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Cárie Dental
José Luiz De Lorenzo
Alessandra De Lorenzo
dores, revelando que o CPOD médio é da ordem CPOD em crianças com 12 anos era 8,6 (muito
de 22,0 e que esse alto índice é devido principal- alto), passando para 7,3 (muito alto) em 1980 44 e
mente ao número de dentes extraídos. Conside- para 6,67 (muito alto) em 1986 2,41,46. Apesar dos
rando o número indiscutivelmente absurdo de decréscimos constatados, eles devem ser consi-
Faculdades de Odontologia existentes em nosso derados como muito lentos quando comparados aos
país, que geraram e continuam a gerar um número observados em países que investiram preco-
descabido de cirurgiões-dentistas na maioria de cemente na adoção de métodos preventivos. Porém,
suas regiões geográficas (cerca de 12% do número a partir da década de 1990, foram constatados
mundial de dentistas45), os atuais expressivos declínios marcantes, nessa idade: 4,87 (moderado)
índices de atividade de cárie dental e no- em 19932,46 e 3,06 (moderado) em 1996 2*40 (Fig.
tadamente de edentulismo devem desafiar pro- 7.1).
fundas ponderações da classe odontológica, O último levantamento epidemiológico reali-
principalmente quando nos vemos informados de zado pelo Ministério da Saúde do Brasil (1996) 2
que o alto índice constatado em adultos brasileiros mostrou que escolares com 12 anos de idade, re-
só é superado na Dinamarca (CPOD = 22,9), mas
também é alto na Suíça (CPOD = 18,8) 40, países
que, como o Brasil, apresentam números elevados
de dentistas45.
O conjunto dessas observações, de forma
insofismável, corrobora o conceito segundo o qual
apenas a utilização do clássico paradigma
cirúrgico-reparador (abre-se a cavidade, retira- se a
porção cariada e se reconstrói o dente) tem- se
mostrado insuficiente para refrear as causas e os
efeitos dessa doença, até mesmo quando são
utilizadas as sofisticadas técnicas e materiais que a
Odontologia tem desenvolvido nos últimos anos.
Apesar da demora com que nosso país gradati
vamente foi se conscientizando da necessidade de
controle da cárie dental, inclusive para nos
livrarmos do vergonhoso título de “campeões
mundiais de dentes cariados e de bocas
desdentadas”, os últimos dados oficiais (1993 e
19%) demonstraram, em crianças, resultados ex-
pressivos e animadores. Em 197641, o índice Fig. 7.1 — Declínio de CPOD em crianças brasileiras com 12 anos de
idade.
sidentes cm 15 capitais de estados incluindo o com a maioria das doenças infecciosas. O “segredo”
Distrito Federal, apresentavam CPOD médio < 3,0. desse sucesso deve ser buscado no conhecimento da
Esse índice era quase impossível de ser vislumbrado etiologia, ou seja, dos fatores causadores da doença13.
até a década anterior e colocou-nos entre os países Como a cárie dental é uma doença infecciosa, sua
que conseguiram alcançar o objetivo da segunda meta prevenção e controle devem ser baseados numa
da OMS para o ano 2000. Um aspecto criticável desse atuação efetiva sobre suas causas específicas. Sem
levantamento é que sua amostragem restringiu-se usar esta “fórmula de sucesso”, a Medicina não teria
apenas a escolares residentes nas capitais, não tendo conseguido prevenir muitas doenças infecciosas que
abrangido crianças com condições de vida inferiores, até há algumas décadas dizimavam ou mutilavam
o que poderia, na média, redundar em resultados grande parte da humanidade. Por exemplo, nenhuma
diferentes dos obtidos 13. Parecendo confirmar essa das vacinas atualmente disponíveis estaria viabilizada
assertiva, análise pouco mais recente (1997) 7, sem o suporte de pesquisas prévias que conduziram
realizada pelo Projeto Sorria Brasil da Colgate, ao reconhecimento do agente causal específico da
demonstrou que o CPOD médio, em crianças com 12 doença e de seus mecanismos de patogenicidade 13.
anos residentes em 17 municípios das regiões Centro- Podemos, assim, concluir que o primeiro objetivo
Oeste, Norte e Nordeste, com menos de 10 mil do estudo da Cariologia é o entendimento da etiologia
habitantes, era 6,29, portanto alto; por outro lado, as da cárie dental, condição indispensável para
crianças de sete dessas cidades apresentavam CPOD conseguirmos uma base sólida visando à sua prevenção
muito altos, superiores a 6,5. e ao seu controle.
A significante disparidade existente entre o grau de
incidência de cárie dental em crianças e jovens que EVOLUÇÃO DO CONHECIMENTO DA ETIOLOGIA DA CÁRIE DENTAL E SUA
vivem em diferentes condições socioeconômicas tem IMPORTÂNCIA EM PREVENÇÃO
sido confirmada nos Estados Unidos da América 56 e
no Estado de São Paulo54, sugerindo que deva ser Pode-se afirmar que o conhecimento dos fatores
uma constante em outros países e regiões. causais da cárie dental, apoiado em bases científicas,
Apesar dessas ponderações limitantes, é in- remonta somente a pouco mais de cem anos. Tudo o
contestável que temos conseguido reduzir signi- que nos chegou a respeito do passado revela conceitos
ficativamente os índices de atividade de cárie em baseados em questões de caráter meramente
nossa população, notadamente em crianças e jovens. especulativo, que se mantiveram desde a Antiguidade
Um importante fato a ser realçado diz respeito a até o final do século XIX. Duas correntes de
levantamentos realizados em muitos municípios que pensamento dominaram nesse longo período. A
investiram precoce e eficazmente em prevenção, primeira acreditava que a cárie seria causada por
mostrando que os CPOD médios aos 12 anos, na “vermes que beliscam os dentes”. Essa crença teve
atualidade, realmente podem ser equiparados com os origem na China Antiga, baseada no livro de Medicina
de crianças de países mais evoluídos, visto que alguns “Nieri King”, escrito em 2700 a.C. pelo imperador
já atingiram e outros já estão muito próximos de Houang-Fi, onde se encontra que, nas lesões de cárie
atingir as metas da OMS para o ano 2010. Como (“Chong Ya”), deve-se usar uma mistura contendo
exemplo, citamos o município de Santos (SP). Neste, arsênio, para exterminar esses “vermes”; os povos
as crianças com 12 anos apresentavam CPOD médio babilónico (500 a.C.) e asteca (séculos XIV e XV)
= 8,91 em 1975; em decorrência de efetivos assimilaram essa crença, que persistiu até o século
programas de prevenção implantados há pouco mais XVIII. A segunda foi a do célebre médico Galeno
de duas décadas, em 1999, esse índice havia sido (Grécia Antiga, século II). Redefendida em 1787 por
severamente reduzido para 1,0, sendo 61,55% a por- Hunter, segundo os quais a cárie é um efeito
centagem de isentas de cáries nessa idade 1.
secundário da inflamação pulpar que, conforme Galeno
A apresentação desses interessantes dados teve o
seguindo pensamento de Hipócrates, resulta de
objetivo de demonstrar que a doença cárie dental é
alterações do sangue
francamente prevenível, ou pelo me nos
significativamente controlável, como ocorre
Somente em 1820, Parmly conjecturou que a
carie seria causada por um “agente químico" for-
mado a partir de restos alimentares acumulados
sobre os dentes. Robertson (1835) deu um passo à
frente, ao afirmar que os agentes químicos que
destroem os dentes são ácidos orgânicos
resultantes da fermentação de alimentos aderidos
aos dentes, mas, de acordo com o conhecimento
da época, a fermentação era um processo de
origem química e não microbiana. A res-
ponsabilidade de microrganismos pela fermen-
tação só seria descrita vinte anos depois, por
Louis Pasteur. Baseado neste novo conhecimento, Fig. 7.2 — Câmara asséptica para criação de animais isentos de
Magitot (1867) demonstrou in vitro que a germes.
fermentação de açúcares dissolve a estrutura
dental. ciada em roedores de laboratório, no National
A fase realmente científica, baseada em estu- Institutes of Health, em Bethesda, EUA. Essas
dos microbiológicos, iniciou-se com os estudos de pesquisas, até hoje executadas em animais de
Willoughby Dayton Miller, dentista norte- maior porte, iniciaram-se graças ao desenvolvi-
americano que buscou aperfeiçoamento na Uni- mento da técnica dos animais isentos de germes
versidade de Berlim entre 1880 e 1906, onde entrou (assépticos ou axênicos) e dos animais gnotobio-
em contato com o eminente bacteriologista Robert tas. Por animais isentos de germes, entende-se
Koch, que havia se distinguido particularmente aqueles que nascem e são mantidos na ausência
pelos estudos sobre o bacilo da tuberculose. As total de microrganismos demonstráveis, ou seja,
pesquisas executadas por Miller permitiram-lhe em câmaras assépticas (Fig. 7.2 e 7.3), onde tudo o
concluir que a cárie dental resulta primariamente da que entra em contato com eles (ar, água, alimentos,
atividade fermentativa da§ bactérias da saliva sobre manuseio, instrumentos para coleta de amostras
carboidratos da dieta depositados sobre os dentes13. etc.) passa por esterilização prévia. Quando um
Desta forma, em seu livro “Os microrganismos da desses animais é deliberadamente infectado com
uma ou mais espécies microbianas
boca humana” (1890), Miller, considerado com
preestabelecidas pelos pesquisadores, ele passa a
justiça o “Pai da Microbiologia Oral”, erigiu a teoria
albergar somente aquele(s) microrganismo(s),
químico-parasitária da etiologia da cárie dental,
adquirindo a condição de gnotobiota.
divulgando que “a cárie dental é um processo
O conjunto dessas pesquisas pioneiras sobre
químico parasitário composto de duas etapas
cárie dental experimental demonstrou que 13:
distintas: descalcificação ou amolecimento do dente
• Animais isentos de germes não desenyol-
e dissolução do tecido amolecido. Os ácidos que
afetam a descalcificação derivam principalmente de yém lesões de cárie dental nem quando re-
partículas de amido e substâncias açucaradas, que se
alojam em áreas retentivas e posteriormente sofrem
fermentação” 53.
Em seguida, os primeiros cinquenta anos do
século XX foram caracterizados pelo aparecimento
de novas teorias etiológicas, como a acidogenica, a
proteolítica e a proteolítico-quelante que, além da
“era dos lactobacilos”, suscitaram muitas dúvidas
naqueles que se interessavam pelo assunto.
O grande marco da determinação científica da
etiologia da cárie dental, responsável por conceitos
até hoje vigentes, foi a linha de pesquisas sobre cárie
dental experimental em animais, ini-
FIQ. 7.5 — Inoculação intrabucal de cultura bacteriana em animal Fig. 7.7 — Cáries rampantes experimentais em molares de roedor.
asséptico, tomando-o gnotobiota.
mente a sacarose, produzindo consideráveis co, isolado de cáries do homem, reproduz a doença
quantidades de ácido láctico (ácido orgânico forte) quando inoculado nas bocas de rato* e de hamsters
que faz o pH ambiental declinar para aproxi- assépticos29,6'.
madamente 4,0, mais ácido do que o pH crítico para O conjunto dessas experiências mostrou a
a desmineralização do esmalte dental (cerca de 5,5); existência dos “estreptococos cariogênicos”, na
■ atualidade classificados como “estreptococos do
c) diferentemente dos estreptococos conhecidos grupo mutans ”, com oito espécies, sendo Sírép-
na época, na presença de excessos de sacarose, tococcus. mutans & S. sobrinus as mais isoladas de
sintetizam e armazenam extracelularmente alguns lesões cariosas do homem (ver Capítulo 3 —
polissacarídeos de reserva, que lhes possibilitam as Componentes Bacterianos da Microbiota Bucal). Um
habilidades de colonizar a superfície dental e de fato interessante é que, na Inglaterra, Clark (1924) já
produzir ácidos durante algum tempo, mesmo na havia isolado e descrito S. mutans como um “mutante”
ausência de sacarose. morfológico de estreptoco- co que apresenta células
• Os estreptococos cariogênicos são transmitidos mais ovaladas, semelhantes a pequenos bacilos. Esse
de animal para animal, fato posteriormente relato, infelizmente, não mereceu a atenção devida e
confirmado na espécie humana27. O primeiro a somente em 1968 os dados obtidos recentemente
descrever esse fato foi Keyes (1960) 26: após foram cotejados com os de Clark e se reconheceu a
submeter uma fêmea convencional de hamster denominação S. mutans proposta por este autor52,13.
albino a tratamento com penicilina, observou Mas a maior validade dessas experiências foi,
que esse animal passou a não desenvolver indiscutivelmente, a de ter possibilitado uma
lesões de cárie, bem como seus descendentes definição da etiologia da cárie dental, demonstrando
que recebiam dieta cariogênica mas eram que é uma doença infecciosa (sem bactérias não
mantidos isolados de hamsters de outras ocorre cárie), endógena (as bactérias cariogênicas
linhagens. No entanto, esses animais passavam estão presentes na microbiota bucal), transmissível e
à condição de cárie-ativos quando passavam a trifatorial). Este aspecto é perfeitamente ilustrado
compartilhar gaiolas com hamsters cárie- pelo clássico diagrama elaborado por Fitzgerald e
ativos. Keyes16 (Fig. 7.8), que mostra que a cárie dental só
Em outros centros de pesquisa, também foi aparece quando da
constatado que a inoculação desse estreptoco-
Alto número de bactérias cariogênicas + Dieta cariogênica freqüente + Hospedeiro suscetível = CÁRIE DENTAL
Reduçáo do número de bactérias cariogênicas + Alterações adequadas na dieta + Promoção de saúde bucal e sistêmica
= SAÚDE DENTAL
__________ ___________ ______________________________________________________________________________________________________________
Fig. 7.10 — Esquema representativo do conceito de placas específicas e de seus potenciais patogênicos (Loesche31).
acordo com a teoria da especificidade das doenças * Requisito 1 — Atividade acidogênica intensa:
infecciosas. A lesão inicial do esmalte dental (hi-
droxiapatita) consiste na desmineralização,
Requisitos Bacterianos de causada por ácidos, que ocorre na camada
Cariogenicidade subsuperficial. Este fato justifica plenamente
que a bactéria cariogênica deva apresentar,
Para que uma espécie microbiana seja reco- como requisito fundamental, a capacidade de
nhecida como iniciadora do processo cariogênicos ser intensamente^acidogênica, de acordo com
principalmente no esmalte dental,.ç indispensável o proposto por Miller. A bactéria
que ela seja dotada de mecanismos de virulência cariogênicajieve ter^ pois, um me- Jabolismo
que a capacitem a promover a desmineralização da predominantemente sacarolítico, do qual se
superfície dental. Não importa, neste caso, que ela originam consistentes quantidades de ácido
produza grande número de metabólitos tóxicos para láctico (fermentação homoláctica). A maior
outros tecidos, tais como enzimas e toxinas capacidade desmineralizante desse ácido
potentes, como faz a maioria dos patógenos deve-se à sua característica de ser um ácido
implicados com outras doenças humanas. G orgânico forte, capaz de se dissociar mesmo
conhecimento básico desses atributos de virulência quando o pH está ácido, situação típica do
é fundamental para entendermos o mecanismo de ecossistema alterado no qual ocorre a
formação da lesão inicial do esmalte dental, desmineralização do dente. O maior potencial
capítulo de extrema importância para a Cariologia desmineralizam**
Preventiva 13. do ácido láctico, quando comparado com
outros ácidos orgânicos gerados na placa, mando a lesão inicial de cárie 0,13 (Fig. 7.12). Por este
como o acético e o propiônico, foi confir- motivo, o pH na faixa de 5,0 a 5,5 é consi-
mado em estudo recente35. derado^crítico para o esmalte.
Quando o pH do ecossistema esmalte/placa/ Um aspecto interessante a ser considerado na
saliva está em níveis superiores a 5,5, a saliva e a análise do potencial cariogênico é que muitas
fase liqüida da placa estào saturadas de íons cálcio espécies bacteríanas da placa (várias espécies de
e fosfato em relação ao produto de solubilidade da Streptococcus, Actinomyces, Neisseria, Bacteroides,
hidroxiapatita. Nesta situação fisiológica, a Bifidobacterium, Eubacterium, Propionibacterium,
tendência físico-química faz com que o dente Rothia5S) produzem ácidos, mas não com a
ganhe constantemente esses íons do meio bucal9*13, intensidade suficiente para baixar o pH até o ponto
favorecendo a mineralização constante do esmalte crítico para o esmalte. Algumas, como Actinomyces
(Fig. 7.11). spp, estào implicadas com a iniciação de cáries
Esta condição toma-se severamente alterada radiculares; como ojgH crítico para a raiz exposta
quando existe disponibilidade de carboidratos está em tomo de 6,2, essa regiào sofre
fermentáveis na placa; as bactérias dotadas de desmineralização mesmo diante de desafios ácidos
metabolismo sacarolítico metabolizam intensa- de pequena intensidade. No entanto, a grande
mente essas fontes energéticas, gerando ácidos maioria das bactérias fermentadoras da placa não
como produtos finais (catabolitos da fermentação). gera ácidos com intensidade suficiente para atingir o
Os ácidos orgânicos fortes determinam um drástico pH crítico para o esmalte, limitando o número das
abaixamento do pH, para níveis inferiores a 5,5 potencialmente cariogênicas para esse tecido 13.
causando, assim, um desequilíbrio nesse De acordo com o conhecimento atual, as únicas
ecossistema. O lactato não-ionizado, excretado por bactérias da placa que preenchem esse primeiro e
certas bactérias, penetra entre os prismas de indispensável requisito (acidogênese intensa) sào os
esmalte e só vai dissociar-se, ou seja, formar íons estreptococos do grupo mutans, quç. geram pH em
H\ na camada subsuperficial do esmalte tomo de 4,0, e algumas espécies-de Lactobacillus, que
(hidroxiapatita carbonatada), causando dissolução geram pH próximo de 3,CL Em 1991, foi descrito 59
de íons cálcio e fosfato em sua fase liqüida. Outro que os “estreptococos nào- mutans produtores de pH
evento significativo ocorre quando o pH atinge baixo” (S. anginosus, S. gordonii, S. mitis e S. oralis)
níveis inferiores a 5,5: a saliva e a placa tomam-se também sào capazes de gerar pH entre 4,05 a 5,0. Em
subsaturadas desses íons, e a tendência físico- 2000, pesquisadores14 confirmaram que S. mutans e S.
química acarreta que eles se desloquem da sobrinus
hidroxiapatita para a placa e saliva, for
Rg. 7.12 — Representação da perda de íons cálcio e fosfato (desmineralização) em pH inferia a 5,5 (adaptada de Cury, 1969).
Fig. 7.14 — Gráfico de Stephan: curvas de acidogênese em placas dentais de incisivos superiores de pessoas isentas de cáries (Grupo I), cárie-inativas
(Gmpo II), ligeiramente cárie-ativas (Grupo III), marcantemente cárie-ativas (Grupo IV) e extremamente cárie-ativas (Grupo V).
baixo por algum tempo e, em seguida, foi retor- gerado explicações que ouvimos frequentemente
nando ao ponto basal (média de 6,7). dessas pessoas, que atribuem suas altas atividades
Mas apesar dessa aparente identidade, devemos de cárie a desculpas como “azar”, “carma”, “dentes
observar que alguns importantes detalhes variaram fracos”, “saliva ácida”, “filhos que roubaram cálcio
significativamente de acordo com as experiências nas gestações” ou “efeito de antibióticos”,
de cárie dos diferentes grupos 13: infelizmente com o acórdão de alguns dentistas 13.
1 °) existem marcantes diferenças com relação Para contrariar essas “explicações”, devemos
aos pH basais (pH de repouso) das placas dos entender os reais motivos pelos quais algumas
diferentes grupos, e o dos extremamente cárie- pessoas, classificadas como cárie-ativas, desen-
ativos já se encontra muito próximo da faixa crí- volvem cáries com muita facilidade. Por outro
tica para o esmalte (5,0 a 5,5) antes mesmo de lado, é extremamente importante sabermos res-
entrar em contato com o açúcar; ponder às seguintes questões:
2o) apenas as placas dos cárie-ativos atingem Ia) As pessoas cárie-ativas estão fadadas 1
esse pH crítico alguns minutos após o contato com conviver com grande número de cáries durante
o açúcar; toda a vida?
3o) as placas dos extremamente cárie-ativos 2a) As pessoas isentas de cáries e as cárie-
permanecem durante longo tempo (40 a 50 minu- inativas estão indefinidamente seguras dessas
tos) nesse pH propício à desmineralização do condições?
esmalte. Para que possamos responder a essas perguntas
Esses fatos nos mostram, claramente, que as e entendermos as origens da alta atividade de cárie,
placas das pessoas cárie-ativas comportam-se de vamos analisar a curva de acidogênese dos
forma muito negativa ao entrarem em contato com “individuos-problema” (cárie-ativos),
o açúcar. Esta forma adversa de reação tem
aplicando conhecimentos adquiridos nas cinco ácidos que impedem sua rápida neutralização pela
décadas posteriores ao estudo de Stephan. Para saliva.
tanto, vamos basear-nos, principalmente, nas in- Tentou-se, inicialmente, encontrar em defi-
terpretações de Loesche (1986) 30 e nos conheci- ciências salivares a explicação para essa falha na
mentos atuais de Microbiologia e Bioquímica neutralização dos ácidos; mas análises mostraram
Orais. Tentando facilitar essa análise, dividiremos a que, em circunstâncias não-patológicas, a saliva
curva de acidogênese dos cárie-ativos em três fases dos cárie-ativos possui fluxo, capacidade tampão e
distintas11,13 (Fig. 7.15): substâncias antimicrobianas em níveis
A) fase de queda rápida do pH; praticamente similares aos encontrados nos isen-
B) fase de permanência do pH abaixo do crítico; tos de cáries30. Por conseguinte, é válido admitir
C) fase de recuperação do pH. que deficiências salivares, como regra, não
constituem o jjiincipal motivo da atividade de ’
A) Fase de queda rápida do pH: a curva de cárie, a não ser em casos de xerostomia severa,
acidogênese na placa já desde esta primeira fase é nos quais, inclusive, o padrão clínico das lesões
algo surpreendente, pois nos pareceria mais lógico (cáries rampantes) é bastante diferente do
que ela mostrasse que as bactérias da placa iriam convencional. Um aspecto importante, nesses
fermentando gradativamente o açúcar e formando casos, é que as pessoas que têm hiposalivação
ácidos ao longo do tempo, de forma que o declínio costumam usar, com alta frequência, balas e
do pH fosse mais lento. Se isto ocorresse, líquidos adoçados para tentar superar o problema
provavelmente não seria atingida a faixa de pH da boca seca, agravando ainda mais o risco de.
crítica para o esmalte dental, pois os tampões cárie30.
Passou-se, então, a buscar a diferença na
salivares teriam tempo para neutralizar os ácidos
constituição da placa bacteriana. Minah e Loesche
lentamente formados.
(1977)37*38 demonstraram, por cultivo e
Contrariando essa expectativa, a curva dos
contagem, que em placas colhidas de lesões
cárie-ativos nos mostra que o pH da placa cai para
proximais de molares decíduos (placas cariogê-
em tomo de 5,0 abruptamente, em apenas dois a
nicas) existem S. mutans em proporções muito
três minutos após o contato com o açúcar. Esta
superiores às das placas coletadas de sítios isentos
constatação revela a rapidez e a intensidade com
de cárie (placas não-cariogênicas) dos mesmos
que as bactérias da placa fermentam
dentes. S. mutans foi isolado de 100% das
o açúcar, gerando tão grandes quantidades de
amostras das placas associadas à cárie e em al-
1
tas proporções relativas (40% do total da micro-
PH biota cultivável). Essa espécie cariogênica foi
isolada de apenas 17,64% das placas retiradas de
sítios sadios dos mesmos dentes (molares
decíduos) e em baixíssimas proporções relativas
A
(apenas 0,5% da microbiota).
Observaram, também, que as quantidades de
°
ácidos e de glucano insolúvel formados pela placa
cariogênica são muito superiores às encontradas
5,5 na placa não-cariogênica e que, dentre as espécies
—
B proeminentes na placa dental humana, S. mutans é
o maior produtor tanto de ácido láctico como de
glucano insolúvel.
Estas observações foram amplamente confir-
madas em outras pesquisas 32,33, sugerindo forte-
0 10 20 30 40 50 min
mente que o principal fator diferenciai do cárie-
ativo é o elevado número, em sua placa, de bac-
tZnis^ihtensamente acidogênicas como os es-
fy.7 .15 —- Curva de acidogênese da placa de pessoas cá- w-ativas
frcptococos do grupo mutans e lactobacilos. A
dividida em três fases: fase de queda rápida do pH ty, de permanência
do pH abaixo do crítico para o esmalte dental (B) e de recuperação
elaboração de ácidos praticamente ao longo do dia
do pH (C). inteiro faz com que o pH basal das placas
dessas pessoas esteja constantemente muito próximo protético. Alguns estudos comprovaram que em
ao valor crítico. Como as bactérias cario- gênicas têm placas formadas sobre superfícies áuricas ou
metabolismo predominantemente sacarolítico, plásticas colocadas sobre dentes in vivo, o pH
podemos concluir que esta circunstância desfavorável atinge valores 4,0 ou 3,0. Portanto, quanto mais
só acontece quando a pessoa ingere carboidratos mineral deixarmos no dente em nossos
fermentáveis com grande freqüência, portanto não procedimentos clínicos (preparos
indica nenhum conservadores), maiores serão as oportunidades
azar . de remineralização futura.
B) Fase de permanência do pH abaixo do crítico: é • O segundo diz respeito a um evento ecológico
a fase de risco para o dente, que dura cerca de uma fundamental, representado por um severo
hora nos extremamente cárie-ativos, após cada desequilíbrio na microbiota da placa, decorrente
ingestão de açúcar. E importante, nesta análise, da acidificação desse ambiente. O pH da placa
considerarmos que, em uma só ingestão de açúcar na permanece longo tempo abaixo do crítico,
forma liqüida, os dentes dessas pessoas ficam indicando que as bactérias dessa placa, durante
agredidos pelos ácidos durante esse longo período de
todo esse tempo, mantêm um intenso
tempo, no qual ocorrem dois eventos fundamentais
metabolismo acidogênico mesmo em pH < 5,5,
para a ca- riogenicidade13.
contrariando as normas gerais da fisiologia
• O primeiro desses eventos é a desmineralização
bacte- riana. Harper t Loesche (1983)21 e
do dente, ou seja, a perda de íons cálcio e fosfato
(1984)22 esclareceram essa surpreendente
da camada subsuperficial do esmalte para o meio
questão ao descreverem que S. mutans e, em
ambiente (placa e saliva), iniciando a lesão de
menor grau, S. sobrinus (também do grupo mu-
cárie. No entanto, esta saída de íons essenciais não
tans) e Lactobacillus casei são acidúricos ou
acarreta resultados exclusivamente adversos para o
ácido-tolerantes, portanto conseguem converter
dente, pois alguns desses íons podem reprecipitar-
a sacarose em ácido láctico mesmo em pH 5,0.
se, na camada superficial, na forma de fosfato de
Verificaram, ainda, que essas duas espécies do
cálcio, estabelecendo uma camada protetora sobre a
grupo mutans são mais acidogênicas em pH 5,0
estrutura subsuperficial porosa. Por outro lado, a
concentração de íons cálcio e fosfato na superfície do que em pH neutro. Como só as espécies
não lesada do esmalte também beneficia o dente acidúricas conseguem manter seu metabolismo
pelo fato de esses íons serem tampões de pH30,31. em pH ácido, isto indica que, em todo o tempo
Quando o pH atinge o nível 5,0, o mineral da ca- de duração desta fase, essas espécies estão
mada subsuperficial é perdido de tal forma que a selecionadas nessa placa.
reparação (remineralização) pode ocorrer desde que Podemos, então, conjecturar que imediatamente
o pH xetorne para valçfc res superiores aos do após a disponibilidade de açúcar (início da curva da
crítico. Na ausência desse tampão dental, mais fase A), todas as bactérias fermentati- vas contidas na
ativo em pH ao redor de 5,0, o pH da placa pode placa produzem grandes quantidades de ácidos,
declinar mais ainda, atingindo níveis 3,0 ou 4,0 e fazendo com que ocorra abruptamente o declínio do
causando, irreversivelmente, a destruição da pH. A medida que o pH vai diminuindo, maior
camada superficial, portanto inviabilizando o número dessas bactérias, não acidófilas, vai perdendo
processo de remineralização. Esta situação essa habilidade, de forma que, quando o pH toma-se
absolutamente indesejável ocorre quando os dentes inferior a 5,5 (crítico para o esmalte), só mantêm-se
são expostos, in vivo, à regurgitação ácida do me- tabolicamente ativas as raras espécies acidúricas
estômago e, in vitro, à ação de ácidos. Esse tampão que, não tendo competidores biológicos ativos durante
próprio do esmalte também vai deixando de existir esse tempo, persistem na placa promovendo a
à medida que o substituímos por qualquer tipo de desmineralização do dente. Por isso. essas, espécies
material restaurador ou acidúricas são, a rigor, as únicas que podem ser
considerarias cariogênicas para o esmalte dental.
Recentemente, De Soet et al. (2000)14 confirmaram vado em ratos monoinfectados com S. mutans. Por
a aciduricidade de muitas amostras de 5 mutans e S. outro lado, certa quantidade de ácido* é neutralizada
sobrinus e verificaram essa capacidade em algumas pela saliva pelo tampão dental e pela amônia noutros
cepas de S. mitis. Por outro lado, destacaram que, álcalis produzidos por espécies, proteolíticas. também
graças à atividade acido- gênica prévia de outras presentes na placa.
espécies, o ambiente da placa se toma ácido, portanto Terminado o desafio representado por uma
favorável à seleção de acidúricos. ingestão de carboidratos fermentáveis, ou seja, nos
O predomínio de S. mutans nas chamadas “cáries períodos entre as refeições, em função do consumo
de mamadeira” usualmente é tão expres sivo que dos ácidos, o pH da placa vai gradativamente
constitui a quase totalidade da micro- biota existente deixando a faixa de acidez e retomando ao nível basal.
nessas lesões58. A proporção de Lactobacillus spp é de Conforme analisado anteriormente, quando o pH
cerca de 5%, um dos maiores valores desse atinge marcas superiores a 5,5, a saliva e a placa
microrganismo em placas dentais humanas30. tomam-se novamente saturadas de íons cálcio e
C) Fase de recuperação do pH: demonstra que a fosfato e grande parte desses íons, perdidos durante a
Natureza colocou, à disposição dos den tes, fase anterior, retorna para o interior da lesão inicial,
mecanismos para reverter a situação de ca- promovendo sua remineralização (Fig. 7.16).
riogenicidade. Em primeiro lugar, devemos destacar Esse processo de reparação tecidual traz grande
que uma parte considerável dos ácidos gerados na vantagem para o dente, pois está determinado que a
placa não chega a desmineralizar o dente porque hidroxiapatita remineralizada é mais resistente à ação
outras, bactérias da placa, como Veillonella spp, dos ácidos do que a hidroxiapatita natural. Esse
metabolizam o lactato, convertendo-o em ácidos mais benefício aumenta expressivamente quando o
fracos e voláteis (acético, propiônico) que processo de remineralizaçãp ocorre na presença de
representam menor risco de desmineralização da fluoretos. Neste caso, além da hidroxiapatita, também
hidroxiapatita. Confirmando essa assertiva, um se forma a hidroxiapatita-fluoretada, cujo pH crítiço
experimento executado por Mikx et al. (apud Minah e situa-se em tomo de 4 a b a i x o do 5,5 próprio da
Loesche37) constatou que a coinfecção bucal de ratos hidroxiapatita natural; conseqüentemente, para desmi-
gnotobiotas com S. mutans e V. alcalescens resultou neralizar a hidroxiapatita-fluoretada são necessários
em menor número de lesões de cárie do que o obser- desafios ácidos mais intensos e mais freqüentes9,13.
% 7.16 — Representação da remineralização da hidroxiapatita quando o pH retoma a niveis superiores a 5,5 (adaptada de wy. 1969).
DIETA CARIOGÊNICA Y ^ Cury et ai (2000)10 confirmaram, em voluntários
humanos, que a placa dental formada em presença de
Conceituação sacarose tem maior potencial cario- gênico do que a
formada em presença da mistura glicose + frutose
Dieta cariogênica é o substrato, ou seja, a matéria-
(constituintes da sacarose). Uma das explicações é
prima fornecida pelo próprio hospedeiro, necessária
que só nas matrizes das placas onde existe sacarose
para que as bactérias cariogênicas consigam
ocorre alta concentração de glucano insolúvel, que se
desenvolver-se sobre os dentes, sintetizar forma exclusivamente a partir desse açúcar.
polissacarídios de reserva, produzir ácidos e,
conseqüentemente, a lesão de cárie12,13. Em pessoas Fontes do Conhecimento da Importância
que não ingerem quantidades apreciáveis de dieta Cariogênica da Dieta
cariogênica, essas bactérias permanecem na placa em
números inexpressivos, insuficientes para exercer sua A importância dos carboidratos fermentáveis,
odontopatogenicidade. Em termos mais práticos, dieta principalmente da sacarose, na etiologia da cárie em
cariogênica significa carboidratos fermentáveis, humanos tem sido amplamente evidenciada por
principalmente os açúcares e dentre eles a sacarose grande número de estudos antropológicos,
(açúcar de cana e beterraba), devido à sua alta epidemiológicos e de cárie dental experimental em
associação com S. mutans na etiologia da cárie dental. humanos.
No item anterior, apresentamos os motivos que 1. Estudos arqueológicos e antropológicos:
fazem de S. mutans a provável principal bactéria Embora nossos dentes permaneçam suscetíveis à
cariogênica. Neste, vamos analisar as principais cárie durante toda a nossa vida, após a morte se
propriedades que tornam a sacarose o mais cariogênico mantêm em estado indestrutível, permitindo que seu
dos alimentos, características essas profundamente encontro em esqueletos, mesmo muito tempo após a
relacionadas com as das bactérias cariogênicas: morte, revele a experiência anterior de cárie daquelas
lfl) a molécula de sacarose é pequena, apoiar g pessoas. Uma série de estudos analisou dentes de
altamente solúvel em água, possibilitando sua rápida crânios enterrados há muitos séculos. Observou-se
difusão na placa dentaleste é um dos motivos pelos que, nos dois milênios decorridos entre o início da
quais o pH da placa declina bruscamente logo após o Idade do Ferro (555
contato com açúcar (fase de queda rápida do pH, na a. C. - 43 d.C.) e o final da Era Medieval (1066-
curva de Stephan); 1550), o padrão das lesões não sofreu alterações
2fi) é o único substrato usado para algumas apreciáveis; os jovens apresentavam cáries oclusais
bactérias produzirem polissacarídios extracelula- res de lenta progressão» enquanto os adultos, cujos
como os glucanos e o frutano, pois as enzimas sulcos e fissuras oclusais já haviam se tornado planos
necessárias para a síntese desses produtos devido à dieta abrasiva, apresentavam grande número
(glicosiltransferase e frutosiltransferase) têm es- de. Cáries cervicais. Praticamente não existiam
pecificidade para sacarose e, além disso, só são lesões em superfícies lisas do esmalte 53, região de
elaboradas na presença desse açúcar (enzimas maior domínio de
induzidas); S. mutans, porque nossos remotos ancestrais
3a) é o substrato do qual resulta maior rendimento consumiam exclusivamente a pequena quantidade de
energético para S• mutans, portanto o nutriente de cuja sacarose contida em algumas plantas alimentares.
fermentação resulta maior quantidade de ácidos, Esse açúcar só se tornou comercializado por volta do
principalmente de ácido láctico. século VII, mas somente no XVI teve sua produção
Centenas de experimentos comprovam o maior incrementada como resultado das plantações
potencial cariogênico da sacarose. Em ratos brasileiras, mexicanas e caribenhas; contudo, nos
gnotobiotas monoinfectados com S. mutans e EUA o consumo anual por pessoa em 1823 era de
alimentados com dietas contendo diferentes açúcares, apenas 4 g, aumentando para 20 kg em 1900 e para
foram observadas extensas formações de placa e 45 kg em 1930.
grande número de lesões de cárie apenas no lote O acompanhamento da condição dental do
suprido com sacarose36 (Tabela 7.2). homem ao longo do tempo permite concluir que o
aumento do consumo de açúcar foi alterando
gradativamente a ecologia da superfície dental.
Tabela 7.2
Intensidades de FormaçAo de Placa Bacteriana e da Lesões de Cáries em Dentes de Ratos Gnotobiotas
Monoinfectados com Streptococcus mutans e Alimentados com Dietas Contendo Diferentes Açúcares
(Michatek et a/.*)
5% de frutose + +/- +
Nenhum (controle) -•
-
* Açúcar invertido: obtido pela hidrólise da sacarose, sua molécula contém partes iguais de glicose e de frutose.
permitindo o aumento numérico principalmente de b) aos 12 anos, 46% eram isentas de cárie,
S. mutans na placa8, transformando-a, assim, em contrastando significativamente com a taxa de 1%
placa cariogênica. Por outro lado, o uso de observada nas crianças que não residiam nessa
alimentos cada vez mais macios e menos abrasi vos instituição. Essa baixíssima atividade de cárie pôde
foi reduzindo o desgaste oclusal, favorecendo a ser atribuída à quase ausência de dieta cariogênica,
deposição de placa e o maior aparecimento de visto que a água de abastecimento na Austrália,
cáries de fissuras. naquela época, não era fluo- retada e, além disso,
2. Estudos epidemiológicos: Demonstram que essas crianças não primavam pela higiene bucal,
populações que se desenvolvem isoladas, em locais pois 75% apresentavam gengivite;
onde a disponibilidade de açúcar refinado é mínima c) após os 13 anos de idade, as crianças dei-
ou até mesmo nula, apresentam índices de cárie xavam o orfanato e passavam a consumir a dieta
dental baixísimos ou até mesmo nulos. Em comum da população; a partir daí, seus CPOD
indivíduos de várias tribos indígenas da África e passaram a aumentar significativamente, mas não
das Américas, em habitantes de ilhas longínquas com a intensidade constatada nos adolescentes que
(Tristão da Cunha, Farõe e Polinésia Francesa) e desde crianças haviam consumido dieta
notadamente nos esquimós da Groenlândia e do cariogênica.
Alasca, os índices de cárie só aumentaram após o • As guerras costumam acarretar severas
contato com o chamado homem civilizado e, privações para os povos nela envolvidos,
consequentemente, com produtos açucarados53. dentre as quais a dificuldade para obter
Alguns desses estudos forneceram resultados certos alimentos essenciais. Durante a Se-
com excelentes aplicações em Cariologia gunda Guerra Mundial, os produtos açuca-
Preventiva: rados praticamente desapareceram da Europa
• Em crianças com poucos meses de vida a e do Japão, o que resultou em grandes
cerca de 13 anos de idade, criadas no or- reduções na incidência de cárie dental53.
fanato Hopewood House (Bowral, Austrália), Vários anos após o término dessa guerra e o
onde recebiam dieta praticamente vege- restabelecimento do consumo de açúcar,
tariana e com mínimas quantidades de açúcar estudos realizados na Noruega 55 e no Japão51
e de farinha refinada, Harris (19Ó3) 23 ob- evidenciaram um fato extremamente
servou os seguintes dados: interessante: os dentes erupciona- dos na
a) o CPOD médio apresentado aos 10 anos era época de restrição do açúcar apresentavam
0,9, enquanto escolares da mesma cidade, com a atividades de cárie sensivelmente menores
mesma idade, apresentavam CPOD médio do que os irrompidos após o final da guerra,
ou seja, quando da norma-
*53;
105
ti/ação da oferta dc produtos açucarados. A 3. Estudos de cárie dental experimental cm
aplicação dos atuais conhecimentos mi- humanos:
crobiológicos permite-nos conjecturar, com • Vipeholm (1954)20 : trata-se de uma pesquisa
grande possibilidade de acerto, que, na ausência basilar para a Cariologia, com cinco anos de
de açúcar, um número consistente de bactérias observação, realizada em 436 doentes
não-dependentes do açúcar, como 51 sanguinis, confinados no manicômio Vipeholm, situado
ocupa os receptores do esmalte dental e o na cidade sueca de Lund. Os autores
coloniza maciçamente, permitindo um tempo constataram que o consumo de produtos
maior de maturação dessa estrutura sem ser
açucarados fez aumentar o índice CPOD em
desafiada pelas espécies cariogênicas açúcar-
todos os grupos analisados, po rém com
dependentes 13 .
intensidades muito variadas em função da
• Outra importante fonte de observação
ocasião da ingestão e da consistência desses
epidemiológica são as populações de países
alimentos. O grupo-con- trole, mantido com
ou regiões com baixíssimo nível socio-
dieta o mais isenta de açúcar possível,
econômico, que costumam apresentar
apresentou baixíssimo aumento do número
baixíssimos índices de cáries. Um bom
de novas lesões de cárie (média de
exemplo ocorreu na Nigéria, onde a preva-
0,30/ano). O consumo de refrigerantes e de
lência de cárie foi praticamente nula até o
pães doces, exclusivamente nas refeições,
início da década de 1970, pois a população
induziu a pequenos aumentos na atividade de
miserável não tinha recursos para adquirir
cárie (médias de
produtos açucarados com frequência. Nessa
0, 67 e 1,30/ano, respectivamente). O au-
época, iniciou-se a prospecção de petróleo no
mento foi moderado no grupo que recebeu
delta do Rio Niger; como consequência, foi
chocolates apenas nas quatro refeições
gerado grande número de empregos e o
diárias, grande no grupo que consumiu oito
aumento do poder aquisitivo resultou em
balas toffees por dia (média de 3,13/ ano) e
súbito aumento do consumo de açúcar e, por
expressivo (média de 4,02 novas lesões/ano)
conseguinte, da atividade de cárie na
nos que consumiram 24 toffees diversas
população urbana, embora até hoje em níveis
vezes por dia (Tabela 7.3). Estes resultados
muito baixos. Em 1964, o CPOD médio das
demonstraram a expressiva cariogenicidade
crianças nigerianas era 0,64 e o consumo
do açúcar consumido nos intervalos entre as
médio de açúcar, em 1971, era de apenas
refeições, principalmente quando o alimento
l,8kg/pessoa/ano. Em 1982, esse consumo
açucarado possui consistência pegajosa, o
aumentara para 10,5kg/pessoa/ano; em 1984,
que implica maior tempo de retenção sobre o
o CPOD médio de crianças com 8 a 15 anos,
dente e, consequentemente, maior tempo de
estudantes de escolas particulares, havia
remoção.
aumentado para 1,18 enquanto o de alunos de
• Turku (1975)48: numa primeira fase deste
escolas públicas, portanto de classe social
estudo de cunho ético, durante dois anos,
menos abastada, era de apenas 0,39. Estudos
foram avaliadas as atividades cariogênicas
publicados em 1978* e 1979 4 constataram que
da sacarose, frutose e xilitol, um poliol não
os primeiros molares erupciona- dos antes do
fermentado ou minimamente fermentado
aumento do consumo de açúcar apresentavam
pelas bactérias bucais. Durante esse tempo,
índices de cárie significativamente menores
35 voluntários jovens receberam da
do que os observados nos segundos molares,
Universidade de Turku (Finlândia) produtos
das mesmas pessoas, irrompidos após esse
adoçados exclusivamente com sacarose, 35
aumento, confirmando os resultados das
exclusivamente com frutose e 52 ex-
pesquisas relatadas no item anterior.
clusivamente com xilitol (60 a 70 g/dia). §
O conjunto dessas pesquisas nos mostra a
atividade de cárie foi aferida pelo índice
importância do controle de ingestão de produtos
CPOS, utilizando exames clínicos e radio-
açucarados nas épocas das erupções dentais.
gráficos que incluíam a contagem de man-
chas brancas por superfície afetada. Após
dois anos, foram verificados CPOS médios
de 7,2 no grupo “sacarose” e de 3,8 no
Tabela 7.3
Resumo dos Principais Resultados da Pesquisa de Vipeholm24
Modo de Consumo do Açúcar Açúcar (kg/ano) Lesões Novas/Ano entre Refeições (Média)
Refeições
Controle 25 -, 0,30
CPOS
% 7.17 — Pesquisa de Turku: comparação dos potenciais cariogênicos da sacarose, fnitose e xilitol; substituição total da sacarose na dieta.
tendo sacarose. Os resultados evidenciaram os fiuoretos ou clorexidina. Este resultado mostra que o
mesmos efeitos benéficos obtidos com a substituição uso do xilitol reduz a probabilidade de transmissão
total, inclusive o favorecimento da remineralizarão de S. mutans da mãe para o filho e que essa redução
devido à ausência do desafio de bactérias cariogênicas estava mantida durante anos após a descontinuidade
(Fig. 7.18). do uso dessas gomas de mascar.
O conjunto dos estudos realizados em Turku • Van der Fer et al. (1970)57 avaliaram a for-
demonstrou que adoçantes não-fermentáveis, como o mação de cáries iniciais na região cervical
xilitol, não são cariogênicos, devendo substituir o vestibular de dentes de estudantes de
açúcar nos alimentos Ingeridos nos intervalos entre Odontologia que voluntariamente abandonaram
as refeições principais, com a finalidade de as práticas de higienização bucal durante mais
prevenção da cárie dental. Por outro lado, este de 23 dias e executaram nove bochechos
mesmo conjunto de estudos mostrou que a goma de diários com 10 ml de sacarose a 50%; o grupo-
mascar é o veículo ideal para o xilitol. controle apenas se absteve da higienização. A
Esta última assertiva foi confirmada, anos após, utilização de microscopia estereoscópica
por um dos pesquisadores envolvidos nos estudos verificou maior número de lesões iniciais no
feitos em Turku. Mãkinen et al. (1998)34 instituíram grupo-teste, evidenciando que a sacarose em
um regime de uso de gomas de mascar contendo solução tem rápida atividade cariogênica e que
xilitol (14 g/dia, em sete usos diários), durante 16 a consistência da dieta tem menor impacto
meses, em crianças com alta atividade de cárie. No sobre os dentes do que a freqüência"e a duração
final, constataram significativa redução no CPOS de sua utilização.
médio, causada principalmente pela sensível
diminuição no componente C (superfícies cariadas), Análise do Potencial Cariogênico da
corroborando a tese de o xilitol possibilitar o controle Dieta
do processo cariogênico.
Outra pesquisa realizada na Finlândia, publicada Na avaliação do risco de cárie, um importante
em 200149, mostrou nova aplicação preventiva de componente a ser determinado pela anamne- se é o
gomas de mascar adoçadas com xilitol. As contagens potencial cariogênico da dieta do nosso paciente e a
de estreptococos do grupo mutans efetuadas em freqüência com que esses alimentos são utilizados
salivas de crianças com três e seis anos cujas mães diariamente. Os principais fatores de cariogenicidade
tinham usado essas gomas durante 21 meses, inerentes aos alimentos consumidos são53:
iniciando três meses antes do parto, revelaram taxas • tipo de carboidrato: basicamente devemos
significativamente menores do que as dos filhos das considerar o maior risco do consumo de
que tinham recebido tratamento com vernizes
contendo
CPOS
109
tes, o que é grande engano, pois a base deles • os substitutos do açúcar não são cariogênicos
também é sacarose. Outro erro muito ou são fracamente cariogênicos, uns por não
propagado é que a maçã é “benéfica para os serem fermentáveis, e outros por sofrerem lenta
dentes”, que “remove a placa” e que deve ser e fraca fermentação da qual são gerados
mastigada principalmente quando da produtos não desmineralizantes ou pequenas
impossibilidade da escovação dental; mas é quantidades de ácido láctico (derivado do
uma fruta muito ácida e Graf (1970) 19 manitol e sorbitol) e de ácidos fracos. Dos
demonstrou que meia maçã, ingerida à noite em substitutos do açúcar mais utilizados, alguns
substituição à escovação dental, faz com que o não são calóricos (sacarina, ciclamato e
pH da placa madura decline para valores aspartame) e outros são calóricos (xilitol,
próximos a 4,2, que persistem durante mais de sorbitol e manitol). 0 uso constante desses
duas horas. Um aspecto importante, nesta edulcorantes teoricamente pode induzir a uma
análise, é que o maior risco de cariogenicidade adaptação principalmente de S. mutans, mas
consiste no consumo de alimentos cariogênicos provavelmente com pequena formação de áci-
imediatamente antes de dormirmos, devido à dos e mínimo risco de cáries. Essas substâncias
acentuada redução de fluxo salivar que ocorre devem ser usadas para adoçar alimentos
durante o sono; alimentos à base de amido consumidos nos intervalos entre as refeições,
cozido (pão, massas, batatas, pipoca, flocos de que são os potencialmente mais cariogênicos;
milho desprovidos de açúcar etc.) provocam • vários trabalhos, de larga aplicação pre
quedas de pH em torno de 5,7, portanto sem ventiva, demonstraram que alguns alimentos
atingir o pH crítico para o esmalte. Por (queijos, amendoim, presunto, nozes, cenoura,
conseguinte, considera-se que só haveria algum verduras frescas, ovos e gomas de mascar
risco de cárie coronária quando esses alimentos desprovidas de açúcar19*24,47) conseguem
são ingeridos com grande frequência ao longo estabilizar o pH da placa quando ingeridos no
do dia; na análise do potencial cariogênico, final das refeições mesmo junto com doces.
devemos atentar para o grau de consumo de São alimentos dmos que exigem mastigação
produtos contendo “açúcar oculto” (mostarda, enérgica ou que têm sabor pronunciado,
ketchup, molhos shoyu e vinagrete, batatas condições que induzem ao aumento de fluxo
chips, torradas comerciais etc.). Nos últimos salivar. Além disso, alguns, como o queijo,
anos, no entanto, o açúcar deixou de ser possuem substancias descritas como
“escondido”, no Brasil, em função das leis de anticariogênicas. ;
proteção ao consumidor que exigem a • trutas frescas, desde que não muito ácidas, não
especificação dos constituintes dos produtos são consideradas cariogênicas, devido à baixa
industrializados; também devem merecer concentração de açúcares (glicose e frutose) e à
atenção o tempo e a frequência da utilização de alta capacidade de estimulação do fluxo
medicamentos açucarados (xaropes, salivar;
expectorantes, antibióticos em solução, tônicos • o leite de vaca contém cerca de 4% de lactose,
e glóbulos homeopáticos) e daqueles que teor que aumenta para 6 a 9% no humano;
causam acentuada redução do fluxo salivar apesar da presença desses açúcares o leite puro
(ansiolíticos, anti-histaminicos, moderadores é considerado não cario- gênico ou até mesmo
do apetite, anti-parkinsonianos, hipotensivos, anticariogênica porque tem também como
relaxantes musculares, diuréticos etc.). O uso componentes a caseína e altas concentrações de
prolongado e a frequência de uso fazem com cálcio e fosfatos.
que se tornem potencialmente cariogênicos,
como qualquer produto açu- carado15; esta Importância da Freqüência do Consumo de
análise tem grande importância particularmente Dieta Cariogênica (Uso Racional)
nas áreas da Odontopediatria e
Odontogerontologia; Mesmo sabendo que a sacarose é responsável pelo
superdesenvol vi mento, na placa dental.
de bactérias cariogênicas, principalmente dos pl I da placa dental permaneceu abaixo do crítico para
estreptococos do grupo mutans, isto não implica a o esmalte (< 5,5) durante aproximadamente 60
necessidade de abolição de produtos açucarados de minutos, após os quais retomou ao nível basal.
nossa dieta. Principalmente em função de ser um Somando esses três tempos, verificamos que, ao longo
alimento associado ao prazer (hedonista), o uso do das 24 horas do dia, o dente fica sob risco de
açúcar é amplamente adotado pelas pessoas desmineralização durante cerca de três horas e que
praticamente no mundo inteiro, tomando inviável o existem longos períodos, garantidos pelos intervalos
controle da incidência de cáries baseado entre as ingestões, necessários para o processamento
exclusivamente em sua restrição. A partir dos da neutralização dos ácidos e da posterior
ensinamentos emanados da pesquisa de Vipeholm 20, remineralização da lesão inicial.
foi-se alargando a visão da necessidade da adoção de Este modelo comportamental representa o “uso
medidas visando ao chamado “uso racional do racional do açúcar”, pois resulta em baixo potencial
açúcar”. cariogênico mesmo quando consumimos consideráveis
Para entendermos como podemos usar alimentos quantidades de sacarose durante as refeições,
açucarados de forma a não resultar alto risco de cáries, confirmando um dos resultados da pesquisa de
vamos recorrer ao trabalho de Graf (1970) 19, que Vipeholm20. Fica, então, demonstrado que p
aplicou a técnica de telemetria do pH em placas hospedeiro dispõe de mecanismo defensivos capazes
interdentais maduras, durante dois dias consecutivos, de contrabalançar a ação nociva até mesmo de
em pessoas submetidas a dois padrões dietéticos, um consistentes quantidades de dieta cariogênica, desde
em cada dia (Fig. 7.19). que consumidas poucas vezes ao dia 30.
No primeiro dia (curvas de pH com linhas plenas), O gráfico composto por curvas com linhas
as pessoas-teste consumiram apenas três refeições pontilhadas foi registrado no segundo dia, no qual as
diárias nas quais estavam incluídos vários alimentos pessoas, além de consumirem produtos açucarados
cariogênicos. Podemos observar que, após cada uma durante as três refeições principais,
dessas refeições, o
Fig. 7.19 — Telemetria do pH de placas interdentais, realizada em dois dias consecutivos, com diferentes freqüências de consumo de alimentos
açucarados19.
UI
ainda os utilizaram, sob várias formas (chocola tes; C ONCLUSÃO
café açucarado + biscoito com figo; bana nas; chá
açucarado + chocolate; figos) ao longo do dia, em Resumindo todos os conhecimentos apresentados
oito intervalos entre elas. Neste caso, o tempo total neste capítulo, podemos concluir que o consumo
no qual o esmalte dental sofre agressão pelos ácidos freqüente de carboidratos fermentáveis,
(pH < 5,5) é de cerca de oito horas, logo um terço principalmente de sacarose, resulta em longas e
do dia. Isto indica que quando um desafio ácido está severas acidificações da placa bacteriana implantada
terminando, outro já está se iniciando, de forma a sobre os dentes. Como resultado da formação
impossibilitar a ação dos mecanismos defensivos, constante de ácidos, ocorre um severo desequilíbrio
principalmente do processo de remineralização da microbiota da placa, favorável à seleção de
(desequilíbrio do ciclo desmineralização x espécies intensamente acidogê- nicas e acidúricas
remineralização). Podemos, assim, concluir que que passam a predominar de forma a caracterizar a
esses mecanismos, tão atuantes durante as refeições, placa cariogênica.
tomam-se falhos mesmo diante de pequenas O desafio ácido frequente também acarreta o
quantidades de açúcar consumidas frequentemente desequilíbrio no ciclo desmineralização x remine-
entre as refeições30. ralização, possibilitando que a lesão incipiente
Este modelo comportamental é exatamente o evolua para mancha branca e, na sequência, para
adotado pelas pessoas que fazem o “uso irracional cavitação. A adoção de medidas efetivas reconduz
do açúcar”, muitas das quais atribuem a má para um reequilíbrio ecológico que culmina em
qualidade” de seus dentes a “azar”, “saliva ácida”, reequilíbrio do ciclo desmineralização x remi-
“dentes sem cálcio” e outras desculpas ab- neralização.
solutamente descabidas 13. Mesmo na ausência de severas restrições de dieta
O conjunto desses dados permite duas con- cariogênica, têm sido constatadas apreciáveis
clusões extremamente importantes relativas à reduções na incidência de cárie dental em habitantes
questão da cárie-atividade: de muitos países e este fato tem sido atribuído ao uso
Ia) indivíduos extremamente cárie-ativos podem constante de produtos fluoretados, que interferem
perfeitamente reverter essa condição quando beneficamente nesse ciclo. Por outro lado, em países
orientados e se convencerem a consumir ra- como o Japão, nos quais as pessoas têm pequena
cionalmente o açúcar. Por exemplo, pessoas que por exposição a fluoretos, não tem ocorrido o mesmo
qualquer motivo não se privam das “beliscadas” grau declínio de incidência de cáries observado em
outros países evoluídos52.
realizadas fora das refeições principais podem e
O processo de remineralização predomina
devem usar os substitutos do açúcar para adoçar as
quando a produção de ácidos fica restringida pelo
guloseimas, reduzindo ou anulando seu potencial
consumo de alimentos com baixos teores de sacarose
cariogênico, além de evitar aumento de peso
ou de substitutos do açúcar entre as refeições.
corporal (este motivo costuma ser mais convincente
Predomina, também, quando da utilização de
na atualidade);
produtos fluoretados.
2a) quando indivíduos isentos de cáries durante
A lesão clínica de cárie só aparece quando o
sua vida ou cárie-inativos no presente passam a
potencial de desmineralização sobrepuja o de
fazer uso prolongado do modelo “odonto- cida”
remineralização, devido à frequente ingestão de
demonstrado no gráfico pontilhado seguramente
açúcares e/ou severa redução do fluxo salivar.
estarão desmontando todo um sistema salutar e se Do ponto de vista da etiologia, conhecimento
autocondenando à condição de cá- rie-ativos; é só indispensável aplicado à sua prevenção ou controle, a
uma questão de tempo. cárie dental é uma doença:
Assim sendo, tanto a condição de cárie-ati- • infecciosa, pois não se expressa na ausência de
vidade quanto a situação de isenção de cáries não microrganismos específicos;
são imutáveis ao longo de nossas vidas. Por outro • endógena, pois não depende de microrga-
lado, a maior suscetibilidade à cárie é um fato que nismos patogênicos provenientes do meio
pode ser ocasional e que é francamente reversível externo: as bactérias potencialmente cario-
desde que sejam aplicadas, continuamente, medidas gênicas são próprias do ecossistema bucal. Em
adequadas de prevenção e controle, dentre as quais o condições normais, elas existem em
uso racional do açúcar.
baixas proporções relativas na placa dental* em 8. Coykendal A A. On the evolution of Streptococcus
taxas insuficientes para expressarem sua mutans and dental caries. In: Stiles HM et al. (ed).
patogenicidade. Aumentos numéricos expressivos Workshop on microbial aspects of dental caries.
Information Reetrieval, Washington, v. 3, pp. 703-
dessas* espécies, com consequente ação lesiva,
712, 1976.
são propiciados pelo aumento da oferta de
9. Cury JA. Uso do flúor. In: Baratieri LN et al.
nutrientes altamente energéticos como
Dentística: procedimentos preventivos e restaura-
carboidratos, principalmente a sacarose com
dores, 3* ed. Quintessence, S. Paulo, pp. 43-67,
relação aos estreptococos do grupo mutans; 1989.
• trifatorial, pois dependente da ação simultânea da 10. Cury JA et al. Biochemical composition and
tríade bactérias cariogênicas x dieta cariogênica x cariogenicity of dental plaque formed in the
suscetíbilidade individual (fatores do hospedeiro e presence of sucrose or glucose and fructose. Caries
de seus dentes); Res, 34:491-497, 2000.
• comportamental, porque sua ocorrência depende 11. De Lorenzo JL. Importância da utilização da sa-
da utilização que o hospedeiro faz de produtos que carose na cárie dental — Parte II. Rev Assoc Paul
contribuem para o desencadeamento e progressão Cirurg Dent, 43:10-12, 1989.
da lesão (dieta cariogênica) e de produtos que di- 12. De Lorenzo JL. Importância da utilização da sa-
ficultam o aparecimento e a evolução dessa lesão carose na cárie dental — Parte 1. Rev Assoc Paul
(higiene dental e suplementos fluoretados); Cirurg Dent, 42:362-364. 1988.
• reversível nas fases iniciais (lesão química inicial 13. De Lorenzo JL, De Lorenzo A. Etiologia da cárie
e mancha branca), porque se o hospedeiro der dental: base da prevenção atual. In: Cardoso RJAf
condições, através de medidas dietéticas e de Gonçalves EAN (ed). Odontologia, v. 4 Odonto-
higienização e do uso de produtos fluoretados, pediatria — Prevenção. APCD — Artes Médicas,
prevalecerá o processo de remineralização. Este São Paulo, pp. 215-234, 2002.
processo acarreta rfítidas vantagens para o dente, 14. De Soet JJ, Nyvard B, Kilian M. Strain relacted
pois as partes remineralizadas são mais resistentes acid production by oral streptococci. Caries Res,
a ácidos (pH crítico mais baixo), principalmente 34:486-490, 2000.
quando o processo reparativo é executado em 15. Feigal RJ, Jensen ME. The cariogenic potencial of
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