De fidalgo agud: A saga da

famlia De Medeiros do Benim1

From fidalgo to agud: The saga of the family
de Medeiros from Benim

Milton Guran *
Resumo:
Este texto trata da identidade social dos descendentes de traficantes brasileiros estabelecidos na costa ocidental da frica e de africanos escravizados no Brasil para l retornados, conhecidos no Benim, Togo e Nigria
como aguds ou brasileiros, tomando como exemplo a trajetria da
famlia De Medeiros, fundada em meados do sculo XIX por Francisco
Jos de Medeiros, filho do governador portugus da Ilha da Madeira.
Palavras-chave:
Agud. Escravido. Benim.
Abstract:
The text deals with the social identity of the descendants from the
Brazilian slave dealers established at the Occidental Africa Cost and
the Africans slaved in Brazil that had returned to Africa, known in Benin,
Togo and Nigeria as the aguds or the Brazilians . The trajectory of De
Medeiros family, founded in the middle of the XIX century by Francisco
Jos de Medeiros, son of the Portuguese governor from Madeira Island,is
taken as an exemplary case study.
Key-words:
Agouda. Slavery. Benin.

* Milton Guran antroplogo, pesquisador do LABHOI Laboratrio de Histria Oral e

Imagem e professor visitante do Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal Fluminense. Autor, dentre outros ttulos, de Aguds os Brasileiros do
Benim (Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira/Ed Gama Filho, 2000).
1. Este texto resultado de uma pesquisa que se desenvolve no mbito do Projeto
Universal do CNPq, intitulado Sons e imagens da rememorao: narrativas e registros
das identidades e alteridades afro-brasileira nos sculos XIX e XX, em curso; e contou,
ainda, com apoio da Faperj, atravs do projeto Memrias, identidades e alteridades afro-brasileira nos sculos XIX e XX: imagens e sons da rememorao (2008-2010), ambos
coordenados pela Prof Ana Maria Mauad (LABHOI-UFF).

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Sim, foi em Uid que desembarcaram os primeiros portugueses,

isso foi, creio, no sculo XIII [sic].

Milton Guran

Naquele dia, Kpate tinha ido, como de hbito, na sua plantao e

bem no meio de sua labuta cotidiana que ele viu um grande navio que
seguia uma longa linha de fumaa. Que monstro! Gritou ele, e depois,
em voz baixa e inquieta, murmurou: qual o Deus deste imenso oceano?
E como para render homenagem ao Deus desconhecido, ele iou seu
pagne [sua vestimenta, o pano que lhe envolvia o corpo] na ponta de
uma vara e acenou longamente.
Com esse sinal, o navio logo se dirigiu para a costa. Os primeiros
europeus acabavam de pisar o solo do Daom: zo j ge (o fogo veio
para a terra), exclamou Kpate. Esta ltima denominao ficar na
lngua fon para designar os europeus.
Mais tarde, os europeus voltariam e outros mais; e a comea um
comrcio inslito: a troca de mercadorias por escravos que s terminar
muito mais tarde, por volta de 1848, graas a Victor Shoelcher.2
Nesse meio tempo, Uid se desenvolveu, construram-se bairros
europeus; um forte portugus, um bairro brasileiro e um forte francs
emergiram da terra.
Os portugueses e os brasileiros se integraram populao e geraram as famlias de origem portuguesa ou brasileira que se perpetuaram
dentre as maiores famlias daomeanas de hoje.
Esta a descrio da chegada dos portugueses chamada Costa dos Escravos que consta na introduo do manuscrito Cozinha
portuguesa no Daom,3 de autoria do beninense Alexandre Martin
Cesrio de Medeiros, bisneto de Francisco Jos de Medeiros, filho do
governador na Ilha da Madeira e fundador da famlia De Medeiros
do Benim.
A famlia De Medeiros uma das mais aristocrticas dentre os
aguds do Benim, j que tem sua origem na progenitura oriunda do
casamento do fidalgo portugus com Francisca Sik Kpve, filha caula do poderoso Chach de Souza, o vice-rei do Daom em Uid.

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2. Victor Shoelcher (1804-1893), escritor e abolicionista francs, um dos fundadores da

Sociedade Abolicionista em 1834, em Paris. Notabilizou-se pela campanha de abolio
da escravido no Caribe.

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3. Documento manuscrito, no original intitulado Cuisine Portugaise au Dahomey, datado

da dcada de 1980, fornecido por Eve de Medeiros, filha de Alexandre de Medeiros,
residente em Paris. Fundo Agud, documentao textual, LABHOI-UFF.

tambm emblemtica de como se construiu essa identidade social de

matriz europeia pelo vis brasileiro que reuniu descendentes de
antigos traficantes brasileiros e africanos escravizados de retorno
frica Ocidental, o que representa um fenmeno social bastante raro.
Os aguds constituem o nico caso conhecido de um grupo social
de matriz cultural brasileira longe das nossas fronteiras, sendo ainda
singular por se traduzir em uma soluo social capaz de unir negreiros
e escravizados, superando assim, pelo menos de forma operacional,
o estigma da escravido que pesa sobre as populaes que sofreram
esse tipo de agresso.4

4. O processo de construo da identidade social agud no Benim analisado por mim

de forma mais completa no livro Aguds os brasileiros do Benim, Rio de Janeiro:
Ed. Nova Fronteira/Ed. Gama Filho, 2000. Acerca dos aguds, ver ALMEIDA PRADO,
J. F., 1954 [1950]. Les relations de Bahia (Brsil) avec le Dahomey. Revue dHistoire des
Colonies , Tomo XLI, segundo trimestre, pp. 167-226, Paris. (Traduzida na Revista do
Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, Rio.); BRAGA , Jlio Santana, 1968. Notas
sobre o Quartier Brsil no Daom. Afro-sia, 6-7, Salvador: Centro de Estudos Afro-Asiticos/UFBa; CASTRO, Yda Pessoa de. Notcia de uma pesquisa em frica. Afro-sia, n. 1, Salvador: Centro de Estudos Afro-Asiticos/UFBa, 1965; COSTA E SILVA,
Alberto da. Os sobrados brasileiros de Lagos. O vcio da frica e outros vcios. Lisboa:
Ed. Joo S da Costa, 1989a, pp. 9-12; Os habitantes brasileiros de Lagos, 1989b. O vcio
da frica e outros vcios, op. cit., pp 13-18; 1989c. As relaes entre o Brasil e a frica
Negra, de 1922 primeira guerra mundial. O vcio da frica e outros vcios, op. cit. , pp.
25-65; 1994. O Brasil, a frica e o Atlntico no sculo XIX. Studia , n. 52, Lisboa, pp.
195-220; 2003. Um rio chamado Atlntico. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. CUNHA,
Manuela C. da. Negros, estrangeiros os escravos libertos e sua volta frica. So
Paulo: Brasiliense, 1985a; Introduo. CUNHA, Mariano Carneiro da. Da Senzala ao
Sobrado. So Paulo: Nobel/Edusp, 1985b; FREYRE, Gilberto. Acontece que so baianos.
Bahia e baianos. Salvador: Fundao das Artes/Emp. Grfica da Bahia, 1990 [1962]
[1 edio in: Problemas Brasileiros de Antropologia, Rio de Janeiro: Jos Olympio];
KRASNOWOLSKI, Andrzej. Les Afro-Brsiliens dans le processus de changement de la
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Ouidah The Social History of a West African Slaving Port 1727 1892. Athens /
Oxford: Ohaio University Presse, 2004. James Currey; RODRIGUES, Jos Honrio.
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Michel Jerry. Les Brsiliens The impact of former Brazilian slaves upon Dahomey,
tese de doutorado em Histria, Boston University, 1975; VERGER, Pierre. Influence
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de lAfrique Noire, n. 27, pp.11-101, 1953. DAKAR, Flux et reflux de la traite de ngres
entre le Golfe du Bnin et Bahia de Todos os Santos du XVII. Au XIX. Sicles. Paris/
La Haye: Mouton & Co, 1968; Os Libertos. So Paulo: Corrupio, 1992. Sobre a relao
traficante/escravo, ver MEILLASSOUX, Claude. Anthropologie de lesclavage. Le ventre
de fer et dargent. Paris: Presses Universitaires de France, 1986.

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Ser agud no Benin

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No Benim, Togo e Nigria so conhecidos como aguds, ou brsiliens, os descendentes de traficantes brasileiros ou portugueses que
se instalaram naquela regio ao longo dos sculos XVIII e XIX e dos
africanos escravizados no Brasil que para l retornaram ao longo do
sculo XIX. Incluem-se nesse grupo os antigos escravos a servio desses traficantes e dos retornados, que assimilaram a cultura e at os
sobrenomes dos seus senhores, como esses haviam feito com os seus
senhores no Brasil. Todos possuem, ento, patronmicos de origem
portuguesa, o que permite a sua identificao de imediato. No Togo
atual, so tambm chamados de aguds os membros das colnias libanesa, sria e indiana;5 e, na Nigria do sculo passado, essa designao
inclua os catlicos em geral.6 Tambm se integraram nesse grupo
diversas famlias de outras nacionalidades, inclusive francesas, que
viviam na regio no sculo XIX, quando era mais forte a influncia
dos aguds.7
A palavra agud tem provocado controvrsias mas , muito provavelmente, uma transformao da palavra ajuda, bastante conhecida
na regio por ter sido, at o sculo XIX, a designao mais corrente
em portugus da cidade de Uid, onde se situa o Forte Portugus
de So Joo Batista da Ajuda. Construdo na virada do sculo XVII
para o XVIII e hoje transformado em Museu Histrico, esse forte era
portugus s no nome, j que foi construdo por iniciativa dos traficantes baianos, que forneciam a sua guarnio e pagavam os custos de
manuteno. Alm disso, era ligado administrativamente ao Vice-Rei
do Brasil at 1822, quando passou a depender do governador de So
Tom e Prncipe.8
Os primeiros aguds foram os traficantes brasileiros e portu5. O primeiro presidente do Togo, considerado o Pai da Ptria, foi um agud, Sylvanus
Olympio, derrubado e executado em 13 de janeiro de 1963 por um golpe de estado que
levou ao poder o generaltienne Gnassingbe Eyadema,que governou o pas por dcadas
at a sua morte, tendo sido sucedido por um de seus filhos, atualmente no poder. Os
aguds, desde ento, apesar de sua slida insero na sociedade, so frequentemente
apontados como estrangeiros, o que reforado pela associao com esses demais
grupos sociais que so efetivamente imigrantes de diversas matrizes culturais.
6. CUNHA, M., op.cit. p.189
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7. Um dos casos mais marcantes da famlia Oliveira/Olivier, descendentes de Olivier de

Montalgure, que foi comandante do forte francs de Uid no sculo XVIII (GURAN,
op. cit. p.17)
8. MATTOSO, K. Ser escravo no Brasil. So Paulo: Brasiliense, 1990 [1982], p.34; VERGER,
P., 1968, op.cit. pp140-1.

gueses estabelecidos em Uid, cuja figura mais emblemtica deste

momento , sem dvida, o futuro Chach Francisco Felix de Souza,
que chegou regio para trabalhar no forte portugus, antes de se
dedicar ao trfico. Ele j era um negreiro poderoso quando se associou ao prncipe Gapk para derrubar do trono Daom o irmo
deste, o temvel rei Adandozan. Francisco F. de Souza fez-se, ento,
irmo de sangue do futuro rei, que assumiu o trono com o nome de
Guzo em 1818. Souza foi feito vice-rei do Daom, com o ttulo de
Chach, e ganhou o monoplio do comrcio exterior do reino. Isto
lhe permitiu atingir a condio, segundo seus contemporneos, de
um dos maiores traficantes e um dos homens mais ricos do mundo
na sua poca.9 Sua descendncia constitui uma das mais extensas famlias africanas, presentes em diversos pases africanos. Atualmente,
a famlia chefiada por Honor Feliciano Julio de Souza, o Chach
VIII, entronizado em 1996.10

9. GURAN, op.cit. pp 21 e seguintes.

10. VERGER, op.cit.; GURAN, op.cit.; COSTA E SILVA, A. Francisco Flix de Souza, Mercador de Escravos. Rio de Janeiro: EDUERJ-Editora Nova Fronteira, 2004; e LAW, op.cit.

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Foto 1
Retrato de Francisco Feliz de Souza, exposto no salo nobre de Singbomey,
em Uid, em 2010. uma recriao bastante fantasiosa, feita a partir de um
retrato pstumo realizado no comeo do sculo XX.

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Apesar de no ter poder poltico formal, o Chach VIII mantm

uma certa autoridade em Uid quem entroniza os chefes das famlias locais e tem posio de destaque na sociedade beninense atual.
Afora isso, h sempre algum Souza prximo ao poder. D. Isidore de
Souza, ento bispo de Cotonu, foi quem conduzir a conferncia nacional das Foras Vivas da nao, responsvel pela transio poltica
do regime marxista para o regime democrtico. O prprio General
Mathieu Kerekou, presidente do Benim por 29 anos, em dois perodos distintos, casado com uma De Souza, da mesma forma que o
atual presidente do pas, Thomas Yayi Boni. A propsito, o presidente
Nicephore Soglo, que sucedeu Kerekou no seu primeiro mandato e
hoje o prefeito de Cotonou, tambm casado com uma agud, da
famlia Vieyra, o que sinaliza para a importncia dos aguds na vida
poltica e social do pas.

Como vimos, os aguds j estavam presente e assim nomeados

naquela costa desde pelo menos os finais do sculo XVII, mas foi em
meados do sculo XIX que ganharam maior densidade populacional,
com um retorno expressivo de antigos africanos escravizados quela
costa, muito em funo da represso Revolta do Mals, em 1835 na
Bahia.11 Esta teve efeito importante nesse processo de retorno, por ter
deportado muitos africanos para l, dando visibilidade s possibilidades de trabalho naquela regio da frica em um momento que o
mercado baiano se fechava mais e mais para os africanos libertos que,
alm de contaminados pelo estigma da Revolta, sofriam a concorrncia
de uma nova leva imigrantes portugueses.
No lado africano, por sua vez, o momento era favorvel aos retornados, j que o reino do Daom, principal potncia da regio, via
agravar-se a crise com a proibio do trafico negreiro, sua principal
fonte de renda. Os ingleses, instalados em Lagos, na vizinha Nigria,
asfixiavam o trfico com a apreenso cada vez mais frequente de navios
negreiros, ao mesmo tempo em que o Imprio brasileiro, tambm
pressionado pelos ingleses, avanava no sentido da proibio total
do trafico atlntico, o que aconteceu em 1852, com a Lei Euzbio de
Queirs. 12
No entanto, aquela regio da frica contava com um produto
bastante valorizado pela economia europeia, em pleno processo de
industrializao: o leo de palma, conhecido no Brasil como azeite
de dend, um poderoso lubrificante vegetal. Para responder a essa
demanda, o reino do Daom precisa, sobretudo, de mo de obra capaz
de assegurar a produo e comercializao do produto, ou seja, de
pessoal com domnio dos cdigos ocidentais de trocas econmicas,
a comear pela lngua. 13
Estavam a criadas as condies objetivas para a absoro dos

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Medeiros do Benim

11. LIMA, Mnica. Entre margens: o retorno frica de libertos no Brasil, 1830-1870, Tese
de Doutorado, Universidade Federal Fluminense; REIS, Joo Jos. Rebelio escrava
no Brasil A histria do levante dos mals (1985). So Paulo: Brasiliense, 1987 [1986];
VERGER, 1968, op.cit.
12. Essa situao ficou absolutamente crtica com a entrada em vigor do Slave Trade Suppression ActouAberdeen Act, como ficou conhecida no Brasil a lei, promulgada em
8 de agosto de 1845, que autorizava a marinha britnica a atacar e apreender embarcaes suspeitas de trfico negreiro para o Brasil, legalizando assim, aos seus olhos,
uma prtica de dcadas.
13. A primeira escola formal da regio foi instalada em Uid pela Misso Catlica de
Lyon, em 1862, mas ensinava em portugus, j que era voltada exclusivamente para os
aguds, visto que os sditos do Daom eram formalmente proibidos de freqent-la
(Guran, op. cit., p. 17)

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africanos de retorno do Brasil. Estes libertos de retorno, apesar de

no serem to numerosos, faziam a diferena pelos atributos da sua
experincia pregressa. Eram africanos que, tendo sofrido longo perodo de escravido, souberam se sobrepor a todas as adversidade para
comprar sua liberdade e acumular capital suficiente para financiar a
viagem de volta e a implantao de algum tipo de negcio. Eram mestres de obras, pedreiros, carpinteiros, marceneiros, alfaiates, alguns
tinha trabalhado como capatazes ou gestores de pequenos negcios,
na sua maioria alfabetizados e com pleno domnio dos cdigos da
cultura ocidental. No entanto, ao chegarem de volta sociedade que
os havia escravizado, sofreram forte discriminao, j que o estigma
da escravido inapagvel nas sociedades onde foi produzido, como
demonstra Meillassoux.14
nesse momento que os retornados lanam mo da experincia
do tempo vivido na escravido para construir uma nova identidade
social, que os colocava juntos com os primeiros aguds. Sabemos que
a identidade social se constri por oposio ao outro, de forma permanente e at cumulativa15 e se estrutura, principalmente, a partir da
origem, da lngua e da maneira de se compreender o mundo. Assim
sendo, os retornados alegam no serem mais os mesmos africanos que
eram quando foram escravizados, que nasceram de novo no Brasil,
que falam portugus e que so catlicos ou muulmanos. Desta forma,
habilitavam-se a fazer parte dos aguds e, por serem africanos, eram
designados pelos demais africanos como aqueles que tm maneiras
de branco.

Milton Guran

A cultura agud no Benim

Essas ditas maneiras de branco eram, na verdade, a face mais
visvel da cultura de matriz europeia que iria, ao longo do sculo
XX, se impor ao continente africano. Os retornados, que passaram a
constituir a maioria dos aguds, tinham assimilado os cdigos dessa
cultura no Brasil e, apesar da vivncia popular, como veremos adiante,
tinham como modelo certamente as elites baianas da poca. Isso se
traduz no s na forma de se vestir, mas tambm de morar, de se comportar em pblico, na culinria, na religio e, naturalmente, na forma
de pensar e de perceber o mundo. Alm de africanos, os aguds eram
tambm brasileiros, ou seja, estavam inscritos na cultura ocidental
que se tornaria dominante na frica a parir do final dos Oitocentos.
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14. Op.cit.
15. BARTH, Fredrick. Les groupes ethniques et leurs frontires. In: Poutignat & StreiffFenart, Thories de lthnicit, Paris: PUF, 1995 [1996]; CUNHA, M., op.cit.

Um dos principais marcadores de identidade a garantir a coeso

social dos aguds foi o uso da lngua portuguesa, to importante para
o comrcio internacional da poca e corrente em toda aquela costa
at a implantao do sistema colonial francs, no final do sculo XIX,
como registrou Elise Reclus na sua Gographie Universale (1887), citado por Verger.16 Desde ento o uso da lngua portuguesa, que j tinha
sido at ensinada por religiosos franceses, como vimos, passou a ser
proibido. No entanto, muitas palavras de origem portuguesa entraram
para as lnguas locais, notadamente aqueles que designam mveis e
utenslios domsticos (como garfo e saia, que em fom se diz garfou e
saia, por exemplo) ou ligados ao culto catlico (em fom, Natal Nat e
confisso konfesn, por exemplo), ou seja, expresses que remetem
diretamente cultura europeia que tinha chegado principalmente por
intermdio dos aguds mas que comea a se impor pela colonizao
francesa.17 Entre os aguds at hoje so utilizadas palavras e expresses
em portugus, como um marcador de identidade. A mais comum
delas o cumprimento bom dia, como passou, que tem como resposta Bem, brigado.18

De fidalgo agud:
A saga da famlia De
Medeiros do Benim

16. 1953, op.cit.

17. Cf. RASSINOUX, Jean, 1987. Dictionnaire Franais-Fon, Saint-Etienne (Fr.): Imprimerie Dumas; e SEGOUROLA, R. P. B., 1968 [1963]. Dictionnaire Fon-Franais (2 vol.),
Cotonu.. Ver tambm BRAGA, J. S., op.cit; e CASTRO, Y. P. op.cit.
18. A persistncia da utilizao de palavras e expresses em portugus pelos aguds do
Benim e do Togo objeto de uma pesquisa intitulada Falares Luso-Brasileiros no
Benim e no Togo, no mbito do citado projeto S o n s e i m a g e n s d a re m e m o ra o :
n a r r a t i v a s e r e g i s t r o s d a s i d e nt i d a d e s e a l t e r i d a d e s a f r o - br a s i l e i r a
nos scu los X I X e X X.

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Foto 2
Desfile agud pelas ruas de Porto Novo aps a celebrao da missa de N.S. do
Bonfim, em 2010.
Foto de Milton Guran

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Tambm se canta em portugus no folguedo da Burrinha, muito

popular no sul do Benim, apresentado principalmente por ocasio da
celebrao do N. S. do Bonfim, realizado em janeiro, como na Bahia.
Essa celebrao, que ocorre ainda hoje nas cidades de Porto Novo e
Uid, o grande momento de encenao pblica da identidade agud.
Na sada da missa solene de dedicada ao N. S. do Bonfim, em Porto
Novo, os aguds promovem um desfile pela cidade portando bandeiras
brasileiras, e cantando em portugus velhas canes que remontam
ao tempo da escravido no Brasil.19
Outro grande marcador de identidade agud a culinria, um
fazer social de suma importncia em qualquer cultura, mas particularmente marcante dentre os povos da regio. A contribuio mais
importante aportado pelos aguds foi, com toda certeza, a difuso da
cultura da mandioca e do milho, que hoje est na base da alimentao
no s dos povos daquela regio como de toda a frica subsaariana.
Outras plantas e legumes que encontramos no Brasil, embora nem
sempre sejam daqui originrias, como o sapoti, a goiaba, o abacaxi e
68
19. Uma etnografia mais completa dessas celebraes encontra-se em Guran, 2000, op.cit.

o caju, foram levadas para aquela regio pelos primeiros navegadores

portugueses e pelos aguds. 20

De fidalgo agud:
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Foto 3
Mulher agud produtora e vendedora de concada,em Lom, capital do Togo,
em 2010.
Foto de Milton Guran

Dentre os pratos mais consumidos, esto a feijoada, feita com

algumas adaptaes, o cozido e a moqueca, esses dois exatamente
iguais aos originais. Tambm muito usado na cozinha beninense
em geral o molho de tomate e cebola que, por sinal, conhecido nas
lnguas locais como mio. No que toca sobremesa, muito comum
um doce feito de mamo verde, sintomaticamente chamado dossi.
Outros itens que entraram para a cultura local e chegam a ser vendidos
nas ruas de Cotonou a chamada concad, na sua verso original
e sob a forma do nosso p-de- moleque, e a tapioca.21

20. COSTA E SILVA, 1989 a; e RODRIGUES, op.cit..

21. Esses e outros pratos esto descritos, com as suas respectivas receitas, no manuscrito
de Alexandre de Medeiros (op.cit.) e em SANVI, Anne-Marie Clementine, 1977. Les
mtis et les Brsiliens dans la colonie du Dahomey 1880-1920, dissertao de Matrise
em Histria, Universit Nationale du Bnin, Cotonu.

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Milton Guran

Foto 4
A Grande Mesquita de Porto Novo, construda no comeo do sculo XIX sob as
ordens do agud Igncio Paraso, reproduz o estilo arquitetnico de uma igreja
baiana, o modelo dos construtores retornados da Bahia.
Foto de Milton Guran (2010)

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Pode-se dizer que os aguds esto na origem da introduo da

cultura ocidental na chamada Costa dos Escravos. A primeira igreja,
por exemplo, foi construda por um retornado, Joaquim de Almeida,
dito Joki, que considerado tambm o introdutor do cultivo da mandioca na regio do atual Togo.22 E foi tambm pelas mos dos aguds,
principalmente dos retornados, que a regio conheceu construes
de alvenaria, sendo que a primeira construo de sobrado teria sido
a residncia do Chach I, chamada justamente de Singbomey, porque
singbo quer dizer sobrado. Na mesma ocasio, ele mandou construir
outro sobrado na entrada do palcio do rei Guzo, em Abom, que foi
chamado de Singboji e existe at hoje. As cidades de Uid, Porto Novo,
Agu, Grande Popo, todas no litoral sul do Benim, ostentam belos
edifcios comerciais e residenciais em estilo dito afro-brasileiro que
datam da segunda metade do sculo XIX at as primeiras dcadas do
sculo XX. Na cidade de Agu, que foi um forte reduto agud no sculo
XIX, encontra-se um cemitrio onde todas as lpides ostentam nomes
70
22. GURAN, op.cit. pp 85-7; VERGER, 1002, op.cit.

de origem portuguesa. L esto sepultados eminentes aguds, como o

referido Francisco Jos de Medeiros e Silvanus Olympio e sua esposa,
cujos tmulos permanecem annimos, sem lpide ou qualquer outra
inscrio, segundo consta por exigncia do governo do vizinho Togo.

De fidalgo agud:
A saga da famlia De
Medeiros do Benim

Foto 5
Tmulo de Francisco J. de Medeiros no cemitrio agud de Agu. A lpide traz
os seguintes dizeres, em portugus: Francisco Jos de Medeiros nascido em
Funchal 28 de junho de 1817 fallecido (sic) em Ouidah 13 de julho de 1875
Sempre lembrado de (sic) seu filhos.
Foto de Milton Guran (2010)

A representao de si, no por acaso, funcionou como um dos indicadores de identidade mais explcitos, como demonstram o costume
agud de expor, nas salas de visita de suas residncias, os retratos dos
fundadores e de vrias geraes de parentes. Assim, ao que parece, eles
procuram demonstrar que j eram evoludos partidrios da cultura
de matriz europeia antes que a colonizao francesa impusesse essas
maneiras de branco a toda a populao. Alm disso, o retrato , no
dizer de Gisle Freund,23 um desses atos simblicos pelos quais os
indivduos da classe ascendente tornam visveis a eles mesmos e aos
outros a sua ascenso e se classificam entre aqueles que desfrutam
da considerao social. Os retratos dos integrantes da famlia De
Medeiros que integram este texto so um bom exemplo disso e sero
comentados mais adiante.
71
23. FREUND, G., Photographie et Socit, Paris: Seuil, p. 11

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histria,
Juiz de Fora,
v. 18, n.02
p. 59-86, 2013

A saga da famlia De Medeiros

Milton Guran

Foto 6
Francisco de Medeiros, s/d (provavelmente por volta de 1873).
(Acervo Eve de Medeiros)

O fundador da famlia De Medeiros do Benim era um portugus

de origem fidalga, vindo da provncia da Ilha da Madeira, que, segundo
consta, era governada por seu pai.24
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24. Entrevistas com a Sra. Francisca Berthe Djid Patterson, ne De Medeiros, e o Sr.
Francis dAlmeida em 25 de setembro e 12 de fevereiro de 1995 e 19 de fevereiro de
1996, em Porto Novo. Agradeo vivamente a Sra. Blandine Legonou-Fanou, sociloga

Capito e proprietrio de navio, Francisco Jos de Medeiros fazia

regularmente a rota entre a Europa e a frica, onde se instalou por
volta de 1850. Estabeleceu-se primeiro em Gana, mas pouco se conhece
de suas atividades por l, exceto que se casou com uma mulata, com
quem teve um filho, Joo, cuja descendncia se encontra atualmente
no Benim. Ainda nos anos cinquenta, ele se instala em Anecho e
depois em Agu para fazer o trfico de escravos e o comrcio de leo
de palma. Casa-se ento com uma princesa local,25 me de sua filha
Charlotte, futura Sra. Costa Soares, outra famlia agud ilustre.
Entre os portugueses estabelecidos nesta regio, F. J. de Medeiros
aquele que construiu a posio mais slida, o que permitiu sua famlia desempenhar um papel de primeira ordem na vida econmica
e poltica do antigo reino do Daom e na Repblica do Benim durante
mais de um sculo. Ele possua, segundo as fontes de Turner,26 uma
enorme plantao de dendezeiros para produo de leo em Agu,
onde trabalhavam inmeros escravos, aos quais, alis, ele permitiu que
usassem o seu sobrenome. Estes so a origem do ramo De Medeiros
de Agu, o qual se encontra perfeitamente integrado famlia, o que
nem sempre o caso em todas as famlias aguds. Na minha famlia,
explica a Sra. Patterson, ne De Medeiros, que bisneta de Chach de
Souza e, portanto, fala das duas famlias ao mesmo tempo, ns temos
muita gente que ns chamamos de tio ou tia, mas na nossa educao
aprendemos que so na verdade descendentes de escravos. Sabe-se,
mas somos proibidos de falar disto, de insult-los, de agredi-los com
palavras duras. Devemos ter considerao por eles porque eles participaram vida da famlia. Eles participaram do engrandecimento da
casa e do enriquecimento da famlia. Portanto, ns lhes dedicamos
todo o respeito que lhes devemos. Mas sabe-se que no so laos de
sangue que nos unem.
Era a poca em que o trfico de escravos para Cuba e os Estados
Unidos ainda era possvel,27 e Francisco Jos, que falava bem ingls,
tornou-se o principal fornecedor de escravos e de leo de palma para o

De fidalgo agud:
A saga da famlia De
Medeiros do Benim

do Centre Bninois de la Recherche Scientifique et Technique, que generosamente se

disps a compartilhar comigo os dados de sua pesquisa sobre as famlias brasileiras
de Uid, dentre as quais a De Medeiros. As fotografias pertencentes ao Acervo de Eve
de Medeiros apresentadas a seguir foram obtidas por ocasio da entrevista concedida
por Francisca e Eve de Medeiros a Milton Guran e Ana Maria Mauad, em 15 de novembro de 2008, em Paris.
25. Entrevista com a Sra. Patterson.
26. TURNER, op.cit. p.126
27. Ver COSTA E SILVA, 1989c, op.cit. pp 41-46, e 1994, op.cit.p. 208.

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mercado americano.28 De fato, segundo um inventrio de R. F. Burton,

Francisco Jos de Medeiros dado como nascido nos Estados Unidos,
o que considerado por Turner e por Almeida Prado,29 mas no pela
tradio familiar. De qualquer forma, o mercado americano deu-lhe
meios para desembarcar em Uid e desenvolver suas atividades em
estreita colaborao com a famlia De Souza. Casa-se com a filha caula
de Dom Francisco Flix de Souza, Francisca Sik Kpvi (Foto 7), com
quem teve trs filhos (Fotos 8 e 9): Leopoldo (1863), Cndida (1865) e
Cesrio (1867).30 Os estreitos laos entre as famlias De Medeiros e De
Souza introduziram Francisco Jos junto s autoridades de Abom, e
abriram-lhe novas oportunidades comerciais. Seu prestgio e sua fortuna aumentam consideravelmente e ele se torna um dos personagens
mais influentes da comunidade brasileira de Uid. As louvaes de
Francisco Jos, originalmente em iorub, a lngua mais difundida
entre os aguds, datam desta poca. O cavalheiro que tem o andar
nobre e orgulhoso / que to bonito que as moas se atiram sobre
ele / e quando ele toma banho na lagoa cada uma lhe oferece o sabo,
pega o meu / quando a gente o v, tem desejo de casar com ele....31

Milton Guran

28. ALMEIDA PRADO, op.cit. p.191

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29. Almeida Prado, op. cit.

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30. SOUZA, Simone de, 1992. La famille De Souza du Bnin-Togo, Cotonou: Les Editions
du Bnin. Pp. 241-2
31. Segundo a Sra. Patterson.

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Foto 7
Sra. Francisca Sik Kpve De Medeiros, com seu filho Cesrio (cerca
1873). Acervo Sra. Francisca Patterson

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Foto 8
Leopoldo e Cesrio de Medeiros. Acervo da Sra. Francisca Patterson

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Ao observarmos os retratos de Francisca e de seus filhos, verificamos que se apresentam com pessoas abastadas, seguindo risca os
cdigos de representao da elite brasileira e da burguesia francesa
de ento. Como no h registro de uma viagem de Francisca com os
filhos Europa quase certo que a sua fotografia com Cesrio tenha
sido realizada na frica, provavelmente no mesmo momento e pelo
mesmo fotgrafo que registrou Francisco Jos (Foto 6), que demonstra
ser, pela sua obra, um profissional perfeitamente familiarizado com a
produo fotogrfica europeia da poca. De resto, a comunidade agud

em 1873 data em que, segundo consta, foi feita a foto, quando Cesrio
tinha cerca de cinco anos era suficientemente prspera para justificar
os custos de viagem de um fotgrafo. Esta imagem foi reproduzida
de uma ampliao relativamente recente do original retocado pelo
autor, segundo a tcnica da poca. O simples fato de se fazer retratar,
na frica oitocentista, sentada em uma cadeira com o seu filho nos
joelhos j demonstra um alto padro de vida e uma concepo de
vida social e de sua representao absolutamente europeias. Francisca
apresenta-se fora dos padres de representao das mulheres africanas,
est de vestido, e no de pagne, tem os cabelos alisados, sem tranas
ou panos enrolados africana, mantm a cabea desguarnecida de
chapu porque est em casa, ou seja, representa-se como uma branca.
O pequeno Cesrio, de pele bastante clara, veste-se como um menino
rico da sociedade ocidental. Alis, o prprio cenrio da fotografia,
pintado pelo autor, procura justamente dar a impresso de riqueza e
de sobriedade burguesas.
J as fotografias de Lepold e Cesrio e a de Cndida com o marido
e a filho, apresentadas mais adiante, foram certamente produzidas
na Europa, provavelmente na Frana, provavelmente nos primeiros
anos do sculo XX. Seguem, alis, os padres de representao de si
da burguesia culta da poca. V-se bem, pelos trajes e pela postura,
que so pessoas que so abastadas e sofisticadas, ou, pelo menos, o
so o suficiente para se fazer representar assim. Por tudo, demonstram
ser pessoas sintonizadas com a cultura europeia e no com a cultura
africana da sua poca.

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Foto 9
Cndida Braud, ne De Medeiros, com seu esposo Achilles Braud e a filha
Clotilde, s/d. Acervo Sra. Francisca Patterson

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Ao contrrio de outros brasileiros que no puderam suportar a

concorrncia e todas as transformaes impostas pela penetrao colonial francesa, a famlia De Medeiros soube se conduzir neste perodo
de incertezas. Cndida, filha de Francisco Jos e de Francisca de Souza,
casou-se com um mestio de Porto Novo, filho de francs, chamado
Achile Beraud. Este comerciante tinha uma posio de destaque na
cidade e foi encarregado pelo coronel Dodds, comandante das tropas
invasoras francesas, de organizar e comandar pessoalmente as foras

do rei de Porto Novo na guerra contra Behanzan, rei do Daom. Os De

Medeiros de Porto Novo se encontravam nesta luta lado a lado com
outros brasileiros, como os Gonalves, que apoiaram decididamente
a implantao do segundo protetorado francs na cidade. 32
Existe ainda um outro ramo da famlia que era ligado ao rei do
Daom. Trata-se de Jlio de Medeiros, tambm filho do fundador da
famlia, que teve papel relevante na resistncia daomeana contra a
invaso francesa. Jlio era representante comercial da empresa alem
Goeldt, atravs da qual estabeleceu contatos com um certo Barth,
agente suio-alemo instalado em Lagos. Por intermdio deste, segundo Turner,33 ele forneceu ao rei Behanzan 800 fuzis e mais de
15.000 cartuchos de munio. Em 1891, em um dos momentos mais
cruciais da guerra entre o reino fom e a Frana, Jlio de Medeiros
conseguiu fazer chegar aos exrcitos africanos mais de 5.000 fuzis
com a respectiva munio e dois canhes, transportados diretamente
de Berlim a Abom.
Uma vez terminada a guerra, com os franceses instalados no
pas e a famlia De Souza enfraquecida pelas suas relaes com o rei
de Abom, coube a um outro Medeiros intermediar as relaes entre
a comunidade comercial africana de Uid e o novo poder colonial.
Foi Sr. Jean de Medeiros, representante juntamente com os Srs. Lima
e DAlmeida da maior companhia comercial de Uid afora as europeias, quem assumiu estas funes. Ele organizou a grande recepo
feita ao governador da Colnia quando de sua visita Uid em 1895
e estimulou a comunidade brasileira a declarar publicamente seu
apoio administrao francesa. Considerado oficiosamente como um
dos conselheiros do Sr. Coly, o Residente francs de ento, ele se tornou uma espcie de porta-voz dos africanos junto ao poder colonial,
e vice-versa.34
No entanto, os De Medeiros, como a maioria dos brasileiros,
perderam muito da sua privilegiada posio comercial na medida em
que os franceses iam organizando, a partir de Porto Novo, o que se tornaria em breve a colnia do Daom. Eles conservaram, no obstante,
uma certa importncia social, e representam at os nossos dias uma
espcie de elite no pas. O primeiro africano de expresso francesa a
formar-se em medicina na Frana foi, no por acaso, o Sr. Virglio de
Medeiros, bisneto do Chach, filho de Leopoldo de Medeiros e Dlia

De fidalgo agud:
A saga da famlia De
Medeiros do Benim

32. Turner, op.cit. p.309

33. Op.cit. pp 304-5
34. TURNER, op.cit., pp 330-1

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Olympio, da poderosa famlia agud de Agu. Casado ele tambm

com uma brasileira, Virgine Angelo, o Sr. De Medeiros concluiu
seus estudos em 1925 na Faculdade de Medicina de Bordeaux. Aps a
independncia da colnia do Daom, em 1960, ele se tornou o primeiro africano a dirigir os servios de sade do pas. Sua popularidade
levou-o a se candidatar nas eleies presidenciais de 1965, no tendo
obtido, entretanto, uma votao significativa. Seu fraco desempenho
teria se dado, segundo ele prprio, pelo preconceito de que foi objeto
seu sobrenome de origem estrangeira e a cor de sua pele. 35 Embora
africano, aos olhos dos seus compatriotas ele no o era o bastante para
ser chefe de Estado. Paradoxalmente, um dos seus primos, com sobrenome brasileiro e tambm um pouco mais claro de pele, conseguiu
se impor como o primeiro presidente da vizinha Repblica do Togo,
para ser ele tambm discriminado e finalmente, por razes outras,
assassinado durante o mandato, como j tivemos oportunidade de
mencionar.

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35. Cf. TURNER, op.cit., pp 367

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Medeiros do Benim

Foto 10
Cesrio de Medeiros, provavelmente em companhia de sua quinta
esposa, Funti Emmanuella Azontonagnon. Acervo Eve de Medeiros

Uma grande parte dos De Medeiros fixaram-se fora do Benim,

principalmente na Frana, e acabou saindo de Cesrio de Medeiros,
o caula de Francisca Sik Kpve, o ramo da famlia com maior visibilidade no seu prprio pas nos ltimos cinquenta anos. Ele se casou
cinco vezes, e morreu em Lom, no Togo, em 1933, deixando onze
filhos, sendo dois pstumos. Com a primeira esposa Accrombessi
Domingo, teve dois filhos, Eugne e Charles. Da segunda esposa,
Marykian Araoudjou, teve mais dois, Ignacio e Francisco. De Marie
Adikou Zounon, sua terceira esposa, teve Fausta, Jovino e Jrme, e da
quarta, Christina Grimaud da Silva, teve apenas uma filha, Antoinette,
conhecida como Poupou. Finalmente, do seu ltimo casamento, com

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Funti Emmanuella Azontonagnon, nasceram Francisca Berthe Djidpe

de Medeiros, Lon de Medeiros e Alexandre Martin de Medeiros,
conhecido como Tintin, um dos filhos pstumos. 36
A sua primognita Francisca foi, na verdade criada pela tia Cndida Braud, que tinha uma filha, Clotilde, de mesma idade que ela.
Cndida tinha uma posio proeminente na sociedade colonial por
ser casada com um dos artfices da vitoria militar francesa contra o
rei do Daom, Achilles Beraud. Alm disso, soube aproveitar-se da
experincia familiar como fabricante de po, tornando-se dona da
principal panificadora de Porto Novo, onde era mais forte a freguesia, j que concentrava o maior nmero de francesas da colnia. Na
verdade, entre as famlias que, ao longo do tempo, se colocaram sob
a proteo de Francisco Jos e de seus descendentes, encontra-se a
fundada por Olipon das Neves, um fom que foi escravo no Brasil, onde
aprendeu o ofcio de padeiro. Quando do seu retorno frica, Olipon
foi recebido pelo fundador da famlia De Medeiros, que o instalou no
bairro Zoma, um dos domnios do Chach em Uid 37. A famlia De
Medeiros considera-se ento, por intermdio de Olipon, a pioneira
na produo de po nesta Costa. Em 1930, Cndida e Achilles construram, ao lado da velha padaria, uma das mais belas edificaes de
Porto Novo, na melhor tradio de construtores dos aguds, para lhes
servir de residncia e, no rs do cho, abrigar a padaria, que funcionou
a pleno vapor at o final do sculo passado. Eram, seguramente, parte
da elite econmica e social da capital da Colnia.

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36. SOUZA, op.cit. pp. 241-2

37. TURNER, op.cit. p.128

De fidalgo agud:
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Medeiros do Benim

Foto 11
Atual residncia da Sra. Patterson, em Porto Novo, inaugurada em 1930, onde
funcionava, no trreo, a padaria da famlia.
Foto de Milton Guran

Clotilde, filha de Cndida e Achilles, casou-se com o Victor Patterson, de origem nigeriana, tendo falecido sem lhe dar herdeiros.
Victor, ento, casou-se em segundas npcias com Francisca, herdeira
dos bens e das tradies dos De Medeiros, e teve com ela trs filhos:
Clotilde Chantal Batrice e Estelle Carmen Candida, que vivem em
Paris, e Achilles, que vive em Porto Novo com a mes, viva h muitos anos. A Sra. Patterson, como atualmente conhecida, uma das
mais proeminentes figuras da comunidade agud do Benim e, virtualmente, a chefe atual da famlia De Medeiros. Foi durante muitos
anos a representante da Cruz Vermelha Internacional do pas, o que
lhe permitiu conhecer inmeros pases europeus e africanos, e teve
intensa participao poltica, embora sem desempenhar qualquer
mandato ou funo direta na administrao do Estado. , a justo
ttulo, considerada um baluarte da cultura agud.

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Foto 12
Sra. Francisca Patterson no salo do seu sobrado em Porto Novo, em 1995
Foto de Milton Guran

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Na foto 12, a Sra. Patterson aparece no salo de sua casa, em Porto

Novo, em fevereiro de 1996. Ela se apresenta de vestido, feito de tecido
africano, verdade, mas no vestida em pagne, alm de se pentear
europeia, sem tranas ou pano na cabea. Pode-se verificar, apesar das
limitaes tcnicas da fotografia, que a cor da sua pele nitidamente
mais clara do que a da populao africana em geral, o que ocorre em
vrios graus entre os aguds.
O salo em que ela se encontra est dividido em dois ambientes:
sala de visitas, visvel na foto, e uma sala de jantar, escondida por
um biombo, no fundo esquerda da imagem. Na sala de visitas, cuja
entrada se encontra direita e as janelas esquerda, ambas fora do
quadro, h um tapete que delimita o lugar ocupado pelas poltronas
dispostas em torno de uma mesa de centro. Esta mesa, coberta por
uma toalha bordada, est decorada com um vaso de flores, colhidas
por sinal no jardim da prpria casa. Entre as poltronas, encontram-se
ainda outras mesinhas como aquela que aparece em primeiro plano.
Na parede direita, em frente das poltronas, esta exposto o retrato
da tia da Sra. Patterson, Cndida de Medeiros, com seu marido e sua
filha, todos elegantemente vestidos europeia e dispostos na pose
consagrada representao da famlia burguesa no comeo do sculo,
como j comentamos. Esta ampliao em preto-e-branco, em formato
40x50cm, foi feita em Paris h pelo menos 80 anos e, no entanto, se

encontra em perfeito estado, o que atesta sua alta qualidade. Atrs da

Sra. Patterson na foto, pode-se ver o retrato de seu finado marido em
palet e gravata, disposto sobre um pequeno mvel, onde se encontra
outro vaso de flores. A organizao rigorosa deste espao domstico traduz a maneira como utilizado, um exemplo de maneiras de
branco em uma sociedade africana.
O filho caula do quinto casamento de Cesrio, Alexandre Martin
Cesrio, apelidado de Tintin, nasceu quando o pai j havia falecido, em 11 de novembro de 1933, na cidade de Uid, sob a proteo do
seu primo Roberto Norberto de Souza, o Chach VI. Aos 18 anos foi
estudar engenharia na Frana, onde j se encontrava seu irmo Lon,
ambos beneficirios da poltica francesa de formar na metrpole as
elites das antigas colnias. Formou-se em engenharia civil e era, segundo a famlia, um homem alegre e aventureiro, que gostava de cantar,
danar e, sobretudo, cozinhar.38 Em 1956, encontra Jeannine Rene
Jaoun, bret de Roudouallec, com quem se casa no ano seguinte.

De fidalgo agud:
A saga da famlia De
Medeiros do Benim

Foto 13
Jeannine Rene Jaoun e Alexandre de Medeiros por ocasio das suas bodas,
Paris, 1957.
Acervo Eve de Medeiros

38. Os propsitos sobre Alexandre e famlia foram recolhidos em entrevista com Eve
e Francisca de Medeiros concedida a Milton Guran e Ana Maria Mauad em 15 de
novembro de 2008, em Paris.

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A fotografia das bodas de Alexandre e Jeannine, com o africano

de pele mais clara se mostrando bastante vontade na liturgia nupcial
da sociedade francesa de ento, representa bem essa bela histria de
amor que passou por cima das diferenas culturais e desafiou as convenes sociais de um pas ainda orgulhoso do seu papel colonial. Por
tudo isso, o casal enfrentou resistncias tanto na Frana, que naqueles
tempos de ps-guerra j via com desconfiana surgirem cada vez mais
casamentos mistos, quanto junto famlia africana, que contava com
a volta do jovem engenheiro ao pas para fortalecer-se social e economicamente. Vivendo sempre em Paris, Alexandre e Jeannine, firmes
em suas convices, concebem trs filhas, Eve (1958) Isabelle (1960) e
Francisca (1961). As visitas aos parentes africanos foram raras porm
marcantes o suficiente para que as meninas, que sempre viveram em
Paris, tomassem conscincia da importncia da sua famlia no contexto africano e do seu pertencimento quelas tradies e cultura
agud de que eram portadoras. O gosto de Alexandre para a culinria contribuiu bastante para fixar e desenvolver essa conscincia das
origens culturais nas suas filhas, j que ele tinha o hbito de reunir
amigos franceses e africanos em torno de bem preparados pratos da
culinria agud.
Seu apreo pela prpria cultura e pelos amigos lhe levou a produzir o livro a que nos referimos na abertura deste texto, segundo ele
escrito para os amigos que, depois de terem provado as suculentas
iguarias de nossa terra, expressaram o desejo de poderem cozinh-las eles mesmos. Ainda guisa de introduo, explica que os portugueses e brasileiros se integraram populao [da antiga colnia
do Daom] e geraram as famlias de origem portuguesa ou brasileira
que se perpetuaram dentre as grandes famlias daomeanas de hoje.
assim que uma culinria de origem portuguesa [sic] se integrou
culinria daomeana. Em seguida, apresenta uma extensa relao de
frutas e legumes e quarenta e cinco receitas, cuidadosamente descritas.
Alexandre Martin Cesrio de Medeiros morreu sem ter visto
seu livro publicado, em 1985, com 51 anos de idade, pouco depois do
falecimento da sua esposa Jeannine.
O estudo da trajetria da famlia De Medeiros aponta para a dimenso plural das histrias individuais, evidenciando como a histria
de uma nica famlia pode revelar tramas onde so colocadas em
prtica estratgias simblicas das mais variadas, sempre atualizadas
por meio dos trabalhos de memria que atravessaram geraes. Esta
uma saga que construiu pontes entre trs continentes. Atravs dela
podemos identificar, nas grandes narrativas da histria geral, a importncia de uma determinada comunidade no caso, os aguds para
aproximar os tempos da memria aos da Histria.