Antrop. Visual
Antrop. Visual
Antrop. Visual
Teorias e práticas da
Antropologia Visual
Una mirada in (con) formada
Teorías y prácticas de la Antropología Visual
Imagem de capa
Fotografia por Gabriel O. Alvarez. Ticuna, Umariaçu, 2000.
Inclui referências
ISBN: 978-85-93380-25-9
CDU 81:572:37.015.2
Catalogação na fonte: Natalia Rocha CRB1 3054
A Coleção Diferenças é fruto da parceria entre o PPGAS/UFG
e o CEGRAF, que visa a publicação de coletâneas, traduções, teses e
dissertações dos docentes, discentes e pesquisadores não apenas do
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFG, mas
também de outros programas de pós-graduação que dialogam com as
nossas linhas de pesquisa. Essa iniciativa pretende contribuir para a di-
vulgação da produção antropológica contemporânea, desde o Centro-
-Oeste estendendo-se a outras regiões do Brasil, com a diversificação
dos meios de publicação de etnografias, de investigações em diferentes
campos de conhecimento antropológico e de traduções de textos clás-
sicos e inovadores da reflexão antropológica.
Apresentação
Olhar In(com)formado: Teorias e
práticas da Antropologia Visual
6
Hoje a antropologia visual alcançou sua maturidade, deixando
de ser um método auxiliar para ganhar autonomia e desenvolvimentos
teóricos em pé de igualdade com as várias antropologias adjetivadas.
Os meios audiovisuais na prática etnográfica são da maior importância
para a produção e criação do conhecimento antropológico. A inscri-
ção da experiência etnográfica numa narrativa audiovisual não é uma
construção ingênua e tem como pano de fundo complexas questões
teórico-metodológicas.
Esta coletânea reúne artigos de autores brasileiros, mexicanos ou
que tem trânsito no Brasil. Neste sentido a coletânea apresenta as prin-
cipais tendências na antropologia visual fruto de diálogos e encontros
realizados no Brasil e no México, desde o 1º MOVE no PPGAS-UFG
Goiânia 2010, e os Encontros de Cine e Vídeo Etnográfico e Docu-
mental Xalapa 2010, Oaxaca 2012 e Porto Alegre 2014.
O trabalho de Cornelia Eckert e Maria Luiza Carvalho da Rocha,
realiza uma cartografia dos diferentes centros que trabalham antropo-
logia visual no Brasil. O trabalho detalha as diferentes comunidades
de comunicação aglutinadas em núcleos e redes que participam deste
modo de fazer antropologia. A autora apresenta autores chaves e tra-
balhos exemplares para realizar esta tarefa. Este panorama apresenta o
que seja, quiçá, um dos paradoxos deste campo disciplinar na academia
brasileira. Sua institucionalização na forma de núcleos e laboratórios
que funcionam nos principais centros universitários e ao mesmo tem-
po uma baixa institucionalização como cursos específicos.
Neste diálogo, o trabalho de José Ribeiro apresenta a experiência
do curso de mestrado em antropologia visual que funciona na Univer-
sidade Aberta de Portugal. Este curso, na modalidade de educação a
distância é um dos cursos de pós-grado institucionalizado na Europa. No
contexto europeu existem outros cursos de antropologia visual, como o
7
mestrado em antropologia visual na universidade de Barcelona e os cur-
sos de pós-graduação oferecidos em Manchester (mestrado e doutora-
do) e na Noruega. A apresentação do José Ribeiro e a formação da equipe
da Universidade Aberta de Portugal levam a incluir no campo da antro-
pologia visual novos horizontes abertos pela revolução digital, como a
exploração do mundo virtual, um horizonte eminentemente audiovisual,
e a realização de etnografias nos ambientes dos jogos de computação.
A antropologia visual amplia o campo da antropologia e tem
desdobramentos na metodologia de pesquisa, na forma de inscrever as
narrativas etnográficas, no campo de reflexões sobre o fazer etnografia
e a recepção do trabalho por parte do grupo; nos estudos de recepção
e na reflexão realizada a partir de mídias e produtos audiovisuais; nas
transformações introduzidas pelas tecnologias digitais e sua apropriação
por parte de culturas tradicionais.
Gabriel O. Alvarez, no seu artigo, retoma a metáfora de Roberto
Cardoso de Oliveira sobre o fazer antropológico: olhar, escutar e es-
crever, para provocativamente propor que o “olhar”, nesta metáfora se
relaciona com o estilo na antropologia e com a construção do problema
teórico. Para o autor, a prática da antropologia visual como metodologia
se centra no escutar, quando com a câmera tentamos registrar a tradição
a partir dos seus símbolos, performances, rituais, complexas formas de
comunicação que são a matéria prima a partir da qual inscrevemos a
etnografia. Mas fazer antropologia visual, não é sair filmando despreo-
cupadamente para realizar um bonito filme. Fazer antropologia visual
é fazer antropologia com a câmera como médio de inserção no campo.
A câmera abre novas possibilidades de inserção como observador par-
ticipante e permite a criação de diversos canais de troca com o grupo.
O produto audiovisual, tem como pano de fundo uma discussão an-
tropológica, um problema teórico, esse olhar teoricamente informado.
8
O autor apresenta os resultados da sua pesquisa Xamanismo e política
em Huautla, desenvolvida em parceria com CIESAS, na que explorou
a tradição mazateca a partir dos recursos da antropologia visual. Para
dar conta destes diferentes níveis o autor apresenta os diferentes clipes
produto da pesquisa e o problema teórico, antropológico que sustenta
a composição do material audiovisual.
Renato Athias, no seu trabalho, reflexiona sobre a experiência de
trabalhar uma ficção etnográfica junto aos professores indígenas Bani-
wa em São Gabriel da Cachoeira. O autor reflexiona sobre os diferentes
momentos do processo de produção do filme. No artigo ressalta um
primeiro momento reflexivo, onde os baniwas constroem o roteiro do
filme a partir da performance de um mito, que possui variações entre os
diferentes grupos da etnia. A construção do mito a ser atuado implicou
também um segundo momento, onde esse mito foi performado pelos
professores. A diferencia do momento anterior, as atuações fluíram sem
dificuldade, uma vez que o texto tradicional é conhecido pelos perfor-
mers. Com os recursos disponíveis os jovens baniwas representaram o
mito, personificaram animais, ressaltando o caráter social dos mesmos
nas cosmologias amazônicas. A atuação do mito, as performances per-
mite um trabalho de campo onde a câmera opera como disparador do
trabalho coletivo, na atuação e na avaliação do material. Esta dimensão
coletiva muda a relação que a antropologia tradicional construía com
a estratégia do informante chave. Como ressalta Renato Athias, para-
fraseando Jean Rouch, o uso da câmera e a dimensão compartilhada
permitem levantar um tipo de informação qualitativamente diferente
da que emprega a antropologia tradicional. O audiovisual se encontra
mais próximo das culturas tradicionais que o texto escrito, permite um
registro mais preciso dos gestos, dos objetos símbolos, das performan-
ces. Performances e rituais são poderosos aparelhos comunicacionais,
9
dificilmente redutíveis a um texto escrito, mas são susceptíveis de serem
inscritos com recursos audiovisuais e uma metodologia compartilhada.
Alex Vailati apresenta reflexões sobre a realização de um docu-
mentário sobre a Isicathamiya, uma performance, coral, tradicional na
África do Sul. Esta performance musical foi registrada pelo autor na sua
pesquisa na África do Sul. A prática da antropologia visual valora o me-
mento da restituição, quando o pesquisador apresenta seu produto ao
grupo. Neste momento reflexivo, Alex Vailati coloca o dilema entre o
estilo antropológico, câmara na mão, edição sem efeitos visuais, que se
contrapõe ao estilo dos vídeos de Isicathamiya, com abundantesefeitos
visuais e uma sintaxe de videoclipe.
Da prática da antropologia visual como metodologia de pesqui-
sa, a câmera participante e a edição compartilhada pretendem alcançar
como horizonte uma antropologia compartilhada, um produto que
respeite o ponto de vista do outro, considerado como co-autor da pes-
quisa antropológica.
A análise de conteúdo como campo da antropologia visual é o eixo
do artigo de Carmen Rial no qual analisa os estereótipos que estruturam
as mídias publicitarias, com estereótipos de gênero, idade, raça e seu
impacto no público receptor destes conteúdos. Ao analisar a presença
de estereótipos raciais na publicidade se centra num exemplo que con-
trasta a imagem do japonês e do negro como polos que reproduzem a
ideologia de hierarquias sociais, ancoradas na raça, no Brasil. O artigo
analisa também como o discurso de guerra estruturou a mídia americana
depois dos atentados terroristas do 11 de setembro. A analise se centra
na invisibilidade de parte desta “guerra ao terror”, o circo de horrores
criado pelos militares nos centros de tortura, os estupros e humilhações
a que foram submetidos os prisioneiros desta guerra extraterritorial.
Esta análise indica o estupro como uma das estratégias de guerra sofrida
10
pelas mulheres, tanto no oriente médio, como na África e na guerra dos
Balcãs. Estas imagens de horror são censuradas na guerra de imagens que
criam as narrativas heroicas sobre a guerra. A autora analisa as fotos de
estupros de soldados americanos com mulheres muçulmanas e as múlti-
plas significações por traz destas fotografias de guerra, onde as mulheres
tornaram-se vítimas da cruel lógica pretoriana.
Luis Felipe Hirano, na sua análise, entra no campo de pensamen-
to social brasileiro, não a partir da obra de um autor, prática tradicional
da antropologia. Neste caso a estratégia escolhida é analisar a obra de
um ator, o Grande Otelo, ator negro, que com suas performances deu
cara a um Brasil invisibilizado na alta cultura.
Alexandre Fleming e Claudia Turra Magni reflexionam sobre a
experiencia da autora numa oficina de produção de filmes etnobiográ-
ficos. Ao relatar a experiência destas oficinas na França, focaliza o caso
de uma migrante africana retratada no filme A oferenda de Sabia. Neste
artigo se problematiza o trabalho colaborativo na antropologia visual a
partir de três abordagens: a antropologia compartilhada, a estética da
recepção e a restituição. No trabalho a autora contrasta dois momen-
tos, o registro compartilhado com Sabia uma jovem africana de 30 anos
que frequentou a oficina oferecida numa associação de moradores sem
teto. O segundo momento, da edição aconteceu num outro contexto,
no Brasil, com uma comunidade de interpretação ancorada na acade-
mia. Na filmagem, no momento dialógico o filme etnobiográfico per-
formado por Sabia é um ritual pelos seus filhos mortos. O filme coloca
em diálogo duas lógicas, a da sociedade francesa da qual se autoexcluiu
depois da morte do filho, e a da tradição animista africana, presente na
performance do ritual que permite-lhe trabalhar o luto. Ao se centrar
na recepção, junto a um público alvo de 300 alunos, a análise destaca,
por um lado, o estranhamento com as práticas animistas africanas, que
11
tentam traduzir para o contexto brasileiro dos cultos afro-brasileiros;
por outro lado, isto contrasta com a empatia em relação à maternidade
e a dor pela perda do filho.
Verónica Vásquez Valdés apresenta uma experiência de etnografia
visual junto aos índios totonacos no México. A autora, com formação
em artes visuais e antropologia, apresenta a discussão sobre a semiótica
na fotografia e como os princípios teóricos foram usados para analisar
a experiência das fotografias realizadas pelos indígenas. Cabe destacar o
papel da fotografia nestas culturas tradicionais, onde as fotos dos mortos
enfeitam paredes e altares. A expêriencia com estes fotógrafos indígenas
foi catalogada e analisada levando em conta a análise semiótica das foto-
grafias e revela concordâncias e dissonâncias com a fotografia ocidental.
A forma de olhar indígena, onde prevalece o eixo horizontal, aparece
refletido nas fotografias; os gestos do corpo, o distanciamento; a leitura
dos altares a partir da tradição cultural. Por outro lado, alguns aspectos
como o enquadramento a partir do retângulo áureo e certas caraterísticas
da composição da imagem.
O trabalho de Cuxy e Herbetta assinala a recepção dos filmes a
partir do ponto de vista nativo. O trabalho traz uma série de críticas
culturais do ponto de vista dos Krahô, o como se autodenominam
mehi. Num trabalho dialógico, o antropólogo e o realizador indígena
criticam o olhar do branco, Cupe, sobre os rituais indígenas. Uma das
críticas focaliza um filme realizado por brancos que focaliza a figura
do palhaço ritual dos Krahô. O que na lógica do editor de cinema faz
sentido por motivos estéticos produz uma dissonância com o público
nativo. Do ponto de vista nativo, a mistura de palhaços registrados em
rituais registrado em diferentes aldeias atrapalha a compreensão do
ritual. A lógica da tradição Krahô demanda outro tipo de narrativa,
centrada num ritual numa única aldeia, focalizar nos símbolos do ritual
12
antes que no rol de um dos performers. A crítica se apresenta assim
como uma forma de diálogo que permite que os Krahô construam sua
própria narrativa audiovisual do ritual.
Mariano Báez Landa, em seu artigo, aponta para as transforma-
ções do mundo contemporâneo, com a mudança dos discursos inte-
gracionistas do estado nação do século XX; a revolução digital que
permite trabalhar narrativas audiovisuais de forma compartilhada; e
no projeto das universidades interculturais no México, criadas em re-
giões de população maioritariamente indígena. Com as mudanças na
tecnologia da comunicação não se pode pensar um projeto nacional
culturalmente homogêneo, pelo contrário as novas condições criam
circuitos fragmentados onde saberes tradicionais, línguas indígenas
e cosmovisões se difundem nas redes e plataformas de comunicação
tentando expandir a conectividade de coletivos e movimentos que
procuram uma revitalização cultural.
A partir dos trabalhos reunidos neste livro podemos enxergar uma
antropologia visual informada e inconformada com práticas da antropo-
logia de matriz colonial. Os trabalhos aqui reunidos interpelam à antro-
pologia, sua forma de inserção no campo; a antropologia visual como
metodologia orientada para um saber compartilhado, que presta especial
atenção aos momentos reflexivos. Uma antropologia preocupada com
a compreensão e reflexão, tanto no campo, como na academia, na sua
institucionalização, na criação de novas comunidades de comunicação,
interculturais, ancoradas na troca de saberes. Uma antropologia que
pode tomar seu campo de reflexão a partir da experiência, da análise de
filmes, publicidades, espaços virtuais, num mundo em que as populações
tradicionais se apropriam das tecnologias audiovisuais. Uma antropolo-
gia visual inconformada com formas coloniais da disciplina, que desloca
o eixo no estilo de fazer antropologia.
13
Presentación
Una mirada in (con) formada. Teorías
y prácticas de la antropología visual.
14
construirse como un complejo modo de comunicación intercultural,
que involucra valores, empatía y emociones.
Hoy la antropología visual alcanzó su madurez, dejando de ser
un método auxiliar para ganar autonomía y desarrollo teórico en pie
de igualdad con las varias antropologías adjetivadas. Los medios audio-
visuales en la práctica etnográfica son de la mayor importancia para la
producción y creación del conocimiento antropológico. La inscripción
de la experiencia etnográfica en una narrativa audiovisual no es una
construcción ingenua y tiene como telón de fondo complejas cuestio-
nes teórico-metodológicas.
Este libro reúne artículos de autores brasileños, mexicanos o
que tienen tránsito por Brasil. Presenta las principales tendencias en la
antropología visual, fruto de diálogos y encuentros realizados en Brasil
y México desde el 1º MOVE en el PPGAS-UFG Goiânia 2010, y los
últimos Encuentros Internacionales de Cine y Video Etnográfico y
Testimonial Xalapa 2010, Oaxaca 2012 y Porto Alegre 2014.
Cornelia Eckert y Maria Luiza Carvalho da Rocha, realizan una
cartografía de los diferentes centros que trabajan antropología visual
en Brasil. El trabajo detalla las diferentes comunidades de comunica-
ción aglutinadas en núcleos y redes que participan de este modo de
hacer antropología. Se reseñan autores claves y trabajos ejemplares
para realizar esta tarea. Este panorama presenta lo que es, quizá, una de
las paradojas de este campo disciplinario en la academia brasileña, su
institucionalización en forma de núcleos y laboratorios que funcionan
en los principales centros universitarios pero que no llegan a constituir
programas y cursos específicos.
En este diálogo, el trabajo de José Ribeiro presenta la experiencia
del curso de maestría en antropología visual que funciona en la Uni-
versidad Abierta de Portugal. Este curso, en la modalidad de educación
15
a distancia, es uno de los cursos de postgrado institucionalizado en
Europa. En el contexto europeo existen otros cursos de antropología
visual, como la maestría en antropología visual en la universidad de
Barcelona y los cursos de posgrado ofrecidos en Manchester (maestría
y doctorado) y en Noruega. La presentación de José Ribeiro y la forma-
ción del equipo de la Universidad Abierta de Portugal llevan a incluir
en el campo de la antropología visual nuevos horizontes abiertos por
la revolución digital, como la exploración del mundo virtual, un hori-
zonte eminentemente audiovisual, y la realización de etnografías en los
ambientes de los juegos de computación.
La antropología visual amplía el campo de la antropología y tiene
desdoblamientos en la metodología de investigación, en la forma de
inscribir las narrativas etnográficas, en el campo de reflexiones sobre
el quehacer etnográfico y la recepción del trabajo por parte del gru-
po; también en los estudios de recepción y en la reflexión realizada a
partir de medios y productos audiovisuales y en las transformaciones
introducidas por las tecnologías digitales y su apropiación por parte de
culturas tradicionales.
Gabriel O. Alvarez retoma la metáfora de Roberto Cardoso de
Oliveira sobre el quehacer antropológico: mirar, escuchar y escribir,
para provocativamente proponer que la “mirada” en esta metáfora se
relaciona con un estilo de hacer antropología y con la construcción del
problema teórico. Para el autor, la práctica de la antropología visual
como metodología se centra en el escuchar, cuando con la cámara in-
tentamos registrar la tradición a partir de sus símbolos, performances,
rituales, complejas formas de comunicación que son la materia prima
a partir de la cual inscribimos la etnografía. Pero hacer antropología
visual, no es salir filmando despreocupadamente para realizar una her-
mosa película. Hacer antropología visual es hacer antropología con la
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cámara como medio de inserción en el campo. La cámara abre nuevas
posibilidades de inserción como observador participante y permite la
creación de diversos canales de intercambio con el grupo. El producto
audiovisual, tiene como telón de fondo una discusión antropológica, un
problema teórico, esa mirada teóricamente informada. El autor presen-
ta los resultados de su investigación Xamanismo y política en Huautla,
desarrollada a partir de una estancia en CIESAS, en la que exploró la
tradición mazateca a partir de los recursos de la antropología visual.
Para dar cuenta de estos diferentes niveles el autor presenta varios clips
producto de la investigación y el problema teórico, antropológico que
sostiene la composición del material audiovisual.
Renato Athias reflexiona sobre la experiencia de trabajar una fic-
ción etnográfica junto a los profesores indígenas Baniwa en San Gabriel
de la Cachoeira. El autor reflexiona sobre los diferentes momentos del
proceso de producción de la película. En el artículo resalta un primer
momento reflexivo, donde los baniwas construyen el guión de la pelí-
cula a partir de la performance de un mito, que posee variaciones entre
los diferentes grupos de la etnia. La construcción del mito a ser actuado
implicó también un segundo momento, donde ese mito fue ejecutado
por los profesores. A diferencia del momento anterior, las actuaciones
fluyeron sin dificultad, una vez que el texto tradicional es conocido
por los ejecutantes. Con los recursos disponibles los jóvenes baniwas
representaron el mito, personificaron animales, resaltando el carácter
social de los mismos en las cosmologías amazónicas. La actuación del
mito, las performances, permite un trabajo de campo donde la cámara
opera como disparador del trabajo colectivo, en la actuación y en la eva-
luación del material. Esta dimensión colectiva cambia la relación que
la antropología tradicional construía con la estrategia del informante
clave. Como resalta Renato Athias, parafraseando a Jean Rouch, el uso
17
de la cámara y la dimensión compartida permiten levantar un tipo de
información cualitativamente diferente de la que emplea la antropo-
logía tradicional. El audiovisual se encuentra más cerca de las culturas
tradicionales que el texto escrito, permite un registro más preciso de
los gestos, de los objetos símbolos, de las performances. Las actuacio-
nes y rituales son poderosos aparatos comunicacionales, difícilmente
reductibles a un texto escrito, pero son susceptibles de ser inscritos con
recursos audiovisuales y una metodología compartida.
Alex Vailati presenta reflexiones sobre la realización de un docu-
mental sobre la Isicathamiya, una actuación musical, coral tradicional
que fue registrada por el autor en su investigación en Sudáfrica. La
práctica de la antropología visual valora el recuerdo de la restitución,
cuando el investigador presenta su producto al grupo. En este momen-
to reflexivo, Alex Vailati plantea el dilema entre el estilo antropológico,
cámara en la mano, edición sin efectos visuales, que se contrapone al
estilo de los vídeos de Isicathamiya, con abundantes efectos visuales y
una sintaxis de videoclip.
De la práctica de la antropología visual como metodología de in-
vestigación, la cámara participante y la edición compartida pretenden
alcanzar como horizonte una antropología compartida, un producto
que respete el punto de vista del otro, considerado como coautor de la
investigación antropológica.
El análisis de contenido como un campo de la antropología visual
es el eje del artículo de Carmen Rial en el que analiza los estereotipos
que estructuran los medios publicitarios, género, edad, raza y su impacto
en el público receptor de estos contenidos. Al analizar la presencia de
estereotipos raciales en la publicidad brasileña, se centra en un ejemplo
que contrasta la imagen del japonés y del negro como polos que repro-
ducen la ideología de jerarquías sociales ancladas en la raza. El artículo
18
analiza también cómo el discurso de guerra estructuró a los medios
estadounidenses tras los atentados terroristas del 11 de septiembre. El
análisis se centra en la invisibilidad de parte de esta “guerra al terror”, el
circo de horrores creado por los militares en los centros de tortura, las
violaciones y humillaciones a que se sometieron los prisioneros de esta
guerra extraterritorial. Este análisis indica la violación como una de las
estrategias de guerra sufridas por las mujeres, tanto en el Oriente Medio,
como en África y en la guerra de los Balcanes. Estas imágenes de horror
son censuradas en la guerra de imágenes que crean las narrativas heroicas
sobre la guerra. La autora analiza las fotos de violaciones de soldados
estadounidenses perpretadas contra mujeres musulmanas y las múltiples
significaciones que traen estas fotografías de guerra, donde las mujeres se
convirtieron en víctimas de la cruel lógica pretoriana.
Luis Felipe Kojima Hirano, en su análisis, entra en el campo del
pensamiento social brasileño, no a partir de la obra de un autor, prácti-
ca tradicional de la antropología, sino del trabajo de un actor llamado
Grande Otelo, actor negro, que con sus actuaciones dio visibilidad a
un Brasil negado para la alta cultura. La perspectiva de Luis Hirano es
desarrollar una antropología del trabajo de actores y directores.
Alexandre Fleming y Claudia Turra Magni reflexionan sobre la
experiencia de la autora en un taller de producción de películas etnobio-
gráficas. Al relatar la experiencia de estos talleres en Francia, se centra
en el caso de una migrante africana retratada en la película La ofrenda
de Sabía. En este artículo se problematiza el trabajo colaborativo en la
antropología visual a partir de tres abordajes: la antropología compar-
tida, la estética de la recepción y la restitución. En el trabajo la autora
contrasta dos momentos, el registro compartido con Sabia una joven
africana de 30 años que frecuentó el taller ofrecido en una asociación de
moradores sin techo. El segundo momento, de la edición se produjo en
19
otro contexto, en Brasil, con una comunidad de interpretación anclada
en la academia. En la filmación, en el momento dialógico la película etno-
biográfica desempeñada por Sabia es un ritual por sus hijos muertos. La
película pone en diálogo dos lógicas, la de la sociedad francesa de la que
se autoexcluyó después de la muerte del hijo, y la de la tradición animista
africana, presente en la performance del ritual que le permite trabajar el
duelo. Al centrarse en la recepción, junto a un público de 300 alumnos, el
análisis destaca, por un lado, el extrañamiento con las prácticas animistas
africanas, que intentan traducir al contexto brasileño de los cultos afro-
brasileños; por otro lado, esto contrasta con la empatía en relación a la
maternidad y el dolor por la pérdida del hijo.
Verónica Vásquez Valdés presenta una experiencia de etno-
grafía visual junto a los indios totonacos en México. La autora, con
formación en artes visuales y antropología, presenta la discusión
sobre la semiótica en la fotografía y cómo los principios teóricos
fueron usados para analizar la experiencia fotográfica realizada por
los indígenas. Cabe destacar el papel de la fotografía en estas culturas
tradicionales, donde las fotos de los muertos adornan paredes y al-
tares. La experiencia con estos fotógrafos indígenas fue catalogada y
analizada teniendo en cuenta el análisis semiótico de su obra y revela
concordancias y disonancias con la fotografía occidental. La forma de
mirar indígena, donde prevalece el eje horizontal, aparece reflejado
en las fotografías; los gestos del cuerpo, el distanciamiento; la lectura
de los altares a partir de la tradición cultural.
El trabajo de Cuxy y Herbetta señala la recepción de las películas
desde el punto de vista nativo. El trabajo trae una serie de críticas cultu-
rales desde el punto de vista de los Krahô, el cómo se autodenominan
mehi. En un trabajo dialógico, el antropólogo y el realizador indígena
critican la mirada del blanco, cupe, sobre los rituales indígenas. Una de
20
las críticas se centra en una película realizada por blancos que enfoca la
figura del payaso ritual de los Krahô. Lo que en la lógica del editor de
cine tiene sentido por motivos estéticos, produce una disonancia con
el público nativo, que considera que la mezcla de payasos registrados
en rituales de diferentes aldeas obstaculiza la comprensión del mismo.
La lógica de la tradición Krahô demanda otro tipo de narrativa, centra-
da en un ritual en un solo pueblo, enfocarse en los símbolos del ritual
antes que en el rol de uno de los ejecutantes. La crítica se presenta así
como una forma de diálogo que permite que los Krahô construyan su
propia narrativa audiovisual.
Mariano Báez Landa apunta en su trabajo las transformaciones
del mundo contemporáneo, con el cambio de los discursos integracio-
nistas del estado nación del siglo XX; la revolución digital que permite
trabajar narrativas audiovisuales de forma compartida; y el fenómeno
de las universidades interculturales en México, creadas en regiones de
población mayoritariamente indígena. Con los cambios en la tecnolo-
gía de la comunicación no se puede pensar un proyecto nacional cul-
turalmente homogéneo, por el contrario las nuevas condiciones crean
circuitos fragmentados donde los saberes tradicionales, las lenguas
indígenas y las cosmovisiones se difunden en las redes y plataformas
de comunicación tratando de expandir la conectividad de colectivos y
movimientos que buscan una revitalización cultural.
A partir de los trabajos reunidos en este libro podemos ver una
antropología visual informada e inconformada con prácticas de una
disciplina de matriz colonial. Los textos interpelan a la antropología y
su forma de inserción en el campo; la antropología visual, como meto-
dología orientada hacia un saber compartido, presta especial atención
a los momentos reflexivos, es una antropología preocupada por la
comprensión y la reflexión, tanto en el campo, como en la academia, en
21
su institucionalización, en la creación de nuevas comunidades de co-
municación intercultural que busquen un diálogo franco y cabal entre
distintos saberes, que puede formar su campo de reflexión a partir de la
experiencia, del análisis de películas, publicidades, espacios virtuales,
en un mundo en que las poblaciones tradicionales se apropian de las
tecnologías audiovisuales para resistir y trascender. Una antropología
visual inconformada con formas coloniales de la disciplina, desplaza el
eje en el estilo de hacer antropología.
22
Sumário
25
Resumo: O artigo trata da formação do campo conceitual em
Antropologia Audiovisual no Brasil. Aborda, especificamente, a
pesquisa etnográfica com imagens e, através delas, a produção de
conhecimento antropológico na área. A partir do diálogo entre
as produções nacionais e estrangeiras, procura repertoriar a plu-
ralidade de experiências em núcleos de pesquisa neste campo de
conhecimento.
Palavras-chave: Antropologia audiovisual. Antropologia da ima-
gem. Antropologia visual.
INTRODUÇÃO
26
Efeitos Visuais (Biev), em que formamos gerações de alunos desde os
anos 90. Nesta trajetória, já descrita em artigos e livros (ECKERT; RO-
CHA, 2006, 2012, 2013, 2014, 2015), enfatizamos uma relação mais
do que constante na formação de novas gerações de pesquisadores em
antropologia: a participação sistemática desta nova geração estudantil
em projetos de caráter público.
O que têm em comum os alunos e as alunas de antropologia
como Fernanda Rechenberg, Paula Biazus, Diogo Dubiella, Douglas
Rosa e Siloé Amorim, afora serem brasileiros, terem seus endereços
publicados em facebook, terem seus curriculum integrado ao sistema
Lattes/CNPq? Elas e eles partilham de uma trajetória acadêmica com
ênfase em antropologia e receberam, em sua formação, o incentivo pe-
culiar da pesquisa em antropologia com linguagens audiovisuais.
Fernanda Rechenberg foi bolsista de Antropologia Visual no
projeto Biev e pesquisadora no Navisual, aluna de mestrado e douto-
rado (RECHENBERG, 2007; RECHENBERG, 2012). Neste período,
atuou em oficinas de editais públicos, financiados pela prefeitura mu-
nicipal, sobre a memória coletiva da população negra em Porto Alegre
com vistas a difundir este patrimônio de narrativas imagéticas da vida
cotidiana em bairros da cidade. Sua atuação na vida pública foi tema de
interpretação em sua tese de doutorado. Hoje, atua como professora
de Antropologia Visual na Universidade de Alagoas e no Museu Théo
Brandão (Maceió, AL).
27
Figura 1 - Imagens e trajetos revelados
28
Figura 2 - A lata faz foto? Ah, então a lata é mágica!
29
Siloé Amorim, durante a graduação realizada no México e o mes-
trado no curso Multimeios da Universidade de Campinas (Unicamp),
já era um militante da causa indígena quando passou a atuar como
pesquisador no Laboratório Antropologia Visual (Aval) em Alagoas.
Por volta de 1998, líderes do movimento de ressurgência dos índios do
alto sertão alagoano (kalankó, karuazu, koupnka, katokinn) solicitaram
que ele os ajudasse filmando e fotografando os inúmeros eventos dos
grupos. Aos poucos, o antropólogo percebeu que era testemunha e
guardião da memória de um movimento ímpar de sua história. Dispôs-
-se, então, a realizar sua dissertação (AMORIM, 2003) e, logo após,
sua tese de doutorado (AMORIM, 2010), esta última pelo PPGAS/
UFRGS, na linha de pesquisa de antropologia visual e da imagem, ten-
do por projeto a organização e a informatização deste material imagéti-
co, num processo de colaboração e devolução ao movimento indígena
de seu patrimônio etnológico.
30
Recentemente ingressados no mestrado de antropologia da PP-
GAS, UFRGS, os alunos Diogo e Douglas Dubiella já consolidaram
suas atuações em políticas públicas na graduação. Diogo, que fez gra-
duação em Ciências Sociais e defendeu seu trabalho de conclusão com
produção fílmica, atua em coletivo de arte e é aluno de mestrado em
antropologia na linha de pesquisa de Antropologia Visual. Desenvol-
veu seu trabalho de conclusão de curso com uma instalação etnográfica
intitulada As mulheres e a fibra: uma instalação etnográfica (DUBIEL-
LA, 2015). Esta instalação, composta de uma exposição de fotografias,
objetos, fibras (reciclagem de pets), expressa com muita sensibilidade
o trabalho das mulheres interlocutoras. Faz parte do trabalho de con-
clusão um filme etnográfico em que as mulheres, organizadas em uma
rede de trabalho informal, são protagonistas, além de ajudarem o autor
a divulgar sua pesquisa. Com o apoio da equipe do Navisual e com o
consentimento do IFCH, a instalação ocupou um dos corredores do
instituto por seis meses. Na defesa do trabalho e na abertura da ex-
poetnografia, as mulheres do grupo Arte & Mãe, moradoras do bairro
Bom Jesus, em Porto Alegre, foram convidadas para expor seu trabalho
comunitário e a experiência de serem interlocutoras de uma etnografia
fílmica partilhada no espaço acadêmico.
31
Figura 5 - Fibras de Garrafa Pet
32
antes estavam ausentes e trazem para “o campo da academia categorias
de entendimento”, chaves de classificações êmicas, ampliando a com-
preensão fenomenológica da vida indígena e da vida humana como um
todo (FREITAS, 2015).
33
particular dos que atuam em políticas públicas, com vistas a fortalecer a
luta de seus interlocutores por reconhecimento social e cultural a partir
do entendimento de seu processo de autogestão e autodeterminação.
Nos termos empregados por Cardoso de Oliveira (1998, p.
191-192), com base nos conceitos apelianos3, podem-se interpretar
estas novas modalidades de produção do conhecimento antropoló-
gico como parte de uma ação comunicativa que transcorre, em geral,
num contexto intersubjetivo de argumentação, do qual resultam novas
discursividades no campo da antropologia, tendo por base o reconhe-
cimento de redes com preocupações éticas. São redes que se destacam
por um processo de intersubjetividade, o que, segundo o autor, e de
acordo com Wittgenstein, é um “jogo de linguagem” em que se observa
a exigência de consenso sobre regras e normas de argumentação
intersubjetivamente válidas entre grupos reais – a comunidade dos
antropólogos e a de seus parceiros de pesquisa.
O conhecimento antropológico nos moldes de cooperação
seguiria, assim, uma ética discursiva pela qual os antropólogos e seus
interlocutores de pesquisa se reconhecem mutuamente portadores dos
mesmos direitos de produção de conhecimento sobre si e o mundo4.
34
Nesta medida, as diversas linhas narrativas, poéticas, estéticas, emoti-
vas e sensíveis que resultam desse processo se apresentariam, no caso
dos povos indígenas, como resultado de uma reinvenção das relações
entre eles e a universidade (FREITAS, 2015).
Ao se manifestar como “teoria vivida” (PEIRANO, 2006), a
Antropologia Audiovisual no Brasil se conforma ao campo de conhe-
cimento em que a formação estimula a atuação dos pesquisadores e
é por ela estimulada, desde a academia, em políticas públicas, permi-
tindo que os “fatos etnográficos” e suas interpretações circulem como
formas de conhecimento não somente entre os muros universitários,
mas sobretudo nos múltiplos mundos públicos. Sobre este assunto,
importa ressaltar que, para se pensar o ensino e a pesquisa dos aportes
audiovisuais aplicados ao campo da produção de conhecimento antro-
pológico, é preciso reconhecer, hoje, tanto na esfera nacional quanto
na mundial, a pluralidade de experimentos em núcleos de pesquisa
e ensino (intensamente relacionadas com ações de política cultural,
como festivais e mostras de vídeos, exposições fotográficas, instalações
e construção de acervos em redes, coletivos, ONG, contemplados com
oficinas, cursos, ateliês, debates, atividades comentadas, etc.).
A exemplo das experiências locais do Navisual e do Biev na
UFRGS5, podemos reconhecer no país esta disposição de atuação em
núcleos de formação e pesquisa em Antropologia Visual e da Imagem.
Queremos aqui explorar esta performance como configuradora de
práticas e saberes que respondem aos desafios de construir projetos
de cooperação intra e extramuros universitários. Antes disso, porém,
5 Sobre o tema, ver o artigo das autoras: Antropologia da imagem no Brasil: ex-
periências fundacionais para a construção de uma comunidade interpretativa,
Revista Iluminuras, Publicação Eletrônica do Banco de Imagens e Efeitos Visuais
– NUPECS/LAS/PPGAS/IFCH, v. 17, n. 41, 2016. Disponível em: <http://
seer.ufrgs.br/index.php/iluminuras>.
35
propomos uma breve retomada da construção deste campo de conhe-
cimento, significativamente transdisciplinar, didaticamente aberto ao
diálogo e a ações extramuros universitários, propício à produção com-
partilhada entre interlocutores destes estudos e as pesquisas de ação
ética que a disciplina sustenta.
36
de experiências etnográficas com base na cultura do espaço livreiro7.
Sobre este tema nos debruçamos em outros artigos especialmente de-
dicados à etnografia em outras linguagens, tais como as utilizadas nas
redes digitais e eletrônicas na produção do conhecimento antropológi-
co (ECKERT; ROCHA, 2006).
No Brasil, a linha de pesquisa em Antropologia Visual encontra-
-se consolidada. Assim o expressam inúmeras publicações recentes de
pesquisadores da rede de antropologia visual ou audiovisual, ou visual
e sonora, ou das visualidades e sonoridades, etc. (PEIXOTO, 1995,
1998; CAIUBY NOVAES, 2012; MONTE-MÓR; ECKERT, 1995).
É por considerar a área de conhecimento já consolidada que,
talvez, nos seja permitido indagar, como o fez Sarah Pink (2006), so-
bre o futuro da Antropologia Visual no Brasil, ou mesmo na América
Latina, tendo como contexto as trocas e parcerias acadêmicas com
nossos países vizinhos – Argentina, Chile, Uruguai, Colômbia e Peru.
Na realidade, para abordar o futuro da Antropologia Audiovisual a
autora citada faz uma revisão da trajetória desta área disciplinar em
perspectiva internacional, levando em consideração a qualidade
crítica que a afetou nas últimas décadas no cinema, na fotografia e
nas sonoridades. Para o caso específico deste suporte, a inspiração
acadêmica está mais vinculada a uma produção teórica, conceitual e
metodológica da etnomusicologia (SACHS, 1930; SCHAEFFNER,
1932; SCHAFER, 1977; SEEGER, 1987).
37
Relativamente ao cinema etnográfico (sem citar o de autores
latino-americanos), é comum, na formação de todo antropólogo que
opera no campo da Antropologia Audiovisual, fazer referência a uma
tradição associada a trajetórias de antropólogos cineastas europeus,
americanos e australianos, tais como Jean Rouch, Jean Arlaud, Claudi-
ne de France, David e Judith MacDougall, Patsy Asch, Tim Asch, John
Marshall, Asen Balikci, Luc de Heusch, Peter Crawford, Ian Dunlop,
Robert Gardner, dentre outros.
No campo da produção fotográfica, os nomes mais citados são,
certamente, os de Edward Sheriff Curtis, John Collier e, evidentemen-
te, os de Gregory Bateson e Pierre Verger.
38
Figura 7 - Um Mensageiro Entre Dois Mundos
39
termos de Gilbert Durand (1984), à prática da disciplina antropológica
em escala mundial.
De acordo com Jean Paul Sartre, pelo que dele cita Fanon no
prefácio de sua obra, estaríamos diante do “indigenato de elite”. Cai por
terra a invenção de um Outro qualquer à sua imagem e semelhança.
Dessa forma, escreve Sartre: “As bocas passaram a abrir-se sozinhas; as
vozes amarelas e negras falavam ainda do nosso humanismo, mas para
censurar a nossa desumanidade” (1968, p. 2-3).
Estamos nos referindo aos primórdios de uma comunidade in-
terpretativa que está às voltas com o que hoje se denomina “crise das re-
presentações” e, em decorrência, da “emergência de paradigmas reflexi-
vos”, “descolonizadores”, rumo à produção do campo de conhecimento
antropológico. Isto, numa clara alusão à importância de se descontruir
os processos de empoderamento dos saberes e fazeres científicos no
Ocidente moderno e das racionalidades daí derivadas.
Voltamos a nos referir a Sarah Pink, que em 2006 tratava, em es-
pecial, de uma Antropologia Audiovisual orientada a um projeto inter-
disciplinar mais “colaborativo”, em que as linguagens audiovisuais dos
antropólogos procuravam se ligar, se relacionar e se somar aos saberes
e fazeres de seus parceiros de pesquisa.
Este certamente é também o caso da obra de Jean Rouch, um dos
pais fundadores, no campo da produção da Antropologia Visual8, do
filme etnográfico e do conceito de antropologia compartilhada (parta-
gée). Poderíamos dizer, neste sentido, que se tratava de um momento,
no trajeto de formação do campo conceitual da antropologia, em que
o etnógrafo (fotógrafo ou cineasta) se engajava em promover a interati-
vidade entre as diferentes culturas no processo dialógico (antropologia
40
compartilhada) com os seus interlocutores de pesquisa, partindo de uma
promoção de novas formas de participar na construção do conhecimen-
to antropológico. Não versava, necessariamente, de promover uma troca
de conhecimento entre os dois lados (antropologia colaborativa), no
esforço de desmontar as táticas do colonialismo e seu complexo jogo de
relações que unem os antropólogos a seus parceiros de pesquisa.
Não resta dúvida que os conceitos de compartilhamento e de
colaboração se inter-relacionam, isto em razão de ambos se basearem,
no caso da prática do conhecimento antropológico, em diálogos in-
terculturais. Entretanto, vale a pena refletir sobre como tais conceitos
refletem os processos diferenciados de produção de narrativas etnográ-
ficas audiovisuais. No primeiro caso, como afirma Davenport (1998),
estaríamos nos reportando a uma ação comunicacional intercultural,
motivada pela intenção voluntária, e unilateral, de um autor que de-
tém um conhecimento com alguém que não o possui9. No segundo
caso, poderíamos considerar, conforme Argyle (1991), que estamos
operando com a prática da etnografia audiovisual como parte de uma
ação comunicacional intercultural de interesse comum a seus autores,
considerados co-realizadores10.
Apontamos, propositadamente, para esta diferenciação; não por
questões semânticas fúteis, mas para enfatizar o quanto de deslocamen-
to epistemológico implicou para a Antropologia Audiovisual despren-
der-se de seu instante “compartilhado” para o outro, o “colaborativo”.
Este “desprendimento” obriga a prática antropológica, ou o ofí-
cio do etnógrafo, ao diálogo intercultural mais sistemático
41
É por meio dele que produzir imagens do Outro ultrapassa o pro-
pósito da partilha comum de um sistema de representações para atingir,
no esforço de produzir benefícios mútuos, a feição do conhecimento
que resulta de uma cooperação entre ele e seus parceiros de pesquisa.
42
zações de fomento ao desenvolvimento de pesquisas e ensino11 em
programas de pós-graduação, tanto quanto junto a organismos não-go-
vernamentais12. Os encontros regulares entre pesquisadores brasileiros
com atuação nesta área foram responsáveis pela formação de uma ativa
rede de antropólogos(as) que têm por característica, ainda nos dias
atuais, uma intensa troca intelectual, seja sob a forma de permuta de
produções entre núcleos, laboratórios e centros de pesquisa, seja de
intercâmbio em eventos científicos, em defesas de dissertações e teses.
Conforme apontamos anteriormente, a década de 1980 foi um
momento privilegiado na abertura da pesquisa antropológica para a pro-
dução audiovisual no país, com repercussões nas formas de construir o
conhecimento em antropologia. Emergem, neste período, nos centros de
pesquisa e programas de pós-graduação, os primeiros cursos universitá-
rios voltados a essa prática e os novos instrumentos audiovisuais.
Dentre os cursos propostos nos sistemas curriculares, destaca-se
a oficina desenvolvida em 1982 pela antropóloga Ana Luiza Fayet em
formação na Universidade de Brasília/UnB, fruto de sua pesquisa de
mestrado sobre a vida e o trabalho de catadores de lixo da periferia de
Brasília. Desse trabalho resultou a produção do audiovisual em coau-
toria com o fotógrafo e antropólogo Milton Guran. Na sequência, em
1984, Maria Eugênia Brandão A. Nunes (Universidade Católica de
Goiás/UCG) desenvolve o curso de especialização Recursos Audiovi-
suais em Etnologia, que se constituía numa revisitação da obra de an-
tropólogos precursores que, no Brasil, haviam utilizado o instrumento
fotográfico ou fílmico em suas pesquisas de campo. A destacar, dentre
eles, a obra de Wolf Jesco von Puttkamer (1919-1994).
43
Figura 8 - Brasília sob o olhar de Jesco
44
A expansão da disciplina, por seu turno, nos anos 1990, vem as-
sociada à demanda de jovens estudantes por esta linha de pesquisa nos
processos institucionais de formação que estimulam a criação de cen-
tros de pesquisa em Antropologia Visual. Em 1992, na XXIa Reunião
Anual da Anpocs, esta associação abre espaço à iniciativa de organiza-
ção de uma mostra de vídeos etnográficos, acompanhada de debates,
preferencialmente na presença de seus diretores e equipe participante.
Tal iniciativa, que projeta a formação de uma rede de pesquisado-
res na área audiovisual nas ciências sociais no Brasil, se deve à liderança
das pesquisadoras Bela Feldman-Bianco (Unicamp/SP) e Ana Galano
(UFRJ/RJ), pioneiras nos esforços de promover, de uma forma mais
abrangente e duradoura, a produção sistemática de pesquisa audiovi-
sual nos cursos de antropologia nos moldes do que aqui denominamos
comunidade de argumentação, seguindo Roberto Cardoso de Oliveira
(1985) quando trata do tema dos diversos estilos do fazer antropológico.
Um exemplo deste processo foi a realização, em 1993, do se-
minário temático “Ciências Sociais & Imagem”, ocasião em que se
inaugurou um grupo de trabalho sobre “Usos da imagem nas Ciências
Sociais”. Na trilha da popularização da pesquisa com imagens no cam-
po das ciências sociais, o GT se reapresenta nas reuniões da Anpocs.
De 1994 a 1996, segue sob a coordenação de Bela Feldman-Bianco e
Ana Maria Galano. Para consolidar a continuidade do debate, as pes-
quisadoras organizaram, em 1996, a formação da rede de Antropologia
Visual em uma reunião da Anpocs. Ampliava-se a abrangência da rede
brasileira de antropólogos audiovisuais, agora com a participação de
pesquisadoras das mais diversas universidades. Registra-se o esforço
do pesquisador Mauro Koury (1997), da UFPB/PB, ao elaborar uma
enquete sobre a produção audiovisual na pesquisa social brasileira.
45
Figura 10 - Usos da imagem nas Ciências Sociais
46
Figura 12 - Imagens & Ciências Sociais
47
antropologia. Dela participaram Patrícia Monte-Mór, Renato Athias,
Cornelia Eckert, Clarice Peixoto e Etienne Samain, entre outros. En-
tretanto, foi na reunião da ABA realizada em Salvador/BA (1996) e
organizada sob a presidência do antropólogo João Pacheco de Oliveira
Filho (UFRJ/RJ), que foi promovido o primeiro prêmio para vídeo
etnográfico, alcunhado de Prêmio Pierre Verger.
O esforço de agenciamento da Antropologia Visual, mais uma
vez, está sob a batuta de Bela Feldman-Bianco, apoiada pelo orga-
nizador do evento, o antropólogo Carlos Caroso. Nesta ocasião, na
presidência da comissão de avaliação estava o antropólogo e cineasta
francês Marc Henri Piault (CNRS/França). O primeiro documentá-
rio premiado se intitulava “Yãkwá, O Banquete dos Espíritos”, sob a
direção da antropóloga Virgínia Valadão (1952-1998), produzido no
âmbito do projeto “Vídeo nas Aldeias”, na época vinculado ao Centro
de Trabalho do Indigenista de São Paulo.
48
Naquele momento, integravam a programação inúmeras atividades
sobre o tema do uso de recursos audiovisuais para a produção do conhe-
cimento em antropologia. Sob a coordenação de Clarice Peixoto e Cor-
nelia Eckert, formaram-se grupos de trabalho, mesas redondas, oficinas
de vídeo etnográfico, mostras livres de fotografias e mostras de vídeos. O
troféu do prêmio só foi criado na gestão de Miriam Pillar Grossi, por oca-
sião da XXVa Reunião Brasileira de Antropologia/RBA, em Goiânia/GO,
quando a presidente da comissão do Prêmio Pierre Verger, a antropóloga
Ana Luiza Carvalho da Rocha, apresentou a estatueta Fatumbi, criada
pelo escultor e artista plástico Nico Rocha (Porto Alegre/RS).
Não por acaso foram lançados dois livros, organizados sob a for-
ma de coletânea, por meio dos quais se divulgava, na rede brasileira de
antropólogos audiovisuais, a produção destes momentos efervescentes
de debate na área. Referimo-nos, primeiramente, à publicação de Desa-
fios das Imagens: fotografia, iconografia e vídeo nas ciências sociais, orga-
nizada por Bela Feldman-Bianco e Miriam Moreira Leite (1998). Esta
obra faz, em sua apresentação, uma homenagem à Associação Nacional
de Pesquisadores em Ciências Sociais/Anpocs, como instituição que
cria um importante espaço acadêmico de circulação de conhecimento
da pesquisa com imagens, com o apoio de Alícia Abreu e Flávio Pieruc-
ci, então membros da diretoria da instituição. A obra também aponta
outras mostras de vídeos e fotografias, jornadas e seminários que foram
fundamentais para a consolidação da Antropologia Visual como área
de produção de conhecimento.
49
Figura 14 - Desafios das Imagens
50
Figura 15 - Imagem em foco
51
Magni (2010-2012), Paula Morgado (2012-2014) e Marcos Alexandre
dos Santos Albuquerque (2014-2016).
52
Figura 16 - Antropologia visual
53
gia/RBA), reuniões latino-americanas, como a Reunião de Antropolo-
gia Mercosul (RAM), ou anualmente na reuniões de pesquisadores em
ciências sociais (Anpocs), ou, ainda, em outros eventos criados desti-
nados a congregar pesquisadores na área da Antropologia Audiovisual
(mostras de filme etnográfico, jornadas de antropologia visual, etc. ),
tínhamos por meta discutir um sentido comum de produção audiovi-
sual ainda emergente.
Tratava-se de refletir sobre uma política singular em defesa dos
processos de produção de etnografias audiovisuais no âmbito da distri-
buição de saberes e fazeres que abarcasse o campo da produção antro-
pológica brasileira, que incluísse vídeos etnográficos, ensaios etnofo-
tográficos ou fotoetnográficos, etnografias em hipermídias, etnografias
sonoras, etc. Naquele momento, final dos anos 1980, tratava-se de dar
visibilidade, na academia brasileira, às diferentes maneiras de se fazer
pesquisas etnográficas no Brasil pelo uso de recursos audiovisuais por
meio da promoção de encontros entre núcleos de pesquisa das mais
diversas universidades do país.
Fruto desses encontros, mostras, simpósios e seminários foi a
profusão de publicações, na década seguinte, destinadas a sistematizar
as práticas da Antropologia Audiovisual brasileira, envolvendo o diálo-
go com obras estrangeiras traduzidas para a língua portuguesa. Todavia,
essa produção intelectual brasileira dispunha, paradoxalmente, do es-
paço livreiro como lugar no qual a comunidade interpretativa defendia
sua emancipação e autonomia em relação às formas mais tradicionais
de expressão do pensamento antropológico, como o registro escrito.
É interessante registrar que, em decorrência deste instante
inaugural da Antropologia Audiovisual brasileira como parte integran-
te da formação acadêmica do antropólogo no Brasil, este campo foi
incluído no ensino de graduação de ciências sociais e/ou antropolo-
54
gia tanto quanto do ensino de pós-graduação. A partir de então, toda
produção intelectual no formato de livros, revistas e artigos sobre o
assunto começa a ser incorporada a todo um processo acadêmico de
ensino-aprendizagem mais ortodoxo.
Concomitantemente aos encontros sistemáticos que reuniam
antropólogos oriundos de diversas instituições acadêmicas e à criação
de disciplinas em programas de pós-graduação em antropologia social
e graduação em ciências sociais, assiste-se à consolidação do campo da
Antropologia Audiovisual no Brasil pela disseminação dos postulados de
uma antropologia compartilhada no sistema de práticas promovidas por
organizações da sociedade civil que vinham atuando, principalmente, na
defesa das minorias étnicas, como, por exemplo, o Projeto Vídeo nas Al-
deias, do Centro de Trabalho Indigenista (em São Paulo, na época, CTI).
Na esteira do trajeto de uma política de visibilidade para o campo
da Antropologia Audiovisual no Brasil, criam-se as primeiras linhas de
pesquisa nos programas de pós-graduação em antropologia social, res-
ponsável pela formação de um número significativo de pesquisadores.
Sobre o tema, inúmeras publicações acabaram sendo produzidas nos
anos subsequentes, no esforço de se refletir sobre os saberes e fazeres
da Antropologia Audiovisual no país na forma de revistas (PEIXOTO,
1995; ECKERT; GODOLPHIM, 1995) e os mais diversos livros (EC-
KERT; MONTE-MÓR, 1999; FELDMAN-BIANCO; MOREIRA
LEITE, 1998); mais recentemente, ainda sob esta influência, foram
produzidos os estudos de Cornelia Eckert e Ana Luiza C. da Rocha
(2016) e Sylvia Caiuby Novaes (2010).
55
Figura 17 - Envelhecimento e imagem
56
Figura 18 - A preeminência da imagem e do imaginário nos
jogos da memória coletiva em coleções etnográficas
57
Figura 19 - Escritura da imagem
58
que se consolidava o processo de redemocratização, tradicionalmente
avesso a toda ordem de conflitos (sociais, sexuais, étnicos, raciais, etc. ).
Por um lado, nos anos 80, conforme aponta Ruben Oliven
(1989), os antropólogos que pautavam suas pesquisas no uso dos
recursos audiovisuais compartilhado com seus parceiros de pesquisa
enfrentavam alguns dilemas éticos no tratamento da violência fun-
dacional no coração da cultura brasileira. Referimo-nos aqui às suas
preocupações com as formas de produção e geração da imagem do
Outro e os mecanismos neocoloniais de promover sua subordinação e
exploração, numa polarização de saberes eruditos e saberes populares.
Operando com recursos tecnológicos que derivam da inserção do país
numa nova ordem mundial, a da globalização, os antropólogos “her-
deiros dos anos de chumbo”, tanto quanto outros intelectuais e artistas
dialogavam com referências cognitivas acerca da “cultura popular” (na
visão do oprimido colonial, ao qual atribuem a identidade da cultura
brasileira) como inferior, submissa, ou alienada, conforme destaca
Renato Ortiz (1985). Por outro, nos anos 90, a antropologia, a meio
caminho entre a reflexividade acadêmica e a reflexividade política, en-
tra em sintonia com o processo de redemocratização do Brasil.
Arriscamo-nos a afirmar que a produção da Antropologia Audiovi-
sual brasileira confronta, neste instante preciso, a unidade totalizante dos
discursos de dominação e de poder associada às formas de expressão da
“situação colonial” na construção da identidade nacional do país, patriar-
cal, branca, escravocrata, elitista e católica em seu teor, que se fragmenta
em discursividades plurais de inúmeros herdeiros das brutalidades dos
“oprimidos coloniais” (FANON, 1968 ) de outras épocas.
Nos anos subsequentes, em decorrência dos saberes e práticas da
Antropologia Audiovisual já clássicos, o advento das tecnologias agrega
um valor fundamental. Numa civilização da imagem e do consumo da
59
imagem do Outro, com o desenvolvimento tecnológico das mídias
digitais e eletrônicas, sua disseminação irrestrita na prática acadêmi-
ca amplifica a capacidade dos antropólogos em compartilhar, criar e
prover conhecimento13 com base num processo dialógico intercultural,
tendo por suporte a colaboração com os parceiros de pesquisa, antes
denominados “informantes”.
Os temas da cidadania, dos direitos humanos e das minorias,
da exclusão social, entre outros, invadem a cena pública da sociedade
brasileira e se desdobram em inúmeros movimentos sociais relevantes,
nos quais os antropólogos, cada vez mais, passam a atuar juntamente
com seus parceiros de pesquisa. No campo da Antropologia Audiovi-
sual brasileira, prossegue o reexame dos discursos científicos e estéticos
sobre a alteridade, agora numa crítica cada vez mais eficiente e eficaz à
racionalidade do discurso antropológico ocidental. O caso do CTI de
São Paulo foi exemplar, neste sentido. Criado em 1979, abrigou um dos
mais importantes projetos de produção audiovisual junto aos grupos
indígenas no Brasil, o projeto Vídeo nas Aldeias (1986), que se trans-
formou, nos anos mais recentes, em uma ONG, com sede em Olinda/
PE, ameaçado em sua continuidade, desde 2016, por cortes financeiros
de apoio ao projeto por instituições brasileiras.
60
Figura 20 - Vídeo nas Aldeias
61
e livros fundamentais para a sua consolidação nos moldes de uma rede
interdisciplinar de pesquisadores e professores atuantes na área.
Neste percurso, as primeiras publicações eram recebidas com
ansiedade pelos professores de Antropologia Visual, dada a carência
de bibliografia para o desenvolvimento de programas de aulas. Desta-
camos a publicação “Caderno de textos, Antropologia Visual” (1987),
por conter os debates ocorridos no II Festival Latino-Americano de
Cinema dos Povos Indígenas, organizado por Cláudia Meneses (Mu-
seu do Índio/RJ), por Patrícia Monte-Mór (UFRJ) e Milton Guran
(UnB). Participaram da publicação professores e pesquisadores do
Programa de Pós-Graduação em Multimídia/Unicamp; dentre eles,
dois expoentes da pesquisa na interface da antropologia e fotografia no
país, Etienne Samain e Fernando de Tacca. A publicação aborda os de-
safios do campo da pesquisa em antropologia visual no Brasil, com foco
no tratamento da questão indígena no contexto nacional, apontando as
diferenças, por exemplo, no uso de fotografias em trabalhos antropo-
lógicos e em documentários com finalidade testemunhal e ilustrativa.
62
Figura 21 - Caderno de textos, Antropologia Visual
63
Figura 22 - Retratos de Família
64
Figura 23 - A imagética da Comissão Rondon
65
Figura 24 - Cinema e antropologia
66
Figura 25 - 2ª Mostra internacional do filme etnográfico
67
ao promover a circulação da produção de conhecimento na área da An-
tropologia Visual, fomentando de forma efetiva o acesso à bibliografia
especializada nos cursos de graduação e em programas de pós-gradua-
ção brasileiros. Material igualmente riquíssimo para os pesquisadores
envolvidos com o estudo temático em diversos núcleos de pesquisa
em Antropologia Audiovisual no país, como São Paulo, Rio de Janeiro,
Porto Alegre, Recife, Florianópolis, Natal, Goiânia, Fortaleza e, mais
recentemente, Brasília, Belém, Manaus, Salvador, Niterói, Pelotas, Rio
Tinto e João Pessoa, e outros.
68
As jornadas que reúnem latino-americanos igualmente pro-
movem o debate da rede de pesquisadores. Primeiramente citamos a
iniciativa da 1a e a 2a Jornadas de Antropologia Visual, realizadas em
Porto Alegre/RS, respectivamente nos anos 1992 e 1994. Mas já a
partir de 1995, as jornadas se transformam em grupos de trabalhos/
GTs, simpósios, mesas, exposições e mostras (vídeo, som, multimídia)
nas Reuniões de Antropologia do Mercosul (RAM). Assim, desde a 1a
Reunião de Antropologia Mercosul/RAM, realizada em Tramandaí/
RS/Brasil e na 2a Reunião de Antropologia Mercosul/RAM, que trans-
correu em Piriápolis/Uruguai, as jornadas de Antropologia Visual são
uma constante nestes eventos internacionais (no Brasil, na UFRGS,
UFSC e UFPR), no Uruguai e na Argentina. Mais recentemente, o
mesmo processo é dinamizado nas Reuniões Equatoriais de Antropo-
logia, em sua quarta edição, realizadas em universidades nas Regiões
Norte e Nordeste do Brasil.
69
Figura 28 - 2a Jornada de Antropologia Visual
70
1991, por Sylvia Caiuby Novaes e Miriam Moreira Leite no contexto da
USP/SP. Nesse laboratório, temos a publicação de Sylvia Caiuby Novaes
(1993). A antropóloga divulga sua experiência de trabalho de campo
com as sociedades brasileiras, especialmente os bororo (coletivo indíge-
na que habita o estado do Mato Grosso, no Brasil), abordando o contato
de tais populações com outras sociedades e as mudanças socioculturais
daí decorrentes. No Rio Grande do Sul, o Navisual foi criado em 1992,
como projeto integrante do Laboratório de Antropologia Social (LAS/
PPGAS/UFRGS), sendo reconhecido, em ata de 1994, pelo Departa-
mento de Antropologia como núcleo de antropologia visual. Desde
então, tem sido coordenado por Cornelia Eckert.
71
Como fruto dos debates transcorridos ao longo de jornadas de
Antropologia Visual, vários papers foram publicados em um volume da
Revista Horizontes Antropológicos, do PPGAS/UFRGS, dedicado ao
tema da antropologia visual (ECKERT; GODOLPHIM, 1995), com ar-
tigos de uma nova geração de pesquisadores. Na linha editorial, mencio-
namos o livro organizado por Luiz Eduardo Achutti (1998), a partir de
um simpósio promovido pela Secretaria Municipal de Cultura de Porto
Alegre/RS, cujo tema foi o ato fotográfico. A obra oferece importantes
reflexões de várias gerações de fotógrafos, antropólogos, sociólogos e
comunicólogos sobre o uso da fotografia na prática das ciências sociais.
72
A tradição de vincular evento científico em antropologia visual a
alguma publicação impressa ou eletrônica passa a ser uma assertiva ver-
dadeira. É importante, porém, considerar que o diálogo não se restrin-
ge a uma comunidade de antropólogos. Antes, a pesquisa com imagem
é cada vez mais interdisciplinar. Várias publicações testemunham esta
onda de trocas como uma linha editorial eficaz. Neste campo, destaca-
mos a coletânea organizada por Etienne Samain (2004), reunindo 26
ensaios de profissionais de diferentes áreas de conhecimento por seus
esforços em decifrar os múltiplos significados do uso da fotografia na
tradição da pesquisa antropológica desde suas origens.
A política editorial de dissertações e teses defendidas nos pro-
gramas de pós-graduação brasileiros teve, sem dúvida, um papel signi-
ficativo na divulgação de trabalhos com pesquisas etnográficas e etno-
lógicas com produção de imagens visuais e sonoras. No Programa de
Pós-Graduação em Antropologia Social (UFRGS), citamos a primeira
dissertação do programa, de Ondina Fachel Leal (1986). Fotografias
integram as interpretações dos dados de campo. O trabalho traz um
capítulo no qual as imagens captadas pela etnógrafa dialogam com suas
interpretações acerca do lugar da televisão no mundo dos objetos dos
aficionados da “novela das oito” nas diversas camadas sociais, em Porto
Alegre/RS, publicada no mesmo ano sob a forma de livro.
No Nordeste do Brasil, através de uma iniciativa da Fundação
Waldemar de Alcântara, com apoio da Secretaria da Cultura e Des-
portos do Ceará, na coleção Teses Cearenses, é publicada a obra de
Eymard Porto (1993), resultado de dissertação orientada por Bela
Feldman-Bianco (professora na Unicamp/SP).
Anos mais tarde, seguindo a mesma trilha de sua orientadora
Ondina Fachel Leal, Luiz Eduardo Achutti (1997) defende uma dis-
sertação em Antropologia Visual junto ao PPGAS/UFRGS. Com o
73
estudo fotoetnográfico sobre cotidiano, lixo e trabalho em uma vila de
reciclagem em Porto Alegre/RS, cria na instituição uma nova tendên-
cia de pesquisa acompanhada de imagens visuais e sonoras.
No campo do pensamento antropológico, o expressivo aumen-
to de publicações acadêmicas sob o prisma da produção audiovisual
acompanha, nas últimas décadas do século passado, as preocupações
dos investigadores com temas sobre a memória dos grupos sociais e
as transformações que atingiam a sociedade brasileira: os processos de
metropolização, as transformações do espaço público, etc. Um exemplo
desta tendência é a publicação de Antônio A. Arantes (2000), professor
na Unicamp/SP. O autor aborda a construção social do espaço público
no contexto paulistano sob o prisma da preservação do patrimônio
cultural e da formação da nação.
Em 2002, Rosane de Andrade, sob a orientação de Carmen Jun-
queira (PUC/SP), apresenta uma tese que tem por objeto a obra do
antropólogo francês Pierre Verger e sua produção fotográfica no Brasil.
Outro exemplo bem-sucedido de publicação de trabalho universitário
na área de Antropologia Visual é a obra de André Alves (2004), de
excelente qualidade gráfica, produto da dissertação defendida na
Unicamp/SP sob a orientação de Etienne Samain e que, inspirado na
tradição batesoniana de construção de pranchas fotográficas sequen-
ciais e estruturais, retrata a vida e o trabalho dos catadores de carangue-
jos nos mangues próximos a Vitória/ES.
A publicação de teses e dissertação fortalece definitivamente o
campo intelectual da antropologia visual. Crescem as obras resultan-
tes de teses de doutorado defendidas no exterior, como as de Milton
Guran (2000), na EHESS/França, Clarice Peixoto (2000), defendida
na EHESS/França, Luiz Eduardo Achutti (2004), defendida na Uni-
versidade Paris 7/França e, no Brasil, de Fraya Frehse (2005), na USP/
74
SP, e Gabriel Alvarez (2009) na UnB/DF. A primeira obra tem por base
um acervo fotográfico sobre as ruas de São Paulo; a segunda, a partir
de uma pesquisa em etnologia, problematiza os recursos audiovisuais
como metodologia de estudo e traz anexados dois CDs, com os filmes
realizados durante seu trabalho de campo.
Figura 31 - Fotoetnografia
75
do Prêmio Pierre Verger em vídeo etnográfico, durante a Reunião Brasi-
leira de Antropologia em 2002, foi lançada a primeira edição do Concur-
so de Ensaios Fotográficos baseado em pesquisas etnográficas14.
Definitivamente consolidada como campo de investigação
científica, a Antropologia Visual constituirá uma tendência de linha de
pesquisa na maioria dos programas de pós-graduação em antropolo-
gia ou em ciências sociais. Em Santa Catarina, consolida-se o Núcleo
de Antropologia Visual/Navi (UFSC), criado em 1998, coordenado
por Carmen Silvia Rial. Encontramos a mesma tendência nas Regiões
Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Citemos, entre outras, a iniciativa do
Laboratório de Antropologia Visual (Aval, da Universidade Federal de
Alagoas/Ufal), que promove o Encontro de Antropologia Visual sob a
coordenação de Silvia Martins, Siloé Amorim e Fernanda Rechenberg;
no Laboratório de Antropologia e Imagem (LAI) da Universidade Fe-
deral do Ceará (UFC), que promove o Ciclo Internacional de Diálogos
em Antropologia e Imagem sob a coordenação de Peregrina Campe-
lo. Em Recife, atua o Laboratório de Antropologia Visual do Núcleo
Imagem e Som & Ciências Humanas (UFPE/PE), sob a liderança de
Renato Athias. Esta equipe é responsável pela promoção do Festival
Anual do Filme Etnográfico do Recife/PE. A cidade de Rio Tinto
(Universidade Federal da Paraíba/UFPB) tem sua história e tradição
pesquisada pelo AVAEDOC – Grupo de Pesquisa Antropologia Visual,
Artes, Etnografias e Documentários, sob coordenação de João Marti-
nho Braga de Mendonça; em Natal, o Núcleo de Antropologia Visual
(Navis) é coordenado por Lisabete Coradini (Universidade Federal do
Rio Grande do Norte/UFRN).
76
Mais recentemente, foram criados novos núcleos. Em 2001, em
Brasília (UnB/DF), a pesquisa com imagens foi empreendida pelo
Laboratório de Imagens e Registro de Interações Sociais (Iris); em
Goiânia (UFG/GO) a linha de pesquisa em antropologia audiovisual
é coordenado por Gabriel Alvarez; e, em Niterói (UFF/RJ), o grupo
de antropologia visual é coordenado por Ana Lúcia Ferraz. Outros pro-
gramas, mesmo sem um núcleo específico na área, promovem eventos
anuais. Assim, em Belo Horizonte/MG, Ruben Caixeta de Queiroz
(UFMG/MG) é cofundador e coorganizador do Festival do Filme
Documentário e Etnográfico (FORUMDOC. BH ).
Acompanhando esta tendência de organização de rede de antropó-
logos visuais em núcleos e grupos, os debates acadêmicos estimulam cada
vez mais a publicação de coletâneas e estudos sobre temas diversos. Entre
elas, destacam-se as publicações organizadas por Mauro Koury (2001) e
Sylvia Caiuby Novaes (2004), reunindo os resultados dos últimos anos
de pesquisas com imagens em vários centros e núcleos de universidades
do país. Na ocasião, uma das motivações que conduziam ao debate inter-
no da rede referia-se às modalidades da produção audiovisual no âmbito
dos programas de pós-graduação. A discussão se encaminha, em 2004,
para a realização de um seminário temático na Anpocs, do qual resulta a
publicação organizada por José de Souza Martins/USP, Cornelia Eckert
/UFRGS e Sylvia Caiuby Novaes/USP (2005).
Da mesma forma, a nova rede de pesquisadores audiovisuais
avança com estudos que revisitam a obra dos pais fundadores da pesqui-
sa antropológica com imagens. Inaugurando esta perspectiva, temos a
publicação do artigo de Etienne Samain (1995), que retoma Bronislaw
Malinowski e, posteriormente, revisita Gregory Bateson (2005) e, mais
recentemente, Aby Warburg (2011). Seguem esta tendência de revisão o
livro de autoria de Edgar Teodoro da Cunha e de Andréa Barbosa (2006),
77
tratando dos momentos inaugurais da formação do campo da pesquisa
em antropologia como disciplina em seus laços com a história do nasci-
mento do cinema (Robert Flaherty, Vertov, etc. ), no esforço de situá-lo
nas experiências contemporâneas com o uso dos recursos audiovisuais
na pesquisa etnográfica (entre eles, Jean Rouch e David MacDougall).
Prosseguindo nesta mesma direção, destacamos o trabalho de
Marco Antônio Gonçalves/UFRJ sobre a obra de Jean Rouch (GON-
ÇALVES, 2005), e, posteriormente, do mesmo autor, em companhia
de Scott Head (GONÇALVES; HEAD, 2009), tendo como inspiração
a obra de Marilyn Strathern (1990) sobre a metáfora do corpo na
prática etnográfica e em suas estratégias narrativas. No mesmo ano,
aparece a publicação organizada por Andréa Barbosa, Rose S. G. Hijiki
e Edgar T. Cunha (2009) composta por uma coletânea de artigos de
pesquisadores brasileiros e estrangeiros interessados nas aproximações
entre a pesquisa com imagens na área da produção de conhecimento
das ciências sociais.
78
Figura 32 - O real imaginado
79
Figura 33 - Diveres imagéticos
80
cou os resultados de trabalhos apresentados e discutidos na Ia Mostra
Amazônica de Filme Etnográfico (2006), sob a organização de Selda
Vale da Costa (UFAM), em colaboração com o Núcleo de Antropolo-
gia Visual/Navi (UFSC), dedicado à reflexão acerca da representação
da região da amazônica no cinema documentário e etnográfico.
81
Figura 35 - Revista de Estudos Amazônicos
82
Na área das publicações eletrônicas, destacam-se duas revistas
com mais de dez anos de tradição na divulgação da produção intelec-
tual nacional e internacional na área da Antropologia Visual. A primei-
ra, a Revista Studium/Unicamp (<http://www. studium. iar. unicamp.
br/>), foi criada em 1999, sob a coordenação de Fernando de Tacca,
junto ao Laboratório de Media e Tecnologias de Comunicação/
Unicamp. A segunda publicação de referência é a Revista Eletrônica
Iluminuras, do BIEV (<http://seer. ufrgs. br/iluminuras>), do PP-
GAS/UFRGS, criada em 2000 por Ana Luiza Carvalho da Rocha e
Cornelia Eckert.
83
Em 2015 e 2016, insurgem novas revistas ou procedentes de nú-
cleos de antropologia visual, ou da interface com outros temas, demons-
trando a facilidade de sua circulação quando incentivadas pelos sistemas
de avaliação das instituições financiadoras. Listamos, nessa categoria, a
Revista Visagem (<http://www. ppgcs. ufpa. br/revistavisagem/>), da
Universidade Federal do Pará; a Revista Gesto, Imagem e Som (<http://
www. revistas. usp. br/gis>), GIS da USP; os dossiês na Revista Tessitu-
ras (<https://periodicos. ufpel. edu. br/ojs2/index. php/tessituras>) e
na Revista de Antropologia e Arqueologia, ambas da UFPEL/RS.
Importante referendar que a Revista Vivência (<http://www.
revistavivencia. org. br/>), que atende ao programa de pós-graduação
em antropologia da UFRN/RN, apresenta um volume organizado por
Lisabete Coradini (2001), com predominância de artigos sobre o uso
do vídeo e de imagens eletrônicas na construção de narrativas visuais
na pesquisa antropológica. A publicação resultou de inúmeros debates
ocorridos entre os grupos de trabalho nas reuniões bianuais da ABA.
84
Figura 37 - Revista Vivência
85
<http://antropologiavisualaba. blogspot. com. br/>, que reúne todos
os núcleos, laboratórios e grupos de pesquisa do país que atuam na área,
apresentando uma bibliografia básica de antropologia visual, com um
link da produção audiovisual da associação para os usuários da internet.
86
redes digitais e eletrônicas como parte integrante da pesquisa audio-
visual contemporânea no país. O primeiro é o blog Método etnográfico
(<http://metodoetnografico. blogspot. com. br/>), criado em 2009
por Gabriel Alvarez (UFG), dirigido preferencialmente aos alunos
em processo de aprendizagem dos usos dos recursos audiovisuais na
pesquisa antropológica. O segundo é o blog do projeto Habitantes do
Arroio (<http://habitantesdoarroio. blogspot. com. br/>), junto ao
Biev/UFRGS, que emprega a blogosfera como parte de circulação e
geração de dados da pesquisa sobre a memória ambiental do arroio
Dilúvio, na intenção de promover uma comunidade ética em defesa
da sustentabilidade de usos das águas urbanas em Porto Alegre/RS
(criação em 2009). Citamos, ainda, por resgatar importantes coleções
fotográficas de antropólogos pioneiros, o blog promovido por Renato
Athias (UFPE/PE), também de 2009, intitulado Imagens e Palavras
(<http://renatoathias. blogspot. com. br/>), e o blog do Grupo de
Trabalho sobre Escrita do Biev, O livro do etnógrafo (<http://Bievu-
frgs. blogspot. com. br/>), no esforço de divulgar nas redes mundiais
de computadores os dilemas da prática da etnografia no contexto da
pesquisa antropológica contemporânea.
87
Alteridades. O presente consta em experiências engajadas e compar-
tilhadas com os interlocutores (grupos, coletivos, redes que partilham
um tempo etnográfico com buscas efetivas de circulação da produção
nos grupos que as produziram).
88
Figura 40 - Projeto Banco de Imagens e Efeitos Visuais/Biev
89
pesquisas etnográficas nas grandes metrópoles, mas, ao contrário, de
as mostrar como parte de um patrimônio da humanidade (DURAND,
1984). Num tal contexto, intrigante e instigante, criador (pesquisador
e seus parceiros de pesquisa) e criatura (as imagens) se reúnem como
parte de um contexto interpretativo de ressonância de símbolos. Espé-
cie de lugar de narração (topos) em que se apresentam continuidades e
sínteses impessoais, o tratamento metodológico que orienta a constru-
ção de coleções etnográficas pela via do estudo da duração, nos moldes
do pensamento bachelardiano (BACHELARD, 1963), retoma alguns
temas fortes por nós já enfrentados, que é o da compreensão da dialéti-
ca temporal que tece os jogos da memória tendo por foco o estudo da
solidariedade entre o tempo vivido (subjetivo, intransitivo, pensado) e
o tempo do mundo (objetivo, concreto) na tessitura do Tempo.
No que se refere às nossas experiências docentes conduzidas
no Navisual, mais dedicado à formação de pesquisadores na área da
Antropologia Audiovisual, ou ainda nas disciplinas de Antropologia
Visual que ministramos no Programa de Pós-Graduação em Antropo-
logia Social da UFRGS, e a muitos outros programas nos quais fomos
convidadas a ministrar cursos e oficinas, a cada semestre, a cada ano
enfrentamos um novo desafio. Sempre se trata de um projeto de for-
mação a ser construído por um coletivo com interesse mútuo nessa
área disciplinar com o objetivo de instrumentalizar a etnógrafos a ética
da pesquisa nas metrópoles contemporâneas por meio do reconheci-
mento da estética dos seus movimentos, dos fluxos e ritmos temporais
cotidianos de seus habitantes.
Mas, seja no Biev, seja no Navisual, ou ainda nas disciplinas de
antropologia visual que ministramos, a cada exercício, as situações-
-problema propostas aos(as) alunos(as) apontam para um campo
de conceitos da Antropologia Visual e da Imagem, sendo cada um/a
90
levado/a a confrontar suas pesquisas com rupturas epistêmicas no
plano da prática antropológica. Neste sentido, desde a primeira aula,
e a primeira saída de campo, alertamos nossos(as) alunos(as) quanto
à obediência aos preceitos éticos da prática antropológica numa nova
ordem mundial globalizada.
Desenvolvemos, em especial, a reflexão a respeito da prática da
Antropologia Audiovisual como experiência estética tanto quanto ética
( JEAN ARLAUD, 2004 apud ECKERT; ROCHA, 2016). Na forma-
ção de nossos alunos, sempre em workshops e seminários, os desafios
do registro das situações de campo, a divisão das funções dentro do
grupo, as delimitações de onde e quando registrar os dados de campo
apresentam-se, a cada dia, como uma provocação didática para que
repensem os procedimentos técnicos a serem adotados pela equipe.
Neste sentido, a escolha dos dispositivos técnicos acaba por levá-los a
refletir acerca dos dispositivos dramáticos e cênicos que conformam o
ambiente psicossocial que se apresenta à sua escuta, à sua observação,
contemplação e interação. Para cada momento dessa experiência, a
equipe precisa definir as diferentes linguagens audiovisuais no tra-
tamento conceitual do problema a ser investigado. Um problema de
investigação que os(as) aprendizes de antropólogos(as) audiovisuais
descobrem à medida em que aprendem concretamente as condições de
uso dos recursos audiovisuais na produção de seus dados etnográficos.
Experiências lógicas e dramáticas derivam de sua inserção pro-
gressiva no campo, no diálogo com seus interlocutores; a cada retorno,
nos momentos de troca de aprendizagens das oficinas, revelam-se desco-
bertas, tanto para nós quanto para eles, sobre as experiências singulares
que representam a vida cotidiana dos habitantes das grandes metrópoles
brasileiras, sempre mediadas pela presença compartilhada da equipe de
pesquisadores e dos equipamentos em suas rotinas nos espaços públicos.
91
Compartilhamos, assim, com os(as) alunos(as) em processo de
formação, o estudo das obras da cultura humana em suas formas criati-
vas. Imersos na arte de compor, com e pelas imagens, construímos um
patrimônio humano com base em nossa interpretação estética sobre
como configurar culturas, traduzir figuras, interpretar estilos e gêneros.
Esta liberdade criativa, que pluraliza o viver humano (em nosso caso, o
urbano), nos parece embalar um projeto de Antropologia Audiovisual
no Brasil. Se não para muitos, pelo menos para nós.
Neste processo, o compromisso com a partilha e/ou restituição
da experiência etnográfica com os interlocutores e sua divulgação, a
formação de uma comunidade de sentidos, talvez seja, para nós, o papel
mais promissor da adesão à Antropologia Audiovisual em seu papel de
cooperação na pesquisa no contexto das metrópoles contemporâneas.
A prática da Antropologia Audiovisual se manifesta, nos preceitos da
obra A partilha do sensível (2005), de Jacques Rancière, como um ato
de conhecimento ao mesmo tempo que um ato político.
Para este autor, o ato da escrita (para nós, aqui, a escrita com a
imagem, e através dela) é ato de partilha do sensível (modos do fazer,
modos do ser e do dizer), parte de uma ação coletiva na busca do re-
conhecimento da qualidade criativa e imaginativa dos interlocutores
e seus papéis políticos, sobremaneira públicos. Para nós, a produção
imagética segue sendo entendida como partilha do sensível. Conside-
ramos ser do campo da produção de conhecimento em antropologia e
da realização de etnografia com as imagens e através delas que gestos
de restituição da palavra do Outro se consolidam como ação ética e
política de ressonância de imagens dos interlocutores e de si. O mais
gratificante é observar as gerações que se formaram em antropologia
audiovisual desempenharem importantes mediações, papéis e atua-
92
ções ao lado de pessoas, grupos, redes, comunidades ou coletivos que
aceitam participar das aventuras antropológicas mais colaborativas.
Entre os desafios, projetos, trocas, almejamos que este senso de
partilha seja o mote que conduza ao espraiamento da linha de pesqui-
sa. Uma linha a ser ultrapassada para promover reciprocidades intra e
extramuros, oportunizando mais trajetórias estudantis e profissionais
como as citadas na abertura deste artigo, não como tipos ideais, mas
como projetos transformadores. Propostas não conformistas, antes
desafiadoras de suas formas de cooperação para produzir Antropologia
Audiovisual, derrubando cada vez mais os muros entre o dentro e o
fora, amenizando os limites burocráticos da circulação do conhecimen-
to, democratizando as formas de aprendizagem, ampliando as ações
públicas e, sobretudo, ampliando as pesquisas com imagens para que
estas nos orientem a uma Antropologia Audiovisual no futuro, sem
esquecer de revisitar o processo de construção das interpretações an-
tropológicas para que elas não se eternizem como verdades, antes, para
que liberem o potencial de imaginar, de criar e de transformar.
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100
SAMAIN, Etienne. O Fotográfico. São Paulo: Editora HUCITEC/CNPq, 2005.
101
PESQUISA E ENSINO EM
ANTROPOLOGIA, ANTROPOLOGIA
VISUAL, ANTROPOLOGIA DIGITAL
102
a caracterização do estado da arte, a formulação de um problema
relevante de investigação, o tratamento das fontes primárias e a re-
flexão teórica. Constato, também, que este problema é igualmente
identificado por instituições acadêmicas que, perante problemas
semelhantes, propõem um ensino experiencial da antropologia ou
a relevância do contacto com o real para, a partir dele, passar à refle-
xão teórica. Também a lei Decreto-Lei nº 74/2006 (PORTUGAL,
2006), que em Portugal institui o Processo de Bolonha, reconhece
a necessidade da transição de um sistema de ensino baseado na
ideia da transmissão (consumo) de conhecimentos, para uma ideia
mais empreendedora ou mais ativa, de um sistema baseado no de-
senvolvimento de competências. Reconhece, ainda, que esta é uma
questão crítica central em toda a Europa, com particular expressão
em Portugal. Proponho-me caracterizar a situação e inventariar al-
gumas respostas que ensaiamos, ensaiei com os tutores das discipli-
nas, na relação entre a investigação, ensino e extensão universitária
– ação e integração dos saberes na realidade social e cultural.
Palavras-chave: Ensino da Antropologia Visual. Ensino experien-
cial. Desenvolvimento de competências. Descritores de Dublin.
103
campo, mesmo que realizado durante muito tempo, não tem produzido
resultados suficientemente construídos ou elaborados. A escrita final
dos textos, exames e outras provas, a apresentação final de trabalhos – 1º
ciclo e 2º ciclo –, ensaios de dimensão e aprofundamento diferentes, as
dissertações de mestrado e teses de doutoramento, são, geralmente, des-
proporcionados e compostos por uma longa revisão bibliográfica. Os
trabalhos de campo, embora os dados sejam razoavelmente elaborados,
caracterizam-se por uma precária definição da problemática e por um
deficiente tratamento dos dados, realmente relevantes. As dificuldades
sentidas e expressas pelos estudantes ou emergentes dos trabalhos não
são muito diferentes das que senti, quando, depois de uma carreira como
professor do ensino básico e secundário, tive de confrontar-me com a
realização de uma dissertação de mestrado e uma tese de doutoramento.
Este facto sensibilizou-me para o problema e mobilizou-me na procura
de ferramentas, que permitam superar esta dificuldade ou, pelo menos,
reduzir o seu impacto, na formação dos estudantes.
Passarei a inventariar alguns casos paradigmáticos desta situação.
Como professor de Antropologia e Antropologia Visual, observo que
muito do trabalho realizado pelos estudantes desenvolve-se em torno
dos filmes e esses trabalhos são frequentemente baseados nas suas
leituras, análise e produção. Verifico, nos textos apresentados, que os
estudantes privilegiam a extensa colagem de referências e o filme fica
quase invisível nos ensaios. Não ignoro a importância da teoria para
a compreensão e análise e que a relação entre a experiência de visio-
namento, visionamento repetido e a teoria fílmica não é uma simples
colagem. Constitui uma forma de simulação da situação do trabalho de
campo – o confronto com os dados, a sua organização –, montagem e
interpretação fundamentada, o real e o imaginado, o real e sua interpre-
tação. A antropologia instituiu também o cinema como terreno.
104
Estas constatações são comuns a muitos outros colegas, em muito
outros contextos institucionais. Timothy Asch, da Universidade do Sul
da Califórnia, afirma: “Descobri que a tarefa mais difícil de todas, para
os estudantes, era definir um problema e investigá-lo” (ASCH, 1992b,
p. 120). Os estudantes, segundo o mesmo autor, têm necessidade de
segurança e de estabilidade normativa:
105
novos estudantes. Assim, DART projetou uma série de ferramentas e
recursos digitais que permitiam aos estudantes de iniciação (gradua-
ção) vivenciarem o processo gradual, através do qual os antropólogos
desenvolviam a sua compreensão durante o trabalho de campo, con-
frontarem-se com diferentes interpretações de uma cultura ao longo
dos tempos, orientando-os para elaborarem as articulações entre para-
digmas gerais e as práticas culturais específicas em estudo.
O antropólogo do MIT, Michael Fischer em Futuros Antropológi-
cos, redefinindo a cultura na era tecnológica (2011), identifica estes mes-
mos problemas e as respostas encontradas por alguns autores. Embora
toda a obra dê um contributo importante na identificação e resolução
deste problema e na atualização da definição do conceito de sociedade
e cultura na era tecnológica, referirei apenas o contributo de Kant e
sua releitura, por diversos autores, na abordagem desta problemática.
Kant privilegiava a experiência do mundo real e por isso alternava o
seu curso de antropologia com o de Geografia. Lidava, segundo Fischer
(2011), com o problema pedagógico de que os estudantes universitá-
rios não tinham experiência e maturidade necessárias para tornar o
conhecimento dos seus cursos filosóficos aplicáveis nas suas vidas:
106
Argumentar-se-á que os estudantes de ensino a distância terão
uma maior maturidade, experiência e sentido prático da vida, que os
transportam para as situações de aprendizagem. Assim poderá ser e é
com alguns estudantes, mas não na generalidade. Kant definia também
o cosmopolitismo: “a antropologia deveria interessar um público cres-
centemente esclarecido, aberto a uma reflexão aberta e cosmopolita”
(FISCHER, 2011, p. 153). Um acentuado etnocentrismo e por vezes
ausência de formas de comparabilidade (virtualização da aprendi-
zagem) poderá surgir, já que o ensino on-line da antropologia carece
da experiência de alteridade, do conhecimento e reconhecimento do
outro e que a virtualização das aprendizagens não proporciona estas
experiências reais. Este parece não ser o problema. Fischer, citando Ian
Haking, refere que os átomos, como para nós as redes, “são reais na
medida em que os atores humanos podem usá-los ou em que as suas
formas, representadas ou instrumentalizadas, possam efetuar mudan-
ças no mundo, sem inquietações a respeito de uma possível verificação
ontológica” (FISCHER, 2011, p. 150).
Este problema, relevante na antropologia, como o afirma Vale de
Almeida “o belíssimo oxímoro “observação participante”, remete para
uma forma de conhecimento marcadamente experiencial e intersubje-
tiva”, é comum a outras disciplinas (e talvez resolvido nas áreas tecnoló-
gicas). No denominado Processo de Bolonha, última reforma do ensino
superior na Europa, aparece também identificado este problema.
A legislação que institui em Portugal o processo de Bolonha,
decreto-lei nº 74/2006, refere que se torna necessário a “transição de
um sistema de ensino baseado na ideia da transmissão de conhecimen-
tos, para um sistema baseado no desenvolvimento de competências”. É
pois reconhecida, quer pela repetição insistente desta necessidade de
107
mudança – o decreto-lei repete cinco vezes esta afirmação –, quer pela
sua formulação explícita:
108
siva (modelo passivo e investimento mínimo indispensável à passagem
nas provas) e propor uma atitude ativa e empreendedora (apaixonada,
de descoberta e que se confronta com o risco) nos processos de ensino
e ensino on-line?
2 Definição de competências
109
metodologias adequadas à sua concretização, proceder à sua avaliação
acadêmica e de inserção no processo social. Esta “transição de um sis-
tema de ensino baseado na ideia da transmissão de conhecimentos para
um sistema baseado no desenvolvimento de competências” (PORTU-
GAL, 2006, art. 60), de pôr em prática este novo paradigma ou modelo
de ensino para que aponta o Processo de Bolonha, é, em nosso enten-
der e nos documentos do Processo de Bolonha, o cerne da mudança
do ensino superior na Europa e que traz encargos acrescidos e novas
atitudes para os intervenientes no processo – professores, investigado-
res, estudantes e instituições de ensino e de investigação.
Identificamos três vias simultâneas neste desafio. A primeira
focaliza a proximidade em relação ao campo, às situações de pesquisa,
isto é, privilegia um ensino experiencial resultante de uma aproximação
entre investigação e ensino, manifesta sobretudo na ideia de ação e de
resolução de problemas. A segunda via é a de desenvolvimento de for-
mas de aprendizagem colaborativa – as comunidades de prática poderão
ter neste contexto um particular interesse no desenvolvimento de uma
aprendizagem colaborativa, a utilização das tecnologias digitais com suas
extraordinárias potencialidades de comunicação, de reconfiguração do
espaço-tempo e de novas linguagens (ou de estabelecer novas ligações
entre elementos constitutivos das linguagens), de tratar maior quantida-
de de informação e de recolha, armazenamento e tratamento de infor-
mação, de “convergência cultural”. Estes constituem instrumentação in-
dispensável para esta mudança. Finalmente, a aprendizagem centrada na
procura de soluções ou resolução de problemas remete necessariamente
para questões de natureza interdisciplinar, que abordarei mais abaixo.
É conveniente recordar o que Ben Shneiderman do Human-
Computer Interaction Laboratory da Universidade de Maryland refere
acerca da nova educação: acentua o pensamento crítico, estratégias analí-
110
ticas, o trabalho em rede (amigos, colegas, familiares, cidadãos, mercado)
e estes exigem o aprimorar de capacidades de comunicação e criativida-
de. A nova informática poderá contribuir para este objetivo, a partir de
quatro atividades fundamentais, entendidas de forma complementar:
111
parcelares – realizar a observação, fazer entrevistas2, escrever notas de
campo e o diário de campo, organizar informação, consultar e saber
utilizar a informação local (fontes documentais primárias) e global
(fontes documentais secundárias) e a utilização das tecnologias de do-
cumentação – câmaras fotográficas, de vídeo, microfones e gravadores
áudio, programas informáticos, etc.
Bernard Rey (2005) define um segundo grau de competências,
que denomina competências elementares interpretativas (ou de enqua-
dramento) da situação. No exercício que estamos a fazer de definição de
competências, no âmbito da antropologia, da antropologia visual ou da
antropologia digital, as competências de segundo graus poderão situar-se
a nível da “simulação” ou antecipação – elaborar um projeto de pesquisa,
realizar as escolhas – problemática, campo, métodos, técnicas e tecno-
logias, definir estratégias, preparar a passagem ao terreno, reunir as con-
dições para uma consequente realização, ou de realização de exercícios
parcelares – analisar um filme, proceder à análise de dados, previamente
fornecidos. Estas competências de segundo grau exigem uma vasta gama
de competências elementares e as escolhas autónomas mais convenien-
tes, face a uma situação inédita. Exige, pois, o exercício (ação, atividade,
tarefa) das competências elementares (procedimento automatizado), o
confronto e interpretação da situação e a realização autónoma de esco-
lhas perante uma situação nova – situação ou enquadramento.
As competências complexas, ou de terceiro grau, estão orientadas
para o saber escolher e combinar, adequadamente, diversas competên-
cias elementares, a fim de a ultrapassar ou dar resposta a uma situação
nova e complexa. Estas competências englobam um forte componente
112
interdisciplinar3 e a capacidade de desenvolver uma ação coerente – ela-
borar um ensaio, fazer uma dissertação ou uma tese, uma programação
cultural, uma intervenção local, a realização de um filme, etc.
113
Quadro 1 - Gaus de competência
114
Vejamos estas competências complexas na realização de uma
dissertação:
115
das representações se tornam instáveis e suscetíveis
de novas experiências na escrita, no audiovisual e
sobretudo no potencial comum para o desenvolvi-
mento de uma ciência antropológica audiovisual”
(RIBEIRO, 2001, p. 39).
116
Antropologia Visual: “as práticas da antropologia visual estiveram, du-
rante muito tempo, condicionadas por fatores exteriores à investigação
antropológica: tecnológicos e, consequentemente, económicos e polí-
ticos” (RIBEIRO, 2016). O desenvolvimento das tecnologias digitais
veio resolver, em parte, estes condicionamentos e estrangulamentos.
Tal aconteceu também noutras áreas relacionadas com a antropologia
visual. Segundo a jovem realizadora iraniana Samira Makhmalbaf:
“Três métodos de controlo externos reprimiram o processo criativo
dos cineastas do passado: o político, o financeiro e o tecnológico. Hoje,
com a revolução digital, a câmara pode ignorar essas formas de contro-
lo e ficar à disposição do realizador”. O mesmo acontece na relação dos
Novos Media (media digitais) com as práticas da antropologia visual.
Há atualmente mais oportunidades para o desenvolvimento das práti-
cas da disciplina. Temos, porém, consciência que essas oportunidades
criaram maior exigência e complexidade decorrentes da utilização
de mais informação, resultante da prática acumulada universalmente
disponível, da aferição e avaliação das práticas por instituições interna-
cionais, da apresentação/exposição públicas dos resultados (textuais,
visuais, audiovisual, multimédia e hipermédia). As tecnologias digitais
trouxeram, também, novas problemáticas à disciplina:
117
Vejamos a este respeito Machinima Fieldnotes4 e o retrato do
antropólogo enquanto avatar5 de Débora Krischke Leitão.
Compreende-se, pois, que a Antropologia Visual, embora pratica-
da de forma explícita ou implícita desde finais do século XIX, tenha tido
algumas dificuldades no seu desenvolvimento e reconhecimento. São
atualmente múltiplos os fatores que contribuíram para o seu desenvolvi-
mento e estado atual: 1. Libertação dos constrangimentos tecnológicos,
econômicos e políticos; 2. Fundamentação epistemológica e o conse-
quente desenvolvimento de boas práticas (estudos e filmes, produções
audiovisuais, multimédia e hipermédia) e de autores/realizadores de re-
ferência reconhecidos pela academia (práticas e reflexão acumuladas e
comunicadas); 3. O relevo que a “cultura visual” e “cultura visual digital”
adquirem na sociedade contemporânea; 4. A abertura das instituições
de ensino superior à sociedade e às problemáticas das sociedades con-
temporâneas; 5. Maior circulação das obras audiovisuais (multimédia
e hipermédia) de referência, com a organização de videotecas (media-
tecas) nas universidades, a sua divulgação nos canais televisivos e mais
recentemente a edição em DVD e/ou divulgação através da Internet
– Youtube, Internet Archive, referências frequentes na escrita antropo-
lógica (ou nas ciências sociais); 6. O desenvolvimento de competências
profissionalizantes (realização de documentários, exposições, páginas
web, programação cultural na área da fotografia, do cinema e da cultura
visual e da cultura visual digital, trabalho nos arquivos – memória visual
das sociedades e das culturas) suscetíveis de criar empregabilidade, no
âmbito das práticas desenvolvidas na disciplina; e 7. Há muitas outras
razões que os estudantes encontram à saída de uma especialização em
118
antropologia visual e que se encontram inventariadas em publicações
antigas e mais recentes (PINK, 2007; RIBEIRO, 2005, 2006).
Só em 2001 a American Anthropological Association definiu
uma série de produções audiovisuais frequentemente integradas na
investigação antropológica e publica uma proposta elaborada pela SVA
– Society for Visual Anthropology para o estabelecimento de critérios
de avaliação e integração desta produção nos currículos acadêmicos
dos antropólogos e considera que
119
tribuem para o debate teórico e desenvolvimento;
(3) a inovação em novas formas de media; (4) media
concebidos para melhorar o ensino; (5) media pro-
duzidos para transmissão televisiva e outras formas
de comunicação de massa; (6) media feito com e/ou
para o benefício de uma determinada comunidade,
governo ou negócios; (7) curadoria de festivais de
cinema e media; e/ou (8) curadoria de exposições
de media visuais etnográficos e arte (AAA, 2017).
120
época”. Sublinha-se a ideia de que se trata “de uma
forma de conhecimento caracterizada pela abertura
e pela alegria, que Bergson identificava com a ciên-
cia. Trata-se de uma forma de conhecimento, sempre
mutante, urgentemente necessário, no mundo de
hoje (FISCHER, 2011, p. 72).
121
Na disciplina Dinâmicas Sociais e Culturais Na Era Digital (2º
ciclo) dá-se continuidade às questões da Antropologia Geral e da An-
tropologia Visual focalizando as mudanças e reconfigurações sociais e
culturais, na era digital. Esta disciplina tem como objetivos:
122
europeus e aposta na convergência e na sintonia, procurando definir
perfis profissionais comparáveis e contribuir, através da possibilidade
de tornar os diplomas mais facilmente legíveis em termos dos seus
conteúdos, para a empregabilidade no mercado de emprego europeu”
(descritores de Dublin). No âmbito deste trabalho não ignoramos esta
problemática, no entanto, não a desenvolvemos para não tornar muito
extensa esta reflexão. Deixamos, no entanto, os descritores de Dublin,
documento que nos serve de referência nesta questão:
123
Quadro 2 - Descritores DUBLIN
1º Ciclo 2º Ciclo 3º Ciclo
Atribuição do grau aos Atribuição do grau aos Atribuição do grau aos
estudantes que tenham estudantes que tenham estudantes que tenham
atingido: atingido: atingido:
Conhecimento e capaci- Conhecimento e capaci- Conhecimento e capaci-
dade de compreensão dade de compreensão dade de compreensão
Tenham demonstrado Tenham demonstrado Demonstrem uma capa-
possuir conhecimentos e possuir conhecimentos e cidade de compreensão
capacidade de compreen- capacidade de compreen- sistemática do domínio
são a um nível que: são a um nível que: científico de estudo;
Sustentando-se nos Sustentando-se nos Dominem as competên-
conhecimentos de nível conhecimentos de nível cias, aptidões e métodos
secundários, os desenvol- de 1º ciclo, os desenvolva de investigação associados
va e aprofunde; e aprofunde; ao domínio científico.
Corresponda e se apoie Permita e constitua a base
em livros de texto de de desenvolvimento e/ou
avançado; aplicações originais, no-
Em alguns domínios da meadamente em contexto
área de estudo, se situe ao de investigação.
nível dos conhecimentos
de ponta na área científica
respetiva.
Aplicação de conhecimen- Aplicação de conhecimen- Aplicação de conhecimen-
tos e compreensão tos e compreensão tos e compreensão
124
Saibam aplicar os conheci- Saibam aplicar os Demonstrem a capacidade
mentos e a capacidade de conhecimentos e a capa- para conceber, projetar,
compreensão adquiridas, cidade de compreensão e adaptar e realizar uma
de forma a evidencia- resolução de problemas investigação significativa
rem uma abordagem em situações novas e não respeitando as exigências
profissional ao trabalho familiares, em contextos impostas pelos padrões
desenvolvido na sua área alargados e multidis- de integridade académica;
vocacional. ciplinares, ainda que Realizem uma quantidade
relacionados com a sua significativa de trabalho
área de estudo. de investigação original
que contribua para o
alargamento das fronteiras
do conhecimento, parte da
qual mereça a divulgação
nacional ou internacional
em publicações sujeitas a
“referee”.
Realização de julgamento Realização de julgamento Realização de julgamento
/tomada de decisões /tomada de decisões /tomada de decisões
125
Comprovem capacidade Demonstrem a capacidade Sejam capazes de analisar
de resolução de problemas para integrar conhecimen- criticamente, avaliar e
no âmbito da sua área de tos, lidar com questões sintetizar ideias novas e
estudo, e de constituírem complexas, desenvolver complexas.
e fundamentarem a sua soluções ou emitir juízos
própria argumentação. em situações de informa-
Mostrem capacidade de ção limitada ou incom-
recolher, selecionar e pleta, incluindo reflexões
interpretar informação sobre as implicações e
relevante, particularmente responsabilidades éticas
na sua área de estudo, que e sociais que resultem
os habilite a fundamen- ou condicionem essas
tarem as soluções que soluções e esses juízos.
preconizem e os juízos
que emitem, incluindo
na análise os aspetos
sociais científicos e éticos
relevantes.
Comunicação Comunicação Comunicação
Sejam dotados de Sejam capazes de comuni- Sejam capazes de comu-
competências que lhes car as suas conclusões – e nicar com os seus pares, a
permitam comunicar os conhecimentos e os ra- restante comunidade aca-
informação, ideias, pro- ciocínios a elas subjacen- démica e com a sociedade
blemas e soluções, tanto a tes – quer a especialistas, em geral sobre a área em
públicos constituídos por quer a não especialistas, que é especializado.
especialistas como não de uma forma clara e sem
especialistas. ambiguidades.
126
Competências de au- Competências de au- Competências de au-
toaprendizagem toaprendizagem toaprendizagem
Tenham desenvolvido Tenham desenvolvido as Seja capaz de, numa
as competências que competências que lhes sociedade baseada no
lhes permitam uma permitam uma aprendiza- conhecimento, promover,
aprendizagem ao longo da gem ao longo da vida, de em contexto académico e/
vida, com elevado grau de um modo fundamental- ou profissional, o progres-
autonomia. mente auto-orientado e so tecnológico, social ou
autónomo. cultural.
127
desta situação. Duas questões se revelam aqui fundamentais na forma-
ção do antropólogo: a “educação sentimental” referida por Geertz – “uti-
lização das emoções para fins cognitivos [...] assistir a uma briga de galos
ou dela participar é, para o balinês, uma espécie de educação sentimen-
tal” (GEERTZ, 1991, p. 317). É no terreno de experiências partilhadas,
em que o conhecimento antropológico surge de um processo dialógico
entre observador e observados, que o antropólogo faz o seu processo de
aprendizagem contínua. Não se trata apenas da gestão de um conjunto de
textos e regras, de técnicas e procedimentos, mas de uma
128
interações e nas estruturas sociais locais) – o saber nativo pelo saber do
antropólogo, global, inserido em redes de interações e estruturas sociais
mais amplas de debate teórico. “Inventar o outro, é compreender-se a si
mesmo como vivendo num mundo em que se pode, por contraste com o
outro, delinear os contornos” (KILANI, 1994, p. 15).
O conhecimento antropológico rege-se, cada vez mais, por um
contexto, no qual o antropólogo e seu interlocutor se dedicam a estabe-
lecer uma base comum de compreensão. O que se cria nesse encontro é
uma espécie de lugar intermediário entre duas culturas. É “um momen-
to de pensamento intercultural” (CLIFFORD, 1988, p. 529). É nesse
sentido, que é preciso repensar o processo social e intelectual a partir do
qual surgem as descrições e se constrói o texto etnográfico. Atribuindo
assim à palavra «dada» o seu sentido etimológico de «coisa dada»
(CLIFFORD, 1988, p. 529)), de coisa trocada entre dois sujeitos; e
“à cultura – tanto a do antropólogo, quanto a do interlocutor – a sua
dimensão dinâmica de construção, de negociação e de contestação dos
pontos de vista” (KILANI, 1994, p. 34).
5 Materiais de ensino
129
rientes”. O e-learning “é ainda fluído e em estado de mudança”. Assim, os
modelos ou as boas práticas poderão servir de âncora para que o professor
se possa agarrar e, de algum modo, fundamentar ou firmar a sua prática.
A inexperiência pode não permitir estar atento aos pontos crí-
ticos, nem poder dar respostas flexíveis ou enfrentar o imprevisto da
interação on-line. Só o desenvolvimento de sucessivas experiências
poderá contribuir para criar uma base de dados (explícita ou implí-
cita) ativa de experiências acumuladas, que permitam dar respostas
mais adequadas às situações imprevistas. Como na escrita, nas artes,
no ensino presencial, poderemos dizer que será necessário conhecer
bem a gramática (regras) para desenvolver uma prática correta (para
isto as normas orientadoras e o conhecimento teórico são boas ferra-
mentas – uma boa cartilha dos princípios básicos e fundamentais). A
inovação ou a adequação a situações problemáticas, novas e complexas
só surgirá depois da incorporação das regras básicas e de experiências
acumuladas e refletidas.
Hubert e Stuart Dreyfus sintetizam cinco estágios de desenvolvi-
mento da aprendizagem que, embora generalistas e não referenciadas
ao professor a ao antropólogo, esclarecem a atividade do professor, as
práticas de trabalho de campo em antropologia. Quando nos depara-
mos com uma situação particular procedemos em primeiro lugar como
novatos/iniciantes, depois como iniciantes avançados e só posterior-
mente nos tornamos competentes e proficientes. Nestes estágios há
sobretudo uma decisão analítica. O estado mais avanção de aprendi-
zagem ou de ação, embora suponha decisões racionais (lógicas) in-
corpora cada vez mais a intuição baseada quer na experiência, quer no
envolvimento nas situações de ensino ou de investigação.
130
Quadro 3 - Ciclo de Estágios da Aquisição de
Habilidades Hubert e Stuart Dreyfus
131
respostas a situações críticas; 3) o diálogo entre colegas na resolução
de problemas, na formação contínua, na investigação, e na partilha de
informação; 4) sobretudo, parece de singular relevância ser-se capaz de
superação, inovação e perseverança típica dos pioneiros num terreno
estranho (RIBEIRO, 2008).
Neste contexto, e partindo dos pressupostos acima enunciados,
optamos na disciplina de Antropologia Geral (importante a colabora-
ção de alguns tutores), herdada de um outro docente, por manter os ma-
teriais tradicionais de ensino a distância (Manual): 1) ir introduzindo
informação (textos, filmes, sites), que possam contribuir para abertura a
novas temáticas ou questionamentos (áreas emergentes da antropologia,
Cultura e análise cultural como sistemas experimentais – FISCHER, 2011)
e, simultaneamente, 2) introduzir ferramentas de utilização sistemática
– um software de criação de mapas mentais, que permita aos estudantes
sistematizar a informação, proceder a uma análise minuciosa dos textos
e de outros materiais e esquematizar a estrutura dos trabalhos e apre-
sentar, fornecer um modelo de elaboração ensaio a utilizar na realização
das provas de avaliação; e 3) estimular o uso sistemático de recursos
educacionais abertos (REA) – sites, bases de dados, Youtube6, Lugar do
Real, etc. O contributo dos tutores, investigadores integrados no Grupo
de Pesquisa Laboratório de Antropologia Visual/ Media e Mediações
Culturais, pode ganhar, neste processo, um maior relevo, na medida em
que pode trazer para o processo de ensino, não só a interlocução com o
professor responsável pela disciplina, mas também novas temáticas e a
elaboração conjunta de materiais, provenientes da sua investigação. O
132
trabalho docente pode tornar-se, assim, num processo de integração de
investigação no ensino, possível numa próxima etapa.
A introdução de materiais e situações mais inovadoras foram rea-
lizadas no 2º ciclo e no doutoramento. No 2º ciclo, com a introdução
de base de dados – Imagens e sonoridades das migrações7 e o Portal Lu-
gar do Real8, Lisa Antropologia9 – nas disciplinas de Antropologia das
Imagens e Dinâmicas sociais e culturais na era digital com a iniciação
ao trabalho de campo em ambientes virtuais, sobretudo o SecondLife
onde os então estudantes de doutoramento (Paula Justiça e Casimiro
Pinto) mantêm a atividade Imagens da Cultura/Cultura das Imagens.
No doutoramento em antropologia, especialidade antropologia
visual, foi sobretudo proposto o desenvolvimento de contactos com
os investigadores que trabalham temáticas semelhantes às dos douto-
randos. Partiu-se de projetos de cooperação internacional, gerados no
âmbito do programa ERASMUS, a que se deu continuidade na rede, no
seminário e nas publicações Imagens da Cultura/Cultura das Imagens.
133
do Museu de Etnografia e, posteriormente, com a produção de filmes e
a realização da disciplina de Sociologia das Migrações. Aí se ensaiaram
os primeiros passos de ligação entre investigação e ensino e a criação
de guiões de leitura dos filmes (videogramas e audiogramas) que, mais
tarde, é desenvolvida na Base de Dados Imagens e Sonoridades das
Migrações (<Itacaproject.com>).
Na corrente americana de antropologia visual, a produção de fil-
mes foi, durante muito tempo, orientada para o ensino da antropologia.
Considera assim uma metodologia de investigação, de comunicação
dos resultados e sua integração no ensino. A disciplina Antropologia
Visual foi introduzida na formação em 1994, no Mestrado em Rela-
ções Interculturais. É no Centro de Estudos da Migrações e Relações
Interculturais (CEMRI), criado em 1989, unidade de investigação
científica e de desenvolvimento, formalmente reconhecida pela então
Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica, em 1994, que
se desenvolveu a investigação, as práticas pedagógicas e a produção de
materiais de ensino de muitas Unidades Curriculares dos cursos de
Ciências Sociais. Isto é particularmente relevante para as disciplinas
referidas neste trabalho – Antropologia Visual, Métodos e Técnicas
de Investigação Antropológica, Antropologia e Imagens, Antropologia
Geral, Dinâmicas Sociais e Culturais na era Digital.
O Laboratório de Antropologia Visual ou grupo de Investigação
em Antropologia Visual, uma área de Investigação/grupo de Investiga-
ção do CEMRI, criado no início de 1998, orientou seus objetivos: para
a promoção e a utilização das tecnologias informáticas, do som e da
imagem, na pesquisa em Ciências Sociais (e em Arte e Comunicação) e
a sua fundamentação teórica, metodológica, ética e política; a produção
de materiais audiovisuais, multimédia e hipermédia concebidos e/ou
realizados por investigadores em Ciências Sociais; o desenvolvimento
134
de redes de cooperação nacional e internacional. Estes três objetivos
contribuíram para criação das Unidades Curriculares acima referidas
e a produção dos materiais de formação – manuais, bases de dados,
produção audiovisual.
10 A este respeito Beltran afirma “la UOC se ha configurado como una organización
fractal que da respuesta a las necesidades de innovación que requiere una orga-
nización universitaria en red y en la Red. Esta especificidad ha requerido nuevas
formas de relación entre los actores universitarios, una concepción diferente de la
administración de los recursos, incluyendo el conocimiento, otras articulaciones
creativas entre investigación y docencia, otras formas de aprehender y de relacio-
narse con el entorno, nuevos liderazgos, diferentes procesos de trabajo y formas
alternativas de gobierno” (BELTRAN, 2009, on-line).
135
um esforço, se o curso não responde às necessidades sentidas e não
se pressentem recompensas imediatas (emprego, saídas profissionais,
boas remunerações etc.) abandona-se, larga-se. Isto acontece em mui-
tas outras situações da vida social atual, tornando-se, de certa forma,
uma dimensão cultural da nossa época; 2) o entretenimento e o diver-
timento, sobretudo nos estudantes mais jovens, são mais apelativos,
que o esforço, o sofrimento, o trabalho, mesmo que estes conduzam
a melhores oportunidades; o seu maior interesse está mais orientado
para o imediato; 3) o trabalho e o ensino on-line, baseado nas tecnolo-
gias, vão ao encontro dos mais jovens, habituados a usá-las sobretudo
nos jogos. Desta situação decorrem inúmeras perguntas: A estrutura-
ção dos conteúdos aproveita esta sinergia, esta disponibilidade, esta
capacidade instalada? O que sabemos e utilizamos como novas formas
de estruturação de conteúdos (menos monolíticos) será uma forma de
“os modificar facilmente em resposta à necessidade dos estudantes? a
flexibilidade é um custo, a personificação do produto é mais cara, que
a estandardização” (RIBEIRO, 2008); e 4) as tecnologias respondem
a necessidades e a motivações dos jovens e mesmo dos adultos, nas
sociedades atuais – interesse pela autoexpressão, autorrealização susce-
tíveis de serem exploradas no e-learning? (RIBEIRO, 2008).
Essas são algumas das perguntas que nos parecem definir agendas
de investigação e observação de comportamentos e atitudes, perante o
ensino on-line. Algo parece óbvio. Constatamos que os estudantes das
disciplinas obrigatórias são percentualmente mais passivos, que os das
disciplinas optativas, os estudantes de 2º ciclo mais ativos do que os do
primeiro ciclo. No entanto, faltam instrumentos de análise para estudar
essas situações e essa generalização altera-se de ano para ano, de turma
para turma, sem se saber quais são realmente os fatores que contribuem
para essas situações.
136
Não poderemos esquecer o que Fischer refere acerca da antropo-
logia e da análise cultural:
137
cas específicas. No caso da antropologia questionamo-nos sobre a natu-
reza e atualidade do saber antropológico, como este pode ser ensinado
e apreendido, como poderemos ligar a investigação e o ensino, como o
saber antropológico rompe os contextos de ensino e cada vez mais se
torna um conhecimento disponível para as pessoas, grupos e sociedades
estudadas. Prevalecem as interrogações e a procura de caminhos.
A natureza específica da disciplina e do conhecimento, que se
deseja que os alunos possam desenvolver, cria alguma especificidade na
utilização das tecnologias digitais? Como podem as tecnologias digitais
contribuir para o desenvolvimento da formação em antropologia, do en-
sino experiencial (baseado na experiência) de modo a ter em conta dois
dos mais importantes vetores de desenvolvimento desta área de saber – o
trabalho de campo (experiência do trabalho de campo), a construção
intercultural dos saberes e a consequente produção textual (criação/
produção de narrativas multissemióticas) –, a disseminação e utilização
dos saberes? Esse processo de ensino remeter-nos-á para modelos ou
paradigmas antropológicos ou de investigação em antropologia?
É consensual que a utilização mais frequente das tecnologias
digitais se situa essencialmente no âmbito de consulta ou recolha de
informação já existente – utilização da Internet ou das bibliotecas
e arquivos, e do armazenamento, organização e processamento da
informação de modo a obter um produto final – preparação para exame
ou produção de um ensaio. Em situações mais elaboradas de utilização
das tecnologias digitais, estarão formas criativas de produção visual,
audiovisual e a sua integração com a escrita (hipermedia, transmedia,
web-documentário, storytelling).
A inclusão das tecnologias digitais como forma inovadora capaz de
incorporar uma multiplicidade de estratégias interativas, que permitam o
desenvolvimento de um ensino/aprendizagem personificado e baseado
138
na experiência (mesmo que em parte diferida) passa, em nosso entender,
por criar e explorar modelos de ensino/aprendizagem, em que os dados
resultantes da investigação possam ser partilhados com os estudantes.
Assim, o acesso aos dados (fonte primárias – notas de campo, registos
visuais e sonoros), o trabalho colaborativo em rede, a aprendizagem e
o trabalho criativo de utilização das fontes (e da teoria) na criação dis-
cursiva estimularão o pensamento crítico, as estratégias analíticas e a
corresponsabilização pela obtenção e partilha dos resultados.
Essas conclusões apoiam-se e inspiram-se em trabalhos recentes
de antropologia cognitiva e de teorias construtivistas em educação
em que se abordam diversos modos de aquisição do conhecimento
e do desenvolvimento conceptual (ULRICNEISSER, 1983; DAN
SPERBER; DIERDRE WILSON, 2001; JEAN LAVE; ETIENNE-
WENGER, 1991; MAURICE BLOCH, 1991; TIM INGOLD, 2000;
H. GARDNER, 1995; VYGOTSKY, 1974; SHNEIDERMAN, 2006)
e centram-se mais na aquisição de processos de cognição, de desenvol-
vimento de competências, de produção de conhecimento que na sua
transmissão/aquisição.
Os caminhos a percorrer, na criação de novos modelos e utiliza-
ção de recursos na formação em antropologia, passam por uma estreita
colaboração entre os professores e os especialistas em tecnologias ou
pela formação dos antropólogos em tecnologias (a antropologia visual
desenvolveu no âmbito da utilização da fotografia e do cinema essas
duas formas) e pela centralidade da investigação (do processo de in-
vestigação – do terreno ao texto, ao discurso) ou desenvolvimento de
projetos no processo de aprendizagem. Reforçamos a inseparabilidade
entre a investigação e o ensino, mesmo que esta crie nas instituições
e na provável atitude dos alunos, algumas turbulências ou mudanças
profundas (número de alunos, compatibilização entre a investigação
139
e o ensino, capital humano e tecnológico, autoridade do professor,
responsabilidade do estudante, mentalidade decorrente do processo
autoritário de transmissão de saber).
Embora a antropologia utilize uma grande diversidade de méto-
dos (e técnicas) de pesquisa, o trabalho de campo e a observação par-
ticipante continuam a ocupar uma insubstituível centralidade, a que os
estudantes só residualmente acedem. Acresce ainda que esta atividade
central no processo de pesquisa é, por si só, responsável por uma gran-
de variedade de informação (dados) suscetível de poder ser utilizada
pelos estudantes como recursos de aprendizagem: notas interativas de
campo, entrevistas visuais (vídeo), fotografias, diários de campo, liga-
ções (links) a arquivos digitais e à literatura secundária, organizadas de
forma interativa. Assim, as notas interativas de campo serão tópicos na-
vegáveis, que permitam aos estudantes descobrir processos, pelos quais
os dados brutos de campo são transformados, pela análise e síntese, em
formas publicáveis; as ligações à literatura existente serão estabelecidas
pelas notas de campo, tornando explícita a pertinência da etnografia
específica de, por exemplo, uma cena da vida familiar quotidiana, a uti-
lização de um jogo, uma prática ritual com o debate teórico. Também
as diversas inscrições de terreno – fotografias digitais, entrevistas em
vídeo, diários de bordo e notas de campo, música, modelo de design de
investigação, poderão ser utilizados de modo a permitir que os estudan-
tes preparem melhor os seus trabalhos, adquiram, o mais aprofundada-
mente possível, a experiência de trabalho de campo em antropologia
e criem ferramentas (conceptuais e tecnológicas), que lhes permitam
desenvolver o seu trabalho de campo, identificar problemáticas, criar
instrumentos analíticos de uma maneira mais ativa (interativa), mais
pertinente, mais significativa.
140
REFERÊNCIAS
141
CLIFFORD, J. Predicament of Culture: Twentieth. Century Ethnography, Lite-
rature, and Art. Cambridge: Harvard University Press, 1988.
DEWEY, John. Experience and Education. New York: Collier Books, 1938.
142
JENKINS, H. The work of Theory in the Age of Digital Transformation. 2003.
Disponível em: <http://web.mit.edu/21fms/www/faculty/henry3/pub/digi-
taltheory.htm>. Acesso em: 15 jun. 2017.
143
______. Colá S. Jon. Oh que Sabe! as imagens, as palavras ditas e a escrita de uma
experiência ritual e social. Porto: Afrontamento, 2004.
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ANTROPOLOGÍA VISUAL, PERFORMANCES
Y HERMENÉUTICA: EXPERIENCIA DE VER,
ESCUCHAR Y PARTICIPAR EN HUAUTLA
DE JIMENEZ (OAXACA, MÉXICO)1
Gabriel O. Alvarez2
145
realizados por María Sabina. A pesar de la proyección de la figura
de María Sabina faltó una reflexión sobre la tradición mazateca y el
papel del chaman en esta tradición, su lugar en la sociedad. Duran-
te la investigación registramos diversos rituales cívico-religiosos
en Huautla y prestamos especial atención a la participación de dos
chjota-chjine,-chamanes, hombres de conocimiento-: la abuela Ju-
lieta Casimiro y el Profesor Alfonso. Como método privilegiamos
las performances, registradas con una perspectiva de antropología
visual, participante.
Palabras clave: Xamanismo. Performance. Antropología Visual.
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“mirar”, no se refiere a los datos sensoriales, ni a la cuestión imagética,
para él, el mirar está relacionado con la Weltanschauund de Dilthey,
la visión de mundo, informada por una tradición, en el caso del an-
tropólogo, por una tradición teórica (CARDOSO DE OLIVEIRA,
1988). Una tradición teórica, que implica una forma de ver el mundo,
una serie de cuestiones teóricas a ser respondidas en el trabajo de
campo, una forma de hacer antropología. En Alvarez (2016) reflexio-
né sobre el “mirar”, como tradición teórica, el estilo de hacer una
antropología compartida a partir de la antropología visual inspirada
en las experiencias de Jean Rouch, con la cámara participante, la im-
portancia del personaje y la edición compartida.
En este trabajo me centraré en el segundo momento interpre-
tativo, el “escuchar”. Para Cardoso de Oliveira (1998), este escuchar
se relaciona con el proceso de fusión de horizontes de comunicación
inspirado en la hermenéutica de Gadamer y en la lógica de la acción
comunicativa de Habermas (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1998; CAR-
DOSO DE OLIVEIRA, R; CARDOSO DE OLIVEIRA, L. R., 1996;
HABERMAS, 1989). Como señalé en otra oportunidad el problema
de este modelo es que trabaja en el plano del discurso y no contempla
otras formas de comunicación, como los rituales y las performances
(ALVAREZ, 2000).
Esa dimensión intersubjetiva, que implica una fusión de hori-
zontes de comunicación difícilmente pueda ser realizadapor medio de
entrevistas y cuestionarios. Las entrevistas, que usamos en consultorías,
pueden permitir la creación de etnografías sucias. Una verdadera etno-
grafía envuelve la fusión de horizontes construida durante la experiencia
del trabajo de campo, envuelve intercambios, sentimientos, empatía,
sufrimientos (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1998).
147
La fusión de horizontes de comunicación se da en el plano de
la experiencia. La experiencia envuelve pensamientos, sentimientos y
voluntad. La misma se relaciona con el Weltanschauund de Diltey, la
imagen de mundo, que implica creencias, conocimientos, envuelve
juicios de valor y significados. La tradición – como visión de mundo
– es continuamente sujeta a revisión a partir de performances, como
experiencias colectivas. Las personas participan de la tradición y la
reevalúan a partir de las performances (TURNER, 1988).
Las performances como perspectiva analítica nos llevaron a tomar
en cuenta determinados elementos. Las performances son la actuación,
la exhibición de un comportamiento autorizado frente a un público. Esto
implica, por un lado, la competencia comunicacional del performer. Por
otro lado, la evaluación del público, que juzga si la performance fue ejecu-
tada de forma cierta. Otro punto es la experiencia en relevo, la experien-
cia emergente de la performance, que envuelve intensidad, emociones,
placeres, una dimensión estética. Finalmente, y no menos importante, los
marcadores de la performance, que indican el inicio y la finalización de
las mismas (BAUMAN, 1975; LANGDON, 2006).
La performance es estética mas es también política. La perfor-
mance envuelve también las condiciones de acceso, que en ocasiones
envuelve una estructura institucional, criterios de inclusión. Esto en-
vuelve también la legitimidad del actor que ejecuta la performance y la
competencia (conocimiento) y habilidad para ejecutar la performance
con suceso. Finalmente, las performances envuelven valores que expre-
san lo que es importante para el grupo (BAUMAN; BRIGGS, 2006).
Este punto nos coloca, como antropólogos, otra cuestión, cómo
participamos de estas performances. Cualquier fotógrafo puede sacar
fotos de una procesión o de una fiesta, pero un antropólogo que realiza
observación participante, tiene que saber quién son los participantes,
148
cuales son los símbolos y sus significados. Cuando uno fotografía para
el grupo, son los participantes que nos indican a quien fotografiar: “esos
son los padrinos”, “aquel es pariente”, “ese otro tiene tal cargo”, o nos
explican el significado de los símbolos, su exégesis. Los intercambios
crean vínculos a partir de los cuales participamos del mundo social.
La experiencia de fotografiar para el grupo trae toda una serie de
informaciones que pasarían desapercibidas para un observador exter-
no. Si el grupo nos reconoce como su fotógrafo, nos permite también un
acceso privilegiado para que podamos realizar el registro. Por otro lado,
este envolvimiento crea contrapartidas y obligaciones y el fotógrafo/
antropólogo que se incorpora como participante, tiene que acompañar
todas las obligaciones de las fiestas o procesiones, que pueden durar
varios días. El observador participante tiene la obligación de participar
y la obligación de retribuir por medio del producto de su trabajo, una
imagen digna del grupo.
Hacer antropología visual, en mi entender, es hacer antropología
usando los medios audiovisuales no solo como herramienta de regis-
tro, sino como forma de relacionamiento. El producto del trabajo del
antropólogo se hace sensible para el grupo y permite entrar en una serie
de intercambios. En la forma en que trabajamos estos intercambios en
el trabajo de campo está el arte de cada antropólogo.
Existe una discusión sobre el retorno del material a las comuni-
dades, que supone una expropiación y restitución de imágenes (RO-
CHA; ECKERT, 2015). En mis investigaciones, siempre que posible
hice entrega del producto al grupo con el cual trabajé. Restituimos una
imagen digna, una narrativa en la que el grupo se sienta representado a
partir de un horizonte de creación de una antropología compartida. El
tema en este apartado no es la restitución, sino como nos relacionamos
con las personas a través del registro audiovisual.
149
No se puede usar la cámara como un arma. Las personas se inco-
modan al ser apuntadas con la lente de la cámara, por un desconocido,
que evidentemente no pertenece al grupo. Uno comienza a fotografiar
y después devuelve el producto para las personas del grupo. Cuando las
personas comienzan a ver los resultados preliminares y los resultados
comienzan a ser interesantes para el grupo se abren las puertas para
diferentes ciclos de intercambio. Son los intercambios que generan
relaciones sociales y nos permiten un diálogo más profundo.
Fueron varios ciclos de intercambios que me abrieron la puerta
para diversos aspectos de la tradición mazateca. El interés en la filma-
ción de las peleas de gallo me introdujo en el grupo de los galleros de
Huautla. El más afortunado de todos fue con la abuela Julieta. Ella me
pidió para que registrase la mayordomía del Señor de las Tres Caídas,
en la cual ella sería la hermandad principal. Como intercambio yo le
pedí que me enseñara como era el trabajo tradicional con “niños san-
tos”, como ella lo había aprendido con su suegra, Doña Regina. Este
intercambio me abrió las puertas para dos campos importantes, uno el
sistema de cargos religiosos y sus performances, el otro, el conocimien-
to del linaje sobre los rituales con niños santos. Acompañé a la abuela
Julieta a lo largo de toda la mayordomía del Señor de las Tres Caídas,
así como varias otras mayordomías que hacen parte de la religiosidad
mazateca. Por otro lado, este intercambio me abrió también las puertas
para los rituales con niños santos y pasé a auxiliar a la abuela en más
de una oportunidad. Este intercambio creó otro, en el cual todas las
mañanas bajaba desde el barrio de La Cruz para lo de la abuelita en
el centro. En el camino compraba un pan calentito para tomar un café
de olla con la abuela Julieta, mientras comentábamos los rituales de la
noche anterior y otras conversas.
150
La performance tiene que ser “escuchada” para ser interpretada.
Podemos fotografiar o filmar estas performances a partir de la obser-
vación directa, como fotógrafos, más para comprenderla tenemos que
adquirir la competencia comunicativa y esta solo se logra a través del
“escuchar” orientado por la búsqueda de fusión de horizontes de co-
municación. Necesitamos conocer la tradición para interpretar los sím-
bolos de las performances. Las performances son la tradición puesta en
escena, nos habla a partir de la manipulación de símbolos.
Turner (1975) define el símbolo ritual como la menor unidad que
mantiene las propiedades del ritual. Entre sus características destaca la
polisemia y la polarización de sentidos. Los símbolos, en las performan-
ces son objetos manipulados pelos actores sociales. Estos objetos-sím-
bolos permean las diferentes performances tradicionales, tienen una
gramaticalidad explorada en el filme. Los símbolos tradicionales, sus per-
formances, pasan de generación en generación, son menos susceptibles
de manipulación que el discurso de una entrevista.
Una vez que tenemos el material bruto comenzamos el trabajo de
edición durante el trabajo de campo. En este primer momento realiza-
mos los cortes y esbozamos una narrativa que testamos una y otra vez
con los mazatecos que participaron en el proyecto. La performance tiene
una duración que no puede trasladarse mecánicamente para el público.
Debemos realizar una traducción, llevando en cuenta una compresión
del tiempo con la menor perdida de sentido. Los comentarios sobre
los clips presentados en el campo introducen también una dimensión
reflexiva. El público mazateco comentó, agregó informaciones, mostró
aprobación, realizó críticas, corrigió al antropólogo video-maker a par-
tir de la interpretación que hacen del material audiovisual.
Trabajamos cada clip como una unidad de sentido en la que in-
tentamos sintetizar la performance registrada en el trabajo de campo.
151
Estos clips fueron testados a partir de la exhibición, primero en el cam-
po y después en la academia, para realizar ajustes, ver donde reforzar el
sentido o traducir un símbolo mediante alguna frase escrita en el vídeo.
Después de trabajar los clips individualmente, pasamos a mon-
tarlos para crear una narrativa. En este caso, iniciamos por rituales
individuales, -rituales de pedimiento y rituales con “niños santos”, para
pasar después para performances colectivas: fiesta de los muertos,
mayordomías, marcha de reyes, la faena, informe de gobierno y termi-
namos con las elecciones.
Estas performances, manipulan símbolos, que se bañan de sen-
tido en la tradición mazateca. En este caso, la fotografía gana sentido a
partir del conocimiento de la tradición cultural, una mirada informa-
da, teóricamente, más principalmente a partir de la experiencia. En la
experiencia, en el registro desde una posición participante, podemos
realizar un ejercicio de traducción a partir de la narrativa audiovisual.
La performance necesita de traducción. En el caso del film editado lo
resolví por medio de legendas, sintéticas, que orientan la interpretación
del espectador. Estas reflexiones apuntan a la necesidad de construir
una trama que envuelva el vídeo con: los problemas teóricos de la inves-
tigación; la contextualización del material a partir de la exegesis nativa;
y la evocación del trabajo de campo. Los clips ganan otra dimensión
interpretativa al ser explicitados los problemas teóricos confrontados
con la experiencia del trabajo de campo.
La fotografía/ vídeo nos permitieron registrar la manipulación
de objetos símbolos, que tienen que ser interpretados y traducidos para
un público más amplio. Esta traducción se da en el plano del discurso, o
en un lenguaje natural, ni matematizado, ni imagético. Esto me llevó a
pensar en la necesidad de agregar una voz que agregue información, en
lenguaje natural. La voz del antropólogo, no como narrador omnisciente,
152
sino como narrador experiente. Una narración que agregue información
aprendida a partir de la experiencia de campo, del proceso de fusión de
horizontes de comunicación a partir de la convivencia y la participación.
En la segunda parte de este trabajo presentaremos el material
dividido en clipes y realizaremos una contextualización a partir de las
referencias teóricas y de la experiencia del trabajo de campo. Por una
cuestión de economía de tiempo con el lector seré sintético, una vez
que cada uno de los apartados merecería un capítulo en sí mismo, (que
están en elaboración). Al mismo tiempo me extenderé lo necesario
para hacer antropología.
153
los espíritus, genealogías, lenguajes secretos. El chamanismo envuelve
entrenamientos para acumular poder místico para uso personal y so-
cial. El concepto de chamanismo se estructuro inicialmente a partir de
las experiencias de grupos siberiano. Como categoría pasó a aglutinar
una serie de experiencias diversas, como el chamanismo de las tierras
bajas sudamericanas y en México (BARTOLOMÉ; BARABAS, 2013;
LANGDON, 1992).
El chamanismo no está necesariamente relacionado con “socie-
dades primitivas”, ni puede ser reducido al campo de los fenómenos
religiosos. El chamanismo también es político, como los registra la
literatura sobre diversos grupos tupí. Diversas sociedades que tuvieron
desenvolvimiento del estado en Mesoamérica también presentan la
figura del chaman como mediador con seres no humanos, dueños del
lugar. En diversas sociedades indígenas de México, como mayas, mix-
tecos y mazatecos el chaman ocupa también un lugar en la estructura
política. En la práctica, la categoría de chamanismo se transformó en
una clasificación colonial que envolvía una serie de prácticas diversas.
El chamanismo como modo performático tiene que ser analizado al
interior de las diferentes tradiciones culturales (BARTOLOMÉ; BA-
RABAS, 2013; LANGDON, 2003).
Los chamanes son depositarios de una serie de saberes tradi-
cionales y de prácticas, al mismo tiempo en que son una construcción
ideológica de su propia sociedad. Los chamanes son actores del texto
de su propia cultura. Para Bartolomé y Barabas (2013), una de las cla-
ves del chamanismo en México son los sueños. Los sueños entendidos
como una realidad paralela, como un estado de conciencia con alto
valor emocional y afectivo. El sueño es considerado como un estado li-
minar que da acceso a otra dimensión de la realidad. Una temporalidad
paralela que sobrepone presente, pasado y futuro, un espacio habitado
154
por seres extrahumanos como los dueños del lugar. Los autores señalan
como otra de las características del chamanismo en Mesoamérica, la
transformación del chaman en su nahual, su transformación en animal
que recibe poderes de los dueños del lugar. El chamán es el responsable
por la relación entre los hombres y las entidades extrahumanas. Como
señaló Barabas (2006) esta relación, marcada por diversos rituales está
orientada por la lógica del don, en que los hombres realizan sus ofren-
das a las entidades como forma de obtener reciprocidad. Los dueños
del lugar son entidades territoriales, seres extraordinarios, por veces se
manifiestan en forma antropomorfa. Son entidades ambivalentes, que
tanto pueden beneficiar como perjudicar a quienes se adentran en sus
dominios. Son cultuados en cuevas específicas en las montañas, en na-
cientes de agua y accidentes naturales (BARABAS, 2006; BARTOLO-
MÉ BARABAS, 2013; CARRERA GONZALES; VAN DOESBURG,
1992; INCHAUSTEGUI, 1977, 1994, 2000; MANRIQUE ROSADO
2010; FEINBERG 2003).
En la década de 1960 el interés por el chamanismo fue renovado
a partir de las publicaciones de Carlos Castaneda ([1968] 2001) sobre
Don Juan y de la publicación de los trabajos de Wasson (1957) sobre
Maria Sabina. Estos trabajos despertaron el interés de jóvenes de secto-
res medios que exploraban estados de conciencia alterados en la época.
En tanto que el personaje de Don Juan aparece como un difuso cha-
man yaqui, Maria Sabina y sus rituales con “niños santos” ganaron una
concretitud cuando se reveló que fueron registrados en Huautla. Nadie
conoce a Don Juan, pero millares viajaron a Huautla para experimentar
los niños santos (LANGDON, 1992).
Algunos autores afirman que los mazatecos son una sociedad
chamánica (BARTOLOMÉ; BARABAS, 2013; BARABAS, 2006;
MANRIQUE ROSADO, 2013). ¿Pero qué es ser chaman en Huaut-
155
la? El chamanismo en Huautla es multifacetado. La traducción más
próxima para la categoría colonial de chaman sería la categoría nativa
de chjota-chjine, persona de conocimiento. Inchaustegui, nos habla de
tres tipos de chjota-chjine: el maestro, el que cura y el que enseña. El
maestro es el que participaba del consejo de ancianos y a partir de la
interpretación de las fuerzas sobrenaturales, los chikones, establecía lo
que tiene que ser realizado por la comunidad. Los que curan por su vez
se dividen de acuerdo a las técnicas que emplean, los que trabajan los
niños santos, los que hacen limpias con huevos, los que confeccionan
los bultos sagrados, los que hacen lectura de velas, los chupadores, los
hueseros. Los que enseñan, finalmente, es una característica de todos
ellos, una vez que la traducción de chjota-chjine literalmente significa
hombre de conocimiento. Creo que esta tipología de Inchaustegui nos
llama la atención para diversos aspectos de la labor de los chjota-chjines
y que los mismos no son excluyentes. Otra categoría que también esta-
ría incluído sería la de teej’e, el brujo, aquel que utiliza este conocimien-
to para hacer el mal al irritar las entidades para indisponerlos con sus
víctimas (BARABAS, 2006; BOEGE, 1988; INCHAUSTEGUI, 1977,
1994; MANRIQUE ROSADO, 2010, 2013).
La organización tradicional de los mazatecos contaba con un
Consejo de Ancianos, compuesto por los hombres que habían pasado
por todo el sistema de cargos. Este consejo de ancianos indicaba el pre-
sidente, que era confirmado en asamblea. Frecuentemente el principal
del consejo de ancianos era un chjota-chjine (BOEGE, 1988, p. 225;
NEIBURG, 1984; GARCÍA DORANTES, 1996). Cuando pregunté
por el tema a la abuelita, ella respondió: “el consejo de ancianos traba-
jaba con mucho copal y muchas velas”. El consejo de ancianos, como
indica Boege (1988), al evocar lo sagrado, envuelve los antepasados,
muertos.
156
El chamanismo hace parte de la identidad de Huautla. No fue
difícil contactar diversos “chamanes” durante el trabajo de campo y rea-
licé diversas ceremonias que incluyeron limpias, rituales de pedimiento
y rituales con niños santos con más de una decena de chjota-chjines a lo
largo del trabajo de campo. Por una limitación natural, uno no puede
desdoblarse, se acaba priorizando una u otra familia, con la cual esta-
blecemos un intercambio más profundo. En el caso específico de esta
investigación focalicé en dos chjota-chjines que presentan caracteres
diferentes y permitieron explorar diversos aspectos del chamanismo en
Huautla: el profesor Alfonso y la abuela Julieta.
Uno de los chjota-chjine que acompañamos durante el trabajo de
campo es la abuela Julieta. La abuelita, tiene más de 80 años, fue con-
temporánea de Maria Sabina y es una de las chamanes más prestigiosas
de Huautla. Fue una de las primeras, junto con Maria Sabina, a abrir los
rituales con niños santos para los güeros – como son llamados los blan-
cos en la región –. La abuela Julieta tiene reconocimiento internacional
y es una de las 13 Abuelas del Mundo, Consejo que reúne chamanes
de diversas partes del mundo y que tiene el apoyo, reconocimiento de
la ONU (SCHAFER, 2012). Por su centralidad, y por el vínculo que
desarrollamos con ella, describiremos esta experiencia con mayor pro-
fundidad en otro trabajo, en elaboración.
El otro chjota-chjine, profesor Alfonso tiene 55 años y participa de
la vida política del municipio. Él estudió en las escuelas del INI y de joven
consiguió empleo como profesor. Se especializó en el área de historia y
es casado con la profesora Beatriz, hija de un expresidente de Huautla.
El prof. Alfonso fue regidor de Educación y Cultura, actualmente es
asesor del regidor; presidente de la Comisión Pueblo Mágico; participa
de la vida política de Huautla y es Secretario General del Partido de la
Revolución Democrática, PRD. El mismo me repitió en más de una
157
oportunidad que tiene 55 años y está hace 35 años en el camino del cono-
cimiento. Durante la fiesta de los muertos, cuando visitamos el panteón
de su familia me indicó el túmulo de su madre y me confidencia: “fue
ella que me inició en el camino del conocimiento”. A partir de ahí él fue
aprendiendo con diferentes chjota-chjines tradicionales, que viven en las
sierras, a varias horas a pie por senderos de montaña. Las entrevistas que
me concedió fueron extremadamente didácticas y salía de las mismas,
literalmente, con bibliografía abajo del brazo.
En el video iniciamos con la presentación de un ritual de pedi-
mento y la invocación del ritual de los niños santos. Los rituales son una
puerta de acceso a la cosmología del grupo. Ritual y representaciones
son dos caras de la misma moneda (LEACH, 1966, 199;, TAMBIAH,
1985; BARABAS, 2006). El ritual de pedimiento en el nindon Tokoxo
indica algunas de las características de esta civilización agrícola. Entre
las mismas podemos indicar el uso del cacao como moneda tradicional,
uso del copal y velas, la orientación a partir de cinco puntos cardinales,
el quinto es el que indica el eje inframundo-supramundo, la existencia
de los dueños del lugar.
Para los mazatecos, todo lugar tiene dueño y uno tiene que pedir
permiso a los dueños del lugar. Los rituales permiten la construcción
de una relación dadivosa con las entidades. Uno tiene que pedir por
las plantaciones realizadas y agradecer por los frutos que va a colectar.
Con este motivo se encienden velas y se paga con granos de cacao. El
incienso comunica y purifica, lleva nuestras ofrendas y deseos. Durante
el ritual de pedimientos ofrecimos un guajolote. En la exegesis nativa, el
guajolote sería nuestro interprete “porque habla muchas lenguas”.
Estos rituales suponen una cosmología. Para los mazatecos, el
mundo sería como una mesa con pilares en los cuatro puntos cardinales.
El eje Este-Oeste, marca el lugar de dónde venimos, donde el sol apare-
158
ce como metáfora que indica el camino del Este, con el nacimiento para
el Oeste, con la muerte. Cabe notar que los muertos son enterrados
con los pies para el este y la cabeza para el oeste. El quinto eje conecta
el supramundo con el inframundo. El supramundo está compuesto por
13 mesas, que son una metáfora de los niveles recorridos a lo largo de
la vida. Estos niveles aparecen representados en el arco del altar de los
muertos, que está adornado con 13 ramos de cempasúchil. Los diver-
sos niveles del supramundo estarían habitados por los santos y ángeles,
siendo que en el 13 se encuentra el padre eterno con un guajolote
que danza sobre una mesa de plata. Inchaustegui señala que la figura
del padre eterno es prehispánica y que no debe ser confundida con la
representación católica Inchaustegui (1977). El inframundo está for-
mado por siete pisos o andares. Este inframundo está poblado por los
chikones, los dueños del lugar y por el mundo de los muertos. Existen
portales que conectan estas dimensiones. Estos portales son los altares,
los cementerios, las montañas, en especial las cuevas en las montañas
(BARABAS, 2006). El ritual de pedimiento fue realizado en una de las
cuatro cuevas el cerro de la adoración.
Durante el ritual se nombra diferentes montañas, como cerro
de la adoración, cerro rabón, entre otros. En estos casos los lugares
son una forma de invocar los dueños del lugar, el cerro de la Adora-
ción, con el chikon Tokoxo, el cerro Rabón, chikon Chjo’onn´da
vj´e, esposa del chikon Tokoxo, también conocida como la vieja Isabel.
La cueva de las Regaderas es la residencia del chikon Chato, repre-
sentado como mitad hombre y mitad chivo; el chikon Njao Naé, del
viento, cultuado en la cueva del chivato; el chikon Mangui, dueño de
debajo de la tierra, guardián del mundo de los muertos. Para los ma-
zatecos, así como para otros grupos mesoamericanos, los muertos no
van al cielo, ellos habitan en el inframundo. Los muertos emprenden
159
el camino hacia el mundo de los muertos que demora siete años, pues
son siete los niveles del inframundo.
La fiesta de los muertos en Huautla será abordado con mayor
detalle en otro artículo, en elaboración. Cabe destacar que está fiesta
coincide con la época de la cosecha, un periodo de abundancia, donde el
intercambio de alimento entre familias, entre vivos y muertos, crea una
performances de la cosmología mazateca. Los altares de muertos, las ve-
ladas en el panteón y los huehuentones expresan la cosmología mazateca.
Los altares tienen comida y bebida para alimentar el alma de los
muertos, que regresa del inframundo, pues llegan con hambre y sed
después de viajar por los siete niveles del inframundo. Las velas son
como bastones que dan soporte a los espíritus, para los muertos son
ofrecidas 13 velas, o múltiplo de 13, lo que transforma as veladas en
el cementerio en un cielo de velas.Durante la fiesta de los muertos son
realizadas velas en el panteón, el día 1 para el alma de los que murieron
niños, el día 2 para los adultos y los viejos. Las veladas son realizadas a
la tarde hasta el atardecer y durante la noche hasta la madrugada.
Los huehuentones (del nahual huehue = viejo), o chajma (en ma-
zateco: gente del ombligo), representan el espíritu de los ancestrales,
este festejo comienza el 27 de octubre, días antes de la fiesta de los
muertos (QUINTANAR MIRANDA, 2004; BARABAS, 2006). Esta
performances de los huehuentones, es abierta con un ritual en el pan-
teón, al mediodía del 27 de octubre. Esa noche, los diversos grupos de
huehuentones salen del panteón, y se dirigen a la iglesia en una procesión
encabezada por las hermandades. Las hermandades, en Huautla, son
la parte femenina de la iglesia, las mujeres que cuidan de los diferentes
santos y participan de las mayordomías. Una de estas hermandades está
representada por la abuela Julieta. El profesor Alfonso, como político
envuelto en el proyecto Pueblo Mágico acompaño toda la performance.
160
Después de la misa en la iglesia, los huehuentones se dirigen al palacio de
gobierno, donde reciben la autorización de las autoridades. Las danzas
se inician en la presidencia y se dispersan por las diversas callecitas de
Huautla, visitando los altares de los muertos.
Fui convidado a participar de un grupo de huehuentones y recorrí
las calles de Huautla performando un huehuenton. Las personas nos pa-
raban en la calle, pidiendo músicas e intercambiando comida y bebida.
A menudo nos convidaban para entrar en casa que no estaban en el tra-
yecto del grupo para cantar y danzar frente al altar de muertos. Después
de bailar y recibir alimentos, la danza de agradecimiento, que expresa la
alegría de los viejos por la recepción, retribuyendo la comida y bebida
en esa larga y festiva jornada. Como huehuentón dancé, bebí y comí en
esas performances. En determinado momento, con un pan de muertos
en la mano, me di cuenta que la comida que recibimos es la misma que
está presente en los altares de muertos. “Claro güero, si representamos los
espíritus de los viejos” me dice un colega del grupo.
El carácter colectivo de estas performances, con miles de per-
sonas participando dan un carácter social a estas performances. Los
huehuentones, los altares, los cuetes para saludar a los muertos son una
performance que coloca en escena la cosmología mazateca. Queremos
evitar aquí el falso dilema de las culturas auténticas. Toda tradición se
modifica, inclusive para permanecer siendo la misma. La performance
hace sensible la tradición, nos permite registrarla. No podemos esperar
que la tradición permanezca inalterada cuando mudan las condiciones
tecnológicas y materiales. Bartolomé (2008) y Barabas (2006) colo-
can esto en términos teóricos al afirmar que los pueblos indígenas de
México pasaron por un proceso de reconfiguración étnica, en el cual
una tradición mesoamericana, pre-hispánica fue reconfigurada por la
161
colonia con la introducción de la iglesia y el municipio castellano, que
fueron reinterpretados a partir de la tradición pre-existente.
Una sociedad que tiene una cosmología orientada por la división
entre el supramundo y el inframundo, habitado por dueños del lugar,
chikones y muertos, contempla el lugar social del chaman como me-
diador con las entidades no humanas, en el caso de Huautla, ese lugar
se desdobla, con los rituales individuales y con lo colectivo en un plano
político. El buen vivir mazateco se orienta por la relacione dadivosa, el
intercambio con las familias, el intercambio con los muertos, con los
chikones, los dueños del lugar.
CLIP 1 CHAMANISMO
https://youtu.be/Fb18H8B35Hw
162
soamericano sufrió transformaciones con las imposiciones religiosas y
políticas durante el periodo colonial y su integración al estado nacional.
Entre las imposiciones coloniales, el catolicismo y el sistema de cargos,
inspirado en el municipio castellano del siglo XVII fueron reinterpreta-
dos por las poblaciones indígenas a partir de la tradición mesoamerica-
na (BARABAS; BARTOLOMÉ, 1999; BARABAS, 2006).
Antes de la conquista española los mazatecos sufrieron la domi-
nación azteca. Las tradiciones mazatecas hablan de 12 familias, locali-
zadas espacialmente en los diferentes barrios de Huautla. Posiblemente
esas familias fueron la base sobre la cual los aztecas organizaron los cal-
pulli, clanes cónicos con una serie deobligaciones, entre ellas el trabajo
comunitário (AGUIRRE BELTRAN apud FABREGAS, 1997). Con la
Colonia se impuso el modelo del municipio, colaborando con la frag-
mentación interna de los grupos y el refuerzo de las identidades locales.
Los sistemas de cargos, o cargo system, fueron largamente discuti-
dos en la antropología. Para Wolf (2003), el sistema de cargos estaba en
la base del campesinado mexicano como grupo corporado, cerrado al
exterior. El sistema de fiestas era visto como un mecanismo nivelador,
que consumía el excedente y evitaba la acumulación. Otros autores
apuntaron a que el sistema en realidad operaba realizando una transfe-
rencia de recursos de los campesinos para los comerciantes y la iglesia.
Una de las principales características del sistema es el deber de ocupar
diferentes cargos en servicios laboriosos para poder asumir puestos
más altos a partir del reconocimiento de su desempeño. Lo que diver-
sos actores señalaron es la orientación comunitária de los sistemas de
cargos y la importancia que tienen las fiestas y ceremonias (CHANCE;
TAYLOR, 1985; GONZÁLEZ DE LA FUENTE; SALAS QUINTA-
NAL, 2012; GUARDINO, 2000; WOLF, 2003).
163
El sistema de cargos combina una serie de obligaciones cívi-
co-religiosas, que las personas desempeñan a lo largo de su vida. En
la juventud ejercían el cargo de topil o mensajero. Todos los hombres
tenían la obligación de participar de las faenas anuales organizadas por
el municipio. Entre los cargos religiosos estaba el cargo de mayordomo,
con la obligación de organizar las fiestas para cultuar el santo, a la moda
mazateca. Otro cargo religioso eran las hermandades religiosas, las
mujeres que tienen a su cargo el cuidado de los santos de la iglesia y la
obligación de participar, junto de los mayordomos y el consejo parro-
quial, de la preparación de las mayordomias. Los cargos políticos eran
los de regidores y presidentes del municipio. La asamblea se presenta
como el órgano soberano.
Tradicionalmente existía entre los mazatecos el consejo de ancia-
nos, formado por los principales de las diferentes familias, aquellos que
habían pasado por todo el sistema de cargos. El consejo de ancianos
tenía un importante papel político-religioso para definir los rumbos
políticos y elegía el presidente, que era confirmado en asamblea.
Varios de los autores mencionados centraron su atención en la
estructura del sistema de cargos. Bartolomé (2008) señaló la impor-
tancia del sistema de cargo para la formación de la persona en las so-
ciedades indígenas. Un anciano es aquel que pasó por todo el sistema
de cargos. Nuestro interés fue en como los cargos son performados,
más antes tenemos que contextualizar las mudanzas por las que pasó
Huautla en los últimos cincuenta años.
Sobre ese Huautla de antes de 1960, la abuelita Julita cuenta que
su hijo más viejo, Jorge, – hoy con 60 años – iba descalzo a la escuela
hasta los cinco años. En Huautla no había camiones ni automóviles,
todo era a pie o en lomo de burro. Para entrar y salir de Huautla eran
utilizados los “caminos reales”, senderos en la montaña que eran reco-
164
rridos a pie o con burros y el trayecto demoraba más de un día para lle-
gar en Tehuacán, en la zona de la cañada y dos días o más para Tuxtepec
en la mazateca baja. En esa época las principales diversiones eran las
corridas de caballos y las luchas de gallos. Las mayordomías marcaban
las obligaciones religiosas.
Huautla, que era una villa mazateca de 8.000 habitantes a 1.700
m de altitud, aislada, a la que solo se llegaba a pie o lomo de burro pasó
por importantes transformaciones a partir de la década de 1960. Uno
de los actores centrales en esta transformación fue la creación del Cen-
tro Regional del INI, fundado por Carlos Inchaustegui en 1960. Los
informes describen las acciones ejecutadas para la implementación de
acciones en las áreas de salud e higiene; educación; infra-estructura,
como construcción de caminos, energía eléctrica, agua corriente; orga-
nización de cooperativas de productores de café.
Inchaustegui, en sus informes, describe ese Huautla de casa de
adobe y piso de tierra. Las cabañas no tenían sanitarios y el agua era
transportada desde el río por medio de burros. En sus informes recla-
ma de la dificultad de encontrar una vivienda adecuada para el fun-
cionamiento del Centro del INI, y las dificultades para transportar los
materiales de construcción. El presidente municipal y algunos pocos
mazatecos eran bilingües.La mayor parte de la población era monolin-
güe, solo hablaba mazateco. (INI/Inchaustegui).
A partir de la década de 1960, los trabajos de Wasson colocan
Huautla en el centro del debate de sobre chamanismos y alucinógenos
a partir de la descripción de los rituales de María Sabina (FEINBERG,
2003; GARCÍA CERQUEDA, 2014; WASSON, 1957). Con la divul-
gación de los trabajos de Wasson, millares de hippies fueron a Huautla
en busca de experiencias psicodélicas, inclusive astros del rock como
John Lennon, los Rolling Stones, Led Zepelin, Jim Morrison según
165
cuentan los populares. En esa época Huautla tenía una pensión y el
Hotel Olímpico. Frente a la resistencia de la población local los hippies
acampaban en Puente de Hierro, a 11 km de Huautla, cerca de las
cascadas y de la cueva del chato. Algunos mazatecos iban hasta puente
de hierro para vender productos para los extranjeros (ALCANTARA,
2015; GARCÍA CERQUEDA, 2014). Doña Julieta en esa época era
conocida como Mamá Julia y bajaba a vender camisas bordadas, miel y
niños santos. Muchas veces eses intercambios no envolvía dinero.
Doña Regina, suegra de la abuelita Julieta también trabajaba con
los niños santos, inclusive fue con ella que Inchaustegui y su esposa
experimentaron por primera vez los “niños santos”. Omar, uno de los
hijos de la abuela Julieta, cuenta Wasson llegó en Huautla procurando
Doña Regina, más que el presidente municipal llevó los investigadores
con Maria Sabina. La abuela Julieta fue una de las primeras a abrir los
rituales para los muchachos, esos güeros que venían de tan lejos para
experimentar los niños santos.
Entre 1967 y 1974, las autoridades expulsaron los hippies y el
ejército creó retenes para impedir la llegada de extranjeros en Huautla,
solo los mazatecos podían pasar. A pesar de los retenes, muchos hippies
encaraban largas caminadas para llegar a Huautla. Esta restricción fue
levantada a inicios de la década de 1980 (GARCÍA CERQUEDA,
2014; FEINBERG, 2003).
Otras mudanzas, en el campo político, acompañaron estas trans-
formaciones. En Huautla el consejo de ancianos entró en crisis en la
década de 1970, cuando la población se polariza entre el PRI y el PPS
y la ciudad pasó a decidir el acceso a los cargos cívicos por medio del
sistema de partidos políticos. En Huautla un sistema de cargos bien
amarrado hasta la década de 1970 comenzó a ser erodido. Este sistema
envolvía cargos cívico-religiosos. Con la introducción del sistema de
166
partidos políticos, por un lado se rompió formalmente con la relación
entre cargos cívicos y cargos religiosos, por otro lado se erosionó el
Consejo de Ancianos. Con la introducción del sistema de partidos, la
polarización llevó primero a una división del Consejo de Ancianos, con
un Consejo del PRI y un Consejo del PPS. Posteriormente las decisio-
nes pasaron para el sistema de partidos con la desarticulación de los
consejos. Al abordar la performance de los cargos políticos volveremos
sobre este punto.
Por otro lado, el sistema de cargos estaba apoyado en los hom-
bres del municipio, con su aflojamiento, las mujeres ganaron participa-
ción en el escenario político. Los sistemas de cargos tradicionales no
permitían la participación de las mujeres en los cargos de gobierno. En
los sistemas normativos internos en la actualidad, las mujeres tienen
mayor participación y han desempeñado cargos políticos antes reser-
vados a los hombres (DALTON, 2003).
A pesar de los cambios, existen ciertas continuidades, las tradicio-
nes mudan para permanecer las mismas. A pesar de los cargos no estar
firmemente amarrados como en el pasado, en Huautla continúan exis-
tiendo cargos religiosos con las mayordomías y sus fiestas, así como car-
gos políticos, que son performados siguiendo un calendario tradicional.
167
CLIP INI
https://youtu.be/bymb4S4ciYk
Las mayordomías
168
la virgen de Juquilla, el Cristo Negro y otras realizadas en las iglesias de
las distintas comunidades y poblados.
La mayordomia es la forma que tienen los mazatecos de adorar el
santo. La misma incluye la liturgia, procesiones, limpias y purificacio-
nes, la convivencia y la fiesta. La mayordomía, así como las procesiones,
supone un momento liminar, más la liminaridad tiene una estructura
(TURNER, 1974). Centrémonos en las mayordomías relacionadas
con la iglesia de Huautla. La organización de las mayordomías revela
una estructura formada por el consejo parroquial; las hermandades
(de mujeres) y los mayordomos. El concejo parroquial, con el consen-
timiento de los padres y del ayuntamiento designa a los mayordomos
y distribuye las diferentes hermandades. Las hermandades son la rama
femenina de esta organización. Las hermandades son las mujeres, una
docena, que se organizan para cuidar de los diferentes santos, así cada
una de las hermanas cuida del santo que le es designado por el consejo
parroquial. El consejo designa también a los mayordomos que partici-
paran de la mayordomía anual.
Durante el trabajo de campo pudimos observar las fases preli-
minares y la mayordomía propiamente dicha. En la fase preliminar
son designados los mayordomos en la iglesia, donde reciben el título.
Después acontecen las reuniones de organización. Registramos la re-
unión que ocurrió en la casa de la Hermandad. Una vez acertados los
detalles de la organización de la mayordomía, tiene lugar la publicidad,
donde los mayordomos recorren el pueblo para colocar los carteles con
la programación. Ellos van acompañados por una banda de vientos y
aprovechan la ocasión para pedir donativos para la fiesta. Durante este
periodo previo se organizan también otras actividades para colectar
dinero, como rifas, vendas de comida, peleas de gallos.
169
La mayordomía se inició con la visita de las hermandades a la casa
del mayordomo principal para adornar la cruz. En esta oportunidad, las
hermandades se encuentran en la iglesia y se dirigen en procesión a la
casa del Mayordomo primero, donde los mayordomos las esperan con
un arco de carrizo adornado. Las Hermandades llegan y comienzan a
elaborar los ramos de flores en forma de cruz que adornaran el altar.
El Mayordomo coloca la primera cruz de flores en el altar, después las
diferentes hermandades pasan a adornar el altar, cada una colocando su
ramo de flores. A continuación los mayordomos encienden las velado-
ras, que son colocadas frente al altar. Después del rosario se comparte
la comida entre los presentes, unos tamalitos que encierran el intercam-
bio entre hermandades, mayordomos y el santo. Está todo pronto para
la labra de velas que acontecerá al día siguiente. Un día antes se realizó
la matanza, donde los mayordomos abatieron dos cabezas de ganado
para ser consumidas durante la fiesta.
La labra de cera si inicia con la primera misa del día. Ese día, des-
pués de la ceremonia religiosa, el mayordomo recibió un crucifijo que
después de la misa es llevado, en procesión a la casa del mayordomo.
Una banda, tocando dianas, acompaña el cotejo, que es anunciando
con cohetes. Al llegar en la casa del mayordomo, son recibidos con una
lluvia de pétalos de flores.
Las velas de cera virgen de abeja tienen un significado especial
para los mazatecos. Estas velas son usadas en procesiones religiosas y
en rituales tradicionales. La vela tiene el simbolismo de la luz, que sirve
para orientar los espíritus. Durante rituales chamánicos son usadas cua-
tro velas en cruzero que simbolizan los puntos cardinales. Una quinta
vela es colocada en el medio para simbolizar el quinto punto cardinal,
que conecta supramundo e inframundo. Para trabajar con los muertos
son usadas 13 velas de cera de abeja.
170
La convivencia, la música, la comida compartida con el santo y
con el pueblo es la forma como los mazatecos cultuan al santo. En la co-
cina las mujeres que participan de la mayordomía preparan la comida.
En un lugar un poco más resguardado, es realizada la labra de cera. En
la casa y en la calle se montan mesas para recibir al pueblo. Una banda
de música suena de fondo. La comida es servida por los mayordomos.
Después de la labra de velas, que serán distribuidas el último día
de la mayordomía, se inicia el culto con la imagen milagrosa. El culto al
Señor de las Tres Caídas, se originó en Otátitlan y se celebra también
en Santa María Ixcatlán (BARABAS, 2006; GARCÍA DORANTES,
1996). En 1943 vecinos de Huautla encomendaron una réplica de la
imagen para la Catedral de la ciudad. El presidente municipal de la
época no quería la imagen por temor de que deje a Huautla sin lluvia,
porque el culto proviene de una ciudad de la zona de la Cañada, calien-
te y seca. “Tuvieron que ir a Oaxaca, a hablar con el obispo, para traer la
imagen a la iglesia” – cuenta abuela Julieta. La imagen del Santo, es una
réplica, tamaño natural de Jesús, caído, con la cruz, rumbo al calvario.
Vestir al Santo. La concentración se realiza en la casa del mayor-
domo principal. Encabezados por la Hermandad, los mayordomos
parten en procesión para la iglesia cargando las ropas nuevas para el
Santo. Después de la misa, reciben la bendición del padre y retiran la
imagen de la vitrina en que está expuesto cotidianamente. Con pro-
funda fe y reverencia, tocando la imagen milagrosa, cambian las ropas
del Santo y de la réplica. Se forman largas filas de fieles para tocar el
santo. Unos llevan ramas de plantas aromáticas, utilizadas para limpias
y purificaciones, otros llevan algodón, para curar los enfermos. El
contacto con la imagen actúa por contagio, las personas tocan al santo
para impregnar su poder milagroso. Después de renovar las ropas, la
imagen es colocada en un altar de destaque y la réplica, algo menor,
171
pasa a ser objeto de culto durante el novenario. Barabas (2006) llamó la
atención para las religiones étnicas, cuando los símbolos católicos son
interpretados a partir de tradiciones mesoamericanas más antiguas. En
esta interpretación los santos se bañan de sentido a partir de los dueños
del lugar. El culto a las entidades territoriales está en la base del culto a
los santos patronos.
Durante el novenario, la imagen, precedidas de estandartes es
llevada en procesión por las calles de la ciudad. Durante nueve días la
imagen sale de la iglesia después de la misa y es llevada en procesión a la
casa donde será realizado el Rosario. Después de la adoración el santo
retorna a la iglesia para volver a salir en procesión después de la liturgia.
En las casas es recibido con comida y bebidas, tamales, pozole, caldos.
Una banda de música acompaña la procesión por el espacio público de
la ciudad. A medida que avanza el novenario aumenta el número de
participantes. Los últimos a recibir el santo son la casa de la herman-
dad, donde tiene lugar una convivencia antes de que el santo parta para
la iglesia y la casa del mayordomo principal, donde se encierra el culto
con una gran fiesta.
La convivencia es el momento liminar de la fiesta. La casa y la
calle se transvisten para recibir al santo y al pueblo. Abundante comida
es compartida con el santo y los participantes. En la casa de la abuelita
fueron preparados 250 kg de pollo con mole y centenas de tamales.
Pasó un millar de personas, campesinos, cargadores del mercado,
feriantes, profesores, autoridades municipales. Las personas llegan y
van hasta el santo para realizar su purificación, después van a las mesas
para compartir la comida. Toda la familia colaboró para el suceso de la
fiesta, inclusive contó con apoyo financiero de un amigo de la familia.
Cuando la abuela Julieta recibió el cargo de la hermandad, consultó a
sus hijos antes de aceptar la responsabilidad. La decisión fue tomada
172
con el apoyo de sus seis hijos que viven en Huautla y participaron del
trabajo sirviendo a los participantes.
Después del novenario hay una noche de vigilia y una gran fiesta
pública, con fuegos artificiales. Una gran torre de fuegos fue montada
frente a la iglesia, una manifestación del arte popular mexicano. Toritos
soltando fuegos corretean entre el público en la plaza. Esa es una noche
de fiesta en homenaje al santo.
Después del novenario es realizado el via cruci, con la imagen
original, recorriendo las diversas estaciones distribuidas en la casa de
vecinos de Huautla. En esta oportunidad la imagen es acompañada
por los padres y una multitudinaria procesión con fieles de diversos
orígenes. Barabas (2006) apunta el carácter multiétnico del culto y su
importancia para la creación de redes territoriales. Nuestra observa-
ción reveló también que el núcleo duro de la organización – consejo
parroquial, hermandades y mayordomos – son mazatecos y parte del
culto durante la liturgia tiene que ser realizado en la lengua.
La mayordomía del Señor de las Tres Caídas fue una gran perfor-
mance en que los cargos religiosos fueron actuados y deben ser actua-
dos por mazatecos. La entrega de los mayordomos y las hermandades,
de servir al pueblo como forma de servir al santo envuelve un tipo de
poder, de entrega por el otro. El poder como el ejercicio de la capacidad
organizativa delegada por la comunidad.
El catolicismo es interpretado a partir de la tradición mesoa-
mericana. No es extraño que en una lectura de la biblia un chamán
interprete que cristo fue un gran curador. Para los mazatecos no existe
contradicción entre chamanismo y catolicismo. En el caso analizado, la
hermandad principal fue performada por la Abuela Julieta, la chaman
más conocida de Huautla. A continuación veremos que los cargos polí-
ticos también son performáticamente actuados.
173
CLIP MAYORDOMIA
https://youtu.be/tm0EejCaK4I
174
ridades participan, cargando sus bastones de mando. Estos bastones,
en la tradición mazateca, simbolizan el apoyo del consejo de ancianos
(BOEGE, 1988). Después de la misa, el presidente municipal realiza
un discurso en la iglesia, en el que pide unión para trabajar por el bien
común y que reine la paz en el municipio (GARCÍA DORANTES,
1996). Después de la misa es repartida la rosca de reyes y juguetes para
los niños. Esta marcha representa el inicio del ciclo de gobierno.
Tradicionalmente en Huautla el presidente municipal era de-
signado por el consejo de ancianos, confirmado en una asamblea y el
cargo tenía una duración anual. En 1953 la duración de los cargos cívi-
cos pasó a ser de tres años (GARCÍA DORANTES, 1996). Durante el
periodo en que el PRI tuvo hegemonía en el sistema político mexicano,
el sistema tradicional se articuló con el sistema de partidos. El candida-
to indicado por el consejo de ancianos era inscripto en la lista del PRI,
conciliando la indicación del consejo con las formalidades del sistema
político nacional.
Este sistema entró en crisis en la década de 1970 con la polari-
zación política que dividió el consejo de ancianos: un consejo de an-
cianos del PRI y otro consejo de ancianos del PPS. El Partido Popular
Socialista, de inspiración comunista, que era oposición al Partido de
la Revolución Institucional. Algunos relatos apuntan que Inchaustegui
fue quien promovió o apoyo el PPS en Huautla.
A pesar de las mudanzas en el sistema político, tanto en la du-
ración del mandato, como en la forma de acceso al cargo, la marcha
de reyes es performada anualmente. El registro de la performance en
el vídeo indica que el bastón de mando es el símbolo dominante de
la marcha. Puede estar ausente algún regidor o su suplente, pero los
bastones están presentes, cargados por algún auxiliar. Los bastones
representan la autoridad construida con el apoyo de los ancianos. An-
175
tiguamente era el Consejo de Ancianos quien entregaba el bastón de
mando a las nuevas autoridades, hoy son los expresidentes. De acuerdo
a nuestra interpretación, la marcha de reyes performa la relación entre
los cargos cívicos y religiosos.
La segunda performance registrada en el vídeo es la faena, el
trabajo colectivo XA-BAZEN. El trabajo comunitario es una tradición
prehispánica que adquirió diversas formas en México. En algunas loca-
lidades de la ciudad de Oaxaca la participación de los vecinos es obliga-
toria, o pode ser dispensada mediante algún pago en dinero. En Huautla
existen diversas faenas, como por ejemplo las que son convocadas para
limpiar el barrio antes de las fiestas; para limpiar el mercado, realizada
por los que mantienen sus puestos en la feria; la faena para limpiar el
panteón antes de la fiesta de los muertos. En este vídeo focalizamos la
gran faena anual que se realiza a inicio de año para limpiar los linderos
del municipio. La primera faena, registrada en el vídeo, limpia el lindero
con Chilchotla, una segunda faena limpia los linderos con Mazatlán.
En Huautla, la faena moviliza millares de mazatecos. El símbolo
dominante es la concha, el sonido del caracol que convoca la población,
para el trabajo colectivo. En otros contextos, el sonido de la concha
también indicaba el llamado para la guerra. El día de la faena, antes de
la salida del sol, se reúnen los hombres que participaran del trabajo.
Después de un pan con café se organizan los dos grupos. El que va pri-
mero, con los machetes, y el que le sigue con las azadas, limpiando. Los
grupos avanzan coordinadamente, al sonido de conchas y cuernos que
marcan esta jornada de trabajo comunitario.
Durante la faena, prevalece la fusión entre el pueblo y las autori-
dades, todos tienen que participar y demostrar empeño en el trabajo. En
ese hormiguero humano se mesclan autoridades, vecinos de la ciudad
de Huautla y los caracterizados de las comunidades. Tradicionalmen-
176
te, participar de la faena era una de las condiciones para participar del
sistema de cargos. La movilización y participación en la faena, también
expresa el apoyo de los ancianos para las autoridades que están en los
cargos cívicos. Si los bastones de mando representaban el apoyo de los
linajes, ese compromiso se hace sensible con la participación de los
hombres de la familia en la faena. Boege (1988) señalo que sin el apoyo
de los cabezas de los linajes no sería posible movilizar la población para
participar de la faena.
El ciclo anual de performances del sistema de cargos político se
cierra con el informe de gobierno, realizado a finales de diciembre. En
esta performance el lugar central es ocupado por las autoridades, que
prestan cuentas de las realizaciones de año fiscal frente a la asamblea
formada por los ciudadanos, tanto de la ciudad, como de las agencias
municipales en la parte rural. En la abertura se saluda la presencia de
expresidentes en la plaza. En su informe, como en una prestación de
cuentas frente al pueblo, el presidente enumera las realizaciones en las
diversas áreas de gobierno. La vestimenta, el bastón de mando, mar-
can la oposición entre el pueblo y el ocupante del cargo, que tiene su
performance evaluada por sus realizaciones. Este momento también
comporta las performances de la oposición.
En su discurso el presidente enumeró los caminos construidos,
las escuelas, las obras de la red de agua, y la política de desarrollo ancla-
da en la tradición mazateca. En este punto ganó destaque el proyecto
Pueblo Mágico, programa de la Secretaria de Turismo que incluyó la
ciudad en un nuevo proyecto turístico. Este programa pretende pro-
yectar Huautla como polo de turismo místico y religioso. El comité es
presidido por el profesor Alfonso. La abuela Julieta fue prestigiada en el
discurso del presidente, lo que inicia la importancia del lugar social del
chamán en la sociedad mazateca.
177
El informe de gobierno aparece como a performance de una
asamblea, un simulacro, si comparado con las asambleas tradicionales
de los indígenas mexicanos, que pueden durar días. A pesar del carácter
de simulacro, son también una oportunidad para que la oposición per-
forme su papel. Durante el informe de gobierno registramos también
un protesto de los partidarios de MORENA, que no incluimos en la
versión final del clip por cuestiones de tiempo y narrativa.
Es innegable que acontecieron cambios importantes en el sistema
político. A pesar de estas transformaciones los cargos fueron performa-
dos en un idioma simbólico tradicional. Los símbolos/objetos, como
bastones, conchas, velas, tienen un valor estético y un significado polí-
tico. La manipulación de estos símbolos/objetos permite comprender
las performances de los cargos. Las ceremonias, por su vez, expresan
diversas dimensiones del ejercicio del cargo. No es gratuito, que el presi-
dente inicie cíclicamente su mandato como mayordomo y se iguale a la
población en la faena. Esta actitud contrasta con la asamblea, el informe
de gobierno, cuando empuña el bastón de mando para dar cuenta de las
realizaciones, una prestación de cuentas a la población.
Sobre la participación de Doña Julieta y del profesor Alfonso,
podemos destacar por un lado la participación de Alfonso en el gru-
po político de la presidencia. El ya ejerció el cargo de corregidor y en
el momento del trabajo de campo, era presidente del Comité Pueblo
Mágico. En relación a la Abuela Julieta, destacamos que fue citada
en el discurso del presidente durante el informe de gobierno, lo que
confirma la importancia de la figura del chamán para la identidad de
Huautla. Cabe señalar que durante el trabajo de campo acompañamos
diversos homenajes a la Abuela Julieta, lo que refuerza su importancia
en el espacio público.
178
CLIP DE CEREMONIAS POLÍTICAS
https://youtu.be/bVRnRcXRIlg
179
Normativos Internos o “usos y costumbres”. El gobierno por Sistemas
Normativos Internos consiste en un sistema tradicional, de influencia
hispánica, incorporado y resinificado por las poblaciones tradicionales.
Esta forma de organización reconoce el sistema de cargos por el que pa-
san los habitantes del poblado y las asambleas como órgano soberano
(BARABAS, 2006; BARTOLOMÉ, 2006; BRISSAC, 2008; CANEDO
VASQUEZ, 2008).
El sistema de usos y costumbres fue reconocido oficialmente en
el estado de Oaxaca en el año de 1995. Entre los municipios mazatecos
13 eligieron mantener el sistema de cargos y 8 eligieron el pleito elec-
toral por el sistema de partidos políticos (BRISSAC, 2008). El sistema
de usos y costumbres en el caso de los Mazatecos, estaba organizado en
torno de un consejo de ancianos, que habían pasado por todo el sistema
de cargos. En el caso de Huautla, este sistema entró en crisis al ser po-
larizado por el sistema partidario, creando un consejo de ancianos del
PRI y otro del PPS, lo que llevó a su posterior disolución (BRISSAC,
2008; BARTOLOMÉ, 2006, p. 87). En cuanto a la relación con otras
esferas de poder, como el gobierno estadual o federal, Bartolomé señala
que las mismas están marcadas por la ambivalencia entre el caciquismo,
análogo al coronelismo brasileño y la procura por autonomía por parte
de las comunidades (BARTOLOMÉ, 2006).
El hecho de Huautla no adherir a la reforma política abierta para
las poblaciones indígenas abre diversas cuestiones. ¿Los huautlecos son
menos indígenas por haber mantenido el sistema de partidos políticos?
La respuesta es una rotunda negativa. Huautla es un centro urbano de
una civilización tradicional campesina. Como agrupamiento urbano
enfrenta nuevos desafíos que intenta resolver en sus propios términos
simbólicos. A pesar de Huautla ser una ciudad de más de 30.000 habi-
tantes, es en la región de Huautla donde mejor se conserva, por tradi-
180
ción oral, el calendário agrícola tradicional, es donde las mayordomías
tienen mayor participación de la población (CARRERA-GARCÍA et
al., 2012; CARRERA GONZALES; VAN DOESBURG, 1992; QUIN-
TANAR MIRANDA; MALDONADO ALVARADO, 1999). Antes de
juzgar a partir de un deber ser, nos preguntamos: ¿en qué idioma habla
el sistema de partidos en Huautla?
Acompañamos el proceso electoral en 2016. El mismo fue pola-
rizado entre el candidato de la situación, del PRD/PAN y la oposición
que se alineó con el candidato de MORENA. Otros candidatos del PRI,
del PT y de MILPA, agrupación independiente también participaron
del pleito. En el vídeo focalizamos el cierre de campaña de los dos prin-
cipales partidos, más performances similares a las registradas también
fueron ejecutadas por los candidatos de los otros partidos políticos.
La principal diferencia entre los candidatos estaba dada en el
plano del discurso, con el candidato del PRD/PAN invocando la
unión y el trabajo colectivo, encuanto que el candidato de la oposición
criticaba la suntuosidad de la mansión construida por el presidente
municipal e insinuaba desvío de recursos. Cabe destacar que ambos
centraron sus discursos en valores tradicionales, el trabajo colectivo
y la austeridad. Otra diferencia fue que en cuanto el candidato de la
oposición centró sus esfuerzos en la población urbana, el candidato
de la situación foco sus esfuerzos en el pueblo de las agencias, las po-
blación campesina tradicional.
Priorizamos la performances por sobre el discurso, por entender
que la performances nos es sólo estética, ella es política y tiene una
intertextualidad que se apoya en los símbolos tradicionales. Ambas
campañas cerraron con una marcha cívica. La marcha se transformó
en una demostración pública de apoyo por parte de los electores, esto
181
se hizo más evidente cuando los mazatecos asistían las filmaciones y
comentaban la participación de los que estaban registrados en el vídeo.
Las marchas cívicas tuvieron un recorrido similar, se iniciaron en
el plano de salida, la carretera que lleva al nindon Tokoxo y se dirigieron
hacia la plaza frente al palacio municipal. Al trabajar estas performances
en la edición, se destacan aspectos simbólicos, presentes en también
en las otras performances analisadas. La marcha cívica con las mujeres
abriendo el camino, así como las procesiones religiosas con las her-
mandades; las mujeres vistiendo los huipiles con los colores clásicos de
Huautla; el caracol, como llamado al trabajo colectivo y al combate; el
discurso en la plaza, mismo lugar en que se realiza el informe de go-
bierno, la presencia de antiguos presidentes, que ecoan el consejo de
ancianos. Las performances de la campaña de los partidos políticos en-
vuelven objetos símbolos presentes en las performances tradicionales,
símbolos de una tradición cultural, que se transforma, para permanecer
mazateca.
No conseguí registrar, mas fui informado que los candidatos
realizaron rituales de pedimento en el nindon Tokoxo. El presidente co-
mentó en una conversa informal, que en la época de las elecciones pasó
dos meses sin mantener relaciones sexuales, debido a “los trabajos”. Los
rituales de pedimento, así como los rituales con niños santos envuelven
restricciones sexuales, uno debe mantener el cuerpo limpio.
Después de las elecciones subí el nindon Tokoxo y encontré algo
extraño entre las ofrendas en la cueva. Entre las ofrendas, que tienen un
padrón producto de la performance ritual, aparecieron algunas como
símbolos invertidos. En la cueva había una ofrenda en que los granos de
cacao estaban dentro de un saco plástico y con excrementos de perro
depositados encima del saco. Entre las velas me llamó la atención unas
veladoras invertidas. Las veladoras no podrían ser encendidas, el cacao
182
no se disolvería, no llegarían al Tokoxo. Esos símbolos eran un índice
de brujería. Esta lectura fue confirmada en conversas en el patio de la
abuela Julieta y en la casa del profesor Alfonso. La brujería, los Teej´e
trabajan haciendo un ritual invertido, en nombre de la persona que
quieren perjudicar. Desaconsejan hacer eso, porque a largo plazo, todo
tiene un precio, no se puede jugar con los dueños del lugar.
Durante la campaña, el profesor Alfonso, como secretario general
del PRD ocupó un lugar central, al lado del candidato de la alianza del
partido. Él fue responsable por la movilización de millares de campe-
sinos mazatecos de las agencias. Acompañó al candidato durante toda
la performance, envolviendo su familia. Su esposa realizó uno de los
discursos más emocionantes en el palco.
La abuela Julieta estaba atenta al debate político. A sus ochenta
años acudió a las urnas para depositar su voto. Ella se puso feliz cuando
el presidente, ahora como candidato a diputado se refirió a ella en su
discurso, como una de las abuelas del mundo, representante de México
en el Concejo Mundial de las 13 Abuelas. Un reconocimiento de su
prestigio en una performances política, la identidad de Huautla está
entrelazada con la figura del “chaman”. Coloco el término entre aspas
porque los resultados de esta investigación revelan una multiplicidad
de papeles desempeñados por los “chamanes”.
La observación a lo largo del año, nos permitió identificar que
los candidatos del PRD/PAN y MORENA participaron de las perfor-
mances que tradicionalmente eran condiciones de acceso al sistema
de cargos: la faena y la mayordomía. Esto indica que, a pesar de las
transformaciones con la introducción del sistema de partidos políticos,
la política, en Huautla es actuada con símbolos y performances maza-
tecas. A pesar de las mudanzas en la tradición, las estrategias performá-
ticas emplearon símbolos tradicionales y su gramática. Si conseguimos
183
entender este despliegue de símbolos conseguimos “escuchar” las
performances, comprenderlos mazatecos y su visión de mundo.
CLIP ELECCIONES
https://youtu.be/cel4jvkXqHc
184
antropólogo tiene que aprender los símbolos de una tradición cultural
por medio de la experiencia y traducirlos para un público más amplio.
Las performances registradas y editadas con técnicas de audio
y vídeo aparecen como una narrativa susceptible de diversas camadas
de significados. Los símbolos, sean palabras, objetos, ofrendas ganan
sentido al interior de una tradición cultural, mas tienen una intertex-
tualidad que permite trasmitirlos para un público más amplio.
Existe una continuidad entre rituales, ceremonias y fiestas, to-
das ellas son performadas, actuadas, envuelven discursos, emociones,
símbolos, envuelven el cuerpo de los participantes. Trabajar estas per-
formances con los recursos de la antropología visual permitió abordar
la materialidad de los símbolos, como los objetos-símbolos son mani-
pulados durante las performances, como orientan redes de relaciones
sociales. Al mismo tiempo, enfrentamos las limitaciones del vídeo para
realizar una traducción más profunda de estos símbolos, por lo que en
la segunda parte de este trabajo recurrimos a un estilo híbrido, un ensa-
yo antropológico-videográfico en el que articulamos el discurso escrito y
el vídeo para traducir la tradición mazateca para un público más amplio.
Las tradiciones son actualizadas en las performances, lo que
permite diluir el problema de la autenticidad. Feinberg (2003, 2006)
analiza las diferentes formas de invocar el pasado entre los mazatecos.
En su trabajo comparó el discurso de García Dorantes, que invoca el
carácter tradicional campesino de los mazatecos, con el discurso de
Juvenal sobre los hippies en los años dorados de Huautla. Ambos son
igualmente auténticos. La tradición es viva, se transforma. A modo de
ejemplo, la música tradicional de los casamientos mazatecos, “La flor
de naranjo”, tiene autor y está históricamente datada, fue escrita por
José Guadalupe García Parra en 1910. La tradicional mayordomía del
Señor de las tres Caídas es realizada en Huautla desde 1944. Alcantara
185
(2015) afirma que el neo-chamanismo se inició cuando Wasson experi-
mentó los niños santos con María Sabina. Compartimos con Langdon
(2007) la critica el uso de la categoría neo-chamanismo como forma de
estigmatizar diversas prácticas chamánicas como no tradicionales. De
acuerdo con la autora debemos encuadrar estas prácticas como otras
modalidades de chamanismo.
Existen diversos chamanismos. A nivel individual encontramos
una gran variación en la ejecución de las performances chamánicas. En
Huautla el chamanismo fue representado a partir de la figura de María
Sabina. En el ámbito público la Abuela Julita performa esa represen-
tación del chaman. En la tradición mazateca el chamanismo también
es político, en el sentido de participación en el sistema de gobierno,
el profesor Alfonso representó este papel. En la tradición mazateca
existen diversas representaciones del chamanismo. Mas que preguntar-
nos sobre el falso dilema chamanismo vs neo-chamanismo, debemos
preguntarnos por la intertextualidad del chamanismo en Huautla. Este
tema será desenvuelto en un próximo trabajo.
Referencias
186
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194
ETNOCINEMA, CINEMA INDÍGENA E
ANTROPOLOGIA VISUAL – NOTAS
SOBRE ESTRATÉGIAS METODOLÓGICAS
DO FAZER AUDIOVISUAL
Renato Athias1
195
Preâmbulo
196
tórias orais, recitos mitológicos em uma narrativa audiovisual para ser
visualizada em meios digitais. Uma demanda do que podemos chamar
cinema antropológico, do ponto de vista da pesquisa e do envolvimen-
tos de grupos dos interesses de grupos indígenas e pesquisadores no
campo da etnologia.
O cinema indígena, ou Etnoficção como estamos classificando,
nesse texto é um filme cujo texto está sendo narrado em primeira pes-
soa com atores indígenas. Então os indígenas participam na construção
do texto que foi transformado em imagens e que são visualizados em
diferentes espaços.
Devo dizer que a primeira “etnoficção” como chamamos aqui
neste texto foi realizada por Edward S. Curtis e por membros da etnia
Kwakwaka’wakw, da região do Estreito Queen Charlotte, na costa cen-
tral de British Columbia, Canadá. O filme foi intitulado: “In the Land
of the Head Hunters”, porém, também conhecido “In the Land of the
War Canoes”. Esse filme foi exibido pela primeira vez em 1914, com o
som ao vivo de uma orquestra. Em 1999, foi selecionado pela Bibliote-
ca do Congresso para preservação no National Film Registry dos EUA
como sendo “culturalmente, historicamente e esteticamente significa-
tivo”. Pode-se dizer que este filme foi o primeiro longa-metragem cujo
elenco consistiu inteiramente de indígenas da América do Norte. Esse
é o primeiro longa-metragem feito na British Columbia, é o filme mais
longo e mais antigo realizado no Canadá. O segundo filme, oito anos
mais tarde, foi o Nanook do Norte de Robert Flaherty, que, creio, é
mais conhecido por estar sempre presentes nos cursos introdutórios
de antropologia Visual.
O filme “In the Land of the Head Hunters” foi exibido em Nova
York, Seattle, Washington, em dezembro de 1914, com uma orquestra
ao vivo de uma obra musical de John J. Braham. Pois, ele teve acesso
197
a gravações musicais em cilindros de cera de músicas originais dos
Kwakwaka’wakw, e a campanha promocional na época sugeriu que sua
partitura era de sons originas do referido dos Kwakwaka’wakw. Embora
elogiado pela crítica na ocasião, o filme foi um fracasso comercial.
Em 1911, Edward Curtis tinha já muita experiência com o ci-
nema, pois anos antes ele havia criado uma apresentação com slides/
imagens e a música, como acompanhamento ao vivo das imagens. Ele
chamou de “The Indian Picture Opera”. Ele usava projetores estereoscó-
picos, onde dois desses projetores estavam estrategicamente colocados
passando as imagens em uma única na tela. Esse foi, talvez, o prelúdio
para Curtis entrar na era do cinema.
No Brasil, acredito que foi a partir da década de 1990 que a
organização “Vídeo nas Aldeias” começou a produzir esse gênero de
filmes e trabalhar especificamente com narrativas orais indígenas, com
a participação de indígenas na produção do filme e das performances.
Poderíamos aqui registrar o filme de Dominique Galois e Vicent Car-
relli intitulado “Segredos da Mata”, que mostra as histórias orais trans-
formadas em narrativas imagéticas.
Considerações etnográficas
198
rikuli e também por Kuwai. Esse processo de territorialização é muito
comum entre os povos indígenas dessa região, onde o transformador
do mundo organiza cada povo, cada grupo e subgrupo (chamado tam-
bém de fratria) em um lugar determinado nesse imenso território. Por-
tanto, cada fratria, além de ter um nome próprio, está territorializada,
ou seja, suas terras estão associados aos irmãos ancestrais, fundadores
míticos das fratrias e dos clãs, e a organização que Nhiãperikuli criou
para serem seguidas pelos atuais Baniwa e Kuripako.
Todos esses povos têm suas organizações sociais voltadas para
um território determinado e possuem uma noção peculiar de hierarquia
que se faz presente no cotidiano, em geral dada pela ordem de nasci-
mento dos irmãos. Em cada aldeia encontram-se todos os irmãos com
suas mulheres, estas, por sua vez, são provenientes de outras aldeias e
de outros clãs, indo morar na aldeia de seu marido. Essa característica
mostra um grupo social que faz parte de um sistema patrilinear, cada
um com um nome próprio, altamente hierarquizado e territorializado.
O conhecimento, o saber, é específico e pertence a cada da um
dos clãs. São compartilhados com outros apenas em situações deter-
minadas. O conjunto de histórias que compõe o entendimento cos-
mogônico dos grupos Baniwa e Kuripako está associado a vários mitos
envolvendo as aventuras dos heróis míticos Nhiãpiriculi e Kuwai nesse
mundo. Essas narrativas mitológicas dão base ao conhecimento e ao
entendimento desses povos. E essas narrativas são muito específicas de
cada grupo, havendo sempre mudanças na ordem dos acontecimentos
dependendo daquele que está narrando.
O filme Procurando o sono é a representação do entendimento
dos Baniwa e dos Kuripako sobre o aparecimento da noite no mundo
atual. Essas histórias possuem várias versões, e cada um dos grupos
tem a sua própria, de modo que não existe uma versão “canônica” desse
199
mito. Assim, cada grupo procura difundir, contar, narrar utilizando
elementos que fortalecem o clã daquele que narra. Para realizar o filme,
os alunos Kuripako e Baniwa, que participaram da produção, passaram
muitas horas reunidos, procurando uma versão comum que iria ser re-
presentada e, posteriormente, filmada. Esse aspecto é interessante, pois
na versão filmada percebem-se principalmente os elementos comuns
às diversas narrativas. Em relação a esse processo de negociação das
versões para se chegar a uma narrativa comum, é interessante refletir
sobre a questão da identidade, levando-se em consideração o que Car-
los Brandão já assinalava em Somos as águas puras (1994):
200
plamente conhecidos, poderiam se enquadrar nessa categoria “mídia
indígena”. Certamente, esse movimento do cinema indígena tem a ver
com as novas tecnologias, com as possibilidades atuais, como alguns
antropólogos têm colocado em suas observações. No caso do Brasil,
penso que está, sobretudo, associado às possibilidades de se manifes-
tarem publicamente que surgiram depois da Constituição Federal de
1988. Essa, talvez, seja a principal motivação para o crescimento das
produções indígenas no Brasil.
A produção de filmes por índios também tem sido analisada atra-
vés de paradigmas dos estudos culturais, em que o foco central recai
sobre as questões relacionadas à globalização (KNOPF, 2008). São
também objeto das Ciências Sociais e mesmo da Comunicação Social,
aspecto que não nos interessa debater aqui. Interessa menos ainda com-
parar essas produções umas com as outras, o que não é, evidentemente,
o caso – tarefa que, aliás, acredito ser realmente de difícil realização,
sobretudo quando as produções são de povos completamente diferen-
tes linguística e culturalmente.
Chamo a atenção para o debate em torno do Cinema Navajo, já
amplamente comentado por Worth e Adair (1972), e as perspectivas
que essas produções puseram para a antropologia visual a propósito de
um cinema em primeira pessoa. Talvez a categorial Cinema Indígena
esteja mais associada à produção de imagens em primeira pessoa, a
uma discussão sobre o que os índios colocam para eles mesmos. Daí a
necessidade de ver tais produções dentro da perspectiva de “Narrow-
casting”. Na realidade, são produções fílmicas que têm um endereço, e
são feitas muito mais para dentro do que para serem visualizadas fora
do espaço social do grupo.
Assim, nosso principal argumento é que as produções compar-
tilhadas indígenas, categorizadas em cinema indígena ou etnoficção,
201
estão voltadas para o interior do grupo. Discutem ideias, visões e enten-
dimentos entre os indígenas que participam da produção, e, sobretudo,
negociam as versões e o entendimento através das imagens. Pode-se
dizer que as etnoficções são propriamente organizadas e desenvolvidas
para dentro, com uma linguagem apropriada dos processos de nego-
ciação de versões e visões sobre um contexto e sobre um aspecto do
cotidiano que merece uma discussão mais ampla.
Tais produções colocam-nos, ainda, a possibilidade de discutir
o que entendemos por “ponto de vista”, ou a perspectiva indígena na
produção visual. Nesse ponto, nos aproximamos da concepção discuti-
da por Cliford Geertz (1989) no capítulo intitulado “Pessoa, tempo e
conduta em Bali”, que integra o famoso Interpretação das Culturas. Nele,
o autor insiste no “ponto de vista dos nativos”, e inicia o capítulo dis-
cutindo a “natureza social do pensamento”. Como ele mesmo assinala,
202
“Procurando o sono”
203
nos encontrávamos na aldeia, não teria sido melhor do que o escolhido,
dando, assim, vida aos animais.
Ainda considerando a dimensão da performance, acredita-se que
a imagem em movimento, o filme, é um instrumento mais apto para dar
conta de uma discussão e provocar reações nas pessoas que o assistem.
E a narrativa dramática do tema do filme permite colocar os obser-
vadores, a audiência, em uma posição de compreender o que se está
propondo na narrativa negociada, nesse caso, da história mitológica da
separação entre o dia e a noite.
Após assistir várias vezes o filme, percebi que a narrativa imagéti-
ca construída pelos Baniwa e Kuripako permite registrar e, sobretudo,
reconstituir uma delimitação espaço-temporal de um continuum em
que as manifestações se dão, através dos gestos, das palavras, do cenário,
criando um diálogo com o que Geertz designa como “entendimento do
entendimento cultural”. E esse aspecto é perceptível nas imagens que
integram Procurando o sono. A descrição, a imagem daquele que é filma-
do, adquire uma interlocução e põe em evidência aspectos simbólicos
presentes na sequência fílmica. O importante, diz Geertz (1997, p. 89),
“é descobrir junto com eles, que diabo eles estão fazendo”.
Os filmes produzidos por índios que contam uma história basea-
da em um mito, tal como esse que estamos analisando, evidenciam a
abertura de uma nova relação na troca de informações entre os pares.
Isso graças às potencialidades do novo “meio”, que, segundo Claudine
de France (1998), dá origem a uma nova proposta na “chamada antro-
pologia exploratória”, possibilitando o entendimento das performances
segundo três fatores.
204
local da filmagem, o exame da imagem, ou seja, a
observação diferida do processo estudado (FRAN-
CE, 1998, p. 342).
Filme e Performance
205
Procurando o sono não foram muitas, isso porque todos conheciam a
história e possuíam um conhecimento acumulado sobre esse mito.
Uma consideração importante se refere às filmagens deste gêne-
ro de documentário, que deve possibilitar que qualquer movimento
do cinegrafista esteja associado à narrativa, melhor dizendo, aos mo-
vimentos dos seres participantes dela. São procedimentos que o fotó-
grafo deve adotar como observador da performance. Logo, decisões,
acertos e erros são deliberações do grupo com qual se está trabalhando.
Jean Rouch (1975) já havia mencionado esse aspecto ao discutir seus
filmes, principalmente aquele voltado para o rito de circuncisão.
Estar com a câmara na produção de Procurando o sono foi pos-
sível, especialmente, por ter conhecimento dos detalhes da história e
ter visto as repetições. A câmara ficou solta, buscando enquadrar os
personagens e o desenvolvimento da performance tal como havia sido
discutido na elaboração roteiro. Nesse caso, privilegiou-se o ritmo, os
momentos, a forma de encadeamento e ordenamento da representa-
ção do mito. Isso nos levou realizar certos registros que permitissem
mostrar todos os agentes, impedindo a fragmentação e as sequências
espetaculares. Procuramos fazer coincidir o tempo fílmico com o tem-
po da narrativa, de forma a dar uma possibilidade de interpretação, em
outras palavras, os cortes foram mínimos.
Não foram feitas muitas observações sobre o impacto desse
filme numa audiência indígena. O que pudemos perceber, quando da
primeira exibição, foi um grande silêncio, que mostrou o interesse geral
da audiência em relação à narrativa da separação entre a noite e o dia. É
possível imaginar o interesse, pois era a primeira vez que uma narrativa
oral, que sempre fora contada por uma pessoa, tinha os personagens
animados. Esse fato suscitou muitos comentários sobre como se con-
206
seguiu fazer com que um grupo de adultos e crianças permanecesse em
silêncio durante a construção imagética de uma história mitológica.
Produção Antropológica
207
de filme pode captar as sutilezas, e estas poderiam ser apreendidas por
todos aqueles que conheciam a narrativa negociada para a encenação. De
outra parte, a filmagem permite a preservação da integridade dos gestos,
das atitudes, das reações, e dos ritmos.
Com essa produção, ficou demonstrada também a maneira como
as imagens animadas apresentam os diversos espaços onde os animais,
representados pelos atores, se situam no mundo humano, enfatizando
as relações sociais presentes nos comportamentos animais, pois, no
mundo mítico, animais e humanos utilizam-se das mesmas estratégias,
não havendo, portanto, uma “separação” entre comportamento animal
e humano. Nesse sentido, a filmagem garante o registro que a observa-
ção direta, não instrumentalizada, dificilmente poderia realizar. E isso
nos lança para a discussão sobre as vantagens da observação fílmica
comparada ao resultado de uma observação direta, o que não significa
desprezar a observação direta. Entretanto, a câmera e o trabalho com
ela, juntamente com o grupo com o qual se está trabalhando, leva-nos a
uma profundidade que “um informante” não teria como superar.
Talvez outro aspecto importante sobre o qual essa produção
visual me levou a pensar diga respeito aos desdobramentos provoca-
dos pela narrativa imagética em questão. Esse registro visual põe em
evidência uma versão consolidada de um mito que tem muitas versões.
Assim, da mesma forma que a escrita do mito se limita a uma única
versão, uma produção visual sobre um mito pode levar a um congela-
mento de uma única versão.
Essas são algumas das questões suscitadas pelo filme Procurando o
sono, e que nos pareceram ser importante compartilhar a fim de contri-
buir para o debate sobre o cinema indígena e a produção antropológica.
208
Filme Renato Athias
VÍDEO: https://youtu.be/2giYHf8dYFk
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missora. In: Do filme etnográfico à antropologia fílmica. Trad. Marcius S. Freire.
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Campinas, 1996.
210
O PROCESSO DOCUMENTAL:
UMA EXPLORAÇAO AUDIOVISUAL
DA ISICATHAMIYA1
Alex Vailati2
211
etnográfico Slow Walker, realizado entre 2011 e 2012, no centro
da cidade de Durban. Por meio da produção do audiovisual e da
sua restituição, foi possível analisar a difícil relação entre a conti-
nuidade da Isicathamiya com o seu passado e a sua transformação,
necessária aos olhos de vários performers, para adaptá-la ao mer-
cado musical contemporâneo. Além disso, a análise da recepção
evidenciou a potencialidade que o audiovisual tem de se inserir em
redes urbanas e de possibilitar uma reflexão sobre o conflito social.
Palavras-chave: Documentario. Africa do Sul. Zulu. Isicathamiya.
1 INTRODUÇÃO
212
Figura 1 - Os Ladysmith Black Mambazo, o mais famoso grupo
de Isicathamiya, com o cantor americano Paul Simon
213
Esses processos se refletem na dimensão local da Isicathamiya.
Longe das luzes das mídias internacionais encontramos hoje, seja nas
áreas rurais, seja em contextos urbanos, muitos espaços sociais onde
essa performance tem forte relevância simbólica. O ponto de obser-
vação proposto neste trabalho será um desses espaços localizado na
cidade de Durban, terceira cidade sul-africana e capital do estado de
KwaZulu-Natal, na costa oriental da África do Sul. Como nas outras
metrópoles, em Durban acontecem com regularidade, na noite de
cada sábado, competições entre bandas. Normalmente realizadas em
espaços marginais, essas competições são uma das heranças contempo-
râneas mais relevantes desse gênero musical.
Entre o ano 2011 e 2013 realizei um documentário sobre um
desses espaços que, como veremos, é talvez o mais relevante da história
de Durban. Neste artigo, a Isicathamiya é analisada através da autoet-
nografia da produção audiovisual. A realização do documentário, além
de permitir o compartilhamento da descrição etnográfica, é também
uma ferramenta para visibilizar os conflitos presentes nas múltiplas
narrações construídas sobre um específico objeto cultural. Além disso,
o laço entre produção e etnografia da produção permite uma reflexão
sobre a polifonia da narração (BACHTIN, 2010) e sobre a relação en-
tre independência das vozes dos personagens e as dinâmicas de poder
são ligadas à produção de um audiovisual.
2 ISICATHAMIYA
214
de espaços urbanos, as diferenças econômicas como novo parâmetro
de diferenciação dos espaços urbanos.
Antigamente, o centro da cidade de Durban era um espaço “bran-
co”, onde os negros só podiam entrar com uma permissão oficial, que
lhes consentia trabalhar. Nos anos quarenta foi criado o primeiro espaço
de agregação para negros no centro da cidade: o Durban Bantu Social
Centre3. Este foi criado num momento de movimentação sindical com o
objetivo de regulamentar – e controlar – a agregação de negros. Todavia
esse espaço se tornou um lugar de intensa atividade política. Por meio de
entrevistas não gravadas em audiovisual, descobrimos que reuniões clan-
destinas organizadas por várias entidades políticas eram realizadas nas
salas do prédio. Muitas vezes eram disfarçadas com atividades culturais
desenvolvidas no salão: exibições de cinema, encontros de boxe e, para
voltar ao tema deste artigo, competições de Isicathamiya.
3 Bantu é uma palavra que em várias línguas significa humanidade. Na retórica ra-
cista do apartheid esta era traduzida pela palavra “negro” e geralmente era utiliza-
da em sentido depreciativo.
215
Como na maioria dos contextos urbanos sul-africanos, os traba-
lhadores migrantes moravam em bairros caraterizados por uniformida-
de de “raça” denominados, na linguagem comum, “townships”. “Raças”
que eram simplificadas por uma classificação racialista, eram na realida-
de caraterizadas por uma enorme diversidade e complexidade cultural.
Nos anos quarenta, começou a se desenvolver esse estilo de música e
dança que hoje é chamado de Isicathamiya. Essa performance, como
aconteceu em outros casos (MITCHELL, 1956), era uma reelaboração
de várias danças diferentes praticadas na área rural, que no mundo ur-
bano eram ressignificadas. Não só os símbolos dos povos africanos en-
travam nesse processo, mas também aqueles do dominador, o branco,
cuja roupa social foi adotada pelas primeiras bandas. Sem a pretensão
de analisar historicamente as transformações deste gênero, o objetivo
aqui é contextualizá-lo na contemporaneidade.
A palavra Isicathamiya significa, literalmente, “caminhar com
passos de gato” para não ser ouvido. Também o estilo de música, a
capela, é caraterizado para ser cantado quase murmurado, mantendo
a uniformidade das vozes dos coros. Coros geralmente eram constituí-
dos de 5 até 20 cantores, divididos em várias tonalidades. Essa ideia de
não fazer barulho nasce nos albergues onde a Isicathamiya foi praticada
na época do apartheid. As performances aconteciam, como hoje, de
noite. Daí a necessidade de “não levantar a voz” para deixar dormir os
trabalhadores que não participavam como performers ou como públi-
co nas competições.
216
Figura 3 - O YMCA Hostel na contemporaneidade
217
3 TROUBLE-SHOOTING
218
Figura 4 - Os Evening Birds, 1941 (da esquerda):
Solomon Linda, Gilbert Madondo, Boy Sibiya, Gideon
Mkhize, Samuel Mlangeni e Owen Sikhakhane
219
vozes diferentes propunham diferentes projetos políticos pela Isicatha-
miya, que se refletiam no estilo musical-performativo adotado. Em uma
entrevista, sucessiva à restituição do documentário, um dos protagonis-
tas questionou essa necessidade de manter a Isicathamiya como algo
“tradicional”. Se antigamente, na época da apartheid, os cantos eram de
volume baixo, porque eram feitos em lugares onde outros trabalhadores
estavam dormindo, hoje em dia é necessário “levantar as nossas vozes”.
220
A narrativa do filme sublinear mostra a diferença entre vários
grupos, alguns mais “tradicionalistas” e outros cujo objetivo é “moder-
nizar” a Isicathamiya. Um foco sobre duas bandas, os “Real Solution” e
os “Messanger A”, nos permite ver as diferenças musicais que refletem
essas escolhas e as diferenciam entre os projetos políticos das duas
bandas. Os primeiros, dependendo de um reconhecimento institucio-
nal, de natureza quase museal, e os outros querendo uma afirmação da
Isicathamiya no mercado musical e do entretenimento.
A restituição, então, foi um momento de conflitualidade e de
manifestações. No plano dos conteúdos, a ética etnográfica que adotei,
colocando as múltiplas posições e opiniões no mesmo plano, lidou
com as críticas ao documentário. Não adotar uma posição clara gerou
reprovação da maioria dos performers. Em segundo lugar, no plano
linguístico, a adoção de um estilo baseado na câmera a mão e a total
ausência de efeitos visuais, que contrasta com os clipes autoproduzidos
pelas bandas, foi percebido como uma diminuição da força sonora e
visual da Isicathamiya. Se o objetivo do trabalho de estimular o debate
social sobre um objeto foi atingido, o documentário, que foi positiva-
mente recebido no mundo da academia e do cinema, não foi utilizado
pelos atores sociais como meio de reivindicação política.
4 CONCLUSÕES
221
depois possível contextualizar reflexões mais amplas sobre a circulação
do audiovisual. Como reporta Herzfeld:
4 Vision has practical consequences; it is our ethical predilections that will deter-
mine, at least to some extent, whether these will benefit the people with whom
we work or reproduce the rigid antinomies through which privilege maintains
the structural status quo.Among those barriers, perhaps the most dangerous is
that which separates our academic preoccupations from the world in which they
are embedded. (Original)
222
sentações visuais, nesse momento histórico, parece ser cada vez mais
um campo de batalha relevante pelos processos políticos e sociais, e
só por meio de uma interconexão entre contexto de realização e imagi-
nário global, em que as imagens são jogadas, será possível propor uma
conscientização ética do universo da produção.
Slow Walker
CLIP https://youtu.be/bh0ebpjvqLw
REFERÊNCIAS
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Anthropology. Chicago, London: University of Chicago Press, 2011.
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can youth. Visual Anthropology, n. 27, v. 1-2, p. 91-104, 2014.
225
GUERRA DE IMAGENS
Carmen Rial1
226
A análise de publicidades2 – e de como elas acionam estereótipos
de gênero, raça, geração – tem sido um tema bastante explorado na
antropologia, desde o estudo precursor Gender and Advertisements de
Goffman (1979). Para ficar apenas com alguns trabalhos importantes
realizados na Unicamp, lembro o de Guita Debert, que analisou os es-
tereótipos da velhice, em 2003, e o de Iara Beleli sobre as construções
de gênero, sexualidade e raça na publicidade, em 2005. No Brasil, como
apontou Debert (2003), jovens aparecem mais nos anúncios, ficando
os/as velho/as praticamentes reduzidos a anúncios de seguros ou de
convênios de saúde, ou simbolizando a solidão (como em anúncios
de telefonia) e a incompetência (não conhecem um novo produto),
ao contrário de outros países, europeus principalmente, nos quais
aparecem plenamente inseridos na vida cotidiana. Com o passar dos
anos, Debert (2003) notou mudanças nesse padrão: realizou um vídeo
sobre a presença dos velhos na publicidade brasileira e nele aparecem
algumas exceções, como o comercial de uma marca de margarina em
que a “vovó” é flagrada pela família na cama com um desconhecido e
se justifica dizendo: “nós vamos casar...”. Já Beleli (2007, p. 194) buscou
apreender “como a propaganda reifica ou desestabiliza noções de gê-
nero e sexualidade percebidas como tradicionais”, analisando anúncios
publicados em revistas de entretenimento e vencedoras de concursos
de publicidade. E conclui que “a propaganda distingue categorias de
pessoas e orienta modos de ser e viver, centrando sua eficácia na aten-
ção que ela desperta no consumidor” (BELELI, 2007, p. 211).
Iniciei o texto “Japonês está para TV assim como mulato para
cerveja: imagens da publicidade no Brasil” (RIAL, 1995) reconhecen-
do, como Goffman (1979), os limites das análises de peças publicitá-
rias e concordando com sua afirmação de que o sucesso de um estudo
227
assim exigiria somente um pouco de “perversidade e astúcia, e um lote
importante de fotografias” (GOFFMAN, 1979, p. 24, tradução minha).
Goffman (1979) vai mais além quando diz que as análises não são mais
do que uma “reação puramente subjetiva”, saldo de uma “subjetividade
flutuante”, o modelo resultado é “não representativo”, e que “pode-se
dizer qualquer coisa de uma coleção de imagens”, pois “uma coleção
deste tipo não prova nada sobre o social” (GOFFMAN, 1979, p. 36-
37). E assim continua. Essas observações antecipam possíveis críticas
e parecem autodefesas diante de colegas sociólogos preocupados com
representatividade da amostra e uma objetividade extrema. Hoje soam
datadas, pelo menos entre os que reconhecem a subjetividade, como
parte do método na antropologia. Embora devam ser consideradas, não
impediram que o estudo de Goffman (1979) – e os das autoras citadas
acima – tenham chegado a conclusões instigantes. Não há dúvida que
a subjetividade esteve presente na leitura das imagens que escolhi para
analisar – e poderia ser de outro modo?
Para além dos limites apontados por Goffman (1979), existem
outros a serem considerados nas análises de imagens publicitárias e de
textos da mídia em geral. Por exemplo, muito pouco pode ser deduzi-
do acerca do efeito (ou “influência”, como preferem alguns) que essas
imagens publicitárias têm ou poderiam vir a ter sobre outros leitores;
e ainda menos sobre que se passa no mundo real, com as pessoas, nos
seus comportamentos, práticas, estilos de vida e construções de subje-
tividades. Isso demandaria uma pesquisa de recepção, pois sabemos que
imagens e textos de modo geral – as imagens sendo uma forma possível
de um texto, podem ser lidas diversamente por diferentes receptores
(ECO, 1968). Acrescento, portanto, essa outra advertência: nos dois
ensaios aqui evocados não há nada sobre a recepção, pois não estava
interessada em analisá-la. Considero que esse é um campo bastante
228
desenvolvido na América Latina – especialmente na comunicação,
bem menos na antropologia – e que estudos de recepção devem ser
levados adiante, até para matizar conclusões de análises como as que
aqui proponho.
Japonês...
229
as, negros/as, mulatos/as ficavam de fora da esmagadora maioria de
nossas peças publicitárias. Os comerciais veiculados em rede nacio-
nal privilegiam brancos/as.
De fato, sabia disso antes de começar, pois numa entrevista sobre
a globalização com um publicitário da MacCan-Erickson em São Paulo,
ele tinha me dito que o principal empecilho à importação de textos publi-
citários norte-americanos não era de ordem legislativa, e sim o fato de os
anúncios americanos incluírem quase sempre pretos/as em um padrão
julgado inaceitável no Brasil. Isso obrigava as sucursais brasileiras das
agências publicitárias a adaptarem os anúncios a um suposto racismo do
consumidor brasileiro – os regravavam-nos branqueando-os.
Evidentemente, estava diante de valores étnicos/raciais diversos
e era impossível não os relacionar com as ricas discussões nos Estados
Unidos em torno da necessidade de se redesenhar o espaço social dan-
do voz a minorias (étnicas, sexuais, e outras), que antes eram abafadas
pelos representantes hegemônicos da nação. Vejamos rapidamente
como se expressavam essas diferenças raciais nas publicidades brasilei-
ras pesquisadas.
Índio/as foram quase totalmente esquecidos: apenas duas vezes
observei sua presença, e nas duas tratava-se de caricaturas. No primeiro
comercial, havia um “índio” (cocar, seminu) entre pessoas de diversos
locais no mundo, que desciam correndo uma duna, atraídos pelo
barulho dos chicletes Adams. No segundo, a caricatura era ainda mais
grosseira. O “índio” era configurado seguindo convenções pictóricas
do séc. XVI. Pele levemente escura, quase nu, rosto pintado de branco,
andava aos pulos com as pernas abertas em arco, perseguindo um
grupo desesperado de homens e mulheres brancos. Havia um caldeirão
ao fundo que indicava: era um canibal. Os brancos se perguntavam por
que não haviam pensado antes em adquirir um seguro Bamerindus...
230
O riso era o objetivo do comercial e, para obtê-lo, se lançou mão de
estereótipos colonialistas3.
Já os/as pretos/as foram representados em comerciais em situa-
ções nas quais o corpo era o central: apareciam geralmente como força de
trabalho – carregadores, motoristas, empregadas domésticas. Ou como
mães. Eram trabalhadores: não havia pretos/as em comerciais de auto-
móvel, mas eram mecânicos de revendedoras de pneu; não havia pretas
como manequins anunciando roupas, mas lavando-as; não havia pretas
comprando nos supermercados, mas cozinhando, e assim por diante.
As mulheres pretas, quando não estavam num trabalho domés-
tico, apareciam invariavelmente representadas ao lado de uma criança.
A criança atestava sua condição de mãe, a maternidade sendo outra
das imagens tradicionalmente ligadas à mulher preta no Brasil desde
á escravidão e ao uso das negras como amas de leite para os brancos,
amantes ou/e reprodutoras de força de trabalho escravo4.
Havia algum espaço para os pretos/celebridades – futebolistas,
atores, cantores. Sendo 1994 um ano de Copa do Mundo, mas não
apenas por isso – a grande maioria dos pretos aparecia em anúncios
testemunhais, relacionados com o futebol. Eram bem conhecidos, ce-
lebridades da bola – o que não era novo, pois remonta as publicidades
com Leônidas da Silva, o primeiro futebolista e o primeiro preto a fazer
propaganda no Brasil, por ter vendido, em 1939, seu apelido Diamante
231
Negro para a marca de chocolate Lacta, na que é considerada a primeira
operação de marketing no país, em que o jogador recebeu um cachê de
2 ou 3 mil réis (cerca de 3 mil reais em 2015, diferentes fontes apontam
diferentes valores na conversão). Na televisão brasileira, o primeiro
preto em comercial foi o cantor Wilson Simonal, contratado pela Shell
no final dos anos 1960.
Anúncios multiétnicos/raciais – como, mais tarde, os da Ben-
neton (FINCO, 1996) – não tinham espaço entre os que analisei. Os
poucos pretos e mulatos só apareciam no que era ideologicamente
considerado seus domínios – futebol, música, dança, bebida, comida.
E com mais frequência um pouco antes, durante e logo depois da Copa
do Mundo. Ou seja, o Brasil do cotidiano era mostrado com uma fron-
teira racial claramente definida. Porém, quando se tratava de represen-
tar a “nação brasileira”, os pretos/as entravam em cena misturando-se
aos brancos. E a Copa do Mundo era um desses momentos. Como
bem refletia a música de fundo usada no anúncio das sandálias Rider,
filmado em Los Angeles em 1994 (Copa nos EUA) e em Paris em 1998
(Copa na França): “Chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu
valor” – “bronzeada” sendo uma metáfora conhecida para se referir a
outras cores de pele que não a branca.
Quer dizer, a presença constante em momentos em que se evoca
a nacionalidade e o expurgo sistemático do preto/a e do/a mulato/a da
publicidade parece mostrar que o Brasil que se confronta com outros,
esse era preto, branco e mulato; e o Brasil que vivenciamos todos os dias,
que compra pasta de dente e refrigerante, neste, o lugar dos/as pretos/
as era o de trabalhadores braçais ou de estrelas futebolísticas e musicais.
Em outras palavras, no Brasil de todos os dias a publicidade bra-
sileira estava imersa nas teorias racistas do início do século passado,
bem expressas em uma quadrinha popular, citada por FREYRE (1984):
232
“Branca é pra casar, mulata pra fornicar, e negra pra cozinhar”. Não está-
vamos longe da classificação das raças segundo determinadas aptidões
elaboradas por Gobineau (1967), na qual os/as negros/as aparecem
como inferiores aos/as brancos/as nos itens de “intelecto” e “manifesta-
ções morais”, mas superam os/as brancos/as em “propensões animais”, o
que, colocado em termos contemporâneos, seria maior capacidade física.
Nos momentos especiais, quando o Brasil precisava se representar como
uma nação, tínhamos a contraface dessas teorias, o pensamento mistifi-
cador de uma democracia racial, visão idílica de um encontro de raças.
E os japoneses? Se os mulatos/as e pretos/as, apareciam sempre
movendo o corpo em gestos amplos, japoneses/as eram representados
numa quase imobilidade: mexiam a cabeça apenas. O comercial da
Sharp é, nesse sentido, exemplar. Cinco cabecinhas japonesas apare-
cem na tela – o resto do corpo permanece invisível.
Japoneses/as, mulatos/as e pretos/as apareciam assim em si-
tuações opostas no discurso publicitário. Mulatos/as e pretos/as são
representados antes de tudo como corpo, um corpo com capacidade
física superior ao do branco (“dionisíaco se opondo ao branco apolí-
neo” – como nos diz FREYRE (1945, p. 432) em outra passagem) e
que ingressa em desvantagem numa hierarquia social na qual o valor
maior está relacionado à razão. Por isso mesmo, quando a hierarquia
social dominante se inverte em momentos ritualísticos como é o caso
da Copa do Mundo (e poderia ser o do carnaval, que ficou de fora aqui),
o/a preto/a e seu corpo se distingue.
Isso mudou nos últimos anos? Penso que sim, consequência pre-
visível de uma atenção crescente à política de representação por parte
de grupos organizados e do movimento social. Hoje seria difícil imagi-
nar um comercial como o da Petrobrás – e termino esta parte com um
anúncio da Petrobrás porque, pelos estereótipos raciais e de gênero que
233
aciona, o considero um escândalo: o anúncio mostra um frentista que,
ao abrir o capô de um caminhão, se depara com minúsculos homens
musculosos, predominantemente mulatos e pretos, que aparecem no
lugar das peças do motor. O frentista lhes pergunta “que óleo vai?”. A
resposta é um primor de machismo (“o óleo tal, você pensa que nós
somos mulherzinha?”). Em seguida, o de pele mais escura entre eles
completava, com uma conotação sexual explícita: “Também, olha só
o tamanho do pistão”, e a continuavam nas falas finais, cantando: “Em
cabina pequena, sempre cabe uma morena”.
234
enfatizar neste texto é que essa lei de “segurança nacional” alterou
profundamente as relações dos jornalistas com os acontecimentos,
especialmente com guerras, pela instauração de censuras diversas e re-
tiradas de prerrogativas (como o direito dos jornalistas de acompanha-
rem qualquer missão militar). Seria longo desenvolver aqui, mas não
são poucos os que apontam a importância da divulgação das imagens
da Guerra do Vietnã para o fim da guerra, o mesmo não tendo sido
possível nas guerras norte-americanas posteriores.
“Alguém aqui foi estuprada e fala inglês?”. A frase é uma citação
da autobiografia do jornalista norte-americano Edward Behr, e, ironi-
camente, aponta a pressa de jornalistas enquadrados no que se costuma
chamar de sensacionalismo. Lendo-a, se poderia pensar que os estu-
pros de guerra fossem notícias recorrentes. Bem ao contrario, eles se
constituem em um dos grandes silêncios da mídia.
A guerra5
235
bens necessários à sobrevivência, à prostituição obrigatória e ao estu-
pro6, tal como observados em diversas situações, tempos e em regiões
do mundo tão diversas quanto Uganda, Libéria, Angola, China, Coréia
e América Latina. O livro de Karima Guenivet (2001) fornece inúme-
ros exemplos de constrangimentos afligidos às mulheres em situações
de conflito armado, em diferentes momentos históricos e contextos
culturais. Em Angola, jovens raptadas são dadas em casamento aos re-
beldes, como retribuição às suas contribuições ao combate; se o com-
batente morre, a jovem é casada com outro e assim por diante. Grupos
rebeldes, como o Sendero Luminoso, na América Latina, utilizariam as
mulheres para cozinhar, cuidar dos feridos e lavar a roupa. Elas podem
também ser constrangidas a contribuir sexualmente ao “esforço de
guerra”, prostituindo-se – uma prostituição forçada em que, diferen-
temente da escravidão sexual, o combatente se torna um proxeneta e
ganha dinheiro que será reinvestido na guerra.
Se por um lado não há novidade no fato de as mulheres conti-
nuarem sendo objeto de agressões por parte dos inimigos (e também
dos aliados), por outro, é uma extraordinária novidade o seu recente
6 Entendemos estupro aqui tal como é definido em um relatório das Nações Uni-
das: “a introdução pela força, pela imposição ou violência de um objeto qualquer,
entre os quais, mas não exclusivamente, um pênis na vagina ou no ânus da vítima,
ou um pênis na boca da vítima, esta podendo ser tanto em um homem como uma
mulher” (COOMARASWAMY, 1998, tradução minha). Desse modo, estupro
refere-se aqui ao que em inglês se diz rape e em francês viol. Não corresponde,
portanto, à noção jurídica brasileira de estupro (artigo 213 do Código Penal) se-
gundo a qual estupro é “constranger mulher à conjunção carnal, mediante violên-
cia ou grave ameaça”, mas em que está prevista a introdução do pênis na vagina,
desconsiderando outras formas de violação, como a introdução de outros objetos
na vagina ou do pênis, no ânus ou na boca. Essas outras formas de agressão sexual
são consideradas pelo Código Penal como “atentado violento ao pudor” (artigo
214). “[...] durante a invasão da Bélgica, as agressões sexuais cometidas por sol-
dados alemães foram tão frequentes que levaram à conclusão de que foram não
somente toleradas pelos oficiais, mas encorajadas” (TESCARI, 2005, p. 39).
236
protagonismo na luta. Os estudos realizados sobre guerras entre nações
e conflitos armados mostram a ascensão das mulheres ao palco de luta,
não mais como butim e sim integrando e dirigindo exércitos. Inicial-
mente como enfermeiras, para depois pegar em armas, como quando
de sua participação na luta armada da esquerda em alguns de países na
América Latina (WOLFF, 2006), incorporando-se em exércitos nacio-
nais (o de Israel, muito cedo) dirigindo prisões (EISENSTEIN, 2004),
como mártires em atentados a bomba (na Palestina e na Chechênia) ou
em cargos de chefia (Ministra da Defesa na França e no Chile, Ministra
de Segurança Nacional nos Estados Unidos).
O estupro
7 Pouco se sabe sobre esses estupros, pois “a maior parte dos depoimentos disponí-
veis é oriunda dos julgamentos de Nuremberg, no qual somente as potências do
Eixo foram julgadas” (TESCARI, 2005, p. 29).
237
na França, na Rússia e nos outros territórios ocupados. Porém, esses
atos foram divulgados de maneira maniqueísta, negando-se terem sido
praticados pelos dois campos, pelos países do Eixo tanto quanto pelos
países aliados. Tanto é assim que estima-se que entre vinte e cem mil
mulheres tenham sido violadas quando da tomada de Berlim pelos
soviéticos em 19458.
Muitos estupros cometidos por soldados nazistas contra mu-
lheres judias ficaram na obscuridade, pois, dada a lei para Proteção
do Sangue e da Honra Alemães promulgada em 1935, era vedado o
contato entre alemães e judias. Já, entre os aliados, o ato chegou a ser
oficializado, pois, nos contratos dos mercenários marroquinos que lu-
taram no exército francês na Itália, era explicitamente dada a permissão
para pilhar e estuprar em território inimigo (TESCARI, 2005, p. 46).
O estupro e a escravidão sexual foram correntes também na Ásia,
e até hoje aguardam reparação as mais de duzentas mil chinesas, co-
reanas, filipinas, malaias, indonésias, tailandesas, birmanas, mulheres
da então Nova Guiné, de Hong Kong e de Macau, que serviram como
“confort women” para os integrantes do exército japonês.
O Tribunal Militar Internacional para o Extremo Oriente, estabe-
lecido pelos aliados em Tóquio para julgar os criminosos de guerra, jul-
gou 28 casos de estupro e pela primeira vez estabeleceu “o estupro como
um crime de guerra. Comandantes foram considerados responsáveis por
agressões sexuais cometidas por soldados sob seu comando”, mas não se
considerou nenhum caso de confort women (TESCARI, 2005, p. 46).
8 No dia 27 de junho de 1996, pela primeira vez na história, o tribunal penal inter-
nacional da Haia qualifica a violação contra as mulheres cometida em tempos de
guerra como “crime contra a humanidade” na sequência do processo de Foca. Vé-
ronique Nahoum-Grappe, antropóloga do Centro de Estudos Transdisciplinares
(CETSAH), trabalhou sobre os lugares do genocídio e testemunha sobre esses
novos crimes de guerra.
238
No caso mais trágico, que ficou conhecido como “the rape of
Nanking”, cerca de vinte mil mulheres foram estupradas e mutiladas
em Nanking durante o primeiro mês de ocupação japonesa na China,
em dezembro de 1937 (TESCARI, 2005, p. 41). O modo encontrado
então pelo governo japonês para evitar novos estupros em massa foi
estabelecer prostíbulos nos territórios ocupados, recrutando prosti-
tutas, mas também mulheres enganadas por promessas de trabalho,
raptadas ou coagidas, que eram assim estupradas diariamente (COO-
MARASWANY, 1998).
Os japoneses não foram os únicos a adotar essa prática. Os ame-
ricanos, durante a Guerra do Vietnã e antes no Japão, estabeleceram
bordéis para os militares, incentivados pelo Pentágono. Isso se somava
à violência sexual cometida pelos soldados americanos de modo gene-
ralizado no Vietnã, onde, segundo testemunho de veteranos, “o estupro
de vietnamitas era ‘procedimento operacional padrão’” (TESCARI,
2005, p. 48).
Durante a guerra de independência, em Bangladesh em 1971,
entre 250 e 400 mil bengalesas teriam sido violadas por soldados
paquistaneses, das quais, cerca de 30 mil engravidaram (UNITED
NATIONS, 1995); na Indonésia, o esporte favorito dos soldados mo-
bilizados no Timor era violar as mulheres diante de seus maridos e de
seus filhos (GUENIVET, 2001, p. 46).
Durante a invasão do Kuwait pelo Iraque, em 1990, calcula-se
que mais de cinco mil kuwaitianas tenham sido violadas (UNITED
NATIONS, 1992). Na Nigéria, outras mulheres conheceram o mesmo
massacre em nome da Jihad (GUENIVET, 2001, p. 12). Na luta pela
independência de Moçambique, em meados dos anos 1970, mutila-
ções e violências sexuais cometidas pelos guerrilheiros aterrorizaram
a população civil; mulheres foram raptadas, escravizadas e tiveram
239
filhos de seus algozes. Na Libéria, as agressões sexuais da guerra civil
iniciada em 1989 são ainda praticadas; em Serra Leoa, soldados do
governo e rebeldes têm raptado e escravizado sexualmente mulheres e
meninas, e médicos estimam que cerca de 80% delas contraem doenças
sexualmente transmitidas (UNITED NATIONS, 2002; TESCARI,
2005, p. 4). Na República de Ruanda (onde as estimativas de mulheres
estupradas variam entre 15 mil e 500 mil), no Congo, na República da
Guiné, no Timor Leste e no Timor Oeste... Os casos se sucedem em um
interminável rosário de atrocidades raramente denunciadas na mídia.
O estupro de mulheres tornou-se arma de guerra. Foi assim na
Guerra dos Balcãs, onde pela primeira se teve conhecimento de um
projeto estatal incentivando o estupro como um projeto de “limpeza
étnica”, inicialmente denunciado por Roy Gutman (1992). De fato,
a guerra na ex-Iuguslávia ensinou ao mundo que o estupro poderia
ser não apenas o “repouso” e o butim do guerreiro – o que já é, em
si, insuportável –, mas se tornar objeto de um programa sistemático,
constituindo-se numa arma de guerra e um elemento de uma estratégia
militar desejada, consciente e determinada. Assim como Gutman, a an-
tropóloga francesa Véronique Nahoum-Grappe (2003) tem refletido
sobre esses estupros e mostrado que a violação sistemática constitui,
hoje, um dado novo e inaceitável:
Às atrocidades “habituais” cometidas por todos os exércitos
do mundo (violações, torturas, pilhagens...), o regime de Milosevic
acrescentou a violação organizada em campos previstos para esse
efeito, e de acordo com modalidades precisas (NAHOUM-GRAPPE,
2003, p. 32).
No caso dos estupros perpetrados nos conflitos da ex-Ioguslávia,
o objetivo era bem preciso: apagar a linhagem natural da população per-
seguida, introduzindo o sangue estrangeiro conquistador sob a forma de
240
uma criança que a mulher não desejou e que não pode suprimir. Trata-se
no sentido estrito de apagar uma linhagem fazendo na mulher a criança
do inimigo. Nos “campos de violação”, como ficaram conhecidos os lo-
cais onde esse crime era perpetrado de modo sistemático, tratava-se de
conservar a mulher violada em vida e de impedi-la de abortar. Elas eram
mantidas prisioneiras ali até atingirem os seis meses de gravidez (GUE-
NIVET, 2001), num genocídio de uma nova espécie, e paradoxal, no qual
se busca matar uma identidade não apenas pela exterminação direta, mas
também e, sobretudo, preservando a vida da vítima mulher.
Voluntários ou forçados, os torturadores de Milosevic aplicaram
escrupulosamente esse princípio. Tratava-se, por meio da violação
política, não somente “serbacisar” o sangue não sérvio, mas também
destruir a identidade e a honra das populações visadas, sujando o que
elas tinham como o mais caro9. “O violador diz à mulher Bósnia que
viola: ‘Terás uma criança sérvia’“ (TESCARI, 2005, p. 16). Como os
fascistas espanhóis que pichavam sobre os muros: “Morreremos talvez,
mas as vossas mulheres darão nascimento a crianças fascistas!” (NAH-
OUM-GRAPPE, 2003).
Num caso como no outro, o estupro é uma mensagem dos vence-
dores aos vencidos. Desse modo, se novidade há nos estupros de guerra
é o fato de essa agressão ser usada politicamente, a sua “estatização”, o
fato de serem geridos por autoridades militares. Esse tipo de violação tem
uma intenção perfeitamente genocida – e é assim exatamente porque
não se mata. Ele atinge diretamente a mulher estuprada, e gera vítimas
indiretas, pois atinge a honra de toda a família, ou mesmo da nação.
Estupros por parte de militares ocorreram e se efetuam também
em lugares mais próximos de nós. Durante as ditaduras militares na
9 Sobre a participação das mulheres na luta armada no Brasil, ver Wolff (2006);
Goldenberg (1997); Costa et al.(1980)
241
América Latina, nas décadas de 1970 e 80, o estupro era uma das prá-
ticas de tortura sistemática e as agressões sexuais não se restringiam às
mulheres – também homens militantes de esquerda foram metodica-
mente estuprados e até castrados. O silêncio em relação às agressões
sexuais envolvendo homens foi e é ainda maior do que os estupros
implicando mulheres, como se, nesses casos, a vergonha da vítima
fosse ainda maior, e é significante que, entre os numerosos estupros
de homens que se imagina terem ocorrido, só tenha vindo a público
o caso de um padre – ou seja, de um homem, porém, sem uma honra
viril a exibir10. Com a militarização de Chiapas a partir de 1995, têm
sido denunciados frequentes estupros da parte das tropas governistas
contra populações indígenas.
Lá como aqui, estamos inseridos em lógicas de honra e nas quais
muitas vezes as vítimas impõe-se um silêncio constrangido, pois revelar
sua vitimização poderia ser insuportável para os seus companheiros de
esquerda, eles também compartilhando os mesmos códigos de honra e
virilidade dos torturadores11. Um caso cabal de não imagem, de silên-
cio no mediascape; mas também aí não há novidade.
Difícil entender esse silêncio no mediascape, dado os intensos
fluxos de informações contemporâneos; um silêncio que contrasta
10 Gabeira (1980a, b). Agradeço a Miriam Grossi por esse (e outros) comentários
a este artigo. Como mostra Wolff, a propósito das relações e gênero entre guerri-
lheiros e guerrilheiras, “o fato de os homens começarem a ajudar na cozinha, re-
nunciando a um dos símbolos máximos de seu papel de ‘macho’, e de as mulheres
começarem a ter uma sexualidade mais livre, não alterava tão significativamente
assim as relações de poder entre homens e mulheres” (WOLFF, 2008, p. 128,
tradução minha).
11 Isso quando não há uma reversão total do significado do ato, com os estupradores
passando a ser vistos como heróis, como ocorreu com os jogadores de futebol do
Grêmio Foot-Ball Porto-Alegrense, presos por estupro na Suíça, na década de
1980, e recebidos como heróis em Porto Alegre depois de obterem a liberdade
(RIAL; GROSSI, 1987).
242
com a ampla divulgação de imagens e narrativas de torturas na prisão
de Abud Grahib ou com a divulgação (não tão ampla) das torturas
no campo de concentração de Guantânamo. Nos dois casos, quando
de caráter sexual, foram tratadas sob o termo menos contundente de
“humilhações”. Difícil de compreender o silêncio, não fosse ele per-
versamente o eco do silêncio das próprias vítimas. O silêncio parece
ser o escudo dos estupros e sua dupla violência, pois ao abuso físico
soma-se a autoculpabilização da vítima, fazendo com que prefiram, elas
também, o silêncio protetor dos estupradores12.
Ou seja, tudo se passa no silêncio e no anonimato, bem ao con-
trário do que ocorreu com a célebre afro-muçulmana Mina, quando os
ocidentais foram clamados, em campanhas humanista em sua defesa
com ampla repercussão no mediascape, a salvá-la da brutalidade dos
homens afro-muçulmanos prontos a lapidá-la, tendo assim seu nome e
sua história amplamente difundidos.
Não é, portanto, o estupro que é silenciado, mas alguns estupros.
Bem ao contrário, os tropos do estupro (e do resgate) foram calcados no
imaginário ocidental pelo cinema, desde os seus inícios: O nascimento
de uma nação, O último dos moicanos, Ao rufar dos tambores, Rastros de
ódio apresentam todos cenas nas quais as mulheres são ameaçadas de
estupro e resgatadas das mãos de homens negros. Como bem mostram
Ella Shohat e Robert Stam: no âmbito do discurso colonial, os tropos
do resgate ocupam um lugar estratégico em relação à batalha da repre-
sentação. O imaginário ocidental não apenas vê metaforicamente a ter-
ra colonizada como a mulher que deve ser resgatada da sua desordem
mental e da desordem do meio ambiente, mas prioriza narrativas de
resgate mais literais, sobretudo de mulheres ocidentais e não ociden-
12 “Em uma cena do filme O Sheik, mulheres árabes – algumas delas negras – literal-
mente lutam para conquistar o homem oriental” (SHOHAT; STAM, 2006, p. 63).
243
tais sob o domínio de árabes polígamos, negros libidinosos e “machos”
latinos (SHOHAT; STAM, 2006, p. 63).
Ou seja, não são todas as mulheres em risco de serem estupradas
e merecedoras de resgates. As mulheres orientais não necessitam salva-
ção, pois são vistas e retratadas como apresentando um enorme apetite
sexual13, o que torna o estupro impossível:
A dicotomia quente/frio sugere três axiomas interdependentes
em relação à política sexual do discurso colonial. Em primeiro lugar,
acredita-se que a interação sexual entre homens negros e árabes e
mulheres brancas somente pode acontecer através do estupro (visto
que, naturalmente, mulheres brancas não desejam homens negros ou
árabes). O segundo axioma afirma que a interação sexual entre homens
brancos e mulheres negras ou árabes não pode resultar em estupro
(pois mulheres negras ou árabes são naturalmente “quentes” e desejam
o senhor branco). Finalmente, a terceira premissa sustenta que a inte-
ração entre homens e mulheres de descendência negra ou árabe não
pode resultar em estupro visto que ambos são “quentes” por natureza
(SHOHAT; STAM, 2006).
244
cito norte-americano)? Há dezenas de narrativas, a maioria proveniente
das próprias mulheres estupradas no Iraque, com descrições detalhadas
das agressões e precisões dos abusos sexuais, em relatórios de observa-
dores das Nações Unidas e de ONGs (como a Cruz Vermelha e a Human
Rights Watch) que, estranhamente, permanecem ausentes do tão loquaz
mediascape. Muitas das mulheres iraquianas (árabes e muçulmanas) estu-
pradas por homens ocidentais, no entanto, não têm nome, não se fala das
atrocidades cometidas contra elas e seus algozes permanecem incógnitos
embora vistam uniformes com insígnias reconhecíveis. A violência con-
tra as mulheres nos conflitos armados aparece como uma preocupação
restrita a uma parte bem localizada da comunidade internacional, próxi-
ma do ideário do movimento feminista.
A mídia eletrônica e impressa cala, com fugazes exceções. A re-
vista norte-americana Newsweek, em maio de 2004, revelou e forneceu
precisões sobre a existência de fotos mantidas em segredo que incluem
“um soldado americano fazendo sexo com uma prisioneira iraquiana,
e soldados norte-americanos assistindo a iraquianos terem sexo com
jovens homens”. Essas fotos teriam sido vistas pelos congressistas ame-
ricanos quando das investigações iniciais do escândalo dos abusos de
Abu Ghraib. Consideradas mais impróprias do que as das outras tortu-
ras, não foram abertas a imprensa.
Ora, o material que usei na pesquisa sobre os estupros no Iraque
estava disponível para qualquer um que quisesse acessá-lo na internet.
As fotos (sim, há fotos desses estupros) circularam no espaço ciberné-
tico, difundidas a partir de sites pornográficos localizados na Hungria
e nos Estados Unidos. Eu as acessei através do site de um servidor bem
conhecido, o AOL, que manteve o link no ar por um dia antes de reti-
rá-lo, mas elas foram publicadas também no site de um jornal antiame-
ricano do México, La Voz de Aztlan (CIENFUEGOS, 2004), no dia 6
245
de maio de 2004. E republicadas no The Boston Globe, jornal do grupo
New York Time, no dia 12 de maio de 2004 – e quase imediatamente
desacreditadas pelo editorial de Martin Baron, que considerou sua pu-
blicação um erro por não terem sido “autentificadas pelas autoridades
norte-americanas”.
Conforme lemos nas matérias desses jornais, centenas dessas
e de outras horríveis fotos de estupro circularam no Iraque, entre os
soldados ocidentais, trocadas como se fossem inocentes baseball cards,
figurinhas de jogadores de basebol.
O que vemos nas seis fotos? Como analisá-las?
Uma das fotos mostra o estupro de duas mulheres vestidas de
preto, cometido por três homens com uniformes de soldados norte-a-
mericanos, um dos soldados seria reconhecível como da inteligência
norte-americana e ou outros dois como soldados mercenários a serviço
do exército dos Estados Unidos no Iraque, segundo o jornal. Portanto,
os estupros foram realizados por, no mínimo, quatro pessoas: os três
homens que aparecem na imagem e uma quarta pessoa, que bateu a
foto, a uma distância muito próxima por se tratar possivelmente de uma
câmera digital.
Minha primeira observação, o que primeiro me fere – o punctum,
diria Barthes (1981) –, é a absoluta serenidade emocional dos ho-
mens, revelada por suas posturas corporais. Estão calmos, controlados,
como se estivessem realizando uma tarefa burocrática. Não se trata
aqui, portanto, de soldados tornados momentaneamente insanos pelo
álcool, pela onipotência e ou pela impunidade garantida; não se trata
do estereótipo disseminado que associa o estupro aos impulsos dos
soldados sexualmente frustrados por uma longa abstinência sexual. Há
uma tranquilidade bizarra nos seus gestos, uma sobriedade que con-
trasta fortemente com o desespero registrado no rosto das mulheres.
246
E que contrasta também com a satisfação sádica que líamos nos rostos
dos soldados que torturavam em Abu Ghraib. Aqui, ao contrário, não
há irrupção de uma irracionalidade extática, a libido não parece ter se
apossado de seus corpos; há moderação, refreamento. O foco perma-
nente preciso, vemos o contorno dos seus corpos, como se os movi-
mentos fossem comedidos e econômicos. Essa indiferença que beira o
aborrecimento me interpelou agudamente, causando uma estranheza
profunda. Ela contrasta com o desvairado sofrimento das mulheres,
cabelos desalinhados, olhos semiabertos, boca escancarada.
Minha segunda observação nas fotos a que tive acesso é a pro-
ximidade dos corpos masculinos, a relação homoerótica que se esta-
belece ali. Na primeira foto, vemos dois homens em pé, um em frente
ao outro, a mulher agachada entre eles, a mão de um deles segurando
a cabeça da mulher contra o sexo do outro homem. Essa proximidade
aparece igualmente em outras fotos. Na segunda foto, de novo, a mão de
um homem segura a cabeça da mulher contra o sexo de outro homem.
Enquanto na foto que numerei como seis, um dos homens penetra a
mulher por trás, outro a obriga a fazer sexo oral com a ajuda das mãos
de um terceiro. O ritmo do primeiro, cada vez que a penetra, repercute
no segundo e no terceiro. O corpo objetivado da mulher é mediação de
uma relação homoerótica entre eles.
Um terceiro ponto que convém ressaltar nas fotos concerne
um detalhe que me intrigou por muito tempo: por que nas fotos que
encontrei de mulheres estupradas elas estão sempre vestindo preto?
A pergunta seria irrelevante para um país onde a religião muçulmana
predominasse. Mas não era o caso. O Iraque, antes da invasão norte-
-americana, era um Estado laico. As mulheres eram livres para usarem
trajes, muitas eram formadas em universidades e ocupavam postos
importantes na academia de ciências e no governo, sendo o porte do
247
véu e do chador pouco comum durante o regime ditatorial de Sadam
Hussein. Então, por que as mulheres estupradas eram sempre escolhi-
das entre as muçulmanas mais ortodoxas?
Os relatos das vítimas que li nos relatórios das Nações Unidas e
de agentes de ONGs não explicavam muito. Eles indicavam que nos es-
tupros a escolha da vítima parecia ter sido feita ao acaso: por exemplo,
a mulher que seria vítima de estupro estava conversando com outras
mulheres na porta de sua casa, era abordada por soldados em uniforme,
os soldados a raptavam na frente das outras mulheres e partiram em
um jipe do exército, sem explicações. As mulheres desapareciam por
algumas horas ou por dias e depois, se retornavam, vinham feridas e
com marcas de tortura.
Por que então a escolha das mulheres vestidas com o chador nas
fotos?
As hipóteses a que cheguei também não me contentaram ple-
namente. Poderia ser uma coincidência fundada na precaução de não
serem apanhados: os soldados prefeririam sequestrar mulheres nos
bairros populares, de periferia, por serem áreas menos vigiadas pelas
forças de segurança, exatamente onde as que usam o chador estão mais
presentes.
Seria porque era mais fácil raptá-las do que no centro de Bagdá,
teoricamente sujeito a um maior controle? Ou será que a escolha se de-
via ao fato dessas mulheres, por serem provenientes de famílias ortodo-
xas, presumivelmente seriam mais submissas, se calariam temendo as
represálias dos homens da família? Sabe-se que em sistemas fundados
em códigos de honra masculinos, as mulheres estupradas podem vir a
ser sacrificadas pelos próprios familiares, muitas preferindo cometer o
suicídio, e fornecendo assim uma garantia maior de segurança para os
seus algozes.
248
Essas suposições, fundadas em uma lógica de ordem prática, não
me eram suficientes, não pareciam, de fato, justificar a escolha. Foi só
mais tarde que percebi que os estupradores precisavam dessa roupa,
marca religiosa e étnica, para localizar o seu ato sádico. O chador fun-
cionava aqui como símbolo do Iraque, marca diacrítica de identidade
cultural. Antes de tudo, o traje preto servia para territorializar o estu-
pro. Tinha assim uma função próxima das torres de mesquita, ou as
palmeiras e plantas exóticas, usadas pelos jornalistas estrangeiros no
Iraque como fundo nas suas reportagens ou os coletes beges cheios de
bolsos a la Indiana Jones, que vestem para indicar que estão em países
do Terceiro Mundo, poeirentos, de uma natureza excessiva, perigosos.
O chador, somado ao uniforme dos soldados, localiza o estupro: trata-
-se de um ato de guerra, em um país árabe – religião e etnia sendo aqui,
como em muitas outras vezes, confundidas.
Ok. O preto da roupa das mulheres e o uniforme fazem do estu-
pro um ato de guerra. Ainda assim, caberia perguntar: o que ganham os
estupradores estabelecendo essa violência como um estupro de guerra?
E o fotografando?
A roupa preta, muçulmana, atribui ao estupro o seu caráter único,
o seu hic e nunc. Não se trata de um estupro qualquer (se é que é possível
pensarmos nesses termos em relação a uma violência tão aguda), come-
tido em uma rua deserta ou mesmo no interior do espaço doméstico,
como os milhares que ocorrem diariamente no mundo hoje. O chador
transforma a foto em algo único, um troféu, e com isso lhe acrescenta
valor. Tudo se passa como se, por não se tratar de um estupro qualquer,
por sua raridade, o ato ganhasse valor no campo dos bens simbólicos
(BOURDIEU, 1974). Um valor que não é apenas simbólico, mas
também de troca, uma vez que no sórdido mercado semelhante ao dos
snuffs (filmes de assassinatos reais) essas fotos ganham valor ao serem
249
assim identificadas. A Guerra do Iraque torna as fotos simbolicamente
mais carregadas de sentidos e, consequentemente, economicamente
mais lucrativas. Tornam-se um bem com valor econômico.
Outra consequência não menos perversa da veiculação nos sites
pornográficos é a renovação perpétua da violência sofrida fisicamente.
Sim, pois a cada acesso aos sites essas mulheres são novamente vítimas
do estupro, agora de modo virtual, um estupro voyeurístico cometido
pelos milhares de receptores ativos das imagens. E como as imagens
são disponibilizadas em sites de acesso pago, as mulheres continuem a
trabalhar para os seus algozes, tal qual o gênio da lâmpada de Aladim na
evocação precisa de Leach (1980).
A foto-troféu é lembrança do triunfo sexual, de um poder fálico
absoluto, numa relação de substituição. E, mais do que isso, é troféu
que, ad infinitum, multiplicando os estupros, multiplica as vitórias na
forma de dinheiro e de prestígio, pois, não nos esqueçamos, elas circu-
lam entre os soldados como figurinhas raras de beisebol.
O sacrifício
250
Honra, sacrifício. É sobre esse imaginário que o feminismo, en-
quanto cosmopolítica libertária, deve agir, sabendo, no entanto, que
não conta com a cumplicidade dos meios de comunicação, pois, ainda
que o mediascape seja fragmentado e lugar de lutas políticas identitárias
de representação, ele encerra grandes silêncios. O estupro no Iraque,
estupro em guerras, é apenas um dentre eles.
Pós-escrito
14 “O prefeito iraquiano, Sr. Fadhil, disse que o corpo da vítima de estupro, Abeer
Qasem Hamzeh, tinha múltiplos ferimentos de balas e queimaduras. Sua irmã,
Hadeel, foi baleada na cabeça, disse ele, lendo um informe do hospital; seu pai,
Qasem Hamzeh Rasheed, que estava perto de seus 45 anos, sofreu trauma crania-
no; e sua mãe, Fakhariya Taja Muhassain, foi baleada várias vezes” (CLOUDE-
SEMPLE, 2006, tradução de Maria Isabel de Castro Lima).
251
nomes. A denúncia desses estupros no mediascape, porém, permanece
eventual e fugaz.
Referências
BEHR, Edward. “Anyone Here Been Raped And Speaks English?”: A Foreign Co-
rrespondent’s Life Behind the Lines. London: Hamish Hamilton, 1987. p. 316.
252
forum/topic/73477-rape-of-iraqi-girls-by-us-mercenaries/>. Acesso em: 18 fev.
2018.
CLOUD, David S.; SEMPLE, Kirk. Ex-G.I. Held in 4 Slaying sand Rape in Iraq.
New York Times, 4 jul. 2006.
COSTA, Albertina de Oliveira et al. (Org.). Memórias das mulheres do exílio. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
ECO, Umberto. Sobre os espelhos e outros ensaios. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1989. p. 156.
253
FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. 23. ed. Rio de Janeiro: José Olympio,
1984.
GOBINEAU, Arthur. [1853-5]. Essais url’in égalité des races humaines. Paris:
Éditions Pierre Belfond, 1967. Disponível em: <http://www.congoforum.be/
upldocs/essai_inegalite_races_2.pdf>. Acesso em: 12 fev. 2018.
254
RIAL, Carmen. Japonês está para TV assim como mulato para cerveja: imagens
da publicidade no Brasil. Antropologia em Primeira Mão, Florianópolis, v.1, n. 8,
p. 1-17, 1995. Disponível em: <http://apm.ufsc.br/files/2011/07/08-japones.
pdf>. Acesso em: 18 fev. 2018.
WOLFF, Cristina Scheibe. Le genre dans la guérilla: jeux de genre dans la lutte
armée au Brésil des années 1960-1970. In: BERGÉRE, Marc; CAPDEVILA,
Luc. (Dirs.). Genre et événement. Du masculin et du féminin en histoire des crises et
desconflits. Rennes: PressesUniversitaires de Rennes, 2006. p. 119-136.
255
POR UMA ANÁLISE DO ATOR NEGRO NO
CINEMA: NOTAS SOBRE A INTERPRETAÇÃO
DE GRANDE OTELO EM RIO, ZONA NORTE1
256
a interpretação de Grande Otelo no filme Rio Zona Norte e a
recepção da crítica. Após esse percurso, conclui-se a importância
do ator como co-autor do filme Rio Zona Norte, trazendo quiça
novas contribuições para análises fílmicas que partam também do
intérprete de cinema.
Palavras-chave: Análise do ator. Relações raciais. Grande Otelo.
Nelson Pereira dos Santos.
Abstract: This article aims to analyze the role of the actors in cin-
ema utilizing as a case study the dialogue between Grande Otelo
and Nelson Pereira dos Santos in the feature film Rio Zona Norte.
First of all, I present a method of analyses of the actors in cinema.
Secondly, I analyze in detail Grande Otelo’s interpretation in his
role in Rio Zona Norte, as well as the newspaper critics that the film
received at the time. To sum up, Grande Otelo could be considered
a co-author of the film Rio Zona Norte. Therefore, bringing new
contributions for cinematic interpretation.
257
até então. Por sua performance, Grande Otelo fornece profundidade a
seu personagem, o sambista Espírito; já o diretor consegue propor uma
nova imagem do negro através da construção do roteiro, dos enquadra-
mentos e da montagem.
Ao assumir tal ponto de partida, procuro agregar mais um nível
às análises do estereótipo racial: para além da representação, procuro
visualizar a agência (BHABHA, 2007) dos atores negros frente aos
papéis que lhe são fornecidos. Trata-se, assim, de um esforço para
compreender quais são as estratégias e contribuições dos intérpretes
afrodescedentes para se contraporem ao processo de estereotipia racial,
fazendo frente a um mercado que reproduzia e reproduz assimetrias
raciais na distribuição desigual e desproporcional de papéis entre intér-
pretes brancos e afrodescendentes.
O estereótipo é produzido por, ao menos, dois fatores: 1) pela
distribuição desigual e desproporcional de papéis entre brancos/as e
negros/as; 2) pela repetição de algumas características exageradas, seja
positiva ou negativamente. Assim, como explica Stuart Hall (1997),
a população afrodescendente tem sido historicamente representada
como extremamente preguiçosa/extremamente batalhadora, extrema-
mente sensual/extremamente feia, forte/fraca, etc. A mesma distribui-
ção desigual, por sua vez, permitiu que o branco fosse representado de
inúmeras maneiras, a ponto de transformar sua racialidade/cor invisí-
vel (DYER, 1997). Dito de outro modo, o ator branco, quando atua,
não representa sua raça, mas sim o homem universal. Já o/a intérprete
negro ou negra tendem a ser vistos/as pelo público como alguém que
representa não apenas o dilema de uma personagem qualquer, mas
todo o seu grupo racial. Assim, seja qual for sua atitude, boa ou má,
ela acaba sendo imediatamente associada a todos os negros e negras
como um processo metonímico (BHABHA, 2007). Por sua vez, o ator
258
branco tem a liberdade de poder viver uma enorme variedade de papéis
desvinculados de sua raça/sexo – privilégio que mantém o poder desse
ator frente a qualquer minoria, seja racial, de gênero, ou sexual.
Rio Zona Norte é, assim, um filme emblemático por combinar,
por um lado, a interpretação excepcional de Grande Otelo, que dá vida
aos dilemas e alegrias do personagem Espírito. Por outro, porque Nel-
son Pereira dos Santos abre espaço para que o ator exerça seu potencial
dramático, subaproveitado na maioria de suas interpretações anteriores
– por exemplo, nas chanchadas. Ao mesmo tempo, o longa é um marco
na busca de princípios formais que expressam uma visão crítica do
diretor frente à indústria fonográfica do Rio de Janeiro, o papel do inte-
lectual e a exploração do compositor de sambas das periferias cariocas.
Divido o artigo em três partes. Na primeira faço uma discussão
breve sobre a análise da performance dos atores no cinema – uma di-
mensão ainda pouco destacada nas investigações fílmicas. Em seguida,
passo a um exame do filme e da atuação dos atores. Por fim, discuto as
críticas que o filme e Grande Otelo receberam.
259
cimento acadêmico do papel dos intérpretes no cinema é recente. Na
crítica acadêmica, tem prevalecido a tendência a favorecer o estudo da
direção, analisando a montagem, enquadramento, fotografia e som. Os
trabalhos que enfocam o artista/estrela costumam enfatizá-lo apenas
como produto da indústria cinematográfica, sem qualquer margem de
agência. Em parte, conforme as conclusões de Baron e Carnicke (2008),
isso ocorre por conta do predomínio das investigações de cunho estru-
turalista, como as de Christian Metz, que concede pouquíssima impor-
tância ao ator na significação cinematográfica. O mesmo tende a ocorrer
num tipo de análise que define o intérprete de cinema apenas pela ausên-
cia de funções em relação ao teatro, como a de Walter Benjamin.
O debate é por demais complexo e cheio de meandros que
extrapolam os objetivos deste artigo. Aqui, interessa apresentar argu-
mentos que sustentem a hipótese de que um filme pode ser analisado
também a partir da performance do ator. Para tanto, primeiro, discuto a
importância do intérprete ao fornecer sentido à narrativa fílmica e, em
seguida, exponho dados que descrevem a especificidade do trabalho do
intérprete no cinema.
Baron e Carnicke (2008) traçam uma genealogia dessa dis-
cussão, demonstrando como o próprio cineasta russo Lev Kuleshov,
cujos experimentos4 foram utilizados como evidência científica de que
apenas a montagem significava no cinema, reconheceria, em 1934, que
o papel do ator era fundamental na linguagem cinematográfica. Ao co-
mentar uma experiência pouco conhecida, realizada entre 1916 e 1917,
4 Refiro-me especificamente ao experimento que foi denominado de “Efeito Ku-
leshov”, em que o diretor justapunha cenas com um mesmo rosto, sem expressão
evidente, a objetos diferentes, tais como uma mulher no caixão, uma tigela de
sopa e uma criança brincando. Cada uma dessas justaposições era lida pelos es-
pectadores de modos diferentes: a primeira significava tristeza, a segunda fome
e a terceira solidão. A conclusão de Kuleshov era de que os significados dessas
cenas não eram tributários ao rosto, mas à montagem com outros objetos.
260
ele descobriu que utilizando dois atores, um mais hábil que o outro, e
intercalando cenas desses intérpretes numa mesma sequência de ima-
gens, o resultado semântico era diferente. Kuleshov concluiu que, por
meio da montagem clássica,5 “não é sempre possível alterar o trabalho
semântico de um ator” (KULESHOV, 1974, p. 192).
No mesmo artigo, o autor reconhece a importância da perfor-
mance do intérprete, condenando cineastas como Pudovkin, por terem
perdido a habilidade de trabalhar com atores e darem demasiada ênfase
à montagem clássica. Por fim, o realizador reconhece seu equívoco em
trabalhos anteriores, quando deu um papel exclusivo à montagem no
processo semântico do filme. Passava a entender que: “quando uma
ideia precisa ser expressada sobretudo no trabalho do ator, é necessário
trabalhar em cima do ator [...]. Em nenhum caso, alguém pode assumir
que todo o problema cinematográfico está na montagem. [...] a quali-
dade dos filmes nunca depende inteiramente na montagem” (KULE-
SHOV, 1974, p. 95). Convém lembrar que os primeiros experimentos
de Kuleshov foram realizados num momento em que o cinema buscava
afirmar sua singularidade como forma6 artística diversa do teatro, pin-
tura e literatura, por meio da montagem clássica.
A ideia de montagem ganha outra dimensão nos escritos de
Christian Metz (2010), para quem, grosso modo, o processo de signi-
ficação no cinema ocorre pela identificação do espectador com o olhar
da câmera, dentro de uma mesma cadeia discursiva. Tal perspectiva
enfatiza apenas o sentido do filme a partir de seu encadeamento lógico,
261
realizado pela edição, desconsiderando, como demonstram Baron e
Carnicke (2008), que a seleção dos enquadramentos, montagem e du-
ração das cenas, em muitos casos, é decorrente das performances dos
atores.7 A correlação lógica da trama, portanto, não depende apenas da
montagem, mas de uma incorporação dos gestos, de uma adequação da
performance à estrutura do filme.
Walter Benjamin (1987) define o intérprete de cinema pela sua au-
sência, quer de habilidades ao representar a si mesmo, quer por alienar-se
de si no momento em que seu corpo se imprime em imagem, a ser expor-
tada para qualquer lugar. Baseando-se em toda uma geração de teóricos
que encontrou na montagem clássica a essência cinematográfica – como
é o caso de Pirandello e Rudolf Arnheim –, Benjamin conclui que o ator
nada mais é do que um acessório manipulado pela indústria de cinema.8
O filósofo marxista morreria um ano antes de ver posta em prática a radi-
calização no uso do plano-sequência9 empreendida por Orson Welles em
Cidadão Kane (1941), que revolucionou o cinema.
Como analisa André Bazin, Welles, com formação no teatro,
construiu a direção a partir do ator (BAZIN, 2006, p. 83-84). Diferen-
262
temente da decupagem tradicional,10 o diretor estadunidense procurou
privilegiar a profundidade de planos e longas sequências, em que os
efeitos dramáticos são alcançados pelo desenrolar de uma cena contí-
nua, que valoriza a interação entre os intérpretes e o cenário.
As longas-sequências e a profundidade de planos foram dilatadas
com o Neo-Realismo italiano e, posteriormente, com a Nouvelle Vague e
o Cinema Novo, produzindo, nos termos de Bazin, um abalo sísmico na
linguagem cinematográfica e conformando as principais características
do assim chamado cinema moderno. Toda essa transformação traz um
novo calibre para o intérprete de cinema, exigindo dele uma atuação
mais contínua, atenta aos diferentes elementos da cena, e ajustando
seus diversos movimentos em um mesmo enquadramento da câmera.
Como veremos a seguir, Rio, Zona Norte se nutre dessa transformação,
especialmente pelo diálogo que trava com o Neo-Realismo italiano.
Se com essas transformações ainda é verdade que o ator de ci-
nema representa a si mesmo, como afirmou Walter Benjamin, isso não
significa que a exigência seja menor quanto à habilidade do intérprete
cinematográfico. Os processos de incorporação dos personagens tanto
no cinema quanto no teatro exigem habilidades específicas, como a per-
sonalização mais constante, no caso do primeiro, e a despersonalização,
no caso do segundo (MCDONALD, 2008). Entretanto, nem sempre
um ator consegue personalizar um personagem. Tal procedimento se
torna mais explícito nas adaptações literárias para o cinema. Geralmen-
te, o que ocorre é uma incongruência entre a imaginação que criamos
263
em torno do personagem do livro e o intérprete. São raros os casos em
que o ator se cola de tal modo ao personagem que, depois de ver o filme,
não conseguimos imaginar nenhuma outra figura quando voltamos a
folhear o livro. É o que ocorre com Grande Otelo, quando personifica
Macunaíma (1969) na adaptação cinematográfica da obra de Mário
de Andrade. Basta dizer que o efeito assemelhado não ocorre quando
Paulo José interpreta o mesmo personagem em sua fase branca.
Há ainda outras diferenças que explicitam a especificidade do
intérprete de cinema. Em primeiro lugar, se o movimento da câmera,
por um ângulo, seleciona, por outro, possibilita um olhar mais atento
do espectador a cada detalhe da expressão facial, da força utilizada na
musculatura e das veias saltadas, entre outros aspectos que, dependen-
do da distância que se está do palco, são imperceptíveis para a plateia de
teatro. Em segundo lugar, a descontinuidade da produção cinematográ-
fica costuma demandar do ator a capacidade de imaginar a totalidade,
para conferir expressividade ao mínimo detalhe captado pela câmera
e redimensionado na tela de cinema. Tal habilidade de mapear o todo
também é necessária quando o intérprete filma a cena sem a presença
dos outros atores que compõem a mesma sequência.11
Em terceiro lugar, as opções de movimento precisam caber mili-
metricamente no enquadramento do diretor, assim como é importante
o meneio na medida correta para que seu redimensionamento na écran
mantenha o ritmo e o volume que a cena requer. Por mais que o diretor
descreva sentimentos, desejos, emoções e a alma do personagem, seja
com palavras ou gestos, cabe apenas ao ator interpretar e incorporar tais
elementos a seu corpo para dar vida ao papel, como ensinava em seu
264
manual Josephine Dillon, professora de técnica de atuação na chamada
Era dos Estúdios de Hollywood: “as lentes das câmeras e as lentes dos
olhos humanos veem apenas o corpo e o vestuário exterior do ator, não
veem o seu pensamento, a sua emoção, as suas esperanças e sonhos”
(DILLON, 1940, p. 55).
Por fim, a estrutura de poder da produção de um filme não é está-
tica. O ator pode valer-se de espaços exíguos para ganhar proeminência
em uma cena, chegando por vezes a conseguir abertura para dar palpi-
tes no enquadramento e iluminação, entre outros aspectos.12 Grande
Otelo, por exemplo, conseguia sugerir cenas e colocar composições
de sua autoria nos filmes do diretor José Carlos Burle; já com Watson
Macedo, o diálogo era mais difícil. Oscarito tinha tal autonomia na
Atlântida, que conseguiu expulsar José Carlos Burle da empresa, pois
ele não quis filmar uma cena cômica em close-up. O ator continuou e a
cena foi refeita para atender seu pedido (AUGUSTO, 2005). Ruth de
Souza conhecia todas as técnicas de direção e iluminação teatral e cine-
matográfica, aprendidas em seus estágios nas universidades de Ohio,
Howard e Washington, o que lhe permitia reconhecer os momentos
em que a iluminação contribuía para lhe dar destaque no palco e na tela
(SOUZA, 1979). Fred Astaire tinha tal poder na estrutura cinemato-
gráfica, que escolhia os enquadramentos e editava suas cenas de dança.
Com isso, é reconhecido por ter criado um estilo intimista de musical,
diverso dos números caleidoscópicos de Busby Berkeley. Como será
discutido a seguir, Nelson Pereira dos Santos, apesar dos parcos recur-
sos que tinha à sua disposição, dialogava bastante com seus atores.
265
Se os principais argumentos a favor de uma análise da perfor-
mance do ator no cinema estão claros, importa, agora, introduzir meios
e formas de como mapear os gestos, as expressões faciais, o direcio-
namento do olhar, a impostação da voz. Conforme Baron e Carnick
(2008), a verossimilhança de uma interpretação se constitui no uso da
musculatura corporal e da voz num ritmo, frequência, fluxo e força que
dão materialidade precisa aos conflitos do enredo dentro dos limites
do aparato cinematográfico. Nesse sentido, há que atentar para: 1) o
uso do espaço do ator no enquadramento da cena; 2) o tempo: a ve-
locidade e o ritmo dos gestos numa sequência fílmica; e 3) o peso e
a força no uso do corpo, na contração e relaxamento da musculatura.
Tais procedimentos corporais de uso do espaço e do tempo sinalizam
o modo como o ator incorpora o enredo, revelando nas minúcias dos
gestos os conflitos pessoais do personagem no filme.
Além disso, as técnicas de atuação devem ser vistas em diálogo
com tradições como as de Stanislavsky e Brecht, que foram adotadas
nas correntes e gêneros cinematográficos ao longo do século XX.13
Atentar para as convenções, tanto de técnicas de interpretação quan-
to dos movimentos e gêneros cinematográficos é fundamental, pois
elas dão pesos diferentes ao trabalho de ator. Rio, Zona Norte, nessa
perspectiva, é um filme interessante de ser analisado, justamente pelo
jogo câmera-ator empreendido por Nelson Pereira dos Santos e pela
266
atuação singular de Grande Otelo, bem recebida pela crítica da época e
por análises posteriores.
267
o levantam. Descortina-se o rosto do ator Grande Otelo, desacordado.
Enquanto a vítima é levada para longe dos trilhos, a câmera focaliza um
amontoado de papéis amassados. O que parecia ser o morador de rua
pega o almaço e retorna para ver o agonizado. O rosto de Otelo ocupa
quase a totalidade do quadro. Ele mexe o pescoço vagarosamente e, aos
poucos, abre os olhos, ainda inconsciente. O som de um trem passando
é sobreposto ao “som subjetivo” de um tamborim, um pandeiro e, em
seguida, a um coro de sambistas. O samba antecede o próximo corte:
em câmera subjetiva, através das lembranças de Otelo, focaliza-se o ator
dando uma gargalhada gostosa, quando seu Figueiredo chama Espírito,
nome de seu personagem, para animar a festa.
Esses são os primeiros minutos de Rio, Zona Norte, de Nelson
Pereira dos Santos. A partir dessas cenas, o filme intercala o flashback
de Espírito e as sequências em que se desenrola seu socorro. A câmera
subjetiva, na altura dos olhos de Grande Otelo, mormente em contra-
-plongée, medeia as imagens na perspectiva de Espírito, que vê o mundo
que o rodeia de baixo para cima. Suas reminiscências começam numa
noite de festa no morro, na Escola de Samba Unidos da Laguna. Ani-
mado, ele canta Mexi com ela, composição de sua autoria que chama a
atenção de Maurício ( Jece Valadão), um compositor, e Moacyr (Paulo
Goulart), um violinista, ambos da mesma emissora de rádio. O primei-
ro, Espírito já conhece, pois com ele tentara lançar algumas músicas,
sem êxito, ao passo que o segundo, não. Moacyr, de formação erudita,
diz que sonha criar um balé com sambas “autênticos”, mas que, para se
sustentar, vende seus vinte anos de estudo, dedicando-se ao acompa-
nhamento de arranjos genéricos das paradas de sucesso.
Tanto Maurício quanto Moacyr convidam Espírito para conver-
sar na emissora de rádio – o primeiro quer emplacar Mexi com ela e o se-
gundo, pensar numa parceria com o compositor. A proposta reacende
268
os sonhos de Espírito e de seus membros diletos da comunidade, como
a afilhada Gracinda, o compadre Honório, e Figueiredo, o dono da
vendinha onde o sambista faz “biscates”. Porém, mais do que desfrutar
o sucesso de seus partidos-altos sendo entoados pela diva do rádio, Ân-
gela Maria, Espírito também pretende utilizar o dinheiro da venda das
canções para terminar de construir uma casa própria e um armazém,
em conjunto com Honório, para ter estabilidade e conseguir de volta a
guarda do filho, Norival. Na mesma noite, o sambista cai nas graças de
Adelaide (Malu), uma negra de pele clara, empregada doméstica que
passa a morar com ele, trazendo junto seu bebê. A união dos dois e o
apego a uma criança pequena reacendem as expectativas de Espírito de
constituir uma nova família e reescrever de outro modo a sua história.
Na emissora de rádio, Espírito encontra Moacyr. A conversa en-
tre os dois é interrompida pela esposa do violinista e eles marcam de
conversar em outra ocasião. O sambista também encontra Maurício,
que se mostra preocupado com a intromissão do músico na relação en-
tre os dois. Maurício então o apresenta ao cantor negro Alaor da Costa
(Zé Kétti) e propõe uma parceria a três como condição para lançar
Mexi com ela. Espírito não se mostra feliz com a ideia de dividir sua
própria composição, mas acaba aceitando em troca de dinheiro, pois se
encontra numa situação financeira instável e precária. É então conven-
cido a tentar emplacar no mercado fonográfico com esse samba, antes
de tentar o sucesso individual.
Na festa de batismo do filho de Adelaide, os convidados sin-
tonizam a emissora e ouvem felizes Mexi com ela, na voz de Alaor da
Costa. Mas, para o espanto de todos, quando a música termina Espírito
não é creditado – Maurício e o cantor são os únicos autores citados
pelo locutor. Ademais, como nota, o sambista Alaor deturpou o ritmo
do partido-alto para um bolero. Gracinda, Figueiredo e o compadre
269
revoltam-se e incentivam Espírito a protestar na rádio. Adelaide, de-
cepcionada com o novo companheiro, com quem esperava ascender
socialmente, o critica porque não tem “nem dinheiro, nem gaita”.
A trama se inverte e os sonhos de Espírito caminham para a tra-
gédia. Sua relação com Adelaide estremece, ainda mais com o retorno
inesperado de Norival, que logo na chegada rouba a venda de Figuei-
redo. Para piorar a situação, o compositor precisa ceder às pressas sua
casa, quase pronta, aos irmãos de Honório, que foram desalojados.
Adelaide vai embora. Maurício enrola mais uma vez Espírito e, em tro-
ca de dinheiro, consegue que o sambista assine um termo que retira sua
autoria de Mexi com ela. Ao voltar para casa sem os direitos pelo samba,
é surpreendido com partida de Adelaide e por um bando de moleques
que assassina Norival por vingança. Diante da morte do filho, apenas a
criação do samba Fechou o paletó consegue dar-lhe alento e força para
continuar a busca de reescrever sua história, como se os versos e refrãos
lhe servissem de projetor aos sonhos futuros. Maurício vai ao enterro
para convencer Espírito a assinar outros termos e logo se interessa pela
música, mas dessa vez Espírito se revolta, o derruba e diz: “não, Maurí-
cio! Esse samba... esse samba é só meu, eu vou gravar ele sozinho e há
de ser com a Ângela Maria!”.
No dia seguinte, Espírito encontra a cantora dando autógrafos aos
fãs na emissora de rádio e cria coragem para falar com a diva, que inter-
preta seu samba com grande entusiasmo e interesse. Numa das cenas
mais emblemáticas do filme, começa a cantar e batucar Fechou o paletó
numa caixa de fósforo, enquanto ela escuta, tomando café. Num jogo de
olhares entre Ângela Maria e Espírito, em campo-contracampo, plongée e
contra-plongée, e em plano aberto mostrando os fãs ao redor da dupla, a
cantora aos poucos se deixa envolver pela música, ouvindo o sambista e
lendo a letra no papel amassado que ele lhe entregara. Ela mexe a cabe-
270
ça e os ombros em ritmo de partido-alto, chega um violonista na hora,
compõe-se o arranjo. Espírito cresce em sua interpretação, a cada verso,
na mesma proporção que os fãs da diva, que estão a sua volta, também
se animam. A câmera fecha no rosto de Espírito outra vez e ouvimos a
voz de Ângela Maria cantar o verso e o refrão: “céu estrelado, lua pra-
teada, muitos sambas, grande batucada, o morro estava em festa quando
alguém caiu, com a mão no coração sorriu, morreu Malvadeza Durão, o
criminoso ninguém viu”. Numa montagem vertical, que justapõe som e
imagem, ouve-se Ângela Maria cantando, e sua voz contraposta ao rosto
de Espírito, que modula a sua alegria abrindo o sorriso na cadência do
samba, seus olhos, sobrancelhas, a musculatura da testa e todo o seu
corpo movem-se no ritmo da canção expressando a satisfação por vis-
lumbrar que seu sonho voltava a se realizar. Nota-se, que em toda essa
sequência Grande Otelo quase não pisca, olhando para Ângela Maria,
balanceando suas pupilas e enfatizando os termos da letra da música.14
Ângela Maria considera a composição “fabulosa” e pede para Es-
pírito trazer a música em partitura de piano. Desprovido de meios para
transpor seu conhecimento para a pauta musical, Espírito vai à casa de
Moacyr, para pedir-lhe ajuda. O violinista recebe-o de maneira entusias-
mada e o apresenta a três amigos intelectuais como “o maior sambista
vivo”. Espírito dá uma canja com Fechou o paletó, que eles apreciam, com
olhares analíticos e sem ceder os seus gestos ao som, mantendo as mãos
cerradas entre si. Logo, começam a discutir a característica estética da
música e a possibilidade de fazer um balé com suas composições, sem
“estilização”. Chega uma amiga de Moacyr, revoltada com a montagem
de uma peça teatral, e os intelectuais esquecem do samba. Espírito, des-
14 Manter os olhos abertos em toda uma sequência em close é uma estratégia dos
atores e atrizes, justamente porque isso fortalece a atenção do espectador no ator
(BORDWELL, 2013).
271
locado na conversa, no canto do sofá, resolve partir. Moacyr vai atrás dele
e pede que volte outro dia para escrever a partitura do samba.
Em direção à Central do Brasil, Espírito pega o trem de volta para
a zona norte. As mesmas cenas que iniciam o filme de dentro do vagão
são repetidas, mas agora intercaladas com a imagem de Espírito, que
compõe um outro samba a partir da conversa que ouviu dos passageiros.
A intenção de Nelson Pereira dos Santos nessa sequência é convidar o es-
pectador, agora ciente da história de Espírito, a rever as mesmas cenas, na
perspectiva do compositor, que viaja pendurado na porta do trem lotado,
até que cai nos trilhos. O flashback fecha o ciclo e voltamos ao registro
do presente: em câmera subjetiva, vemos Moacyr e Honório observando
se Espírito dá algum sinal de vida após a operação de emergência para
salvá-lo. São os últimos sinais do sambista, que sucumbe.
Na última cena do filme, Moacyr e Honório caminham cabisbai-
xos numa rua escura. Moacyr levanta a cabeça abre a boca e fecha, hesita
e pergunta: “você conhece os sambas do Espírito?”. Honório diz: “um
pouco [...] se você quiser podemos ir lá no morro muita gente conhece
alguns sambas de Espírito”. “Alguns...”; “uns três ou quatro, os melhores”.
Se nas chanchadas o uso da justaposição entre campo e contra-
campo, câmera objetiva e subjetiva é escasso, utilizado apenas na troca
de olhares entre casais apaixonados, ou para introduzir um número
musical, em Rio, Zona Norte tais recursos são centrais e aplicados de
modo radical para coligir visões e posições diferentes entre as perso-
nagens. Nesse jogo dialógico, inclui-se o espectador, que é convidado
a ver em vários momentos a realidade na altura dos olhos de Espírito,
em contra-plongée, e na altura daqueles que o veem – como Maurício,
Moacyr e Ângela Maria, entre outros personagens mais altos –, em
plongée. No cinema clássico, esses enquadramentos de baixo para cima
são empregados para engrandecer e o de cima para baixo, para dimi-
272
nuir. Nelson Pereira dos Santos vale-se desse mecanismo para destacar
as desigualdades sociais entre as personagens: aqueles que detêm os
meios para estabelecer-se nas emissoras de rádio e o sambista do mor-
ro, destituído de capital simbólico, social e cultural para tanto.
Como analisa Mariarosaria Fabris (1994), o contra-plongée e o
plongée são articulados, em Rio, Zona Norte, respectivamente às câme-
ras subjetiva e objetiva. O uso alternado desses recursos se desvelaria
um nível narrativo em que Nelson Pereira discute a relação entre uma
História oficial e uma história subterrânea da população das periferias
do Rio de Janeiro, no quadrante norte da cidade (FABRIS, 1994, p.
190). Por um lado, a câmera objetiva que olha Espírito do alto e nar-
ra o enredo no tempo presente, isto é, no desenrolar do socorro do
sambista, mostra a cada sequência como aqueles que o auxiliam – do
morador de rua ao policial e os médicos – o veem como um “pingente”,
“sem nome e documento” (nos termos do próprio filme). Por outro, o
flashback inicia-se com a câmera subjetiva, de baixo, que transforma o
“pingente” em “pessoa”, com identidade e uma rede de relações (DA
MATTA, 1997). Noutros termos, Nelson Pereira dos Santos lança mão
dos princípios formais para contrastar a História com “h” maiúsculo,
que resume-se aos registros de óbito do Estado e manchetes de jornais,
que dizem: “um pingente morre nos trilhos do trem”. O contraste é mo-
bilizado por meio daquilo que Fabris denomina “história subterrânea”,
ou seja, a história do ponto de vista de um compositor, portador de
uma “cultura autêntica e sem estilização”, segundo o filme.
Os planos de conjunto, quando Espírito está entre Moacyr e sua
esposa ou amigos, sinalizam, no meneio de cada intérprete, proximidades
e distanciamentos, o olhar de aprovação, de desdém e a contemplação
analítica da classe média em relação ao sambista do morro. Há todo um
jogo nos enquadramentos, que articulam uma visão de estrutura social
273
internalizada na forma do filme e na interpretação dos atores. Os close-ups
em Espírito não são apenas um meio de colocar o personagem no cen-
tro da narrativa, mas um espaço aberto para que, a partir do seu gestual,
Grande Otelo expresse todo conflito social inscrito em seu personagem.
Grande Otelo aproveita ao máximo esse espaço, ao cadenciar
com cuidado toda a série de emoções de seu personagem no decorrer
do filme: alegria, seriedade, paixão, tristeza, alívio e tensão, encarnados
no retesar de sua musculatura, no movimentar pesado dos braços em
momentos dramáticos e na soltura de seus gestos em situações de con-
forto e felicidade.
Os enquadramentos abrem espaço para que Grande Otelo exer-
cite sua verve dramática, pouco comum nos filmes em sua trajetória
até então. Dos títulos que encenou antes de Rio, Zona Norte, conta-se
nos dedos de uma mão aqueles que permitiram um grau similar de ex-
pressão dramática ao ator: Moleque Tião (1943), Também somos irmãos
(1949) e Dupla do barulho (1953),15 os dois primeiros dirigidos por
José Carlos Burle e o último por Carlos Manga. É, pois, no interstício
do diálogo cineasta-intérprete, que Nelson Pereira dos Santos se revela
um grande diretor de atores e que Grande Otelo expõe sua atuação
singular, fazendo jus ao parco espaço que o campo cinematográfico lhe
forneceu para interpretar um papel de modo a extrapolar aquilo que se
esperava para os atores negros.
É conhecido e evidente o diálogo entre as primeiras produções
de Nelson Pereira e o Neo-Realismo italiano. Note-se que, antes de Rio,
Zona Norte, o cineasta foi criticado por Rio, 40 graus (1955); para Alex
Viany, ele teria negligenciado a tradição cinematográfica local, como
mostra Fabris (1994). É importante perceber que mesmo Roma, cidade
aberta (1945), de Roberto Rossellini, obra inaugural do Neo-Realismo,
274
ligava-se à cultura popular italiana ao escalar Anna Magnani e Aldo
Fabrizi, ambos artistas renomados no teatro de variedades e em filmes
de sucesso nos anos 1930 e 1940 (FABRIS, 1994). Logo, em reação
à crítica, em Rio, Zona Norte o diretor procura conectar-se também à
produção realizada no Brasil de então, ou seja, as chanchadas e o Rea-
lismo Carioca de Alex Viany, Alinor Azevedo e Burle (FABRIS, 1994).
A eleição de Grande Otelo como ator principal, a trama com números
musicais e o fato de uma das locações ser uma emissora de rádio, apon-
tam para uma conversa manifesta com a produção carioca anterior.
No entanto, Rio, Zona Norte produz uma referência radicalmente
crítica à chanchada e à indústria fonográfica que a sustenta. De modo
similar ao que ocorre em Abismo de um sonho, de Fellini (1952), em que
uma fã se desilude com seu herói de fotonovelas quando tem a chance de
conhecê-lo pessoalmente, Nelson Pereira dos Santos faz uso das cenas
musicais e da rádio para mostrar sua dimensão ideológica no sentido
marxista: busca produzir uma imagem condizente com a realidade dos
meios de produção. Nesses termos, o mito do sucesso inesperado das
pessoas das classes baixas, construído pelas rádios e pelas chanchadas,
revela sua faceta mais dura em Rio, Zona Norte: mesmo que talentoso,
Espírito não dispõe dos meios e capital necessários para emplacar suas
composições e, por isso, é espoliado até a desintegração total de sua fa-
mília e sua própria morte trágica. Se nas chanchadas as personagens de
Grande Otelo logravam êxito via golpes de sorte e malandragens, agora
acontecia o inverso: mais do que mostrar o precipício de um sonho,
Nelson Pereira dos Santos declara o fim iminente do “samba autêntico”.
Na voz lacônica de Honório, emerge ao final a referência a apenas “três
ou quatro sambas” de Espírito conhecidos no morro. Espírito, aliás, é
avesso à malandragem e aos golpes de sorte, de modo que estes não se
apresentam como meios viáveis para alguém como ele.
275
Em termos musicais, há uma contraposição entre o samba de
partido-alto, criado nos morros, tendo como instrumento principal
as caixas de fósforos, e os arranjos orquestrados das rádios, que trans-
formavam composições como Mexi com ela em boleros. Em tempos
anteriores, Orson Welles buscara explorar o mesmo tipo de contraste
em It’s all true, com vistas a mostrar a diversidade do carnaval, mas
também as segregações existentes (BENAMOU, 2007; STAM, 2008;
HIRANO, 2013 e 2016). No entanto, em Rio, Zona Norte a oposição
entre um tipo de arranjo e outro ganhava sentido dialético, tornando-se
uma formalização sonora para as lutas de classe.
Nelson Pereira dos Santos não se contentou em fazer um retrato
esquemático da sociedade, descarnado de qualquer relação visceral.
Ele baseou todo o argumento e o roteiro do filme em longas conversas
com Zé Ketti, amigo desde as filmagens de Rio, 40 graus, com quem
dividia o apartamento na época. Foi o sambista quem lhe comentou o
sistema de venda de canções. Além disso, o diretor viveu no morro du-
rante alguns meses a fim de melhor captar as particularidades daquele
contexto para o filme (SALEM, 1987).
Penso que Rio, Zona Norte compõe de maneira complexa a inter-
secção entre raça e classe. Não se trata apenas de uma representação do
negro como povo bom, generoso e ingênuo,16 pois em todas as classes
retratadas, há personagens bons e maus, lineares e multidimensionais.
Espírito é talentoso e de boa índole. No decorrer da trama, é
ludibriado por Maurício, mas desenvolve uma consciência da explora-
ção, muda de estratégia e consegue, por conta própria, apresentar sua
canção a Ângela Maria. Dessa maneira, o personagem é distinto daque-
les vividos pelo ator nas chanchadas, mais próximos da definição de
malandro de Antonio Candido: tipos esvaziados de lastro psicológico,
276
caracterizados apenas pelos solavancos do enredo (CANDIDO, 1993, p.
23), oscilando entre a ordem e a desordem. Em Rio, Zona Norte, são as
experiências da vida que agregam novas características à personagem.
A película também faz outro uso da dimensão corporal de Otelo,
diferente daquela empregada pelas chanchadas: a baixa estatura e o rosto
arredondado, mostrados com frequência em primeiro plano, favorecem a
identificação e certa comiseração do público com relação a Espírito. Tais
predicados não são empregados para infantilizá-lo, pois a composição de
seu personagem é cercada de elementos que lhe dão integridade e ma-
turidade: Espírito não é apenas pai, mas também padrinho, preocupa-se
com o destino do filho e faz companhia para a afilhada, Gracinda. Como
notou Robert Stam (2008), é quase inexistente a figura do pai negro nos
filmes hollywoodianos e brasileiros. A construção de um personagem
complexo também se expressa no projeto de vida de Espírito: ele preten-
de ter uma casa e negócio próprio para conseguir a tão esperada guarda
do filho, de modo que o sucesso de seus sambas significa mais um meio
para a realização de um sonho factível.
A construção do filme expressa um modelo de estrutura social
em que Espírito tem pouca margem de negociação, destituído de capi-
tal social e econômico o compositor é quase obrigado a entregar seus
sambas a Maurício. Tal construção, contudo, não retira a margem de
agência da personagem, que reluta em dividir suas canções – o que só
aceita fazer mediante as pressões financeiras. Mais do que ingenuidade,
ou ausência de característica psíquica fixa, é a própria desigualdade
social que obriga o sambista a tomar tal atitude.
O cantor Alaor da Costa é o simétrico inverso de Espírito. Ambos
são negros, de tez escura, mas o primeiro se integra à indústria cultural
e, em parceria com Maurício (de pele clara), rouba os sambas do com-
positor do morro. Quando Espírito entra em seu camarim, Alaor sequer
277
estende a mão para ele. Ao mostrar dois personagens da mesma cor,
em posições tão diferentes na estrutura de classes e no campo cultural,
Nelson Pereira dos Santos enriquece seu retrato realista, despojando-o
de essencialismos, estereotipia racial e evitando relações metonímicas
entre cor e índole dos personagens.
Igualmente, os moradores da assim chamada Zona Norte se distin-
guem tanto nas características étnico-raciais quanto nos valores morais.
Honório, Gracinda e Figueiredo são brancos e todos solidários entre si.
A esposa de Figueiredo e Adelaide são pardas. A primeira, generosa; a
segunda, interesseira. Norival e o filho de Adelaide são negros. No bando
que assassina o filho de Espírito, há um menino branco, um preto e um
pardo. Além de matarem gente da própria classe social, eles roubam Es-
pírito. Não há, portanto, apenas um retrato condescendente do povo: há
conflitos e disputas internas, que solapam o próprio estrato econômico.
Assim, se há um certo determinismo no longa-metragem, ele
se escora na estrutura de classes. Mas tal procedimento não se desen-
volve de forma caricatural. Entre aqueles que trabalham na rádio, há
os de má índole, Alaor e Maurício, mas também os de boas intenções,
como Moacyr e Ângela Maria. No entanto, Nelson Pereira dos Santos
critica o paternalismo do violinista e da diva do rádio com relação a
Espírito. De acordo com o filme, ambos procuram ajudar o sambista,
mas não conseguem despojar-se da própria posição de classe e ver as
reais condições do compositor. Moacyr, por exemplo, pergunta qual o
seu telefone, mas não percebe que esse é um bem material escasso na
periferia, que ele não possui; e o convida para passar na rádio e em sua
residência, mas tampouco nota que o preço do deslocamento da Zona
Norte para a região central custa um dia de trabalho do sambista. Ânge-
la Maria, por sua vez, entusiasma-se com Fechou o paletó, mas é incapaz
de perceber que Espírito não tem meios para transpor sua música para
278
a partitura. Assim, ninguém se salva na pequena burguesia de Rio, Zona
Norte. Entre o povo, apesar das gangues, há formas de solidariedades
inexistentes nas classes média e alta.
O desenho da estratificação social no longa-metragem de Nelson
Pereira mostra aquilo que Marcelo Ridenti identifica nas manifestações
de esquerda, em meados da década de 1950 e nos anos 1960 e 1970, a
saber, um romantismo revolucionário:
279
burguesia, mesmo a intelectual, é paternalista e alienada – por exem-
plo, aquela caracterizada pela personagem de Moacyr e seus amigos.
Por outro, no desfecho do filme cabe ao violinista – que durante toda
a trama postergou a ajuda a Espírito, pois estava muito ocupado com
os caprichos do seu meio – resgatar os “três ou quatro sambas” do
compositor. O filme termina com a insinuação de que ele quiçá poderá
criar uma arte revolucionária, sem, no entanto, suplantar a possibili-
dade de cair na estilização, que tanto repudia. As ambiguidades de
Moacyr aprofundam seu lastro psicológico: ele próprio é um alterego
de Nelson Pereira dos Santos, com quem o diretor se identifica e, ao
mesmo tempo, alguém que ele confronta. Dessa maneira, o cineasta
joga a responsabilidade de alavancar a “cultura autêntica” para mover
a história sobre sua própria classe. Mas também hesita, pois não tem
certeza se esse é o caminho certo para a utopia. O epílogo condena
Moacyr por ter perdido a chance de aprender com o compositor em
vida. Contudo, também abre caminho para que ele faça algo com as
canções do sambista. Mas além de arrogar para sua própria classe um
papel transformador, Nelson Pereira inverte de modo sugestivo a rela-
ção entre intelectual e povo, como a alcunha do personagem de Grande
Otelo sinaliza: Espírito da Luz Soares é “um nome escolhido a dedo,
pois na umbanda, o Espírito da Luz é um espírito superior, mais puro,
que comanda os espíritos sem luz –, com sua morte agônica, a dar a
Moacyr a consciência da urgência dessa operação de resgate e integra-
ção” (FABRIS, 1994, p. 197).
Com Rio, 40 graus e Rio, Zona Norte, ao fazer um retrato crítico
sobre a indústria cultural – seja a fonográfica, em termos diegéticos, ou
a cinematográfica, no uso da linguagem –, Nelson Pereira estabelece
a figura do cineasta engajado, de esquerda, que tornará o cinema uma
forma privilegiada de diagnóstico das contradições do capitalismo
280
periférico e, quiçá, de sinalização de caminhos para a utopia, transfor-
mando os termos e hierarquias no campo cinematográfico brasileiro.
Os realizadores de cinema até então, tais como Adhemar
Gonzaga, Humberto Mauro, Ruy Costa, Luiz de Barros, José Carlos
Burle, Alinor Azevedo, Moacyr Fenelon, Alex Viany e Carlos Manga
– e mesmo diretores da Vera Cruz, como Alberto Cavalcanti e Lima
Barreto –, entre outros, têm cada um a seu modo um objetivo, por as-
sim dizer, nacionalista e comercial, para a produção cinematográfica.
Todos almejam que o cinema brasileiro seja capaz de revelar a face que
consideram verdadeira do país. Alguns, como Humberto Mauro, Car-
los Manga, Cavalcanti e Barreto, com maior conhecimento da técnica
cinematográfica clássica do que outros. Entre eles, Moacyr Fenelon,
Alinor Azevedo e Carlos Burle, fundadores da Atlântida, mas também
Humberto Mauro, ganham relevância ao buscar um retrato digno das
classes populares, por vezes estabelecendo aproximações com a ima-
gem cunhada pelo Partido Comunista. Entretanto, não perseguem uma
teleologia da história, nem procuram dar vazão ao diálogo entre forma
e conteúdo, como o faz Nelson Pereira dos Santos. Não que este cineas-
ta não nutrisse ideais nacionalistas, mas seu cinema é fruto do projeto
de resgatar um “Brasil autêntico”, transformando não apenas o campo
cinematográfico, mas também as estruturas sociais do país, rumo a uma
sociedade mais igualitária e justa. Se os demais buscavam “descobrir”
o Brasil, apostando em qualidades que o tornassem distinto como na-
ção e coerente com o status quo vigente, Nelson Pereira procurou em
seus primeiros filmes uma “brasilidade” capaz de propiciar a revolução
socialista – uma “brasilidade revolucionária”, como define Ridenti, que
apostava “nas possibilidades da revolução brasileira, nacional-demo-
crática ou socialista, que permitiria realizar as potencialidades de um
povo e de uma nação” (RIDENTI, 2010, p. 10).
281
Ao unir engajamento político e cinema, Nelson Pereira dos San-
tos consegue reunir à sua volta jovens também ligados à esquerda, que
se tornam expoentes do Cinema Novo, dando continuidade e renova-
ção a suas ideias por meio de um projeto mais ambicioso, em que elas
foram a pedra de toque fundamental. Não obstante, o êxito de Nelson
Pereira pode compreender-se na medida em que, em pleno pós-Se-
gunda Guerra Mundial – o período democrático de 1945 a 1964 –, é
capaz de sintetizar, em sua direção cinematográfica, condições sociais e
culturais bem diversas da geração que o antecedeu.17
282
(apud SALEM, 1987, p. 136). Paulo Emílio Salles Gomes escreve uma
crítica similar em O Estado de S. Paulo, mas reconhece a poesia de uma
sequência interpretada por Grande Otelo:
283
te o personagem e o intérprete Grande Otelo. O personagem válido
como figura de um quadro social popular. O intérprete, integrando-se
perfeitamente no personagem, numa demonstração cabal de que é um
dos mais sensíveis atores brasileiros” (apud FABRIS, 1994, p. 198).
O Diário carioca concorda com os que dizem que o filme apre-
senta deficiências na captação de som e composição de algumas cenas,
mas também faz a mais elogiosa dentre as críticas recebidas pelo longa:
284
O primeiro ponto a destacar nessa crítica é a denominação de
Nelson Pereira dos Santos como “autor” do filme, termo cunhado pela
Nouvelle Vague para designar cineastas que, dentro ou fora da indústria
cinematográfica, mantêm, de um filme para outro, uma mise-en-scène pró-
pria, ou seja, uma maneira idiossincrática de dispor e enquadrar os ele-
mentos em cena. Longe do padrão industrial dos filmes de Hollywood,
da Cinédia e da Sonofilmes, em que as funções de diretor, argumentista e
produtor são enquadradas em princípios de produtividade na divisão do
trabalho, nos filmes de Nelson ele assina todas as etapas, inclusive a mon-
tagem. A crítica do Diário também difere das anteriores ao reconhecer
que o cineasta optou, por conta e risco, por escalar um não galã, evitando
o uso de um recurso que seria mais propício à fácil sensibilização do grande
público. Grande Otelo conquista a simpatia da plateia por meio de outros
predicados – em geral, em papéis cômicos – e, aos olhos do cinema do
período, seu talento para o drama não era visto como um chamariz de
bilheteria. Por fim, o crítico, assim como fizera Paulo Emílio, reconhece
uma interpretação de gestual poético do ator principal.
Segundo Fabris, o próprio Nelson Pereira dos Santos destaca o
papel fundamental de Grande Otelo, conforme menciona a epígrafe
neste artigo, a ponto de “atribuir-lhe a parceria na realização do filme”
(SANTOS, 1957 apud FABRIS, 1994, p. 198).
Otelo faz um papel singular em Rio, Zona Norte, distanciando-se
de estereótipos das chanchadas e assumindo novas dimensões com
relação a Também somos irmãos e Amei um bicheiro. Como mencionado
outrora, ele é pai, padrinho e homem honesto, de maturidade inexis-
tente em seus papéis anteriores. No decorrer da trama, o ator modula
alegria e tristeza, esperança e decepção em gestos sutis, num crescendo
de enorme dramaticidade. A personagem de homem maduro, entre-
tanto, não desbanca sua persona de moleque malandro e Otelo conti-
285
nua, até a década de 1960, fazendo papéis que reforçam esse tipo nas
chanchadas, ao lado de Ankito. De modo análogo, seu reconhecimento
pelo Cinema Novo, em 1968, virá por meio de uma persona similar,
reatualizada em Macunaíma.
A destreza de Grande Otelo na interpretação de Espírito se torna
mais marcante quando lembramos que o ator só foi conhecer o samba
carioca aos 17 anos, momento em que passou a atuar como malandro
e sambista nas peças da Companhia de Teatro de Revistas de Jardel
Jércolis. Conforme é possível ver nas críticas da época (DOURADO,
2005; CABRAL, 2007; BRITO, 2011; HIRANO, 2013), levou cerca
de dois anos para ele conseguir arrancar palmas da plateia com uma
interpretação convincente, após treinos diuturnos e aprendizagem na
boemia da Lapa, especialmente no Elite Clube, casa famosa de gafieira
no centro do Rio de Janeiro. Não era para menos, Grande Otelo nasceu
em Minas Gerais e passou a infância e adolescência na cidade de São
Paulo, sob a tutela de famílias brancas abastadas. Na infância, quando
fez sucesso na Companhia Negra de Revistas, foi interpretando monó-
logos e árias – e não como sambista.
Esses dados biográficos de Grande Otelo são importantes ao re-
velar não apenas o esmero do ator como cantor de óperas e declamador
de densos monólogos aos nove anos de idade, desbancando possíveis
visões reducionistas, mas também ao mostrar que sua singularidade
está em observar, aprender e encarnar de forma sem igual outros mo-
dos de vida diferentes do seu.
As críticas de jornais ao Rio, Zona Norte coroam a interpretação
de Grande Otelo, que desponta como um dos maiores atores do Brasil.
Mas depois desse filme, demora para o ator ser aclamado novamente.
A dívida acumulada coloca Nelson em difícil situação e o diretor vê-se
obrigado a retomar o emprego de jornalista de segundo escalão e fazer
286
documentários encomendados. No entanto, esse filme e, especialmen-
te, Rio, 40 graus são reconhecidos pela geração de jovens que dá início
ao Cinema Novo. Carlos Diegues (2001) afirma que foi assistindo a
Rio, 40 graus que ele vislumbrou a possibilidade de ser cineasta. Glau-
ber Rocha é mais enfático, na Revisão crítica do cinema brasileiro:
287
Mas se Rio, Zona Norte ainda dialoga com a cinematografia bra-
sileira anterior, a nova geração tem a liberdade de experimentar outros
caminhos, negando qualquer relação com as chanchadas e demais pro-
jetos de cinema industrial no Brasil. Artistas vinculados aos musicais
carnavalescos e à Vera Cruz, como Grande Otelo, Oscarito, Ankito,
Eliana Macedo, Vera Regina, Anselmo Duarte e Ruth de Souza, entre
outros, não mais serão escalados por essa nova geração. Apesar dos elo-
gios de Glauber Rocha, Otelo vivencia um período de ocaso no auge do
cinemanovismo. Uma nova leva de atores negros, com interpretações
diferentes de Grande Otelo, entra em cena: Antonio Pitanga, Zózimo
Bulbul, Eliezer Gomes e Luíza Maranhão, entre outros, ganham as telas
de cinema, não só como afirmações de uma beleza negra, mas simboli-
zando uma estética de engajamento na primeira fase do Cinema Novo.
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292
LEMBRAR, SENTIR E PENSAR:
REALIZAÇÃO E CIRCULAÇÃO DO
FILME ETNOBIOGRÁFICO
293
the logic sunderlying the processes of realization and circulation
of documentary images. The article focuses on an ethnobiographic
film and its reception as an example of a collaborative, existential and
affective change between the protagonist of the film and its director,
as well as its effects of reception with in anthropology students.
Introdução
294
termos de uma autoridade dialógica, para além da monologia inques-
tionada do antropólogo/a, mais explícita, porque mais acessível, nas
experiências de recepção de imagens do que na de textos?
Ora, o estado atual do conhecimento em torno das maneiras
como os espectadores e espectadoras respondem a um filme etnográ-
fico, destaca Jay Ruby (2000, p. 181-182) é bastante limitado e, em si
mesmo, uma tarefa difícil. Somente nos últimos trinta anos, quando
algumas teorias da recepção tornaram-se populares na antropologia, é
que o lugar do espectador e/ou leitor passou a ser considerado como
uma tarefa válida de investigação. A opinião doutra sobre a recepção,
destaca o autor, oscilou entre enxergar espectadores e espectadoras
como entidades passivas, ou seja, vítimas de mensagens hegemônicas
e opressoras, ou de representá-los/as como únicas entidades responsá-
veis pela construção de significados.
Na busca de aprofundar estas questões, discutiremos sobre os
avanços que as premissas da recepção, pensadas em termos de compar-
tilhamento e dialogia, aportaram à Antropologia. Em seguida, aborda-
remos um caso empírico, fruto de uma pesquisa de doutorado (MAG-
NI, 2011), por meio de uma experiência etnobiográfica, realizada em
uma Oficina de Vídeo para pessoas sem-domicílio fixo na França, da
qual resultaram dois filmes colaborativos: A Oferenda, de autoria de
uma participante desta Oficina, e um metavídeo, A Oferenda de Sabiá,3
de autoria da antropóloga (co-autora deste artigo). Este segundo filme,
apresentado a um público acadêmico brasileiro, no contexto do ensi-
no introdutório à Antropologia, fornecerá elementos para refletirmos
sobre a recepção e apropriação de imagens etnográficas. Trata-se aqui
de pensar em que sentido o trabalho colaborativo no filme etnobiográ-
fico possibilitou-nos problematizar experiências políticas e afetivas de
295
recepção e aprendizado, para além da “fé tocante” do antropólogo e da
antropóloga.
296
como “objetos de saber”) na forma de textos, imagens e sons, constitui
o interesse central do artigo que ora apresentamos.
Figuramos assim três abordagens teóricas do que denominamos
de trabalho colaborativo com imagens, o saber, a antropologia com-
partilhada, a estética da recepção e a restituição, tomadas como abor-
dagens afins e compondo um “cenário de interpelação” (BUTLER,
2007) para a autoridade etnográfica. O esforço colaborativo realizado
em A Oferenda de Sabiá insere-se nos dois primeiros casos, visto que a
restituição almejada tornou-se inviável, como veremos adiante.
Se os antropólogos querem utilizar o filme para transmitir seu
conhecimento para outros, como destacou Ruby (2000, p. 181), faz-se
necessário aprender mais sobre a construção de significados realizada
pelas suas audiências, o que significa conduzir estudos etnográficos
sobre a recepção fílmica em Antropologia. Esses estudos afinam ele-
tivamente com uma reviravolta central na experiência estética con-
temporânea. Canclini (1998), por exemplo, identifica no programa de
uma estética da recepção, o “giro paradigmático” em nossos empreen-
dimentos atuais de conhecimento. “Analisar a arte”, diz o autor, “já
não é analisar apenas obras, mas as condições textuais e extratextuais,
estéticas e sociais em que a interação entre os membros do campo gera
e renova o sentido” (CANCLINI, 1998, p. 151). O autor destaca que
os historiadores que analisam a “fortuna crítica” existente nas reelabo-
rações experimentadas por uma obra ou por estilo, como por exemplo,
o estilo rouchiano (embora o autor não se refira a tal estilo), “também
vêem a arte ‘como uma relação: a relação entre um objeto e todos os
olhares que tenham sido lançados sobre ele na história’ e que o tenham
‘transformado incessantemente’” (CANCLINI, 1998, p. 151).
A ideia de uma experiência relacional e de um sentido renovado
a partir dos vários olhares lançados sobre uma pesquisa antropológica
297
textual ou imagética que se encontra no cerne da proposta de uma an-
tropologia compartilhada, bem como na reelaboração ou diálogo desta
com a antropologia da recepção e da restituição. Nesse sentido, vale
lembrar o trabalho de Paul Henley (2009, p. 318-320) que, referindo-se
ao caráter inovador das descobertas de Jean Rouch, falava, por exem-
plo, do quanto o antropólogo-cineasta regozijava-se quando um filme
nascia de outro, ou seja, a partir da “situação de recepção” ou “visiona-
mento” das imagens realizados junto aos seus/suas “interlocutores/as”,
para falar em termos mais atuais. Certamente não é gratuito também
o fato de Henley ter identificado Jean Rouch como uma espécie de
“profeta precoce” de algumas das proposições da celebrada reviravolta
pós-moderna na antropologia americana e inglesa, especialmente no
que tange ao seu interesse pela experiência subjetiva de seus sujeitos,
seu ceticismo em relação à objetividade científica e seus métodos au-
torreflexivos e colaborativos.
Valendo-se da recepção para pensar a teoria literária, James Clif-
ford (1998) ressalta que paradigmas de experiência e interpretação estão
dando lugar a paradigmas de discurso, diálogo e polifonia e que tal subs-
tituição implica em uma ruptura com o que denomina de “autoridade
monológica”. Ora, se Clifford está correto ao dizer que a “eficácia de um
texto em fazer sentido depende menos das intenções pretendidas do au-
tor do que da atividade criativa de um leitor” (CLIFFORD, 1998, p. 57),
podemos dizer que no caso das imagens, a atividade criativa de espec-
tadores e espectadoras mostra-se, não apenas mais acessível do que no
texto escrito, mas implica na possibilidade de uma construção dialógica
de consenso em torno daquilo que é ou não inteligível ou representável a
respeito de um determinado grupo ou indivíduo. Afinal, continua o autor
(CLIFFORD, 1998, p. 57) “a multiplicação das leituras possíveis reflete
298
o fato de que a consciência ‘etnográfica’ não pode mais ser considerada
como monopólio de certas culturas e classes sociais no Ocidente”.
Assim, esse giro paradigmático voltado para o leitor ou para o
receptor é o objeto central de nossa inquietação no que se refere à esté-
tica da recepção, pensada especificamente a partir do filme A Oferenda
de Sabiá. A perspectiva de uma autoridade etnográfica monológica será
colocada em cheque, uma vez que tal recepção, tanto nos efeitos, quanto
nas interpelações que suscita, é considerada como “não-controlada” e
“multissubjetiva”, e ganha coerência através de atos específicos de leitura
ou visionamentos imagéticos. Referindo-se à Barthes, Clifford (1998, p.
57) destaca ainda que: “se um texto é uma trama de citações retiradas de
inumeráveis centros de cultura, então a unidade de um texto repousa, não
em sua origem, mas em seu destino”. E é tal destino, pensado em termos
de contextos de colaboração, recepção e restituição realizadas entre
pares, que abre para a heteroglossia dos vários pontos de vista, trazendo
para o centro da cena a intersubjetividade de toda fala. Tais contextos
podem fornecer pistas para sair do impasse e sugerir um modelo discur-
sivo de prática etnográfica para além do monologismo, como veremos na
experiência da co-autora deste artigo, tanto no momento da produção
de seu filme e diálogo com sua interlocutora, quanto na experiência de
recepção vivenciada ao exibir esse filme para uma plateia de estudantes
universitários de um país diferente daquele onde foi produzido.
299
agenciamentos imagéticos de existência vivenciados de maneira compar-
tilhada e em situações específicas de recepção e troca. Como já referido
inicialmente, trata-se de um filme realizado no âmbito de uma oficina de
vídeo para pessoas ditas “SDF” (Sans-Domicile Fixe), em que os partici-
pantes apresentavam e desenvolviam seus projetos fílmicos, individual
ou coletivamente, sob orientação de um educador social.
A Oferenda de Sabiá foi pensado como um metafilme etnográfi-
co, em que a protagonista, Sabiá, uma bela e eloquente mulher negra
de 30 anos, filha de mãe camaronesa e de pai mauritaniano, acolhida
nesta associação, projeta e registra as imagens de seu próprio filme, A
Oferenda, no qual ela representa a doação de seus filhos, falecidos, aos
ancestrais, a partir de uma cosmovisão animista. Simultaneamente,
em diálogo com a câmera da antropóloga, ela fornece as chaves para a
compreensão de seu filme, a ser editado “sem palavras”, somente com
a trilha sonora a música Desafinado, de João Gilberto, a qual ela elege
por considerar dissonante as imagens geradas por essa sua primeira
experiência com a câmera.
Apesar de seu empenho no projeto e da densidade do encontro
etnográfico gerado nessas circunstâncias, Sabiá era pouco assídua na
associação e acabou não retornando para editar as imagens, função que
foi assumida pela antropóloga, conforme as diretrizes apresentadas pela
realizadora, durante a Oficina de Vídeo. Assim, apesar dos inúmeros
esforços, não foi possível restituir a ela o seu próprio filme, A Oferenda,
editado na França, durante o trabalho de campo, tampouco o filme et-
nográfico, A Oferenda de Sabiá, editado no Brasil, quase dois anos após
a finalização do doutorado. O que abordaremos aqui, primeiramente,
é a dialogia e as trocas estabelecidas nos “bastidores” das filmagens e,
posteriormente, a recepção desse filme entre acadêmicos brasileiros.
300
A noção de etnobiografia4 ajuda a compreender esse filme cola-
borativo, assim como iluminar o propósito de Sabiá, declarado na reu-
nião da Oficina de Vídeo da Associação, em que ela manifesta o desejo
de que seu projeto tenha um “efeito terapêutico”:5
4 Inspirado em obras dos cineastas Jorge Prelorán e Jean Rouch, Marco Antônio
Gonçalves (2008) discorre sobre a noção de etnobiografia como meio de romper
com a dicotomia entre o individual e o coletivo, o sujeito e a cultura, a subje-
tividade e a objetividade, sem tratar o indivíduo como epifenômeno do social,
tampouco situá-lo ideologicamente como centro das sociedades ocidentais. É na
construção de um etno-diálogo que não esteja calcado na dualidade entre pesqui-
sador e pesquisado, que se torna possível realizar uma etnobiografia: “produto e
construto de uma relação que altera percepções no processo mesmo de sua cria-
ção”, fruto de uma relação complexa “entre indivíduos situados em suas respec-
tivas culturas, tendo como pano de fundo suas representações culturais sobre a
alteridade” (GONÇALVES, 2008, p. 206-207).
5 Todas as transcrições foram traduzidas pela autora deste artigo.
301
râmica de três olhos, pertencente à sua avó camaronesa, representando
os ancestrais; um cinto de búzios, símbolo da natividade no Mali; uma
bijuteria em metal em forma de pássaro, tirada de seu colar Dogon, figu-
rando o totem da oferenda, e dois vidros de perfume similares a um cor-
po humano, da marca Organza, de Givenchy, sendo um grande e cheio,
posicionado de pé, e outro pequeno e vazio, deitado sobre um boné
tuaregue azul, evocando a mãe que vela seu filho. Após fazer experimen-
tações com filtros da câmera, Sabiá conclui as filmagens, desmanchando
a estrutura sob a manta e fazendo um travelling em torno da mesa onde
reposiciona alguns dos objetos. Para a câmera da antropóloga, ela decla-
ra: “Então eu gostaria que, em imagem, isso fosse transportado, como se
eu levasse este Organza vazio ao Comodoro”, pois “eu perdi um filho, faz
três anos, então achei que seria bom oferecê-lo”.
302
estar bem consigo pra ficar bem com os outros: é
preciso dar – mesmo o mais caro a si próprio – às
vezes um filho... [...] Nada nos pertence. Eu aprendi
isso quando perdi a Débora. [...] É um pouco fatalis-
ta, mas nem tanto assim! Isso ajuda a desdramatizar
uma separação, a não sofrer tanto.
303
do o equilíbrio de trocas preconizado por uma cosmovisão ancestral,
em meio a uma sociedade laica e excludente. Nesse contexto complexo,
tradição e modernidade se confrontam, e o filme não se limita a repre-
sentar uma realidade, mas a provocar a sua transformação.
Estamos diante de um filme-ritual, que deve seu legado a Os
Mestres Loucos, de Jean Rouch. Tanto durante o trabalho de campo,
quanto durante a edição, os efeitos das experiências de antropologias
compartilhadas com elementos na memória de antropólogas e an-
tropólogos, que são reatualizados nos contextos de recepção no qual
nossos projetos de vida são mostrados.
304
uma circunstância específica de ensino, quando A Oferenda de Sabiá
foi apresentada em um dos três encontros presenciais de uma disci-
plina introdutória de Antropologia, em regime de Ensino à Distância,
ministrada pela realizadora do documentário, na cidade de Porto Ale-
gre, Rio Grande do Sul. O público desse Cine-Clube era composto por
cerca de trezentos alunos de diversos cursos de graduação (Nutrição,
Terapia Ocupacional, Fisioterapia, Educação Física, Administração
de Negócios Internacionais e Direito). A sessão do filme, diretamente
relacionada ao programa de ensino, foi precedida pela apresentação
da pesquisa e seguida de um exercício escrito pelos alunos, os quais
serão aqui analisados a partir de uma mostra de cem destes manus-
critos, sem identificação de autoria. Importa, portanto, considerar
que a análise dessa recepção deve levar em conta a complexidade
desse processo comunicacional, limitado pela capacidade de extro-
versão e textualização dos significados construídos pelos intérpretes,
estrangeiros e estranhos ao contexto etnografado. Enquanto poucos
comentários foram muito bem redigidos e outros revelaram extrema
dificuldade de expressão, a maioria de qualidade mediana, apresenta-
va um texto em forma de resenha, com comentários que denotavam
“efeitos de recepção” envolvendo interesse, surpresa e reflexividade
diante do que acabavam de assistir. O que era central naquela expe-
riência de recepção e apropriação dos filmes etnográficos propostos,
além dos fins didáticos da disciplina, era uma abertura de horizontes
em torno da maneira como a antropóloga havia conduzido o proces-
so. Ora, se como já destacamos anteriormente, quem vê, não vê tanto,
mas vê tanto quanto pode pensar, lembrar e sentir a respeito do que
vê, interessava-nos interpelar como essa experiência “não-controla-
da” e “multisubjetiva” de recepção poderia contribuir por meio da
multiplicação de visionamentos, para trabalhos subsequentes, levan-
do-se em conta que, como antropólogas e antropólogos, sempre nos
depararemos com os dilemas da autoridade e da assinatura.
Passando ao conteúdo destes comentários, primeiramente é pos-
sível inferir que o caráter polifônico e colaborativo das imagens não foi
claramente percebido por todos, havendo certa ambiguidade quando se
referiam à sua “autoria”, sem atentar para o fato de que neste meta-filme,
de autoria da antropóloga, há outro filme, de autoria da protagonista
do primeiro. Essa sutileza foi destacada por poucos alunos: “O vídeo
é uma filmagem de outra filmagem [...]”; “Este documentário traz dois
níveis de linguagens artísticas, a de quem produziu e a de quem foi
entrevistado. Essa interação resulta em um apanhado cultural grande,
porque mescla pensamentos diferentes”.
A dimensão biográfica da obra, no entanto, é claramente assimi-
lada, como se percebe por vários comentários do tipo: o vídeo “retrata
a vida de Sabiá”, “resgata a sua trajetória pessoal”, apresenta a sua “histó-
ria” ou “estória”, propondo a “releitura de sua vida”; “Muito interessante
a ideia de observar uma mulher com uma história de vida tão culta e tão
comovente como a de Sabiá”.
Também é unânime o estranhamento diante da alteridade: “[...]
deu pra analisar como é estar em outro lugar, são sociedades completa-
mente diferentes da nossa”. Lembremos que diferentes níveis de estra-
nhamento atingem o receptor brasileiro, ao deparar-se, simultaneamente,
com aspectos socioculturais da cultura francesa, e de tradições culturais
e religiosas díspares de ex-colônias africanas, como o animismo e o isla-
mismo, que Sabiá diferencia claramente em seu testemunho para a antro-
póloga. O filme “mostra a estrutura social do país, e como os moradores
e rua da França são ‘melhor’ tratados que no Brasil” – é uma afirmação
que demonstra o estranhamento do público brasileiro diante do Estado
de Bem-Estar Social francês (apesar de sua franca desestruturação).
306
O que mais me chamou a atenção é que Sabiá, por ser
moradora de rua, possui cultura diferente dos daqui
do Brasil, que passam seu dia drogados, dormindo em
qualquer ponto. Sabiá, com estas oportunidades que
está tendo, terá possibilidades de ter emprego e um lar.
307
Se de um lado, o público demonstrou estranheza e fascínio diante
das práticas e representações culturais desconhecidas, por outro lado,
ele manifestou extrema familiaridade com a dor da perda de um ente
querido, estabelecendo grande empatia com Sabiá: “Perda de filho é
motivo de sofrimento para todas as mães do mundo”. Variações desta
frase apareceram nos manuscritos, demonstrando a ideia vigente de
estarmos diante de um sentimento universal.
Da mesma forma, houve consenso quanto à ideia de que somente
através da simbolização, da arte e da ritualização, por mais distintas
que se apresentem nas sociedades humanas, seria possível expressar e
sublimar este sentimento, compartilhado pelos seres humanos, de per-
da de uma pessoa amada: “A arte é um meio de se comunicar [...] em
qualquer parte do mundo”. O “poder da arte” é percebido e explicitado
em termos dos elementos que compõem o seu ritual:
308
podemos entender sua forma de compreender e de se expressar no
mundo”. Este momento criativo aparece, portanto, como potência para
o reestabelecimento do equilíbrio pessoal de sua realizadora, quebrado
pelas rupturas enunciadas, contribuindo ainda para a sua reinserção so-
cial: “O ritual foi um ato de exorcização, e o vídeo, um ato de integração
social [...] o vídeo seria também uma espécie de ponte, de libertação”.
Apesar da identificação com o modo de sublimar a sua perda,
através da arte e do ritual, alguns estudantes associaram as represen-
tações e práticas de Sabiá às sociedades tribais a que, de fato, ela faz
menção em sua narrativa. No entanto, o convívio destas tradições com
a modernidade foi visto com espanto por alguns, na medida em que, ao
final do vídeo, Sabiá declara para a câmera da antropóloga que, como
meio de ampliar as suas chances no mercado de trabalho, gostaria de
colocar seu vídeo na WEB. Em que pese as limitações da internet para
o grande público, no início do milênio, algumas pessoas consideraram
“[...] um paradoxo o fato da moça fazer a oferenda com costumes an-
tigos e, ao mesmo tempo, estar se profissionalizando na era digital”.
“Agora ela quer levar sua ‘oferenda’ para a WEB; ela é muito ousada de
criar, de fazer a oferenda e divulgar em lugar tão amplo”.
Ressalte-se, por fim, que o mote deste ritual, a oferenda, tema
caro aos estudos antropológicos sobre a dádiva ao longo da história
desta disciplina, é o que gera maior unanimidade na recepção, através
de inúmeros comentários e reflexões: “Uma das frases mais marcantes
do documentário é: ‘é preciso dar para receber’”; “Algo que mais me
chamou a atenção foi a frase dita: ‘a gente dá, a gente recebe’”; “Não
somos donos de nada”; “É interessante que Sabiá tem um pensamento
grandioso, se levar em consideração todo seu sofrimento pela perda dos
filhos. Ela diz que se deve dar aos outros sem esperar retorno: ‘Nada nos
pertence’”; “Ela oferta a filha perdida aos 23 anos, e nós o que vamos
309
ofertar? Do que vamos nos desprender para realmente deixar as nossas
vidas egoístas e sermos felizes?”.
Na narrativa fílmica, a importância do dom e da reciprocidade
está presente tanto nas relações humanas (quando ela enfatiza a neces-
sidade de sair do isolamento, próprio da pessoa excluída socialmente)
quanto nas relações com os não humanos, seja pela oferenda aos an-
cestrais, seja pela explicação sobre a ética animista, em que Sabiá pre-
coniza lugar e respeito a todo ser existente na natureza, “Fazer o bem,
estar bem consigo e com os outros”. A simplicidade e profundidade de
seu objetivo, ao reestabelecer tais relações de troca com humanos e
não humanos, é partilhada por todo o público, indistintamente, e ecoa
na sala, mesmo que um oceano e quase uma década separem aquele
público do universo em que transcorreu o trabalho de campo e a magia
do encontro etnográfico.
Assim, a eficácia deste filme-ritual, associada ao caráter simbóli-
co de seus componentes, seria igualmente capaz de transpor as lacunas
de comunicação entre diferentes culturas: “O documentário utiliza
de linguagem simbólica para nos mostrar ritos da cultura africana, o
que é uma boa opção de apresentação de culturas diferentes”. Daí a
importância das “imagens para relatar um fenômeno cultural, fugindo
ao tradicional discurso científico”.
310
lar uma autoridade etnográfica monológica, precisamente no sentido
em que, como dizia o próprio Rouch:
311
perspectiva vertical e hierárquica do conhecimento, tais noções apos-
tam na horizontalidade das relações, não no sentido de uma idealização
do interlocutor/a “em vias de se tornar antropólogo/a”, mas no sentido
do reconhecimento do valor de uma produção coletiva e compartilha-
da de saberes.
Tal como podemos observar a partir das narrativas de A Oferen-
da de Sabiá sobre a abertura dialógica fundamental operada, tanto na
produção do filme quanto em sua recepção, o sentido de autoridade
etnográfica redimensiona-se a partir da ideia do “encontro”. Nesses pro-
cessos, a utilização das imagens não prescinde de uma reflexão crítica
acerca do lugar que ocupa aquele que se “apropria” do material fílmico.
MacDougall (1998) propõe uma visão diferenciada em relação aos rea-
lizadores que enxergam a produção audiovisual como uma maneira de
“retirar algo” das pessoas concernidas no processo fílmico, como fonte
de controle e poder. Mesmo que tal perspectiva de extração do conhe-
cimento não esteja ausente de sua proposta de abordagem do processo
de filmagem, ele entende tal experiência como proposição, aprendizado,
provocação e partilha: como horizontalidade dialógica que opera no
registro da interlocução e não da passividade do outro tomado como
mero “informante” ou público passivo. Essa atitude, reforçada pela
ideia de que nesse processo está implícito um tipo de aprendizado que
habilita o antropólogo a ser ensinado pelas circunstâncias enquanto
partilha delas distingue, por exemplo, a produção de um filme etnográ-
fico do documentário (TORRESAN, 2013).
Talvez Geertz (2001) tenha razão ao dizer que, numa pesquisa
de campo, é uma ficção (não uma falsidade) o fato de que “nós” e “eles/
as” somos membros de uma mesma comunidade moral, mas tal fato
não impede, pelo menos não deveria impedir, a possibilidade de que
pudéssemos estabelecer um “diálogo com” em vez de um “discurso
312
sobre” suas experiências e modos de vida. Nesse sentido, o trabalho
de campo e os processos de produção e recepção fílmicos – pensados
fundamentalmente como modos de aprendizagens recíprocas –, não
existem como abstrações, não existem sem sujeitos concretos em si-
tuações sociais específicas, com os quais compartilhamos experiências,
vivências e empatias fulgurantes. O fato de que o uso de uma câmera no
trabalho de campo deva ser pensado como catalizador de relações e não
como um mero instrumento de coleta de material empírico, implica
também que sua introdução no contexto de uma pesquisa é dependen-
te de uma série de fatores e não pode se dar de forma irrefletida. O
resultado desse trabalho não apenas intensifica a dimensão ética das
experiências de pesquisa – na medida também em que o registro visual
possui um alcance mais amplo do que o registro escrito –, mas atua
como mediação privilegiada no conhecimento da experiência subjetiva
de nossos/as interlocutores/as.
Infelizmente, ou felizmente, não há prescrições ou fórmulas para
a forma com a qual a câmera poderá proporcionar o tipo de apren-
dizado exigido pela prática da antropologia visual. Cada contexto de
pesquisa é tributário de relações de poder e dominação que lhes são
próprios, dialoga com as instâncias da lei e da ordenação social e supõe
a habilidade do pesquisador em fazer valer a identificação transcultural
que o processo de empatia supõe; ao mesmo tempo em que exige dele
ou dela uma constante vigilância crítica em torno do que será figurado
nas imagens. O ideal é que os interlocutores participem em todos os
momentos da produção do trabalho, opinando sobre a representação
que pretendem dar de si próprios. A restituição implica naquilo que
existe de “contratual” entre pesquisadores/as e interlocutores/as; é
parte integrante de todo o processo de pesquisa e não apenas um a
313
posteriori. Entretanto, dependendo do contexto da pesquisa, essa parti-
cipação não é possível, como foi o caso em A Oferenda de Sabiá.
Além disso, é preciso arcar com o ônus de possíveis conflitos
de interpretações que a perspectiva da recepção (seja aos próprios
interlocutores da pesquisa, seja a públicos diversos) colocam em cena.
Ela pode indicar uma quebra na empatia ou abalar a crença de uma
experiência mimética e de identificação recíproca. Mais do que um
dado relacional, a recepção é também uma experiência territorializada,
ou seja, tributária da lógica social e simbólica que anima o contexto
espacial e histórico no qual as relações estão inseridas. Se a antropo-
logia sempre prezou por uma abordagem da experiência de pesquisa
na perspectiva de uma relação de empatia, traduzida na habilidade em
se colocar “no lugar do outro”, então, a problemática da recepção e da
restituição, devem ser pensadas nesses termos. Ou seja, tais processos
não devem ser analisados apenas pelo ponto de vista do antropólogo e
das consequências da relação que ele ou ela estabelece com seus inter-
locutores/as.
Na pesquisa em ciências sociais, a reflexividade, a transmissão e
a restituição devem ser tomadas como âncoras do trabalho antropoló-
gico de campo e como marcadores conceituais para pensar a ideia de
autoria ou de autorias. A autoria implica em compreender os fenôme-
nos, não como “reflexo do real”, mas como uma construção do espírito
que levanta problemas. Isso envolve “vigilância crítica” em relação aos
lugares de enunciação do pesquisador. Como esses lugares afetam a
produção do conhecimento antropológico? Como eles devem ser
pensados no momento da produção fílmica? A discussão sobre a autoria
inclui necessariamente uma reflexão sobre a autoridade etnográfica e
sobre como essa última se constrói no tríplice movimento que envolve
empatia, distanciamento e controle das transferências, pensados a
314
partir das demandas ou solicitações de nossos/as interlocutores/
as, entendendo-se aí, tanto os sujeitos pesquisados quanto outros
receptores dessa comunicação.
Mesmo reconhecendo que o trabalho de campo é uma atividade
coletiva, deve-se atentar também para a sua assimetria fundamental,
aquilo que poderíamos denominar, com Geertz (2001), de “ironia
antropológica”, entendida aqui como experiência assimétrica e passível
de envolver relações de poder. Nesse sentido, o interesse do pesquisa-
dor deve voltar-se, em um primeiro momento, para a maneira como
se estabelece o contrato e as negociações de interesses – nem sempre
convergentes – entre pesquisadores e seus interlocutores. E, em segui-
da, para os “lugares silenciados” no processo que envolve as estratégias
de campo e os lugares de enunciação do pesquisador. Como contornar
essas assimetrias? Como tentar garantir que a inspiração do observador
se aproxime de forma fidedigna (o uníssono, de que falava Rouch) da
inspiração coletiva que ele observa? Como pensar a importância do
envolvimento dos/as protagonistas na construção dos significados e
sentidos de um texto ou de um filme?
A tematização dos desdobramentos dos resultados da pesquisa
talvez indique um caminho para contornar tais problemas. Ela é perce-
bida pelos antropólogos como uma restrição recente. A restituição, por
exemplo, raramente se aplicava aos trabalhos de campo tradicionais,
realizados além-mar, quando a distância geográfica e o não acesso aos
resultados do trabalho pelas comunidades concernidas, desempenhava
o papel de garantir uma objetividade inquestionável em relação aos
achados de campo. Na passagem de uma etnologia das sociedades de
tradição oral para as sociedades da escrita, da informação e da comu-
nicação, os antigos “informantes” agora se “informam” literalmente a
respeito do que é dito sobre eles a partir do acesso aos trabalhos etno-
315
gráficos, sejam eles textuais ou fílmicos. Eles e elas interpelam os feitos
antropológicos, produzem seus “intelectuais orgânicos”, criam suas
modalidades de controle em relação ao que é escrito ou visto sobre eles
e nos interpelam sobre as consequências de nossas revelações.
A preocupação fundamental com a reflexividade é o que permite
ao pesquisador gestar um tipo de escuta e de olhar atentos às demandas
ou solicitações de seus/suas colaboradores/as. Essas solicitações emer-
gem no contato direto e de longa duração e interpelam o pesquisador,
descentrando o “esquema referencial operativo” ou as disposições não
questionadas do “capital simbólico” que o pesquisador/a carrega con-
sigo quando vai a campo. Como nos lembra Barros (2014, p. 6), “os
projetos de pesquisa são desenhados distantes do campo, respondendo
a interesses e dinâmicas da academia e/ou do tipo de debate suscitados
pelas experiências e contextos socioculturais dos pesquisadores”. Sem
“vigilância crítica” não há, segundo Barros (2014, p. 6), como “olhar a
si mesmo durante todo o processo da pesquisa”, “flexionar-se” ou re-
tornar constantemente “à problematização sobre a autotransformação
durante suas próprias ações”. Dito de outra maneira, a restituição que é
realizada para nossos pares, não pode mais deixar de ser informada pela
restituição realizada para nossos/as interlocutores/as e para públicos
mais amplos. A objetivação do sujeito da objetivação demanda uma
interpelação ao próprio saber antropológico e à maneira como ele con-
cebe a alteridade. Em que sentido a restituição e a estética da recepção
poderiam contribuir nessa interpelação?
No início desse texto, tomando como referência a ideia de Geertz
(2001) sobre o trabalho de campo como uma “experiência completa”,
indagamos sobre a possibilidade de tal experiência ter mais chances de
atingir sua maturidade quando mediada pela experiência estética do pro-
cesso fílmico. Sem pretender criar novas regras para a produção do conhe-
316
cimento antropológico, acreditamos, como Geertz, que, além de ser uma
experiência completa, o trabalho de campo é portador de ensinamentos, e
o uso da câmera, mediado por experiências de restituição e recepção, tem
o potencial de incitar a dimensão coletiva e participativa da construção
do conhecimento. As experiências que sucederam A Oferenda de Sabiá
constituíram, para nós, casos exemplares de trocas culturais intensas.
Deste modo, podemos reincidir sobre o argumento exposto
anteriormente, fruto do encontro etnobiográfico: as imagens de Sabiá,
em seu filme, A Oferenda, assim como as metaimagens com as quais elas
dialogam, no filme A Oferenda de Sabiá, da antropóloga, não se limitam
a contemplar e registrar uma realidade, mas agem sobre ela, sobre a
protagonista e sobre a antropóloga, estendendo-se ainda, tal agência,
à recepção de um público longínquo, que reinterpreta e faz reverberar
seus múltiplos sentidos. Nas palavras de Marc Piault (2000, p. 270),
essa elaboração dialógica do conhecimento possibilita uma “hiperce-
nografia do possível ou do provável”, na medida em que “a experiência
[...] está sujeita à interpretação permanente (em potencial) do público
e à reinterpretação crítica daqueles que foram os protagonistas”.
A opção por uma prosa de estilo simples, realista e comparti-
lhada, tal como a realizada em A Oferenda de Sabiá é mais equânime
em relação ao leitor-espectador, e não obstrui sua habilidade de atingir
uma avaliação independente. Quando se fala em autoria, deve-se ter o
cuidado, como adverte Henley (2009, p. 123), em não reduzir “os sujei-
tos do filme e o mundo que habitam a meros hóspedes da virtuosidade
cinematográfica de seu realizador”. O esforço em operar no registro de
“colaborações comprometidas” e de “entendimentos de imaginários
em suas consequências” (MARCUS, 2009), nos ensina que a história
de nossos sujeitos é mais importante do que a do realizador do filme. O
vídeo cria uma rede de comunicação onde cineasta e sujeitos se criam
317
e se recriam numa relação de autonomia que afetará igualmente outras
plateias. A autoria é fruto desse processo colaborativo que, mediado
por uma estética ou uma estilística da restituição e da recepção, não
prescinde do reconhecimento mútuo e do respeito às experiências que
intentamos, com liberdade e ousadia, representar.
A oferenda de Sabiá
CLIP: https://vimeo.com/108809610
Referências
318
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GEERTZ, Clifford. Nova luz sobre a antropologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
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319
GONÇALVES, Marco Antônio; MARQUES, Roberto; CARDOSO, Vânia Z.
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HENLEY, Paul. The adventure of the real: Jean Rouch and the craft of ethnograph-
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320
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RUBY, Jay. The Viewer Viewed: the reception of ethnographic films. In: ______.
Picuturing Culture: explorations of film and anthropology. Chicago: The Univer-
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______. Por uma estética da restituição: notas sobre o uso do vídeo na pesquisa
antropologia. Tessituras, Pelotas, v. 2, n. 2, p. 162-200, 2014.
321
MÁS ALLÁ DEL RECUERDO: EL USO DE LA
FOTOGRAFÍA EN EL PUEBLO TOTONACO
322
culture among the Totonacs, an ethnic people originally from Me-
xico. Throughout the work are shown the theoretical methodolo-
gical references employed as well as the participatory photography
strategy in which the Totonacs took their own images. In the end,
the images are analyzed to search for the understanding of the vi-
sual culture of the original group mentioned, confronting what is
found with the parameters of Western visual culture.
Keywords: Visual culture. Photography. Totonacs. Semiotics.
Native peoples.
323
En otras palabras, este modelo nos permite interpretar la percepción
visual de los totonacos.
La percepción visual
324
un proceso que supone un conjunto de expectativas sobre las cuales
se hacen hipótesis, que posteriormente se validan o invalidan. Tales
expectativas están impregnadas por nuestro conocimiento del mundo
y de las demás imágenes que hemos visto; por lo cual puede decirse que
el acto de percepción visual no se da de forma aislada, sino que existen
siempre anticipaciones y prejuicios. Por lo anterior, ver, es comparar lo
que se espera ver con lo que realmente se percibe.
En segundo lugar, debido a que una imagen nunca puede repre-
sentarlo todo, el espectador tiene que llenar las lagunas de la represen-
tación, es decir, lo no representado, con su saber y con sus prejuicios.
Finalmente, el tercer aspecto es que, esta facultad de proyección del
espectador se sustenta en la existencia de ciertos esquemas perceptivos
almacenados en la memoria de cada uno de nosotros.
Por otra parte, Gubern (1987) afirma que la percepción visual
busca la significación semántica de los estímulos, fijando el recono-
cimiento en los patrones invariables de las figuras (los elementos
comunes a la serie icónica /hombre/, /mujer/, /perro/, etcétera.), a
partir de los cuales, se puede apreciar todas sus variables. Sin embargo,
argumenta que los fenómenos que definen la percepción son:
325
Una percepción visual normal y correcta detecta la
identidad genérica (lo constante o invariante) del
estímulo, a pesar de sus accidentes o cualidades varia-
bles. En primer lugar existen atributos visibles e inva-
riables de una categoría de seres u objetos. Estos serán
los que permitan distinguir visualmente, por ejemplo,
al ser humano de otros bípedos. Y en segundo lugar
existen atributos visibles accidentales y diferencia-
dores dentro de una categoría del ser humano. Esos
atributos nos permiten individualizar al sujeto, iden-
tificándolo entre otros congéneres. Mientras otros
atributos visibles accidentales actuarán propiamente
como predicados de aquel sujeto, informándonos
de aspectos suyos tan inestables como su postura, su
expresión, su ropa, etcétera. (p. 30)
326
nos de la naturaleza. En segundo lugar, están los productos culturales
visibles, entes artificiales fabricados por el ser humano, por ejemplo:
edificios, vehículos, armas, trajes o uniformes, la escritura, imágenes
icónicas fijas o móviles, las señalizaciones, etcétera. Y en tercer lugar,
los estímulos visuales que se sitúan entre lo natural y lo cultural, donde
se toma en cuenta la expresividad gestual, que utiliza como instrumen-
to o soporte al cuerpo para llevar a cabo una codificación social.
Gubern (1997) enfatiza que toda representación icónica es, an-
tes que nada, signo de una ausencia: la del objeto o sujeto representado
y al que sustituye simbólicamente en el plano de la información. (p.59)
Así mismo, Gubern (1997) propone que:
327
categoría sobre las otras. A continuación muestro algunos ejemplos de
dichas categorías para entender su proceso, mediante fotografías toma-
das por algunos totonacos de San Pedro Petlacotla. La representación
icónica imitativa se refiere a aquellas representaciones que conservan la
esencia del objeto representado pero no lo reproducen exactamente, de
ahí la referencia del isomorfismo.
Haciendo una analogía con la geología, dos elementos isomorfos
son aquellos cuerpos de diferente composición química e igual forma
cristalina; del mismo modo una representación icónica conserva la for-
ma más elemental pero difiere en la composición.
En esta fotografía muestra la predominancia de una representación
icónica imitativa, debido a que estas dos figuras antropomorfas de pie-
dra representan a los antepasados de los totonacos de la Sierra Norte de
Puebla.
Foto #1: Jorge Flores, figuras de piedra, San Pedro Petlacotla, Pue., 2004
328
La representación simbólica necesita de un mayor proceso men-
tal y no tiene una relación tan directa entre el objeto representado y el
ícono. Un candelabro de siete brazos nos remite a la tradición judía y al
encontrarlo en un libro o en la pared de un edificio nos remite a la pre-
sencia de judíos, al igual que la silueta de un pescado en la entrada de
un templo o en la parte trasera de un vehiculo nos remite a la presencia
de creyentes cristianos. En ninguno de los dos casos hay una relación
de forma entre el objeto o la idea representada y el ícono, en estos ca-
sos necesitamos de una reflexión mayor y un conocimiento previo del
referente del ícono. De este modo opera la abstracción y la subjetividad
del ícono sin que sea totalmente arbitrario ya que existe un referente
previo acerca del icono (el candelabro o el pescado).
Foto #2: Lucía Allende, día de la Virgen de Guadalupe, San Pedro Petlacotla,
Pue., 2003.
329
que nos proporciona esta imagen como son: los cuadros de la Virgen
de Guadalupe y el Sagrado Corazón y la estatuilla de San Judas Tadeo.
Por otra parte, la convención iconográfica arbitraria, como su
nombre lo dice es un común acuerdo social (explícito o no) que opera
en su contexto cultural; se dice que la relación entre el objeto repre-
sentado y el ícono es arbitraria por que no hay ningún referente entre
ambos más que el que se acuerda o se reconoce socialmente.
Un ejemplo de convención iconográfica arbitraria es la paloma
blanca referente de la paz, una paloma por si misma no nos hace re-
ferencia a ninguna situación social en lo absoluto, aun si la paloma es
blanca, pero fue designada arbitrariamente como el elemento represen-
tativo de esta posibilidad humana.
Foto #3 Juana Soto, altar totonaco de Todos Santos, San Pedro Petlacotla, Pue.,
2003.
330
Esta fotografía es otro ejemplo de la convención iconográfica
arbitraria, ya que cualquier persona mexicana que la observe podría su-
poner que se trata de un altar de muertos aún cuando no haya estado en
la Sierra Norte de Puebla. Esto se debe a que en el territorio nacional, el
culto a los muertos es una práctica extendida, si bien las manifestacio-
nes son diversas, las similitudes se hacen presentes en algunos elemen-
tos que la integran, como el caso de la flor de cempasúchil, el adornar
con flores una mesa o la presencia del incensario. Sin embargo solo la
gente que proviene de la Sierra Norte de Puebla o tiene conocimiento
de su cultura, sabe que se trata de una ofrenda dedicada a un varón,
puesto que en el costado derecho se encuentra un morral de yute, el
cual denota esta condición; de ser una ofrenda femenina tendría una
servilleta bordada en ese lugar.
331
Vilches (1984) arguemnta que el texto puede ser, asimismo,
estudiado como un conjunto de procedimientos que determinan un
continuo discursivo, es decir, como una representación semántico-
sintáctica. Una fotografía puede ser estudiada como un texto visual,
a partir de destacar las marcas sintácticas (su plano propiamente
expresivo o significante), y el semema actualizado (su significado
denotado).
Para Vilches (1984):
Semiótica de la fotografía
332
símbolos y con los signos, que constituyen las diferentes clases de có-
digos, en su calidad de expresión cultural de cada grupo o comunidad.
Los términos de semiología y semiótica denominan en la actuali-
dad una misma disciplina, utilizando los europeos el primer término y
los estadounidenses el segundo.
Aquí nos enfocaremos a la semiótica de la fotografía, la cual
“se vertebra en la semiótica de la imagen. [...] Cuatro líneas de la se-
miótica aplicada, cuyas bases se encuentran en los trabajos de Peirce,
Hjelmslev, Greimas y Barthes dominan la investigación sobre la foto-
grafía. Los trabajos de Brög, (1979) y Schmalriede (1981) siguen la
tradición de Peirce y de la escuela de Stuttgart de Max Bense (1965).
La semiótica glosemática de Hjelmslev fundamenta los trabajos de Lin-
dekens (1971; 1973; 1976 y 1978). Floch se orienta por la semiótica
estructural de Greimas (Floch 1980; 1985; 1986), y Barthes se cuenta
como uno de los clásicos de la semiótica de la fotografía (Barthes 1961;
1964a; 1980a, b).” (Santaella: Nöth, 2003: 99)
Asimismo, Barthes es considerado como el pionero en desarrollar
estudios semióticos de la fotográfica, en sus dos artículos “El mensaje
fotográfico” (1961) y “La retórica de la imagen” (1964), publicados
hoy en día en el libro Lo obvio y lo obtuso.
En el primer artículo, Barthes argumenta que la fotografía de
prensa es un mensaje. Este autor enfatiza que en la fotografía, el men-
saje denotado, al ser absolutamente analógico (es decir privado de un
código), es además continuo, y no tiene por objeto intentar hallar las
unidades significantes del primer mensaje; por el contrario, el mensaje
connotado comprende efectivamente un plano de la expresión y un
plano del contenido: significantes y significados. Esto obliga, por tanto,
a un auténtico desciframiento. En el segundo artículo, Barthes analiza
333
un anuncio publicitario de Panzani (paquetes de pasta), resaltando el
mensaje lingüístico, la imagen denotada y la imagen connotada.
Respecto a la imagen fotográfica, Barthes (1986) señala que “no
es real, pero, al menos, es el analogon perfecto de la realidad, y precisa-
mente esta perfección analógica es lo que define a la fotografía delante
del sentido común. Y así queda revelado el particular estatuto de la
imagen fotográfica: es un mensaje sin código. De esta proposición se
hace imprescindible deducir de inmediato un corolario importante: el
mensaje fotográfico es un mensaje continuo.” (p. 13)
Cuando Barthes (1986) señala que la imagen fotográfica es un
mensaje sin código, se refiere únicamente a la pura denotación, rela-
cionada directamente con su analogon, el mensaje como tal. En otras
palabras, como diría Dubois (1986) es ahí, y sólo ahí entre la luz que
emana del objeto y la huella que deja sobre la película, donde el hom-
bre no interviene y no puede intervenir so pena de modificar el carácter
fundamental de la fotografía. Hay ahí una falla, un instante de olvido de
los códigos, un index casi puro. Pero fuera de ello, fuera del acto mismo
de la exposición, la foto es inmediatamente (re)-tomada, (re)-inscrita
en los códigos. Por ende, Barthes hace hincapié en su reactivación y
su inscripción en y por los códigos de connotación. Más tarde en su
texto “La cámara lúcida”, señala que es evidente que hay códigos que
vienen a modificar la lectura de la foto, lo que llama studium. Pero nada
puede evitar que la fotografía sea en primer lugar una emanación de lo
real pasado. Y por eso la foto conmueve al sujeto, es por su poder de
contingencia que apunta (punctum) al espectador.
Dubois (1986) afirma que:
334
sona o de un espectáculo del mundo, pertenece en
primer lugar, esencialmente, al orden de la huella,
del rastro, de la marca y del depósito. En este sentido
la fotografía pertenece a toda una categoría de signos
que el filosófico y semiótico norteamericano Charles
Sanders Peirce llamó index por oposición a icono y a
símbolo. ( p. 55-56)
335
asociación de ideas generales que operan de modo
tal que son la causa de que el símbolo se interprete
como referido a dicho objeto. En consecuencia, el
símbolo es, en sí mismo, un tipo general o ley, esto
es, un legisigno. (p. 30-31)
336
Por lo tanto, Peirce afirma que un signo es una cosa que nos
permite conocer alguna cosa más. “El signo, así, no es la simple repre-
sentación de una realidad, sino que, gracias al intérprete, es también la
posibilidad implícita de decir lo otro”. (Pericot, 2002, p. 22)
Por lo tanto, Morris (1985) distingue en la semiosis tres dimen-
siones: sintaxis, semántica y pragmática. La sintaxis, considerada como
el estudio de las relaciones sintácticas de los signos entre sí haciendo
abstracción de las relaciones de los signos con los objetos o con los in-
térpretes. La semántica se ocupa de la relación de los signos con sus de-
signata y, por ello, con los objetos que pueden denotar o que, de hecho,
denotan. La pragmática es la relación de los signos con sus intérpretes.
Para Morris (1985)
337
La fotografía entre los totonacos
Con el paso del tiempo han existido diversas maneras para des-
cribir esta diversidad cultural desde la postura geopolítica territorial,
338
espacial, estatal, sobre cómo analizar, describir e informar dicha diver-
sidad en México a partir de diversas instituciones como el INI, CDI,
INAH, INALI, por mencionar algunas.
De acuerdo con el Censo de Población 2010, en México hay
unos 16 millones de indígenas; de ellos, cerca de 7 millones hablan
español y alguna de las lenguas nacionales, mientras que un millón son
monolingües. Según, INEGI, Puebla tiene una población de 1 539 819
millones habitantes en el censo de 2010 dentro de 217 municipios.
En en el Catálogo de Lenguas Indígenas Nacionales del Instituto
Nacional de Lenguas Indígenas (2008) se menciona que en México se
hablan 68 lenguas que tienen 364 variantes lingüísticas pertenecientes
a 11 familias.
En el artículo 2 de la Ley de derechos, cultura y desarrollo de
los pueblos y comunidades indígenas del Estado de Puebla señala lo
siguiente:
339
que incluye parte de los estados de Puebla y Veracruz. Su territorio era
más extenso a la llegada de los europeos, que en el tiempo actual; sin
embargo aún sigue siendo considerable.
Entre montañas verdes con frutos tropicales, ríos con abundan-
te agua y animales tropicales extraños al ojo citadino, se encuentra el
Totonacapan, que no es sino la región que han habitado los miembros
del pueblo totonaco desde tiempos inmemoriales. Sus límites han sido
modificados y sus poblaciones han sido testigos de grandes aconteci-
mientos sociales y han protagonizado algunas escenas de la historia
nacional (Deance:Vázquez, 2010, p. 40).
Es por ello que en este trabajo nos enfocaremos en los totonacos
del pueblo totonaco de San Pedro Petlacotla, perteneciente al Munici-
pio de Tlacuilotepec, en el estado de Puebla en México.
En esta región, la mayoría de sus habitantes tiene por lo menos
una fotografía en su casa, ya sea de sus abuelos, padres o hijos. Las per-
sonas suelen guardarlas en un forro de plástico y las colocan en sus alta-
res. Cabe señalar que los altares familiares son un aspecto fundamental
de la cultura totonaco, ya que desde ahí se busca la protección de todos
los miembros de la familia teniendo las fotografías cerca de los santos y
los mantienen con ofrendas y veladoras constantemente.
Otras personas enmarcan sus fotografías y son colocadas en el
interior de la casa, por lo regular cerca de los altares. Las personas que
no tienen la costumbre de los altares las suelen colocar en su habitación
de dormir, y las fotos que no enmarcan, las guardan en una bolsa de
plástico transparente dentro de una caja de cartón.
¿Quién les ha tomado estas fotografías?, ¿Cómo las han adquiri-
do?... Cuentan las personas mayores, que antes no tenían fotógrafo en
la comunidad, por lo que tenían que caminar a la Ceiba para tomarse la
foto o en su defecto ir a Pantepec o Villa Juárez, a muchos kilómetros
340
de distancia. Si no encontraban al fotógrafo se iban a otros lugares aún
más alejados como: Huauchinango o Poza Rica. En eventos religiosos
como boda, bautizo, confirmación, primera comunión y quince años,
solían ir a la Iglesia de la Ceiba y a su vez aprovechaban para tomarse la
foto del recuerdo.
Hoy en día esto no ha cambiado mucho, ya que siguen yendo a la
Iglesia de la Ceiba para celebrar los eventos religiosos ya mencionados,
debido a que no tienen un sacerdote fijo en la comunidad. Las perso-
nas de San Pedro Petlacotla suelen conseguir padrinos de velación, de
transporte para la quinceañera, de bebida, de conjunto, de pastel y por
supuesto de fotografía. Los padrinos de fotografía con anticipación avi-
san al fotógrafo de la Ceiba o al fotógrafo de la comunidad respecto al
evento para que tome fotografías en la iglesia, y posteriormente acuden
al estudio fotográfico en donde se hacen algunas tomas fotográficas a la
quinceañera, a los novios y padrinos, etcétera.
Desde el año de 1991 la comunidad de San Pedro Petlacotla
cuenta con un fotógrafo llamado Armando Rosas Maldonado. Nació
en Huachinango, Puebla. Estudió ocho años en el Ejército Mexicano en
Coahuila, donde aprendió fotografía. Su primer trabajo de fotografía
fue precisamente en el ejército, donde tomaba fotografías al goberna-
dor y a las personas que les entregaban despensas.
Llegó a vivir a San Pedro Petlacota en enero del año 1991, con la
finalidad de vivir de la fotografía, por lo que empezó a tomar fotos en
las clausuras de las escuelas. Actualmente toma fotografías de tamaño
infantil a 200 alumnos.
Más adelante, Armando acude a otras comunidades aledañas a
San Pedro Petlacotla para realizar trabajo de fotografía como Plan de
Ayala, Tacubaya, Palo Blanco, Itzatlán, La Lagunilla, San José, Dos
Arroyos, Ula, Jalpan, El Pochote, Zacatal, San Antonio y La Esperanza.
341
Actualmente, Armando es muy conocido en la comunidad de
San Pedro Petlacota, las personas le encargan que tome fotografías en
sus fiestas religiosas, cumpleaños, rituales de partera, rituales de cos-
tumbre y altares de todos santos.
2 Dos mujeres adultas, dos mujeres jóvenes, dos mujeres adolescentes, dos niñas, dos
hombres adultos, dos hombres jóvenes, dos hombres adolescentes y dos niños.
342
Semántica
Temas
Desarrollo
Actividades Actividades
Preparativos de
laborales de esparcimiento
la fiesta
Actantes
Personas
Animales
Cosas
Acciones
Autor/Fotógrafo Lugar
Pragmática
• Nombre
Comentarios sobre las fotografías
• Edad y otras circunstancias
• Sexo
• Ocupación o cargo
en la comunidad
• Semblanza del fotógrafo • Qué querían
• Qué tomaron
• Por qué lo tomaron
• Motivaciones
• Secuencia fotográfica
Sintaxis
343
Foto #4 Verónica Vázquez Valdés, Lucía Allende, partera tradicional, San Pedro
Petlacotla, Pue., 2004.
344
fueran sus hijas, ya que le fueron encargadas. Recibe a todos sus parientes
consanguíneos o políticos con muchísimo gusto, es una mujer abnegada,
sumisa e increíblemente noble, tiene compasión a todos, las personas pobres
hasta los animales enfermos, es muy solidaria y trabajadora.
Tiene animales de corral y milpa. Su mayor afición es bordar, cocinar,
mirar los paisajes de la naturaleza, escuchar los sonidos de los pájaros y el
viento, además de pensar y soñar con personas y tierras lejanas.
Continuando con las dimensiones del modelo, en la dimensión
sintaxis se describen las características técnicas de la cámara fotográfica
y los elementos básicos de la imagen.
Las características técnicas se pueden describir de la siguiente
manera:
CARACTERÍSTICAS TÉCNICAS
Tipo de cámara fotográfica: cámara pocket, marca Vivitar de 35mm.
Tipo de lente: gran angular de 28mm. Enfoque fijo.
Flash: incorporado a la cámara, con la función manual.
Visor: tipo galileano, inverso con campo grande.
Tipo de película: Rollo de color, marca kónica, de 36 exposiciones fotográficas.
ASA: 400°.
Exposición: velocidad de obturación 1/100 de seg. y f/8.
Fecha de producción fotográfica: diciembre de 2003.
Número de fotos: 31 fotografías.
Tabla 1. Sintaxis: Características técnicas
345
disparador. Les indiqué que siempre utilizaran la función de flash en-
cendido, pues me di cuenta que el interior de las casas es muy obscuro
y no saldría la imagen fotográfica y por otro lado, en lugares exteriores,
el flash serviría como luz de relleno.
Sin embargo la única indicación que se les hizo a cada uno de los
colaboradores de manera idéntica: “Al tomar una foto, abre la cámara
(tapa del obturador) enciende el flash y en cuanto esté el foquito en
verde, aprietas el botón (botón disparador).
b) Tipo de lente, la cámara Vivitar tenía integrado un lente gran
angular de 28mm. Enfoque fijo. Y el visor era tipo galileo, inverso con
campo grande. Por lo que se les indicó a los 16 totonacos que: “Te aviso
que lo que veas por la ventanita (ventana del visor) es lo que saldrá en
tu foto, tal cual y como lo veas.”
Este rubro es importante pues existe una gran variedad de lentes
fotográficos como: el normal 50mm., el cual presenta un ángulo de
cobertura visual parecido al ojo humano; gran angular 28mm, muestra
un ángulo de cobertura visual mayor al ojo humano, los objetos se ven
más pequeños; telefoto 135mm., indica un ángulo visual más reducido,
aumenta el tamaño del sujeto principal, a costa de abarcar menos; zoom
28- 80mm., es un objetivo de longitud variable, con varios lentes (normal,
gran angular y telefoto); teleconvertidores (3x) da un resultado similar al
telefoto, la diferencia es que se acopla entre el objetivo y la cámara; y el
ojo de pez, es un objetivo gran angular extremo, cuyo ángulo de cobertu-
ra visual es capaz de fotografías de 120°, 180° a 220°;
c) Flash, incorporado a la cámara Vivitar con la función manual.
Sin embargo, en otras cámaras puede estar independiente. Lucía Allen-
de realizó sus tomas fotográficas en la noche y gracias al flash se logró
el registro visual.
346
d) Tipo de película, puede ser blanco y negro o color de 35 mm,
en este caso se utilizó la película de color para observar cuáles colores
predominan en la cultura de los totonacos; marca se utilizaron Kónica,
Kodak o Fuji; ASA es la capacidad que tienen las películas para poder
captar una imagen con determinada cantidad de luz, existen películas
fotográficas con ASA 25°, 50, 100°, 200° y 400°, en esta investigación se
utilizó el ASA 400º debido a las condiciones de luz de la región totona-
ca; número de exposiciones: es la cantidad de tomas fotográficas que trae
cada rollo fotográfico, pueden ser de 12, 24 y 36 exposiciones. Lucía
utilizó un rollo de color, marca konica, de 36 exposiciones fotográficas
y con ASA 400°.
e) Fecha de producción fotográfica: aquí se registra el día, mes,
año y lugar donde se realizaron las tomas fotográficas y finalmente; el
número de fotos tomadas. Lucía Allende realizó sus fotografías en el mes
de diciembre de 2003.
347
En este apartado se consideran los siguiente elementos:
a) Tercios de la imagen: Toda imagen se crea en torno a los
denominados puntos fuertes. Para obtener estos puntos se
divide en tercios que corresponden, a la tercera parte de la
misma. En donde se cruzan estas divisiones, ubicamos los
llamados puntos fuertes de la imagen, esto es llamado por
Dondis como rectángulo dorado.
348
Lucía Allende tomó 28 fotografías en eje horizontal y sólo
tres en eje vertical. Este promedio de fotografías tomas en
eje horizontal es probable que se deba a la comodidad por
agarrar la cámara fotográfica en forma horizontal. Aunque
otra posibilidad sea que los totonaco de SPP están acostum-
brados a percibir las imágenes visuales de izquierda a derecha
y no de arriba a bajo o de forma vertical.
349
tro de este rubro tenemos: Gran Plano General (G.P.G.)
en él predomina el entorno sobre los actantes (personas,
animales, cosas, acciones y lugar), los cuales pueden formar
parte del encuadre. Plano general, muestra la acción por
completo de los actantes. Limita la presencia del entorno
con respecto al G.P.G.
Planos intermedios: sirven para relacionar a los actantes entre
sí, se aproximan más a una visión objetiva de la realidad. Son
a su vez más expresivos que informativos. e) Plano America-
no: También denominado Plano Tres Cuartos. El personaje
o personajes aparecen encuadrados hasta las rodillas. f) Pla-
no Medio: El personaje o personajes aparecen encuadrados
a la altura de la cintura. Individualiza al personaje, lo que lo
diferencia del Plano Americano.
Planos Cortos: sirven para detallar a los personajes. Primer
Plano: el encuadre incluye la cabeza, el cuello y parte de
los hombros del personaje. Exhibe la interioridad del per-
sonaje y tiene gran carga de subjetividad. Plano Detalle: el
encuadre presenta un fragmento del objeto o del personaje
que interesa resaltar.
350
De hecho, el saludo de mano entre los totonaco es apenas un ligero
roce entre las palmas.
351
por quien ha sido vencida. La Luna es un hombre: “El hombre de todas
las mujeres”. Este interviene en la formación del feto para determinar
el destino del niño. Es decir, la Luna está asociada al agua y a la idea
de la fecundidad, y es ella quien provoca la concepción. La Luna está
ligada, además, a las ideas de la magia y de la contra magia a la vez. Las
operaciones mágicas se hacen siempre de noche, a la luz de la luna.
La tercera dimensión es la semántica, la cual está dividida en dos
vertientes: 1) vida cotidiana y 2) festividades.
Vida Cotidiana
No. de Fotos:7
Actividades de Esparcimiento: No. de Fotos: 7
Nietas, hija y esposo posando para la fotografía
en casa de Lucía. Amiga de Lucía posando para
la fotografía.
TEMA
Preparativos: No. de Fotos: 0
352
las actividades de esparcimiento se tomó en cuenta aquellas actividades
de descanso, de entretenimiento, deportivas y diversión.
Lucía realizó siete tomas fotográficas de sus familiares dentro de
su casa como actividades de esparcimiento y no registró ninguna acti-
vidad laboral, pero cabe mencionar que después de hacer este ejercicio
fotográfico se apropió de la cámara y comenzó a registrar con fotogra-
fías parte de su trabajo como partera.
Con respecto a la vertiente de festividades, Lucía realizó 24 foto-
grafías respecto a la festividad de la Virgen de Guadalupe.
En esta dimensión se manejó además el concepto de “actante”
término utilizado por Vilches (2002) el cual comprende a personas,
animales y cosas, y además, se refiere a términos que por cualquier razón
participan en el proceso narrativo sea que realizan el acto o que lo sufran.
______________
Animales
Tabla 4: Actantes
353
La mayoría de los actantes que registró Lucía fueron relaciona-
dos con la festividad de la Virgen de Guadalupe.
Foto #5 Lucía Allende, Nietas en la cocina, San Pedro Petlacotla, Pue., 2003.
354
La cuarta dimensión se habla sobre la pragmática. En ésta están
presentes los comentarios sobre las fotografías que fueron tomadas
por los 16 fotógrafos totonaco de SPP del Municipio de Tlacuilotepec,
Puebla. Con ello se definió qué querían tomar, qué tomaron, por qué lo
tomaron, qué motivaciones existieron, etcétera. Además, es necesario
considerar de cada fotógrafo: la edad, el sexo y la ocupación o cargo que
ocupa en la comunidad.
Así mismo, según Van Dijk (1989) indica que hay que tener en
cuenta que la pragmática se dedica al análisis de los actos de habla y,
más en general, al de las funciones de los enunciados lingüísticos y de
sus características en los procesos de comunicación. En un principio,
la pragmática fue uno de los tres componentes de la semiótica, la cual
se ocupa principalmente de los signos y de sus sistemas (en símbolos,
significados y comunicaciones) que representa un componente a lado
de la sintaxis (el análisis de las relaciones entre signos) y de la semán-
tica (el análisis de las relaciones signos, significados y realidad). Por
eso, la pragmática se considera como una descripción de las relaciones
entre signos y quienes lo emplean. Así pues la pragmática se ocupa de
las condiciones y reglas para la idoneidad de enunciados (o actos de
habla) para un contexto determinado. En resumen se puede decir que
la pragmática estudia las relaciones entre el texto y su contexto.
Por tanto, esta dimensión se puede narrar de la siguiente manera.
La participación de Lucía trascendió al proyecto de investigación, in-
cluyéndose en mi vida, dejando una huella imborrable en mi corazón,
en mi memoria. Siempre me trató como una hija y en ocasiones muy
especiales me concedió más confianza que a sus propias hijas; sin em-
bargo tiene vergüenza de su condición de origen totonaco, lo que se
reflejó en cierta inseguridad para tomar las fotografías, dando en múlti-
355
ples ocasiones la cámara a algún pariente para que tomara la foto en su
lugar, pues ella no se sentía capaz de hacerlo bien.
Lucía Allende realizó sus tomas fotográficas sobre la procesión
de la Virgen de Guadalupe que se lleva a cabo en el mes diciembre y
sobre el altar totonaco que tiene en su casa. Lucía aprecia mucho su al-
tar totonaco debido a que sus hijos le han traído poco a poco imágenes
y cuadros de santos católicos, por lo que decidió fotografiar a su hija,
nietas y esposo frente a él. Por otra parte, Lucía fotografió la cocina de
su casa porque le gusta mucho cocinar.
Respecto a las fotografías de la procesión de la Virgen de Guada-
lupe, Lucía Allende le pidió de favor a su hija de 10 años y a su yerno de
28 años que las tomaran ya que se sentía insegura y le daba pena que la
vieran las personas de la comunidad de SPP. Por ende, Lucía les indicó
que cosas debían fotografiar, que en este caso sería a los integrantes de
la danza de Los Voladores, a la curandera tradicional de SPP y a ella
misma con sus nietas, hijas y nieto. La finalidad de estas fotografías para
Lucía era tener un recuerdo de su familia frente al nicho católico que se
encuentra a un costado de la casa de su yerno.
Además, Lucía quería tenerse de recuerdo, por lo que aparece en
ocho fotografías, en una de ellas se encuentra a lado de un árbol de
navidad ubicado en la calle principal de SPP, en otras, está bailándole a
la Virgen de Guadalupe. Las demás fotografías Lucía está con su familia
y una amiga, pero lo destacable, es que están a lado del cuadro de la
Virgen de Guadalupe.
Cabe señalar que una vez terminadas las tomas fotográficas, a
Lucía le dio la inquietud de seguir tomando fotografías, principalmen-
te realizar un registro fotográfico de la actividad que desempeña en la
comunidad, la de partera.
356
Finalmente, después de analizar 456 fotografías de los 16 fotó-
grafos del grupo étnico totonaco mediante el modelo tetradimensional
para el análisis de imágenes fotográficas, llegué a las siguientes reflexio-
nes:
357
XIX, Sección Áurea). Por lo tanto, en el 2000, Dondis señala
que se obtiene la Sección Áurea diseccionando un cuadro y
usando la diagonal de una de sus mitades como radio para
ampliar las dimensiones del cuadrado hasta convertirlo en
rectángulo áureo. Se llega a la proporción a:b=c:a.
358
lo que, considero que este trabajo contribuye a la difusión visual en
zonas rurales, especialmente indígenas, para lograr mayor eficiencia en
los trabajos de comunicación visual. Por lo anterior, pienso que cuando
vayamos a realizar un trabajo visual para las culturas amerindias, de-
bemos cuestionarnos primero cómo es la percepción visual entre esas
culturas para poder llevar a cabo, de la manera más efectiva, cualquier
propaganda, publicidad, campaña o elemento visual que desee trans-
mitir un mensaje.
Referencias
359
LOTMAN, Y. Semiótica de la cultura. Madrid: Cátedra, 1979.
PUEBLA, cuarto estado con mayor población indígena en México. Recuperado de:
<http://www.e-consulta.com.mx/nota/2015-08-10/sociedad/puebla-cuar-
to-estado-con-mayor-poblacion-indigena-en-mexico>. Acceso en: 10 ago. 2015.
LAS 364 variantes de las lenguas indígenas nacionales, con ALGÚN riesgo de
desaparecer: INALI. Recuperado de: <http://www.inali.gob.mx/en/comunica-
dos/451-las-364-variantes-de-las-lenguas-indigenas-nacionales-con-algun-ries-
go-de-desaparecer-inali.html>. Acceso en: 31 mar. 2015.
360
A IMAGÉTICA MEHI: REFLEXÕES
INICIAIS SOBRE RITMOS E
IMAGENS CUPE E KRAHÔ 1
Joel Cuxy2
Alexandre Herbetta3
361
Resumo: O texto aqui apresentado é parte de um debate realizado
atualmente no Comitê Krahô-Apinajé do Núcleo Takinahakỹ de
Formação Superior Indígena (NTFSI) da Universidade Federal de
Goiás (UFG), tanto nas etapas de estudos em Goiânia quanto nas
etapas em Terra Indígena. Neste diálogo coletivo, apresentam-se
trechos das falas e reflexões de dois membros do comitê, os quais
buscam pensar sobre a estética da imagem entre os mehi. Desta
forma, identificam-se aspectos interessantes sobre a produção, o
uso e a difusão de imagens entre os Krahô, os Apinajé e os cupe
(não indígenas), os quais têm relação direta com os modos de vida
de cada população. Além disso, procura-se entender a importância
da autoria na produção das respectivas imagens. Note-se que um
dos objetivos do referido comitê é a produção de material didático
com conteúdo audiovisual, problematizando-se a predominância
da escrita nos contextos escolares.
Palavras-chave: Imagem. Autoria. Material didático.
362
duction of teaching materials with audiovisual content, problema-
tizing the predominance of writing in school contexts.
Keywords: Image. Author. Teaching material.
363
as políticas culturais e, inclusive, sobre os regimes de conhecimento
indígenas não pode ser feito, hoje, sem passar pela escola”.
Os integrantes do Comitê são os professores Júlio Kamêr, Sheila
Maxy Apinajé, Aparecida Apinajé, Rogério Kamer, Gilberto Katán,
Gilberto Apinajé, Diana Apinajé, Emílio Nindjô Apinajé, Maria Dos
Reis Paxlé, Maria Célia Kreré, José Eduardo Apinajé, Davi Wamimen,
Cassiano Apinajé, Silivan Apinajé, Percília Apinajé, Ana Rosa Apinajé,
Taís Pocuhto, Juliana Terkwyj, Joel Cuxy, Gregório Huhte, Edvaldo
Paraty, Leonardo Tupen, Ariel Pepha, Andre Cohtat, Ovídio Kunry
Krahô, Dodanin Piiken e Alexandre Herbetta.
O trabalho apresentado neste texto é fruto dos debates realiza-
dos nas etapas de estudo em terra indígena, dinâmica central do curso.
Trata-se, portanto, de algo coletivo. Mais especificamente, apresenta-se
parte de um diálogo entre dois integrantes do comitê – Cuxy e Herbet-
ta – acerca do potencial pedagógico que existe na produção e circula-
ção de imagens, questionando-se a autoria da produção e, inclusive, a
predominância da escrita em contextos escolares.
Este diálogo aconteceu – e ainda acontece – ao longo de
uma série de outros eventos, não sendo portanto resultado de uma
só conversa. É uma conversa esticada como falamos. Esta dinâmica é
responsável ainda pela produção, por parte de Cuxy, de um filme que
tem como base os modos próprios de produção audiovisual mehi e que
circula como materal didático nas escolas Krahô (na íntegra: https://
www.youtube.com/watch?v=Cel-MtJ0xKQ&t=315s).
Uma questão chave das reflexões do comitê é justamente a da
produção de um material didático que realmente tome como base os
saberes indígenas e se afaste do material didático que chega na aldeia
hoje. Chama a atenção do comitê que há ainda uma enorme quantida-
de de material produzido por indígenas e não indígenas fora de con-
364
texto. Em outras palavras, que tomam como base uma epistemologia
ocidental. Nos chama a atenção igualmente que apesar dos entraves e
dificuldades, o processo em tela se afasta intensamente das experiên-
cias anteriores da educação escolar indígena no país. Neste contexto,
segundo Grupioni:
365
Em outras palavras tem como matriz o regime disciplinar. Para
Lewis Gordon (2011), o regime disciplinar aponta para um modo
de produção e organização do conhecimento vinculado aos saberes
ocidentais e à noção de modernidade, reforçando categorias como hie-
rarquia e descontextualizando a realidade. Nesse sentido, para o autor
a disciplina reduz os saberes ao ocidental e fortalece a noção de poder.
O termo “gaveta” apareceu no sentido de se referir ao fato de
que tais livros trazem em si limitações a outras epistemologias, pois
fecham a proposta de estudo no grande tema em tela e são realizados
basicamente a partir da escrita. Nesta direção, para Ladeira é equivo-
cado posicionar “a escrita como o lugar/espaço indispensável para a
manutenção da cultura de um povo” (2016, p. 439). Segundo a mesma
autora (idem, p. 445), a escrita para os Timbira (como os Krahô e os
Apinajé) se dá “como recurso de comunicação com os brancos”.
Nestes momentos conversamos sempre com base e em relação
às pesquisas e ao estágio docência realizados pelos professores indí-
genas do comitê. O trabalho extraescolar de Julio Kamêr (2013), por
exemplo, aponta para outra epistemologia. Ele tem como centro a ideia
de que para proteger o território Apinajé das queimadas e assim man-
ter seus recursos naturais protegidos e garantir sua sustentabilidade, é
preciso cantar as músicas tradicionais. A partir daí, Kamêr cria práticas
pedagógicas intra e interculturais relacionadas ao tema, e aponta para
sua importância na matriz curricular nativa.
A pesquisa de Gregório Huhte Krahô (2014) também se apoia nes-
te outro modo de pensar. Ela trata da musicalidade. Para ele, ao estudar a
música nativa, os alunos têm contato com outros domínios culturais e sa-
beres, como a história, a geografia, o território e até mesmo a matemática.
Para Huhte, “desde sempre, o mundo Krahô tem a ver com a relação en-
tre a esquematização de dominar músicas e estudo de matemática local”.
366
Sua pesquisa aponta para a importância da noção de exatidão – presente
na música – para o modo de ser Krahô e para a sustentabilidade da vida.
Huhte diz ainda que “as músicas são da natureza e devem ser cantadas
de maneira exata para a sustentabilidade. Aprendemos a cantar pelos
pássaros, árvores, rio, céu e outras espécies. Não tem música inventada.
Sempre é o mesmo ritmo de cantar, dançar, pular”.
Note-se que nas pesquisas mencionadas há uma outra lógica pre-
sente. Esta trata de associação de temas. Assim, por exemplo, não é possí-
vel falar em mito sem falar em canto, em dança, em culinária, em pintura,
em corpo, em saúde e, assim, sucessivamente. Elas apontam igualmente
para outras relações como entre a música e a natureza e problematizam
dicotomias ocidentais como a divisão entre cultura e natureza.
Note-se ademais que o formato que ainda prepondera nos
materiais didáticos é o do texto escrito em detrimento da linguagem
audiovisual, que possui na opinião do comitê grande potencial para o
ensino e a aprendizagem, tanto para quem a utiliza em processos de
produção de recursos pedagógicos como em sua exibição. Para Ladeira
(2016, p. 446) “apesar da extrema pressão e incentivo para uma pro-
dução de textos descritivos ou narrativos, na língua portuguesa ou na
língua Timbira, que viessem a provocar internamente uma demanda
pela leitura, esse fato não se concretiza”.
Nesta direção, se há uma pressão pela escrita vinda dentre outros
espaços, pela relação com a universidade e com o Estado-nação, os pró-
prios acadêmicos chamam a atenção para a possibilidade e potencial do
uso do audiovisual na produção de material didático. Joel Cuxy Krahô
membro do comitê, inclusive, se debruça sobre a questão e traz inúme-
ras reflexões interessantes sobre a imagética mehi (CUXY, 2014).
A ideia deste texto é, portanto, seguindo Carneiro da Cunha
(2016, p. 9), refletir sobre “os modos como as políticas dos índios, para
367
os índios e que se valem dos índios se entrelaçam e se conjugam para
produzir efeitos”.
***
368
história do Parti, os resguardos dos filhos no casamento, algumas
pinturas e corridas, os Jogos Indígenas na aldeia Manoel Alves, a
maratona na aldeia (16 km), um intercâmbio na aldeia Krahô-Canela,
um professor Krahô dando aula na língua para os Krahô-Canela.
Meus objetivos são o de produzir material audiovisual sobre a
cultura mehi, registrar todas as festas resgatando algumas coisas como,
por exemplo, o casamento, refletir sobre a produção e as possibilidades
do material audiovisual e produzir material didático para todas as esco-
las Krahô. De modo geral, quero incentivar meu povo e os jovens que
estão indo para a cultura do cupe a continuarem mehi.
Hoje, o jovem já tem mais conhecimento na letra, se a pessoa não
souber o escrito a filmagem pode ajudar. Se esquecer na escrita, com a
filmagem tem mais facilidade para aprender. A escrita é mais para orien-
tar, relembrar. Na escrita não vai reconhecer o todo, só alguns detalhes.
A filmagem complementa o conhecimento. Na filmagem vai ver
o gesto, a dança, a pintura, identificar pintura e o partido diferente,
objetos como o chapéu.
369
Herbetta: É interessante notar nesta discussão que eu também
gosto de produzir conteúdo audiovisual. Eu busco utilizar a imagem
em todas as etapas de estudo do NTFSI como meio de registrar e re-
fletir as experiências do curso. Além de ter apreço por produzir boas
imagens, ao menos de meu ponto de vista. Muitas imagens inclusive
são apenas registros para mim mesmo.
Ao longo destes períodos, especialmente nas aldeias, tento atra-
vés da fotografia marcar alguns momentos importantes e usar estas
imagens no material didático produzido para estudo – como abaixo.
Desta forma, insiro as imagens produzidas no material a ser trabalhado
tentando trazer a experiência cotidiana do momento para a discussão.
Quase sempre estou com minha câmera fotográfica à mão ou
pendurada no pescoço tentando achar um bom enquadramento. Claro
que, neste processo, sigo meus códigos culturais quando escolho a cena.
Os indígenas também geralmente levam suas câmeras e/ou ce-
lulares e costumam registrar os eventos. Quase nunca trocamos ideias
sobre as imagens registradas, o que é uma pena.
370
A foto acima, que ilustra uma atividade, sobre um jogo de futebol
feminino na aldeia Mariazinha, levou para a discussão os momentos
cotidianos vividos na aldeia e buscou discutir a importância deles em
relação aos saberes que vêm de fora. A partir da imagem discutiu-se,
por exemplo, o uso das regras tradicionais em atividades que muitas
vezes aprenderam fora da aldeia, como o futebol. Tal discussão buscou
uma reflexão sobre esta relação, qual seja, o uso de regras tradicionais
em outras instituições, como a escola.
Assim, a partir da imagem, uma de nossas questões era se a escola
ou a dinâmica escolar tomava como base as regras ditas tradicionais.
371
Às vezes as imagens rendem boas discussões, às vezes, não. Em
uma das etapas de campo, em abril de 2014, tive a oportunidade de
fotografar um dos eventos que sempre ocorrem paralelamente às eta-
pas. Estes eventos são parte importante destes períodos de estudo pois
estimulam o diálogo entre as outras pessoas que vivem na comunidade,
os convidados indígenas ou não e nós, professores da UFG. Eles geram
uma profunda troca de conhecimentos e afetos intensificando os mo-
mentos em questão e difundem as ideias do curso.
Neste momento dois professores Apinajé estavam participando
de uma etapa de estudos na aldeia Manoel Alves Pequeno/TI Krahô-
lândia e foram convidados a “ganharem nome” entre os Krahô, ou seja,
eles iriam ser batizados no pátio. Prato cheio para um fotógrafo, mesmo
um amador!
Um deles me pediu então que fotografasse o evento, já que eles
participariam. Fiquei bastante feliz, pois tinha ali autorização para che-
gar bem perto das cenas e para participar mais intensamente.
Eu tinha em mãos uma máquina relativamente simples, uma
PENTAX X-5 digital com zoom, o que me permite fotografar com
poucos limites quantitativos, já que o suporte é digital e a qualidade da
imagem é razoável.
Dessa forma procuro fotografar bastante – quantitativamente –
de modo que vou, na prática, identificando melhores enquadramentos,
luz, personagens e possibilidades. É como se no ato de fotografar – na
prática mesmo – fosse reconhecendo um pouco a dinâmica corporal e
cultural das pessoas e do cenário.
Fotografo muitas vezes a mesma cena, variando os elementos
mencionados acima até entender quais são as possibilidades da ima-
gem. É um processo. É como se fotografar fosse aprender.
Normalmente a melhor foto demora um pouco a acontecer.
372
Cuxy: Eu gravo as coisas em processo, tenho que economizar a
fita de gravação. Gravo os momentos principais, em ordem. Cada fita
tem 63 minutos. Numero fita por fita, fita 1, fita 2, fita 3… 4. Classifico
cada filmagem/fita pondo os nomes para não esquecer. É difícil. Ne-
nhuma fita dura a noite inteirinha. Fico com medo de a festa acontecer
e a fita ou a bateria acabar na metade. A câmera também não tem flash
e tripé, ou seja, perde-se muito material.
Na aldeia, não tem igualmente energia elétrica o tempo inteiro.
Além disso, não tenho ainda a informação para fazer todos os proce-
dimentos do filme, como passar material para o computador, editar e
outras coisas. Não é fácil.
A Festa da Batata, por exemplo, comecei a filmar a iniciação. An-
tes das pessoas chegarem, tem que fazer aquecimento. Dois dias antes.
Corre e aquece o corpo. Quando chega o dia, gravei no pátio o pessoal
cantando na direção do local onde está a tora. Em seguida, à tarde,
373
filmei a pessoa que vai avisando onde estão as pessoas que pertencem
ao Hotxa. Depois a cantoria. Posteriormente, filmei cedinho o pessoal
com a tora. E depois, a pessoa que vai casar.
Não gravei a troca de paparuto. Não deu tempo, não dei conta de
gravar todos os momentos. Depois, filmei o começo de outra cantoria e as
pessoas jogando a batata nos outros. Filmei também a fogueira de novo,
para realizar o Hotxa. A filmagem foi até o Hotxa, pois as fitas acabaram.
Por isso é importante que a filmagem seja feita em dois. A PrumK-
wyj me ajudou na aldeia Pé de Côco, dividimos o trabalho. Ela gravou
uma parte, eu outra. Depois, pode-se montar a filmagem, pois às vezes
as coisas acontecem ao mesmo tempo. Não tem condições de gravar o
mesmo acontecimento. A festa é dividida em dois grupos, então não dá
conta de gravar os dois momentos ao mesmo tempo.
***
374
teressantes esteticamente e etnograficamente falando, que marcassem
normas culturais distintas, como abaixo. Imagens isoladas, portanto.
Fragmentos do todo.
É interessante destacar que quando exibi as fotos que tirei do
evento para os professores Apinajé a reação foi de desaprovação. Eles
não gostaram das fotografias! Lembro-me que argumentaram que elas
não mostravam nada, ou melhor, não mostravam a divisão de partidos
entre os Krahô, as pessoas que participaram, o cenário de maneira ge-
ral. Ignorava-se, na opinião deles, a organização social.
Eles criticaram igualmente o fato de que as imagens focavam ape-
nas os detalhes e que com estes detalhes não se entendia o que estava
acontecendo realmente.
Não quiseram as fotos.
375
Cuxy: O importante para o mehi é a ordem das coisas. Cupe não
conhece as festas tradicionais. Quando o filme vem editado de fora, vem
tudo errado. O final da festa vem antes, o início depois. Nós conhecemos
bem, temos mais noção da ordem. É importante saber a ordem das coi-
sas. Não tem hora fixa, tem ordem. Cupe tem hora, mehi tem ordem.
Além disso, nós já conhecemos onde a coisa acontece. Tudo é na
língua. A decisão sai do pátio na língua. Cupe não entende.
Nós que filmamos e temos que ficar atentos ao local decidido.
Por exemplo, na filmagem da Festa da Batata os partidos ficam sepa-
rados, Wacmejé e Catamjé. Devemos então conhecer as pinturas para
identificar o que é uma boa imagem para o mehi.
Uma boa imagem explica marcas da cultura, como por exemplo,
a pintura, o corte de cabelo. Quanto mais marcas melhor. Isso aponta o
rumo da cultura para os mais jovens.
Há filmes sobre os Krahô feitos por cupe que não focam nas mar-
cas da cultura. Isola por exemplo o Hotxa, que representa uma parte,
do resto do ritual. Mistura as aldeias. Mostra metade de uma aldeia,
depois outra aldeia, como se fosse uma aldeia só. Gostamos de ordem.
Os filmes cupe interrompem a ordem das coisas para, por exem-
plo, colocar momentos de entrevista dos mehi.
A diferença entre as festas de cupe e mehi é muito grande. Na
festa do cupe, usa-se roupa perfumada, todo mundo é cheio de poré
(dinheiro) e tem acidente, crime, muita bebida, tudo é pago. Na festa
de mehi, se festeja, se pinta, corta o cabelo, aprende as coisas, canta,
dança, pega todos os processos. Quando a festa acontece na aldeia, os
jovens dançam com o cantador. Tem história, mito. A pessoa tem que
estar atenta, rola cantoria, historiador, chamador.
Tem um ritmo próprio. Tudo é compartilhado.
A filmagem de mehi e cupe é diferente.
376
Filmar é um modo de aprender e ensinar.
Referências
377
GORDON, Lewis. Shifting the Geography of Reason in an Age of Disciplinary
Decadence. TRANSMODERNITY – Journal of peripherical cultural production
of the luso-hispanico world, 2011.
HUHTE KRAHÔ, Gregorio. Formas exatas de ser Krahô: a relação entre a música
e a matemática. Palestra apresentada ao NTFSI/UFG, 2014.
378
ANTROPOLOGÍA AUDIOVISUAL Y
COMUNICACIÓN INTERCULTURAL
379
Rápidamente nuestra disciplina incorporó tecnologías audiovisuales
para escalar su capacidad de registro etnográfico como una verdadera
extensión y expansión de sus sentidos. Así antropólogos, etnógrafos,
viajeros, documentalistas comenzamos a utilizar el grabador de soni-
dos junto con las primeras cámaras de cine y fotografía ya desde finales
del siglo XIX (Haddon 1898 Expedición Estrecho de Torres; Flaherty
filma material etnográfico entre inuits de Canadá entre 1920-22 y Bald-
win Spencer filma y fotografía aborígenes del norte australiano entre
1910-20; Mead y Bateson filman y graban en Bali durante la década de
1930).
380
La construcción y desarrollo de esta interfase tecnológica en la
práctica de la antropología constituye la ampliación y fortalecimiento
de su capacidad para representar la diversidad humana. El problema es
que esa capacidad se ha desplegado, casi siempre, desde una posición
que representa intereses, es decir, la utilización de filtros subjetivos y
culturales que norman esa práctica de observación, descripción y ex-
plicación de los fenómenos de la vida humana.
Scott Robinson (1998) ha planteado que el oficio tradicional
de la antropología visual ha sido ser cómplice de la expropiación de
las imágenes de los otros utilizando un marco interpretativo de matriz
colonial. Dicha expropiación se lleva a cabo mediante la violación de la
intimidad cultural de los diferentes. Todo registro cultural de los otros
es agresivo por su base hegemónica y los representados-interpretados
muchas veces no llegan a comprender su utilidad última, pese al carác-
ter de denuncia que algunos materiales adoptan.
Las maneras de representar y construir la diversidad humana res-
ponden a racionalidades también diversas y muchas veces en tensión.
Esto representa un imperativo ético-político que nos obliga a distinguir
las estrategias de representación encaminadas a mantener las jerarquías
y asimetrías en una sociedad, y aquellas que pretenden contribuir a
la transformación del sistema de relaciones sociales basado en la re-
producción de la desigualdad, la injusticia, la violencia y el poder. El
trabajo científico, académico y artístico no escapa a las influencias de
la teoría, la ideología, la posición política, los intereses y los valores del
sujeto científico o artístico.
Se precisa ensayar metodologías que permitan producir inter-
conocimientos, es decir, lograr experiencias disciplinares y prácticas
sociales colaborativas que logren trazar mapas de conocimientos inter-
culturales e interepistémicos.
381
MBL, 2015
382
trabajaran en forma itinerante, dentro de grandes regiones rurales,
consideró en un principio a la educación como el gran instrumento
emancipador del indio, que derrumbaría las particularidades culturales
que fragmentaban a la sociedad nacional. Proyectó la famosa Estación
Experimental de Incorporación del Indio, título de un efímero proyecto que
él mismo denominó de investigación-acción antropológica, y que llevó
a cabo entre 1932-33 en Carapan, poblado purhépecha, ubicado en la
Cañada de los 12 Pueblos del estado de Michoacán. El objetivo principal
era instalar un centro de observación, de experimentación y de acción,
para estudiar el proceso de asimilación del indio, y ensayar métodos de
incorporación a la sociedad mexicana (1936).
Desde el punto de vista de Sáenz, el rasgo de asimilación-in-
corporación mas importante era el mestizaje, y éste se encontraba
directamente relacionado con el desarrollo de las comunicaciones. No
obstante, estaba convencido de que dicho mestizaje avanzaba por un
camino diferente al proceso de la nacionalidad, porque tenía la certeza
de que México era un panorama viviente de pueblos y culturas, donde
el mestizaje no había sido un factor de unidad, sino de contraposiciones
y conflictos, una patología originada por la conquista y que formaba
parte del mexicano típico, con toda la carga cultural, étnica, social y
económica que esto implicaba (1939).
Profundamente impactado por los raquíticos resultados de su
proyecto en Carapan, llegó a concluir que la llamada incorporación
del indio era una acción que solo intentaba obligarlo a negarse y ser
absorbido por la civilización occidental.
Integrar un solo México, con todos sus componentes, pasó a ser
la tarea central del nuevo pensamiento indianista de Sáenz. Su tesis
central consideraba necesario fusionar lo indio y lo occidental en un
proyecto original de nación. El vehículo integrador sería un programa
383
de comunicación intercultural, que impulsara una reinterpretación
de los diversos rasgos culturales, para replantear el proceso de inte-
gración nacional.
Integrar para Sáenz era mexicanizar, y visto de esta manera la in-
tegración nacional se convertía en la antítesis del indigenismo, porque
se desplazaba la premisa de que el problema nacional era la existencia
del indio, y se afirmaba que el verdadero problema era la situación frag-
mentaria y el aislamiento en que vivian distintos grupos de mexicanos.
El indigenismo solo colocaba al indio en una reserva teórica y práctica
de la integración nacional, cuando en realidad es un factor normal de
la nacionalidad, y no su negación. La tarea integradora debía lograr una
unificación material, espiritual y política; perfilar una identidad nacio-
nal armónica; garantizar respeto a la diversidad cultural y regional; una
homogeneización racial y una comunidad espiritual con gran calidad
ética. Habló de una reconstrucción social y cultural, que la educación,
por sí misma, no podría lograr, ya que entendía que en México existe
una oposición esencial entre la escuela y la cultura, porque mientras la
escuela instruye, homogeniza, establece normas y pautas para civilizar,
es decir, uniformar, materializar y universalizar; la cultura refleja la
calidad especial de un grupo humano, muestra sus particularidades y
diversidad, sus mecanismos de identidad, el molde singular que contie-
ne a la carne y la sangre de un pueblo (1939).
Decíamos arriba que para Sáenz la integración nacional debía ser
planteada como una fusión de horizontes culturales que diera como
resultado un nuevo proyecto de nación y una renovada civilización.
Consideraba más necesario un programa de comunicación intercul-
tural que un proyecto educativo, debido a la contradicción esencial
que observaba entre el formato escolar hegemónico y universalizante,
y la cultura de los pueblos originarios. No obstante, acreditaba en la
384
necesidad de una estandarización lingüística basada en el castellano,
que permitiese la comunicación franca entre las distintas culturas que
integrarían al México nuevo.
MBL, 2016
385
• La cobertura de educación superior en su caso es 5 veces
inferior al promedio nacional.
MBL, 2016
386
Las universidades interculturales mexicanas son proyectos edu-
cativos que surgieron impulsados por la Secretaría de Educación Públi-
ca a partir del año 2000 durante el sexenio de Vicente Fox, por cierto
el primer presidente mexicano que rompió la hegemonía del PRI, la
máquina institucional que consolidara el presidente Cárdenas 60 años
atrás. Debe anotarse aquí la excepción de la Universidad Autónoma
Indígena de México (UAIM) en Sinaloa, que fue creada originalmente
como un proyecto de docencia e investigación etnológica en 1982. Las
demás universidades interculturales dependen primordialmente del
financiamiento estatal y federal, así como de las decisiones que tomen
sobre ellas los gobernantes. Su propósito institucional es explorar mo-
dalidades de atención educativa pertinente para jóvenes que aspiren a
cursar el nivel de educación superior, tanto de origen indígena como de
otros sectores sociales, interesados en impulsar fundamentalmente el
desarrollo de los pueblos y comunidades indígenas y en aplicar los co-
nocimientos construidos en contextos culturalmente diversos. Algunas
personas afirman que fue una conquista del movimiento zapatista de
1994, otras las identifican como una estrategia del gobierno Fox para
cooptar demandas del movimiento indígena.
Las universidades interculturales mexicanas se encuentran
establecidas en 11 Estados del país Sinaloa, Michoacán, San Luis Po-
tosí, Estado de México, Hidalgo, Puebla, Veracruz, Guerrero, Chiapas,
Tabasco y Quintana Roo, la mayoría en regiones, municipios y zonas
marginales con los menores índices de desarrollo humano (IDH),
donde la desigualdad es una constante entre estos grupos de población
y se manifiesta en graves problemas sociales entre los que se destacan:
el acceso a los servicios de salud, presentación de enfermedades re-
lacionadas con la pobreza, escasas fuentes de empleos, alimentación
deficiente, baja cobertura en educación; es importante resaltar que
387
derivado de su ubicación podemos señalar que las universidades tienen
en su área de influencia municipios en donde el tema de la seguridad
nacional es vital, toda vez que el narcotráfico se ha convertido en un
problema mayor.
388
monoepistémica entre sus miembros, es decir, universaliza una sola
cultura llamada ‘ciencia’. En otros casos se habla de interculturalidad
como un nuevo paradigma educativo, como una nueva pedagogía que
promueve la discriminación positiva de los indios, su autoreconoci-
miento y afirmación étnico cultural para apropiarse de los conocimien-
tos occidentales e incorporarlos a un universo epistémico inmutable,
conservador y en constante resistencia. Esta postura tiene una buena
dosis de relativismo, donde el propio concepto de cultura se confunde
con una identidad étnica sempiterna.
El término interculturalidad ha virado moda en los últimos años,
como un adjetivo que califica mágicamente cualquier planteamiento
y acción que dice reconocer y atender la diversidad cultural, utilizan-
do un discurso políticamente correcto de defensa a ultranza de las
tradiciones, costumbres y conocimientos ancestrales de los llamados
pueblos originarios (muchas veces lesionando los derechos de terceras
personas) como un imperativo ético-político frente a las amenazas del
capitalismo neoliberal.
Así, se habla incluso de la interculturalidad como un nuevo estadio
de desarrollo humano, como proyecto cultural alternativo que presupo-
ne un plano horizontal de comunicación, intercambio y cooperación del
conocimiento. Evidentemente esta interculturalidad idílica no corres-
ponde a la experiencia del mundo vivo, el cual se encuentra atravesado
por las categorías de etnia, raza, clase, género y sexualidad, y donde se
condensan las relaciones sociales basadas en la fricción, el conflicto, la
negación del otro, el racismo, la desigualdad económica, la homofobia, el
sexismo, la violencia y el miedo a la diferencia.
La interculturalidad a mi entender, constituye un espacio in-
terfásico que relaciona a varias culturas y éste está atravesado por las
389
múltiples determinaciones de la vida social que no se circunscribe a los
llamados pueblos originarios.
La interculturalidad realmente existente, se compone de aproxi-
maciones emprendidas desde varias ópticas culturalmente diferenciadas,
para construir puentes entre poblaciones e individuos de culturas dis-
tintas. Parte de un concepto dinámico y diacrónico de la cultura que se
desarrolla en escenarios de relaciones sociales asimétricas y enmarcadas
por estructuras de poder. Es ante todo una interfase comunicativa que
aspira a crear competencias suficientes que hagan posible un verdadero
diálogo entre culturas. Por ello el llamado diálogo de saberes solo puede
establecerse entre las culturas realmente existentes, que producen nuevos
componentes y que se apropian de otros, que se transforman y adaptan
permanentemente para no desaparecer o ser asimiladas.
MBL, 2016
390
1.3 Tecnologías digitales y comunicación intercultural
391
El semanario, 2014
392
Hoy en día las tecnologías digitales se han convertido en una
poderosa interfase comunicativa entre comunidades e individuos. El
acceso y uso de estas tecnologías ha impactado fuertemente a la estruc-
tura de las relaciones y movimientos sociales, la cultura y las relaciones
interétnicas e interculturales. Prácticamente la interacción social se de-
sarrolla en dos ámbitos constitutivos de las nuevas relaciones sociales:
ON LINE y OFF LINE, es decir, aquellas prácticas mediadas tecnológi-
camente que producen una realidad que conecta aparatos e individuos
dentro de un medio que es generado por una aplicación informática ó
software, y aquellas que ocurren fuera de este ámbito (DOMÍNGUEZ
FIGAREDO, 2012).
Las relaciones sociales ON LINE se califican según su grado de
digitalización y conectividad, es decir, conforme al nivel de acceso y
utilización de los medios digitales y, conforme a la capacidad del in-
dividuo para actuar en diversos contextos de acción. Las tecnologías
digitales expanden y potencian esa capacidad (op. cit.).
El acceso a las nuevas tecnologías es cada día mayor y mas fácil
para una buena parte de la población, especialmente la telefonía celular
que permite acceder a sistemas de mensajería instantánea y las llamadas
redes sociales, pero no ocurre lo mismo con su conectividad, que depen-
de sustancialmente de poder ocupar espacios digitales que, hoy por hoy,
interactúan intensamente con las dimensiones físicas de la realidad.
Para contribuir realmente a una integración social, sin menosca-
bo de la diversidad cultural, es preciso generar estrategias de conectivi-
dad que expandan las capacidades de actuación de individuos y comu-
nidades, hoy marginales, para conseguir reconocimiento y garantizar
respeto y convivencia en el conjunto de la sociedad.
393
MBL, 2003
394
mente de tipo audiovisual. Con ello se pretende elevar índices de
conectividad de colectivos étnica y culturalmente diferenciados que
han experimentado un considerable distanciamiento y marginación de
las prácticas comunicativas de nuestra sociedad, a pesar de contar hoy
con un creciente índice de digitalización a través del uso de la telefonía
celular y las llamadas redes sociales.
MBL, 2006
395
desde quienes consideran una manipulación mediática hasta aquellos
que externan tristeza, pesar y lágrimas al verse identificados de alguna
manera con los hechos en pantalla. El objetivo se consigue al generar
esos planos de ejercicio del reconocimiento de la diversidad humana en
sentido positivo como también a través de la negación a reconocerla.
Sin duda alguna es muy significativo el reconocimiento que en
2015 hizo la American Anthropological Association (AAA, 2015) de
la importancia de los medios audiovisuales en la práctica etnográfica,
en la producción de conocimientos, en el desarrollo sociocultural, en el
debate teórico, en la educación y en las acciones junto a comunidades
de la mas diversa índole, refiriéndose a la ethnographic visual media-
como una herramienta de la mayor importancia para la producción y
aplicación del conocimiento antropológico.
396
Bienvenida al Taller Miradas Antropológicas
CLIP: https://vimeo.com/channels/ciesasvimeo/124647670
397
Ba’ax ka Wa’alik/Cómo ves?
CLIP: https://vimeo.com/channels/ciesasvimeo/125869880
Referencias
BÁEZ LANDA, Mariano. Imagen e Investigación Social. In: FERRAZ; Ana Lú-
cia Camargo; Mendonça. João M. de (Org.). Antropologia Visual: Perspectivas de
Ensino e Pesquisa. Brasília: ABA, 2014. p. 719-728.
398
CASTELLANOS, Alicia; BÁEZ LANDA, Mariano. Encuentro de miradas…
encuentro de tareas. In: SUZÁN, Margarita (Comp.). El Documental del Siglo
XXI, Voces contra el silencio, video independiente. México: A.C. y UAM-Xochi-
milco, 2006.
399
MACDOUGAL, David. Transcultural Cinema. Princeton: University Press,
1998.
SÁENZ GARZA, Moisés. México Íntegro. Lima: Torres Aguirre (Imp.), 1939.
400
Título: Olhar In(com)formado: Teorias e
práticas da Antropologia Visual
SOBRE O LIVRO