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Em busca de um cinema em fuga
Em busca de um cinema em fuga
Em busca de um cinema em fuga
E-book518 páginas6 horas

Em busca de um cinema em fuga

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Sobre este e-book

Fellini disse certa vez, acerca de Julieta dos Espíritos, "que no verdadeiro cinema cada objeto e cada luz significa alguma coisa, como num sonho". Ariscos, esses significados pedem o olhar ativo do espectador, transformado em coautor do "sonho". O cinema é uma arte para espíritos livres que o acolhem até ao ponto de uma imersão completa, mas crítica. Uma arte da partilha e da oferta que não admite a manipulação ou a submissão do espectador, porque nelas não crê.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento13 de mar. de 2020
ISBN9788527312028
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    Em busca de um cinema em fuga - Cristian Borges

    Em Busca de um Cinema em Fuga

    Cristian

    Borges

    EM BUSCA DE UM CINEMA EM FUGA

    o puzzle, o mosaico e o labirinto como chaves da composição fílmica

    Para minha família,

    que tanto me inspirou.

    Enlace

    Como se compõe um filme? Ou melhor, por que e com que elementos se constrói um filme? Essas primeiras indagações, tão banais quanto ambiciosas, já sugerem, pelos verbos empregados, a proximidade do cinema com a música (em termos de composição) e com a arquitetura (em termos de construção). Ricciotto Canudo, ao cunhar a expressão sétima arte no início do século XX, observou que o cinema – escrita da luz em movimento e novo avatar da tão almejada arte total – acendia ao mesmo tempo uma vela para o tempo (como a poesia, a dança e a música) e outra para o espaço (como a pintura, a escultura e a arquitetura)¹.

    Questões elementares como essas inspiraram este estudo. Assombrava-nos, ao ver ou ao fazer (em pensamento ou de fato) um filme, o mistério de sua criação: como algo derivado tão diretamente da realidade palpável e cotidiana consegue guardar certa magia, certo grau de imponderabilidade e distanciamento dessa mesma realidade por ele retratada? Em uma entrevista realizada por Michel Delahaye e Jean-Luc Godard, Robert Bresson declara:

    Para mim, a improvisação está na base da criação do cinema. Mas também é certo que, num trabalho tão complicado, é preciso ter uma base, uma base sólida. Para poder modificar uma coisa, é necessário que de partida essa coisa seja muito nítida e muito forte. Pois se não houver, não só uma visão muito nítida das coisas, mas também uma escrita no papel, arriscamo-nos a perder-nos. Arriscamos a perder-nos nesse labirinto de dados extremamente complexos. Sentimos, pelo contrário, tanto mais liberdade frente ao próprio fundo do filme, quanto mais estivermos adstritos a cercar e construir fortemente esse fundo.²

    A criação no cinema, assim como na arte em geral, sempre suscitou muito mais questionamentos do que respostas. E como toda criação guarda certo mistério, ela só pode ser abordada de maneira indireta, enviesada, através de jogos de abstração e analogias inesperadas. Sobretudo quando constatamos que algo tão paradoxal quanto o cinema – fugaz arte do tempo (assim como o teatro ou a dança), mas que só existe enquanto registro congelado (como a escultura ou a pintura) a ser eternamente retomado, recuperado, reanimado – parece nos escapar a cada momento.

    Por isso escolhemos explorar esse vasto e obscuro tema através de vias tortuosas, e bem pouco ortodoxas, dentro do complexo caminho da criação cinematográfica. Assim, analisaremos a obra (bem como alguns escritos e declarações) de três autores singulares – Robert Bresson, Alain Resnais e Jean-Marie Straub – à luz de três modelos analógicos inusitados, porém bastante concretos: o puzzle, o mosaico e o labirinto. Essa escolha arbitrária, nada fácil diante do enorme leque de opções à nossa disposição (tanto de um lado quanto de outro), correspondeu a uma melhor adequação dos modelos de construção aqui propostos aos filmes analisados e vice-versa, todos bastante ricos em ideias e sugestões formais, como veremos.

    A principal meta desta reflexão é, portanto, desvendar um pouco do mistério que envolve a criação cinematográfica, considerada aqui num sentido quase artesanal, operando um diálogo possível entre, de um lado, o ponto de vista do cineasta, e de outro, a recepção por parte do espectador, como faces de uma mesma moeda.

    Embora as questões aqui exploradas não se apliquem a um período específico, em termos históricos elas se referem, sem dúvida, a um cinema que assume plenamente seu caráter formal (de artifício, de algo construído e, logo, não natural), bem como sua modernidade, recusando enquadrar-se nas amarras de uma tradição qualquer. Contudo, deixemos bem claro que a modernidade no cinema, tal como entendida neste estudo, não se encontra absolutamente atrelada à noção de cinema moderno defendida pelos críticos da revista francesa Cahiers du cinéma e propagada para além do campo da cinefilia pelo filósofo Gilles Deleuze em seus livros sobre cinema – e largamente adotada por vários autores, inclusive no Brasil –, segundo a qual ele só surgiria como resultado da Segunda Guerra Mundial, de acordo com uma leitura reducionista e eurocêntrica da história do cinema, que tende a ignorar enormes ousadias e conquistas anteriores, colocando no mesmo saco figuras do cinema clássico hollywoodiano e das chamadas vanguardas europeias nos antípodas dos ditos cineastas modernos do pós-guerra. Acreditamos que a modernidade habita o cinema desde o seu nascimento, o que nos permite abordá-la em diferentes momentos de sua existência, já que o encontro com as obras não pode se limitar a épocas determinadas, devendo ao contrário buscar identificar ações formais concretas que possibilitem um diálogo, ainda que à distância, entre essas obras e as questões inerentes à sua composição.

    Liberdade semelhante adotaremos em relação aos textos e autores aqui utilizados, por acreditar que o pensamento não se limita apenas ao contexto que o gerou, podendo ecoar e retornar de maneira potente e reveladora em épocas posteriores, quando confrontados a questões e obras contemporâneas que de algum modo convoquem e acolham um diálogo enriquecedor com essas vozes do passado. Além disso, nossa reflexão teórica não se contentará apenas com a produção de críticos e acadêmicos, dedicando especial apreço ao pensamento de criadores (através de notas, ensaios, reflexões, depoimentos em entrevistas etc.) que, totalmente embebidos na prática artística, aportam um testemunho particularmente sensível e precioso, em outro grau de sintonia com o fazer artístico.

    Em suma, tenhamos em mente que o presente texto se propõe, antes de tudo, como um exercício de montagem, aproximando com razoável liberdade de espírito (e não sem certo atrevimento) obras e ideias afastadas no tempo e no espaço.

    Este estudo articula-se em três partes. Num primeiro momento, refletiremos sobre algumas questões-chave e de ordem geral relacionadas à composição fílmica e à formação das imagens, em paralelo a uma investigação sobre certas tradições artísticas que fazem eco à evolução da figuração e fabulação de corpos, espaços e olhares no cinema, bem como a suas possíveis filiações genéticas. Em seguida, exploraremos cada um dos modelos de construção acima mencionados – o puzzle, o mosaico e o labirinto – pelo viés de diferentes formas de organização do espaço no cinema e de algumas questões daí decorrentes, em referência a determinados procedimentos técnicos designados, para os fins deste estudo, como: leitura, escritura e tessitura. Na terceira e última parte, identificaremos algumas tendências cinematográficas, tendo em vista três tipos de imagem, cada uma correspondendo a um modelo e a um procedimento específicos, a fim de buscar uma melhor compreensão da complexidade de sua confecção, além de apontar em direção a possíveis relações com outras imagens, ainda por se descobrir.

    Como num movimento de zoom out ou travelling para trás, partimos de um ou poucos planos de um único filme, na primeira parte, passando em seguida à filmografia completa de cada cineasta analisado (Robert Bresson, Alain Resnais e Jean-Marie Straub), para finalmente expandir o campo de visão e de análise a vários filmes de diretores, épocas e lugares diferentes, na terceira parte.

    Por outro lado, cada uma dessas partes constitui-se de um primeiro capítulo consagrado à composição fílmica próxima do puzzle e à obra de Bresson, como ponto de partida a questionamentos que serão desenvolvidos e prolongados em direção a um segundo capítulo, reservado à arte do mosaico e à obra de Resnais, e enfim a um terceiro, dedicado ao labirinto e aos filmes de Straub. Apesar do fato de a terceira parte abrir-se para outros filmes, dirigidos por outros cineastas em países e épocas distintas, essas três obras – centrais, contemporâneas e convocadas aqui particularmente por seu rigor, solidez, coerência, independência de qualquer movimento ou escola e por aliar sua estética ousada a uma ética sólida – permanecem, ainda que ausentes, intimamente ligadas ao nó górdio de nossa problemática central.

    Assim, proposto em uma configuração pouco usual, este estudo pode ser lido tanto no sentido vertical (do primeiro ao terceiro capítulo da primeira parte, e assim sucessivamente) quanto no horizontal (os primeiros capítulos, seguidos dos segundos e finalmente dos terceiros) – daí a razão de um tableau de matières (quadro de conteúdos) acompanhar a tradicional table de matières (sumário) no início desta obra, sugerindo visualmente os possíveis percursos a serem trilhados pelo leitor.

    ■     ■

    A publicação deste livro conta com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e o estudo original foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) como resultado de uma pesquisa de doutorado empreendida durante quatro anos na Universidade Sorbonne Nouvelle – Paris 3, sob orientação do professor Philippe Dubois. Mas sua dívida estende-se a várias pessoas que de algum modo contribuíram para as reflexões aqui expostas ao longo de todo o período de maturação do texto. Por isso, distinguem-se os sinceros agradecimentos a: Samuel de Jésus, por sua dedicação nas minuciosas leituras da versão francesa; Cecília Antakly de Mello, pela leitura atenta e crítica; Matteo Bonfitto, pela frutífera troca de ideias na interface com o teatro; Ismail Xavier, Jacques Aumont e Nicole Brenez, pelos generosos comentários na banca de defesa da tese; Teresa Castro, Martine Floch e Bernadette Acs, fiéis companheiras de um grupo de estudo tão informal quanto inesquecível; e todos(as) que acolheram a pesquisa tanto na França como no Brasil, onde o projeto nasceu – na Escola de Música Villa-Lobos e na Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói –, e na Itália, onde parte dela foi realizada – em particular, na Universidade Católica de Milão, na Cinemateca de Bolonha e nas universidades de Udine e Pisa.

    Parte I

    A Composição Fílmica: Fissuras, Intervalos

    e Pontos na Imagem

    I. Um Cinema de Madeira

    1. ENTRE A IMAGEM ORIGINÁRIA E O FILME DE CINEMATÓGRAFO

    Para se compreender a construção de um objeto, nada melhor que desmontá-lo, como normalmente fazem as crianças com seus brinquedos e bonecas. Do mesmo modo, a melhor maneira de se solucionar um enigma é fragmentando-o. Raciocinando assim, Fontaine, a personagem aprisionada do filme Um Condenado à Morte Escapou (Un Condamné à mort s’est échappé, 1956), de Robert Bresson, prostra-se durante um bom tempo – não se sabe ao certo se são algumas semanas, um mês, em todo caso são várias sequências do filme –, abrindo fissuras entre as tábuas que compõem a porta de madeira de sua cela. Ele a descreve da seguinte forma, numa de suas reflexões em voz over: ela era composta por dois painéis, com seis tábuas de carvalho mantidas em molduras da mesma espessura; num intervalo entre duas pranchas, percebi que o filete que as ligava não era de carvalho, mas de uma madeira de cor diferente, faia ou álamo; havia certamente um meio de desmontar essa porta.

    Seu objetivo, ao longo de todo o filme, será escapar da cela na qual se encontra cativo, na época da ocupação da França pelos nazistas; e a ação que lhe parece mais apropriada para esse fim consiste em separar algumas tábuas inferiores dessa porta para que elas deslizem e possam ser retiradas, permitindo assim que ele passe pelo buraco e tenha acesso ao corredor. Ele começa, então, a cavoucar entre as tábuas, dia após dia, com a ponta do cabo de uma colher de metal (fiz dela um cinzel, lembra Fontaine), conseguindo retirar três delas. No entanto, após cada teste de abertura, ele deve recolocá-las em seu lugar exato, a fim de ocultar o buraco secreto. O único plano que mostra essa ação particular ilustra muito bem o seu dispositivo: as tábuas encaixam-se perfeitamente, apesar da moldura rompida durante o processo, cujos pedacinhos ele deve cuidadosamente remendar após cada retirada (a moldura se rompeu, mas numa superfície maior do que eu havia previsto; pude recolocar os pedaços, mantendo-os no lugar, ele diz ainda em voz over). Porém, apesar da perceptível tensão e do seu desejo de fuga, ele não o faz apressada ou desajeitadamente, mas com muita precisão, cuidado e destreza. Aliás, nota-se a extrema paciência e calma com que Fontaine cria suas fendas, rearranjando, a cada vez, os pedacinhos de madeira que dissimulam o buraco escondido e a porção estourada da porta, a despeito do risco constante de que algum guarda apareça subitamente, surpreendendo-o.

    Poderíamos ler nessas sequências uma espécie de alegoria da busca, empreendida pelo próprio Bresson, por liberdade e por técnicas de evasão de um cinema que lhe parece excessivamente aprisionado e aprisionante. De fato, encontramos em praticamente toda sua filmografia, de Os Anjos do Pecado (Les Anges du Peché, 1943) a O Dinheiro (L’Argent, 1983), uma enorme tensão entre aprisionamento e fuga, a começar pelo nível temático¹. Mas de que outra forma podemos perceber essa tensão, em seus filmes, senão pela figuração de uma fuga?

    Talvez encontremos algumas pistas ao analisar suas reflexões acerca do que seria um filme ou a criação cinematográfica. Primeiramente, Bresson estabelece uma distância clara entre o cinema (ou teatro fotografado²) e aquilo que ele denomina cinematógrafo. Essa distância marca uma tomada de posição firme e radical contra um determinado tipo de cinema predominante que deve ser visto com desconfiança e a todo custo evitado, pois mantém, a seu ver, péssimas relações com o teatro. À parte questões de gosto pessoal e o fato de ele possuir um olhar demasiadamente intolerante em relação à maioria das obras produzidas em sua época, uma das definições de Bresson para um filme já denota sua condição de lugar onde algo curioso ocorre: filme de cinematógrafo em que a expressão é obtida por relações de imagens e de sons, e não por uma mímica, gestos e entonações de voz (de atores ou de não atores). Que não analisa, nem explica. Que recompõe³. Trata-se, portanto, do palco de uma recomposição, ou seja, do lugar onde alguma coisa composta anteriormente é retomada ou compõe-se novamente. Logo, não é um simples acaso se ele aconselha que, no momento da filmagem, seu filme deve se parecer com aquele que você vê fechando os olhos. (Você deve ser capaz a cada instante de vê-lo e de ouvi-lo por inteiro.)⁴. O que significa que as imagens e os sons trabalham juntos, numa espécie de alquimia no interior da própria recomposição, em busca de uma imagem inicial à qual o filme remete e da qual resulta, e que o cineasta vê, paradoxalmente, fechando os olhos. Bresson nos lembra ainda que muitos são necessários para se fazer um filme, mas apenas um faz, desfaz, refaz suas imagens e seus sons, retornando a cada segundo à impressão ou sensação inicial, incompreensível aos demais, que os fez nascer⁵.

    Percebemos, por trás de tais frases, uma acentuada inspiração platônica⁶. Como se o filme, antes de ver a luz do dia, devesse necessariamente passar por uma imagem primeira, diferente da sua: uma imagem originária (ou original⁷, pois ideal) que lhe serviria de guia no momento de sua concretização e cujo segredo (a impressão ou sensação inicial) pertenceria somente a seu autor⁸. A imagem, portanto, de uma intenção, como um projeto ou esboço⁹ – do mesmo modo que o desenho está para a pintura como uma representação abstrata do pensamento, sempre ligada à noção de discurso¹⁰. Não à toa, o próprio Bresson (pintor, antes de tornar-se cineasta) aproximava o filme de um quadro – para melhor afastá-lo do teatro que, segundo ele, aprisiona o cinema¹¹ – ao recomendar: veja o seu filme como uma superfície a cobrir¹²; ou ainda ao impor a si mesmo o seguinte procedimento: achatar minhas imagens (como com um ferro de passar), sem atenuá-las¹³. Avançando, então, por essa aproximação entre o filme e o quadro (Bresson não foi o único a sugeri-la¹⁴)–, façamos um desvio pela pintura para, quem sabe, encontrarmos aí algumas respostas a respeito dessa imagem originária que pode servir de fonte a uma obra, e desse lugar de recomposição que Bresson identifica ao filme de cinematógrafo.

    A Sombra e o Contorno

    A impressão ou sensação inicial que, segundo Bresson, faz nascer uma imagem nos remete ao relato de Plínio, que é considerado um dos mitos fundadores da noção de retrato em pintura: trata-se da história da filha de um oleiro de Sícion que, desejosa de guardar a imagem de seu amante antes que ele partisse, desenha os contornos de sua sombra projetada na parede por uma vela¹⁵. Philippe Dubois destacou as sutis correspondências entre essa fábula e a própria natureza da imagem fotográfica, ao demonstrar que tanto o retrato em questão quanto a fotografia provêm, por assim dizer, de uma operação similar à da impressão de uma sombra projetada – sempre graças a um suporte (um plano receptor ou uma superfície de inscrição: a parede ou a película) e a uma fonte luminosa. De todo modo, numa situação como na outra, parte-se de um homem e sua sombra (um isso foi barthesiano) para se chegar a uma imagem que o represente, fixando-se progressivamente seus contornos (um isso é, como o tempo embalsamado baziniano)¹⁶.

    Dito de outra forma, para Roland Barthes: o que funda a natureza da Fotografia é a pose. Mas a pose é entendida aqui não como "uma atitude do alvo, nem mesmo uma técnica do Operator, mas [como] o termo de uma ‘intenção’ de leitura". O que encerraria, de certo modo, o ciclo de todo um processo de criação/recepção da imagem, ao estabelecer uma ligação íntima, uma espécie de cumplicidade entre a pessoa fotografada, o fotógrafo e o observador, a despeito das distâncias temporais e físicas que possam separá-los¹⁷. Essa interpretação audaciosa da pose levará Barthes a afirmar que "na foto, alguma coisa posou diante do pequeno orifício e aí permaneceu para sempre; enquanto no cinema, por outro lado, alguma coisa passou diante desse mesmo pequeno orifício: a pose é levada e negada pela sequência contínua das imagens¹⁸. De acordo com essa lógica, pode-se deduzir que – uma vez que o desenho marca o fundamento do retrato na pintura e a pose, o do retrato na fotografia – no cinema o retrato teria como fundamento a passagem: não estando mais em questão um isso foi ou isso é, mas um isso passou ou isso passa – e podemos decliná-la ainda mais, em direção a um isso se passou ou isso se passa", abandonando assim o objeto para acentuar o evento.

    David Allan, The Origin of Painting (detalhe, 1775), Galeria Nacional da Escócia, Edimburgo.

    Mas deixemos de lado, por ora, a abordagem do evento para insistir um pouco mais sobre a questão, historicamente privilegiada, do objeto: quem é desenhado, quem posa ou quem passa? Se continuamos a pensar no retrato, a resposta mais evidente será: uma pessoa. Como o amante da jovem filha do oleiro, que só teria servido, na mencionada ocasião, para satisfazer passivamente o puro e simples desejo de imitação da moça. Porém, o que restou dele não se reduz nem a si próprio nem à sua sombra – pois, como afirma Hubert Damisch, em seu Tratado do Traço: "um contorno é menos imitado que seguido, repassado ou descrito (no sentido em que um móvel descreve uma trajetória), descobrindo-se no movimento pelo qual a linha se inventa"¹⁹. Logo, não se trata apenas de uma mera imitação, mas também, simultaneamente, da descrição, do acompanhamento de um percurso guiado, na medida em que uma sombra já projetada (como a imagem já constituída de que fala Éric Landowski²⁰) pode ser seguida, reproduzida.

    Assim, uma pessoa cujos contornos são descritos dá origem, num primeiro momento, a um objeto passível de ser recuperado e observado a uma distância razoável, sem riscos. Basta acompanhar-lhe o contorno, como fez a filha do oleiro Dibutades, para que se possa atingir uma representação gráfica mais ou menos justa dessa pessoa, ou ao menos de sua aparência – "a exemplo desses pintores que se satisfazem em reproduzir os quadros dos outros (de reproduzi-los ou, literalmente, de descrevê-los, por meio de medidas e linhas)"²¹. Aliás, é justamente graças ao seu contorno que a sombra ou a pessoa em questão adquire uma figura – da mesma forma que é pelos traços que acompanham esse contorno que sua reprodução deixa de ser uma mancha para tornar-se uma linha²². A figuração não passa, nesse caso, de uma descrição. Todavia, através desse ato de figuração chega-se a um contorno que funciona como uma ilusão total e definitiva, surgindo somente graças a uma leitura dinâmica e inventiva. Algo que acontece ao se descrever, ao se acompanhar, ao se repassar pelas diferentes posições que poderia assumir a pessoa em questão (o alvo ou o modelo) – pois, como recomenda Winckelmann: colocado de perfil, este modelo revelará ao artista o que antes havia escapado ao seu olhar; ele mostrar-lhe-á também o contorno das partes salientes, o das partes interiores e o recorte completo²³. Contudo, resta sempre uma zona ocupada pela própria sombra, indefinível, difícil de se perceber e descrever, como nota Philippe-Alain Michaud, pois em seu movimento de realização, o desenho fica aquém dos códigos da representação mimética, numa região onde a imagem ainda não se estabilizou²⁴. Talvez seja justamente nessa região que encontraremos o lugar de recomposição ou a imagem originária sugeridos por Bresson – algo que, por seu aspecto desfocado e inacabado, alguns estudos sobre a pintura nos levam a supor:

    Assim como o sonho, o desenho também opera na separação, mas seus laços com a realidade, não mais que os do sonho, não são inteiramente rompidos. Nas imagens do desenho […] o mundo da experiência não desapareceu: ele se fragmentou e se desorganizou. Alguns motivos são apenas indicados, outros ao contrário desaparecem sob o peso do traço, o tratamento se concentra num detalhe, ao passo que porções inteiras da folha são despojadas, construindo uma cena instável, disparate e flutuante.²⁵

    Taddeo Zuccaro, Estudos de Mulher Nua, Sentada (século XVI), Museu do Louvre, Paris; e Cecco Bravo, Figura Nua Precipitada no Vazio; Estudos de Braços e Pernas (séc. XVII), Museu do Louvre, Paris.

    A Intenção e a Intensão

    Ao estabelecermos esse inusitado paralelo entre a imagem originária e a mancha produzida pela sombra, naturalmente aproximamos, no polo oposto, o filme da linha que compõe o contorno. Que relações podemos então pressupor entre a mancha e a linha, entre a sombra e o contorno, ou ainda entre uma imagem originária e o filme de cinematógrafo de que fala Bresson?

    Entre a mancha e a linha, segundo Damisch, encontra-se o traço: o mesmo traço que, na tradição chinesa, é associado à ideia de paisagem (e de seus elementos constitutivos, bambus, rochedos etc.) e na tradição ocidental, à figuração humana (reconhecemos nele o elemento gerador da figura prioritariamente humana). Daí a origem comum dos verbos retratar e retraçar (o radical latino traz-), que em italiano (rittratare, rittrato) ressaltam ainda mais o fato de constituírem um ato ulterior, de repetição, de re-traço²⁶. Um ato, portanto, de retomada, de descrição, de leitura. Por isso o traço já não pertence à categoria da mancha, por carregar em si um desejo de rastro; apesar de não ser ainda linha, por não chegar a delimitar completamente uma figura.

    Por outro lado, entre a sombra projetada sobre uma superfície e o contorno que a descreve, encontra-se uma intenção: a de registrar para sempre seu rastro, sua forma, sua aparência²⁷. É o que ocorre com a filha do oleiro de Sícion que, na ânsia de conservar a aparência de seu amante²⁸, contorna as extremidades (i luoghi stremi) que emanam de sua sombra com uma multiplicidade de traços. Há, portanto, uma intenção, um desejo, um projeto: a vontade de um contorno que ainda não é, mas que já se projeta, mentalmente, numa ideia de imagem possível, a ser vislumbrada posteriormente. Além disso, não deixa de ser uma intenção de leitura, como diz Barthes, cujo fim seria a pose – permanecendo, como no caso do traço, numa zona intermediária da pós-sombra (além de uma presença) e do pré-contorno (aquém de uma imagem), em suspensão, à espera.

    No cinema, por sua vez, entre aquilo que denominamos aqui imagem originária e o filme propriamente dito, muito mais do que uma simples intenção – ainda que certamente haja um projeto, um desejo de imagens e mesmo um emprego indireto da pose (aqui multiplicada) por trás de um filme –, encontra-se uma intensão: ou seja, uma tensão interior à realização de um filme, compreendida entre um ideal imaginado anteriormente pelo cineasta (aquilo que você vê fechando os olhos) e um real captado pela câmera²⁹. Vários cineastas já comentaram o grande desafio que é fazer um filme, no que diz respeito à constante batalha entre uma essência (interior/anterior) e todas as contingências concretas relacionadas à sua realização que colocam em risco a ideia inicial³⁰. Porém, a intensão parece tão intrínseca e necessária ao filme quanto sua suposta essência, tendo em vista, inclusive, o grau de imprevisibilidade e complexidade que ela pressupõe: entre a única possibilidade de um ideal e todas as contingências do real.

    Além disso, do mesmo modo que se percebe a pose numa foto, pode-se igualmente perceber a intensão na tela. De fato, é como se a pose se complexificasse: conservando sua existência, a espera inerente à pose vê-se multiplicada pela passagem (a pose é levada e negada pela sequência contínua das imagens) que opera como uma espécie de suspensão em cascata. Algo que corresponderia, em imagens fixas, ao célebre quadro de Marcel Duchamp, Nu Descendo uma Escada n. 2 (1912)³¹, ou ainda às cronofotografias surgidas no final do século XIX – e que o mesmo Duchamp chamava de coisa de Marey³², em referência a Étienne-Jules Marey e seu projeto enciclopédico que consistia em: captar, fotografar, filmar tudo o que se move no universo, de homem a animal, dos fluidos aos objetos, das nuvens à circulação do sangue³³. Um projeto sem dúvida utópico, mas que lançava as bases não apenas das tomadas cronofotográficas, como também do cinema:

    Marcel Duchamp, Nu Descendo uma Escada nº 2 (1912), Museu de Arte de Filadélfia; e Étienne-Jules Marey, Salto Com Vara (1890).

    As imagens devem ser tomadas do mesmo ponto de observação; que o intervalo de tempo separando duas imagens sucessivas seja rigorosamente constante; que o tempo de pose seja muito curto; que as imagens sejam tomadas com intervalos de tempo bastante curtos e, consequentemente, que elas sejam muito numerosas sem se confundirem, todavia, entre si.³⁴

    Mas será que a passagem, essa suspensão em cascata (que já se anunciava visivelmente nas cronofotografias) representa, por sua vez, o termo de uma tensão interior ao cineasta e anterior ao filme? Seja como for, ela parece indicar ao menos a mutação de uma intenção de leitura em uma intensão de outra natureza. A associação dessa tensão interior com a passagem serviria, logicamente, de motor para a composição de imagens fílmicas, novamente numa zona intermediária (entre a imagem originária e o filme), mas dessa vez vibrando, tremendo – e, como sugere Barthes em relação à fotografia, estabelecendo uma ligação íntima, uma espécie de cumplicidade entre a pessoa filmada, o cineasta/operador de câmera e o observador, a despeito das distâncias temporais e físicas que possam separá-los. Contudo, antes de prosseguirmos nessa zona intermediária da criação de um filme, na qual coabitam o que chamamos aqui intensão e passagem, convém explorarmos um pouco mais a noção de imagem originária, que talvez nos ajude a desvendar essas outras noções.

    2. DA IMAGEM ORIGINÁRIA À INTENSÃO

    De onde surge essa imagem originária que precede virtualmente o filme na cabeça do cineasta, antes mesmo das filmagens? Será que podemos encontrar algumas pistas do lado da mancha ou da sombra – ou seja, no domínio da pintura?³⁵ Ou seria mais fácil decifrar seus mistérios partindo, retrospectivamente, da imagem já finalizada, resultante dessa imagem primeira?

    Voltando a Fontaine, a personagem do filme de Bresson, notaremos que ele se exprime a respeito da porta de sua cela da seguinte forma: é ao acaso e à desocupação que devo meu primeiro golpe de sorte. Eu ficava normalmente sentado, diante da minha porta, sem mais nada a fazer senão observá-la. Assim, a porta representava para ele uma mancha, uma tela imaginária, opaca, sobre a qual se projetava sua possibilidade de fuga e tudo o que ele poderia ver do outro lado, a partir de sua cela. A simples ideia de libertar-se através da criação de incisões entre as tábuas já lhe inspirava uma imagem de liberdade possível, já que: as tábuas não se encontravam reunidas por um sistema de respigas e malhetes, talhados na própria madeira, mas por um filete de madeira fina que minha ferramenta poderia facilmente arrancar. Desse modo, ele será capaz, pouco a pouco, de ver em sua mancha uma forma possível, analisável, desmontável: observar as tábuas é observar o mecanismo, o jogo – e é desse modo que, através das fendas entre elas, ele conseguirá espiar o que se passa fora de sua cela, nos corredores.

    Todavia, durante todo o processo, o que se manifesta para ele é um misto de imagem visível (a porta atravessada de incisões, bem como o pouco que ele consegue ver do outro lado) e imagem mental (tudo o que se encontra em sua memória, sua esperança de fuga, seu sonho de liberdade). Ou seja, uma visão sempre parcial, limitada e proibida. Como aquela que observam os dois homens da fotografia intitulada Bruxelas (1932), de Henri Cartier-Bresson: um deles olha através de um furo no tecido estendido, enquanto o outro verifica se ele mesmo não está sendo observado; um vislumbra o além, o outro sonha o aquém. Mas um dos detalhes que chama particularmente a atenção nessa imagem é a presença potente de sombras que, num segundo exame, parecem atrair as personagens, empurrando-as em direção ao tecido, aos furos e a esse ato (aparentemente transgressor) de espiar: assim, enquanto o primeiro já colou o nariz e a lingueta de sua boina ao tecido, a fim de melhor espionar através do furo, o outro resiste, apesar da sombra de uma barra vertical sobre seu chapéu-melão parecer conduzir sua cabeça em direção à grande mancha que avança e aponta para um outro furo, prevendo o encontro iminente com seu nariz e seu olhar.

    Nessa imagem, uma estranha dinâmica da visão destaca, desse modo, três elementos principais, dos quais dois ao nível da figuração (do visível) e um terceiro ao nível da especulação (do não visível): de uma parte, há dois homens que olham (além ou aquém de um tecido estendido diante deles); de outra parte, há manchas ou sombras que acompanham o olhar dos dois homens sobre o tecido; e finalmente há o que se encontra do outro lado do tecido (e fora dos limites do quadro), inspirando a atitude de ambos, essa foto e nossa imaginação – algo que não veremos nunca, pelo menos não nesta imagem³⁶. Os dois homens que tentam ver esse algo que não vemos encarnam, por assim dizer, a busca de uma imagem secreta, proscrita do olhar coletivo, mas que é, no entanto, consentida ao olhar astucioso que consegue atravessar os pequenos furos e fissuras estreitas, encontrando do outro lado (ou não, no caso da frustração desse olhar) sua recompensa. Em todo caso, trata-se de um olhar de fora ou, segundo Hubert Damisch, de um trabalho do aspecto: "do latim aspicere: olhar, no sentido da exterioridade sob a qual uma coisa se apresenta ao olho, ou ao espírito, e que implica algo como uma perspectiva, um ponto de vista, um ângulo de visão. Como se fosse necessário passarmos por aí, por essa marca ou essa fenda, para considerarmos através dela o que seguirá"³⁷. Trata-se, então, de um olhar do exterior, lançado sobre a aparência das coisas – que não as olha diretamente, nem as vê de seu interior. Trata-se ainda de um olhar posicionado através de uma fissura específica que determina um ângulo de visão bem orientado, limitado e preciso. Como o visor da máquina fotográfica ou da câmera de cinema, por exemplo; ou então como o intersector de que nos fala Leon Battista Alberti, em seu célebre tratado Da Pintura (1435), marcando a adoção da perspectiva linear e de novas formas de representação e organização do espaço, no desenho como na pintura, pelo Renascimento italiano:

    Albrecht Dürer, Artista Desenhando uma Mulher Deitada (1525).

    É necessária aplicação ao traçado dos contornos e, para obtê-lo perfeitamente, creio não haver nada mais prático do que esta tela que tenho por hábito chamar, como meus amigos, de intersector e do qual fui o primeiro inventor. Ele é composto da seguinte maneira: uma tela de fios muito finos, tecida frouxamente, tingida de uma cor qualquer, dividida por meio de fios mais espessos na quantidade de fileiras de quadrados que se desejar, e estendida numa moldura. Eu o posiciono entre o corpo a ser representado e o olho, de modo que a pirâmide visual penetre através das aberturas da tela. Esta intersecção da tela oferece muitas vantagens, primeiramente porque ela apresenta sempre as mesmas superfícies imóveis, pois logo após haver fixado suas referências, você encontra a mesma ponta da pirâmide que antes, o que é extremamente difícil de se obter sem o intersector.³⁸

    Esse intersector (que Alberti descreve, não por acaso, como uma tela) ecoa, de certa forma, tanto no tecido que barra o olhar das personagens da foto de Cartier-Bresson quanto na porta que impede Fontaine de ter acesso ao exterior de sua cela, no filme de Bresson. Num caso como no outro, os furos ou as fissuras permitem que o tecido e a porta sirvam de dispositivos de efração cênica: um tipo de tela aberrante que barra um espetáculo qualquer, cuja visão depende de um ato de arrombamento ou, no mínimo, de voyeurismo. Encontra-se assim recuperada, do mesmo modo que, na época renascentista, a transgressão ao interdito medieval cristão que impedia o acesso à

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