
dalidades de atención educativa pertinente para jóvenes que aspiren a
cursar el nivel de educación superior, tanto de origen indígena como de
otros sectores sociales, interesados en impulsar fundamentalmente el
desarrollo de los pueblos y comunidades indígenas y en aplicar los co-
nocimientos construidos en contextos culturalmente diversos. Algunas
personas afirman que fue una conquista del movimiento zapatista de
1994, otras las identifican como una estrategia del gobierno Fox para
cooptar demandas del movimiento indígena.
Las universidades interculturales mexicanas se encuentran
establecidas en 11 Estados del país Sinaloa, Michoacán, San Luis Po-
tosí, Estado de México, Hidalgo, Puebla, Veracruz, Guerrero, Chiapas,
Tabasco y Quintana Roo, la mayoría en regiones, municipios y zonas
marginales con los menores índices de desarrollo humano (IDH),
donde la desigualdad es una constante entre estos grupos de población
y se manifiesta en graves problemas sociales entre los que se destacan:
el acceso a los servicios de salud, presentación de enfermedades re-
lacionadas con la pobreza, escasas fuentes de empleos, alimentación
deficiente, baja cobertura en educación; es importante resaltar que

387
derivado de su ubicación podemos señalar que las universidades tienen
en su área de influencia municipios en donde el tema de la seguridad
nacional es vital, toda vez que el narcotráfico se ha convertido en un
problema mayor.

Universidades Interculturales en México

Los programas de educación intercultural hasta ahora, insertos


en el modelo educativo nacional, no son mas que una perversión pe-
dagógica porque plantea un diálogo de saberes horizontal y simétrico
entre culturas, pasando por alto la determinación de un sistema social
cuyas relaciones son asimétricas y se encuentran enmarcadas por es-
tructuras de poder y dominación. Las universidades interculturales
encierran en si mismas un contrasentido ya que el espíritu universalista
de las instituciones de educación superior, como proyecto universita-
rio occidental, formatea y reproduce una educación monocultural y

388
monoepistémica entre sus miembros, es decir, universaliza una sola
cultura llamada ‘ciencia’. En otros casos se habla de interculturalidad
como un nuevo paradigma educativo, como una nueva pedagogía que
promueve la discriminación positiva de los indios, su autoreconoci-
miento y afirmación étnico cultural para apropiarse de los conocimien-
tos occidentales e incorporarlos a un universo epistémico inmutable,
conservador y en constante resistencia. Esta postura tiene una buena
dosis de relativismo, donde el propio concepto de cultura se confunde
con una identidad étnica sempiterna.
El término interculturalidad ha virado moda en los últimos años,
como un adjetivo que califica mágicamente cualquier planteamiento
y acción que dice reconocer y atender la diversidad cultural, utilizan-
do un discurso políticamente correcto de defensa a ultranza de las
tradiciones, costumbres y conocimientos ancestrales de los llamados
pueblos originarios (muchas veces lesionando los derechos de terceras
personas) como un imperativo ético-político frente a las amenazas del
capitalismo neoliberal.
Así, se habla incluso de la interculturalidad como un nuevo estadio
de desarrollo humano, como proyecto cultural alternativo que presupo-
ne un plano horizontal de comunicación, intercambio y cooperación del
conocimiento. Evidentemente esta interculturalidad idílica no corres-
ponde a la experiencia del mundo vivo, el cual se encuentra atravesado
por las categorías de etnia, raza, clase, género y sexualidad, y donde se
condensan las relaciones sociales basadas en la fricción, el conflicto, la
negación del otro, el racismo, la desigualdad económica, la homofobia, el
sexismo, la violencia y el miedo a la diferencia.
La interculturalidad a mi entender, constituye un espacio in-
terfásico que relaciona a varias culturas y éste está atravesado por las

389
múltiples determinaciones de la vida social que no se circunscribe a los
llamados pueblos originarios.
La interculturalidad realmente existente, se compone de aproxi-
maciones emprendidas desde varias ópticas culturalmente diferenciadas,
para construir puentes entre poblaciones e individuos de culturas dis-
tintas. Parte de un concepto dinámico y diacrónico de la cultura que se
desarrolla en escenarios de relaciones sociales asimétricas y enmarcadas
por estructuras de poder. Es ante todo una interfase comunicativa que
aspira a crear competencias suficientes que hagan posible un verdadero
diálogo entre culturas. Por ello el llamado diálogo de saberes solo puede
establecerse entre las culturas realmente existentes, que producen nuevos
componentes y que se apropian de otros, que se transforman y adaptan
permanentemente para no desaparecer o ser asimiladas.

MBL, 2016

390
1.3 Tecnologías digitales y comunicación intercultural

En un mundo global, asimétrico, desigual, injusto y culturalmen-


te diverso, las acciones con un enfoque intercultural de mayor impacto
no se dan en el ámbito de la educación, sino en el terreno de la comuni-
cación y los multimedios que cada día se perfila mas como arena de la
lucha social y política. En los últimos años destaca por ejemplo el movi-
miento #Yo soy 132 que surge en 2012 sin una vanguardia explícita, apa-
rece como una primera erupción visible (GALINDO; GONZÁLEZ,
2013) de un movimiento social juvenil con características inéditas que
pone en jaque, por varios meses, a los monopolios de la comunicación
en México utilizando comunicación digital y las llamadas redes sociales
para reclamar una democratización de los medios y una apertura a la
voz e imágenes de los sectores segregados por la política y la estética de
grupos dominantes que se auto reconocen como la gente bonita (Grupo
Televisa). Más recientemente los desgarradores hechos de Ayotzinapa,
donde desaparecieron y presumiblemente fueron brutalmente asesina-
dos 45 estudiantes, que soñaban con ser profesores rurales, a manos
de fuerzas combinadas del poder público y el crimen organizado, han
desplegado un movimiento global solidario que involucra toda clase de
actores sociales y políticos de nivel internacional, entre ellos el Papa, el
presidente del Banco Mundial y muchos artistas y deportistas que han
utilizado plataformas convencionales y alternativas de comunicación,
para expresar solidaridad con las familias de esos jóvenes, lo novedoso
del asunto es que ese movimiento juvenil, sin vanguardia visible, con-
vierte los megashows y los partidos de fútbol en verdaderas megapro-
testas demandando justicia y la renuncia de los gobernantes ineptos y
corruptos que expresan cínicamente en los medios de comunicación
masiva que ya se cansaron.

391
El semanario, 2014

En Argentina, las administraciones Kirschner lograron promulgar


leyes que combaten a los monopolios privados de los medios de comu-
nicación y favorecen el surgimiento de medios locales y regionales que
detonen procesos comunicativos alternativos al discurso hegemónico.
La multimedia y las llamadas redes sociales se han convertido en
una arena de combate por las ideas, los principios y los intereses de
grupos y sujetos determinados. También es el lugar donde se expresan
acciones de denuncia y se produce y transmite información de variada
índole a través de dispositivos móviles y plataformas de intercomuni-
cación que escapan al control monopólico de los grandes medios. Sin
duda también es el espacio donde concurren acciones que buscan el re-
conocimiento de grupos étnicamente diferenciados y que nos plantea la
urgente necesidad de poner en movimiento procesos de comunicación
intercultural que vayan mas allá de las luchas por el reconocimiento y
establezcan mecanismos de respeto y convivencia duraderos entre las
múltiples manifestaciones de la diversidad humana.

392
Hoy en día las tecnologías digitales se han convertido en una
poderosa interfase comunicativa entre comunidades e individuos. El
acceso y uso de estas tecnologías ha impactado fuertemente a la estruc-
tura de las relaciones y movimientos sociales, la cultura y las relaciones
interétnicas e interculturales. Prácticamente la interacción social se de-
sarrolla en dos ámbitos constitutivos de las nuevas relaciones sociales:
ON LINE y OFF LINE, es decir, aquellas prácticas mediadas tecnológi-
camente que producen una realidad que conecta aparatos e individuos
dentro de un medio que es generado por una aplicación informática ó
software, y aquellas que ocurren fuera de este ámbito (DOMÍNGUEZ
FIGAREDO, 2012).
Las relaciones sociales ON LINE se califican según su grado de
digitalización y conectividad, es decir, conforme al nivel de acceso y
utilización de los medios digitales y, conforme a la capacidad del in-
dividuo para actuar en diversos contextos de acción. Las tecnologías
digitales expanden y potencian esa capacidad (op. cit.).
El acceso a las nuevas tecnologías es cada día mayor y mas fácil
para una buena parte de la población, especialmente la telefonía celular
que permite acceder a sistemas de mensajería instantánea y las llamadas
redes sociales, pero no ocurre lo mismo con su conectividad, que depen-
de sustancialmente de poder ocupar espacios digitales que, hoy por hoy,
interactúan intensamente con las dimensiones físicas de la realidad.
Para contribuir realmente a una integración social, sin menosca-
bo de la diversidad cultural, es preciso generar estrategias de conectivi-
dad que expandan las capacidades de actuación de individuos y comu-
nidades, hoy marginales, para conseguir reconocimiento y garantizar
respeto y convivencia en el conjunto de la sociedad.

393
MBL, 2003

1.4 Etnografías audiovisuales participativas

El fundamento de las etnografías audiovisuales participativas


lo encontramos en la propuesta de Investigación-Acción Participativa
(IAP) de Orlando Fals Borda (1973 y 1999) y de FOTOVOZ (WANG;
BURRIS, 1997) que impulsan procesos de reciprocidad simétrica en-
tre investigadores e investigados para superar la arrogancia académica
y entablar compromisos de solidaridad, cambio social y producción de
interconocimientos que se expresen a través de nuevas y/o diferentes
narrativas de corte intercultural.
A través de la confección de guiones y argumentos, resultantes
de diálogos interétnicos e interculturales mediados por procesos de co-
municación audiovisual, se integran grupos focales y foros temáticos de
análisis de materiales audiovisuales que destaquen problemas y temas
generadores, para después montar talleres de producción multimedia
basados en el uso de teléfonos celulares, redes sociales y plataformas
abiertas de intercambio y colaboración de información preferente-

394
mente de tipo audiovisual. Con ello se pretende elevar índices de
conectividad de colectivos étnica y culturalmente diferenciados que
han experimentado un considerable distanciamiento y marginación de
las prácticas comunicativas de nuestra sociedad, a pesar de contar hoy
con un creciente índice de digitalización a través del uso de la telefonía
celular y las llamadas redes sociales.

MBL, 2006

Desde el año 2001 funciona en la sede Golfo del CIESAS el Ta-


ller Miradas Antropológicas (TMA). Una de sus principales líneas de
trabajo es la producción de materiales audiovisuales que contribuyan
a generar ejercicios de reconocimiento de la diversidad sociocultu-
ral, empleando para ello fotografía y video etnográfico y documental
(CIESAS-TMA Xalapa 2003 y Mérida 2006-7). En estas primeras
producciones se integraron varios equipos de trabajo compuestos en
forma interdisciplinaria y se buscó la participación de poblaciones in-
volucradas en los registros audiovisuales. Las experiencias recabadas
al respecto engloban reacciones del público de la mas diversa índole,

395
desde quienes consideran una manipulación mediática hasta aquellos
que externan tristeza, pesar y lágrimas al verse identificados de alguna
manera con los hechos en pantalla. El objetivo se consigue al generar
esos planos de ejercicio del reconocimiento de la diversidad humana en
sentido positivo como también a través de la negación a reconocerla.
Sin duda alguna es muy significativo el reconocimiento que en
2015 hizo la American Anthropological Association (AAA, 2015) de
la importancia de los medios audiovisuales en la práctica etnográfica,
en la producción de conocimientos, en el desarrollo sociocultural, en el
debate teórico, en la educación y en las acciones junto a comunidades
de la mas diversa índole, refiriéndose a la ethnographic visual media-
como una herramienta de la mayor importancia para la producción y
aplicación del conocimiento antropológico.

396
Bienvenida al Taller Miradas Antropológicas
CLIP: https://vimeo.com/channels/ciesasvimeo/124647670

Jóvenes indígenas en la Universidad Veracruzana


CLIP: https://vimeo.com/channels/ciesasvimeo/125176744

397
Ba’ax ka Wa’alik/Cómo ves?
CLIP: https://vimeo.com/channels/ciesasvimeo/125869880

Referencias

AAA – American Anthropological Association. 2015. Disponible en: <http://


www.americananthro.org/ConnectWithAAA/Content.aspx?ItemNum-
ber=194>. Acceso en: 04 feb. 2017.

ARDÉVOL, Elisenda. Por una antropología de la mirada: etnografía, representa-


ción y construcción de datos audiovisuales. Revista de Dialectología y Tradiciones
Populares, CSIC L, Calvo, Madrid, 1998.

BÁEZ LANDA, Mariano. Imagen e Investigación Social. In: FERRAZ; Ana Lú-
cia Camargo; Mendonça. João M. de (Org.). Antropologia Visual: Perspectivas de
Ensino e Pesquisa. Brasília: ABA, 2014. p. 719-728.

CAIUBY NOVAES, Sylvia. Imagem, magia e imaginaçao: desafíos ao texto antro-


pológico. MANA revista do PPGAS-MN-UFRJ, Rio de Janeiro, n. 2, v. 14, p. 455-
475, 2008.

398
CASTELLANOS, Alicia; BÁEZ LANDA, Mariano. Encuentro de miradas…
encuentro de tareas. In: SUZÁN, Margarita (Comp.). El Documental del Siglo
XXI, Voces contra el silencio, video independiente. México: A.C. y UAM-Xochi-
milco, 2006.

DALTON, Margarita; BÁEZ LANDA, Mariano. De la academia al compromiso


social. Retos y perspectivas del cine y video etnográfico. ICHAN TECOLOTL,
CIESAS, año 16, n. 183, México, 2005.

DOMINGUEZ FIGAREDO, D. Escenarios híbridos, narrativas transmedia,


etnografía expandida. Revista de Antropología Social, España, UNED, n. 21, p.
197-215, 2012.

FALS-BORDA, Orlando. Reflexiones sobre la aplicación del método de inves-


tigación-acción en Colombia. Revista Mexicana de Sociología, México, UNAM,
IIS, n. 1, v. 35, 1973.

FALS-BORDA, Orlando. Orígenes universales y retos actuales de la IAP. Aná-


lisis Político, IEPRI, Universidad Nacional de Colombia, n. 38, sep./dic. 1999.,
Disponible en: <http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/libros/colombia/assets/
own/analisis%20politico%2038.pdf>. Acceso en: 31 jul. 2010.

FELDMAN BIANCO, Bela; MOREIRA LEITE, Miriam. Desafios da Imagen.


São Paulo: Papirus, 1998.

GALINDO CÁCERES, Jesús; GONZÁLEZ-ACOSTA, José Ignacio. #YO SOY


132: La primera erupción visible. Global Talent University Press, 2013.

GIGOU, Nicolás L. Representación e imagen: las miradas de la Antropología


Visual. DIVERSO, Revista de Antropología Social y Cultural, n. 4, mayo 2001,
ISSN 1510- 3862.

LYKES, Mary. Artes creativas y fotografía en investigación-acción-participativa


en Guatemala. In: REASON, Peter; BRADBURY, Hilary. Handbook of Action
Research, Londres, SAGE, p. 363-371, 2001.

399
MACDOUGAL, David. Transcultural Cinema. Princeton: University Press,
1998.

MELLEIRO, Marta Maria; GUALDA, Rosa Maria. Explorando a ‘fotovoz’ em


um estudo etnográfico: uma estratégia de coleta de dados. Revista Brasileira de
Enfermagem, v. 58, n. 2, Brasilia, p.191-193, marz./abr. 2005.

PALMA, Marisol; Peter Mason. La ventana indiscreta de Sergio Larrain. Genea-


logías fotográficas y construcciones etnográficas de lo marginal. Diálogo Andino,
n. 50, p. 155-165, 2016.

RIBEIRO, José da Silva. Etnografías audiovisuais participativas. Projeto de pesqui-


sa em andamento, Faculdade de Artes Visuais, Universidade Federal de Goiás,
Goiânia GO, 2016.

ROBINSON, Scott. Dilemas de la antropología visual mexicana, Cuicuilco, Méxi-


co, v. 5, n. 13, ENAH, México, 1998.

SÁENZ GARZA, Moisés. Carapan: bosquejo de una experiencia. Lima: Gil S.


A., 1936.

SÁENZ GARZA, Moisés. México Íntegro. Lima: Torres Aguirre (Imp.), 1939.

TALLER MIRADAS ANTROPOLÓGICAS/ CIESAS. Jóvenes Indígenas en la


Universidad, Xalapa. 2003. Disponible en: <https://vimeo.com/125176744>.

BA’AX KA WA’ALIK. Jóvenes mayas de Yucatán. Mérida, Venezuela, 2006-2007.


Disponible en: <https://vimeo.com/125869880>.

WANG, Caroline; BURRIS, Mary. Photovoice: concept, methodology, and use


for participatory needs assessment. Health Education & Behavior, USA, Universi-
ty of Michigan, v. 24, n. 3, p. 369-387, jun.1997.

400
Título: Olhar In(com)formado: Teorias e
práticas da Antropologia Visual

Direção-Geral: Antón Corbacho Quintela


Assessoria Editorial e Gráfica: Igor Kopcak
José Vanderley Gouveia
Revalino Antonio de Freitas
Sigeo Kitatani Júnior
Divisão Administrativa: José Luiz Rocha
Divisão de Revisão: Maria Lucia Kons
Divisão de Editoração: Julyana Aleixo Fragoso
Divisão de Impressão e Acabamento: Daniel Ancelmo da Silva

SOBRE O LIVRO

Tipologia: Arno Pro; Proxima Soft.


Número da públicação: 37

Câmpus Samambaia, Goiânia, Goiás, Brasil - 74690-900


Fone: (62) 3521 - 1107
[email protected]
www.cegraf.ufg.br

Você também pode gostar