A Conquista Da América

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SibÜGiecã Crntraí

Copyright© 1984 by Cambridge University Press


Natal,
Título do original em inglês: í o ^ p x a .
The Cambridge History ofLatin America

I a edição 1997
2» edição 1998
2a edição, 1* reimpressão 2004

V Í G ^

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) ü j L


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
V . X
História da América Latina: América Latina Colonial, volume 1 / orga-
nização Leslie Bethell; tradução Maria Clara Cescato. - 2. ed. 1. reimpr. - São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Brasília, DF: Fundação Alexan-
dre de Gusmão, 2004.

Título Original: The Cambridge History ofLatin America.


Bibliografia. ,
ISBN 85-314-0412-6

1. América Latina - História 2. América Latina - Período Colonial I.


Bethell, Lesliè.

97-3864 CDD—980
Índices para catálogo sistemático:
1. América Latina: História 980

Direitos em língua portuguesa reservados à


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6o andar - Ed. da Antiga Reitoria - Cidade Universitária
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Printed in Brazil 2004

Foi feito o depósito legal


SUMÁRIO

LISTA DE MAPAS 9

N O T A SOBRE MOEDAS E MEDIDAS 11

PREFACIO GERAL 13

PREFACIO AOS VOLUMES I E II 19

PARTE 1 A AMÉRICA AS VÉSPERAS DA CONQUISTA

CAP. 1. A MESOAMÉRICA ANTES DE 1519 25


MIGUEL LEÓN-PORTILLA
Professor Pesquisador, Universidad Nacional de México (UNAM)

CAP. 2 . A s SOCIEDADES ANDINAS ANTERIORES A 1532 63


JOHN MURRA
Professor de Antropologia, Cornell University e Institute of Andean Research, New York

CAP. 3. O s ÍNDIOS DO BRASIL EM 1500 101


JOHN HEMMING
Diretor e Secretário, Royal Geographical Society, London

NOTA SOBRE AS POPULAÇÕES AMERICANAS


ÀS VÉSPERAS DAS INVASÕES EUROPÉIAS 129
LESLIE BETHELL

PARTE 2 A EUROPA E A AMÉRICA

\ CAP. 4 . A CONQUISTA ESPANHOLA E A COLONIZAÇÃO DA AMÉRICA 135


I. H. ELUOTT
Régius Professor de História Moderna, University of Oxford
U
| | A CONQUISTA ESPANHOLA
S
E A COLONIZAÇÃO DA AMÉRICA

OS A N T E C E D E N T E S DA C O N Q U I S T A

" S E M C O L O N I Z A Ç Ã O não há u m a boa conquista, e se a terra não é


conquistada, as pessoas não serão convertidas. Portanto, o lema do con-
quistador deve ser colonizar." Essas palavras foram proferidas por u m dos
primeiros historiadores das índias, Francisco López de Gómara 1 . A filosofia
que se esconde por trás dela é á de seu patrono, o maior de todos os con- o
quistadores, Hernán Cortês. Foi essa filosofia que veio a inspirar a empresa
ultramarina da Espanha n o século XVI e contribuiu bastante para converter
a América espanhola naquilo em que ela finalmente se tornou. Mas seu
sucesso não era infalível, nem foi conseguido sem enorme esforço. Várias
são as maneiras pelas quais uma sociedade agressiva pode expandir os limi-
tes de sua influência, e vários foram os precedentes de todas elas na Espa-
nha medieval.
A Reconquista — o grande movimento dos reinos cristãos da Península
Ibérica para o sul, para regiões mantidas pelos mouros — ilustra um pouco
a ampla gama de possibilidades nas quais se poderiam buscar precedentes.
Travada ao longo da fronteira que dividia o Cristianismo do Islã, a Recon-
quista foi u m a guerra que ampliou os limites da fé. Foi também uma guerra
em busca de expansão territorial, conduzida e regulamentada, mesmo que
nem sempre controlada, pela coroa espanhola e pelas grandes ordens reli-
gioso-militares, que no processo obtinha vassalos junto com vastas áreas de
terra. Foi u m a típica guerra de fronteira, numa tática de ataques rápidos e
específicos em busca de saques fáceis, oferecendo oportunidades de lucro
com resgates e escambos, e de recompensas mais intangíveis, como honra e
fama. Foi uma migração de pessoas e de rebanhos em busca de novos lares e
novas pastagens. Foi um processo de povoamento e colonização controla-

Francisco López de Gómara, Historia General de Ias índias, Madrid, 1852, p. 181.
A EUROPA EA AMÉRICA

0\

Fonte: Francisco Morales Padrón, Historia General de América, 2. ed., Madrid, 1975, pp. 336-337.

A d e s c o b e r t a e a e x p l o r a ç ã o do N o v o M u n d o

A CONQUISTA ESPANHOLA E A COLONIZAÇÃO DA AMÉRICA IM


vj
138
das, com base na fimdação de cidades às quais era concedida ampla e x t e n s a
territorial sob garantia real.
Conquistar podia significar, portanto, colonizar, mas também podia si s
n i f i c a r j s s a h a r , saquear e seguir adiante. Ã conquista no primeiro sentido
dava primazia à ocupação e exploração da terra. No segundo sentido, conce

° P ° d e r e a ri1ueza d e u m a forma muito menos estática - em termos


muito mais de posse de objetos fáceis de transportar, como ouro, pilhagem e
gado, e de domínio sobre vassalos do que de propriedade da terra. Mobüi
dade implicava aventura, e aventura n u m a sociedade militar aumentava
e n o r m e m e n t e as oportunidades de elevar a própria posição aos olhos de
seus iguais. O desejo de «conquistar honras» e de valer más era uma ambição
. .p fundamental na sociedade que era a Castela medieval, ligada por uma hie
rarquia de posições e atenta à idéia de honra. A honra e o valor eram mais
rapidamente conquistados com a espada e mereciam ser formalizados numa
concessão, por um soberano agradecido, de uma posição social superior Foi
seguindo essa tradição que Baltasar Dorantes de Carranza p ô d e escrever
sobre os conquistadores do México que, embora houvesse entre eles alguns
hrdalgos, todos eram agora «por presunção" hidalgos, «porque toda hidalguía
se origina por natureza em atos de serviço ao rei"2.
A reconquista foi interrompida mas não concluída ao atingir seus limites
naturais na própria Península Ibérica. O enclave do reino de Granada per-
maneceria nas mãos dos mouros até 1492, mas por outro lado a reconquista
da Península pelos cristãos estava completa no final do século XIII À medi-
da que foram alcançados os limites da expansão interna, as forças dinâmicas
da sociedade ibérica medieval começaram a buscar novas fronteiras n o
a l é m - m a r - os catalães e os aragoneses p r i n c i p a l m e n t e n a Sicília, na
Sardenha, n o norte da África e n o leste do Mediterrâneo, os castelhanos
como os portugueses, na África e nas ilhas do Atlântico.

O movimento expansionista dos ibéricos no século XV foi u m reflexo ao


mesmo tempo de aspirações especificamente ibéricas T d e aspirações euro-
j>_eias mais gerais n o final da Idade Média. A Europa do século XV era uma
sociedade que ainda sofria perturbações econômicas e sociais causadas pelas
devastações da Peste Negra. Era pequena a oferta de mão-de-obra; as rendas

2 Bdtasar DOranteS de Carranza


' - ™«ción de Ias Cosas de la Nueva Espana [1604],
2. ed., México, 1970, p. 12.
da aristocracia haviam decaído; os monarcas e os nobres competiam por
poder e recursos. Era também uma sociedade que se sentia ameaçada em
suas fronteiras orientais pela presença hostil do Islã e pelo avanço dos turcos
otomanos. Era uma sociedade intranqüila e relativamente móvel, ao mesmo
tempo inquisitiva e aquisitiva — inquisitiva sobre o m u n d o que estava além
de seus horizontes imediatos e aquisitiva em seu desejo de objetos de luxo e
iguarias exóticos, e de ouro que permitisse comprar esses artigos do Oriente
com quem ela tinha um saldo comercial permanentemente desfavorável.
A Península Ibérica, com sua proximidade da África e sua longa costa
atlântica, estava geograficamente bem_situada para assumir a liderança de
um movimento de expansão para o oeste, n u m a época em que a Europa
estava sendo bloqueada em suas fronteiras orientais. Desenvolveu-se uma
tradição marítima ibérica, tanto no Mediterrâneo quanto no Atlântico, onde
os pescadores bascos e cantábrios haviam acumulado um rico cabedal de
experiência para a futura navegação em mares não-cartografados. A con-
quista de Sevilha em 1248 e o avanço da reconquista até os estreitos de
Gibraltar haviam dado à coroa de Castela-Leão u m novo litoral atlântico,
cujos portos eram povoados por marinheiros de Portugal, da Galícia e da
costa cantábrica.
Ao longo dessa costa m a r í t i m a , a combinação entre as experiências
adquiridas no norte e no Mediterrâneo criou uma raça de marinheiros capa.z
de promover e aproveitar os avanços na construção de navios e nas técnicas
de navegação. As primeiras viagens portuguesas foram feitas em qualquer
nau razoavelmente adequada que estivesse disponível, mas no final do sécu-
lo XV a combinação da mastreação quadrada do norte da Europa com a vela
latina do Mediterrâneo havia transformado a caravela n u m imponente barco
oceânico, a culminação de longo período de evolução e experimentação. As
novas exigências das viagens atlânticas, da mesma forma que ajudaram a
aperfeiçoar a caravela, também contribuíram para a melhoria das técnicas de
navegação. Já que os navios agora navegavam em águas desconhecidas e sem
avistar-terra, não serviam mais as velhas práticas da navegação estimada, e os
portugueses passaram a observar os astros para medir as distâncias e deter-
minar a latitude, fazendo uso de instrumentos utilizados havia muito pelos
astrônomos em terra, o astrolábio e o quadrante. Esses instrumentos, por
sua vez, foram modificados e aprimorados para atender às necessidades dos
viajantes do Atlântico. A bússola magnética, desenvolvida no final da Idade
Média para ser usada no Mediterrâneo, facilitava aos navegadores a sua
140
orientação e a marcação da direção num mapa. Aqui também a experiência
adquirida no Mediterrâneo foi aproveitada para as necessidades do Atlânt
co pois a região mediterrânica produziu os primeiros mapas marítimos- e as"
habilidades cartografkas desenvolvidas, no final da Idade Média, na ItilL !
transportadas para a Península Ibérica tornariam possível cartografar u m
5 r u m
m u n d o em expansão.
Com sua rica região rural e seus vínculos com o complexo portuário de
Andaluzia, a própria Sevilha tornou-se a capital marítima e comercial
agraria, do sul da Espanha. Atraía c a t a n ^ t a S T d . Península - 0
antecessores daqueles que seriam mais tarde os emigrantes para as índias - 1
e comerciantes do Mediterrâneo, principalmente os genoveses. No curso do
s é c ^ o XV, o s ^ e n o v ^ s se estabeleceram em números crescentes em Lisboa
e em Sevilha, onde vislumbraram novas possibüidades de "empreendimentos
e de capital numa época em que suas atividades no Levante estavam sendo
constringidas pelo avanço dos turcos. Esperavam desenvolver no Ocidente
fontes alternativas de abastecimento de mercadorias valiosas - sedas
corantes e sobretudo açúcar _ que no Oriente se lhes tornavam m e n í
acessíveis; e estavam ávidos pelo acesso ao ouro do Saara
Não é surpresa, p o r t a n t o , encontrar capital e aptidões genovesas a
desempenhar um papel importante, e às vezes decisivo, em empreendimen-
tos ultramarinos ibéricos do século XV. Os genoveses estiveram bem repre-
sentados nas expedições à costa africana em busca de escravos e de ouro e
— ativamente o movimento de anexação e exploração das ilhas do
Atlântico leste - as Canárias, Madeira e os Açores _ onde esperavam insta-
lar novas plantações de cana-de-açúcar.
Mas os genoveses não eram mais que um elemento, embora significativo
do movimento ultramarino da Península no final da Idade Média. Portugal
T nativa, que na r e d u -
ção de 1383-1385 ajudou a colocar no trono a Casa de Avis. A nova dinastia
mantinha. vínculos estreitos com proeminentes comerciantes e era sensível à
preocupação que revelavam com a aquisição de novos mercados e de novas
fontes de suprimento de corantes, ouro, açúcar e escravos. Mas as aventuras
ultramarinas de Portugal no século XV também eram guiadas por outros
m t e r e ^ s , às vezes contraditórios. A nobreza, golpeada pelas d e s v a l o r i z a ? ^
da moeda que reduziram o valor de seus censos e rendimentos fixos, procu-
ravam no ultramar novas_terras e n o v a e s de riqueza. Os príncipes da
nova casa real combmavam em graus variados o instinto aquisitivo com o
fervor de cruzada, uma sede de informações geográficas e u m desejo de per-
petuar seus nomes.
Sob a vigorosa direção da casa real, essas várias motivações combinaram-
se para produzir entre os portugueses u m intenso movimento em favor de
uma expansão ultramarina n u m a época em que Castela ainda tinha de dar
algo mais que u m primeiro passo hesitante. A coroa de Castela, após a primei-
ra tentativa séria de uma expedição de conquista em 1402, havia tomado posse
nominal das ilhas Canárias. Todavia, em face da resistência oposta pelos habi-
tantes guanchos, a conquista não foi adiante; e, durante grande parte do sécu-
lo XV, perturbações internas e a questão da reconquista ainda por concluir
impediram Castela de seguir de modo sistemático o exemplo português.
Na época da morte do príncipe Henrique, o Navegador, em 1460, os por-
tugueses h a v i a m p e n e t r a d o cerca de 2500 quilômetros na costa oeste da
África e avançado pelo Atlântico, estabelecendo sua presença nas ilhas de
Madeira, dos Açores e de Cabo Verde. A África era uma fonte potencial de
mão-de-obra escrava para as plantações de cana-de-açúcar que surgiam nas
ilhas recém-anexadas. A sociedade medieval do Mediterrâneo havia ideado
formas e técnicas institucionais para o comércio, a escravização, a colonização
e a conquista, e a participação dos genoveses na expansão ibérica do século XV
fez com que reaparecessem essas mesmas formas e técnicas no avanço para a
costa oeste da África e no movimento de penetração das ilhas no Atlântico.
O aspecto mais característico do estilo portuguêsjie expansão foi a feito-
ria, o posto de comércio fortificado como o que foi instalado em Arguín ou
em São Jorge de Mina na costa africana. O uso da feitoria t o r n o u possível
prescindir da conquista e colonização em larga,escala e deu aos portugueses
dos séculos XV e XVT a oportunidade de estabelecer sua presença em vastas
áreas do globo sem_a-JXÊ-Cessidade de penetrarjnjjdt" n " interior dos conti-
nentes. Era u m estilo de colonização que Colombo, com sua formação geno-
vesa e sua experiência portuguesa, chegou a conhecer bem, e que lhe propor-
cionaria u m modelo óbvio quando chegasse às ilhas do mar dos Caraíbas.
A expansão ultramarina podia significar mais que a instalação de postos
de c o m é r c i o , c o m o n a v e r d a d e aconteceu aos p o r t u g u e s e s nas ilhas do
Atlântico e, mais tarde, no Brasil. Para instalar plantações de cana-de-açúcar,
como nos Açores, foi necessário colonizar. N o caso, o método mais barato do
ponto de vista da coroa portuguesa era delegar responsabilidade de povoa-
mento e desenvolvimento de territórios a particulares, que seriam recompen-
sados com amplos privilégios. Esse sistema, pelo qual o donatário, ou senhor
142
proprietário, era também o capitão e comandante, mesclava admiravelmente
elementos capitalistas e senhorml-militares da sociedade mediterrânica
medieval, Foi empregado pela coroa portuguesa no século XV para delenwl
ver Madeira e os Açores, e em 1534 seria estendido ao Novo Mundo, quando
Dom João III dividiu a linha costeira em doze capitanias hereditárias.
Por conseguinte, os castelhanos, quando no final do século XV voltaram
sua atenção para os novos mundos de além-mar, tinham os precedentes
portugueses e suas próprias experiências na reconquista em que se basear
Tinham diante de si um conjunto de opções. Podiam comerciar ou podiam
invadir; podiam estabelecer-se ou seguir adiante. A escolha que fizessem
seria determinada em parte pelas condições locais - a facilidade da ocupa
çao, a natureza dos recursos a explorar - e em parte pela combinação espe-
cifica de indivíduos e interesses que sustentavam e controlavam as expedi-
ções de conquista.
Muita coisa dependia, inevitavelmente, do caráter do comandante e do
tipo de apoio que era capaz de obter. O conquistador, embora extremamente
individualista, nunca estava só. Fazia parte de um grupo sob o comando de
um caudtllo, um líder, cuja capacidade de sobrevivência seria testada na pri-
meira oportunidade por sua capacidade de mobüizar homens e recursos e
depois pelo êxito em guiar seus homens à vitória. O sobrinho de Cortês
Alonso de Monroy, mestre da ordem de Alcântara, que se distinguiu em
conflitos peninsulares no século XV, era conhecido por ser «extremamente
afortunado na guerra» e alguém que «obrigava a sorte a segui-lo"3. Essa era a
reputaçao a que Cortês aspirava, assim como todo caudillo do Novo Mundo
O caudillo tinha a um e mesmo tempo de atender às exigências dos seus
financiadores e a satisfazer as expectativas do grupo não menos individualis-
ta de homens que se haviam colocado temporariamente sob seu comando
Conseqüentemente, a tensão era parte integrante de toda expedição de con-
quista - tensão quanto aos propósitos e objetivos e quanto à distribuição
dos espólios. A disciplina, em tais condições, era fruto, de um lado, da capa-
cidade do líder de se impor a seus homens e, de outro, do senso,.coletivo de
comprometimento com uma empresa comum.
Os longos séculos de guerra de fronteira em Castela ajudaram a criar
aquela mistura especial de mdividualismo e senso de comunidade q u e " ™

Alonso Maldonado, Hechos dei Maestre de Alcântara Don Alonso de Monroy, ed. A. R.
Rodríguez Monino, Madrid, 1935, p. 24.
dia tornaria possível a conquista da América. O pronome pessoal que per-
passa as Cartas de Hernán Cortês que vêm do México é contrabalançado
pelo "nós" confiante dos soldados que falam através de u m dos seus, Bernal
Díaz dei Castillo, em seu Verdadeira História da Conquista da Nova Espanha.
Mas o grande movimento expansionista que conduziu a presença espanhola
através do Atlântico era algo mais que u m esforço maciço da empresa priva-
da que assumia temporariamente formas coletivistas. Isso porque, juntamen-
te com a unidade individual e coletiva, havia dois outros participantes que
marcavam de modo indelével todo o empreendimento — ajgreja e a coroa.
Mesmo quando a guerra de fronteira contra os mouros era feita por ban-
dos autônomos de guerreiros, continuava a ser conduzida sob os auspícios da
Igreja e do Estado. A Igreja garantia a sanção moral que elevava uma expedi- _
ção de pilhagem ao nível de cruzada, enquanto a aprovação do Estado era
necessária para legitimar a aquisição de senhorio e de terra. A terra, e o sub-
solo, estavam entre as regalias pertencentes à coroa de Castela, e conseqüen-
temente toda terra adquirida através de conquista por u m indivíduo particu-
lar se tornava dele não por direito, mas por graça e favor reais. Cabia ao rei,
na qualidade de senhor supremo (o senor natural), controlar o repartimiento,
ou a distribuição das terras conquistadas ou por conquistar, e autorizar colô-
nias de povoamento nos territórios conquistados. No momento da divisão
dos espólios de guerra, sempre deveria ser separado o quinto real. Embora os
adelantados, ou governadores militares das regiões de fronteira, possuíssem
alto grau de autonomia, eram governadores em nome do rei.
Dessa e de muitas outras formas, a presença real se fazia sentir à medida
que a reconquista prosseguia em seu avanço r u m o ao sul. Inevitavelmente, a
autoridade efetiva da coroa flutuava de uma geração para outra, mas a reale-
za em si era o centro de toda a organização da sociedade medieval de Castela
e recebeu uma posição exaltada na grande compiláção da tradição legal de
Castela, as Siete Partidas de Alfonso X, no século XIII. A visão de uma socie-
dade harmoniosa contida nas Siete Partidas é aquela em que o rei, na quali-
dade de vigário de Deus na terra, exerce uma supervisão constante e ativa
dentro do quadro da lei. Ao monarca cabia, na qualidade de senhor natural
dessa sociedade, garantir b o m governo e ministrar justiça, no sentido de
assegurar que cada vassalo recebesse seus direitos e cumprisse as obrigações
que eram suas em virtude de sua posição. Nessa teoria estava implícita uma
relação contratual entre o rei e os vassalos: o reinado degenera em tirania se
o rei, ou seus representantes nomeados, desconsiderar o bem-estar comum.
144
O b o m rei, contrariamente ao tirano, deve estar atento a que os maus sejam
punidos e os justos, recompensados. Sendo o distribuidor de patrocínio, ele
recompensa os serviços dos vassalos merecedores com cargos e honras, de
acordo com u m sistema cuidadosamente regulamentado pelo qual, teorica-
mente ao menos, cada servido de u m vassalo recebe a devida compensação
n u m a merced, ou favor, do rei.
Foi essa sociedade patrimonial, estruturada em torno da concepção de
obrigação m ú t u a simbolizada pelas palavras servido e merced, que se viu des-
f mantelada no final da Idade Média, foi reconstituída em Castela durante o
reinado conjunto de FernjjgÍQ_Ugabel (1474-1504) e depois transportada
através do oceano para ser implantada nas ilhas e n o continente americanos
Fernando e Isabel, os Reis Católicos, eram os governantes do que era essen-
cialmente u m a sociedade medieval renovada. Mas a. natureza do próprio rei-
nado desses soberanos, embora tradicional em suas formulações teóricas
possuía na prática elementos de inovação que tornavam seu poder mais'
temível que o de qualquer de seus antepassados medievais.
Sobretudo, foram os primeiros soberanos autênticos da Espanha — uma
Espanha constituída pela união, na p r ó p r i a pessoa deles, das coroas de
Castela e Aragão. Embora as duas coroas permanecessem institucionalmente
distintas, sua união nominal representava um notável realce do poder real
Na qualidade de reis da Espanha, os Reis Católicos tinham à disposição, pelo
menos potencialmente, recursos financeiros e militares muito maiores do
que os que podiam ser reunidos por qualquer facção rebelde entre seus súdi-
tos. Podiam recorrer a grandes r r a o r o j t e k a l d a d e t o t m t i v a entre súditos
cansados de uma guerra civil interminável. Possuíam, na crescente classe dos
letrados (funcionários com formação universitária), u m a reserva de servidp-
je^profissionalmente qualificados, cujos próprios interesses"^m"mais bem
servidos pela manutenção e ampliação da autoridade da coroa. O humanis-
mo do Renascimento e u m a religião revivescente com fortes nuances escato-
lógicas forneciam idéias e símbolos que podiam ser explorados para projetar
g novas imagens da monarquia, como a de líder natural n u m a grande empresa
B ' coletiva — a missão divina de eliminar os últimos resquícios do domínio
m 0 m 0 e de
< P u rificar a Península de quaisquer elementos "de" contaminação,
„ u m prelúdio da difusão do evangelho aos recantos mais longínquos da terra
| Fernando e Isabel possuíam a sagacidade e a habilidade para aproveitar
g ao máximo essas diversas armas de seu arsenal. Em.conseqüência, as últimas
duas décadas do século XV em Castela - onde as barreiras institucionais
agjMBfcM"

145
opostas ao exercício da autoridade real eram muito menos fortes do que as
da coroa de Aragão — t e s t e m u n h a r a m u m a surpreendente reafirmaçao e
ampliação do poder real.
A presença de u m Estado intrusivo seria fundamental p a r a j g d o o desen-
volvimento da e m p r e s a ultramarina de Castela. É possível que alguns bus-
cãssêm ativamente a intervenção real e que outros se sentissem mehndrados
com ela, mas em ambos os casos a autoridade da coroa deveria ser u m p o n t o
de referência automático para todos os envolvidos na exploração, conquista
e colonização das novas terras.
Já havia claras indicações disso na primeira tentativa castelhana de con-
quista e colonização do Aúântico - a ocupação das ilhas Canárias nas déca-
das de 1480 e 1490. As Canárias ainda eram apenas uma possessão nominal
da coroa de Castela quando se tornaram objeto de disputa entre Portugal e
Castela na guerra da sucessão que irrompeu em 1475. Potencialmente rico
p o r si m e s m o , o arquipélago era t a m b é m u m a base óbvia t a n t o p a r a as
. i n c u r s õ e s à costa a f r i c a n a q u a n t o p a r a as viagens de e x p l o r a ç ã o p e l o
" Atlântico, do tipo que estava sendo empreendido pelos portugueses. A coroa
de Castela, envolvida n u m a p r o f u n d a rivalidade com Portugal, tinha por-
M
tanto u m interesse manifesto em fazer valer suas pretensões, e assim enviou
u m a expedição, q u e p a r t i u de Sevilha em 1478, p a r a o c u p a r a G r a n d e
Canária. A essa se seguiu, em 1482, u m a nova expedição, mais bem-sucedi-
da, sob o comando de Alfonso Fernández de Lugo; todavia, embora os por-
tugueses recuassem de suas pretensões n o tratado de paz de 1479, a resisten- o
cia dos habitantes da ilha impediu uma ocupação fácil, e Palma só foi subju- |
gada em 1492, e Tenerife, u m ano depois. A conquista, como aconteceu nos g

Açores portugueses, foi seguida de exploração. Os genoveses a j u d a r a m a 3


introduzir o cultivo da cana-de-açúcar, e em 1526 havia doze grandes plan- ;
tações de cana-de-açúcar somente na ilha Grande Canária. \
A ocupação das Canárias, u m p o n t o de parada natural na rota para as g
Índias, ilustra a conjunção entre interesse público e privado que havia carac- .
terizado a reconquista e viria a caracterizar também a empresa da América. j
O domínio sobre as ilhas pertencia à coroa, que desse m o d o devia autorizar ;
todas as expedições de conquista. Nessa ocasião, a çoroa também participou ;

do financiamento do empreendimento, mas Fernández de Lugo, nomeado j


pela coroa ddelantado de Las Palmas, fez seu p r ó p r i o contrato particular ;
com uma companhia de comerciantes sevilhanos. Antes de partir u m a expe- ,
dição, era assinado u m contrato formal, ou ca^tulación, entre a coroa e o
c o m a n d a n t e , em termos análogos aos de contratos semelhantes feitos
durante o processo da reconquista. Nessas capitulaciones a coroa se reserva
4 va certos direitos nos territórios a ser conquistados, ao mesmo tempo em
que garantia privilégios e recompensas específicos ao comandante e aos que
se associassem a sua companhia.
Dessa maneira, quando Cristóvão Colombo, o obsessivo visionário geno
vês, finalmente persuadiu em 1491 Fernando e Isabel a patrocinar e apoiar sua
projetada viagem ao Mar Oceano, viu-se preso a uma tradição bem-estabeleci
da que constituía a relação entre a coroa e os comandantes de expedições A
essa relação ele acrescentou suas próprias idéias, baseadas no modelo portu-
guês de cartas de doação para os que descobrissem terras a oeste dos Açores
Nas capitulaciones ajustadas com os Reis Católicos em Santa Fé, fora de
Granada, em abril de 1492, Colombo foi autorizado, segundo uma fórmula
tradicional, a «descobrir e adquirir ilhas e territórios continentais no Mar
Oceano» - na verdade a "conquistar", no sentido de procurar e ocupar terras
atraentes. Nessa ocasião, a coroa mostrou desejos de fazer uma contribuição
financeira relativamente pequena e fornecer navios a Colombo Este foi
nomeado vice-rei e governador hereditário de todas as terras descobertas
sendo "vice-rei" o título conferido pelos governantes da Aragão medieval a
um representante designado para governar territórios que o próprio rei não
tinha condições de administrar pessoalmente. Colombo foi também por sua
• própria insistência, feito Almirante hereditário do Mar Oceano Entre as
recompensas que lhe foram prometidas no caso de sucesso estava o direito de
designar funcionários judiciais (mas não administrativos) na área de sua juris-
dição, juntamente com dez por cento dos lucros do escambo e do comércio
Em 3 de agosto de 1492, quando Colombo partiu do porto andaluz de
Paios, já estava obviamente antecipado que, se alcançasse as "índias» ele
estabeleceria um comércio de entreposto no estüo português em benefício
da coroa de Castela, baseado em pequenos núcleos de guarnição. Mas as
notícias que trouxe ao retornar à Espanha em março de 1493 sugeriam, pelo
menos para a coroa, a conveniência de certas modificações no plano origi-
nal. Havia um certo ceticismo com relação a ter Colombo realmente atingi-
do o Oriente, como ele próprio insistia em afirmar. A revelação do que pare-
cia ser novas ilhas e novos povos suscitou importantes questões sobre direi-
tos às terras e sobre o tratamento a ser dispensado aos habitantes. Quem
deveria exercer o domínio sobre eles, e quem deveria encarregar-se da salva-
ção de suas almas?
147
Os Reis Católicos se dirigiram ao papado, segundo o precedente estabele-
cido pelos portugueses, que haviam assegurado uma doação formal do papa
de direitos de soberania "do cabo Bojador até a Guiné e além". De u m papa
espanhol complacente, Alexandre VI, obtiveram o que queriam: direitos
semelhantes em "todas e quaisquer ilhas e continentes, encontrados ou a
encontrar" na área além de uma linha nacional de demarcação que deveria
ser formalmente ajustada entre as coroas de Portugal e da Espanha, no
Tratado de Tordesilhas de 1494. Ê possível que as bulas de 1493 de Alexan-
dre VI fossem consideradas desnecessárias tendo em vista o princípio do
Direito Romano estabelecido nas Siete Partidas de que a possessão pertencia
aos primeiros ocupantes da terra. Mas a autorização papal deu u m grau
suplementar de segurança às pretensões de Castela contra toda contestação
que Portugal pudesse tentar, e elevou a empresa das Índias ao nível de um j
empreendimento sagrado, ao vincular os direitos exclusivos de Castela a !
uma obrigação igualmente exclusiva de converter os pagãos à Fé. Essa
empresa missionária, solenemente confiada à coroa de Castela, deu-lhe uma
justificativa moral para a conquista e a colonização, que imediatamente for-
taleceu e transcendeu os direitos decorrentes de uma ou de outra do fato da
primeira descoberta.
A coroa, depois de procurar assegurar sua primazia na arena internacio-
nal, buscou também garantir a primazia na aventura de Colombo. O equipa-
mento da frota para sua viagem de retorno a Hispaniola — uma frota, dessa
vez, de dezessete navios em vez dos três da primeira viagem — foi confiado S
ao temível Juan Rodríguez de Fonseca, arcediago de Sevilha e membro do |
Conselho de Castela. Nos 23 anos seguintes, até a morte de Fernando, o <
Católico, em 1516, Fonseca seria de fato o diretor supremo e coordenador o
da empresa de Castela na América, encarregado da tarefa quase impossível |
de assegurar que, em cada estágio de descoberta, colonização e conquista, |
fossem preservados adequadamente os interesses e a autoridade da coroa. A o
inclusão, na segunda viagem de Colombo, de um representante dos contado- *
res mayores de Castela — os principais ministros financeiros da coroa — 2
juntamente com um receptor para coletar todos os direitos da coroa, e um |
vedor, ou fiscal de contas, estabeleceu o precedente que viria a ser seguido |
nas expedições futuras, uma supervisão e controle por parte de funcionários £
da coroa. Os homens de Fonseca seguiriam nos calcanhares de todo futuro |
explorador e descobridor, e nenhum capitão nas índias conseguiria escapar ?
por muito tempo da sombra opressiva da coroa.
A expedição de 1493 diferia também em outros aspectos importantes da
anterior. Na primeira viagem não houvera sacerdotes, mas dessa vez era
dada ênfase especial à conversão dos nativos, e u m grupo de frades, especial-
mente escolhidos por Fernando e Isabel e liderados por u m beneditino cata-
lão, Bernardo Boil, recebeu o encargo da empresa missionária a ser empre-
endida às expensas da coroa. Além disso, a conversão implicava uma ocupa-
ção permanente, e toda a expedição foi preparada para o estabelecimento
nas Antilhas de uma presença espanhola de longa duração. Dessa vez, em
lugar de apenas 87 homens, Colombo foi acompanhado por 1200, entre eles
não apenas soldados e marinheiros e nobres aventureiros, mas também arte-
sãos e agricultores. A ênfase nesse estágio foi posta na colonização, embora o
rescate (comércio de trocas com os indígenas) continuasse a ser fundamental
para a empresa. Uma colônia-modelo estava, na verdade, sendo enviada ma-
ciçamente de Sevilha — modelo, exceto por um aspecto básico: não incluía
mulheres.
Assim, já em 1493, novos elementos entravam em cena para modificar
ou transformar a empresa original das índias na forma que Colombo havia
ideado. O comércio e a exploração continuaram sendo componentes impor-
tantes do empreendimento; e a instalação de uma colônia permanente nas
Antilhas estava em estreita sintonia com o estilo genovês-português de ativi-
dade ultramarina, como já era praticado em Madeira e ao longo da costa
ocidental da África. Mas as antigas tradições castelhanas da reconquista tam-
bém tendiam a afirmar-se, incentivadas em parte pelo fato de que o m u n d o
recém-descoberto das Antilhas parecia densamente povoado por uma popu-
lação não-cristã, e uma que possuía objetos de ouro. Em meio à diversidade
de opções que estavam a seu alcance, Castela caminhava para uma que signi-
ficava u m a conquista em larga escala na tradição peninsular medieval — a
afirmação da soberania, o estabelecimento da fé, a imigração e colonização,
e u m domínio amplo da terra e do povo. Todavia, quando foi lançada de
modo precário no Novo Mundo a primeira colônia espanhola, ainda estava
muito longe de ser decidido qual das duas formas, conquistar e colonizar,
ou conquistar e seguir adiante, viria a prevalecer.

O P A D R Ã O DAS ILHAS

O problema que a coroa e seus agentes enfrentavam em Hispaniola prefi-


gurava em dimensões pequenas o problema que estaria por trás de toda a
149
empresa espanhola na América: como impor estabüidade n u m m u n d o onde
quase t u d o estava imediatamente em fluxo? Invadindo o recém-descoberto
paraíso do mar dos Caraíbas, com suas próprias aspirações, seus valores e -
não menos - suas doenças, Colombo e seus h o m e n s logo estariam a cami-
nho de transformá-lo n u m a selva devastada.
Os e s p a n h ó i s h a v i a m v o l t a d o às Antilhas c o m idéias b e m definidas.
Queriam sobretudo ouro. Enquanto o próprio Colombo continuava e m sua
busca do caminho das índias e do império do Grande Cã, a maior parte do
seu b a n d o instalou-se em Hispaniola, onde descobriu que a primeira colôma
havia desaparecido em sua ausência. Assim, foi f u n d a d a u m a nova colônia,
Isabella, em cima do que se revelaria u m local insalubre na praia norte. Foi
proposto que os colonos construiriam u m a cidade, plantariam suas culturas,
criariam seu gado e instalariam u m a cadeia de armazéns b e m defendidos,
nos quais os índios - agora submetidos à influência enaltecedora do cristia-
nismo — depositariam docilmente grandes quantidades de ouro.
Esse sonho logo se esfacelou. A quantidade de ouro que devia provir do
escambo c o m os índios revelou-se b a s t a n t e d e s a p o n t a d o r a , e C o l o m b o ,
ansioso por justificar os investimentos a seus soberanos, tentou complemen-
tar a insuficiência com outra mercadoria atraente, os próprios índios. Ao
enviar índios caraíbas para a Espanha para serem vendidos como escravos,
Colombo colocou de forma aguda u m a questão que iria dominar a história
da Espanha na América nos cinqüenta anos seguintes: o status a atribuir à ^
população indígena. . 5
Segundo as provisões do Direito R o m a n o , os «bárbaros p o d i a m ser |
escravizados legitimamente, e o termo «bárbaro» chegara a ser interpretado g

pelo Cristianismo medieval como «infiel». N o entanto, embora a coroa pare- o


cesse disposta a aplicar essa interpretação ao primeiro carregamento de tai- |
nos que chegou à Andaluzia, a influência dos teólogos levou a u m reexame da |
questão. U m infiel era u m h o m e m que havia rejeitado a verdadeira fé, mas 3
aparentemente, embora inexplicavelmente, esses novos povos haviam vivido „
na total ignorância dela. Deviam, portanto, ser classificados como pagaos e j
não como infiéis, a menos que continuassem a rejeitá-la, d e p o i s que se lhes j

pregasse « evangelho. Isabel, aconselhada p o r seu confessor J ^ é n e z de j


Cisneros, suspendeu o tráfico. Esses povos eram súditos da rainha; e em 1500 ^
a coroa declarou os índios «livres e não sujeitos à servidão . Essa decisão, .
aparentemente definitiva, na verdade estava longe de ser abrangente. Ainda «
era p e r m i t i d o escravizar índios aprisionados n u m a «guerra justa - um
150
t e r m o que se revelou notavelmente flexível q u a n d o foi empregado nas
Antilhas e depois no continente, abarcando de fato qualquer coisa desde
índios "rebeldes" a caraíbas canibais. A conseqüência imediata da decisão da
coroa foi estimular ataques para a preia de escravos contra as ilhas das
Antilhas ainda não-habitadas por espanhóis, a fim de suprir o mercado com
escravos "legítimos". A medida que se multiplicavam os abusos, aumentava
também a repulsa contra eles, mas somente com as Novas Leis de 1542, que
produzia efeito tanto retrospectivamente quanto para o futuro, é que foi abo-
lida definitivamente, embora não universalmente, a escravidão indígena.
A rejeição, pelo menos de princípio, da escravidão indígena eliminou
uma das opções abertas aos colonos de Hispanióla e, conseqüentemente,
exacerbou os problemas de sobrevivência que já começavam a se tornar agu-
dos. Algumas doenças que atacaram os colonos os haviam obrigado a mudar
para o lado sul da ilha, onde sua nova colônia, Santo Domingo, fúndada por
Bartolomé Colón em 1498, deveria tornar-se o~ centro nervoso das índias
espanholas p o r u m a ou mais gerações. Mas a sobrevivência de Santo
Domingo como colônia viável dependia do estabelecimento de um certo
equilíbrio entre os colonos, que, como todos os colonizadores, chegavam
com expectativas exageradas, e os recursos, que não só eram limitados mas
também se escasseavam rapidamente.
A família de Colombo, que tinha jurisdição sobre as ilhas, revelou não
estar à altura da tarefa. Na qualidade de genoveses adventícios, começaram
em desvantagem natural, e por temperamento nem o almirante nem seus
irmãos estavam preparados para lidar com a indisciplina endêmica de um
b a n d o de espanhóis cujo único p e n s a m e n t o era a riqueza fácil. A era
Colombo nas índias Ocidentais terminou definitivamente com o retorno
final de Diego Colón à Espanha em 1524, mas já desde a metade da década
de 1490 a coroa estava cuidadosamente refreando e reduzindo a jurisdição
da família. O verdadeiro fundador de Hispanióla e, através disso, das índias
espanholas foi frei Nicolás de Ovando, nomeado governador em 1501. Um
g estremadurenho cuja habilidade política e capacidade administrativa se
| revelaram na reforma da ordem militar de Alcântara, Ovando recebeu a
a incumbência de dar estabüidade a uma ilha onde a comunidade de colonos
2 estava dilacerada por facções e ameaçada de extinção devido à escassez de
g alimento e de mão-de-obra.
3 Nos seus oito anos de governo, Ovando conseguiu estabelecer as bases da
sobrevivência econômica e um controle centralizado eficiente. Começou por
151
reconstruir a própria cidade de Santo Domingo, que fora destruída por u m
ciclone pouco antes de sua chegada, na primavera de 1502. Reconstruída
n u m local ligeiramente diferente, Santo Domingo tornou-se a primeira cida-
de verdadeira do Novo M u n d o espanhol — aquela que era a primeira a sur-
gir aos olhos de toda uma geração de recém-chegados às índias e a fornecer
o modelo para as cidades que viriam a nascer na América continental. Em
seu Sumario de la Natural Historia de Ias índias (1526), o orgulhoso cronista
de Hispaniola, Gonzalo Fernández de Oviedo, descrevê-la-ia como superior
até mesmo a Barcelona e a todas as outras cidades que havia visto no Velho
M u n d o : "pois como foi f u n d a d a em nossa época [...] foi projetada com
régua e compasso, e todas as ruas planejadas em linhas regulares"". A planta
em grade, que seguia modelos já estabelecidos na Europa — inclusive o da
habitação temporária dos Reis Católicos em Santa Fé em Granada — havia
cruzado o Atlântico em segurança.
Muitas das práticas e instituições que viriam mais tarde a ser transplan-
tadas para o continente americano eram o produto direto do sistema admi-
nistrativo aplicado por Ovando em Hispaniola, que por sua vez se calcava
nas experiências 'da reconquista na Espanha e da conquista das Canárias.
Para induzir os espanhóis a permanecer na América, seria preciso conceder-
lhe u m a recompensa em recursos da ilha, ou naturais ou humanos. As espe-
ranças de u m a economia baseada n o escambo do ouro com os indígenas
haviam naufragado com a escassez do metal, embora ainda fosse possível
extrair mais ouro de minas e dos rios. Isso por sua vez requeria mão-de- 5
obra, e Colombo já havia introduzido u m sistema de trabalho forçado dos -
índios que ajudaria a produzir tributos para o rei e lucros para os colonos. «
Tentativas de substituir a mão-de-obra escrava por trabalho voluntário pago g
revelaram-se infrutíferas, como deveria acontecer numa sociedade que des- |
conhecia totalmente o conceito europeu de "trabalho". Dessa forma, por |
recomendação de Ovando, a coroa aprovou em 1503 um sistema de trabalho o
forçado, pelo qual o governador teria liberdade para distribuir a mão-de- £
obra indígena nas minas ou nos campos, sendo pagos salários aos que rece- |
bessem essa consignação. <
Ao dar a Ovando o poder de distribuir a mão-de-obra escrava a seu bel |
prazer, a coroa lhe dera os meios de moldar a vida da ilha a suas próprias jjj

4. Gonzalo Fernández de Oviedo, Sumario de la Natural Historia de Ias índias, ed. José g
«
Miranda, México, 1950, pp. 88-89.
necessidades. O repartimiento, ou distribuição dos índios, fora um ato de
favor da coroa e, portanto, trazia consigo certas obrigações a ser cumpridas
pelos concessionários. Deviam cuidar dos índios e instruí-los na fé, o que
significava que deveriam ser temporariamente "depositados" ou confiados a
espanhóis privados. Era um sistema que lembrava a encomienda, ou o uso de
atribuir povoações mouras a membros de ordens militares na Espanha
medieval; e a palavra encomienda ressurgiria no devido tempo neste novo
ambiente americano, embora agora comportasse um sentido bastante dife-
rente 5 . A encomienda no Novo Mundo não incluía a distribuição de terras
ou de arrendamentos. Era simplesmente uma concessão pelo Estado de
mão-de-obra compulsória, vinculada a responsabilidades específicas para
com seus "protegidos" indígenas por parte do depositário, ou encomendero.
Teoricamente, tais responsabilidades não poderiam ser atribuídas levia-
namente. Deviam ser dadas aos mais capacitados para exercê-las, aos mere-
cedores e aos estabelecidos — e o homem estabelecido no mundo hispânico
era o homem de propriedades com uma residência urbana. O controle que
exerceu sobre a oferta de mão-de-obra, portanto, deu a Ovando as condi-
ções para incentivar a instalação de espanhóis em pequenas comunidades
urbanas, cada uma com seu cabildo, ou conselho da cidade, segundo o
modelo espanhol. A mão-de-obra indígena devia ser distribuída apenas aos
vecinos, cidadãos com plenos direitos.
Para facilitar o processo de distribuição, os índios eram também desloca-
dos e era dada a seus caciques a responsabilidade pelo fornecimento de mão-
de-obra aos espanhóis. Enquanto parte dessa força de trabalho era constituí-
da de índios de encomienda, outros índios, chamados naborías, assumiam o
serviço nas casas das famílias espanholas como servos domésticos. Esses
naborías situavam-se dos dois lados da linha que dividia a sociedade harmo-
niosa, tal como fora planejada por Ovando — uma sociedade em que a
comunidade indígena e a espanhola coexistiam sob a estrita supervisão do
governador real e onde os índios eram introduzidos nos benefícios da civili-
zação cristã e em troca forneciam a mão-de-obra, que era tudo o que tinham
a oferecer. Ovando incentivou ao mesmo tempo o estabelecimento da cria-
ção de gado e do cultivo da cana-de-açúcar, na esperança de libertar a socie-

5. Para um exame mais detalhado do sistema de encomienda, ver o trabalho de J. H. Elliott,


adiante neste volume, cap. 7 (pp. 283-337) e o de Murdo J. MacLeod, cap. 8, pp. 339-390;
ver também Charles Gibson, História da América Latina, vol. II, cap. 7.
dade de Hispaniola de u m a dependência excessiva desse b e m elusivo, o
ouro, e de amarrar os colonos à terra.
Sob o governo de Ovando, portanto, Hispaniola fez a transição de entre-
posto para colônia, mas seu esquema trazia dentro de si mesmo as sementes
da sua própria destruição. O estabelecimento formal do trabalho forçado
. para a população indígena apenas precipitou u m processo que já se estava
tornando catastrófico — a sua total extinção. Em vinte anos desde o desem-
barque de Colombo, a população dessa ilha densamente habitada havia sido
quase varrida pela guerra, pelas doenças, pelos maus tratos e pelo trauma
resultante dos esforços dos invasores para obrigá-la a aceitar modos de vida
e comportamento totalmente desvinculados de sua experiência anterior.
N u m a tentativa desesperada de manter a oferta de mão-de-obra, os colo-
nos realizaram ataques maciços às Baamas e deportaram sua população
lucayo para Hispaniola. Todavia, à medida que chegavam da Espanha novas
levas de imigrantes em busca de uma fortuna rápida, a importação de mão-
de-obra forçada das ilhas vizinhas não passava de mero paliativo. A estabili-
dade buscada por Ovando se mostrava absolutamente elusiva, e a tentativa
de impô-la por meios autocráticos provocava acerbos ressentimentos contra
o governador. Estabelecendo u m modelo que seria seguido repetidas vezes
no governo das índias, os dissidentes locais conseguiram mobilizar defenso-
res influentes na corte. Ovando foi afastado do cargo em 1509, vítima de
Fonseca e seus funcionários em Hispaniola, e Diego Colón, que o sucedeu
como governador, não teve melhor sorte. As pretensões da famÜia Colombo
tornaram-no suspeito à coroa; e em 1511 esta tomava medidas para refrear
seu poder, ao instituir u m tribunal legal permanente, a audiência de Santo
Domingo. A audiência em si, criada nos moldes das chancelarias de Valla-
dolid e Granada, devia servir de modelo para outros tribunais desse tipo à
medida que a c o r o a espanhola ampliou seu controle sobre o continente
americano. Os agentes do governo real deveriam no futuro ser mantidos sob
controle permanente por parte dos agentes da justiça real.
O declínio progressivo tanto da população nativa de Hispaniola quanto
da não-branca trazida de fora produziu duas reações diversas, cada u m a
delas com importantes conseqüências para o futuro da América espanhola.
Provocou, em primeiro lugar, u m intenso movimento de indignação moral,
na própria ilha e na metrópole espanhola. O movimento foi liderado pelos
dominicanos, horrorizados com as condições que encontraram na ilha à sua
chegada em 1510. Seu maior expoente foi Antonio de Montesinos que, n u m
sermão proferido em Santo Domingo no domingo anterior ao Natal de
1511, denunciou os maus tratos infligidos aos índios e recusou a comunhão
aos encomenderos, que ele considerava os maiores responsáveis pela situação
O maior prosélito que conseguiu para a sua causa foi Bartolomé de Las
Casas, que em 1514 renunciou a sua encomienda e a seus interesses comer-
ciais na ilha e dedicou os 52 anos restantes de uma vida turbulenta à defesa
apaixonada dos súditos indígenas da coroa espanhola.
As repercussões desse movimento logo se fizeram sentir na corte de
Fernando, o Católico, onde o cinismo a respeito da exploração da riqueza
das Índias era contrabalançado por uma consciência das obrigações impos-
tas à coroa por uma série de bulas papais que haviam culminado na de 28 de
julho de 1508, que lhe concedeu um patronato universal, ou o direito de
apresentar candidatos aos benefícios do Novo Mundo, em troca dos onero-
sos deveres envolvidos na evangelização da população índia. Tornava-se cla-
ramente manifesta a necessidade de um novo código de legislação para pro-
teger os índios dos abusos descritos em detalhes tão chocantes por Montesi-
nos e seus colegas. As Leis de Burgos de 1512 foram uma tentativa, embora
ingênua, de dar essa proteção, ao regulamentar cuidadosamente o funciona-
mento da encomienda, uma instituição que não era considerada incompatí-
vel — levando em conta as fraquezas e deficiências da maioria dos índios
com o princípio da liberdade indígena que as Leis também proclamavam.
As Leis de Burgos já nasceram letra morta das penas dos legisladores: não
havia autoridade na ilha que estivesse disposta a garantir sua aplicação ou
fosse capaz de fazê-lo. Mas em 1516, com a morte de Fernando, o regente
Cardeal Cisneros, sob a influência de Las Casas, fez nova tentativa de enfren-
tar o problema mediante o envio de uma comissão de três hieronimitas para
governar a ilha. Os dois anos de governo dos hieronimitas ilustraram vigo-
rosamente as dificuldades inerentes a uma política de boas intenções diante
de fatos adversos. Foi difícil erradicar os abusos e o declínio da população
nativa não pôde ser detido.
Admitindo com relutância que a economia da ilha não sobreviveria sem o
recurso à mão-de-obra forçada, os hieronimitas concluíram que a única solu-
ção era importá-la na forma de escravos negros. A instituição da escravidão
negra já era bem conhecida na sociedade mediterrânica do final da Idade
Média. Comerciantes portugueses importavam negros da costa da Berbéria
para Portugal desde meados do século XIII, e o número de escravos negros na
Península Ibérica aumentou drasticamente no século XV, quando a penetra-
ção portuguesa na costa da Guiné criou novas fontes de suprimento. Desfru-
tando de um monopólio efetivo desse comércio, os negociantes portugueses
supriam amplamente o mercado espanhol desde a década de 1460. Embora
Lisboa fosse a cidade com a maior população negra da Península, logo núme-
ros substanciais de escravos — alguns deles mais mouros que negros —
foram encontrados em muitas das principais cidades espanholas, onde eram
empregados sobretudo no serviço doméstico. Sevilha, com uma população
total de cerca 100 mil habitantes na década de 1560, tinha nessa época um
contingente de seis mil escravos, em sua maioria negros.
Não é de surpreender, portanto, que o trabalho escravo negro parecesse
aos espanhóis u m a resposta natural aos problemas de Hispaniola. O primei-
ra carregamento de negros ladinos (que falavam o espanhol) chegou à ilha
em 1505 e outros se seguiram, até que Cisneros proibiu todo e qualquer
embarque, sob a alegação de que a presença de números crescentes de ladi-
nos era causa de grande inquietação. Mas em 1518, após a sua morte e com a
bênção dos hieronimitas, o tráfico recomeçou sob a égide da coroa, pois
Carlos V concedeu a u m m e m b r o de sua família borgonhesa u m a licença
para que enviasse quatro mil escravos para as índias no curso de oito anos.
Este vendeu imediatamente a sua licença aos genoveses. U m novo e lucrati-
vo comércio transatlântico se constituía, quando o Velho Mundo da África
era chamado a restabelecer o equilíbrio demográfico do Novo.
A catástrofe demográfica que havia atingido os indígenas de Hispaniola
teve outro efeito imediatamente mais importante. A população excessiva de
espanhóis na ilha, impelida a importar mão-de-obra para garantir a própria
sobrevivência, era impelida também por razões análogas a exportar-se a si
mesmos. A necessidade de sair em viagem era de qualquer modo instintiva
na maioria desses homens, de maneira que a necessidade e a inclinação
andavam de mãos dadas. A terceira e a quarta viagem de Colombo em 1498
e em 1502-1504 haviam revelado grande parte dos contornos do mar dos
Caraíbas e delineado a linha costeira da América Central e parte de Tierra
Firme (Venezuela). As descobertas do almirante, do mesmo modo que as
ricas pescas de pérola ao largo da costa da Venezuela, encorajaram outros a
seguir-lhe os passos. Em 1499 Alonso de Hojeda levantou o mapa da costa
venezuelana até o golfo de Maracaibo; em 1504 Juan de la Cosa explorou a
costa de Darién; e, à medida que se alargava o raio de espaço explorado em
torno de Santo Domingo, aumentavam também as pressões em favor da
conquista e da migração.
A partir de 1508, os impacientes colonos de Santo Domingo se espalha-
vam gananciosamente pelas ilhas vizinhas. A colonização de Porto Rico foi
iniciada em 1508 e a da Jamaica em 1509. Dois anos mais tarde Diego Veláz-
quez, na qualidade de representante de Diego Colón, aventurou-se à con-
quista do que viria a ser um prêmio maior, a ilha de Fernandina, ou Cuba
Esta viria a tornar-se uma base para viagens de exploração e conquista à
América continental, e seu porto de Havana, deslocado em 1519 para um
local abrigado na costa norte, iria substituir Santo Domingo como porta de
passagem para as índias.
Ignorando os direitos da família Colombo, a coroa agora emitia licenças
para a descoberta e conquista do território rapidamente emergente que
parecia bloquear a rota para o Oriente. Juan Ponce de Léon, o conquistador
de Porto Rico, descobriu a Flórida em 1513, mas não aproveitou a autoriza-
ção para colonizá-la. Parecia que prêmios mais rutilantes acenavam em
outros lugares. Ao longo das praias do golfo de Darién, vinham surgindo
núcleos coloniais de escambo para o rescate de ouro dos indígenas locais.
Em 1513, Vasco Núnez de Balboa, cortando seu caminho através do istmo,
avistou o oceano Pacífico a partir de Darién. Três meses antes disso, na
Espanha já haviam sido dadas ordens para o envio de uma expedição da
Península, sob o comando de Pedrarias Dávila, com o propósito de conquis-
tar essas regiões continentais, agora batizadas com o nome de Castilla dei
Oro. Na busca violenta de ouro, Pedrarias pilhou e aterrorizou; e no con-
fronto inevitável com Balboa, saiu vencedor. Sob a direção de Pedrarias,
algumas expedições de descoberta se espalharam pela América Central, a
maioria delas preferindo a costa do Pacífico, onde em 1519 Pedrarias fun-
dou a cidade do Panamá. Nesse mesmo ano, Cortês aportou no México, e
Magalhães partiu em sua viagem de circunavegação, que daria à Espanha,
tarde demais, sua rota marítima para o Oriente pelo ocidente.
A cada novo avanço dos invasores espanhóis o raio de devastação se alar-
gava. A medida que uma área após outra de penetração espanhola perdia sua
população aborígine diante do avanço incessante da destruição, da degrada-
ção e da doença, os invasores espanhóis faziam esforços desvairados para res-
tabelecer a força de trabalho nativa em declínio, organizando expedições para
preia de escravos na região circunvizinha. Incursões às Baamas e às ilhas
menores do mar dos Caraíbas para repor os efetivos de população nativa de
Hispanióla foram seguidas de ataques à Flórida e ao golfo de Honduras para
reconstituir os de Cuba. Muito antes de Cortês partir de Cuba, preadores de
escravos também tinham mostrado grande atividade na costa de Yucatán.
Todavia, foi no período que se seguiu à ocupação do istmo do Panamá e à
descoberta e conquista do Peru que os ataques para a preia de escravos se tor-
naram u m meio de vida regular e altamente organizado. Com o desapareci-
mento dos habitantes nativos do istmo do Panamá, os espanhóis ficaram sem
sua força de trabalho para cultivar as plantações, batear o ouro e transportar
através do istmo as cargas pesadas que seriam embarcadas para o Peru. Para
atender a suas necessidades, os colonos se voltaram não só para as tradicio-
nais áreas fornecedoras de escravos das Antilhas, mas também para a densa
população instalada na região lacustre da Nicarágua, onde as incursões escra-
vistas alcançaram um novo nível de intensidade. Contudo, em toda a parte a
esperança de repor uma população indígena desaparecida revelou-se ilusória.
Os escravos importados sucumbiram tão rapidamente quanto havia desapa-
recido a população que deviam substituir, e o desnudamento de uma região
não era seguido, como esperavam os espanhóis, pela reconstituição de outra.
No entanto, o negócio lucrativo do tráfico de escravos contribuiu substan-
cialmente para o aumento do conhecimento geográfico, à medida que os
saqueadores exploraram a costa de Tierra Firme, Panamá, Honduras e Flórida
e traçara mapas das Baamas e das Pequenas Antilhas. Incentivou igualmente o
comércio na região do mar dos Caraíbas e encorajou as primeiras tentativas
locais de construção naval para atender às necessidades de homens que eram
ao mesmo tempo preadores de escravos e comerciantes. O "período insular"
de descoberta, conquista e colonização, entre os anos de 1492 a 1519, culmi-
nou, portanto, n u m período de atividade intensa e acelerada, estimulada ao
mesmo tempo pelo fracasso inicial de Santo Domingo em manter seus impa-
cientes imigrantes e pelas perspectivas rapidamente crescentes de pilhagem,
comércio e lucros à medida que o território continental ia sendo revelado.
Ao mesmo tempo, e com u m a fronteira em movimento constante, as
esperanças de persuadir os habitantes das fronteiras a criar raízes estavam
fadadas ao desvanecimento. Era verdade que Hispaniola, com sua crescente
força de trabalho escravo, se esforçava através de suas dificuldades para con-
quistar uma modesta viabilidade econômica, baseada na exportação de açú-
car e de peles. Não obstante, Santo Domingo jamais poderia ter esperado
manter a posição de preeminência, que lhe fora conferida p o r Gonzalo
Fernández de Oviedo, de capital do império espanhol nas índias. Depois de
conquistado e colonizado o continente, ela estava fadada a se manter à mar-
gem dos acontecimentos. Mas toda a experiência de Hispaniola, sua popula-
158
Ção destruída e seus recursos devastados em busca do ganho imediato sur
giam c o m o u m aviso assustador dos efeitos de u m a mentalidade de conaui
tador, n ã o - r e f r e a d a p o r escrúpulos m o r a i s o u c o n t r o l e i n s t i t u c i o n a l O
m e s m o processo se repetia mais u m a vez n o istmo do P a n a m á de Pedrarias
Dávila. A m e n o s que se conseguisse associar a colonização à conquista de
u m m o d o mais b e m sucedido do que nos primeiros anos da conquista espa
nhola da região caribenha, as expedições que agora se dirigiam para o conti
nente americano iam conquistar apenas para pilhar.

^ A O R G A N I Z A Ç Ã O E O A V A N Ç O DA C O N Q U I S T A -

Pode-se dizer que o território continental da América espanhola foi "con


quistado» entre 1519e_1540, no sentido de que esses 21 anos viram o estabe
lecrmento da presença espanhola em todas as grandes áreas do continente e
u m a afirmação da soberania espanhola, mais efetiva em algumas regiões do
que em outras, sobre aqueles povos que não figuravam na á r e a ^ e jurisdição
cedida a Portugal pelo Tratado de Tordesilhas - área que se verificou incluir
o recém-descoberto Brasil. A Península Ibérica, com exclusão de Portugal
tem u m a superfície de p o u c o menos de 500 m ü quilômetros quadrados Á
^ ^ r ^ d ^ s j ^ c ^ ^ a ^ ^ n ^ nessas duas décadas era de dois

milhões de q u ü ô i ^ s - q u a d r a s . A coroa tinha cerca de seis m i l h õ e ? ^


f súditos em Castela e outro milhão em Aragão; agora adquiria - m e s m o que
\ de m o d o apenas fugaz, antes que a m o r t e e a destruição cobrassem seu pavo-
^ roso tributo — talvez 50 milhões de novos súditos nas Américas.
' 5 2 M B d e s a r ^ d ^ n g u i s t a que se moviam a partir das Antilhas rea-
^ hzaram a subjugação da América continental. U m , organizado a partir de
7 Cuba entre 1516 e 1518, ^ r T O ^ Z ^ x i c o j i e 1519 a 1522, d e í r ^ d ^ "
. S e n í e d e r a s ã o ^ M e a e depois irradiou-se para o norte e para o l ^ T p ^ T
do planalto central mexicano. Em 1524 o m o v i m e n t o p a r a o l u í h a v i a - s e
expandido através da atual Guatemala e El Salvador, mas ainda passariam
vinte anos até que os grandes centros em Yucatán caíssem sob algum tipo de
domínio espanhol. O avanço para o norte a partir do México central reve-
lou-se u m processo bem mais lento. Entre 1529 e 1536, N u n o de Guzmán
assolando o n o r t e e o oeste mexicano, c o n q u i s t o u o vasto reino de N o v I
Galicia. A exploração c o n t i n u o u com a partida de H e r n a n d o de Soto em
^ 1539, para explorar o sudeste norte-americano e com a busca vã, por parte
^ de Francisco Vázquez C o r o n a d o , e n t r e 1540 e 1542, das sete cidades de
A
Cibola nas planícies a oeste do Mississipi. Mas o fracasso dessas duas expedi- 159
ções determinou os limites extremos do avanço espanhol. As terras de fron-
teira da Nova Galícia foram deixadas ao lento avanço dos missionários, à
empresa agrícola e de mineração; e somente em 1562-1575 é que outra gran-
de região do noroeste mexicano, Nueva Vizcaya, caiu sob o domínio espa-
nhol pela espada de Francisco de Ibarra.
(V) O o u t r o arco de conquista, começando no Panamá, deslocou-se por
breve período para o norte em 1523-1524 até a Nicarágua, e depois, após
curta pausa, t o m o u a rota_do_Pacífico_ m m o a o j u l _ p a r a a conquista do
império inca em l531-1533. Do Peru os conquistador7s7ümarãrn~parz o
norte até Quito (1534) e Bogotá (1536), onde encontraram outros grupos
que desciam pela costa da Venezuela e da Colômbia. Enquanto uma expedi-
ção sob o comando de Gonzalo Pizarro partia de Quito em 1541 para explo-
rar a bacia amazônica, outros conquistadores seguiam para o sul r u m o ao
Chüe, onde Santiago foi fundada em 1542 por Pedro de Valdivia. A conquis-
ta chilena fracassou numa guerra desgastante com os índios araucanos. Do
o u t r o lado do c o n t i n e n t e u m a expedição que vinha da E u r o p a , sob o
comando de Pedro de Mendoza, tentou sem sucesso ocupar a região do rio
da Prata em 1535-1536 e terminou por deixar um remoto posto avançado de
colonização n o Paraguai. Buenos Aires, fundada pela primeira vez em 1536 e
destruída em 1541, foi fundada novamente em 1580, desta vez não a partir
da Europa mas de Assunção.
Embora as áreas marginais, quer no norte do México, quer no sul da
América do Sul, se mostrassem rebeldes à dominação, não obstante persiste o
fato de que as regiões povoadas por uma população indígena maior e mais s<
densa caíram sob o domínio espanhol no espaço de uma única geração. Como ? Q
B. O
-<;
se pode explicar a extraordinária rapidez desse processo de "conquista"? r
u-
-e
N
zo
É da própria natureza da conquista que as vozes dos vencedores soem mais bj
o
alto que a dos vencidos 6 . Isso é particularmente verdadeiro n o caso das u•<
Américas, onde o mundò conquistado logo seria um mundo destruído. Era, I
de qualquer forma, um mundo de infinita variedade, que ia das populações
densamente assentadas da Mesoamérica e dos Andes, passando pelos povos

6.
Para uma abordagem mais completa sobre os indígenas e a conquista espanhola, ver Jorge 3
Hidalgo, The Cambridge History ofLatin America, vol. I, cap. 4, e o trabalho de Nathan |
Wachtel, adiante neste volume, cap. 5, às pp. 195-239. "
parcialmente sedentários da periferia dessas regiões, aos bandos de caçadores
e coletores de alimentos, como os que perambulavam pelo norte do México e
l pelas planícies argentinas. Entre alguns desses povos, as tradições orais e o fol-
3 clore mantiveram viva a história da conquista. Entre outros, a memória coleti-
va foi extinta juntamente com eles próprios. E entre alguns — mais notada-
mente os astecas e os maias, que haviam desenvolvido sistemas de escrita
^ os episódios da conquista, mantidos vivos na música e na poesia, foram trans-
ia mitidos aos frades, que os registraram por escrito, ou então foram gravados
nos textos daqueles que, se não sofreram a experiência; da conquista, pelo
menos haviam-na conhecido dos membros da geração de seus pais.
Dada a diversidade dos povos, a relativa escassez das fontes e a natureza
das circunstâncias em que foram produzidos, seria temerário afirmar que os
registros que chegaram até nós dão-nos a perspectiva "indígena" da conquis-
ta. Mas j o m e c e m ^ ^ v e r d a d e j a m a _ s 4 r i g ~ d ^ ^ filtradas
^ j s e l a s J e n t e s j l a derrota, d o j m p a c t o que provocou em certasj-egiões a súbita
^ e r u g ç ã o de mvasores_estrangèiros, cuja aparência_e_comportamento estavam
tãojiistantes da expectativa normal. A Relãción de Michoacán, por exemplo,
compilada p o r u m franciscano espanhol p o r volta de 1540, com base em
material reunido anteriormente j u n t o a informantes tarascanos nativos, rela-
ta da seguinte maneira as impressões desses últimos sobre os espanhóis:

Quando viram os espanhóis pela primeira vez, os índios ficaram maravilhados


diante de um povo tão estranho que não comia a mesma espécie de alimento, nem
ficavam bêbados como os índios. Chamaram os espanhóis de Tucupacha, que signi-
fica deuses, e Teparacha, que significa grandes homens e é também empregado para
designar deuses, e Acacecha, que significa pessoas que usam capa e chapéu. Com o
^_passar_do_tempo, começaram a chamá-los de cristãos e a acreditar que haviam vindo
do céu. Tinham certeza de que as roupas dos espanhóis eram as peles dos homens
como os próprios índios usavam em ocasiões festivas. Alguns chamavam os cavalos
de veados, outros de tuycen, que eram algo parecido com os cavalos que os índios
faziam com pão de asnerinà para serem usados na festa de Cuingo e aos quais pren-
diam crinas de cabelo falso. Os índios que primeiro viram os cavalos disseram aos
Cazonci que os cavalos falavam, que os espanhóis, quando estavam montados,
diziam aos cavalos que deviam andar quando puxavam as rédeas7.

The Chronicles of Michoacán, trad. e ed. de Eugene R. Craine e Reginald C. Reindòrp,


Norman, Oklahoma, 1970, p. 87.
O choque de surpresa produzido pelo aparecimento dos espanhóis e seus
cavalos deu aos invasores uma importante^vantagemjnicial. Mas os registros
cheios de destruição dos vencedores, produzidos sob o impacto esmagador
da derrota, não fornecem por si mesmos uma base adequada para a com-
preensão do êxito espanhol. Por sua natureza, essas narrativas avançam ine-
xoravelmente para a catástrofe, que desde o início é prenunciada por pressá-
gios misteriosos, como a queima inexplicada de templos ou o aparecimento
de u m pássaro estranho com u m espelho na cabeça. O senso de inevitabili-
dade intensifica imensuravelmente a pungência da história contada pelos
r vencidos, mas continua sendo uma história que pode refletir muito mais a
V percepção pós-conquista de um evento vasto demais para ser inteiramente
compreendido e absorvido do que fornecer u m a avaliação confiável das
chances espanholas no momento da chegada.
\ Parece à primeira vista que a superioridade-numericamente esmagadora
das populações indígenas oferecia pouca chance a pequenos bandos de espa-
nhóis ligados a suas bases distantes apenas por linhas muito precárias de
aprovisionamento. Todavia, nosjvrimeiros estágios da.çonçiuista, a comple-
xa ^iyeisidade_dessas populações operou a favor dos espanhóis, embora
n u m estágio posterior isso viesse a provocar sérias dificuldades. Tribos
nômades ou semi-sedentárias em regiões de população escassa encontravam
dificuldade para impedir a passagem dos resolutos e fortemente armados
europeus, embora as flechas envenenadas usadas em algumas partes das
Américas causassem muitas perdas entre os invasores. O problema mais
imediato dos espanhóis era como conquistar e depois manter as áreas de
maior interesse para eles — as áreas com grandes populações sedentárias na
Mesoamérica e nos Andes, onde as perspectivas de riqueza em minérios e
uma força de trabalho disciplinada tornavam a conquista digna do esforço.
Mas no final o próprio tamanho e o caráter dessas populações mesoame-
ricanas e andinas mostraram que constituíam mais u m trunfo que u m obs-
táculo aos espanhóis. Tanto no "império" inca quanto no asteca, uma mul-
tidão de tribos rivais haviam sido postas sob^gumaJbxma^de controle çen-
_tral_ que os melindrava mais ou menos. Isso permitiu que os espanhóis
jogassem u m grupo tribal contra o outro e virassem os povos subjugados
contra seus odiados senhores. Isso também significou que, uma vez derru-
bado o poder central, os espanhóis passariam a ser os senhores de popula-
ções já habituadas a um certo grau de subserviência. No entanto, os povos
da periferia desses "impérios" e aqueles espalhados pelas terras secas escas-
samente povoadas do norte mexicano ou das áreas de floresta do sul da
América meridional se mostraram incomparavelmente mais difíceis de
minar, principalmente depois que apreenderam o caráter do estilo de
erra dos espanhóis e dominaram o uso das armas e dos cavalos. Ampla-
mente dispersos, seminômades e desabituados a uma disciplina imposta de
fora, esses povos revelaram uma exasperante capacidade de eludir ou resistir
sempre que os espanhóis tentaram introduzir alguma forma de domínio.
Uma solução foi deixá-los à vontade, e na verdade foi isso o que ocorreu
com freqüência. No entanto, nem sempre foi possível ignorá-los, pois verifi-
cou-se que algumas tribos, como as do norte do México, habitavam terras
ricas em depósitos de minérios, e outras ameaçavam as tênues rotas de abas-
tecimento para os postos avançados espanhóis de colonização, ou criavam
' um senso permanente de insegurança nas fronteiras de regiões que estavam
escassamente ocupadas. ,
As características das sociedadesJiQspedeiras^nas regiões mais cobiçadas
pelos espanhóis fornecem uma importante explicação para o sucesso da
^çojiquist-a^e-aj.ubs.e5üente ocupação. Todavia, embora a naturèzTsêdèntáría
da população nessas regiões e o grau de controle central a que já estava sub-
metida se revelassem como trunfos dos quais os espanhóis souberam tirar
proveito, permanece o fato de que em muitos pontos os invasores se depara-
ram com forte resistência militar de parte de forças vastamente superiores
em número às suas próprias.
O cavalo deu aos espanhóis uma vantagem importante, em termos tanto
da surpresa inicial quanto da mobilidade; mas Cortês tinha apenas dezesseis
cavalos consigo quando iniciou sua marcha para o interior mexicano. Os
invasores também tiraram enorme proveito do fato de pertencerem a uma
sociedade dotada de incontestável su£erioridade_tecnológica sobre as socie-
dades indígenas. Quando um mundo de ferro e pólvora entra em violenta
colisão com um mundo de pedra, era de esperar que a derrota deste último
fosse inevitável. Mas o impacto dessa superioridade técnica não foi tão bem
definida e irrestrita quanto poderia parecer à primeira vista. Isso ocorreu em
parte porque os Invasores-,estavam mal-equipados pelos.padrões da Europa
do séailo XVI. A maioria dos homens de Cortês estavam armados com nada
mais sofisticado do que espadas, piques e facas; e as armas de fogo de que dis-
punham consistiam de apenas treze mosquetes, junto com dez canhões de
bronze e quatro canhões leves. Somente com enorme dificuldade puderam
esses canhões ser puxados pelas florestas e montanhas; a pólvora se molhava
nas travessias de rios e nas chuvas torrenciais; e, mesmo quando estava seca, a
cadência de tiro dos mosquetes não se equiparava à das flechas nativas.
Tanto na Mesoamérica quanto nos Andes os espanhóis encontraram
sociedades acostumadas à guerra em larga escala, embora fosse um estilo de
combate com um ritmo e ritual diferentes dos da Europa. As armas de pedra
e de madeira não se equiparavam ao aço espanhol, e a arma que em outras
condições era mortífera, o tacape de ponta de obsidiana dos mexicas, cha-
mado macuahuitl, se quebrava contra o elmo e a armadura de um espanhol.
Numa batalha regular em terreno aberto, portanto, as forças dos astecas e
dos incas, apesar de sua vasta superioridade numérica, tinham poucas chan-
ces de sobrepujar uma força espanhola combinada de cavalaria e infantaria
de apenas cinqüenta homens, a menos que conseguissem levá-los à exaustão.
A melhor chance estava em capturar grupos pequenos de espanhóis longe de
suas defesas, ou atacá-los em locais onde não tivessem espaço para se reposi-
cionar e manobrar.
Os índios possuíam a grande vantagem de operar em terreno conhecido,
ao qual os espanhóis ainda tinham de aclimatar-se. A tecnologia superior era
de muito pouca ajuda quando, como aconteceu muitas vezes, os espanhóis
estavam combatendo os efeitos do calor e da altitude, e o enjôo causado por
alimentação e bebida com que não estavam familiarizados. Além disso, as
pesadas armaduras se revelaram uma desvantagem nesses climas, e os espa-
nhóis, ao substituírem-nas pela armadura acolchoada de algodão dos mexi-
cas, pagaram um tributo involuntário ao modo pelo qual as circunstâncias
ambientais podiam neutralizar a vantagem tecnológica. Não obstante, per-
manece o fato de que os invasores tinham à disposição um arsenal ampla-
mente superior de perícia técnica a que podiam recorrer nas emergências.
Isso apareceu particularmente no emprego que deram aos seus navios. A
capacidade dos conquistadores do México e do Peru de obter reforço por
mar e a dominação do lago Texcoco por Cortês mediante a ostentação de
bergantins especialmente construídos sugerem algo das reservas de força que
tinham ao alcance quando os europeus encetaram a conquista da América.

Tanto o caráter
, das
—• sociedades
——— que os enfrentaram quanto sua própria
,
superioridade tecnológica criaram esplêndidas oportunidades para os inva-
sores europeus.~Tõdãvia, essas oportunidades ainda tinham de ser conquis-
tadas, e aqui é que foi testada a capacidade de organização e improvisação
dos europeus do século XVI. O fato de terem fracassado lamentavelmente
diante de alguns de seus adversários, como os índios araucanos do Chile,
indica que o sucesso não era por si só automático. Regiões diferentes coloca-
vam problemas diferentes e exigiam jespostasdiferentes, e cada expedição
ou tentativa de colonização tinha suas próprias peculiaridades.
Mas enquanto, especialmente nos primeiros anos, não havia procedi-
m e n t o u n i f o r m e de conquista e colonização, certos padrões tendiam a
impor-se, simplesmente porque as expedições militares exigiam organização
e provisões, e as expedições comerciais logo descobriram que não podiam
dispensar o apoio militar. Na Venezuela central, que os banqueiros de
Carlos V, os Welsers, tentaram colonizar entre 1528 e 1541, havia, como era
de esperar, u m elemento fortemente comercial no tratamento da coloniza-
ção. No entanto, apesar disso, as expedições comerciais rapidamente dege-
neraram em ataques para preia de escravos, bastante semelhantes àqueles
que ocorreram nas Antilhas e no Panamá.
Não obstante, assim como os interesses comerciais sentiram necessidade
de lançar mão de métodos militares, também as bandas, ou bandos de guer-
reiros organizados, não puderam por muito tempo prescindir dos serviços
dos mercadores. O mais perto disso que conseguiram chegar foi na região do
istmo, nos anos posteriores a 1509, quando a falta de capital — e de uma
necessidade de capital, já que a norma eram rápidas expedições por via ter-
restre — tornou possível a formação de bandos guerreiros, ou companas, de
forte caráter igualitário. Essas companhias de guerreiros, baseadas n u m acor-
do prévio de distribuição igual do butim, eram bastante apropriadas para o
tipo de guerra de assaltos realizado na região do mar dos Caraíbas, no istmo
do Panamá e nas zonas de fronteira como a Venezuela. Na verdade, eram em
grande parte o produto das condições da fronteira, e não surpreende que
tenham ressurgido de forma muito semelhante nas bandeiras do Brasil portu-
guês, que floresceram no final dos séculos XVI e XVII. Grupos pequenos e
coesos de homens possuíam, graças a seus cavalos, a suprema vantagem da
mobilidade. Seus gastos, exceto pelo custo dos cavalos, eram mínimos. As
armas de fogo, que eram caras e que de qualquer forma seriam rapidamente
corroídas na selva úmida, raramente eram necessárias contra o tipo de oposi-
ção que provavelmente enfrentariam. Armados com espadas de aço e acom-
panhados por poderosos mastins, caçavam os índios aterrorizados, matando,
escravizando e capturando todo ouro que pudessem encontrar.
No entanto, tão logo surgiu a necessidade de^xpediçãe^Daais_dislanl£s,
especialmente as que exigiam navios, tornaram-se necessárias formas de
165
organização mais complexas. Os líderes de expedições em potencial tinham
então de recorrer a comerciantes ou funcionários que dispusessem de gran-
des capitais, c o m o o licenciado Gaspar de Espinosa, o alcalde mayor de
Castilla dei Oro sob o governo de Pedrarias Dávila, que era uma figura
dominante no financiamento das expedições que partiram do Panamá nos
primeiros anos da conquista do continente.
Nas circunstâncias era natural que se formassem sociedades — primeira-
mente entre os próprios capitães e depois entre os capitães e os investidores.
No Panamá, por exemplo, Francisco Pizarro e Diego de Almagro formaram
uma sociedade lucrativa em associação com Hernando de Luque, cuja con-
dição de clérigo não inibiu seus ousados empreendimentos. Os sócios ten-
diam a dividir as funções entre si, como na relação entre Pizarro e Almagro,
em que Pizarro assumiu o comando militar enquanto Almagro recrutou os
associados e se encarregou da remessa de homens e provisões para pontos
fixos ao longo da rota.
Os investidores exigiam como garantia de seus investimentos a participa-
çãounos-espjólios que coubessem por direito aos homens que houvessem
obtido cavalos ou equipamento a crédito. Muitos soldados, portanto, a
menos que encontrassem butins excepcionalmente ricos, corriam o risco de
se tornar devedores permanentes, ou a investidores absenteístas, ou a seus
próprios capitães. De fato, a conquista da América tornou-se possível graças
a uma rede de crédito que, por meio de agentes e empreendedores locais,
remontava a funcionários da coroa e a ricos encomenderos nas Antilhas, e
ainda mais, do outro lado do Atlântico, a Sevilha e às grandes casas bancá-
rias de Gênova e de Augsburgo. Mas os homens que formavam as bandas
não estavam totalmente indefesos. Muitos deles, r e u n i n d o n u m f u n d o
comum os recursos que possuíam, formavam suas próprias sociedades den-
tro do bando, associando-se para comprar um cavalo e mantendo-se juntos
por muitos numa base de confiança mútua e de divisão acordada do butim.
Essas parcerias privadas entre os soldados garantiam um elemento de
coesão nos agrupamentos naturalmente fluidos que eram os bandos guerrei-
ros. Associações regionais também ajudavam a assegurar alguma coesão,
embora também pudessem, ocasionalmente, ser u m a fonte de profundas
divisões, como aconteceu quando u m a nova força expedicionária, sob o
comando de Pánfilo de Narváez, desembarcou na costa mexicana em maio
de 1520 para contestar a supremacia de Cortês. Bernal Díaz comentou de
maneira mordaz sobre os recém-chegados: "como nosso imperador tem
muitos reinos e domínios, há uma grande variedade de gente entre eles
alguns muito corajosos, e outros mais corajosos ainda. Nós viemos da Velha
Castela e somos chamados castelhanos, e aquele capitão [...] e seus homens
vêm de outra província, chamada Vizcaya. São chamados vizcaínos, e falam
como os índios otomis" 8 .
Embora as rivalidades regionais na Península se refletissem inevitavel-
mente entre os conquistadores, era verdade também que a predominância de
uma região n u m bando guerreiro podia assegurar um núcleo central de leal-
dades, ligando homem a homem e os homens a seu líder. O vínculo estre-
madurenho veio a ser uma fonte de grande força, tanto para Cortés quanto
para Pizarro. Provindo muitas vezes de uma única cidade ou de um grupo
de cidades, os amigos, parentes e partidários desses dois capitães constituí-
ram uma unidade dentro da unidade, um grupo estreitamente unido com
base em antecedentes e experiências comuns, em atitudes compartilhadas e
em relações pessoais e familiares próximas. Para seus conterrâneos de
Estremadura, o taciturno e avarento Francisco Pizarro era, se não simpático
pelo menos compreensivo.
Os líderes, se quisessem conduzir suas expedições com sucesso, precisa-
vam desse tipo de suporte. Do ponto de vista dos capitães, a conquista da
América era algo muito mais complexo que o triunfo, sobre uma população
indígena aterrorizada, de bandos pequenos mas determinados de soldados,
que possuíam uma superioridade técnica decisiva sobre seus adversários e
eram impelidos por uma devoção comum ao ouro, à glória e ao evangelho.
Qualquer líder de uma expedição sabia que os indígenas não eram seus úni-
cos adversários, nem necessariamente os mais perigosos. Tinha inimigos
também na retaguarda, desde funcionários da coroa que estavam determina-
dos a impedir o estabelecimento de feudos ou reinos independentes nessas
regiões ainda não-conquistadas até rivais locais (com interesse em frustrar seu
sucesso. Quando Hernán Cortês partiu de Cuba em 1519, elé o fez desafiando
o governador de Cuba, Diego Velázquez, que recorreu a todo tipo de artima-
nha concebível para provocar sua ruína. Acima de tudo, tinha inimigos em
seu próprio campo, desde capitães que queriam tomar seu lugar até soldados
de infantaria descontentes que planejavam traí-lo, por dedicar a outro sua
lealdade, ou porque estavam insatisfeitos com a distribuição dos butins.

Bernal Díaz dei Castillo, Historia Verdadera de la Conquista de la Nueva Espana, ed.
Joaquín Ramírez Cabanas, México, 1944, vol. II, p. 27.
Por conseguinte, se quisesse evitar que uma expedição se desintegrasse a
partir de dentro, ou sofresse uma derrota vinda de fora, a lideran£aj>reçi§ava
de altíssima habilidade política e militar. Mas a presença de índios hostis,
"geralmente em n ú í ^ r õ s ^ s m ã g ã S o r e s , forçava de fato uma espécie de cama-
radagem, mesmo entre não-camaradas. Diante do perigo e da adversidade era
preferível lutar lado a lado que morrer sozinho; e a perspectiva de uma morte
horrível nas mãos de inimigos pagãos revelou-se suficiente para impelir a u m
cerrar de fileiras entre homens que, a despeito de todos os seus conflitos eÁ
queixas pessoais, tinham pelo menos em comum o fato de serem cristãos e )
espanhóis. U m líder hábil como Cortês sabia tirar proveito da lembrança de
perigos vividos em comum e sucessos compartilhados para manter a coesão e
o ânimo de seus seguidores. "São Tiago e a Espanha" era o grito de guerra que
podia submergir todas as diferenças numa causa comum.
Era u m grito de guerra ao mesmo tempo de desafio e de triunfo — o
grito de homens firmemente convencidos de que seriam os vencedores. Essa
confiança em sua própria superioridade em relação aos inimigos que larga-
mente os sobrepujavam em número estava baseada, pelo menos em parte, \
numa efetiva superioridade das técnicas, da organização e do equipamento. \
Mas por trás de quaisquer fatores materiais estava um conjunto de atitudes e
respostas que davam aos espanhóis uma vantagem em muitas situações em
"que se envolveram: u m a fé instintiva na superioridade natural dos cristãos
sobre simples "bárbaros"; u m senso da natureza providencial de seu empre- -
endimento, que tornava todo sucesso contra desvantagens aparentemente j
esmagadoras mais uma prova do favor divino; e um sentimento de que a j
recompensa final compensava todos os sacrifícios ao longo do caminho. A
perspectiva do ouro tornava toleráveis todas as agruras. "Eu e meus compa-
nheiros", dizia Cortês, "sofremos de uma doença do coração que somente
pode ser curada com ouro" 9 . Sentiam t a m b é m que estavam envolvidos
n u m a aventura histórica e que a vitória significaria a inscrição de seus
nomes no rol dos imortais, ao lado dos heróis da Antigüidade clássica.
A confiança que vinha desse senso de superioridade moral e de favor
divino era mais valiosa onde fosse mais necessária: na luta contra seus
adversários aparentemente mais terríveis, os "impérios" dos astecas e dos
incas. Na conquista do México central por Cortês, entre 1519 e 1521, e do
Peru por Pizarro, entre 1531 e 1533, os espanhóis deram mostras de u m a

»• Francisco López de Gómara, Cortês, trad. e ed. de L. B. Simpson, Berkeley, 1964, p. 58.
fantástica capacidade de explorar as fraquezas de seus adversários — uma
capacidade que era atestada em sua própria força subjacente.

Quando Cortês partiu de Cuba em fevereiro de 1519, com onze navios


transportando 508 soldados e 110 marinheiros, ele o fez com a firme inten-
ção de conquista. As duas expedições anteriores que haviam feito o reconhe-
cimento das costas do México e de Yucatán, as de 1517 e de 1518, sob o
comando de Francisco Hernández de Córdoba e Juan de Grijalva respectiva-
mente, haviam sido planejadas apenas com vistas à exploração e ao escam-
bo.-Goxtésjjretendia algo incomparavelmente mais ambicioso. Poucos dias
após seu desembarque em 22 de abril de 1519, ficou sabendo que lá vivia em
algum lugar do interior um poderoso governante, Montezuma (como era
chamado pelos espanhóis), cujo domínio abrangia os povos da planície cos-
teira. Para u m a mente espanhola essa informação sugeria u m a estratégia
natural: u m governante que sozinho tinha o domínio sobre muitos povos
deve ser levado, por força ou por embuste, a reconhecer u m poder ainda
mais alto, o do rei da Espanha. Portanto, o objetivo supremo deve ser chegar
jité^ ftfontezuma — u m objetivo alcançado com a marcha cheia de perigos
para o interior e o encontro entre o capitão espanhol e o governante asteca
em Tenochtitlán, em 12 de novembro de 1519. Recebidos na cidade como
convidados, os espanhóis tencionavam seguir a estratégia de Cortês até sua
conclusão lógica, t o m a n d o Montezuma sob custódia e extraindo do anfi-
trião a contragosto, transformado em convidado involuntário, o reconheci-
mento da soberania do rei da Espanha. .
A suposUtranslatio imperii de Montezuma a Carlos V. como Cortês des-
creveu na teia engenhosa de fatos e invenções com que brindou o imperador
em suas famosas cartas, marcou o início, e não o final, da conquista do
México. Mas mostrou de m o d o definitivo onde estava a iniciativa. Cortês
havia conseguido ir tão longe, e tão rápido, por causa de sua extraordinária
c a p a c i d a d g j j e ^ v a l i a r j a m a situaçãq_ejnanobrá-la em seu favor. Segundo
todos os indícios, a confederação asteca, com u m governante supremo e
uma organizada estrutura política, representava u m adversário incompara-
velmente mais temível que qualquer outra sociedade até então encontrada
pelos espanhóis, quer nas Antilhas, quer no istmo. Mas o próprio grau de
organização e de controle central de Tenochtitlán criava oportunidades que
Cortês se mostrou extremamente rápido em explorar. A dominação mexica
sobre os outros povos do México central — u m a dominação que exigia
pesados tributos e uma constante provisão de vítimas sacrificiais — havia
fomentado u m ódio e ressentimento que deu a Cortês a oportunidade de
representar-se, em sua marcha para o interior, como u m ljbertadotjiasJtlL-
bossubjugadas. Isso, somado à aliança com Tlaxcala, que os mexicas nunca
haviam conseguido submeter, deu-lhe condições de seguir u m a rota para
Tenochtitlán através de u m território relativamente amistoso. Garantiu-lhe
também u m exército de apoio constituído pelas populações nativas ansiosas
por vingar-se de Montezuma e da elite mexica.
As razões que levaram Montezuma a permitir que Cortês entrasse em
Tenochtitlán permanecerão sempre u m mistério. Ele, compreensivelmente,
não sabia ao certo a origem dos invasores e o propósito de sua missão, mas é
objeto de controvérsia a questão de saber se, como mais tarde veio a ser suge-
rido por cronistas espanhóis a partir de informantes índios, suas reações
foram ditadas por uma convicção de que Cortês não era outro senão o lendá-
rio chefe tolteca, Quetzalcóatl, que vinha do leste para reclamar sua terra. É
mais provável que estivesse seguindo com relação a Cortês e seus homens o
tratamento normal que os mexicas davam aos embaixadores, que tradicional-
mente desfrutavam de imunidade, embora também possa ter acreditado que,
atraindo Cortês para o interior, poderia mais facilmente destruí-lo se isso se
mostrasse necessário. Não há dúvida, no entanto, de que o sistema cosmoló-
gico dos astecas, com sua insistência fatalista na necessidade de propiciar
deuses implacáveis por meio de sacrifício humano, não podia competir com
o cristianismo autoconfiante de seus adversários espanhóis. Era uma cosmo-
logia mais^suscetível de ins.pjjrar em seus sqffiddoçesjimahgréi^ resignação à
morte do que u m a determinação arrebatada a sobreviyer; uma cosmologia
também que havia criado u m estilo ritualizado de guerra destinado m á s a
capturar o inimigo que a matá-lo, a fim de assegurar um suprimento cons-
tante de vítimas sacrificiais. A derrota nesse estilo altamente cerimonial de
guerra somente podia desacreditar o deus da guerra, Huitzilopochtli, a divin-
dade titular dos mexicas, da qual Montezuma era um sacerdote.
Conseqüentemente, capturando Montezuma, Cortês havia desfechado
u m golpe devastador no sistema religioso e político dos astecas. Mas isso tor-
nou mais difícil o prosseguimento feliz do estágio seguinte de sua política,
que era preservar a estrutura fiscal e administrativa que encontrara, manten-
do Montezuma como u m a marionete, mas efetivamente substituindo sua
autoridade pela dos espanhóis. A casta sacerdotal havia sido uma parte inte-
grante do sistema asteca, e a investida espanhola contra as divindades astecas
170
constituía inevitavelmente um desafio direto a essa casta. Ao mesmo tempo,
a insaciável exigência de ouro^dos espanhóis criou uma inquietação dissemi-
nada que culminou, após o massacre da nobreza pelo futuro conquistador da
Guatemala, Pedro de Alvarado, numa rebelião popular em massa. Irreme-
diavelmente sobrepujados em número, os espanhóis abriram seu caminho
para fora de Tenochtitlán na_gõchetrist);, a noite de 30 de junho..de-15_2D,
embora com pesadas baixas. Seriam necessários mais quatorze meses para
recapturar a cidade que deixaram em tumulto naquela noite.
A rendição, em 13 de agosto de 1521, dos últimos elementos de resistên-
cia em meio às ruínas de Tenochtitlán foi um triunfo tanto das doenças espa-
nholas quanto das armas espanholas. A varíola trazida por um escravo negro
entre os servidores de Cortês devastou os defensores da cidade e revelou mais
uma vez o que já havia ficàdo claro nas Antilhas: que os habitantes do Novo
Mundo teriam de pagar um alto preço por seus séculos de isolamento. A con-
quista da América foi uma conquista feita tanto" por micróbios quanto por
homens, às vezes marchando à frente dos principais contingentes espanhóis,
outras vezes seguindo em sua esteira. Sobretudo nas regiões densamente
povoadas, como o México central, o papel desempenhado pelas epidemias no
solapamento tanto da capacidade quanto da vontade de resistir constitui uma
boa explicação para o caráter súbito e completo do sucesso espanhol.
Ainda assim, a queda de um império mexica com uma população de cerca
de 25 milhões diante do assalto de algumas centenas de espanhóis não pode
ser explicada puramente em termos de agentes externos, por mais destrutivos
que fossem. Resultou também de^lhasjeológica^dentro da estrutura do pró-
prio império e principalmente da natureza repressiva do domínio mexica
sobre as populações do México central. A conquista deCortés foi t ã n t o u m a '
revolta de uma população subjugada contra seus déspotas quanto uma solução
imposta de fora. O que ainda não está claro é se esse império, que ainda era
jovem e estava em processo de evolução, conseguiria, por suas próprias forças,
dominar e resolver suas contradições internas. Certamente, mostrou sinais de
uma resiliência interna e de uma capacidade de adaptação que parece terem
faltado na civilização andina que enfrentou Pizarro, o império dos incas.

Pizarro, como Cortês, conseguiu explorar as fraquezas e dissensões inter-


o nas, que por coincidência estavam em seu auge no momento de sua chegada.
aP5 As primeiras notícias consistentes sobre um estado rico e poderoso ao sul
haviam chegado ao Panamá em 1523. Isso incentivou Pizarro e Almagro a
organizar expedições exploratórias na costa do Pacífico abaixo, que fornece-
ram outras provas da existência de um novo reino a ser conquistado. O pró-
prio Pizarro esteve na Espanha entre 1528 e 1530, acordando-se com a coroa
sobre a governadoria das terras que esperava conquistar e recrutando parti-
dários em sua Estremadura natal. Com 180 homens e cerca de trinta cavalos,
partiu do Panamá, em janeiro de 1531, em sua expedição de conquista. N o j
momento em que partiu de fato, muitos de seus recrutas espanhóis estavam I
mortos, abatidos pelas doenças tropicais que matavam grandes proporções I
dos que chegavam às índias. Por conseguinte, somente um punhado de seus
seguidores tinham experiência militar na Europa. Por outro lado, muitos
deles eram veteranos nas próprias índias — provavelmente, nas circunstân-
cias,' um tipo mais útil de experiência. Desses apenas um ou dois tinham esta-
do no México. A maioria havia adquirido sua experiência, tanto do clima
quanto dos índios, nas Antilhas e na América Central.
O império com que Pizarro se defrontou era mais firmemente organizado
que o dos mexicas, mas a própria firmeza de sua organizaçãp serviu para
multiplicar suas tensões internas. A estrutura política inca, com sua demanda
contínua e meticulosamente regulamentada de mão-de-obra, pesava forte-
mente sobre os ayllus, as comunidades clânicas das aldeias, criando uma
população submissa que, embora dócil, era também ressentida, principal-
mente na região de Quito, onde o domínio inca era relativamente recente. À
medida que se expandia a área inca de conquista, aumentavam também os
processos de controle central a partir deCuzco, apesar das guarnições cuida-
dosamente localizadas e da elaborada rede de comunicação. Esse sistema rígi-
do de controle uniforme mantido por uma casta inca reinante somente podia,
funcionar eficazmente enquanto a própria casta mantivesse sua coesão e uni-
dade internas. Mas a morte de Huayna Cápac em 1527 provocara uma luta
sucessória entre seus filhos, Huascar e Atahualpa. Este último estava próximo
da vitória, mas ainda não a havia consolidado quando chegou Pizarro.
Pizarro, como Cortês no México, e como uma geração anterior de espa-
nhóis que haviam buscado tirar proveito das rivalidades internas do reino
nasrid de Granada, era hábil em usaressas dissensões para viabilizar seus pró-
prios objetivos. Usou também o método, empregado por Cortês no México e
pelos conquistadores na América Central, de procurar imediatamente conquis-
tar a simpatia do cacique — neste caso, do imperador inca, Atahualpa.
O imperador, estabelecido em Cajamarca n o norte do Peru, reagiu às
notícias da presença de invasores estranhos na região costeira de uma forma
perfeitamente natural para um homem cuja visão do mundo havia sido mol-
dada pela experiência das montanhas andinas. Os que comandavam as mon-
tanhas efetivamente comandavam as regiões costeiras, e para além da costa
havia o mar intransponível. Enquanto os espanhóis permanecessem na
região costeira, sua presença não era uma questão de grande preocupação
para ele, porque, tão logo se deslocassem para as montanhas, cairiam segu-
j ramente em suas mãos. Atahualpa não fez, portanto, qualquer tentativa de
molestar os homens de Pizarro quando deram início a sua árdua subida, de
tal modo que os espanhóis desfrutaram da suprema vantagem da surpresa
quando atacaram Atahualpa e seus servidores no planalto de Cajamarca, em
16 de novembro de 1532.
Q objetivo da captura de Atahualpa, como a de Montezuma, era transfe-
j i i a autoricjade^üpxejria para as mãos espanholas com um único golpe deci-
sivo. Depois, assim como no México, a intenção era usar a estrutura admi-
nistrativa existente para canalizar para os espanhóis os lucros do domínio.
Embora o tributo no império inca, ao contrário do dos astecas, consistisse
exclusivamente de trabalho, o antigo sistema imperial ainda funcionava sufi-
cientemente bem para gerar para os espanhóis em resgate por Atahualpa a
/ enorme soma de 1,5 milhões de pesos em ouro e prata — um tesouro muito
% maior do que qualquer outro até então conhecido nas índias e equivalente a
J meio século de produção européia. No entanto, o prêmio para Atahualpa
não foi a liberdade, mas o assassinato judicial.
Em 15 de novembro de 1533, os conquistadores capturaram Cuzco, o
núcleo do destroçado império inca. Que Pizarro ainda sentia necessidade de
um chefe inca nominal à frente da máquina militar e administrativa que caíra
em suas mãos é indicado por sua escolha do meio-irmão de Atahualpa,
—Manco Inca, para sucedê-lo. Mas a transição suave da dominação inca para a
espanhola sobre o Peru, que a designação de um imperador-fantoche deveria
auxiliar, foi dificultada por um deslocamento do centro do poder do país.
^ Quando Cortês decidiu erigir sua nova capital, Cidade do México, rio local
das ruínas de Tenochtitlán, conseguiu preservar um importante elemento de
continuidade entre o governo asteca e o espanhol. Cuzco, por outro lado,
situava-se em local alto demais nas montanhas e distantèdèmais da costa para
que fosse uma capital adequada para um Peru espanhol que, ao contrário de
seu predecessor, estaria instintivamente voltado para o mar. Em 1535, Pizarro
fundou sua nova_capital, Lima, junto à costa e com isso diminuiu enorme-
mente suas chances de manter algum controle sobre as montanhas andinas.
Ele as diminuiu também quando não conseguiu controlar seus próprios
subordinados. A crescente dissensão entre os vencedores acerca da distribui-
ção dos espólios encorajaram Manco Inca a reunir as forças incas remanes-
centes n u m esforço desesperado para destituir os espanhóis. A revolta de
1536-1537 abalou temporariamente, mas não deteve o processo de conquis-
ta espanhola. Durante o cerco de u m ano dos espanhóis a Cuzco, os índios
mostraram que haviam aprendido algo, mas não o suficiente, dos métodos
dos adversários. O estilo cerimonial da guerra, que havia tolhido os astecas
em sua resistência aos espanhóis, estava tão profundamente incrustado em
sua mentalidade que habitualmente escolhiam desfechar seus ataques à luz
da lua cheia. Se a conquista ainda permaneceu incompleta quando a revolta
de Manco foi debelada, isso se deveu em grande parte ao fato de terem os
partidários de Pizarro e Diego de Almagro desviado suas energias para lutar
entre si. Mas a geografia impraticável dos altos Andes possibilitou a conti-
nuidade de u m movimento de resistência que teria sido inconcebível no
México central. Foi somente em 1572 que o reduto inca de Vilcabamba caiu
em mãos dos espanhóis; mas bolsões isolados de resistência continuariam a
perturbar a triste tranqüilidade do Peru colonial.
Foi justamente por serem sociedades centralmente organizadas, altamen-
te dependentes da autoridade de u m único governante, que os impérios de
Montezuma e de Atahualpa caíram com relativa facilidade sob a espada dos
espanhóis. Territórios de áreas tão vastas jamais poderiam ter sido conquis-
tados tão rapidamente se já não estivessem sendo dominados por um poder
central com u m a elaborada máquina para a manutenção do controle de
regiões distantes. Todavia, no México central e no Peru os invasores sem
esperar se viram herdeiros de um processo de expansão imperial que não
cessou com sua chegada. O avanço c o n t í n u o , na era pós-conquista, do
náhuatl e do quíchua, as línguas dos mexicas e dos incas, sugere a existência
nessas regiões de uma dinâmica interna no sentido de u m maior grau de
unificação, que somente podia operar em benefício do conquistador. A
translatio imperii poderia ser uma ficção legal conveniente, mas tinha em
fatos preexistentes sua justificativa, de u m a maneira da qual os próprios
espanhóis tinham uma consciência apenas difusa.

A própria ausência em outras partes da América continental das condi-


ções predominantes nas civilizações dos Andes e do México central consti-
tuem uma boa explicação para as dificuldades que o movimento de conquista
se defrontou em outras áreas do continente. No mundo maia de Yucatán os
espanhóis encontraram outra civilização sofisticada, mas que carecia da uni-
dade política dos impérios inca e asteca. De um lado, isso lhes deu a oportu-
nidade de jogar um jogo em que eram mestres — o de lançar uma comuni-
dade contra a outra. Mas, de outro, isso tornou mais lento o processo de
estabelecimento do controle espanhol porque não havia um único centro a
partir do qual pudessem dominar. Francisco de Montejo iniciou seu processo
de conquista de Yucatán em 1527, mas até a década de 1540 os espanhóis
ainda tinham apenas um controle muito superficial da região, e o interior
permanecia efetivamente inconquistado mesmo depois de mais um século.
Sem dúvida, se Yucatán tivesse possuído reservas maiores de riquezas, os
espanhóis teriam realizado tentativas mais consistentes de conquista. As
regiões periféricas da América, além dos limites dos grandes impérios ante-
riores à conquista, muitíssimas vezes se revelaram desapontadoras em ter-
m o s j i o j i p o de recursos que interessavam aos espanhóis, como Diego de
"Aiínagro descobriu a sua própria custa em sua fracassada expedição de
1535-1537 ao Chile. Isso não impediu, no entanto, o envio de nova expedi-
ção sob o comando de Pedro de Valdivia em 1540-1541, composta pelos
desiludidos e pelos desempregados entre os conquistadores do Peru.
Dos 150 membros da expedição de Valdivia, 132 se tornaram encomende-
ros. No entanto, seus prêmios foram desapontadores em termos das expecta-
tivas geradas. Viviam em meio a uma população indígena empobrecida que
usavam para trabalho servil, principalmente na garimpagem de ouro; mas,
em 1560, restava pouco ouro e a população nativa estava diminuindo. A sal-
vação veio na forma do crescimento do mercado peruano para a produção
agrícola. Os colonos chilenos passaram cada vez mais a se dedicar ao cultivo
agrícola e à criação de gado, fundando comunidades agropecuárias relativa-
mente prósperas nos vales férteis ao norte do rio Bío-Bío. No entanto, expe-
rimentaram escassez de mão-de-obra nativa e a proximidade dos índios
araucanos — tribos guerreiras, cuja própria ausência de autoridade centrali-
zada os transformou em adversários perigosamente elusivos.
Os araucanos, povos "não-sofisticados" em relação às sociedades seden-
tárias do México e do Peru, revelaram um grau muito maior de complexida-
de na adaptação de suas técnicas de combate às dos espanhóis. Já em 1553
infligiram aos espanhóis u m a derrota esmagadora em Tucapel, o n d e
Valdivia foi morto; e no final da década de 1560 passaram a usar o cavalo e
começaram a dominar o uso do arcabuz. As "guerras araucanas" do final
dos séculos XVI e XVII, e m b o r a t e n h a m garantido aos colonizadores u m a
oferta de m ã o - d e - o b r a , n a f o r m a de prisioneiros de guerra escravizados,
impuseram t a m b é m u m pesado ônus sobre a economia chilena. Desde o iní-
cio da década de 1570, foi preciso enviar dinheiro do Peru para o Chile a fim
de custear as despesas com a defesa. Nessas regiões distantes era pequena a
oferta de cavalos e os custos do material para a guerra eram altos; mas o
abandono desse posto avançado remoto do império parecia u m a alternativa
impossível, entre outras coisas por causa de sua posição estratégica de con-
trole do estreito de Magalhães. Madri viu-se, portanto, forçada a aceitar o
inevitável, estabelecendo a partir de 1603 u m exército permanente de cerca
de dois mil h o m e n s e fazendo provisões orçamentárias regulares para isso.
U m a Guerra de Flandres em miniatura estava em formação — u m a guerra
de fronteira prolongada e dispendiosa, na qual n e m os indígenas n e m os
espanhóis conseguiriam u m a supremacia decisiva.

Assim c o m o a resistência dos araucanos conteve o movimento para o sul


da conquista espanhola e da colonização a partir do Peru, t a m b é m a dos chi-
chimecas deteve sèu avanço para o norte a partir do México central. A pre-
sença de tais tribos insubjugadas ou semi-subjugadas nos limites dos impé-
rios asteca e inca criou problemas para os espanhóis que se eximiram de u m a
solução direta, mas problemas que eles não podiam se dar ao luxo de igno-
rar. A rebelião de M i x t ó n de 1540-1541, que teve origem entre as tribos
ainda em grande parte não-pacificadas da Nova Galícia e que rapidamente se
alastrou para o sul, ilustrou de m o d o extremamente alarmante a constante
ameaça que as instáveis regiões de fronteira apresentavam para as áreas de
conquista mais assentadas. Ilustrou igualmente as limitações da própria con-
quista, tal c o m o fora concebida em termos puramente militares. N a metade
do século XVI, os espanhóis haviam estabelecido sua presença e m vastas
áreas da América Central e do Sul por meio de sua engenhosidade e habilida-
de militar; mas a verdadeira conquista da América mal havia começado.

A C O N S O L I D A Ç Ã O DA C O N Q U I S T A

Em vista dos profundos contrastes a ser encontrados nos níveis de "civili-


dade" alcançados pelos diferentes povos da América anterior à conquista,
foram inevitáveis amplas variações no caráter da conquista de u m a região
para outra e nos requisitos necessários para o subseqüente controle da popu-
lação conquistada. Depois da derrocada dos impérios asteca e inca, os espa-
nhóis puderam consolidar com notável rapidez seu novo regime sobre vastas
áreas de territórios no México central e no Peru. Tiveram a tarefa facilitada
pela sobrevivência de parte substancial da máquina fiscal e administrativa do
período pré-conquista e pela docilidade da maioria da população, grande
parte dela aliviada por ver postos abaixo seus antigos dominadores. Um sinto-
ma do êxito dos espanhóis no estabelecimento de seu controle sobre os anti-
gos territórios dos astecas e incas foi o fato de logo se revelarem desnecessárias
medidas militares especiais. A "pacificação" — um eufemismo empregado por
Hernán Cortês e adotado como terminologia oficial no reinado de Filipe II
demorou mais tempo no Peru, mas isso se deveu primordialmente a desen-
tendimentos entre os conquistadores. Após a rebelião inca de 1536-1537 e a
guerra de Mixtón de 1540-1541, não ocorreram levantes índios importantes
na Nova Espanha ou no Peru durante o período dos Habsburgos, e os espa-
nhóis estavam tão convictos de sua segurança que nunca se preocuparam em
fortificar suas cidades contra possíveis revoltas nativas.
Embora tenham obtido considerável sucesso na integração, pelo menos
nominal, em suas novas sociedades coloniais, de índios que viviam dentro
dos limites dos impérios antes da conquista, os espanhóis se defrontaram
com problemas mais difíceis em outras partes da América. No caso, tiveram
muitas vezes de lidar com tribos e povos cujo modo de vida parecia primiti-
vo pelos padrões europeus. É certo que alguns viviam em aldeias compactas
ou em povoamentos mais dispersos, mas outros eram simplesmente bandos
de caçadores e coletores de alimentos, que antes de qualquer coisa deviam
ser congregados em povoamentos fixos para que se pudesse começar a obra
de hispanização.
Alguns desses povos, especialmente os chichimecas dó norte do México e
os índios araucanos do Chile, se revelaram temíveis adversários depois que
se adaptaram aos métodos espanhóis de guerra. Do mesmo modo, os índios
apaches das planícies da América do Norte reagiram à chegada dos espa-
nhóis tornando-se consumados cavaleiros e adotando a guerra como modo
devida.
O êxito ou o fracasso espanhóis na pacificação dessas regiões de fronteira
dependeria ao mesmo tempo dos hábitos e padrões culturais das diversas
tribos com que entraram em contato e do m o d o pelo qual eles próprios
desempenharam sua tarefa. O missionário muitas vezes teve sucesso onde o
soldado fracassou; e as comunidades missionárias, usando as armas do
exemplo, da persuasão e da disciplina, obtiveram notáveis resultados com
determinadas tribos — principalmente aquelas que não eram demasiado
nômades n e m demasiado organizadas em comunidades aldeãs compactas
para não acolherem as vantagens materiais e as dádivas culturais e espiri-
tuais que a missão lhes podia assegurar.
A conquista da América revelou-se, portanto, um processo altamente
complexo, no qual os homens em armas nem sempre deram o tom. Se pelo
menos no princípio foi u m a conquista militar, apresentou também desde
seus primeiros estágios algumas outras características que passaram a predo-
minar tão logo os soldados realizaram o que puderam. Foi acompanhada
por u m movimento voltado para a conquista espiritual, por meio da evange-
lização dos índios. Foi seguida por uma migração maciça da Espanha, que
culminou na conquista demográfica das índias. Subseqüentemente, à medi-
da que mais espanhóis se estabeleceram, teve início a conquista efetiva da
terra e do trabalho. Todavia, apenas uma parte dos benefícios ficou com os
colonizadores, pois logo atrás chegaram os burocratas, determinados a con-
quistar ou reconquistar o Novo Mundo para a coroa. Todos esses movimen-
tos produziram u m a sociedade conquistadora que lembrava mas não conse-
guia reproduzir exatamente a da metrópole espanhola.

A conquista militar da América foi feita por um grupo de homens que


estava longe de ser formado inteiramente por soldados profissionais. Ainda
está por fazer u m a investigação abrangente dos antecedentes e carreiras pas-
sadas dos conquistadores; mas uma análise de u m a lista dos encomenderos da
nova cidade do Panamá, elaborada em 1519, revela que — dos 93 nomes
sobre os quais dispomos de detalhes nesse grupo seleto de 96 conquistadores
apenas metade deles era constituída de soldados e marinheiros profissio-
nais. Nada menos de 34 m e m b r o s do grupo haviam sido originalmente
lavradores ou artesãos e outros dez provieram das classes medianas e profis-
sionais das cidades 10 .
Não há motivos para pensar que o grupo do Panamá não seja representa-
tivo dos homens que conquistaram a América, e isso sugere algo da comple-
xidade do movimento migratório transoceânico, mesmo nos primeiros anos
depois da descoberta, quando a maior parte do Novo Mundo ainda perma-

10. Ver Mario Góngora, Los Grupos de Conquistadores en Tierra Firme, 1509-1530, Santiago de
Chile, 1962, cap. 3.
necia por desbravar. A conquista foi, desde o início, algo mais que u m convite
à fama e à pilhagem por parte de uma casta militar em busca de novas terras
a conquistar, após a queda do reino mouro de Granada. Naturalmente, o ele-
mento aristocrático-militar na sociedade peninsular esteve bem representado
na conquista da América, ainda que os grandes nobres de Castela e Andaluzia
se fizessem notar por sua ausência. Isso deve ser explicado em parte pela
determinação da coroa a evitar o estabelecimento nas novas terras de uma
sociedade dominada por magnatas ao modelo peninsular. Mas durante toda
a conquista, como era de esperar, estiveram presentes, em números substan-
ciais, homens com alguma pretensão a nobre de nascimento — homens da
baixa nobreza, ou da classe dos hidalgos. Não era fácil para u m homem pobre
com pretensões à nobreza sobreviver no m u n d o atento à posição social de
Castela ou Estremadura, como Cortês e Pizarro puderam atestar.
Não obstante, mesmo que os hidalgos tenham constituído u m elemento
minoritário, as atitudes e aspirações desse grupo tenderam a inspirar todo o
movimento da conquista militar. Evidentemente, u m hidalgo ou u m artesão
preparado para arriscar tudo ao cruzar o Atlântico, fazia-o na expectativa de
poder melhorar sua condição. Nos primeiros anos após a descoberta, o
m o d o mais rápido de melhoria era a participação em expedições de conquis-
ta, as quais precisavam dos serviços de homens com habilidades profissio-
nais — carpinteiros, ferreiros, alfaiates — desde que t a m b é m estivessem
preparados para e m p u n h a r a espada q u a n d o surgisse a ocasião. Para os
homens jovens, em sua maioria com pouco mais de vinte anos, a visão do
ouro e da prata trazidos de uma expedição vitoriosa abria perspectivas de
um m o d o de vida melhor do que tudo o que haviam conhecido. O modelo
desse m o d o de vida era o fornecido pelo grande magnata castelhano ou
andaluz, u m h o m e m que vivia para gastar. "Todos os espanhóis", escrevia o
frade franciscano Gerónimo de Mendieta, "mesmo o mais miserável e desa-
fortunado, querem ser senores e viver por si sós, não como servos de alguém,
mas com servos próprios" 1 1 .

Os homens, soldados profissionais ou não, que tivessem vivido e lutado


lado a lado e realizados feitos heróicos naturalmente se sentiam com direitos
a u m a consideração especial de um monarca agradecido. Servidos, como

Citado por José Durand, La Transformación Social dei Conquistador, México, 1953, vol. II,
p. 45.
sempre, mereciam mercedes, e que melhor serviço podia u m homem prestar
a seu rei que conquistar para ele novos territórios? Ter sido os primeiros a
penetrar em regiões não-conquistadas era uma causa especial de orgulho —
os 607 homens que acompanharam Cortês em sua primeira expedição pre-
servavam ciosamente sua preeminência contra os 534 que só se juntaram ao
grupo mais tarde. Mas eles se coligaram n u m a frente comum contra todos
os que vieram depois e finalmente, em 1543, obtiveram de u m relutante
Carlos V uma declaração onde afirmava que os primeiros descubridores de
Nova Espanha — ele evitou a palavra conquistadores — eram aqueles que
"penetraram pela primeira vez nessa província quando de sua descoberta e
aqueles que lá estavam para a tomada e a conquista da cidade do México".
Esse reconhecimento um tanto a contragosto de primazia era o máximo
até onde a coroa estava disposta a chegar. Ela se opunha à recriação de uma
sociedade feudal na América; e, embora alguns conquistadores tenham recebi-
do mercês de hidalguía, pouquíssimos, além de Cortês e Pizarro, foram aqui-
nhoados com títulos de nobreza. Como então seriam os sobreviventes, entre
os cerca de dez mil homens que efetivamente conquistaram a América, recom-
pensados por seu sacrifício? O problema era difícil, entre outras coisas porque
nenhum conquistador admitiu algum dia que as recompensas foram propor-
cionais a seus serviços. Desde o início, portanto, os conquistadores eram uma
classe ressentida, embora alguns com mais justificativas do que outros.
As disputas pelos espólios da conquista produziram inevitavelmente
enormes desigualdades de distribuição. Quando Cortês, por exemplo, fez a
primeira distribuição de índios mexicanos a seus sequazes em 1521, os
homens associados a seu inimigo, o governador de Cuba, correram perigo
de ser excluídos. Do mesmo modo, no Peru houve muito ressentimento a
respeito da distribuição do tesouro de Atahualpa, cabendo a parte do leão
aos homens de Trujillo, os seguidores de Pizarro, enquanto os soldados que
haviam vindo do Panamá com Diego de Almagro, em abril de 1533, foram
deixados sem nada. As guerras civis do Peru, em cujo decorrer o próprio
Almagro foi executado em 1538 e Francisco Pizarro, assassinado pelos alma-
gristas em 1542, foram u m a conseqüência direta dos desapontamentos e
rivalidades originários da distribuição dos espólios da conquista, embora
estas por sua vez tenham sido pelo menos em parte provocadas por tensões
pessoais e regionais anteriores à conquista do tesouro.
Entre os que receberam o butim houve também uma natural distribuição
desigual das partes, com base na posição social e nas variações aceitas do
valor do serviço. O h o m e m que lutava a cavalo n o r m a l m e n t e recebia duas
vezes a parte do infante, embora H e r n a n d o Pizarro tenha pronunciado pala-
vras revolucionárias a esse respeito, presumivelmente para encorajar seus
soldados de infantaria às vésperas da batalha contra Almagro. Ele fora infor-
mado, disse, que os soldados que não tinham cavalos eram desconsiderados
na ocasião da distribuição da terra. Mas ele lhes dava sua palavra de que tal
p e n s a m e n t o n u n c a passara p o r sua cabeça, " p o r q u e b o n s s o l d a d o s n ã o
devem ser julgados por seus cavalos, mas p o r seu valor pessoal... Portanto,
cada u m seria recompensado de acordo com seu serviço, pois a falta de u m
cavalo era u m a questão de sorte, e não u m a desonra da pessoa de u m ho-
mem" 1 2 . A regra geral, n o entanto, foi que o h o m e m a cavalo manteve sua
vantagem, embora m e s m o o infante c o m u m pudesse ser m u i t o b e m tratado
n u m a distribuição importante de butim, como o tesouro de Atahualpa.
Os verdadeiros prêmios de conquista, na forma de espólios, encomiendas,
distribuição de terra, cargos municipais, e — não menos — prestígio eram
de fato muitas vezes bastante consideráveis, m e s m o que o reconhecimento
oficial do serviço pela coroa fosse feito a contragosto ou inexistisse. Fortunas
e r a m feitas, e m b o r a fossem p e r d i d a s m u i t a s vezes tão r a p i d a m e n t e p o r
h o m e n s que eram jogadores naturais; e, enquanto alguns dos conquistado-
res — sobretudo, ao que parece, os oriundos de famílias de nível social mais
alto — d e c i d i a m voltar a seus lares com seus ganhos, o u t r o s esperavam
melhorar ainda mais de situação, permanecendo u m pouco mais nas índias
e n u n c a conseguiram deixá-las.

Era difícil p a r a esses h o m e n s fixar-se em algum lugar. N ã o obstante,


c o m o Cortês percebeu m u i t o cedo, a menos que pudessem ser induzidos a
fazê-lo, o México seria c o m p l e t a m e n t e devastado e d e s t r u í d o d o m e s m o
m o d o que haviam sido as Antilhas antes dele. U m recurso óbvio, já empre-
gado em Hispaniola e em Cuba, era transformar soldados em cidadãos. Isso
foi, n o primeiro caso, u m a ação puramente legal. Após desembarcarem na
costa m e x i c a n a , os h o m e n s de Cortês f o r a m f o r m a l m e n t e c o n s t i t u í d o s
m e m b r o s do que ainda era u m a corporação idealizada, a municipalidade de
Veracruz. Funcionários municipais foram devidamente escolhidos entre os
capitães e foi instituído u m cabildo, ou conselho municipal. Somente mais

Citado por Alberto Mario Salas, Las Armas de la Conquista, Buenos Aires, 1950, pp. 140-
141.
tarde é que Villa Rica de Veracruz veio a adquirir as características físicas de
uma cidade.
Embora o propósito imediato da fundação de Veracruz tenha sido dar a
Cortês u m dispositivo legal para libertar-se da autoridade do governador de
Cuba e colocar os territórios continentais sob o controle direto da coroa a
pedido dos cidadãos-soldados, ela forneceu o padrão para um processo aná-
logo de incorporação municipal que foi seguido à medida que os soldados
conquistadores se deslocaram pelo México. Novas cidades foram criadas, às
vezes, como a própria Cidade do México, no local de cidades ou aldeias nati-
vas, e outras vezes em áreas onde não havia grandes aglomerações de índios.
Essas novas cidades deviam ser reservadas aos espanhóis, embora algumas
delas desde o princípio tenham tido barrios destinados aos índios, e a maioria
ds outras os tenham incorporado mais tarde. Tendo como base o modelo da
cidade espanhola, com sua plaza central — a igreja principal de u m dos lados
e o edifício da prefeitura (o ayuntamiento) do outro — e disposta, sempre
que possível, de acordo com a planta em grade das ruas se cruzando usada na
construção de Santo Domingo, a cidade do Novo Mundo dava ao expatriado
um cenário familiar para sua vida quotidiana n u m ambiente estranho.
Esperava-se que o soldado convertido em dono de casa criasse raízes.
Cada vecino teria seu pedaço de terra; e a terra, tanto nos subúrbios como fora
das cidades, era distribuída liberalmente entre os conquistadores. Todavia,
para homens que trouxeram de seu país natal concepções rígidas sobre o
caráter degradador do trabalho manual, para aqueles que aspiravam à condi-
ção de senhor, a terra em si tinha pouco valor sem mão-de-obra para traba-
lhá-la. Embora Cortês inicialmente tenha sido contrário à idéia de introduzir
no México o sistema da encomienda, que ele e muitos outros consideravam a
grande responsável pela destruição das Antilhas, foi compelido a mudar de
idéia ao ver que seus seguidores jamais poderiam ser induzidos a fixar-se a
menos que pudessem obter trabalho servil dos índios. Em sua terceira carta a
Carlos V, datada de 15 de maio de 1522, explicava como havia sido forçado a
"depositar" índios nas mãos dos espanhóis. A coroa, embora relutante em
aceitar uma política que parecia ameaçar a condição de homens livres dos
índios, finalmente curvou-se ao inevitável, como'Cortês já havia feito. A
encomienda veio somar-se à cidade como a base da colonização espanhola do
México e depois, no devido tempo, do Peru.
N o e n t a n t o , deveria ser u m novo tipo de encomienda, r e f o r m a d a e
melhorada à luz da experiência espanhola nas Antilhas. Cortês era por natu-
reza u m construtor, não u m destruidor, e estava determinado a construir no
México u m a "Nova Espanha" sobre bases que deveriam perdurar. Acalen-
tava a visão de uma sociedade estabelecida na qual a coroa, o conquistador e
^ os índios estivessem unidos n u m a cadeia de obrigação recíproca. A coroa
deveria recompensar seus homens com mão-de-obra indígena perpétua, na
forma de encomiendas hereditárias. Os encomenderos, de seu lado, teriam
u m a obrigação dupla: defender o país, p o u p a n d o à coroa as despesas de
manutenção de u m exército permanente, e cuidar do bem-estar espiritual e
material de seus índios. Estes, por sua vez, fariam seu trabalho servil em seus
próprios pueblos (aldeias), sob o controle de seus caciques, enquanto os
encomenderos viveriam nas cidades, das quais eles e suas famílias se torna-
riam os principais cidadãos. O tipo e quantidade de trabalho executado
pelos índios deveria ser cuidadosamente regulamentado para impedir o
modo de exploração que os havia aniquilado nas Antilhas; mas o pressupos-
to básico do esquema de Cortês era que o interesse pessoal dos encomende-
ros, ansiosos por transmitir suas encomiendas a seus descendentes, também
agisse em prol do interesse dos seus índios "protegidos", impedindo uma
exploração impiedosa com vistas a objetivos puramente imediatos.
Portanto, a encomienda era vista por Cortês como um dispositivo para
assegurar aos conquistadores e aos conquistados um interesse no futuro de
Nova Espanha. A casta governante dos encomenderos seria uma casta gover-
nante responsável, em proveito da coroa, que extrairia rendas substanciais
de u m país próspero. Mas a encomienda funcionaria igualmente em favor
dos índios, que seriam cuidadosamente induzidos a uma civilidade cristã.
A m e d i d a que f o r a m concedidas encomiendas na Nova Espanha, na
América Central e no Peru, essa casta governante em potencial começou a
constituir-se. Ela foi escolhida dentro de um grupo de elite dentre os solda-
dos da conquista, e seus efetivos foram inevitavelmente pequenos em rela-
ção aos do conjunto da população espanhola das índias: cerca de seiscentos
encomenderos em Nova Espanha na década de 1540 e por volta de quinhen-
tos no Peru. Vivendo das rendas produzidas pelo trabalho de seus índios, os
encomenderos tornaram-se os senhores naturais da terra. Mas havia de fato
profundas diferenças entre sua situação e a dos nobres da metrópole espa-
nhola. A encomienda não era um bem de raiz e não trazia consigo nenhum
direito a terra ou a jurisdição. Não conseguiu, portanto, tornar-se um feudo
em embrião. Tampouco os encomenderos, apesar de todos os seus esforços,
conseguiram transformar-se numa nobreza hereditária no estilo europeu. A
coroa coerentemente se recusou a conceder a perpetuidade formal das enco-
miendas por herança, e nas Novas Leis de 1542 decretou que deveriam rever-
ter à coroa por morte de seus atuais detentores. Nas circunstâncias da época
esse decreto era totalmente irrealista. Na Nova Espanha o vice-rei prudente-
mente o desconsiderou. No Peru, onde Blasco Núnez Vela tentou impô-la à
força, provocou u m a revolta de encomenderos, liderada p o r Gonzalo, o
irmão mais novo de Francisco Pizarro, que durante quatro anos foi o senhor
do Peru. Em 1548 foi derrotado e executado por traição pelo licenciado
Pedro de La Gasca, que chegara armado de u m decreto recente que revogava
as cláusulas que contrariassem a legislação vigente.
Embora a coroa haja recuado, foi em grande parte um recuo tático. Ela
continuou a tratar a perpetuidade de uma encomienda numa e mesma famí-
lia como u m a questão muito mais de privilégio que de direito, privando
assim os encomenderos daquela certeza de sucessão que era uma característi-
ca essencial da aristocracia européia. Logrou agir dessa maneira com grande
parcela de sucesso porque as forças sociais nas próprias Índias estavam tra-
balhando em favor de sua política. Os encomenderos eram u m p e q u e n o
grupo minoritário numa população espanhola em crescimento. Mesmo que
dessem hospitalidade e emprego a muitos dos novos imigrantes, havia mui-
tos mais que se sentiam excluídos do círculo mágico do privilégio. Os desa-
possados e os excluídos — muitos deles construindo suas próprias fontes de
riqueza à medida que adquiriam terras, e dedicando-se à agropecuária e
outras atividades empresariais — naturalmente olhavam com inveja as enco-
miendas e sua mão-de-obra índia cativa. A derrota de Gonzalo Pizarro deu a
La Gasca a condição de fazer uma redistribuição em grande escala das enco-
miendas; e a capacidade de redistribuir as encomiendas, seja as confiscadas
por rebelião, seja as vagas por morte, tornou-se u m instrumento político
decisivo nas mãos dos vice-reis que se sucederam. De u m lado, ele podia ser
usado para satisfazer as aspirações dos não -encomenderos e, de outro, servia
de meio para controlar e restringir a própria encomienda, uma vez que todo
encomendero sabia que, se antagonizasse a coroa e seus representantes, havia
centenas de homens ansiosos por tomar seu lugar.
Ao mesmo tempo, à medida que a coroa lutava contra o princípio heredi-
tário de transmissão das encomiendas, empenhava-se em reduzir o grau de
controle exercido pelos encomenderos sobre seus índios. No caso, seu passo
mais decisivo foi abolir em 1549 a obrigação dos índios de prestar serviço
pessoal compulsório. No futuro, os índios somente estariam obrigados ao
pagamento de tributo, cujo valor relativo era fixado abaixo do que pagavam
anteriormente a seus senhores. Inevitavelmente, fora mais fácil decretar a lei
de 1549 que impor seu cumprimento. A transformação da encomienda de ser-
viço pessoal n u m a encomienda de tributo foi u m processo lento, efetivado
mais facilmente em algumas regiões do que em outras. Em geral, o antigo
estilo da encomienda, onde o encomendero era a figura local dominante,
extraindo o máximo de trabalho ou de tributo ou ambos, tinha mais proba-
bilidade de sobreviver nas regiões marginais, como Yucatán ou sul do Mé-
xico, nas montanhas andinas, ou no Chile. Em outros lugares, a encomienda
estava sendo transformada durante as décadas intermediárias do século, sob a
pressão tanto dos funcionários da coroa quanto das condições sociais e eco-
nômicas em mudança. Os encomenderos que contavam apenas com aldeias
pobres em suas encomiendas se viram em sérias dificuldades, à medida que os
tributos diminuíram n o mesmo ritmo que a população indígena. Os enco-
menderos mais ricos, interpretando corretamente os sinais, começaram a
diversificar e apressaram-se a adquirir terra e a formar propriedades agrícolas
antes que fosse tarde demais. Podia-se fazer dinheiro com a exportação de
produtos locais, como o cacau na América Central, e com a produção de
cereais e carne para alimentar as cidades em crescimento.
Embora a coroa tenha continuado profundamente desconfiada dos enco-
menderos enquanto classe, a encomienda enquanto instituição tinha seus
defensores, e ironicamente seu n ú m e r o e influência tendiam a crescer à
medida que os encomenderos perdiam aos poucos seus poderes de coerção e
se tornavam pouco mais que pensionistas privilegiados da coroa. Quando as
Novas Leis tentaram abolir a encomienda, os dominicanos de Nova Espanha,
tradicionalmente m e n o s favoráveis à instituição do que os franciscanos,
declararam-se a seu favor. A coroa estava tecnicamente correta ao afirmar,
n u m decreto de 1544, que "o propósito e a origem das encomiendas foi o
bem-estar espiritual e temporal dos índios"; e a essa altura havia u m a forte
convicção entre muitos missionários do Novo M u n d o de que a sorte dos
índios seria ainda pior do que já era sem a frágil proteção que a encomienda
lhes proporcionava.

Essa convicção refletia uma profunda desilusão com os resultados de u m


empreendimento que começara uma geração antes em meio a tão altas espe-
ranças. Na metade do século XVI o movimento em prol da conquista espiri-
tual da América começava a vacilar, em decorrência de profundas divisões
acerca da estratégia e do desalento por causa dos fracassos. O desalento era
tão grande em parte porque as expectativas originais dos primeiros missio-
nários a chegar ao continente americano haviam sido demasiado ambiciosas,
por motivos que tinham menos relação com as realidades do Novo Mundo
do que com os preconceitos do Velho 13 .
A evangelização da América foi realizada em seus estágios iniciais por
membros das ordens regulares, uma forma distinta do clero secular. Os pri-
meiros missionários a alcançar o México foram os franciscanos, os "doze
apóstolos" sob a liderança do frei Martin de Valencia, que chegaram em 1524.
Foram seguidos dois anos mais tarde pelos dominicanos e depois pelos agos-
tinianos em 1533. No meado do século havia cerca de 800 frades no México e
uns 350 no Peru. Os mendicantes também deram ao México seu primeiro
bispo e arcebispo (1528-1548), o frade franciscano Juan de Zumárraga, um
famoso representante da tradição humanista cristã na Espanha.
Entre os membros da primeira geração de missionários mendicantes no
Novo M u n d o estavam muitos que haviam sentido a influência tanto do
humanismo cristão quanto do cristianismo milenarista e apocalíptico que era
um elemento vital da vida religiosa da Europa no final do século XV e início
do XVI. Frei Martin de Valencia parece ter sido influenciado pelo místico do
século XII, Joachim de Flora, com suas profecias sobre a vinda de uma tercei-
ra era do Espírito. Aqueles que deixaram a Espanha para converter os índios
viram-se incumbidos de uma missão de especial importância no esquema
divino da história, pois a conversão do Novo Mundo era um prelúdio neces-
sário para seu término e para a segunda vinda de Cristo. Acreditavam tam-
bém que, entre esses povos inocentes da América ainda não contaminados
pelos vícios da Europa, poderiam construir uma Igreja que se aproximasse da
de Cristo e dos primeiros apóstolos. Os primeiros estágios da missão ameri-
cana, com o batismo em massa de centenas de milhares de índios, pareciam
garantir o triunfo desse movimento em prol de um retorno ao cristianismo
primitivo que havia tão repetidamente sido frustrado na Europa.
Muito cedo, no entanto, as dúvidas que sempre haviam sido nutridas por
alguns dos missionários começaram a aflorar intensamente à superfície. A
princípio parecia que os índios mexicanos possuíam uma propensão natural
para o cristianismo, em parte, talvez, porque o descrédito em que haviam

Para análises complementares sobre a evangelização da América espanhola, ver o trabalho


de Josep M. Barnadas, adiante neste volume, cap. 12, pp. 521-551.
caído seus deuses devido à derrota na guerra criara u m vácuo espiritual e
cerimonial que os predispunha a aceitar a liderança dos frades, que eram os
homens santos de uma raça conquistadora. A simples instrução nos rudi-
mentos do cristianismo dada pelos missionários, seu uso da música e de
imagens para explicar sua mensagem e sua mobilização de grandes grupos
de índios para construir grandes conventos e igrejas com aparência de forta-
leza que m u d a r a m a paisagem arquitetônica do México central nas décadas
posteriores à conquista, tudo isso ajudou a preencher o vazio deixado pelo
desaparecimento da casta sacerdotal nativa e pelo declínio da rotina do tra-
balho cerimonial regido pelo calendário asteca.
No entanto, embora o índice de conversão fosse espetacular, sua qualida-
de deixava muito a desejar. Havia sinais alarmantes de que os índios que
haviam adotado a nova fé com aparente entusiasmo ainda veneravam seus
velhos ídolos em segredo. Os missionários t a m b é m se chocaram contra
muralhas de resistência nos pontos em que suas tentativas de incutir os ensi-
namentos morais do cristianismo conflitavam com padrões de comporta-
mento estabelecidos havia muito tempo. Não era fácil, por exemplo, incul-
car as. virtudes da monogamia a uma sociedade que via as mulheres como
servas e o acúmulo de mulheres como fonte de riqueza.
Para alguns dos missionários, especialmente os da primeira geração,
esses contratempos serviram de incentivo para estudar mais profundamente
os costumes e crenças de seu rebanho. Onde o primeiro instinto fora apagar
todos os vestígios de uma civilização pagã, agora tinha início u m a tentativa
de examinar, registrar e investigar. O frade dominicano Diego Durán afir-
mava que "havia sido cometido um erro por aqueles que, no início, com
grande zelo mas pouca sabedoria, haviam queimado e destruído todas as
suas pinturas antigas, pois agora continuamos sem saber do mesmo modo
que p o d e m praticar a idolatria diante de nossos p r ó p r i o s olhos" 1 4 . Foi
seguindo essa linha de raciocínio que o grande franciscano, frei Bernardino
de Sahagún, devotou sua vida ao registro e à compreensão de uma cultura
nativa que estava em rápida extinção. Muitos de seus colegas se empenha-
ram com sucesso em aprender as línguas indígenas e em compilar gramáti-
cas e dicionários. A percepção de que a verdadeira conversão exigia u m a
profunda compreensão dos males a extirpar forneceu, portanto, u m grande

Diego Durán, Historia de Ias índias de Nueva Espana y Islãs de Tierra Firme, ed. José F.
Ramirez, México, 1867-1880, 2 vols.; ver vol. II, p. 71.
incentivo para estudos lingüísticos importantes e para a investigação etno-
gráfica que muitas vezes, como aconteceu com Sahagún, revelava u m alto
grau de complexidade em seu uso controlado de informantes nativos.
Isso era mais verdadeiro, contudo, no tocante ao México do que ao Peru,
onde as condições instáveis do período pós-conquista atrasou a obra de
evangelização, que em algumas áreas não seria realizada sistematicamente
antes do século XVII. Já na metade do século XVI, n u m a época em que as
primeiras missões se estavam estabelecendo no Peru, a geração humanista
de mendicantes estava entrando na história. Na geração seguinte houve
menos curiosidade sobre a cultura dos povos conquistados e uma tendência
correspondente a condenar em vez de buscar compreender. Isso foi encora-
jado por alguns fracassos espetaculares que ajudaram a lançar dúvidas sobre
as presunções originais acerca da propensão indígena ao cristianismo. O
colégio franciscano de Santa Cruz de Tlatelolco, fundado em 1536 para edu-
car os filhos da aristocracia mexicana, era u m objeto natural de suspeita
para todos os espanhóis, leigos ou religiosos, que eram contrários a qualquer
tentativa de colocar os mexicanos no mesmo nível educacional dos euro-
peus, ou de educá-los para o sacerdócio. Qualquer retrocesso de um estu-
dante do colégio, como D o n Carlos de Texcoco, que foi denunciado em
1539 e queimado na fogueira como dogmatizador, serviu, portanto, de pre-
texto conveniente para minar um movimento que tinha como axioma a afir-
mação de que o índio era u m ser tão racional quanto o espanhol.
Inevitavelmente, as profecias de catástrofes se cumpriram como fora
esperado. Os índios, proibidos de ordenar-se sacerdotes, tenderam natural-
mente a considerar o cristianismo uma fé estranha que lhes era imposta por
seus conquistadores. Extraíam dele aqueles elementos que se adequavam a
suas próprias necessidades espirituais e ritualistas e os mesclavam a elemen-
tos de sua própria fé ancestral, produzindo sob u m cristianismo simulado
u m a religião sincrética muitas vezes vital. Isso por sua vez serviu apenas
para confirmar a crença daqueles que defendiam a manutenção dos índios
sob tutela permanente, p o r q u e estariam despreparados para ocupar seu
lugar na civilização européia.
As idéias amiúde exageradas sobre a capacidade espiritual e intelectual
dos índios, mantidas pela primeira geração de missionários, tenderam por-
tanto a ceder terreno, nas décadas intermediárias do século, a u m senso não
menos exagerado de sua incapacidade. A solução mais fácil era considerá-los
crianças adoráveis mas desobedientes, que precisavam de cuidado especial.
Essa solução surgia de m o d o ainda mais natural aos frades à medida que
viam seu monopólio sobre os índios ameaçado pelo advento do clero secu-
lar. Foi também estimulada por u m genuíno temor acerca do destino de seu
rebanho indígena sob as condições em rápida mudança na metade do século
XVI. À medida que a visão humanista dos primeiros missionários se dissipa-
va, e parecia cada vez mais improvável que o Novo M u n d o se tornasse o
cenário da Nova Jerusalém, os frades lutavam para preservar o que ainda
restava, congregando seus rebanhos em comunidades aldeãs onde podiam
ser mais bem protegidos das influências corruptoras do mundo.
Esse era u m sonho menos heróico do que o da primeira geração missio-
nária, e n ã o m e n o s inexoravelmente fadado ao insucesso. Pois estavam
ocorrendo p r o f u n d a s mudanças na composição demográfica da América
espanhola, à medida que o número de imigrantes se multiplicava, enquanto
o da população indígena diminuía.

Na metade do século XVI havia provavelmente cerca de 100 mil brancos


na América espanhola. As notícias sobre as oportunidades de u m a vida
melhor no Novo Mundo encorajavam u m número cada vez maior de espa-
nhóis a tomar u m navio de Sevilha para a América, com ou sem licença ofi-
cial para emigrar. N u m a carta para a família, no padrão daquelas escritas
pelos emigrantes das índias, Juan de Robles escreveu a seu i r m ã o em
Valladolid, em 1592: "Não hesite. Deus nos ajudará. Esta terra é como se
fosse nossa, pois Deus nos deu mais aqui do que aí, e estaremos em melhor
situação" 15 .
Embora as índias fossem oficialmente a posse exclusiva da coroa de
Castela, não havia, ao que se sabe, uma lei do século XVI que proibisse os
habitantes da coroa de Aragão de emigrar para elas, conquanto aragoneses,
catalães e valencianos estivessem aparentemente excluídos na lei, embora
nem sempre na prática, de ocupar cargos e benefícios nos domínios ultra-
marinos de Castela. Os emigrantes de Navarra, que foi oficialmente incor-
porada à coroa de Castela em 1515, tinham uma posição legal mais forte.
H Mas a esmagadora maioria dos imigrantes p r o v i n h a m da Andaluzia, da
s
< .
15
•< - Enrique Otte, "Cartas Privadas de Puebla dei Siglo XVI", Jahrbuch für Geschichte von Staat,
B3
2 Wirtschaft und Gesellschaft Lateinamerikas (JGSWGL), 3:78, 1966. Para uma seleção dessas
o
g cartas na tradução de lames Lockhart e Enrique Otte, Letters and People of the Spanish
M
•< Indies. The Sixteenth Century, Cambridge, 1976.
Estremadura e das duas Castelas, e o número de bascos aumentava à medida
que o século avançava.
Alguns desses emigrantes estavam indo juntar-se aos parentes que já
haviam emigrado, outros buscavam fugir de condições que, por uma ou por
outra razão, haviam-se tornado intoleráveis no Velho Mundo. Muitos dos
que estavam entre os perdedores da revolta dos Comuneros, esmagada em
1521, se puseram clandestinamente a caminho do Novo Mundo; e o mesmo
aconteceu com aqueles cuja ascendência judaica prejudicou suas chances de
sucesso na metrópole, embora houvesse regulamentos rigorosos a impedir a
emigração de judeus e conversos. É difícil acreditar que a emigração de todos
os sete irmãos de Santa Teresa de Ávila estivesse totalmente desvinculada do
fato de sua família ter conversos entre seus antepassados.
No início, como se poderia esperar, o movimento de emigração foi consti-
tuído em sua maioria esmagadora por homens. Mas, para incentivar a coloni-
zação, a coroa insistia em que todos os conquistadores e encomenderos fossem
casados, e com isso o número de mulheres emigrantes começou a aumentar.
Se as mulheres representavam cinco ou seis por cento do número total de
emigrantes no período de 1509-1539, subiram para 28 por cento nas décadas
de 1560 e 1570. Mas a falta de mulheres espanholas nos primeiros anos da
conquista naturalmente estimulou os casamentos mistos. Baltasar Dorantes
de Carranza, escrevendo sobre os conquistadores do México, explica que,
"uma vez que nos quinze anos em que a terra era conquistada as mulheres
espanholas não vieram em qualquer quantidade", alguns dos conquistadores
não se casaram, enquanto outros se casaram com índias 16 . Isso aconteceu
sobretudo com mulheres índias de sangue nobre ou real, e os filhos dessas
uniões, conhecidos pela designação de mestizos, sucediam na posse das pro-
priedades do pai. Todavia, o rápido crescimento da mestizaje nas Índias foi
menos o resultado de casamentos formais do que de concubinagem e estupro.
Durante o século XVI, pelo menos, a tendência foi assimilar sem excessivas
dificuldades o mestizo nascido dessas uniões ao m u n d o de u m ou de outro
dos pais. A coroa logo passou a expressar sua preocupação quanto ao modo
de vida dos mestiços, mas somente no século XVII, quando seu número se
multiplicou, é que começaram a constituir uma espécie de casta distinta.
No entanto, não eram somente os brancos que estavam transformando a
composição étnica da população das índias. Havia também uma forte cor-

16
- Dorantes de Carranza, Sumaria Relación, op. cit., p. 11.
rente de imigração africana, à medida que os escravos negros foram impor-
tados para aumentar a força de trabalho. Chegando a suplantar o número
dos brancos nas Antilhas, constituíram t a m b é m u m g r u p o minoritário
expressivo no México e no Peru. Os filhos de sua união com brancos e com
índios — conhecidos pelo nome respectivamente de mulattos e zambos —
ajudaram a aumentar o número dos que, fossem brancos ou híbridos, preo-
cupavam crescentemente as autoridades em virtude de sua manifesta ausên-
cia de raízes. As índias estavam a caminho de produzir sua própria popula-
ção de inativos voluntários ou involuntários, dos abandonados, vagabundos
e párias, que parecia tão ameaçadora à sociedade hierárquica e organizada
que constituía o ideal europeu do século XVI.
A presença dessa população inútil somente podia aumentar as forças que
já produziam a desintegração da chamada república de los Índios. Apesar dos
enormes esforços de muitos frades para segregar as comunidades índias,
somente nas regiões mais remotas, onde os espanhóis se haviam estabelecido
mais esparsamente, foi possível manter neutralizado o m u n d o exterior. A
proximidade das cidades fundadas pelos conquistadores; as necessidades de
mão-de-obra dos encomenderos e as exigências de tributo da coroa; a invasão
de terras indígenas pelos espanhóis; a infiltração de brancos e mestizos; todos
esses elementos ajudaram a minar a comunidade indígena e o que restava de
sua organização social do período anterior à conquista.

Ao mesmo tempo, ao ser submetida a essas poderosas pressões externas,


a república de los Índios também estava sucumbindo a uma catástrofe demo-
gráfica. A epidemia de varíola no decurso da conquista foi apenas a primeira
de uma sucessão de epidemias européias que assolaram as populações indí-
genas da América continental nas décadas que se sucederam. A incidência
dessas epidemias foi irregular. O Peru, com uma população mais esparsa,
parece ter escapado mais facilmente que o México, que foi atingido de modo
particularmente intenso em 1545-1547. Por toda a América as regiões cos-
teiras se m o s t r a r a m especialmente vulneráveis e aqui, assim c o m o nas
Antilhas, houve uma tendência a substituir por africanos a população indí-
gena que havia sucumbido em sua quase totalidade.
As doenças européias atingiram uma população que estava desorientada
e abatida pelas experiências da conquista. Os antigos p a d r õ e s de vida
haviam-se desintegrado, o equilíbrio precário da produção de alimentos fora
rompido pela introdução de culturas e de gado europeus, e a necessidade
européia de trabalho servil havia forçado a população índia a u m trabalho a
que não estava acostumada, muitas vezes sob condições intoleravelmente
duras. Embora houvesse sinais de uma adaptação bem-sucedida, principal-
mente entre os índios da região de Cidade do México no período imediata-
mente posterior à conquista, não é de surpreender que para muitos índios o
choque da mudança tenha parecido excessivo e eles tenham perdido a von-
tade de viver. Os sobreviventes aparecem nos relatos da época como pessoas
passivas e apáticas que buscavam fugir de sua angústia nos narcóticos e nos
tóxicos — bebendo pulque no México e mascando coca nos Andes.
Se a população do México central do período anterior à conquista caiu
de 25 milhões em 1519 para 2,65 milhões em 1568, e a do Peru, de nove
milhões em 1532 para 1,3 milhões em 1570, o impacto demográfico da con-
quista européia foi esmagador t a n t o em suas dimensões quanto em sua
velocidade 17 . N e n h u m plano preconcebido, quer para a salvação, quer para
a exploração dos índios, podia esperar resistir intato aos efeitos de uma
transformação tão drástica. No meado do século XVI a América espanhola
era u m m u n d o muito diferente do que fora visualizado imediatamente após
a conquista.

As expectativas sobre a riqueza a ser obtida com a conquista das índias


tinham pressuposto tacitamente a existência de uma população indígena
vasta e dócil, que fornecia trabalho servil e produzia tributo para os con-
quistadores. Inevitavelmente, o declínio totalmente inesperado dessa popu-
lação obrigou a mudanças drásticas tanto na política quanto no comporta-
mento. Desde a metade do século XVI intensificou-se a luta entre colono e
colono e entre coroa e colono por uma porção maior da oferta de mão-de-
obra escrava em declínio. A descoberta de ricos depósitos de prata na década
de 1540 tanto no México quanto no Peru e o início das operações de mine-
ração em larga escala significaram que na distribuição da mão-de-obra indí-
gena devia ser dada prioridade à mineração e às atividades auxiliares. A abo-
lição da encomienda de serviço pessoal que se seguiu ao decreto de 1549 pri-
vou os encomenderos de sua força de trabalho indígena, que podia então ser
mobilizada para os serviços públicos necessários por meio dos repartimien-
tos organizados por funcionários da coroa.

Para maiores detalhes sobre o colapso demográfico, cf. Nicolás Sánchez-Albornoz,


História da América Latina, vol. II, cap. 1.
Ao mesmo tempo, à medida que o trabalho índio se tornou menos dis-
ponível para indivíduos particulares, grandes áreas de terra foram sendo
desocupadas em decorrência da extinção de seus proprietários índios. Isso
coincidiu com u m a necessidade rapidamente crescente de terra entre a
comunidade de colonos, para satisfazer as necessidades alimentares de uma
população hispânica em expansão e concentrada nas cidades, que permane-
cia presa a seus hábitos e gostos tradicionais. Queria carne e vinho e preferia
pão branco ao milho. Os encomenderos e outros colonos ricos e influentes,
portanto, requereram à coroa com sucesso concessões de terras (mercedes de
tierras) nas quais pudessem plantar trigo (mais difícil de produzir que o
milho e que exigia uma maior área de terreno para uma produção compará-
vel) e criar gado europeu (bois e carneiros). Embora a América espanhola
devesse continuar sendo u m a civilização essencialmente urbana, já havia
fortes indícios, a partir da metade do século XVI, de que a base dessa civili-
zação seria provavelmente a dominação do campo p o r u m p u n h a d o de
grandes proprietários.
No final da primeira geração da conquista, já estava claro que no novo
m u n d o das índias espanholas estavam surgindo sociedades novas e distintas.
Os conquistadores, depois de se instalar, haviam tomado o controle da terra
e do povo; e, se haviam destruído em escala maciça, estavam também come-
çando a criar. Traziam consigo uma crença que aos poucos ganhava terreno
na Europa do século XVI: a de que estava na capacidade do h o m e m modifi-
car e melhorar o m u n d o a seu redor. "Não encontramos usinas de açúcar
quando chegamos nestas índias", escreveu Fernández de Oviedo, "e todas
elas nós construímos com nossas próprias mãos e esforço n u m período tão
curto" 1 8 . Hernán Cortês, explorando as vastas propriedades que adquirira
no vale de Oaxaca, mostrava que o conquistador também tinha as ambições
do empreendedor.

O tipo de sociedade que os conquistadores e imigrantes instintivamente


se dispuseram a criar se aproximava tanto quanto possível da sociedade que
haviam deixado na Europa. Em conseqüência, o destino dos povos domina-
dos estava ele próprio predeterminado. Seriam transformados, na medida
do possível, em camponeses e vassalos no estilo espanhol. Teriam de confor-
mar-se às noções européias de trabalho e seriam incorporados à economia

18. Fernández de Oviedo, Historia General y Natural de las índias, Madrid, 1959, vol. I, p. 110.
de salários. Seriam cristianizados e "civilizados", até onde permitissem suas
próprias naturezas fracas. Não foi sem motivos que Cortês batizou o México
de Nova Espanha.
No entanto, uma das características mais notáveis da própria Espanha foi
a presença cada vez mais poderosa do Estado. Por algum tempo, após a
morte de Isabel em 1504, parecera que a obra dos Reis Católicos de fortale-
cer a autoridade real em Castela seria desfeita. O renascimento do sectaris-
m o aristocrático ameaçou mais de uma vez mergulhar Castela de novo nas
desordens do século XV. Mas Fernando de Aragão, que sobreviveu doze anos
à morte da esposa, conseguiu habilmente preservar a autoridade da coroa. O
cardeal Jiménez de Cisneros, que se tornou regente após a morte de Fernan-
do em 1516, deu mostras de igual capacidade de comando, e Carlos de Gant,
o jovem neto de Isabel, herdou em 1517 u m país em paz.
Mas essa paz era precária, e os primeiros eventos do novo reinado nada
ajudaram a torná-la mais segura. A eleição de Carlos como Sacro Imperador
Romano em junho de 1519, dois meses após o desembarque de Cortês no
México, e sua subseqüente partida para a Alemanha serviram para precipitar
u m a revolta nas cidades de Castela contra o governo de um rei estrangeiro e
ausente. A revolta dos Comuneros (1520-1521) adotou profundamente as
tradições constitucionalistas da Castela medieval e, se tivesse triunfado, teria
i m p o s t o restrições institucionais ao desenvolvimento da soberania de
Castela. Mas a derrota dos rebeldes no campo de batalha de Villalar, em
abril de 1521, deixou Carlos e seus conselheiros livres para restabelecer e
ampliar a autoridade real sem grandes impedimentos. Sob o reinado de
Carlos, e ainda mais sob o de Filipe II, seu filho e sucessor (1556-1598), um
governo autoritário e cada vez mais burocrático tornaria sua presença senti-
da em inúmeros pontos da vida de Castela.
Era inevitável que essa crescente agressividade do Estado tivesse também
seu impacto sobre as possessões ultramarinas de Castela. Os desejos de
intervenção do Estado haviam estado aí presentes desde o início, como tes-
temunhavam as capitulaciones entre a coroa e os aspirantes a conquistador.
Mas o próprio processo de conquista poderia muito facilmente cair fora do
controle real. O tempo e a distância estavam nas mãos dos conquistadores e,
se Cortês mostrou mais deferência do que muitos em seu comportamento
com relação à coroa, isso ocorreu porque ele tinha visão para perceber que
precisava de aliados poderosos na Espanha e a sagacidade para avaliar que
podia valer a pena explicar, desde que se agisse primeiro.
Mas o imperador Carlos V, como Fernando e Isabel antes dele, não tinha
intenção de permitir que seus domínios recém-adquiridos escapassem a seu
controle. Na Nova Espanha Cortês se viu sistematicamente desalojado pelos
funcionários reais. Uma audiência, no modelo da de Santo Domingo (1511),
foi instalada no México em 1527, sob o que se revelaria ser a presidência
desastrosamente interesseira de N u n o Guzmán. Essa primeira tentativa de
controle real criou mais males do que curou, mas o período de governo de
1530-1555 com a segunda audiência, composta de homens de maior integri-
dade do que a primeira, deixava claro que não haveria lugar para seu con-
quistador na Nova Espanha dos burocratas.
Cortês aceitou de modo relativamente sereno, mas no Peru o estabeleci-
mento do controle real não foi realizado sem luta sangrenta. O pretexto para
a revolta dos pizarristas, de 1544-1548, foi a tentativa de impor as Novas
Leis; mas por trás dela estava a resistência de homens da espada a aceitar o
controle de h o m e n s da pena. Foi sintomático que a rebelião tenha sido
esmagada, não por um soldado mas por u m daqueles funcionários instruí-
dos em leis que foram o objeto primacial da hostilidade do conquistador. O
licenciado Pedro de La Gasca triunfou sobre os pizarristas porque era acima
de tudo u m político, com habilidade para explorar as divisões dentro da
comunidade do conquistador entre os encomenderos e os soldados de infan-
taria que cobiçavam suas posses.
Na Nova Espanha a partir da década de 1530, no Peru a partir dos anos
1550, os dias do conquistador estavam terminados. Estava a caminho uma
nova conquista das índias, a administrativa, conduzida pelas audiências e
pelos vice-reis. A Nova Espanha recebeu seu primeiro vice-rei em 1535, na
pessoa de Antonio de Mendoza, que serviu até 1550; e o Peru, onde foi ins-
talada uma audiência em 1543, começou a acalmar-se sob o governo vice-
real de outro Mendoza, o marquês de Canete (1556-1560). Aos poucos, sob
o domínio dos primeiros vice-reis, o aparelho de controle da autoridade real
foi assentado sobre as novas sociedades que os conquistadores, os frades e os
colonizadores estavam criando. As índias estavam começando a ocupar seu
lugar dentro do vasto arcabouço institucional de uma monarquia espanhola
de amplitude mundial.
«1 OS ÍNDIOS
S
E A CONQUISTA ESPANHOLA

A A M É R I C A , isolada do resto do mundo por milhares de anos, tinha uma


história distintiva, livre de influências externas. Fora, portanto, uma complexa
interação de fatores externos que, no início do século XVI, dera às diversas
sociedades indígenas muitas formas diferentes: estados altamente estrutura-
dos, senhorias mais ou menos estáveis, tribos e grupos nômades ou seminô-
mades. E foi esse m u n d o até então inteiramente auto-subsistente que de
repente sofreu u m choque brutal e sem precedentes: a invasão de homens
brancos vindos da Europa, o impacto de um mundo profundamente diferente.
A reação dos americanos nativos diante da invasão espanhola variou con-
sideravelmente: de ofertas de aliança a uma colaboração mais ou menos força-
da, de uma resistência passiva a uma hostilidade permanente. No entanto, em
toda parte, a chegada desses seres desconhecidos causou o mesmo espanto,
não menos intenso do que o experimentado pelos próprios conquistadores:
ambos os lados estavam descobrindo uma nova raça de homem de cuja exis-
tência jamais haviam suspeitado. Este capítulo examina os efeitos da invasão
espanhola sobre o império inca e o império asteca durante o primeiro estágio
de domínio colonial (até a década de 1570), enfatizando principalmente o
caso dos Andes; também considera sucintamente as áreas "periféricas", ao
norte do planalto central mexicano, ao sul e sudeste dos Andes centrais, a fim
de apresentar o quadro mais amplo possível da "visão dos vencidos".

O TRAUMA DA CONQUISTA

Tanto no México quanto no Peru os documentos nativos descrevem u m a


atmosfera de terror religioso imediatamente antes da chegada dos espanhóis.
Mesmo sendo interpretações retrospectivas, essas descrições atestam o trau-
ma por que passaram os americanos nativos: profecias e presságios haviam
predito o final dos tempos; então, de repente, apareceram monstros de qua-
tro pernas montados por criaturas brancas de aparência humana.

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