Memória A Respeito Dos Escravos e

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R E V I S T A

LATINOAMERICANA
DE PS I C O P A T O LO G I A
F U N D A M E N T A L
an o X, n. 2, jun/ 2 0 07

Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., X, 2, 362-376

Memória a respeito dos escravos e


tráfico da escravatura entre
a costa d’África e o Brasil (1812)*
Luis Antonio de Oliveira Mendes

(Memória, páginas 21, 22 e 23)

362
Discurso acadêmico ao programa
Determinar com todos os seus sintomas as doenças agudas, e
crônicas, que mais freqüentemente acometem os pretos recém-tirados da
África: examinando as causas da sua mortandade depois da sua chegada
ao Brasil: se talvez a mudança do clima, se a vida mais laboriosa, ou se
alguns outros motivos concorrem para tanto estrago: e finalmente indicar
os métodos mais apropriados para evitá-lo, prevenindo-o, e curando-o.
Tudo isto deduzido da experiência mais sisuda, e fiel.

* A Memória de Oliveira Mendes foi lida na Real Academia das Ciências de Lisboa em
1793, mas publicada somente em 1812.
Os trechos foram transcritos de Mendes, L. A. de O. Memória a respeito dos escravos
e tráfico da escravatura entre a Costa d’África e o Brazil: apresentada à Real Academia
das Ciências de Lisboa, 1793. Prefácio de José Capela. Porto: Publicações Escorpião,
1977. As páginas indicadas se referem a esta edição, nomeada aqui Memória. Quando
se indica a “versão alternativa”, ou Discurso, o texto (entre colchetes e em itálico) foi
transcrito de Mendes, L. A. de O. Discurso acadêmico ao programa... In: Carreira,
A. As companhias pombalinas de Grão-Pará e Maranhão e Pernambuco e Paraíba.
2a ed. Lisboa: Editorial Presença, 1983 (1a ed. 1969). Apenso documental (documento
n. 11), p. 364-420 [transcrito de Memórias económicas da Academia Real das Sciências
de Lisboa. Tomo IV. Lisboa: Tipografia da Academia, 1812, p. 1-82].
Observe-se que somente alguns trechos selecionados da “versão alternativa” foram
apostos ao trecho correspondente da outra versão, pois minha intenção foi apenas
HISTÓRIA DA
PSIQUIATRIA
ano X, n. 2, jun/ 2 0 07

Entre os projetos, em que se tem desde a sua origem, e estabelecimento


empregado esta Real Academia, nenhum é mais digno de louvor, do que o
presente, que foi dado para discorrer-se: porque ao tempo, em que ela
compadecida se manifesta uma perfeita, e verdadeira amiga desta porção mais
desgraçada da espécie humana, consultando em geral os interesses dos pretos
recém-tirados dos Reinos Africanos para o Brasil, na preservação das suas vidas;
consulta também em particular os dos seus senhores, que, por efeito da compra,
de contínuo arriscam o seu valor, e importância, que com aqueles se sepulta: e
em comum os do Estado, que sabe, e pesa, que eles são tanto mais preciosos,
quanto necessários para a estabilidade, e promoção da agricultura, e das diferentes
manufaturas nos domínios do Ultramar [com transcendência às nações estranhas]
(Discurso, p. 364); de cujos transportes continuados, fazendo sucessivamente
girar o comércio, e pôr em atividade a navegação, se percebem avultadíssimos
direitos.
Para prosseguir em um assunto tão vasto, e em um objeto, que por si
mesmo se faz recomendável, e digno das maiores atenções, procedendo metódica,
e, quanto possível me seja, concisamente, dividirei este discurso em seis partes,
juntando a cada uma delas as reflexões precisas; e estas em seu todo derivadas

363
da mais sisuda, e fiel experiência.
Na primeira parte: tratarei da natureza, e da qualidade do ar, que os pretos
respiram na África; da salubridade das águas; da temperatura, ou intemperança
do seu clima natalício; da liberdade do seu viver; dos seus costumes; no que, e
quanto se ocupam; de que se sustentam; e finalmente do vestuário, que lhes serve
de resguardo ao corpo.
Na segunda parte: tratarei do modo, causas, e princípio, porque são
desapossados da sua apreciável liberdade; concluindo com os sistemas, pelos
quais os pretos na mesma África são trazidos para o cativeiro.
Estes dois pontos ao tempo que fazem parte do Discurso, lhe servem de
uma precisa introdução; e por isso tive conveniente principiar por eles, para
[extrairmos as luzes e] (Discurso, p. 365) os conhecimentos necessários.
Na terceira parte: tratarei [do horroroso artigo e] (Discurso, p. 365) da
lastimosa situação dos pretos escravos; e subdividirei a mesma escravidão em três

ilustrar como as passagens de caráter antiescravista mais explícito, bem como certas afirmações
de estilo mais enfático e direto do Discurso foram suprimidas na Memória (sobre a existência
das duas versões, veja-se o artigo de apresentação).
As duas reedições portuguesas tiveram a ortografia atualizada, aqui ajustada para a ortografia
brasileira; a pontuação da edição de 1977 foi seguida, exceto pequenos ajustes.
Seleção dos excertos, cotejo das duas versões, revisão e notas de Ana Maria G. R. Oda.
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distintas idades, a saber: a primeira quando são desnaturalizados dos seu país até
ao porto marítimo, onde na África são revendidos para serem transportados para
o Brasil: a segunda, quando são transportados, e entregues ao Comissário até
àquela época em que são revendidos no Brasil a diversos senhores; a terceira,
quando na América os senhores os compram, e os ficam possuindo até ao último
espaço das suas vidas.
Na quarta parte: tratarei das doenças agudas, que ordinariamente os
acometem, e que são adquiridas nas mudanças, e variações dos seus alongados
transportes; onde tudo de mau, e contrário à saúde os persegue.
Na quinta parte: tratarei das doenças crônicas, tirando algumas delas a sua
origem das agudas, de que escaparam; e indicando de onde sejam provenientes
as outras, que de novo insurgem.
Neste lugar a seu tempo pela demonstração dos fatos deduzidos, e tirados
da mais fiel experiência, me verei obrigado a tirar as duas necessárias conclusões:
primeira, que os pretos, que da África são transportados para o Brasil, escapando
a tantos contratempos, inclemências, e infortúnios, podem ser chamados homens
de pedra, ou de ferro.
Segunda, que a causa de toda a sua grande mortandade, e estrago, além das
364 outras causas que menos concorrem, é o modo por que são tratados, e que faz
nascer a maior parte das suas moléstias: as quais cada vez mais vão crescendo,
e levam os pretos à sepultura.
Na sexta parte: tratarei com fidelidade dos meios de se acautelarem, e de
se curarem umas, e outras enfermidades, sendo tudo deduzido da experiência,1
das mais exatas informações, e da presencial observação deste fatal estrago;
fazendo esta última parte um perfeito jogo com as reflexões, e princípios
estabelecidos, e espontaneamente nascidos de todas as outras precedentes.

Capítulo I (Memória, páginas 25, 26, 28 e 29)

Da natureza, e da qualidade do ar, que os pretos respiram na África;


da índole deles...
É coisa por todos bem sabida, que a grande porção de pretos, que da África
são transportados para fornecer de escravatura a todo o Brasil, é extraída da Costa
chamada da Mina; de Cabinda; do Reino de Angola; do Novo Redondo; de
Benguela; de Cabo Verde;2 portos todos estes da costa leste na África: sem que

1. Fala-se da experiência doméstica, e não da clínica (nota do autor).


2. Da Ilha de Cabo Verde se exporta a escravatura para o Pará (nota do autor).
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se fale nas ilhas adjacentes de Bissau; e Cacheu; de Fernando Pó; da Ilha do


Príncipe; de São Tomé; da do Ano Bom;3 e de Moçambique na contra-costa.4
Todas estas terras, segundo descrevem as cartas geográficas, ficam de 1
a 8 graus ao Norte, e ao Sul do Equador.
Desta dedução se tira a certeza de que os pretos exportados para o Brasil,
ainda considerados no centro dos seus sertões, são na sua origem, e nascimento,
habitadores dispersos do meio-dia.
Em razão desta sua situação local, é claro, que sendo eles habitadores da
zona tórrida, o seu clima vem a ser intemperado, ardentíssimo; o que obriga ao
terreno, e conseguintemente aos habitadores à demasiada evaporação e
transpiração. Por isso mesmo a atmosfera, que sobre eles carrega e circula, é
mais crassa, e o ar mais pesado e menos puro, que se pode considerar; sem que,
por essa mesma causa da situação, possa haver viração e ventos sucessivos, que
refrescando-os, os refaça de um novo ar, e este saudável que os vivifique.
(...)
Porém os pretos, que no seu seio nasceram, e que dentro dele têm o berço
maternal, ali vivem com satisfação plena; tendo este clima pelo melhor, porque
outros não conhecem: e por efeitos da correlação que o nascimento tem com o

365
clima, em um ar quase empestado, logram no seu tanto uma perfeita saúde, e são
proporcionalmente menos acometidos das grandes, e cruéis enfermidades do que
outros quaisquer, que lá entram (...).
(...)
Estes povos no seu clima natalício têm toda a liberdade no seu viver, e têm
como uma regra inalterável, e sem limites tão-somente a sua vontade. Não obs-
tante esta franqueza do seu viver, têm certas leis, ainda que muito poucas, a que
vivem sujeitos. Adotam entre os seus costumes a poligamia, e são severos em
fazer guardar, e cumprir (para me explicar assim) no seio da sua incultura a fi-
delidade conjugal.
O caráter destes povos, ainda vivendo no centro da barbaridade, e do
gentilismo, é o serem por gênio resolutos, dóceis, sisudos, e de boa fé; por isso
em tudo a que se entregam, e de que são susceptíveis, são extremosos, e
constantes. São amantes em o último extremo: são vingativos, quando
desenganados lhe dão motivos para o serem; e por isto sendo capazes do amor,

3. Não se fala nas ilhas de Bissau, e de Cacheu, e em todas as outras mais: porque ainda que em
os seus sertões haja pretos, contudo todos quantos se podem reduzir a escravidão são poucos,
ou quando muito suficientes para o serviço da terra (nota do autor).
4. De Moçambique é onde os franceses, e portugueses vão buscar, e negociar escravos, que
transportam para a Ásia (nota do autor).
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e do ódio, com facilidade trocam um pelo outro: nunca desabridamente por


efeitos da inconstância; mas sim pela ardência, auge, e reconhecimento da ofensa.
São muitíssimo fiéis a quem se inclinam, e chegam a estimar; e têm ódio com o
mesmo extremo a quem chegam a aborrecer: o que melhor, e muito confirmará
o que se há de deduzir nas outras partes.
São os pretos da África sadios, fortes, robustos, e de uma boa compleição,
e natureza no seu tanto. Entre outras demonstrações, a que mais por ora nos
desengana, e nos convence, vem a ser que eles na sua menoridade, e ainda já
adultos, fazem pôr por enfeite, e sinal em as suas faces muitos lanhos, e estes
atravessados, e profundos, cujos golpes chegam quase até aos ossos, sem que
passem pelo perigo de vida; o que bem confirmam as infinitas cicatrizes maiores,
e menores, que vemos em as faces dos pretos, que da África são transportados
para o Brasil, e do Brasil para Portugal.
Esses ditos lanhos não só têm por fim o enfeite que eles presumem; mas
também são indicativos da família, do reino, do presídio, e do lugar onde
nasceram, e são moradores (...).
Suportam ainda mais; pois quando são permutados, sofrem o sinal privativo
do sertanejo que os leva na escravidão, para serem conhecidos, e achados, no
366 caso de fuga. Ainda de mais lhes acresce, que chegando ao porto marítimo, onde
hão de ser embarcados, aí tornam a ser marcados no peito direito com as armas
do rei, e da nação, de quem ficam sendo vassalos, e vão viver sujeitos na
escravidão; cujo sinal a fogo lhes é posto com um instrumento de prata no ato
de pagar os direitos: e a esta marca lhe chamam carimbo.
Sofrem de mais outra marca, ou carimbo, que a fogo também lhes manda
pôr o privativo senhor deles, debaixo de cujo nome, e negociação eles são
transportados para o Brasil; a qual lhes é posta ou no peito esquerdo ou no braço,
para também serem conhecidos no caso de fuga: sem que nestes lances a natureza
ceda a tais martírios.
(...)

Capítulo III (Memória, páginas 43, 50, 51, 52 e 53)

Primeira idade da escravidão dos pretos na África...


Reduzido o homem preto livre à escravidão na África, ou porque a ele assim
foi julgado, ou por efeitos [da piratagem e] da aleivosia, como fica dito, é o
indivíduo da espécie humana o mais infeliz, que se pode considerar. [que se pode
considerar; porque desde logo é lançado a ferros, aonde só come o que os
primeiros inimigos da humanidade, e tiranos lhe querem dar]. Em aquele instante,
em que perdeu a liberdade, perdeu também tudo quanto lhe era bom, e aprazível
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[e gostoso]. [À vista do que eles entram a suportar que coisa foi o extermínio
de Adão lançado fora do Paraíso!] (Discurso, p. 378).
(...)
Terceira idade da escravatura dos pretos; que é desde que são
desembarcados no Brasil.
Há portanto, pois, anualmente um sem número de escravos transportados
de toda a costa da África ao Brasil; parece que refolgando a humanidade oprimida,
seria um dia de triunfo, de glória, e de prazer para a mesma humanidade, que
escapando a tantos perigos, entrava no cristianismo, no centro, e na unidade da
Igreja: porém assim não sucede, porque não sei se diga, que o remanescente de
seus dias é mais desgraçado.
Desembarcada esta grande porção de escravatura na América, é conduzida
para casa do comum senhor, que também o é do navio, e de toda a negociação.
Ali para ser vista de todos, são os escravos postos, e mandados assentar em lotes,
e com separação dos grandes aos pequenos, das pretas maiores e menores, na
rua pela frente da propriedade do senhor; e quando à noite se faz preciso ser
recolhida a escravatura, repousa em um grande armazém térreo, que fica por baixo
da propriedade senhorial.

367
Quando esta porção de escravatura chega ao Brasil, consigo pensa, e bem,
que entrando na terra prometida da abundância, e da fartura, nada lhe deve faltar;
porém o contrário lhe sucede, porque por se querer liquidar a negociação pela
menor despesa [porém o contrário lhe sucede, porque a ambição, e a avareza está
apurada em querer liquidar a negociação pela menor despesa] (...); e na terra da
abundância, onde tudo é barato, não se supre melhor a maltratada escravatura,
que acaba de uma tão alongada viagem. [É miséria mais do que desgraça, que
na terra da abundância, onde tudo é barato, não se supra melhor a maltratada
escravatura, que acaba de uma tão alongada viagem!] (Discurso, p. 386).
Neste suprimento não entram os senhorios dela, porque todo o seu fim, e
intento vem a ser gastar pouco, e pôr fora com venda depressa a mesma
escravatura: acometendo a esse tempo o maior número das enfermidades à
escravatura, aos enfermos mandam às vezes persuadir pelos intérpretes, quando
saem para a mostra da compra, que digam aos novos senhores que estão bons
(...) de sorte que da cama do chão, aonde se acham gravemente enfermos, são
levados, e passados aos compradores (...).
(...)
Pela maior parte assim como vivem, morrem ao desamparo. Não se chama
médico por dois princípios, 1O porque há bastante dificuldade em visitar, e curar
os pretos; 2 O porque pela paga, que o senhor há de dar ao médico, vem a
escravatura a ficar mais cara. [Não se chama médico por dois princípios, 1 O
porque a insensibilidade, para não chamar de irreligião, com fatuidade tem
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persuadido aos médicos ser injúria de irem ver, curar, e visitar os pretos; 2O
porque havendo algum médico, ou de mais caridade, ou mais cego do interesse,
confundindo-se nesta parte a virtude e o ânimo de lucrar com a injúria, a
obrigação do ofício com a sem-vergonha, e desprezo, pela retribuição e paga, que
o senhor há de dar ao médico, vem a escravatura a ficar mais cara.] (Discurso,
p. 387).
E o mesmo a respeito dos cirurgiões. [Estes mesmos perversíssimos, e
desumanos sentimentos, que só têm princípio na ignorância colorada com o
pundonor, são extensivos aos cirurgiões (...).] (Discurso, p. 387). Assim a
escravatura vai a ser entregue a uma alveitaria, qual é a dos pretos sangradores,
e estes são os que de ordinário são chamados, quando de dia em dia se vai
sumindo, por efeitos da morte, a escravatura para debaixo da terra. Estes
sangradores são os péssimos cirurgiões, que embarcam para a costa de leste.
Uma cama no chão, umas comidas escassas, um fastio nascido da
enfermidade, as mesmas enfermidades desamparadas, procurando a ultimação do
homem escravo, o mau trato em geral; são as coisas que levam em cada um ano
um sem número de escravos à sepultura.
(...)

368
Passando o escravo pelo título da venda a novo senhor, ele se persuade que
escapou da opressão [que escapou a um tirano]; porém de ordinário [vai
encontrar, e achar outro mais cruel], ou se empregue nos serviços rústicos, ou
urbanos, está vivendo em um contínuo martírio. Se o escravo se ocupa em o
serviço urbano, ele sim é mais bem tratado pela comida, e pelo vestuário [porém
está sujeito a mil inclemências]; porém se é comprado para servir a casa, há de
dar conta de todo o serviço dela com repartição das horas [dos quartos e até dos
minutos], e é um fiador eterno dos bens da mesma casa. Se em alguma coisa
discrepa, ou quanto faz não se amolda a um gênio sempre prevenido contra o
humilde escravo, é logo mandado castigar. [Se em alguma coisa discrepa, ou
quanto faz não se amolda a um gênio tirano, superior, e sempre de mão alçada
contra o humilde escravo, é metido no tronco, e no grilhão por dias, e por
semanas, e muitas vezes são logo mandados açoitar.] (Discurso, p. 388).
[Os tiranos fazem divertimentos da crueldade, se o escravo delinqüiu pelo
Santo Antônio, contam-se-lhe a trezena de açoites (...). Eu vi correr pelo chão
o sangue de meus semelhantes. Eu vi os seus olhos escarnados pelos açoites. Eu
os vi morrer nele, e passam impunes os tiranos.] (Discurso, p. 388).*

* Este longo parágrafo, que descreve em detalhes certas práticas de tortura, está ausente da versão
Memória (nota da editora).
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Os escravos metidos nesta tortura, sustentando o horrível combate da vida


com a morte, tremendo, e sendo obrigados amiúde a comparecerem como réus:
alguns tomam o fôlego, e morrem; outros passam navalhas às goelas; outros
lançam-se aos poços; outros precipitam-se das janelas, das grandes alturas; outros
finalmente matam a seus senhores.
(...)
O escravo porém, que é comprado, e destinado para o serviço rústico, no
qual se ocupa, e se faz necessário a maior parte da escravatura à promoção das
fábricas daquele país; além de sofrer todas as referidas inclemências, ainda lhe
acresce que lhe taxam diariamente o trabalho, ao qual chamam tarefas: e não as
concluindo são castigados. Não lhe dão vestuário, nem sustento; e lhe dão o
sábado livre, e terras para poderem ganhar, e trabalhar para o sustento de toda a
semana: porém este sistema de economia não pode ser desempenhado, nem
conseguir-se os fins só apenas pensados. Por isso parte desta escravatura se
ocupa no furto das novidades que os mais plantam; e dali só se pode tirar por
conclusão, que eles têm um dia certo para furtar.

Capítulo IV (Memória, páginas 55, 56 e 59)

Das doenças agudas, que ordinariamente acometem aos pretos escravos... 369
Posto que esta matéria precisa das observações médicas feitas por
professores, contudo cuido poder dizer, que a primeira, e mais prejudicial das
moléstias agudas, que sofrem os pretos escravos (...) vêm a ser umas grandes,
e repentinas febres, bem semelhantes às perniciosas: as quais trazem consigo
péssimos sintomas, e são decisivas; porque em poucos dias os matam, por serem
amalinadas.
Estas febres em os países africanos são chamadas carneiradas (...).
(...)
Os sintomas desta terrível, e destruidora enfermidade, pelos quais ela logo
pode vir a ser percebida, são as repentinas sonolências; que crescendo, e
aumentando-se por efeitos do progresso da mesma moléstia, e da ardentíssima
febre, prostram o enfermo de um tal modo, e este tão veemente, que o entregam
a um letargo, do qual no seu auge se passa para a outra vida. A isto se acode com
grandes, e repetidas sangrias, com Água de Inglaterra, e com muita quina, tendo-
se por último remédio as sarjas* (...).

* Segundo Lycurgo Santos Filho, a Água de Inglaterra era um medicamento que continha quina,
substância com propriedade febrífuga, obtida da casca de árvore peruana de mesmo nome
(Santos Filho, L. C. História geral da medicina brasileira. São Paulo: Hucitec-Edusp, 1991,
vol.1, p. 289, p. 168). Sarjar é escarificar a pele, para sangria superficial (nota da editora).
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(...)
Para todas as enfermidades têm os pretos africanos os seus curadeiros, que
observam as moléstias, e que pela força do uso, e costume, aplicam a cada uma
delas diversos remédios; no que se empregam também algumas mulheres pretas,
que têm o nome de curadeiras: cujos remédios pela maior parte consistem no
conhecimento de várias ervas, e na aplicação delas às enfermidades.

Capítulo V (Memória, páginas 61, 62, 64 e 65)

Das doenças crônicas...


Uma, e das principais moléstias crônicas, que sofrem os escravos, a qual
pelo decurso do tempo os leva à sepultura, vem a ser o banzo. O banzo é um
ressentimento entranhado por qualquer princípio, como por exemplo: a saudade
dos seus, e da sua pátria; o amor devido a alguém; à ingratidão, e aleivosia, que
outro lhe fizera; a cogitação profunda sobre a perda da liberdade; a meditação
continuada da aspereza [da tirania] com que os tratam; o mesmo mau trato, que
suportam; e tudo aquilo que pode melancolizar. É uma paixão da alma, a que se
entregam, que só é extinta [só dão por extinta] com a morte: por isso [em o seu

370
competente lugar] (Discurso, p. 393) disse que os pretos africanos eram
extremosos, fiéis, resolutos, constantíssimos, e susceptíveis no último extremo
do amor, e do ódio.
Raimundo Jalama, sujeito de probidade, digno de toda a crença, que conta
oitenta anos de idade, e que por vezes navegara para a Ásia; homem muito
pronto, e experimentado em cálculos, e projetos mercantis; e (que) por dez anos
na cidade de São Paulo de Luanda fora administrador do Contrato, e das
Companhias do Pará e Pernambuco, estava no exercício de comprar [na posse
de comprar], e remeter ao Brasil, para sortimento das ditas Companhias, um
grande número de escravos em todas as estações do ano. Ele [fielmente] me
informou a respeito desta enfermidade, [chegando a afirmar] que no tempo da
sua administração [e sucessiva compra de escravos], em um dos lotes comprados
tivera certa escrava com uma filha [a qual depois se chamara Lucrécia], de idade
de sete para oito anos; a qual escrava se entregara a um tal fastio [total fastio],
por efeitos do banzo, que nada queria comer, ainda oferecendo-se-lhe as melhores
comidas, assim do nosso [trato e] costume, como as do seu país; para cujo fim
tinha cozinheira própria; e observando ele esta obstinação [e teima], pela filha
para isto insinuada entrou a pesquisar [a causa e] o motivo, por que a escrava
se entregara ao banzo [inspirando na filha com promessa de prêmio, que em
conversa quisesse insuspeitavelmente extrair dos sentimentos de sua mãe, qual
vinha a ser a causa]; e com efeito veio a adquirir a certeza de que seu marido,
a quem tanto amava, a havia dado a ela com ingratidão a dura escravidão, e
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juntamente a sua filha tão estimada, como penhor da sua aliança. [e com efeito
veio a adquirir a certeza de que seu marido, a quem tanto amava, havia nomeado
a ela com ingratidão, com separação, e desterro à dura e cruel escravidão, e
juntamente a sua filha tão estimada, como penhor da sua aliança] (Discurso,
p. 393-94).
Sabida a causa, dispendendo-se os maiores agrados, promessas, e realidades
de bom trato, e até de liberdade; nada foi capaz de lhe desfazer esta imaginação.
À vista dos agrados na presença de muitas pessoas, que para eles concorriam,
os seus olhos eram dois rios; de contínuo tinha a cabeça sobre os joelhos;
continuou a não querer comer; faleceu: e a sua filha foi estimada, como a de uma
heroína de amor, e de constância [e sendo isto sucedido há mais de vinte anos,
ainda há dois anos houveram cartas, que Lucrécia era viva]. Este mesmo banzo
por vezes observei no Brasil [Este mesmo banzo por vezes observei na América
Portuguesa], que matara a muitos escravos; porém sempre por efeitos do
ressentimento do rigor com que os tratavam os seus senhores. [porém sempre foi
efeitos do ressentimento, da crueldade, e da tirania com que aos escravos
tratavam os seus senhores] (Discurso, p. 394).
(...)

371
A sexta qualidade de molésticas crônicas, que costumam levar um grande
número de escravatura insensivelmente à sepultura, vêm a ser as lombrigas, que
se entende serem provenientes da relaxação do estômago; o que é inseparável dos
climas ardentes (...).
Estes vermes, é opinião que causam os vulgares acidentes chamados de gota
coral;* a que os pretos chamam ventos, ou calondu: e como eles a atribuem à
primeira espécie de castigo, e mal mandado pelo seu Zambe, ou Deus, a têm por
incurável.
(...)
A oitava, e última das moléstias crônicas, e a mais prejudicial, quanto eu
suponho, por particular observação, vem a ser a que chamam vulgarmente
ressecação dos bofes; doença que provém da muita giribita, ou aguardente, e
cachaça do Brasil, que de contínuo bebe toda a escravatura. A esta se entregam
com extremo por três princípios: primeiro, porque vivendo em o seu país
natalício, onde há falta dela, e sendo apaixonadíssimos desta bebida, ao depois
encontrando-a com abundância, se fartam dela; segundo, porque a debilidade, a
frouxidão, e a relaxação do seu estômago assim o pede; terceiro, porque sendo
os escravos nascidos em um país muito mais quente do que o do Brasil, que

* “Gota coral”: também conhecida como morbus sacer, designações antigas da epilepsia (Santos
Filho, História geral da medicina brasileira, p. 215) (nota da editora).
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demais é assistido das muitas virações, andando muito mal vestidos, sentem frio,
e na falta de roupa se entregam a esta bebida, persuadidos de que os aquece; o
que sendo momentâneo, continuam na mesma bebida, para sustentarem o
pretendido calor, com danificação conhecida das suas entranhas.
Disto também se entende que resultam as muitas hidropisias no Brasil.
(...)

Capítulo VI (Memória, páginas 67, 68, 78, 79, 85 e 86)

Dos meios de se acautelarem e de se curarem tanto as enfermidades


agudas, como as crônicas...
(...)
Deviam ter como primeira regra, que os pretos perdendo a sua liberdade
ficam desde logo apaixonados, e entregues a um indizível ressentimento, que é
justo, e inseparável, e extensivo ao mesmo bárbaro; [que também tem alma], que
também sente. Deviam por isso mesmo desde logo começar a tratá-los com
brandura, e agrado, para fazer o cativeiro menos sensível, [desimaginá-los] e
desvanecer pouco a pouco o banzo, que os não desacompanha. Porém pelo

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contrário sucede, que desde logo contra eles se arma o mau trato, o maior que
se pode considerar. [Porém pelo contrário sucede, que desde logo contra eles se
arma a mão visível da tirania, e do mau trato, tratando-os com a maior crueldade
que se pode considerar, e explicar] (Discurso, p. 397).
Deviam ter como segunda regra inalterável trabalharem, quanto lhes fosse
possível, para que no rancho, ou lote dos escravos sempre viesse a todo o custo,
e por todo o preço, um daqueles seus práticos, a que chamam curadeiros, ou
curadeiras; o que com pouco conseguiriam (...); para que estes curadeiros no
decurso da viagem viessem observando as enfermidades, e aplicando as medicinas
do seu uso.
(...)
Todas as enfermidades, e moléstias assim agudas, como crônicas, que ficam
indicadas, à exceção tão-somente dos bichos da segunda espécie,* e do banzo,
não são moléstias desconhecidas. A cada uma delas chega a medicina, sendo

* “Bichos da segunda espécie”: Oliveira Mendes descreve três tipos diferentes de doenças
chamadas de enfermidades do bicho; a primeira, a corrupção intestinal; a segunda, causada por
um “bicho” semelhante a “uma linha branca fina, e torcida” que se escondia sob a pele dos
braços e pernas (Memória, p. 57, 58); e a terceira, por “bichos” que de início pareciam “com
a mais pequena pulga” e se instalavam principalmente nos pés (Memória, p. 63) (nota da
editora).
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aplicada em tempo; porém a mesma medicina não pode emendar a negligência,


e o mau trato, a que os pretos escravos ficam entregues, até que eles no
desamparo morram [porém a mesma medicina, não pode emendar a negligência,
o mau trato e a tirania a que os comissários e os senhorios dos pretos escravos
os entregam à revelia em o procedimento e auge das mesmas enfermidades até que
eles no desamparo morram] (Discurso, p. 407).
Se a escravatura fosse hospedade, e recebida em sobrado; se a toda ela se
desse o vestuário preciso; se lhe fosse dada, além da necessária, e sadia comida,
carne, de que tanto abunda aquele país; e se finalmente se tratasse do refresco,
pelo meio das sazonadas frutas; dispendendo-se este bom trato, com infabilidade,
pouca ou nenhuma escravatura viria a falecer das suas ordinárias doenças.
(...)
O banzo é outra gravíssima enfermidade, que surda, e insensivelmente
abrasando, e consumindo a escravatura, a vai fielmente entregar à morte.
[Sabemos, que nos portos marítimos africanos os habitantes já mais
civilizados, fazem aplicação dos medicamentos anti-escorbúticos; porém, nenhuns
destes remédios chegam a ser participados ao miserável escravo; situação esta em
que a escravidão é bem comparada com a pena de morte, tendo por executor de

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sua sentença o desamparo, a que o entregam, e o mau trato, o que quando não
suscita, adianta e promove o banzo, outra gravíssima enfermidade, que surda e
insensivelmente abrasando, e consumindo a escravatura a vai pôr, e fielmente
entregar à morte.] (Discurso, p. 414).
O meio mais pronto, e o mais natural que, quanto a mim, pode haver para
se exterminar esta moléstia de tão péssimas conseqüências, pois que o seu curativo
não pode achar socorros ainda na melhor medicina, deve ser o excogitar-se tudo
quanto possível seja para desterrar-se [da desgraçada e] da infeliz escravatura
aquela justa paixão, a que se entrega, na cogitação de que vive [circulada e]
combatida [de todos e] dos maiores males.
Em a dissuasão deste justo sentimento deve ter o primeiro lugar um trato
que seja capaz de a desimaginar, de que ela não vive, e que não fora trazida para
uma positiva [e reconhecida] desgraça, na qual se acha sepultada; deve ter o
segundo lugar, comportarem-se os seus senhores para com ela de um modo
benigno, [brando] e afável [e risonho], indicando-lhe que se acham bem servidos,
inspirando na escravatura os sentimentos de que têm eles por acerto, e por fortuna
a uns bons escravos [a um bom escravo]; para na recompensa nascerem os
outros correlativos sentimentos nos escravos [no escravo], de que tiveram
[tivera] a dita de encontrar a um bom senhor; deve ter o terceiro lugar, o
moderarem-se os castigos [o afaste dos severos e rigorosos castigos] (Discurso,
p. 414); deve ter o quarto lugar, a permissão de ela se divertir, e folgar ao seu
modo, e ainda com a convocação dos seus compatriotas, e semelhantes; para lhe
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influir um justo prazer, e a necessária alegria, o que só é capaz de fazer desterrar


o banzo, e as cogitações fúnebres, a que com facilidade se entregam.
(...)

Conclusão (Memória, páginas 88 e 89)

No fim porém deste Discurso só me restam duas reflexões, que qualquer


delas seria capaz de dar a matéria a outro novo Discurso; porém nesta parte
abraçarei a concisão, deixando o que me resta a melhores penas.5*
Primeira, que ainda que a variedade das águas, dos mantimentos, da
qualidade das frutas, dos peixes, que por ínfimos são repartidos com a
escravatura, e a mesma estranheza do clima de algum modo influi para as
enfermidades, que padece a escravatura; contudo (quanto a mim) isto apenas lhe
serve de irritação, e estímulos para a insurgência das moléstias, que dormem, e
para a promoção das que já vêm criadas com antecipação, e originadas pelas
grandes fomes, pelas insuportáveis sedes, e por todo o gênero de mau trato; o
que tudo se aumenta pelo desamparo, a que ela é entregue.
Concluindo nesta parte, que nem a mudança do estado da ociosidade para

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o trabalho, para cujo fim são os escravos comprados, pode influir para suscita-
ção das suas muitas enfermidades; porque os que de novo entram a trabalhar, tra-
balham o que podem, e ninguém deles deve mais exigir: dentro de poucos dias
se habituam para o trabalho de um tal modo que vêm a ser constantes, e assí-
duos nele.
O que porém muito nestas circunstâncias do trabalho, assim como em to-
dos os outros períodos da vida servil pode influir, é a fome, e a necessidade, que
se combate com os esforços do mesmo trabalho; o que os obriga a serem fra-
cos, porque os seus senhores lhes não dão ração certa, e só de ordinário o sá-
bado livre [e quando a dão, o que menos vezes sucede, esta é tão escassa, e tão
curta, e tão miserável, que só serve, por assim dizer, para enganar a fome e para
nada mais]. Influi porém muito o mau trato do tronco, e outros rigorosos casti-
gos, que recaem no fim do trabalho, quando se não tem completado a tarefa; o
que vem a servir de aumento aos infinitos males principiados com a escravidão,
e ultimados com a fiel entrega dos ossos à terra [responde o espírito na terra dos
vivos] (Discurso, p. 417).

5. Assim como se omite o que neste Discurso poderia dizer-se de considerações morais: mas deve
ler-se o Padre Vieira nos Sermões 14o, 20o e 27o do Rosário (nota do autor).
* A citação acima não se encontra na versão aqui chamada de Discurso (nota da editora).
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Segunda, que havendo uma rigorosa necessidade da mesma escravatura para


a promoção das nossas fábricas e estabelecimentos no Brasil, donde nos vem
copiosos, e abundantíssimos gêneros, e nos quais a Real Coroa percebe os seus
justos, e devidos direitos, a humanidade e os interesses da mesma Real Coroa
exigem que se resista a estes absurdos.
Esta Real Academia, assim como o público, me há de perdoar ter eu talvez
transgredido os limites. O amor da pátria me transportou, e o desejo de querer
ser útil do modo que me foi possível, à porção mais infeliz da humanidade.*
[Segunda, que havendo uma rigorosa necessidade da mesma escravatura
para a promoção das nossas fábricas e estabelecimentos no Brasil, donde nos vem
copiosos, e abundantíssimos gêneros, nos quais a Real Coroa tem a melhor
sociedade, porque supremamente, percebe os seus justos, e devidos direitos,
combatendo-se a tirania dos senhores com a necessidade, vem a ser um
complexo de males, e de castigos os miseráveis escravos. O céu, a terra, a
humanidade e a mesma Real Coroa para a resistência destes absurdos comigo
pedem vingança.
O simples escritor porém se não deve misturar com o sistema político,
porque governe o mundo quem Deus pôs na terra para o governar, só se deve

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lembrar do sistema mais oportuno, pelo qual a humanidade oprimida respire: a
tirania se reprima, visto que não pode haver outro meio de emenda à vista da teima,
da obstipação, e da necessidade, que há da escravatura; que na mesma África por
hora venha a menor porção dela, que puder vir, e que para o futuro dilatando-se
pela observação o mesmo sistema, se levantem as mãos aos céus louvando a
onipotência de Deus, que por um destino feliz fez desterrar, e desaparecer para
sempre a escravidão dos pretos a todos odiosa.
Para este fim poderia haver uma lei municipal, que fosse dividida em
diferentes capítulos.
No primeiro se estabeleceria como regra geral, e invariável, que o escravo,
que contasse dez anos de escravidão, vida civil do homem, ficasse manumitido
(...).
(...)
Deveria ter esta lei por quarto capítulo, que uma vez que o escravo, e a
escrava casada tivessem quatro filhos, desde logo fossem manumitidos (...).
(...)

* A versão “curta” do texto de Oliveira Mendes termina aqui (Memória, p. 89). Há quase três
páginas finais adicionadas à outra versão, ocupadas principalmente pela sua proposta de lei
destinada a criar mecanismos para facilitar as manumissões e ainda a controlar os libertos para
que trabalhassem (Discurso, p. 418-420) (nota da editora).
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Esta Real Academia, assim como o público, me há de perdoar ter


transgredido os limites de escritor, confundindo estes ofícios com os do
legislador; porém, eles podem ter um disfarce bem aceite, quando tem por pequeno
reino o curto, e limitado espaço de um gabinete particular.
O amor da pátria me transportou, e os desejos de querer ser útil do modo
que me foi possível, à porção mais infeliz da humanidade, me conduziu a este
fim, e mais do que tudo isto, a certeza que em mim existe que na dilatação de
nossas idéias em projetos interessantes com relação ao criador, e ao bem comum
dos nossos semelhantes, também se verifica e tem aplicação o dito do sábio da
Grécia: Finem videre vitae langoevae.] (Discurso, p. 418-420).

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