Apostila de Literatura

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Apostila de Literatura

Material complementar

Prof. Fabrício César


2

Análise de textos do Gênero Lírico A rosa fez serenata


O cravo foi espiar
E as flores fizeram festa
Autopsicografia Porque eles vão se casar.
Cantiga popular
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente A Árvore da Serra
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente. - As árvores, meu filho, não têm alma!
E esta árvore me serve de empecilho...
E os que lêem o que escreve, É preciso cortá-la, pois, meu filho,
Na dor lida sentem bem, Para que eu tenha uma velhice calma!
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm. - Meu pai, por que sua ira não se acalma?!
Não vê que em tudo existe o mesmo brilho?!
E assim nas calhas de roda Deus pôs almas nos cedros... no junquilho...
Gira, a entreter a razão, Esta árvore, meu pai, possui minh'alma! ...
Esse comboio de corda
Que se chama coração. - Disse - e ajoelhou-se, numa rogativa:
Fernando Pessoa "Não mate a árvore, pai, para que eu viva!"
E quando a árvore, olhando a pátria serra,
Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não. Caiu aos golpes do machado bronco,
Eu simplesmente sinto O moço triste se abraçou com o tronco
Com a imaginação. E nunca mais se levantou da terra!
Não uso o coração. Augusto dos Anjos
Tudo o que sonho ou passo, Contrabando
O que me falha ou finda,
É como que um terraço Os alfandegueiros de Santos
Sobre outra coisa ainda. Examinaram minhas malas
Essa coisa é que é linda. Minhas roupas
Mas se esqueceram de ver
Por isso escrevo em meio Que eu trazia no coração
Do que não está ao pé, Uma saudade feliz
Livre do meu enleio, De Paris.
Sério do que não é, Oswald de Andrade
Sentir, sinta quem lê!
Fernando Pessoa Na poça da rua
O vira-lata
O cravo brigou com a rosa Lambe a Lua.
Millôr Fernandes
O cravo brigou co’a rosa,
Debaixo de uma sacada, Amar é um elo
O cravo saiu ferido, Entre o azul
E a rosa despedaçada. E o amarelo
Paulo Leminski
O cravo ficou doente,
A rosa foi visitar, Os grilos cantam apenas
O cravo teve um desmaio, do meu lado esquerdo
E a rosa pôs-se a chorar. estou ficando velho.
Paulo Franchetti

Literatura – Prof. Fabrício César


3

Cantigas trovadorescas Ai Deus, que grave coita de sofrer!


Desejar mort'e haver a viver
Cantigas de Amor com'hoj'eu viv', e mui sen meu prazer.
Con esta coita que me ven tanta,
Cantiga da Ribeirinha desejo mort'e quería morrer,
porque se foi a Raínha franca!
No mundo non me sei parelha,
mentre me for como me vai, [...]
ca ja moiro por vós e ai!
mia senhor branca e vermelha, Ai coitado, con quanto mal me ven,
queredes que vós retraia porque desejo mia morte, por én
quando vos eu vi en saia. perdí o dormir e perdí o sén,
Mao día me levantei, e choro sempre quand'outren canta,
que vos entón non vi fea! e máis desejo morte doutra ren,
porque se foi a Raínha franca!
E, mia senhor, des aquelha Pero Garcia Burgalês
me foi a mí mui mal di'ai!,
E vós, filha de don Paai Cantigas de Amigo
Moniz, e ben vos semelha
d'haver eu por vós guarvaia, - Ai flores, ai flores do verde pino,
pois eu, mia senhor, d'alfaia se sabedes novas do meu amigo!
nunca de vós houve nen hei Ai Deus, e u é?
valía d’ua correa.
Paio Soares de Taveirós Ai, flores, ai flores do verde ramo,
se sabedes novas do meu amado!
Tradução da Cantiga da Ribeirinha Ai Deus, e u é?

No mundo ninguém se assemelha a mim Se sabedes novas do meu amigo,


enquanto a minha continuar como vai, aquel que mentiu do que pos comigo!
porque morro por vós, e ai! Ai Deus, e u é?
minha senhora, de pele branca e faces rosadas,
quereis que vos retrate quando vos vi sem manto. Se sabedes novas do meu amado
Maldito dia que me levantei aquel que mentiu do que mi há jurado!
que não vos vi feia! Ai Deus, e u é?
E, minha senhora, desde aquele dia, ai!
-Vós me preguntades polo voss'amigo,
Tudo me foi muito mal,
e vós, filha de bom Pai e eu ben vos digo que é san'e vivo.
Moniz, e bem vos parece Ai Deus, e u é?
de ter eu por vós guarvaia,
pois eu, minha senhora, como mimo Vós me preguntades polo voss'amado,
de vós nunca recebi algo, e eu ben vos digo que é viv'e sano.
mesmo sem valor. Ai Deus, e u é?

E eu ben vos digo que é san'e vivo


Senhora minha, desde que vos vi, e seerá vosc'ant'o prazo saído.
lutei para ocultar esta paixão Ai Deus, e u é?
que me tomou inteiro o coração;
mas não o posso mais e decidi E eu ben vos digo que é viv'e sano
que saibam todos o meu grande amor, e seerá vosc'ant'o prazo passado.
a tristeza que tenho, a imensa dor Ai Deus, e u é?
que sofro desde o dia em que vos vi. Dom Dinis
Afonso Fernandes

Literatura – Prof. Fabrício César


4

Cantigas de escárnio Cantigas de maldizer

Ai, dona fea, fostes-vos queixar Martim jogral, que defeita,


que vos nunca louv’en meu trobar sempre convosco se deita
mais ora quero fazer un cantar vossa mulher!
em que vos loarei toda via
e vedes como vos quero loar Vedes-me andar suspirando;
dona fea, velha e sandia! e vós deitado, gozando
vossa mulher!
Dona fea! se Deus me perdon!
e pois havedes tan gran coraçon Do meu mal não vos doeis;
que vos eu loe, en esta razon, morro eu e vós fodeis
vos quero já loar toda via; vossa mulher!
e vedes qual será a loaçan:
dona fea, velha e sandia! Juan Garcia de Guilhade

Dona fea, nunca vos eu loei


em meu trobar, pero muito trobei; Ben me cuidei eu, María García,
mais ora ja un bon cantar farei en outro dia, quando vos fodi,
en que vos loarei toda via; que me non partiss'eu de vós assi
e direi-vos como vos loarei: como me parti já, mão vazia,
dona fea, velha e sandia! vel por serviço muito que vos fiz;
Juan Garcia de Guilhade que me non deste, como x'omen diz,
sequer un soldo que ceass' un dia.
Roi Queimado morreu con amor
en seus cantares, par Sancta Maria, Mais desta seerei eu escarmentado
por ũa dona que gran ben queria: de nunca foder ja outra tal molher,
e, por se meter por mais trobador, se m'ant'algo na mão non poser,
porque lhe ela non quis ben fazer, ca non hei por que foda endoado;
feze-s'el en seus cantares morrer, e vós, se assí queredes foder,
mais resurgiu depois ao tercer dia! sabedes como: ide-o fazer
con quen teverdes vistid'e calçado.
Esto fez el por ũa senhor
que quer gran ben, e mais vos en diria: Ca me non vistides nen me calçades
por que cuida que faz i maestria, nen ar sej'eu eno vosso casal,
e nos cantares que faz, a sabor nen havedes sobre min poder tal
de morrer i e des i d'ar viver; por que vos foda, se me non pagades;
esto faz el que x'o pode fazer, ante mui ben e mais vos en direi:
mais outr'omem per ren' nono faria. nulho medo, grad’a Deus e a el-Rei,
non hei de força que me vós façades.
E non á já de sa morte pavor,
senon sa morte mais la temeria, E, mia dona, quen pregunta non erra;
mais sabe ben, per sa sabedoria, e vós, por Deus, mandade preguntar
que viverá, des quando morto for, polos naturaes deste logar
e faz-[s'] en seu cantar morte prender, se foderan nunca en paz nen en guerra,
des i ar vive: vedes que poder ergo se foi por alg'ou por amor.
que lhi Deus deu, mais que non cuidaria. Id'adubar vossa prol, ai, senhor,
c'havedes, grad'a Deus, renda na terra.
E, se mi Deus a mim desse poder
qual oj'el á, pois morrer, de viver, Afonso Eanes do Coton
já mais morte nunca temeria.
Pero Garcia

Literatura – Prof. Fabrício César


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Classicismo Português - Camões Soneto

Amor é um fogo que arde sem se ver;


Camões épico é ferida que dói e não se sente;
é um contentamento descontente;
Segue abaixo um trecho do Canto II, da obra “Os
é dor que desatina sem doer;
Lusíadas”, no qual a deusa Vênus implora a
Júpiter que ajude os Portugueses, visando
É um não querer mais que bem querer;
protegê-los:
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar-se de contente;
―Sempre eu cuidei, ó Padre poderoso
é um cuidar que ganha em se perder.
Que, pera as cousas que eu do peito amasse,
Te achasse brando, afabil e amoroso,
É querer estar preso por vontade;
Posto que a algum contrairo lhe pesasse;
é servir a quem vence, o vencedor;
Mas, pois que contra mi te vejo iroso,
é ter com quem nos mata, lealdade.
Sem que to merecesse nem te errasse,
Faça-se como Baco determina;
Mas como causar pode seu favor
Assentarei, enfim, que fui mofina.
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?
Este povo, que é meu, por quem derramo
As lágrimas que em vão caídas vejo,
Que assaz de mal lhe quero, pois que o amo,
Ainda que eu falasse línguas,
Sendo tu tanto contar meu desejo,
as dos homens e dos anjos,
Por ele a ti rogando, choro e bramo,
se eu não tivesse o amor,
E contra minha dita, enfim, pelejo,
seria como sino ruidoso
Ora pois, porque o amo, é mas tratado,
ou como címbalo estridente.
Quero-lhe querer mal: será guardado.‖
[...]
(Os Lusíadas. Canto II - Estrofes 39 e 40)
se eu não tivesse o amor,
eu não seria nada.
Camões lírico Apóstolo Paulo (I Coríntios 13: 01-02)
Medida nova Medida velha
Soneto Ao desconcerto do mundo
Busque Amor novas artes, novo engenho Os bons vi sempre passar
Para matar-me, e novas esquivanças, No mundo graves tormentos;
Que não pode tirar-me as esperanças, E pera mais me espantar,
Que mal me tirará o que eu não tenho. Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Olhai de que esperanças me mantenho! Cuidando alcançar assim
Vede que perigosas seguranças! O bem tão mal ordenado,
Que não temo contrastes nem mudanças, Fui mau, mas fui castigado.
Andando em bravo mar, perdido o lenho. Assim que só para mim
Anda o Mundo concertado.
Mas, enquanto não pode haver desgosto
Onde esperança falta, lá me esconde
Amor um mal, que mata e não se vê,

Que dias há que na alma me tem posto


Um não sei quê, que nasce não sei onde,
Vem não sei como, e dói não sei por quê.

Literatura – Prof. Fabrício César


6

Quinhentismo Andavam já mais mansos e seguros entre


nós, do que nós andávamos entre eles.
Trechos selecionados da Carta de Pero Vaz de [...]
Caminha: Parece-me gente de tal inocência que, se
homem os entendesse e eles a nós, seriam logo
Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma cristãos, porque eles, segundo parece, não têm,
que lhes cobrisse suas vergonhas. Nas mãos nem entendem em nenhuma crença.
traziam arcos com suas setas. Vinham todos rijos [...]
sobre o batel; e Nicolau Coelho lhes fez sinal que Portanto Vossa Alteza, que tanto deseja
pousassem os arcos. E eles os pousaram. acrescentar a santa fé católica, deve cuidar da sua
[...] salvação. E prazerá a Deus que com pouco
A feição deles é serem pardos, maneira de trabalho seja assim.
avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem- [...]
feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura. Nem Eram já aí alguns deles, obra de setenta ou
estimam de cobrir ou de mostrar suas vergonhas; oitenta; e, quando nos viram assim vir, alguns se
e nisso têm tanta inocência como em mostrar o foram meter debaixo dela, para nos ajudar.
rosto. [...]
[...] E quando veio ao Evangelho, que nos
O Capitão, quando eles vieram, estava erguemos todos em pé, com as mãos levantadas,
sentado em uma cadeira, bem vestido, com um eles se levantaram conosco e alçaram as mãos,
colar de ouro mui grande ao pescoço, e aos pés ficando assim, até ser acabado; e então tornaram-
uma alcatifa por estrado. [...] Entraram. Mas não se a assentar como nós. E quando levantaram a
fizeram sinal de cortesia, nem de falar ao Capitão Deus, que nos pusemos de joelhos, eles se
nem a ninguém. Porém um deles pôs olho no puseram assim todos, como nós estávamos com as
colar do Capitão, e começou de acenar com a mão mãos levantadas, e em tal maneira sossegados,
para a terra e depois para o colar, como que nos que, certifico a Vossa Alteza, nos fez muita
dizendo que ali havia ouro. Também olhou para devoção.
um castiçal de prata e assim mesmo acenava para [...]
a terra e novamente para o castiçal como se lá Porém a terra em si é de muito bons ares,
também houvesse prata. assim frios e temperados como os de Entre Douro
[...] e Minho, porque neste tempo de agora os
Ali andavam entre eles três ou quatro achávamos como os de lá.
moças, bem moças e bem gentis, com cabelos Águas são muitas; infindas. E em tal
muito pretos, compridos pelas espáduas, e suas maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar,
vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem.
das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, [...]
não tínhamos nenhuma vergonha. Porém o melhor fruto, que nela se pode
[...] fazer, me parece que será salvar esta gente. E esta
E uma daquelas moças era toda tingida, de deve ser a principal semente que Vossa Alteza em
baixo a cima daquela tintura; e certo era tão bem- ela deve lançar.
feita e tão redonda, e sua vergonha (que ela não
tinha) tão graciosa, que a muitas mulheres da E nesta maneira, Senhor, dou aqui a Vossa
nossa terra, vendo-lhe tais feições, fizera Alteza do que nesta vossa terra vi. E, se algum
vergonha, por não terem a sua como ela. pouco me alonguei, Ela me perdoe, que o desejo
[...] que tinha, de Vos tudo dizer, mo fez assim pôr
Eu creio, Senhor, que ainda não dei conta pelo miúdo.
aqui a Vossa Alteza da feição de seus arcos e Beijo as mãos de Vossa Alteza.
setas. Os arcos são pretos e compridos, as setas
também compridas e os ferros delas de canas Deste Porto Seguro, da Vossa Ilha de Vera
aparadas, segundo Vossa Alteza verá por alguns Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de
que – eu creio -- o Capitão a Ela há de enviar. 1500.
[...] Pero Vaz de Caminha

Literatura – Prof. Fabrício César


7

Barroco
Aos vícios (fragmentos)
Gregório de Matos Eu sou aquele que os passados anos
Cantei na minha lira maldizente
Poesia Satírica:
Torpezas do Brasil, vícios e enganos.
Soneto
E bem que os descantei bastantemente,
A um nobre que insistentes vezes lhe pedia um
Canto segunda vez na mesma lira
soneto e de quem o poeta nada tinha a dizer.
O mesmo assunto em pletro diferente.
[...]
Um soneto começo em vosso gabo;
De que pode servir calar quem cala?
Contemos esta regra por primeira,
Nunca se há de falar o que se sente?!
Já lá vão duas, e esta é a terceira,
Sempre se há de sentir o que se fala.
Já este quartetinho está no cabo.
Qual homem pode haver tão paciente,
Na quinta torce agora a porca o rabo:
Que, vendo o triste estado da Bahia,
A sexta vá também desta maneira,
Não chore, não suspire e não lamente?
na sétima entro já com grã canseira,
[...]
E saio dos quartetos muito brabo.
E quando vê talvez na doce treva
Louvado o bem, e o mal vituperado,
Agora nos tercetos que direi?
A tudo faz focinho, e nada aprova.
Direi, que vós, Senhor, a mim me honrais,
Gabando-vos a vós, e eu fico um Rei.
Diz logo prudentaço e repousado:
__ Fulano é um satírico, é um louco,
Nesta vida um soneto já ditei,
De língua má, de coração danado.
Se desta agora escapo, nunca mais;
[...]
Louvado seja Deus, que o acabei.
Se souberas falar, também falaras,
Também satirizaras, se souberas,
E se foras poeta, poetizaras.
Soneto
A ignorância dos homens destas eras
Neste mundo é mais rico, o que mais rapa:
Sisudos faz ser uns, outros prudentes,
Quem mais limpo se faz, tem mais carepa:
Que a mudez canoniza bestas feras.
Com sua língua ao nobre o vil decepa:
O Velhaco maior sempre tem capa.
Há bons, por não poder ser insolentes,
Outros há comedidos de medrosos,
Mostra o patife da nobreza o mapa:
Não mordem outros não - por não ter dentes.
Quem tem mão de agarrar, ligeiro trepa;
Quem menos falar pode, mais increpa:
Quantos há que os telhados têm vidrosos,
Quem dinheiro tiver, pode ser Papa.
E deixam de atirar sua pedrada,
De sua mesma telha receosos?
A flor baixa se inculca por Tulipa;
[...]
Bengala hoje na mão, ontem garlopa:
Todos somos ruins, todos perversos,
Mais isento se mostra, o que mais chupa.
Só os distingue o vício e a virtude,
De que uns são comensais, outros adversos.
Para a tropa do trapo vazio a tripa,
E mais não digo, porque a Musa topa
Quem maior a tiver, do que eu ter pude,
Em apa, epa, ipa, opa, upa.
Esse só me censure, esse me note,
Calem-se os mais, chiton, e haja saúde.

Literatura – Prof. Fabrício César


8

Poesia Lírica-Religiosa: Poesia Lírica-Amorosa:

Soneto Soneto
A Cristo S. N. crucificado estando o poeta na Rompe o poeta com a Primeira Impaciência
última hora de sua vida querendo declarar-se e temendo perder por
ousado.
Meu Deus, que estais pendente em um madeiro,
Em cuja lei protesto de viver, Anjo no nome, Angélica na cara,
Em cuja santa lei hei de morrer Isso é ser flor, e Anjo juntamente,
Animoso, constante, firme e inteiro: Ser Angélica flor, e Anjo florente,
Em quem, senão em vós se uniformara?
Neste lance, por ser o derradeiro,
Pois vejo a minha vida anoitecer, Quem veria uma flor, que não a cortara
É meu Jesus, a hora de se ver De verde pé, de rama florescente?
A brandura de um Pai, manso Cordeiro. E quem um Anjo vira tão luzente,
Que por seu Deus, o não idolatra?
Mui grande é vosso amor e meu delito:
Porém, pode ter fim todo o pecar, Se como Anjo sois dos meus altares,
E não o vosso amor, que é infinito. Fôreis o meu custódio, e minha guarda,
Livrara eu de diabólicos azares.
Esta razão me obriga a confiar,
Que, por mais que pequei, neste conflito Mas vejo, que tão bela, e tão galharda,
Espero em vosso amor de me salvar. Posto que os Anjos nunca dão pesares,
Sois Anjo, que me tenta, e não me guarda.

Soneto Soneto
A Jesus Cristo Nosso Senhor Retrata o poeta as perfeições de sua senhora a
imitação de outro soneto que fez Felipe IV a uma
Pequei, Senhor, mas não porque hei pecado, dama traduzindo-o na língua portuguesa.
Da vossa piedade me despido,
Porque quanto mais tenho delinqüido, Se há ver-vos, quem há de retratar-vos,
Vos tenho a perdoar mais empenhado. E é forçoso cegar, quem chega a ver-vos,
Sem agravar meus olhos, e ofender-vos,
Se basta a vos irar tanto um pecado, Não há de ser possível copiar-vos.
A abrandar-vos sobeja um só gemido,
Que a mesma culpa, que vos há ofendido, Com neve, e rosas quis assemelhar-vos
Vos tem para o perdão lisonjeado. Mas fora honrar as flores, e abater-vos:
Dois zéfiros por olhos quis fazer-vos,
Se uma ovelha perdida, e já cobrada Mas quando sonham eles de imitar-vos?
Glória tal, e prazer tão repentino
vos deu, como afirmais na Sacra História: Vendo, que a impossíveis me aparelho,
Desconfiei da minha tinta imprópria,
Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada E a obra encomendei a osso espelho.
Cobrai-a, e não queirais, Pastor divino,
Perder na vossa ovelha a vossa glória. Porque nele com Luz, e cor mais própria
Sereis (se não me engana o meu conselho)
Pintor, Pintura, Original, e Cópia

Literatura – Prof. Fabrício César


9

Arcadismo
Não vês nas tuas margens o sombrio,
Fresco assento de um álamo copado;
Cláudio Manuel da Costa Não vês ninfa cantar, pastar o gado
Na tarde clara do calmoso estio.
Soneto
Turvo banhando as pálidas areias
Quem deixa o trato pastoril amado
Nas porções do riquíssimo tesouro
Pela ingrata, civil correspondência,
O vasto campo da ambição recreias.
Ou desconhece o rosto da violência,
Ou do retiro a paz não tem provado.
Que de seus raios o planeta louro
Enriquecendo o influxo em tuas veias,
Que bem é ver nos campos transladado
Quanto em chamas fecunda, brota em ouro.
No gênio do pastor, o da inocência!
E que mal é no trato, e na aparência
Vila Rica
Ver sempre o cortesão dissimulado!
Canto X
Ali respira amor sinceridade;
[...]
Aqui sempre a traição seu rosto encobre;
Vê-se o outro mineiro, que se ocupa
Um só trata a mentira, outro a verdade.
Em penetrar por mina o duro monte
Ao rumo oblíquo, ou reto; tem defronte
Ali não há fortuna, que soçobre;
Da gruta, que abre, a terra que extraíra;
Aqui quanto se observa, é variedade:
Os lagrimais das águas que retira
Oh ventura do rico! Oh bem do pobre!
Ao tanque artificioso logo solta;
Trazida a terra entre a corrente envolta,
Baixa as grades de ferro; ali parados,
Soneto
Os grossos esmeris são depurados,
Deixando ao dono em prêmio da fadiga
Torno a ver-nos, ó montes; o destino Os bons tesouros da fortuna amiga.
Aqui me torna a pôr nestes oiteiros;
Onde um tempo os gabões deixei grosseiros Por entre a pedra est’outro vai buscando
Pelo traje da Corte rico e fino. As betas de ouro; aquele vai trepando
Pelo escabroso monte, e as águas guia
Aqui estou entre Almendro, entre Corino, Pelos canais, que lhe abre a pedra fria.
Os meus fiéis, meus doces companheiros, Não menos mostra o gênio a agricultura
Vendo correr os míseros vaqueiros Tão rara do país, aonde a dura
Atrás de seu cansado desatino. Força dos bois não geme ao grave arado;
Só do bom lavrador o braço armado
Se o bem desta choupana pode tanto, Derriba os matos, e se ateia logo
Que chega a ter mais preço, e mais valia, Sobre a seca matéria o ardente fogo.
Que da cidade o lisonjeiro encanto; [...]

Aqui descanse a louca fantasia; Soneto


E o que té agora se tornava em pranto, Estes os olhos são da minha amada:
Se converta em afetos de alegria Que belos, que gentis, e que formosos!
Não são para os mortais tão preciosos
Soneto Os doces frutos da estação dourada.

Leia a posteridade, ó pátrio Rio, Por eles a alegria derramada,


Em meus versos teu nome celebrado; Tornam-se os campos de prazer gostosos;
Por que vejas uma hora despertado Em zéfiros suaves, e mimosos
O sono vil do esquecimento frio: Toda esta região se vê banhada;

Literatura – Prof. Fabrício César


10

Tomás Antônio Gonzaga


Vinde, olhos belos, vinde; e enfim trazendo
Do rosto de meu bem as prendas belas, Marília de Dirceu – (parte I)
Dai alívios ao mal, que estou gemendo:
Lira I
Mas ah delírio meu, que me atropelas! Eu, Marília, não sou algum vaqueiro,
Os olhos, que eu cuidei, que estava vendo, Que viva de guardar alheio gado;
Eram (quem crera tal!) duas estrelas. De tosco trato, d’ expressões grosseiro,
Dos frios gelos, e dos sóis queimado.
Soneto Tenho próprio casal, e nele assisto;
Dá-me vinho, legume, fruta, azeite;
Não vês, Nise, brincar esse menino Das brancas ovelhinhas tiro o leite,
Com aquela avezinha? Estende o braço; E mais as finas lãs, de que me visto.
Deixa-a fugir; mas apertando o laço,
A condena outra vez ao seu destino? Graças, Marília bela,
Graças à minha Estrela!
Nessa mesma figura, eu imagino,
Tens minha liberdade; pois ao passo, Eu vi o meu semblante numa fonte,
Que cuido, que estou livre do embaraço, Dos anos inda não está cortado:
Então me prende mais meu desatino. Os pastores, que habitam este monte,
Respeitam o poder do meu cajado.
Em um contínuo giro o pensamento Com tal destreza toco a sanfoninha,
Tanto a precipitar-me se encaminha, Que inveja até me tem o próprio Alceste:
Que não vejo onde pare o meu tormento. Ao som dela concerto a voz celeste;
Nem canto letra, que não seja minha,
Mas fora menos mal esta ânsia minha,
Se me faltasse a mim o entendimento, Graças, Marília bela,
Como falta a razão a esta avezinha. Graças à minha Estrela!
Soneto Mas tendo tantos dotes da ventura,
Só apreço lhes dou, gentil Pastora,
Não vês, Nise, este vento desabrido, Depois que teu afeto me segura,
Que arranca os duros troncos? Não vês esta, Que queres do que tenho ser senhora.
Que vem cobrindo o céu, sombra funesta, É bom, minha Marília, é bom ser dono
Entre o horror de um relâmpago incendido? De um rebanho, que cubra monte, e prado;
Porém, gentil Pastora, o teu agrado
Não vês a cada instante o ar partido Vale mais q’um rebanho, e mais q’um trono.
Dessas linhas de fogo? Tudo cresta,
Tudo consome, tudo arrasa, e infesta, Graças, Marília bela,
O raio a cada instante despedido. Graças à minha Estrela!
Ah! não temas o estrago, que ameaça Os teus olhos espalham luz divina,
A tormenta fatal; que o Céu destina A quem a luz do Sol em vão se atreve:
Vejas mais feia, mais cruel desgraça: Papoula, ou rosa delicada, e fina,
Te cobre as faces, que são cor de neve.
Rasga o meu peito, já que és tão ferina; Os teus cabelos são uns fios d’ouro;
Verás a tempestade, que em mim passa; Teu lindo corpo bálsamos vapora.
Conhecerás então, o que é ruína. Ah! Não, não fez o Céu, gentil Pastora,
Para glória de Amor igual tesouro.

Graças, Marília bela,


Graças à minha Estrela!
Literatura – Prof. Fabrício César
11

Ora pois, eu vou formar-lhe


Leve-me a sementeira muito embora Um retrato mais perfeito,
O rio sobre os campos levantado: Que ele já feriu meu peito:
Acabe, acabe a peste matadora, Por isso o conheço bem.
Sem deixar uma rês, o nédio gado.
Já destes bens, Marília, não preciso: Os seus compridos cabelos,
Nem me cega a paixão, que o mundo arrasta; Que sobre as costas ondeiam,
Para viver feliz, Marília, basta São que os de Apolo mais belos,
Que os olhos movas, e me dês um riso. Mas de loura cor não são.
Têm a cor da negra noite;
Graças, Marília bela, E com o branco do rosto
Graças à minha Estrela! Fazem, Marília, um composto
Da mais formosa união.
Irás a divertir-te na floresta,
Sustentada, Marília, no meu braço; Tem redonda e lisa testa,
Ali descansarei a quente sesta, Arqueadas sobrancelhas,
Dormindo um leve sono em teu regaço: A voz meiga, a vista honesta,
Enquanto a luta jogam os Pastores, E seus olhos são uns sóis.
E emparelhados correm nas campinas, Aqui vence Amor ao céu:
Toucarei teus cabelos de boninas, Que no dia luminoso
Nos troncos gravarei os teus louvores. O céu tem um sol formoso,
E o travesso Amor tem dois.
Graças, Marília bela, [...]
Graças à minha Estrela! Tu, Marília, agora vendo
De Amor o lindo retrato,
Depois de nos ferir a mão da morte, Contigo estarás dizendo
Ou seja neste monte, ou noutra serra, Que é este o retrato teu.
Nossos corpos terão, terão a sorte Sim, Marília, a cópia é tua,
De consumir os dois a mesma terra. Que Cupido é deus suposto:
Na campa, rodeada de ciprestes, Se há Cupido, é só teu rosto,
Lerão estas palavras os Pastores: Que ele foi quem me venceu.
―Quem quiser ser feliz nos seus amores,
Siga os exemplos, que nos deram estes.‖ Lira XXX
Junto a uma clara fonte
Graças, Marília bela, A mãe de Amor se sentou;
Graças à minha Estrela! Encostou na mão o rosto,
No leve sono pegou.
Lira II
Cupido, que a viu de longe,
Pintam, Marília, os poetas Contente ao lugar correu;
A um menino vendado, Cuidando que era Marília,
Com uma aljava de setas, Na face um beijo lhe deu.
Arco empunhado na mão;
Ligeiras asas nos ombros, Acorda Vênus irada:
O tenro corpo despido, Amor a conhece; e então,
E de Amor ou de Cupido Da ousadia que teve
São os nomes que lhe dão. Assim lhe pede o perdão:

Porém eu, Marília, nego, ―Foi fácil, ó mãe formosa,


Que assim seja Amor, pois ele Foi fácil o engano meu;
Nem é moço nem é cego, Que o semblante de Marília
Nem setas nem asas tem. É todo o semblante teu.‖

Literatura – Prof. Fabrício César


12

Lira XIV ainda muito mais que um grande Trono.


Agora que te oferte já não vejo,
Minha bela Marília, tudo passa; além de um puro amor, de um são desejo.
A sorte deste mundo é mal segura;
Se vem depois dos males a ventura, Se o rio levantado me causava,
Vem depois dos prazeres a desgraça. Levando a sementeira, prejuízo,
Estão os mesmos deuses Eu alegre ficava apenas via
Sujeitos ao poder do ímpio Fado: Na tua breve boca um ar de riso.
Apolo já fugiu do céu brilhante, Tudo agora perdi; nem tenho o gosto
Já foi pastor de gado. De ver-te ao menos compassivo rosto.
[...]
Ornemos nossas testas com as flores, Propunha-me dormir no teu regaço
E façamos de feno um brando leito; as quentes horas da comprida sesta,
Prendamo-nos, Marília, em laço estreito, escrever teus louvores nos olmeiros,
Gozemos do prazer de sãos Amores. toucar-te de papoilas na floresta.
Sobre as nossas cabeças, Julgou o justo Céu que não convinha
Sem que o possam deter, o tempo corre; que a tanto grau subisse a glória minha.
E para nós o tempo que se passa
Também, Marília, morre. Ah! minha bela, se a fortuna volta,
se o bem, que já perdi, alcanço e provo,
Com os anos, Marília, o gosto falta, por essas brancas mãos, por essas faces
E se entorpece o corpo já cansado: te juro renascer um homem novo,
Triste o velho cordeiro está deitado, romper a nuvem que os meus olhos cerra,
E o leve filho, sempre alegre, salta. amar no céu a Jove e a ti na terra!
A mesma formosura
É dote que só goza a mocidade: Fiadas comprarei as ovelhinhas,
Rugam-se as faces, o cabelo alveja, que pagarei dos poucos do meu ganho;
Mal chega a longa idade. e dentro em pouco tempo nos veremos
senhores outra vez de um bom rebanho.
Que havemos de esperar, Marília bela? Para o contágio lhe não dar, sobeja
Que vão passando os florescentes dias? que as afague Marília, ou só que as veja.
As glórias que vêm tarde, já vêm frias,
E pode, enfim, mudar-se a nossa estrela. Se não tivermos lãs e peles finas,
Ah! Não, minha Marília, podem mui bem cobrir as carnes nossas
Aproveite-se o tempo, antes que faça as peles dos cordeiros mal curtidas,
O estrago de roubar ao corpo as forças e os panos feitos com as lãs mais grossas.
E ao semblante a graça! Mas ao menos será o teu vestido
por mãos de amor, por minhas mãos cosido.
Marília de Dirceu – (parte II)
Nós iremos pescar na quente sesta
Lira XV com canas e com cestos os peixinhos;
nós iremos caçar nas manhãs frias
Eu, Marília, não fui nenhum Vaqueiro, com a vara enviscada os passarinhos.
fui honrado Pastor da tua Aldeia; Para nos divertir faremos quanto
vestia finas lãs e tinha sempre reputa o varão sábio, honesto e santo.
a minha choça do preciso cheia.
Tiraram-me o casal e o manso gado, Nas noites de serão nos sentaremos
nem tenho, a que me encoste, um só cajado. c'os filhos, se os tivermos, à fogueira:
entre as falsas histórias, que contares,
Para ter que te dar, é que eu queria lhes contarás a minha, verdadeira:
de mor rebanho ainda ser o dono; Pasmados te ouvirão; eu, entretanto,
prezava o teu semblante, os teus cabelos ainda o rosto banharei de pranto.

Literatura – Prof. Fabrício César


13

Romantismo
Quando passarmos juntos pela rua,
nos mostrarão c'o dedo os mais Pastores,
dizendo uns para os outros: — Olha os nossos
Gonçalves Dias
exemplos da desgraça e sãos amores.
Canção do exílio
Contentes viveremos desta sorte,
até que chegue a um dos dois a morte.
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Marília de Dirceu – (parte III) Não gorjeiam como lá.
Soneto III Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas tem mais flores,
Enganei-me, enganei-me – paciência! Nossos bosques tem mais vida,
Acreditei às vezes, cri, Ormia, Nossa vida mais amores.
Que a tua singeleza igualaria
A tua mais que angélica aparência. Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer encontro eu lá;
Enganei-me, enganei-me – paciência! Minha terra tem palmeiras,
Ao menos conheci que não devia Onde canta o sabiá.
Pôr nas mãos de uma externa galhardia
O prazer, o sossego e a inocência. Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
Enganei-me, cruel, com teu semblante, Em cismar - sozinho, à noite -
E nada me admiro de faltares, Mais prazer encontro eu lá;
Que esse teu sexo nunca foi constante. Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Mas tu perdeste mais em me enganares:
Que tu não acharás um firme amante, Não permita Deus que eu morra,
E eu posso de traidoras ter milhares. Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Soneto X Que não encontro por cá;
Sem qu'inda aviste as palmeiras,
Adeus, cabana, adeus; adeus, ó gado; Onde canta o Sabiá.
Albina ingrata, adeus, em paz te deixo; Coimbra - 1843.
Adeus, doce rabil; neste alto freixo
Te fica, ao meu destino consagrado. Se se morre de amor

Se te for meu sucesso perguntado, Se se morre de amor! — Não, não se morre,


não declares, rabil, de quem me queixo; Quando é fascinação que nos surpreende
não quero que se saiba vive Aleixo De ruidoso sarau entre os festejos;
por causa de uma infame desterrado. Quando luzes, calor, orquestra e flores
Assomos de prazer nos raiam n'alma,
Se vires a pastor desconhecido, Que embelezada e solta em tal ambiente
lhe dize então piedoso: "Ah! vai-te embora, No que ouve, e no que vê prazer alcança!
atalha os danos que outros têm sentido.
Simpáticas feições, cintura breve,
Habita nesta aldeia uma pastora, Graciosa postura, porte airoso,
de rosto belo, coração fingido, Uma fita, uma flor entre os cabelos,
umas vezes cruel, e as mais traidora." Um quê mal definido, acaso podem
Num engano d'amor arrebatar-nos.
Mas isso amor não é; isso é delírio,
Literatura – Prof. Fabrício César
14

Devaneio, ilusão, que se esvaece Esse, que sobrevive à própria ruína,


Ao som final da orquestra, ao derradeiro Ao seu viver do coração, — às gratas
Clarão, que as luzes no morrer despedem: Ilusões, quando em leito solitário,
Se outro nome lhe dão, se amor o chamam, Entre as sombras da noite, em larga insônia,
D'amor igual ninguém sucumbe à perda. Devaneando, a futurar venturas,
Mostra-se e brinca a apetecida imagem;
Amor é vida; é ter constantemente Esse, que à dor tamanha não sucumbe,
Alma, sentidos, coração — abertos Inveja a quem na sepultura encontra
Ao grande, ao belo; é ser capaz d'extremos, Dos males seus o desejado termo!
D'altas virtudes, té capaz de crimes!
[...] I-Juca Pirama
É ter o coração em riso e festa; I
E à branda festa, ao riso da nossa alma No meio das tabas de amenos verdores,
Fontes de pranto intercalar sem custo; Cercadas de troncos - cobertos de flores,
Conhecer o prazer e a desventura Alteiam-se os tetos d'altiva nação;
No mesmo tempo, e ser no mesmo ponto São muitos seus filhos, nos ânimos fortes,
O ditoso, o misérrimo dos entes; Temíveis na guerra, que em densas coortes
Isso é amor, e desse amor se morre! Assombram das matas a imensa extensão.

Amar, e não saber, não ter coragem São rudos, severos, sedentos de glória,
Para dizer que amor que em nós sentimos; Já prélios incitam, já cantam vitória,
[...] Já meigos atendem à voz do cantor:
Sentir, sem que se veja, a quem se adora, São todos Timbiras, guerreiros valentes!
Compreender, sem lhe ouvir, seus pensamentos, Seu nome lá voa na boca das gentes,
Segui-la, sem poder fitar seus olhos, Condão de prodígios, de glória e terror!
Amá-la, sem ousar dizer que amamos,
E, temendo roçar os seus vestidos, As tribos vizinhas, sem forças, sem brio,
Arder por afogá-la em mil abraços: As armas quebrando, lançando-as ao rio,
Isso é amor, e desse amor se morre! O incenso aspiraram dos seus maracás:
Medrosos das guerras que os fortes acendem,
Se tal paixão porém enfim transborda, Custosos tributos ignavos lá rendem,
Se tem na terra o galardão devido Aos duros guerreiros sujeitos na paz.
Em recíproco afeto; e unidas, uma,
Dois seres, duas vidas se procuram, No centro da taba se estende um terreiro,
Entendem-se, confundem-se e penetram Onde ora se aduna o concílio guerreiro
Juntas — em puro céu d'êxtases puros: Da tribo senhora, das tribos servis:
Se logo a mão do fado as torna estranhas, Os velhos sentados praticam d'outrora,
Se os duplica e separa, quando unidos E os moços inquietos, que a festa enamora,
A mesma vida circulava em ambos; Derramam-se em torno dum índio infeliz.
Que será do que fica, e do que longe [...]
Serve às borrascas de ludíbrio e escárnio? Entanto as mulheres com leda trigança,
Pode o raio num píncaro caindo, Afeitas ao rito da bárbara usança,
Torná-lo dois, e o mar correr entre ambos; O índio já querem cativo acabar:
Pode rachar o tronco levantado A coma lhe cortam, os membros lhe tingem,
E dois cimos depois verem-se erguidos, Brilhante enduape no corpo lhe cingem,
Sinais mostrando da aliança antiga; Sombreia-lhe a fronte gentil canitar.
Dois corações porém, que juntos batem,
II
Que juntos vivem, — se os separam, morrem;
Em fundos vasos d'alvacenta argila
Ou se entre o próprio estrago inda vegetam,
Ferve o cauim;
Se aparência de vida, em mal, conservam,
Enchem-se as copas, o prazer começa,
Ânsias cruas resumem do proscrito,
Reina o festim.
Que busca achar no berço a sepultura!

Literatura – Prof. Fabrício César


15

O prisioneiro, cuja morte anseiam, Meu último amigo,


Sentado está, Sem lar, sem abrigo
O prisioneiro, que outro sol no ocaso Caiu junto a mi!
Jamais verá! Com plácido rosto,
Sereno e composto,
A dura corda, que lhe enlaça o colo, O acerbo desgosto
Mostra-lhe o fim Comigo sofri.
Da vida escura, que será mais breve
Do que o festim! Meu pai a meu lado
[...] Já cego e quebrado,
De penas ralado,
III
Firmava-se em mi:
"Dize-nos quem és, teus feitos canta,
Nós ambos, mesquinhos,
"Ou se mais te apraz, defende-te." Começa
Por ínvios caminhos,
O índio, que ao redor derrama os olhos,
Cobertos d'espinhos
Com triste voz que os ânimos comove.
Chegamos aqui!
IV [...]
Meu canto de morte, Então, forasteiro,
Guerreiros, ouvi: Caí prisioneiro
Sou filho das selvas, De um troço guerreiro
Nas selvas cresci; Com que me encontrei:
Guerreiros, descendo O cru dessossego
Da tribo Tupi. Do pai fraco e cego,
Enquanto não chego,
Da tribo pujante, Qual seja - dizei!
Que agora anda errante
Por fado inconstante, Eu era o seu guia
Guerreiros, nasci; Na noite sombria,
Sou bravo, sou forte, A só alegria
Sou filho do Norte; Que Deus lhe deixou:
Meu canto de morte, Em mim se apoiava,
Guerreiros, ouvi. Em mim se firmava,
[...] Em mim descansava,
Andei longes terras, Que filho lhe sou.
Lidei cruas guerras,
Vaguei pelas serras Ao velho coitado
Dos vis Aimorés; De penas ralado,
Vi lutas de bravos, Já cego e quebrado,
Vi fortes - escravos! Que resta? - Morrer.
De estranhos ignavos Enquanto descreve
Calcados aos pés. O giro tão breve
Da vida que teve,
E os campos talados, Deixa-me viver!
E os arcos quebrados,
E os piagas coitados Não vil, não ignavo,
Já sem maracás; Mas forte, mas bravo,
E os meigos cantores, Serei vosso escravo:
Servindo a senhores, Aqui virei ter.
Que vinham traidores, Guerreiros, não coro
Com mostras de paz. Do pranto que choro;
Se a vida deploro,
Aos golpes do imigo Também sei morrer.

Literatura – Prof. Fabrício César


16

V Arco e frecha e tacape a teus pés!


Soltai-o! - diz o chefe. Pasma a turba; Sê maldito, e sozinho na terra;
Os guerreiros murmuram: mal ouviram, Pois que a tanta vileza chegaste,
Nem pode nunca um chefe dar tal ordem! Que em presença da morte choraste,
Brada segunda vez com voz mais alta, Tu, cobarde, meu filho não és."
Afrouxam-se as prisões, a embira cede,
A custo, sim; mas cede: o estranho é salvo. IX
[...] [...]
__ És livre; parte. Era ele, o Tupi; nem fora justo
__ E voltarei. Que a fama dos Tupis __ o nome, a glória,
__ Debalde. Aturado labor de tantos anos,
__ Sim, voltarei, morto meu pai. Derradeiro brasão da raça extinta,
De um jacto e por um só se aniquilasse.
__ Não voltes!
[...] __ Basta! clama o chefe dos Timbiras,
__ Mentiste, que um Tupi não chora nunca, __ Basta, guerreiro ilustre! assaz lutaste,
E tu choraste!... parte; não queremos E para o sacrifício é mister forças. __
Com carne vil enfraquecer os fortes.
[...] O guerreiro parou, caiu nos braços
Curvado o colo, taciturno e frio, Do velho pai, que o cinge contra o peito,
Espectro d'homem, penetrou no bosque! Com lágrimas de júbilo bradando:
"Este, sim, que é meu filho muito amado!
VIII "E pois que o acho enfim, qual sempre o tive,
"Tu choraste em presença da morte? "Corram livres as lágrimas que choro,
Na presença de estranhos choraste? "Estas lágrimas, sim, que não desonram."
Não descende o cobarde do forte;
Pois choraste, meu filho não és! X
Possas tu, descendente maldito Um velho Timbira, coberto de glória,
De uma tribo de nobres guerreiros, Guardou a memória
Implorando cruéis forasteiros, Do moço guerreiro, do velho Tupi!
Seres presa de vis Aimorés. E à noite, nas tabas, se alguém duvidava
Do que ele contava,
"Possas tu, isolado na terra, Dizia prudente: __ "Meninos, eu vi!
Sem arrimo e sem pátria vagando,
Rejeitado da morte na guerra, "Eu vi o brioso no largo terreiro
Rejeitado dos homens na paz, Cantar prisioneiro
Ser das gentes o espectro execrado; Seu canto de morte, que nunca esqueci:
Não encontres amor nas mulheres, Valente, como era, chorou sem ter pejo;
Teus amigos, se amigos tiveres, Parece que o vejo,
Tenham alma inconstante e falaz! Que o tenho nest'hora diante de mim.
"Eu disse comigo: Que infâmia d'escravo!
"Não encontres doçura no dia, Pois não, era um bravo;
Nem as cores da aurora te ameiguem, Valente e brioso, como ele, não vi!
E entre as larvas da noite sombria [...]
Nunca possas descanso gozar: Assim o Timbira, coberto de glória,
Não encontres um tronco, uma pedra, Guardava a memória
Posta ao sol, posta às chuvas e aos ventos, Do moço guerreiro, do velho Tupi.
Padecendo os maiores tormentos, E à noite nas tabas, se alguém duvidava
Onde possas a fronte pousar. Do que ele contava,
[...] Tomava prudente: "Meninos, eu vi!"
"Um amigo não tenhas piedoso
Que o teu corpo na terra embalsame,
Pondo em vaso d'argila cuidoso
Literatura – Prof. Fabrício César
17

Álvares de Azevedo Meu Sonho


EU
Lembrança de morrer Cavaleiro das armas escuras,
No more! O never more! Onde vais pelas trevas impuras
SHELLEY Com a espada sangüenta na mão?
Por que brilham teus olhos ardentes
Quando em meu peito rebentar-se a fibra E gemidos nos lábios frementes
Que o espírito enlaça à dor vivente, Vertem fogo do teu coração?
Não derramem por mim nem uma lágrima
Em pálpebra demente. Cavaleiro, quem és? o remorso?
Do corcel te debruças no dorso...
E galopas do vale através...
E nem desfolhem na matéria impura
Oh! da estrada acordando as poeiras
A flor do vale que adormece ao vento: Não escutas gritar as caveiras
Não quero que uma nota de alegria E morder-te o fantasma nos pés?
Se cale por meu triste passamento.
Onde vais pelas trevas impuras,
Eu deixo a vida como deixa o tédio Cavaleiro das armas escuras,
Do deserto, o poento caminheiro Macilento qual morto na tumba?...
— Como as horas de um longo pesadelo Tu escutas... Na longa montanha
Que se desfaz ao dobre de um sineiro; Um tropel teu galope acompanha?
E um clamor de vingança retumba?
Como o desterro de minh'alma errante,
Onde fogo insensato a consumia: Cavaleiro, quem és? – que mistério,
Só levo uma saudade — é desses tempos Quem te força da morte no império
Que amorosa ilusão embelecia. Pela noite assombrada a vagar?
[...] O FANTASMA
Se uma lágrima as pálpebras me inunda, Sou o sonho de tua esperança,
Se um suspiro nos seios treme ainda, Tua febre que nunca descansa,
É pela virgem que sonhei!... que nunca O delírio que te há de matar!...
Aos lábios me encostou a face linda!
Soneto
Ó tu, que à mocidade sonhadora
Do pálido poeta deste flores... Os quinze anos de uma alma transparente
Se vivi... foi por ti! e de esperança O cabelo castanho, a face pura,
De na vida gozar de teus amores. Uns olhos onde pinta-se a candura
[...]
Descansem o meu leito solitário De um coração que dorme, inda inocente.
Na floresta dos homens esquecida Um seio que estremece de repente
À sombra de uma cruz, escrevam nela: Do mimoso vestido na brancura,
– Foi poeta – sonhou – e amou na vida. A linda mão na mágica cintura,
E uma voz que inebria docemente.
Sombras do vale, noites da montanha,
Que minh’alma cantou e amava tanto, Um sorrir tão angélico! Tão santo
Protejei o meu corpo abandonado, E nos olhos azuis cheios de vida
E no silêncio derramai-lhe um canto! Lânguido véu de involuntário pranto!

Mas quando preludia ave d’aurora É esse o talismã, é essa a Armida,


E quando à meia noite o céu repousa, O condão de meus últimos encantos
Arvoredo dos bosques, abri os ramos... A visão de minh’alma distraída!
Deixai a lua pratear-me a lousa.

Literatura – Prof. Fabrício César


18

Namoro a cavalo É ela! É ela! É ela! É ela!

Eu moro em Catumbi: mas a desgraça, É ela! é ela! — murmurei tremendo,


Que rege minha vida malfadada, E o eco ao longe murmurou — é ela!
Pôs lá no fim da rua do Catete Eu a vi... minha fada aérea e pura –
A minha Dulcinéia namorada. A minha lavadeira na janela!

Alugo (três mil réis) por uma tarde Dessas águas-furtadas onde eu moro
Um cavalo de trote (que esparrela!) Eu a vejo estendendo no telhado
Só para erguer meus olhos suspirando Os vestidos de chita, as saias brancas;
A minha namorada na janela... Eu a vejo e suspiro enamorado!

Todo o meu ordenado vai-se em flores Esta noite eu ousei mais atrevido
E em lindas folhas de papel bordado... Nas telhas que estalavam nos meus passos
Onde eu escrevo trêmulo, amoroso, Ir espiar seu venturoso sono,
Algum verso bonito... mas furtado. Vê-la mais bela de Morfeu nos braços!

Morro pela menina, junto dela Como dormia! que profundo sono!...
Nem ouso suspirar de acanhamento... Tinha na mão o ferro do engomado...
Se ela quisesse eu acabava a história Como roncava maviosa e pura!
Como toda a Comédia — em casamento... Quase caí na rua desmaiado!

Ontem tinha chovido... Que desgraça! Afastei a janela, entrei medroso...


Eu ia a trote inglês ardendo em chama, Palpitava-lhe o seio adormecido...
Mas lá vai senão quando... uma carroça Fui beijá-la... roubei do seio dela
Minhas roupas tafues encheu de lama... Um bilhete que estava ali metido...

Eu não desanimei. Se Dom Quixote Oh! De certo ... (pensei) é doce página
No Rossinante erguendo a larga espada Onde a alma derramou gentis amores;
Nunca voltou de medo, eu, mais valente, São versos dela... que amanhã de certo
Fui mesmo sujo ver a namorada... Ela me enviará cheios de flores...

Mas eis que no passar pelo sobrado, Tremi de febre! Venturosa folha!
Onde habita nas lojas minha bela, Quem pousasse contigo neste seio!
Por ver-me tão lodoso ela irritada Como Otelo beijando a sua esposa,
Bateu-me sobre as ventas a janela... Eu beijei-a a tremer de devaneio...

O cavalo ignorante de namoro, É ela! é ela! — repeti tremendo;


Entre dentes tomou a bofetada, Mas cantou nesse instante uma coruja...
Arrepia-se, pula e dá-me um tombo Abri cioso a página secreta...
Com pernas para o ar, sobre a calçada... Oh! meu Deus! era um rol de roupa suja!

Dei ao diabo os namoros. Escovado Mas se Werther morreu por ver Carlota
Meu chapéu que sofrera no pagode... Dando pão com manteiga às criancinhas,
Dei de pernas corrido e cabisbaixo Se achou-a assim mais bela, - eu mais te adoro
E berrando de raiva como um bode. Sonhando-te a lavar as camisinhas!

Circunstância agravante. A calça inglesa É ela! é ela! meu amor, minh’alma,


Rasgou-se no cair de meio a meio, A Laura, a Beatriz que o céu revela...
O sangue pelas ventas me corria É ela! é ela! — murmurei tremendo,
Em paga do amoroso devaneio!... E o eco ao longe suspirou — é ela!

Literatura – Prof. Fabrício César


19

Castro Alves Negras mulheres, suspendendo às tetas


Magras crianças, cujas bocas pretas
O Navio Negreiro (Tragédia no mar) Rega o sangue das mães:
Outras moças, mas nuas e espantadas,
I No turbilhão de espectros arrastadas,
'Stamos em pleno mar... Doudo no espaço Em ânsia e mágoa vãs!
Brinca o luar — dourada borboleta; [...]
E as vagas após ele correm... cansam E ri-se a orquestra irônica, estridente. . .
Como turba de infantes inquieta. E da ronda fantástica a serpente
[...] Faz doudas espirais...
Donde vem? onde vai? Das naus errantes Qual um sonho dantesco as sombras voam!...
Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço? Gritos, ais, maldições, preces ressoam!
Neste saara os corcéis o pó levantam, E ri-se Satanás!...
Galopam, voam, mas não deixam traço.
V
Bem feliz quem ali pode nest'hora Senhor Deus dos desgraçados!
Sentir deste painel a majestade! Dizei-me vós, Senhor Deus!
Embaixo — o mar em cima — o firmamento... Se é loucura... se é verdade
E no mar e no céu — a imensidade! Tanto horror perante os céus?!
[...] Ó mar, por que não apagas
Esperai! esperai! deixai que eu beba Co'a esponja de tuas vagas
Esta selvagem, livre poesia, De teu manto este borrão?...
Orquestra — é o mar, que ruge pela proa, Astros! noites! tempestades!
E o vento, que nas cordas assobia... Rolai das imensidades!
[...] Varrei os mares, tufão!
Albatroz! Albatroz! águia do oceano, [...]
Tu que dormes das nuvens entre as gazas, Ontem a Serra Leoa,
Sacode as penas, Leviathan do espaço, A guerra, a caça ao leão,
Albatroz! Albatroz! dá-me estas asas. O sono dormido à toa
Sob as tendas d'amplidão!
III Hoje... o porão negro, fundo,
Desce do espaço imenso, ó águia do oceano! Infecto, apertado, imundo,
Desce mais ... inda mais... não pode olhar humano Tendo a peste por jaguar...
Como o teu mergulhar no brigue voador! E o sono sempre cortado
Mas que vejo eu aí... Que quadro d'amarguras! Pelo arranco de um finado,
É canto funeral! ... Que tétricas figuras! ... E o baque de um corpo ao mar...
Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus!
Que horror! VI
[...]
IV Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Era um sonho dantesco... o tombadilho Extingue nesta hora o brigue imundo
Que das luzernas avermelha o brilho. O trilho que Colombo abriu nas vagas,
Em sangue a se banhar. Como um íris no pélago profundo!
Tinir de ferros... estalar de açoite... Mas é infâmia demais! ... Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!
Legiões de homens negros como a noite,
Andrada! arranca esse pendão dos ares!
Horrendos a dançar... Colombo! fecha a porta dos teus mares!

Literatura – Prof. Fabrício César


20

A Canção do Africano Boa noite

Lá na úmida senzala, Boa-noite, Maria! Eu vou-me embora.


Sentado na estreita sala, A lua nas janelas bate em cheio.
Junto ao braseiro, no chão, Boa-noite, Maria! É tarde... é tarde...
Entoa o escravo o seu canto, Não me apertes assim contra teu seio.
E ao cantar correm-lhe em pranto
Saudades do seu torrão... Boa-noite!... E tu dizes — Boa-noite.
Mas não digas assim por entre beijos...
De um lado, uma negra escrava Mas não mo digas descobrindo o peito
Os olhos no filho crava, — Mar de amor onde vagam meus desejos.
Que tem no colo a embalar...
E à meia voz lá responde Julieta do céu! Ouve... a calhandra
Ao canto, e o filhinho esconde, Já rumoreja o canto da matina.
Talvez pra não o escutar! Tu dizes que eu menti?... pois foi mentira...
... Quem cantou foi teu hálito, divina!
"Minha terra é lá bem longe,
Das bandas de onde o sol vem; Se à estrela-d'alva os derradeiros raios
Esta terra é mais bonita, Derrama nos jardins do Capuleto,
Mas à outra eu quero bem! Eu direi, me esquecendo d'alvorada:
[...] "É noite ainda em teu cabelo preto..."
"Aquelas terras tão grandes,
Tão compridas como o mar, E noite ainda! Brilha na cambraia
Com suas poucas palmeiras — Desmanchado o roupão, a espádua nua —
Dão vontade de pensar ... O globo de teu peito entre os arminhos
Como entre as névoas se balouça a lua...
"Lá todos vivem felizes,
Todos dançam no terreiro; É noite, pois! Durmamos, Julieta!
A gente lá não se vende Recende a alcova ao trescalar das flores,
Como aqui, só por dinheiro". Fechemos sobre nós estas cortinas...
— São as asas do arcanjo dos amores.
O escravo calou a fala,
Porque na úmida sala A frouxa luz da alabastrina lâmpada
O fogo estava a apagar; Lambe voluptuosa os teus contornos...
E a escrava acabou seu canto, Oh! Deixa-me aquecer teus pés divinos
Pra não acordar com o pranto Ao doudo afago de meus lábios mornos.
O seu filhinho a sonhar!
Mulher do meu amor! Quando aos meus beijos
O escravo então foi deitar-se, Treme tua alma, como a lira ao vento,
Pois tinha de levantar-se Das teclas de teu seio que harmonias,
Bem antes do sol nascer, Que escalas de suspiros, bebo atento!
E se tardasse, coitado,
Teria de ser surrado, Ai! Canta a cavatina do delírio,
Pois bastava escravo ser. Ri, suspira, soluça, anseia e chora...
Marion! Marion!... É noite ainda.
E a cativa desgraçada Que importa os raios de uma nova aurora?!...
Deita seu filho, calada,
E põe-se triste a beijá-lo, Como um negro e sombrio firmamento,
Talvez temendo que o dono Sobre mim desenrola teu cabelo...
Não viesse, em meio do sono, E deixa-me dormir balbuciando:
De seus braços arrancá-lo! — Boa-noite!, formosa Consuelo!...

Literatura – Prof. Fabrício César


21

Parnasianismo A um poeta

Longe do estéril turbilhão da rua,


Olavo Bilac Beneditino, escreve! No aconchego
Do claustro, na paciência e no sossego,
Fragmento de “Profissão de fé”
Trabalha, e teima, e lima, e sofre e sua!
Não quero o Zeus Capitolino
Mas que na forma se disfarce o emprego
Hercúleo e belo,
Do esforço; e a trama viva se construa
Talhar no mármore divino
De tal modo , Que a imagem fique nua,
Com o camartelo.
Rica mas sóbria, como um templo grego.
Que outro - não eu! - a pedra corte
Não se mostre na fábrica o suplício
Para, brutal,
Do mestre. E, natural, o efeito agrade,
Erguer de Atene o altivo porte
Sem lembrar os andaimes do edifício.
Descomunal.
Porque a beleza, gêmea da Verdade,
Mais que esse vulto extraordinário,
Arte pura, inimiga do artifício,
Que assombra a vista,
É a força e a Graça na simplicidade
Seduz-me um leve relicário
De fino artista.
A Cigarra da Chácara
Invejo o ourives quando escrevo:
Volta a cantar no tronco da mangueira,
Imito o amor
Mais corpulenta agora e mais sombria,
Com que ele, em ouro, o alto relevo,
Esta mesma cigarra cantadeira,
Faz de uma flor.
Que o ano passado em tanta vez ouvia.
Imito-o. E, pois, nem de Carrara
Ébria dos quentes raios da soalheira,
A pedra firo:
A pompa sideral do meio dia
O alvo cristal, a pedra rara,
Celebra, e enquanto a luz abrasa, e cheira
O ônix prefiro.
O mato verde, chia! chia! chia!
Por isso, corre, por servir-me;
Canta, alma de ouro! Teu verão radiante
Sobre o papel
Tornou, tornou teu sol glorioso e lindo;
A pena, como em prata firme
O meu declina, não quer mais que eu cante.
Corre o cinzel.
[...]
Oh! Como invejo este hino alto e canoro
Torce, aprimora, alteia, lima
Que, reiterado, entoa ali, zinindo,
A frase; e, enfim,
A cigarra da chácara onde moro.
No verso de ouro engasta a rima,
Como um rubim.
Língua Portuguesa
Quero que a estrofe cristalina,
Última flor do Lácio, inculta e bela,
Dobrada ao jeito
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Do ourives, saia da oficina
Ouro nativo, que na ganga impura
Sem um defeito.
A bruta mina entre os cascalhos vela...
[...]
Assim procedo. Minha pena
Amo-te assim, desconhecida e obscura.
Segue esta norma,
Tuba de alto clangor, lira singela,
Por te servir; Deusa serena,
Que tens o tom e o silvo da procela
Serena Forma!
E o arrolo da saudade e da ternura!
[...]

Literatura – Prof. Fabrício César


22

Amo o teu viço agreste e o teu aroma Simbolismo


De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,
Cruz e Sousa
em que da voz materna ouvi: ―meu filho!‖
Antífona
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!
Ó Formas alvas, brancas, Formas claras
De luares, de neves, de neblinas!
Nel Mezzo del Camin...
Ó Formas vagas, fluidas, cristalinas...
Incensos dos turíbulos das aras
Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada
E triste, e triste e fatigado eu vinha.
Formas do Amor, constelarmante puras,
Tinhas a alma de sonhos povoada,
De Virgens e de Santas vaporosas...
E alma de sonhos povoada eu tinha...
Brilhos errantes, mádidas frescuras
E dolências de lírios e de rosas ...
E paramos de súbito na estrada
Da vida: longos anos, presa à minha
Indefiníveis músicas supremas,
A tua mão, a vista deslumbrada
Harmonias da Cor e do Perfume...
Tive da luz que teu olhar continha.
Horas do Ocaso, trêmulas, extremas,
Réquiem do Sol que a Dor da Luz resume...
Hoje segues de novo... Na partida
[...]
Nem o pranto os teus olhos umedece,
Nem te comove a dor da despedida.
Cárcere das almas
E eu, solitário, volto a face, e tremo,
Ah! Toda a alma num cárcere anda presa,
Vendo o teu vulto que desaparece
Soluçando nas trevas, entre as grades
Na extrema curva do caminho extremo.
Do calabouço olhando imensidades,
Mares, estrelas, tardes, natureza.
Alberto de Oliveira
Tudo se veste de uma igual grandeza
Vaso Chinês Quando a alma entre grilhões as liberdades
Sonha e, sonhando, as imortalidades
Estranho mimo aquele vaso! Vi-o, Rasga no etéreo o Espaço da Pureza.
Casualmente, uma vez, de um perfumado
Contador sobre o mármor luzidio, Ó almas presas, mudas e fechadas
Entre um leque e o começo de um bordado. Nas prisões colossais e abandonadas,
Da Dor no calabouço, atroz, funéreo!
Fino artista chinês, enamorado,
Nele pusera o coração doentio Nesses silêncios solitários, graves,
Em rubras flores de um sutil lavrado, que chaveiro do Céu possui as chaves
Na tinta ardente, de um calor sombrio. para abrir-vos as portas do Mistério?!
Mas, talvez por contraste à desventura, Violões que choram
Quem o sabe?... de um velho mandarim
Também lá estava a singular figura. Ah! plangentes violões dormentes, mornos,
Soluços ao luar, choros ao vento...
Que arte em pintá-la! A gente acaso vendo-a, Tristes perfis, os mais vagos contornos,
Sentia um não sei quê com aquele chim Bocas murmurejantes de lamento.
De olhos cortados à feição de amêndoa. [...]
Sutis palpitações a luz da lua,
Anseio dos momentos mais saudosos,

Literatura – Prof. Fabrício César


23

Quando lá choram na deserta rua A Ironia dos Vermes


As cordas vivas dos violões chorosos.
[...] Eu imagino que és uma princesa
Harmonias que pungem, que laceram, Morta na flor da castidade branca...
Dedos Nervosos e ágeis que percorrem Que teu cortejo sepulcral arranca
Cordas e um mundo de dolências geram, Por tanta pompa espasmos de surpresa.
Gemidos, prantos, que no espaço morrem...
[...] Que tu vais por um coche conduzida,
Vozes veladas, veludosas vozes, Por esquadrões flamívomos guardada,
Volúpias dos violões, vozes veladas, Como carnal e virgem madrugada,
Vagam nos velhos vórtices velozes Bela das belas, sem mais sol, sem vida.
Dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas.
Que da Corte os luzidos Dignitários
Tudo nas cordas dos violões ecoa Com seus aspectos marciais, bizarros,
E vibra e se contorce no ar, convulso... Seguem-te após nos fagulhantes, carros
Tudo na noite, tudo clama e voa E a excelsa cauda dos cortejos vários.
Sob a febril agitação de um pulso. [...]
Que os potentes canhões roucos atroam
Que esses violões nevoentos e tristonhos O espaço claro de uma tarde suave,
São ilhas de degredo atroz, funéreo, E que tu vais, Lírio dos lírios e ave
Para onde vão, fatigadas do sonho Do Amor, por entre os sons que te coroam.
Almas que se abismaram no mistério. [...]
[...] Que o teu corpo de luz, teu corpo amado,
Tudo isso, num grotesco desconforme, Envolto em finas e cheirosas vestes,
Em ais de dor, em contorções de açoites, Sob o carinho das Mansões celestes
Revive nos violões, acorda e dorme Ficará pela Morte encarcerado.
Através do luar das meias noites!
Que o teu séquito é tal, tal a coorte,
Plangente: que chora, triste, lastimoso. Tal o sol dos brasões, por toda a parte,
Sutil: delicado, hábil.
Dilacerar: rasgar em pedaços.
Que em vez da horrenda Morte suplantar-te
Crê-se que és tu que suplantaste a Morte.
Caveira
Mas dos faustos mortais a regia trompa,
I Os grandes ouropéis, a real Quermesse,
Olhos que foram olhos, dois buracos Ah! tudo, tudo proclamar parece
Agora, fundos, no ondular da poeira... Que hás de afinal apodrecer com pompa.
Nem negros, nem azuis e nem opacos.
Caveira! Como que foram feitos de luxúria
E gozo ideal teus funerais luxuosos
II Para que os vermes, pouco escrupulosos,
Nariz de linhas, correções audazes, Não te devorem com plebéia fúria.
De expressão aquilina e feiticeira,
Onde os olfatos virginais, falazes?! Para que eles ao menos vendo as belas
Caveira! Caveira!! Magnificências do teu corpo exausto
Mordam-te com cuidados e cautelas
III Para o teu corpo apodrecer com fausto.
Boca de dentes límpidos e finos, [...]
De curva leve, original, ligeira, Mas ah! quanta ironia atroz, funérea,
Que é feito dos teus risos cristalinos?! Imaginária e cândida Princesa:
Caveira! Caveira!! Caveira!!! És igual a uma simples camponesa
Audazes: audaciosas Nos apodrecimentos da Matéria!
Aquilina: recurvada (como bico de águia)
Falazes: que enganam, que iludem Flamívomos: que cospem fogo
Literatura – Prof. Fabrício César
24

Excelsa: sublime, elevada Augusto dos Anjos - (inclassificável)


Atroar: fazer grande estrondo
Féretro: caixão
Séquito: cortejo Monólogo de uma Sombra
Faustos: que têm grande pompa
Ouropéis: ligas metálicas que imitam ouro ―Sou uma Sombra! Venho de outras eras,
Atroz: desumana, cruel Do cosmopolitismo das moneras...
Pólipo de recônditas reentrâncias,
Vida obscura Larva de caos telúrico, procedo
Da escuridão do cósmico segredo,
Ninguém sentiu o teu espasmo obscuro, Da substância de todas as substâncias!
Ó ser humilde entre os humildes seres. [...]
Embriagado, tonto dos prazeres, Com um pouco de saliva quotidiana
O mundo para ti foi negro e duro. Mostro meu nojo à Natureza Humana.
A podridão me serve de Evangelho...
Atravessaste num silêncio escuro Amo o esterco, os resíduos ruins dos quiosques
A vida presa a trágicos deveres E o animal inferior que urra nos bosques
E chegaste ao saber de altos saberes E com certeza meu irmão mais velho!
Tornando-te mais simples e mais puro. [...]
Aí vem sujo, a coçar chagas plebéias,
Ninguém te viu o sentimento inquieto, Trazendo no deserto das idéias
Magoado, oculto e aterrador, secreto, O desespero endêmico do inferno,
Que o coração te apunhalou no mundo. Com a cara hirta, tatuada de fuligens
Esse mineiro doido das origens,
Mas eu que sempre te segui os passos Que se chama o Filósofo Moderno!
Sei que cruz infernal prendeu-te os braços
E o teu suspiro como foi profundo! Quis compreender, quebrando estéreis normas,
A vida fenomênica das Formas,
Sorriso Interior Que, iguais a fogos passageiros, luzem...
E apenas encontrou na idéia gasta,
O ser que é ser e que jamais vacila O horror dessa mecânica nefasta,
Nas guerras imortais entra sem susto, A que todas as coisas se reduzem!
Leva consigo esse brasão augusto
Do grande amor, da nobre fé tranqüila. E hão de achá-lo, amanhã, bestas agrestes,
Sobre a esteira sarcófaga das pestes
Os abismos carnais da triste argila A mostrar, já nos últimos momentos,
Ele os vence sem ânsias e sem custo Como quem se submete a uma charqueada,
Fica sereno, num sorriso justo, Ao clarão tropical da luz danada,
Enquanto tudo em derredor oscila. O espólio dos seus dedos peçonhentos.
[...]
Ondas interiores de grandeza E o que ele foi: clavículas, abdômen,
Dão-lhe essa glória em frente à Natureza, O coração, a boca, em síntese, o Homem,
Esse esplendor, todo esse largo eflúvio. - Engrenagem de vísceras vulgares -
Os dedos carregados de peçonha,
O ser que é ser transforma tudo em flores... Tudo coube na lógica medonha
E para ironizar as próprias dores Dos apodrecimentos musculares!
Canta por entre as águas do Dilúvio!
A desarrumação dos intestinos
Assombra! Vede-a! Os vermes assassinos
Dentro daquela massa que o húmus come,
Numa glutoneria hedionda, brincam,
Como as cadelas que as dentuças trincam
No espasmo fisiológico da fome.
Literatura – Prof. Fabrício César
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É uma trágica festa emocionante! Eterna mágoa


A bacteriologia inventariante
Toma conta do corpo que apodrece... O homem por sobre quem caiu a praga
E até os membros da família engulham, Da tristeza do Mundo, o homem que é triste
Vendo as larvas malignas que se embrulham Para todos os séculos existe
No cadáver malsão, fazendo um s. E nunca mais o seu pesar se apaga!
[...]
Est’outro agora é o sátiro peralta Não crê em nada, pois, nada há que traga
Que o sensualismo sodomista exalta, Consolo à Mágoa, a que só ele assiste.
Nutrindo sua infâmia a leite e a trigo... Quer resistir, e quanto mais resiste
Como que, em suas células vilíssimas, Mais se lhe aumenta e se lhe afunda a chaga.
Há estratificações requintadíssimas
De uma animalidade sem castigo. Sabe que sofre, mas o que não sabe
E que essa mágoa infinda assim não cabe
Brancas bacantes bêbedas o beijam. Na sua vida, é que essa mágoa infinda
Suas artérias hírcicas latejam,
Sentindo o odor das carnações abstêmias, Transpõe a vida do seu corpo inerme;
E á noite, vai gozar, ébrio de vício, E quando esse homem se transforma em verme
No sombrio bazar do meretrício, É essa mágoa que o acompanha ainda!
O cuspo afrodisíaco das fêmeas.
[...] Versos Íntimos
Míngua-se o combustível da lanterna
E a consciência do sátiro se inferna, Vês?! Ninguém assistiu ao formidável
Reconhecendo, bêbedo de sono, Enterro de tua última quimera.
Na própria ânsia dionísica do gozo, Somente a Ingratidão - esta pantera -
Essa necessidade de horroroso, Foi tua companheira inseparável!
Que é talvez propriedade do carbono!
[...] Acostuma-te à lama que te espera!
Somente a Arte, esculpindo a humana mágoa, O Homem, que, nesta terra miserável,
Abranda as rochas rígidas, torna água Mora, entre feras, sente inevitável
Todo o fogo telúrico profundo Necessidade de também ser fera.
E reduz, sem que, entanto, a desintegre,
À condição de uma planície alegre, Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
A aspereza orográfica do mundo! O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Provo desta maneira ao mundo odiento
Pelas grandes razões do sentimento, Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Sem os métodos da abstrusa ciência fria Apedreja essa mão vil que te afaga,
E os trovões gritadores da dialética, Escarra nessa boca que te beija!
Que a mais alta expressão da dor estética
Consiste essencialmente na alegria. Solitário

Continua o martírio das criaturas: Como um fantasma que se refugia


- O homicídio nas vielas mais escuras, Na solidão da natureza morta,
- O ferido que a hostil gleba atra escarva, Por trás dos ermos túmulos, um dia,
- O último solilóquio dos suicidas - Eu fui refugiar-me à tua porta!
E eu sinto a dor de todas essas vidas
Em minha vida anônima de larva!‖ Fazia frio e o frio que fazia
[...] Não era esse que a carne nos conforta...
Cortava assim como em carniçaria
O aço das facas incisivas corta!

Literatura – Prof. Fabrício César


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Mas tu não vieste ver a minha Desgraça!


E eu saí, como quem tudo repele, A Árvore da Serra
Velho caixão a carregar destroços.
- As árvores, meu filho, não têm alma!
Levando apenas na tumbal carcaça E esta árvore me serve de empecilho...
O pergaminho singular da pele É preciso cortá-la, pois, meu filho,
E o chocalho fatídico dos ossos! Para que eu tenha uma velhice calma!
Ermos = vazios.
Incisivas = afiadas; pontiagudas. - Meu pai, por que sua ira não se acalma?!
Tumbal = de tumba, de túmulo. Não vê que em tudo existe o mesmo brilho?!
Deus pôs almas nos cedros... no junquilho...
Psicologia de um vencido Esta árvore, meu pai, possui minh'alma! ...

Eu, filho do carbono e do amoníaco, - Disse - e ajoelhou-se, numa rogativa:


Monstro de escuridão e rutilância, "Não mate a árvore, pai, para que eu viva!"
Sofro, desde a epigênesis da infância, E quando a árvore, olhando a pátria serra,
A influência má dos signos do zodíaco.
Caiu aos golpes do machado bronco,
Profundissimamente hipocondríaco, O moço triste se abraçou com o tronco
Este ambiente me causa repugnância... E nunca mais se levantou da terra!
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.
O martírio do artista
Já o verme – este operário das ruínas –
Que o sangue podre das carnificinas Arte ingrata! E conquanto, em desalento,
Come, e à vida em geral declara guerra, A órbita elipsoidal dos olhos lhe arda,
Busca exteriorizar o pensamento
Anda a espreitar meus olhos para roê-los, Que em suas fronetais células guarda!
E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra! Tarda-lhe a idéia! A inspiração lhe tarda!
E ei-lo a tremer, rasga o papel, violento,
A Esperança Como o soldado que rasgou a farda
No desespero do último momento!
A Esperança não murcha, ela não cansa,
Também como ela não sucumbe a Crença. Tenta chorar e os olhos sente enxutos!...
Vão-se sonhos nas asas da Descrença, E como o paralítico que, à míngua
Voltam sonhos nas asas da Esperança. Da própria voz e na que ardente o lavra

Muita gente infeliz assim não pensa; Febre de em vão falar, com os dedos brutos
No entanto o mundo é uma ilusão completa, Para falar, puxa e repuxa a língua,
E não é a Esperança por sentença E não lhe vem à boca uma palavra!
Este laço que ao mundo nos manieta?

Mocidade, portanto, ergue o teu grito,


Sirva-te a Crença de fanal bendito,
Salve-te a glória no futuro - avança!

E eu, que vivo atrelado ao desalento,


Também espero o fim do meu tormento,
Na voz da Morte a me bradar; descansa!

Manietar = amarrar as mãos

Literatura – Prof. Fabrício César


27

Semana de arte Moderna


Que soluças tu,
Os sapos Transido de frio,
Sapo-cururu
Enfunando os papos, Da beira do rio...
Saem da penumbra, Manuel Bandeira
Aos pulos, os sapos.
A luz os deslumbra.
Manifesto Pau-Brasil
Em ronco que aterra,
Berra o sapo-boi: A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão
— ―Meu pai foi à guerra!‖ e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul
— ―Não foi!‖ — ―Foi!‖ — ―Não foi!‖. cabralino, são fatos estéticos.

O sapo-tanoeiro, O Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da


Parnasiano aguado, raça. Pau-Brasil. Wagner submerge ante os
Diz: — ―Meu cancioneiro cordões de Botafogo. Bárbaro e nosso. A
É bem martelado. formação étnica rica. Riqueza vegetal. O minério.
A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança.
Vede como primo [...]
Em comer os hiatos!
Que arte! E nunca rimo A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e
Os termos cognatos! neológica. A contribuição milionária de todos os
[...] erros. Como falamos. Como somos.
Vai por cinqüenta anos
Que lhes dei a norma: Não há luta na terra de vocações acadêmicas. Há
Reduzi sem danos só fardas. Os futuristas e os outros.
A formas a forma.
Uma única luta – a luta pelo caminho. Dividamos:
Clame a saparia Poesia de importação. E a Poesia Pau-Brasil, de
Em críticas céticas: exportação.
Não há mais poesia, [...]
Mas há artes poéticas...‖
Oswald de Andrade (Correio da Manhã, 1924)
Urra o sapo-boi:
— ―Meu pai foi rei‖ — ―Foi!‖
— ―Não foi!‖ — ―Foi!‖ — ―Não foi!‖ Manifesto Antropofágico

Brada em um assomo Só a Antropofagia nos une. Socialmente.


O sapo-tanoeiro: Economicamente. Filosoficamente.
— ―A grande arte é como
Lavor de joalheiro. Única lei do mundo. Expressão mascarada de
todos os individualismos, de todos os
Ou bem de estatuário. coletivismos. De todas as religiões. De todos os
Tudo quanto é belo, tratados de paz.
Tudo quanto é vário,
Canta no martelo.‖ Tupi, or not tupi that is the question.
[...] [...]
Lá, fugindo ao mundo,
Sem glória, sem fé, Oswald de Andrade (Revista de Antropofagia,
No perau profundo 1928.)
E solitário, é
Literatura – Prof. Fabrício César
28

Modernismo – I fase
Relicário
Oswald de Andrade No baile da corte
Foi o conde d’Eu quem disse
Erro de português
Pra Dona Benvinda
Que farinha de Suruí
Quando o português chegou
Pinga de Parati
Debaixo de uma bruta chuva
Fumo de Baependi
Vestiu o índio
É comê bebê pitá e caí
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
Contrabando
O índio tinha despido
O português
Os alfandegueiros de Santos
Examinaram minhas malas
Senhor feudal
Minhas roupas
Se Pedro Segundo
Mas se esqueceram de ver
Vier aqui
Que eu trazia no coração
Com história
Uma saudade feliz
Eu boto ele na cadeia
De Paris
Medo da senhora
Canto de regresso à pátria
A escrava pegou a filhinha nascida
Nas costas
Minha terra tem palmares
E se atirou no Paraíba
Onde gorjeia o mar
Para que a criança não fosse judiada
Os passarinhos daqui
Não cantam como os de lá
Pronominais
Minha terra tem mais rosas
Dê-me um cigarro
E quase que mais amores
Diz a gramática
Minha terra tem mais ouro
Do professor e do aluno
Minha terra tem mais terra
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Ouro terra amor e rosas
Da Nação Brasileira
Eu quero tudo de lá
Dizem todos os dias
Não permita Deus que eu morra
Deixa disso camarada
Sem que volte para lá
Me dá um cigarro
Não permita Deus que eu morra
Vício na fala
Sem que volte pra São Paulo
Sem que veja a Rua 15
Para dizerem milho dizem mio
E o progresso de São Paulo.
Para melhor dizem mió
Para pior pió
As meninas da gare
Para telha dizem teia
Para telhado dizem teiado Eram três ou quatro moças bem moças e bem gentis
E vão fazendo telhados Com cabelos mui pretos pelas espáduas
E suas vergonhas tão altas e tão saradinhas
O capoeira Que de nós as muito bem olharmos
— Qué apanhá sordado? Não tínhamos nenhuma vergonha.
— O quê?
— Qué apanhá?
Pernas e cabeças na calçada
Literatura – Prof. Fabrício César
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Mário Andrade O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,


é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!
Artista
Eu insulto as aristocracias cautelosas!
O meu desejo é ser pintor — Lionardo, Os barões lampiões! Os condes Joões! Os duques
cujo ideal em piedades se acrisola; zurros!
fazendo abrir-se ao mundo a ampla corola Que vivem dentro de muros sem pulos,
do sonho ilustre que em meu peito guardo... e gemem sangue de alguns mil-réis fracos
para dizerem que as filhas da senhora falam o
Meu anseio é, trazendo ao fundo pardo francês
da vida, a cor da veneziana escola, e tocam os "Printemps" com as unhas!
dar tons de rosa e de ouro, por esmola, [...]
a quanto houver de penedia ou cardo. Morte à gordura!
Morte às adiposidades cerebrais!
Quando encontrar o manancial das tintas Morte ao burguês-mensal!
e os pincéis exaltados com que pintas, Ao burguês-cinema! Ao burguês-tílburi!
Veronese! teus quadros e teus frisos, Padaria Suíça! Morte viva ao Adriano!
"— Ai, filha, que te darei pelos teus anos?
irei morar onde as Desgraças moram; — Um colar... — Conto e quinhentos!!!
e viverei de colorir sorrisos Más nós morremos de fome!"
nos lábios dos que imprecam ou que choram! [...]
Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!
Acrisola = purifica Morte ao burguês de giolhos,
Penedia = rocha cheirando religião e que não crê em Deus!
Cardo = espinho Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!
Imprecam = praguejam
Ódio fundamento, sem perdão!
Aceitarás o amor como eu o encaro?...
Fora! Fu! Fora o bom burguês!...
Aceitarás o amor como eu o encaro?...
Moça Linda Bem Tratada
...Azul bem leve, um nimbo, suavemente
Guarda-te a imagem, como um anteparo
Moça linda bem tratada,
Contra estes móveis de banal presente.
Três séculos de família,
Burra como uma porta:
Tudo o que há de melhor e de mais raro
Um amor.
Vive em teu corpo nu de adolescente,
A perna assim jogada e o braço, o claro
Grã-fino do despudor,
Olhar preso no meu, perdidamente.
Esporte, ignorância e sexo,
Burro como uma porta:
Não exijas mais nada. Não desejo
Um coió.
Também mais nada, só te olhar, enquanto
A realidade é simples, e isto apenas.
Mulher gordaça, filó,
De ouro por todos os poros
Que grandeza... a evasão total do pejo
Burra como uma porta:
Que nasce das imperfeições. O encanto
Paciência...
Que nasce das adorações serenas.
Plutocrata sem consciência,
Ode ao burguês
Nada porta, terremoto
Que a porta do pobre arromba:
Eu insulto o burguês! O burguês-níquel
Uma bomba.
o burguês-burguês!
A digestão bem-feita de São Paulo! Coió = tolo; palerma
O homem-curva! O homem-nádegas! Plutocrata = rico e poderoso
Literatura – Prof. Fabrício César
30

Inspiração Paisagem n° 4
Onde até na força do verão havia Os caminhões rodando, as carroças rodando,
tempestades de ventos e frios de rápidas as ruas se desenrolando,
crudelíssimos invernos rumor surdo e rouco, estrépitos, estalidos...
Frei Luís de Souza E o largo coro de ouro das sacas de café!...
São Paulo! comoção de minha vida... Na confluência o grito inglês da São Paulo Railway...
Os meus amores são flores feitas de original!... Mas as ventaneiras da desilusão! a baixa do café!...
Arlequinal!... Traje de losangos... Cinza e ouro... As quebras, as ameaças, as audácias superfinas!...
Luz e bruma... Forno e inverno morno... Fogem os fazendeiros para o lar!... Cincinato Braga!...
Elegâncias sutis sem escândalos, sem ciúmes... Muito ao longe o Brasil com seus braços cruzados...
Perfumes de Paris... Aryz! Oh! as indiferenças maternais!...
Bofetadas líricas no Trianon... Algodoal!... [...]
Oh! Este orgulho máximo de ser paulistamente!!!
São Paulo comoção de minha vida...
Galicismo a berrar nos desertos da América. Cincinato Braga: presidente do Banco do Brasil na década de
1910
Paisagem n° 1
Minhas Londres das neblinas finas! Quando eu morrer
Plenos verão. Os dez mil milhões de rosas
[paulistanas. Quando eu morrer quero ficar,
Há neve de perfume no ar. Não contem aos meus inimigos,
Faz frio, muito frio... Sepultado em minha cidade,
E a ironia das pernas das costureirinhas Saudade.
parecidas com bailarinas...
O vento é como uma navalha Meus pés enterrem na rua Aurora,
nas mãos dum espanhol. Arlequinal!... No Paissandu deixem meu sexo,
Há duas horas queimou Sol. Na Lopes Chaves a cabeça
Daqui a duas horas queima Sol. Esqueçam.
[...]
Paisagem n° 2 No Pátio do Colégio afundem
Escuridão dum meio-dia de invernia... O meu coração paulistano:
Marasmos... Estremeções... Brancos... Um coração vivo e um defunto
O céu é toda uma batalha convencional de confetti Bem juntos.
[brancos;
e as onças pardas das montanhas no longe... Escondam no Correio o ouvido
Oh! para além vivem as primaveras eternas! Direito, o esquerdo nos Telégrafos,
[...] Quero saber da vida alheia,
Deus recortou a alma de Paulicéia Sereia.
num cor de cinza sem odor...
[...] O nariz guardem nos rosais,
São Paulo é um palco de bailados russos. A língua no alto do Ipiranga
Sarabandam a tísica, a ambição, as invejas, os [crimes Para cantar a liberdade.
e também as apoteoses de ilusão... Saudade...
[...]
Paisagem n° 3 Os olhos lá no Jaraguá
Chove? Assistirão ao que há de vir,
Sorri uma garoa de cinza, O joelho na Universidade,
Muito triste, como um tristemente longo... Saudade...
A Casa Kosmos não tem impermeáveis em
[liquidação... As mãos atirem por aí,
[...] Que desvivam como viveram,
As rolas da Normal As tripas atirem pro Diabo,
Esvoaçam entre os dedos da garoa... Que o espírito será de Deus.
[...] Adeus.
De repente
Um raio de Sol arisco
Risca o chuvisco ao meio.
Literatura – Prof. Fabrício César
31

Manuel Bandeira Poética

Renúncia Estou farto do lirismo comedido


Do lirismo bem comportado
Chora de manso e no íntimo... Procura Do lirismo funcionário público com livro de ponto
[expediente protocolo e manifestações de apreço ao Sr.
Curtir sem queixa o mal que te crucia: diretor.
O mundo é sem piedade e até riria Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no
Da tua inconsolável amargura. [dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo.

Só a dor enobrece e é grande e é pura. Abaixo os puristas


Aprende a amá-la que a amarás um dia.
Então ela será tua alegria, Todas as palavras sobretudo os barbarismos
E será, ela só, tua ventura... [universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de
A vida é vã como a sombra que passa [exceção
Sofre sereno e de alma sobranceira Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Sem um grito sequer, tua desgraça.
Estou farto do lirismo namorador
Político
Encerra em ti tua tristeza inteira. Raquítico
E pede humildemente a Deus que a faça Sifilítico
Tua doce e constante companheira... De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora
[de si mesmo.
Desencanto
De resto não é lirismo
Eu faço versos como quem chora Será contabilidade tabela de co-senos secretário do
De desalento... de desencanto... [amante exemplar com cem modelos de cartas e as
Fecha o meu livro, se por agora [diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc.
Não tens motivo nenhum de pranto.
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
Meu verso é sangue. Volúpia ardente... O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
Tristeza esparsa... remorso vão... O lirismo dos clowns de Shakespeare
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração. — Não quero mais saber do lirismo que não é
[libertação.
E nestes versos de angústia rouca
Assim dos lábios a vida corre, Nova poética
Deixando um acre sabor na boca. Vou lançar a poesia do poeta sórdido.
Poeta sórdido:
_ Eu faço versos como quem morre. Aquele em cuja poesia há a marca suja da vida.
Vai um sujeito,
Consoada Sai um sujeito de casa com a roupa de brim
[branco muito bem engomada, e na primeira
Quando a indesejada das gentes chegar [esquina passa um caminhão, salpica-lhe o paletó
(Não sei se dura ou caroável), [de uma nódoa de lama:
Talvez eu tenha medo. É a vida.
Talvez sorria, ou diga:
_ Alô, iniludível! O poema deve ser como a nódoa do brim:
O meu dia foi bom, pode a noite descer. Fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero.
(A noite com os seus sortilégios.) Sei que a poesia é também orvalho.
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa, Mas este fica para as menininhas, as estrelas alfas,
A mesa posta, [as virgens cem por cento e as amadas que
Com cada coisa em seu lugar. [envelhecem sem maldade.

Literatura – Prof. Fabrício César


32

Tragédia Brasileira Poema do Beco

Misael, funcionário da Fazenda, com 63 anos de ―Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha
idade. [do horizonte?
__ O que eu vejo é o beco‖.
Conheceu Maria Elvira na Lapa – prostituída,
com sífilis, dermite nos dedos, uma aliança Poema tirado de uma notícia de jornal
empenhada e os dentes em petição de miséria.
João Gostoso era carregador de feira-livre e
Misael tirou Maria Elvira da vida, instalou-a [morava no morro da Babilônia num barracão
num sobrado no Estácio, pagou médico, dentista, [sem número
manicura... Dava tudo o que ela queria.
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Quando Maria Elvira se apanhou de boca Bebeu
bonita, arranjou logo um namorado. Cantou
Dançou
Misael não queria escândalo. Podia dar uma Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e
surra, um tiro, uma facada. Não fez nada disso: [morreu afogado.
mudou de casa.
Viveram três anos assim. Pneumotórax

Toda vez que Maria Elvira arranjava namorado, Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.
Misael mudava de casa. A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.
Os amantes moraram no Estácio, Rocha, Catete, Mandou chamar o médico:
Rua General Pedra, Olaria, Ramos, Bom Sucesso, — Diga trinta e três.
Vila Isabel, Rua Marquês de Sapucaí, Niterói, — Trinta e três . . . trinta e três . . . trinta e três . .
Encantado, Rua Clapp, outra vez no Estácio, — Respire.
Todos os Santos, Catumbi, Lavradio, Boca do ...............................................................................
Mato, Inválidos... — O senhor tem uma escavação no pulmão
[esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
Por fim na Rua da Constituição, onde Misael, — Então, doutor, não é possível tentar o
privado de sentidos e de inteligência, matou-a [pneumotórax?
com seis tiros, e a polícia foi encontrá-la caída em — Não. A única coisa a fazer é tocar um tango
decúbito dorsal, vestida de organdi azul. argentino.

O Bicho Andorinha
Andorinha lá fora está dizendo:
Vi ontem um bicho — "Passei o dia à toa, à toa!"
Na imundice do pátio Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais
Catando comida entre os detritos. [triste!
Passei a vida à toa, à toa . . .
Quando achava alguma coisa;
Não examinava nem cheirava: Neologismo
Engolia com voracidade.
Beijo pouco, falo menos ainda.
O bicho não era um cão, Mas invento palavras
Não era um gato, Que traduzem a ternura mais funda
Não era um rato. E mais cotidiana.
Inventei, por exemplo, o verbo teadorar.
O bicho, meu Deus, era um homem. Intransitivo:
Teadoro, Teodora.

Literatura – Prof. Fabrício César


33

Arte de Amar Passa boi


Passa boiada
Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a Passa galho
[tua alma. Da ingazeira
A alma é que estraga o amor. Debruçada
No riacho
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Que vontade
Não noutra alma. De cantar!
Só em Deus – ou fora do mundo. Oô...
As almas são incomunicáveis.
Quando me prendero
Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo. No canaviá
Porque os corpos se entendem, mas as almas não. Cada pé de cana
Era um oficiá
Debussy Oô...

Para cá, para lá... Menina bonita


Do vestido verde
Para cá, para lá...
Me dá tua boca
Um novelozinho de linha... Pra matar minha sede
Para cá, para lá... Oô...
Para cá, para lá...
Oscila no ar pela mão de uma criança... Vou mimbora vou mimbora
(Vem e vai...) Não gosto daqui
Que delicadamente e quase a adormecer o balança Nasci no sertão
_ Psiu... _ Sou de Ouricuri
Para cá, para lá... Oô...
Para cá e...
_ O novelozinho caiu. Vou depressa
Vou correndo
Vou na toda
Trem de ferro Que só levo
Pouca gente
Café com pão Pouca gente
Café com pão Pouca gente...
Café com pão
Momento num café
Virge Maria que foi isso maquinista?

Agora sim Quando o enterro passou


Café com pão Os homens que se achavam no café
Agora sim Tiraram o chapéu maquinalmente
Voa, fumaça Saudavam o morto distraídos
Corre, cerca Estavam todos voltados para a vida
Ai seu foguista Absortos na vida Confiantes na vida.
Bota fogo
Na fornalha Um, no entanto, se descobriu num gesto largo e
Que eu preciso demorado
Muita força Olhando o esquife longamente
Muita força
Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem
Muita força
Oô... finalidade
Que a vida é traição
Foge, bicho E saudava a matéria que passava
Foge, povo Liberta para sempre da alma extinta.
Passa ponte
Passa poste
Passa pasto
Literatura – Prof. Fabrício César
34

Modernismo – II fase Alguns achei belos, foram publicados.


Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Carlos Drummond de Andrade Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.
No meio do caminho
Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
No meio do caminho tinha uma pedra Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
tinha uma pedra no meio do caminho Porém meu ódio é o melhor de mim.
tinha uma pedra Com ele me salvo
no meio do caminho tinha uma pedra. e dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!


Nunca me esquecerei desse acontecimento Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do
na vida de minhas retinas tão fatigadas. [tráfego.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho Uma flor ainda desbotada
tinha uma pedra ilude a polícia, rompe o asfalto.
Tinha uma pedra no meio do caminho Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
no meio do caminho tinha uma pedra. garanto que uma flor nasceu.

Cota zero Sua cor não se percebe.


Stop. Suas pétalas não se abrem.
A vida parou Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.
ou foi o automóvel?
Sento-me no chão da capital do país às cinco horas [da
A Flor e a Náusea tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Preso à minha classe e a algumas roupas, Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Vou de branco pela rua cinzenta. Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas
Melancolias, mercadorias espreitam-me. [em pânico.
Devo seguir até o enjôo? É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo
Posso, sem armas, revoltar-me? [e o ódio.
Olhos sujos no relógio da torre:
José
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e
espera. E agora, José?
O tempo pobre, o poeta pobre A festa acabou,
fundem-se no mesmo impasse. a luz apagou,
o povo sumiu,
Em vão me tento explicar, os muros são surdos. a noite esfriou,
Sob a pele das palavras há cifras e códigos. e agora, José?
O sol consola os doentes e não os renova. e agora, Você?
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem Você que é sem nome,
ênfase. que zomba dos outros,
Você que faz versos,
Vomitar esse tédio sobre a cidade.
que ama, protesta?
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado. e agora, José?
Nenhuma carta escrita nem recebida. [...]
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais Com a chave na mão
e soletram o mundo, sabendo que o perdem. quer abrir a porta,
não existe porta;
Crimes da terra, como perdoá-los? quer morrer no mar,
Tomei parte em muitos, outros escondi. mas o mar secou;
Literatura – Prof. Fabrício César
35

quer ir para Minas, Mundo mundo vasto mundo,


Minas não há mais. se eu me chamasse Raimundo
José, e agora? seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
Se você gritasse, mais vasto é meu coração.
se você gemesse,
se você tocasse, Eu não devia te dizer
a valsa vienense, mas essa lua
se você dormisse, mas esse conhaque
se você cansasse, botam a gente comovido como o diabo.
se você morresse.... Gauche: adjetivo francês que aqui significa “sem jeito”;
Mas você não morre, “torto”;
você é duro, José!
Cidadezinha Qualquer
Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato, Casas entre bananeiras
sem teogonia, mulheres entre laranjeiras
sem parede nua pomar amor cantar.
para se encostar,
sem cavalo preto Um homem vai devagar.
que fuja do galope, Um cachorro vai devagar.
você marcha, José! Um burro vai devagar.
José, para onde? Devagar... as janelas olham.

Poema de sete faces Eta vida besta, meu Deus.

Quando nasci, um anjo torto Infância


desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida. Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada cosendo.
As casas espiam os homens Meu irmão pequeno dormia.
que correm atrás de mulheres. Eu sozinho menino entre mangueiras
A tarde talvez fosse azul, lia a história de Robinson Crusoé,
não houvesse tantos desejos. comprida história que não acaba mais.

O bonde passa cheio de pernas: No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu
pernas brancas pretas amarelas. a ninar nos longes da senzala – e nunca se
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu esqueceu
[coração. chamava para o café.
Porém meus olhos Café preto que nem a preta velha
não perguntam nada. café gostoso
café bom.
O homem atrás do bigode
é serio, simples e forte. Minha mãe ficava sentada cosendo
Quase não conversa. olhando para mim:
Tem poucos, raros amigos - Psiu... Não acorde o menino.
o homem atrás dos óculos e do bigode. Para o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro... que fundo!
Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus Lá longe meu pai campeava
se sabias que eu era fraco. no mato sem fim da fazenda.
E eu não sabia que minha história
era mais bonita que a de Robinson Crusoé.
Literatura – Prof. Fabrício César
36

As sem-razões do amor Procura da poesia

Eu te amo porque te amo, Não faças versos sobre acontecimentos.


Não precisas ser amante, Não há criação nem morte perante a poesia.
e nem sempre sabes sê-lo. Diante dela, a vida é um sol estático,
Eu te amo porque te amo. não aquece nem ilumina.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga. As afinidades, os aniversários, os incidentes
[pessoais não contam.
Amor é dado de graça, Não faças poesia com o corpo,
é semeado no vento, esse excelente, completo e confortável corpo, tão
na cachoeira, no eclipse. [infenso à efusão lírica.
Amor foge a dicionários [...]
e a regulamentos vários. Penetra surdamente no reino das palavras.
Eu te amo porque não amo Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
bastante ou demais a mim. Estão paralisados, mas não há desespero,
Porque amor não se troca, há calma e frescura na superfície intata.
não se conjuga nem se ama. Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Porque amor é amor a nada, Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
feliz e forte em si mesmo.
Tem paciência se obscuros. Calma, se te
Amor é primo da morte, [provocam.
e da morte vencedor, Espera que cada um se realize e consume
por mais que o matem (e matam) com seu poder de palavra
a cada instante de amor. e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Quadrilha Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e
João amava Teresa que amava Raimundo [concentrada no espaço.
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém. Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
João foi para o Estados Unidos, Teresa para o
tem mil faces secretas sob a face neutra
convento, Raimundo morreu de desastre,
Maria ficou para tia, e te pergunta, sem interesse pela resposta,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto pobre ou terrível, que lhe deres: Trouxeste a
Fernandes que não tinha entrado na história. [chave?

Repara:
Consideração do poema ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Não rimarei a palavra sono Ainda úmidas e impregnadas de sono,
com a incorrespondente palavra outono. rolam num rio difícil e se transformam em
Rimarei com a palavra carne [desprezo.
ou qualquer outra, que todas me convêm.
As palavras não nascem amarradas,
elas saltam, se beijam, se dissolvem,
no céu livre por vezes um desenho,
são puras, largas, autênticas, indevassáveis.
[...]

Literatura – Prof. Fabrício César


37

Vinícius de Moraes Da rosa da rosa


Da rosa de Hiroxima
Soneto de fidelidade A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
De tudo ao meu amor serei atento A rosa com cirrose
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto A anti-rosa atômica
Que mesmo em face do maior encanto Sem cor sem perfume
Dele se encante mais meu pensamento. Sem rosa sem nada.

Quero vivê-lo em cada vão momento Poema enjoadinho


E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto Filhos... Filhos?
Ao seu pesar ou seu contentamento Melhor não tê-los!
Mas se não os temos
E assim, quando mais tarde me procure Como sabê-lo?
Quem sabe a morte, angústia de quem vive Se não os temos
Que de consulta
Quem sabe a solidão, fim de quem ama Quanto silêncio
Como os queremos!
Eu possa me dizer do amor (que tive): Banho de mar
Que não seja imortal, posto que é chama Diz que é um porrete...
Mas que seja infinito enquanto dure. Cônjuge voa
Transpõe o espaço
Soneto de separação Engole água
Fica salgada
De repente do riso fez-se o pranto Se iodifica
Silencioso e branco como a bruma Depois, que boa
E das bocas unidas fez-se a espuma Que morenaço
Que a esposa fica!
E das mãos espalmadas fez-se o espanto. Resultado: filho.
E então começa
De repente da calma fez-se o vento A aporrinhação:
Que dos olhos desfez a última chama Cocô está branco
E da paixão fez-se o pressentimento Cocô está preto
E do momento imóvel fez-se o drama. Bebe amoníaco
Comeu botão.
De repente, não mais que de repente Filhos? Filhos
Fez-se de triste o que se fez amante Melhor não tê-los
E de sozinho o que se fez contente. Noites de insônia
Cãs prematuras
Prantos convulsos
Fez-se do amigo próximo o distante Meu Deus, salvai-o!
Fez-se da vida uma aventura errante Filhos são o demo
De repente, não mais que de repente. Melhor não tê-los...
Mas se não os temos
A rosa de Hiroxima Como sabê-los?
Como saber
Pensem nas crianças Que macieza
Mudas telepáticas Nos seus cabelos
Pensem nas meninas Que cheiro morno
Cegas inexatas Na sua carne
Pensem nas mulheres Que gosto doce
Rotas alteradas Na sua boca!
Pensem nas feridas Chupam gilete
Como rosas cálidas Bebem shampoo
Mas oh não se esqueçam Ateiam fogo
Literatura – Prof. Fabrício César
38

No quarteirão Cecília Meireles


Porém, que coisa
Que coisa louca
Motivo
Que coisa linda
Que os filhos são!
Eu canto porque o instante existe
A Casa e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
Era uma casa sou poeta.
Muito engraçada
Não tinha teto, Irmão das coisas fugidias,
Não tinha nada não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
Ninguém podia no vento.
Entrar nela, não
Porque na casa Se desmorono ou se edifico,
Não tinha chão
se permaneço ou me desfaço, —
Ninguém podia não sei, não sei. Não sei se fico
Dormir na rede ou passo.
Porque na casa
Não tinha parede Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
Ninguém podia E um dia sei que estarei mudo:
Fazer pipi — mais nada.
Porque penico
Não tinha ali Romanceiro da Inconfidência (1953)
Mas era feita “Das Idéias”
Com muito esmero
Na rua dos bobos A vastidão destes campos.
Número Zero. A alta muralha das serras.
As lavras inchadas de ouro.
Samba da benção Os diamantes entre as pedras.
Negros, índios e mulatos.
É melhor ser alegre que ser triste Almocafres e gamelas.
Alegria é a melhor coisa que existe
É assim como a luz no coração Os rios todos virados.
Mas pra fazer um samba com beleza Toda revirada, a terra.
É preciso um bocado de tristeza - bis Capitães, governadores,
Senão, não se faz um samba não. Padres, intendentes, poetas.
[...] [...]
Fazer samba não é contar piada Sinos. Procissões. Promessas.
E quem faz samba assim não é de nada Anjos e santos nascendo
O bom samba é uma forma de oração Em mãos de gangrena e lepra.
Porque o samba é a tristeza que balança [...]
E a tristeza tem sempre uma esperança - bis Pátios de seixos. Escadas.
De um dia não ser mais triste não Boticas. Pontes. Conversas.
[...] Gente que chega e que passa.
Ponha um pouco de amor numa cadência E as idéias.
E vai ver que ninguém no mundo vence
A beleza que tem um samba, não “Dos Ilustres Assassinos”
Porque o samba nasceu lá na Bahia
E se hoje ele é branco na poesia - bis Ó grandes oportunistas
Ele é negro demais no coração. Sobre o papel debruçados
Que calculais o mundo e vida
Em contos, doblas, cruzados,
Literatura – Prof. Fabrício César
39

Que traçais vastas rubricas


E sinais entrelaçados
Modernismo – III fase
Com altas penas esguias
Embebidas em pecados! João Cabral de Melo Neto
Ó personagens solenes Psicologia da Composição
Que arrastais os apelidos
Como pavões auriverdes II
Seus rutilantes vestidos Esta folha branca
- todo este poder que tendes me proscreve o sonho,
Confunde os vossos sentidos: me incita ao verso
A glória, que amais, é desses
nítido e preciso.
Que por vós são perseguidos.
Levantai-vos dessas mesas, Eu me refugio
Saí das vossas molduras, nesta praia pura
Vede que masmorras negras, onde nada existe
Que fortalezas seguras, em que a noite pouse.
Que duro peso de algemas,
Que profunda sepulturas Como não há noite
Nascidas de vossas penas, cessa toda a fonte;
De vossas assinaturas! como não há fonte
cessa toda a fuga;
Considerai no mistério,
Dos humanos desatinos
como não há fuga
E no pólo sempre incerto
Dos homens e dos destinos! nada lembra o fluir
Por sentenças, por decretos de meu tempo, ao vento
Pareceríeis divinos: que nele sopra o tempo.
E hoje sois, no tempo eterno,
Como ilustres assassinos. VI
Não a forma encontrada
Ó soberbos titulares, como uma concha, perdida
Tão desdenhosos e altivos! nos frouxos areais
Por fictícia austeridade, como cabelos;
Vãs razões, falsos motivos,
não a forma obtida
Inutilmente matastes:
em lance santo ou raro,
- vossos mortos são mais vivos;
E, sobre vós, de longe abrem tiro nas lebres de vidro
Grandes olhos pensativos. do invisível;

"Os Inconfidentes" mas a forma atingida


como a ponta do novelo
Toda vez que um justo grita que a atenção, lenta,
Um carrasco o vem calar desenrola,
Quem não presta fica vivo
Quem é bom, mandam matar aranha; como o mais extremo
Quem não presta fica vivo desse fio frágil, que se rompe
Quem é bom, mandam matar
ao peso, sempre, das mãos
Foi trabalhar para todos enormes.
E vede o que lhe acontece
Daqueles a quem servia O engenheiro
Já nenhum mais o conhece
Quando a desgraça é profunda A luz, o sol, o ar livre
Que amigo se compadece? envolvem o sono do engenheiro.
O engenheiro sonha coisas claras:
superfícies, tênis, um copo de água.
Literatura – Prof. Fabrício César
40

O lápis, o esquadro, o papel; Catar feijão


o desenho, o projeto, o número: 1.
o engenheiro pensa o mundo justo, Catar feijão se limita com escrever:
mundo que nenhum véu encobre. jogam-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na da folha de papel;
(Em certas tardes nós subíamos e depois joga-se fora o que boiar.
ao edifício. A cidade diária, Certo, toda palavra boiará no papel,
como um jornal que todos liam, água congelada, por chumbo seu verbo:
ganhava um pulmão de cimento e vidro). pois para catar feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.
A água, o vento, a claridade,
de um lado o rio, no alto as nuvens, 2.
situavam na natureza o edifício Ora, nesse catar feijão, entra um risco:
crescendo de suas forças simples. o de entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
“A palo seco” um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quanto ao catar palavras:
1.1. Se diz a palo seco a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
o cante sem guitarra; obstrui a leitura fluviante, flutual,
o cante sem; o cante; açula a atenção, isca-a com o risco.
o cante sem mais nada
[...] Tecendo a manhã
1.3. O cante a palo seco
é um cante desarmado; 1.
só a lâmina da voz Um galo sozinho não tece uma manhã:
sem a arma do braço Ele precisará sempre de outros galos.
[...] De que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
Graciliano Ramos que apanhe esse grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
Falo somente com o que falo: que com muitos outros galos se cruzem
com as mesmas vinte palavras os fios de sol de seus gritos de galo,
girando ao redor do sol para que a manhã, desde uma teia tênue,
que as limpa do que não é faca: se vá tecendo, entre todos os galos.

de toda uma crosta viscosa, 2.


resto de janta abaianada, E se encorpando em tela, entre todos,
que fica na lâmina e cega se erguendo tenda, onde entrem todos,
seu gosto da cicatriz clara. se entretendendo para todos, no toldo
*** (a manhã) que plana livre de armação.
[...] A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
Falo somente com o que falo: que, tecido, se eleva por si: luz balão.
quem padece sono de morto
e precisa um despertador A educação pela pedra
acre, como o sol sobre o olho:
Uma educação pela pedra: por lições;
que é quando o sol é estridente, para aprender da pedra, freqüentá-la;
e contra-pêlo, imperioso, captar sua voz inenfática, impessoal
e bate nas pálpebras como (pela dicção ela começa as aulas).
se bate numa porta a socos. A lição de moral, sua resistência fria
*** ao que flui e a fluir, a ser maleada;

Literatura – Prof. Fabrício César


41

a de poética, sua carnadura concreta; Mas isso ainda diz pouco:


a de economia, seu adensar-se compacta: há muitos na freguesia,
lições de pedra (de fora para dentro, por causa de um coronel
cartilha muda), para quem soletrá-la. que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
* senhor desta sesmaria.
Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática). Como então dizer quem fala
No Sertão a pedra não sabe lecionar, ora a Vossas Senhorias?
e se lecionasse, não ensinaria nada; Vejamos: é o Severino
lá não se aprende a pedra: lá a pedra, da Maria do Zacarias,
uma pedra de nascença, entranha alma lá da serra da Costela,
limites da Paraíba.
Cemitério Pernambucano Mas isso ainda diz pouco:
(Nossa Senhora da Luz) se ao menos mais cinco havia
com nome de Severino
Nesta terra ninguém jaz, filhos de tantas Marias
pois também não jaz um rio mulheres de outros tantos,
noutro rio, nem o mar já finados, Zacarias,
é cemitério de rios. vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu vivia.
Nenhum dos mortos daqui
vem vestido de caixão. Somos muitos Severinos
Portanto, eles não se enterram, iguais em tudo na vida:
são derramados no chão. na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
Vêm em redes de varandas no mesmo ventre crescido
abertas ao sol e à chuva. sobre as mesmas pernas finas,
Trazem suas próprias moscas. e iguais também porque o sangue
O chão lhes vai como luva. que usamos tem pouca tinta.

Mortos ao ar-livre que eram, E se somos Severinos


hoje à terra-livre estão. iguais em tudo na vida,
São tão da terra que a terra morremos de morte igual,
nem sente sua intrusão. mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
Morte e vida Severina de velhice antes dos trinta,
(Auto de Natal Pernambucano) 1954-1955 de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia
O RETIRANTE EXPLICA AO LEITOR QUEM É (de fraqueza e de doença
E A QUE VAI é que a morte severina
— O meu nome é Severino, ataca em qualquer idade,
Não tenho outro de pia. e até gente não nascida).
Como há muitos Severinos, [...]
que é santo de romaria, Mas, para que me conheçam
deram então de me chamar melhor Vossas Senhorias
Severino de Maria; e melhor possam seguir
como há muitos Severinos a história de minha vida,
com mães chamadas Maria, passo a ser o Severino
fiquei sendo o da Maria que em vossa presença emigra.
do finado Zacarias. [...]

Literatura – Prof. Fabrício César


42

Poesia Concreta

Augusto de Campos

Décio Pignatari
Augusto de Campos

Augusto de Campos

Pedro Xisto
Literatura – Prof. Fabrício César
43

José Paulo Paes

Pedro Xisto

vai e vem
e e
Décio Pignatari
vem e vai
José Lino Grünewald

V V V VVVVVVV
V V V VVVVVVE
V V V VVVVVE L
V V V VVVVE LO
V V V VVVE LOC
V V V VVE LOC I
V V V VE LOC I D Philadelpho Menezes
V V V E LOC I DA
V V E LOC I DAD
V E L OC I DADE
Ronaldo Azeredo

Literatura – Prof. Fabrício César


44

Poema/processo O funcionário público


não cabe no poema
Poema Código com seu salário de fome
FOME sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras

- porque o poema, senhores,


está fechado:
"não há vagas"

Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço

O poema, senhores,
não fede
nem cheira
Ferreira Gullar

O açúcar

O branco açúcar que adoçará meu café


Nesta manhã de Ipanema
Não foi produzido por mim
Nem surgiu dentro do açucareiro por milagre.

Vejo-o puro
E afável ao paladar
José de Arimatéia Como beijo de moça, água
Na pele, flor
Que se dissolve na boca. Mas este açúcar
Poesia Social Não foi feito por mim.
Não há vagas Este açúcar veio
Da mercearia da esquina e
O preço do feijão Tampouco o fez o Oliveira,
não cabe no poema. O preço Dono da mercearia.
do arroz Este açúcar veio
não cabe no poema. De uma usina de açúcar em Pernambuco
Não cabem no poema o gás Ou no Estado do Rio
a luz o telefone E tampouco o fez o dono da usina.
a sonegação
do leite Este açúcar era cana
da carne E veio dos canaviais extensos
do açúcar Que não nascem por acaso
do pão No regaço do vale.

Literatura – Prof. Fabrício César


45

Amor, então,
Em lugares distantes, também acaba?
Onde não há hospital, Não, que eu saiba.
Nem escola, homens que não sabem ler e morrem O que eu sei
de fome é que se transforma
Aos 27 anos numa matéria-prima
Plantaram e colheram a cana que a vida se encarrega
Que viraria açúcar. de transformar em raiva.
Em usinas escuras, homens de vida amarga Ou em rima.
E dura Paulo Leminski
Produziram este açúcar
Branco e puro moinho de versos
Com que adoço meu café esta manhã movido a vento
Em Ipanema. em noites de boemia
Ferreira Gullar
vai vir o dia
Poesia Marginal quando tudo que eu diga
seja poesia
Papo de Índio Paulo Leminski
Veiu uns ômi di saia preta
cheiu di caixinha e pó branco o pauloleminski
qui eles disserum qui chamava açucri é um cachorro louco
aí eles falarum e nós fechamu a cara que deve ser morto
depois eles arrepitirum e nós fechamu o corpo a pau a pedra
aí eles insistirum e nós comemu eles. a fogo a pique
Chacal senão é bem capaz
o filhodaputa
cansei da frase polida de fazer chover
por anjos da cara pálida em nosso piquenique
palmeiras batendo palmas Paulo Leminski
ao passarem paradas
agora eu quero a pedrada Rápido e Rasteiro
chuva de pedras palavras
distribuindo pauladas Vai ter uma festa
Paulo Leminski que eu vou dançar
até o sapato pedir pra parar.
Descartes
Não há aí eu paro
no mundo nada tiro o sapato
mais bem e danço o resto da vida.
distribuído do que a Chacal
razão: até quem não tem tem
um pouquinho saber é pouco
Cacaso como é que a água do mar
entra dentro do coco?
Pega ladrão Paulo Leminski
Alguém tirou
um pedaço esta vida é uma viagem
do meu pena eu estar
P ~O só de passagem
Kátia Bento Paulo Leminski

Literatura – Prof. Fabrício César

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