Apostila de Literatura
Apostila de Literatura
Apostila de Literatura
Material complementar
Barroco
Aos vícios (fragmentos)
Gregório de Matos Eu sou aquele que os passados anos
Cantei na minha lira maldizente
Poesia Satírica:
Torpezas do Brasil, vícios e enganos.
Soneto
E bem que os descantei bastantemente,
A um nobre que insistentes vezes lhe pedia um
Canto segunda vez na mesma lira
soneto e de quem o poeta nada tinha a dizer.
O mesmo assunto em pletro diferente.
[...]
Um soneto começo em vosso gabo;
De que pode servir calar quem cala?
Contemos esta regra por primeira,
Nunca se há de falar o que se sente?!
Já lá vão duas, e esta é a terceira,
Sempre se há de sentir o que se fala.
Já este quartetinho está no cabo.
Qual homem pode haver tão paciente,
Na quinta torce agora a porca o rabo:
Que, vendo o triste estado da Bahia,
A sexta vá também desta maneira,
Não chore, não suspire e não lamente?
na sétima entro já com grã canseira,
[...]
E saio dos quartetos muito brabo.
E quando vê talvez na doce treva
Louvado o bem, e o mal vituperado,
Agora nos tercetos que direi?
A tudo faz focinho, e nada aprova.
Direi, que vós, Senhor, a mim me honrais,
Gabando-vos a vós, e eu fico um Rei.
Diz logo prudentaço e repousado:
__ Fulano é um satírico, é um louco,
Nesta vida um soneto já ditei,
De língua má, de coração danado.
Se desta agora escapo, nunca mais;
[...]
Louvado seja Deus, que o acabei.
Se souberas falar, também falaras,
Também satirizaras, se souberas,
E se foras poeta, poetizaras.
Soneto
A ignorância dos homens destas eras
Neste mundo é mais rico, o que mais rapa:
Sisudos faz ser uns, outros prudentes,
Quem mais limpo se faz, tem mais carepa:
Que a mudez canoniza bestas feras.
Com sua língua ao nobre o vil decepa:
O Velhaco maior sempre tem capa.
Há bons, por não poder ser insolentes,
Outros há comedidos de medrosos,
Mostra o patife da nobreza o mapa:
Não mordem outros não - por não ter dentes.
Quem tem mão de agarrar, ligeiro trepa;
Quem menos falar pode, mais increpa:
Quantos há que os telhados têm vidrosos,
Quem dinheiro tiver, pode ser Papa.
E deixam de atirar sua pedrada,
De sua mesma telha receosos?
A flor baixa se inculca por Tulipa;
[...]
Bengala hoje na mão, ontem garlopa:
Todos somos ruins, todos perversos,
Mais isento se mostra, o que mais chupa.
Só os distingue o vício e a virtude,
De que uns são comensais, outros adversos.
Para a tropa do trapo vazio a tripa,
E mais não digo, porque a Musa topa
Quem maior a tiver, do que eu ter pude,
Em apa, epa, ipa, opa, upa.
Esse só me censure, esse me note,
Calem-se os mais, chiton, e haja saúde.
Soneto Soneto
A Cristo S. N. crucificado estando o poeta na Rompe o poeta com a Primeira Impaciência
última hora de sua vida querendo declarar-se e temendo perder por
ousado.
Meu Deus, que estais pendente em um madeiro,
Em cuja lei protesto de viver, Anjo no nome, Angélica na cara,
Em cuja santa lei hei de morrer Isso é ser flor, e Anjo juntamente,
Animoso, constante, firme e inteiro: Ser Angélica flor, e Anjo florente,
Em quem, senão em vós se uniformara?
Neste lance, por ser o derradeiro,
Pois vejo a minha vida anoitecer, Quem veria uma flor, que não a cortara
É meu Jesus, a hora de se ver De verde pé, de rama florescente?
A brandura de um Pai, manso Cordeiro. E quem um Anjo vira tão luzente,
Que por seu Deus, o não idolatra?
Mui grande é vosso amor e meu delito:
Porém, pode ter fim todo o pecar, Se como Anjo sois dos meus altares,
E não o vosso amor, que é infinito. Fôreis o meu custódio, e minha guarda,
Livrara eu de diabólicos azares.
Esta razão me obriga a confiar,
Que, por mais que pequei, neste conflito Mas vejo, que tão bela, e tão galharda,
Espero em vosso amor de me salvar. Posto que os Anjos nunca dão pesares,
Sois Anjo, que me tenta, e não me guarda.
Soneto Soneto
A Jesus Cristo Nosso Senhor Retrata o poeta as perfeições de sua senhora a
imitação de outro soneto que fez Felipe IV a uma
Pequei, Senhor, mas não porque hei pecado, dama traduzindo-o na língua portuguesa.
Da vossa piedade me despido,
Porque quanto mais tenho delinqüido, Se há ver-vos, quem há de retratar-vos,
Vos tenho a perdoar mais empenhado. E é forçoso cegar, quem chega a ver-vos,
Sem agravar meus olhos, e ofender-vos,
Se basta a vos irar tanto um pecado, Não há de ser possível copiar-vos.
A abrandar-vos sobeja um só gemido,
Que a mesma culpa, que vos há ofendido, Com neve, e rosas quis assemelhar-vos
Vos tem para o perdão lisonjeado. Mas fora honrar as flores, e abater-vos:
Dois zéfiros por olhos quis fazer-vos,
Se uma ovelha perdida, e já cobrada Mas quando sonham eles de imitar-vos?
Glória tal, e prazer tão repentino
vos deu, como afirmais na Sacra História: Vendo, que a impossíveis me aparelho,
Desconfiei da minha tinta imprópria,
Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada E a obra encomendei a osso espelho.
Cobrai-a, e não queirais, Pastor divino,
Perder na vossa ovelha a vossa glória. Porque nele com Luz, e cor mais própria
Sereis (se não me engana o meu conselho)
Pintor, Pintura, Original, e Cópia
Arcadismo
Não vês nas tuas margens o sombrio,
Fresco assento de um álamo copado;
Cláudio Manuel da Costa Não vês ninfa cantar, pastar o gado
Na tarde clara do calmoso estio.
Soneto
Turvo banhando as pálidas areias
Quem deixa o trato pastoril amado
Nas porções do riquíssimo tesouro
Pela ingrata, civil correspondência,
O vasto campo da ambição recreias.
Ou desconhece o rosto da violência,
Ou do retiro a paz não tem provado.
Que de seus raios o planeta louro
Enriquecendo o influxo em tuas veias,
Que bem é ver nos campos transladado
Quanto em chamas fecunda, brota em ouro.
No gênio do pastor, o da inocência!
E que mal é no trato, e na aparência
Vila Rica
Ver sempre o cortesão dissimulado!
Canto X
Ali respira amor sinceridade;
[...]
Aqui sempre a traição seu rosto encobre;
Vê-se o outro mineiro, que se ocupa
Um só trata a mentira, outro a verdade.
Em penetrar por mina o duro monte
Ao rumo oblíquo, ou reto; tem defronte
Ali não há fortuna, que soçobre;
Da gruta, que abre, a terra que extraíra;
Aqui quanto se observa, é variedade:
Os lagrimais das águas que retira
Oh ventura do rico! Oh bem do pobre!
Ao tanque artificioso logo solta;
Trazida a terra entre a corrente envolta,
Baixa as grades de ferro; ali parados,
Soneto
Os grossos esmeris são depurados,
Deixando ao dono em prêmio da fadiga
Torno a ver-nos, ó montes; o destino Os bons tesouros da fortuna amiga.
Aqui me torna a pôr nestes oiteiros;
Onde um tempo os gabões deixei grosseiros Por entre a pedra est’outro vai buscando
Pelo traje da Corte rico e fino. As betas de ouro; aquele vai trepando
Pelo escabroso monte, e as águas guia
Aqui estou entre Almendro, entre Corino, Pelos canais, que lhe abre a pedra fria.
Os meus fiéis, meus doces companheiros, Não menos mostra o gênio a agricultura
Vendo correr os míseros vaqueiros Tão rara do país, aonde a dura
Atrás de seu cansado desatino. Força dos bois não geme ao grave arado;
Só do bom lavrador o braço armado
Se o bem desta choupana pode tanto, Derriba os matos, e se ateia logo
Que chega a ter mais preço, e mais valia, Sobre a seca matéria o ardente fogo.
Que da cidade o lisonjeiro encanto; [...]
Romantismo
Quando passarmos juntos pela rua,
nos mostrarão c'o dedo os mais Pastores,
dizendo uns para os outros: — Olha os nossos
Gonçalves Dias
exemplos da desgraça e sãos amores.
Canção do exílio
Contentes viveremos desta sorte,
até que chegue a um dos dois a morte.
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Marília de Dirceu – (parte III) Não gorjeiam como lá.
Soneto III Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas tem mais flores,
Enganei-me, enganei-me – paciência! Nossos bosques tem mais vida,
Acreditei às vezes, cri, Ormia, Nossa vida mais amores.
Que a tua singeleza igualaria
A tua mais que angélica aparência. Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer encontro eu lá;
Enganei-me, enganei-me – paciência! Minha terra tem palmeiras,
Ao menos conheci que não devia Onde canta o sabiá.
Pôr nas mãos de uma externa galhardia
O prazer, o sossego e a inocência. Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
Enganei-me, cruel, com teu semblante, Em cismar - sozinho, à noite -
E nada me admiro de faltares, Mais prazer encontro eu lá;
Que esse teu sexo nunca foi constante. Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Mas tu perdeste mais em me enganares:
Que tu não acharás um firme amante, Não permita Deus que eu morra,
E eu posso de traidoras ter milhares. Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Soneto X Que não encontro por cá;
Sem qu'inda aviste as palmeiras,
Adeus, cabana, adeus; adeus, ó gado; Onde canta o Sabiá.
Albina ingrata, adeus, em paz te deixo; Coimbra - 1843.
Adeus, doce rabil; neste alto freixo
Te fica, ao meu destino consagrado. Se se morre de amor
Amar, e não saber, não ter coragem São rudos, severos, sedentos de glória,
Para dizer que amor que em nós sentimos; Já prélios incitam, já cantam vitória,
[...] Já meigos atendem à voz do cantor:
Sentir, sem que se veja, a quem se adora, São todos Timbiras, guerreiros valentes!
Compreender, sem lhe ouvir, seus pensamentos, Seu nome lá voa na boca das gentes,
Segui-la, sem poder fitar seus olhos, Condão de prodígios, de glória e terror!
Amá-la, sem ousar dizer que amamos,
E, temendo roçar os seus vestidos, As tribos vizinhas, sem forças, sem brio,
Arder por afogá-la em mil abraços: As armas quebrando, lançando-as ao rio,
Isso é amor, e desse amor se morre! O incenso aspiraram dos seus maracás:
Medrosos das guerras que os fortes acendem,
Se tal paixão porém enfim transborda, Custosos tributos ignavos lá rendem,
Se tem na terra o galardão devido Aos duros guerreiros sujeitos na paz.
Em recíproco afeto; e unidas, uma,
Dois seres, duas vidas se procuram, No centro da taba se estende um terreiro,
Entendem-se, confundem-se e penetram Onde ora se aduna o concílio guerreiro
Juntas — em puro céu d'êxtases puros: Da tribo senhora, das tribos servis:
Se logo a mão do fado as torna estranhas, Os velhos sentados praticam d'outrora,
Se os duplica e separa, quando unidos E os moços inquietos, que a festa enamora,
A mesma vida circulava em ambos; Derramam-se em torno dum índio infeliz.
Que será do que fica, e do que longe [...]
Serve às borrascas de ludíbrio e escárnio? Entanto as mulheres com leda trigança,
Pode o raio num píncaro caindo, Afeitas ao rito da bárbara usança,
Torná-lo dois, e o mar correr entre ambos; O índio já querem cativo acabar:
Pode rachar o tronco levantado A coma lhe cortam, os membros lhe tingem,
E dois cimos depois verem-se erguidos, Brilhante enduape no corpo lhe cingem,
Sinais mostrando da aliança antiga; Sombreia-lhe a fronte gentil canitar.
Dois corações porém, que juntos batem,
II
Que juntos vivem, — se os separam, morrem;
Em fundos vasos d'alvacenta argila
Ou se entre o próprio estrago inda vegetam,
Ferve o cauim;
Se aparência de vida, em mal, conservam,
Enchem-se as copas, o prazer começa,
Ânsias cruas resumem do proscrito,
Reina o festim.
Que busca achar no berço a sepultura!
Alugo (três mil réis) por uma tarde Dessas águas-furtadas onde eu moro
Um cavalo de trote (que esparrela!) Eu a vejo estendendo no telhado
Só para erguer meus olhos suspirando Os vestidos de chita, as saias brancas;
A minha namorada na janela... Eu a vejo e suspiro enamorado!
Todo o meu ordenado vai-se em flores Esta noite eu ousei mais atrevido
E em lindas folhas de papel bordado... Nas telhas que estalavam nos meus passos
Onde eu escrevo trêmulo, amoroso, Ir espiar seu venturoso sono,
Algum verso bonito... mas furtado. Vê-la mais bela de Morfeu nos braços!
Morro pela menina, junto dela Como dormia! que profundo sono!...
Nem ouso suspirar de acanhamento... Tinha na mão o ferro do engomado...
Se ela quisesse eu acabava a história Como roncava maviosa e pura!
Como toda a Comédia — em casamento... Quase caí na rua desmaiado!
Eu não desanimei. Se Dom Quixote Oh! De certo ... (pensei) é doce página
No Rossinante erguendo a larga espada Onde a alma derramou gentis amores;
Nunca voltou de medo, eu, mais valente, São versos dela... que amanhã de certo
Fui mesmo sujo ver a namorada... Ela me enviará cheios de flores...
Mas eis que no passar pelo sobrado, Tremi de febre! Venturosa folha!
Onde habita nas lojas minha bela, Quem pousasse contigo neste seio!
Por ver-me tão lodoso ela irritada Como Otelo beijando a sua esposa,
Bateu-me sobre as ventas a janela... Eu beijei-a a tremer de devaneio...
Dei ao diabo os namoros. Escovado Mas se Werther morreu por ver Carlota
Meu chapéu que sofrera no pagode... Dando pão com manteiga às criancinhas,
Dei de pernas corrido e cabisbaixo Se achou-a assim mais bela, - eu mais te adoro
E berrando de raiva como um bode. Sonhando-te a lavar as camisinhas!
Parnasianismo A um poeta
Muita gente infeliz assim não pensa; Febre de em vão falar, com os dedos brutos
No entanto o mundo é uma ilusão completa, Para falar, puxa e repuxa a língua,
E não é a Esperança por sentença E não lhe vem à boca uma palavra!
Este laço que ao mundo nos manieta?
Modernismo – I fase
Relicário
Oswald de Andrade No baile da corte
Foi o conde d’Eu quem disse
Erro de português
Pra Dona Benvinda
Que farinha de Suruí
Quando o português chegou
Pinga de Parati
Debaixo de uma bruta chuva
Fumo de Baependi
Vestiu o índio
É comê bebê pitá e caí
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
Contrabando
O índio tinha despido
O português
Os alfandegueiros de Santos
Examinaram minhas malas
Senhor feudal
Minhas roupas
Se Pedro Segundo
Mas se esqueceram de ver
Vier aqui
Que eu trazia no coração
Com história
Uma saudade feliz
Eu boto ele na cadeia
De Paris
Medo da senhora
Canto de regresso à pátria
A escrava pegou a filhinha nascida
Nas costas
Minha terra tem palmares
E se atirou no Paraíba
Onde gorjeia o mar
Para que a criança não fosse judiada
Os passarinhos daqui
Não cantam como os de lá
Pronominais
Minha terra tem mais rosas
Dê-me um cigarro
E quase que mais amores
Diz a gramática
Minha terra tem mais ouro
Do professor e do aluno
Minha terra tem mais terra
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Ouro terra amor e rosas
Da Nação Brasileira
Eu quero tudo de lá
Dizem todos os dias
Não permita Deus que eu morra
Deixa disso camarada
Sem que volte para lá
Me dá um cigarro
Não permita Deus que eu morra
Vício na fala
Sem que volte pra São Paulo
Sem que veja a Rua 15
Para dizerem milho dizem mio
E o progresso de São Paulo.
Para melhor dizem mió
Para pior pió
As meninas da gare
Para telha dizem teia
Para telhado dizem teiado Eram três ou quatro moças bem moças e bem gentis
E vão fazendo telhados Com cabelos mui pretos pelas espáduas
E suas vergonhas tão altas e tão saradinhas
O capoeira Que de nós as muito bem olharmos
— Qué apanhá sordado? Não tínhamos nenhuma vergonha.
— O quê?
— Qué apanhá?
Pernas e cabeças na calçada
Literatura – Prof. Fabrício César
29
Inspiração Paisagem n° 4
Onde até na força do verão havia Os caminhões rodando, as carroças rodando,
tempestades de ventos e frios de rápidas as ruas se desenrolando,
crudelíssimos invernos rumor surdo e rouco, estrépitos, estalidos...
Frei Luís de Souza E o largo coro de ouro das sacas de café!...
São Paulo! comoção de minha vida... Na confluência o grito inglês da São Paulo Railway...
Os meus amores são flores feitas de original!... Mas as ventaneiras da desilusão! a baixa do café!...
Arlequinal!... Traje de losangos... Cinza e ouro... As quebras, as ameaças, as audácias superfinas!...
Luz e bruma... Forno e inverno morno... Fogem os fazendeiros para o lar!... Cincinato Braga!...
Elegâncias sutis sem escândalos, sem ciúmes... Muito ao longe o Brasil com seus braços cruzados...
Perfumes de Paris... Aryz! Oh! as indiferenças maternais!...
Bofetadas líricas no Trianon... Algodoal!... [...]
Oh! Este orgulho máximo de ser paulistamente!!!
São Paulo comoção de minha vida...
Galicismo a berrar nos desertos da América. Cincinato Braga: presidente do Banco do Brasil na década de
1910
Paisagem n° 1
Minhas Londres das neblinas finas! Quando eu morrer
Plenos verão. Os dez mil milhões de rosas
[paulistanas. Quando eu morrer quero ficar,
Há neve de perfume no ar. Não contem aos meus inimigos,
Faz frio, muito frio... Sepultado em minha cidade,
E a ironia das pernas das costureirinhas Saudade.
parecidas com bailarinas...
O vento é como uma navalha Meus pés enterrem na rua Aurora,
nas mãos dum espanhol. Arlequinal!... No Paissandu deixem meu sexo,
Há duas horas queimou Sol. Na Lopes Chaves a cabeça
Daqui a duas horas queima Sol. Esqueçam.
[...]
Paisagem n° 2 No Pátio do Colégio afundem
Escuridão dum meio-dia de invernia... O meu coração paulistano:
Marasmos... Estremeções... Brancos... Um coração vivo e um defunto
O céu é toda uma batalha convencional de confetti Bem juntos.
[brancos;
e as onças pardas das montanhas no longe... Escondam no Correio o ouvido
Oh! para além vivem as primaveras eternas! Direito, o esquerdo nos Telégrafos,
[...] Quero saber da vida alheia,
Deus recortou a alma de Paulicéia Sereia.
num cor de cinza sem odor...
[...] O nariz guardem nos rosais,
São Paulo é um palco de bailados russos. A língua no alto do Ipiranga
Sarabandam a tísica, a ambição, as invejas, os [crimes Para cantar a liberdade.
e também as apoteoses de ilusão... Saudade...
[...]
Paisagem n° 3 Os olhos lá no Jaraguá
Chove? Assistirão ao que há de vir,
Sorri uma garoa de cinza, O joelho na Universidade,
Muito triste, como um tristemente longo... Saudade...
A Casa Kosmos não tem impermeáveis em
[liquidação... As mãos atirem por aí,
[...] Que desvivam como viveram,
As rolas da Normal As tripas atirem pro Diabo,
Esvoaçam entre os dedos da garoa... Que o espírito será de Deus.
[...] Adeus.
De repente
Um raio de Sol arisco
Risca o chuvisco ao meio.
Literatura – Prof. Fabrício César
31
Misael, funcionário da Fazenda, com 63 anos de ―Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha
idade. [do horizonte?
__ O que eu vejo é o beco‖.
Conheceu Maria Elvira na Lapa – prostituída,
com sífilis, dermite nos dedos, uma aliança Poema tirado de uma notícia de jornal
empenhada e os dentes em petição de miséria.
João Gostoso era carregador de feira-livre e
Misael tirou Maria Elvira da vida, instalou-a [morava no morro da Babilônia num barracão
num sobrado no Estácio, pagou médico, dentista, [sem número
manicura... Dava tudo o que ela queria.
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Quando Maria Elvira se apanhou de boca Bebeu
bonita, arranjou logo um namorado. Cantou
Dançou
Misael não queria escândalo. Podia dar uma Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e
surra, um tiro, uma facada. Não fez nada disso: [morreu afogado.
mudou de casa.
Viveram três anos assim. Pneumotórax
Toda vez que Maria Elvira arranjava namorado, Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.
Misael mudava de casa. A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.
Os amantes moraram no Estácio, Rocha, Catete, Mandou chamar o médico:
Rua General Pedra, Olaria, Ramos, Bom Sucesso, — Diga trinta e três.
Vila Isabel, Rua Marquês de Sapucaí, Niterói, — Trinta e três . . . trinta e três . . . trinta e três . .
Encantado, Rua Clapp, outra vez no Estácio, — Respire.
Todos os Santos, Catumbi, Lavradio, Boca do ...............................................................................
Mato, Inválidos... — O senhor tem uma escavação no pulmão
[esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
Por fim na Rua da Constituição, onde Misael, — Então, doutor, não é possível tentar o
privado de sentidos e de inteligência, matou-a [pneumotórax?
com seis tiros, e a polícia foi encontrá-la caída em — Não. A única coisa a fazer é tocar um tango
decúbito dorsal, vestida de organdi azul. argentino.
O Bicho Andorinha
Andorinha lá fora está dizendo:
Vi ontem um bicho — "Passei o dia à toa, à toa!"
Na imundice do pátio Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais
Catando comida entre os detritos. [triste!
Passei a vida à toa, à toa . . .
Quando achava alguma coisa;
Não examinava nem cheirava: Neologismo
Engolia com voracidade.
Beijo pouco, falo menos ainda.
O bicho não era um cão, Mas invento palavras
Não era um gato, Que traduzem a ternura mais funda
Não era um rato. E mais cotidiana.
Inventei, por exemplo, o verbo teadorar.
O bicho, meu Deus, era um homem. Intransitivo:
Teadoro, Teodora.
O bonde passa cheio de pernas: No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu
pernas brancas pretas amarelas. a ninar nos longes da senzala – e nunca se
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu esqueceu
[coração. chamava para o café.
Porém meus olhos Café preto que nem a preta velha
não perguntam nada. café gostoso
café bom.
O homem atrás do bigode
é serio, simples e forte. Minha mãe ficava sentada cosendo
Quase não conversa. olhando para mim:
Tem poucos, raros amigos - Psiu... Não acorde o menino.
o homem atrás dos óculos e do bigode. Para o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro... que fundo!
Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus Lá longe meu pai campeava
se sabias que eu era fraco. no mato sem fim da fazenda.
E eu não sabia que minha história
era mais bonita que a de Robinson Crusoé.
Literatura – Prof. Fabrício César
36
Repara:
Consideração do poema ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Não rimarei a palavra sono Ainda úmidas e impregnadas de sono,
com a incorrespondente palavra outono. rolam num rio difícil e se transformam em
Rimarei com a palavra carne [desprezo.
ou qualquer outra, que todas me convêm.
As palavras não nascem amarradas,
elas saltam, se beijam, se dissolvem,
no céu livre por vezes um desenho,
são puras, largas, autênticas, indevassáveis.
[...]
Poesia Concreta
Augusto de Campos
Décio Pignatari
Augusto de Campos
Augusto de Campos
Pedro Xisto
Literatura – Prof. Fabrício César
43
Pedro Xisto
vai e vem
e e
Décio Pignatari
vem e vai
José Lino Grünewald
V V V VVVVVVV
V V V VVVVVVE
V V V VVVVVE L
V V V VVVVE LO
V V V VVVE LOC
V V V VVE LOC I
V V V VE LOC I D Philadelpho Menezes
V V V E LOC I DA
V V E LOC I DAD
V E L OC I DADE
Ronaldo Azeredo
Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço
O poema, senhores,
não fede
nem cheira
Ferreira Gullar
O açúcar
Vejo-o puro
E afável ao paladar
José de Arimatéia Como beijo de moça, água
Na pele, flor
Que se dissolve na boca. Mas este açúcar
Poesia Social Não foi feito por mim.
Não há vagas Este açúcar veio
Da mercearia da esquina e
O preço do feijão Tampouco o fez o Oliveira,
não cabe no poema. O preço Dono da mercearia.
do arroz Este açúcar veio
não cabe no poema. De uma usina de açúcar em Pernambuco
Não cabem no poema o gás Ou no Estado do Rio
a luz o telefone E tampouco o fez o dono da usina.
a sonegação
do leite Este açúcar era cana
da carne E veio dos canaviais extensos
do açúcar Que não nascem por acaso
do pão No regaço do vale.
Amor, então,
Em lugares distantes, também acaba?
Onde não há hospital, Não, que eu saiba.
Nem escola, homens que não sabem ler e morrem O que eu sei
de fome é que se transforma
Aos 27 anos numa matéria-prima
Plantaram e colheram a cana que a vida se encarrega
Que viraria açúcar. de transformar em raiva.
Em usinas escuras, homens de vida amarga Ou em rima.
E dura Paulo Leminski
Produziram este açúcar
Branco e puro moinho de versos
Com que adoço meu café esta manhã movido a vento
Em Ipanema. em noites de boemia
Ferreira Gullar
vai vir o dia
Poesia Marginal quando tudo que eu diga
seja poesia
Papo de Índio Paulo Leminski
Veiu uns ômi di saia preta
cheiu di caixinha e pó branco o pauloleminski
qui eles disserum qui chamava açucri é um cachorro louco
aí eles falarum e nós fechamu a cara que deve ser morto
depois eles arrepitirum e nós fechamu o corpo a pau a pedra
aí eles insistirum e nós comemu eles. a fogo a pique
Chacal senão é bem capaz
o filhodaputa
cansei da frase polida de fazer chover
por anjos da cara pálida em nosso piquenique
palmeiras batendo palmas Paulo Leminski
ao passarem paradas
agora eu quero a pedrada Rápido e Rasteiro
chuva de pedras palavras
distribuindo pauladas Vai ter uma festa
Paulo Leminski que eu vou dançar
até o sapato pedir pra parar.
Descartes
Não há aí eu paro
no mundo nada tiro o sapato
mais bem e danço o resto da vida.
distribuído do que a Chacal
razão: até quem não tem tem
um pouquinho saber é pouco
Cacaso como é que a água do mar
entra dentro do coco?
Pega ladrão Paulo Leminski
Alguém tirou
um pedaço esta vida é uma viagem
do meu pena eu estar
P ~O só de passagem
Kátia Bento Paulo Leminski