A Conquista Da América
A Conquista Da América
A Conquista Da América
I a edição 1997
2» edição 1998
2a edição, 1* reimpressão 2004
V Í G ^
97-3864 CDD—980
Índices para catálogo sistemático:
1. América Latina: História 980
LISTA DE MAPAS 9
PREFACIO GERAL 13
OS A N T E C E D E N T E S DA C O N Q U I S T A
Francisco López de Gómara, Historia General de Ias índias, Madrid, 1852, p. 181.
A EUROPA EA AMÉRICA
0\
Fonte: Francisco Morales Padrón, Historia General de América, 2. ed., Madrid, 1975, pp. 336-337.
A d e s c o b e r t a e a e x p l o r a ç ã o do N o v o M u n d o
Alonso Maldonado, Hechos dei Maestre de Alcântara Don Alonso de Monroy, ed. A. R.
Rodríguez Monino, Madrid, 1935, p. 24.
dia tornaria possível a conquista da América. O pronome pessoal que per-
passa as Cartas de Hernán Cortês que vêm do México é contrabalançado
pelo "nós" confiante dos soldados que falam através de u m dos seus, Bernal
Díaz dei Castillo, em seu Verdadeira História da Conquista da Nova Espanha.
Mas o grande movimento expansionista que conduziu a presença espanhola
através do Atlântico era algo mais que u m esforço maciço da empresa priva-
da que assumia temporariamente formas coletivistas. Isso porque, juntamen-
te com a unidade individual e coletiva, havia dois outros participantes que
marcavam de modo indelével todo o empreendimento — ajgreja e a coroa.
Mesmo quando a guerra de fronteira contra os mouros era feita por ban-
dos autônomos de guerreiros, continuava a ser conduzida sob os auspícios da
Igreja e do Estado. A Igreja garantia a sanção moral que elevava uma expedi- _
ção de pilhagem ao nível de cruzada, enquanto a aprovação do Estado era
necessária para legitimar a aquisição de senhorio e de terra. A terra, e o sub-
solo, estavam entre as regalias pertencentes à coroa de Castela, e conseqüen-
temente toda terra adquirida através de conquista por u m indivíduo particu-
lar se tornava dele não por direito, mas por graça e favor reais. Cabia ao rei,
na qualidade de senhor supremo (o senor natural), controlar o repartimiento,
ou a distribuição das terras conquistadas ou por conquistar, e autorizar colô-
nias de povoamento nos territórios conquistados. No momento da divisão
dos espólios de guerra, sempre deveria ser separado o quinto real. Embora os
adelantados, ou governadores militares das regiões de fronteira, possuíssem
alto grau de autonomia, eram governadores em nome do rei.
Dessa e de muitas outras formas, a presença real se fazia sentir à medida
que a reconquista prosseguia em seu avanço r u m o ao sul. Inevitavelmente, a
autoridade efetiva da coroa flutuava de uma geração para outra, mas a reale-
za em si era o centro de toda a organização da sociedade medieval de Castela
e recebeu uma posição exaltada na grande compiláção da tradição legal de
Castela, as Siete Partidas de Alfonso X, no século XIII. A visão de uma socie-
dade harmoniosa contida nas Siete Partidas é aquela em que o rei, na quali-
dade de vigário de Deus na terra, exerce uma supervisão constante e ativa
dentro do quadro da lei. Ao monarca cabia, na qualidade de senhor natural
dessa sociedade, garantir b o m governo e ministrar justiça, no sentido de
assegurar que cada vassalo recebesse seus direitos e cumprisse as obrigações
que eram suas em virtude de sua posição. Nessa teoria estava implícita uma
relação contratual entre o rei e os vassalos: o reinado degenera em tirania se
o rei, ou seus representantes nomeados, desconsiderar o bem-estar comum.
144
O b o m rei, contrariamente ao tirano, deve estar atento a que os maus sejam
punidos e os justos, recompensados. Sendo o distribuidor de patrocínio, ele
recompensa os serviços dos vassalos merecedores com cargos e honras, de
acordo com u m sistema cuidadosamente regulamentado pelo qual, teorica-
mente ao menos, cada servido de u m vassalo recebe a devida compensação
n u m a merced, ou favor, do rei.
Foi essa sociedade patrimonial, estruturada em torno da concepção de
obrigação m ú t u a simbolizada pelas palavras servido e merced, que se viu des-
f mantelada no final da Idade Média, foi reconstituída em Castela durante o
reinado conjunto de FernjjgÍQ_Ugabel (1474-1504) e depois transportada
através do oceano para ser implantada nas ilhas e n o continente americanos
Fernando e Isabel, os Reis Católicos, eram os governantes do que era essen-
cialmente u m a sociedade medieval renovada. Mas a. natureza do próprio rei-
nado desses soberanos, embora tradicional em suas formulações teóricas
possuía na prática elementos de inovação que tornavam seu poder mais'
temível que o de qualquer de seus antepassados medievais.
Sobretudo, foram os primeiros soberanos autênticos da Espanha — uma
Espanha constituída pela união, na p r ó p r i a pessoa deles, das coroas de
Castela e Aragão. Embora as duas coroas permanecessem institucionalmente
distintas, sua união nominal representava um notável realce do poder real
Na qualidade de reis da Espanha, os Reis Católicos tinham à disposição, pelo
menos potencialmente, recursos financeiros e militares muito maiores do
que os que podiam ser reunidos por qualquer facção rebelde entre seus súdi-
tos. Podiam recorrer a grandes r r a o r o j t e k a l d a d e t o t m t i v a entre súditos
cansados de uma guerra civil interminável. Possuíam, na crescente classe dos
letrados (funcionários com formação universitária), u m a reserva de servidp-
je^profissionalmente qualificados, cujos próprios interesses"^m"mais bem
servidos pela manutenção e ampliação da autoridade da coroa. O humanis-
mo do Renascimento e u m a religião revivescente com fortes nuances escato-
lógicas forneciam idéias e símbolos que podiam ser explorados para projetar
g novas imagens da monarquia, como a de líder natural n u m a grande empresa
B ' coletiva — a missão divina de eliminar os últimos resquícios do domínio
m 0 m 0 e de
< P u rificar a Península de quaisquer elementos "de" contaminação,
„ u m prelúdio da difusão do evangelho aos recantos mais longínquos da terra
| Fernando e Isabel possuíam a sagacidade e a habilidade para aproveitar
g ao máximo essas diversas armas de seu arsenal. Em.conseqüência, as últimas
duas décadas do século XV em Castela - onde as barreiras institucionais
agjMBfcM"
145
opostas ao exercício da autoridade real eram muito menos fortes do que as
da coroa de Aragão — t e s t e m u n h a r a m u m a surpreendente reafirmaçao e
ampliação do poder real.
A presença de u m Estado intrusivo seria fundamental p a r a j g d o o desen-
volvimento da e m p r e s a ultramarina de Castela. É possível que alguns bus-
cãssêm ativamente a intervenção real e que outros se sentissem mehndrados
com ela, mas em ambos os casos a autoridade da coroa deveria ser u m p o n t o
de referência automático para todos os envolvidos na exploração, conquista
e colonização das novas terras.
Já havia claras indicações disso na primeira tentativa castelhana de con-
quista e colonização do Aúântico - a ocupação das ilhas Canárias nas déca-
das de 1480 e 1490. As Canárias ainda eram apenas uma possessão nominal
da coroa de Castela quando se tornaram objeto de disputa entre Portugal e
Castela na guerra da sucessão que irrompeu em 1475. Potencialmente rico
p o r si m e s m o , o arquipélago era t a m b é m u m a base óbvia t a n t o p a r a as
. i n c u r s õ e s à costa a f r i c a n a q u a n t o p a r a as viagens de e x p l o r a ç ã o p e l o
" Atlântico, do tipo que estava sendo empreendido pelos portugueses. A coroa
de Castela, envolvida n u m a p r o f u n d a rivalidade com Portugal, tinha por-
M
tanto u m interesse manifesto em fazer valer suas pretensões, e assim enviou
u m a expedição, q u e p a r t i u de Sevilha em 1478, p a r a o c u p a r a G r a n d e
Canária. A essa se seguiu, em 1482, u m a nova expedição, mais bem-sucedi-
da, sob o comando de Alfonso Fernández de Lugo; todavia, embora os por-
tugueses recuassem de suas pretensões n o tratado de paz de 1479, a resisten- o
cia dos habitantes da ilha impediu uma ocupação fácil, e Palma só foi subju- |
gada em 1492, e Tenerife, u m ano depois. A conquista, como aconteceu nos g
O P A D R Ã O DAS ILHAS
4. Gonzalo Fernández de Oviedo, Sumario de la Natural Historia de Ias índias, ed. José g
«
Miranda, México, 1950, pp. 88-89.
necessidades. O repartimiento, ou distribuição dos índios, fora um ato de
favor da coroa e, portanto, trazia consigo certas obrigações a ser cumpridas
pelos concessionários. Deviam cuidar dos índios e instruí-los na fé, o que
significava que deveriam ser temporariamente "depositados" ou confiados a
espanhóis privados. Era um sistema que lembrava a encomienda, ou o uso de
atribuir povoações mouras a membros de ordens militares na Espanha
medieval; e a palavra encomienda ressurgiria no devido tempo neste novo
ambiente americano, embora agora comportasse um sentido bastante dife-
rente 5 . A encomienda no Novo Mundo não incluía a distribuição de terras
ou de arrendamentos. Era simplesmente uma concessão pelo Estado de
mão-de-obra compulsória, vinculada a responsabilidades específicas para
com seus "protegidos" indígenas por parte do depositário, ou encomendero.
Teoricamente, tais responsabilidades não poderiam ser atribuídas levia-
namente. Deviam ser dadas aos mais capacitados para exercê-las, aos mere-
cedores e aos estabelecidos — e o homem estabelecido no mundo hispânico
era o homem de propriedades com uma residência urbana. O controle que
exerceu sobre a oferta de mão-de-obra, portanto, deu a Ovando as condi-
ções para incentivar a instalação de espanhóis em pequenas comunidades
urbanas, cada uma com seu cabildo, ou conselho da cidade, segundo o
modelo espanhol. A mão-de-obra indígena devia ser distribuída apenas aos
vecinos, cidadãos com plenos direitos.
Para facilitar o processo de distribuição, os índios eram também desloca-
dos e era dada a seus caciques a responsabilidade pelo fornecimento de mão-
de-obra aos espanhóis. Enquanto parte dessa força de trabalho era constituí-
da de índios de encomienda, outros índios, chamados naborías, assumiam o
serviço nas casas das famílias espanholas como servos domésticos. Esses
naborías situavam-se dos dois lados da linha que dividia a sociedade harmo-
niosa, tal como fora planejada por Ovando — uma sociedade em que a
comunidade indígena e a espanhola coexistiam sob a estrita supervisão do
governador real e onde os índios eram introduzidos nos benefícios da civili-
zação cristã e em troca forneciam a mão-de-obra, que era tudo o que tinham
a oferecer. Ovando incentivou ao mesmo tempo o estabelecimento da cria-
ção de gado e do cultivo da cana-de-açúcar, na esperança de libertar a socie-
^ A O R G A N I Z A Ç Ã O E O A V A N Ç O DA C O N Q U I S T A -
6.
Para uma abordagem mais completa sobre os indígenas e a conquista espanhola, ver Jorge 3
Hidalgo, The Cambridge History ofLatin America, vol. I, cap. 4, e o trabalho de Nathan |
Wachtel, adiante neste volume, cap. 5, às pp. 195-239. "
parcialmente sedentários da periferia dessas regiões, aos bandos de caçadores
e coletores de alimentos, como os que perambulavam pelo norte do México e
l pelas planícies argentinas. Entre alguns desses povos, as tradições orais e o fol-
3 clore mantiveram viva a história da conquista. Entre outros, a memória coleti-
va foi extinta juntamente com eles próprios. E entre alguns — mais notada-
mente os astecas e os maias, que haviam desenvolvido sistemas de escrita
^ os episódios da conquista, mantidos vivos na música e na poesia, foram trans-
ia mitidos aos frades, que os registraram por escrito, ou então foram gravados
nos textos daqueles que, se não sofreram a experiência; da conquista, pelo
menos haviam-na conhecido dos membros da geração de seus pais.
Dada a diversidade dos povos, a relativa escassez das fontes e a natureza
das circunstâncias em que foram produzidos, seria temerário afirmar que os
registros que chegaram até nós dão-nos a perspectiva "indígena" da conquis-
ta. Mas j o m e c e m ^ ^ v e r d a d e j a m a _ s 4 r i g ~ d ^ ^ filtradas
^ j s e l a s J e n t e s j l a derrota, d o j m p a c t o que provocou em certasj-egiões a súbita
^ e r u g ç ã o de mvasores_estrangèiros, cuja aparência_e_comportamento estavam
tãojiistantes da expectativa normal. A Relãción de Michoacán, por exemplo,
compilada p o r u m franciscano espanhol p o r volta de 1540, com base em
material reunido anteriormente j u n t o a informantes tarascanos nativos, rela-
ta da seguinte maneira as impressões desses últimos sobre os espanhóis:
Tanto o caráter
, das
—• sociedades
——— que os enfrentaram quanto sua própria
,
superioridade tecnológica criaram esplêndidas oportunidades para os inva-
sores europeus.~Tõdãvia, essas oportunidades ainda tinham de ser conquis-
tadas, e aqui é que foi testada a capacidade de organização e improvisação
dos europeus do século XVI. O fato de terem fracassado lamentavelmente
diante de alguns de seus adversários, como os índios araucanos do Chile,
indica que o sucesso não era por si só automático. Regiões diferentes coloca-
vam problemas diferentes e exigiam jespostasdiferentes, e cada expedição
ou tentativa de colonização tinha suas próprias peculiaridades.
Mas enquanto, especialmente nos primeiros anos, não havia procedi-
m e n t o u n i f o r m e de conquista e colonização, certos padrões tendiam a
impor-se, simplesmente porque as expedições militares exigiam organização
e provisões, e as expedições comerciais logo descobriram que não podiam
dispensar o apoio militar. Na Venezuela central, que os banqueiros de
Carlos V, os Welsers, tentaram colonizar entre 1528 e 1541, havia, como era
de esperar, u m elemento fortemente comercial no tratamento da coloniza-
ção. No entanto, apesar disso, as expedições comerciais rapidamente dege-
neraram em ataques para preia de escravos, bastante semelhantes àqueles
que ocorreram nas Antilhas e no Panamá.
Não obstante, assim como os interesses comerciais sentiram necessidade
de lançar mão de métodos militares, também as bandas, ou bandos de guer-
reiros organizados, não puderam por muito tempo prescindir dos serviços
dos mercadores. O mais perto disso que conseguiram chegar foi na região do
istmo, nos anos posteriores a 1509, quando a falta de capital — e de uma
necessidade de capital, já que a norma eram rápidas expedições por via ter-
restre — tornou possível a formação de bandos guerreiros, ou companas, de
forte caráter igualitário. Essas companhias de guerreiros, baseadas n u m acor-
do prévio de distribuição igual do butim, eram bastante apropriadas para o
tipo de guerra de assaltos realizado na região do mar dos Caraíbas, no istmo
do Panamá e nas zonas de fronteira como a Venezuela. Na verdade, eram em
grande parte o produto das condições da fronteira, e não surpreende que
tenham ressurgido de forma muito semelhante nas bandeiras do Brasil portu-
guês, que floresceram no final dos séculos XVI e XVII. Grupos pequenos e
coesos de homens possuíam, graças a seus cavalos, a suprema vantagem da
mobilidade. Seus gastos, exceto pelo custo dos cavalos, eram mínimos. As
armas de fogo, que eram caras e que de qualquer forma seriam rapidamente
corroídas na selva úmida, raramente eram necessárias contra o tipo de oposi-
ção que provavelmente enfrentariam. Armados com espadas de aço e acom-
panhados por poderosos mastins, caçavam os índios aterrorizados, matando,
escravizando e capturando todo ouro que pudessem encontrar.
No entanto, tão logo surgiu a necessidade de^xpediçãe^Daais_dislanl£s,
especialmente as que exigiam navios, tornaram-se necessárias formas de
165
organização mais complexas. Os líderes de expedições em potencial tinham
então de recorrer a comerciantes ou funcionários que dispusessem de gran-
des capitais, c o m o o licenciado Gaspar de Espinosa, o alcalde mayor de
Castilla dei Oro sob o governo de Pedrarias Dávila, que era uma figura
dominante no financiamento das expedições que partiram do Panamá nos
primeiros anos da conquista do continente.
Nas circunstâncias era natural que se formassem sociedades — primeira-
mente entre os próprios capitães e depois entre os capitães e os investidores.
No Panamá, por exemplo, Francisco Pizarro e Diego de Almagro formaram
uma sociedade lucrativa em associação com Hernando de Luque, cuja con-
dição de clérigo não inibiu seus ousados empreendimentos. Os sócios ten-
diam a dividir as funções entre si, como na relação entre Pizarro e Almagro,
em que Pizarro assumiu o comando militar enquanto Almagro recrutou os
associados e se encarregou da remessa de homens e provisões para pontos
fixos ao longo da rota.
Os investidores exigiam como garantia de seus investimentos a participa-
çãounos-espjólios que coubessem por direito aos homens que houvessem
obtido cavalos ou equipamento a crédito. Muitos soldados, portanto, a
menos que encontrassem butins excepcionalmente ricos, corriam o risco de
se tornar devedores permanentes, ou a investidores absenteístas, ou a seus
próprios capitães. De fato, a conquista da América tornou-se possível graças
a uma rede de crédito que, por meio de agentes e empreendedores locais,
remontava a funcionários da coroa e a ricos encomenderos nas Antilhas, e
ainda mais, do outro lado do Atlântico, a Sevilha e às grandes casas bancá-
rias de Gênova e de Augsburgo. Mas os homens que formavam as bandas
não estavam totalmente indefesos. Muitos deles, r e u n i n d o n u m f u n d o
comum os recursos que possuíam, formavam suas próprias sociedades den-
tro do bando, associando-se para comprar um cavalo e mantendo-se juntos
por muitos numa base de confiança mútua e de divisão acordada do butim.
Essas parcerias privadas entre os soldados garantiam um elemento de
coesão nos agrupamentos naturalmente fluidos que eram os bandos guerrei-
ros. Associações regionais também ajudavam a assegurar alguma coesão,
embora também pudessem, ocasionalmente, ser u m a fonte de profundas
divisões, como aconteceu quando u m a nova força expedicionária, sob o
comando de Pánfilo de Narváez, desembarcou na costa mexicana em maio
de 1520 para contestar a supremacia de Cortês. Bernal Díaz comentou de
maneira mordaz sobre os recém-chegados: "como nosso imperador tem
muitos reinos e domínios, há uma grande variedade de gente entre eles
alguns muito corajosos, e outros mais corajosos ainda. Nós viemos da Velha
Castela e somos chamados castelhanos, e aquele capitão [...] e seus homens
vêm de outra província, chamada Vizcaya. São chamados vizcaínos, e falam
como os índios otomis" 8 .
Embora as rivalidades regionais na Península se refletissem inevitavel-
mente entre os conquistadores, era verdade também que a predominância de
uma região n u m bando guerreiro podia assegurar um núcleo central de leal-
dades, ligando homem a homem e os homens a seu líder. O vínculo estre-
madurenho veio a ser uma fonte de grande força, tanto para Cortés quanto
para Pizarro. Provindo muitas vezes de uma única cidade ou de um grupo
de cidades, os amigos, parentes e partidários desses dois capitães constituí-
ram uma unidade dentro da unidade, um grupo estreitamente unido com
base em antecedentes e experiências comuns, em atitudes compartilhadas e
em relações pessoais e familiares próximas. Para seus conterrâneos de
Estremadura, o taciturno e avarento Francisco Pizarro era, se não simpático
pelo menos compreensivo.
Os líderes, se quisessem conduzir suas expedições com sucesso, precisa-
vam desse tipo de suporte. Do ponto de vista dos capitães, a conquista da
América era algo muito mais complexo que o triunfo, sobre uma população
indígena aterrorizada, de bandos pequenos mas determinados de soldados,
que possuíam uma superioridade técnica decisiva sobre seus adversários e
eram impelidos por uma devoção comum ao ouro, à glória e ao evangelho.
Qualquer líder de uma expedição sabia que os indígenas não eram seus úni-
cos adversários, nem necessariamente os mais perigosos. Tinha inimigos
também na retaguarda, desde funcionários da coroa que estavam determina-
dos a impedir o estabelecimento de feudos ou reinos independentes nessas
regiões ainda não-conquistadas até rivais locais (com interesse em frustrar seu
sucesso. Quando Hernán Cortês partiu de Cuba em 1519, elé o fez desafiando
o governador de Cuba, Diego Velázquez, que recorreu a todo tipo de artima-
nha concebível para provocar sua ruína. Acima de tudo, tinha inimigos em
seu próprio campo, desde capitães que queriam tomar seu lugar até soldados
de infantaria descontentes que planejavam traí-lo, por dedicar a outro sua
lealdade, ou porque estavam insatisfeitos com a distribuição dos butins.
Bernal Díaz dei Castillo, Historia Verdadera de la Conquista de la Nueva Espana, ed.
Joaquín Ramírez Cabanas, México, 1944, vol. II, p. 27.
Por conseguinte, se quisesse evitar que uma expedição se desintegrasse a
partir de dentro, ou sofresse uma derrota vinda de fora, a lideran£aj>reçi§ava
de altíssima habilidade política e militar. Mas a presença de índios hostis,
"geralmente em n ú í ^ r õ s ^ s m ã g ã S o r e s , forçava de fato uma espécie de cama-
radagem, mesmo entre não-camaradas. Diante do perigo e da adversidade era
preferível lutar lado a lado que morrer sozinho; e a perspectiva de uma morte
horrível nas mãos de inimigos pagãos revelou-se suficiente para impelir a u m
cerrar de fileiras entre homens que, a despeito de todos os seus conflitos eÁ
queixas pessoais, tinham pelo menos em comum o fato de serem cristãos e )
espanhóis. U m líder hábil como Cortês sabia tirar proveito da lembrança de
perigos vividos em comum e sucessos compartilhados para manter a coesão e
o ânimo de seus seguidores. "São Tiago e a Espanha" era o grito de guerra que
podia submergir todas as diferenças numa causa comum.
Era u m grito de guerra ao mesmo tempo de desafio e de triunfo — o
grito de homens firmemente convencidos de que seriam os vencedores. Essa
confiança em sua própria superioridade em relação aos inimigos que larga-
mente os sobrepujavam em número estava baseada, pelo menos em parte, \
numa efetiva superioridade das técnicas, da organização e do equipamento. \
Mas por trás de quaisquer fatores materiais estava um conjunto de atitudes e
respostas que davam aos espanhóis uma vantagem em muitas situações em
"que se envolveram: u m a fé instintiva na superioridade natural dos cristãos
sobre simples "bárbaros"; u m senso da natureza providencial de seu empre- -
endimento, que tornava todo sucesso contra desvantagens aparentemente j
esmagadoras mais uma prova do favor divino; e um sentimento de que a j
recompensa final compensava todos os sacrifícios ao longo do caminho. A
perspectiva do ouro tornava toleráveis todas as agruras. "Eu e meus compa-
nheiros", dizia Cortês, "sofremos de uma doença do coração que somente
pode ser curada com ouro" 9 . Sentiam t a m b é m que estavam envolvidos
n u m a aventura histórica e que a vitória significaria a inscrição de seus
nomes no rol dos imortais, ao lado dos heróis da Antigüidade clássica.
A confiança que vinha desse senso de superioridade moral e de favor
divino era mais valiosa onde fosse mais necessária: na luta contra seus
adversários aparentemente mais terríveis, os "impérios" dos astecas e dos
incas. Na conquista do México central por Cortês, entre 1519 e 1521, e do
Peru por Pizarro, entre 1531 e 1533, os espanhóis deram mostras de u m a
»• Francisco López de Gómara, Cortês, trad. e ed. de L. B. Simpson, Berkeley, 1964, p. 58.
fantástica capacidade de explorar as fraquezas de seus adversários — uma
capacidade que era atestada em sua própria força subjacente.
A C O N S O L I D A Ç Ã O DA C O N Q U I S T A
10. Ver Mario Góngora, Los Grupos de Conquistadores en Tierra Firme, 1509-1530, Santiago de
Chile, 1962, cap. 3.
necia por desbravar. A conquista foi, desde o início, algo mais que u m convite
à fama e à pilhagem por parte de uma casta militar em busca de novas terras
a conquistar, após a queda do reino mouro de Granada. Naturalmente, o ele-
mento aristocrático-militar na sociedade peninsular esteve bem representado
na conquista da América, ainda que os grandes nobres de Castela e Andaluzia
se fizessem notar por sua ausência. Isso deve ser explicado em parte pela
determinação da coroa a evitar o estabelecimento nas novas terras de uma
sociedade dominada por magnatas ao modelo peninsular. Mas durante toda
a conquista, como era de esperar, estiveram presentes, em números substan-
ciais, homens com alguma pretensão a nobre de nascimento — homens da
baixa nobreza, ou da classe dos hidalgos. Não era fácil para u m homem pobre
com pretensões à nobreza sobreviver no m u n d o atento à posição social de
Castela ou Estremadura, como Cortês e Pizarro puderam atestar.
Não obstante, mesmo que os hidalgos tenham constituído u m elemento
minoritário, as atitudes e aspirações desse grupo tenderam a inspirar todo o
movimento da conquista militar. Evidentemente, u m hidalgo ou u m artesão
preparado para arriscar tudo ao cruzar o Atlântico, fazia-o na expectativa de
poder melhorar sua condição. Nos primeiros anos após a descoberta, o
m o d o mais rápido de melhoria era a participação em expedições de conquis-
ta, as quais precisavam dos serviços de homens com habilidades profissio-
nais — carpinteiros, ferreiros, alfaiates — desde que t a m b é m estivessem
preparados para e m p u n h a r a espada q u a n d o surgisse a ocasião. Para os
homens jovens, em sua maioria com pouco mais de vinte anos, a visão do
ouro e da prata trazidos de uma expedição vitoriosa abria perspectivas de
um m o d o de vida melhor do que tudo o que haviam conhecido. O modelo
desse m o d o de vida era o fornecido pelo grande magnata castelhano ou
andaluz, u m h o m e m que vivia para gastar. "Todos os espanhóis", escrevia o
frade franciscano Gerónimo de Mendieta, "mesmo o mais miserável e desa-
fortunado, querem ser senores e viver por si sós, não como servos de alguém,
mas com servos próprios" 1 1 .
Citado por José Durand, La Transformación Social dei Conquistador, México, 1953, vol. II,
p. 45.
sempre, mereciam mercedes, e que melhor serviço podia u m homem prestar
a seu rei que conquistar para ele novos territórios? Ter sido os primeiros a
penetrar em regiões não-conquistadas era uma causa especial de orgulho —
os 607 homens que acompanharam Cortês em sua primeira expedição pre-
servavam ciosamente sua preeminência contra os 534 que só se juntaram ao
grupo mais tarde. Mas eles se coligaram n u m a frente comum contra todos
os que vieram depois e finalmente, em 1543, obtiveram de u m relutante
Carlos V uma declaração onde afirmava que os primeiros descubridores de
Nova Espanha — ele evitou a palavra conquistadores — eram aqueles que
"penetraram pela primeira vez nessa província quando de sua descoberta e
aqueles que lá estavam para a tomada e a conquista da cidade do México".
Esse reconhecimento um tanto a contragosto de primazia era o máximo
até onde a coroa estava disposta a chegar. Ela se opunha à recriação de uma
sociedade feudal na América; e, embora alguns conquistadores tenham recebi-
do mercês de hidalguía, pouquíssimos, além de Cortês e Pizarro, foram aqui-
nhoados com títulos de nobreza. Como então seriam os sobreviventes, entre
os cerca de dez mil homens que efetivamente conquistaram a América, recom-
pensados por seu sacrifício? O problema era difícil, entre outras coisas porque
nenhum conquistador admitiu algum dia que as recompensas foram propor-
cionais a seus serviços. Desde o início, portanto, os conquistadores eram uma
classe ressentida, embora alguns com mais justificativas do que outros.
As disputas pelos espólios da conquista produziram inevitavelmente
enormes desigualdades de distribuição. Quando Cortês, por exemplo, fez a
primeira distribuição de índios mexicanos a seus sequazes em 1521, os
homens associados a seu inimigo, o governador de Cuba, correram perigo
de ser excluídos. Do mesmo modo, no Peru houve muito ressentimento a
respeito da distribuição do tesouro de Atahualpa, cabendo a parte do leão
aos homens de Trujillo, os seguidores de Pizarro, enquanto os soldados que
haviam vindo do Panamá com Diego de Almagro, em abril de 1533, foram
deixados sem nada. As guerras civis do Peru, em cujo decorrer o próprio
Almagro foi executado em 1538 e Francisco Pizarro, assassinado pelos alma-
gristas em 1542, foram u m a conseqüência direta dos desapontamentos e
rivalidades originários da distribuição dos espólios da conquista, embora
estas por sua vez tenham sido pelo menos em parte provocadas por tensões
pessoais e regionais anteriores à conquista do tesouro.
Entre os que receberam o butim houve também uma natural distribuição
desigual das partes, com base na posição social e nas variações aceitas do
valor do serviço. O h o m e m que lutava a cavalo n o r m a l m e n t e recebia duas
vezes a parte do infante, embora H e r n a n d o Pizarro tenha pronunciado pala-
vras revolucionárias a esse respeito, presumivelmente para encorajar seus
soldados de infantaria às vésperas da batalha contra Almagro. Ele fora infor-
mado, disse, que os soldados que não tinham cavalos eram desconsiderados
na ocasião da distribuição da terra. Mas ele lhes dava sua palavra de que tal
p e n s a m e n t o n u n c a passara p o r sua cabeça, " p o r q u e b o n s s o l d a d o s n ã o
devem ser julgados por seus cavalos, mas p o r seu valor pessoal... Portanto,
cada u m seria recompensado de acordo com seu serviço, pois a falta de u m
cavalo era u m a questão de sorte, e não u m a desonra da pessoa de u m ho-
mem" 1 2 . A regra geral, n o entanto, foi que o h o m e m a cavalo manteve sua
vantagem, embora m e s m o o infante c o m u m pudesse ser m u i t o b e m tratado
n u m a distribuição importante de butim, como o tesouro de Atahualpa.
Os verdadeiros prêmios de conquista, na forma de espólios, encomiendas,
distribuição de terra, cargos municipais, e — não menos — prestígio eram
de fato muitas vezes bastante consideráveis, m e s m o que o reconhecimento
oficial do serviço pela coroa fosse feito a contragosto ou inexistisse. Fortunas
e r a m feitas, e m b o r a fossem p e r d i d a s m u i t a s vezes tão r a p i d a m e n t e p o r
h o m e n s que eram jogadores naturais; e, enquanto alguns dos conquistado-
res — sobretudo, ao que parece, os oriundos de famílias de nível social mais
alto — d e c i d i a m voltar a seus lares com seus ganhos, o u t r o s esperavam
melhorar ainda mais de situação, permanecendo u m pouco mais nas índias
e n u n c a conseguiram deixá-las.
Citado por Alberto Mario Salas, Las Armas de la Conquista, Buenos Aires, 1950, pp. 140-
141.
tarde é que Villa Rica de Veracruz veio a adquirir as características físicas de
uma cidade.
Embora o propósito imediato da fundação de Veracruz tenha sido dar a
Cortês u m dispositivo legal para libertar-se da autoridade do governador de
Cuba e colocar os territórios continentais sob o controle direto da coroa a
pedido dos cidadãos-soldados, ela forneceu o padrão para um processo aná-
logo de incorporação municipal que foi seguido à medida que os soldados
conquistadores se deslocaram pelo México. Novas cidades foram criadas, às
vezes, como a própria Cidade do México, no local de cidades ou aldeias nati-
vas, e outras vezes em áreas onde não havia grandes aglomerações de índios.
Essas novas cidades deviam ser reservadas aos espanhóis, embora algumas
delas desde o princípio tenham tido barrios destinados aos índios, e a maioria
ds outras os tenham incorporado mais tarde. Tendo como base o modelo da
cidade espanhola, com sua plaza central — a igreja principal de u m dos lados
e o edifício da prefeitura (o ayuntamiento) do outro — e disposta, sempre
que possível, de acordo com a planta em grade das ruas se cruzando usada na
construção de Santo Domingo, a cidade do Novo Mundo dava ao expatriado
um cenário familiar para sua vida quotidiana n u m ambiente estranho.
Esperava-se que o soldado convertido em dono de casa criasse raízes.
Cada vecino teria seu pedaço de terra; e a terra, tanto nos subúrbios como fora
das cidades, era distribuída liberalmente entre os conquistadores. Todavia,
para homens que trouxeram de seu país natal concepções rígidas sobre o
caráter degradador do trabalho manual, para aqueles que aspiravam à condi-
ção de senhor, a terra em si tinha pouco valor sem mão-de-obra para traba-
lhá-la. Embora Cortês inicialmente tenha sido contrário à idéia de introduzir
no México o sistema da encomienda, que ele e muitos outros consideravam a
grande responsável pela destruição das Antilhas, foi compelido a mudar de
idéia ao ver que seus seguidores jamais poderiam ser induzidos a fixar-se a
menos que pudessem obter trabalho servil dos índios. Em sua terceira carta a
Carlos V, datada de 15 de maio de 1522, explicava como havia sido forçado a
"depositar" índios nas mãos dos espanhóis. A coroa, embora relutante em
aceitar uma política que parecia ameaçar a condição de homens livres dos
índios, finalmente curvou-se ao inevitável, como'Cortês já havia feito. A
encomienda veio somar-se à cidade como a base da colonização espanhola do
México e depois, no devido tempo, do Peru.
N o e n t a n t o , deveria ser u m novo tipo de encomienda, r e f o r m a d a e
melhorada à luz da experiência espanhola nas Antilhas. Cortês era por natu-
reza u m construtor, não u m destruidor, e estava determinado a construir no
México u m a "Nova Espanha" sobre bases que deveriam perdurar. Acalen-
tava a visão de uma sociedade estabelecida na qual a coroa, o conquistador e
^ os índios estivessem unidos n u m a cadeia de obrigação recíproca. A coroa
deveria recompensar seus homens com mão-de-obra indígena perpétua, na
forma de encomiendas hereditárias. Os encomenderos, de seu lado, teriam
u m a obrigação dupla: defender o país, p o u p a n d o à coroa as despesas de
manutenção de u m exército permanente, e cuidar do bem-estar espiritual e
material de seus índios. Estes, por sua vez, fariam seu trabalho servil em seus
próprios pueblos (aldeias), sob o controle de seus caciques, enquanto os
encomenderos viveriam nas cidades, das quais eles e suas famílias se torna-
riam os principais cidadãos. O tipo e quantidade de trabalho executado
pelos índios deveria ser cuidadosamente regulamentado para impedir o
modo de exploração que os havia aniquilado nas Antilhas; mas o pressupos-
to básico do esquema de Cortês era que o interesse pessoal dos encomende-
ros, ansiosos por transmitir suas encomiendas a seus descendentes, também
agisse em prol do interesse dos seus índios "protegidos", impedindo uma
exploração impiedosa com vistas a objetivos puramente imediatos.
Portanto, a encomienda era vista por Cortês como um dispositivo para
assegurar aos conquistadores e aos conquistados um interesse no futuro de
Nova Espanha. A casta governante dos encomenderos seria uma casta gover-
nante responsável, em proveito da coroa, que extrairia rendas substanciais
de u m país próspero. Mas a encomienda funcionaria igualmente em favor
dos índios, que seriam cuidadosamente induzidos a uma civilidade cristã.
A m e d i d a que f o r a m concedidas encomiendas na Nova Espanha, na
América Central e no Peru, essa casta governante em potencial começou a
constituir-se. Ela foi escolhida dentro de um grupo de elite dentre os solda-
dos da conquista, e seus efetivos foram inevitavelmente pequenos em rela-
ção aos do conjunto da população espanhola das índias: cerca de seiscentos
encomenderos em Nova Espanha na década de 1540 e por volta de quinhen-
tos no Peru. Vivendo das rendas produzidas pelo trabalho de seus índios, os
encomenderos tornaram-se os senhores naturais da terra. Mas havia de fato
profundas diferenças entre sua situação e a dos nobres da metrópole espa-
nhola. A encomienda não era um bem de raiz e não trazia consigo nenhum
direito a terra ou a jurisdição. Não conseguiu, portanto, tornar-se um feudo
em embrião. Tampouco os encomenderos, apesar de todos os seus esforços,
conseguiram transformar-se numa nobreza hereditária no estilo europeu. A
coroa coerentemente se recusou a conceder a perpetuidade formal das enco-
miendas por herança, e nas Novas Leis de 1542 decretou que deveriam rever-
ter à coroa por morte de seus atuais detentores. Nas circunstâncias da época
esse decreto era totalmente irrealista. Na Nova Espanha o vice-rei prudente-
mente o desconsiderou. No Peru, onde Blasco Núnez Vela tentou impô-la à
força, provocou u m a revolta de encomenderos, liderada p o r Gonzalo, o
irmão mais novo de Francisco Pizarro, que durante quatro anos foi o senhor
do Peru. Em 1548 foi derrotado e executado por traição pelo licenciado
Pedro de La Gasca, que chegara armado de u m decreto recente que revogava
as cláusulas que contrariassem a legislação vigente.
Embora a coroa haja recuado, foi em grande parte um recuo tático. Ela
continuou a tratar a perpetuidade de uma encomienda numa e mesma famí-
lia como u m a questão muito mais de privilégio que de direito, privando
assim os encomenderos daquela certeza de sucessão que era uma característi-
ca essencial da aristocracia européia. Logrou agir dessa maneira com grande
parcela de sucesso porque as forças sociais nas próprias Índias estavam tra-
balhando em favor de sua política. Os encomenderos eram u m p e q u e n o
grupo minoritário numa população espanhola em crescimento. Mesmo que
dessem hospitalidade e emprego a muitos dos novos imigrantes, havia mui-
tos mais que se sentiam excluídos do círculo mágico do privilégio. Os desa-
possados e os excluídos — muitos deles construindo suas próprias fontes de
riqueza à medida que adquiriam terras, e dedicando-se à agropecuária e
outras atividades empresariais — naturalmente olhavam com inveja as enco-
miendas e sua mão-de-obra índia cativa. A derrota de Gonzalo Pizarro deu a
La Gasca a condição de fazer uma redistribuição em grande escala das enco-
miendas; e a capacidade de redistribuir as encomiendas, seja as confiscadas
por rebelião, seja as vagas por morte, tornou-se u m instrumento político
decisivo nas mãos dos vice-reis que se sucederam. De u m lado, ele podia ser
usado para satisfazer as aspirações dos não -encomenderos e, de outro, servia
de meio para controlar e restringir a própria encomienda, uma vez que todo
encomendero sabia que, se antagonizasse a coroa e seus representantes, havia
centenas de homens ansiosos por tomar seu lugar.
Ao mesmo tempo, à medida que a coroa lutava contra o princípio heredi-
tário de transmissão das encomiendas, empenhava-se em reduzir o grau de
controle exercido pelos encomenderos sobre seus índios. No caso, seu passo
mais decisivo foi abolir em 1549 a obrigação dos índios de prestar serviço
pessoal compulsório. No futuro, os índios somente estariam obrigados ao
pagamento de tributo, cujo valor relativo era fixado abaixo do que pagavam
anteriormente a seus senhores. Inevitavelmente, fora mais fácil decretar a lei
de 1549 que impor seu cumprimento. A transformação da encomienda de ser-
viço pessoal n u m a encomienda de tributo foi u m processo lento, efetivado
mais facilmente em algumas regiões do que em outras. Em geral, o antigo
estilo da encomienda, onde o encomendero era a figura local dominante,
extraindo o máximo de trabalho ou de tributo ou ambos, tinha mais proba-
bilidade de sobreviver nas regiões marginais, como Yucatán ou sul do Mé-
xico, nas montanhas andinas, ou no Chile. Em outros lugares, a encomienda
estava sendo transformada durante as décadas intermediárias do século, sob a
pressão tanto dos funcionários da coroa quanto das condições sociais e eco-
nômicas em mudança. Os encomenderos que contavam apenas com aldeias
pobres em suas encomiendas se viram em sérias dificuldades, à medida que os
tributos diminuíram n o mesmo ritmo que a população indígena. Os enco-
menderos mais ricos, interpretando corretamente os sinais, começaram a
diversificar e apressaram-se a adquirir terra e a formar propriedades agrícolas
antes que fosse tarde demais. Podia-se fazer dinheiro com a exportação de
produtos locais, como o cacau na América Central, e com a produção de
cereais e carne para alimentar as cidades em crescimento.
Embora a coroa tenha continuado profundamente desconfiada dos enco-
menderos enquanto classe, a encomienda enquanto instituição tinha seus
defensores, e ironicamente seu n ú m e r o e influência tendiam a crescer à
medida que os encomenderos perdiam aos poucos seus poderes de coerção e
se tornavam pouco mais que pensionistas privilegiados da coroa. Quando as
Novas Leis tentaram abolir a encomienda, os dominicanos de Nova Espanha,
tradicionalmente m e n o s favoráveis à instituição do que os franciscanos,
declararam-se a seu favor. A coroa estava tecnicamente correta ao afirmar,
n u m decreto de 1544, que "o propósito e a origem das encomiendas foi o
bem-estar espiritual e temporal dos índios"; e a essa altura havia u m a forte
convicção entre muitos missionários do Novo M u n d o de que a sorte dos
índios seria ainda pior do que já era sem a frágil proteção que a encomienda
lhes proporcionava.
Diego Durán, Historia de Ias índias de Nueva Espana y Islãs de Tierra Firme, ed. José F.
Ramirez, México, 1867-1880, 2 vols.; ver vol. II, p. 71.
incentivo para estudos lingüísticos importantes e para a investigação etno-
gráfica que muitas vezes, como aconteceu com Sahagún, revelava u m alto
grau de complexidade em seu uso controlado de informantes nativos.
Isso era mais verdadeiro, contudo, no tocante ao México do que ao Peru,
onde as condições instáveis do período pós-conquista atrasou a obra de
evangelização, que em algumas áreas não seria realizada sistematicamente
antes do século XVII. Já na metade do século XVI, n u m a época em que as
primeiras missões se estavam estabelecendo no Peru, a geração humanista
de mendicantes estava entrando na história. Na geração seguinte houve
menos curiosidade sobre a cultura dos povos conquistados e uma tendência
correspondente a condenar em vez de buscar compreender. Isso foi encora-
jado por alguns fracassos espetaculares que ajudaram a lançar dúvidas sobre
as presunções originais acerca da propensão indígena ao cristianismo. O
colégio franciscano de Santa Cruz de Tlatelolco, fundado em 1536 para edu-
car os filhos da aristocracia mexicana, era u m objeto natural de suspeita
para todos os espanhóis, leigos ou religiosos, que eram contrários a qualquer
tentativa de colocar os mexicanos no mesmo nível educacional dos euro-
peus, ou de educá-los para o sacerdócio. Qualquer retrocesso de um estu-
dante do colégio, como D o n Carlos de Texcoco, que foi denunciado em
1539 e queimado na fogueira como dogmatizador, serviu, portanto, de pre-
texto conveniente para minar um movimento que tinha como axioma a afir-
mação de que o índio era u m ser tão racional quanto o espanhol.
Inevitavelmente, as profecias de catástrofes se cumpriram como fora
esperado. Os índios, proibidos de ordenar-se sacerdotes, tenderam natural-
mente a considerar o cristianismo uma fé estranha que lhes era imposta por
seus conquistadores. Extraíam dele aqueles elementos que se adequavam a
suas próprias necessidades espirituais e ritualistas e os mesclavam a elemen-
tos de sua própria fé ancestral, produzindo sob u m cristianismo simulado
u m a religião sincrética muitas vezes vital. Isso por sua vez serviu apenas
para confirmar a crença daqueles que defendiam a manutenção dos índios
sob tutela permanente, p o r q u e estariam despreparados para ocupar seu
lugar na civilização européia.
As idéias amiúde exageradas sobre a capacidade espiritual e intelectual
dos índios, mantidas pela primeira geração de missionários, tenderam por-
tanto a ceder terreno, nas décadas intermediárias do século, a u m senso não
menos exagerado de sua incapacidade. A solução mais fácil era considerá-los
crianças adoráveis mas desobedientes, que precisavam de cuidado especial.
Essa solução surgia de m o d o ainda mais natural aos frades à medida que
viam seu monopólio sobre os índios ameaçado pelo advento do clero secu-
lar. Foi também estimulada por u m genuíno temor acerca do destino de seu
rebanho indígena sob as condições em rápida mudança na metade do século
XVI. À medida que a visão humanista dos primeiros missionários se dissipa-
va, e parecia cada vez mais improvável que o Novo M u n d o se tornasse o
cenário da Nova Jerusalém, os frades lutavam para preservar o que ainda
restava, congregando seus rebanhos em comunidades aldeãs onde podiam
ser mais bem protegidos das influências corruptoras do mundo.
Esse era u m sonho menos heróico do que o da primeira geração missio-
nária, e n ã o m e n o s inexoravelmente fadado ao insucesso. Pois estavam
ocorrendo p r o f u n d a s mudanças na composição demográfica da América
espanhola, à medida que o número de imigrantes se multiplicava, enquanto
o da população indígena diminuía.
16
- Dorantes de Carranza, Sumaria Relación, op. cit., p. 11.
rente de imigração africana, à medida que os escravos negros foram impor-
tados para aumentar a força de trabalho. Chegando a suplantar o número
dos brancos nas Antilhas, constituíram t a m b é m u m g r u p o minoritário
expressivo no México e no Peru. Os filhos de sua união com brancos e com
índios — conhecidos pelo nome respectivamente de mulattos e zambos —
ajudaram a aumentar o número dos que, fossem brancos ou híbridos, preo-
cupavam crescentemente as autoridades em virtude de sua manifesta ausên-
cia de raízes. As índias estavam a caminho de produzir sua própria popula-
ção de inativos voluntários ou involuntários, dos abandonados, vagabundos
e párias, que parecia tão ameaçadora à sociedade hierárquica e organizada
que constituía o ideal europeu do século XVI.
A presença dessa população inútil somente podia aumentar as forças que
já produziam a desintegração da chamada república de los Índios. Apesar dos
enormes esforços de muitos frades para segregar as comunidades índias,
somente nas regiões mais remotas, onde os espanhóis se haviam estabelecido
mais esparsamente, foi possível manter neutralizado o m u n d o exterior. A
proximidade das cidades fundadas pelos conquistadores; as necessidades de
mão-de-obra dos encomenderos e as exigências de tributo da coroa; a invasão
de terras indígenas pelos espanhóis; a infiltração de brancos e mestizos; todos
esses elementos ajudaram a minar a comunidade indígena e o que restava de
sua organização social do período anterior à conquista.
18. Fernández de Oviedo, Historia General y Natural de las índias, Madrid, 1959, vol. I, p. 110.
de salários. Seriam cristianizados e "civilizados", até onde permitissem suas
próprias naturezas fracas. Não foi sem motivos que Cortês batizou o México
de Nova Espanha.
No entanto, uma das características mais notáveis da própria Espanha foi
a presença cada vez mais poderosa do Estado. Por algum tempo, após a
morte de Isabel em 1504, parecera que a obra dos Reis Católicos de fortale-
cer a autoridade real em Castela seria desfeita. O renascimento do sectaris-
m o aristocrático ameaçou mais de uma vez mergulhar Castela de novo nas
desordens do século XV. Mas Fernando de Aragão, que sobreviveu doze anos
à morte da esposa, conseguiu habilmente preservar a autoridade da coroa. O
cardeal Jiménez de Cisneros, que se tornou regente após a morte de Fernan-
do em 1516, deu mostras de igual capacidade de comando, e Carlos de Gant,
o jovem neto de Isabel, herdou em 1517 u m país em paz.
Mas essa paz era precária, e os primeiros eventos do novo reinado nada
ajudaram a torná-la mais segura. A eleição de Carlos como Sacro Imperador
Romano em junho de 1519, dois meses após o desembarque de Cortês no
México, e sua subseqüente partida para a Alemanha serviram para precipitar
u m a revolta nas cidades de Castela contra o governo de um rei estrangeiro e
ausente. A revolta dos Comuneros (1520-1521) adotou profundamente as
tradições constitucionalistas da Castela medieval e, se tivesse triunfado, teria
i m p o s t o restrições institucionais ao desenvolvimento da soberania de
Castela. Mas a derrota dos rebeldes no campo de batalha de Villalar, em
abril de 1521, deixou Carlos e seus conselheiros livres para restabelecer e
ampliar a autoridade real sem grandes impedimentos. Sob o reinado de
Carlos, e ainda mais sob o de Filipe II, seu filho e sucessor (1556-1598), um
governo autoritário e cada vez mais burocrático tornaria sua presença senti-
da em inúmeros pontos da vida de Castela.
Era inevitável que essa crescente agressividade do Estado tivesse também
seu impacto sobre as possessões ultramarinas de Castela. Os desejos de
intervenção do Estado haviam estado aí presentes desde o início, como tes-
temunhavam as capitulaciones entre a coroa e os aspirantes a conquistador.
Mas o próprio processo de conquista poderia muito facilmente cair fora do
controle real. O tempo e a distância estavam nas mãos dos conquistadores e,
se Cortês mostrou mais deferência do que muitos em seu comportamento
com relação à coroa, isso ocorreu porque ele tinha visão para perceber que
precisava de aliados poderosos na Espanha e a sagacidade para avaliar que
podia valer a pena explicar, desde que se agisse primeiro.
Mas o imperador Carlos V, como Fernando e Isabel antes dele, não tinha
intenção de permitir que seus domínios recém-adquiridos escapassem a seu
controle. Na Nova Espanha Cortês se viu sistematicamente desalojado pelos
funcionários reais. Uma audiência, no modelo da de Santo Domingo (1511),
foi instalada no México em 1527, sob o que se revelaria ser a presidência
desastrosamente interesseira de N u n o Guzmán. Essa primeira tentativa de
controle real criou mais males do que curou, mas o período de governo de
1530-1555 com a segunda audiência, composta de homens de maior integri-
dade do que a primeira, deixava claro que não haveria lugar para seu con-
quistador na Nova Espanha dos burocratas.
Cortês aceitou de modo relativamente sereno, mas no Peru o estabeleci-
mento do controle real não foi realizado sem luta sangrenta. O pretexto para
a revolta dos pizarristas, de 1544-1548, foi a tentativa de impor as Novas
Leis; mas por trás dela estava a resistência de homens da espada a aceitar o
controle de h o m e n s da pena. Foi sintomático que a rebelião tenha sido
esmagada, não por um soldado mas por u m daqueles funcionários instruí-
dos em leis que foram o objeto primacial da hostilidade do conquistador. O
licenciado Pedro de La Gasca triunfou sobre os pizarristas porque era acima
de tudo u m político, com habilidade para explorar as divisões dentro da
comunidade do conquistador entre os encomenderos e os soldados de infan-
taria que cobiçavam suas posses.
Na Nova Espanha a partir da década de 1530, no Peru a partir dos anos
1550, os dias do conquistador estavam terminados. Estava a caminho uma
nova conquista das índias, a administrativa, conduzida pelas audiências e
pelos vice-reis. A Nova Espanha recebeu seu primeiro vice-rei em 1535, na
pessoa de Antonio de Mendoza, que serviu até 1550; e o Peru, onde foi ins-
talada uma audiência em 1543, começou a acalmar-se sob o governo vice-
real de outro Mendoza, o marquês de Canete (1556-1560). Aos poucos, sob
o domínio dos primeiros vice-reis, o aparelho de controle da autoridade real
foi assentado sobre as novas sociedades que os conquistadores, os frades e os
colonizadores estavam criando. As índias estavam começando a ocupar seu
lugar dentro do vasto arcabouço institucional de uma monarquia espanhola
de amplitude mundial.
«1 OS ÍNDIOS
S
E A CONQUISTA ESPANHOLA
O TRAUMA DA CONQUISTA